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FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade 1 – a vontade de saber.

Rio de Janeiro:
Graal, 1988.

I - NÓS, OS VITORIANOS

À uma certa tolerância e familiaridade com práticas, gestos e palavras sexuais


existentes até o séc. XVII, os costumes vitorianos teriam imposto um grande véu de
silêncio que encerraria a sexualidade para o âmbito da família. Apenas o casal, com o
intuito de procriar, faria o sexo legítimo, e mesmo assim em silêncio, em uma repressão que
não apenas cala mas nega a existência, como se não houvesse nada para ser visto. A
sexualidade ilegítima é levada a outros ambientes: a casa de saúde e o prostíbulo, onde, se
não reproduzem a espécie, ao menos geram lucro. Ao início da Era da Repressão
corresponderia o capitalismo, no qual é intolerável qualquer desperdício de força de
trabalho com o prazer.
Falar de sexo, neste ambiente repressor, era subversivo, e até hoje o é. A ligação
entre poder, saber e sexualidade é forte: qualquer eclosão de verdades pode corresponder a
um abalo na economia do poder. É por isto que, se Freud coloca o sexo em pauta, este
ainda é relegado ao consultório, e a altos preços. Além disto, “se o sexo é reprimido, isto é,
fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua
repressão possui como que um ar de transgressão deliberada” (12). Sexo, liberação da
verdade e inversão da ordem estabelecida estão muito ligados no discurso moderno – este
discurso que até agora foi aqui representado e que Foucault diz apresentar uma hipótese
repressiva. O autor pretende trabalhar este discurso, que fala sobre o próprio silêncio; que,
reprimido, diz contra a repressão. Antes de buscar descobrir porque associamos sexo ao
pecado, o autor busca descobrir porque nos culpamos por fazê-lo. À hipótese repressiva,
Foucault coloca três questões:
A repressão do sexo seria, mesmo, uma evidência histórica? [...] a mecânica do poder e, em
particular, a que é posta em jogo numa sociedade como a nossa, seria mesmo,
essencialmente, de ordem repressiva? [...] Existiria mesmo uma ruptura histórica entre a
Idade da Repressão e a análise crítica da repressão? (15)
O objetivo não é negar, mas problematizar o discurso, alocando-o histórica e
socialmente – entender o regime do poder-saber-prazer entre nós. Saber quem fala sobre
sexo, onde, como e porque. Não simplesmente partir do pressuposto que há uma máquina
centralizante que diz “não” a tudo, sistematicamente. Fugir da economia da escassez e
buscar entender as instancias de produção discursiva, de saber e de poder.

II - A HIPÓTESE REPRESSIVA
 A INCITAÇÃO DOS DISCURSOS
Foucault afirma que, do séc. XVII para cá, ao invés da crescente censura e silêncio
em torno do sexo, o que se constata é uma explosão discursiva sobre o mesmo. Os
discursos vinham mediados por alusões, metáforas, claro, e haviam regiões interditas (não é
em todo local, nem com qualquer pessoa que se fala sobre sexo), mas ainda assim: não
apenas de forma ilícita, mas também entre aqueles que exercem o poder, o sexo foi cada
vez mais tratado. A confissão, cada vez mais descritiva, na igreja, é um exemplo, criando
meticulosas regras de auto-exame e dando crescente importância aos pecados carnais, até
mesmo o desejo, que toma um primado em relação ao ato. Trata-se de uma colocação de
todas as formas de sexo como discurso (com regras, é certo)
O essencial é bem isso: que o homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a
essa tarefa que consiste em dizer tudo sobre seu sexo; que, a partir da época clássica, tenha
havido uma majoração constante e uma valorização cada vez maior do discurso sobre o
sexo; e que se tenha esperado desse discurso, cuidadosamente analítico, efeitos múltiplos de
deslocamento, de intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo
(26).
Também os libertinos transformavam o sexo em discurso detalhado, mas estes com
o intuito de prolongar e estimular o desejo. O essencial é saber que esta crescente
transcrição do desejo de alguma forma modifica-o. Para “além da moral”, discursos e
pesquisas quantitativas ou causais sobre sexo também surgiram buscando um ponto de vista
da racionalidade. Aqui, “[...] cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve
simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para
o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas,
administra-se” (27).
A conduta sexual da população é cerne e alvo de uma intervenção da demografia,
transformando-a em conduta política e econômica. A sexualidade dentro dos colégios
torna-se um problema público discutido por pais, pedagogos e professores – e pelas
próprias crianças, enredadas numa teia de discurso canônico que propagava uma estrutura
de poderes. Médicos, psiquiatras, juristas e outros também falavam sobre o sexo, de forma
que, antes de uma binarização discurso/silêncio, Foucault propõe que observemos uma
multiplicidade crescente de discursos e de silêncios acerca do sexo (30)
Assim, de cotidiano, o sexo foi tornado público, observado, analisado,
teorizado.”[...] o sexo se tornou, de todo modo, algo que se deve dizer, e dizer
exaustivamente, segundo dispositivos discursivos diversos, mas todos constrangedores,
cada um à sua maneira” (34). Tal erotismo discursivo, múltiplo e generalizado torna o sexo
central em nossa sociedade. Quebrou-se a unidade e a linearidade no discurso sobre o sexo,
agora polimorficamente incitado. Para tal, o próprio fato do sexo ter sido valorizado como
O segredo, contribuiu.

 A IMPLANTAÇÃO PERVERSA
Sob uma amálgama da hipótese repressiva com que o que Foucault contrastou até
agora, vemos que não o silêncio, mas os múltiplos discursos em torno da sexualidade é que
teriam como objetivo organizar uma sexualidade canônica e útil, centrada na genitalidade e
na reprodução. ”O século XIX e o nosso foram, antes de mais nada, a idade da
multiplicação: uma dispersão de sexualidades, um reforço de suas formas absurdas, uma
implantação múltipla das ‘perversões’. Nossa época foi iniciadora de heterogeneidades
sexuais.” (38).
Até o séc. XVIII, o foco do discurso sexual explícito era as relações matrimoniais, o
que era lícito e ilícito entre cônjuges – não havia nítida distinção entre regras de aliança e
desvios de genitalidade: adultério e sodomia eram igualmente condenados como atos anti-
naturais, fora-da-lei e pecaminosos. Aos poucos, mesmo o casal legítimo mantendo-se
como norma rigorosa, o discurso se desloca para o que há de “periférico”: as crianças, os
loucos, os criminosos, ainda condenados mas agora escutados. Cada uma destas formas
ganha autonomia e se diferencia das demais – surge a figura do perverso, qual os antigos
libertinos, porém mais próximo da delinqüência e da loucura.
Ao invés de proibição, agora exercem-se quatro operações (ver pp. 42-26). Em
relação ao onanismo, há a penetração e a difusão infinita de poder; no que diz respeito ao
homossexualismo, houve uma maior individuação – o perverso agora é um personagem,
possui história, etc. Além disso, mais que no ato da sodomia, centra-se agora na condição
interior do homossexual – enquanto espécie de natureza singularmente andrógina.
Especifica-se cada sexualidade aberrante disseminando-as no real e incorporando-as ao
indivíduo. O poder se aproxima de seus objetos e assim sensualiza-se na medida em que há
prazer tanto em fiscalizar os sujeitos quanto em burlar o poder. Por fim,
Poder-se-ia também dizer que ela [a sociedade moderna] inventou, ou pelo menos organizou
cuidadosamente e fez proliferar, grupos com elementos múltiplos e sexualidade circulante:
uma distribuição de pontos de poder hierarquizados ou nivelados, uma “busca” de prazeres
– no duplo sentido de desejados e perseguidos; sexualidades parcelares toleradas ou
encorajadas; proximidades que se apresentam como procedimentos de vigilância e
funcionam como mecanismos de intensificação; contatos indutores (45-46)
O poder sobre o corpo e o sexo, exercido em nossas sociedades atiça as diversas
formas da sexualidade, provocando sua explosão e fragmentação. A sociedade moderna
organiza e fixa as diversas perversões, através de uma prática discursiva que extrai dos – e
consolida nos – corpos seus prazeres. O movimento não é de uma maior perversão dada
uma maior repressão, nem tampouco de uma descoberta das perversões por parte dos
mecanismos reguladores, mas de um entrelaçamentos poderes-prazeres que ramificam-se
em uma perseguição infinita um pelo outro.

III - SCIENTIA SEXUALIS

A ciência do sexo, no séc. XIX era, na visão de Foucault, extremamente


problemática. Mais preocupados em manter um status quo do que com a verdade, os
médicos se perdiam em esquivas ao catalogar as perversões e denunciar seus males –
produzindo estas verdades. Mesmo que com o intuito de mascará-las depois. De qualquer
forma, é neste momento que o sexo torna-se objeto de verdade.
O autor opõe a ars erotica à scientia sexualis como formas de produzir verdade
sobre o sexo e de ordenar a relação poder-prazer-saber, sendo a última baseada na prática
da confissão (em sentido amplo) como meio privilegiado de produção de verdade dentro do
processo de individualização moderno. A confissão, em suas várias formas, entranha-se na
vida moderna, colocando a “verdade” como fundamentalmente interna e libertadora –
quando de fato esta é regulada por relações de poder, já que a confissão requer, ao menos
virtualmente, um parceiro que a exige com fins de julgar ou modificar o enunciador.
O sexo é privilegiado, no que tange às confissões:
A colocação do sexo em discurso, de que falamos anteriormente, a disseminação e o reforço
do despropósito sexual são, talvez, duas peças de um mesmo dispositivo; articulam-se nele
graças ao elemento central de uma confissão que obriga à enunciação verídica da
singularidade sexual – por mais extrema que ela seja. (61)
A ciência médica do séc. XIX criava seu arquivo de prazeres do sexo a partir de
confissões não apenas acerca do ato em si, mas sobretudo o que os rodeava.
Paradoxalmente tentava unir a verdade objetiva produzida pela ciência com a verdade
confessional eminentemente subjetiva através de alguns procedimentos (ver pp. 64-66):
codificando o “fazer-falar”; postulando uma causalidade geral do sexo ao longo da
existência do sujeito; caracterizando esta causalidade como latente ou obscura;
interpretando, ou seja: dando lugar de construir a verdade a quem ouve; e, finalmente,
medicalizando as confissões, isto é: colocando-as sobre o registro do normal e do
patológico.
Cria-se, assim, o domínio da sexualidade, passível de intervenções terapêuticas e de
normalização – já que o novo saber demonstra o que é que determina o sujeito.

IV - O DISPOSITIVO DA SEXUALIDADE
1 – O QUE ESTÁ EM JOGO

Aqui Foucault irá mais a fundo nas relações entre desejo e poder. Na visão dos
psicanalistas, não se pode falar de duas energias contrárias – uma selvagem e natural do
desejo sedo barrada por outra, a das leis, do poder – pois “é a lei que é constitutiva do
desejo e da falha que o instaura” (79). No entanto, para o autor, esta visão não constrói uma
noção de poder distinta que é usada nas teorias “tradicionais” da relação desejo/poder
(repressão dos instintos, poder externo ao desejo). Trata-se da representação jurídico-
discursiva do poder, que, aliás, é muito geral no pensamento ocidental, e é caracterizada por
Foucault segundo seus traços principais:
 Relação negativa com o sexo (só diz não, só produz falhas).
 Instância de regra (cria as regras, através do discurso, decifrando o sexo ao
encerrá-lo em um regime de lícito/ilícito).
 Ciclo da interdição (impõe a renuncia do sexo ou sua supressão – duas
alternativas de inexistência).
 Lógica da censura (“afirmar que não é permitido, impedir que se diga, negar que
exista.” (82)).
 Unidade do dispositivo (apenas uma forma de poder sobre diferentes escalas, do
pai ao Estado).
Esta concepção de poder acima apresentada é, para Foucault, limitada. Ela emerge
junto com aparelhos como a monarquia, que são colocados como formas de ordenar os
múltiplos poderes existentes – ordená-los funcionando juridicamente – sendo unitários,
sendo lei, tendo capacidade de interdição e sanção. Para Foucault, a teoria ocidental do
poder está ligada umbilicalmente à forma histórica da monarquia jurídica, apesar dos
mecanismos através dos quais funciona o poder atualmente terem se distanciado desta
forma que deveria ser considerada transitória.

2 – MÉTODO

Parece-me que deve-se compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de


correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua
organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça,
inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formados
cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si;
enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional
toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (88-89)
Não há foco central do poder, apenas estados de poder localizáveis e instáveis. O
poder está em toda parte, pois emana de todos os lugares, enquanto situação estratégica
complexa. Ele é dado em relações, em suas desigualdades, e as produz, sem partir de uma
matriz geral que divida dominantes e dominados, mas em cada clivagem do campo social.
O poder é intencional, mas não subjetivo, possui uma racionalidade própria, não individual,
que se dá por encadeamentos estratégicos muitas vezes “funcionais” mas imprevistos.
Onde há poder, há sempre formas de resistências, também distribuídas irregularmente, mas
podendo, talvez, se agregar.
Assim sendo, uma série de novas questões acerca de sexo e poder é colocada (93),
levando em conta não um único e grande Poder, mas múltiplos e móveis relações de poder.
Foucault apresenta quatro regras:
1) Regra de imanência: não havendo exterioridade entre as técnicas de saber e as
estratégias de poder, deve-se partir de “focos locais” de poder-saber.
2) Regra das variações contínuas: não partir da idéia de que X tem poder e Y não,
nem da de que A sabe e B não, pois estas relações estão sempre se transformando.
3) Regra do duplo condicionamento: não há descontinuidade (nem homogeneidade)
entre as grandes estratégias e as pequenas táticas: ambas se condicionam incessantemente.
4) Regras da polivalência tática dos discursos: os elementos discursivos entram de
formas diferentes em táticas diferentes:
Não existe um discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro contraposto. Os
discursos são elementos ou blocos táticos no campo das correlações de força; podem existir
discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem., ao
contrário, circular sem mudar de forma entre estratégias opostas. (96-97)

3 – DOMÍNIO

A análise da sexualidade foucaultiana é determinada, como vemos, à sua análise do


poder. O sexo é um elemento de grande instrumentalidade dentro das relações de poder. O
autor observa “quatro grandes conjuntos estratégicos” a respeito do sexo (99-100):
histerização do corpo da mulher, pedagogização do sexo da criança, socialização das
condutas da procriação e psiquiatrização do prazer perverso, às quais correspondem
quatro figuras-alvo do saber sexual: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal
malthusiano e o adulto perverso. Em torno destes, forma-se a sexualidade, enquanto
domínio histórico que se opõe à aliança enquanto dispositivo privilegiado do sexo:
Numa palavra, o dispositivo da aliança está ordenado para uma homeostase do corpo social,
a qual é sua função manter; daí seu vínculo privilegiado com o direito; daí, também, o fato
de o momento decisivo, para ele, ser a “reprodução”. O dispositivo da sexualidade tem,
como razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos
corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez
mais global. (101)
A aliança (ainda existente) aos poucos dá origem à sexualidade e, em um processo
que passa a privilegiar a problemática da carne em detrimento das relações, processo este
que possui como elemento permutador a família. Da família eclode a sexualidade, uma
sexualidade com caráter incestuoso, portanto. Lembrando que o incesto é essencial para o
mecanismo da aliança, vemos aí o ponto de passagem.
A crítica de Foucault à Levi-Strauss vai no sentido de que a universalização da
proibição do incesto é ao mesmo tempo uma universalização dos direitos da aliança, esferas
nas quais o incesto está inscrito – o que de certa forma vai de encontro com à concepção
jurídico-discursiva do poder e à hipótese repressiva, tão criticadas por Foucault.
Uma família reorganizada, mais celular, presa entre dois dispositivos distintos,
quase contraditórios, ainda é necessária para a aliança, mas, psicologizada, é colocada
como geradora dos problemas sexuais. Aliança desviada e sexualidade anormal são um par
criado com apoio dos médicos, pedagogos, padres e psiquiatras, e que recorre aos mesmos
“especialistas” para auxiliá-los em momentos de crise. Surgem as figuras que vimos, os
conjuntos estratégicos. Tanto a medicina de Charcot quanto mais tarde a psicanálise de
Freud separavam a princípio sexualidade de família, para por fim reforçar a sobreposição
das duas, a psicanálise apenas invertendo as posições.

4 – PERIODIZAÇÃO

Foucault percebe, no séc. XVIII, continuidade e transformação no domínio da


sexualidade: esta passa da mão das igrejas para a dos técnicos laicos e do Estado, mantendo
entretanto alguns de seus temas. As nascentes tecnológicas do sexo centravam-se na
pedagogia, na medicina dos perversos e na demografia, separando-se da medicina
tradicional e utilizando noções como hereditariedade e degenerescência no núcleo de seu
pensamento e prática, alcançando um abrangente e temível poder. Só a psicanálise, já no
séc. XIX, irá se desvincular dessas idéias eugenistas e racistas, e de seus efeitos políticos.
Tais técnicas foram introduzidas primariamente entre a burguesia (o que já derruba
a idéia de economicização da repressão), penetrando somente depois, aos poucos, nas
camadas mais pobres. A hipótese repressiva cai por terra: a sexualização correspondia mais
a uma auto-afirmação, a valorização do próprio corpo, dos prazeres e da saúde, do que à
sujeição do outro; toma, assim, um caráter positivo.
O sexo não é essa parte do corpo que a burguesia teve que desqualificar ou anular para pôr
para trabalhar os que ela dominava. É, ao contrário, esse elemento dela mesma que a
inquietou e preocupou mas do que qualquer outro, que solicitou e obteve seus cuidados e
que ela cultivou com uma mistura de terror, curiosidade, deleitação e febre. (117)
O corpo é locus da marcação de classe. A diferença é que, a aristocracia, baseada na
aliança, olhava para sua ascendência e seu sangue. A burguesia, com a sexualidade,
observava a descendência e a higiene. A “cultura do corpo” pela burguesia visava o
engrandecimento, o fortalecimento, a saúde, a vida – ela só foi estendida aos proletários
após o estabelecimento da técnica e da vigilância do corpo, quando já não havia mais
chance das classes baixas se afirmarem a partir dela.
Após a generalização do princípio da sexualidade, a burguesia redefinirá a
especificidade de seu corpo, no séc. XIX através de outros mecanismos. A teoria da
repressão e a psicanálise vêm para coloca o Édipo, para eliminar o recalque, apresentando
como desejo (e portanto como natural, imanente) práticas (quais o incesto) perseguidas até
então em todos (e a partir de agora apenas nas classes dominadas). Este mesmo movimento
permitiu a emergência da crítica operada pela hipótese repressiva dentro do dispositivo da
sexualidade.

V - DIREITO DE MORTE E PODER SOBRE A VIDA

O direito de vida e morte, ou seja., de causar a morte ou deixar viver, ligado ao


soberano, ao pai ao senhor de escravos, como é formulado, mesmo em sua forma moderna
atenuada, é um direito assimétrico, que trata o poder como confisco, apropriação,
subtração. Os mecanismos de poder, após a época clássica, para Foucault, fazem mais do
que barrar as forças – o poder agora gera vida, multiplica-a e ordena-a. Agora se causa a
vida ou devolve à morte. A morte passa a escapar do poder.
Foucault enxerga dois pólos de poder sobre a vida: o que trata o corpo como
máquina, anatomicamente, adestra-o; e o que trata o corpo como espécie biológica,
controlando a saúde, a longevidade, etc.: “administração dos corpos e gestão calculista da
vida”(131). Este bio-poder está presente no exército, na escola, na demografia, na ideologia
– serviu ao capitalismo não apenas na manutenção do Estado e do aparelho de produção,
mas também à diversas instituições na segurança, hierarquização, além de outros processos
econômicos e sociais.
A medida que o saber sobre a vida avança, passa-se a refletir o biológico na política
e aumenta a intervenção sobre o corpo: “[...] deveríamos falar de “bio-política” para
designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos
explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana [...]” (134).
As conseqüências disto são enormes: nas ciências, nas leis, e até mesmo nas lutas políticas
que investem contra o bio-poder, o foco passa a ser prioritariamente a vida.
O sexo é foco da luta política por estar tanto do lado do micropoder do corpo-
máquina quanto do lado das intervenções maciças do corpo-espécie. Sobre o sexo
desenvolveram-se táticas que combinam disciplina do corpo e regulação populacional – os
quatro pontos antes vistos (sexualização da criança, histerização da mulher, controle da
natalidade e psiquiatrização das perversões) ilustram bem isto. O sexo é foco de luta
política e portanto foco social: um objeto para qual se viram tantos mecanismos de poder e
de saber – em oposição ao sangue (e o mecanismo da aliança), para no qual se
concentravam antes. Obviamente, não se trata de uma substituição completa: há interações.
A psicanálise é uma disciplina que, apesar de focar a sexualidade, o faz sobre signos de
poder não contemporâneos, como o pai soberano, a consangüinidade interdita, e a lei da
aliança: símbolos do sangue.
Para Foucault, Sade mantém o sangue como foco do poder, obscurecendo o sexo na
forma de monstruosidade onipotente não-criadora. (Visão foucaultiana de Sade: ver p.139).
O autor pensa então na idéia geral de “sexo” que o dispositivo da sexualidade vem a
criar, uma teoria geral, que a partir da histeria, do onanismo, do fetichismo e do coito
interrompido colocam o sexo entre todo e parte, ausência e presença, finalidade e sentido,
função e instinto, real e prazer. Essa noção de sexo agrupa elementos distintos, ligando-os,
assim como conecta algum conhecimento “humano” e “biológico”. É a noção de “sexo”,
finalmente, que inverte em discurso a relação positiva entre poder e sexualidade, vendo o
primeiro apenas como intervenção.
Mais que isto: a noção de “sexo”, imaginária, torna-se ponto de passagem
incontornável para a busca de identidade própria, de inteligibilidade de si e de totalidade
corporal. Daí a busca incessante de verdade sobre o sexo e de verdade no sexo – ele se
torna tão importante que vale até a morte. “O sexo” se torna desejável, se torna o que há de
mais desejável. Mas esta noção não é mais que uma imagem confusa instituída pelo próprio
mecanismo de sexualidade. Deve-se pensar singularmente nos corpos, nos saberes, nos
prazeres, para se entender a sexualidade e o poder que a cerca – e não no “sexo” reificado,
imaginado, ideologizado.

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