Você está na página 1de 15

CORPO, GÊNERO E

SEXUALIDADE
AULA 1
Prof. Victor Hugo Brandão Meireles

CONVERSA INICIAL

Olá, estudante! Nesta aula da disciplina Corpo, Gênero e Sexualidade começaremos


aprendendo e discutindo um pouco sobre o que é sexualidade e sua história na sociedade. Nesse

sentindo, conversaremos um pouco sobre a construção da sexualidade sob o ponto de vista de

Foucault, para auxiliar no pensamento da Psicologia em seus campos de atuação e ajudar a lidar

com situações que envolvam o sujeito e suas complexidades.

Os objetivos desta aula são discutir, de forma sucinta, a história da sexualidade na sociedade

pela perspectiva de Foucault, refletir sobre a construção da sexualidade na sociedade e aprender o

que é sexualidade.

TEMA 1 – HISTÓRIA DA SEXUALIDADE PARA FOUCAULT

Iremos falar um pouco sobre como constitui a sexualidade para Foucault. Para isso,

precisamos adentrar um pouco na história sobre a sexualidade na perspectiva desse mesmo autor.

Você já deve ter ouvido falar do filósofo, historiador e ativista Michel Foucault (1926-1984)

considerado um pensador pós-estruturalista. Ele desenvolve uma série de pesquisas a respeito do

saber, do poder e da sexualidade ao lado da crítica da metafísica ocidental de Jacques Derrida e da

teoria psicanalista de Jacques Lacan. Todavia, para esta aula iremos focar apenas em Foucault.

Para Foucault (1984, p. 9), o termo sexualidade só surgiu no século XIX e tudo que vem antes

relacionado à sexualidade era algo falado como sexo:

O próprio termo “sexualidade” surgiu tardiamente, no início do Século XIX. [...] O uso da palavra

foi estabelecido em relação a outros fenômenos: o desenvolvimento de campos de


conhecimentos diversos (que cobriram tanto os mecanismo biológicos da reprodução como as

variantes individuais ou sociais do comportamento); a instauração de um conjunto de regras e


de normas, em parte tradicionais e em parte novas, e que se apoiam em intuições religiosas,

jurídicas, pedagógicas e médicas; como também as mudanças no modo pelo qual os indivíduos
são levados a dar sentido e valor a sua conduta, seus deveres, prazeres, sentimentos, sensações
e sonhos.

Então, para Foucault, para pensar a sexualidade em seu aspecto histórico ocidental,

precisamos levar em consideração as instituições sociais que produzem saberes a respeito, como a

religião, o jurídico, a educação e a medicina. Essas instituições constroem sistema de regulação

sobre a sexualidade, definindo-a pelas regras e os tabus. Nesse sentido, surgem as relações de

poder, que para Foucault (1984; 2017) são relações de dominação que regulam suas práticas sobre
corpos dos indivíduos. E o poder em Foucault é entendido como relações complexas, mas iremos

aprender mais sobre esse posteriormente.

Temos as instituições falando sobre o que é e não é sexualidade e nesse processo, se instala o

poder, sobre o que pode fazer e o que não pode. Depois, o sujeito singular se questiona, se

confunde e se constrói por meio desses discursos. Para Foucault (1984), os indivíduos devem e

podem se reconhecer como pertencentes dessa sexualidade, que faz parte de seus corpos.

Até meados do século XVII, o sexo foi considerado um aspecto natural da vida humana, não

havia problemas em palavras que eram usadas para descrever momentos íntimos ou em falar

sobre eles. Corpos nus eram comuns e até para crianças não havia nada de escandaloso. Assim

como afirma Foucault (2017, p. 7), os “gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões

visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo

nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos ‘pavoneavam’”. A expressão da sexualidade

fazia parte do cotidiano.

Desde a época clássica até o início do século XVII o sexo fazia parte de um campo sagrado e

não profano (Nascimento, 2005), no qual as práticas sexuais tinham um lugar mais libertador.

Apesar disso, conforme as mudanças na sociedade ao longo dos séculos se caracterizam pela

expansão socioeconômica nos países desenvolvidos, e sobretudo pela religiosidade, “[...]

influenciaram a postura que se tornou cada vez mais pessoal e menos comunal, mais interna que

explícita, ou seja, mais privada que pública (Nascimento, 2005, p. 66).

1.1 HIPÓTESE REPRESSIVA


Nessas mudanças começou a surgir uma denominação sobre o sexo e que precisou ser

reduzida na linguagem, pois era por essa via que o controle se tornava livre no discurso para

transformar coisas ditas em palavras presentes nas relações. Tentava-se impor um silêncio e uma

censura (Foucault, 2017). Assim, surgiram diversos discursos sobre o sexo que se multiplicaram no

próprio campo do exercício do poder: “incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez

mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da

articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado” (Foucault, 2017, p. 20).

Entretanto, no século XVII, a igreja católica via o sexo não mais mencionado sem ponderação,

mas suas especificidades, suas relações e efeitos eram resguardados ao privado. Tudo era dito,

mas sempre deixava de lado o desejo. Era vivida a cumplicidade do movimento do corpo e a

complacência do espírito (Foucault, 2017). Foucault está falando do pecado, aquilo que precisa ser

confessado, são os pensamentos, os desejos, as imaginações de prazer, a satisfação. Inicia um tipo

de repressão.

A igreja católica procurou produzir seus efeitos específicos sobre o desejo aplicando-o em

formato de discurso. Tais efeitos continham o domínio e o desinteresse sobre o sexo, mas também

a “[...] reconversão espiritual, de retorno a Deus [...]” (Foucault, 2017, p. 25). Então, a igreja como

uma instituição social falava sobre sexo e consequentemente produziria um discurso a respeito?

Como poderia ser esse discurso?

1.2 CENSURA SOBRE O SEXO

Por mais que possa parecer que se instalava uma censura sobre o sexo, o que aconteceu foi

ao contrário. Cada vez mais constituiu-se um sistema que produziu discursos sobre o sexo, mas

sempre mais suscetíveis em funcionar sobre os indivíduos (Foucault, 2017). Imagine um sistema de

mecanismos de poder que para seu funcionamento precisa dos discursos como parte principal

para regular o sexo: manter seu domínio sobre os corpos. Nesse domínio se tinha a igreja.

A partir disso, Foucault (2017) falava que nascia uma incitação política, econômica e de técnica

como análise para falar sobre esse tema por meio de pesquisas quantitativas e casuais que

classificou, numerou e especificou não pelo discurso moral, mas por um discurso racional. Para

Foucault (2017, p. 28), se instalou uma espécie de polícia do sexo: “[...] necessidade de regular o
sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição”.

Não era mais visto como proibição e o Estado também tinha como necessidade falar sobre o

sexo, sendo mais uma instituição social produzindo um saber a respeito ao mesmo tempo que

controlando. O sexo não era mais julgado e, sim, administrado. Uma das grandes novidades nas

técnicas de poder já no século XVIII foi o surgimento da população como problema econômico e

político. Os governos e o Estado sofreram com a expansão industrial de seus povos e o sexo se

tornou novamente um problema, sendo econômico e político pelos seguintes atributos:

No cerne desse problema econômico e político da população: o sexo; é necessário analisar a


taxa de natalidade, a idade dos casamentos, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a

precocidade e a frequência das relações sexuais, as maneiras de torná-las fecundas ou estéreis,

o efeito do celibato ou das interdições, a incidência das práticas contraceptivas. (Foucault, 2017,
p. 29)

Surgiram análises de condutas sexuais, de suas determinações e seus feitos, nos limites entre

o biológico e o econômico; tornava-se um objeto de disputa entre as pessoas e o Estado.

Uma forma que regulava nas organizações familiares pensava mais a maneira em que levavam

o sexo e isso chegou às crianças. Nos colégios do século XVIII falava-se sobre isso, mas não

explicitamente e aparecia como “o espaço da sala, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de

recreio, as distribuições dos dormitórios (com ou sem separações, com um sem cortina), os

regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono (Foucault, 2017, p. 31). O

que Foucault (2017, p. 31) chamava de “discurso interno da instituição”. As instituições educativas

falavam de sexo, mas aquele que era apenas conveniente para a burguesia e o Estado.

Muito se começava a pensar e fazer sobre uma educação sexual com as crianças; era preciso

controlar o que as crianças deveriam saber sobre sexo. As instituições pedagógicas falavam sobre,

mas de uma forma em que tanto para as crianças quanto para os adolescentes os conteúdos eram

codificados. Falava-se sobre sexo, faziam crianças e adolescentes falarem sobre sexo, a família

falava sobre sexo, as instituições falavam sobre sexo e cada vez mais multiplicavam-se discursos

sobre o sexo. Criaram-se inúmeros dispositivos institucionais e estratégias discursivas sobre o foco

na sexualidade dessa parte da população (Foucault, 2017).

Estamos falando de uma tentativa de repressão, que é algo que mantém como uma

condenação ao desaparecimento de algo, pelo silêncio, uma afirmação da inexistência, de que não
existe nada do que possa ser falado. (Rodrigues; Nielsson, 2019; Foucault, 2017).

A igreja usava as confissões e o pecado para aprisionar um saber sobre o sexo pelo divino. Já

a literatura trazia o sexo mais detalhado, aquele que é unicamente biológico, e a medicina, em

conjunto com a psiquiatria e o direito, reforçava o biológico e as perversões. Eram instituições que

produziram saberes sobre o que era, o que podia fazer e sobre o que se podia falar.

Por isso a tentativa de uma política repressiva é uma hipótese para Foucault (2017), pois o

conjunto de características negativas relacionados ao poder, ora do Estado, ora do colégio, ora da

Igreja, dificultava a produção do saber sobre o sexo e a sexualidade, mas ao mesmo tempo

produziria mais saberes sobre. Tudo era mantido em segredo e só se falava daquilo que o Estado

permitisse; dessa forma “é chamada a atenção para o sexo, para as técnicas que são usadas pelo

poder e por quais meios de discurso a sexualidade pode regular o indivíduo” (Rodrigues; Nielsson,

2019, p. 4).

TEMA 2 – A ERA VITORIANA

Até o momento vimos de forma sucinta como se instalava uma perspectiva repressiva sobre

sexualidade na sociedade. A seguir, observaremos um pouco sobre as instituições sociais que se

instalavam na era vitoriana, marcada por um regime de tentativa repressiva do sexo e da

sexualidade no século XIX. Isso ajudou na produção do saber científico criando uma scientia

sexualis.

No início do século XIX a tentativa de uma repressão sexual se tornava evidente com a era

vitoriana (1837-1901). Essa era foi o reinado da rainha Vitória no Reino Unido e ficou marcada pela

rigidez de princípios moralistas e religiosos na política, assim como o enriquecimento da classe

burguesa. A sexualidade era resguardada e levada para dentro de casa. Ninguém falava sobre,

apenas mencionava como uma forma funcional de reprodução (Foucault, 2017). Todavia, para

Foucault (2017) não era exatamente um silenciamento do sexo, sendo já iniciada uma repressão

antes desse regime.

O direito se instalava apenas para aqueles que se classificavam como casais, heterossexuais,

brancos, legítimos e procriadores. Estamos falando da formação de uma família tradicional. Para

Foucault (2017, p. 7-8) “impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o
direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada

moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais”.

A moral vitoriana se instalou na sociedade dando o direito de que apenas um grupo social se

apropriasse dos aspectos da sexualidade, aquele que era tradicional, heterossexual, reprodutora e

privada. Como a razão poderia falar sobre isso? A filosofia evitava esse terreno; evitava a hipocrisia.

O que se podia falar sobre o sexo publicamente era apenas aquele que funcionava para o bem de

todos, por um padrão socialmente ótimo (Foucault, 2017). Estamos falando da heterossexualidade.

Para Nascimento (2005, p. 66), a repressão sexual em Foucault foi pensava meio das suas

próprias práticas, que eram difundidas pelas “[...] instituições que regulamentam essas práticas,

juntamente com todo o conjunto explicito de interdições e censuras”. É a partir disso que o sexo

passava a ser regulamentado como forma de saber pela medicina, psiquiatria, pedagogia e pelo

direito. Todas essas instituições se colocavam interessadas para falar sobre o sexo; não daquele

que fazia parte de um sujeito histórico e cultural, mas daquele privado e censurado.

Nesse período começavam a surgir técnicas de poder que “[...] regulamentam a população

como problema econômico e político na relação entre população, riqueza, mão de obra, força de

trabalho [...]” (Nascimento, 2005, p. 67). O sexo passava a ser uma questão de dispositivo,

controlado em nível político na sociedade; iniciava-se a censura e noção de tabu sobre sexo e

sexualidade.

Mesmo que o modelo de família que se instaura na sociedade vitoriana encorajava o silêncio,

a procriação e a hipocrisia, a invisibilidade de qualquer outro tipo de modelo de família surgia

(Rodrigues; Nielsson, 2019). Contudo, o marcador de classe é evidenciado pelo capital nesse

modelo de família, como explicitam Rodrigues e Nielsson (2019, p. 3-4).

São desmoralizadas as sexualidades tidas como ilegítimas, sendo designadas apenas a lugares

que gerassem retorno de capital, mantendo em mente que, em uma época de Revolução

Industrial onde a mão de obra é vastamente explorada não deveriam ser gastas energias nos

prazeres e derivados, esta é a visão histórica.

Para Foucault (2017), eram marcantes quatro grandes conjuntos de estratégias desenvolvidas

para construir dispositivos específicos sobre saber e poder sobre o sexo. O primeiro é a

histerização do corpo da mulher que acontece em três processos que qualificam e desqualificam
seu próprio corpo: é vislumbrado como elemento repleto de sexualidade; é relacionado a

patologias e aos saberes médicos; é posto em comunicação com o corpo social e, dessa forma,

faz-se necessário regular a fecundidade (Oliveira, 2015, p. 94).

O segundo é a pedagogização do sexo da criança como estratégia de formação de sabres

sobre ele, [...] no sentido de os pequenos serem passíveis de atividades sexuais, consideradas

indevidas e imorais, além de trazerem perigos físicos” (Oliveira, 2015, p. 94). Então, temos

profissionais inseridos nesse campo educando o sexo e a criança. O terceiro é a socialização das

condutas de procriação que ocorre pelo problema econômico, criando “[...] medidas sociais que

visam reduzir a fecundidade descontrolada de casais” (Olveira, 2015, p. 94). Desse modo ocorre a

responsabilização dos casais sobre o sexo que praticam. Por último, a psiquiatrização do prazer

perverso, que entende a impulsão sexual como biológica e psíquica, culminando em novos saberes

em que a psiquiatria produzirá para identificar comportamentos que atingem esse tipo de instinto,

“[...] é a produção de tecnologias para corrigir e normalizar as anomalias sexuais” (Oliveira, 2015, p.

94).

Portanto, havia tentativa de um suposto silenciamento sobre a sexualidade, mas com a

ascensão da burguesia vitoriana o sexo só poderia ser vivido para um modelo familiar econômico

voltado para procriação, com proibições e repressões, como se qualquer outra forma de expressão

de sexualidade fosse errada; havia tentativa de repressão sexual para não se falar sobre o sexo, o

que Foucault irá chamar de hipótese repressiva, mas que na verdade falava-se sobre o sexo

(Rodrigues; Nielsson, 2019).

O controle tem como intenção duas faces, o prazer e o poder. Existiam outras formas de

expressão da sexualidade e o sujeito mais do que nunca era o exemplo de que o sexo já não era

mais controle somente pelo prazer. Agora o poder também precisaria entrar em cena como via de

controle dos corpos. Assim, surge a ciência como criadora de uma verdade sobre a sexualidade, o

que Foucault chamava de scientia sexualis.

TEMA 3 – SCIENTIA SEXUALIS

A seguir, discutiremos a ciência sexual (que Foucault chamará de scientia sexualis) como

produtora de um conhecimento unicamente verdadeiro sobre a sexualidade pela sua tentativa de


repressão. O sexo, ao longo de todo o século XIX, parecia se inscrever em dois registros de saber

bem distintos: um na biologia da reprodução desenvolvida continuamente segundo normatividade

científica geral e um na medicina seguindo obedientemente às regras de origens inteiramente

diversas. Nesse século, o discurso científico era aquele que se recusava a ver e ouvir, a recusa de se

referir àquilo mesmo que se via.

Foucault considerou um marco histórico a ruptura com as tradições orientais ars eotica que

eram bastantes comuns em países como China, Japão, Índia e também no Império Romano, pois

tinham como base a multiplicação dos prazeres. Essa ruptura foi o que se instalou nas sociedades

ocidentais como scientia sexualis, que foi desenvolvida a partir do século XIX e teve como núcleo

singular obrigatório o ritual de confissão, como ocorreu nos séculos anteriores na intenção de

produzir uma verdade sobre o sexo (Foucault, 2017).

A sexualidade, a scientia sexualis era vista como um correlato de práticas discursivas e que

tinham como características fundamentais, segundo Foucault (2017), a defesa de uma verdade

absoluta sobre ela. Tinha como disputa um discurso produzido por meio da técnica de confissão

da igreja e um discurso produzido pelo saber científico, definindo-a como algo natural e

penetrável. Tal definição, segundo Foucault (2017), colocava os processos patológicos em um

campo novo de significações para serem descobertas, no qual nesse momento a psicanálise teve

grande importância.

Estudiosos psicanalistas eram os únicos profissionais naquela época que estimulavam seus

pacientes a explorar mais seus segredos sexuais e afetivos, pois poderiam representar peça

importante para saúde a mental e emocional (Spargo, 2017). Foucault enxergava a vertente da

psicanálise como caminho possível para produzir um saber sobre a sexualidade em seu valor

cultural e não natural (Spargo, 2017). A psicanálise, para Tamsin Spargo (2017), não buscava

silenciar e/ou reprimir a sexualidade das pessoas, mas se introduzir como instituição produtora de

práticas discursivas diferentes das tradicionais da época.

A scientia sexualis ocidental de Foucault buscava encontrar uma única verdade sobre a

sexualidade, utilizando-se de processos da confissão da igreja como método assertivo (Spargo,

2017). A confissão cristã era mantida pelo pecado, na qual o indivíduo confessava aos padres tudo

aquilo que envolvia o sexo no privado. Dessa forma, vimos a historicidade de pessoas que

guardavam desejos, emoções e pensamentos até conversarem com alguém, como na igreja em
confessionários, passando para práticas médicas, jurídicas, pedagógicas e familiares, até chegarem

à psicanálise. Como afirma Spargo (2017, p. 17),

contar pecados ao padre, descrever sintomas ao médico, submeter-se a cura pela fala: confessar

pecados, confessar doenças, confessar crimes, confessar a verdade. E a verdade era sexual.
Nesses cenários confessionais, quem fala produz uma narrativa sobre a própria sexualidade que
é interpretada por uma figura de autoridade. A verdade revelada nesse processo, claro não é
descoberta, mas produzida. Ela existe como um saber no interior de um discurso particular e

está ligada a um poder.

O sexo e a sexualidade não eram julgados e, sim, administrados. A igreja e outras instituições

sociais se preocupavam com a regulação da sexualidade, assim como Estado e medicina, na

tentativa de repressão sexual pela produção de uma ciência sexual. Pela perspectiva scientia

sexualis todas essas instituições buscavam falar sobre uma verdade a respeito da sexualidade

repressiva, se instalando como dispositivo da sexualidade para fortalecer a verdade.

TEMA 4 – DISPOSITIVO DA SEXUALIDADE

Depois que culminou em ciência sexual, o dispositivo da sexualidade apareceu para conter a

explosão de discursos sobre o sexo e a sexualidade que, por meio de estratégias de poder, criou

populações para atenderem especificamente a uma urgência história: “[...] a escola, o hospital, o

exército, a oficina, a prisão, a família, entre outros, são alguns desses dispositivos.” (Oliveira, 2015,

p. 91).

Ao pensar o dispositivo da sexualidade em Foucault, Oliveira (2015) trata-o em duas formas.

No primeiro momento acontecem as imposições de técnicas do cristianismo, caracterizadas no

século XVIII como uma forma de obrigatoriedade dos indivíduos em se confessarem sobre o sexo.

O que se predominava era tudo aquilo relacionado ao sexo e à sexualidade como pecado. No

segundo momento, Foucault investiga o dispositivo da sexualidade ligado à repressão da

burguesia. Isso se associava à força de trabalho, na qual tendia-se a pensar o sexo controlado por

dispositivos que direcionavam o indivíduo a prender suas energias apenas ao trabalho e não aos

prazeres (Oliveira, 2015).

O dispositivo no qual a burguesia investiu se direcionava apenas às classes mais populares e

ao trabalho. Todavia, ela não estava fora desse dispositivo, mas que acontecia com outras formas
de controle sobre a sexualidade, como pela “[...] moralização dos pobres – para que se efetive a

organização da família e o controle judiciário e médico das perversões, que visa proteger a

sociedade” (Oliveira, 2015, p. 100).

O dispositivo da sexualidade se constituiu na sociedade pelo interesse dos governos e da

saúde pública em controlar o sexo. Foram criados investimentos para que escola e psiquiatria

pedagogizassem o sexo da criança e do adolescente, e políticas sobre condutas de procriação e

tornassem o casal responsável pelo sexo que praticavam, dentre outras medidas.

Os dispositivos da sexualidade são instrumentos que surgem para atender às emergências

sociais sobre um momento histórico: a produção de saberes sobre sexo e sexualidade como

discursos de repressão. São estratégias que aparecem nas relações de força no trabalho e

sustentam diversos tipos de saber e por elas eram sustentados. O dispositivo nada mais era do que

um jogo de poder que sempre estava ligado ao saber que dele nasce (Nascimento, 2005).

TEMA 5 – E O QUE É SEXUALIDADE?

A temática da sexualidade vem sendo bastante discutida nos últimos séculos e a Psicologia

tem sido uma das áreas do conhecimento humano e científico a trabalhar com esse tema. A

sexualidade é mediada pelas relações humanas em diversos contextos da sociedade, como na

família, em relacionamentos amorosos, afetivos e sexuais, na educação, no trabalho, dentre outros.

E o que é sexualidade e como esse termo pode contribuir para as práticas profissionais na

Psicologia? O termo sexualidade só surgiu no século XIX e apareceu colado com a explosão

discursiva sobre o sexo. Esse termo incorporou em um sujeito perpassado por regras e normas

sociais que dividiam o discurso entre diversas instituições sociais, considerando uma mudança que

passava a vivenciar uma nova forma de conduta sobre o que se fazia, o que se falava e o que se

sentia (Foucalt, 1984).

Para Louro (1997), Foucault estudava em seu livro a sexualidade como invenção social,

entendida como uma forma em que se constituía na sociedade a partir dos múltiplos discursos a

respeito do sexo. Ainda que sejam discursos que regularizavam, normalizavam e instauram saberes

sobre a verdade (Louro, 1997). A sexualidade, para Louro (2008, p. 8), se constrói a partir de

diversas formas de aprendizagens e práticas, sejam explícitas ou encobertas por junção de


instâncias culturais e sociais como “[...] família, escola, igreja, instituições legais e médicas [...]”. É

um processo em construção e que ainda se mantém na vigilância e no controle das sociedades.

Assim, o controle sobre a sexualidade se transforma e se adapta aos momentos históricos, se

regula e multiplica nas instâncias e instituições que ditam as novas normas (Louro, 2008).

Aprendemos a viver a sexualidade inseridos na cultura que produz e reproduz os discursos da

mídia, igreja, ciência e das leis, dos movimentos sociais e dispositivos tecnológicos, para que

surjam muitas formas de experienciar seus prazeres, desejos, troca de afetos, amar e ser amado

(Louro, 2008). “O único modo de lidar com a contemporaneidade é, precisamente, não se recusar a

vivê-la” (Louro, 2008, p. 23).

Em uma perspectiva da Psicologia e como contribuição para esse tema, a autora Kahhale

(2015) analisa o conceito de sexualidade pelas relações de gênero, pois amplia a noção de

construção histórica e se diferencia das perceptivas biológicas ou exclusivas ligadas apenas ao

sexo biológico que produzem noções estigmatizantes e discriminativas.

As relações de gênero promovem a superação de tais mecanismos de controle e poder,

dando espaço para que a sexualidade possa ser expressada por meio das condições sociais,

culturais e históricas como processo simbólico e histórico. Esse processo constituiu a identidade

do sujeito, considerando como ele vivencia tais sentidos simbólicos sobre suas experiências

(Kahhle, 2015).

A sexualidade é singular, histórica e social, perpassada pela cultura que caracteriza a vida dos

sujeitos nas mais variadas relações sociais e contextos em que estão inseridos. Não diz respeito só

a sexo, gênero, orientação sexual, relações sexuais, afetivas e amorosas, mas também como

expressamos em nossas relações sociais, nossos processos emocionais e simbólicos diante disso

que nos constituem. O beijo, o abraço, as carícias, até o amar, o gostar, o adorar e o sentir. Se tudo

isso constitui nossa sexualidade, de onde veio? O que nos dizem sobre? O que é permitido e o que

não é? O que e quem pode vivenciar no público e o que e quem só pode no privado?

Para Kahhle (2015), debater a sexualidade é também discutir valores, normas sociais e

culturais; é buscar compreender a singularidade do sujeito em um aspecto que é social, “dar

sentido a ‘sexualidade de cada um’ implica tomá-la como uma construção histórica no âmbito das

relações sociais, relaciona às formas de vida e as necessidades que a humanidade encontrou e/ou
construiu” (Kahhle, 2015, p. 234).

NA PRÁTICA

Com base no que foi discutido nesta aula, vimos que as instituições sociais produzem um

discurso sobre a sexualidade e uma delas é a área da educação. Imagine que você, psicólogo

escolar de uma escola pública da sua cidade, precisa atender ao caso de um adolescente que foi

exposto por meio de rumores de que teria tido relações sexuais e o professor usou esse

adolescente como exemplo em sala de aula, de que aquilo na adolescência era pecado. Como
você poderia acolher esse adolescente e quais estratégias poderia desenvolver em conjunto com a

escola na produção de um novo saber sobre sexo e sexualidade, tanto para alunos quanto para

professores?

FINALIZANDO

Em síntese, na história da sexualidade de Foucault, percebemos que as instituições sociais

produziram saberes sobre sexo e sexualidade ao longo dos séculos e como formas de regulação;

houve tentativas de repressão sexual sobre o que se falava e o que se vivia. Entretanto, aconteceu

ao contrário, ainda se falava a respeito, tornando apenas hipótese que havia censura. Com isso,

surgiu um tipo de ciência sexual, a scientia sexualis, uma forma de produzir verdade sobre o sexo e,
consequentemente, a sexualidade. Uma explosão de discursos surge criando o dispositivo da

sexualidade que historicamente foi formando técnicas e instrumentos para controlar os indivíduos.

Por fim, você consegue imaginar nos dias atuais como ainda se constroem saberes sobre a

sexualidade, sabendo que o discurso presente na sociedade é aquele que sempre detém o saber. E

na sociedade vivemos em relações em que existe o saber, existe o poder. Como afirma Foucault

(2017, p. 77), “a história da sexualidade – isto é, daquilo que funcionou no século XIX como

domínio de verdade específica – deve ser feita, antes de mais nada, do ponto de vista de uma

história dos discursos”.

REFERÊNCIAS
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da

Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 4. ed., Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Tradução: Maria Thereza da

Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro: Graal, 1984.

KAHHLE, E. M. P. Subsídios para reflexão sobre sexualidade na adolescência. In: BOCK, A. M. B.;

GONÇALVES, M. G. G.; FURTADO, O. (org.). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica

em Psicologia. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2015.

LOURO, G. L. A emergência do gênero. In: LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação:

uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 14-36.

LOURO, G. L. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v. 19, n. 2

(56), maio/ago. 2008.

NASCIMENTO, R. C. do. Noções conceituais da sexualidade humana num recorte foucaultiano.

Universitas: Ciências da Saúde, v. 3, n.1, p. 65-72. 2005.

OLIVEIRA, E. A. S. De. conceito de dispositivo de sexualidade na obra foucaultiana A vontade

de saber. Kalagatos: Revista de Filosofia, Brasil, v. 12, n. 24, p. 89-108, 2015.

RODRIGUES, A. P. K.; NIELSSON, J. G. Dispositivo da sexualidade em Michel Foucault: a história

moldada pelo poder. In: VI Seminário Internacional de Direitos Humanos e Democracia, 6, 2018.

Multiculturalismo, Biopolítica e Gênero. Ijuí, 2019. p. 1-13.

SPARGO, T. Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares.

Tradução: Heci Regina Candiani; posfácio Richard Miskolci. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

Você também pode gostar