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Introdução
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Doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa e professor do Departamento de Filosofia da FAJE
– Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8047378549590212.
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Igreja católica. Primeiro, porque ambos estão em certo modo referidos à “comunidade de
seres humanos” a ponto de não se autocompreendem sem a cultura e, por isso, sentem-se
vocacionados a se tornarem uma “escola de humanidades” (GUILLEBAUD, 2001, p. 23). E
em segundo lugar, porque especificamente a Igreja católica é indissociável da própria
experiência de fé dos cristãos e vice-versa. Por essa razão, a fé cristã sente-se desafiada a
configurar-se como experiência vivida que diz de Deus de maneira criativa e plural, com uma
linguagem tal que considere a provisoriedade e a abertura que recebe do mundo vivido
(SPOSITO, 2002, p. 42) do qual não pode se retirar. Nesse caso, é impossível não perceber as
interpelações da cultura para a experiência da fé que se configura nesse contexto. Pelo mesmo
motivo o cristianismo e a Igreja terão de abordar de maneira sempre nova as questões
concernentes à encarnação e dentre elas o “fenômeno” do corpo e da homoafetividade que são
indissociáveis do evento da Revelação de Deus (CUNHA, 2009, p. 23).
Segundo Foucault, o saber-poder da “confissão” foi e permanece ainda hoje a “matriz geral”
que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo. Na confissão há um predomínio do
discurso de caráter eminentemente judiciário que, por sua vez, expressa o poder/saber de corte
disciplinar que tende a fabricar o indivíduo e, consequentemente, o sexo e suas configurações
de poder, uma vez que “procede mediante exames e observações insistentes; requer um
intercâmbio de discursos através de perguntas que extorquem confissão e confidências que
superam a inquisição” (FOUCAULT, 2014a, p. 49)
Nesse caso, o acento num certo tipo de discurso da verdade focado na confissão não deixa de
evocar o “banco do réu” quando se trata da sexualidade. Constata-se ainda, que esse tipo de
produção da verdade tende a recrudescer-se quando se trata de emitir um juízo sobre
homoafetividade. Isso porque o discurso e a fala a respeito do corpo e do sexo são sempre
prerrogativas do “juiz” que, graças ao seu ofício, assume a hegemonia do poder de arguir, de
decidir, de ligar ou desligar (liberar, perdoar) as práticas sexuais levando em conta a culpa
e/ou pecado com base na verdade metafísica do sentido unívoco da sexualidade e o destino
prefixado pelos universais e por sua respectiva conceptualização (NAPHY, 2006, p. 56-75).
Mas se por um lado, Michel Foucault recorda que, embora a verdade sobre o sexo tenha
sofrido uma transformação considerável na modernidade pelo fato de ter deixado de ser
associado à “prática penitencial”, por outro, o discurso de “confissão” não foi abolido. Nesse
caso, mesmo considerando que esse autor seja de outra tradição constata-se certa analogia
entre suas considerações e àquelas da fenomenologia do corpo de Michel Henry quando esse
último trata de pensar a sexualidade humana. Ambos insistem em que o discurso da verdade
assumiu novas formas em função do paradigma das ciências galileanas que invadiram todas as
esferas do saber. As ciências humanas que se ocupam do corpo e do sexo (HENRY, 2011, p.
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discurso hegemônico que tende a enquadrar o fenômeno no rol da representação e do
empirismo a fim de submetê-lo a todo tipo de explicação que se pauta nas regras científicas e
na moral (obrigação) da confissão.
Embalada, pois, por essa forma de produção da verdade (científica) a respeito dos corpos, a
sexualidade tende a assumir na contemporaneidade uma nova configuração marcada,
paradoxalmente, pela “sujeição” dos indivíduos à “Moral do Espetáculo” (DEBORD, 1997, p.
23-26). Somos todos obrigados a circunscrever a sexualidade ao gozo imediato por meio do
detalhado imageamento do sexo. Assim, a verdade do corpo e do sexo está refém dessa
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espécie de “novos códigos da ação” segundo as formas e as figuras dos corpos perfeitos e
universais dos últimos estágios do progresso das ciências empírico-formais de nossa cultura
(FOUCAULT, 1996, p. 23-42).
Enfim, a produção da verdade se mantém na ordem da confissão com vistas a promover certo
“adestramento” dos corpos uma vez que tanto o saber/poder exerce um domínio sobre o sexo
bem como as práticas tendem a introjetar tal saber e domínio na identidade dos sujeitos. O
poder disciplinar fabrica o indivíduo de modo a adequar seu corpo/sexo à demanda do
“politicamente” sadio (psicológico) e legal (jurídico) associado à retidão religiosa.
A virada juricizante do sexo só se processa a partir do século V com Agostinho quando “as
práticas de si” acabam sendo circunscritas à purificação e à autodecifração de si tendo como
escopo opor-se ao enigma do desejo sexual (FOUCAULT, 1996, p. 34). Em última instância,
esse deslocamento ao discurso confessional do sexo se deve ao advento do “poder pastoral”
(FOUCAULT, 2014, p. 16) incorporado ao ascetismo monástico, que pelo código moral
jurídico tenderá sempre mais a privatizar o indivíduo e o sexo, contra a liberdade da
autoconstituição de si no regime daquilo que escapa ao controle (FOUCAULT, 1997, p. 45).
Diante dessas considerações, poder-se-ia afirmar que a religião em Foucault apresenta dupla
face com relação à sexualidade. Se por um lado a confissão produz a verdade confessional e
jurídica a respeito do sexo, por outro, ela não ficou relegada a uma prática doutrinária de
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códigos que visam à sujeição através de um discurso. Com isso, abre-se a possibilidade de,
em determinados contextos históricos, admitir-se que a religião possa oferecer um aparato
discursivo que permita a ascensão de uma “ética da carnalidade” contrária ao caráter jurídico
e penal do sexo uma vez que se mostra avessa à subjetivação do corpo segundo os moldes do
saber-poder dominante (FOUCAULT, 1979, P. 34).
De modo indireto, outro filósofo que poderia nos ajudar a compreender e a propor outra
maneira de refletir sobre a homoafetividade no contexto do cristianismo católico na
contemporaneidade é Giorgio Agamben. O filósofo italiano insiste em seus últimos escritos
sobre a “reabilitação do testemunho” (AGAMBEN, 2008), o que nos parece bastante
instigante na medida em que a homoafetividade tem de ser pensada em torno do deslocamento
da produção da verdade de “confissão” para um discurso liberalizante de “profissão”. Afinal,
o sentido da palavra “profissão” associa-se ao anúncio e a promessa de algo que é vivido e
dito em consonância com a “esfera pública” da existência humana de modo a promover uma
autêntica “estética homoafetiva” desatrelada do caráter moralizante ou cientificista do sexo.
Há que se ter em mente que, do ponto de vista da metáfora religiosa, referir-se à profissão
significa associá-la ao gesto solene público de assumir uma identidade e um “estilo de vida”
para os demais. E do ponto vista laico, associa-se à recepção das insígnias ou a condecoração
por algum feito extraordinário, mas sempre realizado no âmbito da vida pública. Do ponto de
vista da linguagem seria de se considerar, nesse caso, o caráter poético/profético
(testemunhal) que vincula aquele que é investido de algum poder dado pela nova identidade
que a investidura lhe concede e que, portanto, carrega as marcas de sua profissão também na
expressão, no gesto e na fala pronunciados diante da comunidade (AGAMBEN, 2008, p. 23).
Valeria a pena, nesse contexto, recorrer ao que se poderia denominar aqui de uma
“fenomenologia do testemunho”. Segundo o autor, há duas formas de se pensar o
Testemunho: o testemunho ao modo de um “juiz” e o testemunho ao modo de um “ator”
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Há, portanto, nessa figura do testemunho de Agamben uma consistência “não jurídica” da
verdade que, em certo sentido, coincide com a visão de Foucault. Por isso sobressai o caráter
não confessional da verdade no testemunho enquanto “personagem”. E mesmo que se possa
exigir direito ao ressarcimento existe algo que está “aquém do bem e do mal”; algo do qual
não se pode distanciar e por isso algo que se retira da ordem do julgamento.
O filósofo italiano visa ressaltar com isso que praticamente todas as categorias de que nos
servimos em matéria moral ou religiosa estão contaminadas pelo Direito: culpa,
responsabilidade, inocência, julgamento, absolvição, dignidade são todas categorias da esfera
jurídica (AGAMBEN, 2008, P. 27). Por isso Agamben chama a atenção para a necessidade de
nos precavermos diante do Direito. Segundo ele, o Direito não tende ao estabelecimento da
Justiça. Antes, está preocupado com a produção da res judicata. É a matéria (coisa) julgada
que interessa independente de a justiça ser realizada. Desse modo, o julgamento acaba por
configurar-se como fim último do Direito.
Ora, quando dizemos que o testemunho associa-se ao “ator” ou à pessoa em primeira pessoa
antes do que ao “terceiro”, pretende-se ressaltar aqui a existência de uma “zona de
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O que se pretende reforçar com essa constatação é que a ética é a esfera que não conhece
culpa nem responsabilidade. Ela é como recorda insistentemente Espinoza, a doutrina da vida
feliz. Assumir uma culpa e uma responsabilidade – o que às vezes, pode ser necessário fazê-lo
– significa sair do âmbito da ética para ingressar na esfera do Direito (sem Justiça).
O primeiro, diz respeito à entrevista do papa Francisco, concedida na viagem de volta a Roma
depois da Jornada da Juventude no Brasil. Perguntado a respeito de sua aprovação ou não da
homoafetividade ele não titubeou em responder que “não lhe compete ‘julgar’ a pessoa
homossexual que vive de maneira sincera essa condição”. Essa postura ainda que pontual,
parece acenar para o deslocamento que está a se processar no pontificado de Francisco no que
concerne, especificamente, a ênfase posta no caráter ético e não no caráter jurídico da
homoafetividade.
Na perspectiva assumida por Agamben, poderíamos acrescentar que salta aos olhos o fato de
que Francisco ouse assumir o lugar de uma “testemunha” enquanto alguém que renuncia o
discurso de confissão a respeito do sexo. Ele não se erige como “juiz” ou como uma
autoridade jurídic. E por esse motivo não pode admitir que o outro se encontre na condição de
ser acusado, julgado e condenado sem mais. Junto com esse gesto se sinaliza para outro dado
fundamental, a saber, o de a testemunha não poder ignorar nem excluir ninguém do relato da
homoafetividade.
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Por outro lado, e de maneira ainda mais eloquente, é impossível não reconhecer no seio da
própria Igreja o surgimento de pessoas e casais homoafetivos como Rita Quintela e Sara
Martinho2 que se professam publicamente cristãs e “testemunham” em primeira pessoa o fato
de viverem tal condição como experiência amorosa a ponto de reafirmarem o valor da relação
homoafetiva, seja como experiência de humanização, seja como experiência ética, mística e
cristãmente vivida como seguimento de Cristo. Nesse sentido, esses “testemunhos
homoafetivos” evidenciam elementos fundamentais a respeito do sentido da homoafetividade
como lugar de uma autêntica vida ética não juricizada e avessa à retórica heterossexista da
verdade sobre o sexo (LAQUEUR, 2001, P. 43)3.
O segundo elemento que sobressai nessa perspectiva é que o testemunho brota de algo que
não está em evidência. A homoafetividade vem carregada de certo “silêncio” porque a
sexualidade é da ordem do enigma (RICOEUR, 1967, P. 27), e, portanto, do indescritível, do
desconhecido, do intematizável e do indizível. Nesse sentido, a ética deslocou-se para aquém
do topos (lugar) em que estamos acostumados a pensá-la e sob o domínio de um conjunto
normativo de regras e leis, de um discurso coerente e lógico. Por outro lado, aquilo que se
encontra no “aquém” do Dito é de longe muito mais denso do que qualquer “além” (vontade
2
Cf. QUINTELA, Rita; MARTINHO, Sara. Construir uma relação igual e diversa. Encontro do Lumiar 2013-
2014 publicado em www.monjasoplisboa.com
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LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos à Freud. Rio de Janeiro: RElume
Dumará, 2001.
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Cf. EDITORIAL. Riconoscere le unioni omosessuali? Un contributo alla discussione. Aggiornamenti sociale,
n. 8, 2008, p. 421-444.
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de potência) ou da afirmação pró ativa que pretendamos assumir contra o moralismo com que
se trata a experiência homoafetiva.
Assim o “sub-humano” (sujeito sem identidade) – o ser humano passivo – deve interessar-nos
bem mais do que o “super-homem” e de sua força que se impõe contra o adestramento dos
discursos confessionais. Essa infame zona de irresponsabilidade (contra o discurso jurídico do
testemunho em terceira pessoa) desafia as palavras e os pensamentos, prejulgamentos,
catalogação e os código de normas vigentes a respeito da homossexualidade.
E mais. Como a relação homoafetiva e a união que se pode estabelecer entre os parceiros do
mesmo sexo que professam sua humanidade e sua fé em Cristo não é da ordem da
“responsabilidade”, isso significa que não é necessário recorrer à “metáfora esponsal” para se
pensar e se dizer a significância da união homoafetiva humana e cristãmente vivida.
Ora, não se pode esquecer que o verbo latino spondeo do qual deriva o termo
“responsabilidade”, significa apresentar-se como “fiador” de alguém com relação a “algo”
(dívida) perante alguém (AGAMBEN, 2008, p. 87). Nesse caso, como recorda Agamben, a
pretensão de querer “esposar” alguém pode muito bem expressar a pretensão de circunscrever
ou submeter a relação amorosa entre os parceiros à ordem jurídica prescindindo da ordem
“ética da união” que é mais originária por estar ancorada no desejo de outrem. Contra esse
risco, o testemunho da pessoa homoafetiva com relação a sua condição é sempre da ordem de
uma ética em certo sentido “anti-esponsal” porque o afeto (homo-afetivo) e o desejo sexual
não são da esfera do tematizável ou daquilo que é descritivo e transformado em discurso
lógico, científico, assim como também não é da ordem do controlável e, em última instância,
não poderá jamais reduzir-se a uma justificação de tipo meramente jurídica (AGAMBEN,
2008, p. 58).
identifica com um Legislador. Não se pode atribuir a Deus o desejo do sofrimento das pessoas
homoafetivas.
Em vista disso, urge encontrar outro sentido para o “testemunho” que não o associe
facilmente a ideia de martírio como forma de o homoafetivo justificar seu sofrimento em
função da condição de sua sexualidade como lugar da cruz e do sofrimento. Nesse contexto, a
reabilitação do sentido grego da palavra testemunho pode ser inspirador para nossa reflexão.
O testemunho enfatiza Agamben, deriva do verbo “recordar” (memória) que por sua vez
evoca o “dever” de se ter de fazer memória da vítima que foi silenciada. Compreende-se,
portanto, que o sobrevivente homoafetivo tem a vocação da memória e não pode jamais
renunciar à sua condição de “testemunha memorial”, sobretudo com relação aos que
tombaram em função de sua condição homoafetiva (AGAMBEN, 2008, p. 67).
Lembro-me do caso de um jovem do interior chamado Cláudio era gay e morreu de AIDS na
década de 1980. Sua morte foi tratada por sua família e pela cidade com o máximo de silêncio
como forma de um pseudo “respeito” por seu nome ou por sua dignidade. O fato é que
ninguém, absolutamente ninguém jamais ousou pronunciar o nome de Claudio, ninguém
testemunhou a seu favor porque como se pode imaginar a única testemunha real já não estava
mais ali para narrar sua vida homoafetiva. Portanto, nós que poderíamos ser “testemunhas
sobreviventes”, não dissemos jamais sobre as qualidades daquele jovem porque para nós
Claudio não tinha identidade, não foi jamais lembrado por qualquer valor, ou qualquer dom
ou até mesmo pela fé que confessava e professava. Foi esquecido em vida e caiu rapidamente
no esquecimento graças à morte “trágica” com que foi banido do mundo.
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Servindo-nos das palavras de Agamben quem sabe poderíamos dizer que Claudio encarnou a
condição da “vida nua” de um “muçulmano”, cuja etimologia evoca o inumano tido como
“escória da humanidade” (AGAMBEN, 2008, p. 79). Por isso, nós o excluímos do relato;
rejeitamos tenazmente de testemunhá-lo porque renunciamos a condição ética da compaixão
para justificarmo-nos em função da culpabilidade (jurídica) de que ele fora merecedor. Nesse
sentido, a “testemunha homoafetiva” é alguém que não poderá deixar de testemunhar a
memória daqueles que tombaram vítimas da abominação da “sodomia do homossexualismo”
até mesmo por parte da religião e do cristianismo.
Não se trata de tomar o lugar de terceiro, mas de professar enquanto se testemunha na própria
pele a condição homoafetiva – não tanto porque se é ou se identifica como homoafetivo –,
mas pelo “constrangimento” que suscita em nós saber que as pessoas homoafetivas foram e
são tratadas como “muçulmanos”, isto é, que vegetam como corpos abjetos e como figuras
incapacitadas de fazerem ouvir sua voz.
Há outro filósofo italiano, Roberto Sposito, que nos brinda com sua reflexão apurada sobre a
vida política centrada na recuperação de ideia de communitas (SPOSITO, 2006, p. 23). Na sua
perspectiva abre-se um novo espaço para se pensar o caráter comunitário da experiência
homoafetiva uma vez que a communitas concede uma primazia ao discurso de Profissão em
detrimento do discurso confessional da verdade. E, do ponto vista eclesial, isso significa ter de
refundar a ideia de Igreja como “comunidade humano-cristã” na qual a condição homoafetiva
pode ser vivida como “dom” e não como “dano”; como “salvação” e não como “maldição”,
como “dever” público e não como “direito” privado5.
5
Cf. SPOSITO, Roberto. Origine e destino della comunità, p. 43. Isso, porém, sem ter de recorrer às teorias
comunitaristas ou às teorias comunicativas para as quais o “caráter dialógico” se erige como fundamento
inconcussum da existência humana a partir do qual se tece a vida em comum. Ora, no horizonte dessas teorias o
sujeito comunicativo (capaz da fala) e o reconhecimento por meio da lógica argumentativa ou performativa é
sempre tido como pressuposto racional e razoável da comunicação.
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Seguindo a semântica do termo múnus, o âmbito do dom institui-se como lugar do “débito”
ou do “dever” no sentido genuinamente ético que a palavra communitas concede ao múnus.
Essa última, portanto, alça-se como “lugar do in-comum”, isto é, do inapropriável e do
inapreensível. A partir desse topos u-tópico se processa a “troca de dons” bem como, graças a
essa condição, põe-se imediatamente em questão a esfera do Direito do indivíduo. Nesse caso,
o Direito só tem sentido se estiver referido à ética como utopia da comunidade, e não o
contrário (SPOSITO, 2006, p. 28).
Ora, acentua-se nessa economia do dom – contra a economia do acúmulo de bens – realizada
pela e na communitas o fato de ela se opor à imunitas ou aquilo que é da ordem do próprio ou
do indivíduo (SPOSITO, 2002, p. 23). Essa economia se contrapõe àquilo que está fora do
âmbito do dever ou da ética. No entanto não se trata aqui de enfatizar o contraste entre o
“comunitário” e o “individual” ou de opor-se vida pública à vida privada, mas de insistir que
há uma forte tendência à “imunização” com relação ao estrangeiro, ao diferente, ao desigual.
imunitários” (SPOSITO, 2002, p. 53) de nossa cultura visam a assegurar os “direitos dos
indivíduos” e de privatizar a vida pública fechando-se à alteridade e ao dom.
Isso, porém, revela um falso discurso sobre o “bem comum” porque a compreensão originária
de communitas não se legitima através da ideia da aquisição, mas da entrega, da oblação como
terreno “comum” da vida pública. Portanto, só há sentido referir-se ao bem comum se esse
brotar daquilo que nos é incomum, isto é, da “diferença” ou daquilo que é da esfera do
imprevisível e que advém da troca.
Daí o fato de que haja em nossa cultura, incluindo a Igreja católica, uma tentativa velada de
promover a “imunização” contra a ameaça que o outro representa para o indivíduo. Essa
imunização se mostra concretamente nas práticas e nos discursos juricizantes focados na
garantia dos direitos individuais a fim de rechaçar a acolhida da sexualidade homoafetiva.
Há que se ter em mente que essa forma e expressão da sexualidade humana tende a suscitar a
indagação sobre a “diversidade” e a “alteridade”. E estas sempre escapam à ordem da
mesmidade do sexo cultivada e legitimada pelos discursos heterossexistas das sociedades. A
alteridade do outro por sua vez apela fortemente para a acolhida da diferença que se diz nos
corpos e na sexualidade homoafetiva6. Nessa esteira se poderia dizer que a homoafetividade
aparece no cenário da comunidade como lugar da troca, do silêncio e do testemunho vivencial
e experiencial referidos à nova maneira de se tratar a sexualidade humana em sua diversidade
de expressões e culturas.
6
Cf. SPOSITO, Roberto, Immunitas, Protezione e negazione della vita, p.43.
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Conclusão
Ora, o discurso que ainda teima em fixar-se na questão da dignidade da pessoa homoafetiva
acaba por reduzir a pessoa ao seu caráter individual e particular, antissocial e antissomática.
No entanto, a reflexão que retoma a concepção da communitas para referir-se à
homoafetividade visa, exatamente, enfatizar que na esfera da comunidade a pessoa
homoafetiva e sua vida partilhada com outrem se encontra em condições de se oferecer, de se
fazer oblação para a edificação da comunidade.
Em função disso, não se trata apenas se destacar o “respeito” que se deve à sua pessoa com
base à sua dignitas (SPOSITO, 2002, p. 63) – seus atributos enquanto humano já dado
segundo a Lei natural –, mas de se exaltar aquilo que a pessoa homoafetiva como outrem traz
de novidade às sociedades, às Igrejas, às culturas, isto é, à vida pública e à biopolítica. Isso
significa dizer que sem o testemunho e a existência da pessoa homoafetiva, a vida pública da
“sociedade de indivíduos” deixaria de ser continuamente questionada em seu status quo que
insiste em “imunizar” a vida social contra o diferente ao considerá-lo como ameaça à vida
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BIBLIOGRAFIA
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SPOSITO, Roberto. Origine e destino della comunità. Torino: Giulio Einaudi Editores, 2006.
______. Immunitas. Protezione e negazione della vita. Torino: Giulio Einaudi Editore, 2002.