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FOUCAULT, M. História da sexualidade: I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1988. (capítulos III – Scientia Sexualis e IV - O dispositivo de sexualidade).
Claro que não se deve excluir a arte erótica da sociedade ocidental, existem alguns
pontos como a procura do amor de Deus, da união espiritual, a procura pelo mestre religioso, a
via de iniciação, intensificação do fenômeno religioso até sua manifestação física, possessão entre
outros domínios frequentes no catolicismo da Contrarreforma que exibem a contribuição das
culturas que estudavam a arte erótica ao ocidente. Tendo então aceito que os mecanismos
repressivos não constituem verdadeiro motivo da sexualidade atual, devemos prestar olhar mais
atento aos mecanismos positivos e proliferativos.
-“que o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se
guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações
desiguais e móveis”;
-“que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e
como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade
que repercuta alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo
social. Deve-se, ao contrário, supor que as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam
nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e nas instituições servem de suporte
a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então,
uma linha de força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si; evidentemente,
em troca, procedem a redistribuições, alinhamentos, homogeneizações, arranjos em série,
convergências desses afrontamentos locais. As grandes dominações são efeitos hegemônicos
continuamente sustentados pela intensidade de todos esses pequenos afrontamentos”.
Polivalência tática dos discursos: o discurso deve ser considerado uma via múltipla
no campo das forças. Não cabe entender de onde derivam ou que ideologia representam, mas que
efeitos proporcionam e qual seu papel numa estratégia maior pela sociedade.
Todas essas regras tratam-se de entender que por mais intencional que seja um
mecanismo ele nunca é totalmente estável, nem na esfera da dominação, visto que as forças que
confluíram para sua formação se utilizam dos mesmos mecanismos daquelas que se opõe.
E vale entender a sexualidade como uma via muito densa em relações de poder, ela
pode não ser um elemento rígido, mas pode ser usado em um grande número de estratégias como
propulsor ou apoio, exatamente por ser algo inerente a todo ser humano. Foucault cita quatro
“conjuntos estratégicos” relacionados à sexualidade que são conhecidos do século XVII: a
histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexo da criança, a socialização das condutas
de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso, mas, que fique claro, nenhum deles surgiu
em bloco e/ou necessariamente naquele século.
Um resumo desse diálogo de dispositivos poderia ser: A partir do século XVII teve-
se o desenvolvimento do dispositivo de sexualidade pelas instituições que cresceram na prática
da confissão e essas instituições, muito pelo cunho pedagógico, influenciaram a estrutura familiar
da burguesia. Se por um lado houve um desenvolvimento de pluralidade no tópico sexual
exatamente pelo “querer saber” que a prática confessionária incitou, por outro essa chama do
dispositivo da sexualidade gerou uma resposta de defesa do dispositivo de aliança pelo
fortalecimento da estrutura familiar e sua maior centralização no pai e no marido. Mas esse
fortalecimento também serviu ao dispositivo da sexualidade, pois centrou figuras para o
normativo sexual. Essas figuras surgiram tanto como uma resposta do dispositivo de aliança
(tentando adequar a sexualidade maior dentro de uma lei) como do movimento médico e
psiquiátrico que começou a analisar a biologia da sexualidade: a confusão de fatores não permite
definir o que trabalhou a favor de qual dispositivo, mas fato é que daí foram criadas ou reforçadas
as figuras sexuais marginalizadas: a mulher nervosa, a esposa frígida, o marido impotente, o
sádico, o perverso, a jovem histérica, a criança precoce e o jovem homossexual que menospreza
sua mulher. Estes exemplos, sem dúvidas deram força ao sistema de alianças em seu projeto de
autoproteção, mas por outro lado concomitantemente deixavam claro que existiam outras formas
sexuais em pauta na natureza humana, mesmo que nesse momento elas só pudessem ser vistas
como avessas ou passíveis à correção – ponto para o dispositivo da sexualidade.
A interação cada vez maior das classes religiosas, médicas e pedagógicas no assunto
reforçou estereótipos ao mesmo tempo que sensibilizou e proliferou discursos sobre tais, abrindo
caminho para práticas que visavam livrar o indivíduo com sofrimento sexual das relações sociais
que criaram esse sofrimento em primeiro lugar. Ainda que baseada na lógica da confissão
religiosa, podemos citar a psicanálise como grande exemplo, mas também podemos falar de
Charcot que tentou, através do isolamento do paciente e sua família, curar suas dores, percebendo
como a família era propulsora das mesmas – talvez ele estivesse perto de separar um dispositivo
do outro. Porém, toda essa aventura interventiva tinha o objetivo de tornar o indivíduo
sexualmente integrável ao sistema da família; e essa intervenção, embora manipulasse o corpo
sexual, não o autorizava a formular-se em discurso explícito. A psicanálise, através da crença de
que os problemas sexuais eram advindos das relações com os entes mais próximos, reforçou a
segurança de que o dispositivo da sexualidade estaria nos conformes da lei da aliança:
“Pais, não receeis levar vossos filhos à análise: ela lhes ensinará que, de toda
maneira, é a vós que eles amam. Filhos, não vos queixeis demais de não serdes órfãos e de sempre
encontrardes no fundo de vós mesmos vossa Mãe-Objeto ou o signo soberano do Pai: é através
deles que tendes acesso ao desejo.”
No século XIX podemos ver duas tecnologias adicionais empregadas no sexo que
irão nos direcionar para a tese final do livro. De um lado, a descoberta da hereditariedade e suas
doenças fundaram um mecanismo médico capaz de dar suporte lógico às práticas eugênicas dos
estados. Agora se tinham registros de casamentos, nascimentos e mortes, era o estado e a medicina
intervindo em quem deveria procriar ou não. Muitas das doenças genéticas foram, nesse ponto,
fortemente associadas à perversões, que poderiam levar ao raquitismo dos filhos ou à esterilidade
da próxima geração. Novamente, era a psicanálise a única a nadar contra a corrente e desligar o
sexo de sua vertente hereditária-perversa, a confissão para si mesmo poderia mostrar ao indivíduo
sua individualidade sexual e não uma moratória político-médica.
Foi dessa forma que, por muito tempo, as camadas populares ficaram isentas do
dispositivo da sexualidade, sendo subjugados apenas pelo de alianças: valorização do matrimônio
e da fecundidade, exclusão das uniões consanguíneas. O dispositivo da sexualidade adentrou as
classes baixas em 3 etapas. Primeiro, através dos mecanismo anticoncepcionais visto alguns
problemas da natalidade. Em seguida, quando o estado percebeu que poderia começar a exercer
controle político e econômico sobre a força de trabalho teria sido iniciada uma campanha pela
“moralização das classes pobres”. E por fim, através do controle das perversões em nome de uma
hereditariedade e fecundidade plena para a sociedade e raça. Podemos afirmar agora que o
dispositivo da sexualidade foi elaborado pela e para a classe privilegiada e somente então
progrediu para as inferiores, a partir de mecanismos ligeiramente diferentes e muitas vezes sob o
formato de políticas públicas. Isso destrói para Foucault a teoria da repressão, pois em nenhum
momento houve uma política sexual unitária que permitisse tal.
Para que o proletariado fosse dotado de um corpo e de uma sexualidade, para que se
preocupasse com sua saúde e sua reprodução foram necessários conflitos relativos ao espaço
urbano: coabitação, proximidade, contaminação, epidemias, prostituição e doenças venéreas.
Foram necessárias urgências de âmbito econômico: desenvolvimento de indústria pesada, mão de
obra estável e competente, controle do fluxo de população e regulações demográficas. Só assim
surgiu todo o aparelho técnico-administrativo necessário para a higienização, medicalização e
educação do proletariado. Dessa forma o dispositivo da sexualidade foi importado da classe
exploradora para a classe explorar sem constituir um risco de autoafirmação da última; continuava
instrumento da hegemonia burguesa.
“Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao
contrário, se está seguindo a linha do dispositivo de sexualidade, quisermos opor os corpos, os
prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência às captações do
poder, será com relação à instância do sexo que devemos liberar-nos. Contra o dispositivo de
sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os
prazeres.”