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- Isso depende do lugar aonde quer ir, diz o Gato tranquilamente” (CAROL,
2002, p. 59).
E nesse “país de maravilhas”, eu escolhi que caminho seguir: o trajeto da leitura
e da crítica histórica. Eu, um filho de agricultor com uma funcionária pública municipal,
morador da zona rural, estava matriculado em uma universidade pública, de boa
qualidade, gratuita, com restaurante universitário, onde podia almoçar e jantar e assistir
aulas com excelentes professores. Claro que a “escola para todos” continuava a ser a
“escola para poucos”, por isso, não poderia - nem deveria - perder a chance que Deus
me deu. Desde o início, decidi que cada autor indicado pelo corpo docente do curso de
História seria para mim uma oportunidade de superar as deficiências trazidas do que
hoje chamamos de Ensino Médio1, mas, à época, Segundo Grau. A partir do curso de
graduação, redesenhei meu corpo como um território de obediência e de submissão.
Envolto em textos e atividades, precisava permanecer, por horas, sentado e calado,
atravessado pelo desejo de compreender os autores e entregar as tarefas em dia. Anos
mais tarde, os óculos e a fisioterapia me cobraram essa docilidade corporal.
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Faço referência aos seguintes professores do Departamento de História do campus II da UFPB: Leonília
Amorim, Martha Lúcia Ribeiro, Odete Amorim, Frederico de Castro Neves, Durval Muniz de A. Júnior,
Luciano Mendonça de Lima, Josemir Camilo de Melo, Fábio Gutemberg, Fernando Patriota, José
Benjamim Montenegro, Rosilene Montenegro, Aluisio Moreira Franco, Martha Falcão e Celso
Gestermeier do Nascimento.
Com o ingresso na
universidade, deixei a zona rural, pelo
LOBRAS – LOJAS BRASILEIRAS menos durante os dias da semana, de
Fundadas em 1994 por Adolfo Basbaum, segunda a sexta-feira. Comecei a
as Lojas Brasileiras foi uma tradicional
rede brasileira de lojas de conhecer outros cenários. Campina
departamentos e variedades. Encerrou Grande se desnudou para mim como
suas ações em 1999 após uma série de
prejuízos financeiros que vinham foi São Paulo, a pauliceia desvairada,
ocorrendo desde 1996. para Carlos Drummond de Andrade. O
Fonte: centro de Campina, com suas ruas
http://cgretalhos.blogspot.com/2010/06/r
elembrando-as-lojas- cheias de vendedores, o calçadão da
brasileiras.html#.W8qjzmhKjIU Maciel Pinheiro, o Café Aurora na
Praça da Bandeira, a LOBRAS a me
convidar a entrar e a consumir.
Entrava, mas raramente consumia. A
arquitetura campinense era uma novidade para mim. O cinema Babilônia me convidou a
entrar pela primeira vez e assisti ao filme “Luzia-Homem”, num festival de cinema
regional. Tudo era novidade, diferente da minha paisagem de interior, cercada por
açude, cacimba, algaroba e pés de caju. Na geografia campinense, combinava-se a
destruição dos hábitos e maneiras culturais vistas como ultrapassados e a subjetivação
de práticas e condutas autorizadas pela estética vigente dos anos de 1990. Era um tanto
quanto imperativo afastar-me da “matutice” do sítio e aproximar-me do mundo ilustrado
da academia e da urbanidade campinense. Confesso que foi uma operação dolorosa,
pois até hoje raízes do brega e do cafona ainda me habitam.
Esta foi a melhor e mais rica experiência no ensino médio que eu me recordo.
Ao mesmo tempo em que ensinava nessa escola pública da rede estadual, ministrava
aulas no Colégio Alfredo Dantas, em Campina Grande, uma escola particular que, à
época, comportava 2.700 alunos. No período que lecionei nesse ambiente escolar, meu
espaço de atuação era somente a sala de aula. Não desenvolvi nenhum projeto de
pesquisa ou de extensão.
Nos anos de 1995 a 1997, não atuei como professor. Pedi demissão do Estado e
das escolas particulares depois que fui aprovado na seleção de mestrado da
Universidade Federal de Pernambuco, momento em que desenvolvi uma dissertação
tendo como fonte principal a literatura de José Lins do Rego. No Mestrado, ocorreu uma
“virada disciplinar” em termos de conteúdo e de pressupostos teóricos. Tive contato
com autores como Roger Chartier e Michel de Certeau, apresentados pelo professor
Antonio Torres Montenegro, e desenvolvi um carinho especial por Michel Foucault,
autor que me inspirou a ler as fontes para confeccionar a dissertação. Foi durante o
mestrado que percebi o quão pouco eu entendia de Teoria da História. Tornou-se um
desafio diário romper com as minhas próprias dificuldades teóricas e metodológicas, me
desdobrar e me reescrever como sujeito. O mestrado na UFPE desenhava-se para mim
como um campo de disputas que produzia subjetividades e identidades. Uma dessas
identidades era a de intelectual, perseguida por muitos colegas que faziam questão de
“abrir a boca” em todas as aulas.
No Mestrado em História, passei por uma experiência muito rica com a prática
de pesquisa. Não havia internet ainda e parte da minha documentação para a dissertação
encontrava-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sem dinheiro para pagar o
aluguel do apartamento no Rio de Janeiro durante a fase da pesquisa, eu me aventurei
em ficar hospedado no Quartel do Corpo de Bombeiro Militar do Estado do RJ
(CBMERJ), depois de ligar para o coronel, contar minha situação e pedir abrigo.
Durante um pouco mais de trinta dias, aquele foi o meu espaço de descanso, depois de
longos dias pesquisando na Biblioteca Nacional.
instrumentos na formação das masculinidades no Seridó (década de 1920), de Veranilson Santos Pereira e
Gilberd Soares. “Devagar, devagar, sobe-se a montanha sem parar: o movimento feminista no Nordeste
nas décadas de 20 e 30”, de Rosicleide Lopes.
6
“Com a Honra à Flor da Pele: o discurso jurídico acerca da virgindade feminina no Seridó (1900-1930)”,
de Soniete Simone de Carvalho e Silva.
7
“A Sagração do corpo: a virgindade e a honra femininas nos discursos jurídicos (Caicó, 1908-1930)”, de
Francineide Alves de Lucena.
Em 2003, apresentei
outro projeto ao PIBIC-CNPq- Congregação das Filhas do Amor
UFRN, versando acerca da Divino
história da educação feminina
A Congregação das Filhas do Amor Divino foi
no Seridó. Percebendo essa fundada em 21 de novembro de 1868, quando
lacuna na historiografia local, a madre alemã Francisca Lechner recebeu permissão
para instituir uma comunidade religiosa que tinha
adentrei os arquivos da como objetivo acolher as jovens que migravam para
as grandes cidades da Europa em busca de emprego.
Congregação das Filhas do
Em 11 de outubro de 1925, o solo de Caicó recebeu
Amor Divino para pesquisar um grupo de nove freiras, vindas do sul do Brasil.
Estabelecidas no Centro da Cidade, começaram a
como foi elaborado o ser arquitetar o projeto de construção de uma escola para
feminino na arquitetura escolar, as moças da região, objetivando “prepará-las para a
vida”. O Educandário Católico Santa Teresinha,
nas instâncias de um saber fundado em 1926, viria a se tornar uma referência
regional na área de educação de meninas.
escolarizado. Recortando
espacialmente a escola Santa Fonte:
BURITI, Iranilson; LUNARDELO, Ricky. “Puras,
Teresinha do Menino Jesus e, educadas e Disciplinadas Para o bem Casar”: a
congregação das filhas do amor divino e a educação
temporalmente, 1926-1960, feminina no Seridó (1925-1962). Natal: SBHE, 2002.
analisei como foi sendo gestado
um modelo de mulher próprio a
atender aos requisitos da elite
seridoense. “Puras, educadas e
disciplinadas para o bem-casar”
foi o título desse projeto, e a
análise de currículo e gênero
estiveram fortemente presentes.
Guacira Lopes Louro, Maria
Izilda de Matos, Eni de
Mesquita Sâmara, Tomaz
Tadeu da Silva, Jorge Larrosa, Sandra Corazza, Alex Branco Fraga, Alfredo Veiga-
Neto, Antonio Viñao-Frago e Michel Foucault foram alguns dos autores utilizados
nessa pesquisa. Conceitos como currículo, arquitetura escolar, cultura escolar, cultivo de
corpos, gênero, saber/poder pontilharam nossas análises, nossos escritos. Viajar pelos
recônditos do mundo feminino educado para o casamento, para a submissão a códigos
prescritos social e culturalmente foi uma das direções desse projeto, fértil enquanto
espaço de discussão.
Em 2004, apresentei outra proposta de pesquisa ao PROPESQ-UFRN,
recebendo financiamento da própria instituição. Retomando os processos-crime como
fonte de pesquisa para o historiador, ampliei o período de investigação e confeccionei o
projeto “Identidades Culturais Tatuadas no Corpo: família, honra e moralidade nos
processos-crime (Caicó, 1900-1950)”. Com dois bolsistas – Helder Medeiros Anjos e
Edivalma Cristina dos Santos -, investigamos os discursos formadores e legitimadores
da honra familiar seridoense. Como marcas tatuadas no corpo da família, assim também
são os estereótipos para ela criados pelos juristas, pela medicina legal, pelos advogados
de defesa ou de acusação. Mulheres e homens desfilam nesses discursos de forma
binária, classificados em polos opostos: ora acusados, ora vítimas, ora dominados, ora
dominantes, ora culpados, ora inocentes. Essa catalogação do ser humano contribui para
que a própria sociedade também faça esse tipo de leitura dos sujeitos envolvidos nos
crimes em nome da honra. Para entendermos essa problemática, lançamos mão de um
referencial teórico que nos permitisse entender o discurso jurídico como construtor de
rostidades várias. Deleuze, Guattari, Michel Foucault foram os mestres de cerimônia
que nos convidaram a entender as intencionalidades discursivas, as rostidades possíveis,
as subjetividades dos sujeitos. Compreender o corpo como uma categoria analítica,
como um espaço de incisões do saber, de tatuagens do poder foi, para a equipe, uma
experiência de pesquisa singular, pois, no mesmo documento (o processo-crime), o
corpo era desenhado diferentemente. Mas meus dias na UFRN haviam terminado
enquanto professor da graduação.
Na UFCG, já adentrei vários espaços, caminhei por vias, abri portas. Além das
aulas da graduação e da pós (particularmente na área de Metodologia do Ensino de
História e Pesquisa Histórica), fiz parte dos processos vestibulares da Comissão de
Processos Vestibulares (COMPROV), de comissões de ascensão funcional, do comitê
interno do PIBIC-CNPq-UFCG, de comissões para seleção do mestrado do PPGH, do
Núcleo Docente Estruturante do curso de História, de comissões diversas. Meu “eu” foi
pluralizado pelas muitas oportunidades que esta Instituição me ofereceu. Desde 2005,
quando cheguei à UFCG, passei a desenvolver vários projetos de pesquisa com o apoio
do CNPq, tornei-me bolsista produtividade - PQ2 - em 2006 e venho me especializando
na área de história da ciência. Compreendo que prática de pesquisa é um modo de
pensar, sentir, desejar, amar, se relacionar com o outro e consigo mesmo; uma forma de
interrogar, de suscitar acontecimentos, de exercitar a capacidade de resistência e de
submissão ao controle. Portanto, uma prática de pesquisa é implicada em nossa própria
vida, pois diz respeito ao modo como fomos e estamos subjetivados, como entramos no
jogo de saberes e como nos relacionamos com o poder.