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Parte 2 - Arqueologia de mim ou a fabricação de um

pesquisador: as tecituras do historiador

Com o tempo, a gente se torna


finalmente aquilo que é, a gente só se
torna aquilo que é. As transformações do
corpo e da alma reforçam a permanência
da identidade, caricaturam-na ou fixam-
na, nunca a contradizem. Não a
desarrumam.
(Catherine Malabou)

Abril de 1990. Seis anos após o fim do episódio da Frente de Emergência, um


sonho começa a se “materializar”. Esse mês foi marcado pela minha chegada à
academia, mais precisamente, ao ingresso no curso de História do campus II da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em Campina Grande. Dava-se início ao
passeio pelos lugares desconhecidos, pelos “mares nunca dantes navegados”. Fui
aprovado em 3º lugar para o curso de História da UFPB e em 1º lugar para Geografia,
na UEPB. Comecei o ano de 1990 cursando os dois. A História me seduziu de tal forma
que só terminei um período de Geografia. Não voltei mais. Clio foi mais forte que Gaia
e as árvores e blocos de aula do campus II foram mais sensíveis que o tom colegial do
antigo CEDUC da UEPB, sem árvores, restaurante universitário e sem muita sedução.
Aqui lanço mão do memorial de Scarllet Marton quando diz: “Minhas ‘escolhas’ não
poderiam ser outras; se pudessem, teriam sido. A ‘escolha’ não se faz só pelo que
contempla, mas pelo que recusa. Afinal, decidimos muito menos do que supomos ou
imaginamos decidir”. (MARTON, 2003, p. 14).
Egresso do Colégio Estadual Graciliano Fontini Lordão (Pedra Lavrada) e com
uma formação influenciada pela perspectiva tradicional e mecanicista, vi a academia
como uma geografia da superação e do alçar novos voos: superar as lacunas curriculares
deixadas pelo ensino de má qualidade das escolas de ensino ginasial e científico nas
quais estudei. No primeiro dia de aula na Universidade, eu me sentia como Alice no
País das Maravilhas:

- Eu só queria saber que caminho tomar, pergunta Alice.

- Isso depende do lugar aonde quer ir, diz o Gato tranquilamente” (CAROL,
2002, p. 59).
E nesse “país de maravilhas”, eu escolhi que caminho seguir: o trajeto da leitura
e da crítica histórica. Eu, um filho de agricultor com uma funcionária pública municipal,
morador da zona rural, estava matriculado em uma universidade pública, de boa
qualidade, gratuita, com restaurante universitário, onde podia almoçar e jantar e assistir
aulas com excelentes professores. Claro que a “escola para todos” continuava a ser a
“escola para poucos”, por isso, não poderia - nem deveria - perder a chance que Deus
me deu. Desde o início, decidi que cada autor indicado pelo corpo docente do curso de
História seria para mim uma oportunidade de superar as deficiências trazidas do que
hoje chamamos de Ensino Médio1, mas, à época, Segundo Grau. A partir do curso de
graduação, redesenhei meu corpo como um território de obediência e de submissão.
Envolto em textos e atividades, precisava permanecer, por horas, sentado e calado,
atravessado pelo desejo de compreender os autores e entregar as tarefas em dia. Anos
mais tarde, os óculos e a fisioterapia me cobraram essa docilidade corporal.

Comecei a fabricar a história em “uma relação de urgência” com o meu tempo,


respondendo às suas solicitações. Mas como o sujeito histórico só se reconhece como tal
pela alteração que lhe causa os encontros com as diversas formas de alteridade, procurei
reconhecer as minhas identidades nos palcos dos outros. Algo que me chama atenção
até hoje é que as marcas de uma pedagogia tradicional acompanharam-me em todos os
espaços escolares pelos quais passei. De Cisplatina à Universidade Federal da Paraíba, a
grande maioria dos professores desenhavam suas aulas por meio da escrita expositiva,
de metodologias tradicionais.

Portanto, este capítulo aborda outros traços autobiográficos, momento em que


subjetivo outros conhecimentos, novos cotidianos, representando-me por meio da
subjetividade, da singularidade, das experiências e dos saberes tecidos no Curso de
História do campus II da UFPB. Nas imagens que vão se formando enquanto estudante de
História, “surgem percepções de uma existência, colhidas de forma aleatória, determinada”
(MARTON, 2003, p.18). A construção deste relato inscreve-se na subjetividade e
estrutura-se num tempo que, a exemplo da obra de Salvador Dali - A Persistência da
Memória -, transborda-se para fora do relógio. Como argumenta Clementino de Souza
(2008, p. 45), a elaboração das narrativas acadêmicas é marcada por uma temporalidade
1
A partir de 1996, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB 9394/96, a educação brasileira foi
dividida em dois níveis: a educação básica e o ensino superior. O antigo Segundo Grau passou a ser
chamado e Ensino Médio (do 1º ao 3º ano).
não linear, de uma consciência de si, das representações que o sujeito constrói de si
mesmo.

Nos palcos do curso de História, conheci e me dei a conhecer. Fui redesenhando


minhas identidades, pensando em outros sujeitos para me habitarem. Além da memória
material dos espaços (BG, BC e BD), a lembrança de vários autores, teóricos ora
confusos, ora chamativos, me constituem. Me apaixonei de imediato pelas aulas de
Introdução ao Estudo da História e de Teoria da História, ambas ministradas por
Gervácio Aranha, cuja monitora era Rosilene Melo. Nessas disciplinas, George Duby,
Jacques Le Goff, Karl Marx, E. P. Thompson, Louis Althusser e Michel Foucault foram
os “mestres de cerimônia”, alguns deles revisitados em Historiografia Brasileira,
ministrada por Fábio Gutemberg ou nos seminários especiais. Cada professor, ao seu
modo, ia desenhando em minhas entranhas novas convicções de vida.
O currículo do curso de História da UFPB tornava-se um dispositivo disciplinar
para minha formação intelectual, com leituras que me territorializavam e me
elaboravam como sujeito. Os corpos e os saberes eram produzidos por esses campos
disciplinares. Cada disciplina da arquitetura curricular funcionava “como formações
institucionalizadas que organizam esquemas de percepção, observação e ação e que
funcionam como ferramentas de conhecimento e comunicação” (LENOIR, 1993, p. 72).
Desse modo, como parte dos
dispositivos disciplinares de O currículo, como um espaço de significação,
uma licenciatura em História, está estreitamente vinculado ao processo de
formação de identidades sociais. É aqui, entre
os componentes curriculares outros locais, em meio a processos de
representação, de inclusão e de exclusão, de
“são estruturas políticas que
relações de poder, enfim, que, em parte, se
fazem a mediação entre a definem, se constroem, as identidades sociais
que dividem o mundo social. A tradição crítica
economia política e a produção em educação nos ensinou que o currículo
de conhecimento”. Cada produz formas particulares de conhecimento e
de saber, que o currículo produz dolorosas
“matéria” com suas leituras divisões sociais, identidades divididas, classes
sociais antagônicas. As perspectivas mais
eram braços escolares dos recentes ampliam essa visão: o currículo
mecanismos de subjetivação também produz e organiza identidades
culturais, de gênero, identidades raciais,
(VEIGA-NETO, 1996, p.255). sexuais... Dessa perspectiva, o currículo não
pode ser visto simplesmente como um espaço
de transmissão de conhecimentos. O currículo
está centralmente envolvido naquilo que
somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que
nos tornaremos. O currículo produz, o
Sou sabedor de que não existe prática pedagógica que seja neutra, e ao receber o
plano de curso dos professores, com o planejamento dos objetivos, a seleção de
conteúdos, a colocação de tais conteúdos em ação no circuito das aulas e a metodologia
da avaliação, eu não tinha ideia de que tudo aquilo produzia significados que iam além
dos territórios da universidade. Tinha muitas impressões com cada plano de curso que
recebia, uma delas era que a história se fazia pelo gênero masculino, feita por homens,
pensada e escrita por estes. Onde estavam as mulheres historiadoras? Eu me
questionava. Até que um dia tive o prazer de conhecer as mulheres que escreviam
histórias, como Kátia Mattoso, Margareth Rago, Maria Izilda S. de Matos, Maria Stella
Bresciani, Michele Perrot e muitas outras. Com esses e outros professores do curso 2,
aprendi a respeitar o texto historiográfico e o métier do historiador; aprendi a não
separar as teorias da História das escolas e dos movimentos que as produziram
(Historicismo, Positivismo, Escola dos Annales, Nova História, dentre outro/as).

Assim, lendo aqueles historiadores, esforçava-me para compreender conceitos,


discursos, textos e intertextos. A história é uma ciência? Esta, talvez, tenha sido a
grande interrogação feita por mim durante o curso de Graduação. Aqueles fabricadores
de histórias convidaram-me a não me contentar com uma só versão da história e a
buscar novas interpretações sobre o saber histórico, seu “sentido” e as análises distintas
sobre o estatuto do saber historiográfico, visto e descrito ora como ciência, ora como
arte, como narrativa, como discurso. O curso de História transformou-se em uma grande
maquinaria social e cultural, cujos planos de cursos e leituras escolhidas pelos
professores formavam um grande conjunto de “máquinas” que, operando
articuladamente entre si, desempenharam um papel crucial para a minha formação
política, cultural e metodológica (VEIGA-NETO, 2008, p. 40).

2
Faço referência aos seguintes professores do Departamento de História do campus II da UFPB: Leonília
Amorim, Martha Lúcia Ribeiro, Odete Amorim, Frederico de Castro Neves, Durval Muniz de A. Júnior,
Luciano Mendonça de Lima, Josemir Camilo de Melo, Fábio Gutemberg, Fernando Patriota, José
Benjamim Montenegro, Rosilene Montenegro, Aluisio Moreira Franco, Martha Falcão e Celso
Gestermeier do Nascimento.
Com o ingresso na
universidade, deixei a zona rural, pelo
LOBRAS – LOJAS BRASILEIRAS menos durante os dias da semana, de
Fundadas em 1994 por Adolfo Basbaum, segunda a sexta-feira. Comecei a
as Lojas Brasileiras foi uma tradicional
rede brasileira de lojas de conhecer outros cenários. Campina
departamentos e variedades. Encerrou Grande se desnudou para mim como
suas ações em 1999 após uma série de
prejuízos financeiros que vinham foi São Paulo, a pauliceia desvairada,
ocorrendo desde 1996. para Carlos Drummond de Andrade. O
Fonte: centro de Campina, com suas ruas
http://cgretalhos.blogspot.com/2010/06/r
elembrando-as-lojas- cheias de vendedores, o calçadão da
brasileiras.html#.W8qjzmhKjIU Maciel Pinheiro, o Café Aurora na
Praça da Bandeira, a LOBRAS a me
convidar a entrar e a consumir.
Entrava, mas raramente consumia. A
arquitetura campinense era uma novidade para mim. O cinema Babilônia me convidou a
entrar pela primeira vez e assisti ao filme “Luzia-Homem”, num festival de cinema
regional. Tudo era novidade, diferente da minha paisagem de interior, cercada por
açude, cacimba, algaroba e pés de caju. Na geografia campinense, combinava-se a
destruição dos hábitos e maneiras culturais vistas como ultrapassados e a subjetivação
de práticas e condutas autorizadas pela estética vigente dos anos de 1990. Era um tanto
quanto imperativo afastar-me da “matutice” do sítio e aproximar-me do mundo ilustrado
da academia e da urbanidade campinense. Confesso que foi uma operação dolorosa,
pois até hoje raízes do brega e do cafona ainda me habitam.

Campina-discurso. Como um grande palimpsesto, Campina Grande apresentou


para mim as suas linguagens, a vida que pulsa dentro de si, como diz Malerba (2000).
Suas ruas cheias e bulhentas (13 de Maio, Epitácio Pessoa, João Pessoa, Pedro II, Irineu
Joffily, Floriano Peixoto), o dia-a-dia das residências, as etnias em trânsito, o tráfico e o
tráfego de mercadorias e de costumes, os sujeitos acelerados que caminham nas
paisagens urbanas e pontilham as ruas calçadas ou lamacentas com as suas histórias,
com os seus gestos, com a sua vida, com a sua morte, com as suas tramas e dramas, com
as suas histórias ocultas. Campina Grande me acelerou por dentro e por fora, mudou
minhas concepções, visões, tatos. Meu olfato foi educado pelos novos cheiros que
vinham da Cabana do Possidônio, da La Suíssa, mas também do picado da Feira Central
e do aroma singular do Café Aurora da Praça da Bandeira. O meu paladar, até então
acostumado com a comida do sítio, desejou um novo alimento, uma comida “de fora”,
de outros lugares, de outros espaços: pizza, bauru, egg burguer, sanduíche, bem
diferente da batata-doce, do pão-de-milho e da macaxeira que comia quase que
diariamente em Cisplatina. Mas toda sexta-feira à tarde, de volta para a casa de meus
pais no ônibus da Expresso Nacional, meu paladar novamente desejava a comida
caseira.
Os monumentos campinenses e seus pontos simbólicos falavam da vida
intelectual dos que nela habitam e dos seus visitantes; “seus caminhos e seus trânsitos
falam das mais diversas atividades que no seu interior se produzem; seus mendigos
falam da distribuição de sua riqueza ao estender a mão em busca de esmolas”
(BARROS, 2007, p.40). Como um “poeta do detalhe”, no dizer de Certeau, o “eu”
historiador procurava reconhecer os territórios que me ajudariam a crescer
academicamente. A Livraria Livro7, a Livraria Pedrosa, a Biblioteca Pública Municipal
e a Casa do Colegial passaram a ser espaços por mim frequentados. Como as letras de
um alfabeto para crianças nos primeiros dias da vida escolar, Campina Grande e a
UFPB passaram a ser pacientemente decifradas, lidas, decodificadas, problematizadas
por mim como um discurso, como um grande texto urbano que “aloja dentro de si textos
menores, feitos de placas de ruas que evocam memórias e imaginários, de cartazes que
são expostos nas avenidas para seduzir” (idem, p.45). A cidade “é um grande texto que
tece dentro de si uma miríade de outros textos, inclusive os das pequenas conversas
produzidas nos encontros cotidianos” (idem, p.45)
Na academia, redesenhei novas estéticas da amizade. Fiz amigos no ato da
leitura, nas cabines de estudo da biblioteca central, nas filas do R.U. e no banquinho de
concreto que ficava em frente ao Departamento de História e Geografia, no antigo bloco
CH. Colegas de turma entraram para o meu coração, como Conceição, a doce Tanda,
que vinha todos os dias de Soledade. Com Tanda, aprendi que a superação é um ato
diário. Dividia a vida entre ser mãe de dois filhos pequenos, um esposo, uma sala de
aula no Colégio Luiz Gonzaga Burity e as muitas leituras que o curso de História exigia.
Sandra Guedes, outra amiga que ganhei no curso e que perdi quando ela foi embora para
o Norte. Abandonou a carreira de historiadora para ser enfermeira e deixou os amigos à
míngua. Com a ausência de Sandra, entendi que a amizade quando não é cuidada torna-
se uma flor murcha, pisada pelos pés que caminham apressados para ganhar a vida.
Jaqueline! Ah, Jaqueline! Por que fostes embora quando ainda estavas começando a
viver?! A doença misteriosa a tirou de nosso meio, ainda tão jovem, ainda com tantos
sonhos. Sua partida me fala de uma amizade que começou, mas que nunca terá fim.
Tanda, Sandra, Jaqueline, Itamar, Rúbia. Com vocês, fui compreendo aos poucos que
um modo de vida pode “dar lugar a relações intensas que não se pareçam com nenhuma
daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a
uma cultura e a uma ética” (FOUCAULT, e 1981, p. 39).
Parte 3 – O se fazer professor e orientador:
mergulhando nas atividades de ensino, de pesquisa e de
orientação

3.1 - Travessias: Atividades de Ensino e de Pesquisa

Falar de si mesmo é duplamente ilusório.


Para o outro, cria a ilusão da identidade;
para o eu, a da coerência. Uma única
assinatura vêm apor-se ao texto; um
mesmo sujeito supõe redigi-lo. Contudo,
esta é uma ocasião ímpar; permite ao
autor dar voz às suas múltiplas vozes,
ainda que apenas uma prevaleça - e tome
a palavra (MARTON, 2003, p.15).

Iniciei a minha jornada no campo do magistério profissional ainda quando


estudante de graduação, numa escola pública estadual em Pedra Lavrada - PB 3, a mesma
escola onde estudei durante quatro anos (Graciliano Fontini Lordão), de 1985 a 1988.
Nesse espaço escolar de sonhos e ilusões, o meu caminho se bifurca e um personagem
novo aparece: o professor, amante das aulas e do corpo discente. Esse personagem
habita em mim e coabita com o estudante de História, dialogando entre si, tomando cada
um deles seu lugar, às vezes, se completando. Um personagem reconhecível, que já me
habitava desde 1983, com a “barraca da Turma 17”, cujo presente provém de um
passado não muito distante. Um ser novo vem ao mundo vindo de um ventre aberto pela
biografia e pela experiência de escutar o outro. Nasce o professor Iranilson, um ano
depois de ter finalizado os estudos científicos, vivendo outras experiências e outras
latências, apoiando-se em outras plasticidades.

Durante cinco anos (1990-1994), fiz parte daquela cartografia escolar,


ministrando aulas de História e Geografia tanto no primeiro quanto no segundo grau.
Foi um momento singular em minha vida profissional, pois fui descobrindo que ser
educador é estar conectado também com a pesquisa em sala de aula, com as leituras
pedagógicas e metodológicas, com outros mundos que pouco se conhece na Academia e
que os professores de Estágio Supervisionado não tem muita dimensão. No Colégio
Graciliano Fontini Lordão, me tornei outro alguém, absolutamente outro, alguém
3
Antes, porém, tive uma rápida passagem como professor de Geografia (trabalhei de março de 1989 a
março de 1990) no distrito de Baraúnas, hoje município emancipado.
reconciliado consigo mesmo. Utilizando a metáfora
do rio de Malabou, me tornei, junto com os alunos, Pedagogias Urbanas: Pedra
um rio que transbordava para fora de si e seguia Lavrada e suas
potencialidades
seus caminhos, seus trajetos e, sem que nenhum
motivo geológico permitisse explicar, O projeto que desenvolvi (que
certamente não tinha esse
transbordávamos, explodíamos, a exemplo do que título de pedagogias urbanas),
ocorreu com um projeto de pesquisa que explorava diversos aspectos
do município lavradense,
desenvolvi naquele espaço escolar e que narrarei dentre os quais as práticas de
em seguida. sobrevivência (agricultura
familiar, por exemplo), os
Como professor do Segundo Grau (hoje marcos históricos e políticos
desde a emancipação em
Ensino Médio), dei-me conta de que podia fazer 1959, as práticas culturais
um projeto de pesquisa e envolver os alunos de ligadas às religiosidades.
Destaco o trabalho sobre
uma turma. Elaborei um projeto sobre as mineração no oeste
pedagogias da cidade de Pedra Lavrada, lavradense, escrito pela aluna
Adelma Maris. Esse trabalho
trabalhando as áreas de economia, política e foi premiado na Franca.
práticas socioculturais. Aproximadamente 35
alunos se envolveram com o projeto, o que resultou
em trabalhos surpreendentes, a exemplo do
desenvolvido pela estudante Adelma Maris, sobre
as riquezas minerais do município lavradense.
Nosso objetivo não era buscar a origem, o gênesis
do município, mas entender as pedagogias do
urbano, como foi sendo gestado cada espaço, cada
bairro, cada praça, o coreto, a igreja matriz, além
das formas de sobrevivência econômica dos
moradores do município. Desde a antiga Fazenda
até a Pedra Lavrada contemporânea, que práticas
econômicas, políticas e socioculturais foram sendo possíveis e ganharam visibilidade
nos discursos de seus habitantes? Como surgiu esse corpo urbano que ganhou fôlego,
cor, nome, voz? Que recursos minerais são explorados? Dessa forma, a cultura material
foi visitada em seus vários sentidos. Um repertório de artefatos e sua dimensão físico-
sensorial foram vistos, lidos e compreendidos como fontes fundamentais para o
professor. Foi difícil desenvolver? Foi, sim, mas, “a verdade é que esta obra a ser feita
exigia esta vida”. (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 34).

Esta foi a melhor e mais rica experiência no ensino médio que eu me recordo.
Ao mesmo tempo em que ensinava nessa escola pública da rede estadual, ministrava
aulas no Colégio Alfredo Dantas, em Campina Grande, uma escola particular que, à
época, comportava 2.700 alunos. No período que lecionei nesse ambiente escolar, meu
espaço de atuação era somente a sala de aula. Não desenvolvi nenhum projeto de
pesquisa ou de extensão.

Nos anos de 1995 a 1997, não atuei como professor. Pedi demissão do Estado e
das escolas particulares depois que fui aprovado na seleção de mestrado da
Universidade Federal de Pernambuco, momento em que desenvolvi uma dissertação
tendo como fonte principal a literatura de José Lins do Rego. No Mestrado, ocorreu uma
“virada disciplinar” em termos de conteúdo e de pressupostos teóricos. Tive contato
com autores como Roger Chartier e Michel de Certeau, apresentados pelo professor
Antonio Torres Montenegro, e desenvolvi um carinho especial por Michel Foucault,
autor que me inspirou a ler as fontes para confeccionar a dissertação. Foi durante o
mestrado que percebi o quão pouco eu entendia de Teoria da História. Tornou-se um
desafio diário romper com as minhas próprias dificuldades teóricas e metodológicas, me
desdobrar e me reescrever como sujeito. O mestrado na UFPE desenhava-se para mim
como um campo de disputas que produzia subjetividades e identidades. Uma dessas
identidades era a de intelectual, perseguida por muitos colegas que faziam questão de
“abrir a boca” em todas as aulas.

Nas disciplinas da pós-graduação, sentia-me privado do direito de escolher o que


ler para se fazer uma dissertação, pois tive que cursar oito disciplinas, a maioria, sem
nenhuma ligação com meu tema de pesquisa. Vi-me rodeado por temáticas e
abordagens que, muitas vezes, estavam muito longe do meu objeto de pesquisa. Movido
pela crença da superação, fiz a opção de abrir mão de tudo que pudesse me prejudicar
no mestrado e dedicar-me pelo menos 12h diárias aos estudos, à pesquisa e à escrita.
Assim o fiz. Redesenhei-me como estudante e, aos poucos, fui compreendendo outros
modos de ler, de escrever e de contar histórias.

No Mestrado em História, passei por uma experiência muito rica com a prática
de pesquisa. Não havia internet ainda e parte da minha documentação para a dissertação
encontrava-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sem dinheiro para pagar o
aluguel do apartamento no Rio de Janeiro durante a fase da pesquisa, eu me aventurei
em ficar hospedado no Quartel do Corpo de Bombeiro Militar do Estado do RJ
(CBMERJ), depois de ligar para o coronel, contar minha situação e pedir abrigo.
Durante um pouco mais de trinta dias, aquele foi o meu espaço de descanso, depois de
longos dias pesquisando na Biblioteca Nacional.

Em 1998, já mestre em História, prestei concurso na Universidade Regional do


Cariri (URCA), no Crato - CE, para a área de História da América. Lembro que o ponto
sorteado para a aula didática foi “A Revolução Mexicana”. Não tive muitas ideias para a
aula e não me arrisquei muito. Preparei umas transparências para o retroprojetor, com
poucas imagens e poucas informações e preferi estabelecer um diálogo com as fontes
sem ficar preso aos recursos audiovisuais. Eram oito concorrentes e foram aprovados
dois4. Fiquei em primeiro lugar para a área de América, apesar de minha ingenuidade
metodológica e falta de trato acadêmico. No entanto, nunca cheguei a ministrar essa
disciplina, sendo deslocado para a área de História Moderna e História do Brasil.
Durante dois períodos letivos, estive envolvido com a condução das disciplinas e me
envolvi bastante com a área da pesquisa em História Regional, desenvolvendo meu
primeiro projeto de pesquisa PIBIC-CNPq-URCA.

Foi minha primeira experiência com o ensino superior e como orientador do


Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). A URCA e o Crato
marcaram minha vida acadêmica. Vivi dias felizes naquela terra, entre aquele povo que
me abraçou, me beijou e me amou. Pela primeira vez, passei a conhecer outra realidade
do cotidiano de alunos, bem diferente do perfil de alunos da UFPB. Na URCA, o curso
era noturno e os alunos, em sua grande maioria, trabalhavam durante o dia, em
empresas como Grendene, Café Santa Clara ou em lojas comerciais. À noite, aparecia
ônibus de várias cidades circunvizinhas, como Juazeiro, Barbalha, Missão Velha,
Milagres, Farias Brito, Nova Olinda, Brejo Santo e outras. Uma geografia municipal
desenhava o mapa da sala de aula.

Imagem 4 - Universidade Regional do Cariri – Crato (CE)


4
Na banca do concurso, estava o professor Carlos Rafael que, 14 anos depois, seria meu orientando de
mestrado na UFCG.
Fonte: www.gazetadocariri.com

Na URCA, desenvolvi um projeto de pesquisa intitulado “A Família na Terra do


Sol: imagens da família nos romances regionais”. Nesse projeto, pude dialogar com
vários conceitos e com diversos autores, dentre os quais Michel Foucault. Tomando
como fontes de pesquisa os romancistas regionais (José Lins do Rego, Graciliano
Ramos, Rachel de Queiroz e Domingos Olympio), pude, com o apoio de duas bolsistas,
analisar como foi sendo pensada e tecida a família regional. Via-me e sentia-me
naqueles romances, naquelas fontes de pesquisa, afinal, como afirma Scarllet Marton
(2003, p. 13), “todo escrito é autobiográfico, todo sistema de pensamento traz à luz uma
existência”. O referencial teórico-metodológico era emprestado dos pós-estruturalistas,
principalmente Michel Foucault. Foi um momento privilegiado de discussão acerca de
conceitos como arquivo, discurso, arqueologia, documento, fonte, origem, dentre
outros. Assim, a temática do regionalismo foi ganhando espaço nas minhas pesquisas e,
como fruto dessa pesquisa, elaborei o meu projeto de doutorado denominado de “Além
do Alpendre: imagens da família nordestina nos romances regionais (1889-1930)”.

Concorri a uma vaga no doutorado, em 1999, na Universidade Federal de


Pernambuco, procurando examinar os núcleos familiares que não ganharam voz nos
escritos de Gilberto Freyre. Minha tese era abordar que “além do alpendre” da casa-
grande existiam outros arranjos familiares que necessitavam de voz. Tecendo uma
crítica a Gilberto Freyre, esse projeto pretendia analisar como os escritores nordestinos
deram notoriedade a outros núcleos familiares, como Graciliano Ramos, em Vidas
Secas, Domingos Olympio, em Luzia-Homem, e Rachel de Queiroz, em O Quinze.
Nesses romances, as famílias são elaboradas através de outros olhares, de outros
dizeres, de vozes que não têm como espelho a zona açucareira.

Porém, do projeto à escrita da tese, o caminho percorrido foi sendo desviado. As


rotas pareciam confusas, amplas demais. Decidi, junto com o orientador Durval Muniz
de A. Júnior, mudar de percurso e investigar como os escritos de Gilberto Freyre
elaboram a família regional, principalmente a família urbana do Recife, metrópole
destacada nas décadas de 1920 e 1930 com as suas muitas salas de cinema, ícone da
modernidade tropical. A minha tese mudou de foco, de lente, de brilho, e dessa forma,
procurei investigar como Freyre constrói o conceito de família patriarcal na contramão
da modernidade. À proporção que chegam novos personagens à cena urbana – a
melindrosa, o almofadinha, os diretores de cinema, as atrizes e atores -, Freyre desenha
em Casa Grande & Senzala e em Sobrados e Mucambos outro perfil familiar. Assusta-
se com a novidade, com os tempos modernos a espantar os “bons costumes”, a tirar a
família da convivialidade tradicional e a levá-la para outras cartografias de prazer: o
cinema, as casas de roupas, as lojas de produtos importados, aos salões de festa, aos
velódromos. Novos tempos, novas cenas, novas elaborações que assustam Freyre e os
regionalistas nordestinos que pregam o passado, o tempo que se foi, a memória.

Um dos capítulos profissionais que o considero como um dos mais bonitos da


minha vida começou a ser escrito em janeiro de 1999, quando prestei concurso para a
disciplina História Geral, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus de
Caicó. No mesmo dia em que fiz a prova didática (18 de janeiro), meu filho, à época,
com três anos de idade, fazia uma complicada cirurgia no hospital Sarah Kubistchek,
em Brasília. Às 7h, ele entrou para o centro cirúrgico. Às 8h, eu entrei para a sala de
vídeo, no campus de Caicó, para ministrar a aula. Estava com os nervos à flor de pele,
mas pela graciosidade divina e da banca, fui aprovado no concurso para professor
Assistente, DE, com uma aula sobre “cultura romana”. Fui contratado no mês de abril,
indo morar com um colega também aprovado para o curso de Pedagogia, Walter
Pinheiro. Tornarmos-nos amigos e companheiros de longas conversas.

Como havia sido recentemente aprovado no doutorado, foi um tanto quanto


difícil conciliar as leituras sugeridas nas disciplinas do doutorado e as leituras que
sugeri nas disciplinas que a mim foram entregues para lecionar: História Antiga,
História Medieval e História Moderna. Fiquei surpreso quando recebi tal empreitada!
Como posso, no mesmo semestre letivo, “passear” por um campo de conhecimento tão
amplo? Entre sugerências, aos poucos, fui pensando cada matéria de ensino, as
estratégias e táticas que poderiam ser empregadas em cada uma delas. Nas noites e nos
dias quentes de Caicó, os livros e os textos foram testemunhas das conversas que
mantive com os papéis em branco ou com a tela do computador. Papéis em branco que
se converteram em letras, em frases, em parágrafos, em receituários, em aulas, na minha
tese de doutorado. Entre noites e dias, rabiscava e desenhava quadros e palavras.

Para driblar a dificuldade de ensinar História Antiga, elaborei, portanto, um


projeto de Monitoria, submetido à PROGRAD, intitulado “Um Novo Olhar
Metodológico sobre História Antiga”. Nesse projeto, objetivava construir um novo
mapa metodológico para História Antiga. Que recursos audiovisuais poderiam ser
elaborados? Como tornar prazeroso esse conhecimento? Em tempos de internet discada,
não podia me dar ao luxo de utilizá-la na sala de aula. Juntamente com dois monitores –
Veranilson Santos Pereira e Maria das Vitórias Medeiros -, enveredei pelas
metodologias ativas e pela sala de aula desconstruída. Com esses monitores, desenhei
um mapa com novas metodologias no ensino de história antiga e medieval,
confeccionado com paródias e com textos didáticos, com a inserção do estudo de novas
temáticas (família, sexualidade, perfis femininos, dentre outras) e da leitura de clássicos,
como Ilíada e Odisséia, de Homero, feito a partir do prazer de ler. Para mim, essa
experiência é inenarrável, pois foi um momento que tive que superar muitas
dificuldades que tinha na área de história antiga.

A partir de 2000, comecei a me envolver e a envolver os alunos na área de


pesquisa no âmbito da UFRN. Elaborei o projeto “A Família na Terra do Sol: imagens e
estereótipos da família nos Discursos Regionais”. Aprovado pelo PIBIC-CNPq-UFRN,
comecei, juntamente com um bolsista, a pesquisar no Diário de Pernambuco como foi
sendo elaborada a família em nível regional. Que imagens e estereótipos estavam
presentes nos discursos jornalísticos nas décadas de 1920 e 1930? Como os articulistas
elaboravam o ser nordestino? Fomos à Fundação Joaquim Nabuco e fotocopiamos
aproximadamente 400 (quatrocentas) matérias jornalísticas e as analisamos durante dois
anos, juntamente com reportagens dos jornais A República (Natal) e O Seridoense
(Caicó). Como resultado dessa pesquisa, três monografias de final de curso foram
orientadas por mim5.
5
“Discursos Modernistas, Imagens Tradicionalistas? a construção do feminino no Diário de Pernambuco
(década de 20)”, de Valcácia de Brito. “Modelando territórios, corpos e mentes: os discursos como
Em 2002, o reitor Ótom Anselmo criou o Programa de Apoio ao Semiárido
(PASA), objetivando financiar pesquisas que problematizassem a microrregião em
questão. Como no Laboratório de Documentação Histórica do CERES há uma vasta
documentação, elaborei um projeto de pesquisa para analisar os processos-crime da
Comarca do Seridó no início do século XX. A família seridoense foi, novamente, a
temática do projeto e fomos analisar como as várias vozes que aparecem envolvidas no
processo-crime elaboravam suas imagens acerca da honra familiar. O corpus
documental escolhido foi constituído por processos que envolviam crimes contra a
honra familiar, tais como estupro, rapto e defloramento. Inspirado na obra de Sueann
Caulfield, “Em Defesa da Honra: moralidade e modernidade no Rio de Janeiro”, a
equipe de pesquisa analisou, a partir de um pressuposto teórico-metodológico
foucaultiano, como o saber jurídico ia catalogando o ser feminino, classificando-o como
culpado ou inocente, como puro ou maculado. A honra, como objeto de negociações
econômicas, passava também por outras negociações em nível médico-jurídico. O
destino da honra familiar estava, muitas vezes, nas sentenças proferidas pela Justiça.
Desse projeto de pesquisa, resultaram duas monografias, sendo uma em nível de
graduação6 e outra em nível de especialização7, além de uma dissertação de mestrado
em Ciências Sociais.

instrumentos na formação das masculinidades no Seridó (década de 1920), de Veranilson Santos Pereira e
Gilberd Soares. “Devagar, devagar, sobe-se a montanha sem parar: o movimento feminista no Nordeste
nas décadas de 20 e 30”, de Rosicleide Lopes.
6
“Com a Honra à Flor da Pele: o discurso jurídico acerca da virgindade feminina no Seridó (1900-1930)”,
de Soniete Simone de Carvalho e Silva.
7
“A Sagração do corpo: a virgindade e a honra femininas nos discursos jurídicos (Caicó, 1908-1930)”, de
Francineide Alves de Lucena.
Em 2003, apresentei
outro projeto ao PIBIC-CNPq- Congregação das Filhas do Amor
UFRN, versando acerca da Divino
história da educação feminina
A Congregação das Filhas do Amor Divino foi
no Seridó. Percebendo essa fundada em 21 de novembro de 1868, quando
lacuna na historiografia local, a madre alemã Francisca Lechner recebeu permissão
para instituir uma comunidade religiosa que tinha
adentrei os arquivos da como objetivo acolher as jovens que migravam para
as grandes cidades da Europa em busca de emprego.
Congregação das Filhas do
Em 11 de outubro de 1925, o solo de Caicó recebeu
Amor Divino para pesquisar um grupo de nove freiras, vindas do sul do Brasil.
Estabelecidas no Centro da Cidade, começaram a
como foi elaborado o ser arquitetar o projeto de construção de uma escola para
feminino na arquitetura escolar, as moças da região, objetivando “prepará-las para a
vida”. O Educandário Católico Santa Teresinha,
nas instâncias de um saber fundado em 1926, viria a se tornar uma referência
regional na área de educação de meninas.
escolarizado. Recortando
espacialmente a escola Santa Fonte:
BURITI, Iranilson; LUNARDELO, Ricky. “Puras,
Teresinha do Menino Jesus e, educadas e Disciplinadas Para o bem Casar”: a
congregação das filhas do amor divino e a educação
temporalmente, 1926-1960, feminina no Seridó (1925-1962). Natal: SBHE, 2002.
analisei como foi sendo gestado
um modelo de mulher próprio a
atender aos requisitos da elite
seridoense. “Puras, educadas e
disciplinadas para o bem-casar”
foi o título desse projeto, e a
análise de currículo e gênero
estiveram fortemente presentes.
Guacira Lopes Louro, Maria
Izilda de Matos, Eni de
Mesquita Sâmara, Tomaz
Tadeu da Silva, Jorge Larrosa, Sandra Corazza, Alex Branco Fraga, Alfredo Veiga-
Neto, Antonio Viñao-Frago e Michel Foucault foram alguns dos autores utilizados
nessa pesquisa. Conceitos como currículo, arquitetura escolar, cultura escolar, cultivo de
corpos, gênero, saber/poder pontilharam nossas análises, nossos escritos. Viajar pelos
recônditos do mundo feminino educado para o casamento, para a submissão a códigos
prescritos social e culturalmente foi uma das direções desse projeto, fértil enquanto
espaço de discussão.
Em 2004, apresentei outra proposta de pesquisa ao PROPESQ-UFRN,
recebendo financiamento da própria instituição. Retomando os processos-crime como
fonte de pesquisa para o historiador, ampliei o período de investigação e confeccionei o
projeto “Identidades Culturais Tatuadas no Corpo: família, honra e moralidade nos
processos-crime (Caicó, 1900-1950)”. Com dois bolsistas – Helder Medeiros Anjos e
Edivalma Cristina dos Santos -, investigamos os discursos formadores e legitimadores
da honra familiar seridoense. Como marcas tatuadas no corpo da família, assim também
são os estereótipos para ela criados pelos juristas, pela medicina legal, pelos advogados
de defesa ou de acusação. Mulheres e homens desfilam nesses discursos de forma
binária, classificados em polos opostos: ora acusados, ora vítimas, ora dominados, ora
dominantes, ora culpados, ora inocentes. Essa catalogação do ser humano contribui para
que a própria sociedade também faça esse tipo de leitura dos sujeitos envolvidos nos
crimes em nome da honra. Para entendermos essa problemática, lançamos mão de um
referencial teórico que nos permitisse entender o discurso jurídico como construtor de
rostidades várias. Deleuze, Guattari, Michel Foucault foram os mestres de cerimônia
que nos convidaram a entender as intencionalidades discursivas, as rostidades possíveis,
as subjetividades dos sujeitos. Compreender o corpo como uma categoria analítica,
como um espaço de incisões do saber, de tatuagens do poder foi, para a equipe, uma
experiência de pesquisa singular, pois, no mesmo documento (o processo-crime), o
corpo era desenhado diferentemente. Mas meus dias na UFRN haviam terminado
enquanto professor da graduação.

Mas 2005 provocou surpresas em meu cotidiano acadêmico. Ao ser lançado um


edital pela UFCG para professor Adjunto I do Curso de História, encantei-me pela área
do concurso8 e resolvi tentar conquistar aquela vaga. Em pouco mais de um mês, estudei
os pontos do concurso e participei do certame. Fui aprovado, assim como os colegas
José Otávio Aguiar e Regina Coelli Gomes Nascimento. Somos crias do mesmo
concurso, docentes nascidos do mesmo ventre acadêmico, da mesma banca
examinadora, dos mesmos pontos sorteados. Mudei-me “de mala e cuia” para Campina
Grande. Voltei para o lugar onde tinha cursado a graduação na década de 1990. Voltei
feliz, cheio de planos e de panos.

Embora continuasse como professor do PPGH (campus Natal), fiz concurso na


UFCG e me mudei para a “Rainha da Borborema”, onde estava minha família. Minha
8
Depois de aprovado, nunca consegui ministrar as disciplinas da área do concurso. Como em quase todos
os departamentos universitários, parece que determinadas áreas possuem donos.
família de sangue e acadêmica. Voltei para o meu lugar de iniciação ao ofício do
historiador, reencontrando antigos professores meus, como Gervácio, Fábio, Luciano
Mendonça, Lena, Benjamim e Celso. Nessa topografia espacial, misturei-me a outros,
como Roberval, Nilda, Mari, Liege, Queiroz, João Marcos, Clarindo, Cabral, Alarcon.
Aos poucos, fui estreitando meus laços afetivos com pessoas muito queridas, como
Juciene (Potira), Regina, Mari, Silede, Nilda, Alarcon, Pávula, Cabral, Lena, Otávio e
muitos outros. Com eles, cresci e estou crescendo.

Na UFCG, já adentrei vários espaços, caminhei por vias, abri portas. Além das
aulas da graduação e da pós (particularmente na área de Metodologia do Ensino de
História e Pesquisa Histórica), fiz parte dos processos vestibulares da Comissão de
Processos Vestibulares (COMPROV), de comissões de ascensão funcional, do comitê
interno do PIBIC-CNPq-UFCG, de comissões para seleção do mestrado do PPGH, do
Núcleo Docente Estruturante do curso de História, de comissões diversas. Meu “eu” foi
pluralizado pelas muitas oportunidades que esta Instituição me ofereceu. Desde 2005,
quando cheguei à UFCG, passei a desenvolver vários projetos de pesquisa com o apoio
do CNPq, tornei-me bolsista produtividade - PQ2 - em 2006 e venho me especializando
na área de história da ciência. Compreendo que prática de pesquisa é um modo de
pensar, sentir, desejar, amar, se relacionar com o outro e consigo mesmo; uma forma de
interrogar, de suscitar acontecimentos, de exercitar a capacidade de resistência e de
submissão ao controle. Portanto, uma prática de pesquisa é implicada em nossa própria
vida, pois diz respeito ao modo como fomos e estamos subjetivados, como entramos no
jogo de saberes e como nos relacionamos com o poder.

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