Você está na página 1de 12

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Thaís Mendes Geraldini


Matrícula: 55930

“As origens do Ensino Municipal”:


“história-memória” e História da Educação

História e Historiografia

Profa. Dra. Marcia M. D’Alessio

Guarulhos
2016
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
A “HISTÓRIA-MEMÓRIA” E A “ORIGEM” 1
OUTRA HISTÓRIA: A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO 7
CONSIDERAÇÕES FINAIS 8
BIBLIOGRAFIA 10
Introdução
Dentre as discussões presentes no curso de História e Historiografia, a que me chamou
mais atenção foi à concernente ao estudo desenvolvido pelo historiador jesuíta Michel de
Certeau, no início dos anos de 1980, acerca da prática historiográfica.
Em A Escrita da História, o autor nos leva a repensar sobre nossa própria atividade
enquanto historiadoras e historiadores: nosso papel nessa área e sua prática social (práxis); a
importância de examinar o próprio historiador (seu lugar social), dentro da escrita da história.
Levando estes aspectos em consideração e tendo como base a referência bibliográfica
sobre os estudos na área de História da Educação, vejo a possibilidade de analisar o trabalho
de Marlene de Paulo Lattouf. Sua dissertação de mestrado, As origens do ensino municipal de
São Paulo e a participação feminina, é um dos poucos trabalhos que se tem conhecimento
sobre o ensino municipal paulistano.
Esta análise me parece relevante, à medida que oferece um alicerce para pensar sobre
meu próprio objeto de estudo: o Instituto Municipal de Educação e Pesquisas, criado na
cidade de São Paulo, nos anos finais de 1960. Seu trabalho também apresenta algumas
problemáticas que merecem ser investigadas a partir de seu lugar de fala e de sua escrita
historiográfica.
Em conjunto com Michel de Certeau, pretendo utilizar o trabalho do historiador Pierre
Nora. Seu trabalho acerca da memória e da história me parece bastante instigante tanto para
pensar a relação da história com o passado – e então relacionar seu trabalho com o de Certeau.
Como também mostra uma via de análise sobre a forma como Lattouf trabalha com os
conceitos de memória e história em sua pesquisa.

A “história-memória” e a “origem”
Os anos de 1980 foram marcados por uma revisão historiográfica que teve como ponto
de partida a relação entre a história e a memória. O ensaio do historiador Pierre Nora, Entre a
Memória e a História. A problemática dos lugares1, apresentava os distanciamentos que a
história e a memória vinham tomando a partir, principalmente, de um novo regime de
historicidade: o presentismo.2

1
Apesar de ter sido escrito em 1984, a versão aqui utilizada é a da Revista Projeto História, de 1993.
2
A noção de “presentismo” foi criada pelo historiador François Hartog. Na tentativa de explicar a valorização do
presente na sociedade ocidental, no século XX. Ele aponta que: “Nessa progressiva invasão do horizonte por um
presente mais e mais ampliado, hipertrofiado, está claro que a força motriz foi o crescimento rápido e as
exigências sempre maiores de uma sociedade de consumo, onde as descobertas científicas, as inovações técnicas
e a busca de ganhos tornam as coisas e os homens cada vez mais obsoletos. A mídia, cujo extraordinário
1
Conforme Nora, enquanto a memória significa “a vida, sempre carregada por grupos
vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução”, cabe à história “a reconstrução
sempre problemática e incompleta do que não existe mais [...] uma representação do passado”
(Nora, 1993, p. 9). A ruptura entre a história e memória se dava à medida que a história
questionava a legitimidade da memória enquanto modo de conhecimento sobre o passado.
Dessa forma, o autor aponta que naquele momento se vivia o
Fim das sociedades-memória, como todas aquelas que asseguravam a conservação
e a transmissão dos valores, igreja ou escola, família ou Estado. Fim das
ideologias-memórias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do
passado para o futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para
preparar o futuro (NORA, 1993, p. 8).
Para Pierre Nora, ao se distanciar da memória, o historiador voltava-se cada vez mais
para a história da história. Enquanto a memória era encerrada em lugares de memória
(instituições, museus, arquivos, datas comemorativas, etc), a história se questionava sobre seu
próprio fazer-se. De uma “história-memória” passava-se, portanto, para uma “história-
crítica”: “um dos sinais tangíveis desse arrancar da história da memória é, talvez, o início de
uma história da história [...] consciência historiográfica (NORA, 1993, p. 10).
Dois anos antes da publicação deste importante trabalho, Michel de Certeau também
publicava seu livro. Em A Escrita da História este historiador desenvolve a explicação sobre
o que deveria ser o trabalho do historiador; o que seria fazer história enquanto uma prática e
como a escrita da história encerraria esta prática em um discurso de representação sobre o
passado. Michel de Certeau pretendia separar o presente (e o lugar onde o historiador faz sua
operação historiográfica) de seu “outro”, ou seja, do passado.
Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento
de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado
morto e resultado de uma prática presente. Ela reitera, um regime diferente, os
mitos que se constroem sobre um assassinato ou uma morte originária, e que fazem
da linguagem o vestígio sempre remanescente de um começo tão impossível de
reencontrar quanto de esquecer (CERTEAU, 1982, p. 57).
Ao desprender o presente do passado, a história da história (historiografia) se
diferencia do mito. A história, para Certeau, é o fazer da própria sociedade, enquanto a
historiografia seria o resultado da práxis social da própria historiadora ou do historiador. O
que eles fazem, portanto, é presentificar o passado como meio de legitimar seu estudo. Sobre
esta relação ambígua, o autor ainda explica que
A historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz é capaz de
compreender o passado: estranho procedimento, que apresenta a morte, corte
sempre repetido no discurso, e que nega a perda, fingindo no presente o privilégio

desenvolvimento acompanhou esse movimento que é sua razão de ser, deriva do mesmo: produzindo,
consumindo e reciclando cada vez mais rapidamente mais palavras e imagens” (HARTOG, 1996, p. 135).
2
de recapitular o passado num saber. Trabalho da morte e trabalho contra a morte
(CERTEAU, 1982, p. 17).
A partir dessa pequena apresentação sobre o estatuto da história e sua escrita, e sua
relação com a memória, vejo a necessidade de entender em que medida o trabalho de Marlene
de Paulo Lattouf se insere nesta problemática.
Como fora exposto ainda na Introdução, a dissertação de Lattouf, As origens do ensino
municipal de São Paulo e a participação feminina, é uma das poucas pesquisas do que se
sabe sobre o ensino municipal paulistano, cuja data de criação oficial é de 1956. A maioria
dos estudos envolvendo as áreas de História e Educação procuram contar a história da
instituição escolar a partir do ensino e/ou sistema estadual paulista.
O trabalho de Lattouf, por sua vez, permite entender os conflitos que se formaram
entre o Município de São Paulo e o Estado, com o processo de criação do ensino municipal,
nos anos de 1950. E, a partir de suas considerações, é possível pensar sobre o meu objeto de
estudo, o Instituto Municipal de Educação e Pesquisas.
Criado em 1969, o IMEP tinha entre seus objetivos a formação de professores que
deveriam atuar nas escolas municipais, bem como o desenvolvimento de classes
experimentais que integrassem o ensino primário ao ginasial num único ciclo formativo de
oito anos, abolindo os exames de admissão e possibilitando o acesso público e gratuito ao
ensino formal para crianças e jovens na faixa dos sete aos quatorze anos de idade. A criação
do Instituto era apresentada pelo Departamento do Ensino Municipal como uma atitude
pioneira frente às prerrogativas do ensino do Estado em tempos de reforma educacional.
Havia, então, uma tentativa de criar uma identidade própria e se diferenciar das características
que formavam o sistema estadual, já bastante consagrado.
Retomando a dissertação de Lattouf, ainda na “Apresentação” de seu trabalho, a autora
marca o lugar social de sua escrita, bem como explica os motivos que a levaram a estudar o
ensino municipal:
Dada a vivência de trabalho junto a Secretaria Municipal de Educação de São
Paulo, tendo a oportunidade de passar pelos vários cargos da carreira do Ensino
Municipal, intrigava-me a questão da descontinuidade sistemática dos trabalhos
educacionais junto à rede de escolas, diante de cada mudança de gestão. Fui levada
a acreditar que se houvesse a publicização da história do ensino municipal, talvez
os desacertos fossem minimizados, uma vez que a feitura dos relatórios das ações
executadas nem sempre se constituía numa prática comum, causando-me a
impressão constante de que a história, em vez de construída, era, antes, apagada da
memória (LATTOUF, 2001, p. 1).
A autora parte da sua própria vivência enquanto integrante da Secretaria Municipal de
Educação para construir seu objeto de estudo e seu método de trabalho. Percebendo o que ela
entende por “descontinuidade sistemática dos trabalhos educacionais”, Lattouf pretende
3
gravar na história do ensino municipal uma historiografia e preencher, por conseguinte, uma
lacuna que seria “apagada da memória”.
Com relação à descontinuidade dos trabalhos educacionais, este realemnte se
configurou numa prática constante do sistema municipal. Porém, vale frisar aqui o que
entendo ser a intenção maior da pesquisadora. Para ela, a história se constitui em relatórios
produzidos pela Secretaria de Educação. À medida que eles deixam de ser feitos, não se
produz a história do ensino municipal. A história estaria à mercê da memória, correndo o risco
de ser apagada pelo processo de esquecimento.
Por conta disto, a Lattouf lança mão de relatos orais das professoras que, de acordo
com ela, foram as pioneiras na criação das escolas municipais na cidade de São Paulo. Na
tentativa de resgatar esta história, Marlene de Paulo Lattouf se apropria das memórias dessas
mulheres. Para a autora, a relevância de seus relatos se daria pelo fato de terem vivenciado, a
partir dos anos de 1950, um maior protagonismo na área educacional e quebrado as barreiras
de gênero.
Apesar de não ser a proposta deste trabalho fazer a análise das relações de gênero, vejo
a necessidade de indicar a forma como a autora abarca estes relatos em sua escrita. No
capítulo III “A presença feminina nas origens do Ensino Municipal de São Paulo”, Lattouf
transcreve “várias passagens dos discursos das professoras para deixá-las falar de suas
lembranças, alerta para considerá-los „história‟, „memória‟, „monumento‟ ou „documento‟”
(LATTOUF, 2001, p. 124).
Após transcrevê-las, a autora sistematiza e descreve as questões que foram propostas
para as entrevistadas. Quando passa finalmente para a análise destes relatos, em suas
“Considerações Finais”, Lattouf sintetiza as diversas memórias das professoras e conclui:
Quanto ao significado de ser professora municipal, foram manifestados, por todas,
sentimentos de satisfação, orgulho, respeito, reconhecimento e responsabilidade,
que podemos traduzir por emancipação feminina nos termos de resultados
econômicos pelo ótimo salário, e poderem trabalhar perto de casa, desenvolvendo a
docência de forma pessoal e criativa, com responsabilidade direta na formação da
criança e atualização constante através de orientação, cursos e palestras, portanto,
com realização profissional (LATTOUF, 2001, p. 175).
Por também ter pertencido à Secretaria Municipal de Educação (seu lugar social),
Lattouf não consegue separar as memórias das professoras e a sua própria vivência
profissional. As brigas institucionais não parecem ter sido um problema para o
prosseguimento das atividades rotineiras das professoras em sala de aula.
Mesmo deixando implícito o seu papel dentro do sistema municipal, é pelo não-dito,
ou seja, pelo seu lugar na escrita da história que percebemos o problema de não desvincular a

4
história da memória. Dessa forma, a autora está mais próxima da escrita de uma “história-
memória” ou uma “memória histórica”, conforme propôs Pierre Nora.
Marlene de Paulo Lattouf situa-se entre a história e a memória. Por não tomar uma
distância entre suas fontes e sua prática, a autora termina referendando a memória sobre o
ensino municipal. Esta confusão promoveu um discurso que legitima a constante guarda da
memória, pelo medo que se tem de perdê-la. Concordando ainda com Nora, “daí a [...]
dilatação indiferenciada do campo do memorável, o inchaço hipertrófico da função da
memória, ligada ao próprio sentimento de sua perda e o reforço correlato de todas as
instituições de memória” (p. 15).
Esta problemática também está presente ainda no título de sua dissertação. “As origens
do ensino municipal” remetem a um lugar de nascimento e até mítico, referendado pelas falas
das professoras pioneiras. Ao colocar a memória no lugar da história a autora não dissocia o
presente do passado. Ele não habita o outro em seu texto.
Apesar de a prática historiográfica procurar presentificar o passado para legitimar seu
estudo, para Michel de Certeau é na escrita que essa diferença entre presente e passado fica
mais evidente. Quem determina e produz o passado é o próprio historiador e não seu
contrário. O discurso sobre o passado não pode ser o passado em si. Esta é, possivelmente,
uma das diferenças entre história e memória.
A memória não se preocupa em se distinguir do passado. Pelo contrário, ela o
reverencia, está “aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações” (Nora, p. 9). Ao entender
a “origem” enquanto uma história, Lattouf venera o passado e o engrandece.
Além disso, a autora parece entender a história como a mera história oficial e política.
Um “lugar limpo”, de acordo com Certeau. A autora constrói sua narrativa a partir de marcos
ideológicos da história institucional brasileira.
No capítulo I “Primórdios do Ensino Municipal de São Paulo”, Lattouf vai
primeiramente desconstruir a ideia de que o início do ensino municipal tenha ocorrido devido
a um processo de “descentralização administrativa” e que, segunda a autora, é uma visão
anacrônica.
Para problematizar a questão da municipalização, ela trabalha com os conceitos de
“desconcentração” e “descentralização” política, relacionando-os à história da educação na
cidade de São Paulo. Ela verifica que, apesar das tentativas desde o período imperial para uma
descentralização política que gerasse a autonomia do município, isso somente veio a

5
acontecer perante a Constituição Federal de 1988. Até então, os sistemas de ensino do
Município eram subordinados ao Estado e este à União, numa hierarquização de poderes.
Se a municipalização pressupunha a “descentralização”, garantindo a autonomia para
legislar e executar, o que ocorreu até 1988 era de fato, uma “desconcentração” de poderes.
Lattouf distingue estes conceitos:
Na desconcentração há delegação de determinadas funções para entidades
locais que dependem do outorgante, ligada, portanto, à estrutura de decisão
do poder. Já na descentralização, ocorre que as entidades locais imbuídas de
graus de autonomia podem definir a sua própria organização e administração
do sistema de educação pública dentro da área que lhes compete, referindo-
se à configuração espacial de uso e controle do poder. (LATTOUF, 2001, p.
14).
Apesar de concordar com a autora que o processo de descentralização só veio ocorrer
de fato após a Constituição de 19883, tendo a discordar quanto à forma como ela entende a
desconcentração de poderes e sua relação com a criação do ensino municipal em São Paulo.
Lattouf se atém preponderantemente à história política institucional para defender sua
hipótese. A história da criação do ensino municipal é contada pelos marcos ideológicos:
mandonismo local na Colônia, coronelismo entre o Império e a República Velha, populismo
na Nova República e o autoritarismo, durante a Ditadura civil-militar.
Se atendo a essa linha explicativa, a criação do ensino municipal, em 1956, seria tão
somente uma continuidade de poderes na longa duração da história do Brasil. Seu trabalho,
desta forma, não permite entrever aquilo que foge à regra, ou seja, o que é específico no caso
paulistano. Lattouf não consegue se desvencilhar de uma memória histórica constituída em
torno do ensino municipal não dissociado do ensino estadual.
Por trabalhar com uma historiografia institucional, Lattouf não problematiza a criação
do ensino municipal. Apesar de abarcar os conflitos existentes entre Prefeitura e Município, as
“origens” estariam muito ligadas a uma continuidade. Como se a criação de um ensino
próprio na capital fosse a única alternativa possível.
Com relação ainda aos relatos orais das professoras, a autora não se preocupa em se
ater às práticas cotidianas da escola. As professoras são colocadas como pioneiras, dando voz
às mulheres que participaram das primeiras classes municipais. Apesar de ser um estudo
extremamente positivo para se pensar o papel do gênero nas escolas, seus papéis políticos se
sobrepõem ao papel de sujeito escolar.

3
Vale destacar que somente a partir da Lei de Diretrizes e Bases de 1996 os municípios foram obrigados a se
responsabilizar pelo ensino fundamental nas escolas brasileiras, garantindo a autonomia administrativa.
6
Outra história: a história da educação
Pelo menos desde os anos de 1990, a historiografia brasileira vem se dedicando a uma
nova forma de analisar a escola. Foi principalmente a partir desta década que houve uma
reivindicação da área de história para que os estudos sobre cultura escolar avançassem e a
História da Educação conseguisse ganhar legitimidade na historiografia mais tradicional. De
acordo com o Luciano Mendes de faria Filho, Irlen Antônio Gonçalves, Diana Gonçalves
Vidal e André Luiz Paulilo4,
A preocupação com a problemática da cultura escolar despontou no âmbito de uma
viragem dos trabalhos históricos educacionais e de aproximação cada vez mais
fecunda com a disciplina de história, seja pelo exercício de levantamento,
organização e ampliação da massa documental a ser utilizada nas análises, seja
pelo acolhimento de protocolos de legitimidade da narrativa historiográfica
(FARIA FILHO et al., 2004, p. 139).
Este artigo apresenta as definições de cultura escolar mais utilizadas, as
disseminações dos textos sobre o assunto pelo Brasil, as dimensões da realidade brasileira e
os desafios para o prosseguimento das investigações. Representa, pois, uma tomada de
posição de historiadoras e historiadores do Brasil com relação a um movimento mais amplo e
que remete à idéia de uma crise dos sistemas educacionais, ainda nos anos de 1970, com o
livro de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron – A reprodução.
Basicamente, as pesquisas acerca da cultura escolar procuravam e procuram se
desvencilhar da ideia de que a escola somente reproduziria o que lhe é externo, como
acreditavam Bourdieu e Passeron.
Tentando se desvincular de modos tradicionais de conceber a escola apenas como um
depositório de reformas e ações sociais externas a ela, Dominique Julia descreve o que
entende ser a cultura escolar:
um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a
inculcar; e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas
coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades
religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização) (JULIA, 2001, p. 10).
Portanto, a escola não pode mais ser vista enquanto local inerte que apenas reproduz
as tensões advindas da sociedade. Está dentro desta sociedade e, como tal, merece um olhar
mais atento à forma como recebe e redireciona o que lhe é externo.
Portanto, é necessária uma atenção aos sujeitos escolares que compõem a escola
(professoras e professores, alunas e alunos, inspetoras e inspetores) e suas ações constituintes
de uma cultura escolar. As categorias de classe, raça, etnia e gênero também são bastante

4
O artigo leva o título “A cultura escolar como categoria de análise e como campo de investigação na história
da educação brasileira”. Foi publicado em 2004 na revista Educação e Pesquisa.
7
utilizadas nestas pesquisas, “como instrumental teórico-metológico para entender as ações e
os lugares ocupados por esses sujeitos nas teias que envolvem e fabricam as culturas
escolares” (FARIA FILHO et al, p. 152).
O trabalho de Marlene de Paulo Lattouf permite entrever que a autora procura dar voz
a uma dessas categorias, porém sua pesquisa não se desvincula de uma história das políticas
educacionais. Isto faz com que a escola seja entendida numa hierarquia em que estas políticas
e os mandonismos políticos estariam acima dos interesses da escola e de seus agentes
internos.
Outra problemática relevante que os autores do artigo trazem à cena é com relação ao
uso da história oral como suporte teórico-metodológico de análise. Os autores fazem uma
análise dos trabalhos de historiadores e historiadores brasileiros que levam em consideração
as práticas escolares como maneira de entender o cotidiano escolar. Conforme esta análise
haveria um “aumento expressivo dos trabalhos com fontes orais em nossa área, pois, para
muitos, os relatos orais parecem oferecer a ilusão de que abordam (diretamente) as práticas”
(FARIA FILHO et al, p. 154).
Aqui eu tendo a discordar da fala destes autores. E percebo também que o trabalho da
autora analisada, As origens do ensino municipal de São Paulo e a participação feminina,
parece seguir por esta via. A meu ver, os relatos orais ajudam a entender as ações dos sujeitos
escolares e o funcionamento interno da escola, mas não abordam diretamente as práticas,
senão a partir do aparato da história oral. Esta que tem servido não só a história, mas a outras
áreas das ciências humanas. Não é possível pensar que somente o relato oral sui generis pode
abrir a “caixa-preta”5 da escola. É preciso analisar os relatos orais para entrever as relações
entre os sujeitos e suas práticas no cotidiano escolar (as possíveis hierarquias, as condições de
trabalho, etc), bem como diferenciar suas memórias da história que se pretende produzir.
Escrever, por conseguinte, o morto6 que ainda vive nas lembranças e recordações destes
sujeitos.

Considerações finais
Este trabalho pretendeu apresentar as imbricações presentes na revisão historiográfica
sobre a escrita da história, nos anos de 1980, partindo de uma importante referência

5
Utilizo aqui a expressão de Dominique Julia. A “caixa-preta” seria o conjunto de práticas e normas que formam
uma cultura escolar.
6
De acordo com Michel de Certeau, “‟marcar‟ um passado é dar um lugar à morte, mas também redistribuir o
espaço das possibilidades, determinar negativamente aquilo que está por fazer e, consequentemente, utilizar a
narratividade, que enterra os mortos, como um meio de estabelecer um lugar para os vivos (p. 107).
8
bibliográfica para meu trabalho de pesquisa. Intentei, por conseguinte, demonstrar os novos
caminhos que estão sendo tomados pela historiografia da História da Educação. Esta vem
lançando novos olhares para documentos e indícios que podem ajudar a entender a cultura
escolar.
Entender e analisar a cultura escolar me parece o meio mais viável para se chegar aos
conflitos e problemas do meu objeto de estudo. O Instituto Municipal de Educação e
Pesquisas teve uma vida bastante breve enquanto instituição, se tornando uma escola após três
anos de funcionamento. As implicações para seu fim abrupto ainda não estão muito claras e
merecem ser investigadas, já que os trabalhos desenvolvidos dentro do instituto foram levados
para o Ministério da Educação e Cultura, ainda no período de reforma educacional. Foram, de
algum modo, relevantes para a Lei de Reforma de 1971 – a lei nº 5692.
Ao longo deste início de pesquisa, compreendi a necessidade de trabalhar a memória
sobre este lugar. Os relatos orais dos sujeitos escolares me parecem uma importante fonte de
busca dos indícios de suas práticas escolares e institucionais. Ao lado dos pressupostos
teórico-metodológicos que tentei corroborar neste trabalho, a partir de Pierre Nora e Michel
de Certeau: separar a memória da história, ou o passado (outro) e o presente em que se
elabora um conhecimento sobre este passado, será preciso rever alguns usos da memória.
Primeiro que ela é chave de explicação sobre o passado. Segundo, que é fundamental
problematizá-la e não tomar seus relatos como discursos “neutros” ou despojados de conflitos
que levam ao um não-querer lembrar consciente.
Por buscar o lugar de origem do ensino municipal paulistano, Marlene de Paulo
Lattouf encerra sua narrativa endossando sua memória institucional. A meu ver, sua tentativa
de publicizar a história do ensino municipal não foi concluída. Apesar disso, seu trabalho leva
a percepção de como este ensino se institucionalizou e se consagrou enquanto um lugar de
memória. De acordo com Pierre Nora, “o lugar de memória é um lugar duplo: um lugar de
excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome,
mas constantemente aberto a extensão de suas significações (NORA, 1993, p. 27).
As falas das professoras referendam este lugar “fechado sobre si mesmo”. A escrita de
Lattouf encerra esta identidade, a partir da ideia de “origem”. É imprescindível, portanto,
recolher “nas franjas do discurso” (Certeau, 1982, p. 16) indícios e ferramentas que permitem
uma escrita desta história.

9
Bibliografia
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de et al . A cultura escolar como categoria de análise e
como campo de investigação na história da educação brasileira. Educ. Pesqui., São Paulo ,
v. 30, n. 1, p. 139-159, abr. 2004 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
97022004000100008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 10 ago. 2016.
HARTOG, François. Tempo e História: “Como escrever a história da França hoje?”. Revista
História Social, Campinas, nº 3, 1996. Disponível em: <
http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/89/84>. Acesso em 10 ago. 2016.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História
da Educação, Paraná, nº 1, jan/jun 2001, pp. 9-44. Disponível em <
http://rbhe.sbhe.org.br/index.php/rbhe/issue/view/26>. Acesso em 27 mar. 2015.
LATTOUF, Marlene de Paulo. As origens do ensino municipal de São Paulo e a
participação feminina. São Paulo, USP: 2001. 187 p. Dissertação (Mestrado em Educação),
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.
NORA, Pierre. Entre memória e história: A Problemática dos lugares. Projeto História –
História e Cultura. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, nº
10, dezembro/1993. Disponível em: <
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763>. Acesso em: 09 ago. 2016.

10

Você também pode gostar