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usos do passado
Tempo presente &
usos do passado
FLÁVIA VARELLA
HELENA MIRANDA MOLLO
MATEUS HENRIQUE DE FARIA PEREIRA
SÉRGIO DA MATA
organizadores
Copyright © 2012 Flávia Florentino Varella, Helena Miranda Mollo, Mateus
Henrique de Faria Pereira e Sérgio da Mata
1a edição — 2012
ISBN: 978-85-225-1269-0
CDD — 907.2
Sumário
Sobre os autores
Nota dos organizadores
Creio que estamos diante de uma das formas, e talvez se deva dizer, um dos
hábitos mais nocivos do pensamento contemporâneo, eu diria inclusive do
pensamento moderno ou, em todo caso, do pensamento pós-hegeliano: a análise
do momento presente como se este fosse precisamente, na história, o momento da
ruptura, ou da realização, ou da aurora que retorna, e assim por diante. A
solenidade com que toda pessoa que mantém um discurso filosófico reflete sobre
seu próprio tempo me parece um estigma. Digo isso, sobretudo, porque eu mesmo
procedi assim e porque o encontramos constantemente em alguém como
Nietzsche […]. Creio que devemos ter a modéstia de dizer para nós mesmos, por
um lado, que o tempo em que vivemos não é este tempo único, fundamental ou
que irrompe na história, a partir do qual tudo se acaba ou tudo recomeça.
Foucault [1998:449]
I
Um diagnóstico do tempo presente: tarefa difícil, quanto mais para o
historiador! Desde Santo Agostinho os filósofos não avançaram muito a
respeito do que vem a ser tal coisa, o “presente”. Por que justamente os
historiadores parecem cada vez mais interessados por ele? Se o presente
torna-se um problema isso se deve, em grande medida, ao fato de que se
tornaram cada vez mais estreitas as chances de se construir um discurso
homogêneo a seu respeito.
Definir o presente como “época”? Os marcos canônicos (via de regra de
natureza política) variam, sabidamente, ao gosto das experiências nacionais.
Na França, na península Ibérica e no Brasil, o marco que define o início da
história contemporânea é a Revolução Francesa. Na Alemanha e na
Inglaterra, o historiador que se dedica à Zeitgeschichte ou à contemporary
history trabalha preferencialmente com eventos posteriores à II Guerra
Mundial. Contemporânea, na Rússia, é a história posterior a 1918. Na Itália,
por sua vez, trata-se do período que advém após o Congresso de Viena. A
impossibilidade de se articular uma linguagem comum pode ser atestada
ainda com um exemplo recente. Em princípios de novembro de 2011,
realizou-se na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) um
simpósio dedicado à história do “tempo presente”, período que, segundo a
página do congresso na internet, compreenderia os “fenômenos históricos
transcorridos ao longo do século XX e início do século XXI”. Temos uma
ideia vaga do que seria o contemporâneo, mas não do momento aproximado
que demarcaria seu início. Como essas diferenças têm um evidente substrato
cultural, nunca chegaram a ser objeto de disputa entre os historiadores, dado
o alto grau de arbitrariedade que preside a escolha de quaisquer marcos
cronológicos. Embora o debate atual sobre o tempo presente mostre que tal
resignação tenha seus limites, também aí reina a desordem. O que implica a
busca de outras soluções entre os estudiosos do chamado “tempo presente”.1
Parece haver alguma relação intrínseca entre o advento de uma nova
centúria e a redescoberta da temática do tempo. Tal como hoje, em princípios
do século XX a intelectualidade europeia dedicou especial atenção ao tempo
e inclusive à possibilidade de aceleração do tempo. Os físicos tiveram,
naquela ocasião, um papel tão ou mais importante que o dos filósofos e
historiadores (a ciência não fora levada ainda ao banco dos réus). Entre 1902
e 1905, Henri Poincaré e Albert Einstein estabeleceram os fundamentos da
teoria da relatividade restrita. O tempo, ao qual os matemáticos e físicos se
referiam com a bela expressão “a quarta dimensão”, tornara-se agora uma
grandeza relativa. Naquele mesmo momento, Edmund Husserl dava em
Göttingen suas primeiras preleções sobre a fenomenologia da consciência
interna de tempo. Finalmente, em 1915, Einstein apresentou sua teoria da
relatividade geral. O impacto gerado por esta revolução entre os filósofos
pode ser facilmente constatado na conferência de Heidegger de 1915 sobre o
tempo na ciência histórica, na qual remete a escritos de Max Planck e
inclusive ao famoso artigo de Einstein sobre a eletrodinâmica dos corpos em
movimento (Heidegger, 2009:13-28). É difícil imaginar que as reflexões de
Georg Simmel sobre “o problema do tempo histórico”, feitas em 1916, não
tenham recebido qualquer influxo de tais descobertas (Simmel, 2011:9-23).2
O tempo estava na ordem do dia. H. G. Wells havia publicado há pouco
seu conhecido livro A máquina do tempo (1895). No conto O novo
acelerador (1901), Wells narra a história do professor Gibberne, inventor de
uma droga capaz de tornar excepcionalmente rápido aquele que a ingerisse.
Depois de testar o medicamento, ele se dá conta de que tão maravilhoso
experimento trazia consigo um irritante efeito colateral. Para quem ingeria o
acelerador, tudo à sua volta parecia “estar se movendo milhares de vezes
mais lentamente”.3 Depois de uma surreal experiência pelos arredores da casa
de Gibberne, em que o cientista e um amigo exercitam sua curiosidade em
meio a pessoas congeladas num eterno slow-motion, o narrador afirma: “É o
início de nossa fuga da roupagem do tempo de que fala Carlyle”. Oito anos
depois da publicação do conto de Wells, o manifesto futurista de Marinetti
fazia o elogio do automóvel e da “beleza da velocidade”. Em 1913, aparece o
primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Proust.
Embora timidamente, as ciências humanas deram resposta a tais
estímulos. Sob clara influência dos escritos de Bergson, Henri Hubert
inaugura a sociologia do tempo com um “Estudo sumário da representação do
tempo na religião e na magia”, de 1905 (Pinheiro Filho, 2005:141-161). E
quanto à história? Caberia a um jornalista e historiador norte-americano
elaborar, em 1904, o primeiro esboço de uma “lei da aceleração”. Décadas
antes de Koselleck, Henry Adams constatava uma “estupenda aceleração
após 1800”, determinada, acreditava ele, pelo avanço inexorável da ciência.
“A complexidade”, afirmava Adams na ocasião, “se expandiu por horizontes
imensos” (Adams, 1954:247-258).
Somente a partir de meados da década de 1970, a intuição de Henry
Adams sobre a “lei da aceleração” seria revisitada. Para tanto parecem ter
contribuído as recentes revoltas estudantis ao redor do globo, a apocalíptica
frankfurtiana a respeito do “capitalismo tardio” e a redescoberta das
categorias “utopia” e “esperança” nos meios intelectuais progressistas
(Baczko, 1978). No caso da Alemanha, um fator adicional e, tudo leva a crer,
decisivo: a irrupção do terrorismo de extrema esquerda.
Há de fato uma aceleração do tempo? Numa conferência que se tornou
famosa, o teólogo e historiador Ernst Benz defendeu a tese de que na origem
do conceito de aceleração está a ideia cristã de que o tempo avança
inelutavelmente para um “fim”. As teorias revolucionárias modernas e
mesmo o terrorismo político não passariam de versões laicizadas daquela
concepção. Para Benz, pode-se dizer, a aceleração é a soteriologia
secularizada.4 Koselleck reconheceu o caráter originalmente religioso do
fenômeno, mas ressaltou a importância da Revolução Industrial e da
Revolução Francesa como condicionantes macro-históricos decisivos. A
percepção de uma aceleração do tempo teria se alimentado tanto da
expectativa salvífica quanto da experiência produzida por épocas de crise
(como mostrara Burckhardt em suas Weltgeschichtliche Betrachtungen) e da
maior dinâmica civilizacional das sociedades industriais (Koselleck,
2003:150-176).
Vimos que no início do século XX as concepções sobre o tempo eram
viradas ao avesso. No entanto, o presente continuava uma noção obscura. A
imprecisão crônica do termo “presente” sugere que ele não se situa, talvez
nem mesmo possa se situar, no âmbito do conceituável. Certo é que,
indiferente a tais dificuldades, o mundo lá fora segue seu curso. Com isso se
quer dizer que algum tipo de distinção entre passado, presente e futuro
sempre é intersubjetivamente construído. No mundo da vida — onde reina a
convenção —o problema sequer se apresenta, ou se coloca apenas em termos
de uma racionalidade prática. Num plano distinto, mas nem tanto, a
temporalidade aos poucos se torna alvo de disputa entre disciplinas
acadêmicas. Diferentes “fatias” do tempo são apropriadas por diferentes
ciências. Para além de quaisquer esforços de delimitação mútua, o que rege o
âmbito de atuação de historiadores de um lado e cientistas sociais do outro
também são as convenções. O fato de o passado distante ter se tornado, ao
longo dos últimos 150 anos, o único campo “legítimo” de atuação do
historiador não pode ser reconstruído sem que levemos em conta o advento
de outros atores na arena do conhecimento histórico-social. Foram esses
atores que, a bem dizer, expropriaram o historiador da sua relação com o
presente enquanto objeto —o jornalista e o sociólogo.5
II
Num livro que se ocupa com a história do tempo presente, é natural, porém,
que não possamos nos dar por satisfeitos com meras convenções, sejam as da
linguagem cotidiana, sejam as da academia. Se há algum caminho capaz de
lançar luz sobre a questão com que nos ocupamos aqui, certamente é o que
conduz à obra de Henri Bergson. Devemos a ele a distinção pioneira entre
“tempo” e “duração”, e, sobretudo, uma solução sofisticada para o problema
do “presente”. Em sua fenomenologia da consciência de tempo interior, e que
se aproxima de Bergson mais do que talvez estivesse disposto a admitir,
Husserl não dá maior atenção à questão. O “presente” é ali, rigorosamente
falando, um ponto-cego deslocando-se ininterruptamente entre as retenções
primárias e secundárias, de um lado, e as protensões antecipadoras, de outro
(Husserl, 1959).
Bergson reconheceu a impossibilidade de se chegar a uma definição
substantiva do “presente”. Trata-se, diz ele, de “uma pura abstração, uma
visão do espírito”, sem qualquer “existência real”. O passo decisivo foi dado
em 1911, quando ele chega à conclusão que:
A distinção que fazemos entre o nosso presente e o nosso passado é […] se não
arbitrária, pelo menos relativa à extensão do campo que nossa atenção à vida
pode abarcar. Numa palavra, nosso presente cai no passado quando deixamos de
lhe atribuir um interesse atual. Ocorre com o presente dos indivíduos o mesmo
que com o das nações: um acontecimento pertence ao passado e entra para a
história quando não interessa mais diretamente à política do dia e pode ser
negligenciado […]. Enquanto sua ação se fizer sentir, ele adere à vida da nação e
permanece presente para esta [Bergson, 2006:174-175, grifos nossos].
Eu posso perceber minha véspera como história e minha infância como presente.
A fronteira entre história e presente radica no olhar do momento, ou, melhor
dizendo, não há fronteira alguma. Não existe agora, só há passado e futuro. […] O
presente, porém, só recebe sua essência histórica, e que é única, no processo de
constituição (Formgebung) por intermédio do observador [Huizinga, 1954:121].
Desenvolvendo um pouco mais o mesmo argumento, o filósofo Hermann
Lübbe entende o “presente” como “aquele conjunto de experiências que não
se tornaram ainda uma alteridade para nós”. Somente quando se produz um
“estranhamento” em relação a dados bens de cultura de que dispusemos um
dia, ou ainda a vivências pessoais ou coletivas, é que tais coisas se tornam
“passado” (Lübbe, 2003:402). O simples fato de algo ser pretérito não basta
para que o consideremos “passado”. Haverá presente enquanto estiverem
ativos determinados interesses de presentificação do passado
(Vergangenheitsvergegenwärtigungsinteressen) (Lübbe, 2004:134).
Ninguém há de negar que essa forma de compreender o “presente” é
bastante plausível. Mas o que ela não é capaz de garantir, por si só, é um
consenso no que se refere aos diagnósticos quanto ao presente. Ao afirmar
que vivemos há algum tempo num “lento presente”, com o argumento de que
nossos ícones intelectuais são basicamente os mesmos de há três ou quatro
décadas, Hans Ulrich Gumbrecht confirma a perspectiva exposta acima. Isso
nos conduz à questão de saber se a nossa época estaria marcada por uma
aceleração ou, ao contrário, se teríamos deixado para trás a lógica da
aceleração e do tempo histórico. Gumbrecht sustenta que o presente “se dilata
cada vez mais” (Gumbrecht, 2010:45-49). Para Lübbe, porém, o que estamos
a vivenciar é um “encolhimento do presente” (Lübbe, 2009:159-178).
Vejamos os argumentos mais de perto.
III
Ainda lemos Foucault, Derrida e Bourdieu, constata Gumbrecht. A
“sensação”, diz ele, é a de que “as estruturas centrais de nosso mundo se
transformam agora mais lentamente do que até pouco tempo”. Estaríamos
diante do esgotamento do “cronótopo moderno”. Desapareceram as
teleologias, a aceleração interrompeu-se. Gumbrecht lança mão de uma
quantidade surpreendentemente pequena de evidências em apoio à sua tese. A
tentação e o fascínio produzidos por prognósticos desse tipo já haviam
marcado autores como Joachim Ritter, Arnold Gehlen e Francis Fukuyama.
Será possível subscrever a ideia de que vivemos hoje um tempo “mais lento”
depois da crise que ameaçou pôr abaixo a economia mundial, depois da
Primavera Árabe e da crise do euro? Tais eventos são “história” ou tratar-se-á
de mera espuma, destinada a desfazer-se em breve? Tudo depende do campo
da vida social sobre o qual centramos nosso interesse, e ainda de qual
sociedade, e até de qual estamento se está a falar. A aceleração não há de
afetar tudo e a todos com a mesma intensidade, e o mesmo se pode dizer das
eventuais desacelerações. Caso não queira se tornar refém de ilusões, o olhar
deve tornar-se mais dialético.
Mas também mais rigoroso. Os fatos, dizia o próprio Koselleck, têm
“poder de veto”. Ele tinha dúvidas a respeito das possibilidades de se
evidenciar empiricamente a aceleração (Lübbe, 2003:vi).6 Poder-se-ia falar
de uma experiência de aceleração, mas não de uma aceleração da história
(Koselleck, 2003:167). Talvez se possa dizer que desta dúvida nasceu a
analítica do tempo presente de Lübbe.
A fim de verificar os efeitos socioculturais concretos da aceleração,
Lübbe empregou soluções no mínimo originais para um filósofo. Uma das
primeiras foi investigar o processo de proliferação exponencial dos museus
nas últimas décadas. Para ele, o avanço da musealização e a preocupação
crescente com o patrimônio são formas de compensação ante a nossa
acelerada dinâmica civilizacional. Nessas condições, o presente torna-se cada
vez mais curto. Cresce na mesma proporção, portanto, a quantidade de
“relíquias” a serem preservadas. Dito com concisão: “ao progresso pertence,
de forma estrutural, a musealização daquilo que o progresso deixou para trás”
(Lübbe, 1977:319-320).7 O prazo de validade de teorias e inovações
científicas, especialmente entre as ciências naturais, também diminui num
ritmo espantoso. “Nunca como hoje”, constata Lübbe, “foi tão grande a
quantidade de informação ultrapassada disponível em nossas bibliotecas.” De
fato, é o que demonstram os inúmeros estudos recentes sobre o período
necessário para que dobre a literatura científica referente a um determinado
campo de investigação (“taxa de duplicação”). Segundo Urbizagastegui, em
princípios da década de 1970 estimava-se que “a literatura produzida na
maioria dos campos científicos continuava a crescer exponencialmente, com
taxa de duplicação de aproximadamente 10 anos” (Urbizagastegui,
2009:113).
Estreitamente relacionado ao conceito de encolhimento do presente
(Gegenwartsschrumpfung) está o de “precepção”, que diz respeito ao
problema dos arquivos, isto é, daquelas instituições encarregadas de preservar
tudo aquilo que tenha “um presente duradouro como meios de presentificação
do passado”. O aumento gigantesco do fluxo de informação produzido pelas
grandes corporações públicas e privadas exige a aplicação de critérios cada
vez mais rigorosos pelos arquivistas.8 Na década de 1990 já se previa que a
taxa de seleção do que é digno de ser preservado (“cassação”) cairia de 10%
para 5%.
Sendo esta a nossa situação civilizacional, como explicar que o homem
não se perca pela simples impossibilidade de orientar-se num mundo em
rápida mutação? (Lübbe, 1983:131-154) Esse ponto nos leva a outro conceito
proposto por Lübbe, o de que a aceleração é marcada por uma “ilaminaridade
evolucionária”. Inspirado na física, o conceito mostra que processos de
transformação jamais ocorrem numa velocidade homogênea. Tal como no
leito de um rio, a velocidade da mudança depende do “lugar” que algo ou
alguém ocupa. Lübbe toma como índice o fenômeno das vanguardas, para
mostrar seu caráter autocontraditório: quanto mais vanguardismo, tanto maior
a quantidade do que se torna “velho”, as vanguardas de ontem inclusive. Ao
se insurgir contra a instituição do museu, Marinetti na verdade contribuiu
para aumentar a quantidade daquilo que ele próprio chamava de “matadouros
de pintores e escultores”. Mais ainda: o culto do novo anda a par-e-passo com
a valorização crescente dos clássicos, ou seja, daquelas realizações culturais
“resistentes ao envelhecimento”.
Como traduzir movimentos aparentemente tão contraditórios numa visão
coerente do “presente”? Apoiado no conceito de “compensação” de seu
mestre Joachim Ritter (Marquard, 2000:11-29), Lübbe demonstra que a
aceleração civilizacional não pode deixar de ocorrer sem suscitar a sua
antítese: processos de desaceleração (Verlangsamungsvorgänge) e todo tipo
de zona de exclusão como o são o clássico, a tradição, o rito, o trauma.9 Por
que ainda lemos Aristóteles ou Gilberto Freyre, por que ainda ouvimos Bach
ou Debussy, por que ainda nos deleitamos com Chaplin ou Bergman? O
“clássico” não é apenas a expressão de um passado “que não quer passar”, ele
é também a prova (certamente a mais sublime) de que nossa capacidade de
subjetivação do “novo” é limitada. Esta limitação especificamente
antropológica explica por que, depois de atingido um determinado ponto, já
não somos capazes de acompanhar ou responder à quantidade de inovações
com que somos bombardeados diariamente. Simmel, como se sabe, viu nisso
“a tragédia da cultura”.
IV
E como os historiadores têm se posicionado diante desse debate? É ainda no
interior de perspectivas unilaterais que a posição de François Hartog sobre a
questão do “presentismo” e dos “regimes de historicidade” pode ser lida e
tomada como “um caso” para se pensar a inserção historiográfica no debate
aludido. A reflexão já é bastante conhecida no Brasil.10 Assim, nos deteremos
aqui, praticamente, no prefácio à edição francesa de 2012 do livro Regimes de
historicidade. Presentismo e experiências do tempo, denominado
“Presentismo pleno ou transitório (par défaut)”. Nesse texto, o autor inicia
sua reflexão procurando estabelecer algum tipo de relação entre a crise do
tempo que ele já indicava na primeira edição do livro de 2003 com a crise,
inicialmente financeira, em que a Europa está mergulhada desde 2008, sem
condições, na opinião do autor, de ver para além ou aquém dela.
A grande transformação, o presentismo, é definida, da mesma forma que
já havia sido ao longo da primeira edição, como um mundo em que o
presente se impõe como o único horizonte, um presente onipotente e
hipertrofiado. O autor pergunta, por exemplo, se a atual especulação
financeira, resultado também da plasticidade (transformação e adaptação) do
capitalismo, não seria um exemplo maior do presentismo, pois a
“imediaticidade” do tempo dos mercados não pode se ajustar aos tempos da
economia, da política, dos políticos (cada vez mais presos aos calendários
eleitorais). Eis aí, segundo Hartog, mais uma demonstração de nossa
incapacidade coletiva de escapar do “presente único: este da tirania do
instante e do marasmo de um presente perpétuo” (Hartog, 2012:5-9). A
reflexão do autor é uma tentativa de demonstrar uma suposta especificidade
na nossa atual forma de articular passado, presente e futuro, por meio de uma
temporalização do tempo (Hartog, 2010-a:9-30).11
Vivemos entre crises substituídas a cada novo escândalo. O presentismo é
o tempo em que não há nada além do evento. Como exemplo, o autor afirma
que a partir do 11 de setembro de 2001 a administração americana decidiu
fundar um ponto zero da história mundial. A guerra contra o terrorismo seria
um presente novo e único (Sabemos agora, em 2012, quanto esta tentativa
fracassou. Vale para o argumento a intenção? Talvez pela razão de a referida
guerra já fazer parte de um “passado distante”?). O atentado, para Hartog,
põe em evidência a lógica do evento contemporâneo — ele se dá a ver
enquanto acontece, se historiza e “traz em si mesmo sua própria
comemoração: sob os olhos das câmeras. E, nesse sentido, ele é
absolutamente presentista” (Hartog, 2003:116 e 156).12 Afinal, as câmeras
filmando o segundo avião criaram as condições para tal; de forma
semelhante, o mesmo teria ocorrido em 1968 e 1989.
Diante desse quadro restaria ao historiador oferecer às sociedades um de
seus atributos: o olhar distanciado. O instrumental fornecido pela noção de
“regimes de historicidade” ajuda a criar a distância necessária para ver
melhor o próximo: “solidários, a hipótese (o presentismo) e o instrumento (o
regime de historicidade) se complementam mutualmente”. O regime de
historicidade é entendido como articulação entre passado, presente e futuro
ou uma constituição mista das três categorias — com um dos elementos
dominantes13 — ao longo da experiência humana do tempo. Não se trata de
uma realidade dada, é uma categoria, um tipo-ideal, construída pelo
historiador, sem sucessões mecânicas e sem coincidir com o conceito de
época: “é um artefato que é válido por sua capacidade heurística”.
Para Christian Delacroix, um dos problemas desta “redução heurística”
da noção de “regimes de historicidade” é, entre outros aspectos, o risco de
desencorajar a historicização da própria noção. O que poderia resultar, no
nosso entendimento, em uma naturalização do “instrumento”. Ainda segundo
Delacroix, a noção, em especial, de presentismo “não pode ser reduzida à
heurística, pois ela comporta um julgamento de realidade sobre nossa época
(ela é, então, de natureza ontológica, desse ponto de vista)” (Delacroix,
2009:42).
A hipótese do presentismo (por vezes tomada, apesar das intenções do
próprio autor, como uma evidência) não pode ser entendida, ainda segundo
Hartog, sob o registro da nostalgia (um regime melhor que outro) ou da
denúncia. Assim, refletir sobre um presente onipresente é uma forma de se
interrogar sobre as possibilidades de saída desse regime de historicidade. Não
se sabe se a situação é transitória ou durável, mas o fato é que a
imediaticidade da nossa sociedade, da mídia, das tecnologias, do mercado e a
importância atual da memória, do patrimônio e da dívida são indícios
importantes de transformação. O autor afirma que no livro não havia se
colocado a seguinte questão: viveríamos em um presentismo pleno ou
“transitório” (par défaut). Dada a impossibilidade de um retorno passadista
(em que o passado comanda, na expressão do autor), será que poderíamos
pensar que estamos vivendo apenas uma suspensão, uma parada, para que o
futuro retome o comando? Ou trata-se de uma inédita experiência do tempo?
A dúvida em face de um presente que não é uniforme nem unívoco depende
também do lugar social que se ocupa no interior das sociedades. Em outras
palavras: “se trata, […], de un presentismo por defecto — transitorio,
temporario, a la espera de otra cosa, por ejemplo, una reactivación de un
régimen moderno —o de un presentismo pleno: de una estruturación
efectivamente inédita donde el presente es en verdad la categoría dominante
[…]” (Hartog, 2010-b:27).14
Em parte, o livro de Hartog pode ser visto como um desenvolvimento do
texto “A crise do futuro”, de Krzysztof Pomian (1980). Nesse texto, o autor
procura demonstrar como as “ideologias” teriam perdido a capacidade de
imaginar um futuro possível e atraente, pois o prognóstico possível era
sempre o pior. Essa grave situação se dá na medida em que “a nossa
civilização depende do futuro como ele depende do petróleo” (Pomian,
1999:241). Mostrando os problemas do “passadismo” e do “futurismo”, em
especial com as tentativas deste último regime em buscar rupturas excessivas
com o passado, o autor afirma que falta inventar uma via intermediária.
De algum modo, a categoria de presentismo pode ser lida como uma
solução negativa para a proposta de Pomian. Mas o “instrumento” “regimes
de historicidade” pretende ir além, pois ambiciona tornar mais inteligíveis as
múltiplas experiências do tempo, de preferência, por meio da perspectiva
comparatista. Poderíamos nos perguntar: até que ponto o diagnóstico de
Hartog sobre a atual experiência do tempo europeia é válida para a atual
experiência brasileira do tempo? Podemos falar atualmente de “crise do
futuro” no Brasil? Estaríamos aqui nos trópicos sob o signo de um tipo de
futurismo que interage com dimensões do presentismo, como a historicização
imediata da era digital, mas que mantém uma confiança e esperança, por
vezes ingênuas, com a categoria de progresso e/ou futuro?15 Sem procurar
discutir se a hipótese (o presentismo) e o instrumento (regimes de
historicidade) são bons ou ruins, corretos ou equivocados, procuraremos
pensar brevemente a dificuldade de transposição da referida hipótese para o
contexto brasileiro atual. Para tal, tomaremos como índice outro prefácio. De
um livro denominado, sintomaticamente, Agenda brasileira.
Fazendo uso de um procedimento moderno, os organizadores da Agenda
brasileira procuram historicizar o presente, destacando que vivemos um
tempo de grandes mudanças na sociedade brasileira. Eles acreditam que
nosso presente pode ser comparado com os anos 1950, os anos
desenvolvimentistas, período que ainda nos “interpela” não só pelas
promessas não cumpridas: “também porque a década de 1950 nos alerta
criticamente para o risco de que, mesmo cumprida, a modernização possa não
se traduzir diretamente em modernidade e emancipação” (Botelho e
Schwarcz, 2011:16). Mesmo reconhecendo o peso internacional crescente do
país e nossos pacíficos processos eleitorais em mais de 20 anos os autores
destacam os dilemas da violência e da desigualdade. Percebemos, desse
modo, a persistência de um olhar crítico em relação ao presente, ao passado e
ao futuro; porém, diferentemente da análise de Hartog, não nos parece que
haja neste diagnóstico do presente uma crise do futuro.16 Ao contrário, os
autores afirmam que a obra por eles organizada pretende, por meio de
reflexões sobre os mais variados temas, pensar a “mudança social” numa
época de transformações aceleradas. “Olhar para nós mesmos”, mais do que
um gesto de nostalgia, é, para os autores, uma atitude de crítica de
autorreflexão e cidadania.
Outro aspecto de fundo também merece ser destacado: a legitimidade
social da história e/ou dos historiadores nas duas realidades (francesa e
brasileira). Ao que parece, verifica-se desde o final do século passado um
progressivo declínio da história e/ou dos historiadores na cena pública
francesa (Rioux, 2006, e Theullot, 2005).17 Diante desse fenômeno, Pierre
Nora, por exemplo, por meio de uma problemática distinção entre história e
memória na linha sociológica de Maurice Halbwachs, defende a tese de um
aumento da aceleração da história, de uma suposta ruptura entre história e
memória e da perda da história-memória: “fala-se tanto de memória porque
ela não existe mais”, ou ainda, “o nascimento de uma preocupação
historiográfica, é a história que se empenha em emboscar em si mesma o que
não é ela própria, descobrindo-se como vítima da memória e fazendo um
esforço para se livrar dela” (Nora, 1993:7 e 10).18
Nessa direção, Hartog afirma, também de forma problemática, que o
questionamento da história deve-se a seu eclipse (temporário?) em favor da
memória, termo que teria se tornado mais abrangente (Hartog in Delacroix,
2010:766-771).19 O passado atrai mais do que a história. Para alguns
analistas, a história foi deixada de lado em nome do direito e a história
conduzida pelo direito cria uma situação ou de criminalização generalizada
do passado ou de uma vitimização generalizada.20 De algum modo, a posição
de François Hartog não deixa de ser uma tentativa de refletir sobre a perda da
legitimidade da história e/ou dos historiadores na sociedade francesa. É o
presentismo que explica a perda. O atual “fardo da história” é posto nos
seguintes termos: “não se trata de defender a história por ela mesma, em
nome do que ela foi, mas pelo que ela poderá ser (em um mundo presentista
pleno ou imperfeito — par défaut)” (Hartog in Delacroix et al., 2009:149).
Nessa direção, o “fardo do historiador” é tornar-se contemporâneo do
contemporâneo, “lo que significa lo contrario de correr detrás de la actualidad
o ceder a la lógica del momento” (Hartog, 2010-b:16).21
Talvez seja desnecessário refletir se somos ou não o país do
esquecimento, mas certamente é no mínimo inusitado falarmos, no Brasil, de
excesso de memória ou de perda de legitimidade da história. A respeito da
“comemoração dos 500 anos”, Helenice Rodrigues da Silva afirma: “se as
comemorações nacionais têm por objetivo cristalizar as memórias coletivas, a
data de 22 de abril de 2000 já não passa de uma lembrança negativa que o
país se esforça em esquecer” (2003:425-439). Não deixa de ser sintomático
também a “verdadeira saga, em busca da regulamentação da nossa
profissão”.22 A própria tentativa de profissionalização também já não é um
sintoma da baixa legitimidade da prática histórica? Fato é que desde 1968 há
projetos nesta direção, em um país que nos últimos anos, por exemplo,
regulamentou profissões novas como as de enólogo e mototaxista. Em notícia
sobre aprovação da profissão na Comissão de Constituição e Justiça do
Senado, os jornalistas da Agência Senado escreveram que “o relator
reconheceu o ‘relevante’ papel exercido pelos historiadores na sociedade”
(Borges e Franco, 2011). Não deixa de ser no mínimo irônico o uso de aspas
na palavra “relevante”, para dizer pouco. O próprio pleito por parte da
Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh) para
que a Comissão da Verdade tivesse ao menos um historiador também é
representativo para efeitos do nosso argumento.
O que se desejou mostrar até aqui é que a discussão sobre o
“presentismo”, tal qual elaborado por Hartog, é indissociável da própria
“crise” atual da França, dos intelectuais franceses, dos (des)caminhos da
disciplina naquele espaço social e, em última instância, dos rumos e crises
que a ideia de “Europa” vem experimentando desde, pelo menos, a década de
1980. Dimensões que não podem ser deixadas de lado em qualquer tipo de
transposição do argumento para a realidade brasileira. Crise na ordem do
tempo? De qual tempo? De que ordem? E qual crise? Ao que parece, não
temos experimentado o tempo, pelo menos em alguns aspectos, da mesma
forma que o Velho Mundo (Flusser, 1998).23
A imagem do artista de rua britânico conhecido pelo pseudônimo Banksy,
na qual vemos uma menina sentada na calçada segurando a letra “O” da
mensagem “No future”, como se fosse um balão, de algum modo exprime
certo imaginário social daquela experiência do tempo.24 Por outro lado, nos
parece que “O gigante adormecido”, peça publicitária da empresa Johnnie
Walker, exprime um imaginário social emergente acerca da atual experiência
do tempo nos trópicos. Nessa peça, o morro do Pão de Açúcar se transforma
em um gigante que caminha pelo Rio de Janeiro, e a propaganda termina com
o slogan da empresa, “Keep Walking” (continue andando).25 Não se trata de
dizer que uma experiência seja “superior” à outra, mas o que se quer destacar
aqui é a “diferença” entre ambas. A metáfora do “gigante adormecido” pode
ser tomada como sintoma de uma nova reinvenção do otimismo (Fico,
1997).26 No entanto, agora não mais sob o signo da ditadura, por mais que o
futebol continue atravessando a política e a economia. Ainda que os
fantasmas de um passado, já não tão recente assim, continuem nos
atormentando e sendo justas as questões a serem enfrentadas.27 Enfim,
esperamos ter compartilhado nossas reticências quanto à utilização da
categoria de presentismo para se pensar a experiência do tempo no Brasil do
início do século XXI.28
V
O topos do “mais rápido do que nunca” sempre se faz acompanhar do topos
“mais lento do que nunca”. Daí que hipóteses como a de Hartog, Gumbrecht
ou a “dromologia” de Paul Virilio tenham apenas um alcance muito limitado:
pecam por sua unilateralidade. Caso estivesse valendo a lei da velocidade de
Virilio, não seríamos capazes de nos orientar no mundo (Virilio, 2007). Caso
fossem corretas as teses do presentismo ou do presente lento, teríamos
retornado ao tempo do eterno retorno, ao “regime de historicidade” mítico e
mesmo, no limite, a uma desculturalização do homem. Avessa a toda forma
de hiperbolização, a abordagem de Lübbe — ele a caracteriza como uma
“fenomenologia da dinâmica evolucionária de nossa civilização atual” —
oferece-nos uma alternativa interessante. Talvez o mais sensato seja mesmo
falar em “dinâmica civilizacional” moderna, sem ceder à tentação de
estabelecer quaisquer tendências definitivas a priori. Tal como Lübbe o
concebe, este termo contempla e pressupõe ambas as possibilidades — a
aceleração e o seu oposto. Desse modo se chega, por outra via, àquela
“dialética da duração” de que falava Fernand Braudel.
A fixação do olhar sobre o que supostamente se foi ou desapareceu pode
nos impedir de ver as reconfigurações, num momento em que se assiste a
certos deslocamentos de olhares e questões colocadas ao passado, ao presente
e ao futuro (Zawadzki, 2008:126 e 2002). Abandono da experiência do tempo
moderna? Ao que parece, os elementos para responder positivamente a esta
questão são ainda insuficientes. Resta-nos, por fim, o lúcido comentário de
Raymond Aron (2004:261): “em nossa consciência histórica se mesclam e se
opõem as visões fatalistas — tudo se repete —, as visões melancólicas —
uma época se acaba, a da preeminência da Europa —e as visões otimistas —
nosso presente marca tanto um começo como um fim”.
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1-Cf. os artigos de Carlos Fico, Marieta de Morais Ferreira e Raquel Glezer neste
livro. Ver também, entre outros, Pereira (2011:56-65).
2-Cf. também o artigo de Olgária Matos sobre Walter Benjamin neste livro.
3-Em <www.online-literature.com/wellshg/16/>. Acessado em 9 jan. 2012.
4-A conferência de Benz, “Aceleração do tempo enquanto problema histórico e de
história da salvação”, foi proferida em 1977 na Academia de Ciências de Marburg. A
respeito, ver os densos comentários de Blumenberg (2007:207-211).
5-Cf., entre outros, Pereira (2009) e Mata (1998:133-136).
6-Fiamo-nos no relato de Lübbe, que trabalhou ao lado de Koselleck no famoso grupo
“Teoria da História”, reunido na década de 1970 na Fundação Werner-Reimers, e do
qual participavam ainda Jürgen Kocka, Thomas Nipperday, Karlheinz Stierle e Niklas
Luhmann.
7-Salvo quando indicado, os trechos que se seguem baseiam-se ainda em três
trabalhos de Lübbe (1996), (2004:129-141) e (2003:91-94; 269-280).
8-Cf. o artigo de Paulo Knauss neste livro a fim de pensar a relação, no Brasil, entre
história do tempo presente e arquivos da repressão.
9-Sobre a experiência do trauma, cf. os artigos de Durval Muniz de Albuquerque
Júnior e Temístocles Cezar neste volume.
10-Cf. uma síntese crítica em Nicolazzi (jul-dez 2010:229-257). O autor ainda tece
uma consideração geral que merece ser destacada para os propósitos do nosso
argumento neste texto: “o presente, qualquer que seja ele, se impõe à reflexão para os
historiadores se não pela dimensão ética que o impregna, ao menos pela importância
epistemológica que ele assim delimita” (p. 257).
11-Nesse texto, Hartog sugere que nossa atual relação com o futuro é da ordem
apocalíptica.
12-É interessante notar que historiadores de tradições diversas têm defendido posições
próximas às de François Hartog em certos pontos. Do ponto de vista de uma história
política, por exemplo, Tony Judt afirma que “contemporâneos podem ter lamentado a
perda do mundo anterior à Revolução Francesa, ou o ambiente cultural e político da
Europa antes de agosto de 1914. Mas não os esqueceram. […] Muito do que fora
considerado familiar e permanente por décadas, ou mesmo séculos, agora ruma
celeremente para o esquecimento” (2010:15-17).
13-Um exemplo do argumento da existência de um elemento predominante: “o século
XX aliou, finalmente, futurismo e presentismo. Se ele inicialmente foi mais futurista
que presentista, ele terminou mais presentista que futurista” (Hartog, 2003:119).
14-De forma mais direta o autor afirma: “el futuro ha dejado de ser un horizonte
luminoso hacia el cual dirigimos órdenes de marcha más o menos vibrantes, para
volverse una línea de sombra que hemos puesto en movimiento hacia nosotros, en
tanto que parecemos agitarnos inutilmente en el presente y rumiar un pasado que no
termina de pasar” (p. 26).
15-Para uma distinção entre mito do progresso e esperança no futuro, cf., em especial,
Rossi (2000). Cf., também, Jonas (1998).
16-Em um exercício de futurologia, o ministro da Economia, Guido Mantega,
anteriormente ao anúncio, em 2011, de que o Brasil se tornaria a sexta economia do
mundo, declarou que dentro de 10 a 20 anos o país teria um padrão de vida europeu.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/1026365-mantega-diz-que-
pode-levar-20-anos-para-brasil-ter-padrao-de-vida-europeu.shtml>. Acessado em 9
jan. 2012.
17-Segundo François Hartog, “actualmente, para ser admitido en el espacio público,
para ser reconocido en la sociedad civil, el historiador debe ‘presentificarse’,
proponiéndose, como experto y transmissor [passeur] de presente: del presente al
presente?” (Hartog, 2010-b:22).
18-Ricœur critica duramente a perspectiva aberta por Halbwachs (e desenvolvida por
Nora e outros) por trabalhar a relação entre história e memória sob o signo da
oposição e/ou hierarquização e não da dialética. Ricœur (2000); Ricœur (2002:41-61).
Cf., também, Hartog (2003:113-161).
19-Na mesma direção, Beatriz Sarlo comenta que o “presente, ameaçado pelo desgaste
da aceleração, converte-se, enquanto transcorre, em matéria da memória” (2005:95-
96). Cf. as análises de Irene Cardoso e Temístocles Cezar neste livro sobre a relação
entre testemunho, memória e história.
20-Ver, sobre isso, as seguintes referências: Gauchet (2002); Nora (2006); Eliacheff e
Larivière (2007).
21-Hayden White denomina “fardo do historiador”, a saber: “restabelecer a dignidade
dos estudos históricos […] de modo a permitir que o historiador participe
positivamente da tarefa de libertar o presente do fardo da história” (1994:53).
22-Dossiê sobre a regulamentação da profissão de historiador disponível em
<http://www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=317>.
23-Na década de 1970, justamente quando mais se falava em “aceleração” na Europa,
Flusser afirmou — o que sempre lhe custou incompreensões — que o homem
brasileiro seria um “tipo a-histórico não primitivo” (1998). É algo irônico que sejam
hoje intelectuais europeus e norte-americanos os que falam num presente “lento” ou
“onipresente”.
24-Disponível em <http://www.artofthestate.co.uk/banksy/banksy-no-future.htm>.
25-Disponível em <http://www.jb.com.br/economia/noticias/2011/10/08/propaganda-
da-johnnie-walker-com-pao-de-acucar-que-vira-gigante-faz-sucesso/>.
26-Vale a pena lembrar que, em face dos horrores da II Guerra Mundial, Stefan Zweig
retoma a metáfora do Brasil como país do futuro. A miscigenação e o “ódio à guerra”
são exaltados como uma das principais virtudes da jovem nação. Para uma análise
geral da questão, cf. Carvalho in Bethell (2002:45-75).
27-Cf., entre outros, Reis (2010); Gagnebin in Teles e Safatle (2010:177-186);
Traverso in Cernadas e Lvovich (2010:47-68). Cf. o artigo de Durval Muniz de
Albuquerque Júnior neste livro sobre trauma, esquecimento e usos do passado.
28-Apesar dessas reticências, Rodrigo Bonaldo faz uma boa articulação entre a obra de
Eduardo Bueno com a categoria de “presentismo”. Mas o autor pensa mais o
presentismo como uma presentificação do passado, mediado por uma escrita
jornalística sintética, do que como historicização imediata. Ver Bonaldo (2010).
Tempo presente e usos do passado
TEMÍSTOCLES CEZAR
O Verbo que pairava por cima do universo, pairava por cima do nada, pairava
mais além do exprimível e do inexprimível, e ele, sobrepujado pelo bramido do
Verbo e circundado pelo estrondo, ele adejava junto com o Verbo; mas quanto
mais este o envolvia, quanto mais ele penetrava nesse mar de ressono, que, por
sua vez, o penetrava, tanto mais inatingível e grande, tanto mais poderoso e
esquivo se tornava o Verbo, um mar em adejo, um fogo em adejo, pesado como o
mar, leve como o mar e no entanto continuando a ser Verbo: ele não podia retê-
lo, não tinha o direito de fazê-lo; inconcebível e inefável era para ele o Verbo,
que se mantinha mais além da linguagem. A morte de Virgílio, Hermann Broch
[2001:431]
I. O cerco do presente
uma obrigação que temos na Alemanha — mesmo que nada nos garanta estarmos
preparados para assumi-la por muito tempo — é manter viva a memória do
sofrimento daqueles assassinados pelas mãos dos alemães, e devemos manter viva
esta memória de modo aberto e não somente dentro de nossas mentes [apud
LaCapra, 1992:116-117].
É por isso que se pode falar de crise do testemunho. Para ser recebido, um
testemunho deve ser apropriado, quer dizer, despojado tanto quanto possível da
estranheza absoluta que o horror engendra. Essa condição drástica não é satisfeita
no caso dos testemunhos dos que se salvaram. Uma razão suplementar da
dificuldade de comunicar deve-se ao fato de que a testemunha não esteve ela
mesma distante dos acontecimentos; ela não “assistiu” a eles; ela mal foi um
agente, um ator; ela foi vítima.
Como “contar sua própria morte”?, pergunta Primo Levi [que, segundo
Giorgio Agamben, seria “um tipo perfeito de testemunha” (Agamben,
2008:26)]. A barreira da vergonha acrescenta-se a todas as demais barreiras.
Daí resulta que a própria compreensão esperada deve ser, por sua vez,
julgamento, julgamento imediato, julgamento sem mediação, reprovação
absoluta. O que, finalmente, faz a crise do testemunho é que sua irrupção
destoa da conquista inaugurada por Lorenzo Valla em A doação de
Constantino: tratava-se então de lutar contra a credulidade e a impostura;
trata-se agora de lutar contra a incredulidade e a vontade de esquecer.
Inversão da problemática? (Ricœur, 2000:223-224).
Além disso, esses testemunhos diretos encontram-se progressivamente
enquadrados, mas não absorvidos, pelos trabalhos de historiadores do tempo
presente e pela publicidade dos grandes processos criminais cujas sentenças
caminham lentamente na memória coletiva e cujo preço são, muitas vezes,
duros dissensos. Consequentemente, para Ricœur, é no mesmo espaço
público da historiografia que se desenrola a crise do testemunho pós-
Auschwitz.
Um exemplo das relações entre a confiabilidade do testemunho, o uso da
memória e do esquecimento como recurso terapêutico nos é transmitido por
Nathan Beyrak, da Universidade de Yale, responsável por entrevistar
testemunhas do genocídio judeu no âmbito do projeto cinematográfico sobre
os sobreviventes do Holocausto iniciado em 1982 (após o sucesso da novela
Holocausto nos Estados Unidos), e que anos depois, em 1994, na esteira de
outro sucesso do cinema, a Lista de Schindler, conferirá legitimidade
científica ao Survivors of the Shoah visual history foundation, de Steven
Spielberg. Trata-se da entrevista de um homem que fizera parte de um grupo
de crianças que sobrevivera no gueto de Kovno até sua evacuação, em 1944.
O primeiro depoimento do homem do qual fala Beyrak durou cerca de três
horas e foi classificado pelo entrevistador como “seco”. Ao chegar em casa
após a entrevista, o depoente ou testemunha recorda-se, subitamente, que
tinha guardado uma série de escritos, uma espécie de diário do gueto, do qual
ele não recordava a existência. Ao exumar seu diário, constata que evocava
pontos os quais não mencionara em seu testemunho. Seria, então, necessário
retomá-lo, refazê-lo. Na sessão seguinte, munido de seu diário, ele narra
novos episódios diante da câmera. Porém, o entrevistador repara que a
testemunha deixava de lado certas páginas do diário e pergunta por quê. O
sobrevivente explica que era impossível que certas coisas escritas no diário
fossem reais, que elas realmente tenham acontecido, pois delas, naquela data,
ele não guardava nenhuma recordação. A leitura dessas páginas não deixa
nenhuma dúvida sobre sua autenticidade, se comparadas a outros relatos do
gênero, notadamente uma descrição da fome. No entanto, esses registros lhe
pareceram irreais. Segundo Beyrak, a testemunha simplesmente não era
capaz de relacionar sua memória e a experiência descrita (Wieviorka,
1998:171-172).7
De que maneira podemos pensar problemas como estes sem considerar o
aporte psicanalítico uma ferramenta, ao mesmo tempo difícil e fundamental,
na busca de compreensão dos acontecimentos-limite, como fazem, de modo
distinto, Henry Rousso e Dominique LaCapra? (Rousso, 1987, 1998 e 1994;
LaCapra, 1996, 1998)8
Estar-se-ia diante, portanto, de uma crise de confiança e de crença do
testemunho relatado e da própria testemunha. Contudo, instalar uma dúvida
metódica permanente seria uma atitude correta? Aonde nos conduziria ou nos
conduzirá uma crise geral do testemunho? O historiador responderia, diz-nos
Ricœur, “provavelmente que a história, em sua totalidade, reforça o
testemunho espontâneo pela crítica do testemunho, ou seja, o confronto entre
testemunhos discordantes, com o objetivo de estabelecer uma narrativa
provável, plausível” (Levi in Abel, 2006:230). Beatriz Sarlo encontrou outra
solução além dessa, em relação à qual tenho muitas reservas: verificar a
cientificidade do relato, expresso sobretudo, para ela, pelo apagamento da
primeira pessoa do discurso (Sarlo, 2005).9 Não me parece, nem teórica nem
metodologicamente, o procedimento crítico mais adequado, pois a pergunta
permanece: a prova documental da transcrição da experiência direta ou da
reconstrução memorial posterior é — dilema platônico — mais remédio que
veneno para as falhas constitutivas do testemunho?
1. W ou le souvenir d’enfance
2. A morte e a donzela
Composto em 1824 por Franz Schubert, o quarteto de cordas A morte e a
donzela, inspirado em um poema de Matthias Claudius, revela toda a dor do
grande músico perante a morte iminente que uma grave doença anunciava e
que acabou por lhe arrebatar a vida precocemente quatro anos depois.
Composta em 1990 por Ariel Dorfman, recém-chegado ao Chile depois
de um longo exílio provocado pelo regime autoritário do general Pinochet, a
peça de teatro em três atos A morte e a donzela, inspirada na composição
homônima de Schubert, conta a história, no presente, passada em um país que
poderia ser o Chile, que vivia a instalação da democracia após um longo
período ditatorial. Lá vivem o trio Paulina Salas, ex-militante de esquerda
que fora presa e torturada fazia 15 anos, Geraldo Escobar, seu marido,
advogado ligado aos direitos humanos, e o médico Roberto Miranda. A
versão cinematográfica, dirigida por Roman Polanski, aparece em 1994 e é
bastante fiel ao texto de Dorfman.
A trama principal se passa em uma casa de praia, na qual Paulina
aguardava, já tarde da noite, o marido, que deveria ter chegado para o jantar.
Geraldo finalmente chega e explica o atraso: o pneu do carro furara e ele
tivera de esperar até que alguém se dispusesse a parar e ajudá-lo, uma vez
que estava sem estepe. Roberto Miranda não apenas o ajudou, como também
o deixou em casa. Após a explicação, Paulina e o público ficam sabendo que
Geraldo fora convidado pelo recém-eleito presidente da República para
presidir a Comissão de Violação dos Direitos Humanos sobre os casos que
terminaram em morte ou presunção de morte no regime anterior (uma espécie
de Comissão da Verdade instituída em outros países, como África do Sul e
Argentina).12 Paulina põe em dúvida a eficácia da comissão, pois, segundo
ela, os juízes não poderiam ser imparciais, uma vez que seriam os mesmos
que contribuíram ou se omitiram durante a ditadura.
Mais tarde Roberto retorna à casa do casal, com uma desculpa qualquer, e
parabeniza Geraldo pelo novo encargo, do qual tomara conhecimento ao
escutar o noticiário no automóvel. Nesse ínterim, Paulina supostamente
dormia. Devido ao adiantado da hora, Geraldo insiste para que o médico
passe a noite em sua casa. Durante a madrugada, Paulina, de posse de uma
arma de fogo, aprisiona Roberto, porque, embora até aquele momento não o
tivesse visto, reconheceu nele, por sua voz, o torturador que marcara
definitivamente sua vida. O marido acorda e vê a cena sem nada entender: a
mulher apontando uma arma em direção a Roberto, que se encontra,
pateticamente, amarrado em uma cadeira. Perplexo, o marido advogado pede
provas. Além da voz, uma fita cassete de A morte e a donzela que ela
encontrara no seu carro (“essa tristeza tão suave, tão nobre” que Miranda
escutava enquanto a violentava, explica a protagonista) e vagas alusões que
seu algoz teria feito, nas sessões de tortura e casualmente na conversa da
noite anterior, a Geraldo, como uma referência a Nietzsche.
Em síntese, Paulina quer que o médico confesse, e para tanto o ameaça de
morte. Geraldo contra-argumenta, afirmando que isso não é fazer justiça.
Entre os três trava-se uma intensa e dramática conversação marcada por
acusações e defesas. Paulina quer falar, já que está viva e que a comissão
apurará apenas o caso dos mortos e desaparecidos; como Levi, ela quer
testemunhar. Ela quer algo mais que a anistia, esse esquecimento institucional
que visa calar o não esquecimento da memória, como diz Ricœur; ela precisa
escutar uma confissão e um arrependimento (Ricoeur, 2000:585-586). Assim,
diz Geraldo, “nós vamos morrer de tanto passado”; “perdoar e esquecer”,
replica Paulina; “perdoar sim, mas não esquecer”, responde o marido,
“perdoar, para poder começar de novo”, pois, conclui em tom nietzschiano:
“as pessoas podem morrer de uma dose excessiva de verdade”.
No entanto, Paulina não pode nem perdoar nem esquecer, nem a tortura,
mas o que parece pior, uma morte por dentro da sobrevivente, que a torna
incapaz de “descrever o que significa ouvir essa música maravilhosa no
escuro, sem comer há três dias, quando seu corpo está caindo aos pedaços”.
Nesse momento, Roberto confessa. Mas, como vários nazistas entrevistados
por Claude Lanzmann em seu documentário Shoah, ele não se arrepende.
Em posfácio à peça publicado em 1992, Ariel Dorfman comenta os
motivos que o levaram a escrever o texto e sua repercussão. Segundo o autor,
A morte e a donzela obteve, inicialmente, pouco reconhecimento em seu país,
pois esse tipo de atividade cultural ameaçava “a segurança psicológica de
muitos”, a ponto de até seus companheiros de resistência “que agora
governam o Chile”, explica, tampouco terem gostado da obra:
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Devia ter sido José, então com 11 anos, a fixar aquele instante. Mostrou-lhe um
antigo número da Vogue com uma reportagem sobre caça grossa na África
austral. O artigo reproduzia uma aquarela com uma cena da vida selvagem —
elefantes banhando-se numa lagoa — assinada por Eva Miller.
Poucos meses depois daquela foto, o rio correndo sereno para seu destino, o
capim alto em meio à tarde solene, Eva partiu para a Cidade do Cabo, numa
viagem que deveria durar um mês, e nunca mais regressou. Mateus Buchmann
escreveu a amigos comuns na África do Sul, pedindo notícias da mulher, e como
nada conseguisse, confiou ao filho a um empregado, um velho pistoleiro cego, e
foi à procura dela [Agualusa, 2004:42].
Para a história ficará a verdade que Félix fez o ministro contar: em 1975,
desiludido com o rumo dos acontecimentos, e porque se recusava a participar de
uma guerra fratricida, o ministro exilou-se em Portugal. Inspirado nos
ensinamentos do avô paterno, um homem sábio, profundo conhecedor das ervas
medicinais de Angola, fundou em Lisboa uma clínica dedicada às medicinas
alternativas africanas. Regressou à pátria, em 1990, finda a guerra civil, com o
firme propósito de contribuir para a reconstrução do país. Queria dar ao povo o
pão nosso de cada dia. E foi isso que fez [Agualusa, 2004:141].
O que o ex-torturador não sabia é que a menina que ele pensava não ter
nascido na época do ocorrido era, na verdade, a bebê torturada por Mabeco
— Ângela Lúcia, a filha de Pedro e Marta, que, estática, ouvia a narrativa
medonha de como fora violentada ainda criança, violência que deixara
cicatrizes que ainda carregava no corpo e na alma. Diante da incapacidade do
pai de puxar o gatilho e matar o responsável pela morte de sua mãe, Ângela
arrebata-lhe a arma e dispara sem dó contra o ex-agente da polícia.
Traumas como este não podem ser esquecidos, não podem passar pela
não inscrição, porque com isso a sombra branca, a doença da cegueira social,
só tenderá a crescer, como parecem nos dizer os livros de Saramago,
Agualusa e Mia Couto. Os historiadores, embora não deixem de ser, hoje,
vendedores de passado, quase sempre a preço vil, devem fazê-lo não a
serviço do branqueamento, da limpeza, da assepsia do passado, como vemos
recorrentemente acontecer na mídia, nos meios de comunicação de massa.
Estamos assistindo, nestes dias que correm, à aposta na amnésia social, na
capacidade que parece infinda da sociedade brasileira em esquecer, em não
inscrever na consciência coletiva, no espaço público, nas memórias os fatos e
feitos pouco abonadores de nossas elites dirigentes. Os historiadores devem
ser agentes do luto social, aqueles que expõem o sangue derramado e o cheiro
de carne calcinada para que se clame novamente contra a injustiça e o crime
produzidos. A história deve ser o trabalho com o trauma para que ele deixe de
alimentar a paralisia e o branco psíquico e histórico e possa levar à ação, à
criação, à invenção, à afirmação da vida naquilo que ela tem de beleza.
Talvez por isso todas as personagens do livro de Agualusa manejem uma
dada técnica de representação ou uma linguagem através das quais se podem
criar novas realidades, novas formas para o mundo e para a vida. A
fotografia, a pintura, a capacidade de narrar, de escrever aparecem como
possibilidades de simulação de novas realidades, inclusive para o passado,
realidades que alimentem o desejo de vida e não o desejo reativo de morte.
Só a criação, só a afirmação pela arte, do conhecimento, da linguagem faz
dos homens humanos, faz com que se inscrevam e escrevam o mundo e a si
mesmos nele. Talvez ele aponte uma maneira de fazer história distinta
daquela representada pela guerra, pela revolução, pelos embates políticos e
pelas disputas territoriais que muito infelicitaram o século XX e foram
responsáveis pela morte de mais de 500 mil pessoas nas últimas décadas da
história angolana. Talvez, como Nietzsche, esteja nos alertando para os
perigos da história para a vida.
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2010.
2-Para a discussão psicanalítica da noção de trauma, ver Ferenczi (1990).
História que temos vivido*
CARLOS FICO
Introdução
O estudo da história do tempo presente, que durante tanto tempo foi objeto de
resistências e interdições, entrou na ordem do dia no Brasil, não só como
objeto de pesquisa acadêmica, mas também como um tema desafiador para os
historiadores do ponto de vista ético e político. A aprovação da lei que
regulamenta a constituição da Comissão da Verdade para apurar crimes
contra os direitos humanos suscita diversas questões para a comunidade de
historiadores. Qual a posição que a comunidade científica deve adotar? A
Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh),
principal entidade que reúne profissionais de história, deve se envolver
diretamente no debate? Se sim, que regras devem nortear seu
posicionamento? Esse envolvimento institucional não acaba por atribuir ao
historiador o papel de juiz da história?
Esse conjunto de perguntas e questões já foi proposto em vários países,
tais como França, Alemanha, África do Sul, Argentina, só para citar algumas
experiências. As respostas foram produzidas de acordo com a cultura
histórica de cada país e com os impactos produzidos pelos eventos
traumáticos nas diferentes sociedades. No caso brasileiro, esse debate se
expande e se aprofunda tardiamente, uma vez que as tentativas feitas pelas
entidades de direitos humanos sempre encontraram resistência para avançar
na revisão da Lei de Anistia e no julgamento dos crimes políticos contra os
direitos humanos. A dimensão das discussões ficava restrita a alguns
especialistas e a encontros de caráter estritamente acadêmico.
Em 18 de novembro de 2011, foi sancionada pela presidenta Dilma
Rousseff a lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade. A comissão
“traz esperança de que fatos controversos ocorridos durante os anos de
chumbo possam ser revisitados e recontados”. Foi assinada também a Lei de
Acesso a Informações Públicas, que acaba com o sigilo eterno de
documentos. Segundo o governo federal, a comissão não tem o objetivo de
acusar nem processar os autores de violências, mas tão somente divulgar
informações de documentos ultrassecretos em um relatório a ser elaborado. O
documento final será produzido por uma equipe composta por sete pessoas e
deve apurar violações aos direitos humanos, ocorridas entre 1946 e 1988. O
grupo terá dois anos para ouvir depoimentos em todo o país, requisitar e
analisar documentos que ajudem a esclarecer as violações de direitos
ocorridas no período. Segundo a reportagem, a presidenta Dilma afirmou
durante a solenidade: “Hoje é um dia histórico para o Brasil. A partir de hoje,
esta será a data em que comemoraremos a transparência e em que
celebraremos a verdade” (Salés, 2011).
Esses dois eventos sugerem desafios para os historiadores brasileiros que
se dedicam ao estudo da história recente de nosso país. A Lei de Acesso a
Informações Públicas abrirá novas possibilidades para a emergência de temas
ainda não explorados, funcionando como um estímulo para o reconhecimento
e a legitimidade da história do tempo presente, e permitirá o esclarecimento
dos muitos pontos obscuros que a dificuldade de acesso às fontes impedia.
Por outro lado, o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade propõe
uma grande questão: os historiadores profissionais devem se envolver
diretamente nessa empreitada? A diretoria da Anpuh entende que sim e
reivindicou que a entidade deveria indicar possíveis nomes entre seus
associados para integrar a comissão com o argumento de que
vai tratar de questões referentes à história recente do país e que, por isso,
demanda a atuação de profissionais que desenvolveram, ao longo de sua
formação, habilidades referentes à crítica documental, à interpretação de
testemunhos, à coleta e análise de fontes orais, entre outras.1
Os desafios da judicialização
Ainda segundo Gérard Noiriel, “é necessária uma reflexão crítica e constante
sobre a função social da história”, e os historiadores “devem refletir acerca
dos motivos dessa demanda, historicizar sua própria ação e avaliar seu papel
na eclosão de novas escalas políticas e de novas maneiras de pensar” (Noiriel,
1998:208). Mas até que ponto, e como, os historiadores devem envolver-se
no reconhecimento do papel social de sua disciplina?
Na virada para o século XXI, as respostas dos historiadores a essa
pergunta são diversas. Os historiadores são cada vez mais solicitados,
inclusive para testemunhar em tribunais. Em 1998, na França, o processo que
acusava de cumplicidade em crimes contra a humanidade Maurice Papon, ex-
secretário-geral de prefeitura regional sob Vichy durante a ocupação alemã,
evidencia as divergências entre os historiadores solicitados para testemunhar.
Para Rousso (1998), que se recusou, então, a testemunhar, há confusão entre
três registros muito distintos: o da justiça, o da memória nacional e o da
história. A intenção de verdade da história não pode ser subordinada às
lógicas judiciárias ou memoriais. Antoine Prost (2000) vai no mesmo sentido
quando constata o retorno de uma historiografia por ele chamada de
“judiciária”, ou seja, uma historiografia “que constrói, de fato, suas narrativas
como os requisitórios ou discursos de defesa e estabelece como objetivo
pronunciar sentenças”. Segundo Prost, essa historiografia judiciária abre
caminhos para muitas ambiguidades. Comparando o trabalho do juiz com o
do historiador, Prost (2000:294) chama a atenção para a diferença de relação
com a testemunha nos dois casos e na divergência existente entre os objetivos
perseguidos pelo juiz e pelo historiador.
Essa questão põe na ordem do dia o posicionamento a ser adotado pelos
historiadores e a necessidade de distinção entre as investigações
historiográfica e judiciária e, consequentemente, a diferença nos usos dos
testemunhos para constituição da prova pelo historiador e pelo juiz. Aqui é
possível questionar em que medida são exequíveis os desejos do historiador
de se aproximar de um verdadeiro juiz, que após averiguar bem os fatos,
ouvindo testemunhos, deveria sentenciar perante o tribunal da história.
Apesar da convergência preliminar entre um ofício e outro, em função do
caráter investigativo e da preocupação com a prova, o traço distintivo da
elaboração historiográfica não estaria na natureza essencialmente provisória e
contingente da escrita da história, mesmo que nela esteja implícita uma
intenção de verdade? (Prost, 2000:238).
Sobre essa diferença, Paul Ricœur observa que o juiz deve julgar, é sua
função. Ele deve concluir; deve decidir. “Ele precisa recolocar a uma justa
distância o culpado e a vítima, segundo uma topologia imperiosamente
binária. Tudo isso o historiador não faz, não pode fazê-lo.” (Ricœur,
2000:421). Em contrapartida, o historiador, mesmo que pretensamente tente
erigir-se em árbitro da história, não deixa de se expor à crítica, seja ela da
própria corporação ou do público leitor.
Assim, sua obra está sujeita a um processo ilimitado de revisões que faz da escrita
da história uma perpétua reescritura. Neste caráter inconcluso que marca a
suscetibilidade da historiografia a uma reelaboração infindável estaria a
dissonância entre a enunciação de um juízo histórico e de uma sentença judiciária.
[…] Contudo, para o primeiro, a tarefa investigativa permanece essencialmente
inacabada, o que equivale dizer que a verdade em história continua, assim, em
suspenso, plausível, provável, em suma, sempre em curso de reescrita [Ricœur
apud Oliveira, 2008:238].
Considerações finais
Retornando ao ponto de partida, a fala da presidenta Dilma indica a
importância de comemorar as conquistas e guardar a data como um momento
“histórico”. Essa relação entre passado, presente e futuro estabelecida a partir
da instituição da Comissão da Verdade indica a relevância desse fato para a
história brasileira recente, tanto para os que comungam da mesma ideia
quanto para os que são contrários à comissão. Para os historiadores, esse
evento deverá continuar sendo um objeto de estudo especial, uma chave para
compreender melhor o imaginário político brasileiro e os mecanismos de
construção da nossa memória e identidade nacional. A tarefa de avaliar
criticamente o papel e o lugar dos profissionais de história, de garantir os
princípios de seu trabalho científico sem, ao mesmo tempo, fazê-los abrir
mão de suas responsabilidades sociais, permanecerá como um desafio a ser
enfrentado.
As palavras de Jean-Clément Martin (1998:13-20) podem nos ajudar a
aprofundar essa reflexão ao observarem que o historiador deve combinar “seu
trabalho científico — que necessita de total liberdade —e seu papel social —
que implica a responsabilidade”. Para ele, a separação nítida entre juiz e
historiador não é radical; o trabalho do historiador tem inevitavelmente um
alcance moral e ideológico que faz com que sua tarefa “encontre aí certas
ressonâncias com as do juiz”; estando juízes e historiadores, deste ponto de
vista, implicados na fabricação do elo social.
Essas perguntas se apresentam hoje para nós, e somos instados a
respondê-las. Como garantir a prática científica da história e ao mesmo tempo
exercer responsabilidades sociais? Como transformar as novas aquisições
inovadoras produzidas pela academia para estendê-las ao grande público?
Como produzir uma história seguindo as regras científicas e ao mesmo tempo
produzir manuais necessários à formação política e cívica dos cidadãos das
sociedades modernas? Este texto pretende contribuir para esse debate, no
sentido de clarificar os desafios que as sociedades contemporâneas
apresentam para o exercício das atividades dos profissionais de história.
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***
Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês, nós ganhamos; […]
mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas,
discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque
destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e
sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que
não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e
acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a
história dos Lager [1990:1].
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Arquivos e memória
De diferentes formas, o passado sempre ocupou as sociedades ao longo dos
tempos. As sociedades contemporâneas, segundo a fórmula de Pierre Nora,
inventaram os lugares de memória, distinguindo-se das sociedades
tradicionais que vivem na memória e justificam seus atos cotidianos a partir
da lembrança dos seus mitos e repetindo seus antepassados (Nora, 1984).
Diante da aceleração do tempo e do compromisso com o progresso, as
sociedades contemporâneas trataram de localizar o passado em museus,
bibliotecas, arquivos, catálogos, datas, festas e comemorações,
testemunhando sua própria transformação. Dito de outro modo, nesse mundo
em que vivemos procuramos sempre inovar e transformar, distanciando-nos
de nossos ancestrais. Nossa distância é a medida de nossa própria evolução.
Como outros lugares de memória, os arquivos são uma construção das
formas contemporâneas de promoção da memória, registro de que nós
vivemos em outro tempo distinto de anteriores. Nos arquivos, organizase o
encontro com nosso tempo pela ruptura com o passado e não pela
continuidade. Na diferença dos tempos é que nos damos conta de nossa
própria historicidade. Assim, diante de cartas antigas de uma mapoteca,
descobrimos como o mesmo território foi representado diversas vezes de
modos distintos. Podemos reconhecer o Brasil numa carta colonial, contudo,
diante dela nos convencemos de que nossa terra não é mais daquele jeito.
Ocorre que, antes disso, há outra constatação a ser feita. Os documentos
de caráter permanente, que encontramos nos arquivos públicos de nossos
dias, não foram sempre vestígios de outro tempo. Conforme a teoria do ciclo
de vida dos documentos, marca da arquivologia contemporânea, é possível
demarcar as fases corrente e intermediária, anteriores à fase permanente de
vida dos documentos. Como documentos correntes, eles serviram ao instante
do presente, no aguardo do despacho necessário para a consecução de uma
ação. A espera da realização de ações decorrentes da decisão inscrita nos
documentos caracteriza a fase intermediária da vida documental. Sua terceira
fase de vida, a fase permanente, é a memória da ação produzida e consumada.
Alguns diriam que nessa fase os documentos se tornam inativos, ou deixam
de ter caráter utilitário. Melhor seria falar de novas atividades e de novos usos
dos documentos, pois é diante de sua condição permanente que afirmam sua
dimensão histórica propriamente dita, ultrapassando seu valor primário para
afirmar seu valor secundário.1
Importa salientar que, durante os ciclos de sua vida, os documentos
sofrem uma transmutação de sentido que os desloca da produção de um ato
para a recordação do mesmo ato. Considerando que os documentos nascem
correntes, sobrevivem como intermediários e se redefinem como
permanentes, entre a primeira e a última fase de sua vida eles continuam
sempre sendo os mesmos suportes materiais de informação, mas o seu
sentido é transformado. Nessa passagem é que os usos dos documentos são
redefinidos, e nesse momento eles deixam de transportar ações do presente
para transportar ações do passado. Há uma mudança de inserção temporal em
torno da transmutação de sentido dos documentos. Nesse caso, os usos do
passado fazem a diferença, pois os documentos passam a ganhar outra razão
de ser e se instalam nos arquivos. No início de sua vida, o documento é
registro do presente, na terceira fase de sua vida ele passa a ser registro do
passado.
Ocorre que os usos do passado, tal como a memória, organizam-se no
presente. Assim, a transmutação do sentido do documento acompanha de fato
um deslocamento dos tempos, pois é no presente que o passado se define. O
passado não é algo dado, mas sim uma construção atualizada do presente
(Menezes, 1992:9-24).
Não seria demasiado dizer que a história dos arquivos da repressão
política é a melhor ilustração dessa transmutação dos documentos ao longo
de sua vida. Isso vale para o Brasil, para os países do Cone Sul, ou para a
antiga Alemanha Oriental, ou para onde quer que os regimes policialescos
tenham sido substituídos por regimes abertos. Isso porque os documentos da
polícia política nasceram para perseguir os cidadãos, considerando-os
inimigos de Estado, ou “inimigos internos”. Contudo, hoje eles são
instrumentos da garantia de direitos dos cidadãos diante do Estado. Trata-se
do mesmo papel, do mesmo suporte material e do mesmo conteúdo, mas sua
razão de ser na sociedade mudou diante da presença do passado. Mudou seu
sentido, porque a sociedade e suas instituições mudaram, substituindo velhas
estruturas por outras. Os mesmos papéis ganham assim novo interesse, o que
implica novos usos. Desse modo, os documentos da polícia política são
reconhecidos como fontes de outra época e, assim, localizam o passado. Sua
difusão e sua publicidade reafirmam nossas diferenças históricas e atestam
que estamos em outro tempo, em que a relação do Estado e do cidadão se
transformou. Sua preservação atesta a transformação da sociedade.
Esse uso contemporâneo do passado não nos situa em continuidade ao
passado e às gerações anteriores, mas, ao contrário, na descontinuidade do
tempo. Nossa época se define pela alteridade em relação a outras. Revisitar os
documentos históricos de arquivo, nesse caso, significa sempre reafirmar a
particularidade do presente diante de outros tempos. É na dialética
presente/passado que os documentos históricos se definem.
Arquivos e direitos
Como todo documento público, as fontes da polícia política servem para fins
de estudo e fins probatórios. Num caso, eles operam sob uma base científica,
noutro, sob uma base judicial — formas de conhecimento que convivem lado
a lado em torno dos mesmos vestígios históricos e que fazem usos distintos
do passado. Quer dizer, o mesmo documento histórico se presta, no presente,
a mais de um uso do passado.
É importante insistir sempre nessa dupla dimensão dos documentos
históricos permanentes, pois é esse caráter duplo que sustenta a identidade
dos arquivos em nossos dias. Como equipamento cultural, os arquivos são
sempre considerados recursos de conhecimento e de animação do espírito e
da curiosidade pela ciência e pela educação. Por isso, cada dia mais os
arquivos se dedicam à produção de exposições, publicações, cursos e eventos.
Essa dimensão é fundamental, mas não deve ser vista como marginal à
cidadania ou epifenômeno da vida. A cultura é uma das dimensões da
cidadania contemporânea, por ser o domínio da livre expressão e de
afirmação de identidades, além de movimentar uma economia peculiar de
proporções significativas. De outra parte, porém, vale notar que o cidadão só
descobre que o arquivo é um equipamento fundamental em sua vida social
quando descobre que ali se encontra o papel que pode lhe garantir um direito
almejado. Essa é uma cena comum ao dia a dia dos arquivos, espaço de dor e
alegria diante da possibilidade de conquistas sociais individuais. Isso diz
respeito tanto a acervos que documentam a história das propriedades quanto
aos registros de terra do século XIX, introduzidos pela Lei de Terras de 1850,
e aos documentos do Instituto Médico Legal, criado na capital federal em
1907. Todos os dias, os arquivos recebem cidadãos em busca de uma certidão
que ateste a informação decisiva para sua demanda legal. No caso dos
documentos das polícias políticas, eles são instrumentos fundamentais para
reparação de danos às vítimas do autoritarismo. Do mesmo modo, é por meio
da gestão documental que os Estados podem atender às demandas de
transparência social, dando conta de suas realizações à sociedade. O sistema
de arquivos é base da superação da opacidade do Estado.2 Nesse caso, os
usos do passado são operados no presente no processo de afirmação da
cidadania. O conhecimento histórico é, assim, companheiro de um processo
social de definição de estruturas sociais dinâmicas.
Interessa sublinhar que diante desse duplo caráter os arquivos são
expressão da democracia e afirmam o campo da cultura e da memória como
correlato à garantia de direitos. Os arquivos exercem papel importante no
campo dos direitos de quarta geração — em especial o direito à cultura e o
direito à memória —, assim como ante os direitos civis de proteção do
cidadão diante do Estado. Exemplificam, também, os novos sentidos do
patrimônio cultural nos dias atuais, que além de relevante pelo conjunto de
bens simbólicos reunidos constitui-se em instrumento da construção da
cidadania.
Não sem razão os arquivos públicos no Ocidente se fortaleceram,
sobretudo depois da II Guerra Mundial e da derrocada dos regimes
totalitários do nazifascismo, marcados pela discriminação étnica e pela
política de homogeneização cultural. Há um vínculo na história
contemporânea entre a informação dos arquivos e a crítica do Estado de
exceção. É no contexto histórico traumático que os arquivos públicos se
consagraram como componente fundamental do estado de direito.
No quadro de estado de direito definem-se, também, as condições de uma
política nacional de arquivos na atualidade nacional em nosso país.3 Ao lado
do direito à cultura, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
estabelece dispositivos destinados a garantir os direitos individuais e, ao
mesmo tempo, resguardar o direito de acesso às informações contidas nos
órgãos públicos. Esta foi a primeira e única Constituição brasileira a
estabelecer parâmetros gerais de uma política nacional de gestão de
documentos da administração pública visando a franquear sua consulta. Ela é
corroborada pelas disposições federais da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de
1991, que trata dos arquivos públicos e privados, estabelecendo o acesso a
documentos, regrando a emissão de certidões e o rito processual do habeas
data, instrumento pelo qual todo cidadão tem o direito de conhecer as
informações que o Estado produz sobre ele. Abrem-se, dessa forma, os
arquivos aos indivíduos e à sociedade.
Desse marco jurídico geral decorrem as condições de uso dos arquivos e
suas fontes, balanceando o interesse geral e o individual, o interesse público
diante do privado. Especificamente neste âmbito, dois princípios
constitucionais basilares necessariamente devem ser sopesados: o direito à
informação e a inviolabilidade da vida privada.4
O direito à informação caracteriza-se como um direito coletivo em
sentido difuso, ou seja, utilizado em favor da comunidade, sendo um
pressuposto da democracia que os cidadãos tenham conhecimento de atos e
atividades da administração para que possam fiscalizar, controlar e participar
do poder público. A esta questão deve também ser aplicada a norma inserida
no inciso XXXIII do artigo 5o da Constituição Federal de 1988, no que tange
ao direito de sigilo de informações relevantes à segurança da sociedade e do
Estado. A Lei de Arquivos (Lei no 8.159/91) dispõe, ainda, no artigo 4o, que
todos têm o direito de receber dos órgãos públicos informações, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Nesse mesmo diapasão, no artigo 5o, inciso X da Lei Maior, encontrase o
preceito constitucional de inviolabilidade da intimidade, da honra, da vida
privada e da imagem das pessoas, que constitui garantia de direito individual.
E também o artigo 23 da Lei no 8.159/91 traz uma ampliação em relação ao
inciso XXXIII do artigo 5o da Carta Magna ao dispor que: “Os documentos
cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado, bem
como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da
vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente
sigilosos”.
Essa combinação de direito à informação e direito à intimidade e da
honra pessoal delimita os usos contemporâneos dos documentos das polícias
políticas. Isso porque se, de um lado, o aparelho repressor produziu
informações sobre os movimentos da sociedade organizada, frequentemente
isso ocorreu em detrimento da devassa da vida privada de indivíduos, além de
sua humilhação. É preciso não esquecer também que a informação produzida
no âmbito da polícia política era comprometida com o objetivo de
caracterizar os inimigos do Estado. Para tanto, usava de todos os
subterfúgios, especialmente denegrindo a imagem pessoal de cada
investigado. De modo geral, proliferam os adjetivos desqualificadores da
personalidade nos papéis da polícia, ao lado de indicação de muitos nomes.
Para desqualificar seus investigados, a polícia abusava de referências a sexo e
dinheiro. A título de ilustração é possível mencionar um documento que
caracterizava o personagem investigado como “laranja” [sic], servindo a
outrem por motivos pecuniários. Esses qualificativos pejorativos serviam
para denegrir a crítica política, transferindo a ideologia para o campo da
moral e dos costumes. Em sua época de produção, essas informações tinham
estatuto de verdade; hoje são exemplos de fabricação de mentiras e, por
vezes, tornam-se tristemente risíveis. Então, diante do quadro de direitos, a
difusão de documentos pode representar ameaça ao direito de inviolabilidade
da intimidade, da honra e da imagem pessoal. Esse direito individual cria
uma restrição de acesso público à informação, o que constitui fonte de
questionamento e desafio permanente aos arquivos e exige uma ordem
jurídica e instrumentos legais capazes de contornar essa restrição.
Contudo, essa combinação de dimensões contraditórias entre direitos
coletivos de sentido difuso e individuais da ordem do privado — que, aliás,
caracteriza frequentemente o patrimônio cultural, como no caso do
tombamento de uma propriedade privada — aponta os limites dos usos do
passado pelo presente. Exemplifica-se como o presente organiza o controle
das formas de acesso aos vestígios do passado.
Nesse caso, a limitação é fruto da construção da democracia, que implica
respeito aos direitos civis de vida e liberdade de expressão e respeito à
pessoa, o que tem consequências que incidem na pesquisa histórica, com
desdobramentos éticos.5
Por outro lado, importa destacar que nesse quadro a exploração de
documentos de arquivo na investigação da história exige uma teoria do
conhecimento que não seja reduzida à prova documental, pois, como já
apontado, muitas informações que se encontram nos arquivos das polícias
políticas não podem ser consideradas verdadeiras. Há uma história dos
preconceitos a ser traçada a partir dessas fontes que exigem tomá-las antes
como registros de representações historicamente situados do que como dados
naturalizados.
A esse respeito, Henry Rousso, o eminente historiador francês do tempo
presente, comenta como é incômodo lembrar que todo documento exige uma
recontextualização para ganhar sentido. Afinal, todos sabemos que para
compreender a lógica, no tempo e no espaço, do ator ou da instituição que
produziu este ou aquele documento é necessário examinar e confrontar séries
documentais. Mas como ele mesmo aponta, com frequência, nos dias de hoje,
ocorre uma mediatização jornalística de certos documentos históricos, que
promovem a “revelação” como que ao acaso ou espontaneamente.
Acompanhando o ponto de vista do historiador francês, podemos indicar que
a consequência mais grave desse quadro é a legitimação de uma
caracterização rasteira da construção do conhecimento, com prejuízos para a
imagem da disciplina. Como diz Rousso (1996:90): “Nenhum documento
jamais falou por si só: este é, sem dúvida, o clichê mais difícil de combater e
o mais difundido, sobretudo no que se refere aos arquivos ditos ‘sensíveis’”.
Assim, além da leitura primária e imediata de um documento levar a erros
graves de interpretação, promove uma epistemologia ultrapassada diante da
evolução da disciplina. A tensão entre uma história que procura se situar em
níveis de elaboração cada vez mais sofisticados, de um lado, e uma opinião
pública que nutre grande expectativa por provas definitivas, de outro, como
aponta o historiador francês, põe em confronto concepções sobre o
conhecimento histórico (Rousso, 1996).
Em outras palavras, o que se caracteriza é um quadro de disputa
epistemológica em que, cabe ressaltar, o historiador não se afirma como o
único sujeito da construção do conhecimento. Entre direito, história e
jornalismo se definem diversas conceituações de documento. O passado é,
assim, compartilhado por diversos campos do saber.
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*-As primeiras partes deste texto reelaboram argumentos de outro trabalho publicado
em Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, ano 22, n. 40, p. 9-16, jan-jun 2009.
Retoma em grande medida trabalho inédito em colaboração com Camila Costa de
Oliveira, a quem o autor agradece.
1-Para uma caracterização do ciclo de vida dos documentos, veja-se, por exemplo,
Bellotto (2007, cap. 1).
2-Para o debate acerca da relação entre opacidade do Estado e gestão da informação,
ver Jardim (1995).
3-Para caracterização e debate sobre a legislação arquivística e a questão do acesso à
informação no Brasil, ver Costa (2003).
4-Para esse debate, ver Costa (1998:189-199).
5-A repercussão desse quadro no campo da pesquisa histórica é salientado em Kushnir
(2006:40-51).
6-Um volume de ensaios de François Bédarida, especificamente os artigos da última
parte da coletânea, permite acompanhar aspectos da reflexão do autor sobre a
responsabilidade social dos historiadores. Cf. Bédarida (2003). Um dos ensaios da
coletânea foi publicado, originalmente, em livro que foi traduzido no Brasil: Bédarida
(1998).
7-Esse mesmo aspecto da institucionalização de memórias é tratado em relação à
importância dos arquivos pessoais na atualidade em Heymann (2009).
8-Para uma caracterização e discussão do pensamento de Ricœur sobre a história, ver
Bona (2010).
9-Para um debate sobre as relações entre ética e conhecimento histórico, ver Knauss
(2008:140-147).
Passado e presente: autores de fortuna variada
RAQUEL GLEZER
O “presentismo”
A história combatente
A outra linha do exercício que propusemos e vamos apresentar sinteticamente
é a recuperação da trajetória de um historiador brasileiro, que também se
destacou em alguns momentos e que, de forma similar, foi esquecido: José
Honório Rodrigues, que nos anos 1960 propunha a produção de obra
historiográfica vinculada ao presente do historiador.
José Honório Rodrigues (1913-1987) é considerado o historiador que
pugnou pela introdução dos estudos sobre a história da historiografia no
Brasil, além da introdução da arquivística atualizada. Escreveu de forma
contínua em suas atividades como historiador, entre 1939 e 1987. Editou
numerosos textos documentais, traduções, correspondência e livros. Seu
campo de pesquisa mais marcado foi o Brasil do século XIX. Não vamos
reproduzir sua vasta bibliografia nem os estudos sobre ele, pois o fizemos
anteriormente, embora sem abordar a totalidade de sua produção, pois nos
centramos em seus 40 anos de atividade como historiador (Glezer, 1976).
Posteriormente, outros autores fizeram análises sobre aspectos diversos
(Marques, 2000; Alves Junior, 2010).
Retomamos aqui algumas de suas propostas quase totalmente esquecidas
e que permitem uma aproximação com os historiadores progressistas: uma
delas, tão atual em nossos dias, com os ainda existentes problemas de
preservação e acesso aos arquivos públicos — a da defesa da pesquisa
pública como objetivo dos acervos documentais.10
Todos os historiadores no Brasil conhecem e reconhecem as dificuldades
de acesso e preservação dos acervos documentais, que vão do simples acesso
a informações sobre o conteúdo — um catálogo e um inventário que, se
existentes, poupariam horas de pesquisa em busca do material desejado —
até a consulta propriamente dita aos documentos. Até nossos dias, o acesso
aos documentos históricos continua sendo quase um golpe de sorte —
encontrar um arquivo aberto para consultas públicas, um catálogo que
informe o conteúdo, o horário de funcionamento para consulta do acervo
documental compatível com o dia a dia do pesquisador não é uma tarefa fácil.
Outras ideias próximas são a de história combatente11 e a de historiador
militante — propõe ele que o historiador esteja sempre ligado aos problemas
e temas de seu momento histórico, e que seja defensor de posições políticas
radicais. Ideias que nos anos 1960 pareciam ter atrativos hoje desaparecidos.
Se antes, nos anos da ditadura, as opções de atuação real foram violentamente
reprimidas, depois da redemocratização, na década de 1980, viram-se
superadas pelas mutações que ocorreram no campo dos estudos históricos.
José Honório Rodrigues também projetou a criação de um instituto de
pesquisa histórica no país dedicado aos estudos de história nacional, mas que
fosse separado das universidades e dos arquivos — tema ainda não explorado
em estudos, mas que lembra a criação da New School for Social Research.
Entre outras tantas questões que podem ser estudadas, há o tema da visita
de Rodrigues aos Estados Unidos, de influência tão citada na segunda e
terceira edições da Teoria da História do Brasil (Rodrigues, 1969), e a
continuidade de relações intelectuais com os autores norte-americanos,
mesmo quando escreve como nacionalista radical. As relações de
historiadores brasileiros nas décadas de 1940 e 1950 com instituições
internacionais — europeias e norte-americanas — é tema muito complexo e
merece estudos aprofundados que fogem ao escopo de nossa apresentação.
Com todas as transformações pelas quais passaram os diversos campos
dos estudos históricos desde o último quartel do século XX — após a quase
hegemonia da grande história econômica e social e a desvalorização da
história política, além da fragmentação do campo por novas fontes, novos
objetos, novos problemas, novas interpretações, nova história social, sem
falar nas viradas linguística e subjetiva, na micro-história, na história do
cotidiano e na história cultural — estamos muito próximos das questões
apontadas pelos historiadores progressistas: como fazer história no momento
em que vivemos —o presente? E como controlar nossos preconceitos,
estereótipos, limitações culturais? Consensualmente, em nossos dias, nos
estudos históricos e historiográficos fazemos “versões de história”.
E novamente o tema da história combatente ressurge no Brasil: quais as
dificuldades em nossas circunstâncias individuais e coletivas para olhar o
passado como objeto de estudo, ultrapassar a memória individual e social,
expor nossos traumas coletivos? Como fazer um estudo do passado sem
vinculação com o presente? Como podem os historiadores interpretar e
compreender o passado sem inserção e vivência no presente?
A realização anual do seminário comprova a existência das muitas formas
de exercício profissional para os historiadores e indica que os debates sobre
as formas de fazer história e historiografia ainda são pertinentes e
necessários, tanto para a compreensão do ofício quanto para que se evite o
esquecimento da trajetória do campo dos estudos históricos, desde sua
formulação como campo de ação humana independente da vontade dos
deuses ou de Deus.
Referências
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intérprete do Brasil. Doutorado em Sociologia. Unesp/Araraquara, 2010.
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1-Na nota de rodapé constam os nomes dos alunos que estudaram o texto, publicado
inicialmente na revista Diogène, da Unesco, em 1960. O Boletim de História da
FNFi/UBr foi um periódico relevante nos anos 1970. Foi estudado na dissertação de
mestrado de Gama (2010).
2-Schaff (1913-2006) publicou esse original em polonês. Constam oito edições no
Dedalus/USP.
3-As edições das obras de 1922, 1915 e 1913 podem ser encontradas on-line no
projeto Gutenberg.
4-Mary Ritter Beard (1859-1958) foi historiadora e arquivista. Colaborou com o
esposo em algumas obras, mas é reconhecida como precursora dos estudos feministas.
Obras mais citadas: On Understanding Women, de 1931; editou America Through
Women’s Eyes, em 1933, e Woman As Force In History: A Study in Traditions and
Realities, em 1946. Com Charles A. Beard publicou The Rise of American
Civilization, em 1927. Estudos sobre ela: Ann J. Lane (ed.). Mary Ritter Beard: A
Sourcebook. Boston: First Northeastern University Press, 1988; Nancy F. Cott (ed.). A
Woman Making History: Mary Ritter Beard Through Her Letters. New Haven,
Connecticut: Yale University Press, 1991; Ann J. Lane (ed.). Making Women’s
History: The Essential Mary Ritter Beard. Nova York: The Feminist Press at The City
University of New York, 2000; Julie Des Jardins, Women and the historical enterprise
in America: gender, race, and the politics of memory, 1880-1945, Chapel Hill, NC:
Univ. of North Carolina Press, 2003; Dubois, Ellen Carol; Lynn Dumenil. Through
Women’s Eyes: An American History with Documents. Boston: Bedford/St. Martin’s,
2005. Cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Ritter_Beard. Documentos pessoais:
Beard, Mary Ritter, 1876-1958. Papers, 1935-1958: A Finding Aid (A-9) em
<http://oasis.lib.harvard.edu/oasis/deliver/deepLink?
_collection=oasis&uniqueId=sch00440>.
5-A New School for Social Research (http://www.newschool.edu/) foi criada em 1919
por pensadores progressistas, sendo dedicada à liberdade de pensamento crítico e ao
engajamento cívico. Em 1933 recebeu intelectuais europeus perseguidos pelo nazismo
e se tornou a Universidade no Exílio. É hoje um centro de estudos interdisciplinares
em pósgraduação para a formação de quadros intelectuais. Ver, especialmente,
Katznelson (2008).
6-Para a questão do anti-intelectualismo norte-americano, ver, entre outros, Hofstadter
(s.d.).
7-Entre outros: Borning (1962); Hofstadter (1968); Nore (1983); Novick (1988);
Barrow (2000).
8-A recuperação dos autores considerados progressistas pode ser vista na coletânea de
textos de autores da corrente em Atto e Pestritto (2008).
9-A edição italiana é de 1917. Benedetto Croce (1866-1952).
10-Ver A pesquisa histórica no Brasil (1982).
11-Ver Rodrigues (1963, 1965, 1966, 1975, 1982, 1985).
Walter Benjamin: contratempo e história
OLGÁRIA CHAIN FÉRES MATOS
nunca houve uma época que não se sentisse “moderna” no sentido excêntrico, e
que não tivesse o sentimento de se encontrar à beira de um abismo. A consciência
desesperadamente lúcida de estar em meio a uma crise decisiva é crônica na
história da humanidade. Cada época se sente irremediavelmente nova. O
“moderno”, porém, é tão variado como variados aspectos de um mesmo
caleidoscópio [2006:587].7
Benjamin não exclui uma relação entre destino e caráter, mas ela não é o
resultado da “falta trágica” que desencadearia um mecanismo incontrolável;
inscreve-se na natureza porque houve a queda da criatura em um estado de
submissão a forças fatalizadoras.
Benjamin estabelece analogias entre o século XVII e o século XIX, o
retorno do mito no interior da modernidade barroca ou capitalista.12 A
recaída da história no mito significa que a história encontra-se submetida à
necessidade natural, representante do destino. O herói trágico, ao contrário,
libera-se, por sua decisão, do arbitrário do destino, do movimento natural que
conduz inexoravelmente toda criatura para a morte: “o centro de gravidade
para o qual se dirige o movimento do destino é a morte. A morte não como
castigo, mas como expiação: como expressão do fato que a vida que se
tornou culpada cai sob a lei da vida natural”. Eis por que o sentido da morte
no Schicksalsdrama (drama de destino) é inteiramente diverso daquela
vitoriosa do herói trágico. A história natural não é a história da natureza, mas
da natureza morta. No Drama barroco, não a natureza do homem, mas a
natureza das coisas é o resultado do drama histórico. Em que a intenção
correspondente falta, toda a matéria histórica se desenrolará em uma
sequência interminável de cenas na tentativa impotente de apresentar a
mobilidade da história em vez da natureza como forma, como fatum.
É este caráter factual, terminado, coisificado, dos acontecimentos
históricos que se apresenta para Benjamin como destino; “no destino reside a
resistência latente contra o fluxo interminável do devir histórico. Onde há
destino, um pedaço da história se tornou natureza”.
Nas Passagens, a história natural se associa ao tempo mítico, o do
“eterno retorno”: “a essência do acontecimento mítico é o retorno. Nele está
inscrita, como figura secreta, a inutilidade gravada na testa de alguns heróis
dos infernos (Tântalo, Sísifo ou as Danaides) […].[Ela é ] a eternidade das
penas infernais […], o [eterno retorno] de um ciclo sideral”. O trabalho
esvaziado de sentido é vazio porque sem experiência e irrecuperável para a
memória histórica, o que converte acontecimentos em mito é a volta do
sempre igual. Ausência de experiência e mito se reúnem na noção de empatia,
a resignação melancólica diante do horror dominante que conduz ao
desespero.
Para romper com a fatalidade do continuum histórico e “transformar a
ameaça do futuro em um agora preenchido”13 —o “momento decisivo” da
felicidade individual ou redenção histórica — é preciso encontrar intervalos
na ordem das razões, desvios que incorporam o “acaso objetivo” do
surrealismo e as derivas que resultam do caminho na contramão da história e
do método.14 Esse instante de perigo são experiências de limiar entre
consciente e inconsciente, origem e reminiscência, intencionalidade e
contemplação:
Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma casa na qual
se tem certeza de encontrar tudo sempre do mesmo jeito. Meu coração disparava,
eu prendia a respiração. Aqui ficava encerrado num mundo material que ia se
tornando fantasticamente nítido, que se aproxima em silêncio. Só assim é que se
deve perceber o que é a corda e a madeira para aquele que vai ser enforcado. A
criança que se esconde atrás do reposteiro se transforma em algo flutuante e
branco, em um fantasma […]. Atrás de uma porta a criança é a própria porta; é
como se a tivesse vestido com um disfarce pesado e, como um feiticeiro, vai
enfeitiçar todos os que entrarem desavisadamente. […] [Mas] quem me
descobrisse era capaz de me petrificar como um ídolo […], de me encantar por
toda a vida como uma pesada porta. Por isso expulsava com um grito forte o
demônio que assim me transformava, quando me agarrava àquele que estava me
procurando [1991:91].
o ser passado, não ser mais, é o que trabalha com mais paixão nas coisas. É a isso
que o historiador confia o seu assunto. Prende-se a essa força e reconhece as
coisas como são no momento do não mais ser. Tais monumentos de um não mais
ser são as passagens. E a força que nelas trabalha é a dialética [2006:509].26
quando eu era pequeno não se podia conceber um ano sem o Dia de Sedan [festa
comemorativa da derrota de Napoleão III na guerra franco-prussiana]… Ninguém
deixara de me explicar a origem dos adornos da Coluna da Vitória. Não entendera
porém o significado exato dos canhões que os compunham […]. O mesmo ocorria
com a obra luxuosa que me haviam dado, a Crônica ilustrada [com sua capa de
ouro prensado, livro e ouro que me oprimiam]; daquela guerra […]; eu conhecia
em pormenores os planos de suas batalhas. […] Contudo, reluzia ainda de um
modo menos tolerável o ouro do ciclo de afrescos que revestia a parte inferior da
Coluna da Vitória. Nunca pus os pés nesses espaços […] pois temia encontrar lá
descrições do tipo daquelas com que, nunca sem terror, me deparara nas gravuras
de Doré para o “Inferno” de Dante. Os heróis, cujas façanhas ali dormitavam, me
pareciam no íntimo tão depravados como as hordas que, fustigadas por tufões,
escarniçadas em troncos sanguinolentos e cobertas por geleiras, suspiravam na
cratera escura. Desse modo, essa galeria simbolizava o inferno, verdadeira
antítese do círculo de clemência que, no alto, rodeava a esplendorosa vitória […].
O eterno domingo estava a sua volta. Ou seria um eterno Dia de Sedan? [1994:77-
78]27
esses pioneiros da Wehrmacht quase levam a crer que o uniforme é para eles um
objetivo supremo […]. “Os mortos de guerra”, dizem-nos os autores, “ao
tombarem passaram de uma realidade imperfeita a uma realidade perfeita, da
Alemanha temporal à Alemanha eterna.” […] Com que facilidade os autores
adquiriram o “firme sentimento de imortalidade”, obtiveram a certeza de que as
“abominações da última guerra foram transformadas em algo grandioso e
terrível”. […] essa cruel concepção do mundo, da morte universal, no idealismo
alemão, alivia o horror com a ideia de que atrás das nuvens [das explosões, dos
gases tóxicos, dos lança-chamas] existe um céu estrelado [1996:62; 66-68].
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