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Tempo presente &

usos do passado
Tempo presente &
usos do passado

FLÁVIA VARELLA
HELENA MIRANDA MOLLO
MATEUS HENRIQUE DE FARIA PEREIRA
SÉRGIO DA MATA
organizadores
Copyright © 2012 Flávia Florentino Varella, Helena Miranda Mollo, Mateus
Henrique de Faria Pereira e Sérgio da Mata

Direitos desta edição reservados à


EDITORA FGV
Rua Jornalista Orlando Dantas, 37
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1a edição — 2012

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS | Natalie Lima

REVISÃO | Eduardo Carneiro Monteiro e Sandro Gomes dos Santos

CAPA E DIAGRAMAÇÃO | Santa Fé ag.

IMAGEM DA CAPA | Istock Photo

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca


Mario Henrique Simonsen/FGV

Tempo presente & usos do passado / Flávia Florentino Varella


(Org.)…[et al.]. — Rio de Janeiro : Editora FGV, 2012.
196 p.
Reúne os trabalhos apresentados durante o IV Seminário
Nacional de Históriada Historiografia, realizado na cidade de
Mariana, em 2010, pelo Núcleo de Estudos de História da
Historiografia e Modernidade (NEHM) da Universidade Federal de
Ouro Preto (Ufop).

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Capes,


entidade do governo brasileiro voltada para a formação de recursos
humanos.
Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-225-1269-0

1. Historiografia. I. Varella, Flávia Florentino. II. Fundação


Getulio Vargas.

CDD — 907.2
Sumário

Nota dos organizadores

Introdução: Transformações da experiência do tempo e pluralização do


presente
MATEUS HENRIQUE DE FARIA PEREIRA | SÉRGIO DA MATA

Tempo presente e usos do passado


TEMÍSTOCLES CEZAR

As sombras brancas: trauma, esquecimento e usos do passado


DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

História que temos vivido


CARLOS FICO

Demandas sociais e história do tempo presente


MARIETA DE MORAES FERREIRA

O passado que não passa: lugares históricos dos testemunhos


IRENE CARDOSO

Usos do passado e história do tempo presente: arquivos da repressão e


conhecimento histórico
PAULO KNAUSS

Passado e presente: autores de fortuna variada


RAQUEL GLEZER

Walter Benjamin: contratempo e história


OLGÁRIA CHAIN FÉRES MA TOS

Sobre os autores
Nota dos organizadores

Este livro reúne os trabalhos apresentados durante o IV Seminário Nacional


de História da Historiografia, realizado na cidade de Mariana, em 2010, pelo
Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade (NEHM) da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
Os autores foram convidados a elaborar suas reflexões a partir do
seguinte texto: “A condição do tempo presente, indagada desde o mundo
antigo, e as urgências da contemporaneidade, particularmente sensíveis a
partir da segunda metade do século XX, colocaram para os historiadores
questões cruciais que dizem respeito à prática de seu ofício. Temas
importantes do debate atual, tais como memória, patrimônio, esquecimento,
identidade, tradição, justiça, testemunho, presentismo etc. incentivam os
historiadores a discutir a partir de novos horizontes e de diferentes
perspectivas os limites e possibilidades do saber histórico. Marcada pelo
signo da aceleração, a cultura histórica moderna traz para o primeiro plano,
como uma agenda investigativa privilegiada para a história da historiografia,
a questão dos ‘usos do passado’, encarada como forma através da qual o
próprio tempo presente procura situar-se no tempo. Nessa direção, o
seminário pretende contribuir para a reflexão em curso, a qual procura
repensar o corte entre o passado e o presente, a fim de recolocar a questão da
função social da história, bem como dos seus usos e abusos. Dessa maneira,
instigam-se reflexões que procurem pensar sobre as (im)possibilidades de
articulações teóricas e historiográficas entre contemporâneo e extemporâneo;
atual e inatual; proximidade e distanciamento; instante e presente; memória e
esquecimento; e, por fim, passado e presente”. Acreditamos que o livro
demonstra a qualidade e a maturidade do atual estado da reflexão sobre o
tema proposto.
Agradecemos aos autores que confiaram seus textos para este
empreendimento, aos colegas do Núcleo, aos colegas da Sociedade Brasileira
de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), aos demais colaboradores
para a realização do seminário, a todos os alunos que participaram da
organização, em especial Luna Halabi e Camila Braga, ao Núcleo de Estudos
Aplicados e Sociopolíticos Comparados (Neaspoc-Ufop), à Fapemig, à Capes
e ao CNPq pelo apoio necessário à realização do seminário.

Mariana, janeiro de 2012


Introdução
Transformações da experiência do tempo e pluralização do
presente
MATEUS HENRIQUE DE FARIA PEREIRA | SÉRGIO DA MATA

Creio que estamos diante de uma das formas, e talvez se deva dizer, um dos
hábitos mais nocivos do pensamento contemporâneo, eu diria inclusive do
pensamento moderno ou, em todo caso, do pensamento pós-hegeliano: a análise
do momento presente como se este fosse precisamente, na história, o momento da
ruptura, ou da realização, ou da aurora que retorna, e assim por diante. A
solenidade com que toda pessoa que mantém um discurso filosófico reflete sobre
seu próprio tempo me parece um estigma. Digo isso, sobretudo, porque eu mesmo
procedi assim e porque o encontramos constantemente em alguém como
Nietzsche […]. Creio que devemos ter a modéstia de dizer para nós mesmos, por
um lado, que o tempo em que vivemos não é este tempo único, fundamental ou
que irrompe na história, a partir do qual tudo se acaba ou tudo recomeça.
Foucault [1998:449]

A última década do século passado e a primeira do século XXI foram


marcadas por uma obsessão: as reflexões sobre a temporalidade. Fomos
seduzidos não só pela memória, mas também pela suposta “crise” da
temporalidade moderna. Foram tempos de pós-tudo e de muitos fins,
anunciados ou reais. A partir disso, este livro pretende refletir sobre uma
vasta gama de problemas que se articula com o tempo presente, ampliando os
quadros de uma tradição historiográfica para a qual o “presente” abarcaria a
história da ditadura militar (1964-1985). Esse passado que não passa é ainda
presente. Mas seria ele atual, contemporâneo?
Há algum tipo de descontinuidade em nossa consciência, percepção e
experiência contemporâneas do tempo? Como o conhecimento histórico pode
contribuir para a reflexão sobre a complexa relação entre
passado/presente/futuro no século XXI? Um dos desafios é pensar as
possibilidades e os limites da “transposição” de diagnósticos europeus para a
realidade brasileira. Menos por uma disposição romântica qualquer do que
pela simples imposição dos fatos, perguntarmo-nos até que ponto não apenas
épocas, “regimes”, mas também sociedades distintas, mesmo aquelas
interligadas do ponto de vista civilizacional, relacionam-se da mesma forma
com o tempo. Enquanto escrevemos, a Europa enfrenta a sua mais grave crise
do pós-guerra. O Velho Mundo titubeia, mas a Primavera Árabe e a criação
da Comissão da Verdade para a investigação dos crimes cometidos durante a
ditadura militar brasileira dão prova de que alguns dos ideais e conceitos
produzidos há séculos pela Europa continuam vivos, podendo ser, ao mesmo
tempo, descompassados e ressignificados.

I
Um diagnóstico do tempo presente: tarefa difícil, quanto mais para o
historiador! Desde Santo Agostinho os filósofos não avançaram muito a
respeito do que vem a ser tal coisa, o “presente”. Por que justamente os
historiadores parecem cada vez mais interessados por ele? Se o presente
torna-se um problema isso se deve, em grande medida, ao fato de que se
tornaram cada vez mais estreitas as chances de se construir um discurso
homogêneo a seu respeito.
Definir o presente como “época”? Os marcos canônicos (via de regra de
natureza política) variam, sabidamente, ao gosto das experiências nacionais.
Na França, na península Ibérica e no Brasil, o marco que define o início da
história contemporânea é a Revolução Francesa. Na Alemanha e na
Inglaterra, o historiador que se dedica à Zeitgeschichte ou à contemporary
history trabalha preferencialmente com eventos posteriores à II Guerra
Mundial. Contemporânea, na Rússia, é a história posterior a 1918. Na Itália,
por sua vez, trata-se do período que advém após o Congresso de Viena. A
impossibilidade de se articular uma linguagem comum pode ser atestada
ainda com um exemplo recente. Em princípios de novembro de 2011,
realizou-se na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) um
simpósio dedicado à história do “tempo presente”, período que, segundo a
página do congresso na internet, compreenderia os “fenômenos históricos
transcorridos ao longo do século XX e início do século XXI”. Temos uma
ideia vaga do que seria o contemporâneo, mas não do momento aproximado
que demarcaria seu início. Como essas diferenças têm um evidente substrato
cultural, nunca chegaram a ser objeto de disputa entre os historiadores, dado
o alto grau de arbitrariedade que preside a escolha de quaisquer marcos
cronológicos. Embora o debate atual sobre o tempo presente mostre que tal
resignação tenha seus limites, também aí reina a desordem. O que implica a
busca de outras soluções entre os estudiosos do chamado “tempo presente”.1
Parece haver alguma relação intrínseca entre o advento de uma nova
centúria e a redescoberta da temática do tempo. Tal como hoje, em princípios
do século XX a intelectualidade europeia dedicou especial atenção ao tempo
e inclusive à possibilidade de aceleração do tempo. Os físicos tiveram,
naquela ocasião, um papel tão ou mais importante que o dos filósofos e
historiadores (a ciência não fora levada ainda ao banco dos réus). Entre 1902
e 1905, Henri Poincaré e Albert Einstein estabeleceram os fundamentos da
teoria da relatividade restrita. O tempo, ao qual os matemáticos e físicos se
referiam com a bela expressão “a quarta dimensão”, tornara-se agora uma
grandeza relativa. Naquele mesmo momento, Edmund Husserl dava em
Göttingen suas primeiras preleções sobre a fenomenologia da consciência
interna de tempo. Finalmente, em 1915, Einstein apresentou sua teoria da
relatividade geral. O impacto gerado por esta revolução entre os filósofos
pode ser facilmente constatado na conferência de Heidegger de 1915 sobre o
tempo na ciência histórica, na qual remete a escritos de Max Planck e
inclusive ao famoso artigo de Einstein sobre a eletrodinâmica dos corpos em
movimento (Heidegger, 2009:13-28). É difícil imaginar que as reflexões de
Georg Simmel sobre “o problema do tempo histórico”, feitas em 1916, não
tenham recebido qualquer influxo de tais descobertas (Simmel, 2011:9-23).2
O tempo estava na ordem do dia. H. G. Wells havia publicado há pouco
seu conhecido livro A máquina do tempo (1895). No conto O novo
acelerador (1901), Wells narra a história do professor Gibberne, inventor de
uma droga capaz de tornar excepcionalmente rápido aquele que a ingerisse.
Depois de testar o medicamento, ele se dá conta de que tão maravilhoso
experimento trazia consigo um irritante efeito colateral. Para quem ingeria o
acelerador, tudo à sua volta parecia “estar se movendo milhares de vezes
mais lentamente”.3 Depois de uma surreal experiência pelos arredores da casa
de Gibberne, em que o cientista e um amigo exercitam sua curiosidade em
meio a pessoas congeladas num eterno slow-motion, o narrador afirma: “É o
início de nossa fuga da roupagem do tempo de que fala Carlyle”. Oito anos
depois da publicação do conto de Wells, o manifesto futurista de Marinetti
fazia o elogio do automóvel e da “beleza da velocidade”. Em 1913, aparece o
primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de Proust.
Embora timidamente, as ciências humanas deram resposta a tais
estímulos. Sob clara influência dos escritos de Bergson, Henri Hubert
inaugura a sociologia do tempo com um “Estudo sumário da representação do
tempo na religião e na magia”, de 1905 (Pinheiro Filho, 2005:141-161). E
quanto à história? Caberia a um jornalista e historiador norte-americano
elaborar, em 1904, o primeiro esboço de uma “lei da aceleração”. Décadas
antes de Koselleck, Henry Adams constatava uma “estupenda aceleração
após 1800”, determinada, acreditava ele, pelo avanço inexorável da ciência.
“A complexidade”, afirmava Adams na ocasião, “se expandiu por horizontes
imensos” (Adams, 1954:247-258).
Somente a partir de meados da década de 1970, a intuição de Henry
Adams sobre a “lei da aceleração” seria revisitada. Para tanto parecem ter
contribuído as recentes revoltas estudantis ao redor do globo, a apocalíptica
frankfurtiana a respeito do “capitalismo tardio” e a redescoberta das
categorias “utopia” e “esperança” nos meios intelectuais progressistas
(Baczko, 1978). No caso da Alemanha, um fator adicional e, tudo leva a crer,
decisivo: a irrupção do terrorismo de extrema esquerda.
Há de fato uma aceleração do tempo? Numa conferência que se tornou
famosa, o teólogo e historiador Ernst Benz defendeu a tese de que na origem
do conceito de aceleração está a ideia cristã de que o tempo avança
inelutavelmente para um “fim”. As teorias revolucionárias modernas e
mesmo o terrorismo político não passariam de versões laicizadas daquela
concepção. Para Benz, pode-se dizer, a aceleração é a soteriologia
secularizada.4 Koselleck reconheceu o caráter originalmente religioso do
fenômeno, mas ressaltou a importância da Revolução Industrial e da
Revolução Francesa como condicionantes macro-históricos decisivos. A
percepção de uma aceleração do tempo teria se alimentado tanto da
expectativa salvífica quanto da experiência produzida por épocas de crise
(como mostrara Burckhardt em suas Weltgeschichtliche Betrachtungen) e da
maior dinâmica civilizacional das sociedades industriais (Koselleck,
2003:150-176).
Vimos que no início do século XX as concepções sobre o tempo eram
viradas ao avesso. No entanto, o presente continuava uma noção obscura. A
imprecisão crônica do termo “presente” sugere que ele não se situa, talvez
nem mesmo possa se situar, no âmbito do conceituável. Certo é que,
indiferente a tais dificuldades, o mundo lá fora segue seu curso. Com isso se
quer dizer que algum tipo de distinção entre passado, presente e futuro
sempre é intersubjetivamente construído. No mundo da vida — onde reina a
convenção —o problema sequer se apresenta, ou se coloca apenas em termos
de uma racionalidade prática. Num plano distinto, mas nem tanto, a
temporalidade aos poucos se torna alvo de disputa entre disciplinas
acadêmicas. Diferentes “fatias” do tempo são apropriadas por diferentes
ciências. Para além de quaisquer esforços de delimitação mútua, o que rege o
âmbito de atuação de historiadores de um lado e cientistas sociais do outro
também são as convenções. O fato de o passado distante ter se tornado, ao
longo dos últimos 150 anos, o único campo “legítimo” de atuação do
historiador não pode ser reconstruído sem que levemos em conta o advento
de outros atores na arena do conhecimento histórico-social. Foram esses
atores que, a bem dizer, expropriaram o historiador da sua relação com o
presente enquanto objeto —o jornalista e o sociólogo.5
II
Num livro que se ocupa com a história do tempo presente, é natural, porém,
que não possamos nos dar por satisfeitos com meras convenções, sejam as da
linguagem cotidiana, sejam as da academia. Se há algum caminho capaz de
lançar luz sobre a questão com que nos ocupamos aqui, certamente é o que
conduz à obra de Henri Bergson. Devemos a ele a distinção pioneira entre
“tempo” e “duração”, e, sobretudo, uma solução sofisticada para o problema
do “presente”. Em sua fenomenologia da consciência de tempo interior, e que
se aproxima de Bergson mais do que talvez estivesse disposto a admitir,
Husserl não dá maior atenção à questão. O “presente” é ali, rigorosamente
falando, um ponto-cego deslocando-se ininterruptamente entre as retenções
primárias e secundárias, de um lado, e as protensões antecipadoras, de outro
(Husserl, 1959).
Bergson reconheceu a impossibilidade de se chegar a uma definição
substantiva do “presente”. Trata-se, diz ele, de “uma pura abstração, uma
visão do espírito”, sem qualquer “existência real”. O passo decisivo foi dado
em 1911, quando ele chega à conclusão que:

A distinção que fazemos entre o nosso presente e o nosso passado é […] se não
arbitrária, pelo menos relativa à extensão do campo que nossa atenção à vida
pode abarcar. Numa palavra, nosso presente cai no passado quando deixamos de
lhe atribuir um interesse atual. Ocorre com o presente dos indivíduos o mesmo
que com o das nações: um acontecimento pertence ao passado e entra para a
história quando não interessa mais diretamente à política do dia e pode ser
negligenciado […]. Enquanto sua ação se fizer sentir, ele adere à vida da nação e
permanece presente para esta [Bergson, 2006:174-175, grifos nossos].

Eventos já ocorridos são um “presente” para nós pelo tempo em que


nosso interesse por eles estiver aceso. Para empregar o jargão
fenomenológico: enquanto eles se mantêm no foco do nosso fluxo de
consciência. Disso sabia, a seu modo, o mestre holandês Johan Huizinga.
Num curto e brilhante artigo de 1936, intitulado “Como o presente se torna
passado?”, ele chegava à mesma conclusão que Bergson.

Eu posso perceber minha véspera como história e minha infância como presente.
A fronteira entre história e presente radica no olhar do momento, ou, melhor
dizendo, não há fronteira alguma. Não existe agora, só há passado e futuro. […] O
presente, porém, só recebe sua essência histórica, e que é única, no processo de
constituição (Formgebung) por intermédio do observador [Huizinga, 1954:121].
Desenvolvendo um pouco mais o mesmo argumento, o filósofo Hermann
Lübbe entende o “presente” como “aquele conjunto de experiências que não
se tornaram ainda uma alteridade para nós”. Somente quando se produz um
“estranhamento” em relação a dados bens de cultura de que dispusemos um
dia, ou ainda a vivências pessoais ou coletivas, é que tais coisas se tornam
“passado” (Lübbe, 2003:402). O simples fato de algo ser pretérito não basta
para que o consideremos “passado”. Haverá presente enquanto estiverem
ativos determinados interesses de presentificação do passado
(Vergangenheitsvergegenwärtigungsinteressen) (Lübbe, 2004:134).
Ninguém há de negar que essa forma de compreender o “presente” é
bastante plausível. Mas o que ela não é capaz de garantir, por si só, é um
consenso no que se refere aos diagnósticos quanto ao presente. Ao afirmar
que vivemos há algum tempo num “lento presente”, com o argumento de que
nossos ícones intelectuais são basicamente os mesmos de há três ou quatro
décadas, Hans Ulrich Gumbrecht confirma a perspectiva exposta acima. Isso
nos conduz à questão de saber se a nossa época estaria marcada por uma
aceleração ou, ao contrário, se teríamos deixado para trás a lógica da
aceleração e do tempo histórico. Gumbrecht sustenta que o presente “se dilata
cada vez mais” (Gumbrecht, 2010:45-49). Para Lübbe, porém, o que estamos
a vivenciar é um “encolhimento do presente” (Lübbe, 2009:159-178).
Vejamos os argumentos mais de perto.

III
Ainda lemos Foucault, Derrida e Bourdieu, constata Gumbrecht. A
“sensação”, diz ele, é a de que “as estruturas centrais de nosso mundo se
transformam agora mais lentamente do que até pouco tempo”. Estaríamos
diante do esgotamento do “cronótopo moderno”. Desapareceram as
teleologias, a aceleração interrompeu-se. Gumbrecht lança mão de uma
quantidade surpreendentemente pequena de evidências em apoio à sua tese. A
tentação e o fascínio produzidos por prognósticos desse tipo já haviam
marcado autores como Joachim Ritter, Arnold Gehlen e Francis Fukuyama.
Será possível subscrever a ideia de que vivemos hoje um tempo “mais lento”
depois da crise que ameaçou pôr abaixo a economia mundial, depois da
Primavera Árabe e da crise do euro? Tais eventos são “história” ou tratar-se-á
de mera espuma, destinada a desfazer-se em breve? Tudo depende do campo
da vida social sobre o qual centramos nosso interesse, e ainda de qual
sociedade, e até de qual estamento se está a falar. A aceleração não há de
afetar tudo e a todos com a mesma intensidade, e o mesmo se pode dizer das
eventuais desacelerações. Caso não queira se tornar refém de ilusões, o olhar
deve tornar-se mais dialético.
Mas também mais rigoroso. Os fatos, dizia o próprio Koselleck, têm
“poder de veto”. Ele tinha dúvidas a respeito das possibilidades de se
evidenciar empiricamente a aceleração (Lübbe, 2003:vi).6 Poder-se-ia falar
de uma experiência de aceleração, mas não de uma aceleração da história
(Koselleck, 2003:167). Talvez se possa dizer que desta dúvida nasceu a
analítica do tempo presente de Lübbe.
A fim de verificar os efeitos socioculturais concretos da aceleração,
Lübbe empregou soluções no mínimo originais para um filósofo. Uma das
primeiras foi investigar o processo de proliferação exponencial dos museus
nas últimas décadas. Para ele, o avanço da musealização e a preocupação
crescente com o patrimônio são formas de compensação ante a nossa
acelerada dinâmica civilizacional. Nessas condições, o presente torna-se cada
vez mais curto. Cresce na mesma proporção, portanto, a quantidade de
“relíquias” a serem preservadas. Dito com concisão: “ao progresso pertence,
de forma estrutural, a musealização daquilo que o progresso deixou para trás”
(Lübbe, 1977:319-320).7 O prazo de validade de teorias e inovações
científicas, especialmente entre as ciências naturais, também diminui num
ritmo espantoso. “Nunca como hoje”, constata Lübbe, “foi tão grande a
quantidade de informação ultrapassada disponível em nossas bibliotecas.” De
fato, é o que demonstram os inúmeros estudos recentes sobre o período
necessário para que dobre a literatura científica referente a um determinado
campo de investigação (“taxa de duplicação”). Segundo Urbizagastegui, em
princípios da década de 1970 estimava-se que “a literatura produzida na
maioria dos campos científicos continuava a crescer exponencialmente, com
taxa de duplicação de aproximadamente 10 anos” (Urbizagastegui,
2009:113).
Estreitamente relacionado ao conceito de encolhimento do presente
(Gegenwartsschrumpfung) está o de “precepção”, que diz respeito ao
problema dos arquivos, isto é, daquelas instituições encarregadas de preservar
tudo aquilo que tenha “um presente duradouro como meios de presentificação
do passado”. O aumento gigantesco do fluxo de informação produzido pelas
grandes corporações públicas e privadas exige a aplicação de critérios cada
vez mais rigorosos pelos arquivistas.8 Na década de 1990 já se previa que a
taxa de seleção do que é digno de ser preservado (“cassação”) cairia de 10%
para 5%.
Sendo esta a nossa situação civilizacional, como explicar que o homem
não se perca pela simples impossibilidade de orientar-se num mundo em
rápida mutação? (Lübbe, 1983:131-154) Esse ponto nos leva a outro conceito
proposto por Lübbe, o de que a aceleração é marcada por uma “ilaminaridade
evolucionária”. Inspirado na física, o conceito mostra que processos de
transformação jamais ocorrem numa velocidade homogênea. Tal como no
leito de um rio, a velocidade da mudança depende do “lugar” que algo ou
alguém ocupa. Lübbe toma como índice o fenômeno das vanguardas, para
mostrar seu caráter autocontraditório: quanto mais vanguardismo, tanto maior
a quantidade do que se torna “velho”, as vanguardas de ontem inclusive. Ao
se insurgir contra a instituição do museu, Marinetti na verdade contribuiu
para aumentar a quantidade daquilo que ele próprio chamava de “matadouros
de pintores e escultores”. Mais ainda: o culto do novo anda a par-e-passo com
a valorização crescente dos clássicos, ou seja, daquelas realizações culturais
“resistentes ao envelhecimento”.
Como traduzir movimentos aparentemente tão contraditórios numa visão
coerente do “presente”? Apoiado no conceito de “compensação” de seu
mestre Joachim Ritter (Marquard, 2000:11-29), Lübbe demonstra que a
aceleração civilizacional não pode deixar de ocorrer sem suscitar a sua
antítese: processos de desaceleração (Verlangsamungsvorgänge) e todo tipo
de zona de exclusão como o são o clássico, a tradição, o rito, o trauma.9 Por
que ainda lemos Aristóteles ou Gilberto Freyre, por que ainda ouvimos Bach
ou Debussy, por que ainda nos deleitamos com Chaplin ou Bergman? O
“clássico” não é apenas a expressão de um passado “que não quer passar”, ele
é também a prova (certamente a mais sublime) de que nossa capacidade de
subjetivação do “novo” é limitada. Esta limitação especificamente
antropológica explica por que, depois de atingido um determinado ponto, já
não somos capazes de acompanhar ou responder à quantidade de inovações
com que somos bombardeados diariamente. Simmel, como se sabe, viu nisso
“a tragédia da cultura”.

IV
E como os historiadores têm se posicionado diante desse debate? É ainda no
interior de perspectivas unilaterais que a posição de François Hartog sobre a
questão do “presentismo” e dos “regimes de historicidade” pode ser lida e
tomada como “um caso” para se pensar a inserção historiográfica no debate
aludido. A reflexão já é bastante conhecida no Brasil.10 Assim, nos deteremos
aqui, praticamente, no prefácio à edição francesa de 2012 do livro Regimes de
historicidade. Presentismo e experiências do tempo, denominado
“Presentismo pleno ou transitório (par défaut)”. Nesse texto, o autor inicia
sua reflexão procurando estabelecer algum tipo de relação entre a crise do
tempo que ele já indicava na primeira edição do livro de 2003 com a crise,
inicialmente financeira, em que a Europa está mergulhada desde 2008, sem
condições, na opinião do autor, de ver para além ou aquém dela.
A grande transformação, o presentismo, é definida, da mesma forma que
já havia sido ao longo da primeira edição, como um mundo em que o
presente se impõe como o único horizonte, um presente onipotente e
hipertrofiado. O autor pergunta, por exemplo, se a atual especulação
financeira, resultado também da plasticidade (transformação e adaptação) do
capitalismo, não seria um exemplo maior do presentismo, pois a
“imediaticidade” do tempo dos mercados não pode se ajustar aos tempos da
economia, da política, dos políticos (cada vez mais presos aos calendários
eleitorais). Eis aí, segundo Hartog, mais uma demonstração de nossa
incapacidade coletiva de escapar do “presente único: este da tirania do
instante e do marasmo de um presente perpétuo” (Hartog, 2012:5-9). A
reflexão do autor é uma tentativa de demonstrar uma suposta especificidade
na nossa atual forma de articular passado, presente e futuro, por meio de uma
temporalização do tempo (Hartog, 2010-a:9-30).11
Vivemos entre crises substituídas a cada novo escândalo. O presentismo é
o tempo em que não há nada além do evento. Como exemplo, o autor afirma
que a partir do 11 de setembro de 2001 a administração americana decidiu
fundar um ponto zero da história mundial. A guerra contra o terrorismo seria
um presente novo e único (Sabemos agora, em 2012, quanto esta tentativa
fracassou. Vale para o argumento a intenção? Talvez pela razão de a referida
guerra já fazer parte de um “passado distante”?). O atentado, para Hartog,
põe em evidência a lógica do evento contemporâneo — ele se dá a ver
enquanto acontece, se historiza e “traz em si mesmo sua própria
comemoração: sob os olhos das câmeras. E, nesse sentido, ele é
absolutamente presentista” (Hartog, 2003:116 e 156).12 Afinal, as câmeras
filmando o segundo avião criaram as condições para tal; de forma
semelhante, o mesmo teria ocorrido em 1968 e 1989.
Diante desse quadro restaria ao historiador oferecer às sociedades um de
seus atributos: o olhar distanciado. O instrumental fornecido pela noção de
“regimes de historicidade” ajuda a criar a distância necessária para ver
melhor o próximo: “solidários, a hipótese (o presentismo) e o instrumento (o
regime de historicidade) se complementam mutualmente”. O regime de
historicidade é entendido como articulação entre passado, presente e futuro
ou uma constituição mista das três categorias — com um dos elementos
dominantes13 — ao longo da experiência humana do tempo. Não se trata de
uma realidade dada, é uma categoria, um tipo-ideal, construída pelo
historiador, sem sucessões mecânicas e sem coincidir com o conceito de
época: “é um artefato que é válido por sua capacidade heurística”.
Para Christian Delacroix, um dos problemas desta “redução heurística”
da noção de “regimes de historicidade” é, entre outros aspectos, o risco de
desencorajar a historicização da própria noção. O que poderia resultar, no
nosso entendimento, em uma naturalização do “instrumento”. Ainda segundo
Delacroix, a noção, em especial, de presentismo “não pode ser reduzida à
heurística, pois ela comporta um julgamento de realidade sobre nossa época
(ela é, então, de natureza ontológica, desse ponto de vista)” (Delacroix,
2009:42).
A hipótese do presentismo (por vezes tomada, apesar das intenções do
próprio autor, como uma evidência) não pode ser entendida, ainda segundo
Hartog, sob o registro da nostalgia (um regime melhor que outro) ou da
denúncia. Assim, refletir sobre um presente onipresente é uma forma de se
interrogar sobre as possibilidades de saída desse regime de historicidade. Não
se sabe se a situação é transitória ou durável, mas o fato é que a
imediaticidade da nossa sociedade, da mídia, das tecnologias, do mercado e a
importância atual da memória, do patrimônio e da dívida são indícios
importantes de transformação. O autor afirma que no livro não havia se
colocado a seguinte questão: viveríamos em um presentismo pleno ou
“transitório” (par défaut). Dada a impossibilidade de um retorno passadista
(em que o passado comanda, na expressão do autor), será que poderíamos
pensar que estamos vivendo apenas uma suspensão, uma parada, para que o
futuro retome o comando? Ou trata-se de uma inédita experiência do tempo?
A dúvida em face de um presente que não é uniforme nem unívoco depende
também do lugar social que se ocupa no interior das sociedades. Em outras
palavras: “se trata, […], de un presentismo por defecto — transitorio,
temporario, a la espera de otra cosa, por ejemplo, una reactivación de un
régimen moderno —o de un presentismo pleno: de una estruturación
efectivamente inédita donde el presente es en verdad la categoría dominante
[…]” (Hartog, 2010-b:27).14
Em parte, o livro de Hartog pode ser visto como um desenvolvimento do
texto “A crise do futuro”, de Krzysztof Pomian (1980). Nesse texto, o autor
procura demonstrar como as “ideologias” teriam perdido a capacidade de
imaginar um futuro possível e atraente, pois o prognóstico possível era
sempre o pior. Essa grave situação se dá na medida em que “a nossa
civilização depende do futuro como ele depende do petróleo” (Pomian,
1999:241). Mostrando os problemas do “passadismo” e do “futurismo”, em
especial com as tentativas deste último regime em buscar rupturas excessivas
com o passado, o autor afirma que falta inventar uma via intermediária.
De algum modo, a categoria de presentismo pode ser lida como uma
solução negativa para a proposta de Pomian. Mas o “instrumento” “regimes
de historicidade” pretende ir além, pois ambiciona tornar mais inteligíveis as
múltiplas experiências do tempo, de preferência, por meio da perspectiva
comparatista. Poderíamos nos perguntar: até que ponto o diagnóstico de
Hartog sobre a atual experiência do tempo europeia é válida para a atual
experiência brasileira do tempo? Podemos falar atualmente de “crise do
futuro” no Brasil? Estaríamos aqui nos trópicos sob o signo de um tipo de
futurismo que interage com dimensões do presentismo, como a historicização
imediata da era digital, mas que mantém uma confiança e esperança, por
vezes ingênuas, com a categoria de progresso e/ou futuro?15 Sem procurar
discutir se a hipótese (o presentismo) e o instrumento (regimes de
historicidade) são bons ou ruins, corretos ou equivocados, procuraremos
pensar brevemente a dificuldade de transposição da referida hipótese para o
contexto brasileiro atual. Para tal, tomaremos como índice outro prefácio. De
um livro denominado, sintomaticamente, Agenda brasileira.
Fazendo uso de um procedimento moderno, os organizadores da Agenda
brasileira procuram historicizar o presente, destacando que vivemos um
tempo de grandes mudanças na sociedade brasileira. Eles acreditam que
nosso presente pode ser comparado com os anos 1950, os anos
desenvolvimentistas, período que ainda nos “interpela” não só pelas
promessas não cumpridas: “também porque a década de 1950 nos alerta
criticamente para o risco de que, mesmo cumprida, a modernização possa não
se traduzir diretamente em modernidade e emancipação” (Botelho e
Schwarcz, 2011:16). Mesmo reconhecendo o peso internacional crescente do
país e nossos pacíficos processos eleitorais em mais de 20 anos os autores
destacam os dilemas da violência e da desigualdade. Percebemos, desse
modo, a persistência de um olhar crítico em relação ao presente, ao passado e
ao futuro; porém, diferentemente da análise de Hartog, não nos parece que
haja neste diagnóstico do presente uma crise do futuro.16 Ao contrário, os
autores afirmam que a obra por eles organizada pretende, por meio de
reflexões sobre os mais variados temas, pensar a “mudança social” numa
época de transformações aceleradas. “Olhar para nós mesmos”, mais do que
um gesto de nostalgia, é, para os autores, uma atitude de crítica de
autorreflexão e cidadania.
Outro aspecto de fundo também merece ser destacado: a legitimidade
social da história e/ou dos historiadores nas duas realidades (francesa e
brasileira). Ao que parece, verifica-se desde o final do século passado um
progressivo declínio da história e/ou dos historiadores na cena pública
francesa (Rioux, 2006, e Theullot, 2005).17 Diante desse fenômeno, Pierre
Nora, por exemplo, por meio de uma problemática distinção entre história e
memória na linha sociológica de Maurice Halbwachs, defende a tese de um
aumento da aceleração da história, de uma suposta ruptura entre história e
memória e da perda da história-memória: “fala-se tanto de memória porque
ela não existe mais”, ou ainda, “o nascimento de uma preocupação
historiográfica, é a história que se empenha em emboscar em si mesma o que
não é ela própria, descobrindo-se como vítima da memória e fazendo um
esforço para se livrar dela” (Nora, 1993:7 e 10).18
Nessa direção, Hartog afirma, também de forma problemática, que o
questionamento da história deve-se a seu eclipse (temporário?) em favor da
memória, termo que teria se tornado mais abrangente (Hartog in Delacroix,
2010:766-771).19 O passado atrai mais do que a história. Para alguns
analistas, a história foi deixada de lado em nome do direito e a história
conduzida pelo direito cria uma situação ou de criminalização generalizada
do passado ou de uma vitimização generalizada.20 De algum modo, a posição
de François Hartog não deixa de ser uma tentativa de refletir sobre a perda da
legitimidade da história e/ou dos historiadores na sociedade francesa. É o
presentismo que explica a perda. O atual “fardo da história” é posto nos
seguintes termos: “não se trata de defender a história por ela mesma, em
nome do que ela foi, mas pelo que ela poderá ser (em um mundo presentista
pleno ou imperfeito — par défaut)” (Hartog in Delacroix et al., 2009:149).
Nessa direção, o “fardo do historiador” é tornar-se contemporâneo do
contemporâneo, “lo que significa lo contrario de correr detrás de la actualidad
o ceder a la lógica del momento” (Hartog, 2010-b:16).21
Talvez seja desnecessário refletir se somos ou não o país do
esquecimento, mas certamente é no mínimo inusitado falarmos, no Brasil, de
excesso de memória ou de perda de legitimidade da história. A respeito da
“comemoração dos 500 anos”, Helenice Rodrigues da Silva afirma: “se as
comemorações nacionais têm por objetivo cristalizar as memórias coletivas, a
data de 22 de abril de 2000 já não passa de uma lembrança negativa que o
país se esforça em esquecer” (2003:425-439). Não deixa de ser sintomático
também a “verdadeira saga, em busca da regulamentação da nossa
profissão”.22 A própria tentativa de profissionalização também já não é um
sintoma da baixa legitimidade da prática histórica? Fato é que desde 1968 há
projetos nesta direção, em um país que nos últimos anos, por exemplo,
regulamentou profissões novas como as de enólogo e mototaxista. Em notícia
sobre aprovação da profissão na Comissão de Constituição e Justiça do
Senado, os jornalistas da Agência Senado escreveram que “o relator
reconheceu o ‘relevante’ papel exercido pelos historiadores na sociedade”
(Borges e Franco, 2011). Não deixa de ser no mínimo irônico o uso de aspas
na palavra “relevante”, para dizer pouco. O próprio pleito por parte da
Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh) para
que a Comissão da Verdade tivesse ao menos um historiador também é
representativo para efeitos do nosso argumento.
O que se desejou mostrar até aqui é que a discussão sobre o
“presentismo”, tal qual elaborado por Hartog, é indissociável da própria
“crise” atual da França, dos intelectuais franceses, dos (des)caminhos da
disciplina naquele espaço social e, em última instância, dos rumos e crises
que a ideia de “Europa” vem experimentando desde, pelo menos, a década de
1980. Dimensões que não podem ser deixadas de lado em qualquer tipo de
transposição do argumento para a realidade brasileira. Crise na ordem do
tempo? De qual tempo? De que ordem? E qual crise? Ao que parece, não
temos experimentado o tempo, pelo menos em alguns aspectos, da mesma
forma que o Velho Mundo (Flusser, 1998).23
A imagem do artista de rua britânico conhecido pelo pseudônimo Banksy,
na qual vemos uma menina sentada na calçada segurando a letra “O” da
mensagem “No future”, como se fosse um balão, de algum modo exprime
certo imaginário social daquela experiência do tempo.24 Por outro lado, nos
parece que “O gigante adormecido”, peça publicitária da empresa Johnnie
Walker, exprime um imaginário social emergente acerca da atual experiência
do tempo nos trópicos. Nessa peça, o morro do Pão de Açúcar se transforma
em um gigante que caminha pelo Rio de Janeiro, e a propaganda termina com
o slogan da empresa, “Keep Walking” (continue andando).25 Não se trata de
dizer que uma experiência seja “superior” à outra, mas o que se quer destacar
aqui é a “diferença” entre ambas. A metáfora do “gigante adormecido” pode
ser tomada como sintoma de uma nova reinvenção do otimismo (Fico,
1997).26 No entanto, agora não mais sob o signo da ditadura, por mais que o
futebol continue atravessando a política e a economia. Ainda que os
fantasmas de um passado, já não tão recente assim, continuem nos
atormentando e sendo justas as questões a serem enfrentadas.27 Enfim,
esperamos ter compartilhado nossas reticências quanto à utilização da
categoria de presentismo para se pensar a experiência do tempo no Brasil do
início do século XXI.28

V
O topos do “mais rápido do que nunca” sempre se faz acompanhar do topos
“mais lento do que nunca”. Daí que hipóteses como a de Hartog, Gumbrecht
ou a “dromologia” de Paul Virilio tenham apenas um alcance muito limitado:
pecam por sua unilateralidade. Caso estivesse valendo a lei da velocidade de
Virilio, não seríamos capazes de nos orientar no mundo (Virilio, 2007). Caso
fossem corretas as teses do presentismo ou do presente lento, teríamos
retornado ao tempo do eterno retorno, ao “regime de historicidade” mítico e
mesmo, no limite, a uma desculturalização do homem. Avessa a toda forma
de hiperbolização, a abordagem de Lübbe — ele a caracteriza como uma
“fenomenologia da dinâmica evolucionária de nossa civilização atual” —
oferece-nos uma alternativa interessante. Talvez o mais sensato seja mesmo
falar em “dinâmica civilizacional” moderna, sem ceder à tentação de
estabelecer quaisquer tendências definitivas a priori. Tal como Lübbe o
concebe, este termo contempla e pressupõe ambas as possibilidades — a
aceleração e o seu oposto. Desse modo se chega, por outra via, àquela
“dialética da duração” de que falava Fernand Braudel.
A fixação do olhar sobre o que supostamente se foi ou desapareceu pode
nos impedir de ver as reconfigurações, num momento em que se assiste a
certos deslocamentos de olhares e questões colocadas ao passado, ao presente
e ao futuro (Zawadzki, 2008:126 e 2002). Abandono da experiência do tempo
moderna? Ao que parece, os elementos para responder positivamente a esta
questão são ainda insuficientes. Resta-nos, por fim, o lúcido comentário de
Raymond Aron (2004:261): “em nossa consciência histórica se mesclam e se
opõem as visões fatalistas — tudo se repete —, as visões melancólicas —
uma época se acaba, a da preeminência da Europa —e as visões otimistas —
nosso presente marca tanto um começo como um fim”.

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1-Cf. os artigos de Carlos Fico, Marieta de Morais Ferreira e Raquel Glezer neste
livro. Ver também, entre outros, Pereira (2011:56-65).
2-Cf. também o artigo de Olgária Matos sobre Walter Benjamin neste livro.
3-Em <www.online-literature.com/wellshg/16/>. Acessado em 9 jan. 2012.
4-A conferência de Benz, “Aceleração do tempo enquanto problema histórico e de
história da salvação”, foi proferida em 1977 na Academia de Ciências de Marburg. A
respeito, ver os densos comentários de Blumenberg (2007:207-211).
5-Cf., entre outros, Pereira (2009) e Mata (1998:133-136).
6-Fiamo-nos no relato de Lübbe, que trabalhou ao lado de Koselleck no famoso grupo
“Teoria da História”, reunido na década de 1970 na Fundação Werner-Reimers, e do
qual participavam ainda Jürgen Kocka, Thomas Nipperday, Karlheinz Stierle e Niklas
Luhmann.
7-Salvo quando indicado, os trechos que se seguem baseiam-se ainda em três
trabalhos de Lübbe (1996), (2004:129-141) e (2003:91-94; 269-280).
8-Cf. o artigo de Paulo Knauss neste livro a fim de pensar a relação, no Brasil, entre
história do tempo presente e arquivos da repressão.
9-Sobre a experiência do trauma, cf. os artigos de Durval Muniz de Albuquerque
Júnior e Temístocles Cezar neste volume.
10-Cf. uma síntese crítica em Nicolazzi (jul-dez 2010:229-257). O autor ainda tece
uma consideração geral que merece ser destacada para os propósitos do nosso
argumento neste texto: “o presente, qualquer que seja ele, se impõe à reflexão para os
historiadores se não pela dimensão ética que o impregna, ao menos pela importância
epistemológica que ele assim delimita” (p. 257).
11-Nesse texto, Hartog sugere que nossa atual relação com o futuro é da ordem
apocalíptica.
12-É interessante notar que historiadores de tradições diversas têm defendido posições
próximas às de François Hartog em certos pontos. Do ponto de vista de uma história
política, por exemplo, Tony Judt afirma que “contemporâneos podem ter lamentado a
perda do mundo anterior à Revolução Francesa, ou o ambiente cultural e político da
Europa antes de agosto de 1914. Mas não os esqueceram. […] Muito do que fora
considerado familiar e permanente por décadas, ou mesmo séculos, agora ruma
celeremente para o esquecimento” (2010:15-17).
13-Um exemplo do argumento da existência de um elemento predominante: “o século
XX aliou, finalmente, futurismo e presentismo. Se ele inicialmente foi mais futurista
que presentista, ele terminou mais presentista que futurista” (Hartog, 2003:119).
14-De forma mais direta o autor afirma: “el futuro ha dejado de ser un horizonte
luminoso hacia el cual dirigimos órdenes de marcha más o menos vibrantes, para
volverse una línea de sombra que hemos puesto en movimiento hacia nosotros, en
tanto que parecemos agitarnos inutilmente en el presente y rumiar un pasado que no
termina de pasar” (p. 26).
15-Para uma distinção entre mito do progresso e esperança no futuro, cf., em especial,
Rossi (2000). Cf., também, Jonas (1998).
16-Em um exercício de futurologia, o ministro da Economia, Guido Mantega,
anteriormente ao anúncio, em 2011, de que o Brasil se tornaria a sexta economia do
mundo, declarou que dentro de 10 a 20 anos o país teria um padrão de vida europeu.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/1026365-mantega-diz-que-
pode-levar-20-anos-para-brasil-ter-padrao-de-vida-europeu.shtml>. Acessado em 9
jan. 2012.
17-Segundo François Hartog, “actualmente, para ser admitido en el espacio público,
para ser reconocido en la sociedad civil, el historiador debe ‘presentificarse’,
proponiéndose, como experto y transmissor [passeur] de presente: del presente al
presente?” (Hartog, 2010-b:22).
18-Ricœur critica duramente a perspectiva aberta por Halbwachs (e desenvolvida por
Nora e outros) por trabalhar a relação entre história e memória sob o signo da
oposição e/ou hierarquização e não da dialética. Ricœur (2000); Ricœur (2002:41-61).
Cf., também, Hartog (2003:113-161).
19-Na mesma direção, Beatriz Sarlo comenta que o “presente, ameaçado pelo desgaste
da aceleração, converte-se, enquanto transcorre, em matéria da memória” (2005:95-
96). Cf. as análises de Irene Cardoso e Temístocles Cezar neste livro sobre a relação
entre testemunho, memória e história.
20-Ver, sobre isso, as seguintes referências: Gauchet (2002); Nora (2006); Eliacheff e
Larivière (2007).
21-Hayden White denomina “fardo do historiador”, a saber: “restabelecer a dignidade
dos estudos históricos […] de modo a permitir que o historiador participe
positivamente da tarefa de libertar o presente do fardo da história” (1994:53).
22-Dossiê sobre a regulamentação da profissão de historiador disponível em
<http://www.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=317>.
23-Na década de 1970, justamente quando mais se falava em “aceleração” na Europa,
Flusser afirmou — o que sempre lhe custou incompreensões — que o homem
brasileiro seria um “tipo a-histórico não primitivo” (1998). É algo irônico que sejam
hoje intelectuais europeus e norte-americanos os que falam num presente “lento” ou
“onipresente”.
24-Disponível em <http://www.artofthestate.co.uk/banksy/banksy-no-future.htm>.
25-Disponível em <http://www.jb.com.br/economia/noticias/2011/10/08/propaganda-
da-johnnie-walker-com-pao-de-acucar-que-vira-gigante-faz-sucesso/>.
26-Vale a pena lembrar que, em face dos horrores da II Guerra Mundial, Stefan Zweig
retoma a metáfora do Brasil como país do futuro. A miscigenação e o “ódio à guerra”
são exaltados como uma das principais virtudes da jovem nação. Para uma análise
geral da questão, cf. Carvalho in Bethell (2002:45-75).
27-Cf., entre outros, Reis (2010); Gagnebin in Teles e Safatle (2010:177-186);
Traverso in Cernadas e Lvovich (2010:47-68). Cf. o artigo de Durval Muniz de
Albuquerque Júnior neste livro sobre trauma, esquecimento e usos do passado.
28-Apesar dessas reticências, Rodrigo Bonaldo faz uma boa articulação entre a obra de
Eduardo Bueno com a categoria de “presentismo”. Mas o autor pensa mais o
presentismo como uma presentificação do passado, mediado por uma escrita
jornalística sintética, do que como historicização imediata. Ver Bonaldo (2010).
Tempo presente e usos do passado
TEMÍSTOCLES CEZAR

A Manoel Salgado Guimarães


in memoriam

O Verbo que pairava por cima do universo, pairava por cima do nada, pairava
mais além do exprimível e do inexprimível, e ele, sobrepujado pelo bramido do
Verbo e circundado pelo estrondo, ele adejava junto com o Verbo; mas quanto
mais este o envolvia, quanto mais ele penetrava nesse mar de ressono, que, por
sua vez, o penetrava, tanto mais inatingível e grande, tanto mais poderoso e
esquivo se tornava o Verbo, um mar em adejo, um fogo em adejo, pesado como o
mar, leve como o mar e no entanto continuando a ser Verbo: ele não podia retê-
lo, não tinha o direito de fazê-lo; inconcebível e inefável era para ele o Verbo,
que se mantinha mais além da linguagem. A morte de Virgílio, Hermann Broch
[2001:431]

I. O cerco do presente

“Um passado que não quer passar”, expressão de um polêmico artigo de


Ernst Nolte (1988), ou “um passado que não passa”, subtítulo de um livro de
Henry Rousso (1994), são apreensões historiográficas da história que
representam as controvérsias sobre o “negacionismo” e o “revisionismo”
envolvendo historiadores, filósofos e cientistas sociais, sobretudo na
Alemanha e na França, desde meados dos anos 1980.
Essa “obsessão” pelo passado, contudo, não reflete uma ideia de história
fundada no que teria de fato acontecido, mas em um regime de historicidade
marcado pelo presente. Paradoxalmente, o passado que não quer ou não pode
passar implica um presente que, igualmente, não passa, que continua, dura,
resiste, nos cerca, e cujo significante historiográfico é a história do tempo
presente (Hartog e Revel, 2001:21).
Confundindo-se, em certa medida, com o regime de historicidade
contemporâneo, essa tendência historiográfica definir-se-ia não por uma
relação primordial com o passado, ou com o futuro, mas com o presente,
vivido, sentido como uma espécie de fluxo contínuo, com pretensões à
eternidade. Tal configuração se caracterizaria, segundo os termos de
Koselleck, por um distanciamento crescente, uma quase ruptura, entre o
espaço de experiência e o horizonte de expectativa, cuja consequência não
seria mais o engendramento do tempo histórico, mas sua suspensão
(Koselleck, 1990:307-329).1 Essa experiência moderna de um presente
perpétuo, inapreensível e praticamente imóvel, que procura, por outro lado,
produzir para si mesmo seu próprio tempo histórico, François Hartog a define
como regime de historicidade “presentista” ou de “presentismo” (1995:1219-
1236 e 2003).
As querelas alemã e francesa fazem parte desta reconfiguração do campo
historiográfico, sintetizando uma série de temas que tem pautado a agenda
dos historiadores há três décadas: o direito e o dever de memória; o
testemunho como instrumento heurístico e o sujeito moral do discurso
histórico; os limites da representação da história e as decorrências
epistemológicas para sua escrita em geral e, especificamente, para a questão
da narrativa histórica.
A controvérsia pública entre os historiadores alemães iniciou-se em junho
de 1986 com a publicação de um artigo do historiador Ernst Nolte,
especialista no período nazista, no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung,
replicado rapidamente por Jürgen Habermas. Em seguida, diversos e
importantes historiadores alemães incorporam-se ao debate: Karl Dietrich
Bracher, Joachim Fest, Imanuel Geiss, Klaus Hildebrand, Andreas
Hillgruber, Eberhard Jäckel, Jürgen Kocka, Christian Meier, Horst Möller,
Hans Mommsen, Wolfgang Mommsen, Thomas Nipperdey, Hagan Schulze,
Michael Stürmer e Heinrich August Winkler. A variedade de pontos de vista
políticos e as diferentes tendências teóricas, algumas muito sutis, impedem
um resumo qualificado da controvérsia.
Contudo, evoco aqui, ainda que de modo sintético, a tese de Nolte, na
medida em que ela não apenas provoca a polêmica, como foi a mais
controvertida. O historiador parte da seguinte constatação: “o III Reich
acabou há 35 anos, mas ainda está bem vivo”. Uma lembrança com uma
conotação que se “ainda está muito viva hoje”, diz ele, “é completamente
negativa, e isso por bons motivos” (Nolte, 1988:8-9). Entretanto, Nolte se
preocupa com uma suposta ameaça à pesquisa caracterizada por uma
narrativa elevada à condição de ideologia fundadora, ou seja, o negativo que
se torna lenda e mito. Seria preciso, segundo o autor, submeter a história do
nazismo a uma revisão que não fosse apenas uma simples inversão do
julgamento da negatividade: “no essencial”, observa Nolte, “a imagem do III
Reich não requer nenhuma revisão” (1988:11). Sua proposta é a de alargar a
explicação contextual no tempo, por meio do recuo histórico, e no espaço,
por meio da comparação com outros acontecimentos da modernidade. Assim,
tanto na perspectiva diacrônica quanto na sincrônica, o espectro dos
antecedentes exterminacionistas deve ser ampliado, sendo o mais próximo a
experiência bolchevique.
O recurso comparativo visa, portanto, extrair do Holocausto sua
singularidade:

A recusa de ressituar nesse contexto o extermínio dos judeus perpetrado por


Hitler talvez se deva a motivos muito estimáveis, mas ela falsifica a história. […]
O que se chama de extermínio dos judeus perpetrado sob o III Reich foi uma
reação, uma cópia deformada e não uma inovação nem um original [Nolte,
1988:21].

Por intermédio dessa mímesis transfigurada, Nolte passa da comparação à


causalidade. Ou à pergunta: por que o passado não quer passar? Por que se
torna cada vez mais vivo e ativo? Finalmente, por que se subtrai este debate
crítico da conjuntura e concentra-se “apenas” na “solução final”? “As regras
mais simples”, diz Nolte, “que valem para o passado de quaisquer países
parecem aqui abolidas.” Por isso, segundo ele, é preciso estender o contexto,
é preciso comparar, buscar as relações de causa. Logo, para Nolte, o
assassinato cometido por motivo de Estado pelo regime soviético pôde
constituir-se no “precedente lógico e factual” da operação racial nazista
(1988:31-34). Consequentemente, o arquipélago Gulag é um evento “mais
original” do que Auschwitz, exceto pelo “pequeno” detalhe das câmaras de
gás…
A expectativa de Nolte é que este passado, como qualquer passado,
simplesmente passe, e assim se possa dele se apropriar historicamente, pois
os alemães, de acordo com sua análise, de certo modo também foram vítimas.
O reconhecimento dessa condição, aliado a uma espécie de trabalho de luto,
poderia conduzir a Alemanha a uma identidade mais positiva.
Habermas, em réplica, procura diferençar as noções de revisão e de
revisionismo denunciando “as tendências apologéticas da historiografia
alemã contemporânea”. Segundo o filósofo, contextualizar, comparar e
estabelecer vínculos causais não passam de pretexto para “liquidar os danos”.
Tratar-se-ia de um “neorrevisionismo” associado a um conservadorismo
tradicional, cujos pressupostos éticos e políticos implícitos aliviariam o fardo
do passado. Nesse sentido, ele denuncia o efeito da desculpação que resulta
da dissolução da singularidade dos crimes nazistas. Assim, a vergonha
causada por Auschwitz deveria ser protegida de toda suspeita de apologia,
visto que “um compromisso ancorado nas convicções favoráveis ao princípio
constitucional universalista, infelizmente, apenas pôde se forjar na nação
cultural dos alemães após e através de Auschwitz” (1988:47-61).2
Em outra intervenção, Habermas estabelece uma relação entre
responsabilidade coletiva e papel público da memória:

uma obrigação que temos na Alemanha — mesmo que nada nos garanta estarmos
preparados para assumi-la por muito tempo — é manter viva a memória do
sofrimento daqueles assassinados pelas mãos dos alemães, e devemos manter viva
esta memória de modo aberto e não somente dentro de nossas mentes [apud
LaCapra, 1992:116-117].

O autor postula que os historiadores apropriem-se criticamente do


passado —o bom uso da memória — ante uma aceitação cega das tradições.
Essa apropriação crítica, explica o autor, validará tão somente as tradições
que suportarem o olhar desconfiado alimentado pela catástrofe moral.3
No entanto, Habermas não ataca com igual ênfase o programa
historiográfico propriamente dito, preferindo concentrar-se na crítica do
tradicional Estado-nação, que define como essa “forma convencional de
identidade nacional” à qual contrapõe uma “identidade pós-convencional”
baseada em normas universais, proveniente de uma leitura de Kant, e em um
“patriotismo constitucional”, no qual a observância às regras de um estado de
direito estariam acima do pertencimento a um povo.
Já a querela francesa, embora menos complexa do que a alemã, obteve
repercussão equivalente no espaço público e igual efeito sobre a produção
historiográfica tanto em seus aspectos teóricos quanto políticos. A tese é
bastante simples: em janeiro de 1979, Robert Faurrison publica, no Le
Monde, um artigo intitulado “Le Problème des chambres à gaz, ou la rumeur
d’Auschwitz”, no qual afirma que após a leitura de a Mensonge d’Ulisse, do
antigo deportado Paul Rassinier, começou a ter dúvidas, que após 14 anos
desvaneceram-se completamente a ponto de poder negar a existência de
campos de extermínio nazistas. Em 1980, ele publica sua Mémoire en
défense. Contre ceux qui m’accusent de falsifier l’histoire. La question des
chambres à gaz (Faurrison, 1980).4
Coube, entre outros, mas principalmente a Pierre Vidal-Naquet, a
desmontagem da empresa revisionista e negacionista francesa, inclusive
travando uma célebre polêmica com Chomsky, que no prefácio ao livro de
Faurrison defende a liberdade de expressão do autor. Em Les assassins de la
mémoire, obra dedicada à mãe assassinada em Auschwitz em 1944, Vidal-
Naquet contesta os argumentos revisionistas procurando demonstrar que o
apagamento dos traços faz parte do crime, e que mesmo assim não era difícil
provar, por uma amálgama de fontes, que os nazistas reabriram fossas
comuns e incineraram corpos, e que na evacuação dos campos diante da
aproximação soviética destruíram as câmaras de gás e os fornos crematórios
(Vidal-Naquet, 1987). Da análise de Vidal-Naquet emerge uma epistemologia
da vigilância que se expressa nas “novas atitudes” que os historiadores
deveriam ter: “responsabilidade”, atenção às regras básicas do ofício; cuidado
com as reaproximações entre a história e as formas ficcionais de
conhecimento; cautela com a perda de referentes que não estejam calcados na
realidade ou nos arquivos.
O debate francês transborda suas fronteiras e provoca uma acalorada
discussão sobre a “verdade”, a “prova” e o princípio de realidade em história.
Parte considerável dessa discussão foi publicada em livro organizado por
Saul Friedlander, com o título Probing the limits of representation. Nazism
and the final solution. Nele, está reproduzido o debate, de 1989, em que
Carlo Ginzburg ataca frontalmente a obra de Hayden White, e de certa forma
a de Michel de Certeau e a de François Hartog, acusados de participarem de
um movimento historiográfico pós-moderno relativista e neocético, cujo
efeito seria o de estetizar a escrita da história gerando um (in)consequente
afastamento da verdade e do realismo histórico, deixando, por exemplo, as
portas da cidadela da história abertas à negação do Holocausto judeu
(Ginzburg in Friedlander, 1992:82-96).5
Hayden White, em sua contribuição ao mesmo seminário, encontra-se em
uma situação difícil. Por um lado, reafirma a “relatividade inexpugnável” de
toda representação dos fenômenos da história; por outro, deixa ao longo do
seu ensaio a sensação de que existe algo nele — no genocídio — que
derrotaria todas as formas de representação do discurso histórico (White in
Friedlander, 1992:37-53).
Em outra perspectiva, sem querer desvalorizar o importante caráter ético
que envolve todas essas querelas, talvez fosse interessante notar que, no caso
francês, o “revisionismo” não pode, a rigor, ser considerado uma “tese”
científica e acadêmica legítima, e que é difícil reconhecer nos revisionistas
mesmo a condição de historiadores incompetentes. Logo, qualificá-los de
“hipercriticismo” é lhes acordar muito, e correr o risco de se superestimar o
que não passa de uma “mentira” e não um ataque ao bom e antigo método
crítico. Outro efeito dessa disputa é o fato de a noção de prova ressurgir com
força nas discussões historiográficas, reacendendo, no entanto, mais do que
eventualmente, certas chamas positivistas com apelos aos arquivos
destituídos de reflexão (Hartog, 1998:9).6

II. Dos limites da representação histórica às falhas do


testemunho
George Steiner disse, certa vez, ele mesmo um sobrevivente do Holocausto,
que “o mundo de Auschwitz reside fora do discurso assim como reside fora
da razão” (apud White, 1992:43). “Eu consagrei”, continua o crítico literário,
agora em uma entrevista, e no rastro de Hannah Arendt, “toda a minha obra a
essa questão: como racionalizar a Shoah? Como se pode tocar Schubert à
noite, ler Rilke pela manhã e torturar ao meiodia?” (Steiner, 2000:68 e
Arendt, 2002).
A obra de Saul Friedlander procura justamente discutir esses limites
(1992:1-22). Assim, de um lado, verifica-se um esgotamento das formas de
representação disponíveis em nossa cultura, se não para explicar, ao menos
para dar legibilidade e visibilidade à “solução final”; por outro, uma
solicitação, uma exigência social de que seja dito e representado, elevando-se
do próprio cerne do acontecimento, procedendo, portanto, segundo Paul
Ricœur, “dessa origem do discurso que certa tradição retórica considera o
extralinguístico, banido da terra da semiótica” (2000:329). O problema é
como relacionar esses dois limites, sendo o primeiro interno e o segundo
externo. A Shoah coloca para reflexão ao mesmo tempo a singularidade de
um fenômeno, na fronteira da experiência e do discurso, e “a exemplaridade
de uma situação em que não seriam desvendados apenas os limites da
representação sob suas formas narrativas e retóricas, mas todo o
empreendimento de escrita da história” (2000:329).
Qual é a tarefa do historiador diante dos acontecimentos-limite, dos
traumas? (Seligmann-Silva, 2000:73-98) Além de desarticular falsificações
impõe-se o problema das fontes, sobretudo o testemunho dos sobreviventes e
de seus algozes, a disputa pela memória do passado recente, mas muitas
vezes intencionalmente obliterado, que turvam a representação histórica.
Assim, se Auschwitz tornou-se, para Annete Wieviorka, a metonímia do mal,
a memória da Shoah adquiriu, para o melhor e para o pior, a condição de
modelo da construção da memória, o paradigma do gesto de testemunhar, que
vale tanto para ontem quanto para os eventos que se desenrolam sob nossos
olhos (Wieviorka, 1998:16).
Como analisar criticamente a testemunha dos acontecimentos-limite?
Como confiar nelas, em sua memória? Ricœur (2000:223-224) chega a falar
em uma crise do testemunho pós-Auschwitz:

É por isso que se pode falar de crise do testemunho. Para ser recebido, um
testemunho deve ser apropriado, quer dizer, despojado tanto quanto possível da
estranheza absoluta que o horror engendra. Essa condição drástica não é satisfeita
no caso dos testemunhos dos que se salvaram. Uma razão suplementar da
dificuldade de comunicar deve-se ao fato de que a testemunha não esteve ela
mesma distante dos acontecimentos; ela não “assistiu” a eles; ela mal foi um
agente, um ator; ela foi vítima.

Como “contar sua própria morte”?, pergunta Primo Levi [que, segundo
Giorgio Agamben, seria “um tipo perfeito de testemunha” (Agamben,
2008:26)]. A barreira da vergonha acrescenta-se a todas as demais barreiras.
Daí resulta que a própria compreensão esperada deve ser, por sua vez,
julgamento, julgamento imediato, julgamento sem mediação, reprovação
absoluta. O que, finalmente, faz a crise do testemunho é que sua irrupção
destoa da conquista inaugurada por Lorenzo Valla em A doação de
Constantino: tratava-se então de lutar contra a credulidade e a impostura;
trata-se agora de lutar contra a incredulidade e a vontade de esquecer.
Inversão da problemática? (Ricœur, 2000:223-224).
Além disso, esses testemunhos diretos encontram-se progressivamente
enquadrados, mas não absorvidos, pelos trabalhos de historiadores do tempo
presente e pela publicidade dos grandes processos criminais cujas sentenças
caminham lentamente na memória coletiva e cujo preço são, muitas vezes,
duros dissensos. Consequentemente, para Ricœur, é no mesmo espaço
público da historiografia que se desenrola a crise do testemunho pós-
Auschwitz.
Um exemplo das relações entre a confiabilidade do testemunho, o uso da
memória e do esquecimento como recurso terapêutico nos é transmitido por
Nathan Beyrak, da Universidade de Yale, responsável por entrevistar
testemunhas do genocídio judeu no âmbito do projeto cinematográfico sobre
os sobreviventes do Holocausto iniciado em 1982 (após o sucesso da novela
Holocausto nos Estados Unidos), e que anos depois, em 1994, na esteira de
outro sucesso do cinema, a Lista de Schindler, conferirá legitimidade
científica ao Survivors of the Shoah visual history foundation, de Steven
Spielberg. Trata-se da entrevista de um homem que fizera parte de um grupo
de crianças que sobrevivera no gueto de Kovno até sua evacuação, em 1944.
O primeiro depoimento do homem do qual fala Beyrak durou cerca de três
horas e foi classificado pelo entrevistador como “seco”. Ao chegar em casa
após a entrevista, o depoente ou testemunha recorda-se, subitamente, que
tinha guardado uma série de escritos, uma espécie de diário do gueto, do qual
ele não recordava a existência. Ao exumar seu diário, constata que evocava
pontos os quais não mencionara em seu testemunho. Seria, então, necessário
retomá-lo, refazê-lo. Na sessão seguinte, munido de seu diário, ele narra
novos episódios diante da câmera. Porém, o entrevistador repara que a
testemunha deixava de lado certas páginas do diário e pergunta por quê. O
sobrevivente explica que era impossível que certas coisas escritas no diário
fossem reais, que elas realmente tenham acontecido, pois delas, naquela data,
ele não guardava nenhuma recordação. A leitura dessas páginas não deixa
nenhuma dúvida sobre sua autenticidade, se comparadas a outros relatos do
gênero, notadamente uma descrição da fome. No entanto, esses registros lhe
pareceram irreais. Segundo Beyrak, a testemunha simplesmente não era
capaz de relacionar sua memória e a experiência descrita (Wieviorka,
1998:171-172).7
De que maneira podemos pensar problemas como estes sem considerar o
aporte psicanalítico uma ferramenta, ao mesmo tempo difícil e fundamental,
na busca de compreensão dos acontecimentos-limite, como fazem, de modo
distinto, Henry Rousso e Dominique LaCapra? (Rousso, 1987, 1998 e 1994;
LaCapra, 1996, 1998)8
Estar-se-ia diante, portanto, de uma crise de confiança e de crença do
testemunho relatado e da própria testemunha. Contudo, instalar uma dúvida
metódica permanente seria uma atitude correta? Aonde nos conduziria ou nos
conduzirá uma crise geral do testemunho? O historiador responderia, diz-nos
Ricœur, “provavelmente que a história, em sua totalidade, reforça o
testemunho espontâneo pela crítica do testemunho, ou seja, o confronto entre
testemunhos discordantes, com o objetivo de estabelecer uma narrativa
provável, plausível” (Levi in Abel, 2006:230). Beatriz Sarlo encontrou outra
solução além dessa, em relação à qual tenho muitas reservas: verificar a
cientificidade do relato, expresso sobretudo, para ela, pelo apagamento da
primeira pessoa do discurso (Sarlo, 2005).9 Não me parece, nem teórica nem
metodologicamente, o procedimento crítico mais adequado, pois a pergunta
permanece: a prova documental da transcrição da experiência direta ou da
reconstrução memorial posterior é — dilema platônico — mais remédio que
veneno para as falhas constitutivas do testemunho?

III. Das falhas do testemunho às alternativas da representação


histórica
Parece claro, pelo menos para mim, que as técnicas convencionais dos
historiadores não são suficientes para a compreensão do Holocausto ou os
chamados acontecimentos-limite em regimes policialescos como o de
segregação racial na África do Sul ou do terrorismo de Estado das ditaduras
latino-americanas do século XX. Com efeito, não seria um exagero afirmar
que esse tipo de estudo pode conduzir a reconsiderações das exigências da
historiografia em geral.10
Logo, essa constatação não deveria ser um impedimento, mas antes um
estímulo para a exploração de modos de expressão alternativos que se
estendam além da narrativa histórica testemunhal ou acadêmica, como o
teatro, a música, o filme e as artes plásticas (Huyssen, 2009:15-24).
Jörn Rüsen esclarece que,

como experiência-limite, o Holocausto serve para reforçar uma qualidade


genérica da interpretação que torna presente o passado, como exemplo do lado
sombrio da história, das trevas do sentido histórico, do caráter ruinoso do
prolongamento temporal do passado até o presente. O Holocausto representa,
pois, uma qualidade da experiência na relação temporal tensa entre passado e
presente, a ser devidamente levada em conta por um tipo apropriado de
constituição narrativa de sentido [Rüsen, 2001:171-172].

Entretanto, constata Rüsen,

as formas historiográficas de narração adequadas a essa realidade ainda não foram


encontradas. A literatura narrativa, em suas formas paradigmáticas do século
(Kafka), pode fornecer alguns exemplos, ao revelar a ausência de sentido como
um sentido estético. Como realizar — conclui — essa dialética negativa da
constituição de sentido na especificidade da narrativa histórica é uma questão
aberta [Rüsen, 2001:171-172].

Seguindo esta pista, gostaria de concluir com a análise do relato de duas


experiências-limite distintas que escapam ao campo da história: a primeira,
eminentemente literária, o livro de Georges Perec, W ou le souvenir
d’enfance, publicado em 1975, no qual o escritor francês retrata, como pode,
sua experiência memorial de criança judia que viveu sob a ocupação nazista;
a segunda, A morte e a donzela, peça teatral do chileno Ariel Dorfman que
retrata o confronto de uma militante de esquerda, presa e torturada durante
um certo regime militar de um país sul-americano, com seu suposto carrasco,
anos depois de a democracia ter sido reestabelecida.

1. W ou le souvenir d’enfance

Georges Perec (1936-1982) publica, em 1975, W ou le souvenir d’enfance,


obra extremamente densa na qual, sem abandonar sua condição de escritor,
trata de questões que dizem respeito tanto à agenda historiográfica quanto à
sociedade: a memória, a história, a testemunha, a desaparição, o sobrevivente,
o extermínio (Perec, 1975).11
O livro se desenvolve em dois domínios simultâneos nos quais se
intercalam a trama ficcional W (marcada pelo uso de caracteres tipográficos
itálicos) e a trama autobiográfica (marcada pelo uso de caracteres tipográficos
romanos). A autobiografia se inicia com uma frase contundente: “Eu não
tenho lembranças de infância”, pois dela teria sido dispensado por outra
história, “a Grande, a História com seu grande H”, que respondeu em seu
lugar, que substituiu sua memória com “a guerra, os campos”. Sua pequena
história de infância podia ser resumida em algumas linhas: “eu perdi meu pai
aos quatro anos, minha mãe aos seis; passei a guerra em diversas pensões de
Villard-de-Lans. Em 1945, a irmã de meu pai e seu marido adotaram-me”
(Perec, 1975:17).
Perec, famoso pelo uso criativo da linguagem, divide a obra em duas
partes, indicando isso por uma página em branco com três pontos de
suspensão entre parênteses. A primeira parte termina com a cena de sua
partida de Paris. Sua mãe o acompanha à gare de Lyon. Ele jamais voltará a
vê-la. Desse momento, verdadeiramente ele não tem qualquer lembrança.
Suas memórias são reconstituições baseadas em um conjunto heteróclito de
fontes. O registro autobiográfico é uma espécie de relato de viagem em que o
sujeito é, ao mesmo tempo, narrador e testemunha que parte em busca da
criança cuja identidade lhe foi conferida. Duas citações do poema
autobiográfico Chêne et chien, de Raymond Queneau, epígrafes das duas
aberturas autobiográficas, deixam clara sua intenção. A primeira: “Cette
brume insensée où s’agitent des ombres,/ Comment pourraisje l’éclaircir?”
(Perec, 1975:11). A segunda: “Cette brume insensée où s’agitent des ombres,/
Est-ce donc là mon avenir?” (Perec, 1975:91).
W, a ficção, é uma ilha, um universo de competição regido pelo ideal dos
jogos olímpicos, que tem por objetivo a busca da perfeição atlética e cujo
funcionamento, minuciosamente descrito pelo autor, vai aos poucos
revelando um verdadeiro campo de concentração, que se torna, passo a passo,
uma metáfora de Auschwitz (Vidal-Naquet, 2005:135-138). Os vencidos nas
provas eram privados de alimentação, bem como os fracos e covardes
poderiam ser mortos e terem seus corpos jogados aos cães. Por outro lado, era
comum acontecerem disputas no dormitório que também poderiam levar à
morte dos envolvidos. Tudo isso sob um regime de extrema vigilância e
hierarquização, que faz eco aos intermináveis chamados que caracterizavam o
mundo concentracionário (Vidal-Naquet, 2005:116-120; 205). Além disso, às
provas olímpicas são acrescentadas tantas regras irracionais que a
performance torna-se ridícula: os 100 m se correm em 23,4’, os 200 m, em
51’ e o melhor saltador jamais passou de 1,30 m (Perec, 1975:220). Como
não relacionar com o relato de Primo Levi?! “Da usina à qual os nazistas
tanto se dedicaram durante quatro anos e onde uma quantidade incontável de
nós sofremos e morremos não saiu jamais um só quilo de borracha sintética”
(Levi, 1987:138).
A história de W foi inventada por Perec quando tinha 15 anos, na qual
percebe, ao reencontrá-la 20 anos depois, que ela lhe contava algo a seu
respeito; fazia-o lembrar que alguma coisa lhe tinha acontecido. Enquanto a
autobiografia termina com o retorno a Paris e a visita a uma exposição
consagrada aos campos de extermínio, a ficção acaba com o que restou da
Forteresse de W:

aquele que um dia penetrar na Fortaleza somente encontrará uma sucessão de


peças vazias, longas e cinzas. O barulho de seus passos ressoando sob suas altas
arcadas fechadas lhe dará medo, mas será necessário que ele continue seu
caminho por muito tempo antes de descobrir, enterrado nas profundezas do solo,
os vestígios subterrâneos de um mundo que acredita ter esquecido: montes de
dentes de ouro, de alianças, de óculos, milhares e milhares de roupas empilhadas,
arquivos empoeirados, estoques de sabão de má qualidade… [Perec, 1975:220].

É importante observar que o narrador da ficção apresenta-se como o


único sobrevivente de uma experiência sobre a qual sente a necessidade de
testemunhar: “eu visitei este mundo desaparecido e eis aqui aquilo que vi”
(Perec, 1975:14). A narrativa de W se desdobra mais uma vez, pois de relato
de viagem transforma-se em relato utópico e deste em um pesadelo, pois W
existiu e existe. E o que é uma utopia realizada senão sua própria negação?
(Hartog, 2007: 85).
“Eu esqueci”, escreve Perec no último parágrafo do livro, “as razões que
há doze anos me fizeram escolher a Terra do Fogo para instalar W: os
fascistas de Pinochet encarregaram-se de dar a meu fantasma uma última
ressonância: várias ilhas da Terra do Fogo são hoje (1974) campos de
deportação” (Perec, 1975:222).
No outro domínio, aquele da autobiografia, os problemas também surgem
ao longo do texto na medida em que Perec, ao fazer um verdadeiro trabalho
crítico em relação a sua memória, expõe suas fraturas e impossibilidades. O
inventário da ausência de lembranças é realizado a partir de falsas
recordações a serem decodificadas, de fotos, de conversas com sua tia. É
impossível se estabelecer um relato linear no qual as partes se ajustariam
umas às outras. Perec abre mão de um “eu” ordenador do seu passado e
revelador de sua memória. Se o “eu” é também uma testemunha, testemunha
dele mesmo, a distância somente demonstra que ele não tem muito que
testemunhar, senão o vazio deixado pela história.
A memória estilhaçada sobre a infância e, sobretudo, acerca de seus pais,
não impediu, durante muito tempo, que ele pensasse a respeito desta
ausência, até que percebesse que a representação da grande História e sua
pequena biografia poderiam encontrar-se na escrita: “o projeto de uma escrita
como o projeto da lembrança”. Ele escreve porque, apesar da falta e do
esquecimento, ele viveu entre eles, “porque”, explica Perec, “eles deixaram
em mim sua marca indelével, cujo traço está na escritura; sua lembrança
morre na escritura; a escrita é a lembrança de sua morte e a afirmação de
minha vida” (Perec, 1975:63-64). A escrita surda desta morte, a lembrança
desta ausência, torna possível escrever sobre o indizível.

2. A morte e a donzela
Composto em 1824 por Franz Schubert, o quarteto de cordas A morte e a
donzela, inspirado em um poema de Matthias Claudius, revela toda a dor do
grande músico perante a morte iminente que uma grave doença anunciava e
que acabou por lhe arrebatar a vida precocemente quatro anos depois.
Composta em 1990 por Ariel Dorfman, recém-chegado ao Chile depois
de um longo exílio provocado pelo regime autoritário do general Pinochet, a
peça de teatro em três atos A morte e a donzela, inspirada na composição
homônima de Schubert, conta a história, no presente, passada em um país que
poderia ser o Chile, que vivia a instalação da democracia após um longo
período ditatorial. Lá vivem o trio Paulina Salas, ex-militante de esquerda
que fora presa e torturada fazia 15 anos, Geraldo Escobar, seu marido,
advogado ligado aos direitos humanos, e o médico Roberto Miranda. A
versão cinematográfica, dirigida por Roman Polanski, aparece em 1994 e é
bastante fiel ao texto de Dorfman.
A trama principal se passa em uma casa de praia, na qual Paulina
aguardava, já tarde da noite, o marido, que deveria ter chegado para o jantar.
Geraldo finalmente chega e explica o atraso: o pneu do carro furara e ele
tivera de esperar até que alguém se dispusesse a parar e ajudá-lo, uma vez
que estava sem estepe. Roberto Miranda não apenas o ajudou, como também
o deixou em casa. Após a explicação, Paulina e o público ficam sabendo que
Geraldo fora convidado pelo recém-eleito presidente da República para
presidir a Comissão de Violação dos Direitos Humanos sobre os casos que
terminaram em morte ou presunção de morte no regime anterior (uma espécie
de Comissão da Verdade instituída em outros países, como África do Sul e
Argentina).12 Paulina põe em dúvida a eficácia da comissão, pois, segundo
ela, os juízes não poderiam ser imparciais, uma vez que seriam os mesmos
que contribuíram ou se omitiram durante a ditadura.
Mais tarde Roberto retorna à casa do casal, com uma desculpa qualquer, e
parabeniza Geraldo pelo novo encargo, do qual tomara conhecimento ao
escutar o noticiário no automóvel. Nesse ínterim, Paulina supostamente
dormia. Devido ao adiantado da hora, Geraldo insiste para que o médico
passe a noite em sua casa. Durante a madrugada, Paulina, de posse de uma
arma de fogo, aprisiona Roberto, porque, embora até aquele momento não o
tivesse visto, reconheceu nele, por sua voz, o torturador que marcara
definitivamente sua vida. O marido acorda e vê a cena sem nada entender: a
mulher apontando uma arma em direção a Roberto, que se encontra,
pateticamente, amarrado em uma cadeira. Perplexo, o marido advogado pede
provas. Além da voz, uma fita cassete de A morte e a donzela que ela
encontrara no seu carro (“essa tristeza tão suave, tão nobre” que Miranda
escutava enquanto a violentava, explica a protagonista) e vagas alusões que
seu algoz teria feito, nas sessões de tortura e casualmente na conversa da
noite anterior, a Geraldo, como uma referência a Nietzsche.
Em síntese, Paulina quer que o médico confesse, e para tanto o ameaça de
morte. Geraldo contra-argumenta, afirmando que isso não é fazer justiça.
Entre os três trava-se uma intensa e dramática conversação marcada por
acusações e defesas. Paulina quer falar, já que está viva e que a comissão
apurará apenas o caso dos mortos e desaparecidos; como Levi, ela quer
testemunhar. Ela quer algo mais que a anistia, esse esquecimento institucional
que visa calar o não esquecimento da memória, como diz Ricœur; ela precisa
escutar uma confissão e um arrependimento (Ricoeur, 2000:585-586). Assim,
diz Geraldo, “nós vamos morrer de tanto passado”; “perdoar e esquecer”,
replica Paulina; “perdoar sim, mas não esquecer”, responde o marido,
“perdoar, para poder começar de novo”, pois, conclui em tom nietzschiano:
“as pessoas podem morrer de uma dose excessiva de verdade”.
No entanto, Paulina não pode nem perdoar nem esquecer, nem a tortura,
mas o que parece pior, uma morte por dentro da sobrevivente, que a torna
incapaz de “descrever o que significa ouvir essa música maravilhosa no
escuro, sem comer há três dias, quando seu corpo está caindo aos pedaços”.
Nesse momento, Roberto confessa. Mas, como vários nazistas entrevistados
por Claude Lanzmann em seu documentário Shoah, ele não se arrepende.
Em posfácio à peça publicado em 1992, Ariel Dorfman comenta os
motivos que o levaram a escrever o texto e sua repercussão. Segundo o autor,
A morte e a donzela obteve, inicialmente, pouco reconhecimento em seu país,
pois esse tipo de atividade cultural ameaçava “a segurança psicológica de
muitos”, a ponto de até seus companheiros de resistência “que agora
governam o Chile”, explica, tampouco terem gostado da obra:

A morte e a donzela invadia, incomodamente, um complexo processo de transição


que requeria por parte da cidadania o esquecimento, ou pelo menos o adiamento
de suas dores, em nome de uma necessária paz social […], há limites ao que se
pode tolerar, um silencioso consenso que uma arte dissidente não pode
transgredir. […] Como saber se a memória nos salva ou nos engana? [Dorfman,
1992:80-87].

IV. A aporia da representação


Se W pode ser definida como o esforço e a impossibilidade da memória, A
morte e a donzela então pode ser pensada como o esforço e a impossibilidade
de esquecimento.
No caso de Perec, as lembranças encobridoras, interpostas entre nossas
impressões infantis e as narrativas que delas fazemos com toda a confiança
como a produção de falsas lembranças visam substituir o esquecimento.
Assim, o esquecimento de impressões e de acontecimentos vivenciados e o
esquecimento de projetos, equivalentes à omissão ou à negligência seletiva,
parecem provir de um lado ardiloso do inconsciente que atua em atitude
defensiva.
Já em A morte e a donzela, o dilema entre esquecer e perdoar parece nos
conduzir à aporia. “Poder-se-ia falar então”, pergunta Paul Ricœur, “de uma
ars oblivionalis (Weinrich), no sentido que se fala de uma ars memoriae
(Yates)?” (2000:654)13 O problema é que a arte do esquecimento assenta-se
em uma retórica da extinção: escrever para apagar —o contrário de fazer um
arquivo. Contudo, mesmo Weinrich, por demais atormentado por “Auschwitz
e pelo esquecimento impossível”, não subscreveria esse sonho bárbaro. O
risco da busca incansável pelo esquecimento não nos levaria ao encontro de
uma memória interminável, como acontece com o narrador de Em busca do
tempo perdido?
Finalmente, a limitação da representação histórica diante da parte
intransmissível de uma experiência extrema e traumática pode beneficiar-se
de formas outras de representar o passado, pois intransmissível não significa
indizível (Ricœur, 2000:459). Resta-nos, ao menos, como escreve
poeticamente Hermann Broch, também ele um sobrevivente do nazismo,
sempre o Verbo.

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1-Cf. especialmente as páginas 314 e 326.


2-Ver também a análise de Paul Ricœur, que eu sigo em muitos momentos (2000:430-
432).
3-Reproduzido em LaCapra (1996:43-68). Sobre a “memória pública” da II Guerra
Mundial, ver Dogliani in Vinyes (Org.) (2009:173-207).
4-Com prefácio de Noam Chomsky.
5-Do mesmo autor, ver também: Ginzburg (1989:178-200) e (1989:44-45), além de
seu prefácio à obra Le juge et l’historien (1997).
6-Para uma análise das relações entre falsários e a história ou o método crítico, ver
Grafton (1990).
7-Para uma perspectiva mais teórica, ver Pollak (1989:3-15).
8-Para uma avaliação crítica em relação ao aporte psicanalítico a partir da obra de Paul
Ricœur, ver Levi in Abel (2006:75-98).
9-Para um comentário crítico à obra de Sarlo, ver Elmir (2009).
10-É a mesma constatação que se encontra em LaCapra (1996:110).
11-Ver a análise de Hartog, que eu sigo parcialmente (2007:84-86).
12-Sobre a Comissão da Verdade na Argentina e no Chile, ver o breve artigo de
Crenzel in Vinyes (2009:357-367).
13-Ver também Weinrich (2007) e Yates (2007).
As sombras brancas: trauma, esquecimento e usos do passado
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

No romance do escritor português José Saramago, Ensaio sobre a cegueira


(1995), a população de uma cidade é acometida por uma epidemia de
cegueira branca, uma cegueira luminosa, como se suas vítimas estivessem
mergulhadas num mar de leite. No romance do escritor angolano José
Eduardo Agualusa, O vendedor de passados (2004), Félix Ventura, um negro
albino, e uma lagartixa (osga), apelidada de Eulálio, vivem sob a sombra de
uma casa, fugindo ambos do contato com o sol, que incomoda os olhos por
sua intensa claridade e ameaça ulcerar a pele desses dois seres noturnos. Já
no romance do escritor moçambicano Mia Couto, Um rio chamado tempo,
uma casa chamada terra (2003), a personagem Miserinha já não vê brancos
nem pretos, tudo para ela é acinzentado, tudo para ela é mulato, não enxerga
nenhuma cor. Ora, parece que a cegueira, que a dificuldade de ver diante do
excesso de luminosidade, que a dificuldade de perceber cores, constitui tópos
literário recorrente, que se mostra presente tanto na obra do escritor
contemporâneo mais conhecido e laureado de Portugal quanto na obra de dois
dos mais expressivos escritores das antigas colônias portuguesas na África e
que fariam parte do grupo de escritores cujos trabalhos literários são
convencionalmente agrupados sob a designação de literatura pós-colonial.1
Parecemos estar diante de certa regularidade imagético-discursiva a
solidarizar a produção literária da antiga metrópole e das ex-colônias. Por que
uma temática como a da dificuldade de ver, de enxergar, de delinear a
realidade do mundo exterior parece cumpliciar a produção literária
portuguesa, angolana e moçambicana? O processo de colonização e
descolonização, a perda das antigas colônias por parte de Portugal, as guerras
pela independência, as guerras civis que lhes seguiram e o processo de
construção nacional em Angola e Moçambique teriam algo a ver com o
aparecimento recorrente dessas imagens literárias que remetem a um
adoecimento da visão, ao apagamento súbito ou progressivo da capacidade de
perceber as formas da realidade circundante, a fuga em encarar a realidade
sem o amparo das sombras?
A antropóloga brasileira Carolina Cantarino chama a atenção para um
aspecto que pode se constituir numa primeira explicação para essa
recorrência temática na produção literária, tanto da antiga metrópole quanto
das suas ex-colônias. Em artigo em que trata, justamente, da chamada
literatura pós-colonial, ela afirma que os processos de colonização e
descolonização marcaram não apenas os países colonizados, mas também os
países colonizadores. A colonização nunca foi um fato externo às metrópoles
imperiais, estando inscrita nas suas próprias culturas, assim como as culturas
imperiais também se inscreveram nas culturas dos colonizados (Cantarino,
2007). Trabalhando de forma teórica, justamente, a noção de inscrição,
utilizada pela antropóloga brasileira em seu artigo, o filósofo de
nacionalidade portuguesa, nascido em Muecate, Moçambique, em 1939, José
Gil, em uma de suas mais recentes obras, publicada em 2004 — mesmo ano,
portanto, da publicação do romance de Agualusa —, Portugal hoje: o medo
de existir (Gil, 2005), sob a inspiração de seu professor na França, Gilles
Deleuze, nos apresenta reflexões conceituais e históricas que talvez possam
nos auxiliar a entender essa recorrência do tópos literário da cegueira e suas
variantes na produção literária, tanto da metrópole, Portugal, como de suas
colônias, somente tornadas independentes na década de 1970. Esse império e
esse domínio colonial foram os mais duradouros em toda a história do mundo
moderno, já que duraram quase cinco séculos.
Em seu livro, José Gil fala do que seria a verdadeira obsessão dos
portugueses pelo passado, a produção e o consumo constante de obras
memorialísticas e históricas por parte da população de Portugal, fato que, no
entanto, não garantiria a verdadeira inscrição do passado, seja na consciência
coletiva dos portugueses, seja mesmo no inconsciente individual dos
indivíduos que aí habitam. Aí nada se inscreveria na vida social ou no plano
artístico. Talvez por isso, diz José Gil, os estudos mais sólidos em Portugal e
com maior tradição sejam aqueles que se referem à história, numa vontade
que, segundo ele, seria desesperada de inscrever, de registrar para dar
consistência ao que tende a desvanecer-se constantemente. Embora sejam
escritos reiteradamente, eles não se inscrevem, numa espécie de amnésia
coletiva. Os diversos e recorrentes usos do passado feitos pelos portugueses
nasceriam da incapacidade que eles teriam de inscrever, de registrar
duradouramente os acontecimentos. Para José Gil, Portugal se constitui no
país da não inscrição, e sem inscrição nada verdadeiramente acontece e sem
acontecimento não há verdadeiramente história, nem mesmo historiografia.
Mas o que José Gil chama de não inscrição? Ele cita exemplos: Portugal seria
o país onde um ministro se aproveita ilegalmente de uma lei a fim de não
pagar impostos para voltar à tona incólume, meses ou anos depois; a mancha
que em outros lugares acabaria definitivamente com sua carreira política, que
ficaria definitivamente inscrita na consciência coletiva, em Portugal pode ser
a oportunidade para ter a notoriedade capaz de lançá-lo a novas e mais
venturosas empreitadas políticas. Qualquer semelhança com o Brasil, a maior
e mais viçosa ex-colônia portuguesa, talvez não seja mera coincidência.
Seríamos também um país da não inscrição? Lançando mão de um grafito
escrito ao longo da parede de uma escadaria de Santa Catarina que desce para
o elevador da Bica, em Lisboa, José Gil dirá que em Portugal, portanto, “não
há drama, tudo é intriga e trama”, ou seja, nada de verdadeiro acontece, os
fatos se sucedem, são contados, são narrados em profusão e o próprio excesso
de narrativas torna os eventos fugazes, rapidamente esquecidos. Portugal teria
se negado a inscrever, por exemplo, em sua consciência coletiva, os 48 anos
de regime salazarista, assim como os séculos de colonialismo, de violências,
atrocidades e rapinas coloniais. O imenso perdão e o esquecimento dos
crimes da ditadura, o apagamento do passado português trazido e proposto
pela própria revolução de 25 de abril de 1974 se estendeu sobre o domínio
colonial na África. A independência das colônias marcaria o apagamento de
todo o passado e a criação de relações políticas, econômicas, culturais e
diplomáticas com as antigas colônias como se nada tivesse acontecido
anteriormente. Portugal seria o país onde sempre se passa a borracha sobre o
que passou, em que a escrita sobre o passado, contraditoriamente, serve para
mitificá-lo, torná-lo pouco nítido, serve para apagá-lo em seus contornos
mais ásperos e bicudos. Lembra-se em demasia para produzir o
esquecimento. O tom saudoso e nostálgico com que se tende a abordar o
passado português e o passado colonial dá a este passado (e ao próprio
presente, que aparece ora como continuidade, ora em contraste com aquele
passado longínquo) a forma de fotografias desbotadas, amareladas, em tom
sépia. Como acontece com a personagem Miserinha, do romance de Mia
Couto, tanto passado quanto presente e futuro aparecem acinzentados,
nebulosos, envoltos em brumas e mistérios, como a figura do encantado rei d.
Sebastião, que ainda um dia, quem sabe, retornará das trevas.
Para caracterizar o que seria a realidade social, cultural e política do
Portugal contemporâneo, José Gil utiliza imagens bastante próximas daquelas
que vão aparecer recorrentemente no discurso literário português e de suas
ex-colônias. O filósofo, como a maioria dos escritores da literatura
denominada pós-colonial, é um migrant writer, tem uma identidade cindida
entre a terra onde nasceu, na África, e sua formação educacional e identidade
nacional europeia; viveu a cultura do medo, o constante clima de repressão,
as vexações econômicas e culturais da época da ditadura salazarista —
elementos que, sem problemas, poderíamos estender à realidade das colônias,
teriam gerado nos portugueses uma espécie de branco psíquico ou histórico.
A negação pura e simples do real, sem o necessário trabalho simbólico e
imaginário, que segundo Lacan seria fundamental para haver a inscrição em
termos sociais e culturais, portanto humanos, fazia com que o real aflorasse
aqui e ali em sua face mais misteriosa e indomável. Quando o luto não vem
inscrever no real as perdas sofridas, quando algo que passou e se perdeu não
sofre o trabalho do luto, o morto e a morte virão assombrar os vivos sem
descanso, como o personagem Dito Mariano, do livro de Mia Couto, que
parece estar morto, em torno do qual todos se reúnem para o funeral, mas que
teima em não morrer, comunicando-se em sonhos e por cartas com o neto que
quer nomear como seu sucessor e continuador de sua linhagem e tradições.
Ele é um defunto a quem até a terra arenosa de Chão do Luar recusa o
enterramento, tornando-se impermeável a cada tentativa de cavar-se a cova
que receberia o corpo do patriarca morto. A falta de liberdades democráticas,
a ausência de espaço público, de tempos e espaços coletivos, a fragmentação
social, o isolamento provocado pelo medo do outro, um provável espião, tudo
isso tornava a vida dos portugueses, por definição, obscura, sombria, já que
todos buscavam não ser percebidos, identificados, todos se faziam assim
modestos, humildes, despercebidos, reservando, talvez, como aconselhado
para um povo católico, a inscrição da existência na eternidade muda das
almas. Não poderíamos dizer que nas colônias, onde havia o convívio entre
culturas e línguas estranhas, a vida isolada de muitos no meio rural, a
tentativa de fugir da dura repressão para todos aqueles que clandestinamente
lutavam contra o domínio colonial também não seria motivador de uma vida
levada nas sombras, na obscuridade? José Gil vai, ainda, usar
significativamente o termo sombra branca para caracterizar o que seria a falta
de ideias claras entre os portugueses, o que seria sua esperteza estúpida, o
constante saltar de uma ideia a outra, articulando num mesmo contexto ideias
pertencentes a regimes de consciência diversos. Para José Gil as consciências
portuguesas viveriam no que ele chama de estado de nevoeiro, como se uma
constante e intermitente neblina delas se apoderasse e as corroesse. O branco
psíquico inconsciente iria se esfarelando, fragmentando a consciência em mil
bocados, cada um deles, no entanto, plenamente consciente no seu campo
próprio.
Mas o que seria responsável, em último caso, por essa dificuldade em
inscrever social, política e culturalmente os eventos, o que obliteraria a
capacidade de inscrição dos acontecimentos na vida portuguesa, o que seria
responsável por esse desejo coletivo de esquecimento, por essa busca pelo
branco e não pela clareza? Para José Gil, a não inscrição tem como causa um
trauma, a não inscrição seria um mecanismo social e individual que os
portugueses desenvolveram ao longo de sua história para lidar com os
grandes traumas coletivos e individuais que vivenciaram. O trauma2 bloqueia
a inscrição, seja no inconsciente, seja na consciência, tanto em termos
individuais quanto coletivos. O trauma pode convocar ao esquecimento,
convocar à obliteração da expressão, ele pode provocar a incapacidade de
dizer, de fazer ver, de representar, ele pode gerar o bloqueio da capacidade
inventiva, poética, criativa dos indivíduos e das coletividades. A inscrição
implicaria ação, afirmação, decisão com as quais os indivíduos conquistariam
autonomia e sentido para as suas existências. Os portugueses, por causa do
salazarismo, aprenderam a irresponsabilidade, reduzindo-se a crianças
grandes, adultos infantilizados. Os sucessivos traumas históricos
representados pela expulsão em massa de árabes e judeus da península e a
Inquisição, a morte do rei d. Sebastião e a subordinação à Espanha na época
de Felipe II, a perda das colônias nas Índias e a subordinação à Inglaterra, a
invasão napoleônica e a fuga da família real para o Brasil, a perda de sua
mais próspera colônia com a independência do Brasil, o ultimatum inglês do
final do século XIX, a saída em massa de sua população para outros países
arrastada pela miséria e pela fome, a aventura colonial africana para onde
migraram milhares de portugueses, o salazarismo e sua queda com a
Revolução dos Cravos, a descolonização na África e o retorno de mais de 80
mil portugueses vindos daquele continente, bem como o choque representado
pela entrada na Comunidade Econômica Europeia seriam grandes traumas
que, aliados a uma sucessão de pequenos traumas cotidianos, teriam levado a
este fastio de inscrição.
Não tenho sequer condições de avaliar a justeza dessa leitura que José Gil
faz do que seria o modo de ser português, que, chama a atenção, como
entidade coletiva unitária não passaria também de mais uma das inúmeras
ficções que constituiriam a cultura portuguesa. O que me interessa é tomar
essas imagens e esses conceitos que, feitos para pensar o existir português,
hoje surpreendentemente guardam grande similaridade com temas e imagens
que são recorrentes nas literaturas tanto portuguesa quanto africana, algumas
delas ressoando também imagens que costumam ser associadas ao próprio ser
brasileiro, inclusive por nossa historiografia. A partir das obras literárias
citadas, vamos tratar mais detidamente da temática proposta para esta
conferência, articulando conceitos que aparecem nas reflexões tanto do
filósofo afro-lusitano quanto, direta ou indiretamente, constituem a literatura
de Saramago, Mia Couto e Agualusa, como as noções de trauma,
esquecimento, história, memória. Articularemos esses aspectos com a
reflexão sobre os próprios usos dados ao passado nessas sociedades e nesses
textos, que inegavelmente guardam interface com a realidade brasileira. O
que pretendo interrogar é até que ponto essa recorrência do tópos da cegueira,
de uma cegueira branca, de uma dificuldade de enxergar trazida pelo excesso
de claridade, essa dificuldade em ver cores que aparece tanto no romance de
Saramago quanto nos de José Eduardo Agualusa e Mia Couto não seriam
expressões literárias daquilo que o filósofo José Gil chama de dificuldade de
inscrição? Até que ponto essa literatura que busca falar da realidade
contemporânea de cada um de seus países não teria encontrado um problema
comum, talvez causado pelo passado também partilhado na colonização por
colonizadores e colonizados que seria essa dificuldade de inscrever histórica
e psiquicamente os acontecimentos que essa relação colonial deu origem?
Não seria essa literatura praticada tanto na antiga metrópole quanto nas
antigas colônias, marcadas por uma constante reflexão em torno do passado,
em torno dos acontecimentos passados e presentes, uma tentativa de inscrever
artisticamente essa realidade, superando, assim, o silêncio produzido pelo
trauma representado pelos processos de colonização, descolonização,
independência e formação das novas nacionalidades? Essa literatura não seria
a tentativa de superar e, ao mesmo tempo, a forma de constatar e inscrever a
presença do branco psíquico, do nevoeiro, da sombra branca de que fala Gil,
no interior dessas sociedades? Não representariam essas obras dadas formas
de uso do passado que visam tratar dos traumas e esquecimentos produzidos
pela experiência colonial das populações da metrópole e das colônias? Diante
dessas obras gostaria de interrogar sobre que usos são feitos do passado e
como esses usos representam a tomada de posição diante da realidade de seus
países, por parte de autores, quase sempre gerados fisicamente e formados
cultural e educacionalmente, inclusive linguisticamente, nas várias situações
de embaralhamento, hibridismo, negociação, nomadismos e
desterritorializações possibilitadas pela realidade colonial, notadamente
aquela gestada nos moldes portugueses, em que nunca houve a segregação
racial oficial e na qual a formação de elites mestiças, inclusive com acesso a
cargos tanto nas colônias quanto na metrópole, foi constante. Esses Homens
às vezes dilacerados entre universos culturais diversos como a sua tribo no
meio rural, a cidade colonial e a cidade da metrópole, divididos entre o que
nomeiam de suas tradições culturais, as mestiçagens culturais promovidas
pela colonização e os influxos de modernidade e cosmopolitismo vindos da
Europa tornam-se escritores que comungam com a mesma preocupação que
parece ter sido constante na produção literária e historiográfica da metrópole:
a questão das identidades, sejam elas étnicas, de gênero e, principalmente,
nacionais. Aqueles que Portugal nomeava de integrados, que eram os
descendentes de portugueses, mesmo mestiços, e os negros africanos
aculturados que viviam em suas colônias, que em casos como o de
Moçambique não passavam de 5% da população autóctone, deram origem à
futura elite dirigente desses países quando de suas independências. Inclusive
é deles que saem os grandes nomes da produção literária local, sendo,
portanto, homens que se formaram neste entrelugar de africano europeizado,
de negro branqueado, sendo, portanto, compreensível que essa realidade
traumática coloque para eles a questão da identidade, seja coletiva, nacional,
seja individual, étnica, geracional, de gênero, como um tema de reflexão
premente.
Trabalharei, neste capítulo, apenas com o livro de José Eduardo
Agualusa, O vendedor de passados. De sobrenome bastante poético, o autor,
no entanto, não é apenas, como afirma, filho de águas lusas. Ele poder-se-ia
dizer um crioulo, identidade ou exemplo de identidade problema que ele
gosta de assumir e representar em seus livros, pois sua família tem
ascendências portuguesas pelo lado paterno, brasileiras e angolanas pelo lado
materno e, mesmo dentro de Angola, está presente em várias regiões, embora
tenha nascido no planalto central do país, na província de Huambo. Estudou
agricultura e silvicultura em Lisboa, já morou em Olinda e no Rio de Janeiro,
e divide seu tempo entre Luanda, Lisboa e viagens ao Brasil, o que faz da sua
literatura, inclusive no que diz respeito à linguagem que utiliza, uma espécie
de mestiçagem dos diversos falares da língua portuguesa: sua obra seria uma
representação da lusofonia. Agualusa, que nasceu em 1960, estava com
pouco menos de 14 anos quando explodiu a guerra pela independência de seu
país. Ele tornou-se adulto presenciando as matanças que os vários momentos
da guerra civil em Angola proporcionaram. A miséria da população angolana,
as atrocidades cometidas pelas diferentes facções que lutavam pelo poder no
país, inclusive no interior do Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA), que controla politicamente o país desde a independência, e a
corrupção endêmica são temas permanentes em seus escritos. Mas o que
quero privilegiar aqui é como Agualusa aborda o passado, que usos faz dele
e, ao mesmo tempo, que usos do passado ele atribui à população angolana
que viveria não apenas em constante busca do que seriam suas tradições
anteriores à chegada dos portugueses, em nome das quais o Estado angolano
investe na produção de eventos e atividades de memória, mas também em
busca do passado, tanto da época da colonização quanto da época mais
recente, após a independência, quase sempre sonegado ou desvirtuado pelas
intensas lutas políticas, ideológicas e militares que dividiram o país e pela
censura constante feita pelo regime colonial ou por aquele surgido com a
independência. Contraditoriamente, esse afã em busca do passado parece
testemunhar a ocorrência entre os angolanos daquilo que o filósofo José Gil
chama de sombra branca ou de não inscrição, ou seja, essa frenética busca
pelo passado parece revelar de que forma este foi sendo vítima de constantes
esquecimentos — coletivos, individuais e até oficiais —, como tende a
denunciar o autor em suas obras. O tema da memória, constantemente
retomado pelos seus conterrâneos e pelas obras do escritor, segundo ele
mesmo, demonstra a enorme necessidade que seus patrícios teriam do que
chama de mentira necessária, ou seja, a ideia da pertença a um passado
comum.
No livro aqui tratado, a personagem principal, Félix Ventura, um negro
albino, é significativamente um vendedor de passados, um alfarrabista, que
herdou uma enorme quantidade de escritos e livros de seu pai e ganha a vida
vendendo para seus clientes uma história de vida, uma biografia, criando uma
genealogia nobiliárquica para quem o contrata. Seus clientes são membros da
nova elite angolana, da burguesia ascendente que têm um futuro promissor,
mas falta-lhes um passado digno e que, em muitos casos, não seja
comprometedor. Seriam empresários, ministros, fazendeiros, camanguistas,
generais em busca de ancestrais ilustres, nomes que ressoem nobreza e
cultura. Muitos desses personagens, envolvidos com o passado colonial ou
em crimes cometidos na luta pela independência e nas várias guerras que a
sucederam, procuravam limpar seu passado, procuravam, inclusive, árvores
genealógicas que os levassem a descender de heróis nacionais, serem vistos
como legítimos angolanos, tendo como tias legítimas bassanganas, avôs com
o porte ilustre de um Machado de Assis, de um Cruz e Sousa, de um
Alexandre Dumas. O próprio Félix Ventura se nomeia um vendedor de
sonhos, embora na cidade fosse conhecido como traficante de memórias, já
que vendia aos clientes o passado que sonhavam para si, entregando a eles
documentos amarelados, fotografias em cor sépia de avôs, bisavôs, de
senhoras do tempo antigo, reportagens de velhos jornais atestando a
existência daquela família e suas ações em benefício do país há bastante
tempo.
O livro é narrado pelo estranho companheiro de morada de Félix Ventura,
uma lagartixa de parede, uma osga chamada Eulálio, que já fora humano em
outras encarnações, que já tivera, portanto, um passado humano, com o qual
sonha quando cai a noite, sonhos que agitam sua vida e lhe retiram do tédio
da condição atual, talvez para indiciar que ter memória seria um atributo que
nos torna humanos, que indicia nossa humanidade. Esse caráter ambíguo e
misterioso de Eulálio, que ressaltaria o que no humano existe de animal, essa
indefinição de fronteiras e, portanto, de identidade entre o homem e a
natureza, que por vezes queremos ignorar, aparece como uma temática
recorrente na literatura africana chamada de pós-colonial. Nessa literatura, a
história e a fantasia se misturam constantemente, sem que as fronteiras entre
elas sejam bem nítidas; o factual e o imaginário se entrelaçam, assim como
aquilo que seria da ordem do racional e do irracional, aquilo que para a
literatura latino-americana foi chamado de realismo mágico. Por meio desse
personagem o autor introduz também outro elemento marcante nessa
produção literária, o exercício constante da reflexão sobre o próprio ato de
narrar, sobre as suas consequências, ou seja, o exercício da metanarrativa. Em
um livro que é uma narrativa sobre um passado há uma reflexão sobre o
próprio caráter criativo do ato de narrar o passado, sobre como o passado é
inventado narrativamente, como ele é, inclusive, documentado, sustentado
por indícios, ou sobre como a história de uma vida se inicia pela escolha de
um nome e pelo articular em torno de uma memória, de um conjunto de
eventos e rastros que configuram sua trajetória no tempo. Embora Eulálio
seja um animal, seu olhar e até o seu riso são humanos, é ele que acompanha
o desenrolar da trama do romance, que a entremeia com a narrativa de suas
memórias, com a narrativa do seu passado humano que retorna em flashes
quando algum evento o convoca.
A trama se inicia com a chegada de um estrangeiro à casa de Félix
Ventura. Ele deseja comprar não apenas um passado, mas toda sua
documentação falsificada. Depois de titubear diante do novo encargo, o de
falsário, Félix Ventura lhe atribui um nome, José Buchmann, e todo um
passado de descendente de um avô pertencente a um grupo de emigrados
bôeres, que teriam vindo se fixar na província de Huíla, no sul do país, para
criar gado e cultivar a terra. Aí o avô teria conhecido e casado com uma
descendente de colonos madeirenses, Marta Medeiros, com a qual teria
gerado dois filhos. O mais novo, Mateus, teria casado com uma artista
americana, a pintora Eva Miller, com quem tivera José Buchmann, seu único
filho. Félix ainda entrega ao estrangeiro toda a documentação solicitada: um
bilhete de identidade, um passaporte, uma carta de condução, onde constava
ser ele natural da vila de São Pedro da Chibia, ter 52 anos e ser fotógrafo
profissional. Acompanhando essa documentação, uma pasta com várias
fotografias: numa, bastante gasta, via-se um homem enorme, com um ar
absorto, montado num boi-cavalo — seria Cornélio Buchmann, o avô; noutra,
um casal abraçado às margens do rio Chimpumpunhime seriam seus pais.
Então Félix vai inventando uma narrativa para o passado daquele homem que
recém-batizara, articulando, assim como fazemos nós, historiadores, uma
narrativa com objeto e materiais que servem de documento ou testemunho;
como, diriam alguns de nós, evidências ou provas da realidade, da veracidade
daquele passado narrado:

Devia ter sido José, então com 11 anos, a fixar aquele instante. Mostrou-lhe um
antigo número da Vogue com uma reportagem sobre caça grossa na África
austral. O artigo reproduzia uma aquarela com uma cena da vida selvagem —
elefantes banhando-se numa lagoa — assinada por Eva Miller.
Poucos meses depois daquela foto, o rio correndo sereno para seu destino, o
capim alto em meio à tarde solene, Eva partiu para a Cidade do Cabo, numa
viagem que deveria durar um mês, e nunca mais regressou. Mateus Buchmann
escreveu a amigos comuns na África do Sul, pedindo notícias da mulher, e como
nada conseguisse, confiou ao filho a um empregado, um velho pistoleiro cego, e
foi à procura dela [Agualusa, 2004:42].

Nesse passo Félix Ventura cessa a narrativa e deixa em aberto o restante


da trama. Qual não é sua surpresa ao saber pelo próprio José Buchmann que
este deu continuidade à procura que seu pai iniciara pelo paradeiro de sua
mãe, o que o levou até a Cidade do Cabo, depois à cidade de Nova York.
Encontrou não só uma Eva Miller que teria morado nessas duas cidades,
como na cidade africana encontrara aquarelas por ela assinadas e o anúncio
de sua morte. Na cidade americana chegara até a visitar o apartamento cheio
de espelhos onde teria levado uma vida solitária. Ou seja, a identidade fictícia
não só de José Buchmann, mas da sua mãe, vai ganhando contornos de
veracidade. O autor parece querer dizer que as fronteiras entre a ficção e a
realidade, quando se trata de passado, não são muito nítidas. Mas o que mais
chama a atenção é a própria busca empreendida por Buchmann a fim de
certificar-se da veracidade de um passado que de antemão sabe ser uma
invenção. A necessidade de acreditar nesse passado inventado contrasta com
o seu silêncio sobre o próprio passado, sobre o qual se recusa a falar desde o
início.
Só quando, no final do livro, esse passado é revelado, só quando toda sua
violência e dramaticidade vêm à tona, por mero acaso, é que esse silêncio em
torno dele e a busca por substituí-lo por outro fará sentido. Esse passado
traumático, obliterado, que se procura esquecer, sobre o qual sequer se fala
para que não se inscreva, por insuportável que é, contraditoriamente dá
origem a uma proliferação de relatos sobre o passado, que de tão verossímeis
terminam por vir ocupar o lugar daquilo que efetivamente ocorreu. Esses
passados suplementares, esses passados fictícios, sejam aqueles da literatura,
sejam aqueles das memórias, sejam aqueles da historiografia oficial, visam
suplementar o vazio deixado por passados que de tão traumáticos não se
consegue ou não se pode contar, não se pode inscrever nas consciências ou
mesmo no inconsciente dos indivíduos. Assim como essas narrativas vêm
preencher o branco das folhas de papel, vêm também preencher o branco
psíquico ou histórico, como diria José Gil, que o caráter traumático da
história de Angola produziu nas consciências e sensibilidades de seus
habitantes. Inventam-se muitas histórias coletivas e individuais — algumas
tão semelhantes à realidade que, por absurdas que sejam, passam a se
realizar, a ser a própria realidade.
Um exemplo disso seria o livro de memórias que Félix Ventura escrevera
para um ministro de Estado, significativamente intitulado de A vida
verdadeira de um combatente, cuja publicação prometia dar outra
consistência à história do país, servindo de referência para futuras obras que
tratassem da luta de libertação nacional. Embora tivesse sido nos anos 1970
apenas baterista da banda de rock Os Inomináveis — nome bastante
sugestivo em um livro que lida com o caráter artificial das identidades —, -
estivesse mais interessado em mulheres do que em política, tivesse fugido
para Portugal antes do começo da guerra pela independência e aí vivido na
pele do Mestre Marimba, curando mau-olhado, inveja, doenças da alma,
garantindo sucesso no amor e nos negócios a quem com ele se consultasse,
notadamente às mulheres, que não saíam de seu consultório e o cobriam de
presentes, é ele quem alcança enorme sucesso com esse negócio. Retorna rico
a Angola, onde adquire uma rede de padarias, as Padarias União Marimba.
Alça-se à vida pública ao se achegar a algumas estruturas de poder para
legalizar seus negócios, e em pouco tempo já frequenta casas de ministros e
generais, sendo nomeado dois anos depois secretário de Estado para
Transparência Econômica e Combate à Corrupção, e posteriormente ministro
da Panificação e Laticínios. Ele contará outros eventos em sua história de
combatente, o que lhe dá a imagem de patriota exemplar, de verdadeiro
descendente do sangue da família de Salvador Correia Sá e Benevides:

Para a história ficará a verdade que Félix fez o ministro contar: em 1975,
desiludido com o rumo dos acontecimentos, e porque se recusava a participar de
uma guerra fratricida, o ministro exilou-se em Portugal. Inspirado nos
ensinamentos do avô paterno, um homem sábio, profundo conhecedor das ervas
medicinais de Angola, fundou em Lisboa uma clínica dedicada às medicinas
alternativas africanas. Regressou à pátria, em 1990, finda a guerra civil, com o
firme propósito de contribuir para a reconstrução do país. Queria dar ao povo o
pão nosso de cada dia. E foi isso que fez [Agualusa, 2004:141].

Mas a essas memórias propositadamente adulteradas com objetivos


políticos, à história oficial fabricada para legitimar aqueles que estão no
poder — indiciadas no livro, ainda, pela suspeita de que o presidente em
exercício fosse um sósia, um duplo do verdadeiro —, memórias e história que
também levam ao esquecimento e apagamento do passado efetivamente
acontecido, vêm se somar àquelas memórias e àquela história não inscritas e
não escritas, sequer ditas ou admitidas por causa do trauma, do medo e da
dor. Exemplo desse tipo de memória era aquela que carregava consigo o
homem agora nomeado de José Buchmann que, ao final da narrativa do
romance, tem sua verdadeira identidade revelada por um exagente de
Segurança do Estado, agora transformado em mendigo. Este, que se
autodefine como ex-agente, mora nos esgotos da cidade, onde ainda guarda
as fichas de todos aqueles a quem, em sua época, espionou para o regime.
Vestindo uma suja e esfarrapada camiseta do Partido Comunista da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, Edmundo Barata dos Reis é a própria
encarnação da débâcle da utopia socialista e do socialismo real, além do
próprio declínio dos ideais comunistas que sustentaram o governo
encabeçado por Agostinho Neto, o Velho. José Buchmann era na verdade
Pedro Gouveia, pai de Ângela Lúcia, também fotógrafa e, por coincidência,
amante de Félix Ventura. Embora não se encontrassem há muitos anos, eles
se reconhecem assim que se veem na casa do alfarrabista. Pedro Gouveia
participara da tentativa de golpe de Estado, capitaneada pelo próprio ministro
do Interior do governo Agostinho Neto, Nito Alves, no dia 27 de maio de
1977. O evento ficou conhecido como fraccionismo, e a ele seguiu-se uma
dura repressão que levou à execução de quase 15 mil pessoas (Fuso, 2010).
Quando Pedro Gouveia descobre naquele mendigo que encontrara por acaso
nas ruas de Luanda o homem que torturou sua mulher, a também pintora e
poetisa Marta Marinho, até que ela desse luz prematuramente à sua filha e
depois morresse, e encontra em seu esconderijo as fichas da polícia política, o
persegue com o revólver em punho até a casa de Félix Ventura, aonde ele
próprio já o havia levado. É quando, pressionado, o ex-agente de segurança
narra os seguintes acontecimentos:

— Aconteceu há muito tempo, não é verdade? No tempo das lutas. — Aponta


para Ângela. — Acho que a menina ainda nem era nascida. A Revolução estava
em perigo. Um bando de miúdos, uma cambada de pequeno-burgueses
irresponsáveis, tentou tomar o poder pela força. Tivemos de ser duros. Não
perderemos tempo com julgamentos, disse o Velho em seu discurso à nação, e
não perdemos (esta frase realmente foi dita por Agostinho Neto num discurso nos
meios de comunicação)… Este tipo, o Gouveia, julgou que lá por ter nascido em
Lisboa conseguia escapar. Telefonou ao cônsul de Portugal, senhor cônsul, sou
português, estou escondido em tal parte, venha salvar-me por favor, e já agora
minha mulher, que é preta mas espera um filho meu. Ah!Ah! Sabe o que fez o
cônsul português? Foi buscá-los os dois e a seguir entregou-os em minhas mãos.
Ah!Ah! Agradeci muito ao cônsul português, disse-lhe, o camarada é um
verdadeiro revolucionário (lembrando que Portugal já vivia um regime nascido da
Revolução dos Cravos), … e depois fui interrogar a rapariga. Ela aguentou dois
dias. Às tantas pariu, ali mesmo, uma menininha, assim, deste tamanho, sangue,
sangue, quando penso nisso o que vejo é sangue. O Mabeco, um mulato lá do Sul
… cortou o cordão com um canivete e depois acendeu o cigarro e começou a
torturar a bebê, queimando-a nas costas e no peito. Sangue, pópilas!, sangue pra
caralho, a rapariga, a tal Marta, com dois olhos que pareciam luas, custa-me
sonhá-la, e a bebê aos gritos, o cheiro de carne queimada. Ainda hoje, quando
deito e adormeço, sinto aquele cheiro, ouço o choro da criança … [Agualusa,
2004:176-177].

O que o ex-torturador não sabia é que a menina que ele pensava não ter
nascido na época do ocorrido era, na verdade, a bebê torturada por Mabeco
— Ângela Lúcia, a filha de Pedro e Marta, que, estática, ouvia a narrativa
medonha de como fora violentada ainda criança, violência que deixara
cicatrizes que ainda carregava no corpo e na alma. Diante da incapacidade do
pai de puxar o gatilho e matar o responsável pela morte de sua mãe, Ângela
arrebata-lhe a arma e dispara sem dó contra o ex-agente da polícia.
Traumas como este não podem ser esquecidos, não podem passar pela
não inscrição, porque com isso a sombra branca, a doença da cegueira social,
só tenderá a crescer, como parecem nos dizer os livros de Saramago,
Agualusa e Mia Couto. Os historiadores, embora não deixem de ser, hoje,
vendedores de passado, quase sempre a preço vil, devem fazê-lo não a
serviço do branqueamento, da limpeza, da assepsia do passado, como vemos
recorrentemente acontecer na mídia, nos meios de comunicação de massa.
Estamos assistindo, nestes dias que correm, à aposta na amnésia social, na
capacidade que parece infinda da sociedade brasileira em esquecer, em não
inscrever na consciência coletiva, no espaço público, nas memórias os fatos e
feitos pouco abonadores de nossas elites dirigentes. Os historiadores devem
ser agentes do luto social, aqueles que expõem o sangue derramado e o cheiro
de carne calcinada para que se clame novamente contra a injustiça e o crime
produzidos. A história deve ser o trabalho com o trauma para que ele deixe de
alimentar a paralisia e o branco psíquico e histórico e possa levar à ação, à
criação, à invenção, à afirmação da vida naquilo que ela tem de beleza.
Talvez por isso todas as personagens do livro de Agualusa manejem uma
dada técnica de representação ou uma linguagem através das quais se podem
criar novas realidades, novas formas para o mundo e para a vida. A
fotografia, a pintura, a capacidade de narrar, de escrever aparecem como
possibilidades de simulação de novas realidades, inclusive para o passado,
realidades que alimentem o desejo de vida e não o desejo reativo de morte.
Só a criação, só a afirmação pela arte, do conhecimento, da linguagem faz
dos homens humanos, faz com que se inscrevam e escrevam o mundo e a si
mesmos nele. Talvez ele aponte uma maneira de fazer história distinta
daquela representada pela guerra, pela revolução, pelos embates políticos e
pelas disputas territoriais que muito infelicitaram o século XX e foram
responsáveis pela morte de mais de 500 mil pessoas nas últimas décadas da
história angolana. Talvez, como Nietzsche, esteja nos alertando para os
perigos da história para a vida.

Referências
AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.
CANTARINO, Carolina. Ficção pós-colonial retrata conflitos contemporâneos. São
Paulo: Ciência e Cultura, n. 59, abr-jun 2007.
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
FERENCZI, Sandor. Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FUSO, José. Angola, 27 anos depois… Golpe fraccionista. Disponível em
<http://www.angonoticias.com/full_headlines.php?id=5480>. Acessado em 15
out. 2010.
GIL, José. Portugal hoje: o medo de existir. 6 ed. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
HAMILTON, Russel G. A literatura dos PALOP e a Teoria Pós-colonial. Disponível em
<http://www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/665414.pdf>. Acessado em
15 out. 2010.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
1-Ver Hamilton. Disponível em
http://www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/665414.pdf. Acessado em 15 out.
2010.
2-Para a discussão psicanalítica da noção de trauma, ver Ferenczi (1990).
História que temos vivido*
CARLOS FICO

A história do tempo presente não é uma especialidade voltada apenas para


assuntos peculiares ao século XX. A expressão assinala o início de um
período histórico que se estenderá por muito tempo. Ela tem sido usada como
equivalente de outras, assemelhadas, que designaram a história narrada por
historiadores desde a Antiguidade, mas que o cientificismo do século XIX
condenou. A discussão de graves demandas teóricas, como a necessidade de
distanciamento ou as limitações impostas pela perspectiva, não diz respeito
somente à modalidade, mas afetam toda a disciplina histórica.
Antes de argumentar, gostaria de relatar dois episódios à guisa de
evocação das intricadas relações entre perspectiva, testemunho e interdição
— questões que pretendo abordar e que tanto marcam nosso campo.
Certa vez, entrevistando um general moderado que ocupou importante
função durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), perguntei por que
ele havia apoiado, em 1968, a decretação do Ato Institucional no 5 — espécie
de decretum terribile que tornou o regime, até então respeitador de alguns
direitos básicos, definitivamente autoritário. A partir do Ato, a tortura tornou-
se prática sistemática após as prisões e durante os interrogatórios de todos
quantos eram suspeitos de “subversão”. Ele me disse que, apesar de ser
contra a violência e defensor da democracia, apoiou o decreto desde que se
convencera, naquele ano, do poderio dos comunistas, cuja força lhe parecia
evidente em função das passeatas e manifestações de protesto que lideravam,
sem falar nas ações armadas que promoviam, como assaltos a bancos e
sequestros de diplomatas: “Eles até sequestraram o embaixador dos Estados
Unidos!”, exaltou-se. Eu o olhei por um instante e o corrigi compreensivo:
“Mas, general, o senhor sabe que o sequestro foi depois do AI-5”. Ele não
estava mentindo. Durante o momentâneo silêncio que se instaurou, o militar
me olhou surpreendido consigo mesmo, balançou a cabeça como se afastasse
o lapso e logo tivemos a percepção de que as coisas estavam mais claras. A
partir de então, a entrevista prosseguiu de maneira muito eficaz.
O segundo episódio deu-se durante uma palestra por ocasião das
celebrações dos 40 anos de maio de 1968. Eu tentava desmistificar — diante
de plateia numerosa — a visão romantizada da luta armada durante a mesma
ditadura militar: os que atuaram na guerrilha no final dos anos 1960 e início
dos anos 1970 têm sido vistos como jovens “tresloucados”, heróis românticos
aos quais não restava outro caminho senão o da luta armada, justamente
porque a ditadura havia endurecido com o AI-5. Essa leitura, entretanto,
elimina o conteúdo ofensivo daquela “opção pelas armas”, que não foi apenas
uma reação à repressão do regime ou uma resistência democrática, uma vez
que o debate sobre a luta armada animava a esquerda revolucionária antes de
1968. A interpretação que eu sustentava causara desconforto, porque parecia
desonrar a memória daqueles militantes, já que prevalece no país, até em
termos governamentais, uma leitura enaltecedora dessas pessoas. O debate
acirrou a audiência e eu também me exaltei um pouco, enquanto tentava
trazer evidências empíricas para minha interpretação sustentando os melhores
argumentos que detinha como historiador pretensamente objetivo. Nesse
momento, uma senhora levantou-se e disse: “Eu fui barbaramente torturada!”.
Caímos em profundo silêncio. Nada mais podia ser dito após aquela frase.
Como se vê, o “falseamento” flagrado na entrevista com o general acabou
nos aproximando de uma possível verdade, na medida em que
experimentamos, eu e ele, um distanciamento histórico que até então não
havíamos vivenciado. Já o testemunho autêntico e irretorquível que encerrou
o segundo episódio apenas serviu para interditar o debate que se travava,
comprometendo, com sua sacralidade, a busca de objetividade. A
interpretação do historiador confrontada pelo testemunho dos coetâneos; a
diferença entre perspectiva histórica e recuo temporal; a tensão entre a
pragmática metodológica da história e a memória de “eventos traumáticos”
— são todos complexos problemas teóricos que têm animado o debate sobre
a história do tempo presente, em sua versão do século XX, embora,
evidentemente, não digam respeito exclusivamente a ela.
Refiro-me à versão do século XX porque, como é sabido, a história do
tempo vivido foi amplamente praticada durante a Antiguidade, a Idade Média
e a Idade Moderna, chegando mesmo ao século XIX, como se verá mais
adiante. A interdição que então sofreu perduraria apenas por décadas, já que,
desde a I Guerra Mundial, ela ressurgiria, enfrentando percalços, até afirmar-
se plenamente no terço final do século XX.
A I Guerra Mundial havia sido importante para despertar o interesse pelos
eventos responsáveis por sua eclosão, especialmente no contexto das relações
internacionais. Em 1920, um pequeno grupo que participou da Conferência
de Paz em Paris, no ano anterior, criou o Royal Institute of International
Affairs em Londres (Woodward, 1966:3), mas, já em 1915, Justus Hashagen,
editor de uma revista de história e respeitado por seus estudos
historiográficos, reclamava em seu livro sobre a pesquisa da história
contemporânea que a Alemanha não contava com bons trabalhos sobre o
período recente, ao contrário da França e da Inglaterra. Ele sustentava uma
série de argumentos que se tornariam temas recorrentes no debate sobre a
história do tempo presente. Hashagen dizia, em resumo, que, embora
houvesse o problema da perspectiva ou do recuo, a modalidade deveria
buscar afirmar-se cientificamente, distinguindo-se das avaliações meramente
políticas ou ligeiras sobre os temas contemporâneos, inclusive recorrendo à
história tradicional para desenvolver métodos próprios (apud Ernst,
1957:137-189).
O evento essencial, entretanto, foi a II Guerra Mundial. Na França, logo
após a libertação, em 1946, o governo criou a Commission d’Histoire de
l’Occupation et de la Libération de la France, que depois se transformaria no
Comité d’Histoire de la Seconde Guerre Mondiale (Rémond, 1993:28). Um
instituto holandês para estudar os episódios recentes foi criado ainda em
1945, em Amsterdã. O italiano veio em 1949, com o estabelecimento, em
Milão, do Istituto Nazionale per la Storia del Movimento di Liberazione,
incorporado ao Estado em 1967. O Institut für Zeitgeschichte, de Munique,
também é de 1949. O propósito fundamental desses institutos era a
conservação de documentos e a escrita da história da atividade clandestina da
resistência, mas, em termos gerais, sua produção não surpreendeu: a
vinculação com o Estado levou a uma história de caráter oficial, em alguns
casos necessariamente censurada pelo governo e que não abordava temas
tabu como o genocídio, a perseguição dos judeus na França ou a atuação do
rei Leopoldo III da Bélgica no episódio de sua rendição aos alemães.
Marcada pela história política tradicional, a produção dessa fase deu
visibilidade à história recente, mas foi significativamente distinta da que viria
a ser produzida no final do século XX. Assim, embora seja inegável a
centralidade da II Guerra Mundial como “acontecimento inaugural”, também
é perceptível que certos temas e enfoques da história do tempo presente que
se tornaram marcantes — como a deportação de judeus ou a problemática da
memória — só se consolidariam a partir dos anos 1980 (Rousso, 2000:32).
A criação do Institut d’Histoire du Temps Présent, na França, em 1978,
teve a capacidade de estabelecer, pelo debate que se seguiu, uma série de
argumentos que tinham o propósito explícito de configurar um novo campo
disciplinar — distinto da modalidade existente até o século XIX, mas
também novo em relação à história do tempo presente praticada desde o fim
da guerra.1 A nova versão francesa tomou como modelo, em termos de nome,
a congênere alemã— Zeitgeschichte — na medida em que o instituto francês,
apesar de ter sido criado como herdeiro do antigo Comité d’Histoire de la
Seconde Guerre Mondiale (1950), dele queria diferençar-se, não obstante
também pretendesse ocupar-se da história posterior à II Guerra Mundial.
A estratégia adotada pelo instituto francês — consciente ou
inconscientemente — reproduziu, de algum modo, a atitude militante e a
argumentação essencialmente metodológica dos fundadores dos Annales.2
Ecoando os velhos combates de Lucien Febvre contra a história
événementielle, René Rémond, que presidiu a comissão científica do instituto
até 1990, disse que “a reintegração do tempo presente faz varrer da visão da
história os últimos vestígios do positivismo” (1993:12). Henry Rousso, que
também dirigiu a instituição, assinalou “a tendência ainda bastante viva […]
de persistir no desejo de justificar a própria possibilidade de uma história do
tempo presente” (Rousso, 2007:278). Michelle Perrot mencionou a “atitude
prudente e silenciosa” dos professores da Sorbonne, nos anos 1950, que
dificultava a abordagem da história do tempo presente (Perrot, 1993:254).
Mas a luta pelo reconhecimento da especialidade esteve longe de ser apenas
francesa.3 Na Itália a caminhada também foi lenta (Galimi, 2003). A
Alemanha — que viveu, centralmente, a interdição da modalidade no século
XIX — assistiu a uma gradual aceitação da história dos períodos recentes: em
1959, a direção do Institut für Zeitgeschichte admitiu a introdução dos
estudos do pós-guerra em seus programas (Klessmann e Sabrow, 1997:221).
Fritz Ernst, em um artigo de 1957 que continua atual, assinalou a
importância da I Guerra Mundial para a derrubada de antigas restrições:
praticada esporadicamente desde o final do século XIX, a história do tempo
presente se impunha aos alemães devido à necessidade de entendimento
daquele conflito. Por isso, diz ele, os impedimentos foram vencidos (Ernst,
1957:179), mas a importância da II Guerra Mundial seria maior e a luta pela
retomada da modalidade no final do século XX tem, sobretudo na França e na
Alemanha, uma forte conotação de acerto de contas com o passado
traumático. Assim, em termos gerais, podem ser assinaladas duas grandes
fases dessa retomada: a que decorre do impacto das guerras mundiais e a que
se inicia no final dos anos 1970, no contexto das tentativas de “renovação” da
história. O importante é sublinhar a relação, por assim dizer, “dialética” entre
a interdição ocorrida no século XIX e a luta pela retomada no século XX,
processo fundamental para a legitimação da modalidade, inclusive em termos
do estabelecimento de uma narrativa de sua constituição.
A argumentação essencialmente metodológica a que me refiro talvez
tenha sido a outra face da mesma estratégia de luta e justificação da história
do tempo presente: evitando confrontar os problemas teóricos mais
espinhosos como o da perspectiva histórica, do distanciamento do objeto ou
da neutralidade científica, boa parte dos debates concentrouse na afirmação
de que a especialidade era rigorosa, distinta de “gêneros inferiores” como o
jornalismo, e em polêmicas quase nominalistas sobre nomenclatura e
periodização.
Arthur Schlesinger, Jr. — que além de historiador também foi assessor do
presidente norte-americano cujo assassinato se tornaria um ícone do século
XX —, escrevendo logo após a morte de Kennedy, disse que a história
recente esteve nas mãos de um “bando desordenado de memorialistas e
jornalistas” (Schlesinger, 1967). O historiador alemão Gerhard Ritter, anos
antes, lamentava o fato de que o historiador jamais conseguia superar a
velocidade e o poder de convencimento dos jornalistas (Ritter, 1961:269).
Essa competição com o jornalismo tem relação com a coincidência de temas,
mas também diz respeito a certa visão negativa em relação aos meios de
comunicação de massa, sobretudo depois das reflexões de integrantes da
Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer (1985). As interpretações
difundidas pelos meios de comunicação estariam, de algum modo,
conspurcadas e, para algumas leituras mais pessimistas, não existiria um
“espaço puro, exterior à cultura da mercadoria” (Huyssen, 2000:19).
Em resumo, como afirmou Koselleck em seu estudo sobre os conceitos
de movimento na modernidade, de 1977, a tópica do “gênero inferior” firmou
a leitura de que a história do tempo presente, após a interdição do século
XIX, deslizou para esse patamar desprestigiado (Koselleck, 2006:293),
passando a ser cultivada por jornalistas, “armadilha” contra a qual era preciso
estar atento — alertava Henry Rousso.4 O direito de estabelecer o que é
histórico, território quase exclusivo do historiador durante séculos, tornou-se,
na segunda metade do século XX, uma atribuição compartilhada com os
jornalistas. A imprensa — com a autoridade que a palavra impressa e a
imagem publicamente veiculada têm — afirma que dado fenômeno (do
presente) possui características tais que o situam, indubitavelmente, no rol
daquilo que o senso comum chama de “fatos históricos”: uma antecipação do
trabalho do historiador.
O debate sobre o nome e/ou a periodização da especialidade tomou
bastante tempo. Se quisermos ironizar, podemos dizer que a dificuldade para
encontrar um nome tão inadequado quanto aqueles com que batizamos os
períodos anteriores — tais como “Idade Média” ou “Idade Moderna” —
deveu-se à circunstância de que, dessa vez, o fizemos conscientemente.
Koselleck, em seus levantamentos conceituais, atribui a Johann Büsch a
proposta, feita em 1775, de organização da história “segundo o tempo” — em
Antiga, Média e Moderna —, esta última abrangendo a história
contemporânea, correspondente ao período da última geração (Koselleck,
2006:280). No início do século XIX, o historiador alemão Arnold Heeren
diria que a designação de “história contemporânea” só deveria vigorar a
longo prazo e a descartou (apud Koselleck, 2006:281). Seria uma “questão
para os historiadores do século XX, não para os do primeiro quartel do século
XIX”, disse Heeren (apud Koselleck, 2006:281). Mas a restrição de Heeren
não prosperou: o próprio Leopold von Ranke usou a expressão “história dos
tempos mais recentes” ou “história contemporânea” e também “história do
nosso tempo”, para designar a época na qual ele vivia. Na Alemanha, fixou-
se o termo Zeitgeschichte, literalmente “história do tempo”, como abreviação
de “história do próprio tempo” — historia temporis sui — incorporado à
tradição francesa, conforme visto há pouco, como história do tempo presente
no final dos anos 1970. O já mencionado Fritz Ernst, enriquecendo os debates
sobre a estranheza desses nomes, cogitou Gegenwartsgeschichte (história do
presente), mas adotou Gegenwartschronistik (cronografia do presente), que
não frutificou (Ernst, 1957:139).
Na França, a expressão contemporaine designa a época posterior à
Revolução Francesa, enquanto os falantes de língua inglesa reservam a
expressão contemporary history para designar o período recente. O
historiador britânico Llewellyn Woodward julgava mais adequada a
expressão history of our own time (história do nosso próprio tempo), mas não
achou um adjetivo apropriado (1966:1). Na antiga República Democrática
Alemã, a expressão equivalente a história contemporânea designava apenas o
período posterior a 1945, mas os marxistas não viam com seriedade o estudo
histórico dessa época (Klessmann e Sabrow, 1997:221).
Na Holanda, a designação do período moderno através da expressão
nieuwe Geschiedenis levou ao uso do superlativo nieuwste para designar o
período 1789/1940 e à inovação de eigentijdse Geschiedenis (história do seu
próprio tempo) para o período posterior a 1945 (Lagrou, 2003). Na Espanha,
a expressão tiempo presente por vezes confundiu-se com a abordagem
escolar da história do “mundo atual”, que Julio Aróstegui advertia ser assunto
distinto (Aróstegui, 1998:15). Na Itália, a noção de tempo presente não é
usada comumente, prevalecendo a expressão história contemporânea para o
período posterior ao século XIX (Galimi, 2003).
Agnès Chaveau e Philippe Tétart, escrevendo no final do século XX,
preferiam designar os últimos 30 anos como “história próxima” e os últimos
50 ou 60 como história do tempo presente. Haveria, ainda, uma “história
imediata”, que seria apenas “testemunho”, complemento da modalidade
principal, mas que não resultaria de verdadeira pesquisa histórica (Chaveau e
Tétart, 1999:27-28). Muitas outras propostas foram feitas. Recentemente,
como consequência da abundância de estudos sobre a memória, sugeriu-se
definir como objeto da modalidade as memórias de pelo menos uma das três
gerações que compartilham um mesmo presente histórico (Mudrovcic,
2009:106). Essa estranha sucessão de propostas demonstra a centralidade do
problema da designação de um novo período histórico — ao qual eu voltarei.
O caráter aleatório de algumas dessas soluções não deve ocultar a
importância do debate sobre periodização, por vezes menosprezado pelos
historiadores. Uma distinção básica diz respeito ao caráter convencionalista
ou realista das propostas de periodização, isto é, trata-se de apenas arbitrar
que um dado período histórico passará a ser reconhecido por este ou aquele
nome, ou podemos distinguir um conjunto específico de características
peculiares imanentes à época que nos interessa? As propostas que
estabelecem marcos fundacionais (como a II Guerra Mundial), ou que
delimitam o período pelo número de gerações que deve abranger, inserem-se
na perspectiva convencionalista, enquanto as definições baseadas em
características peculiares ao século XX — como o caráter traumático do
Holocausto ou a exacerbação do fenômeno da memória — são exemplo do
enfoque realista.
Para o historiador francês Henry Rousso, fenômenos como a queda do
Muro de Berlim, a incriminação de antigos chefes da polícia política alemã
nos anos 1990, o julgamento na França, 50 anos depois, de crimes
acontecidos durante a II Guerra Mundial, bem como a derrubada de ditaduras
militares na América Latina seriam correlatos e integrariam um momento que
é possível comparar (Rousso, 2000:39). Estudioso de literatura, Andreas
Huyssen também considera haver um vínculo que identifica os processos
históricos posteriores aos eventos traumáticos de países que viveram
totalitarismos, ditaduras militares, o apartheid e extermínios no final do
século XX. Segundo sua interpretação, a revisão dos respectivos passados
nacionais, regionais ou locais deveria ser pensada em conjunto. Ele vê no
Holocausto um “índice” ou uma “chave” do século XX e do fracasso do
Iluminismo: o evento teria se transformado em uma metáfora de outras
histórias traumáticas, como as políticas genocidas em Ruanda, Bósnia e
Kosovo.5 A marca do terço final do século XX seria a de uma grande
instabilidade e angústia diante de mudanças demasiado aceleradas. Essa nova
temporalidade geraria um “intenso pânico público pelo esquecimento” que
explicaria a conversão da memória em uma “obsessão cultural de proporções
monumentais no mundo inteiro” (Huyssen, 200:15, 18-19, 22-23). A
professora argentina de literatura Beatriz Sarlo também compartilha a ideia
de que os debates sobre o Holocausto e a transição democrática no sul da
América Latina se entrelaçaram em meados dos anos 1980 (2007:46).
Seria possível discutir o que há de acertado ou exagerado nessas
perspectivas —e a mim parece que há algo de significativo nessa, digamos,
“retórica da iminência” e no vocabulário psicanalítico que tomou conta de
muitos textos, sobretudo quando se pensa na crítica da cultura e da literatura,
em especial, mas também em certa reflexão que transita entre o filosófico e o
teórico, como a suposição de Paul Ricœur de que, em relação aos eventos
matriciais do tempo presente, é o horrível que comanda o memorável
(Ricœur, 1993:40), isso sem mencionar os trabalhos mais recentes de
Dominick LaCapra. Verifica-se nesses textos uma contraposição curiosa
entre a experiência da aceleração e o tédio do descarte banalizador de
virtualmente tudo o que já foi novo, já que a sensação de iminência logo
passará (ou já passou). Aliás, ao historiador resta sempre a tarefa menos
eloquente de buscar comprovações empíricas, de modo que me distancio das
posições que atribuem a eventos como a II Guerra Mundial e o Holocausto
um caráter matricial e generalizadamente traumático — conforme
estabelecido pelo debate posterior aos anos 1980 —, porque não é simples
encontrar evidências significativas das amplas conexões causais que, por
vezes, tal debate sugere existir.6 A abordagem mais instigante é a de
Dominick LaCapra: apesar de sugerir cuidado com a suposição de que toda
história seria trauma, de que todos compartilharíamos uma esfera pública
patológica ou uma “cultura do trauma” (especialmente quando as noções de
ausência e perda são confundidas) (1999:712), LaCapra — não obstante
preocupe-se com a possibilidade de o trauma tornar-se uma “obsessão”
(2001:X) — considera que todos os que “invocam o conceito de experiência”
devem analisar “o problema do trauma e sua relação com a historiografia e a
representação em geral” (2004:55). Além disso, há um efeito estupefaciente
nos textos recentes de LaCapra quando comparamos suas ressalvas quanto ao
risco de os estudos do trauma tornarem-se “objeto de uma fixação que
identifique história com trauma e tenda a ver indiscriminadamente o trauma
em todas as partes” (2004:112) e o fato de que todos os seus trabalhos têm
esse tema como mote principal.
Se eu tivesse de caracterizar uma especificidade do terço final do século
XX, não apostaria na identificação de uma experiência coletivamente
compartilhada de trauma, angústia ou pânico, mas na reconfiguração da
experiência temporal, sobretudo ditada pela informática — que, entretanto,
aponta para a atividade lúdica e não para o sofrimento passivo. Isso não
significa minimizar o fato de que “a extensão e intensidade das experiências e
dos eventos traumáticos […] parecem marcar nosso tempo de uma maneira
distintiva” (LaCapra, 2010:60),7 mas é impossível não reconhecer o alcance
virtualmente planetário dos efeitos da cibernética, da robótica e da
informática.
O importante, porém, é assinalar que a vinculação da história do tempo
presente a essas problemáticas delimitaria um objeto de estudo relativamente
preciso e, portanto, seria possível falar de uma especialidade ou ramo da
história, como a “história do Renascimento”, por exemplo, no sentido de que
essa expressão designa um campo de estudos com seus especialistas e
questões específicas. Trata-se de interpretação de algum modo discutível —
devo reconhecer — porque o estabelecimento de uma periodização e a
delimitação de um objeto (ou, pelo menos, de uma problemática) quase
sempre integram um mesmo processo analítico, tal como se dá quando
falamos em “história do barroco alemão” ou em “história da escravidão
moderna”, que igualmente designam um período histórico e uma questão bem
delimitada. Certamente os dois processos não estão inteiramente equilibrados
quando nos referimos, por exemplo, à “história da alta Idade Média” —
muito mais um recorte temporal do que uma temática — ou à “história do
feminismo” — muito mais uma temática do que um recorte temporal. Esta
ressalva, embora assinale uma distinção pertinente, tem, não obstante,
importância reduzida, desde que se trata menos de negar a possibilidade de
correlacionar episódios do século XX e mais de identificar a constituição de
um novo período histórico, tal como estou sugerindo.
A suposição de que vivemos uma aceleração do tempo presente não é
nova, como registrou Koselleck em seu estudo sobre os escritos de Lorenz
von Stein, pesquisador do século XIX: “É como se a historiografia não fosse
mais capaz de acompanhar a história”, disse Stein em 1843. No final do
século XVIII e início do século XIX, era generalizada a convicção de que se
vivia um momento crítico, de transição, de aceleração, mas essa impressão
levava a uma cautela, a um impedimento em relação à história daquele
tempo: a Revolução Francesa, “na esteira da experiência da aceleração, fez
com que se tornasse cada vez mais difícil escrever a história do tempo que
estava sendo vivido”. Koselleck cita vários autores que exemplificam isso
(2006:82, 181-182, 292).
Os eventos que lembram o Holocausto, como os genocídios do final do
século XX, ou os que recordam a Guerra Fria, como a persistência das
ditaduras militares latino-americanas até os anos 1980, apontam para o
passado recente da II Guerra Mundial e dão essa sensação de homogeneidade
que nos induz a delimitar o século XX como uma fase que apresenta unidade
— um tempo cujos episódios compartilhariam características em comum.
Porém, se a experiência da aceleração do tempo pode dar a sensação de
singularidade a uma época, também pode levar à sua rápida superação. Para
Pieter Lagrou, aquilo que temos chamado, desde os anos 1970, de história do
tempo presente, banalizou-se: “o que nos habituamos a chamar de ‘tempo
presente’ é passado”, isto é, nós nos distanciamos do período 1930-1980, o
pós-guerra afastou-se rapidamente do nosso cotidiano e tornou-se parte
integrante do passado (Lagrou, 2007:36-37). Essa é a principal razão da
estranheza causada pela expressão história do tempo presente quando
associada às peculiaridades do século XX: “nos sentimos cada vez menos
contemporâneos deste século” (Lagrou, 2003).
Além disso, se analisarmos fatos que parecem nos distanciar do “velho”
século XX — como os ataques do 11 de Setembro, a eleição de um
presidente negro nos Estados Unidos ou a pujança econômica da China —
ainda assim saberemos estar tratando da mesma época, não apenas pelo fato
óbvio de que vivemos este tempo presente, mas também porque esses fatos
integram “séries não concluídas de eventos”: não sabemos o que acontecerá
depois (Woodward, 1966:2). A ideia de que o tempo vivido “não está
fechado” (Lagrou, 2007:36) é um tópos do debate sobre a história do tempo
presente. Fritz Ernst, no artigo já citado, falava em “distanciamento objetivo”
para lembrar que “apenas o que está encerrado pode ser reconhecido
historicamente” (Ernst, 1957:187). Para Fustel de Coulanges, há mais nitidez
nesses acontecimentos encerrados (Coulanges, 1913:665). Jacques Le Goff
mencionou a dificuldade para o historiador do tempo presente representada
pela ignorância do futuro (que as demais especialidades não enfrentam) (Le
Goff, 1999:100). Woodward entendia que uma das razões do abandono da
modalidade foi justamente a impossibilidade de saber “o que aconteceu
depois”. Seria preciso um distanciamento de pelo menos duas ou três
gerações. Ele enfatizava que Tucídides recolheu material enquanto a Guerra
do Peloponeso acontecia, mas não a teria escrito antes que tivesse terminado.
Woodward achava que seria possível evitar “discussões filosóficas
elaboradas” desde que trabalhássemos com uma sequência relativamente
completa de eventos (Woodward, 1966:2, 5). Essas discussões tangenciam o
problema do caráter preditivo do enunciado científico, ou seja, o
estabelecimento das causas necessárias à ocorrência de um dado fenômeno
(no passado, no presente ou no futuro), mas, em alguns momentos, a questão
é abordada de maneira simplista, tratando-se o problema de causalidade, que
ela evoca, como um simples caso de antecipação ou adivinhação do futuro
(Hobsbawm, 1998:249). Infelizmente, não é possível descartar essas
discussões limitando nossas análises a objetos situados em uma sequência
fechada de acontecimentos, como queria Woodward. A ideia de processo
histórico torna bastante imprecisa a suposição de uma “sequência completa”
ou de uma “série fechada”. Aliás, os chamados “fatos traumáticos” do século
XX têm sido vistos, justamente, como “intermináveis”, em função de sua
constante reelaboração através da memória.
Seja como for, parece razoável convencionar que o período histórico
inaugurado no início do século XX não se encerrou. Além de podermos
identificar processos históricos que, claramente, estão em pleno
desenvolvimento (como as mudanças no cenário internacional derivadas da II
Guerra Mundial, que passaram para um novo patamar com o fim da URSS,
ou o impressionante desenvolvimento da informática na segunda metade do
século XX, que certamente está longe de ter atingido seu auge), esse
entendimento nos pouparia da necessidade de discutir uma nova terminologia
(Lagrou, 2003). Poderíamos então afirmar que a nova era que se iniciou no
século XX não se restringe a ele, não diz respeito apenas aos acontecimentos
derivados da II Guerra Mundial, relativos à Guerra Fria ou às experiências de
aceleração do tempo ou de exacerbação da memória do terço final do
milênio: o período que temos chamado (sabemos que inadequadamente) de
história do tempo presente apenas se iniciou no século XX, adentrou o século
XXI e não podemos ainda dizer quando terminará.
Trata-se, portanto, do estabelecimento de uma periodização, não da
delimitação de um objeto, e daí a importância do debate sobre o nome, que
por vezes pareceu prosaico. Ao contrário, a alteração do significado de um
conceito, quando se vive a impressão de celeridade do tempo, nada tem de
trivial.8 Ao longo do século XX, sobretudo de seu terço final, definimos a
existência de um novo período histórico, que durará talvez alguns séculos,
usando, infelizmente, uma expressão que designa também a história que era
praticada pelos antigos quando escreviam sobre o tempo vivido. Mas o novo
período histórico a que assistimos surgir ultrapassará em muito nossas vidas
curtas e nossos interesses fugazes. As escolhas feitas, sobretudo no ambiente
intelectual e linguístico francês, são indícios significativos de algumas
definições: a inspiração explícita na terminologia alemã decorreu da intenção
de bem assinalar a diferença em relação à “história contemporânea” do pós-
guerra (Lagrou, 2003), mas a expressão “história do tempo presente” também
marcou os estudos históricos sobre o novo período — feitos a partir do final
dos anos 1970 — de diversas maneiras. A problemática da memória e o
enfrentamento de temas delicados concernentes à II Guerra Mundial são os
aspectos mais evidentes, mas é perceptível que esse “tempo presente”
também buscou designar uma nova fase da própria disciplina histórica, que
passaria por muitas transformações desde o surgimento da “terceira geração”
dos Annales, com a nouvelle histoire, que assinalava a crise do marxismo, o
abandono da história estrutural, quantitativa, e apontava para o surgimento de
correntes cuja estratégia cognitiva consistia em sublinhar a existência do
indivíduo e de sua subjetividade, sua mentalidade, seu cotidiano etc.,
tendências que se expandiriam também desde outras tradições
historiográficas, como a micro-história italiana e a história social inglesa.
Assim, esse “tempo presente”, embora abrangesse o pós-guerra, rompia com
a história oficializada e rotineira dos institutos desde então criados. Essas são
apenas as primeiras marcas da história da historiografia do tempo presente,
pois convém reiterar que, acima de tudo, trata-se do surgimento de um novo
período histórico, cuja historiografia está no começo.
O debate sobre as fontes não atraiu muito a atenção dos que refletiram
sobre a especialidade, embora tenha sido um dos aspectos importantes
quando da interdição sofrida no século XIX. Sobre o tema há grande
desinteligência: tanto já se disse que há “pouquíssimos arquivos” (Rousso,
2007:278) e uma “ausência de fontes completas e documentos confiáveis”
(Rioux, 1999:42) quanto que os recursos documentais são “inesgotáveis”
(Chartier, 1993:249) ou “superabundantes” (Le Goff, 1999:99), a ponto de
sufocar a história do tempo presente (Woodward, 1966:10). Mark Phillips
registrou o aspecto curioso de que supomos haver menos fontes na medida
em que os fatos se distanciam, tanto quanto achamos que possa haver mais
fontes, no futuro, sobre o momento presente, que, entretanto, ainda não estão
disponíveis. “O aumento da distância temporal pode significar perda de
informação valiosa. Mas nós também apontamos que a posteridade é
frequentemente capaz de ter acesso a documentos não geralmente disponíveis
a contemporâneos.” (Phillips, 2004:124).
A antiga percepção de que seria difícil realizar uma história política sobre
o período vivido, na medida em que as decisões realmente importantes são
ocultadas do público — problemática muito discutida quando da divulgação,
em 1918, de documentos anteriores à eclosão da I Guerra Mundial (Ernst,
1957:182) —, ressurge, de algum modo, com os debates sobre a liberação de
documentos sigilosos das polícias políticas dos regimes totalitários e, mais
recentemente, das ditaduras militares latino-americanas.9 Em relação aos
documentos outrora sigilosos das ditaduras militares latino-americanas e
assemelhados, há o componente político adicional da chamada justiça de
transição. No caso brasileiro, por exemplo, um acervo documental peculiar
tem sido constituído a partir de documentos reunidos pelas próprias vítimas
da repressão que, em função de uma lei recente, pleiteiam reparações
financeiras junto ao governo. Desse modo, cada processo atual constitui uma
espécie de “antidossiê”, o reverso dos velhos dossiês da espionagem ou da
polícia política, que, aliás, também estão disponíveis. Não é pequena a
dimensão ético-moral desses acervos. Em alguns países tem havido conflitos
entre a legislação que garante o acesso a esses papéis e a que assegura a
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das
pessoas. Na Argentina, os testemunhos orais tiveram um papel exacerbado
(Sarlo, 2007:61). Após o colapso da antiga Alemanha Oriental, a decisão de
praticamente liberar todos os arquivos, sem a observância dos prazos
regulamentares, também criou uma situação inusual do ponto de vista ético.
Por essa razão, a Associação Alemã de Historiadores aprovou, em 1994, uma
resolução aparentemente óbvia, reiterando que as fontes têm valor
informativo apenas limitado, que é preciso observar os contextos
diferenciados, os vínculos do historiador etc. (Klessmann e Sabrow,
1997:224-226).
As fontes orais têm sido francamente utilizadas e houve certa polêmica
quando da constituição do que terminou sendo designado por “história oral”,
modalidade de grande sucesso e bastante articulada à história do tempo
presente em função dos estudos sobre memória e do potencial dessas fontes
como testemunho.10 Aqui, entretanto, eu gostaria de assinalar outro aspecto.
O papel preponderante do relato testemunhal para a história do tempo vivido
tem sido destacado desde o término da II Guerra Mundial. A discussão sobre
o testemunho é essencial para essa história, inclusive o testemunho do
próprio historiador, sobre o qual é possível considerar dois aspectos
antagônicos: de um lado, a suposição de que esse testemunho pode ser
parcial, em função do envolvimento do historiador com os fatos que ele
testemunha e busca narrar, o que levou à interdição, no século XIX, da
história do tempo vivido como não científica. Contrariamente a esse
entendimento, fundadas convicções ancestrais garantem, desde a
Antiguidade, que o testemunho do historiador será mais crível quando for
ocular, ou seja, na medida em que trabalhemos com fatos que vimos com
“nossos próprios olhos” em vez de conhecê-los por “ouvir falar”, como
registrou Isidoro de Sevilha. Essa ênfase no videre também estava presente
em São Jerônimo e em outros autores da Idade Média. São Beda explicou que
sua história da Igreja da Inglaterra foi feita a partir de três fontes: os
documentos antigos, a tradição “dos maiores” e o seu próprio conhecimento
(mea ipse cognitione scire potui) —o que mescla o ver e o testemunhar
(Karkov, 2001:177; Ernst, 1957:141). Mas essa antiga convicção também
está presente em autores contemporâneos, como Eric Hobsbawm: um jovem
historiador que não viveu determinados episódios do século XX teria mais
dificuldades em compreendê-los inteiramente do que ele, Hobsbawm, que os
presenciou (Hobsbawm, 1998:247).
Essa questão assume conotação singular quando surge uma demanda
judicial que busca ouvir o historiador do tempo presente como um
especialista capaz de interferir no curso do julgamento em questão. Tornou-se
famosa a recusa de Henry Rousso de comparecer diante do tribunal quando
do processo contra Maurice Papon, acusado de colaboracionismo com o
regime de Vichy. Embora se trate de um tipo de reconhecimento do mérito do
especialista (Ernst, 1957:141), haveria riscos evidentes para o historiador que
pretendesse se tornar um perito.
O importante a destacar é que o relato do vivenciado tem uma
peculiaridade em relação a outras narrativas históricas: escrevemos para
quem viveu aqueles episódios e essa forma singular de “pressão pela
verdade”, exercida pelos coetâneos, tem marcado o estatuto discursivo de
nossa especialidade: “[…] não há dúvida de que parte da cronografia do
presente, antiga e medieval, foi criada sob esse signo” (Ernst, 1957:146). O
mesmo pode ser dito da atual história do tempo presente. Num momento de
grande sinceridade, o já mencionado Schlesinger, ao registrar a vigilância dos
que podem nos contradizer, disse que “todo historiador do passado sabe, no
fundo do coração, quanto de artifício encontra-se em suas reconstruções;
quanto de sua evidência é parcial, incerta ou hipotética” (Schlesinger, 1967).
Tanto os recursos retóricos que podemos mobilizar quanto as problemáticas
empíricas que podemos evidenciar são limitados pela peculiaridade dessa
audiência dos que viveram os fatos narrados.
Como mencionei no início, o debate sobre a especificidade da história do
tempo presente relativo às questões metodológicas da periodização, da
designação da modalidade e das fontes beneficia-se do não enfrentamento de
questões teóricas que agora, por honestidade intelectual, devo abordar —
embora me faltem meios para resolvê-las. Pieter Lagrou registrou,
acertadamente, que “a originalidade de nosso domínio não é de ordem
metodológica” (Lagrou, 2007:34). Mas não seria incabível questionar se a
modalidade tem alguma especificidade, inclusive no que se refere ao seu
estatuto epistemológico. Para Richard Rorty, não haveria diferença entre o
entendimento de fenômenos muito antigos ou exóticos e daqueles que nos são
próximos e compreensíveis: segundo ele, os historiadores dariam importância
demasiada ao problema da distância (apud Haskell, 2004:346). Conforme
Martin Broszat, que dirigiu o Institut für Zeitgeschichte, o problema da
subjetividade relacionada ao tempo não seria uma característica da história do
tempo presente que, nesse sentido, não diferiria de qualquer outra abordagem
da história, exceto em termos de grau (apud Klessmann e Sabrow, 1997:220).
Eric Hobsbawm diz acertadamente que nossa experiência pessoal é moldada
pelo tempo em que vivemos, mas isso interfere tanto quando escrevemos
sobre o presente quanto sobre o passado (Hobsbawm, 1998:245). Roger
Chartier não indica por que, em sua opinião, “pela própria natureza de suas
preocupações” essa especialidade nos levaria “à exigência de conhecimento
verdadeiro” (1993:252).
Parece seguro que, não obstante as opiniões em contrário, haja alguma
especificidade na história de temas recentes. Talvez a particularidade não
resida propriamente na experiência direta com o objeto, como parece sugerir
o exemplo de Hobsbawm sobre o jovem historiador mencionado. Aliás,
segundo Collingwood, se pudéssemos visitar o passado numa máquina do
tempo, isso não resultaria em conhecimento histórico (apud Phillips,
2004:135). A particularidade estará, talvez, na circunstância de que a história
do tempo presente mescla política e pesquisa acadêmica em uma “rede
estreitamente entrelaçada” (Klessmann e Sabrow, 1997:230).
O que há de surpreendente no debate sobre a especialidade, por vezes, é a
pressuposição, por contraste, de uma prática historiográfica ideal que, ao
contrário da história do tempo presente, estaria imune às suas fragilidades.
Quando Woodward dizia que “obtém-se precisão e certeza mais facilmente
em assuntos impessoais” (1966:8), ele pressupunha uma objetividade cuja
viabilidade é muito difícil de afiançar, desde que consideremos as críticas
que, ao longo do século XX, foram feitas ao mito da neutralidade científica,
bem como os ataques da teoria da literatura, no terço final do século passado,
às modalidades prefigurativas do discurso histórico — apenas para mencionar
duas grandes discussões que fragilizaram bastante as intenções objetivistas da
história. Pode-se dizer o mesmo da avaliação de Lagrou, quando se refere ao

engajamento político de um Martin Broszat, de um Louis de Jong, de um François


Bédarida, de um Albert de Jonghe ou de um Roberto Battaglia [que] escreviam
em uma época em que a filiação política não era considerada um assunto da esfera
privada e o exercício da historiografia não era tido como um exercício livre de
engajamento político [Lagrou, 2003:25].

Talvez tenha havido essa “licença política” —o que já seria difícil de


admitir em termos gerais —, mas o problema está em supor que a geração
seguinte passou a ter um “posicionamento neutro” (Lagrou, 2003). Lagrou,
seguramente, não está sustentando uma posição ingênua em defesa de uma
neutralidade impossível. O deslize linguístico se deve à peculiaridade, há
pouco mencionada, da intensa politização que envolve a pesquisa da história
do tempo presente, que, em relação aos anos 1980 — tempos de afirmação da
nova fase da modalidade —, hoje talvez esteja, de fato, mais submetida aos
rigores da pragmática metodológica da história. Para Jean-François Sirinelli,
as “obras muito impregnadas de presente” mal passariam a “rampa da
posteridade” (1999:91). Hobsbawm se refere, de maneira depreciativa, ao que
ele chama de conforting history para designar o sub-ramo dos trabalhos
referidos a grupos específicos, muitas vezes escritos por historiadores que
militam em favor de suas causas (Hobsbawm, 1997:452).
Thomas Haskell tem uma avaliação equilibrada sobre esse assunto.
Analisando os anais publicados, em 2001, de uma conferência sobre “Social
Values and the Responsibilities of the Historian”, realizada em Amsterdã em
1997 (Leerssen e Rigney, 2000), ele considerou que muitos historiadores não
veem problemas em associar a defesa de posições políticas e/ou morais à
prática de um “empenho cuidadoso para ser objetivo” e menciona “a
proveitosa tensão entre engajamento e objetividade que Ginzburg identifica
com a era moderna” (Haskell, 2004:357). Para Dominick LaCapra, a
subjetividade, pela via da “empatia como um componente do entendimento
histórico” (2010:198), poderia talvez apontar os limites do objetivismo das
intepretações contextualistas: ele questiona quais seriam os requisitos de uma
história “paradoxalmente” objetiva que inclua a subjetividade. Para ele, a
empatia em relação às vítimas de experiências traumáticas é admissível, mas
é preciso distingui-la da ideia de identificação, “confusão que conduz à
idealização e até à sacralização da vítima”. Por meio das noções de
transferência e de participação do observador, seria possível chegar à análise
crítica da empatia e à consideração do “papel da emoção na compreensão
histórica” (2004:64-65).
O hoje bem conhecido Johann Chladenius — graças aos estudos feitos no
final dos anos 1970 por Reinhart Koselleck sobre ponto de vista, perspectiva
e temporalidade — já dizia, na metade do século XVIII, que é um equívoco
exigir-se do historiador uma total imparcialidade. O fato de termos um ponto
de vista não implica necessariamente parcialidade, entendimento que
Koselleck enalteceu como “arcabouço teórico que ainda hoje não foi
ultrapassado” (Koselleck, 2006:170). De fato, é muito proveitoso retomar
essas observações lúcidas de Chladenius, bem como reiterar que elas foram
escritas no remoto 1752, porque no início do século XX houve uma
supervalorização do problema da subjetividade, talvez por causa da
repercussão de críticas que então foram feitas às pretensões de objetividade
que Leopold von Ranke havia defendido no século anterior. Assim, durante
algum tempo, o debate pareceu estar dividido entre o objetivismo de Ranke e
as posições relativistas valorizadoras da perspectiva individual como inerente
à produção do conhecimento histórico que, assim, era concebido como “uma
projeção das ideias e dos interesses do presente sobre os dados acumulados
da experiência fixada na memória” (Read, 1950:275). Os primeiros ataques
mais diretos a Ranke feitos por Charles Beard miraram o problema da
“imparcialidade” e acabaram por adotar a perspectiva relativista de que a
história é um “ato de fé”, dependendo da pessoa de seu criador e mudando
com ela (1934:219-231 e 1935:74-87). Carl Becker, na mesma época,
também defendia posições relativistas segundo as quais cada indivíduo criaria
uma história diferente, como fruto de sua imaginação, tendo em vista sua
experiência pessoal (1932:221-236). Essas posições extremadas devem ser
bem compreendidas nos respectivos contextos em que foram produzidas e
talvez seja um pouco arrogante dizer que, hoje, elas nos parecem simplistas.
O importante aqui é destacar que a supervalorização da suposta oposição
entre rigor acadêmico (ou objetividade, cientificidade, busca da verdade etc.)
e subjetivismo (ou engajamento, partidarismo, tendenciosidade etc.) levou a
exigências exclusivas com a história do tempo presente, como se as demais
modalidades da história estivessem imunes aos riscos em pauta.
Graças a estudos meticulosos como os de Leonard Krieger (1977), hoje
temos uma leitura mais precisa de Ranke, que, no início do século XX, foi
algumas vezes reduzido a uma caricatura de si mesmo. Embora ele seja
emblematicamente associado ao momento no qual, no século XIX, a velha
história do tempo presente, praticada desde a Antiguidade, foi tida como
inviável cientificamente, é conveniente lembrar da importância que o
presente vivido por ele teve em sua concepção de história (Ritter, 1961:268).
O tema lhe era caro, como mostram as aulas que deu sobre história
contemporânea logo depois de chegar a Berlim, em 1825, ou as palestras que
fez para o rei Maximiliano, como uma espécie de conselheiro político
daquele que era seu amigo, em 1854. Conforme lembrou Krieger, Ranke
tanto defendeu a objetividade histórica quanto sua abordagem da história
universal orientada pelo presente (1977:228). Mas, de fato, foi Ranke quem
estabeleceu categoricamente a impossibilidade de a história do tempo
presente atingir o ideal de objetividade do historiador, especialmente na
crítica que fez à “História do meu próprio tempo”, publicada pelo bispo
Gilbert Burnet em 1724 (1977:270). O livro ganhou uma edição crítica em
1823 e Ranke o resenhou em sua história da Inglaterra, publicada entre 1859
e 1869. Ele sublinhou as distorções factuais, ilusões e ignorância de
“qualquer um que queira escrever a história do seu próprio tempo”, “a mais
abrangente, mais pretenciosa e ainda mais perigosa tarefa a que pode ousar
um autor preocupado com a verdade” (Ranke, 1875:46).
Essa complexa relação de Ranke com a história do tempo presente não é
difícil de compreender quando nos damos conta de que ele estava vivendo
um momento de transformação, do qual ele próprio seria um marco, embora
não o único. Ele manteve uma revista, a Historisch-Politische Zeitschrift, de
1832 a 1836, precisamente sobre a história recente, mas, um ano antes de
morrer, disse que “a melhor coisa que aparecia na revista era mesmo o
histórico”, renunciando, assim, às reflexões políticas sobre os acontecimentos
da época. Ele vinha reiterando constantemente esse afastamento, como na
ocasião em que falou em memória de Georg Gervinus perante a comissão de
história da academia bávara, em 1871, ano da morte desse historiador que,
em 1853, havia lançado uma introdução à história do século XIX que
motivara um processo contra ele justamente por tratar do conturbado período
recente: “Gervinus destruiu o presente”, disse Ranke em outra ocasião (Ernst,
1957:160).
A polêmica vinha se constituindo desde muito tempo. Uma dessas frases
que, posteriormente, seriam muito glosadas no contexto das discussões sobre
o tempo presente foi dita em 1759 por Gotthold Lessing, escritor e crítico de
arte: “só cabe chamar verdadeiramente de historiador aquele que descreve a
história de seu tempo e de seu país”. Ele seria muito criticado doravante.
Droysen viu nele “a expressão de um ceticismo muito raso” (Ernst,
1957:171). Mas a suposição de que a história só é possível para aqueles que a
vivenciaram pessoalmente tornar-se-ia um tema sempre mencionado. O
famoso historiador e político alemão Niebuhr (1776-1831) — expressando a
relativa dubiedade em relação ao tema que Ranke igualmente vivenciou —
também achava difícil tratar com imparcialidade os acontecimentos recentes,
mas acalentava a ideia de que a história se aproximava mais da verdade
quando narrada por alguém que vivenciara pessoalmente os fatos (Ernst,
1957:157). As posições de Humboldt sobre o tema também podem ser vistas
como um afastamento refletido, tal como sugere Fritz Ernst: em seu estudo
sobre o século XVIII, de 1797, Humboldt reconhece a validade da reflexão
sobre o presente, mas assinala a interdição que aos poucos se consolidaria: “o
último e derradeiro juízo fica sempre reservado para a posteridade”
(Humboldt, 1904:30).
A posição de Ranke evoluiu com o tempo. Já depois de aposentado, no
texto que fez em 1878 sobre Frederico Guilherme IV (1795-1861), rei da
Prússia desde 1840, para a Allgemeine Deutsche Biographie, o octogenário
historiador disse que, no caso de Frederico II, o Grande (que reinara entre
1740 e 1786), a história podia ser considerada “encerrada”, mas, em relação a
Frederico Guilherme IV a situação era diferente porque os fatos em pauta
“intervêm diretamente no presente” e haveria uma carência de informações
confiáveis e confusão entre “simpatias e antipatias concorrentes”. Por isso,
ele se restringira a pesquisar poucos aspectos graças a “declarações de
documentos autênticos dos arquivos” (Ernst, 1957:161).
Entretanto, convém distinguir a desaprovação da história do tempo
presente como modalidade incompatível com “a institucionalização da
ciência histórica como disciplina acadêmica na segunda metade do século
XIX” (Martins, 2008:33) do fato de que, para o historicismo, “as sentenças
sobre as forças intelectuais do agir humano passado exprimem,
simultaneamente, o contexto de sentido da vida social contemporânea”
(Martins, 2008:40). Assim, a interdição operou-se em função da suposta
incapacidade metodológica intrínseca à modalidade (ausência de recuo
temporal e fragilidade heurística) e da limitação do sujeito (impossibilidade
de alcançar a necessária imparcialidade). Porém, tal interdição ocorreu apesar
da importância da “pretensão pedagógica” que o historicismo reservou para a
ciência histórica em relação ao presente (2008:40).
Ademais, embora seja óbvio dizê-lo, deve-se reiterar que os historiadores
do século XIX não permaneceram imunes à grande agitação política que
marcou a Alemanha e a França. Todos, em graus diferentes, estavam
influenciados pelo nacionalismo. Aliás, a derrota francesa na guerra com a
Prússia, em 1870, exacerbou os ânimos entre as intelectualidades de um e de
outro lado do Reno. Entretanto, Gabriel Monod, quando lançou a Revue
Historique, em 1876 — periódico que se tornaria o veículo por excelência, na
França, da história metódica —, não deixou de reconhecer a superioridade
alemã (Monod, 1876:27). Embora ele aderisse inteiramente ao projeto
metódico-cientificista, descartando os historiadores medievais que se
preocupavam mais com o presente do que com o passado (“eles não são
historiadores propriamente falando”) e criticando a influência das “paixões
contemporâneas”, não era um ingênuo: recomendava que afastássemos as
opiniões particulares, mas reconhecia que elas “influem sempre” (Monod,
1876:5, 30, 36). Mas ele não esteve imune às paixões contemporâneas,
envolvendo-se como perito no famoso caso Dreyfus: “Monod, que havia
defendido a atitude de distanciamento temporal do historiador em relação aos
eventos, jogou-se por inteiro na história de seu tempo, na história do tempo
presente” (Malatian, 2010:331).
A primorosa pesquisa de Reinhart Koselleck sustenta de maneira
irretorquível sua tese quanto à constituição, entre 1750 e 1850, de uma nova
ideia de história, em função da própria alteração da experiência temporal,
especialmente a emergência de um “futuro capaz de ultrapassar o espaço do
tempo e da experiência tradicional, natural, prognosticável” (Koselleck,
2006:36).11 O “tempo histórico” (2006:16) decorreria do processo de
distinção entre passado e futuro, entre experiência e expectativa. O abandono
do velho horizonte de expectativa cristã relativo ao fim do mundo, bem como
o avanço das ciências e a descoberta do Novo Mundo “repercutiram, de início
lentamente, ajudando a criar a consciência de uma história universal, que
como um todo estaria entrando em um novo tempo” (2006:278). Expressão
da própria era moderna, a noção de história associada à ideia de progresso
resultaria na “nova ampliação dos horizontes de expectativa do futuro”
(2006:238).
Koselleck também registrou o paulatino descrédito da tradicional história
do tempo vivido em diversas frentes. Por exemplo, diminuía cada vez mais o
papel preponderante da testemunha ocular, na medida em que se afirmava a
importância do recuo temporal e a valorização da pragmática metodológica e
do procedimento crítico. A preponderância da história do presente na
historiografia antiga e medieval, quando os textos históricos eram redigidos
quase sempre “a partir dos inícios” (2006:174) e até os “tempos modernos”
(moderna tempora), “até o tempo do escritor” (2006:274-276) (usque ad
tempus scriptoris), dever-se-ia à prevalência da ideia de sucessão. Assim, se
havia uma continuidade, todas as histórias seriam semelhantes entre si e, por
isso, seria possível “aprender com elas para o futuro” (2006:238). Mas as
conclusões que se podiam tirar do passado para o futuro não excederiam o
horizonte de expectativa cristã do fim, algo que só mudou no século XVIII.
Portanto, Koselleck considera que as objeções contra a velha história do
próprio tempo vieram como resultado da modificação que sua tese principal
demonstra e “não tanto por causa da situação política dos historiadores ou da
censura”, de pressões políticas ou morais, vale dizer, do problema da
subjetividade, da tendenciosidade, da predileção, do partidarismo, isto é, do
risco de falta de imparcialidade. Entretanto, esse foi, claramente, o núcleo da
motivação de Ranke ao definitivamente abandonar a história recente.
Conforme registra o próprio Koselleck, a busca de distanciamento temporal
em Ranke deveu-se à sua pretensão de abstrair-se do presente (2006:291,
183). Aliás, Ranke julgava que a questão central não estava na proximidade
ou distância de seus objetos:

“a diferença da história contemporânea para a história remota […] é apenas uma


questão de grau”. O remédio para ambas — além do caráter moral do historiador
— era construir seu ponto de vista acima da perspectiva individual e identificar o
objeto histórico com uma verdade mais geral. O historiador “deve conquistar um
ponto de vista independente a partir do qual a verdade objetiva, uma visão geral,
torna-se cada vez mais confiável” [Ranke apud Krieger, 1977:271].

Foi a rejeição do subjetivismo em favor da busca pelo historiador de uma


pretensa neutralidade ou imparcialidade, a “parfait indépendance de son
esprit” (Monod, 1876:37), longe das injunções políticas ou morais, que
afastou a história do tempo presente da “esfera do conhecimento acadêmico
rigoroso” (Woodward, 1966:1) e não, diretamente, a constituição de uma
nova ideia de história plasmada na transformação da experiência temporal,
como queria Koselleck. A correlação entre as duas questões foi tratada por
Koselleck, notadamente quando ele chamou a atenção para o papel das
filosofias da história como fornecedoras de “categorias adequadas para
ultrapassar a limitada experiência diária rumo ao seu contexto universal”, vis-
à-vis à nova experiência temporal (Koselleck, 2006:292), mas a centralidade
do problema do subjetivismo tornar-se-ia evidente inclusive nas críticas que
seriam feitas à pretensão de superá-lo — como as já mencionadas de Read,
Beard e Becker, além de muitas outras —, enquanto as questões das filosofias
da história e da ampliação do horizonte de expectativa não foram tão
explicitadas nesse aspecto particular. As diversas avaliações sobre o
“distanciamento intelectual” proposto por Ranke — ora tido como
inalcançável, ora como indesejável — marcaram o debate posterior (Iggers,
1988:xiii). Mas inúmeros historiadores corroborariam o anseio objetivista,
como Fustel de Coulanges, para o qual nosso olhar sobre o presente sempre é
tendencioso por causa de interesses pessoais, preconceitos e paixões:
“Compreendemos melhor os acontecimentos e revoluções dos quais nada
temos a temer nem nada a esperar” (Coulanges, 1913:664-665).
A interpretação restritiva que Ranke faz da longa tradição de reflexões
sobre a questão da perspectiva (que vinha, pelo menos, desde o
Renascimento) interditou o entendimento de algum modo positivo que estava
presente em Chladenius — quando, por exemplo, este último fez a conhecida
referência às diversas leituras possíveis de uma rebelião (por um revoltoso,
um estrangeiro, um cortesão, um cidadão ou um camponês) (apud Haskell,
2004:345), ou em Goethe, quando ele mencionou que novas perspectivas
permitem leituras renovadas da história, que, assim, deve ser continuamente
reescrita (apud Koselleck, 2006:177). Ademais, ao vincular fortemente a
questão do ponto de vista à do partidarismo, Ranke situou o problema da
perspectiva no seu nível mais elementar.
No que se refere ao problema da história do tempo presente, a noção de
perspectiva, algumas vezes, é usada para designar coisas diferentes.
Perspectiva como ponto de vista peculiar a alguém (ou a uma dada época) é a
definição mais estabelecida. Entretanto, a expressão pode mesclar-se à noção
de recuo temporal. Para Eric Hobsbawm, por exemplo, “a distância
cronológica estabiliza a perspectiva” (1993:102). Mas, como é evidente,
perspectiva, como ângulo ou ponto de vista, não se aplica apenas ao passado:
pode-se analisar com diversas perspectivas um objeto muito recuado no
tempo, um fenômeno recente ou outro que esteja em curso. Portanto, a
exigência de recuo temporal (cobrança comum entre os que condenavam a
história do tempo presente) não conduz, obviamente, a uma análise isenta de
perspectiva.
É certo, no entanto, que a passagem do tempo ajuda a superar interdições
e temas tabu. É muito frequente, nos estudos de temas recentes, a paulatina
aproximação de questões delicadas que, após determinado período, podem
ser tratadas de maneira crítica, como é o caso do colaboracionismo durante a
II Guerra Mundial ou da luta armada, tal como mencionei em um dos
exemplos com que iniciei este artigo.12 Conforme destacou Mark S. Phillips,
isso tem a ver com alterações da capacidade de o público leitor interagir com
esse ou aquele assunto, de modo que o problema do distanciamento não diz
respeito apenas ao historiador e aos testemunhos em pauta, mas também ao
público ao qual a narrativa se dirige (Phillips, 2003:442-443), o que situa o
problema no campo político, ético e moral dos temas tabu ou decorosos.
Evidentemente, tais circunstâncias fixarão parâmetros para os recursos
formais, retóricos e estilísticos que mobilizamos, os procedimentos
discursivos próprios ao “gênero” e os efeitos de sentido buscados.
A simplificação embutida na interdição rankiana da história recente
reduziu o debate sobre distanciamento a um questionamento que “marca
todas as formas de engajamento político ou emocional contra a
‘objetividade’” (Phillips, 2004:98). Entretanto, a marca distintiva da história
do tempo presente não é uma suposta sujeição maior do historiador
respectivo à subjetividade — traço comum e relativamente banal, em termos
dos controles já conhecidos e testados. Quando muito podemos falar em
maior entrelaçamento entre política e pesquisa acadêmica e no desconforto
suscitado pela abordagem de questões delicadas ocorridas há pouco tempo,
como dito acima. Certamente não são razões para se deixar de praticar a
modalidade, mas tampouco são especificidades que a destacam em relação
aos demais períodos históricos.
Como é simplesmente impossível descartar a interferência da perspectiva,
restam poucas alternativas de enfrentamento do problema. Uma delas seria o
caminho, de algum modo “formalista”, de considerar a questão inerente à
construção da narrativa histórica, tomando a perspectiva como uma forma de
limitação prefigurativa. Evidentemente, seria preciso outro artigo para
aprofundar esse enfoque: tratarei disso em outra ocasião.
Carlo Ginzburg tem uma visão positiva da questão: “a noção de
perspectiva deixará de constituir um obstáculo […] para se tornar […] um
lugar de encontro, uma praça onde se pode conversar, discutir, dissentir”
(2001:198).13 Esse otimismo ecoa a antiga proposta de Habermas relativa a
uma teoria do agir comunicativo. O caráter aparentemente singelo da
afirmação não deve encobrir a importância de um problema que,
indiretamente, ela toca. Refiro-me à incompreensível ausência de reflexões
— no campo dos debates sobre a história do tempo presente — sobre o
clássico tema da “crise da filosofia do sujeito”, isto é, sobre a tentativa de
superação de tal filosofia — iniciada com Descartes e coroada em Hegel e
que marcou a filosofia moderna —, constituindo a crise filosófica da razão
centrada no sujeito consciente, base do paradigma iluminista. Não seria
possível fundar a objetividade do conhecimento na consciência de um sujeito
isolado que estabelece o que é o real. Como é sabido, esse debate relaciona-se
à percepção da fragilidade da razão iluminista como parâmetro libertador e
possui enorme tradição de reflexões que incluem a crítica da coisificação,
pela recepção de Weber por Lukács; a própria denúncia, sobretudo feita por
Adorno e Horkheimer, da razão subjetiva a partir de uma razão objetiva que
eles consideravam definitivamente destruída; o ataque marxista à
autossuficiência do sujeito pensante; a revelação de Foucault da perversão da
vontade de poder; entre outras. Em sua tentativa de superação do problema,
Habermas registrou que a mencionada crise consolidou percepções que se
tornaram praticamente uma tópica, das quais a mais importante para estas
reflexões é a crítica da “vocação teórica ambiciosa das ciências humanas” em
práticas que desprezam o indivíduo (Habermas, 1990). Portanto, a rigor,
antes de enfrentar os tradicionais impasses teóricos da subjetividade, da
neutralidade, seria preciso enfrentar a problemática da razão moderna —o
que evidentemente não será feito aqui, mas cabe registrar que todo o debate
recente sobre a história do tempo presente se deu no contexto da chamada
“crise da história”, que, numa leitura possível, seria a expressão, em nosso
campo, da grande crise de paradigma mencionada. Diante de tal impasse, a
impossibilidade de uma aproximação supostamente “objetiva” de seu tema,
que vitimaria especialmente o historiador do tempo presente, torna-se uma
quimera, já que o estabelecimento da verdade seria impossível para qualquer
sujeito diante de seja lá qual for o seu objeto.
Em uma instigante reflexão sobre a questão do distanciamento histórico,
ainda inédita, Jaap den Hollander defendeu a posição de que devemos adotar,
preferencialmente, a noção de “distinção” no lugar de distância histórica para
considerar as diferenças entre o contexto cultural do historiador e de seu
material de pesquisa.14 Ele se inspira na ideia de “experiência histórica
sublime” de Ankersmit, ou, mais precisamente, na noção equivalente de
“dissociação sublime do passado”, isto é, a radicalização da noção de
experiência histórica subjetiva, entendida como a percepção de algum
momento histórico. Desenvolvida em livro recente, a proposta pressupõe
ultrapassar a epistemologia, mover-se para além da verdade, dissociar a
experiência da verdade (Ankersmit, 2005). Supondo a hipótese de um
encontro direto com o passado, por intermédio de uma percepção quase
mística, Ankersmit articula a experiência histórica sublime às experiências de
tipo coletivo, às mudanças drásticas, à história em grande escala. Seria uma
contrapartida filosófica do trauma, e o enfoque psicológico é mobilizado por
ele no sentido de que a experiência sublime seria uma experiência de perda
do “presente indiscriminado”, que assim torna-se seu passado.
Hollander diz que devemos criar uma distinção entre sujeito e objeto por
meio de um autodistanciamento, dissociando-nos do passado, expulsando-o.
Essa dissociação seria um tipo de despersonalização, tal como ocorre no
processo psíquico no qual o sujeito tem a impressão de que é estranho a si
mesmo e de que vê o mundo através de uma cúpula de vidro — situação que
Ankersmit menciona como analogia da dissociação do passado (Ankersmit,
2001:310). Assim, estabelecer-se-ia um contato ao mesmo tempo direto e
indireto com a realidade, combinação que indicaria o processo de
autodistanciamento que permitiria a separação sujeito/objeto.
O simples enunciado da proposta, parece-me, suscita uma grande
variedade de perguntas — por exemplo, por que o problema estaria entre o
contexto histórico do historiador e seu material de pesquisa? —, mas não é o
caso de enunciá-las aqui, dado o caráter preliminar do texto inédito de
Hollander. Entretanto, algumas questões gerais podem ser referidas.
É possível distinguir, em termos analíticos, a questão do acesso ao real da
suposição de que o passado mais recente nos afeta tão fortemente que
seríamos incapazes de analisá-lo sem tendenciosidade, conforme a leitura
restritiva de Ranke. A resposta de Hollander, inspirada em Ankersmit,
privilegia a questão do acesso. Entretanto, é conhecida a posição de
Ankersmit segundo a qual os períodos específicos da história são atributos da
nossa descrição do passado e não atributos do próprio passado. Ora, se as
especificidades de uma época não estão no passado, mas nas estruturas
narrativas, de que modo poderíamos associar autodistanciamento a
“experiência histórica sublime”, considerando que esta última busca superar a
“contaminação” das estruturas linguísticas?
Além do problema de ser possível ou não compreendermos bem uma
época na qual estamos mergulhados, já que não teríamos condições de vê-la
ou de experimentá-la transparentemente, ou seja, além da questão do acesso
ao real, há o problema da interferência desse real sobre nós, do modo como
ele nos afeta, e a grande preocupação dos historiadores da história do tempo
presente tem a ver com essa última questão mais comezinha, a da
imparcialidade, já que para a maioria dos historiadores a primeira questão
nem ao menos se constitui e virtualmente todos aderem à hipótese filosófica
do realismo ontológico intuitivamente, não obstante a importância do
“problema mais obstinado […] a questão sobre a origem e justificativa das
nossas convicções sobre a realidade do mundo exterior”, como disse Dilthey
(apud Rickman, 1976:162).
Em grande medida, os debates sobre a história do tempo presente partem
de pressupostos extravagantes: em primeiro lugar, se não estivéssemos
mergulhados no presente seríamos capazes de acessar transparentemente o
real, sem a sensação de olharmos o mundo a partir da cúpula de vidro de uma
queijeira — conforme descrevem os pacientes de despersonalização
mencionados por Ankersmit. Ademais, o faríamos com imparcialidade.
Ora, isso é evidentemente impossível. Além desses grandes problemas da
história não dizerem respeito apenas à história do tempo presente,
consolidou-se há muito tempo a argumentação filosófica sobre a
inviabilidade das modalidades ortodoxas da teoria do reflexo e sobre o mito
da neutralidade científica.
Depois dos rescaldos da chamada “crise da história”, mergulhamos em
uma fase de grande empirismo e de rejeição do debate epistemológico. Além
da expressiva produção historiográfica já existente, também devemos saudar
a nova história do tempo presente por ter reanimado o debate teórico.
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p. 124-135, fev 2004.

*-Agradeço a leitura e os comentários críticos de Ronald Polito, Estevão de Rezende


Martins, Andrea Daher, Felipe Charbel Teixeira, Jurandir Malerba, Douglas Attila
Marcelino, Maria Paula Araujo, Monica Grin e Diego Knack.
1-Para um entendimento próximo a esse, ver Lagrou (2003:3). Na visão de Lagrou, a
distinção verifica-se em relação ao século XIX.
2-A disposição combativa deu a impressão de que a história do tempo presente surgiu
na França, o que certamente não é o caso. Ver, por exemplo, Aróstegui (1998:16).
3-Segundo Gérard Noiriel, a história contemporânea teria ficado restrita ao ensino
desde a criação de cadeiras de história contemporânea na Sorbonne, a partir de 1884,
com o que ficaram desqualificados os historiadores não universitários que faziam
oposição à Terceira República abordando o período recente. Ver Noiriel (1998).
4-Entrevista Sobre a história do tempo presente com o historiador Henry Rousso
concedida a Arend e Macedo (2009:205).
5-Sobre as perdas de indivíduos em situações diferentes como na África do Sul ou na
Alemanha, ver LaCapra (1999:698). Para a suposição de que é possível encontrar
“relações significativas e de informação mútua” entre acontecimentos como o
Holocausto, genocídios etc., ver LaCapra (2006:356).
6-Refiro-me à suposição de que inúmeros eventos ao longo do século XX (como os
regimes militares latino-americanos ou os massacres de Ruanda, Bósnia e Kosovo)
podem ser compreendidos segundo esta matriz e este trauma. Isso não significa,
evidentemente, negar a importância da guerra e a tragédia do Holocausto.
7-Ver também Wieviorka (1998).
8-“[…] o interesse especial pelo emprego de conceitos político-sociais e a análise de
suas significações ganham, portanto, uma importância de caráter social e histórico.”
Koselleck (2006:101)
9-O mesmo pode ser dito, de algum modo, em relação à liberação de documentos
sigilosos da diplomacia e do serviço de inteligência das grandes potências,
notadamente dos Estados Unidos, em função do alcance das operações secretas que
tais países patrocinaram, sobretudo durante a Guerra Fria.
10-Para a preferência pelo uso da expressão “fontes orais” no lugar de “história oral”,
ver Le Goff (1999:100) e Lagrou (2007:35).
11-Ver também Zammito (2004:124-135).
12-Jaap den Hollander, em trabalho que citarei mais adiante, também estabelece uma
relação entre o recuo temporal e a superação de oposições fundamentais.
13-Uma interpretação que também valoriza a perspectiva, sem deixar de problematizá-
la, pode ser vista em Trevelyan (2010:133 e segs.).
14-Agradeço a gentileza do autor, que permitiu que eu consultasse a comunicação
intitulada “Contemporary History and the Art of Self-Distancing”, realizada na
conferência “The Transfiguration of the Present: Reflections on Historical Distance”,
na Universidade de Groningen, na Holanda, em janeiro de 2010.
Demandas sociais e história do tempo presente
MARIETA DE MORAES FERREIRA

Introdução
O estudo da história do tempo presente, que durante tanto tempo foi objeto de
resistências e interdições, entrou na ordem do dia no Brasil, não só como
objeto de pesquisa acadêmica, mas também como um tema desafiador para os
historiadores do ponto de vista ético e político. A aprovação da lei que
regulamenta a constituição da Comissão da Verdade para apurar crimes
contra os direitos humanos suscita diversas questões para a comunidade de
historiadores. Qual a posição que a comunidade científica deve adotar? A
Associação Nacional dos Professores Universitários de História (Anpuh),
principal entidade que reúne profissionais de história, deve se envolver
diretamente no debate? Se sim, que regras devem nortear seu
posicionamento? Esse envolvimento institucional não acaba por atribuir ao
historiador o papel de juiz da história?
Esse conjunto de perguntas e questões já foi proposto em vários países,
tais como França, Alemanha, África do Sul, Argentina, só para citar algumas
experiências. As respostas foram produzidas de acordo com a cultura
histórica de cada país e com os impactos produzidos pelos eventos
traumáticos nas diferentes sociedades. No caso brasileiro, esse debate se
expande e se aprofunda tardiamente, uma vez que as tentativas feitas pelas
entidades de direitos humanos sempre encontraram resistência para avançar
na revisão da Lei de Anistia e no julgamento dos crimes políticos contra os
direitos humanos. A dimensão das discussões ficava restrita a alguns
especialistas e a encontros de caráter estritamente acadêmico.
Em 18 de novembro de 2011, foi sancionada pela presidenta Dilma
Rousseff a lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade. A comissão
“traz esperança de que fatos controversos ocorridos durante os anos de
chumbo possam ser revisitados e recontados”. Foi assinada também a Lei de
Acesso a Informações Públicas, que acaba com o sigilo eterno de
documentos. Segundo o governo federal, a comissão não tem o objetivo de
acusar nem processar os autores de violências, mas tão somente divulgar
informações de documentos ultrassecretos em um relatório a ser elaborado. O
documento final será produzido por uma equipe composta por sete pessoas e
deve apurar violações aos direitos humanos, ocorridas entre 1946 e 1988. O
grupo terá dois anos para ouvir depoimentos em todo o país, requisitar e
analisar documentos que ajudem a esclarecer as violações de direitos
ocorridas no período. Segundo a reportagem, a presidenta Dilma afirmou
durante a solenidade: “Hoje é um dia histórico para o Brasil. A partir de hoje,
esta será a data em que comemoraremos a transparência e em que
celebraremos a verdade” (Salés, 2011).
Esses dois eventos sugerem desafios para os historiadores brasileiros que
se dedicam ao estudo da história recente de nosso país. A Lei de Acesso a
Informações Públicas abrirá novas possibilidades para a emergência de temas
ainda não explorados, funcionando como um estímulo para o reconhecimento
e a legitimidade da história do tempo presente, e permitirá o esclarecimento
dos muitos pontos obscuros que a dificuldade de acesso às fontes impedia.
Por outro lado, o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade propõe
uma grande questão: os historiadores profissionais devem se envolver
diretamente nessa empreitada? A diretoria da Anpuh entende que sim e
reivindicou que a entidade deveria indicar possíveis nomes entre seus
associados para integrar a comissão com o argumento de que

vai tratar de questões referentes à história recente do país e que, por isso,
demanda a atuação de profissionais que desenvolveram, ao longo de sua
formação, habilidades referentes à crítica documental, à interpretação de
testemunhos, à coleta e análise de fontes orais, entre outras.1

No entanto, outros profissionais de história entendem que essa iniciativa,


além de apresentar vários problemas de ordem metodológica e teórica para a
disciplina, termina por colocar os historiadores como juízes do passado, o que
não seria o objetivo maior de nossa atividade.
Num contexto dessa natureza, nada mais oportuno do que revisitar o
percurso dos debates sobre a história do tempo presente e descobrir como
historiadores de outros países vivenciaram situações semelhantes no trato
com eventos traumáticos contemporâneos e a institucionalização de
“comissões da verdade” para apurar crimes de direitos humanos praticados na
vigência de regimes autoritários e de ditaduras. Para isso, vale a pena
percorrer os caminhos já desvendados em outras conjunturas e em outros
campos historiográficos.

O estudo do século XX e a emergência da noção de história do


tempo presente

Segundo o historiador alemão Hartmut Kaelble (1993), as expressões histoire


du temps présent, contemporary history e Zeitgeschichte entraram no
vocabulário corrente dos historiadores especialmente após a II Guerra
Mundial, quando assistimos à convergência de escolas históricas na Europa.
Naquele momento, não só essas expressões eram novas, como anunciavam
que os historiadores pretendiam explorar as rupturas e as transições recentes
da história, mais do que havia sido feito até então. Na verdade, a história do
século XX já se mostrava cheia de turbulências e indicava que profundas
mudanças estavam por ocorrer. Toda essa intensificação dos ritmos da
história nas últimas décadas, trazida pelas grandes guerras e pela eclosão da
Revolução Soviética, estimulou o desenvolvimento do estudo do tempo
presente.
Três grandes temas começaram a ocupar os estudiosos europeus que se
interessavam pelo tempo presente: a história da II Guerra, a emergência do
Estado providência (L’Etat-Providence) e a história dos eventos-chave, não
somente nos planos nacionais, mas no conjunto da Europa. Na Alemanha,
ainda segundo Kaelble, a entrada dos Estados Unidos na I Guerra, em 1917,
foi considerada um ponto de partida, pois marcou o fim da longa supremacia
europeia e anunciou o início da era americana; além disso, naquele ano,
iniciou-se a Revolução Soviética, que apontou para a emergência de um novo
poder mundial. Na França, a II Guerra se constituiu num marco importante.
Esses momentos inaugurais foram diversos nos diferentes países, mas era
crescente a demanda social pelo conhecimento da história recente, levando
parte da comunidade de historiadores a concentrar suas atenções nesse objeto
de estudo.

A história do tempo presente: um laboratório epistemológico


Em 1978, foi criado na França um laboratório, o Institut du Temps Présent
(IHTP), que dava continuidade aos trabalhos do Comitê de História da II
Guerra Mundial e tinha como objetivo desenvolver os estudos sobre a história
recente da França e dos países estrangeiros. O historiador contemporaneísta
François Bédarida, especialista em Grã-Bretanha, foi ao mesmo tempo o
fundador e o primeiro diretor do IHTP até 1991. No primeiro boletim do
IHTP foi publicado um editorial que apresentava a agenda da nova entidade
num contexto de grandes transformações no campo historiográfico e de crise
dos paradigmas das ciências sociais.
De acordo com as palavras do próprio Bédarida (1993:391-492), apesar
de contar com antepassados de prestígio, como Heródoto e Tucídides, que,
nas respectivas épocas, analisaram o passado recente, o IHTP nascente
enfrentou muitas dificuldades, o parto foi duro e a primeira infância, agitada.
Só depois de vários anos, o barco, afastando-se da zona de tempestade,
adentrou águas mais calmas. Além das tradições historiográficas herdadas do
século XIX e elaboradas pelos pais fundadores como Seignobos, ainda nos
anos 1980, historiadores renomados reafirmavam os mesmos princípios que
estabeleciam uma série de interdições para o estudo dos períodos recentes,
com vistas a garantir maior objetividade dos estudos, mas principalmente
afastar os amadores, que então se misturavam com os historiadores
profissionais.
Em 1981, Edoardo Grendi, um historiador inovador da micro-história,
publicou Paradoxos da história contemporânea, onde reafirmava com novas
palavras os mesmos princípios.2 A posição de Grendi ilustra as resistências e
os preconceitos diante da história contemporânea em geral e do tempo
presente em particular. Assim, o primeiro desafio a ser enfrentado pelo IHTP
era defender a sua legitimidade científica, respondendo a objeções
recorrentes, como a de impossibilidade de consultar os arquivos recentes e a
inacessibilidade de um conhecimento objetivo por falta de recuo. Nesse
sentido, a história do tempo presente estaria próxima do jornalismo e não
possuiria recursos adequados para analisar a importância, na longa duração,
dos fenômenos estudados.
Para responder a essas questões o IHTP, liderado por Bédarida, organizou
um seminário, que funcionou de 1988 a 1990, intitulado “O tempo presente,
uma démarche histórica à luz das ciências sociais”, que reuniu especialistas
de diferentes disciplinas e de períodos históricos distintos. Os resultados
desses debates foram publicados especialmente em duas obras, Écrire
l’histoire du temps présent (1993) e Histoire politique et sciences sociales
(1991). A primeira inovação trazida pelos debates no IHTP foi pôr em pauta
a discussão acerca da união e da interação do passado e do presente,
retomando a citação de Marc Bloch: “A solidariedade do presente e do
passado é a verdadeira justificação da história”. O segundo ponto era a
afirmação de que tal história poderia perfeitamente repousar sobre bases
científicas e que era preferível que esse período histórico pudesse figurar no
domínio dos historiadores do que ser objeto exclusivo de outras ciências
sociais ou de jornalistas. No entanto, para garantir o sucesso dessa
empreitada, era preciso assumir desafios epistemológicos e metodológicos.
Uma questão que mereceu destaque foi a noção de “tempo presente” em
seus múltiplos aspectos e suas relações com os contemporâneos, os
testemunhos, os atores, a demanda social e as outras disciplinas. Desse
debate, uma questão relevante que emergiu foi a afirmação de que o “tempo
presente” constitui um campo científico singular por sua própria definição. A
primeira dificuldade é que o período histórico em questão é definido por
balizas móveis. Assim, que cronologia, que evento-chave e reconhecido deve
ser adotado como marco inicial da história do tempo presente? Para alguns,
trata-se do período que remonta a uma última grande ruptura; para outros,
trata-se da época em que vivemos e de que temos lembranças, ou da época
cujas testemunhas são vivas e podem supervisionar o historiador e colocá-lo
em xeque (Voldman, 1993). Ou, ainda, como afirma Hobsbawm (1993 e
1998), o tempo presente é o período durante o qual se produzem eventos que
pressionam o historiador a revisar a significação que ele dá ao passado, a
rever as perspectivas, a redefinir as periodizações, isto é, olhar, em função do
resultado de hoje, para um passado que somente sob essa luz adquire
significação.
Mas todas essas perguntas e imprecisões não impediram Bédarida de
avançar e clarificar essa noção-chave. Peschanski, Pollack e Rousso (1991),
dando continuidade a esse esforço, assumiram que o tempo presente deveria
abarcar

os limites de duração de uma vida humana, constituindo-se em um campo


marcado pela presença de testemunhos vivos, traço mais visível de uma história
em devir. O testemunho é uma presença real […] que condiciona o trabalho do
historiador, quer ele queira ou não, passa a ser uma figura reconstituída, um
personagem histórico, ao qual o pesquisador, pelas necessidades da causa, dá um
estatuto particular, ao escolhê-lo, solicitá-lo, interrogá-lo. […] Esta sequência é
delimitada pela fronteira, em geral delicada, de situar, entre o momento presente
— a atualidade — e o instante passado. Esta segunda baliza obriga o historiador a
redefinir constantemente seus objetos de estudo, tanto para clarificar o que
merece sua atenção quanto, ao contrário, para buscar uma outra lógica de
investigação (do economista ou dos cientistas políticos) para integrar, no seu
campo, o passado imediato. Contrariamente aos outros historiadores, o historiador
do tempo presente não pode se fechar em um período único para todo o sempre.
Não somente como os outros, ele evolui nos métodos e na sua maneira de
construir um objeto histórico, mas sobretudo ele é obrigado a integrar
continuadamente as novas sequências cronológicas, o que não se faz sem
dificuldades e tensões [Peschanski, Pollak, Rousseau, 1991:14].
Foi considerando essa perspectiva que Bédarida declarou que a “história
do tempo presente é feita de moradas provisórias” (apud Ferreira e Amado,
1996:221). Isso significa dizer que seu turnover é muito rápido, e que ela se
reescreve constantemente, utilizando-se do mesmo material, mediante
acréscimos, revisões e correções.
Outra singularidade do tempo presente é a valorização do evento, da
contingência e da aceleração da história. O trabalho do historiador enfrenta aí
dificuldades, porque ele é também testemunho e ator de seu tempo. Muitas
vezes está bem mais envolvido nesse movimento de aceleração do que nos
fenômenos de longa duração, que necessitam de maior recuo, chegando a
supervalorizar os eventos do tempo presente, especialmente porque os
séculos XX e XXI têm sido mais ricos em grandes mudanças. Por sua vez,
essa singularidade do objeto deve nos alertar sobre a necessidade de buscar
métodos e temáticas, também específicos, como, por exemplo, a importância
das cronologias antes das análises de conteúdo; a valorização dos períodos de
ruptura e dos eventos políticos, a utilização das fontes orais e a busca da
interdisciplinaridade. Graças aos esforços teóricos dos pesquisadores do
IHTP, os debates e as restrições acerca das fontes e da objetividade
vinculadas à história do tempo presente foram sendo paulatinamente
superados.
Os argumentos de Roger Chartier, um historiador modernista, são
indicativos dessas mudanças. Rompendo com a concepção que defendia a
necessidade do distanciamento para a realização da análise histórica, Roger
Chartier sustenta argumento contrário, ao afirmar que, na história do tempo
presente,

o pesquisador é contemporâneo de seu objeto e divide com os que fazem a


história, seus atores, as mesmas categorias e referências. Assim, a falta de
distância, ao invés de um inconveniente, pode ser um instrumento de auxílio
importante para um maior entendimento da realidade estudada, de maneira a
superar a descontinuidade fundamental, que ordinariamente separa o instrumental
intelectual, afetivo e psíquico do historiador e aqueles que fazem a história [apud
Ferreira e Amado, 1996:216].

Por outro lado, o estudo da presença do passado incorporada ao presente


das sociedades, iniciado pelos historiadores do tempo presente, abre novas
temáticas e abordagens para pesquisadores de outros períodos da história.
Ainda segundo Chartier, a história do tempo presente permite uma
acuidade particular para equacionar o entendimento das relações entre a ação
voluntária e a consciência dos homens e constrangimentos desconhecidos que
a encerram e a limitam. Melhor dizendo, a história do tempo presente pode
permitir com mais facilidade a necessária articulação entre a descrição das
determinações e das interdependências desconhecidas que tecem os laços
sociais. Assim, a história do tempo presente constitui um lugar privilegiado
para uma reflexão sobre as modalidades e os mecanismos de incorporação do
social pelos indivíduos de uma mesma formação social (apud Ferreira e
Amado, 1996:215-218).
Ainda que partindo de perspectivas distintas, Rémond (apud Ferreira e
Amado, 1996:203-209) resume bem os argumentos em favor dessa
superação, respondendo às críticas de que a história do tempo presente não
podia contar com fontes suficientes. Segundo Rémond, o historiador que
trabalha com o tempo presente “está mais ameaçado pela superabundância do
que pela penúria”. Por sua vez, o distanciamento que pretende garantir a
objetividade não é consequência direta do recuo, mas “efeito da capacidade
que o historiador tem de controlar seus preconceitos e prevenções”. O recuo,
num sentido inverso, priva o historiador de testemunhos insubstituíveis,
dificultando o entendimento das mentalidades e dos comportamentos de um
tempo diferente (Rémond, 1996:13-37).
Na Inglaterra, ainda que a história recente tenha encontrado mais
resistência para se firmar, acabou recebendo o veredicto definitivo de Eric
Hobsbawm (1998:243-255):

A despeito de todos os problemas estruturais da história do tempo presente, é


necessário fazê-la. Não há escolha. É necessário realizar as pesquisas com os
mesmos cuidados, com os mesmos critérios que para os outros tempos, ainda que
seja para salvar do esquecimento, e talvez da destruição, as fontes que serão
indispensáveis aos historiadores do terceiro milênio.

A despeito do reconhecimento cada vez maior da história do tempo


presente, os desafios permanecem, se atualizam e exigem novas respostas.
Como lidar com eventos não terminados e, consequentemente, com variáveis
para análise que não podem ser previstas ao se estudar processos não
finalizados? Delacroix (2005) reúne argumentos importantes para enfrentar
essas questões e apresenta o conceito de “ignorância do dia seguinte” —
geralmente considerada uma desvantagem — como uma possível vantagem
para os historiadores do tempo presente. Lançando mão das contribuições de
Paul Ricœur, sustenta o argumento de que esse desconhecimento permite
uma “desfatalização” da análise e um recurso privilegiado frente à narração e
ao evento.
As contribuições de Ricœur sobre o “tempo” são recuperadas também por
Denis Peschanski, Michael Pollak e Henry Rousso (1991:28). Esses autores
rejeitam a oposição entre tempo curto e tempo longo e retomam o esquema
que propõe a passagem do evento “infrassignificado” (que seria o “momento
metódico”) ao quase desaparecimento do eventual (que seria o momento
Annales) e depois ao retorno contemporâneo do evento “sobressignificado”
como produto de uma narrativa, de representação. De acordo com os autores
citados, aprofundando essa linha de raciocínio, Ricœur sustenta que a história
do tempo presente possui trunfos epistemológicos que desfatalizam a história,
permitindo ao historiador estar atento sobretudo “ao que permanece virtual
no presente, ao que nele ainda está aberto ao possível”.
O tempo presente definido segundo esses critérios é, portanto, um
período móvel que se desloca com o desaparecimento progressivo das
testemunhas. Desde os acontecimentos de 1989, a queda do Muro de Berlim,
surge a questão do marco terminal. Em que medida os anos 1989-1991, que
indicam o fim do mundo bipolar, abrem um novo presente ou remetem para
mais longe, no passado, as datas iniciais do tempo presente? (Frank, 1993)
Além desses problemas de delimitação cronológica, de disponibilidade de
fontes, de visão retrospectiva já enfrentadas e em grande parte equacionadas,
que outras características singularizariam o tempo presente em relação a
outros períodos?

O tempo presente e o desafio de lidar com as demandas sociais


A noção de demanda social de história permanece ainda vaga, é usada em
contextos de análise muito diferentes, e abrange fenômenos muito diversos;
as “demandas memoriais” e as demandas midiáticas e editoriais são
exemplos. A existência de um duplo mercado de história, um erudito e
acadêmico e o outro dito de “grande público”, é antiga e traduz a separação
entre duas maneiras de escrever história. Esses desafios afetam todos os
profissionais de história, porém mais especialmente aqueles que lidam com o
tempo presente.
O crescimento do lugar ocupado pelos historiadores nos meios de
comunicação de massa, a partir da década de 1970, abriu espaço para maior
controle da produção histórica por necessidades determinadas fora das
lógicas autônomas de pesquisa. Christophe Charle (1995:35-40) foi um dos
autores que chamaram a atenção para os desafios abertos com a midiatização
da história universitária. O boom de memórias, o interesse crescente do
grande público pelo passado, tem ampliado o espaço dos historiadores nos
meios de comunicação e nas publicações para o grande público, mas ao
mesmo tempo apresenta o desafio de ter de transpor e adequar seus
conhecimentos para se comunicar com um público não especializado, o que
muitas vezes o leva à tentação de recorrer a fórmulas simplistas e
incompatíveis com os cânones universitários. Charle (1995:35-40) critica,
ainda, as respostas ambíguas dos historiadores às demandas vindas da
sociedade e do Estado. Além disso, alerta para os perigos de interferências
externas que podem pôr em risco a autonomia da história como disciplina
científica e contaminar o julgamento científico pelo juízo midiático. Nesse
quadro é preciso estar atento à instrumentalização da história pela demanda
social e repensar o vínculo entre função do conhecimento e função social da
história, especialmente quando se trata da análise de passados sensíveis, tais
como o Holocausto, ou as ditaduras na América Latina.
Se os pontos levantados são ameaças para os historiadores, a omissão ou
o isolamento dos mesmos também podem acarretar consequências graves.
Inúmeras vezes são essas demandas sociais veiculadas pelo grande público
que rejeitam ou marginalizam os trabalhos científicos de pesquisa que
encontram dificuldades para publicação. Por sua vez, são os livros de
vulgarização e os manuais produzidos por jornalistas ou autores não
especializados que preenchem esse vazio e acabam sendo privilegiados pelo
mercado editorial.
As dificuldades de transpor as novas contribuições acadêmicas se
manifestam, especialmente, no ensino da história na educação básica
(Ferreira e Franco, 2008). Os autores chamam a atenção para a distância entre
as inovações historiográficas e a integração ainda muito marginal dessas
contribuições para a renovação dos manuais didáticos que reproduzem
versões da memória coletiva nacional. No Brasil, essas questões têm se
apresentado, também, na transmissão de memórias “difíceis” e obscuras
sobre o regime militar, tema especialmente importante para o ensino. Como
integrar o ensino dos “passados sensíveis” a um ensino que pretende
privilegiar a transmissão de uma memória comum que visa neutralizar os
pontos de conflito dentro da sociedade?

O boom de memórias e identidades

Segundo Philippe Joutard, nos últimos 30 anos o mundo mergulhou no “reino


da memória generalizada”, multiplicando as comemorações e invocando
permanentemente o dever de memória. Ao mesmo tempo, tem crescido a
busca por identidades e a valorização do patrimônio sob todas as suas formas:
materiais e imateriais (Joutard, 2007:115). Essa avaliação pode ser constatada
nas palavras de vários outros historiadores de diferentes correntes
historiográficas e países. De acordo com o historiador alemão Lutz
Niethammer (1997), identidade é uma das palavras mais em voga nos dias de
hoje, seja na política, na mídia ou nos estudos culturais. Tanto a identidade
pessoal quanto a identidade coletiva (empresarial, de gênero, de região,
étnica) constituem um elemento essencial para as sociedades pós-modernas.
A emergência da “questão da diferença” no centro dos debates políticos e
científicos foi, de acordo com Niethammer, decisiva para o boom de
identidades: tratava-se de valorizar as diferenças que não se deixavam conter
nas categorias amplas de classes sociais ou Estados nacionais. Paralelamente,
a retomada da reflexão sobre o papel do indivíduo na história e a ênfase na
dimensão da deliberação social também contribuíram para a proliferação dos
estudos sobre identidade e memória.
Em Les abus de la mémoire, Tzvetan Todorov (1995) aprofunda esse
debate ao introduzir a discussão das ameaças trazidas pela passagem “Do
dever de memória aos abusos da memória”. Dosse sintetiza os argumentos de
Todorov ao declarar “O dever de memória, que faz da memória um valor,
transformado em ‘religião laica’, torna-se um empreendimento sistemático de
reivindicação identitária de minorias (sexuais, religiosas ou étnicas) e de
suspeita em relação à pesquisa histórica” (Delacroix, Dosse, Garcia,
2005:370). Partindo dessa constatação, fica evidenciada, por ambos os
autores, a preocupação com o processo da “vitimização” das diferentes
comunidades que sofreram, no passado, massacres ou perseguições (como as
comunidades judia e negra nos Estados Unidos, ou os opositores de ditaduras
militares). Ainda segundo Delacroix (2005), a invocação da memória desses
crimes permite, para os grupos sociais envolvidos, conquistar o estatuto de
vítima social, o que pode garantir, do ponto de vista simbólico, inúmeras
vantagens.
Nesse contexto de pressão das memórias sobre sua prática profissional é
que os historiadores são questionados para redefinir sua responsabilidade ante
uma demanda de fidelidade memorial. Rousso, aprofundando esse debate,
problematiza a sacralização da memória, chama a atenção para a função
crítica da história e a necessidade de distanciamento, o que permite aos
historiadores serem menos dependentes dos objetivos políticos, comunitários
e identitários que se escondem por trás do dever de memória. Ainda segundo
Rousso (1998), não se pode escrever uma história científica quando se quer,
ao mesmo tempo, conservar seu valor edificante e preservá-la como memória
heroica, bem como “tendo como objetivo defender este ou aquele valor”.
Para o historiador, “a escrita mesma da história […] é um valor em si…”
(Rousso, 1998:137). Essas análises de Rousso aliam-se às de François
Bédarida (1993) e Philippe Joutard (2007:115-122), que escreve: “é
necessário promover um autêntico dever de história, que parte da memória,
dela se nutre, mas sabe tomar a distância necessária em relação a ela”.
Historiadores como Rousso, Bédarida e Joutard procuraram dar respostas
que levem em consideração as demandas de memória pela história e, ao
mesmo tempo, produzam uma historicização crítica da memória. Depois de
terem reconhecido o estímulo que a memória dá à história, eles chamam a
atenção para a função crítica da história diante da ação inquisitorial da
memória.
Mais recentemente, ante a criação das chamadas “comissões da verdade”
instaladas em vários países com o intuito de esclarecer e punir crimes contra
os direitos humanos, bem como a explosão do testemunho (referente às
experiências dos campos de concentração nazistas, às ondas repressivas
soviéticas, à atuação das vítimas das ditaduras na América Latina), autoras
como Annette Wieviorka (1998) e Beatriz Sarlo (2007) sustentam que o
testemunho, ao mesmo tempo que se tornou um imperativo social, coloca
desafios para a construção de um discurso histórico consistente na medida em
que ele se opõe frequentemente à memória individual, à da palavra da
testemunha, da realidade vivida?
Fica evidenciado, assim, um conflito real, uma tensão entre vítimas-
testemunhas, portadoras de memórias, e historiadores. Contudo, não é
profícuo que estes últimos declarem “guerra contra a memória e contra as
testemunhas” para “disputar com elas o interesse do grande público”
(Joutard, 2007:116). Joutard defende, ao contrário, a coexistência dos
trabalhos históricos com os testemunhos; o historiador tem o dever de exercer
sua profissão, mesmo que seus trabalhos possam ser instrumentalizados pelos
portadores de memória ou pela instância política. Ricœur (1998, 2000)
propõe sair dessa oposição de um modo que reconheça a memória uma
função mais positiva em relação à história. Se a história efetua um trabalho
crítico em relação à memória, demasiado complacente consigo mesma, a
memória permite ao historiador superar uma visão puramente retrospectiva
do passado e reencontrá-lo como um presente que foi.

Demandas memoriais e as ameaças da expertise: de árbitro a


juiz
O historiador do tempo presente lida com a memória viva dos seus
contemporâneos, que influenciam fortemente seu trabalho com questões que
dizem respeito à legitimidade da sociedade em que vivemos (Frank, 1993
apud Delacroix, 2005). As instituições e os atores que buscam a legitimação
de suas demandas sociais através da história pressionam os historiadores no
sentido de referendar seus pontos de vista.
Os questionamentos colocados pelas memórias de grupos sociais que
viveram eventos traumáticos (tais como o Holocausto, o governo de Vichy na
França e as ditaduras na América Latina) demandam da “história do tempo
presente” uma gestão de usos sociais e das instrumentalizações da memória
ainda não arrefecida, assim como dos passados transformados em história de
maneira incompleta. Essa sensibilidade à demanda social, encontrada nos
historiadores que lidam com o tempo recente, confere singularidade à história
do tempo presente e cria limites para seu desejo de fazer uma história tão
científica quanto as outras?
Gérard Noiriel (2003:150-152), em seu livro Qu’est-ce que l’histoire
contemporaine?, chama a atenção para as “relações contraditórias que a
história do tempo presente mantém com a demanda social” e denuncia os
riscos e as virtudes da “importância assumida pela lógica da perícia” nos
historiadores do tempo presente, que “tendem a transformar a história numa
espécie de juiz supremo, que distribui os elogios e as reprimendas” (Noiriel,
1998:208-210).

Os desafios da judicialização
Ainda segundo Gérard Noiriel, “é necessária uma reflexão crítica e constante
sobre a função social da história”, e os historiadores “devem refletir acerca
dos motivos dessa demanda, historicizar sua própria ação e avaliar seu papel
na eclosão de novas escalas políticas e de novas maneiras de pensar” (Noiriel,
1998:208). Mas até que ponto, e como, os historiadores devem envolver-se
no reconhecimento do papel social de sua disciplina?
Na virada para o século XXI, as respostas dos historiadores a essa
pergunta são diversas. Os historiadores são cada vez mais solicitados,
inclusive para testemunhar em tribunais. Em 1998, na França, o processo que
acusava de cumplicidade em crimes contra a humanidade Maurice Papon, ex-
secretário-geral de prefeitura regional sob Vichy durante a ocupação alemã,
evidencia as divergências entre os historiadores solicitados para testemunhar.
Para Rousso (1998), que se recusou, então, a testemunhar, há confusão entre
três registros muito distintos: o da justiça, o da memória nacional e o da
história. A intenção de verdade da história não pode ser subordinada às
lógicas judiciárias ou memoriais. Antoine Prost (2000) vai no mesmo sentido
quando constata o retorno de uma historiografia por ele chamada de
“judiciária”, ou seja, uma historiografia “que constrói, de fato, suas narrativas
como os requisitórios ou discursos de defesa e estabelece como objetivo
pronunciar sentenças”. Segundo Prost, essa historiografia judiciária abre
caminhos para muitas ambiguidades. Comparando o trabalho do juiz com o
do historiador, Prost (2000:294) chama a atenção para a diferença de relação
com a testemunha nos dois casos e na divergência existente entre os objetivos
perseguidos pelo juiz e pelo historiador.
Essa questão põe na ordem do dia o posicionamento a ser adotado pelos
historiadores e a necessidade de distinção entre as investigações
historiográfica e judiciária e, consequentemente, a diferença nos usos dos
testemunhos para constituição da prova pelo historiador e pelo juiz. Aqui é
possível questionar em que medida são exequíveis os desejos do historiador
de se aproximar de um verdadeiro juiz, que após averiguar bem os fatos,
ouvindo testemunhos, deveria sentenciar perante o tribunal da história.
Apesar da convergência preliminar entre um ofício e outro, em função do
caráter investigativo e da preocupação com a prova, o traço distintivo da
elaboração historiográfica não estaria na natureza essencialmente provisória e
contingente da escrita da história, mesmo que nela esteja implícita uma
intenção de verdade? (Prost, 2000:238).
Sobre essa diferença, Paul Ricœur observa que o juiz deve julgar, é sua
função. Ele deve concluir; deve decidir. “Ele precisa recolocar a uma justa
distância o culpado e a vítima, segundo uma topologia imperiosamente
binária. Tudo isso o historiador não faz, não pode fazê-lo.” (Ricœur,
2000:421). Em contrapartida, o historiador, mesmo que pretensamente tente
erigir-se em árbitro da história, não deixa de se expor à crítica, seja ela da
própria corporação ou do público leitor.

Assim, sua obra está sujeita a um processo ilimitado de revisões que faz da escrita
da história uma perpétua reescritura. Neste caráter inconcluso que marca a
suscetibilidade da historiografia a uma reelaboração infindável estaria a
dissonância entre a enunciação de um juízo histórico e de uma sentença judiciária.
[…] Contudo, para o primeiro, a tarefa investigativa permanece essencialmente
inacabada, o que equivale dizer que a verdade em história continua, assim, em
suspenso, plausível, provável, em suma, sempre em curso de reescrita [Ricœur
apud Oliveira, 2008:238].

Portanto, a noção de método histórico deve orientar o uso dos


testemunhos, como procedimento visando à eficácia, para a constituição da
prova.
Jean-Clément Martin (1998:14) relativiza esse ponto de vista ao declarar
que o historiador não investiga de forma diversa do juiz, mas seu julgamento
é apenas moral sobre os personagens que estuda. Contudo, mesmo sem
enunciar direito, diferentemente do juiz, o historiador exerce uma
responsabilidade enquanto intelectual. Sua responsabilidade é limitada, mas
não é nula, assim não é possível levar às últimas consequências as
orientações de que “não é desejável julgar os personagens, mas compreendê-
los em seu tempo”.
A apresentação dessas análises nos indica que os historiadores têm
posições diferentes, mas devem questionar a história judiciária e as narrativas
demasiado simples para tentar restituir a complexidade da história.
Olivier Dumoulin, ao discutir o papel social do historiador, levanta a
hipótese de que a justificativa da atividade historiadora se refere cada vez
mais ao papel social de seus profissionais, papel que modificaria “as bases
epistemológicas da disciplina histórica” (2003:48). É essa tensão entre seu
papel social e seu compromisso com a produção científica de conhecimentos
que balizaria as novas metas do ofício de historiador.
Na virada do século XXI, diante de tantos desafios e questionamentos,
um consenso epistemológico une os mais renomados historiadores: o
imperativo de verdade da história contra o relativismo. Chartier denuncia a
confusão entre história e ficção e, portanto, o abandono de toda intenção de
verdade para a história.
Em “La responsabilité sociale de l’historien”, texto publicado em edição
especial da revista Diogène e organizado por François Bédarida, Ricœur
(1994) sustenta que a história, embora pertença, por sua escrita, à classe das
narrativas, não é apenas narrativa ou ficção. Para ele, apesar do contrassenso
cometido com frequência acerca da natureza de seu trabalho, a
intencionalidade histórica é fundamentalmente uma intencionalidade de
conhecimento.
Daí a pergunta: sob que condições é possível esse conhecimento? Ricœur
põe o problema das condições de possibilidade do que chama um “realismo
crítico do conhecimento histórico”, algo que enraíza a possível compreensão
da alteridade, passada ou contemporânea, no pedestal comum de experiências
compartilhadas pelo historiador e por aqueles cuja história escreve. A
“verdade” da história é, assim, garantida de maneira fenomenológica pela
“dependência mesma do fazer do historiador em relação ao fazer dos agentes
históricos”. Os agentes históricos e os historiadores compartilham um campo
de práticas e de experiências suficientemente comum para que, apesar das
descontinuidades e das diferenças, o conhecimento dos primeiros pelos
segundos seja possível. É a presença mesma do passado no presente que o
torna cognoscível. Vários debates históricos da época convergem para a
questão da verdade. Os historiadores das décadas de 1980-1990 enfrentam a
necessidade — recorrente na história da disciplina — de defender a
autonomia da história e, portanto, de reafirmar sua intenção contra a redução
da história à ficção, as falsificações negacionistas, as derivas memoriais, as
instrumentalizações sociais e políticas da história. É ao redor dessa retomada
do projeto de objetividade constitutivo da história que se articula a
redefinição de uma identidade epistemológica da disciplina.
Diante do crescente e permanente interesse no presente, tanto pela
comunidade de historiadores quanto por diferentes grupos sociais, e da
afirmação desse campo de trabalho, a história do tempo presente tem buscado
superar esses questionamentos para se legitimar mapeando melhor seus
limites, suas especificidades. Em busca de uma definição mais precisa de seu
objeto, de suas metodologias, abre caminhos para novas investigações tais
como a história das memórias coletivas e os usos do passado e as
comemorações.

As comemorações: desafios e possibilidades para o estudo da


história do tempo presente
O boom de comemorações tem constituído um lugar de multiplicação das
controvérsias e polêmicas acerca das relações entre memória e história,
especialmente para a história do tempo presente. Mas como desnaturalizar
essa noção? O que é comemorar? Qual o significado das comemorações? Por
que as comemorações se tornam tão importantes nas sociedades
contemporâneas?
Na atualidade, os projetos de rememoração do passado desempenham um
papel relevante, uma vez que a vivência da memória já não ocorre
cotidianamente de modo espontâneo como nas sociedades tradicionais. De
acordo com Pierre Nora, nessas sociedades a memória estava intrinsecamente
relacionada com a vida de todos os seus membros. A memória indicava o que
ficaria do passado, no futuro. Já no mundo moderno, a vivência das tradições
foi substituída pelos “lugares de memória”. A memória, com seu atributo de
fornecedora de identidades, teria deixado de ser uma função de todos,
passando a ficar a cargo de alguns agentes (Nora,1990).
Neste quadro, a preservação das memórias e as comemorações assumem
um papel central. Voltamos à pergunta: o que significa comemorar?
Comemoração é a cerimônia destinada a trazer de volta a lembrança de uma
pessoa ou de um evento, algo que indica a ideia de uma ligação entre homens
fundada sobre a memória. Essa ligação também pode ser chamada de
identidade. E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades
que as comemorações públicas ocupam lugar central no universo político
contemporâneo (Raynaud, 1994).
As comemorações, como “lugares de memória”, estimulam a formação
de um novo campo com regras de funcionamento e agentes próprios, com
objetos definidos. A espontaneidade da memória dá lugar a ações
determinadas, dependentes de agentes especializados na sua produção.
Emerge, assim, a necessidade permanente de constituir novas formas de
preservação, de memorização, de arquivamento. As comemorações em torno
de personagens focalizam aniversários de nascimento ou morte. Já os eventos
fundadores privilegiam os momentos de fundação de nações, instituições,
empresas.
As modalidades de comemorações assumem formas diversificadas de
acordo com os objetivos a se alcançar. Podem ser organizadas mostras,
exposições, seminários, publicações; podem ser construídos monumentos,
lançadas medalhas, com o objetivo de reforçar concepções e valores. O
sentido das comemorações é promover o consenso, a harmonia entre os
grupos ou atores sociais. Mas elas podem também desencadear conflitos ou
tensões.
Michael Kammen (1992) critica essa “cruzada pelo passado”
representada pela comemoração, assim como a confusão estabelecida entre
“história” e “passado” e entre “historiadores” e history makers. Estes últimos
seriam aqueles autores que escrevem sobre o passado sem fazer uso das
regras do meio acadêmico, estabelecendo assim uma competição de
discursos. Os eventos comemorativos são especialmente propícios à
proliferação dos history makers, pois a conjuntura funciona como elemento
de animação para o mercado editorial e os debates na mídia. Mas seus
trabalhos não seguem as regras básicas do ofício do historiador, que
envolvem a leitura de extensa bibliografia e o direcionamento das pesquisas
de acordo com as lacunas e problemáticas do campo. Além disso, esses
trabalhos, embora possam ser mais atraentes para o grande público, por
apresentarem uma narrativa mais agradável e de mais fácil compreensão, não
obedecem às regras de utilização de fontes nem tampouco às normas para a
citação de textos.
A grande preocupação dos historiadores profissionais é que as
comemorações são momentos de vulgarização do conhecimento histórico,
que muitas vezes permitem a reprodução de informações sem avaliações
críticas. As comemorações funcionam como instrumentos de exaltação de
trajetórias individuais ou eventos sem o necessário distanciamento e a
produção de uma investigação aprofundada.
A despeito das críticas e dos riscos que as comemorações encerram, é
possível extrair benefícios dessas ocasiões. Em primeiro lugar, a prática das
comemorações tornou-se uma fonte de financiamento para pesquisas e
reuniões científicas. Além disso, uma demanda social forte exige a
apresentação de resultados de pesquisas para além dos círculos de
especialistas, pelos próprios historiadores. Comemoração e vulgarização
podem perfeitamente, assim, se transformar em um instrumento útil para uma
melhor difusão e avaliação crítica do passado (Boutier e Julia, 1998). Além
de as comemorações estabelecerem canais de comunicação com o grande
público, objetivos de caráter estritamente acadêmicos podem ser alcançados
por eventos comemorativos, resultando daí benefícios para a própria
construção histórica.
Como dissemos no início, comemorações estão intimamente relacionadas
com memória e identidade. A incorporação da memória como objeto
privilegiado das linhas de investigação acadêmica nos aponta novas
possibilidades, tornando as comemorações, elas mesmas, objeto de análise
dos historiadores, como um capítulo relevante da elaboração de uma história
da memória, já preconizada por Pierre Nora.
As comemorações nos dão a oportunidade de acompanhar o trabalho
permanente de construção da memória ao selecionar o que deve ser
valorizado e o que deve ser esquecido. Isto permite ao historiador combater o
determinismo e o relativismo. A história das comemorações nos permite
captar a diversidade de visões ao longo do tempo e desnudar os conflitos e
enquadramentos da memória. Para finalizar, poderíamos lançar mão de uma
afirmação de Philippe Joutard (2007:115-122): “A história não pode ser a
ressurreição integral do passado, mas a memória pode fornecer a ligação
necessária para tornar o passado inteligível”. E as comemorações podem ser
um instrumento privilegiado para executar essa tarefa.

Considerações finais
Retornando ao ponto de partida, a fala da presidenta Dilma indica a
importância de comemorar as conquistas e guardar a data como um momento
“histórico”. Essa relação entre passado, presente e futuro estabelecida a partir
da instituição da Comissão da Verdade indica a relevância desse fato para a
história brasileira recente, tanto para os que comungam da mesma ideia
quanto para os que são contrários à comissão. Para os historiadores, esse
evento deverá continuar sendo um objeto de estudo especial, uma chave para
compreender melhor o imaginário político brasileiro e os mecanismos de
construção da nossa memória e identidade nacional. A tarefa de avaliar
criticamente o papel e o lugar dos profissionais de história, de garantir os
princípios de seu trabalho científico sem, ao mesmo tempo, fazê-los abrir
mão de suas responsabilidades sociais, permanecerá como um desafio a ser
enfrentado.
As palavras de Jean-Clément Martin (1998:13-20) podem nos ajudar a
aprofundar essa reflexão ao observarem que o historiador deve combinar “seu
trabalho científico — que necessita de total liberdade —e seu papel social —
que implica a responsabilidade”. Para ele, a separação nítida entre juiz e
historiador não é radical; o trabalho do historiador tem inevitavelmente um
alcance moral e ideológico que faz com que sua tarefa “encontre aí certas
ressonâncias com as do juiz”; estando juízes e historiadores, deste ponto de
vista, implicados na fabricação do elo social.
Essas perguntas se apresentam hoje para nós, e somos instados a
respondê-las. Como garantir a prática científica da história e ao mesmo tempo
exercer responsabilidades sociais? Como transformar as novas aquisições
inovadoras produzidas pela academia para estendê-las ao grande público?
Como produzir uma história seguindo as regras científicas e ao mesmo tempo
produzir manuais necessários à formação política e cívica dos cidadãos das
sociedades modernas? Este texto pretende contribuir para esse debate, no
sentido de clarificar os desafios que as sociedades contemporâneas
apresentam para o exercício das atividades dos profissionais de história.

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1-Boletim eletrônico da Anpuh, dez 2011.


2-“A história contemporânea é, pelas próprias características do seu objeto,
atravessada, mais do que qualquer outra, pelas várias perspectivas das ciências sociais
e pela miríade de interrogações da consciência presente. É paradoxal, portanto, que ao
menos na Itália ela se apresente como a mais repetitiva e a menos inovadora. Isso nos
faz pensar que o historiador da idade contemporânea parte de um sistema conceitual
de certezas quase absolutas e considera o trabalho histórico não como uma operação
analítica capaz de descobrir nexos significativos e propor interpretações, mas como
uma operação política subordinada às suas certezas teóricas, e, assim, a uma
interpretação geral e preconcebida que será sustentada ou, no máximo, enriquecida.”
Ver Grendi (2009:39-49).
O passado que não passa: lugares históricos dos testemunhos
IRENE CARDOSO

Localizar o lugar onde se dá a “emergência”1 do testemunho na história, o


seu “ponto de surgimento”, é realizar o movimento de uma localização
temporal. Essa noção de lugar não é espacial, mas é o “sítio”2 de um
acontecimento decisivo na história. O surgimento do testemunho cria esse
lugar: uma dimensão temporal, isto é, histórica, pela tensão entre tempos
produzida a partir dessa emergência.
É dentro desse parâmetro que procuro trabalhar a noção do lugar de “um
passado que não passa”, como o do risco de desaparecimento de uma
experiência histórica, seja em virtude de uma ruptura intempestiva, seguida
de uma normalização cuja condição é a recusa da experiência, seja pela
interdição provocada por um tipo de força mais violenta, seja por uma
diluição devido à passagem do tempo, como se este adquirisse uma dimensão
inercial que produziria o seu esquecimento.
Localizar é também uma atividade de interrogar que, ao se perguntar
sobre esse lugar da emergência do testemunho, indaga sobre as diferenças
temporais que aí são criadas, e nesse movimento instaura uma simultaneidade
e tensão entre tempos lá onde imperava uma dominância temporal, produzida
justamente pelo encobrimento, silêncio, esquecimento ou desaparecimento de
uma experiência histórica. A atividade de localizar, como atividade de
interrogar, rompe uma dominância temporal, e nesse movimento faz do
passado uma falha que se inscreve no presente, produzindo assim uma
ambivalência de tempos — presença e ausência de significações. A atividade
de localização temporal anacroniza o passado no presente, permitindo a
construção do lugar do testemunho.3

***

Uma das experiências históricas mais expressivas de interdição da memória


que produz esse “passado que não passa” é a que corresponde à ocupação
alemã na França durante a II Guerra Mundial. A derrota da França em 1940 e
a criação do regime de Vichy deram início à colaboração francesa com o
inimigo vencedor. Essa experiência sofreu fortes resistências, no sentido do
reconhecimento do problema do colaboracionismo pela República francesa.
Mesmo entre os historiadores, o enfrentamento dessa questão foi, com
algumas exceções (Ariès, 1989:71-88),4 relativamente tardio. Também a
questão do Holocausto, apesar de poucos testemunhos nos primeiros anos
após o acontecimento, só toma vulto a partir dos anos 1980, tanto na
discussão entre os historiadores quanto na publicação de textos
testemunhais.5
Nicole Loraux, escrevendo o texto “Elogio do anacronismo”, e tratando
da questão da “obstrução da memória”, afirma, e vale a pena citá-la:

Como esquecer, no momento em que escrevo estas páginas (fim de julho de


1992), que, a 14 de julho de 1992, o presidente da República francês recusou
responder a um apelo de intelectuais convidando-o “a reconhecer oficialmente
que o Estado francês de Vichy é responsável por perseguições e crimes contra os
judeus na França” (tratava-se, no espírito dos promotores do apelo, de fazer a
celebração do cinquentenário da “prisão em massa no Vel d’Hiv” [16 de julho de
1942], um momento forte da memória francesa do que se chama pudicamente os
“anos negros”)?6

A recusa do reconhecimento da responsabilidade do Estado francês em


1992, 47 anos após o fim da II Guerra e 48 anos após a liberação, em 1944,
com o fim do regime de Vichy, é indicativa da dificuldade da República
francesa de ter acesso, nos anos 1990, ao passado obstruído, um passado que
não terminou. O modo pudico de nomear o período Vichy como os “anos
negros” encobre uma verdade histórica de difícil elaboração, ao mesmo
tempo que dificulta a interrogação sobre esse “lugar” na história.
Nesse texto, em defesa de um anacronismo controlado na investigação
histórica, Nicole Loraux, historiadora da Grécia antiga, constrói sua análise
com movimentos que se deslocam entre tempos históricos diversos: o tempo
do passado, o da “primeira anistia da história”, marcado pelo esquecimento
que o próprio demos vitorioso impôs no pacto com os vencidos, na Atenas de
403 a.C.; o tempo passado da II Guerra e da ocupação alemã da França; o
tempo do presente (1992), o tempo em que escreve e também o da tentativa
recusada de celebração do cinquentenário da prisão em massa de 1942. Sua
análise movimenta-se entre os tempos passado e presente, e nesses
deslocamentos “de ir e vir” Loraux encontra, num texto de 1942 de Jules
Isaac, historiador judeu da Grécia antiga, como ela, um “semiclandestino” —
naquela conjuntura, um “testemunho”, embora cifrado, no interior de um
relato sobre a Grécia. Jules Isaac termina seu texto dizendo: “Escrevo estas
linhas finais em alguma parte da França — no que foi a França — no sábado
17 de outubro de 1942: os ‘bons’ continuam igualmente malévolos; a saber,
se os maus serão tão magnânimos” (Isaac apud Loraux, 1992:67). Como diz
Loraux: trata-se de um relato dos acontecimentos dos últimos anos do século
V em Atenas e, ao mesmo tempo, do fim da Terceira República francesa, em
1940, e da colaboração com o inimigo vencedor. Um testemunho escrito na
França do regime de Vichy, em 1942, e na vigência do “estatuto dos judeus e
das leis retroativas”, por um historiador com “convicções republicanas”
(Loraux, 1992:66-67).
A dificuldade dos historiadores em falar sobre Vichy, não só deles, mas
também dos que viveram a experiência e sobre ela mantiveram silêncio
durante décadas, é também tema de Jean-Pierre Vernant, historiador da
Grécia antiga como Loraux.7 Em A travessia das fronteiras, faz referência a
Vichy como os “anos negros”, esses “anos passados, certamente, mas que
não passam, que permanecem demasiado presentes nas lembranças […] para
que se possa tratar deles com o desprendimento e o recuo próprios do que
está inteiramente terminado” (Vernant, 2009:13-14). A questão do
acontecimento recusado na memória oficial da França e na lembrança dos
que por ele passaram assume, no livro de Vernant, um aspecto instigante para
se pensar a questão do testemunho por construir ângulos de abordagem
bastante particulares. Esses ângulos são o que ele chama de “fronteiras”:
aquelas “entre passado e presente, entre diferentes passados, entre a
objetividade distante do estudioso e o engajamento apaixonado do militante,
distância, enfim, em cada um de nós, entre suas lembranças e sua presença
para si mesmo” (Vernant, 2009:13).
Sobre o acontecimento Vichy diversas falas são postas em cena por
Vernant. 1) A dele próprio: como historiador que é, e que escreve o livro,
narrando os acontecimentos, tematizando as questões dos tempos históricos e
de suas fronteiras e das diferenças entre testemunho e memória; como ator e
testemunha (ex-resistente, na França ocupada, nos anos 1940, quando dirigia,
em Toulouse, a Resistência militar); na posição de fronteira entre o
historiador e a testemunha na discussão do “caso Aubrac”. 2) A dos
historiadores que foram também atores e/ou testemunhas. 3) A dos
historiadores especialistas nos anos 1940 que não participaram dos
acontecimentos. 4) A dos resistentes.
Sobre essas diversas falas cuja trama não é possível reconstituir nesse
texto, cabe, no entanto, construir a sua localização: a do tempo passado que
não passa em se tratando de Vichy, da ocupação e da Resistência, que no
tempo presente de 1997 emerge com toda a força nos debates entre
historiadores organizados pelo jornal Libération, e nas reações violentas que
se seguem na imprensa e na opinião pública. Debates que tiveram como
núcleo o casal Aubrac, a prisão de Jean Moulin e a história da Resistência na
França.8
O casal Aubrac, como afirma Vernant, sem esperar o resultado do
processo jurídico que já estava em andamento, decide ser “lavado
publicamente dessa acusação por um colégio de historiadores reconhecidos
como especialistas dos anos 1940”. É nesse registro que o jornal Libération
organiza o debate com a presença de oito historiadores, entre eles Vernant,
“em torno dos Aubrac, ou, antes, diante dos Aubrac”. Alguns desses
historiadores tinham sido participantes da Resistência, os outros fizeram dela
seu objeto de estudo.9 Entre os oito historiadores, Vernant descreve sua
participação numa posição que “poderia parecer deslocada”, em virtude de
ser um “especialista em Grécia antiga”, “ao lado dos historiadores do mundo
contemporâneo”. Num tom de depoimento, escrevendo na primeira pessoa a
partir de certo momento do seu texto, relata:

No que me concerne, eu assistira àquela mesa-redonda a pedido dos Aubrac.


Especialista em Grécia antiga, minha presença ao lado dos historiadores do
mundo contemporâneo podia parecer deslocada. Mas, além da velha amizade que
nos ligava — eu conhecia Lucie Aubrac desde o começo dos anos 1930 —, o fato
de que antes de me tornar helenista eu ter, em minha juventude, vivido
intensamente a Resistência, em proximidade com os Aubrac, justificava a minha
participação [Vernant, 2009:55].10

Vernant descreve esse lugar dos testemunhos: “quando se trata de Vichy


e da Resistência, a linha de demarcação é ainda imprecisa e porosa”. Esse
“passado que não passa” permanece presente na “vida social”, e em cada uma
das pessoas; é evidenciado ainda na paixão, na violência e mesmo na
agressividade do debate entre os historiadores, dos historiadores ex-
resistentes com os ex-resistentes Aubrac (Vernant, 2009:61-63).
A leitura de A travessia das fronteiras permite arriscar dizer que a
posição de Vernant nesse livro é, sem dúvida, a de um historiador da história
contemporânea, mesmo que possa sentir-se meio “deslocado”.11 Mas o que se
destaca, sobretudo, é sua posição de testemunha sob dois aspectos: o da
experiência direta do acontecimento “Vichy e a Resistência”, sobre o qual
constrói seus relatos, e, também, o de testemunha desse passado que não
passa. Participante do debate como historiador, como ex-resistente, como
amigo próximo dos Aubrac, é testemunha da encenação de um passado que
não terminou. Seu relato acontece no tempo então presente de 1997 (sua
Intervenção no debate, no Anexo já mencionado) e no tempo presente de
2004, em que escreve o prefácio do livro e toda a parte à qual deu o título de
“Um tempo insubmisso”.
Vernant encontra em sua narrativa uma formulação extremamente
expressiva para nomear esse “passado que não passa”: “um tempo
insubmisso”. É interessante destacar essa formulação para compará-la com
outra, referente também a Vichy, citada por Paul Ricœur, mas utilizada por
Henry Rousso, de “obsessão do passado”, que seria sinônima de “um passado
que não passa” (Ricœur, 2007:455-459).12 Nesse registro, a interpretação do
“passado que não passa”, utilizando-se do conceito psicanalítico de
“obsessão” (de fato, neurose obsessiva), refere-se a uma fixação no passado,
na qual estão presentes sintomas obsessivos, geralmente de caracteres
ritualísticos repetitivos, acompanhados de uma “ruminação mental
permanente”.13 Trata-se de uma situação extrema14 de não elaboração do
acontecimento pela memória, da ausência de um processo de luto, sem
dúvida presentes em experiências também extremas, que, no limite, impedem
ou dificultam a fala e, portanto, o testemunho.
O “passado que não passa”, como “um tempo insubmisso”, na
perspectiva de Vernant, me parece ter um sentido diferente: há uma
mobilização desse passado pela memória, mesmo que de formas
encobridoras, de negação, num movimento de elaboração que, no entanto,
não chega jamais a um esclarecimento absoluto. O “tempo insubmisso” é um
tempo rebelde ao enquadramento total pela memória coletiva. Resultou de
algum tipo de obstrução do passado. Mas em relação a ele, em algum
momento, “emerge” a possibilidade de “falar”: divergindo, negando,
comparando, acusando, julgando, condenando, idealizando, mitificando.
Enfim, são várias formas de fala, testemunhos, que produzirão lacunas,
porque não são complementares, não se encaixam umas nas outras, e não
construirão o fato histórico total. No entanto, são fundamentais para a
construção de uma memória histórica do acontecimento.
Embora o acontecimento Vichy-Resistência, na França, seja bastante
paradigmático para abordar a questão do lugar do testemunho nas fronteiras
entre passado e presente, é importante mencionar também as experiências das
ditaduras latino-americanas, nos anos 1960 e 1970, e os respectivos processos
de redemocratização durante os anos 1980.15 Esses processos de
redemocratização nos países do Cone Sul coincidem aproximadamente no
tempo, e é comum a eles a proliferação de “discursos testemunhais”. Nesses
países, como mostra Beatriz Sarlo, em Tempo passado, a “reconstituição dos
atos de violência estatal por vítimas-testemunhas” foi “uma dimensão jurídica
indispensável à democracia” (Sarlo, 2007:24, 38, 45-48). Mas os demais
relatos testemunhais foram e continuam sendo, na atualidade, nesses países,
impactantes, numerosos e surgem sob diversas formas de expressão:
depoimentos, romances, filmes ficcionais e documentários, imagens filmadas
que flagram acontecimentos,16 cartas,17 histórias de vida, memórias, entre
outras. A proliferação dos testemunhos nos países sul-americanos pós-
ditadura coincide também, como mostra Sarlo, com o impulso que tomou a
discussão sobre o Holocausto, na cena europeia, nos anos 1980. Os debates,
segundo afirma, “se entrelaçaram de modo inevitável, em especial porque o
Holocausto se oferece como modelo de outros crimes, e isso é aceito por
quem está mais preocupado em denunciar a enormidade do terrorismo de
Estado do que em definir seus traços nacionais específicos” (Sarlo, 2007:46).
A percepção de um risco de desaparecimento da experiência histórica
provocada pelas interdições, pela diluição dos significados com a passagem
do tempo, pelo silêncio, pode induzir a emergência do testemunho. Esse risco
de desaparecimento sempre esteve presente nas situações de violência
extrema, seja em vários episódios na II Guerra, nas guerras civis, nas
ditaduras, nos campos de concentração e de extermínio. Nas situações mais
extremas, a imposição do esquecimento e do silêncio geralmente é
proporcional à gravidade e/ou à extensão do acontecimento, e mesmo
havendo alguma percepção de risco de desaparecimento da experiência
histórica, pela sociedade ou até por algumas de suas instituições, não se
consegue desbloquear o acontecimento.18 Nesses processos de desbloqueio
extremamente longos, os testemunhos têm a função importante de movê-
los.19
O Holocausto, como experiência da catástrofe20 na história, é
considerado, por diversos historiadores, um “caso-limite”, uma “experiência
extraordinária”, experiência “intransmissível”, e/ou “indizível”.21 Primo Levi
é considerado explicitamente por Agamben um “tipo perfeito de testemunha”
(2008:26 e segs.).22 “Um absoluto na história” é a expressão, talvez mais
forte, de Blanchot, para nomear a experiência (Blanchot, 1980:80).23 Todas
essas formas de nomeação dizem respeito à possibilidade ou não do
testemunho sobre a “experiência extrema”.24
Essa questão da limitação da possibilidade do testemunho na experiência
do Holocausto tem aspectos importantes a serem destacados: o primeiro
deles, e talvez o mais evidente, é o do assassinato em massa de judeus,
ciganos, comunistas, membros da Resistência que lutaram contra o nazismo
em todos os países que foram ocupados ou onde se deram os confrontos da
guerra. Essas práticas de destruição física das pessoas e de tudo o que
pudesse se configurar como indício dos assassinatos funcionaram como
formas de obstrução do acesso ao conhecimento dessas experiências. A
brutalidade dessas formas, no seu caso-limite, foi denunciada por Primo Levi
em Os afogados e os sobreviventes: a estratégia cínica enunciada pelos SS de
que “ninguém restará para dar testemunho”:

Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês, nós ganhamos; […]
mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas,
discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque
destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e
sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que
não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e
acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a
história dos Lager [1990:1].

Os que conseguiram falar, testemunhar, foram os poucos sobreviventes,


ainda assim subordinados à dificuldade de expressar o horror da experiência e
à quase impossibilidade de compartilhá-la e ser compreendido pelo outro.
Como diz Ricœur, “a experiência a ser transmitida é de uma inumanidade
sem comparação com a experiência do homem ordinário” (Ricœur,
2007:186-187). Primo Levi fala da trágica situação expressa nos sonhos
recorrentes e comuns aos prisioneiros do campo: a volta para casa e o relato
dos sofrimentos aos mais próximos e queridos encontrariam as barreiras da
credibilidade acerca das palavras e da possibilidade de escuta (1990:1-2).
A percepção dos mecanismos de funcionamento dos campos de
concentração, de trabalhos forçados e de extermínio, para os sobreviventes
que puderam relatar a sua experiência, é a da “consciência do absurdo”
(1990:2),25 do “absolutamente sem sentido” (Agamben, 2008:37). Agamben
cita dois relatos de sobreviventes que coincidem na constatação: “A nós
mesmos, o que se tinha a dizer então começou parecer inimaginável” (R.
Antelme); “Todas as tentativas de explicação […] fracassaram radicalmente”
(J. Améry, 2008:37).26
Ricœur refere-se à trágica “solidão das ‘testemunhas históricas’” diante
da “capacidade de compreensão mediana, comum”. “Há testemunhas que
jamais encontram a audiência capaz de escutá-las e entendê-las.” Referindo-
se ao que interpreta como “reflexões desanimadoras” de Primo Levi, em É
isto um homem? (1988), Ricœur conclui que, nos casos-limite, os
“testemunhos ‘extraordinários […] excedem a capacidade de compreensão
‘ordinária’” (2007:175-176).
O “caso-limite” do testemunho da experiência nos campos de
concentração revela, ainda, uma dimensão mais complexa para a
compreensão e a elaboração daquele que fala e, sobretudo, daquele que
escreve sobre o acontecimento. Estando no registro do horror e das
representações intoleráveis, esse testemunho está dentro da problemática de
um “sujeito ausente”, expressão mais forte do que a do “sujeito não pleno”.
“Ausente” porque fala enquanto sobrevivente, mas no lugar dos mortos, dos
que não puderam testemunhar, ou dos “muçulmanos”, os “não vivos”, “a
multidão anônima”, os “não homens”, “não sujeitos”, os que se entregaram e
pararam de lutar.27
Agamben define Primo Levi como a testemunha superstes, aquela “que
viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho
disso” (Agamben, 2008:27). No entanto, afirma, acompanhando o relato de
Primo Levi, que o testemunho das situações-limite é necessariamente lacunar,
porque vale “por aquilo que nele falta”; em seu “centro” há algo
“intestemunhável”. Em Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi diz,
explicitamente:

Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas […] não


tocamos o fundo. Quem o fez, fitou a Górgona, não voltou para contar, ou voltou
mudo; mas são eles, os “muçulmanos”, os que submergiram — são eles as
testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral [1990:47].

Essa questão da possibilidade ou não de transmissão da experiência


extrema, do que, no limite, seria “intransmissível”, é tema de discussão entre
aqueles que enfrentam o problema de tentar traduzir essa experiência, seja na
linguagem escrita do historiador, seja na linguagem fílmica do cineasta, em
outras formas narrativas ou por imagem. A “tradução” sempre contorna a
lacuna, mas não a preenche. No entanto, como afirma Ricœur (2007:459), o
intransmissível não é a mesma coisa que o indizível. A fala que emerge da
experiência extrema, mesmo sem ser plena, não está fora da linguagem, está
dentro dela, portanto está inscrita em algo comum, tendo, assim, a
possibilidade de ser escutada pelo outro, que lhe atribuirá algum sentido.
Focalizar esta questão no registro de que a experiência seria indizível corre o
risco de impregná-la de um aspecto de religiosidade, um aspecto extra-
humano, para designar a experiência humana do horror.28
Certamente a questão mais difícil trazida pela experiência da “situação
extrema” é a proposta por Primo Levi em A trégua. Uma questão é enfrentada
e citada recorrentemente por todos aqueles que buscaram compreender essa
experiência: a da possibilidade de uma linguagem obscura e mutilada poder
ser ainda considerada linguagem e, portanto, compreendida.
Um dos relatos mais fortes de Primo Levi foi o de seu contato, no campo
de concentração, com um menino que aparentava ter três anos de idade:
Hurbinek, um “filho da morte, um filho de Auschwitz”, onde possivelmente
teria nascido, não tinha nome e não sabia falar. “Hurbinek” foi o nome a ele
atribuído (um ato de nomeação) por aqueles que com ele conviveram, a partir
dos sons inarticulados que emitia num canto repetitivo. Um companheiro de
Primo Levi, Henek, um rapaz húngaro de 15 anos, que maternalmente ficava
junto a Hurbinek, afirmou, um dia, que o menino “dizia uma palavra”. Uma
palavra difícil de ser reconhecida, algo como mass-klo, matisklo. “De noite
ficávamos de ouvidos bem abertos”: de fato, do canto de Hurbinek emergia
um som, uma palavra, não era sempre a mesma, “mas era certamente uma
palavra articulada: ou melhor, palavras ligeiramente diversas, variações
experimentais sobre um tema, uma raiz. Sobre um nome, talvez”. A escuta do
canto “obstinado” de Hurbinek prosseguia durante as noites e, apesar da
escuta dos “falantes de todas as línguas da Europa”, sua palavra “permaneceu
secreta”. Hurbinek, que não tinha nome, mas era marcado pela tatuagem de
Auschwitz, “morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto, mas não
redimido. Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas
palavras” (Levi, 2010:19-21).29
O testemunho da “existência” de Hurbinek deu-se por meio das palavras
e da narrativa de Primo Levi, que impediu o desaparecimento da experiência
no momento em que a inscreveu na linguagem. Em sua narrativa ele
“escreve” as palavras mass-klo e matisklo, que são então simbolizadas nesse
ato. A escuta do canto permitiu sua preservação. Os sons foram escutados
como palavras, embora estas fossem desconhecidas pelas línguas que
circulavam no campo. Mas algum código comum de linguagem foi acessado
para as atribuições de sentido aos sons, escutados e traduzidos em palavras.30
Essa situação-limite, das mais extremas, ainda assim não pôs em xeque a
possibilidade do testemunho. Essa experiência que se torna excepcional no
relato de Primo Levi, pelo horror que transmite, certamente não foi única nos
campos. Mas foi aquela que ficou registrada por seu testemunho. Pode ser
tida como a expressão extrema de obstruções do acontecimento, aquelas
produzidas pela lógica de funcionamento dos campos, e, também, pela
desarticulação da própria linguagem, ocorrida em tantas outras situações. Os
registros escritos, orais e sob outras formas — em especial a importância das
imagens no cinema — moveram e continuam a mover esse passado lacunar,
permitindo a construção de um saber sobre essa experiência-limite que
impede ou atenua uma fixação e repetição de “um passado que não passa”.
O testemunho é um “ato histórico” quando realiza a função de
desbloquear e mover o acontecimento sob risco de desaparecimento, mesmo
nas situações que não poderiam ser consideradas propriamente extremas.31 A
noção de “ato”,32 utilizada na acepção de um fazer acontecer o que existiria
potencialmente como um saber bloqueado, é uma ação e um movimento que
permitem realizar esse saber sobre o acontecimento, mesmo que de forma não
plena, levando em conta seu traço lacunar.33
Como “ato histórico”, o testemunho tem uma função social fundamental,
a despeito das dificuldades de seu uso pela historiografia. Não se situa no
registro da objetividade da ciência histórica e, em seu caso-limite, é de difícil
incorporação pelo arquivo (Ricœur, 2007:186-187).34 O testemunho, quando
se torna objeto da historiografia, carrega consigo suas dimensões lacunares,
seus traços de descompasso entre tempos históricos, entre tempo individual e
tempo histórico, entre a experiência e o alcance da experiência. Como objeto
da historiografia, o testemunho não perde seu caráter de inacabamento, de
incompletude e de ato histórico.

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SARLO, Beatriz. A retórica testemunhal. In: Tempo passado: cultura da memória e
guinada subjetiva. São Paulo/Belo Horizonte: Companhia das Letras; Ed.
UFMG, 2007.
VERNANT, Jean-Pierre. A travessia das fronteiras: entre mito e política II. São Paulo:
Edusp, 2009.
VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: “um Eichmann de papel” e outros
ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1988.
WALSH, Rodolfo. Carta aberta de um escritor à Junta Militar. In: Operação massacre.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

1-Utilizo a noção de “emergência” a partir da referência de Foucault (1979:23-24). A


emergência como “ponto de surgimento […] se produz em um determinado estado de
luta das forças”. A emergência do testemunho é entendida, neste texto, como uma
manifestação que surge num determinado momento histórico, marcando um risco de
esquecimento ou de desaparecimento.
2-O termo “sítio” é utilizado neste texto a partir de uma apropriação que faço da noção
presente em Heidegger (1987).
3-A noção de “lugar” foi por mim trabalhada em outros textos, sempre a partir de
Heidegger. Cf. Cardoso (2001); Cardoso e Leopoldo e Silva (1996:45-50).
4-Philippe Ariès, em seu texto “O engajamento do homem na história”, já em 1948 faz
referência às obras de David Rousset “O universo concentracionário” (1946) e “Os
dias de nossa morte” (1947), como expressões de um testemunho. David Rousset foi
deportado para campos de concentração em virtude do seu trabalho político
clandestino no Partido Operário Internacionalista. Ariès “localiza” a emergência do
testemunho após a II Guerra num momento que define como o da “invasão definitiva
da história”, caracterizando-o como o “indício” de um “engajamento [político] na
história” e tendo sempre um “caráter parcial e lacunar”, jamais objetivo. O
testemunho “é um ato propriamente histórico. Ele ignora a objetividade fria do
cientista que conta e explica. Ele se situa no encontro de uma vida particular e
interior, irredutível a alguma média, rebelde a toda generalização e às pressões
coletivas do mundo social” (Ariès, 1989: 88).
5-É apenas nos anos 1980 que na Alemanha a questão do período nazista entra
propriamente no campo de discussão. Habermas, em um texto publicado em 1987,
“Nenhuma normalização do passado”, refere-se à questão do “esquecimento” relativo
a esse período dizendo: “Os presentes passados permanecem sinistramente atuais e
mantêm as discussões mais cheias hoje que nos anos 1950 e no início dos anos 1960.
Esse fenômeno só foi registrado no espaço público em 1983, quando foi preciso ter
claro para nós que meio século já nos separava do dia da assim chamada tomada do
poder. O fenômeno voltou a ocorrer em 1984, quando a lembrança do dia 20 de julho
desprendeu-se da rigidez da auto-homologação cerimonial e assumiu a qualidade nova
de uma autoinvestigação, que antes fora transformada em tabu. Em 8 de maio de
1985, os desagravos encenados de forma jurídico-pública em Bitburg e Bergen-Belsen
cindiram finalmente a consciência da nação.” (Habermas, 1987). Os dois
acontecimentos mencionados por Habermas são a comemoração dos 40 anos da data
em que o coronel Claus von Stauffeberg colocou uma bomba sob a mesa de
conferências do quartel-general de Hitler, atentado que apesar do fracasso teve grande
repercussão; e o fato de que naquele dia Ronald Reagan e Joseph Strauss visitaram
túmulos de soldados nazistas, provocando manifestações de revolta. (Esse texto é
parte do livro Eine Art Schadensabwicklung: Kleine Politische. Schriften VI.). Ver,
ainda, Beatriz Sarlo, que, em “A retórica testemunhal”, também reafirma que, em
meados dos anos 1980, na “cena europeia, especialmente alemã”, o tema do
Holocausto se torna central, assim como a “grande difusão dos textos luminosos de
Primo Levi”. (Sarlo, 2007:45). Também é exibido, pela primeira vez, em 1985, o
filme Shoah, documentário de Claude Lanzmann sobre o extermínio nos campos de
concentração. Interessante notar que a filmografia do cinema polonês de Andrzej
Wajda aborda a guerra e a resistência na sua Trilogia da guerra já em meados dos
anos 1950 (em 1942, Wajda lutou com a Resistência francesa).
6-Essa citação é referente à nota 33 do texto “Elogio do anacronismo”, de Loraux
(1992:70). O episódio ocorrido em 16 e 17 de julho de 1942 foi o da prisão em massa
de milhares de judeus pela polícia francesa. Eles foram então levados ao “Velodrome
d’Hiver” em Paris, para encaminhamento, num primeiro momento, aos campos de
internamento de Drancy e Beaune-la-Rolande, e depois aos campos de extermínio.
7-Além de Vernant e Loraux, é importante a referência a Pierre Vidal-Naquet, também
historiador da Grécia antiga, ativo na história contemporânea porque foi uma das
vozes na França do início dos anos 1980 contra a corrente “revisionista” que se
fortalecia no processo de negação do Holocausto. Vidal-Naquet escreve, entre 1980 e
1987, os textos reunidos no livro Os assassinos da memória, publicado em 1987, e
dedicado à memória da mãe, morta em Auschwitz em 1944. Menciona, o que era
comum na “cena europeia”, a ausência de uma documentação, mesmo básica, sobre
Auschwitz, o que incluía a Sorbonne e a Biblioteca Nacional. Naquet denuncia, ainda,
o pouco interesse da comunidade francesa de historiadores sobre o acontecimento. Cf.
Vidal-Naquet (1988).
8-O episódio que dá margem à organização da mesa-redonda para a discussão do
“caso Aubrac” foi o da tentativa de lançar dúvidas sobre a integridade ética e política
do casal cujas atividades tiveram grande importância na Resistência, num livro
publicado por um jornalista sugerindo a participação deles na prisão de Jean Moulin
pela Gestapo. A denúncia, que depois foi inteiramente refutada em processo de
julgamento, possivelmente tomou a dimensão que tomou em virtude da gravidade do
que seria uma traição a Jean Moulin, chefe do Conselho Nacional da Resistência,
ligado a De Gaulle, preso e torturado por Klaus Barbie, morto em virtude da tortura, e
consagrado, mais tarde, como um dos heróis da Resistência francesa, em 1964, no
Panthéon.
9-Esse debate foi publicado pelo jornal Libération em edição especial e teve vários
desdobramentos devido à sua repercussão, todos tratados por Vernant com algum
detalhe. Cf. Vernant (2009:51-66).
10-Ver, ainda, no Anexo do mesmo livro, as intervenções de Vernant por ocasião da
mesa-redonda de 17 de maio de 1997, organizada no jornal Libération, p. 201-206.
11-Na primeira parte do livro, “Um tempo insubmisso”, em que trata da questão
Vichy-Resistência, Vernant está na posição de um historiador da história
contemporânea, embora seja um especialista em história da Grécia antiga. Utiliza seu
reconhecido trabalho sobre a memória, presente em seus textos sobre a Grécia antiga,
para interrogar o acontecimento histórico (2009:32-35).
12-Cf. também as referências citadas por Ricœur: Rousso (1987, 1994 e 1998).
13-Ver o verbete “Neurose obsessiva” em duas obras de referência: Roudinesco e Plon
(1998:538-540); Laplanche e Pontalis (1986:396-397).
14-Não estou utilizando essa expressão, nessa passagem, no sentido do que se
convencionou chamar, na historiografia contemporânea sobre o período 1939-1945,
de “casos-limite”, as experiências dos campos de concentração. A observação é
importante porque a noção “situação extrema” é usada como sinônimo de “situação-
limite”. A noção de “situação extrema” é utilizada por Bruno Bettelheim em A
fortaleza vazia (1987) e em O coração informado (1985). Voltarei a essa questão mais
adiante, não sem antes dizer que, embora reconhecendo o estado de exceção da
situação dos “campos” onde quer que se instalem, e de tudo o que daí decorre, é
preciso ter muito cuidado na classificação do sofrimento.
15-Ditadura militar brasileira: 1964-1985; ditadura militar chilena: 1973-1990;
ditadura civil-militar uruguaia: 1973-1985; ditadura militar argentina: 1976-1983.
16-O testemunho por imagens que permanecem como rastros de acontecimentos é
tematizado por Marc Ferro, que as chama de “documentário bruto”, filmes “realizados
para testemunhar”. Cf. Ferro (2010:111-114).
17-Na Argentina, em 1977, a carta de denúncia do terror de Estado de Rodolfo Walsh,
enviada a jornais locais e estrangeiros, não foi publicada, mas posteriormente
difundiu-se fora daquele país. No dia seguinte ao envio da carta, Walsh é sequestrado
por um “grupo de tarefas” e permanece desaparecido. Sua carta, gesto que representa
a percepção do risco do desaparecimento da experiência do terror de Estado na
Argentina, foi escrita e enviada sob o risco do próprio desaparecimento. Ver Walsh
(2010:246-257).
18-Em 2009, Baltasar Garzón-Real, juiz da Audiência Nacional de Espanha, máximo
tribunal da Espanha, evocando a Lei da Memória Histórica, tenta, 73 anos depois,
abrir investigações sobre execuções, sequestros e desaparecimentos provocados pelo
franquismo (1939-1976), durante e após a Guerra Civil espanhola. Investigações nas
quais, além dos documentos que eventualmente ainda poderiam existir, contaria com
testemunhos, dificilmente diretos, devido à distância temporal, mas certamente sob
outras formas, através daqueles que escutaram as narrativas dos sobreviventes da
experiência. A brecha utilizada foi a das possibilidades de interpretação da Lei da
Anistia na Espanha, de 1977. Trata-se de um caso semelhante ao do Brasil, onde
recentemente tentou-se, sem sucesso, abrir a possibilidade de julgamentos dos
torturadores da ditadura. O juiz Baltasar Garzón foi o mesmo que processou o ditador
chileno Augusto Pinochet.
19-No que se refere à França, à ocupação alemã, à Resistência, um dos episódios
históricos importantes de bloqueio e de desbloqueio dos acontecimentos foi o da
preparação do processo de julgamento de Klaus Barbie, entre 1983 e 1987, que deu
lugar a um grande debate jurídico e à decisão de utilizar o conceito de “crime contra a
humanidade”. Ver a descrição e análise detalhadas em Finkielkraut (1989). No Brasil,
mesmo no período da ditadura (1964-1985) textos testemunhais foram escritos, alguns
já antes da anistia de 1979: sob a forma de ficção (1971, 1976, 1977); sob a forma de
memórias (1978, 1980, 1982); sob a forma de análise-depoimento (1979). Brasil
nunca mais, escrito a partir de informações dos depoimentos nos processos da Justiça
Militar, foi publicado em 1985 (e elaborado nos anos da ditadura). Todos esses textos
foram escritos na perspectiva do risco do desaparecimento da experiência e também
sob o risco de exposição à repressão da ditadura. A relação dos textos encontra-se em
texto inédito de Cardoso (2008).
20-Ver apresentação de Nestrovski e Seligmann-Silva em (2000:7-12).
21-“Caso-limite”, “experiência extraordinária”, “intransmissível”, “indizível” são
nomeações que integram as análises e discussões de Paul Ricœur (2007:186, 459).
Uma discussão importante sobre o “indizível” está em Agamben (2008:41-42).
22-Apesar de não aparecer assim nomeado como um “tipo”, a experiência de Primo
Levi, inscrita em seus vários textos, é a base para todos os outros historiadores que
trabalham com a questão do Holocausto.
23-“Um absoluto na história, historicamente datado.” A referência está citada no
comentário de Philippe Julien: “Reconhecê-la [a Shoah] como um absoluto é ver nela
um acontecimento desvinculado de qualquer cadeia de razões que pudessem
relativizá-lo e banalizá-lo.” Cf. Julien (1996:22-23).
24-A expressão “experiência extrema” é utilizada por Bettelheim (1987).
25-Primo Levi acrescenta: não só nos Lager, mas também nos guetos, nos hospitais
para doentes mentais etc.
26-Agamben faz referência aos relatos publicados de Jean Améry (1990) e Robert
Antelme (1957).
27-Ver Agamben (2008:42-48); Levi (1988:91); Sarlo (2007:33-38).
28-O comentário de Agamben sobre o “indizível” é importante porque explicita o seu
sentido religioso: “Dizer que Auschwitz é ‘indizível’ ou ‘incompreensível’ equivale a
euphemein, adorá-lo em silêncio como se faz com um deus […] contribuir para sua
glória”. Cf. Agamben (2008:41-42).
29-A longa passagem do livro, extremamente impactante, fica obviamente prejudicada
e mutilada nesse “resumo”, mas também pelo fato de estar sendo retirada do contexto
da narrativa.
30-Na questão da linguagem, não há como deixar de fazer referência à psicanálise e a
Lacan. Na psicose, no entender de Lacan, o delírio é uma manifestação da linguagem
numa certa posição e a partir de uma certa experiência diferente, não compartilhada
pela ordenação linguística ordinária. O psicótico testemunha, em seu delírio, sua
experiência, que deve ser escutada “ao pé da letra” pelo analista que o “secretaria” (na
posição de testemunha). “Por mais perturbadas que possam estar as suas relações com
o mundo exterior, o testemunho guarda o seu valor.” O psicótico “dá testemunho
efetivamente de uma certa virada na relação com a linguagem”, mas sua fala não está
fora da linguagem; estaria, mais precisamente, fora do discurso, em virtude de uma
desarticulação da ordenação linguística estabelecida. Cf. Lacan (1988:235-240). Ver,
ainda, Quinet (2003:98, 130-132).
31-Refiro-me aqui, por exemplo, à questão dos testemunhos de uma geração. Questão
que vale a pena destacar, mas que, de fato, comportaria a escrita de outro artigo.
Apesar de não configurarem situações-limite, esses testemunhos também poderiam ser
considerados “atos históricos”, no sentido construído no presente texto. O risco de
desaparecimento de experiências culturais, pelo “envelhecimento social” que
caracteriza o curso acelerado do tempo nas sociedades ocidentais contemporâneas,
deixa o problema da possibilidade de transmissão e de compreensão das experiências
para a geração seguinte.
32-A noção de “ato”, embora inspirada em Aristóteles, coincide apenas em parte com
ela, porque, de modo diferente, o que se está querendo afirmar na presente análise é
que o saber realizado não é uma “forma perfeita”, mas justamente, pelo contrário,
lacunar. Esclarecendo a apropriação por mim utilizada: de noção de “potência” (o que
estaria em potência no acontecimento bloqueado); de ação (a operação realizada, seja
a da escuta de uma fala, da escrita ou de outras formas); de movimento (o saber que
está se realizando, movendo o bloqueio); e de mudança (o desbloqueio, ou o
descongelamento do acontecimento, sempre lacunares).
33-Numa comparação com a psicanálise, novamente, o “ato analítico” é sempre um
ato significante que incide sobre a fala do analisante, permitindo a “emergência” de
novas associações, movimentos de desbloqueio nas falas, levando o sujeito à
possibilidade de transformar-se a posteriori.
34-Referindo-se aos casos-limite, Ricœur formula a expressão “crise do testemunho”
para indicar a questão da possibilidade do arquivamento de “certos testemunhos
fundamentalmente orais, ainda que escritos na dor”, discussão presente na
historiografia.
Usos do passado e história do tempo presente: arquivos da
repressão e conhecimento histórico*
PAULO KNAUSS

Inicialmente, preciso esclarecer que não pretendo enfrentar a questão do


trauma histórico em sua definição. Antes vou tomá-lo como dado do tempo
presente. Isso porque parto de uma caracterização recorrente que demarca o
tempo presente por fatos históricos traumáticos associados à violência e ao
horror da morte, como o Holocausto ou a bomba de Hiroshima. Contudo,
além da violência, o que caracteriza o trauma como experiência histórica é
sua ressonância social para além do tempo do fato propriamente dito,
prolongando sua presença por meio da memória e cuja força está em servir
para tematizar a própria condição humana. Saliento, portanto, que o trauma
como fato histórico pode ser definido como aquele que ocorreu no passado,
mas que insiste no presente, seja pelo recalque que produz o esquecimento,
seja pela ressonância que nos leva à memória subterrânea ou aos abusos da
memória. Marc Ferro, por exemplo, num de seus livros mais recentes,
apresenta uma leitura do nosso tempo marcado pelo ressentimento. Assim, o
historiador francês contemporâneo interroga as possibilidades de superação
do ciclo dos ressentimentos que marca o tempo presente, sem encontrar uma
resposta encorajante. Certo, no entanto, é que de seu ponto de vista “a
experiência de voltar a viver a ferida do passado é mais forte que a vontade
de esquecer”, fazendo com que o corte entre os tempos seja artificial, pois um
vive no outro, e, por vezes, até parece que o passado é um presente mais
presente que o presente propriamente dito (Ferro, 2007:12).
Nesses termos, pretendo contribuir para a interrogação sobre a relação
entre usos do passado e tempo presente a partir da minha experiência no
estudo do patrimônio. Esclareço que para mim o patrimônio não é apenas um
campo de atuação do profissional de história, mas é igualmente universo de
interrogação sobre a natureza do conhecimento histórico. Assim, vou partir
da história dos arquivos da repressão no Brasil, especialmente dos arquivos
das polícias políticas. Primeiro, porque se constituem como bens simbólicos
que integram o universo do patrimônio cultural, e permitem, desse modo,
caracterizar o patrimônio como terreno dos usos do passado. Segundo,
porque os arquivos da repressão se referem ao trauma da experiência da
ditadura no Brasil, permitindo caracterizar como os usos do passado ocupam
um lugar central para definir o que é particular da história do tempo presente
como campo de conhecimento.

Arquivos e memória
De diferentes formas, o passado sempre ocupou as sociedades ao longo dos
tempos. As sociedades contemporâneas, segundo a fórmula de Pierre Nora,
inventaram os lugares de memória, distinguindo-se das sociedades
tradicionais que vivem na memória e justificam seus atos cotidianos a partir
da lembrança dos seus mitos e repetindo seus antepassados (Nora, 1984).
Diante da aceleração do tempo e do compromisso com o progresso, as
sociedades contemporâneas trataram de localizar o passado em museus,
bibliotecas, arquivos, catálogos, datas, festas e comemorações,
testemunhando sua própria transformação. Dito de outro modo, nesse mundo
em que vivemos procuramos sempre inovar e transformar, distanciando-nos
de nossos ancestrais. Nossa distância é a medida de nossa própria evolução.
Como outros lugares de memória, os arquivos são uma construção das
formas contemporâneas de promoção da memória, registro de que nós
vivemos em outro tempo distinto de anteriores. Nos arquivos, organizase o
encontro com nosso tempo pela ruptura com o passado e não pela
continuidade. Na diferença dos tempos é que nos damos conta de nossa
própria historicidade. Assim, diante de cartas antigas de uma mapoteca,
descobrimos como o mesmo território foi representado diversas vezes de
modos distintos. Podemos reconhecer o Brasil numa carta colonial, contudo,
diante dela nos convencemos de que nossa terra não é mais daquele jeito.
Ocorre que, antes disso, há outra constatação a ser feita. Os documentos
de caráter permanente, que encontramos nos arquivos públicos de nossos
dias, não foram sempre vestígios de outro tempo. Conforme a teoria do ciclo
de vida dos documentos, marca da arquivologia contemporânea, é possível
demarcar as fases corrente e intermediária, anteriores à fase permanente de
vida dos documentos. Como documentos correntes, eles serviram ao instante
do presente, no aguardo do despacho necessário para a consecução de uma
ação. A espera da realização de ações decorrentes da decisão inscrita nos
documentos caracteriza a fase intermediária da vida documental. Sua terceira
fase de vida, a fase permanente, é a memória da ação produzida e consumada.
Alguns diriam que nessa fase os documentos se tornam inativos, ou deixam
de ter caráter utilitário. Melhor seria falar de novas atividades e de novos usos
dos documentos, pois é diante de sua condição permanente que afirmam sua
dimensão histórica propriamente dita, ultrapassando seu valor primário para
afirmar seu valor secundário.1
Importa salientar que, durante os ciclos de sua vida, os documentos
sofrem uma transmutação de sentido que os desloca da produção de um ato
para a recordação do mesmo ato. Considerando que os documentos nascem
correntes, sobrevivem como intermediários e se redefinem como
permanentes, entre a primeira e a última fase de sua vida eles continuam
sempre sendo os mesmos suportes materiais de informação, mas o seu
sentido é transformado. Nessa passagem é que os usos dos documentos são
redefinidos, e nesse momento eles deixam de transportar ações do presente
para transportar ações do passado. Há uma mudança de inserção temporal em
torno da transmutação de sentido dos documentos. Nesse caso, os usos do
passado fazem a diferença, pois os documentos passam a ganhar outra razão
de ser e se instalam nos arquivos. No início de sua vida, o documento é
registro do presente, na terceira fase de sua vida ele passa a ser registro do
passado.
Ocorre que os usos do passado, tal como a memória, organizam-se no
presente. Assim, a transmutação do sentido do documento acompanha de fato
um deslocamento dos tempos, pois é no presente que o passado se define. O
passado não é algo dado, mas sim uma construção atualizada do presente
(Menezes, 1992:9-24).
Não seria demasiado dizer que a história dos arquivos da repressão
política é a melhor ilustração dessa transmutação dos documentos ao longo
de sua vida. Isso vale para o Brasil, para os países do Cone Sul, ou para a
antiga Alemanha Oriental, ou para onde quer que os regimes policialescos
tenham sido substituídos por regimes abertos. Isso porque os documentos da
polícia política nasceram para perseguir os cidadãos, considerando-os
inimigos de Estado, ou “inimigos internos”. Contudo, hoje eles são
instrumentos da garantia de direitos dos cidadãos diante do Estado. Trata-se
do mesmo papel, do mesmo suporte material e do mesmo conteúdo, mas sua
razão de ser na sociedade mudou diante da presença do passado. Mudou seu
sentido, porque a sociedade e suas instituições mudaram, substituindo velhas
estruturas por outras. Os mesmos papéis ganham assim novo interesse, o que
implica novos usos. Desse modo, os documentos da polícia política são
reconhecidos como fontes de outra época e, assim, localizam o passado. Sua
difusão e sua publicidade reafirmam nossas diferenças históricas e atestam
que estamos em outro tempo, em que a relação do Estado e do cidadão se
transformou. Sua preservação atesta a transformação da sociedade.
Esse uso contemporâneo do passado não nos situa em continuidade ao
passado e às gerações anteriores, mas, ao contrário, na descontinuidade do
tempo. Nossa época se define pela alteridade em relação a outras. Revisitar os
documentos históricos de arquivo, nesse caso, significa sempre reafirmar a
particularidade do presente diante de outros tempos. É na dialética
presente/passado que os documentos históricos se definem.

Arquivos e direitos
Como todo documento público, as fontes da polícia política servem para fins
de estudo e fins probatórios. Num caso, eles operam sob uma base científica,
noutro, sob uma base judicial — formas de conhecimento que convivem lado
a lado em torno dos mesmos vestígios históricos e que fazem usos distintos
do passado. Quer dizer, o mesmo documento histórico se presta, no presente,
a mais de um uso do passado.
É importante insistir sempre nessa dupla dimensão dos documentos
históricos permanentes, pois é esse caráter duplo que sustenta a identidade
dos arquivos em nossos dias. Como equipamento cultural, os arquivos são
sempre considerados recursos de conhecimento e de animação do espírito e
da curiosidade pela ciência e pela educação. Por isso, cada dia mais os
arquivos se dedicam à produção de exposições, publicações, cursos e eventos.
Essa dimensão é fundamental, mas não deve ser vista como marginal à
cidadania ou epifenômeno da vida. A cultura é uma das dimensões da
cidadania contemporânea, por ser o domínio da livre expressão e de
afirmação de identidades, além de movimentar uma economia peculiar de
proporções significativas. De outra parte, porém, vale notar que o cidadão só
descobre que o arquivo é um equipamento fundamental em sua vida social
quando descobre que ali se encontra o papel que pode lhe garantir um direito
almejado. Essa é uma cena comum ao dia a dia dos arquivos, espaço de dor e
alegria diante da possibilidade de conquistas sociais individuais. Isso diz
respeito tanto a acervos que documentam a história das propriedades quanto
aos registros de terra do século XIX, introduzidos pela Lei de Terras de 1850,
e aos documentos do Instituto Médico Legal, criado na capital federal em
1907. Todos os dias, os arquivos recebem cidadãos em busca de uma certidão
que ateste a informação decisiva para sua demanda legal. No caso dos
documentos das polícias políticas, eles são instrumentos fundamentais para
reparação de danos às vítimas do autoritarismo. Do mesmo modo, é por meio
da gestão documental que os Estados podem atender às demandas de
transparência social, dando conta de suas realizações à sociedade. O sistema
de arquivos é base da superação da opacidade do Estado.2 Nesse caso, os
usos do passado são operados no presente no processo de afirmação da
cidadania. O conhecimento histórico é, assim, companheiro de um processo
social de definição de estruturas sociais dinâmicas.
Interessa sublinhar que diante desse duplo caráter os arquivos são
expressão da democracia e afirmam o campo da cultura e da memória como
correlato à garantia de direitos. Os arquivos exercem papel importante no
campo dos direitos de quarta geração — em especial o direito à cultura e o
direito à memória —, assim como ante os direitos civis de proteção do
cidadão diante do Estado. Exemplificam, também, os novos sentidos do
patrimônio cultural nos dias atuais, que além de relevante pelo conjunto de
bens simbólicos reunidos constitui-se em instrumento da construção da
cidadania.
Não sem razão os arquivos públicos no Ocidente se fortaleceram,
sobretudo depois da II Guerra Mundial e da derrocada dos regimes
totalitários do nazifascismo, marcados pela discriminação étnica e pela
política de homogeneização cultural. Há um vínculo na história
contemporânea entre a informação dos arquivos e a crítica do Estado de
exceção. É no contexto histórico traumático que os arquivos públicos se
consagraram como componente fundamental do estado de direito.
No quadro de estado de direito definem-se, também, as condições de uma
política nacional de arquivos na atualidade nacional em nosso país.3 Ao lado
do direito à cultura, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
estabelece dispositivos destinados a garantir os direitos individuais e, ao
mesmo tempo, resguardar o direito de acesso às informações contidas nos
órgãos públicos. Esta foi a primeira e única Constituição brasileira a
estabelecer parâmetros gerais de uma política nacional de gestão de
documentos da administração pública visando a franquear sua consulta. Ela é
corroborada pelas disposições federais da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de
1991, que trata dos arquivos públicos e privados, estabelecendo o acesso a
documentos, regrando a emissão de certidões e o rito processual do habeas
data, instrumento pelo qual todo cidadão tem o direito de conhecer as
informações que o Estado produz sobre ele. Abrem-se, dessa forma, os
arquivos aos indivíduos e à sociedade.
Desse marco jurídico geral decorrem as condições de uso dos arquivos e
suas fontes, balanceando o interesse geral e o individual, o interesse público
diante do privado. Especificamente neste âmbito, dois princípios
constitucionais basilares necessariamente devem ser sopesados: o direito à
informação e a inviolabilidade da vida privada.4
O direito à informação caracteriza-se como um direito coletivo em
sentido difuso, ou seja, utilizado em favor da comunidade, sendo um
pressuposto da democracia que os cidadãos tenham conhecimento de atos e
atividades da administração para que possam fiscalizar, controlar e participar
do poder público. A esta questão deve também ser aplicada a norma inserida
no inciso XXXIII do artigo 5o da Constituição Federal de 1988, no que tange
ao direito de sigilo de informações relevantes à segurança da sociedade e do
Estado. A Lei de Arquivos (Lei no 8.159/91) dispõe, ainda, no artigo 4o, que
todos têm o direito de receber dos órgãos públicos informações, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Nesse mesmo diapasão, no artigo 5o, inciso X da Lei Maior, encontrase o
preceito constitucional de inviolabilidade da intimidade, da honra, da vida
privada e da imagem das pessoas, que constitui garantia de direito individual.
E também o artigo 23 da Lei no 8.159/91 traz uma ampliação em relação ao
inciso XXXIII do artigo 5o da Carta Magna ao dispor que: “Os documentos
cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado, bem
como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da
vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente
sigilosos”.
Essa combinação de direito à informação e direito à intimidade e da
honra pessoal delimita os usos contemporâneos dos documentos das polícias
políticas. Isso porque se, de um lado, o aparelho repressor produziu
informações sobre os movimentos da sociedade organizada, frequentemente
isso ocorreu em detrimento da devassa da vida privada de indivíduos, além de
sua humilhação. É preciso não esquecer também que a informação produzida
no âmbito da polícia política era comprometida com o objetivo de
caracterizar os inimigos do Estado. Para tanto, usava de todos os
subterfúgios, especialmente denegrindo a imagem pessoal de cada
investigado. De modo geral, proliferam os adjetivos desqualificadores da
personalidade nos papéis da polícia, ao lado de indicação de muitos nomes.
Para desqualificar seus investigados, a polícia abusava de referências a sexo e
dinheiro. A título de ilustração é possível mencionar um documento que
caracterizava o personagem investigado como “laranja” [sic], servindo a
outrem por motivos pecuniários. Esses qualificativos pejorativos serviam
para denegrir a crítica política, transferindo a ideologia para o campo da
moral e dos costumes. Em sua época de produção, essas informações tinham
estatuto de verdade; hoje são exemplos de fabricação de mentiras e, por
vezes, tornam-se tristemente risíveis. Então, diante do quadro de direitos, a
difusão de documentos pode representar ameaça ao direito de inviolabilidade
da intimidade, da honra e da imagem pessoal. Esse direito individual cria
uma restrição de acesso público à informação, o que constitui fonte de
questionamento e desafio permanente aos arquivos e exige uma ordem
jurídica e instrumentos legais capazes de contornar essa restrição.
Contudo, essa combinação de dimensões contraditórias entre direitos
coletivos de sentido difuso e individuais da ordem do privado — que, aliás,
caracteriza frequentemente o patrimônio cultural, como no caso do
tombamento de uma propriedade privada — aponta os limites dos usos do
passado pelo presente. Exemplifica-se como o presente organiza o controle
das formas de acesso aos vestígios do passado.
Nesse caso, a limitação é fruto da construção da democracia, que implica
respeito aos direitos civis de vida e liberdade de expressão e respeito à
pessoa, o que tem consequências que incidem na pesquisa histórica, com
desdobramentos éticos.5
Por outro lado, importa destacar que nesse quadro a exploração de
documentos de arquivo na investigação da história exige uma teoria do
conhecimento que não seja reduzida à prova documental, pois, como já
apontado, muitas informações que se encontram nos arquivos das polícias
políticas não podem ser consideradas verdadeiras. Há uma história dos
preconceitos a ser traçada a partir dessas fontes que exigem tomá-las antes
como registros de representações historicamente situados do que como dados
naturalizados.
A esse respeito, Henry Rousso, o eminente historiador francês do tempo
presente, comenta como é incômodo lembrar que todo documento exige uma
recontextualização para ganhar sentido. Afinal, todos sabemos que para
compreender a lógica, no tempo e no espaço, do ator ou da instituição que
produziu este ou aquele documento é necessário examinar e confrontar séries
documentais. Mas como ele mesmo aponta, com frequência, nos dias de hoje,
ocorre uma mediatização jornalística de certos documentos históricos, que
promovem a “revelação” como que ao acaso ou espontaneamente.
Acompanhando o ponto de vista do historiador francês, podemos indicar que
a consequência mais grave desse quadro é a legitimação de uma
caracterização rasteira da construção do conhecimento, com prejuízos para a
imagem da disciplina. Como diz Rousso (1996:90): “Nenhum documento
jamais falou por si só: este é, sem dúvida, o clichê mais difícil de combater e
o mais difundido, sobretudo no que se refere aos arquivos ditos ‘sensíveis’”.
Assim, além da leitura primária e imediata de um documento levar a erros
graves de interpretação, promove uma epistemologia ultrapassada diante da
evolução da disciplina. A tensão entre uma história que procura se situar em
níveis de elaboração cada vez mais sofisticados, de um lado, e uma opinião
pública que nutre grande expectativa por provas definitivas, de outro, como
aponta o historiador francês, põe em confronto concepções sobre o
conhecimento histórico (Rousso, 1996).
Em outras palavras, o que se caracteriza é um quadro de disputa
epistemológica em que, cabe ressaltar, o historiador não se afirma como o
único sujeito da construção do conhecimento. Entre direito, história e
jornalismo se definem diversas conceituações de documento. O passado é,
assim, compartilhado por diversos campos do saber.

Usos do passado e tempo presente


O que a história dos documentos da polícia política no Brasil demonstra é que
os usos do passado não são exclusividade dos historiadores. Mas, igualmente,
não são território de exclusividade epistemológica que varia entre a
responsabilidade científica e o sensacionalismo leviano, entre o tratamento
social consistente ou inconsequente da informação documental.6
Os arquivos da repressão possuem um papel importante nos projetos de
institucionalização de memórias no Brasil.7 Aliás, eles trafegam na trilha que
a sociedade estabelece por seus marcos legais e pelos direitos estabelecidos a
partir da ordem jurídica, sendo garantidos pelo trabalho dos arquivos
públicos. Por vezes, trafegam pela linha do dever de memória. Além disso, é
muito frequente o uso dessas fontes pelo mundo do jornalismo, da produção
audiovisual, de massa ou não, ao lado dos usos para fins probatórios por
cidadãos comuns vítimas diretas ou herdeiros de vítimas da violência política,
de onde decorrem os usos do Estado, no caso, em especial, nas Comissões de
Anistia. O que se pode dizer é que essas fontes são objeto de um debate
público que não se circunscreve ao mundo dos profissionais de história. Tal
como apontam François Hartog e Jacques Revel, o debate contemporâneo
sobre o passado ultrapassou a capacidade do historiador de dirigi-lo (Hartog,
2002).
Em torno dos usos políticos do passado, é possível observar que, no que
diz respeito à história contemporânea, foi se estabelecendo um campo próprio
para o tempo recente. Parece importante sublinhar que a construção de
conhecimento nesse território tem como característica não ser encerrada
exclusivamente entre pares ou iniciados nas tradições disciplinares da
história. Ao contrário, é característica desse território de estudos se preparar
para dialogar com interlocutores movidos por outros propósitos e, por vezes,
igualmente qualificados a partir de outras tradições disciplinares, como do
direito ou do jornalismo, para não citar outros, bem como a partir do
testemunho de quem tem a experiência direta dos fatos. Nesse caso, trata-se
de confrontar interlocutores distintos, mas igualmente legitimados. Interessa
sublinhar, porém, que este confronto pode ser caracterizado igualmente por
uma concorrência epistêmica, em que formas de construção de conhecimento
rivalizam.
É preciso atentar para o fato de que esse contexto epistêmico é correlato
da popularidade da história e da indústria do patrimônio que caracterizam a
sociedade na atualidade. Como adverte Margaret MacMillan, é exatamente
nesse contexto em que a história afirma sua importância em discussões
públicas e atrai o interesse comum que os amadores têm encontrado campo
livre. Em grande medida, os profissionais de história não têm conseguido
marcar presença decisiva para derrubar generalizações amplas, que não
fornecem provas adequadas e não contribuem para a compreensão das
nuances e da complexidade do processo social. Ainda que a escrita da história
tenha, principalmente em outras épocas, contribuído para afirmar leituras
tendenciosas do passado, na atualidade o estudo da história é uma fonte
permanente para o exercício da humildade do conhecimento e do ceticismo
diante de explicações fáceis, incentivando a consciência e a reflexão sobre
nós mesmos. O fato é que isso não tem sido suficiente para enfrentar o
quadro de abusos da história que, por vezes, mobiliza forças nefastas no
mundo contemporâneo que continuam a se organizar em função de conflitos
sociais legitimados pelo passado, sem deixar evidente seus interesses no
presente, afinal, “o passado pode ser aproveitado para quase tudo que se
queira fazer no presente” (MacMillan, 2010:11).
Por fim, para retornar à experiência histórica traumática, e
especificamente à história dos regimes autoritários, a história do tempo
presente, ainda que marcada pelos usos políticos do passado, emerge de um
contexto moral que se definiu pelas formas de anistia. Como indica Paul
Ricœur, a anistia condiciona um esquecimento comandado, definindo-se
como um esquecimento institucional, que busca a reconciliação da paz cívica.
É possível apontar, de acordo com Ricœur, diferentes modelos de lembrança
instaurados por anistias (Ricœur, 2007).8 O autor indica o modelo de Atenas
baseado no decreto que afirma a democracia, subjugando o modelo
oligárquico. Nesse caso, ficou estabelecida a proibição em lembrar os males
do passado. Essa interdição se combinou com a promoção de um imaginário
cívico que insiste em promover a amizade entre os atenienses, ocupando o
espaço da lacuna da memória. O outro modelo citado por Ricœur é o do Edito
de Nantes, que pôs fim às guerras religiosas na França do século XVI. O
documento, segundo o autor, fala de acontecimentos adormecidos “como
coisa não ocorrida”. No caso de anistias contemporâneas da história francesa,
segundo Ricœur, o Parlamento assumiu, em nome do povo, o papel decisivo
de legitimar a decisão que pôs os fatos em termos jurídicos, suspendendo
todas as ações judiciais. Nesse caso, promoveu-se um esquecimento jurídico,
portanto. O modelo da anistia recente do Brasil é ambíguo. Ele não foi
acompanhado pela transformação imediata do regime nem de um movimento
pró-Constituinte imediato, que só cresceu anos depois. De todo modo, o
marco da anistia teve consequências essencialmente jurídicas. Seus outros
efeitos ainda parecem abertos. O importante é sublinhar que há dois
posicionamentos gerais em relação aos usos do passado a partir da análise
dos modelos históricos de anistia: há as que fazem esquecer os fatos e há o
modelo que essencialmente contorna juridicamente as consequências da
lembrança.
De todo modo, o que se abre diante de nós como debate é o fato de que os
usos do passado no tempo presente organizam as formas da lembrança, mas
igualmente do esquecimento. Diante desse dilema, é sempre possível voltar
aos arquivos e renovar nossos olhares sobre o passado e interrogar as bases
do conhecimento histórico. Contudo, não se poder perder de vista que esse
retorno aos arquivos é demarcado por um contexto geral de interrogação ética
que condiciona a historiografia como fato moral em relação a seu presente.9
A história do tempo presente provoca, de modo particular, a história como
conhecimento em construção.

Referências
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ROUSSO, Henry. O arquivo ou indício de uma falta. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, n. 17, 1996.

*-As primeiras partes deste texto reelaboram argumentos de outro trabalho publicado
em Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, ano 22, n. 40, p. 9-16, jan-jun 2009.
Retoma em grande medida trabalho inédito em colaboração com Camila Costa de
Oliveira, a quem o autor agradece.
1-Para uma caracterização do ciclo de vida dos documentos, veja-se, por exemplo,
Bellotto (2007, cap. 1).
2-Para o debate acerca da relação entre opacidade do Estado e gestão da informação,
ver Jardim (1995).
3-Para caracterização e debate sobre a legislação arquivística e a questão do acesso à
informação no Brasil, ver Costa (2003).
4-Para esse debate, ver Costa (1998:189-199).
5-A repercussão desse quadro no campo da pesquisa histórica é salientado em Kushnir
(2006:40-51).
6-Um volume de ensaios de François Bédarida, especificamente os artigos da última
parte da coletânea, permite acompanhar aspectos da reflexão do autor sobre a
responsabilidade social dos historiadores. Cf. Bédarida (2003). Um dos ensaios da
coletânea foi publicado, originalmente, em livro que foi traduzido no Brasil: Bédarida
(1998).
7-Esse mesmo aspecto da institucionalização de memórias é tratado em relação à
importância dos arquivos pessoais na atualidade em Heymann (2009).
8-Para uma caracterização e discussão do pensamento de Ricœur sobre a história, ver
Bona (2010).
9-Para um debate sobre as relações entre ética e conhecimento histórico, ver Knauss
(2008:140-147).
Passado e presente: autores de fortuna variada
RAQUEL GLEZER

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Camões [1980:57]

Esta é apenas uma reflexão inicial sobre o tema passado/presente, pois ao


preparar o material para a apresentação e para a redação, percebemos que a
questão é mais complexa e deve merecer estudos mais acurados. A
perspectiva apresentada é a da história da historiografia e o objeto de estudo
são historiadores com fortuna crítica variada, marcados pela relação profunda
com a época em que viveram, com os temas e questões do momento em que
produziram e com propostas e/ou tentativas de interferência no momento
político.
Este texto, como sabemos, fica no reino do sublunar (Veyne, 1979), no
campo da história da historiografia e das questões de recepção e acolhimento
das posturas epistemológicas de historiadores, que sofrem de fortuna variada.
Isto é, historiadores considerados chefes de escola, líderes em inovações e
propostas e que posteriormente — até rapidamente, podemos dizer — foram
questionados e colocados no esquecimento.
Aproveitamos o tema geral do seminário — “Tempo presente e usos do
passado” — para fazer um exercício em duas linhas: na primeira, recuperar
uma escola historiográfica, hoje um tanto obscurecida, que se fundamentou
em questões contemporâneas dos autores para estudar o passado, muitas
vezes identificada com o relativismo histórico, e que apresentou propostas
analíticas e epistemológicas, algumas das quais se tornaram quase
consensuais. O historiador norte-americano Charles Beard é sempre
referenciado a uma escola historiográfica, a “presentista” ou “relativista”,
cujas interpretações eram direcionadas pela atuação política. Ele sofreu os
percalços de tal posição, passando do status de autor referencial ao de
questionado e relegado no rol das referências teóricas historiográficas. Em
sentido amplo, podemos considerá-lo historiador do tempo presente, por suas
propostas de atuação política e de transformação do campo dos estudos
históricos.
A segunda linha deste trabalho tem o objetivo sintético de apresentar a
trajetória de um historiador brasileiro, que também foi destacado em alguns
momentos e depois esquecido pelas gerações seguintes: José Honório
Rodrigues, que propunha a produção de obra historiográfica vinculada ao
presente do historiador.

Tempo presente: uma questão de periodização


O tempo presente, no qual todos estamos inseridos, é simultaneamente
realidade substantiva e ameaça invisível. Todos estamos, no momento em
que vivemos, sujeitos a todas as circunstâncias e influências, que sempre
acabam marcando as atividades que desenvolvemos, quer nas condições de
pesquisa e de trabalho nos campos especializados, quer nas marcas invisíveis
e quase que incontroláveis em nossa vida, relações pessoais e formas de
pensamento. Como escapar das ameaças reais ou imaginárias daquilo que
desconhecemos, das ideias dominantes que atuam de forma hegemônica, dos
preconceitos, das limitações pessoais e da incapacidade de aceitar o que não
conhecemos ou a quem não conhecemos? Como trabalhar com o que se
apresenta como novo, diferente, de algo que exige a criação do caminho no
próprio caminhar?
A história do tempo presente é, na terminologia dos campos
especializados da teoria e história da historiografia, o da escrita, produção ou
narrativa historiográfica sob qualquer temática e/ou assunto que se definem
como inseridos na periodização denominada tempo presente. Ele é, grosso
modo, o período pós II Guerra Mundial, da segunda metade do século XX até
nossos dias. Diversamente das tentativas anteriores de introduzir um quinto
período em nossa cronologia ocidental-cristã, aparentemente repudiadas pelo
imaginário que o acompanha, esta se impôs com relativa facilidade. As
críticas que lhe são feitas não atingem o cerne da questão da periodização,
mas visam principalmente às formas de trabalho, às fontes exploradas e aos
temas de pesquisa.
Para os especialistas da história e da teoria da historiografia tal situação é
fascinante, pois temos a oportunidade de ver uma periodização ser
implementada, não por uma tradição erudita ou pela autoridade clássica —
usando formulações mitológicas greco-romanas, somadas às concepções
judaico-cristãs —, mas por historiadores, nossos contemporâneos, atuando
em seu ofício, buscando explicar e compreender as complexidades da
realidade e da representação da realidade.
Explorar o assunto tempo presente é sempre atraente diante da proposta
de retomar a questão da periodização em idades ou eras em nossos dias e em
nossa cultura histórica, ainda profundamente eurocêntrica — embora
digamos sistematicamente aos nossos alunos que as idades e sua sequência
são apenas elementos de uma cultura ou civilização escolhendo seu passado.
A continuidade do uso de eras ou idades históricas é questão que se
mantém aberta e que não foi solucionada, apesar das críticas e propostas
alternativas apresentadas em meados do século XX (Chesneaux, 1976). As
temporalidades braudelianas — as durações (longa, média e curta) —, que
tanta comoção causaram no campo dos estudos históricos, tornaramse
elementos integrantes de temas e fontes, tão consensuais que raramente são
citadas (Braudel, 1969).
Para nós, historiadores, periodizar é necessidade básica, pois é o ato que
nos possibilita fazer recortes no vasto universo de fatos e fontes com que nos
deparamos toda vez que propomos um objeto de pesquisa, um espaço ou um
tema, marcando um determinado momento com significações intrínsecas e
extrínsecas. Não retomaremos as questões clássicas sobre os problemas de
periodização, abarcados por vasta bibliografia, que foge ao proposto no
momento. E nem reveremos a conceituação que a historiografia francesa faz
do tempo presente, com as transformações nas formas e objetos de pesquisa
que ainda estão em processo de realização e de mutação, pois discutimos tais
itens em outro texto (Glezer, 2007:23-44).
Contudo, entendemos que, no momento em que vivemos, como
aconteceu em diversos outros, há questões que se apresentam aos
historiadores de forma imperativa: o que é passado e o que é presente?
Quando o passado se torna objeto passível de pesquisa? As limitações
clássicas de uma geração se tornaram restritivas demais na fase em que a
sociedade ocidental sofre um processo de aceleração temporal com
transformações tecnológicas muito rápidas, repercutindo no modo e na
extensão do tempo de vida dos seres humanos.
Apesar da aceleração temporal, algumas questões continuam as mesmas.
Como separar a história do fato, a memória individual do que aconteceu, e se
consolidou como memória social, mesmo que de um grupo restrito, para fazer
a história como análise, explicação e compreensão, campos de atuação do
historiador?
Vivemos em um momento de aceleração temporal, para acompanhamento
dos fatos em 24 horas (com as mídias em tempo real), transformando todos
os fatos acontecidos imediatamente em passado, na rápida e incessante
substituição de um fato por outro, com documentos impressos e visuais
disponibilizados para acesso a todos que possuem os meios de alcançá-los,
mesclando irrelevâncias cotidianas com fatos marcantes, mascarando as
complexidades do real em afirmações genéricas, misturando o anedótico, o
exótico e o significativo em lampejos de informação.
Para os historiadores do contemporâneo — que em nossos dias abarca
mais de 200 anos — que optaram pela forma analítica do tempo presente
(qualquer que seja o tema ou a periodização selecionada) há miríades de fatos
e documentos em novos suportes a serem analisados. Como apreendê-los,
selecioná-los, analisá-los; como dominar os novos conteúdos, as novas
fontes, a fim de organizar os fatos para o exercício analítico?
Para todos nós historiadores que vivemos neste momento, em qualquer
especialidade, como acompanhar as novas formas de comunicação e de
divulgação? Para os professores do ensino superior, o questionamento é de
como formar novos historiadores diante das múltiplas possibilidades de fatos,
fontes, interpretações e inserções no mercado de trabalho. A percepção dos
problemas que nós historiadores contemporâneos enfrentamos muitas vezes
provoca ou possibilita o esquecimento de outras formas de raciocínio
histórico que tiveram vigência intelectual e marcaram campos
historiográficos relevantes.

O “presentismo”

A crítica existente e corrente nos últimos anos sobre o “presentismo”, a


“presentificação” do passado, levou-nos a recordar o nosso processo de
formação e trouxe à lembrança outra escola historiográfica, cuja marca
característica de atuação foi a presentificação do passado. Tivemos
conhecimento da denominação e existência de historiadores “presentistas”
por meio de um artigo de Adam Schaff (1961:123-135),1 publicado no
Boletim de História, em 1961. No clássico História e verdade, livro de Adam
Schaff (1974:195-225 e 257-266)2 editado na década de 1970 e leitura
obrigatória para os historiadores iniciantes, entre os autores citados há
destaque para Charles Beard e Carl Becker. A apresentação era crítica e a
classificação tendia para o pejorativo já nos anos 1970, mas o fato de um
autor marxista relacionar a escola indicava sua relevância, assim como das
formulações que apresentava.
Ao retomar as leituras sobre os “presentistas” vimos que são conhecidos
como escola historiográfica progressista norte-americana — quer nos estudos
historiográficos, quer na história das ideias e na história intelectual norte-
americana —e percebemos que o universo de questões é maior do que é
possível abordar em espaço restrito, pois o conjunto dos historiadores
progressistas é muito amplo, diversificado, e já há uma produção analítica
relevante sobre eles, com visões divergentes.
Selecionamos apenas dois discursos de Charles Beard na American
Historical Association, da década de 1930, tida como a fase destacada do
movimento.
Charles Augustin Beard (1874-1948) é considerado um historiador
ousado por suas inovações em conteúdo analítico, por exemplo, a valorização
de fatores econômicos como explicativos de atos políticos (Beard, 2004,
1922, 1915 e 1913),3 e por seu comportamento acadêmico, pois inovou a
relação com a administração pública, visando à implantação de órgãos de
pesquisa municipais (Beard, 1923). Sua esposa, Mary Beard,4 é uma
historiadora feminista, uma das precursoras em história das mulheres,
especialmente a das trabalhadoras, e ajudou-o a fundar a The New School for
Social Research,5 em Nova York. A escola era dirigida pelos próprios
pesquisadores em ciências sociais, fugindo à organização hierárquica e
conservadora das instituições universitárias existentes.
Em algumas análises posteriores, é criticado por sua origem — família de
proprietários rurais em Indiana —, por sua formação elitista — Oxford e
Columbia;6 por suas posições políticas, inicialmente em favor da participação
norte-americana na I Guerra Mundial, depois em defesa do New Deal, e
posteriormente defendendo o isolacionismo no período da II Guerra Mundial,
temendo o fortalecimento do governo federal como passagem para uma
eventual ditadura.
No período da Guerra Fria, sua postura analítica da história norte-
americana foi duramente questionada7 e novas interpretações da história
norte-americana e da história intelectual se tornaram dominantes, deixando-o
em segundo ou terceiro plano.
Ernst Breisach, em American Progressive History: An Experiment in
Modernization (1993) relaciona as posturas analíticas e interpretativas dos
historiadores progressistas com as tendências correntes na historiografia
europeia no mesmo período, rompendo a versão até então predominante de
uma escola exclusivamente norte-americana, isolada em suas concepções e
em sua forma de atuação.
Há uma coletânea de textos dos progressistas que permite acompanhar as
propostas apresentadas na primeira metade do século XX,8 que é usada como
auxiliar para o estudo da história política norte-americana.
Selecionamos apenas dois textos de Beard para comentar. O mais
conhecido é “That Noble Dream” (1935:74-87) e o outro é “Written History
as an Act of Faith” (1933:219-231), ambos reconhecidos como simbólicos
das propostas do grupo dos historiadores progressistas, influenciados pelas
ideias de Benedetto Croce (1965).9
No artigo de 1933, “Written History as an Act of Faith”, Beard faz uma
defesa veemente da posição historiográfica que afirma que escrever história é
escrever história como realidade. Ali ele critica todas as outras escolas
historiográficas: a escola histórica alemã, a partir de Ranke, vendo-a como
conservadora; os historiadores da história-ciência, baseada em conceitos
científicos a partir da física ou da biologia, além dos teólogos, filósofos e
todos os que de alguma maneira exploram dados da história. Contudo,
reconhece a legitimidade do método científico na atuação do historiador:
“precioso e indispensável instrumento da mente humana” para colocar ordem
no caos, mas que não pode ser o explicador dos fatos históricos.
Simultaneamente, rejeita o relativismo como elemento desagregador das
análises e provocador da inutilidade do conhecimento.
Ao afirmar que “escrever história como realidade é um ato de fé”,
reconhece todas as limitações que seres humanos são portadores —
deficiências, preconceitos, desconhecimento —e enfrenta os perigos de tal
posição, com plena consciência das dificuldades em sua atuação como
historiador.
Percebemos que o “ato de fé” expresso por ele é racionalista e iluminista
— a fé no progresso humano, na possibilidade de conhecimento e na
compreensão dos atos humanos, reconhecendo os motivos visíveis e ocultos
que cerceiam os seres humanos.
O texto de 1935, “That Noble Dream”, muito mais citado, não sei se lido
e compreendido em suas circunstâncias de produção, é uma resposta
agressiva a um ataque na própria American Historical Association (AHA)
feito por historiadores progressistas. Como Beard, eles são acusados de
privilegiar questões econômicas, mas são ligados a Marx. Beard retoma o
ataque aos historiadores vinculados à escola histórica alemã, apresentados
como conservadores e fiéis seguidores das proposições de Ranke, como se
elas fossem verdades evidentes por si mesmas. Ele aponta os autores críticos
alemães do final do século XIX e início do século XX para citar as limitações
de uma história “tal como aconteceu”, assim como do historicismo. Arrola
em 11 argumentos o questionamento ao historicismo. Conclui sua
argumentação afirmando que não há interpretação “correta” de história, há
“versões de história” decorrentes das seleções prévias realizadas pelos
historiadores de objetos, documentos, pela organização destes, pelo enfoque
interpretativo e pela análise proposta. E sugere que, em vez de conflito
contínuo, seguido por vitórias ou derrotas, passe a haver nos encontros anuais
da AHA uma ou mais sessões sobre posturas e procedimentos da
historiografia, pois com a discussão de tais itens o “nobre sonho da procura
pela verdade” pode ser aproximado. Beard, contudo, faz uma ressalva:
historiadores continuarão a ser seres humanos, não deuses imortais.
Em nossos dias, suas afirmações sobre historiadores e os
condicionamentos socioculturais soam consensuais, nada revolucionárias.
Tão consensuais que suas ideias são muitas vezes repetidas sem o devido
crédito.

A história combatente
A outra linha do exercício que propusemos e vamos apresentar sinteticamente
é a recuperação da trajetória de um historiador brasileiro, que também se
destacou em alguns momentos e que, de forma similar, foi esquecido: José
Honório Rodrigues, que nos anos 1960 propunha a produção de obra
historiográfica vinculada ao presente do historiador.
José Honório Rodrigues (1913-1987) é considerado o historiador que
pugnou pela introdução dos estudos sobre a história da historiografia no
Brasil, além da introdução da arquivística atualizada. Escreveu de forma
contínua em suas atividades como historiador, entre 1939 e 1987. Editou
numerosos textos documentais, traduções, correspondência e livros. Seu
campo de pesquisa mais marcado foi o Brasil do século XIX. Não vamos
reproduzir sua vasta bibliografia nem os estudos sobre ele, pois o fizemos
anteriormente, embora sem abordar a totalidade de sua produção, pois nos
centramos em seus 40 anos de atividade como historiador (Glezer, 1976).
Posteriormente, outros autores fizeram análises sobre aspectos diversos
(Marques, 2000; Alves Junior, 2010).
Retomamos aqui algumas de suas propostas quase totalmente esquecidas
e que permitem uma aproximação com os historiadores progressistas: uma
delas, tão atual em nossos dias, com os ainda existentes problemas de
preservação e acesso aos arquivos públicos — a da defesa da pesquisa
pública como objetivo dos acervos documentais.10
Todos os historiadores no Brasil conhecem e reconhecem as dificuldades
de acesso e preservação dos acervos documentais, que vão do simples acesso
a informações sobre o conteúdo — um catálogo e um inventário que, se
existentes, poupariam horas de pesquisa em busca do material desejado —
até a consulta propriamente dita aos documentos. Até nossos dias, o acesso
aos documentos históricos continua sendo quase um golpe de sorte —
encontrar um arquivo aberto para consultas públicas, um catálogo que
informe o conteúdo, o horário de funcionamento para consulta do acervo
documental compatível com o dia a dia do pesquisador não é uma tarefa fácil.
Outras ideias próximas são a de história combatente11 e a de historiador
militante — propõe ele que o historiador esteja sempre ligado aos problemas
e temas de seu momento histórico, e que seja defensor de posições políticas
radicais. Ideias que nos anos 1960 pareciam ter atrativos hoje desaparecidos.
Se antes, nos anos da ditadura, as opções de atuação real foram violentamente
reprimidas, depois da redemocratização, na década de 1980, viram-se
superadas pelas mutações que ocorreram no campo dos estudos históricos.
José Honório Rodrigues também projetou a criação de um instituto de
pesquisa histórica no país dedicado aos estudos de história nacional, mas que
fosse separado das universidades e dos arquivos — tema ainda não explorado
em estudos, mas que lembra a criação da New School for Social Research.
Entre outras tantas questões que podem ser estudadas, há o tema da visita
de Rodrigues aos Estados Unidos, de influência tão citada na segunda e
terceira edições da Teoria da História do Brasil (Rodrigues, 1969), e a
continuidade de relações intelectuais com os autores norte-americanos,
mesmo quando escreve como nacionalista radical. As relações de
historiadores brasileiros nas décadas de 1940 e 1950 com instituições
internacionais — europeias e norte-americanas — é tema muito complexo e
merece estudos aprofundados que fogem ao escopo de nossa apresentação.
Com todas as transformações pelas quais passaram os diversos campos
dos estudos históricos desde o último quartel do século XX — após a quase
hegemonia da grande história econômica e social e a desvalorização da
história política, além da fragmentação do campo por novas fontes, novos
objetos, novos problemas, novas interpretações, nova história social, sem
falar nas viradas linguística e subjetiva, na micro-história, na história do
cotidiano e na história cultural — estamos muito próximos das questões
apontadas pelos historiadores progressistas: como fazer história no momento
em que vivemos —o presente? E como controlar nossos preconceitos,
estereótipos, limitações culturais? Consensualmente, em nossos dias, nos
estudos históricos e historiográficos fazemos “versões de história”.
E novamente o tema da história combatente ressurge no Brasil: quais as
dificuldades em nossas circunstâncias individuais e coletivas para olhar o
passado como objeto de estudo, ultrapassar a memória individual e social,
expor nossos traumas coletivos? Como fazer um estudo do passado sem
vinculação com o presente? Como podem os historiadores interpretar e
compreender o passado sem inserção e vivência no presente?
A realização anual do seminário comprova a existência das muitas formas
de exercício profissional para os historiadores e indica que os debates sobre
as formas de fazer história e historiografia ainda são pertinentes e
necessários, tanto para a compreensão do ofício quanto para que se evite o
esquecimento da trajetória do campo dos estudos históricos, desde sua
formulação como campo de ação humana independente da vontade dos
deuses ou de Deus.
Referências
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intérprete do Brasil. Doutorado em Sociologia. Unesp/Araraquara, 2010.
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1-Na nota de rodapé constam os nomes dos alunos que estudaram o texto, publicado
inicialmente na revista Diogène, da Unesco, em 1960. O Boletim de História da
FNFi/UBr foi um periódico relevante nos anos 1970. Foi estudado na dissertação de
mestrado de Gama (2010).
2-Schaff (1913-2006) publicou esse original em polonês. Constam oito edições no
Dedalus/USP.
3-As edições das obras de 1922, 1915 e 1913 podem ser encontradas on-line no
projeto Gutenberg.
4-Mary Ritter Beard (1859-1958) foi historiadora e arquivista. Colaborou com o
esposo em algumas obras, mas é reconhecida como precursora dos estudos feministas.
Obras mais citadas: On Understanding Women, de 1931; editou America Through
Women’s Eyes, em 1933, e Woman As Force In History: A Study in Traditions and
Realities, em 1946. Com Charles A. Beard publicou The Rise of American
Civilization, em 1927. Estudos sobre ela: Ann J. Lane (ed.). Mary Ritter Beard: A
Sourcebook. Boston: First Northeastern University Press, 1988; Nancy F. Cott (ed.). A
Woman Making History: Mary Ritter Beard Through Her Letters. New Haven,
Connecticut: Yale University Press, 1991; Ann J. Lane (ed.). Making Women’s
History: The Essential Mary Ritter Beard. Nova York: The Feminist Press at The City
University of New York, 2000; Julie Des Jardins, Women and the historical enterprise
in America: gender, race, and the politics of memory, 1880-1945, Chapel Hill, NC:
Univ. of North Carolina Press, 2003; Dubois, Ellen Carol; Lynn Dumenil. Through
Women’s Eyes: An American History with Documents. Boston: Bedford/St. Martin’s,
2005. Cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Ritter_Beard. Documentos pessoais:
Beard, Mary Ritter, 1876-1958. Papers, 1935-1958: A Finding Aid (A-9) em
<http://oasis.lib.harvard.edu/oasis/deliver/deepLink?
_collection=oasis&uniqueId=sch00440>.
5-A New School for Social Research (http://www.newschool.edu/) foi criada em 1919
por pensadores progressistas, sendo dedicada à liberdade de pensamento crítico e ao
engajamento cívico. Em 1933 recebeu intelectuais europeus perseguidos pelo nazismo
e se tornou a Universidade no Exílio. É hoje um centro de estudos interdisciplinares
em pósgraduação para a formação de quadros intelectuais. Ver, especialmente,
Katznelson (2008).
6-Para a questão do anti-intelectualismo norte-americano, ver, entre outros, Hofstadter
(s.d.).
7-Entre outros: Borning (1962); Hofstadter (1968); Nore (1983); Novick (1988);
Barrow (2000).
8-A recuperação dos autores considerados progressistas pode ser vista na coletânea de
textos de autores da corrente em Atto e Pestritto (2008).
9-A edição italiana é de 1917. Benedetto Croce (1866-1952).
10-Ver A pesquisa histórica no Brasil (1982).
11-Ver Rodrigues (1963, 1965, 1966, 1975, 1982, 1985).
Walter Benjamin: contratempo e história
OLGÁRIA CHAIN FÉRES MATOS

Passagens parisienses: Uma feeria dialética seria a obra de Benjamin sobre o


século XIX e a mundialização do capital em suas significações políticas e
culturais. Surrealismo e expressionismo, literatura e arquitetura, fotografia e
cinema, colecionismo e cultura de massa, bem como gêneros menores do
ponto de vista epistemológico — as passagens e seus personagens, a
iluminação a gás e o metrô de Paris, as exposições universais e os interiores
Luís Felipe, as lojas de departamentos e bulevares, panoramas e barricadas
—, constituem uma arqueologia dos diversos fenômenos sociológicos,
técnicos, econômicos e estéticos, como ilustrações e gravuras. Razão pela
qual a “Ponte dos planetas” de Grandville é, nas Passagens, seu emblema.
Em especulações gráficas, o escritor e gravurista expressou a ideologia do
conforto burguês e sua dominação sobre o universo inteiro, com as grandes
pontes de ferro trabalhado que ligavam todo o sistema solar, realizando o
projeto de expansão planetária do capitalismo globalizador, do colonialismo e
do imperialismo.1
Capitalismo e revoluções tecnológicas se associam em uma atmosfera
alucinatória, pois construções em vidro, ferro e iluminação artificial — a gás
ou elétrica — produzem efeitos de irrealidade, prodígios do luxo e da pompa
industrial. Benjamin anota:

No início do século XIX foram realizadas as primeiras tentativas de construção


com ferro […] Em vez de apresentar uma evolução histórica desse processo,
queremos associar algumas observações dispersas a uma pequena vinheta de
meados do século […] e que indica […] possibilidades ilimitadas que entrevemos
na construção com ferro. A imagem provém de uma obra de 1844 — Um outro
mundo, de Grandville — que narra as aventuras de um pequeno duende
fantástico, o qual procura orientar-se no universo: “Uma ponte, cujas duas
extremidades não conseguimos abarcar de uma só vez com a vista e cujos pilares
apoiam-se em planetas, conduzia de um mundo a outro por um asfalto
maravilhosamente liso. O pilar de número 333 mil ficava em Saturno. Então
nosso duende viu que o anel desse planeta nada mais era do que uma sacada
circular onde, à noite, os habitantes de Saturno vêm tomar ar fresco”.2 [2006:965]

A antítese do espaço infinito são os interiores burgueses — os intérieurs


— a cujos objetos o burguês atribui alma como a aura às relíquias religiosas.
Seu proprietário lhes confere a força sobrenatural de o consolar. Este poder
mágico é o confort dos espaços historicistas, sobrecarregados de rastros,
“inteiramente voltados para o sonho”, e “mobiliados” com os sonhos do
“Homem-estojo” (2006).3 Este interior é um casulo, como se suas janelas
estivessem voltadas para dentro, como uma passagem, espaço onde o
indivíduo se torna orgânico, enraizado e transformado em planta. Não por
acaso, os motivos florais do art nouveau ou do Jugendstil são uma “aversão
ao ar livre”, à exterioridade ameaçadora da cidade, vivida como uma selva.
Citando Alexandre Dumas, Benjamin anota:

é preciso reconhecer o fato de que a metamorfose da cidade [no romance policial]


deve-se à transposição para seu cenário das savanas e florestas, onde cada galho
cortado significa uma inquietude ou uma esperança, onde cada tronco dissimula o
fuzil de um inimigo ou o arco de um vingador invisível e silencioso. […] No
boulevard ia-se de encontro à natureza com uma acentuada hostilidade… A
natureza era vulcânica como o povo [2006:482].4

Assim os intérieurs burgueses do século XIX são um revival da alegoria


barroca, da história convertida em natureza morta. Grandville moderniza o
universo, transformando a “Via Láctea em uma avenue noturna iluminada por
candelabros a gás” de tal forma que “a história é introduzida no contexto
natural como o havia feito a alegoria 300 anos antes”, o retrô ou o “neo” se
expressando no Jugendstil: “o estilo estilizante kat’exochén [por
excelência]”, que ornamenta o ferro com temas florais imitando a natureza,
ambos atestando a falência do encontro da humanidade com a natureza.5
Construção surrealista, a visão onírica de Grandville é como a de Scheerbart,
pois ambos aproximam o que habitualmente está separado: a fantasia de um
cosmos habitado e a realidade do capitalismo fetichista, os vitrais das
catedrais góticas e as translúcidas construções de vidro da modernidade
tecnológica.
Criando colagens temporais, Scheerbart utiliza o vidro, impensável sem a
herança do gótico e a função religiosa dos vitrais multicoloridos das catedrais
da Idade Média: “o respeitável leitor poderia ter o sentimento de que a
arquitetura de vidro seja um pouco fria. Mas na estação quente o frescor é, de
fato, muito agradável. Em todo caso, eu gostaria de enfatizar que as cores do
vidro podem, também, aquecer. Elas irradiam uma espécie de ‘novo’ calor”.
(Benjamin, 1994:469, B9) As construções imaginárias de Scheerbart
inspiram-se, também, na lenda do palácio de cristal construído pelo rei
Salomão para a Rainha de Sabá. Em seu romance de literatura fantástica e
efeitos sobrenaturais, Lesabendio, Scheerbart narra a construção de uma torre
gigantesca em Pallas para unir o planeta a um astro imaginário que seria seu
guia, “o mais perfeito dos mundos”. Segundo Benjamin, as fantásticas
imaginações de Grandville e Scheerbart seriam “histórias de fantasmas para
os adultos despertos” (apud Warburg, 1928-29).
Porque as passagens são arquitetura de ferro e vidro e “moradas de
sonho”, elas foram, com suas lojas luxuosas, seus cafés, jardins de inverno, o
onírico do coletivo, as “primeiras festas de nosso tempo”, “as primeiras festas
populares do capitalismo”:

as passagens resplandeciam na Paris do Segundo Império como grutas habitadas


por fadas. Quem adentrava a Passage des Panoramas em 1817 ouvia, de um lado,
o canto das sereias da iluminação a gás e, em frente, era seduzido pelas odaliscas
das lâmpadas a óleo. Com o acender das luzes elétricas, apagou-se o brilho
irretorquível desses corredores que, subitamente, tornaram-se mais difíceis de
encontrar, que praticavam uma magia negra com as portas e contemplavam seu
próprio interior por janelas cegas [Benjamin, 2006:607].6

Portas e janelas cegas, corredores e passagens desorientam a consciência


moderna, evocando outra racionalidade histórica, diversa da factual,
positivista, romântica ou historicista…
A arqueologia é a maneira benjaminiana de se afastar do historicismo de
um Dilthey, do positivismo hegeliano ou marxista e da historiografia
romântica. Benjamin analisa os acontecimentos históricos com categorias
anteriores às antíteses contemporâneas, como reação e revolução, progresso e
decadência, modernidade e antiguidade:

nunca houve uma época que não se sentisse “moderna” no sentido excêntrico, e
que não tivesse o sentimento de se encontrar à beira de um abismo. A consciência
desesperadamente lúcida de estar em meio a uma crise decisiva é crônica na
história da humanidade. Cada época se sente irremediavelmente nova. O
“moderno”, porém, é tão variado como variados aspectos de um mesmo
caleidoscópio [2006:587].7

Benjamin interroga o contemporâneo a partir de suas tradições ocultas;


em vez das grandes teleologias conceituais, ele prefere a “ciência do
particular”, a vitalidade dos períodos ditos de decadência, pois há “um
encontro marcado”, secreto, entre o arcaico e o moderno que são suas
fantasmagorias. As fantasmagorias do século XIX provêm da coabitação das
alegorias antigas e do choque vivido pelo homem nas grandes cidades — a
multidão, a rua, a prostituição, a mercadoria tornada fetiche. Há também
choque metodológico entre uma imagem espacial — Paris —e uma imagem
temporal —o século XIX. Com sua arqueologia, Benjamin escava o subsolo
dessa época, seu inconsciente.
O moderno que principia se inaugura com a “passagem das passagens”
que se desertificam e remanescem como fantasmas de um evento recente.
Com o “abalo da economia de mercado”, anota Benjamin, “começamos a
reconhecer os monumentos da burguesia como ruínas antes mesmo de seu
desmoronamento” (2006:51).8 Assim, o Jugendstil é o “estilo da juventude”
que desaparece sem ter tido o tempo de envelhecer. Razão pela qual
Benjamin observa: “ao tentar acompanhar o Jugendstil até seus efeitos sobre
o Jugendbewegung [movimento da juventude] talvez devêssemos conduzir
este estudo até o limiar da guerra” (2006:594).9
Analisando as passagens de Paris, Benjamin identificava a ordem
burguesa e a economia de mercado como a verdadeira anarquia e desgoverno
da modernidade. Como o capital — que se encontra sempre em estágio de
acumulação primitiva e em revolução permanente de suas técnicas para poder
se reproduzir e manter o mercado em funcionamento —, as passagens
envelhecem e se sucedem — como as mercadorias — em um amontoado de
ruínas: “Não há um declínio das passagens, mas sua súbita reviravolta. De
uma hora para outra elas se converteram na forma que moldou a imagem da
modernidade. Aqui o século refletiu com satisfação seu passado mais
recente” (2006:588).10
O mesmo mecanismo econômico dessas construções para a exposição das
mercadorias de luxo — erguidas sobre a devastação de quarteirões inteiros de
casas cujos proprietários “se solidarizaram para este tipo de especulação” —
suprime a novidade, criando o sempre-novo que é logo sempre-velho. E para
tratar das Passagens de Paris e seu precoce declínio, Benjamin justapõe a
demolição de uma e o surgimento de outra, processo que expõe a lógica do
capital, que, na substituição incessante de objetos desaparecidos, multiplica
seus espectros:
Na Avenue des Champs Elysées, inauguraram-se, recentemente, arcadas, em
meio a novos hotéis com nomes anglo-saxões, nascendo a mais nova passagem
parisiense. Para a inauguração, uma orquestra monstro, todos em uniforme, diante
de canteiros de flores e chafarizes. Aos gemidos, passando por cima de limiares
de arenito, uma multidão aglomerava-se ao longo de vidros espelhados, olhava a
chuva artificial caindo nas entranhas de cobre dos mais novos automóveis, como
prova da qualidade do material, via rodas girando no óleo, lia em plaquinhas
negras com algarismos de strass o preço de artigos de couro, de discos de
gramofone e quimonos bordados. Sob a luz difusa vinda de cima, deslizava-se
sobre lajotas. Enquanto se oferecia aqui à elegante Paris um novo corredor de
acesso, desaparecia uma das mais antigas passagens da cidade, a Passage de
l’Opéra, tragada pela abertura do Boulevard Haussmann [2006:901].

Haussmann transforma a antiga Paris com novas arcadas que se erguem


em diversos lugares da cidade, em que galerias da última moda se aliam a
elementos da indústria de entretenimento nascente. O luxo das lojas
sobrecarregadas de mercadorias multicoloridas e cintilantes coteja o vazio, a
vitrine de cujo inventário só restou uma tabuleta oferecendo a compra de uma
dentadura em ouro, cera ou mesmo quebradas, como uma caveira:

Aqui, no recanto mais silencioso do corredor lateral e […] sobre o papel de


parede de cor esmaecida, cheio de quadros e bustos de bronze, recai a luz de uma
lâmpada a gás. Junto dela uma velha senhora a ler. Está sozinha, dir-se-ia há anos.
[Agora] estou do lado de fora, ao ar livre. De fronte, mais uma vez há algo como
uma passagem, arcos, e lá uma rua sem saída até um Hotel de Boulogne ou
Bourgogne, com uma só janela. Contudo não mais preciso entrar ali, caminho rua
acima até o Arco do Triunfo, construído cinzento e glorioso para Luís, o Grande.
Na base das pirâmides esculpidas em seus pilares, repousam leões e encontram-se
armas, couraças e troféus crepusculares [2006:902].

Esses elementos antigos esculpidos nas construções recentes são a


fabricação de “rastros” do passado, pois já não têm nenhum significado no
moderno, que perde a capacidade da experiência. Porque o historicismo não
tem uma memória compartilhada, ele enriquece artificialmente o passado
pobre de experiência, um passado reificado, travestido em “espírito objetivo”.
O passado, na perspectiva do historicismo, só permanece como vestígio, mas
em sentido específico — são rastros produzidos para evocar uma história e
não reminiscências deixadas pela história.
O nacional-socialismo, com sua arquitetura neoclássica fantasmática e
que se pretendia “grega”, transforma as massas urbanas em descendentes de
um passado imemorial que precederia seu surgimento atual. Essas massas,
cuja origem se encontra ligada à produção industrial e ao mercado,
convertem-se em “povo alemão” que atribui aos outros povos, também
fantasmados, a causa das dificuldades sociais resultantes das crises da
economia de mercado. Porque se deve legitimar a Alemanha unificada no
século XIX por Bismarck, artistas voltam-se para a heroicização da nação e
aos primeiros anos do século I. Com a expansão romana sob Júlio César, o
império chegava ao Reno, até que o chefe da tribo germânica Arminius
(Hermann) venceu o general romano Varius na floresta de Teutoburger. Seu
herdeiro moderno é o nacionalismo e seu “horror ao contato” com o
estrangeiro:

Na aversão pelos animais a sensação dominante é o medo de, no contato, ser


reconhecido por eles. O que assusta profundamente é a consciência obscura de
que, nele, permanece em vida algo de tão pouco alheio ao animal provocador de
aversão, que possa ser reconhecido por este. Toda a aversão é originariamente
aversão pelo contato [1994:16].11

A heroicização da nação alemã, do guerreiro e do mito do combate


dissimulam a realidade da violência e a legitimam:

a memória da guerra foi […] remodelada como uma experiência sagrada


provedora de uma nova religião que colocava à disposição um catálogo de santos
e mártires, lugares de culto, uma herança a ser preservada […]. O culto do
soldado morto no campo de batalha tornou-se o núcleo da religião do
nacionalismo que surgiu depois da Guerra […]. A guerra foi sacralizada ao
mesmo tempo que banalizada no teatro popular e no turismo nos campos de
batalha [Mosse, 1999:35].

Benjamin estabelece uma analogia entre a transfiguração das massas


urbanas em povo mítico e a arte em arte historicista. O arqueólogo se demora
na penumbra das passagens abandonadas e descobre, nos objetos antiquados
e fora do comércio, os espectros do que foi recalcado pelo processo
econômico, que faz do presente um presente que já é passado, e do futuro
somente inércia. O presente herdeiro passivo do passado traz de volta o
tempo como fatalidade e destino.
Em seu ensaio “Destino e caráter”, Benjamin contesta relações causais
entre destino e caráter, formulada por Heráclito no aforismo: “o caráter de um
homem é seu destino”. Reavendo a questão grega de diferençar contingência
e necessidade, acaso e liberdade —o que está em nosso poder e o que nos
escapa —, Benjamin (1980:43) escreverá: “na fronteira do conceito de
homem agente não se poderia definir um conceito de mundo exterior. Entre o
mundo exterior e o homem que age tudo é ação recíproca”. Para contrapor
destino e livre-arbítrio, necessidade e liberdade, Benjamin reflete sobre a
ação no mito e na tragédia. O herói trágico não sofre a fatalidade porque ele
provoca o destino, fazendo da felicidade a tentação do mais alto crime, o da
hybris:

a hybris é, para o grego, a tentativa de se apresentar a si mesmo como portador da


felicidade, a hybris é a crença de que a felicidade seria algo diferente do que um
presente dos deuses, que podem a qualquer momento vitimar com uma inaudita
infelicidade o vencedor (como no retorno de Agammemnon).

Porque na tragédia não há fatalidade e recepção passiva dos desígnios


divinos, o herói é o fact totum de sua paradoxal felicidade (o momento da
morte é aquele do reconhecimento de sua superioridade com respeito aos
deuses); já o mito submete à ordem do destino, ao qual estão sujeitos até os
deuses:

o núcleo do conceito de destino é a falta [é a hamarthia, “erro e perdição”] — a


qual, neste contexto, é sempre a falta do homem em sua condição de criatura
(como o pecado original), não erro ético do agente. O destino é a entelechia (ato)
de um acontecimento em meio ao qual encontra-se o culpado [Benjamin,
1991:71].

Benjamin não exclui uma relação entre destino e caráter, mas ela não é o
resultado da “falta trágica” que desencadearia um mecanismo incontrolável;
inscreve-se na natureza porque houve a queda da criatura em um estado de
submissão a forças fatalizadoras.
Benjamin estabelece analogias entre o século XVII e o século XIX, o
retorno do mito no interior da modernidade barroca ou capitalista.12 A
recaída da história no mito significa que a história encontra-se submetida à
necessidade natural, representante do destino. O herói trágico, ao contrário,
libera-se, por sua decisão, do arbitrário do destino, do movimento natural que
conduz inexoravelmente toda criatura para a morte: “o centro de gravidade
para o qual se dirige o movimento do destino é a morte. A morte não como
castigo, mas como expiação: como expressão do fato que a vida que se
tornou culpada cai sob a lei da vida natural”. Eis por que o sentido da morte
no Schicksalsdrama (drama de destino) é inteiramente diverso daquela
vitoriosa do herói trágico. A história natural não é a história da natureza, mas
da natureza morta. No Drama barroco, não a natureza do homem, mas a
natureza das coisas é o resultado do drama histórico. Em que a intenção
correspondente falta, toda a matéria histórica se desenrolará em uma
sequência interminável de cenas na tentativa impotente de apresentar a
mobilidade da história em vez da natureza como forma, como fatum.
É este caráter factual, terminado, coisificado, dos acontecimentos
históricos que se apresenta para Benjamin como destino; “no destino reside a
resistência latente contra o fluxo interminável do devir histórico. Onde há
destino, um pedaço da história se tornou natureza”.
Nas Passagens, a história natural se associa ao tempo mítico, o do
“eterno retorno”: “a essência do acontecimento mítico é o retorno. Nele está
inscrita, como figura secreta, a inutilidade gravada na testa de alguns heróis
dos infernos (Tântalo, Sísifo ou as Danaides) […].[Ela é ] a eternidade das
penas infernais […], o [eterno retorno] de um ciclo sideral”. O trabalho
esvaziado de sentido é vazio porque sem experiência e irrecuperável para a
memória histórica, o que converte acontecimentos em mito é a volta do
sempre igual. Ausência de experiência e mito se reúnem na noção de empatia,
a resignação melancólica diante do horror dominante que conduz ao
desespero.
Para romper com a fatalidade do continuum histórico e “transformar a
ameaça do futuro em um agora preenchido”13 —o “momento decisivo” da
felicidade individual ou redenção histórica — é preciso encontrar intervalos
na ordem das razões, desvios que incorporam o “acaso objetivo” do
surrealismo e as derivas que resultam do caminho na contramão da história e
do método.14 Esse instante de perigo são experiências de limiar entre
consciente e inconsciente, origem e reminiscência, intencionalidade e
contemplação:

Número 125: o labirinto de Castan. Os que viajam o mundo e os artistas a


princípio sentem-se transportados para dentro da imponente floresta de colunas da
magnífica mesquita-catedral de Córdoba, na Espanha. Tanto aqui como lá, os
arcos se sucedem uns aos outros, as colunas se sobrepõem em perspectiva,
oferecendo panoramas fabulosos e alamedas que parecem não ter fim, que
ninguém conseguiria percorrer completamente. Subitamente, percebemos uma
imagem que nos transporta ao coração do famoso Alhambra de Granada. Vemos
o desenho de sua tapeçaria com a inscrição “Alá é Alá” (Deus é grande), e já nos
encontramos em um jardim, no pátio de laranjeiras do Alhambra. Mas antes de o
visitante chegar a esse pátio, deve perambular muito tempo por caminhos
labirínticos [2006:453].15

Se o labirinto é a pátria de quem hesita, é porque ele multiplica as


perspectivas e as experiências —o contrário do historicismo, que já é detentor
do sentido dos acontecimentos e do desfecho histórico. Benjamin aproxima o
tempo privado de qualidades e acontecimentos — próprio a uma vida pobre
em experiências —e a história natural em que natureza e passado se
identificam; da mesma forma, há analogias entre as mercadorias — que
comportam trabalho vivo e trabalho morto —e as personagens do drama
barroco alemão do século XVII, apresentadas, simultaneamente, como vivas
e como o espírito de um morto. O passado recalcado, do qual não se fez o
luto, retorna em espectros, menos assustadores do que tristes. Por isso, o
tempo da modernidade não é trágico, mas mítico, dominado por forças fatais:
“o capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo sono, repleto de
sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas”
(2006:436).16 No âmbito das passagens e do consumo, mito significa a
realização alucinatória de um desejo, no sentido em que a espera do futuro
reativa arquétipos na tentativa de integrá-los ao presente. As passagens são
lugares modernos do mito, nos quais o passado não passa e o futuro não
chega, nos quais se permanece, em vigília, prisioneiro do sonho. E na
consciência coletiva o tempo é apreendido como devaneio. Nas passagens, o
eterno retorno do sempre igual e o déjà-vu constituem uma compensação à
acelerada e incessante mudança e aos choques tão intoleráveis quanto
frequentes.
Já Marx, ao referir-se à imprensa diária e ao telégrafo, escrevera que eles
produzem hoje “em um único dia mais mitos do que os que poderiam ser
fabricados em um século”.17 São mitos construídos pelo sistema de produção
de mercadorias que, espetacularizadas, transfiguram-se em fantasmagorias,
pois são criações cuja base — diversamente do capitalismo industrial — é, ao
mesmo tempo, econômica e tecnológica. Sua superestrutura são as
fantasmagorias que ocupam o lugar da experiência perdida. Na Paris de Luís
Felipe e do Segundo Império de Napoleão III, as fantasmagorias são mistério
sem mistério, pois, em lugar da indústria, mais terra a terra, domina agora o
capital financeiro, que prolifera sobre o “vazio”. “Enriquecei-vos”, era o
chamado do rei burguês. Jogo de azar, a especulação financeira, além de
elevar ou destruir homens e fortunas, provoca o sentimento do provisório,
mais ameaçador quanto mais se manifesta o panorama social e internacional
dominante. Benjamin observa que, com Napoleão III e a imperatriz Eugênia,
se instala nas Tulherias e em Compiègne a corte dos parvenus em seus efeitos
mais visíveis: o consumo e a moda. Mas em vez de se ater a esses
acontecimentos banais, Benjamin dirige a atenção ao subsolo da metrópole
como o oposto especular da superfície, considerando a passagem entre eles.
Passagem é “rito de passagem”, é arqueologia dos limiares (Schwelle).
As Passagens desenvolvem uma “ciência das passagens” (Menninghaus,
1986) em um sentido preciso, pois as passagens não têm apenas limiares —
entre o interior e o exterior, entre o espaço público e o privado —, elas
mesmas são limiares. Como espaço entre a rua e as galerias em que se
instalam as lojas, as passagens contêm toda a história social, cultural e
econômica do capitalismo moderno:

a ideia de eterno retorno transforma o próprio evento histórico em artigo de


massa. Mas essa concepção mostra também, em um outro sentido […], o rastro
das circunstâncias econômicas às quais deve sua súbita atualidade. Esta se
anunciou no momento em que as condições de vida se tornaram acentuadamente
instáveis devido à acelerada sucessão de crises. A ideia do eterno retorno derivava
seu esplendor de já não se poder contar, em todas as circunstâncias, com o retorno
da estabilidade em prazos mais curtos que os oferecidos pela eternidade
[Benjamin, 1991:156-157].

A passagem é o limiar onde se encontram os extremos da segurança e do


medo. Para analisá-los, Benjamin considera os contos de Edgar Allan Poe e o
advento do romance policial na grande metrópole: “o olho segue os passos
desse homem que caminha na sociedade atravessando as leis, as ciladas, as
traições de seus cúmplices, como um selvagem do Novo Mundo entre os
répteis, os animais ferozes e as tribos inimigas” (1991:216). Inquietante e
familiar, o limiar é o que tem a capacidade de metamorfosear, como nas
fábulas, aquele que passa através dele.
Benjamin é o cronista dos fantasmas que habitam as portas das casas e os
pórticos das cidades. As primeiras são limiares mágicos que se tornam
esconderijos para os jogos infantis em que a criança se esquiva do sortilégio
de ser transformada em estátua:

Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma casa na qual
se tem certeza de encontrar tudo sempre do mesmo jeito. Meu coração disparava,
eu prendia a respiração. Aqui ficava encerrado num mundo material que ia se
tornando fantasticamente nítido, que se aproxima em silêncio. Só assim é que se
deve perceber o que é a corda e a madeira para aquele que vai ser enforcado. A
criança que se esconde atrás do reposteiro se transforma em algo flutuante e
branco, em um fantasma […]. Atrás de uma porta a criança é a própria porta; é
como se a tivesse vestido com um disfarce pesado e, como um feiticeiro, vai
enfeitiçar todos os que entrarem desavisadamente. […] [Mas] quem me
descobrisse era capaz de me petrificar como um ídolo […], de me encantar por
toda a vida como uma pesada porta. Por isso expulsava com um grito forte o
demônio que assim me transformava, quando me agarrava àquele que estava me
procurando [1991:91].

Como as passagens, os pórticos das cidades e arcos do triunfo são o


espaço intermediário da entrada e da saída, da casa e da rua. Passar embaixo
deles é um “rito de passagem”, análogo a um renascimento, mas que, melhor
dizendo, é um novo nascimento, pois os erros eventuais do general vencedor
permanecem do lado de fora, em seu exterior. A passagem é também um
limiar entre o mundo superior e o mundo inferior, o mais elevado e os
subterrâneos. Nas Passagens, Benjamin refere-se à Grécia antiga, onde
mostravam-se
lugares pelos quais se descia ao reino dos mortos. Também nossa existência
desperta é uma terra em que se desce ao reino dos mortos, cheia de lugares
aparentemente insignificantes, onde desembocam os sonhos. Passamos por eles
todos os dias sem nada suspeitar […]. Um outro sistema de galerias se estende
nos subterrâneos de Paris: o metrô onde à noite as luzes se acendem rubras,
indicando o caminho ao Hades dos nomes. Combat-Elysée-Georges V-Etienne
Marcel-Solferino-Invalides-Vaugirard — […] tornaram-se fadas das catacumbas.
Esse labirinto abriga em seu interior não um, e sim dúzias de touros cegos,
enfurecidos, em cuja goela é preciso lançar não uma virgem tebana por ano, e
sim, a cada manhã, milhares de jovens operárias anêmicas e caixeiros sonados.
[…] [Aqui embaixo] cada um mora solitário, o inferno é sua corte; Amer, Picon,
Dubonnet (nomes de bebidas alcoólicas que aparecem em cartazes por toda a
cidade) são os guardiães do limiar [2006:123].18

Benjamin relaciona os ritos de passagem com portas e pórticos para


exorcizar malefícios, doenças ou espíritos dos mortos, pois estes não
conseguem atravessá-los (2006:L 5,1).19 E, refletindo sobre as portas da
cidade, Benjamin anota: “o limiar não teve entre os gregos —e mesmo entre
outros povos — a importância que alcançou entre os romanos. O texto [de
K.Meister] trata essencialmente do surgimento do sublimis, ou seja, daquilo
que é elevado (originalmente aquilo que foi levado às alturas)” (2006:458).20
Se Benjamin confere maior importância aos pórticos como limiares entre os
romanos21 que entre os gregos, é por criarem sua topografia.22 É do “limite”
da urbs que a civitas começa a existir, é da passagem — quando permitida —
sob a “porta demarcatória” que se é reconhecido como cives.23
Para Benjamin, portas demarcatórias conferem um caráter mítico à
topografia de Paris, pois é permanência do desordenado e obscuro — da urbs
na cultura:

Sobre a topografia mitológica de Paris: o caráter que lhe conferem as portas.


Importante é sua dualidade: portais divisórios e arcos do triunfo. Mistério do
marco divisório inserido no interior da cidade, indicando o lugar em que outrora
terminava. Por outro lado, o Arco do Triunfo, que se transformou hoje em refúgio
no meio do tráfego. A partir da experiência do limiar, desenvolveu-se a porta que
metamorfoseia aquele que passa sob seu arco. O arco do triunfo romano
transforma o general que retorna em herói triunfal [2006:125].24

Mesmo que tenha sido edificado como “centro do poder”, o arco do


triunfo não é uma porta de demarcação, ele não delimita a entrada de uma
cidade; mas opera simultaneamente, por sua simetria com os arcos, como
porta de demarcação e porta triunfal. Referido ao sonho, os arcos do triunfo
— que celebram vitórias, quer dizer, guerras e massacres — são a pátria de
espectros e, no espaço urbano, constituem o rastro e a ruína, a “primeira
natureza” que retorna na cultura, fazendo dela “natureza morta”.25
Mas o limiar é, de maneira mais significativa, o que vacila entre o
desaparecimento de algo e sua sobrevida como vestígio:

o ser passado, não ser mais, é o que trabalha com mais paixão nas coisas. É a isso
que o historiador confia o seu assunto. Prende-se a essa força e reconhece as
coisas como são no momento do não mais ser. Tais monumentos de um não mais
ser são as passagens. E a força que nelas trabalha é a dialética [2006:509].26

Porque o limiar conecta diversas modalidades de tempo, cujas


estratificações se expressam em documentos, monumentos, arquivos, museus,
arquitetura, cartazes publicitários, o estudo do limiar espacial é também o do
século XIX e do século XX. É sonho e trauma, o sonho de Paris e o trauma
em Berlim.
Na memória infantil, a história da República de Weimar se faz
contemporânea das batalhas do passado. No fragmento “A coluna da vitória”,
de Infância em Berlim por volta de 1900, lê-se:

quando eu era pequeno não se podia conceber um ano sem o Dia de Sedan [festa
comemorativa da derrota de Napoleão III na guerra franco-prussiana]… Ninguém
deixara de me explicar a origem dos adornos da Coluna da Vitória. Não entendera
porém o significado exato dos canhões que os compunham […]. O mesmo ocorria
com a obra luxuosa que me haviam dado, a Crônica ilustrada [com sua capa de
ouro prensado, livro e ouro que me oprimiam]; daquela guerra […]; eu conhecia
em pormenores os planos de suas batalhas. […] Contudo, reluzia ainda de um
modo menos tolerável o ouro do ciclo de afrescos que revestia a parte inferior da
Coluna da Vitória. Nunca pus os pés nesses espaços […] pois temia encontrar lá
descrições do tipo daquelas com que, nunca sem terror, me deparara nas gravuras
de Doré para o “Inferno” de Dante. Os heróis, cujas façanhas ali dormitavam, me
pareciam no íntimo tão depravados como as hordas que, fustigadas por tufões,
escarniçadas em troncos sanguinolentos e cobertas por geleiras, suspiravam na
cratera escura. Desse modo, essa galeria simbolizava o inferno, verdadeira
antítese do círculo de clemência que, no alto, rodeava a esplendorosa vitória […].
O eterno domingo estava a sua volta. Ou seria um eterno Dia de Sedan? [1994:77-
78]27

O culto ao guerreiro caído nos campos de batalha e à guerra adquiriu um


patamar de destruição sem precedentes no passado — as trincheiras, os gases
letais e os aviões de bombardeio. Só a batalha de Verdun, em 1916, deixara,
entre franceses e alemães, 600 mil mortos. A celebração da guerra incluía,
além da ideologia do sacrifício e do enaltecimento do mártir, o paisagismo
dos cemitérios. Sobre a sacralização do martírio e do heroísmo, as
publicações no pós I Guerra Mundial exaltam com ênfase o misticismo
bélico. Referindo-se aos autores da coletânea Guerra e guerreiros, editada
por Ernst Jünger, Benjamin anota:

esses pioneiros da Wehrmacht quase levam a crer que o uniforme é para eles um
objetivo supremo […]. “Os mortos de guerra”, dizem-nos os autores, “ao
tombarem passaram de uma realidade imperfeita a uma realidade perfeita, da
Alemanha temporal à Alemanha eterna.” […] Com que facilidade os autores
adquiriram o “firme sentimento de imortalidade”, obtiveram a certeza de que as
“abominações da última guerra foram transformadas em algo grandioso e
terrível”. […] essa cruel concepção do mundo, da morte universal, no idealismo
alemão, alivia o horror com a ideia de que atrás das nuvens [das explosões, dos
gases tóxicos, dos lança-chamas] existe um céu estrelado [1996:62; 66-68].

Para dissimular a carnificina, os soldados mortos e todos os cavalos da


artilharia da I Guerra foram queimados ou abandonados às aves de rapina. Os
cemitérios perderam a monumentalidade cristã; secularizados, passaram a ser
construídos fora do perímetro das cidades, criandose um simbolismo
panteísta, reconciliador da morte (Mosse, 1999). Os cemitérios, como o
historicismo, atestam um luto impossível porque sua temporalidade é linear
—o não tempo.
A isso Benjamin opõe o tempo qualitativo das passagens e do limiar:
“como limiar, a fronteira atravessa as ruas, um novo distrito inicia-se como
um passo no vazio; como se tivéssemos pisado num degrau mais abaixo”
(2006:127).28 Esse passo em falso libera uma percepção espacial semelhante
à embriaguez do haxixe, é um fenômeno no qual toda a história poderia ter
acontecido na contração de um instante, em uma percepção simultânea:

as manifestações de sobreposição (Überdeckung), que aparecem sob o efeito do


haxixe, devem ser compreendidas através do conceito de semelhança. Quando
dizemos que um rosto se assemelha a outro, isso quer dizer que certos traços
desse segundo rosto se manifestam no primeiro, sem que este deixe de ser o que
era. As possibilidades de que as coisas assim se manifestem, porém, não estão
sujeitas a nenhum critério, sendo, portanto, ilimitadas. A categoria da semelhança,
que tem uma importância muito restrita para a consciência desperta, adquire uma
forma ilimitada no mundo do haxixe […]. Assim, cada verdade remete de
maneira evidente a seu contrário, e com base nesse fenômeno explica-se a dúvida
[2006:463].29

O mundo do haxixe é o da ambiguidade e da ambivalência do que parece


idêntico, pois os traços de um primeiro rosto transparecem nos de um
segundo, e cada verdade evidencia o seu contrário, as coisas são desvestidas
de sua identidade bem definida e una. Não se trata de atravessar o limiar da
indeterminação ou superá-lo, pois interessa a Benjamin o limiar como tal,
esses momentos de descontinuidade e deslocamentos que não decorrem de
seus antecedentes, tampouco se referem aos que lhes sucederiam: “essas
portas — as entradas das passagens — são limiares. Não os demarca nenhum
degrau de pedra, mas sim a atitude de expectativa de algumas pessoas. Passos
parcimoniosamente medidos refletem, sem que as pessoas o saibam, que se
está diante de uma decisão” (2006:127).30
Este “instante decisivo” é o do limiar entre liberdade e destino, entre
catástrofe e redenção, antes do qual nada aconteceu e depois do qual tudo
estará perdido. Assim como o momento oportuno conduz ao kairós e a Cipião
Africano, que grita a senha da vitória com presença de espírito, a ocasião
perdida é catástrofe sem remissão, evocada no “corcundinha”, que estraga
sempre a festa, fazendo perder o “golpe de mão ágil”, anti-historicista, que
nos desviaria do fato consumado e reabriria o tempo do agora. O limiar e as
passagens contêm, não ao mesmo tempo, o dentro e o fora, o antes e o depois.
Por isso, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como
ele de fato foi’. Significa apoderar-se de uma reminiscência, tal qual ela
cintila no momento de um perigo” (1996:234).31 Esse clarão pode tanto ser
vislumbre da felicidade quanto trauma irremissível, tanto a boa sorte quanto o
infortúnio do brilho das explosões bélicas (1994).32 Às verdades
apocalípticas da história universal e seu cortejo de vencidos, Benjamin opõe
verdades passageiras, provisórias, intermitentes, frágeis e disparatadas, como
a luz dos vaga-lumes (Huberman, 2009). Seu brilho é fugaz e requer engenho
e arte, um daimon, um angelus novus. Eros33 é um daimon que habita
espaços intermediários, limiares que são a “estreita porta por onde passará o
Messias” (Benjamin, 1996), porta que só se abre “um segundo”, o instante
decisivo, a instantaneidade dramática do décimo de segundo em que toda
uma existência se resume e o acaso se torna história.

Referências
BENJAMIN, Walter. Schiksall und Charakter. In: Illuminationen. Frankfurt: Suhrkamp,
1980.
_____. Parque Central. In: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.
Trad. João Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alvez Baptista. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
_____. Rua de mão única. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
_____. Teorias do fascismo alemão. In: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.
_____. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.
_____. Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2006.
D’AGOSTINO, Mario Henrique. A beleza e o mármore. São Paulo: Annablume, 2011.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Survivance des Lucioles. Paris: Minuit, 2009.
MARX, K. Carta a Kugelmann, de 27 de julho de 1871. Trad. Leandro Konder. São
Paulo: Paz e Terra, 1997.
MENNINGHAUS, Winfried. Schwellenkunde. Frankfurt: Suhrkamp, 1986.
MOSSE, George. De la grande guerre au totalitarisme: La brutalisation des sociétés
européennes. Paris: Hachette Litteratures, 1999.
PEZZELLA, Mario. Image mythique et image dialectique. Remarques sur le Passagen-
Werk. In: Walter Benjamin et Paris. Paris: Les Editions du Cerf, 1986.
SCHEERBART, Paul. Glasarchitektur. Bellheim: Phantasia, 1994.
WARBURG, Aby. Mnemosyne. Grundbegriffe, 2 vols. (1928-29). Londres: Warburg
Institute Archive, vol. III, 102, 3-4.

1-Com o fim da expansão marítima e da globalização iniciada nos séculos XV e XVI,


o capital, em aliança com a ciência e a técnica, ampliará seus domínios para o espaço
sideral. As pontes interplanetárias de Grandville retornam no programa espacial dos
Estados Unidos e da ex-URSS, concorrentes na conquista da Lua e demais planetas,
universo que não é mais o cosmos protetor grego ou o céu cristão, como o atesta a
concorrência imperialista entre a ex-URSS e os Estados Unidos na ida à Lua em 1969,
“um simples passo para o homem, um imenso passo para a humanidade” (Armstrong).
Com o desmoronamento da União Soviética, os Estados Unidos lançaram o programa
“Guerra nas Estrelas”.
2-Ver “O anel de Saturno ou sobre a construção em ferro”.
3-Benjamin refere-se ao estilo Biedermeier, Jungdstil, art nouveau, modern style e à
mescla de épocas e estilos, seu atapetamento e saturação de objetos. Cf. “Intérieurs, o
rastro”.
4-Em “Arquivo M”.
5-Cf. “A caminho do planetário”, in Rua de mão única. Na última página Benjamin
escreve que “a técnica traiu a humanidade e transformou o leito nupcial no qual
deveria esposar o universo em um mar de sangue” (1994:69).
6-Em “Tipos de iluminação”.
7-Em Arquivo S 1a,4.
8-Em “Paris, a capital do século XIX”.
9-Em “Pintura, Jugendstil, novidade”. Trata-se das relações entre a modernidade e as
guerras do capital. Em Rua de mão única, Benjamin empreende a arqueologia do
moderno a partir de Berlim e da República de Weimar, tributária do século XIX e da
tardia unificação alemã, realizada na Guerra Franco-Prussiana, em 1871. Essa guerra
vitimou 140 mil franceses e 44.780 prussianos, para não falar das perdas anteriores
durante as campanhas napoleônicas. O culto dos heróis germânicos, a mitologia ligada
à floresta ou os contos de terror infantis recolhidos pelos irmãos Grimm não estão
ausentes do ideário da I e da II Guerra Mundial. Com uma identidade nacional
recente, a Alemanha vê o Espírito alemão (Geist) — profundo, apolítico, “amante da
contemplação” — ameaçado pela Alma “francesa”(Seele), superficial e frívola com
sua cultura “mundana” — na oposição “cultura” (alemã) e “civilização” (francesa).
10-Em Arquivo S 1a, 6.
11-Em “Luvas”.
12-O método das analogias e correspondências permite a Benjamin captar
semelhanças não sensíveis entre acontecimentos ou reproduzi-las, o que seria
inconcebível para a dialética ou para o more geométrico. Benjamin considera a
experiência em suas relações de correspondência, semelhanças e analogias, citando
Baudelaire e sua teoria da imaginação: “A imaginação não é a fantasia… A
imaginação é a faculdade quase divina que percebe… as relações íntimas e secretas
das coisas, as correspondances e as analogias”. (Cf. Arquivo K, Passagens,
2006:436). A analogia é um método de crítica ao historicismo, ao positivismo, às
explicações causais da história e à claustrofobia dos sistemas com um centro único de
análise. As analogias convergem para a técnica da colagem e para a verdade histórica
enquanto montagem. Esta permite um “adiamento” do instante em que se cingirá a
verdade, porque se trata de desfazer a trama intencional da verdade como finalidade.
13-A “presença de espírito” de “Madame Ariane, segunda porta à esquerda” de Rua de
mão única aproxima-se do barroco e de Gracián, do ingenium e do ingenio. O
ingenium é polimorfo porque diz respeito à singularidade de cada um, e o engenho é
“criativo”, é captura do instante decisivo. Esta é a maneira benjaminiana de
compreender as relações entre “fortuna e providência” no barroco, devir e instante
decisivo na Paris do século XIX, sem pretender uma sincronia entre teoria e práxis,
pois o que permite essa conjunção é a experiência, não o conceito. Por isso, Benjamin
contrapõe Verdade, por um lado, e Saber, por outro; saber e posse, por um lado, e
verdade e experiência, por outro. O conhecimento histórico não dispõe de leis gerais,
é “ciência do particular”, quer dizer, a experiência da verdade é única e aurática, tanto
na história coletiva quanto na vida de cada um: “[ela é] vislumbre [que] não é posse,
mas experiência fugaz”. Trata-se de quebrar a unidade temporal, conferindo uma nova
chance ao que parece ter sido perdido sem remissão.
14-A montagem, a colagem, a constelação, o tratado medieval, o mosaico, a “catedral
em obras” não dizem respeito somente à contiguidade, justaposição ou semelhança
entre as peças ou entre épocas históricas. Em vez da dedução ou do encadeamento de
causas ou razões, Benjamin prefere o limiar da consciência e do inconsciente.
Diferentemente de significar um fascínio pelo irracional nos fenômenos sociais,
Benjamin reconhece as insuficiências da razão segura de si mesma: “da mesma forma
que o corporal, o pensamento pode ser também local de corrupção e do erro”.
15-Em “Morada de sonho, museu, pavilhão termal”.
16-Em “Cidade de sonho e morada de sonho, sonhos do futuro, niilismo
antropológico, Jung”.
17-Marx, “Carta a Kugelmann”, 27 de julho de 1871.
18-Em “Paris antiga, catacumbas, demolições, declínio de Paris”.
19-Em “Casa de sonho”.
20-Arquivo L, 5,2.
21-A cidade antiga — grega ou romana — não é um espaço abstrato, pois a arquitetura
e a vida que nela se desenrolam não dualizam asti e polis — entre os gregos —, urbs e
civitas — para os romanos. Asti é a cidade material, suas edificações, ruas e caminhos,
e polis é sua forma de vida, seu “caráter” ou “alma”. Diferentemente da perspectiva
utilitária e funcional da modernidade, a adequação entre arquitetura e vida na Grécia
responde a valores estéticos e de beleza, nos acordes da “flauta e da lira”. Trata-se do
decorum arquitetônico, a concordância entre o caráter de uma edificação e sua
destinação. Neste sentido, às divindades Júpiter, Céu, Sol e Lua são adequados “
templos a descoberto”; a Juno, Diana e Baco, templos jônicos, pois “esta ordem se
mostra mais apropriada ao caráter dessas divindades”. Mario Henrique d’Agostino
(2011) lembra que a unidade entre a “beleza estética” e a “ beleza ética” da arte grega
deve-se ao aspecto “vivo” da imagem, a vida insuflada pelo artista sob “inspiração
divina”(theia mania). A vida da casa é espelho e metron dos sentimentos de seus
moradores. No metron não se encontra a medida abstrata e o cálculo da precisão
porque é medida ética e sabedoria prática, irredutíveis à mensuração. Assim também é
o espaço, não mensurável porque onírico: “certamente nós percebemos o espaço como
em um sonho, quando afirmamos que todo ser está forçosamente em alguma parte, em
um determinado lugar, que ocupa um determinado sítio ou porção do espaço, e que o
que não está na terra nem em parte alguma do céu não é absolutamente nada.[…]
[Mas] o espaço é uma espécie invisível e sem forma, que recebe tudo e participa do
inteligível de uma maneira obscura e difícil de compreender”.
É jogo de manifesto e oculto, que os antigos conjecturaram na figura de Dédalo e
do labirinto, “fuste de uma arquitetura cósmica” que “se experimenta não sem
vertigem e pânico estremecedor, sem um salto sobre o Abismo”. Este abismo é a
incomensurabilidade no interior da própria medida, o comedido e o incomensurável
da arquitetura. Deslocando a concepção grega, os romanos expressam nas palavras
urbs o espaço físico e material e na civitas, a vida dos cidadãos (cives), o espaço
político da cidade. Isto significa que a civitas passa a se subordinar à urbs,
sobredeterminando o espaço e as relações políticas com o peso da materialidade e das
relações abstratas. Em outras palavras, a passagem da polis à civitas é a alienação da
polis democrática na civitas imperial de uma “história natural”, a perda da autonomia
do político e sua subordinação à economia. As regras contratuais abstratas
transformam a polis em civitas, em cidade que não é mais um modo de vida que se
exerce pelos laços da amizade, como entre os gregos. A philia grega entrecruza-se
com a amizade moderna no sentido em que elas representam “o negativo da solidão”.
Citando Jules Romains, Benjamin anota: “a meu ver é sempre um pouco assim que
nos tornamos amigos. Presenciamos juntos um momento do mundo, talvez um de seus
segredos fugidios — uma aparição jamais vista e que talvez não se veja nunca mais.
Mesmo se for algo pequeno. Imagine, por exemplo, dois homens que passeiam, como
nós. E de repente, graças a um vão entre as nuvens, uma luz vem bater no alto de um
muro, e o alto do muro se transforma por um instante em algo extraordinário. Um dos
homens toca o ombro do outro, que ergue a cabeça e vê o mesmo, compreende o que
aconteceu. Depois a coisa se desmancha no ar. Mas eles saberão in aeternum que ela
existiu”. A amizade é o qualitativo, o instante decisivo sempre fugaz, que “brilha no
instante de um perigo”.
22-Se a fundação da polis liga-se a pertencimentos simbólicos — como em Clístenes,
que, ao romper com a tradição teológica da fundação de Atenas pela deusa, a substitui
pela autoctonia dos atenienses —, a civitas romana — fundada na lei abstrata que rege
as relações sociais e a construção da cidade — constrói uma topografia em vez de
referências simbólicas.
23-Na época romana, urbs (que deriva do verbo vurbs — “elevar, erguer”) tem como
derivado urvare (“traçar um sulco”), que reenvia ao ato de fundação.
24-Em “Paris antiga, catacumbas, declínio de Paris”.
25-Aqui a analogia com o universo pictórico é relevante, pois nas pinturas o objeto
inerte, ou que se tornou inerte — flores, frutas ou caça —, escapa, de certo modo, à
morte, pois, imobilizado na tela, se esquiva do processo de decomposição e de
aniquilamento, sendo, a um só tempo, imóvel e vivo. Quando um esqueleto, um crânio
ou um par de óculos figuram na representação, eles lembram, como as “vaidades” do
mundo, a iminência da morte à qual, no entanto, escapam enquanto justamente
natureza morta. Em seu estatuto ambíguo que rege a sorte de todas as criaturas, a
natureza morta encontrase na passagem entre o ser e o não ser, como um fantasma ou
um “morto-vivo”.
26-Em “Primeiro esboço”.
27-Em “A Coluna da Vitória”.
28-Em “Paris antiga…”.
29-Em “O flâneur”.
30-Em “Paris antiga…”, arquivo C.
31-Retirado da tese no 6 de “Sobre o conceito de história”.
32-Em “A caminho do Planetário”: “Nas noites de bombardeio da última guerra (a I
Guerra Mundial) novos astros brilharam no céu”. (Benjamin, 1994:69, trad. livre)
33-O daimon é o duplo invertido do corcundinha, pois se este é fatalidade e má-sorte,
o daimon é boa-sorte e kairós. O kairós requer “presença de espírito”, metis diante da
fortuna, dessa temporalidade incerta que tudo dá sem motivo e retira daquele a quem
ofertou sem razão, ora enchendo os homens de riquezas, ora os jogando no infortúnio.
Porque o tempo presente é indeterminado, o passado necessário e o futuro
contingente, a ação livre requer diferençar o acaso na natureza (catástrofes naturais,
tudo o que não depende de nós) e o acaso nas ações humanas. Se na natureza o acaso
é o encontro de séries causais independentes entre si e que produzem algo imprevisto,
o acaso na história recebe o nome de fortuna: “quanto ao ser por acidente”, escreve
Aristóteles, “não é necessário mas indeterminado, suas causas são não-ordenadas e em
número infinito. Há finalidade no que advém por natureza ou provém do pensamento.
Há fortuna quando um desses acontecimentos se produz por acidente […]. A fortuna é
uma causa por acidente daquele que escolhe normalmente segundo uma escolha
refletida em vista de um fim. Assim, fortuna e pensamento relacionam-se com as
mesmas coisas, pois a escolha não existe separada do pensamento. Mas as causas que
produzem o que pode vir da fortuna são indeterminadas, de onde se segue que a
fortuna é impenetrável ao cálculo do homem”. (extraído de Metafísica, livro K) Cf.,
ainda, Chaui (1999).
Sobre os autores

Carlos Fico é professor titular de história do Brasil da Universidade Federal


do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador do CNPq e coordenador da área de
história junto à Capes. Coordena o Grupo de Estudos sobre a Ditadura
Militar. É autor de A história no Brasil (1980/1989): elementos para uma
avaliação historiográfica (Ufop, 1992), Como eles agiam: os subterrâneos
da ditadura militar (Record, 2001), O grande irmão: o governo dos Estados
Unidos e a ditadura militar brasileira (Civilização Brasileira, 2008), livro
com o qual ganhou o prêmio Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca
Nacional, em 2008, entre outros.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior é professor titular em Teoria da


História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
colaborador do PPG em História da Universidade Federal de Pernambuco,
pesquisador do CNPq. É autor dos livros A invenção do Nordeste e outras
artes (Cortez, 2009), ganhador do prêmio Nelson Chaves, da Fundaj,
História, a arte de inventar o passado (Edusc, 2007), entre outros. Possui
estágio pós-doutoral na Universidade de Barcelona. Atualmente, coordena o
Projeto de Pesquisa Achegas da Saudade: a emergência histórica de
consciências e sensibilidades saudosistas no Brasil e em Portugal nos séculos
XIX e XX. Exerceu a presidência da Associação Nacional de História
(Anpuh) entre julho de 2009 e julho de 2011.

Irene Cardoso é livre-docente em sociologia pela Universidade de São


Paulo. Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (USP). Pesquisadora do CNPq. Psicanalista. Desenvolve suas
pesquisas nos seguintes temas: memória, história, geração, subjetividade e
cultura e psicanálise. É autora do livro Para uma crítica do presente (Editora
34, 2001), entre outros livros e artigos sobre as temáticas indicadas.

Marieta de Moraes Ferreira é professora adjunta da Universidade Federal


do Rio de Janeiro (UFRJ), realizou estágio pós-doutoral pela École des
Hautes Études en Sciences Sociales. Coordena os projetos História Oral do
Partido dos Trabalhadores e Historiografia e Ensino de História. É coautora
de 70 anos de história (UFRJ, 2009), co-organizadora de Ditadura e
democracia na América Latina (FGV, 2009) e organizadora de A força do
povo: Brizola e o Rio de Janeiro (Alerj, 2008).

Mateus Henrique de Faria Pereira é doutor em história pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Universidade Federal de
Ouro Preto (Ufop). Membro do Núcleo de Estudos em História da
Historiografia e Modernidade (NEHM). Autor do livro A máquina da
memória/Almanaque Abril: o tempo presente entre a história e o jornalismo
(Edusc). Suas pesquisas procuram refletir sobre a pluralidade dos modos de
representação do passado, memória, ensino e história da historiografia.

Olgária Chain Féres Matos é professora titular da Universidade de São


Paulo (USP) e professora titular do curso de filosofia da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), desenvolve suas pesquisas principalmente
nos seguintes temas: tempo, filosofia, razão, democracia e história. É autora
de Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo
(Nova Alexandria, 2006) e Vestígios: escritos de filosofia e crítica social
(Palas Athenas, 1998), Benjaminianas: reflexões sobre o fetichismo
contemporâneo (Edunesp, 2011), entre outros.
Paulo Knauss é professor do Departamento de História da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e diretor-geral do Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro. Atualmente, desenvolve projeto de pesquisa sobre as relações
entre imagem e política. Entre outras publicações, é coautor de Brasil: uma
cartografia (Casa da Palavra, 2010) e co-organizador de Revistas Ilustradas:
modos de ler e ver no Segundo Reinado (Mauad, 2011).

Raquel Glezer é livre-docente em história pela Universidade de São Paulo


(USP), professora titular da mesma instituição e coordenadora do projeto
História e identidade em São Paulo. É autora de Chão de terra e outros
ensaios sobre São Paulo (Alameda, 2007) e co-organizadora de São Paulo:
Espaço e História (LCTE, 2008). Exerceu a coordenação da área de História
na Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),
entre 2008-2011.

Sérgio da Mata é doutor em história pela Universidade de Colônia,


Alemanha. Realizou estágio pós-doutoral pela Faculdade de Ciências
Culturais da Europa-Universität Viadrina (Frankfurt an der Oder), tendo
ainda atuado como pesquisador convidado no Instituto Max Weber para
Ciências da Cultura e Ciências Sociais da Universidade de Erfurt. Professor
do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da Ufop e
membro do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade
(NEHM) da mesma universidade. É autor dos livros História & religião
(Autêntica, 2010) e A fascinação weberiana (Fino Traço, no prelo).

Temístocles Cezar é doutor em história pela École des Hautes Études en


Sciences Sociales. É professor associado da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Foi professor convidado na École des Hautes
Études en Sciences Sociales (2005 e 2011). É diretor do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da UFRGS. Autor, entre outros, dos artigos “L’écriture
de l’histoire au Brésil au XIXe siècle. Essai sur l’utilisation des modèles
anciens et modernes de l’historiographie”; “Lições sobre a escrita da história:
as primeiras escolhas do IHGB. A historiografia brasileira entre os antigos e
os modernos”; e “As incertezas da escrita da história. Ensaio sobre a
subjetividade na Historia geral do Brazil de F. A. de Varnhagen (1854-
1857)”.

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