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Declaração Haitiana de Independência

Transcrita a partir da versão publicada em David Armitage,​Declaração de


independência: uma história global. ​São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

1º de janeiro de 1804

O General em Chefe ao Povo do Haiti​,

Cidadãos,

Não é o bastante ter expulsado de seu país os bárbaros que por gerações o
mancharam com sangue; não é o bastante ter reprimido as facções que, sucedendo-se
umas às outras, ostentaram um fantasma de liberdade que a França desvelou a seus
olhos. Torna-se necessário, por um último ato de autoridade nacional, assegurar para
sempre o império de liberdade no país que nos deu à luz. É necessário privar um
governo desumano, que até então conservou nossa mente em um estado de torpeza
dos mais humilhantes, de toda e qualquer esperança de ser capaz de nos escravizar.
Por fim, é necessário viver de forma independente, ou morrer. Independência ou
morte! Deixem que estas santas palavras sirvam para nos arregimentar; deixem que se
tornem sinais de batalha e de nossa reunião.

Cidadãos – compatriotas -, eu reuni, neste dia solene, os corajosos comandantes que,


às vésperas de receber o último suspiro da liberdade agonizante, derramaram seu
sangue para preservá-la. Estes generais, que comandaram as lutas de vocês contra a
tirania, ainda não terminaram. A reputação francesa ainda obscurece nossas planícies:
todas as coisas evocam a lembrança das crueldades daquele povo bárbaro. Nossas leis,
nossos costumes, nossas cidades, tudo encerra características dos franceses. Ouçam o
que estou dizendo! Os franceses ainda tem um pé em nossa ilha! E vocês se creem
livres e independentes daquela república, que combateu todas as nações, é verdade,
mas nunca conquistou aqueles que seriam livres! O quê! Vítimas durante catorze anos
por credulidade e tolerância! Conquistados não pelos exércitos franceses, mas pela
falsa eloquência das declarações de seus comissários! Quando nos cansaremos de
respirar o mesmo ar que eles? O que temos em comum com aquele povo sedento de
sangue? Suas crueldades comparadas com nossa moderação, seu caráter [comparado]
com o nosso, a extensão dos mares que nos separam, nosso clima vingativo: tudo isso
nos diz claramente que eles não são nossos irmãos; que nunca o serão; e se
encontrarem asilo em nós, serão ainda os incitadores de nossos problemas e de nossas
divisões. Cidadãos, homens, mulheres, jovens e velhos, lancem seu olhar para todas as
partes desta ilha; procurem aí sua mulher, seu marido, seus irmãos, suas irmãs – o que
estou dizendo? Procurem seus filhos – seus filhos no peito, o que é feito deles? Tremo
ao dizê-lo – ​presas de abutres. ​No lugar dessas vítimas interessantes, o olho
amedrontado vê apenas seus assassinos – tigres ainda cobertos pelo sangue deles, e
cuja aterradora presença os acusa de insensibilidade, e a lentidão culpada de vocês em
vinga-los. O que estão esperando para apaziguar suas almas? Lembrem-se que vocês
desejaram que seus restos mortais fossem enterrados ao lado de seus genitores.
Quando tiverem expulsado a tirania, vocês descerão a suas tumbas sem tê-los
vingado? Não: os ossos deles repeliriam os de vocês. E vocês, homens inestimáveis,
generais intrépidos que, insensíveis aos tormentos pessoais, deram nova vida à
liberdade, ao derramar seu sangue; saibam que nada terão feito se não derem às
nações um terrível – ainda que justo – exemplo da vingança que tem de ser praticada
por um povo orgulhoso de ter reconquistado sua liberdade, e zeloso de mantê-la.
Intimidemos aqueles que ousem tentar privar-nos dela novamente. Comecemos com
os franceses. Deixem-nos tremer ao aproximar-se de nossas costas, se não devido às
crueldades que cometeram, ao menos pela terrível decisão que iremos tomar: a de
devotar à morte qualquer nativo da França que conspurque com seus passos sacrílegos
este território de liberdade.

Ousamos ser livres; permaneçamos livres por nós mesmos, e para nós mesmos;
imitemos a criança em crescimento; sua própria força rompe as amarras que a
conduzem, que se lhe tornam inúteis e penosas ao caminhar. Que povo lutou contra
nós?; que povo colhia os frutos de nossos esforços?; e que desonroso absurdo,
conquistar para ser escravos!
Escravos ​– deixem para a nação francesa esse odioso epíteto. Eles conquistaram para
não mais ser livres. Sigamos outros passos; imitemos outras nações que, transmitindo
sua aspiração ao futuro e temendo deixar à posteridade um exemplo de covardia,
preferiramser exterminadas a serem removidas da lista de povos livres. Cuidemos, ao
mesmo tempo, para que um espírito de proselitismo não destrua o trabalho; deixemos
nossos vizinhos respirar em paz; deixemos que viva pacificamente sob o escudo das
leis que forjaram para si mesmos; cuidemos para não nos tornarmos agitadores
revolucionários – não nos constituirmos legisladores das Antilhas – para não
considerarmos como glória a suspensão da tranquilidade das ilhas vizinhas. Elas não
foram, como a que habitamos, banhadas pelo sangue inocente dos habitantes; elas
não têm vingança a exercer contra a autoridade que as protege. Felizes, sem nunca
terem experimentado a pestilência que nos destruiu, devem desejar o bem a nossa
posteridade.

Paz com nossos vizinhos, mas amaldiçoado seja o nome francês. Ódio eterno à França
– tais são os nossos princípios.

Nativos do Haiti, meu feliz destino me reserva ser um dia a sentinela que deve
defender o ídolo ao qual agora fazemos sacrifícios. Envelheci lutando por vocês, por
vezes praticamente só; e se tenho sido felizo bastante para lhes restituir o dever
sagrado que me foi confiado, recordem-se que cabe a vocês, no presente, protegê-lo.
Ao lutar por sua liberdade, trabalhei por minha própria felicidade: antes que seja
consolidada por leis que assegurem as liberdades individuais, seus chefes, que aqui
reuni, e eu mesmo devemos-lhes esta última prova de nossa lealdade.

Generais e outros chefes, unam-se a mim pela felicidade de nosso país: é chegado o
dia – o dia que perpetuará eternamente nossa glória e independência.

Se existe entre vocês um coroação indiferente, deixem-no retirar-se e estremecer ao


proferir o juramento, que é o de nos unir. Juremos ao mundo inteiro, à posteridade, a
nós mesmos, afastar-nos da França para todo sempre, e morrer em vez de viver sob
seu domínio – de lutar até o último suspiro pela independência de nosso país.

E você, povo tanto tempo no infortúnio, testemunhe o juramento que ora


pronunciamos. Lembre-se que foi sua fidelidade e coragem que me sustentaram
quando ingressei na carreira de liberdade para combater o despotismo e a tirania,
contra os quais você tem lutado nesses últimos catorze anos; lembre-se que sacrifiquei
tudo para lançar-me em sua defesa – pais, filhos, fortuna – e agora sou rico somente
em sua liberdade; que meu nome tornou-se um horror a todos os amigos da
escravidão, ou déspotas; e os tiranos apenas o pronunciam para amaldiçoar o dia que
me deu à luz. Se vocês alguma vez se recusarem ou receberem com queixas as leis que
o anjo protetor que guarda seus destinos me irá ditar para sua felicidade, vocês
merecerão o destino de um povo ingrato. Mas longe de mim este terrível pensamento:
vocês serão os guardiões da liberdade que acalentam, o sustento do Chefe que os
governa.

Jurem, portanto, viver livres e independentes, e preferir a morte a tudo aquilo que os
levaria a recoloca-los sob a opressão; jurem perseguir para todo o sempre os traidores
e inimigos de sua independência.

J.J Dessalines

Quartel-General, Gonaïves,

1º de janeiro de 1804, 1° Ano da Independência.

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