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ROUSSO, Henry. L´histoire appliquée ou les historiens thaumaturges.

[A história apli-
cada ou os historiadores taumaturgos] Vingtiéme Siécle, revue d´histoire, n.1, janvier
1984. Histoires de l´avenir. 1984 au rendez-vous d´Orwell. P.105-122. Doi:
13.3406/xxs.1984.1771

A história aplicada ou os historiadores taumaturgos

Henry Rousso1

Aqui, o historiador que espera o barco para lhe vender a assistência técnica e o
suplemento de alma. E o barco se apressa, impaciente, Estado, administração e empresas
privadas misturadas. Nascida nos Estados Unidos, a História Pública atinge o Atlântico.
Este é o futuro? Que querem estes novos promotores que fogem da universidade sem
contratação e encaram a selva do mercado? E quais debates epistemológicos eles lançam?
O que isto faz pensar, e sobretudo no país dos Annales?
Verão passado, em plena depressão da atualidade, alguns jornais repercutiram a
criação do “primeiro escritório de história aplicada do Hexagone: 2 Public Histoire”
(marca registrada).3 Fundado por dois jovens historiadores “nem complexados, nem frus-
trados pela universidade”, ele propõe toda uma série de serviços, da redação de placas
históricas à informatização de arquivos de empresa, passando pela assistência jurídica.
Ele se dirige a toda uma panóplia de clientes: empresas, coletivos locais, associações.
Ambicioso, sua iniciativa procura vender a história como um serviço econômico, a des-
peito de seus campos tradicionais, o ensino, a pesquisa ou a edição.
A ideia, à primeira vista inovadora, não germinou apenas na cabeça destes empre-
endedores dinâmicos. Ela é diretamente importada dos Estados Unidos e se quer, no país
dos Annales, a réplica das “agências históricas” americanas. Estas últimas se desenvol-
vem há muitos anos na trilha da Public History, um movimento nascido em meados dos
anos 1970.
Saída da crise de empregos nas universidades, a História Pública agrupa historia-
dores ansiosos de tirar sua disciplina de seu gueto institucional. Ela tem por objetivo criar
uma nova profissão: o historiador público. Carentes de encontrar um lugar no seio da
universidade, os historiadores devem poder se lançar sobre o mercado, beneficiando-se

1
H Rousso é um historiador francês especializado na Segunda Guerra Mundial, ou na invasão germânica
de Paris e da França. Foi diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisas Científicas, na França.
2
Hexagone é uma locução que designa a parte continental da França metropolitana, cuja geografia territo-
rial se inscreve num formato de hexágono quase perfeito. Por extensão, frequentemente é uma metáfora
para identificar o país.
3
Public Histoire é conduzido por Guillaume Malaurie e Felix Torres, 3-5, rue de Poy, 75013 .... Paris. A
palavra combina um termo em inglês (Publique) e um em francês (Histoire)

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ROUSSO, Henry. L´histoire appliquée ou les historiens thaumaturges. [A história apli-
cada ou os historiadores taumaturgos] Vingtiéme Siécle, revue d´histoire, n.1, janvier
1984. Histoires de l´avenir. 1984 au rendez-vous d´Orwell. P.105-122. Doi:
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da demanda de história que atravessa hoje numerosos setores da vida social. Mais funda-
mentalmente, o movimento se inscreve numa reflexão geral sobre o futuro da história
enquanto abordagem científica.
A este título, a História Pública levanta questões que se encontram deste lado de
cá do Atlântico. Na França, há alguns anos, pesquisadores e responsáveis políticos se
interrogam sobre a “demanda social”, a delicada partilha em Ciências Humanas e Sociais
entre uma pesquisa fundamental e uma pesquisa aplicada, a finalidade de certas discipli-
nas. O conflito é antigo, uma vez que ele remonta ao Positivismo e reenvia à reflexão
sobre a utilidade da História. Ele marcou a evolução da Economia e da Sociologia, pro-
clamadas antigamente “ciências para o tomador de decisões”. O que é a “História Apli-
cada”? Os historiadores públicos são pioneiros ou aventureiros destemidos? Por que,
após a Sociologia ou a Psicologia Aplicadas, a História é hoje solicitada para fins de
expertise sobre a realidade do tempo presente? Após os economistas e os futurólogos, os
historiadores são os novos taumaturgos de nossas sociedades em crise?

Um debate clássico

A imagem do historiador instalado numa loja dos fundos e quem, tal um “privado”
do romance noir,4 espera o cliente triste ávido de remédios retirados no passado, como
está faz sorrir.
De fato, aqueles que falam hoje da “história aplicada” se situam, conscientemente
ou não, num debate muito mais profundo e mais antigo. Desde a renovação historiográfica
do século XIX, a “utilidade” da história motiva sem cessar os debates epistemológicos.
Os parceiros do conhecimento puro, da abordagem intelectual “gratuita” se opõem aos
proponentes de um Positivismo ansioso de transformação social. Para os primeiros, a
abordagem histórica se exime de uma moral. Ela não pode pretender, escreve por exemplo
Henri-Irénée Marrou, “ditar ao homem de ação, em virtude de precedentes ou analogias
que ela a faz conhecer, uma decisão de ordem política”. “Infinitamente mais humilde”, o
verdadeiro papel da história “é de fornecer à consciência do homem que sente, que pensa,

4
Noir, preto em francês. O romance noir é o romance policial onde os personagens são mais humanizados.
Os detetives, por exemplo, nesse tipo de história, costumam beber, brigar, se envolver em romances e
sexo.

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cada ou os historiadores taumaturgos] Vingtiéme Siécle, revue d´histoire, n.1, janvier
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que se agita, uma abundância de materiais sobre os quais exercer seu julgamento e sua
vontade”. Dito de outra maneira, ao historiador, ou ao filósofo, exumar parcelas de ver-
dade, mas ao homem de ação tomar decisões. Neste sentido, a história é quase uma me-
tafísica que se opõe a uma teoria de uma física social. Para Auguste Comte, por exemplo,
uma vez estabelecidas as leis da “Sociologia”, é indispensável fundar uma “política posi-
tiva”, mais do que uma ação sobre o presente. A Sociologia Comtiana analisa a evolução
das leis que regem o homem em sociedade. Mas ela não é uma ciência pura. O conheci-
mento do passado assim reconstituído nas suas tendências profundas deve conduzir a uma
reorganização social e ao advento de um mundo mais racional. Profundamente ligada à
sua época, Comte escreve, por exemplo, em 1830, que a Sociologia deve permitir “fina-
lizar o estado de crise aberto pela Revolução Francesa”. Sua concepção de história é então
quase inteiramente voltada para a aplicação. É uma abordagem intelectual que visa um
objetivo preciso: “prever, para poder preencher”.
Entre estas duas posições, sem dúvida extremas, a história nunca deixou de hesi-
tar. Qual historiador, quão “desinteressado” seja ele, não sonhou um dia de ver suas opi-
niões escutadas, senão entendidas? Marc Bloch, em seu tempo e a sua maneira, não re-
solveu, parece-me, esta ambivalência entre história gratuita e história útil. Ele escreve, de
um lado, não sem firmeza: “ninguém, eu imagino, não ousaria dizer hoje [em 1942], com
os positivistas sofisticados, que o valor de uma pesquisa se mede, em tudo e por tudo, a
sua atitude de servir à ação”. Ele distingue cuidadosamente a utilidade da história, no
senso pragmático do termo, de sua legitimidade intelectual, fundada sobre uma aborda-
gem cognitiva da qual as aplicações não são seu progresso. Mas, por outro lado, ele não
se furta de constatar uma evidência, uma inclinação natural do homem: o conhecimento
está ao serviço da ação e a precede em boa lógica: “não é um ponto negável por isso que
uma ciência nos parecerá sempre ter algo de incompleto se ela não deve, cedo ou tarde,
nos ajudar a viver melhor”. “Cedo ou tarde ....” é todo o problema. Seja, a montante, o
historiador se preocupar de aplicações eventuais de sua pesquisa e as oriente em função
delas, seja se ele se desinteresse e deixe, a jusante, os “homens de ação” utilizarem seu
saber.
As tendências atuais, que se orientam para um pragmatismo frequentemente ex-
cessivo, se localizam no primeiro caso. Mas suas concepções não são revolucionárias. O
debate foi lançado desde o advento das Ciências Sociais. No entanto, à medida que estas

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experiências se inscrevem num contexto científico e intelectual datado, elas apresentam


uma originalidade incontestável.

Mas, um problema atual

A História, hoje, é uma disciplina consolidada e reconhecida. Por todo lado, teses
se acumulam. Na França, Bernard Pivot recusa o mundo, a morte medieval, Louis XI ou
a família do século XVIII se vendem em supermercado. A demanda por história está em
expansão desde uma década. Ela é alimentada não somente por uma inflação de produção
livresca – mas por uma difusão cada vez mais larga da literatura histórica graças às mí-
dias, a coleções de bolso, aos magazines históricos. Clio está em plena apoteose. Ora, ao
mesmo tempo, o recrutamento de historiadores profissionais se faz cada vez mais drás-
tico, os lugares no seio da universidade ou da pesquisa cada vez mais raros. E isto en-
quanto a universidade continua oferecendo a cada ano mil doutorados de terceiro ciclo
em Letras e Ciências Humanas. Dito de outra maneira, no mesmo momento em que cresce
a demanda por História, a oferta tende a diminuir.
Certo, o ponto de estrangulamento assim criado não tem nada de uma ameaça
apocalíptica.
As necessidades históricas não têm a mesma urgência que as necessidades ener-
géticas. De agora em diante, os riscos existem de ver os historiadores profissionais mar-
ginalizados em sua própria área. Agora, na hora atual, a demanda por história é em parte
assumida por escritores, jornalistas ou intelectuais midiáticos. Uma enquete publicada
pelo L´Express em 19 de agosto de 1983, dá uma imagem impressionante da notoriedade
real de universitários franceses entre seus concidadãos. À questão: “Há um ou vários his-
toriadores, mortos ou vivos, de que você gosta ou que fez você amar a história?”, a amos-
tra representativa respondeu de uma só voz: Alain Decaux (citado 251 vezes) 5, Andre
Castelot (73 vezes), o primeiro universitário (Albert Soboul) aparecendo apenas em 9º
posição após Hugo, Michelet ... ou De Gaulle. Um autor em voga, qual que seja seu

5
Alain Decaux era um jornalista, ensaísta, biógrafo, cenarista, homem de rádio e de televisão, e um histo-
riador popular francês. Membro da Academia Francesa, era reputado por seu talento de reviver homens
e eventos em seus livros, e em aproximadamente em cinquenta anos ocupou a cena midiática com seus
programas de vulgarização histórica e suas numerosas publicações. É considerado um dos pioneiros dos
programas de história nas mídias.

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talento (ou sua ignorância), deve escrever hoje “seu” livro de história, esquecendo ale-
gremente que escrever história é falar propriamente de um ofício.
A História Aplicada, na versão moderna, é na origem uma resposta a esta situação
paradoxal que vê, de um lado, um mercado econômico e cultural em expansão e, de outro,
uma profissão que tende a se fechar sobre si mesma.

Um historiador público?

É nos Estados Unidos, num contexto específico, que o movimento tomou uma real
amplitude, sem medida comum com as tentativas similares na Europa. É conhecido sob
o nome de História Pública.
O vocábulo mesmo, História Pública, dá uma amostra dos problemas epistemoló-
gicos sublinhados por esta abordagem. O termo “público”, difícil de traduzir tal qual em
francês, reenvia a duas noções. Em primeiro lugar, ele indica que esta abordagem histó-
rica se volta prioritariamente para o público, para o mais grande número. Bem como an-
tigamente, o escritor público oferecia sua pena a todos, o historiador público se declara
ao serviço da comunidade e a escuta de suas exigências. Em segundo lugar, o termo evoca
temas de predileção da História Pública: o estudo de práticas estatais ou administrativas
da decisão pública. Esta primeira explicação é, contudo, incompleta. De fato, parece que
o adjetivo “público” foi preferido ao termo mais agressivo – mas mais claro – de história
aplicada. Ele é a marca de uma hesitação intelectual, totalmente evidente entre estes no-
vos pioneiros. Enfim, não é inútil observar que os historiadores públicos têm em sua
maioria a ambição de trabalhar ... no privado. Traduzir o termo em francês então por
enquanto não tem qualquer razão de ser, à medida que isto não poderia em nada dar conta
da realidade propriamente americana do fenômeno.
A História Pública nasceu em meados dos anos 1970, à medida que a demanda
por história (a pesquisa de raízes, o desejo de certas minorias sociais ou étnicas de cons-
tituir uma memória) era da atualidade. Ora, ao mesmo tempo em que séries televisionadas
como Roots ou Holocaust faziam vibrar os americanos, as universidades paravam de con-
tratar. Numerosos PhDs não encontravam mais emprego em seu seio. Na origem, a His-
tória Pública tentou resolver esta crise de emprego, procurando postos de trabalho fora
do ambiente de ensino e de pesquisadores. Mas a queda de empregos satisfatórios para

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diplomados em história transformou-se em desejo de promover historiadores potenciais.


No lugar de lançar no mercado de trabalho estudantes com bagagem cultural e aptos a
diversos ofícios frequentemente muito afastados de sua formação de origem, por que não
propor historiadores profissionais formados por uma abordagem retrospectiva à manipu-
lação de fontes de informação numerosas e variadas, à síntese escrita? Por que não ofere-
cer um serviço, no sentido econômico, de natureza específica: a capacidade de reconstituir
e interpretar o passado? A crise de emprego então serviu de detonador. Mas esta tomada
de consciência das virtualidades do ofício do historiador não é uma simples atitude de
circunstância. Ela se apoia primeiro sobre uma longa tradição.
De fato, contrariamente a uma ideia muito divulgada, a história sempre preocupou
o cidadão americano. Há muito tempo, existe uma colaboração estreita entre as universi-
dades e os lugares de decisão políticas ou econômicas. A história, de fato, tem uma função
social reconhecida. Se o termo História Pública é muito recente, o campo de aplicação
que ela cobre é bastante mais antigo.
Desde o princípio do século, a Associação Americana de História tem consciência
da necessidade de sustentar os historiadores que trabalham para o Estado ou as adminis-
trações locais. Em 1904, ela funda a Conferência para História Local e Estadual, primeiro
marco da futura História Pública.
Nos anos 1930, os historiadores estão associados na criação de arquivos nacionais
e comissões destinadas a preservar os lugares e o patrimônio. A Segunda Guerra Mundial,
depois a Guerra da Coreia, foram um trampolim para a História e o conjunto das Ciências
Sociais. Em março de 1942, Roosevelt ordena enquetes sobre a administração e o Exér-
cito em guerra. No domínio da história econômica, há mais de um século que algumas
empresas pegaram o hábito de fazerem trabalhar historiadores. A primeira originalidade
do movimento não reside, então, na demanda contratual que associa os historiadores a
clientes precisos, nem na aplicação pragmática da história. A colaboração entre historia-
dores e tomadores de decisão não é específica, nem aos Estados Unidos, nem à disciplina
histórica. A inovação se situa na vontade de institucionalizar o fenômeno e de responder
a uma demanda tradicional estruturando a oferta. “A real crise de emprego e o verdadeiro
problema para os historiadores públicos não é tanto tentar criar novos posto ou novos
empregos, mas de ocupar aqueles que existem potencialmente”. Assim, graças a esta tra-
dição de abertura para a sociedade, graças também à descentralização universitária, a

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História Pública nascente pode substituir as relutâncias de natureza “acadêmica” dos his-
toriadores tradicionais.
Em 1978, várias universidades [americanas], Santa Barbara, em California, Car-
negie-Mellon em Pittsburgh, com o sustento de grandes fundações privadas, criam pro-
gramas de ensino específicos de História Pública. No mesmo ano, G Wesley Johnson, um
dos animadores mais ativos do movimento, funda a primeira revista exclusivamente con-
sagrada a estes problemas: The Public Historian, publicada pela Universidade de Santa
Bárbara. Em 1979, em seguida ao primeiro colóquio nacional reunindo os historiadores
que trabalhavam sob este campo, é criado o National Council on Public History [Comitê
Nacional de História Pública]. Antes mesmo de ter refletido sobre a dificuldade de “apli-
car” a história, o movimento está dotado de uma estrutura de enquadramento que lhe
permite empreender uma propaganda eficaz sobre todo o território americano.
Segunda originalidade, a História Pública tem a ambição de criar um novo ofício.
“Aplicando o passado ao presente, os historiadores públicos exercem sua erudição histó-
rica em fins práticos e oferecem o tipo de informações indispensáveis a tomadas de deci-
são inteligentes”, clama um folheto publicitário do National Council [Comitê Nacional],
num slogan que resume de maneira abrupta a filosofia do movimento. O “novel historia-
dor” é lançado sobre um mercado que não protege mais a instituição universitária. Ele
está numa situação de concorrência e deve propor um serviço produtivo e rentável. Ele
perde, de certa maneira, a mestria, o manejo dos objetos de estudo, e se oferece a todo
empreendimento, órgão de imprensa, administração, escritório jurídico ou particular que
tem necessidades de seus serviços.
O historiador pode assim se integrar a uma equipe de experts, da mesma maneira
que o estatístico, o politólogo ou o economista. Ainda que estes últimos – concorrentes
perigosos e instalados – tenham tendência a “conceber os problemas de maneira unidi-
mensional”, o novel historiador veio oferecer a mais-valia intelectual: “a análise histórica
não mais apresenta uma problemática abstrata de fatores ou de estruturas, mas uma visão
essencialmente fundada sobre o fator humano, história concreta e singular de indivíduos
se agitando de maneira particular”. Certa de dizer as coisas “como elas se passaram”, o
historiador público deve poder se adaptar a uma clientela diversificada. “Ele deve sub-
meter seus resultados aos caprichos ou à imagem que o cliente tem em mente”. Ele não é
mais especialista de um período ou de um problema, mas um “generalista”, segundo a

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fórmula de Lawrence de Graaf. É então no geral uma ruptura muito pesada com a forma-
ção clássica dos universitários.
O mais impressionante? A aposta parece ter sucesso.
Numerosos estudantes formados pelos programas de História Pública encontram
empregos na Administração ou em empresas. O Pentágono, o Departamento de Estado, o
Departamento de Energia, possuem, por exemplo, equipe de historiadores que trabalham
em estudos retrospectivos muito específicos. Em matéria de educação, a história permite
julgar a posteriori a influência, nefasta ou benéfica, de outras ciências sociais, tal a Psi-
cologia Aplicada. No setor privado, não se contam mais as empresas que envolvem his-
toriadores, seja para fazer história da empresa, seja a título de “expert”. Assim, como
explica um dirigente de empresa de seguros, o historiador substitui em certos casos o
advogado para as enquetes que remontam ao passado. Ele é talvez menos eficaz sobre o
plano jurídico, mas é mais rápido ... e menos caro. Alguns historiadores, ainda mais aven-
tureiros, atuam por sua conta e risco, e criam “agências históricas”. King, Bookspan &
Conard Research Services se instalaram em Santa Barbara, plataforma giratória da His-
tória Pública. Suas sedes estão a “um bloco de casas da biblioteca municipal e somente a
quatro da sociedade histórica local”.
Este avanço urdido fora dos caminhos tradicionais é, malgrado tudo, apenas um
dos aspectos da História Pública. Em efeito, terceira originalidade, ela iniciou um largo
debate entre os historiadores americanos. Mais que uma experiência original, ela é o lugar
de uma renovação historiográfica que toca ao conjunto da disciplina. Se dirigindo mais
frequentemente a uma clientela de tomadores de decisão, a História Pública ensaia um
renovado interesse por certos temas: os trabalhos sobre o Estado, sobre as estruturas da
decisão econômica - as políticas urbanas e industriais foram multiplicadas. Muitos histo-
riadores “clássicos”, seguem, deste fato, a evolução do movimento. Domínios como a
história oral ou a história do tempo presente conhecem um novo progresso. Trabalhando
frequentemente in loco (dentro de uma empresa, por exemplo), os historiadores públicos
utilizam abundantemente a prática de entrevistas. Do fato das preocupações frequentes
pragmáticas de sua clientela, eles são conduzidos a privilegiar a história mais recente, ou
pelo menos a prolongar suas análises retrospectivas até o tempo presente, aquele de seus
clientes. Enfim, obrigados a colaborar com sociólogos, economistas, outros especialistas,
eles empreendem uma abordagem interdisciplinar e se iniciam em novas ferramentas

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(informática, audiovisual ....). Em suma, pela porta um pouco estreita da história aplicada,
a História Pública provoca a escola histórica americana sobre os caminhos de uma nova
criatividade.
Neste sentido, os historiadores públicos não são simples pesquisadores de ouro,
acampados nas fronteiras da universidade. Apesar de suas virulentas críticas de espírito
acadêmico, não são marginais, “complexados ou frustrados pela universidade”. Ao con-
trário, muitos se exercitam ao mesmo tempo no privado e no ensino ou na pesquisa. Eles
pertencem na maioria a uma linha de historiadores ávidos por revitalizarem o impacto de
sua disciplina.
Discutindo com seu velho mestre Charles Seignobos, Marc Bloch lhe atribuía o
seguinte propósito: “ele é muito útil para se colocar questões, mas é perigoso de as res-
ponder”. O discípulo irreverente e, com ele, a escola francesa dos Annales, estão plena-
mente expostos a este perigo com o sucesso que se sabe. A sua maneira, apesar de seu
pragmatismo fixado, a História Pública anuncia talvez uma renovação de mesma natu-
reza, senão de mesma amplitude. Ela não é uma simples reação epidérmica de universi-
tários desapontados ou de self made men em potência. Ela é uma reação de natureza ci-
entífica contra o isolamento da disciplina, o isolamento dos historiadores face aos proble-
mas atuais, a religião do “conhecimento em si” e a ditadura da erudição gratuita. A His-
tória Pública proclama que ela pode responder a algumas questões, e mesmo se ela im-
plica com as tradições acadêmicas, não é questão para este movimento se romper de suas
raízes universitárias. “A História Pública e a história aplicada não são rejeições da crise
de emprego”, escreve Joel Tarr, [mas] “é uma maneira de apreender a utilidade da história
com relação à sociedade contemporânea; elas têm uma base intelectual válida e seriam
desenvolvidas com ou sem crise de empregos”. A História Pública seria ela uma “nova
história” versão Atlântico Além Mar?
Estas originalidades constitutivas não implicam, contudo, que o movimento es-
cape a toda crítica. Se o historiador público se engaja na cidade, sobre um plano mais
profissional do que ideológico, diferente de intelectuais franceses, sua abordagem está
longe de estar isenta de contradições.
Um pragmatismo caro aos americanos permitiu à História Pública tornar operaci-
onais milhares de estudantes, formados numa quarentena de centros universitários. E isto
antes mesmo de ter definido conceitos teóricos sólidos.

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Procurando convencer da utilidade da história uma clientela que não se importa


com epistemologia, o historiador público se fixa publicamente como um expert da reali-
dade social, ao menos na sua dimensão temporal. Ora, certa noção de “expertise histórica”
não é tão evidente.
Em primeiro lugar, ela supõe como postulado a existência de “lições da história”.
Pretender exumar o passado de uma empresa ou de uma coletividade qualquer é uma
operação rentável, significa que o simples conhecimento de “que isto é passado” permite
uma ação racional sobre o presente ou o futuro. O historiador público afirma então im-
plicitamente estar na medida para analisar “o que é” ou “o que isto será”. Ele admite a
priori que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Ele não é então somente his-
toriador, mas sociólogo, politólogo, psicólogo etc. Ora, admitindo que se possa cientifi-
camente identificar as “lições da história” – e nada é menos seguro – os historiadores
serão capazes de lhas formular no trabalho, tomado numa situação concreta? Ainda mais
que eles não possuem nem a mestria das decisões, nem a possibilidade de agir no lugar
do cliente.
Em segundo lugar, para afirmar sua identidade face as outras ciências sociais, o
historiador – “público” ou não – adota uma abordagem específica. Ele atribui um grande
lugar à contingência acontecimental e adota um ponto de vista pluridimensional. A con-
tingência – a “sobredeterminação” dos estruturalistas – escapa por definição a toda cau-
salidade prévia. É na sua atualização que a observação histórica encontra uma de suas
legitimidades maiores. A abordagem pluridimensional quer dizer levar em conta a simul-
taneidade de fatores múltiplos (políticos, econômicos, mentais etc) de um evento histó-
rico, resulta igualmente o historiador fora dos grilhões da estrutura, das interpretações
unidimensionais. Mais do que qualquer outro, o historiador público se destaca das tenta-
ções estruturalistas que atravessam a disciplina há uma vintena de anos. Poderia mesmo
avançar que a História Pública é uma reação a esta tendência, hoje contestada das Ciên-
cias Sociais. Ora, em presença de seu cliente, o historiador público proclama em alto e
bom som sua capacidade de avaliar um presente em função de seu passado. Ele introduz
então sub-repticiamente a noção de causalidade, de leis históricas predeterminadas. Quem
diz “expertise” diz ao mesmo tempo existência de normas e modelos. E, não somente a
abordagem histórica “clássica” se acomoda mal a modelos, mas a História Pública se
inscreve por definição numa abordagem empírica que volta as costas aos “modelos” e às

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“estruturas”. “Me parece que existe uma tensão explícita entre a noção de expertise e o
estudo de uma história fundamentalmente humana”, escreve o historiador Gaines Post.
Ele se incomoda com a evolução atual do movimento diante desta contradição maior não
resolvida. Tal como seus adversários, ele teme que a História Pública não renuncie a uma
abordagem humanista e ensaie história em direção a concepções por demais congeladas,
por demais denunciadas.
Enfim, a História Pública não é um movimento homogêneo. Sob uma mesma ban-
deira, se agrupam atividades e campos muito diversos. Arquivistas, historiadores da eco-
nomia, ou do urbanismo, conselheiros de museus, historiadores militares, todos se pro-
clamam historiadores públicos. Todos sonham vender a história exaltando suas enzimas
gananciosas. Segundo Darlene Roth, a divisa da História Pública deveria ser: “venda,
embalagem e produtos”. Outros, como Joel Tarr, estimam que o movimento carece seri-
amente de conceitos teóricos. Paradoxo clássico: o nome e a instituição preexistem à for-
mulação de uma abordagem claramente definida e circunscrita.
A História Pública não é ainda uma escola histórica. Seu avanço resulta de uma
instituição e de uma necessidade: a demanda por história. Mas se ela não pode pretender
por um instante o título de filosofia original de história, ela não nos convida menos à
reflexão. E sem cautela.

Uma história pública no país dos Annales?

A história Pública é então um fenômeno datado e localizado nos Estados Unidos.


Mas os americanos não têm o monopólio da história aplicada, mesmo se em certos países
com grande tradição universitária não se ouse ainda utilizar este termo.
Em setembro de 1982, houve em Roterdan o primeiro colóquio europeu sobre a
História Pública. Ele permitiu fazer um balanço sobre as experiências em curso e sobre o
futuro de um tal movimento deste lado do Atlântico.
Nos Países-Baixos, na Universidade Erasmus de Roterdan, em colaboração com
o Conselho de Pesquisa em Ciência Social da Grã-Bretanha, se oferece o primeiro semi-
nário na Europa de estudos de História Aplicada. Ele prepara seus estudantes para exercer
seu ofício de historiadores na imprensa, nas mídias ou nos negócios públicos. Os histori-
adores ingleses, há muito tempo, são familiarizados com corredores ministeriais, para

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ROUSSO, Henry. L´histoire appliquée ou les historiens thaumaturges. [A história apli-
cada ou os historiadores taumaturgos] Vingtiéme Siécle, revue d´histoire, n.1, janvier
1984. Histoires de l´avenir. 1984 au rendez-vous d´Orwell. P.105-122. Doi:
13.3406/xxs.1984.1771

setores como os negócios sociais ou o urbanismo ... possivelmente objetos também no


contexto da recente guerra das Malvinas: Peter Beck, um dos melhores especialistas desta
parte do globo, assim explicou como, após ter sido envolvido como expert pelo governo,
ele não pode fazer prevalecer suas conclusões, porque elas incomodavam a ação de Mme
Thatcher. Uma severa lição para todos os historiadores públicos.
O caso da França é mais interessante, porque mais paradoxal. Ninguém, ou quase
ninguém, não fala ali de História Aplicada. O termo faz sorrir e prefere-se àquele de pes-
quisa contratual ou “finalisée”, uma maneira como outra de desresponsabilizar o avanço
do historiador de aplicações potenciais de suas análises. Assim, numerosos debates e prá-
ticas podem se acomodar sob este vocábulo, mesmo se ele não recobre um campo clara-
mente delimitado.
A “demanda social”, desde o Colóquio Nacional, sobre a pesquisa, de janeiro de
1982, está na ordem do dia nas ciências do homem e da sociedade. Como definir as ne-
cessidades de um país em matéria de economia, sociologia, antropologia ou de história?
como respondê-las deixando aos cientistas a mestria completa de suas pesquisas?
De saída, a interrogação é da mesma natureza que aquela posta aos Estados Unidos
pela História Pública para o campo particular da história. A “demanda social” inclui todos
os componentes da sociedade. Estado, administrações, sindicatos, partidos, indivíduos ou
associações. Certos setores da vida social formulam mesmo demandas precisas e especí-
ficas. O “relatório Godelier” cita, por exemplo, o caso da CGT-FO explicando à Missão
sobre as Ciências do homem e da sociedade a necessidade de estudar “o grau de engaja-
mento social” dos franceses e a influência real dos sindicatos.
Contudo, o estado de espírito na França é radicalmente diferente daquele que reina
nos Estados Unidos. Fato significativo, a História é raramente citada como portadora de
aplicações eventuais, contrariamente à Sociologia ou Economia. Se não se conta mais
hoje nestas disciplinas os contratos de toda natureza, passados com grupos de interesses
de toda sorte, ao contrário, é muito mais difícil encontrar no tempo um escritório privado
de estudos históricos sérios e confiáveis. Se se excetuam algumas divas televisuais ou
literárias, o ofício do historiador se exerce quase exclusivamente aos cuidados de um ser-
viço público. Primeira diferença com a situação americana: se a história aplicada se de-
senvolve na França, ela o será primeiro e essencialmente pelo fato de organismos públicos
de pesquisa, então sob controle do Estado.

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ROUSSO, Henry. L´histoire appliquée ou les historiens thaumaturges. [A história apli-
cada ou os historiadores taumaturgos] Vingtiéme Siécle, revue d´histoire, n.1, janvier
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Segunda diferença, o pragmatismo não é dificilmente uma qualidade (ou um de-


feito) tricolor. Antes do gesto, a palavra. A Pesquisa Aplicada é o objeto de debates muito
animados ... onde predomina uma saudável prudência. Assim, falando do conjunto das
Ciências Sociais, o “Relatório Godelier” formula duas exigências sobre a matéria: a pre-
eminência da pesquisa dita fundamental e a necessidade de encontrar de agora em diante
um equilíbrio entre aquela última e a pesquisa aplicada. Neste sentido, o dito relatório se
situa nas antípodas dos historiadores públicos:

As pesquisas nas ciências sociais não poderão jamais se transformar em um


tipo de engenharia social apta a produzir intervenções miraculosas sobre as
contradições da realidade. Todos os discursos que vão neste sentido fazem ape-
nas engendrar ou entreter ilusões que custarão caros na prática. Em todo caso,
o princípio que será preciso respeitar em matéria de demanda social de pes-
quisa é que só a comunidade científica é a mesma a traduzir em objetivos de
conhecimento das realidades que fazem problemas e que a sociedade, em seus
todos componentes ... lhes demanda analisar.

A corrida pelo contrato, o estudo de objetos sem interesse científico, podem en-
saiar uma “desqualificação” dos pesquisadores e uma “desvalorização” de disciplinas.
No entanto, afirma o mesmo relatório, “a pesquisa contratual é uma necessidade”,
com a condição de que existam infraestruturas adequadas, capazes de moldar os “exces-
sos” eventuais. A reforma em curso do CNRS [Centre Nationale Des Recherches Scien-
tifiques] [Centro Nacional de Pesquisas Científicias] pareceria aliás ir além deste sentido.
Esta prudência institucional deixa, no entanto, o problema intocável. Mesmo que o prin-
cipal cliente na França seja o Estado, que deságua a quase totalidade dos créditos de pes-
quisa em Ciências Humanas, aqui ele não é um mecenas. É uma banalidade escrever que
os componentes políticos ou ideológicos da ação estatal repercutem sobre a seleção cien-
tífica, com pesquisas encorajadas ou freadas, as disciplinas reconhecidas ou enterradas.
Uma política de pesquisa implica a existência de escolhas, portanto de prioridades, de
definição, a curto ou longo prazo, objetivos previamente explicitados. Ela introduz per-
manentemente o conceito de finalidade ou de aplicação de resultados, mesmo se elas não
assumem forçadamente um caráter concreto e palpável. Dito de outra forma, o debate
pesquisa fundamental/pesquisa aplicada arrisca durar anos se ele não leva em conta a
finalidade ou a aplicação de toda pesquisa.
Mas a França permanece uma terra de academia. Ainda recentemente, Pierre
Chaunu escrevia: “A única verdadeira pesquisa é a pesquisa fundamental na busca

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cada ou os historiadores taumaturgos] Vingtiéme Siécle, revue d´histoire, n.1, janvier
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absoluta da verdade”. Entre esta concepção idealizada de história, quase mística, mas de
todo modo respeitável, e a “engenharia social” denunciada por Maurice Godellier, o
campo de exploração é vasto, incerto ... e largamente aberto.
Ainda mais que, se a oferta não estiver estruturada, a demanda cresce. Atualmente,
na França, muitas grandes empresas apelam aos historiadores. Pioneira nesta matéria, o
Grupo Saint Gobain, há vários anos, se lançou num ambicioso projeto de arquivamento,
apoiado por financiamento de trabalhos universitários sobre a evolução de Saint Gobain
ou de Pont-à-Mousson. EDF (eletricidade francesa) acaba de comandar uma história oral
conduzida por três jovens pesquisadores, trabalhando no quadro totalmente institucional
do CNRS [Centre Nationale Des Recherches Scientifiques] [Centro Nacional de Pesqui-
sas Científicias]. As associações pela história de ... eletricidade, telecomunicações, infor-
mática etc., se multiplicam. Grandes administrações ou estabelecimentos públicos como
o CEA, o PTT ou o CNRS financiam trabalhos sobre suas origens e sua evolução histó-
rica. Mesmo se dominam atualmente o debate epistemológico, as práticas de campo se
multiplicam. Como os americanos, bem mais avançados neste domínio, os historiadores
franceses vão se encontrar rapidamente na obrigação de teorizar e de controlar este tipo
de pesquisa.
Em alguns campos históricos, o problema é ainda mais agudo, na medida em que
as fronteiras entre uma História “gratuita”, puramente cientifica, e uma abordagem fina-
lizada, são cada vez mais tênues.
No Colóquio Europeu sobre História Pública [em Roterdan, 1982], o único repre-
sentante francês era François Bédarida, diretor do Instituto de História do Tempo Pre-
sente (IHTP). Na sua intervenção, ele levou em conta alguns objetivos perseguidos pelo
movimento americano: promover um diálogo entre tomadores de decisão, passados e atu-
ais, e historiadores; estimular uma pesquisa de grande envergadura sobre história muito
contemporânea, o “tempo presente”, um tempo no qual o historiador vive completamente,
dando as costas à regra sacrossanta do “recuo”; fornecer, implicitamente, perspectivas
históricas a alguns setores da vida política e social. Ora, o IHTP [Instituto de História do
Tempo Presente], laboratório próprio do CNRS, é, stricto sensu, um organismo de pes-
quisa fundamental. Sua política é exclusivamente determinada pelas instâncias científicas
do CNRS, mesmo se em seu conselho de coordenação (órgão consultivo) figurem perso-
nalidades do mundo dos negócios, da Defesa Nacional, do Planejamento etc. O objeto de

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seus estudos os obriga, portanto, a se perguntarem permanentemente sobre a finalidade a


curto ou longo prazo de seus trabalhos, em relação à vida da cidade. Uma história de
estratégias políticas de Mendés France e do Mendesismo, da planificação econômica, ou
das mulheres no século XX são, evidentemente, objetos mais visíveis na atualidade –
portanto mais suscetíveis de influir ou de ser influído por ela – que as pesquisas em his-
tória helenística. Aquela não lhe confere, nem valor suplementar, nem privilégio algum,
mas impõe óticas diferentes que devem ter em conta o problema da “aplicação”. Não é
por acaso que o primeiro seminário na França de História Aplicada e de História Pública
foi organizado em 1982-1983 por François Bédarida e se passou na Rue D’Ulm em 1983-
1984.

Por que a História?

Se a história está, hoje, interpelada para refletir sobre sua finalidade social – res-
gate de seu sucesso? – ela segue os passos de outras disciplinas, sombreadas há muito
tempo pela embriaguez da expertise e da ação sobre o real.
O debate sobre a pesquisa contratual, por encomenda, é tão antigo quanto algumas
Ciências Sociais. Sociologia e Economia, advindas da origem da universidade, conhece-
ram um progresso considerável desde perto de meio século, graças à pesquisa contratual.
Nos Estados Unidos, o New Deal encoraja, nos anos 1930, a reconciliação entre
os universitários e a administração. Símbolo do empirismo anglo-saxão, Paul Lazarsfeld
lança nesta época programas ambiciosos e renovadores de Psicologia e Sociologia Apli-
cadas. Ele participa plenamente num plano de emergência de um novo tipo de pesquisa
“que pretende abolir os limites entre a atividades políticas e a atividade científica”. Funda,
no início dos anos 1940, um Gabinete de Pesquisa Social Aplicada na Universidade de
Columbia em Nova York. A Segunda Guerra Mundial acelera o processo. A América em
guerra apela para experts de todo peso. Graças aos créditos militares, alguns centros de
Sociologia podem se desenvolver, em Harvard, em Nova York, em Chicago. De alguma
maneira, os historiadores públicos são os sucessores diretos de psicólogos ou sociólogos
aplicados.
Na França, a crise dos anos 1930 desempenha o mesmo papel de catalisador para
as Ciências Sociais e Humanas. Na linhagem de planejamento e renovação intelectual em

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todo lugar, homens como Jean Coutrot ou Alexis Carrel se conectam com as concepções
comtianas da Física Social. Em abril de 1936, eles fundam o Centro de Estudos dos Pro-
blemas Humanos que tentam estender ao homem em sociedade “o conhecimento que nós
temos já do universo das coisas”. O objetivo declarado é o de permitir às ciências sociais
encontrar soluções específicas para a crise de civilização que atravessa o mundo ociden-
tal. Os historiadores não estão à margem aliás deste movimento. A 27 de janeiro de 1937,
o grupo X-Crise se reúne para uma conferência sobre o tema: “que pedir à história?”,
pronunciado por um historiador já notório, Marc Bloch. Após uma fase de avanço insti-
tucional nos anos de Após-Guerra, as ciências sociais, e particularmente a Economia e a
Sociologia, são fortemente solicitadas no quadro da política de crescimento dos anos
1950-1960. Graças a organismos gravitando em torno do rasto do Plano (CORDE, BPE
etc), os comandos afluem em direção aos centros de pesquisa. O Sexto Plano da Pesquisa
preconiza mesmo, em 1971, “realizar um progresso substancial nas ciências do homem
no curso da próxima década, se nosso tempo quiser superar os “males” da sociedade”,
como uma época não tão distante tivesse sabido controlar as grandes epidemias e uma
outra, ainda mais próxima, as crises econômicas generalizadas. Doce otimismo planifica-
dor ... Após a Medicina, a Ciência Econômica, nem foi a Sociologia, promovida à posição
de terapia-milagre?
Ora, depois de uma dezena de anos, a esperança de uma racionalização de decisões
graças às Ciências Sociais se desbotou. A hesitação permanente entre a submissão às exi-
gências do cliente - frequentemente o “poder” – e a análise crítica da sociedade não foi
resolvida. No seio de algumas disciplinas, o “expert” é oposto ao “intelectual”, o empi-
rista apolítico ao militante revolucionário. Sociologia contratual ou Sociologia Crítica? A
divisão se traduziu às vezes por uma verdadeira crise de identidade. Hoje, alguns soció-
logos amargos abandonam as margens aventureiras da “tecnocracia social” para as terras
menos selvagens do pensamento e da atividade puramente intelectual. “Antes que conti-
nuar a ver, nas Ciências Sociais, ciências de ajuda para decisões, haveria lugar de subli-
nhar sua dimensão propriamente cultural de instrumento de análise da realidade social”.
Quanto aos economistas “Chicago Boys” e outros experts do presidente, não parece que
elas tenham conseguido controlar as crises econômicas generalizadas, como afirmava o
Sexto Plano. Sua crise parece resistente a uma agonia e o homem de ação dos anos 1980
deve refletir duas vezes antes de decidir em função de sua expertise. Diante desta reforma

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generalizada das Ciências Sociais sobre o front da ação, que vêm fazer os historiadores?
São eles novos taumaturgos? Por que uma história aplicada após o fracasso de disciplinas
vizinhas?
A expectativa da atualidade de voltar às “lições do passado” e os historiadores
podem se explicar de várias maneiras.
Ela é apenas um justo retorno de coisas. Os contratos de pesquisa dos anos ses-
senta, as enquetes de Sociologia Administrativa ou Urbana, quais que sejam seus méritos,
negligenciaram a história e os historiadores. A dimensão retrospectiva na euforia de inu-
meráveis teorias de sistemas, foi considerada como quantidade negligenciável. A referên-
cia ao passado só serviu de anedota e de ilustração a demonstrações puramente conceitu-
ais. No caso, por exemplo, dos estudos sobre o progresso das grandes aglomerações (So-
ciologia Urbana, Geografia ou Economia Espacial), “a ausência de referências históricas
danificou fundamentalmente a realização de monografias ... e explica em grande parte a
ausência de uma reflexão fundamental sobre o crescimento urbano”. Em uma palavra,
muito das Ciências Humanas têm memória curta.
Ela pode parecer como um revezamento. Do fato da menor credibilidade de suas
irmãs, a História pode dar a imagem de uma disciplina capaz de responder a algumas
interrogações deixadas em suspenso por aquelas.

A história, porque ela aborda a atividade humana no máximo de sua liberdade


de invenção, é o melhor antídoto contra as simplificações abusivas e o rigor
ilusório que comporta a noção de ciência do social. Ela é melhor porque re-
nuncia a suas prevenções tradicionais contra as hipóteses e as ideias, das quais
ela empresta algumas às ciências sociais, e que ela pode assim medir o poder
explicativo.

Menos comprometido com o mundo dos tomadores de decisão, o historiador pa-


rece um recurso refrescante, à medida que sua cotação está mais preferencialmente em
alta nos últimos tempos. Após ter usado e abusado dos economistas, homens políticos e
chefes de empresa inclinam-se para o lado da inocente Clio.
Ela é consequência de uma dobra sobre o passado. É um lugar comum dizer que
a crise atual deixa o presente difícil e o futuro incerto. A moda retrô e a euforia pela
literatura histórica são manifestações culturais de massa. O interesse pela retrospectiva
em vez de modelos prospectivos são uma manifestação intelectual e científica. Quando
os chefes de empresa “olham para trás para ir em frente”, quando Saint-Gobain promove

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teses sobre estratégias industriais passadas, que encontram sua legitimidade num passado
mais ou menos objetivável, mais que num futuro tornado imprevisível.
Ela é o signo de um interesse por algumas qualidades específicas do ofício do
historiador, que parecem mais adaptadas ao meio ambiente cultural e mental dos anos
1980. O historiador é iconoclasta. No momento de um pessimismo militante, sua obsessão
para demonstrar que a realidade não foi o que se acreditava, coisa mais fácil do que ad-
mitir para o passado que para o presente, lhe é o mais atraente. Ele é relativista. A apre-
ensão de um fenômeno na sua duração, de suas consequências imediatas ou ulteriores,
benéficas ou perniciosas, incita à desdramatização. Reportando-se permanentemente ao
gesto dos ancestrais, o historiador significa aos contemporâneos que eles não são nem os
primeiros nem os últimos a levar a cruz. Num registro de agora em diante clássico, ele
permite de se referir à “héritage” [herança, patrimônio], e então aceitar com um coração
menos pesado as mutações do futuro. Segundo a bela fórmula do economista Edmond
Lisle “os historiadores podem nos ensinar em definitivo que o medo diante da mudança
é um mal reflexo”. Enfim, papel nobre entre todos, o historiador concorre ao assenta-
mento de uma memória escrita, codificada, registrada. Ele é um fornecedor de identidade.
O exemplo dos historiadores ao serviço de certas empresas a este respeito é significativo.
A empresa, hoje, é sem contestação uma comunidade fundamental da vida social.
A este título, ela não pode tirar sua única legitimidade de sua atitude a fornecer, pouco a
pouco, trabalho, emprego. Ela se ressente de uma identidade histórica, dum cimento cul-
tural, real ou mítico, que viria completar a solidariedade de fato dos trabalhadores, qua-
dros e empregados. Precisamente porque esta solidariedade, sonhada pelo “patrão” mais
que real, é reposta sem cessar em questão, o recurso a um passado comum de todos os
trabalhadores da empresa parece uma solução tentadora. No século XIX, numa outra es-
cala, é o conceito histórico de “nação” que permitiu a comunidades de pessoas em situa-
ções diversas de se reconhecer numa identidade comum. É sem dúvida um processo aná-
logo que conduz algumas grandes sociedades a se curvar sobre sua história. Se no pas-
sado, desde o advento do grande capitalismo industrial, algumas dinastias como Krupp,
Ford ou Schneider tinham já consciência desta necessidade, a novidade atual do fenô-
meno, notadamente nos Estados Unidos, reside no abandono progressivo de hagiografias
servis em benefício de historiadores profissionais, onde se aceita, pelo menos aparente-
mente, a abordagem crítica. Nesta ótica, mais do que um mecenato praticado por algumas

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belas almas, as empresas têm todo interesse em se associar diretamente aos serviços dos
historiadores, destacados de toda estrutura universitária. Na França, esta separação não é
ainda clara. Ela é, pelo contrário, nos Estados Unidos, o que explica o desenvolvimento
deste setor da História Pública e de grandes agências privadas. A verdade era revolucio-
nária, ela é agora rentável.

Um perigo relativo

A História Aplicada levanta questões que são sem dúvida enriquecedoras para o
conjunto da disciplina. Mas, no campo, a prática de historiadores públicos e de seus se-
guidores não está sem colocar problemas para a evolução do ofício do historiador. Uma
pesquisa “pilotada a jusante” submete-se à tirania do contrato, engendra riscos certos.
Mesmo se aplicando com seu melhor, os historiadores-experts se expõem a uma perda de
credibilidade. Atualmente, o interesse pela história resulta também de uma evolução in-
terna. O recuo da história acontecimental e puramente descritiva, a abertura de historia-
dores a outras margens intelectuais (Antropologia, Etnologia ...), preocupações mais an-
coradas no tempo presente, têm [feito] crescer a audiência da disciplina. Uma história
estreitamente contratual arrisca ensaiar um retorno ao acontecimental, ao mais baixo, a
uma descrição não crítica do passado: o cliente que paga não é um diretor de teses for-
mado na escola dos Annales. Assim, o historiador pode ser reduzido ao papel de docu-
mentalista, talvez simples cronista.
Ademais, numa abordagem contratual, o historiador é obrigado a transformar seus
métodos de pesquisa. Já a História Pública forma estudantes a uma investigação rápida.
Não dispondo de tempo indefinido de um doutorando, o historiador contratual deve aban-
donar a esperança de uma pesquisa exaustiva de fontes. Ele deve encurtar a longa fase de
sua crítica e de seu tratamento. Enfim, mais afeiçoado a “generalistas” que a “especialis-
tas”, a História Aplicada arrisca entorpecer uma grande parte do interesse de história, que
se constrói frequentemente pela força de análises pontuais e circunscritas. O perigo é
ainda mais real, uma vez que alguns esperam de historiadores “um reforço conceitual”
(Alain Minc) que derrote outras disciplinas. Com uma prática mal gerida do contrato, os
historiadores correm o perigo de perder o acolhimento favorável do qual eles hoje são o
objeto.

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Eles se arriscam igualmente a uma perda de independência. As escolhas de objetos


de pesquisa lhes escapam por definição. A priori, a liberdade, a intuição e imaginação não
podem florescer também firmemente como numa equipe científica. Um exemplo entre
muitos: a empresa Peugeot decidiu recentemente ajudar um universitário a fazer sua tese
sobre a história da empresa. Mas ela firmou que nenhuma palavra não deve ser escrita
sobre indivíduos e a família Peugeot. O universitário, dependente da empresa para aceder
aos arquivos, pode, para além do rigor, passar-se como outro. Não há historiador pago
por uma empresa.
Enfim, a história aplicada põe o problema da comunicação dos resultados.
Uma vez a pesquisa terminada, o historiador sob contrato deve escrever em função
de seu cliente. Ele deve se adaptar a linguagem de seu contratante e sistematicamente
vulgarizar sua abordagem. Ora, mais que toda outra disciplina desta ordem, a história é
uma escrita. Num quadro contratual, o historiador é treinado sobre os caminhos da sim-
plificação. Mais grave, ele se arrisca perder o controle de seu discurso.
Entretanto, uma reflexão mais profunda mostra que estes riscos não são específi-
cos a uma pesquisa contratual. A credibilidade de uma disciplina não se mede pela sua
autoproclamação como ciência, mas a seus resultados e à influência que ela exerce no
meio intelectual e no conjunto da sociedade. A inflação de teses e trabalhos impublicá-
veis, tão “fundamentais” sejam eles, podem, eles também, enfim, desacreditar os histori-
adores.
A perda de independência, a submissão a um chefe de empresa ou a uma adminis-
tração tem decerto um lado inquietante. O professor Maurice Matloff, antigo chefe de
serviços históricos do Exército Americano, pode assim escrever: “Quando nós começa-
mos (nos anos 1940) nós tínhamos o hábito de entender que, na medida em que nós está-
vamos sendo pagos pelo Exército para escrever uma história do Exército, nós não pode-
ríamos fazer um serviço honesto”. Mas o debate sobre a independência dos intelectuais é
uma serpente do mar fatigada. Não há muito tempo, alguns historiadores, todos se pro-
clamando cientistas, aceitavam de coração leve a dependência – a tirania? – da demanda
social, com a condição de que ela emanasse “da classe operária” ... “A divisão técnica do
trabalho e o recurso ao saber-fazer especialista do historiador, podem ser preciosos – com
a condição de que esta divisão do trabalho seja dividida coletivamente por todos aqueles
que são pertinentes, no lugar de ser reivindicado como um direito exclusivamente pelos

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historiadores”, escreve Jean Chesneaux (é ele quem sublinha) em 1976. Refutando o pri-
vilégio do saber, ele aceita que “a demanda venha de outros”. Citando como exemplo
uma enquete histórica empreendida em Madagascar sobre a insurreição de 1947, ele não
hesita a proclamar.

Os pesquisadores .. podem sempre ir nas cidades malgaches ... com os questi-


onários o melhor elaborado, os gravadores os mais modernos, estagiários os
mais bem “formados”. Eles só farão acumular migalhas de informação sem
coerência interna. Só um movimento revolucionário malgache e aqueles que
lhes são ligados (porque eles são ansiosos de bem conhecer as condições da
luta política na Grande Ilha e elaborar uma estratégia política) são capazes de
apreender historicamente, na sua natureza profunda, a revolta de 1947. Porque
um movimento revolucionário tem imperiosamente necessidade de uma tal
análise

O que significa, claro, que aqueles que vivem a história são os únicos a poder
escrevê-la, com a condição, acresce Chesneaux, de que exista uma “vontade de examinar
os fatos com rigor no lugar de se contentar com fáceis imagens míticas”. Feliz época,
mesmo Billancourt tinha necessidade de historiadores. Ainda que .... Porque, à força de
se aplicar a sorte não se pode ver mais muito bem a quem eles servem, uma vez que
camaradas são todos historiadores em potencial. Paremos de ironia. E os exemplos. Ou-
tros tempos, outros costumes. Mas que bela lição ... do passado. Será mais alienante hoje
escrever para uma empresa (digamos nacionalizada) do que escrever para um partido? O
grande debate entre teoria e práxis, no centro da historiografia marxista, não foi, em al-
gumas circunstâncias, mais que o fornecimento de bom grado (?!) de ferramentas teóricas
para a prática política do Partido Comunista. Neste sentido, um estudo retrospectivo de
comando sobre Saint-Gobain, mesmo se ele caia na hagiografia, vale largamente uma
história do PCF [Partido Comunista Francês] escrita por um historiador comunista. En-
fim, a história militante é pelo menos tão suspeita quanto à História Aplicada.
Quanto à comunicação dos resultados, ela não é simplesmente problema nos casos
de estudos contratuais. A vulgarização num domínio como a história é uma necessidade.
O sucesso manifesto de uma revista como L’Histoire não apenas no grande público, mas
no meio mesmo de historiadores de ofício, demonstra que a informação histórica não
pode se difundir unicamente por trabalhos de erudição. A história não é apenas uma dis-
ciplina científica. Ela é também uma narrativa, uma escrita, a formulação de um patrimô-
nio cultural comum. Será então ilusório pretender que o historiador possa realmente man-
ter o controle de seu discurso.
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Se a História Aplicada tem problemas, os obstáculos que ela encontra são ineren-
tes ao conjunto da prática histórica. O perigo, mesmo se ele exista, é então completamente
relativo.
A História Aplicada, contratual, comandada, pode ser um futuro para os historia-
dores? Sem dúvida, com a condição de não operar uma ruptura entre aqueles que se lan-
çam sobre o mercado e os polos universitários: uma concorrência saudável. Ademais, ela
parece atual, uma vez que, desde a crise, numerosos são os intelectuais de direita ou de
esquerda que questionam o Estado-Providência. Por que nestas condições refutar uma
prática histórica fora do serviço público? Por que, uma vez que, evidente, esta tendência
se desenvolve e que as necessidades são reais, não levar em conta esta dimensão do ofício
do historiador? Depressa a reflexão se engajará, melhor os perigos serão evitados. E de-
pois, a aventura não carece de sedução. Uma vez que os anfiteatros da Sorbonne, perto
dos anos 2000, não exercem mais a mesma fascinação que antes.
A História “Aplicada”? Este artigo, com toda honestidade, não pode dar uma de-
finição clara e precisa. Sem dúvida porque, além de seu aspecto inovador e estimulante,
ela oculta o eterno debate sobre a finalidade da história enquanto prática intelectual e
científica. Sem dúvida também porque, sem o saber, nós somos todos “historiadores pú-
blicos”.

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