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A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES

TEXTOS E DEFINIÇÕES
Os capítulos anteriores buscaram demonstrar que, embora
guarde algum parentesco com a história das mentalidades difun-
dida na França das décadas de 1960 e 1970, a micro-história
apresenta trajetória e proposta singulares. À semelhança da histó-
ria das mentalidades, a micro-história se debruçou preferencial-
mente sobre temas deixados à margem, quer pela história con-
vencional ou historicista — apegada aos grandes personagens ou
eventos —, quer pela história social dedicada às estruturas sócio-
econômicas das grandes totalidades — países, épocas, regiões.
Além disso, uma e outra propuseram, de maneiras diferentes,
uma certa "antropologização" da história, no mínimo pela preo-
cupação comum com o regisíEroêtnõgráfico e a busca das alteri-
dades no tempo. Enfim, a valorização da narrativa nos dois casos
foi, desde o início, um ponto de aproximação, do que resultou,
em grande parte, a "popularização" da bibliografia histórica, que
adquiriu visibilidade considerável nas últimas décadas, ultrapas-
sando, em vários países, as muralhas do universo acadêmico.
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Mas as semelhanças não vão muito além desses pontos,


relembrando a diferença essencial entre os dois campos histo-
riográficos. No caso da melhor bibliografia produzida pelos
"historiadores das mentalidades", os recortes permaneceram
amplos — paraíso, purgatório, medo, feitiçaria, infância —,
analisados em conexão com a história geral das sociedades em
determinadas épocas — sobretudo a Idade Média e a Época
Moderna. Já najnicro jiisiária > ,ppr j e u turno, os recortes privi-
legiados foram sempre minúsculos: a história de indivíduos,
comunidades, pequenos enredos construídos a partir de tramas
aparentemente banais, envolvendo gente comum.
A micro-história, como vimos, surgiu de outras matrizes,
resultando das inquietações dos historiadores italianos, ao lon-
go das décadas de 1970 e 1980, em face da discussão sobre a
"crise dos paradigmas", e particularmente sobre as fragilidades
das mentalidades que alguns praticavam, a começar por Cario
Ginzburg. Em um célebre artigo de 1979, "O nome e o como",
publicada na revista Quaderni Storici, Ginzburg e Cario Poni
discutiram uma série de impasses da historiografia italiana na-
quela altura e abriram caminho para a micro-história. Inquieta-
vam-se com a obstinada resistência da historiografia italiana à
história social à moda francesa, em parte resultante da força do
idealismo crociano, em parte por causa de certa influência do
marxismo gramsciano — e sua adesão, um tanto pragmática, a
certas inovações, como as mentalidades.
Comentando esse percurso, Jacques Revel, historiador fran-
cês, sugeriu, em texto de 1989, que "a organização ao mesmo
tempo hierarquizada e atomizada da universidade italiana se
adaptava mal, até uma época muito recente, a empreitadas co-
letivas e anônimas, adaptadas apenas aos grandes temas da nova
história, mesmo que as incríveis riquezas dos arquivos da pe-
A MICRO-HISTORIA NOS BASTIDORES 107

nínsula tivessem podido oferecer recursos extremamente favo-


ráveis".49 A micro-história surgiu na Itália, portanto, em gran-
de parte como resultado de um mal-estar de um grupo de his-
toriadores do país diante da "dependência de modelos histo-
riográficos importados, sobretudo franceses e anglo-saxões".—
A proposta da micro-história, antes da criação da coleção
Microstorie dirigida por Cario Ginzburg e Giovanni Levi a par-
tir de 1981, começou, assim, a circular de modo informal em
uma série de pequenos artigos publicados nos Quaderni Storici,
um debate até certo ponto silencioso, na década de 1970, tem-
po em que a história das mentalidades à moda francesa se en-
contrava no apogeu. É o caso do artigo de Ginzburg e Poni, "O
nome e o como", de 1979, ou antes dele, o "Microanalisi e
storia sociale", de Edoardo Grendi, este de 1972, sem falar do
que talvez tenha sido o texto-chave de todos esses debates, pu-
blicado em 1979: o artigo de Ginzburg, "Spie. Radiei di un
paradigma indiciário" (Sinais. Raízes de um paradigma indi-
ciário).
Impossível alcançar os pressupostos da micro-história sem
conhecer com alguma profundidade alguns desses textos, bem
como o balanço da micro-história feita por Giovanni Levi, em
1991, em livro organizado por Peter Burke. Um artigo que,
vale repetir, discute os objetivos, alcances e limitações da micro-
história dez anos após o surgimento da série Microstorie. E não
será exagero dizer que a série Microstorie está para a historiografia
italiana — e ocidental — como a revista Annales está para a
historiografia francesa, de Bloch e Febvre à chamada "Nova
História", ou como, em escala menor, a revista Past andPresent
está para a historiografia inglesa ligada à história social de corte
marxista — a de Christopher Hill, Eric Hobsbawn, Perry
Anderson e mesmo E. Thompson.
108 -5§> O Í PROTAGONISTAS A N Ô N I M O S DA HISTÓRIA

No caso da micro-história, paralelamente ao aludido des-


gaste da história das mentalidades na década de 1980 e à ascen-
são da chamada nova história culturalà qual a própria micro-
história de certo modo se vincula (sem com ela se confundir),
acabou por se expandir para além da Itália, atraindo autores
ingleses, como Thompson; norte-americanos, como Natalie
Davis; franceses, como Roger Chartier e Jacques Revel, e espa-
nhóis, como Jaime Contreras, autor de Sotos contra Riquelmes
(1992), estudo microanalítico sobre conflitos familiares e jogos
de interesse envolvendo cristãos-novos e autoridades públicas
no tempo da Inquisição. Alcançou mesmo a Alemanha — país
onde os livros franceses de história das mentalidades custaram a
ser traduzidos —, a julgar pela coletânea publicada na década
de 1990, em Frankfurt, sob a organização de Hans Medick:
Micro-histoire. Neue Pfade in die Sozialgeschichte.
Mas parece ser na França — sempre ela — que a micro-
história tem encontrado o abrigo preferencial, sem contar a Itá-
lia, incluindo a tradução de vários livros de pesquisa publicados
na Microstorie italiana e, sobretudo, a realização de colóquios e
seminários, como o realizado na École des Hautes Études en
Sciences Sociales na década 1990, sob o patrocínio do Ministé-
rio de Pesquisa e Tecnologia francês. Dele resultou o importan-
te livro Jeux d'echelles: la micro-analyse à la experience, publica-
do, sob a organização de Jacques Revel, em 1996, e traduzido
no Brasil pela editora da Fundação Getúlio Vargas com o título
Jogos de escalas: a experiência da micro-história.
Do conjunto desses textos, podemos extrair algumas defini-
ç õ e s gerais acerca da micro-história, que decerto permitem situá-
la como campo específico, distinto da história das mentalida-
des e só em parte classificável no vasto campo da nova história
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cultural. De todo modo, são definições que permitem compreen-


der — ou ao menos entrever — o campo teórico-metodológico
que chamei aqui "A micro-história nos bastidores", no qual se
inserem os enredos de livros comentados no capítulo anterior
— o da "Micro-história em cena".
Se for o caso de localizar um "texto fundador" da.perspecti-
va micro-histórica este seria provavelmente o "Sinais: raízes de
um paradigma indiciário". 50 É certo quejodos os autores dessa
corrente recusam admitir a existência de um texto inaugural da
micro-história, insistindo em uma gênese discreta e informal,
do ponto de vista teórico, e no caráter "extremamente empírico",
nas galavras de Revel, das abordagens que explicitaram esse cam-
po. Ele mesmo admite, porém, que o Raízes, de Ginzburg, "teve
a ambição de fundar um novo paradigma histórico", "alcançou
ampla repercussão e teve ampla circulação internacional" —
embora não considere que ele permita explicar "a produção
micro-histórica que se seguiu à sua publicação". 51
Seja como for, foi nesse instigante texto que Ginzburg, em
uma linguagem distante dos cânones historiográficos, compa-
rou o trabalho do historiador ao do detetive, como o Sherlock
Holmes de Conan Doyle, que procura refazer a trama que le-
vou a um crime remontando o quebra-cabeça de indícios frag-
mentários. Ou ao do médico, que asculta, os sintomas de seu
paciente, ou mesmo às artes venatórias do caçador primitivo,
que rastreia sua caça por meio de sinais invisíveis. O historiador
seria, assim, por excelência, um p e ^ u i ^ d o r de evidênçi^ peri-
féricas, aparentemente banais, incertas, porém capazes, se reu--
nidas em uma trama lógica, de reconstruir a estrutura e dinâ-
mica de seus objetos. Vem daí a outra célebre comparação que
faz Ginzburg entre o trabalho do historiador e o "método
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Morelli" que, na crítica de arte, buscava identificar as falsifica-


ções na periferia dos quadros, nas unhas, nos detalhes minús-
culos da anatomia, nas "vinhetas", enfim, do motivo central —
mais fácil de "copiar" porque fiel, sendo destro o falsário, ao
estilo do pintor copiado.
Cario Ginzburg propôs, nesse artigo, como derivação des-
sas comparações, a história como "ciência do particular", do
caso irrepetível e único, e não como ciêncíacle tipo "galileano",
construída a partir de abstrações e conceitos gerais. Disso de-
- corre uma concepção de história como essencialmente indutiva,
como prática de pesquisa, e não baseada ém modelos hipotéti-
cos-dedutivos, calcada na exaustiva pesquisa documental, na
erudição e no rigor factual. E implica a admissão de que o his-
toriador, debruçado sobre casos particulares para o qual só dis-
põe de evidências fragmentárias ou indiciárias, não pode esca-
par de certo ânimo conjectural ou especulativo, como o Sherlock
do romance policial. Dito de outro modo, não godeevitar cer-
ta dose de subjetivismo — o que não o autorizaria, porém,
segundo Ginzburg, a dar asas à imaginação de modo infrene.
Reside decerto nesses pontos "a ambição de fundar um novo
paradigma historiográfico" que Revel e outros viram nos "Si-
nais" — o que sem dúvida ofereceu uma alternativa teórica dis-
tinta da história-síntese, seja a Bráudeliána, seja a marxista.^
Mas o que interessa, aqui, é menos o modefo gerâl do que a
proposta micro-histórica embutida no texto. Elegendo a pes-
quisa de indícios como método da prática historiográfica, e re-
conhecendo a legitimidade das particularidades como objeto
da história — o que não se deve confundir, repita-se, com re-
cortes monográficos típicos de qualquer pesquisa histórica — o
"paradigma indiciário" abriu caminho para a pesquisa de mi-
crotemas e, mais que isso, para a pesquisa microanalítica.
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E quando digo microtemas — vale insistir nesse ponto —


refiro-me a estudos exaustivos de comunidades periféricas ou
de personagens sem nenhuma celebridade na História, com
H maiúsculo, e não a temas gerais que estavam no "sótão" da
história e foram resgatadas pelas "mentalidades" — tal como
a história do medo, do purgatório ou da morte no Ocidente. E
quando menciono a microanálise, refiro-me à descrição e inter-
pretação de casos minúsculos e periféricos à luz de uma história
geral, e não à história que, embora debruçada sobre o mental,
busca inserir seus objetos em totalidades explicativas.
Em "O nome e o como" de 1979, Ginzburg foi mais explí-
cito e definiu a análise micro-histórica como bifronte:

Por um lado movendo-se em uma escala reduzida, permite em


muitos casos uma reconstituição do vivido impensável em outros
tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estru-
turas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula.52

Uma primeira definição, decerto ainda muito incipiente mas


capaz de explicar o enquadramento teórico das histórias de um
Mennochio — que Ginzburg já havia publicado (1976), de um
Martin Guerre, de um Gian Battista Chiesa. "Outros tipos de
historiografia", como diz Ginzburg, preocupados com deter-
minações gerais ou estruturas e dinâmicas totalizantes, jamais
alcançariam a riqueza e a complexidade desses enredos ou per-
sonagens. Mas Ginzburg também menciona a palavra "estrutu-
ra" nesse trecho, lembrando que os historiadores predominan-
temente têm identificado o conceito à "longa duração". Refere-
se, sem o dizer, à história das mentalidades, da qual a proposta
de uma micro-história se afasta, para propor um conceito de
estrutura como sistema que engloba tanto a sincronia como a
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diacronia. Tem-se aí, ainda que em esboço, a proposta de uma


atitude claramente "antropologizante" da história, exceto, tal-
vez, pelo discreto descarte da "longa duração", herança da "fri-
aldade" que os historiadores das mentalidades tomaram de
empréstimo à antropologia estrutural. Não resta dúvida de que
a micro-história, se não sepultou, longe disso, o tempo inercial
das estruturas mentais na construção de seus enredos, voltou-se
apaixonadamente para o tempo curto e frenético dos aconteci-
mentos, de preferência banais.
Por isso, Ginzburg afirma sem rodeios:

Propomos definir a micro-história, e a história em geral, como ciên-


cia do vivido: uma definição que procura compreender as razões
tanto dos adeptos como dos adversários da integração da história
nas ciências sociais — e assim irá desagradar a ambos. 53

Descontada a reiterada veleidade de fazer da micro-história


a "verdadeira" história, a micro-história se propõe,_aquL çomo
disciplina interdisciplinar por excelência, quase como uma "an^
tropologiíTKistórica" ou mesmo como "sociologia histórica".
Pode agradar a muitos, como agradou à plêiade de historiado-
res que aderiu à micro-história ou mesmo a alguns antropólo-
gos e sociólogos — que por meio dela "descobriram" a história,
isto é, a capacidade interpretativa que pode fazer o historiador
de comunidades ou sociedades concretas. Mas pode desagradar
a ambos — sugere ironicamente Ginzburg, e com razão, a jul-
gar pelos historiadores e cientistas sociais que criticam ou mes-
mo desqualificam a micro-história.
Quase dez anos depois, em 1991, Giovanni Levi escreveu:

A micro-história é essencialmente uma prática historiográfica em


que suas referências teóricas são variadas e em certo sentido ecléticas.
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O método está de fato relacionado, em primeiro lugar, e antes de


mais nada, aos procedimentos reais detalhados que constituem o
trabalho do historiador, e, assim, a micro-história não pode ser de-
finida em relação às microdimensões de seu objeto de estudo.54

Dez anos depois do surgimento da Microstorie na Itália — e


15 títulos —, Levi reconhece o ecletismo teórico dos micro-
historiadores^ marxistas, neo-historicistas, "annalistes" à moda
francesa etc., mas sublinha a identidade metodológica da pes-
quisa— detalhada, microscópica—, mais definidora dessa "prá-
tica historiográfica" do que a dimensão minúscula do objeto ou
a escolha de um tema banal e miúdo para a investigação. E
reside nessa definição, pouco ambiciosa mas realista, uma das
chaves da micro-história, que será retomada adiante: a redução
da escala de observação.
Foi nesta linha que seguiu Jacques Revel, historiador fran-
cês que chamou ji si a responsabilidade.j[e.difundir_na_França a
micro-história, insistindo nos vínculos que esta mantém com a
história social. Prefaciando o Leredità immateriale, de Levi, que
na França apareceu em 1989 como Le pouvoir au village, afir-
mou com graça que a micro-história não é, como alguns imagi-
nam, um "eco italiano do smallis beautifuU", nem propõe uma
"revolução epistemológica", mas consiste em um método de
investigação e narrativa com forte dimensão experimental, pre-
ocupada em vasculhar as estratégias individuais ou comunitá-
rias de ação em um tempo histórico determinado, buscando
exemplos ou grupos típicos. O fundamental, reafirmaria Revel
em artigo de 1996, reside na microanálise da história. Trata-se
do mesmo caminho adotadcTpor Levi na definição da micro-
história, sendo discutível, porém, sua afirmação de que ela não
propõe, pela microanálise, uma "revolução epistemológica". Os
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enredos expostos no capítulo anterior e o próprio texto de Revel


publicado em 1996 — cujos roteiros metodológicos comenta-
rei adiante — demonstram o quanto a micro-história é revolu-
cionária em termos de pesquisa e narrativa.
Enfim, outro importante historiador italiano da micro-his-
tória, Edoardo Grendi, afirma em artigo de 1994, que, após
circular informalmente em meados da década de 1970, a micro-
história se inscreveu, conscientemente, "em uma evolução te-
mática própria da historiografia italiana...", como uma propos-
ta de "mudança radical da escala de observação". 55 No entanto,
Grendi reconhece a ocorrência paralela, na década de 1960, e
quase sem ressonância, da local history proposta pelo inglês W.
G. Hoskins, que apontava para o estudo da comunidade, "ins-
crita na determinação topográfica e econômica" e a eleição do
"ponto de vista societal" como escala de observação — o que
levou o autor a usar mesmo a expressão microhistory, por ele
mesmo abandonada, depois, em razão de sua hostilidade decla-
rada a fórmulas.
De todo modo, a microhistory parece ter adensado a preocu-
pação crescente de muitos historiadores britânicos por uma his-
tória antropológica das classes populares, com destaque para E.
P. Thomson — o que talvez explique sua parcial adesão à micro-
história italiana. O fato é que, nesta passagem de uma história-
síntese, debruçada sobre a problemática da produção e das tro-
cas, para uma história voltada para as linguagens e representa-
ções — onde se inclui o próprio "pontificado" das mentalida-
des" e o surgimento da micro-história — o ânimo era o de
reconstruir uma "história vista de baixo". Eis uma preocupação
fortíssima, quer da historiografia britânica, em uma perspecti-
va talvez mais sociológica, sem deixar de ser antropológica, quer
da italiana, inicialmente preocupada com o estudo de casos in-
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dividuais — ambas, porém, decididas a debulhar as potencia-


lidades da pesquisa em arquivo, levando-a às últimas conse-
qüências.
Daí a micro-história se apresentar, para Grendi, em_dugla
dimensão: a social e a cultural — mesmo que a linha divisória
entre ambas "permaneça fugidia e imprecisa". Quanto ao pon-
to de vista de uma micrxthLstária_"cultural!'> poderíamos dida-
ticamente exemplificar c o m o 1'wtoJDqueijo e os vermes,, rese-
nhado no capítulo anterior, cuja centralidade reside na figura
de um obscuro moleiro do Friuli, suas idéias heterodoxas, sua
desdita na Inquisição e, acima de tudo, na potencialidade do
caso para se alcançar distintos níveis de cultura e a circularidade
entre ambos na passagem de uma cultura baseada na oralidade
para outra baseada na escrita. Quanto à micro-história de corte
mais "social", um excelente exemplo seria a Herança imaterial,
de Giovanni Levi, que, não obstante parta da biografia de um
exorcista do baixo clero no Piemonte seiscentista, executa au-
têntica história social em escala microanalítica, preocupada com
as microconflituosidades territoriais e com os "idiomas políti-
cos" em um estudo de comunidade. Nos dois casos, porém, a
exemplo das diversas definições até aqui expostas, sobressai a re-
dução da escala de observação como ponto de partida_mgtOb_
dológico da micro-história, o que a diferencia, explícita e assumi- 1
damente, da história-síntese.
Realizando um balanço, em 1994, das dúvidas, dos desafios e
propostas então colocados pela historiografia, Roger Chartier deu
bem a medida, da. especificidade da micro-história, diferencian-
do-a da história-síntese, bem como do simples estudo de caso:

Radicalmente diferente da monografia tradicional, a micro-histó-


ria pretende construir, a partir de uma situação particular, normal
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porque excepcional, a maneira como os indivíduos produzem o


mundo social, por meio de suas alianças e seus confrontos, através
das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem. O
objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas
e os mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo,
as relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas
pelascomunidades, as parenteías, as famílias, os indivíduoá^

A REDUÇÃO DA ESCALA E SUAS DERIVAÇÕES


Um dos melhores textos para se compreender os procedi-
mentos da micro-história é o já citado artigo de Jacques Revel,
"Microanálise e construção do social", no qual elenca quatro
importantes redefinições na prática historiográfica, todas inter-
ligadas e resultantes da redução da escala de observação.57

• Redefinição dos pressupostos da análise sócio-histórica:

O recurso a sistemas classificatórios com base em critérios explíci-


tos (gerais ou locais) é substituído, na microanálise, pela decisão de
levar em consideração os comportamentos por meio dos quais as
identidades coletivas se constituem e se deformam.

Revel adverte que tal deslocamento não implica descartar as


propriedades objetivas da população estudada, a exemplo de sua
estratificação em classes ou em estratificações de poder, mas de
buscar seus usos na situação concreta. Dito de modo mais sim-
ples, a micro-história não se ocupa em definir a fundo e apriori,
quer na pesquisa, quer na exposição dos casos, o caráter da so-
ciedade na qual se insere o enredo, a comunidade ou o persona-
gem estudado. Mais importante do que o caráter geral da so-
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ciedade estudada — como no caso da sociedade camponesa de


Antigo Regime, enunciada por Giovanni Levi, por exemplo —
é a teia social concreta onde os atores se movem, exercendo
múltiplos papéis sociais e individuais. Assim, na micro-história
prevalece, no tocante à delimitação do campo social estudado,
procedimentos de nominação dos atores e da caracterização de
perfis individuais no interior de determinado grupo ou classe,,
mais do que a definição geral da classe ou do grupo ao qual
pertence.

• Redefinição da noção de estratégia social:

Levando em conta, em suas análises, uma pluralidade de destinos


particulares, eles (os micro-historiadores) procuram reconstituir um
espaço dos possíveis — em função dos recursos próprios de cada
indivíduo ou de cada grupo no interior de uma configuração dada.

Isto eqüivale a dizer, antes de tudo, que no campo da micro-


história, uma vez que o historiador supervaloriza as escolhas e
atitudes individuais para reconstituir a sociedade estudada em
escala microscópica, importa analisar não apenas os fatos ocor-
ridos, mas os dilemas, os impasses, as incertezas de cada um —
ou, mais comúmèntérdõs personagens centrais. Nisso reside,
enTgrãnde medida, o território "conjectural" ou "especulativo"
de muitos textos da micro-história, cuja narrativa se assemelha,
nesse ponto, a uma narrativa "romanceada" da história. Ela de-
riva, no entanto, dos indícios recolhidos pelo historiador das
múltiplas..po§sibilidades_.de ação de tal ou qual personagem ou
dos múltiplos desfechos de determinado caso. Qual seria, por
exemplo, o destino do falso Martin Guerre, se o verdadeiro Mar-
tin Guerre não aparecesse no tribunal de Toulouse? Por outro
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lado, esta redefinição de estratégia social dos atores implica o


descarte ou a minimização de atitudes modelares derivadas ne-
cessariamente da posição de classe dos indivíduos ou de seu
status político, e abre largo caminho à investigação das
imprevisibilidades.

• Redefinição da noção de contexto:

A originalidade da abordagem micro-històrica parece estar em re-


cusar... um contexto unificado, homogêneo, dentro do qual e em
função do qual os atores determinariam suas escolhas.

Segundo Revel, a micro-história recusa os usos mais con-


vencionais (mais "cômodos e preguiçosos", nas suas palavras)
da noção de contexto, a saber: o uso retórico, no qual o contexto
é uma preliminar ao estudo monográfico, produzindo um "efeito
de realidade em tomo do objeto de pesquisa"; o uso argumen-
tativo, no qual o contexto apresenta as condições gerais, ao lon-
go do trabalho, nos quais a realidade estudada encontra o seu
lugar; o uso interpretativo, no qual retira-se do contexto geral as
razões que explicam situações particulares. A noção de contex-
to, na micro-história, evita o divórcio entre uma realidade
i abrangente (contextual) e a situação particular estudada (tex^
jtual), sugerindo uma idéia de contexto que se limita às múlti-
p l a s experiências, contraditórias e ambíguas, por meio das quais
-"os homens constroem o mundo e suas ações".
De modo que é o enredo em foco — no caso, microscópico
— que deve encerrar o contexto principal do micro-historia-
dor. A redefinição da noção de contexto implica, portanto, para
a micro-história "jam convite para inverter o pr£cedimentojnais
habitual para o historiador; aquele que consiste em partir de
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 1 9

um contexto global para situar.e interpretar seu texto". Reside


nesse ponto uma das ambições da micro-história: conseguir ilu-
minar aspectos da história geral, dinâmicas, processos que for-
çosamente escapam a um olhar macro-histórico das sociedades.

• Redefinição da hierarquia das problemáticas históricas:

O trabalho de contextualização múltipla praticado pelos micro-


historiadores... afirma, em primeiro lugar, que cada ator histórico
participa, de maneira próxima ou distante, de processos — e por-
tanto se inscreve em contextos — de dimensões e de níveis varia-
dos, do mais local ao mais global. O que a experiência de um indi-
víduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modu-
lação particular da história global. Particular e original, pois o que
o ponto de vista micro-histórico oferece à observação não é uma
versão atenuada ou parcial ou mutilada de realidades macrossociais:
é, e este é o segundo ponto, uma versão diferente.

A multiplicidade de papéis desempenhados pelos protago-


nistas da narrativa micro-histórica, inseridos em múltiplos con-
textos nao-compartimentados, implica, assim, a recusa em
hierarquizá-los. Determinado personagem pode e deve ser vis-
to como pertencente a determinada classe social de alguma al-
deia, situada em uma região de certo país — e neste nível está-
se diante de problemáticas gerais que, de algum modo, se fazem
presentes na construção dos enredos micro-históricos. Mas o
reconhecimento desse pertencimento dos indivíduos a deter-
minada classe social, a uma categoria de ofício ou a determina-
da região em certa época assume tanta importância quanto seu
estado civil, suas sociabilidades, seus talentos e afetos indivi-
duais. Na escala microanalítica, as condições gerais que envol-
1 2 0 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

vem determinada comunidade ou indivíduo se diluem a ponto


de só adquirirem inteligibilidade no enredo miúdo, por meio
do case study. É por esta razão que o recorte microanalítico,
longe de ser simplesmente uma particularidade minúscula de
um todo mais amplo reconhecido pelo pesquisador, constitui,
em grande medida, o resultado de uma opção analítica que opera
em escala reduzida. Uma opção^ue se recusa, portanto, a ver as
totalidades ã priori, e_SÓ as vê quanHo dj[njdas nnparriri11ar
E óbvio que o roteiro metodológico proposto por Revel que
venho de comentar constitui tão-somente um modelo de como
se conduz, preferencialmente, um exercício de microanálise his-
tórica, todo ele resultante da redução de escala.
A micro-história não é, porém, somente uma questão rela-
tiva ao sujeito, no caso o historiador que reduz sua escala de
análise. Nesse sentido, a micro-história não propõe, ao optar
por tal redução, alguma espécie de renúncia à realidade históri-
ca, em favor de tramas pseudo-históricas, "quase históricas" ou
mesmo ficcionais, como dizem alguns de seus críticos. Por ou-
tro lado, também sua legitimidade não está condicionada a ser-
vir de exemplo a alguma interpretação globalizante — esta sim
suposta por alguns como a única realidade possível — embora
muitas vezes ela possa funcionar desse modo, seja para historia-
dores profissionais, seja para leitores interessados na história.
Giovanni Levi complementa bem essa originalidade da pers-
pectiva microanalítica, ao dizer que a escala, seja macrossocial,
seja microssocial, tem sua própria existência na realidade, de
modo que não se trata apenas de o historiador decidir sobre
qual será o ponto de observação, mas também de saber alcan-
çar a existência de universos sociais minúsculos efetivamente
existentes e registrados na documentação arquivística. Prossi-
go com Levi:
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 2 1

A idéia de que a escala tem sua própria existência na realidade é


aceita até por aqueles que consideram que a microanálise só opera
através do exemplo, ou seja, como um processo analítico simplifi-
cado — a seleção de um ponto específico da vida real, a partir do
qual se exemplificam conceitos gerais — em vez de funcionar como
um ponto de partida em direção à generalização. O que as dimen-
sões dos mundos sociais de diferentes categorias de pessoas e de
diferentes campos estruturados de relacionamentos demonstram é
a natureza precisa da escala que opera na realidade.58

Se assim é, a micro-história diz respeito ao sujeito — o hisr


toriador que reduz sua escala analítica — e simultaneamente ao
objeto^jnç^caso os enredos e conflitos protagonizados por agen-
tes anônimos da realidade histórica. Quer se goste ou não da
micro-história, não resta dúvida de que ela propõe senão uma
"revolução", ao menos uma evidente inovação epistemológica.

MICROANÁLISE E ANTROPOLOGIA INTERPRETATIVA


A exemplo da história das mentalidades ou da nova história
cultural, em suas diferentes versões, a micro-história se encontra
muito próxima da antropologia, apesar de ter surgido no círculo
dos historiadores. Mas dizer isso é dizer pouco ou quase nada.
No caso da história das mentalidades, pelo menos duas cor-
rentes antropológicas se fizeram presentes. Primeiramente a de
Lévy-Bruhl, desenvolvida em fins do século XIX, difusora do
conceito de "pensamento pré-lógico" ou de "mentalidade pri-
mitiva" para estudar as "sociedades tribais", que marcou pro-
fundamente a obra de Lucien Febvre, nas décadas de 1930 e
1940, e a de muitos historiadores franceses dedicados às men-
talidades. É caso de lembrar, a propósito, a crítica de Stuart
122 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

Clark à competência antropológica dos historiadores franceses


da feitiçaria, exatamente por utilizarem essa antropologia ultra-
passada e, no seu entender, responsável por juízos anacrônicos e
teleológicos.59 A outra corrente é a antropologia estrutural de
Lévi-Strauss, difundida sobretudo nas décadas de 1950 e 1960,
e responsável em grande medida pela visão de estrutura adotada
pelos historiadores franceses. Estrutura relacionada às relações do
homem com o meio — e portanto às condições materiais de
existência — como em Braudel ou no marxismo althusseriano,
ou estrutura relacionada ao campo do mental, como nos histo-
riadores do pós-1968. Mas, de todo modo, tratava-se de um con-
ceito de estrutura embebida de "frialdade", quase imóvel, por
vezes definida como inconsciente, e de várias maneiras relaciona-
da ao conceito de longa duração.
Pois nem a noção de pensamento pré-lógico, nem o estru-
turalismo de Lévi-Strauss marcam os laços que ligam a história
e a antropologia no caso da micro-história, senão, em larga
medida, a antropologia hermenêutica e interpretativa de Clifford
Geertz, difundida na década de 1970, sobretudo após a publi-
cação de A interpretação das culturas, em 1973. 60 Os pressupos-
tos desta antropologia repousam, de maneira muito esquemática,
no relativismo cultural o mais amplo possível — que mais do
que recusar o etnocentrismo desconfia de todo tipo de compa-
ração que possa significar alguma hierarquização entre cultu-
ras. As culturas seriam, assim, universos fechados e auto-ex-
plicativos, cujos significados simbólicos somente fazem sentido
para aqueles que os criaram e teceram. Ao intérprete das cultu-
ras — o observador, o antropólogo — caberia fundamental-
mente descrevê-las, jamais compará-las com outras, muito me-
nos buscar explicações teóricas baseadas em conceitos estranhos
aos códigos do universo cultural estudado.
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 2 3

O conceito-chave de Geertz que passou para a historiografia


é o da descrição densa — thick description — derivado da con-
vicção de que o etnógrafo inscreve o discurso social e o anota-.

Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe


apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que
existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente. 61

Trata-se de uma operação hermenêutica de textos e códigos,


uma decifração que se produz a partir do registro analítico do
observador fiel ao discurso do universo cultural pesquisado.
Assim, a descrição etnográfica ou densa, tal como a entende
Geertz, possui quatro características fundamentais: 62

1. é interpretativa;
2. o que ela interpreta é o fluxo do discurso social;
3. a interpretação consiste "em tentar salvar o dito em um
tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo
em formas pesquisáveis";
4. é microscópica.

A antropologia interpretativa de Geertz — admite-o o pró-


prio Giovanni Levi, que tem muitas reservas a esse respeito —,
tem marcado muito a perspectiva da microanálise histórica. Não
por acaso o modelo hermenêutico de Geertz figura como um
dos paradigmas da nova história cultural oferecidos na coletâ-
nea organizada por Lynn Hunt na década de 1990 — particu-
larmente como modelo possível para estudos de história local
em perspectiva histórico-antropológica. 63 E, de fato, se formos
comparar os pressupostos da antropologia hermenêutica de
Geertz com os procedimentos da micro-história, haveremos de
1 2 4 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

encontrar muitos pontos em comum: o recorte microscópico


do objeto; a recusa em contextualizar globalmente o universo
de pesquisa; a ausência de comparações em favor da descrição
de casos únicos.
É no artigo de Giovanni Levi datado de 1991 que encon-
tramos a melhor avaliação do papel da antropologia herme-
nêutica, especialmente no que toca às advertências que faz o
autor sobre a utilização acrítica da descrição densa. Historiador.
c atento ao econômico e ao social por formação, Levi desconfia,
com boas razões, do relativismo cultural absoluto proposto por
Geertz — relativismo tout court que, levado ao pé da letra, po-
deria conduzir à justificativa de processos históricos eticamente
indefensáveis, tudo em nome da "auto-explicação" e identidade
das sociedades em causa. Discorda, também, do pouco caso em
relação às teorias explicativas, apesar de o próprio Geertz consi-
derar "proveitosa", retoricamente, a busca de leis e conceitos
gerais. Isto porque, alega Levi, embora legitimadas, as teorias
são para Geertz de pouca utilidade, não servindo para "codifi-
car regularidades abstratas", mas para "tornar possível a descri-
ção densa"; "não para generalizar os casos cruzados, mas para
generalizar dentro do seu interior." 64
A partir dessas restrições de princípio, Levi indica duas gran-
des diferenças-entre-a^antropologia interpretativa de Geertz e a
proposta da micro-histéria^y diferenças que, a bem da verdade
e de modo muito singelo, poder-se-ia dizer que diferenciam a
história da antropologia de maneira geral. De todo modo, nes-
sa diferenciação específica, os pontos-chave são: 1. a antropolo-
gia interpretativa "enxerga um significado homogêneo nos si-
nais e símbolos públicos, enquanto a micro-história busca defi-
ni-los e medi-los com referência à multiplicidade das represen-
tações sociais que eles produzem"; 2. "a micro-história não re-
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 2 5

jeitou a consideração de diferenciação social da mesma maneira


que a antropologia interpretativa, mas a considera essencial para
se ter uma interpretação tão formal quanto possível das ações,
do comportamento, das estruturas, dos papéis e dos relaciona-
mentos sociais".
Muito bem, fica perfeitamente esclarecido que antropolo-
gia interpretativa e micro-história não são a mesma coisa — e
seria mesmo impossível que fossem sinônimos, no mínimo por-
que os "discursos" exaustiva e densamente interpretados pelos
micro-historiadores são resíduos de um passado morto, profe-
ridos por mortos e não raro por múltiplas mediações, incluin-
do os algozes dos protagonistas. Por outro lado, não resta a
menor dúvida, a meu ver, que se a micro-história exprime al-
gum_tipo. de história antropológica, a antropologia em causa
parece ser a geertziana. Quando menos, sem trocadilho, pela
redução da escala para o nível microscópico; quando muito,
pela recusa da contextualização geral; pelo acanhamento, senão
ausência, de comparações; e pela rejeição assumida de explica-
ções generalizantes. Mas de falta de teoria, apesar do desdém de
Geertz pelo "geral", não se pode acusar seriamente a micro-
história — é o que nos parece evidente.

DA "DESCRIÇÃO DENSA" À NARRATIVA


Já me referi à importância da narrativa na micro-história no
capítulo anterior, buscando demonstrar as fronteiras que a se-
param da narrativa ficcional, uma vez que, apesar da dimensão
conjectural e intuitiva presente nesses textos, eles sempre resul-
tam de pesquisa exaustiva de diversos corpi documentais e re-
constrõim tramas históricas muito concretas. A supervalorização
da narrativa na micro-história não se pode resumir, assim, ao
126 -5§> Oí PROTAGONISTAS A N Ô N I M O S DA HISTÓRIA

"retorno da narrativa" à moda do velho historicismo, como su-


geriu Stone em artigo clássico, no mínimo porque não se reduz
a descrever, em perspectiva geral, as "histórias nacionais" e a co-
locar no proscênio os personagens célebres da História, nem
porque se esforça simplesmente para resolver um problema de
comunicação entre o historiador e seu público, entre a escrita e
a leitura da história.
O fundamento teórico da narrativa de tipo micro-histórico
reside, queira-se ou não, na adoção ou adaptação da "descrição
densa" de Geertz, seja como método de análise das fontes —
qüe funcionam como os "discursos" anotados na pesquisa
etnográfica de campo, seja como fórmula expositiva. O modelo
ideal da exposição micro-histórica consiste, assim, em descre-
ver e interpretar os discursos contidos nas fontes, em perspecti-
va microscópica, tal como proposto por Geertz, com a diferen-
ça deveras importante de que, para o historiador, importa cote-
jar versões do mesmo episódio, sejam as diferentes versões me-
ramente circunstanciais, sejam provenientes da posição social
dos que emitem o discurso, sejam, ainda, resultantes de estraté-
gias concretas que combinem circunstâncias e interesses. Como
afirma Alban Bensa em "Da micro-história a uma antropologia
crítica': 66

A micro-história se apóia no exame das rupturas, das incoerências e


das incompreensóes que surgem nos documentos, conferindo uma
importância considerável às trocas verbais.

A narrativa micro-história não chega, portanto, a renunciar


à explicação — o que, se feito, implicaria a renúncia do histo-
riador, ao menos no plano expositivo, a um de seus deveres de
ofício. Mas, à diferença das demais narrativas históricas — in-
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 2 7

cluindo a da história das mentalidades —, a narrativa micro-


histórica evita explicações generalizantes, de modo que o histo-
riador assume, quando muito,, o papel de narrador onisciente de
uma trama. Ancorado em uma pesquisa exaustiva de fontes his-
tóricas, sabedor dos fatos efetivamente ocorridos, bem como
dos que não passaram de possibilidades, o historiador o explica
por meio da narrativa. Ele "remete as propriedades de fenôme-
nos fortemente individualizados às características gerais dos
conjuntos nos quais eles se inserem".67 Conjuntos_ou,.cantextos
que são evidentemente minúsculos, mas que, dependendo do
leitor, de seu background na disciplina, pode iluminar aspectos
da história geral.
A enorme atenção dispensada pelo micro-historiador aos
fatos particulares possíveis, que não raro rivaliza com a análise
dos fatos consumados e registrados nas fontes, é, como vimos,
um ponto que para muitos abala a confiabilidade da micro-
história como texto historiográfico. Já vimos que tal ceticismo
é pouco defensável do ponto de vista da concepção do objeto
micro-histórico, uma vez que não raro ele parte da identifica-
ção de um corpus documental a partir do qual se define a pro-
blemática de investigação. De sorte que a classificação e a aná-
lise dos materiais são etapas simultâneas de um mesmo esforço
decifratório.
Além do mais, como bem lembra Revel no prefácio à He-
rança imaterial de Levi, a idêntica preocupação do micro-histo-
riador com fatos verdadeiros, verossímeis ou presumíveis exi-
bem uma dimensão experimental da micro-história que longe
está de lhe ser exclusiva. Na década de 1970, livros inteiros
foram construídos em perspectiva macro-histórica — e no cam-
po da história econômica — a partir de hipóteses contrafactuais,
como no exemplo bastante conhecido da New Economic History
128 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

norte-americana. O que teria ocorrido com a economia norte-


americana não fosse a expansão das ferrovias no século XIX? —
eis o exemplo famoso dessa corrente. É caso de dizer que a di-
mensão experimental funciona de maneira mais pertinente na
micro-história, a meu ver, do que no plano de uma história
mais geral, onde o lugar de uma hipótese contrafactual pode
resvalar para a puerilidade, quando não para a especulação ab-
surda. No caso^ da micro-história, sendo o enredo minúsculo e
havendo uma trama a desvendar, o método indiciário, considera-
do no seu sentido estrito, apreséntã pòtenciálidades êvidentes.
Se a preocupação com Fatos apenas verossímeis ou
presumíveis é parte integrante e indescartável da micro-histó-
ria, o lugar por vezes exagerado que ela ocupa na narrativa per-
manece como questão em aberto. Os perigos do abuso da
conjectura aparecem, por exemplo, no Martin Guerre de Natalie
Davis:

Como teria feito Arnauld du Tihl para representar tão bem o papel
de Martin Guerre, o verdadeiro marido? Teria havido um acordo
prévio entre os dois? E até que ponto a mulher, Bertrande, teria
sido cúmplice do impostor?

É Cario Ginzburg quem menciona esse elenco de indaga-


ções que brotam do texto de Natalie Davis para afirmar que,
tivesse a autora se limitado a esse tipo de narrativa, não teria
ultrapassado o nível da anedota. 68 Ou, em outras palavras,
estaríamos passando da "descrição densa" para a especulação
desenfreada de tipo novelesco. Mas é certo que o livro de Davis
não se resume a tais inquietações e divagações, embora abuse
um pouco dos "talvez" e dos "possivelmente", em boa parte
porque no caso específico desse livro, a autora não trabalhou
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 2 9

com o dossiê judiciário original, senão com as memórias dos


juizes.
De todo modo, indagações ou conjecturas desse tipo, devi-
damente inseridas nos respectivos microcontextos, além de se-
rem absolutamente inevitáveis em uma narrativa microanalítica,
correspondem a dois propósitos essenciais do texto micro-his-
tórico. A primeira tem a ver com a ambição fundamental da
micro-história no sentido de verticalizar situações e processos
que se encontram à margem da história geral ou da perspectiva
macrossocial de análise. A segunda tem a ver com a comunica-
ção entre historiador e leitor.
Giovanni Levi esclarece esta primeira característica essen-
cial da narrativa micro-histórica, decerto derivada da adapta-
ção da "descrição densa" à história:

É a tentativa de demonstrar, através de um relato de fatos sólidos, o


verdadeiro funcionamento de alguns aspectos da sociedade que se-
riam distorcidos pela generalização e pela formalização quantitati-
va usadas independentemente, pois essas operações acentuariam de
uma maneira funcionalista o papel dos sistemas e dos processos
mecanicistas de mudança social.69

Não se trata, pois, de negar os sistemas de regras nem os


processos mecanicistas de mudança por meio da narrativa de
casos singulares, mas de propor, por intermédio dela, um deslo-
camento de foco. Por meio da narrativa amiudada de certo caso,
o que se pretende é exibir a relação entre determinado sistema
de regras ou determinações históricas da sociedade estudada e
as ações individuais: as escolhas que fizeram ou deixaram de
fazer os agentes históricos dentro da margem de liberdade pes-
soal que lhes podia tocar, quer em relação a episódios específi-
130 -5§> OÍ PROTAGONISTAS A N Ô N I M O S DA HISTÓRIA

cos, quer em relação ao quadro normativo do mundo em que


estavam inseridos.
A segunda característica da narrativa micro-histórica, nas
palavras de Levi:

-É aquela de-incorporar ao corpo principal da narrativa os procedimen-


tos da pesquisa em si, as linika^ões docuinentais, as técnicas de persua-
são e as construções interpretativas. Esse método rompe claramente
com a assertiva tradicional, a forma autoritária de discurso adotada
pelos historiadores que apresentam a realidade como objetiva".70

Despreocupada com a generalização e descompromissada


no sentido metodológico — com a explicação geral da socie-
dade estudada, a microanálise se debruça sobre um universo
onde as individualidades e motivações se multiplicam, por
vezes de forma avassaladora, e com isso alarga-se a margem de
imprevisibilidade e de possibilidades de interpretação. É nesse
sentido que, nas palavras de Levi, o jdjscurso macroanalítico
tradicional possui um estilo "autoritário": o historiador ordena
o seu texto de modo a contextualizar seu tema, delimitar seu
objeto, enunciar suas hipóteses e demonstrá-las metodicamen-
te, conferindo inteíigibilidade à história do alto de sua cátedra
de historiador. No caso da micro-história, a narrativa de enre-
dos minúsculos temperada com as dúvidas do próprio historia-
dor, suas conjecturas, os dilemas de seus personagens e seus
impasses pessoais, estabelece uma espécie de horizontalidade
entre o que escreve e o que lê, e entre ambos e os personagens
do enredo.

O processo de pesquisa é explicitamente descrito e as limitações da


evidência documental, a formulação das hipóteses e as linhas de
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 3 1

pensamento seguidas não estão mais escondidas dos olhos do não-


iniciado. O leitor é envolvido em uma espécie de diálogo e partici-
pa de todo o processo de construção do argumento histórico.71

Trata-se, sem dúvida, de uma técnica tomadajdej^mprésti-


mo à literatura, capaz de transformar uma pesquisa histórica
em um texto literário, sem que por isso seja ele ficcional. Mas
parece evidente que uma técnica de narrativa como essa só pode
funcionar em um gênero como o micro-histórico, jamais na
monografia explicativa ou didática, muito menos no ensaio geral.
Por outro lado, quanto à recepção, o texto micro-histórico tan-
to pode contribuir para o adensamento do conhecimento his-
tórico de determinada época ou sociedade, caso o leitor alcance
os nexos entre a "história contada no livro" e o quadro normativo
onde ela se insere, como pode ser lido como simples estória,
embora se trate de história com h. Por meio dela, oieitor não-
iniciado jjassará a conhecer mais de perto a experiência vivida,
para usar uma expressão cara aos micro-historiadores.
Há porém uma condição sine qua non para os historiadores
se aventurarem na micro-história, que não pode passar sem re-
gistro. Não me refiro apenas à competência específica nas lides
da pesquisa e do ofício investigativo, nem somente à erudição
que, na micro-história, é muitas vezes uma exigência mais im-
placável do que nas pesquisas macroanalíticas, pois ultrapassa o
conhecimento livresco ou de modelos teoricistas e tende a en-
veredar por cotidianidades e minudências etnográficas dificíli-
mas de alcançar. R ^ f u ^ m e à condição de saber escrever bem,
dominar minimamente a técnica narrativa capaz de estabelecer
a relação dialogai de que fala Levi entre o historiador e o leitor.
A falta desse talento conduzirá — como já conduziu — senão a
livros de história malfeitos, repleto de puerilidades, certamente
132 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

a textos literários paupérrimos — e no caso da micro-história


esse risco é mais grave do que na jiistória convencional^

UMA PALAVRA SOBRE O TEMPO NA MICRO-HISTÓRIA


A questão da temporalidade na micro-histórica assume espe-
cial interesse para a delimitação desse campo, em particular para
diferenciá-lo, uma vez mais, da história das mentalidades, de um
lado, e de outro, da etnografia ou da antropologia em geral.
Diferenciar a micro-história da antropologia, nesse tópico^
é tarefa bem simples, no mínimo porque, como bem lembra
Alban Bensa, "éraro os etnólogos datarem.suas informações de
campo", dando a impressão de que os membros das sociedades
estudadas se exprimam sem se referir a qualquer temporalidade.
Por essa dupla omissão, afirma Bensa, "a etnografia dá a enten-
der que descreve sistemas que resistem ao desgaste do tempo".72
Menos simples é diferenciar a micro-história da história das
mentalidades no tocante à temporalidade. Mas as diferenças
são consideráveis. Na história das mentalidades por assim dizer
clássica, como vimos no primeiro capítulo, çrtempo da história
é o tempo das estruturas, o tempo da longa duração, uma he-
rança braudeliana de certo modo plasmada na antropologia es-
trutural de Lévi-Strauss. A diferença essencial entre a "era
braudeliana" e os historiadores das mentalidades reside em que,
no primeiro caso, as "prisões de longa duração" diziam respeito
sobretudo à vida material, às relações entre o homem e o meio
geográfico, ao passo que os historiadores do mental foram bus-
car os fenômenos de longa duração nas religiosidades, compor-
tamentos, sentimentos coletivos, enfim nos fenômenos do "só-
tão" da história. É como dizia Le Goff, nos idos de 1974: "his-
tória das mentalidades, história da lentidão na história".
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 3 3

Vimos também, no mesmo capítulo, como Michel Vovelle,


historiador marxista das mentalidades, advertiu contra os riscos
dessa demasiada "antropologização" da história, de corte estrutu-
ralista, especialmente contra o risco de petrificá-la. Em artigo de
1980 especialmente dedicado à longa duração, Vovelle propôs
compatibilizar o tempo longo das estruturas com o tempo curto
disrupturas, ao que chamou "tempo medianamente longo", ca-
paz de captar as continuidades e as mudanças. Sua proposta visa-
va revalorizar os estudos sobre as crises, em particular sobre as
revoluções — e, mais especialmente ainda, sobre a Revolução
Francesa. Em um momento em que a história das mentalidades
começava a dar os primeiros sinais de desgaste, Vovelle advogou
uma espécie de "retorno" aos grandes temas, quando menos uma
atenção com os momentos de mudança brusca, nos casos dos
estudos típicos de mentalidades, ligados às "representações".
A história das mentalidades talvez não tenha alcançado essa
mediação proposta por Vovelle, sendo o estudo de temas na
longa duração uma de suas marcas mais características. A micro^.
história, por sua vez, talvez tenha conseguido alcançar esta com-
binação dificílima entre o tempo longo das estruturas e o tem-
po curto do acontecimento.
" M a s è preciso frisar, em primeiro lugar, que os acontecimen-
tos da micro-história, em perspectiva de curta duração, longe
estão dos sonhados por Michel Vovelle. Na sua proposta, a busca
da "respiração fina da história" na combinação entre longa dura-
ção e tempo curto reside na pesquisa dos grandes fatos, nos fatos
da história geral, ao passo que a micro-história somente se inte-
ressa por fatos obscuros e minúsculos. Em segundo lugar, a longa
duração e a própria noção de estrutura jamais foram usuais na
linguagem dos micro-historiadores. Em regra, seja em textos teó-
ricos, seja em trabalhos de pesquisa, essa esfera generalizante e
134 -5§> Oí PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

conceituai das sociedades estudadas é referida pela noção de cul-


tura, sistema de regras, sistema normativo. Trata-se, porém, e m cer-
ta medida, do equivalente, no campo da micro-história, daquilo
que os historiadores das mentalidades entendiam por estrutura,
pensada na longa duração secular ou multissecular.
Mas não reside nisso, no sistema normativo de dada socie-
dade ou na dinâmica de seus níveis culturais, o foco da micro-
história — e por isso, fundamentalmente, não se pode dizer que
a micro-história se confunde com a chamada nova história cul-
tural herdeira, com as devidas correções e autocríticas, da his-
tória das mentalidades francesa. O j e m p o da micro-história,
considerada sua inspiração antropológica e sua preocupação
etnográfica, é o tempo das estruturas; mas é também, simulta-
neamente, c o n s i d e r a d o seu propósito fundamental de resgatar"
personagens anônimos, imbróglios aparentemente banais ou si-
tuações-limite de determinada época, o tempo do acontecimen^
toTÉ nesse sentido q u e ' a m e u ver> a micro-história é capaz de
"operar nessa ambivalência temporal que combina o fato especí-
fico, explícito na narrativa, e o sistema geral de códigos e nor-
mas, quase sempre implícito.
AlbanB e n s a dá uma idéia geral dessa combinação de tem-
pos, quando diz:

Os estudos micro-históricos nos dão uma consciência aguda do


tempo curto, aquele que os homens acionam efetivamente em suas
vidas. Em troca, é o peso do tempo longo que é desvendado, por-
que muitas das formas que os atores integram ao seu próprio pre-
sente se encontram em outras épocas e mesmo em outros lugares. 73

O mais interessante dessa citação reside em que ela nos co-


loca diante de um paradoxo, ou seja, a de que o "tempo longo"
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 3 5

da micro-história é o que tem a ver com a diacronia, com a


história, enquanto o tempo curto do acontecimento parece res-
valar para o campo da observação sincrônica, "a aguda cons-
ciência do tempo curto", como se o historiador e o leitor pu-
dessem flagrar o que os homens efetivamente faziam em suas
vidas. Se assim é — ou se assim for — temos a sincronia no acon-
tecimento e a diacronia na estrutura ou sistema normativo. A
micro-história faria antropologia pela história e história pela
antropologia. Paradoxo desconcertante, equação impossível.
O certo é que, na micro-história, o que Vovelle propunha
como tempo "medianamente longo" se opera com freqüência
por meio da redução da escala.de observação — e só por meio
dela é que tal ambivalência temporal pode ser freqüente. Nada
de longa duração como rainha da micro-história, à diferença da
história das mentalidades. Nada de grandes fatos, no nível dos
acontecimentos, seja os consagrados pelo historicismo ou por
qualquer história geral.

TEMAS E OBJETOS: PERFIL DOS


ESTUDOS DE CASO MICROANALÍTICOS
Seria cômodo falar dos temas da micro-história adaptando
o que disse Le Goff para a documentação da história das men-
talidades, isto é, tudo pode constituir tema da micro-história,
desde que seja minúsculo, obscuro, aparentemente banal e far-
tamente documentado. Mas não seria esta uma indicação exa-
ta, a começar pelo fato de que não é a natureza dos temas nem
a relevância deles, à luz da história geral, o que define o campo
temático da micro-história.
Calcada na redução da escala de observação, na exploração
exaustiva das fontes, na descrição etnográfica e na preocupação
136 -5§> Oí PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

com a narrativa literária, a micro-história pode se interessar por


temas ou personagens desconhecidos — como era o Mennochio,
antes de Ginzburg — ou por temas bastante célebres, a exem-
plo da possessão de Salem, na Massachussets do século XVII ou
da vida de Galileu, na Itália da Época Moderna. Basta consul-
tar o catálogo da Microstorie italiana para se constatar seu
ecletismo temático e as diferenças de envergadura, entre os te-
mas estudados.
Mas é certo que a micro-história tem seus temas preferenciais
ou tipos de temas mais passíveis de serem estudados em escala
reduzida. Grandes episódios e personagens célebres são, assim,
menos usuais e menos bem-vindos à microanálise que, por sinal,
desde o início se animou com a possibilidade de inverter a histó-
ria e reconstruí-la "a partir de baixo". Assim, pode-se dizer que os
temas mais aptos a uma investigação microanalítica são aqueles
ligados a comunidades específicas — referidos geográfica ou
sociologicamente —, às situações-limite e às biografias.
Essas são dimensões não excludentes nem exclusivas da micro-
história, de sorte que determinada temática, dependendo do tipo
de documentação examinada e da perspectiva do historiador, pode
se inserir em todas elas simultaneamente. É o caso do livro de
Levi sobre o exorcista do Piemonte, que constitui, a um só tem-
po, um estudo sobre a comunidade de Santena no século XVII,
sobre a agitação popular estimulada pela prisão do pároco Giovan
Barrista Chiesa e sobre a trajetória biográfica do próprio indiciado
nos quadros de uma parentela especial do lugar.
De todo modo, se a referência é a espacialidade, a micro-
história busca o local, a aldeia, o bairro, o círculo de vizinhan-
ça, até mesmo a casa, de preferência a região ou mesmo o mu-
nicípio que, em geral, funcionam como as referências gerais
mais nítidas de um estudo microanalítico, como no caso do
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 137

Piemonte, em Giovanni Levi ou, o Languedoc, de Le Roy La-


durie, para mencionar um historiador francês que fez micro-
história sem saber ou sem querer. E claro que rarissimamente o
"nacional" funciona como referência geográfica ou política no
enquadramento de temas micro-históricos, e muito menos os
espaços supranacionais, quer teóricos (o capitalismo, o abso-
lutismo, o sistema ou impérios coloniais), quer geográficos (o
Mediterrâneo, o Atlântico). Se a referência for mais histórico-
sociológica, a micro-história se debruça preferencialmente por
uma comunidade de ofício, grupos de sociabilidade ou de cará-
ter sectário, sempre muito circunscritos e de preferência em
nível local. Estudos de comunidades específicas fornecem, assim,
temas típicos da micro-história.
Outro campo temático preferencial reside nas situações-li-
mite, momentos de ruptura na vida de comunidades provoca-
dos por incidentes de dimensão variada, desde pequenos inci-
dentes individuais a ações coletivas de alcance maior. Nesse úl-
timo caso, serve de exemplo a perseguição inquisitorial aos
albigenses na França — processo inserido no quadro geral da
expansão da Igreja romana e do combate às heresias nos séculos
XIII e X I V — p o r é m examinado no detalhe por Le Roy Ladurie
no estudo microanalítico de Montaillou. Também nessa linha
se insere o estudo microanalítico de Nissembaum e Boyer sobre
a erosão das sociabilidades vicinais e parentais em Salem, na
Massachussets do século XVII, em meio à caça às bruxas que ali
se tornou célebre. Mas a preferência dos estudos microanalíticos
recai sobre episódios que, rotineiros na prática das justiças de
outrora, se tornam situações-limite pelo impacto provocado nas
comunidades: o indiciamento do exorcista de Santena, a prisão
de um moleiro do Friuli pelo Santo Ofício, a impostura de
Arnauld du Tihl, o falso Martin Guerre de Artigat.
1 3 8 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

O estudo dessas situações-limite não raro enveredam pelas


biografias de "protagonistas anônimos", isto é, sem qualquer
celebridade na história geral. Aliás, qualificar o tipo de perso-
nagem da micro-histórica como "anônimo" constitui equívoco
sério, quase uma "heresia" à luz da micro-história, que de certo
modo assume como um de seus pontos de partida metodológicos
%Jbysça a pesquisa onomástica em arquivos notariais
ou paroquiais, visando a reconstituição de famílias, de seus re-
cursos materiais e da vida material dos lugares onde viveram
esses personagens. O fio condutor é o nome, 74 portanta>xolhi-
do em arquivos de fontes nominativas, às quais sesomam,jem
regra, como eixo documental, algum processo judiciário contra
o(s) personagem (ns), central(is).
As biografias microanalíticas podem ser consideradas, as-
sim, como microbiografias, nem tanto pela "obscuridade" dos
biografados, pois a micro-história os traz à luz e os agiganta,
nem mesmo pela miudez dos enredos de que participam, tam-
bém amplificados e colocados no proscênio pela microanálise.
São microbiografias sobretudo pela irregularidade e relativa
pobreza das fontes, não raro lacunosas para um estudo tipica-
mente biográfico. Tratando-se em geral de personagens comuns,
da vida deles só se pode conhecer com alguma profundidade
uma passagem crucial — um delito, por exemplo — consistin-
do o mais em informações analares retiradas da documentação
paroquial e/ou cartorial, por vezes complementada por alguma
) memória ou relato sobre o caso em que o tal se viu envolvido.
Os processos judiciais são muito ricos, decerto, para se alcançar
a imagem que tais indivíduos desfrutavam na comunidade, seus
laços familiares e de sociabilidade, mas a informação decresce à
medida que se recua a pesquisa para o tempo anterior ao clímax
da vida do biografado, e por vezes perde-se totalmente o seu
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 3 9

rastro, terminado o imbróglio que sustenta a narrativa. Não se


trata, assim, na micro-história, de biografia tout court, nem po-
deria, dada a natureza social dos personagens.
As biografias realizadas pela micro-história não se confun-
dem, porém, com as chamadas "biografias coletivas", a chama-
da prosopografia — biografia de certos segmentos, membros de
uma corporação etc. — embora possa guardar com elas pontos
em comum, a exemplo da pesquisa de fontes em série de arqui-
vos cartoriais, paroquiais ou corporativos de alguma institui-
ção. Mas não se trata da prosopografia, tal como definida por
Lawrence Stone, 75 seja a qualitativa, dedicada ao estudo de eli-
tes ou grupos específicos de dada sociedade (políticos, cultu-
rais, religiosos), seja a quantitativa, destinada à pesquisa de agre-
gados sociais mais amplos. A prosopografia visada pela micro-
história, alerta Ginzburg, pretende combinar a "ótica não-
elitista" na análise, dos "agregados sociais mais amplos", estu-
dando por exemplo os camponeses, ao enfoque particularizado
de um personagem-chave, desembocando "em uma série de case
studief 7 6 Estudos de caso, convém frisar, que devem exprimir
exemplos individuais de contextos microscópicos, e não estu-
dos de caso, em geral, que constituem evidentemente a regra da
pesquisa monográfica em história.
Pierre Bourdieu, sempre adepto de análises estruturais, cofF\
siderou o gênero biográfico, em artigo célebre, um absurdo cien-j
tífico, frisando sua tendência à diluição dos contextos, da su-j
perfície social e da "pluralidade de campos" de que os indiví-
duos são prisioneiros. 77 JÍlas não é necessariamente esta, ao con-1
trário da biografia convencional, a tendência das biografias]
micro-históricas.
Em artigo específico sobre o gênero biográfico, sem desco-
nhecer os problemas e possíveis ambigüidades da biografia,
140 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

Giovanni Levi a considera um "canal privilegiado pelo qual o


questionamento e as técnicas peculiares da literatura se trans-
mitem à historiografia" no que tange às relações entre história e
narrativa. Por outro lado, ressalta que a fecundidade da biogra-
fia para a pesquisa em história social — longe, portanto, da
biografia à moda historicista —, depende da prática metodo-
lógica do historiador e do tipo de biografia a que se dedique.
Levi propõe uma tipologia da biografia, como gênero, "certa-
mente parcial", diz ele, que visa "lançar luz sobre a complexida-
de irresoluta da perspectiva biográfica":

• A prosopografia e a biografia modal. U m gênero de biogra-


fia que, como vimos, se presta menos aos estudos mi-
croanalíticos, pois nele "as biografias individuais só des-
pertam interesse quando ilustram os comportamentos ou
as aparências ligadas às condições sociais para fins proso-
pográficos". 78 Para Levi, nesse campo não há, propria-
mente, "biografias verídicas", mas utilização de dados bi-
ográficos para fins prosopográficos. A prosopografia foi,
aliás, muito utilizada, lembra Levi, pelos estudos de men-
talidades de tipo quantitativo, preocupados com a "mas-
sa de excluídos", para citar Michel Vovelle. Apesar da preo-
cupação com os "excluídos", esse procedimento proso-
pográfico é mais uma diferença importante entre a micro-
história e certa linha da história das mentalidades.
• Biografia e contexto. Aqui a biografia individualizada con-
serva sua especificidade, sem ser exclusiva ou concentrar
o foco do historiador. "A época, o meio e a ambiência
também são muito valorizados como fatores capazes de
caracterizar uma atmosfera que explicaria a singularidade
das trajetórias." Ela conduz, porém, a ênfases diferentes:
A MICRO-HISTÓRIA NOS BASTIDORES <3*- 1 4 1

permite compreender o que parece inexplicável e descon-


certante à primeira vista, como no caso de Martin Guerre,
ou tende a normalizar comportamentos "que perdem seu
caráter de destino individual à medida que são típicos de
um meio social".79
• Biografia e casos extremos. Nesse caso os contextos históri-
cos são alcançados pelas margens do campo social, por
intermédio da biografia de personagens singulares, a exem-
plo do Mennochio de Ginzburg. A fecundidade da bio-
grafia desses personagens extravagantes em sua própria
época já deu mostra suficiente de seu valor para a micro-
história. Mas também traz riscos, segundo Levi: "traçan-
do-lhe as margens (do contexto social), os casos extremos
aumentam a liberdade de movimento de que podem dis-
por os atores, mas estes perdem quase toda ligação com a
sociedade normal." 80 O risco maior reside, portanto, em
fazer do caso extremo um exemplo típico de determina-
do grupo — o que não faz Ginzburg, evidentemente —
embora a "extravagância" de determinado personagem ou
o caráter extremo de alguma situação muitas vezes seja
historicamente circunstancial, produzido pelas fontes e
pelos agentes históricos que produzem quer o enredo, quer
o próprio personagem.
• Biografia e hermenêutica. É um gênero mais típico da an-
tropologia interpretativa e da história oral — baseada em
arquivos orais — e nele o material biográfico "torna-se
intrinsecamente discursivo". Presta-se menos, assim, à
micro-história.

Portanto, as biografias ligadas à reconstituição de micro-


contextos ou dedicadas a personagens extremos, com todas as
142 -5§> OÍ PROTAGONISTAS ANÔNIMOS DA HISTÓRIA

variantes, limitações de fontes e riscos que contêm, são as que


configuram as opções ideais para a microanálise histórica, sen-
do caso de sublinhar o que constitui quase uma regra.ou,-pela
menos, uma vocação da micro-história: a escolha de persona-
gens populares e desconhecidos para os estudos de caso. E vale
sublinhar um aspecto importante desse popular que, na micro-
história, quase nunca é um indivíduo típico das classes popula-
res ou subalternas, masjima figura intermediária, um "media-
dor cultural".
O fato, porém, é que os personagens célebres, oficiais ou
mesmo rebeldes são menos recomendáveis, quer por serem gran-
des personagens, quer por exigirem do historiador, a priori, a
necessária ampliação da escala de observação — o que contra-
ria frontalmente a metodologia microanalítica. Além disso, a
redução da escala de observação no caso de personagens gran-
diosos — não raro envoltos em "mitologias" de todo tipo —
pode conduzir, aí sim, ao estudo de puerilidades ou aspectos
irrelevantes do caso em foco.
A micro-história se direciona, portanto, quer nos estudos
de comunidades, de situações-limite ou de personagens popula-
res., para aquilo que está na sombra da história. À sombra do
panteão das histórias nacionais ou oficiais. À sombra das mito-
logias, ideologias e religiões.

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