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AS AMÉRICAS

NA PRIMEIRA
MODERNIDADE
(1492 - 1750) Vol.2
AS AMÉRICAS
NA PRIMEIRA
MODERNIDADE
(1492 - 1750) Vol.2

ORGANIZADORES

JORGE CAÑIZARES-ESGUERRA
LUIZ ESTEVAM DE O. FERNANDES
MARIA CRISTINA BOHN MARTINS
AS AMÉRICAS NA PRIMEIRA MODERNIDADE
(1492 - 1750) Vol.2 Apresentação
Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes
Maria Cristina Bohn Martins
Organizadores
1ª Edição - Copyright© 2018 Editora Prismas
Todos os Direitos Reservados.
Revisão ortográfica e gramatical de responsabilidade do autor.
A coleção As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)
Editor Chefe: Vanderlei Cruz - editorchefe@editoraprismas.com.br surgiu como um projeto delineado por um grupo de colegas nucleados
Diagramação: Danielle Paula
Capa e Projeto Gráfico: Danielle Paula em torno do Grupo de Pesquisas (CNPq) “História da América: fontes e
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) historiografia”. Era nosso desejo proporcionar a professores e alunos inte-
Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz ressados nesta área um conjunto de estudos que refletisse sobre o avanço
Bibliotecária CRB 9-626
do conhecimento relativo aos estudos históricos latino-americanos nos
últimos anos. Desde então, ao grupo inicial se reuniu uma série de outros
As Américas na primeira modernidade (1492-1750) / colegas que, a partir de suas diferentes especialidades, contribuíram para
A512 organização de Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina
Bohn Martins - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2018. que nosso projeto chegasse ao ponto em que hoje se encontra.
v.2: il.; 23cm
ISBN: 978-85-537-0033-2
Podemos assim apresentar ao público o segundo dos três vo-
lumes que vão compor a Coleção. Como no volume anterior, publicado
1. América – História, 1492-1750. 2. América – Condições econômicas. 3. América – em 20171, os capítulos desta obra apresentam, sintetizam e discutem o
Condições sociais. 4. Historiografia. I. Cañizares-Esguerra, Jorge (org.). II. Fernandes, Luiz
Estevam de O. (org.). III. Martins, Maria Cristina Bohn (org.).
que há de mais atual na pesquisa e no conhecimento sobre a história
americana em diversos temas, envolvendo, por exemplo, as formas pelas
CDD 980.012 (22.ed) quais organizaram suas vidas os descendentes dos conquistadores; os
CDU 980
fluxos que se processaram entre o Novo e o Velho Mundo de pessoas,
objetos e riquezas e ideias; a escravidão e os movimentos de contestação
que conectaram as Américas com a cena global na “era das revoluções”.
Além disto, cada capítulo é acompanhado por um balanço historiográ-
fico do tema tratado e de dois documentos que podem ser matrizes de
novas interrogações para os leitores.
Mais uma vez, as respostas às questões geradas em torno dos
temas abordados que pudemos aqui reunir foram elaboradas por um
conjunto de renomados especialistas do Brasil e do exterior, a quem
queremos agradecer empenhadamente. De sua competência resulta a
evidente qualidade dos estudos que compõem este segundo volume de

1 O primeiro volume da coleção As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750) é composto


por sete capítulos. São eles: “Os índios: povos ancestrais, sujeitos modernos”; “A conquista
da América como uma História emaranhada: o intercâmbio de significados de uma palavra
Editora Prismas Ltda.
Fone: (41) 3030-1962
controversa”; “Fama, fé e fortuna: o tripé da conquista”; “O lapso do rei Henrique VII: inveja
Rua Morretes, 500 - Portão imperial e formação da América Britânica”; “Meio ambiente e trocas atlânticas”; “Saberes e
80610-150 - Curitiba, PR livros no mundo atlântico: o intercâmbio cultural na Carrera de Indias” e “Entre textos, contextos
www.editoraprismas.com.br e epistemologias: apontamentos sobre a Polêmica do Novo Mundo”.
As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750), que nossos leito- IES e do Grupo de Pesquisas do CNPq “História das Américas: fontes
res logo poderão identificar. Como no caso de seu antecessor, este foi e historiografia”. “Fronteiras nas Américas: alianças, identidades e conflitos
também organizado buscando sintetizar os enfoques que tem sido con- (séculos XVI a XVIII)” trata de um tema que se tornou chave para a
feridos para temas que recentemente passaram a interessar aos historia- historiografia americana desde a contribuição introduzida por Frederick
dores (caso, por exemplo, das “sociabilidades”), assim como para temas J. Turner em finais do século XIX.
clássicos (caso das “fronteiras” ou das revoluções independentistas). Sobre ele, Sposito e Villardaga realizaram um esforço de análi-
O primeiro capítulo do volume, intitulado “Sociabilidades se e síntese que principia apresentando elementos de uma visão clássica:
criollas na América Hispânica”, foi desenvolvido por Anderson Roberti a história dos mais importantes tratados que marcaram as relações entre
dos Reis e Luis Guilherme Assis Kalil, professores da Universidade os impérios coloniais ibéricos. Depois disto, tendo apontado o debate
Federal do Mato Grosso (UFMT) e da Universidade Federal Rural do conceitual sobre o tema e ressaltado a contribuição de perspectivas in-
Rio de Janeiro (UFRRJ), respectivamente. Os autores, especialistas em terdisciplinares para a reflexão a seu respeito, advogam a necessidade de
História Colonial das Américas, atuam em vários Grupos de Pesquisa compreendermos a fronteira como “zona” e não como “linha”.
como o “GEHA - Grupo de Estudos de História das Américas” e Neste sentido, os autores apresentam-na como locus de con-
“História das Américas: fontes e historiografia” (CNPq). frontos e acordos com outras potências, de conflito e negociação com
Tal estudo abre nosso livro trazendo para o debate uma sé- grupos indígenas, de atuação de ordens missionárias, de troca e comér-
rie de temas que despertam atualmente forte atenção da historiogra- cio oficial ou clandestino. Assim sendo, sua análise permite verificar o
fia colonial americana. Abordam, assim, a necessidade de discutirmos quanto foram espaços marcados pelo dinamismo e interação entre os
a validade de conceitos genéricos como “peninsulares” e “criollos”, bem mais diversos agentes envolvidos no processo de colonização. Além,
como de superarmos definitivamente as histórias que, privilegiando as portanto, de estabelecer a necessidade de desnaturalizarmos nossa com-
disputas entre eles, buscavam as “origens” do nacional na época da co- preensão sobre as fronteiras para percebê-las como fruto de processos
lônia. Depois disto, também de maneira feliz, distinguem as principais históricos, os autores ressaltam as contribuições de estudos recentes so-
expressões do debate que passou a apontar as possibilidades analíticas bre estes espaços em seu aspecto integrador. Isto é, na geração de “zonas
abertas ao questionar-se a ideia de uma relação colonial marcada pela de contato” ou transculturação na acepção de Mary L. Pratt (1999), sem
completa subordinação ao Estado absoluto metropolitano, bem como o é claro, obliterar o caráter violento e assimétrico presente, muitas vezes,
“hispano-centrismo” da maioria das abordagens clássicas. nos “encontros coloniais” processados nas áreas de fronteira.
Concluindo, desta maneira, que devemos estar atentos à “agência Além de incorporar à sua análise regiões pouco frequentadas
dos criollos, assim como a de indígenas, mestiços e africanos”, propõem na literatura disponível em língua portuguesa, casos do Caribe e das
que suas vivências e formas de sociabilidade podem ser elementos cen- colônias inglesas na América do Norte, outra contribuição essencial tra-
trais à compreensão da história americana. Advertem, por isto, que sua zida por Sposito e Vilardaga a esta obra pode ser apontada na atenção
contribuição para esta obra consistirá em uma abordagem “sobre seus lu- que conferiram aos limites entre os povos indígenas na América. Sobre
gares e formas de sociabilidade em diferentes períodos e regiões da porção isto eles se questionam a respeito de como se apresentavam as demar-
hispânica do continente”, para passar a analisar um conjunto delas que se cações entre os diferentes grupos nativos e como elas incidiram sobre
expressavam por meio de devoções e festas religiosas, por exemplo. o processo de conquista e colonização. Além disto, analisam a questão
O capítulo 2 é de autoria de Fernanda Sposito, pesquisadora sob o instigante conceito de redes ameríndias, capaz de colocar em xeque
de pós-doutorado na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), rígidos e atomizados modelos de espacialidade.
e José Carlos Vilardaga, professor da mesma universidade, membro do O capítulo seguinte, de número 3, “Pessoas e bens em circula-
Laboratório de Pesquisa em Histórias das Américas (LAPHA) daquela ção (1492-1750)”, foi desenvolvido pela professora Ofelia Rey Castelao,
da Universidade de Santiago de Compostela (USC). Como sabemos, o população indígena provocado pela chegada dos europeus e o número e
tema das trocas envolvendo as colônias americanas e suas metrópoles evolução da emigração transatlântica, considerando a questão-chave das
europeias tem um largo percurso historiográfico. Recentemente, po- migrações interiores na Europa, anteriores e paralelas à projeção extra-
rém, ele vem sido enriquecido por reflexões que ultrapassam a análise -europeia a partir do século XV.
da circulação da prata ou de outros bens econômicos, consideram fontes Depois, Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, professor da
que não são unicamente as oficiais e conduzem suas análises a partir de Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde se dedica a es-
variações ou comparações entre de escalas de observação. O trabalho tudar o tema da escravidão em chave comparada, nos traz “A escravidão
da pesquisadora do Grupo de Investigación de Historia Moderna é uma hispano-americana: uma perspectiva de longa duração”. O propósito deste
profícua contribuição neste sentido. que é o capítulo 4 da obra consiste em apresentar uma visão abrangen-
Ele se inicia com uma sofisticada apresentação do movimen- te sobre a escravidão hispano-americana, embora reconheça que se deva
to populacional entre a Europa, a África e o Novo Mundo na Idade considerar as variações regionais e temporais. A partir da ideia de que
Moderna. Uma série de questionamentos guiam a reflexão da autora. na “longa duração” desenvolveu-se uma certa “identidade institucional, que
Quantos espanhóis e portugueses se dirigiram à América e de onde confere uma unidade orgânica ao fenômeno”, o autor sustenta ser possível
eles provinham? O que motivou este movimento populacional e de contrastar a experiência castelhana com outras que lhe foram contempo-
que forma ele marcou o Novo e o Velho Mundo? Como participaram râneas e, ainda, chegar a uma melhor compreensão sobre a maneira como
dele os habitantes de outras regiões europeias, como os Países Baixos? novos arranjos foram sendo constituídos ao longo do tempo.
Como podemos analisar, dentro deste quadro, o trânsito relativo às Ilhas Assim, Lourenço da Silva nos apresenta um panorama sobre a
Britânicas? E o que sabemos, à luz dos conhecimentos atuais, sobre os escravidão na América Espanhola (de índios e negros) que se estende
retornos? Quais os impactos do trânsito forçado de africanos? até o século XIX, não sem antes trazer a questão dos antecedentes ibé-
Num segundo momento, ela passa a estudar a circulação de ricos desta instituição. Depois disto, historia o tema dos motins e das
bens e produtos, chamando a atenção para o dado de que alguns deles ações para repressão da rebeldia escrava.
(milho e batata) chegaram a modificar o sistema agrícola europeu, no O capítulo se conclui com uma importante discussão historio-
que qualifica como um dos mais importantes resultados materiais do gráfica centrada na revalorização atual da obra de Frank Tannembaum,
contato com a América. Também os negócios em torno do açúcar e dos “Slave and Citizen: The Negro in the Americas” (1946). Tannenbaum, de-
metais, do tabaco, dos produtos tintóreos, entre outros, os efeitos diretos pois de ter aberto a vertente de estudos comparativos entre as diversas
e indiretos de sua produção e circulação, interessaram à autora. Sobre regiões escravistas americanas, teve criticado o pressuposto básico de
a questão do comércio internacional, ela indaga se é possível falar de sua obra que sustentava uma certa benignidade do escravismo nas colô-
globalização entre 1492 e 1750, uma vez que o contato entre áreas eco- nias hispano-americanas, quando comparado ao que ocorria nas Treze
nômicas diferentes e muito afastadas, que puderam relacionar-se entre Colônias inglesas da América do Norte.
si ao redor do mundo, tinha, então, baixa incidência. Ele limitava-se, re- Segundo nos permite acompanhar Silva Junior, estudos re-
corda a autora, a zonas próximas da costa ou a cidades portuárias e atin- centes passaram a revalorizar sua obra, destacando que ela distinguiu a
gia camadas específicas da população. Apesar de colocar em discussão a importância do Direito na demarcação das condições muitas vezes con-
noção de “globalização” para aquela realidade, Rey Castelao não deixa de trastantes a que os escravos estavam submetidos, bem como reconheceu
compreender que se trata de um comércio verdadeiramente global, cujas brechas legais existentes nas colônias ibéricas para a reclamação de cer-
características e repercussões discute e analisa. tos “direitos” por parte dos escravos, inspirando muitos trabalhos atuais.
O capítulo se encerra com um importante panorama do debate Os capítulos 5 e 6 tratam das estruturas administrativas, jurí-
historiográfico sobre temas essenciais, como o desastre demográfico da dicas e legais no Atlântico Norte e Ibérico, respectivamente. O primei-
ro deles, de autoria de Richard J. Ross, voltado às colônias inglesas no Entretanto, as colônias não gozavam de independência formal
Novo Mundo, inicia recordando que elas foram fundadas sob uma va- e seus direitos de autogoverno, ainda que fossem significativos, não eram
riedade de interesses e não constituíram um sistema legal único ou uni- ilimitados. Porém, conforme podemos acompanhar na instigante análise
forme. Em meio a um conjunto plural de instituições, normas e culturas do autor, se, para os administradores do império, os colonos não tinham
legais regionalizadas, o autor - professor da Universidade de Illinois e as mesmas liberdades e proteções constitucionais que os ingleses metro-
especialista em temas relativos ao desenvolvimento dos sistemas legais politanos, os “americanos” passaram a contestar essa interpretação sobre
americanos em perspectiva comparada, destaca que seus sistemas jurí- o seu status constitucional, reivindicando para si os mesmos direitos e
dicos mantiveram notável distância em relação às leis dos povos nativos. proteções dos que viviam no reino. Os esforços de redução da autono-
Estes não foram, com efeito, considerados súditos da Coroa, nem mia dos colonos, que acompanham o crescimento da importância do co-
houve empenho em promover sua “civilização”, de forma bastante diferen- mércio transatlântico, esbarraram em uma série de fatos centrais, entre
te do que ocorreu nos territórios colonizados pela Espanha estudados no os quais o controle local das instituições legais e de tomada de decisões.
capítulo seguinte, o que contribuiu para complexificar a ordem legal destes O texto é, assim, uma excelente contribuição para compreendermos a
últimos. Isto não implica, como revela a análise do autor, que as estruturas forma pela qual o esforço de centralização imperial “provocou resistên-
jurídicas e legais das colônias inglesas fossem simples. Suas constituições, cia local e deflexão”, ajudando a explicar o formato da política colonial
como sabemos, diferenciaram-se entre as colônias reais, de proprietário e, ainda, as dinâmicas do movimento revolucionário.
e corporativas, e este pluralismo era acentuado pela interação entre juris- Por sua vez, “As estruturas administrativas, jurídicas e legais no
dições estatais e não estatais potencialmente conflituosas. Como lembra Atlântico ibérico” foram objeto do capítulo elaborado pelo professor
Ross, o Conselho Privado inglês, o Parlamento, o Almirantado, o Tesouro argentino Raúl  Fradkin (Universidade de Buenos Aires), especialis-
e Serviços Aduaneiros, a hierarquia da Igreja Anglicana, afirmavam ser res- ta na história social rioplatense, e Marco Antônio Silveira, professor
ponsáveis por regular aspectos da vida da colônia, sem que houvesse clara da Universidade Federal de Ouro Preto e um dos líderes do Grupo de
hierarquia ou divisão entre elas e as autoridades locais. Além disto, os co- Pesquisas “Justiça, Administração e Luta Social”. Ele inicia com uma
lonos adicionavam suas contribuições aos princípios legais que traziam da reflexão sobre a necessidade de as Coroas ibéricas construírem modos
Inglaterra, uma vez que seus forais lhes garantiam o direito de criar suas de governo que permitissem enfrentar os inéditos desafios introduzidos
próprias ordenações, contanto que estas não ferissem as leis da Inglaterra. pela colonização do Novo Mundo. Com efeito, lembram, as matrizes
É o caso da escravidão, analisado pelo autor, que lhe serve para concluir que institucionais e tradições jurídicas e políticas preexistentes, embora fos-
legislação sobre ela foi a contribuição mais “inovadora e abominável” das sem fontes de inspiração e legitimação, não eram suficientes para fazer
colônias norte-americanas para a tradição jurídica anglo-americana. frente à novidade americana. Além disto, as confrontações entre as mo-
Particularmente instigante, é acompanhar a análise do autor de narquias, assim como as formas de interação entre elas, vieram a ser,
“As estruturas administrativas, jurídicas e legais no Atlântico Norte” sobre a também, um aspecto central para a configuração das estruturas coloniais.
dinâmica pela qual, ao final do século XVII, surgiram aspectos comuns Recordam, depois, a necessidade de discutir-se sobre os mo-
nas constituições coloniais - em suas organizações internas de poder e dos de constituição e exercício do poder nas monarquias de Antigo
suas relações com a Inglaterra – e se estendeu aos colonos a tradição de Regime, haja vista a necessidade - em sociedades marcadas pelo apego
“autogoverno pelo comando do Rei”, numa espécie de reconhecimen- à tradição e aos privilégios - de conciliar e negociar incansavelmente
to da necessidade da participação ativa dos colonos para o governo de com vários focos de interesse, pelo que, na prática, governar não era
territórios longínquos. Assim sendo, as estruturas constitucionais que apenas o exercício do poder régio. De acordo com eles, um exercício
emergiram ao longo do século XVII pressupunham um governo limita- historiográfico necessário é o de compreender como as autoridades da
do e controle local, baseados na aquiescência dos proprietários coloniais. época conseguiram inovar e criar novas estruturas de governo, valen-
do-se de recursos limitados e sofrendo a resistência da tradição. Outra mutuamente, e que devemos compreender os processos políticos que
importante questão desenvolvida pelos autores foi a necessidade de os trouxeram maior liberdade para uma grande parte da população mun-
monarcas conciliarem a “prudência”, buscando o bem comum e solu- dial sem desconectá-los daqueles que, contrariamente, levaram à perda
ções pactuadas, segundo a tradição escolástica, e as “razões de Estado”, de liberdade e autonomia para outra parte dela.
que deviam impulsionar decisões necessárias para manter e ampliar o Organizado cronologicamente, o texto inicia com uma aná-
domínio de povos e territórios. lise das rebeliões multicêntricas anticoloniais que eclodiram nas treze
Junto a isto, refletem sobre como, por outro lado, as transfor- colônias norte-americanas da Grã-Bretanha, no vice-reinado espanhol
mações que se estabelecem ao longo do período em foco introduziam do Peru e no império global de Portugal nas décadas de 1760 a 1780.
novos desafios, dos quais um dos mais evidentes foi a necessidade de Depois, ele conecta a Revolução Francesa, que eclodiu em Paris em
desenvolver formas de exploração dos recursos que posicionassem as 1789, e a revolução dos escravos que foi deflagrada na colônia fran-
economias metropolitanas no mercado mundial em formação, mas, ao cesa produtora de açúcar conhecida como São Domingos em 1791.
mesmo tempo, levassem em conta os anseios dos grupos sociais domi- Finalmente discute como a invasão da Península Ibérica por Napoleão,
nantes em cada espaço colonial. Sem a cooperação ativa desses grupos, a em 1808, desencadeou a dissolução do império da Espanha na América
sobrevivência do próprio sistema colonial podia ser inexequível, embora, e a consolidação do regime monárquico no mundo luso.
contraditoriamente, seu fortalecimento pudesse ser uma ameaça à afir- Antes de brindar o leitor com um rico roteiro bibliográfico, K.
mação da autoridade das monarquias. Flanerry estabelece que “as contradições gritantes da Era das Revoluções
Depois de analisarem, ainda, o tema da delinquência e dos con- ficam mais claras quando aumentamos o zoom do Atlântico para uma área
flitos, Fradkin e Silveira apontam, em suas conclusões, que é preciso global”, conclusão que fica sustentada pela análise excelente da autora.
sublinhar a capacidade de resistência evidenciada pelas as elites locais
americanas, assim como que a sobrevivência do império espanhol foi ****
possível dada a flexibilidade de suas instituições e práticas.
Finalmente, o capítulo 7, o último deste volume, resulta da con-
Além de reiterar nosso agradecimento aos autores dos estudos
tribuição de Kristie Flannery (Universidade do Texas), especialista em
que compõem a obra que aqui apresentamos, gostaríamos de reconhecer
história atlântica e história dos impérios modernos em chave comparada.
nosso débito com aqueles que realizaram as traduções dos artigos escri-
“A Era global das revoluções e seus descontentamentos (1760 a 1834)” apresen-
tos em língua estrangeira para o português: Renato Denadai da Silva,
ta uma necessária reflexão sobre os efeitos dos movimentos anticoloniais
Juliana Jardim de Oliveira e Oliveira, Fernanda Luiza Teixeira Lima e
americanos em perspectiva global. A partir de um ponto de vista diferente
Isabela Backx. Agradecemos a Rui A. Fernandes pela revisão textual e
daquele que é esposado por boa parte da historiografia, Flannery optou
a Filipe Cotta Barbosa, Guilherme de Castro Martins de Carvalho e
por enfrentar o que chamou de “grande paradoxo da Era das Revoluções”,
Renato Denadai da Silva pela revisão técnica.
lembrando que, paralelamente ao seu “caráter democratizante”, esta tam-
Enquanto damos continuidade ao trabalho de preparação do
bém foi uma época em que impérios e a instituição da escravidão “foram
volume 3 de As Américas na Primeira Modernidade, desejamos a todos
não apenas preservadas, mas drasticamente expandidas”.
uma boa leitura!
Segundo a autora, as revoltas anticoloniais, que liquidam impé-
rios seculares, acabam, por outro lado, impelindo as potências imperiais
Jorge Cañizarres-Esguerra,
a expandir seus territórios na direção de áreas ainda não conquistadas ao
Luiz Estevam de O. Fernandes e
redor do globo. O objetivo principal de Flannery, no capítulo, está em
Maria Cristina Bohn Martins
evidenciar que esses eventos estiveram imbricados e influenciaram-se
Sumário

Capítulo 1 - Sociabilidades criollas na América Hispânica............. 17


Anderson Roberti dos Reis e Luis Guilherme Assis Kalil

Capítulo 2 - Fronteiras nas Américas: alianças, identidades e conflitos


(séculos XVI a XVIII)....................................................................51
Fernanda Sposito e José Carlos Vilardaga

Capítulo 3- Pessoas e bens em circulação (1492-1750)................ 101


Ofelia Rey Castelao

Capítulo 4 - A escravidão hispano-americana: uma perspectiva de


longa duração........................................................................... 147
Waldomiro Lourenço da Silva Júnior

Capítulo 5 - As estruturas administrativas, jurídicas e legais no


Atlântico Norte........................................................................ 181
Richard J. Ross

Capítulo 6 - As estruturas administrativas, jurídicas e legais no


Atlântico ibérico...................................................................... 213
Marco Antonio Silveira e Raúl Fradkin

Capítulo 7 - A Era global das revoluções e seus descontentamentos ...279


Kristie Flannery
Capítulo 1
Sociabilidades criollas na América
Hispânica

Anderson Roberti dos Reis


Luis Guilherme Assis Kalil

Introdução

É conhecido dos historiadores o elemento conflitivo que ca-


racterizou as sociedades coloniais. A América, descoberta ou inventada
como tal, nasceu em meio a múltiplas tensões. A experiência antilhana
reduziu drasticamente as populações indígenas e chamou à consciên-
cia homens que procuravam pela medida entre a exploração da mão de
obra, necessária à manutenção dos domínios espanhóis, e a preservação
dos nativos. Em um púlpito da Ilha Hispaniola, às vésperas do Natal de
1511, frei Antônio de Montesinos, em nome da comunidade dominica-
na, admoestava sua audiência e condenava a crueldade e a servidão a que
estavam submetidos os indígenas. Sentados à sua frente estavam alguns
dos homens encarregados do governo civil da ilha, a quem a exortação
atingiu em cheio. No ano seguinte, notavam-se ecos daquele sermão no
espírito das Leis de Burgos, editadas com a expectativa de fundamentar
juridicamente os mecanismos coloniais, principalmente as encomiendas.2
O também dominicano Bartolomé de Las Casas, que ouvira o sermão
de Montesinos, consagrou em seus relatos a “destruição das Índias”, en-
carnando a defesa dos nativos ante a violência com a qual se havia ges-
tado a história da América.

2 Tratava-se da concessão feita pela Coroa em favor dos colonos do direito de cobrança de impostos
e da exploração da mão de obra de um determinado número de indígenas, cujos cuidados espirituais
e materiais passavam a ser de responsabilidade dos encomenderos. Os repartimientos, que substituíram
as encomiendas em algumas regiões do continente, funcionavam de outro modo: era um sistema,
administrado por funcionários reais, de recrutamento e distribuição rotativa dos índios pelas áreas
produtivas de modo que eles trabalhassem, contra pagamento, por jornadas delimitadas e depois
regressassem a seus povoados de origem, até que novo recrutamento os enviasse a outras regiões.
As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 17
A etapa continental da colonização não foi mais pacífica. Além antinomia, que se tornaria mais frequente do que gostariam os letrados de
da persistência das encomiendas, as campanhas militares para conquistar Madri, entre o progressivo desejo de controle por parte da Monarquia e
as principais cidades indígenas resultaram em conflitos e mortes. Antes as aspirações de famílias e grupos locais. Nesse caso específico, o conflito
de derrotar os mexicas em México-Tenochtitlan, Hernán Cortés teve de decorria da política espanhola adotada após as Leis Novas de 1542, que
sobrepujar a oposição de Diego Velásquez, governador de Cuba, com abolia a perpetuidade do regime de encomiendas e criava restrições aos
quem rivalizou durante as expedições à costa mexicana, além de superar repartimientos, criando impasses à exploração da mão de obra indígena
as mortes de espanhóis e grupos indígenas aliados na fuga durante os e às pretensões senhoriais dos encomenderos. Quando se observa que, em
enfrentamentos da “Noite Triste”. Pedro de Valdivia, que havia liderado 1545, cerca de quarenta por cento (577 de uma população de 1385) dos
várias frentes da conquista espanhola na região do atual Chile, termi- colonos espanhóis no México possuía encomiendas (Zavala, 1935; Frutos
nou seus dias emboscado na batalha de Tucapel, em 1553, durante a & Zarandieta, 2001, 306), compreendem-se o impacto daquela políti-
guerra araucana. Nos Andes, o desfecho das campanhas de Francisco ca e as razões que permitiram a Martín Cortés e aos irmãos Alonso e
Pizarro foi sucedido por quatro décadas de agitação civil, ora em razão Gil González Ávila plasmarem uma rebelião que, no limite, pretendia
da resistência inca em Vilcabamba, ora como efeito das pretensões dos suspender o poder real na Nova Espanha em favor das grandes famílias
conquistadores e de seus descendentes, que reivindicavam mais direitos locais. O desfecho do motim, contudo, não alentava os grupos locais. Sem
do que a Coroa espanhola estava disposta a ceder. granjear o apoio de todos os colonos e diante da rápida reação da Coroa,
Os filhos dos conquistadores, transcorrida uma geração, convi- o movimento foi sufocado pelas autoridades reais e seus líderes, presos ou
veram em sociedades igualmente marcadas por dissensões e negociações decapitados em praça pública. Martín Cortés, cuja participação foi dúbia
constantes, porém mais heterogêneas. Apesar de ter permanecido, du- em alguns momentos, teve o pescoço preservado, mas foi obrigado a jurar
rante o período colonial, no vocabulário e no horizonte de autoridades obediência e retornar à Espanha.
civis e religiosas, o projeto de constituir duas repúblicas separadas e har- A conjura mexicana não foi o único movimento desse tipo.
mônicas – uma de “espanhóis”, outra de “índios” – foi constantemente Outros tumultos ocorridos na América durante os séculos XVI e XVII
desafiado pela presença de criollos, mestiços, africanos, mouros, judeus, mantiveram em alerta os conselheiros, ministros e monarcas da Casa de
entre outros. Com frequência, governadores e vice-reis denunciavam em Áustria. As mesmas Leis Novas que insuflaram os ânimos no México
seus relatos os vícios a que se entregavam os espanhóis vagabundos “des- na década de 1560 haviam antes servido de estopim para as ações de
ta terra”, enfatizando também os perigos de franquear cavalos e armas a Gonzalo Pizarro e um grupo de encomenderos, em 1544, contra o pri-
índios, mestiços e negros. O medo de rebeliões e motins não se dissipou meiro vice-rei do Peru, Blasco Núñez de Vela, que acabou preso e deca-
mesmo durante o século XVII, com os altos funcionários reais manten- pitado durante os conflitos, deixando inconclusa sua missão de aplicar
do-se atentos a possíveis distúrbios. Se institucionalmente a conquista aquela legislação. Ao final, em 1548, a Coroa retomou o controle da
espanhola parecia se assentar em meados do século XVI, sobretudo com situação e Pizarro não teve melhor sorte nem tampouco conseguiu pre-
a criação dos vice-reinos da Nova Espanha e do Peru a partir de 1535, servar sua cabeça. Na região da Audiência de Quito, em 1592, outra
e a fundação de sedes episcopais em importantes cidades, as sociedades determinação castelhana, a fixação do imposto das alcabalas, elevou o
coloniais permaneciam inquietas. nível de tensão nos Andes e serviu de gatilho para nova rebelião. Para
A rebelião liderada por Martín Cortés, herdeiro legítimo do con- além da insatisfação com a imposição do tributo, o motim expressava a
quistador do México e II Marquês do Vale de Oaxaca, em 1565 na Nova desarmonia existente entre os magistrados da Audiência, representantes
Espanha expressa bem uma nota do desconcerto social que marcava os do poder real, e as elites quitenhas aninhadas no Cabildo, descontentes
vice-reinos espanhóis naquele momento e desafiava o ordenamento jurí- com a pressão fiscal não pactuada e também com o desprestígio frente
dico e político proposto pela Coroa. No cerne desse motim notava-se uma às autoridades espanholas. Nas serras de Quito ainda se ouviam os ecos
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das Leis Novas, dos discursos de Las Casas em Valladolid e das disputas se relega o tempo a segundo plano, Quito se transforma em Equador;
em torno das encomiendas e repartimientos. Assunção, em Paraguai; Oruro, em Bolívia; o local, em nacional. Política,
Esses exemplos, que poderiam ser acrescidos de outros tan- produção histórica e memória aparecem afinadas pelo mesmo diapasão,
tos extraídos do século XVII e do período bourbônico, evidenciam um desafiando os historiadores a vencer o sentido teleológico dado.
elemento central das sociedades coloniais: as tensões e contradições de- Se é certo que a projeção do manto nacional sobre o passado
correntes dos interesses defendidos pelos diferentes grupos sociais, que colonial não cobriu apenas os grupos criollos, uma vez que indígenas e
exigiam da Monarquia a perene habilidade de concertar conveniências mestiços também foram importantes – com intensidades e lógicas dife-
e reivindicações. Especificamente, os casos parecem sugerir a contrapo- rentes a depender da região – no processo de formação dos imaginários
sição mais aguda entre as elites criollas locais, ligadas à terra e dispostas nacionais, as teorias explicativas das independências direcionaram o foco
a se estabelecerem frente aos demais agentes, e a Monarquia espanho- aos primeiros, principalmente por conta do acirramento das tensões que
la, ciosa do ordenamento de seus vice-reinos, que se materializava na os envolveram no século XVIII. Uma linha contínua parecia se estender,
América por meio de instituições civis e religiosas, cujos altos escalões retrospectivamente, entre o início do século XIX e meados do século
eram ocupados majoritariamente por peninsulares, em geral com pou- XVI, atando todos, dos “insurgentes” aos encomenderos, das guerras de
cos vínculos – combatidos pela Coroa – nos locais em que prestavam independência às insatisfações com as Leis Novas, como se os rebelados
seus serviços ao rei. Se não foi a única fonte de tensões, tal polariza- quitenhos de 1592 tivessem iniciado um processo que desembocaria nas
ção ocupou a imaginação de muitos historiadores contemporâneos, que independências mais de duzentos anos depois.
buscaram as mais diversas chaves analíticas a fim de apreender os funda- Há algumas décadas, o interesse crescente pelos papéis desem-
mentos das sociedades coloniais americanas: luta de classes, organização penhados por grupos criollos em diferentes circunstâncias e contextos
estamental, estratégias patrimoniais, sociedades corporativas, casuísmo coloniais tem permitido questionar os limites desta interpretação de
jurídico, probabilismo filosófico etc. corte nacionalista. Noções como a de “patriotismo criollo” proposta por
Entre tais leituras, uma se destacou em razão de sua fortuna David Brading (Brading, 1991), tão atraente quanto sofisticada, pela
historiográfica e política. Trata-se da interpretação de cunho nacionalis- nem sempre compreendida distinção entre pátria e nação, possibilitaram
ta que com frequência identificou no universo social das colônias ame- novas incursões nas sociabilidades criollas a fim de compreender as ra-
ricanas a prefiguração das cores e formas das bandeiras hasteadas após zões que presidiam as atitudes daqueles homens e mulheres em relação
as independências. Assim, em muitos casos, as tensões políticas e sociais aos peninsulares (denominados, a depender da região, como gachupines,
que antecederam (e às vezes persistiram após) a criação dos estados-na- chapetones ou godos), indígenas, mestiços, africanos e afro-americanos.
ção hispano-americanos no século XIX foram projetadas no passado Como resultado, compreendeu-se melhor que as generaliza-
colonial a fim de buscar as raízes destes países. Não é difícil imagi- ções, como sói acontecer quando não temperadas pelo exame de ca-
nar por que, nessa chave de leitura, quase sempre foram privilegiadas sos específicos, são insuficientes à análise histórica, a começar pela
as contradições entre os grupos criollos – enfatize-se: aqueles nascidos que designava por criollos os descendentes de espanhóis nascidos nas
e/ou vinculados às terras do Novo Mundo – e a Monarquia espanhola, Américas. Em primeiro lugar, deve-se observar que a definição dos “es-
tomada por opressora, atribuindo-se àqueles certas aspirações naciona- panhóis” como os súditos da Coroa hispânica que desembarcaram no
listas frequentemente sufocadas por Madri. A abordagem histórica de Novo Mundo homogeneíza habitantes de diferentes regiões e reinos:
um “passado nacional” é sedutora, porque cria laços de identidade e har- castelhanos, andaluzes, estremadurenhos, bascos etc. Ao menos desde
moniza as diferenças e, por isso mesmo, politicamente necessária, sobre- o célebre testamento da rainha Isabel, que associou as terras do Novo
tudo quando se observam os jovens estados constituídos nas primeiras Mundo ao reino de Castela, houve uma série de tentativas de se organi-
décadas do século XIX. Por uma operação quase metonímica, na qual zar quem poderia se estabelecer nas Índias. Ainda que nunca cumpridas
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totalmente, havia proibições ao embarque de judeus, hereges, mouriscos, Neste capítulo, o leitor não encontrará uma história dos criollos
entre outros, ao mesmo tempo em que, em determinados períodos, fla- americanos, mas abordagens sobre seus lugares e formas de sociabilida-
mengos, genoveses, portugueses e alemães receberam autorização real. de em diferentes períodos e regiões da porção hispânica do continente.
As dificuldades de se identificar como espanhóis todos os Inicialmente, serão apresentadas as diferentes possibilidades de compre-
súditos europeus que habitavam as possessões hispânicas na América ensão dos grupos criollos quando estas são postas em relação às formas
ficam evidentes quando se nota a forte presença de portugueses políticas atribuídas à Coroa espanhola. O argumento a ser desenvolvido
em Lima durante a União Ibérica ou a atuação de “alemães” – ter- é relativamente simples: a análise dos lugares e papéis sociais atribuídos
aos criollos está associada ao entendimento que se tem do sistema político
mo igualmente genérico e anacrônico – associados aos banqueiros
espanhol e das interações mantidas com suas possessões americanas. Caso
Welser na região de Nova Granada na primeira metade do século
se assuma, hipoteticamente, que a Espanha se constituiu como um Estado
XVI, onde, além de organizarem expedições em busca do Eldorado, absolutista, as possibilidades de análise dos setores criollos abrem-se em
fundaram cidades e estabeleceram o comércio de escravos indígenas. uma direção. Já a partir da concepção de uma “Monarquia corporativa”,
Outro exemplo são as disputas ocorridas em Potosí nas primeiras outras sendas poderão ser percorridas. Na segunda parte, são apresentadas
décadas do século XVII. Neste caso, para além de uma divisão entre algumas das formas de sociabilidade e de entretenimentos urbanos parti-
criollos e espanhóis, houve um embate entre bascos3 – que controla- lhados nos círculos criollos a fim de evidenciar sua variedade e sentidos. Na
vam cerca de dois terços das minas da região – contra os “vicunhas”, última parte, além das considerações finais, estão disponíveis uma seção
denominação pejorativa reservada a outros peninsulares, em especial, com documentos e um breve roteiro historiográfico.
andaluzes e castelhanos. Durante anos, as disputas pelo controle so-
bre as terras, cargos públicos e a cobrança de impostos por parte das
autoridades potosinas geraram ataques a funcionários e propriedades Os criollos ante a Coroa Hispânica
reais, além de acusações mútuas, agressões e assassinatos, que provo-
caram uma intervenção direta da Coroa na região, substituindo al- Entre patriotas e degenerados
guns de seus principais oficiais na tentativa de concertar os interesses
dos diferentes grupos de peninsulares e seus descendentes. Para além dos questionamentos expostos na introdução sobre
Problematização semelhante vem sendo apontada em relação ao quem seriam os criollos, deve-se examinar, ainda que brevemente, a histo-
conceito de criollo. Para alguns pesquisadores, a definição que se pauta ape- ricidade desse conceito. Utilizada inicialmente para denominar os escra-
nas no local de nascimento e na ascendência dos pais seria restrita demais. vos negros nascidos fora da África (Elliott, 2006, 352-367), essa palavra,
Seguindo estes critérios, não haveria espaço, por exemplo, para descenden- a partir do final do século XVI, passou a ser empregada na Espanha para
tes de espanhóis com indígenas. Na tentativa de ampliar a definição, Horst se referir aos seus descendentes que habitavam o Novo Mundo. No en-
Pietschmann (1986; cf. Guerra & Annino, 2003, 47-84) propõe uma con- tanto, sua utilização na América não foi uniforme. Segundo Juan Carlos
cepção dos criollos como os grupos que abarcam os descendentes de espa- Garavaglia (Garavaglia, 2008, 93-102), há referências aos criollos em do-
nhóis cujo centro da vida social e econômica se encontrava na América. cumentos produzidos em locais como a Nova Espanha desde o século
Nessa perspectiva, mestiços e peninsulares estabelecidos no Novo Mundo XVI. Contudo, em outras partes do continente, como na região do rio
também poderiam ser enquadrados nesse conceito, tornando complexa a da Prata, tal palavra só passou a ser empregada no século XVIII, com um
análise histórica e dificultando a compreensão da realidade colonial esco- sentido diferente, referindo-se, geralmente, aos mestiços que pertenciam
rada unicamente na simplista oposição atemporal entre criollos e espanhóis. às classes populares.4
4 A historicidade e a multiplicidade de significados atribuídos ao conceito de criollo nos levaram
3 Responsáveis, em 1603, pela fundação de uma das primeiras confrarias do vice-reino do Peru. à decisão de mantermos sua grafia em espanhol.
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Entre os europeus, o termo ganhou certa carga pejorativa, que Entre o Leviatã e a agência local
enfatizava o processo de degeneração que ocorreria com os habitan-
tes do Velho Mundo caso permanecessem por um longo período na Ademais dos argumentos de europeus ou criollos sobre o lu-
América. Desde as referências feitas na segunda metade do século XVI gar ocupado por esse grupo dentro das possessões espanholas no Novo
pelo franciscano espanhol Bernardino de Sahagún à “mala inclinación” Mundo, da Coroa espanhola como um todo ou mesmo da humanidade
dos peninsulares que viviam ou de seus descendentes nascidos no Novo – tema vasto e fascinante que, no entanto, foge às limitações deste capí-
Mundo até a constatação do nobre prussiano Alexander von Humboldt, tulo – é igualmente necessário refletir sobre algumas interpretações his-
no início do século XIX, de que na Nova Espanha o europeu mais mi- toriográficas produzidas a respeito das sociedades que se formaram na
serável via-se como superior aos brancos nascidos neste continente, ha- América hispânica e dos lugares atribuídos aos criollos em seu interior.
via a crença de que o contato prolongado com a natureza americana, Mais do que um levantamento exaustivo de livros, teses e artigos, serão
especialmente, por exemplo, em aspectos como sua umidade excessiva, apresentadas algumas obras cujas interpretações, na maioria dos casos,
geraria resultados deletérios entre os europeus.5 Por outro lado, autores estabeleceram diálogos entre si.
como o jurista Juan de Solórzano y Pereira e o religioso Juan de Palafox Um modelo explicativo que alcançou grande destaque duran-
adotaram posturas identificadas como “pró-criollos”, associando os ata- te décadas – especialmente, mas não apenas, dentro da historiografia
ques sofridos por esse grupo às disputas pelas nomeações por parte da brasileira – e que ainda persiste em algumas interpretações recentes é o
Coroa aos cargos oficiais.6 Na tentativa de rebater tais acusações, autores que identifica duas formas antagônicas de ocupação do continente por
criollos dos séculos XVII e XVIII negaram a possibilidade de a natureza parte das Coroas europeias: as colônias de povoamento e exploração
americana degenerar os europeus ou seus descendentes, sendo respon- (Cf. Novais, 2005). Entre outros autores que analisaram as Américas
sáveis pela formulação do que Jorge Cañizares-Esguerra (1999, 33-68). hispânica, portuguesa e inglesa valendo-se dessa lógica, pode-se citar
designou como “astrologia patriótica”7 ou, mais amplamente, uma epis- Edmundo O’Gorman (1992). Em seu clássico livro sobre a invenção da
temologia patriótica criolla. América, o historiador afirma que o contato dos europeus com o con-
tinente teria aberto dois caminhos a serem percorridos pelas socieda-
des americanas: o da imitação, adotado nas áreas de colonização ibérica,
e o da originalidade, restrito às porções inglesas do continente, único
local em que a ideia de Novo Mundo teria, de fato, se materializado.
Seguindo tal lógica, O’Gorman caracteriza as sociedades desenvolvidas
5 Solange Alberro (2006) apresenta uma lista das principais críticas associadas aos criollos (“la na América hispânica como marcadas pelos “ideais senhoriais e buro-
pereza, la holgazanería, sus variantes y corolarios, la ociosidad, la molicie, el abandono, la falta de cráticos dos conquistadores e povoadores espanhóis, empenhados em
previsión y cuidado, el descuido, la inercia, la desidia, la inconstancia y la inestabilidad”) e diferencia
os ataques feitos por autores do norte da Europa, como o naturalista francês conde de Buffon obter privilégios, prêmios, encomiendas e empregos”, responsáveis por
e o pensador escocês William Robertson, daqueles realizados por espanhóis. De acordo com organizar um sistema de exploração dos nativos e de se conformarem
a pesquisadora, enquanto para estes as críticas se restringiriam aos criollos, para os primeiros a
em colher riquezas onde Deus as havia semeado.8
visão negativa se estenderia também aos espanhóis metropolitanos.
6 As questões envolvendo o acesso dos criollos aos cargos oficiais da Coroa espanhola na Améri-
ca são o resultado de um intenso e prolongado debate historiográfico abordado, ainda que late- 8 Interpretação oposta já havia sido apresentada na década de 1930, nos Estados Unidos, por
ralmente, por parte expressiva da bibliografia citada ao final do capítulo e identificado por vários Herbert E. Bolton, para quem as Américas compartilhariam alguns aspectos comuns. (Cf. The
autores, entre eles David Brading, como um elemento fundamental para o desenvolvimento de epic of greater America, 1933, 448-174). Criticada e pouco adotada por seus contemporâneos
um patriotismo criollo associado às reações diante das reformas propostas pelos reis bourbônicos (um de seus principais opositores foi, não por acaso, Edmundo O’Gorman, que o acusou de
durante o século XVIII e ao processo de independência. ignorar as dimensões culturais e os grandes contrastes existentes no continente), a proposta de
7 Segundo o historiador, a astrologia patriótica desenvolvida por autores criollos teria suscitado, Bolton vem sendo recuperada nas últimas décadas por autores que a associam às perspectivas
muito antes dos europeus, argumentações raciais pautadas em determinismos biológicos. de História Atlântica ou de Impérios negociados. (Cf. Cañizares-Esguerra, 2006; Bushnell &
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Em sentido semelhante e também sublinhando a exploração a concepção de um Estado Leviatã poderia ser substituída por outras,
espanhola na América, Perry Anderson enquadrou a Monarquia dos como a de “Monarquias compósitas” proposta por John H. Elliott. Em
Habsburgo em sua teoria do absolutismo. Partindo de uma abordagem artigo que obteve um duradouro impacto historiográfico (Elliott, 1992,
marxista, o historiador inglês, ainda que ressalte a inexistência de um 48-71), Elliott argumenta que as Coroas europeias se estruturaram ao
reino totalmente unificado e o surgimento de uma “aristocracia criolla” longo do século XVI de acordo com uma lógica que buscava manter
a partir do século XVII, reforça o papel desempenhado pelas colônias instituições, leis e costumes específicos a cada uma de suas partes, bem
americanas: fornecedoras de metais preciosos.9 Nessa perspectiva, não como estabelecer relações de apoio mútuo com as elites locais. No en-
apenas as sociedades criollas, mas outros elementos, como as próprias ci- tanto, ele identificou especificidades no caso das possessões espanholas
dades americanas, perdem destaque, ocupando apenas um local de pas- na América: haveria, neste caso, uma “união acessória”, onde um reino é
sagem que conectaria as riquezas naturais e minerais do Novo Mundo reconhecido juridicamente como parte de outro, no caso, Castela. As re-
aos portos europeus. ticências quanto aos espaços de negociação que existiriam nas interações
A partir da década de 1980, estudos que questionavam certas entre as Coroas europeias e as sociedades desenvolvidas na América ge-
premissas e teorias sobre as sociedades que se desenvolveram no con- raram críticas por parte de diversos autores. Ainda que com muitas dife-
tinente americano ganharam destaque. Em oposição à perspectiva que renças e particularidades, pesquisadores como Jack P. Greene, António
identificava dois modelos antagônicos de ocupação no Novo Mundo, Manuel Hespanha e João Fragoso vêm ressaltando os aspectos negocia-
Richard Morse reforçou a existência de uma matriz moral, intelectual e dos e a importância dos poderes locais nas relações entre as sociedades
espiritual comum às tradições ibero e anglo-americanas. Para esse pes- americanas, seja em sua porção inglesa ou na portuguesa, e delas com o
quisador norte-americano, as sociedades surgidas na América ibérica Velho Mundo (Cf. Greene, 1994; Hespanha, 1994; Fragoso, Gouvêa &
não poderiam ser analisadas com base na ideia de que teria havido na Bicalho, 2001; Fragoso & Gouvêa, 2010).
região um desenvolvimento frustrado, mas sim como resultado de uma Processo semelhante pode ser identificado em pesquisas produ-
opção cultural específica, uma resposta diferente – mas não inferior – zidas nas últimas décadas sobre a América hispânica, como as realizadas
à formulada pela porção inglesa do continente ao “pacote moderno”. por Serge Gruzinski, que propõe o conceito de “Monarquia católica” em
Opção esta que, segundo Morse, permitiria a identificação de um proje- detrimento da ideia de um Império espanhol centralizado. Para o pes-
to colonial para as porções ibéricas do continente, único local onde teria quisador francês, a relação colonial, associada às noções de dependência
havido uma preocupação constante e sistemática com as questões da política e exploração econômica, seria apenas uma das dimensões que
América (Morse, 1988). caracterizariam as diferentes partes da Monarquia. Aproximando-se da
Nesse mesmo período, uma série de estudos passou a levantar perspectiva analítica das “histórias conectadas”, endossada por autores
questionamentos crescentes quanto à existência de um Estado abso- como Sanjay Subrahmanyam, Gruzinski combate o que ele considera ser
lutista, que teria transplantado suas instituições nas terras americanas, uma visão hispanocêntrica nas abordagens sobre a Monarquia espanho-
bem como perspectivas que identificavam, nos moldes propostos por la, ressaltando a importância dos estudos que enfatizam as interações lo-
autores como Immanuel Wallerstein, a existência de centros e periferias cais e dessas com outras regiões do mundo (Gruzinski, 2001, 175-195).
dentro dos impérios que se formaram no período. Para alguns autores, Seguindo essa proposta, as análises sobre as sociedades criollas deveriam
ampliar seu enfoque para além dos contatos estabelecidos com Castela.
Greene; Daniels & Kennedy, 2002, 1-14).
No caso da Nova Espanha, por exemplo, as atenções em relação às frotas
9 O que Anderson (2004, 58-82) denomina como “pilhagem das Américas” teria sido que partiam anualmente para Cádiz ou Sevilha deveriam ser divididas
fundamental para a própria natureza do Estado espanhol, ainda que tivesse produzido resultados com aquelas que chegavam periodicamente ao porto de Acapulco, prove-
danosos tanto na agricultura quanto na manufatura peninsular, tornando-a um escoadouro de
mercadorias estrangeiras.
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nientes de Manila.10 As dinâmicas no circuito da prata potosina também do Xavier Gil Pujol (1991, 119-144), não seriam antagônicas, mas in-
são ilustrativas. Para além das remessas de minérios enviadas à Coroa, a terdependentes –, a complexidade das interpretações permite supor que
circulação do metal exerceu papel determinante não apenas no espaço pe- os círculos criollos mantinham relações muito mais amplas e complexas
ruano, mas também nas conexões com outras partes da América hispânica com a Coroa e com os demais grupos sociais do que pressupunham certas
(como a região do Prata, de onde partiam escravos africanos provenientes abordagens. Ao mesmo tempo em que as instituições reais impunham
das terras portuguesas em direção às zonas de mineração) ou com outras uma série de restrições aos vice-reis enviados ao Novo Mundo (como a
partes do globo, suprindo a necessidade de moedas em locais como as proibição de obterem propriedades em sua jurisdição, de se casarem ou
colônias inglesas na América ou no Império chinês. serem padrinhos de pessoas da região), na tentativa de evitar a criação de
A postura adotada por Gruzinski recebeu críticas por parte de au- laços com os locais, houve, especialmente ao longo do século XVII, mo-
tores como Bartolomé Yun Casalilla, para quem tal análise sobre as posses- vimentos no sentido contrário, como a intensificação da política de venda
sões espanholas minimizaria o caráter desigual dessa relação ao tirar o peso de cargos que, em grande parte, foram adquiridos por criollos.13 Como
do poder político, do domínio e da violência presente nos Impérios.11 Em exemplos de uma abordagem que ressalta a complexidade das relações
relação à América hispânica propriamente, o pesquisador espanhol ressalta estabelecidas entre Castela e os homens e mulheres nas Américas, tendo
o interesse da Monarquia em impedir o desenvolvimento de uma nobreza em vista o papel ocupado pelos criollos, são ilustrativos os estudos recen-
local e, consequentemente, o que ele identifica como a impossibilidade da tes realizados por Arndt Brendecke. Ao analisar a busca por informações
criação de laços entre os nobres castelhanos e as elites americanas.12 sobre o Novo Mundo por parte da Coroa, o pesquisador alemão ressalta
No entanto, para além das divergências entre a ênfase nas for- que, além do “ideal absolutista do rei onisciente”, deve-se observar a posi-
ças centrífugas ou centrípetas dentro da Coroa espanhola – que, segun- ção de destaque dos poderes locais, ocupados em grande parte por criollos,
que seriam responsáveis tanto pelo fornecimento de informações quanto
10 Em outra obra, Gruzinski (2012) afirma que a ligação marítima estabelecida entre Manila
pela verificação da veracidade das mesmas.14
e Acapulco “acarretou um novo posicionamento das Índias no globo: além de ter promovido Dessa forma, e retomando o que se afirmou na introdução, po-
a abertura das portas da Ásia aos habitantes da Nova Espanha e do Peru, ela aproximou de-se notar que as reflexões sobre as sociedades criollas são, em algu-
consideravelmente o Oriente do litoral da Nova Espanha”.
11 Casalilla utiliza tanto “Império” quanto “Monarquia compósita” ao se referir à Coroa hispânica.
ma medida, tributárias do modo como se concebem as relações entre a
Assim como Elliott, o autor espanhol identifica uma diferença entre as relações estabelecidas Coroa espanhola e seus domínios americanos. No entanto, independen-
entre os reinos que integravam a Monarquia compósita espanhola e as estabelecidas com sua temente das profundas diferenças existentes entre os autores e propostas
colônia americana. Mesmo assim, o autor aponta algumas ressalvas em relação ao conceito
utilizado pelo historiador inglês, afirmando que sua abordagem o completa, mas também se de abordagens citados acima, observa-se que, em geral, a agência dos
distancia dele, ao enfatizar a circulação das elites e os “laços horizontais” entre os diferentes
reinos que compunham a Monarquia (Casalilla, 2009). Ao analisar as denominações de 13 David Brading, ao analisar a compra de cargos oficiais pelo que ele denomina como
Império e Monarquia na Espanha do período, Ronald Raminelli ressalta que, à exceção de “magnatas criollos”, afirma que, no começo do século XVIII, esse grupo chegou a desempenhar
Carlos V, os demais reis espanhóis não se intitularam imperadores (ainda que houvesse menções um papel em sua sociedade similar ao ocupado pelas aristocracias europeias no Velho Mundo. Já
em documentos oficiais): “o uso da palavra ‘império’ era estranho aos letrados espanhóis Horst Pietschmann afirma que a infiltração crescente dos criollos nas estruturas administrativas,
contemporâneos [...] para diferenciar a Espanha do Sacro Império, humanistas como Nebrija especialmente através da compra de cargos, gerou uma fase de relativa autonomia que poderia
defendiam o emprego do termo Monarquia. Além de particularizar, tal recurso pretendia ser observada, por exemplo, através de interpretações laxas da legislação metropolitana na
igualmente demonstrar a superioridade espanhola por meio de sua força expansiva e suas tentativa de adaptá-la aos interesses e situações locais. (Guerra & Annino, 2003, 15-46; 47-84)
possessões na América, África e Ásia” (Raminelli, 2013). 14 Entre outras fontes, Brendecke analisa as relaciones de méritos y servicios enviadas
12 A abordagem de Casalilla recebeu críticas por parte de João Fragoso, para quem sua proposta periodicamente à Coroa por súditos de diversas localidades, que deveriam ser acompanhadas por
reforça a imagem da América espanhola como conquista ou como um Império colonial de declarações de juízes locais: “The involvement of local judges did, of course, delegate some competence
uma Monarquia compósita, o que minimizaria a importância dos pactos e negociações entre back to the colony, recognizing that, in practice, the central institution of the Council of the Indies was
as elites criollas e Madri. Em contraponto, Fragoso sugere a adoção do conceito de Monarquia not able to assess the truthfulness of incoming reports without consulting the expertise of local actors.
pluricontinental, que “tende a sublinhar tais acordos entre os que ocupavam os cargos honrosos The court had to relocate decisions from the centre to the advisors of the centre, or even further down the
da república (município) e a Coroa” (Fragoso, Guedes & Krause, 2013). peripheries” (Brendecke; Blockmans et. al., 2009, 235-252).
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criollos, assim como a de indígenas, mestiços e africanos, vem ganhando colonos, alegando que os principais obstáculos à evangelização provi-
atenção crescente, tornando suas vivências e formas de sociabilidade ele- nham dos espanhóis (Acosta, 1984). De algum modo, a proposta de
mentos centrais à compreensão da história americana. isolamento dos ameríndios indicava tanto um projeto de cristianização
e civilização, ao reduzi-los à vida em pueblos, como uma forma oficial de
resguardá-los da exploração por parte de encomenderos.
Formas das sociabilidades criollas A projeção das duas repúblicas como comunidades distintas,
apartadas e em certa medida autônomas não resistiu às vicissitudes da
Duas repúblicas vida social no Novo Mundo, principalmente nas áreas urbanas. O orde-
namento imaginado não suportou a diversidade de interesses e a impre-
A dinâmica da vida social frequentemente rechaça projetos visibilidade das relações entre os diferentes grupos sociais nos vice-reinos.
gestados com a finalidade de organizá-la, de lhe conferir certa forma. Afinal de contas, quem era o espanhol que comporia a “república dos
Ordenador, esse desejo amiúde se vê frustrado diante de arranjos e com- espanhóis”? Quem era o nativo da “república de índios”? Na prática, as
binações inesperados. As sociedades, apesar de inseridas em uma ordem, essências supostas por essa fórmula se esfacelavam frente às vivências nas
são forjadas também pelos imprevistos. A proposta castelhana de, após a cidades americanas. Com frequência, criollos divergiram dos peninsulares
conquista, organizar as sociedades americanas em duas repúblicas pode e entre si, missionários afrontavam seculares e religiosos de outras ordens,
ser tomada como exemplo de um projeto que, com a passagem do tem- vice-reis mobilizavam homens armados contra juízes da audiência, que
po, sucumbiu ao pulso irregular da vida coletiva. A ideia tinha contornos respondiam àqueles ataques na mesma moeda. Também entre os indíge-
gerais simples. Recorria-se à concepção clássica de república como uma nas a pretendida redução de muitos grupos a uma república não resistiria
sociedade política dotada dos meios necessários para se governar, e não à multiplicidade de suas ações após (e durante) as conquistas.
como uma forma de governo, a fim de constituir duas grandes comuni- Os variados interesses, por vezes contrários entre si, permitiriam
dades: a de brancos e a de índios. Embora se distinguissem pelo critério supor, quase sem risco de erro, que o modelo de duas repúblicas na América
étnico subjacente à sua designação, ambas integravam o mesmo corpo, a não sobreviveria. À medida que transcorriam as décadas e se ampliavam
Monarquia católica espanhola, e respondiam ao mesmo sistema legal, o as relações sociais e étnicas, a trama se tornava cada vez mais complexa.
direito indiano (Lempérière, 2001) – apesar de isso não significar plena As mestiçagens biológicas e culturais, imprevistas e indesejadas no ideal
igualdade entre elas (Morse, 1988; Bethell, 1997, 73). ordenador, implodiram aquele projeto. Mestiços, mulatos e zambos não
Religiosos, letrados, vice-reis e toda sorte de homens versados se acomodavam em nenhuma das repúblicas e evidenciavam a presença
no debate jurídico-político em torno da expansão castelhana usaram da população negra, ampliando a heterogeneidade das formações sociais
com frequência os termos “duas repúblicas”, “república de espanhóis” no Novo Mundo. Em algumas cidades da América Central, no final do
e “república de índios” para caracterizar o ordenamento social ameri- período colonial, conta-nos Richard Morse, as vilas espanholas e índias
cano, principalmente nos séculos XVI e XVII. Não raro, esses sujeitos atraíam tantos grupos étnicos que se tornaram pueblos de ladinos (Morse,
externaram certa preocupação com a mescla das duas repúblicas. Tal 1988, 78). Em Lima, por exemplo, a tentativa do vice-rei Francisco de
inquietação manifestou-se nas primeiras décadas de institucionalização Toledo, conhecido por suas reformas durante a década de 1570, de isolar
das conquistas, especialmente por meio da atuação de religiosos que os índios em um bairro chamado el Cercado fracassou e os nativos segui-
alegavam ser pernicioso aos nativos o contato com os colonos espanhóis, ram vivendo junto aos demais grupos do vice-reino (Chocano Mena, s/d,
cujas ações expressavam vícios como a avareza, a cobiça e a luxúria. O 28). À semelhança do que ocorria em outros locais, o cotidiano urbano
padre José de Acosta, jesuíta que viveu no Peru nos anos 1570, regis- no México dos séculos XVI e XVII sugeria uma permanente mescla de
trou em seu De Procuranda Indorum Salute os excessos cometidos pelos indivíduos e grupos (Gonzalbo Aizpuru, 2009, 187).
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Vivendo coletivamente ravam certa coesão social desejada pela Coroa e pela Igreja. Alguém
que não pertencesse a um ou vários desses grupos ficava à margem da
O modelo das duas repúblicas indicava, no entanto, um ele- vida coletiva e via suas chances de alcançar honra e privilégios chegarem
mento central à lógica das sociedades coloniais americanas, marcadas perto de zero. É certo que o ingresso em muitos desses grupos era par-
pela herança dos critérios de distinção social ibéricos e, de modo geral, cialmente limitado por critérios relacionados ao nascimento, conquanto
europeus: o nascimento. As condições de nascimento eram responsáveis se conheçam episódios em que a genealogia e o sangue não constituí-
pela inserção do sujeito em determinado grupo, valorizando-se quase ram impeditivos. Pode-se lembrar, a título de exemplo, o caso da Real
sempre critérios ligados à pureza de sangue. À diferença da obsessão Universidade do México, que não restringiu, pelo menos até a segunda
hispânica por controlar os resquícios judaicos e muçulmanos entre seus metade do século XVII, a entrada de mestiços e mulatos, cujo apreço de
súditos, nas cidades americanas as autoridades se ocuparam também seus contemporâneos suplantava a alegada ilegitimidade de seu nasci-
com as mesclas entre espanhóis, índios e africanos, cujos frutos frequen- mento (Gonzalbo Aizpuru, Op. cit., p. 66-67).
temente careceram de prestígio e legitimidade social. Antes mesmo do Imaginadas inicialmente como um ente bipartite, as sociedades
parto, projetava-se para o recém-nascido, segundo sua genealogia, um americanas mostraram-se mais complexas, sobretudo nas áreas urbanas
lugar naquela sociedade. Contudo, outros fatores além do dado biológi- e mais povoadas. Hierarquizadas e desiguais, é fato, mas não completa-
co, como a honra, o comportamento público, a situação familiar, a po- mente estáticas como sugere a visão tradicional acerca de uma sociedade
sição econômica, o reconhecimento profissional e a performance social de castas, uma vez que existiam chances de mobilidade, por menores
também exerciam influência determinante. Uma pessoa “nascia sendo o que fossem (Traslosheros, 1994, 59). Nesse cenário, as corporações con-
que era”, mas sua trajetória diante da comunidade poderia ratificar ou corriam para a organização da vida social, criando laços entre seus inte-
não aquela posição. Daí certos historiadores, há algum tempo, sugerirem grantes por meio de normas, crenças, valores comuns e garantindo sua
com razão o uso da categoria calidad para compreender a organização existência material e simbólica frente a outros grupos e às autoridades.
das sociedades hispano-americanas, uma vez que ela abrange dimen- Ao unir pessoas com interesses semelhantes, essas associações dispu-
sões mais amplas do que os fatores estritamente familiares e fisionômi- nham também das condições necessárias para estabelecer mecanismos
cos, embora a cor da pele não tenha sido ignorada (Cf. Hering Torres; de controle social por meio da vigilância mútua exercida pelos próprios
Bonilla, 2011,451-470; Ramírez Hernández, 2013; Gonzalbo Aizpuru, membros. Assim, a incorporação dos indivíduos no universo social his-
op. Cit, 60-65, 278-279; Alberro & Gonzalbo Aizpuru; 2013; Chocano pano-americano tendia a ocorrer antes pela atuação de tais agremiações
Mena, s/d, 13). Em vez de uma sociedade de castas (Cf. Seed, 1982, do que pela existência de duas repúblicas.
569-606) – embora este termo fosse utilizado à época –vislumbra-se
assim uma sociedade colonial dividida segundo a calidad dos sujeitos.
Nascia-se no interior de um grupo e vivia-se coletivamente. A Sociabilidades criollas
probanza da pureza de sangue era o primeiro passo para se viver em uma
sociedade hierarquizada e organizada corporativamente. Contando com No começo do século XVII, um padre jesuíta identificava no
poucas condições favoráveis a individualidades, os sujeitos tomavam México um problema cuja solução ele considerava ser urgente. A con-
parte da vida social e tornavam concreta sua existência ante as autorida- quista militar havia sido acompanhada por um projeto de evangelização
des civis e religiosas por meio de grupos e corporações. Colégios, a uni- dos indígenas que tomou a atenção das ordens religiosas, principalmen-
versidade, ordens religiosas, irmandades, cabildos, grêmios e confrarias te nas cidades ao redor da capital do vice-reino. Os esforços missio-
são alguns exemplos de associações que, criadas em torno de um motivo nários foram majoritariamente direcionados à conversão dos nativos,
comum, garantiam uma posição a seus integrantes, bem como assegu- em busca da eliminação das idolatrias e da redução daqueles grupos
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à vida civilizada. Porém, indagava Juan Sánchez Baquero, que atenção novos santos e a emergência de identidades criollas em várias regiões do
foi dispensada aos “moradores espanhóis”? E aos filhos dos filhos dos continente.15 Neste caso, os setores clericais desempenharam importan-
conquistadores e primeiros pobladores, a “nova juventude”, que lugar lhes te papel, na medida em que religiosos criollos, mas também peninsula-
cabia naquela sociedade? Segundo Baquero, os “santos missionários” que res com fortes vínculos locais, trabalhavam para evidenciar a presença
evangelizaram o Novo Mundo se ocuparam devidamente com os indí- divina em sua terra. E terra, aqui, é sinônimo de pátria, conforme seu
genas, mas pouco zelaram pela juventude hispânica, gerando um vazio sentido no século XVII, compreendida como o lugar onde se havia nas-
que, segundo sua crônica, deveria ser preenchido pela Companhia de cido e com o qual se criavam laços afetivos – distante, portanto, de seus
Jesus. As respostas desse padre alegavam a falta de cuidado com os espa- significados mais recentes e das acepções do vocábulo nação. Assim, po-
nhóis nascidos no México e recomendavam uma reflexão sobre o lugar diam-se notar diferentes manifestações de patriotismo no interior de
social ocupado pelos criollos (Baquero, 1945, 42 ss.). um mesmo vice-reino.
O relato de Baquero, portanto, sugeria a seguinte pergunta: Tal foi o caso, por exemplo, das devoções surgidas na Audiência
qual teria sido o lugar dos grupos criollos nas sociedades americanas de Quito durante o século XVII após uma sequência de desastres natu-
coloniais? Caso se aceitasse sem reservas o modelo das duas repúbli- rais (terremotos, inundações e estiagens). Para enfrentar os temores que
cas, a solução poderia ser apontada de modo simples: a república de rondavam as cidades da região, os jesuítas fizeram circular entre os fiéis
espanhóis, distantes e apartados de indígenas, africanos e mestiços, logo, os relatos dos milagres operados por Mariana de Jesús (1618-1645), es-
segundo o religioso, fora do alcance das ações iniciais da Igreja e da timulando uma devoção em torno de uma penitente nascida em Quito
Monarquia. Sabe-se, contudo, que a separação entre tais repúblicas não que, ainda jovem, havia oferecido sua vida em troca do bem-estar de sua
se concretizou, na medida em que as mesclas eram uma realidade nas terra. Embora tenha sido beatificada apenas no século XIX e canoniza-
Américas e que, sob a abstração “espanhóis”, encontravam-se tantos da em 1950, os rumores hagiográficos sobre aqueles milagres criavam as
grupos diferentes e indiferentes entre si quanto aqueles denominados condições adequadas para os criollos quitenhos afirmarem a importância
pelo termo “índios”. Nesse sentido, partir da divisão entre repúblicas, de sua pátria, principalmente diante de Lima, que era capital do vice-
cuja existência era mais efetiva nos discursos jurídicos do que na prática, -reino e contava com uma devoção bem estabelecida em torno daquela
parece ser uma escolha pouco promissora para compreender algumas que se tornaria a primeira santa das Américas: a patrona de Lima e
das condições materiais e simbólicas das sociabilidades criollas. Daí a do Novo Mundo, Santa Rosa. Depois, o próprio episcopado fomentou
opção por observar certas formas corporativas de organização da vida em Guápulo, perto de Quito, o culto à Virgem de Guadalupe ou de
social daqueles grupos, em busca não de uma suposta unidade criolla, Guápulo, esperando criar naquele santuário um lugar de peregrinação e
mas das próprias relações, disputas e proximidades entre si e com outros reafirmar a posição da cidade e uma espécie de identidade local, que teve
grupos que os levaram a se congregar a fim de se afirmar socialmente. na arte barroca da Escuela de Quito uma expressão concreta e complexa
(Cf. Narváez Lora, 2010, 129-160; Kennedy Troya, 2001). Observando
outra região do continente, nota-se na elite eclesiástica de Puebla se-
Santos e devoções melhante busca por preeminência no processo de beatificação da monja
María de Jesús, iniciado em meados do século XVII e inspirado poste-
Os cultos a santos talvez tenham sido a principal expressão riormente pela beatificação e canonização de Rosa de Lima, com o fito
dos modos de sociabilidade, identidade e integração dos criollos nas de rivalizar com a capital do vice-reino, México (Rubial García, 1999;
Américas, especialmente a partir do século XVII. Pelo menos do pon- Buxo & Herrera, 1994, 104).
to de vista historiográfico. Não foram poucos os historiadores que se
dispuseram a ressaltar as relações entre o surgimento de devoções e de 15 Para exemplos, ver o roteiro bibliográfico ao final deste capítulo.
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Os relatos hagiográficos constituíram um elemento decisivo no após as conquistas, as confrarias eram associações eclesiásticas ou gre-
surgimento e consolidação das devoções e cultos locais. Ao lado das imagens, miais que ofereciam assistência espiritual e material a seus sócios (e, em
cujo aparecimento realçava o caráter miraculoso de determinada devoção, casos especiais, a não-sócios) que careciam de algum auxílio. Por meio
esses textos faziam circular narrativas modelares, recheadas de exemplos vir- da religiosidade, ajuda mútua e amparo fraternal, pretendia-se oferecer
tuosos, capazes de criar valores e crenças comuns a seus leitores. Servindo alívio em situações delicadas, como a morte, instabilidades políticas ou
muitas vezes como forma de entreter homens e mulheres que preferiam as desastres naturais. Com os recursos monetários recolhidos pelas doa-
histórias de santos a novelas de cavalaria, a literatura hagiográfica se tornou ções, esmolas, fundos obtidos em festas, capellanías e cotas cobradas para
um efetivo meio de transmissão de valores entre os grupos alfabetizados, o ingresso de novos associados, almejava-se assistir financeiramente a
também sendo difundida oralmente em leituras públicas, sermões, confis- própria comunidade (CF. Wobeser, 2005). No primeiro caso, tratava-se
sões e demais espaços de socialização (Rubial García, 1999, 108-109). Ao da salvação eterna; no segundo, da sobrevivência material. Embora a
relatar as vidas de santos nas cidades americanas, os hagiógrafos contribuí- devoção a um santo patrono tenha sido a marca das confrarias religiosas,
am para criar laços entre os grupos e sua terra natal, tornada então distinta os ritos católicos pautaram o funcionamento das comunidades leigas,
por ter sido berço de uma determinada santidade. indígenas, mestiças e africanas.
Se os peninsulares viram o aumento significativo do número Nas diferentes regiões das Américas, as confrarias fizeram par-
de santos espanhóis a partir do século XV, os criollos esperavam também te do cotidiano de peninsulares, criollos, mestiços, indígenas e africanos.
confirmar a fertilidade espiritual de sua terra. Nos dois vice-reinos exis- As manifestações de solidariedade, caridade e piedade contribuíam para
tentes no período, vários casos de veneráveis foram enviados a Roma certa harmonia entre os grupos sociais, desejada pelas autoridades civis
para início do processo de beatificação. Poucos desses casos foram con- e eclesiásticas, mas também para o fortalecimento das relações e da sen-
cluídos, dentre os quais dois se destacam por sua representatividade: sação de pertencimento entre os integrantes daquelas corporações, cujas
Felipe de Jesús, um franciscano criollo da Nova Espanha, que morreu práticas eram reguladas por estatutos elaborados pelas próprias associa-
como mártir em missão no Japão e foi beatificado em 1627; e Isabel ções. Do ponto de vista católico, a corporação proporcionava os meios
Flores de Oliva, uma donzela criolla da capital do Peru beatificada em convenientes à salvação de seus confrades, que, por sua vez, deveriam
1668 e canonizada três anos depois como Santa Rosa de Lima. Ainda cumprir seus deveres exemplarmente, conformando uma “economia da
que outros processos de beatificação tenham ocorrido, essas duas figuras salvação eterna”, segundo a feliz expressão de Asunción Lavrin (Lavrin,
do século XVII se somavam à devoção a diferentes advocações marianas 2015, 49). Pertencer a uma ou várias confrarias era sinal do status de de-
– a Virgem de Guadalupe de Tepeyac, no México, certamente é um bom terminada pessoa, tendo havido congregações mais ou menos abertas ao
exemplo – na construção de um sobrenatural que permitia aos criollos ingresso indiscriminado (social, étnico, gremial, sexual etc.), ainda que
não apenas a partilha de elementos comuns aos lugares em que nasce- o(a) postulante tivesse condições financeiras de bancar a cota de entrada.
ram ou onde viviam, mas também a criação de formas de sociabilidade Em geral, os grêmios que reuniam praticantes do mesmo ofício eram
e entretenimento. mais restritos, enquanto outras congregações acomodavam grupos étni-
cos diferentes – embora isso não significasse necessariamente integração
entre eles, já que em alguns casos as reuniões, construções de altares,
Confrarias procissões e festas ocorriam separadamente (Guerra, 2000, 27-28).
Um caso representativo pode ser encontrado na Confraria do
Os cultos a santos motivaram também uma importante forma Rosário, promovida pelos dominicanos em meados do século XVI na ci-
de organização corporativa da vida social nas cidades americanas: as dade de Santa Fé de Bogotá, atual Colômbia. Ela se dividia em três ramos:
confrarias. Presentes no Novo Mundo desde os primeiros momentos o masculino, o feminino e o indígena, os dois primeiros formados por
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personagens distintos da cidade, enquanto a seção nativa era composta As festas religiosas foram as mais frequentes e faustosas nas
por homens e mulheres. Para as atividades corriqueiras, cada ramo se reu- sociedades vice-reais americanas, principalmente no século XVII. Entre
nia separadamente, situação que se alterava nas ações mais importantes, elas, a de Corpus Christi teve destaque especial por seu sentido no con-
como manter e adornar a capela da Virgem do Rosário e preparar sua junto dos ritos católicos após o Concílio de Trento, pelo esplendor da
festa anual (Plata, 2015, 79-109). Os criollos e os peninsulares vinculados à procissão e por acolher diferentes expressões artísticas, como a música, a
confraria estavam ligados às elites políticas locais e enxergavam nessas cir- dança e o teatro (Cf. Santos, 2005; Jancsó & Kantor; 2001). Em várias
cunstâncias a oportunidade de evidenciar seus lugares sociais e reforçar, no cidades, a elite dirigente criolla, reunida nos ayuntamientos, financiou e
interior da associação, as relações de poder existentes em outros espaços. organizou tais festejos em parceria com confrarias, grêmios e paróquias
Nesse sentido, ao construir capelas e altares, promover procissões, orações (Dolores Bravo; Rubial García, 2005, 449-451). Dar-se a ver era impor-
e festas, as confrarias ofereciam a seus sócios várias ocasiões de sociabi- tante e a festa oferecia a oportunidade para esses grupos e corporações
lidade, nas quais se afirmavam valores e crenças comuns, cultivavam-se se posicionarem ante as principais autoridades civis e religiosas espera-
virtudes desejáveis à manutenção do grupo e à coesão social, mas também das no evento, expressando sua condição social e histórica. Em 1608,
se expressavam as formas da organização, da hierarquização e das disputas em Potosí, nos dias subsequentes à cerimônia de Corpus Christi, os
que atravessaram as sociedades americanas. criollos da cidade promoveram diversos festejos e entretenimentos para
demonstrar suas qualidades. Em seis dias, realizaram-se diferentes ati-
vidades, comédias, saraus, corridas de touros, jogos, com a finalidade
As festas como cenário político de expor aos vecinos, forasteiros e demais moradores suas habilidades,
riquezas e nobreza (García Pabón, 1995; Cf. Prodanov, 2002, 102).
As festividades em homenagem ao santo patrono constituíram Se em muitas circunstâncias os festejos religiosos, compreendi-
importantes ocasiões de diversão e entretenimento para os confrades e sua dos como ocasiões de sociabilidade, permitiam aos setores criollos dispu-
coletividade, permitindo-lhes comungar imagens, ritos e crenças comuns. tar a preeminência entre si e reafirmar a ordem social existente, em al-
Mas não foram as únicas. Os dias festivos se espalhavam por todo o ano gumas regiões eles tornaram possível a participação e expressão efetivas
e pontuavam o calendário religioso e civil de espanhóis e índios. Em ge- de outros grupos, como os ameríndios, agregando elementos nativos à
ral, as comemorações nas cidades da América colonial significavam uma comemoração. Alexandra Kennedy Troya aponta que, em Quito, mes-
ruptura com o tempo do cotidiano, sem, contudo, esfacelar as hierarquias mo após as restrições tridentinas, a nobreza indígena continuou partici-
estruturadoras da vida social (Kennedy Troya, 1996, 137-152; Gonzalbo pando de diversas festas, recorrendo àquele espaço para exibir símbolos
Aizpuru, 2009, 305). De modo apenas aparentemente contraditório, sus- que os diferenciariam dos outros nativos, dos peninsulares e dos criollos
pendiam-se por um momento o ritmo, as atividades laborais e os papéis (Kennedy Troya, 2001, 142-143; Cf. García Pabón, 1995, 428-431).
desempenhados no dia a dia, para se reafirmarem, de modo simbólico e à Menos faustosas e frequentes, mas igualmente relevantes
vista de todos, o ordenamento, as hierarquias e as relações sociais. As festi- como oportunidades de socialização, as festas públicas organizadas
vidades eram um gatilho para a ativação de certas memórias. Cerimônias pelas autoridades civis ofereceram um palco privilegiado para as par-
cristãs como a ocorrida no México em 1699 poderiam acabar em panca- celas criollas, especialmente nas cidades que não eram as capitais dos
daria se cada ordem religiosa não respeitasse o lugar que lhe cabia na pro- vice-reinos e não contavam, portanto, com um ambiente cortesão.
cissão que levava o Santíssimo Sacramento, e que na verdade representava Nestas sedes, boa parte dos festejos ocorreu nos entornos dos palá-
seu lugar na sociedade (Rubial García, 2005, 169). Circunstâncias como cios vice-reais, muitas vezes ligados ao nascimento, morte ou ascen-
essa mostram quão significativo era manter a lógica corporativa e organi- são de um monarca em Castela, ou por ocasião da chegada de um
zadora do cotidiano nos tempos de festa. novo alter ego do monarca.
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Entre os séculos XVI e XVII, a relação estabelecida nas fes- Considerações Finais
tas de recepção ou em outras comemorações palacianas entre a corte
e os grupos criollos abrangia dois movimentos simultâneos. O vice-rei Faz já algum tempo que a história não se resume a um en-
patrocinava a celebração para evidenciar sua legitimidade e autoridade – cadeamento cronológico dos fatos. As teorias, os modelos e tipos, as
representada nos adornos, arcos, pinturas, roupas e nas próprias encena- generalizações em variadas escalas são práticas correntes na boa his-
ções – frente às elites civis e religiosas locais, ao passo que estas (e mes- toriografia, que se beneficiou do diálogo frutífero e ainda promissor,
mos alguns membros das nobrezas indígenas) pretendiam se mostrar ao embora nem sempre consensual, com a teoria social e com a filosofia
novo mandatário a fim de ocupar um lugar de distinção. Por exemplo, para aprimorar seus métodos e abordagens. A busca pelo que é único
em uma das portas do arco construído pelo cabildo de Lima para receber e irrepetível continua no horizonte dos historiadores, sem, contudo, se
o Marquês de Cañete, em 1589, via-se uma pintura de Eneias e seu pai, transformar num fim em si mesma. As múltiplas formas de histórias
Anquises, para retratar o vice-rei e o monarca espanhol, respectivamen- comparativas, conectadas, atlânticas estão na praça para evidenciar tal
te, sob o tema da obediência filial. Segundo Alejandra Osorio, pode-se condição. Compreender certo evento em suas particularidades constitui
interpretar tal representação em sentido criollo, ao converter o vice-rei um passo fundamental, assim como o é atribuir-lhe sentido, inserindo-o
em fundador de uma pátria criolla, à semelhança do modelo romano co- num conjunto explicativo maior. Subjaz aí um importante desafio que
dificado na trajetória de Eneias (Cf. Osorio, 2006, 767-831). Nesse sen- há muito se impõe aos historiadores: a medida das generalizações.
tido e de acordo com a precisa formulação de Antonio Rubial García, a Este capítulo sobre as sociabilidades criollas fez algumas ge-
festa constituía um cenário político (Rubial García, 2009). neralizações e apontou os limites de outras. Partiu-se, inicialmente, do
Se as celebrações cortesãs, de modo geral, não tinham data fixa pressuposto de que as sociedades americanas coloniais foram atravessa-
e dependiam da chegada ou patrocínio vice-real, o calendário de festas das por relações conflitivas, o que não deixa de ser um modelo na medida
civis na Nova Espanha previa uma cerimônia relevante para afirmação em que se valorizam o recorrente e o geral a fim de propor uma mirada
da presença hispânica. Tratava-se do Paseo del Pendón, festejo realizado sobre mais de dois séculos de história, conquanto não se ignorassem os
no dia 13 de agosto pelas autoridades do vice-reino, por peninsulares espaços e possibilidades de negociação e de concerto de interesses em
assentados no Novo Mundo e por criollos para comemorar a vitória de disputa, conforme se sugeriu. Dessa concepção geral seguiu-se com fre-
Hernán Cortés sobre os mexicas (Dolores Bravo, 2009, 454). O símbolo quência uma outra, que aqui se considerou pouco promissora: a de que
principal da cerimônia era um estandarte com os escudos de armas do houve uma oposição perene entre os interesses de criollos e peninsulares.
México e da Monarquia espanhola levado à frente dos desfiles, que em Em primeiro lugar, porque as próprias definições de criollo e peninsu-
algumas ocasiões podiam ser acompanhados de corridas de touros, mú- lar supõem uma identidade que reduz demasiadamente a variedade de
sica e celebrações religiosas. Ao dedicar um dia do ano para comemorar grupos num momento, especialmente antes do início do século XVIII,
o triunfo da conquista, as elites dirigentes das cidades da Nova Espanha, em que nem sempre aqueles agentes históricos assim se reconheciam.
como também de outras regiões das Américas, reforçavam e sociali- Em segundo lugar, porque tal oposição, pouco matizada, é antes fruto
zavam a memória fundadora de sua condição histórica. Mais do que da transposição de certas leituras nacionalistas sobre os processos de
em outras ocasiões, nessa a cerimônia constituía um espaço privilegiado independência no começo do século XIX para realidades anteriores que
para as sociabilidades e expressão das perspectivas histórico-políticas pouco ou nada respondiam às lógicas de conteúdo nacional. Se é verdade
dos grupos criollos. que houve disputas constantes entre grupos locais e súditos espanhóis,
tais contendas nem sempre tinham ligação com a condição em si de
criollo ou peninsular, mas sim com interesses mais terrenos: terras, car-
gos, mão de obra ou “simplesmente” o lugar de cada um na procissão de
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Corpus Christi. Em algumas regiões, a exemplo das principais cidades parate imaginar uma teoria das festas urbanas na América hispânica,
da Nova Espanha, parece ter havido uma distinção mais clara entre os desde que tal generalização mantenha vivo o gosto pelas evidências e
dois grupos ainda no século XVI; em outras, como nas áreas urbanas do particularidades históricas.
rio da Prata, os limites e critérios de identificação eram menos nítidos.
Como ente, a sociedade criolla, no singular, não existe, e como
modelo soa pouco útil. Por isso, privilegiaram-se aqui as sociabilidades Roteiro bibliográfico
criollas, noção menos cerrada porque supõe as relações, os contatos e
considera, portanto, as múltiplas presenças de outros grupos. Tal esco- Obras gerais sobre a sociedade colonial americana: entre vários outros
lha permitiu, nas páginas anteriores, associar a compreensão dos grupos exemplos de livros publicados no Brasil que abordam a sociedade colonial
criollos nas Américas ao entendimento que se tem da natureza política na América hispânica, ver os primeiros volumes da coletânea organizada
da expansão hispânica. O argumento que subsidiou este texto recoloca a por Leslie Bethell: História da América Latina (Edusp, 1997), a obra de
questão das generalizações teóricas: a teoria que se partilha sobre a na- Stuart B. Schwartz e James Lockhart: América Latina na época colonial
tureza da Monarquia espanhola moderna fornece as chaves conceituais (Record, 2002), o segundo volume da História do Novo Mundo: as mesti-
para a compreensão das sociedades americanas e, por conseguinte, das çagens, de Serge Gruzinski e Carmen Bernand (Edusp, 2007) e o levan-
sociabilidades criollas. Se mais ou menos centralizada; se mais ou menos tamento bibliográfico realizado por John Manuel Monteiro e Francisco
absoluta; se mais ou menos corporativa; a depender da opção feita, entre Moscoso: América Latina colonial (Bibliografia básica, CELA, 1990).
as múltiplas possíveis, abre-se tal ou qual perspectiva. Em todos os casos, Patriotismo criollo: em relação às sociedades criollas, um dos temas
os fatos serão iluminados pelo farol oferecido no modelo – o que em si mais abordados pela historiografia nas últimas décadas é o que trata do
não constitui empecilho, desde que os primeiros não sejam desconsi- desenvolvimento de um sentimento de patriotismo em diferentes regiões
derados em favor do segundo e que não se ignore o dado fundamental da América espanhola, em especial, a partir do final do século XVI. Sobre
de que as construções modelares são por definição simplificadoras da este tema, ver os escritos de Jacques Lafaye: Quetzalcóatl y Guadalupe; La
realidade e não devem com ela coincidir. formación de la conciencia nacional de México, 1531-1813 (FCE, 1977)
Nesse sentido, o estudo das formas de sociabilidades criollas e Enrique Florescano: Memoria mexicana; Ensayo sobre la reconstrucción del
esboçadas neste capítulo permite, por um lado, colocar elaborações con- pasado: época prehispánica-1821 (Contrapuntos, 1987). Uma obra central
ceituais mais amplas (sobre sistemas políticos, econômicos, sociais) em sobre esta temática é a de David Brading: Orbe Indiano; De la monar-
perspectiva histórica, testando sua validade para um conjunto particular quía católica a la República criolla, 1492-1867 (FCE, 1991), seguida por
de casos; e, por outro, oferecer chaves e oportunidades para a formulação escritos como a coletânea de artigos editada por Juan M. Vitulli e David
de novos modelos explicativos. Os processos específicos (o funciona- M. Solodkow: Poéticas de lo criollo; la transformación del concepto ‘criollo’ en
mento das confrarias, as devoções, os entretenimentos urbanos, as fes- las letras hispanoamericanas (siglo XVI al XIX) (Corregidor, 2009) e, es-
tividades civis e religiosas) poderiam, assim, temperar as generalizações, pecificamente sobre a região da Nova Espanha, por textos de Enrique
franqueando aos historiadores as portas para a elaboração de outros Florescano: De la patria criolla a la historia de la nación (Secuencia (nueva
aportes teóricos. Tal pode ser o caso da discussão em torno das festas época), n. 52, 7-39, 2002), Solange Alberro: El águila y la cruz. Orígenes re-
urbanas, para mencionar um dos itens analisados acima. As festividades, ligiosos de la conciencia criolla (México, siglos XVI-XVII, FCE; El Colegio
por exemplo, servem tanto à ratificação de um poder (da Coroa ou da de México, 1999) e Antonio Annino: 1808, el ocaso del patriotismo criollo
Igreja) por meio das representações e dos elementos simbólicos, como à en Mexico (Historia y política, n. 19, 39-73, 2008); para uma visão mais
sua suspensão momentânea, valendo-se dos mesmos meios. Ainda que ampla sobre a América Ibérica no século XIX que também aborda esta
não se configurem como manifestações homogêneas, não seria um dis- questão em alguns de seus capítulos iniciais, ver a coletânea organizada
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por Annino em conjunto com François Xavier-Guerra: Inventando la na- perspectiva de “monarquias compósitas” e, em obra recente, adota uma
ción: Iberoamérica siglo XIX (FCE, 2003). Em relação ao vice-reino do Rio abordagem comparada entre os impérios espanhol e inglês em relação
da Prata, ver o artigo de Juan Carlos Garavaglia: Una breve nota acerca de às suas possessões americanas: Empires of the Atlantic World: Britain and
los ‘patriotas criollos’ en el Río de la Plata (Prohistoria, n. 12, 93-102, 2008) Spain in America, 1492-1830 (Yale University Press, 2006). Para inter-
onde o autor analisa a utilização e os significados atribuídos à palavra pretações que questionam uma perspectiva imperial associada a uma
criollo na região; algo relativamente semelhante é feito por Luis Gómez lógica absolutista, ver, além de outras obras do autor citadas ao longo do
Acuña para o Peru: Lo criollo en el Perú republicano: breve aproximación a un capítulo, o livro de Serge Gruzinski: As quatro partes do mundo; história de
término elusivo (Histórica, vol. XXXI, n. 2, 115-166, 2007). Também sobre uma Mundialização (EUFMG, 2014). Nele, o pesquisador francês tra-
esta região, ver os escritos de Bernard Lavallé: Las promesas ambíguas; balha com o conceito de “Monarquia católica” em uma abordagem que
Criollismo colonial en los Andes (Instituto Riva Agüero, 1993, entre vários se aproxima da proposta de “histórias conectadas” defendida por Sanjay
outros) e Margarita Eva Rodríguez García: Criollismo y Patria en la Lima Subrahmanyam em seus estudos sobre a Ásia: Connected Histories: no-
ilustrada (1732-1795) (Miño y Dávila Editores, 2006). Sobre a região da tes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia (Modern Asian
Colômbia e Venezuela, ver Carl Henrik Langebaek: Los herederos del pa- Studies, vol. 31, n. 3, 735-762, 1997), mas também sobre a América:
sado; Indígenas y pensamiento criollo en Colombia y Venezuela (Universidad Holding the World in Balance: the connected histories of the Iberian Overseas
de los Andes, 2009); para a Guatemala, conferir os estudos produzidos na Empires, 1500-1640 (American Historical Review, 112(5), 1359-1385,
década de 1970 por André Saint-Lu: Condición colonial y conciencia criolla 2007). Uma proposta para pensar as monarquias ibéricas como poli-
en Guatemala (Editorial Universitaria, 1978) e Severo Martínez Peláez: cêntricas, à diferença tanto dos modelos absolutistas como da própria
La patria del criollo: ensayo de interpretación de la realidad colonial guatemal- noção de monarquia compósita, tem sido discutida com frequência e foi
teca (Editorial Universitaria Centroamericana, 1973). Outra abordagem sistematizada por historiadores vinculados à Red Columnaria em uma
que alcançou ampla repercussão nos últimos anos é a de Jorge Cañizares- obra programática editada por Pedro Cardim, Tamar Herzog, Gaetano
Esguerra, que trabalha com o conceito de epistemologia patriótica criolla: Sabatini e José Javier Ruiz Ibáñez: Polycentric Monarchies; How did Early
Como escrever a história do Novo Mundo: histórias, epistemologias e identida- Modern Spain and Portugal achieve and maintain a Global Hegemony?
des no Mundo Atlântico do século XVIII (Edusp, 2011). (Sussex Academic Press, 2012).
Monarquia, império, coroa: em um balanço historiográfico pu- Vida cotidiana e formas de sociabilidade: para obras que buscam
blicado recentemente (Empire: the concept and its problems in the his- abarcar toda a América hispânica, ver Georges Baudot: La vida cotidia-
toriography on the Iberian empires in the Early Modern Age, Culture na en la América española en tiempos de Felipe II (FCE, 1992), Magdalena
& History Digital Journal, vol. 3, n. 1, 1-10, 2014), os historiadores Horst Chocano Mena: La América colonial (1492-1763). (Cultura y vida co-
Pietschmann e Christian Hausser criticaram a falta de preocupação pre- tidiana, Madri, 2000) e o artigo de Manuel Hernández González:
sente em grande parte da historiografia que analisa o conceito de impé- Historiografía reciente sobre la cultura y la vida cotidiana en la América
rio em tentar definir este termo bem como diferenciá-lo de outros, como Colonial (1995-2005) (Chronica Nova, n. 32, 51-66, 2006). Da vasta
“monarquia” ou “mundo”. Para uma reflexão sobre este conceito tendo a produção acerca do vice-reino da Nova Espanha, ver, além das obras
América como objeto central, ver a obra de Anthony Pagden: Lords of all citadas ao longo do capítulo, os estudos realizados por historiadores
the World; Ideologies of Empire in Spain, Britain and France, c.1500-c.1800 como María Alba Pastor: Crisis y recomposición social. Nueva España en
(Yale University Press, 1995). Entre outros exemplos de autores que uti- el tránsito del siglo XVI al XVII (FCE, 1999) e os volumes iniciais da
lizam o conceito de império para analisar a Coroa hispânica no período, coleção Historia de la vida cotidiana en México (FCE, 2005) organizada
ver J. H. Parry: The Spanish Seaborne Empire (Hutchinson, 1966) e John por Pilar Gonzalbo Aizpuru; sobre a região da Venezuela, ver Carlos
H. Elliott: Imperial Spain: 1469-1716 (Penguin, 1990), que o associa à F. Duarte: La vida cotidiana en Venezuela durante el período hispánico
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(Fundación Cisneros, 2001); para a região do vice-reino do Prata, ver Extratos de documentos
os primeiros volumes das coletâneas Historia de la vida privada en la
Argentina (Taurus, 1999), organizada por Fernando Devoto e Marta Nesta seção, foram incluídos três documentos em verso produ-
Madero, e Nueva Historia Argentina (Editorial Sudamericana, 2000), zidos na Nova Espanha entre o final do século XVI e início do XVII que
de Enrique Tandeter; sobre o vice-reino do Peru, James Lockhart ana- apresentam, através de diferentes pontos de vista, representações que
lisa os primeiros passos da sociedade peruana em seu El mundo hispa- então circulavam sobre os criollos, os peninsulares e as terras do Novo
noperuano; 1532-1560 (FCE, 1982) e, para o período imediatamen- Mundo. A decisão por textos de uma mesma região deu-se pelo fato de
serem contemporâneos, além de, especialmente entre os dois primeiros,
te anterior ao processo de independência, as obras de Alberto Flores
estabelecerem um diálogo direto entre si.
Galindo: La ciudad sumergida: aristocracia y plebe en Lima, 1760-1830
Os textos iniciais são sonetos anônimos publicados originalmente
(Editorial Horizonte, 1991) e, mais recentemente, de John R. Fisher: em 1604 que apresentam acusações mútuas em relação à atuação de criollos
Bourbon Perú, 1750-1824 (Liverpool University Press, 2003). A res- e peninsulares na cidade do México (retirados de Mendes Plancarte, 1991). No
peito das santidades nas regiões dos vice-reinos da Nova Espanha e primeiro deles, um gachupín traça um panorama extremamente negativo da
do Peru, ver Teodoro Hampe Martínez: Santidad e identidad criolla: natureza e da sociedade que teria se desenvolvido em terras americanas:
estudio del proceso de canonización de Santa Rosa (Centro de Estudios
Regionales Andinos Bartolomé de las Casas, 1998), Antonio Rubial
“Minas sin plata, sin verdad mineros,
García: La santidad controvertida. Hagiografía y conciencia criolla alre-
mercaderes por ella codiciosos,
dedor de los venerables no canonizados de Nueva España (FCE, 1999),
caballeros de serlo deseosos,
Miguel León-Portilla: Tonantzin Guadalupe. Pensamiento náhuatl y
con mucha presunción bodegoneros.
mensaje cristiano en el “Nican mopohua” (FCE, 2000), David Brading:
La Virgen de Guadalupe: imagen y tradición (Taurus, 2002), Richard
Mujeres que se venden por dineros,
Nebel: Santa Maria Tonatzin Virgen de Guadalupe: continuidad y trans-
dejando a los mejores muy quejosos;
formación religiosa en México (FCE, 2005) e Verónica Salles-Reese: De
calles, casas, caballos muy hermosos;
Viracocha a la Virgen de Copacabana: representación de lo sagrado en el
muchos amigos pocos verdaderos.
Lago Titicaca (Plural, 2008). Dentro da extensa produção a respeito das
confrarias na América hispânica, ver estudos como as compilações de
Negros que no obedecen sus señores;
textos organizadas por Eduardo Carrera (et. al.): Las voces de la fe. Las
señores que no mandan en su casa;
cofradías en México (siglos XVII-XIX) (Ciesas, 2011) e Juan Guillermo
jugando sus mujeres noche y día;
Muñoz Correa (et. al.): Cofradías, capellanías y obras pías en la América
Colonial (UNAM, 1998), além dos balanços bibliográficos realizados
colgados del Virrey mil pretensores;
por Walter Vega para a região do vice-reino do Peru: Cofradías en
tianguez,16 almoneda, behetría…17
el Perú Colonial: una aproximación bibliográfica (Diálogos en Historia,
Aquesto, en suma, en esta ciudad pasa”.
n. 1, 137-152, 1999) e por Marcial Sánchez Gaete: Desde el Mundo
Hispano al Cono Sur americano. Una mirada a las Cofradías desde la his-
16 Possível referência a tianguis, palavra náuatle que se refere ao mercado local.
toriografía en los últimos 50 años (Revista de Historia y Geografía, n. 17 Termo que define um local onde os próprios habitantes elegem seus líderes, mas também
28, 59-80, 2013) que apresentam um grande número de referências. utilizado no sentido de confusão ou desordem. Em texto contemporâneo ao soneto acima, o jesuíta
José de Acosta definiu as behetrías como forma de organização precária praticada no período por
indígenas de regiões como a Flórida e o Brasil, “que no tienen ciertos reyes, sino conforme a la ocasión
que se ofrece en guerra o paz, eligen sus caudillos como se les antoja”. (Acosta, 1985, 64).
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No segundo soneto, o narrador criollo rebate acusações referentes ao dades realizadas quando da chegada do vice-rei Juan de Mendoza y Luna,
“nuestro mexicano domicilio”, apontando a ingratidão dos espanhóis que per- terceiro Marquês de Montesclaros, em 1603:
manecem no continente por longos períodos em busca de ascensão social, ao
mesmo tempo em que criticam essas terras: “[...]
Pues si á la Corte hace el real ornato,
“Viene de España por el mar salobre De ornato real en nuestra Corte hay sobra:
a nuestro mexicano domicilio, Coches, braveza, estados, aparato;
un hombre tosco, sin ningún auxilio, Que, aunque en títulos falta, en esto sobra.
de salud falto y de dinero pobre. Si allá tienen al Rey por inmediato,
Que como causa en sus efectos obra,
Y luego que caudal y ánimo cobre, Por potencial virtud de su presencia,
Le aplican en su bárbaro concilio Presente está aquí el Rey, por su potencia.
Otros como él, de César y Virgilio
Las dos coronas de laurel y robre [roble].18 Allá celebran á los ricos hombres,
Grandes, por su riqueza, entre los chicos;
Y el otro, que agujetas y alfileres Mas si riqueza engendra grandes nombres,
vendía por la calles, ya es un Conde Grandes veréis aquí, y muy grandes ricos,
en calidad, y en cantidad un Fúcar;19 Condes, marqueses y otros sobrenombres.
Si tienen quien les sirva de hocicos,
y abomina después del lugar donde Por vasallaje, que los fuerza á honrallos,
adquirió estimación, gusto y haberes; Aquí hay también señores de vasallos.
y tiraba la jábega20 en Sanlúcar”.
[…]
O terceiro documento selecionado é um pequeno trecho do poema
épico Canto intitulado Mercurio, escrito no início do século XVII pelo profes- Haber que se ganó, ciento y dos años,22
sor, presbítero e escritor estremadurenho, que vivia há anos no Novo Mundo, Y hoy ser Babel y emporio de naciones;
Tan madre natural de los extraños,
Arias de Villalobos (IN García, 1907, 261-264).21 Nele, o poeta traça um pa-
Que echa á los (que) parió, por los rincones.
norama altamente elogioso da capital da Nova Espanha a partir das festivi-
Y por trajinación de pro y de daños,
Parido haber millones de millones,
18 De acordo com Mendes Plancarte (1991, 137), expressão onde “le otorgan reputación de Sin los que al Rey, y al trato y mercancía,
cultura y de benemeréncia pública”. Saca de sí y despide cada día
19 Referência aos Függer, importante família de banqueiros alemães que manteve estreitas
relações com Carlos V.
20 Rede de pescar. Tarde llegaron los conquistadores
21 O título completo do poema é: Canto intitulado Mercurio. Dase razón en él, del estado y grandeza A aprender de la abeja y la hormiga;
de esta gran ciudad de México Tenoxtitlan, desde su principio, al estado que hoy tiene; con los príncipes
que la han gobernado por nuestros reyes. Apesar de escrito por volta de 1603, o poema foi publicado
apenas em 1623 (com alterações em algumas passagens, como as referentes às datações) como 22 O poeta toma como ponto de referência para o início da história da cidade o ano de 1521,
parte de uma obra mais extensa. Para informações biográficas sobre Arias de Villalobos e uma quando a cidade de México-Tenochtitlan foi invadida definitivamente pelo exército de espanhóis
análise sobre sua descrição da Cidade do México (Cf. Pullés-Linares, 2010, 73-93). e indígenas liderado por Hernán Cortés.
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Pues la prosperidad se les fué en flores,
Y aquel que guarda, halla y no mendiga.
Capítulo 2
De encomendados, hay comendadores,
Que éstos guardaron bien granos de espiga;
Mas los que á sus veranos dieron rienda, Fronteiras nas Américas: alianças,
Vino el Invierno y fuése la encomienda”.
identidades e conflitos (séculos XVI a XVIII)

Fernanda Sposito
José Carlos Vilardaga

Analisar a fronteira, em seus múltiplos contextos, desperta um du-


plo olhar inicial: ao mesmo tempo em que, como fenômeno, ela busca criar
definições e limites concretos e tangíveis, também, em seu sentido concei-
tual, ela é pouco precisa e de definição difícil. O termo é comumente utili-
zado nos mais diversos campos do conhecimento, abarcando, por exemplo,
a crítica literária e os estudos da linguagem (as “fronteiras metafóricas” do
campo da cultura) e a psicanálise, na qual o conceito se aproxima tanto dos
momentos de ruptura quanto das chamadas zonas “cinzentas”. Na ciência
política e nas relações internacionais, o termo ganha amplo sentido, trafe-
gando entre o simbólico e o formal, deslizando entre a noção de zona de
fronteira e de linha de demarcação. Nessa, cumpre um papel espacial, mas é
também temporal, pois de modo geral essa linha se sustenta sobre uma base
política e um poder constituído no tempo (Raffestin; Oliveira, 2005, 9-15).
Nos estudos da geografia o termo faz sobressair seu sentido es-
pacial, mas também se associa intimamente à ação humana, que define e
transforma os espaços em territórios. Neste caso, uma das preocupações
é mostrar como limites e fronteiras ora se aproximam, ora se afastam,
já que a fronteira muitas vezes vai para além dos limites, propiciando
contatos (Moraes, 2000). Ao mesmo tempo que o limite define bordas, a
fronteira transborda em inúmeras situações. A possibilidade de compre-
ender a fronteira como um espaço que demarca diferenças, ao mesmo
tempo que propicia encontros, é a maior riqueza dessa análise.
Na antropologia o termo faz valer sua polissemia, abarcando as
fronteiras reais, simbólicas e imaginárias, mostrando-se um tema privi-

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legiado para os estudos das identidades e etnias. Para esse último caso, o peruano Victor Belaúde e o mexicano Silvio Zavala. Algumas vezes,
os estudos sobre fronteiras étnicas propõem, por exemplo, que os limites buscaram também as comparações, mas dessa feita entre as fronteiras
postos nunca devam ser vistos como impermeáveis, mas sim como pro- americanas anglo-saxônicas e ibéricas. Nesses estudos, muitas vezes las-
cessos abertos e maleáveis (Barth; Poutignat, 1997). timou-se a ausência de um “mito da fronteira” ibero-americano, como
Em verdade, parece que o significado e uso do conceito de fron- aquele gestado por Turner, já que na tese do autor americano a fronteira
teira são muito mais atrelados às várias epistemologias que os acompa- fora fundamental para a formação da democracia, enquanto na tradição
nham do que a uma definição ampla e bem demarcada. O assunto tam- latino-americana a fronteira separava a civilização da barbárie (Wegner,
bém foi amplamente abordado pelo campo da História, que, de modo 2000). De todo modo, o tema já estava presente, mesmo que de modo
geral, compreendeu o termo sob o ponto de vista contextual, evitando as colateral, na seminal obra de Sarmiento, o Facundo (1845), opondo, ain-
grandes definições atemporais. Mesmo assim, alguns autores procura- da no século XIX, as instâncias da civilização urbana e do campo bárba-
ram elaborar uma teoria da fronteira, e os historiadores do tema foram ro. Nessa toada, a fronteira, para vários autores latino-americanos, teria
especialmente férteis nos Estados Unidos da América, onde chegou a fomentado o surgimento de tipos sociais muito característicos, mais ou
formar-se uma “Escola da Fronteira” (Cf. Weber; Solano & Bernabeu, menos incorporados às mitologias nacionais, como os gaúchos platinos,
1991, 61-84). O pioneiro e marcante trabalho de Frederick Jackson os huasos chilenos e os charros mexicanos.
Turner, “O significado da fronteira na história americana”, apresentado Para os historiadores, a fronteira foi vista, de modo geral, mais
em 1883, no contexto da Exposição Universal de Chicago, causaria for- como zona do que como linha, e seria definida na América Latina a partir
te impacto alguns anos depois, tornando-se onipresente em materiais de seus diversos tipos: indígenas, missioneiras, cimarronas, de exploração
didáticos e cartilhas norte-americanas (Turner; Knauss, 2004, 23-54). mineral, agrícolas e pecuária, e também políticas, jogando um importante
Turner participava de um evento que comemorava – com um ano de papel no processo de colonização americano (Hennessy, 1978). Fruto de
atraso – os quatrocentos anos da descoberta da América. O núcleo duro importantes diálogos da história com a antropologia, da etno-história, e
de sua tese buscava exprimir as diferenças entre as fronteiras europeias da geografia, a temática da fronteira na América Latina vem percorren-
e americanas, demarcando as influências que a fronteira exerceu sobre do uma trajetória comum que partiu das fechadas visões marcadamente
as instituições e sobre a própria sociedade americana, sendo, assim, um nacionalistas prevalescentes até a década de 1980, para concepções con-
dos elementos fundamentais de sua formação histórica e de sua iden- temporâneas que enxergam fronteiras como lugares de permeabilidade,
tidade. Vista como móvel e libertadora, a fronteira teria criado um ho- hibridismos e formadores de espaços (Prado, 2012, 318-333).
mem simples, igualitário e prático. A visão de Turner, essencialista em Foram entendidas como internas aos processos de expansão le-
sua forma de ver a fronteira, geraria muitos apoiadores, mas também vados a cabo por um ou outro império colonial, mas foram também ex-
muitos críticos, que questionaram a visão idílica da fronteira turneriana, ternas em seus pontos de contato em espaços disputados por esses mes-
que minimizava as populações indígenas, a violência e os intercâmbios mos impérios (Quarleri, 2009). Deixaram de ser vistas como naturali-
fronteiriços. Além disso, ignorava completamente os assentamentos es- zadas e uniformes, tornando-se um processo dinâmico e extremamente
panhóis na América do Norte (Weber, 1991). Uma “Nova História do heterogêneo. Plenamente histórico. Nos últimos anos, a visão sobre a
Oeste” passou a ver a fronteira não mais como a separação entre civili- fronteira tem ressaltado mais seu aspecto integrador, que aproxima cul-
zação e mundo selvagem, mas como os limites sociais e geográficos dos turas e gera zonas de contato, de mestiçagem ou de transculturação. O
impérios coloniais na América (Guy; Sheridan, 1998, 3-15). desafio aí é não perder de vista o caráter violento e assimétrico presente
A seara aberta pelo historiador norte-americano foi percor- muitas vezes nesses “encontros”.
rida por alguns autores que, como ele, compreenderam a fronteira na É sobre parte desse amplo universo de fronteiras nas Américas
América como um dos seus elementos formativos mais essenciais, como entre os séculos XV e XVIII que este capítulo se debruça, analisan-
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do-as em suas ambiguidades, como pontos de conflito e beligerância, à risca, a tríade de seu tempo: descoberta, invenção e inovação, tentando
mas também como locais de encontro e alianças. O historiador espanhol praticar a aritmetização da realidade. Em seu texto, breve, dizia literal-
Francisco Solano já disse que, na América, fronteira e linha de demarca- mente que: “se faça e asygne pello dito mar oceano huma raya ou linha direta
ção não coincidiram nunca (Solano; Bernabeu, 1991, 189). Assim, nada de poolo a poolo, scilicet, do pollo ártico ao pollo antarctico que he de norte a
melhor do que começar analisando um dos grandes marcos na tentati- sul”. Nele, ainda se previa que uma expedição seria preparada para defi-
va do estabelecimento de uma linha demarcatória para as Américas: o nir esses limites, o que nunca aconteceu.
Tratado de Tordesilhas, que dividiu o Mar Oceano, e suas terras, entre O Tratado também revela uma forte e naturalizada presunção
Espanha e Portugal. É, sem dúvida, um dos atos fundadores da coloni- - ancorada num enorme entusiasmo messiânico e num profundo desejo
zação americana. de poder dos soberanos envolvidos - de divisão do mundo à revelia de
quaisquer dos habitantes dos territórios envolvidos (Gruzinski, 1999).
De qualquer modo, ele teria repercussões na cartografia produzida nos
Tordesilhas e a divisão do mundo anos posteriores, elaborada sobretudo a partir da opinião de práticos e
navegantes. A linha, que cruzava a embocadura do rio Amazonas ao
Era já meados do ano de 1494, mais precisamente em 7 de Norte, teve uma trajetória mais elástica ao Sul, cobrindo desde Cananeia
junho, na pequena vila fronteiriça de Tordesilhas, na beira do rio Douro, até as proximidades do Rio da Prata. Sua variação obedeceu sobretudo à
que os agentes diplomáticos dos reinos de Portugal e de Castela e realidade física e aos mais diversos condicionantes, dentre eles invasões,
Aragão assinaram um tratado de importância fundamental tanto para tratados, apropriações e domínio de fato, causando amplos desdobra-
as pretensões expansionistas coevas de Portugal e Espanha, quanto para mentos nas relações entre Portugal e Espanha na América Meridional
as relações geopolíticas de vários reinos europeus nos anos vindouros. (Magalhães; Torres, 1994, 91-101). De qualquer modo, mais ou me-
O documento, que seria ratificado pelos reis de Castela e Aragão, Isabel nos levado a sério, o Tratado prevalecerá até o século XVIII, quando
e Fernando, em 2 de julho, e, pelo rei português D. João II, em 5 de o Tratado de Madri (1750) já será a expressão de uma nova realidade,
setembro, teria fortes implicações para o continente recém-encontrado mais concreta, científica e diplomática, das relações entre os ibéricos
pelos europeus, mas ainda desconhecido em sua natureza e singulari- nesses mesmos territórios.
dade. Era, até certo ponto, um documento inusitado já que, ao dividir O Tratado de Tordesilhas previa, a rigor, um semi-meridiano
o Mar Oceano por uma linha meridiana, definida a 370 léguas do ar- em 1494 e pode-se imaginar que ele ficou numa certa penumbra até
quipélago do Cabo Verde, traçava uma fronteira num espaço desconhe- a segunda década do século XVI, já que não é citado nem na segunda
cido. Era sobretudo um exercício de imaginação, pois os conhecimen- viagem de Colombo, nem na carta que D. Manuel escreveu ansioso aos
tos e recursos disponíveis na época não permitiam qualquer precisão. reis de Castela e Aragão para comunicar as descobertas de Vasco da
Conheciam-se as latitudes, mas não as longitudes. As léguas tinham Gama, ambas já sob o signo do acordo. A sua precisão só passou a ser
padrões mutantes e, ademais, não se especificou a partir de qual das ilhas uma obsessão de Carlos V e D. João III quando ficaram preocupados
do arquipélago começaria a medição. Entre a mais oriental – Boa Vista em regular a presença de espanhóis e portugueses nos mares orientais,
– e a mais ocidental – Santo Antônio - há uma diferença de quase três recém-abertos pela via do Pacífico através da expedição de Fernão de
graus (Albuquerque, 1973). Magalhães, que chegara às Molucas. Em 1524, uma nova Junta de es-
O Tratado de Tordesilhas expressava toda uma época de pro- pecialistas reuniu-se alternadamente em cada lado da fronteira europeia
funda alteração na concepção do mundo. Para Antonio Marques, seus luso-castelhana para repensar as fronteiras ibéricas no além-mar. Entre
autores eram “homens de um mundo que se esfuma e que assentam os Elvas, território português, e Badajóz, castelhano, tentou-se definir um
pés num outro que ainda não conhecem” (Almeida, 2000, 8). Cumpriam, meridiano que atravessasse o globo (Gonzalez; Torres, 1994, 311-325).
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De qualquer modo, diante da dificuldade de calcular as longitudes, só já foi chamado de “expansionismo preemptivo”, que sinaliza para ações
suplantada no século XVIII, a linha era bastante fluida. A história do portuguesas que respondem continuamente a uma ameaça real ou virtual
Tratado parecia acompanhar, assim, num curto espaço de tempo, a gra- dos vizinhos rivais, como que impulsionando Portugal numa lógica de
dativa reunião e “descoberta” de um mundo que era, até então, bastante movimento espelhada com Castela (Alencastro; Novaes, 1998, 193-207).
fragmentado (Bennassar; Novaes, 1998) Não se pode, de fato, analisar o Tratado de Tordesilhas, bem
Todavia, se por um lado o Tratado de Tordesilhas necessitou como os desdobramentos fronteiriços ibéricos na América, sem se le-
de ampla imaginação para sua definição, por outro devemos compreen- var em conta a longa história fronteiriça entre os reinos de Portugal e
dê-lo como o ponto final de uma longa série de bulas papais e tratados Castela na Península. A própria formação territorial de ambos os rei-
estabelecidos nas décadas anteriores, que o embasaram em sua forma nos, a partir do século XVI, deve ser analisada, muitas vezes, em relação
final. Desde os primeiros passos portugueses em sua expansão maríti- direta com a dinâmica territorial americana (Herzog, 2015). O reino
ma, as bulas foram devidamente providenciadas junto ao papado como português já se encontrava praticamente consolidado, inclusive em ter-
forma de legitimar, preservar e publicizar as conquistas lusitanas. No mos de fronteiras, em 1249, quando terminou a conquista do Algarve,
tempo ainda do quase lendário Infante D. Henrique (1394-1460), as ao Sul. As fronteiras com Castela foram formalizadas em 1297, mas a
bulas pareciam seguir estritamente as solicitações feitas pelos represen- relação com o assemelhado e entrelaçado reino vizinho será bastante
tantes portugueses. Uma das primeiras, a Dum Diversas, de 18 de junho tumultuada e marcada por inúmeros conflitos ao longo da Idade Média.
de 1452, autorizava o rei português a conquistar e submeter sarracenos, A antiga fronteira (raya) entre Portugal e Espanha na Europa
pagãos e infiéis “inimigos de Cristo”. Estabelecia ainda a captura de era na verdade mais uma franja do que uma linha, sobretudo quando
seus bens e territórios, reduzindo-os à escravidão perpétua e transferin- não coincidia com algum acidente geográfico. Os viajantes que transpu-
do suas propriedades e terras ao rei de Portugal. A seguinte, Romanus nham algumas dessas áreas de fronteira poderiam só se aperceber dis-
Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, autorizava o reino a submeter e con- so quilômetros depois. Onde não houvesse um rio, um vale profundo,
verter pagãos do Marrocos às Índias, termo que nesse momento com- uma garganta, a raya se tornava imprecisa, situando-se por vezes nos
preendia praticamente todo o Oriente. Assegurava ainda os monopó- limites das vilas ou cidades. Foi sempre um tema de discussão entre os
lios portugueses sobre suas descobertas futuras ao sul do temível Cabo reinos e pontuada por fortalezas e castelos, alguns fixos e tradicionais,
Bojador, finalmente sobrepujado em 1534. Ela proibia expressamente outros mais instáveis. Seu traçado teria uma conformidade um pouco
que qualquer nação infringisse o direito português. Por fim, a Inter ca- mais regular somente ao final do século XV. Nesse século, a centraliza-
etera, de 13 de março de 1456, do papa Calisto III, confirmava as ante- ção gradativa dos reinos implicou também em tentativas de construir
riores e concedia à Ordem de Cristo, da qual o Infante D. Henrique era uma política uniforme para a raya, até mesmo com atuações sobre os
o administrador, a jurisdição espiritual sobre as regiões conquistadas no “senhores de fronteira”, uma nobreza que ajudava a fracionar o território
presente e no futuro (García Y García; Torres, 1994, 293-310). fronteiriço. A figura do rei se faria cada vez mais presente nas fronteiras,
A necessidade de preservar as conquistas portuguesas na costa como em todas as partes (Martín; Torres, 1994, 29-51). De qualquer
ocidental africana tinha várias origens. Uma delas era a preocupação di- forma, como um historiador disse uma vez: é mais fácil dividir o mundo
reta em relação a Castela, reino vizinho com o qual Portugal tinha uma do que um palmo de terra, e o exemplo ibérico é o mais apropriado para
longa história de identidades e rivalidades. Mesmo que o reino castelhano confirmar a tese (Magalhães, 1994, 96). Onde havia rios e vales, ou ser-
estivesse bem atrás do português no processo de expansão marítima no ras e montanhas, as definições eram mais fáceis, mas onde não existiam
século XV, o assentamento de Castela nas Canárias e a presença de na- esses marcos, a indefinição daria o tom.
vios castelhanos continuamente comercializando na costa africana inco- Essas fronteiras e suas populações sofreram as vicissitudes dos
modavam os portugueses. Esse clima de concorrência alimentaria o que conflitos políticos entre os dois reinos, alternando momentos de paz
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com intenso trato comercial com outros de guerra, nos quais as relações concluída em 1492, ano simbólico para a Espanha: além dessa anexação,
eram proibidas, pelo menos aquelas que envolviam comércio com os o ano presenciou a expulsão dos judeus do reino, a divulgação da primei-
chamados produtos vedados, como armas, montarias e trigo. Os mer- ra gramática castelhana de Antonio Nebrija e a chegada de Colombo
cadores e também os moradores de fronteiras, muitas vezes donos de à América. A somatória desses eventos, lidos a posteriori, configura
terras em ambos os lados, eram os que mais sofriam em períodos belico- bem um império cristão que se pretende expansionista e homogêneo
sos. Seja como for, o contrabando foi uma constante na relação entre os (Vincent, 1992).
reinos, fosse em tempos de paz ou guerra. Para o reino português, Castela e Aragão reconheciam através
As fronteiras ibéricas também foram tensionadas pelas adua- do tratado os direitos de Portugal sobre as ilhas Madeira, Açores e a
nas, somente abolidas por um breve período entre 1582-1590, duran- costa africana. Esse tratado, ratificado em 1480, teve seus princípios re-
te o reinado de Felipe II e no contexto da União das Coroas Ibéricas. afirmados na bula papal de Sisto IV, Aeterni regis, e pode ser considerado
Ademais, o tema dos exilados - e das respectivas extradições - também uma primeira partilha do mundo. Na compreensão de D. João II, rei de
foi um ponto de atrito entre ambos os reinos. O exílio dos Bragança e Portugal, o tratado assegurava o norte das ilhas Canárias a Castela e o
seus aliados em Castela depois da punição e retaliação de D. João II; e Sul, ao reino português, através de um paralelo. Pelo menos foi esse o
a fuga dos judeus da Espanha no contexto de sua expulsão no final do argumento que o rei utilizou anos mais tarde para fazer valer seus inte-
século XV são dois exemplos disso. resses depois do retorno de Colombo de sua primeira viagem às Índias.
Entre 1325 e 1411 os dois reinos viveram em constante clima O retorno do navegador genovês em 1493 - que tentara a sorte
de beligerância e guerra, o que se revelaria catastrófico especialmente anos antes em Portugal - passando por Lisboa, acionou os esforços da
para a população que habitava a amplíssima fronteira. Esses conflitos diplomacia portuguesa e instalou a tensão na corte lisboeta. O fato é que
se associavam a questões dinásticas, problemas de controle da região a velha proeminência portuguesa junto ao papado havia dado lugar à in-
do Gibraltar e até mesmo aos desdobramentos dos conflitos da Guerra fluência de Fernando e Isabel sobre o valenciano Rodrigo Bórgia, intitu-
dos Cem Anos (1337-1453). A Revolução de Avis (1383-85) se fez so- lado Alexandre VI, que nesse mesmo ano proclamou a bula Inter cetera,
bretudo a partir da vitória do Mestre de Avis, em Aljubarrota, sobre as na qual outorgava-se aos Reis Católicos todos os territórios descobertos
tropas castelhanas de João I de Castela, que invadira o reino português ou a descobrir na direção das chamadas Índias, para além de uma linha
em busca de sua anexação em nome de sua esposa Beatriz, candidata ao situada a cem léguas dos Açores e Cabo Verde, numa prefiguração do
trono de Portugal. Um tratado seria assinado em 1411, o que asseguraria que seria Tordesilhas um ano depois.
relativa paz entre os reinos, mesmo que alimentada por um constante O Tratado é, portanto, uma resposta diplomática, negociada, da
ambiente de desconfiança. bula de 1493, na qual já se sentiam os primeiros ecos da realidade ame-
As tensões atingiram um novo ápice em 1475, quando o rei ricana. Ao final, D. João II conseguiu garantir a hegemonia portuguesa
de Portugal, D. Afonso V, alimentando o sonho de fundir as Coroas de na África, bem como a futura rota para a Índia, aberta em 1498 com
Portugal e Castela através de seu casamento com sua sobrinha Joana - Vasco da Gama. Por fim, ainda lhe restou um bom bocado da América
conhecida como a Beltraneja, filha de Henrique IV de Castela -, invadiu Meridional, naquele momento mais suspeito que efetivo, apesar da
o reino castelhano em 1475. A guerra, que arrasou dezenas de povoados questionável tese do “sigilo dos descobrimentos”, que defende a ideia
de fronteira, terminou com a assinatura do Tratado de Alcaçovas, em de que ao par das viagens conhecidas, existiram várias outras feitas às
1479. Através dele, o Reino de Portugal abria mão de suas pretensões escondidas (Cortesão, 1960). Aos Reis Católicos, assegurados em sua
ao trono de Castela, reconhecia o direito desse reino ao arquipélago das hegemonia castelhana-aragonesa, a assinatura do Tratado garantiu as
Canárias, bem como à sua conquista do reino de Granada. Essa con- plataformas marítimas canarinas e um oceano de possibilidades no con-
quista, que encerra em parte as fronteiras ibéricas castelhanas, só será tinente que se abria aos desejos expansionistas europeus. As fronteiras
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externas na América, imaginadas nas linhas demarcatórias dos Tratados como para a pesca” (Apud Gesteira, 2006, 233). Grotius questionava a
quatrocentistas, passariam efetivamente a ser traçadas no cotidiano do autoridade das bulas papais e reivindicava o direito dos outros reinos
processo de conquista, nos limites impostos pelas variadas fronteiras in- usufruírem dos mares. Em especial, tentava garantir as já bem estabe-
ternas e nas negociações dos dois lados do Atlântico. As fronteiras pas- lecidas redes comerciais neerlandesas, que envolviam as mercadorias da
saram a se organizar, dessa forma, no jogo de relações e negociações es- América, África e Ásia. Por isso mesmo, se posicionava contra a pirataria
tabelecido pela multiplicidade de agentes locais diretamente envolvidos e até mesmo contra a guerra aberta contra os reinos ibéricos. Assim, as
na organização desses espaços. Assim, como afirma Tamar Herzog, a terras americanas em regime de “contrato” com os naturais, reconhecia
partir dessa fronteira feita “no chão”, não faz sentido encampar uma vi- ele, pertencia aos reinos que delas usufruíam. Isso, por outro lado, abria
são que tradicionalmente opôs as fronteiras europeias, entendidas como a possibilidade de ocupação de espaços considerados “vazios” (Apud
naturais, das coloniais, chamadas de artificiais, pois teriam sido pensa- Gesteira, 2006, 233). De qualquer modo, o panfleto estava plenamente
das e traçadas conforme vontades extemporâneas advindas da Europa inserido na contestação dos direitos das monarquias ibéricas, naquela
(Herzog, 2015). altura vivendo um desejado – mas até certo ponto inesperado – período
O que interessa ressaltar aqui é que, fadados a viver uma re- de reunião das Coroas em nome dos Habsburgo de Espanha (1580-
lação fronteiriça tão antiga, intensa e contínua em território europeu, 1640). A incorporação do patrimônio português à Coroa de Felipe II
os ibéricos reproduziriam essa sina em outros espaços e continentes, parecia transformar o ideal da monarquia católica, pretensamente uni-
em especial no território americano. Os reinos ibéricos, concorrentes versal, numa realidade que se estendia pelos quatro cantos do mundo. As
empedernidos, trançariam ainda mais seus domínios e suas linhagens, fronteiras tornaram-se mundiais. Como afirma Gruzinski:
até o ponto da tão almejada reunião das Coroas (1580-1640), só que
sob batuta castelhana, no reinado de Felipe II. Mas outros reinos eu- Durante esse longo meio século, a Península Ibérica em sua
ropeus logo dariam o ar da graça nos territórios e mares divididos com integralidade, uma boa parte da Itália, os Países Baixos me-
ridionais, as Américas espanhola e portuguesa, da Califórnia
tanta reserva e presunção pelos reinos da Península Ibérica. O Atlântico,
à Terra do Fogo, as costas da África ocidental, regiões da
fronteira natural de Portugal, também era de Castela, Aragão, França, Índia e do Japão, oceanos e mares longínquos compuseram o
Inglaterra e dos territórios do Sacro Império Romano Germânico desde “planeta filipino” sobre o qual, a cada meia hora, a missa era
muito antes das primeiras aventuras lusas em terras africanas, na tomada celebrada (2014, 46).
de Ceuta em 1415.
A “posse” ibérica destas terras e mares, dilatada nessa conjun-
tura, já vinha sendo contestada desde longa data. De fato, as queixas fla-
O Caribe e a América do Norte mengas podem até ser consideradas tardias (Stols, s/d, 1279-1295). Há
uma frase famosa, supostamente dita pelo rei francês Francisco I, que,
Em 1609, um panfleto holandês intitulado Mare Liberum, de apesar de duvidosa, sintetiza bem uma certa apreciação de outros reinos
Hugo Grotius (1583-1645) trouxe à tona, em vocabulário jurídico, o europeus em relação à divisão do mundo iniciada em 1494 e continuada
tema da legitimidade da posse dos mares por portugueses e espanhóis. em 1524. Teria dito: “gostaria muito que me mostrassem o artigo do
Enquadrado na luta de independência dos Países Baixos contra a mo- testamento de Adão que divide o mundo entre meus irmãos, imperador
narquia Habsburgo assentada na Espanha, o texto apregoava o direito Carlos V e o rei de Portugal, excluindo-me da sucessão”. Ela coloca em
natural dos povos de navegarem livremente pelos mares: “o mar, imen- pauta um questionamento francês, holandês e também inglês que justi-
so em demasia para ser possuído por este ou por aquele, e, além disso, ficaria sobremaneira uma série de iniciativas mais ou menos sistemáticas
maravilhosamente disposto para o uso de todos, tanto para a navegação de ferir os interesses ibéricos nas Américas. Uma delas seria a chamada
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pirataria, outra o chamado comércio ilegal, ou contrabando. Em grande prisioneiros da Inquisição instalada no México em 1571 era composta por
parte das vezes, as duas coisas andavam juntas. protestantes corsários e piratas capturados na região caribenha ou sobre-
O rei francês, por exemplo, apoiaria firmemente os armadores viventes de naufrágios (Fernandes, 2014, 172-201).
comerciais de Honfleur, Rouen e Dieppe, que navegariam continua- O Tratado de Cateau-Cambresis, de 1559, assinado entre
mente pela costa atlântica meridional comercializando pau-brasil com Espanha e França, encerrara um dos principais conflitos europeus, em
os indígenas, bem como as iniciativas de Jean Ango (1480-1551) na torno da Itália, mas permitia que para além do primeiro meridiano
chamada Terra Nova, no Atlântico Norte, onde os franceses pratica- Atlântico e ao sul do Trópico de Câncer, não haveria paz. Tal perspectiva
riam sistematicamente a pesca. Ango é um exemplo da junção entre as manteve o impulso dos armadores e navegantes franceses da Normandia,
atividades comerciais, da qual era um importante representante, com por exemplo. Centrados nas ações de tratos comerciais, pesca e corso,
o chamado corso, ao qual se dedicou ativamente com licença real. Um os franceses pouco interesse tiveram em projetos coloniais sistemáticos
de seus comandados, Jean Fleury (1485-1525), foi um dos primeiros nesses primeiros dois séculos da colonização das Américas, mas isso não
corsários a atuar intensamente na rota do Atlântico, tendo, inclusive, a significa que não experimentaram algumas situações. As experiências
fama de ter capturado, na altura dos Açores, um dos navios que trazia o fracassadas dos huguenotes no Canadá (1535-1543), França Antártica
quinto real das riquezas do México enviado por Hernán Cortez. Tanto (1555-1560), na Baía de Guanabara e Flórida (1562-1565), bem como
no imaginário, quanto na retórica da época, a presença de navios de a dos católicos na França Equinocial (1612-1615), reúnem desde pro-
outras bandeiras nos territórios ibero-americanos de além-mar, mesmo postas de construção de uma “república cristã nos trópicos”, até um em-
que muitas vezes tivessem somente intenções comerciais, era vista como preendimento comercial voltado ao tráfico caribenho. Os franceses ain-
simples corso ou pura pirataria. Em verdade, os navios poderiam forçar, da voltariam ao Canadá em 1604, agora com maior sucesso, e atuariam
até por meios violentos, as arribadas para abastecimento e provisão, di- na Guiana a partir de 1624, com apoio direto do Cardeal Richelieu.
reito incluído, por exemplo, num esboço inglês de legislação marítima: o Mas seria somente com a ascensão do ministro Colbert (1661-1683)
Estatuto de Ofensas no Mar, de 1535. Isso daria margem a muita confu- que uma política marítima e colonial começaria a ganhar forma junto
são interpretativa quanto às ações mercantis e/ou corsárias. 23 No fundo, ao reino francês.
essa distinção fluida espelha o momento do próprio mercantilismo, no Nesse sentido, os franceses atuariam na grande “fronteira im-
qual atividades comerciais, guerra, incentivo estatal e religião andavam perial” do Caribe. As amplas dimensões do território e a infinidade de
imbricados no mesmo processo. ilhas que compõem o espaço caribenho, ao lado de uma dificuldade con-
Nesse sentido, não se pode negar, que muitas ações corsárias e de creta de defender uma região que apresentava interesses bastante desi-
pirataria vinham acompanhadas de intensa luta religiosa, reverberando, guais para os espanhóis, tornaram o Caribe o espaço ideal para a ação
nos novos mares e terras descobertos, os conflitos de religião que mar- e presença das outras potências coloniais. O local foi palco da ação dos
cavam a Europa nos séculos XVI e XVII. Enfrentar os papistas católicos corsários – a serviço dos Estados -, ou dos piratas – mais independentes.
ou os pérfidos protestantes nos mares era um capítulo de uma luta muito Mas foi principalmente o cenário para o surgimento de dois tipos so-
maior, e romper o Tratado de Tordesilhas era quase uma obrigação. O hu- ciais muito peculiares: os bucaneiros, instalados em comunidades de ori-
guenote Jacques de Sore, por exemplo, atemorizou Cuba entre as décadas gem diversificada no Norte da ilha La Hispaniola, dedicados à produção
de 1550-1560, saqueando e incendiando suas cidades e portos, prendendo de carnes defumadas para o tráfico comercial com os navios de corso
o bispo, afogando jesuítas e roubando igrejas. Fazia isso com o objetivo e comércio; e os filibusteiros, instalados inicialmente nas ilhas Tortuga,
claro de ofender os católicos. Em compensação, boa parte dos primeiros também ao norte de La Hispaniola, dedicados ao comércio clandestino
no Caribe e ao ataque sistemático aos navios espanhóis de qualquer
23 A diferença tradicional entre as duas reside, comumente, no caráter mais oficial e estatal do
primeiro, e na ação individual do segundo. (Duran, 2011). natureza (Apestegui, 2000). A ocupação da região norte da Ilha se deu
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em função do abandono daquele território por cédula real espanhola de e ataques às plantações e vilas próximas, de modo geral em retaliação, e
Felipe III, em 1603, na qual se projetava a concentração dos espanhóis seu tamanho só foi crescendo na medida em que a escravidão aumentou,
na parte leste e sul da ilha, para melhor defendê-la. O efeito foi o opos- com a exploração do açúcar e a importação maior de escravos. Poderia
to: muitos colonos espanhóis preferiram mudar para Cuba, enquanto a ser considerada uma fronteira cimarrón, que incomodava as autoridades
parte norte ficou aberta para a ocupação de colonos de outros reinos. De de ambas as partes da ilha, mas que assim mesmo conseguiu construir
fato, aos poucos esses bucaneiros e filibusteiros passaram a ocupar as terras uma intensa rede de relações comerciais com as populações coloniais
da ilha de São Domingos, onde se tornaram pioneiros nas plantations francesas e espanholas que viviam nas cercanias (Deive, 1985).
do que mais tarde seria Saint Domingue (Haiti), joia da Coroa francesa O mesmo se deu com os chamados Garifunas, populações mis-
no século XVIII, com sua produção de algodão, tabaco, anil e principal- cigenadas de negros escravos com populações indígenas Caribe e Arawak,
mente açúcar. Tudo isso ancorado no trabalho de quase meio milhão de que vivem ainda hoje em territórios do Belize, Guatemala, Honduras e
escravos africanos em fins dos setecentos. Nicarágua. Praticam uma religião e um idioma mesclado entre práticas
De modo geral, a historiografia sobre o Caribe tem como te- nativas, africanas, católicas e protestantes e simbolizam a mestiçagem co-
mas privilegiados de análise o extermínio indígena, o tráfico negreiro, a lonial caribenha, fazendo valer a formação de novas identidades surgi-
escravidão e as plantations, a crioliozação e a chamada cimarronaje. Foram das no processo de conquista e colonização da América. A etnogênese de
sociedades que, apesar de terem sido multiétnicas e ocupadas por dife- fronteira é presente também na região entre o Suriname, Guianas e Brasil,
rentes grupos, partilharam processos históricos, ritmos de vida, vegeta- onde os cimarrones compostos por uma mistura de vários grupos indíge-
ção, clima e paisagens (Schwartz, 2006-2007, 28-43). Esse mundo mar- nas, negros de diversas etnias e colonos brancos espanhóis, portugueses,
cado pela exploração sistemática e avassaladora de indígenas e negros, franceses e holandeses, compunham mais uma dessas sociedades trans-ét-
bem como pelas renhidas disputas coloniais, gestou um locus ideal para nicas. Ocupavam espaços fronteiriços pouco demarcados, erguendo uma
as discussões dos estudos pós-coloniais e seus debates sobre identida- teia de relações comerciais com os mais distintos colonos assentados na
des (Hall, 2005). Termos como Antilhanidade ou Crioulidade, este mais região, fossem pequenos agricultores, taberneiros ou comerciantes, ven-
abrangente, ganharam força para se pensar em sociedades caribenhas do-os mais como aliadosdo que como inimigos (Gomes, 2011, 631-644).
com geografia, história e cultura partilhadas, mas que guardam amplo Os habitantes da região ao norte da Borgonha, os holandeses,
espaço para a preservação da diversidade e do dinamismo (Bernabé, em guerra incansável de independência contra o império espanhol des-
Chamoissean; Confiant, 1989). de 1568, também se aventuraram pelos mares atlânticos e caribenhos.
Isso pode ser exemplificado quando pensamos as relações entre Cornelius Jol (1597-1641), conhecido como “pie de palo”, por exem-
as partes espanhola e francesa da ilha de La Hispaniola, que foram ofi- plo, era almirante da Companhia das Índias Ocidentais e um temível
cialmente tensionadas sob o ponto de vista das cortes europeias, mas se- corsário que assolou as frotas espanholas e portuguesas no Atlântico.
riam de modo geral pacíficas no cotidiano. A São Domingos espanhola Assediou as costas caribenhas, brasileiras e mexicanas. Pieter Van Der
tornou-se produtora de gado, com suas carnes e couros abastecendo não Does (1562-1599), recebeu o comando de 74 navios com quase 9.000
só Saint Domingue, como outras ilhas da região (Soler, 1991, 163-185). homens para atacar as rotas de conexão da América com a Espanha.
Por outro lado, entre as duas partes, ao sudoeste do atual ter- Sua expedição foi um fracasso, mas demonstra cabalmente a força que
ritório dominicano, nas chamadas montanhas do Maniel, Serra do esses embates atlânticos tinham para as rivalidades europeias e para os
Baoruco, desde a segunda década do século XVI refugiavam-se escra- projetos coloniais, cada vez mais inter-relacionados.
vos negros, que se miscigenaram aos grupos indígenas remanescentes, Desde 1612 os holandeses se instalaram num trecho na Guiné
compondo comunidades trans-étnicas de refugiados, chamadas de ci- e passaram a promover intenso tráfico com o Caribe, onde partilharam
marrones em espanhol, ou marronages em francês. Promoviam incursões de feitorias em Aruba, Bonaire, Sabá, dentre outras ilhas nas Antilhas.
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Curaçao, uma das principais, foi tomada por Johannes Van Welberck comerciais, como o célebre sir John Hawkins, que negociava com São
em 1634. No local existiam 32 espanhóis, que foram insuficientes para Domingos e Venezuela os escravos negros que trazia da África. Foi, por
efetuar qualquer defesa da ilha. O lugar tornou-se um centro de redistri- outro lado, o terror das frotas que vinham da Nova Espanha e um dos
buição de escravos negros trazidos da Guiné. Além do Caribe, os holan- grandes articuladores da marinha inglesa. Um de seus jovens discípulos,
deses instalaram-se na América do Norte - na ilha de Manhattan, onde o também sir Francis Drake, atuou largamente nos mares do Sul, cru-
fundaram Nova Amsterdã, cedida aos ingleses em 1667 (depois da Paz zando o estreito de Magalhães e chegando ao Pacífico. Como Hawkins,
de Breda) no Brasil, onde efetuaram um primeiro ataque em Salvador era um comerciante com acordos comerciais no Caribe e um corsário
(1624-25) e depois ocuparam vastas porções do Nordeste brasileiro en- quase mítico, que numa só expedição em 1585 atacou a Espanha, as
tre 1630-1654, e no Suriname, que depois de algumas tentativas isola- Canárias, São Domingos e Cartagena.
das de colonização, teve uma experiência mais duradoura entre os anos Assim como franceses e holandeses, os ingleses estariam nessa
de 1683 e 1698, com o governador Aerssen Van Sommeldjik. espécie de partilha do Caribe, tendo a ilha da Jamaica como base de seu
Assim como os franceses, os ingleses também afrontaram cla- sistema de feitorias e entrepostos comerciais na região. Ali se assentaram
ramente as pretensões ibéricas nas Américas, em especial no final do em 1655, depois de expulsarem os espanhóis. Muitos escravos negros
século XVI e inícios do XVII. Isso ocorreu quando a Rainha Isabel I aproveitaram o conflito para se refugiarem nas montanhas do interior,
(1533-1603), depois de ter frustrado as pretensões matrimoniais de onde, como em outras partes, miscigenaram-se com grupos indígenas
Felipe II, entrou numa luta global contra o império espanhol, o que Taino, compondo comunidades livres de marrons que sobreviveriam até
incluía a peleja pelos mares, na qual a derrota da Invencível Armada de o século XVIII.
1588 foi um importante capítulo. A excomunhão da rainha inglesa daria Com quase um século de atraso em relação aos ibéricos, o que
ao conflito um sentido religioso fundamental. Inicialmente, os ingleses teria importantes repercussões nos projetos e expectativas coloniais, já que
se aventuraram na saída pelo Noroeste, na região da Terra Nova, utili- as experiências lusitanas e espanholas serviriam de modelo para a Inglaterra,
zando-se para isso até mesmo dos conhecimentos de experimentados esse reino também se lançaria à aventura da colonização continental no
pilotos portugueses e espanhóis, que colocavam sua prática e conhe- século XVII. Um dos maiores propagandistas dos projetos coloniais na cor-
cimentos de mundo sendo desvelado a serviço de múltiplas empresas. te de Isabel I, Richard Hakluyt (1552-1616), dizia com forte proselitismo
Sebastião Caboto, por exemplo, depois de ter servido aos espanhóis, se protestante e comercial que, “se o governo das Índias Orientais e Ocidentais
mudou para a Inglaterra, onde serviria aos ingleses, o que lhe rendeu a ficar na mão de um só príncipe, elas não receberão tecidos ingleses nem
acusação de traição por parte de Carlos V. nos venderão seus produtos”. As primeiras iniciativas de colonização con-
Como no caso francês, as iniciativas inglesas de corso, pira- tinental na América do Norte, ainda em 1584-85, foram feitas por Walter
taria, comércio e experimentações coloniais andariam juntas, sendo Raleigh (1552-1618) - ele também um misto de cortesão, comerciante, cor-
mais ou menos bem-sucedidas, em função das conjunturas e da ma- sário e colonizador – e seria o ponto inicial de uma gradativa ocupação dos
turação dos projetos coloniais de cada reino. O primeiro ataque pirata territórios da costa leste da América do Norte, que formariam as chamadas
a uma possessão espanhola teria sido inglês, em 1527, na ilha de São 13 colônias. O território seria sobretudo um local onde os tradicionais em-
Domingos. Desde a segunda metade do século XVI, quando a Espanha bates com o império espanhol dariam lugar principalmente às rivalidades
formatou seu sistema de frotas anuais e de monopólios comerciais, o franco-inglesas. As propostas coloniais de Raleigh, de concessão de terras,
contrabando seria uma das práticas privilegiadas nessas redes de rela- pagamento de quintos reais e demanda por minérios, não apresentavam, em
ções meio violentas, meio comerciais, que contavam com a conivência essência, grandes diferenças dos empreendimentos ibéricos.
de muitos colonos espanhóis, visto o acesso mais barato às mercadorias O império inglês pensou-se, geralmente, a si mesmo como
ilegais. Grande parte dos corsários ingleses começou como traficantes uma antítese do império espanhol baseado na conquista territorial.
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Considerou-se, ao longo do século XVII, como um império essencial- a maioria puritanos, aos indígenas. A chamada Guerra do Rei Felipe
mente comercial e livre. Focado muito mais nas colônias caribenhas do (1675-76) teve como oponentes o cacique Algonquino Metacom contra
que nas possessões continentais, o império só foi tardiamente estimulado os ingleses. A vitória dos colonos abriu as terras para uma nova expan-
a gerir o potencial econômico dessas regiões, passando a tentar interferir são, mas, ao contrário da Virgínia, foi ancorada no modelo de pequena
em seus rumos ainda no final do século XVII através de medidas adua- propriedade familiar. As fronteiras das Treze Colônias muitas vezes se
neiras e políticas, de maneira muito próxima das políticas mercantilistas alargaram como resultado dos conflitos europeus. O fim da Guerra de
aplicadas por espanhóis, portugueses e franceses. Essas medidas tiveram Sucessão Espanhola (1703-1713) rendeu aos colonos ingleses toda a
resultados variáveise somente aos poucos passaram a representar uma região do rio Hudson e a Acádia no Canadá francês. Abriu a cobiçada
coerente política colonial, o que tornaria o império inglês nas Américas região dos Grandes Lagos, antes controlada pelas alianças comerciais
um espaço integrado e interdependente ao longo da primeira metade do entre franceses e indígenas, aos colonos de Nova Iorque e Pensilvânia.
século XVIII (Elliott, 2006). Em trabalho comparativo sobre a ocupação colonial dos ingle-
Os primeiros empreendimentos mais duradouros aconteceram ses e dos espanhóis na América, John Elliott encontrou diversos pontos
em 1609, na recém batizada Virgínia. A vila de Jamestown serviria de de afinidades e também de diferenças. De modo geral, entendeu que a
pivô na colonização inglesa daquele território, a partir de grandes pro- justificativa da posse do território era comum a ambos e baseada so-
priedades ancoradas no modelo de plantation. Na Virgínia, chegou-se a bretudo na ideia de res nullius, ou de não beneficiamento. A terra não
construir extensas linhas de paliçadas que serviam de fronteira entre a área ocupada era considerada vazia e, portanto, legitima de ser apropriada.
colonial, as terras indígenas e o wilderness. Dali os colonos projetavam Como os espanhóis, os ingleses rebatizavam territórios, muitas vezes
uma expansão ao interior pelo rio Ohio, barrada de modo geral pela pre- com o adjetivo “Nova”, como forma de erguer simbolicamente uma
sença francesa e suas alianças indígenas. No contexto da chamada Guerra nova história europeia em território americano; cartografavam os espa-
dos Sete Anos (1756-1763), que oporia franceses e ingleses em território ços e instituíam comunidades políticas que sustentavam a posse. Patrícia
americano, cada um mobilizando suas próprias redes de alianças com os Seed, que também buscou uma análise da posse na América sob pers-
índios, muitos colonos pressionaram as fronteiras. A vitória inglesa na pectiva comparada, conclui que os ingleses, por outro lado, sustentavam
Guerra e a derrota do cacique Pontiac - que liderara uma ampla resis- sua legitimidade de ocupação no cercamento físico de suas terras e no
tência ao avanço dos colonos ingleses -, ao contrário de abrir o território, seu beneficiamento através do plantio e da construção de casas e adja-
fechou-o, já que, contrariando as expectativas, a Coroa britânica procurou centes (Seed, 1999). Elliott ainda constata que, embora muito menos
pacificar a região, acertando com os indígenas a soberania sobre o territó- importante para a ocupação e ampliação das fronteiras que na América
rio a oeste dos montes Apalaches. O mítico – e literário – Daniel Boone espanhola, a fundação de vilas e cidades também seria importante para
desobedeceria às ordens da Coroa e avançaria pelos Apalaches com sua os ingleses. Em 1700, somente na Nova Inglaterra, existia algo como
família e outros tantos colonos em 1767. Caçador de animais e índios, 120-140 núcleos urbanos. William Penn fundou a cidade da Filadélfia,
Boone fundaria o que mais tarde seria o território do Kentucky e sua ima- reforçando essa importância e impondo um modelo urbano que, se não
gem pautaria uma das primeiras representações do homem de fronteira, o era inspirado no modelo espanhol, era também típico dos ideais urba-
cowboy norte americano, ainda na década de 1780. O mito do Oeste nas- nísticos do Renascimento, prevendo um formato quadricular, com ruas
cia praticamente junto à sua própria expansão, ganhando cada vez mais amplas e uniformes e construções feitas em linha (Elliott, 2006).
projeção no século XIX, até atingir o estatuto de construtor da identidade De qualquer forma, as chamadas Treze Colônias, que se forma-
nacional americana nas letras de Turner. ram gradativamente e de forma bastante heterogênea ao longo do século
No Norte, na colônia de Nova Inglaterra, a ocupação mais tar- XVII, permaneceram basicamente limitadas à costa leste do Atlântico
dia, na década de 1620-30, também colocaria em oposição os colonos, até o século XVIII, quando os rios que corriam para o interior passaram
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a alimentar projetos de expansão para os colonos, que não pararam de Novo México, Arizona, Califórnia e Texas. A chamada fronteira norte
chegar em ritmo acelerado ao longo dos setecentos. Ingleses, escoceses, da Nova Espanha sempre foi uma questão sensível para a administra-
irlandeses, alemães e huguenotes franceses formaram um contingente ção colonial espanhola. Os avanços e incursões indígenas na zona norte
que pressionava pela ampliação das terras, assim como favorecia a espe- eram sempre um sinal de alerta às estruturas montadas e centralizadas
culação de terrenos nessa expansão. na cidade do México. A fronteira setentrional foi sendo ocupada grada-
Mas a grande diferença em relação à América espanhola tal- tivamente na medida em que se descobriam minas e se buscava barrar
vez estivesse, para Elliott, na relação com os grupos indígenas e a forma o avanço de sociedades indígenas nômades. O local tornou-se território
pela qual os grupos foram entendidos nos respectivos projetos coloniais. de presídios, missões religiosas, exploração agrícola e pastoril associada
A republica de los indios, a encomienda e a catequese tornavam a submissão à exploração mineral.
e o domínio das gentes uma das principais bases da estrutura colonial A exploração colonial do território a Noroeste, na península
espanhola. Os ingleses, sem encomienda e sem tributos indígenas – ape- da Baixa Califórnia, começou ainda no tempo de Hernán Cortez e foi
sar das tentativas frustradas de tributar e submeter os índios - e sem um sucedida por várias expedições marítimas que buscavam reconhecer a
projeto sistemático de catequese, acabaram estruturando uma sociedade costa do Pacífico no sul da América do Norte, demarcando rios e portos
pautada na exclusão, ao contrário da hispânica, sustentada na inclusão dos naturais. Mas foi somente em 1697 que os jesuítas fundaram a primei-
indígenas. Representariam como que fronteiras de relacionamento que ra missão na Baixa Califórnia. As missões se alastrariam pela região
dariam a base de formação das respectivas sociedades, mesmo que essas de modo a se tornar a principal instituição espanhola naquela fronteira
estivessem sujeitas às porosidades. A quase ausência de casamentos in- até a expulsão da ordem jesuítica dos territórios espanhóis em 1767. A
ter-étnicos (houve mesmo legislação contrária), as limitadas experiências penetração jesuítica foi acompanhada pelos presídios, organizados para
escravistas (como nas Carolinas), as fragmentadas e voluntariosas missões apoiar as missões que vinham enfrentando a resistência violenta de di-
religiosas (como as do pastor John Eliot), assim como um discurso per- versos grupos indígenas. A situação se tornou mais tensa entre fins do
sistente que sustentava que o convívio com o indígena significaria a dege- XVII e começo do XVIII, tendo havido conflitos entre missionários e
neração do cristão branco, deram o tom dessa diferença. Para o historia- colonos, quando a exploração mineral ao norte do rio Mayo e na provín-
dor John Elliott, segundo interpretações de contemporâneos e pautadas cia de Sonora atraíram levas contínuas de colonos em busca de mão de
na experiência inglesa na Irlanda, as paliçadas de fronteiras protegiam os obra. As revoltas indígenas de Seri, Pima e Apache sacudiram a região.
colonos dos índios, mas serviam também para proteger os colonos de si Ao longo do século XVIII, a Espanha bourbônica demons-
mesmos, evitando um contato visto como degenerativo. Não havia, con- traria um gradativo empenho em consolidar o domínio sobre aque-
forme esse autor, espaço para intermediários entre a plena anglicização e a le vasto território, tentando articular, via rio Colorado, um eixo de
total exclusão. Nunca chegou a ser uma sociedade mestiça e, mesmo que ocupação que chegasse ao porto de Monterey. A Coroa apoiou as
as fronteiras pudessem ser entendidas como porosas e zonas de interação missões jesuíticas e mandou construir presídios na tentativa de bar-
e conflito, o predomínio da relação foi pautado na exclusão (Elliott, 2003). rar os avanços ingleses e, inusitadamente, o russo, que naquela altura
Portanto, na visão deste autor, as fronteiras coloniais inglesas entre os sé- avançava pelo Pacífico Norte a partir do Alasca. A descoberta do
culos XVII e XVIII podem ser consideradas – de forma genérica – como estreito que separava o extremo asiático do Alasca, feita pelo nave-
sendo de exclusão, enquanto as espanholas seriam de inclusão. gador dinamarquês – a serviço dos russos - Vitua Behring, em 1741,
Mas o território da América do Norte ainda presenciou as abriria ainda mais o caminho ao império russo em expansão (Albert;
fronteiras entre ingleses e espanhóis na Flórida, onde os núcleos co- Solano & Bernabeu, 1991, 85-118).
loniais da Espanha sempre foram frágeis e pouco sustentáveis, e nas A fronteira hispânica na América do Norte seria um dos te-
fronteiras da Nova Espanha, que compreendiam os territórios atuais do mas privilegiados da historiografia norte-americana sobre as frontei-
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ras, especialmente para aquela que se contrapôs às hegemônicas te- fisticados mecanismos de resistência e adaptação à presença europeia,
ses de Turner. Herbet Eugene Bolton, fundador da chamada “Escola adotando, seletivamente, objetos, rituais e símbolos, sem que isso signi-
da Fronteira”, talvez seja o nome mais importante nessa perspectiva. ficasse necessariamente o que, durante muito tempo, a antropologia e a
Discípulo de Turner, Bolton voltou seu olhar para uma fronteira dis- histórica chamaram de aculturação, um conceito que denota sobreposi-
tinta daquela que separava o avanço da “civilização” sobre o wilderness: ção de culturas (Guy; Sheridan, 1998, 3-15).
a fronteira hispânica na América setentrional. Invertendo a fórmula
de Turner, preocupou-se mais com a influência dos espanhóis sobre as
fronteiras do que com a influência das fronteiras sobre os espanhóis. A Os reinos europeus nas redes ameríndias
partir dessa premissa, Bolton construirá a tese que compreendia as mis-
sões religiosas espanholas como instituições típicas de fronteiras, cum- O processo de conquista da América, iniciado a partir de 1492
prindo o papel que muitas vezes os encomenderos cumpriram em outras com a chegada de Cristóvão Colombo à ilha Hispaniola, deu vazão às
regiões de conquista. Bolton colocou em perspectiva as missões da Alta aproximações entre dois universos: as culturas europeias e os mundos
Califórnia, da Baixa Califórnia, Sinaloa e Sonora; as do Novo México, ameríndios. Claro que, se falamos aqui de “dois universos”, referimo-nos
Texas, Arizona; e também as da Flórida. Nelas todas, cumpriam o du- apenas a um modelo esquemático. Sabe-se que os europeus na Época
plo papel de instituição estatal e clerical, reunindo funções do Estado e moderna se organizavam a partir de distintos reinos, portadores de
da Igreja e cumprindo funções militares, religiosas e civilizacionais: “no idiomas, religiões, modelos políticos e sociais bastante distintos, tanto
sólo servían para cristianizar la frontera, sino también para expandirla, internamente quanto um em relação ao outro. Mesmo que os reinos eu-
dominarla y civilizarla” (Bolton; Solano & Bernabeu, 1991, 47). Bolton ropeus mantivessem zonas de contato e influência entre si ao longo dos
ainda comparava as fronteiras do Norte do império espanhol às do Sul, séculos, reservavam também especificidades culturais e, para garantir
especialmente às do Paraguai. sua soberania e seu poderio, inúmeras vezes mantinham-se em guerra.
Ali, nas partes meridionais da América, os jesuítas ergueriam, Por que muitas vezes nos recusamos a adotar este mesmo pa-
a partir de 1609, missões que funcionaram tanto como instituições de drão de entendimento ao falarmos dos povos ameríndios? Já de início
fronteiras internas, pois a região era um dos limites de expansão dos identificados erroneamente como índios, ou seja, habitantes das Índias
espanhóis, quanto externas, pois eram adjacentes às áreas do império – onde Colombo inicialmente imaginava ter chegado em 1492 – essas
português. Elas reforçam o que pode ser entendido como um certo pa- populações são comumente pensadas como portadoras de uma unidade
drão dos jesuítas de atuarem em áreas consideradas difíceis, como o Rio cultural. De mesma forma que qualificamos os povos europeus no pa-
da Prata, a Baixa Califórnia, o Chaco, Mojos y Chiquitos e junto aos rágrafo anterior, devemos analisar os nativos da América da época dos
Diaguita do Valle Calchaquíes (Quarleri, 2009). descobrimentos a partir da ideia de diversidade. Mesmo que os núme-
A comparação entre a fronteira norte e sul do império espanhol ros sobre o passado sejam baseados em estimativas e em testemunhos
foi feita também por Donna Guy e Thomas Sheridan. Eles reiteram o não fidedignos, o esforço de quantificar os ameríndios pode nos auxiliar
que consideram similaridades entre ambas regiões, como o aspecto pe- para dimensionar o impacto dessa amplitude de povos e culturas. Os
riférico, a atuação missioneira, a gestação de tipos como os cowboys e os números são oscilantes, variando conforme as linhas interpretativas, os
gauchos; mas localizam significativas diferenças ambientais e históricas: vestígios documentais ou materiais sobre os quais se basearam. Indícios
clima mais árido no Norte e mais úmido no Sul; maior isolamento co- arqueológicos sugerem que a presença humana na América teria se ini-
mercial do Norte e maior articulação à bacia do Prata no Sul; embates ciado há 12 mil anos atrás ou que, na verdade, iniciara-se há 35 mil anos
entre potências coloniais distintas. Mas, tanto no Norte, quanto no Sul, antes do presente. Sobre quantos eram os ameríndios quando da chega-
entendem que as populações indígenas construíram importantes e so- da dos europeus por volta de 1500, os números vão de uma estimativa
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conservadora de 8 milhões até às cifras mais generosas de 100 milhões pois findaria a usurpação que esses grupos teriam praticado contra ou-
de pessoas (Cunha, 2009, 10-14). tros povos ameríndios, que por sua vez seriam supostamente originários
Mais do que adotar uma ou outra quantificação, há que se co- (Varnhagen, 1956, 23-56). Ao abordar os grandes Impérios da América
nhecer os critérios sobre os quais se basearam cada uma delas, não igno- pré-colonial, os Asteca no México e os Inca no Peru, interpretações mais
rando os debates em torno do tema. De todo modo, os vestígios arqueo- refinadas tentam explicar por que houve a vitória dos invasores europeus
lógicos e as descrições de cronistas obrigam a nos afastar das imagens de sobre populações indígenas organizadas militarmente e infinitamente
vazio demográfico, que muitas vezes justificaram o avanço das fronteiras maiores do que a dos exércitos de conquista europeus. Dentre outros
da conquista da América pelos invasores europeus ao longo dos séculos. fatores, um dos motivos principais seriam as disputas políticas internas
Com isso, desconstrói-se a ideia de que este continente tenha sido des- e as insatisfações dos povos submetidos em relação aos soberanos desses
coberto e ocupado pelos europeus, substituindo-se pela interpretação de Impérios indígenas (Bernand; Gruzinski, 1997, 333-334: 508-520).
que a América foi invadida, saqueada e conquistada pelos estrangeiros. Adentramos agora no universo das fronteiras, que é o tema
Além das ideias de “descobrimento” e “vazio” como elementos deste capítulo, abordando, em linhas gerais, como estavam colocados
desqualificadores da presença humana na América antes da chegada dos esses limites entre os povos indígenas na América. Com isso, surgem
europeus, devemos tomar cuidado com a forma como essas sociedades algumas questões: como e quais eram essas separações; como foram al-
eram descritas. “Bandos”, “hordas”, “reinos”, “Impérios”, “nações” impri- terados ou instrumentalizados pelos europeus? Os fluxos e refluxos dos
mem as noções políticas e civilizacionais a partir das quais os europeus índios na América remetem-nos, por sua vez, a um conceito recente-
da Era Moderna compreendiam as sociedades humanas. O entendi- mente trabalhado pelos antropólogos, que nos parece aqui eficiente para
mento sobre as sociedades ameríndias até meados do século XX foi co- entender esse processo: a noção de redes ameríndias. Esse conceito apre-
locado num quadro valorativo e classificatório relativo aos grupos hu- senta os espaços dentro dos quais se conectam os distintos grupos, as
manos. Dentro desses modelos, acreditava-se que a humanidade evolui- chamadas fronteiras, onde se expressam as conexões e as trocas (Latour,
ria a partir de grupos primitivos, como bandos ou hordas, até atingir um 1994, 9; Gallois, 2005, 15-17). Com a noção de redes, compreendemos
padrão de organização política através dos Estados, que representariam a plasticidade existente entre os diversos povos, deixando de colocá-los
o ápice dessa escala evolutiva (Cf. Arcuri, 2007, 305-320). No entanto, dentro de um modelo rígido de espacialidade, como se estivessem ato-
essa tipologia mais atrapalha do que ajuda nosso entendimento sobre mizados e separados em grupos inimigos e incomunicáveis. Também
a diversidade societária e política ameríndia, pois muitas informações admitimos que, mesmo em clima de guerras interétnicas, podem ser
que foram fornecidas pelos observadores estrangeiros sobre os indígenas operadas trocas de produtos, pessoas e saberes. Assim, a América não só
no passado (e até mesmo no presente, a respeito de grupos que não se era densamente povoada, como era dinâmica, em trânsito, em redes. Foi
enquadram nos padrões ocidentais), carregam parte do estranhamento e exatamente nessa espacialidade, tentando sobrepor-se ou caminhar por
dos preconceitos desses testemunhos. essas redes, que os europeus avançaram.
Iniciamos nosso trajeto em direção aos territórios indígenas na Uma primeira constatação acerca de seu avanço sobre terri-
América no contexto da conquista europeia a partir do final do século tórios e fronteiras indígenas foi o efeito fatalmente despovoador. De
XV. Muitos estudiosos, em diferentes vertentes interpretativas, atribuí- acordo com cronistas como Bartolomeu de Las Casas, Pedro Mártir e
ram o sucesso da conquista europeia às fissuras internas entre as socie- Zuazo, a dizimação que atingiu a ilha Hispaniola, por exemplo, causara
dades da própria América. De um lado, tinha-se a noção de que a orga- a morte de cerca de 2 milhões de nativos ao longo de 30 anos. Os ín-
nização política de certos povos era muito rudimentar, que seriam tribos dios daquela região foram identificados pelos espanhóis como Arawak
errantes, invasoras e incivilizadas. Por isso, a conquista pelos europeus e Taino, com os quais se aliaram. Os grupos que apresentaram resis-
dos Caribe (Antilhas) e dos Tupi (Brasil) seria plenamente justificável, tência foram chamados genericamente de Caribe (Bernand; Gruzinski,
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1997, 279-280). No caso das partes conquistadas pelos portugueses na ameríndios, processo que, se diga de passagem, manteve-se mesmo dentro
América, que aportaram inicialmente na Bahia em 1500, o efeito da di- dos Estados nacionais americanos a partir do século XIX.
zimação fez-se sentir de maneira avassaladora entre os povos que foram A faceta das disputas e mortes é um dos lados da contenda. De
se aliando aos brancos e que ocupavam a costa litorânea atlântica. Os acordo com Donna Guy e Thomas Sheridan, a lógica da fronteira seria a
chamados genericamente Tupi, que eram considerados mais amistosos, de terras em disputa, em que nenhum dos grupos seria detentor do mo-
quando aceitaram a aliança em vez da guerra, sofreram o impacto que as nopólio da violência. Essas disputas se expressariam através de diferen-
condições de confinamento, trabalhos e doenças lhes legaram. O padre tes tipos de organização, população e tecnologia. No caso das sociedades
jesuíta José de Anchieta estimava que, dos 40 mil índios que viviam nas ameríndias, o preço cobrado pelos interesses imperiais europeus teria um
aldeias controladas pelos jesuítas na Bahia a partir de 1560, cerca de alto custo em termos de exploração do trabalho, o que teria levado à des-
10% teria sobrevivido vinte anos depois (Anchieta, 1933, 377). truição ou desarticulação dessas sociedades (Guy; Sheridan, 1998, 10-11).
No caso da América espanhola, logo na chegada da primeira No entanto, como frisado em outros momentos deste capítu-
expedição de Colombo, os conquistadores passaram a receber seu qui- lo, o fenômeno das fronteiras deve ser percebido também através dos
nhão em terras e nativos, através do repartimiento dos mesmos, como intercâmbios, das mestiçagens e da construção de novas identidades. A
lhes legava a tradição castelhana. Aos poucos, os regimes de trabalho categoria de “índios coloniais”, que representaria os grupos e indivíduos
forçado, como as encomiendas, trazidas do Velho Mundo, e as mitas e que se colocaram sob o domínio dos europeus, pode ser entendida como
as yanaconas, adaptadas de modelos de trabalho compulsório indígenas o trânsito entre mundos. Isso porque os índios aliados eram obrigados
pré-existentes, foram reduzindo a expectativa de vida dos nativos. Mais a abandonar vários dos padrões de suas culturas de origem, uma vez
fatais, porém, foram as guerras contra os índios, com as expedições com submetidos às políticas coloniais. Eram apartados de suas sociedades,
armas de fogo e práticas de tortura para submeter os grupos e pessoas perdiam territórios, convertiam-se a religiões cristãs, adotavam hábitos
recalcitrantes. Também a guerra imunológica fez o seu papel, ceifando e idiomas europeus. Além disso, eram compelidos a regimes de trabalho
vidas através de doenças contra as quais os índios não tinham anticor- sob controle dos europeus, devendo pagar-lhes tributos.
pos, como sarampo, malária, gripe. Os espanhóis, por exemplo, compreendiam que a melhor
A partir de então, acompanhando um debate teológico sobre maneira de “integrar” a população nativa era concentrá-la e reduzi-la
a conquista espiritual dos povos encontrados pela cristandade, teve iní- em povoados, os chamados pueblos. Tal processo, inicialmente violen-
cio uma reposição demográfica para diversas regiões da América, parti- to, passou a ser regulado pelas Ordenanzas de descubrimiento, población
cularmente para aquelas atreladas à produção comercial para o mercado y pacificación de las Índias, em 1573. Nelas, substituiu-se retoricamente
europeu. Através de um sistema econômico atlântico, baseado no tráfico o termo “conquista” por “pacificação” e estimulou-se a atração e redu-
transcontinental de seres humanos, a escravidão africana seria adotada na ção indígena através do que se chamou de “dádivas” e pela caridade. As
América. Em linhas gerais, o discurso cristão que respaldava essa prática Ordenanzas buscavam oficializar a separação da Republica de los españoles
baseava-se na lógica de que os africanos seriam salvos pelo cristianismo da Republica de los índios, como duas instâncias apartadas – mas relacio-
através da escravidão, enquanto os ameríndios seriam salvos através da nadas – fisicamente, estruturadas no modelo urbano espanhol. Tal pers-
conversão (Alencastro, 2000; Bonciani, 2010). Essa nova frente de expan- pectiva, que agrupava os indígenas em núcleos urbanos orbitando em
são e reposição demográfica, que se daria com a vinda de africanos para a torno das cidades espanholas, fora experimentada ainda nas ilhas por
América, seria consolidada quase um século depois da chegada dos euro- Nicolás de Ovando em 1503, e depois reiterada pelas Leis de Burgos de
peus ao continente. No entanto, o avanço do modelo ocidental e o recuo 1513 e pelas Leis Novas de 1542. O modelo, já chamado de “utópico”,
das fronteiras indígenas foi um processo contínuo ao longo do período não cumpriria seu destino segregacionista, já que as várias formas de
colonial: um sinônimo de guerras, esbulhos de terras e assassinatos de mestiçagem, os mediadores culturais, as relações cotidianas estabeleci-
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das pelo trabalho dos repartimientos e as ações catequéticas criariam as conflitos reais, acionado pelos Guarani. Esses, divididos em centenas de
zonas de contatos e a aproximação entre as duas Republicas (Folguera; aldeias espalhadas por um território que compreende partes dos atuais
2001; Romero, 2005). sul e centro-oeste do Brasil, nordeste da Argentina, Uruguai e Paraguai,
A despeito de toda essa alteração de modelos indígenas “origi- podiam procurar os espanhóis para se proteger dos chamados bandei-
nários”, continuavam sendo reconhecidos como “índios” dentro do uni- rantes portugueses, ou, ao contrário, escaparem para o lado português,
verso colonial e essa condição resultava em algumas garantias. Para além fugindo do controle que as reduções jesuíticas espanholas procuravam
dos relatos de extermínios e guerras, a história dos povos ameríndios e exercer sobre eles (Sposito, 2012).
do avanço dos europeus sobre suas fronteiras deve ser analisada tam- As culturas, obviamente, jamais permanecem estáticas ao longo
bém na chave dessas alianças e acordos. Mesmo existindo as atrocida- do tempo. Nesse sentido, os índios respondiam e agiam frente ao processo
des mencionadas, diversos outros tipos de arranjos foram estabelecidos colonial através de uma “resistência adaptativa”, segundo expressão de Steve
pelos reinos europeus com vários grupos indígenas em toda a América Stern (1992, 1-34). Certamente que a adaptação serviu para os dois lados
ao longo dos séculos. Houve tratados de paz com aqueles que eram re- da contenda, pois os europeus também tiveram que se adaptar a modos,
conhecidos como líderes políticos das chamadas parcialidades ou aldeias modelos e ambientes ameríndios. Muitos indivíduos e sociedades indíge-
na América. Os acordos feitos pelos reinos português, espanhol, inglês, nas destruídas pela colonização se reagrupariam, ajustadas ou em posição
francês e holandês aconteciam desde que os índios de determinado de enfrentamento em relação às estruturas coloniais. A resistência externa
grupo tivessem um território de posse exclusiva sua e que não fossem pode ser visualizada através dos grupos recalcitrantes ao projeto colonial,
sujeitos ao trabalho escravo. De qualquer modo, as formas de reconheci- que originalmente já estavam distantes dos núcleos coloniais, ou deles fu-
mento da posse da terra e da legitimidade política dos grupos indígenas giram, atuando como “muros” ou “fronteiras” à expansão europeia (Farage,
variou muito entre os reinos europeus. Para ingleses, e também para os 1991; Puntoni, 2002). Mas havia também a resistência interna ao mundo
espanhóis e portugueses, o fato do indígena não “beneficiar” a terra ser- colonial, como por exemplo nas aldeias de índios sob controle de missio-
viu muitas vezes como uma das justificativas para retirar dele o direito nários ou particulares, denominadas também de pueblos, misiones, reduccio-
de uso e usufruto, servindo assim para alimentar o rol de legitimações nes no período, ou aldeamentos pela historiografia. Em novos espaços e
das ações de conquista e expulsão, juntamente com os tradicionais argu- segundo outros modelos, os índios reconstruiriam suas identidades através
mentos religiosos. do contato com outros grupos, gerando o que os antropólogos chamam de
Todavia, as promessas e acordos muitas vezes incluíam ces- etnogênese (Boccara, 2007; Monteiro, 2001; Wilde; 2009)., constituindo as
sar-fogo por parte do reino europeu aliado, ao passo que esse mesmo identidades dos “índios misturados” (Oliveira, 1998). Esse processo se refere
reino usaria seu exército para proteger tal sociedade indígena contra os à emergência de novas identidades surgidas entre os grupos indígenas da
europeus de outros reinos e os grupos indígenas inimigos. Esse recurso América, como reação à experiência colonial ou nacional.
de proteger os índios contra o assédio dos reinos inimigos se torna par-
ticularmente dramático no caso das zonas de fronteira. Um caso para-
digmático pode ser visualizado nos pontos de contato entre os domínios Plasticidade e limites fronteiriços na América
portugueses e espanhóis na América Meridional, cujos limites perma-
neceram indefinidos até os tratados do século XVIII, especialmente o Diversas frentes de expansão europeia seguiam ao encontro
Tratado de Madri (1750) e o de Santo Ildefonso (1777). Entre a capi- do continente americano, descobrindo suas dimensões, seus cami-
tania de São Vicente (depois Capitania de São Paulo) e a província do nhos, seus limites, seus povos. Ao longo da década de 1510, os es-
Paraguai (depois desmembrada em duas: uma de mesmo nome e outra panhóis seguiam nas ilhas caribenhas, chegando em Cuba, Jamaica
denominada de Rio da Prata), havia todo um jogo retórico, baseado em e Porto Rico. Avançando para o norte da América, na mesma época,
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teve-se o encontro da Flórida e das Carolinas. Na América Central redes não estavam diretamente relacionadas com o domínio dos Inca,
e na Venezuela, os conquistadores aportaram na década seguinte. Ao um pouco mais ao sul do continente.
encontrarem a península de Yucatán entre 1517 e 18, no golfo do O Tawantinsuyu, o “Império dos quatro cantos”, estendia-se
México, os espanhóis, admirados com o tipo de organização social e sobre vastas terras e povos na cordilheira dos Andes, de Quito no Peru,
padrão cultural que encontram (nativos vestindo roupas de algodão, a Santiago no Chile, sendo barrados ao sul pelos Mapuche e a leste
cultivando roças e portando ouro), classificaram o local como “grande pelos Chiriguano (Murra; León-Portilla, 1990). Esse Império, por sua
Cairo” (Bernand & Gruzinski, 1997, 308). A chegada do conquistador vez, que pautava sua expansão a partir do pagamento de tributos, de
Hernán Cortez ao México data de 1519 e a conquista efetiva da cidade deslocamentos forçados de povos para serem súditos do inca, também
México-Tenochtitlán, capital da confederação Mexica (Asteca), habi- ofereceria aos conquistadores a possibilidade de atuar dentro de seus
tada, estima-se, por 20 milhões de pessoas, ocorreu em 1521. A leitura conflitos internos. Dois sucessores do inca disputavam o direito de ocu-
que Bernard e Gruzinski fazem desse processo é que Cortez foi vito- par a liderança política que o pai exercera, demonstrando as próprias
rioso na conquista do centro do Império justamente por se apropriar dificuldades de alcance e soberania por parte de um Império que se
das redes, das disputas internas, aliando-se a povos como os Maia, pretendia tão amplo: o inca Huascar era apoiado pela elite de Cusco, ao
Nahua e Totonaque, o que lhe permitiu atingir o centro do Império sul; o inca Atahualpa, apoiado pela elite de Quito, ao norte (Bernand
Mexica, controlado por Montezuma (Bernand & Gruzinski, 1997, & Gruzinski, 1997, 491-495). Mesmo derrotado por Pizarro em 1532
333-4). Também para Miguel León-Portilla, foi o ódio de Totonaca, em Cajamarca e feito prisioneiro, Atahualpa ordenou o assassinato do
Tlaxcalteca, dentre outros povos, que permitiu aos espanhóis imprimir meio irmão em Cusco. Temendo o poderio do inca, que ainda detinha
a derrota ao poder Mexica (León-Portilla, 1990, 36). vasta área de influência, os espanhóis o mataram em 1533 (Bernand &
Os europeus na América do Sul também iriam trilhar caminhos Gruzinski, 1997, 508-52).
e rotas que os levassem a povos que detivessem maior poder e riquezas Assim, os europeus em trânsito pelas Américas chegavam ao
materiais, segundo a lógica do mercantilismo moderno. O Estreito de litoral, percorriam penínsulas, ilhas, continentes, descobrindo milhares
Magalhães, no extremo sul do continente americano, foi atingido por de sociedades indígenas, que podiam estar organizadas em aldeias, po-
Fernando Magalhães e Sebastián Elcano em 1520. Do istmo do Panamá, voados nas selvas, ou dispostas em núcleos urbanos, que por sua vez
na América Central, Francisco Pizarro e Diego Almagro partiram em se conectavam por estradas e canais. Para encontrar esses mundos, os
expedições em direção ao sul desde 1524. Em 1527, na fronteira entre invasores andavam por caminhos íngremes, desertos, rios caudalosos,
os atuais Equador e Colômbia, encontraram grandes embarcações com muitas vezes aproveitando-se das embarcações dos nativos. Adentravam
exércitos e homens adornados de ouro e prata, episódio que, de acordo densas florestas, tendo como guias os índios que conseguiam convencer
com Serge Gruzinski e Carmen Bernard, marcaria os contatos iniciais – através de alianças ou guerras – a conduzi-los. Cachoeiras, pântanos,
com o Império Inca do Peru (Bernand & Gruzinski, 1997, 473-481). grandes altitudes, terrenos insalubres muitas vezes impunham limites
Na região do chamado Circuncaribe, envolvendo povos que físicos ao trânsito e à comunicação.
habitavam os Andes, o norte da Colômbia e as terras baixas do Caribe, Apesar da conquista militar de povos indígenas pelos europeus,
havia uma conexão entre sociedades existentes na baixa América Central dos tratos de aliança política e até dos laços consanguíneos estabelecidos
(Costa Rica e Panamá) e no norte da Venezuela. De acordo com Mary entre os ameríndios e os estrangeiros, a entrada na América não se deu
W. Helmes, objetos de ouro, tecidos e artefatos com função ritualís- de maneira homogênea. Tal perspectiva reforça a tese de que o chamado
tica eram intercambiados e ostentados pelas elites de grupos como os processo de “conquista da América” foi prolongado no tempo e hete-
Muisca ou Chibcha, Quimbaya, Cenú e Tairona, que habitavam essa rogêneo espacialmente, ao contrário da tradicional visão que entendia
ampla região (Helms et al., 1990, p. 41-44). Ao que tudo indica, essas a queda dos Mexica e dos Incas como um marco final da conquista
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americana (Restall, 2006). Conforme dito acima, em muitas regiões as que viviam no chamado Valle dos Calchaquíes, na região tucumenha, im-
conexões territoriais entre as partes conquistadas não eram possíveis. puseram feroz resistência ao avanço espanhol. O local foi palco de inú-
Além dos mencionados acidentes geográficos que podiam impedir a co- meras rebeliões ao longo de todo o século XVII, inclusive uma de grandes
municação, havia sociedades indígenas belicosas, que não permitiam a dimensões liderada por um “lendário” mestiço de origem mourisca, Pedro
entrada de outros índios e de europeus em seus territórios. Assim, fron- Bohorquez. Durante grande parte do século XVI e XVII, o Valle foi uma
teiras naturais e fronteiras humanas impunham-se à livre circulação do verdadeira fronteira para o avanço dos colonizadores espanhóis, que er-
território americano. gueram as cidades de Salta e Jujuy, no atual noroeste argentino, exatamen-
O reino espanhol dividiu a América – então denominada pela te para tentar conter os grupos Diaguita (Mandrini, 2012).
Espanha como “Índias de Castela” – basicamente em dois centros admi- A política implantada pelo vice-rei do Peru, Francisco de
nistrativos, que por sua vez possuíam instâncias locais de poder, como as Toledo (1569-1581), buscou estabilizar o vice-reinado, que ainda en-
Reales Audiencias. No século das conquistas, instalou dois Vice Reynos: o de frentava uma rebelião inca liderada por Tupac Amaru I e a insatisfa-
Nova Espanha ao norte, na cidade do México em 1535, e o do Peru ao sul, ção dos conquistadores, que viam suas encomiendas tolhidas pelas Leyes
na cidade de Lima em 1543. Em outro contexto, no século XVIII foram Nuevas de 1542. Num amplo leque de medidas, Toledo tentou garantir
criados o Vice Reyno de Nova Granada, capital Bogotá, na atual Colômbia os monopólios da prata potosina através de Lima, a melhor exploração
(1717), e o Vice Reyno do Rio da Prata, em Buenos Aires, na atual Argentina econômica das minas, a regulação da mita, a consolidação das fronteiras
(1776), demonstrando a necessidade de novos centros que dessem conta da e a diminuição das pressões indígenas (Brading, 1991). Nesse sentido,
complexidade administrativa a partir daquele momento. tanto Assunção, quanto Santiago de Estero e Tucumán deveriam repre-
Na América do Sul, por exemplo, parte do vice-reino do Peru, sentar os limites da expansão centrada no mundo peruano e assentada
na província do Paraguai (que englobava porções dos territórios dos atu- em Lima e Potosí. Todavia, um circuito regional pressionava no sentido
ais Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil), a circulação dos europeus so- do Atlântico, no qual as mesmas cidades que deveriam ser o limite da
fria sérios limites. O Rio da Prata, que desemboca no Oceano Atlântico, expansão passaram a ser ponto de partida para novas expedições e para a
na cidade de Buenos Aires, poderia ter sido a porta de entrada para criação de novas vilas e cidades. A ocupação do Guairá e a fundação de
as ricas jazidas que se imaginava haver por ali, daí o rio ter sido assim Santa Fé, em 1579, e de Buenos Aires, re-fundada em 1580, cumpriam
denominado pelos conquistadores. No entanto, o encontro do Peru se essa função. Aos poucos surgia uma rota que conectava as minas poto-
deu através do Panamá em direção ao sul. Quando os europeus desco- sinas ao Atlântico através de Tucumã e Buenos Aires. Cerceada pela
briram a prata no Peru – em Potosí – passou a haver um interesse das Coroa, assim mesmo nela se formou um amplo mercado trans-regional
Coroas ibéricas em buscar acesso à região a partir do estuário do Rio da e transatlântico de comércio legal e ilegal (Moutoukias, 1988).
Prata. Assim, enquanto os portugueses fundaram as vilas de São Vicente As cidades no império espanhol cumpriam um papel central no
(1532) e Santos (1533), Espanha marcou sua ocupação na América do processo de expansão e alargamento de fronteiras, simbolizando o do-
Sul com a fundação de Buenos Aires (1535) e Assunção (1536). No mínio territorial e a submissão dos grupos nativos. Baseada no modelo
entanto, rios não navegáveis, pântanos, além da presença dos Paiaguá da chamada Reconquista, essa expansão aliviava as tensões geradas com
por rios e dos Guaycuru por terra, tornavam bastante dificultosas as via- a chegada de novos colonos, que buscavam suas próprias encomiendas e
gens de exploradores espanhóis e portugueses que saíam de São Paulo e repartimientos. Alijados inicialmente, engajavam-se em expedições cau-
Assunção tentando chegar ao Peru. dilhescas com a promessa de tornarem-se encomenderos em novas terras e
O caminho mais factível, por questões geográficas e geopolíti- vilas criadas no bojo do processo. Era um movimento que se auto alimen-
cas, foi a província de Tucumán, a oeste do atual território da Argentina tava. Entre 1580 e 1630, na América espanhola, as cidades passaram de
(Canabrava, 1984; Vilardaga; 2014). Assim mesmo, os grupos indígenas 225 a 331, ou seja, quase 50% em 50 anos. Segundo John Elliott, “ideal de
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la ciudad como una comunidad perfecta estaba profundamente arraigado tando sua agricultura e mobilidade (Slatta, 1990; Jones; Guy; Sheridan,
en la mentalidad hispânica y se consideraba contrario a la naturaleza que 1998, 99-101). Para Slatta, o cowboy expressa um fenômeno america-
los seres humanos vivieran alejados de la sociedad” (Elliott, 2006, 76). no que não se restringiu às fronteiras do atual Estados Unidos, como
No Chile, por sua vez, os Mapuche, povos que habitavam a usualmente se imagina. Geograficamente, eles estavam situados em
chamada Araucanía, no sul do território, criaram uma fronteira huma- locais bastante distintos: cowboys (Alberta/Canadá e oeste do Estados
na a partir do rio Bío-Bío, resistindo à entrada de europeus em seu Unidos); vaqueros (norte do México e Califórnia); gaúchos (Argentina,
território. Isso não significa negar os intercâmbios, já que os Mapuche Uruguai e Rio Grande do Sul); Hauso/guaso (Chile); llaneros (Venezuela
incorporaram vários hábitos europeus, como o uso do cavalo (também e Colômbia); vaqueiros (sertão nordestino do Brasil), charros (México) e
adotado pelos Guaycuru do Paraguai e pelos Apache e Comanche na paniolo (Havaí) (Slatta, 1990, 1-3). Para o autor, as fronteiras podem ser
América do Norte). Os próprios Mapuche, se foram vistos durante sé- enxergadas como “membranas”, pois, ainda que haja uma dominação do
culos como um grande muro à expansão europeia, devem ser enxerga- europeu sobre o nativo da América, as influências passam de um lado a
dos no processo de trocas e etnogênese gerada pela colonização, como outro (Slatta, 1990, 223). Assim, mesmo na figura mítica construída do
defende Guillaume Boccara. Expandindo-se para a região dos pampas cowboy dos Estados Unidos, que seria um tipo branco, descendente de
no Rio da Prata, os Mapuche misturaram-se com os povos do sul, o que ingleses, conquistador do oeste ao longo do século XIX, os séculos de
demonstra a construção de novas identidades indígenas a partir da co- contatos entre os espanhóis e os índios que viviam naqueles territórios,
lonização. Ademais, organizaram importantes rotas comerciais que ar- em períodos precedentes, não podem ser ignorados.
ticularam muitas comunidades e grupos indígenas, estabelecendo con- Outra frente de expansão europeia sobre a América foi desempe-
tínuos e vantajosos tratos com os colonos de fronteira (Boccara, 2007). nhada pelas ordens religiosas. O ideário da propagação da fé cristã foi com-
No outro extremo da América, ao norte do México, havia o bustível para a procura de novas terras por parte dos reinos católicos, que
chamado Grande Norte Espanhol, hoje representado pela porção oeste justificava a expansão ultramarina como meio para promover o aumento do
dos Estados Unidos, sobre o qual já falamos um pouco aqui. No sé- número de fiéis. Assim, tal discurso embasou a construção da soberania dos
culo XIX, a região seria parte do cenário da chamada “marcha para o Estados europeus que, através da conquista militar e do estabelecimento de
Oeste”, um processo de enfrentamento dos descendentes de europeus rotas de comércio, resultou na montagem de Impérios ultramarinos. Muitas
contra as populações indígenas e espanholas que ali viviam há sécu- vezes as vitórias militares e as conquistas comerciais eram justificadas como
los. Os projetos e discursos expansionistas do século XIX, que além dos o meio para conversão de gentios e perseguição aos infiéis. No próprio dis-
Estados Unidos, pautaram muitas ideologias nacionalistas na América curso dos jesuítas, por exemplo, uma das ordens que mais atuaram na con-
nessa mesma época, difundiam a visão da “civilização” branca, de ma- versão dos índios no Novo Mundo, a máxima era de que a vida civil, nos
triz europeia, vencendo a barbárie indígena, negra e mestiça habitante moldes europeus, à qual os índios deveriam ser obrigados a viver, era o meio
da América. No entanto, como ressaltou Richard Slatta, estudioso da de salvar suas almas. Esse projeto foi concretizado no modelo das aldeias
figura do cowboy, o vaqueiro, explorador que avançava para além dos jesuítas (ou misiones, reducciones, pueblos, aldeamentos). Ele foi formulado
limites de sua sociedade e que esteve presente em diversas regiões da para o Brasil na década de 1560, pelo padre jesuíta Manuel da Nóbrega e
América ao longo do período colonial e para além dele, é, essencialmen- adotado na América espanhola, na Província do Paraguai, somente na dé-
te, um mestiço. No Grande Norte Espanhol populações de diferentes cada de 1610 (Eisenberg, 2000; Sposito, 2012).
etnias e culturas interagiram durante séculos. A pecuária e a adoção de Também os dominicanos e franciscanos tiveram papel mar-
cavalos, trazidos pelos espanhóis e portugueses em distintas regiões de cante tanto na conversão dos povos ameríndios, quanto no discurso
fronteiras, propiciaram aos Apache, Sioux e Comanche, sociedades da que embasava a presença europeia e seu papel na América (Ruiz, 2002;
região, um ganho em termos de desenvolvimento técnico, incremen- Bonciani, 2010). Montesinos, Francisco de Vitória e Bartolomeu de
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Las Casas notabilizaram-se por questionar as atrocidades e assassinatos Maynas. Na ocasião, padres como Samuel Fritz denunciavam os portu-
cometidos pelos europeus contra os índios no início da conquista da gueses com o Tratado de Tordesilhas em mãos. A região era percorrida
América e formular alguns postulados sobre os direitos dos índios, que por contrabandistas e os meandros das relações entre missões, presídios,
influenciaram o campo filosófico, com desdobramentos para o surgi- aldeias indígenas e comerciantes luso-castelhanos tornam aquele terri-
mento e a legitimação do direito e do Estado modernos (Ruiz, 2002; tório um laboratório riquíssimo para se observar as experiências frontei-
Eisenberg, 2000). riças (Gonzalez, 2013, 85-123).
Essa menção à evangelização e ao papel da Igreja Católica nas Ali se percebe uma extensa rede de relações envolvendo dis-
colonizações ibéricas é necessária para a compreensão do fenômeno das tintas etnias na região amazônica no século XVII, que não iniciaram
fronteiras no mundo colonial, pois muitas vezes padres e missionários seus contatos a partir da invasão europeia, mas foram por ela atingidas.
funcionavam como “pontas de lança” na expansão territorial e na con- Assim, ainda que se tornassem escravos de particulares, vassalos do rei
quista dos povos, justificando que vinham pacificar e salvar os índios. ou aldeados pelos missionários, estavam acessando os fluxos e as novas
Assim, vários depoimentos de padres jesuítas permitem vislumbrar o redes de relações colocadas pelos invasores. Os ameríndios, além de
avanço dessas frentes e ao mesmo tempo o quanto teriam de pelejar para suas rotas tradicionais, passaram a percorrer os caminhos também tra-
conseguir penetrar na complexa teia das redes ameríndias. Da provín- çados por portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses. Ali,
cia do Paraguai, por exemplo, os jesuítas escreviam no início do século como em outras partes da América, ao mesmo tempo que poderiam
XVII, relatando a terra como habitada por “mil nações bárbaras”, passí- ser dominados por um desses reinos, poderiam também negociar espa-
veis de conversão (Cortesão, 1951, 209-210). ços, adquirir mercadorias, barganhar alianças ou abrir ofensiva contra
Na outra ponta da América do Sul, o padre jesuíta Antonio outro reino inimigo.
Vieira, missionando na região amazônica em 1660, informava ao rei A fluidez das fronteiras durante a colonização da América
sobre o mosaico de identidades, povos e alianças. Dizia Vieira que os pode ser visualizada através do trajeto seguido pelo governador da pro-
grupos Topinambá e Poguiguará (conforme sua grafia) haviam sido re- víncia do Paraguai, Luis Céspedes Xeria. Essa autoridade, nomeada na
centemente aldeados. A obtenção dessas alianças foi fruto da chegada Corte de Madri em 1628, partiu da Europa, desembarcando alguns me-
dos missionários à foz do rio Amazonas, onde essas “nações”, outrora ses depois na Bahia. Dali seguiu ao Rio de Janeiro, onde se casou com D.
amigas dos portugueses, naquele momento estavam em guerra contra Vitória de Sá, sobrinha do governador daquela capitania, demonstrando
os lusos e aliadas aos holandeses. Esse cenário de guerras fazia com que as uniões matrimoniais entre espanhóis e portugueses na América
que a ilha dos Nheengaíba se tornasse uma “fortaleza natural” contra meridional não eram algo incomum (Vilardaga, 2014). Para se precaver
a presença portuguesa na região, processo que teria sido revertido pela na longa travessia até a cidade de Assunção, onde assumiria seu posto, o
ação missionária. No entanto, a ação dos jesuítas, de acordo com Vieira, governador abasteceu-se de víveres, tropas e índios em São Paulo, per-
rompeu o cerco beligerante, com a assinatura pelos líderes indígenas de correndo um caminho bastante conhecido pelos portugueses que dali
um termo jurídico de vassalagem ao rei português. Dessa feita, índios atingia os domínios espanhóis.
dos grupos Mamayná, Aroan, Anayá (subdivididos em Mapuá, Gujará O trajeto da capitania de São Vicente até o Paraguai e o Rio da
e Pixipixí), além dos Tricujú da terra firme, que compunham um total Prata era percorrido desde o século XVI – nos dois sentidos - por aventu-
de 40 mil índios, passaram para o lado português (Vieira, 1735, 21-54). reiros, comerciantes, missionários e pelos bandeirantes, ou sertanistas, que
Já no século XVIII, os jesuítas espanhóis, sediados em Quito, tinham como objetivo capturar índios Guarani do Paraguai e levá-los como
passaram a questionar o avanço português pelo Alto Amazonas. A par- escravos ao Brasil, prática que foi se tornando mais frequente desde a década
tir do Pará e do Maranhão, os portugueses invadiam o que era consi- de 1580. Antes de chegar a Assunção, no entanto, Céspedes Xeria percorreu
derada a fronteira oriental da Real Audiencia, a Província amazônica de a região do Guairá (onde se localiza o atual Estado do Paraná no Brasil),
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local mais extremo a leste na província do Paraguai onde havia espanhóis com a dinastia Bourbon assumindo o trono da Espanha no início do
instalados (Annaes do Museu Paulista. 1925, 15-42). Foi justamente percor- século XVIII, houve um rearranjo geopolítico também na América:
rendo esse caminho de maneira oficial, evidenciando uma série de tratos e a França perdeu seu território na América do Norte para a Espanha;
laços havidos entre espanhóis, portugueses, índios Tupi do Brasil e Guarani Portugal cedeu à Espanha a Colônia do Sacramento, que havia sido fun-
do Paraguai, que o governador espanhol se complicou. Xeria foi acusado de dada pelos portugueses em 1680 na margem oriental do Rio da Prata,
contrabandear índios e mercadorias por rota proibida, ao sair do Brasil em evidenciando as disputas entre esses reinos por aquela região desde o
direção a Assunção por terra. Além disso, indispôs-se com os padres jesuítas início da colonização. Na região amazônica, embora Portugal tenha fi-
das missões estabelecidas entre os índios, ao se posicionar favoravelmente cado com o território na foz do rio Amazonas, todo o Alto Amazonas
aos encomenderos do Guairá, moradores da região que haviam recebido mer- ainda se mantinha indefinido e a solução do impasse se resolveria so-
cê do rei, autorizando-os a possuírem índios que lhes prestassem serviços. mente com os tratados efetuados nas décadas seguintes (Kantor, 2007).
A disputa entre moradores e religiosos pelo controle da mão de obra indí- Com os Tratado de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1777)
gena era uma questão presente em várias partes da América, onde os índios buscou-se estabelecer de maneira definitiva os marcos entre a América
se constituíam na principal força de trabalho. Mais do que tomar partido espanhola e a América portuguesa. As comissões de demarcação, levadas
do lado dos moradores espanhóis, Céspedes Xeria também teria se aliado a cabo pela Espanha e Portugal na América do Sul, geraram uma nova
aos bandeirantes portugueses, sendo acusado de nada ter feito para impedir “guerra de mapas”, em que os agentes e comissários encarregados das
uma grande bandeira que se dirigiu ao Guairá entre 1628 e 1629, ou, pior demarcações recorreram a um conjunto de mapas recentes ou até mes-
ainda, de ter aberto caminho para os lusos aos domínios espanhóis. De fato, mo do século XVII para poder definir onde ficavam as linhas divisórias.
as ações bandeirantes ou sertanistas praticadas pelos paulistas nos anos se- O que se depreende desse movimento é que várias distorções cartográfi-
guintes levaram à despovoação das cidades espanholas e à escravização de cas foram feitas num ou noutro ponto dos mapas para favorecer ora um,
cerca 60 mil Guarani, retirados do Paraguai e levados ao Brasil em poucos ora outro reino. Alexandre de Gusmão, responsável pela demarcação
anos (Sposito, 2012). do lado português, praticou muitas dessas alterações nas representações
De qualquer modo, a ocupação da América era milimetrica- dos mapas para atender aos interesses de seu reino. As autoridades es-
mente negociada pelos povos, originários ou invasores, que pretendiam panholas, por sua vez, que conheciam menos a região que os lusos, aca-
nele permanecer, fazendo valer a máxima da fronteira como “terra con- baram aceitando delimitações que não eram fidedignas (Ferreira, 2007).
testada”, conforme visto anteriormente. Se a proeminência ibérica foi O Tratado de Madri, em síntese, estabeleceu uma partilha no Prata para
um fato no início da conquista da América, logo a anuência papal para a buscar equilibrar as perdas: a Colônia do Sacramento (no atual Uruguai)
partilha do Novo Mundo entre Espanha e Portugal passou a ser contes- passaria definitivamente a pertencer ao território espanhol; em troca, a
tada. Hugo Grotius, como visto anteriormente, questionou o domínio Espanha cederia parte das missões jesuíticas que havia em seu território:
do continente americano pelo mero título papal, caso não houvesse uma sete dessas missões ou pueblos passaram a pertencer ao reino português
posse efetiva do território pretendido. Isso gerou uma nova ordem de (ocupavam parte do território onde hoje é o estado brasileiro do Rio
disputa territorial entre os reinos europeus no século XVII, que, além Grande do Sul). Importante pontuar que muito do conhecimento sobre
das guerras e conquistas, levou-os à busca de maior precisão cartográfi- os territórios em litígio usado pelas autoridades foi obtido através de su-
ca, como meio de efetivar a ocupação (Kantor, 2007). jeitos que sempre percorreram essas fronteiras. Jesuítas que missionavam
Somente com os tratados de limite estabelecidos entre as po- no Sul e na região de Mojos e Chiquitos na Bolívia, por exemplo, além
tências europeias no século XVIII, demarcando e barganhando os seus de sertanistas paulistas que transitavam do Mato Grosso a São Paulo, a
domínios na América, é que esses limites políticos e físicos seriam efe- partir da descoberta do ouro, mostraram que, mesmo nos tratados esta-
tivamente demarcados. Com a paz de Utrech (1712-5), que culminou belecidos pelas autoridades diplomáticas dentro de seus gabinetes, havia
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que se considerar a história e a vivência de populações que estiveram,
durante séculos, nas bordas desses Impérios (Carvalho, 2014). ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul
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ou menos transponíveis, da expansão europeia em todas as partes do São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1984.
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conflito e negociação com os mais diversos grupos indígenas, de atu- aventuras teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
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o lugar do “vazio”, do simples trânsito ou da contravenção sistemáti- te: Editora da UFMG; São Paulo: EDUSP, 2014.
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9-15. çagem, outros foram torturados e escravizados. Em alguns locais, como na
fronteira Mapuche do Chile, foi um fenômeno contínuo e extenso. Ao longo
94 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 95
do tempo, os ocasionais relatos dos que regressavam despertaram um misto
de curiosidade, repulsa e compaixão. Transcrevemos aqui um pequeno trecho,
do que se pode chamar de uma experiência positiva de cativeiro. O capitão
Francisco Núñez de Pineda y Bascuñan, foi um cativo chileno no contexto da
pacificação e dos tratados entre espanhóis e Mapuches. Foi capturado depois
de uma batalha, na qual foi ferido, em 1628. Ficou prisioneiro por seis me-
ses, nos quais esforçou-se por conhecer os indígenas. Em seu texto, descreve os
banquetes alimentares, já adaptados às grandes quantidades de carne bovina,
e as rivalidades entre tribos e os conflitos com os espanhóis. Abaixo segue sua
emocionada despedida:
Con estas razones, que pronuncié con alguna ternura, respon-
dieron las viejas lastimadas con lágrimas en los ojos y ayes y suspiros en MAPA 1. Le Nouveau Monde Descouvert et Illustre de Nostre Temps.
los lábios, diciendo: ay! ay! que se nos va nuestro capitán y compañero; André Thevet.1575.Paris.Disponível em: < http://www.cartografiahistorica.
a cuya imitación de las demás muchachas, principalmente la mestiza usp.br/> (Acesso em 13/10/2015)
con los muchachos mis amigos, levantaron de punto los sollozos y voces
lastimadas de manera que me obligaron a llorar con ellas, y a decirles,
que si no tuviera padre, a quien amaba tiernamente, y entre los mios no
fuera tan solicitado (como lo habian visto) con tan repetidos mensajes,
que tuviesen por cierto que no dejara su amada companhia, porque me
habían obligado com extremo sus agasajos, sus cortesias, sus amores y
regalos, a corresponderles con voluntad y afecto.24

Documento 2

Planisfério de Alberto Cantino (1502).


Primeiro mapa conhecido que contém a referência ao Tratado
de Tordesilhas e já com partes do Brasil.

24 Trecho retirado de: OPERÉ, Fernando. Historias de la frontera. El cautiverio en la América


Hispànica. Buenos Aires: Corregidor, 2012; p.111
96 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 97
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Amsterdã. Disponível em: < http://www.cartografiahistorica.usp.br/> nouvelles et tres utiles non seulement sur les ports et iles de cette mer, mais aussy
(Acesso em 13/10/2015) sur les principaux pays de l’Amerique tant Septentroinale que Meridionale,
avec les noms & la route des voyageurs par qui la decouverte en a ete faite.
Henri Abraham Chatelain. 1719. Amsterdã Disponível em: < http://
www.cartografiahistorica.usp.br/> (Acesso em 13/10/2015)

98 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 99
Capítulo 3
Pessoas e bens em circulação (1492-1750)

Ofelia Rey Castelao

As profundas mudanças demográficas e econômicas que ocor-


reram no mundo entre 1492 e meados do século XVIII como resultado
da “descoberta” da América significaram uma transformação tão intensa
que só é possível enumerar seus sintomas e ordená-los em torno do con-
ceito de circulação. Como veremos, o termo “globalização”, amplamen-
te utilizado nos últimos tempos, é talvez excessivo para o período em
questão. Sobre este tema muito se tem publicado, especialmente desde
a comemoração de 1992, uma vez que vivemos, nos dias de hoje, uma
globalização a plenos pulmões e uma circulação acelerada de pessoas,
bens e informação. Algumas questões clássicas permanecem na biblio-
grafia, mas houve uma revisão dos métodos de pesquisa e de análise,
especialmente a comparação e a dialética entre o global e o regional, en-
tre o macro e o micro-histórico. Em suma, o que se aceita é que, apesar
do enorme custo humano que supôs a unificação do globo, produziu-se
uma reciprocidade entre Europa, América, Ásia e África no marco de
uma nova economia: por um lado, a importação de plantações adaptadas
de umas áreas às outras serviu para aumentar a produção mundial de
alimentos e para sustentar o crescimento demográfico. Por outro lado, a
aquisição de amplos territórios levou a transferências de população em
grande escala, como nunca antes havia ocorrido.
A expansão europeia ultramarina nasceu impulsionada pelo
comércio e buscava especialmente benefícios comerciais, mas, para ob-
tê-los, foi preciso conquistar territórios ou instalar feitorias cujos lucros
foram parar majoritariamente nas metrópoles. Alguns portos europeus
– Lisboa, Antuérpia, Amsterdã – que desempenhavam um papel prin-
cipal nos grandes circuitos tradicionais intra-europeusse transformaram
em pontos de conexão com o tráfego colonial e em centros redistribui-
dores para mercadorias que chegavam da África, da América e da Ásia

As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 101


com destino à Europa. Esse continente manteve durante o período de pação menos densa. Não esqueçamos que, no século XVII, na América
1492 a 1750 um modelo de baixa pressão demográfica, que lhe permitiu do Norte britânica, os indígenas foram mortos ou expulsos e, se em
dispor de uma renda superior à necessária para sua subsistência, além de 1700 três quartos dos habitantes eram de indígenas, em 1800 estes
um poder aquisitivo que lhe permitiu o consumo de produtos coloniais atingiam a cifra de apenas 3% da população. O desastre demográfico
que não eram vitais – café, açúcar, tabaco –, mas comprados para satis- foi compensado com a imigração ibérica, com o aumento do número
fazer necessidades mais supérfluas, ligadas tão somente ao prazer de seu de mestiços e principalmente com a importação de escravos africanos:
consumo. Tratava-se, portanto, de um consumo de luxo protagonizado de 1525 a 1600, aproximadamente 75.000 escravos foram conduzidos
pelas classes endinheiradas, mas constituía um mercado cada vez mais à América espanhola e 50.000 à América portuguesa. O déficit de
generalizado pelo qual lutaram as potências navais portuguesa, holan- mão de obra – de 1,2% a 2,2% ao ano – levou esse número a atingir
desa e britânica. A intensificação do comércio barateou os preços e cada aproximadamente 1,3 milhões (830.000 para as Américas espanhola
vez mais pessoas desfrutaram ou se beneficiaram das importações. e portuguesa) no período compreendido entre os anos 1600 e 1700.
Mas esse aporte não foi suficiente para que a América recuperasse
suas cifras demográficas iniciais. Para isso foi mais importante o fato
A circulação de pessoas de que o potencial econômico americano aumentaria a longo prazo,
graças aos novos cultivos trazidos da Europa e também aos animais,
O impacto da chegada dos europeus à América não será o como cavalos e mulas, que proporcionaram uma maior capacidade de
foco deste capítulo, que se centrará na circulação das pessoas e seu carga e de transporte.
contexto histórico. No entanto, é necessário mencionar a transforma- Ao contrário dos africanos, a população nativa americana não
ção demográfica ocorrida na América desde 1492, tanto pelo colapso se incorporou à circulação demográfica, pois não houve tráfico de escra-
motivado pelas doenças que advieram do contato dos nativos deste vos das Índias para a Europa. Tal circulação se deu a partir da Europa e
continente com os europeus e africanos, quanto pelos realocamentos foi precedida de uma mobilidade intra-europeia, cujas causas obedece-
de população para cobrir as necessidades de mão de obra indígena ram mais a padrões regionais do que globais. Antes de 1492, grupos de
que derivavam dos déficits populacionais assim gestados. Tema chave trabalhadores e de colonos eram obrigados a percorrer longas distâncias
e tradicional, revisado pelos cálculos de Cook e Borah (1960), o certo devido ao descompasso entre o crescimento da população e a oferta de
é que a expansão das doenças provocou uma mortalidade elevada na trabalho em seus lugares de origem. Nesse caso não se tratava apenas
América: as epidemias de varíola, sarampo, tifo entre outras enfren- da pressão populacional, mas do fato que as áreas migratórias se carac-
tadas em 1519/21, 1534, 1545, 1550, 1559-63, 1576-80, 1595, entre terizavam por um déficit laboral advindo de condições naturais, eco-
outras, foram desastrosas e somente no fim do século XVI a população nômicas, demográficas e sociais específicas. As áreas de recepção eram
indígena desenvolveu anticorpos contra algumas dessas infeções, o que sobretudo zonas agrárias de monoculturas, portos e grandes cidades que
fez as crises epidêmicas se atenuarem a partir de 1620. O resultado ofereciam mais oportunidades econômicas. Desse modo, a necessidade
disso foi o maciço desaparecimento da população indígena, com efei- de emigrar variava de acordo com a área e dependia das relações entre a
tos mais fortes em áreas densamente povoadas e agrárias do México população e o território, a propriedade e o uso da terra, a produção agrá-
e do Peru, zonas destruídas pelas doenças europeias, pela febre ama- ria, os recursos industriais, o emprego e os salários, além de situações de-
rela e pela malária, as duas últimas trazidas pelos escravos africanos. mográficas específicas. A Europa possuía 81,8 milhões de habitantes em
O impacto foi menor nas áreas menos habitadas, como o Brasil, que 1500, 104,7 milhões em 1600, e, até 1700, não superara os 115 milhões,
contava com aproximadamente dois milhões e meio de indígenas na o que demonstra que a emigração para a América não esteve motivada
época da chegada dos portugueses, constituindo um território de ocu- pela pressão demográfica, mas pela escassez de destinos atrativos e pelo
102 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 103
interesse em obter lucros ou simplesmente melhores condições de vida. de contato facilitou a expansão hispânica ultramarina. O resultado foi
Por essa razão as migrações extra-europeias possuíam um alto índice de o estabelecimento de uma colonização que garantiu o predomínio me-
retorno, gerando uma intensa circulação entre os espaços. tropolitano durante o período que aqui nos interessa.
Espanha e Portugal enviaram pessoas à América muito antes Quantos espanhóis se dirigiram à América e de onde eles
do que o resto da Europa, diferenciando-se dos outros países europeus provinham? As estimativas de M. Mörner (1975) continuam sendo
em razão de seu domínio colonial sobre o território que hoje constitui respeitadas pelos historiadores: 250.000 no século XVI e 190.000
a América Latina e outras partes do continente. No caso espanhol, não na primeira metade do XVII, com uma média de 2.584 pessoas por
foi um movimento imediato, pois a colonização das Antilhas, preten- ano, número que aumentou de 1.235 no período compreendido entre
dida desde a segunda viagem de Colombo, foi dificultada pela dureza 1506 e 1540 para 3.929 entre 1561 e 1600, com oscilações. O núme-
do clima e pela dificuldade em se conseguir ouro. Os Reis Católicos ro máximo de viajantes foi alcançado no período compreendido en-
fomentaram a ida ao continente desde 1495, oferecendo terras, ma- tre 1601 e 1625, com 111.312 viajantes (4.452 por ano). No entan-
nutenção e outras facilidades para assegurar as atividades econômicas to, estes não são números alarmantes: Castela mandou, anualmente,
essenciais e limitar a mestiçagem, promovendo as viagens de artesãos, quatro pessoas para cada dez mil de seus habitantes, apesar de que,
agricultores e de famílias. Além disso, foi imposta uma seleção aos po- ao tratar-se em sua maioria de homens jovens, a perda de potencial
voadores, o que reservou a América aos súditos da Coroa de Castela, demográfico era maior, já que eles compunham aproximadamente
excluindo todos os súditos dos outros territórios hispânicos. Por essa um quinto da população. De 1625 a1640, a emigração decaiu, sendo
razão, os reis estabeleceram a “licença de passagem”, controlada pela que, na primeira metade do século XVIII, ela ainda era moderada, ou
Casa de Contratação de Sevilha desde 1509, evitando que fossem para ao menos o número de pessoas que saíam por Cádiz era inferior ao
as Índias os mouros, os judeus, os convertidos, os condenados e, claro, do século XVI, alcançando aproximadamente dois mil ao ano. Além
os estrangeiros. No entanto, a necessidade de povoadores fez com que, disso, entre meados do XVII e meados do XVIII produziu-se uma
a partir de 1511, as saídas fossem facilitadas e ocorressem campanhas profunda mudança na origem dos emigrados, a qual passa do Sul ao
de recrutamento, que foram rapidamente organizadas para as expe- Norte espanhol, feito que se consolidou até a emigração em massa
dições de conquista ou para levar famílias de lavradores, fornecendo- dos séculos XIX e XX.
-lhes passagens, terras etc. Por outra parte, flexibilizou-se a passagem A Espanha era um território pouco povoado em relação à
de estrangeiros, especialmente quando Carlos I25 abriu a América a sua superfície, mas cresceu muito de 1530 a 1591 – de 4,7 milhões de
seus súditos, ocasião que foi aproveitada pelos alemães para iniciar a habitantes a algo entre 6 e 8 milhões em 1700, tendo suportado sem
colonização da Venezuela. Felipe II optou por limitar essa passagem problemas a emigração à América durante o século XVI graças a uma
novamente e manter o monopólio castelhano; seus sucessores adota- produção agrária em ascensão, ao crescimento das cidades e a vívidas
ram diferentes resoluções (em um ou outro sentido) de acordo com atividades comerciais e industriais. Mas em seu interior havia uma gran-
as variadas circunstâncias. Em outras palavras, a viagem à América de variedade de comportamentos demográficos, econômicos e sociais,
foi um movimento livre, mas não espontâneo, e a política migratória que se traduziram em importantes diferenças nas zonas que enviaram
oscilou segundo as necessidades de cada momento. Os portos de saída emigrantes à América. Até meados do século XVII, a maioria dos via-
– Sevilha e Cádiz– se transformaram em núcleos de atração de migra- jantes que se dirigiam às Índias era de Andaluzia (em torno de 40%),
ção e envolveram os movimentos migratórios internos com os transa- Estremadura e Nova Castela (30%), sendo outros 20% de Castela, a
tlânticos, de modo que a rápida criação de vias de comunicação e redes Velha e Leão; o Norte apenas contribuiu com cerca de 5%. No mapa a
seguir, quanto mais escura a cor maior o número de emigrantes.
25 NT: No Brasil, Carlos I de Espanha é mais conhecido como Carlos V (referindo-se ao fato
de ser o quinto deste nome no trono do Sacro Império).
104 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 105
Mapa 1: Emigrantes de Espanha à América rural foi escassa até o século XVIII. Não era fácil dirigir-se à América
por conta própria: as viagens transatlânticas estiveram limitadas pela
capacidade de transporte dos navios da “Carreira da Índia”, pela dificul-
dade dos procedimentos administrativos e pelos custos envolvidos. Isso
favoreceu a ação dos recrutadores, que possibilitavam a participação das
pessoas em expedições em troca de pagamentos futuros por parte dos
emigrados. Sessenta e cinco por cento dos que saíram de maneira legal
aparecem nos registros oficiais como criados, mas, na realidade, muitos
eram viajantes que tiveram sua travessia paga a crédito por seus amos.
As limitações também favoreceram a emigração clandestina: relatórios
e licenças eram falsificadose os capitães e as tripulações dos navios co-
laboravam nos embarques ilegais, apesar das duras penas previstas em
sucessivas leis publicadas desde 1552. A presença ilegal na América,
especialmente a de estrangeiros, foi regularizada pela monarquia em
muitas ocasiões, por meio de negociações e pagamentos.
Uma das características do caso hispano é a enorme mobilida-
de dos espanhóis na América em busca de novas oportunidades. Outra,
No entanto, essas grandes regiões migratórias receberam du- foi a emigração familiar, modesta na primeira metade do século XVI,
rante esse período uma intensa imigração de substituição, protagonizada mas intensa na segunda. Uma lei de 1497, dos Reis Católicos, favoreceu
por homens das regiões ao norte. As áreas migratórias se caracterizavam a presença de mulheres e, a partir de 1513 – especialmente a partir de
por possuir um habitat concentrado e por serem as mais urbanizadas da 1546 –, a Coroa obrigou os homens casados a levarem suas mulheres ou
Espanha, tendo uma economia agrícola de latifúndio e grandes planta- a mandarem buscá-las quando já estivessem neste lado do Atlântico. Isso
ções, um modelo familiar nuclear e um sistema igualitário de transmis- foi repetido em 1549 e em 1681. Em 1539, Carlos V proibiu a viagem
são das heranças. A forte crise do século XVII, em especial da população de mulheres solteiras, com exceção daquelas destinadas a casar-se com
urbana de Andaluzia e das Castelas, paralisou a emigração dessas regi- colonizadores, proibição que foi confirmada por Felipe II. A viagem de
ões para a América. O norte, ao contrário, se incorporou paulatinamente famílias inteiras é muito importante para explicar a concentração de
à emigração ultramarina: se tratava de uma área pouco urbanizada, de imigrantes em certas áreas da América. Em geral, as que provinham de
economia agrícola em pequenas propriedades e policultura, modelo fa- regiões ou localidades espanholas se instalavam nos mesmos lugares, o
miliar de tamanho maior e um sistema de heranças desigual, que sofria que serviu para a criação de redes de relacionamento, de inserção e de
um problema de relativa superpopulação. A partir de 1650, a introdução ajuda. As famílias também foram essenciais para organizar a sociedade
do milho nas plantações provocou um intenso crescimento e consolidou americana segundo o modelo metropolitano, já que elas levaram a lei e
a emigração como um recurso necessário para completar a renda fami- o sistema familiar castelhano. Por seu lado, as mulheres levaram valores
liar e liberar o excedente demográfico. sociais e morais, além de traços da cultura material. Estima-se que 1.153
Uma pequena parte dos que foram para a América eram con- mulheres foram para a América entre 1493-1539 (cerca de 6% do total
quistadores, funcionários e clérigos. Em sua maioria eram castelhanos, de pessoas que vieram), 1.480 entre 1540-1559 (16,4%), 5.013 entre
mas pouco se sabe sobre eles. O que está mais claro é que eram, em gran- 1560 e 1579 (28,5%), 2.472 entre 1580 e 1599 (26%), 5.764 entre 1598-
de parte, provenientes dos centros urbanos e que a participação da área 1621 (30,5%) e, em seguida, a proporção caiu: em 1765 elas eram ape-
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nas 15,8%. Entre 1540 e 1579, cerca de metade das mulheres migradas novos territórios eram descobertos; desde o século XV e ao longo do
eram da Andaluzia, sendo que entre 1580 e 1621 elas eram por volta de XVI, eles chegaram às ilhas do Atlântico, ao norte da África, ao Golfo
60%; Nova Castela contribuiu com cerca de 14% a 17%; Estremadura da Guiné, aos portos da África oriental, Ormuz, Índia, Malásia, China e
em torno de 14%, enquanto que Castela, a Velha, e Leão passaram de Timor. Na África, desde 1520 havia colonos não oficiais – contabiliza-
16,4% em meados do século XVI a somente 3% no final do século. Essas dos –, sendo que, no fim do século XVI, muitas pessoas que ocupavam
mulheres eram em sua maioria urbanas, casadas ou viúvas – apesar de cargos importantes em Senegâmbia, Guiné e Cabo Verde estavam casa-
viajarem acompanhadas de muitas meninas –, sendo que muitas delas das com africanas. Não se tratava de um verdadeiro assentamento, mas
aparecem nos registros como empregadas. Uma parte significativa delas eram claramente portugueses ali residindo de forma estável. Por outro
não prosperou devido à abundância da oferta de serviço doméstico local lado, estima-se que os navios que passaram pelo Cabo da Boa Esperança
e à falta de outras oportunidades. em direção à Ásia entre 1500 e 1599 transportaram mais de 198.000
No século XVIII, o número de saídas legais – e clandestinas – portugueses, dos quais nove por cento não chegaram ao seu destino.
aumentou e os fatores de expulsão atuaram com mais claridade: o preço Retornaram 121.767, mas somente chegaram à Europa 105.305. Ou
relativo ao dia de viagem diminuiu – mais intercâmbios, melhores for- seja, somente regressaram 53%, e no século XVII, 44%, já que foram
mas de financiamento –, as redes migratórias funcionavam ativamente 132.343 e voltaram 58.711.
e o Estado revitalizou a colonização de regiões americanas importan- Assim, ao contrário da Espanha, Portugal enviou pessoas para
tes do ponto de vista econômico ou militar. Em 1765, a emigração era outros destinos, sendo possível afirmar que a emigração representou um
quase só de homens, dos quais aproximadamente 80% eram solteiros e caráter estrutural da sua população. No século XV ela se deu em razão
em grande proporção procedentes dos territórios rurais do norte espa- da escassez de empregos, dos reduzidos ganhos dos trabalhos e da falta
nhol. O modelo de migração familiar foi pouco frequente, exceto nas de cidades consumidoras. Também se deve levar em conta o fator de
expedições de colonização levadas a cabo desde o final do século XVII atração que exerceu a América, assim como ocorreu no caso espanhol.
e ao longo do XVIII. Nestes casos, as famílias eram originárias princi- No entanto, Portugal demorou a começar a ocupação do Brasil, pois não
palmente das Ilhas Canárias: a demanda por colonos na América e a era fácil encontrar colonos dispostos a migrar, de modo que, no início, o
superpopulação dessas ilhas motivou, em 1678, a permissão para que contingente dos que vieram era composto em boa parte de exilados ou
delas saíssem, a cada ano, até cinco famílias para cada cem toneladas de degredados. As condições no Brasil não eram favoráveis ao assentamen-
mercadoria. Foi o chamado direito de famílias, suprimido em 1764. Em to devido aos ataques de índios – especialmente depois que a relação
suma, a circulação migratória no Atlântico havia mudado de maneira relativamente pacífica com os indígenas, correspondente ao período das
bastante clara se comparada ao período da conquista. feitorias (1502-1534) e anterior à uma ocupação mais estável, foi que-
Quanto a Portugal, devemos ter em mente que era um pe- brada –, à incômoda presença dos franceses e à baixa rentabilidade do
queno país que, em 1500, possuía apenas um milhão de habitantes. No território. Sendo assim, a ocupação mais efetiva do território foi adiada
censo de 1527-1532, havia 1,4 milhão; no século XVI, a população do até o período das Capitanias Hereditárias (1534). Quando o cultivo de
país cresceu rapidamente e, depois da crise que ocorreu no final desse açúcar foi iniciado, a necessidade de mão de obra tornou-se grande e as
século, continuou crescendo até 1610-1619. Posteriormente, entrou em únicas soluções eram fornecer facilidades de assentamento – a doação
uma fase de estagnação, que ocorreu mais cedo e com mais força no sul de terras para a criação de engenhos, por exemplo – ou a compra de
do que no centro e no norte. Em 1640, possuía 1,9 milhão de habitantes escravos, uma prática iniciada por Duarte Coelho em troca das merca-
e 2 milhões em 1700, voltando a crescer novamente na primeira metade dorias europeias que este trazia para vender no Brasil. No entanto, os
do século XVIII até atingir 2,6 milhões em 1760. Mesmo antes de 1500, índios representavam um tipo de mão de obra pouco produtiva e sua
um número significativo de portugueses deixou seu país à medida que escravidão agravou a situação, levando a rebeliões em 1545 e no ano
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seguinte. A reorganização dos índios em aldeias, que foi confiada aos – que atingiram, respectivamente, uma população de 40.000 e 20.000
jesuítas, favoreceu a expansão das infecções – como em 1562, por exem- pessoas em 1750 – e especialmente Minas Gerais. O boom da minera-
plo. Por isso, desde 1560 recorreu-se à importação de negros africanos ção fez com que Portugal perdesse uma quinta parte de sua população
em grande escala: em 1577, eles já eram a maioria em alguns engenhos jovem do sexo masculino, levando a Coroa a tentar controlar o fluxo
de açúcar e, em 1580, perfaziam um terço dos escravos de Pernambuco. com uma legislação restritiva, a qual visava a aumentar a população e a
A ocupação até então se manteve nas áreas costeiras, os núcleos urbanos oferta de mão de obra em Portugal. Estas tentativas não lograram êxito.
eram pequenos e pobres, com pouca população branca. As tentativas De qualquer maneira, a imigração portuguesa foi cada vez menos sufi-
levadas a cabo pela Coroa ao final do século XVI para fixar os índios ciente e a exploração de ouro em Minas Gerais precisou cada vez mais
perto das populações colonizadoras fracassaram. Por outro lado, não era de mão de obra africana em regime de escravidão. A partir de 1699 o
fácil para os brancos o matrimônio com as europeias devido à escassez comércio negreiro foi liberado e até 1750 o crescimento da população
destas, razão pela qual predominaram as relações pessoais consideradas escrava atingiu seu auge, com cerca de 1,7 milhões de pessoas.
irregulares. Houve a falta de um modelo familiar ao estilo castelhano Tal como no caso espanhol, as migrações portuguesas oscila-
que favorecesse a estabilização. ram em função das flutuações econômicas e de circunstâncias estrutu-
Quantos portugueses emigraram no século XVI? Considera- rais regionais e mesmo locais, as quais se combinaram às mudanças, à
se que houve entre duas mil a cinco mil saídas anuais em direção ao dinâmica geral e aos fatores de atração – os descobrimentos, a abertu-
leste, Marrocos, Brasil e império hispânico; especialmente para os dois ra do império castelhano depois da união entre Portugal e Espanha, o
últimos no final do século XVI e começo do XVII. A taxa de migra- ouro brasileiro. O fluxo para o Brasil reflete as diferenças regionais de
ção é estimada em 0,3% ao ano entre 1527 e 1640, semelhante à taxa crescimento e o contraste entre regimes demográficos e mecanismos de
de crescimento demográfico nesse período. Em 1620, o litoral já esta- reprodução social diferenciados dentro de Portugal. Aqueles que foram
va dominado e iniciou-se o avanço ao interior, trazendo como efeito a para as Índias na primeira metade do século XVI provinham de todas
diminuição da população costeira. Por outro lado, a emigração para a as regiões. No último terço do mesmo século, contudo, houve maior
América foi reduzida para 0,15% em 1640-1700 devido à diminuição afluxo da região noroeste da península ibérica. Em 1590, por exemplo,
da população portuguesa, que se deu em razão da guerra com a Espanha é possível verificar que 59% vinham do norte do Portugal continental,
(1640), e das menores perspectivas econômicas no Brasil. No século do Minho acima de tudo, e menos de dez por cento do sul do rio Tejo.
XVII, os imigrantes se concentravam na zona açucareira do nordeste Desses, constatou-se que 70% eram cristãos velhos. O porto era Lisboa,
(Pernambuco e Bahia). Desde fins do século XVI e até o XVIII, certa que atuava, tal qual Cádiz no caso espanhol, como elo de ligação entre
urbanização foi produzida, resultante da organização administrativa do Portugal e as colônias.
espaço – a Bahia, por exemplo, passou de 14.000 habitantes em 1585 O Brasil mineiro atraiu homens jovens que possuíam a inten-
para 25.000 em 1723. A contribuição portuguesa era insuficiente para ção de voltar ricos depois de vários anos. Isso respondia a uma estratégia
as necessidades laborais brasileiras, de modo que aproximadamente qui- familiar de emprego de trabalho, de mobilidade social e de reprodução
nhentos mil escravos africanos foram importados no século XVII. familiar, na qual o filho emigrante havia sido formado para cruzar o
Uma nova leva da emigração portuguesa resultou da desco- Atlântico e levantar recursos. Deve-se levar em conta que o sistema de
berta de ouro e diamantes no Brasil. Nas primeiras décadas do século herança, essencialmente igualitário, era o mesmo desde a Idade Média,
XVIII, estima-se que viajaram, anualmente, de oito a dez mil pessoas, mas praticava-se em benefício de apenas um filho. Esta era a chave do
tendo a taxa migratória subido para 0,4% na primeira metade do século, sistema familiar do noroeste português para garantir as condições ma-
a mesma taxa de crescimento da população em Portugal. Nessa nova teriais de reprodução intergeracional das famílias camponesas, de modo
fase, os emigrantes se dirigiram para o Rio de Janeiro e para São Paulo que eram os segundos filhos que possuíam a necessidade de emigrar.
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Fora da Península Ibérica, o dinamismo de determinadas regi- maior parte antes de 1660 – incluindo os 21.000 dos anos trinta. Na pri-
ões europeias motivou movimentos migratórios derivados do impacto meira metade do século XVIII, o fluxo é de cerca de 50.000 à América
colonial. Na costa noroeste – especialmente nos Países Baixos – a ativi- e de 20.000 às Índias Ocidentais. Dos escoceses, 7.000 foram entre em
dade comercial e industrial gerou, a partir do início do século XVII, um 1650 e 1700 e 33.000 entre 1700 e 1760. A partir de 1630 também
polo de atração de imigrantes da Alemanha, da Bélgica, do interior dos emigraram irlandeses: em 1678 havia 3.466 deles nas ilhas de Nevis,
Países Baixos e da França. O sistema se desenvolveu ao mesmo tempo Montserrat e São Cristóvão, em Barbados. Deve-se acrescentar entre
em que as estruturas do império colonial holandês adquiriam firmeza, 70 e 100 mil alemães na América britânica e cerca de 27.000 pessoas
e a criação da Companhia das Índias Orientais (VOC) em 1602 e das na América francesa, um terço no Canadá e o restante em Louisiana.
Índias Ocidentais (WIC) em 1621 precisou de muitas pessoas a seu A importação de escravos africanos constituiu uma parte essencial da
serviço. Milhares de marinheiros estrangeiros se alistaram nos navios ocupação a partir de 1625/1650, tanto no continente quanto no Caribe.
mercantes ou nos navios de guerra que construíram o império comercial No total, antes de 1800, a Europa mandou à América apro-
holandês. Cerca de um milhão de pessoas passaram pelo sul da África ximadamente um milhão de espanhóis e meio milhão de portugueses;
em direção ao oceano Índico nos séculos XVII e XVIII. Uma parte a migração britânica ao Caribe pode haver atingindo o número de
significativa destas eram funcionários holandeses da VOC: no século 250.000 pessoas entre 1.630 e 1.780 e, se incluirmos os franceses e
XVII, 317.800 homens, dos quais retornaram 102.300 (32%); no século holandeses, o número de pessoas que chegou à América pode atingir
XVIII, foram 655.200 homens, retornando 220.200 (34%), devido à alta dois milhões. Mas estes números são muito mais baixos se comparados
mortalidade. A emigração para a América era diferente: estima-se que, aos milhões de escravos levados da África. Estes sofreram com uma
em dois séculos, a Holanda contribuiu com uma emigração líquida de elevada taxa de mortalidade e uma menor capacidade de reprodução,
cerca de dez mil pessoas – a WIC possuía no Brasil em 1639 cerca de devido à dificuldade de formar famílias e ao fato de que mais de três
dez mil funcionários, mas apenas quatro mil em 1642 – já que o retorno quartos deles eram homens.
era muito frequente. A emigração para a América não implicou em perda de popu-
O movimento das ilhas britânicas foi mais tardio. No século lação para a Europa, assim como não foi a riqueza enviada da América
XVI, foi insignificante, mas, entre 1580 e 1640, o crescimento demo- que causou o crescimento da população europeia no século XVI. A
gráfico permitiu suprir o pessoal necessário para as empresas marítimas razão deste foi o aumento da produção agrícola, assim como a expan-
inglesas. Os fatores econômicos e sociais se misturaram com outros em são da indústria e do comércio. Independentemente disso, o impacto
determinados momentos: aqueles que emigraram para a Nova Inglaterra das espécies americanas adaptadas na Europa, especialmente o milho
na década de 1630 – cerca de 21.000 em doze anos – o fizeram em fa- e, mais tarde, a batata, foram essenciais para os europeus que nunca
mília, sob motivos religiosos, embora muitos fossem artesãos urbanos e emigraram: esse foi, sem dúvida, o resultado material mais importante
jovens solteiros em busca de uma nova vida. Estima-se que no século do contato com a América.
XVII foram para a América cerca de 300.000 pessoas, que eram em Muito além dos números, os europeus aproveitaram o vazio
grande parte servants26– 23,3% eram mulheres –, em sua maioria ingle- demográfico criado pela mortalidade dos índios para desenvolver a
ses; no século XVIII foram também escoceses e irlandeses, sendo que agricultura europeia, a mineração e a pecuária extensiva. Eles também
a porcentagem de mulheres entre os servants caiu para 9,8%. No total, levaram a cultura material e doméstica de seus lugares de origem, em-
para as Índias Ocidentais iriam aproximadamente 190.000 pessoas, a bora seus assentamentos costumassem seguir as dinâmicas dos diferen-
tes grupos, de modo que não houve um modelo único ou geral. Desse
26 NT: Tais servos ou serviçais eram usados, na Inglaterra, majoritariamente no serviço modo, os espanhóis, por exemplo, diferentemente de outros colonizado-
doméstico. Na América, a tendência ao trabalho nas lavouras e demais afazeres fora da casa
aumentou consideravelmente. res, vinham de cidades e se estabeleceram em cidades, ou as criaram de
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acordo com suas necessidades administrativas, econômicas ou de comu- significativo deles, havendo mais tarde o café e algodão –, e aqueles que,
nicação, o que lhes permitiu um domínio territorial de maior alcance se uma vez “descobertos” e incorporados ao gosto dos consumidores eu-
comparado ao obtido pelos portugueses. ropeus, foram impulsionados nessas outras regiões para cobrir uma de-
Finalmente é necessário enfatizar que o Atlântico foi palco de manda crescente: o tabaco é sem dúvida o mais importante deles.
inúmeros retornos, motivados pelo sucesso ou pelo fracasso econômico. Assim, o contato gerou impactos diferentes de acordo com es-
Além disso, as informações que conhecemos sobre esta movimentação ses dois tipos de movimento, mas sua explicação não é simples, pois a
de pessoas provêm de documentos oficiais. Dessa maneira, não é pos- cronologia e os ritmos de circulação se sobrepõem em determinados
sível calcular a emigração real, pois toda a migração ilegal e clandestina momentos e acabam sendo consecutivos, em razão de que os consu-
fica de fora dos documentos oficiais. Por último, devemos salientar que midores queriam cada vez maiores quantidades a preços reduzidos,
os movimentos foram oscilantes e dispersos em seu comportamento, levando a mudanças das zonas produtoras com certa rapidez. A esse
de modo que não se pode falar de um modelo global, mas de muitos modelo correspondem os produtos agrícolas, mas, no caso dos metais, é
modelos regionais. necessário ajustá-lo, uma vez que as modificações nas áreas de produção
reagiram principalmente à localização das jazidas e seu esgotamento.
Além disso, não devemos esquecer que, dentre os bens que circulavam
A circulação de bens nas regiões ibéricas do Atlântico entre a América e a Europa, não se encontravam as especiarias, a que
os europeus estavam acostumados desde a Idade Média. As especiarias
É muito difícil diferenciar a circulação de pessoas da circulação asiáticas continuaram sendo muito importantes na circulação e acaba-
de bens, pois são as necessidades e os interesses dos seres humanos que ram por integrar a América em seu mercado consumidor, de modo que,
explicam a produção – ou a extração – de bens, sua difusão e sua movi- para pôr em contato consumidores e produtores, os circuitos ficaram
mentação. Podemos distinguir vários tipos de movimento de acordo com cada vez mais complexos e foram submetidos ao gosto dos primeiros.
a natureza dos produtos mobilizados – agrícolas, industriais –, mas, aqui, Obviamente, muito acima de qualquer outro produto, eram os metais,
nos importam mais as diferenças entre aqueles que geraram impacto principalmente o ouro, os bens que os europeus realmente procuravam
com pequenas quantidades e aqueles que, ao não se adaptarem no espa- fora de seu continente, sendo o elemento econômico que fez funcionar
ço consumidor, geraram uma intensa circulação. O primeiro movimento a mecânica comercial globalizada.
teve o efeito de transformar as áreas receptoras sem movimentar gran-
des números: o exemplo mais claro é o dos cereais (trigo, em especial) e
o das espécies animais (especialmente o gado) levados pelos espanhóis Os metais
à América e, sobretudo os que passaram da América para a Europa, es-
pecialmente o milho e, muito mais tarde, a batata, cuja implantação no A produção e o comércio de metais constituem o tema que
Velho Mundo modificou o sistema agrícola daquele continente. Nesses mais tem interessado os historiadores, pois era com tais produtos que se
casos, a transferência entre continentes foi feita em pouca quantidade, pagavam todos os demais bens e se facilitava a circulação. A produção
mas sua adaptação permitiu a resolução de problemas de alimentação da prata na Europa viveu um notável desenvolvimento desde a metade
em grandes áreas, formando parte dos sistemas econômicos atuais. do século XV, mas seu preço era elevado. Uma série de melhoras técni-
O segundo movimento, responsável por produzir uma verda- cas na sua extração reduzira os custos de produção. Isso somou-se a um
deira circulação, é o que nos interessa. Trata-se dos produtos levados boom mineiro na Europa central, permitindo que a prata abundasse. No
pelos europeus a outras regiões e que, uma vez adaptados, produziam entanto, foi o ouro que induziu os europeus a buscá-lo fora de seu con-
maiores quantidades a preços mais baixos – a cana-de-açúcar é o mais tinente. Os primeiros a fazê-lo foram os portugueses, que conquistaram
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Ceuta (1415) e outros núcleos situados no Marrocos, Madeira (1419) e Europa, que em troca dos metais enviava manufaturas por meio de um
Açores (1431). Apesar de não se haver encontrado o metal nessas ilhas, regime comercial pautado no monopolismo.
a tomada de Ceuta foi de grande importância, pois modificou o comér- No total, a produção americana de metal foi calculada por E.J.
cio mediterrâneo do ouro e permitiu a Portugal cunhar moedas a partir Hamilton (1934) em 263,9 toneladas de prata entre 1503 e 1550, su-
dele. Os portugueses encontraram ouro logo depois em Serra Leoa e, bindo para 7.175 toneladas entre 1551 e 1700; e, de ouro, foram outras
sobretudo, em São Jorge da Mina (Costa do Ouro): o montante en- 58,4 a 95,1 toneladas de ouro nos mesmos períodos. No entanto, menos
contrado no Rio do Ouro intensificou as ambições e induziu Portugal importante do que os números foram os efeitos econômicos da chega-
a solicitar ao Papa, em 1455, a exploração exclusiva desses territórios, o da massiva de metais à Europa, fosse por meios legais ou fraudulen-
que lhe foi concedido. Para atender ao negócio aurífero foi criada em tos. Independentemente de saber se a maior parte dos metais ficou na
1509 a Casa da Mina. Entre 1504 e 1507 chegaram à metrópole mais América e se a sua chegada à Espanha gerou a inflação dos preços – du-
de quatrocentos mil quilos desse metal, cifra reduzida a 371.578 quilos plicados entre 1500 e 1550 e quadruplicados no período compreendido
em 1543-45. Durante esse período, Portugal desviou a seu favor o ouro entre 1500 para 1600 –, o fato é que a abundância dos metais assegurou
do Magrebe e do Mediterrâneo, o que foi feito posteriormente também a circulação monetária em um período pouco dinâmico para a econo-
com as Índias Orientais. mia. Além disso, graças ao pagamento, feito à Coroa, da quinta parte
No entanto, a Espanha substitui Portugal na corrida pela ob- das negociações realizadas pela Casa de Contratação, os metais garan-
tenção do ouro e da prata. Os espanhóis procuraram o primeiro desde a tiram à monarquia espanhola uma fonte de dinheiro que lhe permitiu
sua chegada à América, encontrando-o em São Domingos, Porto Rico e sua expansão e a manutenção da guerra permanente na Europa, que sob
Cuba. Num primeiro ciclo, compreendido entre 1494 e 1525, tratava-se Felipe II gerou um forte endividamento. Do ponto de vista comercial,
de ouro de aluvião, mas logo foram encontrados os tesouros acumulados os comerciantes iam a Sevilha para vender seus bens e para fazer seus
pelos incas e pelos astecas. As cifras não são exatas e os cálculos variam negócios com a Espanha e a América em troca de metais, de modo que
segundo os historiadores, mas acredita-se que, de 1503 a 1510, foram uma grande parte destes se dirigiu à Europa para manter o comércio
levados à Espanha 4.950 quilos de ouro; 9.153 quilos entre 1511 e 1520; e expansão transoceânica. Outros efeitos indiretos também devem ser
e 4.899 quilos entre 1521 e 1530. ressaltados: a mineração prolongou a ação dos núcleos urbanos mineiros
Apesar disso, a produção da prata foi maior e mais significa- sobre o território americano, sendo necessário reorganizá-los para que
tiva, em razão do descobrimento de minas no Peru (Potosí) em 1545 pudessem se relacionar com as regiões agrícolas e os portos. Isso ocorreu
– as quais superaram qualquer previsão – e no México (Zacatecas, no México com Guanajuato e com Zacatecas, e no Peru com Potosí,
Guanajuato), em funcionamento entre 1546 e 1556. Essa produção que se ligava às regiões litorâneas, conectando-se com a Espanha via
crescente foi combinada com a mita – um sistema de trabalho que asse- Arequipa, Lima, Panamá ou Buenos Aires.
gurava o fornecimento constante de mão de obra – e a amálgama, uma No Brasil os portugueses não encontraram metais nessas pro-
melhoria técnica aplicada no México entre 1559 e 1562 e no Peru entre porções. Mesmo no século XVII, o ouro obtido das minas – mesmo
1570 e 1572. Essa técnica foi desenvolvida inicialmente apenas com o que cunhado – não desempenhou um papel decisivo nas variações do
mercúrio levado da Espanha (das minas de Almadén) até o descobri- estoque monetário do império. No entanto, quando o ouro das Gerais
mento das minas de Huancavélica, cuja produção, apesar de tudo, não foi descoberto – a princípio nos rios e posteriormente nos filões – sua
era suficiente – aproximadamente 215 toneladas anuais –, obrigando extração e exploração chegou a substituir o açúcar em valor econômico.
a América a importar 363 toneladas anuais de mercúrio da Espanha. Em 1699, chegaram a Lisboa 725 kg desse metal; em 1701 foram 1.785
Desse modo, produziu-se uma dupla circulação, a qual era bastante
desigual, sendo contrária aos interesses da América e benéfica para a
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kg; 9.000kg em 1714; 25.000kg no ano de 1720; 20.000 kg em 172527. das, quase que exclusivamente vindas das Filipinas. Ou seja, os metais
Embora de modo irregular, a extração de ouro aumentou até a metade americanos converteram-se no fio condutor da economia geral, servindo
desse século. De 1700 a 1750 foram recebidas em Portugal entre 490 e para pagar os outros produtos que circulavam no mundo conhecido.
510 toneladas, alcançando-se o máximo entre 1735 e 1750, sem contar
com o ouro que se perdia nas fraudes. Apesar desse irresolúvel problema,
a partir de 1695 os dificuldades monetárias da metrópole foram resol- O açúcar
vidas, pois a Coroa recebia um quinto dessa produção, além de outras
taxas, de modo que Lisboa, a capital do império, tornou-se uma das ci- Devido a sua importância econômica, há uma extensa biblio-
dades europeias mais ricas. Uma parte dos gastos era feita no Brasil, não grafia que explica com clareza que, devido à falta de especiarias, foi es-
nas minas, nas quais os investimentos eram realizados pelos “mineiros sencial para os europeus localizar na América terras em que pudessem
latifundiários”, mas para pagar com o ouro a maior parte das importa- cultivar com êxito a cana-de-açúcar, produto cuja demanda nos mer-
ções – a proibição de manufaturas na colônia era o que compensava o cados europeus, especialmente nos do noroeste, era cada vez mais im-
ouro. Por meio das importações estrangeiras, como acontecia com os portante. Antes de 1492 existia uma produção de açúcar nas zonas do
tesouros espanhóis, o ouro brasileiro chegava à Holanda, à França, ao Mediterrâneo, negociada, sobretudo, pelos portugueses, já que estes se
Mar do Norte e Báltico, inclusive à Espanha. haviam transformado nos distribuidores desse e de outros produtos des-
Em suma, M. Morineau (1985) calculou que, em toneladas, as tinados às elites europeias, especialmente daquelas pertencentes às cida-
quantidades que foram levadas de ouro e prata da América para a Europa des comerciais do noroeste. Desde 1415, Portugal possuía um comércio
foram, respectivamente, 150 e 7.500 no século XVI; 158 e 26.168 no sé- organizado com o norte da Itália e o noroeste europeu (Flandres), no
culo XVII; 1400 e 39.157 no XVIII. Mas esses metais fluíram também qual Lisboa era um núcleo essencial e o açúcar desempenhava um im-
para fora da Europa: a rota do Cabo, pelo sul da África, era um dos portante papel.
caminhos principais desse fluxo em direção ao oriente; os outros eram o O cultivo da cana foi fundamental para o Chipre, ilha que pro-
Mar Báltico, em direção à Rússia e à Ásia central; rumavam ao Levante, duzia cerca de 880 mil toneladas por ano em 1456. Nessa altura, os por-
pela via do Golfo Pérsico, e, pelo Mar Vermelho, em direção à Índia. As tugueses se limitavam a comercializar a cana, mas a descoberta das ilhas
exportações de ouro e prata a partir da Europa ocidental em direção ao atlânticas – Madeira e São Tomé – propiciou-lhes as terras onde cultivar
Báltico foram de 2.475 toneladas na primeira metade do século XVII o produto, de modo que, em meados do século XV, Madeira já pro-
e 2.800 na segunda, constituindo também um número significativo na duzida aproximadamente oitenta toneladas anuais, atingindo em torno
primeira metade do século XVIII. Ao Mediterrâneo oriental chegavam de 2.500 toneladas em 1500, enquanto o Chipre reduziu sua produção
cerca de 2.500 toneladas por meio de cada uma dessas rotas; da Holanda para 375 toneladas e entrou em uma crise definitiva. Posteriormente,
para a Ásia, 425, 775 e 2.200 toneladas, respectivamente, e da Inglaterra os espanhóis levaram a cana para as Ilhas Canárias. Tanto nessas ilhas
para a Ásia, 250, 1.050 e 2.450. O Japão possuía prata, mas esta também como naquelas dominadas pelos portugueses, a cana mudou a paisagem,
chegava da América à Ásia pela rota Acapulco-Manila. Entre 1550 e causou desmatamentos e seu cultivo exigiu crescentes aportes de mão
1560, a China recebeu 2.244 toneladas de prata do Japão, das Filipinas e de obra – fosse de colonos ou escravos –, mas seus modelos de explora-
dos portugueses de Macau, tendo recebido desses mesmos países 2.835 ção e de comercialização foram diferentes. Nas Ilhas Canárias, a cana
toneladas entre 1600 e 1640; 1.694 toneladas entre 1641 e 1685 – prin- definiu uma economia específica e modificou as estruturas sociais ao ter
cipalmente do Japão –, e até fins do século XVII apenas 178 tonela- como base a exploração direta – concentração de terras e águas – e uma
legislação rigorosa sobre a comercialização, cujo fim era garanti-la nas
27 Desde 1730, a prata e os diamantes se uniram ao ouro. melhores condições. Em troca, a monarquia concedeu isenções fiscais
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e franquias, favorecendo também a instalação de colonos. A comercia- em grande parte ao estabelecimento de um sistema de escoamento. Em
lização não sofreu muitas intervenções, sendo que nas Ilhas Canárias 1580, a Madeira produzia apenas 500 toneladas por ano, ao passo que
foi permitida a presença de comerciantes nacionais ou estrangeiros – São Tomé produzia 2.200 e o Brasil 2.300. Em 1612, este último produ-
flamencos e genoveses. Na Madeira, a legislação se centrava nas safras zia cerca de 9.900 toneladas anuais, tornando-se o principal fornecedor
e nos engenhos, talvez por causa da autonomia do município no século da Europa por meio dos 150 navios que a cada ano partiam de Portugal
XVI e da participação dos governantes. ao restante da Europa. O número de engenhos de açúcar abertos ao re-
No caso português, é importante notar que a expansão do cul- dor de lugares navegáveis – especialmente na Bahia de Todos os Santos
tivo de cana, o processamento de açúcar e seu transporte precisaram de – nos fornece uma ideia da crescente importância da produção: em 1570
mais capital do que o disponível e que esse dinheiro veio da Alemanha, havia cerca de 60; entre 1583 e 1585 esse número elevou-se para 121
Itália e dos Países Baixos. Essa intervenção foi facilitada porque Portugal (84% em Pernambuco e na Bahia); até 1610 eram 192 engenhos, alcan-
sofria, então, de uma insuficiência de cereais, particularmente grave na çando 350 entre 1612 e 1629. Nesse contexto, o açúcar brasileiro alterou
segunda metade do século XVI, o que obrigou o país a importá-los do o mercado atlântico e conseguiu dominá-lo até 1630, apesar de passar
Mediterrâneo e, quando este não pôde mais garantir seu fornecimento, por um período politicamente turbulento e muitos obstáculos.
teve que recorrer à região do Báltico. Em contrapartida, Portugal expor- Que condições permitiram atingir tal nível e domínio? Vitorino
tava sal para peixarias nórdicas, assim como as especiarias asiáticas e o Magalhães Godinho (1981) voltou-se para a semelhança entre a evolu-
açúcar. Os Países Baixos eram o epicentro deste comércio e Antuérpia ção da produção açucareira no Brasil e a conjuntura econômica e demo-
era o principal centro de redistribuição: basta dizer que, entre 1535 e gráfica na Europa, a qual passou por períodos positivos entre 1534-1545
1551, chegaram a esse porto 342 navios portugueses, carregados, sobre- e 1551-1575 e negativos entre 1551 e 1576-1581, que, ainda assim, não
tudo, de açúcar da Madeira e de São Tomé, embora o valor econômi- prejudicaram a demanda pelo açúcar. Tais circunstâncias foram aprovei-
co das especiarias fosse maior. Portugal possuía outra rede com a Liga tadas de várias maneiras:
Hanseática28 e negociava também com a Inglaterra, mas, de modo geral, A) Pelos portugueses: o cultivo de açúcar no Brasil foi funda-
o tráfego direto em nessas áreas era escasso. Na segunda metade do sé- mental para a colonização do território e para a instalação do Governo
culo XVI, Antuérpia foi abalada por problemas religiosos e políticos, o Geral (1550-1580). Fixou-se um sistema comercial que não era livre,
que dirigiu o peso econômico que ela desfrutava para Amsterdã. Desde pois havia restrições quanto ao transporte, mas não era monopólio da
então, a rota de Portugal em direção ao norte e ao Báltico beneficiou Coroa portuguesa, nem mercantilista em sua filosofia.
cada vez mais os holandeses, franceses e alemães, entre outros. Com isso, B) Pelos setores mercantis: a partir de meados do século XVI,
a dependência dos portugueses frente aos poderosos capitalistas do nor- combinou-se o capital para o cultivo da cana em áreas do litoral brasi-
te interferiu no comércio geral português, especialmente no do açúcar, leiro à participação de navios estrangeiros para escoar a crescente pro-
cuja demanda cresceu ao longo do século XVI conforme melhorava a dução. Era uma questão imperial caracterizada pela mobilidade dos
situação econômica do noroeste europeu e as classes urbanas poderosas mercadores e de seu capital em um sistema cooperativo e de correspon-
passavam a demandar o produto com maior intensidade. dência. Um grande número de comerciantes do noroeste da Europa, ra-
Foi nesse contexto que o cultivo da cana foi levado ao Brasil, dicados em Portugal, e de portugueses radicados no noroeste da Europa,
embora a produção para os mercados europeus começasse apenas por superaram as barreiras institucionais e políticas impostas ao comércio,
volta de 1550. Em 1570, o domínio do açúcar brasileiro era claro, devido o que permitiu a este perdurar até 1630. De 1550 a 1630 as cidades do
norte - Amsterdã especialmente, mas também Hamburgo e Antuérpia
28 NT: Associação de cerca de 100 cidades mercantis alemãs ou sob influência germânica, tendo - viram suas fortunas aumentarem graças à redistribuição do açúcar bra-
Lubeck como centro, que tinha forte influência ou mesmo o monopólio comercial do Norte da
Europa e Báltico desde o período medieval. sileiro, da qual controlavam 75%, já que os mercados encontravam-se
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naquela região. Em Portugal, os níveis de comercialização em Lisboa, recuperar esses espaços produtores, mas o açúcar estava taxado de modo
Porto e Viana também se beneficiaram, embora fossem muito sensíveis a assegurar os lucros da Coroa e possuía um sistema fiscal forte.
às mudanças políticas e militares. A comunidade de cristãos novos de Em 1700, o Brasil ainda produzia 20.000 toneladas de açúcar
Amsterdã desempenhou um papel importante, mas os circuitos mer- anualmente, mas pouco resistia à concorrência do Caribe britânico –
cantis do açúcar dependiam menos de uma filiação racial ou religiosa que produzia aproximadamente 22.000 toneladas –, do francês – cuja
do que dos circuitos de comércio. A empresa familiar era a unidade bá- produção girava em torno de 10.000 toneladas – e das outras zonas ca-
sica desse comércio e as famílias comerciantes mais prósperas possuíam ribenhas – que produziam aproximadamente 5.000 toneladas. O Brasil
membros em vários centros, cooperando umas com as outras em redes ficou para trás na primeira metade do século XVIII: em 1760, produziu
de enorme força. 28.000 toneladas, frente às 71.000, 81.000 e 20.000 que produziam, res-
As complicações para a produção açucareira no Brasil apare- pectivamente, os territórios acima citados. Nessa época, o açúcar estava
ceram em vários momentos; mesmo assim, o país manteve seu domínio incorporado à dieta dos setores sociais europeus mais amplos, mas já
durante um longo período. O primeiro problema se deu com a ruptura havia produtos mais importantes no comércio.
entre os Países Baixos e a Espanha – à qual Portugal estava vinculado
desde 1580 – e com a transferência do poder econômico de Antuérpia a
Amsterdã. Os comerciantes portugueses se mudaram para essa próspera Os demais produtos
cidade, mas não lograram evitar o aumento do contrabando, resultante
do embargo imposto pela Espanha à Holanda. Com isso, um comér- Antes de meados do século XVIII, os demais produtos comer-
cio bem estabelecido foi declarado ilegal e vários grupos participaram cializados não alcançaram a magnitude e importância geral do açúcar,
de atividades de pirataria. Com o tempo e investimentos em barcos, embora alguns – como os corantes – alcançassem seu auge, atingissem
a Holanda acabou por garantir o domínio sobre boa parte do espaço um impacto regional significativo – como a criação de gado e a madeira
que era antes de Portugal. Em segundo lugar, a saturação do mercado – e dessem indícios claros do papel que desempenhariam após 1750 –
europeu em 1600, que coincidiu com o estancamento da produção de caso de outros artigos como o tabaco e o cacau.
prata americana: de 1612 a 1629, ocorreu uma drástica diminuição dos Os produtos tintóreos eram necessários para a indústria têx-
preços. O mercado se saturou, mas não em decorrência de maior qtdd de til europeia e, diferentemente das especiarias, eram encontrados na
engenhos, sim do aumento da produtividade. O sistema produtivo bra- América. Os espanhóis obtiveram Pau de Campeche em São Domingo
sileiro se baseava na produção da cana por parte de lavradores brancos e em Cuba, tendo-o impedido mediante proibições que fosse impor-
e portugueses que possuíam capital suficiente para assegurar as terras, tado de outros lugares para a Espanha. Fraudes, contrabando e o de-
mas não para arcar com os custos de adaptação destas, apenas pelo roçar sabastecimento levaram seu comércio a ser declarado livre em 1548.
a terra para obter os alimentos. Para adaptar à terra à cana era necessário Dessa forma, a produção se centrou na península de Yucatán. Uma
o capital de senhores de engenho, que dispunham do necessário para variação dos chamados paus-de-tinta, o pau-brasil, foi uma espécie
comprar escravos e para mantê-los – o maior dos gastos. muito importante no Brasil, onde foi explorada desde o começo: nas
No entanto, o principal fator que transformou a produção açu- viagens de reconhecimento posteriores a 1501, constatou-se o interes-
careira foi o nascimento da WIC holandesa em 1621, pois sua intromis- se pela madeira, negociada com a população indígena em troca de pro-
são no comércio de açúcar a instigou a tomar a Bahia entre 1624 e 1625. dutos que ela valorizava, como facas e machados. A primeira expedi-
Apesar de abandoná-la depois de uma derrota militar, a WIC holandesa ção feita com o fim de explorar essa madeira realizou-se em 1504 por
obteve êxito em ocupar as regiões produtoras do noroeste do Brasil em um barco francês, mas nessa mesma época os portugueses instalaram
1630 e em controlar a comercialização do produto. Portugal conseguiu sua primeira feitoria e, ao longo do século XVI, estabeleceram uma
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corrente de postos comerciais, tornando o pau-brasil o produto mais O pau-brasil não era a única tintura que interessava à indústria
explorado antes do açúcar. A Coroa possuía seu monopólio, mas o rei têxtil. No início do século XVII, nos Açores, a cana-de-açúcar foi subs-
Dom Manuel o arrendou a um consórcio de Fernando de Loronha no tituída pela planta pastel. Na segunda metade do século XVII, o índigo
período compreendido entre 1502 e 1505. Como resultado, calcula- acabou com o pastel. Os novos produtos, como o índigo da Guatemala
-se que aproximadamente dez barcos saíram do Brasil carregados de ou a cochonilha de Oaxaca, cujo cultivo e extração se valiam da mão-
pau-brasil e escravos. Em 1505, realizou-se a renovação desse arren- -de-obra local já existente, abriram espaços econômicos. A produção
damento por mais dez anos a outro consórcio liderado por Loronha, autônoma do índigo e da cochonilha permitiu que muitas comunidades
durante os quais fica autorizada a comercialização de 20.000 quintais29 indígenas conseguissem aliviar o peso da dominação colonial por meio
anuais de pau-brasil em troca de uma renda de quatro mil cruzados ao da reorganização da produção. Isso lhes permitiu conservar sua língua,
ano, além da proibição de que o brasil30 fosse importado também da sua cultura e seus costumes, já que, diversamente de outros produtos, foi
Ásia. Devido ao lucro obtido, a Coroa passou a deter a administração possível manter uma relação diferente graças à mão-de-obra escassa e
direta desse produto a partir de 1515, enviando em 1516 uma expe- de uma produção de alto valor. Os indígenas mesoamericanos e andinos
dição para eliminar o contrabando praticado pelos franceses, os quais revelaram uma capacidade de adaptação ao comércio ibérico, precisa-
possuíam grande interesse nas tinturas para a indústria têxtil de Ruão mente graças à sua capacidade artesanal têxtil, em que aplicavam suas
e de outros núcleos. As tentativas diplomáticas que procuraram acabar tinturas naturais.
com essa transgressão do monopólio foram infrutíferas, de modo que Quanto a outros produtos de consumo humano, o tabaco era
Portugal reagiu de maneira mais eficaz para evitar que os franceses conhecido desde a chegada dos espanhóis. Seu cultivo para comer-
abrissem feitorias no Brasil, o que foi feito em 1534 com o estabele- cialização se iniciou no fim do século XVI em diversas áreas entre o
cimento das capitanias hereditárias. Ao mesmo tempo os colonos se Caribe e o rio Orinoco, com o objetivo de assentar os colonos e de
dedicaram ao açúcar, fazendo com que a partir de 1540 o pau-brasil obter ingressos fiscais de um crescente consumo. Entre 1605 e 1606,
passasse a um segundo plano. O fim desse produto foi também o fim São Domingo já contava com 95 estabelecimentos tabaqueiros apenas
das feitorias. O pau-brasil era enviado a Lisboa e depois a Amsterdã, na jurisdição de Santiago de los Caballeros. Em 1606, visando a re-
de onde era transportado para toda a Europa como pó para tinturas. duzir o contrabando praticado por ingleses, holandeses e franceses, a
Coroa espanhola proibiu o seu cultivo em outras ilhas, mas, na época,
29 NT: Antiga unidade de peso espanhola. Cada quintal equivalia aproximadamente a 100kg. a província continental de Caracas já havia alcançado exportações de
30 NT: Aqui cabe um esclarecimento sobre o nome brasil associado a um corante de cor avermelhada.
Sigamos as palavras da especialista Malou Von Muralt: “um grande número de madeiras tintoriais, tabaco de aproximadamente 130.000 libras. Tais cifras reduziram-se
espalhadas pelas Antilhas, México e na região antigamente denominada Índias Ocidentais, fornecia drasticamente a partir dessa proibição, mas em 1620 as principais áre-
o que os espanhóis chamavam de palo de tinte (pau-de-tinta) ou, de forma mais genérica, de brasil, o as de cultivo já eram a Ilha de Trinidade, Cumana, Guiana e Barinas,
que contribuiu, e muito, para a confusão [para identificar a quais espécies de fato o nome deveria se referir].
De fato, todas essas árvores ou arbustos fazem parte da família das leguminosas: trata-se de espécies estando também consolidadas em Cuba, La Hispaniola, Porto Rico e
pertencentes aos gêneros Caesalpinia, Peltophorume Haematoxylon, que fornecem madeiras tintórias Ilha de Margarita. A monarquia hispânica estabeleceu seu primeiro
de qualidade variável. Uma infinidade de nomes comuns e comerciais as designava: pau-brasil, pau-
pernambuco, brasileto, brasilete das Antilhas, brasilete das Bahamas, brasilete da Jamaica, pau da
monopólio com o tabaco em 1620, criando nesse mesmo ano a pri-
Nicarágua, pau de Santa Marta, pau da Califórnia, Bloodwood, Redwood, Peachwood etc., sem que meira fábrica em Sevilha, política que foi continuada no século XVIII
seja sempre possível estabelecer com exatidão a que espécies esses nomes se referem. [...]Falar do com os Bourbons. Durante duas décadas o tabaco – depois do vinho e
uso do pau-brasil na tintura leva-nos imediatamente a distinguir dois grandes períodos históricos.
O primeiro estende-se da Antiguidade ao século XV e refere-se exclusivamente ao brasil de origem
junto ao açúcar – foi a exportação mais importante das áreas espanho-
asiática, Caesalpinia sappan L. O segundo período começa em 1492, com a descoberta da América, las para a Inglaterra e o aumento de seu consumo foi peça chave na
para terminar no século XIX com a descoberta das anilinas sintéticas. À madeira de sapão vem, arrecadação fiscal no fim do século XVII, apesar da queda de seu preço,
então, somar-se toda sorte de brasis e de brasiletes provenientes do Novo Mundo, principalmente a
Caesalpinia echinata Lam. do Brasil”. (Revista Usp, 2006, 172-173). motivada pela concorrência com outras zonas.
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No Brasil, a importância da produção do açúcar era seguida modificando o sistema natural. A criação destes se deu em territórios
pela do tabaco, já que interessava muito a Portugal e à África. O melhor secundários e pouco habitados, onde podiam ser criados em liberdade e
produto era enviado exclusivamente a Lisboa, mas era permitido que auxiliar a cobrir o déficit de energia humana – o que favoreceu a colo-
o tabaco de pior qualidade fosse trocado por escravos na África, onde nização no século XVI. Além disso, desde a segunda metade do século
chegou a ser muito consumido. Entre 1680 e 1710, aproximadamente XVI, o uso do cavalo e dos bovinos permitiu aos indígenas nômades
quatrocentos barcos saíram da Bahia – onde se concentravam 90% da frear o avanço ibérico nas áreas periféricas. Por meio dos assentamentos
produção – em direção à África, sendo que os navios negreiros de La forçados, as fazendas agrícolas e as estâncias prosperaram –e muitas fo-
Rochelle faziam escala em Lisboa para adquirir o tabaco, pois na África ram cercadas-, ao mesmo tempo em que aparecia uma verdadeira casta
esse produto passara a ser mais valorizado do que o ouro. Entre 1710 e de senhores do gado. Sob o domínio de Felipe II, a Espanha atingiu o
1720, a produção brasileira alcançou 135.000 rolos de tabaco, que ca- auge da produção de couros procedentes das Antilhas, Nova Espanha,
íram para 76.200 entre 1741 e 1750, quando o produto brasileiro já Honduras e Terra Firme, comércio que entrou em queda a partir do fim
passava apenas por Lisboa. Na época, era o cultivo mais importante na do século XVI. O maior desenvolvimento ocorreu no México, onde se
América britânica, sendo essencial em Virgínia, mesmo que esta produ- passou de quinze mil bovinos em 1532 a um milhão em 1620. A criação
zisse um tabaco muito diferente daquele do sul. Seu cultivo assegurou o mexicana se estendeu ao sul, especialmente ao Prata e ao Brasil. Nesse
êxito do assentamento inglês, iniciado desde 1620 a leste do Caribe. A último, a pecuária chegou a partir de Cabo Verde entre 1533 e 1534 e
Virgínia exportou 28 milhões de libras em 1700 e 80 milhões em 1740. foi estimulada pelos portugueses. Os bois e os cavalos eram necessários
Depois de ser elaborado na Inglaterra, reexportava-se entre 85% e 90% para a tração nos engenhos de açúcar, para produzir carne e sebo, mas
do tabaco, razão pela qual a circulação desse produto era mundial. foram também utilizados para evitar a perda de terras cultiváveis com
O cacau era cultivado no México antes da chegada dos espa- cana, sendo levados para as zonas da costa onde não havia engenhos,
nhóis, mas depois da conquista ele se tornou insuficiente e foi necessário o que permitiu a conquista de novas terras em regiões indígenas (caso
importá-lo da Venezuela e do Equador, onde sua produção aumentou da Paraíba entre 1574 e 1587 e do Rio Grande do Norte em 1590). O
significativamente. O consumo crescente – em meados do século XVII, Brasil produziu peles nas capitanias do sul e também exportou gado
o cacau já era importante na Espanha, Inglaterra e Holanda – e a neces- vivo para Portugal e África. A produção de peles foi muito importante
sidade de menos mão de obra em relação à cana, levaram a que a superfí- nas regiões do Prata e sua exportação foi crescente, mas ocorreu mais no
cie dedicada ao plantio de cacau atingisse certa importância. A América século XVIII do que no período aqui abordado.
central foi a principal produtora até o momento em que a Venezuela A madeira, apesar de abundante nos grandes territórios ame-
começou a fazer-lhe concorrência. Em 1622, já era possível visualizar a ricanos e deficiente no império português, não produziu uma circula-
importância desta, que alcançou seu auge entre 1696 e 1700. Em 1720, ção importante. Em 1605, foi imposta a necessidade de licença para
a Venezuela possuía mais de 4,5 milhões de árvores e, entre 1700 e 1756, o corte de árvores, a qual não era respeitada. O transporte do produto
saíram desse território 2.235.278 libras de cacau. Dessas, 27% foram era monopólio real, mas foi cedido a particulares mediante contrato. A
enviadas à Espanha 42,2% ao México e aproximadamente 30,2% foram Coroa recuperou o controle da atividade de 1612 a 1625, ano em que a
contrabandeadas, via Curaçao, para Amsterdã. Para este último destino, Companhia de Jesus recebeu o monopólio do corte no Brasil e iniciou
afluíram, no mesmo período e pela mesma via, mais de meio milhão as atividades para explorá-lo. Durante o século XVII, o seu comércio foi
de arrobas de origem indeterminada, além de 127.310 vindas de Porto limitado, salvo no caso de madeiras de alto valor.
Rico e 56.437 das Barinas. O êxito comercial das exportações de bens importantes para a
Quanto à pecuária, os espanhóis levaram para a América os Europa produziu na América do Sul e no Caribe uma profunda trans-
cavalos, as mulas, os burros, as vacas, os bois, as ovelhas e os porcos, formação, que logo atingiu a América britânica. Para os grandes produ-
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tores, desenvolveu-se uma rede comercialização que, no caso espanhol, teve os mesmos efeitos comerciais que a passagem pelo sul da África,
se amparou em um regime de monopólio; no caso português, de con- aberta antes pelos portugueses. A incorporação das Filipinas foi mais
trole sem monopólio, e nos países emergentes – como a Holanda – por relevante para efeitos mercantis, especialmente desde o estabelecimento
meio de companhias protegidas. Além disso, deve-se levar em conta do Galeão de Manila, ou seja, o trânsito de um barco anual que desde
que à sombra desses produtos se favoreceu a distribuição, no Atlântico, 1600 atravessou o Pacífico unindo dois espaços econômicos diferentes.
de outros bens menores – têxteis, ferro, especiarias –; que o êxito das Mas a conexão da América com a Ásia por meio desse oceano era di-
plantações na América ativou o consumo local de peixe e de outros pro- fícil, pois este não era muito conhecido e também porque ainda não se
dutos; que as colônias americanas compraram barcos e que o mercado havia penetrado nos continentes. A seda da China era um dos produtos
americano tornou-se cada vez mais importante. E sobretudo: a América fundamentais da circulação entre Acapulco e Manila e teve seu apogeu
se integrou a uma rede mundial à qual dedicamos as páginas seguintes entre 1604 e 1620. Grande parte dos produtos chegava de Acapulco à
em razão de sua importância na circulação globalizada de mercadorias. costa leste da América, partindo daí para a Europa, mas esse comércio
decaiu com o declive da prata americana e da concorrência holandesa,
passando a seda a ser consumida somente na América espanhola.
As rotas e a integração de territórios: África e Ásia As rotas desse lado do Pacífico tiveram uma vida muito inten-
sa e mutante, mas marcada pela crescente importância dos holandeses
As análises econômicas feitas sobre o impacto americano na e ingleses. Os portugueses foram obrigados a admitir os ingleses em
economia focaram sua atenção no Atlântico, devido à importância da Macau em 1584 e, posteriormente, outros estrangeiros, que adotaram
incorporação da América em um sistema pré-existente, modificando de esse território como mercado chave de chá, porcelana, seda e ouro. Os
forma drástica sua estrutura e funcionamento. Mas isso também se deu holandeses se estabeleceram no Japão em 1609 e, em 1622, tomaram as
porque a África era vista apenas como um lugar de passagem para a Ásia ilhas chinesas. Para recuperá-las, em 1624 os chineses lhes concederam
e como provedora de escravos. A América produzia açúcar, algodão e a liberdade de comércio em Formosa, a partir de onde os holandeses
outros bens que eram exportados para a Europa ocidental para serem interceptaram a circulação entre China e Filipinas, além do comércio da
consumidos ou convertidos em manufaturas, que, por sua vez, eram en- seda em direção à Europa. Os espanhóis conseguiram reestabelecer as
viadas em parte para a África, como pagamento pelos escravos que eram comunicações com Macau e, em 1629, abriram um porto em Formosa,
importados pela América para cobrir seu déficit de mão de obra. Essa o qual foi ocupado pela Holanda em 1642. Depois de ocupar Macau, os
configuração se estabeleceu sobre a base das interconexões anteriores holandeses se apossaram do comércio com a China até 1662. A troca
a 1492. A partir de então, porém, surgiu uma complexa rede de inter- de ouro era muito favorável na China: franceses, ingleses e holandeses
dependências que foi consequência das viagens dos descobridores dos adquiriam prata na América do Sul por meio de contrabando e a troca-
séculos XV e XVI. vam pelo outro metal em Cantão. Desde 1702, todas essas nações foram
Atualmente, destaca-se que as conexões eram muito mais am- autorizadas a ficar em Cantão em troca de altas taxas, pois a China já
plas, pelo menos no século XVIII, quando, por exemplo, os têxteis que controlava esse comércio.
eram trocados por escravos na costa oeste da África eram manufatura- Para o intercâmbio global, a rota oriental era muito mais ativa
dos na Índia e as manufaturas europeias podiam ser trocadas por ves- – não era à toa que a Ásia e a África mantinham uma conexão anti-
timentas indígenas, mais apropriadas para os gostos e o clima africano. ga com a Europa. Desde 1360 e até 1470, a costa africana foi objeto
Ao mesmo tempo, o papel da América foi sendo reajustado à medida de prospecção por parte da Coroa portuguesa: Ceuta foi conquistada
que foram estudados os papeis da África e da Ásia. A conexão mundial primeiro e logo aconteceu o mesmo com as ilhas de Madeira e Açores.
aberta com a viagem de Magalhães e Elcano pelo sul da América não Em 1433, o Cabo do Bojador foi dobrado; Senegal foi abordado em
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1455, Serra Leoa em 1446 e a ilha de Cabo Verde em 1456. Os avanços No século XVI, os portugueses tiveram um êxito relativo ao
continuaram em direção ao sul e, em 1471, cruzou-se o Equador. Mas a excluir os estrangeiros, mas era impossível manter o poder no mar, pois
conquista mais importante dos portugueses foi a abertura da rota meri- os africanos não eram seus súditos e mantinham relações com comer-
dional, que integrou a África nos circuitos mundiais. Portugal dominou ciantes estrangeiros. De uma maneira crescente, cada Estado europeu
a rota africana e a aproveitou de maneira intensa no século XV. A partir acreditava que podia impor sua jurisdição e exercer um monopólio para
da África, os portugueses enviavam à Europa numerosos escravos, colo- evitar riscos a seus comerciantes, obter lucros e assegurar um comér-
nizaram Madeira, Açores e Cabo Verde para explorar madeiras, mel, tri- cio contínuo. Foi o que fez a Holanda, cujos ataques ao monopólio
go, vacas etc. e aproveitaram a situação estratégica dos Açores nas rotas português se fortaleceram em finais do século XVI com o pretexto de
oceânicas. Ao produzir tais feitos quase em paralelo ao descobrimento que, legalmente, Portugal havia sido anexado pela Espanha em 1580.
da América, abria-se a possibilidade de uma conexão planetária, a qual Baseando-se também na recém-criada ideia de liberdade dos mares, as
não demoraria em produzir-se, embora não fosse economicamente rá- companhias holandesas – depois de atacar o Brasil em 1624 – se esta-
pida nem intensa. beleceram em Angola em 1641 e em São Tomé em 1647. Em torno
A Coroa portuguesa pretendia controlar tudo, mas essa tarefa de 1660, holandeses e ingleses dominavam a Costa do Ouro. Como os
era praticamente impossível. Na África, produzia-se uma concorrência portugueses, os holandeses tentaram empregar sua capacidade militar
pelos preços e não era possível evitar a ação dos comerciantes sem licença. para limitar a concorrência e incrementar seus lucros, mas não puderam
Além disso, a concessão papal de 1455 foi questionada por Castela, que fazê-lo diante da concorrência dos ingleses, suecos, dinamarqueses etc.
conquistou as ilhas Canárias. Os embaixadores portugueses lutavam pelo Ou seja: a África era objeto de interesse de todos.
monopólio para assegurar o lucro que procuravam os comerciantes, mas Até 1650, a África comprava ferro e tecidos. Os portugueses
para sustentá-lo a Coroa tinha que assumir a segurança, o que era caro, exportavam para esse continente peças de ferro e compravam ferro em
e o Estado era incapaz de supervisionar tudo, de sorte que a participação Serra Leoa para vender na Senegâmbia, enquanto os holandeses ven-
privada e de oficiais do governo colaborou na diluição do monopólio. A diam ferro escandinavo e alemão. Os têxteis africanos não eram piores
navegação no Atlântico sul foi feita por meio de pequenos capitais, tendo que os europeus, mas eram diferentes, e os portugueses comercializavam
a Coroa portuguesa participado com dinheiro e proteção para o domínio muitos tecidos do Kongo para exportar ao leste de Angola. A zona que
da atividade, processo de que participaram ricos comerciantes e oficiais mais importava era a Costa do Ouro, que em meados do século XVII
do governo. A Coroa não possuía aspirações territoriais, nem pretendia comprava vinte mil metros anuais de tecidos da Europa e da Ásia. Por
conquistar territórios, mas espaços econômicos, de modo que somente sua vez, a África exportava bens semi-manufaturados para a Europa,
se estabeleceram feitorias para regular o comércio. A incursão militar e inclusive têxteis que eram comprados devido a seu exotismo.
a conquista de Angola foram o resultado de uma disputa comercial que A situação da África modificou-se no fim do século XVII em
levou a uma guerra em 1579, constituindo uma exceção. benefício dos ingleses. Estes fundaram uma companhia na África oci-
Por outro lado, a partir do fim do século XV, os portugueses tive- dental (1618) e estabeleceram postos na Senegâmbia (1631), além de
ram que negociar e subornar os poderes locais e, ao longo do século XVI, criar, entre 1660-1670, a Royal Adventurers into Africa, com monopólio
foram obrigados a negociar. A África estava fragmentada, mas os estados do comércio desde Senegal até Boa Esperança. Entre 1672 e 1708/13,
africanos desempenharam seu papel no comércio, limitando as atuações houve também a African Co. of England, que controlava a circulação
europeias, beneficiando-se da concorrência entre os comerciantes africa- triangular no Atlântico. No entanto, devido à falta de experiência e de
nos e colocando obstáculos legais e técnicos entre os vendedores europeus meios, as perdas de homens e mercadorias foram enormes. Portugal ce-
e os compradores africanos. Grupos locais estavam por trás dessas inova- deu Tânger à Inglaterra em 1662 e os ingleses tornaram-se fortes no
ções, derivadas da concorrência entre os estados europeus.
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Marrocos. Graças ao Tratado de Utrecht31, a Inglaterra controlou Serra mero de 109 entre 1731 e 1740 e a 124 entre 1741 e 1750. A Dinamarca
Leoa, enquanto os holandeses, a Costa do Marfim, ao passo que a França passou de 6/12 no século XVII a 18 entre 1700 e 1710, e 33 até 1750.
ficou com a Guiné. Entretanto, o aspecto mais importante desse tratado Ou seja, no século XVI, no total, passou-se de 151 barcos entre 1500 e
foi o fortalecimento da Inglaterra com o “asiento de negros32”, obtendo 1510 a 50 entre 1560 e 1570, recuperando-se a partir dos anos oitenta
da Espanha o chamado “navio de permiso”, ou seja, o direito de levar e crescendo constantemente no século XVII e na primeira metade do
quinhentas toneladas anuais de mercadoria para as feiras de Veracruz XVIII até chegar a 700 barcos entre 1741 e 1750.
e Cartagena, um direito que foi explorado ao máximo. Apesar disso, o Entre 1580 e 1620 o monopólio português foi destroçado pela
contrabando era a principal fonte de lucro para os ingleses. emergência das companhias inglesa e holandesa, embora os portugue-
Além do interesse econômico na África, esta também era o ses não tenham desaparecido. No século XVII a área de expansão era o
lugar de passagem em direção à Ásia pela rota oriental. Esse comércio oceano Índico, onde as condições políticas, antes favoráveis aos lusos,
foi estudado por Jan de Vries, que comcentrou-se no fato de que, du- estavam sendo modificadas: em 1621, holandeses e ingleses expulsaram
rante três séculos, quase todo o comércio marítimo entre os extremos da os portugueses de seus portos; em 1622, de Ormuz; em 1641, de Malaca
Eurásia foi feito por meio de companhias europeias. A Carreira da Índia e em 1655, de Colombo. Tudo isso ocasionou perdas enormes aos por-
da Coroa portuguesa dominou a passagem africana no século XVI, mas tugueses na segunda metade do século. No total, durante o período que
foi afastada pela Companhia das Índias Orientais inglesa – criada em aqui nos interessa, foi a Holanda, não Portugal, a se destacar em relação
1600, refundada em 1657 e 1693, e sucedida em 1709 pela United EIC às toneladas movimentadas. Entre 1500 e 1795 passaram por El Cabo
– e pela VOC holandesa, às quais se uniram a Danish East India Co 10.785 barcos e 6.731.745 toneladas, havendo retornado 7.737 barcos
(1616-1650) e a francesa Companhia de Colbert (1664), entre outras. e 5.052.327 toneladas (aproximadamente 75%). O que mais chama a
Segundo os cálculos de J. de Vries (2003), de 1500 a 1510, 150 bar- atenção é que o volume de comércio entre a Europa e a Ásia não re-
cos portugueses partiram da Europa em direção à Ásia (171 de 1470 a grediu em meados do século XVII, quando a Europa estava em plena
1510), mas o número decaiu logo (96 de 1511 a 1520; 80/81 entre 1521 crise: depois de uma decadência entre 1620 e 1639, o volume comercial
e 1540; aproximadamente 50 entre 1571 e 1580), e desde 1621 a 1630 evoluiu positivamente, a despeito da crise europeia.
a decadência se acentuou. A Holanda apresentou movimento inverso: Quanto aos produtos, nos séculos XVI e XVII a Ásia enviava à
entre 1591 e 1600 enviou 65 barcos e chegou a enviar 238 entre 1661 e Europa pimenta e especiarias, além de sedas. A pimenta compunha 83%
1670, 280 entre 1701 e 1710, 382 entre 1721 e 1730, apesar de estancar do peso dos bens que chegavam da Ásia a Lisboa em 1548, e 60% em
depois. Quanto à Inglaterra, esta se incorporou pouco antes de 1600 1603. No entanto, esse domínio acabou no poder da VOC holandesa:
e viveu um aumento constante até 1671-80 (124 barcos), chegando a do valor total de suas compras na Ásia, entre 1619 e 1621, as especiarias
180/190 em 1750. A França não desempenhou um papel importante até eram 17,5%; a pimenta era 56,5% e os têxtis perfaziam 16%. Entre 1648
o período de 1661-1670, quando enviou 24 barcos, mas chegou ao nú- e 1650, a pimenta e as especiarias somavam 68%, mas entre 1668 e 1670
apenas 42,5%; entre 1698 e 1700, apenas 23%. Mas a forte queda da
31  NT: A Paz de Utrecht consistiu de uma série de acordos firmados nos Países Baixos (entre
pimenta e das especiarias foi compensada com o crescimento dos têxteis
1713 e 1715), pondo fim à guerra da sucessão espanhola (1701–1714), na qual entraram em asiáticos. As vendas em Amsterdã eram muito mais valiosas: entre 1648
conflito interesses de várias potências europeias. e 1650 26,3% correspondiam às especiarias; 32,8% à pimenta e 17,5%
32 NT: A palavra espanhola asiento designava um tratado comercial ou contrato entre uma nação
ou grupo e a Coroa espanhola, regulando uma rota ou monopólio comercial de um produto. Ao
aos têxteis. No fim do século XVII os números eram, respectivamente,
fim da Guerra da Sucessão Espanhola, um direito de asiento foi concedido por 30 anos para a 24,8%, 13,2% e 43,4%, mas já se uniam a novos produtos, como o chá
Inglaterra. Denominados de “asientos de negros”, tais acordos concediam o monopólio sobre o e o café, com 4%. Já entre 1738 e 1740, esses dois produtos somavam
tráfico de escravos em troca de uma porcentagem direta sobre os lucros da companhia que o
explorasse. uma quarta parte do valor. O controle da VOC sobre as especiarias se
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devia, sem dúvida, ao controle sobre os preços. No entanto, a posição que todos os lucros eram enviados à metrópole. A diferença para com a
estratégica das especiarias no comércio asiático, o alto risco de ataques América fica evidente. Em todo caso, para o que nos interessa, esse co-
ao transporte, a sensibilidade política das exportações desde a Europa e mércio vinculou os quatro continentes em uma economia cada vez mais
o fato de que fosse um comércio em troca da prata, comportavam riscos, globalizada. Diferentemente do que ocorria na América, a África e a
o que levou à procura de outras alternativas. Ásia não foram povoadas pelos europeus, que mantiveram espaços con-
A Holanda vendeu pouco na Ásia – que era autossuficiente –, cretos com finalidades comerciais, mas sem se assentar neles tal como
subsistindo com o comércio inter-índico e com feitorias no Índico e no ocorreu no Novo Mundo.
Pacífico. A VOC aproveitou o comércio intra-asiático para fortalecer-se
com a prata – o Japão a possuía – e levava manufaturas europeias e meios
de pagamento para europeus assentados na Ásia. O algodão da Índia foi Debates historiográficos
o destaque a partir de 1660: os calicoes eram importados como produ-
tos de luxo pelos holandeses, ingleses e franceses. Em 1610, as oficinas O debate sobre a movimentação humana da Europa para
hindus produziam dez milhões de jardas de tecido para o mercado do a América se desenvolveu na historiografia clássica ao redor de duas
sudeste e do centro da Ásia, e apenas um pouco para a Europa. Apesar questões: o desastre demográfico da população indígena provocado pela
disso, a partir de 1650, entre 35 e 40 milhões iam para a Europa. Em chegada dos europeus e o número e evolução da emigração transatlân-
1684, a companhia inglesa da Índia importava 45 milhões. Em 1700, tica. O primeiro não constitui o objetivo destas páginas, pois estamos
esses têxteis estavam por toda a Europa e pela América. abordando a circulação, mas não podemos esquecer que desde os cálcu-
Quanto à Inglaterra, esta criou a frota do Índico em 1601 e os los de Cook e Borah muitos outros foram feitos para comprová-los ou
comerciantes criaram a Companhia das Índias Orientais para traficar corrigi-los. Nesse sentido, a principal novidade foi trazida com a ideia
especiarias, mas eram impedidos pelos tratados com a Espanha. Sua da “globalização viral” (Crosby, 1986) e do intercâmbio de doenças entre
atividade foi limitada até 1672, mas, ainda assim, instalaram-se feitorias grupos humanos que entraram em contato sem poder proteger-se uns
por todas as partes. Exportavam para a Europa índigo e tecidos de algo- dos outros: europeus, africanos, asiáticos e americanos protagonizaram
dão, salitre e pimenta, entre outros, em troca de tecidos finos, chumbo, uma “globalização de contágios” que foi muito desigual em seus efeitos,
estanho e moedas de prata. A companhia obtinha grandes lucros com mas que foi involuntária.
o comércio inter-índico e, em 1661, passou a dedicar-se exclusivamen- A história demográfica proporciona, há muito tempo, cifras,
te ao fluxo Inglaterra-Índia, abandonando o inter-índico aos particu- datações, evoluções e características diferenciadas, mas a maioria dos
lares. Na primeira metade do século XVIII, importava algodão em fios, estudos deu prioridade às populações estáveis. Na historiografia anglo-
seda, calicó, chá e café. De sua parte, a França, na época de Henrique IV, -saxã, por exemplo, não houve interesse pela investigação a respeito da
fundou sua própria Companhia das Índias Orientais (1604), que não emigração inglesa porque o estudo sobre as pessoas que abandonavam a
prosperou. Sua revitalização ocorreu com Luis XIII e outras foram cria- Inglaterra não interessava, exceto para explicar porque estas o faziam, de
das, como a Companhia do Oriente, que ocupou as ilhas da Reunião. modo que a atenção sobre este tema surgiu na América (Canny, 1994),
Durante o reinado de Luis XIV, especificamente em 1664, o ministro o que carrega significado mais sociopolítico do que histórico. As migra-
Colbert abriu outra companhia visando a povoação de Madagascar, o ções demoraram a ser um tema importante, com exceção dos grandes
que não chegou a acontecer. movimentos transoceânicos e seus efeitos sobre a população americana.
De maneira definitiva, o comércio no Índico era muito com- Em ambos os casos, a dificuldade de encontrar documentação fiável fez
plexo, mas constituiu uma verdadeira economia de circulação, já que não com que os dados e hipóteses da historiografia clássica não fossem dis-
havia investimentos ali, e apenas podemos dizer que era colonial por- cutidos. No entanto, a partir do Quinto Centenário do “descobrimento”
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em 1992, as pesquisas avançaram em direção a outro foco de estudos: a uma intensa circulação conjunta, cuja aclaração supera o determinismo
mobilidade das pessoas dentro da Europa como um fato anterior e ne- demográfico clássico. Esse movimento intra-europeu obedecia a uma
cessário para o encontro com a América, e o duplo sentido da migração complexa mecânica de interações econômicas, demográficas, espaciais,
extra-europeia, ou seja, de ida e volta e, portanto, de circulação. sociais, políticas e mentais, que questionam a ideia – também clássica –
O atraso no estudo desses temas se explica pelas dificuldades do push & pull e introduzem a de “tomada de decisões”, ou seja, a consi-
em encontrar documentação confiável. As fontes e seus dados são des- deração sobre as circunstâncias nas quais as pessoas optavam por sair de
contínuos no espaço e no tempo, não são comparáveis, nem sistemáti- onde viviam, substituindo também as divisões políticas e fronteiras por
cos, além de deixar de fora os movimentos clandestinos. Na Espanha, conceitos como os de “espaço de vida”.
o Estado registrou desde inícios do século XVI as saídas em direção Essas modificações no modo de entender as migrações impu-
à América por meio das “licenças de passageiros”, os passaportes e os seram a necessidade de se passar dos estudos macro – que abarcavam
arquivos de campanhas de colonização, mas a emigração clandestina apenas os grandes movimentos humanos – aos estudos micro ou de mé-
apenas pode ser calculada por meio da documentação local espanhola e dio alcance, já que a tomada de decisões era feita no âmbito familiar,
americana (censos, arquivos paroquiais e municipais), sistematizada por local e regional. Em expansão ou em recessão, o contexto mais próximo
R. Konetzke em 1945. Os registros de saída por Sevilha foram a base da impunha aos emigrantes uma perspectiva particular, mais ou menos fa-
pesquisa de M. Mörner, cujos cálculos foram revisados em muitas oca- vorável à sua mobilidade e à sua integração no lugar de chegada. Assim,
siões sem que fossem resolvidos alguns problemas, como a identificação por exemplo, R. Rowland (1991) estudou a emigração portuguesa como
dos passageiros como emigrantes, a duplicação dos que viajavam várias um fenômeno global relacionado ao mutante contexto brasileiro, mas
vezes e as saídas ilegais por meio das ilhas Canárias e de Portugal, entre também às estruturas sociais e aos regimes demográficos regionais. As
outros. Por outra parte, as fontes deixam entrever mais sobre aqueles que perspectivas local e regional foram aplicadas também aos espaços de
fizeram algo mais do que emigrar, pouco dos emigrantes que fracassara- chegada na América (Robinson, 1990).
me muito pouco sobre as mulheres. A superação das ideias clássicas tem trazido outros efeitos po-
Nos anos noventa do século XX, produziu-se uma mudança sitivos:
nos objetivos das investigações desenvolvidas, a qual foi auxiliada pelo
diálogo com a antropologia, a geografia e a linguística, no sentido de A) A inclusão dos movimentos forçados na avaliação geral das
compreender o alcance, as formas e o significado dos movimentos hu- migrações transoceânicas: os escravos vistos como pessoas
manos e as diferenças de nível econômico, social e cultural que ocultam. e não como mercadorias, assim como sua importância no
Introduziu-se também o conceito globalizador de processus migratório, povoamento americano (Klein, 1999).
que aborda a sucessão cronológica das migrações, unifica os casos in-
dividuais às grandes viagens intercontinentais, assim como os desloca- B) A integração dos movimentos humanos motivados pela
mentos espontâneos aos organizados, além de introduzir as ideias de circulação econômica, ou seja, as viagens de transporte
retorno, rotação e circulação. Graças a essa mudança, levantou-se uma e comércio, já que estas afetaram milhares de homens
questão-chave: as migrações interiores na Europa, anteriores e paralelas envolvidos nas companhias comerciais, os quais, em muitos
à projeção extra-europeia a partir do século XV. Numerosos estudos casos, morreram nas perigosas travessias ou se assentaram
concordaram que antes de 1500 a Europa estava em movimento. Foram nos portos de acolhimento (De Vries, 2003).
historiadores britânicos e escandinavos (Bade, Moch, Luccassen etc.) C) O papel das mulheres, que quase não mereceu atenção nos
que trouxeram esta questão à luz e definiram um modelo que explica a estudos clássicos, apesar de estas comporem uma parte
passagem dos europeus para a África e a América como o resultado de
136 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 137
essencial da emigração familiar impulsionada pela Coroa Mas como era o mundo atlântico depois que os portugueses
espanhola no século XVI ou nas expedições de povoamento abriram a rota das Índias Orientais? A pergunta nos obriga a olhar para
dos séculos XVII e XVIII apoiadas às vezes pelos governos outro continente: a história atlântica concedeu à África e aos africanos
– foi o caso da França nos territórios vazios que controlava. um papel passivo, segundo o qual o comércio africano estava nas mãos
Deve-se, porém, superar a visão excepcional e elitista, pois dos europeus e era destrutivo e desigual, baseado no benefício obtido
ainda faltam estudos acerca das mulheres anônimas, sendo pela força. Diante disso, J. Thornton ressaltou (1992) que os africanos
necessário também realizar análises com novos métodos, souberam desenvolver atividades comerciais por sua iniciativa e elaborar
como as histórias de vida ou o estudo de redes (Boxer, 1993). manufaturas para competir com a produção europeia, e que não seria
possível entender a África sem compará-la com a Ásia. A superioridade
Quanto aos bens, a pergunta-chave é se é possível falar de glo- política e comercial sobre os africanos era clara no mar, mas não o era
balização entre 1492 e 1750. A abundante bibliografia que se ocupou na terra. Os africanos comercializavam em seus próprios termos em seu
disso nos últimos anos não é unânime, mas, de modo geral, se aceita que continente e foram capazes de repelir os ataques dos europeus, organi-
antes do século XIX não é adequado falar de um mundo globalizado, zando-se em diferentes frentes e impondo a necessidade de negociar
pois o contato entre áreas econômicas diferentes e muito afastadas, que condições e de chegar a acordos.
puderam relacionar-se entre si ao redor do mundo, ocorreu com baixa Nesta perspectiva, a África era apenas produtora de escravos,
incidência, limitado a zonas próximas à costa ou a cidades portuárias, a como aparece no esquema do “comércio triangular”, expressão criada
grupos sociais ricos e a economia monetarizada (Camps, 2013). para explicar a integração da América e para definir práticas de inter-
Desde o momento em que o mar foi introduzido como ele- câmbio que se desenvolveram no Atlântico entre a África, a América
mento a ser considerado na análise histórica da economia europeia e a Europa a partir do descobrimento e até o século XIX. Essa expres-
(Braudel, 1949), superando-se uma história colonial centrada em pa- são carrega a ideia de que o comércio triangular se desenvolveu dentro
íses, avançou-se em direção ao objetivo de explicar o mecanismo ge- do sistema colonial das monarquias absolutas emergentes da primeira
ral da economia. No entanto, manteve-se uma perspectiva eurocên- idade moderna, de que foi peça-chave em seus objetivos de alcançar o
trica acompanhada da ideia do baixo nível de desenvolvimento das poder (Finlay, 1990).
sociedades indígenas. P. Chaunu, F. Mauro e Magalhães Godinho E a Ásia? I. Wallerstein considerava que o comércio da Europa
introduziram o Atlântico e o mundo não ocidental nessa análise, com a Ásia se limitava a um intercâmbio de produtos de luxo entre dois
mas foi I. Wallerstein quem o converteu no centro de sua obra e do mundos econômicos autônomos, superficial e incapaz de transformar os
World system analysis (1974). Esse giro favoreceu a América: a cha- sistemas econômicos, de tal modo que as companhias europeias na Ásia
mada História Atlântica supera o estudo de países e continentes em eram parasitas que aprenderam a explorar as economias mais avançadas
separado, atentando-se às suas conexões desde o século XV, quando do este. Essa perspectiva foi questionada por J. de Vries (2003), ao es-
a navegação levou ao intercâmbio de pessoas e produtos. Mas essa tudar a convergência global estabelecida por meio da rota do Cabo no
história é questionada, pois sustenta o domínio dos europeus e pouco século XVII. De Vries se questionou se os europeus estavam prepara-
valoriza a participação de africanos e ameríndios na construção desse dos para expandir os enormes recursos humanos, financeiros e materiais
mundo (Grady; Fulola; Roberts, 2008). Entre seus defensores, se jus- para esse comércio; se ele foi chave para a criação do moderno mundo
tifica que foi no eurocentrismo que os países ocidentais alcançaram econômico e qual papel desempenhou o dinheiro nas oportunidades de
êxito, e que sua experiência é útil para entender as raízes do desen- prosperidade regionais. As cifras deste autor demonstram que os fluxos
volvimento econômico, mas também se reconhece que o sucesso foi monetários afetaram o contexto macroeconômico, mas que a expansão
alcançado por meio da violência sobre os demais (Maddison, 2006). da rota do Cabo esteve mais relacionada à capacidade de consumo da
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Europa e das companhias de reduzir custos, do que a uma verdadeira Extratos de documentos
transformação econômica mundial.
Por fim, como se integrou a América nesse cruzamento entre Tabela 1. Dados da população europeia e africana na América britânica
a Europa, a África e a Ásia? A resposta inicial está nos portugueses,
que conectaram os três continentes a partir da sua experiência africa-
Continente Caribe
na no século XV. P. Chaunu (1964) tentou colocar o Brasil no sistema
de comunicação naval mundial, e o mesmo fizeram Mauro (1986) e os Europeus Africanos Europeus Africanos
historiadores portugueses e brasileiros já mencionados, estabelecendo 1625-50 6000 1.000
que a economia brasileira não era dependente do Atlântico luso-bra- 1650-75 34.300 14.000 60.900 2000
sileiro, mas de elementos determinantes do grande comércio atlânti- 1651-75 69.800 9.000 64.600 53300
co, mesmo que indiretamente. Logicamente a América também se in- 1676-1700 67.000 9.800 32.900 182400
tegrou por meio dos espanhóis, que a conectaram com a Ásia através 1701-25 42.000 37.400 27.100 266900
das Filipinas e do Pacífico, assim como das redes comerciais (Böttcher; 1726-50 108.800 96.800 342.100 17500
Hausberger; Ibarra, 2011). As forças que favoreceram e criaram obstá-
culos ao desenvolvimento econômico do mundo americano no período
colonial mantiveram uma dura luta entre 1492 e 1750, a qual tem sido
Tabela 2. Entradas de ouro e de prata na Espanha, segundo os dados
estudada por numerosos pesquisadores e sintetizada em obras a de R.
de P. Vilar
Romano (2004). O Atlântico britânico desempenhou um papel impre-
ciso (Armitage; Braddick, 2002), ao menos em comparação à Holanda. Ouro (kg) Prata (kg)
Sobretudo, a integração foi feita de acordo com a disponibi- 1521-1530 ? 148
lidade do dinheiro, talvez o único elemento que conectou os quatro
1531-1540 14.466 86.193
continentes: a prata fluiu desde a Idade Media da Europa central em
1541-1550 24.957 177.573
direção à Ásia, por meio, primeiramente, de Veneza, e depois por meio
1551-1560 42.262 303.121
dos portugueses e outros intermediários europeus do império otomano
1561-1570 11.530 942.858
(Munro, 2000). Como vimos, este foi um dos grandes temas da história
1571-1580 9.429 1.118.592
econômica do século XX: cifras de movimento e consequências diferen-
1581-1590 12.101 2.103.027
ciadas têm sido a chave de diversas análises, mesmo que se tenha dado
1591-1600 19.451 2.707.262
uma importância maior às implicações políticas que às sociais, e mais
ainda aos grandes impactos que aos efeitos sobre a população comum.
Em todo caso, de maneira geral, concorda-se que a transferên-
cia transatlântica de bens se baseou na natureza assimétrica e violenta
Textos que discutem o efeito das riquezas americanas na Europa
do intercâmbioe que, enquanto se desenvolveu uma crescente homo-
Martín González de Cellorigo, advogado da Real
geneização e interlocução entre as sociedades, a expansão dos horizon-
Chancelaria, Memorial de la política necesaria y útil restauración de la
tes europeus gerou interesses diversos e culturas materiais divergentes
república de España Dirigido al rey don Felipe III. Valladolid, 1600:
(Aram; Yun, 2014).
De como a República da Espanha de sua grande riqueza tirou
tamanha pobreza:

140 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 141
Tem posto tanto os olhos nossa Espanha na contratação das Referências bibliográficas
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ALTMAN, I.; HORN, J. (eds.). “To Make America”: European Emigration in the Early Mod-
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riqueza de uns e a extrema pobreza de outros, no que está muito des- días. Barcelona: Edt. Crítica, 2003.
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(Felipe II) tem respondido pouco às esperanças que tiveram seus DE LUXAN MELENDEZ, S. “Historia Económica e Historia atlántica: algunas reflexiones
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travam nestas terras novas... A causa consiste em que o uso da moeda DE VRIES. J. “Connecting Europe and Asia: A Quantitative Analysis of the Cape-Route Trade,
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encontrou reunida, como numa exposição ou alarde, toda a riqueza
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que os poderosos reis de tais países haviam obtido esgotando suas den-Boston: Brill, 2001.
minas para fabricar a grande quantidade de vasos e estátuas com que EIRAS ROEL, A. (ed.). Emigración española y portuguesa a América. Alicante: Instituto de Cul-
enfeitavam seus palácios e templos. Ao contrário, nosso ouro está tura Juan Gil Albert, 1991.
todo investido e em circulação, e sem parar o distribuímos e altera- ESCOBARI, L.; MAURIÑO, J.A. Colonización agrícola y ganadera en América, siglos XVI-X-
mos em mil formas, propagando-o e dispersando-o. Suponhamos o VIII. Quito: Abya-Yala, 1995.
que aconteceria se nossos reis houvessem acumulado e imobilizado FINLAY, R. The Triangular trade and the Atlantic Economy of the Eighteenth century. Princeton
todo o ouro que tivessem podido encontrar durante vários séculos. University Press, 1990.
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Capítulo 4
A escravidão hispano-americana: uma
perspectiva de longa duração

Waldomiro Lourenço da Silva Júnior

O processo de expansão econômica notavelmente impulsio-


nado pelas Grandes Navegações originou uma integração planetária
profundamente hierarquizada. Uma divisão internacional do trabalho,
complementar em termos globais, foi ganhando forma no movimento
histórico do capitalismo, combinando-se a processos culturais, políticos
e religiosos. Mas esse movimento em tempo algum esteve a priori des-
tinado à proletarização ou à compulsoriedade. As formas e os ritmos
de exploração foram arquitetados historicamente a partir de condições
bastante objetivas relacionadas à viabilidade econômica e institucional.
O estabelecimento de enclaves na costa africana, a partir do século XV,
a lucratividade crescente do comércio transatlântico e a validação ju-
rídica do trabalho escravo tornaram o cativeiro dos negros a base de
múltiplas atividades produtivas no Novo Mundo. Entre 1525 e 1867,
cerca de 12,5 milhões de pessoas foram violentamente embarcadas em
navios negreiros na costa africana, dando vazão a um dos principais mo-
vimentos diaspóricos da história da humanidade. Em seus quatro pri-
meiros séculos de existência, a escravidão foi uma das marcas essenciais
da economia-mundo capitalista, integrada, em escala local e planetária,
a várias outras modalidades de exploração dos trabalhadores.
Ao todo, a América espanhola absorveu algo em torno de 1,6
milhão de africanos, perfazendo 12,7% do total indicado acima. Desse
montante, 889.990 desembarcaram na ilha de Cuba, dos quais 816.216
chegaram após 1800.33 Este período encerraria, como denotam os dados
do tráfico, o ponto mais alto da escravidão em Cuba e no Império colo-
nial espanhol. Naquele momento, houve uma transformação estrutural
33 Os números do tráfico negreiro foram extraídos da base de dados on-line: <www.slavevoyages.
org>. O total exato mencionado na fonte é de 1.591.244 pessoas.
As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 147
quanto à relevância econômica e social da escravidão. No entanto, uma tivo para aspectos centrais da escravização e das relações de escravi-
série de princípios e costumes pregressos permaneceram no horizonte, dão (Gallo, 1980; 1005-1038; De La Fuente, 2004, 37-68; Silva Júnior,
especialmente no que diz respeito à prática da alforria e à forma de 2013, 35-66). Se, por um lado, os escravizados eram equiparados a bens
equacionar as tensões sociais. O que se pretende neste capítulo, sem móveis ou instrumentos de trabalho, por outro lado garantia-se a pos-
negar variações regionais e temporais, é propiciar uma visão abrangente sibilidade de término individual do cativeiro. O ahorramiento podia ser
sobre a escravidão hispano-americana. Evidentemente, o sistema de es- realizado com notável liberalidade. Inexistia a obrigatoriedade de for-
cravidão espanhol não foi sempre o mesmo. Contudo, foi desenvolvida malização notarial. A liberdade podia ser conferida “em igreja ou fora
na longa duração uma certa identidade institucional, que conferiu uma dela, ou diante do juiz, ou em outra parte, ou em testamento, ou sem
unidade orgânica ao fenômeno, o que ajuda não apenas a contrastar a testamento, ou por carta”. Existia também a possibilidade de prescri-
experiência castelhana das outras, mas a compreender melhor a maneira ção. Aquele escravo que vivesse reconhecidamente como uma pessoa
como novos arranjos foram delineados ao longo do tempo. livre, pelo período de dez anos, assegurava o direito (Lucena Salmoral;
Andrés-Gallego, 2000, 22; Silva Junior, 2013, 77-90). Ao mesmo tem-
po, procurava-se resguardar a integridade física dos cativos. Nenhum
Os precedentes da escravidão hispânica senhor poderia ferir, deixar passar fome ou atentar contra a vida dos seus
escravos, a não ser para defender sua família. Neste ponto, a moralida-
A escravidão não era nenhuma novidade no momento em que o de cristã era combinada à razão política. Desde Roma presumia-se que
Atlântico se descortinou para as ambições europeias. A imagem de uma os excessos dos senhores atentavam contra a res publica por incitarem
prática abandonada em função da construção do feudalismo não se encai- reações imprevisíveis por parte dos cativos. Esta é a raiz do direito dos
xa nessa história. A prática estava bastante viva e arraigada na Península escravos à proteção judicial. Aqueles que fossem vítimas de sevícias por
ibérica. Em função das relações conflituosas com o Islã, o cativeiro havia parte de seus senhores poderiam prestar queixa às autoridades judiciais.
sido preservado nos reinos cristãos daquela região durante a Idade Média, Caso comprovados maus-tratos, o amo deveria ser obrigado a vender
diferentemente do restante da Europa ocidental. Entre os séculos XII e seu escravo. Isto demonstra que o poder senhorial tinha alguns limites
XIV, cristãos e muçulmanos escravizaram-se mutuamente. Escravos afri- (Lucena Salmoral; Andrés-Gallego, 2000, 536; Silva Júnior, 2013, 146).
canos também eram conhecidos de longa data. Pela mesma época, chega- Claro que a legislação produzida na e para as colônias espanho-
vam cativos subsaarianos por meio de caravanas controladas por merca- las extravasou consideravelmente o teor das Siete Partidas, mas nunca
dores islamitas (Verliden, 1934, 283-448; Blackurn, 2003, 47-122). chegou a subverter os seus pontos essenciais, especialmente no que dizia
Em meio àquela experiência, foi desenvolvido um amplo re- respeito à alforria. Pelo contrário, houve um alargamento do leque de
pertório normativo. As Siete Partidas – compilação legislativa e doutri- direitos originalmente reconhecido. Em determinadas circunstâncias,
nária redigida em Castela entre os anos de 1256 e 1265 por ordem do escravos conseguiriam explorar as brechas legais e acessar a justiça para
rei Afonso X, o Sábio – constituíram um marco fundamental no campo reivindicar a liberdade ou apresentar queixas contra maus-tratos, explo-
jurídico, condensando diversos preceitos e disposições que permanece- rando as leis em seu favor com o auxílio de funcionários letrados nome-
riam em vigor durante séculos, incluindo toda a era colonial. Baseadas ados para representá-los (De La Fuente, 2004, 7-22). Os senhores sem-
no direito costumeiro, em preceitos derivados de Aristóteles, Sêneca e pre mantiveram em suas mãos o poder sobre a manutenção da disciplina
Santo Isidoro, em normativas locais como o Fuero Real e, essencialmen- e a exploração do trabalho, mas o papel do estado na intermediação das
te, no Corpus Iuris Civilis do Imperador Justiniano – segundo o qual relações era relativamente pronunciado, ao menos em termos formais.
a escravidão, contrariando o direito natural, havia sido instituída pelo Não se tratava apenas da instituição de um certo aparato de proteção.
direito das gentes –, as Partidas propiciariam um tratamento norma- De forma mais aguda que a Coroa portuguesa, o governo castelhano
148 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 149
fazia um esforço notável para reservar para a sua alçada a aplicação de Colombo foi responsável pelo início do processo. Em sua segunda via-
punições mais severas contra escravos prófugos e revoltosos, incluin- gem, o navegador capturou diversos indígenas da ilha de Hispaniola e
do açoites mais numerosos, mutilações e a pena capital. A lógica era a propôs abertamente o seu cativeiro aos Reis Católicos, com alegações
mesma, evitar o confronto interpessoal para amenizar as tensões (Silva de cunho essencialmente mercadológico: “Vean Vuestras Altezas si se
Junior, 2013, 113-154). habrán de cautivar, que creo que después acá, cada año se podrán haber
Além de um conjunto pregresso de normas, princípios e cos- de ellos, y de las mujeres, infinitos. Crean que cada uno valdría más
tumes pertinentes ao cativeiro, os espanhóis, assim como os lusitanos, que de tres negros de Guinea en fuerza y ingenio, como verán por los
haviam tido experiências recentes com a produção açucareira, atividade presentes que agora envío” (Lucena Salmoral, 2000, 50). O projeto era
econômica ajustada à exploração do trabalho escravo. No século XV, ha- transformar o comércio de cativos indígenas em um negócio mais lu-
viam sido estabelecidas plantações de cana de açúcar nas ilhas Atlânticas, crativo do que o de africanos, controlado pelos portugueses. O interesse
contando com investimentos de mercadores genoveses. Em conformi- maior era vendê-los na Europa, explorando a lucratividade gerada pelo
dade com os termos do Tratado de Alcáçovas (1479), que selou o fim da tráfico transoceânico (Reséndez, 2016, 27-28).
Guerra de Sucessão de Castela, os espanhóis concentraram suas ativida- Nos primeiros meses de 1495, 500 taínos escravizados foram
des nas ilhas Canárias, enquanto os portugueses espalharam-se por um colocados em quatro caravelas e enviados à Espanha. No dia 12 de
leque mais amplo de territórios insulares localizados entre as costas da abril, os monarcas recomendaram que os cativos fossem vendidos em
Península e do noroeste africano, obtendo os seus melhores resultados Andaluzia, sem maiores especificações ou escrúpulos. Mas, apenas qua-
na ilha da Madeira (Philips Junior, 1989, 167-168). tro dias depois, os primeiros questionamentos sobre a legitimidade da
Muito embora trabalhadores livres tenham participado, naque- escravização dos índios vieram à tona na esfera governamental: “Por otra
le momento foi estabelecida uma conexão fundamental entre o fabrico letra nuestra vos hubimos escrito que ficiesedes vender los indios que
do açúcar e o trabalho de negros escravizados, cuja oferta vinha sendo envió el Almirante don Cristóbal Colón en las carabelas que agora vi-
ampliada havia algum tempo pelas expedições lusitanas subsequentes à nieron, y porque nos queríamos informarnos de letrados, teólogos y ca-
conquista de Ceuta (1415), contando com o referendo da Igreja pela bula nonistas si, con buena conciencia, se pueden vender éstos por esclavos o
Romanus Pontifex (1455). Em fins do século, após o célebre Tratado de no” (Lucena Salmoral, 2000, p. 51). O efeito imediato desta averiguação
Tordesilhas (1494), seria cristalizada uma segmentação competitiva dos não seria a suspensão da escravização dos ameríndios, mas o adiamento
empreendimentos ultramarinos de portugueses e castelhanos, com os de uma resolução mais efetiva por parte da monarquia. Enquanto isso,
primeiros se concentrando na rota africana para o oriente e os segundos novas remessas com centenas de cativos seriam enviados à Europa pelo
apostando suas fichas na conquista e ocupação do Novo Mundo a partir almirante Colombo e seus irmãos. Até o final do século, algo em torno
da exploração das ilhas caribenhas (Cf. Elliot, 1963; Idem, 1997, 135-194; de 1490 indígenas seriam transportados até Castela provenientes da ilha
Haring, 1966; Bernand; Gruzinski, 1997, 271-312; Alencastro, 2000, 29). de Hispaniola (Caballos, 1997, 31-72).
Em 1500, com base no tal parecer de estudiosos, cujo texto é des-
conhecido, foi expedida a primeira provisão declarando os indígenas súdi-
A disseminação do trabalho escravo tos da monarquia castelhana e, portanto, livres da imposição injustificada
do cativeiro. O projeto de escravização dos habitantes do Novo Mundo
As populações ameríndias foram as primeiras vítimas do ca- e de sua canalização para uma rede de tráfico pelo Atlântico voltada ao
tiveiro hispânico nas Américas. Antes mesmo da ciência a respeito das atendimento da demanda europeia de trabalhadores fracassou (Caballos,
dimensões continentais das terras encontradas, teve início a escravização 1997, 31-72). Decerto, isto não representou o fim do cativeiro indíge-
dos índios pelas mãos dos primeiros exploradores. O próprio Cristóvão na, em geral. O que os tais juristas, teólogos e canonistas conseguiram
150 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 151
interditar, naquele momento, foi a escravidão indiscriminada dos índios mero de los dichos indios para que los haga ir a trabajar donde
(Lucena Salmoral, 2000, p. 54). Determinados costumes e ações, como a fuere menester”. (apud Lucena Salmoral, 2000, 55).
antropofagia e a resistência à conquista, continuariam justificando a redu-
ção ao cativeiro. Em 5 abril de 1502, desembarcou em Santo Domingo Assim, autorizava-se uma espécie de compulsão remunerada
o novo governador, o frei Nicolás de Ovando. Entre suas incumbências dos ameríndios “submissos”, sem maiores especificações sobre o rigor
estava a organização da exploração do trabalho indígena. disciplinar, a duração dos serviços ou o valor pago pelo trabalho nos
A Coroa deu total chancela para que Ovando e os capitães repartimientos, o que deu margem para que os repartidores agissem sem
descobridores seguissem com a escravização dos indígenas resistentes, grande controle.
como se lê na Real Cédula expedida em 30 de outubro de 1503: Na mesma época, começava a ser estruturado um mercado ame-
ricano para cativos africanos. Os espanhóis foram os primeiros a terem
“[...] si todavía los dichos caníbales resistieren e no quisieren recursos para o tráfico negreiro destinado ao Novo Mundo. Colombo
recibir e acoger en sus tierras a los capitanes e gentes que por novamente abriu o caminho, levando negros cativos logo em sua segun-
mi mandado fueren a hacer los dichos viajes, e oírlos para ser da viagem, em 1493 (Lucena Salmoral, 2000, 137) Dez anos depois, em
doctrinados en las cosas de Nuestra Santa Fe Católica, e estar 29 de março de 1503, a rainha Isabel chegou a proibir o ingresso de es-
en mi servicio e so mi obediencia, los puedan cautivar e cauti-
ven para los llevar a las tierras e islas donde fueren, e para que
cravos africanos, atendendo a uma solicitação de Ovando, que havia es-
los puedan traer e traigan a estos mis reinos e señoríos e otras crito informando que eles “se huían, juntábanse con los indios, enseñá-
cualesquier partes e lugares do quisieren e por bien tuvieren, banles malas costumbres y nunca podían ser cogidos” (Lucena Salmoral,
pagándonos la parte que de ellos nos pertenezca, e para que 2000, 138). Mas a medida não fez fortuna. Em 1505, a Coroa autorizou
los puedan vender e aprovecharse de ellos, sin que por ello caigan novos envios da África para a Hispaniola para os serviços das minas de
e incurran en pena alguna, porque trayéndolos destas partes, y ouro, em comum acordo com o mesmo governador Ovando, que a essa
sirviéndose de ellos los cristianos, podrán ser más ligeramen-
altura já havia se convencido das vantagens daqueles trabalhadores:
te convertidos e atraídos a nuestra Santa Fe Católica.” (apud
Lucena Salmoral, 2000, p. 54).
“A lo que decís que se envíen más esclavos negros, pareceme
que es bien, y aún tengo determinado de enviar hasta cien es-
Como se poder ler, o cativeiro, caminho mais curto para a con- clavos negros, para que éstos cojan oro para mi, e con cada diez
versão dos rebeldes ao cristianismo, era apontado como a solução que de ellos ande una persona de recaudo que haya alguna parte
salvaria o corpo da morte terrena e a alma da danação eterna. del oro que se hallare [...]” (Lucena Salmoral, 2000, 545).
O destino daqueles que impusessem menor resistência não se-
ria muito melhor. Real Provisão de 20 de dezembro de 1503 trouxe as O tráfico transatlântico seguiu relativamente módico, mas cons-
diretrizes legais para os repartimientos, estabelecendo que: tante, atingindo a escala do milhar no início do reinado de Carlos I (o
Carlos V do Sacro Império Romano Germânico), que assumiu o trono
“en adelante compeláis y apremiéis a los dichos indios que em 1516. O novo monarca concederia licenças para o tráfico direto entre
traten e conversen con los cristianos de la dicha isla e trabajen África e América (uma de 4000 escravos para o flamengo Laurent De
en sus edificios, en coger e sacar oro e otros metales, e en hacer
Gouvenot e outra bem inferior, de 400 escravos, para Jorge de Portugal).
granjerías e otros mantenimientos para los cristianos vecinos
e moradores de la dicha isla, e hagáis pagar a cada uno el día Outro ponto a destacar do governo de Carlos I é o processo gra-
que trabajare el jornal e mantenimiento que según el jornal de dual de restrição legal da escravização dos ameríndios. Isso foi resultado
la tierra e de la persona e del oficio vos pareciere que debiere da articulação entre as condições objetivas em torno da mobilização e
haber, mandando a cada cacique que tenga cargo de cierto nú- exploração dos trabalhadores e as conclusões extraídas dos debates jurí-
152 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 153
dico-teológicos ocorridos na época. Homens como Francisco de Vitoria a realização de guerra contra os indígenas do Peru. Permissão seme-
(1492-1546), Bartolomé de las Casas (1474-1566), Domingo de Soto lhante seria endereçada ao governador da Guatemala na mesma época.
(1494-1560), Melchor Cano (1509-1561), José de Acosta (1539-1600), Finalmente, em 20 de fevereiro de 1534, devido aos “inconvenientes”
Juan de Solórzano y Pereira (1575-1653), entre outros, engajaram-se causados aos conquistadores “ao Serviço de Deus e da Coroa”, Carlos I
em longas reflexões a respeito da suscetibilidade dos povos dominados resolveu revogar a provisão de 1530, em 20 de fevereiro de 1534.
à escravização com base no discurso aristotélico da servidão natural e a No texto da nova provisão, procurou-se uma espécie de meio-
partir dos títulos consagrados na cultura do direito comum. As opini- -termo, estabelecendo-se algumas condições para a escravização. A
ões variaram, mas convergiram para uma doutrina que reprovou o ca- principal delas foi proibir que mulheres e crianças (menores de 14 anos)
tiveiro indígena e, de forma mais ou menos direta, endossou o africano pudessem ser feitas cativas. Mas os conquistadores ficavam autorizados
(Pagden, 1986; Zeron, 2011; Añoveros, 2000; Hespanha, 2001). a se servirem delas em suas casas e em outras ocupações na condição
Não se chegou a essa posição de um dia para a noite. Foram de naborías (estatuto jurídico no qual eram enquadrados os servos indí-
décadas de debates e controvérsias. Juristas e teólogos divergiam e os co- genas repartidos entre espanhóis). Esta solução não surtiu efeito. Dois
lonos impunham obstáculos. O governo oscilou bastante, especialmente anos depois o rei teve que enviar cédula ordenando a soltura de mulhe-
com o desencadeamento da conquista dos grandes impérios indígenas, a res e crianças índias tornadas escravas.
começar pelo mexica, em 1519 (Elliott, 1997; Gruzinski, 2001; Restall, Por essa época, o problema do declínio demográfico se mos-
2006). Em 26 de junho de 1523, o rei enviou instruções a Hernán trava cada vez mais agudo. Seriam realizados alguns esforços por parte
Cortés, autorizando a guerra e a redução dos índios recalcitrantes ao do governo para interditar o tráfico de cativos indígenas entre os dife-
cativeiro, siempre que se les hagan los requerimentos prescritos. Nos anos se- rentes territórios. Proibiu-se, também, que os caciques locais escravi-
guintes, diversas disposições seriam emitidas a fim de conter os “abusos zassem seus inimigos para vender aos castelhanos. Por outro lado, para
dos soldados” que saíam a promover a guerra com a finalidade explícita resguardar a mão de obra existente, vedou-se a possibilidade de que o
de fazer novos escravos. Em 9 de novembro de 1526, Carlos I chegou a casamento entre escravos índios e negros resultasse na liberdade. Assim,
interditar a obtenção de novos cativos indígenas pelo comércio ou por não se mexia muito na estrutura. Tais medidas não passavam de palia-
meio de guerra, mas isto foi imediatamente relativizado em instruções tivos. O que se observava na virada para a década de 1540 era a adoção
enviadas oito dias depois, orientando que a escravização por meios beli- de uma política voltada à regulamentação do cativeiro indígena, não à
cistas seria, sim, permitida, desde que respaldada por pareceres emitidos sua supressão.
por religiosos (Lucena Salmoral, 2000, 566-576). Enquanto isso, outras peças eram movidas naquele tabuleiro.
Um passo adiante seria dado no fim da década, quando em 2 A cúpula da Igreja Católica em Roma, por ação do Papa Paulo III, po-
de agosto de 1530 o rei assinou nova provisão endereçada para todas sicionou-se de forma contrária à escravização dos ameríndios, com a
as Índias. Conforme o texto da normativa, as informações reiteradas emissão de breves entre 1537 e 1538, facultando aos Arcebispados a
a respeito dos danos enormes causados pela conduta desenfreada dos faculdade de excomungar aqueles que a promovessem. O argumento era
conquistadores teriam deixado o monarca sem outra alternativa a não o de que os nativos das terras recém descobertas,
ser proibir que se fizessem novos escravos índios. Os cativos existentes
permaneceriam em sua condição, mas deveriam ser matriculados para “aunque estén fuera del seno de la Iglesia, no están privados,
que se evitassem abusos. ni se les puede privar, de su libertad, ni de la posesión de sus
cosas, ya que como hombres y, por tanto, capaces de fe y salva-
No entanto, as batalhas de conquista novamente refreariam
ción, no deben ser destruidos con la esclavitud, sino atraídos a
a inclinação antiescravista do governo espanhol. Em março de 1533, la vida con las predicaciones, buenos consejos y otros médios”
a exemplo de Cortés, Francisco Pizarro recebeu provisão autorizando (apud Lucena Salmoral, 2000, 634).
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O grande articulador dessa disposição foi o frei Bartolomé de persistiu ao longo do tempo, chegando até o século XIX, fosse de forma
Las Casas, que iniciara, na Nova Espanha, a escrita de sua emblemá- legal, a partir de autorizações periódicas da Coroa liberando a escraviza-
tica obra, Brevísima relación de la destrucción de las Indias, descrevendo ção de índios insubmissos (de dentro dos domínios) ou “bárbaros” (das
as atrocidades promovidas pelos conquistadores (Las Casas, 1993; Cf. regiões fronteiriças), fosse de forma francamente ilegal. Desse modo, é
Fernández, 1996; Chartier, 2016). O resumo de seus relatos chegou às equivocado pensar em uma total africanização do cativeiro nas Índias de
mãos do monarca espanhol, reforçando a pressão para uma mudança Castela, muito embora o cativeiro dos negros tenha se tornado predo-
de postura com relação à escravidão dos índios, facilitada pelo sistema minante em termos gerais (MacLeod, 1999, 219-269; Lucena Salmoral,
encomendas (Munguía, 2003, 193-205; Añovros, 2000). 2000, 90-117; Blackurn, s/d, 161-200; Blackurn, 2011, 29-48; Andrés-
Finalmente, após amplas discussões, foi realizada uma revisão Gallego, 2005; Cf. Zavala, 1975; Zavala, 1981; Zavala, 1984-1991).
normativa por meio das Leyes Nuevas (Leyes y ordenanzas nuevamen- A escravidão africana disseminou-se primeiramente nas
te hechas por S. M. para la governación de las Indias y buen tratamento Antilhas, em plantações de cana de açúcar, mediante a reprodução das
y conservación de los Indios), aprovadas em 20 de novembro de 1542. práticas anteriormente testadas nas ilhas atlânticas. Em meados 1558,
Dispositivo amplo, que tocava em aspectos variados da administração os ingenios espanhóis estabelecidos no Caribe, especialmente na região
colonial, estabeleceu o seguinte em relação aos indígenas: de Santo Domingo, chegaram a enviar cerca de 60 mil arrobas a Sevilha.
Nas décadas seguintes, devido ao dispêndio da indústria açucareira e ao
“Ordenamos y mandamos que de aquí adelante por ninguna aumento da mineração, a atividade entrou em declínio. O sistema de
causa de guerra, ni otra alguna, aunque sea so título de rebeli- frotas anuais estabelecido em 1561 para proteção dos carregamentos dos
ón, ni por rescate, ni de otra manera, no se pueda hacer esclavo
ataques de piratas também prejudicou a plantação caribenha, deitando
indio alguno, y queremos sean tratados como vasallos nuestros
de la Corona de Castilla, pues lo son.” (apud Lucena Salmoral, por terra a vantagem em relação aos ingenios canários, que era o tempo
2000, 661). mais breve para a colheita (cerca de seis meses).
A exploração de escravos africanos seria, durante algum tempo, de-
Concepción García-Gallo escreveu que, com este ato, a escra- pendente da extração de prata nos grandes vice-reinados continentais, com
vidão na América espanhola se tornou “privativa da raça negra” (García- uma presença demográfica importante em Lima e na Cidade do México.
Gallo, 1980, 1010). Mas não foi simples assim. A vigência dessa deter- Paulatinamente, escravos negros seriam empregados também em ativida-
minação passou por todos os problemas frequentes à implementação da des ligadas ao transporte, ao embarque e ao desembarque de mercadorias
legislação ultramarina, desde a resistência dos colonos até a vacilação nos portos, em estabelecimentos têxteis, na construção civil, em serviços
das diferentes esferas do governo colonial. De fato, é possível observar domésticos e até em ofícios militares. A mineração de ouro concentraria a
uma crescente africanização do cativeiro na América espanhola, com utilização de braço cativo africano no território estendido de Nova Granada
uma correspondente elevação dos indígenas à condição de vassalos da até o sul da região andina, em zonas distantes das comunidades indígenas
Coroa castelhana. No coração das unidades de exploração da América (Klein, 1987, 33-57; Cf. Bowser, 1974; Cf. Bennett, 2009).
espanhola, na Mesoamérica e nos Andes, foi possível mobilizar as mas- É importante lembrar que o império espanhol não controlava
sas de trabalhadores indígenas de outras formas, em especial mediante o zonas de fornecimento de trabalhadores na África. O país dependia to-
recrutamento agrícola sazonal, que remontava as práticas pregressas da talmente da parceria com estrangeiros. Uma importação mais massiva
mita dos povos andinos e do coatequitl dos mesoamericanos. No início de escravos se daria no período entre 1595 e 1640, registrando-se o in-
do século XVII, acentua-se um processo de diversificação das moda- gresso de algo em torno de 268 mil cativos, na época em que vigorou o
lidades de trabalho, até mesmo com um crescente assalariamento dos asiento com os portugueses (Vilar, 1977). Na segunda metade do século
trabalhadores, inclusive das minas de prata. Mas a escravidão indígena XVII, negociantes genoveses e holandeses sucederiam os lusitanos no
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negócio. No início da centúria seguinte, caberia à companhia francesa foi uma aproximação a mercadores norte-americanos, muito embora
da Guiné o transporte de africanos até que a South Sea Company, da os ingleses seguissem injetando cativos na ilha de modo clandestino
Inglaterra, obtivesse o asiento após o Tratado de Utrecht (1713). Sua ou por meio de testas-de-ferro locais, licenciados momentaneamente
atividade durou até o final da década de 1730. Oscilando entre asientos para o transporte de escravos. Tal foi o caso de Miguel Antonio de
e licenças, redes de contrabandistas e a estagnação, o panorama do tráfi- Herrera e da viúva de Cárdenas de Monte Hermoso, que chegaram
co hispano-americano só começaria a mudar na época do Reformismo a ser repreendidos oficialmente por transferirem seu benefício a co-
Bourbônico, quando o governo buscou alavancar a plantação escravista merciantes da Inglaterra (Tinajero. 40-41; Cantús, 2004, 80).
nos domínios castelhanos (Lucena Salmoral, 2000, 341-347). Após a cessação do conflito, a Coroa espanhola cedeu ao prag-
Por meio do tratado assinado em El Pardo, em 24 de março de matismo e acertou um contrato para o fornecimento de escravos com
1778, a Espanha recebeu de Portugal as ilhas de Ano Bom e Fernando a casa Baker e Dawson, de Liverpool. O primeiro acordo, fechado em
Pó na costa da Guiné, com abertura para acesso aos portos do rio Gabão, 1784, previu a introdução de 4000 escravos em Trinidad e o mesmo
Camarões, São Domingos, Cabo Formoso e outros distritos adjacen- em Caracas, com isenção de direitos. Dois anos depois, a companhia
tes (Castro, 1856, 264; Cf. Cantús, 2004, 28). Esses territórios surgiam inglesa assumiu o mercado cubano, tendo Felipe Allwood como repre-
como a oportunidade para o estabelecimento inédito de uma plataforma sentante estabelecido em Havana. Entre 1786 e 1789, ela introduziu
nacional para o fornecimento de escravos, com local de descanso, arma- algo em torno de 5.786 escravos na ilha. Aos membros da elite criolla
zenagem e registro (Tinajero, 1996, 39; Sanchez; Péres-Lila, 1990, 400). ficava claro que os comerciantes hispanos não estavam aptos a atender
Para Dolores García, não foi por acaso que, apenas seis meses depois do as necessidades de mão de obra da economia local. Tampouco estavam
acerto com os portugueses, Carlos III baixou o Reglamento y Aranceles satisfeitos com a persistência do privilégio no setor para estrangeiros,
Reales para el Comercio Libre de España a Indias (12 de outubro de 1778), tendo em vista os ingressos ainda insuficientes e os preços elevados que
que completou o processo iniciado em 1765, pondo fim ao sistema de o regime vinha propiciando. Entradas abundantes a preços razoáveis só
frotas e de exclusividade portuária, liberalizando a circulação no interior seriam obtidos com a decretação da livre concorrência com a participa-
do império (Cantús. 2004, 36). Caso Ano Bom e Fernando Pó cum- ção de nacionais e estrangeiros, sem mais contratos, licenças ou asientos
prissem o papel ambicionado, o problema do provimento de cativos se (Rawley; Behrendt, 2005, 186).
resolveria internamente. Mas o projeto foi um total fracasso. A liberdade para o comércio de escravos foi finalmente conce-
As razões principais encontram-se na ausência total de dida por meio da Real cédula editada em 28 de fevereiro de 1789, mas
infraestrutura e no estado do comércio de escravizados na região. apenas para Caracas e as Antilhas Maiores por um período de dois anos,
Tratava-se de um setor pululado de traficantes ingleses e com um po- em caráter experimental. A destinação dos escravos aportados deveria
tencial de expansão pouco promissor. As atividades na região vinham ser preponderantemente o setor agrícola, nas plantações, engenhos e
declinando desde meados do século, deslocando-se para as áreas ao afins. A utilização de cativos para serviços domésticos era desestimulada
sul da linha equatorial (no Congo e em Angola, no caso dos vassalos com imposição de tributos (Samoral, 2000, 342). Entre 1791 e 1804, a
portugueses). Além do que, a Espanha, a partir de 1779, entrou na liberação foi sucessivamente prorrogada, outros portos locais foram au-
Guerra de Independência dos Estados Unidos ao lado da França. torizados e o comércio negreiro se intensificou, tendo sido desembarca-
O novo conflito atrapalhou as transações oceânicas e bloqueou o já dos oficialmente cerca de 108.376 africanos nos domínios castelhanos,
difícil engajamento dos mercadores hispânicos no trato da Guiné. destes 86.2782 apenas na ilha de Cuba.34 Como destaca David Eltis,
(Cantús. 2004, 29-90). Ao mesmo tempo, a situação fechou as por- houve, então, uma integração inédita da ilha espanhola ao circuito cari-
tas para o ingresso legal de negreiros britânicos em Cuba, região cen-
34 Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces>. Acesso em:
tral da nova política escravista da Coroa espanhola. A saída natural 26 de abril 2015.
158 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 159
benho do tráfico, possibilitando um nivelamento dos preços em relação tos, a rebelião foi controlada (Deive, 1989, 33-35; Franco; Price, 1981,
aos cativos que adentravam as demais praças antilhanas (Eltis, 1987, 36). 43; Lucena Salmoral, 2000, 140; Navarrete, 2003, 26; Lopez, 2004, 296).
Apenas a essa altura, no início do século XIX, foi eliminado Pela primeira vez os cativos se rebelaram abertamente e de for-
o mais grave entrave para o desenvolvimento da economia local, que ma organizada, com uma atuação no sentido de ampliar o movimento,
era a falta de força de trabalho, consolidando-se um alinhamento entre buscando a libertação de escravos de outras fazendas. Os indícios levam
a oligarquia havanesa e o gabinete de Madri. Entre 1820, quando o a crer que houve uma articulação prévia à rebelião, com encontros e
tráfico entrou para um período de “ilegalidade permitida”, e 1866, ano conversações para a coordenação das ações e a fixação da data para a sua
de ingresso do último navio negreiro, entraram mais de 635 mil cativos realização. A origem comum dos escravos, em sua maior parte “da língua
contrabandeados apenas na Perla de las Antillas. Nesse contexto, a ilha dos jolofes” (grupo étnico do oeste africano), teria facilitado a comuni-
passou por uma verdadeira revolução econômica e ambiental, alterando cação e, por conseguinte, a organização do movimento (Deive, 1989,
profundamente sua posição no império espanhol, que começava a se 34-36). Isto informaria a política espanhola subsequente a respeito da
fragmentar em virtude dos processos de independência desencadeados importação de cativos. Por meio de cédula de 28 de setembro de 1532,
com a ocupação napoleônica. As exportações de açúcar superariam as foi proibida a introdução de jolofes “por ser, como diz que são, soberbos
160 mil toneladas nos anos 1840, abocanhando 20% do mercado mun- e inobedientes e revolvedores e incorrigíveis” (Deive, 1989, 145; 609).
dial. A produção de café cresceria de forma intensa até a mesma épo- A partir de então, a Coroa espanhola buscou criar uma espécie
ca, perdendo espaço gradativamente em virtude da concorrência com de filtro para o tráfico. Também foram impostas restrições para a entra-
o produto brasileiro (Fraginals, 2009, 99; Fraginals, 1978, 139; Torres- da de mulatos, maometanos e ladinos (definidos então como negros que
Cuevas, 1994, 272). haviam vivido mais de um ano na Espanha ou em Portugal, “que envia-
vam seus amos peninsulares para desfazer-se deles a causa de suas ‘malas
costumbres’”).35 Mais do que origem propriamente, a unidade, a identida-
As políticas de controle da rebeldia escrava de preservada ou recriada, era um fator importante para a rebeldia escra-
va. A comunidade cultural existente entre os escravos jolofes (wolofes) do
A resistência ao cativeiro surgiu logo nos primeiros tempos da engenho de Diego Colón teria sido essencial para a organização daquela
ocupação espanhola. De imediato, ganhariam materialidade temores de rebelião (Deive, 1989, 36). Convergindo em relação à política estatal, a
alianças entre ameríndios e africanos. A revolta deflagrada em Santo estratégia que a classe senhorial buscaria adotar seria inibir, na medida
Domingo no ano de 1519, sob a liderança do cacique taíno conhecido do possível, a coesão por meio da composição de escravarias etnica-
como Enriquillo, contou com a adesão dos negros. Pouco depois, em 21 mente diversificadas, o que também se buscou empregar na América
de dezembro de 1521, na mesma ilha, teve início a primeira rebelião de portuguesa, sobretudo após a experiência com Palmares (Laviña, 1998,
escravos africanos de que se tem registro nas Américas. Cerca de 20 es- 139-151; Lara, 1996, 88; Lara, 2007, 158-165; Florentino; Góes, 1977).
cravos começaram um levante no engenho do vice-rei Diogo Colombo A repercussão da rebelião de 1521 foi além da restrição à impor-
(filho primogênito de Cristóvão Colombo), aproveitando que os pro- tação do grupo étnico preponderante entre seus participantes. Em 6 de
prietários estavam envolvidos nas festividades natalinas. Com a adesão janeiro de 1522, aprovou-se em Santo Domingo um conjunto de normas
de escravos de haciendas próximas, cerca de quarenta revoltosos promo- dedicadas à prevenção de novos levantes, ao resgate de fugitivos e à puni-
veram uma série de distúrbios entre os povoados da localidade. Por volta ção de novos atos de rebeldia: eram as Ordenanzas de Negros, documento
de 12 espanhóis teriam sido mortos por sua ação. O vice-rei, que não composto por 23 itens. O texto, elaborado pelo vice-rei, oidores e outros
se encontrava em sua hacienda, atuou com rapidez, mobilizando tropas
35 Em meados do século XVI, o critério seria afixado da seguinte forma: somente poderiam ser
para o controle dos rebeldes. Em poucos dias, após alguns enfrentamen- importados escravos bozales, que não fossem muçulmanos ou gelofes. (Deive, 1989, 145; 609).
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oficiais locais, passou pela aprovação real, tornando-se extensivo a todas taria denúncias sobre fugas e outros excessos cometidos pelos escravos,
as povoações da ilha de Hispaniola e San Juan de Puerto Rico, principais administrando as penalidades cabíveis. Cuadrilleros ficariam obrigados a
regiões escravistas daquele momento. Trata-se de um documento jurídico acompanhar o ejecutor e a cumprir suas ordens, caso contrário deveriam
de grande relevância, tendo inaugurado uma fórmula seguida em regula- pagar uma multa de dez pesos de ouro; após o início de uma expedi-
mentos posteriores (Lucena Salmoral, 2000, 142). ção, eles só poderiam retornar depois da captura do fugitivo, sob pena
Primeiramente, foi estabelecido um prazo de 20 dias para que de vinte pesos de ouro. Todo aquele que ferisse ou assassinasse algum
os cativos que se encontravam em fuga retornassem ao domínio de seus fugitivo durante as perseguições ficaria isento de punições. Além disso,
senhores. Para as fugas que ocorressem a partir daquele momento, es- qualquer pessoa ficava autorizada a prender um cativo em suspeição de
tabeleceu-se o prazo de 10 dias, tanto para a denúncia pelos senhores fuga, devendo entregá-lo ao ejecutor ou à justiça, pelo que receberia a
quanto para a aplicação das penalidades aos fugitivos – amputação de recompensa de um peso às custas do senhor (Lucena Salmoral, 2000,
um dos pés após os primeiros 10 dias, e morte por enforcamento, se 562). O financiamento de todo aquele aparato seria feito por meio de
pego no vigésimo primeiro dia em diante. Vale destacar, para termos um fundo depositado em uma Arca. O dinheiro viria, basicamente, da
comparativos, que apesar de algumas tentativas nesse sentido, a fuga não aplicação de multas diversas, além de um novo tributo criado especifica-
era crime na América portuguesa. As sanções impostas pela legislação mente para aquele fim (um peso de ouro por escravo). A Arca ficaria na
lusa normalmente incidiam sobre aqueles que promoviam, facilitavam casa do tesoureiro local e teria três chaves (Lucena Salmoral, 2000, 563).
ou se beneficiavam da fuga dos escravos. A punição dos fugitivos era Como foi indicado, iniciativas semelhantes não se limitaram
assunto doméstico (Lara, 1988, 295). Já os espanhóis, sem deixar de pe- a Santo Domingo, constando de diversas outras ordenanzas elaboradas
nalizar promotores e beneficiários, adotaram uma política clara de cri- para diversas regiões da América espanhola ao longo do tempo (Lucena
minalização da fuga, com a imposição de penas duríssimas para a evasão Salmoral, 2000, 210-213; 242). Mas, em termos gerais, o estabeleci-
em si e para outros delitos cometidos em seu curso (Lucena Salmoral, mento do fundo encontrou uma resistência aguda dos proprietários de
2000, 165; 187). A reincidência, o tempo de ausência e a formação de escravos, via de regra avessos ao pagamento dos tributos e multas fixa-
palenques apareceriam como agravantes, aumentando ainda mais a in- dos para o custeio do aparato repressivo (Samoral, 2000, 387). Ao que
tensidade das punições. parece, é possível assumir como tônica uma conclusão semelhante à de
Pela letra das Ordenanzas, nenhum escravo poderia circular Silvia Lara para o caso luso-brasileiro, “contra as inevitáveis fugas dos
entre uma fazenda e outra, ainda que fosse em dias festivos, a não ser escravos os senhores tomavam suas medidas, cada um cuidando de si e
que estivesse na companhia de seus senhores ou de “pessoas que deles dos seus” (Lara, 1996, 85).
tenham cargo ou com sua licença e mandado, a qual não se dê sem justa Nos momentos de maior agitação, eram realizadas as chama-
causa”, sob pena de 50 açoites, na primeira vez, e de corte de um dos pés, das guerras contra los cimarrones, campanhas militares pontuais realizadas
na segunda. Além de reduzir a possibilidade de fuga no trânsito entre para destruir um determinado palenque, debelar uma rebelião ou subme-
as haciendas, o objetivo era impedir a realização de encontros que resul- ter fugitivos que estivessem trazendo especial abalo à ordem pública, por
tassem no ajuste de ações coordenadas entre cativos de diferentes pro- vezes com mando e apoio da metrópole, por vezes baseadas unicamente
priedades (Lucena Salmoral, 2000, 560). Além disso, determinou-se a na iniciativa local (Lucena Salmoral, 2000, 590). No cotidiano, diante
criação de uma força repressiva contra a cimarronaje, que, com certas al- das dificuldades de financiamento de rondas permanentes, recorreu-se
terações e ajustes, integraria várias outras ordenanzas de polícia editadas muito frequentemente a rancheadores, profissionais equivalentes aos ca-
posteriormente. Entre as atribuições do ejecutor, oficial responsável pela pitães do mato da América portuguesa, que passariam a ser nomeados
implementação das disposições impressas nas ordenanzas, estaria a rea- por cabildos e Audiencias para a realização de buscas, com premiação
lização de diligências e averiguações constantes, ao longo das quais acei- paga diretamente pelos senhores (Guillot, 1961, 64-66).
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A via do acordo também foi explorada em casos de grande im- Portugal, por seu turno, era um condado que se fortaleceu, con-
passe. Quando os instrumentos disponíveis falhavam e a guerra aberta quistou sua independência, formou uma monarquia autônoma e se ex-
parecia demasiadamente custosa e ineficaz, o governo colonial espanhol pandiu além-mar; não fez parte de sua conformação enquanto unidade
estabeleceu tratados de anistia com os cimarrones que estabelecessem a política a incorporação de outros reinos ou unidades autônomas. Pelo
paz. Emblemático nesse sentido foi o caso do palenque mexicano dos contrário, a sua própria autonomia sempre esteve em risco. O reconhe-
yanguicos, localizado no pico de Orizaba, em Veracruz (Lucena Salmoral, cimento de um estado quilombola dentro do estado português talvez
2000, 165). Em 1609, após resistirem a anos de ofensivas, os cimarrones, representasse uma indesejável dilatação daquele risco que ameaçava a
liderados por Gaspar Yanga, aceitaram um tratado de paz com as auto- soberania portuguesa permanentemente (Silva Júnior, 2013, 113-152).
ridades espanholas. Em troca da deposição das armas, foi reconhecida
a liberdade de todos que haviam fugido para lá antes de setembro de
1608, e o palenque recebeu status de um pueblo livre, batizado de San O tratamento dos escravos
Lorenzo de los Negros, com seu próprio governo, chefiado por Yanga,
cabildo e justiça maior. Os negros do novo pueblo se comprometeram a Em seu ensaio sobre história comparada, Eugene Genovese
ajudar os espanhóis na captura de escravos que fugissem daquele mo- distinguiu três acepções básicas para a noção de tratamento no mundo
mento em diante. Tratados semelhantes seriam firmados em Cartagena, da escravidão. Uma primeira diz respeito às condições de vida no dia-
no Panamá e em Nova Granada (Davidson; Price 1981, 43; Valiente -a-dia, mesuradas pela quantidade e qualidade de comida, vestimentas,
Ots, 2008-2009, 399-421). moradia, jornada e condições gerais de trabalho; uma segunda, inclui
Novamente estabelecendo um ponto de comparação, vale segurança familiar, oportunidades de independência social e religiosa e
mencionar que acordos semelhantes não chegaram a integrar de forma outros desenvolvimentos culturais; e uma terceira que remete ao acesso
frequente a política portuguesa em relação a mocambos e quilombos. O à liberdade e à cidadania (Genovese; Foner; Genovese, 1969, 203). No
tratado firmado com Gangazumba em 1678, embora importante para império espanhol, as três acepções estavam costuradas no ordenamento
a história de Palmares, foi excepcional (Lara, 2008, 108-112). Isto se jurídico, não propriamente em nome do humanitarismo, mas para man-
explica pelas diferenças formativas entre Portugal e Espanha. O reco- ter a ordem na sociedade.
nhecimento de comunidades independentes, com autonomia política, As Siete Partidas constituíam a referência básica também quan-
jurídica e territorial, era uma característica básica do processo político to a este aspecto. Na Quarta Partida, era previsto que “si algún hombre
espanhol. O que a Coroa espanhola fez em relação a certos palenques fuese tan cruel a sus siervos que los matase de hambre o les hiriese o les
mais resistentes foi desdobrar um procedimento que já carregava desde diese tan gran lacerío que no lo pudiesen sufrir, que entonces se pueden
a unificação dinástica na Península. Nas palavras de Sérgio Buarque: quejar los siervos al juez. E el de su oficio debe pesquerir en verdad si es
así: e si lo hallare por verdad debe los vender e dar el precio a su señor”
“Em terras de Castela continuavam, na ocasião dos descobri- (Lucena Salmoral, 2000, 536). Este postulado, que recupera quase sem
mentos, a prevalecer as normas jurídicas peculiares ao direito alterações o que já estava nas Institutas romanas (I.1.8.1), constitui a
castelhano. Nos estados integrantes de Aragão, mantinha-se
base jurídica para queixas dos escravos e para iniciativas voltadas à me-
da mesma forma a vigência de seus direitos particulares: ara-
gonês, catalão, valenciano e maiorquino. Navarra, incorporada lhoria das condições de vida (De la Fuente, 2007, 659-692).
ao reino aragonês, conservou durante os primeiros tempos, Nas ordenanzas dominicanas de 1528, os maus-tratos foram
dentro da Península, sua condição de Estado soberano e inde- claramente associados à rebeldia: “porque parece ser que algunas ve-
pendente” (Holanda, 1994, 327-328). ces los tales negros esclavos se alzaren por los malos tratamientos así
en el comer, como en el beber, como en los castigos excesivos que les
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dan sin causa por las personas que los tienen a su cargo”. Na sequência, escravidão e, segundo, as regras com as quais os cativos tinham que lidar
especificava-se o mínimo de vestimentas e alimentos aos cativos, reco- para tentar superar as suas dificuldades e a sua própria condição por
mendando-se folgas aos domingos e dias festivos. Um visitador ficaria meio da alforria. O escravismo castelhano pode ser descrito como um
responsável por fiscalizar e incitar os senhores a cumprirem com as ditas sistema relativamente aberto à alforria e às iniciativas dos escravos no
obrigações, podendo até mesmo obrigá-los a vender um de seus escravos judiciário, que procurava incessantemente impor limites legais às ações
para custear a alimentação e vestido dos demais.36 dos senhores. Por outro lado, a reiteração das medidas contrárias aos
Outras ordenanzas lançadas em Havana, em 1574, além de fixar maus-tratos dá conta de seu sucessivo fracasso. As especulações sobre
os provimentos mínimos, estabelecia a obrigação da venda do escravo uma suposta brandura da escravidão espanhola ficaram para trás.
maltratado, justificando que “hay muchos que tratan con gran crueldad
sus esclavos, azotándolos con gran crueldad y mechándolos con diferen-
tes especies de resina, y los asan y hacen otras crueldades de que mueren, Roteiro bibliográfico
y quedan tan castigados y amedrentados que se vienen a matar ellos, y a
echarse a la mar, o a huir o alzarse, y con decir que mató a su esclavo no Na primeira metade do século XX, ganhou fôlego o contra-
se procede contra ellos”. Os procedimentos ficariam por conta do cabildo ponto entre a escravidão na América ibérica e na América anglo-saxô-
e, aos moldes de Santo Domingo, também deveria haver um visitador nica. A peça fundamental foi o livro de Frank Tannenebaum: Slave and
que averiguaria as condições de tratamento (Samoral, 2000, 772-775). Citizen, publicado em 1946, que estabeleceu um paradigma para os
Medidas semelhantes seriam editadas diretamente pela Coroa estudos comparativos sobre a escravidão negra nas Américas. A ideia
espanhola. Em 1683, atualizando o disposto nas Partidas, o monarca central do autor é a de que as diferenças de ordem moral e jurídica exis-
advertiu todas as Audiencias e governadores indianos, sob o discurso hu- tentes entre os regimes escravistas determinaram as relações interétnicas
manitário cristão, a tomarem cuidado particular em evitar que os cati- estabelecidas após a emancipação. Uma pretensa situação mais favorável
vos fossem castigados cruelmente. O texto dizia que “siempre que se encontrada pelos cativos nas possessões luso-hispânicas resultaria em
averiguase exceso de sevicia en los amos, se les obligue a venderlos [os um menor preconceito racial nos países latino-americanos. A sociedade
escravos] y además a que se les castigue” (Samoral, 2000, 930-931). Em racista e estratificada dos Estados Unidos seria decorrência de um regi-
1710, o monarca voltaria a recomendar especial vigilância sobre os cas- me bem mais severo e restritivo.37
tigos impostos pelos senhores, determinando que se Para configurar a escravidão portuguesa e a espanhola,
Tannenbaum tomou como base uma constatação histórica procedente,
“no dejen de continuar los referidos esclavos en la debida servi- qual seja, a sobrevivência desse fenômeno na Península Ibérica no perí-
dumbre y sujeción a sus dueños, ni que tomen alientos para las odo em que havia praticamente desaparecido da Europa ocidental. Mais
fugas que acostumbran ejecutar, que dimanan, muchas veces, del
importante até do que a continuidade da prática escravista teria sido
imprudente rigor del castigo, y que probado que sea el exceso de
éste en el esclavo, puedan los referidos Gobernadores y Justicias
precisar a sus amos a que les” (Samoral, 2000, 948-949). 37 O autor sugere que a escravidão na América se dividia em três grupos: em um extremo estaria
o grupo formado por britânicos, americanos (do Norte), holandeses e dinamarqueses; no outro,
O que fica de toda essa trama legislativa é, primeiro, a forma portugueses e espanhóis; os franceses ocupariam uma espécie de lugar intermediário. O primeiro
grupo distinguir-se-ia por não possuir uma tradição escravista e de leis relativas à escravidão; suas
como o estado espanhol se colocava na mediação das relações sociais de instituições religiosas estariam pouco preocupadas com a situação dos negros. Já o grupo ibérico
teria uma tradição e uma legislação escravista, bem como uma convicção de que a personalidade
espiritual do escravo transcendia sua condição. Aos franceses também faltaria a tradição e a legislação,
36 De acordo com Lucena, estas ordenanzas serviram de base para a elaboração do Código masteriam os mesmos princípios religiosos de portugueses e espanhóis. Frank Tannenbaum. Slave
Negro Francês. (Samoral, 2000, 154-155). and Citizen: The Negro in the Americas. New York: Alfred A. Knopf, 1946, p.65.
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a sobrevivência de uma longa tradição legal acerca da escravidão, her- de otras naciones europeas que tuvieron colonias en el Nuevo
dada do Código de Justiniano. Toda aquela longa tradição normativa, Mundo. De aquí provino la abundancia de libertos que desde
condensada nas Siete Partidas, reconheceria a humanidade dos escravos, los primeros tiempos de la conquista hubo en los dominios
españoles” 41.
protegendo-os e dando-lhes condições para a obtenção da liberdade.38
A bem da verdade, é importante registrar que oposição entre a
Deste modo, Tannenbaum nada mais fez do que recuperar e
severidade do escravismo anglo-americano e a brandura do regime ibéri-
desenvolver argumentos ideológicos que já haviam estado em voga mui-
co não foi criação de Tannenbaum. A imagem enternecida da escravidão
to antes. Ao fazê-lo, deu nova força à visão atenuadora da escravidão
luso-brasileira, em especial, foi construída em grande medida a partir
ibero-americana, inaugurando uma série de estudos comparativos entre
de relatos de viajantes que percorreram a América portuguesa durante
as diversas regiões escravistas.42 O trabalho de Stanley Elkins está nessa
o século XIX, tais como Auguste de Saint-Hilaire, Henry Koster, João
série, tendo oposto uma América do Norte capitalista (secularizada e
Maurício Rugendas, George Gardner, John Luccock. Nesses textos, o
sem controles institucionais) às colônias portuguesas e espanholas (ba-
tratamento dispensado aos escravos no Brasil não raro era caracteriza-
seadas em culturas conservadoras, paternalistas, norteadas por institui-
do como pouco rígido, senão benevolente. Tais narrativas divulgariam
ções legais e eclesiásticas, que teriam gerado uma escravidão mais “mo-
para o exterior o suposto “paraíso racial” brasileiro, servindo de base para
derada”). A diferença não estaria tanto no bem-estar dos escravos lati-
formulações que buscavam ressaltar o “inferno racial” norte-americano.
no-americanos, mas em seu reconhecimento enquanto seres humanos43.
Como destacou Celia M. Marinho de Azevedo, os abolicionistas esta-
Entretanto, a partir da década de 1960, a dicotomia estabeleci-
dunidenses estiveram entre os que se valeram daquele contraponto, bus-
da entre a escravidão latino-americana e a anglo-americana passou a ser
cando destacar a singular severidade dos senhores de escravos sulistas
criticada de maneira sistemática. Buscou-se demonstrar que nenhuma
e o forte racismo já perceptível àquela altura39. Além disso, nas Cortes
colônia detinha o monopólio da brandura ou da crueldade; que o uso da
de Lisboa (1820-22) e na Assembleia Nacional Constituinte do Rio de
violência foi um instrumento básico e recorrente para manutenção da
Janeiro (1823), deputados brasileiros valeram-se de argumentos simila-
estrutura de dominação senhorial de um canto a outro do continente;
res para defender a continuidade da escravidão no Brasil 40.
que o tráfico transatlântico conferiu certa uniformidade ao fenômeno
Tampouco Tannenbaum foi o primeiro investigador a acenar
da escravidão; que fatores como oscilações de mercado, de produção,
para uma legislação espanhola comparativamente mais benéfica para os
guerras externas, entre outros, influíam na intensidade da exploração da
escravos. Vide as palavras de José Antonio Saco:
força de trabalho dos negros cativos.
“es justo reconocer [...] que la legislación española fue mucho O estudo de David Brion Davis foi um expoente dessa vertente
más templada y benéfica para con los negros esclavos que la crítica. Para ele, as diferenças nacionais e culturais foram exageradas por
44

38 Um dado importante a ser mencionado é que Tannenbaum baseou-se largamente na obra 41 Idem, p.53. José Antonio Saco. Historia de la esclavitud de la raza africana en el Nuevo Mundo,
de Gilberto Freyre para caracterizar o papel distinto ocupado pelos negros na América ibérica Barcelona, 1879, t.4, p.222.
e na anglo-saxã. O sociólogo fiou-se explicitamente nos seguintes estudos freyrianos: Brazil: An 42 Silvia Hunold Lara. Campos da Violência. Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro,
Interpretation. New York: Alfred A. Knopf, 1945 e O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.98.
José Olympio, 1940. 43 Stanley M. Elkins. Slavery. A Problem in American Institutional and Intellectual Life.
39 Celia Maria Marinho de Azevedo. Abolocionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história Chicago: The University of Chicago Press, 1959. Ver também: Herbert S. Klein. Slavery in the
comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003. Americas. A Comparative Study of Cuba and Virginia. Chicago: The University of Chicago Press,
40 Sobre as estratégias e argumentos utilizados por parlamentares para fundamentação do 1967.
projeto escravista na América ibérica nesse período, ver: Márcia Regina Berbel & Rafael de 44 David Brion Davis. “A contradição contínua da escravidão: uma comparação entre América
Bivar Marquese. “A escravidão nas experiências constitucionais ibéricas, 1810-1824”. Texto Inglesa e a América Latina”, pp.255-295. In: O Problema da escravidão na cultura ocidental
apresentado no seminário internacional Brasil: de um Império a outro (1750-1850), realizado no (1ªedição: 1966. trad. Port.). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. Para uma perspectiva
Departamento de História da USP em setembro de 2005. crítica à linha estabelecida a partir da obra de Tannenbaum cf. também: Marvim Harris.
168 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 169
autores como Tannenbaum e Elkins, sendo que “todos os proprietários quais os escravos estavam submetidos. O autor pondera que, a despeito
americanos de escravos compartilhavam certos pressupostos e problemas dos significativos esforços para demonstrar que os regimes escravistas fo-
centrais”. De acordo com o autor, exceto no que diz respeito às barreiras ram similares em sua essência e que as diferenças existentes decorreram de
legais para a alforria, as características principais da escravidão norte-a- condições materiais e não da legislação, uma discussão significativa per-
mericana também se encontravam entre espanhóis e portugueses. Isto é, manece: a proporção da população liberta sempre foi maior nas Américas
em toda parte o negro era um bem móvel e transferível, cuja força de espanhola e portuguesa do que nos Estados Unidos. No entender de De
trabalho e bem-estar era controlada por outrem. Davis questiona o grau la Fuente, o insight de Tannenbaum de que a frequência da manumis-
de observância das leis e destaca que tanto no direito anglo-americano são influenciou, mais do que qualquer outro fator, o resultado último da
quanto no ibero-americano, ou mesmo no romano, o escravo era conce- escravidão continua de pé. De acordo com este historiador, embora as
bido como um bem ou instrumento de trabalho, ao mesmo tempo que sociedades pós-emancipação latino-americanas não tenham sido a utopia
como um ser humano.45 No entanto, Davis não refuta um ponto essencial, racial uma vez pensada, foram diferentes dos Estados Unidos num aspec-
as diferenças com respeito à alforria, reconhecendo que os negros tiveram to fundamental: não criaram uma segregação institucional.
mais oportunidades de obterem a liberdade nas possessões ibéricas do Assim, apesar das críticas sofridas, Slave and Citizen conserva
que nas colônias inglesas e Estados Unidos. Ora, a facilidade para a ma- sua relevância e ainda pode engendrar temas de pesquisa bastante factí-
numissão é um dos argumentos centrais de Tannenbaum para definir o veis. Para Alejandro de la Fuente, um deles é o exame das brechas legais
contraste entre e a América Latina e a anglo-saxônica. Assim sendo, não existentes nas colônias ibéricas para a reclamação de certos “direitos”
teria aquele autor mais nada a nos ensinar sobre a legislação escravista? por parte dos escravos. Pensando mais especificamente na escravidão
Essa questão serviu de mote para um fórum de debate ocorri- cubana, o estudioso acena para o encurtamento da distância entre os
do em 2004. A discussão foi introduzida através do texto elaborado pelo dispositivos legais e o protagonismo social dos negros cativos a par-
historiador cubano Alejandro de la Fuente. Em seu texto, o estudioso rea- tir do conceito de “reclamación de derechos”. O autor reconhece que
firmou a relevância do livro de Frank Tannenbaum, não apenas por haver Tannenbaum atribuiu à legislação um exagerado poder de transforma-
estabelecido os termos do debate, mas, também, por expor a importância ção social. Segundo sua ótica, eram os escravos, ao efetuarem pressões e
do direito na demarcação das condições muitas vezes contrastantes sob as reivindicarem certos benefícios, que conferiam significado concreto aos
direitos abstratos regulados pelas leis positivas.46
Patterns of Race in the Americas. Nova York: Greenwood Publishing Group, 1964; Arnold A. Sio. Nos últimos anos, tem ocorrido uma espécie de resgate do debate
“Interpretations of Slavery: The Slave Status in the Americas”, in: Comparative Studies in Society
and History, 1965, VII, pp.289-308. iniciado por Tannenbaum, por autores como Robert J. Cottrol e o mesmo
45 Davis, op.cit. p.277. Foi fundamental o diálogo estabelecido por Davis com os trabalhos Alejandro de la Fuente, em estudos conjuntos com Ariela Gross.47 De la
dos cientistas sociais da chamada “Escola de São Paulo”, os quais denotam uma realidade Fuente & Gross, por meio de uma análise sobre as relações entre direito e
bem mais dura do que aquela delineada na obra de Gilberto Freyre. Cf. Paula Beiguelman.
Formação política do Brasil. São Paulo: [s.n.], 1967; Fernando Henrique Cardoso. Capitalismo escravidão em Cuba, Louisiana e Virginia, se debruçaram sobre os esforços
e Escravidão no Brasil Meridional. O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. São legislativos locais, os arranjos costumeiros e os apelos judiciais feitos pe-
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. Emília Viotti da Costa. Da Senzala à Colônia. São
Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966. Octavio Ianni. As Metamorfoses do Escravo. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1962. É preciso lembrar, porém, que o ponto de partida para essa
linha de estudos está no final da década de 1950; ver: Roger Bastide e Florestan Fernandes.
Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1958 (2.ª ed.). Os seguintes 46 Alejandro de la Fuente. “La esclavitud la ley...”, p. 39.
trabalhos obtiveram resultados semelhantes, podendo ser enquadrados nessa mesma tendência: 47 Robert J. Cottrol.  The Long, Lingering Shadow: Slavery, Race, and Law in the American
Stanley J. Stein. Vassouras. A brazilian Coffe Country, 1850-1900. Cambrige: Havard University Hemisphere. Athens: University of Georgia Press, 2013, pp.2-21; Alejandro de la Fuente &
Press, 1957; Charles R. Boxer. Relações Raciais no Império Colonial Português, 1415-1825. Rio de Ariela Gross. Comparative Studies of Law, Slavery and Race in the Americas. University of
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967; Suely R. R. de. Queiroz. A Escravidão Negra em São Paulo – Um Southern California Legal Studies Working Paper Series (February, 2010). Disponível em: <http://
Estudo das Tensões Provocadas pelo Escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977. law.bepress.com/usclwps/lss/art56
170 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 171
los escravos.48 Os autores desenvolvem o argumento de que o quadro legal, cio-política fariam com que os breves ganhos da população negra livre da
correlacionado à dinâmica política local, à ideologia racial e à configuração Virginia fossem achatados, em meio ao avanço da ideologia racial e aos con-
demográfica, criou oportunidades diferenciadas para escravos e negros li- flitos internos em torno da escravidão nos Estados Unidos (a partir de 1806,
vres. Eles reconhecem na chamada Era das Revoluções um momento de seriam novamente impostas barreiras legais à manumissão). Na Luisiana,
aproximação das experiências escravistas, com um afluxo de ideias favorá- incorporada aos Estados Unidos em 1803, após um novo e breve domínio
veis à liberdade e um crescimento generalizado de chances efetivas para a francês, restrições também seriam impostas, mas persistiria um sistema legal
manumissão, inclusive na Virginia, onde haveria um relaxamento das nor- híbrido, com contínuas remissões a preceitos espanhóis e franceses para o
mas contrárias às liberações49. No entanto, o crescimento da presença de respaldo de reclamações de liberdade, com alguma margem de sucesso. Em
negros entre a população livre não seria suficientemente abundante a ponto Cuba, o bem estabelecido conjunto de princípios legais e costumeiros asso-
de sedimentar a conjuntura favorável (passou de 1% na década de 1770 para ciados à manumissão continuaria em franca operação. A sua sedimentação
1,7% na década de 1790). Na Luisiana, que foi para as mãos espanholas em ao pé da volumosa presença de egressos impediria que a elite proprietária
1763, o cenário seria notavelmente mais aberto, denotando o relevo da cul- cubana pudesse embarreirar legalmente o acesso à alforria, “a despeito do
tura jurídica proveniente de Castela, que logo sobrepujaria as normas restri- desenvolvimento de uma economia de plantação na ilha”52.
tivas inseridas no Código Negro francês promulgado em 1724.50 Naqueles Esse modelo explicativo articula elementos importantes para
anos, as chances dos cativos obterem a sua liberdade em Nova Orleans se- o esclarecimento das diferenças legais e de suas implicações nas regiões
riam três vezes maiores do que na Virgínia, chegando a uma centena de abordadas ao longo de todo o processo. No entanto, há outros aspectos
liberações anuais no início da centúria seguinte. No caso de Cuba, ocorreria que poderiam contribuir para o enriquecimento do quadro. É preciso
o fortalecimento do padrão já solidamente arraigado a partir do nexo entre ter em conta os traços constitutivos dos ordenamentos jurídicos desta-
os precedentes e a presença ascensional de negros e mulatos na população cados, que vão além da presença prévia de normas relativas à escravidão
livre. As medidas expedidas no âmbito do reformismo bourbônico referen- e da opção analítica de abordar ou não as normas locais, problema que
dariam antigas práticas costumeiras potencialmente favoráveis aos escravos, destacam na historiografia. Em termos comparativos, havia no interior
como a coartación (amortização gradual do valor correspondente à alforria), do império britânico, ordenado sob a tradição da common law, um grau
mantendo as portas abertas para demandas por liberdade.51 diferenciado de autonomia jurídica e um peso específico da jurisprudên-
No século XIX, as experiências se distanciariam. A pequena im- cia para a fixação das normas. Isto ajuda a explicar porque foi possível a
portância numérica e a consequente rarefação de sua potencial pressão só- permanência de um sistema híbrido na Luisiana. Desse modo, mesmo
que houvesse um arcabouço prévio sobre a escravidão na Inglaterra que
>. Acesso em: 04/10/2017; Alejandro de la Fuente & Ariela Gross. Slaves, Free Blacks, and sancionasse o ato privado da alforria, a sua assimilação não necessaria-
Race in the Legal Regimes of Cuba, Louisiana and Virginia: a Comparison. North Carolina mente teria os mesmos efeitos sociais, demográficos observados para o
Law Review, n.91 (2013), pp.1699-1756.
48 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, op.cit. O cenário ibero-americano.53
posicionamento crítico de Gross & De la Fuente diz respeito ao procedimento adotado por É inegável que a pressão exercida pelos escravos em busca de sua
Herbert Klein em trabalho de 1967, que contrapôs de maneira estrita os estatutos locais da
Virginia às leis metropolitanas para Cuba. Cf. Herbert S. Klein. Slavery in the Americas: A
liberdade e pela presença massiva de negros e mulatos entre a população
Comparative Study of Virginia and Cuba. Chicago: The University of Chicago Press, 1967. livre ajuda a explicar por que os precedentes concernentes à transição da
49 A referência direta neste ponto é ao artigo da historiadora Keila Grinberg: Freedom Suits escravidão para a liberdade não apenas foram mantidos, como foram am-
and Civil Law in Brazil and the United States. Slavery & Abolition (2001), 22, pp.66-82.
50 Vernon Valentine Palmer. The Origins and Authors of the Code Noir. Louisiana Law
Review, v.56, n.2 (1996). Disponível em: <http://digitalcommons.law.lsu.edu/lalrev/vol56/ 52 Idem, p.1707.
iss2/5>. Acesso em: 24 de ago. 2013; Alan Watson. The Origins of the Code Noir Revisited. 53 Alan Watson. Slave Law in the Americas. Athens: University of Georgia Press, 1989, pp.63-
TUL. L. REV., n.71 (1997), pp.1041–1055. 82; Idem. The Evolution of Law. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001, pp.234-
51 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, pp.1708-1716. 247; Paul Finkelman (ed.). Slavery & the Law. Madison: Madison House, 1997, pp.379-418.
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pliados em um dado momento.54 Ocorre, porém, que, da maneira como formas de alforria, aquela normativa não assumiu um caráter corrosivo ou
o argumento é desenvolvido por Gross & De la Fuente, os senhores de antiescravista. Pelo contrário, ela se ajustou ao sistema, constituindo um
escravos cubanos e ibero-americanos, por extensão, aparecem como im- dos pilares para o avanço da escravidão cubana no século XIX. O outro
potentes diante da injunção dos precedentes e do movimento desenca- documento é uma carta de liberdade da região de Pinar del Río em Cuba.
deado pelos próprios cativos. O problema é que o ímpeto generalizado Seus termos dialogam diretamente com o teor da Real Cédula de 1778.56
dos senhores de escravos contra a alforria, que os autores sugerem, não é
empiricamente demonstrado. Além do que, o seu argumento pressupõe
uma contradição entre a grande plantação, a prática da manumissão e os Doc. 1. Real Cédula de 8 de abril de 1778.
interesses da classe senhorial que não existia.55 El Rey.
Governador y Capitán General de la Isla de Cuba, y ciudad de San
Cristóbal de la Havana. Con motivo de las dudas y disputas ocurridas en
Extratos de documentos esta Capitanía Gral, en orden a la paga de la Alcabala que causavan las
ventas voluntarias ó involuntarias de parte de los Amos de los Negros, y
A seguir, os leitores poderão ter acesso à Real cédula de 8 de abril de Mulatos, declaré y mandé por Rl Cédula de 21 de Junio, que se obser-
1778, por meio da qual o governo espanhol, avançando em relação às Siete vase en esa Isla el mismo método, y reglas que en Nueva España, y el
Partidas, confirmou o direito dos escravos à alforria onerosa, determinando Perú, reducidas, entre otras; a que la Alcavala de los esclavos que se
que nenhum senhor poderia se furtar a outorgar a carta de liberdade ao es- vendiesen por mandato de la Justicia á causa de alguna vejación, ó malos
cravo de sua propriedade que apresentasse a soma correspondente ao seu preço tratamientos que experimentasen de sus Amos, fuese la satisfacción de
integral, podendo ser compelido em juízo a fazê-lo mediante avaliação peri- cuenta de estos enteramente, en pena de haber faltado a la humanidad,
cial. O mesmo documento validou a antiga prática da coartação, suscitando y racionales modos con que estaban obligados a tratarlos, sin que pudie-
dúvidas sobre o status dos coartados (se equivalente ao dos escravos inteiros, ran alterar el precio en que los adquirieron: que quando el que los poseía
como eram chamados). Consequentemente, abreviava-se o controle senhorial los enagenara por venta, o cesion, por pura voluntad, y conveniencia
sobre o término do cativeiro, já que originalmente a manumissão era uma suya, y sin que el esclavo huviese cometido delito que le estrechara á
prerrogativa senhorial. Legislação semelhante só surgiria no Brasil em 1871, deshacerse de él havía también de se de su cuenta la paga de Alcavala,
com a promulgação da chamada Lei do Ventre Livre. sin arbitrio de alterar el precio en que lo compró, pero que si el mismo
Entretanto, na medida em que a mobilidade social dos escravos esclavo daba causa con su mal proceder a que lo enagenara, y la Justicia
foi sempre inferior aos mecanismos de reposição da mão de obra (co- la calificava de suficiente, en este caso, entregará de pronto el vendedor
mércio e nascimento) e o domínio senhorial manteve suas prerrogativas el importe del derecho referido, y le aumentará el precio del esclavo, por
essenciais quanto à disciplina, ao manejo da força de trabalho e às demais haberse contemplado ser este un medio racional, que al mismo tiempo
que penaba el delito, servía de freno al siervo para contenerlo en su de-
54 Alejandro de la Fuente. Slavery and claims-making in Cuba: The Tannenbaum debate revisited.
Law and History Review, vol. 22, 2004, pp. 339-69; Idem. La esclavitud, la ley, y la reclamación ber, por el temor de que a proporcion de sus graves faltas havía de subir
de derechos en Cuba: repensando el debate de Tannenbaum. Debate y Perspectivas. Cuadernos de su valor, y por consecuencia la imposivilidad de adquirir la libertad á que
Historia y Ciencias Sociales, n.4, 2004, p. 37-68; Idem. Su único derecho: los esclavos y la ley. Debate y
naturalmente anhelan todos: que quando los esclavos entregasen á sus
Perspectivas. Cuadernos de Historia y Ciencias Sociales, n.4, 2004, p. 7-22; Idem. Slaves and the Creation
of Legal Rights in Cuba…, op.cit; Alejandro de la Fuente & Ariela Gross. Comparative Studies of Señores el importe de su valor, adquirido por medios honestos, bien
Law, Slavery and Race in the Americas. University of Southern California Legal Studies Working Paper
Series (February, 2010), pp.3-40. Disponível em: <http://law.bepress.com/usclwps/lss/art56>. Acesso
em: 04/06/2010; Silva Júnior. A escravidão e a lei..., pp.35-66. 56 Para uma análise do contexto de publicação dessa Real Cédula e uma comparação com o caso
55 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, pp.1707; 1724. brasileiro, (Cf. Silva Júnior, 2015, 72-102).
174 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 175
fuesen industriales, ó por suplementos de parientes, ó amigos suyos, con perverso, quando por su mala conducta se viera el Amo necesitado á
el fin de redimirse del cautiverio, ó servidumbre, fueran obligados los deshacerse de él; con cuyo motivo añadió el Marqués de la Torre, que
Dueños á otorgarles llana, y jurídicamente la carta de libertad, y los acaso se huviera omitido este recurso, á haberse opinado de otro modo,
Títulos en cuya virtud los poseían, quedando cancelados, y anotados en acomodandose los Consultores a la modificación con que los menos
sus respectivos lugares, sin que les fuese facultativo, en este caso, pedir preocupados entendían mis Rls disposiciones, quienes diferenciaban (a
más precio, ni recibir otra cosa, que la cantidad que exhivieron al tiempo su parecer fundadamente) las relatibas a las ventas de las que se contra-
de su adquisición, aunque alegasen que les havían enseñado algunos ofi- ían á libertades en lo substancial distinguiendo para ello dos grados de
cios, ó habilidades extraordinarias, porque todo se debía sacrificar a be- mejoramiento en los esclavos, uno ordinario y natural, y otro industrial
neficio de la libertad en que siempre, ó las más vezes interesaba el públi- y extraordinario siendo el primero el de los Negros de Guinea, que se
co, cuya utilidad preponderaba, á la privada del particular, y que en este provee esa Isla para las labores, mejorándose naturalmente de su bozali-
supuesto, no se contribuyera cosa alguna por razón de Alcavala, pues no dad, y nativa rudeza, aprendiendo el idioma y primeros rudimentos de la
la havía cuando el esclavo adquiría la libertad por los insinuados medios, Religión, recibiendo el Bautismo, y exercitándose después en el trabajo
ó por pura liberalidad de su Dueño, en reconocimiento de sus buenos a que eran destinados, en cuyo grado ordinario tenían la comun estima-
servicios; y finalmente que quando el esclavo entregara a su Amo parte ción de trescientos pesos y los del 2º que eran aquellos que salían más
del precio que le costó, con el fin de que rebajado de su valor principal habiles, y aplicados á algun oficio, ó ocupación particular adquiriendo
quedase éste más moderado, y él en mayor aptitud de conseguir su liber- Maestria, ascendian a superior estimación, correspondiente a la utilidad
tad, se anotase la rebaja en el instrumento que servía de Título, para que de su servicio, versandose la misma diferencia en los Criollos Negros, y
constase en todo evento, y que si acaeciese que antes de completar el Mulatos a beneficio de la disciplina y de la edad; y después de hacer el
total importe de su rescate, mudase el esclavo se otorgase el instrumento mencionado vro antecesor varias difusas reflexiones sobre la inteligencia
con deducion de aquella partida que dio en cuenta de su libertad, y la de las dos referidas Rs Cedulas, concluyó su citada carta exponiendo se
Alcavala se regulase, y cobrase unicamente de la cantidad a que quedara persuadía a que no era mi Rl ánimo pribar á los Dueños de esclavos de
reducido su valor, también en obsequio de la propia libertad; cuya decla- esa Isla del derecho al más valor de su mejoramiento extraordinario sino
ración habiéndose confirmado por otra Real Cedula de 27 de septiem- quando se tratara inmediata, y directamente de su libertad, y que en toda
bre de 1769, con solo la diferencia, de que por lo que tocaba a los escla- venta podrían aprovecharse de él con equidad y justicia, menos quando
vos coartados; que estos no pudieran mudar de Amo sin la voluntad de mereciesen perder el aumento ordinario, por pena de sus malos trata-
éste, á excepción de los casos expresados y prevenidos por derecho y que mientos, y que si vendían los esclavos por precisarlos estos con su mal
llegado a verificarse el traspaso, y venta de ellos, pagase de su precio el proceder, y no valían más que el precio ordinario ó tenían coartación á
Comprador la Alcavala, dió cuenta el Marqués de la Torre vro antecesor alguno inferior, podría cargar el importe de la Alcavala, en pena de su
en carta de 26 de Febrero de 1773 de haberle entregado el Ayuntamiento mala versación, lo que no les sería licito quando los vendieran, sin otro
de esa ciudad, y el Síndico Personero del Comun, una difusa represen- motivo, que el de su propia conveniencia, sobre cuyo pie variaría mucho
tación que acompañó testimoniada, sobre la inteligencia que debía darse la razón de esos vecinos, y se evitaría la minoración del derecho de
a varios de los puntos comprendidos en las dos citadas Reales Cedulas, Alcavala, que en otros términos sería irremediable. Visto lo referido en
exponiendo entendian los Juristas de esa Ciudad (a excepción de muy mi Consejo de las Indias, con lo que en su inteligencia y de los antece-
pocos) que su disposición prohivía indistintamente a los dueños de los dentes informó la Contaduría Gral y expuso mi Fiscal, y consultándome
esclavos la alteración del precio de su primera adquisición, para todos los sobre ello en 17 de Febrero proximo pasado, he resuelto, sin embargo de
casos en que se tratara de su venta, ó libertad; sin otra diferencia que la lo determinado en las dos Rs Cds de 21 de Junio de 1768 y 27 de
de poder sobrecargar el importe del Rl derecho de Alcavala al esclavo Septiembre de 1769, declarar, como por la presente mi Rl Cedula decla-
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ro, para obviar dudas, y recursos en adelante, que los dueños de esclavos mi Rl Audiencia de Sto Domingo, para que se hallen con esta noticia en
no coartados, han de tener la libertad de venderlos por el precio en que los casos que convengan; por ser así mi voluntad, y que del presente se
convinieren con los compradores, segun la menor, ó mayor estimación tome la razón en la propia Contaduría General. Fecha en el Pardo á
que tuvieren que quando los Amos por justas causas fueren obligados ocho de Abril de 1778.=Yo el Rey=Por mdo del Rey ntro Sor=Antonio
por autoridad de la Justicia á vender sus esclavos enteros, sea por el pre- Ventura de Taranco.57
cio en que se tasasen judicialmente en concepto al valor que tenían en
aquella actualidad, pero que si hubiese comprador que los quiera tomar Doc. 2. Carta de liberdade conferida na região tabaqueira de Pinar
sin tasación conviniendose para ello con el Dueño, en tal caso puedan del Río, Cuba, no ano de 1854, mediante compensação em dinheiro.
celebrar su ajuste, sin que sea lícito a la Justicia impedirlo, no obstante Sépase que yo el licenciado Don Miguel Quintanó como apoderado
que por ella se haya obligado al Dueño á venderlos, á menos que para de Don Francisco Betancourt según consta del que me confirmó en
minorar el precio de la Alcavala, no se adbierta alguna colusion entre el ocho de marzo anterior por ante el capitán interino de Consolación
comprador, y vendedor: que los esclavos coartados, no se puedan vender cuyo poder es suficiente juro no estarme revocado y original de agregó a
en más precio que el de la coartación ó el del resto de ella, pasando con esta escritura otorgo: que liberto y ahorro de toda sujeción cautiverio y
este mismo grabamen al comprador: que en todos estos casos satisfaga servidumbre a un negro nombrado Juan Macuá que quedó entre los bie-
el vendedor el derecho de Alcabala, regulado su importe por el precio en nes de Doña Rita Betancourt de quién es albacea mi pasavante la cual
que efectivamente se verifique la venta, procurando siempre precaver le confiere por la suma de cuatrocientos pesos que escribió en el juicio
todo fraude: que si el esclavo coartado con su mal proceder diere motivo testamentario cursado por esta escribanía de cuya cantidad le doy por
á su enagenación calificada quesca su culpa, pueda el Amo aumentar al entregado y otorgo recibo en formal con las renunciaciones necesarias
precio de la coartación el importe de la Alcavala, que ha de satisfacer en en virtud de lo cual y no estando gravado según lo certifica el anotado
los términos referidos; y finalmente declaro, que no deben pagar este del ramo en la que se agrega aposto a los bienes de la propiedad y po-
derecho los esclavos enteros, ni los coartados que se rescataren a si pro- sesión que al expresado negro habían y tenían que lo cedo y traspaso
pios con dinero adquirido por medios lícitos, quedando obligados los inviolablemente en su hecho y causa propia para que como persona libre
Amos conforme á la costumbre, á darles sin detención la libertad, siem- pueda tratar contratar comparecer en juicio otorgar escritura testamento
pre que apronten el precio correspondiente regulándose este en los no y los demás actos y cosas permitidas a las personas libres mando en toda
coartados por el valor que en la actualidad tubieren á justa tasación, si su espontanea voluntad y los obligo a que esta le será cierta y segura en
Dueño y siervo no se conviniesen, pues por lo que toca á los coartados, todo y sin contradicción de ninguna especie. En cuyo testimonio es fe-
no deben estos satisfacer por su libertad más cantidad que aquella que cha en el Pueblo de Pinar del Río en once de enero de mil ochocientos
falte a completar el precio que se fixó al tiempo de la coartación; y para y cincuenta y cuatro. Yo el escribano doy fe conozco al otorgante que
que todas las referidas declaraciones se observen en lo sucesivo precisa, firmó siendo testigos Don Tomás Álvarez, Don José Y Raveno y Don
y inviolablemente no obstante lo determinado en las expresadas Rs Ceds Felipe Hernández vecinos y presentes.58
de 21 de Junio de 1768 y 27 de Septiembre de 1769 (las quales derogo
y doy por de ningun valor, ni efecto, en quanto sean contrarias á lo dis-
puesto en ésta) os ordeno, y mando hagais publicar por Bando esta mis 57 Archivo Nacional de Cuba. Reales Cédulas y Ordenes. Legajo 14. No. 120. Trata-se de uma
normativa muito importante, na medida em que consolidou as bases legais para a obtenção da
Resolución para que llegue á noticia de todos los vecinos y moradores de alforria onerosa em Cuba. A transcrição deste documento foi feita e cedida pelas historiadoras
esa Isla, pasando copia de ella a ese Intendente, y dando las demás órde- Aisnara Perera e María de los Angeles Meriño, às quais agradeço.
nes, y disposiciones que correspondan a su observancia, en inteligencia 58 Carta de libertad otorgada por Miguel Quintanó a favor del negro nombrado Juan Macuá por ser
esclavo de su poderdante Francisco Betancourt como albacea de su hermana Rita. Archivo Provincial
de que por Despacho de este día se comunica al Regente, y Oidores de de Pinar del Río (Cuba), t.1, exp.22, 11 de janeiro de 1853.
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rica. Madrid: Fundación Histórica Tavera/Digibis/Fundación Hernando de Larramendi, 2000. e “aventureiros” particulares, operando mais ou menos sob a autoriza-
(Cd-Rom).
ção da Coroa, criaram uma variedade de colônias, cada uma com suas
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no Antigo Regime ibero-americano. São Paulo: Annablume, 2013. ordens legais distintas. As primeiras colônias norte-americanas foram
SILVA JÚNIOR, Waldomiro Lourenço da. Entre a escrita e a prática: direito e escravidão no
marcadas por um pluralismo de instituições, normas e culturas legais re-
Brasil e em Cuba, c.1760-1871. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História gionalizadas. E, contudo, subjacente a este pluralismo, havia caracterís-
Social – FFLCH/USP, 2015. ticas semelhantes. De uma ponta a outra da costa atlântica, era possível
KLEIN, Herbert S. Escravidão Africana: América Latina y Caribe (trad. José Eduardo de Men- observar uma justiça predominantemente leiga, compromissos consti-
donça). São Paulo: Brasiliense, 1987. tucionais comuns e um engajadamento simultâneo a uma resistência a
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo missionários da mente: senhores, letrados e o um Império Britânico cada vez mais interventor. Mas antes mesmo que
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esta história se desenvolvesse, assim que chegaram, os colonos tiveram
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TODOROV, Tzvetan. La conquista de América: el problema del outro. Buenos Aires: Siglo Vein- lonização da América do Norte diziam muito pouco, quando diziam, so-
tiuno, 2009. bre o status da lei nativa, obscurecendo os termos de sua interação com
VERLINDEN, Charles. “L’esclavage dans Le monde ibérique medieval”. Anuario de Historia del a Coroa e com as ordenações coloniais. Acima de tudo, os ingleses não
Derecho Español, Tomo XI (1934), pp.283-448.
aceitavam se submeter às leis nativas. Na prática, os nativos americanos
ZERON, Carlos Alberto de Moura. La Compagnie de Jésus et l’institution de l’esclavage au Bré- se relacionavam de formas variadas em relação aos sistemas legais dos
sil – les justifications d’ordre historique, théologique et juridique, et leur intégration par une mémoire
historique (XVIe-XVIIe siècles). Tese de doutorado. EHESS, Paris: 1998, 2.v colonos. Estas relações podem ser colocadas em um espectro. Índios que
viviam nas cidades coloniais se submetiam às leis dos colonos. Membros
de tribos que reconheciam a soberania inglesa, mas viviam coletivamente
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em comunidades indígenas ou dentro das fronteiras coloniais, mantinham de “escolha de lei” dentro das principais áreas de colonização europeia.
uma relação mais seletiva, mais ad hoc. Os índios nestas tribos não levavam As leis nativas importavam politicamente, mas não exerciam poder de
as suas disputas às cortes inglesas. Particularmente na tribo Chesapeake, lei sobre os colonizadores.
crimes e problemas relativos ao comércio eram mais prontamente trata- Uma comparação com o Império Espanhol ajuda a iluminar
dos como problemas comuns que deveriam ser resolvidos politicamente, ainda mais as razões e as implicações da limitada abordagem inglesa.
não como ofensas litigiosas individuais. Os caciques indígenas e os líderes Nos séculos XVI e XVII, colonos castelhanos viviam em número muito
coloniais assumiam as responsabilidades pelas ofensas dos seus povos e fa- menor dentre os milhões de indígenas. Os espanhóis esperavam que
ziam reparações através de punições aos meliantes, oferecendo compensa- a maioria dos nativos fossem incorporados ao império na medida em
ções às vítimase restaurando as relações através da diplomacia e da oferta que os colonos viviam do trabalho e dos tributos indígenas, evangeliza-
de presentes. Apesar de isso também ocorrer na Nova Inglaterra, por lá vam índios, reordenavam suas cidades, os convidavam ou os arrastavam
era mais comum que os índios invocassem ou fossem forçados para dentro para dentro de seus tribunais imperiais e tentavam, parcialmente, “his-
de um sistema legal colonial nesse tipo de disputas intercomunais (tipica- panizar” os seus costumes e governos. Contrariamente, os colonos da
mente aquelas envolvendo crime, sexo e casamento, venda de terras, fron- América do Norte britânica encontraram populações indígenas infinita-
teiras e trocas comerciais). As autoridades coloniais ansiavam por expan- mente menores nas regiões do Piedmont e da planície costeira atlântica.
dir o alcance teórico de suas jurisdições sobre as comunidades indígenas, O número de indígenas foi reduzido entre 80% a 90% durante o período
colocando importantes disputas dentro de suas próprias cortes e ao seu colonial, caindo de centenas de milhares para dezenas de milhares de
critério, mas na prática eles não tratavam as questões legais concernentes pessoas, enquanto as populações europeias aumentavam, de aproxima-
aos nativos americanos. Por último, para além das fronteiras coloniais, as damente 70.000 pessoas em 1660 para 1.270.000 em 1760. A remoção
tribos independentes exerciam uma soberania quase inata. Elas podiam dos nativos americanos tinha um componente que não era somente nu-
aceitar as decisões advindas das leis coloniais em casos particulares, mas mérico, mas também geográfico. Apenas uma minoria dos indígenas
apenas como resultado de negociações diplomáticas. sobreviventes continuou a residir nas principais áreas de colonização
Comparados com outras primeiras colônias europeias além- europeia. A maioria vivia nos interiores ou atrás de uma linha de fron-
-mar, os sistemas jurídicos ingleses na América do Norte mantive- teira porosa e de movimento contínuo. A relativa falta de interesse dos
ram um notável grau de distância em relação às leis dos povos nativos. colonos nas transações legais dos nativos no interior e na fronteira era
Colônias da Companhia das Índias Orientais em Madras, Bombaim e possível porque, diferentemente dos espanhóis, os ingleses não viviam
Calcutá, por exemplo, operaram sob pactos ou contratos com os chefes do trabalho e dos impostos indígenas. O sistema legal colonial não ca-
nativos, o que limitou o controle inglês sobre os seus homens no exterior librava nem garantia a extração de trabalho, dinheiro e bens dos povos
e demandou pelo menos alguma consideração em relação às leis nativas. indígenas, nem coordenava investimentos econômicos de larga escala
Em casos específicos, os tribunais da Companhia desenvolveram proce- (como a mineração e a remessa de barras de ouro e prata na América
dimentos para a aplicação das leis hindu e muçulmana aos que haviam do Sul) que dependiam de indígenas de diversas jurisdições locais. Os
aderido àquelas religiões. Ao contrário, os ingleses na América do Norte, colonos não fizeram nenhum esforço sistemático para “anglicizar” os
ao invés de firmarem contratos ou pactos com os nativos, justificavam sistemas jurídicos das comunidades americanas como no modelo (em
a colonização através do desenvolvimento das terras desocupadas. Eles grande parte ineficiente) da campanha de cristianização. Os ingleses
não se sentiam obrigados a tratar as leis dos povos nativos como uma também não seguiram a política espanhola de tratar os indígenas como
das diversas leis locais, transnacionais e imperiais, cuja interação com- súditos ou vassalos da Coroa. A não ser que fossem naturalizados, os ín-
plexa governava os assuntos dentro de suas colônias. O alcance das leis dios permaneciam como estrangeiros. Tipicamente, os oficiais coloniais
nativas se tornou uma questão de diplomacia mais do que um problema sabiam menos dos princípios legais indígenas do que os seus pares na
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Índia britânica e na América espanhola. O que se destaca na América Nas colônias de proprietário59, a Coroa concedia um território
inglesa, portanto, é o grau relativamente alto de separação entre a lei definido a um indivíduo ou a um grupo que “possuía” a colônia em for-
colonial e a lei nativa. ma de propriedade passível de ser herdada. Como nas relações feudais,
a posse passava de mão em mão de acordo com a autoridade governa-
mental. O proprietário, normalmente residente na Inglaterra, indicava o
Pluralismo legal, culturas regionais legais e escravidão governador da colônia, que agia em seu nome enquanto exercia poderes
similares ao de um governador real. Apesar de os primeiros proprietá-
Se a indisposição dos ingleses em tratar os costumes nativos rios reivindicarem o direito de proclamar leis, ao final do último terço
como uma forma legal a que os colonos deveriam ser submetidos aca- do século XVII eles já compartilhavam este poder com as assembleias,
bou por reduzir a complexidade da sua ordem legal, por outro lado essa cujo consentimento à legislação e cobrança de impostos era necessário.
complexidade ainda era considerável devido ao pluralismo legal inerente Finalmente, as colônias corporativas60 exerciam amplos pode-
à colonização além-mar. O pluralismo legal ocorre quando múltiplos res de autogoverno, que se baseavam em cartas régias ou em costumes e
corpos estatais e não estatais propõem normas, resolvem disputas e im- práticas. Elas também selecionavam, direta ou indiretamente, através da
põem sanções dentro de um dado território ou sobre um grupo social assembleia, os governadores e seus assistentes (cujo poder se assemelha-
particular e, contudo, não são parte de um único “sistema” hierárquico, va aos dos conselheiros dos governadores). A ausência de um governador
sob uma mesma autoridade coordenadora. Em casa, os Estados euro- real ou proprietário com extenso controle sobre o governo, bem como
peus colonizadores, como a Inglaterra, mantinham ordens jurídicas que o número reduzido de oficiais e juízes, rendeu às colônias corporativas
se faziam pluralísticas através de diversas dimensões. Os seus monarcas algo que os contemporâneos descreveram como um ethos “democrático”.
governavam monarquias “compósitas”, compostas de territórios com Ao longo do tempo, através da entrega voluntária ou forçada das cartas
tradições constitucionais diversas. Uma multiplicidade de tribunais re- régias, a Coroa transformou algumas colônias de proprietário e corpora-
ais, senhoriais, urbanos e eclesiásticos competiam entre si e exerciam tivas em colônias reais, que se tornam preponderantes no século XVIII.
uma variedade de formas da lei. O pluralismo legal herdado dos Estados A interação entre jurisdições estatais e não estatais potencial-
europeus muitas vezes se fazia ainda mais complexo no Novo Mundo. mente conflituosas aumentou ainda mais este pluralismo. O Conselho
Para começar, as constituições das colônias inglesas não eram Privado inglês61, o Parlamento, o Almirantado, o Tesouro e Serviços
uniformes. Apesar de assuntos específicos variarem de colônia para co- Aduaneiros, a hierarquia da Igreja Anglicana, cada um afirmava ser res-
lônia, particularmente nos primeiros anos de colonização emergiram ponsável por regular determinados assuntos na colônia, sem claras li-
três tipos básicos de governo. nhas divisórias ou hierárquicas entre elas e as autoridades locais. Igrejas,
As Colônias Reais eram controladas diretamente pela Coroa. universidades, propriedades senhoriais, plantations, senhores de terras
O monarca indicava o governador e o seu conselho, que aprovava legis- (manors), patroonships62, capitães da marinha real e corporações comer-
lações junto com uma assembleia popularmente eleita. O governador
executava as leis, convocava e suspendia assembleias, apontava juízes e
59 NT: O termo no original é proprietary colony. Exemplos: Carlos II presenteou a Nova Holanda
oficiais mais baixos e também podia vetar a legislação. O conselho fun- a seu irmão mais jovem, o Duque de York, que a nomeou Nova York. O mesmo monarca cedeu
cionava como uma casa superior nas colônias com legislaturas bicame- a William Penn uma imensa área, batizada Pensilvânia.
60 NT: Corporate colonies, também conhecidas como Charter colonies. A área da baída de
rais e, junto com o governador, ocupava a mais alta corte de apelação Massachussets, Rhode Island e Connecticut são exemplos desse tipo de colônia.
dentro da colônia. 61 NT: Os Privy councils são conselhos de assessores e conselheiros diretos do rei.
62 NT: Patroonship era o “sistema de colonização concebido em Amsterdã em 1628 e aplicado
pelos holandeses na Nova Holanda (ou New Netherland): terras, a título de feudo perpétuo,
eram concedidas aos empreendedores, os patroons (...)” (Cf. Bernand; Gruzinski, 2006, 746).
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ciais e filantrópicas reivindicavam jurisdições de legitimidade incerta. adotada pelo Conselho Privado em 1772, afirmava que todos os estatu-
Cada um reivindicava zonas de controle disputadas por governos colo- tos parlamentares criados antes da data de colonização das colônias se
niais e oficiais imperiais. As colônias conseguiam controlar apenas de aplicavam a elas. Um estatuto aprovado após a colonização se aplicava
forma imperfeita os enclaves étnicos, ao passo que os colonos holande- apenas se nomeasse uma colônia ou se a legislação na América a adotas-
ses e alemães se eximiram de facto das ordenações e costumes ingleses. se especificamente. Toda a Common law, gerada antes ou depois da colo-
Alguns territórios – Nova York e Jamaica, por exemplo – passaram de nização, estava atrelada à colônia (a não ser que fosse inconsistente com
um Estado europeu para outro, gerando tensões entre novas e antigas a sua natureza). Não apenas esses quadros discordavam entre si, mas
ordens jurídicas. As colônias do Novo Mundo englobavam múltiplas cada um era profundamente questionável. Se os colonos usufruíam das
zonas de relacionamentos instáveis e variáveis umas com as outras e em leis inglesas apenas por anuência da Coroa, será que o silêncio implicava
relação aos centros imperiais. De modo que a compra de foros, apelações em um consentimento tácito? Se a lei inglesa se aplicava apenas se fosse
oportunistas, a ignorância seletiva de leis inconvenientes e uma verda- consistente com a “condição” de uma província, o que acontecia quan-
deira confusão eram abundantes no período. do colonos com diferenças religiosa, ética e social discordavam sobre o
As colônias eram pluralísticas não apenas em suas jurisdições, propósito e a natureza de suas colônias? E quem arbitraria tal conflito?
mas também em suas normas. Havia uma incerteza persistente sobre Os ecos dessas disputas foram ouvidos desde os primeiros dias
como integrar uma variedade de formas de leis geradas pela metrópole da colonização até o início do processo de independência, até porque a lei
e pelos colonos, que carregavam consigo princípios dos diversos tipos de inglesa se desenvolvia em questões como independência judicial, proce-
leis usados na Inglaterra: a Common law (leis consuetudinárias), estatu- dimentos criminais, herança e cobrança de dívidas. Ainda menos claras
tos parlamentares, leis locais, comerciais e religiosas; e normas usadas eram as regras que governavam a aplicabilidade das normas transnacio-
nas cortes de Equidade63, Almirantado e Pequenas Causas64. Colonos nais de comércio, guerra, crimes de fronteira e navegação, e pirataria.
na Nova Inglaterra aplicavam preceitos bíblicos, principalmente em O império espanhol se deparou com discussões semelhantes
seus estatutos fundacionais, ao passo que os sulistas se apoiavam em leis sobre a relação entre as ordenações coloniais e as leis castelhanas (que
escravistas do império romano ou espanhol. Os colonos podiam olhar automaticamente se aplicavam ao Novo Mundo). A partir do início do
para essas amplas fontes de lei e adicionar muitas invenções próprias, século XVII, a Coroa reduziu estas incertezas concedendo ao Conselho
porque os seus forais garantiam que eles poderiam criar as suas próprias de Índias o poder de especificar o conteúdo de uma “lei das Índias” que
ordenações, contanto que estas não “repugnassem” as leis da Inglaterra. fosse particular ao Novo Mundo. O Conselho também declarou quais
Mas quais eram as “leis da Inglaterra” e como elas se estendiam ordenações religiosas e bulas papais seriam promulgadas na América. No
ao Novo Mundo? Os administradores imperiais por vezes argumenta- império inglês, nenhuma instituição teve papel análogo ao Conselho de
vam que as colônias, como territórios “conquistados”, usufruíam da lei Índias, decidindo, previamente, qual elemento da lei metropolitana atre-
inglesa não por direito, mas por consentimento da Coroa. Contrário a lava as colônias ou não, por serem irrelevantes ou perniciosas em relação
esta noção, uma posição maximalista afirmava que todo direito previs- às condições americanas. Colonos e administradores imperiais tiveram
to na Common law e estatutos parlamentares que fossem apropriados que discutir sobre esses assuntos em meio a processos e disputas políticas.
às condições das colôniasali se aplicavam. Uma posição intermediária, As colônias inglesas também eram plurais devido ao desenvolvi-
mento de culturas legais regionais. Os diferentes objetivos, compromissos
63 NT: A court of equity era uma corte autorizada a aplicar princípios de “equidade”,
complementares ou não, previstos em outras “cortes de lei”.
ideológicos e experiências sociais dos colonos da Nova Inglaterra, Nova
64 NT: As Courts of Requests eram tribunais judiciários “inferiores” na Inglaterra, criados por atos York e Nova Jersey, do Vale do Delaware, de Chesapeake e das terras baixas
especiais do parlamento, com jurisdição local para tratar de assuntos “menores”, normalmente do Sul produziam diferentes ordens legais. Como exemplo, iremos focar nas
conflitos advindos das camadas mais baixas da população ou ações envolvendo pequenas dividas
(até 40 shillings). duas principais colônias do século XVII: Massachussets e Virgínia.
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Puritanos engajados lideraram o início da colonização em fosse reconhecível, composta por fragmentos dos estatutos de escravi-
Massachussets. Determinados a criarem uma sociedade mais correta e dão de Barbados e da Roma antiga, bem como do direito civil, da lei
cristianizada, insistiram para que a igreja e o Estado trabalhassem jun- marcial e das regras de conduta inglesas para criados e vadios. Quando
tos, guiando a população a uma regeneração moral. Eles lembravam aos finalmente articulada, a lei de escravidão acabou por vincular as vidas
cristãos-novos do “pacto nacional” (national covenant) com Deus e se en- da grande maioria dos africanos nas colônias sulistas e (de modo mais
volviam em uma introspecção moral e “vigília sagrada”. Massachussets ameno) nas colônias do Norte, excetuando-se uma minoria de negros
controlava a imigração e exilava os dissidentes, buscando minimizar os livres. A própria Inglaterra não possuía leis para a escravidão, nem
desafios ideológicos. Apenas os membros da igreja participavam das criou um código de escravidão para suas colônias americanas, como o
eleições que abrangiam a colônia como um todo, preservando o controle fizeram os impérios espanhol e francês. Diferentemente, ela permitiu
nas mãos dos “eleitos”. No entanto, dentro do confinamento dessa mis- às colônias que criassem tais leis como uma espécie de lei “metro-
são religiosa, a colônia lutava por um modelo de autoridade comunal e politana” que divergia da lei inglesa e que anulava a prerrogativa por
consensual. Os oficias da colônia eram eleitos anualmente e a participa- liberdade contida no Direito Natural. A legislação sobre escravidão foi
ção no governo municipal era bastante difundida. Massachussets codi- a contribuição mais “inovadora” e abominável das colônias norte-ame-
ficava as suas leis e oferecia tribunais descentralizados nos municípios e ricanas para a tradição jurídica anglo-americana.
comarcas, dispensando uma justiça rápida e não-técnica. Tal conjunto legal tinha uma série de propósitos. Primeiramente,
Em contraste, os agricultores na Virgínia buscavam primor- ele definia a escravidão. Os escravos eram propriedades (“chatell”) sob o
dialmente ganhos materiais em detrimento de uma regeneração social. comando de seus senhores por toda a vida. O status da mãe escrava
Os barões do tabaco, que controlavam as terras e o trabalho servil, exer- determinava o status de seus filhos, de modo que crianças nascidas de
ciam a autoridade legal como resultado de sua proeminência econômica um senhor branco com uma escrava negra permaneceriam escravos. A
e social. Mesmo depois que a colônia instituiu uma assembleia, tribunais escravidão era mais racial do que religiosa. A conversão de religiões afri-
de condados, paróquiase outras marcas distintivas da normalidade in- canas para o cristianismo não trazia a liberdade. Podiam ser escravos
glesa, os homens insignes da Virgínia faziam uso de um estilo de justiça os africanos e os indígenas, mas não os brancos. Em segundo lugar, as
muito mais autoritário do que a norma colonial, buscando assegurar o colônias impuseram regulamentos de conduta rigorosos sobre os escra-
governo sobre uma população agitada, composta desproporcionalmente vos e empoderaram seus senhores para o uso de força extraordinária,
por homens jovens. Ainda assim, a pouca presença institucional nos ní- permitindo até mesmo a morte acidental dos escravos durante o pro-
veis abaixo dos condados e a colonização dispersa propiciaram que uma cesso de disciplina. Em terceiro lugar, de certo modo a legislação sobre
elite de “mão pesada” e certa propensão à violência agisse para minar a a escravidão restringia a potencial crueldade dos senhores de escravos e
efetividade das decisões legais. garantia níveis mínimos de alimentação, vestimenta e abrigo. Quarto, os
A característica mais distintiva da Virgínia e outras colônias códigos escravistas encorajavam o racismo ao interferir sobre a frater-
sulistas era a lei de escravidão. A maior parte dos africanos que tra- nização entre europeus e africanos, proibindo o sexo interracial e asse-
balhavam na Virgínia e em Maryland no começo do século XVII era gurando que os escravos seriam tratados de modo bem mais degradante
de trabalhadores não livres, mas não necessariamente escravos. O sta- do que os servos temporários (indentured servants) brancos. Por fim, as
tus desses trabalhadores variava, alguns se assemelhavam à servidão colônias estimulavam ou forçavam todos os brancos, mesmo aqueles
temporária, outros eram escravos por toda a vida e outros escravos que não possuíam escravos, à cooperarem na manutenção do sistema
hereditários. Nesse período, a Virgínia não possuía um código para a escravagista. As leis de escravidão recompensavam os brancos que per-
escravidão. A partir da década de 1660, a Virgínia e outras colônias seguissem escravos fugitivos e compeliam condestáveis a capturá-los e
do sul começaram a desenvolver uma legislação para a escravidão que transportá-los. Os europeus ficavam proibidos de fazer comércio ou se
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entreterem com africanos sem o consentimento de seu senhor. E no abastecimento. Os tribunais eram administrativos e, de certo modo, cor-
começo do século XVIII, todos os brancos, inclusive aqueles não de- pos executivos além de judiciais.
tentores de escravos, eram demandados a vigiar escravos. Os senhores No século XVII, foram poucos os advogados treinados que imi-
regulamentavam o trabalho de seus escravos, enquanto toda a sociedade graram para a América do Norte. Aqueles que o fizeram e os aprendizes
(branca) deveria cooperar no policiamento de escravos que afetavam que eles treinaram lidaram com o grosso da prática nas cortes superio-
potencialmente a segurança pública. res. Em tribunais locais e nos de condados, os litigantes normalmente
representavam a si mesmos ou adotavam como advogados escrivães, xe-
rifes, funcionários públicos ou leigos que haviam se familiarizado com
Semelhanças por debaixo do pluralismo: simplificação os procedimentos legais locais através de observação e participação. Os
institucional e tradições constitucionais advogados treinados como aprendizes e alguns poucos matriculados nos
Inns of Courts65formavam uma pequena minoria dos principais oficiais
Ao mesmo tempo em que o ambiente do Novo Mundo am- administrativos e jurídicos nas colônias da América do Norte. Senhores
pliava certas formas de pluralismo jurídico, ele também incentivava a de terra, mercadores, agricultores e descendentes das famílias de elite
simplificação do desenho institucional e da prática legal. Isto é observá- eram os que forneciam a maioria dos juízes supremos, locais e de con-
vel ao largo de diferentes regiões jurídicas e entre as colônias corporati- dado; dos conselheiros dos governadores; prefeitos e os selectmen66; bem
vas, de proprietário e reais. Os colonizadores haviam deixado para trás como os juízes de paz. Estes juristas leigos e administradores preferiam
um país notável por suas redes numerosas de jurisdições interligadas, de uma justiça não técnica e discricionária e deixavam de lado as ordenan-
responsabilidades justapostas. Ao longo dos séculos, a Inglaterra havia ças consideradas inconvenientes. Os magistrados, escolhidos mais pela
desenvolvido tribunais para assuntos específicos – como as cortes da proeminência social do que pelas suas competências legais, exaltavam a
Common law, de Equidade, de Almirantado, de floresta e mineração. As “justiça” e o “bom comum” (common sense), olhando com desdém para as
instituições da Common law ficavam lado a lado com os tribunais diri- “minúcias” legais. Ao passo que os tribunais ingleses faziam uso de uma
gidos pela igreja, os de prerrogativas reais, de nobres e de senhores de mistura de leis inglesas, francesas e latinas, os tribunais coloniais opera-
terras. Os colonizadores estavam livres de boa parte dessa complexidade. vam apenas a partir da lei inglesa. Os colonos se concentravam no corpo
Apesar de algumas cortes especializadas ainda legitimarem as ofensas de das disputas e despachavam a partir dos meandros dos procedimentos
escravos, equidade e outros assuntos específicos, a maioria das questões legais ingleses, com suas regras complexas de pleito e seus termos obscu-
era canalizada através de uma pirâmide de cortes locais e de comarcas ros. Para os padrões ingleses, os tribunais coloniais pareciam informais,
de jurisdição geral e, no topo da pirâmide, um tribunal que se estendia baratos e rápidos. Eram considerados comunais na medida em que eram
sobre toda a colônia – composto tipicamente pelo governador, pelo con- socialmente e intelectualmente acessíveis e dominados por notáveis lo-
selho ou, em algumas colônias no século XVII, pela assembleia como cais e não por indicações imperiais e advogados treinados.
um todo. Juízes de paz compunham os tribunais de comarca e tratavam As colônias pluralísticas se assemelhavam não apenas na estru-
as pequenas causas individualmente. tura de seus tribunais informais e leigos, mas em alguns de seus compro-
Enquanto os tribunais modernos se especializavam na adju- missos constitucionais centrais. Esta afirmação depende de certo ponto
dicação, os tribunais coloniais lidavam com um espectro mais amplo
de responsabilidades. Eles inspecionavam a construção de estradas, su- 65 NT: São agremiações de juristas conhecidos como barristers, um tipo de advogado
especializado em litígios e na aplicação da Common Law.
pervisionavam a venda de servos e escravos, definiam preços e salários, 66 NT: Nas cidades da Nova Inglaterra, a população masculina, adulta e livre, reunia-se
licenciavam advogados e donos de tavernas e cuidavam dos pobres. Eles anualmente para votar leis e orçamentos. Para fiscalizar e executar tais medidas aprovadas
em assembleia, elegiam-se um grupo, normalmente 3 pessoas: os selectmen, literalmente “os
cobravam e recolhiam impostos. Levantavam tropas e garantiam o seu
selecionados”.
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de vista. Por um lado, cada colônia vivia sob seu próprio foral que, junta- Ao final do século XVII, estes colonos, que se entendiam
mente com as regras e costumes que evoluíram ao longo do tempo, aju- como cidadãos ingleses e viviam além-mar, passaram a contestar essa
davam a criar uma “constituição” diferente em cada colônia. Mas, visto interpretação sobre o seu status constitucional, reivindicando para si
de outra perspectiva, ao final do século XVII surgiram aspectos comuns os mesmos direitos e proteções que os ingleses do reino. Cada vez
nas constituições coloniais – em suas organizações internas de poder e mais os colonos asseguravam os benefícios dos estatutos e da Common
suas relações com a Inglaterra. law, não através da afirmação de sua aplicabilidade na América, mas
Após incertezas iniciais, os ingleses estenderam aos colonos a através da silenciosa incorporação deles no trabalho cotidiano das
sua consolidada tradição de “autogoverno pelo comando do Rei”. Não assembleias e tribunais. Através da lenta, mas irredutível importa-
havia como ser diferente, uma vez que eles não tinham as necessárias ção de ideias e procedimentos incorporados do constitucionalismo
capacidades fiscais, militares e administrativas para governar terras tão inglês, as assembleias aprofundavam a sua afirmação como versões
distantes sem a participação ativa dos colonos. Isso significava que a locais da Câmara dos Comuns.
Coroa não comandava, mas negociava com os colonos. As estruturas Elas usavam o poder de controle sobre a receita de impostos
constitucionais que emergiram ao longo do século XVII pressupunham para aumentar ainda mais os seus poderes frente a governadores que não
um governo limitado e controle local, baseados no consentimento, ou tinham o prestígio e a proteção da Coroa inglesa. Algumas importantes
pelo menos na aquiescência dos proprietários coloniais. Apesar de certa características da sociedade colonial os ajudavam nesse sentido. A ampli-
hesitação por parte da Coroa, todas as colônias ostentavam assembleias dão geográfica das colônias norte-americanas tornava a garantia do con-
eleitas ao final do século. Isto não era comum no contexto norte-ameri- sentimento de cidades e plantations distantes uma necessidade prática.
cano. Os espanhóis e franceses proibiam corpos representativos eleitos. O próprio espaço militava contra métodos mais autoritários de governo,
A relação constitucional entre as colônias e a Inglaterra era assim como a dificuldade de arregimentar colonos dispostos a imigrarem
instável e provocava desentendimentos. As colônias não gozavam de e trabalharem sem garantias de auto-governo e direitos constitucionais.
uma independência formal, nem haviam sido integradas como parte do Apesar de as disputas em torno dos poderes das assembleias coloniais e
reino da Inglaterra, como o país de Gales no século XVI. As colônias da aplicabilidade da lei inglesa perdurarem ao longo do processo de inde-
eram comumente denominadas como domínios, exercendo significati- pendência norte-americana, foi no século XVII que foram assentadas as
vos, mas não ilimitados direitos de autogoverno. Mas o que isso signi- bases para os desenvolvimentos futuros. O Estado de direito, o governo
ficava de fato? Os administradores do império discordavam sobre os representativo e a primazia do consentimento se tornaram pontos centrais
colonos do além-mar terem, de fato, as mesmas liberdades e proteções do constitucionalismo na América do Norte inglesa.
constitucionais que os ingleses metropolitanos. Alguns argumentavam
que um governo mais rígido, sem as pompas próprias do constituciona-
lismo inglês, seria mais apropriado, devido à fragilidade das sociedades Centralização, anglicização e seus limites
norte-americanas, à distância em relação à metrópole e ao exemplo das
autoritárias colônias da Roma antiga, bem como das colônias inglesas No curso do século XVII, as colônias se tornaram mais valio-
na Irlanda. De acordo com esta visão, a Coroa não deveria estender aos sas para a Coroa à medida que o comércio transatlântico aumentava.
colonos todas as proteções dos estatutos e da Common law inglesa. E Através de uma série de Atos de Navegação, a Coroa inglesa buscou
como a Inglaterra havia criado as assembleias coloniais através de um reduzir a participação estrangeira nos mercados coloniais, exigindo
“favor” Real, a Coroa também poderia limitar as suas prerrogativas, tra- que determinados produtos fossem transportados em navios ingleses e
tando-as mais como conselhos de governo de corporações locais do que coloniais e passassem por portos ingleses antes de serem transporta-
como um corpo análogo à Câmara dos Comuns. dos. Após a Restauração (1660) e, particularmente, após a Revolução
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Gloriosa (1688-1689), a Coroa decidiu aumentar o controle sobre as cerca de 250 apelações à Inglaterra entre 1670 e a Independência (Cf.
colônias, até então habituadas a uma presença imperial leve. Bilder, 2008; Grossber; Tomlins, 2008, 69). A revisão dos estatutos e apela-
O império tomou uma série de medidas no sentido de aumen- ções feitas pelo Conselho permitiu à Coroa proteger os seus interesses
tar e fortalecer a aplicação dos Atos de Navegação: despachou inspeto- principais, ao passo que admitia uma considerável variação jurídica local.
res de alfândega para viverem no Novo Mundo e fundou tribunais de A crescente vigilância da Coroa, somada ao crescimento do co-
vice-almirantado permanentes, que procediam sem júri. Transformou mércio transatlântico, acabou por minar o sistema herdado do século
colônias de proprietários em colônias reais, dentro das quais a Coroa XVII de uma justiça acessível, informal e leiga, criando pressões para
passou a indicar advogados treinados (ao invés dos notáveis locais) como um sistema legal mais formal e advocatício. Colonos que comercializam
advogados-gerais e chefes de justiça. O Conselho Privado estabeleceu através de fronteiras coloniais ou em redes de mercadores internacionais,
os Lordes de Comércio67 (1675-96) e o Conselho de Comércio (1696- assim como os que tentavam comissionar ou resistir aos administradores
1782) para coletar informações sobre as condições norte-americanas e imperiais, aos Atos de Navegação e às revisões efetuadas pelo Conselho
esboçar instruções para os governadores reais, aumentando, desta forma, Privado, eram empurrados em direção aos precedentes e procedimentos
a vigilância sobre o governo e o judiciário coloniais. Por insistência da ingleses como uma língua franca legal. Advogados treinados que conse-
Coroa, as poucas assembleias que atuavam como a mais alta corte de guiam navegar nesse universo se tornaram cada vez mais valiosos para
apelação perderam este direito para as Cortes Superiores de Judicatura, os litigantes. Os governadores reais, oficiais imperiais e os advogados,
preenchida pelo governador e seu conselho, aumentando o seu poder que cada vez mais surgiam como procuradores-gerais, juízes de cortes
judicial não apenas frente aos representantes eleitos pelo povo, mas tam- superiores e conselheiros para os poderosos, não se afastavam dos aspec-
bém sobre os tribunais locais. Todas estas medidas aumentaram a super- tos técnico-legais. Pelo contrário, os aceitavam e até mesmo insistiam
visão da Coroa e reduziram a autonomia dos colonos. neles. Juízes e advogados davam cada vez mais atenção aos meandros
Esta autonomia também foi reduzida pela crescente determi- dos pleitos e procedimentos do que às implicações dos precedentes da
nação do Conselho Privado em revisar os estatutos coloniais e opiniões Common law inglesa. O historiador John Murrin (1966; 1983, 540-72)
jurídicas. Já no último quarto do século XVII, particularmente na virada denominou esses processos conectados como uma “anglicização” dos sis-
para o século XVIII, o Conselho Privado examinava a legislação colo- temas jurídicos coloniais.
nial com a intenção de desautorizar os estatutos que eram incompatíveis A anglicização também tinha outro lado. O termo faz alusão
como as leis da Inglaterra ou que enfraqueciam os Atos de Navegação ao desenvolvimento de uma forma mais “inglesa” de governança sobre
ou as prerrogativas reais. Após 1690, o Conselho derrubou cerca de 470 as colônias a partir do último terço do século XVII em diante. Teria
dos mais de 8.500 estatutos revisados. O Conselho também ouviu ape- envolvido a criação de judiciários mais hierarquizados, a eliminação da
lações de processos que envolviam um considerável valor em disputa, jurisdição de apelação das Assembleias e o deslocamento de algumas
normalmente acima de £200, ainda que variável. O mesmo órgão anali- medidas de controle daqueles que nasciam deste lado do Atlântico, atra-
sava apenas as apelações da mais alta corte colonial (que poderia ser a do vés da indicação de inspetores de alfândega, juízes de vice-almirantado
governador e do Conselho). Não ouvia os casos de tribunais intermedi- e advogados (barristers)68 ingleses nas supremas cortes coloniais. Além
ários de apelação, nem de tribunais de primeira instância; nem revertia disso, as características distintas e até mesmo utópicas das colônias do
convicções criminais ou vereditos de júris. Litigantes chegaram a enviar século XVII, que haviam nascido de visões tidas como marginais ou

67 NT: Os Lords of Trade and Plantations ou simplesmente Lords of Trade (posteriormente 68 Barristers são uma categoria de advogados específicos na tradição jurídica inglesa. Seriam
chamado Board of Trade, aqui traduzido como Conselho de Comércio) era um departamento de advogados mais especializados em litígios, que atuam nos tribunais e pertencem a uma
governo britânico cuja função era fomentar, fiscalizar e arbitrar o “comércio e indústria”, sendo Agremiação de estilo Inn – ver nota 07 –, diferindo de outra categoria de advogados na
um comitê do Privy Council. Inglaterra, os solicitors.
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suprimidas na metrópole, acabaram se desfazendo com o tempo. A sa- mesma, mas como um meio de assegurar prerrogativas e administrar
grada disciplina das colônias da Nova Inglaterra foi se desfazendo, assim o comércio em benefício do país materno e de seus grupos de merca-
como os experimentos neofeudais de algumas das primeiras colônias de dores mais bem conectados. Mesmo nesse sentido limitado, as inicia-
proprietário, as tentadoras iniciativas políticas absolutistas na Jamaica e tivas centralizadoras se mostram inconsistentes e hesitantes, sujeitas a
em Nova York e o compromisso ao “experimento sagrado” Quaker na adiamentos e alterações causadas por substituições dos administradores
Pennsylvania. Os dois lados da anglicização reduziram as peculiaridades imperiais e vicissitudes na política interna inglesa.
das ordens legais nas diversas colônias inglesas e incentivaram a conver- Em quarto lugar, os esforços imperiais em aumentar o controle
gência dessas ordens em direção uma a outra e em direção à Inglaterra. se deparava com um dos fatos centrais na América colonial: o controle
Esses desenvolvimentos no direito andavam de mãos dadas com outras local das instituições legais e das tomadas de decisão. A supervisão im-
formas contemporâneas de anglicização: a crescente semelhança entre a perial equivalia, como observou Stephen Botein (1981, 130), “a pouco
cultura da elite colonial, as estruturas militares e os padrões de consumo mais do que uma sobreposição aos hábitos localizados de governan-
coloniais em relação aos da metrópole, além da formação de uma iden- ça colonial”. Os funcionários apontados pela Coroa se concentravam
tidade inglesa mais profunda e autoconsciente. nas capitais e nos maiores portos, somando cerca de vinte oficiais por
Ainda assim, a anglicização do direito e a centralização imperial província, menos ainda nas colônias corporativas ou de proprietário.
não conseguiram varrer tudo o que havia anteriormente. Apesar de sua Instituições de comarcas e municípios, ocupadas por notáveis das vizi-
importância, uma parte significativa do controle local e da diversidade nhanças, forneciam o suporte principal da governança cotidiana. Junto
persistiu nos sistemas legais coloniais. A supervisão imperial foi estrei- com os jurados, eles refletiam e defendiam os costumes comunitários,
tada em relação aos padrões de “governo solto” do século XVII, mas de que guiavam o cumprimento das prioridades e a resolução de disputas.
modo algum em termos absolutos. Primeiramente, o século XVII tes- Mesmo quando nomeados pelos governadores reais, os oficiais mais bai-
temunhou não apenas um controle melhorado por parte da Coroa, mas xos – policiais, escriturários, selectmen, juízes de paz e xerifes – minavam
também uma resistência mais sofisticada e mais coordenada em relação as indesejadas políticas imperiais através do controle das investigações
à superintendência metropolitana. Os colonos se tornaram adeptos da e da execução das leis, ou simplesmente através da inoperância. Os ofi-
defesa de suas leis e instituições legais através do lobby e da mobilização ciais da Coroa, desde o governador até os xerifes e juízes de paz não
de grupos de interesse em Londres, utilizando uma retórica Whig69 anti- conseguiam exercer efetivamente a sua autoridade sem a cooperação das
-privilégio. Em segundo lugar, o termo “centralização” obscurece aquilo comunidades locais e os seus representantes nas assembleias, que pode-
que Jack Greene (1994) chamou de qualidade “negociada” do império riam se articular para resistir às iniciativas imperiais indesejadas.
inglês – a forma pela qual as práticas governamentais se faziam não Em quinto lugar, o império inglês também encontrava dificul-
como consequência dos pronunciamentos feitos em Londres, mas por dades para disseminar o seu entendimento sobre as leis e sobre os qua-
um processo de barganha através do qual se obtinha o consentimento dros normativos e políticos que explicavam os propósitos e significados
ou a aquiescência das colônias. O império inglês, diante de suas divisões da lei. Os notáveis locais dominavam a comunicação da lei bem como
políticas e de suas modestas capacidades fiscais, militares e adminis- a sua administração. Consideremos, como contraponto, as Américas
trativas, estava inclinado a negociar com as elites coloniais ao invés de espanhola e francesa. Nesses impérios, advogados treinados e oficiais
confrontar vigorosamente as resistências. Em terceiro lugar, a noção de da Coroa controlavam todos os níveis do judiciário, com exceção dos
centralização superestima as ambições e a constância das autoridades mais baixos. Castela e França conscientemente controlavam quais co-
imperiais inglesas. A centralização não era vista como um fim em si nhecimentos legais atravessavam o Atlântico e utilizavam os oficiais da
Coroa, advogados, igrejas e escolas para disseminar o entendimento do
69 NT: Os Whig compunham o partido que reunia as tendências dos setores liberais no Reino
Unido. imperador sobre a lei. Com este objetivo, o império espanhol abriu ca-
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nais múltiplos e alternativos de comunicação jurídica para a sua extensa dos”, que eram os principais criadores e intérpretes das leis. Muitas co-
rede administrativa no Novo Mundo, que alcançava até o nível mais lônias haviam começado como corporações anônimas ou proprietárias,
local das vilas. O reino de Castela introduziu o entendimento imperial de modo que o “Estado” era por si só um governo parcialmente privado.
sobre o direito na sociedade colonial não apenas através de seu exten- Ofuscado por uma miríade de governos privados, a lei Estatal não era
so sistema administrativo, mas também através das universidades e da executada de maneira confiável pelos oficiais, e, muitas vezes, tinha seu
Igreja Católica. Em comparação, o sistema inglês teria mantido apenas cotidiano afetado através da mediação com esses governos privados.
linhas de comunicação indiretas e mediadas entre Londres e os gover- Em suma, a América do Norte britânica do século XVIII se as-
nadores coloniais, assembleias e cortes superiores. Os ingleses constru- semelhava a outros corpos políticos no sentido de que o direcionamento
íram poucas linhas diretas de transmissão para os oficiais mais baixos do Estado rumo a um controle mais rígido da lei se confrontava com
e notáveis locais. Eles não tinham uma rede administrativa robusta no barreiras sociais, institucionais e ideológicas. Mas os corpos políticos
interior ou uma igreja apoiada pelo Estado. As diversas seitas e congre- desenhados entre a Nova Inglaterra e a Geórgia não eram simplesmen-
gações na América inglesa podiam facilmente reelaborar o entendimen- te terras modernas. Eram colônias entrelaçadas em um império – um
to imperial da lei, bem como transmiti-lo para a sociedade colonial. Em império sem dinheiro que ansiava por cobrar impostos destas provín-
grande parte, os colonos aprenderam a lei inglesa através de redes so- cias, que pouco contribuíam. As especificidades de como a centraliza-
ciais que competiam entre si e que tinham interesses próprios. As redes ção imperial provocou resistência local e deflexão, bem como inspirou a
de sociabilidade se mostravam fundamentais para a circulação das leis, acomodação estratégica e a aprovação seletiva nos ajudam a explicar o
muitas vezes na forma oral ou de manuscritos, e por vezes aumentando formato da política colonial e, posteriormente, as dinâmicas do movi-
a habilidade de agentes negligentes ou autointeressados em enterrar ou mento revolucionário.
transformar as mensagens e as perspectivas jurídicas da Coroa. A Coroa
inglesa gozava apenas de uma modesta influência sobre essas redes de
sociabilidade, principalmente porque ela falhava em conceder patrocí- Roteiro bibliográfico
nio sistemático aos intermediários das informações jurídicas que fossem
confiáveis, como o fizeram os franceses. Assuntos gerais: Visões gerais sobre o direito norte-america-
Em sexto lugar, e por último, a limitação mais profunda sobre a no no início do período colonial podem ser encontradas em: Stephen
centralização era o fato de que o alcance do Estado, imperial ou colonial, Botein: Early American Law and Society (New York, 1983); e Peter
não era tão firme e tão difundido como se poderia parecer. Para além das Charles Hoffer: Law and People in Colonial America, revised ed.
colônias da costa, as instituições legais eram desorganizadas e muitas (Baltimore, 1998). Também são interessantes os primeiros capítulos
vezes inexistentes. Nas áreas interioranas elas eram atrasadas, deixando de: Lawrence M. Friedman: A History of American Law, 3rd ed. (New
largas faixas coloniais subgovernadas. Mesmo em regiões colonizadas York, 2005); e Kermit L. Hall: The Magic Mirror: Law in American
há tempos, as disputas faccionais e constitucionais frequentemente sus- History (New York, 1989). Artigos essenciais que cobrem boa par-
citavam questões em relação à legitimidade do governo. Colonizadores te desse campo de pesquisa estão presentes em três coleções: David
holandeses e mais tarde alemães mantinham enclaves étnicos em que Flaherty (ed.): Essays in the History of Early American Law (Chapel
buscavam administrar os seus assuntos com o mínimo de interferência Hill, 1969); Michael Grossberg and Christopher Tomlins (eds.): The
da lei inglesa. “Governos privados” como plantações, igrejas, escolas, fá- Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-
bricas, senhores de terra e, acima de tudo, famílias, resolviam disputas e 1815) (Cambridge, 2008); e Christopher L. Tomlins and Bruce H.
criavam regras com mais frequência do que o Estado. De fato, uma das Mann (eds.): The Many Legalities of Early America (Chapel Hill, 2001).
tarefas centrais do Estado era empoderar e regular esses atores “priva-
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Direito indígena e colonial: Justificativas para a colonização britâ- The Atlantic World 1450-1850, ed. Nicholas Canny and Philip Morgan
nica aparecem em três tópicos diferentes: as reivindicações britânicas face (Oxford, 2011), 400-416; Benton and Richard J. Ross: eds. Legal Pluralism
aos outros Estados colonizadores no Novo Mundo; reivindicações impe- and Empires, 1500-1850 (New York, 2013); Eliga H. Gould: “Zones of
riais britânicas face aos colonos, com os seus próprios pontos de vista em Law, Zones of Violence: The Legal Geography of the British Atlantic,
relação à jurisdição e autoridade; e reivindicações britânicas face aos povos circa 1772,” William and Mary Quarterly 55 (2003): 471-510; Daniel
nativos. Nestes debates, os argumentos em relação à soberania (como es- J. Hulsebosch: Constituting Empire: New York and the Transformation
tender o domínio político sobre os territórios nativos) e sobre a proprie- of Constitutionalism in the Atlantic World, 1664-1830 (Chapel Hill,
dade (como tomar ou comprar parcelas de terra) estão relacionados, mas 2005); e Richard J. Ross: “Puritan Godly Discipline in Comparative
não se reduzem um ao outro. Sobre as teorias de colonização em perspec- Perspective: Legal Pluralism and the Sources of ‘Intensity’,” American
tiva comparada, ver: J. H. Elliott: Empires of the Atlantic World: Britain Historical Review 113 (2008): 975-1002.
and Spain in America 1492-1830 (New Haven, 2006); John Thomas
Juricek: English Claims in North America to 1660: A Study in Legal and O império britânico: trabalhos modelos que colocam as estru-
Constitutional History (PhD dissertation, University of Chicago, 1970); turas administrativas e jurisdicionais no centro incluem: A. Berriedale
Ken MacMillan: Sovereignty and Possession in the English New World: The Keith: Constitutional History of the First British Empire (Oxford, 1930);
Legal Foundations of Empire, 1576–1640 (Cambridge, 2006); e Anthony Leonard W. Labaree: Royal Government in America (New Haven, 1930);
Pagden: Lords of All the World: Ideologies of Empire in Spain, Britain and e, especialmente, Charles M. Andrews: The Colonial Period of American
France, c.1500-c.1800 (New Haven, 1995). History, 4 vols. (New Haven, 1934-38). Herbert L. Osgood produziu
um trabalho fundacional sobre a distinção entre as colônias corporativas
A vasta literatura sobre a desapropriação das terras dos po- e proprietárias: “The Corporation as a Form of Colonial Government
vos nativos pelos colonos – uma questão envolvendo lei, ideologia e (pts. I-III),” Political Science Quarterly 11 (1896): 259-277, 502-533, 694-
questões práticas– foi elaborada de modo muito inteligente em Stuart 715; e “The Proprietary Province as a Form of Colonial Government
Banner: How the Indians Lost Their Land: Law and Power on the Frontier (Parts I, II, and III),” American Historical Review 2, 3 (1897-98): 644-
(Cambridge, Mass., 2005). Sobre interações jurídicas cotidianas entre 664, 31-55, 244-65. Mary Sarah Bilder examinou a interação da regula-
os povos nativos e colonos, ver Katherine Hermes: “The Law of Native mentação imperial e o autogoverno imperial em: “English Settlement and
Americans, to 1815,” In: Cambridge History of Law in America, Volume 1: Local Governance,” In: The Cambridge History of Law in America, Volume
Early America (1580-1815), ed. Christopher L. Tomlins and Michael 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg and Christopher
Grossberg (Cambridge, 2008), 32-62; e Yasuhide Kawashima: Puritan Tomlins (Cambridge, 2008), 63-103.
Justice and the Indian: White Man’s Law in Massachusetts, 1630-1763
(Middletown, Conn., 1986). Desde a década de 1950, pesquisadores têm expandido o tema
da história imperial, alargando o entendimento do que efetivamente
Pluralismo legal: Sobre o significado e os usos do conceito de mantém um império unido. Para isso, eles examinaram as redes econô-
“pluralismo legal” e sobre as suas habilidades de somar uma nova dimen- micas, sociais, intelectuais e políticas que surgiram em torno do aparato
são sobre objetos diversos como construção do Estado, relações inter- imperial e que auxiliaram na integração do Atlântico inglês. A cons-
-imperiais, conflitos culturais, acomodações e transformações religiosas, trução do império passou a se assemelhar não tanto a uma imposição
ver: e.g., Lauren Benton: Law and Colonial Cultures: Legal Regimes in da fiscalização administrativa e controle do comércio pela metrópole,
World History, 1400-1900 (Cambridge, 2002); Benton, “Atlantic Law: mas a um processo multilateral de negociação, recrutamento e ajusta-
Transformation of a Regional Legal Regime,” In: The Oxford Handbook of mento cultural que limitava certas ambições “centralizadoras”. Nesta
200 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 201
linha está o distinto trabalho de Bernard Bailyn: The Origins of American Culturas jurídicas regionais: A reconstrução das culturas jurí-
Politics (New York, 1968); Christine Daniels and Michael V. Kennedy dicas regionais emerge e depende de uma enorme literatura acadêmica
(eds.): Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 1500- que delineou as diferenças nas histórias econômica, demográfica, inte-
1820 (New York, 2002); Richard R. Johnson: Adjustment to Empire: The lectual e cultural de várias regiões da América do Norte britânica. Os
New England Colonies, 1675-1715 (Leicester, 1981); Stanley N. Katz: principais artigos e monografias formam uma lista muito extensa para
Newcastle’s New York: Anglo-American Politics, 1732-1753 (Cambridge, serem citados. Trabalhos que sintetizaram essa literatura considerável
Mass., 1968); Alison Gilbert Olson: Anglo-American Politics, 1660- incluem: David Hackett Fischer: Albion’s Seed: Four British Folkways
1775: The Relationship Between Parties in England and Colonial America in America (Oxford, 1989); Jack P. Greene: Pursuits of Happiness: The
(New York, 1973); Alison Gilbert Olson: Making the Empire Work: Social Development of Early Modern British Colonies and the Formation
London and American Interest Groups, 1690-1790 (Cambridge, 1992); of American Culture (Chapel Hill, 1988); and Michael Zuckerman:
Jack P. Greene: Peripheries and Center: Constitutional Development in the “Regionalism” In: A Companion to Colonial America, ed. Daniel Vickers
Extended Polities of the British Empire and the United States, 1607-1788 (Blackwell, 2003), 311-33. Trabalhos que colocam no centro de seus
(Athens, Ga., 1987); Jack P. Greene: Negotiated Authorities: Essays in argumentos a cultura jurídica regional incluem: David Thomas Konig:
Colonial Political and Constitutional History (Charlottesville, 1994); e “Regionalism in Early American Law,” In: The Cambridge History of Law
Michael G. Kammen: A Rope of Sand: The Colonial Agents, British Politics, in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg
and the American Revolution (Ithaca, 1968). A mudança na orientação and Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 144-77; e Christopher
da história imperial pode ser percebida ao se comparar os volumes 1 Tomlins: Freedom Bound: Law, Labor, and Civic Identity in Colonizing
de J. Holland Rose, et. al.: The Cambridge History of the British Empire English America, 1580–1865 (Cambridge, 2010). William E. Nelson
(Cambridge, 1929) ao trabalho recente da Oxford History of the British adotou uma abordagem mais segmentada ao revigorar as comparações
Empire, especialmente os volumes 1, 2, e 5 (1998-2001). de colônia a colônia em uma série de trabalhos ainda em andamento:
The Common Law of Colonial America, Volume I: The Chesapeake and New
Para trabalhos em assuntos específicos, veja sobre o Conselho England 1607-1660 (Oxford, 2008); and The Common Law in Colonial
Privado e sobre a revisão da legislação colonial e julgamentos da corte su- America, Volume II: The Middle Colonies and the Carolinas, 1660-1730
perior: Mary Sarah Bilder: The Transatlantic Constitution: Colonial Legal (Oxford, 2013).
Culture and the Empire (Cambridge, Mass., 2004); Elmer B. Russell: The
Review of American Colonial Legislation by the King in Council (New York, Escravidão: As primeiras leis de escravidão nas colônias norte-
1915); Joseph H. Smith: Appeals to the Privy Council from the American -americanas eram parte de um sistema mais amplo de normas, pressões e
Plantations (New York, 1950); e Joseph H. Smith: “Administrative incentivos que estruturavam as relações entre senhores, escravos e a socie-
Control of the Courts of the American Plantations,” In: David Flaherty dade de modo geral. Trabalhos centrados especificamente nas estruturas
(ed.). Essays in the History of Early American Law (Chapel Hill, 1969), de adjudicação e na relação entre “governos particulares” de plantations e
281-335. Sobre o vice-almiranteado e serviços de alfândega, ver: Charles os tribunais estatais incluem: A. Leon Higginbotham, Jr.: In the Matter
M. Andrews: “Introduction: Vice-Admiralty Courts in the Colonies,” In: of Color: Race and the American Legal Process: The Colonial Period (New
The Records of the Vice-Admiralty Court of Rhode Island, 1716-1752, ed. York, 1978); Thomas D. Morris: Southern Slavery and the Law, 1619-
Dorothy S. Towle (Washington, 1936), 1-79; Thomas C. Barrow, Trade 1860 (Chapel Hill, 1996); Philip J. Schwarz: Twice Condemned: Slaves
and Empire: The British Customs Service in Colonial America, 1660-1775 and the Criminal Law of Virginia, 1705-1865 (Baton Rouge, 1988);
(Cambridge, Mass., 1967); e Carl Ubbelhode: The Vice-Admiralty Courts Schwarz: Slave Laws in Virginia (Athens, 1996); e William M. Wiecek:
and the American Revolution (Chapel Hill, 1960). “The Statutory Law of Slavery and Race in the Thirteen Mainland
202 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 203
Colonies of British America,” William and Mary Quarterly 34 (1977): L. Tomlins and Michael Grossberg (Cambridge, 2008), 555-92; David T.
258-80. Jonathan A. Bush explicou como a estrutura constitucional do Konig: Law and Society in Puritan Massachusetts: Essex County, 1629-1692
império britânico permitiu às colônias que aprovassem ordenações de (Chapel Hill, 1979); Bruce H. Mann: Neighbors and Strangers: Law and
escravos como uma espécie de lei local, “municipal”, apesar da proibição Community in Early Connecticut (Chapel Hill, 1987); e William M. Offutt,
da escravidão na metrópole e da ausência de um código imperial sobre “The Atlantic Rules: The Legalistic Turn in British North America,” in
a escravidão. Ver Bush: “Free to Enslave: The Foundations of Colonial The Creation of the British Atlantic World, ed. Elizabeth Mancke and Carole
American Slave Law,” Yale Journal of Law and the Humanities 5 (1993): Shammas (Baltimore, 2005), 160-81.
417-470. Artigos recentes que contrastam as legislação de escravidão na
América inglesa, espanhola e francesa, incluem: Alejandro de la Fuente Comunicações jurídicas: historiadores do período inicial dos
and Ariela J. Gross: “Comparative Studies of Law, Slavery and Race impérios modernos inglês, francês e espanhol têm discutido há muito
in the Americas,” Annual Review of Law and Social Science 6 (2010): tempo como a distância e a comunicação lenta e irregular interferiam
469-85; and Sally E. Hadden: “The Fragmented Laws of Slavery in the na fiscalização metropolitana sobre as colônias no Novo Mundo e esti-
Colonial and Revolutionary Era,” in: The Cambridge History of Law in mulavam estruturas negociadas de poder. Pesquisadores tendem a enfa-
America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg e tizar a interrelação das redes administrativas, econômicas e sociais. Parte
Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 253-87. destes trabalhos tem se dedicado continuamente à comunicação do di-
reito: Kenneth J. Banks: Chasing Empire Across the Sea: Communications
Anglicização da lei: A dissertação de John M. Murrin e uma série and the State in the French Atlantic, 1713-1763 (Montreal, 2002); Tamar
de artigos têm avançado na ideia de que as colônias no século XVIII, ao Herzog: “Ritos de Control, Prácticas de Negociación: Pesquisas, Visitas
invés de se tornarem mais “americanas” ou “democráticas”, na verdade se y Residencias y las Relaciones entre Quito y Madrid (1650-1750),” in
tornavam mais “anglicizadas”. As suas ordens jurídicas convergiam em Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica, ed. Jose Andres-
direção às normas e padrões ingleses e, neste processo, reduziu-se parte Gallego (Madrid, 2000); Tamar Herzog: Upholding Justice: Society, State,
da diversidade do século XVII. Ver Murrin, “Anglicizing an American and the Penal System in Quito (1650-1750) (Ann Arbor, 2004); Richard
Colony: The Transformation of Provincial Massachusetts” (PhD disser- J. Ross, “Legal Communications and Imperial Governance: British
tation, Yale University, 1966); “The Legal Transformation: The Bench North America and Spanish America Compared,” in The Cambridge
and Bar of Eighteenth-Century Massachusetts,” in Colonial America: History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed.
Essays in Political and Social Development, ed. Stanley N. Katz and John Michael Grossberg and Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 104-
M. Murrin (New York, 1983), 540-72; and “Political Development,” in 143; e Ian K. Steele, The English Atlantic, 1675-1740: An Exploration of
Colonial British America: Essays in the New History of the Early Modern Communication and Community (New York, 1986).
Era, ed. Jack P. Greene and J.R. Pole (Baltimore, 1984), 408-56. Trabalhos
que dedicam atenção particular ao direito, ao mesmo tempo que expan-
dem, desafiam e reorientam esta tese, incluem: Cornelia Hughes Dayton, Extratos de documentos
“Turning Points and the Relevance of Colonial Legal History,” William
and Mary Quarterly 50 (1993): 7-17; Dayton: Women before the Bar: Observadores no século XVIII discordavam sobre a melhor
Gender, Law, and Society in Connecticut, 1639-1789 (Chapel Hill, 1995); maneira de caracterizar os primeiros sistemas jurídicos americanos. A
James A. Henretta, “Magistrates, Common Law Lawyers, Legislators: seguir estão dois pontos de vista diferentes – uma avaliação positiva feita
The Three Legal Systems of British America,” in Cambridge History of por Jeremiah Dummer e uma crítica por Thomas Pownall.
Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Christopher
204 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 205
(1) Treinado como pastor, Jeremiah Dummer serviu como agente “A reparação em seus tribunais de justiça é fácil, rápida e barata.
da colônia de Massachussets em Londres entre os anos 1710-21. Todos os processos estão em inglês e não são admitidas falácias e obje-
Contrário a um projeto de lei proposto na Câmara dos Comuns, que ções, pelo contrário, a questão geral é sempre dada e assuntos especiais
iria anular os forais de Massachussets, Connecticut e outras colônias, são colocados em evidência, economizando tempo e despesa. E, neste
Dummer publicou um panfleto defendendo essas colônias contra as caso, um homem não está susceptível a perder sua propriedade por um
acusações de corrupção, governos arbitrários e interferência sobre vício de forma; nem é o mérito da causa construído a depender das su-
os Atos de Navegação. Em meio a este argumento maior, Dummer tilezas do funcionário. De acordo com uma das leis do país, nenhuma
apresentou um relato simpático às cortes da Nova Inglaterra, ordem judicial pode ser abatida por um erro circunstancial, como um
destacando a sua acessibilidade e justiça. pequeno equívoco ou alguma informalidade. E por outra lei, está defi-
nido que cada advogado que retire uma ordem judicial do gabinete do
secretário deve endossar seu sobrenome sobre elae ser obrigado a pagar à
Jermiah Dummer, A Defense of the New England Charters (Boston, parte adversa seus custos e encargos em caso de não instauração de pro-
1721), 21-23 [grafia e pontuação foram atualizados]: cesso penal ou desistência, ou se o requerente receber uma sentença de
deserção ou se tenha algum julgamento sobre ele. O mesmo Ato ainda
Nos governos de forais (charters), “todos os funcionários, ci- garante que, se o requerente sofrer um processo por deserção/despacho
vis e militares são eleitos pelo povo, anualmente”. Não pode haver de improcedência por desvio de ação do advogado, ele será obrigado a
“sobre os próprios governantes maior obrigação na execução da justiça elaborar novo mandado sem taxa, caso a parte desejar reabrir o proces-
do que o fato de que disso depende a sua eleição no próximo ano. Por so. Eu não posso deixar de pensar que todos, com exceção de alguns
isso a escolha frequente de magistrados tem sido um pilar central so- senhores de túnica e advogados, irão pensar que esta é uma lei saudável
bre o qual todos aqueles que visam a liberdade nos seus esquemas do e bem calculada em benefício do sujeito. Para o rápido despacho das
governo têm se apoiado”. causas, as declarações fazem parte da ordem judicial na qual o caso é
Esses governos, “longe de cercearem a liberdade do sujeito, a total e particularmente desenvolvido. Se se trata da matéria de fato, o
tem melhorado em alguns artigos importantes, os quais a circunstância fato é anexado ao mandado e cópias de ambos são entregues ao réu, o
das coisas na Grã-Bretanha talvez não demande ou não admita facil- qual, quatorze dias antes da audiência, é obrigado a pleitear diretamente,
mente. Para ilustrar alguns: Houve desde o princípio uma repartição er- sendo a matéria então julgada. Enquanto na prática da Corte Real70 [na
guida por lei em todo país em que as transferências de terra são inseridas Grã-Bretanha], perde-se de três a quatro meses após a apresentação do
na integra após o reconhecimento por parte do outorgante perante um mandado, antes de a causa ser levada a apreciação”.
juiz de paz, meio pelo qual muitas fraudes são impedidas; e nenhuma “Nem estão as pessoas da Nova Inglaterra oprimidas pelos in-
pessoa poderá vender a sua propriedade por duas vezes, ou receber mais finitos atrasos e despesas presentes nos processos em Chancery, onde
dinheiro do que ela realmente vale. Medidas foram igualmente tomadas ambas as partes são frequentemente arruinadas pelas cobranças e pela
para a segurança da vida e da propriedade do sujeito em matéria de júri, delonga do processo. Mas assim, como em todos os outros países, com
que não é entregue pelo xerife do condado, mas escolhido pelos habi- exceção apenas da Inglaterra, ...[direito e equidade] são considerados
tantes da cidade antes da audiência do tribunal. E esta eleição está sob a iguais e nunca divididos”. [Nota: Na Inglaterra, os tribunais de direito
mais exata regulamentação, a fim de evitar a corrupção, tanto quanto a civil (common law) tratavam questões de direito, enquanto o Tribunal
prudência humana pode fazê-lo...” [Nota: xerifes ingleses eram acusados​​ de Chancery tratava de questões específicas, consideradas questões de
de compra de júri em casos de crimes de pessoas de alto gabarito, o que
não acontecia na Nova Inglaterra, de acordo com Dummer]. 70 “King’s Bench” refere-se ao lugar ocupado pelo Rei, que presidia este tribunal na Corte.
206 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 207
“equidade”. Na Nova Inglaterra, os tribunais de jurisdição geral lidavam comum da Inglaterra, de modo que em alguns casos as determinações
tanto com as questões de direito quanto com as de equidade, poupando decorrentes tanto do estatuto quanto do direito civil devem ser rejeita-
o litigante os custos e as dores de cabeça do sistema de jurisdição repar- das. Isso torna as judicaturas nesses países vagas e precárias, perigosas,
tida da Inglaterra]. se não arbitrárias. Isto produz necessariamente (mesmo com todos os
cuidados na formação e execução de suas leis provinciais), um direito ci-
(2) Thomas Pownall, nascido na Grã-Bretanha, foi governador vil neste país diferente, incompatível se não contrário e independente ao
de Massachusetts entre 1757-60. Quando ele retornou à do país mãe, do que se depreende que nada pode ser mais desvantajoso
Inglaterra, sugeriu reformas a serem feitas no império no intuito ao sujeito, e nada mais depreciativo do poder do governo do país mãe, e
de garantir a fidelidade das colônias em agitação. Diferentemente a partir desse máxima fundamental de que os colonos não devem ter leis
de Dummer, Pownall fornece uma uma avaliação negativa contrárias às da metrópole. “
das cortes coloniais. Onde o agente colonial Dummer enxergou “Eu não posso evitar citar uma longa, mas muito precisa obser-
acessibilidade, velocidade e informalidade, o administrador vação do autor da história de Nova York. “O estado de nossas leis abre
imperial Pownall encontrou injustiça, ignorância e confusão. as portas para muita controvérsia. A incerteza em relação a elas torna
Em resposta, Pownall demandava maior controle real sobre as a propriedade precária e muito nos expõe à decisão arbitrária de maus
jurisdições rebeldes no Novo Mundo. juízes. O direito civil da Inglaterra é geralmente recebido junto com tais
estatutos, como foram decretados antes que nós tivemos nossa própria
Thomas Pownall, The Administration of the Colonies, Wherein legislatura, mas nossos tribunais exercem uma autoridade soberana para
their Rights and Constitutions are Discussed and Stated71, 4ª ed. (Londres, determinar quais partes do direito civil e dos estatutos devem ser estendidos,
1768), 102-109 [ortografia e pontuação modernizadas]: pois deve-se admitir que a diferença das circunstâncias necessariamente
“É regra universalmente adotada por todas as colônias, uma vez nos requer rejeitar, em alguns casos, a determinação de ambos. Em muitos
que elas levaram consigo para a América, a Common Law da Inglaterra, casos, eles estenderam também até mesmo os atos do parlamento apro-
com o poder de tal parte dos estatutos (com exceção dos que dizem vados após termos uma legislação distinta, o que aumenta em muito a
respeito à jurisdição eclesiástica) como estavam em vigor no momento nossa confusão. A prática de nossos tribunais não é menos incerta do que
da sua criação. No entanto, como não há uma regra fundamental que a lei. Algumas regras inglesas são adotadas, outras rejeitadas. Duas coisas,
diga quais são os estatutos admissíveis e quais não se admitem a todos, portanto, parecem ser absolutamente necessárias para a segurança pública.
admitem também o pleno estabelecimento da jurisdição eclesiástica, da Em primeiro lugar, a aprovação de um ato que determine a extensão das
qual fugiram para este lugar selvagem em busca de refúgio. E uma vez leis inglesas. Em segundo lugar, que os tribunais ordenem um conjunto
que eles fazem distinções, admitindo alguns e rejeitando outros, quem geral de normas para a regulamentação da prática”.
deverá traçar esta fronteira e onde ela deve passar? Além disso, como o [Pownall discute as objeções coloniais em relação ao direito da
direito civil em si nada mais é do que a prática e a determinação dos tri- Coroa britânica de erguer tribunais nos Estados Unidos. Ele continua:]
bunais sobre questões de direito conduzida por precedentes, nos lugares “Se a partir deste ponto de vista consideramos os defeitos que
onde as circunstâncias e as pessoas de um país em sua relação com os podem ser encontrados nos tribunais provinciais, estes apontam para a
estatutos e do direito civil diferem tão intensamente, isto significa que necessidade de se criar um tribunal geral de apelação para solucionar
o direito civil destes deve, em seu curso natural, se tornar diferente, e às estes problemas. Mas se olharmos para o único modo de recurso que
vezes até mesmo contrário ou, pelo menos incompatível, com o direito atualmente existe, veremos quão inaplicável, quão inadequado é o tri-
bunal. Eu não poderia, em um único olhar, descrever melhor os defeitos
71 NT: “A Administração das Colônias, Concernente à Discussão e Afirmação de seus Direitos
e Constituição”. dos tribunais provinciais nestes governos pueris do que pela descrição
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feita pelo nosso Lorde Hale, Chefe de Justiça, de nossos tribunais de co- de governo, em oposição ao espírito da democracia, ou mesmo às pai-
marca nos primórdios do nosso próprio governo, em que ele menciona: xões populares, pode esperar desse apoio, de sua manutenção e tutela
“Primeiro, a ignorância dos juízes, que eram desvinculados do país. Em que os tribunais, mesmo pela constituição, deveriam assegurar para a
segundo lugar, o fato de que esses vários tribunais geravam uma varie- Coroa. Também não seria injustiça alguma para qualquer das colônias,
dade de leis, especialmente nos diversos municípios, para as decisões ou apenas para marcar este lugar, o quão difícil, e até mesmo se é praticável
julgamentos feitos por diversos tribunais e vários juízes e magistrados em alguma corte civil, o julgamento de qualquer pessoa diante da viola-
independentes, os quais não tinham interesse comum entre eles em suas ção das leis de comércio, ou em qualquer assunto das receitas da Coroa”.
varias magistraturas, de modo que, no decorrer do tempo, havia, em
vários condados diversas leis, costumes, regras e formas de processo. Em
terceiro lugar, que todos os negócios, a qualquer momento eram resol-
vidos por partidos e facções, e aqueles de grande poder e interesse no
condado facilmente se sobrepunham aos outros em suas próprias causas,
ou naquelas em que tinham interesse”.
“Diante do primeiro artigo deste paralelo, não será nenhuma
desonra para muitos cavalheiros sentados nos bancos dos tribunais nas
colônias, dizer que eles não são e que não se pode esperar que sejam
advogados, ou ensinados na lei. E no segundo artigo, é certo que, em-
bora se trate de uma máxima fundamental da administração colonial
o fato de que as colônias não devem ter leis contrárias às leis da Grã-
Bretanha, ainda assim diante de todas as flutuações de resoluções e da
confusão na construção e na prática da lei nas diversas e muitas colônias,
é certo que a prática de seus tribunais e de seu direto civil,não apenas
difere um dos outros, mas consequentemente difere também daqueles
da Grã-Bretanha. Em todas as colônias o direto civil é recebido como
base e corpo principal do direito. Mas sendo cada colônia investida de
um poder legislativo, a lei comum é assim continuamente alterada de
modo que (como um grande advogado das colônias afirmou), “devido
à diversidade das resoluções, em seus respectivos tribunais superiores,
e dos diversos novos atos ou leis produzidas solidariamente, os vários
sistemas de legislações dessas colônias se tornam mais e mais variados,
não somente entre si, mas também das leis da Inglaterra”.
“Sob o terceiro artigo, temo que a experiência pode muito bem
dizer quão poderosa, mesmo nos tribunais, é sentida a influência dos
líderes de partido nas disputas entre indivíduos. Mas, nestes governos
populares, e onde cada funcionário executivo depende do apoio tempo-
rário, lamentável, e eu diria quase arbitrário, para os deputados do povo,
não será nenhuma injustiça... sugerir quão pouco a Coroa ou os direitos
210 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 211
Capítulo 6
As estruturas administrativas, jurídicas e
legais no Atlântico ibérico

Raúl Fradkin
Marco Antonio Silveira

A colonização da América

Durante os séculos XV e XVI as monarquias ibéricas se trans-


formaram em sedes de vastos impérios coloniais. Isto as obrigou a in-
troduzir modificações substanciais no modo como eram governadas até
então e a experimentar múltiplas alternativas para construir modos de
governo de tão amplos e diversos territórios. Os dilemas e desafios eram
de uma dimensão e uma complexidade inéditas para os dispositivos e
tecnologias de poder até então disponíveis, e os modos de governo que
terminaram por se configurar não emanaram de um plano preconcebi-
do, nem de uma orientação que estivesse definida com precisão desde o
começo. Sem dúvida, se apoiaram nas matrizes institucionais e nas tra-
dições jurídicas e políticas preexistentes, mas essas, no máximo, somente
podiam oferecer fontes de inspiração e recursos de legitimação. Porém,
a magnitude e diversidade dos problemas a resolver as tornavam com-
pletamente insuficientes. Tiveram, portanto, que sofrer transformações,
a maioria das quais surgiu de testes fracassados e adaptações às múltiplas
realidades dos domínios coloniais. Constituíram-se, assim, nesses espa-
ços configurações extremamente diversas, que, longe de serem estáticas,
sofreram muitas mutações.
Convém enfatizar que esse processo se desenvolveu no marco
das mutáveis relações entre ambas as monarquias. Os reinos de Castela
e Portugal competiram desde o início do século XV pela primazia no
novo quadro mundial que se gestava, mas enfrentaram essa concorrência
a partir das múltiplas interações e entrelaçamentos que possuíam entre si.
Desde o século XIII as relações entre ambos haviam sido marcadas por

As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 213


enfrentamentos e alianças, uma situação que começou a se estabilizar du- século XVIII, primeiro na documentação privada da alta elite adminis-
rante o século XIV com a consolidação das dinastias de Avis e Trastâmara trativa e somente mais tarde de maneira pública.
à frente das Coroa portuguesa e castelhana, respectivamente, ainda que, Essas questões, claro, geraram discussões, disputas e definições
até 1476, as possibilidades de uma união entre ambas as Coroas tenham doutrinárias. Assim, por exemplo, Juan de Solórzano Pereira, um dos
sido aventadas em diversas oportunidades. No entanto, em seguida, a mais influentes tratadistas hispânicos, definia duas formas pelas quais
união entre os reinos castelhano e aragonês lançou as bases para a forma- um território recém adquirido poderia se unir aos domínios de um rei.
ção de uma monarquia unificada dos reinos hispânicos e também para sua Uma era a denominada “união acessória”, pela qual um reino, província
competitiva intervenção na expansão atlântica que Portugal havia come- ou território passava a ser considerado juridicamente parte integrante
çado muito antes. Como é conhecido, essa intensa competição deu lugar de um reino, de modo que seus habitantes deveriam desfrutar teorica-
a uma primeira divisão do domínio do mar em 1479 e dos territórios por mente dos mesmos direitos e ficarem submetidos às mesmas leis, ainda
conquistar em 1494, pelo Tratado de Tordesilhas. que não se reconhecesse nesses territórios a existência de instituições
Porém, os entrelaçamentos e as disputas continuaram ao ritmo representativas preexistentes. Este, justamente, seria o caso das Índias
dos resultados que a expansão ultramarina gerava e dos inéditos recursos espanholas, que foram incorporadas juridicamente à Coroa de Castela.
que a conquista da América vinha fornecendo aos herdeiros do trono Outra forma de união era denominada aeque principaliter, na qual os rei-
castelhano e aragonês - em particular a Carlos V, imperador do Sacro nos incorporados deveriam continuar a ser tratados como entidades dis-
Império Romano Germânico, que em 1516 foi coroado como rei da tintas, conservando suas leis, foros, privilégios, assembleias e instituições
Espanha, instaurando a nova dinastia dos Habsburgos na Coroa hispâ- representativas: tal foi o caso de Aragão, Valência, Catalunha, Sicília e
nica. Tal situação se consolidou em 1566, com ascensão ao trono de seu Nápoles, as Províncias dos Países Baixos e Portugal, de modo que suas
filho, Filipe. O novo monarca era soberano de Espanha e de boa parte elites locais desfrutavam de um grau importante de autogoverno.
dos domínios que haviam pertencido ao seu pai, o imperador: Milão, Deste modo, entre 1580 e 1640 a monarquia hispânica funcio-
Nápoles, Sicília, Países Baixos e as Índias associadas à Coroa castelha- nou como um exemplo característico das chamadas “monarquias com-
na. Um ponto de inflexão se operou em 1580, quando Filipe logrou ser postas”, isto é, um complexo de corpos políticos agregados de natureza e
consagrado também rei de Portugal, estabelecendo uma união dinástica estatutos muito diferentes, que reconheciam um mesmo rei e que, mais
entre ambas as Coroas e formando uma monarquia dual. Nela, a monar- do que funcionar em torno de um único centro, eram, na realidade, uma
quia portuguesa recebeu uma gama de garantias jurisdicionais a respeito monarquia “policêntrica”. E isto a tal ponto que na monarquia hispânica
das leis e do idioma do reino, bem como o compromisso de ser governa- a Corte somente fixou residência permanente em Madri em meados do
da por ministros lusos e por um conselho que haveria de compartilhar a século XVI, a cidade se convertendo formalmente em sua capital apenas
autoridade máxima com um vice-rei de sangue real. em princípios do século seguinte. Seu crescimento havia sido fulminan-
O único rei da Espanha que ostentou o título de imperador te: a vila, que possuía tão-só uns 5.000 habitantes a princípios do século
foi Carlos V. Os vastos e heterogêneos domínios de seus sucessores não XVI, superava os 100.000 na década de 1620. Mas não era a cidade mais
eram apresentados formal e oficialmente como partes integrantes de um povoada: Sevilha – a sede comercial do novo império – havia passado de
império. Os espanhóis, de início, não empregavam a noção de “império”, 70.000 para 150.000.
pois no imaginário político da época ela cabia apenas ao Sacro Império A “monarquia dual” hispano-portuguesa perdurou até 1640 e
Romano. Ainda assim, não deixaram de pensar em termos imperiais sua crise derivou da instauração de uma nova dinastia em Portugal, a dos
a ponto de a expressão “o Império das Índias” ter adquirido crescente Bragança. Teve início, então, uma fase de confrontação na Península Ibérica
circulação durante o século XVII. Por outro lado, a denominação dos até 1668, a qual se reproduziu em seus domínios coloniais, especialmente
domínios americanos como “colônias” só começou a se generalizar no na região do Rio da Prata. Deste modo, a guerra entre ambas as monar-
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quias marcou a realidade peninsular e suas sequelas alcançaram o interior do As competições, confrontações e interações entre ambas as
reino castelhano: em 1706, pela primeira vez, tropas estrangeiras entraram monarquias constituem, deste modo, um aspecto capital na configura-
em Madri e obrigaram o rei a fugir. A guerra também foi modificando a ção das estruturas coloniais. A pioneira expansão portuguesa nas ilhas do
imagem pública dos monarcas, os quais passaram a ser representados não Atlântico e na costa africana durante o século XV se transformou tanto
somente como príncipes sábios, mas também como heróis guerreiros. Não numa experiência que orientaria a expansão inicial dos castelhanos no
por acaso os exércitos se converteram, durante o século XVIII, num instru- Caribe, quanto num laboratório experimental da conquista da América.
mento decisivo da vontade do monarca e num setor primordial de recruta- Nas ilhas atlânticas, os portugueses ensaiaram um modo de governo e
mento da nova elite administrativa. Em boa medida, esse aspecto expres- exploração baseado em acordos de concessão que a monarquia outorgava
sava também a rivalidade que havia se estabelecido entre outras potências a membros da nobreza. Tratava-se do regime de capitanias hereditárias,
imperiais emergentes, dado que a Coroa portuguesa se orientou em direção que na década de 1530 também seria implantado no Brasil. Nelas, por
a uma aliança cada vez mais estreita com a Grã-Bretanha. sua vez, foi-se gestando o sistema de plantation escravista, que deslocou
Essa situação teve um ponto de inflexão a partir da Guerra de para as ilhas a estancada produção açucareira peninsular. Tais estratégias
Sucessão Espanhola, ocorrida entre 1701 e 1713, um conflito dinástico eram possibilitadas, em última instância, pela obtenção de capitais junto a
que se transformou numa ampla contenda internacional e que levou à mercadores florentinos e genoveses, que converteram Lisboa em uma de
instauração da dinastia dos Bourbon – a mesma que reinava em França suas principais praças. Com o tempo, feitorias estabelecidas na costa da
– à frente da Coroa espanhola. A decisão do novo monarca de Espanha África se converteram em ativos nós de intercâmbio mercantil, articulan-
de abrir ao comércio francês seus domínios coloniais e a concessão do do o comércio de ouro e escravos, os quais, a par das especiarias da Índia,
asiento de escravos72 à Companhia da Guiné estimularam a decisão bri- haveriam de se converter, a partir do século XVI, em estrelas do mercado
tânica e holandesa de apoiar os partidários espanhóis que defendiam mundial em formação. O ponto decisivo dessa experiência foi que ela não
a manutenção da Coroa sob o controle da dinastia Habsburgo. Nesse somente se transformou na base de sustentação para a reprodução am-
contexto, Portugal incorporou-se à “grande aliança” antibourbônica. A pliada do impulso expansionista, mas também fundamentou a experiên-
América não ficou alheia a essa confrontação, como indicam os ataques cia castelhana nas Canárias, onde a população foi submetida, escravizada
franceses ao Rio de Janeiro em 1710 e 1711. ou exterminada. Deste modo, seguindo o modelo português, a Coroa de
Dessa forma, desde a primeira década do século XVIII a coliga- Castela assinou capitulações com particulares dispostos a interferir no co-
ção entre as monarquias espanhola e francesa teve como correlato quase mércio luso, organizando as chamadas “sociedades de armada” e forjando
obrigatório a mantida entre portugueses e britânicos. As confrontações um modelo organizativo que demonstraria sua eficácia na América. De
pelo predomínio na Europa tiveram inevitável repercussão nos domí- modo análogo, o incremento do fluxo mercantil a partir das ilhas atlânti-
nios coloniais. Nesse contexto, um evento histórico decisivo foi a cha- cas e da África tornou Lisboa o epicentro das redes mercantis do norte e
mada Guerra dos Sete Anos (1756-1763), na qual novamente Espanha do sul da Europa, levando, em 1480, à formação de uma instituição que
e Portugal tornavam a se enfrentar e a integrar alianças rivais. Tratou-se regularia o comércio colonial, a chamada Casa da Mina. Esta, por sua vez,
de uma autêntica guerra mundial que teve enormes repercussões nas serviu de modelo para que os castelhanos organizassem em Sevilha a Real
colônias americanas, não apenas porque elas também foram palco dos Casa de Contractación de las Índias em 1503.
enfrentamentos, especialmente no Rio da Prata, como também porque Porém, essas experiências se mostraram insuficientes e inade-
promoveu decisivas transformações nas políticas dos Estados europeus quadas quando da conquista do México a partir de 1519 e, logo depois,
em relação a suas colônias na América. do Peru, a partir de 1531. Ambas as conquistas mudaram radicalmen-
te a situação e as perspectivas, e desafios inéditos foram enfrentados:
72 NT: Para entender o que era um asiento de escravos cf. nota 8 do capítulo 3. enquanto para Portugal o principal domínio colonial era o “Estado da
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Índia”, pois o Brasil não oferecia recursos equivalentes na época, a Coroa neradora dos Andes entrava em uma fase de declínio e recessão (de
castelhana havia conquistado territórios que contavam com metais pre- que se recuperararia a partir da década de 1730), a da Nova Espanha
ciosos capazes de transformá-la em potência de primeira ordem. – jurisdição que abrangia a parte meridional da América do Norte e
Não obstante, entre o desejo e a realidade havia uma enor- a América Central – sofreria menor contração. A partir da década de
me distância. Em meados do século XVI, a Coroa espanhola teria de 1670, fenômeno que se estendeu em plenitude durante o século XVIII,
reconhecer que as possibilidades de reprodução da economia colonial Potosí chegou mesmo a se transformar na principal região produtora de
com base na exploração dos metais preciosos americanos eram incertas prata do mundo e na principal colônia do império espanhol. Enquanto
e estavam ameaçadas pela brusca queda da população indígena, pelas isso, uma mudança substancial estava ocorrendo no Brasil: desde o final
limitações do sistema produtivo, que continuava dependendo das tec- do século XVII a expansão da produção aurífera na região que se tor-
nologias e saberes autóctones, e ainda por sua limitada capacidade de naria a Capitania de Minas Gerais dinamizou diversos mercados regio-
governar efetivamente os novos domínios frente à ambição e às aspi- nais, articulando-se à ocupação dos sertões da Bahia, de Pernambuco
rações ilimitadas dos núcleos de conquistadores. A crise, que foi muito e do Piauí pela criação de gado. Durante a primeira metade do século
acentuada na década de 1560, permitiu uma profunda reformulação do XVIII, o principal eixo econômico da América lusa deslocou-se mais
governo colonial. para o sul, onde o porto do Rio de Janeiro galvanizava o comércio au-
Deste modo, a situação começou a se modificar a partir da dé- rífero e servia de referência para a anexação de novas áreas, em especial
cada de 1570 e as inovações introduzidas nas formas de mineração e no as do Rio Grande, cuja ocupação foi estimulada também pelas disputas
governo das comunidades indígenas se mostraram rapidamente exito- em torno da Colônia do Sacramento. Pela mesma época, entre o último
sas, especialmente nos Andes e em particular no cerro de Potosí, que se quartel do século XVII e o último do XVIII, a produção açucareira do
converteu, até a década de 1630, no principal centro de produção de Nordeste do Brasil enfrentou a baixa de preços, a competição holandesa
prata do mundo e em uma das cidades mais populosas do Ocidente. e a concorrência das ilhas do Caribe, onde o açúcar prosperou.
Convém ressaltar que as décadas de máxima expansão da pro- Estes últimos aspectos estavam diretamente ligados à dinâ-
dução mineradora de Potosí foram também as da união da dinastia his- mica dos conflitos entre as Coroas ibéricas na Europa. A ocupação de
pano-portuguesa. As relações entre ambos os processos foram múlti- Pernambuco e de regiões adjacentes pelos holandeses em 1630 – que se
plas, não apenas pelo fortalecimento político e militar que a riqueza da estendeu por mais de duas décadas - resultou, em boa medida, das lutas
mineração outorgou à monarquia espanhola, mas também porque os que os batavos travaram contra a Espanha para manter sua indepen-
efeitos de atração do mercado potosino se fizeram sentir por quase toda dência. Após a Restauração de 1640, que pôs fim à União Ibérica, os
a América do Sul e também no tráfico de escravos vindos das costas portugueses e seus colonos do Atlântico tiveram de enfrentar a ameaça
africanas. Negociantes sediados no Rio de Janeiro, por exemplo, utili- da Holanda, que chegou ainda a ocupar Angola, um foco fundamental
zavam o metal de Potosi, obtido no Rio da Prata, para fomentar trocas no tráfico de escravos. Em tais circunstâncias, o interesse de Portugal
comerciais que envolviam o Brasil, a África e as Índias orientais. Além pela Colônia do Sacramento aumentou, já que sua ruptura em relação a
disso, outras transformações significativas estavam ocorrendo, como a Castela tornava indispensável a manutenção de um entreposto no Rio
expansão da produção açucareira no Nordeste brasileiro, que se consoli- da Prata capaz de sustentar o contrabando de metais preciosos e de
dou na passagem para o Seiscentos. outros produtos oriundos da América espanhola. A informação dispo-
No entanto, a partir de meados do século XVII, as dinâmicas nível permite registrar que, a seu modo e ritmo, as sociedades coloniais
econômicas regionais – tanto na América espanhola quanto na portu- americanas assistiram, ainda que com altos e baixos, a um crescimento
guesa – tenderam a se diferenciar notavelmente. Deste modo, em um econômico e demográfico notável durante o século XVIII e, em alguns
contexto de crise geral da economia europeia, enquanto a produção mi- casos, até antes. Isso, junto à crescente disputa interimperial, explica
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as tentativas de reformular o governo colonial. Mas havia algo mais: complicada em decorrência da competição travada pelos diversos países
a configuração das sociedades coloniais em meados do século XVIII europeus, que precisavam posicionar-se ora frente à busca de hegemonia
era muito diferente da fisionomia que cada uma delas possuía no XVI, pelas potências na própria Europa, ora diante da conquista de mercados
quando suas bases se constituíram. Embora muitas vezes opaca à obser- promissores nas várias partes do mundo. É certo que, pelo menos até a
vação dos historiadores e menos conhecida que as fases de conquista ou metade do século XVII, aproximadamente, as situações de Espanha e
de reformismo imperial, uma longa, diversa e complexa história havia Portugal eram distintas. Embora ambos os reinos possuíssem domínios
transcorrido e resultado em sociedades e modos de governo coloniais ultramarinos e estendessem suas rotas comerciais pelos diversos conti-
que frequentemente eram bastante distintos daqueles desejados pelas nentes, os espanhóis, associados à dinastia Habsburgo, exerciam preten-
autoridades imperiais. sões de hegemonia na Europa que os portugueses não tinham condições
Ao se observar o processo histórico colonial em longo prazo de almejar, fosse por sua posição periférica, fosse pela menor infiltração
e sem enfatizar as notáveis diferenças regionais, pode-se afirmar que as das dinastias lusas. Após o fim da União Ibérica, em 1640, o protagonis-
monarquias ibéricas enfrentaram uma série de desafios recorrentes que, mo espanhol na Europa havia perdido muito de seu brilho, mas, ainda
em mais de uma conjuntura, se tornaram abertamente contraditórios en- assim, o império hispânico continuou a apresentar uma complexidade
tre si. Deviam garantir a defesa dos territórios, assim como, na medida maior que a experimentada pelo império português.
do possível, impulsionar sua ampliação, mas ao mesmo tempo tinham Em linhas gerais, apesar de suas diferenças, as duas monarquias
de assegurar que uma parte significativa dos excedentes fluísse para as organizavam-se segundo um mesmo modelo. Para compreendê-lo, é
metrópoles imperiais. Compatibilizar ambas as necessidades era extrema- primeiro necessário dissociá-lo da visão que geralmente se tem do cha-
mente complexo e, por vezes, impossível. Deviam desenvolver formas de mado absolutismo. Este conceito é comumente evocado para expressar
exploração dos recursos que posicionassem as economias metropolitanas uma situação na qual o monarca não apenas centralizava amplos meca-
no mercado mundial em formação, mas ao mesmo tempo tinham que nismos de tomada de decisão, como também os meios através dos quais
satisfazer as ambições dos grupos sociais dominantes em cada espaço co- tais decisões eram colocadas em prática. Nada mais distante da realidade
lonial. Sem a cooperação ativa desses grupos, a sobrevivência do próprio vivida pelas monarquias ibéricas do Antigo Regime. Quando se compa-
sistema colonial era inviável, mas seu fortalecimento poderia constituir ram, por exemplo, as condições técnicas que se encontram à disposição
uma ameaça para a afirmação da autoridade das monarquias nos territó- dos atuais Estados, alguns deles capazes de monitorar via satélite o que
rios conquistados. Portanto, as Coroas dependiam deles, embora tivessem se passa em qualquer porção do mundo, com aquelas com que contavam
de impedir que se autonomizassem. Essas monarquias eram católicas e os os reinos seiscentistas ou setecentistas, percebem-se logo os limites en-
impérios que forjavam se legitimavam por sua missão religiosa, mas seus frentados por estes últimos. Certas decisões relativas a uma determinada
monarcas não estavam dispostos a se subordinar nem ao Papado, nem à região colonial na América demoravam meses para serem tomadas e
Igreja, e estavam menos dispostos ainda a permitir que estes exercessem aplicadas, dadas as demoras resultantes dos meios de comunicação e dos
uma autoridade competitiva nas colônias. trâmites administrativos.
Além disso, os monarcas enfrentavam a concorrência de outros
poderes no interior do próprio império. Embora formalmente coubes-
Os vários sentidos da prudência se ao rei dar a última palavra nos diversos assuntos respeitantes a seus
domínios, conselhos e tribunais de tipos variados analisavam enorme
Um dos problemas cruciais enfrentados pelas Coroas ibéricas quantidade de papéis provindos de uma vasta gama de localidades, antes
consistiu na tarefa de governar extensões territoriais e povos tão di- que fossem submetidos à apreciação régia. Tais instâncias, fossem ad-
versificados quanto os da América. Essa tarefa tornava-se ainda mais ministrativas, fiscais, militares, eclesiásticas ou judiciais, possuíam certa
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autonomia no que dizia respeito tanto à sua formação quanto às deci- Igreja Católica possuía também seus privilégios, sendo o principal de-
sões tomadas. As instituições que formavam o Estado moderno estavam les o de instituir uma estrutura judicial própria, na qual seus membros
inseridas em sociedades estamentais e, portanto, baseadas no privilégio. seriam julgados. Esta e outras prerrogativas faziam com que padres e
A distinção entre nobres e plebeus – para indicar um só exemplo – cria- frades se esquivassem do pagamento de impostos e só aceitassem ser
va, por si só, uma infinidade de estamentos diferentes, bem como graus contestados por delitos cometidos na justiça eclesiástica. O conjunto
de nobreza diversos. As sociedades de Antigo Regime eram juridica- dos limites apontados causava inúmeras dificuldades para o exercício
mente hierarquizadas, as distinções sociais sendo expressas até mesmo do poder régio. As próprias fontes do direito, com base nas quais julga-
no modo de se vestir ou no acesso a determinados cargos e posições. vam-se os vassalos, eram diversificadas e por vezes contraditórias entre
Tratava-se de sociedades tradicionais, ou seja, sociedades em que se va- si: os costumes locais, as leis pátrias (isto é, outorgadas pelos monarcas),
lorizava mais a manutenção da ordem, dos costumes e das tradições do o direito canônico, o direito romano, as prescrições feitas por tribunais
que as novidades e inovações. e comentadores. Uma vez que no julgamento de casos concretos havia
As estruturas de governo, nesse contexto, não poderiam se des- argumentos jurídicos para todos os gostos, o conflito se instalava no
vincular do quadro social caracterizado pelo apego à tradição e aos privi- interior das próprias estruturas administrativas e judiciais.
légios. Ainda que os monarcas ibéricos, no decorrer do Antigo Regime, As diferenças entre os impérios espanhol e português acha-
tenham efetuado inovações nas diversas sociedades que compunham vam-se já na constituição dos dois reinos ibéricos. Enquanto Portugal
seus impérios e mesmo nas instituições estatais, tiveram de curvar-se forjou-se mantendo certa homogeneidade administrativa, a Espanha
constantemente às demandas de grupos sociais e às decisões de con- era o resultado da articulação de várias regiões relativamente autônomas
selheiros, magistrados e representantes dos poderes locais. Era neces- que orbitavam em torno da corte situada em Castela: Leão, Aragão,
sário negociar incansavelmente com os vários focos de interesse, sendo Catalunha, Astúrias etc. Algumas dessas regiões, tendo sido outrora rei-
simplesmente impossível governar através da mera imposição da von- nos, possuíam cortes e instâncias de administração próprias. Essa forma
tade régia. Destaque-se ainda que as instituições de Estado não eram de organização, que visava a reforçar o poder do rei sediado em Madri,
propriamente impessoais. Pelo contrário, compreendia-se como natural articulando-o, pela via da negociação, a territórios, cortes e estruturas
que as nomeações fossem feitas com base em sistemas pessoais de troca, variados, estendeu-se também a outras partes da Europa dominadas
neles desempenhando papel importante a vida cortesã que cercava o pela Espanha, como na Itália e nos Países Baixos, bem como aos vice-
monarca. Por vezes, decisões simples, como a nomeação de um mero es- -reinados americanos. Já a corte portuguesa, sediada em Lisboa, abar-
crivão em determinada localidade da América, dependia de uma cadeia cava um território que não conheceu instâncias concorrentes do mesmo
de pressões que alcançava um conde ou marquês com acesso ao rei. gênero. Na América lusa, a interiorização da atividade colonizadora se
Além disso, havia dois outros tipos de limites experimentados deu de forma mais lenta e, embora tenha sido criado um governo-geral
pelas Coroas. De um lado, as comunidades espalhadas pelos reinos e na Bahia em 1548 – transferido para o Rio de Janeiro em 1763 -, so-
pelas diferentes partes do império demandavam que as leis régias não mente no século XVIII seus titulares passaram a ostentar regularmente
afetassem os costumes praticados localmente, em especial se fossem a alcunha de vice-rei.
bastante antigos e arraigados. De outro, certas famílias da nobreza ti- Seja como for, o modelo de organização do governo, conforme
nham a regalia de estabelecer por conta própria autoridades respon- se disse acima, foi basicamente o mesmo nos dois impérios. O rei era
sáveis por exercer a justiça e cobrar impostos em suas terras. Ou seja, considerado legibus solutus, isto é, capaz de, em última instância, criar e
além da concorrência derivada de conselhos, tribunais, poderes locais e modificar as leis. No entanto, ao legislar, devia respeitar os limites do di-
grupos cortesãos, havia aquela advinda das comunidades e das princi- reito divino e natural, da tradição e dos privilégios, consultando pruden-
pais famílias nobres. A situação mostrava-se ainda mais difícil porque a temente secretários, conselheiros, magistrados, governadores etc. Essa
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atuação prudente era o que, segundo a doutrina, distinguia o monarca peitando a ordem divina e natural e os privilégios estabelecidos. Nesse
do tirano: se este atuava livremente sem nada respeitar, aquele governava sentido, atitudes marcadamente inovadoras adotadas pelos reis tendiam
e legislava respeitando os limites que o circundavam. Pode-se dizer que a ser vistas com desconfiança e como uma agressão a prerrogativas e,
durante o Antigo Regime, especialmente nos séculos XVII e XVIII, os consequentemente, à própria ordem social.
monarcas ibéricos tiveram de lidar o tempo todo com um dilema, ora A explicação da doutrina escolástica sobre a sociedade e o po-
atuando dentro dos limites que lhes eram colocados, ora procurando der valia-se amplamente da metáfora do corpo: assim como o corpo
ampliar seu poder de ação adotando medidas que alteravam costumes e humano, que possui diversos membros, cada um com suas características
privilégios e modificavam as estruturas do próprio Estado. próprias, mas todos governados pela cabeça, a sociedade seria estrutura-
Esse dilema foi profundamente debatido na Península Ibérica da como um conjunto orgânico em que o rei, como cabeça desse corpo
por diversos autores que se debruçaram sobre o exercício do governo. social, deveria governá-lo, respeitando as características e os privilégios
A literatura sobre o tema era bastante antiga, mas ganhou força à me- de cada uma de suas partes. Por isso, considerava-se como a principal
dida que os Estados modernos se constituíram e se desenvolveram, al- virtude do monarca a capacidade de agir com prudência, isto é, de tomar
cançando as várias partes do globo através do comércio e da expansão decisões e estabelecer leis buscando respeitar os direitos estamentais e
ultramarina. O debate tornou-se especialmente acirrado com a eclo- visando a conciliar os conflitos que resultassem do choque entre as vá-
são da reforma protestante e da reação que os católicos lhe impuseram. rias partes do corpo social. Tal orientação deveria ser também seguida na
Enquanto a Inglaterra, a França, os Países Baixos, os reinos nórdicos e administração dos domínios coloniais, evitando-se a adoção de medidas
vastas regiões germânicas foram tomados por diferentes vertentes do impositivas em prol de soluções consensuais. Ainda segundo a doutrina
protestantismo, a Península Ibérica permaneceu amplamente católica. escolástica, a relação do rei com seus súditos previa um tipo particular de
Nos séculos XVI e XVII, ao mesmo tempo em que franceses e ingle- reciprocidade: enquanto cabia aos vassalos servir o monarca, colocando
ses enfrentavam guerras civis marcadas pelo crivo religioso, espanhóis à sua disposição seus bens e sua própria vida, era dever deste último agir
e portugueses fortaleciam a Inquisição e estimulavam a perseguição de com liberalidade, isto é, recompensar esses serviços através da concessão
hereges. Nesse contexto, os debates sobre os modos de exercer o governo de graças e mercês, que assumiam a forma de títulos, pensões, doações de
foram, em Portugal e Espanha, fortemente marcados pelo pensamento cargos etc. Por exemplo, um colonizador que conquistasse, a seu próprio
católico, destacando-se os autores da tradição escolástica. Desempenhou custo, determinada região da América, combatendo povos autóctones e
papel decisivo nesse debate a ordem jesuíta, criada em 1534 no quadro enfrentando os perigos de uma natureza desconhecida, apresentaria ao
da contrarreforma católica, bem como pensadores articulados em torno monarca uma relação de seus feitos com vista a obter alguma graça, fosse
da universidade espanhola de Salamanca. um título militar ou nobiliárquico, fosse o direito de governar em nome
Apesar de suas variantes, a tradição escolástica propunha que do rei a região conquistada.
os reinos resultavam de pactos irrevogáveis (ou revogáveis apenas em Não é preciso dizer, porém, que o modelo escolástico, embora
condições extremas e precisamente definidas), através dos quais os prin- previsse a existência de conflitos e estimulasse sua resolução através de
cipais estamentos sociais – a nobreza, o clero e o povo – haviam trans- meios consensuais, não era capaz de lidar com a complexidade da vida
ferido o poder para o monarca visando à manutenção da ordem social. real, muito mais diversificada e competitiva. Os chamados conflitos ju-
A reprodução dessa ordem se daria na medida em que, por um lado, a risdicionais – embates entre agentes nomeados pelo rei, que disputavam
sucessão dos reis era garantida pela existência de dinastias e, por outro, entre si o direito de exercer poder sobre certas áreas e certos assuntos –
os privilégios e as prerrogativas dos estamentos pactuantes eram pre- foram inúmeros no Antigo Regime, inclusive no ambiente colonial, sendo
servados pelo poder régio. Como dito acima, o monarca, na qualidade sua solução às vezes simplesmente impossível. Sendo assim, a prudência
de legibus solutus, tinha o poder de criar leis, mas deveria fazê-lo res- do monarca e de seus conselheiros nem sempre produzia efeitos práticos
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e viáveis. Além disso, era inevitável que os reis se vissem diante da neces- Território, administração e justiça na América espanhola
sidade de inovar com o intuito de levar adiante determinadas reformas
ou mesmo para tornar eficaz a prática de governo. Por vezes tais tentati- Durante o século XVI, em um contexto cambiante e carregado
vas de inovação aumentavam sensivelmente a tensão na corte, sendo nela de transformações, disputas e contradições relativas à definição da or-
constantes as lutas faccionais, ou em uma parte qualquer do império – dem colonial em formação, foram se definindo tendências dominantes:
lembre-se a esse respeito a recorrência de revoltas por todo o território de a substituição da figura do conquistador-governador pela do governa-
colonização ibérica, boa parte delas ligadas a questões fiscais. dor-administrador e, logo depois, a afirmação de um governo do im-
Havia ainda uma diferença entre a arte de governo e a arte de pério; e o fortalecimento nas colônias de uma casta de administradores
Estado. A primeira abarcava as noções escolásticas indicadas acimas, tendo letrados, entre os quais os juízes possuíam um papel determinante.
como meta fundamental a realização do bem comum. Se o rei governava, Já no Caribe se haviam posto em evidência problemas que se-
criava leis, distribuía graças e mercês, respeitava privilégios e procurava riam recorrentes: as amplas concessões outorgadas aos conquistadores
conciliar conflitos, fazia-o porque, segundo a doutrina, manter a ordem não poderiam ser respeitadas se a Coroa pretendesse exercer sua au-
significava manter as condições indispensáveis para se alcançar o bem co- toridade nas colônias. Mas foi a conquista do México que abriu uma
mum. A arte do Estado, por sua vez, tinha por objetivo manter e ampliar situação extremamente mais complexa, pois nela se enfrentava a difícil
o domínio exercido pela Coroa sobre suas possessões – tarefa nada fácil tarefa de organizar o governo estável e duradouro de sociedades densas
diante da concorrência existente entre os reinos e as repúblicas europeias e e complexas e ao mesmo tempo desmontar o poder que havia adquirido
da grande extensão das conquistas ultramarinas. Nesse sentido, a doutrina a casta de conquistadores-encomenderos, que ameaçava se converter em
escolástica convivia com outra vertente de pensamento, que em parte se uma ordem “neofeudal”. A mudança começou a se esboçar a partir de
alimentava dela: a literatura da razão de Estado. Esta última procurava 1523, quando a Nova Espanha foi colocada sob a tutela direta do rei e
ensinar aos reis e às autoridades diversas lições sobre como dominar ter- se estabeleceram as primeiras audiências (Santo Domingo e México) e
ritórios e povos, considerando principalmente os casos de grande necessi- bispados (Santo Domingo, Panamá, Cuba, Puebla e México).
dade, como os que resultavam da ameaça de guerra com um reino vizinho Esse processo começou a se aprofundar com a conquista
ou da eclosão de rebeliões no ultramar. Ainda que a maioria dos teóricos do Peru e se manifestou mediante a organização dos vice-reinos da
da razão de Estado retomasse o argumento escolástico segundo o qual Nova Espanha (1535) e Peru (1542), de novas audiências (Nicarágua,
o monarca deveria agir dentro dos limites estabelecidos por Deus e pela Guatemala, Michoacán, Chiapas, Guadalajara, Bogotá, Caracas,
natureza, discorriam com mais largueza sobre as situações extremas em Cartagena, Popayán, Lima, Cusco, Quito e Assunção) e das capitanias
que seria indispensável agir de modo mais incisivo, dissimulado e mesmo militares (Santo Domingo, Guatemala e Chile)
violento para se evitar a perda de territórios e da obediência devida. No entanto, em meados do século XVI esse era ainda um pro-
Assim, a prudência escolástica, calcada na busca do bem co- cesso incipiente, embora já mostrasse plenamente o papel decisivo das
mum através da conciliação de contextos conflituosos e da busca de so- estruturas eclesiásticas e das audiências no nascente emaranhado insti-
luções consensuais e pactuadas, coexistia com a prudência de Estado, tucional. O declínio da população indígena ameaçava as possibilidades
que visava antes de tudo a tomar as medidas que fossem necessárias de se forjar uma economia colonial e as disputas políticas levaram a um
para manter e ampliar o domínio de povos e territórios. Era com base momento de inflexão: a sanção das Leis Novas de 1542, as quais preten-
nessas duas linhas doutrinárias que os reis ibéricos se moviam em meio diam anular os poderes jurisdicionais dos encomenderos sobre os índios
à complexidade das estruturas administrativas e sociais. Geralmente, era submetidos e recuperar a autoridade da soberania real sobre os súditos.
preciso analisar com cuidado caso a caso e escolher a melhor maneira de A aplicação dessas leis gerou enormes resistências e elas torna-
agir, decidindo se era ou não caso de inovar ou de agir de forma extrema. ram evidente que o poder efetivo dos vice-reis era ainda muito limita-
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do. Em particular, a resistência foi especialmente intensa no Peru, onde do clero indiano e do papel que, no disciplinamento social e não somen-
se desencadeou uma guerra civil, na qual os encomenderos encabeçados te na vida eclesiástica, deveriam desempenhar os tribunais da Inquisição
por Gonzalo Pizarro não somente enfrentaram a aplicação das leis como criados em 1579 no México e em Lima e em 1610 em Cartagena.
destituíram e degolaram o vice-rei Blasco Nuñez Vela. A pacificação O exemplo paradigmático da política reformista foi oferecido
negociada ficou nas mãos do clérigo Pedro de La Gasca, que presidia pelo Peru, onde o novo vice-rei foi transformado em visitador-geral,
a Audiência de Lima e se apoiava em uma momentânea coalizão entre uma decisão que abria um eixo de conflitos com a Audiência de Lima,
religiosos, oficiais régios e senhores étnicos, que introduziu uma regulação mas estava destinada a reafirmar a soberania da Coroa e obter a “defini-
política no regime de encomienda. Em 1549 se taxaram pela primeira vez tiva pacificação” do reino, submetendo a resistência do Estado neo-Inca
as rendas de encomienda, abrindo-se um espaço de negociação com os che- de Vilcabamba e executando o último Inca em 1572. A partir desse mo-
fes indígenas para se estabelecer o volume dos excedentes que deveriam mento, as autoridades visaram a definir uma nova ordem sociopolítica
ser pagos. Estabeleceu-se, assim, um princípio doutrinário que haveria de e consolidar o governo das duas Repúblicas, a dos Espanhóis e a dos
deixar profundas raízes: o domínio, para ser legítimo, deveria se basear Índios. Nessa altura, a sanção das Ordenanças de Novos Descobrimentos e
no consentimento. Deste modo, depois da derrota de Gonzalo Pizarro, Povoações anunciava que a política de “pacificação”73 dos territórios pas-
a autoridade vice-real apontou na direção do abrandamento na aplica- sara a ser prioritária, tendo chegado o momento de impor o respeito
ção das Leis Novas e aproveitou para ampliar as margens de exercício de pela lei régia e pela justiça e de substituir os conquistadores e encomen-
sua autoridade. Conciliando as aspirações dos encomenderos e os interesses deros como fiadores da ordem social. Isso não significava acabar com a
imediatos do Estado, criou as condições para que o sistema de exações vi- encomienda, mas sim transformar os encomenderos em uma nova casta
gente erodisse, o que resultou na lenta decadência da encomienda, na abo- nobiliárquica, buscando uma solução de compromisso entre seus inte-
lição paulatina dos serviços pessoais exigidos dos índios e na comutação resses, os da Coroa e os da nobreza indígena. Portanto, reforçaram-se
do tributo em espécie. Porém, durante a década de 1560, uma profunda disposições várias, como as que proibiam os encomenderos de possuir
crise da economia colonial habilitou uma mudança de rumo que deu iní- terras em zonas de encomienda, ou as que vetavam o trabalho gratuito
cio a uma nova fase na configuração da ordem jurídica e política colonial indígena e a obrigação de pagar o tributo em dinheiro. Também foram
e estabeleceu as estruturas que haveriam de governar sem modificações ampliadas as possibilidades dos colonos não pertencentes à elite enco-
substanciais até meados do século XVIII. Em boa medida, essa foi a tarefa mendera, através da garantia de que um dos dois alcaides de cada cidade
que empreenderam no Peru o vice-rei Francisco de Toledo (1569-1581) e, não seria nela recrutado. Essa política teve como objetivo reafirmar a
na Nova Espanha, o vice-rei Martín Enríquez de Almansa (1568-1580), soberania da Coroa, retomar as prerrogativas régias e estabelecer um
seguindo as instruções elaboradas na Junta Magna de 1568. controle muito mais efetivo dos territórios, aumentando também a au-
A tarefa desses vice-reis não se limitou a aumentar a transfe- toridade do vice-rei frente às Audiências.
rência de recursos das colônias, pois era muito mais complexa. Deste Obviamente, essas políticas não se implementaram com a mes-
modo, sob o reinado de Filipe II, a política que começou a se desen- ma intensidade em todo o vice-reino peruano, nem foram idênticas às
volver concebia uma ordem social e política fundada na “utilidade eco- que se impuseram no novo-hispano. Porém, o que aqui importa salientar
nômica”, associando o “útil” para a Real Hacienda com o “justo” para os é que a arquitetura institucional foi se tornando mais densa, complexa
índios e buscando obter um vínculo estreito entre a nova elite adminis- e ramificada. Deste modo, estabeleceram-se novas audiências (Charcas,
trativa em formação e as autoridades eclesiásticas. Por isso, nessa Junta Quito e Chile), bispados (Oaxaca, Yucatán, Charcas, Chile, Trujillo,
Magna se refinaram os argumentos que sustentavam os “justos títulos” Arequipa e Tucumán) e capitanias gerais (Yucatán e Porto Rico), sendo
da Coroa castelhana sobre as Índias e se delineou uma reformulação das
estratégias de evangelização. Também se estabeleceu uma reorganização 73 NE: sobre o conceito de pacificação, cf. volume 1 desta coleção, capítulo 2.
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instalados ainda dois consulados (México e Lima), corporações mercan- gociações com as oligarquias locais, vendo-se forçadas as autoridades reais
tis que também funcionavam como tribunais de comércio. a estreitarem suas relações com elas se quisessem governar seus territórios.
Não obstante, as audiências eram insuficientes para governar O que foi dito acima é suficiente para se perceber com clareza
as imensas jurisdições de ambos os vice-reinos. Para resolver tal desafio, que a configuração da ordem jurídica e política na América, bem como
foram se constituindo diversas estruturas de governo provincial: em pri- o emaranhado de estruturas administrativas que deveriam sustentá-la,
meiro lugar, as gobernaciones e, em uma escala mais reduzida, as alcaldías não foram o resultado de um plano preconcebido, nem tampouco de
mayores e os corregimientos. Em contrapartida, as criações institucionais um transplante mecânico de instituições castelhanas. Esse processo foi
foram muito escassas durante o século XVII: somente se instituíram extremamente mais complexo e esteve atravessado pelas tensas e por
temporariamente uma audiência (a de Buenos Aires, entre 1661 e 1671), vezes contraditórias relações entre as normas que emanavam da Coroa e
um bispado (nessa mesma cidade) e uma capitania geral (Cuba). as práticas sociais e políticas dos atores coloniais locais.
Foi, portanto, na segunda metade do século XVI que se organiza- O direito imperante era parte de um complexo normativo for-
ram novas estruturas e elites administrativas, produzindo-se uma autêntica jado na Castela medieval, no qual a religião possuía um predomínio
“revolução no exercício do governo”. Contudo, as evidências sugerem que, avassalador. Tinha uma configuração pluralista que reconhecia diferen-
para as primeiras décadas do século XVII, tanto a expansão da conquista tes legitimidades e se caracterizava pelo casuísmo, de modo que a lei
como a transformação do governo colonial encontraram seus limites, e, com emitida pela autoridade real era somente um de seus componentes, nem
isso, as relações entre Espanha e América tenderam a se modificar. Havia-se sempre o decisivo, na administração da justiça, competindo com a juris-
tornado evidente que a monarquia não era um sistema político e institu- prudência, as obras dos tratadistas e, sobretudo, com os costumes aceitos
cional estático, mas que estava submetida a pressões constantes, sendo o localmente. Esse contexto permite compreender que tanto a doutrina
principal motor da mudança as necessidades da tributação real. Percebeu-se como a liturgia e a retórica política da monarquia hispânica apresen-
também que os limites encontrados pelo fortalecimento da autoridade ré- tavam o rei mais como um juiz supremo do que como um legislador
gia tiveram como correlato a consolidação das oligarquias locais em ambos supremo. E isso fez com que, na administração judicial, o papel mais
os lados do Atlântico. Não obstante, ainda que implicasse debilitação da relevante coubesse antes aos juízes do que propriamente às leis.
Coroa, na América isso não se traduziu em movimentos separatistas, como Essa questão é decisiva para se compreender o papel que de-
aconteceu na Península Ibérica em 1640, mas sim em uma redefinição das senvolveram os juízes na configuração do governo colonial. A ampliação
relações entre as elites locais e a Coroa. Quiçá nenhuma outra situação tor- e consolidação da máquina administrativa foram, sem dúvida, uma con-
nou essa redefinição mais evidente que o acontecido com o projeto da União sequência central da configuração de um império que alcançou dimen-
de Armas, que a monarquia impulsionou na década de 1620. Ele pretendia sões planetárias. Ainda assim, as condições da época impediram que o
coordenar a ação de todas as formações armadas do império; no entanto, governo efetivo dos domínios coloniais pudesse se realizar por meio da
as autoridades coloniais e os grupos dominantes locais lograram transfor- força militar. Além disso, a monarquia esteve afundada em interminá-
mar essa exigência de envio de tropas em uma contribuição monetária de veis conflitos bélicos na Europa. Mesmo diante dessas ressalvas, qual-
350.000 ducados no Peru e de 250.000 na Nova Espanha. Mais ainda, a quer análise deve considerar que a extensa e heterogênea administração
aplicação efetiva desse compromisso se aplicou no Peru dez anos mais tarde. imperial era um conjunto articulado por relações de parentesco, amiza-
Essa disputa teve também outras consequências e o fracasso da União de de, favor, clientela e outros tipos de solidariedade, laços sociais que não
Armas conduziu nas colônias ao desenvolvimento de seus próprios meca- se mostravam inconciliáveis com a ordem que a Coroa pretendia impor
nismos de defesa e à formação dos primeiros corpos milicianos. Militar e a seus agentes por meio de um heterogêneo conjunto de disposições74.
economicamente, os laços entre as Índias e a Espanha haviam se tornado
muito mais frouxos e necessariamente estavam submetidos a repetidas ne- 74 NE: Para um aprofundamento dessas questões, cf capítulo 1 deste volume.
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A administração se converteu, assim, na ferramenta primordial em Lima. No entanto, sua situação era muito diferente daquela de seus
para governar o império e em seu topo se encontravam o rei e o Conselho colegas europeus, pois na Europa a instituição vice-real funcionava mui-
de Índias. Dada a relação especial que as Índias mantinham com a Coroa to limitada pelos conselhos que representavam os diferentes territórios
de Castela, nelas não se reproduziram as instituições representativas que frente ao rei. Na América, pelo contrário, os vice-reis tinham de lidar
eram o centro da vida política nos domínios europeus da monarquia, mas, com as audiências, tribunais aos quais foi atribuída a jurisdição suprema.
seguindo-se um modelo já conhecido, se instaurou em 1523 o Conselho Porém, os vice-reis eram autoridades temporárias que permaneciam ge-
de Índias, que desde 1561 teve sede permanente em Madri. Esse conse- ralmente seis ou sete anos no cargo, ainda que alguns tenham governado
lho expressava o poder crescente da nova administração letrada, recrutada durante duas décadas
majoritariamente entre a nobreza e o clero. Não obstante, é duvidoso que Uma visão simplificada das estruturas institucionais poderia
muitos dos 249 conselheiros que o integraram até 1700 fossem conhe- sugerir a imagem de uma pirâmide perfeitamente escalonada, na qual o
cedores das realidades coloniais, dado que tão somente sete haviam an- rei e o Conselho de Índias estariam no topo, seguidos dos vice-reinos e
tes ocupado algum emprego em uma audiência americana. Porém, esse das audiências, que possuíam jurisdições territoriais de menor alcance,
conselho possuía uma intervenção decisiva na designação de vice-reis e nas quais existiam distritos menores, geralmente denominados gober-
altos funcionários coloniais, assim como na definição das instruções que naciones, corregimientos e alcaldías mayores. Contudo, esta é uma ima-
recebiam. Deste modo, longe de ser um tipo de instituição representativa gem completamente anacrônica e, quando se atenta ao funcionamento
das colônias ante a Corte, era um espaço institucional para articular as re- efetivo do dispositivo institucional, pode-se construir uma visão radi-
lações e formular as políticas da administração imperial. Isto não quer di- calmente distinta: a Corte funcionava como o eixo de uma roda cujos
zer que os grupos dominantes coloniais não pudessem ter suas demandas raios eram as audiências, enquanto estas eram, por sua vez, eixos de uma
e reivindicações ouvidas na Corte, mas para isso deviam apelar a outros série de rodas cujos raios se estendiam às províncias de suas respectivas
procedimentos: as petições enviadas por meio dos vice-reis, a designa- jurisdições. As audiências, por outro lado, não eram todas idênticas em
ção de procuradores por parte dos cabildos americanos ou os recursos atribuições e competências, dividindo-se basicamente em três tipos: as
de súplica. Não eram procedimentos judiciais, mas sim recursos dirigidos audiências vice-reais, situadas nas capitais, cujas sessões eram presidi-
ao legislador que, sem colocar em xeque sua autoridade para impor uma das pelo vice-rei; as audiências pretorianas, que exerciam o governo de
legislação específica, denunciavam inconveniências e serviam para reivin- uma jurisdição e se comunicavam diretamente com o rei e o Conselho
dicar a validade de direitos e privilégios. Deste modo, eram considerados das Índias; e as audiências subordinadas, que não possuíam poderes de
como um direito fundamental dos súditos e se expressavam na fórmula governo. Por outro lado, as audiências das capitais vice-reais assumiam
se obedece, pero no se cumple [“se obedece, mas não se cumpre”]. Convém, temporariamente o governo do vice-reinado quando acabava o governo
então, atentar ao funcionamento dessas estruturas coloniais de governo e de um vice-rei e ainda não havia chegado um novo.
administração de justiça. Ainda que fosse se adaptando às realidades americanas, esse
A formação dos vice-reinos retomava a experiência iniciada em modelo judicial foi adotado do castelhano e regulado pelas Ordenanzas
Aragão durante o século XIV e generalizada pelos Reis Católicos para ditadas em fins do século XV, as quais prescreviam a condição de pessoa
o governo de seus domínios, com a clara exceção de Castela. A adoção pública ao magistrado, o segredo de suas decisões e sua colegialidade. E
desta instituição visava não somente a consolidar a autoridade real, mas foi justamente esse modelo que se impôs na América à medida que se
também a entrelaçar mais firmemente a Coroa à nobreza castelhana, já ia substituindo o poder militar dos conquistadores pelo poder civil dos
que dela se originou a grande maioria dos vice-reis dos séculos XVI e letrados, uma orientação politica que claramente correspondia à matriz
XVII. Com os vice-reis começou a se configurar uma estrutura admi- católica da ordem jurídica. A decisão de fortalecer o papel das audiên-
nistrativa mais complexa, assim como uma vida cortesã no México e cias foi simultânea à sanção das Leis Novas e apontava para a mesma
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direção: anular as autoridades jurisdicionais dos conquistadores e con- culo XVI e se repetiria na crítica conjuntura de 1640 na Nova Espanha,
figurar um novo tipo de governo colonial e de administração de justiça. quando Juan de Palafox y Mendoza, bispo de Puebla, foi nomeado visi-
Por isso, as audiências americanas tiveram maiores atribuições do que tador do vice-reino para julgar o vice-rei.
as peninsulares, situação que foi reforçada por sucessivas disposições e Outra instância institucional decisiva foram os juízos de re-
por argumentações dos tratadistas. Vistas em conjunto, essas disposições sidência a que eram submetidos os governantes coloniais ao término
expressavam um tipo de juiz ideal baseado no distanciamento do meio de seu mandato. Era uma instituição de origem castelhana que ti-
social sobre o qual possuía jurisdição, o que se testemunha na repetida nha como função controlar os comportamentos dos funcionários do
proibição de contrair matrimônio no próprio distrito sem licença real. governo, colher informação sobre as deficiências da administração
No entanto, essa pretensão foi encontrando seus limites claros e produzir reformas. Por isso, a ela deveriam se submeter todos os
durante a segunda metade do século XVII, em um processo que des- funcionários, especialmente os vice-reis e ouvidores de audiência. Os
gastava significativamente a autoridade régia sobre a justiça nas Índias. juízos de residência possuíam duração variável, mas sempre se consti-
Assim, em 1687, a Coroa começou a vender cargos a ouvidores das au- tuíam de duas etapas distintas: uma pesquisa secreta e outra pública.
diências, alterando com isso a política de nomeação, já que habilitava o Na primeira etapa, o juiz designado interrogava testemunhas, colhia
recrutamento de membros das elites locais, um fenômeno que expressa- informações e podia receber denúncias anônimas, motivo pelo qual
va o crescente poder desses grupos e as consequências da formação das sua instância decisiva era o interrogatório de testemunhas. A partir
primeiras universidades na América. disso o juiz levantava as acusações contra o acusado e era realizado o
A rigor, a prática de venda de empregos públicos havia come- julgamento. Portanto, na prática, o juízo de residência se transformava
çado em meados do século XVI envolvendo cargos de escrivania e dos em um espaço de disputa política entre as facções locais e suas cliente-
cabildos, ampliando-se significativamente durante o século XVII, quan- las, mas ao mesmo tempo cumpria uma importante função simbólica,
do abarcou aqueles ligados à arrecadação de impostos, tesourarias, tri- na medida em que se convertia em um ritual político de reafirmação
bunais de contas e administração provincial. No início do século XVIII, da autoridade régia e da justiça como eixo da ordem.
foram colocados à venda o emprego de vice-rei do Peru e postos no Distritos menores estiveram a cargo de alcaydes mayores e cor-
Conselho das Índias. Essa foi uma das vias por meio das quais as elites regidores. Ainda que confundidos muitas vezes, pode-se dizer que os
coloniais americanas foram adquirindo um enorme poder na estrutura primeiros eram geralmente letrados que constituíam uma instância de
administrativa, forçando um tipo de exercício negociado da autoridade. apelação, enquanto os segundos eram juízes leigos com atribuições de
O dispositivo institucional contava, ademais, com outras prá- governo e de primeira instância civil e criminal em nível local. Contudo,
ticas e figuras que se converteram em espaços de negociação politica. as realidades podiam se distanciar dessa descrição genérica, e em meados
Neste sentido, uma instituição decisiva foi a visita, pois era um procedi- do século XVII a instituição de alcaides maiores estava completamente
mento de controle extraordinário e externo que permitia vigiar as ações generalizada no Vice-reino da Nova Espanha e no Caribe, enquanto
de vice-reis e audiências, reafirmar a autoridade do rei e estabelecer no- que os corregedores estavam muito mais difundidos no Vice-reino do
vos equilíbrios entre os grupos de poder local. Dessa forma, o tempo Peru. Uns e outros foram figuras pensadas como agentes da autoridade
em que atuaram os visitadores gerais pode ser considerado como de superior, começaram a tomar forma na década de 1520 e em meados do
redefinição das formas de governo colonial; através das visitas, a Coroa século começaram a ser designados também para o governo dos povoa-
aspirava reconstituir os laços de obediência e lealdade de seus súditos. dos de índios. Porém, se os territórios a cargo das audiências podiam ser
Para nosso tema se trata de uma questão relevante, pois essas visitas divididos em corregimientos, não era obrigatório que assim acontecesse.
procuravam reafirmar o papel da justiça na ordem colonial. Assim acon- De toda sorte, a figura do corregedor adquire plena centralidade quando
teceu, por exemplo, no Peru durante a gestão do visitador Toledo no sé- se considera o governo da “república de índios”.
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Essa centralidade foi muito evidente no Vice-reino do Peru, por juízes letrados. Porém, existia outra decisiva instância jurídica: os al-
onde a introdução desta instituição, que exercia ao mesmo tempo a fun- caldes dos cabildos, surgidos no próprio ato de fundação de uma cidade.
ção de governo e justiça maior sobre um conjunto de reduções indíge- Esses poderiam ser letrados ou não, mas aquilo que os tornava juízes era
nas, ocupou um papel decisivo nas disputas entre autoridades régias, sua condição de vecinos da cidade e sua eleição anual como membros do
encomenderos e senhores étnicos, dado que foi imaginada para interfe- cabildo. Por isso o cargo de alcalde ordinário não devia ser posto à ven-
rir e limitar seu poder. Afinal, esses agentes reais teriam a seu cargo a da, sendo geralmente eleitos dois vecinos leigos que pudessem ocupar o
arrecadação tributária e, para implementar suas funções, começaram a cargo durante metade do ano cada um, ou, como aconteceu em muitos
designar aguaciles indígenas que ostentavam a vara da justiça hispâni- cabildos, encarregarem-se um das causas civis e outro das criminais.
ca, enquanto ao mesmo tempo ascendiam na hierarquia comunitária. A Os cabildos, na qualidade de corporação da cidade entendi-
política adotada visava à formação de reduções, agrupando e realocando da como corpo político dotado de jurisdição, administravam a justiça
as comunidades indígenas em povoados de matriz hispânica. Essas re- ordinária e não foram todos idênticos, ainda que respondessem a uma
duções foram integradas a 614 distritos administrativos denominados mesma matriz. Neles se fez sentir com especial força a venda de car-
repartimientos, cada um dos quais sob o comando de um chefe indígena gos, especialmente a partir de 1606, quando se generalizou, afastando
ou curaca. Por sua vez, esses repartimientos foram agrupados em 80 pro- nitidamente a experiência americana do modelo castelhano. Até então,
víncias ou corregimientos, à frente dos quais era designado um corregidor a maior parte dos postos dos cabildos era monopolizada pelas famílias
de índios, o qual era, ao mesmo tempo, o encarregado de administrar beneméritas e de encomenderos, o que deixava grupos de colonos novos
justiça, regular as relações mercantis dessas comunidades e assegurar a e enriquecidos fora do governo local. Deste modo, a alienação em leilão
arrecadação tributária, assim como as prestações de mita. público dos ofícios capitulares significou uma mudança de fato, tendo
Essa figura institucional, concebida como uma ferramenta para resultado de um processo que tinha sido adiado, apesar das disposições
subtrair as comunidades do poder dos encomenderos, afirmar a autorida- em contrário ditadas, por exemplo, pelo vice-rei Toledo, que havia an-
de real e a capacidade arrecadadora da Real Fazenda, sofreu mutações. teriormente ordenado que a eleição se fizesse em igual número entre
Nas primeiras décadas do século XVII, quando começou a ser vendável, encomenderos e vecinos sem encomendas.
tornando-se acessível a comerciantes que se habilitassem a obtê-lo, o Os cabildos não administravam apenas a justiça ordinária nas
cargo de corregedor vinha adquirindo um perfil muito diferente do pla- cidades, pois seu exercício se ramificava pelo conjunto de sua jurisdição.
nejado: seus ocupantes se autonomizavam em relação às autoridades su- A eles recorria uma gama diversa de juízes subalternos, como os alcaldes
periores e converteram as comunidades governadas em um mercado ca- de la Santa Hermandad e diversos tipos de juízes pedáneos e comissiona-
tivo, submetidas à divisão forçada. Foi esse tipo de prática mercantil que dos. Trata-se de uma dimensão decisiva para se compreenderem as prá-
converteu a compra do cargo em algo extremamente atrativo, tornando ticas jurídicas, na medida em que eles exerciam o governo da população
os corregedores e seus aliados curacas no alvo principal dos protestos dispersa pelos campos, onde não era factível constituir um dispositivo
comunitários. A trajetória desta instituição resulta, assim, emblemática firme de juízes letrados. Em seu lugar, desde começos do século XVII,
e demonstra que o fortalecimento da autoridade centralizada e da ad- foram aparecendo essas figuras de origem castelhana, que deveriam, por
ministração da justiça havia sido efêmero. Além disso, os corregedores um lado, exercer a baixa justiça em causas como assaltos em estradas,
haviam se transformado em uma instância de poder local que operava mortes e ferimentos em áreas despovoadas e, por outro, articular as rela-
em benefício das redes mercantis a que pertenciam, em detrimento dos ções entre as autoridades da sede urbana e a população rural. Ainda que
interesses da Real Fazenda. os cabildos fossem autorizados a nomear esse tipo de agentes em 1555,
Já as audiências eram tão somente uma instância superior de a figura tardou a se generalizar e não o fez em todas as regiões do mes-
administração de justiça e constituíram o ideal de uma justiça efetuada mo modo. Assim, por exemplo, na Nova Espanha foram substituídos
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por alcaldes de la Mesa e logo por um juizado especificamente dedicado perdurou por muito mais tempo, ainda que em ambas as situações a
ao julgamento desses delitos cotidianos, o Tribunal de la Acordada, com coexistência das formas de autoridade hispanizadas e as hierarquias ca-
seus juízes provinciais dependentes. Em outras regiões, como no Rio da cicais tenha sido tão perdurável como conflituosa, na medida em que
Prata, as nomeações por parte dos cabildos estavam já generalizadas no os macehuales encontraram no sistema espanhol de cargos um caminho
início do século XVII, mas em número muito reduzido, uma situação de ascensão social que colocava em questão a autoridade dos caciques.
que iria se modificar radicalmente em fins do século XVIII, quando No Peru, o desmoronamento dos grandes senhorios também possibili-
esse tipo de juízes pedâneos se multiplicou, dedicando-se a perseguir “a tou essa coexistência entre hierarquias de curacas e regime de cabildos.
gente ociosa, vagabunda e perdida” que vivia “em partes desertas, sem Inicialmente se proibiu que os caciques ocupassem cargos nos cabildos e
vecindad”. Em geral, se tratava de juízes leigos, designados anualmente se pretendeu que seus alcaldes tivessem competências judiciais restritas a
entre os vecinos, ainda que não possuíssem nem voz, nem voto em seu delitos menores, servindo como auxiliares da justiça ordinária hispânica.
cabildo e não lhes fosse exigido saber ler e escrever, pois administravam No entanto, com o tempo, conseguiram ampliar suas atribuições e ainda
um tipo de justiça oral e sumária. reconstruir formas de justiça comunitária.
A administração de justiça na “República de Índios” colocou A ordem jurídica colonial, as estruturas que a sustentavam e
problemas específicos e definiu estratégias diferenciadas. A esse respei- as práticas sociais, políticas e culturais que habilitou foram produto da
to, um dos maiores dilemas enfrentados pelas autoridades coloniais foi mestiçagem institucional e normativa. Fundava-se e se legitimava em
definir o lugar e o papel que deveriam cumprir a nobreza indígena e sua matriz castelhana, mas em seu desenvolvimento foi-se afastando
as chefaturas comunitárias. Após a experiência caribenha, na qual os dela, configurando um sistema jurídico flexível que podia funcionar por-
conquistadores se dedicaram a exterminar sistematicamente esses tipos que não prevalecia uma ordem legal uniforme, sistemática e integral,
de hierarquias, as conquistas do México e Peru abriram perspectivas mas, ao contrário, uma múltipla e pluralista. A tal ponto foi assim que a
diferentes e se inclinaram a apoiar-se nelas para governar as comuni- vasta produção normativa elaborada e reelaborada desde os tempos da
dades reduzidas. Não se tratava, por certo, de deixá-las inalteradas, mas conquista somente viria a ter uma tentativa de ordenamento e sistema-
sim de adaptá-las a novas regras e inscrevê-las em novas instituições. tização em 1680, com a Recopilación de Leyes de Indias, ainda que nem
Não obstante, a solução desse dilema foi mais fruto da experiência e ela tenha conseguido anular a vasta gama de disposições então vigentes
das disputas do que um plano previamente estabelecido. Deste modo, que habilitavam as estratégias dos atores para se aproveitarem em bene-
durante o reinado de Carlos V, em geral se pretendeu preservar o direito fício próprio dos interstícios e contradições normativas, sem colocar em
dos senhores de índios de governar seus vassalos, mas essa política mu- perigo sua fidelidade à monarquia.
dou radicalmente durante o reinado de Filipe II, cuja administração se A intensa e conflituosa intenção de reforma da ordem colonial
orientou muito claramente a destruir esses senhorios, ainda que preser- que se impôs na segunda metade do século XVI teve efeitos perdurá-
vando os cacicados comunais e buscando convertê-los na engrenagem veis, na medida em que definiu as estruturas e dispositivos básicos que
de articulação entre governo colonial e comunidades. No entanto, se in- haveriam de reger o governo e a administração da justiça. Porém, como
tentou simultaneamente produzir uma hispanização do modo de gover- foi visto, durante o século XVII foi perdendo intensidade e capacidade
no comunal, instaurando-se cabildos indígenas no estilo dos espanhóis. de execução. As elites coloniais e ainda as comunidades indígenas de-
Aparentemente, a experiência foi ensaiada primeiro em Tlaxcala em senvolveram capacidades de adaptação e resistência para amortecer as
meados do XVI, e logo começou a se reproduzir pelo resto da América intenções centralizadoras das autoridades régias, para absorver a admi-
espanhola, mesmo que sofrendo múltiplas adaptações. Dessa maneira, nistração colonial em suas redes de relações sociais e para transformar os
enquanto no centro da Nova Espanha a autoridade dos senhores étnicos próprios princípios e normas nos quais se fundamentava a legitimidade
foi rapidamente desintegrada, em outras áreas, como Oaxaca ou Iucatã, da monarquia em recursos para a defesa de suas posições e privilégios.
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Entende-se, portanto, que as maiores inovações nas estruturas Território, administração e justiça na América portuguesa
institucionais formadas no final do século XVI se produziram apenas no
século XVIII, a partir das políticas reformistas da nova dinastia reinan- A extensão do território ocupado pelos portugueses na América,
te, os Bourbon. Elas foram realizadas especialmente após a Guerra dos como era de se esperar, variou desde o descobrimento, em 1500, até a
Sete Anos (1756-1763), que demonstrou a extrema debilidade defensi- independência do Brasil, em 1822. Pode-se dizer que esse avanço na ocu-
va do império na América, possibilitando uma nova política fundada na pação territorial, sempre acompanhado do aumento da população não
concepção da defesa total: um aumento sistemático das forças militares autóctone, se deu num sentido que ia do litoral para o interior. Em ou-
regulares nos principais pontos costeiros, um alistamento massivo dos tras palavras, a dinâmica da colonização lusa foi em grande medida a da
súditos das colônias nas milícias, inclusive das castas, e um aumento interiorização, fenômeno que dependeu do enfrentamento dos obstáculos
extremo da pressão fiscal. Para que isso fosse factível, a Coroa teve que geográficos e da assimilação de conhecimentos adquiridos pelos indíge-
proceder a novas criações institucionais. Desse modo, foram organi- nas. Em 1494, por meio do tratado assinado em Tordesilhas, espanhóis e
zados novos vice-reinos em territórios que haviam pertencido ao Peru portugueses procuraram regular a posse das descobertas em andamento
(Nova Granada em 1789 e Rio da Prata em 1776), mas as maiores mu- na América, definindo como referência a distância de 360 léguas a oeste
danças se produziram apenas na década de 1780 com a constituição das de uma das ilhas de Cabo Verde: as áreas que ficassem ao nascente de tal
audiências de Buenos Aires, Caracas e Cusco, e a introdução do regime referência seriam de Portugal e as que estivessem ao poente seriam de
de intendências nos vice-reinados rio-platense, peruano e novo-hispa- Espanha. Embora nunca tenha havido uma demarcação efetiva dos limi-
no. A orientação que terminou por se impor buscava obter uma efetiva tes traçados pelo Tratado de Tordesilhas, a verdade é que a interiorização
centralização da autoridade e substituir uma alta elite ligada à adminis- lusa, principalmente no século XVIII, transbordou-os amplamente.
tração que até então havia sido recrutada entre a nobreza e o clero por De modo geral, a ocupação da América portuguesa se deu em
outra surgida do âmbito militar. Por sua vez, pretendia desalojar as elites seis fases distintas, sendo a primeira delas, entre 1500 e 1532, aquela
locais que haviam conquistado posições centrais na administração por em que, após o descobrimento, foram fixadas feitorias em Pernambuco,
funcionários de carreira de origem peninsular. Bem o demonstraram as Cabo Frio e Rio de Janeiro para a exploração do pau-brasil através do
designações de ouvidores para as audiências: se até 1687 tão somente regime de contrato. Num segundo momento, de 1532, ano da expedi-
um punhado havia nascido na América, entre esse ano e 1750 quase a ção de Martim Afonso de Sousa, a 1548, foram criadas as primeiras
metade teve essa origem. Desde então, essa situação voltaria a mudar ra- vilas e estabelecido o sistema de capitanias hereditárias, que consistiu
dicalmente, ainda que um quarto das designações tenham recaído sobre na divisão do litoral em fundos territoriais, bem como em sua distri-
americanos. Todavia, mais acentuado foi esse processo entre os buro- buição a donatários responsáveis por promover a colonização. Uma
cratas nomeados para administrar as intendências, que em sua enorme terceira fase vai de 1548, quando foi criado o governo-geral com sede
maioria foram recrutados entre a expandida oficialidade militar, apesar em Salvador, Bahia, a 1580, ano em que se constituiu a União Ibérica.
de que essa se nutria cada vez mais de filhos de famílias americanas Durante esse período, deu-se, além da instalação da base do que vi-
enobrecidas. Seja como for, o que as políticas reformistas buscavam era riam a ser as estruturas administrativas na colônia, o desenvolvimento
desmontar os equilíbrios de poder local forjados desde princípios do mais efetivo dos engenhos de açúcar.
século XVII e que haviam dado forma às sociedades coloniais. As am- Na terceira fase, entre 1580 e 1640, período da União Ibérica,
biciosas políticas concebidas em Madri iriam se mostrar não somente consolida-se a atuação do tráfico e a escravidão africana, especialmente
infrutíferas, mas também extremamente conflituosas. nas grandes unidades produtivas do Nordeste, e ocorrem as invasões ho-
landesas. A consolidação do complexo canavieiro estimula a expansão da
pecuária pelos sertões dos rios Parnaíba e São Francisco. Entre 1640 e
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1750, um quinto momento que se inicia com a restauração da Coroa por- Não há precisão quanto ao número de indígenas que habita-
tuguesa, os holandeses são expulsos e a ação sertaneja de paulistas e baia- vam o Brasil na época da invasão portuguesa, mas sabe-se que eram
nos leva à descoberta e exploração das jazidas auríferas. Estas estimulam alguns milhões. O entendimento de que esse número não era pequeno
grandemente a ocupação de áreas de fronteira, promovendo a organização põe em xeque a hipótese de um território vazio e aberto à colonização.
de mercados regionais que envolvem áreas estendidas, verticalmente, do As nações indígenas se dividiam em quatro grupos linguísticos prin-
Rio Grande de São Pedro ao sertão nordestino e, horizontalmente, dos cipais: tupis, jês, caribes e aruaques. Os dois primeiros compunham
portos do litoral aos confins de Goiás e Mato Grosso. Na sexta e última famílias linguísticas derivadas de estoques mais amplos: o macro-tupi
fase, marcada pelo pombalismo e pelo reformismo ilustrado, a interiori- e o macro-jê. Este último deve ter se constituído entre os rios São
zação continua a ocorrer, envolvendo mais intensamente a Amazônia e as Francisco e Araguaia, difundindo-se a partir desse ponto no Planalto
áreas fronteiriças aos domínios espanhóis. Em 1750 e 1777, são assinados, Central, numa faixa oeste-sudeste. São jês ou tapuias os xakriabás, xe-
respectivamente, os tratados de Madri e de Santo Ildefonso, que definem rentes, xavantes e kaiapós. Botocudos e maxakalis compõem o grupo
os limites entre os dois impérios ibéricos na América. macro-jê. A área de dispersão inicial do estoque macro-tupi deve ter
O impacto do empreendimento colonizador sobre a demogra- sido a região entre os rios Madeira e Xingu. Nesse grupo, destaca-se
fia na América foi muito expressivo, não apenas em termos quantitati- o ramo tupi-guarani, cujo padrão de migração indica um movimen-
vos, como também no que diz respeito à variedade étnica da população. to circular que passa pela Bolívia e pelo Paraguai, dirigindo-se para
É inegável que o contato com os colonizadores desestruturou inúmeras o litoral atlântico. Pertencem a esse ramo os carijós ou guaranis, ao
comunidades indígenas, levando à diminuição ou mesmo ao aniqui- sul, os tamoios, no litoral sudeste, os tupiniquins, no sul da Bahia, os
lamento de algumas etnias. Além disso, a chegada de portugueses foi tupinambás e caetés, no nordeste, e os potiguares, mais ao norte. Os
acompanhada da vinda de africanos, cuja origem era também bastan- cronistas que visitaram o Brasil ou dele tiveram notícias informaram
te variada, abarcando grupos étnicos com línguas e estruturas sociais que, no século XVI, as populações indígenas da costa eram significati-
distintas. Descontados os indígenas, que em algumas partes do litoral vas. A redução de população, no entanto, foi intensa após a conquista,
foram quase dizimados, a população da América lusa, que girava em sendo motivada pelas guerras, pelas expedições de captura de escravos,
torno de uns 300 mil habitantes no final do século XVII, alcançou a pelas crises de epidemia e fome, pela destribalização que a criação de
cifra de aproximadamente dois milhões no final da centúria seguinte. aldeamentos promovia e, como não podia deixar de ser, pelo interesse
Esse significativo aumento populacional no período derivou de três as- econômico associado às terras que os autóctones ocupavam.
pectos principais: o desenvolvimento econômico gerado pela descoberta A instituição do governo geral em 1548 não implicou a extin-
das minas de ouro; a expansão do tráfico negreiro, que fez ingressar ção do regime de capitanias hereditárias, sendo seu objetivo o de auxili-
uma expressiva quantidade de africanos no Brasil; e a miscigenação, res- á-las e articular o empreendimento colonizador. O primeiro govenador,
ponsável pelo crescimento vertiginoso da população mestiça nas várias Tomé de Sousa (1549-1553), trouxe consigo extenso regimento que
partes da vasta região colonizada. É difícil definir com precisão as di- visava a erigir uma grande cidade protegida por fortalezas, apoiar as po-
versas origens dos cativos africanos chegados ao Brasil, mas seus princi- voações, ministrar justiça e tratar dos interesses régios, principalmente
pais portos de embarque foram a Costa da Guiné, na África Ocidental, os relativos à cobrança de impostos. Para isso foram estabelecidos, como
Angola, na Central, e Moçambique, na Oriental. Os vínculos entre a base da estrutura administrativa, além do próprio governo, os postos
Bahia e a Guiné, rota de entrada de sudaneses, e os mantidos entre o de provedor-geral, ouvidor-geral e capitão-geral, responsáveis, respec-
Rio de Janeiro e Angola, por meio do quais se deu o ingresso de bantos, tivamente, pelos assuntos referentes à Fazenda, à Justiça e à defesa do
foram decisivos na conformação das populações das capitanias de norte litoral. As capitanias deveriam remeter-se a Salvador, a nova capital do
e sul do Brasil. Brasil, embora pudessem manter comunicação direta com a Coroa. A
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ocupação efetiva do território era feita em grande medida espontanea- alcançada na ocasião foi acompanhada do ingresso expressivo de mão de
mente, a posse de terras resultando da simples fixação do colono com obra africana, bem como da criação de uma capitania sediada na Vila de
seus escravos, sem regulação formal. Esta existia, no entanto, e tomava São Paulo em 1720.
como fundamento o antigo sistema de sesmarias, regime de distribuição A ocupação do território e o desenvolvimento de núcleos pro-
de terras através do qual a Coroa portuguesa reconhecia formalmente dutivos em diferentes partes da América portuguesa geraram mudan-
a concessão, mas demandava em troca – o que, aliás, nem sempre era ças na estrutura administrativa, sendo uma delas a coexistência entre as
cumprido – o cultivo efetivo da área doada. capitanias hereditárias e aquelas governadas diretamente pela Coroa.
A estrutura inicial resultante do governo geral não podia deixar Estas últimas resultavam ora da aquisição, por parte da monarquia,
de ter desdobramentos no decorrer das décadas e dos séculos em razão de algumas hereditárias, ora da criação de capitanias novas em áreas
seja do desenvolvimento de novas atividades econômicas, seja da expan- interioranas. As capitanias hereditárias, no entanto, só foram com-
são dos povos nas várias partes da América. Em linhas gerais, pode-se pletamente extintas em 1759. Na segunda metade do século XVIII,
dizer que as regiões colonizadas se dividiam em dois tipos. O primeiro a evolução da estrutura administrativa havia constituído um sistema
incluía os casos de áreas que, dada a produção de mercadorias de grande complexo que abarcava as funções cruciais do governo, da justiça, da
aceitação internacional, ganhavam certa densidade econômica e atraíam defesa e da fiscalidade. Em 1763, a capital do Brasil, em decorrência
o tráfico atlântico de escravos. O Nordeste açucareiro e as Minas Gerais da exploração aurífera, foi deslocada para o Rio de Janeiro. A essa
são casos paradigmáticos desse modelo. O segundo tipo, pelo contrário, altura, era governada por um vice-rei. Este, responsável por inúmeros
envolvia regiões litorâneas ou do interior que, embora fossem capazes assuntos que envolviam o governo fluminense e de outras regiões colo-
de gerar excedentes, não alcançavam densidade econômica significativa, niais, tinha assento também no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro,
valendo-se comumente da mão de obra local, isto é, indígena. Foi o que instância judicial máxima no âmbito colonial, composta também por
ocorreu, por exemplo, com São Paulo e a Amazônia nos séculos XVI e um chanceler e por outros magistrados. A Relação do Rio havia sido
XVII. Ainda assim, além de haver formas intermediárias entre ambos erigida em 1751, mas dede o início do século XVII funcionava ao
os tipos, era possível, no decorrer do tempo, passar de um para o outro. norte o Tribunal da Relação da Bahia. A criação do título de vice-rei
Foi o que aconteceu com São Paulo. Sua ocupação teve iní- contribuiu para a consolidação da importância da sede do Estado do
cio com a criação da Capitania de São Vicente, uma das hereditárias Brasil, mas não significou o estabelecimento de um poder central efe-
instituídas na década de 1530. A partir do povoamento litorâneo, os tivo na própria colônia ou de uma instância correlata aos vice-reina-
colonizadores subiram a serra e começaram a se espalhar pelo planalto, dos da América espanhola. Além disso, no decorrer dos séculos foram
onde foram surgindo lavouras que, entre outros produtos, cultivavam o sendo forjadas estratégias de divisão administrativa, mesmo que pro-
trigo, gramínea fundamental na alimentação europeia. O trigo planalti- visórias, com o intuito de facilitar o governo do extenso território bra-
no descia para o porto de Santos nas costas de escravos indígenas e de sílico. Este foi o caso da criação, em 1574-1578 e 1608-1612, de uma
lá, através da navegação de cabotagem, era vendido em vários pontos da Repartição Sul. Ademais, entre 1621 e 1772 a região da Amazônia
costa americana, na qual vivia a maioria da gente oriunda da Europa. constituiu, com denominações diferentes, uma unidade administrativa
Apesar de garantir certa rentabilidade, a produção do trigo não gerava à parte, diretamente ligada a Lisboa. No início da segunda metade do
a densidade econômica obtida pelos exportadores do açúcar nordestino. século XVIII, por exemplo, a América portuguesa era formada pelo
No entanto, após a descoberta do ouro em Minas Gerais, em Mato Estado do Brasil e pelo Estado do Grão-Pará e Maranhão.
Grosso e Goiás, o planalto paulista recebeu forte impulso econômico ao No início do século XIX, o Brasil possuía dezesseis capitanias
tornar-se importante entreposto comercial que ligava as regiões aurífe- da Coroa: Rio Negro, Grão-Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Rio
ras aos portos do mar ou mesmo a outras áreas produtivas. A densidade Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais,
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São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande de São cipais e de outras instituições locais, o apoio a tarefas relacionadas ao
Pedro. Cada uma delas possuía um governador responsável pela admi- fisco, a participação em juntas, a visita a regiões comarcãs e a realização
nistração de seu respectivo território em diferentes níveis. Ainda que de atividades administrativas diversas. Dados os limites financeiros da
formalmente tais governadores devessem certa obediência ao vice-rei, monarquia, as ouvidorias coloniais eram poucas e abarcavam territórios
na prática gozavam de grande autonomia, mantendo contatos diretos bastante extensos, o que dificultava a ação dos ouvidores. Em Minas
com o monarca e os órgãos centrais da administração metropolitana. Os Gerais, por exemplo, havia, na metade do século XVIII, apenas quatro
governadores podiam deter também o título de capitão-general, posto ouvidores para lidar com uma capitania de aproximadamente 500 mil
máximo da hierarquia militar. Cabia-lhes, portanto, dirigir as tropas de km². Apesar de atuarem constantemente de forma conjunta e comple-
sua capitania, zelando por sua boa formação. As tropas não eram, porém, mentar, eram muito comuns os conflitos entre governadores e ouvidores
todas iguais, podendo-se descrever três gêneros delas. O mais impor- em torno das atribuições e prerrogativas que lhes cabiam. Contribuía
tante era o composto pelos soldados pagos, que, por receberem soldos e para tal situação o fato de os ouvidores terem estudado em universida-
tendencialmente serem escolhidos entre os mais eficientes, constituíam des, seguindo carreiras de direito, enquanto os governadores, embora não
o fundamento da ordem militar colonial. Às tropas pagas eram atribuí- descurassem das letras, haviam tido por vezes formação militar. Assim,
das as tarefas mais relevantes do ponto de vista dos interesses da Coroa. não se pode deduzir da divisão em capitanias e ouvidorias que os ouvi-
O segundo gênero eram as tropas auxiliares, dirigidas por sar- dores fossem meros executores das ordens ditadas pelos capitães-gene-
gentos-mores pagos que tinham o dever de sustentar, vestir e armar os rais. Pelo contrário, o próprio monarca reconhecia aos ouvidores certa
soldados que lhes estavam subordinados. Tais milícias possuíam funções autonomia de ação, conferindo-lhes o direito de remeter à Coroa quei-
próprias, mas comumente auxiliavam o governador e as tropas pagas na xas contra supostos abusos cometidos pelos governadores. Mencione-se
realização de tarefas pelos vastos e arredios territórios das capitanias. que, contrariamente ao que ocorreu na América espanhola, durante a
Por fim, o terceiro gênero compunha-se das ordenanças, tropas de cará- colonização do Brasil não foram estabelecidas universidades em seu ter-
ter local que resultavam da organização dos homens adultos de bairros ritório e, portanto, os letrados de origem americana tiveram de se formar
e arraiais, visando à defesa dos municípios. Havia ainda destacamentos em instituições europeias, especialmente na Universidade de Coimbra.
militares irregulares, não associados a nenhum dos três gêneros descritos Na circunscrição territorial de cada ouvidoria, achavam-se um
acima, e mesmo de existência provisória. Uma vez que a maior parte ou mais núcleos urbanos, cada um deles estendendo-se pelos seus ter-
dos soldados não era paga e estava subordinada aos homens poderosos mos, isto é, por áreas que, juntas, compunham os municípios. A maioria
das localidades, os únicos capazes de ostentar os títulos de comando das urbes possuía o título de vila, havendo pouquíssimas cidades, como,
e sustentar as tropas, sua atuação trazia certa instabilidade social, pois na segunda metade dos Setecentos, a de Salvador, a do Rio de Janeiro,
muitas vezes agiam segundo seus próprios interesses ou os de seus co- a de Mariana e a de São Paulo. Os termos das vilas e cidades, também
mandantes, abusando de seu poder e violentando os povos. Seja como bastante extensos – o de Mariana, por exemplo, abrangia 60 mil km² -,
for, através das diferentes tropas os governadores tinham acesso ao que envolviam áreas rurais ocupadas por sítios e fazendas, regiões inabitadas
acontecia nas mais recônditas partes de suas capitanias, procurando re- e cobertas por vegetação virgem, terras de ocupação indígena e arraiais
solver certos conflitos por meio da atuação militar. – pequenos povoados que congregavam as populações dispersas pelas
As capitanias coexistiam com circunscrições territoriais deno- roças e sertões. Os municípios, depois de fundados, instalavam suas câ-
minadas comarcas, nas quais se instituíam ouvidorias. Embora os agen- maras, órgãos responsáveis por exercer funções políticas, administrativas
tes que as dirigiam, os ouvidores, fossem letrados nomeados pelos reis e judiciais básicas. Eram compostas geralmente por seis oficiais - dois
visando ao exercício da justiça, suas funções eram bem mais amplas, juízes ordinários, três vereadores e um procurador – auxiliados por es-
abarcando o auxílio aos governadores, o controle das câmaras muni- crivães, um tesoureiro e outros agentes de segundo escalão. Os oficiais
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eram eleitos pelo restrito grupo da nobreza local, os chamados homens Fazenda. Na segunda metade do século XVIII, reformas na área fiscal,
bons, e, quando reunidos, formavam o senado da câmara, responsável visando à melhoria na contabilidade e no controle da arrecadação, insti-
por fixar as normas de funcionamento da vida cotidiana, multar os que tuíram o Erário Régio, havendo nas capitanias unidades suas denomina-
as desrespeitavam, fiscalizar a atuação de comerciantes e artesãos, em- das de Juntas da Real Fazenda. Cabia-lhes principalmente administrar
bargar obras e trocar correspondências com camaristas de outros muni- a cobrança de impostos através do regime de contratos, que implicava
cípios, com ouvidores e governadores, e mesmo com o rei. a arrematação em praça pública, por particulares, do direito de cobrar
Os oficiais da câmara também nomeavam juízes de vintena um determinado tipo de taxa em circunscrição territorial específica. Os
para atuarem em um ou mais arraiais. Cabia aos vintenas procurar con- interessados podiam, por exemplo, arrematar o contrato dos dízimos de
ciliar partes conflitantes nos povoados, informar os camaristas e outras Minas Gerais. Formalmente, indivíduos abonados e seguros ofereciam à
autoridades sobre assuntos diversos e elaborar documentos a serem uti- Coroa o pagamento de determinada quantia para poder cobrar na capita-
lizados em procedimentos judiciais. Os responsáveis por estes eram os nia do ouro o imposto do dízimo durante três anos. Caso o valor cobrado
juízes ordinários, que tinham alçada tanto no cível quanto no crime. Por pelo contratante fosse maior que a quantia oferecida na arrematação, ele
serem eleitos pelos homens bons, comumente eram leigos que careciam, lucrava; caso contrário, perdia. No exercício da cobrança, os contratadores
para despachar, do auxílio de letrados formados em universidade. Em contavam com o apoio das tropas. As arrematações eram encaminhadas
pouquíssimos municípios, porém, havia juízes de fora, assim chama- pelas provedorias ou juntas da Real Fazenda e tendiam a ser muito tensas,
dos por serem letrados nomeados pelo rei para presidirem a câmara e pois envolviam variados interesses econômicos, geralmente articulados às
exercerem as funções judiciais dos ordinários. Nesse sentido, as câmaras principais autoridades régias, inclusive as que compunham os órgãos fis-
constituíam a primeira instância da justiça colonial. Processos nelas sen- cais. Além disso, também em função de problemas inesperados ou de ar-
tenciados podiam receber apelação para a segunda instância, desempe- ranjos clientelares, muitos contratadores passavam anos e mesmo décadas
nhada pelos ouvidores, desta subirem ainda para um dos dois tribunais sem saldar os valores das arrematações, causando prejuízos significativos
de relação, e daí para Portugal. Não por acaso, certas demandas judiciais às finanças da Coroa. Entre os contratos mais importantes estavam os
levavam anos ou décadas para receberem sentenças definitivas. Nos pré- do dízimo – que, embora referente ao sustento da Igreja Católica, era
dios de muitas câmaras, além das salas de sessões e audiências, fun- cobrado pela Coroa -, o das entradas, que recaía sobre as mercadorias que
cionavam também as cadeias, organizadas de forma a dividir os presos ingressavam em determinada região, e o das passagens dos rios, cobrados
segundo sua condição social. Uma vez que, por falta de recursos ou má sobre a travessia de cursos fluviais. Durante a colonização, ramos decisivos
administração, muitas câmaras encontravam-se nos limites da falência, da produção e do comércio estiveram sob o controle de contratadores,
seus prédios eram rústicos e arruinados, sendo por isso comum a fuga situação que gerou tensões consideráveis em razão dos prejuízos causados
de presos. Além da prisão em si, era possível a aplicação de penas que aos colonos, dos excessos praticados durante as cobranças e das queixas de
implicavam a realização de trabalhos forçados, o degredo para outras caráter antifiscal. Pode-se citar os expressivos exemplos relativos ao sal, à
partes da América ou do império e também a morte – esta última por pesca da baleia, ao tabaco e aos diamantes.
vezes dependendo da aquiescência das juntas de justiça, órgãos compos- A Igreja Católica, para além de sua importância em termos de
tos por governadores e letrados para sentenciar casos graves. crenças e organização da vida comunitária, também impactava a socie-
Os governadores e ouvidores tinham também deveres relativos dade colonial por desdobrar-se em estruturas jurídico-administrativas
à arrecadação dos diferentes tipos de impostos e à perseguição ao contra- próprias. No final do século XVIII, estavam constituídas as dioceses
bando. Visto que as formas de taxação e de sua cobrança variavam bas- da Bahia, do Maranhão, do Pará, de Pernambuco, do Rio de Janeiro,
tante de capitania para capitania e, por vezes, de município para municí- de Minas Gerais, de São Paulo, do Mato Grosso e de Goiás. A diocese
pio, espalhavam-se pela América portuguesa provedorias ligadas à Real baiana foi a única instância elevada à categoria de arcebispado até o
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fim do período colonial. Nele foi elaborada, no início dos Setecentos, a da Quaresma, ocasião em que todo freguês era obrigado a confessar e
legislação que, com base nas decisões do Concílio de Trento, visava a or- comungar. No geral, o comportamento do clero não se distinguia mui-
denar a atuação da Igreja no Brasil. Trata-se das Constituições Primeiras to daquele experimentado pelos leigos, sendo vários padres tidos como
do Arcebispado da Bahia. Cada diocese, encabeçada por um bispo ou dissolutos e simoníacos.
prelado, auxiliado por um cabido – conselho composto por dignitários Para tentar controlar os próprios membros da Igreja, bem como
aptos, em tese, a ajudar no governo diocesano -, dividia-se em comarcas a vida dos fregueses – sendo o combate à mancebia uma constante -, os
eclesiásticas encarregadas a vigários da vara. Assim como nem sempre o bispos realizavam as visitas pastorais, excursões por partes do território
território dos bispados tinha o mesmo contorno das circunscrições das do bispado com o intuito de conhecer práticas ilícitas, punir os supostos
capitanias, as comarcas eclesiásticas não coincidiam com as civis, diri- culpados e avaliar se os templos estavam em condições para celebrar
gidas, como se viu, pelos ouvidores. Os vigários da vara deviam cumprir o culto divino. Paralelamente, havia uma estrutura judicial especifica-
orientações dos bispos, instruir processos judiciais e observar a atuação mente ligada à Igreja: o Juízo Eclesiástico, presidido pelo vigário-ge-
do clero. As comarcas eclesiásticas, por sua vez, subdividiam-se em fre- ral. Além de julgar questões relativas ao clero como foro privilegiado,
guesias, circunscrições cujas sedes eram as paróquias encabeçadas por conforme se mencionou acima, essa instância judicial conhecia casos
vigários. Nas vastas áreas das freguesias localizavam-se ainda capelas de que envolviam o desrespeito à doutrina católica, como as mancebias, o
espécies diferentes: as pertencentes a conventos, as ligadas a irmandades adultério, a sodomia etc. Mencione-se que, embora no Brasil não tenha
leigas, as que eram erigidas pelos povos nos arraiais e as existentes em sido instituído um tribunal da Inquisição, agentes inquisitoriais espalha-
fazendas. Toda essa estrutura era atravessada por conflitos interminá- vam-se pelas urbes e arraiais e participavam das visitas pastorais, sempre
veis: os bispos sofriam resistência no interior dos próprios cabidos, co- visando a identificar casos de séria agressão à doutrina, especialmente os
mumente rachados em facções; os vigários cobravam valores altos pelos que envolviam bruxos e feiticeiros. Os que fossem considerados perigo-
serviços religiosos e disputavam entre si a cobrança deles; autoridades sos eram remetidos às instâncias da Inquisição em Portugal.
eclesiásticas e civis disputavam encarniçadamente a jurisdição sobre de- O clero secular coexistia com o regular, isto é, com aquele com-
terminados assuntos. posto por frades e freiras ligados a conventos e ordens religiosas específicas,
Em relação a este último aspecto, é importante observar que a como a dos jesuítas, capuchinhos, franciscanos, beneditinos etc. Já no gover-
organização da Igreja se fundamentava no Padroado, regime através do no geral de Tomé de Sousa chegaram os primeiros missionários pertencen-
qual o papa cedia ao monarca a prerrogativa de administrar as estruturas tes à Companhia de Jesus, chefiados por Manuel da Nóbrega. Desde então,
eclesiásticas em sua dimensão temporal, mas não na espiritual. É por dezenas de ordens e casas conventuais espalharam-se pelo Brasil, devendo
essa razão que os dízimos eram cobrados pela Coroa através de con- obedecer a autoridades específicas, os chamados provinciais, localizados
tratos. A princípio, essa cobrança deveria reverter para a própria Igreja, quer na própria América, quer em Lisboa ou ainda em Roma. Também os
contribuindo, por exemplo, para a edificação ou reforma de templos ou regulares foram motivo de acentuada tensão na sociedade colonial, não só
para o pagamento dos salários dos padres. No entanto, era recorrente pela influência política que exerciam sobre os agentes régios e os potenta-
que os recursos dos dízimos fossem antes utilizados em áreas que não dos locais, como também porque deixavam seus conventos e levavam vidas
diziam respeito à Igreja. Nem todo o clero secular, composto por padres, bastante mundanas. Não eram incomuns ainda os embates entre as dife-
coadjutores e capelães, recebia salários, sendo mais comuns os vigários rentes ordens, devendo-se ressaltar que, longe de se apartarem do luxo, não
encomendados (os que não recebiam) do que os colados (que recebiam). deixavam em regra de possuir escravos e propriedades. Os jesuítas chegaram
Na prática, o sustento da estrutura eclesiástica cotidiana recaía sobre a controlar engenhos de importância no Nordeste açucareiro. A influência
os fregueses, que tinham de pagar pelos mais variados serviços. Dentre política e ideológica que alcançaram, bem como o a capacidade econômica
eles destacavam-se as conhecenças, cobradas com exorbitância na época de que dispunham – por vezes excessivamente superdimensionada –, leva-
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ram a Coroa, na época do marquês de Pombal, poderoso ministro do rei D. rei, o que envolvia, portanto, toda a estrutura de bispados submetida ao
José I, a expulsá-los do império em 1759. Padroado. Ainda que parte dos requerimentos e cartas endereçadas a es-
A par das ordens regulares estabeleceram-se também as irman- ses tribunais e conselhos fosse remetida ao monarca para que este desse a
dades leigas, associações religiosas formadas por gente que não perten- palavra final, não deixava de haver embates e ambiguidades. Por vezes, um
cia ao clero. Elas se organizavam em função das diferenças estamentais, mesmo assunto era submetido, por vias diferentes, à apreciação de duas
havendo irmandades de brancos, negros e mestiços, podendo as divi- das instâncias mencionadas, cada uma delas tomando decisão que contra-
sões serem ainda mais acentuadas ao separarem proprietários de terra e riava a adotada pela outra. Nesse contexto, a solução de certos problemas
comerciantes ou africanos e crioulos. As mais prestigiadas delas, com- se arrastava pelos anos, restando significativa margem de manobra para as
postas pelos grupos dirigentes locais, eram a Ordem Terceira de São autoridades locais e os membros das comunidades.
Francisco, a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo e a Santa Após o fim da União Ibérica, em 1640, a Coroa lusa procurou
Casa de Misericórdia. As populações negras tendiam a agrupar-se em criar mecanismos através dos quais se ampliasse sua capacidade de cen-
torno das irmandades de Nossa Senhora do Rosário, de Santa Efigênia e tralizar as tomadas de decisão. Foi nesse contexto que surgiu o mencio-
de São Benedito. As irmandades foram importantes em toda a América nado Conselho Ultramarino. Mas foi no século XVIII, em decorrência,
portuguesa, principalmente por exercerem atividades voltadas ao auxílio entre outros fatores, do crescimento econômico e demográfico desen-
material e espiritual de seus membros. Porém, nas Minas Gerais desem- cadeado pelas descobertas auríferas, que tais tentativas de centraliza-
penharam papel mais que decisivo, já que desde o início da ocupação da ção se mostraram mais intensas. Teve, nesse aspecto, especial relevância
região a Coroa proibiu o estabelecimento nela de ordens regulares, com a nomeação como ministro, pelo rei dom José I, de Sebastião José de
receio de que os frades causassem prejuízos à manutenção da ordem e ao Carvalho e Melo, intitulado depois marquês de Pombal. Entre 1750 e
combate ao contrabando. Seja como for, em todo o Brasil as associações 1777, diversas medidas pombalinas almejaram fortalecer o poder régio e
leigas, devido à sua composição, canalizaram conflitos sociais e políticos gerar condições para que a economia portuguesa se tornasse superavitá-
típicos de uma sociedade escravista e colonial. ria. Para isso, Carvalho e Melo adotou uma política voltada ao esvazia-
A organização civil e eclesiástica desenvolvida na América por- mento do poder da nobreza e do clero junto ao Estado; à reorganização
tuguesa articulava-se a órgãos centrais localizados em Lisboa. Eram eles da estrutura fiscal portuguesa por meio da criação do Erário Régio; ao
que, por exemplo, procuravam controlar a atuação de governadores e ma- incentivo da diversificação da economia colonial; a estratégias de coop-
gistrados através das residências, isto é, de investigações sobre como um tação dos grupos dominantes locais; à reforma do modo de tutelar as
agente régio havia se comportado no posto, realizadas após o fim de seu populações indígenas e à reestruturação do comércio luso, com o intento
mandato. O Conselho Ultramarino recebia petições e correspondências de aumentar o controle metropolitano sobre os produtos coloniais – o
vindas de todo o império, atuando com afinco na resolução de proble- que resultou, por um lado, em restrições aos interesses ingleses e, por ou-
mas administrativos, principalmente nos conflitos que abarcavam as pró- tro, na criação das companhias monopolistas do Grão-Pará e Maranhão,
prias autoridades. A Mesa do Desembargo do Paço, por sua vez, embora em 1755, e de Pernambuco e Paraíba, em 1759.
também atuasse como tribunal, respondia pela evolução da carreira dos
ministros que, no reino ou nas regiões ultramarinas, serviam como desem-
bargadores, ouvidores, provedores e juízes de fora. O Tribunal da Relação Delitos, conflitos e guerras na América espanhola
do Porto e a Casa de Suplicação eram instâncias de caráter judicial que
recebiam apelações de processos, alguns deles vindos das mencionadas A Coroa castelhana defendeu sua soberania (imperium) e seus
relações da Bahia e do Rio de Janeiro. Já a Mesa de Consciência e Ordens direitos de propriedade (dominium) sobre os territórios e povos conquis-
procurava lidar com os assuntos eclesiásticos que eram da alçada do tados se baseando nas Bulas de Doação de 1493, marco doutrinário da
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teologia política católica. Assim, recorreu à doutrina da “guerra justa”, que trar justiça na fronteira. Por sua vez, em algumas missões da Companhia
postulava o direito de guerrear contra qualquer “tirano” que impedisse a de Jesus se organizaram milícias ao estilo hispânico; as da área guaraní-
prédica do catolicismo e convertia os conquistadores em juízes com di- tica foram reconhecidas formalmente em 1643 como “milícias do Rei”,
reitos para decidir sobre os bens, as famílias e os próprios vencidos, que transformando-se na principal força de guerra da sociedade hispano-
podiam ser subjugados. Com esse fim, apelou-se a uma fórmula jurídica e -colonial no Rio da Prata até meados do século XVIII.
ritual, a leitura do requerimento, mediante a qual os índios eram intimados O serviço de milícias se transformou em uma prática social
para que consentissem em sua conversão em vassalos da Coroa, no reco- e política que oferecia mecanismos de integração à comunidade, pos-
nhecimento dos justos títulos desta e da autoridade papal e na aceitação sibilitava a configuração de identidades coletivas locais e permitia a
da prédica dos ministros da Igreja. Desde o início, portanto, as relações acumulação de posições de prestígio e honra que convalidavam as de
com os povos conquistados se definiram dentro desse marco político e em poder social. Consagrado como ideal social, o serviço miliciano impu-
1503 se proclamou que os índios que aceitassem essa vassalagem seriam nha obrigações, mas também concedia direitos, ainda que sua utilidade
considerados livres e deveriam ser entregues em encomienda. especificamente militar fosse limitada e sujeita a múltiplas negociações
É certo que entre as definições jurídicas e doutrinárias e as entre as autoridades régias e os vecindarios coloniais. Para resolver essa
práticas políticas da conquista houve enormes distâncias, dada a própria situação surgiram reformas promovidas a partir de meados do século
natureza das expedições encampadas pelos conquistadores: se elas se XVIII, quando a Coroa promoveu uma expansão inédita das forças mi-
legitimavam nas capitulações que a Coroa pactuava com os adelantados, litares regulares, enviadas da Península Ibérica para guarnecer as prin-
cada expedição era realizada por uma hoste, uma empresa transitória cipais praças costeiras. Porém, ao mesmo tempo, buscou-se generalizar
organizada e financiada por atores privados, que eram retribuídos com a atuação das milícias. Para se obter a cooperação das elites locais em
a concessão de mercês de terras e repartimientos de índios em proporção seu recrutamento e financiamento, reconheceu-se às chamadas milícias
ao papel que haviam desempenhado. Não obstante, seu êxito depen- “disciplinadas” o gozo do foro militar. Deste modo, aumentou a influ-
dia de sua capacidade de estabelecer alianças com chefes indígenas que ência política de sua oficialidade, assim como ampliou-se significativa-
contribuíam com suas próprias forças. Tais alianças definiram situações mente o âmbito da jurisdição militar, que agora não abarcava somente
muito diferentes entre os povos conquistados. as tropas regulares, mas também os milicianos, excluídos da jurisdição
Por volta do início do século XVII, os alcances da conquista es- ordinária que exerciam os cabildos.
tavam basicamente definidos e o domínio castelhano não se sustentava Dado o caráter corporativo da ordem colonial e o pluralismo
em forças armadas provenientes da Europa, sendo que a defesa ou ex- da ordem jurídica, as disputas jurisdicionais entre as autoridades fo-
pedições punitivas sobre territórios indígenas não conquistados ficaram ram um aspecto central das lutas políticas coloniais. No princípio, essas
a cargo de formações milicianas. Nelas tiveram um papel decisivo os disputas foram particularmente intensas entre as autoridades régias, as
encomendeiros e seus séquitos, mas também foram integrados os novos eclesiásticas e os encomenderos, visto que a questão principal girava em
vecinos e, em caso de necessidade, membros das castas e, nas regiões de torno do exercício da jurisdição sobre os índios. Essa questão passou a
fronteira, as tribos de “índios amigos” e “índios aliados”. As expedições ser prioritária por volta da década de 1560, quando se reconheceu aos
enfrentavam grupos que resistiam ao poder colonial, qualificados como índios o direito de governar suas comunidades segundo um modelo his-
“infiéis” segundo a doutrina da guerra justa. Em meados do século XVII panizado e, portanto, de acessar a justiça e litigiar ante juízes espanhóis,
começaram a se delinear novos dispositivos de defesa fronteiriça e as ainda que submetidos a uma relação tutelar. Um passo decisivo nesse
alianças com tribos não submetidas passaram a se formalizar através de sentido foi a instauração de um Juzgado General de los Indios em Lima,
tratados negociados nos parlamentos, isto é, cerimônias que fixavam os com menor amplitude na Nova Espanha, presidido pelo vice-rei. Ele
serviços e compensações, assim como estabeleciam modos de adminis- implicava a criação de uma jurisdição específica e levava o modelo das
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duas Repúblicas à administração da justiça. Tratava-se de um grande a uma crescente proliferação de motins e revoltas locais e regionais,
experimento jurídico e político que consagrava a ficção ideológica do transformadas, em fins da década de 1770, em uma insurreição geral,
pacto entre o rei e seus súditos indígenas e tendia a anular a autoridade a mais séria ameaça para a sobrevivência da ordem colonial. Em todo
jurisdicional dos encomenderos e a diminuir a tutela eclesiástica. caso, o que importa sublinhar é que nem mesmo na situação de insur-
Desta forma, apareceu nas audiencias a figura do “protetor e reição aberta se abandonava o recurso à demanda judicial. As princi-
defensor de naturais”, função que até então havia sido exercida pelos pais conjunturas de rebeldia indígena coincidiram com situações de
bispos. Esse protetorado era uma rede institucional que se ramificava crise política na ordem colonial e em particular com as visitas que se
nos partidos e pueblos da jurisdição de cada audiência e estava a cargo estenderam em ambos os vice-reinados, colocando em extrema tensão
de funcionários leigos que, muitas vezes, competiam com os defensores interna o bloco colonial dominante e suas instituições.
de naturais designados pelos cabildos. Não obstante, nem todas as cau- As disputas jurisdicionais tiveram especial intensidade nas ci-
sas judiciais que envolviam os índios tramitaram nesse juizado: aque- dades, dado que elas eram sedes de autoridades dotadas de jurisdição
las de menor monta e mesmo algumas penais estavam sob a jurisdição própria: os funcionários reais (no vice-reino, na gobernación ou no cor-
de alcaldes indígenas que integravam os cabildos dos pueblos de índios e regimiento, segundo o caso), as audiências (em todo o território a seu
reduções, ainda que fossem supervisionados pelos párocos. Ainda as- cargo), os bispados (em sua diocese) e os cabildos (no núcleo urbano e
sim, o marco conceitual adotado, que convertia o Estado antes de tudo na área rural que lhes correspondia). Essas sobreposições forjavam uma
em administrador da justiça, criava uma situação contraditória, pois os ordem jurídica na qual cada instância exercia sua própria jurisdição, de-
mesmos princípios jurídicos e institucionais que legitimavam as exações fendendo seus foros e privilégios.
também deixavam margem para que os índios pudessem recorrer a fim Não se pode estranhar, portanto, que toda vez que a Coroa bus-
de limitar sua exploração. cava acentuar os poderes de seus funcionários estalassem sérios conflitos
Deste modo, a administração da justiça se converteu em âmbito com as audiências e os bispos, que resultavam em lutas políticas com
propício para que os pueblos e os caciques reclamassem suas terras, ques- ativa participação das plebes urbanas e ainda dos índios que viviam nos
tionassem o cálculo dos tributos e criticassem os abusos das autoridades, pueblos circundantes. Assim o testemunham, por exemplo, os tumultos
buscando a proteção de uma instância superior. Diversos estudos têm de- populares que se produziram na cidade do México durante o século
monstrado a eficácia desta forma de resistência, mas também suas contra- XVII. Em 1624, as novas políticas do vice-rei o colocaram em situação
ditórias implicações. Embora seu êxito tenha debilitado as possibilidades de enfrentamento com a audiência e com o arcebispo, autoridades que
de enfrentamentos radicais contra a dominação colonial, envolveu os co- aproveitaram um massivo tumulto popular para depô-lo sob acusação
lonizadores em disputas políticas e jurídicas que erodiam seus privilégios de haver atuado como um tirano. Nesse movimento intervieram entre
e permitiam aos pueblos aproveitar as fissuras e disputas jurisdicionais. 20.000 e 30.000 pessoas, entre elas um amplo número de indígenas que
O recurso à justiça ou à negociação política não foram, ob- protestavam contra as novas exigências impostas pelo vice-rei. Todavia,
viamente, os únicos modos de resistência indígena, sendo que as co- mais grave ainda foi o tumulto de 1692, que outra vez teve como prin-
munidades combinaram flexivelmente o uso de meios legais de resis- cipais protagonistas os índios que viviam nos bairros da cidade, cuja
tência com a ação direta, inclusive violenta, contra seus dominadores, sublevação esteve claramente dirigida contra o “mau governo” exercido
proprietários de terra, corregidores, além de párocos e caciques. Deste pelas autoridades. Especialmente contra o vice-rei foram impelidos inu-
modo, o tumulto local, aparentemente desorganizado e espontâneo, meráveis setores da plebe urbana multiétnica, que causaram o incêndio
foi extremamente frequente e se tornou generalizado durante o sé- de importantes edifícios administrativos, dos arquivos do governo, da
culo XVIII, como aconteceu na Nova Espanha na década de 1760 casa do corregidor e dos estoques dos mercadores da praça principal, de-
e, sobretudo, na área andina, onde desde a década de 1720 se assistiu monstrações de ira popular que alcançavam todo o estamento espanhol.
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Ambos os episódios, somente dois entre muitos outros que se De modo simultâneo, porém, se definiram novos dispositivos de
poderiam citar, demonstram os limites que possuía o ideal de segregação controle social. Assim, durante o século XVIII, os cabildos foram deline-
residencial que prescrevia o modelo das duas Repúblicas, um marco jurí- ando uma nova geografia urbana, apoiando-se na estrutura paroquial, as-
dico e político segundo o qual os espanhóis deviam viver nas cidades e os sim como se generalizou uma nova figura institucional destinada a exercer
índios em seus pueblos de redução. O mundo social real era, ao contrário, funções policiais, perseguir contraventores e servir de auxiliar de justiça
muito mais complexo e instável, não somente porque numerosos indíge- ordinária na tramitação de causas criminais: os “alcaldes de bairro” e seus
nas viveram nas cidades e habitaram seus próprios bairros, mas também “tenentes”. Ao mesmo tempo, nas principais cidades foram se instalando
porque as cidades se transformaram em espaços privilegiados dos proces- hospícios e asilos destinados a confinar e concentrar os mendigos.
sos de mestiçagem e de configuração de plebes multiétnicas. Obviamente, Foi então que uma antiga figura delitiva ganhou maior cen-
a cronologia desses processos foi extremamente variada, mas as evidências tralidade e adquiriu novo perfil: as novas concepções que atribuíam a
sugerem que se acentuaram notoriamente durante o século XVIII, dado origem da criminalidade ao ócio se mesclaram com o medo da plebe
o crescimento econômico e demográfico. Com isso, aumentaram o temor e converteram a perseguição da “vadiagem” em uma prioridade. Deste
e o medo da plebe entre as elites urbanas, especialmente quando, entre modo, a figura do “vagabundo”, que no século XVI se aplicava a espa-
1765 e 1767, eclodiram sonoros tumultos em múltiplos pueblos e cidades, nhóis, mulatos e mestiços que viviam entre os índios, foi empregada a
desde Guanajuato, Michoacán ou San Luis Potosí, na Nova Espanha, até um crescente número de sujeitos (com diversas práticas sociais), tornan-
Santa Fé de Bogotá ou Quito, em Nova Granada, ou Arequipa, no Peru. do-se também um recurso central para tentar disciplinar a população
Se havia algo em comum era que demonstravam a limitada capacidade de livre sem residência fixa e trabalho estável.
controle social sobre a plebe e seus bairros periféricos. Esses temores e a Nas áreas rurais, o controle da numerosa população, geralmen-
aspiração de instaurar um novo modo de vida “civilizada” proporcionaram te livre e mestiça, bem como a perseguição da “vagabundagem”, passa-
a generalização de instituições de governo que já se vinham ensaiando. ram a ser prioritários e de modo geral se combinaram com a repressão
Assim, os cabildos que contavam com seus próprios “defenso- a uma ameaça de maior envergadura para a ordem social: o bandoleiris-
res de naturais” começaram a transformá-los em “defensores de pobres”, mo, uma prática comumente alimentada pelo crescente número de de-
que intervinham como procuradores das castas ante a justiça capitular. sertores das milícias e do exército. Para esse último caso as autoridades
Por sua vez, quando a Coroa sancionou a “Real Cédula sobre educação, recorreram tanto à obtenção da cooperação ativa dos proprietários de
trato e ocupações dos escravos” em 1789, argumentando a necessidade terra, quanto a toda uma gama de dispositivos institucionais. Uma das
de colocar limites aos abusos dos senhores e mayordomos, garantir os estratégias mais ambiciosas procurou multiplicar o número de paróquias
princípios da religião e tornar compatíveis a escravidão e a tranquilidade rurais e de juízes territoriais, empregando-os como agentes para realocar
pública, também dispôs que se instauraria a figura do “protetor de escra- e concentrar em novos “pueblos” a população campesina dispersa. Ao
vos”. A decisão gerou uma enorme resistência nas oligarquias indianas, mesmo tempo, passou-se a exigir dessa população o cumprimento de
a ponto de sua aplicação ser suspensa pouco depois. De toda maneira, prestações milicianas, e para isso se intentou organizar uma ramificada
as evidências indicam que muitos escravos apelaram à mediação dos rede de companhias locais cuja função primordial era tanto a defesa da
defensores para reclamar contra seus senhores em causas envolvendo a localidade, quanto a perseguição da delinquência.
manumissão e para denunciar abusos, maus tratos ou obstáculos para Não obstante, o controle institucional das populações campe-
cumprir obrigações religiosas. Deste modo, a administração de justiça sinas das áreas fronteiriças era extremamente difícil. Essas populações
buscava desalentar outras formas de resistência, mas ao mesmo tempo ocupavam novas terras e passavam a produzir nelas invocando muitas
esse contexto normativo criava tensões e contradições entre escravistas vezes os direitos que emanavam de seus serviços milicianos. Quando
e juízes, fissuras que parecem ter sido aproveitadas por muitos escravos. formavam um povoado, também exigiam contar com seus próprios ju-
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ízes e, dentro do possível, convertê-lo em vila dotada de seu próprio vidos, quanto o desejo de não perder recursos obtidos através da atuação
cabildo. Muitas vezes tais demandas encontraram apoio nas autoridades neste ou naquele território, ou ainda nesta ou naquela matéria. A Coroa
superiores, que viam nesse povoamento a estratégia mais adequada para e os órgãos centrais da administração procuravam beneficiar-se de tais
assegurar a expansão e defesa das fronteiras, mas, ao mesmo tempo, sus- conflitos na medida em que por meio deles era possível ter notícias so-
citaram intensas disputas jurisdicionais entre os cabildos de distintas bre o comportamento de todos os agentes envolvidos.
cidades, que viam recortadas suas competências e perdiam sua jurisdição Um segundo sentido dos conflitos jurisdicionais relaciona-
sobre essas populações. Além disso, a essas disputas se agregou, no últi- va-se aos vínculos mantidos entre as autoridades nomeadas pelos reis
mo terço do século XVIII, um desafio maior: a intenção das autoridades e os membros dos grupos locais. Dada a fragilidade institucional da
do vice-reino de militarizar o governo das áreas fronteiriças. monarquia, expressa nos limites técnicos da época e na distância em
relação à sede do império, todo agente régio, ao chegar a uma de-
terminada comarca ou capitania para exercer suas funções, precisava
Delitos, conflitos e guerras na América portuguesa conhecer como se estruturavam as facções locais e posicionar-se frente
a elas. No decorrer da colonização, alguns governadores foram expul-
Também na América portuguesa foram comuns os conflitos sos do posto que ocupavam por tentarem implementar políticas que
jurisdicionais entre as diversas instâncias voltadas ao exercício do gover- afrontavam os interesses locais, muitas delas determinadas pelo pró-
no. Na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XVIII, prio monarca. Assim, os conflitos entre autoridades e instâncias admi-
por exemplo, os embates envolviam, entre outros, o vice-rei, o tribunal da nistrativas expressavam os embates entre facções constituídas numa
Relação, a ouvidoria, a câmara municipal, a Real Fazenda, o bispado e as vila, comarca ou capitania, o contrário também ocorrendo, uma vez
tropas. As lutas travadas pelas diversas autoridades mesclavam-se ainda que disputas entre um governador e um ouvidor, ou entre este e um
às pretensões de autonomia por parte de conventos e congregações lei- juiz de fora, estimulavam as fricções faccionais.
gas que abrigavam grupos sociais e profissionais distintos. Mas os con- Um terceiro sentido abarca as relações entre a Coroa e a Igreja.
flitos encarnecidos entre os membros das diversas instâncias adminis- É certo que ambas as instituições, em termos gerais, complementaram-
trativas não constituíam prerrogativa do Rio de Janeiro. Pelo contrário, -se na tarefa de colonizar os domínios ultramarinos, a evangelização das
estendiam-se por todo o território brasílico, formando grupos faccionais populações autóctones ou escravas servindo de mote na justificação da
que, via de regra, articulavam autoridades e homens poderosos das di- presença portuguesa na América. O regime de Padroado reforçava os
versas localidades. Ficaram famosas as destrutivas brigas travadas pelo vínculos seculares e eclesiásticos visto que criava condições para que o
primeiro bispo de Mariana, em Minas Gerais, contra não apenas certas rei erigisse bispados visando propagar freguesias e legitimar a ocupação
autoridades régias, como também membros de seu próprio cabido. de territórios. Porém, a Igreja, ao possuir estrutura jurídica própria e
Tais conflitos jurisdicionais seguiam, no geral, três sentidos dis- atuar na vigilância do comportamento dos moradores de vilas e arraiais,
tintos. O primeiro deles advinha do próprio modo de organizar a admi- colocava limites ao poder régio, nem sempre tolerados pelos agentes no-
nistração imperial, indicado mais acima. A monarquia lusa não consistia meados pelo monarca. Tais conflitos diziam respeito ao regalismo, isto
numa estrutura burocrática racionalmente estruturada e hierarquizada. é, aos esforços da Coroa no sentido de ampliar sua capacidade de agir
Na verdade, a criação de instituições nas várias partes do império não por meio de estratégias que restringissem o alcance de poderes concor-
era regulada pelo esforço de estabelecer cuidadosamente os limites de rentes, inclusive os da Igreja. Os intentos regalistas foram mais intensos
atuação de cada um. Daí resultavam sobreposições jurisdicionais e, con- na segunda metade do século XVIII, especialmente quando o marquês
sequentemente, embates entre as diversas autoridades. As disputas por de Pombal expulsou os jesuítas do império e transferiu a administração
jurisdição envolviam tanto a afirmação da dignidade dos oficiais envol- dos povos indígenas para mãos seculares. Existiram, contudo, durante
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todo o Antigo Regime. Outro tema que preocupou diferentes monar- Para os primeiros previa-se no geral os chamados descimentos,
cas foi a tendência do clero, regular e secular, de acumular bens através isto é, o abandono de suas aldeias com vista à constituição de outras for-
da aquisição de valiosas propriedades coloniais e da cobrança excessiva mas de povoamento, organizadas segundo modelos fixados pela Coroa,
pelos serviços religiosos. por missionários ou pelos colonos – os aldeamentos. Parte significa-
Indivíduos e grupos que compunham as camadas intermedi- tiva dos aldeamentos, que na prática implicavam a desarticulação do
árias ou mais baixas nas sociedades coloniais procuravam valer-se das modo de viver autóctone, foi administrada por jesuítas, contra os quais
brechas deixadas pelos embates travados entre autoridades e poderosos. se debateram constantemente os colonos. Em tese, os índios submetidos
Entre eles destacam-se os pardos, filhos de mulheres de ascendência eram considerados livres, podendo sua mão de obra ser utilizada pelos
negra que ora beneficiavam-se de bens deixados pelos pais brancos, ora colonos em troca de pagamento de salário. No cotidiano da colonização,
buscavam alcançar certos direitos usando os caminhos judiciais. Como contudo, a liberdade era substituída ora pela tutela dos missionários,
o número de mestiços aumentou no decorrer da colonização, amplian- ora pela escravização dos colonos, que, como ocorria abundantemente
do-se sensivelmente no século XVIII, tornaram-se comuns as pressões em São Paulo, não se eximiam de atacar os próprios aldeamentos para
para que ocupassem posições sociais mais vantajosas. A trajetória dos capturar índios.
pardos é apenas um capítulo do tema mais amplo que envolve as lutas A escravização era formalmente permitida quando se trata-
em torno da estratificação social na colônia. Embora os lugares de maior va dos índios selvagens que agiam como inimigos dos colonizadores.
prestígio fossem tendencialmente reservados aos homens ricos que bus- Todavia, só podiam ser legalmente escravizados em caso de resgate – ou
cavam distinguir-se obtendo patentes e insígnias, destacando-se os seja, quando, sendo prisioneiros de outras tribos indígenas, eram tro-
oriundos de Portugal, surgiram condições para que os brancos nascidos cados por mercadorias – ou de guerra justa. Esta última implicava o
na América se projetassem e que indivíduos de ascendência indígena ou combate contra os autóctones quando havia legítima razão, geralmente
africana conquistassem espaço. Nada disso ocorreu, no entanto, sem que associada a uma pretensa ofensa praticada pelos índios inimigos. Na
houvesse uma infindável quantidade de combates diários abarcando, por prática, porém, não apenas se abusava da tese da guerra justa, sendo inú-
exemplo, processos de injúria ou disputas entre irmandades. meros povos atacados sem motivo justificado, como também, conforme
A sociedade colonial, nesse sentido, experimentou uma luta dito há pouco, os próprios índios mansos e aldeados, considerados livres,
constante, vivida de maneira molecular nas diversas localidades, liga- eram acossados pelos colonos. Isso apesar da existência formal, desde
da aos problemas da estratificação de diversas camadas e grupos so- cedo, de um procurador dos índios. Por essa razão, a Coroa, durante o
ciais. Para além desse tipo de embate, as autoridades preocuparam-se período colonial, tendeu, por um lado, a restringir os motivos de guerra
bastante com o controle das populações indígenas, escravas e forras, justa e, por outro, a limitar a escravização.
bem como com a eclosão de revoltas e motins. Durante quase todo o Em 1609 e 1680, por exemplo, a Coroa chegou a declarar a
período colonial, não foram criados códigos específicos que lidassem liberdade de todos os autóctones americanos, dados os intensos abusos
amplamente com a questão dos índios e cativos – e isto a despeito do cometidos e o extermínio de vastas populações. Nas duas ocasiões, en-
Regimento das Missões de 1686. Do ponto de vista da Coroa, no que tretanto, o monarca teve de voltar atrás, modificando a legislação poucos
se refere aos autóctones, procurou-se desde cedo circunscrever certos anos depois. É que a reação dos colonos foi vigorosa, os jesuítas, iden-
limites à destruição das comunidades indígenas, dada sua importân- tificados com as tentativas de formalizar a liberdade indígena, sendo
cia para a ocupação das terras conquistadas e a defesa das áreas de expulsos de São Paulo, no primeiro caso, e do Maranhão, no segundo.
fronteira. Estabeleceu-se logo uma diferença entre os índios mansos Durante a administração pombalina, a Coroa voltou à carga, declaran-
que se aliavam aos colonizadores e os ditos selvagens, capazes de do novamente o fim da escravidão indígena em 1755. Tal decisão foi
impor dura resistência. acompanhada de outras medidas, como a elevação de aldeamentos à
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categoria de vila, a já mencionada expulsão dos jesuítas e a instituição ser letais. As sociedades coloniais se viam na necessidade de conviver com
do Diretório dos Índios – código que secularizava a administração das seus constantes ataques, dos quais resultavam destruição e morte. Quando
populações autóctones. Também essas medidas foram ineficazes para a situação se tornava insustentável em determinado lugar, o recurso aos
abolir os excessos. soldados do mato era superado pela organização de expedições cujo ob-
O controle da população escrava e forra também consistiu num jetivo era adentrar as áreas onde se escondiam os quilombolas e comba-
problema sério para a Coroa e os colonos brancos. A preocupação com tê-los. Nem expedições, nem soldados, porém, foram capazes de evitar a
a vadiagem da gente livre e liberta, comum a toda a América lusa, ex- criação de quilombos e sua atuação nas regiões urbanas e rurais.
pressava não somente a pressão para que a mão de obra existente gerasse Por fim, as autoridades coloniais tiveram de lidar com revoltas
riqueza, mas também o receio de que perturbasse a ordem e aumentasse abertas, que foram se tornando mais ameaçadoras à medida que o tem-
a criminalidade. Esta última foi bastante arraigada no período colonial, po passava e a América se desenvolvia econômica e demograficamente.
uma vez que as instâncias judiciais e militares ficavam aquém da vas- O fim da União Ibérica e a consequente restauração da independência
tidão do território. Inúmeros crimes, fossem interpessoais ou relativos portuguesa tornou-se um marco decisivo. Com o intuito de legitimar a
à propriedade, ficavam impunes a despeito dos esforços empreendi- nova dinastia de Bragança, diversos autores lusos evocaram o argumen-
dos pelas autoridades. Em boa parte deles, os escravos apareciam tanto to de que a deposição de um rei – no caso o rei espanhol – era legítima
como ofensores quanto como vítimas. Nem sempre os cativos achavam- se ele agia como tirano. Nesse sentido, a independência lusa e a ascensão
-se sob o olhar vigilante de feitores. Pelo contrário, gozavam por vezes brigantina derivariam da restauração de uma ordem monárquica agre-
de mobilidade, transitando por fazendas, arraiais e vilas. Não por acaso, dida pela tirania espanhola. A tese do combate à tirania em defesa do
quando envolvidos em alguns dos crimes, encontravam-se distantes das bom governo, entretanto, acabou sendo amplamente utilizada nas di-
senzalas. A fuga escrava era um problema disseminado, mas nem todas versas partes do império, visando a crítica a determinadas políticas, bem
elas significavam adesão a quilombos. Na verdade, cativos podiam fugir como à atitude de governadores e outras autoridades. A ela juntou-se
para escapar a castigos previstos ou mesmo para punir seus senhores, um outro tipo de argumento: o de que os colonos, por terem conquis-
que ficavam por dias sem o ganho de sua mão de obra. tado territórios para a Coroa, desenvolvido áreas inóspitas e combati-
Seja como for, os quilombos se generalizaram, sendo compostos do índios, quilombolas e estrangeiros, mereciam ser recompensados e
não só por escravos fugidos, mas também por mestiços, indígenas e até reconhecidos. Após o fim da Insurreição Pernambucana (1645-1654),
homens brancos buscando escapar à justiça. O de Palmares, localizado no por exemplo, quando os holandeses foram definitivamente expulsos do
atual estado de Alagoas, foi o maior deles, articulando diversos núcleos e Brasil, os combatentes e seus descendentes nunca deixaram de recordar
arregimentando milhares de pessoas. Estendeu-se por décadas durante junto à Coroa o quanto mereciam ser recompensados por tamanho feito.
o século XVII, tendo sido destruído a duras penas. Na primeira meta- Toda revolta, de uma maneira ou de outra, não deixava de ser
de do século XVIII, no contexto de exploração aurífera, formou-se outro um ataque dirigido à Coroa na medida em que a simples existência de
quilombo de grande dimensão, o do Ambrósio, também se alongando perturbações e desobediências era considerada uma ameaça à ordem.
no tempo e opondo resistência. Contudo, a maioria dos mocambos colo- Embora diversos revoltosos se valessem do raciocínio segundo o qual
niais distinguia-se de Palmares e Ambrósio, possuindo poucos membros. um determinado motim questionava a ação de certas autoridades, mas
Enquanto os grandes quilombos, por serem sedentários, buscavam locais não a monarquia, sabia-se que o ataque a governadores, ouvidores ou
distantes e inacessíveis e desenvolviam estrutura agrícola e pastoril, os pe- outros agentes não deixava de significar uma ameaça ao poder régio. A
quenos tendiam a circular em torno de vilas, fazendas e estradas, sobre- Coroa, no entanto, ciente de seus limites no combate a rebeliões, tendeu
vivendo de ataques e roubos de mercadorias. Por isso, ainda que a maior a ponderar as decisões a serem tomadas, utilizando amplamente o recur-
parte dos mocambos fosse de pequeno ou médio porte, não deixavam de so do perdão com o intuito de apaziguar os ânimos.
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Certos conflitos colocaram em choque diferentes grupos inse- fundição, método de cobrança que consistia em retirar a quinta parte do
ridos na sociedade colonial. Dois exemplos desse tipo referem-se ao sé- ouro no momento em que era fundido em barras. No último, homens
culo XVIII e eclodiram quase ao mesmo tempo. Um deles foi a Guerra poderosos e grupos populares rebeldes tentaram impedir que fosse es-
dos Emboabas, ocorrida no início da ocupação da região aurífera, entre tendida para o sertão a capitação, outro método de cobrança do quinto
1707 e 1709. O embate contrapôs, de um lado, os paulistas oriundos de baseado no número de escravos e de estabelecimentos comerciais. Nas
São Paulo e Taubaté, que, na qualidade de descobridores das minas, de- revoltas ocorridas na região aurífera do período, e em outras desencade-
sejavam controlar sua exploração e as atividades a ela ligadas; e, de outro, adas em diferentes partes da América, estava sempre em jogo a capaci-
os forasteiros denominados de emboabas, vindos de Portugal e de ou- dade da Coroa de se fazer presente e respeitada nos domínios ultrama-
tras partes do Brasil com o intuito de enriquecer com as possibilidades rinos, objetivo alcançado parcialmente e de maneira problemática.
abertas pela descoberta do ouro. O confronto desdobrou-se em diversos
combates que, por fim, resultaram na vitória emboaba, definindo o peso
que os reinóis passariam a ter na formação da sociedade aurífera. Em Conclusão
1710 e 1711, por sua vez, desenrolou-se a Guerra dos Mascates, que
opôs os proprietários de terra de Pernambuco, sediados em Olinda e Um dos principais debates da historiografia americanista girou
endividados em razão da crise da economia açucareira, aos comerciantes em torno da natureza histórica do sistema colonial e das razões que pode-
situados em Recife e credores dos latifundiários olindenses. Em ambos riam explicar suas características. Por volta dos anos sessenta e setenta do
os casos, delineiam-se dois pontos em comum. Por um lado, os confli- século XX, esse debate estava centrado em torno de três grandes opções: a
tos se desenvolvem como guerra travada entre grupos de particulares América colonial era o resultado do transplante da matriz feudal ibérica;
armados. De outro, a oposição, em boa medida, se dá entre nascidos era um produto do sistema capitalista em formação; ou um conjunto de
na América e migrantes portugueses. Embora, no decorrer da história formações sociais diversas, mas especificamente coloniais. Nos anos oitenta,
colonial, ambos os grupos tenham por vezes se articulado através de tenderam a se delinear duas interpretações predominantes. Por um lado,
casamentos e associações em negócios, a tensão entre brasílicos e reinóis aquelas que explicavam as características das sociedades coloniais destacan-
sempre se fez presente na América lusa, constituindo parte dos conflitos do o papel que desempenhavam na economia-mundo, constituída por três
relativos à estratificação social. grandes áreas: uma central, situada no norte da Europa ocidental; uma se-
Não se pode enxergar em tais embates o desejo explícito e arti- miperiférica, localizada ao sul da Europa e particularmente em Espanha e
culado de romper os laços coloniais. Eles expressam muito mais as con- Portugal; e as periferias coloniais. Por outro, interpretações alternativas que,
tradições de sociedades compostas por indivíduos e grupos de origem e sem menosprezar a dimensão relacionada à economia-mundo, postularam
formação diversificadas, bem como marcadas por dinâmicas econômicas de maneira mais incisiva o caráter específico das várias configurações sociais
complexas. Seja como for, a confrontação do poder régio, como dito na América, articulando-as à capacidade de resistência dos grupos sociais
acima, não deixa de ser um elemento importante para a compreensão submetidos, assim como aos interesses das elites locais, ora contraditórios,
desses movimentos. Esse aspecto tornou-se especialmente saliente na ora complementares frente aos interesses metropolitanos. Tais discussões
região aurífera da primeira metade do Setecentos, quando ocorreram foram em grande medida tributárias de vertentes várias do pensamento
inúmeros motins que desafiavam as autoridades. A Revolta de Vila Rica, marxista - expressas, por exemplo, nos conceitos de sistema colonial e de
em 1720, e os motins do sertão, ocorridos em torno do rio São Francisco modo de produção -, bem como das ricas discussões que se deram no âm-
em 1736, contestaram a própria cobrança do quinto, o imposto concer- bito da CEPAL ou da teoria da dependência.
nente à exploração do ouro. No primeiro caso, colocando a questão de Desde então, tais debates não deixaram de ressurgir, ainda
maneira geral, mineradores poderosos se opuseram à criação de casas de que tenham mobilizado problemas e facetas diferentes. Dado que as
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discussões precedentes haviam sublinhado a extrema diversidade das res que, baseando-se no vocabulário político e no marco jurídico da épo-
formações sociais coloniais, tornou-se necessário analisar em profun- ca, consideraram que as Índias eram reinos da monarquia e, portanto,
didade suas relações com as metrópoles imperiais e considerá-las como não poderiam ser consideradas como colônias. No entanto, esse tipo de
um campo de forças instáveis e em tensão. Por si só essa constatação interpretação foi questionada não somente em razão das óbvias trans-
ratificou o entendimento de que não se podiam considerar apenas as ferências de excedentes das economias coloniais para as metropolitanas
economias, devendo-se de fato estudar de modo muito mais sistemático por vias fiscais e comerciais, mas também devido ao destaque mereci-
as formas sociais, políticas e jurídicas da dominação colonial e das pró- do por algumas das peculiaridades da ordem jurídico-política colonial,
prias monarquias ibéricas. merecendo atenção o fato de que as regiões americanas se estruturaram
Deste modo, partindo-se do reconhecimento da matriz indu- tendo como fundamento populações bastante diversas e desconhecendo
bitavelmente baixo-medieval da ordem jurídica constituída na América, certas instâncias de representação constitutivas do Antigo Regime eu-
alguns autores insistiram em que se tratava de um transplante, de ropeu, tais como cortes e parlamentos.
uma transposição ou de uma implantação premeditada e planificada. Por outro lado, os autores que questionaram decididamente o
Contudo, quando a investigação passou do plano prescritivo para a aná- modelo de análise centro-periferia propuseram que as monarquias ibé-
lise das práticas dos agentes sociais, assinalou-se de imediato que as ricas, embora estendessem seus domínios em escala planetária, careciam
realidades sociais, jurídicas e institucionais americanas eram muito mais de um centro organizador e eram, a rigor, autenticamente “policêntricas”,
diversas e diferentes, e que não era possível entendê-las tão somente conferindo às elites americanas um papel ativo e determinante para seu
como anomalias de um modelo ideal. Tratava-se de produtos peculiares, funcionamento e configuração. Deste modo, tem-se produzido uma revi-
resultantes de autênticos processos de mestiçagem institucional, os quais são crítica do uso da noção de absolutismo na definição do regime político
tornaram factível a estruturação político-administrativa dos territórios. vigente das monarquias ibéricas. Antes de tudo porque estudos recen-
Desta maneira, os debates historiográficos sobre a natureza da tes têm mostrado que essas monarquias se sustentavam e funcionavam
ordem colonial se entrelaçaram com aqueles que estavam retomando os apoiando-se em um emaranhado de redes sociais, algumas das quais eram,
pressupostos sobre a formação dos Estados modernos e em particular os em muitos casos, mais antigas que elas próprias. Tal questão é decisiva
modos de constituição e exercício do poder nas monarquias de Antigo quando se propõe a avaliar as formas de constituição do poder nos domí-
Regime. A partir de diferentes perspectivas, essas monarquias deixaram nios americanos, pois essas redes articulavam as elites locais não somente
de ser consideradas como exemplos históricos de Estados centraliza- com suas respectivas Coroas e organismos centrais de governo, mas tam-
dos e absolutistas para serem entendidas como “monarquias compostas”, bém entre elas mesmas, ultrapassando muitas vezes as próprias fronteiras
como conjuntos políticos heterogêneos, agregados e unidos por um laço dos impérios. Deste modo, e apesar das aspirações dos monarcas, boa par-
dinástico, reconhecidos por uma mesma Coroa, embora mantivessem te dos historiadores se inclina atualmente a postular que sua autoridade
estruturas e instituições próprias. Formulações desse tipo – que va- efetiva estava submetida a importantes restrições, chegando-se a propor,
riam em certa medida quando são confrontados os casos de Espanha e talvez com certo exagero, que o regime político efetivamente existente
Portugal – não poderiam deixar de impactar os estudos coloniais, ainda deveria ser definido como um “absolutismo negociado”.
que a inscrição dos domínios americanos no heterogêneo conjunto das Todos esses debates têm colocado em primeiro plano a ques-
monarquias compostas se abra à controvérsia. Como consequência, uma tão dos usos próprios do conceito de Estado e de sua pertinência para
antiga discussão foi retomada: qual era o lugar das Índias nas monar- analisar as realidades americanas. Através das contribuições de uma
quias ibéricas? O retorno desta questão possibilitou a emergência de in- nova historiografia do direito e da administração de justiça, uma pujan-
terpretações que desafiaram as convenções, sendo que duas delas foram te corrente historiográfica tem proposto um paradigma interpretativo
particularmente significativas. Por um lado, as propostas daqueles auto- denominado jurisdicionalista, que questiona decididamente a existência
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de um Estado e mais ainda a de um Estado centralizado. Desta manei- da composição das audiências se transformou em um indicador bastante
ra, tem-se postulado que se pode compreender melhor essas formações preciso da capacidade efetiva da Coroa de controlar o governo colonial.
políticas como cenários de um processo de integração corporativa que De qualquer modo, e apesar dos desacordos interpretativos,
permite a formação de unidades maiores, mas sem produzir a dissolução os estudos recentes tendem a coincidir em algumas questões centrais.
das menores, o que implica considerar a dimensão política do Antigo Primeiramente, na importância cardeal que possuíam os diferentes âm-
Regime como parte de uma cultura específica que apelava para dispo- bitos de administração de justiça na estruturação das relações de poder
sitivos muito diferentes aos empregados pelo Estado contemporâneo. coloniais. Depois, também se tem confirmado a vinculação das elites
Afinal, uma cultura jurisdicionalista desse tipo, formada na Baixa Idade locais e regionais de diversos tipos, tanto hispanocriollas como indíge-
Média, concebia o poder político como o poder de dizer o direito, achan- nas, com essa administração. Além disso, qualquer exame preciso do
do-se ancorada em uma arraigada cosmovisão religiosa. funcionamento da ordem colonial não pode se limitar a considerar os
Este novo paradigma, ainda que muito influente, não goza de níveis superiores da administração, devendo ter em conta especialmente
completa aceitação, e outros autores têm buscado um uso mais refinado as formas de configuração, funcionamento e transformação do poder
e adaptado às realidades americanas da noção de Estado. Assim, por local, isto é, os pontos de contato entre Estado e sociedade. Isso impõe a
exemplo, atendendo às evidências proporcionadas pelos estudos dedica- necessidade de não pensar o Estado somente como uma superestrutura
dos ao exercício da jurisdição na Hispanoamérica, tem-se proposto que e de ter em conta que seu poder se exercia tanto através de magistra-
a longo prazo a mais decisiva não foi a vice-real, mas outras de menor dos e sacerdotes quanto de soldados. Deste modo, quando se observa a
alcance, como as audiências e as gobernaciones. Postula-se, então, a no- questão no âmbito local, nota-se que é preciso considerar as mediações
ção de “protoestado” para definir essas estruturas de governo na medida e expandir o conceito de Estado para além das instâncias centrais da au-
em que foram as que delinearam a formação dos Estados independen- toridade soberana para que se possa abarcar um campo maior de expres-
tes. A partir de uma perspectiva em parte semelhante, outros autores sões institucionais e de relações sociais, englobando-se todos os agentes
têm sublinhado a capacidade de resistência que demonstraram as elites que participavam de alguma interação identificável.
locais americanas, bem como o fato de que o império espanhol pôde Um terceiro aspecto sobre o qual existem evidências ampla-
sobreviver durante três séculos pela flexibilidade de suas instituições e mente convergentes aponta para o papel decisivo das concepções sobre a
práticas e por sua capacidade de incorporar no âmbito político muitos justiça na definição dos contornos e componentes da cultura política co-
grupos sociais distintos que controlavam o poder local. Deste modo, as lonial e em sua apropriação seletiva e criativa pelos mais variados setores
repetidas lutas políticas coloniais não produziram um questionamento sociais. Deste modo, as noções de “bom governo” (isto é, um governo
aberto da soberania real – com exceção da guerra civil no Peru, no século justo e cristão) e de “mau governo” (uma “tirania”) foram extremamente
XVI – mas não deixaram de erodir a eficácia dos intentos de centraliza- difundidas, informando e legitimando as ações de protesto, inclusive as
ção do poder expressos na instauração dos vice-reis em 1530-1540, nas violentas. As comunidades indígenas estabeleceram, através da admi-
reformas políticas de finais do século XVI ou na presença de visitadores nistração de justiça, grande parte de suas relações com a monarquia e
gerais a em meados do XVII e do XVIII. com as autoridades coloniais. Valendo-se desse âmbito como espaço de
Como se tem destacado, sem o freio da presença do rei na resistência, forjaram cambiantes alianças e desenvolveram suas próprias
América, os bispos e as audiências se consideravam como iguais aos concepções políticas.
vice-reis, o que é melhor compreendido ao se considerar que na cultura Por fim, mencione-se que as novas perspectivas delineadas aci-
política da época a religião, a justiça e a prudência eram três termos-cha- ma não alijaram o problema da dominação, tornando-o, pelo contrário,
ve. Daí a importância assinalada às audiências na estrutura de governo e mais complexo e multifacetado. Há certamente vários caminhos a serem
sua apresentação como a própria imagem do rei-juiz. De fato, a análise trilhados pela historiografia dedicada ao universo colonial, devendo-se
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destacar aquele que, distinguindo de maneira não estreita o problema CAÑEQUE, A. Cultura vicerregia y Estado Colonial. Una aproximación crítica al estudio de la
historia política de la Nueva España. Historia Mexicana, vol. LI, 1, 2001.
do bom governo da questão relativa à conservação dos domínios, traz
DE LA FUENTE, A. Los esclavos en Cuba y la reclamación de derechos: repensando el debate
à cena a literatura sobre razão de Estado. Tendo se constituído no final
de Tannenbaum. Debate y Perspectivas: Cuadernos de Historia y Ciencias Sociales, N.º 4, Madrid,
da Idade Média e no início da Idade Moderna, ela desempenhou papel 2004, pp. 37-68.
importante junto aos arbitristas e a todos aqueles que se interessavam ELLIOTT, J. H. Imperios del mundo atlántico. España y Gran Bretaña en América (1492-1830).
por equacionar os modos de exercer o domínio em contextos caracteri- Madrid: Taurus, 2006.
zados pela pluralidade de poderes. Pode-se mesmo dizer que, no século ELLIOTT, J. H., España y su mundo (1500-1700). Madrid: Taurus, 2007.
XVII, dado o quadro de crise, a Espanha tornou-se, por meio do tema FRADERA, Josep M. La nación imperial. Derechos, representación y ciudadanía en los impe-
da decadência, um dos cernes dos manuscritos e impressos que discuti- rios de Gran Bretaña, Francia, España y Estados Unidos (1750-1918). Vol. 1 e 2, Barcelona:
Edhasa, 2015.
ram a razão de Estado. Evidentemente, não se trata aqui de se propor a
retomada de visões anacrônicas, visto que uma literatura desse tipo, pro- GARAVAGLIA, J. C.; MARCHENA, J. América Latina. De los orígenes a la independencia.
2 tomos. Barcelona: Crítica, 2005.
duzida com afinco nos séculos XVI e XVII, só poderia referir-se a uma
GIBSON, Ch. Los aztecas bajo el dominio español, 1519-1810. México: Siglo XXI, 1986.
espécie de Estado: a que estava ao alcance de sua vista. Não há mesmo
contradição entre, de um lado, as noções de monarquia composta ou GARRIGA, C. Sobre el gobierno de la justicia en Indias (siglos XVI-XVII). Revista de Historia
del Derecho, Nº 34, 2006, pp. 67-160.
pluralidade de poderes e, de outro, a produção de uma literatura sobre a
MERLUZZI, M. Gobernando los Andes. Francisco de Toledo virrey del Perú (1569-1581). Lima:
razão de Estado, isto é, sobre os meios através dos quais um reino ou um PUCP, 2014.
império se conservavam e se ampliavam. As respostas para perguntas
OWENSBY, B. Pacto entre Rey lejano y súbditos indígenas: justicia, legalidad y política en
dessa natureza não podiam deixar de levar em consideração a fragili- Nueva España, siglo XVII. Historia Mexicana, Vol. LXI, Nº 1, 2011, pp. 59-106.
dade técnica existente na época e a necessidade de se medirem a todo PIETSCHMANN, H. El Estado y su evolución al principio de la colonización española de América.
tempo as correlações de força. Ainda que o Estado do Antigo Regime México: FCE, 1986.
estivesse escorado na defesa da tradição, não poderia ter sobrevivido sem RUIZ IBAÑEZ, J. J. (coord.). Las milicias del rey de España. Sociedad, política e identidad en
inovações e rupturas. Cabe à historiografia buscar compreender como las Monarquías Ibéricas. Madrid: FCE, 2009.
as autoridades da época conseguiram inovar, criar novas estruturas, en- STERN, S. Los pueblos indígenas del Perú y el desafío de la conquista española. Madrid: Alianza,
frentar guerras na Europa e no Ultramar valendo-se sempre de recursos 1986.

limitados e sofrendo a resistência da tradição. A isto dedicou-se a lite- TAU ANZOÁTEGUI, V. La ley en América Hispana. Del Descubrimiento a la Emancipación.
Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia, 1992.
ratura sobre razão de Estado, infelizmente ainda bastante negligenciada
Na bibliografia indicada o leitor poderá encontrar um panorama das estruturas administrativas,
entre os americanistas.
legais e de administração de justiça na América espanhola colonial, assim como alguns dos
melhores estudos sobre problemas e espaços específicos. Como textos gerais se recomenda a
leitura dos livros de Elliot, nos quais o leitor encontrará uma análise do império espanhol em seu
conjunto, assim como a mais completa comparação com o britânico. Com eles dialoga Fradera,
Roteiro Bibliográfico que apresenta um desenvolvimento das especificidades institucionais e políticas dos domínios
coloniais de cada um dos impérios a partir de uma perspectiva histórica mais abrangente.
América Espanhola O livro de Garavaglia e Marchena oferece um atualizado panorama dos processos históricos
coloniais, o de Tau Anzóategui analisa as características do chamado “direito indiano”, o de
ANDRIEN, K. Crisis y decadencia. El virreinato del Perú en el siglo XVII. Lima: IEP, 2011.
Pietschmann centra-se na configuração inicial do Estado colonial e o de Ruiz Ibañex reúne
BORAH, W.(coord), El gobierno provincial en la Nueva España, 1570-1787. México: Universi- contribuições sobre o papel das milícias no conjunto da monarquia ibérica. Particular importân-
dad Nacional Autónoma de México, 2002. cia possuem os estudos sobre os máximos tribunais americanos: o clássico livro de Burhoklder
e Chandler permite avaliar as transformações produzidas no recrutamento de seus membros e o
BURHOKLDER, M. A.; CHANDLER, D. S. De la impotencia a la autoridad. La corona españo-
artigo de Garriga, a partir de uma perspectiva interpretativa muito diferente, examina profunda-
la y las Audiencia en América, 1687-1808. México: FCE, 1984.

272 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 273
mente a cultura jurídica dessas instituições e suas práticas. Brasileira, 2005.
Para a análise das estruturas de governo territorial no Vice-reino da Nova Espanha se recomenda SCHWARTZ, S. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. trad. São Paulo: Perspectiva, 1979.
a leitura do livro de Borah e o artigo de Cañeque, que esclarece as formas da vida política nesse vi-
SOUZA, L. M. Desclassificados do ouro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
ce-reino. Para analisar as reformas da ordem colonial no Vice-reino do Peru durante o século XVI
se recomenda o livro de Merluzzi. Por sua vez, o livro de Andrien permite examinar as vicissitudes SOUZA, L. M. O sol e a sombra. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
dessas transformações durante o século XVII e os dilemas enfrentados pelo governo colonial.
WEHLING, A.; WEHLING, M. J. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
Uma questão de decisiva importância é a análise das formas de governo das comunidades indíge- 1994.
nas e suas relações com as autoridades coloniais e a ordem jurídica. Neste sentido, se recomenda a
A bibliografia indicada acima apresenta alguns estudos que tratam de temáticas relativas ao
leitura do artigo de Owensby e dois livros clássicos: o de Gibson sobre os astecas e o de Stern cen-
exercício da administração e da justiça na América portuguesa, bem como abordagens que ex-
trado na experiência histórica desenvolvida em Huamanga, no Peru. Para refletir sobre os debates
pressam diferenças historiográficas. Visões de conjunto sobre a colonização do Brasil são encon-
suscitados acerca das relações dos escravos com a administração de justiça se recomenda a leitura
tradas nos trabalhos de Boxer, Holanda e Wehling & Wehling. Elas podem ser complementadas
do artigo de De la Fuente.
com a Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831), que ajuda a situar os fatos em seus
contextos históricos específicos.

América portuguesa Os estudos de Monteiro e Cunha são bastante relevantes para a compreensão, respectivamente,
da dinâmica da exploração das populações autóctones e da legislação indigenista. Embora mais
BOXER, C. R. O império colonial português. trad. Lisboa: Edições 70, 1969. direcionado para a realidade mineira, o livro de Russell-Wood sobre escravos e libertos fornece
BOXER, C. R. A idade de ouro no Brasil. trad. 2ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1969. uma rica análise de conjunto sobre a questão. O problema da vadiagem é investigado por Souza
em seu trabalho a respeito dos desclassificados em Minas. O artigo de Figueiredo apresenta uma
Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831). São Paulo: Departamento de História, importante síntese sobre as revoltas imperiais e a linguagem nelas utilizada.
USP, 1994.
Na obra organizada por Hespanha, são discutidas as concepções doutrinárias de matriz cató-
CUNHA, M. C. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secreta- lica que procuraram ordenar as sociedades de Antigo Regime e foram apropriadas na colônia
ria Municipal de Cultura, Fapesp, 1992. americana. Nela explica-se bem o tema da prudência. O trabalho de Maravall, por sua vez,
FALCON, F. C. A época pombalina. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1993. esquadrinha a literatura sobre razão de Estado produzida nos séculos XVI e XVII. O artigo
de Russell-Wood e o livro de Schwartz fornecem uma visão geral sobre o funcionamento da
FIGUEIREDO, L. R. O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e justiça colonial, focando, respectivamente, a dinâmica das câmaras municipais e a dos tribunais
das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII-XVIII. In: FURTADO, J. F. de Relação.
Diálogos oceânicos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 197-254.
O livro de Souza sobre o sol e a sombra na administração colonial dialoga com o trabalho de
FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.) O Antigo Regime nos Fragoso, Bicalho & Gouveia e com o de Fragoso & Florentino. O debate procura avaliar a vali-
Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Bra- dade do conceito de sistema colonial quando aplicado à colonização portuguesa, contrapondo-o
sileira, 2001. a dois aspectos: de um lado, a constituição de identidades e vínculos comerciais que articulariam
FRAGOSO, J.; FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro: Civilização Bra- as várias partes do império; de outra, a elaboração na sociedade colonial de estruturas de re-
sileira, 2001. produção da desigualdade, ancoradas no enraizamento tanto de grupos locais quanto daqueles
formados por reinóis. Em linhas gerais, encontra-se no cerne do debate a análise sobre em que
HESPANHA, A. M. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, s/d. (História de Portu- medida metrópole e colônia implicavam contradição ou identidade.
gal, dir. José Mattoso, v. 4).
HOLANDA, S. B. (org.) História Geral da Civilização Brasileira. 5ª ed. São Paulo: Difel, 1982,
t. 1. Extratos de documentos
MARAVALL, José Antonio. Teoría del Estado en España en el siglo XVII. 2ª ed. Madri: Centro
de Estudios Constitucionales, 1997. 1. Provisión que se manda al marqués don Francisco de Pizarro para que pudiese continuar las con-
quistas de las provincias del Perú, 8 de marzo de 1533.
MONTEIRO, J. M. Negros da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. “… Por ende, como mejor podemos, os rogamos y requerimos que entendáis bien esto que os
PRADO JR., C. Formação do Brasil Contemporâneo. 12ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. hemos dicho, y toméis para entenderlo y deliberar sobre ello el tiempo que fuere justo, y reco-
nozcáis a la Iglesia por señora y superiora del universo mundo, y al Sumo Pontífice, llamado
RUSSELL-WOOD, A. J. O governo local na América portuguesa: um estudo de divergência Papa, en su nombre, y al Emperador y Reina doña Juana, nuestros señores, en su lugar, como
cultural. Revista de História, São Paulo: FFLCH/USP, v. 55, nº 109, 1977, p. 25-79. a superiores y Reyes de esas islas y tierra firme, por virtud de la dicha donación y consintáis y
RUSSELL-WOOD, A. J. Escravos e libertos no Brasil Colonial. trad. Rio de Janeiro: Civilização deis lugar que estos padres religiosos os declaren y prediquen lo susodicho. […]… Y si así no

274 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 275
lo hicieseis o en ello maliciosamente pusieseis dilación, os certifico que con la ayuda de Dios, há mais que quando fazem alguns delitos, o meirinho os manda meter em um tronco um dia
nosotros entraremos poderosamente contra vosotros, y os haremos guerra por todas las partes y ou dois como ele quer; não tem correntes nem outros ferros da justiça […] Os padres incitam
maneras que pudiéramos, y os sujetaremos al yugo y obediencia de la Iglesia y de sus Majesta- sempre aos índios que façam sempre suas roças e mais mantimentos, para que, se for necessário,
des, y tomaremos vuestras personas y de vuestras mujeres e hijos y los haremos esclavos, y como ajudem com eles aos portugueses por seu resgate, como é verdade que muitos portugueses co-
tales los venderemos y dispondremos de ellos como sus Majestades mandaren, y os tomaremos mem das aldeias, por onde se pode dizer que os padres da Companhia são pais dos índios, assim
vuestros bienes, y os haremos todos los males y daños que pudiéramos, como a vasallos que no das almas como dos corpos”.
obedecen ni quieren recibir a su señor y le resisten y contradicen…”
6. Carta do governador Fernão de Sousa Coutinho de 1º de julho de 1671.
2. Ley 21, Título III, Libro VI de la Recopilación de Leyes de Indias de 1680. “Há alguns anos que, dos negros de Angola fugidos ao rigor do cativeiro e fábricas dos engenhos
“Prohibimos y defendemos, que en las Reducciones, y Pueblos de Indios puedan vivir, ó vivan desta capitania, se formaram povoações numerosas pela terra dentro entre os Palmares e matos,
Españoles, Negros, Mulatos, ó Mestizos, porque se ha experimentado, que algunos Españoles, cujas asperezas e faltas de caminhos os têm mais fortificados por natureza do que pudera ser
que tratan, traginan, viven, y andan entre los indios, son hombres inquietos, de mal vivir, la- por arte e, crescendo cada dia em número, se adiantam tanto no atrevimento que com contínuos
drones, jugadores, viciosos, y gente perdida, y por huir los Indios de ser agraviados, dexan sus roubos e assaltos fazem despejar muita parte dos moradores desta capitania mais vizinhos aos
Pueblos, y Provincias, y los Negros, Mestizos, y Mulatos, demás de tratarlos mal, se sirven de seus mocambos, cujo exemplo e conservação vai convidando cada dia aos mais que fogem, por se
ellos, enseñan sus malas costumbres y ociosidad, y también algunos errores, y vicios, que podrán livrar do rigoroso cativeiro que padecem, e se verem com a liberdade lograda no fértil das terras e
estragar, y pervertir el fruto que deseamos en orden a su salvaci6n, aumento, y quietud; y man- segurança de suas habitações, podendo-se temer que com estas conveniências cresçam em poder
damos, que sean castigados con graves penas, y no consentidos en los Pueblos; y los Virreyes, de maneira que, sendo tanto maior o número, pretendam atrever-se a tão poucos como são os
Presidentes, Gobernadores y Justicias tengan mucho cuidado de hacerlo executar donde por sus moradores desta capitania a respeito dos seus cativos [...]”.
personas pudieren, ó valiéndose de Ministros de toda integridad: y en quanto á los Mestizos,
y Zambaygos, que son hijos de Indias, nacidos entre ellos, y han de heredar sus casas, porque 7. Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720.
parece cosa dura separarlos de sus padres, se podrá dispensar.” “Logo, se o pretexto (bem que outro fosse o fim) da sublevação era impedir a lei do príncipe nas
casas de fundição e moeda, que atendiam à sustentação e aumentos do reino, fechando-se tão
3. Ley 14 del Título IX del Libro VI de la Recopilación de Leyes de Indias de 1680. facilmente com a chave daquelas casas às nações estrangeiras a porta por onde sempre entraram
“Ordenamos que ningún Encomendero de Indios, ni su muger, padres, hijos, deudos, criados, ni a senhorear-se da maior parte do nosso ouro, e que qualquer canto dos seus domínios, mais
huéspedes, Mestizos, Mulatos, ni Negros, libres ó esclavos, puedan residir, ni entrar en los Pue- que as cortes do Brasil e Portugal, se achava abundante, visto está que, respeitando a lei que se
blos de su encomienda, porque de esta comunicación, y asistencia resulta, que los naturales son impugnava ao estado, não tocava a determinação do castigo aos legistas, senão a El-Rei, como
fatigados con servicios personales, á sin causa, ni razón los obligan, ocupándoles en traer yerba, política, e por consequência ao seu substituto e delegado. E mal andaria o Conde se por mãos da
y frutas, que van á buscar por larga distancia, pescar, moler y amasar trigo, en que pasan grandes, justiça castigara, neste caso, aos culpados, pois é sem questão que quando o príncipe lhe come-
y excesivos trabajos, y molestias, aunque sea con pretexto de utilidad de los indios, ó curarlos, teu as suas vezes, não foi para que ele cedesse do direito real, fazendo tributárias ao arbítrio dos
ó curarse, por gozar de la diferencia de temple, pena de cincuenta pesos, aplicados por tercias ouvidores resoluções que só eram regalia do trono”.
partes, á nuestra Cámara, Juez, y Denunciador. Y mandamos á nuestras Justicias Reales, que no
lo consientan, ni permitan, y executen la dicha pena, y encargamos á los Prelados Eclesiásticos, 8. Consulta do Conselho Ultramarino a Sua Majestade, no ano de 1732, feita pelo conselheiro Antônio
que castiguen. Y corrijan los excesos, que en esto hicieren los Doctrineros.” Rodrigues da Costa.
“O perigo interno que têm os Estados, e nasce dos mesmos vassalos, consiste na desafeição e
4. Carta de Palafox al Rey, México, 23 de setiembre de 1644. ódio que concebem contra os dominantes, o qual ordinariamente procede das injúrias e violên-
“Estas Provincias no se arriesgan quando se hace Justicia, sino quando deja de hacerse, y puede cias com que são tratados pelos governadores, da iniquidade com que são julgadas as suas causas
mas la violencia que las Leyes de VM y se salen los Magistrados con la misma inmunidad del pelos ministros da Justiça, e da dificuldade, trabalho, despesa e demora de que necessitam para
exceso que pudieran del mérito, y no ha havido hasta hoy Monarquía desde el principio del recorrerem à Corte para se queixarem das sem-razões que padecem e injustiças que lhe[s] fazem,
Mundo que se haya perdido por hacer Justicia, y muchas sí que se han perdido con brevedad por e de lhes ser preciso remirem as vexações que lhes fazem ou conseguirem as suas melhoras a
no hacerla, que gozo tienen señor (o que provecho) los vasallos de VM en que se hagan podero- peso de ouro; e também nasce muito principalmente do encargo dos tributos, quando entendem
sos los magistrados con su perdición y ruina, si quanto estos grangean se les quita de aquéllos.” que são exorbitantes; e se lhes fazem intoleráveis, se persuadem que não houve causa justa e
inevitável para se lhes imporem”.
5. Carta de José de Anchieta sobre a catequese dos índios.
“Ensinam-lhes os padres todos os dias pela manhã a doutrina, esta geral, e lhes dizem missa,
para os que a quiserem ouvir antes de irem para suas roças; depois disso ficam os meninos na
escola, onde aprendem a ler e escrever, contar e outros bons costumes, pertencentes à polícia
cristã; à tarde tem outra doutrina particular a gente que toma o Santíssimo Sacramento. Cada
dia vão os padres visitar os enfermos com alguns índios deputados para isso; e se têm algumas
necessidades particulares, lhes acodem a elas; sempre lhes ministram os sacramentos necessários
[...] O castigo que os índios têm é dado por seus meirinhos feitos pelos governadores e não

276 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 277
Capítulo 7
A Era global das revoluções e seus
descontentamentos (1760 a 1834)

Kristie Flannery

Guerra é um negócio arriscado. Não importa se você vence ou


não o conflito. A Guerra dos Sete Anos (1754-1763) foi travada entre
todos os grandes impérios europeus e seus muitos aliados e inimigos
em torno dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico, bem como do Mar
Mediterrâneo, pelo controle do território e populações que pagavam tri-
butos. Os impérios dragados para esta primeira guerra verdadeiramente
global contraíram muitas dívidas para construir navios de guerra, fabri-
car armas e muniçõese para vestir, alimentar e transportar seus enormes
exércitos e forças navais. Como consequência do conflito, governos im-
periais foram forçados aumentar a taxação sobre diversas de suas res-
pectivas populações para levantar dinheiro destinado ao pagamento das
imensas dívidas de guerra. Esta política de austeridade do século XVIII,
combinada com ideias revolucionárias disseminadas por todos os lados,
desencadeou uma onda de revoltas contra estados imperiais em colônias
e metrópoles. Os homens e mulheres que viveram este período turbu-
lento “muitas vezes sentiram que o mundo havia entrado em uma nova
era caótica, quando, para melhor ou pior, velhas restrições e certezas
deixaram de ser aplicadas” (Geggus; Gaspar, 1997).
Este capítulo considera as principais revoltas contra impérios
e monarquias europeias que eclodiram ao redor do mundo de 1760 a
1834, a “Era das Revoluções”. Organizado cronologicamente, este tex-
to começa com a discussão das rebeliões multicêntricas anticoloniais
que eclodiram nas treze colônias norte-americanas da Grã-Bretanha,
no vice-reinado espanhol do Peru e no império global de Portugal nas
décadas de 1760 a 1780. Em seguida, serão examinadas a Revolução
Francesa, que eclodiu em Paris em 1789, e a revolução dos escravos,
deflagrada na colônia francesa produtora de açúcar conhecida como São
As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 279
Domingos em 1791. Por último, este capítulo investiga como a invasão tomaram as dimensões de guerras civis. Todavia as entidades políticas
da Península Ibérica por Napoleão, em 1808, desencadeou a dissolução permaneceram leais a reis e rainhas, enquanto houve o reconhecimento
do império da Espanha na América e a consolidação do regime monár- de que Estados também expandiram sua capacidade de coerção e uso de
quico no mundo luso. violência para reforçar o seu poder. (Bayly, 2004; Id., 1989).
Qual era a natureza essencial da Era das Revoluções e as suas
consequências? Historiadores têm tradicionalmente enfatizado seu ca-
ráter democratizante. Na década de 1950, o historiador britânico R. R. A Revolução Americana
Palmer (2014, 5) afirmou que este período “significou um novo senti-
mento em direção a uma espécie de igualdade, ou pelo menos um des- Após a Guerra dos Sete Anos, a Grã-Bretanha impôs uma sé-
conforto com formas mais antigas de estratificação social e classificação rie de novos impostos e tarifas sobre suas colônias para levantar fundos
formal.” Na década de 1960, o historiador marxista Eric Hobsbawn para pagar suas dívidas de guerra. O Stamp Act (Lei do Selo) de 1765,
(1962) insistiu Hobsbawn insistiu que a Revolução Industrial andava por exemplo, obrigou as pessoas nas colônias a comprar selos emitidos
de mãos dadas com o liberalismo, política de massas e democracia. Em pelo governo para dar força legal a uma vasta gama de documentos, in-
seu estudo da Era das Revoluções Atlânticas publicado no ano 2000, cluindo testamentos, títulos de terra, licenças para bebidas e passaportes.
Marcus Rediker e Peter Linebaugh (2000) sugerem que era uma época Estas reformas levaram as colônias a explodir em protestos violentos
na qual os radicais das camadas mais comuns das sociedades, incluindo contra a pressão da metrópole sobre seus súditos. Em outubro de 1765
“camponeses rebeldes, levelers75, piratas e escravos revoltosos”, realiza- manifestantes em St. Kitts and Nevis roubaram e queimaram selos do
ram “avanços na práxis humana – os Direitos da Humanidade, a greve, a governo, enquanto, na cidade de Nova York, cerca de 2000 pessoas sa-
doutrina da ‘Lei maior’76 – que acabariam por abolir o trabalho compul- quearam e incendiaram a casa do governador britânico (O’Shaughnessy,
sório e a escravidão nas plantations”. 1994). O Parlamento britânico aboliu a Lei do Selo em 1766, em res-
Este capítulo, contudo, apresenta uma visão diferente. Ele con- posta a esta onda de revoltas, mas preservou outras medidas impopu-
fronta o grande paradoxo da Era das Revoluções. Por um lado, foi uma lares de angariação de fundos, incluindo altos impostos sobre produtos
época em que as pessoas derrubaram governos coloniais, decapitaram britânicos importados para a América do Norte.
reis e rainhas e estabeleceram repúblicas, mas também foi uma época Economias imperiais levaram colônias norte-americanas da
em que impérios e a instituição da escravidão foram não apenas preser- Grã-Bretanha a uma depressão econômica profunda no início da década
vados, mas drasticamente expandidos. As guerras de independência que de 1770. Os colonos, como a população de colonos brancos era conheci-
se propagavam nas Américas, tornando colônias em estados nacionais, da, cada vez mais culpavam o péssimo governo britânico pelas restrições
coincidiram perfeitamente com “os tentáculos rapidamente espalhados econômicas que sofriam, começando a exigir independência e liberdade,
do imperialismo europeu para a região do oceano Índico, para o Sudeste embora estes conceitos significassem coisas diferentes para pessoas dife-
Asiático e para a Austrália e Pacífico Sul.” (Anderson et. al., 2014). Este rentes. Elites coloniais frequentemente interpretavam “liberdade” como
capítulo analisa os processos centrais que produziram essas contradições, uma maior autonomia da Grã-Bretanha na gestão dos assuntos coloniais,
enfatizando que revoltas contra a monarquia e o império, em toda parte, enquanto seções da camada trabalhadora que viviam e trabalhavam nas
cidades portuárias americanas procuravam “independência” do recruta-
75 NT: Os levelers foram um grupo de radicais formado durante a Revolução Inglesa. Advogavam
mento forçado para a marinha real britânica (Magra, 2013).
a ideia de igualdade jurídica e a tolerância religiosa. Atos públicos de rebelião contra os britânicos se tornaram mais
76 NT: a ideia de higher law pressupõe que mesmo um Estado de direito pode gerar efeitos frequentes. Multidões cobriam com piche e penas funcionários adua-
perversos na sociedade. Logo, certos princípios (escritos ou de bom senso) sobre equidade,
justiça e moralidade tem que estar acima da lei e de todos. neiros que tentavam cobrar impostos considerados ilegítimos (Klooster,
280 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 281
2009, 19). Em dezembro de 1773, uma multidão de Boston roubou está classificada nas escrituras como um dos pecados dos judeus, pelo
90.000 libras de chá de navios da Companhia das Índias Orientais e as que lhes é reservada uma maldição” (Paine, 2004). Evidentemente, a
jogou no porto para protestar contra o novo monopólio desta merca- ascensão do republicanismo não se correlaciona necessariamente com o
doria obtido pela Companhia. A Grã-Bretanha respondeu a Boston tea declínio da religião.
party (Festa do Chá de Boston) com repressão crescente. O parlamen- Entretanto, nem todos os americanos compartilharam ideias de
to britânico despachou milhares de soldados através do Atlântico para Paine sobre o regime monárquico. Na verdade, colonos foram profunda-
ocupar Boston, ameaçando usar a força para suprimir a dissidência e mente divididos pela guerra. Aproximadamente um terço da população
substituir membros do Conselho de Massachusetts eleitos localmente colonial permaneceu fiel ao seu rei e formou milícias para lutar com os
por funcionários diretamente nomeados pelo governador britânico, efe- britânicos contra forças patriotas ou pró-independência. As razões para
tivamente destruindo a democracia limitada que existia na colônia. a lealdade eram complexas. Certamente a religião inspirou fidelidade a
Colônias britânicas norte-americanas enviaram delegados a Jorge III, pois o rei era o chefe da Igreja Anglicana. Os escravos eram
dois Congressos continentais na cidade da Filadélfia para coordenar uma um grande e importante grupo de fiéis: milhares se juntaram ao exército
resposta unificada para a crise política que confrontavam. No Segundo do império após o governador britânico da Virgínia, Lord Dunmore,
Congresso Continental, em julho de 1775, eles resolveram pedir ao rei prometer-lhes a liberdade em troca do serviço militar (Fowler, 2009;
Jorge III para que reconsiderasse. Vassalos americanos do rei permane- Landers, 2010, 15-54; Pybus; Candlin; Petterd, s.d.).
ceram confiantes de que a crise poderia ser resolvida pacificamente e de Patriotas americanos advinham de uma aliança inquieta entre a
uma maneira que preservaria “a união entre a nossa Pátria e estas colô- aristocracia colonial e as pessoas comuns: pequenos agricultores, artesãos
nias” (Loughran, 2006). Mas a Oliver Branch petition, uma nota escrita e trabalhadores. Além de lutar pela independência da Grã-Bretanha, este
pelo Congresso Continental, em maio de 1775, na qual se reafirmava último grupo lutou por uma democracia maior e por igualdade econômica.
lealdade a Jorge III e se expressava desejo imediato de reconciliação, Em contraste com os britânicos, os líderes patriotas geralmente se recu-
não conseguiu ganhar o apoio do rei. Em agosto, era a vez do monarca saram a alforriar escravos que se juntaram a sua causa. Os pais fundado-
responder com a emissão da “Proclamação para Suprimir a Rebelião e res da América definitivamente pensaram sobre o destino dos escravos na
Sedição”, confirmando que ele não iria negociar com os colonos rebeldes nação que estavam construindo: em um primeiro rascunho da Declaração
e usaria a força para derrotar a rebelião americana. Começava, assim, a de Independência, Thomas Jefferson atacou o comércio de escravos, conde-
guerra americana de independência. nando a Grã-Bretanha por ser “determinada a manter aberto um mercado
Foi só depois que foram disparados os primeiros tiros da guerra onde os homens devem ser comprados e vendidos” e por “suprimir todas
que o antimonarquismo se tornou predominante nas colônias. Quando as tentativas legislativas para proibir ou restringir esse comércio execrável”
ele chegou à imprensa em 1776, o ensaio político de Thomas Paine em (Armitage, 2007, 161-162). No entanto, depois de muito debate, esta cláu-
favor das repúblicas, intitulado Senso Comum, se tornou o livro mais ven- sula foi omitida da versão final da Declaração assinada em 4 de Julho de
dido na América do Norte em todo o século XVIII. Paine escreveu em 1776, garantindo que esta fosse omissa sobre a escravidão.
linguagem simples para que pessoas comuns pudessem entender. Ele A guerra americana de independência terminou em 1783,
se inspirou na Bíblia para argumentar que a monarquia era um sistema quando a Grã-Bretanha e os novos Estados Unidos da América concor-
fundamentalmente falho e não cristão de governo. Ele afirmou que “no daram em firmar a paz. O fim da guerra significou que a colônia tinha
início dos tempos do mundo, de acordo com a cronologia das Escrituras, derrubado com sucesso um poder imperial pela primeira vez na história
não havia reis; a consequência que foi, não houve guerras; é o orgulho do mundo atlântico. Mas será que este evento significou que “um novo
dos reis que lança a humanidade em confusão.” Revelando o antisse- sentimento em prol de um determinado tipo de igualdade” que estaria
mitismo de seu mundo social, Paine também alegou que “a monarquia sendo varrido da superfície da Terra?
282 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 283
Para responder a esta pergunta, devemos evidenciar que a na América do Norte, o Império Espanhol na América do Sul cho-
jovem República dos Estados Unidos da América criou as condições cava-se com uma grande revolta anticolonial no Vice-Reino do Peru.
para a rápida expansão da escravidão dentro de suas fronteiras. A Lei Tudo começou em novembro de 1780, quando o cacique indígena José
Noroeste, adotada em 1787, proibia a escravidão ao norte do rio Ohio, Gabriel Condorcanqui, mais conhecido pelo seu nome de guerra Tupac
ao mesmo tempo em que protegia esta instituição no sul. A população Amaru, sequestrou e executou publicamente Antonio Arriaga, o cor-
escrava do país cresceu de menos de 700 mil em 1790 para quase 4 mi- regedor da cidade de Tinta. Este evento culminou em um levante em
lhões à época da eclosão da Guerra Civil Americana em 1861. massa que se alastrou por todo o sul da Cordilheira dos Andes. Nas
A Revolução Americana não só falhou em acabar com a escra- semanas seguintes à execução de Arriaga, Tupac Amaru e sua esposa
vidão como também falhou em enfraquecer o imperialismo. De acordo Micaela Bastidas Puyucaha atraíram dezenas de milhares de seguidores,
com o historiador Eliga Gould, a Declaração de Independência esta- a maioria dos quais camponeses indígenas. O casal liderou enormes tro-
beleceu as bases legais para os Estados Unidos se tornarem um impé- pas que marcharam de cidade em cidade destruindo manufaturas têxteis
rio em seus próprios termos (Gould, 2012). Ao afirmar seu direito de e cadeias: símbolos poderosos do poder imperial. A rebelião atingiu o
“assumir entre os poderes da Terra, posição igual e separada, em que as pico em dezembro de 1780, quando 40.000 rebeldes sitiaram Cuzco, se-
Leis da Natureza e do Deus da Natureza nos autorizam”, os Estados gunda capital do vice-reinado. Os espanhóis e seus aliados locais supri-
Unidos declararam seu direito de colonizar as pessoas e terras que per- miram a rebelião em abril de 1781, quando funcionários do governo co-
maneceram não conquistadas por poderes europeus. Enquanto a Era lonial prenderam e executaram Tupac Amaru e sua família, juntamente
das Revoluções progredia, os Estados Unidos lançavam suas próprias com outros líderes rebeldes. Este evento continua a ser marginalizado
guerras de conquista, tomando o controle dos territórios dos Creek e na maioria dos estudos da Era das Revoluções no Atlântico ou do mun-
dos Seminole na Primeira Guerra Seminole (1816-1819). Assim, em do todo, talvez porque tenha resultado em derrota. Mas, como o his-
vez de oferecer uma alternativa aos impérios europeus, os novos Estados toriador Alberto Galindo Flores nos lembra, “sua derrota não significa
Unidos os imitavam. que o movimento de Tupac Amaru não fosse revolucionário, ele apenas
Além disso, a Revolução Americana desencadeou a expan- indica uma frustração de anseios coletivos.” (Flores Galindo, 2010, 81).
são agressiva do Império Britânico nos mundos da Índia e do Oceano Contemporâneos estavam convencidos de que essa revolta chegou per-
Pacífico. Mesmo antes do final da década de 1780, a Grã-Bretanha uti- to de destruir o império sul-americano da Espanha por dentro (Flores
lizou trabalho de presidiários para estabelecer novas colônias em Serra Galindo, 2010, 80). Como o primeiro-ministro do rei espanhol Carlos
Leoa, na costa oeste da África e em Sydney, na costa leste da Austrália IV, Manuel Godoy, observou: “ninguém ignora [o fato de] que todo o
(Christopher, 2011; Anderson, 2012; Anderson, 2013; Marshall, 2005) Vice-Reino do Peru e parte do Rio da Plata foram quase perdidos em
Esta década também viu as Coroas britânica, francesa e espanhola pa- 1781.” (Walker, 1999, 53).
trocinarem viagens científicas de descobertas para o Oceano Pacífico, Tupac Amaru articulou os objetivos principais de sua revolta
estabelecendo as bases para projetos de colonização que iriam florescer contra a Espanha na execução pública de Arriaga. Em quíchua77, ele
no longo século XIX (Gascoigne, 2014, 129-182). anunciou a abolição das várias políticas impopulares que a Espanha ti-
nha recentemente introduzido no Peru para extrair mais riquezas das
comunidades locais. Como as reformas desastrosas da Grã-Bretanha na
América do Norte, estas iniciativas espanholas foram em grande parte
A Rebelião de Tupac Amaru
77 NT: o quíchua é uma família de línguas indígenas andina, ainda praticada por cerca de 10
milhões de pessoas entre Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Era a língua
Enquanto a Guerra Americana de Independência era travada franca no império Inca.
284 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 285
impulsionadas pela necessidade de angariar fundos para as crescentes mente, adotando o nome do último Inca assassinado por conquistadores
dívidas de guerra feitas pela Coroa. Tupac Amaru aboliu a alcabala, o espanhóis em 1572, com a pretensão de ser seu descendente direto e
imposto geral de vendas que aumentou de 2% para 6% entre 1772 e herdeiro da Coroa Inca. Ele também incorporou simbolismos Incas em
1776, além dos direitos aduaneiros, que se tornou mais um fardo após a suas vestes: usava o uncu ou túnica indígena adornada com uma “corren-
Coroa construir novas casas aduaneiras para recolher o imposto em todo te de ouro com um sol Inca.” (Walker, 2014, 3-24).
o sul dos Andes neste mesmo período. Tupac Amaru também rescindiu Como a Guerra Americana de Independência, a rebelião de
o reparto de mercancías, um sistema que permitiu que corregidores obri- Tupac Amaru se transformou em uma guerra civil. As forças monar-
gassem as comunidades indígenas a comprar mercadorias a preços infla- quistas que derrotaram os homens de Tupac Amaru no cerco de Cuzco
cionados, e cortou a mita, o modelo de trabalho forçado para as mortais incluíram regimentos espanhóis e milícias, expedidos de Lima, bem
minas de prata de Potosí. A rebelião de Tupac Amaru foi revolucionária como milícias andinas patrocinadas pelas elites indígenas locais, que ir-
porque teria transformado radicalmente a sociedade colonial se tivesse resistivelmente permaneceram leais à Espanha. Existem várias razões
sido bem-sucedida. (Flores Galindo, 2010, 86). A alcabala, o reparto, e pelas quais indígenas andinos colaboraram com os espanhóis para aca-
a mita78 constituíram os mecanismos essenciais pelos quais a Espanha bar com a insurgência. O historiador David Garret aponta que elites
explorou os indígenas andinos, naquilo que era, afinal, a parcela funda- foram alienadas por Tupac Amaru com sua “insistência de que ele era
mental do império. o único candidato ao sangue Inca” (Garrett, 2004, 606). Além disso,
Significativamente, Tupac Amaru e seus seguidores não con- as elites indígenas reconheceram que estavam para perder sua posição
fiaram em filosofias importadas da América do Norte ou Europa para privilegiada na sociedade colonial se a rebelião fosse bem-sucedida, e
erguerem-se contra o domínio colonial espanhol. Em vez disso, a rebe- sofreriam a ira do estado colonial se falhassem (Cahill, 2003).
lião foi inspirada pela ideologia da utopia andina: a crítica coerente do O bispo de Cuzco minou de vez as bases de apoio à rebelião
domínio colonial que surgiu organicamente nos Andes. Essa visão de por meio da distribuição de panfletos em todo os Andes, afirmando que
mundo distinta combinou uma memória romanceada dos Andes pré- Tupac Amaru tinha queimado conventos e casas de culto, e que seus
-hispânicos sob o domínio Inca como um período de justiça social, har- seguidores seriam excomungados da Igreja79. Certamente esta informa-
monia e prosperidade com o plano de ação futura, que defendia a derru- ção desencorajou católicos devotos de apoiar a insurgência. A nature-
bada de usurpadores espanhóis e da restauração de uma monarquia Inca za extremamente violenta da rebelião também contribuiu para sufocar
indígena. Galindo Flores (2010, 3-52) demonstra que a utopia andina o apoio popular a Tupac Amaru: historiadores estimam que 100.000
era anterior à Era das Revoluções. Esta ideologia já havia sido citada no índios e 10.000 espanhóis foram mortos durante a revolta. Este derra-
início do século XVII, em Comentarios Reales, pelo Inca Garcilasco de la mamento de sangue tornou-se um poderoso incentivo para restaurar a
Vega. Ela sobreviveu e foi alimentada por séculos de domínio colonial relativamente pacífica ordem colonial (Flores Galindo, 2010, 96).
espanhol nas canções, peças e murais. Tupac Amaru evocou-a explicita- Embora pareça contraintuitivo, a rebelião de Tupac Amaru,
em última análise, fortaleceu o Império Espanhol na América do Sul.
78 NT: A alcabala era o imposto mais importante do Antigo Regime que taxava o comércio e
era aquele que mais renda produzia ao setor imobiliário; já o reparto era um sistema pelo meio do
O Estado respondeu à insurgência com uma repressão sem precedentes,
qual se obrigava os pueblos a comparem bens a preços muito acima dos de mercado, favorecendo começando com a terrível execução pública de Tupac Amaru, sua esposa,
empresários comerciais e os cofres públicos (por meio dos impostos recolhidos). Índios que não seu filho de dez anos de idade e de outros líderes rebeldes na praça central
comprassem bens em reparto podiam ser presos. Como se endividavam para conseguir crédito
e adquirir forçosamente os bens de reparto, muitos trablahvam por algum tempo nas minas. A
de Cuzco. Na frente de uma grande multidão, Tupac Amaru e sua família
mita, por sua vez, era uma forma de trabalho servil destinada às minas, especialmente na região sofreram tortura, sendo suas línguas cortadas enquanto eles ainda estavam
de Potosí. Oficialmente, apenas 3 lugares no Peru tiveram mita, com apoio estatal. Isso não
significava que outras formas de trabalho compulsório não fossem empregadas em diversos
outros sítios. 79 “Excommunication of Tupac Amaru and His Followers” (1781?) in
286 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 287
vivos. Depois que foram mortos, seus corpos foram despedaçados e então deportou mais de uma dezena de padres envolvidos na conspiração para
mostrados nas cidades e vilas em todo o Vice-Reinado. Esta foi a estra- Portugal, onde ficaram presos por muitos anos para evitar que se tornas-
tégia terrível que o Estado utilizou para deixar claro o que aconteceria a sem mártires pela independência (Bayly, 2004).
qualquer um que fosse corajoso o suficiente para ousar desafiar o domínio Em 1789, outra conspiração anticolonial aconteceu no Brasil.
colonial. No rescaldo dessas execuções, a Espanha também implementou Na cidade mineira de Vila Rica, em Minas Gerais, o ex-oficial militar
uma campanha para destruir a cultura indígena nos Andes, que o histo- e dentista ocasional Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, como
riador Charles Walker (2014, 259) descreve como tentativa de “genocídio era conhecido, participou do planejamento de uma revolução contra o
cultural”. A Coroa restringiu o uso do quíchua, destruiu retratos de Incas domínio português na América do Sul. Tiradentes não era um homem
e proibiu o uso do vocábulo “Inca” como nome ou título. A Coroa tam- pobre: ele era dono de uma farmácia e de uma pequena fazenda. As 84
bém proibiu certos tipos de vestimentas, danças, bem como literaturas pessoas (incluindo 15 oficiais militares e 7 padres) que, em maior ou
indígenas que desafiassem o domínio espanhol, incluindo os Comentarios menor grau, planejavam participar da “Inconfidência Mineira” também
Reales80. Estes foram os elementos de uma “revolução imperial” que refor- provinham da elite de Minas, de famílias de comerciantes ricos, proprie-
çaram a autoridade espanhola. tários de minas, plantações e escravos. Os conspiradores queriam esta-
belecer uma “República de Mazombos” (homens nascidos no Brasil de
pais brancos europeus) (Ferreira Furtado, 2014, 115-116). Eles plane-
Conspirações anticoloniais no Império Português javam se rebelar no momento em que o governo colonial estava no que
parecia ser o auge de sua impopularidade e, portanto, mais vulnerável
No final do século XVIII levantes contra o domínio colonial ao ataque: quando anunciara o recolhimento da derrama, ou impostos
também ocorreram no império global de Portugal. Em 1787, as autori- atrasados sobre o ouro. Eles também anteciparam que soldados e mili-
dades coloniais em Goa descobriram um grupo de padres e milicianos do cianos se juntariam ansiosamente à revolta e lutariam contra o exército
alto escalão que, alienados pela discriminação sistemática contra indivídu- da Coroa, que, inevitavelmente, seria enviado a partir do Rio de Janeiro
os nascidos no Estado da Índia, estavam tramando um golpe para subs- para esmagar a revolta (Marchant, 1941). Notavelmente, os conspirado-
tituir o governo vice-real por uma nova república “na qual os chamados res decidiram contra a libertação da grande população escrava de Minas,
‘nativos’ iriam governar a si mesmos”. O governo reprimiu brutalmente argumentando que a nova república precisaria de escravos para trabalhar
essa rebelião antes que ela realmente começasse, prendendo 47 suspeitos nas suas minas e fazendas.
que foram julgados e considerados culpados do “abominável delieto de Enquanto a rebelião de Tupac Amaru foi agitada por uma
rebellião, e alta traição.”81 Alguns dos conspiradores receberam a pena de ideologia marcadamente andina, a Inconfidência Mineira foi inspirada
morte enquanto outros foram condenados a trabalhos forçados na Casa na Guerra Americana de Independência. Marinheiros que cruzavam o
de Pólvora de Goa, ou desterrados para Angola e Moçambique. O Estado Atlântico viajando entre cidades portuárias, como Lisboa e Londres,
Havana e Salvador, trouxeram notícias sobre a Revolução Americana
The Tupac Amaru Rebellion and Catarista Rebellions: An Anthology of Sources, (Indianapolis:
para o Brasil (Rediker, 2014, 9-29). Esta informação também circulou
Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc., 2008), 74-75. pelos oceanos em páginas impressas de livros, mesmo que os governos
80 NT: livro muito famoso e de ampla circulação escrito pelo Inca Garcilaso de la Vega e proibissem textos “sediciosos”. Tiradentes sempre levava consigo o livro
publicado na Europa.
81 The conspirators “intentaram subtrahir todo este Estado da sujeição, obediência, e governo
francês Recueil de Lois Constitutives des Etats de L’Amerique, que incluía
da dita Senhora* destruir a forma deste, e formar huma nova republica, em que os chamados cópias da Declaração de Independência americana e as constituições
Naturaes por hum conselho de camará geral governassem, e usassem da soberania, e de todo o
mero, e mixto império. ue participaram primeiro o objecto da rebelliào aos seus semelhantes na Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, “A Conjuração de 1787 em Goa, E Varias Cousas Desse
profissão ecclesiastica….” Documento No.3 Sentença (Goa, 1788) in Tempo: Memoria Histórica,” (Nova Goa: Imprensa Nacional, 1875).
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de vários Estados que formavam os novos Estados Unidos da América. claramente a força do Estado e desencorajaria outros que considerassem
(Ferreira Furtado, 2014, 128-131; Araújo, 2005, 235-270). Entre 1786 atacá-lo no futuro.
e 1787, um estudante brasileiro em Montpellier, possivelmente ligado à
conspiração nas Gerais, escreveu a Thomas Jefferson, então embaixador
na França pré-revolucionária, confidenciando os planos: “Eles conside- As Revoluções Francesa e Haitiana
ram a Revolução Norte-Americana como um precedente para a sua”,
escreveu o norte-americano ao seu Congresso; “pensam que os Estados A França entrou em crise no final de 1788, sinalizando que
Unidos é que poderiam dar-lhes um apoio honesto e, por vários mo- a onda de rebeliões que varreram o mundo não era restrita a colônias
tivos, simpatizam conosco (...) no caso de uma revolução vitoriosa no ultramarinas da Europa. A Coroa francesa estava praticamente falida
Brasil, um governo republicano seria instalado.” (Kenneth, 1989, 8). e incapaz de pagar as dívidas acumuladas com a Guerra dos Sete Anos
Não foi preciso um grande trabalho de detetive para se descobrir e com o apoio aos Estados Unidos em sua guerra de independência.
a conspiração de Minas. Tiradentes e os demais não eram homens discre- Parlements regionais da França bloquearam reformas fiscais de emer-
tos e fizeram pouco esforço para manter seus planos revolucionários em gência que teriam, eventualmente, levantado fundos para manter o reino
segredo. Em Vila Rica, Tiradentes discursou publicamente sobre a in- solvente. Em resposta, o rei Luís XVI dissolveu os parlements e convo-
justiça do governo imperial. Brasileiros, criticou, seriam os “filhos pobres cou uma reunião dos Estados Gerais, o conjunto que representava os
da América, perpetuamente morrendo de fome, sem nada de próprio”, três Estados do reino: o clero (Primeiro Estado), a nobreza (Segundo
porque Portugal roubara os frutos dos seus trabalhos. (Ferreira Furtado, Estado) e as pessoas comuns (Terceiro Estado). Os Estados não eram
2014, 124-125). Em uma ocasião, quando estava bebendo em uma pou- convocados desde 1614.
sada no Rio de Janeiro, Tiradentes brindou à saúde da república brasi- Os Estados Gerais reuniram-se no Palácio Real de Versalhes
leira independente que ele esperava se transformasse em realidade. Mas em maio de 1789. Em junho, o Terceiro Estado se revoltou, rebatizou-se
o gerente e outros espectadores não eram fãs deste plano e prontamente como “Assembleia Nacional” e ordenou que todos os impostos fossem
o denunciaram às autoridades. Este rebelde cometeu o erro de supor abolidos ao invés de autorizá-los. O historiador Wim Klooster (2009)
que seus compatriotas compartilhavam sua paixão pela independência, afirma que este foi o ato fundador da Revolução Francesa, uma vez que
quando, ao invés disso, a maioria se considerava vassala fiel da Coroa. foi o momento em que a Assembleia “apossou-se da soberania em nome
Assim como a revolução na América do Norte influen- da nação francesa.” O conflito entre o rei e a Assembleia insubordinada
ciou a Inconfidência Mineira, ela também criou um sentimento de uma intensificou-se rapidamente. Luís trancou a Assembleia do lado de fora
crise geral do império que formou a gravidade da resposta do Estado à da sala de reunião dos Estados Gerais. Seus membros, então, se reuni-
revolta planejada. Tiradentes e seus co-conspiradores foram detidos e ram novamente em um dos campos de tênis do Palácio e fizeram um
presos em maio de 1789. Em 1792, após três anos de longa investigação juramento prometendo dar à França uma constituição. O rei, por sua
sobre a conspiração (a Devassa), Tiradentes foi executado na frente de vez, reuniu milhares de soldados nos arredores de Paris, em preparação
uma grande multidão. A rainha portuguesa Maria ordenou diretamente para um ataque à Assembleia, o que levou a cidade a rebelar-se para
que, após a morte do rebelde “lhe fosse cortada a cabeça e levada a Vila defender seu novo governo. Em 14 de julho, massas de trabalhadores,
Rica aonde em o lugar mais público dela será pregada, em um poste alto artesãos, comerciantes e soldados desertores atacaram e tomaram a pri-
até que o tempo a consuma, e o seu corpo será divido em quatro quar- são da Bastilha, uma verdadeira fortaleza no centro de Paris que funcio-
tos, e pregados em postes, pelo caminho de Minas...” (Salgado, 2008, nava como um armazém de pólvora: o rei era impotente para detê-los.
492). Mantendo a lógica da resposta espanhola para a rebelião de Tupac Nos meses seguintes, os parisienses derrubaram a Bastilha, tijolo por
Amaru, a rainha fundamentou que este espetáculo violento mostraria tijolo, até que nenhuma uma única pedra deste símbolo da autoridade
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real restasse (Rudé, 1967, 45-60). De Paris, a Revolução Francesa se gias revolucionárias expressou grave preocupação de que “os países mais
espalhou rapidamente para o campo. Campesinos atacaram senhores distantes imitarão a rebelião da França, e toda a Europa será reduzida a
de terra, saqueando e incendiando suas casas senhoriais e os livros onde um estado de anarquia e confusão, ao passo em que uma grande revolu-
eram registradas dívidas camponesas. A Assembleia Nacional aboliu as ção pode apressar os governos existentes do mundo ao fim.”82
obrigações feudais, a fim de controlar a anarquia no campo. A necessidade de conter a “ameaça francesa” levou vários
Em 26 de agosto, a Assembleia emitiu a Declaração dos Estados europeus a declarar guerra à França, incluindo Grã-Bretanha,
Direitos do Homem e do Cidadão, que afirmava que “Todos os ho- Áustria, Espanha, Portugal e Prússia. As revolucionárias guerras fran-
mens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, com “direitos cesas facilitaram a rápida expansão das forças coercitivas do Estado em
naturais e imprescritíveis do homem” como “liberdade, a propriedade, toda a Europa. A Marinha Real Britânica, por exemplo, triplicou em
a segurança e a resistência à opressão.” (Armitage, 2007). A linguagem tamanho de 1793 a 1815 (Bayly, 1989, 3). A República Francesa rea-
sexista da Declaração não passou despercebida pelas mulheres francesas. lizou um recrutamento para levantar um enorme exército de centenas
Olympe de Gouges desafiou a exclusão das mulheres, escrevendo uma de milhares de homens fortes para derrotar seus inimigos internos e
alternativa, a “Declaração da Mulher e Cidadã” (Klooster, 2014, 109- externos. Durante os anos que, infamemente, ficaram conhecidos como
110; Assmann, 2007). A Declaração francesa foi claramente influen- o “Período do Terror” (1793-1794), a República condenou pelo menos
ciada por e ecoou a Declaração da Independência dos Estados Unidos, 17 mil de seus supostos inimigos à morte para reforçar a sua autoridade.
que já afirmara que “todos os homens são criados iguais, que são dotados Como C. A. Bayly (2004, 88) observou, o Estado mais forte, mais intru-
pelo Criador de certos direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a sivo, “foi o legado mais potente da Era das Revoluções.”
busca da felicidade”. No entanto, a Revolução Francesa foi muito além Fora da Europa, a Revolução Francesa interrompeu o status
dos esforços norte-americanos para reorganizar a sociedade. quo político em colônias ultramarinas da França, especialmente em São
Após a abolição das obrigações feudais, a Assembleia Nacional Domingos, que era, na época, a colônia produtora de açúcar mais rentá-
francesa tomou medidas significativas para tomar o poder da Igreja vel do mundo. Em 1789, brancos e negros livres de São Domingos tor-
Católica, expropriando e vendendo bens da Igreja, dissolvendo ordens re- naram-se amargamente divididos quanto ao significado e às implicações
ligiosas e proclamando a igualdade civil para os católicos, judeus e protes- da Declaração dos Direitos do Homem e outras novas leis francesas que,
tantes. Em setembro de 1792, a Convenção Nacional da França, sucessora aparentemente, desafiaram a desigualdade racial institucionalizada e a
da Assembleia Nacional, aboliu a monarquia e declarou uma república na escravidão da colônia. Das plantações para as ruas da capital colonial
França. Em janeiro do ano seguinte, o governo executou o antigo rei, Luís Le Cap, os escravos foram expostos a pesados debates políticos sobre a
XVI, agora um cidadão comum conhecido como Luís Capeto, na frente medida em que a liberdade e a igualdade se aplicaria aos negros livres
de um número estimado de 20.000 parisienses. Meses mais tarde, sua e mulatos. Inspirados por essas ideias radicais, os escravos lançaram sua
esposa e ex-rainha Maria Antonieta teve o mesmo destino. própria revolução em 1791. Ela começou como uma revolta na periferia
Amplos setores da sociedade francesa se opuseram aos ataques de Le Cap em agosto e, rapidamente, cresceu como a maior revolta de
do Estado revolucionário sobre a Igreja e a Coroa. A guerra civil eclodiu escravos na história do mundo atlântico. Até dezembro, dezenas de mi-
em grande parte do ocidente e sul da França em 1792 e 1793, quando lhares de escravos rebeldes tinham destruído mais de 1000 fazendas de
contrarrevolucionários franceses se organizaram em um exército católico açúcar e café, matando pelo menos 400 brancos.
e real para lutar contra as tropas do governo. Outras monarquias euro-
peias estavam aterrorizadas com a possiblidade da Revolução Francesa 82 An Account of the Treason and Sedition, Committed by the London Corresponding Society, the
se espalhar para além das fronteiras do país. O comitê secreto criado Society for Constitutional Information, the Other Societies: ... And the Whole of the Two Reports,
Presented to the Hon. House of Commons, by the Secret Committee, (London: Printed for J. Downes,
pelo Parlamento britânico para investigar o possível contágio de ideolo- 1794). Capítulo 10: “Revolt of the Provinces” in
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No meio desta revolução escrava, São Domingos tornou-se Haiti, Jean-Jacques Dessalines, supervisionou o massacre dos brancos
outra frente nas guerras revolucionárias francesas. Nesta colônia cari- que permaneceram lá. O historiador David Geggus sustenta que tanto a
benha, a República Francesa se viu lutando tanto com brancos insur- mudança de nome quanto o massacre celebraram a política de “ruptura
gentes que estavam determinados a preservar sua posição privilegiada com a Europa” e “evidenciavam que a independência do Haiti carregara
e a hierarquia racial nas quais assentavam suas fundações, como com uma mensagem mais radical do que a dos Estados Unidos duas décadas
os exércitos britânicos e espanhóis que invadiram a ilha. Certamente antes.” (Geggus, 1997, 18).
influenciados pela necessidade de ganhar apoio militar dos escravos que
já haviam se libertado, a Convenção Nacional Francesa aboliu formal-
mente a escravidão em todas as colônias em 4 de fevereiro de 1794, A dissolução do império da Espanha na América
confirmando que “todos os homens, sem distinção de cor, residentes nas
colônias são cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos assegura- Não obstante a derrota do exército de Napoleão no Haiti, a
dos pela Constituição”.83 Touissant L’Ouverture, um ex-escravo, levan- primeira década do século XIX foi marcada pela rápida expansão do im-
tou um exército de 20.000 homens recém-libertados para lutar contra pério de Napoleão na Europa. Ele conquistou quase todo continente até
os inimigos estrangeiros e domésticos da França. Em 1796, a França fez 1810. Sua invasão da Península Ibérica, em 1808, desencadeou eventos
de L’Ouverture Vice-Governador de São Domingos, depois que os bri- que levariam ao colapso do império da Espanha na América.
tânicos retiraram as tropas da colônia. Em 1801, L’Ouverture elaborou Em fevereiro, dezenas de milhares de tropas francesas se es-
uma Constituição para São Domingos que declarava: “Neste território, palharam ao longo dos Pireneus e tomaram o controle de Pamplona e
não podem existir escravos; a servidão está permanentemente abolida. Barcelona. Em março, o Rei Carlos IV abdicou em favor de seu filho, o
Todos os homens dentro de São Domingos nascem, vivem e morrem novo rei Fernando VII. Em agosto, Napoleão depôs Fernando VII e fez
livres e franceses.” Outra cláusula garantia que todos os cidadãos, “não o seu próprio irmão, José Bonaparte, rei da Espanha e das Índias. Os ha-
importando sua cor”, poderiam exercer qualquer emprego e as únicas bitantes do Império Espanhol, em sua maioria, rejeitaram a autoridade
distinções entre eles seriam aquelas com base em “virtudes e talentos.” de Bonaparte. Em toda a Espanha, comunidades empenhadas em resta-
(Blackburn, 2006, 647). Esta lei procurou proteger as liberdades dura- belecer o trono a Fernando VII formaram juntas locais e regionais para
mente conquistadas pela população local de um possível futuro no qual coordenar a resistência armada contra os franceses. Em setembro, esses
o governo francês pudesse tentar retirá-las. vários grupos se uniram para formar uma Junta Central para governar
A relação calorosa de L’Ouverture com a França arrefeceu após a Espanha até que o legítimo monarca recuperasse o poder. Até o final
1799, quando Napoleão Bonaparte efetivamente tornou-se chefe de de 1808, este órgão convocou representantes de todos os territórios da
Estado da República em um golpe de Estado. Em 1802, Napoleão en- Espanha na Europa e nas Índias a participar de uma reunião das Cortes,
viou um grande exército para o Caribe para recolonizar São Domingos. uma assembleia nacional que criaria uma constituição moderna para a
As forças de Napoleão conseguiram capturar e deportar L’Ouverture nação espanhola transcontinental.
para a França, onde ele viria a morrer na prisão. No entanto, milícias de A invasão francesa da Espanha veio como um choque para or-
São Domingos e a febre amarela frustraram a tentativa de reconquista. ganizações políticas coloniais, que reagiram à notícia com demonstra-
Em 1804, os ex-escravos da ilha proclamaram a República independen- ções públicas de lealdade ao rei Fernando VII. Em Santiago de Chile,
te do Haiti, recuperando o nome Taíno da ilha. O novo imperador do criollos adornaram seus chapéus com botões ostentando o retrato do rei,
enquanto “jóvenes del comercio” desfilaram pelas ruas de Guadalajara os-
William Doyle, The Oxford History of the French Revolution (2002, 220-246). tentando pinturas do monarca. (Stein; Stein, 2014, 197; Kloster, 2009,
83 “French National Convention, Abolition Decree (1794)” In The French Revolution and
Human Rights: A Brief Documentary History (Hunt, 1996, 115–116). 117-157). Os governadores dos pueblos indígenas de San Juan e Santiago
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na Nova Espanha estavam entre os muitos que emitiram declarações fender Fernando e seu reino “hasta con la última gota de su sangre”.85
públicas articulando sua fidelidade a Fernando. Eles declararam: Como o historiador Jeremy Adelman (2008, 332) aponta, estas juntas
eram “modelos de colônias reacomodadas em formações imperiais, uma
tentativa para um acordo que permitiria estabilizar (e não para dissol-
Las Parcialidades de Indios de esta corte, sus pueblos y barrios
anexos… En estas terribles circunstancias,… son los primeros ver) regimes [imperiais].”
que sacrificarán sus cortos bienes propios y comunes, su repsos Governos coloniais enviaram prata e outros recursos para a
y tranquilidad, sus hijos y familias, y hasta la última gota de su Espanha para apoiar a guerra contra a França, enquanto Fernando VII
sangre, por no rendir vasallaje a [Bonaparte] quien so merece permanecia no exílio. Por exemplo, em 1814 a Real Hacienda de Manila
el justo enojo de nuestra nación.84 doou 11.783 camisas e 12.515 pares de calças para o exército espanhol
na Europa. 86 A Espanha simplesmente não poderia ter sustentado esta
Tal evidência de lealdade à Espanha sugere que não havia nada guerra sem suas colônias, que foram literalmente colocando roupas nos
de inevitável sobre o colapso do império espanhol no início do século corpos dos seus soldados. As razões pelas quais os súditos coloniais per-
XIX. Como o historiador David Sartorius (2013, 3) observa, colônias maneceram leais ao seu rei em seu momento mais vulnerável são com-
espanholas não eram “nenhum barril de pólvora, nenhum emaranhado plexas. De acordo com o historiador econômico Carlos Marichal, vassa-
de tensões contradições prestes a se incendiar” inflamadas em guerras de los esperavam que Fernando VII acabaria por reconhecer e recompen-
independência. sar sua generosidade. Embora Marichal (2007, 48) também nos lembre
O trono espanhol, no entanto, criou uma crise de soberania que se que nem todas as doações eram voluntárias, funcionários coloniais no
espraiou de Barcelona para Bajío e Buenos Aires. Colônias espanholas não México tomaram verbas de cajas de comunidades indígenas sem o seu
aceitaram automaticamente a suprema autoridade da Junta Central e pue- consentimento. No entanto, não devemos descartar o quanto uma iden-
blos por todo o império estabeleceram suas próprias juntas para governar na tidade latino-americano católica comum formou a base de uma lealdade
ausência do rei. Em setembro de 1808, comerciantes poderosos do México profunda e duradoura a Fernando VII em ambos os lados do Atlântico
tomaram o poder do Vice-rei Iturrigaray, diante dos rumores de que ele e do Pacífico (Eastman, 2012; Rodríguez, 2012). Muitos homens e mu-
estaria agitando uma luta de independência mexicana, e instalaram em seu lheres nas colônias eram dedicados a seu Deus, rei e pátria, da mesma
lugar o marechal Pedro Garibay, oficial militar de mais alta patente na Nova forma com que os nacionalismos modernos permitem às pessoas afir-
Espanha (Stein; Stein, 2014, 95-130). Garibay e seus apoiadores se manti- mar que amam e defenderiam seus países (Sartorius, 2013, 8).
veram fiéis a Fernando, e não perderam tempo em silenciar republicanos em No entanto, este período de crise viu grandes levantes acon-
seu meio. O governo deteve dissidentes, como Frei Melchor de Talamantes, tecerem nas colônias americanas da Espanha. Uma grande e famosa
que alegou que “las Colonias pueden legítamente separase de sus Metrópolis” em insurreição no México começou no dia 16 de setembro de 1810, quando
várias situações, incluindo “cuando la Metrópoli es subyugada por otra nación.” Padre Miguel Hidalgo y Costilla, o pároco de Dolores, soou os sinos
(Melchor de Talamantes, 18080; Villicaña, 1995; Baliño, 2009). da igreja e pediu aos seus paroquianos que se levantassem contra os
Este era um padrão que se repetia em todo o império. Em 1810 espanhóis. As forças do governo capturaram e executaram Hidalgo em
e 1811, juntas locais atuando em nome do rei substituíram os vice-reis meados de 1811, mas não antes que ele tivesse várias vitórias importan-
de Nova Granada e do Rio da Prata, bem como os governadores das tes em lugares como o rico centro de mineração de Guanajuato, onde
Capitanias Gerais da Venezuela e do Chile. Exibindo o mesmo forte os rebeldes vitoriosos procederam execuções em massa de realistas. No
discurso monarquista que as juntas adotaram, os membros da Primera
Junta Nacional de Gobierno de Chile fizeram um juramento para de- 85  Acta del Cabildo de Santiago (18 de Septiembre de 1810) http://www.historia.uchile.cl/CDA/
fh_article/0,1389,SCID%253D14355%2526ISID%253D516%2526JNID%253D27,00.html
84 Rodríguez, 2008, 257; Geggus; Gaspar, 1997, 18. 86 (Philippines National Archives (PNA) Cartas 2195, 2196).
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entanto, o historiador Eric Van Young (2007; 2001, 265- 266) enfatiza das suas falhas, os historiadores concordam amplamente que as organi-
que sacerdotes, aldeões e camponeses indígenas que se rebelaram não zações políticas multiétnicas de territórios europeus ultramarinos e da
“bradavam slogans revolucionários sobre os direitos do homem, tam- Espanha apoiaram largamente a Constituição e o sistema de governo
pouco defendiam programas políticos elaborados para a reforma im- por ela preconizado. No Peru, um grupo de insignes plebeus era tão fiel
perial, autonomia política e independência da Espanha”. Em vez disso, à Constituição que seus membros carregavam pedaços do documento
eles foram levados pela ambição pessoal e por queixas locais. Estes não com eles onde quer que fossem (Walker, 1999, 92).
foram movimentos anticoloniais coerentes que visavam a estabelecer re- Embora seja perigoso para os historiadores tentarem trilhar os
públicas independentes. caminhos da história alternativa e considerar o que poderia ter aconte-
A Constituição adotada pelas Cortes de Cádiz, em 1812, foi cido se os fatos históricos ocorressem de forma diferente da que efeti-
a primeira “grande revolução política” dentro do Império Espanhol vamente ocorreu, parece que a Constituição de 1812 poderia ter salvo o
(Rodríguez, 1820). Passou por um conjunto de cerca de 301 deputados, Império Espanhol, ainda que de uma forma profundamente distinta da
incluindo 67 das colônias, e revisou o pacto colonial. A assembleia trans- lei anterior. Mas a unidade imperial começou a desmoronar depois que
formou a Espanha e suas colônias em um único Estado-nação. Limitou Fernando VII foi restaurado ao trono em 1814. Determinado a governar
os poderes do monarca e instituiu autoridade para um legislativo demo- o império como um monarca absoluto, o rei aboliu a Constituição e des-
craticamente eleito, que incluiria representantes de territórios ultramari- titui as Cortes apenas seis semanas depois de sua reentrada gloriosa em
nos da Espanha.87 Ao definir os espanhóis como sendo “todos os homens Madri. Esta negação da autonomia e soberania solicitada pelas colônias
nascidos livres e domiciliados nos domínios da Espanha, e seus filhos,” a americanas da Espanha fizeram com que estas se preparassem para ir à
Constituição fez espanhóis, mestiços e índios iguais perante a lei, finali- guerra para garantir sua independência. Por volta de 1824, quase todas
zando o estatuto legal dos indígenas como menores de idade que neces- as colônias americanas da Espanha já haviam se transformado em esta-
sitariam de proteção da Coroa. A Constituição de 1812 ainda cumpriu dos nacionais (Portillo Valdés, 2006).
várias das exigências radicais de Tupac Amaru feitas duas décadas an- Como um rosário de guerras se desfiando neste capítulo, pode-
tes: aboliu tributos impostos aos índios, o reparto e a mita, estabelecendo, mos pensar as revoltas da América espanhola contra a monarquia como
assim, indígenas livres de regimes de servidão. A notificação enviada ao guerras civis travadas entre patriotas americanos e monarquistas ame-
Cabildo de Lima aconselhando o término da tributação proclamava que ricanos; estes últimos aliados aos 47.000 soldados espanhóis enviados
“los malhadados indios respirarán ya, y verán que por primera vez al cabo da Europa para esmagar as rebeliões. Vários fatores influenciaram tais
de tres siglos ha habido quien abogue por ellos hasta conseguir quitarles alianças. No início do século XIX, novas identidades proto-nacionais e
de encima esa carga abrumadora.” (Bazán Díaz, 2013, 245). nacionais surgiram, advindas daquela fidelidade encorajadora de pueblos
Mas os homens e mulheres de ascendência africana não pude- a seus tão distantes monarcas. Em 1820, as pessoas que previamente se
ram respirar tão livremente. A Constituição de 1812, em grande parte, viam identificadas como católicas pertencentes a uma monarquia his-
excluiu os afrodescendentes da nova cidadania da nação espanhola glo- pânica transcontinental começam a se ver como venezuelanos, chilenos
bal e deixou o comércio de escravos e a escravidão intactos.88 Apesar e mexicanos. De acordo com o historiador José María Portillo Valdés
(2006), esta revolução na identidade foi fortemente influenciada pelas
87 Não obstante, o sistema de eleição de deputados para as Cortes garantiram que as colônias Juntas que surgiram em toda a América após 1808.
muito mais populosas não dominassem o parlamento. Enquanto a Espanha tinha o direito
de eleger um representante a cada 50.000 membros de sua população, cada ayuntamiento nas
Certamente, o desejo de libertação social também influenciou o
colônias podia mandar apenas um representante para as Cortes. lugar em que os realistas se puseram. Um patriota, capitão José Antonio
88 Embora o Artigo 22 tenha criado uma abertura para africanos e afrodescendentes se tornarem
espanhóis: ele deu às Cortes o poder de conceder cidadania aos filhos homens e legítimos de
negros livres que “prestaram eminentes serviços à pátria, ou para aqueles que se distinguiam por seus talentos, diligência e conduta”, desde que fossem legitimamente nascidos de pais livres. (Cf.
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Páez, recrutou soldados nas terras baixas do leste da Venezuela, ofere- das Revoluções. Em 1824, o rei Fernando VII de Espanha concedeu
cendo-lhes “a liberdade pessoal, propriedades e saques a título de com- formalmente a Cuba o título de “sempre fiel”, em reconhecimento da
pensação para qualquer homem que o seguisse em batalha” (Adelman, lealdade duradoura da ilha à Coroa. A fidelidade da colônia para o rei
2007, 279-280). No Rio da Prata, em 1815, o líder revolucionário José estava profundamente ligada à revolução do açúcar e dos escravos expe-
Gervasio Artigas (1815) emitiu um Reglamento de Tierras que concedia rimentada tardiamente nos séculos XVIII e XIX. A população escrava
terras aos “negros libres, los zambos89 de esta clase, los indios y los criollos de Cuba aumentou de cerca de 39.000 em 1774 para 287.000 em 1827,
pobres” e prometia que até os “más infelices seran los más privilegiados.” acompanhando o rápido crescimento da indústria de açúcar da colô-
(Valdés, 2006, 282). Mas os patriotas não estavam sozinhos nesta tática nia. A ilha se tornou o maior produtor mundial de açúcar por 1820.
de oferecer incentivos para apoio de seus subalternos. A historiadora (Sartorius, 2013, 27; Ferrer, 2014, 5). Este desenvolvimento não foi uma
Marcela Echeverri mostra que, entre 1809 e 1819, o Governador do anomalia perversa da Era das Revoluções, mas sim um efeito direto de
Popoyán, no Vice-Reino de Nova Granada, negociou com os escravos, levantes do Atlântico. Ironicamente a Revolução Haitiana permitiu a
bem como com os índios, para garantir o apoio deles contra as forças rápida expansão da produção de açúcar e da escravidão em Cuba.
patriotas. Ofereceu liberdade aos escravos que concordassem em ir para A revolta de escravos em Santo Domingos paralisou a produção
a batalha contra os rebeldes e, depois que o rei Fernando reintrodu- de açúcar na colônia francesa, criando uma nova oportunidade para os
ziu o tributo indígena em 1814, negociou para reduzir as obrigações de plantadores cubanos de intervir e atender a demanda global por um pro-
tributo dos povos indígenas que se juntaram ou doaram armas para o duto tão lucrativo. Além disso, engenheiros e outros técnicos especialistas
exército monarquista. Para ambos, escravos e índios, neste caso especí- migraram para Cuba em ondas de refugiados brancos, levando a maqui-
fico, uma aliança com monarquistas locais e, por extensão, com a Coroa naria ociosa de usinas de açúcar de Santo Domingos (Ferrer, 2014, 102).
espanhola, foi uma resposta estratégica diante circunstâncias incertas. Na década de 1790, a Espanha temia que os escravos cubanos
(Echeverri, 2011; 2009). seguissem o exemplo dos “negros franceses” do Haiti e tentassem criar
O realismo no Peru foi um caso especial. Memórias da rebelião sua própria república negra. Oficiais da colônia aprovaram uma série de
Tupac Amaru ainda ardiam intensamente na memória dos peruanos e leis destinadas a impedir a “haitianização” de Cuba, isolando a ilha das
contribuíram para o endurecimento das divisões entre as populações in- rebeliões que sacudiram o mundo atlântico. A Coroa proibiu que “ne-
dígenas e não indígenas do vice-reino por muito tempo no século XIX. gros crioulos educados, comprados em colônias estrangeiras”, entrassem
O legado duradouro do grande levante andino pôs em xeque o desenvol- em Cuba, pois acreditava que tinham o potencial para plantar sementes
vimento de uma base ampla de política anticolonial, fazendo com que de rebelião em comunidades de escravos de Cuba. A ordem era que
a independência do Peru só fosse alcançada em 1824, quando exércitos apenas Bozales (escravos nascidos na África) poderiam entrar nas co-
estrangeiros derrotaram as forças monarquistas locais (Walker, 1999). lônias espanholas (Ferrer, 2014). Mas os cubanos desobedeceram tais
regras. Sedentos por lucros, as elites responsáveis pelas plantações na
ilha compraram escravos, em leilões em Havana, oriundos de portos de
todo o Caribe revolucionário. Como a historiadora Ada Ferrer (2014)
aponta: “as estruturas que mantiveram a escravidão e servidão [...] eram
Cuba: a ilha “sempre fiel” exatamente as mesmas que ajudaram a fazer circular o exemplo e o apelo
revolucionário de negros e escravos.”
O império espanhol não foi completamente destruído na Era Dado o constante movimento de pessoas entre Cuba e outras
partes do mundo atlântico em rebelião, não é de se surpreender que as
Sartorius, 2013, 29-31; Chust Calero, 1995, 199-201).
89 NT: no Brasil, essa mestiçagem entre índios e negros ficou mais conhecida como cafuzo ou caboré. ideias radicais tenham circulado e inspirado os escravos da colônia a se
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revoltarem. Em março de 1812, os escravos se sublevaram na plantação Ele perguntou: “Mas não são as pessoas dessas ilhas americanas? Não
de açúcar de Peñas-Altas, nos arredores de Havana, matando o enge- estão oprimidas? Será que não desejam sua própria felicidade?” (Bolívar,
nheiro, seus dois filhos e os superintendentes brancos. A revolta se espa- 1978). Bolívar estava cego para o quanto a escravidão e o espectro de re-
lhou para outras duas plantações antes dos rebeldes serem capturados. beliões de escravos eram capazes de diluir as aspirações das elites cuba-
O Estado não hesitou em usar a violência para prevenir a escalada do nas por autonomia. Aquelas elites julgaram que talvez uma aliança com
movimento. A polícia prendeu e interrogou centenas de pessoas sus- a Coroa fosse a melhor maneira de preserva o sistema de escravidão que
peitas de terem conexões com a rebelião. A investigação e julgamento as fizeram ricas.
dos acusados provou que o episódio de Peñas-Altas estava ligado a uma
série de rebeliões de escravos que haviam eclodido em torno de Porto
Príncipe, no início daquele ano, revelando a existência de uma conspi- A revolução monárquica no mundo Luso-Atlântico
ração, em toda a ilha, de escravos e libertos. José Antonio Aponte, um
carpinteiro moreno e livre que vivia em Havana, foi o líder da trama. A invasão de Portugal por Napoleão induziu uma resposta sem
A guarda encontrou um libro de pinturas feito por Aponte. Além de precedentes da monarquia portuguesa. Quando as tropas francesas mar-
mapas de guarnições militares de Havana, que foram a chave para o charam por toda a Espanha em direção a Lisboa, em novembro de 1807,
planejamento da rebelião, todos desenhados à mão, o livro de Aponte o Príncipe Regente de Portugal, Dom João VI, tomou a decisão radi-
continha esboços de soldados negros derrotando brancos e um desenho cal de abandonar a Europa e restabelecer sua corte no Brasil (Arruda,
de George Washington. Testemunhas confessaram que também tinham 2008). Em uma esquadra de quinze navios lotados, Dom João atraves-
visto retratos de líderes revolucionários haitianos, incluindo Toussaint L’ sou o Atlântico com sua família, altos funcionários do governo, a biblio-
Ouverture, na casa de Aponte, revelando que, rotineiramente, Aponte teca real, maquinários de imprensa e membros da nobreza portuguesa
discutia tais imagens com milicianos negros livres em reuniões em sua e do alto clero. Esses refugiados chegaram ao Brasil no início de 1808,
casa, dando-nos pistas de como histórias clandestinas de revoluções re- transformando o Rio de Janeiro na nova capital do império português,
cém-ocorridas podem ter inspirado o surgimento de um movimento que se estendia até Angola e Moçambique e, de lá, até Macau.
abolicionista e anticolonial em Cuba (Ferrer, 2014, 62-63; Childs, 2006). O Conde de Ega descreveu a vinda para o Brasil como “a maior
O governo colonial enviou forças para a repressão da conspi- de todas as revoluções do sistema político em geral” (Schultz, 2000, 7).
ração escrava de Cuba. O Estado executou publicamente vinte e quatro Esta “revolução” foi indubitavelmente bem-sucedida em salvar a monar-
rebeldes, incluindo Aponte. Todos sofreram a indignidade de serem de- quia no mundo luso, mas, ao menos inicialmente, também veio como
capitados e terem seus corpos mutilados exibidos em público. Outros um choque: nunca antes um monarca europeu tinha pisado na América,
78 rebeldes foram condenados a chicotadas públicas e 170 foram con- e muito menos tentara governar um império global a partir de uma
denados ao exílio em outras partes do Império Espanhol (Childs, 2006, colônia. Como a historiadora Kirsten Schultz aponta, a relocalização da
22; 76). A repressão brutal sobre a rebelião de Aponte pareceu ter con- corte “desafiou as antigas hierarquias políticas, culturais e econômicas
seguido desencorajar os escravos e negros livres a arriscar outro levante do império [...] e exigiu uma redefinição da legitimidade política dentro
potencialmente sem êxito. Apenas em 1844 os escravos de Cuba tenta- do mundo português.” (Ferrer, 2014, 36).
riam outra revolta em massa contra a escravidão e a dominação colonial A relocação da monarquia portuguesa implicou diversas mu-
(Reid-Vazquez, 2011). danças para aumentar sua legitimidade no rescaldo da sua fuga humi-
Cuba ainda estava se recuperando da rebelião de Aponte, quan- lhante da Península Ibérica (Schutz, 2000, 7). O espaço físico do Rio
do, em 1815, “o Libertador” Simón Bolívar expressou sua frustração de Janeiro foi refeito para refletir a grandeza da corte real. A Coroa
com a indisponibilidade dos cubanos em lutar por sua independência. patrocinou a construção de um novo teatro real e de calçadas, a instala-
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ção de iluminação pública, bem como de sistemas de aterros sanitários e rebeliões se desenvolvessem no futuro, a monarquia tornou crime o por-
esgoto, de modo que a cidade pudesse refletir o prestígio da monarquia. te de armas, tornando efetivo o desarmamento da população local (Fitz,
Esta transformação do espaço foi acompanhada por uma transformação 2008). A Coroa também destruiu os quilombos perto da capital para
de ideias sobre a Europa e América que legitimaram o deslocamento da sufocar as rebeliões negras (Cabral de Mello, 2004). Isto acabou por ser
monarquia para o hemisfério sul. Em panfletos políticos impressos no “uma considerável forma de modelar os limites do Estado, especialmen-
Rio, o continente europeu foi frequentemente retratado como “ímpio, te nas regiões mais afastadas.” (Bayly, 1989, 107).
decadente, corrupto”, enquanto a América era tratada como virtuosa. A Todos os estudantes brasileiros de história sabem que a escra-
Coroa também subsidiou a publicação de literatura pró-monarquia, e vidão aumentou incrivelmente no Brasil durante a Era das Revoluções.
subornou os autores de literatura antimonarquia para ficar em silêncio. Pelo menos 700 mil africanos foram vendidos como escravos no Rio de
Essa nova proximidade da família real alimentou nos brasi- Janeiro, de 1790 a 1830 (Paquette, 2013, 323-324). Nem Brasil, nem
leiros uma simpatia, ao menos localmente, pela monarquia. A Coroa Portugal testemunharam a emergência e a disseminação do movimento
garantiu o apoio da elite fluminense através da concessão de títulos reais abolicionista nesse período. Como em Cuba, os imensos lucros gerados
para as pessoas mais ricas do Rio (Malerba, 2000). Durante séculos as pela mão de obra escrava, quando se juntavam ao pavor da haitianização
populações coloniais comemoravam as coroações, casamentos, nasci- (alimentado pela presença de quilombos por todo o reino, como nos
mentos e mortes de seus reis e rainhas distantes. Mas, depois de 1808, lembra o historiador Marcus de Carvalho (2016), foram fortalecendo,
elas puderam ser testemunhas oculares desses eventos. Por exemplo, em no contexto, a aliança entre as elites brasileiras e a monarquia. Naquela
1818, grandes multidões de brasileiros se reuniram para assistir à co- época, as elites brasileiras pareciam mais aptas a criticar a escravidão
roação de Dom João como rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e pelo impacto considerado adverso sobre a composição racial do país do
Algarves, após a morte de sua mãe (Schultz, 2001). O novo rei manti- que pela profunda imoralidade daquele sistema de produção (Cabral de
nha audiências regulares, em que pessoas de diferentes classes sociais e Mello, 2004).
etnias, incluindo os escravos, tiveram a chance de pedir-lhe diretamente Mas, enquanto o apoio à monarquia ganhou força no Brasil, ele
proteção (Schultz, 2001, 63-69; 194). Este tipo de acesso a Dom João perdia ímpeto em Portugal, na medida em que a metrópole deslocada
forjava uma certa lealdade em seus vassalos brasileiros. irritava-se cada mais e mais com a ocupação britânica de suas cidades e a
No entanto, a supressão violenta de rebeliões que eram contra recusa da monarquia em voltar à Europa. A imprensa portuguesa lamen-
a autoridade da Coroa nos faz recordar do papel da força bruta de- tava o novo “estatuto humilhante, prejudiciale inábil” daquela outrora
sempenhado na preservação da monarquia Luso-Atlântica. A revolta de orgulhosa capital, agora legada ao estado “de uma colônia.” (Paquette,
Pernambuco eclodiu em março de 1817, quando um grupo de fazendei- 2013, 77-80). À época, parecia que Portugal se transformaria em uma
ros e comerciantes ricos, nascidos no Brasil, junto de oficiais do exército, república, pois, em agosto de 1820, as elites do Porto formaram uma
prenderam o governador da província e declararam Pernambuco uma Junta e convocaram as Cortes para adotar uma nova constituição. O rei
república autônoma. Os líderes desta rebelião eram ávidos leitores de D. João regressou a Portugal para resolver a crise, deixando seu filho,
constituições estaduais e federais dos EUA, como Tiradentes tinha sido, D. Pedro, para governar o Brasil como regente. Em setembro de 1821,
e aspiravam criar um Estado independente nos moldes dos Estados a corte portuguesa votou para abolir a condição de Reino do Brasil, de
Unidos da América (Schultz, 2001). A República de Pernambuco so- modo que o território sul-americano seria, mais uma vez, transformado
breviveu por dois meses antes da Coroa recuperar o controle da região. em uma colônia governada a partir de Lisboa. Mas Pedro desafiou as
A marinha real do Rio posicionou o bloqueio do porto de Recife, fa- Cortes e declarou o Brasil independente. Tão dramático como o grito
zendo com que os rebeldes ficassem privados de suprimentos, antes de do novo imperador de “Independência ou Morte”, às margens do riacho
mobilizar soldados leais para retomar a província. Para evitar que outras do Ipiranga, possa parecer ter sido, uma independência declarada por
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um governante pertencente a uma família real europeia distava um lon- As contradições gritantes da Era das Revoluções ficam mais
go caminho da decapitação de Luís XVI ou da independência orques- claras quando aumentamos o zoom do Atlântico para uma área global.
trada por ex-escravos no Haiti. No final do século XVIII e início do século XIX, observados simulta-
Portugal entrou em guerra civil após a morte de D. João VI, neamente, temos, por um lado, a Revolução Haitiana que transforma a
em 1826. O herdeiro natural ao trono, aparentemente, seria Pedro. maior sociedade escravocrata do Caribe em um estado independente
Escolhendo permanecer no Brasil, o imperador nomeou como rainha governado por ex-escravos e seus descendentes, e, de outro, a expansão
sua filha, Maria, à época com meros 7 anos de idade, e seu irmão Miguel, sem precedentes da escravidão e o tráfico de escravos em Cuba, Brasil
após muita negociação, como regente. Ambos estariam sob uma nova e em outros locais. Em todo o continente americano há uma onda de
constituição, de matriz mais liberal. O país acabou dividido entre os revoltas anticoloniais destruindo impérios seculares, empurrando as po-
partidários da filha, D. Maria, e os de seu tio, D. Miguel, que lançou tências imperiais a expandir seus territórios agressivamente para locais
um golpe de Estado para apoderar-se trono. O historiador Gabriel ainda não conquistados ao redor do globo. Este capítulo demonstrou
Paquette (2013, 235-315) descreveu o conflito como “a última revolução que esses processos foram dissonantes, emaranhados e influenciaram-se
Atlântica”. Nem todas as revoluções da época eram contra a monarquia. mutuamente. É impossível compreender os processos políticos que cul-
O movimento para apoiar Miguel (“Miguelismo”) era composto por minaram com maior liberdade para uma grande parte da humanidade
ideias heterogêneas e agendas vagamente unidas pela forte oposição ao sem confrontar os desenvolvimentos profundamente interligados que
espírito igualitário daquela época. O “Miguelismo” era xenófobo, par- levaram à perda de liberdade e autonomia para outra grande parte da
ticularmente “anglofóbico”, ultracatólico e procurava impor a volta da população mundial. (Bayly, 2004, 88).
monarquia absoluta. A guerra terminou quando o Imperador do Brasil,
D. Pedro, abdicou do trono brasileiro em nome de seu filho D. Pedro II
e voltou para Portugal como rei. Assim, a Era das Revoluções conclui-se Roteiro bibliográfico
com Braganças no trono do Brasil e de Portugal.
Significativamente, Paquette demonstra que as bases do cresci- A Era das Revoluções
mento futuro do império português foram estabelecidas durante aquela
época. Em um momento em que a maioria das elites não poderia conce- O conceito de “Era das Revoluções” foi criado por R. R. Palmer
ber Portugal sem colônias, os intelectuais começaram a explorar a pos- em The Age of the Democratic Revolution: A Political History of Europe and
sibilidade de que a África poderia se tornar “uma nova América” para America, 1760-1800 ed. David Armitage, (Princeton, 2014). Uma inter-
Portugal. Em seu ensaio de 1834, Sebastião Xavier Botelho escreveu: “na pretação marxista muito importante desse conceito foi feita por Eric J.
África [...] podemos recuperar muito do que perdemos com a separação Hobsbawm, em The Age of Revolution: 1789-1848 (London, 1962). Tais
do Brasil de Portugal.” (Paquette, 2013, 101). A Era das Revoluções estudos eram notavelmente eurocêntricos e anglocêntricos, pondo grande
criou as condições para a África e outros territórios não conquistados foco na Grã-Bretanha, suas colônias norte-americanas e na França. As
do mundo fossem divididos entre impérios concorrentes ao longo do dimensões atlânticas mais abrangentes da Era das Revoluções foram es-
restante do século XIX (Osterhammel, 2014, 392-468). tudadas em Marcus Rediker e Peter Linebaugh: The Many-Headed Hydra:
Sailors, Slaves, Commoners, and the Hidden History of the Revolutionary
Atlantic (Boston, 2000); e em Wim Klooster: Revolutions in the Atlantic
World: A Comparative History (New York, 2009). As dimensões globais
Conclusão dessa era foram estudadas por C. A Bayly, em The Birth of the Modern
World, 1780-1914: Global Connections and Comparisons (Malden, MA,
306 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 307
2004); e por David Armitage e Sanjay Subrahmanyam: eds., The Age of Leituras indispensáveis sobre a rebelião de Tupac Amaru in-
Revolutions in Global Context, c. 1760-1840 (New York, 2010). cluem Alberto Flores Galindo: In Search of an Inca: Identity and Utopia
in the Andes, (New York, 2010); e Charles F. Walker: The Tupac Amaru
Rebellion (Cambridge, Massachussetts, 2014). Sobre a resposta da nobre-
A Revolução Americana za andina à rebelião, ver David Cahill, “Nobleza, Identidad y Rebelión:
Los Incas Nobles Del Cuzco Frente a Túpac Amaru (1778-1782).”
Para uma visão concisa da Revolução Americana, ver o rel- Historica XXVII, no. 1 (2003): 9-49. O impacto de longo prazo sobre
evante capítulo no livro de Wim Klooster: Revolutions in the Atlantic a sociedade peruana é estudado por Charles F. Walker, em Smoldering
World: A Comparative History (New York, 2009); Para uma interpretação Ashes: Cuzco and the Creation of Republican Peru: 1780-1840 (Durham,
da Revolução vista de baixo, Chris Magra: “Anti-Impressment Riots 1999). Uma excelente coletânea de fontes primárias pode ser encontra-
and the Origins of the Age of Revolution,” International Review of Social da em Ward Stavig e Ella Schmidt, eds. The Tupac Amaru Rebellion and
History 58 (2013): 131-151. Estudos sobre o realismo incluem Maya Catarista Rebellions: An Anthology of Sources (Indianapolis, 2008).
Jasanoff: Liberty’s Exiles: American Loyalists in the Revolutionary World
(New York: 2011); David J. Fowler: “Loyalty Is Now Bleeding in New
Jersey: Motivations and Mentalities of the Disaffected,” em The Other As Revoluções Francesa e Haitiana
Loyalists: Ordinary People, Royalism, and the Revolution in the Middle
Colonies, 1763-1787 eds. Joseph S. Tiedemann, Eugene R. Fingerhut, Para panoramas sobre a Revolução Francesa, consultar o clássico de
and Robert W. Venables (Albany: 2009); e também os capítulos iniciais George Rudé: The Crowd in the French Revolution (1967), e William Doyle:
de Jane G. Landers: Atlantic Creoles in the Age of Revolutions (Cambridge, The Oxford History of the French Revolution (Oxford, 2002). Uma importan-
Mass: 2010). Como fonte primária publicada, ver David Armitage, The te coletânea de fontes primárias é encontrada em Tania Machado Morin:
Declaration of Independence: A Global History (Massachusetts, 2007), que Virtuosas e Perigosas: as mulheres na Revolução Francesa (São Paulo, 2014).
mostra a Declaração como um gênero e traça seu impacto transnacional. Estudos conectando a Revoluçao Francesa à Haitiana e outras rebeliões
A ideia controversa de que a Revolução Americana assentou contemporâneas numa perspectivas mais abrangente de um mundo atlânti-
as fundações do império americano é apresentada por Eliga H. Gould: co incluem: David Patrick Geggus e David Barry Gaspar eds., A Turbulent
Among the Powers of the Earth: The American Revolution and the Making of Time: The French Revolution and the Greater Caribbean (Bloomington,
a New World Empire (Cambride, Mass: 2012). Estudos sobre a expansão 1997) e Robin Blackburn, “Haiti, Slavery, and the Age of the Democratic
do imperialismo britânico depois da perda das 13 colônias incluem: Revolution,” The William and Mary Quarterly 63, no. 4 (2006): 643–73.
P. J. Marshall’s: The Making and Unmaking of Empires: Britain, India,
and America, C. 1750-1783 (Oxford: Oxford University Press, 2005);
Emma Christopher: A Merciless Place: The Fate of Britain’s Convicts after A dissolução do império da Espanha na América
the American Revolution (New York: 2011); Clare Anderson: Subaltern
Lives: Biographies of Colonialism in the Indian Ocean World, 1790-1920 Muitos trabalhos mais recentes consideram a lealdade do im-
(Cambridge: 2012). pério espanhol a Fernando VII no bojo da expansão napoleônica sobre
a Espanha: cf., por exemplo, José María Portillo Valdés: Crisis Atlántica:
Autonomía e Independencia en La Crisis de La Monarquía Hispana (Madrid,
2006); Scott Eastman: Preaching Spanish Nationalism across the Spanish
Rebelião de Tupac Amaru Atlantic, 1759-1823. (Baton Rouge, 2012); e Jaime E. Rodríguez: We are
308 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 309
now the true Spaniards: Sovereignty, Revolution, Independence, and the emer- é notavelmente ausente de tais discussões. Para a rebelião de Goa em
gence of the Federal Republic of Mexico, 1808-1824 (Stanford, California, 1787, cf. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara: A Conjuração de 1787 em
2012). Para uma visão sobre o funcionamento das Cortes de Cádiz, ver Goa, e Varias Cousas Desse Tempo (Nova Goa, 1875). Para a Inconfidência
Marissa Bazán Díaz: La Participación Política de Los Índigenas Durante Mineira, Júnia Ferreira Furtado, “Seditious Books and Libertinism in
Las Cortes de Cádiz: Lima en El Ocaso Del Régímen Español (1808-1814) the Captaincy of Minas Gerais (18th Century Brazil): The Library of
(Lima, 2013). Um importante estudo de caso das rebeliões que eclodiram Naturalist José Vieira Couto,” Revista Complutense de Historia de América
na América durante as guerras napoleônicas foi feito por Eric Van Young: 40 (2014): 115-16; e Karine Salgado, “O Direito no Brasil Colônia à
The Other Rebellion: Popular Violence, Ideology, and the Mexican Struggle for luz da Inconfidência Mineira,” Revista Brasileira de Estudos Políticos 98
Independence, 1810-18 (Stanford, Califorina, 2001). Para as guerras (civis) (2008): 479-93. Importantes estudos sobre a transferência da Corte ao
subsequentes em torno da ideia de independência, ver Jeremy Adelman: Brasil incluem: Jurandir Malerba: A Corte no exílio: Civilização e Poder
Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic (Princeton and Oxford, no Brasil às vésperas da independência, 1808 a 1821 (São Paulo, 2000); e
2007), 279-80; Marcela Echeverri, “Los Derechos de Indios y Esclavos Kirsten Schultz: Tropical Versailles: Empire, Monarchy, and the Portuguese
Realistas y La Transformación Política en Popayán, Nueva Granada Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821 (New York, 2001). Para a revol-
(1808-1820)” Revista de Indias LXIX, no. 246 (2009): 45-72. ta em Pernambuco, consultar Evaldo Cabral de Mello: O nome e o san-
gue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial de 1817 a 1824 (São
Paulo, 2004); Marcus J. M. Carvalho, “O outro lado da Independência:
Cuba: a ilha “sempre fiel” quilombolas, negros e pardos em Pernambuco (Brazil), 1817–23,” Luso-
Brazilian Review 43, no. 1 (2006), 1-30. As histórias interconectadas
As conecções entre a revolução haitiana e a rápida expansão da de Portugal e Brasil na Era das Revoluções são analisadas por Gabriel
produção açucareira e da escravidão são exploradas por Ada Ferrer: Freedom’s Paquette, em Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions: The
Mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution (New York Cambridge Luso-Brazilian World, C. 1770-1850 (Cambridge, 2013).
University Press, 2014). Para analisar a lealdade cubana à Espanha, suge-
rimos os capítulos iniciais de David Sartorius: Ever Faithful: Race, Loyalty,
and the Ends of Empire in Spanish Cuba (Durham, 2013). Sobre o uso da Extratos de documentos
violência por parte do Estado, cf. Matt D. Childs, The 1812 Aponte Rebellion
in Cuba and the Struggle against Atlantic Slavery (Chapel Hill, 2006) e Trechos da Carta do Governador Geral das Ilhas Filipinas Mariano
Michele Reid-Vazquez: The Year of the Lash: Free People of Color in Cuba and Fernández de Folgueras ao Senhor Presidente e vocais da Suprema Junta de
the Nineteenth-Century Atlantic World (Athens, Georgia, 2011). España e Indias que governa a mando de Sua Magestade Fernando VII (
Manila, 25 de Abril de 1809)
Arquivo Nacional das Filipinas, Cartas 2195
A revolução monárquica no mundo Luso-Atlântico Os trechos a seguir são da carta do Governador Geral das Filipinas
Mariano Fernández de Folgueras enviada para a Junta Central da Espanha em
Para um panorama da historiografia sobre a independência do abril de 1809. Nesta comunicação, o Governador confirma que recebeu a notícia
Brasil, cf. Jurandi Malerba: “As Independências do Brasil: ponderações da Coroação de Fernando VII e, em seguida, da invasão francesa da Espanha, e
teóricas em perspectiva historiográfica,” História, V.24, N.1 (2005), 99- descreve as respostas patrióticas e fortemente leais de Manila a esses eventos.
126, e os ensaios de István Jancsó, ed., Independência: história e histo- De muitas maneiras, a reação de Manila para as crises na Europa
riografia (São Paulo, 2005). A Era das Revoluções no Estado da Índia refletiu a de outras capitais coloniais do império global da Espanha: afirman-
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do abertamente a fidelidade política aos seus monarcas, enquanto estavam gios á la mas pura y sincera fidelidad á nuesro armado y deseado Rey, y
ausentes, por meio da criação de uma junta local. A lealdade de Manila é Señor Don Fernando 7o: á complacernos en la cierta y lisongera idea de
ainda mais siginificativa quando consideramos a grande distância entre a que á estas horas de halla tranquilo en el seno de su armada España por
colônia (a única capitania espanhola na Ásia) e a metrópole. las sabias disposissiones de vuestra alteza por la energia, y heroic valor
Esta carta lança dúvidas sobre as alegações de que o Império de la mayor de las Naciones: á mirar con una Santa embidia la Gloria
Espanhol estava enfraquecido em 1809 e que sua dissolução era inevitável. É de que se cubren los españoles que pisar el terreno de las españas de que
claro que os historiadores devem considerar a possibilidade do Governador ter nos hallamos privados por la inmensa distancia, y mares que nos sepa-
exagerado o amor da população colonial pelo seu Rei. Mas o fato de Manila ran: y ambicionar con la sinceridad de nuestros corazones los momentos
ter levantado quase 200 mil reales em doações para a guerra contra Napoleão, en que acredito con nuestra sangre que somos dignos vasallos del mayor
de pessoas físicas e jurídicas, incluindo de milícias, confrarias e de ordens re- y mas armado de los monarcas.
ligiosas, enviados para a Junta Central com esta carta, sugere que a lealdade An Account of the Treason and Sedition, Committed by
ao monarca distante era importante naquele momento. the London Corresponding Society, the Society for Constitutional
Information, the Other Societies: ... And the Whole of the Two Reports,
El resultado de esta Junta (y en el momento de terminarse) Presented to the Hon. House of Commons, by the Secret Committee.
se anunció al Publico por repetidas salvas de toda la Artilleria de la London: Printed for J. Downes, No.240, Temple-Bar, Strand, 1794.
Plaza, y por la harmonia de las Musicas miltares de los Cuerpos de la
Guarnicion á que correspondio el Pueblo con un enthusiasm tál que
sin embargo de esta ostension publica equivalente á la mas formal Referências bibliográficas
proclama por la sincera miró con impacienca las horas que se tarda-
ban en verificar el acto de ceremonia. Semejantes sentimenos, que no ADELMAN, Jeremy. An Age of Imperial Revolutions. The American Historical Review 113, no.
pude ver sin el goze y effusion de Corazon, que es propio de un buen 2 (2008): 319-40.
español, me hizo precipitar los apressos del acto de Proclamacion, y el ———. Sovereignty and Revolution in the Iberian Atlantic. Princeton and Oxford: Princeton
Aytuntamiento de la N[uestra] C[iudad] correspondió con su acos- University Press, 2007.

tumbrada eficacia y lealtad á terminus que superando las demoras que ANDERSON, Clare. Subaltern Lives: Biographies of Colonialism in the Indian Ocean World,
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necesarriamente traen consigo los preparativos publicos, se verificó
ANDERSON, Clare; FRYKMAN, Niklas; VOSS, Lex Heerma van; and REDIKER, Marcus.
con la debida solemnidad y Pompa el acto publico entre las aclama-
Mutiny and Maritime Radicalism in the Age of Revolution: An Introduction. International
ciones y vivas mas afectuoso dirigidos á nuestro amado y deseado Rey Review of Social History Special Issue 21 (2014): 1-14.
y Señor Don Fernando 7o, haviendo durado las iluminacciones, salvas ANDRADE ARRUDA, José Jobson de. Uma Colônia Entre Dois Impérios: A Abertura Dos
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cutivos. En fin, Serenismo Señor, nuestros corazones han sido los que ARAÚJO, Ana Cristina. Um império, um reino e uma monarquia na América: As vésperas da
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hán reconosido los sabios y patrioticos trabajos de vuestra alteza uni-
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dos con los esfuerzos, valor, y acendrada lealtad de la grande Nacion
2007.
española como los salvadores de la Patria...
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