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NA PRIMEIRA
MODERNIDADE
(1492 - 1750) Vol.2
AS AMÉRICAS
NA PRIMEIRA
MODERNIDADE
(1492 - 1750) Vol.2
ORGANIZADORES
JORGE CAÑIZARES-ESGUERRA
LUIZ ESTEVAM DE O. FERNANDES
MARIA CRISTINA BOHN MARTINS
AS AMÉRICAS NA PRIMEIRA MODERNIDADE
(1492 - 1750) Vol.2 Apresentação
Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes
Maria Cristina Bohn Martins
Organizadores
1ª Edição - Copyright© 2018 Editora Prismas
Todos os Direitos Reservados.
Revisão ortográfica e gramatical de responsabilidade do autor.
A coleção As Américas na Primeira Modernidade (1492-1750)
Editor Chefe: Vanderlei Cruz - editorchefe@editoraprismas.com.br surgiu como um projeto delineado por um grupo de colegas nucleados
Diagramação: Danielle Paula
Capa e Projeto Gráfico: Danielle Paula em torno do Grupo de Pesquisas (CNPq) “História da América: fontes e
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) historiografia”. Era nosso desejo proporcionar a professores e alunos inte-
Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz ressados nesta área um conjunto de estudos que refletisse sobre o avanço
Bibliotecária CRB 9-626
do conhecimento relativo aos estudos históricos latino-americanos nos
últimos anos. Desde então, ao grupo inicial se reuniu uma série de outros
As Américas na primeira modernidade (1492-1750) / colegas que, a partir de suas diferentes especialidades, contribuíram para
A512 organização de Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina
Bohn Martins - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2018. que nosso projeto chegasse ao ponto em que hoje se encontra.
v.2: il.; 23cm
ISBN: 978-85-537-0033-2
Podemos assim apresentar ao público o segundo dos três vo-
lumes que vão compor a Coleção. Como no volume anterior, publicado
1. América – História, 1492-1750. 2. América – Condições econômicas. 3. América – em 20171, os capítulos desta obra apresentam, sintetizam e discutem o
Condições sociais. 4. Historiografia. I. Cañizares-Esguerra, Jorge (org.). II. Fernandes, Luiz
Estevam de O. (org.). III. Martins, Maria Cristina Bohn (org.).
que há de mais atual na pesquisa e no conhecimento sobre a história
americana em diversos temas, envolvendo, por exemplo, as formas pelas
CDD 980.012 (22.ed) quais organizaram suas vidas os descendentes dos conquistadores; os
CDU 980
fluxos que se processaram entre o Novo e o Velho Mundo de pessoas,
objetos e riquezas e ideias; a escravidão e os movimentos de contestação
que conectaram as Américas com a cena global na “era das revoluções”.
Além disto, cada capítulo é acompanhado por um balanço historiográ-
fico do tema tratado e de dois documentos que podem ser matrizes de
novas interrogações para os leitores.
Mais uma vez, as respostas às questões geradas em torno dos
temas abordados que pudemos aqui reunir foram elaboradas por um
conjunto de renomados especialistas do Brasil e do exterior, a quem
queremos agradecer empenhadamente. De sua competência resulta a
evidente qualidade dos estudos que compõem este segundo volume de
Introdução
2 Tratava-se da concessão feita pela Coroa em favor dos colonos do direito de cobrança de impostos
e da exploração da mão de obra de um determinado número de indígenas, cujos cuidados espirituais
e materiais passavam a ser de responsabilidade dos encomenderos. Os repartimientos, que substituíram
as encomiendas em algumas regiões do continente, funcionavam de outro modo: era um sistema,
administrado por funcionários reais, de recrutamento e distribuição rotativa dos índios pelas áreas
produtivas de modo que eles trabalhassem, contra pagamento, por jornadas delimitadas e depois
regressassem a seus povoados de origem, até que novo recrutamento os enviasse a outras regiões.
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A etapa continental da colonização não foi mais pacífica. Além antinomia, que se tornaria mais frequente do que gostariam os letrados de
da persistência das encomiendas, as campanhas militares para conquistar Madri, entre o progressivo desejo de controle por parte da Monarquia e
as principais cidades indígenas resultaram em conflitos e mortes. Antes as aspirações de famílias e grupos locais. Nesse caso específico, o conflito
de derrotar os mexicas em México-Tenochtitlan, Hernán Cortés teve de decorria da política espanhola adotada após as Leis Novas de 1542, que
sobrepujar a oposição de Diego Velásquez, governador de Cuba, com abolia a perpetuidade do regime de encomiendas e criava restrições aos
quem rivalizou durante as expedições à costa mexicana, além de superar repartimientos, criando impasses à exploração da mão de obra indígena
as mortes de espanhóis e grupos indígenas aliados na fuga durante os e às pretensões senhoriais dos encomenderos. Quando se observa que, em
enfrentamentos da “Noite Triste”. Pedro de Valdivia, que havia liderado 1545, cerca de quarenta por cento (577 de uma população de 1385) dos
várias frentes da conquista espanhola na região do atual Chile, termi- colonos espanhóis no México possuía encomiendas (Zavala, 1935; Frutos
nou seus dias emboscado na batalha de Tucapel, em 1553, durante a & Zarandieta, 2001, 306), compreendem-se o impacto daquela políti-
guerra araucana. Nos Andes, o desfecho das campanhas de Francisco ca e as razões que permitiram a Martín Cortés e aos irmãos Alonso e
Pizarro foi sucedido por quatro décadas de agitação civil, ora em razão Gil González Ávila plasmarem uma rebelião que, no limite, pretendia
da resistência inca em Vilcabamba, ora como efeito das pretensões dos suspender o poder real na Nova Espanha em favor das grandes famílias
conquistadores e de seus descendentes, que reivindicavam mais direitos locais. O desfecho do motim, contudo, não alentava os grupos locais. Sem
do que a Coroa espanhola estava disposta a ceder. granjear o apoio de todos os colonos e diante da rápida reação da Coroa,
Os filhos dos conquistadores, transcorrida uma geração, convi- o movimento foi sufocado pelas autoridades reais e seus líderes, presos ou
veram em sociedades igualmente marcadas por dissensões e negociações decapitados em praça pública. Martín Cortés, cuja participação foi dúbia
constantes, porém mais heterogêneas. Apesar de ter permanecido, du- em alguns momentos, teve o pescoço preservado, mas foi obrigado a jurar
rante o período colonial, no vocabulário e no horizonte de autoridades obediência e retornar à Espanha.
civis e religiosas, o projeto de constituir duas repúblicas separadas e har- A conjura mexicana não foi o único movimento desse tipo.
mônicas – uma de “espanhóis”, outra de “índios” – foi constantemente Outros tumultos ocorridos na América durante os séculos XVI e XVII
desafiado pela presença de criollos, mestiços, africanos, mouros, judeus, mantiveram em alerta os conselheiros, ministros e monarcas da Casa de
entre outros. Com frequência, governadores e vice-reis denunciavam em Áustria. As mesmas Leis Novas que insuflaram os ânimos no México
seus relatos os vícios a que se entregavam os espanhóis vagabundos “des- na década de 1560 haviam antes servido de estopim para as ações de
ta terra”, enfatizando também os perigos de franquear cavalos e armas a Gonzalo Pizarro e um grupo de encomenderos, em 1544, contra o pri-
índios, mestiços e negros. O medo de rebeliões e motins não se dissipou meiro vice-rei do Peru, Blasco Núñez de Vela, que acabou preso e deca-
mesmo durante o século XVII, com os altos funcionários reais manten- pitado durante os conflitos, deixando inconclusa sua missão de aplicar
do-se atentos a possíveis distúrbios. Se institucionalmente a conquista aquela legislação. Ao final, em 1548, a Coroa retomou o controle da
espanhola parecia se assentar em meados do século XVI, sobretudo com situação e Pizarro não teve melhor sorte nem tampouco conseguiu pre-
a criação dos vice-reinos da Nova Espanha e do Peru a partir de 1535, servar sua cabeça. Na região da Audiência de Quito, em 1592, outra
e a fundação de sedes episcopais em importantes cidades, as sociedades determinação castelhana, a fixação do imposto das alcabalas, elevou o
coloniais permaneciam inquietas. nível de tensão nos Andes e serviu de gatilho para nova rebelião. Para
A rebelião liderada por Martín Cortés, herdeiro legítimo do con- além da insatisfação com a imposição do tributo, o motim expressava a
quistador do México e II Marquês do Vale de Oaxaca, em 1565 na Nova desarmonia existente entre os magistrados da Audiência, representantes
Espanha expressa bem uma nota do desconcerto social que marcava os do poder real, e as elites quitenhas aninhadas no Cabildo, descontentes
vice-reinos espanhóis naquele momento e desafiava o ordenamento jurí- com a pressão fiscal não pactuada e também com o desprestígio frente
dico e político proposto pela Coroa. No cerne desse motim notava-se uma às autoridades espanholas. Nas serras de Quito ainda se ouviam os ecos
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das Leis Novas, dos discursos de Las Casas em Valladolid e das disputas se relega o tempo a segundo plano, Quito se transforma em Equador;
em torno das encomiendas e repartimientos. Assunção, em Paraguai; Oruro, em Bolívia; o local, em nacional. Política,
Esses exemplos, que poderiam ser acrescidos de outros tan- produção histórica e memória aparecem afinadas pelo mesmo diapasão,
tos extraídos do século XVII e do período bourbônico, evidenciam um desafiando os historiadores a vencer o sentido teleológico dado.
elemento central das sociedades coloniais: as tensões e contradições de- Se é certo que a projeção do manto nacional sobre o passado
correntes dos interesses defendidos pelos diferentes grupos sociais, que colonial não cobriu apenas os grupos criollos, uma vez que indígenas e
exigiam da Monarquia a perene habilidade de concertar conveniências mestiços também foram importantes – com intensidades e lógicas dife-
e reivindicações. Especificamente, os casos parecem sugerir a contrapo- rentes a depender da região – no processo de formação dos imaginários
sição mais aguda entre as elites criollas locais, ligadas à terra e dispostas nacionais, as teorias explicativas das independências direcionaram o foco
a se estabelecerem frente aos demais agentes, e a Monarquia espanho- aos primeiros, principalmente por conta do acirramento das tensões que
la, ciosa do ordenamento de seus vice-reinos, que se materializava na os envolveram no século XVIII. Uma linha contínua parecia se estender,
América por meio de instituições civis e religiosas, cujos altos escalões retrospectivamente, entre o início do século XIX e meados do século
eram ocupados majoritariamente por peninsulares, em geral com pou- XVI, atando todos, dos “insurgentes” aos encomenderos, das guerras de
cos vínculos – combatidos pela Coroa – nos locais em que prestavam independência às insatisfações com as Leis Novas, como se os rebelados
seus serviços ao rei. Se não foi a única fonte de tensões, tal polariza- quitenhos de 1592 tivessem iniciado um processo que desembocaria nas
ção ocupou a imaginação de muitos historiadores contemporâneos, que independências mais de duzentos anos depois.
buscaram as mais diversas chaves analíticas a fim de apreender os funda- Há algumas décadas, o interesse crescente pelos papéis desem-
mentos das sociedades coloniais americanas: luta de classes, organização penhados por grupos criollos em diferentes circunstâncias e contextos
estamental, estratégias patrimoniais, sociedades corporativas, casuísmo coloniais tem permitido questionar os limites desta interpretação de
jurídico, probabilismo filosófico etc. corte nacionalista. Noções como a de “patriotismo criollo” proposta por
Entre tais leituras, uma se destacou em razão de sua fortuna David Brading (Brading, 1991), tão atraente quanto sofisticada, pela
historiográfica e política. Trata-se da interpretação de cunho nacionalis- nem sempre compreendida distinção entre pátria e nação, possibilitaram
ta que com frequência identificou no universo social das colônias ame- novas incursões nas sociabilidades criollas a fim de compreender as ra-
ricanas a prefiguração das cores e formas das bandeiras hasteadas após zões que presidiam as atitudes daqueles homens e mulheres em relação
as independências. Assim, em muitos casos, as tensões políticas e sociais aos peninsulares (denominados, a depender da região, como gachupines,
que antecederam (e às vezes persistiram após) a criação dos estados-na- chapetones ou godos), indígenas, mestiços, africanos e afro-americanos.
ção hispano-americanos no século XIX foram projetadas no passado Como resultado, compreendeu-se melhor que as generaliza-
colonial a fim de buscar as raízes destes países. Não é difícil imagi- ções, como sói acontecer quando não temperadas pelo exame de ca-
nar por que, nessa chave de leitura, quase sempre foram privilegiadas sos específicos, são insuficientes à análise histórica, a começar pela
as contradições entre os grupos criollos – enfatize-se: aqueles nascidos que designava por criollos os descendentes de espanhóis nascidos nas
e/ou vinculados às terras do Novo Mundo – e a Monarquia espanhola, Américas. Em primeiro lugar, deve-se observar que a definição dos “es-
tomada por opressora, atribuindo-se àqueles certas aspirações naciona- panhóis” como os súditos da Coroa hispânica que desembarcaram no
listas frequentemente sufocadas por Madri. A abordagem histórica de Novo Mundo homogeneíza habitantes de diferentes regiões e reinos:
um “passado nacional” é sedutora, porque cria laços de identidade e har- castelhanos, andaluzes, estremadurenhos, bascos etc. Ao menos desde
moniza as diferenças e, por isso mesmo, politicamente necessária, sobre- o célebre testamento da rainha Isabel, que associou as terras do Novo
tudo quando se observam os jovens estados constituídos nas primeiras Mundo ao reino de Castela, houve uma série de tentativas de se organi-
décadas do século XIX. Por uma operação quase metonímica, na qual zar quem poderia se estabelecer nas Índias. Ainda que nunca cumpridas
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totalmente, havia proibições ao embarque de judeus, hereges, mouriscos, Neste capítulo, o leitor não encontrará uma história dos criollos
entre outros, ao mesmo tempo em que, em determinados períodos, fla- americanos, mas abordagens sobre seus lugares e formas de sociabilida-
mengos, genoveses, portugueses e alemães receberam autorização real. de em diferentes períodos e regiões da porção hispânica do continente.
As dificuldades de se identificar como espanhóis todos os Inicialmente, serão apresentadas as diferentes possibilidades de compre-
súditos europeus que habitavam as possessões hispânicas na América ensão dos grupos criollos quando estas são postas em relação às formas
ficam evidentes quando se nota a forte presença de portugueses políticas atribuídas à Coroa espanhola. O argumento a ser desenvolvido
em Lima durante a União Ibérica ou a atuação de “alemães” – ter- é relativamente simples: a análise dos lugares e papéis sociais atribuídos
aos criollos está associada ao entendimento que se tem do sistema político
mo igualmente genérico e anacrônico – associados aos banqueiros
espanhol e das interações mantidas com suas possessões americanas. Caso
Welser na região de Nova Granada na primeira metade do século
se assuma, hipoteticamente, que a Espanha se constituiu como um Estado
XVI, onde, além de organizarem expedições em busca do Eldorado, absolutista, as possibilidades de análise dos setores criollos abrem-se em
fundaram cidades e estabeleceram o comércio de escravos indígenas. uma direção. Já a partir da concepção de uma “Monarquia corporativa”,
Outro exemplo são as disputas ocorridas em Potosí nas primeiras outras sendas poderão ser percorridas. Na segunda parte, são apresentadas
décadas do século XVII. Neste caso, para além de uma divisão entre algumas das formas de sociabilidade e de entretenimentos urbanos parti-
criollos e espanhóis, houve um embate entre bascos3 – que controla- lhados nos círculos criollos a fim de evidenciar sua variedade e sentidos. Na
vam cerca de dois terços das minas da região – contra os “vicunhas”, última parte, além das considerações finais, estão disponíveis uma seção
denominação pejorativa reservada a outros peninsulares, em especial, com documentos e um breve roteiro historiográfico.
andaluzes e castelhanos. Durante anos, as disputas pelo controle so-
bre as terras, cargos públicos e a cobrança de impostos por parte das
autoridades potosinas geraram ataques a funcionários e propriedades Os criollos ante a Coroa Hispânica
reais, além de acusações mútuas, agressões e assassinatos, que provo-
caram uma intervenção direta da Coroa na região, substituindo al- Entre patriotas e degenerados
guns de seus principais oficiais na tentativa de concertar os interesses
dos diferentes grupos de peninsulares e seus descendentes. Para além dos questionamentos expostos na introdução sobre
Problematização semelhante vem sendo apontada em relação ao quem seriam os criollos, deve-se examinar, ainda que brevemente, a histo-
conceito de criollo. Para alguns pesquisadores, a definição que se pauta ape- ricidade desse conceito. Utilizada inicialmente para denominar os escra-
nas no local de nascimento e na ascendência dos pais seria restrita demais. vos negros nascidos fora da África (Elliott, 2006, 352-367), essa palavra,
Seguindo estes critérios, não haveria espaço, por exemplo, para descenden- a partir do final do século XVI, passou a ser empregada na Espanha para
tes de espanhóis com indígenas. Na tentativa de ampliar a definição, Horst se referir aos seus descendentes que habitavam o Novo Mundo. No en-
Pietschmann (1986; cf. Guerra & Annino, 2003, 47-84) propõe uma con- tanto, sua utilização na América não foi uniforme. Segundo Juan Carlos
cepção dos criollos como os grupos que abarcam os descendentes de espa- Garavaglia (Garavaglia, 2008, 93-102), há referências aos criollos em do-
nhóis cujo centro da vida social e econômica se encontrava na América. cumentos produzidos em locais como a Nova Espanha desde o século
Nessa perspectiva, mestiços e peninsulares estabelecidos no Novo Mundo XVI. Contudo, em outras partes do continente, como na região do rio
também poderiam ser enquadrados nesse conceito, tornando complexa a da Prata, tal palavra só passou a ser empregada no século XVIII, com um
análise histórica e dificultando a compreensão da realidade colonial esco- sentido diferente, referindo-se, geralmente, aos mestiços que pertenciam
rada unicamente na simplista oposição atemporal entre criollos e espanhóis. às classes populares.4
4 A historicidade e a multiplicidade de significados atribuídos ao conceito de criollo nos levaram
3 Responsáveis, em 1603, pela fundação de uma das primeiras confrarias do vice-reino do Peru. à decisão de mantermos sua grafia em espanhol.
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Entre os europeus, o termo ganhou certa carga pejorativa, que Entre o Leviatã e a agência local
enfatizava o processo de degeneração que ocorreria com os habitan-
tes do Velho Mundo caso permanecessem por um longo período na Ademais dos argumentos de europeus ou criollos sobre o lu-
América. Desde as referências feitas na segunda metade do século XVI gar ocupado por esse grupo dentro das possessões espanholas no Novo
pelo franciscano espanhol Bernardino de Sahagún à “mala inclinación” Mundo, da Coroa espanhola como um todo ou mesmo da humanidade
dos peninsulares que viviam ou de seus descendentes nascidos no Novo – tema vasto e fascinante que, no entanto, foge às limitações deste capí-
Mundo até a constatação do nobre prussiano Alexander von Humboldt, tulo – é igualmente necessário refletir sobre algumas interpretações his-
no início do século XIX, de que na Nova Espanha o europeu mais mi- toriográficas produzidas a respeito das sociedades que se formaram na
serável via-se como superior aos brancos nascidos neste continente, ha- América hispânica e dos lugares atribuídos aos criollos em seu interior.
via a crença de que o contato prolongado com a natureza americana, Mais do que um levantamento exaustivo de livros, teses e artigos, serão
especialmente, por exemplo, em aspectos como sua umidade excessiva, apresentadas algumas obras cujas interpretações, na maioria dos casos,
geraria resultados deletérios entre os europeus.5 Por outro lado, autores estabeleceram diálogos entre si.
como o jurista Juan de Solórzano y Pereira e o religioso Juan de Palafox Um modelo explicativo que alcançou grande destaque duran-
adotaram posturas identificadas como “pró-criollos”, associando os ata- te décadas – especialmente, mas não apenas, dentro da historiografia
ques sofridos por esse grupo às disputas pelas nomeações por parte da brasileira – e que ainda persiste em algumas interpretações recentes é o
Coroa aos cargos oficiais.6 Na tentativa de rebater tais acusações, autores que identifica duas formas antagônicas de ocupação do continente por
criollos dos séculos XVII e XVIII negaram a possibilidade de a natureza parte das Coroas europeias: as colônias de povoamento e exploração
americana degenerar os europeus ou seus descendentes, sendo respon- (Cf. Novais, 2005). Entre outros autores que analisaram as Américas
sáveis pela formulação do que Jorge Cañizares-Esguerra (1999, 33-68). hispânica, portuguesa e inglesa valendo-se dessa lógica, pode-se citar
designou como “astrologia patriótica”7 ou, mais amplamente, uma epis- Edmundo O’Gorman (1992). Em seu clássico livro sobre a invenção da
temologia patriótica criolla. América, o historiador afirma que o contato dos europeus com o con-
tinente teria aberto dois caminhos a serem percorridos pelas socieda-
des americanas: o da imitação, adotado nas áreas de colonização ibérica,
e o da originalidade, restrito às porções inglesas do continente, único
local em que a ideia de Novo Mundo teria, de fato, se materializado.
Seguindo tal lógica, O’Gorman caracteriza as sociedades desenvolvidas
5 Solange Alberro (2006) apresenta uma lista das principais críticas associadas aos criollos (“la na América hispânica como marcadas pelos “ideais senhoriais e buro-
pereza, la holgazanería, sus variantes y corolarios, la ociosidad, la molicie, el abandono, la falta de cráticos dos conquistadores e povoadores espanhóis, empenhados em
previsión y cuidado, el descuido, la inercia, la desidia, la inconstancia y la inestabilidad”) e diferencia
os ataques feitos por autores do norte da Europa, como o naturalista francês conde de Buffon obter privilégios, prêmios, encomiendas e empregos”, responsáveis por
e o pensador escocês William Robertson, daqueles realizados por espanhóis. De acordo com organizar um sistema de exploração dos nativos e de se conformarem
a pesquisadora, enquanto para estes as críticas se restringiriam aos criollos, para os primeiros a
em colher riquezas onde Deus as havia semeado.8
visão negativa se estenderia também aos espanhóis metropolitanos.
6 As questões envolvendo o acesso dos criollos aos cargos oficiais da Coroa espanhola na Améri-
ca são o resultado de um intenso e prolongado debate historiográfico abordado, ainda que late- 8 Interpretação oposta já havia sido apresentada na década de 1930, nos Estados Unidos, por
ralmente, por parte expressiva da bibliografia citada ao final do capítulo e identificado por vários Herbert E. Bolton, para quem as Américas compartilhariam alguns aspectos comuns. (Cf. The
autores, entre eles David Brading, como um elemento fundamental para o desenvolvimento de epic of greater America, 1933, 448-174). Criticada e pouco adotada por seus contemporâneos
um patriotismo criollo associado às reações diante das reformas propostas pelos reis bourbônicos (um de seus principais opositores foi, não por acaso, Edmundo O’Gorman, que o acusou de
durante o século XVIII e ao processo de independência. ignorar as dimensões culturais e os grandes contrastes existentes no continente), a proposta de
7 Segundo o historiador, a astrologia patriótica desenvolvida por autores criollos teria suscitado, Bolton vem sendo recuperada nas últimas décadas por autores que a associam às perspectivas
muito antes dos europeus, argumentações raciais pautadas em determinismos biológicos. de História Atlântica ou de Impérios negociados. (Cf. Cañizares-Esguerra, 2006; Bushnell &
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Em sentido semelhante e também sublinhando a exploração a concepção de um Estado Leviatã poderia ser substituída por outras,
espanhola na América, Perry Anderson enquadrou a Monarquia dos como a de “Monarquias compósitas” proposta por John H. Elliott. Em
Habsburgo em sua teoria do absolutismo. Partindo de uma abordagem artigo que obteve um duradouro impacto historiográfico (Elliott, 1992,
marxista, o historiador inglês, ainda que ressalte a inexistência de um 48-71), Elliott argumenta que as Coroas europeias se estruturaram ao
reino totalmente unificado e o surgimento de uma “aristocracia criolla” longo do século XVI de acordo com uma lógica que buscava manter
a partir do século XVII, reforça o papel desempenhado pelas colônias instituições, leis e costumes específicos a cada uma de suas partes, bem
americanas: fornecedoras de metais preciosos.9 Nessa perspectiva, não como estabelecer relações de apoio mútuo com as elites locais. No en-
apenas as sociedades criollas, mas outros elementos, como as próprias ci- tanto, ele identificou especificidades no caso das possessões espanholas
dades americanas, perdem destaque, ocupando apenas um local de pas- na América: haveria, neste caso, uma “união acessória”, onde um reino é
sagem que conectaria as riquezas naturais e minerais do Novo Mundo reconhecido juridicamente como parte de outro, no caso, Castela. As re-
aos portos europeus. ticências quanto aos espaços de negociação que existiriam nas interações
A partir da década de 1980, estudos que questionavam certas entre as Coroas europeias e as sociedades desenvolvidas na América ge-
premissas e teorias sobre as sociedades que se desenvolveram no con- raram críticas por parte de diversos autores. Ainda que com muitas dife-
tinente americano ganharam destaque. Em oposição à perspectiva que renças e particularidades, pesquisadores como Jack P. Greene, António
identificava dois modelos antagônicos de ocupação no Novo Mundo, Manuel Hespanha e João Fragoso vêm ressaltando os aspectos negocia-
Richard Morse reforçou a existência de uma matriz moral, intelectual e dos e a importância dos poderes locais nas relações entre as sociedades
espiritual comum às tradições ibero e anglo-americanas. Para esse pes- americanas, seja em sua porção inglesa ou na portuguesa, e delas com o
quisador norte-americano, as sociedades surgidas na América ibérica Velho Mundo (Cf. Greene, 1994; Hespanha, 1994; Fragoso, Gouvêa &
não poderiam ser analisadas com base na ideia de que teria havido na Bicalho, 2001; Fragoso & Gouvêa, 2010).
região um desenvolvimento frustrado, mas sim como resultado de uma Processo semelhante pode ser identificado em pesquisas produ-
opção cultural específica, uma resposta diferente – mas não inferior – zidas nas últimas décadas sobre a América hispânica, como as realizadas
à formulada pela porção inglesa do continente ao “pacote moderno”. por Serge Gruzinski, que propõe o conceito de “Monarquia católica” em
Opção esta que, segundo Morse, permitiria a identificação de um proje- detrimento da ideia de um Império espanhol centralizado. Para o pes-
to colonial para as porções ibéricas do continente, único local onde teria quisador francês, a relação colonial, associada às noções de dependência
havido uma preocupação constante e sistemática com as questões da política e exploração econômica, seria apenas uma das dimensões que
América (Morse, 1988). caracterizariam as diferentes partes da Monarquia. Aproximando-se da
Nesse mesmo período, uma série de estudos passou a levantar perspectiva analítica das “histórias conectadas”, endossada por autores
questionamentos crescentes quanto à existência de um Estado abso- como Sanjay Subrahmanyam, Gruzinski combate o que ele considera ser
lutista, que teria transplantado suas instituições nas terras americanas, uma visão hispanocêntrica nas abordagens sobre a Monarquia espanho-
bem como perspectivas que identificavam, nos moldes propostos por la, ressaltando a importância dos estudos que enfatizam as interações lo-
autores como Immanuel Wallerstein, a existência de centros e periferias cais e dessas com outras regiões do mundo (Gruzinski, 2001, 175-195).
dentro dos impérios que se formaram no período. Para alguns autores, Seguindo essa proposta, as análises sobre as sociedades criollas deveriam
ampliar seu enfoque para além dos contatos estabelecidos com Castela.
Greene; Daniels & Kennedy, 2002, 1-14).
No caso da Nova Espanha, por exemplo, as atenções em relação às frotas
9 O que Anderson (2004, 58-82) denomina como “pilhagem das Américas” teria sido que partiam anualmente para Cádiz ou Sevilha deveriam ser divididas
fundamental para a própria natureza do Estado espanhol, ainda que tivesse produzido resultados com aquelas que chegavam periodicamente ao porto de Acapulco, prove-
danosos tanto na agricultura quanto na manufatura peninsular, tornando-a um escoadouro de
mercadorias estrangeiras.
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nientes de Manila.10 As dinâmicas no circuito da prata potosina também do Xavier Gil Pujol (1991, 119-144), não seriam antagônicas, mas in-
são ilustrativas. Para além das remessas de minérios enviadas à Coroa, a terdependentes –, a complexidade das interpretações permite supor que
circulação do metal exerceu papel determinante não apenas no espaço pe- os círculos criollos mantinham relações muito mais amplas e complexas
ruano, mas também nas conexões com outras partes da América hispânica com a Coroa e com os demais grupos sociais do que pressupunham certas
(como a região do Prata, de onde partiam escravos africanos provenientes abordagens. Ao mesmo tempo em que as instituições reais impunham
das terras portuguesas em direção às zonas de mineração) ou com outras uma série de restrições aos vice-reis enviados ao Novo Mundo (como a
partes do globo, suprindo a necessidade de moedas em locais como as proibição de obterem propriedades em sua jurisdição, de se casarem ou
colônias inglesas na América ou no Império chinês. serem padrinhos de pessoas da região), na tentativa de evitar a criação de
A postura adotada por Gruzinski recebeu críticas por parte de au- laços com os locais, houve, especialmente ao longo do século XVII, mo-
tores como Bartolomé Yun Casalilla, para quem tal análise sobre as posses- vimentos no sentido contrário, como a intensificação da política de venda
sões espanholas minimizaria o caráter desigual dessa relação ao tirar o peso de cargos que, em grande parte, foram adquiridos por criollos.13 Como
do poder político, do domínio e da violência presente nos Impérios.11 Em exemplos de uma abordagem que ressalta a complexidade das relações
relação à América hispânica propriamente, o pesquisador espanhol ressalta estabelecidas entre Castela e os homens e mulheres nas Américas, tendo
o interesse da Monarquia em impedir o desenvolvimento de uma nobreza em vista o papel ocupado pelos criollos, são ilustrativos os estudos recen-
local e, consequentemente, o que ele identifica como a impossibilidade da tes realizados por Arndt Brendecke. Ao analisar a busca por informações
criação de laços entre os nobres castelhanos e as elites americanas.12 sobre o Novo Mundo por parte da Coroa, o pesquisador alemão ressalta
No entanto, para além das divergências entre a ênfase nas for- que, além do “ideal absolutista do rei onisciente”, deve-se observar a posi-
ças centrífugas ou centrípetas dentro da Coroa espanhola – que, segun- ção de destaque dos poderes locais, ocupados em grande parte por criollos,
que seriam responsáveis tanto pelo fornecimento de informações quanto
10 Em outra obra, Gruzinski (2012) afirma que a ligação marítima estabelecida entre Manila
pela verificação da veracidade das mesmas.14
e Acapulco “acarretou um novo posicionamento das Índias no globo: além de ter promovido Dessa forma, e retomando o que se afirmou na introdução, po-
a abertura das portas da Ásia aos habitantes da Nova Espanha e do Peru, ela aproximou de-se notar que as reflexões sobre as sociedades criollas são, em algu-
consideravelmente o Oriente do litoral da Nova Espanha”.
11 Casalilla utiliza tanto “Império” quanto “Monarquia compósita” ao se referir à Coroa hispânica.
ma medida, tributárias do modo como se concebem as relações entre a
Assim como Elliott, o autor espanhol identifica uma diferença entre as relações estabelecidas Coroa espanhola e seus domínios americanos. No entanto, independen-
entre os reinos que integravam a Monarquia compósita espanhola e as estabelecidas com sua temente das profundas diferenças existentes entre os autores e propostas
colônia americana. Mesmo assim, o autor aponta algumas ressalvas em relação ao conceito
utilizado pelo historiador inglês, afirmando que sua abordagem o completa, mas também se de abordagens citados acima, observa-se que, em geral, a agência dos
distancia dele, ao enfatizar a circulação das elites e os “laços horizontais” entre os diferentes
reinos que compunham a Monarquia (Casalilla, 2009). Ao analisar as denominações de 13 David Brading, ao analisar a compra de cargos oficiais pelo que ele denomina como
Império e Monarquia na Espanha do período, Ronald Raminelli ressalta que, à exceção de “magnatas criollos”, afirma que, no começo do século XVIII, esse grupo chegou a desempenhar
Carlos V, os demais reis espanhóis não se intitularam imperadores (ainda que houvesse menções um papel em sua sociedade similar ao ocupado pelas aristocracias europeias no Velho Mundo. Já
em documentos oficiais): “o uso da palavra ‘império’ era estranho aos letrados espanhóis Horst Pietschmann afirma que a infiltração crescente dos criollos nas estruturas administrativas,
contemporâneos [...] para diferenciar a Espanha do Sacro Império, humanistas como Nebrija especialmente através da compra de cargos, gerou uma fase de relativa autonomia que poderia
defendiam o emprego do termo Monarquia. Além de particularizar, tal recurso pretendia ser observada, por exemplo, através de interpretações laxas da legislação metropolitana na
igualmente demonstrar a superioridade espanhola por meio de sua força expansiva e suas tentativa de adaptá-la aos interesses e situações locais. (Guerra & Annino, 2003, 15-46; 47-84)
possessões na América, África e Ásia” (Raminelli, 2013). 14 Entre outras fontes, Brendecke analisa as relaciones de méritos y servicios enviadas
12 A abordagem de Casalilla recebeu críticas por parte de João Fragoso, para quem sua proposta periodicamente à Coroa por súditos de diversas localidades, que deveriam ser acompanhadas por
reforça a imagem da América espanhola como conquista ou como um Império colonial de declarações de juízes locais: “The involvement of local judges did, of course, delegate some competence
uma Monarquia compósita, o que minimizaria a importância dos pactos e negociações entre back to the colony, recognizing that, in practice, the central institution of the Council of the Indies was
as elites criollas e Madri. Em contraponto, Fragoso sugere a adoção do conceito de Monarquia not able to assess the truthfulness of incoming reports without consulting the expertise of local actors.
pluricontinental, que “tende a sublinhar tais acordos entre os que ocupavam os cargos honrosos The court had to relocate decisions from the centre to the advisors of the centre, or even further down the
da república (município) e a Coroa” (Fragoso, Guedes & Krause, 2013). peripheries” (Brendecke; Blockmans et. al., 2009, 235-252).
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criollos, assim como a de indígenas, mestiços e africanos, vem ganhando colonos, alegando que os principais obstáculos à evangelização provi-
atenção crescente, tornando suas vivências e formas de sociabilidade ele- nham dos espanhóis (Acosta, 1984). De algum modo, a proposta de
mentos centrais à compreensão da história americana. isolamento dos ameríndios indicava tanto um projeto de cristianização
e civilização, ao reduzi-los à vida em pueblos, como uma forma oficial de
resguardá-los da exploração por parte de encomenderos.
Formas das sociabilidades criollas A projeção das duas repúblicas como comunidades distintas,
apartadas e em certa medida autônomas não resistiu às vicissitudes da
Duas repúblicas vida social no Novo Mundo, principalmente nas áreas urbanas. O orde-
namento imaginado não suportou a diversidade de interesses e a impre-
A dinâmica da vida social frequentemente rechaça projetos visibilidade das relações entre os diferentes grupos sociais nos vice-reinos.
gestados com a finalidade de organizá-la, de lhe conferir certa forma. Afinal de contas, quem era o espanhol que comporia a “república dos
Ordenador, esse desejo amiúde se vê frustrado diante de arranjos e com- espanhóis”? Quem era o nativo da “república de índios”? Na prática, as
binações inesperados. As sociedades, apesar de inseridas em uma ordem, essências supostas por essa fórmula se esfacelavam frente às vivências nas
são forjadas também pelos imprevistos. A proposta castelhana de, após a cidades americanas. Com frequência, criollos divergiram dos peninsulares
conquista, organizar as sociedades americanas em duas repúblicas pode e entre si, missionários afrontavam seculares e religiosos de outras ordens,
ser tomada como exemplo de um projeto que, com a passagem do tem- vice-reis mobilizavam homens armados contra juízes da audiência, que
po, sucumbiu ao pulso irregular da vida coletiva. A ideia tinha contornos respondiam àqueles ataques na mesma moeda. Também entre os indíge-
gerais simples. Recorria-se à concepção clássica de república como uma nas a pretendida redução de muitos grupos a uma república não resistiria
sociedade política dotada dos meios necessários para se governar, e não à multiplicidade de suas ações após (e durante) as conquistas.
como uma forma de governo, a fim de constituir duas grandes comuni- Os variados interesses, por vezes contrários entre si, permitiriam
dades: a de brancos e a de índios. Embora se distinguissem pelo critério supor, quase sem risco de erro, que o modelo de duas repúblicas na América
étnico subjacente à sua designação, ambas integravam o mesmo corpo, a não sobreviveria. À medida que transcorriam as décadas e se ampliavam
Monarquia católica espanhola, e respondiam ao mesmo sistema legal, o as relações sociais e étnicas, a trama se tornava cada vez mais complexa.
direito indiano (Lempérière, 2001) – apesar de isso não significar plena As mestiçagens biológicas e culturais, imprevistas e indesejadas no ideal
igualdade entre elas (Morse, 1988; Bethell, 1997, 73). ordenador, implodiram aquele projeto. Mestiços, mulatos e zambos não
Religiosos, letrados, vice-reis e toda sorte de homens versados se acomodavam em nenhuma das repúblicas e evidenciavam a presença
no debate jurídico-político em torno da expansão castelhana usaram da população negra, ampliando a heterogeneidade das formações sociais
com frequência os termos “duas repúblicas”, “república de espanhóis” no Novo Mundo. Em algumas cidades da América Central, no final do
e “república de índios” para caracterizar o ordenamento social ameri- período colonial, conta-nos Richard Morse, as vilas espanholas e índias
cano, principalmente nos séculos XVI e XVII. Não raro, esses sujeitos atraíam tantos grupos étnicos que se tornaram pueblos de ladinos (Morse,
externaram certa preocupação com a mescla das duas repúblicas. Tal 1988, 78). Em Lima, por exemplo, a tentativa do vice-rei Francisco de
inquietação manifestou-se nas primeiras décadas de institucionalização Toledo, conhecido por suas reformas durante a década de 1570, de isolar
das conquistas, especialmente por meio da atuação de religiosos que os índios em um bairro chamado el Cercado fracassou e os nativos segui-
alegavam ser pernicioso aos nativos o contato com os colonos espanhóis, ram vivendo junto aos demais grupos do vice-reino (Chocano Mena, s/d,
cujas ações expressavam vícios como a avareza, a cobiça e a luxúria. O 28). À semelhança do que ocorria em outros locais, o cotidiano urbano
padre José de Acosta, jesuíta que viveu no Peru nos anos 1570, regis- no México dos séculos XVI e XVII sugeria uma permanente mescla de
trou em seu De Procuranda Indorum Salute os excessos cometidos pelos indivíduos e grupos (Gonzalbo Aizpuru, 2009, 187).
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Vivendo coletivamente ravam certa coesão social desejada pela Coroa e pela Igreja. Alguém
que não pertencesse a um ou vários desses grupos ficava à margem da
O modelo das duas repúblicas indicava, no entanto, um ele- vida coletiva e via suas chances de alcançar honra e privilégios chegarem
mento central à lógica das sociedades coloniais americanas, marcadas perto de zero. É certo que o ingresso em muitos desses grupos era par-
pela herança dos critérios de distinção social ibéricos e, de modo geral, cialmente limitado por critérios relacionados ao nascimento, conquanto
europeus: o nascimento. As condições de nascimento eram responsáveis se conheçam episódios em que a genealogia e o sangue não constituí-
pela inserção do sujeito em determinado grupo, valorizando-se quase ram impeditivos. Pode-se lembrar, a título de exemplo, o caso da Real
sempre critérios ligados à pureza de sangue. À diferença da obsessão Universidade do México, que não restringiu, pelo menos até a segunda
hispânica por controlar os resquícios judaicos e muçulmanos entre seus metade do século XVII, a entrada de mestiços e mulatos, cujo apreço de
súditos, nas cidades americanas as autoridades se ocuparam também seus contemporâneos suplantava a alegada ilegitimidade de seu nasci-
com as mesclas entre espanhóis, índios e africanos, cujos frutos frequen- mento (Gonzalbo Aizpuru, Op. cit., p. 66-67).
temente careceram de prestígio e legitimidade social. Antes mesmo do Imaginadas inicialmente como um ente bipartite, as sociedades
parto, projetava-se para o recém-nascido, segundo sua genealogia, um americanas mostraram-se mais complexas, sobretudo nas áreas urbanas
lugar naquela sociedade. Contudo, outros fatores além do dado biológi- e mais povoadas. Hierarquizadas e desiguais, é fato, mas não completa-
co, como a honra, o comportamento público, a situação familiar, a po- mente estáticas como sugere a visão tradicional acerca de uma sociedade
sição econômica, o reconhecimento profissional e a performance social de castas, uma vez que existiam chances de mobilidade, por menores
também exerciam influência determinante. Uma pessoa “nascia sendo o que fossem (Traslosheros, 1994, 59). Nesse cenário, as corporações con-
que era”, mas sua trajetória diante da comunidade poderia ratificar ou corriam para a organização da vida social, criando laços entre seus inte-
não aquela posição. Daí certos historiadores, há algum tempo, sugerirem grantes por meio de normas, crenças, valores comuns e garantindo sua
com razão o uso da categoria calidad para compreender a organização existência material e simbólica frente a outros grupos e às autoridades.
das sociedades hispano-americanas, uma vez que ela abrange dimen- Ao unir pessoas com interesses semelhantes, essas associações dispu-
sões mais amplas do que os fatores estritamente familiares e fisionômi- nham também das condições necessárias para estabelecer mecanismos
cos, embora a cor da pele não tenha sido ignorada (Cf. Hering Torres; de controle social por meio da vigilância mútua exercida pelos próprios
Bonilla, 2011,451-470; Ramírez Hernández, 2013; Gonzalbo Aizpuru, membros. Assim, a incorporação dos indivíduos no universo social his-
op. Cit, 60-65, 278-279; Alberro & Gonzalbo Aizpuru; 2013; Chocano pano-americano tendia a ocorrer antes pela atuação de tais agremiações
Mena, s/d, 13). Em vez de uma sociedade de castas (Cf. Seed, 1982, do que pela existência de duas repúblicas.
569-606) – embora este termo fosse utilizado à época –vislumbra-se
assim uma sociedade colonial dividida segundo a calidad dos sujeitos.
Nascia-se no interior de um grupo e vivia-se coletivamente. A Sociabilidades criollas
probanza da pureza de sangue era o primeiro passo para se viver em uma
sociedade hierarquizada e organizada corporativamente. Contando com No começo do século XVII, um padre jesuíta identificava no
poucas condições favoráveis a individualidades, os sujeitos tomavam México um problema cuja solução ele considerava ser urgente. A con-
parte da vida social e tornavam concreta sua existência ante as autorida- quista militar havia sido acompanhada por um projeto de evangelização
des civis e religiosas por meio de grupos e corporações. Colégios, a uni- dos indígenas que tomou a atenção das ordens religiosas, principalmen-
versidade, ordens religiosas, irmandades, cabildos, grêmios e confrarias te nas cidades ao redor da capital do vice-reino. Os esforços missio-
são alguns exemplos de associações que, criadas em torno de um motivo nários foram majoritariamente direcionados à conversão dos nativos,
comum, garantiam uma posição a seus integrantes, bem como assegu- em busca da eliminação das idolatrias e da redução daqueles grupos
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à vida civilizada. Porém, indagava Juan Sánchez Baquero, que atenção novos santos e a emergência de identidades criollas em várias regiões do
foi dispensada aos “moradores espanhóis”? E aos filhos dos filhos dos continente.15 Neste caso, os setores clericais desempenharam importan-
conquistadores e primeiros pobladores, a “nova juventude”, que lugar lhes te papel, na medida em que religiosos criollos, mas também peninsula-
cabia naquela sociedade? Segundo Baquero, os “santos missionários” que res com fortes vínculos locais, trabalhavam para evidenciar a presença
evangelizaram o Novo Mundo se ocuparam devidamente com os indí- divina em sua terra. E terra, aqui, é sinônimo de pátria, conforme seu
genas, mas pouco zelaram pela juventude hispânica, gerando um vazio sentido no século XVII, compreendida como o lugar onde se havia nas-
que, segundo sua crônica, deveria ser preenchido pela Companhia de cido e com o qual se criavam laços afetivos – distante, portanto, de seus
Jesus. As respostas desse padre alegavam a falta de cuidado com os espa- significados mais recentes e das acepções do vocábulo nação. Assim, po-
nhóis nascidos no México e recomendavam uma reflexão sobre o lugar diam-se notar diferentes manifestações de patriotismo no interior de
social ocupado pelos criollos (Baquero, 1945, 42 ss.). um mesmo vice-reino.
O relato de Baquero, portanto, sugeria a seguinte pergunta: Tal foi o caso, por exemplo, das devoções surgidas na Audiência
qual teria sido o lugar dos grupos criollos nas sociedades americanas de Quito durante o século XVII após uma sequência de desastres natu-
coloniais? Caso se aceitasse sem reservas o modelo das duas repúbli- rais (terremotos, inundações e estiagens). Para enfrentar os temores que
cas, a solução poderia ser apontada de modo simples: a república de rondavam as cidades da região, os jesuítas fizeram circular entre os fiéis
espanhóis, distantes e apartados de indígenas, africanos e mestiços, logo, os relatos dos milagres operados por Mariana de Jesús (1618-1645), es-
segundo o religioso, fora do alcance das ações iniciais da Igreja e da timulando uma devoção em torno de uma penitente nascida em Quito
Monarquia. Sabe-se, contudo, que a separação entre tais repúblicas não que, ainda jovem, havia oferecido sua vida em troca do bem-estar de sua
se concretizou, na medida em que as mesclas eram uma realidade nas terra. Embora tenha sido beatificada apenas no século XIX e canoniza-
Américas e que, sob a abstração “espanhóis”, encontravam-se tantos da em 1950, os rumores hagiográficos sobre aqueles milagres criavam as
grupos diferentes e indiferentes entre si quanto aqueles denominados condições adequadas para os criollos quitenhos afirmarem a importância
pelo termo “índios”. Nesse sentido, partir da divisão entre repúblicas, de sua pátria, principalmente diante de Lima, que era capital do vice-
cuja existência era mais efetiva nos discursos jurídicos do que na prática, -reino e contava com uma devoção bem estabelecida em torno daquela
parece ser uma escolha pouco promissora para compreender algumas que se tornaria a primeira santa das Américas: a patrona de Lima e
das condições materiais e simbólicas das sociabilidades criollas. Daí a do Novo Mundo, Santa Rosa. Depois, o próprio episcopado fomentou
opção por observar certas formas corporativas de organização da vida em Guápulo, perto de Quito, o culto à Virgem de Guadalupe ou de
social daqueles grupos, em busca não de uma suposta unidade criolla, Guápulo, esperando criar naquele santuário um lugar de peregrinação e
mas das próprias relações, disputas e proximidades entre si e com outros reafirmar a posição da cidade e uma espécie de identidade local, que teve
grupos que os levaram a se congregar a fim de se afirmar socialmente. na arte barroca da Escuela de Quito uma expressão concreta e complexa
(Cf. Narváez Lora, 2010, 129-160; Kennedy Troya, 2001). Observando
outra região do continente, nota-se na elite eclesiástica de Puebla se-
Santos e devoções melhante busca por preeminência no processo de beatificação da monja
María de Jesús, iniciado em meados do século XVII e inspirado poste-
Os cultos a santos talvez tenham sido a principal expressão riormente pela beatificação e canonização de Rosa de Lima, com o fito
dos modos de sociabilidade, identidade e integração dos criollos nas de rivalizar com a capital do vice-reino, México (Rubial García, 1999;
Américas, especialmente a partir do século XVII. Pelo menos do pon- Buxo & Herrera, 1994, 104).
to de vista historiográfico. Não foram poucos os historiadores que se
dispuseram a ressaltar as relações entre o surgimento de devoções e de 15 Para exemplos, ver o roteiro bibliográfico ao final deste capítulo.
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Os relatos hagiográficos constituíram um elemento decisivo no após as conquistas, as confrarias eram associações eclesiásticas ou gre-
surgimento e consolidação das devoções e cultos locais. Ao lado das imagens, miais que ofereciam assistência espiritual e material a seus sócios (e, em
cujo aparecimento realçava o caráter miraculoso de determinada devoção, casos especiais, a não-sócios) que careciam de algum auxílio. Por meio
esses textos faziam circular narrativas modelares, recheadas de exemplos vir- da religiosidade, ajuda mútua e amparo fraternal, pretendia-se oferecer
tuosos, capazes de criar valores e crenças comuns a seus leitores. Servindo alívio em situações delicadas, como a morte, instabilidades políticas ou
muitas vezes como forma de entreter homens e mulheres que preferiam as desastres naturais. Com os recursos monetários recolhidos pelas doa-
histórias de santos a novelas de cavalaria, a literatura hagiográfica se tornou ções, esmolas, fundos obtidos em festas, capellanías e cotas cobradas para
um efetivo meio de transmissão de valores entre os grupos alfabetizados, o ingresso de novos associados, almejava-se assistir financeiramente a
também sendo difundida oralmente em leituras públicas, sermões, confis- própria comunidade (CF. Wobeser, 2005). No primeiro caso, tratava-se
sões e demais espaços de socialização (Rubial García, 1999, 108-109). Ao da salvação eterna; no segundo, da sobrevivência material. Embora a
relatar as vidas de santos nas cidades americanas, os hagiógrafos contribuí- devoção a um santo patrono tenha sido a marca das confrarias religiosas,
am para criar laços entre os grupos e sua terra natal, tornada então distinta os ritos católicos pautaram o funcionamento das comunidades leigas,
por ter sido berço de uma determinada santidade. indígenas, mestiças e africanas.
Se os peninsulares viram o aumento significativo do número Nas diferentes regiões das Américas, as confrarias fizeram par-
de santos espanhóis a partir do século XV, os criollos esperavam também te do cotidiano de peninsulares, criollos, mestiços, indígenas e africanos.
confirmar a fertilidade espiritual de sua terra. Nos dois vice-reinos exis- As manifestações de solidariedade, caridade e piedade contribuíam para
tentes no período, vários casos de veneráveis foram enviados a Roma certa harmonia entre os grupos sociais, desejada pelas autoridades civis
para início do processo de beatificação. Poucos desses casos foram con- e eclesiásticas, mas também para o fortalecimento das relações e da sen-
cluídos, dentre os quais dois se destacam por sua representatividade: sação de pertencimento entre os integrantes daquelas corporações, cujas
Felipe de Jesús, um franciscano criollo da Nova Espanha, que morreu práticas eram reguladas por estatutos elaborados pelas próprias associa-
como mártir em missão no Japão e foi beatificado em 1627; e Isabel ções. Do ponto de vista católico, a corporação proporcionava os meios
Flores de Oliva, uma donzela criolla da capital do Peru beatificada em convenientes à salvação de seus confrades, que, por sua vez, deveriam
1668 e canonizada três anos depois como Santa Rosa de Lima. Ainda cumprir seus deveres exemplarmente, conformando uma “economia da
que outros processos de beatificação tenham ocorrido, essas duas figuras salvação eterna”, segundo a feliz expressão de Asunción Lavrin (Lavrin,
do século XVII se somavam à devoção a diferentes advocações marianas 2015, 49). Pertencer a uma ou várias confrarias era sinal do status de de-
– a Virgem de Guadalupe de Tepeyac, no México, certamente é um bom terminada pessoa, tendo havido congregações mais ou menos abertas ao
exemplo – na construção de um sobrenatural que permitia aos criollos ingresso indiscriminado (social, étnico, gremial, sexual etc.), ainda que
não apenas a partilha de elementos comuns aos lugares em que nasce- o(a) postulante tivesse condições financeiras de bancar a cota de entrada.
ram ou onde viviam, mas também a criação de formas de sociabilidade Em geral, os grêmios que reuniam praticantes do mesmo ofício eram
e entretenimento. mais restritos, enquanto outras congregações acomodavam grupos étni-
cos diferentes – embora isso não significasse necessariamente integração
entre eles, já que em alguns casos as reuniões, construções de altares,
Confrarias procissões e festas ocorriam separadamente (Guerra, 2000, 27-28).
Um caso representativo pode ser encontrado na Confraria do
Os cultos a santos motivaram também uma importante forma Rosário, promovida pelos dominicanos em meados do século XVI na ci-
de organização corporativa da vida social nas cidades americanas: as dade de Santa Fé de Bogotá, atual Colômbia. Ela se dividia em três ramos:
confrarias. Presentes no Novo Mundo desde os primeiros momentos o masculino, o feminino e o indígena, os dois primeiros formados por
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personagens distintos da cidade, enquanto a seção nativa era composta As festas religiosas foram as mais frequentes e faustosas nas
por homens e mulheres. Para as atividades corriqueiras, cada ramo se reu- sociedades vice-reais americanas, principalmente no século XVII. Entre
nia separadamente, situação que se alterava nas ações mais importantes, elas, a de Corpus Christi teve destaque especial por seu sentido no con-
como manter e adornar a capela da Virgem do Rosário e preparar sua junto dos ritos católicos após o Concílio de Trento, pelo esplendor da
festa anual (Plata, 2015, 79-109). Os criollos e os peninsulares vinculados à procissão e por acolher diferentes expressões artísticas, como a música, a
confraria estavam ligados às elites políticas locais e enxergavam nessas cir- dança e o teatro (Cf. Santos, 2005; Jancsó & Kantor; 2001). Em várias
cunstâncias a oportunidade de evidenciar seus lugares sociais e reforçar, no cidades, a elite dirigente criolla, reunida nos ayuntamientos, financiou e
interior da associação, as relações de poder existentes em outros espaços. organizou tais festejos em parceria com confrarias, grêmios e paróquias
Nesse sentido, ao construir capelas e altares, promover procissões, orações (Dolores Bravo; Rubial García, 2005, 449-451). Dar-se a ver era impor-
e festas, as confrarias ofereciam a seus sócios várias ocasiões de sociabi- tante e a festa oferecia a oportunidade para esses grupos e corporações
lidade, nas quais se afirmavam valores e crenças comuns, cultivavam-se se posicionarem ante as principais autoridades civis e religiosas espera-
virtudes desejáveis à manutenção do grupo e à coesão social, mas também das no evento, expressando sua condição social e histórica. Em 1608,
se expressavam as formas da organização, da hierarquização e das disputas em Potosí, nos dias subsequentes à cerimônia de Corpus Christi, os
que atravessaram as sociedades americanas. criollos da cidade promoveram diversos festejos e entretenimentos para
demonstrar suas qualidades. Em seis dias, realizaram-se diferentes ati-
vidades, comédias, saraus, corridas de touros, jogos, com a finalidade
As festas como cenário político de expor aos vecinos, forasteiros e demais moradores suas habilidades,
riquezas e nobreza (García Pabón, 1995; Cf. Prodanov, 2002, 102).
As festividades em homenagem ao santo patrono constituíram Se em muitas circunstâncias os festejos religiosos, compreendi-
importantes ocasiões de diversão e entretenimento para os confrades e sua dos como ocasiões de sociabilidade, permitiam aos setores criollos dispu-
coletividade, permitindo-lhes comungar imagens, ritos e crenças comuns. tar a preeminência entre si e reafirmar a ordem social existente, em al-
Mas não foram as únicas. Os dias festivos se espalhavam por todo o ano gumas regiões eles tornaram possível a participação e expressão efetivas
e pontuavam o calendário religioso e civil de espanhóis e índios. Em ge- de outros grupos, como os ameríndios, agregando elementos nativos à
ral, as comemorações nas cidades da América colonial significavam uma comemoração. Alexandra Kennedy Troya aponta que, em Quito, mes-
ruptura com o tempo do cotidiano, sem, contudo, esfacelar as hierarquias mo após as restrições tridentinas, a nobreza indígena continuou partici-
estruturadoras da vida social (Kennedy Troya, 1996, 137-152; Gonzalbo pando de diversas festas, recorrendo àquele espaço para exibir símbolos
Aizpuru, 2009, 305). De modo apenas aparentemente contraditório, sus- que os diferenciariam dos outros nativos, dos peninsulares e dos criollos
pendiam-se por um momento o ritmo, as atividades laborais e os papéis (Kennedy Troya, 2001, 142-143; Cf. García Pabón, 1995, 428-431).
desempenhados no dia a dia, para se reafirmarem, de modo simbólico e à Menos faustosas e frequentes, mas igualmente relevantes
vista de todos, o ordenamento, as hierarquias e as relações sociais. As festi- como oportunidades de socialização, as festas públicas organizadas
vidades eram um gatilho para a ativação de certas memórias. Cerimônias pelas autoridades civis ofereceram um palco privilegiado para as par-
cristãs como a ocorrida no México em 1699 poderiam acabar em panca- celas criollas, especialmente nas cidades que não eram as capitais dos
daria se cada ordem religiosa não respeitasse o lugar que lhe cabia na pro- vice-reinos e não contavam, portanto, com um ambiente cortesão.
cissão que levava o Santíssimo Sacramento, e que na verdade representava Nestas sedes, boa parte dos festejos ocorreu nos entornos dos palá-
seu lugar na sociedade (Rubial García, 2005, 169). Circunstâncias como cios vice-reais, muitas vezes ligados ao nascimento, morte ou ascen-
essa mostram quão significativo era manter a lógica corporativa e organi- são de um monarca em Castela, ou por ocasião da chegada de um
zadora do cotidiano nos tempos de festa. novo alter ego do monarca.
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Entre os séculos XVI e XVII, a relação estabelecida nas fes- Considerações Finais
tas de recepção ou em outras comemorações palacianas entre a corte
e os grupos criollos abrangia dois movimentos simultâneos. O vice-rei Faz já algum tempo que a história não se resume a um en-
patrocinava a celebração para evidenciar sua legitimidade e autoridade – cadeamento cronológico dos fatos. As teorias, os modelos e tipos, as
representada nos adornos, arcos, pinturas, roupas e nas próprias encena- generalizações em variadas escalas são práticas correntes na boa his-
ções – frente às elites civis e religiosas locais, ao passo que estas (e mes- toriografia, que se beneficiou do diálogo frutífero e ainda promissor,
mos alguns membros das nobrezas indígenas) pretendiam se mostrar ao embora nem sempre consensual, com a teoria social e com a filosofia
novo mandatário a fim de ocupar um lugar de distinção. Por exemplo, para aprimorar seus métodos e abordagens. A busca pelo que é único
em uma das portas do arco construído pelo cabildo de Lima para receber e irrepetível continua no horizonte dos historiadores, sem, contudo, se
o Marquês de Cañete, em 1589, via-se uma pintura de Eneias e seu pai, transformar num fim em si mesma. As múltiplas formas de histórias
Anquises, para retratar o vice-rei e o monarca espanhol, respectivamen- comparativas, conectadas, atlânticas estão na praça para evidenciar tal
te, sob o tema da obediência filial. Segundo Alejandra Osorio, pode-se condição. Compreender certo evento em suas particularidades constitui
interpretar tal representação em sentido criollo, ao converter o vice-rei um passo fundamental, assim como o é atribuir-lhe sentido, inserindo-o
em fundador de uma pátria criolla, à semelhança do modelo romano co- num conjunto explicativo maior. Subjaz aí um importante desafio que
dificado na trajetória de Eneias (Cf. Osorio, 2006, 767-831). Nesse sen- há muito se impõe aos historiadores: a medida das generalizações.
tido e de acordo com a precisa formulação de Antonio Rubial García, a Este capítulo sobre as sociabilidades criollas fez algumas ge-
festa constituía um cenário político (Rubial García, 2009). neralizações e apontou os limites de outras. Partiu-se, inicialmente, do
Se as celebrações cortesãs, de modo geral, não tinham data fixa pressuposto de que as sociedades americanas coloniais foram atravessa-
e dependiam da chegada ou patrocínio vice-real, o calendário de festas das por relações conflitivas, o que não deixa de ser um modelo na medida
civis na Nova Espanha previa uma cerimônia relevante para afirmação em que se valorizam o recorrente e o geral a fim de propor uma mirada
da presença hispânica. Tratava-se do Paseo del Pendón, festejo realizado sobre mais de dois séculos de história, conquanto não se ignorassem os
no dia 13 de agosto pelas autoridades do vice-reino, por peninsulares espaços e possibilidades de negociação e de concerto de interesses em
assentados no Novo Mundo e por criollos para comemorar a vitória de disputa, conforme se sugeriu. Dessa concepção geral seguiu-se com fre-
Hernán Cortés sobre os mexicas (Dolores Bravo, 2009, 454). O símbolo quência uma outra, que aqui se considerou pouco promissora: a de que
principal da cerimônia era um estandarte com os escudos de armas do houve uma oposição perene entre os interesses de criollos e peninsulares.
México e da Monarquia espanhola levado à frente dos desfiles, que em Em primeiro lugar, porque as próprias definições de criollo e peninsu-
algumas ocasiões podiam ser acompanhados de corridas de touros, mú- lar supõem uma identidade que reduz demasiadamente a variedade de
sica e celebrações religiosas. Ao dedicar um dia do ano para comemorar grupos num momento, especialmente antes do início do século XVIII,
o triunfo da conquista, as elites dirigentes das cidades da Nova Espanha, em que nem sempre aqueles agentes históricos assim se reconheciam.
como também de outras regiões das Américas, reforçavam e sociali- Em segundo lugar, porque tal oposição, pouco matizada, é antes fruto
zavam a memória fundadora de sua condição histórica. Mais do que da transposição de certas leituras nacionalistas sobre os processos de
em outras ocasiões, nessa a cerimônia constituía um espaço privilegiado independência no começo do século XIX para realidades anteriores que
para as sociabilidades e expressão das perspectivas histórico-políticas pouco ou nada respondiam às lógicas de conteúdo nacional. Se é verdade
dos grupos criollos. que houve disputas constantes entre grupos locais e súditos espanhóis,
tais contendas nem sempre tinham ligação com a condição em si de
criollo ou peninsular, mas sim com interesses mais terrenos: terras, car-
gos, mão de obra ou “simplesmente” o lugar de cada um na procissão de
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Corpus Christi. Em algumas regiões, a exemplo das principais cidades parate imaginar uma teoria das festas urbanas na América hispânica,
da Nova Espanha, parece ter havido uma distinção mais clara entre os desde que tal generalização mantenha vivo o gosto pelas evidências e
dois grupos ainda no século XVI; em outras, como nas áreas urbanas do particularidades históricas.
rio da Prata, os limites e critérios de identificação eram menos nítidos.
Como ente, a sociedade criolla, no singular, não existe, e como
modelo soa pouco útil. Por isso, privilegiaram-se aqui as sociabilidades Roteiro bibliográfico
criollas, noção menos cerrada porque supõe as relações, os contatos e
considera, portanto, as múltiplas presenças de outros grupos. Tal esco- Obras gerais sobre a sociedade colonial americana: entre vários outros
lha permitiu, nas páginas anteriores, associar a compreensão dos grupos exemplos de livros publicados no Brasil que abordam a sociedade colonial
criollos nas Américas ao entendimento que se tem da natureza política na América hispânica, ver os primeiros volumes da coletânea organizada
da expansão hispânica. O argumento que subsidiou este texto recoloca a por Leslie Bethell: História da América Latina (Edusp, 1997), a obra de
questão das generalizações teóricas: a teoria que se partilha sobre a na- Stuart B. Schwartz e James Lockhart: América Latina na época colonial
tureza da Monarquia espanhola moderna fornece as chaves conceituais (Record, 2002), o segundo volume da História do Novo Mundo: as mesti-
para a compreensão das sociedades americanas e, por conseguinte, das çagens, de Serge Gruzinski e Carmen Bernand (Edusp, 2007) e o levan-
sociabilidades criollas. Se mais ou menos centralizada; se mais ou menos tamento bibliográfico realizado por John Manuel Monteiro e Francisco
absoluta; se mais ou menos corporativa; a depender da opção feita, entre Moscoso: América Latina colonial (Bibliografia básica, CELA, 1990).
as múltiplas possíveis, abre-se tal ou qual perspectiva. Em todos os casos, Patriotismo criollo: em relação às sociedades criollas, um dos temas
os fatos serão iluminados pelo farol oferecido no modelo – o que em si mais abordados pela historiografia nas últimas décadas é o que trata do
não constitui empecilho, desde que os primeiros não sejam desconsi- desenvolvimento de um sentimento de patriotismo em diferentes regiões
derados em favor do segundo e que não se ignore o dado fundamental da América espanhola, em especial, a partir do final do século XVI. Sobre
de que as construções modelares são por definição simplificadoras da este tema, ver os escritos de Jacques Lafaye: Quetzalcóatl y Guadalupe; La
realidade e não devem com ela coincidir. formación de la conciencia nacional de México, 1531-1813 (FCE, 1977)
Nesse sentido, o estudo das formas de sociabilidades criollas e Enrique Florescano: Memoria mexicana; Ensayo sobre la reconstrucción del
esboçadas neste capítulo permite, por um lado, colocar elaborações con- pasado: época prehispánica-1821 (Contrapuntos, 1987). Uma obra central
ceituais mais amplas (sobre sistemas políticos, econômicos, sociais) em sobre esta temática é a de David Brading: Orbe Indiano; De la monar-
perspectiva histórica, testando sua validade para um conjunto particular quía católica a la República criolla, 1492-1867 (FCE, 1991), seguida por
de casos; e, por outro, oferecer chaves e oportunidades para a formulação escritos como a coletânea de artigos editada por Juan M. Vitulli e David
de novos modelos explicativos. Os processos específicos (o funciona- M. Solodkow: Poéticas de lo criollo; la transformación del concepto ‘criollo’ en
mento das confrarias, as devoções, os entretenimentos urbanos, as fes- las letras hispanoamericanas (siglo XVI al XIX) (Corregidor, 2009) e, es-
tividades civis e religiosas) poderiam, assim, temperar as generalizações, pecificamente sobre a região da Nova Espanha, por textos de Enrique
franqueando aos historiadores as portas para a elaboração de outros Florescano: De la patria criolla a la historia de la nación (Secuencia (nueva
aportes teóricos. Tal pode ser o caso da discussão em torno das festas época), n. 52, 7-39, 2002), Solange Alberro: El águila y la cruz. Orígenes re-
urbanas, para mencionar um dos itens analisados acima. As festividades, ligiosos de la conciencia criolla (México, siglos XVI-XVII, FCE; El Colegio
por exemplo, servem tanto à ratificação de um poder (da Coroa ou da de México, 1999) e Antonio Annino: 1808, el ocaso del patriotismo criollo
Igreja) por meio das representações e dos elementos simbólicos, como à en Mexico (Historia y política, n. 19, 39-73, 2008); para uma visão mais
sua suspensão momentânea, valendo-se dos mesmos meios. Ainda que ampla sobre a América Ibérica no século XIX que também aborda esta
não se configurem como manifestações homogêneas, não seria um dis- questão em alguns de seus capítulos iniciais, ver a coletânea organizada
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por Annino em conjunto com François Xavier-Guerra: Inventando la na- perspectiva de “monarquias compósitas” e, em obra recente, adota uma
ción: Iberoamérica siglo XIX (FCE, 2003). Em relação ao vice-reino do Rio abordagem comparada entre os impérios espanhol e inglês em relação
da Prata, ver o artigo de Juan Carlos Garavaglia: Una breve nota acerca de às suas possessões americanas: Empires of the Atlantic World: Britain and
los ‘patriotas criollos’ en el Río de la Plata (Prohistoria, n. 12, 93-102, 2008) Spain in America, 1492-1830 (Yale University Press, 2006). Para inter-
onde o autor analisa a utilização e os significados atribuídos à palavra pretações que questionam uma perspectiva imperial associada a uma
criollo na região; algo relativamente semelhante é feito por Luis Gómez lógica absolutista, ver, além de outras obras do autor citadas ao longo do
Acuña para o Peru: Lo criollo en el Perú republicano: breve aproximación a un capítulo, o livro de Serge Gruzinski: As quatro partes do mundo; história de
término elusivo (Histórica, vol. XXXI, n. 2, 115-166, 2007). Também sobre uma Mundialização (EUFMG, 2014). Nele, o pesquisador francês tra-
esta região, ver os escritos de Bernard Lavallé: Las promesas ambíguas; balha com o conceito de “Monarquia católica” em uma abordagem que
Criollismo colonial en los Andes (Instituto Riva Agüero, 1993, entre vários se aproxima da proposta de “histórias conectadas” defendida por Sanjay
outros) e Margarita Eva Rodríguez García: Criollismo y Patria en la Lima Subrahmanyam em seus estudos sobre a Ásia: Connected Histories: no-
ilustrada (1732-1795) (Miño y Dávila Editores, 2006). Sobre a região da tes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia (Modern Asian
Colômbia e Venezuela, ver Carl Henrik Langebaek: Los herederos del pa- Studies, vol. 31, n. 3, 735-762, 1997), mas também sobre a América:
sado; Indígenas y pensamiento criollo en Colombia y Venezuela (Universidad Holding the World in Balance: the connected histories of the Iberian Overseas
de los Andes, 2009); para a Guatemala, conferir os estudos produzidos na Empires, 1500-1640 (American Historical Review, 112(5), 1359-1385,
década de 1970 por André Saint-Lu: Condición colonial y conciencia criolla 2007). Uma proposta para pensar as monarquias ibéricas como poli-
en Guatemala (Editorial Universitaria, 1978) e Severo Martínez Peláez: cêntricas, à diferença tanto dos modelos absolutistas como da própria
La patria del criollo: ensayo de interpretación de la realidad colonial guatemal- noção de monarquia compósita, tem sido discutida com frequência e foi
teca (Editorial Universitaria Centroamericana, 1973). Outra abordagem sistematizada por historiadores vinculados à Red Columnaria em uma
que alcançou ampla repercussão nos últimos anos é a de Jorge Cañizares- obra programática editada por Pedro Cardim, Tamar Herzog, Gaetano
Esguerra, que trabalha com o conceito de epistemologia patriótica criolla: Sabatini e José Javier Ruiz Ibáñez: Polycentric Monarchies; How did Early
Como escrever a história do Novo Mundo: histórias, epistemologias e identida- Modern Spain and Portugal achieve and maintain a Global Hegemony?
des no Mundo Atlântico do século XVIII (Edusp, 2011). (Sussex Academic Press, 2012).
Monarquia, império, coroa: em um balanço historiográfico pu- Vida cotidiana e formas de sociabilidade: para obras que buscam
blicado recentemente (Empire: the concept and its problems in the his- abarcar toda a América hispânica, ver Georges Baudot: La vida cotidia-
toriography on the Iberian empires in the Early Modern Age, Culture na en la América española en tiempos de Felipe II (FCE, 1992), Magdalena
& History Digital Journal, vol. 3, n. 1, 1-10, 2014), os historiadores Horst Chocano Mena: La América colonial (1492-1763). (Cultura y vida co-
Pietschmann e Christian Hausser criticaram a falta de preocupação pre- tidiana, Madri, 2000) e o artigo de Manuel Hernández González:
sente em grande parte da historiografia que analisa o conceito de impé- Historiografía reciente sobre la cultura y la vida cotidiana en la América
rio em tentar definir este termo bem como diferenciá-lo de outros, como Colonial (1995-2005) (Chronica Nova, n. 32, 51-66, 2006). Da vasta
“monarquia” ou “mundo”. Para uma reflexão sobre este conceito tendo a produção acerca do vice-reino da Nova Espanha, ver, além das obras
América como objeto central, ver a obra de Anthony Pagden: Lords of all citadas ao longo do capítulo, os estudos realizados por historiadores
the World; Ideologies of Empire in Spain, Britain and France, c.1500-c.1800 como María Alba Pastor: Crisis y recomposición social. Nueva España en
(Yale University Press, 1995). Entre outros exemplos de autores que uti- el tránsito del siglo XVI al XVII (FCE, 1999) e os volumes iniciais da
lizam o conceito de império para analisar a Coroa hispânica no período, coleção Historia de la vida cotidiana en México (FCE, 2005) organizada
ver J. H. Parry: The Spanish Seaborne Empire (Hutchinson, 1966) e John por Pilar Gonzalbo Aizpuru; sobre a região da Venezuela, ver Carlos
H. Elliott: Imperial Spain: 1469-1716 (Penguin, 1990), que o associa à F. Duarte: La vida cotidiana en Venezuela durante el período hispánico
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(Fundación Cisneros, 2001); para a região do vice-reino do Prata, ver Extratos de documentos
os primeiros volumes das coletâneas Historia de la vida privada en la
Argentina (Taurus, 1999), organizada por Fernando Devoto e Marta Nesta seção, foram incluídos três documentos em verso produ-
Madero, e Nueva Historia Argentina (Editorial Sudamericana, 2000), zidos na Nova Espanha entre o final do século XVI e início do XVII que
de Enrique Tandeter; sobre o vice-reino do Peru, James Lockhart ana- apresentam, através de diferentes pontos de vista, representações que
lisa os primeiros passos da sociedade peruana em seu El mundo hispa- então circulavam sobre os criollos, os peninsulares e as terras do Novo
noperuano; 1532-1560 (FCE, 1982) e, para o período imediatamen- Mundo. A decisão por textos de uma mesma região deu-se pelo fato de
serem contemporâneos, além de, especialmente entre os dois primeiros,
te anterior ao processo de independência, as obras de Alberto Flores
estabelecerem um diálogo direto entre si.
Galindo: La ciudad sumergida: aristocracia y plebe en Lima, 1760-1830
Os textos iniciais são sonetos anônimos publicados originalmente
(Editorial Horizonte, 1991) e, mais recentemente, de John R. Fisher: em 1604 que apresentam acusações mútuas em relação à atuação de criollos
Bourbon Perú, 1750-1824 (Liverpool University Press, 2003). A res- e peninsulares na cidade do México (retirados de Mendes Plancarte, 1991). No
peito das santidades nas regiões dos vice-reinos da Nova Espanha e primeiro deles, um gachupín traça um panorama extremamente negativo da
do Peru, ver Teodoro Hampe Martínez: Santidad e identidad criolla: natureza e da sociedade que teria se desenvolvido em terras americanas:
estudio del proceso de canonización de Santa Rosa (Centro de Estudios
Regionales Andinos Bartolomé de las Casas, 1998), Antonio Rubial
“Minas sin plata, sin verdad mineros,
García: La santidad controvertida. Hagiografía y conciencia criolla alre-
mercaderes por ella codiciosos,
dedor de los venerables no canonizados de Nueva España (FCE, 1999),
caballeros de serlo deseosos,
Miguel León-Portilla: Tonantzin Guadalupe. Pensamiento náhuatl y
con mucha presunción bodegoneros.
mensaje cristiano en el “Nican mopohua” (FCE, 2000), David Brading:
La Virgen de Guadalupe: imagen y tradición (Taurus, 2002), Richard
Mujeres que se venden por dineros,
Nebel: Santa Maria Tonatzin Virgen de Guadalupe: continuidad y trans-
dejando a los mejores muy quejosos;
formación religiosa en México (FCE, 2005) e Verónica Salles-Reese: De
calles, casas, caballos muy hermosos;
Viracocha a la Virgen de Copacabana: representación de lo sagrado en el
muchos amigos pocos verdaderos.
Lago Titicaca (Plural, 2008). Dentro da extensa produção a respeito das
confrarias na América hispânica, ver estudos como as compilações de
Negros que no obedecen sus señores;
textos organizadas por Eduardo Carrera (et. al.): Las voces de la fe. Las
señores que no mandan en su casa;
cofradías en México (siglos XVII-XIX) (Ciesas, 2011) e Juan Guillermo
jugando sus mujeres noche y día;
Muñoz Correa (et. al.): Cofradías, capellanías y obras pías en la América
Colonial (UNAM, 1998), além dos balanços bibliográficos realizados
colgados del Virrey mil pretensores;
por Walter Vega para a região do vice-reino do Peru: Cofradías en
tianguez,16 almoneda, behetría…17
el Perú Colonial: una aproximación bibliográfica (Diálogos en Historia,
Aquesto, en suma, en esta ciudad pasa”.
n. 1, 137-152, 1999) e por Marcial Sánchez Gaete: Desde el Mundo
Hispano al Cono Sur americano. Una mirada a las Cofradías desde la his-
16 Possível referência a tianguis, palavra náuatle que se refere ao mercado local.
toriografía en los últimos 50 años (Revista de Historia y Geografía, n. 17 Termo que define um local onde os próprios habitantes elegem seus líderes, mas também
28, 59-80, 2013) que apresentam um grande número de referências. utilizado no sentido de confusão ou desordem. Em texto contemporâneo ao soneto acima, o jesuíta
José de Acosta definiu as behetrías como forma de organização precária praticada no período por
indígenas de regiões como a Flórida e o Brasil, “que no tienen ciertos reyes, sino conforme a la ocasión
que se ofrece en guerra o paz, eligen sus caudillos como se les antoja”. (Acosta, 1985, 64).
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No segundo soneto, o narrador criollo rebate acusações referentes ao dades realizadas quando da chegada do vice-rei Juan de Mendoza y Luna,
“nuestro mexicano domicilio”, apontando a ingratidão dos espanhóis que per- terceiro Marquês de Montesclaros, em 1603:
manecem no continente por longos períodos em busca de ascensão social, ao
mesmo tempo em que criticam essas terras: “[...]
Pues si á la Corte hace el real ornato,
“Viene de España por el mar salobre De ornato real en nuestra Corte hay sobra:
a nuestro mexicano domicilio, Coches, braveza, estados, aparato;
un hombre tosco, sin ningún auxilio, Que, aunque en títulos falta, en esto sobra.
de salud falto y de dinero pobre. Si allá tienen al Rey por inmediato,
Que como causa en sus efectos obra,
Y luego que caudal y ánimo cobre, Por potencial virtud de su presencia,
Le aplican en su bárbaro concilio Presente está aquí el Rey, por su potencia.
Otros como él, de César y Virgilio
Las dos coronas de laurel y robre [roble].18 Allá celebran á los ricos hombres,
Grandes, por su riqueza, entre los chicos;
Y el otro, que agujetas y alfileres Mas si riqueza engendra grandes nombres,
vendía por la calles, ya es un Conde Grandes veréis aquí, y muy grandes ricos,
en calidad, y en cantidad un Fúcar;19 Condes, marqueses y otros sobrenombres.
Si tienen quien les sirva de hocicos,
y abomina después del lugar donde Por vasallaje, que los fuerza á honrallos,
adquirió estimación, gusto y haberes; Aquí hay también señores de vasallos.
y tiraba la jábega20 en Sanlúcar”.
[…]
O terceiro documento selecionado é um pequeno trecho do poema
épico Canto intitulado Mercurio, escrito no início do século XVII pelo profes- Haber que se ganó, ciento y dos años,22
sor, presbítero e escritor estremadurenho, que vivia há anos no Novo Mundo, Y hoy ser Babel y emporio de naciones;
Tan madre natural de los extraños,
Arias de Villalobos (IN García, 1907, 261-264).21 Nele, o poeta traça um pa-
Que echa á los (que) parió, por los rincones.
norama altamente elogioso da capital da Nova Espanha a partir das festivi-
Y por trajinación de pro y de daños,
Parido haber millones de millones,
18 De acordo com Mendes Plancarte (1991, 137), expressão onde “le otorgan reputación de Sin los que al Rey, y al trato y mercancía,
cultura y de benemeréncia pública”. Saca de sí y despide cada día
19 Referência aos Függer, importante família de banqueiros alemães que manteve estreitas
relações com Carlos V.
20 Rede de pescar. Tarde llegaron los conquistadores
21 O título completo do poema é: Canto intitulado Mercurio. Dase razón en él, del estado y grandeza A aprender de la abeja y la hormiga;
de esta gran ciudad de México Tenoxtitlan, desde su principio, al estado que hoy tiene; con los príncipes
que la han gobernado por nuestros reyes. Apesar de escrito por volta de 1603, o poema foi publicado
apenas em 1623 (com alterações em algumas passagens, como as referentes às datações) como 22 O poeta toma como ponto de referência para o início da história da cidade o ano de 1521,
parte de uma obra mais extensa. Para informações biográficas sobre Arias de Villalobos e uma quando a cidade de México-Tenochtitlan foi invadida definitivamente pelo exército de espanhóis
análise sobre sua descrição da Cidade do México (Cf. Pullés-Linares, 2010, 73-93). e indígenas liderado por Hernán Cortés.
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Pues la prosperidad se les fué en flores,
Y aquel que guarda, halla y no mendiga.
Capítulo 2
De encomendados, hay comendadores,
Que éstos guardaron bien granos de espiga;
Mas los que á sus veranos dieron rienda, Fronteiras nas Américas: alianças,
Vino el Invierno y fuése la encomienda”.
identidades e conflitos (séculos XVI a XVIII)
Fernanda Sposito
José Carlos Vilardaga
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legiado para os estudos das identidades e etnias. Para esse último caso, o peruano Victor Belaúde e o mexicano Silvio Zavala. Algumas vezes,
os estudos sobre fronteiras étnicas propõem, por exemplo, que os limites buscaram também as comparações, mas dessa feita entre as fronteiras
postos nunca devam ser vistos como impermeáveis, mas sim como pro- americanas anglo-saxônicas e ibéricas. Nesses estudos, muitas vezes las-
cessos abertos e maleáveis (Barth; Poutignat, 1997). timou-se a ausência de um “mito da fronteira” ibero-americano, como
Em verdade, parece que o significado e uso do conceito de fron- aquele gestado por Turner, já que na tese do autor americano a fronteira
teira são muito mais atrelados às várias epistemologias que os acompa- fora fundamental para a formação da democracia, enquanto na tradição
nham do que a uma definição ampla e bem demarcada. O assunto tam- latino-americana a fronteira separava a civilização da barbárie (Wegner,
bém foi amplamente abordado pelo campo da História, que, de modo 2000). De todo modo, o tema já estava presente, mesmo que de modo
geral, compreendeu o termo sob o ponto de vista contextual, evitando as colateral, na seminal obra de Sarmiento, o Facundo (1845), opondo, ain-
grandes definições atemporais. Mesmo assim, alguns autores procura- da no século XIX, as instâncias da civilização urbana e do campo bárba-
ram elaborar uma teoria da fronteira, e os historiadores do tema foram ro. Nessa toada, a fronteira, para vários autores latino-americanos, teria
especialmente férteis nos Estados Unidos da América, onde chegou a fomentado o surgimento de tipos sociais muito característicos, mais ou
formar-se uma “Escola da Fronteira” (Cf. Weber; Solano & Bernabeu, menos incorporados às mitologias nacionais, como os gaúchos platinos,
1991, 61-84). O pioneiro e marcante trabalho de Frederick Jackson os huasos chilenos e os charros mexicanos.
Turner, “O significado da fronteira na história americana”, apresentado Para os historiadores, a fronteira foi vista, de modo geral, mais
em 1883, no contexto da Exposição Universal de Chicago, causaria for- como zona do que como linha, e seria definida na América Latina a partir
te impacto alguns anos depois, tornando-se onipresente em materiais de seus diversos tipos: indígenas, missioneiras, cimarronas, de exploração
didáticos e cartilhas norte-americanas (Turner; Knauss, 2004, 23-54). mineral, agrícolas e pecuária, e também políticas, jogando um importante
Turner participava de um evento que comemorava – com um ano de papel no processo de colonização americano (Hennessy, 1978). Fruto de
atraso – os quatrocentos anos da descoberta da América. O núcleo duro importantes diálogos da história com a antropologia, da etno-história, e
de sua tese buscava exprimir as diferenças entre as fronteiras europeias da geografia, a temática da fronteira na América Latina vem percorren-
e americanas, demarcando as influências que a fronteira exerceu sobre do uma trajetória comum que partiu das fechadas visões marcadamente
as instituições e sobre a própria sociedade americana, sendo, assim, um nacionalistas prevalescentes até a década de 1980, para concepções con-
dos elementos fundamentais de sua formação histórica e de sua iden- temporâneas que enxergam fronteiras como lugares de permeabilidade,
tidade. Vista como móvel e libertadora, a fronteira teria criado um ho- hibridismos e formadores de espaços (Prado, 2012, 318-333).
mem simples, igualitário e prático. A visão de Turner, essencialista em Foram entendidas como internas aos processos de expansão le-
sua forma de ver a fronteira, geraria muitos apoiadores, mas também vados a cabo por um ou outro império colonial, mas foram também ex-
muitos críticos, que questionaram a visão idílica da fronteira turneriana, ternas em seus pontos de contato em espaços disputados por esses mes-
que minimizava as populações indígenas, a violência e os intercâmbios mos impérios (Quarleri, 2009). Deixaram de ser vistas como naturali-
fronteiriços. Além disso, ignorava completamente os assentamentos es- zadas e uniformes, tornando-se um processo dinâmico e extremamente
panhóis na América do Norte (Weber, 1991). Uma “Nova História do heterogêneo. Plenamente histórico. Nos últimos anos, a visão sobre a
Oeste” passou a ver a fronteira não mais como a separação entre civili- fronteira tem ressaltado mais seu aspecto integrador, que aproxima cul-
zação e mundo selvagem, mas como os limites sociais e geográficos dos turas e gera zonas de contato, de mestiçagem ou de transculturação. O
impérios coloniais na América (Guy; Sheridan, 1998, 3-15). desafio aí é não perder de vista o caráter violento e assimétrico presente
A seara aberta pelo historiador norte-americano foi percor- muitas vezes nesses “encontros”.
rida por alguns autores que, como ele, compreenderam a fronteira na É sobre parte desse amplo universo de fronteiras nas Américas
América como um dos seus elementos formativos mais essenciais, como entre os séculos XV e XVIII que este capítulo se debruça, analisan-
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do-as em suas ambiguidades, como pontos de conflito e beligerância, à risca, a tríade de seu tempo: descoberta, invenção e inovação, tentando
mas também como locais de encontro e alianças. O historiador espanhol praticar a aritmetização da realidade. Em seu texto, breve, dizia literal-
Francisco Solano já disse que, na América, fronteira e linha de demarca- mente que: “se faça e asygne pello dito mar oceano huma raya ou linha direta
ção não coincidiram nunca (Solano; Bernabeu, 1991, 189). Assim, nada de poolo a poolo, scilicet, do pollo ártico ao pollo antarctico que he de norte a
melhor do que começar analisando um dos grandes marcos na tentati- sul”. Nele, ainda se previa que uma expedição seria preparada para defi-
va do estabelecimento de uma linha demarcatória para as Américas: o nir esses limites, o que nunca aconteceu.
Tratado de Tordesilhas, que dividiu o Mar Oceano, e suas terras, entre O Tratado também revela uma forte e naturalizada presunção
Espanha e Portugal. É, sem dúvida, um dos atos fundadores da coloni- - ancorada num enorme entusiasmo messiânico e num profundo desejo
zação americana. de poder dos soberanos envolvidos - de divisão do mundo à revelia de
quaisquer dos habitantes dos territórios envolvidos (Gruzinski, 1999).
De qualquer modo, ele teria repercussões na cartografia produzida nos
Tordesilhas e a divisão do mundo anos posteriores, elaborada sobretudo a partir da opinião de práticos e
navegantes. A linha, que cruzava a embocadura do rio Amazonas ao
Era já meados do ano de 1494, mais precisamente em 7 de Norte, teve uma trajetória mais elástica ao Sul, cobrindo desde Cananeia
junho, na pequena vila fronteiriça de Tordesilhas, na beira do rio Douro, até as proximidades do Rio da Prata. Sua variação obedeceu sobretudo à
que os agentes diplomáticos dos reinos de Portugal e de Castela e realidade física e aos mais diversos condicionantes, dentre eles invasões,
Aragão assinaram um tratado de importância fundamental tanto para tratados, apropriações e domínio de fato, causando amplos desdobra-
as pretensões expansionistas coevas de Portugal e Espanha, quanto para mentos nas relações entre Portugal e Espanha na América Meridional
as relações geopolíticas de vários reinos europeus nos anos vindouros. (Magalhães; Torres, 1994, 91-101). De qualquer modo, mais ou me-
O documento, que seria ratificado pelos reis de Castela e Aragão, Isabel nos levado a sério, o Tratado prevalecerá até o século XVIII, quando
e Fernando, em 2 de julho, e, pelo rei português D. João II, em 5 de o Tratado de Madri (1750) já será a expressão de uma nova realidade,
setembro, teria fortes implicações para o continente recém-encontrado mais concreta, científica e diplomática, das relações entre os ibéricos
pelos europeus, mas ainda desconhecido em sua natureza e singulari- nesses mesmos territórios.
dade. Era, até certo ponto, um documento inusitado já que, ao dividir O Tratado de Tordesilhas previa, a rigor, um semi-meridiano
o Mar Oceano por uma linha meridiana, definida a 370 léguas do ar- em 1494 e pode-se imaginar que ele ficou numa certa penumbra até
quipélago do Cabo Verde, traçava uma fronteira num espaço desconhe- a segunda década do século XVI, já que não é citado nem na segunda
cido. Era sobretudo um exercício de imaginação, pois os conhecimen- viagem de Colombo, nem na carta que D. Manuel escreveu ansioso aos
tos e recursos disponíveis na época não permitiam qualquer precisão. reis de Castela e Aragão para comunicar as descobertas de Vasco da
Conheciam-se as latitudes, mas não as longitudes. As léguas tinham Gama, ambas já sob o signo do acordo. A sua precisão só passou a ser
padrões mutantes e, ademais, não se especificou a partir de qual das ilhas uma obsessão de Carlos V e D. João III quando ficaram preocupados
do arquipélago começaria a medição. Entre a mais oriental – Boa Vista em regular a presença de espanhóis e portugueses nos mares orientais,
– e a mais ocidental – Santo Antônio - há uma diferença de quase três recém-abertos pela via do Pacífico através da expedição de Fernão de
graus (Albuquerque, 1973). Magalhães, que chegara às Molucas. Em 1524, uma nova Junta de es-
O Tratado de Tordesilhas expressava toda uma época de pro- pecialistas reuniu-se alternadamente em cada lado da fronteira europeia
funda alteração na concepção do mundo. Para Antonio Marques, seus luso-castelhana para repensar as fronteiras ibéricas no além-mar. Entre
autores eram “homens de um mundo que se esfuma e que assentam os Elvas, território português, e Badajóz, castelhano, tentou-se definir um
pés num outro que ainda não conhecem” (Almeida, 2000, 8). Cumpriam, meridiano que atravessasse o globo (Gonzalez; Torres, 1994, 311-325).
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De qualquer modo, diante da dificuldade de calcular as longitudes, só já foi chamado de “expansionismo preemptivo”, que sinaliza para ações
suplantada no século XVIII, a linha era bastante fluida. A história do portuguesas que respondem continuamente a uma ameaça real ou virtual
Tratado parecia acompanhar, assim, num curto espaço de tempo, a gra- dos vizinhos rivais, como que impulsionando Portugal numa lógica de
dativa reunião e “descoberta” de um mundo que era, até então, bastante movimento espelhada com Castela (Alencastro; Novaes, 1998, 193-207).
fragmentado (Bennassar; Novaes, 1998) Não se pode, de fato, analisar o Tratado de Tordesilhas, bem
Todavia, se por um lado o Tratado de Tordesilhas necessitou como os desdobramentos fronteiriços ibéricos na América, sem se le-
de ampla imaginação para sua definição, por outro devemos compreen- var em conta a longa história fronteiriça entre os reinos de Portugal e
dê-lo como o ponto final de uma longa série de bulas papais e tratados Castela na Península. A própria formação territorial de ambos os rei-
estabelecidos nas décadas anteriores, que o embasaram em sua forma nos, a partir do século XVI, deve ser analisada, muitas vezes, em relação
final. Desde os primeiros passos portugueses em sua expansão maríti- direta com a dinâmica territorial americana (Herzog, 2015). O reino
ma, as bulas foram devidamente providenciadas junto ao papado como português já se encontrava praticamente consolidado, inclusive em ter-
forma de legitimar, preservar e publicizar as conquistas lusitanas. No mos de fronteiras, em 1249, quando terminou a conquista do Algarve,
tempo ainda do quase lendário Infante D. Henrique (1394-1460), as ao Sul. As fronteiras com Castela foram formalizadas em 1297, mas a
bulas pareciam seguir estritamente as solicitações feitas pelos represen- relação com o assemelhado e entrelaçado reino vizinho será bastante
tantes portugueses. Uma das primeiras, a Dum Diversas, de 18 de junho tumultuada e marcada por inúmeros conflitos ao longo da Idade Média.
de 1452, autorizava o rei português a conquistar e submeter sarracenos, A antiga fronteira (raya) entre Portugal e Espanha na Europa
pagãos e infiéis “inimigos de Cristo”. Estabelecia ainda a captura de era na verdade mais uma franja do que uma linha, sobretudo quando
seus bens e territórios, reduzindo-os à escravidão perpétua e transferin- não coincidia com algum acidente geográfico. Os viajantes que transpu-
do suas propriedades e terras ao rei de Portugal. A seguinte, Romanus nham algumas dessas áreas de fronteira poderiam só se aperceber dis-
Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, autorizava o reino a submeter e con- so quilômetros depois. Onde não houvesse um rio, um vale profundo,
verter pagãos do Marrocos às Índias, termo que nesse momento com- uma garganta, a raya se tornava imprecisa, situando-se por vezes nos
preendia praticamente todo o Oriente. Assegurava ainda os monopó- limites das vilas ou cidades. Foi sempre um tema de discussão entre os
lios portugueses sobre suas descobertas futuras ao sul do temível Cabo reinos e pontuada por fortalezas e castelos, alguns fixos e tradicionais,
Bojador, finalmente sobrepujado em 1534. Ela proibia expressamente outros mais instáveis. Seu traçado teria uma conformidade um pouco
que qualquer nação infringisse o direito português. Por fim, a Inter ca- mais regular somente ao final do século XV. Nesse século, a centraliza-
etera, de 13 de março de 1456, do papa Calisto III, confirmava as ante- ção gradativa dos reinos implicou também em tentativas de construir
riores e concedia à Ordem de Cristo, da qual o Infante D. Henrique era uma política uniforme para a raya, até mesmo com atuações sobre os
o administrador, a jurisdição espiritual sobre as regiões conquistadas no “senhores de fronteira”, uma nobreza que ajudava a fracionar o território
presente e no futuro (García Y García; Torres, 1994, 293-310). fronteiriço. A figura do rei se faria cada vez mais presente nas fronteiras,
A necessidade de preservar as conquistas portuguesas na costa como em todas as partes (Martín; Torres, 1994, 29-51). De qualquer
ocidental africana tinha várias origens. Uma delas era a preocupação di- forma, como um historiador disse uma vez: é mais fácil dividir o mundo
reta em relação a Castela, reino vizinho com o qual Portugal tinha uma do que um palmo de terra, e o exemplo ibérico é o mais apropriado para
longa história de identidades e rivalidades. Mesmo que o reino castelhano confirmar a tese (Magalhães, 1994, 96). Onde havia rios e vales, ou ser-
estivesse bem atrás do português no processo de expansão marítima no ras e montanhas, as definições eram mais fáceis, mas onde não existiam
século XV, o assentamento de Castela nas Canárias e a presença de na- esses marcos, a indefinição daria o tom.
vios castelhanos continuamente comercializando na costa africana inco- Essas fronteiras e suas populações sofreram as vicissitudes dos
modavam os portugueses. Esse clima de concorrência alimentaria o que conflitos políticos entre os dois reinos, alternando momentos de paz
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com intenso trato comercial com outros de guerra, nos quais as relações concluída em 1492, ano simbólico para a Espanha: além dessa anexação,
eram proibidas, pelo menos aquelas que envolviam comércio com os o ano presenciou a expulsão dos judeus do reino, a divulgação da primei-
chamados produtos vedados, como armas, montarias e trigo. Os mer- ra gramática castelhana de Antonio Nebrija e a chegada de Colombo
cadores e também os moradores de fronteiras, muitas vezes donos de à América. A somatória desses eventos, lidos a posteriori, configura
terras em ambos os lados, eram os que mais sofriam em períodos belico- bem um império cristão que se pretende expansionista e homogêneo
sos. Seja como for, o contrabando foi uma constante na relação entre os (Vincent, 1992).
reinos, fosse em tempos de paz ou guerra. Para o reino português, Castela e Aragão reconheciam através
As fronteiras ibéricas também foram tensionadas pelas adua- do tratado os direitos de Portugal sobre as ilhas Madeira, Açores e a
nas, somente abolidas por um breve período entre 1582-1590, duran- costa africana. Esse tratado, ratificado em 1480, teve seus princípios re-
te o reinado de Felipe II e no contexto da União das Coroas Ibéricas. afirmados na bula papal de Sisto IV, Aeterni regis, e pode ser considerado
Ademais, o tema dos exilados - e das respectivas extradições - também uma primeira partilha do mundo. Na compreensão de D. João II, rei de
foi um ponto de atrito entre ambos os reinos. O exílio dos Bragança e Portugal, o tratado assegurava o norte das ilhas Canárias a Castela e o
seus aliados em Castela depois da punição e retaliação de D. João II; e Sul, ao reino português, através de um paralelo. Pelo menos foi esse o
a fuga dos judeus da Espanha no contexto de sua expulsão no final do argumento que o rei utilizou anos mais tarde para fazer valer seus inte-
século XV são dois exemplos disso. resses depois do retorno de Colombo de sua primeira viagem às Índias.
Entre 1325 e 1411 os dois reinos viveram em constante clima O retorno do navegador genovês em 1493 - que tentara a sorte
de beligerância e guerra, o que se revelaria catastrófico especialmente anos antes em Portugal - passando por Lisboa, acionou os esforços da
para a população que habitava a amplíssima fronteira. Esses conflitos diplomacia portuguesa e instalou a tensão na corte lisboeta. O fato é que
se associavam a questões dinásticas, problemas de controle da região a velha proeminência portuguesa junto ao papado havia dado lugar à in-
do Gibraltar e até mesmo aos desdobramentos dos conflitos da Guerra fluência de Fernando e Isabel sobre o valenciano Rodrigo Bórgia, intitu-
dos Cem Anos (1337-1453). A Revolução de Avis (1383-85) se fez so- lado Alexandre VI, que nesse mesmo ano proclamou a bula Inter cetera,
bretudo a partir da vitória do Mestre de Avis, em Aljubarrota, sobre as na qual outorgava-se aos Reis Católicos todos os territórios descobertos
tropas castelhanas de João I de Castela, que invadira o reino português ou a descobrir na direção das chamadas Índias, para além de uma linha
em busca de sua anexação em nome de sua esposa Beatriz, candidata ao situada a cem léguas dos Açores e Cabo Verde, numa prefiguração do
trono de Portugal. Um tratado seria assinado em 1411, o que asseguraria que seria Tordesilhas um ano depois.
relativa paz entre os reinos, mesmo que alimentada por um constante O Tratado é, portanto, uma resposta diplomática, negociada, da
ambiente de desconfiança. bula de 1493, na qual já se sentiam os primeiros ecos da realidade ame-
As tensões atingiram um novo ápice em 1475, quando o rei ricana. Ao final, D. João II conseguiu garantir a hegemonia portuguesa
de Portugal, D. Afonso V, alimentando o sonho de fundir as Coroas de na África, bem como a futura rota para a Índia, aberta em 1498 com
Portugal e Castela através de seu casamento com sua sobrinha Joana - Vasco da Gama. Por fim, ainda lhe restou um bom bocado da América
conhecida como a Beltraneja, filha de Henrique IV de Castela -, invadiu Meridional, naquele momento mais suspeito que efetivo, apesar da
o reino castelhano em 1475. A guerra, que arrasou dezenas de povoados questionável tese do “sigilo dos descobrimentos”, que defende a ideia
de fronteira, terminou com a assinatura do Tratado de Alcaçovas, em de que ao par das viagens conhecidas, existiram várias outras feitas às
1479. Através dele, o Reino de Portugal abria mão de suas pretensões escondidas (Cortesão, 1960). Aos Reis Católicos, assegurados em sua
ao trono de Castela, reconhecia o direito desse reino ao arquipélago das hegemonia castelhana-aragonesa, a assinatura do Tratado garantiu as
Canárias, bem como à sua conquista do reino de Granada. Essa con- plataformas marítimas canarinas e um oceano de possibilidades no con-
quista, que encerra em parte as fronteiras ibéricas castelhanas, só será tinente que se abria aos desejos expansionistas europeus. As fronteiras
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externas na América, imaginadas nas linhas demarcatórias dos Tratados como para a pesca” (Apud Gesteira, 2006, 233). Grotius questionava a
quatrocentistas, passariam efetivamente a ser traçadas no cotidiano do autoridade das bulas papais e reivindicava o direito dos outros reinos
processo de conquista, nos limites impostos pelas variadas fronteiras in- usufruírem dos mares. Em especial, tentava garantir as já bem estabe-
ternas e nas negociações dos dois lados do Atlântico. As fronteiras pas- lecidas redes comerciais neerlandesas, que envolviam as mercadorias da
saram a se organizar, dessa forma, no jogo de relações e negociações es- América, África e Ásia. Por isso mesmo, se posicionava contra a pirataria
tabelecido pela multiplicidade de agentes locais diretamente envolvidos e até mesmo contra a guerra aberta contra os reinos ibéricos. Assim, as
na organização desses espaços. Assim, como afirma Tamar Herzog, a terras americanas em regime de “contrato” com os naturais, reconhecia
partir dessa fronteira feita “no chão”, não faz sentido encampar uma vi- ele, pertencia aos reinos que delas usufruíam. Isso, por outro lado, abria
são que tradicionalmente opôs as fronteiras europeias, entendidas como a possibilidade de ocupação de espaços considerados “vazios” (Apud
naturais, das coloniais, chamadas de artificiais, pois teriam sido pensa- Gesteira, 2006, 233). De qualquer modo, o panfleto estava plenamente
das e traçadas conforme vontades extemporâneas advindas da Europa inserido na contestação dos direitos das monarquias ibéricas, naquela
(Herzog, 2015). altura vivendo um desejado – mas até certo ponto inesperado – período
O que interessa ressaltar aqui é que, fadados a viver uma re- de reunião das Coroas em nome dos Habsburgo de Espanha (1580-
lação fronteiriça tão antiga, intensa e contínua em território europeu, 1640). A incorporação do patrimônio português à Coroa de Felipe II
os ibéricos reproduziriam essa sina em outros espaços e continentes, parecia transformar o ideal da monarquia católica, pretensamente uni-
em especial no território americano. Os reinos ibéricos, concorrentes versal, numa realidade que se estendia pelos quatro cantos do mundo. As
empedernidos, trançariam ainda mais seus domínios e suas linhagens, fronteiras tornaram-se mundiais. Como afirma Gruzinski:
até o ponto da tão almejada reunião das Coroas (1580-1640), só que
sob batuta castelhana, no reinado de Felipe II. Mas outros reinos eu- Durante esse longo meio século, a Península Ibérica em sua
ropeus logo dariam o ar da graça nos territórios e mares divididos com integralidade, uma boa parte da Itália, os Países Baixos me-
ridionais, as Américas espanhola e portuguesa, da Califórnia
tanta reserva e presunção pelos reinos da Península Ibérica. O Atlântico,
à Terra do Fogo, as costas da África ocidental, regiões da
fronteira natural de Portugal, também era de Castela, Aragão, França, Índia e do Japão, oceanos e mares longínquos compuseram o
Inglaterra e dos territórios do Sacro Império Romano Germânico desde “planeta filipino” sobre o qual, a cada meia hora, a missa era
muito antes das primeiras aventuras lusas em terras africanas, na tomada celebrada (2014, 46).
de Ceuta em 1415.
A “posse” ibérica destas terras e mares, dilatada nessa conjun-
tura, já vinha sendo contestada desde longa data. De fato, as queixas fla-
O Caribe e a América do Norte mengas podem até ser consideradas tardias (Stols, s/d, 1279-1295). Há
uma frase famosa, supostamente dita pelo rei francês Francisco I, que,
Em 1609, um panfleto holandês intitulado Mare Liberum, de apesar de duvidosa, sintetiza bem uma certa apreciação de outros reinos
Hugo Grotius (1583-1645) trouxe à tona, em vocabulário jurídico, o europeus em relação à divisão do mundo iniciada em 1494 e continuada
tema da legitimidade da posse dos mares por portugueses e espanhóis. em 1524. Teria dito: “gostaria muito que me mostrassem o artigo do
Enquadrado na luta de independência dos Países Baixos contra a mo- testamento de Adão que divide o mundo entre meus irmãos, imperador
narquia Habsburgo assentada na Espanha, o texto apregoava o direito Carlos V e o rei de Portugal, excluindo-me da sucessão”. Ela coloca em
natural dos povos de navegarem livremente pelos mares: “o mar, imen- pauta um questionamento francês, holandês e também inglês que justi-
so em demasia para ser possuído por este ou por aquele, e, além disso, ficaria sobremaneira uma série de iniciativas mais ou menos sistemáticas
maravilhosamente disposto para o uso de todos, tanto para a navegação de ferir os interesses ibéricos nas Américas. Uma delas seria a chamada
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pirataria, outra o chamado comércio ilegal, ou contrabando. Em grande prisioneiros da Inquisição instalada no México em 1571 era composta por
parte das vezes, as duas coisas andavam juntas. protestantes corsários e piratas capturados na região caribenha ou sobre-
O rei francês, por exemplo, apoiaria firmemente os armadores viventes de naufrágios (Fernandes, 2014, 172-201).
comerciais de Honfleur, Rouen e Dieppe, que navegariam continua- O Tratado de Cateau-Cambresis, de 1559, assinado entre
mente pela costa atlântica meridional comercializando pau-brasil com Espanha e França, encerrara um dos principais conflitos europeus, em
os indígenas, bem como as iniciativas de Jean Ango (1480-1551) na torno da Itália, mas permitia que para além do primeiro meridiano
chamada Terra Nova, no Atlântico Norte, onde os franceses pratica- Atlântico e ao sul do Trópico de Câncer, não haveria paz. Tal perspectiva
riam sistematicamente a pesca. Ango é um exemplo da junção entre as manteve o impulso dos armadores e navegantes franceses da Normandia,
atividades comerciais, da qual era um importante representante, com por exemplo. Centrados nas ações de tratos comerciais, pesca e corso,
o chamado corso, ao qual se dedicou ativamente com licença real. Um os franceses pouco interesse tiveram em projetos coloniais sistemáticos
de seus comandados, Jean Fleury (1485-1525), foi um dos primeiros nesses primeiros dois séculos da colonização das Américas, mas isso não
corsários a atuar intensamente na rota do Atlântico, tendo, inclusive, a significa que não experimentaram algumas situações. As experiências
fama de ter capturado, na altura dos Açores, um dos navios que trazia o fracassadas dos huguenotes no Canadá (1535-1543), França Antártica
quinto real das riquezas do México enviado por Hernán Cortez. Tanto (1555-1560), na Baía de Guanabara e Flórida (1562-1565), bem como
no imaginário, quanto na retórica da época, a presença de navios de a dos católicos na França Equinocial (1612-1615), reúnem desde pro-
outras bandeiras nos territórios ibero-americanos de além-mar, mesmo postas de construção de uma “república cristã nos trópicos”, até um em-
que muitas vezes tivessem somente intenções comerciais, era vista como preendimento comercial voltado ao tráfico caribenho. Os franceses ain-
simples corso ou pura pirataria. Em verdade, os navios poderiam forçar, da voltariam ao Canadá em 1604, agora com maior sucesso, e atuariam
até por meios violentos, as arribadas para abastecimento e provisão, di- na Guiana a partir de 1624, com apoio direto do Cardeal Richelieu.
reito incluído, por exemplo, num esboço inglês de legislação marítima: o Mas seria somente com a ascensão do ministro Colbert (1661-1683)
Estatuto de Ofensas no Mar, de 1535. Isso daria margem a muita confu- que uma política marítima e colonial começaria a ganhar forma junto
são interpretativa quanto às ações mercantis e/ou corsárias. 23 No fundo, ao reino francês.
essa distinção fluida espelha o momento do próprio mercantilismo, no Nesse sentido, os franceses atuariam na grande “fronteira im-
qual atividades comerciais, guerra, incentivo estatal e religião andavam perial” do Caribe. As amplas dimensões do território e a infinidade de
imbricados no mesmo processo. ilhas que compõem o espaço caribenho, ao lado de uma dificuldade con-
Nesse sentido, não se pode negar, que muitas ações corsárias e de creta de defender uma região que apresentava interesses bastante desi-
pirataria vinham acompanhadas de intensa luta religiosa, reverberando, guais para os espanhóis, tornaram o Caribe o espaço ideal para a ação
nos novos mares e terras descobertos, os conflitos de religião que mar- e presença das outras potências coloniais. O local foi palco da ação dos
cavam a Europa nos séculos XVI e XVII. Enfrentar os papistas católicos corsários – a serviço dos Estados -, ou dos piratas – mais independentes.
ou os pérfidos protestantes nos mares era um capítulo de uma luta muito Mas foi principalmente o cenário para o surgimento de dois tipos so-
maior, e romper o Tratado de Tordesilhas era quase uma obrigação. O hu- ciais muito peculiares: os bucaneiros, instalados em comunidades de ori-
guenote Jacques de Sore, por exemplo, atemorizou Cuba entre as décadas gem diversificada no Norte da ilha La Hispaniola, dedicados à produção
de 1550-1560, saqueando e incendiando suas cidades e portos, prendendo de carnes defumadas para o tráfico comercial com os navios de corso
o bispo, afogando jesuítas e roubando igrejas. Fazia isso com o objetivo e comércio; e os filibusteiros, instalados inicialmente nas ilhas Tortuga,
claro de ofender os católicos. Em compensação, boa parte dos primeiros também ao norte de La Hispaniola, dedicados ao comércio clandestino
no Caribe e ao ataque sistemático aos navios espanhóis de qualquer
23 A diferença tradicional entre as duas reside, comumente, no caráter mais oficial e estatal do
primeiro, e na ação individual do segundo. (Duran, 2011). natureza (Apestegui, 2000). A ocupação da região norte da Ilha se deu
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em função do abandono daquele território por cédula real espanhola de e ataques às plantações e vilas próximas, de modo geral em retaliação, e
Felipe III, em 1603, na qual se projetava a concentração dos espanhóis seu tamanho só foi crescendo na medida em que a escravidão aumentou,
na parte leste e sul da ilha, para melhor defendê-la. O efeito foi o opos- com a exploração do açúcar e a importação maior de escravos. Poderia
to: muitos colonos espanhóis preferiram mudar para Cuba, enquanto a ser considerada uma fronteira cimarrón, que incomodava as autoridades
parte norte ficou aberta para a ocupação de colonos de outros reinos. De de ambas as partes da ilha, mas que assim mesmo conseguiu construir
fato, aos poucos esses bucaneiros e filibusteiros passaram a ocupar as terras uma intensa rede de relações comerciais com as populações coloniais
da ilha de São Domingos, onde se tornaram pioneiros nas plantations francesas e espanholas que viviam nas cercanias (Deive, 1985).
do que mais tarde seria Saint Domingue (Haiti), joia da Coroa francesa O mesmo se deu com os chamados Garifunas, populações mis-
no século XVIII, com sua produção de algodão, tabaco, anil e principal- cigenadas de negros escravos com populações indígenas Caribe e Arawak,
mente açúcar. Tudo isso ancorado no trabalho de quase meio milhão de que vivem ainda hoje em territórios do Belize, Guatemala, Honduras e
escravos africanos em fins dos setecentos. Nicarágua. Praticam uma religião e um idioma mesclado entre práticas
De modo geral, a historiografia sobre o Caribe tem como te- nativas, africanas, católicas e protestantes e simbolizam a mestiçagem co-
mas privilegiados de análise o extermínio indígena, o tráfico negreiro, a lonial caribenha, fazendo valer a formação de novas identidades surgi-
escravidão e as plantations, a crioliozação e a chamada cimarronaje. Foram das no processo de conquista e colonização da América. A etnogênese de
sociedades que, apesar de terem sido multiétnicas e ocupadas por dife- fronteira é presente também na região entre o Suriname, Guianas e Brasil,
rentes grupos, partilharam processos históricos, ritmos de vida, vegeta- onde os cimarrones compostos por uma mistura de vários grupos indíge-
ção, clima e paisagens (Schwartz, 2006-2007, 28-43). Esse mundo mar- nas, negros de diversas etnias e colonos brancos espanhóis, portugueses,
cado pela exploração sistemática e avassaladora de indígenas e negros, franceses e holandeses, compunham mais uma dessas sociedades trans-ét-
bem como pelas renhidas disputas coloniais, gestou um locus ideal para nicas. Ocupavam espaços fronteiriços pouco demarcados, erguendo uma
as discussões dos estudos pós-coloniais e seus debates sobre identida- teia de relações comerciais com os mais distintos colonos assentados na
des (Hall, 2005). Termos como Antilhanidade ou Crioulidade, este mais região, fossem pequenos agricultores, taberneiros ou comerciantes, ven-
abrangente, ganharam força para se pensar em sociedades caribenhas do-os mais como aliadosdo que como inimigos (Gomes, 2011, 631-644).
com geografia, história e cultura partilhadas, mas que guardam amplo Os habitantes da região ao norte da Borgonha, os holandeses,
espaço para a preservação da diversidade e do dinamismo (Bernabé, em guerra incansável de independência contra o império espanhol des-
Chamoissean; Confiant, 1989). de 1568, também se aventuraram pelos mares atlânticos e caribenhos.
Isso pode ser exemplificado quando pensamos as relações entre Cornelius Jol (1597-1641), conhecido como “pie de palo”, por exem-
as partes espanhola e francesa da ilha de La Hispaniola, que foram ofi- plo, era almirante da Companhia das Índias Ocidentais e um temível
cialmente tensionadas sob o ponto de vista das cortes europeias, mas se- corsário que assolou as frotas espanholas e portuguesas no Atlântico.
riam de modo geral pacíficas no cotidiano. A São Domingos espanhola Assediou as costas caribenhas, brasileiras e mexicanas. Pieter Van Der
tornou-se produtora de gado, com suas carnes e couros abastecendo não Does (1562-1599), recebeu o comando de 74 navios com quase 9.000
só Saint Domingue, como outras ilhas da região (Soler, 1991, 163-185). homens para atacar as rotas de conexão da América com a Espanha.
Por outro lado, entre as duas partes, ao sudoeste do atual ter- Sua expedição foi um fracasso, mas demonstra cabalmente a força que
ritório dominicano, nas chamadas montanhas do Maniel, Serra do esses embates atlânticos tinham para as rivalidades europeias e para os
Baoruco, desde a segunda década do século XVI refugiavam-se escra- projetos coloniais, cada vez mais inter-relacionados.
vos negros, que se miscigenaram aos grupos indígenas remanescentes, Desde 1612 os holandeses se instalaram num trecho na Guiné
compondo comunidades trans-étnicas de refugiados, chamadas de ci- e passaram a promover intenso tráfico com o Caribe, onde partilharam
marrones em espanhol, ou marronages em francês. Promoviam incursões de feitorias em Aruba, Bonaire, Sabá, dentre outras ilhas nas Antilhas.
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Curaçao, uma das principais, foi tomada por Johannes Van Welberck comerciais, como o célebre sir John Hawkins, que negociava com São
em 1634. No local existiam 32 espanhóis, que foram insuficientes para Domingos e Venezuela os escravos negros que trazia da África. Foi, por
efetuar qualquer defesa da ilha. O lugar tornou-se um centro de redistri- outro lado, o terror das frotas que vinham da Nova Espanha e um dos
buição de escravos negros trazidos da Guiné. Além do Caribe, os holan- grandes articuladores da marinha inglesa. Um de seus jovens discípulos,
deses instalaram-se na América do Norte - na ilha de Manhattan, onde o também sir Francis Drake, atuou largamente nos mares do Sul, cru-
fundaram Nova Amsterdã, cedida aos ingleses em 1667 (depois da Paz zando o estreito de Magalhães e chegando ao Pacífico. Como Hawkins,
de Breda) no Brasil, onde efetuaram um primeiro ataque em Salvador era um comerciante com acordos comerciais no Caribe e um corsário
(1624-25) e depois ocuparam vastas porções do Nordeste brasileiro en- quase mítico, que numa só expedição em 1585 atacou a Espanha, as
tre 1630-1654, e no Suriname, que depois de algumas tentativas isola- Canárias, São Domingos e Cartagena.
das de colonização, teve uma experiência mais duradoura entre os anos Assim como franceses e holandeses, os ingleses estariam nessa
de 1683 e 1698, com o governador Aerssen Van Sommeldjik. espécie de partilha do Caribe, tendo a ilha da Jamaica como base de seu
Assim como os franceses, os ingleses também afrontaram cla- sistema de feitorias e entrepostos comerciais na região. Ali se assentaram
ramente as pretensões ibéricas nas Américas, em especial no final do em 1655, depois de expulsarem os espanhóis. Muitos escravos negros
século XVI e inícios do XVII. Isso ocorreu quando a Rainha Isabel I aproveitaram o conflito para se refugiarem nas montanhas do interior,
(1533-1603), depois de ter frustrado as pretensões matrimoniais de onde, como em outras partes, miscigenaram-se com grupos indígenas
Felipe II, entrou numa luta global contra o império espanhol, o que Taino, compondo comunidades livres de marrons que sobreviveriam até
incluía a peleja pelos mares, na qual a derrota da Invencível Armada de o século XVIII.
1588 foi um importante capítulo. A excomunhão da rainha inglesa daria Com quase um século de atraso em relação aos ibéricos, o que
ao conflito um sentido religioso fundamental. Inicialmente, os ingleses teria importantes repercussões nos projetos e expectativas coloniais, já que
se aventuraram na saída pelo Noroeste, na região da Terra Nova, utili- as experiências lusitanas e espanholas serviriam de modelo para a Inglaterra,
zando-se para isso até mesmo dos conhecimentos de experimentados esse reino também se lançaria à aventura da colonização continental no
pilotos portugueses e espanhóis, que colocavam sua prática e conhe- século XVII. Um dos maiores propagandistas dos projetos coloniais na cor-
cimentos de mundo sendo desvelado a serviço de múltiplas empresas. te de Isabel I, Richard Hakluyt (1552-1616), dizia com forte proselitismo
Sebastião Caboto, por exemplo, depois de ter servido aos espanhóis, se protestante e comercial que, “se o governo das Índias Orientais e Ocidentais
mudou para a Inglaterra, onde serviria aos ingleses, o que lhe rendeu a ficar na mão de um só príncipe, elas não receberão tecidos ingleses nem
acusação de traição por parte de Carlos V. nos venderão seus produtos”. As primeiras iniciativas de colonização con-
Como no caso francês, as iniciativas inglesas de corso, pira- tinental na América do Norte, ainda em 1584-85, foram feitas por Walter
taria, comércio e experimentações coloniais andariam juntas, sendo Raleigh (1552-1618) - ele também um misto de cortesão, comerciante, cor-
mais ou menos bem-sucedidas, em função das conjunturas e da ma- sário e colonizador – e seria o ponto inicial de uma gradativa ocupação dos
turação dos projetos coloniais de cada reino. O primeiro ataque pirata territórios da costa leste da América do Norte, que formariam as chamadas
a uma possessão espanhola teria sido inglês, em 1527, na ilha de São 13 colônias. O território seria sobretudo um local onde os tradicionais em-
Domingos. Desde a segunda metade do século XVI, quando a Espanha bates com o império espanhol dariam lugar principalmente às rivalidades
formatou seu sistema de frotas anuais e de monopólios comerciais, o franco-inglesas. As propostas coloniais de Raleigh, de concessão de terras,
contrabando seria uma das práticas privilegiadas nessas redes de rela- pagamento de quintos reais e demanda por minérios, não apresentavam, em
ções meio violentas, meio comerciais, que contavam com a conivência essência, grandes diferenças dos empreendimentos ibéricos.
de muitos colonos espanhóis, visto o acesso mais barato às mercadorias O império inglês pensou-se, geralmente, a si mesmo como
ilegais. Grande parte dos corsários ingleses começou como traficantes uma antítese do império espanhol baseado na conquista territorial.
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Considerou-se, ao longo do século XVII, como um império essencial- a maioria puritanos, aos indígenas. A chamada Guerra do Rei Felipe
mente comercial e livre. Focado muito mais nas colônias caribenhas do (1675-76) teve como oponentes o cacique Algonquino Metacom contra
que nas possessões continentais, o império só foi tardiamente estimulado os ingleses. A vitória dos colonos abriu as terras para uma nova expan-
a gerir o potencial econômico dessas regiões, passando a tentar interferir são, mas, ao contrário da Virgínia, foi ancorada no modelo de pequena
em seus rumos ainda no final do século XVII através de medidas adua- propriedade familiar. As fronteiras das Treze Colônias muitas vezes se
neiras e políticas, de maneira muito próxima das políticas mercantilistas alargaram como resultado dos conflitos europeus. O fim da Guerra de
aplicadas por espanhóis, portugueses e franceses. Essas medidas tiveram Sucessão Espanhola (1703-1713) rendeu aos colonos ingleses toda a
resultados variáveise somente aos poucos passaram a representar uma região do rio Hudson e a Acádia no Canadá francês. Abriu a cobiçada
coerente política colonial, o que tornaria o império inglês nas Américas região dos Grandes Lagos, antes controlada pelas alianças comerciais
um espaço integrado e interdependente ao longo da primeira metade do entre franceses e indígenas, aos colonos de Nova Iorque e Pensilvânia.
século XVIII (Elliott, 2006). Em trabalho comparativo sobre a ocupação colonial dos ingle-
Os primeiros empreendimentos mais duradouros aconteceram ses e dos espanhóis na América, John Elliott encontrou diversos pontos
em 1609, na recém batizada Virgínia. A vila de Jamestown serviria de de afinidades e também de diferenças. De modo geral, entendeu que a
pivô na colonização inglesa daquele território, a partir de grandes pro- justificativa da posse do território era comum a ambos e baseada so-
priedades ancoradas no modelo de plantation. Na Virgínia, chegou-se a bretudo na ideia de res nullius, ou de não beneficiamento. A terra não
construir extensas linhas de paliçadas que serviam de fronteira entre a área ocupada era considerada vazia e, portanto, legitima de ser apropriada.
colonial, as terras indígenas e o wilderness. Dali os colonos projetavam Como os espanhóis, os ingleses rebatizavam territórios, muitas vezes
uma expansão ao interior pelo rio Ohio, barrada de modo geral pela pre- com o adjetivo “Nova”, como forma de erguer simbolicamente uma
sença francesa e suas alianças indígenas. No contexto da chamada Guerra nova história europeia em território americano; cartografavam os espa-
dos Sete Anos (1756-1763), que oporia franceses e ingleses em território ços e instituíam comunidades políticas que sustentavam a posse. Patrícia
americano, cada um mobilizando suas próprias redes de alianças com os Seed, que também buscou uma análise da posse na América sob pers-
índios, muitos colonos pressionaram as fronteiras. A vitória inglesa na pectiva comparada, conclui que os ingleses, por outro lado, sustentavam
Guerra e a derrota do cacique Pontiac - que liderara uma ampla resis- sua legitimidade de ocupação no cercamento físico de suas terras e no
tência ao avanço dos colonos ingleses -, ao contrário de abrir o território, seu beneficiamento através do plantio e da construção de casas e adja-
fechou-o, já que, contrariando as expectativas, a Coroa britânica procurou centes (Seed, 1999). Elliott ainda constata que, embora muito menos
pacificar a região, acertando com os indígenas a soberania sobre o territó- importante para a ocupação e ampliação das fronteiras que na América
rio a oeste dos montes Apalaches. O mítico – e literário – Daniel Boone espanhola, a fundação de vilas e cidades também seria importante para
desobedeceria às ordens da Coroa e avançaria pelos Apalaches com sua os ingleses. Em 1700, somente na Nova Inglaterra, existia algo como
família e outros tantos colonos em 1767. Caçador de animais e índios, 120-140 núcleos urbanos. William Penn fundou a cidade da Filadélfia,
Boone fundaria o que mais tarde seria o território do Kentucky e sua ima- reforçando essa importância e impondo um modelo urbano que, se não
gem pautaria uma das primeiras representações do homem de fronteira, o era inspirado no modelo espanhol, era também típico dos ideais urba-
cowboy norte americano, ainda na década de 1780. O mito do Oeste nas- nísticos do Renascimento, prevendo um formato quadricular, com ruas
cia praticamente junto à sua própria expansão, ganhando cada vez mais amplas e uniformes e construções feitas em linha (Elliott, 2006).
projeção no século XIX, até atingir o estatuto de construtor da identidade De qualquer forma, as chamadas Treze Colônias, que se forma-
nacional americana nas letras de Turner. ram gradativamente e de forma bastante heterogênea ao longo do século
No Norte, na colônia de Nova Inglaterra, a ocupação mais tar- XVII, permaneceram basicamente limitadas à costa leste do Atlântico
dia, na década de 1620-30, também colocaria em oposição os colonos, até o século XVIII, quando os rios que corriam para o interior passaram
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a alimentar projetos de expansão para os colonos, que não pararam de Novo México, Arizona, Califórnia e Texas. A chamada fronteira norte
chegar em ritmo acelerado ao longo dos setecentos. Ingleses, escoceses, da Nova Espanha sempre foi uma questão sensível para a administra-
irlandeses, alemães e huguenotes franceses formaram um contingente ção colonial espanhola. Os avanços e incursões indígenas na zona norte
que pressionava pela ampliação das terras, assim como favorecia a espe- eram sempre um sinal de alerta às estruturas montadas e centralizadas
culação de terrenos nessa expansão. na cidade do México. A fronteira setentrional foi sendo ocupada grada-
Mas a grande diferença em relação à América espanhola tal- tivamente na medida em que se descobriam minas e se buscava barrar
vez estivesse, para Elliott, na relação com os grupos indígenas e a forma o avanço de sociedades indígenas nômades. O local tornou-se território
pela qual os grupos foram entendidos nos respectivos projetos coloniais. de presídios, missões religiosas, exploração agrícola e pastoril associada
A republica de los indios, a encomienda e a catequese tornavam a submissão à exploração mineral.
e o domínio das gentes uma das principais bases da estrutura colonial A exploração colonial do território a Noroeste, na península
espanhola. Os ingleses, sem encomienda e sem tributos indígenas – ape- da Baixa Califórnia, começou ainda no tempo de Hernán Cortez e foi
sar das tentativas frustradas de tributar e submeter os índios - e sem um sucedida por várias expedições marítimas que buscavam reconhecer a
projeto sistemático de catequese, acabaram estruturando uma sociedade costa do Pacífico no sul da América do Norte, demarcando rios e portos
pautada na exclusão, ao contrário da hispânica, sustentada na inclusão dos naturais. Mas foi somente em 1697 que os jesuítas fundaram a primei-
indígenas. Representariam como que fronteiras de relacionamento que ra missão na Baixa Califórnia. As missões se alastrariam pela região
dariam a base de formação das respectivas sociedades, mesmo que essas de modo a se tornar a principal instituição espanhola naquela fronteira
estivessem sujeitas às porosidades. A quase ausência de casamentos in- até a expulsão da ordem jesuítica dos territórios espanhóis em 1767. A
ter-étnicos (houve mesmo legislação contrária), as limitadas experiências penetração jesuítica foi acompanhada pelos presídios, organizados para
escravistas (como nas Carolinas), as fragmentadas e voluntariosas missões apoiar as missões que vinham enfrentando a resistência violenta de di-
religiosas (como as do pastor John Eliot), assim como um discurso per- versos grupos indígenas. A situação se tornou mais tensa entre fins do
sistente que sustentava que o convívio com o indígena significaria a dege- XVII e começo do XVIII, tendo havido conflitos entre missionários e
neração do cristão branco, deram o tom dessa diferença. Para o historia- colonos, quando a exploração mineral ao norte do rio Mayo e na provín-
dor John Elliott, segundo interpretações de contemporâneos e pautadas cia de Sonora atraíram levas contínuas de colonos em busca de mão de
na experiência inglesa na Irlanda, as paliçadas de fronteiras protegiam os obra. As revoltas indígenas de Seri, Pima e Apache sacudiram a região.
colonos dos índios, mas serviam também para proteger os colonos de si Ao longo do século XVIII, a Espanha bourbônica demons-
mesmos, evitando um contato visto como degenerativo. Não havia, con- traria um gradativo empenho em consolidar o domínio sobre aque-
forme esse autor, espaço para intermediários entre a plena anglicização e a le vasto território, tentando articular, via rio Colorado, um eixo de
total exclusão. Nunca chegou a ser uma sociedade mestiça e, mesmo que ocupação que chegasse ao porto de Monterey. A Coroa apoiou as
as fronteiras pudessem ser entendidas como porosas e zonas de interação missões jesuíticas e mandou construir presídios na tentativa de bar-
e conflito, o predomínio da relação foi pautado na exclusão (Elliott, 2003). rar os avanços ingleses e, inusitadamente, o russo, que naquela altura
Portanto, na visão deste autor, as fronteiras coloniais inglesas entre os sé- avançava pelo Pacífico Norte a partir do Alasca. A descoberta do
culos XVII e XVIII podem ser consideradas – de forma genérica – como estreito que separava o extremo asiático do Alasca, feita pelo nave-
sendo de exclusão, enquanto as espanholas seriam de inclusão. gador dinamarquês – a serviço dos russos - Vitua Behring, em 1741,
Mas o território da América do Norte ainda presenciou as abriria ainda mais o caminho ao império russo em expansão (Albert;
fronteiras entre ingleses e espanhóis na Flórida, onde os núcleos co- Solano & Bernabeu, 1991, 85-118).
loniais da Espanha sempre foram frágeis e pouco sustentáveis, e nas A fronteira hispânica na América do Norte seria um dos te-
fronteiras da Nova Espanha, que compreendiam os territórios atuais do mas privilegiados da historiografia norte-americana sobre as frontei-
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ras, especialmente para aquela que se contrapôs às hegemônicas te- fisticados mecanismos de resistência e adaptação à presença europeia,
ses de Turner. Herbet Eugene Bolton, fundador da chamada “Escola adotando, seletivamente, objetos, rituais e símbolos, sem que isso signi-
da Fronteira”, talvez seja o nome mais importante nessa perspectiva. ficasse necessariamente o que, durante muito tempo, a antropologia e a
Discípulo de Turner, Bolton voltou seu olhar para uma fronteira dis- histórica chamaram de aculturação, um conceito que denota sobreposi-
tinta daquela que separava o avanço da “civilização” sobre o wilderness: ção de culturas (Guy; Sheridan, 1998, 3-15).
a fronteira hispânica na América setentrional. Invertendo a fórmula
de Turner, preocupou-se mais com a influência dos espanhóis sobre as
fronteiras do que com a influência das fronteiras sobre os espanhóis. A Os reinos europeus nas redes ameríndias
partir dessa premissa, Bolton construirá a tese que compreendia as mis-
sões religiosas espanholas como instituições típicas de fronteiras, cum- O processo de conquista da América, iniciado a partir de 1492
prindo o papel que muitas vezes os encomenderos cumpriram em outras com a chegada de Cristóvão Colombo à ilha Hispaniola, deu vazão às
regiões de conquista. Bolton colocou em perspectiva as missões da Alta aproximações entre dois universos: as culturas europeias e os mundos
Califórnia, da Baixa Califórnia, Sinaloa e Sonora; as do Novo México, ameríndios. Claro que, se falamos aqui de “dois universos”, referimo-nos
Texas, Arizona; e também as da Flórida. Nelas todas, cumpriam o du- apenas a um modelo esquemático. Sabe-se que os europeus na Época
plo papel de instituição estatal e clerical, reunindo funções do Estado e moderna se organizavam a partir de distintos reinos, portadores de
da Igreja e cumprindo funções militares, religiosas e civilizacionais: “no idiomas, religiões, modelos políticos e sociais bastante distintos, tanto
sólo servían para cristianizar la frontera, sino también para expandirla, internamente quanto um em relação ao outro. Mesmo que os reinos eu-
dominarla y civilizarla” (Bolton; Solano & Bernabeu, 1991, 47). Bolton ropeus mantivessem zonas de contato e influência entre si ao longo dos
ainda comparava as fronteiras do Norte do império espanhol às do Sul, séculos, reservavam também especificidades culturais e, para garantir
especialmente às do Paraguai. sua soberania e seu poderio, inúmeras vezes mantinham-se em guerra.
Ali, nas partes meridionais da América, os jesuítas ergueriam, Por que muitas vezes nos recusamos a adotar este mesmo pa-
a partir de 1609, missões que funcionaram tanto como instituições de drão de entendimento ao falarmos dos povos ameríndios? Já de início
fronteiras internas, pois a região era um dos limites de expansão dos identificados erroneamente como índios, ou seja, habitantes das Índias
espanhóis, quanto externas, pois eram adjacentes às áreas do império – onde Colombo inicialmente imaginava ter chegado em 1492 – essas
português. Elas reforçam o que pode ser entendido como um certo pa- populações são comumente pensadas como portadoras de uma unidade
drão dos jesuítas de atuarem em áreas consideradas difíceis, como o Rio cultural. De mesma forma que qualificamos os povos europeus no pa-
da Prata, a Baixa Califórnia, o Chaco, Mojos y Chiquitos e junto aos rágrafo anterior, devemos analisar os nativos da América da época dos
Diaguita do Valle Calchaquíes (Quarleri, 2009). descobrimentos a partir da ideia de diversidade. Mesmo que os núme-
A comparação entre a fronteira norte e sul do império espanhol ros sobre o passado sejam baseados em estimativas e em testemunhos
foi feita também por Donna Guy e Thomas Sheridan. Eles reiteram o não fidedignos, o esforço de quantificar os ameríndios pode nos auxiliar
que consideram similaridades entre ambas regiões, como o aspecto pe- para dimensionar o impacto dessa amplitude de povos e culturas. Os
riférico, a atuação missioneira, a gestação de tipos como os cowboys e os números são oscilantes, variando conforme as linhas interpretativas, os
gauchos; mas localizam significativas diferenças ambientais e históricas: vestígios documentais ou materiais sobre os quais se basearam. Indícios
clima mais árido no Norte e mais úmido no Sul; maior isolamento co- arqueológicos sugerem que a presença humana na América teria se ini-
mercial do Norte e maior articulação à bacia do Prata no Sul; embates ciado há 12 mil anos atrás ou que, na verdade, iniciara-se há 35 mil anos
entre potências coloniais distintas. Mas, tanto no Norte, quanto no Sul, antes do presente. Sobre quantos eram os ameríndios quando da chega-
entendem que as populações indígenas construíram importantes e so- da dos europeus por volta de 1500, os números vão de uma estimativa
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conservadora de 8 milhões até às cifras mais generosas de 100 milhões pois findaria a usurpação que esses grupos teriam praticado contra ou-
de pessoas (Cunha, 2009, 10-14). tros povos ameríndios, que por sua vez seriam supostamente originários
Mais do que adotar uma ou outra quantificação, há que se co- (Varnhagen, 1956, 23-56). Ao abordar os grandes Impérios da América
nhecer os critérios sobre os quais se basearam cada uma delas, não igno- pré-colonial, os Asteca no México e os Inca no Peru, interpretações mais
rando os debates em torno do tema. De todo modo, os vestígios arqueo- refinadas tentam explicar por que houve a vitória dos invasores europeus
lógicos e as descrições de cronistas obrigam a nos afastar das imagens de sobre populações indígenas organizadas militarmente e infinitamente
vazio demográfico, que muitas vezes justificaram o avanço das fronteiras maiores do que a dos exércitos de conquista europeus. Dentre outros
da conquista da América pelos invasores europeus ao longo dos séculos. fatores, um dos motivos principais seriam as disputas políticas internas
Com isso, desconstrói-se a ideia de que este continente tenha sido des- e as insatisfações dos povos submetidos em relação aos soberanos desses
coberto e ocupado pelos europeus, substituindo-se pela interpretação de Impérios indígenas (Bernand; Gruzinski, 1997, 333-334: 508-520).
que a América foi invadida, saqueada e conquistada pelos estrangeiros. Adentramos agora no universo das fronteiras, que é o tema
Além das ideias de “descobrimento” e “vazio” como elementos deste capítulo, abordando, em linhas gerais, como estavam colocados
desqualificadores da presença humana na América antes da chegada dos esses limites entre os povos indígenas na América. Com isso, surgem
europeus, devemos tomar cuidado com a forma como essas sociedades algumas questões: como e quais eram essas separações; como foram al-
eram descritas. “Bandos”, “hordas”, “reinos”, “Impérios”, “nações” impri- terados ou instrumentalizados pelos europeus? Os fluxos e refluxos dos
mem as noções políticas e civilizacionais a partir das quais os europeus índios na América remetem-nos, por sua vez, a um conceito recente-
da Era Moderna compreendiam as sociedades humanas. O entendi- mente trabalhado pelos antropólogos, que nos parece aqui eficiente para
mento sobre as sociedades ameríndias até meados do século XX foi co- entender esse processo: a noção de redes ameríndias. Esse conceito apre-
locado num quadro valorativo e classificatório relativo aos grupos hu- senta os espaços dentro dos quais se conectam os distintos grupos, as
manos. Dentro desses modelos, acreditava-se que a humanidade evolui- chamadas fronteiras, onde se expressam as conexões e as trocas (Latour,
ria a partir de grupos primitivos, como bandos ou hordas, até atingir um 1994, 9; Gallois, 2005, 15-17). Com a noção de redes, compreendemos
padrão de organização política através dos Estados, que representariam a plasticidade existente entre os diversos povos, deixando de colocá-los
o ápice dessa escala evolutiva (Cf. Arcuri, 2007, 305-320). No entanto, dentro de um modelo rígido de espacialidade, como se estivessem ato-
essa tipologia mais atrapalha do que ajuda nosso entendimento sobre mizados e separados em grupos inimigos e incomunicáveis. Também
a diversidade societária e política ameríndia, pois muitas informações admitimos que, mesmo em clima de guerras interétnicas, podem ser
que foram fornecidas pelos observadores estrangeiros sobre os indígenas operadas trocas de produtos, pessoas e saberes. Assim, a América não só
no passado (e até mesmo no presente, a respeito de grupos que não se era densamente povoada, como era dinâmica, em trânsito, em redes. Foi
enquadram nos padrões ocidentais), carregam parte do estranhamento e exatamente nessa espacialidade, tentando sobrepor-se ou caminhar por
dos preconceitos desses testemunhos. essas redes, que os europeus avançaram.
Iniciamos nosso trajeto em direção aos territórios indígenas na Uma primeira constatação acerca de seu avanço sobre terri-
América no contexto da conquista europeia a partir do final do século tórios e fronteiras indígenas foi o efeito fatalmente despovoador. De
XV. Muitos estudiosos, em diferentes vertentes interpretativas, atribuí- acordo com cronistas como Bartolomeu de Las Casas, Pedro Mártir e
ram o sucesso da conquista europeia às fissuras internas entre as socie- Zuazo, a dizimação que atingiu a ilha Hispaniola, por exemplo, causara
dades da própria América. De um lado, tinha-se a noção de que a orga- a morte de cerca de 2 milhões de nativos ao longo de 30 anos. Os ín-
nização política de certos povos era muito rudimentar, que seriam tribos dios daquela região foram identificados pelos espanhóis como Arawak
errantes, invasoras e incivilizadas. Por isso, a conquista pelos europeus e Taino, com os quais se aliaram. Os grupos que apresentaram resis-
dos Caribe (Antilhas) e dos Tupi (Brasil) seria plenamente justificável, tência foram chamados genericamente de Caribe (Bernand; Gruzinski,
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1997, 279-280). No caso das partes conquistadas pelos portugueses na ameríndios, processo que, se diga de passagem, manteve-se mesmo dentro
América, que aportaram inicialmente na Bahia em 1500, o efeito da di- dos Estados nacionais americanos a partir do século XIX.
zimação fez-se sentir de maneira avassaladora entre os povos que foram A faceta das disputas e mortes é um dos lados da contenda. De
se aliando aos brancos e que ocupavam a costa litorânea atlântica. Os acordo com Donna Guy e Thomas Sheridan, a lógica da fronteira seria a
chamados genericamente Tupi, que eram considerados mais amistosos, de terras em disputa, em que nenhum dos grupos seria detentor do mo-
quando aceitaram a aliança em vez da guerra, sofreram o impacto que as nopólio da violência. Essas disputas se expressariam através de diferen-
condições de confinamento, trabalhos e doenças lhes legaram. O padre tes tipos de organização, população e tecnologia. No caso das sociedades
jesuíta José de Anchieta estimava que, dos 40 mil índios que viviam nas ameríndias, o preço cobrado pelos interesses imperiais europeus teria um
aldeias controladas pelos jesuítas na Bahia a partir de 1560, cerca de alto custo em termos de exploração do trabalho, o que teria levado à des-
10% teria sobrevivido vinte anos depois (Anchieta, 1933, 377). truição ou desarticulação dessas sociedades (Guy; Sheridan, 1998, 10-11).
No caso da América espanhola, logo na chegada da primeira No entanto, como frisado em outros momentos deste capítu-
expedição de Colombo, os conquistadores passaram a receber seu qui- lo, o fenômeno das fronteiras deve ser percebido também através dos
nhão em terras e nativos, através do repartimiento dos mesmos, como intercâmbios, das mestiçagens e da construção de novas identidades. A
lhes legava a tradição castelhana. Aos poucos, os regimes de trabalho categoria de “índios coloniais”, que representaria os grupos e indivíduos
forçado, como as encomiendas, trazidas do Velho Mundo, e as mitas e que se colocaram sob o domínio dos europeus, pode ser entendida como
as yanaconas, adaptadas de modelos de trabalho compulsório indígenas o trânsito entre mundos. Isso porque os índios aliados eram obrigados
pré-existentes, foram reduzindo a expectativa de vida dos nativos. Mais a abandonar vários dos padrões de suas culturas de origem, uma vez
fatais, porém, foram as guerras contra os índios, com as expedições com submetidos às políticas coloniais. Eram apartados de suas sociedades,
armas de fogo e práticas de tortura para submeter os grupos e pessoas perdiam territórios, convertiam-se a religiões cristãs, adotavam hábitos
recalcitrantes. Também a guerra imunológica fez o seu papel, ceifando e idiomas europeus. Além disso, eram compelidos a regimes de trabalho
vidas através de doenças contra as quais os índios não tinham anticor- sob controle dos europeus, devendo pagar-lhes tributos.
pos, como sarampo, malária, gripe. Os espanhóis, por exemplo, compreendiam que a melhor
A partir de então, acompanhando um debate teológico sobre maneira de “integrar” a população nativa era concentrá-la e reduzi-la
a conquista espiritual dos povos encontrados pela cristandade, teve iní- em povoados, os chamados pueblos. Tal processo, inicialmente violen-
cio uma reposição demográfica para diversas regiões da América, parti- to, passou a ser regulado pelas Ordenanzas de descubrimiento, población
cularmente para aquelas atreladas à produção comercial para o mercado y pacificación de las Índias, em 1573. Nelas, substituiu-se retoricamente
europeu. Através de um sistema econômico atlântico, baseado no tráfico o termo “conquista” por “pacificação” e estimulou-se a atração e redu-
transcontinental de seres humanos, a escravidão africana seria adotada na ção indígena através do que se chamou de “dádivas” e pela caridade. As
América. Em linhas gerais, o discurso cristão que respaldava essa prática Ordenanzas buscavam oficializar a separação da Republica de los españoles
baseava-se na lógica de que os africanos seriam salvos pelo cristianismo da Republica de los índios, como duas instâncias apartadas – mas relacio-
através da escravidão, enquanto os ameríndios seriam salvos através da nadas – fisicamente, estruturadas no modelo urbano espanhol. Tal pers-
conversão (Alencastro, 2000; Bonciani, 2010). Essa nova frente de expan- pectiva, que agrupava os indígenas em núcleos urbanos orbitando em
são e reposição demográfica, que se daria com a vinda de africanos para a torno das cidades espanholas, fora experimentada ainda nas ilhas por
América, seria consolidada quase um século depois da chegada dos euro- Nicolás de Ovando em 1503, e depois reiterada pelas Leis de Burgos de
peus ao continente. No entanto, o avanço do modelo ocidental e o recuo 1513 e pelas Leis Novas de 1542. O modelo, já chamado de “utópico”,
das fronteiras indígenas foi um processo contínuo ao longo do período não cumpriria seu destino segregacionista, já que as várias formas de
colonial: um sinônimo de guerras, esbulhos de terras e assassinatos de mestiçagem, os mediadores culturais, as relações cotidianas estabeleci-
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das pelo trabalho dos repartimientos e as ações catequéticas criariam as conflitos reais, acionado pelos Guarani. Esses, divididos em centenas de
zonas de contatos e a aproximação entre as duas Republicas (Folguera; aldeias espalhadas por um território que compreende partes dos atuais
2001; Romero, 2005). sul e centro-oeste do Brasil, nordeste da Argentina, Uruguai e Paraguai,
A despeito de toda essa alteração de modelos indígenas “origi- podiam procurar os espanhóis para se proteger dos chamados bandei-
nários”, continuavam sendo reconhecidos como “índios” dentro do uni- rantes portugueses, ou, ao contrário, escaparem para o lado português,
verso colonial e essa condição resultava em algumas garantias. Para além fugindo do controle que as reduções jesuíticas espanholas procuravam
dos relatos de extermínios e guerras, a história dos povos ameríndios e exercer sobre eles (Sposito, 2012).
do avanço dos europeus sobre suas fronteiras deve ser analisada tam- As culturas, obviamente, jamais permanecem estáticas ao longo
bém na chave dessas alianças e acordos. Mesmo existindo as atrocida- do tempo. Nesse sentido, os índios respondiam e agiam frente ao processo
des mencionadas, diversos outros tipos de arranjos foram estabelecidos colonial através de uma “resistência adaptativa”, segundo expressão de Steve
pelos reinos europeus com vários grupos indígenas em toda a América Stern (1992, 1-34). Certamente que a adaptação serviu para os dois lados
ao longo dos séculos. Houve tratados de paz com aqueles que eram re- da contenda, pois os europeus também tiveram que se adaptar a modos,
conhecidos como líderes políticos das chamadas parcialidades ou aldeias modelos e ambientes ameríndios. Muitos indivíduos e sociedades indíge-
na América. Os acordos feitos pelos reinos português, espanhol, inglês, nas destruídas pela colonização se reagrupariam, ajustadas ou em posição
francês e holandês aconteciam desde que os índios de determinado de enfrentamento em relação às estruturas coloniais. A resistência externa
grupo tivessem um território de posse exclusiva sua e que não fossem pode ser visualizada através dos grupos recalcitrantes ao projeto colonial,
sujeitos ao trabalho escravo. De qualquer modo, as formas de reconheci- que originalmente já estavam distantes dos núcleos coloniais, ou deles fu-
mento da posse da terra e da legitimidade política dos grupos indígenas giram, atuando como “muros” ou “fronteiras” à expansão europeia (Farage,
variou muito entre os reinos europeus. Para ingleses, e também para os 1991; Puntoni, 2002). Mas havia também a resistência interna ao mundo
espanhóis e portugueses, o fato do indígena não “beneficiar” a terra ser- colonial, como por exemplo nas aldeias de índios sob controle de missio-
viu muitas vezes como uma das justificativas para retirar dele o direito nários ou particulares, denominadas também de pueblos, misiones, reduccio-
de uso e usufruto, servindo assim para alimentar o rol de legitimações nes no período, ou aldeamentos pela historiografia. Em novos espaços e
das ações de conquista e expulsão, juntamente com os tradicionais argu- segundo outros modelos, os índios reconstruiriam suas identidades através
mentos religiosos. do contato com outros grupos, gerando o que os antropólogos chamam de
Todavia, as promessas e acordos muitas vezes incluíam ces- etnogênese (Boccara, 2007; Monteiro, 2001; Wilde; 2009)., constituindo as
sar-fogo por parte do reino europeu aliado, ao passo que esse mesmo identidades dos “índios misturados” (Oliveira, 1998). Esse processo se refere
reino usaria seu exército para proteger tal sociedade indígena contra os à emergência de novas identidades surgidas entre os grupos indígenas da
europeus de outros reinos e os grupos indígenas inimigos. Esse recurso América, como reação à experiência colonial ou nacional.
de proteger os índios contra o assédio dos reinos inimigos se torna par-
ticularmente dramático no caso das zonas de fronteira. Um caso para-
digmático pode ser visualizado nos pontos de contato entre os domínios Plasticidade e limites fronteiriços na América
portugueses e espanhóis na América Meridional, cujos limites perma-
neceram indefinidos até os tratados do século XVIII, especialmente o Diversas frentes de expansão europeia seguiam ao encontro
Tratado de Madri (1750) e o de Santo Ildefonso (1777). Entre a capi- do continente americano, descobrindo suas dimensões, seus cami-
tania de São Vicente (depois Capitania de São Paulo) e a província do nhos, seus limites, seus povos. Ao longo da década de 1510, os es-
Paraguai (depois desmembrada em duas: uma de mesmo nome e outra panhóis seguiam nas ilhas caribenhas, chegando em Cuba, Jamaica
denominada de Rio da Prata), havia todo um jogo retórico, baseado em e Porto Rico. Avançando para o norte da América, na mesma época,
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teve-se o encontro da Flórida e das Carolinas. Na América Central redes não estavam diretamente relacionadas com o domínio dos Inca,
e na Venezuela, os conquistadores aportaram na década seguinte. Ao um pouco mais ao sul do continente.
encontrarem a península de Yucatán entre 1517 e 18, no golfo do O Tawantinsuyu, o “Império dos quatro cantos”, estendia-se
México, os espanhóis, admirados com o tipo de organização social e sobre vastas terras e povos na cordilheira dos Andes, de Quito no Peru,
padrão cultural que encontram (nativos vestindo roupas de algodão, a Santiago no Chile, sendo barrados ao sul pelos Mapuche e a leste
cultivando roças e portando ouro), classificaram o local como “grande pelos Chiriguano (Murra; León-Portilla, 1990). Esse Império, por sua
Cairo” (Bernand & Gruzinski, 1997, 308). A chegada do conquistador vez, que pautava sua expansão a partir do pagamento de tributos, de
Hernán Cortez ao México data de 1519 e a conquista efetiva da cidade deslocamentos forçados de povos para serem súditos do inca, também
México-Tenochtitlán, capital da confederação Mexica (Asteca), habi- ofereceria aos conquistadores a possibilidade de atuar dentro de seus
tada, estima-se, por 20 milhões de pessoas, ocorreu em 1521. A leitura conflitos internos. Dois sucessores do inca disputavam o direito de ocu-
que Bernard e Gruzinski fazem desse processo é que Cortez foi vito- par a liderança política que o pai exercera, demonstrando as próprias
rioso na conquista do centro do Império justamente por se apropriar dificuldades de alcance e soberania por parte de um Império que se
das redes, das disputas internas, aliando-se a povos como os Maia, pretendia tão amplo: o inca Huascar era apoiado pela elite de Cusco, ao
Nahua e Totonaque, o que lhe permitiu atingir o centro do Império sul; o inca Atahualpa, apoiado pela elite de Quito, ao norte (Bernand
Mexica, controlado por Montezuma (Bernand & Gruzinski, 1997, & Gruzinski, 1997, 491-495). Mesmo derrotado por Pizarro em 1532
333-4). Também para Miguel León-Portilla, foi o ódio de Totonaca, em Cajamarca e feito prisioneiro, Atahualpa ordenou o assassinato do
Tlaxcalteca, dentre outros povos, que permitiu aos espanhóis imprimir meio irmão em Cusco. Temendo o poderio do inca, que ainda detinha
a derrota ao poder Mexica (León-Portilla, 1990, 36). vasta área de influência, os espanhóis o mataram em 1533 (Bernand &
Os europeus na América do Sul também iriam trilhar caminhos Gruzinski, 1997, 508-52).
e rotas que os levassem a povos que detivessem maior poder e riquezas Assim, os europeus em trânsito pelas Américas chegavam ao
materiais, segundo a lógica do mercantilismo moderno. O Estreito de litoral, percorriam penínsulas, ilhas, continentes, descobrindo milhares
Magalhães, no extremo sul do continente americano, foi atingido por de sociedades indígenas, que podiam estar organizadas em aldeias, po-
Fernando Magalhães e Sebastián Elcano em 1520. Do istmo do Panamá, voados nas selvas, ou dispostas em núcleos urbanos, que por sua vez
na América Central, Francisco Pizarro e Diego Almagro partiram em se conectavam por estradas e canais. Para encontrar esses mundos, os
expedições em direção ao sul desde 1524. Em 1527, na fronteira entre invasores andavam por caminhos íngremes, desertos, rios caudalosos,
os atuais Equador e Colômbia, encontraram grandes embarcações com muitas vezes aproveitando-se das embarcações dos nativos. Adentravam
exércitos e homens adornados de ouro e prata, episódio que, de acordo densas florestas, tendo como guias os índios que conseguiam convencer
com Serge Gruzinski e Carmen Bernard, marcaria os contatos iniciais – através de alianças ou guerras – a conduzi-los. Cachoeiras, pântanos,
com o Império Inca do Peru (Bernand & Gruzinski, 1997, 473-481). grandes altitudes, terrenos insalubres muitas vezes impunham limites
Na região do chamado Circuncaribe, envolvendo povos que físicos ao trânsito e à comunicação.
habitavam os Andes, o norte da Colômbia e as terras baixas do Caribe, Apesar da conquista militar de povos indígenas pelos europeus,
havia uma conexão entre sociedades existentes na baixa América Central dos tratos de aliança política e até dos laços consanguíneos estabelecidos
(Costa Rica e Panamá) e no norte da Venezuela. De acordo com Mary entre os ameríndios e os estrangeiros, a entrada na América não se deu
W. Helmes, objetos de ouro, tecidos e artefatos com função ritualís- de maneira homogênea. Tal perspectiva reforça a tese de que o chamado
tica eram intercambiados e ostentados pelas elites de grupos como os processo de “conquista da América” foi prolongado no tempo e hete-
Muisca ou Chibcha, Quimbaya, Cenú e Tairona, que habitavam essa rogêneo espacialmente, ao contrário da tradicional visão que entendia
ampla região (Helms et al., 1990, p. 41-44). Ao que tudo indica, essas a queda dos Mexica e dos Incas como um marco final da conquista
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americana (Restall, 2006). Conforme dito acima, em muitas regiões as que viviam no chamado Valle dos Calchaquíes, na região tucumenha, im-
conexões territoriais entre as partes conquistadas não eram possíveis. puseram feroz resistência ao avanço espanhol. O local foi palco de inú-
Além dos mencionados acidentes geográficos que podiam impedir a co- meras rebeliões ao longo de todo o século XVII, inclusive uma de grandes
municação, havia sociedades indígenas belicosas, que não permitiam a dimensões liderada por um “lendário” mestiço de origem mourisca, Pedro
entrada de outros índios e de europeus em seus territórios. Assim, fron- Bohorquez. Durante grande parte do século XVI e XVII, o Valle foi uma
teiras naturais e fronteiras humanas impunham-se à livre circulação do verdadeira fronteira para o avanço dos colonizadores espanhóis, que er-
território americano. gueram as cidades de Salta e Jujuy, no atual noroeste argentino, exatamen-
O reino espanhol dividiu a América – então denominada pela te para tentar conter os grupos Diaguita (Mandrini, 2012).
Espanha como “Índias de Castela” – basicamente em dois centros admi- A política implantada pelo vice-rei do Peru, Francisco de
nistrativos, que por sua vez possuíam instâncias locais de poder, como as Toledo (1569-1581), buscou estabilizar o vice-reinado, que ainda en-
Reales Audiencias. No século das conquistas, instalou dois Vice Reynos: o de frentava uma rebelião inca liderada por Tupac Amaru I e a insatisfa-
Nova Espanha ao norte, na cidade do México em 1535, e o do Peru ao sul, ção dos conquistadores, que viam suas encomiendas tolhidas pelas Leyes
na cidade de Lima em 1543. Em outro contexto, no século XVIII foram Nuevas de 1542. Num amplo leque de medidas, Toledo tentou garantir
criados o Vice Reyno de Nova Granada, capital Bogotá, na atual Colômbia os monopólios da prata potosina através de Lima, a melhor exploração
(1717), e o Vice Reyno do Rio da Prata, em Buenos Aires, na atual Argentina econômica das minas, a regulação da mita, a consolidação das fronteiras
(1776), demonstrando a necessidade de novos centros que dessem conta da e a diminuição das pressões indígenas (Brading, 1991). Nesse sentido,
complexidade administrativa a partir daquele momento. tanto Assunção, quanto Santiago de Estero e Tucumán deveriam repre-
Na América do Sul, por exemplo, parte do vice-reino do Peru, sentar os limites da expansão centrada no mundo peruano e assentada
na província do Paraguai (que englobava porções dos territórios dos atu- em Lima e Potosí. Todavia, um circuito regional pressionava no sentido
ais Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil), a circulação dos europeus so- do Atlântico, no qual as mesmas cidades que deveriam ser o limite da
fria sérios limites. O Rio da Prata, que desemboca no Oceano Atlântico, expansão passaram a ser ponto de partida para novas expedições e para a
na cidade de Buenos Aires, poderia ter sido a porta de entrada para criação de novas vilas e cidades. A ocupação do Guairá e a fundação de
as ricas jazidas que se imaginava haver por ali, daí o rio ter sido assim Santa Fé, em 1579, e de Buenos Aires, re-fundada em 1580, cumpriam
denominado pelos conquistadores. No entanto, o encontro do Peru se essa função. Aos poucos surgia uma rota que conectava as minas poto-
deu através do Panamá em direção ao sul. Quando os europeus desco- sinas ao Atlântico através de Tucumã e Buenos Aires. Cerceada pela
briram a prata no Peru – em Potosí – passou a haver um interesse das Coroa, assim mesmo nela se formou um amplo mercado trans-regional
Coroas ibéricas em buscar acesso à região a partir do estuário do Rio da e transatlântico de comércio legal e ilegal (Moutoukias, 1988).
Prata. Assim, enquanto os portugueses fundaram as vilas de São Vicente As cidades no império espanhol cumpriam um papel central no
(1532) e Santos (1533), Espanha marcou sua ocupação na América do processo de expansão e alargamento de fronteiras, simbolizando o do-
Sul com a fundação de Buenos Aires (1535) e Assunção (1536). No mínio territorial e a submissão dos grupos nativos. Baseada no modelo
entanto, rios não navegáveis, pântanos, além da presença dos Paiaguá da chamada Reconquista, essa expansão aliviava as tensões geradas com
por rios e dos Guaycuru por terra, tornavam bastante dificultosas as via- a chegada de novos colonos, que buscavam suas próprias encomiendas e
gens de exploradores espanhóis e portugueses que saíam de São Paulo e repartimientos. Alijados inicialmente, engajavam-se em expedições cau-
Assunção tentando chegar ao Peru. dilhescas com a promessa de tornarem-se encomenderos em novas terras e
O caminho mais factível, por questões geográficas e geopolíti- vilas criadas no bojo do processo. Era um movimento que se auto alimen-
cas, foi a província de Tucumán, a oeste do atual território da Argentina tava. Entre 1580 e 1630, na América espanhola, as cidades passaram de
(Canabrava, 1984; Vilardaga; 2014). Assim mesmo, os grupos indígenas 225 a 331, ou seja, quase 50% em 50 anos. Segundo John Elliott, “ideal de
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la ciudad como una comunidad perfecta estaba profundamente arraigado tando sua agricultura e mobilidade (Slatta, 1990; Jones; Guy; Sheridan,
en la mentalidad hispânica y se consideraba contrario a la naturaleza que 1998, 99-101). Para Slatta, o cowboy expressa um fenômeno america-
los seres humanos vivieran alejados de la sociedad” (Elliott, 2006, 76). no que não se restringiu às fronteiras do atual Estados Unidos, como
No Chile, por sua vez, os Mapuche, povos que habitavam a usualmente se imagina. Geograficamente, eles estavam situados em
chamada Araucanía, no sul do território, criaram uma fronteira huma- locais bastante distintos: cowboys (Alberta/Canadá e oeste do Estados
na a partir do rio Bío-Bío, resistindo à entrada de europeus em seu Unidos); vaqueros (norte do México e Califórnia); gaúchos (Argentina,
território. Isso não significa negar os intercâmbios, já que os Mapuche Uruguai e Rio Grande do Sul); Hauso/guaso (Chile); llaneros (Venezuela
incorporaram vários hábitos europeus, como o uso do cavalo (também e Colômbia); vaqueiros (sertão nordestino do Brasil), charros (México) e
adotado pelos Guaycuru do Paraguai e pelos Apache e Comanche na paniolo (Havaí) (Slatta, 1990, 1-3). Para o autor, as fronteiras podem ser
América do Norte). Os próprios Mapuche, se foram vistos durante sé- enxergadas como “membranas”, pois, ainda que haja uma dominação do
culos como um grande muro à expansão europeia, devem ser enxerga- europeu sobre o nativo da América, as influências passam de um lado a
dos no processo de trocas e etnogênese gerada pela colonização, como outro (Slatta, 1990, 223). Assim, mesmo na figura mítica construída do
defende Guillaume Boccara. Expandindo-se para a região dos pampas cowboy dos Estados Unidos, que seria um tipo branco, descendente de
no Rio da Prata, os Mapuche misturaram-se com os povos do sul, o que ingleses, conquistador do oeste ao longo do século XIX, os séculos de
demonstra a construção de novas identidades indígenas a partir da co- contatos entre os espanhóis e os índios que viviam naqueles territórios,
lonização. Ademais, organizaram importantes rotas comerciais que ar- em períodos precedentes, não podem ser ignorados.
ticularam muitas comunidades e grupos indígenas, estabelecendo con- Outra frente de expansão europeia sobre a América foi desempe-
tínuos e vantajosos tratos com os colonos de fronteira (Boccara, 2007). nhada pelas ordens religiosas. O ideário da propagação da fé cristã foi com-
No outro extremo da América, ao norte do México, havia o bustível para a procura de novas terras por parte dos reinos católicos, que
chamado Grande Norte Espanhol, hoje representado pela porção oeste justificava a expansão ultramarina como meio para promover o aumento do
dos Estados Unidos, sobre o qual já falamos um pouco aqui. No sé- número de fiéis. Assim, tal discurso embasou a construção da soberania dos
culo XIX, a região seria parte do cenário da chamada “marcha para o Estados europeus que, através da conquista militar e do estabelecimento de
Oeste”, um processo de enfrentamento dos descendentes de europeus rotas de comércio, resultou na montagem de Impérios ultramarinos. Muitas
contra as populações indígenas e espanholas que ali viviam há sécu- vezes as vitórias militares e as conquistas comerciais eram justificadas como
los. Os projetos e discursos expansionistas do século XIX, que além dos o meio para conversão de gentios e perseguição aos infiéis. No próprio dis-
Estados Unidos, pautaram muitas ideologias nacionalistas na América curso dos jesuítas, por exemplo, uma das ordens que mais atuaram na con-
nessa mesma época, difundiam a visão da “civilização” branca, de ma- versão dos índios no Novo Mundo, a máxima era de que a vida civil, nos
triz europeia, vencendo a barbárie indígena, negra e mestiça habitante moldes europeus, à qual os índios deveriam ser obrigados a viver, era o meio
da América. No entanto, como ressaltou Richard Slatta, estudioso da de salvar suas almas. Esse projeto foi concretizado no modelo das aldeias
figura do cowboy, o vaqueiro, explorador que avançava para além dos jesuítas (ou misiones, reducciones, pueblos, aldeamentos). Ele foi formulado
limites de sua sociedade e que esteve presente em diversas regiões da para o Brasil na década de 1560, pelo padre jesuíta Manuel da Nóbrega e
América ao longo do período colonial e para além dele, é, essencialmen- adotado na América espanhola, na Província do Paraguai, somente na dé-
te, um mestiço. No Grande Norte Espanhol populações de diferentes cada de 1610 (Eisenberg, 2000; Sposito, 2012).
etnias e culturas interagiram durante séculos. A pecuária e a adoção de Também os dominicanos e franciscanos tiveram papel mar-
cavalos, trazidos pelos espanhóis e portugueses em distintas regiões de cante tanto na conversão dos povos ameríndios, quanto no discurso
fronteiras, propiciaram aos Apache, Sioux e Comanche, sociedades da que embasava a presença europeia e seu papel na América (Ruiz, 2002;
região, um ganho em termos de desenvolvimento técnico, incremen- Bonciani, 2010). Montesinos, Francisco de Vitória e Bartolomeu de
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Las Casas notabilizaram-se por questionar as atrocidades e assassinatos Maynas. Na ocasião, padres como Samuel Fritz denunciavam os portu-
cometidos pelos europeus contra os índios no início da conquista da gueses com o Tratado de Tordesilhas em mãos. A região era percorrida
América e formular alguns postulados sobre os direitos dos índios, que por contrabandistas e os meandros das relações entre missões, presídios,
influenciaram o campo filosófico, com desdobramentos para o surgi- aldeias indígenas e comerciantes luso-castelhanos tornam aquele terri-
mento e a legitimação do direito e do Estado modernos (Ruiz, 2002; tório um laboratório riquíssimo para se observar as experiências frontei-
Eisenberg, 2000). riças (Gonzalez, 2013, 85-123).
Essa menção à evangelização e ao papel da Igreja Católica nas Ali se percebe uma extensa rede de relações envolvendo dis-
colonizações ibéricas é necessária para a compreensão do fenômeno das tintas etnias na região amazônica no século XVII, que não iniciaram
fronteiras no mundo colonial, pois muitas vezes padres e missionários seus contatos a partir da invasão europeia, mas foram por ela atingidas.
funcionavam como “pontas de lança” na expansão territorial e na con- Assim, ainda que se tornassem escravos de particulares, vassalos do rei
quista dos povos, justificando que vinham pacificar e salvar os índios. ou aldeados pelos missionários, estavam acessando os fluxos e as novas
Assim, vários depoimentos de padres jesuítas permitem vislumbrar o redes de relações colocadas pelos invasores. Os ameríndios, além de
avanço dessas frentes e ao mesmo tempo o quanto teriam de pelejar para suas rotas tradicionais, passaram a percorrer os caminhos também tra-
conseguir penetrar na complexa teia das redes ameríndias. Da provín- çados por portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses. Ali,
cia do Paraguai, por exemplo, os jesuítas escreviam no início do século como em outras partes da América, ao mesmo tempo que poderiam
XVII, relatando a terra como habitada por “mil nações bárbaras”, passí- ser dominados por um desses reinos, poderiam também negociar espa-
veis de conversão (Cortesão, 1951, 209-210). ços, adquirir mercadorias, barganhar alianças ou abrir ofensiva contra
Na outra ponta da América do Sul, o padre jesuíta Antonio outro reino inimigo.
Vieira, missionando na região amazônica em 1660, informava ao rei A fluidez das fronteiras durante a colonização da América
sobre o mosaico de identidades, povos e alianças. Dizia Vieira que os pode ser visualizada através do trajeto seguido pelo governador da pro-
grupos Topinambá e Poguiguará (conforme sua grafia) haviam sido re- víncia do Paraguai, Luis Céspedes Xeria. Essa autoridade, nomeada na
centemente aldeados. A obtenção dessas alianças foi fruto da chegada Corte de Madri em 1628, partiu da Europa, desembarcando alguns me-
dos missionários à foz do rio Amazonas, onde essas “nações”, outrora ses depois na Bahia. Dali seguiu ao Rio de Janeiro, onde se casou com D.
amigas dos portugueses, naquele momento estavam em guerra contra Vitória de Sá, sobrinha do governador daquela capitania, demonstrando
os lusos e aliadas aos holandeses. Esse cenário de guerras fazia com que as uniões matrimoniais entre espanhóis e portugueses na América
que a ilha dos Nheengaíba se tornasse uma “fortaleza natural” contra meridional não eram algo incomum (Vilardaga, 2014). Para se precaver
a presença portuguesa na região, processo que teria sido revertido pela na longa travessia até a cidade de Assunção, onde assumiria seu posto, o
ação missionária. No entanto, a ação dos jesuítas, de acordo com Vieira, governador abasteceu-se de víveres, tropas e índios em São Paulo, per-
rompeu o cerco beligerante, com a assinatura pelos líderes indígenas de correndo um caminho bastante conhecido pelos portugueses que dali
um termo jurídico de vassalagem ao rei português. Dessa feita, índios atingia os domínios espanhóis.
dos grupos Mamayná, Aroan, Anayá (subdivididos em Mapuá, Gujará O trajeto da capitania de São Vicente até o Paraguai e o Rio da
e Pixipixí), além dos Tricujú da terra firme, que compunham um total Prata era percorrido desde o século XVI – nos dois sentidos - por aventu-
de 40 mil índios, passaram para o lado português (Vieira, 1735, 21-54). reiros, comerciantes, missionários e pelos bandeirantes, ou sertanistas, que
Já no século XVIII, os jesuítas espanhóis, sediados em Quito, tinham como objetivo capturar índios Guarani do Paraguai e levá-los como
passaram a questionar o avanço português pelo Alto Amazonas. A par- escravos ao Brasil, prática que foi se tornando mais frequente desde a década
tir do Pará e do Maranhão, os portugueses invadiam o que era consi- de 1580. Antes de chegar a Assunção, no entanto, Céspedes Xeria percorreu
derada a fronteira oriental da Real Audiencia, a Província amazônica de a região do Guairá (onde se localiza o atual Estado do Paraná no Brasil),
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local mais extremo a leste na província do Paraguai onde havia espanhóis com a dinastia Bourbon assumindo o trono da Espanha no início do
instalados (Annaes do Museu Paulista. 1925, 15-42). Foi justamente percor- século XVIII, houve um rearranjo geopolítico também na América:
rendo esse caminho de maneira oficial, evidenciando uma série de tratos e a França perdeu seu território na América do Norte para a Espanha;
laços havidos entre espanhóis, portugueses, índios Tupi do Brasil e Guarani Portugal cedeu à Espanha a Colônia do Sacramento, que havia sido fun-
do Paraguai, que o governador espanhol se complicou. Xeria foi acusado de dada pelos portugueses em 1680 na margem oriental do Rio da Prata,
contrabandear índios e mercadorias por rota proibida, ao sair do Brasil em evidenciando as disputas entre esses reinos por aquela região desde o
direção a Assunção por terra. Além disso, indispôs-se com os padres jesuítas início da colonização. Na região amazônica, embora Portugal tenha fi-
das missões estabelecidas entre os índios, ao se posicionar favoravelmente cado com o território na foz do rio Amazonas, todo o Alto Amazonas
aos encomenderos do Guairá, moradores da região que haviam recebido mer- ainda se mantinha indefinido e a solução do impasse se resolveria so-
cê do rei, autorizando-os a possuírem índios que lhes prestassem serviços. mente com os tratados efetuados nas décadas seguintes (Kantor, 2007).
A disputa entre moradores e religiosos pelo controle da mão de obra indí- Com os Tratado de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1777)
gena era uma questão presente em várias partes da América, onde os índios buscou-se estabelecer de maneira definitiva os marcos entre a América
se constituíam na principal força de trabalho. Mais do que tomar partido espanhola e a América portuguesa. As comissões de demarcação, levadas
do lado dos moradores espanhóis, Céspedes Xeria também teria se aliado a cabo pela Espanha e Portugal na América do Sul, geraram uma nova
aos bandeirantes portugueses, sendo acusado de nada ter feito para impedir “guerra de mapas”, em que os agentes e comissários encarregados das
uma grande bandeira que se dirigiu ao Guairá entre 1628 e 1629, ou, pior demarcações recorreram a um conjunto de mapas recentes ou até mes-
ainda, de ter aberto caminho para os lusos aos domínios espanhóis. De fato, mo do século XVII para poder definir onde ficavam as linhas divisórias.
as ações bandeirantes ou sertanistas praticadas pelos paulistas nos anos se- O que se depreende desse movimento é que várias distorções cartográfi-
guintes levaram à despovoação das cidades espanholas e à escravização de cas foram feitas num ou noutro ponto dos mapas para favorecer ora um,
cerca 60 mil Guarani, retirados do Paraguai e levados ao Brasil em poucos ora outro reino. Alexandre de Gusmão, responsável pela demarcação
anos (Sposito, 2012). do lado português, praticou muitas dessas alterações nas representações
De qualquer modo, a ocupação da América era milimetrica- dos mapas para atender aos interesses de seu reino. As autoridades es-
mente negociada pelos povos, originários ou invasores, que pretendiam panholas, por sua vez, que conheciam menos a região que os lusos, aca-
nele permanecer, fazendo valer a máxima da fronteira como “terra con- baram aceitando delimitações que não eram fidedignas (Ferreira, 2007).
testada”, conforme visto anteriormente. Se a proeminência ibérica foi O Tratado de Madri, em síntese, estabeleceu uma partilha no Prata para
um fato no início da conquista da América, logo a anuência papal para a buscar equilibrar as perdas: a Colônia do Sacramento (no atual Uruguai)
partilha do Novo Mundo entre Espanha e Portugal passou a ser contes- passaria definitivamente a pertencer ao território espanhol; em troca, a
tada. Hugo Grotius, como visto anteriormente, questionou o domínio Espanha cederia parte das missões jesuíticas que havia em seu território:
do continente americano pelo mero título papal, caso não houvesse uma sete dessas missões ou pueblos passaram a pertencer ao reino português
posse efetiva do território pretendido. Isso gerou uma nova ordem de (ocupavam parte do território onde hoje é o estado brasileiro do Rio
disputa territorial entre os reinos europeus no século XVII, que, além Grande do Sul). Importante pontuar que muito do conhecimento sobre
das guerras e conquistas, levou-os à busca de maior precisão cartográfi- os territórios em litígio usado pelas autoridades foi obtido através de su-
ca, como meio de efetivar a ocupação (Kantor, 2007). jeitos que sempre percorreram essas fronteiras. Jesuítas que missionavam
Somente com os tratados de limite estabelecidos entre as po- no Sul e na região de Mojos e Chiquitos na Bolívia, por exemplo, além
tências europeias no século XVIII, demarcando e barganhando os seus de sertanistas paulistas que transitavam do Mato Grosso a São Paulo, a
domínios na América, é que esses limites políticos e físicos seriam efe- partir da descoberta do ouro, mostraram que, mesmo nos tratados esta-
tivamente demarcados. Com a paz de Utrech (1712-5), que culminou belecidos pelas autoridades diplomáticas dentro de seus gabinetes, havia
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que se considerar a história e a vivência de populações que estiveram,
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9-15. çagem, outros foram torturados e escravizados. Em alguns locais, como na
fronteira Mapuche do Chile, foi um fenômeno contínuo e extenso. Ao longo
94 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 95
do tempo, os ocasionais relatos dos que regressavam despertaram um misto
de curiosidade, repulsa e compaixão. Transcrevemos aqui um pequeno trecho,
do que se pode chamar de uma experiência positiva de cativeiro. O capitão
Francisco Núñez de Pineda y Bascuñan, foi um cativo chileno no contexto da
pacificação e dos tratados entre espanhóis e Mapuches. Foi capturado depois
de uma batalha, na qual foi ferido, em 1628. Ficou prisioneiro por seis me-
ses, nos quais esforçou-se por conhecer os indígenas. Em seu texto, descreve os
banquetes alimentares, já adaptados às grandes quantidades de carne bovina,
e as rivalidades entre tribos e os conflitos com os espanhóis. Abaixo segue sua
emocionada despedida:
Con estas razones, que pronuncié con alguna ternura, respon-
dieron las viejas lastimadas con lágrimas en los ojos y ayes y suspiros en MAPA 1. Le Nouveau Monde Descouvert et Illustre de Nostre Temps.
los lábios, diciendo: ay! ay! que se nos va nuestro capitán y compañero; André Thevet.1575.Paris.Disponível em: < http://www.cartografiahistorica.
a cuya imitación de las demás muchachas, principalmente la mestiza usp.br/> (Acesso em 13/10/2015)
con los muchachos mis amigos, levantaron de punto los sollozos y voces
lastimadas de manera que me obligaron a llorar con ellas, y a decirles,
que si no tuviera padre, a quien amaba tiernamente, y entre los mios no
fuera tan solicitado (como lo habian visto) con tan repetidos mensajes,
que tuviesen por cierto que no dejara su amada companhia, porque me
habían obligado com extremo sus agasajos, sus cortesias, sus amores y
regalos, a corresponderles con voluntad y afecto.24
Documento 2
98 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 99
Capítulo 3
Pessoas e bens em circulação (1492-1750)
140 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 141
Tem posto tanto os olhos nossa Espanha na contratação das Referências bibliográficas
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riqueza de uns e a extrema pobreza de outros, no que está muito des- días. Barcelona: Edt. Crítica, 2003.
compensada a nossa República. Seria uma consequência que ao tirar BÖTTCHER, N.; HAUSBERGER, B.; IBARRA, A. Redes y negocios globales en el mundo
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tem suas riquezas pela lei do depósito, as restituísse aos outros rei- BOXER, C.R. Women in the Iberian expansion overseas, 1415-1815. New York: Oxford Univer-
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a verdadeira riqueza não consiste em ter trabalhado, cunhado ou em CAMPS, E. Historia económica mundial. La formación de la economía internacional, ss. XVI-
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(Felipe II) tem respondido pouco às esperanças que tiveram seus DE LUXAN MELENDEZ, S. “Historia Económica e Historia atlántica: algunas reflexiones
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travam nestas terras novas... A causa consiste em que o uso da moeda DE VRIES. J. “Connecting Europe and Asia: A Quantitative Analysis of the Cape-Route Trade,
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encontrou reunida, como numa exposição ou alarde, toda a riqueza
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todo investido e em circulação, e sem parar o distribuímos e altera- ESCOBARI, L.; MAURIÑO, J.A. Colonización agrícola y ganadera en América, siglos XVI-X-
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Capítulo 4
A escravidão hispano-americana: uma
perspectiva de longa duração
38 Um dado importante a ser mencionado é que Tannenbaum baseou-se largamente na obra 41 Idem, p.53. José Antonio Saco. Historia de la esclavitud de la raza africana en el Nuevo Mundo,
de Gilberto Freyre para caracterizar o papel distinto ocupado pelos negros na América ibérica Barcelona, 1879, t.4, p.222.
e na anglo-saxã. O sociólogo fiou-se explicitamente nos seguintes estudos freyrianos: Brazil: An 42 Silvia Hunold Lara. Campos da Violência. Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro,
Interpretation. New York: Alfred A. Knopf, 1945 e O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.98.
José Olympio, 1940. 43 Stanley M. Elkins. Slavery. A Problem in American Institutional and Intellectual Life.
39 Celia Maria Marinho de Azevedo. Abolocionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história Chicago: The University of Chicago Press, 1959. Ver também: Herbert S. Klein. Slavery in the
comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003. Americas. A Comparative Study of Cuba and Virginia. Chicago: The University of Chicago Press,
40 Sobre as estratégias e argumentos utilizados por parlamentares para fundamentação do 1967.
projeto escravista na América ibérica nesse período, ver: Márcia Regina Berbel & Rafael de 44 David Brion Davis. “A contradição contínua da escravidão: uma comparação entre América
Bivar Marquese. “A escravidão nas experiências constitucionais ibéricas, 1810-1824”. Texto Inglesa e a América Latina”, pp.255-295. In: O Problema da escravidão na cultura ocidental
apresentado no seminário internacional Brasil: de um Império a outro (1750-1850), realizado no (1ªedição: 1966. trad. Port.). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. Para uma perspectiva
Departamento de História da USP em setembro de 2005. crítica à linha estabelecida a partir da obra de Tannenbaum cf. também: Marvim Harris.
168 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 169
autores como Tannenbaum e Elkins, sendo que “todos os proprietários quais os escravos estavam submetidos. O autor pondera que, a despeito
americanos de escravos compartilhavam certos pressupostos e problemas dos significativos esforços para demonstrar que os regimes escravistas fo-
centrais”. De acordo com o autor, exceto no que diz respeito às barreiras ram similares em sua essência e que as diferenças existentes decorreram de
legais para a alforria, as características principais da escravidão norte-a- condições materiais e não da legislação, uma discussão significativa per-
mericana também se encontravam entre espanhóis e portugueses. Isto é, manece: a proporção da população liberta sempre foi maior nas Américas
em toda parte o negro era um bem móvel e transferível, cuja força de espanhola e portuguesa do que nos Estados Unidos. No entender de De
trabalho e bem-estar era controlada por outrem. Davis questiona o grau la Fuente, o insight de Tannenbaum de que a frequência da manumis-
de observância das leis e destaca que tanto no direito anglo-americano são influenciou, mais do que qualquer outro fator, o resultado último da
quanto no ibero-americano, ou mesmo no romano, o escravo era conce- escravidão continua de pé. De acordo com este historiador, embora as
bido como um bem ou instrumento de trabalho, ao mesmo tempo que sociedades pós-emancipação latino-americanas não tenham sido a utopia
como um ser humano.45 No entanto, Davis não refuta um ponto essencial, racial uma vez pensada, foram diferentes dos Estados Unidos num aspec-
as diferenças com respeito à alforria, reconhecendo que os negros tiveram to fundamental: não criaram uma segregação institucional.
mais oportunidades de obterem a liberdade nas possessões ibéricas do Assim, apesar das críticas sofridas, Slave and Citizen conserva
que nas colônias inglesas e Estados Unidos. Ora, a facilidade para a ma- sua relevância e ainda pode engendrar temas de pesquisa bastante factí-
numissão é um dos argumentos centrais de Tannenbaum para definir o veis. Para Alejandro de la Fuente, um deles é o exame das brechas legais
contraste entre e a América Latina e a anglo-saxônica. Assim sendo, não existentes nas colônias ibéricas para a reclamação de certos “direitos”
teria aquele autor mais nada a nos ensinar sobre a legislação escravista? por parte dos escravos. Pensando mais especificamente na escravidão
Essa questão serviu de mote para um fórum de debate ocorri- cubana, o estudioso acena para o encurtamento da distância entre os
do em 2004. A discussão foi introduzida através do texto elaborado pelo dispositivos legais e o protagonismo social dos negros cativos a par-
historiador cubano Alejandro de la Fuente. Em seu texto, o estudioso rea- tir do conceito de “reclamación de derechos”. O autor reconhece que
firmou a relevância do livro de Frank Tannenbaum, não apenas por haver Tannenbaum atribuiu à legislação um exagerado poder de transforma-
estabelecido os termos do debate, mas, também, por expor a importância ção social. Segundo sua ótica, eram os escravos, ao efetuarem pressões e
do direito na demarcação das condições muitas vezes contrastantes sob as reivindicarem certos benefícios, que conferiam significado concreto aos
direitos abstratos regulados pelas leis positivas.46
Patterns of Race in the Americas. Nova York: Greenwood Publishing Group, 1964; Arnold A. Sio. Nos últimos anos, tem ocorrido uma espécie de resgate do debate
“Interpretations of Slavery: The Slave Status in the Americas”, in: Comparative Studies in Society
and History, 1965, VII, pp.289-308. iniciado por Tannenbaum, por autores como Robert J. Cottrol e o mesmo
45 Davis, op.cit. p.277. Foi fundamental o diálogo estabelecido por Davis com os trabalhos Alejandro de la Fuente, em estudos conjuntos com Ariela Gross.47 De la
dos cientistas sociais da chamada “Escola de São Paulo”, os quais denotam uma realidade Fuente & Gross, por meio de uma análise sobre as relações entre direito e
bem mais dura do que aquela delineada na obra de Gilberto Freyre. Cf. Paula Beiguelman.
Formação política do Brasil. São Paulo: [s.n.], 1967; Fernando Henrique Cardoso. Capitalismo escravidão em Cuba, Louisiana e Virginia, se debruçaram sobre os esforços
e Escravidão no Brasil Meridional. O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. São legislativos locais, os arranjos costumeiros e os apelos judiciais feitos pe-
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. Emília Viotti da Costa. Da Senzala à Colônia. São
Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966. Octavio Ianni. As Metamorfoses do Escravo. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1962. É preciso lembrar, porém, que o ponto de partida para essa
linha de estudos está no final da década de 1950; ver: Roger Bastide e Florestan Fernandes.
Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1958 (2.ª ed.). Os seguintes 46 Alejandro de la Fuente. “La esclavitud la ley...”, p. 39.
trabalhos obtiveram resultados semelhantes, podendo ser enquadrados nessa mesma tendência: 47 Robert J. Cottrol. The Long, Lingering Shadow: Slavery, Race, and Law in the American
Stanley J. Stein. Vassouras. A brazilian Coffe Country, 1850-1900. Cambrige: Havard University Hemisphere. Athens: University of Georgia Press, 2013, pp.2-21; Alejandro de la Fuente &
Press, 1957; Charles R. Boxer. Relações Raciais no Império Colonial Português, 1415-1825. Rio de Ariela Gross. Comparative Studies of Law, Slavery and Race in the Americas. University of
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967; Suely R. R. de. Queiroz. A Escravidão Negra em São Paulo – Um Southern California Legal Studies Working Paper Series (February, 2010). Disponível em: <http://
Estudo das Tensões Provocadas pelo Escravismo no século XIX. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977. law.bepress.com/usclwps/lss/art56
170 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 171
los escravos.48 Os autores desenvolvem o argumento de que o quadro legal, cio-política fariam com que os breves ganhos da população negra livre da
correlacionado à dinâmica política local, à ideologia racial e à configuração Virginia fossem achatados, em meio ao avanço da ideologia racial e aos con-
demográfica, criou oportunidades diferenciadas para escravos e negros li- flitos internos em torno da escravidão nos Estados Unidos (a partir de 1806,
vres. Eles reconhecem na chamada Era das Revoluções um momento de seriam novamente impostas barreiras legais à manumissão). Na Luisiana,
aproximação das experiências escravistas, com um afluxo de ideias favorá- incorporada aos Estados Unidos em 1803, após um novo e breve domínio
veis à liberdade e um crescimento generalizado de chances efetivas para a francês, restrições também seriam impostas, mas persistiria um sistema legal
manumissão, inclusive na Virginia, onde haveria um relaxamento das nor- híbrido, com contínuas remissões a preceitos espanhóis e franceses para o
mas contrárias às liberações49. No entanto, o crescimento da presença de respaldo de reclamações de liberdade, com alguma margem de sucesso. Em
negros entre a população livre não seria suficientemente abundante a ponto Cuba, o bem estabelecido conjunto de princípios legais e costumeiros asso-
de sedimentar a conjuntura favorável (passou de 1% na década de 1770 para ciados à manumissão continuaria em franca operação. A sua sedimentação
1,7% na década de 1790). Na Luisiana, que foi para as mãos espanholas em ao pé da volumosa presença de egressos impediria que a elite proprietária
1763, o cenário seria notavelmente mais aberto, denotando o relevo da cul- cubana pudesse embarreirar legalmente o acesso à alforria, “a despeito do
tura jurídica proveniente de Castela, que logo sobrepujaria as normas restri- desenvolvimento de uma economia de plantação na ilha”52.
tivas inseridas no Código Negro francês promulgado em 1724.50 Naqueles Esse modelo explicativo articula elementos importantes para
anos, as chances dos cativos obterem a sua liberdade em Nova Orleans se- o esclarecimento das diferenças legais e de suas implicações nas regiões
riam três vezes maiores do que na Virgínia, chegando a uma centena de abordadas ao longo de todo o processo. No entanto, há outros aspectos
liberações anuais no início da centúria seguinte. No caso de Cuba, ocorreria que poderiam contribuir para o enriquecimento do quadro. É preciso
o fortalecimento do padrão já solidamente arraigado a partir do nexo entre ter em conta os traços constitutivos dos ordenamentos jurídicos desta-
os precedentes e a presença ascensional de negros e mulatos na população cados, que vão além da presença prévia de normas relativas à escravidão
livre. As medidas expedidas no âmbito do reformismo bourbônico referen- e da opção analítica de abordar ou não as normas locais, problema que
dariam antigas práticas costumeiras potencialmente favoráveis aos escravos, destacam na historiografia. Em termos comparativos, havia no interior
como a coartación (amortização gradual do valor correspondente à alforria), do império britânico, ordenado sob a tradição da common law, um grau
mantendo as portas abertas para demandas por liberdade.51 diferenciado de autonomia jurídica e um peso específico da jurisprudên-
No século XIX, as experiências se distanciariam. A pequena im- cia para a fixação das normas. Isto ajuda a explicar porque foi possível a
portância numérica e a consequente rarefação de sua potencial pressão só- permanência de um sistema híbrido na Luisiana. Desse modo, mesmo
que houvesse um arcabouço prévio sobre a escravidão na Inglaterra que
>. Acesso em: 04/10/2017; Alejandro de la Fuente & Ariela Gross. Slaves, Free Blacks, and sancionasse o ato privado da alforria, a sua assimilação não necessaria-
Race in the Legal Regimes of Cuba, Louisiana and Virginia: a Comparison. North Carolina mente teria os mesmos efeitos sociais, demográficos observados para o
Law Review, n.91 (2013), pp.1699-1756.
48 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, op.cit. O cenário ibero-americano.53
posicionamento crítico de Gross & De la Fuente diz respeito ao procedimento adotado por É inegável que a pressão exercida pelos escravos em busca de sua
Herbert Klein em trabalho de 1967, que contrapôs de maneira estrita os estatutos locais da
Virginia às leis metropolitanas para Cuba. Cf. Herbert S. Klein. Slavery in the Americas: A
liberdade e pela presença massiva de negros e mulatos entre a população
Comparative Study of Virginia and Cuba. Chicago: The University of Chicago Press, 1967. livre ajuda a explicar por que os precedentes concernentes à transição da
49 A referência direta neste ponto é ao artigo da historiadora Keila Grinberg: Freedom Suits escravidão para a liberdade não apenas foram mantidos, como foram am-
and Civil Law in Brazil and the United States. Slavery & Abolition (2001), 22, pp.66-82.
50 Vernon Valentine Palmer. The Origins and Authors of the Code Noir. Louisiana Law
Review, v.56, n.2 (1996). Disponível em: <http://digitalcommons.law.lsu.edu/lalrev/vol56/ 52 Idem, p.1707.
iss2/5>. Acesso em: 24 de ago. 2013; Alan Watson. The Origins of the Code Noir Revisited. 53 Alan Watson. Slave Law in the Americas. Athens: University of Georgia Press, 1989, pp.63-
TUL. L. REV., n.71 (1997), pp.1041–1055. 82; Idem. The Evolution of Law. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001, pp.234-
51 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, pp.1708-1716. 247; Paul Finkelman (ed.). Slavery & the Law. Madison: Madison House, 1997, pp.379-418.
172 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 173
pliados em um dado momento.54 Ocorre, porém, que, da maneira como formas de alforria, aquela normativa não assumiu um caráter corrosivo ou
o argumento é desenvolvido por Gross & De la Fuente, os senhores de antiescravista. Pelo contrário, ela se ajustou ao sistema, constituindo um
escravos cubanos e ibero-americanos, por extensão, aparecem como im- dos pilares para o avanço da escravidão cubana no século XIX. O outro
potentes diante da injunção dos precedentes e do movimento desenca- documento é uma carta de liberdade da região de Pinar del Río em Cuba.
deado pelos próprios cativos. O problema é que o ímpeto generalizado Seus termos dialogam diretamente com o teor da Real Cédula de 1778.56
dos senhores de escravos contra a alforria, que os autores sugerem, não é
empiricamente demonstrado. Além do que, o seu argumento pressupõe
uma contradição entre a grande plantação, a prática da manumissão e os Doc. 1. Real Cédula de 8 de abril de 1778.
interesses da classe senhorial que não existia.55 El Rey.
Governador y Capitán General de la Isla de Cuba, y ciudad de San
Cristóbal de la Havana. Con motivo de las dudas y disputas ocurridas en
Extratos de documentos esta Capitanía Gral, en orden a la paga de la Alcabala que causavan las
ventas voluntarias ó involuntarias de parte de los Amos de los Negros, y
A seguir, os leitores poderão ter acesso à Real cédula de 8 de abril de Mulatos, declaré y mandé por Rl Cédula de 21 de Junio, que se obser-
1778, por meio da qual o governo espanhol, avançando em relação às Siete vase en esa Isla el mismo método, y reglas que en Nueva España, y el
Partidas, confirmou o direito dos escravos à alforria onerosa, determinando Perú, reducidas, entre otras; a que la Alcavala de los esclavos que se
que nenhum senhor poderia se furtar a outorgar a carta de liberdade ao es- vendiesen por mandato de la Justicia á causa de alguna vejación, ó malos
cravo de sua propriedade que apresentasse a soma correspondente ao seu preço tratamientos que experimentasen de sus Amos, fuese la satisfacción de
integral, podendo ser compelido em juízo a fazê-lo mediante avaliação peri- cuenta de estos enteramente, en pena de haber faltado a la humanidad,
cial. O mesmo documento validou a antiga prática da coartação, suscitando y racionales modos con que estaban obligados a tratarlos, sin que pudie-
dúvidas sobre o status dos coartados (se equivalente ao dos escravos inteiros, ran alterar el precio en que los adquirieron: que quando el que los poseía
como eram chamados). Consequentemente, abreviava-se o controle senhorial los enagenara por venta, o cesion, por pura voluntad, y conveniencia
sobre o término do cativeiro, já que originalmente a manumissão era uma suya, y sin que el esclavo huviese cometido delito que le estrechara á
prerrogativa senhorial. Legislação semelhante só surgiria no Brasil em 1871, deshacerse de él havía también de se de su cuenta la paga de Alcavala,
com a promulgação da chamada Lei do Ventre Livre. sin arbitrio de alterar el precio en que lo compró, pero que si el mismo
Entretanto, na medida em que a mobilidade social dos escravos esclavo daba causa con su mal proceder a que lo enagenara, y la Justicia
foi sempre inferior aos mecanismos de reposição da mão de obra (co- la calificava de suficiente, en este caso, entregará de pronto el vendedor
mércio e nascimento) e o domínio senhorial manteve suas prerrogativas el importe del derecho referido, y le aumentará el precio del esclavo, por
essenciais quanto à disciplina, ao manejo da força de trabalho e às demais haberse contemplado ser este un medio racional, que al mismo tiempo
que penaba el delito, servía de freno al siervo para contenerlo en su de-
54 Alejandro de la Fuente. Slavery and claims-making in Cuba: The Tannenbaum debate revisited.
Law and History Review, vol. 22, 2004, pp. 339-69; Idem. La esclavitud, la ley, y la reclamación ber, por el temor de que a proporcion de sus graves faltas havía de subir
de derechos en Cuba: repensando el debate de Tannenbaum. Debate y Perspectivas. Cuadernos de su valor, y por consecuencia la imposivilidad de adquirir la libertad á que
Historia y Ciencias Sociales, n.4, 2004, p. 37-68; Idem. Su único derecho: los esclavos y la ley. Debate y
naturalmente anhelan todos: que quando los esclavos entregasen á sus
Perspectivas. Cuadernos de Historia y Ciencias Sociales, n.4, 2004, p. 7-22; Idem. Slaves and the Creation
of Legal Rights in Cuba…, op.cit; Alejandro de la Fuente & Ariela Gross. Comparative Studies of Señores el importe de su valor, adquirido por medios honestos, bien
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em: 04/06/2010; Silva Júnior. A escravidão e a lei..., pp.35-66. 56 Para uma análise do contexto de publicação dessa Real Cédula e uma comparação com o caso
55 De la Fuente & Gross. “Slaves, Free Blacks, and Race in the Legal Regimes...”, pp.1707; 1724. brasileiro, (Cf. Silva Júnior, 2015, 72-102).
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fuesen industriales, ó por suplementos de parientes, ó amigos suyos, con perverso, quando por su mala conducta se viera el Amo necesitado á
el fin de redimirse del cautiverio, ó servidumbre, fueran obligados los deshacerse de él; con cuyo motivo añadió el Marqués de la Torre, que
Dueños á otorgarles llana, y jurídicamente la carta de libertad, y los acaso se huviera omitido este recurso, á haberse opinado de otro modo,
Títulos en cuya virtud los poseían, quedando cancelados, y anotados en acomodandose los Consultores a la modificación con que los menos
sus respectivos lugares, sin que les fuese facultativo, en este caso, pedir preocupados entendían mis Rls disposiciones, quienes diferenciaban (a
más precio, ni recibir otra cosa, que la cantidad que exhivieron al tiempo su parecer fundadamente) las relatibas a las ventas de las que se contra-
de su adquisición, aunque alegasen que les havían enseñado algunos ofi- ían á libertades en lo substancial distinguiendo para ello dos grados de
cios, ó habilidades extraordinarias, porque todo se debía sacrificar a be- mejoramiento en los esclavos, uno ordinario y natural, y otro industrial
neficio de la libertad en que siempre, ó las más vezes interesaba el públi- y extraordinario siendo el primero el de los Negros de Guinea, que se
co, cuya utilidad preponderaba, á la privada del particular, y que en este provee esa Isla para las labores, mejorándose naturalmente de su bozali-
supuesto, no se contribuyera cosa alguna por razón de Alcavala, pues no dad, y nativa rudeza, aprendiendo el idioma y primeros rudimentos de la
la havía cuando el esclavo adquiría la libertad por los insinuados medios, Religión, recibiendo el Bautismo, y exercitándose después en el trabajo
ó por pura liberalidad de su Dueño, en reconocimiento de sus buenos a que eran destinados, en cuyo grado ordinario tenían la comun estima-
servicios; y finalmente que quando el esclavo entregara a su Amo parte ción de trescientos pesos y los del 2º que eran aquellos que salían más
del precio que le costó, con el fin de que rebajado de su valor principal habiles, y aplicados á algun oficio, ó ocupación particular adquiriendo
quedase éste más moderado, y él en mayor aptitud de conseguir su liber- Maestria, ascendian a superior estimación, correspondiente a la utilidad
tad, se anotase la rebaja en el instrumento que servía de Título, para que de su servicio, versandose la misma diferencia en los Criollos Negros, y
constase en todo evento, y que si acaeciese que antes de completar el Mulatos a beneficio de la disciplina y de la edad; y después de hacer el
total importe de su rescate, mudase el esclavo se otorgase el instrumento mencionado vro antecesor varias difusas reflexiones sobre la inteligencia
con deducion de aquella partida que dio en cuenta de su libertad, y la de las dos referidas Rs Cedulas, concluyó su citada carta exponiendo se
Alcavala se regulase, y cobrase unicamente de la cantidad a que quedara persuadía a que no era mi Rl ánimo pribar á los Dueños de esclavos de
reducido su valor, también en obsequio de la propia libertad; cuya decla- esa Isla del derecho al más valor de su mejoramiento extraordinario sino
ración habiéndose confirmado por otra Real Cedula de 27 de septiem- quando se tratara inmediata, y directamente de su libertad, y que en toda
bre de 1769, con solo la diferencia, de que por lo que tocaba a los escla- venta podrían aprovecharse de él con equidad y justicia, menos quando
vos coartados; que estos no pudieran mudar de Amo sin la voluntad de mereciesen perder el aumento ordinario, por pena de sus malos trata-
éste, á excepción de los casos expresados y prevenidos por derecho y que mientos, y que si vendían los esclavos por precisarlos estos con su mal
llegado a verificarse el traspaso, y venta de ellos, pagase de su precio el proceder, y no valían más que el precio ordinario ó tenían coartación á
Comprador la Alcavala, dió cuenta el Marqués de la Torre vro antecesor alguno inferior, podría cargar el importe de la Alcavala, en pena de su
en carta de 26 de Febrero de 1773 de haberle entregado el Ayuntamiento mala versación, lo que no les sería licito quando los vendieran, sin otro
de esa ciudad, y el Síndico Personero del Comun, una difusa represen- motivo, que el de su propia conveniencia, sobre cuyo pie variaría mucho
tación que acompañó testimoniada, sobre la inteligencia que debía darse la razón de esos vecinos, y se evitaría la minoración del derecho de
a varios de los puntos comprendidos en las dos citadas Reales Cedulas, Alcavala, que en otros términos sería irremediable. Visto lo referido en
exponiendo entendian los Juristas de esa Ciudad (a excepción de muy mi Consejo de las Indias, con lo que en su inteligencia y de los antece-
pocos) que su disposición prohivía indistintamente a los dueños de los dentes informó la Contaduría Gral y expuso mi Fiscal, y consultándome
esclavos la alteración del precio de su primera adquisición, para todos los sobre ello en 17 de Febrero proximo pasado, he resuelto, sin embargo de
casos en que se tratara de su venta, ó libertad; sin otra diferencia que la lo determinado en las dos Rs Cds de 21 de Junio de 1768 y 27 de
de poder sobrecargar el importe del Rl derecho de Alcavala al esclavo Septiembre de 1769, declarar, como por la presente mi Rl Cedula decla-
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ro, para obviar dudas, y recursos en adelante, que los dueños de esclavos mi Rl Audiencia de Sto Domingo, para que se hallen con esta noticia en
no coartados, han de tener la libertad de venderlos por el precio en que los casos que convengan; por ser así mi voluntad, y que del presente se
convinieren con los compradores, segun la menor, ó mayor estimación tome la razón en la propia Contaduría General. Fecha en el Pardo á
que tuvieren que quando los Amos por justas causas fueren obligados ocho de Abril de 1778.=Yo el Rey=Por mdo del Rey ntro Sor=Antonio
por autoridad de la Justicia á vender sus esclavos enteros, sea por el pre- Ventura de Taranco.57
cio en que se tasasen judicialmente en concepto al valor que tenían en
aquella actualidad, pero que si hubiese comprador que los quiera tomar Doc. 2. Carta de liberdade conferida na região tabaqueira de Pinar
sin tasación conviniendose para ello con el Dueño, en tal caso puedan del Río, Cuba, no ano de 1854, mediante compensação em dinheiro.
celebrar su ajuste, sin que sea lícito a la Justicia impedirlo, no obstante Sépase que yo el licenciado Don Miguel Quintanó como apoderado
que por ella se haya obligado al Dueño á venderlos, á menos que para de Don Francisco Betancourt según consta del que me confirmó en
minorar el precio de la Alcavala, no se adbierta alguna colusion entre el ocho de marzo anterior por ante el capitán interino de Consolación
comprador, y vendedor: que los esclavos coartados, no se puedan vender cuyo poder es suficiente juro no estarme revocado y original de agregó a
en más precio que el de la coartación ó el del resto de ella, pasando con esta escritura otorgo: que liberto y ahorro de toda sujeción cautiverio y
este mismo grabamen al comprador: que en todos estos casos satisfaga servidumbre a un negro nombrado Juan Macuá que quedó entre los bie-
el vendedor el derecho de Alcabala, regulado su importe por el precio en nes de Doña Rita Betancourt de quién es albacea mi pasavante la cual
que efectivamente se verifique la venta, procurando siempre precaver le confiere por la suma de cuatrocientos pesos que escribió en el juicio
todo fraude: que si el esclavo coartado con su mal proceder diere motivo testamentario cursado por esta escribanía de cuya cantidad le doy por
á su enagenación calificada quesca su culpa, pueda el Amo aumentar al entregado y otorgo recibo en formal con las renunciaciones necesarias
precio de la coartación el importe de la Alcavala, que ha de satisfacer en en virtud de lo cual y no estando gravado según lo certifica el anotado
los términos referidos; y finalmente declaro, que no deben pagar este del ramo en la que se agrega aposto a los bienes de la propiedad y po-
derecho los esclavos enteros, ni los coartados que se rescataren a si pro- sesión que al expresado negro habían y tenían que lo cedo y traspaso
pios con dinero adquirido por medios lícitos, quedando obligados los inviolablemente en su hecho y causa propia para que como persona libre
Amos conforme á la costumbre, á darles sin detención la libertad, siem- pueda tratar contratar comparecer en juicio otorgar escritura testamento
pre que apronten el precio correspondiente regulándose este en los no y los demás actos y cosas permitidas a las personas libres mando en toda
coartados por el valor que en la actualidad tubieren á justa tasación, si su espontanea voluntad y los obligo a que esta le será cierta y segura en
Dueño y siervo no se conviniesen, pues por lo que toca á los coartados, todo y sin contradicción de ninguna especie. En cuyo testimonio es fe-
no deben estos satisfacer por su libertad más cantidad que aquella que cha en el Pueblo de Pinar del Río en once de enero de mil ochocientos
falte a completar el precio que se fixó al tiempo de la coartación; y para y cincuenta y cuatro. Yo el escribano doy fe conozco al otorgante que
que todas las referidas declaraciones se observen en lo sucesivo precisa, firmó siendo testigos Don Tomás Álvarez, Don José Y Raveno y Don
y inviolablemente no obstante lo determinado en las expresadas Rs Ceds Felipe Hernández vecinos y presentes.58
de 21 de Junio de 1768 y 27 de Septiembre de 1769 (las quales derogo
y doy por de ningun valor, ni efecto, en quanto sean contrarias á lo dis-
puesto en ésta) os ordeno, y mando hagais publicar por Bando esta mis 57 Archivo Nacional de Cuba. Reales Cédulas y Ordenes. Legajo 14. No. 120. Trata-se de uma
normativa muito importante, na medida em que consolidou as bases legais para a obtenção da
Resolución para que llegue á noticia de todos los vecinos y moradores de alforria onerosa em Cuba. A transcrição deste documento foi feita e cedida pelas historiadoras
esa Isla, pasando copia de ella a ese Intendente, y dando las demás órde- Aisnara Perera e María de los Angeles Meriño, às quais agradeço.
nes, y disposiciones que correspondan a su observancia, en inteligencia 58 Carta de libertad otorgada por Miguel Quintanó a favor del negro nombrado Juan Macuá por ser
esclavo de su poderdante Francisco Betancourt como albacea de su hermana Rita. Archivo Provincial
de que por Despacho de este día se comunica al Regente, y Oidores de de Pinar del Río (Cuba), t.1, exp.22, 11 de janeiro de 1853.
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rica. Madrid: Fundación Histórica Tavera/Digibis/Fundación Hernando de Larramendi, 2000. e “aventureiros” particulares, operando mais ou menos sob a autoriza-
(Cd-Rom).
ção da Coroa, criaram uma variedade de colônias, cada uma com suas
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no Antigo Regime ibero-americano. São Paulo: Annablume, 2013. ordens legais distintas. As primeiras colônias norte-americanas foram
SILVA JÚNIOR, Waldomiro Lourenço da. Entre a escrita e a prática: direito e escravidão no
marcadas por um pluralismo de instituições, normas e culturas legais re-
Brasil e em Cuba, c.1760-1871. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História gionalizadas. E, contudo, subjacente a este pluralismo, havia caracterís-
Social – FFLCH/USP, 2015. ticas semelhantes. De uma ponta a outra da costa atlântica, era possível
KLEIN, Herbert S. Escravidão Africana: América Latina y Caribe (trad. José Eduardo de Men- observar uma justiça predominantemente leiga, compromissos consti-
donça). São Paulo: Brasiliense, 1987. tucionais comuns e um engajadamento simultâneo a uma resistência a
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo missionários da mente: senhores, letrados e o um Império Britânico cada vez mais interventor. Mas antes mesmo que
controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
esta história se desenvolvesse, assim que chegaram, os colonos tiveram
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TODOROV, Tzvetan. La conquista de América: el problema del outro. Buenos Aires: Siglo Vein- lonização da América do Norte diziam muito pouco, quando diziam, so-
tiuno, 2009. bre o status da lei nativa, obscurecendo os termos de sua interação com
VERLINDEN, Charles. “L’esclavage dans Le monde ibérique medieval”. Anuario de Historia del a Coroa e com as ordenações coloniais. Acima de tudo, os ingleses não
Derecho Español, Tomo XI (1934), pp.283-448.
aceitavam se submeter às leis nativas. Na prática, os nativos americanos
ZERON, Carlos Alberto de Moura. La Compagnie de Jésus et l’institution de l’esclavage au Bré- se relacionavam de formas variadas em relação aos sistemas legais dos
sil – les justifications d’ordre historique, théologique et juridique, et leur intégration par une mémoire
historique (XVIe-XVIIe siècles). Tese de doutorado. EHESS, Paris: 1998, 2.v colonos. Estas relações podem ser colocadas em um espectro. Índios que
viviam nas cidades coloniais se submetiam às leis dos colonos. Membros
de tribos que reconheciam a soberania inglesa, mas viviam coletivamente
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em comunidades indígenas ou dentro das fronteiras coloniais, mantinham de “escolha de lei” dentro das principais áreas de colonização europeia.
uma relação mais seletiva, mais ad hoc. Os índios nestas tribos não levavam As leis nativas importavam politicamente, mas não exerciam poder de
as suas disputas às cortes inglesas. Particularmente na tribo Chesapeake, lei sobre os colonizadores.
crimes e problemas relativos ao comércio eram mais prontamente trata- Uma comparação com o Império Espanhol ajuda a iluminar
dos como problemas comuns que deveriam ser resolvidos politicamente, ainda mais as razões e as implicações da limitada abordagem inglesa.
não como ofensas litigiosas individuais. Os caciques indígenas e os líderes Nos séculos XVI e XVII, colonos castelhanos viviam em número muito
coloniais assumiam as responsabilidades pelas ofensas dos seus povos e fa- menor dentre os milhões de indígenas. Os espanhóis esperavam que
ziam reparações através de punições aos meliantes, oferecendo compensa- a maioria dos nativos fossem incorporados ao império na medida em
ções às vítimase restaurando as relações através da diplomacia e da oferta que os colonos viviam do trabalho e dos tributos indígenas, evangeliza-
de presentes. Apesar de isso também ocorrer na Nova Inglaterra, por lá vam índios, reordenavam suas cidades, os convidavam ou os arrastavam
era mais comum que os índios invocassem ou fossem forçados para dentro para dentro de seus tribunais imperiais e tentavam, parcialmente, “his-
de um sistema legal colonial nesse tipo de disputas intercomunais (tipica- panizar” os seus costumes e governos. Contrariamente, os colonos da
mente aquelas envolvendo crime, sexo e casamento, venda de terras, fron- América do Norte britânica encontraram populações indígenas infinita-
teiras e trocas comerciais). As autoridades coloniais ansiavam por expan- mente menores nas regiões do Piedmont e da planície costeira atlântica.
dir o alcance teórico de suas jurisdições sobre as comunidades indígenas, O número de indígenas foi reduzido entre 80% a 90% durante o período
colocando importantes disputas dentro de suas próprias cortes e ao seu colonial, caindo de centenas de milhares para dezenas de milhares de
critério, mas na prática eles não tratavam as questões legais concernentes pessoas, enquanto as populações europeias aumentavam, de aproxima-
aos nativos americanos. Por último, para além das fronteiras coloniais, as damente 70.000 pessoas em 1660 para 1.270.000 em 1760. A remoção
tribos independentes exerciam uma soberania quase inata. Elas podiam dos nativos americanos tinha um componente que não era somente nu-
aceitar as decisões advindas das leis coloniais em casos particulares, mas mérico, mas também geográfico. Apenas uma minoria dos indígenas
apenas como resultado de negociações diplomáticas. sobreviventes continuou a residir nas principais áreas de colonização
Comparados com outras primeiras colônias europeias além- europeia. A maioria vivia nos interiores ou atrás de uma linha de fron-
-mar, os sistemas jurídicos ingleses na América do Norte mantive- teira porosa e de movimento contínuo. A relativa falta de interesse dos
ram um notável grau de distância em relação às leis dos povos nativos. colonos nas transações legais dos nativos no interior e na fronteira era
Colônias da Companhia das Índias Orientais em Madras, Bombaim e possível porque, diferentemente dos espanhóis, os ingleses não viviam
Calcutá, por exemplo, operaram sob pactos ou contratos com os chefes do trabalho e dos impostos indígenas. O sistema legal colonial não ca-
nativos, o que limitou o controle inglês sobre os seus homens no exterior librava nem garantia a extração de trabalho, dinheiro e bens dos povos
e demandou pelo menos alguma consideração em relação às leis nativas. indígenas, nem coordenava investimentos econômicos de larga escala
Em casos específicos, os tribunais da Companhia desenvolveram proce- (como a mineração e a remessa de barras de ouro e prata na América
dimentos para a aplicação das leis hindu e muçulmana aos que haviam do Sul) que dependiam de indígenas de diversas jurisdições locais. Os
aderido àquelas religiões. Ao contrário, os ingleses na América do Norte, colonos não fizeram nenhum esforço sistemático para “anglicizar” os
ao invés de firmarem contratos ou pactos com os nativos, justificavam sistemas jurídicos das comunidades americanas como no modelo (em
a colonização através do desenvolvimento das terras desocupadas. Eles grande parte ineficiente) da campanha de cristianização. Os ingleses
não se sentiam obrigados a tratar as leis dos povos nativos como uma também não seguiram a política espanhola de tratar os indígenas como
das diversas leis locais, transnacionais e imperiais, cuja interação com- súditos ou vassalos da Coroa. A não ser que fossem naturalizados, os ín-
plexa governava os assuntos dentro de suas colônias. O alcance das leis dios permaneciam como estrangeiros. Tipicamente, os oficiais coloniais
nativas se tornou uma questão de diplomacia mais do que um problema sabiam menos dos princípios legais indígenas do que os seus pares na
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Índia britânica e na América espanhola. O que se destaca na América Nas colônias de proprietário59, a Coroa concedia um território
inglesa, portanto, é o grau relativamente alto de separação entre a lei definido a um indivíduo ou a um grupo que “possuía” a colônia em for-
colonial e a lei nativa. ma de propriedade passível de ser herdada. Como nas relações feudais,
a posse passava de mão em mão de acordo com a autoridade governa-
mental. O proprietário, normalmente residente na Inglaterra, indicava o
Pluralismo legal, culturas regionais legais e escravidão governador da colônia, que agia em seu nome enquanto exercia poderes
similares ao de um governador real. Apesar de os primeiros proprietá-
Se a indisposição dos ingleses em tratar os costumes nativos rios reivindicarem o direito de proclamar leis, ao final do último terço
como uma forma legal a que os colonos deveriam ser submetidos aca- do século XVII eles já compartilhavam este poder com as assembleias,
bou por reduzir a complexidade da sua ordem legal, por outro lado essa cujo consentimento à legislação e cobrança de impostos era necessário.
complexidade ainda era considerável devido ao pluralismo legal inerente Finalmente, as colônias corporativas60 exerciam amplos pode-
à colonização além-mar. O pluralismo legal ocorre quando múltiplos res de autogoverno, que se baseavam em cartas régias ou em costumes e
corpos estatais e não estatais propõem normas, resolvem disputas e im- práticas. Elas também selecionavam, direta ou indiretamente, através da
põem sanções dentro de um dado território ou sobre um grupo social assembleia, os governadores e seus assistentes (cujo poder se assemelha-
particular e, contudo, não são parte de um único “sistema” hierárquico, va aos dos conselheiros dos governadores). A ausência de um governador
sob uma mesma autoridade coordenadora. Em casa, os Estados euro- real ou proprietário com extenso controle sobre o governo, bem como
peus colonizadores, como a Inglaterra, mantinham ordens jurídicas que o número reduzido de oficiais e juízes, rendeu às colônias corporativas
se faziam pluralísticas através de diversas dimensões. Os seus monarcas algo que os contemporâneos descreveram como um ethos “democrático”.
governavam monarquias “compósitas”, compostas de territórios com Ao longo do tempo, através da entrega voluntária ou forçada das cartas
tradições constitucionais diversas. Uma multiplicidade de tribunais re- régias, a Coroa transformou algumas colônias de proprietário e corpora-
ais, senhoriais, urbanos e eclesiásticos competiam entre si e exerciam tivas em colônias reais, que se tornam preponderantes no século XVIII.
uma variedade de formas da lei. O pluralismo legal herdado dos Estados A interação entre jurisdições estatais e não estatais potencial-
europeus muitas vezes se fazia ainda mais complexo no Novo Mundo. mente conflituosas aumentou ainda mais este pluralismo. O Conselho
Para começar, as constituições das colônias inglesas não eram Privado inglês61, o Parlamento, o Almirantado, o Tesouro e Serviços
uniformes. Apesar de assuntos específicos variarem de colônia para co- Aduaneiros, a hierarquia da Igreja Anglicana, cada um afirmava ser res-
lônia, particularmente nos primeiros anos de colonização emergiram ponsável por regular determinados assuntos na colônia, sem claras li-
três tipos básicos de governo. nhas divisórias ou hierárquicas entre elas e as autoridades locais. Igrejas,
As Colônias Reais eram controladas diretamente pela Coroa. universidades, propriedades senhoriais, plantations, senhores de terras
O monarca indicava o governador e o seu conselho, que aprovava legis- (manors), patroonships62, capitães da marinha real e corporações comer-
lações junto com uma assembleia popularmente eleita. O governador
executava as leis, convocava e suspendia assembleias, apontava juízes e
59 NT: O termo no original é proprietary colony. Exemplos: Carlos II presenteou a Nova Holanda
oficiais mais baixos e também podia vetar a legislação. O conselho fun- a seu irmão mais jovem, o Duque de York, que a nomeou Nova York. O mesmo monarca cedeu
cionava como uma casa superior nas colônias com legislaturas bicame- a William Penn uma imensa área, batizada Pensilvânia.
60 NT: Corporate colonies, também conhecidas como Charter colonies. A área da baída de
rais e, junto com o governador, ocupava a mais alta corte de apelação Massachussets, Rhode Island e Connecticut são exemplos desse tipo de colônia.
dentro da colônia. 61 NT: Os Privy councils são conselhos de assessores e conselheiros diretos do rei.
62 NT: Patroonship era o “sistema de colonização concebido em Amsterdã em 1628 e aplicado
pelos holandeses na Nova Holanda (ou New Netherland): terras, a título de feudo perpétuo,
eram concedidas aos empreendedores, os patroons (...)” (Cf. Bernand; Gruzinski, 2006, 746).
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ciais e filantrópicas reivindicavam jurisdições de legitimidade incerta. adotada pelo Conselho Privado em 1772, afirmava que todos os estatu-
Cada um reivindicava zonas de controle disputadas por governos colo- tos parlamentares criados antes da data de colonização das colônias se
niais e oficiais imperiais. As colônias conseguiam controlar apenas de aplicavam a elas. Um estatuto aprovado após a colonização se aplicava
forma imperfeita os enclaves étnicos, ao passo que os colonos holande- apenas se nomeasse uma colônia ou se a legislação na América a adotas-
ses e alemães se eximiram de facto das ordenações e costumes ingleses. se especificamente. Toda a Common law, gerada antes ou depois da colo-
Alguns territórios – Nova York e Jamaica, por exemplo – passaram de nização, estava atrelada à colônia (a não ser que fosse inconsistente com
um Estado europeu para outro, gerando tensões entre novas e antigas a sua natureza). Não apenas esses quadros discordavam entre si, mas
ordens jurídicas. As colônias do Novo Mundo englobavam múltiplas cada um era profundamente questionável. Se os colonos usufruíam das
zonas de relacionamentos instáveis e variáveis umas com as outras e em leis inglesas apenas por anuência da Coroa, será que o silêncio implicava
relação aos centros imperiais. De modo que a compra de foros, apelações em um consentimento tácito? Se a lei inglesa se aplicava apenas se fosse
oportunistas, a ignorância seletiva de leis inconvenientes e uma verda- consistente com a “condição” de uma província, o que acontecia quan-
deira confusão eram abundantes no período. do colonos com diferenças religiosa, ética e social discordavam sobre o
As colônias eram pluralísticas não apenas em suas jurisdições, propósito e a natureza de suas colônias? E quem arbitraria tal conflito?
mas também em suas normas. Havia uma incerteza persistente sobre Os ecos dessas disputas foram ouvidos desde os primeiros dias
como integrar uma variedade de formas de leis geradas pela metrópole da colonização até o início do processo de independência, até porque a lei
e pelos colonos, que carregavam consigo princípios dos diversos tipos de inglesa se desenvolvia em questões como independência judicial, proce-
leis usados na Inglaterra: a Common law (leis consuetudinárias), estatu- dimentos criminais, herança e cobrança de dívidas. Ainda menos claras
tos parlamentares, leis locais, comerciais e religiosas; e normas usadas eram as regras que governavam a aplicabilidade das normas transnacio-
nas cortes de Equidade63, Almirantado e Pequenas Causas64. Colonos nais de comércio, guerra, crimes de fronteira e navegação, e pirataria.
na Nova Inglaterra aplicavam preceitos bíblicos, principalmente em O império espanhol se deparou com discussões semelhantes
seus estatutos fundacionais, ao passo que os sulistas se apoiavam em leis sobre a relação entre as ordenações coloniais e as leis castelhanas (que
escravistas do império romano ou espanhol. Os colonos podiam olhar automaticamente se aplicavam ao Novo Mundo). A partir do início do
para essas amplas fontes de lei e adicionar muitas invenções próprias, século XVII, a Coroa reduziu estas incertezas concedendo ao Conselho
porque os seus forais garantiam que eles poderiam criar as suas próprias de Índias o poder de especificar o conteúdo de uma “lei das Índias” que
ordenações, contanto que estas não “repugnassem” as leis da Inglaterra. fosse particular ao Novo Mundo. O Conselho também declarou quais
Mas quais eram as “leis da Inglaterra” e como elas se estendiam ordenações religiosas e bulas papais seriam promulgadas na América. No
ao Novo Mundo? Os administradores imperiais por vezes argumenta- império inglês, nenhuma instituição teve papel análogo ao Conselho de
vam que as colônias, como territórios “conquistados”, usufruíam da lei Índias, decidindo, previamente, qual elemento da lei metropolitana atre-
inglesa não por direito, mas por consentimento da Coroa. Contrário a lava as colônias ou não, por serem irrelevantes ou perniciosas em relação
esta noção, uma posição maximalista afirmava que todo direito previs- às condições americanas. Colonos e administradores imperiais tiveram
to na Common law e estatutos parlamentares que fossem apropriados que discutir sobre esses assuntos em meio a processos e disputas políticas.
às condições das colôniasali se aplicavam. Uma posição intermediária, As colônias inglesas também eram plurais devido ao desenvolvi-
mento de culturas legais regionais. Os diferentes objetivos, compromissos
63 NT: A court of equity era uma corte autorizada a aplicar princípios de “equidade”,
complementares ou não, previstos em outras “cortes de lei”.
ideológicos e experiências sociais dos colonos da Nova Inglaterra, Nova
64 NT: As Courts of Requests eram tribunais judiciários “inferiores” na Inglaterra, criados por atos York e Nova Jersey, do Vale do Delaware, de Chesapeake e das terras baixas
especiais do parlamento, com jurisdição local para tratar de assuntos “menores”, normalmente do Sul produziam diferentes ordens legais. Como exemplo, iremos focar nas
conflitos advindos das camadas mais baixas da população ou ações envolvendo pequenas dividas
(até 40 shillings). duas principais colônias do século XVII: Massachussets e Virgínia.
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Puritanos engajados lideraram o início da colonização em fosse reconhecível, composta por fragmentos dos estatutos de escravi-
Massachussets. Determinados a criarem uma sociedade mais correta e dão de Barbados e da Roma antiga, bem como do direito civil, da lei
cristianizada, insistiram para que a igreja e o Estado trabalhassem jun- marcial e das regras de conduta inglesas para criados e vadios. Quando
tos, guiando a população a uma regeneração moral. Eles lembravam aos finalmente articulada, a lei de escravidão acabou por vincular as vidas
cristãos-novos do “pacto nacional” (national covenant) com Deus e se en- da grande maioria dos africanos nas colônias sulistas e (de modo mais
volviam em uma introspecção moral e “vigília sagrada”. Massachussets ameno) nas colônias do Norte, excetuando-se uma minoria de negros
controlava a imigração e exilava os dissidentes, buscando minimizar os livres. A própria Inglaterra não possuía leis para a escravidão, nem
desafios ideológicos. Apenas os membros da igreja participavam das criou um código de escravidão para suas colônias americanas, como o
eleições que abrangiam a colônia como um todo, preservando o controle fizeram os impérios espanhol e francês. Diferentemente, ela permitiu
nas mãos dos “eleitos”. No entanto, dentro do confinamento dessa mis- às colônias que criassem tais leis como uma espécie de lei “metro-
são religiosa, a colônia lutava por um modelo de autoridade comunal e politana” que divergia da lei inglesa e que anulava a prerrogativa por
consensual. Os oficias da colônia eram eleitos anualmente e a participa- liberdade contida no Direito Natural. A legislação sobre escravidão foi
ção no governo municipal era bastante difundida. Massachussets codi- a contribuição mais “inovadora” e abominável das colônias norte-ame-
ficava as suas leis e oferecia tribunais descentralizados nos municípios e ricanas para a tradição jurídica anglo-americana.
comarcas, dispensando uma justiça rápida e não-técnica. Tal conjunto legal tinha uma série de propósitos. Primeiramente,
Em contraste, os agricultores na Virgínia buscavam primor- ele definia a escravidão. Os escravos eram propriedades (“chatell”) sob o
dialmente ganhos materiais em detrimento de uma regeneração social. comando de seus senhores por toda a vida. O status da mãe escrava
Os barões do tabaco, que controlavam as terras e o trabalho servil, exer- determinava o status de seus filhos, de modo que crianças nascidas de
ciam a autoridade legal como resultado de sua proeminência econômica um senhor branco com uma escrava negra permaneceriam escravos. A
e social. Mesmo depois que a colônia instituiu uma assembleia, tribunais escravidão era mais racial do que religiosa. A conversão de religiões afri-
de condados, paróquiase outras marcas distintivas da normalidade in- canas para o cristianismo não trazia a liberdade. Podiam ser escravos
glesa, os homens insignes da Virgínia faziam uso de um estilo de justiça os africanos e os indígenas, mas não os brancos. Em segundo lugar, as
muito mais autoritário do que a norma colonial, buscando assegurar o colônias impuseram regulamentos de conduta rigorosos sobre os escra-
governo sobre uma população agitada, composta desproporcionalmente vos e empoderaram seus senhores para o uso de força extraordinária,
por homens jovens. Ainda assim, a pouca presença institucional nos ní- permitindo até mesmo a morte acidental dos escravos durante o pro-
veis abaixo dos condados e a colonização dispersa propiciaram que uma cesso de disciplina. Em terceiro lugar, de certo modo a legislação sobre
elite de “mão pesada” e certa propensão à violência agisse para minar a a escravidão restringia a potencial crueldade dos senhores de escravos e
efetividade das decisões legais. garantia níveis mínimos de alimentação, vestimenta e abrigo. Quarto, os
A característica mais distintiva da Virgínia e outras colônias códigos escravistas encorajavam o racismo ao interferir sobre a frater-
sulistas era a lei de escravidão. A maior parte dos africanos que tra- nização entre europeus e africanos, proibindo o sexo interracial e asse-
balhavam na Virgínia e em Maryland no começo do século XVII era gurando que os escravos seriam tratados de modo bem mais degradante
de trabalhadores não livres, mas não necessariamente escravos. O sta- do que os servos temporários (indentured servants) brancos. Por fim, as
tus desses trabalhadores variava, alguns se assemelhavam à servidão colônias estimulavam ou forçavam todos os brancos, mesmo aqueles
temporária, outros eram escravos por toda a vida e outros escravos que não possuíam escravos, à cooperarem na manutenção do sistema
hereditários. Nesse período, a Virgínia não possuía um código para a escravagista. As leis de escravidão recompensavam os brancos que per-
escravidão. A partir da década de 1660, a Virgínia e outras colônias seguissem escravos fugitivos e compeliam condestáveis a capturá-los e
do sul começaram a desenvolver uma legislação para a escravidão que transportá-los. Os europeus ficavam proibidos de fazer comércio ou se
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entreterem com africanos sem o consentimento de seu senhor. E no abastecimento. Os tribunais eram administrativos e, de certo modo, cor-
começo do século XVIII, todos os brancos, inclusive aqueles não de- pos executivos além de judiciais.
tentores de escravos, eram demandados a vigiar escravos. Os senhores No século XVII, foram poucos os advogados treinados que imi-
regulamentavam o trabalho de seus escravos, enquanto toda a sociedade graram para a América do Norte. Aqueles que o fizeram e os aprendizes
(branca) deveria cooperar no policiamento de escravos que afetavam que eles treinaram lidaram com o grosso da prática nas cortes superio-
potencialmente a segurança pública. res. Em tribunais locais e nos de condados, os litigantes normalmente
representavam a si mesmos ou adotavam como advogados escrivães, xe-
rifes, funcionários públicos ou leigos que haviam se familiarizado com
Semelhanças por debaixo do pluralismo: simplificação os procedimentos legais locais através de observação e participação. Os
institucional e tradições constitucionais advogados treinados como aprendizes e alguns poucos matriculados nos
Inns of Courts65formavam uma pequena minoria dos principais oficiais
Ao mesmo tempo em que o ambiente do Novo Mundo am- administrativos e jurídicos nas colônias da América do Norte. Senhores
pliava certas formas de pluralismo jurídico, ele também incentivava a de terra, mercadores, agricultores e descendentes das famílias de elite
simplificação do desenho institucional e da prática legal. Isto é observá- eram os que forneciam a maioria dos juízes supremos, locais e de con-
vel ao largo de diferentes regiões jurídicas e entre as colônias corporati- dado; dos conselheiros dos governadores; prefeitos e os selectmen66; bem
vas, de proprietário e reais. Os colonizadores haviam deixado para trás como os juízes de paz. Estes juristas leigos e administradores preferiam
um país notável por suas redes numerosas de jurisdições interligadas, de uma justiça não técnica e discricionária e deixavam de lado as ordenan-
responsabilidades justapostas. Ao longo dos séculos, a Inglaterra havia ças consideradas inconvenientes. Os magistrados, escolhidos mais pela
desenvolvido tribunais para assuntos específicos – como as cortes da proeminência social do que pelas suas competências legais, exaltavam a
Common law, de Equidade, de Almirantado, de floresta e mineração. As “justiça” e o “bom comum” (common sense), olhando com desdém para as
instituições da Common law ficavam lado a lado com os tribunais diri- “minúcias” legais. Ao passo que os tribunais ingleses faziam uso de uma
gidos pela igreja, os de prerrogativas reais, de nobres e de senhores de mistura de leis inglesas, francesas e latinas, os tribunais coloniais opera-
terras. Os colonizadores estavam livres de boa parte dessa complexidade. vam apenas a partir da lei inglesa. Os colonos se concentravam no corpo
Apesar de algumas cortes especializadas ainda legitimarem as ofensas de das disputas e despachavam a partir dos meandros dos procedimentos
escravos, equidade e outros assuntos específicos, a maioria das questões legais ingleses, com suas regras complexas de pleito e seus termos obscu-
era canalizada através de uma pirâmide de cortes locais e de comarcas ros. Para os padrões ingleses, os tribunais coloniais pareciam informais,
de jurisdição geral e, no topo da pirâmide, um tribunal que se estendia baratos e rápidos. Eram considerados comunais na medida em que eram
sobre toda a colônia – composto tipicamente pelo governador, pelo con- socialmente e intelectualmente acessíveis e dominados por notáveis lo-
selho ou, em algumas colônias no século XVII, pela assembleia como cais e não por indicações imperiais e advogados treinados.
um todo. Juízes de paz compunham os tribunais de comarca e tratavam As colônias pluralísticas se assemelhavam não apenas na estru-
as pequenas causas individualmente. tura de seus tribunais informais e leigos, mas em alguns de seus compro-
Enquanto os tribunais modernos se especializavam na adju- missos constitucionais centrais. Esta afirmação depende de certo ponto
dicação, os tribunais coloniais lidavam com um espectro mais amplo
de responsabilidades. Eles inspecionavam a construção de estradas, su- 65 NT: São agremiações de juristas conhecidos como barristers, um tipo de advogado
especializado em litígios e na aplicação da Common Law.
pervisionavam a venda de servos e escravos, definiam preços e salários, 66 NT: Nas cidades da Nova Inglaterra, a população masculina, adulta e livre, reunia-se
licenciavam advogados e donos de tavernas e cuidavam dos pobres. Eles anualmente para votar leis e orçamentos. Para fiscalizar e executar tais medidas aprovadas
em assembleia, elegiam-se um grupo, normalmente 3 pessoas: os selectmen, literalmente “os
cobravam e recolhiam impostos. Levantavam tropas e garantiam o seu
selecionados”.
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de vista. Por um lado, cada colônia vivia sob seu próprio foral que, junta- Ao final do século XVII, estes colonos, que se entendiam
mente com as regras e costumes que evoluíram ao longo do tempo, aju- como cidadãos ingleses e viviam além-mar, passaram a contestar essa
davam a criar uma “constituição” diferente em cada colônia. Mas, visto interpretação sobre o seu status constitucional, reivindicando para si
de outra perspectiva, ao final do século XVII surgiram aspectos comuns os mesmos direitos e proteções que os ingleses do reino. Cada vez
nas constituições coloniais – em suas organizações internas de poder e mais os colonos asseguravam os benefícios dos estatutos e da Common
suas relações com a Inglaterra. law, não através da afirmação de sua aplicabilidade na América, mas
Após incertezas iniciais, os ingleses estenderam aos colonos a através da silenciosa incorporação deles no trabalho cotidiano das
sua consolidada tradição de “autogoverno pelo comando do Rei”. Não assembleias e tribunais. Através da lenta, mas irredutível importa-
havia como ser diferente, uma vez que eles não tinham as necessárias ção de ideias e procedimentos incorporados do constitucionalismo
capacidades fiscais, militares e administrativas para governar terras tão inglês, as assembleias aprofundavam a sua afirmação como versões
distantes sem a participação ativa dos colonos. Isso significava que a locais da Câmara dos Comuns.
Coroa não comandava, mas negociava com os colonos. As estruturas Elas usavam o poder de controle sobre a receita de impostos
constitucionais que emergiram ao longo do século XVII pressupunham para aumentar ainda mais os seus poderes frente a governadores que não
um governo limitado e controle local, baseados no consentimento, ou tinham o prestígio e a proteção da Coroa inglesa. Algumas importantes
pelo menos na aquiescência dos proprietários coloniais. Apesar de certa características da sociedade colonial os ajudavam nesse sentido. A ampli-
hesitação por parte da Coroa, todas as colônias ostentavam assembleias dão geográfica das colônias norte-americanas tornava a garantia do con-
eleitas ao final do século. Isto não era comum no contexto norte-ameri- sentimento de cidades e plantations distantes uma necessidade prática.
cano. Os espanhóis e franceses proibiam corpos representativos eleitos. O próprio espaço militava contra métodos mais autoritários de governo,
A relação constitucional entre as colônias e a Inglaterra era assim como a dificuldade de arregimentar colonos dispostos a imigrarem
instável e provocava desentendimentos. As colônias não gozavam de e trabalharem sem garantias de auto-governo e direitos constitucionais.
uma independência formal, nem haviam sido integradas como parte do Apesar de as disputas em torno dos poderes das assembleias coloniais e
reino da Inglaterra, como o país de Gales no século XVI. As colônias da aplicabilidade da lei inglesa perdurarem ao longo do processo de inde-
eram comumente denominadas como domínios, exercendo significati- pendência norte-americana, foi no século XVII que foram assentadas as
vos, mas não ilimitados direitos de autogoverno. Mas o que isso signi- bases para os desenvolvimentos futuros. O Estado de direito, o governo
ficava de fato? Os administradores do império discordavam sobre os representativo e a primazia do consentimento se tornaram pontos centrais
colonos do além-mar terem, de fato, as mesmas liberdades e proteções do constitucionalismo na América do Norte inglesa.
constitucionais que os ingleses metropolitanos. Alguns argumentavam
que um governo mais rígido, sem as pompas próprias do constituciona-
lismo inglês, seria mais apropriado, devido à fragilidade das sociedades Centralização, anglicização e seus limites
norte-americanas, à distância em relação à metrópole e ao exemplo das
autoritárias colônias da Roma antiga, bem como das colônias inglesas No curso do século XVII, as colônias se tornaram mais valio-
na Irlanda. De acordo com esta visão, a Coroa não deveria estender aos sas para a Coroa à medida que o comércio transatlântico aumentava.
colonos todas as proteções dos estatutos e da Common law inglesa. E Através de uma série de Atos de Navegação, a Coroa inglesa buscou
como a Inglaterra havia criado as assembleias coloniais através de um reduzir a participação estrangeira nos mercados coloniais, exigindo
“favor” Real, a Coroa também poderia limitar as suas prerrogativas, tra- que determinados produtos fossem transportados em navios ingleses e
tando-as mais como conselhos de governo de corporações locais do que coloniais e passassem por portos ingleses antes de serem transporta-
como um corpo análogo à Câmara dos Comuns. dos. Após a Restauração (1660) e, particularmente, após a Revolução
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Gloriosa (1688-1689), a Coroa decidiu aumentar o controle sobre as cerca de 250 apelações à Inglaterra entre 1670 e a Independência (Cf.
colônias, até então habituadas a uma presença imperial leve. Bilder, 2008; Grossber; Tomlins, 2008, 69). A revisão dos estatutos e apela-
O império tomou uma série de medidas no sentido de aumen- ções feitas pelo Conselho permitiu à Coroa proteger os seus interesses
tar e fortalecer a aplicação dos Atos de Navegação: despachou inspeto- principais, ao passo que admitia uma considerável variação jurídica local.
res de alfândega para viverem no Novo Mundo e fundou tribunais de A crescente vigilância da Coroa, somada ao crescimento do co-
vice-almirantado permanentes, que procediam sem júri. Transformou mércio transatlântico, acabou por minar o sistema herdado do século
colônias de proprietários em colônias reais, dentro das quais a Coroa XVII de uma justiça acessível, informal e leiga, criando pressões para
passou a indicar advogados treinados (ao invés dos notáveis locais) como um sistema legal mais formal e advocatício. Colonos que comercializam
advogados-gerais e chefes de justiça. O Conselho Privado estabeleceu através de fronteiras coloniais ou em redes de mercadores internacionais,
os Lordes de Comércio67 (1675-96) e o Conselho de Comércio (1696- assim como os que tentavam comissionar ou resistir aos administradores
1782) para coletar informações sobre as condições norte-americanas e imperiais, aos Atos de Navegação e às revisões efetuadas pelo Conselho
esboçar instruções para os governadores reais, aumentando, desta forma, Privado, eram empurrados em direção aos precedentes e procedimentos
a vigilância sobre o governo e o judiciário coloniais. Por insistência da ingleses como uma língua franca legal. Advogados treinados que conse-
Coroa, as poucas assembleias que atuavam como a mais alta corte de guiam navegar nesse universo se tornaram cada vez mais valiosos para
apelação perderam este direito para as Cortes Superiores de Judicatura, os litigantes. Os governadores reais, oficiais imperiais e os advogados,
preenchida pelo governador e seu conselho, aumentando o seu poder que cada vez mais surgiam como procuradores-gerais, juízes de cortes
judicial não apenas frente aos representantes eleitos pelo povo, mas tam- superiores e conselheiros para os poderosos, não se afastavam dos aspec-
bém sobre os tribunais locais. Todas estas medidas aumentaram a super- tos técnico-legais. Pelo contrário, os aceitavam e até mesmo insistiam
visão da Coroa e reduziram a autonomia dos colonos. neles. Juízes e advogados davam cada vez mais atenção aos meandros
Esta autonomia também foi reduzida pela crescente determi- dos pleitos e procedimentos do que às implicações dos precedentes da
nação do Conselho Privado em revisar os estatutos coloniais e opiniões Common law inglesa. O historiador John Murrin (1966; 1983, 540-72)
jurídicas. Já no último quarto do século XVII, particularmente na virada denominou esses processos conectados como uma “anglicização” dos sis-
para o século XVIII, o Conselho Privado examinava a legislação colo- temas jurídicos coloniais.
nial com a intenção de desautorizar os estatutos que eram incompatíveis A anglicização também tinha outro lado. O termo faz alusão
como as leis da Inglaterra ou que enfraqueciam os Atos de Navegação ao desenvolvimento de uma forma mais “inglesa” de governança sobre
ou as prerrogativas reais. Após 1690, o Conselho derrubou cerca de 470 as colônias a partir do último terço do século XVII em diante. Teria
dos mais de 8.500 estatutos revisados. O Conselho também ouviu ape- envolvido a criação de judiciários mais hierarquizados, a eliminação da
lações de processos que envolviam um considerável valor em disputa, jurisdição de apelação das Assembleias e o deslocamento de algumas
normalmente acima de £200, ainda que variável. O mesmo órgão anali- medidas de controle daqueles que nasciam deste lado do Atlântico, atra-
sava apenas as apelações da mais alta corte colonial (que poderia ser a do vés da indicação de inspetores de alfândega, juízes de vice-almirantado
governador e do Conselho). Não ouvia os casos de tribunais intermedi- e advogados (barristers)68 ingleses nas supremas cortes coloniais. Além
ários de apelação, nem de tribunais de primeira instância; nem revertia disso, as características distintas e até mesmo utópicas das colônias do
convicções criminais ou vereditos de júris. Litigantes chegaram a enviar século XVII, que haviam nascido de visões tidas como marginais ou
67 NT: Os Lords of Trade and Plantations ou simplesmente Lords of Trade (posteriormente 68 Barristers são uma categoria de advogados específicos na tradição jurídica inglesa. Seriam
chamado Board of Trade, aqui traduzido como Conselho de Comércio) era um departamento de advogados mais especializados em litígios, que atuam nos tribunais e pertencem a uma
governo britânico cuja função era fomentar, fiscalizar e arbitrar o “comércio e indústria”, sendo Agremiação de estilo Inn – ver nota 07 –, diferindo de outra categoria de advogados na
um comitê do Privy Council. Inglaterra, os solicitors.
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suprimidas na metrópole, acabaram se desfazendo com o tempo. A sa- mesma, mas como um meio de assegurar prerrogativas e administrar
grada disciplina das colônias da Nova Inglaterra foi se desfazendo, assim o comércio em benefício do país materno e de seus grupos de merca-
como os experimentos neofeudais de algumas das primeiras colônias de dores mais bem conectados. Mesmo nesse sentido limitado, as inicia-
proprietário, as tentadoras iniciativas políticas absolutistas na Jamaica e tivas centralizadoras se mostram inconsistentes e hesitantes, sujeitas a
em Nova York e o compromisso ao “experimento sagrado” Quaker na adiamentos e alterações causadas por substituições dos administradores
Pennsylvania. Os dois lados da anglicização reduziram as peculiaridades imperiais e vicissitudes na política interna inglesa.
das ordens legais nas diversas colônias inglesas e incentivaram a conver- Em quarto lugar, os esforços imperiais em aumentar o controle
gência dessas ordens em direção uma a outra e em direção à Inglaterra. se deparava com um dos fatos centrais na América colonial: o controle
Esses desenvolvimentos no direito andavam de mãos dadas com outras local das instituições legais e das tomadas de decisão. A supervisão im-
formas contemporâneas de anglicização: a crescente semelhança entre a perial equivalia, como observou Stephen Botein (1981, 130), “a pouco
cultura da elite colonial, as estruturas militares e os padrões de consumo mais do que uma sobreposição aos hábitos localizados de governan-
coloniais em relação aos da metrópole, além da formação de uma iden- ça colonial”. Os funcionários apontados pela Coroa se concentravam
tidade inglesa mais profunda e autoconsciente. nas capitais e nos maiores portos, somando cerca de vinte oficiais por
Ainda assim, a anglicização do direito e a centralização imperial província, menos ainda nas colônias corporativas ou de proprietário.
não conseguiram varrer tudo o que havia anteriormente. Apesar de sua Instituições de comarcas e municípios, ocupadas por notáveis das vizi-
importância, uma parte significativa do controle local e da diversidade nhanças, forneciam o suporte principal da governança cotidiana. Junto
persistiu nos sistemas legais coloniais. A supervisão imperial foi estrei- com os jurados, eles refletiam e defendiam os costumes comunitários,
tada em relação aos padrões de “governo solto” do século XVII, mas de que guiavam o cumprimento das prioridades e a resolução de disputas.
modo algum em termos absolutos. Primeiramente, o século XVII tes- Mesmo quando nomeados pelos governadores reais, os oficiais mais bai-
temunhou não apenas um controle melhorado por parte da Coroa, mas xos – policiais, escriturários, selectmen, juízes de paz e xerifes – minavam
também uma resistência mais sofisticada e mais coordenada em relação as indesejadas políticas imperiais através do controle das investigações
à superintendência metropolitana. Os colonos se tornaram adeptos da e da execução das leis, ou simplesmente através da inoperância. Os ofi-
defesa de suas leis e instituições legais através do lobby e da mobilização ciais da Coroa, desde o governador até os xerifes e juízes de paz não
de grupos de interesse em Londres, utilizando uma retórica Whig69 anti- conseguiam exercer efetivamente a sua autoridade sem a cooperação das
-privilégio. Em segundo lugar, o termo “centralização” obscurece aquilo comunidades locais e os seus representantes nas assembleias, que pode-
que Jack Greene (1994) chamou de qualidade “negociada” do império riam se articular para resistir às iniciativas imperiais indesejadas.
inglês – a forma pela qual as práticas governamentais se faziam não Em quinto lugar, o império inglês também encontrava dificul-
como consequência dos pronunciamentos feitos em Londres, mas por dades para disseminar o seu entendimento sobre as leis e sobre os qua-
um processo de barganha através do qual se obtinha o consentimento dros normativos e políticos que explicavam os propósitos e significados
ou a aquiescência das colônias. O império inglês, diante de suas divisões da lei. Os notáveis locais dominavam a comunicação da lei bem como
políticas e de suas modestas capacidades fiscais, militares e adminis- a sua administração. Consideremos, como contraponto, as Américas
trativas, estava inclinado a negociar com as elites coloniais ao invés de espanhola e francesa. Nesses impérios, advogados treinados e oficiais
confrontar vigorosamente as resistências. Em terceiro lugar, a noção de da Coroa controlavam todos os níveis do judiciário, com exceção dos
centralização superestima as ambições e a constância das autoridades mais baixos. Castela e França conscientemente controlavam quais co-
imperiais inglesas. A centralização não era vista como um fim em si nhecimentos legais atravessavam o Atlântico e utilizavam os oficiais da
Coroa, advogados, igrejas e escolas para disseminar o entendimento do
69 NT: Os Whig compunham o partido que reunia as tendências dos setores liberais no Reino
Unido. imperador sobre a lei. Com este objetivo, o império espanhol abriu ca-
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nais múltiplos e alternativos de comunicação jurídica para a sua extensa dos”, que eram os principais criadores e intérpretes das leis. Muitas co-
rede administrativa no Novo Mundo, que alcançava até o nível mais lônias haviam começado como corporações anônimas ou proprietárias,
local das vilas. O reino de Castela introduziu o entendimento imperial de modo que o “Estado” era por si só um governo parcialmente privado.
sobre o direito na sociedade colonial não apenas através de seu exten- Ofuscado por uma miríade de governos privados, a lei Estatal não era
so sistema administrativo, mas também através das universidades e da executada de maneira confiável pelos oficiais, e, muitas vezes, tinha seu
Igreja Católica. Em comparação, o sistema inglês teria mantido apenas cotidiano afetado através da mediação com esses governos privados.
linhas de comunicação indiretas e mediadas entre Londres e os gover- Em suma, a América do Norte britânica do século XVIII se as-
nadores coloniais, assembleias e cortes superiores. Os ingleses constru- semelhava a outros corpos políticos no sentido de que o direcionamento
íram poucas linhas diretas de transmissão para os oficiais mais baixos do Estado rumo a um controle mais rígido da lei se confrontava com
e notáveis locais. Eles não tinham uma rede administrativa robusta no barreiras sociais, institucionais e ideológicas. Mas os corpos políticos
interior ou uma igreja apoiada pelo Estado. As diversas seitas e congre- desenhados entre a Nova Inglaterra e a Geórgia não eram simplesmen-
gações na América inglesa podiam facilmente reelaborar o entendimen- te terras modernas. Eram colônias entrelaçadas em um império – um
to imperial da lei, bem como transmiti-lo para a sociedade colonial. Em império sem dinheiro que ansiava por cobrar impostos destas provín-
grande parte, os colonos aprenderam a lei inglesa através de redes so- cias, que pouco contribuíam. As especificidades de como a centraliza-
ciais que competiam entre si e que tinham interesses próprios. As redes ção imperial provocou resistência local e deflexão, bem como inspirou a
de sociabilidade se mostravam fundamentais para a circulação das leis, acomodação estratégica e a aprovação seletiva nos ajudam a explicar o
muitas vezes na forma oral ou de manuscritos, e por vezes aumentando formato da política colonial e, posteriormente, as dinâmicas do movi-
a habilidade de agentes negligentes ou autointeressados em enterrar ou mento revolucionário.
transformar as mensagens e as perspectivas jurídicas da Coroa. A Coroa
inglesa gozava apenas de uma modesta influência sobre essas redes de
sociabilidade, principalmente porque ela falhava em conceder patrocí- Roteiro bibliográfico
nio sistemático aos intermediários das informações jurídicas que fossem
confiáveis, como o fizeram os franceses. Assuntos gerais: Visões gerais sobre o direito norte-america-
Em sexto lugar, e por último, a limitação mais profunda sobre a no no início do período colonial podem ser encontradas em: Stephen
centralização era o fato de que o alcance do Estado, imperial ou colonial, Botein: Early American Law and Society (New York, 1983); e Peter
não era tão firme e tão difundido como se poderia parecer. Para além das Charles Hoffer: Law and People in Colonial America, revised ed.
colônias da costa, as instituições legais eram desorganizadas e muitas (Baltimore, 1998). Também são interessantes os primeiros capítulos
vezes inexistentes. Nas áreas interioranas elas eram atrasadas, deixando de: Lawrence M. Friedman: A History of American Law, 3rd ed. (New
largas faixas coloniais subgovernadas. Mesmo em regiões colonizadas York, 2005); e Kermit L. Hall: The Magic Mirror: Law in American
há tempos, as disputas faccionais e constitucionais frequentemente sus- History (New York, 1989). Artigos essenciais que cobrem boa par-
citavam questões em relação à legitimidade do governo. Colonizadores te desse campo de pesquisa estão presentes em três coleções: David
holandeses e mais tarde alemães mantinham enclaves étnicos em que Flaherty (ed.): Essays in the History of Early American Law (Chapel
buscavam administrar os seus assuntos com o mínimo de interferência Hill, 1969); Michael Grossberg and Christopher Tomlins (eds.): The
da lei inglesa. “Governos privados” como plantações, igrejas, escolas, fá- Cambridge History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-
bricas, senhores de terra e, acima de tudo, famílias, resolviam disputas e 1815) (Cambridge, 2008); e Christopher L. Tomlins and Bruce H.
criavam regras com mais frequência do que o Estado. De fato, uma das Mann (eds.): The Many Legalities of Early America (Chapel Hill, 2001).
tarefas centrais do Estado era empoderar e regular esses atores “priva-
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Direito indígena e colonial: Justificativas para a colonização britâ- The Atlantic World 1450-1850, ed. Nicholas Canny and Philip Morgan
nica aparecem em três tópicos diferentes: as reivindicações britânicas face (Oxford, 2011), 400-416; Benton and Richard J. Ross: eds. Legal Pluralism
aos outros Estados colonizadores no Novo Mundo; reivindicações impe- and Empires, 1500-1850 (New York, 2013); Eliga H. Gould: “Zones of
riais britânicas face aos colonos, com os seus próprios pontos de vista em Law, Zones of Violence: The Legal Geography of the British Atlantic,
relação à jurisdição e autoridade; e reivindicações britânicas face aos povos circa 1772,” William and Mary Quarterly 55 (2003): 471-510; Daniel
nativos. Nestes debates, os argumentos em relação à soberania (como es- J. Hulsebosch: Constituting Empire: New York and the Transformation
tender o domínio político sobre os territórios nativos) e sobre a proprie- of Constitutionalism in the Atlantic World, 1664-1830 (Chapel Hill,
dade (como tomar ou comprar parcelas de terra) estão relacionados, mas 2005); e Richard J. Ross: “Puritan Godly Discipline in Comparative
não se reduzem um ao outro. Sobre as teorias de colonização em perspec- Perspective: Legal Pluralism and the Sources of ‘Intensity’,” American
tiva comparada, ver: J. H. Elliott: Empires of the Atlantic World: Britain Historical Review 113 (2008): 975-1002.
and Spain in America 1492-1830 (New Haven, 2006); John Thomas
Juricek: English Claims in North America to 1660: A Study in Legal and O império britânico: trabalhos modelos que colocam as estru-
Constitutional History (PhD dissertation, University of Chicago, 1970); turas administrativas e jurisdicionais no centro incluem: A. Berriedale
Ken MacMillan: Sovereignty and Possession in the English New World: The Keith: Constitutional History of the First British Empire (Oxford, 1930);
Legal Foundations of Empire, 1576–1640 (Cambridge, 2006); e Anthony Leonard W. Labaree: Royal Government in America (New Haven, 1930);
Pagden: Lords of All the World: Ideologies of Empire in Spain, Britain and e, especialmente, Charles M. Andrews: The Colonial Period of American
France, c.1500-c.1800 (New Haven, 1995). History, 4 vols. (New Haven, 1934-38). Herbert L. Osgood produziu
um trabalho fundacional sobre a distinção entre as colônias corporativas
A vasta literatura sobre a desapropriação das terras dos po- e proprietárias: “The Corporation as a Form of Colonial Government
vos nativos pelos colonos – uma questão envolvendo lei, ideologia e (pts. I-III),” Political Science Quarterly 11 (1896): 259-277, 502-533, 694-
questões práticas– foi elaborada de modo muito inteligente em Stuart 715; e “The Proprietary Province as a Form of Colonial Government
Banner: How the Indians Lost Their Land: Law and Power on the Frontier (Parts I, II, and III),” American Historical Review 2, 3 (1897-98): 644-
(Cambridge, Mass., 2005). Sobre interações jurídicas cotidianas entre 664, 31-55, 244-65. Mary Sarah Bilder examinou a interação da regula-
os povos nativos e colonos, ver Katherine Hermes: “The Law of Native mentação imperial e o autogoverno imperial em: “English Settlement and
Americans, to 1815,” In: Cambridge History of Law in America, Volume 1: Local Governance,” In: The Cambridge History of Law in America, Volume
Early America (1580-1815), ed. Christopher L. Tomlins and Michael 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg and Christopher
Grossberg (Cambridge, 2008), 32-62; e Yasuhide Kawashima: Puritan Tomlins (Cambridge, 2008), 63-103.
Justice and the Indian: White Man’s Law in Massachusetts, 1630-1763
(Middletown, Conn., 1986). Desde a década de 1950, pesquisadores têm expandido o tema
da história imperial, alargando o entendimento do que efetivamente
Pluralismo legal: Sobre o significado e os usos do conceito de mantém um império unido. Para isso, eles examinaram as redes econô-
“pluralismo legal” e sobre as suas habilidades de somar uma nova dimen- micas, sociais, intelectuais e políticas que surgiram em torno do aparato
são sobre objetos diversos como construção do Estado, relações inter- imperial e que auxiliaram na integração do Atlântico inglês. A cons-
-imperiais, conflitos culturais, acomodações e transformações religiosas, trução do império passou a se assemelhar não tanto a uma imposição
ver: e.g., Lauren Benton: Law and Colonial Cultures: Legal Regimes in da fiscalização administrativa e controle do comércio pela metrópole,
World History, 1400-1900 (Cambridge, 2002); Benton, “Atlantic Law: mas a um processo multilateral de negociação, recrutamento e ajusta-
Transformation of a Regional Legal Regime,” In: The Oxford Handbook of mento cultural que limitava certas ambições “centralizadoras”. Nesta
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linha está o distinto trabalho de Bernard Bailyn: The Origins of American Culturas jurídicas regionais: A reconstrução das culturas jurí-
Politics (New York, 1968); Christine Daniels and Michael V. Kennedy dicas regionais emerge e depende de uma enorme literatura acadêmica
(eds.): Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 1500- que delineou as diferenças nas histórias econômica, demográfica, inte-
1820 (New York, 2002); Richard R. Johnson: Adjustment to Empire: The lectual e cultural de várias regiões da América do Norte britânica. Os
New England Colonies, 1675-1715 (Leicester, 1981); Stanley N. Katz: principais artigos e monografias formam uma lista muito extensa para
Newcastle’s New York: Anglo-American Politics, 1732-1753 (Cambridge, serem citados. Trabalhos que sintetizaram essa literatura considerável
Mass., 1968); Alison Gilbert Olson: Anglo-American Politics, 1660- incluem: David Hackett Fischer: Albion’s Seed: Four British Folkways
1775: The Relationship Between Parties in England and Colonial America in America (Oxford, 1989); Jack P. Greene: Pursuits of Happiness: The
(New York, 1973); Alison Gilbert Olson: Making the Empire Work: Social Development of Early Modern British Colonies and the Formation
London and American Interest Groups, 1690-1790 (Cambridge, 1992); of American Culture (Chapel Hill, 1988); and Michael Zuckerman:
Jack P. Greene: Peripheries and Center: Constitutional Development in the “Regionalism” In: A Companion to Colonial America, ed. Daniel Vickers
Extended Polities of the British Empire and the United States, 1607-1788 (Blackwell, 2003), 311-33. Trabalhos que colocam no centro de seus
(Athens, Ga., 1987); Jack P. Greene: Negotiated Authorities: Essays in argumentos a cultura jurídica regional incluem: David Thomas Konig:
Colonial Political and Constitutional History (Charlottesville, 1994); e “Regionalism in Early American Law,” In: The Cambridge History of Law
Michael G. Kammen: A Rope of Sand: The Colonial Agents, British Politics, in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg
and the American Revolution (Ithaca, 1968). A mudança na orientação and Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 144-77; e Christopher
da história imperial pode ser percebida ao se comparar os volumes 1 Tomlins: Freedom Bound: Law, Labor, and Civic Identity in Colonizing
de J. Holland Rose, et. al.: The Cambridge History of the British Empire English America, 1580–1865 (Cambridge, 2010). William E. Nelson
(Cambridge, 1929) ao trabalho recente da Oxford History of the British adotou uma abordagem mais segmentada ao revigorar as comparações
Empire, especialmente os volumes 1, 2, e 5 (1998-2001). de colônia a colônia em uma série de trabalhos ainda em andamento:
The Common Law of Colonial America, Volume I: The Chesapeake and New
Para trabalhos em assuntos específicos, veja sobre o Conselho England 1607-1660 (Oxford, 2008); and The Common Law in Colonial
Privado e sobre a revisão da legislação colonial e julgamentos da corte su- America, Volume II: The Middle Colonies and the Carolinas, 1660-1730
perior: Mary Sarah Bilder: The Transatlantic Constitution: Colonial Legal (Oxford, 2013).
Culture and the Empire (Cambridge, Mass., 2004); Elmer B. Russell: The
Review of American Colonial Legislation by the King in Council (New York, Escravidão: As primeiras leis de escravidão nas colônias norte-
1915); Joseph H. Smith: Appeals to the Privy Council from the American -americanas eram parte de um sistema mais amplo de normas, pressões e
Plantations (New York, 1950); e Joseph H. Smith: “Administrative incentivos que estruturavam as relações entre senhores, escravos e a socie-
Control of the Courts of the American Plantations,” In: David Flaherty dade de modo geral. Trabalhos centrados especificamente nas estruturas
(ed.). Essays in the History of Early American Law (Chapel Hill, 1969), de adjudicação e na relação entre “governos particulares” de plantations e
281-335. Sobre o vice-almiranteado e serviços de alfândega, ver: Charles os tribunais estatais incluem: A. Leon Higginbotham, Jr.: In the Matter
M. Andrews: “Introduction: Vice-Admiralty Courts in the Colonies,” In: of Color: Race and the American Legal Process: The Colonial Period (New
The Records of the Vice-Admiralty Court of Rhode Island, 1716-1752, ed. York, 1978); Thomas D. Morris: Southern Slavery and the Law, 1619-
Dorothy S. Towle (Washington, 1936), 1-79; Thomas C. Barrow, Trade 1860 (Chapel Hill, 1996); Philip J. Schwarz: Twice Condemned: Slaves
and Empire: The British Customs Service in Colonial America, 1660-1775 and the Criminal Law of Virginia, 1705-1865 (Baton Rouge, 1988);
(Cambridge, Mass., 1967); e Carl Ubbelhode: The Vice-Admiralty Courts Schwarz: Slave Laws in Virginia (Athens, 1996); e William M. Wiecek:
and the American Revolution (Chapel Hill, 1960). “The Statutory Law of Slavery and Race in the Thirteen Mainland
202 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 203
Colonies of British America,” William and Mary Quarterly 34 (1977): L. Tomlins and Michael Grossberg (Cambridge, 2008), 555-92; David T.
258-80. Jonathan A. Bush explicou como a estrutura constitucional do Konig: Law and Society in Puritan Massachusetts: Essex County, 1629-1692
império britânico permitiu às colônias que aprovassem ordenações de (Chapel Hill, 1979); Bruce H. Mann: Neighbors and Strangers: Law and
escravos como uma espécie de lei local, “municipal”, apesar da proibição Community in Early Connecticut (Chapel Hill, 1987); e William M. Offutt,
da escravidão na metrópole e da ausência de um código imperial sobre “The Atlantic Rules: The Legalistic Turn in British North America,” in
a escravidão. Ver Bush: “Free to Enslave: The Foundations of Colonial The Creation of the British Atlantic World, ed. Elizabeth Mancke and Carole
American Slave Law,” Yale Journal of Law and the Humanities 5 (1993): Shammas (Baltimore, 2005), 160-81.
417-470. Artigos recentes que contrastam as legislação de escravidão na
América inglesa, espanhola e francesa, incluem: Alejandro de la Fuente Comunicações jurídicas: historiadores do período inicial dos
and Ariela J. Gross: “Comparative Studies of Law, Slavery and Race impérios modernos inglês, francês e espanhol têm discutido há muito
in the Americas,” Annual Review of Law and Social Science 6 (2010): tempo como a distância e a comunicação lenta e irregular interferiam
469-85; and Sally E. Hadden: “The Fragmented Laws of Slavery in the na fiscalização metropolitana sobre as colônias no Novo Mundo e esti-
Colonial and Revolutionary Era,” in: The Cambridge History of Law in mulavam estruturas negociadas de poder. Pesquisadores tendem a enfa-
America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Michael Grossberg e tizar a interrelação das redes administrativas, econômicas e sociais. Parte
Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 253-87. destes trabalhos tem se dedicado continuamente à comunicação do di-
reito: Kenneth J. Banks: Chasing Empire Across the Sea: Communications
Anglicização da lei: A dissertação de John M. Murrin e uma série and the State in the French Atlantic, 1713-1763 (Montreal, 2002); Tamar
de artigos têm avançado na ideia de que as colônias no século XVIII, ao Herzog: “Ritos de Control, Prácticas de Negociación: Pesquisas, Visitas
invés de se tornarem mais “americanas” ou “democráticas”, na verdade se y Residencias y las Relaciones entre Quito y Madrid (1650-1750),” in
tornavam mais “anglicizadas”. As suas ordens jurídicas convergiam em Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica, ed. Jose Andres-
direção às normas e padrões ingleses e, neste processo, reduziu-se parte Gallego (Madrid, 2000); Tamar Herzog: Upholding Justice: Society, State,
da diversidade do século XVII. Ver Murrin, “Anglicizing an American and the Penal System in Quito (1650-1750) (Ann Arbor, 2004); Richard
Colony: The Transformation of Provincial Massachusetts” (PhD disser- J. Ross, “Legal Communications and Imperial Governance: British
tation, Yale University, 1966); “The Legal Transformation: The Bench North America and Spanish America Compared,” in The Cambridge
and Bar of Eighteenth-Century Massachusetts,” in Colonial America: History of Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed.
Essays in Political and Social Development, ed. Stanley N. Katz and John Michael Grossberg and Christopher Tomlins (Cambridge, 2008), 104-
M. Murrin (New York, 1983), 540-72; and “Political Development,” in 143; e Ian K. Steele, The English Atlantic, 1675-1740: An Exploration of
Colonial British America: Essays in the New History of the Early Modern Communication and Community (New York, 1986).
Era, ed. Jack P. Greene and J.R. Pole (Baltimore, 1984), 408-56. Trabalhos
que dedicam atenção particular ao direito, ao mesmo tempo que expan-
dem, desafiam e reorientam esta tese, incluem: Cornelia Hughes Dayton, Extratos de documentos
“Turning Points and the Relevance of Colonial Legal History,” William
and Mary Quarterly 50 (1993): 7-17; Dayton: Women before the Bar: Observadores no século XVIII discordavam sobre a melhor
Gender, Law, and Society in Connecticut, 1639-1789 (Chapel Hill, 1995); maneira de caracterizar os primeiros sistemas jurídicos americanos. A
James A. Henretta, “Magistrates, Common Law Lawyers, Legislators: seguir estão dois pontos de vista diferentes – uma avaliação positiva feita
The Three Legal Systems of British America,” in Cambridge History of por Jeremiah Dummer e uma crítica por Thomas Pownall.
Law in America, Volume 1: Early America (1580-1815), ed. Christopher
204 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 205
(1) Treinado como pastor, Jeremiah Dummer serviu como agente “A reparação em seus tribunais de justiça é fácil, rápida e barata.
da colônia de Massachussets em Londres entre os anos 1710-21. Todos os processos estão em inglês e não são admitidas falácias e obje-
Contrário a um projeto de lei proposto na Câmara dos Comuns, que ções, pelo contrário, a questão geral é sempre dada e assuntos especiais
iria anular os forais de Massachussets, Connecticut e outras colônias, são colocados em evidência, economizando tempo e despesa. E, neste
Dummer publicou um panfleto defendendo essas colônias contra as caso, um homem não está susceptível a perder sua propriedade por um
acusações de corrupção, governos arbitrários e interferência sobre vício de forma; nem é o mérito da causa construído a depender das su-
os Atos de Navegação. Em meio a este argumento maior, Dummer tilezas do funcionário. De acordo com uma das leis do país, nenhuma
apresentou um relato simpático às cortes da Nova Inglaterra, ordem judicial pode ser abatida por um erro circunstancial, como um
destacando a sua acessibilidade e justiça. pequeno equívoco ou alguma informalidade. E por outra lei, está defi-
nido que cada advogado que retire uma ordem judicial do gabinete do
secretário deve endossar seu sobrenome sobre elae ser obrigado a pagar à
Jermiah Dummer, A Defense of the New England Charters (Boston, parte adversa seus custos e encargos em caso de não instauração de pro-
1721), 21-23 [grafia e pontuação foram atualizados]: cesso penal ou desistência, ou se o requerente receber uma sentença de
deserção ou se tenha algum julgamento sobre ele. O mesmo Ato ainda
Nos governos de forais (charters), “todos os funcionários, ci- garante que, se o requerente sofrer um processo por deserção/despacho
vis e militares são eleitos pelo povo, anualmente”. Não pode haver de improcedência por desvio de ação do advogado, ele será obrigado a
“sobre os próprios governantes maior obrigação na execução da justiça elaborar novo mandado sem taxa, caso a parte desejar reabrir o proces-
do que o fato de que disso depende a sua eleição no próximo ano. Por so. Eu não posso deixar de pensar que todos, com exceção de alguns
isso a escolha frequente de magistrados tem sido um pilar central so- senhores de túnica e advogados, irão pensar que esta é uma lei saudável
bre o qual todos aqueles que visam a liberdade nos seus esquemas do e bem calculada em benefício do sujeito. Para o rápido despacho das
governo têm se apoiado”. causas, as declarações fazem parte da ordem judicial na qual o caso é
Esses governos, “longe de cercearem a liberdade do sujeito, a total e particularmente desenvolvido. Se se trata da matéria de fato, o
tem melhorado em alguns artigos importantes, os quais a circunstância fato é anexado ao mandado e cópias de ambos são entregues ao réu, o
das coisas na Grã-Bretanha talvez não demande ou não admita facil- qual, quatorze dias antes da audiência, é obrigado a pleitear diretamente,
mente. Para ilustrar alguns: Houve desde o princípio uma repartição er- sendo a matéria então julgada. Enquanto na prática da Corte Real70 [na
guida por lei em todo país em que as transferências de terra são inseridas Grã-Bretanha], perde-se de três a quatro meses após a apresentação do
na integra após o reconhecimento por parte do outorgante perante um mandado, antes de a causa ser levada a apreciação”.
juiz de paz, meio pelo qual muitas fraudes são impedidas; e nenhuma “Nem estão as pessoas da Nova Inglaterra oprimidas pelos in-
pessoa poderá vender a sua propriedade por duas vezes, ou receber mais finitos atrasos e despesas presentes nos processos em Chancery, onde
dinheiro do que ela realmente vale. Medidas foram igualmente tomadas ambas as partes são frequentemente arruinadas pelas cobranças e pela
para a segurança da vida e da propriedade do sujeito em matéria de júri, delonga do processo. Mas assim, como em todos os outros países, com
que não é entregue pelo xerife do condado, mas escolhido pelos habi- exceção apenas da Inglaterra, ...[direito e equidade] são considerados
tantes da cidade antes da audiência do tribunal. E esta eleição está sob a iguais e nunca divididos”. [Nota: Na Inglaterra, os tribunais de direito
mais exata regulamentação, a fim de evitar a corrupção, tanto quanto a civil (common law) tratavam questões de direito, enquanto o Tribunal
prudência humana pode fazê-lo...” [Nota: xerifes ingleses eram acusados de Chancery tratava de questões específicas, consideradas questões de
de compra de júri em casos de crimes de pessoas de alto gabarito, o que
não acontecia na Nova Inglaterra, de acordo com Dummer]. 70 “King’s Bench” refere-se ao lugar ocupado pelo Rei, que presidia este tribunal na Corte.
206 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 207
“equidade”. Na Nova Inglaterra, os tribunais de jurisdição geral lidavam comum da Inglaterra, de modo que em alguns casos as determinações
tanto com as questões de direito quanto com as de equidade, poupando decorrentes tanto do estatuto quanto do direito civil devem ser rejeita-
o litigante os custos e as dores de cabeça do sistema de jurisdição repar- das. Isso torna as judicaturas nesses países vagas e precárias, perigosas,
tida da Inglaterra]. se não arbitrárias. Isto produz necessariamente (mesmo com todos os
cuidados na formação e execução de suas leis provinciais), um direito ci-
(2) Thomas Pownall, nascido na Grã-Bretanha, foi governador vil neste país diferente, incompatível se não contrário e independente ao
de Massachusetts entre 1757-60. Quando ele retornou à do país mãe, do que se depreende que nada pode ser mais desvantajoso
Inglaterra, sugeriu reformas a serem feitas no império no intuito ao sujeito, e nada mais depreciativo do poder do governo do país mãe, e
de garantir a fidelidade das colônias em agitação. Diferentemente a partir desse máxima fundamental de que os colonos não devem ter leis
de Dummer, Pownall fornece uma uma avaliação negativa contrárias às da metrópole. “
das cortes coloniais. Onde o agente colonial Dummer enxergou “Eu não posso evitar citar uma longa, mas muito precisa obser-
acessibilidade, velocidade e informalidade, o administrador vação do autor da história de Nova York. “O estado de nossas leis abre
imperial Pownall encontrou injustiça, ignorância e confusão. as portas para muita controvérsia. A incerteza em relação a elas torna
Em resposta, Pownall demandava maior controle real sobre as a propriedade precária e muito nos expõe à decisão arbitrária de maus
jurisdições rebeldes no Novo Mundo. juízes. O direito civil da Inglaterra é geralmente recebido junto com tais
estatutos, como foram decretados antes que nós tivemos nossa própria
Thomas Pownall, The Administration of the Colonies, Wherein legislatura, mas nossos tribunais exercem uma autoridade soberana para
their Rights and Constitutions are Discussed and Stated71, 4ª ed. (Londres, determinar quais partes do direito civil e dos estatutos devem ser estendidos,
1768), 102-109 [ortografia e pontuação modernizadas]: pois deve-se admitir que a diferença das circunstâncias necessariamente
“É regra universalmente adotada por todas as colônias, uma vez nos requer rejeitar, em alguns casos, a determinação de ambos. Em muitos
que elas levaram consigo para a América, a Common Law da Inglaterra, casos, eles estenderam também até mesmo os atos do parlamento apro-
com o poder de tal parte dos estatutos (com exceção dos que dizem vados após termos uma legislação distinta, o que aumenta em muito a
respeito à jurisdição eclesiástica) como estavam em vigor no momento nossa confusão. A prática de nossos tribunais não é menos incerta do que
da sua criação. No entanto, como não há uma regra fundamental que a lei. Algumas regras inglesas são adotadas, outras rejeitadas. Duas coisas,
diga quais são os estatutos admissíveis e quais não se admitem a todos, portanto, parecem ser absolutamente necessárias para a segurança pública.
admitem também o pleno estabelecimento da jurisdição eclesiástica, da Em primeiro lugar, a aprovação de um ato que determine a extensão das
qual fugiram para este lugar selvagem em busca de refúgio. E uma vez leis inglesas. Em segundo lugar, que os tribunais ordenem um conjunto
que eles fazem distinções, admitindo alguns e rejeitando outros, quem geral de normas para a regulamentação da prática”.
deverá traçar esta fronteira e onde ela deve passar? Além disso, como o [Pownall discute as objeções coloniais em relação ao direito da
direito civil em si nada mais é do que a prática e a determinação dos tri- Coroa britânica de erguer tribunais nos Estados Unidos. Ele continua:]
bunais sobre questões de direito conduzida por precedentes, nos lugares “Se a partir deste ponto de vista consideramos os defeitos que
onde as circunstâncias e as pessoas de um país em sua relação com os podem ser encontrados nos tribunais provinciais, estes apontam para a
estatutos e do direito civil diferem tão intensamente, isto significa que necessidade de se criar um tribunal geral de apelação para solucionar
o direito civil destes deve, em seu curso natural, se tornar diferente, e às estes problemas. Mas se olharmos para o único modo de recurso que
vezes até mesmo contrário ou, pelo menos incompatível, com o direito atualmente existe, veremos quão inaplicável, quão inadequado é o tri-
bunal. Eu não poderia, em um único olhar, descrever melhor os defeitos
71 NT: “A Administração das Colônias, Concernente à Discussão e Afirmação de seus Direitos
e Constituição”. dos tribunais provinciais nestes governos pueris do que pela descrição
208 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 209
feita pelo nosso Lorde Hale, Chefe de Justiça, de nossos tribunais de co- de governo, em oposição ao espírito da democracia, ou mesmo às pai-
marca nos primórdios do nosso próprio governo, em que ele menciona: xões populares, pode esperar desse apoio, de sua manutenção e tutela
“Primeiro, a ignorância dos juízes, que eram desvinculados do país. Em que os tribunais, mesmo pela constituição, deveriam assegurar para a
segundo lugar, o fato de que esses vários tribunais geravam uma varie- Coroa. Também não seria injustiça alguma para qualquer das colônias,
dade de leis, especialmente nos diversos municípios, para as decisões ou apenas para marcar este lugar, o quão difícil, e até mesmo se é praticável
julgamentos feitos por diversos tribunais e vários juízes e magistrados em alguma corte civil, o julgamento de qualquer pessoa diante da viola-
independentes, os quais não tinham interesse comum entre eles em suas ção das leis de comércio, ou em qualquer assunto das receitas da Coroa”.
varias magistraturas, de modo que, no decorrer do tempo, havia, em
vários condados diversas leis, costumes, regras e formas de processo. Em
terceiro lugar, que todos os negócios, a qualquer momento eram resol-
vidos por partidos e facções, e aqueles de grande poder e interesse no
condado facilmente se sobrepunham aos outros em suas próprias causas,
ou naquelas em que tinham interesse”.
“Diante do primeiro artigo deste paralelo, não será nenhuma
desonra para muitos cavalheiros sentados nos bancos dos tribunais nas
colônias, dizer que eles não são e que não se pode esperar que sejam
advogados, ou ensinados na lei. E no segundo artigo, é certo que, em-
bora se trate de uma máxima fundamental da administração colonial
o fato de que as colônias não devem ter leis contrárias às leis da Grã-
Bretanha, ainda assim diante de todas as flutuações de resoluções e da
confusão na construção e na prática da lei nas diversas e muitas colônias,
é certo que a prática de seus tribunais e de seu direto civil,não apenas
difere um dos outros, mas consequentemente difere também daqueles
da Grã-Bretanha. Em todas as colônias o direto civil é recebido como
base e corpo principal do direito. Mas sendo cada colônia investida de
um poder legislativo, a lei comum é assim continuamente alterada de
modo que (como um grande advogado das colônias afirmou), “devido
à diversidade das resoluções, em seus respectivos tribunais superiores,
e dos diversos novos atos ou leis produzidas solidariamente, os vários
sistemas de legislações dessas colônias se tornam mais e mais variados,
não somente entre si, mas também das leis da Inglaterra”.
“Sob o terceiro artigo, temo que a experiência pode muito bem
dizer quão poderosa, mesmo nos tribunais, é sentida a influência dos
líderes de partido nas disputas entre indivíduos. Mas, nestes governos
populares, e onde cada funcionário executivo depende do apoio tempo-
rário, lamentável, e eu diria quase arbitrário, para os deputados do povo,
não será nenhuma injustiça... sugerir quão pouco a Coroa ou os direitos
210 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 211
Capítulo 6
As estruturas administrativas, jurídicas e
legais no Atlântico ibérico
Raúl Fradkin
Marco Antonio Silveira
A colonização da América
limitados e sofrendo a resistência da tradição. A isto dedicou-se a lite- TAU ANZOÁTEGUI, V. La ley en América Hispana. Del Descubrimiento a la Emancipación.
Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia, 1992.
ratura sobre razão de Estado, infelizmente ainda bastante negligenciada
Na bibliografia indicada o leitor poderá encontrar um panorama das estruturas administrativas,
entre os americanistas.
legais e de administração de justiça na América espanhola colonial, assim como alguns dos
melhores estudos sobre problemas e espaços específicos. Como textos gerais se recomenda a
leitura dos livros de Elliot, nos quais o leitor encontrará uma análise do império espanhol em seu
conjunto, assim como a mais completa comparação com o britânico. Com eles dialoga Fradera,
Roteiro Bibliográfico que apresenta um desenvolvimento das especificidades institucionais e políticas dos domínios
coloniais de cada um dos impérios a partir de uma perspectiva histórica mais abrangente.
América Espanhola O livro de Garavaglia e Marchena oferece um atualizado panorama dos processos históricos
coloniais, o de Tau Anzóategui analisa as características do chamado “direito indiano”, o de
ANDRIEN, K. Crisis y decadencia. El virreinato del Perú en el siglo XVII. Lima: IEP, 2011.
Pietschmann centra-se na configuração inicial do Estado colonial e o de Ruiz Ibañex reúne
BORAH, W.(coord), El gobierno provincial en la Nueva España, 1570-1787. México: Universi- contribuições sobre o papel das milícias no conjunto da monarquia ibérica. Particular importân-
dad Nacional Autónoma de México, 2002. cia possuem os estudos sobre os máximos tribunais americanos: o clássico livro de Burhoklder
e Chandler permite avaliar as transformações produzidas no recrutamento de seus membros e o
BURHOKLDER, M. A.; CHANDLER, D. S. De la impotencia a la autoridad. La corona españo-
artigo de Garriga, a partir de uma perspectiva interpretativa muito diferente, examina profunda-
la y las Audiencia en América, 1687-1808. México: FCE, 1984.
272 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 273
mente a cultura jurídica dessas instituições e suas práticas. Brasileira, 2005.
Para a análise das estruturas de governo territorial no Vice-reino da Nova Espanha se recomenda SCHWARTZ, S. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. trad. São Paulo: Perspectiva, 1979.
a leitura do livro de Borah e o artigo de Cañeque, que esclarece as formas da vida política nesse vi-
SOUZA, L. M. Desclassificados do ouro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
ce-reino. Para analisar as reformas da ordem colonial no Vice-reino do Peru durante o século XVI
se recomenda o livro de Merluzzi. Por sua vez, o livro de Andrien permite examinar as vicissitudes SOUZA, L. M. O sol e a sombra. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
dessas transformações durante o século XVII e os dilemas enfrentados pelo governo colonial.
WEHLING, A.; WEHLING, M. J. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
Uma questão de decisiva importância é a análise das formas de governo das comunidades indíge- 1994.
nas e suas relações com as autoridades coloniais e a ordem jurídica. Neste sentido, se recomenda a
A bibliografia indicada acima apresenta alguns estudos que tratam de temáticas relativas ao
leitura do artigo de Owensby e dois livros clássicos: o de Gibson sobre os astecas e o de Stern cen-
exercício da administração e da justiça na América portuguesa, bem como abordagens que ex-
trado na experiência histórica desenvolvida em Huamanga, no Peru. Para refletir sobre os debates
pressam diferenças historiográficas. Visões de conjunto sobre a colonização do Brasil são encon-
suscitados acerca das relações dos escravos com a administração de justiça se recomenda a leitura
tradas nos trabalhos de Boxer, Holanda e Wehling & Wehling. Elas podem ser complementadas
do artigo de De la Fuente.
com a Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831), que ajuda a situar os fatos em seus
contextos históricos específicos.
América portuguesa Os estudos de Monteiro e Cunha são bastante relevantes para a compreensão, respectivamente,
da dinâmica da exploração das populações autóctones e da legislação indigenista. Embora mais
BOXER, C. R. O império colonial português. trad. Lisboa: Edições 70, 1969. direcionado para a realidade mineira, o livro de Russell-Wood sobre escravos e libertos fornece
BOXER, C. R. A idade de ouro no Brasil. trad. 2ª ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1969. uma rica análise de conjunto sobre a questão. O problema da vadiagem é investigado por Souza
em seu trabalho a respeito dos desclassificados em Minas. O artigo de Figueiredo apresenta uma
Cronologia de História do Brasil Colonial (1500-1831). São Paulo: Departamento de História, importante síntese sobre as revoltas imperiais e a linguagem nelas utilizada.
USP, 1994.
Na obra organizada por Hespanha, são discutidas as concepções doutrinárias de matriz cató-
CUNHA, M. C. (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secreta- lica que procuraram ordenar as sociedades de Antigo Regime e foram apropriadas na colônia
ria Municipal de Cultura, Fapesp, 1992. americana. Nela explica-se bem o tema da prudência. O trabalho de Maravall, por sua vez,
FALCON, F. C. A época pombalina. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1993. esquadrinha a literatura sobre razão de Estado produzida nos séculos XVI e XVII. O artigo
de Russell-Wood e o livro de Schwartz fornecem uma visão geral sobre o funcionamento da
FIGUEIREDO, L. R. O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e justiça colonial, focando, respectivamente, a dinâmica das câmaras municipais e a dos tribunais
das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII-XVIII. In: FURTADO, J. F. de Relação.
Diálogos oceânicos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 197-254.
O livro de Souza sobre o sol e a sombra na administração colonial dialoga com o trabalho de
FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.) O Antigo Regime nos Fragoso, Bicalho & Gouveia e com o de Fragoso & Florentino. O debate procura avaliar a vali-
Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Bra- dade do conceito de sistema colonial quando aplicado à colonização portuguesa, contrapondo-o
sileira, 2001. a dois aspectos: de um lado, a constituição de identidades e vínculos comerciais que articulariam
FRAGOSO, J.; FLORENTINO, M. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro: Civilização Bra- as várias partes do império; de outra, a elaboração na sociedade colonial de estruturas de re-
sileira, 2001. produção da desigualdade, ancoradas no enraizamento tanto de grupos locais quanto daqueles
formados por reinóis. Em linhas gerais, encontra-se no cerne do debate a análise sobre em que
HESPANHA, A. M. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, s/d. (História de Portu- medida metrópole e colônia implicavam contradição ou identidade.
gal, dir. José Mattoso, v. 4).
HOLANDA, S. B. (org.) História Geral da Civilização Brasileira. 5ª ed. São Paulo: Difel, 1982,
t. 1. Extratos de documentos
MARAVALL, José Antonio. Teoría del Estado en España en el siglo XVII. 2ª ed. Madri: Centro
de Estudios Constitucionales, 1997. 1. Provisión que se manda al marqués don Francisco de Pizarro para que pudiese continuar las con-
quistas de las provincias del Perú, 8 de marzo de 1533.
MONTEIRO, J. M. Negros da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. “… Por ende, como mejor podemos, os rogamos y requerimos que entendáis bien esto que os
PRADO JR., C. Formação do Brasil Contemporâneo. 12ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. hemos dicho, y toméis para entenderlo y deliberar sobre ello el tiempo que fuere justo, y reco-
nozcáis a la Iglesia por señora y superiora del universo mundo, y al Sumo Pontífice, llamado
RUSSELL-WOOD, A. J. O governo local na América portuguesa: um estudo de divergência Papa, en su nombre, y al Emperador y Reina doña Juana, nuestros señores, en su lugar, como
cultural. Revista de História, São Paulo: FFLCH/USP, v. 55, nº 109, 1977, p. 25-79. a superiores y Reyes de esas islas y tierra firme, por virtud de la dicha donación y consintáis y
RUSSELL-WOOD, A. J. Escravos e libertos no Brasil Colonial. trad. Rio de Janeiro: Civilização deis lugar que estos padres religiosos os declaren y prediquen lo susodicho. […]… Y si así no
274 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 275
lo hicieseis o en ello maliciosamente pusieseis dilación, os certifico que con la ayuda de Dios, há mais que quando fazem alguns delitos, o meirinho os manda meter em um tronco um dia
nosotros entraremos poderosamente contra vosotros, y os haremos guerra por todas las partes y ou dois como ele quer; não tem correntes nem outros ferros da justiça […] Os padres incitam
maneras que pudiéramos, y os sujetaremos al yugo y obediencia de la Iglesia y de sus Majesta- sempre aos índios que façam sempre suas roças e mais mantimentos, para que, se for necessário,
des, y tomaremos vuestras personas y de vuestras mujeres e hijos y los haremos esclavos, y como ajudem com eles aos portugueses por seu resgate, como é verdade que muitos portugueses co-
tales los venderemos y dispondremos de ellos como sus Majestades mandaren, y os tomaremos mem das aldeias, por onde se pode dizer que os padres da Companhia são pais dos índios, assim
vuestros bienes, y os haremos todos los males y daños que pudiéramos, como a vasallos que no das almas como dos corpos”.
obedecen ni quieren recibir a su señor y le resisten y contradicen…”
6. Carta do governador Fernão de Sousa Coutinho de 1º de julho de 1671.
2. Ley 21, Título III, Libro VI de la Recopilación de Leyes de Indias de 1680. “Há alguns anos que, dos negros de Angola fugidos ao rigor do cativeiro e fábricas dos engenhos
“Prohibimos y defendemos, que en las Reducciones, y Pueblos de Indios puedan vivir, ó vivan desta capitania, se formaram povoações numerosas pela terra dentro entre os Palmares e matos,
Españoles, Negros, Mulatos, ó Mestizos, porque se ha experimentado, que algunos Españoles, cujas asperezas e faltas de caminhos os têm mais fortificados por natureza do que pudera ser
que tratan, traginan, viven, y andan entre los indios, son hombres inquietos, de mal vivir, la- por arte e, crescendo cada dia em número, se adiantam tanto no atrevimento que com contínuos
drones, jugadores, viciosos, y gente perdida, y por huir los Indios de ser agraviados, dexan sus roubos e assaltos fazem despejar muita parte dos moradores desta capitania mais vizinhos aos
Pueblos, y Provincias, y los Negros, Mestizos, y Mulatos, demás de tratarlos mal, se sirven de seus mocambos, cujo exemplo e conservação vai convidando cada dia aos mais que fogem, por se
ellos, enseñan sus malas costumbres y ociosidad, y también algunos errores, y vicios, que podrán livrar do rigoroso cativeiro que padecem, e se verem com a liberdade lograda no fértil das terras e
estragar, y pervertir el fruto que deseamos en orden a su salvaci6n, aumento, y quietud; y man- segurança de suas habitações, podendo-se temer que com estas conveniências cresçam em poder
damos, que sean castigados con graves penas, y no consentidos en los Pueblos; y los Virreyes, de maneira que, sendo tanto maior o número, pretendam atrever-se a tão poucos como são os
Presidentes, Gobernadores y Justicias tengan mucho cuidado de hacerlo executar donde por sus moradores desta capitania a respeito dos seus cativos [...]”.
personas pudieren, ó valiéndose de Ministros de toda integridad: y en quanto á los Mestizos,
y Zambaygos, que son hijos de Indias, nacidos entre ellos, y han de heredar sus casas, porque 7. Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720.
parece cosa dura separarlos de sus padres, se podrá dispensar.” “Logo, se o pretexto (bem que outro fosse o fim) da sublevação era impedir a lei do príncipe nas
casas de fundição e moeda, que atendiam à sustentação e aumentos do reino, fechando-se tão
3. Ley 14 del Título IX del Libro VI de la Recopilación de Leyes de Indias de 1680. facilmente com a chave daquelas casas às nações estrangeiras a porta por onde sempre entraram
“Ordenamos que ningún Encomendero de Indios, ni su muger, padres, hijos, deudos, criados, ni a senhorear-se da maior parte do nosso ouro, e que qualquer canto dos seus domínios, mais
huéspedes, Mestizos, Mulatos, ni Negros, libres ó esclavos, puedan residir, ni entrar en los Pue- que as cortes do Brasil e Portugal, se achava abundante, visto está que, respeitando a lei que se
blos de su encomienda, porque de esta comunicación, y asistencia resulta, que los naturales son impugnava ao estado, não tocava a determinação do castigo aos legistas, senão a El-Rei, como
fatigados con servicios personales, á sin causa, ni razón los obligan, ocupándoles en traer yerba, política, e por consequência ao seu substituto e delegado. E mal andaria o Conde se por mãos da
y frutas, que van á buscar por larga distancia, pescar, moler y amasar trigo, en que pasan grandes, justiça castigara, neste caso, aos culpados, pois é sem questão que quando o príncipe lhe come-
y excesivos trabajos, y molestias, aunque sea con pretexto de utilidad de los indios, ó curarlos, teu as suas vezes, não foi para que ele cedesse do direito real, fazendo tributárias ao arbítrio dos
ó curarse, por gozar de la diferencia de temple, pena de cincuenta pesos, aplicados por tercias ouvidores resoluções que só eram regalia do trono”.
partes, á nuestra Cámara, Juez, y Denunciador. Y mandamos á nuestras Justicias Reales, que no
lo consientan, ni permitan, y executen la dicha pena, y encargamos á los Prelados Eclesiásticos, 8. Consulta do Conselho Ultramarino a Sua Majestade, no ano de 1732, feita pelo conselheiro Antônio
que castiguen. Y corrijan los excesos, que en esto hicieren los Doctrineros.” Rodrigues da Costa.
“O perigo interno que têm os Estados, e nasce dos mesmos vassalos, consiste na desafeição e
4. Carta de Palafox al Rey, México, 23 de setiembre de 1644. ódio que concebem contra os dominantes, o qual ordinariamente procede das injúrias e violên-
“Estas Provincias no se arriesgan quando se hace Justicia, sino quando deja de hacerse, y puede cias com que são tratados pelos governadores, da iniquidade com que são julgadas as suas causas
mas la violencia que las Leyes de VM y se salen los Magistrados con la misma inmunidad del pelos ministros da Justiça, e da dificuldade, trabalho, despesa e demora de que necessitam para
exceso que pudieran del mérito, y no ha havido hasta hoy Monarquía desde el principio del recorrerem à Corte para se queixarem das sem-razões que padecem e injustiças que lhe[s] fazem,
Mundo que se haya perdido por hacer Justicia, y muchas sí que se han perdido con brevedad por e de lhes ser preciso remirem as vexações que lhes fazem ou conseguirem as suas melhoras a
no hacerla, que gozo tienen señor (o que provecho) los vasallos de VM en que se hagan podero- peso de ouro; e também nasce muito principalmente do encargo dos tributos, quando entendem
sos los magistrados con su perdición y ruina, si quanto estos grangean se les quita de aquéllos.” que são exorbitantes; e se lhes fazem intoleráveis, se persuadem que não houve causa justa e
inevitável para se lhes imporem”.
5. Carta de José de Anchieta sobre a catequese dos índios.
“Ensinam-lhes os padres todos os dias pela manhã a doutrina, esta geral, e lhes dizem missa,
para os que a quiserem ouvir antes de irem para suas roças; depois disso ficam os meninos na
escola, onde aprendem a ler e escrever, contar e outros bons costumes, pertencentes à polícia
cristã; à tarde tem outra doutrina particular a gente que toma o Santíssimo Sacramento. Cada
dia vão os padres visitar os enfermos com alguns índios deputados para isso; e se têm algumas
necessidades particulares, lhes acodem a elas; sempre lhes ministram os sacramentos necessários
[...] O castigo que os índios têm é dado por seus meirinhos feitos pelos governadores e não
276 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 As Américas na Primeira Modernidade (1492 - 1750) - Vol. 2 277
Capítulo 7
A Era global das revoluções e seus
descontentamentos (1760 a 1834)
Kristie Flannery
tumbrada eficacia y lealtad á terminus que superando las demoras que ANDERSON, Clare. Subaltern Lives: Biographies of Colonialism in the Indian Ocean World,
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necesarriamente traen consigo los preparativos publicos, se verificó
ANDERSON, Clare; FRYKMAN, Niklas; VOSS, Lex Heerma van; and REDIKER, Marcus.
con la debida solemnidad y Pompa el acto publico entre las aclama-
Mutiny and Maritime Radicalism in the Age of Revolution: An Introduction. International
ciones y vivas mas afectuoso dirigidos á nuestro amado y deseado Rey Review of Social History Special Issue 21 (2014): 1-14.
y Señor Don Fernando 7o, haviendo durado las iluminacciones, salvas ANDRADE ARRUDA, José Jobson de. Uma Colônia Entre Dois Impérios: A Abertura Dos
de Artilleria y Fusileria, y demas funciones publicas quarto dias conse- Portos Brasileiros, 1800-1808. Bauru: EDUSC, 2008.
cutivos. En fin, Serenismo Señor, nuestros corazones han sido los que ARAÚJO, Ana Cristina. Um império, um reino e uma monarquia na América: As vésperas da
hán proclamado al Rey, se hán manifestado dignos de ser españoles, y independência Do Brasil. In JANSCÓ, István (ed.). Independência: história e historiografia. São
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hán reconosido los sabios y patrioticos trabajos de vuestra alteza uni-
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dos con los esfuerzos, valor, y acendrada lealtad de la grande Nacion
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