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A fonte histórica e seu lugar de produção

José D’Assunção Barros 1

Resumo: Este artigo busca desenvolver algumas considerações relacionadas à metodo-


logia de tratamento de ‘fontes históricas’. Após algumas considerações relacionadas à es-
colha e constituição de fontes históricas, é discutida uma questão mais específica: o lugar
de produção de um texto tomado como fonte histórica. As questões tratadas neste artigo
referem-se mais especificamente aos textos autorais.
Palavras-chave: Fontes históricas. Teoria da História. Metodologia.

Abstract: This article aims to develop some considerations related to the methodology
for treatment of historical resources. After some considerations about the choice and cons-
titution of the historical resources, it is discussed a specific question: the production place
of a text constitute as an historical resource. The questions treated in this article refer most
specifically to the authorial texts.
Keywords: Historical resources. Theory of History. Methodology.

1
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), doutor pela Universidade Federal
Fluminense (UFF).

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 407


Considerações iniciais Michel de Certeau e a reflexão
sobre o lugar de produção da
O presente artigo pretende abor- historiografia
dar algumas questões primordiais
para a prática historiográfica, mais A primeira reflexão mais sistemáti-
especificamente aquelas que se re- ca sobre o conceito de “lugar de produ-
ferem ao tratamento das fontes his- ção” na historiografia foi desenvolvida
tóricas. Como relacionar fontes e por Michel de Certeau em um texto de
problemas? Que questões e dilemas 1974 que se tornou célebre: “A operação
historiográficos surgem a partir da historiográfica”2. A percepção de que o
delimitação de um tema, da especi- historiador escreve de um lugar social,
ficação de um problema, da formula- de que na operação historiográfica ele
ção de hipóteses, quando se trata de escreve a partir de um ponto de vista,
constituir o corpus documental que atravessado por subjetividades e inscri-
dará suporte empírico à pesquisa his- ções sociais várias, já vinha naturalmen-
tórica? Quais os cuidados a serem to- te sendo elaborada pelos historicistas
mados na própria constituição de um mais atuantes da segunda metade do sé-
corpus documental em termos de ho- culo XIX, tais como o historiador Gustav
mogeneidade, pertinência, represen- Droysen3 e o filósofo Wilhelm Dilthey4,
tatividade em relação ao problema e entre outros. Historiadores oitocentistas
ao tema estudado? Qual a relação en- como Gervinus, em uma obra de 1837
tre os problemas que podem ser pen- intitulada “Fundamentos da Teoria da
sados a partir de uma fonte e o “lugar” História”5, já discorre detidamente sobre
que a produz como texto, documento o que é o fazer histórico e sobre o fato de
ou objeto material? Questões como que o historiador desenvolve esta ativi-
estas, e ainda outras, fazem parte de dade a partir de uma posição específica
há muito do universo de preocupa- e de uma inscrição em uma sociedade e,
ções dos historiadores. Sobre elas – e com relação à questão que lhe era mais
mais especificamente sobre a necessi- cara, de um certo lugar nacional. Essa
dade de identificação de um “lugar de percepção de que o historiador escreve
produção” das fontes históricas (para de um lugar, aliás, foi uma pedra de to-
aqui retomar a célebre expressão de
Michel de Certeau), refletiremos nas
2
CERTEAU, Michel de. “A operação historiográ-
fica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro:
próximas linhas. Forense Universitária, 1988. p.16-48 [original:
1974].
3
DROYSEN, J. Gustav. Manual de teoria da Histó-
ria. Petrópolis: Vozes, 2009 [original: 1868].
4
DILTHEY, Wilhelm. A construção do mundo
histórico nas Ciências Humanas. São Paulo:
UNESP, 2010.
5
GERVINUS, Georg. Fundamentos de teoria de
História. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

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que importante no desenvolvimento do e enfrenta os interditos proporcionados
historicismo, que já vinha contrastando por este lugar, que se instala ademais
com os historiadores positivistas do sé- em uma complexa estrutura de poder9.
culo XIX em seu reconhecimento de que O seu trabalho torna-se possível neste
qualquer texto parte de um lugar e de um “lugar de produção” específico, que pre-
ponto de vista. Esta consciência históri- cisa ser adequadamente compreendido,
ca prossegue de maneira cada vez mais para cada caso, quando se trata de com-
afirmativa através do século XX, com preender a historiografia ou um produto
autores como Marc Bloch , Lucien Feb-
6
historiográfico. O próprio leitor ou be-
vre7 e inúmeros historiadores ligados a neficiário do produto historiográfico, ele
movimentos como o dos Annales ou do mesmo mergulhado em suas circunstân-
Presentismo norte-americano e também cias e perfeitamente inscrito em uma so-
a perspectivas como a do Materialismo ciedade e no próprio lugar que torna pos-
Histórico ou da hermenêutica alemã8. sível as suas condições de leitura e a sua
De todo modo, pode-se dizer que, em seu atividade como leitor, também interfere,
texto de 1974, Michel de Certeau encon- à sua maneira, neste lugar de produção
trou a palavra certa para desdobrar uma que demarca as condições de trabalho do
arguta reflexão sobre o fazer historiográ- historiador10.
fico. “Lugar de Produção” foi a expressão Neste texto, estaremos direcionan-
que Certeau celebrizou para expressar a do o conceito de “lugar de produção”
idéia de que o historiador, em sua práti- para um outro âmbito, também perce-
ca e operação historiográfica, escreve ele bido por Certeau e muito antes dele por
mesmo a partir de um lugar, de uma ins- uma grande tradição que remonta aos
crição em uma sociedade e em uma co- historicistas do século XIX, passando
munidade historiográfica atualizada pela depois por diversos setores da historio-
sua própria época, de um enredamento
que o situa em uma instituição (univer- 9
Assim se expressa Michel de Certeau no início da
primeira sessão de se seu artigo: “Toda pesquisa
sitária, por exemplo), de uma teia de histórica é articulada a partir de um lugar de pro-
intertextualidades que o influenciam de dução sócio-econômico, político e cultural. Im-
plica um meio de elaboração circunscrito por de-
múltiplas maneiras. O historiador, ho- terminações próprias: uma profissão liberal, um
mem de seu tempo, acompanha os ditos posto de estudo ou de ensino, uma categoria de
letrados, etc. Encontra-se, portanto, submetido a
opressões, ligada a privilégios, enraizada em uma
particularidade. É em função desse lugar que se
6
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Ja- instauram os métodos, que se precisa uma topo-
neiro: Jorge Zahar, 2001 [original publicado: grafia de interesses, que se organizam os dossiers
1949, póstumo] [original de produção do texto: e as indagações relativas aos documentos” (CER-
1941-1942]. TEAU, op.cit., p.18).
7
FEBVRE, Lucien. Combats pour l’histoire. Paris: 10
Sobre estes aspectos, são fundamentais as refle-
A. Colin, 1953. xões desenvolvidas por Paul Ricoeur no primei-
8
Entre estes últimos, podemos lembrar o conjunto ro volume de sua obra Tempo e narrativa (RI-
de reflexões de Gadamer sobre a História. GADA- COEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol.1: a intriga
MER, Hans-Georg. A consciência histórica. Rio e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes,
de Janeiro: FGV, 1998 [original: 1996]. 2010).

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grafia do século XX. A nossa intenção não será objeto deste artigo, a própria
será aplicar o conceito de “lugar de pro- escolha do tema de pesquisa, e a possibi-
dução” aos textos que o historiador cons- lidade de construir problemas mais sin-
titui como fontes históricas. É claro que a gulares a partir deste tema de pesquisa,
percepção dos historiadores de que o seu constitui-se para o historiador uma ope-
próprio trabalho também se escreve em ração que deve ser compreendida a par-
um lugar complexo – social, institucio- tir deste lugar complexo. A reflexão sobre
nal, cultural, político, intertextual, epis- esta questão nos levaria longe, e remete-
temológico – e que precisa ser conside- ria também a autores como Max Weber
rado quando estes mesmos historiadores (1904), entre vários outros12.
tomam consciência das especificidades De igual maneira, o discurso produ-
de suas próprias práticas, constitui de zido pelo historiador, com todas as suas
fato a questão crucial que logrou situar a especificidades e modos de expressão, é
historiografia moderna em um novo pa- ainda indelevelmente ligado ao lugar de
tamar de autoconsciência. Mas este não onde fala o historiador, à sociedade em
será o tema do presente artigo, que busca que ele se inscreve, à instituição à qual
mais especificamente desenvolver uma se vincula, aos diálogos que estabelece
reflexão sobre o tratamento das fontes com seus pares e, por vezes, a pressões
históricas. Destarte, uma reflexão inicial diversas advindas da comunidade de
sobre esta questão mostra-se imprescin- historiadores das quais não necessaria-
dível. mente cada historiador se apercebe. Tal
Pensadores como Certeau, e mais como observa Certeau em “a operação
tarde Jorn Rüsen , foram fundamentais
11
historiográfica”, “meu dialeto [do histo-
para o aprimoramento da clarificação de riador] demonstra minha ligação com
que, nas diversas operações que consti- um certo lugar”13. O que se diz, e como
tuem a sua prática, o historiador é atra- se diz, relacionam-se naturalmente a
vessado por intersubjetividades várias, este lugar, da mesma forma como se
e também por condições específicas que inscrevem em um lugar os modos a par-
definem o seu lugar social, institucional, tir dos quais se estabelece um objeto de
e mais propriamente historiográfico. As- pesquisa e se viabiliza uma prática a ela
sim, apenas para dar um exemplo que relacionada. A operação historiográfica
como um todo, enfim, “refere-se à com-
11
(1) RUSEN, Jörn. Razão histórica – Teoria da binação de um lugar social e de práticas
História I: os fundamentos da ciência histórica.
Brasília: UNB, 2007a. (2) RUSEN, Jörn. História científicas”14, e foi sobre todas as impli-
viva – Teoria da História II: os princípios da
pesquisa histórica. Brasília: UNB, 2007b. (3) RU-
SEN, Jörn. Reconstrução do passado – Teoria da
História III: formas e funções do conhecimento 12
WEBER, Max. A objetividade do conhecimento
histórico. Brasília: UNB, 2007c. (4) RUSEN, Jörn. nas Ciências Sociais. São Paulo: Ática, 2006 [ori-
“Partidarismo e objetividade – as potencialidades ginal: 1904].
racionais da ciência da história” In Razão Históri- 13
CERTEAU, op.cit, p.16
ca. Brasília: UNB, 2001 [original: 1983]. 14
CERTEAU, op.cit, p.18.

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cações de cada uma destas instâncias a prática historiográfica, mas que natu-
– lugar social e prática científica – que ralmente é posterior, na concepção his-
Certeau se dispôs a discorrer no ensaio a toriográfica moderna, à instituição de
partir do qual se afirmou definitivamente um problema histórico, que refletiremos
o conceito de “lugar de produção”. A par- neste artigo.
tir daqui, refletiremos, ao recorrer a este A Fonte Histórica, como se sabe, é o
conceito, sobre uma questão específica elemento que assegura uma base científi-
no interior da operação historiográfica, ca à História; ou, caso se queira evitar a
que é a da percepção de que os textos que interminável polêmica sobre a “cientifici-
os historiadores tomam para fontes his- dade da História”, o que dá legitimidade
tóricas também foram produzidos, em ao discurso do historiador. É um daque-
sua época, a parir de um lugar que pre- les elementos que vai produzir a distin-
cisa ser compreendido e decifrado pelo ção entre a História e o relato de ficção16.
historiador . 15
Qualquer afirmação do historiador deve
ser proposta a partir de uma base docu-
O problema histórico e a escolha mental; da mesma forma que as hipóte-
da documentação adequada ses por ele levantadas devem ser com-
provadas ou admitidas como aceitáveis
Vamos prosseguir, nesta reflexão a partir do seu trabalho com as fontes17.
sobre o fazer historiográfico, de um pon- Daí decorre que a escolha do uni-
to mais avançado na instituição do pro- verso documental deve estar intima-
cesso de pesquisa histórica. Suponha- mente ligada às hipóteses de trabalho,
mos que o assunto ou mesmo o Tema de ao “problema” levantado, aos objetivos
nossa pesquisa, bem como o seu recorte da pesquisa. Tudo isto, naturalmente,
espacial e cronológico, já estão devida- está associado ao “lugar de produção” no
mente delimitados (o que, tal como já se
mencionou, constitui uma operação que
16
Isto é, referimo-nos aqui, mais especificamente,
também se associa ao próprio “lugar de à tradição historiográfica que se desenvolveu na
produção” no qual se insere o historia- civilização ocidental cristã. Deve ficar bem enten-
dido que há casos de outras civilizações que de-
dor). Cabe agora um passo decisivo para senvolveram um “fazer histórico” que prescinde
o estabelecimento das condições iniciais do documento.
17
Não nos referimos, naturalmente, à “literatura
do trabalho historiográfico. É preciso de- histórica” oferecida ao público sem maiores pre-
terminar com clareza e precisão o “uni- tensões científicas ou acadêmicas. A exigência de
uma “base documental” é mormente uma exigên-
verso documental” de nossa pesquisa. cia de historiadores para com historiadores, e que
parte também de um público mais especializado.
É sobre este momento, primordial para
Em vista do público a que se destina, ou dos hori-
zontes editoriais que norteiam o produto final do
discurso historiográfico (por exemplo: um livro),
15
O nosso objetivo, deste modo, será estabelecer, pode se dar também que não haja uma citação do-
a partir daqui, algumas considerações de cunho cumental, o que não quer dizer que o historiador
metodológico que se referem à análise de fontes não tenha construído o seu trabalho a partir de
históricas. documentos históricos.

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qual se inscreve o próprio historiador, definido. O próprio objeto da pesquisa já
mas não é desta questão tão importante determina, a princípio, a base documen-
quanto específica que trataremos agora. tal. Meu primeiro passo será percorrer
Queremos chamar atenção para o fato de os arquivos em busca dos programas dos
que cada pesquisa em especial vai permi- partidos políticos oficiais desde o início
tir determinadas alternativas de “univer- da República. É claro que, dependendo
sos documentais” (alternativas que, ob- do tipo de análise a que nos propuser-
viamente, serão objetos de uma escolha, mos empreender, poderemos cotejar
elas mesmas interferidas pelo próprio estas fontes com outras. Por exemplo, se
lugar de produção do historiador). O quisermos investigar até que ponto estes
fato de que cada pesquisa em especial vai programas foram cumpridos na prática
possibilitar ao historiador fazer suas es- política e social, poderemos cotejá-los
colhas diante de determinadas alternati- com notícias de periódicos de cada épo-
vas de “universos documentais” constitui ca, estatísticas ou registros diversos. Mas
o mais íntimo sentido da prédica de que isto já será uma outra etapa.
sempre se deve submeter um determina- No segundo caso, o nosso universo
do conjunto documental a uma “análise documental também aparece previa-
de adequação”, com vistas a verificar se mente delimitado – a saber: a corres-
as fontes propostas realmente estarão pondência particular de Getúlio Vargas.
sintonizadas com o problema histórico Mas caberá antes, é preciso notar, definir
proposto. quem iremos considerar como “os alia-
É verdade que pode se dar, em al- dos políticos de Getúlio Vargas”. Esta
guns casos, que o universo documental já definição já imporá, ela mesma, uma de-
esteja determinado a priori pelo próprio limitação dentro daquele universo maior
objetivo da pesquisa definida de ante- que fora previamente determinado pe-
mão pelo historiador ou pelas exigências los objetivos da pesquisa encomendada.
de seu ofício no seio de uma instituição Afinal de contas, será preciso extrair da
que o convocou para um trabalho espe- “massa documental” as cartas dirigidas
cífico. Digamos, por exemplo, que uma aos “aliados políticos” de Vargas, sepa-
instituição nos encomendou uma inves- rando-as das cartas dirigidas aos adver-
tigação sobre “os programas de todos os sários políticos ou às pessoas comuns.
partidos políticos oficiais desde o início Decidir quem era um “aliado político de
da República”, ou então sobre a “corres- Vargas”: isto é, em última instância, uma
pondência entre Getúlio Vargas e seus decisão do historiador – e na verdade a
aliados políticos”. No primeiro caso, nos- sua primeira interferência no universo
so universo de fontes já está previamente documental.

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Há ainda casos em que o objeto de da população negra durante o Brasil
investigação é já um documento em si Colonial”. Que tipos de fontes nos per-
mesmo. Por exemplo, um historiador mitirão uma aproximação do proble-
pode se propor a investigar certos “as- ma? Documentos de compra e venda
pectos da sátira renascentista à literatura relativos ao tráfico de escravos? No-
cavaleiresca a partir do Dom Quixote de tícias de periódicos? Registros carto-
La Mancha” . Neste caso, o documen-
18
riais de nascimentos e mortes? Fontes
to também já se encontra previamente iconográficas que deixem transparecer
delimitado. O que não impede que de- algum tipo de informação sobre a vida
limitações ou ampliações posteriores cotidiana da população negra? Relatos
sejam efetuadas, conforme uma maior de militantes abolicionistas? Cantigas
especificação sofrida pelo problema. Se legadas pelos próprios negros à tradi-
tomamos por objeto não o “Dom Qui- ção oral? Todos estes caminhos, e mui-
xote” na sua totalidade, mas a questão tos outros, se abrem ao historiador.
da “presença de provérbios populares” É preciso, nestes casos, proceder à
naquela obra, torna-se imprescindível constituição de um corpus documental
cotejá-la também com a tradição oral. adequado (Quadro 1). O corpus docu-
Ou talvez nos interessem apenas as mental pode ser definido como o con-
partes da obra em que se verifiquem junto de fontes que serão submetidas
diálogos entre o fidalgo e seu escudeiro à análise do historiador com vistas a
Sancho Pança, este último represen- lhe fornecer evidências, informações
tando a tradição popular. e materiais passíveis de interpretação
Mas na maior parte das vezes o historiográfica. Sua constituição não
historiador parte mesmo de um pro- é gratuita: implica em escolhas e sele-
blema histórico, mais amplo ou mais ções que deverão atender a determina-
específico, sem que este determine das regras e critérios19.
necessariamente o tipo de documento
que poderá embasar o seu trabalho.
Abrir-se-ão aqui algumas escolhas, e,
para orientá-las, a “crítica de adequa-
ção” será particularmente importante.
Por exemplo, suponhamos que o pro-
blema é investigar “a qualidade de vida

18
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. El ingenio-
so hidalgo Don Quixote de La Mancha. Madrid: 19
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa:
1605. Edições 70, 1991, p.97.

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Quadro 1. A constituição do corpus documental

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Em primeiro lugar, deve-se atender zida ou agrupada conforme critérios de
ao critério mais óbvio da pertinência. O identidade e de similaridade. Por exem-
documento selecionado deve ser adequa- plo, se pretendemos fundamentar nosso
do ao objetivo da análise. Se queremos trabalho em entrevistas, é de fundamen-
compreender o “pensamento nazista” a tal importância que estas tenham sido
partir de suas motivações internas, pou- obtidas por intermédio de técnicas idên-
co nos adiantará proceder a um levanta- ticas, além de terem sido realizadas por
mento exaustivo dos editoriais antifas- indivíduos semelhantes21. Uma entrevis-
cistas do Partido Comunista Alemão. Da ta obtida por mecanismos de constrangi-
mesma forma, se pretendemos investigar mento ou de coação não pode ocupar o
a tortura e as infrações aos direitos hu- mesmo setor do corpus documental que
manos durante a ditadura brasileira de uma entrevista colhida informalmente,
1964, não conseguiremos obter muitas ou sem a consciência do entrevistado
informações a partir de periódicos com- de que o seu depoimento iria posterior-
prometidos com a difusão de uma boa mente ser registrado. Da mesma forma,
imagem do regime militar junto à popu- entrevistadores com diferentes níveis de
lação mais ampla. Tal tipo de documento persuasão não podem produzir entrevis-
somente será útil para investigar ques- tas homogêneas.
tões relativas à “violência simbólica” , 20
Em muitos casos, o corpus deve es-
ao controle direto ou indireto dos gran- tar comprometido com a idéia de totali-
des meios de imprensa durante o regime dade. Melhor dizendo, ele não pode con-
ou ao receio dos jornalistas em se com- ter “lacunas” derivadas da relação entre
prometerem. Se quisermos informações o historiador e seu documento, como a
relativas à prática de tortura teremos de dificuldade de acesso, a falta de ânimo
buscá-las em outro tipo de documenta- em empreender uma tradução difícil, ou
ção, como depoimentos de vítimas da a pouca capacidade para decifrar uma
tortura e de dissidentes do regime mili- caligrafia menos transparente. As únicas
tar, registros de desaparecidos políticos, lacunas admissíveis são as que nos foram
arquivos secretos do SNI, ou quaisquer legadas pela própria História. Uma vez
outros que permitam ao historiador mais definida a série documental, não cabe ao
do que uma aproximação ingênua do historiador ocultar um documento ape-
nas porque ele contradiz a hipótese que
problema.
pretende demonstrar, ou porque ele difi-
Outro problema a ser considerado
culta o andamento de suas investigações.
é o da homogeneidade do corpus docu-
Em contrapartida, o corpus do-
mental. A documentação deve ser produ-
cumental pode ser constituído a partir
do critério de representatividade. Isto
20
BOURDIEU, Pierre e PASSERON, J.C. La repro-
duction. Eléments pour une théorie du système
d’enseignement. Paris: Minuit, 1970. 21
BARDIN, op.cit, p.98.

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é, a análise pode ser efetuada em uma (1525-1569), cada qual tendo desenvol-
amostra, desde que o material a isto se vido um estilo surpreendentemente sin-
preste . Se a amostra for uma parte re-
22 gular em meio ao modelo hegemônico da
presentativa do universo inicial, os re- pintura renascentista. Um Rafael (1483-
sultados para ela obtidos poderão ser 1520), por outro lado, é um artista muito
generalizados ao todo. Por exemplo: co- mais representativo do padrão de exce-
locamos como problema a identificação lência renascentista, assim como Botti-
das principais características estéticas da celli, Leonardo da Vinci ou Miguel Ânge-
pintura renascentista, para que depois se lo. Assim que – se pretendemos abarcar
possa proceder ao relacionamento da- todo o período renascentista – a inclusão
quelas com a sociedade do seu tempo. na amostragem de pintores diversifica-
Seria praticamente impossível, ou des- dos, bem distribuídos ao longo de toda a
necessariamente exaustivo, proceder à duração considerada, e bem espalhados
coleta de todos os documentos pictóricos ao longo de todo o recorte europeu, nos
da época, o que vale dizer, de todas as dará uma margem muito menor de erro.
obras pintadas pela totalidade dos pin- Da mesma forma, se pretendemos levan-
tores renascentistas. Então procedemos tar algo como a “mentalidade” de um ofi-
à constituição de uma amostragem: re- cial da GESTAPO no tempo da Segunda
colhendo duzentas obras significativas, Guerra, é desnecessário investigar a tota-
verificamos se certas características pre- lidade dos oficiais nazistas. Mas convém
dominam no conjunto, de maneira que investigar o padrão de comportamento

possam ser generalizadas como aspectos não de um único homem, e sim de um

comuns a toda a produção renascentista. número significativo deles.

A questão é: que obras deveremos O que define se uma determinada


tomar para compor este conjunto repre- amostragem é adequada ou não é o pro-
sentativo? O procedimento que oferece blema que temos em vista. Um balde de
menos riscos é selecionar várias obras água do mar é péssimo para dar conta
de diversos autores. Se nos ativéssemos do rastreamento de toda a fauna mari-
à produção de um ou dois pintores, cor- nha, já que, com muita sorte, só teríamos
reríamos o risco de tomar certas caracte- capturado um único peixe. E, no entan-
rísticas estéticas individuais como carac- to, uma simples gota d’água é excelente
terísticas estéticas da sua época. O risco para dar conta da diversidade de micro-
ainda seria maior se cometêssemos a im- organismos presentes no oceano. Tentar
prudência de selecionar pintores menos estudar o oceano através de uma gota
representativos da estética do seu tempo, d’água ... Essa foi, aliás, a proposta de Le
como por exemplo Hieronymus Bosch Roy Ladurie em seu famoso “Montaillou,
(c.1450-c.1516) e Pieter Bruegel, o Velho uma vila occitânica”23. Montaillou era

23
LADURIE, Le Roy. Montaillou, uma aldeia occi-
22
BARDIN, op.cit, p.97. tânica. Lisboa: Edições 70, 1990.

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uma aldeia de camponeses do sudoeste trazem o camponês sobre si mesmo”26.
da França, em que a heresia cátara teve Tal como observa Peter Burke, “os alde-
influência considerável em princípios do ões depunham em occitanês e seus tes-
século XIV. Vinte e cinco dos heréticos temunhos eram escritos em latim. Não
locais (10% da população) foram proces- era uma conversa espontânea sobre si
sados e punidos pela Inquisição24. Os re- mesmos, mas respostas a questões sob a
gistros daqueles interrogatórios consti- ameaça de torturas”. “Os historiadores”,
tuíram precisamente a base documental acrescenta, “não podem permitir-se es-
de Le Roy Ladurie, que tal como observa quecer esses intermediários entre si e os
Peter Burke em seu ensaio sobre a Esco- homens e mulheres que estudam”27.
la dos Annales (1990), tratou-os como Em todo o caso, “Montaillou” per-
se fossem gravações de um conjunto de manece como um exemplo magistral de
entrevistas. Reordenando a informação como um historiador pode se aventurar
fornecida pelos suspeitos aos inquisido- a reconstituir toda uma sociedade a par-
res, Ladurie reconstituiu tanto a cultura tir de um corpus documental perfeita-
material como a mentalidade dos alde- mente adequado ao seu problema. Como
ões. Um pequeno conjunto de depoi- ilustração final, registramos um trecho
mentos, homogêneo no que se refere à da obra de Le Roy Ladurie. Nele o his-
sua produção, e representativo no que se toriador revela toda a sua capacidade de
refere aos aspectos que Ladurie preten- extrair, de um simples fragmento docu-
deu estudar, permitiu-lhe reconstituir mental, informações que vão desde a cul-
algo do que foi a aldeia inteira. E, mais tura material da aldeia de Montaillou até
do que isto, a reconstituição dos aspec- os modos de pensar e de sentir de seus
tos da vida cotidiana daquela aldeia lhe habitantes, passando pelas convenções
possibilitou atingir não a história de uma associadas às relações de parentesco:
aldeia particular, mas o retrato de uma
sociedade mais ampla, que os aldeãos “Um dia [conta Guillemette Clergue,
cujo marido é violento] eu precisava de
representavam, embora dentro de sua
pedir emprestados alguns pentes para
singularidade25.
pentear o canhâmo e fui, para esse efei-
É verdade que certos aspectos do to, a casa de meu pai. E, quando aí che-
tratamento dado por Ladurie às suas guei, encontrei o meu irmão que tirava
fontes foram criticados – sobretudo a o esterco de casa. E perguntei ao meu
sua afirmação de que se tratava de “tes- irmão:
— Onde é que está a senhora minha
temunhos sem intermediários, que nos
mãe?
— E que lhe quereis? replicou ele.
— Quero alguns pentes, disse eu.
24
BURKE, Peter. A escola dos Annales — 1929 -
1989: a Revolução Francesa da Historiografia.
São Paulo: UNESP, 1991, p.96. 26
LADURIE, 1990, p.9.
25
BURKE, op.cit., p.96. 27
BURKE, op.cit., p.97.

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— A nossa mãe não está aqui, concluiu mo sem uma intencionalidade cons-
o meu irmão. Foi à água. Só voltará da- ciente), são também “monumentos”:
qui a um bom bocado.
foram construídos para transmitir
Não acreditei no meu irmão e tentei en-
trar em casa. Então, o meu irmão pôs o uma determinada imagem social,
braço defronte da porta e impediu-me para atender a determinados interes-
de entrar (I, 337). ses sociais ou políticos, para impor
uma certa direção ao olhar. O docu-
Comentário de Ladurie: “Texto no- mento que hoje o historiador examina
tável! A porta é estreita; foi barrada por como fonte para o seu estudo histó-
um simples braço de homem: a porta rico, um dia foi monumento através
cheira a esterco; Alazais Rives, a mãe, do qual aqueles que o escreveram ou
é aguadeira da domus do seu homem, produziram procuraram impressio-
como todas as outras. Isto não impe-
nar, manipular, convencer, mover,
de que esta mamã muito vulgar tenha
comover outros homens de sua pró-
o direito ao título de Senhora (“minha
pria época (ou mesmo as gerações fu-
senhora”!) por parte de sua filha Guille-
turas). Esta intencionalidade de agir
mette Clergue. Esta família é, por outro
sobre o outro através do documento
lado, um ninho de escorpiões; os laços
como se este fosse um monumento,
são no entanto ritualizados. O irmão tra-
pode ser intencional em diversos ní-
ta por vós a irmã, o que não o impede de
veis, mas também é possível acom-
ser brutal para com ela.”28.
panhar Le Goff quando este menciona
uma “intencionalidade inconsciente”30.
A identificação do lugar de
produção da fonte histórica É preciso então compreender, ou mes-
mo desconstruir passo a passo, essa
Um dos principais procedimentos dimensão monumental que se inscreve
para a análise do documento, como tão no documento – esta dimensão atra-
bem assinalou Jacques Le Goff em seu vés da qual os homens de uma época
artigo “Documento/Monumento” , 29
é falam conscientemente ou inconscien-
a desconstrução da monumentalidade temente aos seus contemporâneos (e,
nele implícita – uma monumentalidade consequentemente, falam também aos
que nos chega da própria época de pro- historiadores). O primeiro passo, por-
dução do próprio documento. Boa parte tanto, é a identificação de um lugar de
dos documentos produzidos intencional- Produção relacionado à fonte histórica
mente, com uma finalidade (ou mes- – um contexto complexo que produz o
documento em sua monumentalidade,
28
LADURIE, 1990, p.252. e que cabe ao historiador decifrar, um
29
LE GOFF, Jacques. « Documento / Monumento »
In LE GOFF, Jacques. História e memória. Cam-
pinas: Unicamp, 1990. p.547. 30
LE GOFF, op.cit., p.547.

418 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012


pouco à maneira do psicanalista que das Sociedades de Cultura Francesa, re-
preside à decifração de seu paciente 31. alizado em 1975:
Deve-se lembrar, antes de tudo, que
a Contextualização constitui um aspec- “O documento não é inócuo. É antes
de mais nada o resultado de uma mon-
to fundamental para a compreensão da
tagem, consciente ou inconsciente, da
fonte histórica. Tanto quanto possível, é
história, da época, da sociedade que o
necessário levantar a ‘história da fonte, produziram, mas também das épocas
enquanto texto’, sendo também útil le- sucessivas durante as quais continuou a
vantar a ‘história da fonte, enquanto do- viver, talvez esquecido, durante as quais
cumento material’ (se for o caso). Diga- continuou a ser manipulado, ainda que
pelo silêncio”33.
-se de passagem, para o caso das fontes
de arquivo, mas também de outros tipos,
Já com relação à história da fonte en-
vale lembrar as palavras de Marc Bloch:
quanto texto produzido em determinada
“Não obstante o que parecem pensar os época, esta estende-se até o momento em
principiantes, os documentos não apa- que esta fonte foi produzida, isto é, até o
recem, aqui e ali, pelo efeito de qualquer momento que corresponde ao seu contex-
imperscrutável desígnio dos deuses. A to mais imediato. Para compreender este
sua presença ou a sua ausência nos fun-
contexto em todas as suas implicações,
dos dos arquivos, numa biblioteca, num
terreno, dependem de causas humanas
partiremos da noção de que todo texto,
que não escapam de forma alguma à seja qual ele for, tem um emissor (aquele
análise, e os problemas postos pela sua que produz o texto), um objeto (a men-
transmissão, longe de serem apenas sagem que é transmitida) e um receptor
exercícios de técnicos, tocam, eles pró- (aquele a quem a mensagem se destina)34.
prios, no mais íntimo da vida do passa-
Este triângulo, aparentemente tão
do, pois o que assim se encontra posto
em jogo é nada menos que a passagem
simples, traz em si complexidades que
da recordação através das gerações”32 desde logo ficarão claras. Apenas para co-
meçar, lembremos que o emissor de um
A estas palavras Jacques Le Goff e discurso nunca é somente o seu autor no-
Pierre Toubert acrescentam algo, na re- minal, mas também a sociedade na qual
visão da noção de documento histórico ele se inscreve, a sua posição social, os
proposta no 100° Congresso Nacional constrangimentos aos quais ele está sub-
metido, e tantas outras coisas que fazem
do autor nominal apenas a ponta de um
31
Mais adiante, Le Goff acrescenta: “O documento
é monumento. Resulta do esforço de sociedades imenso iceberg. Chamaremos a este com-
históricas para impor ao futuro – voluntaria ou
involuntariamente – determinada imagem de si
plexo conjunto que se esconde por trás do
próprias. No limite, não existe documento-ver- autor de um texto de “lugar de produção”.
dade. Todo documento é mentira, Cabe ao histo-
riador não fazer o papel de ingênuo” (LE GOFF,
1990, p.548). 33
LE GOFF, op.cit., p.547.
32
BLOCH, op.cit, p.29-30. 34
BARDIN, op.cit., p.170.

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 419


A época Europa da 2ª Guerra”. São expressões
que têm sua validade para determinadas
Definiremos o “lugar de produção” questões, mas não para todas – já que
de um texto a partir de um grande con- rigorosamente são construções arbitrá-
junto de coordenadas que principia com rias do historiador, ainda que úteis ou
a sua própria época. Às vezes é possível
inevitáveis. É conhecida a querela em
identificar certo conjunto de caracterís-
torno do conceito de “mentalidade cole-
ticas que abarca sociedades diversifica-
tiva”. Até que ponto é possível falar em
das em um determinado período: por
um “homem medieval”, enquanto uma
exemplo, o mundo feudal em boa parte
designação que dê conta de seus modos
ocidente europeu medieval, a cultura re-
nascentista no mesmo recorte espacial de pensar e de sentir, de suas visões de
no período seguinte. Assim, certas carac- mundo predominantes, de seu conjun-
terísticas mais amplas – produtos da in- to de valores? Até que ponto é legítimo
teração e do diálogo entre várias culturas saltar por sobre as especificidades re-
e sociedades – habilitam a falar em uma gionais, ou ignorar as nuanças internas
“sociedade feudal” ou em um “homem ao ocidente europeu medieval? Não há
renascentista”, antes de aprofundar o uma resposta definitiva a estas ques-
olhar em direção ao feudalismo francês, tões. Na verdade, a aplicabilidade da-
ao feudalismo ibérico, ao renascimento quelas expressões abrangentes depende
italiano ou à cultura renascentista dos
do próprio objeto de minha pesquisa,
Países Baixos. Se pretendo, por exemplo,
do problema que tenho em vista, das
estudar a França ou a Alemanha da vi-
hipóteses que orientam minha reflexão
rada da década de 40, antes de me deter
historiográfica. Se a época é o primeiro
em cada estudo de caso devo considerar
interferente a ser considerado na deter-
uma situação mais ampla: uma Europa
convulsionada pela 2ª Grande Guerra, minação do “lugar de produção” de um
na medida em que este conflito interfe- texto, decorre daí a necessidade de o his-
riu em cada um dos países europeus. Ou toriador estabelecer com toda a precisão
seja, uma sociedade dificilmente está iso- possível a data (e o lugar geográfico) do
lada de outras, e por vezes há situações documento. Boa parte dos documentos
estruturais e conjunturais que as abar- textuais já se apresentam ao historiador
cam. previamente datados, enquanto em ou-
É claro que esta coordenada mais tros há que se proceder a esta datação, ou
ampla, a coordenada da época, requer corrigir a data que uma primeira crítica
muitos cuidados por parte de um histo-
externa colocou em dúvida.
riador. Deve-se sempre relativizar con-
Outro aspecto relativo ao proble-
ceitos generalizadores como “o homem
ma da identificação e caracterização
medieval”, “o homem renascentista”, “a

420 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012


da época em que foi produzido o docu- seus centuriões, e lavradores dos seus
mento histórico, é que nem todo o texto campos, e segadores de suas meses, e
tem apenas um só lugar de produção em fabricantes de suas armas e carroças. E
termos cronológicos. Por vezes há um fará de vossas filhas suas perfumadeiras,
imbricado de épocas e autores que atu- e cozinheiras, e padeiras. Tomará tam-
aram na produção do texto definitivo. bém o melhor dos vossos campos, e das
Tomaremos como exemplo significativo vossas vinhas, e dos vossos olivais, e dá-
o conjunto das diversas narrativas bíbli- -los-á aos seus servos. E também tomará
cas. Textos como o Samuel ou o Reis I e o dízimo dos vossos trigos, e do rendi-
II apresentam, além de seu autor princi- mento das vinhas, para ter o que dar aos
pal – que por sinal já construiu sua nar- seus eunucos e servos. Tomará também
rativa baseando-se em documentos mais os vossos servos e servas e os melhores
antigos – mais dois ou três autores pos- jovens, e os jumentos, e os empregará no
teriores e outros tantos compiladores. seu trabalho. Tomará também o dízimo
Desta forma, trata-se de um discurso que dos vossos rebanhos, e vós sereis seus
sofreu alterações e interpolações. Assim servos” (I Samuel VIII, 11-17)
sendo, um historiador não pode se pôr a
refletir seriamente sobre uma narrativa Eis aqui uma profecia em que o
bíblica sem indagar pelos seus lugares de profeta Samuel parece antecipar ad-
produção do discurso, caso contrário sua miravelmente algumas medidas que
leitura será pouco menos ingênua que a de fato se verificariam no governo de
de um fiel devoto que se ponha a meditar Salomão, setenta anos depois, como
sobre o texto sagrado em uma manhã de o alistamento militar compulsório, o
culto dominical.
trabalho forçado nas grandes obras, e
Um exemplo prático poderá ilus-
a tributação excessiva. Contudo, alguns
trar o problema. O livro Samuel, que nos
estudiosos têm poucas dúvidas em
fala dos reis Saul e Davi, tem por objeto
atribuir a profecia a uma interpolação
o período anterior ao do livro seguinte
de um dos dois autores posteriores do
– Reis – que conta a história a partir de
970 a.c. com Salomão e seus sucessores. livro de Samuel, talvez aquele que es-
A certa altura da narrativa sobre Samuel creveu já de depois do exílio babilôni-
encontramos a seguinte profecia sobre co, cerca de quatrocentos anos depois
Salomão, que é posta na boca do profeta: do primeiro autor do livro. Neste caso,
o trecho deixa de ser profecia para se
“É desta forma que o rei vos governa- tornar uma crítica à instituição da re-
rá: tomará os vossos filhos e os porá aleza, produzida depois de uma longa
nas suas carroças, e fará deles moços sucessão de fracassos que culminariam
de cavalos, e correrão adiante dos seus
como saque de Jerusalém em 587 a.C.
coches, e os constituirá seus tribunos, e

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 421


422
1
CLASSE SOCIAL
9
2
Perfil Cultural
8 CATEGORIA SOCIAL
(dentro da classe)
Posição na
Categoria Profissional

POSIÇÃO SOCIAL 3
ou ‘Perfil Social’
CATEGORIA (do Emissor FAMÍLIA
ou
PROFISSIONAL ou do
LINHAGEM
Autor do Discurso)
7

POSIÇÃO FAMILAR
SITUAÇÃO ECONÔMICA (Posição Patrimonial,
ramo familiar, etc...)
6 4
STATUS SOCIAL
Quadro 2: A posição social do autor ou do emissor do discurso

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012


A sociedade, a instituição, o lugar camente localizada, mas também dentro
teórico, a posição social de um ambiente social que caberá ao
historiador definir a partir do exame das
A época é apenas uma primeira luz muitas coordenadas que o determinam.
geral, por assim dizer, que se espalha É diferente escrever de uma universida-
pelo texto historicamente produzido por de medieval, da corte de um monarca
um autor. Para além dela, o autor e seu centralizador, de uma corte senhorial, da
texto também estão inscritos em uma so- instituição eclesiástica, ou da masmorra.
ciedade, uma instituição, um lugar meto- Todos estes ambientes se inserem a prin-
dológico, estético, filosófico (Quadro 2). cípio dentro de uma sociedade medieval
Em outras palavras, há grandes linhas mais ampla, mas começam a se opor no
que interagem nas condições de sua pro- momento seguinte da investigação histo-
dução textual e na constituição de seu riográfica.
universo mental. O “homem medieval” Da mesma forma, um mosteiro be-
é uma construção útil de pensamento, neditino defende uma determinada posi-
mas que se dissipa no momento em que ção dentro da instituição eclesiástica que
dirigimos o olhar para as especificidades é radicalmente distinta da posição defen-
regionais e para as estruturas de “curta dida pela abadia cisterciense. E dentro
duração” que se inscrevem na “longa du- de cada abadia ou mosteiro, deveríamos
ração medieval”. Assim que, a “sociedade em um segundo momento isolar a posi-
medieval ibérica” irá diferir em diversos ção institucional do monge comum e do
aspectos da “sociedade medieval fran- Abade. Além disto, um autor participa de
cesa”. Ou que, dentro da idéia de uma um determinado circuito de posições es-
“sociedade medieval ibérica”, Portugal téticas, filosóficas ou metodológicas que
se distinguirá de Castela. Ou ainda: será contrasta, por ventura, com as de um
possível em um momento posterior de contemporâneo pertencente a uma ou-
aprofundamento identificar as distinções tra corrente de pensamento. Assim que,
fundamentais entre o Portugal do século dentro do pensamento iluminista fran-
XIII e o Portugal do século XIV; se qui- cês do século XVIII, iremos encontrar
séssemos, entre a região da Beira e a re- subcorrentes várias, umas defendendo
gião do Minho. um maior ou menor grau de empirismo
Mais ainda, uma determinada so- dentro da investigação científica, outras
ciedade comporta uma multiplicidade de com uma maior influência do racionalis-
ambientes internos. Podemos por exem- mo cartesiano; umas inteiramente mate-
plo refletir sobre as distinções entre o rialistas, outras deístas; e, dentro deste
meio rural e o meio urbano, ou entre a último grupo, umas deístas clericais e
corte régia e as cortes senhoriais da Fran- outras deístas explicitamente anticleri-
ça do Norte. O lugar de um autor está não cais. Em Voltaire temos uma clara pri-
apenas dentro de uma sociedade histori- mazia do empirismo, enquanto que em

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 423


Montesquieu já identificamos uma maior tegorias dentro do estamento “nobreza”),
esforço de síntese entre o empirismo e o mas também de sua “posição econômica”
racionalismo cartesiano; nos materialis- (havia nobres abastados e nobres empo-
tas empíricos como Condillac o ateísmo brecidos), de sua “posição linhagística”
é explícito, ao passo que Voltaire já ex- (havia linhagens de alta a baixa estirpe),
pressa algo como um deísmo anticlerical. de sua “posição dentro da linhagem” (um
Para além disto, deveríamos iden- homem podia pertencer a uma linhagem
tificar a “posição de classe” de cada um por linha bastarda), de sua posição den-
destes iluministas franceses; distinguir tro do universo familiar (ser um primo-
por exemplo o “barão” Montesquieu do gênito em certas sociedades medievais
Voltaire “descendente da pequena no- era radicalmente diferente de ser um “fi-
breza” ou do Diderot, filho de um simples lho segundo”, já que era o primeiro que
cuteleiro. E fazer isto não meramente recebia a herança). É todo este conjunto
para acrescentar um dado bibliográfico, de coordenadas sociais a que chamare-
mas para entender estas “posições so- mos a “posição social” de um indivíduo.
ciais” como fatores interferentes na pro- Tudo o que foi dito aqui com rela-
dução do discurso de cada um dos seus ção à identificação do autor de um texto
autores. A “posição social” não deve ser é imediatamente aplicável também para
compreendida ingenuamente, como um os personagens que aparecem no texto
dado isolado e absoluto que aprisiona o deste autor. Não devemos aceitar neces-
autor dentro de um determinado ponto sariamente as opiniões de um autor para
da hierarquia social. É preciso pôr o ex- com os homens que toma com objeto
trato social a dialogar com os objetivos de sua reflexão (o que Voltaire pensa de
do autor quanto à sua inserção na hie- Rousseau, por exemplo). Antes, devemos
rarquia social. Ele pode ser conformado proceder ao nosso próprio levantamen-
com seu extrato social, ou crítico com to — se possível utilizando outras fontes
relação a ele; neste último caso, pode ter — para depois pôr em diálogo a perso-
desenvolvido ao longo de sua vida deter- nagem que construímos e a personagem
minadas pretensões de inserção em um que foi construída pelo autor.
ambiente social que a princípio lhe foi
vedado, ou pode engajar-se em uma re- Textos que interferem no texto
volução.
A classe ou segmento social é ape- Não apenas a época, a sociedade e
nas uma categoria generalizante, que o a posição do autor interagem no “lugar
historiador deve utilizar ou criticar con- de produção de um texto”, mas também
forme as suas próprias necessidades. “outros textos”, uns utilizados conscien-
Um nobre do final da Idade Média, por temente pelo autor, outros atuando sem
exemplo, deve ser avaliado não apenas a a sua perfeita compreensão disto. Cha-
partir do extrato a que pertence (subca- maremos a este fenômeno de “intertex-

424 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012


tualidade” e o discutiremos posterior- ciclo de Elias e do ciclo de Isaías, pos-
mente. Intertextualidade é o diálogo, ou sivelmente escritas não mais no am-
a relação dialógica, que se estabelece en- biente das cortes mas dos profetas 37.
tre vários textos. O “lugar de produção” Esta imensa variedade de “textos
de um texto é também formatado pelo por trás do texto” pode nos dar uma
intercurso de outros textos. idéia do material a partir da qual o
Voltaremos ao exemplo das narrati- primeiro redator escreveu o livro dos
vas bíblicas. Tomemos o livro Reis I Reis. Ela nos coloca diretamente dian-
e II. À parte a já mencionada consta- te do problema de que nenhum autor
tação de que algumas destas narrati- escreve um texto a partir do nada.
vas bíblicas possuem diversos autores Freqüentemente ele trava diálogos
– uns interpolando novos trechos de com textos anteriores: ou de maneira
discurso naqueles que já haviam sido explícita – como foi o caso que aca-
produzidos por autores anteriores, bamos de discutir – ou de maneira
outros empreendendo modificações implícita, por vezes até sem o próprio
mais ou menos substanciais – consi- autor se dar conta disto. Um homem,
deraremos ainda que alguns daqueles já se disse, “é muito mais filho de seu
tempo do que de seus próprios pais”,
relatos foram produzidos a partir de
e neste sentido está sempre em per-
fontes pré-existentes. Consideremos
manente diálogo com sua época. Mas
os documentos anteriores, crônicas uma época também está em perma-
perdidas, dos quais se valeu o pri- nente diálogo com as suas anteriores,
meiro redator do livro de Reis. São e isto também se inscreve no diálogo
mencionados explicitamente no livro, intertextual de um autor.
quase como um historiador que cita É somente depois de examinar
estes autores ocultos que se inscre-
suas fontes, alguns desses livros per-
vem nos autores principais – sobre-
didos: o Livro dos Atos de Salomão
tudo no caso de obras de pretensões
(1Rs 11,4l), possivelmente escrito du- historiográficas – e as demais épo-
rante o reinado de Salomão entre 970 cas que se insinuam por debaixo
e 931 a.c., o livro dos Anais dos Reis da sua época, que podemos refletir
de Israel e o livro dos Anais dos Reis
35 sobre o autor ou autores explíci-
de Judá , posterior ao cisma que em
36 tos. No caso do primeiro e princi-
pal redator de Reis, para continuar
931 dividiu os reinos do norte e do
o nosso exemplo, assinalamos que
sul. Outras fontes não mencionadas
ele escreve contemporaneamente à
também são perceptíveis, como as do

35
citado dezoito vezes, entre 1Rs 14, 19 e 1Rs 15, 31. 37
DELORME, J. Introduction à la Bible. Paris: Des-
36
citado quinze vezes entre 1Rs 14, 29 e 2Rs 24, 25. clée, 1969, p.445.

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 425


Reforma Deuteronomista de Josias depois do exílio babilônico, que já refor-
em 631 a.c., provavelmente de um mulam a primeira redação em função da
meio sacerdotal . A reforma deute-
38
catástrofe de 586 a.c..
ronomista apresenta como dois aspectos Completamos, assim, um rastrea-
fundamentais o rigor quanto às questões mento dos diversos fatores que fundam
da unicidade de culto e da unicidade do o lugar de produção de um discurso:
lugar do culto. Precisamente, a luz ge- Temporalidade, Sociedade e situação
ral que atravessa o livro de Reis é esta: do autor no que se refere às posições so-
a sucessiva avaliação de todos os reis, de cial, institucional, estética, metodológica
Salomão ao exílio, conforme o grau com – além de toda uma intertextualidade
que eles se afastam ou se aproximam que circunda o autor e seu texto. Tudo
destes dois preceitos fundamentais. Ou isto posto em uma relação interativa que
seja, um rei é tanto pior quanto mais fa- cabe ao historiador decifrar e interpretar
cilmente permite a pluralidade de cultos à luz das circunstâncias de produção do
ou o enaltecimento de outros lugares de discurso.
culto que não Jerusalém. Desta forma, a
referência padrão é o rei Davi, unificador Ultrapassando a superfície das
do culto e conquistador de Jerusalém, e fontes
o antimodelo é Jerobão, que mais permi-
tiu a pluralidade de cultos e incentivou a Em certo trecho de seu ensaio Como
diversidade de lugares santos . Portanto,
39
se Escreve a História, publicado em 1971,
o que faz o primeiro redator de Reis é se Paul Veyne registra um conselho que de-
apropriar de toda uma série de textos an- veria ser recorrente para o aprendizado
teriores e produzir deles uma nova leitu- da prática historiográfica: Não se pode
ra, consoante os seus próprios interesses contentar com as opiniões e interpreta-
(de sua época, sociedade, instituição). O ções – a mesmo com as escolhas de con-
seu novo texto é gerado a partir do diálo- teúdo – que se dão no interior do grupo
go entre o momento em que ele mesmo no qual o fenômeno estudado ocorre40. Se
se inscreve e aquela série de textos ante- todas as etapas e dimensões da operação
riores. E a contribuição final a este diá- historiográfica são atravessadas por sub-
logo é acrescentada pelos dois redatores jetividades e intersubjetividades que en-
posteriores do livro, um durante e outro volvem o objeto histórico e o sujeito que
produz o conhecimento historiográfico,
38
Em que pese uma grande controvérsia a respeito, esta é a ingenuidade mais irredutível que
baseamo-nos nas conclusões da maior parte dos
não se torna mais aceitável nem mesmo
autores modernos, entre os quais: DE VAUX, R.
Les Livres de Rois. Paris: 1958; PFEIFFER, R. pelo mais positivista dos historiadores:
H. Introduction to the Old Testament. Londres:
Harper & Brothers, 1941; e SNAITH, N. H. Old
Testament. Oxford: T & T Clark, 1951.
39
BALLARINI, T. Introdução à Bíblia. Petrópolis: 40
VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Brasí-
Vozes, 1976. v. II/2, p.169. lia: UNB, 1982 [original: 1971], p.105.

426 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012


há que se ultrapassar a superfície das necessidade “não julgar”, mas sim “com-
fontes, este lugar no qual, ainda mais do preender”.
que qualquer outro, a imersão dos ho- Se o juiz é aquele que profere ve-
mens em sua própria época torna-se ex- redictos, condenando e absolvendo – e
plícita. Poucos pecados são tão rejeitados este gesto está certamente vedado ao his-
para um historiador como o de reduzir- toriador, como tão bem ressaltou Marc
-se não-criticamente à opinião que fa- Bloch41 – por outro lado o juiz também
ziam de si mesmos os próprios homens é aquele que confronta depoimentos,
de uma época ou de um contexto históri- que os contrasta, que os põe a se ilumi-
co. Estas opiniões devem ser tratadas an- narem uns aos outros, que os denuncia
tes de tudo como materiais, como acon- como perspectivas pessoais com vistas
tecimentos a serem analisados. a construir uma perspectiva mais plena,
Carlo Ginzburg, sempre um mes- que é a do juiz, mas também a do histo-
tre no tratamento de fontes históricas, riador. O confronto entre fontes, ou mes-
estabelece em um livro recente uma mo entre um ponto do discurso e outro
interessante analogia entre “O Juiz e o ponto que o contradiz, seja explícita ou
Historiador”, sendo este também o tí- implicitamente, faz parte certamente
tulo de seu ensaio. Se em outras obras do mais simples repertório de ações do
Ginzburg comparara o historiador ao historiador diante da documentação que
detetive criminal, para chamar atenção sua problemática levou a interrogar. Si-
para o “paradigma indiciário” aplicado tuar a fonte em uma rede intertextual ou
ao tratamento das fontes, e em uma se- contextual equivale a nelas introduzir
gunda obra evocara a analogia entre as uma profundidade não apenas útil, mas
figuras do Inquisidor, do Antropólogo e necessária ao historiador.
do Historiador – agora com vistas a es-
clarecer aspectos relacionados à análise Considerações finais
de fontes dialógicas – em “O Juiz e o
Historiador” Ginzburg pretende reforçar Considerar as fontes históricas
a necessidade historiográfica de buscar em relação ao lugar onde foram produ-
confrontações externas às fontes (por zidos, ou ao seu “lugar de produção”,
exemplo, através da comparação de uma é uma questão fulcral para o trabalho
fonte com outras, ou do seu exame con- do historiador. Esse lugar, como se viu
tra o fundo de outras séries de dados e neste artigo, é atravessado por questões
evidências). É neste sentido que o micro- diversas – que vão da inscrição em uma
-historiador italiano evoca a imagem do sociedade e em um tempo à rede de in-
juiz, e não certamente no sentido que tertextualidades que afetou a produção
estava por trás das assertivas proferidas
por Marc Bloch em sua Apologia da His-
41
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Ja-
tória, postumamente publicada, sobre a neiro: Jorge Zahar, 2001, p.125.

Cad. Pesq. Cdhis, Uberlândia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 427


do discurso veiculado pelas fontes, en- Referências bibliográficas
tre outras questões que também foram
consideradas. Outrossim, é claro que o BALLARINI, T. Introdução à Bíblia. Pe-
texto que o historiador produz pode ser trópolis: Vozes, 1976. v. II/2.
ele mesmo considerado como fonte para
um outro tipo de análise, e aqui adentra- BARDIN, Laurence. Análise de conteú-
do. Lisboa: Edições 70, 1991.
ríamos este campo da teoria da história
que se convencionou chamar de historio-
BLOCH, Marc. Apologia da História.
grafia – no sentido de que se empreende
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 [origi-
aqui uma análise do próprio trabalho do
nal publicado: 1949, póstumo] [original
historiador. da produção do texto: 1941-1942].
O historiador, acima de tudo, é ele
mesmo histórico, e, portanto, está igual- BOURDIEU, Pierre e PASSERON, J.C.
mente sujeito a uma inscrição no seu La reproduction. Eléments pour une
próprio “lugar de produção”. Conforme théorie du système d’enseignement. Pa-
ris: Minuit, 1970.
pontuamos no início deste artigo, esta
questão, igualmente primordial, remete-
BURKE, Peter. A escola dos Annales
ria a uma outra ordem de considerações, –1929-1989: a Revolução Francesa da
que não foi o objetivo mais específico Historiografia. São Paulo: UNESP, 1991.
deste artigo, embora a tenhamos pontua-
do em certo momento. Entender o “lugar CERTEAU, Michel de. “A operação histo-
riográfica”, in: A escrita da História. Rio
de produção”, enfim, mostra-se impres-
de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
cindível tanto para a prática histórica
p.16-48 [original: 1974].
como para a prática historiográfica – esta
última compreendida como o âmbito no DELORME, J. Introduction à la Bible.
qual se estabelece uma reflexão sobre os Paris: Desclée, 1969.
modos como se desenvolve a operação
historiográfica e sobre o próprio texto DILTHEY, Wilhelm. A construção do
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