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C O N S C I Ê N C I A HISTÓRICA
Sara Albieri
1. A expressão foi consagrada por Pierre Nora, historiador francês contemporâneo, que dirigiu a obra
Les lieux de mémoire, três volumes destinados a fornecer um inventário dos lugares e objetos nos quais
se encarna a memória nacional francesa.
22|Introdução à História Pública
da nação alemã, concluído nas últimas décadas do século XIX. Com efeito, a cons-
trução da identidade nacional alemã de início não vem das fronteiras desenhadas
e nem de um poder político único. Ela é reivindicada, sobretudo por intelectuais,
a partir da unidade da língua e da cultura, e é conduzida por uma historicidade
peculiar - do "espírito do povo" - aquela dos usos e costumes, dos modos de
habitar o espaço, de pensar o mundo, que caracterizam muito mais uma história
da sociedade e da cultura do que os métodos da historiografia política, na época
em ascensão nas academias. É preciso então desenvolver as artes do intérprete
para ler, nas marcas da ação humana sobre o mundo físico, os sinais simbólicos
das intenções do espírito, dos projetos que recriam a cada vez a ordem das coisas,
reinventando o passado e visando sempre o futuro. A proposta acadêmica para a
unificação alemã é fundada sobre uma hermenêutica da cultura.
É certo que o processo de formação dos estados nacionais foi, em geral,
acompanhado do empenho em reunir um cabedal de memória coletiva, justa-
mente para legar a cada nação seu patrimônio histórico. A construção de um
passado, nos estados nacionais, é uma atividade constante de fundação mítica,
de justificação de fronteiras e de legitimação de governos. E quem recebe essa
herança histórica junto com a nacionalidade é instado a reconhecê-la sob a forma
material de nomes, datas, lugares, episódios, cores. Relatos expressos em signos
que podem ser percebidos pelos sentidos, reconhecidos visualmente, podem ser
tocados: a história dos heróis, dos pais fundadores, das grandes guerras, dos epi-
sódios de independência e de libertação, das proclamações, das bandeiras e dos
hinos, é oferecida como um leque de ícones palpáveis.
Mas a manifestação da consciência histórica se dá culturalmente; ela é pré-
via e mais fundamental que os símbolos sensórios que se impõem à imaginação
coletiva para a constituição de memórias históricas determinadas. Ela evoca uma
condição primeva da humanidade, aquela de organizar historicamente a experi-
ência do mundo. Segundo esse pressuposto, a prática histórica seria muito mais
do que decorar os nomes do passado, ou tentar reproduzir, de um jeito verbal ou
gestual ou através de rituais, esse patrimônio. É algo que condicionaria o modo
próprio do homem de estar no mundo, anterior e mais fundamental que a forma-
ção de conhecimentos históricos específicos.
Nos anos recentes, Reinhart Koselleck e Jörn Rüsen trataram da experiência
do tempo e de sua tessitura de intenções e expectativas, constitutivas das ações
História pública e consciência histórica I 27
humanas. Ela está inscrita no modo de o homem se colocar diante das coisas, de
agir social ou culturalmente. Os pensadores alemães contemporâneos, que her-
daram essa categoria da consciência histórica pensada e desenvolvida em muita
literatura acadêmica, comentam, por exemplo, a questão dos ditos "povos sem
história". Trata-se de uma ideia posta em voga pela historiografia do século XIX,
aquela que se tornou uma área disciplinar na Academia e que formou os pressu-
postos das escolas históricas até os dias de hoje. Tudo se teria passado como se só
a Europa tivesse buscado sua história; assim, se a Europa colonizou outros con-
tinentes, esses povos teriam sua história contada conforme a tradição cultural
europeia. Ademais, essa tradição seria também aquela que dita o modelo do his-
toriar, daí a suposta ausência de qualquer história em outras culturas e tradições.
O interessante é que, mesmo com a revisão desse modelo historiográfico, já em
curso há algumas décadas, e com a consequente valorização das culturas que fi-
caram à margem desse historiar, continua a parecer adequado falar desses povos
com qualquer outro vocabulário, menos aquele da história. Ou seja, trocam-se os
valores - de positivo para negativo - mas permanece a concepção de que, frente
a essas culturas, estamos diante de algo externo ao historiar, que, contudo, deve
ser levado a sério, embora com outros métodos.
Ora, a ideia de consciência histórica permite empreender a interpretação
das diferentes culturas segundo um principio universal dado na condição hu-
mana. Trata-se então de historiar os diferentes povos a partir de suas manifes-
tações: mitos de origem, narrativas de memória e genealogias de famílias estão
entre as múltiplas formas de dar sentido às coisas no tempo. Tais manifestações
também fazem parte do cotidiano: os álbuns de família, as memórias de infância
e as narrativas dos antepassados constituem outros tantos modos de historiar,
plenos de mitos e ritos. Quando se faz ciência, o historiar metodiza e corrige o
cabedal da memória - sentimentos e documentos - para organizá-lo numa nar-
rativa raciocinada. Mas a historiografia não teria objeto se, antes, este não fosse
dado na consciência histórica.
O recurso à noção de consciência histórica permite fundamentar filosofica-
mente a passagem da história acadêmica para a história pública. Trata-se de uma
visão teórica, que reconhece na condição humana o pressuposto histórico: pen-
samos e falamos historicamente, e esse é o modo pelo qual nos posicionamos na
cultura. Assim identificamos o mundo ao nosso redor, assim construímos nossa