Você está na página 1de 279

Proibida a reprodução total ou parcial dos textos desta obra

sem prévia autorização do seu autor.


Direitos reservados.

As ideias aqui expressas são de inteira responsabilidade do autor e não


refletem necessariamente a opinião da editora.

Ficha técnica
Edição e arte final: Luciano Becalete
Assessoria editorial: Fabiana Lourenço Becalete
Assessoria bibliotecária: Maurício Amormino Jr.
Imagem de capa:"Contra-ataque", de Lia Testa (colagem analógica, 2019).

Obra catalogada conforme regem as normas editoriais.


O conteúdo desta obra foi liberado e autorizado para fechamento mediante
verificação dos arquivos finais pelo autor e/ou seu responsável legal.
SUMÁRIO

PREFÁCIO ............................................................................................................................... 9
APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 13

PARTE 01 – ENSINO DE HISTÓRIA E IMAGENS .......................................................... 17


01. VISUALIDADES NO LIVRO DIDÁTICO: COMPOSIÇÃO E MONTAGEM .......... 18
Heloisa Selma Fernandes Capel
02. AS MULHERES NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA .......................................... 27
Priscila Cabral de Sousa
Vera Lúcia Caixeta
03. O USO DO FILME COMO RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO DE HISTÓRIA:
UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS-
EJA....................................................................................................................................... 48
Eliane Leite Barbosa Bringel

PARTE 02 – ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS-


EJA........................................................................................................................................... 63
04. ENSINO DE HISTÓRIA DAS MULHERES: EXPERIÊNCIA NA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS - EJA EM IMPERATRIZ-MA ......................................................... 64
Jucileide da Silva Almeida
05. A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE HISTÓRIA NA
EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM ARAGUAÍNA-TO. ................................... 78
Laila Cristine Ribeiro da Silva
Vera Lúcia Caixeta

PARTE 03 – O ENSINO DE HISTÓRIA E AS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS ........ 100


06- VOZES, CORPOS E SABERES DO MACIÇO: UM PROJETO DE INTERVENÇÃO
DIDÁTICA ........................................................................................................................ 101
Karla Andrezza Vieira
07. DECOLONIALIDADE E PERSPECTIVA NEGRA: DISCUTINDO AS RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS ........................................................................................................... 116
Francy Leyla Salazar da Silva
08. A MULHER NEGRA E O DESAFIO DE REPENSAR NARRATIVAS: UMA
METODOLOGIA PARA DESCOLONIZAR SABERES E PRÁTICAS NO ENSINO DE
HISTÓRIA ......................................................................................................................... 135
Andreia Costa Souza
09. MEMES E NARRATIVAS DA ESCRAVIDÃO: APRENDIZAGEM HISTÓRICA NO
CENTRO DE ENSINO FORTUNATO MOREIRA NETO, PORTO FRANCO -MA ..... 149
Eliete Ribeiro Araújo
10. APRENDIZAGEM HISTÓRICA E APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA -
CAMINHOS POSSÍVEIS PARA UM ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA
CULTURA AFRO-BRASILEIRA ..................................................................................... 166
Edna Santos Silva

7
11. O ENSINO DE HISTÓRIA E AS REPRESENTAÇÕES SOBRE OS POVOS
INDÍGENAS KRAHÔ ...................................................................................................... 180
Nívia Alves Sales

PARTE 04 – EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E HISTÓRIA LOCAL .............................. 197


12. UM PASSEIO NO TEMPO: POSSIBILIDADES EDUCATIVAS DE UM
ITINERÁRIO HISTÓRICO PELOS VESTÍGIOS DA FREGUESIA DE SÃO JOSÉ E DO
BAIRRO DA MISERICÓRDIA / RJ ................................................................................ 198
Denise Maria Deodato Silva
13. A HISTÓRIA LOCAL E SUAS POSSIBILIDADES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
NA EDUCAÇÃO BÁSICA ............................................................................................... 212
Aline Nunes Ferreirinha de Souza
Hendy Helena Maciqueira de Melo Ribeiro
14. PATRIMÔNIO CULTURAL, FESTA E JOGO DIDÁTICO: LAMBE-SUJO E
CABOCLINHOS NO ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL ................................................ 225
Eliana Dias Ferreira Oliveira

PARTE 05 – HISTÓRIA, LITERATURA E AUTOBIOGRAFIA ................................... 242


15. LITERATURA E CONSTRUÇÃO DE SABERES HISTÓRICOS ............................ 243
Lucialine Duarte Silva
16. REFLEXÕES SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR NO BRASIL (1964-1985) A
PARTIR DA CENSURA APLICADA ÀS MÚSICAS “BREGAS” E A CONSTRUÇÃO
DA MEMÓRIA NA SALA DE AULA .............................................................................. 258
Lívia Karolinny Gomes de Queiroz
Isaíde Bandeira da Silva
17. RELATOS DE UMA PROFESSORA SOBREVIVENTE DA COVID-19 ................. 273
Eldãiny Negreiros da Silva
18. SOBRE AS AUTORAS ............................................................................................... 278

8
PREFÁCIO

O mestrado profissional de Ensino de História:


O ensino da História e a formação de professores
Marieta de Moraes Ferreira.

Passados quase 10 anos desde que iniciamos as discussões para a criação do Mestrado
profissional de ensino de História, ProfHistória podemos nos regozijar pelo sucesso dessa
empreitada.
O mestrado profissional já não era uma total novidade. As iniciativas de organização
dessa modalidade de curso se fizeram sentir na área de História, em 2004, quando o CPDOC
da FGV tinha inaugurado o mestrado profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais. No
entanto, trazer essa iniciativa para a área de ensino representava um grande desafio, já que
muitas resistências se faziam sentir. É verdade que as preocupações com a produção de
material didático e formas de implementação de formação continuada para professores já se
manifestavam em alguns grupos.
Mesmo em meio à resistência, em 2012 floresceram as iniciativas pioneiras do
Mestrado Profissional em História da Universidade Federal do Rio Grande e o Mestrado
Profissional em Ensino de História: Fontes e Linguagens, da Universidade Federal de Caxias
do Sul. Mas o investimento maior da Capes ainda estava por vir, com a proposta do mestrado
profissional em rede nacional que visava a ampliar o número de docentes da Educação Básica
a serem beneficiados, bem como possibilitar intercâmbios entre universidades interessadas em
apoiar este tipo de formação continuada de professores.
Nesse contexto, em 2012, estimulados pela própria Capes e pela coordenação da área
de história1 e pelo o funcionamento dos ProfMat e do ProfLetras, programas em rede
nacional, já existentes, novamente a ideia do mestrado profissional em Ensino de História
passou a florescer. Um primeiro grupo de professores, a partir do Instituto de História da
UFRJ, iniciou a discussão incorporando logo a seguir representantes de outras universidades
do Rio. O projeto inicial estava sendo concebido para ser apenas uma rede regional, mas as
orientações da Capes colocaram como pré-condição para a aprovação de um mestrado em
rede a ampliação do seu escopo para um formato de caráter nacional com a incorporação de

1
Professores Carlos Fico, Claudia Wasserman e Marcelo Magalhães.
9
novos núcleos oriundos de outros estados.2 Mas como seria esse mestrado? Seria mais um
curso de atualização de conteúdo focado no fornecimento de informações factuais e
interpretações relativas a esses eventos e temáticas? A despeito de algumas diferenças, um
ponto foi consensual desde o início entre o grupo de professores participantes: o curso deveria
ter a teoria da história e a historiografia como foco central. Isso queria dizer que o mais
importante era trabalhar com o processo de construção do conhecimento histórico e com a
premissa de que todas as temáticas abordadas deveriam estar relacionadas com a sua prática
na sala de aula.
Partindo dessa perspectiva foram definidos objetivos para a capacitação de docentes
em nível de Mestrado Profissional, tais como: qualificar os mestrandos/docentes para
desenvolver múltiplas competências comunicativas dos alunos em ambiente on-line e off-line;
desenvolver com os mestrandos/docentes estratégias para estimular a capacidade de
verificação da fidedignidade das informações históricas, levando em consideração sua origem,
o momento e o contexto de sua produção; oferecer subsídios para o reconhecimento do
potencial patrimonial dos espaços urbanos e rurais para o ensino de História na Educação
Básica; fornecer instrumental para que os mestrandos/docentes possam conduzir o processo
de avaliação crítica da realidade em suas múltiplas facetas.
O desdobramento desses objetivos se concretizou na definição das áreas de
concentração e das linhas de pesquisa. A descrição da área de concentração em Ensino de
História explicita quais são as diretrizes adotadas partindo de uma pergunta. Como o
conhecimento histórico pode contribuir para a reflexão sobre a relação entre passado/presente/
futuro, permeada pela lembrança, pelo esquecimento e pelas expectativas de indivíduos e
grupos, considerando que lembrar e esquecer são aspectos constitutivos da vida em sociedade,
das identidades culturais e do pertencimento político? Partindo dessa questão, a pós-
graduação com ênfase em Ensino de História dirige-se a duas demandas complementares. De
um lado, à exigência de reflexão sobre o ensino escolar, considerando seus saberes e práticas,

2
A proposta foi inicialmente apresentada pela Profª Marieta de Moraes Ferreira (UFRJ) e desenvolvida por
docentes vinculados a seis instituições do Rio de Janeiro, a saber: Alexandre Fortes (UFRRJ), Ana Maria
Ferreira da Costa Monteiro (UFRJ), Carmen Teresa Gabriel Anhorn (UFRJ), Felipe Magalhães (UFRRJ), Giselle
Martins Venâncio (UFF), Helenice Aparecida Bastos Rocha (UERJ), Keila Grinberg (UNIRIO), Luis Reznik
(PUC-Rio), Marcelo de Souza Magalhães (UNIRIO), Márcia Chuva (UNIRIO), Márcia de Almeida Gonçalves
(UERJ), Mariana Aguiar Ferreira Muaze (UNIRIO), Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ) e Regina Maria da Cunha
Bustamante (UFRJ). Esse grupo inicial foi responsável pela elaboração do Projeto e do Regimento do Programa
de Mestrado Profissional de Ensino em História (PROFHISTÓRIA) que, posteriormente, agregou novos
colaboradores do Rio de Janeiro e de outras regiões do país. No total, participam docentes vinculados a seis
Instituições de Ensino Superior da região sudeste do país;(UFRJ), (UFF),(UFRRJ),(UNIRIO),(UERJ) e
PUCRIO) cinco da região sul (UFSC),(UFRS) (UDESC),(UFSM) e (UFRG); uma da região nordeste (UFRN); e
uma da região norte(UFT).
10
bem como a relação com a disciplina de referência. De outro, à necessidade de compreensão
das múltiplas formas de ensinar e aprender História vigentes na sociedade contemporânea,
para além da escola, que tensionam continuamente tanto a historiografia profissional como o
ensino da disciplina em seus diferentes níveis. Isso porque o movimento atual em direção à
memória e a luta por direitos contribuiu para acirrar as disputas sobre a escrita e o ensino da
História, diversificando suas formas e promovendo múltiplos usos (e abusos) do passado.
Cabe ao profissional da área investigar esse complexo movimento e os variados recursos ao
conhecimento histórico, de modo a compreender a historicidade das experiências e as muitas
possibilidades de escrever e ensinar a História.
No que se refere às linhas de pesquisa três temáticas foram definidas. Saberes
Históricos no Espaço Escolar, Linguagens e Narrativas Históricas, Produção e Difusão e
Saberes Históricos em Diferentes Espaços de Memória.
Concluído o projeto do Mestrado Profissional em Ensino de História em rede nacional
tendo como âncora a UFRJ e reunindo 12 Universidades de diferentes localidades, o resultado
foi apresentado à Capes para avaliação e aprovado em agosto de 2013.
Iniciado com esse pequeno número de instituições, atualmente o ProfHistória reúne
39 núcleos distribuídos em quase todos os estados da federação, 554 professores
credenciados, já titulou 771 egressos e possui no momento 1141alunos matriculados. Esse
percurso seguido até aqui atesta a propriedade da opção feita no momento inicial e o empenho
e a dedicação daqueles que se engajaram nessa empreitada. A publicação agora lançada pelo
núcleo do ProfHistória da Universidade Federal de Tocantins com os trabalhos oriundos de
suas egressas, das egressas de outros núcleos e de algumas professoras do programa é um
exemplo da contribuição do ProfHistória para a formação continuada dos professores (as) e
para a melhoria da educação brasileira.

FUNDAÇÃO CAPES. Mestrado Profissional: o que é? Disponível em: <http://www.capes.


gov.br/avaliacao/sobre-a-avaliacao/mestrado-profissional-o-que-e>. Data de acesso:
08/09/2016.
FUNDAÇÃO CAPES. ProfHistória. Disponível em: < http://capes.gov.br/educacao-a-distanci
a/profhistoria>. Data de acesso: 08/09/2016.
INSTITUTO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Pós-
Graduação - ProfHistória. Disponível em: <http://historia.ufrj.br/posprofhistoria.php>. Data
de acesso: 08/09/2016.
MATOS, Júlia Silveira. SENNA, Adriana Kivanski. Mestrado profissional de história e a
formação docente para a pesquisa. Revista Latino-Americana de História. Vol. 2, nº. 6 –
Agosto de 2013 – Edição Especial by PPGH-UNISINOS.
11
MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007.
MOREIRA, Marco Antonio. O mestrado (profissional) em ensino. Revista Brasileira de Pós-
graduação, nº 1, julho de 2004.
MOTTA, Rodrigo Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014
MUGUET, Carina Silva. 1964: As Efemérides do Golpe e a Produção Historiográfica
Acadêmica pós-1964 (1994-2014). Dissertação (Mestrado) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.
RESNIK, Luis. Tecendo o amanhã. A História do Brasil no ensino secundário: programas e
livros didáticos. 1931 a 1945. Dissertação (Mestrado) – UFF, Niterói, 1992.
RODRIGUES, Mara Cristina de Matos. A institucionalização da formação superior em
história: o curso de Geografia e História da UPA/URGS – 1943 a 1950. Dissertação
(Mestrado) – URGS, Porto Alegre, 2002.

Marieta de Moraes Ferreira é doutora em História, professora Emérita do Instituto de


História da UFRJ, coordenadora nacional do prof História, 2012-2018 pesquisadora da FGV:
Publicou inúmeros trabalhos merecendo destaque “A História como Ofício”, FGV editora,
2013 e Universidade e ensino de história (Coord), FGV Editora, Rio de Janeiro, 2020.

12
APRESENTAÇÃO

É com grande satisfação que apresentamos o livro Fazer e ensinar História (s):
experiências femininas no ProfHistória. Essa coletânea tem por objetivo propagar os
conhecimentos produzidos no âmbito do ProfHistória - Programa de Mestrado Profissional
em Ensino de História -, especialmente, daqueles estudos que possam contribuir,
efetivamente, para a melhoria das práticas dos professores de História da educação básica
(Ensino Fundamental e Médio). Trata-se de um programa em rede nacional, coordenado pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Criado em 2013, com 12 núcleos. Hoje o
programa conta com 39 instituições associadas, espalhadas por todo o território nacional.
Os textos aqui apresentados são, na sua maioria, recortes nas dissertações defendidas
no núcleo da UFT-Araguaína, além de contribuições de professoras de outras instituições
associadas. Nossa inspiração para propor a coletânea nasceu da inquietação provocada pela
leitura dos escritos da intelectual negra feminista bell hoots (1995), que ainda no final do
século XX chamava a atenção para a importância da dedicação das mulheres negras ao
trabalho intelectual, por ele ser parte fundamental da luta pela libertação dos (as) oprimidos
(as). Tarefa hercúlea para as mulheres negras, inclusive com seu relato de experiência pessoal
já que, ainda muito jovem, foi obrigada a colocar os trabalhos domésticos acima dos prazeres
da leitura, sendo ameaçada pelos adultos de queimar os livros se as demandas dos trabalhos
diários não fossem realizadas. Quantas de nós, mulheres negras ou brancas, não vivenciamos
esses desafios de conciliar os trabalhos domésticos com a produção intelectual? Em tempos de
Covid-19, com trabalho remoto e inúmeras demandas cotidianas parece que estamos ainda
mais distantes do privilégio da dedicação prioritária ao trabalho intelectual, historicamente
considerado trabalho masculino.
Numa cultura racista, sexista e anti-intelectual, devemos reivindicar e exigir o direito
ao trabalho intelectual feminino. Historicamente, as mulheres tiveram maiores dificuldades de
frequentarem as escolas do que os homens. Tanto o direito à educação quanto a possibilidade
de se dedicar ao trabalho intelectual tem-se mostrado um enorme desafio para muitas
mulheres, no passado e no presente. De certo, nós mulheres/professoras/pesquisadoras, não
estamos reconciliadas com a hierarquização dos papeis sociais, naturalizados e referendados
pelas diversas instituições sociais que nos distanciam das atividades intelectuais.
Foi, portanto, em defesa desse direito das professoras/pesquisadoras de existirem
intelectualmente que organizamos esta coletânea. Geralmente, os problemas de pesquisa no
ProfHistória nascem da prática do ensino de História, dialoga com as teorias e metodologias e
13
geram conhecimentos que podem ser utilizados por outros profissionais da História e do
Ensino de História. O que apresentamos é um grande mosaico da produção das mulheres
sobre diferentes temáticas, metodologias e referenciais teóricos.
O livro está organizado em cinco partes, a parte um traz discussões referentes ao
ensino de História e imagens, composta pelos capítulos: “Visualidades no Livro Didático:
Composição e Montagem”, de Heloisa Selma Fernandes Capel; “As Mulheres nos Livros
Didáticos de História”, de Priscila Cabral de Sousa e Vera Lúcia Caixeta; “O Uso do Filme
como Recurso Didático no Ensino de História: uma Experiência com Alunos da Educação de
Jovens e Adultos-EJA”, de Eliane Leite Barbosa Bringel.
A segunda parte trata do ensino de História na Educação de Jovens e Adultos – EJA.
Essa parte é composta pelos capítulos: “A Formação Continuada de Professores de História na
Educação de Jovens e Adultos em Araguaína-TO”, de Laila Cristine Ribeiro da Silva e Vera
Lúcia Caixeta; e “Ensino de História das Mulheres: Experiência na Educação de Jovens e
Adultos- EJA em Imperatriz-MA”, de Jucileide da Silva Almeida.
A terceira parte apresenta reflexões acerca das relações étnico-raciais no ensino de
História, composta pelos capítulos: “Vozes, Corpos e Saberes sobre o Maciço: um projeto de
intervenção didática” de Karla Andrezza Vieira; “Decolonialidade e Perspectiva Negra:
Discutindo as Relações Étnico-Raciais”, de Francy Leyla Salazar da Silva; “A Mulher Negra
e o Desafio de Repensar Narrativas: uma Metodologia para Descolonizar Saberes e Práticas
no Ensino de História” de Andreia Costa Souza; “Memes e narrativas da escravidão:
Aprendizagem histórica no Centro de Ensino Fortunato Moreira Neto, Porto Franco-MA”, de
Eliete Ribeiro Araújo; “Aprendizagem Histórica e Aprendizagem Significativa – Caminhos
Possíveis para um Ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira” de Edna
Santos Silva.
A quarta parte trata de temáticas relacionadas a Educação Patrimonial e a História
local, e é composta pelos capítulos: “Um passeio no tempo: possibilidades educativas de um
itinerário histórico pelos vestígios da Freguesia de São José e do bairro da Misericórdia / RJ “,
de Denise Maria Deodato Silva; “A história local e suas possibilidades para o ensino de
História na Educação Básica”, de Aline Nunes Ferreirinha de Souza; Hendy Helena
Maciqueira de Melo Ribeiro; “Patrimônio Cultural, Festa e Jogo Didático: Lambe-Sujo e
Caboclinhos no Ensino de História Local”, de Eliana Dias Ferreira Oliveira.
A quinta parte apresenta trabalhos com temáticas que tratam da História, da
Literatura e da autobiografia composto pelos capítulos: “Literatura e Construção de Saberes
Históricos”, de Lucialine Duarte Silva; “Reflexões sobre a ditadura civil-militar no Brasil
14
(1964-1985) a partir da censura aplicada às músicas “bregas” e a construção de memórias na
sala de aula “, de Lívia Karolinny Gomes de Queiroz e Isaíde Bandeira da Silva; e, por fim,
“Relatos de uma professora sobrevivente da Covid-19” de Eldâiny Negreiros da Silva.
Deixamos registrado o nosso agradecimento a professora Drª Marieta de Moraes
Ferreira, que aceitou fazer o prefácio deste livro.
Nosso agradecimento as autoras, que compartilharam seus textos a partir das
experiências no ProfHistória.
Nosso a agradecimento à CAPES pela presente publicação.
Boa leitura

Vera Lúcia Caixeta


Eliane Leite Barbosa Bringel
(Organizadoras)

15
16
PARTE 01 –
ENSINO DE HISTÓRIA E IMAGENS

17
01. VISUALIDADES NO LIVRO DIDÁTICO:
COMPOSIÇÃO E MONTAGEM

Heloisa Selma Fernandes Capel3

Fazer uma publicação é como dirigir um filme.


Jan White

Introdução

A partir da epígrafe do designer e educador Jan V. White, é possível imaginar que


publicar um livro didático e colocá-lo em uso é um ato pleno de implicações estéticas e
didáticas. Pensado por meio de seu uso, o livro didático é um elemento a partir do qual é
possível discutir muitas especificidades, tanto em seus aspectos materiais, quanto visuais.
Considerado como produto cultural e como meio historiográfico é inegável que só pode ser
pensado no cruzamento interdisciplinar ente os campos da pedagogia, da história, do design,
campos que se preocupam com a produção editorial, a cultura e as práticas de leitura.
A problematização mais ampla do tema passa pela discussão que envolve a pesquisa
sobre livros didáticos, especialmente a iconografia didática e sua correlação com a
historiografia, além do livro como agente na circulação de ideias e sua materialidade
composta de maneira complexa pela articulação entre texto e imagens. Mais do que o
conteúdo escrito em suas páginas, o livro didático veicula elementos de visualidade e é um
agente que conforma sentidos em seu projeto didático. O livro didático é um ato que deve ser
pensado desde sua composição, montagem e recepção.
A partir de tais pressupostos, esse texto propõe a reflexão de livros didáticos como
objetos visuais. Explora um aspecto da tarefa, imprescindível a nós, professores: a de realizar
debates sobre esses manuais de uso ainda tão significativo nas escolas e entre os professores,
sejam profissionais efetivos das escolas, ou mesmo aqueles que se encontram em formação
nas universidades e encaram o desafio de realizar transposições didáticas de conteúdo para
suas aulas.
Sabemos que a problematização mais ampla do tema passa pela discussão que envolve
o livro como agente na circulação de ideias e sua materialidade composta de maneira complexa
pelas políticas públicas de ensino, além da articulação entre textos e imagens, dentre outras que

3
Heloisa Selma Fernandes Capel é bolsista produtividade 2/ CNPq. Atua nos programas de Pós-Graduação em
História e Ensino de História/ ProfHistória/ UFG e é membro da Comissão Acadêmica Nacional do ProfHistória.
18
não serão tratadas neste texto. Nossa preocupação aqui está na constatação de que o livro
didático veicula elementos de visualidade e é um agente que conforma sentidos em seu projeto
didático, este é o foco para alguns apontamentos iniciais de uma pesquisa em curso.
É forçoso admitir que, para além do conteúdo adequado ao currículo e com
legibilidade apropriada ao público-alvo, o livro-didático deve apresentar configuração
adequada aos objetivos da aprendizagem e que envolvem uma organização dinâmica da obra,
algo que necessita planejamento, edição, movimento. O livro didático não é repositório de
conteúdo inocente, o livro didático é um ato.
Portanto, a despeito da ignorância ou insensibilidade daqueles que o produzem e o
utilizam quanto ao fenômeno visual, as conformações visuais nas páginas dos livros didáticos
“comunicam para além do seu conteúdo textual” (MORAES, 2010, p.30). Isso nos remete à
perspectiva de encarar o livro, dentre outros aspectos, em seu formato gráfico-editorial,
elemento a ser considerado por sofrer variações contextuais e que, também, pressupõe usos e
leituras culturais diversas ao longo do tempo. Para Chartier, “um processo de leitura pode ser
ajudado ou derrotado pelas próprias formas dos materiais que lhe é dado ler” (CHARTIER,
2001, p. 96). Esse autor admite a importância do tema e aponta a origem da relação imagem
e livro didático: “a valorização da imagem por sua aspiração ao naturalismo ocorreu com o
desenvolvimento das ciências a partir do século XVII e já esteve em páginas do que é
considerado o primeiro livro didático para crianças, Orbis Sensualium Pictus” (O Mundo
Visível em Imagens), de Comenius (CHARTIER, 1999, p. 251).
Por outro lado, compreendendo o livro didático como um gênero secundário de
discurso, poderíamos afirmar que “o projeto gráfico-editorial de um livro determina a ordem,
o acabamento, a combinação das “massas verbais” (BAKHTIN, 1997). Letras e sua estrutura
incluindo o desenho de tipos, a superfície resultante da união das linhas, dentre outros, são
elementos que conferem legibilidades em um modo visual e formam elementos definidos
culturalmente.
Nesse sentido, é forçoso admitir que mesmo destinada apenas à leitura do conteúdo
linguístico e despojada de imagens ou elementos gráficos, a página do texto de um manual
didático é sempre visual (MORAES, 2010): “como um texto falado que combina expressões,
gestos e posturas corporais, uma página de texto e os elementos e configurações materiais e
plásticos combinados informam e potencializam os efeitos da leitura” (MORAES, 2010, p.
34). Por essa razão, encarada de maneira interdisciplinar, no confronto entre a pedagogia, a
arte e o design, a visualidade de um livro didático não pode ser ignorada.

19
Realizadas tais considerações, é preciso definir um percurso e alguns posicionamentos
para esta reflexão: centrada na ideia de pensar o livro didático em seus arranjos visuais
cognitivos, passa pela maneira como compreendemos a visualidade. Embora o termo não seja
devidamente explorado aqui é importante dizer que o consideramos não como algo resultante
de uma percepção natural, mas na perspectiva da dimensão cultural do olhar, como uma
experiência visual que se articula a diversas variantes e práticas culturais. Dito isso, é possível
definir concretamente o percurso destas considerações iniciais sobre a visualidade nos livros
didáticos: nossa intenção é promover o diálogo entre o aspecto visual de um livro e dois
autores que, com seus estudos, podem contribuir para o debate: um clássico do design, Jan V.
White, e o historiador da arte, teórico das imagens, Georges Didi-Huberman. Com eles vamos
realizar a interpelação necessária para iniciar a discussão de dois elementos interligados nas
páginas dos livros didáticos: a composição visual do espaço e a estratégia da montagem.

A Composição Visual do Espaço

Segundo o livro clássico Edição e Design de Jan White (2006), fazer uma publicação é
como “dirigir um filme”, pois os espaços de uma página de um livro “não são estáticos, são
cinéticos, correm de um lado a outro, da esquerda para a direita e finalmente para a página
seguinte” (WHITE, 2006, p.15). Assim, a comunicação, argumenta, precisa ser “rápida e clara”,
acessada com facilidade e sem esforço. Não se trata, complementa, de usar todos os espaços em
branco de uma página, mas de considerá-los como matéria prima que deve ser usada de forma
ativa e com imaginação. E é aí que o autor indica que há relação das palavras com a forma e
que, por essa razão, o verbal e o visual devem trabalhar em harmonia, um reforçando o outro,
levando-nos a olhar de um lado do papel para o outro lado (WHITE, 2006, p.16).
É importante considerar, recomenda fortemente, que uma página não é uma unidade
individual isolada, mas é a metade geminada conjunta unida pela dobra, o que vai criar
hierarquias de espaços na perspectiva de sua legibilidade. Argumentando que a página é
curva, o que se quer mostrar deve ficar nas bordas exteriores, algo que facilite ao leitor que
queira apenas folhear rapidamente. O ver à primeira vista é vital para que a leitura mais
aprofundada do material pelos leitores aconteça (Figura I). Além disso, as áreas privilegiadas
de uma página são os cantos superiores e, dentre as mais desvalorizadas estão as inferiores e
próximas às dobras (WHITE, 2006, p.5).

20
Figura I - WHITE, Jan. Editing By Design. RR Browker, 1974, p.5.

Jan White também explica que espaços em branco não são espaços vazios em uma
publicação. A ideia do espaço em branco também aparece na história da arte, como no livro
Diante da Imagem (2013), do historiador da arte Georges Didi-Huberman. O autor dá especial
atenção a um detalhe específico da experiência estético-religiosa de Fra Angelico, algo que
embora tenha relação direta com a cor, nos remete ao vazio: o branco em sua pintura
Anunciação. A ordem do discurso vigente não conseguiu explicar esse detalhe, fruto de uma
perspectiva epifânica e contemplativa de Fra Angelico. Tal detalhe, entretanto, é fundamental
na imagem (Figura II)

21
Figura II - Fra Angelico. Anunciação. Afresco, 187 x 157 cm. 1441- 1443.
Museu de San Marco, Florença.

Espaços em branco podem ser úteis e auxiliar a intenção didática em alguns casos (p.
28). Como é o caso da página no qual o “vazio” pode simular um céu. O espaço em branco
tem uma funcionalidade e deve ser observado em sua intencionalidade (Figura III). Assim,
não há espaços colocados aleatoriamente em um livro, há combinações provocadas que
envolvem massas visuais e que, em até em sua ausência podem carregar intencionalidades e
provocar efeitos.

22
Figura III - WHITE, Jan. Editing By Design. RR Browker, 1974, p.22.

Do mesmo modo, a verticalidade de uma página é apenas um detalhe convencional e,


por essa razão, a direção das manchas no texto pode passear em diversos sentidos conforme a
intencionalidade. Tais elementos do espaço compõem agrupamentos lógicos que contribuirão
para a disposição das palavras, suas tipologias ou fontes, as cores associadas e a relação com
as imagens, todos como partes integrantes da comunicação que se dá em fluxo, como o
pensamento.
A constatação da importância dos espaços em branco ou preenchidos na comunicação
de um livro ou de uma imagem para favorecer sua “legibilidade” nos leva a um elemento a ele
interligado: a montagem.

Montagem Cinética como um Desfile


A montagem é o que faz ver.
Godard

Diante da frase provocativa do cineasta Jean-Luc Godard, um mestre da montagem de


imagens, apresentamos a ideia de Jan V. White bastante significativa para refletirmos sobre a
23
visualidade em um livro didático. Ele insiste em um ponto: um livro não é uma reunião de
páginas isoladas, é uma sequência de eventos que vão passando “como um desfile”. Para
comprovar, o autor propõe um exercício: pegue uma revista qualquer e folheie suas páginas
para tomar consciência das relações, ou melhor, desmembre algumas páginas duplas e
dependure numa sequência da esquerda para a direita em volta da sala. Olhe a partir de uma
certa distância, para captar o todo (WHITE, 2006, p.29). Será como assistir a um desfile com
cenas que se sucedem e provocam intepretações.
White destaca que é como organizar uma projeção de slides, e a intenção do designer é
ajudar a orientar, a guiar aqueles que vão ler. Para isso é preciso explorar o fluxo consecutivo
do espaço, explorar esse movimento tanto dos olhos, quanto do movimento de passar a
página. Há, nesse movimento, uma quarta dimensão: a memória do que acabaram de ver e
suas expectativas acerca do que há de vir. Tamanhos das formas, repetições, é possível,
segundo o autor, pensar as páginas, também, como quadrinhos de uma tira. Em tal fluxo, a
montagem deve ser observada, não apenas na correlação entre as páginas combinadas, mas
naquilo que elas trazem na junção entre imagens e textos ou entre as imagens (WHITE, p.38).
Movimento, ritmo, memória e imaginação. Estamos também falando de Didi-
Huberman. Esse autor vai nos informar sobre o poder da imagem-montagem e sua função em
uma eventual legibilidade, sob esse aspecto aponta a imaginação com destacável valor em sua
capacidade heurística, a de contribuir para o conhecimento mais profundo das coisas. Reforça
que é possível verificar seu valor, e para isso cita Baudelaire, Warburg, Walter Benjamin e
Georges Bataille, autores que compreendem a relação entre as imagens e a imaginação e o
poder da montagem:

Verificamo-lo desde Baudelaire e da sua definição de imaginação como “faculdade


científica” capaz de percepcionar “as relações íntimas e secretas entre as coisas, as
correspondências e analogias”, até o estruturalismo de Levi-Strauss. Warburg e seu
Atlas Mnemosyne, Walter Benjamin e seu Livre des passages, Georges Bataille e
sua revista Documents, revelaram, entre outros exemplos a fecundidade de tal
conhecimento através da montagem (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.155).

Didi-Huberman também nos lembra do poder das imagens montadas por cineastas
como Alfred Hitchcock, Jean-Luc Godard, dentre outros. Eles, exploram os efeitos da
montagem de imagens, seu poder de fazer ver. Para o mestre Hitchcock, o efeito da montagem
foi fundamental para provocar medo, enquanto para Godard, só pela montagem se pode
mostrar o que é impensável, provocando, assim, a imaginação e potencializando efeitos que se
quer produzir, ou que se produz mesmo inconscientemente (DIDI-HUBERMAN, 2012,
p.155-190).

24
Nos livros contemporâneos a relação texto-imagem é complexa e não flui como um
continuum, mas está quebrada em blocos que recebem títulos intermediários, seções e boxes
para leitura paralela ou complementar. Em alguns livros, o autor pode ter vários pontos de
entrada, ao contrário da página tradicional. Existem, portanto, arranjos visuais cognitivos que
facilitam a legibilidade e a velocidade da leitura, o que para alguns estudos da psicolinguística
é elemento constitutivo de uma maior possibilidade de reconhecimento sintético e não um
processamento analítico-sintético. Uma leitura rápida permite reter melhor o que se lê,
especialmente pela limitação da memória de curto prazo (BOCCHINI, 2007).
Letras e sua estrutura construtiva (o desenho de tipos), a superfície resultante da união
das linhas, dentre outros, são elementos que definem legibilidades e formam elementos
definidos culturalmente. Segundo Moraes, como um texto falado que combina expressões,
gestos e posturas corporais, uma página de texto e os elementos e configurações materiais e
plásticos combinados informam e potencializam os efeitos da leitura (MORAES, 2010, p.34).
Dessa forma, elementos materiais e visuais de uma página são articulados segundo
uma lógica própria do modo visual. Assim, a leitura de um título, de uma legenda ou de um
bloco de texto seguirá o procedimento da leitura ocidental, no nosso caso, da esquerda para a
direita e de cima para baixo, antes das regras gramaticais. O momento e a sequência que a
leitura desse texto terá início e a importância e o significado de seu posicionamento em
relação com outros materiais gráficos serão determinados pela linguagem visual.
Assim, pode-se dizer que a composição visual do livro influencia os trajetos do olhar e
impacta no sentido pretendido para além da velocidade de leitura. E, aqui há mais hierarquias.
Imagens tem poder de atração e são vistas em primeiro lugar em relação às palavras. Imagens
são a primeira coisa que vemos em uma página, assinala White. São emocionais, instintivas e
não são elementos subordinados (WHITE, 2006, p. 143). Normalmente, a imagem é o ponto
de partida para se chegar ao texto. Quando a imagem não é ponto de partida, ela tende a ser
usada como ilustração, mas mesmo no grau extremo da autoridade do discurso, como diria
Roland Barthes (apud MORAES, p.38), ela interfere no arranjo visual. Sob essa perspectiva
nenhuma imagem é, a rigor, apenas ilustrativa, mesmo que a intenção do autor seja essa.
Consciente do poder da montagem, Jan White recomenda: junte imagens e forme um
bloco de impacto (WHITE, 2006, p. 144), enquanto Didi-Huberman cita o cineasta Jean-Luc
Godard para afirmar a mesma ideia, a de que “a montagem, [...] é o que faz ver” (DIDI-
HUBERMAN, 2012, p. 176). Na junção das imagens, apreende-se diferenças, cria-se sentidos.
Isso ocorre tanto na junção da montagem entre imagens ou na relação imagens e palavras.

25
Portanto, refletir sobre o modo visual de um livro pode ser útil para investigar a
dinâmica pretendida, o leitor implícito pensado por quem executou o plano didático e a
proposta historiográfica que a sustenta. Além disso, pode ser útil para examinar o projeto
editorial e as perspectivas de leitura em articulação com as políticas públicas do livro didático
e as questões de mercado. Sob essa perspectiva, espaços e montagens são elementos, dentre
outros, que podem auxiliar a pensar o livro e seus movimentos.
Realizadas estas breves considerações, voltemos ao ponto inicial. Há uma defasagem
entre as finalidades didáticas de um livro e sua visualidade, um desconhecimento pelo
fenômeno visual do livro como modo de conhecimento. Isso ocorre porque, como afirmam
alguns autores, subordinamos a linguagem visual à verbal. Nossos manuais didáticos são
encarados como portadores exclusivos de conteúdos disciplinares, entretanto, compreendê-los
como meios de construção de sentidos em sua configuração visual pode nos ajudar a lidar
com eles de maneira mais ampla e reflexiva.

Referências

BOCCHINI, M. O. Legibilidade Visual e o Projeto Gráfico na Avaliação de Livros Didáticos


pelo PNLD. In. Simpósio Internacional Livro Didático: Educação e História. Anais do
Simpósio Internacional Livro Didático: Educação e História. São Paulo; 2007.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1997
CHARTIER, R. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo de
Moraes. São Paulo: Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.
CHARTIER, R (org.). Práticas de Leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. 2ª. Ed. São
Paulo: Estação Liberdade, 2001.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34,
2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens, apesar de tudo. Lisboa: Ymago, 2012.
MORAES, Didier Dominique Cerqueira Dias de. Visualidade do Livro Didático no Brasil: o
design de capas e sua renovação nas décadas de 1970 e 1980. Dissertação Apresentada à
Faculdade de Educação da USP. São Paulo: 2010.
WHITE, Jan V. Edição e Design. Para Designers, Diretores de Arte e Editores. São Paulo:
JSN Editora, 2006.

26
02. AS MULHERES NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA

Priscila Cabral de Sousa4


Vera Lúcia Caixeta5

Introdução

Este texto centra-se nas representações das mulheres propagadas no livro didático de
História direcionado ao 9° ano do Ensino Fundamental e que integra a coleção Projeto
Mosaico elaborada pelos autores Cláudio Vicentino e José Bruno Vicentino. As análises que
fazemos pautam-se nas imagens e na abordagem narrativa constituída a partir delas como
meio para a problematização da construção representativa do feminino nos livros didáticos.
Trata-se de um ponto imperativo no que concerne a construção de um imaginário social
discriminatório, sexista e misógino que pode ser fomentado através desse importante
instrumento pedagógico. Ao longo deste texto buscamos responder duas questões: Como as
mulheres estão sendo representadas historicamente? Em que medida essas imagens
contribuem para consolidar – ou não – as hierarquias de gênero?
É consenso entre vários pesquisadores do ensino de História que o livro didático é um
instrumento fundamental que permite aos alunos(as) a aprendizagem do saber resultante da
investigação histórica. Na concepção de Rüsen (2011, p. 109), ele “é a ferramenta mais
importante no ensino de história”. Para Circe Bittencourt (2009, p. 295) eles são “suportes
fundamentais na mediação entre o ensino e a aprendizagem”. Em muitas situações, o livro
didático é, senão a única, pelo menos, a mais importante fonte de acesso aos conhecimentos
históricos por parte dos(as) estudantes. Para o(a) professor(a), ele é o recurso substancial para
o seu trabalho em sala de aula, priorizado em detrimento dos filmes, mapas, documentários,
fragmentos de jornais, livros de literatura, tabelas, dados estatísticos e vídeos, entre outros
(BITTENCOURT, 2009, p. 298-299). Enfim, de acordo com Rüsen (2011, p. 112), a
finalidade legítima do livro didático é possibilitar, impulsionar e favorecer a aprendizagem da
história.
Dada a importância do livro didático de história e sua enorme contribuição para a
aprendizagem histórica, não constitui nossa tarefa desqualificá-lo. Seus conteúdos não

4
Professora da Educação Básica com formação em História pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
(2014) e mestra em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, campus de Araguaína –
TO (2021).
5
Doutora em História. Coordenadora e Professora do Mestrado Profissional em História- ProfHistória;
Araguaína – TO. Professora nos cursos de Graduação e Licenciatura em História.
27
consistem em meras adaptações dos resultados da ciência da História, pois nutre-se dos
resultados da historiografia e da didática, dois campos disciplinares específicos, distintos e
imbricados (RÜSEN, 2011, p. 111). Para além disto, é imperativo considerar o livro didático
“como objeto e produto cultural [que] traz consigo pedagogias que inscrevem padrões
normativos e hegemônicos sobre os sujeitos, suas relações, comportamentos, etc.” (SILVA,
2007, p. 224).
Outros elementos a serem considerados são que a produção de livro didático envolve
tanto a variável econômica – com as disputas no mercado editorial –, quanto o controle da
história a ser ensinada – a história propagada tem o papel de perpetuar os valores e padrões
normativos de comportamentos e relacionamentos entre os diversos sujeitos sociais. Foi a
partir da criação do Plano Nacional do Livro Didático – PNLD (1996) que adveio a
construção de ferramentas de auxílio aos professores para que observem critérios que lhes
permitam a escolha dos livros, levando em conta o Projeto Político-Pedagógico da escola e a
formação dos professores. Assim, a secretaria de educação, os professores e a direção devem
estar cientes da importância de considerar o público que é atendido. Entre os critérios
observados para a inclusão dos livros no Guia do Livro Didático estão os preceitos legais e
jurídicos e a construção da ética; adequação das concepções teórico-metodológicas e
articulação com proposta pedagógica, além dos aspectos gráficos e editoriais que também
devem ser observados (ALMEIDA, 2018, p. 47).
O PNLD elabora o Guia dos Livros Didáticos com as avaliações de cada coleção pré-
selecionada pelos especialistas. Ele apresenta uma análise detalhada de cada coleção. Nesta
avaliação, entre várias outras coisas, é verificado se a coleção está dentro dos padrões
exigidos quanto aos preceitos legais e jurídicos – a não aceitação da discriminação racial, do
preconceito e o atendimento ao compromisso com o ensino da diversidade étnico racial e de
gênero –, além dos valores éticos, a adequação das concepções teórico-metodológicas, e os
aspectos gráficos e editoriais. Ademais, a proposta pedagógica da coleção também é avaliada:
se as atividades propostas exigem a reflexão e a ação dos(as) alunos(as) e se estão vinculadas
aos textos propostos, à inclusão das imagens, às novas tecnologias e às atividades
interdisciplinares (ALMEIDA, 2018, p. 48-50).
Convém ressaltar que o livro didático de história ao qual nos referimos apresenta
estruturação didática e formato claro, contém glossários ao longo dos textos e propostas
pedagógicas para o trabalho com os(as) discentes, além de diversos tipos de imagens –
fotografias, charges e tirinhas – que provocam tanto a reflexão e permitem a interpretação e a
elaboração de novas hipóteses. Todavia, a obra está alheia à importância da História das
28
Mulheres. Apesar de abordar as lutas e conquistas femininas, tanto em cenário nacional
quanto mundial, não supera o androcentrismo, pois, ora apaga as mulheres com uma narrativa
universalizante, ora reforça condições sócio-históricas por representá-las sem problematizá-
las. Além do mais, a maioria dos textos sobre as mulheres integram a Seção Conheça mais,
boxe em que o tema do capítulo é aprofundado e complementado. Essa situação nos remete
para o seguinte pensamento: há uma narrativa hegemônica e masculina que orienta toda a
organização do livro, no qual os sujeitos centrais são homens, e em alguns momentos, os
autores, em sobressalto, apontam para a questão feminina. Seria ausência de informações
sobre as mulheres e suas ações ao longo da História? Cremos que a causa vai além e tem viés
político e cultural.
É indubitável a existência de vasta produção historiográfica sobre as mulheres que
disputa espaço com a produção masculina 6. Com a emergência da segunda onda feminista –
entre os anos 1970 e 1980 – a História das Mulheres estabeleceu um campo definível dentro
da historiografia. Dessa forma, começou-se a problematizar a presença das mulheres enquanto
sujeitos de preocupação do relato histórico, isto é, o androcentrismo do ofício histórico
(BALTHAZAR, 2012, p. 91). Inicialmente, utilizou-se a categoria mulher em contraposição a
palavra homem enquanto termo universal. Cécile Dauphin (2012) sublinha que na década de
1920, a definição de história de Marc Bloch inseriu o homem, enquanto um termo assexuado
e universalizante e, dessa maneira, a História continua “um trabalho de homens que escrevem
a história no masculino, [e] não é de admirar que a exclusão da mulher tenha parecido e
pareça ainda absolutamente natural” (DAUPHIN apud BALTHAZAR, 2012, p. 92).
Joan Scott (1995) revela as dificuldades institucionais para romper com o “universal
masculino” e a invisibilidade das mulheres:

Ao defender novos cursos sobre as mulheres, diante um comitê curricular


universitário em 1975, argumentei como exemplo que a história das mulheres era
uma área recente de pesquisa, assim como os estudos da região ou das relações
internacionais. Em parte, esse foi um artifício tático (uma jogada política) que
tentava, em um contexto específico, separar os estudos das mulheres daqueles
intimamente associados ao movimento feminista. Em parte, resultou da crença de
que o acúmulo de bastante informação sobre as mulheres no passado,
inevitavelmente atingiria sua integração na história padrão (SCOTT, 1995, p. 76).

6
Segundo Joan Scott (1992), Os contextos de poder e conhecimento caracterizam a emergência do campo da
História das Mulheres: o poder, porque a História já consistiu um espaço hegemônico dos homens brancos; o
conhecimento porque considerando os requisitos de profissionalização da História, o que capacitava ou permitia
que alguém fosse reconhecido era o aperfeiçoamento acadêmico, o conhecimento de área e habilidades
intelectuais e de atuação, mas para as mulheres esses quesitos não foram inicialmente suficientes para garantir-
lhes igualdade nessa área, sendo ainda um reflexo da sua condição enquanto sujeito social.
29
Na concepção de Michelle Perrot (2019, p.15), a História das Mulheres esteve
associada às lutas feministas, sendo a “tradução e o efeito de uma tomada de consciência
ainda mais vasta: a da dimensão sexuada da sociedade e da história”. Porém, Scott (1992, p.
68) alerta para o equívoco de se “tomar a História das Mulheres simplesmente como um
reflexo da política feminista externa à academia”. Um movimento cujo intento fosse a gênese
de uma historiografia que tivesse como primazia as trajetórias femininas, emergiu a partir de
diversos fatores, e todos partiam de uma formação identitária coletiva das mulheres em torno
de sua condição na sociedade. Nesse sentido, Scott (1995) afirmou que o "gênero"
transformaria os paradigmas disciplinares.

‘Nós estamos aprendendo’, escreviam três historiadoras feministas que inscrever as


mulheres na história implica necessariamente a redefinição e o alargamento das
noções tradicionais daquilo que é historicamente importante [...] uma tal
metodologia implica não somente uma nova história de mulheres, mas também uma
nova história. (SCOTT, 1995, p. 73).

Portanto, os estudos feministas foram um dos motores de uma renovação do saber ao


colocar em questionamento a pretensa objetividade da ciência histórica. Os debates
epistemológicos em torno da História das Mulheres resultaram na emergência de termos que
representam categorias de análise capazes de explicar a sociedade a partir das relações
estabelecidas com base nas atribuições dos papéis sociais de homens e mulheres, é o caso do
gênero. Esta categoria de análise relacional, de acordo com Scott (1995, p. 72) rejeita o
“determinismo biológico implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’”.
Enfim, as relações de gênero abrangem as análises dos papéis sociais e culturais estabelecidos
para os homens e para as mulheres, tornando possível a compreensão dos mecanismos que
constituem e determinam as relações de poder.
Segundo Carla Bassanezi Pinsky (2010, p. 31), essa categoria de análise é fundamental
para a compreensão da complexidade da organização social: “gênero trata da construção
social da diferença sexual”. Logo, embora o termo compreenda as relações inicialmente
pautadas no sexo biológico, trata-se das construções culturais que não só conduzem, mas
produzem e/ou reproduzem as relações humanas nos diversos âmbitos da sociedade:

[...] As concepções de gênero tanto são produto das relações sociais quanto
produzem e atuam na construção destas relações, determinando experiências,
influindo nas condutas e práticas e estruturando expectativas. Um “olhar de gênero”
não só procura o que há de cultural nas percepções das diferenças sexuais como
também a influência das ideias criadas a partir dessas percepções na constituição das
relações sociais em geral. (PINSKY, 2010, p.34)

Nesse mesmo sentido, em sua própria definição de gênero, Scott (1995, p. 86) denota
“um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre
30
os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”. A
dimensão do poder no conceito de gênero foi fundamental para desvincular a história das
mulheres da história social. Scott (2011, p. 69) esclarece que “o feminismo tem sido, nas
últimas décadas, um movimento internacional, mas possui características particulares,
regionais e nacionais”. Entre aquelas que criticam o uso do termo gênero como valor nominal
universal está a intelectual Oyèrónké Oyéwùmí que afirmou ser

[...] essa uma categoria particular da política das mulheres brancas anglófonas,
especialmente nos Estados Unidos. Talvez a crítica mais importante das articulações
feministas de gênero seja aquela feita por uma série de pesquisadoras afro-
americanas, as quais insistem que nos Estados Unidos não é possível de maneira
alguma que gênero seja considerado como algo independente das noções de raça e
de classe. Essa posição levou à necessidade de insistir na diferenciação entre as
mulheres e de teorizar múltiplas formas de opressão, particularmente aquelas nas
quais as desigualdades de raça, gênero e classe são evidentes. Fora dos Estados
Unidos, as discussões têm focado na necessidade de prestar atenção ao
imperialismo, à colonização e a outras formas locais e globais de estratificação, que
dão peso à afirmação de que o gênero não pode ser abstraído do contexto social e de
outros sistemas hierárquicos. (OYÉWÙMÍ, 2018, p. 173)

O que a autora refuta não é a validade das formulações acerca do gênero, mas a
utilização de seus postulados de forma única e/ou isolada de outros fatores de sujeição das
mulheres. Ao tratar dos desafios das epistemologias africanas, Oyéwùmí (2018, p. 177-178)
demonstra que as hierarquias oriundas do gênero não se aplicam, por exemplo, a família
Yorùbá, onde esta se dá pela senioridade e pela linhagem, entre outros. Logo, é fundamental e
imprescindível que sejam consideradas as particularidades das diversas mulheres no tempo.
Paul Ricouer (2007, p. 250) questiona “a capacidade do discurso histórico de representar o
passado” e ao tratar da representação historiadora, ele sublinha que:

A palavra ‘representância’ condensa em si todas as expectativas, todas as exigências


e todas as aporias ligadas ao que também é chamado de intenção ou intencionalidade
historiadora: designa a expectativa ligada ao conhecimento histórico das construções
que constituem reconstruções do curso passado dos acontecimentos. (RICOUER,
2007, p. 289)

Por representação considera-se o resultado de todo o processo pelo qual o discurso


histórico consegue reconstruir o passado sob um viés interpretativo e explicativo na medida
em que atende ao propósito da História de representar a realidade. Esse resultado é o discurso
histórico, que sendo uma interpretação (entre outras possíveis) está investido de sentido.
Portanto, a representação é uma forma de explicitar o passado e dar uma face compreensível e
coerente aos eventos decorridos atendendo aos princípios metódicos que lhe confere caráter
veritativo e legitimidade epistemológica. Enfim, segundo Ricoeur (2007, p. 251), “antes de
tornar-se o objeto do conhecimento histórico, o acontecimento é objeto de narrativa”. A

31
maneira pela qual um acontecimento é explicitado determina o sentido e o significado do
relato, sendo este o próprio processo de construção do conhecimento histórico. Assim, a
narrativa é um nos elementos de constituição do nexo e de significação do passado.

As Representações Femininas Imagéticas no Livro Didático

Vivemos num momento em que as informações por meio das imagens nos são
apresentadas diuturnamente. Nesta tendência, os livros didáticos aumentaram o número de
imagens no seu interior buscando tornar o material mais rico e expressivo para os(as)
estudantes na medida em que chamam atenção e parecem transmitir com mais rapidez uma
dada mensagem: imagem e texto se complementam. De fato, as imagens “dinamizam a
narrativa. Nesse sentido, o quarto volume da coleção Projeto Mosaico: História apresenta um
número significativo de imagens femininas. Porém, muitas vezes, elas podem passar
despercebidas das discussões por não estarem acompanhadas de problematizações evidentes.
Assim, é imprescindível que esteja notável para alunos e alunas que muitas situações
associadas às mulheres e tidas como “naturais”, na realidade, correspondem às relações de
poder numa dada sociedade. Todavia, a maior parte das imagens em que aparecem mulheres
surge em conteúdos cujas temáticas têm alguma ligação com a esfera política. Em alguns
casos, elas aparecem porque sua imagem está ligada à do marido, que é ou foi uma
personalidade política de destaque conforme nas imagens a seguir:

Figura 1 – Presidente Juan Figura 2 - Luiz Inácio Figura 3 – O czar


Figura 4 – Esta foto não
Perón e sua esposa Evita Lula da Silva e a esposa Nicolau II, sua
datada registra Nicolau II
sorriem para trabalhadores desfilam, após cerimônia esposa, Alexandra,
e a czarina saindo de uma
em Buenos Aires, antes da e seus cinco filhos,
de posse. Brasília, cerimônia religiosa,
campanha pela reeleição. em retrato de 1905,
janeiro de 2003. seguidos pela corte.
Foto de 19517 aproximadamente.

Fonte: Vicentino (2015, p. Fonte: Vicentino (2015, Fonte: Vicentino Fonte: Vicentino (2015, p.
228.) p. 311) (2015, p. 49) 49)

7
As legendas das figuras 4, 5, 6, 7 e 8 foram transcritas do livro didático e têm a mesma
descrição atribuída pelos autores.
32
As figuras apresentadas aparecem no volume que trata das temáticas populismo e
ditadura na América Latina – com destaque, neste caso, para o governo peronista da Argentina
e os governos Lula no Brasil – e a Revolução Russa. Nas narrativas que tratam dos eventos
históricos destacados, as mulheres pouco aparecem e às vezes nem são mencionadas. Evita
Perón (Figura 1) e Alexandra (Figuras 3 e 4) têm seus nomes explicitados nas legendas das
imagens, enquanto Maria Letícia Rocco (Figura 2) aparece na fotografia ao lado do presidente
eleito na época, mas seu nome não aparece. Com essa mesma conotação, há ainda a imagem a
seguir, da arquiduquesa Sophia ao lado de seu esposo Francisco Ferdinando antes do atentado
que é considerado o estopim para a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Figura 5 – Francisco Ferdinando e Sophia, em Sarajevo (Bósnia), em


28 de junho de 1914, minutos antes de serem assassinados.

Fonte: Vicentino (2015, p. 28).

As ilustrações anteriores têm o objetivo de destacar os chefes de Estado. É a figura


masculina que é evidenciada. A presença da figura feminina, da esposa, reforça o lugar do
homem na hierarquia doméstica como o pater famílias. A aparição das mulheres nas imagens
e o silenciamento sobre elas no texto demonstram que a narrativa do livro didático ainda é
bastante carregada por padrões hegemônicos: o masculino, o branco, o cristão, o
heterossexual. Esses casos são, portanto, naturalizações de homens e mulheres em seus papéis
sociais normativos.
Estas representações femininas nas imagens reforçam uma idealização patriarcal sobre
o que se esperava das mulheres: que fossem boas filhas, esposas e mães, sendo educadas para
desempenhar tais papéis. Essa ideologia, ligada ao período colonial, foi assimilada pela classe
burguesa durante a modernidade e perpetuou-se até a contemporaneidade e, como
consequência, esses estigmas ainda recaem sobre as mulheres apesar das muitas conquistas
33
obtidas. Todavia, é importante frisar que essa condição na prática não se aplicava e nem se
aplica a todas as mulheres na sociedade. Bebel Nepomuceno (2013, p. 282 – 283), ao
explicitar as peculiaridades das condições das mulheres negras no Brasil desde o período da
escravidão, afirmou que dada sua condição étnica e socioeconômica elas não se restringiam
ao espaço privado e não dependiam de seus maridos, eram mantenedoras do lar. Isso, porém,
não significava que sobre elas não recaíam os efeitos negativos de não se enquadrarem nesse
modelo. Ao contrário, esse era um dos mecanismos de opressão e exclusão.
Logo, as imagens trazem a figura feminina representada dentro desses moldes
normativos da família nuclear, contribuindo para o fortalecimento da imagem do homem apto
para ocupar a posição de representante máximo do poder. Se durante boa parte do século XIX
a honra masculina esteve atrelada ao comportamento feminino8, hoje, a mulher ainda é
colocada como esteio moral da família. Nesse sentido, Evita, Marisa Letícia, Alexandra e
Sophia aparecem como demonstração de uma família estruturada branca e cristã 9 em que elas
são apoiadoras do marido e sua presença é uma forma de dar mais visibilidade a ele. Além
disso, o fato da narrativa didática relacionada a essas imagens estar estruturada em torno das
experiências masculinas, indica “que os homens ainda ocupam a base da elaboração da regra”
(SILVA, 2007, p. 229). Ademais, a presença das mulheres não se limitou a figuras secundárias
de um “grande homem”, elas também aparecem como lideranças políticas. Se por um lado
representam as conquistas femininas, de outro sua posição expõe os valores patriarcais
perpetuados e arraigados que se fundem com a cultura e naturalizaram-se.

8
Segundo Lana Lage e Maria Beatriz Nader (2013), a ideologia patriarcal disseminou entre os homens um
sentimento de posse sobre o corpo feminino fazendo com que o comportamento da mulher definisse sua honra.
Como resultado, práticas de violência contra as mulheres eram naturalizadas, pois eram vistas como uma
maneira de discipliná-las, estabelecer sua honra reconduzindo-a ao padrão normativo, bem como limpar a honra
do marido e da família.
9
Principalmente nas imagens de Alexandra com o czar Nicolau II saindo da Igreja, e depois de ambos com os filhos.
34
Figura 6 – Trecho do Capítulo 16 contendo o subtema “O Governo de Dilma Rousseff” com o tópico “A
primeira mulher Presidente”.

Fonte: Vicentino (2015), p. 315.

A imagem exibe um trecho de uma reportagem de jornal que cita a eleição de duas
mulheres brasileiras pioneiras a ocupar cargos na esfera política. Dilma Rousseff, eleita
presidenta da República do Brasil em 2010, e Alzira Soriano, eleita prefeita da cidade de
Lages, no Rio Grande do Norte em 1928, foram expostas a várias injúrias por ocuparem um
espaço masculino por excelência. Nesse ponto, consideramos pertinente a abordagem do livro
didático, pois a questão social dos preconceitos contra mulheres foi problematizada. Logo,
neste conteúdo, o enfoque da narrativa foi centrado na trajetória histórica da mulher com
ênfase na construção das desigualdades e dos estereótipos que recaem sobre nós, assim como
também afetam os homens quando não têm o comportamento normativo esperado.
Para o trabalho pedagógico em sala de aula, consideramos possível problematizar o
porquê de a participação feminina na política ainda ser ínfima, conforme as imagens a seguir:

35
Figura 7 – Líderes dos cinco países que Figura 8– Governantes dos países membros do G20
compõem o BRICS em reunião em Fortaleza, em foto oficial, durante reunião ocorrida em novembro
Ceará, em 2014. de 2014, na Austrália.

Vicentino (2015), p. 284. Vicentino (2015), p. 285.

As fotografias 7 e 8 revelam mais que encontros entre líderes mundiais, elas


denunciam a hegemonia masculina no campo político. Cabe, portanto, questionar: da maneira
como foram inseridas, essas imagens podem por si só ser capazes de estimular a reflexão
sobre a ausência de mulheres nos cargos políticos? Sem problematizá-las seria possível
desnaturalizar a ideia de que a condição biológica limita e autoriza atuações de mulheres e
homens a determinados espaços? Em resposta prévia, consideramos que os impactos da mera
exibição de personagens femininas têm efeito pouco potencializador se compararmos as que
poderia haver se estas tivessem acompanhadas de uma narrativa pautada na História das
Mulheres e nas relações de gênero.
Outras lideranças femininas na política são mencionadas no livro. Uma delas,
Margaret Tchatcher (Figura 9), tem sua aparição resumida a uma fotografia com uma legenda
em que destaca sua atuação pautada no neoliberalismo. Outra, Carlota Pereira Queiroz (Figura
10), foi citada quando abordada a temática da Era Vargas (1930-1945) e, mais
especificamente a Constituição de 1934 que inovou ao garantir direitos políticos a grupos que
antes não os tinham, como as mulheres. No caso de Carlota Pereira Queiroz foi exibida uma
imagem com uma legenda que a destaca como a primeira mulher no legislativo federal, e no
livro do professor há uma proposta de atividade de pesquisa a ser sugerida aos discentes sobre
o voto das mulheres em vários países. Consideramos que a partir de qualquer uma das
imagens poderia ter sido abordadas as lutas femininas pelo direito de ocupar cargos políticos,
e que o eixo narrativo, ao menos neste trecho, estivesse centrado na História das Mulheres.
Todavia, apesar das trajetórias que Maragaret Tchatcher e Calota Pereira Queiroz percorreram
não terem sido enfatizadas, a menção a elas pode funcionar como um êmbolo impulsionador
36
para uma problematização mais profunda nas mãos de professores(as) que se dediquem a
ensinar a história a partir do eixo temático da História das Mulheres.

Figura 9 – Representação feita da primeira Figura 10 – Destaque dado a Carlota Pereira


mulher a ocupar o cargo de Primeira-Ministra do Queiroz, eleita a primeira mulher no legislativo
Reino Unido. federal brasileiro em 1933.

Fonte: Vicentino (2015), p. 287 Fonte: Vicentino (2015), p. 140

Sobre a educação no período da Era Vargas, o livro destaca a reforma educacional


também discutida por Kênia Hilda Moreira (2016, p. 726 – 730), que mostrou, entre outros
assuntos, o processo de inserção da disciplina de História no currículo e sua influência na
edição dos livros didáticos de História. Porém, esse debate é abordado no livro didático de
forma que permite suscitar reflexões acerca da educação dada a homens e mulheres, bem
como às ideias positivistas e religiosas defendidas pela Igreja Católica que se tornaram
imperativas com a Reforma Capanema em 1942. Segundo Fúlvia Rosemberg (2013, p. 336 e
337), a reforma realizada pelo ministro Gustavo Capanema em 1942 pelo decreto-lei n. 4.244,
além de determinar a educação militar para os rapazes, também determinou a segregação
sexual com o intuito de preservar o recato e o pudor das moças. Há uma seção do livro
didático que traz discussões em torno das propostas educacionais nesse período que, se
fossem explicitadas abriria espaço para problematizações acerca da instrução direcionada às
mulheres.

37
Figura 11 – Seção “Conheça Mais: A educação no governo Vargas”.

Fonte: Vicentino (2015), p. 140.

Várias outras imagens exibidas no livro trazem explícitas as questões que envolvem o
gênero e a trajetória histórica das mulheres, como nas gravuras nas quais elas aparecem como
rostos anônimos em manifestações de rua reivindicando direitos políticos bem como os
exercendo.

Figura 12 – Mulheres caminham Figura 13 – Mulheres Figura 14 – Mulher votando,


em fila segurando cartazes exercendo o direito ao voto nas Reino Unido, década de 1920.
favoráveis ao voto feminino. eleições de 1934.
Londres, 1912.

Fonte: Vicentino (2015), p. 16. Fonte: Vicentino (2015), p. 137. Fonte: Vicentino (2015), p. 103.

Como um desdobramento no campo político, as guerras marcaram o século XX, e


muito mais a Primeira Guerra Mundial, conforme destacado por Hobsbawm (1995, p. 304-
319). A presença feminina foi axiomática e se deu de diversas maneiras. No texto contido no
livro sobre esta temática, a menção feita às mulheres é bastante sucinta e destaca sua
participação na indústria de armamentos, mas não problematiza em que dimensão isso ocorreu
e porque elas ocuparam em muitos casos o lugar da mão de obra masculina. Veja na imagem a
seguir:

38
Figura 15 - Ilustração de 1893 que retrata mulheres trabalhando na indústria de munições durante a Primeira
Guerra Mundial.

Fonte: Vicentino (2015), p. 27.

Mais adiante, e ainda sobre a temática da Primeira Guerra Mundial, o livro destaca um
trecho em que são abordadas as mudanças nas vestimentas das mulheres europeias como
reflexo do conflito. Segundo o texto, por causa do conflito, muita matéria prima utilizada para
fazer as vestimentas das mulheres da elite da Belle Époque tornou-se escassa. Além disso, por
precisarem substituir os homens nas fábricas, porque eles haviam sido recrutados para os
campos de batalha, elas passaram a usar roupas mais confortáveis que facilitavam o uso de
bicicletas para se deslocarem mais rapidamente de casa para o trabalho. Mesmo o texto
tratando de algumas poucas transformações no modo de vida das mulheres e dos seus papéis
sociais, consideramos a abordagem limitada por ter sido feita em apenas uma seção da obra,
como um complemento de uma narrativa oficial que passa a ideia de curiosidade e não
transmite as questões políticas reais implícitas.

39
Figura 16 – Seção “Conheça mais: O Espartilho, a bicicleta e a Primeira Guerra”.

Fonte: Vicentino (2015), p. 40-41.

No que tange ao período ditatorial no Brasil, que foi de 1964 a 1985, as mulheres são
representadas como transgressoras da ordem autoritária implantada no país por estarem
engajadas nas lutas armadas. Sobre a participação das mulheres no movimento de resistência
contra o regime militar, Cristina Scheibe Wolff afirmou que: Vários testemunhos de mulheres
que participaram das organizações de esquerda armada revelam algum ressentimento contra
essas organizações por não darem a elas as mesmas chances de reconhecimento de capacidade
política dadas aos homens. (WOLFF, 2013, p. 443).
Segundo Wolff, a presença feminina em lutas armadas em vários momentos da história
do Brasil foi inegável. Muitas atuaram como guerrilheiras no combate ao regime militar,
sofrendo também com as questões de gênero no interior dos grupos. Por integrar essas
associações de resistência, as mulheres, assim como os homens, foram vítimas das
autoridades sendo presas, torturadas e até mortas. O livro didático retrata essa resistência
feminina e a retaliação que receberam nos protestos realizados por meio de produções
culturais e artísticas como a música, conforme figuras 17 e 18.

40
Figura 17– Seção “Ponto de Encontro: A Figura 18 – Seção “Conheça Mais: A mulher brasileira
Canção de protesto no Brasil” com vai à luta” que exibe a letra da música Maria, Maria cujos
fotografia (1967) de Elis Regina se versos se tornaram símbolo de luta para as feministas e
apresentando no 3° festival de Música fotografia que mostra Elza de Lima Monerat deixando a
Popular Brasileira da TV Record. casa de detenção do Carandiru após ser anistiada.

Fonte: Vicentino (2015), p. 208. Fonte: Vicentino (2015), p. 206.

As mulheres também apareceram em manifestações que se opunham a governos


ditatoriais em outros países latino-americanos, como no caso da Figura 20 que mostra mães
argentinas que questionavam o desaparecimento de seus filhos e cuja reivindicação teria
contribuído para chamar a atenção de organizações internacionais. No livro, os autores
também mencionaram a influência exercida pelas lutas femininas nos protestos em favor da
redemocratização, na busca por equidade e por direitos políticos que mesmo após tornarem-se
constitucionais não foram suficientes para suprimir a violência contra as mulheres. Nessa
abordagem temática, realizada em seção complementar ao texto principal da obra, foi
destacada Maria da Penha Maia Fernandes, vítima da violência doméstica e símbolo da luta
contra essa manifestação do machismo e da herança patriarcal.

41
Figura 19 – Mães argentinas em Figura 20 – Seção “Conheça Mais: As mulheres na
manifestação que exigia redemocratização” – aborda a participação feminina e os frutos
explicações oficiais sobre o de suas lutas na Carta constitucional de 1988. Também mostra
desaparecimento ocorridos durante fotografia da farmacêutica cuja experiência contribuiu para a
a ditadura. Buenos Aires, 2014. criação da Lei n. 11.340.

Fonte: Vicentino (2015), p. 229. Fonte: Vicentino (2015), p. 306.

Certamente, uma abordagem calcada na História das Mulheres deve dar visibilidade às
lutas femininas, às suas formas de resistência e as formas de opressão que lhe recaíam ao
longo da História. Nesse caso, é necessário abordar a condição das mulheres por meio das
interseccionalidades. Segundo Carla Akotirene (2018), um olhar interseccional de gênero visa
preencher a lacuna que o movimento feminista branco e hegemônico deixou ao não considerar
as especificidades da condição da mulher negra e da mulher em condição socioeconômica
menos privilegiada. Para a autora, vários elementos de dominação recaem sobre as mulheres
além do sexo, nesse sentido, a “interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-
metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado –
produtores de avenidas identitárias onde mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo
cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.
(AKOTIRENE, 2018, p. 15).
Ademais, como ressalta Akotirene, abordar ou mesmo defender a causa feminina
considerando apenas um ou poucos aspectos e ignorando as particularidades da existência
feminina, é cair no esvaziamento. Por isso é fundamental a compreensão fluida “das
identidades subalternas” (AKOTIRENE, 2018, p. 33). Nesse sentido a narrativa do livro
didático torna-se limitada por retratar a mulher muitas vezes como um sujeito universal, não
destacando as especificidades de sua condição socioeconômica e cultural. A imagem a seguir
é o mais próximo que a narrativa didática alcançou ao retratar as mulheres a partir das
intersecções de gênero:

42
Figura 21 – Mulheres brasileiras em fila para sacar o benefício Bolsa Família após boatos sobre o cancelamento
do programa. Foto de 2013.

Fonte: Vicentino (2015), p. 314.

A figura 21 aparece para evidenciar o combate à enorme desigualdade social durante o


governo Lula. Logo que mencionam alguns programas federais, os autores explicitam os avanços
quanto à inclusão social e a queda no índice de pobreza. Ao reportar-se à implantação do
programa Bolsa Família também citam que este, além de reduzir o número de brasileiros abaixo
da linha da pobreza e a desnutrição infantil, aumentou a autonomia das mulheres (VICENTINO,
2015, p. 314). Essa representação aligeirada esconde a luta feminina cuja identidade foi
constituída a partir de sucessivos eventos e imposições sexistas, raciais e de classes.
Logo, o esvaziamento que Akotirene (2018) criticou e alertou, gira em torno da
impossibilidade de identificar, neste caso específico que utilizamos como exemplo, quem são
essas mulheres. Dar conta minimamente dessa definição requer refletirmos o porquê de a
autonomia dessas mulheres depender do recurso federal? Qual a relação entre a condição
socioeconômica e a violência contra as mulheres? Quais as implicações dessa condição
socioeconômica quando não relacionadas com os processos de exclusão historicamente
construídos? Aqui percebemos um apagamento das mulheres na medida em que são citadas,
mas não caracterizadas e nem identificadas na narrativa.
De acordo com Rüsen (2011, p. 110), o livro didático de história capaz de ser definido
ou identificado como material de trabalho para professores(as), pode e deve apresentar
documentos, que estimule a interpretação que os alunos(as) devem elaborar com a ajuda
docente criando uma narrativa “historicamente inteligível”. Portanto, que sua exibição não se
resuma à mera exposição e confirmação de algo já exposto. Nesse sentido, o livro didático
atende ao quesito quando exibe, problematiza e instiga a interpretação dos documentos
históricos mostrados nas imagens a seguir:

43
Figura 22 – Seção “Trabalhando com Figura 23 – Questão de atividade em que se
Documentos”: proposta de análise de um cartaz propõe a análise de cartazes que estimulam
publicitário de campanha pela defesa dos direitos mulheres a trabalharem na indústria de armamentos
da mulher. e a se alistarem no exército estadunidense.

Fonte: Vicentino (2015, p. 329). Fonte: Vicentino (2015, p. 44).

De acordo com Circe Bittencourt (2009, p 362), as imagens constituem linguagens


específicas e, nas palavras de Rüsen (2011, p. 119), elas adquiriram “uma importância
crescente e uma autonomia em relação ao texto”. O que ambos os autores enfatizam é a
peculiaridade que a imagem tem de ser documento histórico e representação do passado, além
de concordarem que a imagem não deve ter mera finalidade ilustrativa para alunos e alunas
acostumados com os atrativos visuais fortemente difundidos na contemporaneidade. Por isso,
consideramos, em muitos momentos, insuficientes algumas representações iconográficas das
mulheres realizadas nesta obra.
No caso das atividades mostradas nas figuras 22 e 23, julgamos que elas atendem às
exigências de metodologias que integram historiografia e didática, e ainda proporcionam um
trabalho interpretativo de diferenciação dos tempos históricos, passado e o presente, por meio
da leitura orientada da fonte iconográfica. Em ambas as atividades de análise documental, os
autores elaboraram e dispuseram uma sequência que permite a leitura e interpretação das
mesmas de modo a compreender a finalidade de sua produção, a identificar seu público-alvo e
a associar a outras possibilidades interpretativas que sejam historicamente coerentes.
As considerações feitas acerca do livro didático do Projeto Mosaico: História para o
nono ano do ensino fundamental II demonstra que sua narrativa não está totalmente alheia a
importância da História das Mulheres. Porém, apesar de abordar as lutas e conquistas
femininas, tanto em cenário nacional quanto mundial, não supera o androcentrismo presente
em sua narrativa histórica, pois alguns momentos apaga as mulheres com sua narrativa
44
universalizante e às vezes reforça as condições sócio-históricas por representá-las sem
problematizá-las. Com essa afirmação, não pretendemos isentar o papel docente na mediação
do saber histórico ou mesmo definir o livro didático como o material por meio do qual o(a)
aluno(a) possa de forma autônoma de fato aprender ignorando outros materiais pedagógicos.
Mas, ressaltamos sua importância enquanto instrumento de apoio e fonte de conhecimento da
História mediado pelos professores.
Quanto a narrativa do livro, a condição das mulheres foi abordada através de textos
mais longos que as legendas, entretanto, cabe observar que na maioria das vezes eles
integraram a seção Conheça mais, boxe em que o tema do capítulo é aprofundado e
complementado. É como se houvesse de fato uma narrativa hegemônica masculina, e os
autores, em sobressalto, se atentassem para a questão feminina em meio aos desdobramentos.
Seria esse tipo de abordagem um progresso em termos de reconhecimento dos avanços da
historiografia feminina, ou, uma demonstração do androcentrismo presente na narrativa do
livro didático? Assente a este questionamento concordamos com Silva (2007, p. 229) quando
ela afirma que “incorporar temáticas que envolvem mulheres e relações de gênero como
apêndices da história geral – através de textos complementares –, expõem, paradoxalmente,
permanências, ao invés de mudanças”.

Considerações Finais

Ao longo deste texto buscamos sublinhar a relevância do livro didático de História e a


necessidade deste atender os quesitos essenciais para as finalidades do ensino desta disciplina.
Além do mais, defendemos que este, enquanto instrumento pedagógico deve, através de seu
conteúdo, trazer evidente o “olhar de gênero” para que os estudantes não dependam
unicamente de uma problematização em sala de aula. Nesse sentido, sendo ferramenta
fundamental no projeto de uma educação mais equitativa, precisa constantemente ser
aprimorado para atender o objetivo de proporcionar uma aprendizagem mais significativa.
Não obstante a abordagem limitada da História das Mulheres, notamos que mesmo os
textos parcos e as representações iconográficas seguidas de legendas serem incapazes de
explicar as questões políticas nelas envolvidas, elas são significativas. Logo, por mais que
essas representações das mulheres não sejam as adequadas, consideramos que elas contribuem
para a criação de memórias de personagens que soam como lampejos de vidas femininas em
um universo ainda tão masculino que é o da narrativa histórica didática. Todavia, julga-se

45
imperativo que o homem não seja tomado como sujeito universal, e que às mulheres seja dado
também o seu lugar de direito: como sujeitas da história.

Referências

AKOTIRENE, Carla. Cruzando o Atlântico em memória da interseccionalidade. In: ______.


O que é interseccionalidade. Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2018, p. 11-50.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 3 ed.
São Paulo: Cortez, 2009.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX - 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
LAGE, Lana; NADER, Maria Beatriz. Violência contra a mulher: da legitimação à
condenação social. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria Pedro (Orgs.). Nova
História das Mulheres no Brasil. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2013. p.286-312.
MOREIRA, Kênia Hilda. Os livros didáticos de História do Brasil para o Ensino
Secundário na Era Vargas: entre autores, didáticas e programas curriculares. Cadernos de
História da Educação, v. 15, n. 2, p. 723-742, mai-ago. 2016. Disponível em: http://www.
seer.ufu.br/index.php/che/article/view/35555. Acesso em 31.01.2018.
NEPOMUCENO, Bebel. Mulheres Negras: Protagonismo Ignorado. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; PEDRO, Joana Maria Pedro (Orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. 1
ed. São Paulo: Contexto, 2013. P. 382-409.
OYEWUMI, Oyeronké. Conceitualizando gênero: a fundação eurocêntrica de conceitos
feministas e o desafio das epistemologias africanas. In: COSTA, Jeaze Bernardino;
GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo
Horizonte: Autêntica, 2018 (Coleção Cultura Negra e Identidade). P. 171-182.
PEDRO, Joana Maria Pedro. O feminismo de segunda onda: corpo, prazer e trabalho. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria Pedro (Orgs.). Nova História das Mulheres
no Brasil. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2013. P. 382-409.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. 2. ed. 6º reimpressão. São Paulo:
Contexto, 2019.
PINSKY, Carla Bassanesi. Gênero. In: Novos temas nas aulas de História 1 ed. 2ª
Reimpressão. São Paulo: Contexto, 2010. P. 29-54.
RICOEUR, Paul. A representação historiadora. In: ______. A memória, a história, e o
esquecimento Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. P. 247-296.
ROSEMBERG, Fúlvia. Educação: Mulheres Educadas e educação de Mulheres. In: PINSKY,
Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria Pedro (Orgs.). Nova História das Mulheres no
Brasil. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2013. P. 333-359.
RUSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel;
MARTINS, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed.
UFPR, 2011. P. 109-127.

46
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
______. História das Mulheres. In: BURKE (org.). A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. P. 65-98.
SILVA, Cristiani Bereta da. O saber histórico escolar sobre as mulheres e relações de gênero
nos livros didáticos de história. Caderno Espaço Feminino. v. 17, n. 01, Jan./JuL. 2007. P.
219-246.
VICENTINO, Cláudio; VICENTINO, José Bruno. Projeto mosaico: história – anos finais –
ensino fundamental. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2015.
WOLFF, Cristina Scheibe. Em armas: Amazonas, soldadas, sertanejas, guerrilheiras. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria Pedro (Orgs.). Nova História das Mulheres
no Brasil. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2013. P.423-422.

47
03. O USO DO FILME COMO RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO DE
HISTÓRIA: UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS-EJA.

Eliane Leite Barbosa Bringel10

Considerações Iniciais

O estudo11 que se apresenta resulta da implementação de uma experiência didática


sobre o uso do filme como recurso didático-pedagógico no processo de ensino-aprendizagem
de História, que se desenvolveu no âmbito do plano de estudos do Mestrado em Ensino de
História no Programa de Mestrado Profissional ProfHistória/UFT.
A experiência foi desenvolvida na Escola Municipal Zeca Barros, em Araguaína-TO,
nos meses de setembro e outubro de 2015, com uma turma constituída por 24 alunos do 4°
período da Educação de Jovens e Adultos – EJA. Como docente na escola campo
participamos de diversas ações desenvolvidas pela escola, com o intuito de superar as
dificuldades, que envolvia o desinteresse dos alunos em participar do processo de ensino e
aprendizagem, iniciativas como levá-los ao cinema da cidade, promover sessão de filmes na
escola, organizar gincanas interativas e campeonato de futsal. Em virtude dessas ações,
observamos que os comportamentos dos alunos começaram a mudar, sendo que alguns se
tornaram mais participativos, principalmente nas atividades que envolviam o uso de filmes.
Procurou-se, com a concretização da experiência, conhecer o perfil da turma investigada
e suas percepções quanto ao uso do filme como recurso didático-pedagógico, sobretudo, no
processo de aprendizagem histórica. Aproximar-se das compreensões do aluno impõe ao
professor uma nova forma de pensar as práticas de ensino e de aprendizagem, uma postura
orientada a uma educação para o desenvolvimento. Nesse sentido, Isabel Barca (2004) assinala:

Se o professor estiver empenhado em participar numa educação para o


desenvolvimento, terá de assumir-se como investigador social: aprender a interpretar
o mundo conceitual dos seus alunos, não para de imediato o classificar em
certo/errado, completo/incompleto, mas para que esta sua compreensão o ajude a
modificar positivamente a conceituação dos alunos, tal como o construtivismo social
propõe. Neste modelo, o aluno é efetivamente visto como um dos agentes do seu
próprio conhecimento, as atividades das aulas, diversificadas e intelectualmente

10
Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Licenciada em História pela
UNITINS. Egressa do Programa de Mestrado Profissional, ProfHistória. elianelbb@hotmail.com
elianelbbringel@gmail.com
11
Artigo escrito a partir da pesquisa de dissertação de mestrado - O Uso do Filme no Ensino E Aprendizagem de
História na Educação de Jovens e Adultos-EJA em Araguaína-TO - defendida e aprovada em agosto de 2016, na
Universidade Federal do Tocantins - UFT
48
desafiadoras, são realizadas por estes e os produtos daí são integrados na avaliação
(BARCA,2004, p. 132).

Para o desenvolvimento deste estudo, partimos da premissa de que o uso de filmes nas
aulas de História como recurso didático-pedagógico pode contribuir no processo de construção
de um conhecimento histórico significativo para os alunos da modalidade EJA, desde que esses
compreendam a estratégia que está sendo aplicada e, em decorrência, se sintam sujeitos do seu
próprio conhecimento. Nesta perspectiva, concretizamos uma experiência com o uso dos filmes
A História das Coisas e Tempos Modernos. Aplicamos a proposta didática “Mundo do
Trabalho” sobre o uso desses filmes. O estudo pretende contribuir com reflexões que possam
auxiliar o professor em suas práticas em sala de aula quanto à utilização do filme como recurso
didático para a construção do conhecimento histórico.

Enquadramento Teórico

A Educação Histórica é um campo da área da História que se dedica às relações que


envolvem o processo ensino-aprendizagem de História em ambientes formais e não formais
de educação, a produção do conhecimento histórico e a busca de respostas referentes ao
desenvolvimento do pensamento histórico e a formação da consciência histórica (SCHMIDT;
BARCA, 2009, p. 11).
Uma História bem ensinada se ancora, para além dos conhecimentos que dela se
exigem, nas didáticas necessárias para o seu ensino. No que se refere à didática da História,
Rüsen (2011) nos alerta:

A opinião padrão sobre o que a didática da história é, como ela funciona e onde está
situada no reino das humanidades é a seguinte: a didática da história é uma
abordagem formalizada para ensinar história em escolas primárias e secundárias, que
representa uma parte importante da transformação de historiadores profissionais em
professores de história nestas como disciplina acadêmica e o aprendizado histórico e
a educação escolar. É uma disciplina que faz a mediação entre história como
disciplina acadêmica e o aprendizado histórico e a educação escolar. Assim, ela não
tem nada a ver com o trabalho dos historiadores em sua própria disciplina. A
didática da história, sob essa visão, serve como ferramenta que transporta
conhecimento histórico dos recipientes cheios de pesquisa acadêmica para as
cabeças vazias dos alunos (RÜSEN, 2011, p. 23-24).

Para o autor, essa visão da didática da história é extremamente equivocada, pois falha
em não confrontar os problemas reais relacionados ao aprendizado e à educação histórica, bem
como a relação entre didática e pesquisa histórica. No âmbito desse entendimento, afirma que o
aprendizado histórico é uma capacidade que todos nós desenvolvemos. Por assim ser, destaca:

O aprendizado histórico é uma das dimensões e manifestações da consciência


histórica. É o processo fundamental de socialização e individualização humana e
49
forma o núcleo de todas estas operações. A questão básica é como o passado é
experienciado e interpretado de modo a compreender o presente e antecipar o futuro.
(RÜSEN, 2011, p.39).

Rüsen (2011) entende a aprendizagem da História como sendo um processo de


mudança estrutural na consciência histórica, o qual como um modo específico de orientação
em situações reais da vida presente. Na esteira desse autor, compreendemos que o ensino de
História adquire maior importância quando em harmonia com problemas reais, premissa
essencial para não se tornar uma disciplina vazia de sentido e de significado para a vida
pessoal dos alunos. O uso do filme em sala de aula, por sua linguagem fundada na imagem,
no movimento, na musicalidade, na interpretação e na representação de uma certa realidade,
contribui para uma didática mais eficaz para e no ensino de História.
Durante boa parte do século XX, diversas metodologias para o ensino de História
foram alcançando a escola e o documento escrito foi, paulatinamente, deixando de ser a única
fonte para as pesquisas. Novos métodos e novos objetos aos poucos foram sendo incorporados
ao instrumental do historiador: cinema, histórias em quadrinhos, artes plásticas (pinturas,
ilustrações), literatura, fotografia, música, televisão, computador.
Na contemporaneidade, a utilização de filmes nas aulas de História é um importante
instrumento metodológico, de modo que esse uso pode e deve ser articulado às novas
tecnologias, com o intuito de promover uma aprendizagem significativa. As atuais gerações,
que convivem na chamada sociedade da informação e adquirem conhecimentos midiatizados
por imagens e sons, impõem à escola esse desafio. Daí por que o trabalho com filmes em sala
de aula tem adquirido tamanha relevância. O ponto de partida para essa inserção, acreditamos,
é o desenvolvimento de uma análise crítica no processo de formação do aluno, resultando em
outras formas de percepção sobre as obras fílmicas.
De acordo com Bittencourt (2011), o uso do cinema como material didático no ensino
de História no Brasil não é uma prática nova. Desde 1912, Jonathas Serrano, professor do
Colégio Pedro II e conhecido autor de livros didáticos, já estimulava seus colegas a utilizar
filmes de ficção ou documentários como recurso que possibilitaria ao professor abandonar o
tradicional método de memorização12.
Conforme Robert A. Rosenstone (2010), não conferir importância aos “filmes
históricos” é ignorar a tentativa de entender a maneira como uma grande parte da população

12
Esse método, que se fundamenta no desenvolvimento da capacidade do aluno em memorizar, criava uma série
de atividades para ‘o exercício da memória’, constituindo os chamados métodos mnemônicos. Um método
mnemônico muito difundido no ensino de História foi proposto pelo francês Ernest Lavisse, que pretendia
desenvolver a inteligência da criança por intermédio da capacidade da memorização (BITTENCOURT, 2011).
50
passa a compreender os acontecimentos e as pessoas que constituem a História. Ao discorrer
sobre o ensino de História, o autor pontua que saber trabalhar, compreender e analisar os
filmes é uma forma de entender o quanto essas obras influenciam na formação histórica da
sociedade e, consequentemente, dos nossos alunos.
Identificar os fatores inerentes ao uso eficaz e eficiente do filme em sala de aula,
assim como aqueles relativos à sua utilização de modo inadequado, não é uma tarefa fácil.
Como qualquer outro documento histórico ou obra historiográfica, o filme traz em si uma
construção a ser trabalhada, pensada, questionada e criticada.
Para Napolitano (2009), o professor deve buscar dimensões diferentes do filme,
indagando-se: “Qual o uso possível deste filme? A que faixa etária e escolar ele é mais
adequado? Como abordar o filme dentro de minha disciplina ou num trabalho interdisciplinar?
Qual a cultura cinematográfica dos meus alunos?” (NAPOLITANO, 2009, p. 12).
Por sua vez, Elias T. Saliba (1993) alerta também para o fato de ser necessário
perceber as formas de produção de um filme como forma de compreender o imaginário de
diferentes sociedades no processo de ensino.

Ao utilizar-se do filme no processo de ensino, ainda acredito que todo esforço do


professor de humanidades deve ser no sentido de mostrar à maneira do
conhecimento histórico – o filme também é produzido, também ele irradia um
processo de pluralização de sentidos ou de verdades – e, da mesma forma que na
História, o filme é uma construção imaginativa que necessita ser pensada e
trabalhada interminavelmente. (SALIBA, 1993, p. 94).

No recorte acima, o autor está se referindo às representações contidas em um filme.


Por mais equivocadas que sejam as representações do passado, as imagens fílmicas
influenciam o imaginário histórico dos alunos. Cabe ao profissional de História não somente
desconstruir tais imagens, mas, sobretudo, trabalhar com essas e tentar entender o porquê de
terem sido utilizadas por diretores, produtores e roteiristas dos filmes.
É preciso entender todos esses aspectos antes de trabalhar, em especial com os filmes
comerciais que são assistidos pela maioria da sociedade, o que, evidentemente, inclui os
alunos. Outro ponto interessante relaciona-se ao fato de o próprio público espectador tornar-se
convencido pelas imagens de que tudo retratado nos filmes é baseado em estudos
historiográficos. Logo, o aluno passa a acreditar no discurso do filme, dando a esse a mesma
importância que é dispensada à narrativa histórica que consta nos livros didáticos (ou não).
Não é incomum o professor estar ministrando uma aula e ser interrompido por um aluno que
afirma que esse está errado porque determinado filme mostrou de forma diferente o que está

51
sendo ensinado na sala de aula. É a influência de uma interpretação da realidade competindo
com outra realidade, a do espaço escolar.
No século XXI, o filme tem sido um recurso de comunicação audiovisual que
possibilita ao professor desenvolver suas aulas de maneira mais didática, tornando-as mais
atrativas para o educando. Podemos afirmar que o trabalho com obras cinematográficas não
só estimula a pesquisa sobre o passado como influência, de forma intensa, a imaginação do
espectador. Toda a sequência de imagens organizadas em quadros e acompanhadas por uma
trilha sonora propicia uma construção do imaginário. Nas palavras de Napolitano (2009),

a peculiaridade do cinema é que ele, além de fazer parte do complexo da


comunicação e da cultura de massa, também faz parte da indústria do lazer (não nos
esquecemos) constitui ainda obra de arte coletiva e tecnicamente sofisticada. O
professor não pode esquecer destas várias dimensões do cinema ao trabalhar filmes
em atividades escolares. (NAPOLITANO, 2009, p.14).

Segundo esse autor, ao utilizar o filme como recurso didático em suas aulas, o
professor não deve esquecer que o filme é uma obra de arte que traz consigo suas
peculiaridades. Esse profissional deve atuar como mediador entre a obra e os alunos,
propondo-lhes leituras mais amplas, orientadas para além do puro prazer, com vistas a fazer a
ponte entre emoção e razão, de forma mais direcionada. Nessa perspectiva, deve incentivar o
aluno a se tornar um espectador mais exigente e crítico, estabelecendo relações de
conteúdo/linguagem do filme com o conteúdo escolar. Ainda conforme Napolitano (2009),

ao escolher um ou outro filme para incluir nas atividades escolares, o professor deve
levar em conta o problema da adequação e da abordagem por meio de reflexão
prévia sobre os seus objetivos gerais e específicos. Os fatores que costumam influir
no desenvolvimento e na adequação das atividades são: possibilidades técnicas e
organizativas na exibição de um filme para a classe; articulação com o currículo e/ou
conteúdo discutido, com as habilidades desejadas e com os conceitos discutidos;
adequação a faixa etária e etapa específica da classe na relação ensino
aprendizagem. (NAPOLITANO, 2009, p.16).

No processo de seleção do filme que irá trabalhar em sala de aula, ainda conforme o
Napolitano (2009), o professor deve levar em consideração o problema da adequação e da
abordagem, por meio de reflexão prévia de seus objetivos gerais e específicos. Em conclusão,
aponta para a necessidade de planejamento das atividades pedagógicas que fazem uso do
filme como recurso didático.
Vislumbrar metodologias que possam dar novos significados e motivar os alunos a se
apropriar do conhecimento histórico é de suma importância na prática pedagógica do
professor de História. Cabe ao docente buscar alternativas para o problema do “desinteresse”
e motivar o aluno em face do conteúdo abordado na aula de História. Compete, também,
construir propostas de ensino identificadas com as expectativas e a cultura do aluno. Nossa
52
proposta de uso de filme em sala de aula soma esforços aos intentos de utilização eficaz e
eficiente desse recurso didático-pedagógico.

Metodologia e Desenvolvimento das Atividades

A experiência desenvolvida sustenta-se na metodologia da pesquisa-ação. De acordo


com Michel Thiollent (2011, p.13), a pesquisa-ação, dentro da metodologia da pesquisa
social, é uma linha de pesquisa associada a diversas formas de ação coletiva e orienta-se em
função da resolução de problemas ou de objetivos de transformação. Em utilização dessa
técnica de pesquisa, o pesquisador atua com a consciência de que está buscando uma mudança
na realidade pesquisada.
A busca por respostas a algumas indagações, tais como: a) qual o olhar que os
estudantes da EJA têm sobre o uso de filmes como recurso didático-pedagógico no ensino de
História? b) como esse instrumento pode contribuir no processo de construção do conhecimento
histórico? Evidencia, entendemos, o porquê de recorrermos à metodologia da pesquisa-ação.
Sobre a importância da interação entre o investigador e os membros do contexto em
estudo, à luz dos pressupostos da pesquisa-ação, Michel Thiollent (2011) assim se manifesta:

Em muitos lugares, continuam prevalecendo as técnicas ditas convencionais que são


usadas de acordo com um padrão de observação positivista no qual se manifesta
uma grande preocupação em torno da quantificação de resultados empíricos, em
detrimento da busca de compreensão e de interação entre pesquisadores e membros
das situações investigadas. Essa busca é justamente valorizada na concepção da
pesquisa-ação. (THIOLLENT, 2011, p. 13).

Assim, essa técnica de pesquisa visa valorizar a compreensão e a interação entre


professores e alunos no processo de ensino de História, ponto de partida para um aprendizado
que tenha significado para os sujeitos que atuam e estão em sala de aula.
Para o desenvolvimento da atividade de pesquisa, elaboramos questionários, os quais
foram aplicados aos alunos colaboradores de nossa pesquisa, foram necessários nove
encontros com a turma selecionada, devidamente orientada a esse fim. Nesses encontros,
foram ministras oito aulas, organizadas a partir da seguinte sistemática: apresentação dos
filmes escolhidos, conteúdos da proposta didática, objetivos, metodologias, recursos e
avaliação. Parte do desenvolvimento da pesquisa foi por nós registrada por meio de
fotografias e de observações, essas últimas com anotações em um diário de bordo, no qual
constam as informações relacionadas à aplicação da proposta didática “Mundo do Trabalho”,
que teve como objetivo investigar a concepção que estudantes da EJA tem sobre o uso do

53
filme como recurso didático no ensino de História e identificar como esse instrumento pode
contribuir no processo de construção do conhecimento histórico.
O Quadro 1, apresenta a Proposta didática: “Mundo do Trabalho”

Quadro 1 - Proposta didática: “Mundo do Trabalho”


Tema: “Mundo do Trabalho”
Turma: 4º Período - EJA
Filmes: “A História das Coisas”, de Annie Leonard e “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.

Ações Período

1º Encontro: apresentação da metodologia da proposta didática “Mundo do Trabalho”, que utiliza o filme como
recurso didático. Aplicação do questionário II aos alunos participantes da pesquisa, para identificar a concepção Setembro e outubro–
desses sobre a metodologia. 2015– 9 - Encontros.
2º Encontro: aplicação do questionário III, com o intuito de gerar informações acerca dos conhecimentos prévios
dos alunos relacionados à temática que irá ser trabalhada: “Mundo do trabalho”.
3º Encontro - 1ª aula: reflexões sobre o consumo na sociedade capitalista. Aula expositiva e dialogada (Slides)
(anotações em diário de bordo).
4° Encontro - 2ª e 3ª aulas: exibição do filme A História das Coisas, de Annie Leonard (32 min.). Análise das
imagens e narrativas cinematográficas. Debate: observar se durante as discussões os alunos estabelecem relações
entre o que foi estudado sobre a temática e o que assistiram no filme (anotações em diário de bordo).
5° Encontro – 4ª e 5ª aulas: produção de poemas relacionados à temática do filme A História das coisas.
6º Encontro – 6ª aula: reflexões acerca das relações de trabalho e dos avanços tecnológicos no cotidiano. Aula
expositiva e dialogada (Slides) (anotações em diário de bordo).
7º Encontro – 7ª e 8ª aulas: exibição do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin (87 min.). Análise das
imagens e narrativas cinematográficas. Debate: observar se durante as discussões os alunos estabelecem relações
entre o que foi estudado sobre a temática e o que assistiram no filme (anotações em diário de bordo).
8º Encontro 9ª aula: produção de atividades relacionadas ao filme Tempos modernos. Os alunos deverão
mostrar, através de trabalhos como poemas, teatro e produções escritas, que conhecimentos históricos eles
conseguiram construir a partir dos filmes apresentados em sala de aula.
9º Encontro – avaliação – Aplicação do questionário V. O instrumento de investigação da proposta didática será
esse questionário, com questões relacionadas à metodologia da proposta didática “Mundo do Trabalho”. Tem-se
como intuito identificar e analisar as perspectivas dos estudantes quanto ao uso do filme como recurso didático
nas aulas de História. Objetiva-se, ainda, analisar se a metodologia que utiliza o filme como recurso didático no
processo de ensino e de aprendizagem de História na sala de aula vai além do senso comum de ilustrar as aulas e
se realmente contribui para que os alunos façam um paralelo entre seus conhecimentos prévios sobre o assunto e
desenvolvam o senso crítico, sentindo-se sujeitos partícipes da sociedade.

Fonte: Aula Oficina (BARCA, 2004).

No que tange à aplicação da proposta didática, nossa intenção orientou-se em dois


sentidos, inter-relacionados. Primeiro, perceber as ações e reações dos alunos em face da
realização das atividades; segundo, identificar dificuldades inerentes ao processo de aplicação
propriamente dito. As informações registradas no diário de bordo e nos questionários foram
utilizadas na análise sobre o uso do filme no ensino de História. Assim, o diário de bordo, os
planos de aula, os questionários, as fotografias e as atividades propostas, como a feitura de
poemas e encenações de partes dos filmes Tempos Modernos e A História das Coisas, são
parte do corpus documental da pesquisa.
No 1º encontro foi apresentada a metodologia da proposta didática “Mundo do
Trabalho”, que utiliza o filme como recurso didático, e foi elaborada com base na
Metodologia da Aula oficina.

54
O Quadro 2 expõe a metodologia da aula oficina.

Quadro 2 - Modelo de aula oficina

Paradigmas Educativos – modelo de aula oficina

O aluno, agente de sua formação com ideias prévias e experiências


Lógica diversas o professor, investigador social e organizador de atividades
problematizadoras.

Modelo do saber multifacetado e a vários níveis:


- senso comum,
Saber
- ciência,
- epistemologia.

Estratégias e recursos Múltiplos recursos intervenientes na aula oficina.

Avaliação Material produzido pelo aluno, testes e diálogos.

Efeitos sociais Agentes sociais.

Fonte: Barca (2004, p.133).

No modelo proposto pela Aula oficina, o professor é “um investigador social” que
deve, antes de tudo, “levantar e trabalhar de forma diferenciada as ideias iniciais que os
alunos manifestam tacitamente, tendo em atenção que estas ideias podem ser mais vagas ou
mais precisas, mais alternativas à ciência ou mais consentâneas com ela” (BARCA, 2004, p.
134).
Na Aula oficina, um componente muito importante é o processo de avaliação da
aprendizagem. Segundo Neves (2012),

[...] outro grande desafio que se coloca para o professor é a avaliação da


aprendizagem de seus alunos. Ao planejar o ensino, é importante que os objetivos
sejam bem definidos, de modo que o professor possa acompanhar o
desenvolvimento das aprendizagens de seus alunos e os avanços e dificuldades
apresentados individualmente por eles. (NEVES, 2012, p.23).

Na concepção da aula oficina, a avaliação é atividade central, na medida em que ela


diz respeito “à evolução das ideias dos alunos entre o momento inicial e o momento final da
intervenção educativa em foco”. No processo de avaliação, o aluno “poderá fazer um
exercício de análise de mudança conceitual” (BARCA, 2004, p. 139).
55
A metodologia da Aula oficina foi importante para conduzir nossa experiência, uma
vez que propõe observar o desenvolvimento das ideias dos alunos entre o momento inicial e o
momento final da ação docente.

Análise e Discussão de Alguns Dados

Os dados recolhidos e analisados, relativos ao perfil e as percepções dos alunos, no


que se refere ao uso do filme como recurso didático-pedagógico nas aulas de História,
remetem ao envolvimento da turma com o cinema.
Num momento prévio a implementação da experiência, aplicou-se o questionário
socioeconômico e cultural aos 24 alunos com os quais desenvolvemos a pesquisa, com o
emprego do questionário I, foi possível estabelecer seus perfis. Nesse questionário, constavam
questões sobre a idade do aluno, o local de moradia, a naturalidade, a profissão, as
possibilidades de continuação nos estudos, se o aluno já frequentou o cinema, quantas vezes
por semana assiste a filmes e qual seu gênero preferido.
A análise dos dados coletados no questionário I, evidenciou que a escola recebe
alunos de vários bairros. A maioria é de classe baixa e muitos não utilizam transporte para se
deslocar até a escola. Quanto ao gênero e faixa etária, dos 24 alunos participantes, 14 são do
sexo masculino e 10 do sexo feminino. As idades variaram entre 16 e 50 anos, como se pode
observar no quadro abaixo:
Quadro 3 – Perfil etário.
Quantidade de alunos Idade
3 16
2 18
5 20
2 22
6 24
2 38
2 42
1 48
1 50
Fonte: Dados da pesquisa.

O quadro 4, traz informações relativas às profissões exercidas por nossos


colaboradores:

56
Quadro 4 – Perfil do aluno trabalhador quanto à sua ocupação.
Quantidade de alunos Profissão
2 Empacotadores de supermercados
1 Recepcionista de hotel
1 Moto taxi
1 Proprietária de salão de beleza
2 Ajudantes em lava a jato
2 Pedreiros
2 Babás
4 Faxineiras
1 Eletricista
2 Chapas
2 Manicures
4 Não trabalhavam
Fonte: Dados da pesquisa.

Os dados relativos aos quadros 3 e 4 revelam que a turma investigada apresenta um


perfil etário bastante diversificado. Em um contexto no qual, a maioria dos estudantes são
trabalhadores, ensinar História se tornou um grande desafio para nós, pois os estudantes
chegam à escola cansados e pouco motivados. Nessas circunstâncias, coube-nos tornar o
processo ensino-aprendizagem de História o mais dinâmico possível.
Esse perfil nos alertou para cuidados que tivemos na escolha dos filmes a serem
trabalhados com a turma, por se tratar de público de faixa etária variada. Esse é um quesito
importante no resultado do trabalho com filmes em sala de aula. Com esse entendimento,
fizemos uso dos filmes A História das Coisas e Tempos Modernos, no intuito de promover
uma prática de ensino muito mais dinâmica e problematizadora. As atividades desenvolvidas
com esses alunos exigiram reflexões críticas sobre nossa própria prática, o que nos permitiu
ampliar nosso entendimento acerca do ato de ensina como uma ação integradora. Em
decorrência, nossos colaboradores puderam resgatar suas histórias de vida, tendo em vista que
já trazem à escola conhecimentos (des)construídos em seu dia a dia, os quais ainda são pouco
valorizados no mundo letrado e escolar.
Um novo olhar sobre a EJA trouxe para o âmbito escolar, questões referentes às
experiências vividas pelos alunos e as apreensões da história apresentada na mídia. Em razão
disso, os alunos foram questionados sobre a frequência com que assistiam a filmes e sobre as
formas de acesso a filmes.

57
Quadro 5 – Frequência com que assistem a filmes
Frequência Quantidade de alunos
Mais de três vezes por semana 7
Uma a três vezes por semana 5
Mais de três vezes por mês 6
Uma a três vezes por mês 6
Fonte: Dados da pesquisa.

Os resultados evidenciam que os filmes fazem parte do cotidiano dos nossos


colaboradores.
Quadro 6 – Formas de acesso a filmes.
Meios de acesso Alunos
Televisão 20
Internet 3
Cinema 1
Fonte: Dados da pesquisa.

Quanto às formas de acesso a filmes, constatamos que o principal meio é a televisão.


Conforme Marcos Napolitano (2009, p. 150), quando se trata de documento televisual,
‘alguns gêneros acabam se impondo como os mais relevantes e instigantes: o telejornal; a
teledramaturgia; telefilmes, sobretudo os seriados’.
No 1º encontro, além da apresentação da metodologia da proposta didática “Mundo
do Trabalho”, também foi aplicado o questionário II aos alunos participantes da pesquisa,
para identificar a concepção que os estudantes da Educação de Jovens e Adultos-EJA têm
sobre o uso de filmes como recurso didático no ensino de História.
No questionário II, nos ocupamos das seguintes perguntas: 1) Na sua opinião, é
possível aprender História assistindo a filmes? 2) Você se lembra de algum filme ao qual
assistiu e que aprendeu algo relacionado à disciplina de História; 3) O que você achou da
metodologia apresentada, a qual utiliza o filme como recurso pedagógico no ensino de História?
Quando questionados sobre a possibilidade de aprender História assistindo a filmes,
todos os alunos responderam ser possível aprender História por meio desse recurso. Assim
sendo, podemos afirmar que há o envolvimento da turma para com o cinema. Os alunos
afirmaram que o filme facilita a aprendizagem, o que significa que conseguem estabelecer
relações do conteúdo do filme com o conteúdo ministrado em sala de aula ou com saberes do
próprio cotidiano. No entanto, revelaram que há filmes a partir dos quais não conseguem
entender e nem estabelecer relações.

58
Quando indagados se lembravam de algum filme ao qual assistiram e se a partir
desses aprenderam algo relacionado à disciplina de História, a maioria dos alunos citou “os
filmes históricos”. As produções mais citadas foram Tróia, Cruzada e Gladiador. Percebe-se
que os filmes elencados pelos alunos são os chamados históricos, o que justifica o comentário
de um dos alunos. “Os filmes antigos mostram como tudo aconteceu de verdade (Informante
Marcos)13”.
Notamos que a maior parte dos alunos tem uma ideia do filme como representação da
verdade. No entanto, destacamos que muitos filmes apresentam fatos históricos sob uma
perspectiva equivocada, assim como há pessoas que acreditam naquilo que estão assistindo,
sem questionar que essa postura pode conduzi-las a erros de concepção histórica.
Quando indagados sobre um filme que ressaltou algum aspecto histórico, a aluna
Adriana acabou por narrar um que nenhuma relação tinha com a temática. Isso demonstra o
distanciamento existente entre o que queremos em nossas aulas e aquilo que é apreendido
pelo aluno.

Sim, assisti ao filme O Pequenino era Um Anão que seu amigo vestiu ele de bebê
colocou em frente da casa de uma mulher e a mulher adotou o anão como seu filho
mais ele queria dar um golpe neles pra tomar seu diamante ele fingia que era um
bebê mais era um bebê homem (Informante Adriana).

Dos dois filmes utilizados em nossa proposta didática, o filme Tempos Modernos
despertou mais interesse da turma, tanto na exibição quanto nas discussões e manifestações
escritas sobre a narrativa fílmica e os conteúdos históricos.

13
Ao transcrever as narrativas das entrevistas, buscamos conservar a oralidade da linguagem e, por
questões éticas, não expusemos os nomes verdadeiros dos nossos colaboradores. Portanto, nas remissões às falas
dos alunos, utilizamos nomes fictícios.
59
Figura 1 – Exibição do filme Tempos Modernos.

Fonte: Acervo da autora.

Quanto à exibição do filme A História das coisas, muitos alunos não demonstram
interesse e nem participaram das discussões propostas em nossa metodologia. Isso levou as
respostas aos questionários a retratarem aspectos mais relacionados ao filme de Charles Chaplin.
Esse resultado evidenciou que os filmes de ficção são mais acessíveis aos alunos do
que os documentários. Também ficamos mais tranquilos em relação ao trabalho que foi
desenvolvido com a produção Tempos Modernos, pois é certo que esse filme é repleto de
informações e situações a serem analisadas. Porém, dadas as características técnicas (preto e
branco, longo e mudo), nos deixou apreensivos quanto a como seria a recepção dos alunos.
Tínhamos receio de que, devido a essas características, o trabalho com esse filme pudesse ser
entediante para os alunos.
Como parte das atividades avaliativas, os alunos foram instados a realizar trabalhos
em grupo. Na perspectiva da Educação Histórica, o professor deve, nas atividades em grupo,
atuar como um investigador social, com vistas a possibilitar uma aprendizagem
intelectualmente mais desafiadora no processo ensino-aprendizagem de História. Freire
(2011) defende que o professor deve atuar como mediador do processo de construção do
conhecimento, utilizando um “método que seja ativo, dialógico, crítico e criticista” (FREIRE,
2011, p.94), possibilitando uma interação maior entre docente e discente e favorecendo o
processo ensino-aprendizagem.
No 9º encontro aplicou-se o questionário V, para investigar a metodologia depois da
aplicação da atividade. Quando questionados sobre o que eles acharam da proposta didática
60
utilizada, os alunos foram unânimes em afirmar que a proposta era muito interessante.
Fizemos as seguintes perguntas: 1) Depois da aplicação da proposta didática “Mundo do
Trabalho”, que utiliza o filme como recurso didático no ensino de História, em sua opinião
ainda é possível aprender História assistindo a filmes? 2) Você gostou das atividades das aulas
que utiliza como metodologia o filme como recurso pedagógico no ensino de História?
As respostas a essas questões estão transcritas abaixo.

Sim, gostei muito (Informante Adriana).


Muito boa e interessante, assim o desenvolvimento é bem melhor (Informante
Carlos).
Muito boa interessante e é muito importante para as pessoas que tenha mais
conhecimento da história (Informante José).
Os filmes podem trazer um modo mais fácil de aprendizagem. Trazendo até mesmo
os alunos menos interessados pelo tema despertarem curiosidade para saber mais
sobre os conteúdos (Informante Ana).

Percebemos, nessas narrativas, que os alunos participantes da pesquisa aprovaram o


uso do filme como recurso didático nas aulas de História.

Considerações Finais

O projeto desenvolvido com os alunos da Educação de Jovens e Adultos - EJA, sobre


o uso de filmes no ensino de História representou um instrumento definitivamente eficiente
para lidar com o desinteresse de nossos alunos pelo conhecimento histórico.
Com os debates propostos buscamos contribuir com reflexões que possam auxiliar os
professores que lidam com o ensino de história em âmbito geral e em contextos da
modalidade EJA, em particular, a utilizar de forma cuidadosa os filmes em sala de aula, por
entendermos que esse recurso, ainda que promova momentos lúdicos, deve proporcionar
aprendizado rico e denso.
Em nossa experiência com o uso de filmes em sala de aula, percebemos os nossos
limites em relação ao trato com esse recurso tecnológico, o que significa que devemos
procurar as devidas formações relativas a essa área. Diante da diversidade de recursos
didáticos que a sociedade moderna nos oferece, como o cinema, a TV e a fotografia, entre
outros, o professor de História, do ponto de vista metodológico, precisa se capacitar para o
uso dessas tecnologias, tendo em vista o uso adequado de cada ferramenta didática que se
encontra à nossa disposição.

61
Referências

BARCA, Isabel. Aula Oficina: do projeto à avaliação. In. ______. Para uma educação de
qualidade: atas da quarta jornada de educação histórica. Braga, Centro de Investigação em
Educação (CIED)/Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2004, p. 131-
144.
BITTENCOURT, Circe Maria. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4.ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
BRINGEL, Eliane Leite Barbosa. O Uso do Filme no Ensino e Aprendizagem de História
na Educação de Jovens e - EJA em Araguaína-TO. 2016. 118f. Dissertação (Mestrado
Profissional em Ensino de História) – Universidade Federal do Tocantins – UFT. Araguaína-
TO: 2016.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2009.
NEVES, Ana Maria Bergamin. Interações: raízes históricas brasileiras. In: ALVES, Maria
Cristina Carapeto Lavrador (Org.). A avaliação da aprendizagem em História. São Paulo:
Blucher, 2012, p. 23-26. (Coleção InterAções).
ROSENSTONE, Robert. A História nos filmes, os filmes na História. São Paulo: Editora
Paz e Terra, 2010.
SALIBA, Elias Thomé. A produção do conhecimento histórico e suas relações com a narrativa
fílmica. In: FALCÃO, Antônio Rebouças.; BRUZZO, Cristina. (Org.). Lições com cinema.
São Paulo: FDE, 1993, p. 87-107.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende; (Org.).
Jörn Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA Isabel. Aprender História: perspectivas da
Educação Histórica. Ijuí: Unijuí, 2009.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

Filmografias
A História das Coisas. Produção de Annie Leonard. EUA: Free range studios, 2007. (21min.),
color.
Tempos modernos. Produção de Charles Chaplin. EUA: Warner, 1936. (87min.), preto e
branco.

62
PARTE 02 –
ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS-EJA

63
04. ENSINO DE HISTÓRIA DAS MULHERES: EXPERIÊNCIA
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS - EJA EM IMPERATRIZ-MA
Jucileide da Silva Almeida14

Introdução

Neste artigo abordamos s relações existentes entre as questões gênero e a Educação


de Jovens e Adultos (EJA) como parte do resultado de uma pesquisa realizada no mestrado
Profissional em Ensino de História (ProfHistória), envolvendo especificamente os alunos/as
de uma turma da modalidade de Ensino em Educação de Jovens e Adultos do Ensino Médio.
Inicialmente, pensar na educação de homens e mulheres ou mais especificamente na
Educação de Jovens e Adultos se apresentou aos nossos olhos como a possibilidade de, com
base na oralidade, recuperar as experiências de vida desses sujeitos. Destarte, a EJA se
apresenta como uma modalidade de ensino que traz no seu discurso a restauração de um direito
negado a esses jovens e adultos, ressaltada em suas funções “reparadora”, “equalizadora” e
“qualificadora” (BRASIL, 2002, p.18). Nesse espaço, é atendido um público bem distinto, cujas
turmas são organizadas com grupos heterogêneos, desde a questão de habilidades cognitivas até
a diferença clara em relação à idade e à aprendizagem básica, havendo estudantes entre 19 e 49
anos numa mesma turma, representados aí por uma maioria de mulheres.
Assim, essa pesquisa coloca os/as estudantes no centro do diálogo e da investigação
histórica. Inicialmente, foi feito o levantamento do perfil dos/as estudantes da EJA. Assim,
fomos instigados a pensar novas metodologias de ensino que incluiriam as experiências
desses sujeitos. Relacionar suas experiências de vida com o conteúdo proposto com a
finalidade de desconstruir estereótipos, desnaturalizar versões e visões essencialistas e fazer
avançar relações mais igualitárias, entre homens e mulheres, foi um enorme desafio.
O trabalho se justifica pela oportunidade de refletir sobre a educação de Jovens e
adultos. Como afirma Daniela Auad (2016, p.14), “Educar homens e mulheres para uma
sociedade democrática e igualitária requer reflexão coletiva, dinâmica e permanente”. E é
nesse processo que esta pesquisa pretendeu colaborar, exatamente quando uma onda
conservadora pretende, entre várias outras coisas, impedir a discussão de gênero na escola e
reforçar as hierarquias, as desigualdades e os ordenamentos, que são extremamente

14
Mestra em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins em História – ProfHistória. Professora
da Educação Básica em Imperatriz - MA.

64
prejudiciais às mulheres. Acreditamos que a escola e as aulas de história possam tanto ser
espaço para legitimação do status quo, quanto de emancipação e mudança.
Nossa proposta de pesquisa, ao dar visibilidade a esses excluídos da história, busca
ajudá-los a compreender como o passado pode ser apropriado, interpretado e significado,
tendo em vista as questões colocadas pelo presente. Os estudantes foram instigados a dar
novas significações ao passado e ao presente a partir da temática feminina, considerando a
categoria de análise gênero.
Esta pesquisa também se justifica por ressaltar a relevância do sujeito na história. Ao
colocar a história de vida dos/as estudantes no centro da investigação histórica, eles vão
perceber que não há neutralidade na produção da história, também não é possível apagar os
narradores e que, portanto, a narrativa histórica é construída com base em problematizações e
posicionamentos muito claros. Essas disputas são bem claras na contemporaneidade,
principalmente quando observamos o espaço de luta da disciplina de história. Há pressões por
parte daqueles que se sentem excluídos, como homens e mulheres em suas distinções de
raça/etnia, idade, classe e religião. Assim, pesquisas como a nossa contribuem para fazer
avançar as reflexões sobre as questões de gênero nas instituições de educação básica.
Ora, sabe-se que gênero, na condição de categoria de análise, ajuda a perceber os
significados, os símbolos e as diferenças construídas histórica e culturalmente para cada um
dos sexos. Assim, colocar em questionamento, visões estereotipadas sobre o masculino e o
feminino, ajuda a desnaturalizar as hierarquias.

Breve História da Educação de Jovens e Adultos

A EJA foi se constituindo dos avanços e mudanças significativas na modalidade de


educação de adultos, fruto das lutas sociais como MEB, CPC, MCP, Rede - MOVA, os Fóruns
EJA, com base nos ENEJAs, nos EREJAs, além de leis próprias para Educação de Jovens e
Adultos. A educação de jovens e adultos está presente nos vários momentos da história, com
características próprias e específicas ao longo do tempo.
Na década de 20, há um empenho por parte de movimentos populares e civis para o
fim do analfabetismo. Há também, nesse período, “A pressão trazida pelos surtos de
urbanização, nos primórdios da indústria nacional, impondo a necessidade de formação de
uma mão de obra local, aliada à importância da manutenção da ordem social nas cidades [...]”,
impulsionando melhorias na educação. É desse período, o Decreto n.º 16.782/A, de 13 de
janeiro de 1925, Lei Rocha Vaz ou Reforma João Alves, que estabelece a criação de escolas
noturnas para adultos (BRASIL, 2002, p.14).
65
A partir de 1930, a educação de adultos ainda está vinculada à “educação elementar” e
o que se tem concernente à educação de adultos está na discussão do PNE (Plano Nacional de
Educação) a partir da constituição de 1934 ou mesmo algumas questões como a ação de
Paschoal Lemme, educador participante da reforma educativa do Distrito Federal de 1933 a
1935, “o primeiro educador a publicar um trabalho dedicado ao ensino dos adultos e a assumir
efetivamente a tarefa de organizar cursos para operários no Distrito Federal, nos primeiros
anos da década de 30”. Essa experiência do Distrito Federal chama a atenção para as
possibilidades no campo da educação de adultos (PAIVA, 2015 p.52).
Apenas no decorrer da década de 40 a educação de adultos se firma como questão de
política nacional (DI PIERRO, 2005). Cria-se o Fundo Nacional de Ensino Primário (1942),
“fundo que deveria realizar um programa progressivo de ampliação da educação primária que
incluísse o Ensino Supletivo para adolescentes e adultos, (...) estabelecendo que 25% dos
recursos deveriam ser aplicados nesses supletivos” (HADDAD e DI PIERRO, 2000, p.111).
Acontecem também nesse período a criação do Serviço de Educação de Adultos (SEA) –
(1947), a Campanha de Educação de Adolescente e Adulto (CEAA) – (1957), a Campanha de
Educação Rural (1952) e a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo – (1958)
(DI PIERRO; JOIA; MESAGÃO, 2001, p.59).
Já na década de 60, verifica-se a difusão da ideia de educação popular, tendo à frente
estudantes e intelectuais que desenvolviam novas perspectivas de cultura e educação junto a
grupos populares e religiosos. Entre alguns grupos, destacam-se o Movimento de Educação de
Base (MEB), movimento que nasceu em 1961 em parceria com o governo, e a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cujo elemento principal era a difusão da educação via
rádio. A estratégia de educação do MEB residia justamente numa tentativa de fazer com que a
educação se estendesse aos lugares que normalmente não chegava. Kreutz (1979, p.65) pontua
que: “(...) esse sistema educativo se mostrou adequado [...] onde a escassez de comunicações,
de recursos materiais e, principalmente, humanos, mantém a maioria da população em nível
cultural, econômico e social incompatível com a dignidade humana”.
O Centro Popular de Cultura (CPC) nasce em 1961 da intenção dos artistas de terem
uma participação política de maneira mais ativa e que se aproximasse também do povo, como
uma maneira de estimulá-lo a participar das discussões sociais e políticas da sociedade. Nas
suas apresentações, o CPC procurava trazer elementos relacionados às problemáticas da
sociedade, tendo como destaque o teatro de rua, que encenava em meio ao povo, dando
possibilidade para que este interferisse no desfecho da encenação e dela fizesse parte. De
acordo com Kreutz (1979, p. 54), “o teatro tinha que servir à luta do povo como instrumento
66
de sua conscientização”. Os artistas queriam mais, e inspirados no Movimento de Cultura
Popular, considerando a ideia de alfabetização para os adultos de Freire, também passaram a
desenvolver centros com essa finalidade, ou seja, alfabetização de adultos.
O Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife, tendo à frente as ideias do
professor Paulo Freire15, defendia uma educação que levasse em conta a realidade dos alunos.
Freire deixava claro a “importância da participação do povo na vida pública nacional e o
papel da educação para sua conscientização” (BRASIL, 2002, p.15).
Com o golpe militar em 1964, houve a prisão de Paulo Freire e surge, em oposição a
suas ideias, em 1965, a Cruzada de Ação Básica Cristã, que fica à frente da escolarização
básica de jovens e adultos. Em 1967, foi criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização
(MOBRAL), que desconfigurava o ideal de alfabetização de adultos, ambos de caráter
conservador. Enfim, segundo Di Pierro, Joia e Ribeiro (2001), estes programas legitimavam o
governo de 1964 e, também, os interesses internacionais e o faziam segundo um controle
rígido e centralizado de orientação, supervisão e produção de material didático.
Em 1971, a Lei Federal de número 5.692/71 regulamenta o ensino supletivo, que se
destinava a “suprir a escolarização regular para adolescentes e adultos que não a tinham
seguido ou concluído na idade própria” (BRASIL, 2002, p.16). 16 Tendo como referência o
parecer n.º 699/71, tinha como objetivos compensar ou repor a escolarização, complementar a
escolarização por meio de cursos de aperfeiçoamento, visando também à aprendizagem e à
qualificação voltada para o mercado de trabalho. De acordo com Haddad e Di Pierro (2000):

O Ensino Supletivo foi apresentado à sociedade como um projeto de escola do


futuro e elemento de um sistema educacional compatível com a modernização
socioeconômica observada no país nos anos 70. Não se tratava de uma escola
voltada aos interesses de uma determinada classe, como propunham os movimentos
de cultura popular, mas de uma escola que não se distinguia por sua clientela, pois a
todos devia atender em uma dinâmica de permanente atualização. [...] o Ensino
Supletivo se propunha priorizar soluções técnicas, deslocando-se do enfrentamento
do problema político da exclusão do sistema escolar de grande parte da sociedade (
HADDAD e DI PIERRO, 2000, p. 117).

15
Paulo Freire (1921 - 1997) – foi professor efetivo de filosofia e história da educação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Recife, tornou-se conhecido no Brasil no início de 1963 quando
seu método de alfabetização de adultos foi divulgado em ampla campanha publicitária pela Secretaria de
Educação do Estado do Rio Grande do Norte, na época fora designado pelo ministro Paulo de Tarso para a
presidência da recém-criada Comissão Nacional de Cultura Popular e, em março do ano seguinte, assumiu a
coordenação do Programa Nacional de Alfabetização (BEISIEGEL, 2010).O método de Freire passa por algumas
etapas: 1º- levantamento do universo vocabular dos grupos com quem se trabalhará; 2º- escolha das palavras
selecionadas do universo vocabular pesquisado; 3º- criação de situações existenciais, desafiadoras; 4º-
elaboração de fichas-roteiro – fichas que deverão servir como subsídios; e 5º- Elaboração de fichas com a
decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores”. (FEITOSA 1999, p. 52).
16
Segundo Carneiro (2004, p.26), não se pode considerar a Lei 5.692 propriamente uma Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. Primeiro, porque lhe faltava um sentido de inteireza, (...) já que deixava de lado o ensino
superior. Depois, a substância educativa, energia vivificadora de uma LDB, era substituída pela mera ‘razão
técnica’, com inegáveis prejuízos para os aspectos de essencialidade do ‘processo educativo’ (grifos do autor).
67
Com a redemocratização, é extinto o Mobral, que tem a Fundação Educar como
substituta, também extinta em 1990. Nesse período, o Brasil participa da Conferência
Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, onde foi aprovada a Declaração
Mundial sobre Educação para Todos, tornando-se, segundo Paula e Oliveira (2011, p.23), no
âmbito internacional, “um marco desse processo por estender aos povos do mundo o
compromisso de proporcionar oportunidades básicas de aprendizagem na compreensão da
educação como um direito universal”.
Ainda na década de 90, tem-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN 9394/96), que apresenta uma seção em que reafirma o compromisso com a
Educação de Jovens e Adultos. Esta lei trata da Educação de Jovens e Adultos no Título V,
capítulo II, seção V, artigos 37 e 38, como modalidade da educação básica, superando sua
dimensão de ensino supletivo (CNE, 2000), assinalando que a Educação de Jovens e Adultos
é destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudo na idade certa,
mantendo ainda cursos e exames supletivos, que compreendem a base comum do currículo,
oportunizando o prosseguimento nos estudos no ensino regular (CARNEIRO, 2004). Em
2000, foram apresentadas as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e
Adultos (DCN da EJA), marcos legais da Educação de Jovens e Adultos.
Certamente, constata-se a riqueza das discussões, desafios e avanços, mais também
contradições na Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Ela não surgiu com o intuito de
favorecer a emancipação, posto que, em muitos momentos, era apenas para manter um
controle e garantir mão de obra, em outros momentos, para suplência e sentido
compensatório. Porém, isso vem mudando pelo empenho de grupos que defendem a educação
como direito e garantia de cidadania, sendo importante destacar que a busca pela melhoria da
educação não é só uma luta pontual da EJA, mas da Educação Básica no geral.
A seguir faz-se uma abordagem às questões de gênero relacionadas ao processo de
escolarização dos/as alunos/as da EJA.

Alunos/as da EJA Frente às Questões de Gênero

A escola, assim como a família, a igreja e outras instituições sociais ressaltam e


utilizam as diferenças entre homens e mulheres, transformando-as em desigualdade. Nesse
sentido, Daniela Auad (2016, p.14), propõe a coeducação, ou seja, “refiro-me a um modo de
gerenciar as relações de gênero na escola, de maneira a questionar e reconstruir as ideias
sobre o feminino e masculino”. Para a autora, não basta colocar meninos e meninas na mesma
68
escola, pois a escola mista se constitui em um meio e em um pressuposto necessário, mas não
suficiente para a coeducação. Por meio de um minucioso trabalho de pesquisa de campo, ela
descreve e analisa a dinâmica de gênero dentro e fora da sala de aula. Ela passa pela relação
dos professores com os alunos e alunas, vai para as brincadeiras e ocupação dos espaços no
pátio e na quadra de esportes, recorre às teorias e debates contemporâneos em defesa de uma
educação para a igualdade e diferença versus desigualdade.
Jeffrey Weeks, ao pensar o corpo e a sexualidade, atenta para o fato de nos dois
últimos séculos termos passado a compreender o “sexo” associado às diferenças anatômicas
entre homens e mulheres, o que nos divide são os corpos diferenciados. Todavia ressalta que
nossas definições, crenças, convenções e identidades não são apenas consequência de simples
evolução, pois “elas têm sido modeladas no interior de relações definidas de poder” (WEEKS,
2016, p.42). Nesse sentido, embora as “distinções anatômicas sejam geralmente dadas ao
nascimento, os significados a elas associados são altamente históricos e sociais”, daí a
utilização de gênero para descrever a diferenciação historicamente construída entre homens e
mulheres (WEEKS, 2016, p.43).
A educação de jovens e adultos é diretamente impactada por questões econômico-
sociais dos jovens. Outro fator é a própria dificuldade em lidar com a escola, seu ritmo,
normas, conteúdos e didática de ensino, distantes dos interesses dos/as estudantes.

Há uma ou duas décadas, a maioria dos educandos de programas de alfabetização e


de escolarização de jovens e adultos eram pessoas maduras ou idosas, de origem
rural, que nunca tinham tido oportunidades escolares. A partir dos anos 80, os
programas de escolarização de adultos passaram a acolher um novo grupo social
constituído por jovens de origem urbana, cuja trajetória escolar anterior foi
malsucedida. O primeiro grupo vê na escola uma perspectiva de integração
sociocultural; o segundo mantém com ela uma relação de tensão e conflito aprendida
na experiência anterior. Os jovens carregam consigo o estigma de alunos-problema,
que não tiveram êxito no ensino regular e que buscam superar as dificuldades em
cursos aos quais atribuem o caráter de aceleração e recuperação. Esses dois grupos
distintos de trabalhadores de baixa renda encontram-se nas classes dos programas de
escolarização de jovens e adultos e colocam novos desafios aos educadores, que têm
que lidar com universos muito distintos nos planos etários, culturais e das
expectativas em relação à escola. Assim, os programas de educação escolar de
jovens e adultos, que originalmente se estruturaram para democratizar oportunidades
formativas a adultos trabalhadores, vêm perdendo sua identidade, na medida em que
passam a cumprir funções de aceleração de estudos de jovens com defasagem série-
idade e regularização do fluxo escolar (HADDAD e DI PIERRO,2000, p. 127).

Os jovens e adultos da EJA têm muita dificuldade de concluir seus estudos pela falta
de estrutura, e muitos não conseguem conciliar estudo e trabalho, e nem sempre as empresas
liberam os estudantes. Algumas mães não têm onde deixar os filhos no período em que vão à
escola. Ou seja, são várias e diferentes problemáticas. Porém, essas mesmas dificuldades

69
podem se tornar alicerces para continuação dos estudos, numa tentativa de que a situação
vivida não persista e não se perpetue nas gerações seguintes.
Guacira Lopes Louro (2000, p.21), ao tratar das pedagogias da sexualidade, ressalta a
importância da educação escolar para o autodisciplinamento dos sujeitos. Assim, um corpo
escolarizado é um corpo disciplinado, no sentido de conseguir ficar sentado por várias horas
seguidas, de desenvolver habilidades para gestos e comportamentos esperados, como saber
falar e calar para ouvir, além do autocontrole da raiva e das “explosões” ou manifestações
impulsivas e arrebatadoras. A educação escolarizada molda os sujeitos, capacitando-os a usar
as mãos, os olhos e ouvidos de forma particular. Em suas palavras:

Homens e mulheres adultos contam com determinados comportamentos ou modos


de ser (que) parecem ter sido "gravados" em suas histórias pessoais. Para que se
efetivem essas marcas, um investimento significativo é posto em ação: família,
escola, mídia, igreja, lei participam dessa produção. Todas essas instâncias realizam
uma pedagogia, fazem um investimento que, frequentemente, aparece de forma
articulada, reiterando identidades e práticas hegemônicas enquanto subordina, nega
ou recusa outras identidades e práticas (LOURO, 2000, p.16).

Portanto, para a referida autora, diferentes instituições sociais como família, escola,
mídia e igreja participam da produção de sujeitos femininos e masculinos dentro das normas
consideradas “normais”.
Nas últimas décadas, tem-se intensificado a produção de análises sobre as relações de
gênero. Nem a anatomia nem a natureza explicam o domínio da mulher pelos homens, mas a
dominação social interpreta, utiliza, atribui um sentido à diferença biológica. As teorias de
gênero enfatizam a construção cultural das desigualdades entre os sexos. Então, o gênero pode
ser entendido como a tentativa de compreender como a diferença sexual é definida, ou seja,
como as mulheres estão sendo vistas em relação aos homens. Para Soihet (1997), gênero tem
sido, desde a década de 1970, um termo usado para teorizar a questão da diferença sexual.
Segundo ela, a palavra gênero indica uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso
dos termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Sendo assim, ele se torna um modo de indicar
as “construções sociais”, ou seja, a criação social dos papéis próprios aos homens e mulheres.
Certamente, pensar as relações entre os sexos, na sua perspectiva cultural, e os seus
significados específicos pressupõe uma reflexão sobre a “diferença”. Diferença entre homens
e mulheres, entre gênero e raça, entre gênero e classe, entre gênero e cultura. Para Eni de
Mesquita Samara, o conceito de gênero é construído diferentemente nas diversas classes
sociais (SAMARA, 1997). Pensar o masculino e o feminino é mergulhar em nossa
sensibilidade. Para Michelle Rosaldo (1980, p.9):

70
A dominação masculina é evidenciada, acredito, quando observamos que as
mulheres em quase todos os lugares têm a responsabilidade diária de alimentar e
cuidar das crianças, dos maridos e parentes; enquanto que as obrigações masculinas
tendem a ser menos regulares e mais baseadas em laços extrafamiliares, certamente
o trabalho do homem em casa não vai ser sancionado pela força da esposa
(MICHELLE ROSALDO, 1980, p.9).

A mulher ainda é a grande responsável pelo trabalho doméstico. Compreende-se assim


a permanência das barreiras, e apesar das lutas empreendidas no passado por maior igualdade,
o homem não assumiu as funções do lar. Ela ainda é a responsável, em sua maior parte, pelo
trabalho em casa, nos afazeres domésticos, na lida com os filhos. Segundo Ângela Davis
(2016, p.225), “as tarefas domésticas (cozinhar, lavar a louça, arrumar a cama, varrer o chão,
ir às compras etc.), consomem, em média, de 3 mil a 4 mil horas do ano de uma dona de
casa”. A autora destaca ainda que:

Por mais impressionante que essa estatística seja, ela não é sequer uma estimativa da
atenção constante e impossível de ser quantificada que as mães precisam dar às suas
crianças. Assim como as obrigações maternas de uma mulher são aceitas como
naturais, seu infinito esforço como dona de casa raramente é reconhecido no interior
da família. As tarefas domésticas são, afinal de contas, praticamente invisíveis:
Ninguém as percebe, exceto quando não são feitas (...).
A nova consciência associada ao movimento de mulheres contemporâneas encorajou
um número crescente de mulheres a reivindicar que seus companheiros ofereçam
algum auxílio nesse trabalho penoso. Muitos homens já começaram a colaborar com
suas parceiras em casa (...). Mas quantos desses homens se libertaram da concepção
de que as tarefas domésticas são ‘trabalho de mulher’? Quantos deles não
caracterizariam suas atividades de limpeza da casa como uma ‘ajuda’ às suas
companheiras? (DAVIS, 2016. p.225).

Segundo Flávia Biroli, “a divisão desigual das funções e o usufruto diferenciado do


tempo contribuem para reproduzir as hierarquias de gênero na família e fora dela” (BIROLI
2014a, p.36). Assim:

Nas condições atuais, a jornada de trabalho das mulheres reduz seu tempo para o
lazer, para atividades coletivas e para o engajamento político. Isso ocorre em
gradações que expõem a posição desvantajosa das mulheres relativamente à dos
homens e a realidade distinta das mulheres de diferentes classes sociais.
Esgotamento e falta do tempo para o autodesenvolvimento fazem parte do cotidiano
de muitas mulheres. Mas a impossibilidade do controle autônomo sobre o próprio
tempo é, sem dúvida, uma realidade do capitalismo que se impõe a mulheres e
homens e é mais inflexível entre os trabalhadores menos profissionalizados e com
maior vulnerabilidade ao desemprego (BIROLI, 2014a, p.40).

Quando a mulher tem filhos, seu tempo livre é mínimo. Ela não se qualifica e fica
relegada aos cargos mais baixos numa empresa. Segundo Perrot (2007, p.168), apesar de
muitas das conquistas femininas (“igualdade dos sexos”, “domínios do saber e poder”,
“liberdade”), há uma grande distância entre a teoria e a prática,

(...) muitos desvios subsistem. Assim no acesso às responsabilidades, às profissões, à


igualdade salarial etc. Há zonas que resistem: o religioso, o econômico, o político,

71
(...) o doméstico, que é pouco compartilhado. A criação que se esquiva. Com
frequência, as fronteiras se deslocam, mas os terrenos de excelência masculina se
reconstituem. De tanto que a hierarquia dos sexos está longe de ser dissolvida. As
aquisições são frágeis, reversíveis. Recuos são sempre possíveis. (...) Efeitos
perversos, inesperados, se produzem: solidão, confronto, violência conjugal ou de
outro tipo, talvez mais visível ou realmente agravada pela angústia identitária,
marcam as relações entre os sexos, quase sempre tensas (PERROT, 2007 p.169).

Os/as estudantes da EJA mostram como essas hierarquias de gênero ainda estão postas
e o quanto os “terrenos de excelência masculina” (PERROT, 2007, p.169) são constantemente
reforçados pelas lideranças religiosas, pelos/as professores/as e pela mídia. “Grande parte da
culpa de os homens não ajudarem suas esposas é culpa das mães que não ensinam os filhos
homens a fazer as tarefas domésticas” (Ildenes, caderno de campo 16/02/2017); “eu aprendi,
minha mãe me ensinou sempre que deveria aprender a fazer as coisas, que não é só dever da
mulher fazer” (Ildenes, roda de conversa, 03/04/2017); “o marido quando chega do serviço
não ajuda em nada” (Delbath, caderno de campo 16/02/2017); “(...) o homem acha que não
tem obrigação de pegar uma roupa para lavar porque ele vai se achar inferior à mulher, (...) a
responsabilidade de uma casa [cuidar] não é só da mulher, a responsabilidade de educar um
filho não é só da mulher, é do pai também” (Valdo, roda de conversa, 03/04/2018).
As estudantes da EJA destacam que as mulheres têm funções a cumprir com o esposo,
com a casa e que o homem também tem seus deveres, ainda pautados no modelo de família
tradicional. Elas fazem uma separação baseada no sexo, ou seja, há funções masculinas e
femininas diferenciadas. Elas não percebem que, ao assumir sozinhas as funções domésticas,
estão reforçando a dominação masculina, dificultando sua participação mais ativa na
sociedade, pois “a mulher com menos tempo livre, menos possibilidade tem de participar da
política de decisões e normas que afetam as próprias mulheres” (BIROLI 2014a p.32). A
mulher não tem tempo para refletir sobre sua situação, para propor ou lutar por políticas que
evidenciem sua ação na sociedade, seja no trabalho doméstico, seja no cuidar do outro, seja
no trabalho fora do lar.
Tedeschi (2012, p.56) ressalta que as representações construídas em relação às
mulheres no passado delimitaram lugares para elas ainda presentes no imaginário de muitos:
“os discursos e saberes acabaram por naturalizar o papel e as funções do feminino”, passando
a “demarcar uma série de atribuições (...), docilidade, cuidado dos filhos, emotividade, (...)
características calcadas na ideia de uma boa mãe”.
Ainda segundo o autor, as representações não são neutras, nem foram edificadas por
considerar que essas qualidades e capacidades femininas, de mãe, educadora, cuidadora do
lar, submissa sejam inatas, mas, sim, “por razões que surgiram dentro de um sistema cultural

72
ideológico” (TEDESCHI, 2012, p.105). O conceito de representações sociais surge
justamente de “uma crítica aos modelos que reduziam a participação do sujeito, tanto na
produção autônoma da história quanto da consideração de sua capacidade criativa através de
simbólica função complexa” (SOUZA FILHO, 2004, p.110).
Lahlou (2014, p.106 -107), aparando-se em Moscovici, postula que:

Toda representação é composta de figuras e de expressões socializadas.


Conjuntamente, uma representação social é a organização de imagens e linguagem,
porque ela realça e simboliza atos e situações que se tornam comuns.
Encarada de um modo passivo, ela é apreendida a título de reflexo, na consciência
individual ou coletiva, de um objeto, de um feixe de ideias que lhe são exteriores.
/.../. É neste sentido que nos referimos frequentemente à representação (imagem) do
espaço, da cidade, da mulher, da criança, da ciência, do cientista e daí por diante. A
bem dizer, devemos encará-la de um modo ativo, pois seu papel é modelar o que é
dado do exterior, na medida em que os indivíduos e os grupos se relacionam, de
preferência com os objetos, os atos e as situações constituídos por (e no decurso de)
uma infinidade de interações sociais.

As representações sociais são reiteradamente repetidas a ponto de serem naturalizadas.


Concordamos com Piscitelli (2002, p.8), quando assinala que, mudando a maneira como as
mulheres são percebidas, seria possível mudar o espaço social por elas ocupado. Nesse
sentido, os estudos feministas, ao privilegiarem discussões sobre a “categoria de gênero, em
detrimento de mulheres”, tratam de “propor a desconstrução da generalização mulheres, que
remete a uma entidade social branca e de classe média, para considerar as multiplicidades e,
sobretudo, para pensar as diferenças sexuais como construções sociais e culturais” (RAGO,
1995, p.88). Gênero e sexo não são sinônimos, pois, enquanto as diferenças sexuais são
físicas, as diferenças de gênero são socialmente construídas. De acordo com Strey (2013, p.
158), o gênero depende de “como a sociedade vê a relação que transforma um macho em um
homem e uma fêmea em uma mulher, cada cultura tem imagens prevalecentes do que homens
e mulheres devem ser”.
Para Jean Scott, o gênero como categoria de análise nasceu da necessidade de
desnaturalizar as desigualdades entre homem e mulher e relacioná-las com a questão do
poder. Assim, segundo ela: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar
significado às relações de poder”. Tendo como referência essa definição, a autora elenca os
símbolos culturais que remetem a representações simbólicas como as figuras de Eva e Maria.
Conceitos normativos da religião, da política, da educação, da ciência, definindo o masculino
e o feminino, “o significado de homem e mulher”, o que Scott pontua como “uma forma de
clarificar e especificar como se deve pensar o efeito do gênero nas relações sociais e
institucionais”. Já sua segunda proposição articula a questão de poder, gênero é “recorrente”
73
na significação do poder, ou seja, é um espaço importante para entendermos a organização da
vida social (SCOTT, 1995, p. 86-88). Essas posições de sujeito são pautadas principalmente
pelas relações de poder.

Contribuições do Trabalho

Com este trabalho, procuramos apontar possibilidades de discussão da temática de


gênero segundo as experiências dos/das estudantes da Educação de Jovens e Adultos. Ao
traçar o percurso e a característica própria da EJA, buscamos perceber as representações dos/
estudantes sobre o feminino e o masculino, possibilitando uma reflexão de como esses papéis
são naturalizados pela maneira como somos construídos e educados, propusemos uma
metodologia que facilite e amplie as perspectivas e interesses dos/as estudantes da EJA.
Foi construída uma sequência didática, partindo da investigação da história de vida 10
alunos/as, sendo 5 homens e 5 mulheres. Na sequência foi pedido que todos/as os/as estudantes
apresentassem três características que definissem o masculino e o feminino, sendo em seguida
discutidas essas representações nas de rodas de conversa, em sala de aula. Discutimos, a partir
da vivência de cada um refletimos sobre a construção histórica dos sujeitos, como nos tornamos
homens e mulheres, como essas relações binárias e hierárquicas marcam nossas vidas hoje. As
entrevistas, a partir da metodologia da história oral de vida ajudaram no processo de
aprofundamento das reflexões sobre a constituição histórico/cultural dos sujeitos.
Foi perceptível a mudança de posicionamento e de olhares, considerando as
narrativas e discussões em sala, além de oportunizar um contato com as discussões de gênero.
Eles/elas se sentiram mais integrados ao sistema educacional, aprendendo com seus pares, na
roda de conversa, nas discussões nos grupos, na análise das imagens. Enfim, a possibilidade e
a riqueza das discussões de gênero no espaço escolar, é um passo no sentido de
questionamento das imposições normativas de gênero. Enfim, o uso de diferentes
metodologias participativas, no espaço escolar, melhora a interação entre os estudantes,
estimula sua participação tirando-os da passividade. A construção coletiva é mais rica e
ultrapassa os muros da escola. No entanto, não temos como nos despir das dificuldades e dos
desafios que um trabalho mais democrático e participativo exige, mas quando investimos na
autonomia dos/as estudantes, comprovamos sua importância para uma educação de qualidade
e, para a conquista da cidadania.
Como professora, que trabalha com o público da EJA, é muito importante a
valorização da história desses alunos/as, suas problemáticas e a ressignificação das questões
74
de gênero na disciplina de história. Enfim, o ProfHistória possibilitou um olhar mais sensível
para educação e para a valorização dos conhecimentos dos/as alunos/as.

Referências

ALMEIDA, Jucileide da Silva. Ensino de história das mulheres: experiências na educação


de jovens e adultos – EJA em Imperatriz – MA (2017). Dissertação (Mestrado Profissional em
Ensino de História) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína-TO, 2018.
AUAD, Daniela. Educar Meninas e Meninos: relações de gênero na escola. 2 ed. São Paulo:
Contexto, 2016.
BIROLI, Flávia. Família: novos conceitos. São Paulo. Editora Fundação Perseu Abramo.
2014a. (Coleção o que saber).
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
história /Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC /SEF, 1998c. Disponível em: <
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_5a8_historia.pdf>. Acesso em: 26/03/2018.
______. Ministério da Educação. Proposta Curricular para a educação de jovens e
adultos: segundo segmento do ensino fundamental: 5ª a 8ª série: Introdução / Secretaria de
Educação Fundamental, 2002.
______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.
CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva: artigo a artigo. –
Petrópolis, RJ: Vozes, 11ª ed. revista e atualizada. 2004.
CNE. Câmara de Educação Básica. Parecer CNE/ CEB n.º 11, de 10 de maio de 2000.
Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 9 jun. 2000. Seção 1e, p.15.
DI PIERRO. Maria Clara. Notas sobre a redefinição da identidade e das políticas públicas de
educação de jovens e adultos no Brasil. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 26, n.92, p.
1115-1139, Especial – Out. 2005.
______; JOIA, Orlando e RIBEIRO, Vera Masagão. Visões da educação de jovens e adultos
no Brasil. Cadernos Cedes, ano XXI, nº 55, novembro/2001.
HADDAD, Sérgio e DI PIERRO. Maria Clara. Escolarização de Jovens e Adultos. Revista
Brasileira de Educação. n.14. Mai/Jun/Jul/Ago. 2000. p.108 - 130.
KREUTZ, Lúcio. Os movimentos de educação popular no Brasil, de 1961- 64. Rio de
Janeiro. Fundação Getúlio Vargas. Instituto de Estudos Avançados em Educação. Departamento
de Filosofia da Educação. (Dissertação de Mestrado). f.121. Rio de Janeiro. 1979.
LAHLOU, Saadi. Difusão das Representações e Inteligência Coletiva Distribuída. In:
ALMEIDA, Ângela Maria de; SANTOS Maria de Fátima de Souza; TRINDADE, Zeidi
Araújo (Orgs). Teoria das Representações Sociais: 50 anos. - Brasília: Technopolitik, 2014.
p.77 -132.
LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: Pedagogias da sexualidade. 2. ed.
Autêntica. Belo Horizonte. 2000. Traduções: Tomaz Tadeu da Silva.

75
ROSALDO, Michelle. O uso e o abuso da Antropologia: reflexões sobre o feminismo e o
entendimento intercultural. 1980 (Publicado originalmente em Signs: Journal of Women in
Culture and Society. Spring 1980. Vol. 5. n.3: 389-417. Tradução de Cláudia Fonseca. Maria
Noemi Castilhos Brito e Rafael Rossotoloris). Disponível em :<http://repositorio.ufsc.br/
xmlui/handle/123456789/1581>. Acessado em: 10/03/2017.
PAIVA, Vanilda Pereira. História da Educação Popular no Brasil: educação popular e
educação de adultos. Edições Loyola. 7ª edição. São Paulo. 2015.
PAULA, Cláudia Regina de; OLIVEIRA, Marcia Cristina de. Educação de jovens e adultos:
a educação ao longo da vida. Curitiba, Ibpex, 2011.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. [tradução Ângela M. S. Côrrea]. – São
Paulo: Contexto. 2007.
PISCITELLI, Adriana. Recriando a (categoria) Mulher? In: ALGRANTI, Leila (org.). A
prática feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos, nº 48, Campinas-SP, IFCH –
Unicamp, 2002, pp.7-42. Disponível em: <http://www.culturaegenero.com.br/download/
praticafeminina.pdf>. Acesso em: 20/10/2017.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: Algumas reflexões sobre a ética
na História Oral. Proj. História. São Paulo. (15), abr. 1997 (Conferências).
RAGO, Margareth. As mulheres na historiografia brasileira. In: SILVA, Zélia Lopes (Org.).
Cultura Histórica em Debate. São Paulo: UNESP, 1995. Disponível em: <http://historia
cultural.mpbnet.com.br/artigos.genero/margareth/RAGO_Margareth-as_mulheres_na_historio
grafia_brasileira.pdf>. Acesso em: 20/01/2018. pp. 81-91
RIBEIRO, Vera Mesagão. et al. Tempo, espaço e cultura: ciências humanas: ensino médio.
Educação de Jovens e Adultos. 1. ed. São Paulo. Global. 2013 (Coleção Viver, aprender).
SAMARA, Eni de Mesquita. O discurso e a construção da identidade de gênero na América
Latina. In: MATOS, Maria Izilda S. de. SOLER, Maria Angélica (Orgs.). Gênero em debate:
trajetória e perspectivas na historiografia contemporânea. São Paulo. Educ, 1997.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade.
Porto alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99. Revisão de Tomaz Tadeu da Silva.
SOIHET, Rachel. História, mulheres, gênero: Contribuições para um debate. In: AGUIAR,
Neuma (Org.). Gênero e ciências humanas: desafio às ciências desde a perspectiva das
mulheres. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos. 1997. (Coleção Gênero; v.5).
SOUZA FILHO, Edson. A. de. Análise de Representação Social. In: SPINK, M. J. O
conhecimento no Cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social.
São Paulo: Brasiliense, 2004.
STREY, Marlene Neves. Gênero. In: STREY, Marlene Neves et al. Psicologia social
contemporânea: livro-texto. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. pp. 156-170. (ISBN 978-85-326-
4746-7 – Edição digital).
TEDESCHI, Losandro Antônio. O sentido da memória e das relações de gênero na história de
migração de mulheres camponesas brasiguaias. Proj. História, São Paulo, n.45, pp. 169-186,
Dez. 2012.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 15. ed. – São Paulo: Cortez, 2007.
(Coleção temas básicos de pesquisa-ação).
76
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira.
TOURTIER-BONAZZI, Chantal. Arquivos: propostas metodológicas – o desenvolvimento
das entrevistas. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes (Coords.). Usos e
abusos da história oral. 8.ed. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
WEEKS, Jefrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O Corpo
Educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed. 2 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p.35-82.

77
05. A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE HISTÓRIA
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM ARAGUAÍNA-TO.

Laila Cristine Ribeiro da Silva17


Vera Lúcia Caixeta18

Introdução
Ninguém começa a ser professor numa certa terça-feira às 4 horas da tarde...
Ninguém nasce professor ou marcado para ser professor. A gente se forma como
educador permanentemente na prática e na reflexão sobre a prática (Paulo Freire19).

Como nasce um/a professor/a? A epígrafe acima revela possíveis respostas a essas
indagações e, também, é um grande ensinamento trazido por Paulo Freire (1991) que se aplica
no contexto da Educação de Jovens e Adultos. O tornar-se professor é um processo
permanente que se constitui na prática diária, mas que só se completa mediante a reflexão
sobre a própria prática. De certo que a prática é entendida não somente nas atividades
realizadas no dia a dia da sala de aula, que são permeadas pelos manejos técnicos, mas que
mobiliza muitas outras dimensões que instigam o trabalho cotidiano do professor, exigindo
reflexão, análise de situações e tomadas de posição. Para Tuan (1983, p. 10-11), “experienciar
é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele”.
Esta pesquisa foi desenvolvida junto aos colegas profissionais do ensino de História,
atuantes na Educação de Jovens e Adultos da rede municipal de Araguaína-TO, tendo como
base uma nova perspectiva da Formação Continuada promovida em parceria com a Secretaria
Municipal de Educação. Teve, pois, como objetivo, o desenvolvimento de uma metodologia
que valorizasse as identidades dos estudantes da EJA para que estas pudessem vir a ser
consideradas no aprimoramento do trabalho com o currículo escolar do ensino de História.
Pois, conforme argumenta Nóvoa (1991):

A formação continuada deve estar articulada com desempenho profissional dos


professores, tomando as escolas como lugares de referência. Trata-se de um objetivo
que só adquire credibilidade se os programas de formação se estruturarem em torno
de problemas e de projetos de ação [...] (NÓVOA, 1991, p. 30).

Pensar sobre o fazer profissional docente implica refletir sobre si mesmo e sobre sua
própria construção histórica. Nóvoa (1992), ao explicitar acerca dos pressupostos da
profissão, reflete sobre o elo entre os percursos profissionais e pessoais e como esses avançam

17
Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História/
PROFHISTÓRIA/UFT. Professora para programas educacionais na Rede Municipal de Araguaína – TO.
18
Doutora em História. Coordenadora e Professora do Mestrado Profissional em História- ProfHistória;
Araguaína – TO. Professora nos cursos de Graduação e Licenciatura em História.
19
FREIRE, PAULO. A Educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991, p. 58.
78
e evoluem ao longo da vida, explicitando como esse fazer se constrói conjuntamente com as
experiências adquiridas e com as trocas de saberes entre as pessoas.
Nesse sentido, cabe promover, junto aos professores da EJA e, sobretudo, do ensino de
História, ações que possibilitem o conhecimento articulado sobre a sua própria atuação em
permanente troca com os colegas. É dentro do potencial formativo da prática que se torna
importante promover reflexões com os docentes acerca da necessidade de valorizar as
histórias de vida dos estudantes. Ao passo que, a partir das histórias de vida é possível
entender suas memórias, trajetórias, anseios e expectativa de futuro, buscando um processo de
aprendizado histórico significativo.
Segundo Marcos Silva e Amélia Porto (2012, p. 46), “o ensino torna-se significativo à
medida que permite ao estudante dialogar com sua realidade, compreendê-la e questioná-la de
forma mais sistemática”. Para Jörn Rüsen, é fundamental que “a aprendizagem da história seja
considerada pelos jovens como significativa em termos pessoais, capaz de proporcionar ao
aluno uma compreensão mais profunda da vida humana” (LEAL, 2011, p. 02). Dessa forma, é
viável afirmar que “o ensino de história é um importante instrumento na (re)construção de
identidades que trazem, muitas vezes, a marca do ser menos” (NICODEMOS, 2017, p. 71).
Francisco Imbernón (2010) no livro, “Formação Continuada de professores”, elenca
alguns aspectos reflexivos que podem auxiliar no entendimento das perspectivas do conceito
de formação continuada e que aqui, referendamos. A primeira delas ressalta que: “A formação
Continuada deve agir sobre as situações problemáticas dos professores” (2010, p.53).
Historicamente, os processos de formação foram permeados por tentativas de conceder
respostas e soluções uniformes, tentando solucionar problemáticas que supostamente seriam
comuns as diversas realidades docentes e que mereceriam soluções amplas e genéricas.
Entretanto, “isso acarretou para os processos de formação algumas modalidades em que
predomina uma grande descontextualização do ensino” (IMBERNÓN 2010).
Nossa intenção, ao contrário da geralmente utilizada, passou-se pela preocupação em
dialogar com os profissionais que atuam na disciplina de História. Para isso, escolhemos o
trabalho com oficinas e esse formato específico para uma área do conhecimento, causou
estranhamento. Pela primeira vez, estávamos em uma sala reunidos somente com os
profissionais atuantes no ensino de História na EJA, para pensar os problemas e apontar
soluções que se relacionam com a área de História, na modalidade da EJA.
Inicialmente, buscamos apresentar a proposta para promover a sensibilização já que o
trabalho deveria ser realizado em uma perspectiva colaborativa e no aspecto de autoformação.
Segundo Leitão (2004), isso reflete alguns cuidados que precisam ser considerados para
79
realmente envolver o professor no processo de mudanças qualitativas a partir da formação
continuada, isso porque:

[...] o que observamos é que nem sempre essas referências trazem modificações
substanciais às práticas, nem garantem uma relação afetiva, um melhor desempenho
na aprendizagem ou uma prática mais democrática, se os professores não estiverem
sensibilizados e sentirem necessidade de participar dessa mudança (LEITÃO, 2004,
p. 27).

Philippe Perrenoud (2001, p.174), ressalta a necessidade do “sujeito que toma sua
própria ação, seus próprios funcionamentos psíquicos como objeto de sua observação e de sua
análise [...]”. Para Francisco Imbernón: “Na formação é necessário abandonar o
individualismo docente a fim de chegar ao trabalho colaborativo” (2010, p.63). De certo, os
desafios enfrentados pelos professores na Educação de Jovens e Adultos são enormes.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE- PNAD 2019) revelam
o quantitativo de 11,3 milhões de analfabetos entre a população de 15 anos ou mais no Brasil, este
número corresponde a 6,8% da população. No ano de 2018, segundo o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Censo/INEP, 2018), o total de 3.598.988
brasileiros estavam matriculados na Educação de Jovens e Adultos. Essa estatística “não deixa
dúvida quanto à baixa efetividade das estratégias de governo para a elevação da escolaridade da
população [...]” (VENTURA, 2017, p.149). Ainda se soma a tais fatores, o número considerável
de alunos que evadem do sistema escolar, o que agrava o quadro de marginalização e negação ao
direito à educação e à cidadania plena de parte da população brasileira.
A Proposta Curricular da Educação de Jovens e Adultos, elaborada pela SEDUC,
ressalta que o Estado do Tocantins oferta, desde o ano de 1996, a modalidade educacional
EJA. O documento diz estar alicerçado em fundamentos e concepções de uma educação
problematizadora: “A Educação de Jovens e Adultos tem no ideário freireano sua gênese, no
qual o processo educativo parte do exame crítico da realidade e da possibilidade de sua
superação” (TOCANTINS, 2008 p. 37). Nesse sentido, as ações educativas devem ser
percebidas como uma ação social que “considere as relações escola-comunidade e o retrato
cultural” capazes de produzir “uma prática educativa articuladora da teoria com a prática”,
tendo o educando como sujeito do processo (TOCANTINS, 2008, p. 41). Porém, de acordo
com as Diretrizes Curriculares do Tocantins:

[...] A maioria dos professores da EJA, não são professores que tem sua carga
horária maior nessa modalidade. Quase sempre a EJA é utilizada como ponte para
garantir quarenta horas semanais e assim efetivar o máximo de recursos no holerite
no final do mês (TOCANTINS, 2008 p.35).

80
Segundo os dados do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, o IDHM/2010 de
Araguaína é 0,752. No que concerne à alfabetização local, a cidade possui um elevado
número de pessoas (quase 20%) que não completou o ciclo básico educacional (8 anos de
escolaridade), conforme observamos na Figura 2, a seguir:

Figura 1 – Grau de instrução no município de Araguaína

Fonte: TSE. Disponível em:


<https://www.eleicoesepolitica.net/numero-total-
Os dados levantados pelo TSE revelam que
de-eleitores/araguaina-to/>. 18,82%
Acesso da 02
em: população
dez. não completou o
2018.
Ensino Fundamental. Assim, a Educação de Jovens e Adultos, sobretudo no que diz respeito a
oferta escolar municipal, é uma alternativa para essa parcela que deseja retornar à escola e
completar as suas etapas de estudo. A Lei Municipal 2.957, de 24 de junho de 2015, dispõe
sobre o Plano Municipal de Educação, esse documento legitima e ampara a oferta da EJA,
preconizando, entre as suas justificativas, a análise situacional dessa modalidade de ensino:

De acordo com a Resolução nº 01 de 18 de fevereiro 2014, que organiza e regulariza


o atendimento da Educação de Jovens e Adultos EJA no Ensino Fundamental das
Escolas Municipais de Araguaína-TO, o aluno Jovem e Adulto busca no ambiente
escolar sua promoção individual e social fazendo a ponte entre o seu conhecimento
sistematizado da escola e o conhecimento integrado ao ambiente de trabalho
(ARAGUAÍNA, PME, 2015, p. 78).

Certamente, a busca pelo trabalho é o referencial mais forte que permeia a


necessidade de manutenção e retorno do estudante da EJA, na realidade municipal de
Araguaína. Fica evidente de que se trata de uma educação para trabalhadores e, por esse
81
motivo, o Conselho Municipal de Educação aprovou a implantação, no currículo escolar, de
uma disciplina chamada Iniciação a Qualificação Profissional, na intenção de salvaguardar
esse referente político-pedagógico e tecnicista que marca a Educação de Jovens e Adultos.
Ainda no Plano de Educação Municipal (Metas 09 e 10) ressalta-se duas metas
específicas relacionadas a formação para o trabalho, além das expectativas com relação a
diminuição do analfabetismo no município, espera-se a preparação dos jovens e adultos para o
mercado de trabalho:

META 09: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS


Elevar, em regime de colaboração com os Estados, a taxa de alfabetização da
população com 15 (quinze) anos de idade ou mais de 91,4% (noventa e um inteiros e
quatro décimos por cento) para 93,5% (noventa e três inteiros e cinco décimos por
cento) até 2021, e até o final da vigência deste PME, erradicar o analfabetismo
absoluto e reduzir em pelo menos 50% (cinquenta por cento) o índice de
analfabetismo funcional dos alunos dessa etapa de ensino e proporcionar sua
iniciação a Qualificação Profissional (ARAGUAÍNA, PME, 2015, p. 85, grifo
nosso).
META 10: EDUCAÇÃO PROFISSIONAL/EJA
Oferecer no mínimo 60% (sessenta por cento) das matrículas de Educação de Jovens
e Adultos, na forma integrada à Educação Profissional, nos Ensinos Fundamental
e Médio (ARAGUAÍNA, PME, 2015, p. 87, grifo nosso).

O traço marcante de uma educação tecnicista, voltada para o mercado de trabalho,


presente na política institucional da EJA, talvez possa ser entendido em sua perspectiva
reducionista, haja vista que uma abordagem profissionalizante por si só, não é capaz de
definir todas as demandas e heterogeneidades que compõe a formação dos sujeitos. Nesse
sentido, destacamos a ausência, no Plano Municipal de Educação, de metas e estratégias que
busquem valorizar as vozes dos estudantes e de protagonizar a participação. Os próprios
jovens e adultos são membros de coletivos sociais, raciais e de gênero que precisam ser
inseridas dentro do universo dos planos das políticas públicas.
Dados do IPEA 2015 revelam que a média de anos de estudo das pessoas de 15 anos
de idade ou mais, segundo cor/raça e localização do domicílio, na Região Norte, era de 7,8
anos de estudos para negros e pardos, em contrapartida, 9,0 anos para a população branca. Já
em relação ao gênero os números do IBGE/PNAD 2001 constataram que 11,5 dos declarantes
do gênero masculino são analfabetos em oposição a 11,0 do gênero feminino, conforme o
gráfico abaixo:

82
Tabela 1 – Analfabetismo e gênero

Fonte: Mapa do Analfabetismo no Brasil/INEP (2001).

A questão da cor/raça revela um distanciamento característico da desigualdade


histórica preponderante no país e que também se apresenta em um nível considerável em
Araguaína. Já o analfabetismo entre as mulheres é praticamente o mesmo entre os homens.
Nesse sentido, os excluídos do sistema educacional são, geralmente, os negros e pobres.
Ainda com relação ao Plano Decenal Municipal deve-se destacar o silenciamento
sobre os professores da EJA. Inexiste qualquer menção específica ao profissional que
desenvolve seu trabalho nessa modalidade de ensino. Conforme dados da SEMED 20, no ano
de 2018, o município de Araguaína contou com 35 escolas e 10 delas ofertaram a modalidade
EJA na zona urbana, solidificando um trabalho com o 1º e 2º segmentos. Nestas escolas,
atuaram 60 profissionais de diferentes formações, atendendo a um total de 971 estudantes
matriculados.
Além de recorrer aos documentos oficiais, convidamos os professores de História da
EJA, da rede municipal de educação, para uma roda de conversas. No total, compareceram
apenas metade (05) dos (11), ou seja, cinco professores da disciplina de História, do II
segmento da Educação de Jovens e Adultos. A proposta consistiu em construir atividades de
ensino através de uma metodologia compartilhada no trabalho de Formação Continuada. Os
participantes escolheram uma de suas turmas para a aplicação da metodologia. A escolha foi
feita livremente, pelo próprio docente, tendo em vista que a pesquisa pretendeu considerar um

20
Informações repassadas pela Diretora do Ensino Fundamental via questionário prévio para levantamento de
informações para a pesquisa.
83
percentual de amostragem dentro da realidade municipal que, como já foi explicitado, possui
10 escolas que trabalham com a modalidade EJA21.
O encontro com os professores resultou na construção de três oficinas que trataram de
questões ligadas à memória, Identidade e História. A ideia era despertar nos professores o uso
de novas metodologias, em especial a dos relatos autobiográficos que contribui para a
“vivacidade do passado, a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu”
(ALBERTI, 2004, p.16). Logo em seguida, passamos para as discussões sobre a elaboração de
um roteiro que desse conta de recolher a trajetória dos estudantes. Decidimos focar na
trajetória educacional: 1 - Lugar de origem; 2 - Início da vida estudantil; 3 - O distanciamento
da escola; 4 - A vida como lugar de aprender; 5 - Reencontro com a escola.
A segunda fase da pesquisa tratou da aplicação das oficinas pelo professor participante
e na produção da trajetória de vida dos estudantes. E, por fim, a realização de um novo
encontro de formação continuada para a análise coletiva dos relatos dos alunos juntamente
com a organização dos Eixos Temáticos articulados com as vivências e interesses locais, em
uma proposta de interação das trajetórias de vida com o currículo escolar da EJA.

Figura 1: Imagens dos Encontro de Formação Continuada para análise dos relatos autobiográficos dos
estudantes da EJA

Dados: Acervo da pesquisadora, 15/11/18.

Perfil dos Profissionais do Ensino de História que atuam na EJA da Rede Municipal de
Araguaína-TO.

No ano de 2018, havia 11 professores de história distribuídos em 10 escolas


municipais. Em um encontro promovido pela pesquisadora, em parceria com a Secretaria de
Educação, convidamos todos os professores a participar como sujeitos colaboradores da
pesquisa, mas apenas 05 aceitaram. Os motivos da recusa já revelam pontos peculiares da
problemática que diz respeito ao universo da EJA, na cidade. Em pesquisa anterior, divulgada

21
Dados fornecidos a pesquisadora pela Secretaria Municipal de Educação do ano de 2018.
84
no demonstrativo das características dos sujeitos da EJA, realizada pela SEDUC, no ano de
2007, já haviam sido identificados alguns problemas relacionados à lotação e carga horária
entre os profissionais do estado, “isto é decorrente não só das próprias condições
institucionais, mas também devido aos não avanços na institucionalização das políticas
públicas voltadas para essa modalidade” (TOCANTINS, 2008, p. 35).
As informações obtidas especificamente sobre o perfil dos professores que se tornaram
interlocutores desta pesquisa podem ser conferidas no Quadro 122.

Quadro 01 – Perfil dos profissionais do ensino de História da EJA em Araguaína

1.Sexo 2. Idade 3. Como você se 4. Qual o seu nível de 5. Há quantos anos você
considera? Escolaridade (Até a obteve o nível de
Graduação)? escolaridade assinalado
anteriormente?
Feminino 04 Até 24 anos 01 Branco (a) 01 Pedagogia 04 Há 02 anos ou 01
menos
Masculino 01 De 25 a 29 01 Preto (a) 01 História 01 De 03 a 07 02

Outro - De 30 a 39 02 Pardo (a) 03 De 08 a 14 01


De 40 a 49 01 De 15 a 20 01
Fonte: Dados da pesquisa.

A maioria dos professores é mulher, com idades variadas, sendo que dois participantes
possuem a faixa etária entre 30 e 39 anos. Em relação a raça, três dos sujeitos se consideram
pardos. No que se refere ao curso de graduação, a maior parte é formada em pedagogia, apenas
um professor possui Licenciatura em História. Destacamos, aqui, a necessidade de reflexão
quanto a função do pedagogo, no Brasil. Libâneo (2001, p.44), ao tratar sobre a busca da
identidade desse grupo, ressalta que o “Pedagogo é o profissional que atua em várias instâncias
da prática educativa, direta ou indiretamente, ligadas à organização e aos processos de
transmissão e assimilação ativa de saberes [...]”. Dessa forma, o desempenho de atividades
trabalhistas se manifesta de modos diferentes, legitimando inclusive a docência em diversos
níveis23. Schimidt alerta que precisamos “entender que o conhecimento histórico não é adquirido
como um dom” (2004, p.54), o que implica dizer que se exige formação na área específica.

22
As perguntas do questionário foram organizadas em blocos que representam os aspectos analisados; e os dados
estão dispostos em quadros para facilitar a compreensão.
23
Conforme a Resolução do CNE/CP nº 01, de 15 de maio de 2006, que institui as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura, o Art. 4º preleciona que “O curso de
Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério na
Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade
Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam
previstos conhecimentos pedagógicos” (BRASIL, 2016, p.11, grifo nosso).
85
Outro fator de destaque trazido pelos dados é o gênero feminino. Talvez, a
feminização do magistério como aponta Faria Filho (2005),

[...] a atuação no magistério pelas mulheres, independente da classe social, é


permeada de muitos significados, desde a conciliação dos afazeres da casa, ao
‘protagonismo feminino’ com a entrada no mercado de trabalho, até ter o ‘poder’ de
ganhar o pão de cada dia (apud FEITOSA, 2017, p. 9).

Mas, certamente, a feminização do magistério reflete as condições socio-econômicas


de muitas mulheres das famílias tocantinenses que, impossibilitadas de realizar outros cursos
superiores, tiveram que “optar” pela docência como meio de sustento, uma vez que os cursos
das universidades públicas se concentram, em sua maioria, nas modalidades voltadas para a
docência. O espaço escolar público, conforme aponta Silva (2004, p.231), tem “a função de
voltar-se para a superação dos mecanismos de exclusão presentes na sociedade e incorporados
pela escola em seus princípios educativos e na sua organização cotidiana”.
Ao tratar da formação dos docentes da disciplina de História na EJA de Araguaína é preciso
considerar múltiplos aspectos que incidem sobre a graduação inicial. As respostas do questionário
aplicado sobre esse quesito, constantes no Quadro 2, indicaram as seguintes informações:

Quadro 02 – Formação dos profissionais do ensino de História da EJA em Araguaína

6.Em que tipo 7. De que forma 8. Indique a 9. Você participou de 18.Você utilizada os
de Instituição você realizou o modalidade de curso alguma atividade de conhecimentos
você fez o seu curso superior? de pós-graduação de Formação adquiridos nas
curso mais alta titulação Continuada nos atividades de formação
superior? que você possui: últimos dois anos? continuada em sala de
aula?
Pública 03 Presencial 03 Especialização 03 Sim 04 Quase 01
Federal (Mínimo de 360 sempre
horas)
Pública 01 Semipresencial 01 Não fiz ou ainda 02 Não 01 Eventual 03
Estadual não completei o mente
curso de pós-
graduação
Privada 01 À distância 01 - Quase 01
Nunca

Fonte: Dados da pesquisa.

As evidências demonstram que a Universidade Pública Federal formou a maioria dos


professores. A Faculdade de Educação, Ciências e Letras (FACILA), criada pela lei estadual
nº 9.470, de 11 de julho de 1984, foi a primeira a existir na cidade de Araguaína, ofertava os
cursos de Letras, História, Geografia, Estudos Sociais e Ciências. Em 1990, a instituição
passou por um processo de integração e veio a se tornar a Universidade do Tocantins,

86
(UNITINS), mantendo a maioria dos cursos centrados nas licenciaturas, até o ano de 2003,
quando toda a sua estrutura foi repassada para a implantação da Universidade Federal do
Tocantins, (UFT). Essa breve trajetória reforça a evidência que a universidade pública foi
responsável pela formação inicial de muitos profissionais que vieram a compor o corpo
docente do estado.
Nenhum dos professores possui formação específica para a atuação docente na Educação
de Jovens e Adultos. Soares (2008, p. 85-86) menciona que “as ações das universidades com
relação à formação do educador de jovens e adultos ainda são tímidas se considera (...) o potencial
dessa instituição como agências de formação”. As matérias curriculares obrigatórias, até mesmo
nos cursos de licenciatura em História, são inexistentes. É válido lembrar, ainda, que essa
necessidade já estava prevista no Marco de Ação de Belém, publicado em 2010, após a 6ª
CONFINTEA. Este documento demonstra uma preocupação com a qualidade na formação do
professor, para o bom desenvolvimento de experiências profissionais:

Qualidade: Melhorar a formação, a capacitação, as condições de emprego e a


profissionalização dos educadores de adultos, por exemplo, por meio do
estabelecimento de parcerias com instituições de ensino superior, associações de
professores e organizações da sociedade civil (UNESCO, 2010, p.13).

No geral, o tempo de experiência profissional, dos professores que participaram da


pesquisa está entre 06 e 09 anos. Entretanto, ao considerar a experiência profissional voltada
para o público específico da EJA, as respostas apresentaram uma realidade singular para cada
participante da pesquisa, expressando o perfil heterogêneo que compõem esse aspecto na
realidade de Araguaína. A questão da rotatividade, nas escolas, faz parte das questões
administrativas e implica dizer que:

A rotatividade dos professores nas escolas pode ser explicada por muitos fatores,
desde uma mobilidade interna às redes e ao sistema, em que os professores optam
por mudar de escola por questões de ordem pessoal ou profissional, no sentido de
buscar melhoria nas suas condições de trabalho ou mesmo maior comodidade em
termos de localização geográfica, até em função do abandono da profissão
(PEREIRA e OLIVEIRA, 2016, p.315).

Além da rotatividade dos professores no sistema municipal de ensino, é preciso


acrescentar, ainda, o vínculo empregatício que o/a professor/a estabelece com o serviço público.
No caso em tela, dos sujeitos colaboradores deste trabalho, três são professores efetivos e dois
são contratados24. Relações contratuais são também fontes de empecilho para a fixação dos
profissionais em serviço, pois muitas vezes o que garante a contratação temporária são fatores
diretamente ligados aos acordos políticos com os governantes que são eleitos.
24
Dados da SEMED repassados pela Diretora do Ensino Fundamental via questionário prévio para levantamento
de informações para a pesquisa.
87
Os desafios educacionais do tempo presente apontam ainda para a necessidade de se
pensar sobre o lugar que a educação pública tem ocupado na sociedade brasileira, no pós-
golpe de 2016. Vítima de ataques atrozes por parte do governo federal e de perseguição e
combate ao funcionalismo público que perde sistematicamente legitimidade social. Essa
desqualificação, certamente, aumenta em se tratando do campo das ciências humanas e com
relação aos profissionais da História. Logo, os professores são cada vez mais, forçados a
provar a sua legitimidade junto aos alunos e a sociedade em geral. Cada estado e município
tem a função de organizar, conforme as diretrizes curriculares já existentes, os objetivos e
conteúdo da disciplina. “A História enquanto disciplina tem por objetivo subsidiar o educando
na análise dos acontecimentos dentro de suas temporalidades para que o mesmo tenha
condições de responder as problemáticas contemporâneas” (TOCANTINS, 2008, p. 102).
Porém, houve unanimidade na afirmação de que nenhum dos professores possui
formação específica para a atuação docente na Educação de Jovens e Adultos, uma
informação que caracteriza uma realidade de boa parte dos docentes que atuam na EJA no
Brasil. Mas ao mesmo tempo, chama muito mais a atenção devido ao fato de que a maioria
dos professores municipais que leciona a disciplina de História, é formada em pedagogia e
nem mesmo a sua formação inicial contemplou estudos dessa área.
Logo, sem formação para o trabalho específico nessa modalidade de ensino e sem
formação na área de História pensei em sugerir aos professores trabalhar com práticas
pedagógicas que valorizem as memórias e as identidades dos estudantes. Juntos, elaboramos
um roteiro que procura conhecer quem são os alunos que estão presentes no universo escolar e
como suas trajetórias de vida podem ser utilizadas no ensino de História.
A metodologia proposta propicia um caminho possível para que sujeitos percorram a
temporalidade de suas vidas, reflitam sobre seus significados e percebem suas raízes, lastros e,
sobretudo, afirme-se como sujeito individual e coletivamente no presente. De certo, o ensino de
História, quando fundamentado em uma perspectiva pedagógica crítica, pode privilegiar os
diálogos entre os conhecimentos históricos e a realidade dos estudantes, que tem imensa
relevância para os processos formativos da EJA (NICODEMOS, 2015). Como ressalta Almeida:

Nós professores (...) sabemos também que aprender, para nós e para os alunos, não
significa simplesmente acumular informações, mas selecioná-las, organizá-las e
interpretá-las em função de um sentimento que lhe atribuímos, decorrente da nossa
biografia afetivo-cognitiva (ALMEIDA, 2004, p.119).

Adernivan Mendes Carvalho, em sua dissertação: Memória e Identidade do aluno da EJA


em relatos autobiográficos ressalta que, “quando o jovem e o adulto adentram a sala de aula sua
história de vida é desconhecida pelo professor, por isso eles são tratados como alunos regulares e
88
seus conhecimentos cotidianos e sensíveis não são levados em conta no ensino” (2014, p. 107).
Tal desconhecimento se torna um obstáculo para a interação entre o professor e aluno, e
consequentemente bloqueia um aprofundamento do processo conjunto de ensino. Assim, os
relatos autobiográficos podem ser uma conexão entre esses dois mundos, em que as
especificidades das trajetórias individuais são reveladas e articuladas com os conteúdos propostos.

“Pensei que Tivesse Entrado na Sala Errada”.

Na Educação de Jovens e Adultos, uma das maiores dificuldades da prática docente se


encontra na seleção dos conteúdos a serem trabalhados durante o ano letivo. Comumente, essa
é uma questão deixada para as propostas oficiais que organizam os referenciais curriculares.
Entretanto, como mencionado pelos professores de Araguaína, esses conteúdos são distantes
das vivências dos alunos da EJA, caberia, portanto, aos professores fazerem as correlações
necessárias entre o passado e o presente, entre o distante e o próximo, ressaltando as
mudanças e as permanências, as demandas de ontem e as de hoje. Ao apresentar a proposta
para os docentes da EJA de Araguaína, sobre o ensino de História foi ressaltado que:

Pesquisadora: Esse encontro tem a intenção de dialogar especificamente acerca do


ensino de História na EJA. Abrir um espaço para conversarmos sobre isso.
Araguaína possui 10 escolas que trabalham com a EJA e nelas atuam 60
professores/as. 11 professores/as ministram a disciplina de História e 2 deles
possuem a formação na área, o restante é formado em áreas diversas.
Professor/a1: As aulas de História aqui em Araguaína são muito complicadas,
temos um currículo defasado e bem distante da realidade dos nossos alunos... Não é
algo simples de fazer...
Professor/a 2: E dá aula de tantas disciplinas, onde a formação da gente não é tão
específica assim... Não é muito fácil não...
Professor/a 3: Na verdade falta mais formação continuada que trabalhe as
disciplinas né! Todo ano tem encontro, mas são poucos para os problemas que a
gente enfrenta.
Professor/a 1: E motivar os alunos que vem cansado de tanto trabalho é difícil! A
gente precisa de capacitação mesmo!
Professor/a 5: E sem falar com tantas atividades que temos que fazer... Não sobra
muito tempo para quase nada...
Professor/a 2: Eu até achei que tinha entrado na sala errada, porque a formação
hoje tem poucas pessoas, geralmente a formação é com o grupo todo que dá aula na
EJA.
Pesquisadora: A proposta desse trabalho de formação é pensar especificamente o
ensino de História em um trabalho colaborativo, onde juntos vamos pensar como
melhorar o ensino de História da EJA.
Professor/a 2: Eu achei importante participar, nem todos os alunos têm facilidade
com as aulas de história, acho que pode ser bom...
Professor/a1: Tudo que pode ajudar é bem-vindo. A gente não tem muitos
conhecimentos sobre a História, eu mesmo uso muito a internet para me ajudar...
Professor/a 3: Mas também nem sempre dá para usar o que é repassado em
formação... Claro que sempre é conhecimento, mas tem que servir para as
necessidades do dia a dia [...].

89
Chama a atenção, nesses depoimentos, o fato de uma das professoras ressaltar que
achou que tivesse se equivocado e entrado na sala errada. Por que ela não estaria no curso de
formação para o qual havia sido convidada? Exatamente, porque não havia, por parte da
secretaria municipal de educação, o costume de organizar formação por áreas específicas.
Enfim, os trechos anteriores revelam dificuldades da prática docente e da formação
continuada de professores da EJA no município de Araguaína. Porém, de acordo com
Imbernón (2010, p.63), só a colaboração pode gerar “reais possibilidades de maior autonomia
e intervenção nessa modalidade de ensino, bem como a reorganização do currículo e das
práticas pedagógicas” (SÉRGIO, 2015, p. 118).
Após as atividades relacionadas com o primeiro encontro de formação continuada os
professores escolheram uma de suas turmas da EJA para o desenvolvimento metodológico das
aulas. Entretanto, os professores sugeriram que a metodologia fosse ampliada para mais
alunos o que veio a ocorrer dentro da singularidade do planejamento escolar de cada
professor, 02 participantes por exemplo, aplicaram as aulas a todos os discentes que faziam
parte de suas turmas, relatando que: “Precisavam conhecer mais de perto as histórias de vida
dos seus alunos...”25. Tais ações possibilitaram um alcance maior na quantidade de alunos
envolvidos na pesquisa como a seguir se pode observar:

Quadro 03: Número de Estudantes que participaram das aulas – oficinas sobre as orientações dos professores
participantes e acompanhadas pela pesquisadora
Quantidade de Turmas Quantidade de Estudantes
Professor 1 01 15
Professor 2 01 16
Professor 3 03 40
Professor 4 03 35
Professor 5 01 18
Total 09 124
Fonte: Dados da pesquisa

A atividade final das aulas – oficinas propunha aos estudantes a produção escrita dos
seus relatos autobiográficos e aos seus professores a escolha 26 de um relato para
posteriormente serem analisados no segundo encontro de formação continuada.

25
Dados registrados no caderno de Campo da pesquisadora.
26
A escolha foi feita livremente pelo professor participante sem critérios rígidos estabelecidos pela pesquisadora,
isso porque, como o trabalho foi desenvolvido na perspectiva da coletividade, é valido ressaltar, que no primeiro
encontro de formação continuada a pesquisadora propões ao grupo participante que pudemos definir alguns
pontos a se considerar durante a escolha. No diálogo estabelecido ficou acordado que o relato escolhido deveria
reunir uma das duas categorias, sendo a primeira: o relato que tivesse as características mais presentes na turma
90
Cabe agora descrever, mais precisamente os relatos autobiográficos no cunho dessa
pesquisa, pois essas narrativas constitui a interface entre o individual e o coletivo social. Isso
corresponde a dizer que quando os estudantes da EJA adentram suas salas de aula
diariamente, esta situação pode ser dita comum, parte dos “ritos” diários que fazem parte
desse universo escolar. Para perceber esta experiência singular Delory-Momberger ressalta
que, (2011, p. 50):

[...] seria necessário que cada participante pudesse formular a maneira como a
situação em questão se inscreve na sua equação pessoal, que dizer, como esta vem
“tomar lugar”, como esta vem tomar uma forma e um sentido na sua existência; ou
talvez nas representações que cada um faz de sua existência e na história que ele
constrói, nisso que eu chamo sua biografia dando a este termo seu sentido
etimológico de escrita de vida. (Grifo nosso)

Os relatos autobiográficos revelam “imagem de si”, como já mencionado por Pollack


(1992). Entretanto, de acordo com Bertaux (1987), a subjetividade inerente ao sujeito, por
mais particular que seja, é sempre relato de práticas sociais das formas com que o indivíduo se
insere e atua no mundo e no grupo do qual faz parte. Ademais,

[...] Aquilo que homens podem ser enriquece-se constantemente em razão da


consciência que o homem tem de si mesmo como ser histórico: quer ele se refira
àquilo que foi conservando-o, rejeitando-o, destruindo-o, transformando-o,
desconstruindo-o, ele é, por tudo isso, ao mesmo tempo o ser do passado distante e o
ser que vive em seu futuro como largo horizonte de espera e imenso campo de
projetos que seu ser formado por sua história lhe abre. (GADAMER, 1968, apud
DELORY - MOMBERGER, 2014, p.193).

Assim, a capacidade de narrar a vida é a enunciação da forma passada “do ser


histórico”, através da capacidade do presente “consciência que o homem tem de si” e as
“perspectivas futuras” (imenso campo de projetos que seu ser formado por sua história lhe
abre”. Dessa forma, os relatos autobiográficos dos estudantes da Educação de Jovens e
Adultos, foram produzidos a partir de questionamentos que objetivaram interligar essas
dimensões: 1 - Lugar de origem; 2 - Lembranças da infância; 3 - O distanciamento da escola;
4 - A vida como lugar de aprender; 5 - Reencontro com a escola.

trabalhada e a segunda que reunisse características únicas ou da minoria dos estudantes representando o espaço
da heterogeneidade presente nas salas de aula da EJA.
91
Alguns relatos, apenas para ilustrar a riqueza dessa experiência:

Quadro 04: Relato autobiográfico 1

Meu nome é D. N. da S. sou natural do município de Benfica no Estado do Pará.


Portanto sou paraense com muito orgulho e 100% Brasileiro
Tive uma infância não muito bem aproveitada.
Comecei estudar as 07 anos de idade não passei pela cartilha de ABC, porque eu já sabia ela toda de
cor e salteado, como dizia no meu tempo, de estudante
Quero ressaltar para vocês jovem que naquele tempo e que bom tempo que era a autoridade máxima na
sala de aula era os, mestre e dona Maria Chiquinha com uma palmatoria que ajudava na educação dos
preguiçosos e indisciplinados. Os alunos nem pensavam em desrespeitar o professo que Dona Maria Chiquinha
entrava em cena e o bicho pegava e quando chegava em casa se fosse reclamar para os pais ai era que a casa
caia mesmo porque os pais diziam que nós estávamos ali era para aprender e que o professor era autoridade.
Hoje com a tão falada modernidade os pais mandam os filhos para escola não para aprender mais
para ficar livre deles, na escola desrespeitando os professores, e quando fala alguma coisa contra o aluno os
pais vão lá para ajudar o filho a bater no professor. Saudade dos bons tempos.
As 14 anos parei de estudar pois cursava a 6º série. Eu já sabia assinar o nome e fazer algumas
continhas achava que era tudo para viver a vida toda.
As 09 anos tive meu 1º emprego de vender coisas na rua.
Acordava as 5 horas da manhã e pegava um taboleiro de cuscuz e ia para batalha ou seja
sobrevivência da família.
Eramos uma casa com 13 filhos e com uma irmã se formando para professora olha que legal, meu pai
fico 02 anos desempregado e como nossa irmã estava formando não podíamos deixar ela trancar a matricula
era muito importante para ela e também era a primeira pessoa formada na família ai que o entramos em cena e
como dos homens eu era o mais velho fui para a batalha assumindo todas as responsabilidade da casa.
Apos 02 anos meu pai reasumiu suas atividades como chefe de familia novamente.
Como eu já tinha pegado o gosto pelo dinheiro continuei trabalhando.
Numa noite na hora do jantar houve um pequeno contraempo na mesa porque eu não gostava de
gordura e minha mãe colocou dois pedaço no meu prato porque no nosso tempo as mãe era que fazia nossos
prato.
Eu inocentemente questionei o fato de ocorrido na mesa. Usando estas palavras pó mãe a senhora sabe
que eu não gosto de gordura. Logo meu pai se levantou do seu lugar tratando-se um nordertino iginorante falou
estas palavras me desculpe as espressão da palavra que ele disse.
Voces tão pensado ok só por que já trabalha voce se governa eu não preciso de voce nen para [...] ai
viro. e pegou a gurdura dos outros prato e colocou, tudo so no meu prato e me feis come toda aquela gurdura
ela ia e voltava ele sentado do meu lado dizendo come
Naquele mesmo momento passou um filme na minha cabeça de criança.
Imagine o que pensei neste momento pó meu pai passou 02 ano desempregado e eu e meu irmão gêmeo
assumimos a responsabilidade da casa e agora ele fala isso para nos. O que que eu estou fazendo aqui com esta
tamanha ingratidao do meu pai eu vou embora cuida da minha vida.
Chamei meu irmão ele concordou, mais na hora marcada ele deu pra trás e eu fui só, mais antes paguei
meu irmão pelo pescoço e mandei ele olhar dentro dos meus olhos e falei. Se eu for apanhado pelo nosso pai
antes do dia clarear eu volto e acabo com tua raça!.
Saindo de casa por 04 anos longe da minha mãe e meu irmão foi barra mais eu suportei sem mandar
noticia sem dizer que eu estava vivo ou morto mais com brio na cara.
Sai de Belém do Pará fui para Tucurui trabalhar na barragem da idreletrica para um firma paulista
passei a operador de máquina pesada e fu transferido para São Paulo onde conheci minha 1º esposa casei e
tivemos 3 filhos lindos duas menina e um menino ficamos casado por 26 anos e depois nos separamos.
Larguei de trabalhar com maquina pesada e fui trabalhar como caminhoneiro, rodei o Brasil todo
norte a sul e de leste a oeste fechei o mapa por 2 vezes. Conheço todos os estados brasileiros e 2 pais em cima
do caminhão.
Neste poriódo, eu fiquei afastado da escola por mais de 15 anos e conheci a minha 2º esposa com a
qual eu me casei. Hoje eu posso dizer que sou um homem feliz tenho uma mulher linda e maravilhosa e mais
uma filha e nos damos muito bem através dela retornei, aos estudos após ter parado por 33 ano ao 55 anos tive
que voltar para a 4ª serie por motivo de não encontrar meu histórico escolar Hoje faço o EJA e ao 58 anos, eu
já estou no 9º ano e pretendo terminar o ensino médio e fazer pedagogia para ser um professor de matemática
que é a disciplina que eu mais gosto.
92
Portanto jovens não percam as oportunidades que muitas vezes seus pais não tiveram e vocês tem como
um ensino do bom e do melhor.
Vão para o Colegio a fim de estudar e respeitar os professores e a escola porque e la não é a sua casa
onde você pode tudo mais e a extenção dela para um futuro melhor e promissor porque um cidadão sem estudo
está na contramão da vida por mais que tenha uma profissão. Obrigado por escutar o meu relato.
Moro em Araguaína estudo no Colégio Francisco Bueno de Freitas e sou feliz.

(Relato do Estudante D. N. da S. da Escola Municipal Francisco Bueno de Freitas. Texto transcrito de acordo a
escrita original do autor) 58 anos

Quadro 05: Relato autobiográfico 2

Eu nasci no Estado do Tocantins em Araguaína, sou fruto dessa cidade conhecida como “boi gordo”. Lembro-
me vagamente da minha infância, pois de uma certa forma foi tão comum como a de muitas crianças, enfim no
início da minha vida quando eu passei a me entender por gente tudo era diversão. Fugia de casa para soltar
pipa, andar de bike. Comecei a estudar cedo nos meus 5 anos eu acho, recordo-me apesar dos meus 7 anos
adiante costumava ir todos os dias, e após meus pais se separarem perdi o foco na escola, já não ia lá. Comecei
a faltar muito aula e com a frequência de mudanças de cidade acabei desistindo, por um certo tempo fugi de
casa, por fraqueza psicológica me envolvi com drogas. Andei com pessoas que não tinha as melhores intenções,
houve o tempo que realmente acreditava que seria no crime que eu mudaria de vida, compraria uma casa para a
minha mãe, porém a vida me lutou com força, perdi amigos de infância, minha família já não me aceitava mais,
foi daí e uma certa quantidade de fatores me fizeram a repensar na vida, e o curto tempo que tenho para
construir um futuro, conquistar por meus méritos. Por isso voltei para a escola para terminar os estudos e talvez
até me formar.

(Relato do Estudante R. L. da Escola Municipal Drº Simão Lutz Kossobstks. Texto transcrito de acordo a escrita
origina do autor) 18 anos27

Quadro 06: Relato autobiográfico 3

A minha origem é nasce no Pará a minha origem é de Conceição do Aráguaia.


Sou filha de um casal lavrador que tiveram 07 filhos. Os meus pais não tiveram estudo, mas tiveram o prazer de
nos incentivar a estudar.
Fizemos até a 4º série porque na época era só o que tinha no sertão, para poder avançar mais tinha que sair pra
cidade e nós não tivemos essa oportunidade, tivemos que parar na 4º série.
Estive toda a minha infância com os meus pais pra mim foi ótimo.
No começo dos meus estudos o meu pai pagou um professor pra dar aula pra gente em casa mesmo, depois com
o passar do tempo eu fui pra casa da minha avó porque perto da nossa casa não tinha Escola. Nos meus 16 anos
fiz a 4º série e depois não tinha mais como prosseguir.
Aos 18 anos eu mim casei tive 4 filhos 2 homem 2 mulher sou muito feliz com os meus filhos. Aos 41 anos fiquei
viúva, depois de um ano e meio, tornei me casar, sou feliz com meu esposo, pois foi através dele que voltei a
estudar, hoje eu estou com 47 anos e estou com quase 1 ano e meio de escola, amo os meus estudos, sou muito
grato ao meu Deus por tudo.
E isso é a minha História.

(Relato do Estudante M. C. J. A. A. da Escola Municipal Joaquim de Brito Paranaguá. Texto transcrito de


acordo a escrita original do autor) 47 anos.

De certo, o método biográfico é extremamente rico, além de ser um estímulo para o


autoconhecimento, a partir dele é possível ver a “realidade” pelas perspectivas dos alunos. É
esse indivíduo, situado no tempo e no espaço, que decide o que e como contar a sua trajetória.
27
Esse relato autobiográfico representa a última atividade realizada na escola por esse estudante, pois o mesmo
desapareceu no dia 28 de outubro de 2018, vindo a ser encontrado morto a tiros no dia 10 de novembro de 2018
em uma cidade circunvizinha a Araguaína. Fato que causou grande pesar e comoção a todos envolvidos nesse
trabalho. (Relato do caderno de campo pesquisadora)
93
Ao mesmo tempo que narra, ele se compromete com o processo de reflexão e de compreensão
de sua “experimentação do mundo”. Destarte, que a abertura desse espaço dentro das aulas de
História é pertinente para “mostrar que eles (os alunos) são sujeitos ativos na construção da
história que se constitui em seus dias” (MARTINS; PAIVA, 2016, p. 03).

É significativo que as histórias de vida apareçam no campo da formação no


momento em que o indivíduo tem cada vez maior dificuldade de encontrar seu lugar
na história coletiva e onde ele é devolvido a si mesmo para definir suas próprias
referências e fazer sua própria história (DELORY-MOMBERGER, 2014, p. 314)

Ademais, a força promovida por meio da produção da narrativa acerca de si que a


identidade se estabelece já que “o conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco
dos indivíduos através de um determinado grupo social” (CIAMPA, 1986, p. 65). Dessa forma,

[...] A identidade pode ser vista como uma espécie de encruzilhada existencial entre
indivíduo e sociedade em que ambos vão se constituindo mutuamente. Nesse
processo, o indivíduo articula o conjunto de referenciais que orientam sua forma de
agir e de mediar seu relacionamento com os outros, com o mundo e consigo mesmo.
A pessoa realiza esse processo por meio de sua própria experiência de vida e das
representações da experiência coletiva de sua comunidade e sociedade, apreendidas
na sua interação com os outros. (NASCIMENTO, 2003, p.31).

Percebe-se, nos relatos autobiográficos que os alunos ao refletirem sobre suas


trajetórias de vida, recortada na formação educacional, já constitui um poderoso instrumento
de formação pessoal, além de desencadear a tomada de consciência de saberes adquiridos e do
desejo de mudança, especialmente relacionada com o compromisso de permanecer na escola e
de alcançar novas metas.

Considerações Finais

Certamente, elaborar um curso de formação com e para os professores da Educação de


Jovens e Adultos – EJA é oportunizar a troca de experiências individuais e saberes coletivos,
mas ao mesmo tempo, exige algo mais profundo, com relação a transformação dessas
dimensões coletivas em conhecimento profissional, ligando a própria formação dos
professores e o respectivo desenvolvimento de projetos educativos nas escolas (NÓVOA,
2009).
A coletividade fomentada na perspectiva da inserção do estudante como protagonista
exigiu o redimensionamento do próprio conceito de grupo, o que pode ser observado no
comentário anteriormente descrito pelo/a Professor/a 2: “Eu até achei que tinha entrado na
sala errada, porque a formação hoje tem poucas pessoas, geralmente a formação é com o
grupo todo que dá aula na EJA”. A noção de grupo pré-constituída pelo participante da
94
pesquisa, referenciava a todos os funcionários das escolas que participavam habitualmente
dos encontros de formação, organizados pela Secretária Municipal. O “novo” grupo que
passou a se formar para a concepção deste trabalho, redimensionava-se para um número
menor e com a característica específica da docência no ensino de História na EJA, que busca
um ensino mais democrático e dialógico.
Nesse sentido, Paulo Freire (1987) aponta que a escola deve ser um ambiente
favorável para a aprendizagem, onde ocorra o respeito aos saberes dos estudantes, advindo
das experiências anteriores ao processo de escolarização, bem como suas necessidades e
realidades. O saber das classes populares deve servir como base à prática docente,
viabilizando uma relação dialógica democrática, na qual os saberes que homens e mulheres
trazem são solidificados em seus cotidianos, nas histórias de vida e pela própria construção
das narrativas de suas famílias.
Para Vasconcelos e Brito (2014, p. 46), os conceitos referentes à educação, na
perspectiva de Freire, afirmam que para o processo de aprendizagem ocorrer, é necessário se
apropriar dos conteúdos “[...] que poderão ser utilizados em favor do crescimento individual;
aprende-se quando se chega a conhecer o objetivo da aprendizagem”. Compreende-se que a
aprendizagem está embasada em aspectos que demandam significância para os estudantes, ou
seja, devem estar associados a saberes já existentes e a sua utilização no espaço cotidiano.
É preciso considerar a necessidade de o professor assumir uma postura de
reconciliação entre a História e os estudantes, colocando-os como sujeitos ativos da produção
do conhecimento. Nesse sentido, a valorização das suas memórias, realizada através da
narrativa das suas trajetórias de vida, abre espaço não só para se conhecer aspectos relevantes
da vida desses sujeitos históricos que estão presentes no universo escolar. Tudo feito de modo
que os estudantes se reconheçam como sujeitos e não somente como observadores de fatos
históricos, subsidiados pela ideia da Práxis Educativa de Paulo Freire, para quem o “embate
dialético entre ação - reflexão presente neste método favorece a uma mudança da consciência
humana da estrutura social e a uma aproximação crítica, reflexiva da realidade estudada” (PIO
CARVALHO; MENDES, 2014, p. 08).
Dessa forma, subentende-se que o ensino realizado na Educação de Jovens a Adultos deve
ser, sobretudo, diferenciado. A equalização desse ensino consciente e transformador ainda é
um desafio a ser vencido, devido às diferentes dificuldades que envolvem tanto os órgãos
governamentais, quanto os próprios trabalhos realizados junto as instituições escolares.
Todavia, os enormes desafios não podem impedir que se considere os estudantes como

95
sujeitos detentores de saberes e experiências possíveis de serem aproveitadas na construção de
suas aprendizagens.
Desta feita, a possibilidade de articular oportunidades para que os estudantes relatem
suas vivências históricas, suas narrativas acerca de si, é uma forma de combater essas
dificuldades, pois para apreender as singularidades dos sujeitos “é necessário que nós
compreendamos como cada um coloca esta situação para si mesmo e para sua história, como
ele biografa este contexto social e institucional do qual ele participa” (DELORY-
MOMBERGER, 2011, p. 50). Assim, a “escrita de si” é uma forma de articular suas relações
com o presente, passado e futuro, cabendo ao professor o impulsionamento das reflexões
sobre o conjunto mais amplo da realidade histórico e social.

Referências

ATLAS do Desenvolvimento Humano do Brasil, IDHM e ICV: Metodologia. O programa das


Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD). Disponível em: <http://atlasbrasil.org.br/
2013/>. Acesso em: 18 jul. 2019

ALMEIDA, Jucileide da Silva. Ensino de história das mulheres: experiências na educação


de jovens e adultos – EJA em Imperatriz – MA (2017). Dissertação (Mestrado Profissional em
Ensino de História) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína-TO, 2018.

ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2004.

ARAGUAÍNA. Plano Municipal de Educação. Lei Municipal 2.957, de 24 de junho de


2015, Diário Oficial, Araguaína, Suplemento do Diário nº 864.

ARROYO, Miguel G. Em que passagens humanas? In: Passageiros da noite: do trabalho


para a EJA: itinerários pelo direito a uma vida justa. Petrópolis: Vozes, 2017

BERNARDINHO, Adair José. Concepção de cultura trabalho e tempo dos professores de


EJA. 2008. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica,
Paraná, 2008.

BERTAUX. D. História de Vida dos padeiros da França. Palestra proferida na Fundação


Getúlio Vargas, out. de 1987.

CARVALHO, Adenivan Mendes. Memória e identidade do aluno da EJA em relatos


autobiográficos. 2014. 172 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2014.

CIAMPA, A. Identidade. In: Lane, S. T. M.; CODO, W. (orgs.) Psicologia social: o homem
em movimentos. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

96
DELORY-MOMBERGER, Christine. As histórias de vida: da invenção de si ao projeto de
formação. Porto Alegre: EDUFRN, 2014.

______. Os desafios da pesquisa biográfica em educação. In: SOUZA, Elizeu Clementino de


(orgs.) Memória, (auto) biografia e diversidade: questões de método e trabalho docente.
Salvador, BA: EDUFBA, 2011.

FEITOSA, Ana Regina Azevedo. Quando o Magistério passa a ser um trabalho de mulher:
percursos e impasses. Jamaxi, Edufac, v. 1, n. 1, 2017.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

HADDAD, Sérgio; SIQUEIRA, Filomena. Analfabetismo entre jovens e adultos no Brasil.


Revista Brasileira de Alfabetização, Vitória (ES), v. 1, n. 2, p. 88-110, jul./dez. 2015.

IBGE [online]. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Notícias, PNAD Contínua 2016:
51% da população com 25 anos ou mais do Brasil possuíam apenas o ensino fundamental
completo. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/>. Acesso em: 14 jun. 2019.

IBGE [cidade]. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <https://


cidades.ibge.gov.br/>. Acesso em: 01 dez. 2019.

IMBERNÓN, Francisco. Formação Continuada de Professores. Tradução de Juliana dos


Santos Padilha. Porto Alegre: Artmed, 2010.

INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira. Sinopse Estatística da


Educação Básica 2017. Brasília: Inep, 2018. Disponível em: <http://inep.gov.br/sinopses-
estatisticas-da-educacao-basica>. Acesso em: 01 dez. 2019.

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br


/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=1226&Itemid=68>. Acesso em: 15
fev. 2019.

MARTINS, Raquel Silveira. Os Fóruns de EJA como espaço de formação continuada de


professores: análises por meio de grupos de discussão. Formação Docente, Belo Horizonte,
v. 05, n. 08, p. 92-108, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://formacaodocente.autenticaeditora
.com.br> . Acesso em: 12 dez. 2018.

MARTINS, André Lúis Oliveira; PAIVA, Tatiane Helena da Costa. Sujeitos históricos, quem
são? Considerações sobre Sequência Didática trabalhada com alunos do 6º ano do Ensino
Fundamental. IV Semana de História do Pontal/ III Encontro de Ensino de História.
Universidade Federal de Uberlândia, Campus Pontal, 2016, Ituiutaba (MG). Anais
Eletrônicos. Disponível em: <http://www.eventos.ufu.br/sites/eventos.ufu.br/files/documentos/
andreluisoliveiramartins.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2019

NASCIMENTO, E. L. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo:


Summus, 2003.

NICODEMOS, Alessandra. Regulação e autonomia no trabalho docente na Educação de


Jovens e Adultos nos dias atuais: como professores de História selecionam os seus conteúdos?
97
In: MOURA, Ana Paula Abreu; SERRA, Enio (orgs.) Educação de Jovens e Adultos em
Debate, Jundiaí: Paco Editora, 2017.

NÓVOA, Antônio. Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

______. Concepções e práticas da formação contínua de professores: In: ______. (org.).


Formação contínua de professores: realidade e perspectivas. Portugal: Universidade de
Aveiro, 1991.

______. Para uma formação de professores construída dentro da profissão. In: ______.
Professores: Imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009.

PEREIRA, Edmilson Antonio Junior; OLIVEIRA, Dalila Andrade. Indicadores de retenção e


rotatividade dos docentes da educação básica. Caderno de Pesquisa, v. 46, n. 160, p. 312-
332, abr./jun. 2016.

PERRENOUD, P. Paquay L, Altet M, Charlier E. Formando professores profissionais:


quais estratégias? quais competências? Porto Alegre: Artmed, 2001.

PIO, Paulo M.; CARVALHO, Sandra M. G.; MENDES, José E. Práxis e prática educativa em
Paulo Freire: reflexões para a formação e a docência. Anais do XVII Encontro Nacional de
Didática e Prática de Ensino. Fortaleza: EdUECE, 2014.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos. Rio de


Janeiro: Ed. UFRJ, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.

LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos: inquietações e buscas. Educar, Curitiba:


Editora da UFPR, n. 17, p. 153-176. 2001.

LEAL, Fernanda de Moura. Educação Histórica e as contribuições de Jörn Rüsen. Anais


do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, jul. 2011.

LEITÃO, C.F. Buscando caminhos nos processos de formação/autoformação. Revista


Brasileira de Educação, Campinas (SP), n. 27, p. 25-39, set./out./nov./dez. 2004. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a02.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2018.

SCHMIDT, M. A. A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula. In:


BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

SÉRGIO, Maria Cândido. Formação de professores para Educação de Jovens e Adultos


(EJA): possibilidades para uma prática pedagógica emancipatória. Revista Interacções, n. 35,
p. 116-128, 2015.

SILVA, Indaiara Célia da. Currículo e diversidade cultural na escola Grapiúna. In:
BERNARDINO, Joaze; GALDINO, Daniela (orgs.). Levando a raça a sério: ação afirmativa
e universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p.229-240.

SILVA, Marco; PORTO, Amélia. Nas trilhas do ensino de História: teoria e prática. Belo
Horizonte: Rona, 2012.

98
SOARES, Leôncio. O educador de jovens e adultos e sua formação. EDUC. rev. [online],
2008, p.83-100. ISSN 0102-4698.

TOCANTINS, Governo do Estado. Secretaria de Educação e Cultura. Proposta Curricular:


Educação de Jovens e Adultos - EJA, 2008, 238 p.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.

UNESCO. Educação de Adultos. Declaração de Hamburgo. Agenda para o Futuro: V


Conferência Internacional de Educação de Adultos (V CONFINTEA). Hamburgo, Alemanha,
14 a 18 de julho de 1997.

VASCONCELOS, M. L. M. C.; BRITO, R. H. P. Conceitos de educação em Paulo Freire. 6.


ed. São Paulo: Vozes, 2014.

VENTURA, Jaqueline. As relações entre os sentidos do trabalho e a educação de jovens e


adultos. In: MOURA, Ana Paula Abreu; SERRA, Enio (orgs.). Educação de Jovens e
Adultos em Debate. Jundiaí: Paco Editora, 2017.

99
PARTE 03 –
O ENSINO DE HISTÓRIA E AS
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS

100
06- VOZES, CORPOS E SABERES DO MACIÇO:
UM PROJETO DE INTERVENÇÃO DIDÁTICA

Karla Andrezza Vieira28

Introdução

As motivações para o desenvolvimento do projeto de intervenção didática tocam-me a


pele. Sou negra e fruto de uma formação escolar anterior às legislações e diretrizes
curriculares para o ensino da temática acerca da História e da Cultura Africana e Afro-
Brasileira. As aulas de História sempre foram difíceis. A professora ensinava-nos sobre
escravidão e tudo era muito torturante. “Negro escravo, negro mercadoria, negra é a mão da
limpeza...”, era o tema que mais ecoava quando se tratava do estudo sobre minha comunidade.
Sendo a única estudante negra da sala de aula e uma das poucas da escola, não foram raras às
vezes em que fui alvo de comentários racistas. O que estava em pauta era um corpo que
carregava/carrega a insígnia da cor, a textura do cabelo e a espessura dos lábios. O
preconceito e a discriminação racial estavam impregnados na escola e eram naturalizados pela
mesma. Discursos de subalternidade perpassaram minha formação inicial e minha escolha
profissional esteve atravessada por isso.
Em vinte anos de uma vida magisterial na Educação Básica, como professora de
História, não me furtei ao debate étnico-racial nas escolas em que atuei. Foi na Escola de
Educação Básica Padre Anchieta que solidifiquei meu trabalho e construí as bases para a
escrita de Vozes, Corpos e Saberes do Maciço. A referida escola encontra-se situada no bairro
Agronômica, área central da capital de Santa Catarina, que atendia/atende estudantes oriundos
predominantemente das comunidades do Morro do 25, Morro do Horácio e Morro Santa
Vitória: integrantes do complexo território negro do Maciço do Morro da Cruz, em
Florianópolis.

28
Professora de História da Educação Básica da rede estadual de Santa Catarina. Possui graduação em História
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/2001). Pós-graduada em Gestão Escolar e Metodologia do
Ensino Interdisciplinar (Faculdade Dom Bosco/2009). Mestre em Ensino de História (PROFHISTÓRIA) pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/2016). Doutoranda do Programa de Pós-graduação em
História da UDESC (2018). No presente é vinculada ao Laboratório de Ensino de História (LEH/UDESC), ao
Grupo de Pesquisa Ensino de História, Memória e Culturas (CNPq/UDESC) e ao Grupo de Pesquisa Oficinas de
História (CNPq/UERJ). É bolsista UNIEDU/SC. Área de atuação: História, Ensino, Relações Étnico-Raciais e
Gestão Escolar. karlaandrezzavieira@gmail.com.
101
Figura 1. Mapa aéreo do Maciço do Morro da Cruz.

Fonte: Mauro Vaz. Disponível em: https://www.deolhonailha.com.br. Acesso em 30 de julho de 2020.

Figura 2. Representação cartográfica dos territórios do Maciço do Morro da Cruz.

Fonte: LabGeop – UFSC. Disponível em: https://laam.ufsc.br/projetos/aspectos-naturais-e-da-urbanizacao-do-


macico-do-morro-da-cruz/. Acesso em: 30 de julho de 2020.

O Maciço do Morro da Cruz constitui-se em vinte e um territórios, com


aproximadamente trinta mil habitantes em sua maioria moradores e moradoras de encostas de
alta declividade, caracterizadas como área de preservação permanente29. Conhecida como

29
Os números são pertinentes ao momento da pesquisa realizada entre os anos de 2014 e
2016. Não foram encontrados dados atualizados acerca da dimensão populacional dos
territórios do Maciço do Morro da Cruz.
102
uma região que se encontra submetida a uma situação de alto risco social, o Maciço do Morro
da Cruz, enfrenta sérios problemas em relação à falta de água, a moradia, ao saneamento
básico, a educação, aos espaços de lazer e ao transporte30. A ocupação do território deu-se
inicialmente por populações de origem africana libertas e, posteriormente pelas populações
pobres que foram expulsas das áreas centrais da cidade, em função do movimento sanitarista
ocorrido nas primeiras décadas do século XX. Entre 1970 e 1980 o Maciço recebeu muitos/as
trabalhadores/as advindos/as do meio rural, atraídos/as pelas possibilidades de uma nova vida
na capital. Recentemente o território foi receptor de uma grande leva de migrantes nortistas e
nordestinos, bem como imigrantes, especialmente haitianos, que adentraram no campo da
construção civil na cidade que agora se verticaliza por conta dos projetos de especulação
imobiliária (VARGAS, 2016).
A compreensão de que esse enredo pudesse ser mobilizado no chão da escola, me pôs
a investir na escrita de um livro que buscasse narrar as memórias e as histórias de vida das
populações de origem africana em territórios do Maciço do Morro da Cruz. O material foi
pensado e desenvolvido como uma proposta de intervenção didática junto ao curso de
Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC). O PROFHISTÓRIA, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, com oferta
simultânea nacional, estruturado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
tinha/tem por objetivo a promoção e a ampliação da formação docente em História.
Professores e professoras assim como eu, puderam/podem qualificar suas práticas,
desenvolver pesquisas no campo do ensino e especialmente contribuir para o aprendizado
histórico na Educação Básica31.
No mestrado profissional através da disciplina de Ensino de História e da Cultura
Africana e Afro-Brasileira, ofertada no ano de 2014, ministrada pela professora Doutora
Cláudia Mortari (UDESC), fui desafiada a pensar no livro de memórias, como uma
proposição atinente às demandas pautadas pela Lei nº 10.639/03 e pelo texto das Diretrizes
Curriculares Nacionais (BRASIL, 2004) em uma perspectiva crítica32. Digo crítica, no sentido

30
No contexto de crise sanitária que vivenciamos no tempo presente, por conta da pandemia
acarretada pela COVID 19 são também nos territórios do Maciço que encontramos as
situações mais vulneráveis e críticas.
31
Sobre as diretrizes acerca do Mestrado Profissional em Ensino de História ver o Regimento
Geral do PROFHISTÓRIA (UFRJ). O material encontra-se disponível online na página a
seguir: http://www.faed.udesc.br/arquivos/id_submenu/1226/profhistoria_em_rede___regim
ento_geral.pdf. Acesso em 30 de julho de 2020.
32
A Lei nº 10.639/03 é um marco na educação das relações étnico-raciais no Brasil. A legislação proeminente
percorre uma pauta de políticas afirmativas com vistas a implementar um conjunto de medidas e ações que visam
103
de problematizar as questões que envolvem a colonialidade do currículo e das experiências
pedagógicas ancoradas em bases eurocentradas. Escutar a voz daqueles/as que foram
relegados/as a um espaço de subalternidade me pôs em marcha. Compreender as vivências
das populações de origem africana em territórios do Maciço como conteúdo potente para o
ensino de História me impulsionou a realizar diálogos com epistemologias decoloniais e
interculturais33. Textos como de Alberto Quijano (2005), Antonieta Antonacci (2013),
Catherine Walsh (2009), Mario Rufer (2011), Ramón Grosfoguel (2008) e Walter Mignolo
(2003), ampararam a reflexão sobre os espaços de saber, de poder e as experiências do ser em
uma estrutura colonizada que necessita de ruptura.
No percurso da construção do trabalho estabeleci também, diálogos com os saberes
dos/as estudantes da Escola de Educação Básica Padre Anchieta. Através da aplicação de uma
sequência didática em turmas de sexto ano do Ensino Fundamental a respeito da História Local.
Nesse trabalho, identifiquei concepções carregadas de representações violentas e
preconceituosas acerca dos territórios do Maciço do Morro da Cruz. Entre as falas, a mais
recorrente consistia em afirmar que “lugar de negro é no morro”. Os primeiros passos foram
difíceis e algumas questões reverberaram: “Por que meus estudantes pensam assim? Que
experiências escolares e de vida estão representadas em tal afirmação? O que a escola
pode/deve fazer para enfrentar esses estereótipos?” (VARGAS, 2016, p. 9). Eis uma narrativa
racializada que precisava ser desnudada, muito embora, as fontes para tal enfrentamento fossem
escassas, dada a prevalência de um currículo calcado em experiências eurocêntricas e brancas.
As demandas advindas dos/as estudantes, desencadearam a necessidade da ampliação
do debate. Travei assim, um diálogo com os colegas profissionais da educação não somente
da escola em que atuei, mas também em outras unidades de ensino circunscritas pela
geografia do Maciço do Morro da Cruz: Escola de Educação Básica Hilda Theodoro Vieira e

corrigir determinadas injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão social. O Ministério da


Educação, junto à Secretaria de Educação Continuada de Alfabetização e Diversidade (SECAD), em março de
2003, ao instituir o referido documento, alterou a LDB e estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História da
África e dos africanos no currículo escolar do ensino fundamental e médio. As Diretrizes Curriculares
(BRASIL, 2004) propõem então, a instrumentalização de uma reorganização curricular, contemplando a
construção de alternativas pedagógicas que ressignifiquem o modo de ver, ser e compreender o universo das
populações africanas e afro-brasileiras em unidades de ensino do território nacional.
33
A Decolonialidade consiste em um movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à
lógica da modernidade/colonialidade, inaugurada por um grupo de intelectuais latino-americanos no final da
década de 1990. O conceito de interculturalidade relaciona-se a inserção de novas práticas a partir de pedagogias
críticas em relação a saberes colonizados empregados no universo escolar. A interculturalidade é antes de tudo
um projeto que se faz com os movimentos sociais, com vozes subalternizadas e dissonantes. Um projeto que se
faz com tantos “outros”.
104
Escola de Educação Básica Jurema Cavallazzi 34. A partir de um questionário investigativo, foi
possível confirmar a existência de uma imensa lacuna entre a escola, o local e as discussões
étnico-raciais. A pesquisa apontou para a inexistência de suportes pedagógicos que
incorporassem tais questões. Aos poucos a proposição didática ganhava corpo e significado.
Subi o morro e por entre becos, ladeiras e vielas fui percorrendo os caminhos do
Maciço. Cheguei às “fontes”. Foram dez testemunhos de moradores e moradoras que se
puseram a narrar suas memórias inscritas por aquela territorialidade extremamente complexa
e invisível, inclusive aos olhos da escola 35. Alisson, Amália, Daldomar, Geraldino, Linda
Inês, Luciana, Maria, Seu Silvio, Solange e Walmor, foram às vozes acionadas para a
organização da coletânea que guarda uma memória, difunde saberes decoloniais e incita a
mobilização de projetos interculturais na sala de aula.

Sobre o Projeto de Intervenção Didática

As reflexões registradas na pesquisa contribuíram para a organização de um livro de


memórias a partir das vozes das populações de origem africana dos territórios em questão.
Trata-se de um material didático a ser utilizado por professores/as da Educação Básica que
desejam discutir em sala de aula a temática das relações étnico-raciais na escola a partir de
epistemologias decoloniais e projetos interculturais. Vozes, Corpos e Saberes do Maciço,
título que nomeia a obra, encontra-se estruturado da seguinte maneira: 1º - introdução, 2º -
parte destinada a reflexões, sugestões e possibilidades ao trabalho docente, 3º - a coletânea de
textos, 4º - outras considerações (para concluir), 5º - um pequeno vocabulário e 6º - as
referências que compuseram o enredo do livro.

34
A Escola de Educação Básica Hilda Theodoro Vieira, situa-se no Bairro Trindade e atende especialmente
estudantes oriundos do Morro da Penitenciária. A Escola de Educação Básica Jurema Cavallazzi, está localizada
no Bairro José Mendes e atende também as comunidades do Morro do Mocotó e Morro da Queimada,
essencialmente. São ambas, escolas públicas da rede estadual de Santa Catarina.
35
Todo o percurso metodológico encontra-se descrito no texto dissertativo defendido em banca no dia dezesseis
de agosto de 2016. A dissertação encontra-se disponível online, assim como o “produto” (livro de memórias).
https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/173542. Acesso em; 30 de julho de 2020. O trabalho esteve sob a
orientação da professora Doutora Núcia Alexandra Silva de Oliveira (UDESC).
105
Figura 3. Capa do livro de memórias.

Fonte: Patrícia Alves. Florianópolis, 2016.

Na parte introdutória, Caminhos trilhados: a história de um livro de memórias, divido


com o/a leitor/a minha trajetória na docência e o ingresso no Mestrado Profissional em Ensino
de História. Explico as motivações para o desenvolvimento da pesquisa e o processo de
escrita do trabalho. Apresento ainda, a opção pela decolonialidade do saber e como o estudo a
partir das memórias das pessoas que carregam em seus corpos a insígnia da cor pode superar
currículos eurocentrados e práticas colonizadas.
Ainda sobre a estruturação do material didático, na parte destinada aos/as docentes,
intitulada Caminhos possíveis: considerações, reflexões e alternativas pedagógicas, aponto
algumas orientações para o uso da coletânea de textos em sala de aula a partir de eixos
temáticos: Ensino de História e Educação Étnico-Racial, Territorialidade e ocupação e
Memórias e histórias de vida. O primeiro eixo temático apresenta algumas ponderações sobre
a implementação da Lei nº 10.639/03 e o texto das Diretrizes Curriculares (BRASIL, 2004).
Os documentos normativos são discutidos em uma perspectiva crítica a colonialidade dos
conteúdos e temas. São problematizadas ainda, as interpretações dadas no espaço escolar às
106
orientações dos marcos legais para o Ensino da História e da Cultura Africana e Afro-
Brasileira. Não raro, encontramos nos relatos docentes (e a pesquisa realizada com os
profissionais da educação, mencionado anteriormente, trouxe esse destaque), certa exaltação
ao Dia da Consciência Negra. A data, celebrada em muitas escolas, por vezes essencializa
elementos da cultura e não faz a crítica histórica. Segundo a pesquisadora Júnia Sales Pereira
(2011) o ensino de História no que tange a temática étnico-racial nas escolas não ultrapassou
os limites de um devir de memória.
Outra discussão pertinente, ainda ao primeiro eixo temático dirigido aos docentes da
Educação Básica, diz respeito às pautas identitárias no ensino de História. Eis um campo de
tensão a ser discutido. Se estamos a pensar em relações étnico-raciais, a História e seu ensino,
deve problematizar a supervalorização de uma determinada cultura ou dos processos
históricos de um determinado grupo. A questão adensada consiste em compreender o campo
das identidades como algo aberto, em movimento. Na direção do que Stuart Hall (2011)
postulou, cabe dizer que as identidades se formam e transformam-se em relação às maneiras
pelas quais os indivíduos são atravessados pelos sistemas políticos e culturais que
circunscrevem o mundo.
No eixo Territorialidade e ocupação, historicizo a composição do Maciço do Morro
da Cruz, por meio de bibliografia pertinente e das narrativas construídas pelos/as depoentes
que emprestaram suas memórias para a construção do projeto de intervenção didática. Procuro
apresentar ao leitor/a um olhar para conhecimentos produzidos fora da geopolítica, moderna e
colonial, rompendo com a universalidade dos saberes eurocentrados. Não se trata apenas de
um movimento de História Local a partir do Maciço. Trata-se da apreensão de outra lógica a
ser conferida ao ensino de História e às questões étnico-raciais na escola. Walter Mignolo
(2003) propõe a retirada da centralidade da produção de saber, de ciência e de existência
humana a partir de conceitos/categorias/narrativas construídas sobre o ponto de vista europeu.
Outro elemento explorado no segundo eixo relaciona-se ao conceito de
territorialidade. A territorialidade do Maciço não se inscreve apenas pelos intensos processos
de ocupação. As vivências e as experiências compartilhadas pelos sujeitos, elaboradas e
reelaboradas ao longo do tempo, também caracterizam tal conceito. O documentário Maciço,
dirigido e produzido por Pedro MC (2009), procura captar essa dimensão sobre o lugar 36.

36
O documentário procura captar as histórias de vida e a produção da vida material dos moradores e das
moradoras do Maciço do Morro da Cruz/Florianópolis. As entrevistas foram conduzidas pela professora e
historiadora Karen Cristine Rechia, cuja primeira exibição ocorreu no mês de março do ano de 2009. O material
encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-ObiWF_agFE. Acesso em: 30 de julho de 2020.
107
No terceiro e último eixo temático, Memória e histórias de vida, apresento aos
professores e professoras a questão da memória como uma referencialidade do passado que,
na pesquisa histórica, se coloca como fonte potente para nos reorientarmos no tempo. Os
estudos com memória permitem uma reabertura do passado, a partir das perguntas que
realizamos no presente. Mobilizar as memórias das populações de origem africana em
territórios do Maciço pode dar a este lugar e a vida dessas pessoas uma nova compreensão
histórica, superando quadros fundamentados no racismo, nas violências e em estereotipias.
Todavia, a memória concebida a partir de veredas decoloniais, requer uma ampliação
conceitual. Quando pensamos em novos espaços de enunciação, quando pensamos em novos
sujeitos para a escrita da História, quando estudamos novos corpos de memória, as
concepções epistemológicas hegemônicas não dão conta do que queremos dizer, quando
tratamos das memórias daqueles/as que carregam em seus corpos a insígnia da cor. São corpos
que emanam ancestralidade, performatividade... são corpos que comunicam histórias de vida.
A constituição dos eixos temáticos são contribuições teóricas para que professores e
professoras reflitam sobre e façam as suas escolhas pedagógicas. Não indico receitas prontas.
Penso que a atividade docente é também algo que se faz na experiência da sala de aula. A
perspectiva é a de que docentes junto a seus estudantes construam seus próprios caminhos. Ao
final de cada tema, deixo algumas sugestões de leituras, documentários, músicas, poesia e site
na perspectiva de contribuir para ampliação do repertório.

Quadro 1. Sistematização dos materiais indicados a partir de eixos temáticos.


Materiais Eixo Temático: Eixo Temático: Eixo Temático:
indicados
Ensino de História e Educação Territorialidade e Memória e histórias
étnico-racial ocupação de vida
Música O meu lugar, por Arlindo Respeitem meus
Cruz e Mauro Diniz. cabelos, brancos, por
Chico César.
Poema Gritaram-me negra,
por Victória Santa
Cruz.

Deixo aos leitores e as leitoras da coletânea de textos por mim organizada, o documentário como indicação ao
trabalho docente.
108
Texto Diálogos sobre o Exercício da Ensinar História, por Maria Ensino de História e
Docência – recepção das leis Auxiliadora Schmidt e memória coletiva, por
10.639/03 e 11. 645/08, por Júnia Marlene Cainelli. Mário Carretero.
Sales Pereira.
Espaços coletivos de
Ensino de história:
Entre o “encardido”, o “branco” e esperança: a experiência
entre história e
o “branquíssimo”: Raça, política e pedagógica da
memória, por Ana
hierarquia e poder na construção Comissão de Educação do
Maria Monteiro.
da branquitude, por Lia Vainer Maciço do Morro da Cruz
Schucman. em Florianópolis, por
Jéferson Dantas.
Decolonialidade e perspectiva
negra, por Joaze Costa e Ramón O que pode o ensino de
Grosfoguel. História? Sobre o uso de
fontes em sala de aula, por
Interculturalidade crítica e Nilton Pereira e Fernando
pedagogia decolonial: in-surgir, Seffner.
re-existir e re-viver, por Catherine
Walsh.
Sites IHGB/SC.

vídeo O mito da democracia racial, por O que é território? Por


Alexandre Santos Moraes. Gerardo Damonte.

Maciço, por Pedro MC.


Fonte: Elaboração da autora. Florianópolis, 2020.

As indicações textuais para ampliação temática do eixo 1, perpassam o debate do


ensino de História e da educação para as relações étnico-raciais. O texto de Júnia Sales
Pereira (2011) é importante para tecermos críticas em torno dos marcos legais para o ensino
da temática africana e afro-brasileira na escola. O livro de Lia Vainer Schucman (2014) incide
sobre as demandas étnico-raciais a questão da branquitude, como categoria analítica que
problematiza o privilégio branco e as hierarquizações sociais historicamente construídas no
Brasil. O artigo Decolonialidade e perspectiva negra de Joaze Costa e Ramón Grosfoguel
(2016) é bastante pertinente ao debate da colonialidade do ser, do saber e do poder. Na direção
de uma pedagogia decolonial, a narrativa de Catherine Walsh (2009) contribui para a
construção de projetos coletivos, junto aos grupos escolares e aos movimentos sociais, como
algo insurgente aos temas e problemas étnico-raciais. Com o documentário O Mito da
Democracia Racial no Brasil, produzido por Alexandre Santos de Moraes, é possível

109
compreender que a insígnia da cor pode ser caracterizada como elemento determinante para a
constituição das diferenças e da produção das desigualdades sociais e raciais em nosso país 37.
As sugestões destinadas ao eixo 2, percorrem a pauta da territorialidade do Maciço do
Morro da Cruz, como a tese de doutorado de Jéferson Dantas (2012) e o vídeo documentário
Maciço, por Pedro MC, anteriormente apresentado. Ainda para o segundo eixo temático,
deixo aos professores e as professoras possibilidades textuais alinhadas a História Local, a
partir do material Ensinar história (CAINELLI; SHIMIDT, 2009), bem como, ao uso de
fontes em sala de aula, a partir das reflexões de Nilton Pereira e Fernando Seffner (2008). O
site do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGB) aparece como indicação de
investigação para uma enormidade de fotografias e tantas outras imagens sobre a cidade de
Florianópolis em diferentes temporalidades, ângulos e corpos38. A música o Meu lugar,
composta por Arlindo Cruz e Mauro Diniz, faz parte do álbum Batuques do Meu Lugar
lançado no ano de 2012, indicada como reflexão aos docentes, coaduna as experiências dos
sujeitos inscritas em uma territorialidade. Esse pequeno inventário põe em diálogo as
proposições do livro de memórias com as narrativas das populações de origem africana do
Maciço do Morro da Cruz e tantos outros saberes que circulam nas esferas acadêmicas,
escolares e cotidianas.
Para o eixo 3, Memória e histórias de vida, as leituras de Mario Carretero (2007) e
Ana Maria Monteiro (2016) são centrais para a discussão do ensino de História e suas
interfaces no trabalho com a memória na escola. Conferindo uma dimensão estética às
reflexões sobre memórias ancoradas em corpos que carregam a insígnia da cor, registro a
indicação sonora e poética de Respeitem meus cabelos, brancos, composta por Chico César e
a experiência performática de Victória Santa Cruz em Gritaram-me negra39.
Vale dizer, que em todos os eixos temáticos descritos até aqui e que entoam a parte de
orientação à prática docente, mobilizei as narrativas dos sujeitos selecionados para a escrita
do livro de memórias. Como um movimento de fazer pensar a fala das populações de origem
africana em territórios do Maciço como instrumento potente para o desenvolvimento do
conteúdo didático em cada eixo estabelecido. O trecho do texto Lá de cima a vida não é tão
ruim! elaborado com base nos depoimentos de Linda Inês Flores (2016), estudante da Escola

37
O vídeo encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p5Wo6_qumJc. Acesso em 30 de
julho de 2020.
38
Para conhecer a fototeca do IHGB/SC ver: https://www.ihgsc.org/. Acesso em 31 de julho de 2020.
39
Respeitem meus cabelos, brancos foi composta e também interpretada por Chico César. Você pode encontrar a
canção no álbum de mesmo nome publicizado no ano de 2002. Gritaram-me negra, poema musicado na voz de
Victória Santa Cruz, encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g52jzCTUKXA. Aceso em
31 de julho de 2020.
110
de Educação Básica Padre Anchieta e moradora do território Santa Vitória, pode contribuir na
reflexão do eixo 2:

Da escola para o Santa Vitória tem sido minha vida. Vou driblando os problemas do
tráfico e os confrontos com a polícia. Vou driblando as dificuldades de acesso à
comunidade, o ônibus não chega até lá. Falta água e no verão é bem difícil. O
saneamento é bem precário. As casas são improvisadas e quando venta muitas vão
para o chão. Eu moro bem lá em cima e mesmo com todas as dificuldades as pessoas
se ajudam. Tem festa também. Aos finais de semana a vizinhança se reúne. As
crianças soltam pipa e jogam bola. A gente se respeita. (FLORES, 2016, p. 35).

Linda Inês revela as dificuldades encontradas pela precariedade do território no qual é


moradora. O depoimento revela a ausência do poder público em Santa Vitória, dadas às
péssimas condições de saneamento básico e de moradia. Todavia, é possível perceber que
mesmo dentro de um cenário de vulnerabilidades, há espaço para a construção de uma
territorialidade que se faz em suas redes de sociabilidade e em projetos comuns aos sujeitos
que habitam um determinado lugar. Nessa direção, Um lugar chamado 25, coloca-se também
como um texto pertinente ao eixo 2:

Meu pai era pescador e minha mãe era doméstica. Eu nasci aqui no 25 e as coisas
eram diferentes. Lá em cima era tudo mato, não tinha luz, não tinha água, não tinha
calçamento. Eu estudava na escola Padre Anchieta quando era aqui perto da igreja
São Luís. Eu e meus irmãos aprontávamos muito na infância. Na escola cheguei a
ficar no quarto escuro. Quando jovem fui cuidar de minha formação. A gente
precisava trabalhar. Sou alfaiate aposentado. Trabalhei muitos anos na Penitenciária
do Estado. Eu gostava do que fazia e as pessoas também gostavam da minha arte.
Diziam que eu era muito caprichoso. Tenho boas recordações daquele tempo,
especialmente de quando nos reuníamos no clube. O Clube do 25 era um ponto de
encontro, de festas e de grandes bailes. Foi fundado no dia 25 de dezembro de 1933
era só para pretos e os brancos não podiam entrar. Lá em baixo tinha o Concórdia e a
gente não ia não. Na verdade, o Clube do 25 era nosso lugar. Eu me sentia bem
(SOUZA, 2016).

Seu Silvio narra a ocupação do Morro do 25, relatando o processo de crescimento


urbano e as possibilidades de trabalho ofertadas pela presença da Penitenciária do Estado na
região da Agronômica, bairro de Florianópolis. Descreve uma paisagem alterada pela
presença de migrantes e registra as dificuldades estruturais do território em que habita.
Contudo, seu depoimento desloca os estudos mais genéricos a respeito do Maciço (pobreza,
violência, racismo e opressão), por conferir as experiências de quem fala sobre o lugar a partir
dos laços de sociabilidade e da vida em comunidade.
A narrativa de Luciana Hilário (2016), moradora do Morro do Caieira, potencializa as
discussões sobre memória e corpo, dada a ver no eixo 3:

Muita gente sobe o Caieira para fazer o cabelo comigo. Me especializei em tratar de
cabelos como os meus e mostrar a beleza que temos. Vejo como isso tem crescido
muito. O mercado está bom para nós agora. Quando criança vivia com o cabelo
preso, achava feio. Hoje eu vejo é muita beleza! (HILÁRIO, 2016).

111
Luciana é uma personagem que nos coloca a pensar em movimentos de ruptura em
relação a uma colonização estética. Assim, ao preconizarmos um debate para as relações
étnico-raciais na escola de modo mais ampliado, podemos ouvir Luciana e decolonizar os
corpos que possuem a insígnia da cor. O texto É carnaval no Mocotó, elaborado a partir do
depoimento de Maria de Lourdes Fraga (2016), caminha nessa perspectiva.
Sobre a questão das identidades, explorada no eixo 1, Ensino de História e Educação
Étnico-Racial, professores e professoras a partir dos depoimentos de Dona Amália Rosa
(2016), podem trazer para as suas práticas pedagógicas a reflexão de que nos fazemos uns
com os outros e que nossos quadros de identificação são plurais e mutáveis:

Hoje meus netos quase não brincam na rua, vivem presos assistindo televisão ou
jogando no computador. Quando eu era criança as brincadeiras eram outras. Eu
reunia minhas amigas e a gente brincava de roda, de boneca de pano e de
cozinhadinho. A mãe ficava brava, pois precisávamos de alguns produtos para fazer
as comidinhas. A gente pegava ovos, batatas, pão e o que mais tivesse nos armários.
Cada amiga levava um pouquinho do que podia. A Maria era responsável pelo suco
de limão, ela catava tudo no pé que tinha no quintal de casa. A gente cozinhava de
verdade, tinha fogo e tudo. Era só juntar uns tijolos, pegar umas madeirinhas e
pronto. Era tudo regado a cantoria, a mais comum no nosso tempo era a ratoeira. Eu
ainda sei os versos que decorei (ROSA, 2016).

O trecho além de evidenciar os brinquedos e as brincadeiras do ontem e do presente da


narrativa, bem como o próprio olhar para a infância (temática aparentemente extracurricular),
no enredo encontramos traços de um elemento cultural que diz respeito a uma tradição
concebida como base açoriana. A ratoeira, uma cantoria para transmitir recados amorosos
quando nos idos tempos da juventude de Dona Amália, marca a reflexão de que as identidades
são sistemas culturais complexos e sempre abertos.
Entre os caminhos trilhados e os caminhos possíveis para uma ação pedagógica
versada no livro de memórias com as narrativas das populações de origem africana delineadas
pela territorialidade do Morro do Maciço, o que fica de fato para professores e professoras é o
convite para uma atividade de ruptura curricular, que passa inclusive por uma ruptura de
pensamento. Pelos limites estipulados para esse artigo, não descreverei todos os mecanismos
a serem operados sobre a escrita das memórias recrutadas. Desse modo, empreendo aqui,
outro convite: a leitura dos textos da coletânea em si.
Memórias e histórias de vida das populações de origem africana em territórios do
Maciço do Morro da Cruz em Florianópolis é a parte em que o/a leitor/a pode encontrar as
narrativas e as experiências daqueles e daquelas que carregam em seus corpos a insígnia da
cor. São vozes de jovens, idosos, homens e mulheres que, ao falarem de si, revelam universos
plurais a partir de temas nem sempre óbvios. São oito títulos: Um lugar chamado 25; Lá de

112
cima a vida não é tão ruim! Ouça a música; Minha escola; Quem é que sobe a Ladeira; É
carnaval no Mocotó; O Cabelo de Luciana e Brinquedos e Brincadeiras. Na tessitura,
ilustrações que estabelecem diálogo com o escrito e provoca reflexões para além do texto 40.

Figura 4. Ilustração do texto Quem é que sobe a ladeira?

Fonte: Karla Vargas. Florianópolis, 2016, p.42.

Os elementos pós-textuais contam com uma breve consideração, algumas poucas


palavras sobre as expectativas em relação ao emprego da proposição didática; um pequeno
vocabulário, para registrar o significado de alguns termos que emanaram das narrativas e que
podem não ser de conhecimento do/a leitor/a. Além disso, apresento as referências bibliográficas
que ofereceram importantes contribuições para a construção do livro de memórias.

Algumas Considerações

Percebo o livro de memórias como um suporte pedagógico importante por contribuir


para um trabalho em sala de aula a partir do local e do protagonismo dado às populações de
origem africana nas histórias organizadas na obra. Acionar Seu Silvio, Linda Inês, Alisson,
Walmor, Daldomar, Solange, Luciana, Geraldino, Maria de Lourdes e Amália (depoentes)
significa convocar saberes fora da geopolítica determinada pelo pensamento eurocentrado.
Não são as narrativas sobre um corpo/máquina que estão a conduzir o trabalho, mas as

40
As ilustrações que acompanham todo o livro de memórias foram elaboradas por Patrícia Maria Macedo Alves.
Professora de Artes da rede estadual de Santa Catarina, Patrícia subiu o Maciço comigo.
113
experiências de pessoas que foram subalternizadas em função de um projeto colonizador que
necessita ser desnudado. Desse modo, ao ensino de História cabe a apropriação de uma
paisagem decolonial. Como estabelecer um diálogo entre a História como disciplina escolar e
a Educação para as Relações Étnico-Raciais se não atravessarmos o currículo existente?
Assim, vejo potência no livro de memórias das populações de origem africana em territórios
do Maciço, por apontar caminhos no sentido de propor rupturas epistemológicas e
curriculares. Trata-se de outra lógica, que precisa ser incorporada por estudantes, docentes,
gestores/as, secretarias de ensino e universidades.

Referências

ANTONACCI, Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: EDUC,


2013.

BRASIL. Presidência da República. Lei n° 10.639/03, de 09 de janeiro de 2003. Estabelece


as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Disponível
em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 23 jan. 2019.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para Educação das


Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. MEC/SECAD, 2004. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-
content/uploads/20 12/10/DCN-s-Educacao-das-Relacoes-Etnico-Raciais.pdf. Acesso em: 23
jan. 2019.

CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Ensinar história. 2. ed. São Paulo:
Scipione, 2009.

CARRETERO, M. et al. Ensino da história e memória coletiva. Porto Alegre: Artmed,


2007.

COSTA, Joaze Bernardino; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra.


Revista Sociedade e Estado, Rio de Janeiro, v.31, n 1, p. 15-24, jan./abr. 2016.

DANTAS, Jéferson. Espaços coletivos de esperança: a experiência política e pedagógica da


Comissão de Educação do Maciço do Morro da Cruz em Florianópolis/SC. 2012. 377 f. Tese
(Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-
Graduação em Educação, Centro de Ciências da Educação, 2012, Florianópolis.

FLORES, Linda Inês. Entrevista concedida a Karla Andrezza Vieira Vargas. Florianópolis, dia
04 de mar. de 2016. Duração 53 min. 02 seg. Entrevista.

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-


coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica
de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 115-147, mar. 2008.
114
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora,
2011.

HILÁRIO, Luciana. Entrevista concedida a Karla Andrezza Vieira Vargas em Florianópolis,


no dia 02 de março de 2016. Duração 46 min. 31 seg.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e


pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de história: entre história e memória. 2. ed. Rio de Janeiro:
Ed. UERJ, 2009.

PEREIRA, Júnia Sales. Diálogos sobre o exercício da docência – recepção das leis 10.639/03
e 11.645/08. Educ. Real. Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 147-172, jan./abr. 2011.

PEREIRA, Nilton; SEFFENER, Fernando. O que pode o ensino de história? Sobre o uso de
fontes na sala de aula. Anos 90. Porto Alegre, v.15, n.28, p.113-128, dez. 2008.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005b. p. 107-130.

ROSA, Amália. Entrevista concedida a Karla Andrezza Vieira Vargas em Florianópolis, no dia
01 de março de 2016. Duração 43 min. 04 seg.

RUFER. Mario. La memoria de los otros: Subalternidad, poscolonialismo y regímenes


verdad. Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais, v. 1, n. 1, p. 13-43, dez. 2011.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça,


hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. São Paulo: Ed. Annablume, 2014.

SOUZA, Silvio de. Entrevista concedida a Karla Andrezza Vieira Vargas em Florianópolis, no
dia 29 de fevereiro de 2016. Duração 49 min. 17 seg.

VARGAS, Karla Andrezza Vieira. Vozes, corpos e saberes do Maciço: memórias e histórias
de vida das populações de origem africana nos territórios do Maciço do Morro da
Cruz/Florianópolis. 2016. 116 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de História) - Faculdade de
Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis.

WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-


viver. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação intercultural na América Latina: entre
concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-43.

115
07. DECOLONIALIDADE E PERSPECTIVA NEGRA:
DISCUTINDO AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Francy Leyla Salazar da Silva41

Introdução

A temática das relações étnico-raciais nos últimos anos tem produzido discussões
acaloradas no Brasil e no mundo, não apenas nos movimentos sociais negros, – que por sua
vez, têm se difundido das formas mais diversas – como também nas universidades, tornando-
se palco de extensos debates acadêmicos. Porém ainda se apresentam de forma bastante
tímida ou pontuais nas escolas. Tratadas por muito tempo como “tabu”, tais relações foram
forjadas na prática de um racismo velado, porém estrutural na sociedade brasileira e suas
diversas instituições; na discriminação e na violência contra os corpos e as subjetividades de
homens e mulheres negras e indígenas. Essas relações tensionam a medida que os negros
avançam na ocupação de espaços anteriormente “destinados” aos brancos, legitimando uma
luta secular de segregação social e racial, num país que até pouco tempo não se reconhecia
como racista, e em que parcela significativa da população ainda acredita no mito da
democracia racial e trata a causa negra como vitimismo, “mimimi”, ou ainda “racismo
reverso”42.
As relações raciais que a princípio foram discutidas no campo acadêmico, em torno da
ideia da democracia racial, passam a ser pensadas a partir da realidade desigual em que se
encontra a maioria da população negra; e no último século, em decorrência das reivindicações
do Movimento Negro, e com o aumento do acesso de negros e negras ao ensino superior,
vários estudos têm-se apresentado, levando em conta a perspectiva negra acerca dessas
relações.
O tema das relações étnico-raciais, aqui proposto como discussão possível no campo
educacional, se ampara na perspectiva das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que trata da
obrigatoriedade da inserção de história e cultura afro-brasileira e africana, e indígena nas
escolas públicas e privadas, e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), que traz as

41
Mestranda em Ensino de História pelo Programa de Pós-Graduação ProfHistória da Universidade Federal do
Tocantins. Graduada em História pela UEMA. Professora da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do
Tocantins/Araguaína/TO.
42
Racismo reverso seria a forma clássica de preconceito motivado pela raça, cor ou etnia, porém, contra brancos,
ou de negros contra brancos. O que não configura racismo, pois este é resultado de um processo estrutural
histórico, baseado no passado da escravidão. (PORFÍRIO, 2019).
116
orientações acerca deste ensino, bem como as lutas e conquistas do Movimento Negro. Nos
respaldamos ainda numa perspectiva decolonial e negra, com o objetivo de contribuir para a
tomada da consciência crítica e a reflexão sobre as identidades dos estudantes negros/as da 2ª
Série do Ensino Médio de uma escola militarizada de Araguaína – TO, no sentido de provocar
tessituras no processo de ensino e aprendizagem nesse ambiente.
A proposição desse estudo parte da constatação empírica e bibliográfica, do ainda
constante silenciamento e mesmo folclorização da negritude no currículo das humanidades, e
consequentemente no ambiente escolar, o que contribui para a reprodução de estereótipos
negativos acerca dos negros, e perpetuação de uma epistemologia predominantemente
eurocêntrica, branca e racista. Em se tratando de uma escola de perfil militarista essas
discussões tornam-se ainda mais relevantes, visto que, no contexto da escola militar a
hierarquização e a ideia de meritocracia fazem parte da proposta de ensino. A discussão
central é: como podemos pensar em decolonialidade num ambiente militarizado, onde a lógica
do grupo é pensada visando atender a hierarquias? Como inserir a temática das relações
étnico-raciais a partir dos grupos subalternizados, sem reforçar o mito da democracia racial,
ou os folclorismos acerca do negro ou do indígena? É isso o que nos propomos como desafio.
Reconhecer a existência do racismo para além da ofensa verbal é o primeiro passo
para a construção de uma educação antirracista. Para tanto é necessário um mínimo de
compreensão histórica sobre o “racismo à brasileira” e os silenciamentos que este provocou e
ainda provoca acerca dos problemas que afetam as populações negra e indígena no Brasil. Os
estudos decoloniais de Qüijano (2005), Mignolo (2005), Bernardino-Costa e Grosfoguel
(2016) nos ajudam na compreensão dessas relações, ao demostrar que é a partir da
colonização das Américas pelos europeus, que tem início a construção social-histórica do
racismo, no processo de categorização racial dos povos, da divisão racial do trabalho, das
novas relações de poder estabelecidas pelo capitalismo, e no menosprezo daqueles que foram
postos como inferiores, o “Outro” do “Eu” europeu/branco/ocidental. A decolonialidade não
se restringe a um projeto acadêmico (BERNARDINO-COSTA e GROSFOGUEl, 2016). Ela
se apresenta como uma prática epistêmica de oposição e intervenção ao eurocentrismo.
De outro modo, as organizações negras, ora no campo acadêmico ora nas vivências e
saberes das comunidades, nas ações culturais e religiosas vêm denunciando o descaso e o
abandono do poder público e muitas vezes sua ineficiência no que diz respeito a
aplicabilidade das políticas públicas de combate ao racismo e à discriminação, além da
invisibilização das suas lutas e existências, inclusive no campo educacional. Ao mesmo
tempo, feministas negras reivindicam o debate das relações raciais a partir do campo
117
interseccional, visto que sob estas mulheres recai não só a discriminação de raça, mas também
de gênero. Mulheres negras atreladas aos movimentos Negro e Feminista hegemônico, de
modo geral, mantiveram-se historicamente associada à luta racial negra, por se entenderem
como parte deste contexto, anulando-se muitas vezes da sua própria condição de ser mulher
(CARNEIRO, 2003; KILOMBA, 2019). Por outro lado, essas mulheres não se sentem
totalmente representadas no interior do Movimento de Mulheres hegemônico tendo em vista,
que a categoria “mulher” foi apresentada de forma universalizada, personificada na mulher
branca, ocidental, cisgênero, tomando por base teorizações da episteme ocidental,
desconsiderando a condição racial que potencializa as discriminações sofridas por mulheres
negras e demarca o lugar de subalternização delas mesmas. Esses e outros silenciamentos que
envolvem os grupos oprimidos, vêm sendo reproduzidos ao longo do tempo na formação de
alunos e professores, haja vista o currículo adotado nas nossas escolas ter privilegiado os
saberes de um grupo hegemônico em detrimento de outros tão relevantes e necessários
quanto.
Entendemos a escola como um espaço de vivências e socializações que deve contribuir
para a construção de identidades positivas, ou como afirma Nilma L. Gomes:

Quando pensamos a escola como um espaço específico de formação, inserida num


processo educativo bem mais amplo, encontramos mais do que currículos,
disciplinas escolares, regimentos, normas, projetos, provas, testes e conteúdos. A
escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na
construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na
escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las,
discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las (GOMES, 2003, p. 171).

Levar esse debate para sala de aula, em vista de criar um espaço de diálogo
permanente, acerca das contribuições da população negra e indígena, não apenas no âmbito
cultural, mas em todo processo histórico brasileiro, tomando também por base a legislação
educacional acerca das relações étnico-raciais, se faz necessário e urgente, mediante as
manifestações constantes de racismo dentro e fora do ambiente escolar. Além de nos ajudar a
compreender o longo processo de racialização ao qual foram submetidas as populações
colonizadas, e como isso afeta nossas relações sociais, políticas, econômicas, e mesmo
afetivas, até os dias atuais, e que acabaram por delegar o lugar de subalternização de negros e
indígenas, e o lugar de privilégio do branco na nossa sociedade.
Neste trabalho em específico trataremos mais das questões concernentes aos negros.
Para tanto nos valemos dos estudos acerca das relações raciais de alguns dos principais nomes
da intelectualidade negra no Brasil e no mundo, e dos movimentos sociais negros e feministas
negras; das novas conceituações e perspectiva do Grupo Modernidade/Colonialidade; dos
118
propósitos de Paulo Freire de uma educação para conscientização e liberdade; e, também,
daqueles que se dedicam aos estudos sobre a cultura escolar. Neste artigo refletimos sobre
decolonial em vista de uma perspectiva negra e nos propomos a uma breve reflexão acerca do
diálogo sobre as identidades dos estudantes negros e negras do Colégio Militar do Tocantins
de Araguaína, fomentadas a partir da técnica da roda de conversa.

Os Estudos Decoloniais e o Pensamento Negro sobre as Relações Raciais

A temática da Decolonialidade é considerada uma discussão relativamente nova no


espaço acadêmico, visto que ela não se define como uma teoria em si, com regras, padrões e
normas a serem seguidas. Contudo a decolonialidade como prática de insurgência está
presente nas ações e vivências de comunidades tradicionais, como quilombolas, indígenas,
nas organizações negras brasileiras “afrocentradas”, nos saberes dos grupos subalternizados
que buscam um modo de ser, saber e viver diferentes dos padrões ditados pela
ocidentalização.
A decolonialidade, numa perspectiva acadêmica foi pensada pelo Grupo Latino-
americano e caribenho Modernidade/Colonialidade, que tem buscado sistematizar conceitos e
categorias interpretativas, como o de colonialidade do poder, do saber e do ser (MIGNOLO,
2005). E a partir desses conceitos passam a pôr em xeque o universalismo epistemológico
europeu, tido, até então, como única verdade. Trata-se sobretudo, de uma práxis epistêmica
somada aos esforços em construir alternativas ao eurocentrismo, visando ressaltar saberes
outros de grupos subalternizados, de modo a problematizar a manutenção das condições
subalternizantes, partindo de uma crítica à modernidade. Neste sentido, importa saber que a
base do pensamento do grupo Modernidade/Colonialidade consiste na afirmação de que “a
colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada” (MIGNOLO, 2005, p. 75).
Quando falamos de modernidade nos remetemos ao contexto histórico europeu
ocidental e seu projeto civilizador do mundo colonial, isso porque a Europa constituiu-se a si
própria como palco da modernidade e de seus correlatos: civilidade, conhecimento científico,
direitos humanos, democracia, entre outros. Porém a própria modernidade e seus correlatos
são realidades discursivas, validadas a partir de interações simbólicas (PINTO e MIGNOLO,
2015). Ela faz parte de um discurso local que se pretende global, e por isso ignora seu aspecto
discursivo político, se apresentando como realidade natural e inevitável.

119
A colonialidade traduz-se como o lado perverso da modernidade e consiste num
processo de dominação epistêmica que sobreviveu aos colonialismos dos séculos XV ao XIX,
determinando uma hierarquia das relações capitalista de trabalho a partir da categoria raça,
com base no eurocentrismo. Com o tempo as relações sociais que surgiram fundadas na ideia
de raça produziram nas Américas identidades sociais historicamente novas: índios, negros e
mestiços, além de redefinir outras (QÜIJANO, 2005). “Assim, termos como espanhol e
português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou
país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma
conotação racial” (QÜIJANO, 2005, p. 117). Raça e identidade racial tornaram-se, portanto,
instrumentos de classificação social básica da população, sendo o europeu e seus
representantes coloniais, uma representação da categoria branco. Assim afirma Qüijano:

Os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de


inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas
descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério
fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis
na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de
classificação social universal da população mundial (QÜIJANO, 2005, p. 118).

Qüijano (2005) explicita que a “colonialidade do poder” está relacionada a dominação


e exploração, e refere-se ao processo de invasão e ocidentalização do imaginário do outro pelo
colonizador. “A colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a
diferença colonial, a periferia como natureza” (MIGNOLO, 2005, p. 36).
Sobre a “colonialidade do saber” (MIGNOLO, 2003), esta pode ser entendida como a
repressão de outras formas de produção de conhecimento não europeias, de negação do
legado intelectual e histórico de povos indígenas e africanos (MIGNOLO apud OLIVEIRA e
CANDAU, 2010). Assim, o pensamento branco hegemônico foi durante muito tempo tido
como único e histórico. Sendo nesse caso a história contada do ponto de vista do vencedor, o
qual impôs seu modo de pensar e fazer como universal, científico e lógico. No processo de
dominação de alguns povos sobre outros, o branco europeu hegemônico desconsiderou todas
as formas de ser e viver que encontrou diversas da sua, classificando-as como não cultura, não
sociedade, não humano.
De modo que é no conceito de “colonialidade do ser” (TORRES, 2007) que os demais
conceitos se expressam com mais força, como atesta Catarine Walsh (2005) apoiada nos
escritos de Fanon (1983), relacionando colonialismo a não-existência. “Em virtude de ser uma
negação sistemática da outra pessoa e uma determinação furiosa para negar ao outro todos os

120
atributos de humanidade, o colonialismo obriga as pessoas que ele domina a perguntar-se: em
realidade quem eu sou?” (FANON apud WALSH, 2005, p. 22).
Devido a colonialidade, o mundo moderno europeu pôde produzir as ciências humanas
como modelo universal, transformando as demais epistemologias em periféricas em relação
ao Ocidente (OLIVEIRA e CANDAU, 2010). Por essa razão a decolonialidade nos sugere um
pensamento de fronteira, discutindo outros espaços geográficos não-privilegiados, além de
propor o “desengajamento epistêmico” em relação ao ocidentalismo, visto que sua retórica
salvacionista, civilizatória, e desenvolvimentista têm reduzido “cosmologias, manifestações
artísticas, ciências e tecnologias, formas de organização econômica e política” “Outras” à
“superstições, mitos, folclores e tradições irracionais, isso quando não são totalmente
suprimidas” (PINTO e MIGNOLO, 2015, p. 389).
Povos que foram categorizados racialmente, mais precisamente negros-africanos e
seus descendentes no Brasil, e que sofreram um processo de invisibização e silenciamentos
históricos, acabaram tendo que reconhecer tais processos, no intuito de reivindicar
equiparação histórica e simbólica. Reconhecemos as ações desses grupos como práticas
decoloniais, e entendemos a importância de historicizar suas lutas por integração e
reconhecimento como sujeitos ativos e participativos na construção da sociedade. Bernardino-
Costa e Grosfoguel (2016) ressaltam que os intelectuais da decolonialidade são responsáveis
apenas pelo desenvolvimento analítico dos conceitos, uma vez que podemos encontrar essas
formulações na tradição do pensamento negro, lembrando que os habitantes da fronteira do
sistema mundo/colonial não são passivos.
No caso brasileiro, o pensamento negro e sua intervenção político-acadêmica têm se
dado a partir da experiência da diferença colonial. “A partir do lugar epistêmico do negro
nessa sociedade” (BERNARDINO-COSTA e GROSFOGUEL, 2016, p. 20). Os esforços
desses intelectuais que militam na causa negra e dos vários movimentos sociais negros,
trouxeram à tona uma série de denúncias sobre as práticas racistas que se perpetuam na
sociedade brasileira, inclusive na educação, a começar pelos currículos das escolas públicas e
privadas. Esses movimentos têm buscado romper com o padrão epistêmico que nos foi
imposto pela colonialidade, e lutam pela coexistência das diferentes formas de conhecimento.
Neste sentido os avanços na criação de uma legislação antirracista para o país, especialmente
na área educacional perpassa pela persistência desses grupos subalternizados.
A busca pela compreensão das relações raciais no Brasil vem desde os idos da
República, pautando-se nos estudos comparativos, especialmente com os Estados Unidos
(GUIMARÃES, 1995), ora contribuindo para a negação da existência do racismo no Brasil e
121
afirmação do mito da democracia racial, ora ajudando a revelar a existência de uma espécie de
“racismo à brasileira”, sutil, disfarçado, mas não menos violento e excludente, sob os
eufemismos do “preconceito” e da “discriminação”. As pesquisas sobre as relações raciais, a
partir de Hasenbalg (1979) serviram para fazer uma relação direta do racismo brasileiro com o
sistema capitalista, buscando explicar as desigualdades socioeconômicas e educacionais
existentes, a partir da categoria raça.
Os estudos que se seguiram sobre o tema a partir da perspectiva negra, continuam se
utilizando do termo “raça” acrescido do termo “etnia”. De modo que não se pode falar de
relações étnico-raciais, sem antes entender a dicotomia dos termos “raça” e “etnia”. Gomes
(2005) lembra que o termo ‘raça’ deve ser usado para falar sobre a complexidade existente nas
relações entre negros e brancos no Brasil. Significa dizer que não cabe aqui o velho conceito
de raça no sentido biológico, como atesta a mesma autora ao citar a concepção utilizada pelo
Movimento Negro brasileiro:

O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo raça, não o fazem
alicerçados na ideia de raças superiores e inferiores, como originalmente era usada no
século XIX. Pelo contrário, usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na
dimensão social e política do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação
racial e o racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos
aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também
devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos
observáveis na estética corporal dos pertencentes às mesmas (GOMES, 2005, P. 45).

Portanto o conceito de raça é uma construção social e política, que nos ajuda a
compreender a dimensão histórica, no contexto brasileiro, das desigualdades naturalizadas,
das relações de exploração e hierarquização da sociedade a partir desse atributo. A
classificação dos indivíduos em categorias raciais é um fenômeno da modernidade.
O outro termo utilizado como marcador identitário, o de “etnia”, é usado para se
referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos em nossa
sociedade, (GOMES, 2005). Porém para estes intelectuais e militantes do Movimento Negro
substituir simplesmente o termo raça por etnia não surte o efeito esperado no caso brasileiro,
como também não altera a compreensão intelectual sobre o racismo. Por isso ao se referendar
ao “segmento negro utilizam o termo étnico-racial, demonstrando que estão considerando
uma multiplicidade de dimensões e questões que envolvem a história, a cultura e a vida dos
negros no Brasil" (GOMES, 2005, p. 47).
No entanto é importante ressaltar que a utilização da raça como critério adscritivo tem
sido mantida conscientemente pelos brancos, pois estes se beneficiam de forma material e
simbólica da mesma (HASENBALG, 1979), seguindo assim, uma lógica de racialização do

122
outro, ignorando sua própria racialização. Como atesta Fanon: “diferentemente da lógica da
branquidade que não assume sua marca racial e, portanto, apresenta-se como universal, o corpo
negro, como parte de um projeto de liberação, assume a sua localização dentro do mundo
colonial” (FANON apud BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 514). Neste sentido, torna-se
evidente que o conceito de branquitude tem a ver com o privilégio da brancura, em que numa
sociedade racista como a brasileira, o acesso aos espaços de poder se dá, especialmente, em
decorrência da cor/raça dos indivíduos, uma construída como referência de positividade, e,
portanto, merecedora; e a outra construída de forma extremante negativa, e inversa.
Para além da denúncia, as epistemologias negras se propõem à valorização das
identidades negras, as quais foram forjadas por muito tempo, de forma estereotipada, levando
a negação do ser negro. A identidade negra inclui-se no debate das relações raciais, e como
alerta Nilma L. Gomes “a reflexão sobre a construção da identidade negra não pode prescindir
da discussão sobre a identidade enquanto processo mais amplo”. (GOMES, 2005, p. 45).
Nesse contexto o antropólogo Kabengele Munanga (2012) ressalta que a identidade negra só
tem sentido em um contexto plural e multicultural. Para defini-la Munanga parte da
explanação sobre as várias identidades: da individual às coletivas, de modo que por identidade
coletiva entende-se uma “categoria de definição de um grupo” (idem 2012, p. 9), através de
alguns atributos selecionados no seu complexo cultural, histórico ou religioso, sendo que essa
identidade pode ser por autodefinição, mas pode ser também atribuída por outrem. É o que
ocorreu com populações colonizadas pelos europeus, que “a partir do seu olhar cultural
atribuíram a esses povos identidades que nada tinham a ver com as que esses povos se auto
atribuíam” (MUNANGA, 2012, p. 10).
Munanga (2012) ressalta ainda que a identidade negra do ponto de vista da comunidade
negra (e de seus representantes) é constituída a partir de alguns fatores: sua história, sua
cultura, e possivelmente sua psicologia (que ainda requer ser mais estudada, não do ponto de
vista biológico ou racial como já fizeram no passado recente, mas do ponto de vista histórico,
da ancestralidade, do condicionamento socioeconômico). Por isso, no processo de construção
da identidade coletiva negra é preciso resgatar sua história e autenticidade de forma positiva.
Daí a necessidade e importância de ensinar as histórias da África e do Negro no Brasil, a partir
de novas abordagens e posturas epistemológicas que visem romper com depreciação à pessoa
do negro, a fim de que se ofereça subsídios para a construção de uma identidade negra
positiva, na qual o negro seja visto não mais como objeto da história, mas sim como sujeito
participativo de todo o processo de construção da cultura e do povo brasileiro.

123
O intelectual e psiquiatra Frantz Fanon (2008) que pensou a questão da raça e a
importância do tema da identidade negra, pontua que é necessário que o negro como portador
de uma cultura, busque restituir sua humanidade que o colonialismo branco negou. Em
decorrência de tal colonialismo, o negro introjetou um complexo de inferioridade. Para Fanon o
homem negro só se libertará de tal complexo tomando consciência da sua realidade, se despindo
da máscara branca e vestindo a sua máscara negra. Assim escreve: “Desde que era impossível
livrar-me de um complexo inato, decidi me afirmar como negro. Uma vez que o outro hesitava
em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer” (FANON, 2008, p. 108). Nesse
processo de desalienação, Fanon diz que o negro precisa também tomar consciência da sua
realidade: “permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita
tomada de consciência das realidades econômicas e sociais” (FANON, 2008, p. 28). O pensar
faoniano evidencia outras intececnalidades que atravessam as populações em posição de
subalternidade, como também denota que “o privilégio racial é entrecortado por diversos outros
eixos de poder: classe, gênero, religiosidade, idioma, sexualidade, nacionalidade etc.”.
(GROSFOGUEL apud BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 509)
Sobre o papel da educação escolar, pensando a partir de Freire, ela ocupa uma posição
central no desenvolvimento crítico da consciência. Para Freire, o trabalho educativo se torna a
expressão da consciência crítica, quando professores e educadores em geral manifestam a
capacidade de diálogo orientada para a práxis. Esta é entendida como reflexão e ação dos
homens sobre o mundo para transformá-lo, sem a qual torna-se impossível a superação do
contraditório opressor-oprimido (FREIRE, 1997). Com isso é fundamental que a educação
não fique indiferente diante das mazelas da humanidade. A educação deve demonstrar que os
problemas não surgiram por mágica e, sim, por condições históricas elaboradas por pessoas
reais. E se são reais, podem ser responsabilizadas por isso. A própria educação é vítima desse
tipo de desarranjo (FREIRE, 1997).
Desse modo entendemos o tema proposto como relevante, no sentido de tornar o
ensino de História mais significativo e diverso, e provir nossa prática pedagógica como uma
ferramenta de combate ao racismo. As reflexões apresentadas fazem parte de um trabalho
mais amplo de pesquisa a nível de mestrado, que tem como título: O Ensino de História e as
Relações Étnico-Raciais na Sala de Aula, a partir do qual nos debruçamos a pensar
metodologias para fomentar o debate das relações étnico-raciais no ambiente escolar. Como
parte propositiva de ação realizamos uma Mostra de História afro-brasileira, junto ao corpo
discente das Segundas Séries do Colégio Militar do Tocantins (CMT) de Araguaína, adotando
os procedimentos metodológicos da pesquisa participativa, a pesquisa-ação (TRIPP, 2005). A
124
Mostra consistiu na apresentação das pesquisas realizadas pelo coletivo dos estudantes em
sala de aula, sob minha orientação, explorando temas da história negra no Brasil do passado e
da atualidade, a partir da utilização de fontes diversas, entrevistas, produção de material visual
e apresentações culturais. Na etapa de socialização das atividades desenvolvidas em sala,
abrimos o diálogo com toda a escola, a partir de palestras com representantes do movimento
negro/quilombola e da academia.
Para investigação e aprofundamento do debate racial nos propomos a reflexão sobre as
identidades dos estudantes interlocutores dessa atividade de pesquisa, autodeclarados negros e
negras. Percebemos nos estudantes, identidades negras ainda em processo de construção e de
reconhecimento como identidade coletiva. Como aponta Nilma L. Gomes (2002), a identidade
negra se constrói de forma gradual, o “tornar-se negro” (SOUSA, 1990) de forma positiva tem
sido um processo, inclusive político. Nesse sentido, entendemos a identidade negra como uma
construção social, histórica, cultural e plural, e, portanto, não fixa. Para o diálogo sobre as
identidades, nos utilizamos da técnica da roda de conversa 43 pensada por Paulo Freire a partir
do projeto do círculo de cultura44, também idealizada por ele, para evitar a ideia da sala de
aula tradicional e garantir a fluidez do debate. Assim, diferentemente de uma sala de aula em
que o saber do professor se impõe como único saber, no esquema de estudo elaborado por
Freire haveria uma troca dos saberes diferentes entre aqueles dispostos lado a lado. Como
descreve Brandão: “pessoas diversas trazem para o coletivo os saberes de suas vivências – a
sabedoria de vida. E então dialogam umas com as outras, pessoas reunidas ali para trocarem
saberes e aprenderem umas com as outras; umas através das outras” (BRANDÃO, 2018, p.
56). Para o registro das falas nas rodas de conversas utilizamos o gravador do celular, bem
como o caderno de campo, e gravamos as lives com os colaboradores (conversa pela internet).
Foram selecionados 15 estudantes, 10 moças e 5 rapazes, das seis turmas de 2ªs séries
do CMT – Araguaína, nas quais lecionei no ano de 2019. O interesse e a disponibilidade dos
estudantes, além da rotatividade obrigatória das turmas, me fizeram optar pelos colaboradores
de forma aleatória, sem necessariamente escolher uma turma. A partir de questionário
diagnóstico foi possível traçar o perfil dos colaboradores da pesquisa, todos autodeclarados

43
Importante ressaltar que em decorrência da pandemia do Covid-19, a estratégia inicial das rodas de conversa
se converteu em encontros virtuais, as chamadas atividades remotas, totalizando duas reuniões pela plataforma
Google Meet. Sendo possível apenas um encontro presencial antes do período pandêmico na unidade escolar.
Nos utilizamos também da comunicação via Whatzapp e por e-mail como garantia de participação de todos os
colaboradores.
44
Trata-se de um método de aprendizagem dialógica criado por Paulo Freire na década de 1960. O Círculo de
Cultura refere-se a um espaço educativo onde transitam diferentes subjetividades e convivem diferentes saberes,
a partir da experiência do diálogo de forma coletiva e solidária, em todas as etapas do processo de ensino e
aprendizagem, resultando daí o conhecimento gerado (Loureiro e Franco, 2012 p. 2).
125
negros, entre pretos e pardos, advindos na sua maioria de escolas públicas, ingressados na
escola militar por vontade dos pais e pela fama da escola.
Esses estudantes na sua maioria já haviam tido contato com a temática das relações
raciais, e confirmaram que alguns professores fomentam o tema no Colégio Militar, porém
quase sempre atrelado a datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra, ou lembram
da questão negra vinculada a escravidão. É válido lembrar que a escola em questão, não
realiza uma atividade comemorativa ao 20 de novembro com toda a unidade escolar, como
acontece em algumas escolas da rede estadual no Tocantins. O que ocorre são ações muito
pontuais, geralmente em sala de aula, organizadas por professores das áreas de ciências
humanas. Por isso mesmo, uma das dificuldades encontradas na realização desse trabalho, foi
quanto a sua socialização no pátio do Colégio com os demais estudantes e professores da
Unidade, com a atividade sendo deslocada para o horário de acréscimo (6º Horário), pelo fato
da mesma não está prevista no Projeto Político Pedagógico (PPP), no formato apresentado 45.
Entendemos que as atividades escolares precisam estar atreladas ao PPP, mas não
necessariamente engessadas, visto que, as mesmas, são passíveis de mudanças ao longo do
ano letivo.
Após a participação dos estudantes interlocutores na Mostra de História Afro-
Brasileira e nas rodas conversas, foi possível constatar a importância do trabalho
desenvolvido e a percepção dos estudantes acerca do racismo presente no ambiente escolar.
De maneira geral, os estudantes têm dificuldades em compreender o racismo de forma
estrutural, e como a instituição escolar faz parte dessa estrutura, identificando o racismo de
uma maneira mais individualizada. Chegando a relatar o descaso de alguns professores e
colegas com a questão. A interlocutora, que chamaremos Gabis 46 em sua participação em
roda de conversa afirmou:

[...] teve uma professora, eu lembro, ela falou assim pra gente, que já que era pra ser
todo mundo igual, por que que tinha de ter um dia pra gente falar sobre a nossa cor,
é... Se tem que ter um dia pra gente ter que ter consciência, sobre a forma que a
gente trata o outro? Eu fiquei pensando sobre aquilo... Ela pegou e falou assim: por
que tem que ter um dia especial pros negros? Ela tipo quis falar que... e eu, hum!
(GABIS, 1ª Roda de Conversa, 2020).

45
Foi solicitado aos demais professores o tempo das suas aulas para que atividade fosse socializada no pátio.
Enquanto alguns se manifestaram a favor, outros simplesmente não se manifestaram. As aulas foram somente
reduzidas.
46
Nominamos abreviadamente nossos interlocutores para evitar qualquer constrangimento ou identificação
direta dos mesmos. Utilizamos também no diálogo dos alunos as reticências para demarcar as pausas no discurso
dos interlocutores, mas também nos momentos de informações alongadas ou que podia comprometer suas falas
perante a escola.
126
A forma de pensar da professora não nos surpreende, visto que é um sentimento
compartilhado por um bom número de professores nas nossas escolas, evidenciando a
formação de base eurocêntrica dos professores, como também o imaginário social, que tem
criado uma ideia de diversidade dissociada dela mesma, ou seja, permite-se a existência da
diversidade, mas não a incentiva, nem a fomenta. É fato que o Estado precisa promover sim,
formações continuadas para a promoção e o respeito à diversidade, porém é necessário
também o enfrentamento ao racismo pedagógico, reforçado na ideia do despreparo
educacional para trabalhar a temática das relações étnico-raciais.
No decorrer das rodas de conversa alguns interlocutores retomaram momentos
significativos da sua experiência com as práticas discriminatórias, como consta no relato do
estudante Rui na nossa 1ª Roda de conversa:

[...] fui comprar o pão, e coloquei minha jaqueta. Aí quando estava passando na rua,
eu vi uma senhora com o filho dela, eu acho que era o neto. Quando ela me viu, ela
já se assustou e ela já foi logo para o outro lado da rua. Pensando que eu... acho que
ela pensou que eu ia assaltar ela [...], mas segui em frente. (RUI, 1ª roda de
conversa, 2020).

A primeira roda de conversa teve como foco a avaliação da atividade desenvolvida em


sala de aula, da elaboração à execução do trabalho pelo coletivo de alunos (Mostra de
História). Porém buscamos não intervir quando no debate veio à tona as experiências pessoas,
pois elas ajudaram a fortalecer a proposta. O relato da aluna Nara mostrou-se bastante
revelador, neste sentido:

Em relação ao trabalho né, ao projeto que a professora iniciou, implantando na


escola no ano passado. Eu acredito que teve um... assim, em grande parte das
pessoas que presenciaram, eu acredito que teve um grande efeito, porque eu vejo que
o racismo, como muita gente já falou, é algo que as pessoas não dão muita
importância, é por isso que a gente pouco ouve falar dentro da sala de aula. E pras
pessoas que sofrem preconceito, que sofrem racismo, eu acredito que até elas
mesmo, a maioria já, meio que, assim, se conformou (...) que não tem mudança, que
não tem como mudar, que essa realidade não pode mudar... porque a gente ver que
não é algo muito comentado, que não é algo muito debatido. E eu acredito que esse
projeto [...] trouxe assim, um questionamento em nós mesmos, porque eu falo isso
como exemplo, porque eu sofro muito com questões de racismo, iniciando dentro
minha casa, [...] a gente procurava na escola, nós que sofremos, que passamos por
isso, procurava na escola, meio que uma forma deles nos motivar a não desistir, nos
dá uma ajuda em relação a isso, nós mesmos querendo lutar e a gente não tem tido
isso, não tem tido motivação (voz embargada), não ver o porquê da gente continuar
tentando. Eu... Ai meu deus, eu vou chorar!...Eu me emociono quando eu falo,
quando eu vi a professora entrando dentro da sala de aula, levando esse
questionamento, esse apontamento, eu fiquei assim de certa forma, eu comecei a me
questionar: por que que eu nunca tinha parado pra pensar sobre isso, sobre tudo
aquilo que ela havia falado, porque eu sofro com isso, eu de certa forma tinha me
conformado, achado que isso era coisa normal, e ela fez eu perceber que isso não é
normal, que a gente não pode desistir, que a gente não pode parar de lutar, que é uma
causa nossa, que a gente tem direito de está na sociedade, assim como as pessoas
brancas [...] (NARA,1ª Roda de Conversa, 2020).

127
O relato acima de quase 2 minutos ininterruptos da estudante Nara, demostra a
importância do debate racial na escola para o fortalecimento de uma identidade mais
positiva diante do racismo. Ao relatar a ausência desse diálogo na escola, a aluna
demonstra se sentir desamparada, e em seguida vem um conformismo com a situação, a
aceitação como normalidade. A estudante trouxe em sua fala algumas reflexões das aulas
motivacionais sobre as condições desiguais da nossa sociedade entre brancos e negros,
constatada posteriormente pelos próprios estudantes em suas pesquisas, no decorrer da
elaboração da nossa Mostra. Freire (1979) vai apontar para a formação de uma
consciência ingênua, que condiz a um aprendizado superficial, caracterizado pelo
comodismo e conformação com a realidade vivida, como se ela fosse estática e
verdadeira. O silenciamento das questões raciais na escola se ampara no discurso da
igualdade, da ideia desta, como espaço neutro, na negação do racismo enquanto um
sistema estrutural e do qual a instituição escolar faz parte.
Para pensar a identidade ou as identidades negras para-além do senso comum,
propusemos a leitura de pequenos fragmentos textuais dos autores Nilma Lino Gomes
(2005), Kabengele Munanga (1994) e Frantz Fanon 2008) 47, no sentido de enriquecer o
debate e provocar um reposicionamento dos estudantes quanto a questão identitária. Para
tanto lançamos dois questionamentos: o primeiro – O que é possível compreender sobre a
questão da identidade negra ou identidades negras, a partir dos fragmentos dos textos ?;
e o segundo – Após uma reflexão sobre os textos lidos aqui, e sobre o trabalho
desenvolvido junto com professora pesquisadora, como você se identifica ao final desse
processo?
Destaco dois posicionamentos que considero significativos, entre os alunos que no
início do trabalho demonstraram uma certa insegurança em se identificarem como negros,
apesar de se autodeclarem pardos, não havia uma certeza sobre a qual grupo étnico ou racial
pertenciam. O primeiro relato é da estudante Dora. Para o primeiro questionamento a aluna
respondeu:

A identidade negra, em minha compreensão, se refere às questões do aceitar-se


como pessoa preta. Em primeiro momento, queremos nos parecer como brancos: no
cabelo, nas falas, andados. Mas o choque de realidade, de que um preto sempre será
preto, hora ou outra vai nos atingir. E então, entra a questão de você impor-se como
pessoa negra, eu existo e exijo que você me conheça como sou e a partir disso, essa
identificação como pessoa preta, faz com que você entenda sobre você (DORA, 3ª
Roda de Conversa, 2021)

E para o segundo questionamento, Dora afirmou:

47
Os fragmentos dos textos utilizados são os mesmos que usamos na constituição desse artigo.
128
No início da pesquisa, por ignorância, eu me via no quadro de pessoa parda, fruto de
uma mistura, mas durante esse processo inúmeras vezes me vi pesquisando sobre
colorismo e trazer isso às discussões foi algo que me fez compreender sobre
‘eu’[mim] e a minha história. Ao final, pude compreender que a palavra “pardo"
pode ser uma forma de apagar negros, frutos do processo de eugenia, e enfim,
depois de duras reflexões, entendi que sou negra (DORA, 3ª Roda de Conversa,
2021).

No campo das relações raciais outros temas atravessam a discussão central.


“Colorismo”, “branquitude” “solidão da Mulher Negra”, “palmitagem”, “mulherismo” são
alguns deles. Os mesmos foram citados em nossos debates, com ressalvas, por serem temas
que têm aparecido com uma certa frequência nas redes sociais, nas páginas negras. Contudo,
discuti-los não é exatamente o foco da nossa pesquisa, mesmo entendendo sua relevância. A
estudante demonstrou interesse em aprofundar-se um pouco mais sobre o tema, não se
limitando ao que foi apresentado no universo da pesquisa, buscando outras fontes. O que
atende as expectativas da atividade, que é contribuir para o processo de conscientização
(ação/reflexão/ação) dos estudantes. A busca pelo reconhecer-se ultrapassa o universo escolar,
e os limites da pesquisa. Novais (1993, p. 24) alerta sobre a importância de perceber “que o
conceito de identidade deve ser investigado e analisado não porque os antropólogos
decretaram sua importância”, mas porque trata-se de um “conceito vital para os grupos
contemporâneos que o reivindicam”.
O segundo relato é do jovem Davi, que deu as seguintes respostas para os mesmos
questionamentos:

A Identidade Negra durante anos foi escondida e vista com preconceito e até hoje,
não possui o mesmo espaço que as demais culturas nos espaços de educação
formais. Ademais, esse quesito é extremamente importante, haja vista que carrega
consigo como representação de pertencimento, é como o próprio se identifica
(DAVI, 3ª Roda de conversa, 2021)

E continua...

Indubitavelmente, torno-me mais conhecedor de minhas raízes culturais e históricas,


raízes essas que são negras, importantes e pouco relatadas. Além disso, o trabalho
realizado expande a reflexão dos alunos para com a sociedade e a forma com que
somos alienados (DAVI, 3ª Roda de conversa, 2021)

O estudante, Davi se reposiciona de forma firme e mais convicto de suas raízes


culturais e históricas negras, apontando para uma alienação, na qual aparentemente a
sociedade se encontra. “A forma com que somos alienados”, essa frase diz muito sobre
processo de ensino-aprendizagem, e sobre a organização sociocultural da sociedade. O papel
da escola, neste sentido deve ser repensado, visto que ela pode ajudar na afirmação das
identidades negras, como pode contribuir para negá-las. Como afirma Munanga (2008):

129
o resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa
apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras
ascendências étnicas, principalmente brancas, pois ao receber uma educação
envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas
afetadas. Além disso essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a
todos [...] (MUNANGA, 2008, p. 12).

A breve análise que trazemos com base nesses referenciais, se encontra em fase de
construção. Longe de resolver os problemas apresentados, não se tem pretensão de esgotar as
discussões, mas sim focar na possibilidade de contribuir para reflexão acerca da formação de
identidades negras conscientes e positivas. Uma prática pedagógica libertadora pressupõe que
os problemas sociais vigentes na atualidade foram construídos ao longo da história, segundo
uma trama de interesses nada aleatória. E se foram construídos, ao menos em tese, podem ser
desconstruídos.

Considerações Finais

O aporte na educação escolar como um dos meios para driblar as desigualdades


sociorraciais, tem se intensificado nos últimos anos. Ao mesmo tempo em que recebe duras
críticas por ser vista como reprodutora de ações que ajudam a manter tais desigualdades.
Algumas das inovações que tratam mais claramente da educação das relações étnico-raciais
representam um grande avanço no combate à discriminação racial num país racista como o
Brasil, porém ainda se nota uma série de dificuldades para sua efetivação. Já se sabe que não
basta a existência de uma lei, é necessário colocá-la em prática a partir de ações conjuntas:
Estado, escola e sociedade; e não apenas por ações isoladas como tem ocorrido em tantas
escolas do país (o que são extremamente válidas, porém insuficientes). Professores e
educadores devem se mostrar mais sensíveis à questão étnico-racial, compreender o racismo
para além das práticas da ofensa verbal, e como ele está entranhado nas nossas relações; e a
partir da adoção de uma postura antirracista, se permitam conhecer e explorar didaticamente
epistemologias outras. A escola antes de tudo, precisa abraçar a educação antirracista como
seu principal projeto político-pedagógico. Especialmente em se tratando de uma questão tão
delicada e que nos atinge desde tão cedo.
Minha inquietação pela temática das relações étnico-raciais, vêm desde os tempos da
graduação quando entrei pela primeira vez em contato com a História da África, na condição
de disciplina optativa, na Universidade Estadual do Maranhão (UEMASUL), o que me ajudou
a refletir sobre a minha identidade, enquanto mulher negra e meu lugar naquele universo do

130
saber. Compreender essas relações a partir das minhas próprias vivências sempre foi um
grande desafio, especialmente diante do racismo estrutural, transmutado em ações cotidianas.
Durante a escrita desse trabalho investigativo deparei-me com o depoimento da
professora Azoilda Loreto da Trintade48, o qual me tocou profundamente, ao falar de sua
consciência negra em tenra idade. Dizia saber desde cedo que era negra, “o que não significa
que em alguns momentos de sua vida não tenha desejado não ser”. Sinto que comigo tenho
ocorrido o mesmo. Os caminhos percorridos para a produção dessa escrita, perpassa pela
visitação às minhas dores e à de meus antepassados, bem como pela constatação de muitas
vezes ser o “Outro do Outro”.
Meu ingresso no programa de pós-graduação em Ensino de História – ProfHistória –
UFT, após longo doze anos afastada da Academia, não só me proporcionou o contato com
novas leituras, como também trouxe à tona a reflexão acerca da minha prática docente, pelo
mesmo período. A empolgação de quem recém chegava à educação somada aos desafios de
inserir a temática da história da África e dos afro-brasileiros para além do dia do folclore nas
minhas aulas, me fizeram pioneira na tentativa do cumprimento da Lei 10.639/2003 na cidade
de Araguatins e de inserção da comemoração do 20 de novembro nas escolas do município e
nas do Estado (centro da cidade), com o projeto “Valorização da Identidade Negra”.
Ao longo dos anos as atividades propostas para se pensar as relações raciais, tanto no
âmbito cultural quanto político, ganharam projeções coletivas favoráveis ao engajamento de
alunos e professores de toda Unidade Escolar. Na busca por inovação a cada ano, somamos
força junto ao Movimento Negro (Centro de Cultura Negro Cosme - Imperatriz), às lideranças
quilombolas de Araguatins, à UFT- Campus Araguaína, aos Núcleos de Estudos Afro-
brasileiros – NEABs, do IFTO – Araguatins/Araguaína, até a formação genuína do Coletivo
Feminino Dandaras do Mato, mas sem esquecer o mais importante, o aprendizado iniciado lá
na sala de aula. Entre erros e acertos na realização de projetos e atividades pelas escolas pelas
quais passei, acredito ter contribuído de alguma forma para ressignificação de saberes e
formação de identidades negras mais positivas.
Neste sentido, o Programa de Pós-Graduação ProfHistória me remete a um novo
desafio, que é pensar e atuar como professora-pesquisadora, aprendendo a registrar e a
observar melhor minha prática diária de sala de aula, fazer do exercício da pesquisa um meio
de melhorar e inovar o processo de ensino-aprendizagem. Desse modo, destaco a importância
do ProfHistória na formação prática e teórica de professores da educação básica, atentos as

48
Tecendo africanidades com brasilidades: desafios do cotidiano escolar. In: Sousa, Maria Helena Viana (Org.)
Relações raciais no cotidiano escolar: diálogos com a Lei 10639/2003, Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.
131
novas discussões acadêmicas, mas também antenados às diversas problemáticas trazidas a
partir das suas vivências em sala de aula e do convívio dos estudantes para com a comunidade
na qual estão inseridos.
Assim, acredito que a pesquisa que vem sendo desenvolvida no âmbito do
ProfHistória só tende a somar à minha prática pedagógica, atendendo um anseio não apenas
pessoal, mas também profissional. Intensificar o debate das relações raciais no ambiente
escolar é tornar o ensino de História mais significativo.

Referências

BRASIL. LEI 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro


de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm> Acesso em 30/08/2020.

BRASIL. LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de


1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br
/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm> Acesso 30/08/2020.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e


para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Conselho Nacional de
Educação. RESOLUÇÃO Nº 1, de 17 de junho de 2004.Disponível em:
< http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf> Acesso 30/08/2020.

BRANDÃO, Carlos. Paulo Freire: uma vida entre aprender e ensinar. Ed. Ideias Letras. 1ª
Edição, 2018.

BERNARDINO-COSTA, Joaze e GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva


negra. Soc. estado. [online]. 2016, vol.31, n.1, pp.15-24. ISSN 0102-6992. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016000100002> Acesso em 02 de nov. 2019.

BERNARDINO-COSTA, Joaze. A Prece de Fanon. Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 504-


521, jul.-set. 2016.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estud. Av. vol.17 nº 49. São Paulo. 2003.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Tradução de Renato da Silveira. - Salvador:
EDUFBA, 2008. p. 194.

FRANCO, J. B., & LOUREIRO, C. F. B. (2012). Aspectos teóricos e metodológicos do


círculo de cultura: uma possibilidade pedagógica e dialógica em educação ambiental.

132
Ambiente & Amp; Educação, 17(1), 11–27. Disponível em https://periodicos.furg.br/
ambeduc/article/view/2422 Acesso em 15 mar. 2021
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao
pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 24ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar


sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-
182, jan./jun. 2003.

______. Educação e Identidade Negra. Aletria, 2002. Disponível em: <http://www.letras.


ufmg.br/poslit > Acesso em 15 mar. 2021.

_________________. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no


Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei
federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e
diversidade, 2005. P. 39 - 62.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio A. Racismo e antirracismo no Brasil. Novos Estudos, n.43,


1995.

HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro:


Graal, 2005.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódio de Racismo Cotidiano. Tradução de


Jess Oliveira. Ed. Cobogó, 2019.

MIGNOLO, W. A colonialidade de cabo a rabo: O hemisfério ocidental no horizonte


conceitual da modernidade. In LANDER, E. (Org). A colonialidade do saber: Eurocentrismo
e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas Buenos Aires, 2005. (pp. 71-103).

MUNANGA, Kabengele. Negritude e Identidade Negra ou Afrodescendente: Um Racismo ao


avesso? In: Revista da ABPN • v. 4, n. 8 • jul.–out. 2012 • p. 06-14. Disponível em: <
file:///C:/Users/Francy/Downloads/246-1-449-1-10-20170308%20(1).pdf > Acesso em:
02/07/2019.

______. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-


racistas no Brasil. In: SPINK, Mary Jane Paris (Org.) A cidadania em construção: uma
reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994, p. 177-187.

____________________. (Org.) Superando o Racismo na Escola. 2ª Edição. MEC – Secad,


2008.

NOVAES, Silvia Caiuby. Jogo de espelhos. São Paulo: EDUSP,1993.

OLIVEIRA, Luiz Fernandes de e CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia decolonial e


educação antirracista e intercultural no Brasil. Educ. rev. [online]. 2010, vol.26, n.1, pp.15-

133
40. ISSN 0102-4698. Disponível em< http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982010000100002>
Acesso em 02/07/2020

PORFÍRIO, Francisco. "Racismo". Brasil Escola, 2019. Disponível em:


https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/racismo.htm. Acesso em 28 de julho de 2020

PINTO, Júlio R. de Souza & MIGNOLO, Walter D. A modernidade é de fato universal?


Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 3, p.
381-402, jul.-set. 2015.

PPP - Projeto Político Pedagógico. Colégio da Polícia Militar Dr. José Aluísio da Silva –
Unidade III, Araguaína – TO, 2019.

QÜIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. En: A


colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas
Buenos Aires, CLACSO, Consejolatinoamericano de Ciencias Sociale, 2005.
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro


brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1990

TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Tradução de Lólio L. de


Oliveira. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005

TRINTADE, Azoilda Loreto da. Tecendo africanidades com brasilidades: desafios do


cotidiano escolar. In: Sousa, Maria Helena Viana (Org.) Relações raciais no cotidiano
escolar: diálogos com a Lei 10639/2003, Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.

WALSH, Catherine. Introducion - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH,
C. Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito:
Ediciones Abya-yala, 2005. p. 13-35.

134
08. A MULHER NEGRA E O DESAFIO DE REPENSAR NARRATIVAS:
UMA METODOLOGIA PARA DESCOLONIZAR SABERES
E PRÁTICAS NO ENSINO DE HISTÓRIA

Andreia Costa Souza49


Introdução

No âmbito do Ensino de História, os/as educadores/as têm-se indagado sobre formas


de transcender um modo tradicional de ensinar que, invariavelmente, adota a narrativa do
colonizador e encobre as narrativas dos grupos colonizados e violentados no processo da
colonização. Propor e executar um novo olhar sobre o Ensino de História a partir de uma
pesquisa em sala de aula é um imenso desafio. Até mesmo, ou principalmente, para nós
professoras/es acostumadas ao métier do ensino. O desafio que propus a mim mesma no
decorrer do Mestrado Profissional em Ensino de História foi o de elaboração e execução de
uma metodologia que pudesse romper com antigos vícios que eu mesma identificava em
minha prática em sala de aula.
Sou professora na Escola Municipal Maria Aparecida Rosa, localizada em Conceição
do Araguaia, município situado na região Sul do estado do Pará e que faz divisa com o estado
do Tocantins, região conhecida como Bico do Papagaio. Trabalhei com uma turma de oitavo
ano do Ensino Fundamental uma formação que abordava temas pertinentes ao Ensino de
História das Relações Étnico-raciais e de Gênero, com foco na experiência de estudantes
negras e na reflexão sobre como a mulher negra é retratada na história.
Persegui o objetivo de elaborar estratégias pedagógicas que colocassem a/o
estudante no centro do processo de aprendizagem, na discussão de temas que tradicionalmente
nos remetem à eurocentricidade do Ensino de História: racismo, sexismo, mulher negra e
protagonismo branco na história ensinada. Para tanto, a metodologia adotada foi a pesquisa-
ação, vista como uma proposta de participação coletiva que nos orientasse na busca por uma
melhor compreensão dos problemas práticos que identifiquei envolvendo as questões raciais e
de gênero nas aulas de História. De acordo com Thiollent (1985, p. 14), a pesquisa-ação é
uma modalidade de pesquisa social “concebida e realizada em estreita associação com uma

49
Mestra em Ensino de História (2020) pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História
(Profhistoria), da Universidade Federal do Tocantins (UFT), câmpus Araguaína. E-mail:
andreiacostasouza@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

135
ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes (...) estão envolvidos de modo cooperativo e participativo”.
Neste artigo, objetivo descrever alguns dos diversos momentos deste percurso
metodológico, buscando deter-me no modo como operei a metodologia e alguns dos impactos
gerados nos saberes estudantis sobre as questões que abordamos no decorrer da formação. Ao
todo, foram realizadas oito oficinas, rodas de conversa entre estudantes negras, diversas
observações sobre o campo da sala de aula, questionários e textos. Aqui trago a descrição de
apenas quatro oficinas que trouxeram resultados que considero muito importantes para a pesquisa.
Busquei, com tais atividades, identificar e confrontar narrativas colonizadoras no Ensino de
História, questionando, junto com as/os estudantes, quais sujeitos foram apagados e quais noções
e estereótipos foram estabelecidos sobre a mulher negra, por conta deste modo de narrar a
História. Avalio, ao final, o que também aprendi e ressignifiquei no processo da formação.

Confrontando Narrativas Colonizadoras


Muitos desafios surgem ao Ensino de História comprometido com a descolonização e
a decolonialidade. Ao refletir sobre como a História do Brasil foi tradicionalmente ensinada, é
possível observar como o mito da democracia racial contribuiu para legitimar narrativas de
harmonia entre colonizadores e colonizados que pouco enfatizam os episódios e personagens
que representam resistência. Pensar em maneiras de “recontar” nossa História sempre me
intrigava. Como e por onde começar? Concordo com a visão de Claudilene Maria da Silva
(2016), ao defender que é preciso encarar uma premissa quando a ideia é trabalhar com
educação étnico-racial na escola:

a impossibilidade de construir práticas pedagógicas de valorização da população


negra, possuidoras de solidez e consistência epistemológicas, sem discutir o racismo
como epistemologia das práticas negadoras dessa população, de seus conhecimentos
e suas formas de pensar e estar no mundo (SILVA, 2016, p. 213).

Assim busquei conduzir a formação, sem perder o racismo de vista. Para o filósofo
Silvio Luiz de Almeida (2018, p. 51), “o racismo constitui todo um complexo imaginário
social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e
pelo sistema educacional”. Ele sugere que o enfrentamento do racismo passa pela superação
de uma compreensão tradicional de “modernidade”. Acrescento que, indubitavelmente, esta
perspectiva de modernidade está refletida no Ensino de História:

Raça e racismo são produtos do intercâmbio e do fluxo internacional de pessoas, de


mercadorias e de ideias, o que engloba necessariamente uma dimensão afro-
diaspórica. Assim, o que chamamos de modernidade não se esgota na racionalidade
iluminista europeia (...); a modernidade é composta pelo tráfico, pela escravidão, pelo
136
colonialismo, pelas ideias racistas, mas também pelas práticas de resistência e pelas
ideias antirracistas formuladas por intelectuais negros e indígenas. A compreensão do
mundo contemporâneo está ligada à compreensão da diáspora africana, ou seja, do
modo com que a África se espalhou pelo mundo. De tal sorte que, no Brasil, a
compreensão do racismo, e a possível configuração de estratégias de luta antirracista,
dependem de um olhar para a América, para África e para a formação e o fluxo de
pessoas e ideias em âmbito internacional (ALMEIDA, 2018, p. 80).

Ao incorporar essas premissas à luta antirracista e, neste caso, ao Ensino de História que
pretende ser antirracista, a discussão sobre a representação em torno da África é necessária e
não apenas um complemento curricular. É preciso entender a diáspora, é preciso entender como
a “África se espalhou pelo mundo” por intermédio de mulheres e homens negros. E admito que
no cotidiano das aulas de História essa parte acaba quase sempre sendo “esquecida”.
Se a África e os/as afrodescendentes foram refutados ou tiveram sua imagem
deturpada, será preciso, no Ensino de História, buscar “reverter” essa estigmatização para que
seja possível compreender por que o Brasil é africanizado, porque negros e negras não têm
sua atuação e resistência destacada no modo tradicional de aprender História. Com este
propósito, as primeiras oficinas da formação foram pensadas.
Na primeira delas, fizemos um “contrato” oral, em que apresentei o tema da pesquisa
de forma bem simplificada. Falei que iríamos ter “aulas diferentes”, que dependeriam da
participação e colaboração de todos/as. A maioria falou ao mesmo tempo quando disse que
discutiríamos sobre racismo e machismo50, demonstrando empolgação. Perguntei se o racismo
era um problema no convívio da turma e alguns disseram que sim. Contudo sobressaíram
falas sobre bullying. Pedi que fizessem uma microbiografia, atividade em que cada um/a,
inclusive a pesquisadora, deveria se apresentar à turma, em poucas linhas escritas, e, depois,
iriamos ouvir os que quisessem se apresentar oralmente para a turma toda.
Para oficina seguinte, planejei duas atividades: um experimento chamado Imaginando a
África51 e a exibição do vídeo “O perigo de uma história única”, uma palestra da escritora
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. O experimento Imaginando a África consiste em pedir
que os/as estudantes escrevam em uma folha em branco as primeiras palavras que vem à cabeça
quando pensam/imaginam a África. A atividade baseou-se em intervenções didáticas feitas
anteriormente e descritas em dois artigos de professores dedicados ao estudo do ensino da
História Africana (OLIVA, 2007; RAMOS JUNIOR, 2017). A ideia principal é favorecer a

50
Optei por utilizar com os/as estudantes o termo machismo e não sexismo, por acreditar que o primeiro, além
de ser mais comum na nossa língua e permitir facilitar a didática das oficinas, é capaz de abranger as relações
desiguais entre os sexos/gêneros. Contudo, esclareci a diferença entre os termos.
51
Este experimento foi baseado no artigo “História da África: relato de experiência e análise de intervenção
didática”, do professor Dernival Venâncio Ramos Júnior (2017).
137
percepção de como os preconceitos raciais afetam a nossa visão sobre a África, africanos/as e
afrodescendentes, além de historicizar e visibilizar a diversidade cultural e histórica do continente.
Por conta da quantidade de alunos/as em sala, solicitei que escrevessem 5 palavras
apenas. Como algumas ideias eram bem semelhantes, uni em uma mesma categoria. As dez
palavras mais recorrentes foram: “fome”, “pobreza/pobre”, “sofrimento/sofridos”,
“negros(s)”, “morte”, “falta de água/seca/sede”, “esperança”, “solidariedade”, “tristeza” e
“doenças”. Por mais que não tenha sido uma completa surpresa o resultado da atividade, o
modo “automático” com que associaram África com diversas ideias que envolvem
precariedade, atraso, sofrimento e morte, me fez ter mais certeza de que não posso mais
deixar de tocar nessas ideias preconcebidas.
Outras palavras citadas foram: “racismo”, “animais/animais ferozes”, “dificuldade”,
“cultura”, “quente/calor”, “preconceito”, “imigrantes”, “comidas típicas” e “natureza”.
Percebi que mesmo quando buscaram citar palavras mais positivas, ainda assim reduziam o
continente africano à precariedade, a uma natureza que mais parece condenar seu povo à
“dificuldade” do que a uma vida digna e próspera.
De modo semelhante ao que foi observado pelos professores Oliva (2007) e Ramos
Junior (2017), ao constatarem que boa parte dos saberes sobre a África são concebidos a partir
de visões eurocêntricas que desconsideram “o outro”, observei nas palavras da turma o
mesmo impacto. O africano, de modo geral, não é tomado como um indivíduo que traz
consigo suas particularidades, costumes, rituais, crenças, visões de mundo etc., sendo
reduzidos a sujeitos que simplesmente padecem com a miséria e a pobreza do continente.
Penso que esse “olhar colonizado”, evidenciado por esta atividade e que não se restringe
aos/às estudantes que participaram da pesquisa ou dos experimentos dos/as professores/as
citados/as, é um convite aos/às educadores/as pensarem como problematizar, em sala, as raízes
e os modos de superação deste mesmo olhar. É incontestável como a invisibilidade e
estigmatização da África acabam consolidando saberes fundados em estereótipos, os quais
podem ocupar parte significativa das representações partilhadas pelos/as estudantes.
Quando buscamos camuflar ou folclorizar os elementos africanos que carregamos, tão
presentes em nossa linguagem e comportamento nada europeus, estamos apenas reproduzindo
hierarquias aprendidas em nossa cultura brasileira colonizada e subjugada pelo branco
europeu. Por termos internalizado a falsa superioridade do colonizador, nossas matrizes
africanas que deveriam ser motivações de orgulho e pertencimento, acabam sendo negadas.
Segundo Gonzalez,

138
(...) o racismo estabelece uma hierarquia racial e cultural que opõe a ‘superioridade’
branca ocidental à ‘inferioridade’ negro-africana. A África é o continente ‘obscuro’
sem uma história própria (Hegel); por isso, a Razão é branca, enquanto a Emoção é
negra. Assim, dada sua ‘natureza sub-humana’, a exploração socioeconômica dos
amefricanos por todo o continente, é considerada ‘natural’ (GONZALEZ, 2018, p.
330).

Acredito que o entendimento desse processo de negação e exploração naturalizada


passa pelo Ensino de História e apresenta inúmeras possibilidades de questionamentos. Após
a atividade, busquei identificar através de quais veículos as noções sobre a África foram
embasadas e reforçadas. Muitos apontaram que resultam de filmes ou vídeos, outros disseram
que dos jornais e alguns indicaram a internet. Mas a grande maioria não soube dizer ao certo
como tais noções foram construídas.
Interessa, sobretudo, observar a maneira como os saberes acerca da África constituem
um ponto de partida para a elaboração de estratégias que possam combater a permanência da
folclorização e dos seus estereótipos. Cabe indagar como o Ensino de História tem colaborado
com tais estereótipos e nos questionarmos sobre os modos como as Culturas Africana e Afro-
brasileira têm sido abordadas, ou mesmo silenciadas.
No segundo momento, utilizei como recurso didático um vídeo que aborda o
imaginário africano e como o conhecimento estereotipado de um povo ou lugar gera visões
estreitas e preconcebidas. Em um evento organizado pela Technology, Entertainment and
Design (TED), em 2009, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie proferiu uma palestra que
teve enorme repercussão nas redes sociais, nomeada “O perigo de uma história única”. Com
quase 4 milhões de acessos no canal TED, disponível no site Youtube, a fala de Chimamanda
alimentou argumentos e perspectivas de ativistas e teóricos adeptos de uma profunda crítica
ao eurocentrismo e ao reconhecimento de visões de mundo tradicionalmente silenciadas e
estereotipadas.
Ao citar episódios de sua história de vida, Chimamanda produz reflexões sobre as
consequências do apagamento e descrédito dos africanos como sujeitos legítimos na produção
de conhecimentos. Ela demonstra, através de sua experiência como estudante nos Estados
Unidos, os efeitos nocivos das pré-noções alimentadas sobre a cultura dos povos africanos
que têm sua diversidade cultural reduzida e fragmentada. Tidos como selvagens, tribais,
miseráveis e limitados intelectualmente, Chimamanda expõe a forma como a cultura africana
foi deslegitimada por uma “história única” que ainda repercute no imaginário do século XXI.
Inspirada em livros americanos e britânicos, Chimamanda acreditava que sua
experiência como uma menina nigeriana, não caberia na literatura. Ela escrevia sobre um
mundo com o qual apenas imaginava, mas não tinha identificação. Ao descobrir autores
139
africanos, ela amplia suas possibilidades narrativas: “Percebi que pessoas como eu, meninas
com pele de cor de chocolate, cujo cabelo crespo não dava pra fazer rabo de cavalo, também
poderiam existir na literatura”52.
Ao final da exibição, pedi que fizessem um texto que refletisse o que pensavam e
escreveram sobre a África antes de assistir o vídeo e o que perceberam após assisti-lo. Como
o tempo da oficina foi comprometido com imprevistos, não foi possível finalizar com um
debate. No encontro seguinte, recebi apenas quatro textos. Beatriz, participante do grupo
focal, apresentou a elaboração mais consistente, ao escrever:

No meu ponto de vista, quando falavam da África, sempre veio na minha cabeça
pobreza, fome, angústia, dificuldades e sofrimento. Pois foi exatamente o que eu
escrevi quando minha professora pediu que colocássemos palavras que viessem em
nossa cabeça. Falamos na África, e isso é totalmente errado acharmos uma coisa
sobre um país, cultura, pessoas sem termos conhecido ou ao menos pesquisado. No
vídeo que eu vi, no qual o título é O perigo de uma história única falaram exatamente
o que eu falei e frisei no começo do texto e isso de falarmos o que achamos ao menos
sem saber pode ser visto como um certo preconceito por diversas pessoas, e eles estão
totalmente certos. Já pensou você falar mal do lugar onde seu amigo ou colega mora,
falando coisas e palavras ofensivas, como ele se sentiria mal. (...) pois tudo na nossa
vida é assim, se soubermos sempre os dois lados de uma história, de uma opinião, de
um pensamento das outras pessoas, nós teremos sempre que saber, a sua, a minha e
do outro... (Texto produzido por Beatriz, agosto de 2018).

Beatriz indica, em seu texto, ter percebido como uma narrativa única produz um
sentido unilateral e preconceituoso da realidade de um povo ou cultura, além do que se
sensibilizou com a necessidade de formar uma nova ideia sobre a África e sobre quem vive lá.
Beatriz ensina, assim como Lélia Gonzalez, que a forma tradicional de pensar a cultura
africana nos leva a desumanizar sujeitos e estigmatizar seus lugares, cultura, valores, crenças.
Quando questiona se seus próprios saberes não seriam preconceituosos, Beatriz
percebe a importância de “saber os dois lados de uma história” e entende que o “perigo de
uma história única” está em ter seu conhecimento limitado e ainda em excluir ou ofender
aquele de quem se “fala mal”. Com suas palavras, ela transmite a mensagem de Chimamanda
na palestra.
Na percepção de Beatriz, o entendimento de que uma narrativa única produz um
sentido unilateral da realidade, estimula a formação de uma imagem mais plural sobre a
África. Se os estereótipos reduzem e podem até ofender o “outro” que tem sua história
desconhecida, como sugere Beatriz, seus efeitos nocivos precisam ser superados. Ou como
enfatizou Chimamanda Adichie, “a consequência de uma única história é essa: ela rouba das
pessoas sua dignidade”. No entendimento de ambas, o preconceito racial permeia todos os

52
Transcrição do vídeo feita pela pesquisadora. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v
=D9Ihs241zeg>.
140
saberes construídos sobre quem são e como vivem os grupos racializados, mesmo sem
“termos conhecido ou ao menos pesquisado” em profundidade sua história e valores culturais.
Chimamanda destaca ainda como as narrativas históricas são produzidas por uma
lógica de superioridade da história de uma pessoa sobre outra, de um povo sobre outro: “a
forma como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo
depende do poder. Poder é a habilidade não só de contar a história de outra pessoa, mas de
fazê-la a história definitiva daquela pessoa”.
Como entender melhor essa lógica de superioridade e a construção histórica desse poder de
contar a história do “outro” de forma “definitiva”? Nas oficinas seguintes, a ideia foi desenvolver
esse entendimento por meio da reflexão sobre os estereótipos em torno da mulher negra.

Entre “Sofrida” e “Guerreira”: Reconstruindo Noções Sobre a Mulher Negra

Pensar as imagens e saberes preconcebidos sobre a mulher negra a partir do Ensino de


História, requer atenção sobre as representações tradicionais estruturadas pelo imaginário
racista e sexista, fundamentado pela matriz colonizadora. Sueli Carneiro (2011, p. 70) destaca
que “uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o outro em
imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racialmente hegemônicos o
privilégio de ser representados em sua diversidade”. De tal forma, procurei desenvolver
atividades que permitissem trazer à tona os estereótipos sobre a mulher negra com o intuito de
problematizar muitos deles, desenvolvendo um questionário com perguntas geradoras.
A questão era: “Quando a gente pensa em uma mulher negra imaginamos uma mulher
que é...”. Grande parte das respostas, centradas na personalidade ou comportamento da
mulher negra, trouxe noções semelhantes: “Guerreira, batalhadora etc”; “Trabalhadora, ágil,
bondosa”; “Meio sofrida, mas uma pessoa de coração bom”; “Batalhadora, de respeito”; “De
baixa renda, mas também uma mulher forte, inteligente e guerreira”; “Uma mulher guerreira,
humilde, trabalhadora...”; “Um pouco pobre, porém muito trabalhadora”; “Do cabelo
cacheado, boa trabalhadora e que sofre racismo”.
Tal representação da figura de uma mulher aparentemente incansável e resignada,
evocada pelos/as estudantes, está nitidamente associada à mulher negra trabalhadora que tem
uma vida árdua e deverá transpor dificuldades por conta da sua condição social. Essa mulher
precisa, implicitamente, enfrentar guerras e batalhas (por isso ela será também “batalhadora”).
Contudo, fiquei intrigada com a recorrente associação com o trabalho árduo, o sofrimento e a

141
pobreza, ainda que imaginasse que essas representações são consequências tanto do passado
histórico quanto do que os/as estudantes observam no presente.
O arquétipo da mulher negra guerreira e trabalhadora será melhor detalhado, aqui, pois
mostrou-se recorrente entre os dados gerados no encontro seguinte. Muitas teóricas me
fizeram entender com mais profundidade como foi estabelecida a relação entre mulher negra e
trabalho árduo. Com algumas questões semelhantes ao cenário brasileiro retratado por Lélia
Gonzalez (2018) e Sueli Carneiro (2011; 2018), Angela Davis (2016) aborda a história norte-
americana com a preocupação de retomar o legado do passado escravista na tentativa de
melhor compreender e desnaturalizar as representações correntes sobre as mulheres negras.
Sempre pensadas como trabalhadoras em potencial. Davis (2016, p. 17) enfatiza que,
historicamente, “mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs
brancas”, suportando o fardo da exploração e precarização do seu trabalho.
De tal forma, fica perceptível que este trabalho “fora de casa”, tanto no contexto
brasileiro quanto norte-americano, foi resultado de um processo pós-abolição que impeliu a
mulher ao trabalho doméstico nas casas de famílias brancas. Logo, a associação de mulher
negra a trabalho intenso e cansativo, como nas falas das/os estudantes, refere-se a um trabalho
considerado pouco qualificado e valorizado socialmente: o trabalho doméstico. Obrigadas a
acumular o trabalho das suas próprias casas com o trabalho na casa dos patrões, também por
conta de exclusões e poucas oportunidades no campo educacional, as mulheres negras foram
historicamente obrigadas a trabalhar dentro e fora de suas próprias casas.
“De baixa renda”, “humilde”, “sofrida” e literalmente “pobre”, denotam a classe social
como o eixo que fundamenta a imagem da mulher negra como uma “guerreira”. Por enfrentar
tantas “guerras”, nesta condição heroica, o cansaço físico e mental, a fragilidade em qualquer
esfera não é admissível. As representações usualmente atribuídas ao feminino não estão presentes.
Ao enfatizar o modo como racismo e sexismo convergem inseridos no modo de
produção escravista, Angela Davis evidencia como a mulher escravizada foi dissociada das
representações do gênero feminino, corrente no período, “já que as mulheres eram vistas, não
menos do que os homens, como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de
escravos, elas poderiam ser desprovidas de gênero” (DAVIS, 2016, p. 17).
Ao ter sua imagem naturalizada na função de trabalhadora resistente, com as mesmas
funções e tarefas atribuídas aos homens negros, a mulher negra sempre esteve longe dos
ideais de feminilidade atribuídos à mulher branca. Aquela autora busca evidenciar, direta ou
indiretamente, que beleza, fragilidade, subserviência, docilidade, marcas de um ideal branco
de feminilidade, são antíteses das características atribuídas às mulheres escravizadas. Davis
142
exemplifica o modo como foram “desprovidas de gênero” na visão e nas ações do
colonizador:

No que dizia respeito ao trabalho, a força e a produtividade sob a ameaça do acoite


eram mais relevantes do que questões relativas ao sexo. Nesse sentido, a opressão
das mulheres era idêntica à dos homens. Mas as mulheres também sofriam de forma
diferente, porque eram vítimas de abuso sexual e outros maus-tratos bárbaros que só
poderiam ser infligidos a elas. A postura dos senhores em relação às escravas era
regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens,
eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas,
punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas
exclusivamente à sua condição de fêmeas (DAVIS, 2016, p. 19).

Na perspectiva decolonial da filósofa argentina Maria Lugones (2014), os


colonizados/as eram, em si, vistos como anomalias, seres desprovidos de humanidade, de
intelecto e opostos, hierarquicamente, à raça branca do colonizador europeu. Os séculos de
escravidão haveriam lapidado essas noções na formação das subjetividades das/os
colonizadas/os. A autora corrobora a percepção de mulher negra desprovida das
representações de gênero que, neste caso, teria sido fundada antes mesmo da instituição do
sistema escravista, mas sim desde os primeiros contatos entre povos originários das Américas
e do Caribe com o colonizador europeu, no que nomeia como “modernidade colonial”.
“Não é que eu imagine, porque todas mulheres são iguais, mas pra sociedade mulheres
negras são feias, pobres etc.”; “Feia”; “Burra, pobre e escravizada”; “Feia”; “De pele bem
escura, cabelos crespos, gorda, olhos bem escuros”; “Com o cabelo enrolado e o rosto feio”.
Enquanto respondiam o questionário, Antônio perguntou, sorrindo, se realmente era para
colocar a primeira coisa que viesse à cabeça. Eu respondi que era o ideal. Raul, ao entregar o
questionário respondido, falou, um pouco constrangido, que respondeu com base no que “a
sociedade pensa”, que era diferente do que ele próprio pensava.
Ainda que Raul houvesse me “alertado” que escreveu o que “a sociedade pensa”, e
imagino que muitos seguiram a mesma lógica, ainda que cientes do preconceito racial
imbuído ali, fiquei um tanto curiosa com as ideias acima. A menção à feiura – citada quatro
vezes – me fez perceber, com tristeza, como a racialização idealizada pelo sistema moderno
colonial de gênero, desqualifica mulheres negras, inclusive em termos estético-corpóreos.
Atrelada à “burrice”, “pobreza” e suposta aptidão para o trabalho pesado, todas essas noções
reunidas me pareceram compor um quadro um tanto desumanizador.
“Uma mulher normal”; “O que ela quiser, sua cor não muda nada”; “Cabelo cacheado,
alta, olhos castanho claro”; “Cabelo cacheado, bonita, magra ou gordinha”; “Linda, bonita, de
olhos castanhos”; “Linda”; “Bonita”; “De uma cor mais escura que as outras”. Nestas
respostas, observei representações positivas da mulher negra desprovidas da imediata conexão
143
com o trabalho incansável. Evidentemente, essas noções foram bem menos citadas diante do
quadro geral das respostas, além do que a maioria delas recorre à descrição de características
físicas da mulher negra.
Elogios à sua personalidade ou conduta, quando surgiram, não estavam isolados do
âmbito do trabalho, do sofrimento e da pobreza: “Trabalhadora, ágil, bondosa”; “Meio
sofrida, mas uma pessoa de coração bom”; “Batalhadora, de respeito”; “De baixa renda, mas
também uma mulher forte, inteligente”.
Uma característica citada uma única vez, foi para mim uma das mais impressionantes:
“burra”. O desmerecimento da capacidade intelectual negra é uma conhecida manifestação do
racismo estrutural que está a serviço de uma exclusão permanente. Em seu ensaio, “Intelectuais
negras”, bell hooks (1995) expõe como as mulheres negras foram afastadas da intelectualidade
por conta das noções comuns sobre esta atividade – individualista e distante do convívio social
– a ponto de abdicar ou sequer considerar como possibilidade seguir uma vocação intelectual.
Com uma perspectiva semelhante a Angela Davis (2016), hooks faz uma crítica implícita às
dicotomias entre corpo e mente e/ou irracional e racional fundadas no colonialismo:

Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido
consideradas “só corpo, sem mente”. A utilização de corpos femininos negros na
escravidão como incubadoras para a geração de outros escravos era a exemplificação
prática da ideia de que as “mulheres desregradas” deviam ser controladas. Para
justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão,
a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em
representá-las como altamente dotadas de sexo (...). A aceitação cultural dessas
representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos
como “símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em
termos culturais, tida como bastante distante da vida mental (HOOKS, 1995, p. 469).

Ao tratar de sua experiência pessoal, Hooks (1995, p. 466) conta como desenvolveu a
percepção de que o “trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação,
fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas, que passariam
de objeto a sujeito, que descolonizariam e libertariam suas mentes”. A invisibilidade da
mulher negra como intelectual, destacada por Hooks (1995, p. 467) explica-se “ao mesmo
tempo em função do racismo, do sexismo e da exploração de classe institucionalizados”.
Na oficina seguinte, de acordo com a proposta concebida pela metodologia da
pesquisa-ação, repensei o que havia planejado, ao ler e analisar o que foi dito nos
questionários da oficina anterior, alertando para o fato de que o que encontramos na
“sociedade” é o que nós reproduzimos. Decidi desenvolver uma atividade que abordasse
figuras específicas de mulheres negras, que permitisse uma maior variedade de concepções
entre os/as estudantes sobre como pode ser e o que pode fazer uma mulher negra, buscando

144
transpor classificações racistas e sexistas. A proposta era relembrar e trazer mais informações
sobre Dandara e Chimamanda Adichie, mencionadas em oficinas anteriores, e apresentar
outra mulher negra inspiradora.
Optei por escolher outra mulher contemporânea que de alguma forma estivesse
atrelada a um trabalho intelectual: Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Ex-moradora de uma
favela paulistana, Carolina tornou-se uma escritora de destaque internacional através de seu
livro Quarto de Despejo (1960), traduzido para 29 idiomas53. Nesta obra, que reuniram textos
escritos em forma de um diário pessoal, a escritora narra sua vida como uma mulher negra
pobre, que sustentava três filhos trabalhando como catadora de papel.
Fiz a projeção de algumas imagens de Carolina de Jesus encontradas na internet,
enquanto falava sobre sua trajetória. Nesta oficina, especialmente, procurei falar das mulheres
negras sem caracterizá-las com qualidades, buscando apresentar apenas o que elas realizaram.
A ideia era tentar não influenciar a atividade seguinte que seria proposta: escrever três
características sobre as três mulheres negras que conheceram na pesquisa.
Assim os/as orientei, “pensando em todas as mulheres negras que conhecemos
através da pesquisa, cite três qualidades ou características destas mulheres”. As mais citadas
foram: “Guerreira/s”; “Fortes/força”; “Batalhadora”; “Trabalhadoras”; “Perseverantes”;
“Coragem/corajosa”; “Lutadora”; “Escritora”; “Sonhadora”; “Inteligentes”; “Independente”.
Diante do panorama geral das respostas, me chamaram a atenção alguns adjetivos.
Fiquei bastante entusiasmada, pois muitas representações positivas que, na oficina anterior,
não surgiram, agora foram trazidas pela história de Carolina de Jesus. Mas não poderia deixar
de criticar e investigar o que não mudou no panorama: a “guerreira”, adjetivo citado 14 vezes.
A “trabalhadora” e “batalhadora” também estavam lá para me lembrar de que os/as estudantes
permaneciam reproduzindo a ideia da mulher negra com uma predisposição natural para
ultrapassar sofrimento e dificuldade.
Se, estar sempre atrelada a uma vida que lhe exige guerrear, lutar, sobreviver, trabalhar
incansavelmente, é um fardo, atender à expectativa de ser a mulher negra “guerreira” é
também desumano. A despeito de surgir de modo romantizado, ela está claramente vitimizada
e sujeitada, por mais que seus esforços façam dela uma “heroína”, a mulher negra está refém
de um lugar que parece ser intransponível.

53
As informações que usei sobre a vida de Carolina de Jesus, para elaborar a oficina, foram extraídas
principalmente do site “A cor da cultura”. Disponível em:
<http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/carolinamariadejesus>. Acesso em: 02 set. 2018.
145
A crítica do feminismo negro a esta romantização das dificuldades enfrentadas pela
mulher negra, por conta do conjunto das discriminações múltiplas que enfrenta, denuncia a
naturalização de um imaginário da mulher negra que a destitui de humanidade. Uma mulher
que suporta mais dor, mais adversidades, sem, contudo, se revoltar ou fraquejar. Em seu
relato pessoal, no livro Quem tem medo do feminismo negro?, Djamila Ribeiro trata da
imagem da mulher guerreira como uma construção nociva, muitas vezes internalizada pelas
mulheres negras e que precisa ser rompida, pois:

Somos fortes porque o Estado é omisso, porque precisamos enfrentar uma realidade
violenta. Internalizar a guerreira, na verdade, pode ser mais uma forma de morrer.
Reconhecer fragilidades, dores e saber pedir ajuda são formas de restituir as
humanidades negadas. Nem subalternizada nem guerreira natural: humana
(RIBEIRO, 2018, p. 20-21).

A mulher negra guerreira, a exemplo da figura da mãe preta pensada por Lélia
Gonzalez, sugere um ideal de mulher negra com personalidade pacífica, compreensiva e
subserviente. Nos termos do ideal colonizador, aquela que se adaptou de modo exemplar às
violências e silêncios impostos a ela e a seu povo. Essa personagem não cabe, contudo, em
um ideal de feminilidade atribuído à mulher branca, inserido em uma exaltação ideológica da
maternidade. Mas aproxima-se muito mais de um animal doméstico utilitário e dócil. Está, de
muitas formas, ainda desumanizada.
Assim como no Brasil, a imagem da “mãe preta” também foi construída na cultura
estadunidense, de acordo com Hooks (1995). Essa autora destaca como, independentemente da
posição que ocupem, as mulheres negras são tratadas, nesta cultura, com a expectativa de servilismo
e zelo abnegado por todos, reduzidas ao trabalho doméstico. Nesse sentido, Hooks destaca:

Do outro lado das representações das negras como selvagens sexuais,


desqualificadas e/ou prostitutas, há o estereótipo da “mãe preta”. Mais uma vez, essa
imagem registra a presença feminina negra como significada pelo corpo, neste caso
a construção de mulher como mãe, “peito”, amamentando e sustentando a vida de
outros. Significativamente a proverbial “mãe preta” cuida de todas as necessidades
dos demais, em particular dos mais poderosos. Seu trabalho caracteriza-se pelo
serviço abnegado. (...) Embora essas negras não sejam mais obrigadas pelas práticas
trabalhistas exploradoras racistas a “servir” apenas em empregos julgados servis,
espera-se que limpem a sujeira de todos. (...) Coletivamente, muitas negras
internalizam a ideia de que devem servir, estar sempre prontas para atender, quer
queiram quer não, à necessidade de outra pessoa (HOOKS, 1995, p. 469-470).

Considero que o fato de ter apresentado Carolina de Jesus e Dandara, esta última o
exemplo de uma mulher que de modo literal ia à guerra, contribuiu para acionar esse padrão
presente nos saberes dos/as estudantes que, por sua vez, estão indiscutivelmente marcados por
narrativas pedagógicas eurocêntricas, a despeito dos avanços recentes que difundem uma
perspectiva decolonial para o Ensino de História.
146
As características menos citadas – duas ou uma vez cada uma –, foram: “Famosa”;
“Destemida”; “Vencedoras”; “Dedicada”; “Gentis”; “Belas”; “Determinadas”; “Inspiradoras”;
“Respeitadas”; “Reconhecidas”. Essas características, as quais gostaria que fosse padrão
sempre que uma mulher negra fosse mencionada, são alguns dos muitos incentivos e das
imensas recompensas que levarei deste trabalho.

Considerações Finais

Senti-me bastante desafiada, a partir da análise dos resultados da formação com os/as
estudantes, a elaborar estratégias que efetivem mudanças significativas quanto ao racismo que
identifiquei como uma “regra oculta” no interior da escola, o modo “normal” do meu
ambiente de trabalho. Para transpor essa normalidade instituída, compreendi que as minhas
próprias percepções deveriam ser ampliadas para a concretização de uma nova prática
pedagógica no Ensino de História.
As experiências anteriores de trabalho com a temática racial não haviam produzido
uma imersão tão profunda que me fizessem compreender o quão arraigado estava o racismo
na minha realidade de professora negra de uma escola pública, nas condições de trabalho
oferecidas, nas minhas práticas pedagógicas, ações, omissões. Como mostrar aos estudantes
que a “normalidade” do racismo não é nada normal e que não estamos predestinados a ela?
Que a mulher negra pode estar muito além do estereótipo de guerreira-sofrida? Entendi que
deveria perseguir o caminho de desvendar a normalidade na minha prática pedagógica na
tentativa de alcançar mudanças significativas.
É preciso lembrar que a mesma regra oculta que institui a normalidade racista “não
exclui os sujeitos racializados, mas os concebe como parte integrante e ativa de um sistema
que, ao mesmo tempo que torna possíveis suas ações, é por eles criado e recriado a todo
momento” (ALMEIDA, 2018, p. 39). Com o desejo de não ser apenas integrante dessa teia,
mas também ativa na criação de alternativas, o decorrer da formação também me ofereceu
esperanças e motivações.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Coleção Consciência em


debate. São Paulo: Selo Negro, 2011.
147
______. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de
uma perspectiva de gênero. 2011b. Disponível em: <http://www.unicap.br/neabi/?page_id=
137>. Acesso em: 18 jan. 2018.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo:
Boitempo, 2016.

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. 1ª
ed. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

HOOKS, bell. Intelectuais Negras. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p.


464, jan. 1995. ISSN 1806-9584. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/
article/view/16465>. Acesso em: 17 nov. 2018.

LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas,


Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, set. 2014. ISSN 1806-9584. Disponível em: <https://
periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755>. Acesso em: 10 abr. 2018.

OLIVA, Anderson R. O espelho africano em pedaços. Revista do Centro de Artes,


Humanidades e Letras. UFRB. vol. 1 (1), 2007.

RAMOS JÚNIOR, Dernival Venâncio. História da África: relato de experiência e análise de


intervenção didática. Emblemas (UFG Catalão), v.14, p. 08-15, 2017.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? 1ª ed. — São Paulo: Companhia
das Letras, 2018.

SILVA, Claudilene Maria da. Práticas Pedagógicas de valorização da identidade, da


memória e da cultura negras: a volta inversa na árvore do esquecimento e nas práticas do
branqueamento. 2016. Tese (Doutoramento em Educação) - Programa de Pós-Graduação em
Educação, UFPE, Recife, 2016.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1985.

148
09. MEMES E NARRATIVAS DA ESCRAVIDÃO:
APRENDIZAGEM HISTÓRICA NO CENTRO DE ENSINO
FORTUNATO MOREIRA NETO, PORTO FRANCO -MA

Eliete Ribeiro Araújo54

Introdução

Algumas reflexões em torno do ensino de História e da aprendizagem histórica na


perspectiva da consciência histórica se destacam nesse trabalho através da experiência
metodológica utilizada em sala de aula com usos de memes de internet e que tem o seu
primeiro exercício55 aqui apresentado. Com o objetivo de promover educação étnico-racial
através da problematização do meme nego como representação social do racismo contra
afrodescendentes em 2019, a pesquisa foi realizada com 31 alunos entre 15 e 21 anos de
idade, matriculados na turma F de 2º ano do ensino médio, do turno vespertino, do Centro de
Ensino Médio Fortunato Moreira Neto, em Porto Franco-MA56 e teve como produto final uma
cartilha virtual para professores de História com procedimentos metodológicos para a
educação étnico-racial com usos de memes de internet.
Dada a proposta de educação étnico-racial regulamentada pelo Ministério da
Educação- MEC através das Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2013) e efetivado
pela exigência da Lei 10.639/2003, que instituiu a inserção da História e cultura afro-
brasileira nas escolas, faz-se necessário que estudantes de História sejam provocados a
expressar conhecimentos históricos capazes de relacionar conteúdos referentes à escravidão
africana no Brasil e as questões étnicos-raciais que permeiam os discursos de diversas
linguagens do tempo presente.
Trata-se de um esforço em perceber as possibilidades de dialogar com conteúdos sobre
a escravidão africana no Brasil (séculos XVI ao XIX) como evento histórico e com as práticas
simbólicas que manifestam o racismo no tempo presente. Os Memes de internet são artefatos
culturais contemporâneos marcantes nas vivências dos estudantes e carregam significados
passíveis de problematizações nas atividades escolares. Provocados a mobilizar

54
Aluna da 3º Turma do Mestrado Profissional em História- Profhistória. Núcleo – UFT; Araguaína-TO; E-mail:
elietejatoba@hotmail.com.
55
A pesquisa teve como procedimentos metodológicos 04 exercícios. Apenas o primeiro deles é apresentado
nesse texto.
56
Porto Franco está localizada no Sul do Maranhão, a 700 km da capital, São Luís; possui população estimada de
23.885 mil habitantes, conforme dados do IBGE de 2019 e é banhada pelo Rio Tocantins e cortado pelas
rodovias federais BR-010 (Belém-Brasília) e BR-226, pela rodovia estadual MA-336 e pela Ferrovia Norte-Sul.
149
conhecimentos históricos, os estudantes se posicionaram em relação à questão étnico-racial
elaborando interpretações e sentidos por meio da competência narrativa, “fazendo efetiva
uma orientação temporal na vida prática presente por meio da recordação da realidade
passada” (SCHMIDT; BARCA; REZENDE, 2010 p. 59).
Nos memes apresentados em sala de aula, piadas comumente proferidas para se referir
à negritude desqualificando e subalternizando esta identidade são sobrepostas às imagens que
as representam visualmente, dando ao meme uma expressão de escárnio e ridicularidade. Na
atividade, o meme nego57 foi aplicado como mediação dessas ideias históricas. O objetivo era
observar se os estudantes percebiam que as mensagens do meme revelavam manifestações de
racismos e mobilizariam conhecimentos históricos para interpretar os preconceitos raciais
contra afrodescendentes nos dias de hoje.

Aprendizagem Histórica

Em Jörn Rüsen, destaca-se a perspectiva da consciência histórica como o conjunto de


operações mentais que permite ao homem interpretar sua experiência de evolução do tempo,
de seu mundo e de si mesmo, de forma tal que possa orientar, intencionalmente, sua vida
prática no tempo (RÜSEN, 2001, p. 57). Através da operação dessa consciência, a
aprendizagem histórica pode ser construída, quando competências próprias da ciência
histórica se desenvolvem através de um processo em que se experiencia o passado e o
interpreta como História.
Assim, a aprendizagem histórica é atividade fundamental dos homens imersos na
cultura, vasta de representações portadoras de saberes históricos. Nesse sentido, Jörn Rüsen
versa sobre a existência da cultura histórica como forma de manifestação de uma consciência
histórica coletiva, operando em distintas e imbricadas dimensões sobre a formação dos
conhecimentos históricos que em muito transcendem a narrativa histórica escolar proposta em
documentos normativos, enunciada nos livros didáticos e nas narrativas dos professores de
História (RÜSEN, 2015).
Em outras palavras, a formação histórica é fruto do encontro de diferentes instâncias
da vida, o que pressupõe a importância de diferentes artefatos da cultura na mediação e

Esse meme foi o nome dado a um “evento digital” propagado pela internet entre 2015 e 2016, no qual
57

postagens com a expressão “nego”, associada a imagens, reproduziam mensagens desqualificadoras da


negritude. Certamente, esse meme produz um determinado entendimento com relação às questões de raça no
Brasil no tocante a construção do negro no discurso on-line (SOUSA JÚNIOR, 2016). Pretendia-se que as
mensagens discursivas do meme de algum modo (res) significassem aspectos da questão étnico-racial presentes
nas práticas culturais da sociedade, configurando, assim, eventos e contextos do tempo presente.
150
constituição de sentido histórico, pois “a tradição que envolve o moderno nas diferentes
formas de narrar e entender os percalços da vida humana ao longo do tempo, seja
institucionalmente transmitida, como na escola, ou em contextos fora dela, o discurso
histórico aparece em diferentes linguagens constituindo orientação temporal futura”
(FREITAS, 2016, p. 252).
É parte da formação histórica a reflexão de como a mesma serve à vida prática
daqueles que a estudam e a investigação da cognição histórica situada e pautada na
epistemologia da história para a delimitação e interpretações de questões que envolvam o
estudo das ideias históricas de sujeitos, em diálogo com a teoria da consciência histórica
(SCHMIDT, 2009).
Assim, a consciência histórica é, em síntese, a teoria da aprendizagem histórica. Para
Rüsen, a aprendizagem histórica se dá num processo de mudança estrutural da consciência
histórica, capaz de expandir o conhecimento do passado de forma progressiva e alterar
estruturas que lidam com a experiência e o conhecimento da realidade, por meio de uma
elevação da expressão narrativa do modo tradicional a um nível superior, ao qual ele chama
modo genético (RÜSEN, 2010a).
A narrativa é a face material da consciência histórica segundo esse filósofo e
historiador, pois, por meio dela, é possível acessar o tipo de consciência histórica que um
sujeito possui. Rüsen construiu uma tipologia em que a consciência histórica é classificada
como tradicional, exemplar, crítica ou genética, a depender de como o sujeito experiencia o
tempo, constrói sentidos e significados, orienta a vida exterior e interior, se relaciona com os
valores e com os raciocínios morais.
Um indivíduo com consciência histórica tradicional se utiliza das tradições como
elementos para a sua orientação. Quando essa consciência for exemplar, ele utiliza regras gerais
e pessoais utilizadas no passado como referencial para agir ou julgar as situações do presente. A
consciência do tipo crítico lhe permite relativizar os valores e descartar a universalidade. O tipo
genético trata-se de uma consciência em que o indivíduo se apoia na ideia de mudança,
transformação e desenvolvimento, rompendo com as tradições e os modelos existentes para agir
de modo a construir um futuro diferente do passado (RÜSEN, 2010a).
Rüsen afirma que através do desenvolvimento da aprendizagem histórica tendo por
base a consciência histórica, os homens adquirem identificadores de direção e fixam opiniões
que lhes serão úteis na vida prática:

[...] a consciência histórica pode ser descrita como a atividade mental da memória
histórica, que tem sua representação em uma interpretação da experiência do

151
passado encaminhada de maneira a compreender as atuais condições de vida e a
desenvolver perspectivas de futuro na vida prática conforme a experiência. O modo
mental deste potencial de recordação é o relato da história (relatar não no sentido de
entender uma mera descrição, mas no sentido de uma forma de saber e de
entendimento antropologicamente universais e fundamentais). Esta forma narrativa
que oferece uma interpretação da história do passado representado cumpre uma
função de orientação para a vida atual. Esta função se realiza como um ato de
comunicação entre produtores e receptores de histórias. Por isto, o aspecto
comunicativo da memória histórica é tão importante, porque é através da narrativa (e
da percepção) das histórias que os sujeitos articulam sua própria identidade em uma
dimensão temporal em relação com outras (e ao articulá-las se formam) e ao mesmo
tempo adquirem identificadores de direção (por exemplo, perspectivas de futuro)
sobre critérios de fixação de opinião para seu próprio uso. (RÜSEN, 2012, p. 112).

Para Rüsen, aprender História é construir sentidos sobre a experiência do tempo


através da narrativa histórica que faz surgir e desenvolver competências (RÜSEN, 2012). O
desenvolvimento da consciência histórica pelo processo da aprendizagem da História resulta
da formação de competências da memória histórica, que podem ser divididas em três:

A competência perceptiva ou embasada na experiência consiste em saber perceber o


passado como tal, isto é, em seu distanciamento e diferenciação do presente
(alteridade histórica) em vê-lo a partir do horizonte de experiências do presente
como um conjunto de ruínas e tradição. A competência interpretativa consiste em
saber interpretar o que temos percebido como passado em relação e conexão de
significado e de sentido com a realidade (a “História” é a encarnação suprema desta
conexão). Finalmente, a competência de orientação consiste em admitir e integrar a
“História” como construção de sentido com o conteúdo de experiências do passado,
no marco de orientação cultural da própria experiência de vida. (RÜSEN, 2012, p.
114).

Essas competências (experimentar, interpretar e orientar-se) se unificam em forma de


pensamento através da narrativa e explicita a consciência histórica, lhe dá sofisticação e
constituição de sentido sobre a experiência do tempo, “fazendo efetiva uma orientação
temporal na vida prática presente por meio da recordação da realidade passada” (SCHMIDIT,
BARCA; REZENDE, 2010, p. 59).
Schmidt (2009) explica as dimensões da competência narrativa nos seguintes termos:

O conteúdo é a capacidade de (...) distanciar-se do passado e diferenciá-lo do


presente, reconhecendo nele a sua própria experiência e a mudança (...) A forma é a
capacidade de se analisar as diferenças de temporalidades entre o passado e o futuro,
por meio da concepção de um todo temporal significativo que abranja todas as
dimensões do tempo (...) A função é a capacidade que permite a utilização do todo
temporal (passado, presente, futuro) como guia de ação na vida diária. (SCHMIDT,
2009, p. 115).

É assim que o aprendizado histórico permite ao sujeito lidar com o saber histórico de
forma consciente, interpretar e problematizar a partir deste saber e, finalmente, utilizá-lo
(FREITAS, 2016). A vivência em sociedade expõe a consciência histórica a diversas
intervenções, sejam elas intencionais ou involuntárias. Isso porque o discurso histórico
aparece em diferentes linguagens e constitui orientação temporal futura. Para Rüsen a cultura
152
histórica é:

Articulação prática e operante da consciência histórica na vida de uma sociedade (...)


contempla as diferentes estratégias da investigação científico-acadêmica, da criação
artística, da luta política pelo poder, da educação escolar e extraescolar, do ócio e de
outros procedimentos da memória histórica pública. (RÜSEN, 1994, p. 4).

Baseada na visão de cultura escolar como conjunto dos conteúdos cognitivos e


simbólicos que são selecionados, organizados, normatizados, rotinizados e didatizados, que
constituem objeto de transmissão deliberada nas escolas. Por sua, Schmidt (2014) afirma que
ainda permanece no Brasil um ensino de História centrado em perspectivas canônicas
legitimadas por meio de propostas, diretrizes curriculares e manuais didáticos. Também
assegura a relevância das investigações que têm ocorrido no âmbito do domínio teórico da
Educação Histórica circunscritas nas questões relacionadas aos estudos da consciência
histórica com foco principal na aprendizagem histórica.
Bodo V. Borries (2016) afirma que a formação histórica não pode ser focada somente
na sala de aula e no ensino de História pela via única da narrativa dos manuais didáticos, pois
seria incorrer na desilusão do trabalho “sem resultados”. Peter Lee (2006) propõe que toda
ação visando o aprendizado histórico deve sempre considerar as ideias prévias dos estudantes
para então desenvolver a literácia histórica, que é a capacidade de compreender a maneira
pela qual os historiadores organizam e explicam o passado, percebendo o passado não como
eventos fragmentados e sim numa estrutura histórica utilizável (LEE, 2006).
As relações entre a História ensinada na escola e as representações culturais se fazem
evidentes, uma vez que a aprendizagem das relações raciais no ensino de História leva em
conta as práticas metodológicas que se fazem no espaço de criação das escolas, a cultura
escolar é parte da cultura histórica. Nesse sentido, nos guiamos no conceito de cultura
escolar de Dominique Julia (2001) que a entende não só como exercício das normativas
externas disciplinares, mas principalmente as práticas que ocorrem no interior das escolas, em
seus rituais, saberes e valores que circulam no dia a dia e num espaço de muitos sujeitos que
se relacionam e formam subjetividades.

Um Olhar para a Consciência Histórica dos Estudantes

O exercício com os memes selecionados foi realizado durante as duas aulas semanais
de História. Na primeira aula, a professora fez uma prévia com algumas orientações acerca da
atividade e buscou saber como os estudantes se autodeclaravam quanto à cor da pele. Na aula

153
seguinte, os memes foram exibidos com utilização de recurso data show. Em seguida, os
estudantes receberam um exercício escrito em que deveriam, individualmente, responder a
seguinte questão: “Você relaciona o meme nego com os seus conhecimentos históricos sobre a
escravidão africana no Brasil?” Após concluírem o exercício, os estudantes o entregaram a
professora.
A questão proposta pretendia observar se os estudantes podiam perceber alguma
conexão entre a escravidão (passado) e o racismo representado nos memes (presente). Desse
modo, os estudantes apresentaram ideias sobre a relação deles com a escravidão africana no
Brasil, elaborando argumentos históricos. Com isso, objetivava-se verificar se era possível
que conteúdos históricos fossem acionados pelos estudantes e os levassem a perceber as
mensagens dos memes como manifestações do racismo vivo em nossos dias contra pessoas
negras. Através de interpretação das narrativas dos alunos seria possível perceber como
mobilizariam ideias sobre relações raciais históricas.
Para análise dessas narrativas, categorizou-se as mesmas em grupos identificados a
partir da semelhança entre as ideias apontadas por cada estudante em suas atividades
individuais. Essas narrativas expressaram certas regularidades nas formas interpretativas dos
estudantes. Foram utilizados dois esquemas interpretativos. No primeiro deles, observou-se
em que medida as ideias históricas dos estudantes se aproximavam mais da narrativa histórica
escolarizada ou de discursos históricos extraescolares. Em contato com as narrativas dos
estudantes, percebeu-se que o acesso aos saberes históricos era um elemento importante de ser
considerado. Considerou-se a necessidade de destacar o peso dos discursos históricos
extraescolares no pensar histórico dos estudantes. Já no segundo esquema interpretativo,
verificou-se o modo como os discentes mobilizaram conhecimento histórico estabelecendo a
relação entre passado e presente.
No primeiro modo de interpretação, percebeu-se que, a maioria das narrativas
apresentou ideias históricas formadas a partir de novelas, filmes e outros discursos históricos
que circulam na internet. Na menor parte das narrativas, percebeu-se a manifestação de ideias
históricas com maior complexidade cognitiva, mais embasada no discurso histórico escolar
mediado pelo livro didático e, possivelmente, pela narrativa do professor de História. Com
isso, foi possível perceber o peso dado por eles à narrativa histórica escolarizada e como se
apropriaram dela em suas interpretações.
No primeiro caso, nomeado grupo A, identificou-se 25 narrativas que podem ser
demonstradas pelo relato abaixo:

154
Eu acho que é porque naquele tempo, os negros apanhavam muito nos troncos e
tinha muita violência e maldade do rei. Eles vinham da África porque nas guerras
eles sempre perdiam. Eu acho assim era falta de humanidade dos reis. Eles vinham
amarrados embaixo nos navios. Eu assisti um filme que mostrava eles sendo jogados
no mar, até as mulheres. (ALUNO A, 2019)58.

Nessa narrativa, o estudante A indica a temporalidade com a expressão naquele tempo,


deixa em evidência a violência praticada por aqueles que escravizavam os africanos, que
segundo ele, eram os reis, através da prática da guerra. O estudante faz uma descrição da
viagem pelo Atlântico recorrendo aos conhecimentos históricos que obteve através de um
filme. É notável a presença de um tipo de discurso histórico acessado através de canais
diversos do discurso científico visto na escola.
Na narrativa abaixo, o estudante B também faz alusão ao conhecimento histórico que
obteve através de outras narrativas discursivas, mas segundo ele, não lembra onde:

Os memes fazem humor com os negros que já foram escravos. Eu sei que a princesa
Izabel assinou as cartas de alforria, aí os escravos ficaram livres. Disseram que a
Izabel não era boa, não me lembro onde vi isso, mas eu acho que ela era sim porque
se não fosse ela assinar, os negros ainda não iam ser como nós hoje que não tem
mais escravidão. Mas nem Jesus agradou a todos, não é a princesa que vai, né?
(ALUNO B, 2019)59.

A narrativa indica que o estudante teve algum contato com discursos antagônicos
sobre a memória da princesa Izabel. A ideia histórica desse estudante revela as batalhas de
narrativas em nome de sustentações de posicionamentos políticos, em debates que circulam na
internet. O estudante se posiciona em favor do discurso de que a princesa demostrou bondade
ao assinar a Lei Áurea e, atribui a ela a razão da abolição ter sido levada a cabo, fato que teria
feito os negros se tornarem “como nós hoje”. A fala do estudante se encerra com uma
expressão muito comum utilizada em contextos nos quais pessoas não são reconhecidas pelo
bem que fazem: “nem Jesus agradou a todos”.
O quadro abaixo demostra os principais pontos sobre a escravidão africana no Brasil
citados pelos estudantes incluídos nessa categoria de narrativas:

58
ALUNO A, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
59
ALUNO B, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
155
Quadro 01 – Escravidão africana no Brasil de acordo com os estudantes

Grupo A

a) Violência, sofrimento e maltrato dos escravos;


b) Trabalho forçado;
c) Viagem nos navios negreiros;
d) Engenhos, tronco, senzala e açoites;
e) Referência à princesa Isabel e às cartas de alforrias;
f) Confundiram a escravidão colonial com outros tipos de escravidão como a de
prisioneiros de guerra.
TOTAL DE ALUNOS: 25

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

É possível observar que essas narrativas apresentaram ideias suficientemente


referenciadas numa perspectiva de conhecimento histórico em que o ensino oferecido aos
jovens brasileiros sobre a escravidão apresenta o negro como vítima inerte. Na visão da
intelectual decolonial Nilma Lima Gomes, esse imaginário se constrói em grande parte pela
colonialidade do saber presente no currículo escolar:

A colonialidade é resultado de uma imposição do poder e da dominação colonial que


consegue atingir as estruturas subjetivas de um povo, penetrando na sua concepção
de sujeito e se estendendo para a sociedade de tal maneira que, mesmo após o
término do domínio colonial, as suas amarras persistem. Nesse processo, existem
alguns espaços e instituições sociais nos quais ela opera com maior contundência.
As escolas da educação básica e o campo da produção científica são alguns deles.
Nestes a colonialidade opera, entre outros mecanismos, por meio dos currículos.
(GOMES, 2019, p. 227).

É importante destacar que a colonialidade do saber certamente se revela nos diversos


discursos históricos que se apresentam pelos diversos canais por onde circulam a memória
histórica brasileira e tem nos modos como se aprende história na escola a sua base.
No segundo caso, nomeado de Grupo B, em que os relatos dos estudantes se
aproximaram do discurso histórico escolarizado, foram agrupadas 06 narrativas que
apresentaram ideias históricas mais embasadas em critérios cognitivos de racionalidade
epistemológica. Informações históricas mais complexas foram citadas por eles, tais como o
fato de que a escravidão dos africanos foi executada por colonizadores europeus, marcação

156
cronológica precisa da escravidão africana no Brasil, as atividades realizadas pelos escravos
na América portuguesa e aspectos das leis abolicionistas. A narrativa abaixo expressa a
interpretação histórica do estudante C, como ilustração dessa categoria:

Podemos pensar no que já ocorreu com os negros. No passado esse povo já sofreu
bastante. No século XVI, os portugueses estavam interessados nas riquezas do
Brasil, mas precisavam de mão de obra, foi aí que tiveram a péssima ideia de trazer
pessoas da África para trabalharem aqui. Essas pessoas não recebiam um salário,
elas eram escravas e trabalharam muito nos engenhos, no café e em muitos outros
serviços. Essa escravidão durou até o final do século XIX, quando finalmente os
escravos conseguiram a sua liberdade através de uma lei chamada de Lei Áurea.
(ALUNO C, 2019)60.

Nessa narrativa, o estudante afirma com precisão cronológica que o processo de


colonização do Brasil se iniciou no século XVI e teve fim no século XIX, com a assinatura da
Lei Áurea; afirma que para explorar as riquezas brasileiras era necessária a mão de obra que
veio da África e que os escravizados não recebiam salários. O estudante aponta ainda que o
trabalho dos escravos foi realizado em engenhos, plantações de café e muito outros serviços.
É possível observar que esta narrativa se referencia numa concepção histórica que
privilegia os ciclos econômicos como base de organização da sociedade escravista. Salta aos
olhos a expressão “os escravos conseguiram a sua liberdade através de uma lei chamada de
Lei Áurea”. Dois pontos podem ser problematizados nessa afirmação: a participação dos
escravizados na luta pela abolição e a Lei Áurea sendo representada como o fim do
sofrimento da população negra.
O primeiro ponto é positivo já que o escravizado é visto pelo estudante como sujeito
protagonista de sua história de liberdade. A abolição não fora dada como prêmio graças à
bondade dos brancos como disse o aluno B em sua narrativa, fazendo menção a princesa
Isabel como a heroína da abolição. Quanto ao segundo ponto, percebe-se que o estudante
entende que o passado de escravidão se encerra completamente com a Lei Áurea. Como se o
13 de maio de 1988 fosse o “the end” de um filme triste que termina com um final feliz em
contraposição a reflexão crítica sobre a inconclusão da abolição e o seu caráter conservador
como afirma Lilia Shwarckz:

A lei simplesmente abolia. Dizia que a partir desta data não há mais escravos no
Brasil. Ponto final.A República, que viria um ano e meio depois, tentaria colocar
uma pedra no tema da escravidão. Como se tivesse ficado morto no passado junto
com o Império. Temos um hino da República, aquele que canta "liberdade,
liberdade, abre as asas sobre nós". E há uma estrofe que diz: "Nós nem cremos que
escravos outrora tenha havido em tão nobre país". Ou seja, um ano e meio depois,
(os republicanos) afirmavam não acreditar mais (que tivesse havido escravidão). Era
um processo de amnésia nacional (...). O (momento) pós-emancipação não teve

60
ALUNO C, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
157
nenhuma preocupação com inclusão dessas populações (de ex-escravos). Eu me
refiro a educação, saúde, habitação, todos os problemas estruturais. Mas isso não
quer dizer que a gente só deva culpar o passado. O que vemos hoje no país é uma
recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do
passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas
radicalizar o racismo estrutural. (SHWARCKZ, 2018, [online].)

Alguns pontos foram destacados com maior ênfase pelos discentes nas narrativas
incluídas nesse grupo:

Quadro 02 – Destaques de Narrativas com Maior Precisão Histórica


Grupo B

a) Africanos foram escravizados por colonizadores portugueses no Brasil;


b) Período da escravidão colonial (entre os séculos XVI e XIX);
c) A escravidão como mão de obra no período colonial para plantação e cultivo da
cana de açúcar, mineração e café;
d) Citaram as leis abolicionistas: Eusébio de queirós, Lei do Ventre Livre, Lei dos
Sexagenários e Lei áurea;
e) Estupro e abuso sexual de mulheres escravas como formação da miscigenação;

TOTAL DE ALUNOS: 06

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Dentre esses pontos, é relevante o nível de complexidade do pensamento de alguns


estudantes, especialmente estudantes meninas, sobre a escravidão ligada à questão de gênero
como elemento importante para explicar a miscigenação. Conforme afirma Jessé Sousa
(2017) referenciado na categoria sociológica do sadomasoquismo proposto em Gilberto
Freyre, a escravidão brasileira era uma mistura da escravidão semi-industrial das plantations
com a escravidão familiar sexual moura e muçulmana. Esse autor afirma que seu experimento
sociológico “parte dessa ideia de uma escravidão peculiar, ao mesmo tempo semi-industrial e
sexual, como semente das relações de classe e gênero no Brasil.” (p. 45). Provavelmente essas
estudantes tiveram contato com algum tipo de conhecimento histórico ou sociológico que
apontam para essa visão nos debates envolvidos com o feminismo negro tão presentes nas
redes sociais atualmente.
Dedica-se, agora, à análise referente ao segundo esquema interpretativo, como os
discentes relacionaram passado e presente, e os principais tipos de narrativas que construíram.
Na questão proposta pelo exercício, já se fazia explícita a orientação para que os estudantes
158
mobilizassem seus conhecimentos históricos para construir diálogos entre as mensagens dos
memes e o conhecimento histórico que possuíam sobre a escravidão.
Das 31 narrativas elaboradas, 28 apontaram relação entre passado e presente. Já 03
estudantes, mesmo fazendo uso de conhecimentos históricos, não construíram argumentos que
vinculassem passado e presente. Identificamos modos diferentes de fazer essa relação por
parte dos estudantes. O modo como interpretou-se as ideias dos estudantes permitiu classificá-
las em 03 tipos de narrativas chamadas A, B, C, a partir dos padrões de raciocínio dos
estudantes, revelados em seus argumentos:

Quadro 03 - Tipos narrativos propostos

Teve escravidão contra negros, mas os memes são só piadas e não


NARRATIVA A 03 estudantes
falam de escravidão.

Os negros já foram escravos e hoje não são mais, brancos e negros


NARRATIVA B 18 estudantes
são iguais.

Os negros já foram escravos e hoje são tratados com diferenças e


NARRATIVA C preconceitos. 10 estudantes

TOTAL 31 estudantes

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Eliete Ribeiro Araújo

Narrativa A

Nessa categoria, foram incluídas 03 narrativas nas quais os estudantes relacionaram


passado-presente, apenas citando que negros já foram escravos e os memes também falavam
sobre negros, mas não estabeleceram inter-relação da escravidão africana com as mensagens
racistas como vemos a seguir:

Não relaciono porque os memes são engraçados com os negros e não falam nada
sobre a escravidão que foi triste e cruel com eles. Eu gosto muito dos memes por
isso, fazem a gente sorrir e esquecer dos problemas que existem. No Brasil são
tantas tragédias, que só mesmo com muito bom humor para a gente vencer.
(ALUNO D, 2019)61.

O estudante afirma que, por ter sido muito ruim, a escravidão não pode ter nenhuma
relação com os memes que são engraçados e fazem sorrir. O estudante diz que gosta de
memes porque fazem esquecer os problemas. A presença do racismo recreativo, em suas

61
ALUNO D, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
159
sutilezas, como construção de poder simbólico de afirmação da superioridade branca é
marcante no relato desse estudante. Adilson Moreira assegura que “a afirmação da
superioridade da branquitude é um elemento central do racismo recreativo porque ela está por
trás da satisfação psicológica que elas obtêm ao reproduzir piadas racistas.” (MOREIRA,
2019, p. 153).
Em todas as narrativas incluídas nessa categoria, é possível perceber que os
estudantes se expressaram com base no senso comum e não elaboram pensamento histórico
mais sofisticado. Embora citem a escravidão, não veem relação dela com os memes, fora o
fato de que ambos possuem um assunto em comum que é a questão da negritude.

Narrativa B

Foram incluídas 18 narrativas nessa categoria. Assim como as narrativas incluídas na


categoria anterior esses estudantes não percebem que os memes representam o racismo
simbólico, vivo na sociedade brasileira, como marca das heranças escravistas. O que
diferencia a narrativa A da narrativa B é o fato de que, nessa última, os estudantes relacionam
o presente e o passado, afirmando que os negros hoje são iguais aos brancos. Na narrativa A,
os estudantes não levantaram essa questão, apenas deixaram claro que não viam relação entre
os memes e a escravidão. A relação dos memes com a escravidão africana é feita pelos
estudantes de um modo em que a escravidão é apontada como prática contra os negros no
passado, mas no presente, brancos e negros são iguais.

Os escravos que eram os negros apanhavam até sangrar, viviam nas senzalas e não
podiam ser felizes e ter sua religião. As esposas dos donos dos escravos tinham
muito ciúmes das mulheres escravas e mandavam açoitá-las. A escravidão foi muito
ruim, mas devemos agradecer, pois hoje em dia os negros são iguais aos brancos e
não existe mais nada que impeça os negros de vencerem na vida, basta trabalhar e
ter fé em Deus. (ALUNO E, 2019)62.

A narrativa faz alusão aos horrores da escravidão, mas afirma que, felizmente eles já
foram superados e não há mais impedimentos para que negros vençam na vida nos dias de
hoje, bastando a eles que apenas trabalhem e tenham fé em Deus. O estudante expressa uma
visão idealizada, sinalizando que pode ter sido influenciado por discursos que afirmam a
meritocracia como preponderante para que negros superem as mazelas sociais e adquiram
prestígio social. Sílvio Almeida assim nos diz sobre a meritocracia e sua relação com o
racismo no Brasil:

62
ALUNO E, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
160
No Brasil, a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se
pelo discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela própria condição é
das próprias pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu
alcance. Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade,
a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a
discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal. No contexto,
brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente racista, vez que promove a
conformação ideológica dos indivíduos com a desigualdade racial. (ALMEIDA,
2018, p. 63).

É notável no relato desse outro estudante um argumento em defesa da meritocracia


aliada à crença religiosa de que Deus abençoa a todos que trabalham:

Os negros eram escravizados pelos brancos antigamente, pois eles não sabiam de
seus direitos eram induzidos a trabalhar sem receber um dinheiro digno do trabalho.
Trabalhavam dia e noite, sem descanso e não tinham uma alimentação como a dos
brancos. Na verdade, os escravos eram desrespeitados e sofreram bastante, hoje em
dia não existe mais nada disso, pois todo mundo tem os mesmos direitos. (ALUNO
F, 2019)63.

Na narrativa, o estudante afirma que a escravidão ocorria porque os negros não sabiam
dos seus direitos, sugerindo que o seu fim foi possível porque negros passaram a ter
consciência dos seus direitos e como consequência, hoje existe igualdade entre brancos e
negros, na sociedade brasileira.

Narrativa C

Nessa narrativa, 10 estudantes mobilizaram argumentos históricos, relacionando a


escravidão africana no Brasil do tempo passado com o racismo contra afrodescendentes no
Brasil de hoje. A narrativa abaixo exemplifica essa categoria:

A escravidão foi um fato muito marcante para a História do Brasil. No período pós-
abolição, podemos dizer que muitas conquistas aconteceram até hoje, mas sei que
ainda existem muitas atividades que reforçam as formas de racismo na sociedade de
hoje. (ALUNO G, 2019)64.

O estudante demostra ter consciência de que a escravidão foi um evento muito


marcante para a História brasileira, sugerindo que as suas marcas não acabaram da noite para
o dia e embora os afrodescendentes tenham avançado em suas conquistas. O pensamento
desse estudante alcança certa compreensão da temática racial quando afirma que o racismo
opera de muitas formas, como no caso das representações dos memes. Chama à atenção
quando o aluno usa os termos “formas de racismo”. Normalmente, observamos que os
estudantes expressam uma noção bastante rasa e simplista acerca do racismo. Tendem a vê-lo

63
ALUNO F, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
64
ALUNO G, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
161
como comportamento individual e resumem o mesmo às dimensões de meras ofensas e
injúrias. Esse aluno, no entanto, demostra que teve algum acesso ao pensamento mais
sofisticado sobre o racismo, seu caráter institucional e estrutural (ALMEIDA, 2018).
Outro exemplo das narrativas incluídas nessa categoria também aponta para um
entendimento sobre a presença do racismo estrutural nas relações de trabalho do tempo
presente:

A escravidão africana já acabou há muito tempo, mas ainda existem pessoas negras
trabalhando como escravas em várias fazendas do Brasil, principalmente fazendas
grandes. Um tio meu foi trabalhar em São Paulo e lá o Ministério Público disse pra
ele que aquele trabalho era escravo. Pra quem pensava que não tinha mais
escravidão, infelizmente ainda existem pessoas que exploram as outras. (ALUNO H,
2019)65.

O estudante cita o trabalho análogo à escravidão no Brasil do tempo presente,


destacando um caso real ocorrido em seu círculo familiar em que o tio foi vítima de trabalho
escravo em São Paulo, para onde certamente foi em busca de melhores condições de vida.
Chama à atenção a afirmação de que o Ministério Público teria alertado ao tio que se tratava
de trabalho escravo, sugerindo que ele não tinha consciência de tal situação.

Considerações Finais

Tendo como orientação os objetivos do Mestrado Profissional em Ensino de História


em Rede Nacional, a problemática apresentada veio de inquietações sempre recorrentes no
exercício da docência em sala de aula quanto ao sentido da aprendizagem histórica. A
pesquisa possibilitou, especialmente, a reflexão de minhas práticas, especialmente no que se
refere aos procedimentos com conteúdos históricos que tocam a temática racial.
O estudo das narrativas resultou na percepção de que os estudantes de História da
turma participante eram, de fato, sujeitos com subjetividades, ‘consciências e inconsciências’
e aprender História para eles era um modo de se apropriar não só das narrativas de livros
didáticos e dos discursos de professores de História, mas também de outros discursos vindos
de diversas linguagens. Na leitura de cada relato, e na medida em que, através deles, os
processos cognitivos dos estudantes foram sendo acessados, o esforço que empenharam para
expressar os fragmentos de seus saberes históricos numa forma narrativa em que passado,
presente e futuro se encontram e se separam, tornou-se claro que aprender História não é
reproduzir conteúdo.
Como professora da turma, depois de mais de 10 anos em sala de aula, posso dizer que

65
ALUNO H, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
162
passei a ver as produções dos alunos com outros olhos e, em 11 turmas em que atuo entre 1º,
2º e 3º anos, depois da experiência com as narrativas do 2º ano F, dediquei-me a provocar os
meus alunos a produzirem narrativas. Difícil é avaliar todas elas! Expressar oralmente pode
ser uma alternativa, mas muitos se recolhem à timidez. Ler as narrativas dos meus alunos
passou a ser um ato de generosidade e extrema doação para mim. Nem sempre posso fazê-lo.
Ressalto esse ponto porque considero que isto seja inalcançável para professores de História
de escolas públicas, com cargas horárias extensas e turmas superlotadas.
Ao final dos bimestres, as provas que antes fazia com todos os exercícios de múltipla
escolha, devido à menor dificuldade para corrigi-las no curto prazo de entrega de notas,
comecei a inserir pelo menos um ou dois exercícios subjetivos, oportunizando o exercício da
narrativa. Dei-me conta da perversidade que há em nossas práticas avaliativas, especialmente
no Ensino médio, em que se adota um modelo baseado no Exame Nacional do Ensino Médio
- ENEM. Nas narrativas, os estudantes deixam as suas ideias históricas, posicionam-se,
exemplificam, expressam um modo de apropriação dos conteúdos quase sempre inesperado,
porque o que esperamos é que os reproduzam.
Por fim, pude constatar que, a experiência em utilizar memes de internet com
mensagens de subalternização da identidade negra nas mediações da aprendizagem histórica
acenaram para os estudantes a evidência dos mecanismos simbólicas do racismo em
representações difundidas nas mídias digitais e, perceber isso, os deixou surpresos. Para além
de brincadeiras e humor, os memes ganharam um novo sentido, um lugar de representação das
práticas culturais.

163
Referências

ALMEIDA, Sílvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BORRIES. B. Von. O Aprendizado de História como Chance de Participação na Cultura


Histórica, Apuração da Identidade Histórica e Prática em Competência Histórica. In:
SCHMIDT, M. A.; FRONZA, M.; NECHI, L. P. (Org.). Jovens e Consciência Histórica.
Curitiba: W.A. Editores, 2016.

BRASIL. Lei 10.639 de 09 de janeiro. D.O.U. de 10 de janeiro de 2003.


_____________. Ministério da Educação. DPEDHUC - Diretoria de Políticas de Educação
em Direitos Humanos e Cidadania. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. In:
Diretrizes curriculares nacionais para a educação básica. Brasília: Ministério da
Educação, 2013.

FREITAS, Rafael Reinaldo. Aprendizagem histórica e cultura histórica: contributos para


investigações sobre o lugar da intersubjetividade na formação histórica. História & Ensino,
Londrina, v. 22, n. 2, p. 247-262, 2016.

GOMES, Nilma Lima. O movimento negro e a intelectualidade negra descolonizando os


currículos. In COSTA, Joaze Bernardino; GROSFOGUEL Ramón; TORRES NELSON
Maldonado (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2019.

MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019.

RÜSEN, Jörn. Cultura Faz Sentido. Orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis:
Vozes, 2014.

_____________. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W. A.,


2012.

_____________. História Viva. Teoria da História: formas e funções do conhecimento


histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010a.

_____________. Razão Histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.


Trad. Estevão Martins. Brasília: Ed. UnB, 2001.

_____________. Reconstrução do Passado: Os princípios da pesquisa histórica. Brasília:


Editora Universidade de Brasília, 2010b.

_____________. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Trad. Estevão C.
de R. Martins. Curitiba: Ed. UFPR, 2015.

_____________. Algumas ideias sobre a interseção da meta-história e da didática da história


- Entrevista realizada por e-mail, dias 1, 2 e 28 de março de 2016. In: Revista História Hoje,
v. 5, nº 9, p. 159-170, 2016.

_____________¿ Qué es la cultura histórica? Reflexiones sobre una nueva manera de abordar
la historia. Versão inédita em espanhol traduzida da versão original em alemão disponível em:
164
FÜSSMANN, Klaus; GRÜTTER, Heinrich Theo; RÜSEN, Jörn (Eds.). Historische
Faszination; Geschichtskultur heute; Keulen, Weimar and Wenen: Böhlau, 1994, p. 3-26.

SCHMIDT, Maria A. Cultura Histórica e Aprendizagem Histórica. Revista NUPEM, Campo


Mourão, v. 6, n. 10, jan./jun. 2014, p. 31-50.

_____________. História do ensino de História no Brasil: uma proposta de periodização.


Revista de História da Educação – RHE, Porto Alegre, vol. 16, n. 37, maio/ago 2012, p. 73-
91.

_____________. Jovens brasileiros, consciência histórica e vida prática. Revista de História


Hoje, v. 5, n. 9 37, 2016, p. 31-48.

_____________. Literacia Histórica: um desafio para a educação histórica no século XXI.


In: História & Ensino. V. 15. p. 09 - 22. Londrina: UEL, 2009.

_____________.; BARCA, Isabel. Uma epistemologia da pesquisa em Educação Histórica.


In: SCHMIDT, Maria A.; BARCA, Isabel; URBAN, Ana Claudia. Passados Possíveis: a
Educação Histórica em Debate. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2014. p. 21-39.

_____________; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o


ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

SOUSA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

SOUSA JÚNIOR, Jaime de. O lado ‘nego’ dos memes da internet: Relações entre letramento
visual e a construção do negro no discurso online. Cadernos de Linguagem e Sociedade,
Rio de Janeiro num. 17, vol. 2. 2016.

SCHWARCZ, Lilia K. M. Brasil viveu um processo de amnésia nacional sobre a escravidão,


diz historiadora. [Entrevista concedida a] Júlia Dias Carneiro. BBC, Rio de Janeiro, 10 mai.
2018. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44034767.

165
10. APRENDIZAGEM HISTÓRICA E APRENDIZAGEM
SIGNIFICATIVA - CAMINHOS POSSÍVEIS PARA UM ENSINO
DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA

Edna Santos Silva66

Diante da proposta apresentada: Mulheres Pesquisadoras – ProfHistória/UFT, vi a


possibilidade de compartilhar esta experiência resultante da minha pesquisa no Mestrado
Profissional em Ensino de História intitulada “Ensino de História da África e da Cultura Afro-
Brasileira: Contribuições para Aprendizagem Histórica no IFMA Porto Franco 67”, por meio da
qual, a partir de uma realidade específica, pudesse ser pensado um aprimoramento dos saberes
discentes sobre a África e a Cultura Afro-Brasileira.
Para tanto, tornou-se necessária a elaboração de estratégias com vistas a proporcionar
uma sequência didática trabalhada nas aulas de História. Tal sequência didática constitui-se,
como um produto da pesquisa em questão, uma vez que sua construção resultou de um
caminho com determinados percursos metodológicos, suporte teórico e com os resultados
encontrados ao longo desse trajeto. Isto posto, a experiência da pesquisa sugere possibilidades
de aplicação de procedimentos metodológicos com base teórica análoga quando o tema do
ensino/aprendizagem for o Ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira,
conforme estabelecido pela Lei 10.639/03, que altera a Lei 9.394/1996 das Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN), para incluir no currículo oficial das redes de ensino a
obrigatoriedade da temática História da África e da Cultura Afro-Brasileira.
Em conformidade com Antoni Zabala, sequências didáticas são “um conjunto de
atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos
educacionais” (ZABALA, 1988, p. 17). Seu objetivo primeiro é a promoção da aprendizagem
dentro do ambiente escolar. Para tanto, há de se considerar que a intervenção pedagógica
exige situar-se num modelo em que a aula se configura como um microssistema definido por
determinados espaços, uma organização social, contendo ainda “certas relações interativas,
uma forma de distribuir o tempo, um determinado uso dos recursos didáticos, etc. onde os

66
Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Maranhão – IFMA e Mestra em Ensino de História pelo Mestrado Profissional em Ensino de História,
ProfHistória pela Universidade Federal do Tocantins – UFT.
67
A pesquisa ora apresentada foi feita no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão –
IFMA Campus Avançado Porto Franco. Porém, desde julho de 2019 exerço o magistério no IFMA Campus São
João dos Patos.
166
processos educativos se explicam como elementos estreitamente ligados” (ZABALA, 1988, p.
17).
Diante do objetivo proposto, foi estabelecido como pressuposto o aperfeiçoamento da
prática pedagógica que une conhecimento e experiência. Nesse sentido, os conhecimentos
adquiridos por meio da pesquisa realizada foram sendo somados às práticas já efetivadas
enquanto professora de História.
Ao longo da minha ainda breve trajetória docente, tenho sido atraída de forma
crescente pelas discussões que envolvem o Ensino de História da África e da Cultura Afro-
Brasileira. Nesse percurso, não têm sido raros os contatos com relatos sobre as dificuldades na
implementação da Lei 10.639/2003, que incluiu o estudo da História da África e dos
africanos; a luta dos negros no Brasil; a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, buscando resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil. Em alguns casos, as falas apontam para
as escolhas docentes como um obstáculo para que as exigências do texto legal fossem
cumpridas na sua totalidade (SOUZA, 2012).
Se por um lado, o meu interesse pela temática crescia paralelamente ao exercício
docente, por outro, a experiência profissional acumulada de quem ministra aulas da disciplina
História, pelo menos desde o ano de 2012, amplia suficientemente as condições para a
identificação de defasagem de conhecimento discente sistematizado sobre a África e a Cultura
Afro-Brasileira. Em outros momentos dessa breve trajetória profissional, integrei projetos de
intervenções que visavam à (re)construção dos saberes sobre o tema em discussão.
No que diz respeito à construção preliminar da pesquisa, eis o primeiro desafio:
articular a experiência docente com uma investigação acadêmica, tornando possível a reflexão
sobre um caso particular (IFMA Campus Porto Franco) e que pudesse servir de instrumento
de análise para outros docentes. Nesse sentido, apresentar igualmente as dificuldades
encontradas naquela situação e possíveis formas de superá-las.
Assim sendo, muitos questionamentos surgiam vinculados às escolhas teórico-
metodológicas que podiam ser inicialmente vislumbradas. Prioritariamente, julguei ser
plausível realizar séries de entrevistas com alguns dos alunos ingressantes em 2018 no IFMA
Porto Franco. Interessava saber o que traziam consigo de imagens acerca da África e da
Cultura Afro-Brasileira; como eu poderia, na qualidade de professora, contribuir para tornar
significativa a aprendizagem dos temas incluídos no recorte estabelecido pela Lei
10.639/2003, e quais estratégias poderiam ser utilizadas para atingir esses propósitos.

167
Ao ser confrontada com uma quantidade significativa de discentes ingressantes em
2018 (120 divididos de forma igual para as três turmas de Ensino Médio Integrado ao
Técnico), percebi que seria inviável desenvolver uma pesquisa com a totalidade dos recém-
matriculados. Pensei em formas de selecionar alguns interessados em exercer o papel de
interlocutores do projeto. Assim, diante da necessidade de um diagnóstico com
fundamentação satisfatória, interroguei nas três turmas ingressantes naquele ano sobre quem
aceitaria, na condição de voluntário(a), contribuir com a pesquisa, ali breve e inicialmente
apresentada aos discentes. Na ocasião, em torno de vinte estudantes por turma indicaram
interesse em participar. No entanto, foi-se avisado que seriam selecionados apenas dez
voluntários (as) por sala, dadas as condições estruturais da escola.
Partindo desse momento preliminar de espera pela decisão de alguns discentes quanto
à disponibilidade de cada um, de acordo com as exigências da pesquisa, foi solicitado que
respondessem a um questionário inicial. Seu conteúdo ansiava por identificar noções prévias
dos discentes acerca do continente africano e da Cultura Afro-Brasileira e registrar os dados
pessoais dos potenciais colaboradores. Também lhes foi apresentada de forma mais
consistente a proposta da pesquisa que seria realizada a partir de algumas oficinas por meio
das quais discutiríamos os diversos saberes conservados e divulgados pelos discentes acerca
do tema apresentado.

Os Caminhos Percorridos para a Identificação dos Saberes Discentes no IFMA Porto


Franco

A ideia de realizar oficinas ocorreu como resposta à dificuldade de promover reuniões


com todos os ingressantes naquele ano de 2018, conforme dito anteriormente. A intenção, a
partir dos encontros, era promover uma intervenção adequada em face dos diálogos e
produtos desenvolvidos em cada oficina. Os encontros que buscavam identificar os saberes
discentes prévios acerca da África e da Cultura Afro-Brasileira, fundamentais para a
elaboração de estratégias de ensino acerca desta temática, a partir de então, aconteceriam de
forma previamente estruturada, podendo sofrer algumas alterações conforme fossem sendo
percebidas algumas necessidades específicas.
Quanto aos procedimentos metodológicos, reconhecidas as potencialidades da
pesquisa-ação, foi constatado que essa opção metodológica fornece sugestões consistentes
para que os resultados propostos fossem, de fato, alcançados. Como “instrumento de trabalho
e de investigação com grupos e/ou instituições” (THIOLENT, 2007, p. 11) não muito
numerosos, os pesquisadores que dela se utilizam buscam resolver situações que possam vir a
168
surgir no decorrer da pesquisa. Para tanto, os pesquisadores atuam desde o início junto aos
interlocutores buscando assim “a elucidação dos objetivos e, em particular, da relação
existente entre os objetivos da pesquisa e os objetivos da ação” (THIOLLENT, 2007, p. 20).
Além do seu caráter de aplicação na resolução de problemas coletivos e da exigência
de mais de um método na construção da investigação, a pesquisa-ação põe em evidência a
necessidade de cooperação entre “pesquisadores e os participantes considerados como
representativos da situação da realidade a ser investigada” (THIOLLENT, 2007, p. 14).
A pesquisa-ação não se trata apenas de levantamento de dados, seu caráter flexível
possibilita que, a cada encontro realizado, possa haver uma análise que permita elucidar as
questões que porventura forem surgindo. Porém, “é necessário definir com precisão de um
lado, qual é a ação, quais são os seus agentes, seus objetivos e obstáculos e, por outro lado,
qual é a exigência de conhecimento a ser produzido” (THIOLLENT, 2007, p. 18).
Tendo, pois, escolhido essa opção metodológica, foram planejadas oficinas que
viessem a permitir a verificação de saberes conservados e divulgados, até aquele momento,
pelos discentes acerca da História da África e da Cultura Afro-Brasileira. Em um primeiro
momento, foram pensados três encontros com os estudantes que se dispuseram a participar da
pesquisa a eles apresentada.
No primeiro encontro realizado em agosto de 2018, foi feito uso de um experimento
intitulado “Imaginando a África” utilizado pelo professor Dernival Venâncio Ramos Júnior, em
aulas da disciplina de História da África, do curso de História, da Universidade Federal do
Tocantins – UFT (RAMOS JÙNIOR, 2017). Naquele momento, foi solicitado a cada participante
que escrevesse em uma folha as dez primeiras palavras que eles vinculavam à África de forma
imediata. Em seguida, foi-lhes apresentado o vídeo da escritora nigeriana Chimamanda Adichie,
no qual a autora apresenta a conferência “O perigo de uma história única”68.
A intenção para a primeira oficina era confrontar os estudantes com suas impressões,
registradas através das dez palavras cujo registro foi solicitado, após assistirem a conferência
de Adichie. A partir desse provável confronto inicial de impressões, os interlocutores
deveriam ser conduzidos a perceber se eles também não seriam reprodutores de imagens
estereotipadas acerca do continente africano e da Cultura Afro-Brasileira. Como forma de
averiguação do proposto, foi solicitado na sequência que os interlocutores respondessem a
dois questionamentos: a) Quais os principais meios pelos quais você obtém informações sobre
o continente africano? e b) A África é…

68
Disponível na internet em: <https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg> Acesso em 25 Ago. 2018.
169
No segundo encontro, ocorrido em setembro de 2018, a partir de algumas observações
feitas durante o primeiro, solicitei aos participantes que desenhassem o que consideravam ser
o mapa da África, bem como que escrevessem palavras que eles acreditavam fazer parte
daquele território. Busquei encontrar nos saberes discentes elementos capazes de fortalecer a
prática pedagógica, uma vez que suas contribuições sugerem reflexões sobre o papel docente
e os meios utilizados para promover a aprendizagem no ambiente escolar.
No terceiro encontro, acontecido em outubro de 2018, o diálogo foi embasado pelo
texto “Diáspora africana”, de Ana Luíza Mello Santiago de Andrade (2017), disponível na
página do Geledés – Instituto da Mulher Negra 69 na rede mundial de computadores. Naquele
momento, a intenção era observar como os interlocutores viam a presença negra no Brasil,
sobretudo no que diz respeito à Cultura Afro-Brasileira. Para tanto, solicitei que eles
respondessem às seguintes questões: a) Como você reconhece a presença da cultura negra no
seu dia a dia? b) É possível perceber intolerância contra a pessoa negra no espaço escolar? Em
caso afirmativo, de que forma?
A previsão inicial era de que, paralelamente, a realização dos três encontros, fosse
analisados os produtos elaborados pelos interlocutores como respostas às questões propostas.
No entanto, durante o mês de novembro de 2018, foi realizada a II Semana da Consciência
Negra do IFMA Porto Franco. Na ocasião, alguns diálogos promovidos nas oficinas
integrantes da pesquisa puderam ser retomados e aprofundados ao longo do evento. Diante
disso, considerei por bem realizar um quarto, e último, encontro a fim de discutirmos as
percepções dos estudantes sobre a importância do Ensino de História da África como forma
de combater o racismo dentro do ambiente escolar. Devo afirmar, contudo, que essa demanda
surgiu como forma de dar resposta aos interesses dos interlocutores, demonstrado, sobretudo,
no evento de novembro de 2018.
Especialmente nesse último encontro, realizado em novembro de 2018, contei com a
participação do professor João Fernando Pereira (Sociologia). Na ocasião foi utilizada a
técnica do grupo focal, em cujo processo uma pessoa fica responsável por conduzir perguntas
e/ou proposições aos presentes em um grupo de reflexão. Todos os espectadores devem
participar. Contudo, o tempo de fala de cada um é controlado por um responsável na condução

69
Geledés é originalmente uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades
tradicionais yorubás. Expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem estar (sic) da
comunidade. No Brasil, o “Geledés” Instituto da Mulher Negra foi criado em 30 de abril de 1988. É uma organização
política de mulheres negras que tem por missão institucional a luta contra o racismo e o sexismo, a valorização e
promoção das mulheres negras, em particular, e da comunidade negra em geral. Disponível na internet em:
<https://www.geledes.org.br/o-que-e-o-geledes-instituto-da-mulher-
negra/?gclid=EAIaIQobChMIsdTsts2P5wIVi4SRCh2H4gIiEAAYASAAEgIQHfD_BwE> Acesso em 10 Dez. 2019 .
170
das atividades70. Para tanto, faz-se uso de uma rede de diálogos que busca promover
interações entre os membros do grupo escolhido. Sua intenção é estabelecer uma
oportunidade de trocas de ideias a partir de um processo dialógico flexível entre os
participantes. A partir daí o registro das interações produzidas durante o encontro torna-se
objeto de reflexão e análise por parte do pesquisador (GATTI, 2005).
Diante disso, pude perceber, por meio dos relatos daquele encontro, o quão impactante
foi para alguns dos discentes o contato com falas sobre relações étnico-raciais no ambiente
escolar, tornando possível o que acredito ser o foco do presente trabalho – a promoção de uma
aprendizagem significativa71, como resultado de um processo de interação entre
conhecimentos prévios e os saberes apreendidos.
A partir da realização dos encontros e do avanço das discussões, a intenção derradeira
era possibilitar aos discentes uma maior capacidade de intervenção promovida por eles no
espaço escolar e no seu entorno social imediato. Nesse sentido, cada um é um potencial
propositor do debate, apresentando questões ligadas à História da África e à Cultura Afro-
Brasileira presentes no cotidiano da comunidade. Igualmente, cada um assumiria o papel de
protagonista nas decisões que envolvem os eventos escolares vinculados ao tema, dentre eles,
a Semana da Consciência Negra. Tudo de acordo com o normatizado pela Lei 10.639/2003.
Diante do exposto, levando em consideração que para David Ausubel as experiências
prévias trazidas pelos estudantes produzem diversos conhecimentos ou estruturas cognitivas
(RONCA, 1994), fez-se necessário interrogar sobre o estado contemporâneo do aprendizado
histórico dos discentes em questão sobre o tema ora apresentado, surgindo questões como:
a) Quais os saberes conservados pelos discentes acerca da África e a Cultura Afro-Brasileira?
b) De que forma e em qual nível o presente estado da aprendizagem histórica discente é
carente de problematizações? c) Quais ações docentes poderiam contribuir para identificação
dos conceitos prévios mantidos pelos estudantes?
Estas questões nortearam a condução da pesquisa aqui apresentada. A análise do
material produzido pelos discentes resultou na construção da dissertação de mestrado e como

70
Neste encontro em especial o professor João Fernando atuou como mediador para que eu pudesse observar
melhor as reações e respostas dos discentes.
71
David Paul Ausubel (1918-2018) foi um pesquisador norte-americano que propôs o conceito de aprendizagem
significativa. Pensada para o contexto escolar, a teoria de Ausubel leva em conta a história do sujeito e ressalta o
papel dos docentes na proposição de situações que favoreçam a aprendizagem. De acordo com ele, há duas
condições para que a aprendizagem significativa ocorra: o conteúdo a ser ensinado deve ser potencialmente
revelador e o estudante precisa estar disposto a relacionar o material de maneira consistente e não arbitrária.
Disponível na internet em: <https://novaescola.org.br/conteudo/262/david-ausubel-e-a-aprendizagem-
significativa>. Acesso em 15 Jan. 2019.
171
produto final, uma proposta de sequência didática que pode servir de suporte para condução
de algumas ações por parte de professores de História dentro de suas realidades específicas.

O Ensino de História e a Busca de uma Aprendizagem Histórica e Significativa


Ao levar em conta que cada um dos interlocutores da pesquisa quando adentrou o
Ensino Fundamental já estava amparado pela Lei 10.639/2003 procurei conhecer quais os
saberes que eles traziam consigo naquilo que se refere a temática apresentada para a pesquisa.
Mesmo entendendo que os discentes podem ter tido, de acordo com o marco temporal,
contato com a proposta apresentada pela Lei 10.639/2003, sabe-se que há variações nos métodos e
práticas de ensino que podem ou não ter priorizado os estudos indicados pelo texto legal, pois
como bem diz a professora Selva Guimarães Fonseca: “a escola é dotada de uma dinâmica
própria – saberes, hábitos, valores, modos de pensar, estratégias de dominação e resistências,
critérios de seleção constitutivos da chamada cultura escolar” (FONSECA, 2003, p. 34).
Nesse caso, pode ser compreendido que mesmo tendo uma Lei específica acerca do
tema, associada às Diretrizes72 que norteiam como devem ser aplicados os conteúdos
mencionados, nem sempre ocorre o cumprimento integral do propósito, que inclui uma
abordagem crítica que torne possível confrontar a visão eurocêntrica que têm marcado o
Ensino de História no Brasil ao longo de sua trajetória.
Quanto à aplicabilidade da Lei, pode ser percebida ao longo dos anos, em contato com
algumas escolas de Nível Médio e Fundamental, a ocorrência daquilo que a antropóloga
Raquel Bakke chama de “pedagogia do evento” em referência ao que muitas vezes acontece
quando os usos da Lei 10.639/03 ficam restritos a eventos organizados, sobretudo nos dias 20
de novembro e 13 de maio. Contudo, sem ter havido uma discussão que proporcione melhor
aproveitamento dessas abordagens (BAKKE, 2011).
Partindo, portanto, de uma prática de ensino que busca romper com essa concepção
fechada de evento, fazia-se necessário identificar o que os discentes do IFMA Porto Franco
traziam consigo acerca dessa temática e que pudesse ser problematizado e melhor discutido, a
fim de promover, por meio desses estudos, uma aprendizagem significativa. Perspectiva que,
aliada a uma aprendizagem histórica, fosse capaz de desenvolver ações que ultrapassassem o
campo da sala de aula ou mesmo dos eventos, aos quais fiz referência acima, e, finalmente, se
converta em um elemento de produção de criticidade através de um olhar histórico.

72
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004).
172
A premissa adotada indica que mesmo com as inúmeras possibilidades oferecidas pelo
ensino escolar, este só se torna potencializado quando se leva em conta os saberes
compartilhados pelos diversos indivíduos dos seus mais variados contextos, sejam eles
familiares ou sociais. Dessa forma, a possibilidade de exercer um pensamento crítico não se
dá pela mera transmissão de conhecimentos por parte dos professores. Daí decorre que é
possível estimular uma aprendizagem significativa, ou seja, aquela que se dá por meio da
interação entre conhecimentos prévios e aqueles que são adquiridos, em uma aula de História,
por exemplo, por meio da qual o indivíduo torna-se capaz de assimilar novas informações às
estruturas mentais já existentes.
Portanto, a noção de aprendizagem significativa aponta para o fortalecimento das
relações entre as gerações que sucedem e convivem umas com as outras, por intermédio das
suas mesmas “raízes culturais e históricas”, em contraposição à “(…) perversa ênfase no
conteúdo” que leva as inúmeras disciplinas escolares a permanecerem estanques em “seus
territórios” promovendo uma “aprendizagem fragmentada da realidade” (BRASIL, 2002, p.
84; 49). Sendo assim, “como o processo é interativo, quando serve de ideia-âncora para um
novo conhecimento, ele próprio se modifica adquirindo novos significados, corroborando
significados já existentes” (MOREIRA, 2011, p. 14).
Nesse processo de interação

A vivência cotidiana do aluno, seus contatos pessoais com familiares, amigos, a


interação com a mídia levam-no a formular conceitos espontâneos que carecem de
formas de explicitação a ser construídas no processo de aprendizagem formal. Nesse
processo, os mesmos instrumentos que levam à construção dos conceitos
espontâneos podem ser retomados para a caminhada em direção à construção dos
conceitos científicos (ABUD, 2005, p. 312).

Ao empreender uma pesquisa que, de alguma forma, produzisse um diálogo entre as


ações por mim desenvolvidas em sala de aula e as percepções dos discentes sobre temas
específicos, logo percebi que não poderia seguir com outra proposta que não estivesse ligada
ao Ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira. Tal escolha decorreu do
interesse que a temática desperta em mim, por acreditar ser possível estabelecer relações
diretas com o cotidiano da maioria dos estudantes, ponto fundamental para a construção de
aprendizagens significativas. Tenho percebido que não foi apenas a força da Lei, por assim
dizer, que me direcionou, mas os resultados visualizados constantemente, quando muitos
estudantes atribuem às abordagens didáticas escolhidas parte da compreensão das suas
próprias histórias.

173
Ao longo dessa trajetória, fui percebendo que minha atuação de professora precisava
ultrapassar normas e currículos oficiais, no sentido de abrir espaço para discussões que não se
encerram nos conteúdos propriamente ditos (BRASIL, 2002). Deveria aprender a extrapolar
fronteiras delimitadas pelas dificuldades físicas das escolas, da falta de entusiasmo por parte
de muitos dos colegas ou mesmo do cansaço que tanto se faz presente em muitos momentos
da profissão docente. Vi ainda maior grandeza quando fui percebendo o quanto o Ensino de
História pode ser libertador, que por meio da consciência histórica73 é possível alcançar a vida
dos sujeitos, estimulando-lhes expandir seus aprendizados para além das salas de aula,
estabelecendo diálogos.
Partindo dessa concepção, entendo que a promoção desta dialogia que privilegie
saberes outros, não parte apenas da obediência, por assim dizer, à legislação em vigor. Não se
limita ainda à incorporação de novos conteúdos, mas faz parte de um conjunto de formas de
pensar que questionam a prioridade de saberes produzidos em espaços acadêmicos,
desconsiderando, portanto, as diversas formas de conhecimento compreendidos e vivenciados
por pessoas que nem sempre tiveram a oportunidade de acesso àqueles espaços. Para a
educadora Nilma Lino Gomes “trata-se da concepção que considera e elege o conhecimento
acadêmico como a única forma legítima de saber e menospreza os outros saberes produzidos
na dinâmica social” (GOMES, 2011, p. 44).
Nesse sentido, cabe evidenciar que as experiências proporcionam a formação de
conhecimento. Dizem respeito às vivências e às práticas cotidianas que, geradoras de
curiosidades, conduzem os docentes e os discentes a um processo de amadurecimento de tal
curiosidade tornando-a epistemológica (FREIRE, 2019). Portanto, na construção dos saberes
faz-se importante destacar os conhecimentos prévios dos estudantes e, a partir deles, refletir a
fim de poder transformar os conteúdos ensinados em realidade pensada, produtora de sentido.
Sobre essa perspectiva, afirma Paulo Freire

Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro antes que foi novo e se fez
velho e se dispõe a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental
conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à
produção do conhecimento ainda não existente. (FREIRE, 2019, p. 15).

73
Partindo do fato de que não há uma definição uniforme entre os autores que atuam com o conceito de
consciência histórica, as autoras Luíza Vieira Maciel e Clarícia Otto decidem pela perspectiva rüseniana. Para
elas, “a consciência histórica diz respeito a uma capacidade humana cognitiva de compreender-se e orientar-se
como sujeito de um determinado tempo histórico. Essa capacidade igualmente caracteriza uma necessidade, haja
vista que interpretar o presente, na interação com o passado, numa perspectivação de futuro, é crucial para a
manutenção da vida social cotidiana” (MACIEL; OTTO, 2016, p. 233).
174
Assim, a identificação do que os discentes conservam consigo como conhecimentos
acerca da História da África e da Cultura Afro-Brasileira deve ser prioridade não apenas por
curiosidade, mas a fim de possibilitar o (re)pensar da prática docente a partir das relações
étnico-raciais, de forma a privilegiar o debate em espaços públicos, por meio do
ensino/aprendizagem que efetiva a participação coletiva. E, por meio de tal (re)pensar,
possibilita-se uma formação ampla e capaz “de reconhecer e valorizar visões de mundo,
experiências históricas, contribuições de diferentes povos que têm formado a nação” (SILVA,
2011, p. 13), enriquecendo assim a prática docente.
Na constituição desse caminho, no qual me dispus a pensar a prática docente, entendo
a necessidade contínua de aperfeiçoamento de alguns objetivos. Dentre eles, proporcionar
aulas de História que contribuam para o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa,
levando em conta os diversos saberes considerados relevantes sobre História da África e da
Cultura Afro-Brasileira conservados e divulgados pelos interlocutores/discentes. De acordo
com Marco Antônio Moreira, a partir das elaborações de David Ausubel (1918-2008),

Aprendizagem significativa é aquela em que ideias expressas simbolicamente


interagem de maneira substantiva e não-arbitrária com aquilo que o aprendiz já sabe.
Substantiva quer dizer não-literal, não ao pé da letra, e não-arbitrária significa que a
interação não é com qualquer ideia prévia, mas sim com algum conhecimento
especificamente relevante já existente na estrutura cognitiva do sujeito que aprende
(MOREIRA, 2011, p. 13).

Sob esse ponto de vista, também ressalto a importância da noção de aprendizagem


histórica. Assim sendo, é preciso reconhecer as contribuições de Jörn Rüsen (2011), que, ao
compartilhar seu entendimento sobre esse conceito, estimula a reflexão sobre o Ensino de
História e sobre os objetivos propostos por meio desse ensino. Aqui serão destacados alguns
aspectos da sua produção.
Em primeiro lugar, deve ser citado que o aprendizado histórico é reconhecidamente
um processo, e como tal, marcado por descontinuidades. As experiências vivenciadas pelos
sujeitos, as quais são capazes de promover “desconcertantes experiências temporais”
(RÜSEN, 2011, p. 44), constituem-se como uma necessidade de orientação, resultante de uma
percepção do sujeito no tempo e no espaço. Sendo assim, “o aprendizado histórico pode ser
posto em andamento, portanto, somente a partir de experiências de ações relevantes no
presente”. (RÜSEN, 2011, p. 44).
No entanto, ao mesmo tempo em que são as experiências do presente que promovem essa
orientação com relação ao tempo em que se vive, há uma perspectiva questionadora ao passado,
capaz de construir narrativas que “apreendem o potencial experiencial da memória histórica”

175
(RÜSEN, 2011, p. 44) possibilitando desta forma que “no horizonte das questões suscitadas no
presente, a experiência do passado transforma-se em experiência histórica específica, único
contexto em que tal experiência é efetivamente apropriada” (RÜSEN, 2011, p. 44).
Um segundo aspecto que chama atenção para o interesse anunciado é que deve ser
reconhecido, segundo Jörn Rüsen (2011), que a aprendizagem histórica não pode ser resumida
a uma operação cognitiva, pois o aprendizado histórico constitui-se como a capacidade
resultante dos processos mentais da consciência histórica “com os quais a história será
apontada como fator de orientação cultural na vida prática humana” (RÜSEN, 2011, p. 43).
Portanto, ao incluir a discussão sobre História da África e da Cultura Afro-Brasileira
nas experiências temporais que encaminham a reorganização da aprendizagem histórica,
acredito ser possível associar os saberes conservados e divulgados pelos estudantes a novas
exigências inscritas no tempo e no espaço.
Expostas sinteticamente, tais características da aprendizagem histórica sugerem a
possibilidade do encontro com distintos níveis de saberes em um mesmo ambiente escolar.
Essas discussões são pertinentes no campo do ensino, sobretudo, porque alcançam não apenas
os estudantes, mas colocam aos docentes algumas inquietações que estimulam a reflexão
sobre o fazer pedagógico. Assim, admite-se que todos os sujeitos envolvidos no processo de
aprendizagem trazem consigo uma consciência histórica, ou seja, uma produção de sentido
que deve ser ampliada a partir do contato com a formação presente no ambiente escolar.
Pelo exposto, é reforçada a ideia de que a Escola deve cada vez mais tomar parte nessa
busca em prol de um aprendizado histórico-crítico não por imposição, mas consciente do seu
papel de assumir um compromisso com um ensino de História da África e da Cultura Afro-
Brasileira eficaz, fundamentado em novas discussões historiográficas e abordagens
metodológicas diversificadas, capazes de superar as eventualidades e que tornem mais
consistente a produção de saberes.
Finalmente, pode ser afirmado que sendo o aprendizado histórico uma das
manifestações da consciência histórica (RÜSEN, 2011), tal aprendizado, no sentido aqui
exposto, proporciona não apenas aos estudantes, mas também aos docentes o contato com
múltiplas realidades, que apreendidas “pode reanimar o ensino e o aprendizado de história
ressaltando o fato de que História é uma matéria de experiência e interpretação” (RÜSEN,
2011, p. 40).

176
Considerações Finais

A proposta aqui apresentada é uma síntese da pesquisa resultante do Mestrado


Profissional em Ensino de História – ProfHistória, e da dissertação elaborada que traz de
forma mais detalhada a análise dos resultados obtidos em cada oficina realizada. Devo
destacar a importância da experiência na condição de professora efetivada via concurso
público, o que me proporcionou maior liberdade de escolher alguns temas e poder trabalhá-los
com maior dedicação.
Ao adentrar no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do
Maranhão Campus Avançado Porto Franco, tive a alegria de também ingressar no Mestrado
Profissional em Ensino de História o que, por sua vez, trouxe a oportunidade de paralelamente
ao meu ofício docente empreender uma pesquisa acerca daquilo que tomei como “minha
opção política”: o Ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira. Mesmo não
sendo uma mulher negra, acredito que a educação para as relações étnico-raciais deve
constituir um compromisso de todos os educadores, pois

Mais um equívoco a superar é a crença de que a discussão racial se limita ao


Movimento Negro e a estudiosos do tema e não à escola. A escola, enquanto
instituição social responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer
cidadão, deverá se posicionar politicamente, como já vimos, contra toda e qualquer
forma de discriminação. A luta pela superação do racismo e da discriminação racial
é, pois, tarefa de todo educador, independentemente do seu pertencimento étnico-
racial, crença religiosa ou posição política. (BRASIL, 2004, p. 16).

Justamente, na condição de docente da disciplina História, ao longo de uma ainda


breve trajetória profissional, tenho procurado efetivar um compromisso não apenas para com
a disciplina à qual me dedico, mas também para com todos os estudantes com os quais tive a
alegria de compartilhar a construção de saberes, pois “para começar, o professor precisa
valorizar de verdade a presença de cada um. Precisa reconhecer que todos influenciam a
dinâmica da sala de aula, que todos contribuem”. Além disso, é preciso reconhecer que essas
contribuições “usadas de modo construtivo, promovem a capacidade de qualquer turma de
criar uma comunidade aberta de aprendizado” (BELL HOOKS, 2017, p. 18).
Portanto, no exercício do magistério, fui aos poucos percebendo que “o recorte que o
professor faz é uma opção política” (KARNAL, 2007, p. 9). Diante disso, fiz do uso dessa
temática não apenas mais um conteúdo a ser trabalhado nas aulas de História, mas algo que
fosse capaz de promover uma aprendizagem que pudesse ser estendida ao entorno social dos
discentes.

177
Finalmente devo ressaltar que, mesmo com todos os obstáculos possíveis de serem
encontrados pelo professor de História na condução de projetos que visem a discutir propostas
como essa, bem como as dificuldades para a sua execução, registro no presente trabalho uma
estratégia, dentre muitas possíveis, de como esse recorte temático pode ser trabalhado, tendo
em vista as orientações trazidas pela legislação em vigor.
A meta derradeira deve ser a promoção de uma aprendizagem que também seja capaz
de combater as práticas racistas e discriminatórias ainda tão presentes dentro da escola, e que
no caso do IFMA Porto Franco foram apontadas pelos discentes nos materiais produzidos nas
oficinas, sugerindo, portanto, diversas formas de destacar e problematizar as questões étnico-
raciais dentro do espaço escolar.

Referências

ABUD, Kátia Maria. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de


História. Caderno Cedes. Campinas, vol. 25, n. 67, p. 309-317, set/dez. 2005. Disponível em
http://www.cedes.unicamp.br
BAKKE, Raquel Rua Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-
brasileiras na aplicação da Lei 10.639. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) / Universidade de São Paulo (USP), 2011. (Tese de Dourado em
Antropologia Social).
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.
______. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Brasília/DF: Imprensa Oficial, 1996. Disponível na Internet em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l9394.htm> Acesso em 06 Jun. 2018.
______. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais /Bases Legais. 2000.
_______. Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura
Afro-Brasileira", e dá outras providências. Brasília/DF: Imprensa Oficial, 2003.
Disponível na Internet em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>
Acesso em 03 Jun. 2018.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília/DF:
MEC/SECAD, 2004.
______. Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais – Ministério da
Educação/Secretaria Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília, SECAD, 2006.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

178
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História: experiências,
reflexões e aprendizados. Campinas: Papirus, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 58 ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2019.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal nas pesquisas em ciências sociais e humanas.
Brasília: Líber Livro Editora, 2005.
GOMES, Nilma Lino. Diversidade Étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório. IN:
FONSECA, Márcio Vinícius SILVA, Carolina Mostaro Neves da. FERNANDES, Alexsandra
Borges (Orgs.) Relações Étnico-raciais e educação no Brasil. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2011.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de
Marcelo Brandão Cipolla. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São
Paulo: Contexto, 2005.
MACIEL, Luíza Vieira; OTTO, Clarícia. Consciência histórica sobre a África e a cultura afro-
brasileira. Revista História Hoje, v.5, nº. 10, 2016. p. 231-259.
MOREIRA, Marco Antonio. Aprendizagem significativa: a teoria e os textos
complementares. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2011.
RAMOS, Dernival Venâncio Ramos Júnior. História da África: Relato de experiência e
análise de intervenção didática. Emblemas, v. 14, n. 2, p. 68-77, jul.-dez, 2017.
RONCA, Antonio Carlos Caruso. Teorias de ensino: a contribuição de David Ausubel. Temas
psicol., Ribeirão Preto , v. 2, n. 3, p. 91-95, dez. 1994.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende. Jörn
Rüsen e o ensino de história. Curitiba: ED UFPR, 2011.
SILVA, Elisângela Coelho da. A História da África na escola, construindo olhares
“outros”: as contribuições do manual do professor do livro didático de História do Ensino
Médio. - Universidade Federal do Pernambuco, CFCH. Recife/PE, 2018. Dissertação
(Mestrado Profissional em Ensino de História).
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil.
IN: FONSECA, Márcio Vinícius SILVA, Carolina Mostaro Neves da. FERNANDES,
Alexsandra Borges (Orgs.) Relações Étnico-raciais e educação no Brasil. Belo Horizonte:
Mazza Edições, 2011.
SOUZA, Marina de Mello e. Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da
África. Revista História Hoje, v. 1, nº.1, 2012. p. 17-28.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Editora Cortez, 2007.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Trad. Ernani F. da Rosa – Porto Alegre:
ArtMed, 1998.

179
11. O ENSINO DE HISTÓRIA E AS REPRESENTAÇÕES
SOBRE OS POVOS INDÍGENAS KRAHÔ
Nívia Alves Sales74
Introdução

A discussão aqui apresentada é resultado da pesquisa sobre o ensino de história e as


representações sobre os povos indígenas Krahô realizada junto ao Programa do Mestrado
Profissional em História da Universidade Federal do Tocantins. O estudo foi realizado a partir
de pesquisa de campo, bibliográfica e análise de iconografia tendo em vista explorar a
temática objeto dessa pesquisa. Buscou-se o vislumbre de respostas às problemáticas do
cenário educacional contemporâneo, sobretudo no que diz respeito à questão indígena, cenário
que há muito tempo aspira por soluções para as suas deficiências e embates no campo do
ensino, neste caso em específico do ensino de história.
Os órgãos responsáveis, bem como as políticas públicas voltadas para tal, vêm
buscando respostas e propondo soluções neste sentido. Debates vêm sendo promovidos desde
aprovação da Lei 9394/96, que posteriormente, entre outras alterações, ganhou o acréscimo da
Lei nº 10.639/03 e da Lei nº 11.645/08, que tem por objetivo incluir preferencialmente nos
conteúdos de Literatura, História e Artes, a temática étnico-racial, africana e indígena.
A lei nº 11.645/08 referenda-se como um mecanismo reparador e inclusivo. No
entanto, a lei por si só não consegue surtir os efeitos necessários para a sua eficácia se não
houver uma organização e assimilação sistemática, bem como a formação adequada dos
professores em relação ao Ensino de História no intuito de promover a transformação da
prática educativa tornando assim a aprendizagem significativa. É preciso que os professores
de história enquanto agentes sociais transformadores, primeiramente, libertem-se de qualquer
caráter discriminatório e racista, do qual muitos professores vivenciaram durante anos.
É preciso repensar o ensino de história e essa reflexão passa também pela
problematização da formação docente. Somente uma boa formação, inicial e continuada,
qualificará professores e professoras para lidarem com a diversidade, tema que tem
perpassado todas as orientações curriculares e que está posta de forma muito clara na Base
Nacional Comum Curricular, BNCC. Essa boa formação, e necessariamente em boa medida,
compromisso com o magistério, são fundamentais para que se possa, considerando o respeito
à diversidade, repensar as representações sobre os povos indígenas no ensino de história. A

74
Mestranda em Ensino de História pelo Programa de Pós-graduação ProfHistória. Professora da rede pública
do Estado do Tocantins., em Guaraí.
180
constituição de uma imagem estereotipada e discriminatória sobre as sociedades indígenas,
como bem demonstra Susane Oliveira (2015), remonta ao nosso passado colonial e tem muita
força ainda entre nós.
Neste contexto a priori, se observou que o estudo sobre os povos indígenas e suas
contribuições para a formação do povo brasileiro é pouco explorada, fato que ao se observar
os livros didáticos é manifesto que pouco, ou quase nada, contempla a história desses povos
de maneira contextualizada, ficando em destaque características exóticas e pouco
significativas. Não se procura demonstrar as problemáticas de identidade, diversidade, posse
da terra dentre outros.
O estado de Tocantins conta com número significativo de povos indígenas, de acordo
com o Núcleo de Estudos e Assuntos Indígenas (NEAI) da Universidade Federal do Tocantins
(UFT) são nove povos que habitam o território tocantinense. Os Krahô habitam o território
chamado de Kraolândia, e tem uma população de aproximadamente 3000 habitantes falantes
da língua do tronco Jê, seu território está situado nos municípios de Goiatins e Itacajá no
nordeste do Tocantins.
Apesar de um número de povos indígenas tão expressivo, pouco se sabe ou se trabalha
nas escolas sobre os mesmos, é possível observar durante as aulas o olhar perplexo de vários
alunos/as quando começa a se acentuar a localização e a forma como esses povos vivem, a
curiosidade, somado ao olhar preconceituoso diante de povos cuja história e riqueza cultural
desconhecem. Nessa perspectiva surgiu então o problema que envolveu o presente trabalho de
pesquisa: Quais as Representações sobre os povos indígenas Krahô presentes no imaginário
dos/as alunos/as da 2ª série do Ensino Médio do Colégio Comercial Impacto em Guaraí - TO?
O estudo teve como Objetivo principal Identificar as Representações sobre os Povos
Indígenas Krahô presentes no imaginário dos/as alunos/as da 2ª do Ensino Médio do Colégio
Comercial Impacto em Guaraí-TO, como secundários se propôs descrever as Representações
constituídas para o Ensino de História, contextualizando sua importância para uma
aprendizagem significativa no ensino de história, buscou-se também identificar as
Representações presentes no imaginário dos/as alunos/as sobre os povos indígenas; e como
proposta final visando desenvolver ações e material de apoio para o Ensino de História sobre
as Representações relacionadas aos povos indígenas Krahô do Tocantins.
A presente proposta se justificou pelo fato de que a prática de ensino e a gestão da sala
de aula, são fundamentais para a (re)construção novos saberes relacionados ao Ensino de
História, muito se vê no âmbito da sala de aula, os/as alunos/as questionando frequentemente

181
por que se estudar História? Para que serve a História? Qual a contribuição da História para a
vida? Pois bem, é preciso que o educando perceba e dê significado para a História.
Para tanto, se torna primordial o ensino de História no contexto de formação dos
sujeitos com o intuito de fomentar a percepção constitutiva em que se percebam agentes
históricos podendo analisar, refletir e principalmente aprender com novos olhares para
assuntos que estabelecem as relações entre os indivíduos através do tempo e em diferentes
espaços de diversidades.

Desenvolvimento

Os desafios para o ensino de história são refletidos pela luta impetrada para que a
disciplina se consagrasse na educação escolar de significativa para a formação dos sujeitos,
principalmente após a ditadura militar brasileira,

O ensino de História na educação básica brasileira foi objeto de intenso debate, lutas
políticas e teóricas no contexto de resistências à política educacional da ditadura
civil-militar brasileira (1964-1984). Isso significou refletir sobre o estado do
conhecimento histórico e do debate pedagógico, bem como combater a disciplina
“Estudos Sociais” e a desvalorização da História, os currículos fragmentados, a
formação de professores em Licenciaturas Curtas e os conteúdos dos livros didáticos
difundidos naquele momento, processo articulado às lutas contra as políticas de
precarização da profissão docente. (SILVA & FONSECA, 2010).

Nessa perspectiva é possível vislumbrar a preocupação da Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional (LDBEN/9394/96) que, alterada pelas leis 10.639/03 e 11.645/08,
viabilizou mudanças educacionais, especialmente no ensino de história no sentido de
conceder maior visibilidade no currículo para as populações de origem africana e aos povos
indígenas, sociedades que fazem parte da formação do povo e da história brasileira. Não
deveria ser o caso, mas a imposição das temáticas a partir de instrumentos jurídicos, ao
mesmo tempo em que são frutos de luta dos povos negros e indígenas, também demonstram
como nossa educação está, ainda, longe de cumprir os fins que lhe reservam, ou seja, de
formação cidadã cujos princípios incluem além do pluralismo, a diversidade étnico-racial.
Ao longo da História do Brasil, é possível observar um olhar de inferioridade sobre os
povos indígenas, que posteriormente foi acrescido de uma visão romantizada em que o amor e
a diversidade proporcionaram uma nova forma de convivência entre os indígenas e os não
indígenas. Porém, ainda continuou a prevalecer estereótipos negativos, como de preguiçosos e
indolentes “para a população, todos os índios são iguais e possuem uma imagem pejorativa,
carregada de preconceito, e as denominações de que índios são vagabundos, bêbados,

182
marginais, ladrões deflagram o total desconhecimento a respeito dessas populações”.
(BARÃO e FRAGA, 2010, p. 149)
Neste sentido uma das linhas a ser tecidas para o ensino de história, encontra-se nas
temáticas que envolvem o ensino de história indígena e as representações sociais, isso porque
a multiplicidade de informações e sentidos dados a essas informações acabam por vezes
engessando uma imagem representativa discriminatória arraigada no eurocêntrismo e na
própria construção historiográfica de um povo.
Como afirma Barão e Fraga

A construção de uma nação como o Brasil, que passou pelo processo de conquista e
colonização por parte de povos europeus, até adquirir sua independência e status de
Estado Nacional, foi fruto de uma tarefa árdua para os europeus, a princípio, e
depois, para os luso-brasileiros, sendo ao mesmo tempo destruidora. Nesse processo,
os povos autóctones sofreram o impacto do desaparecimento, seja ele físico ou
ideológico, já que não seria possível à infante nação brasileira admitir o passado
genocida, que exterminou fisicamente várias sociedades nativas para abrir espaço às
colônias europeia. (BARÃO e FRAGA, 2010, p. 141)

Neste contexto, a priori, se observa que o estudo sobre os povos indígenas e suas
contribuições para a formação do povo brasileiro ainda hoje é pouco explorado, já que não se
observa de maneira efetiva o ensino de história com este foco, fato que ao se observar os
livros didáticos, pouco, ou quase nada, contemplam a história desses povos de maneira
contextualizada, ficando em destaque características exóticas e pouco significativas, não se
procura demonstrar as problemáticas de identidade, diversidade, posse da terra dentre outros.
Apesar da população indígena, que já foi expressiva no passado e que ainda resiste
lutando pela vida, cultura e território, pouco se sabe ou se trabalha nas escolas sobre os
mesmos. É notório durante as aulas se observar o olhar perplexo de vários/as alunos/as
quando começa a se acentuar a localização e a forma como esses povos vivem, somada
também a curiosidade e o olhar preconceituoso diante de povos alheios ao conhecimento
das/os alunas/os.
Para tanto, se torna primordial o ensino de História no contexto de formação dos
sujeitos com o intuito de fomentar a percepção constitutiva para que se percebam agentes
históricos podendo analisar, refletir e principalmente aprender com novos olhares para
assuntos que estabelecem as relações entre os indivíduos através do tempo e em diferentes
espaços de diversidades.
É importante que desde a introdução dos indivíduos no cotidiano escolar, os
educandos se percebam como sujeitos históricos e que possuem vivências individuais e
coletivas que fazem parte de um processo que está constantemente sendo transformado ou que

183
apresentam permanências sociais que se consagram por meio das relações, se compreendendo
como seres críticos e sujeitos potencializadores críticos dos aspectos sociais, econômicos e
políticos no qual estão inseridos.

As Representações Sociais

Na atual conjuntura é extremamente relevante analisar todos os preâmbulos que


envolvem a prática docente, e consequentemente, sua influência para a constituição de uma
sociedade atenta aos valores da convivência, o que pressupõe valores que superem a mera
tolerância à pluralidade para avançar no sentido do respeito ao diferente e à valorização da
riqueza étnica e cultural do povo brasileiro. Tudo isso pressupõe competência ética e política
condizente com as demandas histórico-sociais do nosso povo. É preciso, pois, pensar como a
prática educativa dos professores pode se configurar num processo contínuo de
comprometimento com mudanças paradigmáticas e necessárias de transformação social,
transformação que passa pelo respeito e valorização da história e cultura indígenas.
A sociedade atual diante de suas diversidades de gêneros, étnicas, religiosas e cultural,
com expectativas diversas, exige que os professores de História estejam realmente preparados
para lidar com todas essas diversidades dentro de uma proposta coerente e que contribua para
a construção de novos saberes. O desafio, no entanto, são representações dos povos indígenas
que refletem construções mentais que remontam ainda ao período colonial, mas que tem
muita força no tempo presente e que demandam uma outra educação para desconstruí-las.
Pensar a formação das representações se torna então fundamental, Moscovici apud
Xavier (2002):

Designa o aspecto dinâmico e a bilateralidade no processo de constituição das


representações sociais, assinalando duas facetas: por um lado, a representação como
forma de conhecimento socialmente elaborado e partilhado e por outro, sua
realidade psicológica, afetiva e analógica, inserida no comportamento do indivíduo
(MOSCOVICI apud XAVIER, 2002, p.22).

O estudo das representações sociais, nessa perspectiva, consiste na análise dos


processos pelos quais os indivíduos, em interação social, constroem teorias sobre os objetos
sociais, que tornam viável a comunicação e organização dos comportamentos. A discussão em
torno da temática indígena requer conhecimentos básicos acerca de conceitos utilizados ao
longo do ensino de história, assim a educação mantém viva a memória de um povo e dá
condições para a sua sobrevivência. Aranha (2005) diz que isso conclui que a educação é uma
instância mediadora que torna possível a reciprocidade entre indivíduo e sociedade.

184
Segundo Hegel apud Novelli (2001), não há sociedade que se sustente sem a
educação, pois ela é expressão da razão que busca estabelecer a liberdade e implantá-la
enquanto prática docente. Disso deriva a concepção hegeliana de homem que o caracteriza
pela construção de si com seus semelhantes através da história.
Tudo isso é fundamentado pela necessidade de se entender que a perceptividade
humana é feita por meio dos elementos simbólicos que cada um vai configurando ao longo da
sua construção histórica, por meio dessas simbologias acabam por expressar palavras, gestos,
imagens, linguagens e sentimentos em suas ações cotidianas.
Para Jodelet (1986) as representações sociais, são modalidades de conhecimento
prático orientadas para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e
ideativo que vivemos. O que representa dentro deste contexto buscar respostas para o
entendimento dos docentes sobre a identidade que construíram por meio destas representações
sobre a formação continuada para com o trabalho com a temática étnico-racial.
Ao se estudar alguns estudiosos sobre formação docente, se observa que é preciso
considerar os saberes docentes e contextualizá-los dentro de suas expectativas, a exemplo
disso Nunes (2001) afirma que:

Dessa forma, resgata a importância de se considerar o professor em sua própria


formação, num processo de autoformação, de reelaboração dos saberes inicial em
confronto com a prática vivenciada. Assim seus saberes vão se constituindo a partir
de uma reflexão na e sobre a prática. Essa tendência reflexiva vem-se apresentando
como um novo paradigma na formação de professores, sedimentando uma política
de desenvolvimento pessoal e profissional dos professores e das instituições
escolares. (NUNES, 2001, p.30)

O que torna primordial a ampliação do campo formativo, visualizando não somente a


prática do professor de história, mas também, e principalmente, as políticas inerentes para a
implementação e o incentivo nas referidas transformações da práxis.
A Lei nº 11.645/2008, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e
tornou obrigatório a inclusão do ensino das Culturas e História Afro-Brasileira e dos Povos
Indígenas nos currículos de todas as escolas brasileiras, com isso é primordial a busca de uma
nova representação vinculada aos povos indígenas. Assim, se posta como grande desafio a
construção de uma nova imagem representativa relacionada aos povos indígenas.
Partindo da premissa de representação social se observa que o conceito de
representatividade vem ocupando novos esboços relacionados a constituição cultural, sendo a
representação a estruturação de processos que vão ganhando significados e passam a ser
produzidos e compartilhados por grupos ou sociedades, “representar envolve o uso da

185
linguagem, de signos e imagens que significam ou representam objetos”, estabelecendo um
processo nada simplório. (HALL, 2016, p.31)
Os significados vão ganhando forma de maneira natural e não há como isso não
acontecer, pois é a forma objetiva que nos apropriamos desde a infância, haja vista que
estamos inseridos dentro desse universo de signos e vamos nos apropriando de seus
significados, tendo também a possibilidade de os transformar (HALL, 2016).
Nessa perspectiva é preciso aprofundar conceito de representações nas ideias de
Michael Foucault75, que conclama o sujeito como mentor central do uso e funcionamento da
linguagem e, também, a influência do poder sobre a configuração do conhecimento e a
apropriação do poder sobre o discurso. O aporte de Foucault em relação ao pensamento de
Hall, envolvem o conceito de discurso, de poder e do sujeito. Segundo a teoria Foucaultiana
muda o termo linguagem para discurso, o que torna bem mais significativo seu pensamento
eis que:

o que interessava a ele eram as regras e práticas que produziam pronunciamentos


com sentido e os discursos regulados em diferentes períodos históricos […] produz
os objetos do nosso conhecimento, governa a forma com que o assunto pode ser
significativamente falado e debatido, e também influencia como ideias são postas
em prática e usadas para regular a conduta dos outros. (Hall, 2016 p. 80).

Nesse contexto, a representação passa a ser trabalhada a partir do conceito de discurso


considerando as normas constituídas na sociedade, “nada tem nenhum sentido fora do
discurso” (FOUCAULT, 2012), ou seja, o discurso é quem produz o conhecimento, e é por
meio do discurso que se sustenta o poder nos diversos tempos históricos.

O conhecimento como inexoravelmente envolvido em relações de poder porque este


sempre é aplicado à regulação da conduta social na prática (ou seja, a ‘corpo’
particulares), a representação das garras de uma teoria puramente formal e deu a ela
um contexto operacional histórico, prático e ‘global. (HALL, p. 85).

É possível também observar elementos convergentes no discurso marxista, em que “as


ideias refletiam a base econômica da sociedade e, então, as ideias em vigor eram aquelas da
classe dominante, que governa a economia capitalista; assim o pensamento correspondia aos
interesses dos dominadores” (HALL, 2016, p. 87). Porém Hall, estabelece que o pensamento
de Foucault tem maior proximidade com o pensamento de Gramsci 76, já que na ideologia

75
Filosofo francês, que exerceu grande influência sobre os intelectuais contemporâneos. As teorias de Foucault
abordam principalmente a relação entre o poder e o conhecimento, e como elas são usadas com o objetivo de
controle social através das instituições.
76
Filósofo marxista, jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre teoria política,
sociologia, antropologia e linguística.
186
marxista havia uma tendência a redução das relações entre conhecimento e poder, e os
interesses entre as classes.
Tanto para Foucault e Gramsci segundo Hall, “grupos sociais particulares estão em
conflito de diversas formas, incluindo ideologicamente, para ganhar o consenso dos outros
grupos e alcançar um tipo de ascendência sobre eles, na prática e no pensamento” (p. 87).
Estabelecendo que o conhecimento é poder e sua efetividade se torna mais importante que a
veracidade, “o conhecimento não opera no vácuo. Ele é posto ao trabalho, por certas
tecnologias e estratégias de aplicação, em situações específicas, contextos históricos e regimes
institucionais” (HALL, 2016, p. 89).
Em se tratando do discurso é preciso identificar o locus do sujeito. “Os sujeitos podem
produzir determinados textos, mas eles funcionam dentro dos limites da episteme, a formação
do discurso, o regime de verdade, de determinado período e cultura” (HALL, 2016), com isso
determina que o sujeito faz parte do discurso e se sujeita ao mesmo, ou seja, o discurso produz
sujeitos e determina o lugar ocupado por cada um a partir de seus conhecimentos e dos
significados produzidos.
Os estudos sobre os conceitos de representações, perpassa também as articulações
sociais para a construção de imagens e estereótipos, embasado justamente pelas relações de
poder e dos discursos instituídos socialmente, ele parte da sua percepção construcionista em
que vê “o real como uma construção social” (HALL, 2016). As representações são atos
criativos em que se demonstram o que os sujeitos pensam sobre o papel de cada indivíduo no
mundo e como essa visão dos sujeitos acabam por transformar as representações sociais.
Em uma abordagem representativa para as imagens sociais, se estabelece a
necessidade de conhecer minimamente as noções de cultura, pois é na cultura que se observa
os significados compartilhados, isso porque segundo o autor “nada mais é do que o meio
privilegiado pelo qual damos sentido às coisas, onde o significado é produzido e
intercambiado, significados, só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem”
(HALL, 2016).
Essa conjuntura objetiva o entendimento de que a cultura se faz e se refaz, por meio do
compartilhamento dos significados de grupos ou sociedades. Esse entendimento postula o
entendimento de que a pluralidade pode ser conflituosa e enfatiza acima de tudo que “os
significados culturais, não estão somente na nossa cabeça, eles organizam e regulam práticas
sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais e práticos”
(HALL, 2016).

187
As representações são construídas socialmente, “damos sentido às coisas pelo modo,
como as utilizamos ou as integramos em nossas práticas cotidianas, concedemos sentido às
coisas pela maneira como as representamos” (HALL, 2016). Eis que diante de uma sociedade
tão diversa como no Brasil, é preciso repensar as representações construídas historicamente,
de preferência desconstruindo, questionando e contestando o que foi ao longo da história
postulado como verdade absoluta.

A cultura, podemos dizer, está envolvida em todas essas práticas que não são
geneticamente programadas em nós […], mas que carregam sentido e valores para
nós, que precisam ser significativamente interpretadas por outros, ou que dependem
do sentido para seu efetivo funcionamento. […] Nesse sentido, o estudo da cultura
ressalta o papel fundamental do domínio simbólico no centro da vida em sociedade
(HALL, 2016).

Nesse contexto torna-se primordial o entendimento do que Hall, (2016) chama de


circuito cultural, por meio do qual o circuito cultural perpassa todos os âmbitos institucionais,
partindo dos sentidos elaborados pelas representações que utilizam componentes para dar
sentido e expressar as ideias e sentimentos de determinadas épocas e lugares.
As representações sobre os povos indígenas se fundam na diferença racial reforçada
pela constituição de estigmas que os apresentam a partir de estereótipos como preguiçosos e
subordinados. Além destas representações estigmatizadas há ainda um certo imaginário que
tem por base a ideia de que os povos indígenas não têm cultura e que são geneticamente
incapazes. Para Hall, mesmo diante de todos as contribuições e construções significativas dos
indígenas persiste “a prática de reduzir as culturas […] ou naturalizar a “diferença” [...] típica
dessas políticas racializadas da representação”. (2016, p.171). A diferença, nesse sentido, é
naturalizada e fixa, de forma assimétrica, o lugar de cada um.
Essa forma de pensar as diferenças podem ser pensadas a partir do pensamento de
Roger Chartier. Para ele,

As representações do mundo social (...), são sempre determinadas pelos interesses


de grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos
discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (...) As percepções do social
não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais,
escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios
indivíduos, as suas escolhas e condutas (CHARTIER, 1990, p. 17).

Como se pode notar há um caráter político na luta de representação. Trata-se sempre


de um embate de forças. E nesse embate o outro não é tanto aquilo que, de fato, é, quanto é
aquilo que quem tem o poder de representar o representa como tal. Nesse sentido, as
representações sobre os povos indígenas, sobretudo os estereótipos negativos, resultam desses
esforços que tem por objetivo subjugar e manter o controle.
188
A produções focadas nas diferenças raciais imperam no imaginário social brasileiro,
em que houve uma naturalização e inferiorização desses povos, daí parte a premissa de se
buscar fomentar reflexões e debates, no sentido de pelo menos de minimizar a forma como se
apresentam esses povos indígenas para a nação brasileira.
Diante das premissas aqui apresentadas, aparece como primordial que o espaço da sala
de aula, neste caso específico no ensino de história, se constitua como fomentador de uma
nova imagem representativa, que não discrimine ou exclua sujeitos socialmente organizados.
É preciso desmistificar as relações de poderes representativos, arraigados em estereótipos
pejorativos e que não reconhecem determinados sujeitos como indivíduos capazes de se auto
representarem por meio da cultura e organização.

Espaços e Sujeitos: o Povo Indígena Krahô

Este espaço é destinado à compreensão de quem são os povos Krahô, assim como no
restante do país os povos indígenas “são povos com saberes e processos culturais, sociais e
históricos densamente diferenciados”. (BRAND, 2011, apud FERREIRA, 2018)
Conforme os dados do Distrito Sanitário Indígena do Tocantins (DSEI) e o Instituto
Socioambiental (ISA) citados por Ferreira (2018) o Estado conta com uma população de
14.289 indígenas [...], registrando-se a existência de sete grupos étnicos: Karajá, Xambioá,
Javaé, Xerente, Krahô, Krahô Kanela e Apinajé.

O Quadro 1 a seguir apresenta os números de acordo com cada etnia.

Fonte: DSEI-TO (2017) e ISA (2018) aput FERREIRA, p. 52, 2018.

Os Krahô têm uma população de 3.442 habitantes falantes da língua do tronco Jê


(FERREIRA, 2018) seu território está situado nos municípios de Goiatins e Itacajá no
nordeste do Estado de Tocantins. O povo Krahô se reconhece como farte de um grande grupo
189
sociocultural conhecido como Timbira constituído pelos povos Krahô e Apinajé - localizados
no estado do Tocantins (TO); os Ramkokamekrá e os Apaniekrá (conhecidos também como
Canela), os Krikati, os Gavião - localizados no Estado do Maranhão (MA); e os Gavião do
Estado do Pará (PA) (MELATTI,1978, p.21 apud KRAHÔ, p.14, 2019).
Os Krahô vivem em um espaço com 322.000 hectares de terra, o que é considerada a
maior área contínua de Cerrado preservado. A Kraolândia, como é conhecida, fica localizada
nos municípios de Goiatins e Itacajá, região Norte do estado do Tocantins, conforme mostra a
imagem abaixo (KRAHÔ, p.15, 2019).
De acordo com as narrativas da indígena Jokàh Krahô (2019) a cultura Krahô procura
manter seus rituais procurando manter a memória, a rotina social, econômica e espiritual,
mesmo com a presença constante e aproximação com os não indígenas. Evidenciando que a
transmissão dos saberes tradicionais Krahô se dá principalmente pela oralidade presente no
dia a dia do povo. Fato este que pode ser observado na organização da estrutura curricular da
escola que mantem o ensino escolar por meio da língua materna durante toda a fase dos anos
iniciais do ensino fundamental e as/os alunas/os indígenas só têm contato com o ensino na
língua portuguesa nos anos finais do ensino fundamental.
Outro fato importante de acordo com a indígena Jokàh Krahô (2019, p.17), é o
respeito à sabedoria dos anciãos da aldeia, segundo ela, toda a memória do seu povo foi
contada por meio dos seus avós, seus pais e nas reuniões na aldeia e com outras aldeias,
fortalecendo o fato de que as vivencias de memória são necessárias para o fortalecimento da
memória do povo. A pessoa tem que viver e viver entre os Krahô é compartilhar o
conhecimento dos antepassados (PRUMKWYJ, 2017, p.7 apud JOKÀH, Krahô, 2019,
p.19).
Ainda segundo Jokàn Krahô (2019, p. 17) a calmaria na aldeia permite não se
preocuparem com outras coisas, pois a roça já está plantada, a aula está acontecendo na
escola, a história do seu povo está sendo contada e a música cantada para a perpetuação da
memória. Até mesmo a disposição da aldeia em formato circular se justifica pela oralidade,
que diz que foi o Sol o responsável pela organização da aldeia do povo Krahô. Se acredita que
de acordo com a tradição Krahô, o Sol desceu à terra e organizou a aldeia o formato
semelhante a si.
Os relatos sobre as memórias do povo Krahô deixam evidente a valorização da
tradição e evidencia a importância de se preservar a história de um povo para que ela seja
lembrada de forma significativa e respeitosa. Ainda nesta linha de se evidenciar os povos
indígenas Krahô, é preciso perceber que esses povos se dividem em diversas aldeias e
190
segundo as narrativas que os mais velhos contam, existia uma aldeia na qual moravam todos
os animais terrestres e aves. Os animais tinham uma organização de hierarquização que é
utilizada na aldeia até hoje (JOKÀH, Krahô, 2019, p.22).

Contribuições do Trabalho para o Ensino de História

Desde 1999, atuando na educação como professora no Ensino Fundamental,


Supervisora de Ensino, professora do Ensino Médio, Gestora de Ensino, Assessora de
Currículo na área de História e atualmente, atuando no Ensino Médio como professora de
História e também enquanto Formadora do SIMEC, foi possível observar ao longo desta
jornada vários momentos e vários conceitos formulados sobre os povos indígenas que estão
muito distantes do que se espera de um professor de História.
Na atual conjuntura é extremamente relevante analisar todos os preâmbulos que
envolvem a prática docente, e consequentemente sua influência para fomentação de uma
postura docente condizente com as demandas sociais e profissionais necessárias ao cenário
educacional. Identificando inclusive como a prática educativa dos professores, acaba por se
configurar em um processo contínuo e comprometido com as mudanças paradigmáticas e
práticas necessárias para se refletir e transformar a práxis.
A sociedade atual diante de suas diversidades de gêneros, étnicas, religiosas e
culturais, com expectativas diversas, exige que os professores de História estejam realmente
preparados para lidar com todas essas diversidades dentro de uma proposta coerente e que
contribua para a construção de novos saberes.
Como as relações entre os sujeitos sociais fazem parte da constituição histórica, cabe ao
ensino de História promover a significação e ressignificação desses por meio de suas vivências
cotidianas e das práticas sociais desenvolvidas ao longo do tempo. Isso porque cabe a História
enquanto disciplina promover a superação das ausências de interpretações históricas.
A pesquisa de cunho qualitativo, partiu das representações presentes no imaginário
dos/as alunos/as com o intuito de atender a uma nova demanda para a prática docente no
ensino médio, em que foi possível observar que, a mesma, precisa ser despida de preconceitos
e estereótipos pragmáticos.
O método da pesquisa-ação foi utilizado para promover a problematização no ensino
de história (Lima e Martins, 2006), como é possível observar na ideia de Thoieollent, apud
Lima e Martins (2006)

191
Desse ponto de vista, a pesquisa-ação como processo de produção de conhecimento
desenvolve-se com vistas às necessidades que emergem da prática social. É
determinada, portanto, historicamente. Além disso, a pesquisa-ação tem se mostrado
capaz de produzir informações e conhecimentos de uso mais efetivo no âmbito
pedagógico, na constatação de “uma desilusão para com a metodologia
convencional, cujos resultados, apesar de sua aparente precisão, estão muito
afastados dos problemas urgentes da situação atual da educação” (THIOLLENT,
2002, p. 74).

A pesquisa-ação prevê a organização de estratégias de ações ordenadas e planejadas de


forma sistematizada, para que possam ser observadas, refletidas e mudadas de acordo com os
desdobramentos das atividades desenvolvidas. Atividades essas que podem surgir das práticas
sociais e conhecimentos desprendidos durante a ação de intencionalidade pedagógica. A
intencionalidade da pesquisa-ação é conseguir promover espaço para que se identifique e
entenda a representações constituídas pelos/as alunos/as sobre os povos indígenas Krahô.
Os instrumentos de pesquisa foram construídos dentro das abordagens necessárias para
a aquisição das informações, desta forma no primeiro momento foi realizada uma roda de
conversa apresentando aos as/os alunas/os a proposta da pesquisa e mobilizando-as/os quanto
a importância da participação de cada uma/um para a execução da pesquisa, após a
sensibilização foi realizada a roda de conversa partindo da temática sobre “Os Povos Nativos
do Brasil” quem, são onde estão, como vivem, a cultura e a organização desses povos, depois
foram apresentados os povos indígenas que habitam o território de Tocantins, com maior
ênfase nos povos Indígenas Krahô.
No segundo momento com as/os alunas/os de posse das informações sobre os povos
indígenas, foram instigadas/os à apresentar oralmente como elas/eles imaginam a vida desses
povos, essa primeira ideia pretendia observada pela oralidade, eis que por meio da fala é mais
perceptível as concepções concebidas por esses alunas/os, essas rodas de conversas de acordo
com primeira proposta seriam gravadas para que durante as análises se pudesse ter elementos
mais consistentes para a formulação dos relatos, após os relatos as/os alunas/os seriam
instigados à produzirem desenhos e textos que pudessem retratar a imagem que elas/eles
possuem sobre os povos indígenas.
Como os povos indígenas Krahô habitam uma região próxima à cidade de origem
das/os alunas/os, foi realizada uma visita a Aldeia Indígena Krahô Manoel Alves, situada no
município de Itacajá/TO. Vale ressaltar que todos os documentos necessários junto às
alunas/os, foram organizados.
A visita in loco teve como objetivo apresentar aos alunas/os a realidade
organizacional, cultural e social de um dos povos indígenas que constituem a formação do

192
povo brasileiro, este momento visava instigar as/os aluna/os a vivenciarem e reconstruírem a
imagem/ideia pré-concebida sobre os povos indígenas.
No retorno da visita in loco, realizando novamente a atividade de roda de conversa que
foi realizada no segundo momento, porém partindo dos olhares que elas/eles obtiveram com a
atividade de visita, instigando-as/os a relatarem o que foi possível observar, além disso,
solicitando que elas/eles fizessem uma análise de semelhanças e diferenças da imagem que
eles tinham e da imagem concebida com o exercício. Instigadas/os a se questionarem sobre o
porquê da invisibilidade desses povos indígenas o ensino de história pode contribuir para a
reconstrução de um novo olhar sobre essa população marginalizada pelos não indígenas.
A propositiva final fomentava uma exposição a ser organizada e desenvolvida pelos
próprios alunos/os mediante a experiência que elas/eles vivenciaram. A exposição estava
prevista para acontecer na escola e ser aberta não somente para as/os alunas/os da escola, mas
para todas as escolas do município, e que seria montado um cronograma de visitação guiada
para esses estudantes das outras escolas.
A exposição pautar-se-á em duas nuances, a da etnofotografia e da cartografia social, a
escolha dessas duas abordagens norteou-se no interesse de as/os alunas/os se perceberam
como pesquisadores sociais e a fotografia possibilitaria essa oportunidade, por meio dela as/os
alunas/os poderiam observar o espaço utilizado para a construção dos saberes históricos e
culturais desses povos indígenas, identificando e registrando os comportamentos sociais
presentes nessas comunidades, elas/eles precisariam desenvolver a capacidade de recortes
espaciais e temporais com base no ambiente que os acolheu, (TIBALLI e JORGE, 2007), por
meio da fotografia elas/eles poderiam demonstrar os saberes e as representações constituídas,
partindo da interação dos sujeitos envolvidos. Eis que a etnografia possibilita um campo ótico
do grupo que ele observa, pois “possibilita também a construção do diálogo referente aos
objetivos a serem alcançados pelos pesquisadores” (TIBALLI e JORGE, 2007).
Outro ponto que se visava desenvolver seria a exposição Cartográfica Social, a
utilização desta ferramenta permitiria que as/os alunas/os pudessem mapear o território por
elas/eles visitados e estudado, demonstrando com isso a localização dos povos indígenas em
questão, dessa forma poderiam situar os visitantes da exposição em relação aos territórios
ocupados pelos indígenas e demonstrar a importância desses territórios e de suas
demarcações.
De posse dessas informações e dos resultados da exposição, tencionava-se uma
propositiva didática a ser apresentada aos demais profissionais docentes de história. No entanto,
toda a proposta apresentada teve que ser alterada em virtude da pandemia do vírus SARS –
193
COV – 2 (Corona Vírus) causador da COVID-19 que acometeu não só o Brasil, mas todo o
mundo a partir do ano de 2020. As aulas foram suspensas em todo território nacional como
forma de evitar as complicações advindas da proliferação do vírus, o que impediu a circulação
de pessoas de forma a evitar as aglomerações acabando por impedir que as/os alunas/os fossem
visitar a aldeia conforme o pretendido para a culminância do trabalho e isso terminou afetando o
planejamento pensado inicialmente para o desenvolvimento do projeto de pesquisa.
A princípio o estudo seria realizado com alunos/as de uma Escola Estadual no
município de Guaraí - TO, porém com o impedimento da realização do trabalho, foi
aproveitada uma experiência anterior realizada com alunos/as de uma Escola Privada. Sendo
assim, o lócus da pesquisa foi o Colégio Comercial Impacto, situado no município de Guaraí,
a turma em que a atividade havia sido desenvolvida ainda no ano de 2019 foi uma turma da 2ª
série do ensino médio matutino, que durante este período enquanto conteúdo da disciplina
os/as alunos/as vislumbram o descobrimento do continente americano e dos povos nativos das
américas inglesas, espanholas e portuguesa. Na época a turma escolhida contava com 17
alunos/as, sendo 6 meninos e 11 meninas com idade entre 14 e 16 anos.
Como a viagem já havia sido feita, e após o retorno das atividades presenciais durante
a pandemia, foi preciso redirecionar as atividades de pesquisa, sem, no entanto, perder o foco
principal, as atividades apresentadas como proposta metodológica da pesquisa-ação, roda de
conversa, grupo focal e entrevistas, aconteceram conforme a intenção da pesquisa que se
apropriou dos resultados de uma experiência anterior. Infelizmente a Cartografia Social e a
exposição pretendida não foram possíveis realizar, no entanto, a proposta está sendo
apresentada para que posteriormente outros profissionais possam se apropriar desta atividade
que pode ser enriquecedora e transformadora quanto as representações que as/os alunas/os
possam construir sobre os povos indígenas, como também a prática docente da/o professora/o
de História.

Considerações Finais

A experiência de participar enquanto mestranda do Curso do Mestrado Profissional em


História do Campus de Araguaína/TO, foi extremamente enriquecedor, primeiramente pelo
fato de poder rever conceitos construídos ainda na minha graduação na década de 1998
quando terminei a minha graduação e vislumbrar uma nova perspectiva para o ensino de
história no que tange a decolonialidade.

194
Poder ressignificar o imaginário dos/as alunos/as foi de fundamental importância para
uma nova forma de trabalhar sobre os povos indígenas, em minha prática docente ao longo
dos meus vinte e um anos de docência venho tentando mostrar que é possível dar novos
significados a ideias pré-concebidas e após uma imersão teórica e de diálogos entre autores
que discorrem sobre a temática, me chamou a atenção sobre as possibilidades de mudança na
forma de se conceber os sujeitos e a história.
Espero que o resultado deste trabalho possa contribuir que outros professores, assim
como eu, possam entender que é possível promover uma aprendizagem significativa no ensino
de história, e mais que isso, que compreender a importância política do nosso ato de educar
por meio da história.

Referências

BARÃO, Vanderlise Machado; FRANGA, Gerson Wasen. O Nativo e a nação: a formação da


nacionalidade brasileira e a figura do índio integrado. In: BARROSO, Vera Lucia Maciel [et
al.]. Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: Est: Exclamação:
ANPUH/RS, 2010.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-


Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC,
2005.

BRASIL. Lei nº 9394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: 1996.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 31/10/2019

BRASIL. Lei nº 10.639. Ensino de História e Cultura Afro-brasileira. Brasília: 2003. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm Acesso em: 31/10/2019

BRASIL. Lei 11.645. Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena. Brasília:


2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.
htm Acesso em: 31/10/2019

DURKHEIM, Èmile. Sociologia e Filosofia. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense, 1986.

FERREIRA DOS SANTOS, Maria Santana. Da Aldeia à Universidade – Os estudantes


indígenas no diálogo dos saberes tradicional e científico na UFT. Tese (Doutorado –
Doutorado em Educação) Universidade de Brasília, 2018

KRAHÔ, Letícia Jôkàhkwyj. Pjê Ita jê kâm mã itê ampô kwy jakrepej: Das possibilidades
das narrativas na educação escolar do povo krahô. Dissertação de Mestrado Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás.

HALL, Stuart at al. Da Ideologia: Althusser, Gramsci, Lukács, Poulantzas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1980.
195
JODELET, D. La representación social: Fenômeno, concepto y teoria. In. Moscovici, S.
(org.) Barcelona, Ed. Paidós, 1986. P. 409-494.

LIMA, Márcio Antônio Cardoso; MARTINS, Pura Lúcia Oliver. Pesquisa-ação Possibilidade
para a prática problematizadora do ensino. Diálogo Educ., Curitiba, v. 6, n.19, p.51-63,
set./dez. 2006.

MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. RJ: Zahar, 1978. Disponível em:


http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/view/ Acesso em: 14/07/2019

NOVELLI, P. G. O conceito de Educação em Hegel. Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.9, p.65-
88, 2001 http://www.scielo.br/pdf/icse/v5n9/05.pdf Acesso em 15/10/2019

NUNES, C. M. F. Saberes Docentes e Formação de Professores: um breve panorama da


pesquisa brasileira. Educação & Sociedade, v. 22, n. 74, abr. 2001. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/es/v22n74/a03v2274 Acesso em: 14/07/2019

OLIVEIRA, Susane Rodrigues de. História Indígena: Saberes Discentes, Práticas escolares e
formação docente no Distrito Federal. História e Perspectivas, Uberlândia (53): 211-238,
jan./jun. 2015. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/
view/32773 Acesso em: 09/03/2021

Os Povos Indígenas do Brasil: Krahôs. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/


Povo: Krah%C3%B4 Acesso em 20/10/2019

PELIZZARI et al. Teoria da Aprendizagem Significativa Segundo Ausubel. Rev. PEC,


Curitiba, v.2, n.1, p.37-42, jul. 2001-jul 5 Disponível em:

Povos Indíngenas do Brasil. https://mirim.org/videos Acesso em 25/10/2019

SILVA, Marcos Antônio da; FONSECA, Selva Guimarães. Ensino de História hoje: errâncias,
conquistas e perdas. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 60, p. 13-33 – 2010.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v30n60/a02v3060.pdf Acesso em: 02/10/2019

THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-Ação. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2011.


Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000178&pid=S0101-
7330201300010000900037&lng=en Acesso em: 20/10/2019

TIBALLI , Elianda Figueiredo Arantes; JORGE, Luiz Eduardo. A Etnofotografia como meio
de conhecimento no campo da Educação. Goiânia, v. 5, n.1, p. 63-76, jan./jun. 2007
HABITTUS. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/download/
377/314 Acesso em: 20/10/2019

XAVIER, R. Xavier, R. “Representação social e ideologia: conceitos intercambiáveis?”


Universidade Federal de Pernambuco. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/psoc/v14n2/
v14n2a03.pdf acesso em: 15/02/2021

196
PARTE 04 –
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
E HISTÓRIA LOCAL

197
12. UM PASSEIO NO TEMPO: POSSIBILIDADES EDUCATIVAS
DE UM ITINERÁRIO HISTÓRICO PELOS VESTÍGIOS DA
FREGUESIA DE SÃO JOSÉ E DO BAIRRO DA MISERICÓRDIA / RJ 77
Denise Maria Deodato Silva78

Introdução

Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que


observa uns velhos cartões-postais ilustrados que mostram como esta havia sido: a
praça idêntica, mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no
lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de
explosivos. Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a
cidade dos cartões-postais e prefira-a a atual, tomando cuidado, porém, em conter
seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo
a magnificência e a prosperidade de Maurília metrópole, se comparada com a velha
Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só
agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em
presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-
se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que,
de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional – que mediante o que se
tornou pode-se recordar daquilo que já se foi.
Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e
com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às
vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até
mesmo os traços do rosto, mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos
foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se seres estranhos. É inútil
querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma
relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a
Maurília do passado, mas uma outra cidade que por acaso também se chamava
Maurília. (CAVINO, 1990, p. 15)

No livro Cidades Invisíveis (CAVINO, 1990), Ítalo Calvino descreve dois momentos
de Maurília que se contrapõe, identificando de um lado a magnificência e prosperidade da
metrópole atual e de outro a graciosidade perdida de uma velha cidade provinciana.
Antes de considerá-las uma sequência ininterrupta, Calvino defende a existência de
diferentes cidades que se sobrepõe umas as outras e que às vezes, como no caso de Maurília,
compartilham o mesmo nome.

Essa dualidade entre o perene e o efêmero, sobrepostas no mesmo espaço, pode ser
acessada por fragmentos do tempo, tais como os cartões postais, citados por Calvino, mas

77
Trabalho realizado no âmbito da disciplina “Cidade, Patrimônio Urbano e Ensino de História”, ofertada pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO e ministrada pela Profª. Drª Vera Lúcia Bogea
Bórges, durante o 2º período de 2020.
78
Mestranda do programa de Ensino de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
PPGH/UFRJ, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de História e Formação de Professores
(GEHPROF), coordenado pela Profª Drª Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação museal: conceitos, história e
políticas (GPEM), coordenado pela profª Drª Fernanda Santana Rabello de Castro, do Museu Histórico Nacional
- MHN E-mail: prof.denise.deodato@gmail.com

198
também por antigas fotos, desenhos e mapas que permitem que o que se tornou possa se
recordar daquilo que já se foi.
Através dessa perspectiva podemos refletir sobre as várias camadas de cidade, de
história e de memória que constituem o espaço ao nosso redor. Esse aspecto se torna ainda
mais significativo na medida em que problematizamos essa relação espacial-temporal de
forma a compreender as suas múltiplas singularidades e especificidades.
Dento dessa perspectiva, o presente trabalho se propõe a apresentar uma proposta
metodológica de educação patrimonial e sua aplicação através da criação de um itinerário
pedagógico por uma região do centro histórico do Rio de Janeiro que outrora estava
localizada no sopé do Morro do Castelo, em um local que já foi conhecido como freguesia de
São José e bairro da Misericórdia.
Em máxima instancia essa proposta de atividade educativa visa refletir sobre as
múltiplas possibilidades e potencialidades que um trabalho com educação patrimonial é capaz
de suscitar.

Itinerário Cultural no Centro Histórico do Rio de Janeiro

A atividade proposta foi pensada para uma turma do 2º ano do EM. Os alunos serão
divididos em quatro grupos, cada um ficará responsável por pesquisar e registar as
informações relativas à Ladeira da Misericórdia, a Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso, ao
Complexo arquitetônico da Santa Casa de Misericórdia e ao Complexo arquitetônico do
Museu Histórico Nacional - MHN. Para essa fase será disponibilizado um texto, mapas e
fotos para apresentação do itinerário sugerido.

199
Figura 1 - Itinerário cultural proposto – Fonte: Google Maps

I. Apresentação

Quantas paisagens já emolduraram o complexo militar da Ponta do Calabouço,


assim como a Santa Casa de Misericórdia e a Igreja de Nossa Senhora de
Bonsucesso, remanescentes do período em que a cidade descia o Morro do Castelo e
ganhava a Várzea que se estendia até o Morro da Conceição, abrangendo ainda a
área entre os morros de Santo Antônio e São Bento? Quantas personagens não se
notabilizaram em função do cotidiano do antigo bairro da Misericórdia, como a
negra Sabina que vendia laranjas na porta da Faculdade de Medicina? E quantas
histórias tem o bairro da Misericórdia como palco, cenário e protagonista? (LENZI;
BEZERRA, 2017, p. 12)

Inicialmente fundada entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, em 1565, a cidade
do Rio de Janeiro foi refundada dois anos depois no alto do Morro do Castelo. No mesmo ano
foi aberta a primeira via urbana do Rio de Janeiro, que ficou conhecida como Ladeira da
Misericórdia, local onde se estabeleceram alguns dos principais órgãos de administração da
recém-fundada cidade.

Pouco a pouco essa região foi sendo ocupada por diversas construções entre as quais o
complexo da Misericórdia – igreja, hospital, orfanato e cemitério – e o Forte de São Tiago.
O complexo da Santa Casa de Misericórdia surgiu da devoção a Nossa Senhora da
Misericórdia e do fluxo de enfermos que buscavam a Igreja Nossa Senhora de Bonsucesso em
busca de socorro físico e espiritual. Considerada a mais antiga da cidade começou a ser
construída em 1567, sofreu diversas modificações e apenas em 1870 passou a ter a sua
fisionomia atual.
200
Perto da Igreja ficava o primeiro hospital da Santa Casa de Misericórdia, cuja
construção, atribuída a José de Anchieta, é estimada em torno de 1582 foi sendo
progressivamente expandida no sopé do Morro do Castelo. As suas funções originais foram
ampliadas com a criação do Recolhimento das Órfãs e a Casa dos Expostos, local onde os
enjeitados79 eram deixados.
O prédio destinado ao recolhimento das órfãs foi construído à esquerda da Igreja de
Bonsucesso, no Largo da Misericórdia. Já a casa dos expostos funcionou inicialmente dentro
do prédio das enfermarias do hospital, sendo transferida em 1821 para o Largo da
Misericórdia, em frente aos antigos prédios da irmandade.
Após a transferência do cemitério que existia para a Ponta do Calafate, no Caju, um
novo prédio foi construído para abrigar o hospital. O projeto previa a criação de alas
especializadas para cada uma de suas funções. Iniciada em 1840, quinze anos depois a obra
estava completamente finalizada.

Mais do que simples resposta ao crescimento da população, as mudanças sofridas no


espalho, organização e atuação da irmandade corresponderam às modificações de
diversas naturezas ocorridas na sociedade, sejam econômicas e políticas, religiosas
ou simbólicas. Na medida em que a cidade inteira deixa de correr pela rua da
Misericórdia e de dar em sua igreja, a irmandade acompanha as suas frentes de
expansão, tornando-se palco ou objeto de candentes discussões e de projetos que
influenciaram de maneira significativa as transformações sociais e urbanas ocorridas
no século XIX. (GANDELMAN, 2017, p. 61).

Outra edificação que se destaca na paisagem, cuja construção foi iniciada em 1579, é o
forte do Rio, estrategicamente posicionado em uma área que lhe permitia colaborar para a
defesa do porto.
No início dos seiscentos, o forte foi reestruturado e passou a se chamar Forte de São Tiago
(1603). Nesse mesmo local, em 1693, por ordem do vice-rei Dom Luis de Vasconcelos foi criado
o calabouço para onde eram enviados os escravos que seriam castigados. A essa construção se
acrescentou, no século seguinte, a Casa do Trem (1762) e o Arsenal do Trem (1766).
Após a vinda da família real para o Brasil, em 1808, esse local passou a abrigar o
Arsenal Real do Exército (1811), onde se faziam reparos em armas e fabricação de munições.
No entanto, suas maiores transformações aconteceram no século seguinte, quando toda região
se modificou para sediar a Exposição do Centenário da Independência, na década de 1920.
Nesse contexto o complexo arquitetônico passou a abranger o Palácio das Grandes Indústrias

79
Esse termo era utilizado para se referir as crianças que ficaram órfãs ou que sofreram abandono por parte de
seus progenitores.
201
(1922) se tornando, no mesmo ano, sede do Museu Histórico Nacional – MHN, considerado
um dos principais do país:

Dentre os objetos pertencentes ao Museu Histórico Nacional, destacamos o


complexo arquitetônico que abriga a instituição, remontando suas origens ao
nascimento da urbe, acompanhando-a de maneira decisiva ao logo de seu
crescimento e, por conseguinte, do Brasil Colônia e Independente, com atividades
imprescindíveis à defesa e ao desenvolvimento da terra, seja por seu caráter de
fortificação, de depósito reais, de quartéis, de arsenal, de fábrica, de “Palácio”, de
Museu, e de outras atividades correlatas que lá se desenvolveram, entre os séculos
XVI e XX, como apontamos anteriormente. (CASTRO, 2002, p. 34).

Ao longo do século XX inúmeras modificações ocorreram no entorno do MHN, dentre


as quais se podem citar a Construção da Avenida Perimetral, durante a década de 1950 e 1960
e sua destruição entre 2013 e 2014. Com a retirada da Perimetral essa região sofreu uma série
de melhoramentos, incluindo a construção da Orla Conde, também conhecida como
Boulevard Olímpico em 2015.
A Freguesia de São José e o Bairro da Misericórdia já não existem mais. Em seu lugar
repousa no imaginário do povo carioca a imprecisa região do Castelo, no centro histórico do
Rio de Janeiro. De suas lembranças pretéritas sobrevivem os vestígios materiais que podem –
e devem – ser interrogados para que outras temporalidades, usos e costumes possam ser
resgatados.

II. Localização Espacial

Figura 2 - Panorama da cidade do Rio de Janeiro de Dom Miguel Blasco, bico de pena e aquarela, cerca de 1760.
Vê-se o casario desde a Ponta do Calabouço até o antigo Colégio dos Jesuítas, no Morro do Castelo. Original do
acervo do exercito – Fonte: Livro – Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio, 2017.

202
Figura 3 - Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro – Planta realizada a mando do príncipe Pegente –
Litogravura, 1817 – Mapoteca do Itamaraty – Fonte: Site Barão de Mauá: o empreendedor [sic]

Figura 4 - Parte do mapa do Centro do Rio, P.S. Souto, 1817. Fonte: Site Histórias e Monumentos

203
Figura 5 - Hospital da Misericórdia e Igreja Nossa Senhora de Bonsucesso, Thomas Ender, 1817. Acevo da
Alademie der Bilden den Kunsten, Viena. – Fonte: Livro – Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio, 2017.

Figura 6 - Largo da Misericórdia, 1845. Louis Buvelot (Paisagem), Augusto Moreau (figuras). Acervo da
Fundação da Biblioteca Nacional - Fonte: Livro – Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio, 2017.

204
Figura 7 - Imagem do edifício da Santa Casa de Misericórdia, feita por volta de 1858, por Victor Frond.
Podemos ver todo o percurso da Rua Santa Luzia, desde a Igreja de Santa Luzia, tendo ao fundo o Morro do
Castelo – Fonte: Site Alma Carioca.

III. Educação Patrimonial e Ensino de História: o Patrimônio como Fonte Histórica

Desde as primeiras décadas do século passado os historiadores dos Annales defendem


um alargamento do corpus documental do historiador, incialmente restrito a documentos
escritos e oficiais, conforme postulado por Lucien Febvre

A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com
tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na
falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as
formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos
cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de
metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao
homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. (LE GOFF, 1996, p.
540)

Essa revolução documental ampliou de maneira significativa as fontes históricas de


que dispunha o historiador para a escrita da história e foi o ponto de partida para a criação de
novos métodos de análise, o que favoreceu o encontro do patrimônio, nas suas mais diversas

205
modalidades, como a educação. No entanto, o que se observa na nossa realidade escolar é a
manutenção do livro didático como principal suporte pedagógico do professor.
Dentro dessa perspectiva, a nossa intenção é colaborar para a que o patrimônio
cultural, museus, monumentos, centros históricos, sítios arqueológicos, dentre tantos outros,
sejam problematizados e utilizados como fontes históricas.
Essa proposição justifica-se pelo reconhecimento de que o patrimônio, tido como fonte
histórica possibilita que se estabeleçam estratégias de ensino que favoreçam a identificação de
outras culturas e de outras temporalidades, em uma articulação que parte do presente para o
passado.
Tendo isso em mente apresentamos abaixo uma proposta metodológica de atividade de
campo, baseada do Guia de Educação Patrimonial, que contempla alguns monumentos de um
centro histórico.
A atividade proposta parte da preparação/ sensibilização dos alunos em sala de aula.
Momento de introduzir a discussão sobre o conceito de patrimônio bem como sobre a fonte
(monumentos, sítio históricos, arqueológicos, etc.) que será visitada. O que pode ser feito
através da apresentação de vídeos, fotos, músicas, roteiro, relato, mapa, etc. É importante que
se observe ainda o que os alunos precisam para o desenvolvimento da atividade de campo,
tendo em vista que pode ser necessário levar equipamentos eletrônicos ou outros objetos
considerados necessários.
Durante o desenvolvimento do itinerário proposto é importante observar o tempo
necessário para cada uma das atividades propostas. Se for um centro histórico, por exemplo,
deve-se levar em consideração a quantidade de lugares que serão visitados para que todos os
objetivos anteriormente elencados sejam contemplados. Em linhas gerais a atividade proposta
tem o objetivo em demonstrar que:

Os objetos patrimoniais e os edifícios e centros históricos, os sítios arqueológicos e


paisagísticos podem refletir a maior parte da História do Brasil e do mundo. Os
objetos e monumentos do passado são a evidência concreta da continuidade e da
mudança dos processos culturais. A comparação da própria casa com as casas do
passado podem dar aos alunos a compreensão de como os estilos e modos de vida
das sociedades mudam ao longo do tempo. Em um automóvel moderno podemos
encontrar ainda os traços das antigas carruagens puxadas a cavalo. (HOTA, et al,
1999, p. 35)

A última etapa da atividade pode ser desenvolvida em sala de aula ou em campo,


pode-se organizar uma exposição, vídeo, filme, história em quadrinhos, dramatização, relatos,
confecção de objetos ou maquetes, etc.

IV: Roteiro para Observação e Registro


206
Tabela 01: AÇÃO EDUCATIVA EM MOMUNETOS E SÍTIOS HISTÓRICOS 80

PRESENTE PASSADO PRESENTE/ PASSADO

Qual a função atual desse Qual a função atual desse Que edifícios mantem a sua função
edifício? original? original? Por quê?

Qual a importância desse Qual a importância desse Esse edifício manteve a mesma
edifício hoje? edifício no passado?* importância que tinha no passado?

Por que essa instituição Por que essa instituição Faz sentido que essa instituição
está instalada aqui? estava instalada aqui?* continue ou não continue aqui?

Qual a importância desse Qual a importância desse Essa região manteve a mesma
sítio histórico hoje? sítio histórico no passado?* importância que tinha no passado?

Que grupos sociais ocupam Que grupos sociais Como o passado influencia as
esse espaço? ocupavam esse espaço?* pessoas a ocuparem ou a não
ocuparem esse espaço?

Que grupos sociais moram Que grupos sociais não Como o passado influencia as
nesse espaço? moram nesse espaço?* pessoas a morarem ou a não
morarem nesse espaço?

Você gostaria de morar Você gostaria de ter morado Como o passado influencia a
aqui hoje? aqui no passado?* forma de viver nesse local?

O que mais chama a sua O que mais chama a sua Qual a mudança mais significativa
atenção na paisagem deste atenção na paisagem deste que você observa nessa paisagem?
local hoje? local no passado?*
Elaborado pela autora81

Tendo como referência a tabela acima, durante a atividade de campo os alunos irão
investigar cada um dos locais previamente selecionados. Além da observação dos aspectos
materiais do patrimônio será sugerido que sejam feitos vídeos, fotos e entrevistas com

80
Ao provocar os alunos em relação ao passado é importante ressaltar em que passado. No âmbito do desta
proposta educativa poderiam ser os Séculos XVI, XVII, XVIII, XIX.
81
Elaborado pela autora a partir do referencial metodológico disponibilizado no “Guia Básico da Educação
Patrimonial”. Em sua composição foram observadas as especificidades do local a que o estudo é direcionado.
207
funcionários das instituições, de modo que eles possam colher informações pertinentes ao
desenvolvimento da atividade.

V: Avaliação (Montagem de um álbum de fotos “antes e depois” e de exposição de


fotografias)

De volta à escola os alunos apresentarão o material produzido durante a atividade de


campo. Será uma boa oportunidade para questionar o que é patrimônio, bem como os critérios
utilizados para o tombamento desses locais.
Para que não se use apenas a antiguidade como justificava, vale a pena ressaltar que o
Complexo da Santa Casa foi tombado pelo IPHAN em 1938, os demais apenas no século
seguinte.
No caso do Complexo do Museu Histórico Nacional ou não tombamento do imóvel, a
nível federal, nos anos seguintes a criação do IPHAN, tal como aconteceu com outros
edifícios, inclusive museus, está ligado às alterações arquitetônicas que deram ao complexo
um aspecto mais eclético, durante a década de 1920. 82
Apenas em 2001, parafraseando Adler Castro (2002), essa dívida foi resgatada e o
prédio e acervo do MHN foram tombados. No caso da Ladeira da Misericórdia seu
tombamento, a nível federal, foi concluído apenas em 2017.
Após essa etapa de discussões será sugerido que os alunos montem um álbum com os
registros fotográficos da atividade de campo compondo um “antes e depois” de cada um dos
patrimônios visitados. Com isso, teremos uma oportunidade significativa para que a questão
das diferentes temporalidades seja retomada.
As fotos não utilizadas poderão ser disponibilizadas em um painel, de preferência
móvel, para que essa experiência possa ser compartilhada com outras turmas da mesma
escola.

82
Sofre esse assunto, Adler Castro analisa que: “os arquivos do IPHAN, observa-se a opinião unanime dos
profissionais que estudaram o prédio, que o mesmo se encontrava irrecuperavelmente descaracterizado,
considerando que os acréscimos feitos na exposição de 1922 teriam destruído a “natureza” da obra de arte.”.
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Resgate de uma dívida: o tombamento do MHN, seu prédio e acervo.
Anais do Museu Histórico Nacional, v. 34, 2002.
208
Figura 13 - Sugestão para composição do álbum “Antes e depois” – Elaborado pela autora

Figura 14 - Sugestão para a composição de uma exposição com fotos do sítio histórico
registradas pelos alunos – Elaborado pela autora.

209
Considerações Finais

Com essa proposta objetivamos sugerir o planejamento de uma atividade pedagógica


que parte do conceito de educação patrimonial, inspirado na pedagogia inglesa do heritage
education, introduzida no Brasil, em 1983, no I Seminário Sobre o “Uso Educacional de
Museus e Monumentos”, sediado no Museu Imperial de Petrópolis - RJ.
De acordo com Maria de Lourdes Parreiras Horta, coordenadora do evento, a educação
patrimonial é definida como “o ensino centrado no objeto cultural e nas evidencias matérias
da cultura. Ou ainda, como fonte primária de ensino”. (HORTA, 2008, p.16).
Em contraponto a educação formal, que se desenvolve nas escolas, a educação não
formal – patrimonial – se desenvolve em museus e acervos patrimoniais a partir da evidência
material. Sua proposta metodológica partiu da análise dos elementos do processo de
aprendizagem que podem sustentá-la metodologicamente a fim de orientar a prática de suas
atividades educacionais.
Dentro dessa perspectiva concordamos com a premissa de que o objeto deve ser tido
como uma fonte primária de conhecimento que consiste em investigar e inferir o objeto
cultural, através de questões como: Qual o seu aspecto físico/ material? Qual o seu desenho/
forma? Qual a sua função/ uso original? Como ele foi concebido e confeccionado? Qual o seu
valor/ significado?
Sendo assim, o planejamento ora apresentado leva em consideração a análise prévia
das especificidades do patrimônio onde a ação educativa está sendo proposta, bem como a
delimitação dos objetivos e metas que se deseja alcançar. É importante ressaltar que esse
projeto educativo deve ser concretizado a partir da experiência e do contato com o itinerário
que está sendo proposto, possibilitando um processo ativo de conhecimento, apropriação e
valorização da herança cultural. Mais do que valorizar a cultural material em si – objetos,
edificações e lugares – o objetivo desta proposta é desenvolver sentidos, aguçar a curiosidade,
favorecer o diálogo e a reflexão.

210
Referências

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CASTRO, Adler Homero Fonseca. Resgate de uma dívida: o tombamento do MHN, seu
prédio e acervo. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 34, Rio de Janeiro: MHN, 2002.

GANDELMAN, Luciana Mendes. A Santa Casa. In: MAGALHÃES, Aline Montenegro… [et
al.] Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Museu Histórico
Nacional, 2017.
HORTA, M. L. P., GRUNBERG, E., MONTEIRO, A. Q. Guia Básico de Educação
Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu
Imperial, 1999.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. 5° ed., Campinas, SP:
Editora UNICAMP, 1996.

LENZI, M.I.R.; BEZERRA, R.Z. A paisagem modificada. In: MAGALHÃES, Aline


Montenegro… [et al.] Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2017.

211
13. A HISTÓRIA LOCAL E SUAS POSSIBILIDADES
PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Aline Nunes Ferreirinha de Souza83
Hendy Helena Maciqueira de Melo Ribeiro 84

Introdução

O presente artigo se refere à experiência vivenciada por suas duas autoras ao longo de
uma disciplina cursada por ambas no Mestrado Profissional em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA) - Grupo Rio de Janeiro. Apesar de termos nos conhecido na disciplina de
História Local, oferecida por um professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), estamos vinculadas como alunas do PROFHISTÓRIA em universidades diferentes:
uma das autoras é discente da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a outra da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
É importante destacar que os discentes vinculados ao PROFHISTÓRIA podem cursar
disciplinas obrigatórias, optativas ou eletivas em qualquer uma das universidades públicas do
estado do Rio de Janeiro (chamado Grupo Rio) ao longo de sua formação no Programa, o que
permite uma maior interlocução entre os alunos e alunas de todas as universidade públicas do RJ
(UNIRIO, UFF, UFRJ, UERJ, UFRRJ), amplia as opções de disciplinas a serem cursadas com
temáticas bem diversificadas e possibilita os ajustes de horários que envolvem: ser professora
atuante na Educação Básica, rotina familiar, demais atividades profissionais e de vida e ser aluna
do mestrado, dentre outras questões.
Nosso encontro na disciplina de História Local, nos proporcionou a oportunidade de
partilhar a escrita deste artigo, a partir das possibilidades do uso da história local em
interlocução com o ensino de História em nossa atuação enquanto professoras da Educação
Básica, ampliando nosso entendimento sobre o que é a história local, seus desafios e
possibilidades. Nos deparamos com importantes e instigantes referências bibliográficas ao
longo da disciplina que cursamos, ouvimos as narrativas de professores e professoras que
trabalham no âmbito acadêmico universitário com essa temática, e promovendo relevantes
debates e ampliando nossas concepções acerca da história local e sua relação com o ensino de
História, além das possibilidades de seus usos em sala de aula.
83
Licenciada em História na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia (FFSD), pós-graduação latu sensu em
História Moderna e Contemporânea (FFSD), em Educação Especial e Inclusiva (Faculdade de Educação São
Luís) e em Gestão Escolar: Supervisão e Orientação (Centro Universitário Barão de Mauá). Mestra em Educação
(UFRRJ). Mestranda do PROFHISTÓRIA- Universidade Federal Fluminense (UFF).
84
Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Mestranda do PROFHISTÓRIA – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora de
História da rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
212
Consideramos relevante dizer, que ingressamos no PROFHISTÓRIA na turma de
2020 e ainda estamos cursando o mestrado, mas resolvemos encarar o desafio de compartilhar
a escrita do artigo, pois achamos muito interessante e inovadora sua proposta de divulgar as
pesquisas produzidas por alunas do Programa, com destaque à presença feminina na produção
científica no campo da História, da Educação e do ensino de História.
Ademais, é oportuno destacar que fizemos o processo seletivo para o Mestrado
Profissional em Ensino de História na segunda metade do ano de 2019 para ingressarmos na
turma de 2020, ou seja, ingressamos no Programa no início das medidas restritivas referentes
à Pandemia de Covid-19, no estado do Rio de Janeiro, em março de 2020, o que interferiu e
vem interferindo em nosso processo de formação no Mestrado. Muito provavelmente,
concluiremos nossa trajetória no PROFHISTÓRIA ainda sob vigência das medidas de
isolamento e distanciamento social, tão importantes para conter a transmissão do coronavírus.
O contexto da pandemia não está influenciando só a nossa formação por não podermos
frequentar presencialmente às aulas ministradas pelos professores e professoras do
PROFHISTÓRIA, mas também o aspecto emocional e nossas vivências, ou melhor a falta da
(con)vivência, seja ela discente-discente ou discente-docente. Sem contar, a saudade dos
nossos alunos e alunas, da partilha com nossos colegas de docência na educação básica, do
ambiente escolar de trabalho, do contato, da presença, de poder estar junto, enfim...
O uso emergencial do ensino remoto tem nos trazido o aprendizado do contato virtual,
seja no trabalho, seja no estudo, e tem também nos propiciado novos aprendizados em relação
ao uso das tecnologias. Porém, temos que conviver com novas e inúmeras angústias e
incertezas, com o uso excessivo das tecnologias por serem nossa principal ferramenta de
comunicação nesse momento, dentre outras questões. Sem dúvida todo este contexto
influenciará nossas pesquisas, assim como vem influenciando nossas vidas e o trabalho
docente em todos os seus níveis.
Portanto, apresentaremos ao longo do artigo uma proposta de atividade pedagógica
que pretendemos utilizar na nossa prática docente, como professoras de História na educação
básica, assim que for possível o retorno presencial e seguro às escolas de toda a comunidade
escolar. Atividade esta que envolve as potencialidades da história local e do ensino de história,
mas que só será posta em prática de forma presencial, por conta das limitações apresentadas
pelo ensino remoto no contexto que vivenciamos atualmente.

213
A História Local e Suas Possíveis Tessituras com o Ensino de História na Educação
Básica

Trabalhar a história local na sala de aula da Educação Básica não é uma tarefa simples
para os professores e professoras de História, pois envolve múltiplos desafios e dificuldades
que se iniciam no termo, local, que tem variados significados. Cavalcanti (2018, p. 275)
explicita esta questão,

Nessa dimensão, gostaria de trazer à discussão alguns sentidos atribuídos à palavra


“local”. A etimologia da palavra nos leva ao latim localis. Sua grafia – que pareceria
um plural, embora não o seja – já sugere evitarmos apreendê-la ou aprisioná-la em
um sentido singular. Sugere que ela desfruta de significados plurais. Ou seja, o local,
desde a gestação de sua grafia, é um espaço conceitual polissêmico; é um lugar
polifônico. No conhecido dicionário Aurélio, a palavra “local” encontra-se
experimentada como sinônimo de “lugar”. De maneira mais detalhada, o primeiro
significado atribuído a “local” diz respeito a um sentido “relativo a determinado
lugar”. Assim, os significados de “local” estão embrionariamente ligados a uma
concepção de lugar e, nessa relação, “lugar” está indissociável de espaço. Ou seja,
ao falarmos de local, estamos, concomitantemente, falando de espaço.

Ademais, é necessário deixar explícito, ao trabalhar com os alunos, de que localidade


estamos nos referindo, contextualizando-a dentro de um período temporal que também deve
estar delimitado, afinal muitas e variadas mudanças ocorrem ao longo do tempo e alteram as
configurações de um determinado lugar, local ou espaço.
Como se pode ver, incorporar os estudos que envolvem a história local na prática
cotidiana docente não é uma tarefa tão simples, nos impõem desafios, mas é uma tarefa
possível e que pode estimular nossos alunos a partirem de suas referências pessoais, do dia a
dia, da sua relação com a localidade onde vivem, suas identidades para entender seu papel na
sociedade enquanto um sujeito histórico e não como um ser passivo.
Sukow e Urban (2017, p.2) comentam sobre a possibilidade do uso da história local na
educação básica,

Na obra Ensinar História (2009), manual didático voltado para professores da


educação básica, Schmidt e Cainelli discutem no capítulo “O Conceito de História
Local e o Ensino de História” as possibilidades do uso da História Local como
estratégia de aprendizagem. Delimitando o conceito e apontando para a presença
deste nos PCNs, as autoras argumentam sobre a importância da História Local ser
entendida em sua relação com as outras localidades. Ainda, dado o contexto de
mundialização do período contemporâneo, esta abordagem contribuiria para o
contato com histórias individuais, muitas vezes silenciadas, além de ser uma
estratégia pedagógica que se aproximaria da realidade do aluno.

Nesse sentido, dialogam com Edgardo Ossana (1994), uma das mais significativas
referências que discutem o trabalho com a História Local e o Ensino de História. No artigo
“Uma Alternativa en la Enseñanza de la Historia: El Enfoque Desde lo Local, Lo Regional” o

214
autor debate acerca da presença da História Local no currículo do Ensino Médio. Pensar o
local enquanto estratégia de ensino aproxima-se dos interesses dos jovens, bem como vincula-
se a suas atividades da vida cotidiana. Ossana elenca ainda as vantagens que a História Local,
enquanto estratégia de ensino, pode trazer para o aprendizado histórico, dentre os quais
destaca-se: a) a possibilidade de inserção do estudante no seu mundo conhecido, localizando a
si mesmo e ao seu ambiente próximo na História, b) a possibilidade de atitudes investigativas
a partir das realidade cotidianas, atendendo aos anseios pessoais, c) o trabalho com escalas
menores que contribui para uma melhor compreensão das rupturas e continuidades, d) o
favorecimento das discussões acerca de histórias menos homogêneas e mais plurais, sem
silenciar as especificidades (SUKOW e URBAN, 2017).
Outra questão que nos impõe mais um desafio é “encaixar” a história local no
currículo formal definido para a disciplina escolar de História, pois “dar conta” dos conteúdos
estabelecidos pelo currículo formal dentro dos tempos de aula delimitados para a disciplina já
é um desafio para a maior parte dos professores e professoras de História, quiçá incluir a
história local tentando encaixá-la nessa situação.
Porém, é possível perceber que geralmente a relação mais próxima do docente com a
localidade é um fator motivacional para a inclusão da história local em sua prática. Essa
proximidade se mostra um fator importante para o desenvolvimento de projetos, aulas,
exposições, ou qualquer outro trabalho desenvolvido nas escolas que se refiram à história local.
As relações com a localidade, as memórias, os esquecimentos, as afetividades, dentre outras
questões, muitas vezes impulsionam este docente a buscar uma interlocução entre a história
local e o conteúdo formal prescrito para a disciplina história ou mesmo quando é possível
encarar o desafio de desenvolver um projeto que fuja das prescrições curriculares oficiais.
O conceito de passado prático de Hyden White (2018) contribui para que possamos
refletir sobre esta questão. O autor demonstra como a transformação da História em uma
disciplina científica acabou por domesticar a imaginação não só sobre o passado, como
também sobre o futuro e o presente. Este passado “disciplinado” que tem como finalidade
estabelecer verdades puramente factuais, é chamado pelo autor de “passado histórico”, e,
segundo ele, diminuiu indagações mais amplas sobre os aspectos práticos que poderiam ser
derivados do conhecimento histórico. Para se contrapor a esta concepção, o historiador norte-
americano traz a ideia de um passado prático, que envolve a ação ativa de um presente que
busca não o simples empirismo de provar o que aconteceu, mas de encontrar no passado um
significado que lhe dê razões para ações a serem tomadas no presente em nome de um futuro
melhor do que aquilo que atualmente existe. Segundo White:
215
[...] a profissionalização dos estudos históricos requereu, pelo menos em princípio,
que o passado fosse estudado, como foi dito, “por si só” ou enquanto “uma coisa em
si mesma”, sem que qualquer motivo ulterior do que um desejo de verdade sobre ele
e sem qualquer inclinação para tirar lições de seu estudo e importá-las para o
presente a fim de justificar ações e programas para o futuro. [...] Tudo isso em
contraste com o passado prático que é estabelecido à serviço do “presente”, é
relacionado com este presente de um modo prático e do qual, então, podemos retirar
lições e aplicá-las ao presente. (WHITE, 2018, p.15).

Concordamos, portanto, com White (2014), pois acreditamos que precisamos pensar
urgentemente sobre que tipos de experiências de passado estamos deixando em nossos alunos,
especialmente se formos pensar no contexto atual que vivemos. O ensino de História carrega
consigo valores, que incluem a formação do cidadão, além da construção de identidades e
subjetividades. Nossa disciplina é uma importante ferramenta para a construção de uma
sociedade mais justa, igualitária e democrática. Certamente, não é algo simples de ser feito,
mas acreditamos que a história local pode ser uma potente aliada na construção desse
caminho, pois através dela, podemos ver a História ao nosso redor e permitir que os alunos se
reconheçam como sujeitos e produtores de conhecimentos, e que também se vejam como
objetos da História que estudam, indo, assim, além de uma História somente institucional,
biográfica, política, elitista e, muitas vezes, ainda eurocêntrica, pois, como mencionamos
anteriormente, por mais que tenhamos avançado nas discussões sobre estas questões, ainda é
possível esbarrar com práticas curriculares que insistem nesta direção. O próprio material base
com o qual trabalhamos em sala de aula, como livros didáticos ou apostilas, dificilmente
consegue dar conta das especificidades locais.
Igualmente válido para esta discussão, é trazer o conceito de memória, pois é através
dela que se chega a História Local, e no campo da memória e da Educação é importante
pensar que a memória se constitui em processos de lembrança e esquecimento que se
correlatam, uma vez que parte da memória histórica corresponde ao que foi excluído por não
fazer parte dos acontecimentos selecionados para serem lembrados. As histórias produzidas e
reatualizadas ao longo do tempo são marcadas não apenas pelas recordações e lembranças,
mas também por silenciamentos e ocultações.
A memória coletiva se transmite por meio de textos, monumentos, rituais, festas,
comemorações na família, na rua, na escola. Para além das memórias oficiais, coexistem
memórias de mulheres e homens trabalhadores, militantes, estudantes, migrantes, mesmo que
às vezes, elas encontrem-se na condição de memórias subterrâneas, que em silêncio
continuam o trabalho de subversão da memória oficial (GIL, 2019).

216
Andreas Huyssen é um autor que aprofunda estas reflexões sobre os usos políticos da
memória e suas integrações com a dinâmica do esquecimento. Segundo Huyssen (2014), na
cultura contemporânea, obcecada como é pela memória e o trauma, o esquecimento é
sistematicamente malvisto. Pensando nos casos da Argentina e da Alemanha, ele alega que o
esquecimento e a memória foram importantes no processo de transição da ditadura para a
democracia, visto que formaram uma forma de esquecimento necessária para se fazerem
reivindicações em prol de uma política nacional da memória. Segundo o autor:

[...] o opróbio continua reservado para o esquecimento, nunca para a memória. Pode
haver um excesso de memória, mas trata-se de um excesso de coisa boa. Enquanto
isso, o esquecimento continua suspenso sob uma nuvem de suspeita moral, como
uma falha evitável, uma regressão indesejável para a coesão social e cultural da
sociedade. Todos os tipos de identidade dependem dela. Uma sociedade sem
memória é um anátema. (HUYSSEN, 2014, p.157).

Huyssen (2014) nos lembra ainda que “o esquecimento precisa ser situado num campo
de termos e fenômenos como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgastem
repressão”, todos os quais revelam um espectro de estratégias tão complexo quanto o da
própria memória. Resgatar estas memórias, por meios das histórias dos moradores do bairro e
da história da própria comunidade escolar poderá trazer grande ganho pedagógico para os
estudantes, ao tornar disponíveis também as narrativas que podem ter sido silenciadas. Ao criar
vínculos com a memória familiar do local, estaremos, ao mesmo tempo, sendo cautelosos e
evitando a reprodução, em escala menor, da mesma narrativa de uma história feita pelos
“grandes” e “importantes” personagens do poder político e dos grupos dominantes locais.
Por fim, consideramos relevante trazer também a definição de “não lugares”, de Marc
Augé (1994), como conceito que justifica a relevância desta sugestão de trabalho para a
Educação Básica. Segundo o autor, o não lugar seria um reflexo do que ele denominou
“Supermodernidade”, um espaço prescritivo, de transitoriedade, que não constrói relações, e
que pode provocar uma perda de nós mesmos como grupo e como sociedade, com a
prevalência do indivíduo isoladamente. Ou seja, são espaços que não cumprem as
características do lugar antropológico e, portanto, não são identitários, relacionais ou
históricos. Tal conceito, se associado à epistemologia do saber escolar, pode nos levar a refletir,
sobre qual papel que a escola assume nesta “Supermodernidade”. É inegável a tentativa de se
fazer da escola um lugar mergulhado no mundo da economia, com enfoque na objetividade, na
padronização e no alcance de metas. Acreditamos que a história local possa ser um importante
contraponto, para fazer da escola o que Augé define como lugar antropológico, de interseção,
ou seja, aquele que permite a construção de identidades pelos sujeitos.

217
Romper com a visão da História como algo longínquo, feito por pessoas que tem uma
enorme capacidade de liderança e que envolvem somente um grupo determinado e não as
demais pessoas, apresentando uma visão que exalta o nível macro e invisibiliza o nível micro
da História, focando na tradicional divisão quadripartite tem distanciado nossos alunos da
educação básica dessa disciplina escolar que se torna assim somente um protocolo a ser
cumprido e não uma disciplina que pode contribuir para a formação do alunado para além dos
conteúdos: uma formação para a cidadania, para a vida.
No nosso caso, optamos por tentar “encaixar” as potencialidades da história local no
currículo prescrito, por isso a atividade que propomos pode a partir desta nossa opção ser
realizada no 3º ano do ensino fundamental, onde costuma se discutir o bairro, a cidade e a
localidade onde se vive, ou no 6º ano do ensino fundamental onde discutimos fonte histórica e
sujeito histórico, aproximando esses conceitos da história de vida dos alunos e familiares e
também da sua relação com o local ou no 1º ano do Ensino Médio onde geralmente
retomamos com outra perspectiva as mesmas discussões do 6º ano escolar.

Contribuições do Trabalho para o Ensino de História

A atividade que pretendemos realizar quando for possível retomar as aulas presenciais
na educação básica com segurança e com uma presença expressiva dos nossos alunos e
alunas, especificamente nas escolas onde atuamos, refere-se a um trabalho com fontes
históricas, a partir das experiências e memórias educacionais dos familiares de nossos alunos,
estabelecendo ligações com possíveis documentos que os mesmos ainda pudessem ter e/ou
guardar como cadernos, fotos, diplomas, enfim, registros de sua história e trajetória ao longo
de suas vivências escolares ou da ausência destas vivências e sua relação.
Posteriormente, vamos buscar relatos orais das pessoas consultadas pelos discentes e
deles próprios, para a partir destas narrativas e dos registros apresentados propor discussões
em sala de aula sobre nosso papel de sujeito histórico, como agentes sociais que interferem na
realidade e que também sofrem influência das relações sociais vigentes, não sendo somente
personagens passivos. A respeito da construção de narrativas diversas sobre a localidade, as
palavras de Costa (2017, p. 256) demonstram de que perspectiva de narrativa, nos referimos:

Posteriormente, vamos buscar relatos orais das pessoas consultadas pelos discentes e
deles próprios, para a partir destas narrativas e dos registros apresentados propor
discussões em sala de aula sobre nosso papel de sujeito histórico, como agentes
sociais que interferem na realidade e que também sofrem influência das relações
sociais vigentes, não sendo somente personagens passivos. A respeito da construção

218
de narrativas diversas sobre a localidade, as palavras de Costa (2017, p. 256)
demonstram de que perspectiva de narrativa, nos referimos.

A construção de uma atividade pedagógica envolvendo a história local e o ensino de


história nos permite trabalhar a construção de novas narrativas sobre a localidade, colocando
questionamentos a uma narrativa previamente construída que nem sempre contempla grupos à
margem da história oficial. Ao construir novas narrativas sobre a localidade, através da
intermediação docente, os estudantes podem vir a ser atores sociais, na comunidade em que
estão inseridos, construindo a sua própria história.
Além disso, enquanto professores, acreditamos ser fundamental conhecer aqueles com
quem estamos falando, e melhorar a nossa capacidade de comunicação com os alunos. Desta
forma, conectar os assuntos abordados em sala de aula com a história das pessoas com quem
dialogamos nas escolas é fundamental. Afinal, nossa disciplina existe para discutirmos o
presente e não apenas para olharmos para um passado frio e distante. O passado deve ser, na
verdade, encarado como um pretexto para discutirmos problemas do nosso tempo, e
almejarmos um futuro de tolerância e reconciliação com a justiça e com os direitos
(PEREIRA e SEFFNER, 2018).
Junto a esse debate, devemos contextualizar a trajetória de formação e
desenvolvimento da localidade onde se situa a escola, na qual estamos lecionando, destacando
aspectos peculiares daquela localidade que se relacionem aos registros trazidos pelos alunos e
também aos relatos orais, fazendo assim uma interlocução entre os conteúdos da disciplina
História que compõem o currículo prescrito, a história local e o ensino de História, a partir da
efetiva participação dos alunos e alunas na atividade proposta, demonstrando assim a
possibilidade de protagonismo que eles podem ter na História, seja individual, seja da
comunidade.
Num projeto que envolve o ensino de história e as potencialidades da história local,
como este, é sempre importante apresentar a localidade que estamos nos referindo,
contextualizando-a, apresentando o período temporal que nos referimos, as características
geográficas, econômicas, sociais, dentre outras, além do momento que estamos investigando.
Um dos fatores que nos motivou a escolher a atividade explicitada foi o fato de ser um
tema amplo que poderá ser posto em prática, com adaptações quando necessário, para
qualquer professor ou professora de História, independente da localidade na qual atue.
Ademais, este tema também pode ser trabalhado tanto no 1º e 2º segmentos do ensino
fundamental quanto no Ensino Médio, sendo uma possibilidade para qualquer nível escolar da
chamada Educação Básica.
219
Ademais é uma atividade que pode envolver não só os docentes da disciplina de
História, mas pode ser um trabalho multidisciplinar que envolva os docentes da área de
ciências humanas e sociais ou mesmo todos os docentes que lecionem na escola, dada a
amplitude que a temática permite, sendo possível englobar a participação de professores e
professoras de outras disciplinas nesta proposta, contemplando um trabalho ou mesmo um
projeto compartilhado e de integração disciplinar e docente. Trabalhos com história local
mobilizam, por exemplo, também conceitos comuns à Geografia, como os de paisagem,
espaço, região e território, que podem servir como guias para definição do recorte a ser
trabalhado, com uma abordagem mais específica para aquilo que os alunos elegerem, a partir
das orientações que receberem, como temas de investigação.
Entendemos como algo relevante a apropriação de elementos da história local, para a
elaboração dessa atividade pedagógica com o aproveitamento das memórias que esses
estudantes e outros atores sociais possuem sobre a localidade como uma ferramenta de
construção de narrativas alternativas sobre o espaço em que vivem para não cairmos numa
armadilha de transformar a história local, numa história em escala menor dos grandes heróis,
de personagens importantes de uma determinada localidade, reproduzindo o que criticamos
em relação ao conteúdo dominante da chamada macro história. Essa reflexão fica evidente nas
palavras de Cavalcanti (2018, p. 277),

A professora e historiadora Circe Bittencourt, por sua vez, ressalta que “a história
local tem sido indicada como necessária para o ensino por possibilitar a
compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre presente nos
vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho e lazer –
igualmente por situar os problemas significativos da história do presente”
(Bittencourt, 2009, p.168). Seguindo sua reflexão, ela destaca, todavia, os cuidados
para evitar que a história local não reproduza em escala menor a mesma narrativa de
uma história feita pelos “grandes” e “importantes” personagens do poder político e
das classes dominantes locais. Nesse sentido, é importante que a história local não se
limite a reproduzir, em dimensões micro, o estudo da vida e das atividades de
prefeitos e demais autoridades de determinado lugar, por exemplo. Para evitar essas
armadilhas, “é preciso identificar o enfoque e a abordagem de uma história local que
crie vínculos com a memória familiar, do trabalho, da migração, das festas...”
(BITTENCOURT, 2009, p.169).

Na elaboração dessa atividade pedagógica voltada ao ensino da história local,


podemos extrair questionamentos importantes. Qual seria a relação de identidade do alunado
com o que estaria sendo ensinado na escola, dentro de um processo de construção de um
currículo a ser aplicado em sala de aula? Quais motivos levam ao descaso do poder público e
mesmo de boa parte da comunidade local, com a questão cultural? Há uma demanda de
preservar vestígios do passado da localidade? Que narrativas naturalizam tal comportamento?
Como os alunos e alunas enxergam o local onde vivem? Quais narrativas foram
220
marginalizadas sobre a história deste local? Por que as memórias preservadas, em sua maioria,
se vinculam às interpretações dominantes da História, nas quais permanecem os vestígios do
passado de uma elite consolidada historicamente, tais como casarões, igrejas, e documentos
oficiais? Quais os vestígios de lutas e resistência de grupos de minorias que podem ser
encontrados? Por que as memórias preservadas se vinculam predominantemente à História
nacional? E os professores e professoras será que vivem neste mesmo local ou é somente onde
trabalham? A relação dos docentes com aquela localidade se reflete ou não nas suas diversas
práticas pedagógicas em sala de aula?
O incentivo aos questionamentos por parte dos discentes, a partir das aulas
relacionadas à história local, podem transformar a sala de aula num local em que a dúvida se
torne um instrumento de questionamento de poderes do seu tempo e de paradigmas
dominantes, mais do que uma busca por respostas ou verdade absolutas. A aula, seja na
escola, ou em outros espaços, deve se tornar um momento em que os discentes exercitem a
liberdade de pensamento, a partir de propostas docentes instigadoras, que tragam reflexão e
produção de conhecimento.
Nesse sentido, a atividade pedagógica que elaboramos com a busca de fontes, feita por
estudantes, de elementos que coloquem luz, as suas trajetórias pessoais e de suas famílias,
pode servir de contraponto a uma narrativa que não pode ser naturalizada. Além de envolver
questões relacionadas à memória, as identidades tanto individuais quanto de uma determinada
comunidade. Para Cavalcanti (2018, p.279),

Os trabalhos que versam acerca da chamada história local – no ensino ou na


pesquisa (ou em ambos) – fazem uso recorrente da memória. Nessa perspectiva,
demonstram que a história local e a memória se encontram interconectadas,
sobretudo quando esta se constitui como fonte documental e/ou objeto de pesquisa
daquela.

Isso representa uma ação em que podemos partir do próximo para o distante, onde a
história local pode vir a ser um mecanismo de ligação com outros temas que estão presentes
no currículo de História, com os quais os estudantes não possuam um sentimento de
identificação promovendo uma tessitura entre os níveis micro e macro, buscando dar sentido a
conteúdos que parecem tão longínquos e inexpressivos para nossos alunos e alunas.
Em outras palavras, o objetivo do trabalho é desenvolver uma proposta pedagógica
que fará do local um constructo de pesquisa, através de uma abordagem micro para a
concepção do local como categoria de análise, pois a história local pode produzir efeitos de
reconhecimento e sensibilização nos discentes para questões que não são contempladas pela

221
análise macro. O que não significa, no entanto, o abandono deste, mas sim pensar em formas
de diálogos entre ambos, através de uma variação de escalas de observação (REVEL, 1998).
É preciso uma distância focal, que vai inserir o micro em contextos encaixados, e é
isso que vai fazer a história do local ter sentido. É um jogo de escalas que precisa ser
manipulado. Os acontecimentos são únicos, mas só podem ser compreendidos em sua
particularidade, se forem associados aos diferentes níveis de uma dinâmica histórica.
Isto significa dizer que a História Local possibilita a construção de uma História mais
plural, que não silencia a multiplicidade das realidades. Como afirma Barros (2013), através
dela podemos ensinar uma História que fala da vida das pessoas, das memórias e lembranças
dos sujeitos de todos os segmentos sociais, contribuindo assim para a formação de cidadãos
que possam ser críticos em relação à realidade na qual estão inseridos, devido ao fato de que
seus conceitos e conteúdos possam fazer com que os alunos debatam sobre o que está
acontecendo não somente sobre o passado, mas também sobre o presente e no ambiente em
que vivem. Como educadores, estaremos ensinando uma História que faz parte do cotidiano
do aluno, e assim o ensino de História para eles poderá ganhar outro significado.

Considerações Finais

O desenvolvimento dessa proposta de atividade pedagógica voltada para as


potencialidades, desafios e possibilidades do uso da história local na docência da educação
básica em interlocução com o ensino de história nos propiciou um novo olhar para a história
local, um olhar mais amplo, mais envolvido com a historiografia contemporânea, interligado
com as questões e tensões que envolvem o currículo da disciplina escolar História, trazendo
para nós uma gama de questionamentos, mas também de possibilidades de uso da história
local na nossa prática enquanto docentes que atuam com a História em sala de aula.
Para tentar dar conta do desafio de estabelecer uma interlocução entre a história local,
o ensino de história, o currículo formal e prescrito para a disciplina escolar história e nossas
práticas docentes cotidianas tentamos apresentar ao longo desse artigo como o entrecruzar
dessas questões trouxeram para nós uma motivação a mais para desenvolver com nossos
alunos e alunas, aulas, projetos, exposições, enfim variadas maneiras de trazer a história local
para sala de aula como mais um instrumento potencializador para que nossos discentes se
tornem sujeitos questionadores, busquem e ampliem seu conceito de cidadania, se enxerguem
como sujeitos históricos e não sujeitos passivos, na tentativa de contribuir para que a História
tenha e faça sentido em nossas vidas.
222
A história local possibilita ao aluno perceber-se como parte integrante da História, não
um simples espectador do ensino desta, mas objeto e ao mesmo tempo sujeito, construtor de
fatos e acontecimentos, não exclusivamente lineares, mas permeados de continuidades e
descontinuidades próprios do processo histórico. Seu uso pode se constituir em um potente
instrumento pedagógico capaz de contribuir para a construção de uma História mais plural,
que não silencie as múltiplas realidades e que é capaz de aproximar o conhecimento científico
do aluno, pois permite o trabalho com fontes históricas e a prática de atividades que
demonstram parte do fazer histórico, através de estudos participativos e investigativos. Como
afirma Costa (2019), praticar o ensino de história local é um passo importante para os alunos
perceberem que a História que eles leem nos livros didáticos é produzida por alguém, e uma
oportunidade para propiciar o trabalho coletivo, a tomada de decisões, o desenvolvimento das
habilidades de raciocínio e argumentação dos discentes.
Em suma, em meio a tantas dificuldades que perpassam o ensino de História, em um
momento turbulento de nossa sociedade, em que há uma transformação do ofício do
historiador, trabalhar a História Local mostra-se como um interessante desafio e como um
caminho de diversas ramificações e possibilidades, que podem ser bastante significativas para
a construção de saberes históricos em sala de aula. Afinal, como já dizia Paulo Freire (2005),
o processo pedagógico de aprendizagem, para fazer sentido, precisa respeitar o educando e
sua forma de perceber e interpretar a realidade. A aposta desse trabalho é a de que partir de
uma realidade que seja próxima e acessível aos alunos possa contribuir para um ensino de
História mais efetivo.

223
Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da Supermodernidade. Campinas:


Papirus, 1994.

BARROS, José D’Assunção de. Espaço, território e região: pressupostos metodológicos.


UESB: Vitória da Conquista. 2013.

COSTA, Aryana. História Local. In: FERREIRA, Marieta Moraes e OLIVEIRA, Margarida
Dias de (orgs). Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.

COSTA, Warley. Entre textos e imagens: a história do Rio de Janeiro narrada nos livros
didáticos de História regional dos anos iniciais do ensino fundamental. IN: MONTEIRO, Ana
Maria F.C. et alii. Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de História. Rio de Janeiro:
MauadX Editora, 2017.

CAVALCANTI, Erinaldo. História e história local: desafios, limites e possibilidades. Revista


História Hoje, v. 7, nº 13, p. 272-292, 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Petrópolis: Vozes, 2005 (1970).

GIL, Carmem Zeli de Vargas. Memória. In: FERREIRA, Marieta Moraes e OLIVEIRA,
Margarida Dias de (Orgs). Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro: FGV Editora,
2019.

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Escrita da História e Ensino de História: Tensões e


Paradoxos. ROCHA, H. et. alii. (Org.) A Escrita da História Escolar. Memória e
Historiografia. Rio de Janeiro, FGV, 2009.

HUYSSEN, Andreas. Resistência à memória: usos e abusos do esquecimento público. In:


Culturas do passado-presente. Modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2014.

PEREIRA, Nilton Mullet e SEFFNER, Fernando. Ensino de História: passados vivos e


educação em questões sensíveis. Revista História Hoje, v. 7, n. 13, p. 14-33. 2018.
REVEL, Jacques. Jogo de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro, Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 1998.

SUKOW, Nikita Mary e URBAN, Ana Cláudia. História local e consciência histórica: uma
revisão bibliográfica. IN: Anais do XVII Congresso Internacional das Jornadas de Educação
Histórica- Teoria, Pesquisa e Prática. Foz do Iguaçu- PR, UNILA, 2017. Disponível em:
https://dspace.unila.edu.br/handle/123456789/4214?show=full. Acesso em: 14 de Maio de
2021.

WHITE, Hayden. Passado Prático. ArtCultura, Uberlândia, v. 20, n. 37, p. 9-19, jul-dez.
2018.

224
14. PATRIMÔNIO CULTURAL, FESTA E JOGO DIDÁTICO:
LAMBE-SUJO E CABOCLINHOS NO ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL

Eliana Dias Ferreira Oliveira85

Introdução

O texto aqui apresentado é um recorte da dissertação de Mestrado em Ensino de


História intitulada Ponteiros da Memória: Educação Patrimonial no Ensino de História em
Sergipe, defendida em fevereiro de 2020, na Universidade Federal de Sergipe (UFS) sob a
orientação da Profa. Dra. Janaina Cardoso de Mello.
O fio condutor da pesquisa e produto pedagógico centrou-se na elaboração de um jogo
de tabuleiro para o ensino de História Local e Patrimônio Cultural, destinado ao Ensino
Fundamental II, a partir da cultura material corporificada nas estatuárias que compõem o
“Largo da Gente Sergipana”, em Aracaju (SE), na paisagem localizada entre o Museu da
Gente Sergipana e o rio Sergipe.
Inaugurada em 17 de março de 2018, a estatuária, concebida pelo artista plástico Tatti
Moreno (Fig.1), traz a representação das seguintes manifestações da cultura imaterial
sergipana: Lambe-sujo e Caboclinho, Bacamarteiro, Cacumbi, Parafuso, Barco de Fogo,
Reisado, Chegança, Taieira e São Gonçalo.

Fig. 1: Largo da Gente Sergipana

Fonte: Foto Eliana Dias, dezembro/2019.

85
Mestre em Ensino de História pelo ProfHistória/UFS; Licenciada em História pelo Departamento de História
da UFS; Professora da Rede Estadual do Governo do Estado de Sergipe.

225
Todas as manifestações do Largo foram pesquisadas via trabalho de campo no
intercâmbio com os grupos e estão imiscuídas no jogo (tabuleiro, cartas e cadernos de
referências culturais, atividades e regras), todavia, nesse artigo, houve a opção pela
apresentação da etnografia de percurso realizada na pesquisa de uma das estatuárias: o
Lambe-sujo e Caboclinhos.
A escolha dessa referência cultural foi motivada pelo fato de ser um “folguedo” que
reúne dois grupos que só fazem sentido na existência um do outro, trazendo à tona questões e
figuras do Brasil escravocrata, às quais permitem a compreensão da história do Brasil
escravagista e a reverberação de seus efeitos na sociedade contemporânea.
Para trabalhar com o patrimônio cultural imaterial muito além da leitura de livros,
jornais, revistas, artigos, observação de vídeos e fotografias, também é necessário um intenso
trabalho de campo, no qual as manifestações culturais são testemunhadas de perto, os
registros audiovisuais e etnográficos são coletados, sobretudo a percepção da reação subjetiva
do público e as emoções extrovertidas pelo grupo compõem um universo de experiências e
trocas onde a pesquisa se torna aprendizado contínuo.
Por isso, foram feitas imersões manifestação com observação participativa nos
municípios de Laranjeiras e no povoado Duro no município Itaporanga D’Ajuda, onde a
manifestação do Lambe-sujo e Caboclinhos ocorre, com semelhanças e distinções.
Vivenciar o momento é atravessar a tênue linha da racionalidade para a afetividade que
perpassa a vida dos sujeitos da festa, sob esse aspecto estudar folclore exige que a
pesquisadora saia de seu roteiro de apontamentos para cantar e dançar com Mestres e
Brincantes da Cultura Popular, acompanhando os cortejos, prestigiando os eventos. A
vibração das almas presentes assume o compasso harmônico do toque do pandeiro e do ganzá
e nesse momento, a pesquisa se torna também poesia.

A Etnografia de Percurso na Pesquisa para o Ensino da História Local: Narrativas de


uma Experiência

No Dicionário da Língua Portuguesa, a palavra “Folguedo” é definida como “festas


populares de espírito lúdico que se realizam anualmente, em datas determinadas, em diversas
regiões do Brasil. Algumas com origem religiosa, tanto católica como de cultos africanos, e
outras são folclóricas”.

226
Os folguedos não brotaram da imaginação, não se constituem como uma história
fictícia; eles nascem do povo, representam uma parte da nossa história, da nossa
ancestralidade e reproduzem, muitas vezes, cenas do passado histórico salvaguardadas pela
memória e oralidade.
As grandes propriedades de cana-de-açúcar, produtoras de riquezas, tinham como
força motriz da produção do seu ouro doce, o trabalho de homens, mulheres e crianças, que
chegavam ao Brasil através de uma desterritorialização forçada. Arrancando de diversas
regiões do continente africano, eram enviados para o Brasil, seres humanos, que escravizados
eram “objetificados”, negociados tal qual qualquer produto no mercado.
Eles passavam a ter um dono, “um senhor”, e a trabalhar sob a égide de castigos
físicos, sob forte vigilância de capitão do mato, o capataz. Apesar da espoliação da vida nas
propriedades escravistas, a ânsia do ser humano pela liberdade expressava-se nas diversas
formas de resistência, e dentre elas, as fugas e a criação de quilombos no meio da mata,
isolados, onde buscavam serem donos de seu próprio destino. Para Lopes, Siqueira,
Nascimento (1987, p.28), “Quilombo é o termo banto e quer dizer acampamento guerreiro na
floresta [...]. O quilombo no Brasil, toma uma feição política, social e ideológica. Foi sempre
confundido com rebelião ou insurreição”. Desse modo, o quilombo torna-se o símbolo da
resistência negra ao sistema escravocrata.
A manifestação cultural do Lambe-sujo e Caboclinhos é fruto das usinas e dos
banguês, de uma sociedade que escravizava africanos e afrodescentes, que invadia espaços,
expulsando os nativos das suas terras, ela conta a trajetória dos nossos antepassados nos
fazendo compreender que a cultura popular é uma forma de nos encontrar, Chesneax (1995,
p.24) “[...] se o passado conta, é pelo que significa para nós, [...] Ele nos ajuda a compreender
melhor a sociedade na qual vivemos hoje, saber o que defender e preservar e o que destruir”.
É uma questão sobretudo de identidade, de consciência e formação cultural do povo
brasileiro.
A escola tem o papel singular no processo de construção e compreensão de
identidades. Bittencourt (2004, p.121) afirma que: “A Constituição de identidades associa-se à
formação da cidadania, problema essencial na atualidade, ao se levar em conta as finalidades
educacionais mais amplas e o papel da escola em particular.”
Em Laranjeiras a festa ocorre no segundo domingo de outubro, quando os Lambe-
Sujos (que representam os africanos escravizados no litoral açucareiro do Brasil) e os
Caboclinhos (que representam os indígenas expulsos de suas terras, lutando para tê-las de
volta, liderados pelos portugueses) fazem uma teatralização ao ar livre de um combate entre
227
escravizados fugitivos e indígenas dos antigos Terços. Na tomada do quilombo pelos
indígenas, os escravizados fugitivos são aprisionados no conflito.
Essa representação das tensões do Brasil escravocrata se inicia no sábado pela manhã
e só termina no finalzinho da tarde do domingo. Os Lambe-sujos cobrem o corpo com uma
mistura de mel cabaú com pó xadrez preto (Fig. 2 e 3), enquanto os Caboclinhos se pintam de
água e roxo-terra (Fig. 4). Desse modo, os populares se transformam em atores entrando em
cena para reviver uma parte da história do Brasil.

Fig. 2, 3 e 4: Pintura dos corpos – Lambe-sujos e Caboclinhos, Laranjeiras (SE)

Fonte: Foto Eliana Dias. 13/10/2019.


O início da festa acontece no sábado pela manhã com o “esmolado” quando
participantes do folguedo saem as ruas pedindo ingredientes para fazer a feijoada “dos nêgo”
(Fig.6), preparada e servida tradicionalmente no domingo ao meio-dia, na casa de José
Ronaldo, o Mestre Zé Rolinha e rei dos Lambe-sujos.
Fig. 5, 6, 7,8, 9, 10, 11, 12 e 13: Mosaico da festa do Lambe-Sujo e Caboclinhos

228
Fonte: Foto Eliana Dias. 13 de outubro/2019.

Os Lambe-sujos saem pela cidade às 4h da manhã do domingo, na alvorada, e quando


o sol nasce a cidade já está completamente tomada pela alegria colorida da festa (Fig.5), pelas
músicas, pelos brincantes que tomam conta das ruas, taqueiro (Fig. 11) e ‘os negos’ vão
buscar o príncipe (Fig. 10) em casa por volta das 9h da manhã.
Com sua chegada a rua da Igreja Matriz do Sagrado Coração de Jesus (Fig.12), para
receberem a benção do padre (Fig.9), observa-se a beleza da fusão entre cultura material e
imaterial, com a paisagem da Igreja Senhor do Bonfim (Fig.4).
A cidade tomada por pessoas caracterizadas de escravizados (Fig.5, 7 e 8), lutando por
sua liberdade, faz-nos perceber o quão recente é nossa abolição e quanta luta ocorreu até que
ela acontecesse, mostra-nos a resistência de toda ordem e que ela ainda é um processo de
conquista a cada dia.
A tarde eles vão buscar o rei dos Lambe-sujos, da calçada de sua casa (Fig.6), que de
espada na mão, chama o canto “Samba nêgo” e os brincantes respondem em coro “branco
não cá, se vier, pau há de lavar”. Junto com os brincantes de foices (instrumento de trabalho
dos escravizados nos canaviais) nas mãos, taqueiros e tocadores seguem para buscar outros
personagens da festa.
229
Primeiro ponto de parada, já em companhia do rei, é o terreiro Nagô de Santa Bárbara
Virgem (casa das Taieras), de onde tradicionalmente o Pai Juá sai e se une ao cortejo (Fig.13),
sendo uma espécie de conselheiro, de guia espiritual do grupo.
A festa traz na sua performance o sincretismo religioso, o respeito à diversidade
religiosa do Brasil. Enquanto esse ritual acontece, o sistema de caixas de som da cidade ecoa
as músicas dos grupos folclóricos. A música mais cantada durante todo o dia é:
Tava capinando, a princesa me chamou
Salevanta nêgo, cativeiro se acabou
Samba nêgo, branco não vem cá,
Se vier, pau há de levar

As músicas vão ecoando pelas ruas da histórica cidade, contando um pouco de nossa
história, da nossa estrutura social, da nossa origem cultural:
Oia a Nega cum brinco na urêa
Essa Nega tá danada
Tá cum brinco na urêa
Essa Nega vai pra fonte, vai cum brinco na urêa
Essa nega vai lavar, vai cum brinco na urêa
Essa nega vai namorar, vai cum brinco na urêa.

Em toda a parte da cidade ao som dessas canções as pessoas dançam e cantam. Não
existe idade para fazer parte da festa, o pertencimento é construído nos braços dos pais. E
durante toda a festa, em todos os lugares, fotógrafos de diversas partes do Brasil não poupam
esforços buscando os melhores ângulos de registro.
Com o Pai Juá, os lambe-sujos seguem para buscar a mãe Suzana (única figura feminina
do folguedo) que sai com cesto na cabeça. A mãe Suzana (Fig. 14) aguarda em casa a chegada
dos Lambe-sujos, e pai Juá a cumprimenta. Então ela segue com ele palas ruas da cidade.
Os instrumentos musicais utilizados nessas manifestações são pandeiros, ganzás,
cuícas e tambor e a influência africana nos ritmos é forte, como não poderia deixar de ser. Os
lambe-Sujos cantam para mãe Suzana enquanto ela sai de casa:
Cadê mãe Suzana, ô Suzanê!
Mãe Suzana morreu, ô Suzanê!
Tá no oco do pau, ô Suzanê!
Tocando berimbau, ô suzane.

A fotografia de Christiano Júnior, “Escrava de ganho”, de 1864-1865, na Bahia


(Fig.14), assim como a obra do desenhista Debret, “Cena de carnaval” de 1823, no Rio de
Janeiro (Fig.16 e 17), demonstram que a figura da mulher negra que trabalha com o cesto na
cabeça era uma personagem comum no cotidiano das ruas do Brasil escravagista e mesmo no

230
período pós-abolição, a cabeça da mulher negra, era usada um instrumento de trabalho para
transporte de produtos como frutas, quitutes, doces, para venda.

Fig.14: Mãe Suzana . Fig. 15: Escrava de Ganho.

Fonte: Foto Eliana Dias. 13 de outubro / 2019; Fonte: Site Brasiliana Fotografia, 2020

Os comparativos com as fotos da mãe Suzana (Fig. 14,15, 16 e 17) mostram claramente
traços entre as imagens da história do Brasil e as imagens do folguedo aqui descrito.
Fig. 16: Mãe Suzana Fig. 17: Cena de Carnaval

Fonte: Foto: Eliana Dias. 13 de outubro/2019 Fonte: Site Arte artista, 2020

A construção dessa grande encenação não ocorre ao acaso, ela é fundamentada em


uma sociedade que escravizou, torturou e matou seres humanos.
Os Caboclinhos ganham as ruas a tarde e em menor quantidade que os Lambe-sujos.
Eles buscam seu rei em casa (Fig.18) que sai com indumentária e gestual majestoso, depois

231
seguem pelas ruas da histórica cidade e no trajeto a imagem das crianças participando da festa
é comum (Fig.20).
O grupo anda até a casa da princesa dos caboclinhos, protegida por dois caboclinhos, e
a partir daí a princesa (Fig.19) integra o grupo e eles seguem pelas ruas com embaixadores,
brincantes e tocadores. Passam por sua taba, próximo à praça da Igreja Matriz, feita de
taquara e vão para o porto do Largo do Quaresma, nas margens do rio Cotinguiba, afluente do
rio Sergipe e lá fazem o reconhecimento do quilombo.
Fig. 18, 19 e 20: Os Caboclinhos em cena

Fonte: Foto Eliana Dias. 13 de outubro/2019.

Lambe-Sujos e Caboclinhos se encontram pelas ruas da cidade e simulam alguns


embates, antes do embate final. Mais adiante os Lambe-Sujos roubam a rainha dos
Caboclinhos, e a levam para o Quilombo feito de taquara (Fig.21), planta de caule oco que
lembra o bambu, construído no Largo do Quaresma, às margens do rio Cotinguiba.
O grande momento é no porto do Largo do Quaresma, onde a luta acontece e depois de
muitos combates (Fig.22), os Caboclinhos vencem, resgatam sua rainha e aprisionam os
lambe-sujos com cordas, aprisionam o Pai Juá (Fig.23) e invadem o quilombo.

Fig. 21, 22, 23 e 24: Os enfrentamentos no Quilombo

Fonte: Foto Eliana Dias. 13 de outubro/2019.


232
O último lambe-sujo aprisionado é o que fica no alto de mastro, o negro foro (Fig.24)
observando a movimentação dos Caboclinhos e no final é colocado fogo no quilombo (apenas
para representar a destruição, sendo logo apagado).
O Quilombo era o “forte negreiro” onde escravizados fugitivos lutavam como
guerreiros pela liberdade enfrentando capitão do mato, assim como os nativos que iam a sua
busca. Para Nascimento (2002, p.264) “Os quilombos resultaram dessa exigência vital dos
africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade, através da fuga ao
cativeiro, e da organização de uma sociedade livre”. Portanto, o quilombo é a expressão mais
forte da resistência dos escravizados.
Os versos do cordelista Ronaldo Dória em “O cordel e o Folclore” conta um pouco
dessa história:
“São crenças verdadeiras
Onde os negros do quilombo
Com ações traiçoeiras
Pelos brancos comandados
Por índios eram caçados”
(...)
“Nas ruas desordenadas
Com o som da batucada
E ritmos alucinados
Saem pedindo dinheiro
E melando o povo inteiro”.

Os africanos capturados e feito cativos, tinham sua liberdade aprisionada, não sua
cultura. O ser humano é feito de cultura, os homens brancos europeus conseguiam prender
seus passos, mas nunca a fé que os acompanhava, nem o canto guardado no peito. Africanos e
seus descendentes sofreram as mais diversas violências físicas, ainda assim, mantiveram suas
tradições e afirmaram sua presença. Uma mescla de diversas culturas africanas aportaram no
Brasil, formando a singular e rica cultura brasileira. Sergipe conta essa história de Laranjeiras
à Itaporanga d’Ajuda.
No povoado Duro no município de Itaporanga d’Ajuda, cidade banhada pelo rio Vaza-
barris, o folguedo Lambe-Sujo e Caboclinho (Fig.27) é mantido há várias gerações. Os corpos
são cobertos de óleo de soja de uso doméstico, misturado ao pó xadrez preto, calção preto ou
vermelho e gurita vermelha na cabeça, são os Lambe-Sujos. Com água e roxo-terra sobre o
corpo, calção e cocar de penas de aves, estão prontos os Caboclinhos. Aqui, o local de refúgio
dos lambe-sujos se chama rancho (Fig.25) e de frente para o local dos índios, ambos iguais,
feitos de palha de coqueiros, pindoba, de dendê, localizada na área de cultura, esporte e lazer
do pequeno povoado.
233
Fig. 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 32: Mosaico da festa em Itaporanga d’Ajuda (SE)

Fonte: Foto Eliana Dias, outubro/2019

Tudo começa às 6 h com café da manhã (Fig.27), oferecido há décadas, por um


morador do povoado. O café da manhã era servido na casa do morador até 2018, mas em 2019
foi utilizado o espaço lazer, e os participantes do folguedo falavam com entusiasmo da
mudança de local, dizendo que o era lugar espaçoso, fresco e bem melhor para o café. Às 6h
da manhã os caboclinhos já estão paramentados no local, depois chegam os lambe-sujos, com
os reis dos Lambe-sujos e Caboclinhos, os mestres e os brincantes.
Após o café, os brincantes formam filas e se organizam para o primeiro enfretamento
deles e esse momento é chamado, por eles, de primeiro encontro, depois seguem cada um com
o seu rei pelas ruas do povoado e dos povoados circunvizinhos.
234
A festa não tem dimensão turística, é muito pouco conhecida fora daquela geografia,
contudo tem um importante significado para aquela comunidade. Os participantes do folguedo
se emocionam ao falar do que significa para eles: “aprendemos com os mais velhos e
seguimos por que aqui tá nossa história e ensinamos aos mais novos, aos nossos filhos a
terem amor ao que é da gente”; dizem “eu mesmo aprendi com seu zé bigode e ele sabe muito
dessa história toda, ele já tá bem idoso”. As falas deles demonstram o pertencimento as suas
raízes culturais. A tradição vem sendo passada de pai para filho.
Infere-se dessa tradição que a memória viva é representada nas simbologias da
apresentação durante todo o domingo, e é uma marca de resistência vinda do povo, feita pelo
povo e prestigiada pelo povo, que não quer legar ao esquecimento sua história, e que não
precisa da presença de um agente externo para apreciá-los, pois a própria comunidade se
completa dentro de sua história e de sua tradição.
Durante a apresentação os brincantes cantam louvor para o Santo Negro São Benedito
e outras canções com cunho religioso:
“Ô que Santo é aquele oh lê lê (2x)
O que vento mandou (2x)
É meu São Benedito oh lê lê (2x)
Ou é Nosso Senhor (2x)”

“Minha coroa é de ouro


Foi Nosso Senhor quem me deu
Valei-me Nossa Senhora
Valei-me Nossa Senhora
Os lambe-sujo tão chegando aqui agora
Os nêgos tão chegando aqui agora”

Correm pelos povoados Duro e Araticum cantando o folguedo e seu município:


“Olha os Lambe-sujo aê (3x)
Olha Caboclinhos aê (2x)
É de Taporanga aê (3x)”

“Caboclinhos acorda cedo


Já amanheceu o dia
Cantando pro nosso povo
Cantando com alegria”

E cantam cantigas de forte expressão popular:


“Meu papagaio
Não tem asa, não tem bico
Noutra terra eu não fico
Meu Papagaio
Minha terra é Itaporanga
Meu papagaio”

235
Assim, eles passam a manhã até chegarem ao povoado Araticum, nas proximidades do
povoado Duro, onde acontece o segundo encontro do folguedo. Primeiro chegam os Lambe-
Sujos, depois os Caboclinhos. Lambe-sujos e Caboclinhos não se misturam, cada um fica com
o seu grupo (Fig.28 e 29), sendo um momento especial, é nesse povoado que eles pegam as
rainhas dos Lambe-Sujos e a dos Caboclinhos. O momento é aguardado com ansiedade e
atenção pelos moradores do local, a saída delas reúne muitas pessoas e os brincantes (reis e
mestres) se emocionam, depois de uma apresentação, cada um segue com seu grupo. Logo
após, há o embate.

Quando o Folguedo Adentra o Jogo: o Ensino de História nos “Ponteiros da Memória”

O Ensino de História vive, nesse mundo contemporâneo, um momento diferenciado,


pois os trilhos antes seguidos, já não levam os professores e professoras de história a uma
estação segura de aprendizado, vive-se momentos de incertezas, angústias, e sobretudo de
tentativas, uma busca constante de levar os estudantes do ensino fundamental e médio a se
entenderem como sujeitos históricos.
Esses adolescentes e jovens inquietos, diante de um universo que se abre em apenas
um clique na palma da mão, faz com que as formas de ensino necessitem cada vez mais de
dinamicidade, criatividade e sentido. E muito além desses elementos, os profissionais do
saber histórico se deparam, a todo instante, com a internet, repleta de “dominadores da
história”, vídeos que não têm compromisso com as fontes, que não respeitam a heurística, e
que se fundamentam em achismo e naquilo que chamamos de “negacionismo histórico”, mas
usam uma linguagem atraente, seduzindo os alunos, de tal forma, a lançá-los em um mar de
ideologias e visões capazes de conduzi-los a uma luta contra a si mesmos, acreditando estar
fazendo o melhor.

Quando o jovem se depara com formas tradicionais de ensino realizadas em moldes


analógicos, coibindo o uso em sala de aula de artefatos digitais, com os quais ele
está em constante interação no dia a dia, é natural que este jovem se sinta num
ambiente estranho e, desmotivado, busque em outros espaços as respostas às suas
inquietações (SOUZA; PEREIRA; SCHNEIDER, 2014, p.12).

A opção pelo caminho dos jogos se deu devido aos benefícios que a atividade lúdica
provoca no processo de ensino-aprendizagem, a presença do desafio, do entusiasmo, da
movimentação, da inquietação, que é inerente ao ato de ludicidade presente no jogo, o desejo de
superar os limites, a relação com o(s) outro(s) jogadores e o caminho para a conquista da vitória.

236
Ao brincar e jogar na rua ou na escola podemos sentir em situações de acolhimento
étnico-cultural: valorização, receptividade, conforto e alegria. Como também, em situações de
tolhimento étnico-cultural: desvalorização, constrangimento, desconforto e tristeza. De um
modo ou de outro são momentos de aprendizagem que, no entanto, oscilam entre prazer e dor,
devendo as primeiras serem encorajadas e as segundas banidas de nossa sociedade
(PEREIRA; GONÇALVES JÚNIOR; SILVA, 2009, p.1).
O jogo com a representação do patrimônio cultural sergipano chama-se “Ponteiros da
Memória: Educação Patrimonial no Ensino de História em Sergipe”, (Fig.33 e 34) com o
formato de meia lua, incluso elementos culturais do Largo, e ponteiros que quando girados,
para onde o maior deles apontar, inicia o jogo. Há uma trilha, e a cada casa, uma surpresa, a
cada carta, uma curiosidade vai colocando o participante mais próximo ou mais distante do
ponto final da trilha, que é iniciado no barco de fogo, localizado no centro do monumento e
tem ele mesmo como ponto de chegada.

Fig.33 e 34: Primeiro Protótipo do Jogo e ponteiros

Fonte: Foto Eliana Dias, outubro/2019

O recurso didático foi confeccionado com materiais reutilizáveis, também estando


relacionado a questão ambiental e os impactos do descarte do lixo no meio ambiente, nesse
caso, sobretudo nos rios, tendo em vista que o Largo da Gente Sergipana se encontra no
estuário do rio Sergipe, que sofre com a poluição de diversas ordens.
O jogo trabalha na perspectiva da BNCC de 2018, em que o ensino de História é
colocado como portador da possibilidade de levar o aluno a estabelecer relações e produzir
reflexões sobre culturas, espacialidades e temporalidades variadas, através da construção de
noções que contemplem os seus valores e os de seu grupo, desenvolvendo para isto relações
cognitivas que o levem a intervir na sociedade.
237
O produto referido segue em diálogo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) de 1996 cujo artigo 1º caput preconiza que “a Educação abrange os processos
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas
instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e
nas manifestações culturais” (BRASIL, LDB, 1996, art.1, caput).
Dessa forma, o produto/processo tem como propósito ser um aporte didático para os
professores da rede pública e particular de ensino, com a intencionalidade de apresentar uma
forma lúdica de desenvolver os conteúdos da disciplina História atrelando-os a educação
patrimonial sergipana com a ativa participação dos alunos, buscando trazer significado ao
processo de ensino-aprendizagem em História. O jogo é um produto, assim como o jogar é
um processo de brincar e construir seu aprendizado coletivamente.

Brincar é um dever para a criança. Não é só um direito. Um dever para tornar-se um


adulto completo. É a extensão do direito de aprender. Porque a criança aprende
brincando. Ela brinca para construir sua identidade e construir os seus
conhecimentos. O primeiro direito da criança é o direito a uma identidade própria.
Brincar é coisa séria para uma criança (GADOTTI, 2005, p.5).

O tabuleiro do jogo foi espelhado no formato do Largo da Gente Sergipana e entre as


121 cartas do jogo, temos 11 cartas mestre, QR Codes, entre outros elementos. Somada a
essas características, ele contará com a estrutura desenvolvida ou construída com materiais
reutilizáveis (tampas de garrafa pet, caixa tetra pak, papelão).

Fig. 35 e 36: Estatuária do Lambe-Sujo e Caboclinho no Largo e Aplicação do jogo entre


estudantes do Fundamental II.

Fonte: Foto Eliana Dias, novembro/2019

Foram feitas validações do jogo com alunos do Ensino Fundamental (Fig.36), Ensino
Médio, Graduações da UFS (Fig. 37 e 38) e ainda com os Mestres dos Folguedos. A

238
validação feita em uma instituição escolar no bairro industrial, em Aracaju/SE, foi aplicada
ao Ensino Fundamental II (Gráfico 1) e 11 estudantes responderam a tabela de registro.

Gráfico 1

Fonte: Elaboração própria, 2020.

Nas sugestões encontrou-se pedidos de “fazer um aplicativo do jogo pra poder jogar
em celular”. Outra mensagem chamou atenção ao dizer “A missionária da minha igreja que
veio do Paraná, diz todo dia que aquilo ali é tudo representação do demônio, mas não é, é só
cultura, o joguinho me mostrou isso bem”. Mais uma vez encontramos o Largo como algo
ligado a forças negativas e mais uma vez observamos a relevância do Ensino de História na
formação de um cidadão livre de preconceitos e por isso a responsabilidade que temos com a
história, com memória e com a formação da sociedade.
Fig. 37 e 38: Validação do jogo nas Licenciaturas em Geografia e em História da UFS

Fonte: Foto Eliana Dias. Dezembro/2019.

Durante o processo, elaborou-se um caderno do professor com atividades (caça


palavras, cruzadinha e outras) como o objetivo de familiarizar os estudantes com as
manifestações culturais e ambientais presentes no Largo da Gente Sergipana, além de fazer o
elo entre elas e temas clássicos da historiografia. Há o passo a passo para o desenvolvimento
de oficinas para construção do jogo em sala de aula, um pequeno tutorial de como o professor
pode apresentar o jogo aos alunos e uma tabela interdisciplinar.

239
Considerações Finais

Observa-se que os folguedos se ressignificam com o passar do tempo, essa é uma


dinâmica presente na cultura popular, ela não é estática, está sujeita a mudanças vindas do seu
núcleo produtor. Dessa maneira, a representação do folguedo descrito é uma restauração de
significantes momentos do passado, ainda vivos na memória de grupos sociais
contemporâneos, a arte teatral produzida durante todo o dia, a interação do público, o
pertencimento da comunidade, são importante expressões de identidade cultural brasileira
revelando formas de vida, de poder, e de luta de etnias na formação desse país. É o simbólico
dançando ao som de batuques e de antigas canções, entrelaçado com a realidade atual que
tanto nos exige paz, respeito e bom convívio.
No final da década de 1990 do século XX, havia uns poucos anos que o Lambe-Sujo e
Caboclinho da cidade de Itaporanga, existia uma raiz folclórica na cidade, e outra no povoado
Duro, a raiz folclórica da cidade não se apresentavam com a criação da comissão Pró-
Encontro Cultural e posteriormente da ONG “Grupo Pedra-Bonita”, foi possível o contato
com os mestres, e a revitalização do grupo em questão, que permaneceu ativo, apresentando-
se durante a primeira e a segunda década dos anos 2000. Com a mudança do mestre dos
Caboclinho para outro município, em busca de trabalho, a manutenção dessa tradição, tornou-
se esporádica, e vem correndo o iminente risco de acabar.
Assim, sem apoio, sem instituições públicas são os moradores locais que zelam pela
sua continuidade, mas alguns folguedos acabam relegados ao desaparecimento, e com eles
tradições que contam a nossa história. A escola tem um importante papel na manutenção
dessas memórias através de um ensino crítico, sensível e gerador de conhecimentos.
O Mestrado Profissional em Ensino de História permitiu levar a tradição ancestral
africana e indígena do Lambe-sujo e Caboclinhos para um jogo de interesse de alunos,
professores, Mestres e Brincantes da Cultura Popular. O chão da sala de aula, valorizado pela
academia produz sua narrativa, sua compreensão e seu ensino através da experiência que é
científica, mas também é lúdica.

240
Referências

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,


2004.

BRASIL, LDB, 1996, BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Brasileira - LDB
(1996). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm, Acesso em:
03/12/2018.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: http://basenacionalcomum


.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf., Acesso:13/07/2019.

CHESNEAX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995, p.24.

GADOTTI, Moacir. A questão da Educação Formal/Não-Formal. In: INSTITUT


INTERNATIONAL DES DROITS DE L’ENFANT (IDE). Droit à l’éducation: solution à
tous les problèmes ou problème sans solution? Sion (Suisse), 2005. Disponível em:
https://www.passeidireto.com/arquivo/11111539/educacao-formal-e-nao-formal-moacir-
gadotti, acesso em: 25/06/2019.

LOPES, Helena T.; SIQUEIRA, José J.; NASCIMENTO, Maria Beatriz. Negro e Cultura no
Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO, 1987.

NASCIMENTO, A. do. O quilombismo. 2. ed. Brasília: Fundação Palmares, 2002.

PEREIRA, Alesandro A.; GONÇALVES JUNIOR, Luiz; SILVA, Petronilha B. G. e. Jogos


africanos e afro-brasileiros no contexto das aulas de educação física. In: Anais XII
Congresso da Association Internationale pour la Recherche Interculturelle (ARIC):
diálogos interculturais: descolonizar o saber e o poder. Florianópolis: UFSC, 2009.

241
PARTE 05 –
HISTÓRIA, LITERATURA
E AUTOBIOGRAFIA

242
15. LITERATURA E CONSTRUÇÃO DE SABERES HISTÓRICOS

Lucialine Duarte Silva86

Introdução

O ensino de História é alvo de críticas por parte dos discentes no Ensino


Fundamental e Médio, no que diz respeito à sua finalidade. Salvo exceções, percebemos
uma grande apatia em nossos alunos. Na nossa concepção, essa situação é resultado das
pressões que os educandos sofrem acerca de exames como o ENEM e o vestibular, bem
como da prática de um ensino que prima pela transmissão de conteúdos. Além disso,
compreendemos que, por ser um conhecimento permeado de subjetividade, o saber
histórico, para assumir um sentido prático, voltado para a realidade de nossos alunos,
prescinde que os sujeitos, envolvidos no seu processo de ensino aprendizagem exercitem
habilidades como a de interpretar, analisar, associar, comparar, reconhecer, selecionar e
avaliar. Exercício esse, que nem sempre é estimulado nesse mesmo processo, já que, como
referido, o mesmo é, geralmente, pautado na transmissão de conteúdos inseridos no
currículo de História.
Para nós, é o exercício das referidas habilidades que pode dinamizar a construção
de uma leitura histórica do mundo que, pautada nas demandas do nosso presente, viabilize a
construção de uma compreensão sobre as diferentes identidades, a necessidade da
construção de novas memórias e as diferentes temporalidades, por parte de nossos alunos.
E, assim sendo, possibilite que os educandos mudem uma possível concepção negativa da
disciplina, atribuindo-lhe um sentido prático já que, por meio da atribuição de sentidos a um
passado, há a possibilidade de os sujeitos compreenderem melhor o seu presente e
projetarem um futuro.
Muitas reflexões sobre essas questões têm sido feitas por educadores e
historiadores preocupados com o ensino de História. Dentre essas, devido à importância
para a nossa pesquisa, destacamos aquelas emanadas da corrente teórica, denominada de
Educação Histórica87. A qual, fundamentada nas análises do aprendizado histórico feitas

86
Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins (2017). Atua como professora da
educação básica pela Secretaria de Educação do Estado do Tocantins.
87
A Educação Histórica é uma das correntes teóricas que vem ganhando cada vez mais espaço nas produções
acadêmicas sobre ensino de História, no Brasil e no mundo. Na Alemanha, essa corrente se inspirou nas
propostas do historiador, filósofo e pedagogo Jorn Rüsen, que é referência no campo da Teoria da História e que,
243
por Jorn Rüsen, pressupõe o ensino e aprendizagem em História como um processo que
ultrapassa a ministração de conteúdos, o percebendo como uma produção narrativa com
critérios próprios, que o distinguem de outros relatos.
Diante disso, propusemos a aplicação de um procedimento didático pedagógico,
pautado na produção de conhecimento histórico, em sala de aula e, para tanto, a nossa
proposta lança mão da fonte literária para subsidiar tal produção.
Na nossa concepção, a literatura, quando vislumbrada como fonte de produção de
conhecimento histórico, potencializa a investigação da dimensão imaginária da sociedade de
um período, indicando as sensibilidades de uma época. Ela indica traços de historicidade que
não estão presentes em todas as fontes históricas, nem, tampouco, nos materiais didáticos,
adotados pelas escolas. Afinal, ela nos leva para: “os imaginários sociais e seus os símbolos
(...), os mitos, as religiões, as utopias e as ideologias” (BACZKO, 1985, p.312). Outro aspecto
dessa narrativa, é que ela pode ser encarada como enunciadora da experiência humana no
tempo (RICOEUR, 2010) e nos permitir reconhecer “outras experiências com o tempo,
diferentes das experiências oferecidas pela história verificável” (CAMPOS, 2010).
Assim, acreditando que essa proposta didática pedagógica pode levar os educandos a
vislumbrarem a subjetividade do conhecimento histórico, as especificidades da sua produção
e as várias interpretações do passado, decorrentes de tais questões, nos propomos a tal
empreitada com uma turma da 3ª série, do Ensino Médio, do Colégio Militar do Tocantins –
Unidade III, localizado na cidade de Araguaína/TO88. E, para efetivarmos tal exercício, junto
aos nossos alunos, escolhemos dois contos do autor Monteiro Lobato, Urupês e Velha Praga,
ambos escritos na década de 1910. A escolha dos referidos contos, deu-se em função de
estarmos, na época em que aplicamos a atividade proposta, trabalhando o período da
República Velha com a turma em questão. E, dentro dos temas e assuntos abordados sobre
esse período, na História do Brasil, queríamos nos remeter aos conflitos entre o tradicional e o
moderno, vivenciados pela sociedade nacional com a implantação da República. Dessa forma,

também, passou a investigar metodologias para compor uma didática específica para o ensino de História e, a
partir dos seus pressupostos teóricos tem influenciado outros pesquisadores a se especializarem no campo da
Educação Histórica. Podemos destacar, como grandes expoentes da chamada Educação Histórica, Isabel Barca,
que vem desenvolvendo pesquisas na Universidade do Minho, em Portugal e Peter Lee, que coordenou vários
projetos de investigação relacionados ao ensino e aprendizagem de História no Reino Unido. No Brasil,
contamos com as pesquisas de Maria Auxiliadora Shimidt, que preside a Associação Iberoamericana de
Pesquisadores em Educação Histórica-AIPEDH.
88
Nessa Escola, que iniciou suas atividades no ano de 2016, vinculada à rede pública estadual de ensino,
trabalhamos como professora de História, em regime de 40h semanais. Localizada em uma região periférica da
cidade, essa unidade escolar atende alunos de vários bairros da cidade. A turma escolhida cursa o 3º ano, do
ensino médio e estuda no turno da manhã. Composta por 34 alunos, entre 16 e 18 anos de idade, tem apenas um
pequeno grupo que também trabalha, no período da tarde e, a grande maioria, desses alunos, cursou as séries
anteriores, também em escolas públicas.
244
pelos enredos e tramas, dos referidos escritos, se remeterem a essa situação específica, eles
passaram a compor as fontes empíricas, que nossos alunos analisam em sua prática de
construção de saberes históricos.
Ademais, esses contos de Monteiro Lobato foram eleitos para pautar a referida produção
discente, por serem escritos de um gênero literário que, por oferecer uma leitura curta, porém
rica em informações, facilita o interesse e entendimento dos alunos. Pois, diferentemente do
romance, tanto no tamanho, quanto na forma, o conto é uma narrativa estruturada a partir de
poucos personagens, sem muitos atributos de personalidade ou funções que assumem na trama,
facilita a sua leitura e interpretação, pelo leitor (GOTLIB, 2006, p. 21).
Importante destacar, que na aplicação do procedimento pedagógico proposto, nos
inspiramos na metodologia, da chamada etnografia. Pois, em todos os momentos do trabalho
com os alunos, lançamos mão da observação direta. Além disso, assumimos, dentro de nossa
pesquisa, uma posição participante, mediando o processo de ensino aprendizagem e
interferindo, efetivamente, nele.

A Narrativa Literária e o Referencial Histórico

Sobre a Literatura, é importante salientar que esta estabelece uma ligação com a
realidade a partir do momento em que observamos as suas condições de produção e
circulação. Nela, de acordo com Umberto Eco (2003), encontramos um universo das obras
literárias que constroem “lugares dos quais onde, através da educação e da discussão,
poderiam chegar até eles [os leitores] os ecos de um mundo de valores” (ECO, 2003, p. 12).
Assim, ao analisar essa espécie de narrativa e as formas como elas se configuram, podemos
entrever experiências humanas diversas através do tempo.
Na narrativa literária, podemos destacar algumas estratégias que buscam conferir o
efeito de real a partir da historiografia. Nesse caso, apresentaremos três delas: A primeira é a
busca por um referencial ou uma ilusão de realidade. A referencialidade seria um conjunto de
textos que relaciona o mundo com o texto escrito. No entanto, na narrativa literária não existe
um compromisso em atestar o que se apresenta por meio de fontes e métodos. É uma
artimanha para prender o leitor, que se vê como um espectador do tempo adquirindo
conhecimento histórico, de duas formas “ou ele se satisfaz com o painel oferecido pelo
romance como sinônimo da verdade histórica ou o romance funciona como motivo para
seguir rastros de outras pistas historiográficas” (NASCIMENTO, 2011, p. 63).

245
A segunda dessas estratégias utilizadas pela literatura é o recurso do insólito 89. Este
recurso promove uma contraleitura, buscando desmitificar a história colocando em jogo uma
simbólica teia de sentidos com uma proposta de superação do tempo linear. Uma maneira de
identificarmos esse recurso é conhecida como a mise en abyme onde a narrativa se apresenta
como uma estrutura em abismo, ou como a narrativa de outras narrativas. O recurso do
insólito também pode aparecer como um estranhamento. Para Ginzburg (2001), “o
estranhamento é um meio para superar as aparências e alcançar uma compreensão mais
profunda da realidade” (GINZBURG, 2001, p.36).
Por fim, o terceiro elemento em questão é o tempo. Ricoeur (2010) defende que a
análise das narrativas, sejam elas históricas ou ficcionais, devem dar primazia ao tempo, pois
“o desafio último, tanto da identidade estrutural da função narrativa quanto da exigência de
verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana”. (RICOEUR,
2010, p. 15).
Nas observações de Peter Gay (2010), o referencial das obras literárias está pautado
em uma tríade de motivações: a sociedade, a arte e a psicologia. Para o autor, essas três
categorias são utilizadas na criação de seus personagens, de modo que elas se enlaçam,
invadindo-se e tornando o ato da criação um processo imbricado (GAY, 2010, p. 24). É
possível que, em determinadas obras, se verifique a preponderância de uma delas, dando ao
texto proporções únicas.
Diante disso, a literatura é uma fonte de grande valor que nos propicia uma renovada
representação da sociedade, bem como de uma época. Ela pode nos indicar o imaginário que
os grupos humanos constroem sobre si mesmos, tais como mitos, ideologias, conceitos,
valores etc. Assim como a história, a literatura é uma das formas que possibilitam ver o
mundo, sendo que a história tem a pretensão de alcançar o real acontecido e a literatura não
tem esse mesmo compromisso.

A Literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo


pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam
seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades,
perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do
imaginário. Porque se fala disto e não daquilo em um texto? O que é recorrente em
uma época, o que escandaliza, o que emociona, o que é aceito socialmente e o que é
condenado ou proibido? Para além das disposições legais ou de códigos de etiquetas
de uma sociedade, é a literatura que fornece os indícios para pensar como e por que
as pessoas agiam desta e daquela forma. (PESAVENTO, 2004, p.82)

89
Ver sobre: NASCIMENTO, Naira de Almeida. Ficção histórica contemporânea: desdobramentos e
deslocamentos. In.: WEINHARDT, Marilene (org.). Ficção histórica: teoria e crítica. Ponta Grossa: Editora
UEPG, 2011, p. 57-94.
246
A literatura, como qualquer forma de arte que venha a ser tratada como fonte
histórica, precisa ser relacionada com a realidade na qual produzida. De acordo com Cândido
(2011), essa relação pode ser entendida sob duas feições: “a primeira consiste em estudar em
que medida a arte é expressão de uma sociedade; a segunda, em que medida ela é social, isto
é, interessada em problemas sociais” (CÂNDIDO, 2011, p. 27). Para esse autor, a literatura,
por sofrer interferência do meio social, no qual foi produzida, sempre carrega um traço de
“agregação” ou de “segregação”.

A primeira se inspira principalmente na experiência coletiva e visa os meios


comunicativos acessíveis. Procura, neste sentido, incorporar-se a um sistema
simbólico vigente, utilizando o que já está estabelecido como forma de expressão de
determinada sociedade. A segunda se preocupa em renovar o sistema simbólico,
criar novos recursos expressivos e, para isto, dirigi-se a um número ao menos
inicialmente reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da sociedade.
(CANDIDO, 2011, p. 33).

Independente de essa narrativa tratar-se de uma invenção, a Literatura está situada


em um processo histórico. É dessa forma que o historiador deve interrogá-la, aceitando-a
como um testemunho histórico, levando-se em consideração que a Literatura nos proporciona
também representações da realidade, uma construção pautada, assim como a História, na
verossimilhança, carregada de sensibilidades sobre uma época, um lugar, um povo. Nessa
medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do
mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a capturar no
passado, à própria energia da vida. (PESAVENTO, 2003, p. 32).

A Literatura como Fonte de Produção de Conhecimento Histórico na Sala de Aula

A literatura, por apresentar uma linguagem diferenciada em relação às produções


historiográficas, pode ser utilizada como uma estratégia facilitadora da compreensão histórica,
possibilitando o conhecimento do passado por meio da ampliação dos sentidos, estimulada
pela imaginação. De acordo com Solé “o contato com as histórias [narrativas literárias, mais
lúdicas] permitem aos alunos, muitas vezes, alargar as suas experiências e os seus horizontes.
A própria estrutura da narrativa literária estimula os leitores a identificar aspectos da História,
como eventos, personagens e fenômenos” (SOLÉ, 2014, p. 9).
É no campo das possibilidades que se encontra o caráter interdisciplinar 90 do
emprego da Literatura nas aulas de História. Esse recurso possibilita o benefício de se

90
O conceito de interdisciplinaridade que compartilhamos é mesmo proposto por Yared (2008) que o considera
como um “movimento (inter) entre as disciplinas, sem a qual a disciplinaridade se torna vazia; é um ato de
247
promover nos alunos a criação de uma visão interdisciplinar do saber que pode ser
caracterizada como uma nova atitude em relação à produção de conhecimentos, possibilitando
o acesso aos aspectos implícitos da aprendizagem, ou seja, proporciona a obtenção de uma
postura interdisciplinar, a saber, uma mentalidade de diálogo profundo e verdadeiro que busca
recuperar uma totalidade cognitiva dos saberes (YARED, 2008, p. 162).
À vista disso, Lee (2006) considera que o conhecimento escolar do passado e
atividades estimulantes em sala de aula são inúteis se estiverem voltadas somente à execução
de ideias de nível muito elementar (LEE, 2006, p. 136). Assim, como premissa para atingir a
literacia91 histórica acreditamos que a narrativa literária contribui para desenvolver outra
habilidade necessária para que a aprendizagem histórica se efetue, isto é, desenvolver nos
alunos a capacidade imaginativa para conceber que as explicações históricas podem ser
motivadas e condicionadas por grupos que reivindicam justificativas históricas para questões
sociais atuais, propondo por meio destas mudança de padrões, crenças e valores e, não menos
importante “que as considerações históricas não são cópias do passado”, mas respostas a
determinadas perguntas elaboradas sobre o passado, não sendo sequer a resposta por
completo.
Diante dessas considerações, entendemos que a narrativa literária também contribui para
o ensino de História, pois se configura em forma de narrativa e, de acordo com Rüsen (2001), as
narrativas, são um procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e ao mundo,
relacionando o passado ao presente através de uma lógica própria da narrativa, o que acaba por
condicionar o pensamento dos homens sobre o passado e levando-os a elaborar um pensamento
histórico sobre ele, isto, formando uma consciência histórica (RÜSEN, 2001, p.149).
Em sala de aula, o contato com outra forma de narrativa que não a histórica
oportuniza o aprendizado histórico não apenas de forma cognitiva, mas como um processo
que gera as habilidades necessárias ao trabalho abstrato da análise do passado como a
experiência, a interpretação e a orientação dos indivíduos no tempo, pois:

Somente quando a história deixar de ser aprendida como a mera absorção de um


bloco de conhecimentos positivos, e surgir diretamente da elaboração das respostas a
perguntas que se façam ao acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela
ser apropriada produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação

reciprocidade e troca, integração e voo; movimento que acontece entre o espaço e a matéria, a realidade e o
sonho, o real e o ideal”. YARED, 2008, p. 165.
91
Historiador e filósofo inglês, Peter Lee, desenvolveu o conceito de literacia histórica dialogando,
principalmente, com o campo da Teoria da História e o da Didática da História, tendo como principal
interlocutor o alemão Jörn Rüsen. Para Lee, a literacia histórica é a capacidade de “ler do mundo” conjugada ao
conhecimento histórico. Ver sobre: LEE, P. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar em Revista.
Curitiba. Especial. Dossiê: Educação Histórica, 2006, p. 131-150.
248
cultural da vida prática humana. (RÜSEN, apud, SCHMIDT, BARCA e MARTINS,
2011, p. 44).

Aplicação da Atividade Didática Pedagógica Proposta

Para a aplicação do procedimento didático-pedagógico supracitado, necessitamos, de


antemão, preparar os educandos 92 para essa atividade que, até então, é para eles, inédita. Na
primeira etapa dessa preparação, nos dedicamos a trabalhar, em sala de aula, com noções
teóricas e metodológicas básicas para a produção de conhecimento histórico. Para tanto,
organizamos um material didático, o qual nos auxilia a oportunizar aos educandos o
entendimento de que o conhecimento histórico é resultado de pesquisa, debate, formulação e
espírito crítico. Após a primeira etapa, dessa preparação dos educandos para a efetivação do
procedimento pedagógico proposto, abordamos as condições de produção específicas das
fontes que embasam a proposta pedagógica em pauta. Assim, trabalhamos com os alunos,
aspectos da época em que as supracitadas narrativas literárias foram produzidas; nuances
biográficas do seu autor e os contos selecionados para esse trabalho.
Para nortear a produção dessas narrativas históricas, os discentes, embasados nos
estudos efetivados e descritos respondem a seguinte questão93: Conforme os estudos feitos,
construa uma narrativa histórica sobre o Brasil, no período da República Oligárquica, tendo
como fonte os contos de Monteiro Lobato.
Assim, é por meio da análise dessas narrativas, produzidas pelos discentes, que
averiguamos se o objetivo dessa metodologia é alcançado, isto é, se a mesma contribui para
romper com um ensino de História voltado apenas para a transposição didática 94. Assim
sendo, os itens a seguir, analisam os indícios de reflexão e compreensão relativos aos
meandros do processo de construção, de conhecimento histórico, por nós diagnosticados, nas
narrativas produzidas pelos discentes, com o exercício da metodologia em pauta.

92
Ainda no primeiro encontro, organizamos um plano de trabalho, estabelecendo as etapas e as datas para a
realização da metodologia. Nesse momento, observamos que a turma fica dividida: um grupo de alunos sente-se
extremamente desafiado e entusiasmado com a possibilidade de construir algum saber histórico, demonstrando
até certa ansiedade para que essa metodologia fosse iniciada. No entanto, um segundo grupo, por acreditar que
esse tipo de conhecimento só possa ser construído na academia, demonstra pouco entusiasmo para tal tarefa.
93
Tal tarefa foi desenvolvida, de forma individual, no último encontro, contemplado para o exercício da nossa
proposta didático pedagógica.
94
Durante a aplicação desse procedimento pedagógico, recorremos à etnografia. Afinal, em todo o processo de
sua efetivação, houve, por meio da observação, a nossa direta interferência. É a chamada observação
participante, que ocorre quando o observador assume a função de mediar a aplicação da prática e, ao mesmo
tempo, em que interfere nesta, observa as reações mediante sua intervenção, pois: “é a partir da dialética entre
pesquisador e sujeito-objeto que se inicia o processo, estabelece-se as relações com o contexto a ser pesquisado,
desenvolve-se o trabalho de coleta de dados, processa-se as análises e se constrói o trabalho científico”
(MATTOS, 2011, p. 25).
249
Sensibilidades

Algumas das sensibilidades, perpassadas nas obras literárias, estão presentes nas
narrativas produzidas pelos alunos sobre o período da República Velha. Pois, na grande
maioria desses escritos, principalmente aqueles que se referem ao conto Velha Praga, há a
referência ao sentimento de preocupação com o advento da Primeira Guerra, que permeava a
sociedade brasileira, da época. Exemplo disso, pode ser observado nesse trecho da narrativa
da aluna ACGR (F)95.

“Monteiro Lobato, que era um fazendeiro rico, mostrou um pouco da história da


República Oligárquica através do conto Velha Praga, uma história escrita tentando
mostrar a falta de preocupação dos políticos com o que estava acontecendo no
Brasil. Ou seja, eles estavam mais preocupados com a Guerra, com os soldados que
estavam participando da guerra do que os vários problemas internos que estavam
acontecendo no Brasil” (SILVA, 2017, p. 59).

O que mais chama a atenção na narrativa, dessa aluna, sobre essa questão, é o modo
como ela identifica as implicações diretas da guerra sobre a população brasileira, isto é, a
aluna reconhece, por meio do recrutamento e envio de soldados brasileiros para a Europa,
como essa guerra era encarada pela sociedade da época, ou seja, esse conflito não era apenas
um espetáculo a ser assistido, mas compelia o envolvimento da nação brasileira.

Verossimilhança

Uma das questões que trabalhamos com nossos alunos acerca da fonte literária foi a
verossimilhança, que nada mais é do que a influência de uma dada realidade trazendo para sua
escrita, vestígios do passado, indícios de uma época.

O Conto Urupês de Monteiro Lobato mostra uma mistura de um conto fictício e a


realidade de sua época. Ganha-se conhecimento com o conto pois mostra conteúdo
que dificilmente se encontra em um livro de História. Urupês é escrito por alguém
que viveu e presenciou o momento e repassa todo seu conhecimento de forma
descontraída dependendo apenas de uma boa interpretação do leitor (SILVA, 2017,
p. 62).

Por meio dessa narrativa, percebemos que o aluno PHSM (M) identificou a
imbricação entre a realidade do autor e a construção da sua narrativa ficcional. Situação que o
leva a perceber os Contos, de Lobato, como documentos históricos, permeados de
verossimilhança e, por isso, riquíssimos no que diz respeito a indícios de historicidade. Além

95
Para não expormos a identidade dos discentes que produziram as narrativas analisadas, optamos por indicar
apenas as iniciais dos seus nomes, bem como fazer menção, entre parênteses, ao sexo a que pertencem.
250
disso, o aluno destaca a importância do papel do leitor diante de um documento como esse,
reconhecendo que “qualquer obra literária é evidência histórica objetivamente determinada -
isto é, situada no processo histórico -, logo apresenta propriedades específicas e precisa ser
adequadamente interrogada” (CHALOUB; PEREIRA, 1998, p.7).

O Autor e seu Lugar de Fala

Durante a análise dos contos, nossos alunos foram orientados a buscar as influências
exercidas pelo meio social sobre a obra do autor, pois como afirma Cândido (2011) o caráter
social da obra de arte “depende da ação dos fatores do meio, que se exprimem na obra em
graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a
sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando nele sentimentos e valores” (CÂNDIDO,
2011, p. 30).
Nesse ponto, observamos que a maior parte dos alunos lançaram mão da biografia do
autor, que foi trabalhada, em sala de aula, para chegarem à conclusão de que Monteiro Lobato
apresenta uma literatura de agregação, tendo em vista que o autor reforça a ideologia do grupo
que exercia o domínio político do país, conforme podemos verificar na narrativa do aluno
NRS (M).

De acordo com os contos de Monteiro Lobato que abordam lados da história, dos
fazendeiros e dos caboclos, devido ao fato de Monteiro ser um fazendeiro e ele faz
uma narrativa em prol de sua classe social e classifica os caboclos como uma praga
(SILVA, 2017, p. 63).

Já no caso da narrativa do aluno MGS (M), reconhecemos a relação com a sociedade


europeia e, de acordo com o aluno, a influência que esta exercia sobre a população brasileira,
pelo menos em relação à elite, já que, o homem do campo, não estava envolvido com o
projeto de modernidade que a República apregoava.

Os alvos de suas críticas no conto Urupês eram exatamente em cima das


características da República vivida, fato esse por fazer parte dela, pois era dono de
grandes fazendas herdadas de seu avô. Toda a problemática da nova República
indignava Lobato. Os caboclos tocando fogo em tudo, os currais eleitorais, a
sociedade elitizada no estrangeiro, principalmente pela eclosão da Primeira Grande
Guerra. E através de sua indignação passada no conto, é um complemento para que
possamos aprender mais sobre a história brasileira através da literatura (SILVA,
2017, p. 65)

Analisando as narrativas de nossos alunos tendo como princípio norteador o autor,


foi possível identificar um nível de compreensão histórica que Shimidt e Cainelli (2009)
denominam de compreensão restrita do passado. Esse tipo de compreensão é caracterizado
por uma interpretação sobre o passado na qual geralmente se estabelece como foco um único
251
indicador, seja um marco temporal, ou o local de fala do autor. Apesar disso, é possível notar
que as narrativas que demonstram esse tipo de compreensão revelam algumas tentativas dos
alunos em reformular as informações contidas nos textos abordados em sala de aula.

Empatia Histórica

Entre as contribuições que a Educação Histórica e suas metodologias buscam


promover, a empatia histórica assume um lugar de destaque para o Ensino de História. Esse
termo é um dos conceitos de segunda ordem96 que Peter Lee (2001, p.15, apud ROSÁRIO,
2009, p. 15) considera extremamente necessários para que a Educação Histórica aconteça.
No caso específico da relação entre a República Velha e o desenvolvimento da
empatia histórica, a fonte literária, nos ofereceu, entre outros recursos, a possibilidade de
trabalharmos com a questão da empatia de uma forma mais consistente e produtiva. Com a
introdução dos contos, percebemos indícios de que nossos alunos direcionaram seu olhar para
as personagens da trama, procurando entender suas motivações e posicionamentos a partir do
ponto de vista dos sujeitos dessa época. Desse modo, aplicaram o recurso da imaginação para
associar essas personagens aos papeis sociais que estas assumiriam se vivenciassem o
contexto da República Velha, colocando-se no lugar do outro e, assim, reconhecendo a
alteridade em relação aos sujeitos do passado.

“Os camponeses ou “caboclos”, como citados no conto estavam indignados com a


péssima qualidade de vida e trabalho em que levavam, pois eram praticamente
explorados por estes fazendeiros” (SILVA, 2017, p. 71).

O destaque que o aluno MVFS (M) deu a personagem que é alvo das críticas do
autor, o levou a buscar menos a motivação de Lobato para criticar o caboclo e se dedicar em
tentar justificar o que levaria o matuto a agir conforme os contos relatam. Em seu exercício de
empatia, o aluno tentou compreender o papel social da personagem e verificou, com base nos
conteúdos estudados, que o grupo social que está representado na figura do camponês é um
grupo que assumiu uma posição de subserviência, diante da elite social do período. Essa elite,
que possuía além do poder econômico, o poder político, limitava as opções do caboclo, que

96
A educação histórica divide os conceitos fundamentais em História em duas categorias, para que haja a
compreensão do conhecimento histórico: conceitos substantivos e conceitos de segunda ordem. Os primeiros
correspondem aos conteúdos de História como renascimento, revolução, entre outros; já os conceitos de segunda
ordem são compreendidos como os conceitos básicos para que possa compreender quaisquer conteúdos
substantivos como, por exemplo, progresso, desenvolvimento, época, etc. Ver sobre: SCHMIDT, Maria
Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. 2ª ed. – São Paulo: Scipione, 2009, p. 23.
252
não oferecia resistência ao sistema e, se o fazia, não era de se admirar que não agisse com ares
de contestação e rebeldia.

O Tempo

No Ensino de História, o tempo é uma das categorias fundamentais que devem ser
trabalhadas em sala de aula. No entanto, a habilidade mental exigida para que essa categoria
tão abstrata seja aprendida pelos alunos, transforma o tratamento com o tempo, um dos
maiores desafios do professor de História.
Ao analisarmos as narrativas dos alunos em relação ao elemento tempo,
reconhecemos, também, os seus esforços em identificar algumas características peculiares do
seu próprio tempo. Partindo da análise dos contos, os educandos puderam compreender o
tempo para além de uma mera sequência cronológica, lidando com algumas noções temporais
como: sucessão, duração, simultaneidade, mudanças e permanências, continuidades, etc.
(SHIMIDT; CAINELLI, 2009, p. 98). Essas noções contribuem para ordenar os
acontecimentos, para que o aluno possa estabelecer as relações de causalidade, além de
contribuírem para que os alunos possam explicar o presente por meio da análise do passado e,
ao mesmo tempo, considerar o passado em meio às suas peculiaridades.

No conto Velha Praga, foi marcado por diversos acontecimentos marcantes, a


narrativa se passa durante a Primeira Guerra Mundial que coincidiu com a República
Oligárquica no Brasil. Nesse período, os olhos do Brasil se voltavam para o exterior,
deixando de lado seus problemas internos. Enquanto lá fora havia o fogo das armas,
no Brasil havia o fogo real devastando as matas brasileiras” (SILVA, 2017, p. 75).

Nessa narrativa é possível afirmar que a aluna KBK (F) utilizou a noção temporal da
simultaneidade para reconhecer que a falta de solução para o problema das queimadas na
Serra da Mantiqueira, estava relacionada à guerra na Europa, que ocorria
contemporaneamente. Por meio dessa observação, a aluna também afirmou que esse fato
representava a prioridade que a sociedade brasileira concedia às questões externas, em
detrimento do que ocorria no país. O trecho da narrativa, que melhor releva essa
simultaneidade, ocorre em torno do jogo de sentidos agregados pela aluna à palavra fogo,
ressaltando que o “fogo real” estava atingindo o Brasil com maior impacto do que o “fogo das
armas” da Primeira Guerra Mundial.
Diante do exposto, podemos afirmar que, com a prática do procedimento didático
pedagógico proposto, além de conseguirmos oportunizar, aos alunos, uma melhor
compreensão da República Velha e, principalmente, uma maior reflexão e entendimento sobre
questões cruciais relativas à compreensão do passado e dos meandros da produção do saber
253
histórico, contribuímos para que nossos discentes tenham uma melhor leitura histórica, do
mundo.

Considerações Finais

Diante da necessidade de novas metodologias para o Ensino de História, lançamos


mão da narrativa literária como forma de promover, junto aos alunos, a construção de saberes
históricos. Pois, por meio dessa prática, acreditamos oportunizar, ao educando a construção de
competências que promovam a literacia histórica, isto é, esse procedimento busca
proporcionar um Ensino de História que se desocupe das habilidades cognitivas universais e
passe a investir em uma educação que busque desenvolver habilidades cognitivas específicas
da História (SHIMIDT, 2009, p. 9).
Durante todo o processo de aplicação dessa prática de ensino de História,
observamos que nossos alunos se dispuseram a ampliar sua perspectiva sobre a disciplina,
desde a apresentação e discussão do material que elaboramos para orientá-los, nessa prática.
Além disso, em nossos encontros, destinados ao debate do material, bem como dos contos,
percebemos que essa prática contribuiu para construção de conhecimento em sala de aula,
principalmente em relação aos questionamentos sobre a realidade da turma.
Percebemos que, para esses alunos, um texto nunca mais será encarado com um
relato ou testemunho fiel de um momento e que os mesmos já são capazes de buscar
reconhecer as intencionalidades e posicionamentos de escritores ao reconhecê-los como
sujeitos que carregam consigo um lugar social de fala. Desse modo, os alunos identificaram
quais as representações que Monteiro Lobato compartilhava com o segmento social no qual
estava inserido e, por isso, havia uma resistência, dele, ao modo de vida do caboclo. Esse
conflito observado na reconfiguração do imaginário, está presente nas representações que
Monteiro Lobato nos oferece em seus contos, ao eleger o Jeca como um símbolo da inércia
sócio-politica-econômica do caboclo e ao comprovar essa inercia por meio da postura
corporal adotada por este já que “em todos os atos da vida, o Jeca, antes de agir, acocora-se.”
Sobre esses aspectos, Lima (1980) afirma que o corpo não é o símbolo em si
mesmo, mas o ritual torna-se simbólico já que este “apenas condensa um investimento
[simbólico] que se cumpre diariamente” (LIMA, 1980, p. 70) e é por meio desses rituais que
os “membros de uma sociedade qualquer tendem a se ver nos que lhes são iguais e marcar sua
diferença quanto aos outros seja o ‘bárbaro’, o ‘goy’, o ‘payo’ [ou o caboclo]” (1980, p. 72).

254
Outro aspecto importante, que foi observado, em nossa prática, foi o exercício da
empatia histórica, efetivado por nossos alunos. Pois, por meio dela, os discentes ultrapassaram
a visão mais comum e anacrônica sobre os sujeitos de tempos diferentes, na qual o julgamento
das ações praticadas no passado é alicerçado na realidade do presente, em que os alunos estão
inseridos. Desse modo, verificamos que alguns discentes conseguiram refletir, tanto sobre a
postura de Monteiro Lobato, quanto em relação à apregoada apatia social e política do
caboclo, buscando compreender as motivações e influências que, as conjunturas da época,
impunham aos seus posicionamentos e ações.
Ademais, é possível deduzir que a turma, com a prática proposta, também
desenvolveu reflexões sobre o tempo, o que para nós é considerado um avanço extremamente
importante para aprendizagem histórica, tendo em vista que a temporalidade é uma das
habilidades que devem ser priorizadas no Ensino de História e que pressupõe “ter o tempo
como significante para que o sujeito, a partir de temporalidades diversas, possa perceber que
aprender história é reconhecer em outros tempos e sujeitos, experiências, valores e práticas
sociais” (SHIMIDT; CAINELLI, 2009, p. 106).
Além desses resultados positivos, alcançados com o procedimento didático-
metodológico adotado, destacamos que a nossa prática possibilitou o diagnóstico de alguns
fatores que podem ser considerados lacunas ou dificuldades do processo de ensino-
aprendizagem em história, na turma em questão. Dentre esses, detectamos que há, no grupo
trabalhado, diferentes graus de compreensão do passado, entre seus componentes. Além disso,
observamos que os discentes tiveram dificuldades para entender a linguagem rebuscada, dos
contos. E, sem dúvida, tais diagnósticos permitem intervenções do professor, em sala de aula,
que, por meio de atividades e metodologias próprias, pode estimular a superação dessas
lacunas por parte de seus alunos.
Contudo, acreditamos que parte dessas dificuldades se deve ao fato de que poucas
metodologias de ensino em História, terem sido aplicadas, com o intuito de promover a
construção da literacia histórica com esses alunos e, sem esse exercício, o ensino de História
não pode levar nossos alunos a compreensão de que a História “é em si uma realização
histórica, com suas próprias regras metodológicas e práticas, guiadas pela teoria” (LEE, 2006,
p. 135) e que esta fez parte da trajetória humana, desde os primeiros grupos humanos, que
procuravam formas de explicação sobre o tempo presente por meio de narrativas que
contassem suas origens.
De qualquer forma, torna-se importante ressaltarmos que, a descrição e análise do
procedimento didático metodológico proposto, nesse trabalho, bem como seus resultados, tem
255
o fito de indicar, somente, a nossa experiência com tal prática. Pois, sem dúvida, em cada
realidade, em cada grupo de alunos e professores, em que um procedimento, dessa
modalidade, é aplicado no processo de ensino e aprendizagem em história, os resultados serão
sempre diferentes. Contudo, acreditamos que, por temos atingido resultados positivos, no que
consiste à promoção da reflexão e do entendimento de questões relativas à construção de
conhecimento histórico, por parte dos alunos, essa prática pode potencializar a construção de
uma melhor leitura histórica, do mundo, por parte dos nossos discentes.

Referências

BACZKO, Bonislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 5. Anthropos-


Homem, (1985), p. 296-332.
BARCA, I. Literacia e consciência histórica. Educar em Revista. Curitiba. Especial. Dossiê:
Educação Histórica, 2006.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4 ed.
São Paulo: Cortez. 2011.
BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
CAMPOS, Maria Antonieta de. História e Ficção: fronteiras do ensino de História. Revista
Tempo e Argumento. v. 2, n. 1, p. 176-199. Jun/jul 2010.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2011.
CHALLOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (Org.). A História
contada: capítulos de História social da Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998.
CORREIA, Janaína dos Santos. Uso da fonte literária no Ensino de História: diálogo com o
romance “Úrsula” (final do século XIX). História & Ensino, Londrina, v. 18, n. 2, p. 179-
201, jul./dez. 2012
ECO, Umberto. Ensaios sobre a Literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.
GAY, Peter. Represálias Selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens,
Gustave Flaubert e Tomas Mann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
GOTLIB, Nádia Battella, Teoria do conto. 11.ed. São Paulo: Ática, 2006
LEE, P. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar em Revista. Curitiba.
Especial. Dossiê: Educação Histórica, 2006, p. 131-150.
LIMA, Luís Costa. Mimeses e Modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1980.
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 2005.

256
MATTOS, C. L. G. Estudos etnográficos da educação: uma revisão de tendências no Brasil.
In.: MATTOS, C. L. G. e CASTRO, P. A. (Orgs.) Etnografia e educação: conceitos e usos
[online]. Campina Grande: EDUEPB, 2011. p. 25-48.
NASCIMENTO, Naira de Almeida. Ficção histórica contemporânea: desdobramentos e
deslocamentos. In.: WEINHARDT, Marilene (Org.). Ficção histórica: teoria e crítica. Ponta
Grossa: Editora UEPG, 2011, p. 57-94.
PESAVENTO, Sandra Jatahy, Fronteiras da ficção. Diálogos da história com a literatura.
Revista História das Ideias – Instituto História e Teoria das Ideias – Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, vol. 21, 2000, p. 33-57.
________, História e História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2004.
________, O mundo como texto: leituras da História e da Literatura. História da Educação,
ASPHE/UFPel, Pelotas, nº 14, p. 31-45, set. 2003.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. -vol. 1- São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010.
RÜSEN, Jörn. A Razão histórica: a teoria da história: fundamentos da ciência histórica.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. História do Ensino de História no Brasil: uma proposta de
periodização. Revista História da Educação, Porto Alegre, v. 16, n. 37, maio/ago. 2012, p.
73-91.
________: Literacia Histórica: um desafio para a educação histórica no século XXI. História
& Ensino, Londrina, vol. 15, p. 9-22, ago. 2009.
________; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (Org.). Jörn Rüsen e o Ensino
de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.
________; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. 2ª ed. – São Paulo: Scipione, 2009.
SILVA, Lucialine Duarte. Fontes literárias e a construção de saberes históricos: uma
proposta didático-pedagógica no Ensino de História. Dissertação (Mestrado em Ensino de
História) – Universidade Federal do Tocantins. Araguaína: 2017.
SOLÉ, Glória; REIS, Diana; MACHADO, Andreia. Potencialidades didáticas da literatura
infantil de ficção histórica no ensino de História: Um estudo com alunos portugueses do 6.º
ano do ensino básico. História & Ensino, Londrina, v. 20, n. 1, p. 7-34, jan./jun. 2014.
YARED, Ivone. O que é interdisciplinaridade? In.: FAZENDA, Ivani (Org.). O Que é
interdisciplinaridade? - São Paulo :Cortez, 2008.

257
16. REFLEXÕES SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR NO BRASIL
(1964-1985) A PARTIR DA CENSURA APLICADA ÀS MÚSICAS
“BREGAS” E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NA SALA DE AULA
Lívia Karolinny Gomes de Queiroz 97
Isaíde Bandeira da Silva 98

Introdução

A ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) é um tema que está carregado de


informações, versões, ficções e polêmicas. Um período que faz parte da história recente do
Brasil e que vem sendo alvo de tendências revisionistas e negacionistas. Decorridos 57 anos,
o movimento do golpe continua a ser visto como um momento que ainda está em muitas
disputas.
Como o assunto sobre ditadura é muito amplo, sentimos a necessidade de fazer um
recorte e estudar algumas músicas “bregas” que foram censuradas a partir da implementação
do AI-5. Há, ainda, poucas pesquisas na academia que se dedicam a estudar esse gênero
musical. Diante disso, surge-nos uma inquietação quanto a relação que essas produções
musicais possuem com o contexto da ditadura civil-militar.
O interesse por pesquisar a ditadura civil-militar se deu nos tempos de graduação, em
2010, quando trabalhamos com a proposta de estudar as músicas da ditadura que eram
abordadas nos livros didáticos de História do Ensino Médio. Retomar esse debate 10 anos
depois, agora no ProfHistória (UERN) tem sido um processo instigante, motivador e envolto
em novos debates.
Do início da pesquisa até aqui, são muitos e novos debates, versões, documentos,
propostas. Dessa forma, resolvemos continuar essa abordagem, agora com foco nas músicas
“bregas” que foram censuradas naquele período e como estas podem nos ajudar a
compreender a sociabilidade da ditadura civil-militar. Uma das nossas motivações surgiu a
partir do contato com alguns documentos da censura, onde tivemos acesso a pareceres de
vetos a algumas músicas que não eram de protesto político, mas que incomodaram os
censores naquela época. Ressaltamos que o site censura musical está fora do ar no momento,
porém é necessário citá-lo aqui, pois foi nesse espaço que tivemos acesso a vários documentos

97
Cursando mestrado no Programa de Pós-graduação em Ensino de História (ProfHistória), pela Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte/UERN, orientada pela Profª. Drª. Isaíde Bandeira da Silva e graduação em
Letras-Espanhol, pela Universidade Federal do Ceará/UFC, livia.karolinny@gmail.com .
98
Universidade do Estado do Ceará/UECE e do Programa de Pós-graduação em Ensino de História
(ProfHistória), pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, isaide.bandeira@uece.br .
258
da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) com os pareceres de músicas que
foram censuradas, bem como entrevistas com cantores da música brega, censores da época,
cartas de telespectadores dos programas de TV, etc.
É de fundamental importância defender a questão de nomear o período de “ditadura
civil-militar”, fundamentada nas ideias de Reis (1997), tendo em vista que houve
envolvimento de amplos segmentos da população no golpe. Daniel Aarão frisa que “o golpe
de 1964 ocorreu com a participação de militares, populares, segmentos organizados, como a
OAB, a CNBB e a Imprensa.
Quando falamos sobre ditadura, música e censura, a tendência é que nomes como
Chico Buarque, Caetano Veloso venham à tona como imagens consagradas de artistas que
foram censurados pelo regime militar. Mas é preciso lembrar que alguns artistas do universo
“brega” também foram censurados, e por questões que não tinham ligação com protesto
político explícito. Salientamos que o nosso intuito não é negar a importância de movimentos
como “Tropicália” ou minimizar a influência de Chico Buarque, mas vemos que é necessário
falar sobre outras camadas da sociedade, outros gêneros musicais que foram censurados e são
importantes para entendermos a sociabilidade do período de ditadura no Brasil.
No final dos anos 1970, uma nova tendência surge no Brasil, através de vários
cantores com este novo estilo musical denominado brega e/ou cafona. Desde o começo da
década de 1980, se utiliza o termo “brega” para designar a música de mau gosto, geralmente
produzidas para as camadas populares; surgindo como uma forma pejorativa no que se refere
às preferências musicais das classes menos favorecidas economicamente.
A partir dessas questões surge a problemática norteadora deste trabalho, que é discutir
e analisar como a música “brega" pode ajudar a compreender a sociabilidade da ditadura civil-
militar no Brasil (1964-1985), partindo das motivações utilizadas para aplicar censura a essas
produções.
Com base no conceito de representação trazido por Chartier (1990), salientamos que a
música possui um papel importante enquanto forma de conhecimento histórico. A história
cultural é a forma como os indivíduos e a sociedade idealizam, imaginam e representam a
realidade e de como esse entendimento orienta suas práticas sociais.
Para compreender o sentido da história, nos valemos da interpretação de Rusen (2006),
entendendo que a relação temporal entre passado e presente acontece numa relação dinâmica
de representação e interpretação. Refletimos também sobre a elaboração do conceito de
consciência histórica, que acontece a partir da interpretação do passado de modo a
compreender o presente e orientar atitudes com perspectivas de futuro.
259
Recorremos a Napolitano (2002); ressaltando que as músicas podem ser um excelente
caminho para pensar a complexidade da ditadura, devem ser vistas como componentes
daquele contexto e algo relevante para uma reflexão crítica sobre o que foi a música naquele
período, a própria ditadura e seus significados atuais.
E ainda numa reflexão sobre a música brega dialogamos com o livro “Eu não sou
cachorro, não”, que rompe com alguns silêncios do que diz respeito à nossa música popular.
Araújo (2003) mostra o outro lado da MPB, onde os artistas tidos como “cafonas” não são
incluídos e “temos cristalizada, no campo da música popular, uma memória que associa o
período da repressão política no Brasil apenas aos cantores/ compositores da MPB”, sendo
que estes artistas bregas eram os que mais vendiam e atingiam a maior camada brasileira.
Cantores como Dom e Ravel e Odair José, entre outros, também foram perseguidos e vetados
pela censura no Brasil.
Existe uma intensa revisão sobre esse momento histórico e acreditamos que isto ocorra
devido às contradições que o período ainda provoca e às muitas visões e interesses que
existem sobre o mesmo. Existindo também uma tentativa de redefinir este passado tanto pelos
que vivenciaram o momento, como também pelos que investigam e interpretam com base em
documentos escritos e orais. Ressaltamos que existe uma necessidade problematização da
construção de memórias sobre o período, no debate entre as temporalidades. Como afirma
Aarão (1997), é importante perceber que a memória da ditadura está em disputa, e que
existem várias versões sobre o período.
Assim, verificamos que o período não deve ser interpretado como um jargão, e sim
dentro de uma perspectiva crítica em que os silêncios e desdobramentos do período sejam
sempre discutidos tendo em vista que as memórias do período estão em disputas.
Através de uma pesquisa documental – a qual tivemos acesso através do site censura
musical - trazemos uma análise da censura a partir da música brega e de alguns documentos
oficiais da censura, como os pareceres emitidos pelo departamento de censura, entrevistas
realizadas com cantores e censores. E ressaltamos a música brega como recurso para
compreender as disputas, versões e ficções acerca das memórias sobre a ditadura civil-militar,
através da oficina que será ministrada para estudantes do Ensino Médio, utilizaremos a
pesquisa-ação. Buscamos entender quais as ideias, opiniões e percepções desses estudantes
acerca da ditadura civil-militar e a censura.
Pretendemos com esse debate sobre música, ditadura e ensino contribuir para que as
novas gerações formulem uma visão crítica do período, reformulando uma consciência
histórica, identificando mudanças e continuidades. Por fim, esperamos contribuir com o
260
trabalho aqui proposto na ampliação de conhecimentos sobre o período e que a análise das
músicas venha trazer novos olhares (e audições) sobre a questão da ditadura e censura no
Brasil, além de dar maior visibilidade e importância a temas pouco estudados.

Os Sons da Ditadura: Dando Voz ao Gênero “Brega”

Sucesso de norte a sul do país, patrimônio afetivo de grandes contingentes das


camadas populares, esta vertente da nossa canção romântica tem sido
sistematicamente esquecida pela historiografia da música popular brasileira. Nas
publicações referentes à década de 70, de maneira geral são focalizados nomes de
Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil (...), todos, sem dúvida, representativos,
mas que na época eram consumidos por um segmento mais restrito de público (...) O
que a maioria da população brasileira ouvia eram outras vozes e outros discos.
(ARAÚJO, 2003, p. 16)

Quando falamos sobre ditadura, música e censura, a tendência é que nomes como
Chico Buarque, Caetano Veloso venham à tona como imagens consagradas de artistas que
foram censurados pelo regime militar. Mas durante o processo de pesquisa e produção,
tivemos contato com “documentos da censura” que nos instigaram e inquietaram, pois traziam
muitas informações sobre cantores bregas que tiveram suas músicas censuradas por fatores
que não tinham ligação com “protesto político explícito”.
Nosso intuito não é negar a importância de movimentos como “Tropicália” ou
minimizar a influência de Chico Buarque, mas vemos que é necessário falar sobre outras
camadas da sociedade, outros gêneros musicais que foram censurados e são importantes para
entendermos a sociabilidade do período de ditadura no Brasil.
Desde o começo da década de 80, se utiliza o termo “brega” para designar a música de
mau gosto, geralmente produzida por camadas populares; surgindo como uma forma
pejorativa no que se refere a preferências musicais das classes mais baixas. No final dos anos
70, uma nova tendência surge no Brasil, através de vários cantores com este novo estilo
musical denominado “brega” e/ou “cafona”. É importante ressaltar que nos últimos cinco anos
o “brega” passou por transformações, firmando-se com uma nova roupagem, acompanhado
por elementos da atualidade.
O gênero “brega” é pouco explorado na escola e em materiais didáticos, na academia e
nas pesquisas em geral, e isso já evidencia a importância de tornarmos essa temática como
objeto de investigação, que merece ser estudado e analisado de maneira mais dinâmica e
reflexiva.
Podemos, através da análise de canções bregas, entender o contexto histórico e
sociopolítico da ditadura civil-militar, como os autoritarismos do sistema implementado

261
interferiram na arte, na cultura, especificamente na música popular, por meio da repressão que
veio a se manifestar através da censura.
Ao problematizar a ausência da música brega nos acervos discográficos, Araújo (2003)
definiu esse gênero e produções como sendo parte de uma “vertente da música popular
brasileira consumida pelo público de baixa renda, pouca escolaridade” (2003, p.20).
Segundo Araújo (2013), o termo “brega” começou a ser divulgado na imprensa a partir
da década de 1980. Ao longo da década de 70, utilizava-se a expressão “cafona”. Após a
divulgação feita pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão “cafona” mantem-
se hoje como sinônimo de “brega”, como uma forma pejorativamente de designar esses
artistas românticos que começaram a fazer sucesso entre as camadas populares.
A música “cafona” ou “brega” era uma vertente considerada de “baixa qualidade”,
que, segundo o Dicionário Michaelis (2021), é um termo utilizado para designar algo de “mau
gosto”, “de qualidade inferior”, “medíocre”, “vulgar”. Composições e formas de cantar que
são consideradas exageradas e dramáticas, que não agradavam os críticos musicais.
A música é algo que está presente e tem vários papéis na vida de todos, além de ser
algo que embala as experiências humanas. As canções bregas suscitaram um enorme gosto e
curiosidade em despertar as memórias de um passado cheio de historicidade. Com base nas
ideias de Napolitano (2002); ressaltamos que as músicas podem ser um excelente caminho
para pensar a complexidade da ditadura, devem ser vistas como componentes daquele
contexto e algo muito relevante para uma reflexão crítica sobre o que foi a música naquele
período, a própria ditadura e seus significados atuais.
Na reflexão sobre a música “brega” estamos dialogando com o livro Eu não sou
cachorro, não, que rompe com alguns silêncios no que diz respeito à nossa música popular.
Vemos o outro lado da MPB, onde os artistas tidos como “cafonas” não são incluídos e
“temos cristalizada, no campo da música popular, uma memória que associa o período da
repressão política no Brasil apenas aos cantores/ compositores da MPB”, sendo que estes
artistas bregas eram os que mais vendiam e atingiam a maior camada brasileira.
Cantores como Dom e Ravel, Odair José, Nelson Ned, Paulo Sérgio, Luis Ayrão, entre
outros, também foram perseguidos e vetados pela censura no Brasil, mas infelizmente, hoje
estes cantores são pouco ou quase nada lembrados pela pesquisa acadêmica, é neste sentido
que Araújo (2003) afirma que é “preciso interrogar-se sobre os esquecimentos da nossa
história, os espaços em branco”, e fortalece a ideia do historiador francês Jacques Le Goff “
[...] devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos
documentos e da ausência de documentos.” (LE GOFF, 1996, p.109)
262
Ao falar sobre algumas ações dos fãs do cantor Paulo Sérgio, que realizam visitas
anuais ao túmulo do cantor, e de como os artistas bregas enfrentam uma espécie de
segregação musical, Araújo (2003) ressalta que:

Além de excluídos dos benefícios do sistema econômico, para grandes contingentes da


população brasileira não lhes resta nem o registro da sua própria história, dos seus
ídolos, dos seus intérpretes. Por isso mesmo, ao realizar anualmente à beira do túmulo
de Paulo Sérgio uma espécie de ritual em homenagem ao ídolo falecido em 1980, seus
fãs realizam também um ato de resistência. Eles dão visibilidade a uma memória que
se encontra subterrânea, sem canais de expressão e desprovida de “enquadradores”.
Em um esforço contrário ao movimento de silenciamento e esquecimento
empreendido pelas elites culturais do país (...) (ARAÚJO, 2003, p. 375)

Vemos então uma necessidade iminente de abordagem da música brega como um


instrumento metodológico importante para a construção do conhecimento histórico. E sobre a
utilização desse recurso em sala de aula, é importante salientar que a música tem suas
particularidades metodológicas; cabe ao professor/historiador observar alguns pontos, como
elementos textuais da canção, seu aspecto discursivo, identificar sua temática e outros
procedimentos narrativos.

As Motivações da Censura ao Gênero Brega

Em um contexto de extrema repressão e censura, temos um gênero musical realmente


popular, que abordava questões do cotidiano, falava de amores, sofrimentos, desigualdades
sociais, etc. As canções bregas passam a ser alvo da censura, pois não seguem os ideais da
moral e bons costumes defendidos pelo governo militar, além de trazer à tona diversos
problemas enfrentados pela sociedade brasileira.

(...) Mesmo estando “desligados” da questão política, a produção musical desses


artistas vai denunciar o autoritarismo vivenciado pelos segmentos populares em
nosso país. Isto porque os o Estado ditatorial controlado pelas Forças Armadas era
apenas uma das faces do autoritarismo presente na vida social brasileira daquele
período. (ARAÚJO, 2003, p. 48)

Esses autoritarismos se expressavam de diversas formas, e isso era denunciado nas


canções e no repertório brega. As formas de “repressão” também se faziam presentes através
da exclusão social, do preconceito com analfabetos, prostitutas, imigrantes, etc. Precisamos
falar sobre esses autoritarismos presentes no cotidiano.
Assim, é bastante interessante e válida essa multiplicidade nas escolhas das músicas,
onde podemos pensar as diversas motivações para a prática da censura. E dar visibilidade ao
gênero brega como uma forma de suprir as lacunas existentes nos estudos e pesquisas sobre
ditadura civil-militar.
263
Através da análise dessas canções, buscamos perceber as relações entre ditadura,
memórias e música, bem como as imagens que cada canção pode passar da ditadura e da
censura. E a partir dessa junção, ligando presente e passado através das músicas, perceber
como essa metodologia, ajuda a construir versões, noções e ideias de passado sobre a ditadura
civil-militar?
Fazer uma análise da censura a partir da música “brega” é necessário, pois embora
sendo um gênero esquecido pelos “enquadradores” da memória, permanece guardada em
determinadas estruturas de comunicações informais. Pesquisar, analisar e utilizar a música
brega como recurso para compreender as disputas, versões e ficções acerca das memórias
sobre a ditadura civil-militar é também uma forma de resistência.
O campo da memória foi palco de disputas, e as composições constituíram-se em
campos de luta. A música brega traz em seu corpo as marcar de seu tempo, pois através dessas
manifestações artísticas se praticava uma tomada de oposição, uma forma de protesto e de
falar sobre as realidades políticas e sociais de uma época.

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isso
resumo perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se
nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida,
uma história, um mito, uma narrativa. (CANDAU, 2011, p. 16)

Assim, podemos dizer, que a memória atua na construção da identidade do sujeito,


estão ligados de forma íntima. Candau (2016) define cada memória “como um museu de
acontecimentos singulares”, são marcos das trajetórias individuais ou coletivas.
História e memória são vias de acesso ao passado, porém é importante perceber e
analisar suas distinções. Em termos geais, podemos dizer que “fazer História” é uma análise
crítica do passado e das fontes, um trabalho intelectual que está além da “restauração de
memórias”, deve haver crítica, respaldo teórico e metodológico que valide o trabalho do
historiador.
A memória é uma ferramenta que serve para reconstrução do passado, bem como, para
atender os interesses do presente. Existe muita afetividade na memória, onde o acontecimento
é rememorado e se transforma em narrativa, um relato que vira um discurso. Podemos dizer
que a memória é um compartilhamento de lembranças e discursos acerca do passado, firmado
nos interesses e visões de mundo do presente.
Percebemos que as relações entre história, política e memória têm trazido à tona
diversos conflitos entre os sentidos e significação de acontecimentos do passado e seus efeitos
ainda relevantes no presente.

264
As músicas podem ser um excelente caminho para pensar a complexidade da ditadura,
pensando estas músicas como componentes daquele contexto e algo muito relevante para uma
reflexão crítica sobre o que foi a música naquele período, a própria ditadura e seus
significados atuais.
O cruzamento das reflexões sobre história, ditadura civil-militar, memória e música
pode possibilitar a contextualização das canções no período, dentro de um modo dinâmico de
pensar o sentido social e políticos das canções. Além da capacidade de pensar como foi a
censura, os porquês, a reação dos artistas e do público ao conteúdo e proibições das canções, e
elaborarmos nossas próprias ideias de como a música é importante na discussão da sociedade.
Entendemos que a música é um objeto de reflexões para analisar aspectos de nossa
sociedade, sejam eles políticos, econômicos ou sociais. Enxergamos algumas produções
“bregas” como fontes importantes, um tipo de memória na compreensão e construção de
narrativas sobre a ditadura no Brasil.
Nos valemos de uma pesquisa documental 99, trabalhamos com a intenção de refletir e
analisar documentos da censura, bem como os recursos musicais, enxergando a música
“brega” como uma fonte importante na construção da história e entendimento sobre a
sociabilidade da época da ditadura, elementos e motivações da censura e as críticas sociais
presentes nas canções bregas.
Buscaremos analisar como as memórias, músicas bregas e documentos da censura
ajudam a construir uma ideia de passado e versões sobre a ditadura civil-militar. Como foi a
censura, porque, a reação dos artistas e do público ao conteúdo e proibições das canções, e
farão suas próprias ideias de como a música é importante na discussão da sociedade.
Vemos que é importante analisar e discutir músicas como Uma vida só “Pare de Tomar
a Pílula” (1973), de Odair José, que diz o seguinte:

Nossos dias vão passando


E você sempre deixando
Tudo pra depois
Todo dia a gente ama
Mas você não quer deixar nascer
O fruto desse amor
(...)
Pare de tomar a pílula
Pare de tomar a pílula
Pare de tomar a pílula
Porque ela não deixa nosso filho nascer
(JOSÉ, 1973)

99
Frisamos que esses documentos foram disponibilizados do site www.censuramusical.com, dentre as fontes
documentais tivemos acesso a entrevistas realizadas com cantores, produtores e censoras da época da ditadura.
265
A música foi censurada por ir contra valores cristãos e também por ter sido lançada
quando no Brasil o governo fazia campanhas para ter um controle de natalidade entre as
populações pobres. Para os censores esta canção representava uma desobediência civil, além
de uma referência explícita à sexualidade.
Podemos falar também sobre a experiência dos cantores e compositores Dom e Ravel.
Os irmãos Eustáquio Gomes de Farias (Dom) e Eduardo Gomes de Farias (Ravel) nasceram
em Itaiçaba, no Ceará. Filhos de pai paraibano e mãe cearense, nos anos 50 mudaram-se para
São Paulo. Antes vistos como propagadores de ideias ufanistas através música “Eu te amo,
meu Brasil” (1969), composta pela dupla, fez grande sucesso com a banda “Os incríveis”,
chegou a ser rotulada como hino da ditadura.
No segundo LP Dom e Ravel fugiram da temática nacionalista, trazendo uma postura
diferente com algumas gravações que chamavam atenção para questões sociais. É o caso da
música “Animais Irracionais” (1974), uma das faixas que gerou mais incômodo para o
governo, pois a canção não estava de acordo com a ideia de “corrente de união” proposta
naquele contexto.

Às vezes eu olho pra terra sem compreender


A luta dos seres humanos pra sobreviver
O grande açoitando o pequeno,
Terceiros mandando apartar,
Mas na maioria das vezes o grande não quer parar.
(...)Às vezes eu olho por cima do mundo e os maus (os maus)
Eu vejo vencendo na vida os mais altos degraus
Não querem ouvir nem falar
De fome, problemas e dor
Dos outros nem ao menos admitir ou supor.
(DOM; RAVEL, 1974)

Essa nova proposta contrapõe o estilo ufanista presente nas canções anteriores.
Trazendo à tona uma narrativa de luta e sofrimento de pessoas que tentam sobreviver em meio
a um contexto de exploração. A canção denuncia as disparidades entre opressores e oprimidos.
Com a música “O caminhante”, Dom e Ravel conseguiram passar pelos “olhos” da
censura oficial, porém sofreram com a censura não oficial, tendo que conviver com ameaças e
represálias de fazendeiros e grandes proprietários de terra.

Uma vez, lá no Norte, na região do Araguaia” – recorda Dom – “nós cantamos essa
música num show. Na época a gente ainda não sabia o que estava acontecendo
naquela área. Mas ao final do show fomos abordados por uma pessoa ligada aos
proprietários de terra de lá. Ele me chamou a uma sala particular do clube e disse:
‘Olha, nós temos uma grande satisfação de recebê-los aqui, sabendo que vocês ainda
têm uma série de outros shows por toda essa região, então eu chamei você aqui para
lhe advertir de uma forma muito amistosa: não cantem mais essa música nesses
outros shows. Não cantem mais, porque vocês estão estimulando os nossos inimigos
contra nós. E nós não admitimos isso. (ARAÚJO, 2003, p. 43)

266
Em outro relato, questionados sobre o motivo de terem gravado essa canção, Ravel
responde o seguinte: “Porque nós sabíamos que esse problema da exploração do trabalhador
rural era muito grande no Brasil. As pessoas viviam no campo quase como escravos, com um
salário de miséria” (ARAÚJO, 2003, p.44).
Em um contexto em que havia a crítica à política social e trabalhista do regime
autoritário começava a ser pauta na sociedade, bem como o aumento da inflação e redução do
crescimento econômico era realidade no Brasil, a canção “O caminhante” era um barril de
pólvora prestes a explodir.
Diante disso, mais uma vez, ressaltamos a importância de canções “bregas” serem um
excelente recurso para compreender diferentes contextos do regime militar. E dialogaremos
com essas canções ao longo de nossa pesquisa.
Partindo de outros olhares, para além das músicas de protesto, nossa intenção é trazer
à tona esse gênero “marginalizado” como fonte importante na construção do entendimento
sobre o período de ditadura no Brasil, buscando novos olhares e significados sobre as
motivações da censura e entender aspectos importantes sobre a sociabilidade na época da
ditadura no Brasil.

Música e História: uma Conexão Pertinente no Processo de Ensino-Aprendizagem

Falamos como homens e mulheres de determinado tempo e lugar, envolvidos de


diversas maneiras em sua história como atores de seus dramas – por mais
insignificantes que sejam nossos papeis -, como observadores de nossa época e,
igualmente, como pessoas cujas opiniões sobre o século foram formadas pelo que
viemos a considerar acontecimentos cruciais. (HOBASBAWN, 2003, p.13).

O trabalho do historiador se faz na junção de lugar social, práticas científicas e escrita.


Se fundamenta nas fontes, escritas ou não. No ensino de história as fontes são elementos e
recursos essenciais na problematização de ‘conteúdos’ e conceitos.
O olhar do historiador para o passado deve ser desafiador, não no sentido de querer
afirmar que ele nunca existiu, mas de revelar que os critérios estabelecidos pelo homem para
relatar suas experiências concretas, dependem de uma ótica pessoal que, por sua vez, torna o
conceito de verdade e o estatuto do fato histórico discutíveis ante a pluralidade do olhar
humano.
É neste sentido que acreditamos que o cruzamento entre história e música é uma
estratégia muito relevante no processo de ensino-aprendizagem, para a compreensão de fatos
históricos. Sobre a música enquanto metodologia de ensino, nos ancoramos nas ideais de
Abud (2005):
267
Tal metodologia de ensino auxilia os alunos a elaborarem conceitos e a dar
significados a fatos históricos. As letras de música constituem em evidências,
registros de acontecimentos a serem compreendidos pelos alunos em sua
abrangência mais ampla, ou seja, em sua compreensão cronológica, na elaboração e
ressignificação de conceitos sobre a disciplina. Mais ainda, a utilização de tais
registros colabora na formação dos conceitos espontâneos dos alunos e na
aproximação entre eles e os conceitos científicos. Permite que o aluno se aproxime
das pessoas que viveram no passado, elaborando a compreensão histórica. (ABUD,
2005, p. 316).

Nossa pesquisa insere-se na discussão e reflexão sobre como a música “brega” pode
suscitar memórias e nos ajudar a compreender a sociabilidade da ditadura civil-militar,
ajudando a construir uma ideia de passado e versões sobre esse período da história do Brasil.
Destacamos a necessária problematização da construção de memórias sobre o período,
no debate entre as temporalidades. Durante o processo de pesquisa, poder construir um
material que seja utilizado na escola, é uma forma de ajudar da desconstrução de mitos e
estereótipos. É de fato cumprir as exigências da pesquisa histórica em buscar a
imprevisibilidade dos processos históricos em que os atores improvisam. É buscar conceitos
dinâmicos capazes de relacionar presente e passado na análise de experiências concretas de
ontem e hoje.
A música nos dá possibilidades de romper com o óbvio, levantando novas questões,
problemáticas, sendo um elemento capaz de informar, expor ou explicitar as ações humanas,
sua história, trajetórias, angústias, necessidades. Um exemplo típico da música como forma de
retrato social esteve presente no período do regime militar no Brasil, onde muitos artistas
utilizaram essa forma de expressão como meio de tornar públicas suas vivências políticas e
sociais.
Partimos das ideias de Rusen (2006), que busca em suas obras, definir um sentido para
a história da vida prática, uma função didática da história. Devemos nos questionar qual a
utilidade do conhecimento sobre censura e ditadura civil-militar para a vida prática e buscar
na teoria da história essa função didática de orientação temporal.

Consciência histórica não pode ser meramente equacionada como simples


conhecimento do passado. A consciência histórica dá estrutura ao conhecimento
histórico como um meio de entender o tempo presente e antecipar o futuro. Ela é a
combinação complexa que contém a apreensão do passado regulada pela
necessidade de entender o presente e de presumir o futuro. (RUSEN, 2006, p.36).

O sentido da história está nessa conexão temporal entre passado e presente, e acontece
numa relação dinâmica de representação e interpretação. As experiências no tempo nos
ajudam a elaborar o conceito de consciência histórica, interpretando o passado de modo a
compreender o presente e orientar atitudes com perspectivas de futuro. Partindo desse ponto,

268
queremos dialogar com músicas bregas e memórias da ditadura militar no Brasil, a fim de
construir um produto que possa ser utilizado pelos/as colegas professores/as e quem sabe ser
parte do processo de construção de memórias dos estudantes ao longo de suas vidas, no
convívio familiar, social e escolar.
Tendo uma perspectiva de analisar documentos e produzir um material-produto com
possibilidades de abordagens sobre o tema do nosso estudo, acreditamos que este é um
recurso que colabora com o processo de desenvolvimento do pensamento histórico dos
estudantes refletindo também sobre seus usos, partindo da reflexão de que estes documentos
devem ser motivadores e estimuladores, transformando-se em materiais didáticos facilitador
na compreensão dos acontecimentos históricos:

Um documento pode ser usado simplesmente como ilustração, para servir como
instrumento de reforço de uma ideia expressa na aula pelo professor ou pelo texto do
livro didático. Pode também servir como fonte de informação, explicitando uma
situação histórica, reforçando a ação de determinados sujeitos, etc., ou pode servir
ainda para introduzir o tema de estudo, assumindo neste caso a condição de
situação-problema, para que o aluno identifique o objetivo de estudo ou o tema
histórico a ser pesquisado. Desta forma os objetivos do uso de documentos são
bastante diversos para o professor e para o historiador, assim como os problemas a
que ambos fazem frente. Um desafio para o professor é exatamente ter critérios para
a seleção desse recurso. (BITTENCOURT, 2011, p.330)

É importante pensar, também, que para a compreensão de um documento é


fundamental que haja uma análise dele como “sujeito de uma ação”, formulando algumas
indagações, como por exemplo, sobre a sua existência, o que é um documento, porque existe,
quem e para que o fez, em que circunstância. Cabendo ao educador fazer estas indagações,
descrever e explicar o documento, dialogar com os conhecimentos prévios dos/as alunos/as
para que se situem nesta análise.
O uso de documentos nas aulas de história tem relação com a possibilidade de
desenvolvimento do pensamento histórico, oferendo possibilidades para o compreender o
processo de construção do conhecimento histórico.
Trabalhamos com a intenção de refletir e analisar essas memórias despertadas a partir
do recurso musical, enxergando a música como uma fonte importante na construção da
história e sociabilidade do período de ditadura civil-militar no Brasil. Como os/as alunos/as
interpretam o período de ditadura, quais memórias coletivas estes se apropriaram e como a
temática da ditadura vem sendo debatida em sala de aula, são importantes reflexões a serem
feitas durante o processo e desenvolvimento da pesquisa.
Sobre a música “brega”, partimos do pressuposto que esses estudantes não conhecem
esse universo e não são consumidores desse gênero musical. Mas, apesar disso, acreditamos

269
que em algum momento existiu um contato, ainda que superficial, através das vivências de
seus pais, mães, tias, avós. Será interessante analisar essas questões e através de uma
pesquisa-ação, construir conhecimentos e visões sobre a ditadura no Brasil.
Pensamos que a produção de um guia de atividades com análises de canções “bregas”
censuradas pela ditadura no Brasil, os documentos dos pareceres expedidos pelo
Departamento de Censura, com o intuito de auxiliar colegas professores em suas práticas e
metodologias sobre música e ditadura civil-militar (1964-1985), além de dar voz ao gênero
brega, que é pouco retratado e abordado em pesquisas e materiais didáticos.
Dialogamos com o que Quinan (2016) fala a esse respeito:

É imprescindível lembrar que a memória construída por esses jovens contempla


vários aspectos em sua formação. Primeiro, a ideia de que a história não é mais
produzida apenas pelos historiadores, mas está disponível na mídia, nas redes
sociais, nas revistas, nos filmes, como bem demostra o conceito de história pública.
Segundo, é da interação entre a história ensinada e aprendida no espaço escolar e
essa “história apreendida” nesses outros espaços diversos que se forma essa
memória. E, finalmente, na observação dessas interações, percebemos que esses
jovens estão imersos num universo de informações sobre a história, o qual podemos
chamar de cultura histórica, que sustenta a formação do posicionamento deles diante
dos fatos históricos. (QUINAN, 2016, p.37).

Pensamos que é possível discutir música brega na sala de aula, e que este é um
recurso importantíssimo para o processo de compreensão sobre o contexto da ditadura no
Brasil. É de fato cumprir as exigências da pesquisa histórica em buscar a imprevisibilidade
dos processos históricos em que os atores improvisam. E através do uso de canções bregas
buscar conceitos dinâmicos capazes de relacionar presente e passado na análise de
experiências concretas de ontem e hoje, dramas e projetos políticos.
Entendemos como fundamental o estudo das relações de apropriação e representação
de conteúdos históricos, buscando compreender os resultados da convivência entre
representações sociais e suas relações com as vivências dos(as) alunos(as) no espaço escolar.
Recorremos a Chartier (1988), buscando a compreensão do sentido de apropriação,
quando o leitor é visto como um produtor de interpretações e sentidos e não apenas como um
consumidor do texto.

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o
modo como indiferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos.
(CHARTIER, 1988, p. 16 e 17)

O contato com a obra, a forma de ler, olhar, escutar é um ato onde se confere sentidos
ao texto, à música, ao documento. A obra adquire sentido a partir da diversidade de
interpretações que constroem as suas significações.

270
Anular o corte entre produzir e consumir é antes de mais afirmar que a obra só
adquire sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas
significações. A do autor é uma entre outras, que não encerra em si a verdade
suposta como única e permanente da obra. (CHARTIER, 1988, p. 59)

Tendo como inspiração as ideias de Chartier (1988), no que diz respeito a


compreensão do sentido de apropriação, quando o leitor é visto como um produtor de
interpretações e sentidos e não apenas como um consumidor do texto. Buscando na ligação
entre o papel do historiador e a cultura escolar, uma forma de analisar as apropriações que se
criam dentro do processo de aprendizagem.

Considerações Finais

Através de uma análise sobre as representações sobre a ditadura civil-militar (1964-


1985), percebendo-as como uma realidade construída, pensada, dada a ler por diferentes
grupos sociais. Numa perspectiva de debater como os discursos e ideias produzidos em sala
de aula, levam a uma formação de opiniões, visões e suposições. Enxergando os estudantes
como capazes de desenvolver argumentos baseados em observações de diferentes fontes,
opiniões e leituras.
Pretendemos com esse debate sobre censura à música “brega”, memórias e ensino,
contribuir para que as novas gerações formulem uma visão crítica do período, reformulando
uma consciência histórica, identificando mudanças e continuidades. O uso da música como
recurso didático auxilia os estudantes na elaboração de conceitos e a darem significados a
fatos históricos, e o papel do historiador é justamente estimular essa capacidade de pensar,
debater e construir – através das músicas, fontes e bibliografia – uma consciência crítica e
política.
O tema sobre ditadura militar sempre nos traz diversas interrogações, visões, ficções,
fatos, memórias, novas fontes e possibilidades de análises e construção de conhecimento
histórico. Falar sobre ditadura civil-militar é também um ato de resistência, um ato necessário,
no processo de combate a ideias negacionistas e reacionárias.
Por fim, esperamos contribuir na ampliação de conhecimentos sobre o período e que a
análise das músicas venha trazer novos olhares (e audições) sobre a questão da ditadura e
censura no Brasil, além de dar maior visibilidade e importância a temas pouco estudados.

271
Referências

ABUD. Kátia Maria. Registro e Representação do cotidiano: a música popular na aula de


história. Cad. Cedes, Campinas, vol.25, n. 67, p.309-317, 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ccedes/v25n67/a04v2567.pdf. Acesso em 21 jul.2020
ARAÚJO, Paulo Cesar. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2003.
BITTENCOURT. Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2004.
CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Editora Contexto, 2016.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel,
1988.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
LE GOFF, Jacques. História & Memória. São Paulo: Editora da Unicamp, 2013.
NAPOLITANO, Marcos. História e Música. História Cultural da Música Popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
QUINAN, Lícia Gomes. As memórias dos jovens sobre a ditadura civil-militar e a função
social do historiador/professor. Dissertação. Programa de Pós-Graduação Profissional em
Ensino de História/UFRJ, 2016.
REIS. Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nos
anos 60. In: REIS. Daniel Aarão (Org). Versões e Ficções: O sequestro da história. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 1997.
RÜSEN, Jörn. Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão.
In: SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende. Jörn
Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.

Canções citadas
DOM. Animais Irracionais. In: Dom & Ravel. Rio de Janeiro: Beverly P. 1974.
DOM. Eu te amo, meu Brasil. In: Os Incríveis. Rio de Janeiro: RCA Victor P. 1970.
DOM. O caminhante. In: Dom & Ravel. Rio de Janeiro: Beverly P. 1974.
JOSÉ, Odair; MARIA, Ana. Uma vida só (Pare de Tomar a pílula). In: Odair José. São Paulo:
Polydor . 1973

272
17. RELATOS DE UMA PROFESSORA SOBREVIVENTE DA COVID-19

Eldãiny Negreiros da Silva

A Pandemia do Novo Coronavírus chegou para, entre outras coisas, expor ainda mais
as desigualdades sociais desse nosso grande e rico país chamado Brasil. “Não estávamos no
mesmo barco”, como alguns insistiam em afirmar. Estávamos, ou ainda estamos, na mesma
tempestade: alguns em iates, outros em navios, outros ainda em pequenos barcos, e a grande
maioria nadando, dando braçadas contra a maré.
A desigualdade social e econômica, tão clara e evidente em nosso país, foi sem dúvida
um dos principais fatores responsáveis pela alta taxa de mortalidade no Brasil. As medidas
preventivas atingiam bruscamente aqueles que foram impedidos de trabalhar; filas numerosas
se formavam nas agências bancárias compostas pelas pessoas que necessitavam do Auxílio
Emergencial para sobreviver. Realidades tão distintas, dificultavam ainda mais o
entendimento e o combate a Pandemia.
A Necropolítica se tornou evidente...
As políticas públicas se mostraram totalmente ineficazes e ficou cada vez mais
explícito, dentro desse processo, quais as medidas que apontavam para “aqueles que deveriam
morrer e quem deveria viver”. A proporção de leitos de UTI, para o número de habitantes de
cada região, foi um dos principais fatores que explicam a alta taxa de mortalidade assim
como, a limitação aos serviços de saúde, a falta de saneamento básico entre outros fatores que
agravaram a situação.
Para piorar as nossas mazelas, ainda estamos sob a direção de um desgoverno que
minimizou a doença e buscou priorizar a economia em detrimento da crise de saúde pública
que estamos submersos. “Em proveito do mercado, o holocausto de fez válido”.
Me chamo Eldãiny Negreiros da Silva, mulher, 40 anos, mãe, esposa, professora,
atualmente ocupo o cargo de Vice-Prefeita, aluna do curso de Pós-Graduação pela
Universidade Federal do Tocantins e, principalmente, sobrevivente à Pandemia do Novo
Coronavírus. Moro em Darcinópolis, uma pequena cidade ao norte do estado do Tocantins,
localizada a 463,2 quilômetros da capital Palmas. Segundo estimativas do IBGE hoje temos
uma população de aproximadamente 6.174 habitantes.
A cidade de Darcinópolis, ganhou destaque nas mídias estaduais desde maio de 2020,
por apresentar a maior incidência de casos de Covid-19 em todo o estado. Algo que parecia

273
tão distante de nós, tornou-se realidade de uma maneira rápida e assustadora. Vou buscar
relatar um pouquinho do que vivi nesse ano totalmente atípico de 2020.
Podem me chamar de Dany. Graduada em História e Pedagogia, fui aprovada em 2019
para a 5ª turma de Mestrado Profissional em Ensino de História – PROFHISTÓRIA, pela
Universidade Federal do Tocantins. Ingressar no Mestrado foi um sonho realizado! Confesso
que não me preparei tanto, sendo mãe, esposa e trabalhando por 40 horas semanais: tempo de
sobra não é algo que se dispõe. Quando fiz a prova fiquei confiante, sabia que havia me saído
bem, mas nunca imaginei alcançar o primeiro lugar. Nossa, eu não podia acreditar! Foi uma
vitória, uma conquista. Era como se eu dissesse para mim mesma: –Tá vendo? Você pode!
Você consegue! Toda minha família vibrou comigo. Meus pais sempre incentivaram a eu e
meus irmãos a estudar, sempre afirmavam que “o estudo é o maior investimento da vida, é
algo que ninguém nunca poderá tirar de vocês,” e de fato, o “saber” nos possibilita conhecer a
realidade na qual estamos submersos. Sou a mais velha de três irmãos, todos graduados em
História. Não sei explicar direito, mas temos uma relação muito próxima, algo indescritível e
normalmente nos apaixonamos pelas mesmas coisas. Meu irmão já é Mestre e me incentivou
bastante.
Iniciei o curso muito feliz, esperançosa e já me sentindo realizada. Mal sabia que,
difícil não tinha sido entrar no Mestrado mas sair dele [rsrsr]. Nossa primeira disciplina foi
realizada em módulo, de 09 a 13 de março do corrente ano. Já conhecia a professora Martha
Víctor dos tempos de graduação, simplesmente maravilhosa. A turma, parecia ter sido
escolhida a dedo, um pessoal muito “do bem”, esforçados e companheiros. A semana passou
rápido, deixamos tudo planejado para o nosso próximo encontro. Mal sabíamos que “a vida
não estava nem aí para o nosso planejamento”. Já na semana seguinte, mais precisamente no
dia 17 de março, saiu o primeiro decreto com as medidas preventivas às contaminações pelo
Novo Coronavírus. Muitos países pelo mundo já estavam sofrendo com a Pandemia. Para nós,
moradores de uma cidadezinha bem pequena e afastada dos grandes centros, parecia algo
distante.
Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo, uma enxurrada de informações,
muitas fake news, nos deixavam mais perdidos ainda. Não sabíamos ao certo o que fazer,
acredito que até o presente momento não sabemos ainda. O sistema de Saúde começou a
entrar em colapso, as escolas continuaram com suas atividades suspensas, comércios
fechados, distanciamento social, uso de máscara, situações novas e apavorantes. O medo
começou a povoar os pensamentos. Os decretos se repetiam a cada trinta dias, não tínhamos

274
ideia do que estava acontecendo e nem do que estava por vir, mas dava para sentir o perigo se
aproximando.
Após alguns dias, mais especificamente ao final de abril, a Secretaria de Educação
apresentou uma proposta de retorno das atividades educacionais. Adotou-se a modalidade
“aulas remotas” e foi um desafio gigante. Professores que não dominavam os recursos
tecnológicos, alunos sem acesso à internet, pais sem tempo e na maioria das vezes, sem o
conhecimento suficiente para acompanhar as atividades propostas... Foi uma angústia
coletiva. Foi necessário nos reinventar dentro desse novo cenário que ora se apresentava.
Os primeiros casos começaram a ser confirmados, Darcinópolis, uma pequena cidade
localizada a aproximadamente 463,2 quilômetros da capital Palmas, começou a chamar
atenção nos noticiários pela quantidade de casos. O pânico aumentou e os números
começaram a se tornar pessoas conhecidas. Na primeira quinzena de julho, a Covid-19 chegou
em minha casa, entrou sem ser convidado e fez estragos irreparáveis.
No dia 11 de julho, meu esposo, 43 anos, foi encaminhado ao Hospital de Doenças
Tropicais de Araguaína com sintomas da Covid-19. Quatro dias depois, precisou ser entubado
pois o quadro estava se agravando. No dia seguinte em que ele deu entrada na UTI, eu
também tive que ser hospitalizada pois, já estava com 50% dos pulmões comprometidos pelo
vírus. Nossos filhos ficaram sob os cuidados dos meus irmãos. Tudo aquilo parecia um filme
de terror.
Dias de angústia se seguiram, recebi alta hospitalar 5 dias depois. Na véspera do meu
aniversário. Confesso que havia planejado comemorar essa data de outra maneira. Mas, estar
viva e perto de meus filhos, era sem dúvida, o melhor presente que eu poderia ter. No mesmo
período, minha irmã, meu cunhado e minha filha mais velha, também testaram positivo para a
Covid. Já não havia mais palavras para descrever tanto terror. Meu esposo continuava
entubado e o quadro só se agravava. Foram inúmeras noites sem dormir. A minha fé me
sustentava, o apoio e o carinho dos amigos tornavam os dias mais fáceis. Nesse mesmo
período, um professor amigo da gente, faleceu pelas complicações causadas pelo vírus.
Infelizmente, a vaga de UTI que ele aguardava, chegou tarde demais.
Depois de alguns dias, recebi a triste notícia de que meu esposo havia tido um AVC
(acidente vascular cerebral) devido a complicações pelo Vírus. As chances de ele sair com
vida do hospital pareciam estar diminuindo. O tempo passava e, aos poucos ele começou a
reagir. As sequelas do AVC agora estavam mais perceptíveis. Tudo indicava que ele fosse
passar o resto da vida em cima de uma cama, vegetando. Não consigo descrever o que vivi, o
que senti. Foi um misto de dor, angústia, medo, desespero. Vinte e dois dias depois de dar
275
entrada na UTI, meu esposo teve alta (nesse momento, por diversas razões, comprei briga
com o hospital e questionei os procedimentos médicos – esse capítulo conto depois) e eu pude
vê-lo pela primeira vez, quase trinta dias depois dele ter saído de casa. Detalhe, meu esposo
saiu de casa aparentemente saudável, andando, falando e na garupa da moto de nossa filha.
Encontrei-o extremamente debilitado. O reencontro foi devastador tanto para mim
quanto para ele que, aos poucos começava a recobrar a consciência. Aparentemente, a pior
parte já havia passado, mas a batalha mais difícil estava apenas começando. Foram 40 dias
hospitalizado, agora podíamos voltar para casa. Todos os momentos a seguir foram muito
difíceis: o reencontro com os filhos, a clara percepção da atual situação e, o lento e doloroso
processo de reaprender a viver. Sim, meu esposo precisou reaprender a andar e aos poucos,
ser independente como antes. A reabilitação é um processo muito lento, ainda estamos
passando por ele, juntos aprendendo a reaprender.
Após a saída do meu esposo do hospital, tive que abandonar o trabalho. Infelizmente
não deu para conciliar, ele precisava de mim, era dedicação exclusiva. Tentei durante algum
tempo acompanhar a dura rotina das atividades remotas, elaboração e correção de atividades,
diários de classe, etc. Não deu. Como eu era apenas contratada, não havia muito o que fazer.
Pedi cancelamento do meu contrato e fiquei desolada: amo o que faço, sou professora por
vocação. Por pior que parecesse a situação, ainda posso me considerar uma privilegiada pois,
muitas pessoas não tiveram essa oportunidade de escolha.
Nos 30 dias que se seguiram foram muitos os desafios, grandes as dificuldades. Meu
esposo precisava de atendimento especializado e, tivemos que alugar uma casa em Araguaína,
cidade que fica a 80 quilômetros de nossa casa. Ele agora era totalmente dependente de mim,
não andava, não tomava banho sozinho, não conseguia se alimentar sem ajuda. Para
completar a rotina exaustiva, ainda tinha as constantes idas e vindas aos hospitais. O meu
cansaço físico era visível, e o que mais me incomodava era a saudade dos filhos. 30 dias após
ter saído do hospital, resolvemos voltar para nossa cidade. Uma prima muito querida do meu
esposo, se ofereceu para me ajudar a cuidar dele. A Lúcia foi um dos anjos que Deus colocou
em nosso caminho.
As atividades remotas do Mestrado, continuavam a todo vapor. Consegui concluir uma
disciplina, mas as que se seguiram não pude acompanhar. Reprovei na disciplina de
Metodologia da Pesquisa. No momento estou refazendo a mesma, junto com outra turma de
Mestrado. Conciliar os estudos e os cuidados com o meu esposo era humanamente
impossível.

276
Aos poucos, com o passar do tempo e o tratamento adequado, meu esposo começou a
apresentar grande evolução. Já conseguia andar, comer, tomar banho sozinho, e, a cada dia,
recobrava um pouco mais da memória. Apesar do extremo cansaço no qual me encontrava
(ou, seria mais correto dizer, me encontro) não podia deixar de me alegrar com cada uma de
suas pequenas conquistas.
Nesse mesmo período (incrível como tudo acontecia ao mesmo tempo), atendendo ao
desejo do meu esposo, me coloquei a disposição para concorrer ao cargo público de Vice-
Prefeita, nas eleições municipais em minha cidade. Até agora não acredito que fiz isso,
sempre fui avessa às práticas políticas ora adotadas em nossa sociedade. Meu esposo até
então, era o Vice-Prefeito da cidade, em virtude de sua doença, ficou impossibilitado de
concorrer novamente ao cargo. Entrei na disputa por ele e, com o propósito de manter seu
nome “vivo” no cenário político local. Vencemos as eleições. Hoje ocupo o cargo que era
dele, sou responsável pela casa, finanças, filhos... uffa!
Bem parecido com aqueles filmes norte-americanos, onde as pessoas trocam de vidas
por um dia: tenho a impressão de que aconteceu o mesmo conosco.
A pandemia ainda não acabou. Fala-se num segundo surto da doença e, também na
chegada de uma vacina, que por várias razões, ainda não chegou. O futuro ainda é incerto.
Não sabemos se as atividades escolares retornarão na modalidade presencial e os prejuízos
são incalculáveis. Tenho até medo de pensar no amanhã.
Atualmente meu esposo continua se recuperando, ainda depende de mim para muitas
coisas. No momento sou sua procuradora, me tornei a chefe da família, minhas
responsabilidades dobraram. Nossos filhos sofreram grandemente as consequências de tudo
isso. Antes cuidados, agora, precisavam cuidar do pai e, também, precisaram se adequar à
nova rotina de atividades escolares à distância. Contamos com ajuda de alguns familiares e
amigos. Confesso que por muitas vezes me sinto cansada e sem ânimo para prosseguir, mas
sei que preciso.
Para 2021, pretendo concluir o Mestrado. Sempre foi um sonho. Torná-lo realidade me
fará muito bem. Estudar para mim, é uma válvula de escape. Desejo encontrar um tempinho
também para cuidar de mim (é algo que no momento, se faz extremamente necessário), e
ainda pretendo desenvolver um bom trabalho nessa nova missão de vida pública. Nunca
planejei estar lá, mas já que estou, pretendo dar o meu melhor.
A única certeza que tenho é que 2020 foi um ano de muito aprendizado e que, ao
contrário do que as pessoas desejam, não, “eu não quero que as coisas voltem a ser como
eram”. Desejo que tudo possa ser bem melhor, como nunca antes fora.
277
18. SOBRE AS AUTORAS

Aline Nunes Ferreirinha de Souza: Licenciada em História na Faculdade de Filosofia Santa


Dorotéia (FFSD), pós-graduação latu sensu em História Moderna e Contemporânea (FFSD),
em Educação Especial e Inclusiva (Faculdade de Educação São Luís) e em Gestão Escolar:
Supervisão e Orientação (Centro Universitário Barão de Mauá). Mestra em Educação
(UFRRJ). Mestranda do ProfHistória - Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora
de História da rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro (SEEDUC), Professora no
Colégio Euclides da Cunha (Cantagalo-RJ) e Técnica em Assuntos Educacionais da
Universidade Federal Fluminense (UFF), no campus de Nova Friburgo (ISNF).
Andreia Costa Souza: Mestra em Ensino de História pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História (ProfHistoria-UFT/2020). Sob a orientação do Prof. Dr.
Dernival Venâncio Ramos Júnior, a dissertação intitulada “Ensino de História e Mulher negra:
um olhar interseccional sobre as percepções de estudantes em Conceição do Araguaia-PA” foi
selecionada por comissão docente do núcleo ProfHistória da UFT/Araguaína para concorrer
ao Prêmio de Melhor Dissertação do ProfHistória Nacional defendida em 2020. Especialista
em "História e Cultura Afro-brasileira" (FAPAF/2011). Graduada em História pela
Universidade Federal de Goiás (UFG/2008). Foi educadora em Curso de Extensão do
Programa de Direitos Humanos (PDH) da UFG (2008). É professora de história efetiva da
Secretaria Municipal de Educação de Conceição do Araguaia (PA) desde 2010. Pesquisadora
do Ensino de História das Relações Étnico-Raciais e de Gênero, Descolonização do Ensino de
História; Feminismo negro e decolonial e História das Mulheres.
Denise Maria Deodato Silva: Mestranda do programa de Ensino de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – PPGH/UFRJ, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Ensino de História e Formação de Professores (GEHPROF), coordenado pela Profª Drª Ana
Maria Ferreira da Costa Monteiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e
integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação museal: conceitos, história e
políticas (GPEM), coordenado pela profª Drª Fernanda Santana Rabello de Castro, do Museu
Histórico Nacional - MHN E-mail: prof.denise.deodato@gmail.com
Edna Santos Silva - Mestra em Ensino de História pelo Programa de Mestrado Profissional
em Ensino de História/ ProfHistória /UFT, com a dissertação intitulada “Ensino de História da
África e da Cultura Afro-brasileira: contribuições para aprendizagem histórica no IFMA Porto
Franco”, orientada pelo Dr. Cleube Alves da Silva. Especialista em História Contemporânea
pela Faculdade de Juazeiro do Norte – FJN; Licenciada em História pela Universidade
Regional do Cariri – URCA. Professora temporária da rede estadual do Ceará (Ensino Médio
no período de 2012-2016); Professora efetiva da rede estadual do Maranhão (Ensino Médio
no período de 2016-2017) e atualmente Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico
(EBTT) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – IFMA
Campus Porto Franco (2017-2019) e Campus São João dos Patos desde julho de 2019.
Pesquisadora no grupo de pesquisa LAHIS – Laboratório de Estudos e Pesquisas em História,
Cultura e Poder, IFMA. Pesquisadora do Ensino de História com ênfase no Ensino de História
da África e da Cultura Afro-brasileira; Saberes Discentes; Aprendizagem Histórica e
Aprendizagem Significativa.
Eliana Dias Ferreira Oliveira: Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História/ ProfHistória /UFS; Licenciada em História pelo
Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe/ UFS; Professora da Rede
Estadual do Governo do Estado de Sergipe.
278
Eldâiny Negreiros da Silva: Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Ensino
de História/ ProfHistória/UFT. Graduada em História / Pedagogia pela Universidade Federal
do Tocantins/UFT.
Eliane Leite Barbosa Bringel: Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História/ ProfHistória /UFT, com a dissertação intitulada “O uso do
Filme no Ensino e Aprendizagem de História na Educação de Jovens e Adultos: EJA em
Araguaína-TO”, orientada pelo Dr. Vasni de Almeida. Especialista em Metodologia do Ensino
de História e Geografia/ EADCON. Especialista em Educação a Distância: Tutoria,
Metodologia e Aprendizagem/EADCON; Licenciada em História/UNITINS. Professora
Substituta na Universidade Federal do Tocantins/UFT (No Curso de Licenciatura em História
- 2017/2018); Professora na Rede Municipal de Ensino de Araguaína (Ensino Fundamental I:
1° ao 5° Ano e Educação de Jovens e Adultos/EJA - 2009/2017); Professora na Rede Estadual
do Tocantins (Ensino Fundamental II: 6° ao 9° Ano – 2012). Pesquisadora do Ensino de
História com ênfase na Educação Histórica; Aprendizagem Histórica; Didática da História e
Diferentes Linguagem no Ensino de História.
Eliete Ribeiro Araújo: Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História/ ProfHistória /UFT, com a dissertação intitulada “Usos
de memes de internet na Aprendizagem histórica: uma proposta de educação étnico-racial
no Centro de Ensino Fortunato Moreira Neto, em Porto Franco-MA”, orientada pelo Dr.
Braz Batista Vas; Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira. Licenciada em
História/UEMA. Professora de História na Secretaria de Estado de Educação do Maranhão-
Centro de ensino Fortunato Moreira Neto (Ensino Médio); Professora na Rede Municipal
de Ensino de Porto Franco MA- 2007- 2016 (Ensino Fundamental I: 6° ao 9° Ano);
Pesquisadora do Ensino de História com ênfase na Aprendizagem Histórica, Educação
Histórica e Diferentes Linguagem no Ensino de História.
Francy Leyla Salazar da Silva: Mestranda em Ensino de História pelo Programa de
Mestrado Profissional em Ensino de História- ProfHistória da UFRJ - Campus - Universidade
Federal do Tocantins. Dissertação intitulada “O Ensino de História e as Relações Étnico-
Raciais na Sala de Aula”, sob orientação do Professor Dr. Dimas José Batista (2021).
Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira pela Instituição Faculdade de Tecnologia
Antônio Propício Aguiar Franco - FAPAF (2012) (Certificadora da Ordem Nazarena).
Graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão. Professora da Secretaria de
Educação e Cultura do Tocantins - (Unidade de lotação - Colégio Cívico-Militar Dr. José
Aluísio da Silva). Pesquisadora do Ensino de História com ênfase nas Relações Étnico-
Raciais e Identidade Negra.
Heloisa Selma Fernandes Capel: é bolsista produtividade 2/ CNPq. Atua nos programas de
Pós-Graduação em História e Ensino de História/ ProfHistória/ UFG e é membro da
Comissão Acadêmica Nacional do ProfHistória.
Hendy Helena Maciqueira de Melo Ribeiro: Bacharel e Licenciada em História pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestranda do ProfHistória –
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora de História da rede
Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
Isaíde Bandeira da Silva: Pós-doutora em Educação pela Universidade Federal de
Uberlândia-UFU. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte-
UFRN. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Ceará-UFC. Graduada em
História pela Universidade Estadual do Ceará-UECE. Profª do Curso de Pedagogia da UECE.
Profª do Mestrado Acadêmico Interdisciplinar em História e Letras-MIHL/UECE. Profª
279
permanente do ProfHistória da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte-UERN. Foi
coordenadora de área do Subprojeto de História do PIBID da FECLESC-Quixadá. É líder do
Grupo de Pesquisa: História, Memória, Sociedade e Ensino, certificado pela CAPES.
Assessora da pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UECE. Pesquisas em: Ensino de
História; Livro Didático; Formação docente; Educação Patrimonial.
Jucileide da Silva Almeida: Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História/ ProfHistória /UFT, com a dissertação intitulada ENSINO
DE HISTÓRIA DAS MULHERES: EXPERIÊNCIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E
ADULTOS– EJA EM IMPERATRIZ-MA (2017), orientada pela Drª. Vera Lúcia Caixeta.
Especialização em Educação Especial/Educação Inclusiva e em Educação em Direitos
Humanos pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Especialização em Didática
Universitária, pela Faculdade Atenas Maranhense, FAMA. MBA em Gestão Escolar pela
Faculdade de Economia e Finanças IBMEC, Graduada em História e Pedagogia pela UEMA,
Professora da Rede Estadual do Maranhão, atuando na Educação de Jovens e Adultos e
Ensino Médio Regular. Pesquisa na área de história das mulheres, tendo destaque para a
representação das mulheres nos livros didáticos e Educação de Jovens e Adultos.
Karla Andrezza Vieira: Professora de História da Educação Básica da rede estadual de Santa
Catarina. Possui graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC/2001). Pós-graduada em Gestão Escolar e Metodologia do Ensino Interdisciplinar
(Faculdade Dom Bosco/2009). Mestre em Ensino de História (PROFHISTÓRIA) pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/2016). Doutoranda do Programa de Pós-
graduação em História da UDESC (2018). No presente é vinculada ao Laboratório de Ensino
de História (LEH/UDESC), ao Grupo de Pesquisa Ensino de História, Memória e Culturas
(CNPq/UDESC) e ao Grupo de Pesquisa Oficinas de História (CNPq/UERJ). É bolsista
UNIEDU/SC. Área de atuação: História, Ensino, Relações Étnico-Raciais e Gestão Escolar.
karlaandrezzavieira@gmail.com.
Laila Cristine Ribeiro da Silva: Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História/ ProfHistória /UFT, com a dissertação intitulada “A
formação continuada de professores na educação de jovens e adultos em Araguaína-TO:
espaço reflexivo e vivências históricas, orientada pela Drª Vera Lucia Caixeta. Especialista em
História da África/ UNIRG; Especialista em Gestão Social: Políticas Públicas, Redes e
defesas de direito/ Universidade Pitágoras UNOPAR; Licenciada em História/ UFT;
Bacharela em Direito/ CATOLICA Dom Orione; Professora para programas educacionais na
Rede Municipal de Araguaína – TO; Pesquisadora do Ensino de História com ênfase em
formação continuada e diferentes linguagens educacionais.
Lívia Karolinny Gomes de Queiroz: Mestranda em Ensino de História pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (ProfHistória)-UERN. Pós-graduada em História do Brasil
pela Universidade Cândido Mendes-UCAM (2016). Pós-Graduada em Atendimento
Educacional Especializado - AEE pela Universidade Única (2020). Graduada em História pela
Universidade Estadual do Ceará (2013). Graduanda em Letras Espanhol pela Universidade
Federal do Ceará-UFC. Atualmente é professora de História da Educação Básica do Ensino
Público e Privado em Quixadá-Ce. Atua principalmente sobre os seguintes temas: Ensino de
História; Música Popular Brasileira; Ditadura Civil-Militar; História Pública.
Lucialine Duarte Silva: Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História / ProfHistória /UFT com a dissertação intitulada “Fontes
literárias e a construção de saberes históricos: uma proposta didático-pedagógica no ensino de
História”, orientada pela Dr. Ana Elisete Motter. Licenciada em História pela Universidade

280
Federal do Tocantins/UFT. Professora Substituta na Universidade Federal do Tocantins/UFT
(No curso de Licenciatura em História em 2009 e 2018); Professorada Rede Estadual do
Tocantins (Ensino Médio 2016-2021). Pesquisadora do Ensino de História com ênfase
Educação Histórica e História e Literatura.
Nívia Alves Sales: Mestranda em História pela UFT, com a dissertação “O Ensino de história
e as representações sobre os povos indígenas Krahô” sob a Orientação do Prof. Dr. Moisés
Pereira da Silva. Doutor em História Social pela (PUC-SP). Desde de Março de 1999 sou
professora da Educação básica na Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Estado do
Tocantins. Em 2002 comecei a atuar na Educação Superior na Faculdade de Guaraí como
docente e até 2019 como coordenadora do Curso de Pedagogia. Atuando também a partir de
2016 na rede privada de Ensino como docente em História. Já atuei na área de formação de
professores de História no programa Parâmetros Curriculares em Ação. Também cheguei a
atuar como Supervisora Escolar das Escolas da Rede Estadual de Ensino e também das
escolas indígenas.
Priscila Cabral de Sousa: Professora da Educação Básica com formação em História pela
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA (2014) e mestra em Ensino de História pela
Universidade Federal do Tocantins – UFT, campus de Araguaína – TO (2021).
Vera Lúcia Caixeta: Doutora em História Social pela UFRJ. Professora da Fundação
Universidade Federal do Tocantins. Em 2014 foi incorporada ao Programa de Pós-Graduação
em História, ProfHistória. Em maio de 2018 assumiu a coordenação do ProfHistória, UFT. Os
temas de pesquisa estão relacionados com a medicina, igreja católica, mulheres e ensino de
História.

281
ISBN: xxxxxxxxxxxxx

e-book

Você também pode gostar