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Ficha técnica
Edição e arte final: Luciano Becalete
Assessoria editorial: Fabiana Lourenço Becalete
Assessoria bibliotecária: Maurício Amormino Jr.
Imagem de capa:"Contra-ataque", de Lia Testa (colagem analógica, 2019).
PREFÁCIO ............................................................................................................................... 9
APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 13
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11. O ENSINO DE HISTÓRIA E AS REPRESENTAÇÕES SOBRE OS POVOS
INDÍGENAS KRAHÔ ...................................................................................................... 180
Nívia Alves Sales
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PREFÁCIO
Passados quase 10 anos desde que iniciamos as discussões para a criação do Mestrado
profissional de ensino de História, ProfHistória podemos nos regozijar pelo sucesso dessa
empreitada.
O mestrado profissional já não era uma total novidade. As iniciativas de organização
dessa modalidade de curso se fizeram sentir na área de História, em 2004, quando o CPDOC
da FGV tinha inaugurado o mestrado profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais. No
entanto, trazer essa iniciativa para a área de ensino representava um grande desafio, já que
muitas resistências se faziam sentir. É verdade que as preocupações com a produção de
material didático e formas de implementação de formação continuada para professores já se
manifestavam em alguns grupos.
Mesmo em meio à resistência, em 2012 floresceram as iniciativas pioneiras do
Mestrado Profissional em História da Universidade Federal do Rio Grande e o Mestrado
Profissional em Ensino de História: Fontes e Linguagens, da Universidade Federal de Caxias
do Sul. Mas o investimento maior da Capes ainda estava por vir, com a proposta do mestrado
profissional em rede nacional que visava a ampliar o número de docentes da Educação Básica
a serem beneficiados, bem como possibilitar intercâmbios entre universidades interessadas em
apoiar este tipo de formação continuada de professores.
Nesse contexto, em 2012, estimulados pela própria Capes e pela coordenação da área
de história1 e pelo o funcionamento dos ProfMat e do ProfLetras, programas em rede
nacional, já existentes, novamente a ideia do mestrado profissional em Ensino de História
passou a florescer. Um primeiro grupo de professores, a partir do Instituto de História da
UFRJ, iniciou a discussão incorporando logo a seguir representantes de outras universidades
do Rio. O projeto inicial estava sendo concebido para ser apenas uma rede regional, mas as
orientações da Capes colocaram como pré-condição para a aprovação de um mestrado em
rede a ampliação do seu escopo para um formato de caráter nacional com a incorporação de
1
Professores Carlos Fico, Claudia Wasserman e Marcelo Magalhães.
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novos núcleos oriundos de outros estados.2 Mas como seria esse mestrado? Seria mais um
curso de atualização de conteúdo focado no fornecimento de informações factuais e
interpretações relativas a esses eventos e temáticas? A despeito de algumas diferenças, um
ponto foi consensual desde o início entre o grupo de professores participantes: o curso deveria
ter a teoria da história e a historiografia como foco central. Isso queria dizer que o mais
importante era trabalhar com o processo de construção do conhecimento histórico e com a
premissa de que todas as temáticas abordadas deveriam estar relacionadas com a sua prática
na sala de aula.
Partindo dessa perspectiva foram definidos objetivos para a capacitação de docentes
em nível de Mestrado Profissional, tais como: qualificar os mestrandos/docentes para
desenvolver múltiplas competências comunicativas dos alunos em ambiente on-line e off-line;
desenvolver com os mestrandos/docentes estratégias para estimular a capacidade de
verificação da fidedignidade das informações históricas, levando em consideração sua origem,
o momento e o contexto de sua produção; oferecer subsídios para o reconhecimento do
potencial patrimonial dos espaços urbanos e rurais para o ensino de História na Educação
Básica; fornecer instrumental para que os mestrandos/docentes possam conduzir o processo
de avaliação crítica da realidade em suas múltiplas facetas.
O desdobramento desses objetivos se concretizou na definição das áreas de
concentração e das linhas de pesquisa. A descrição da área de concentração em Ensino de
História explicita quais são as diretrizes adotadas partindo de uma pergunta. Como o
conhecimento histórico pode contribuir para a reflexão sobre a relação entre passado/presente/
futuro, permeada pela lembrança, pelo esquecimento e pelas expectativas de indivíduos e
grupos, considerando que lembrar e esquecer são aspectos constitutivos da vida em sociedade,
das identidades culturais e do pertencimento político? Partindo dessa questão, a pós-
graduação com ênfase em Ensino de História dirige-se a duas demandas complementares. De
um lado, à exigência de reflexão sobre o ensino escolar, considerando seus saberes e práticas,
2
A proposta foi inicialmente apresentada pela Profª Marieta de Moraes Ferreira (UFRJ) e desenvolvida por
docentes vinculados a seis instituições do Rio de Janeiro, a saber: Alexandre Fortes (UFRRJ), Ana Maria
Ferreira da Costa Monteiro (UFRJ), Carmen Teresa Gabriel Anhorn (UFRJ), Felipe Magalhães (UFRRJ), Giselle
Martins Venâncio (UFF), Helenice Aparecida Bastos Rocha (UERJ), Keila Grinberg (UNIRIO), Luis Reznik
(PUC-Rio), Marcelo de Souza Magalhães (UNIRIO), Márcia Chuva (UNIRIO), Márcia de Almeida Gonçalves
(UERJ), Mariana Aguiar Ferreira Muaze (UNIRIO), Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ) e Regina Maria da Cunha
Bustamante (UFRJ). Esse grupo inicial foi responsável pela elaboração do Projeto e do Regimento do Programa
de Mestrado Profissional de Ensino em História (PROFHISTÓRIA) que, posteriormente, agregou novos
colaboradores do Rio de Janeiro e de outras regiões do país. No total, participam docentes vinculados a seis
Instituições de Ensino Superior da região sudeste do país;(UFRJ), (UFF),(UFRRJ),(UNIRIO),(UERJ) e
PUCRIO) cinco da região sul (UFSC),(UFRS) (UDESC),(UFSM) e (UFRG); uma da região nordeste (UFRN); e
uma da região norte(UFT).
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bem como a relação com a disciplina de referência. De outro, à necessidade de compreensão
das múltiplas formas de ensinar e aprender História vigentes na sociedade contemporânea,
para além da escola, que tensionam continuamente tanto a historiografia profissional como o
ensino da disciplina em seus diferentes níveis. Isso porque o movimento atual em direção à
memória e a luta por direitos contribuiu para acirrar as disputas sobre a escrita e o ensino da
História, diversificando suas formas e promovendo múltiplos usos (e abusos) do passado.
Cabe ao profissional da área investigar esse complexo movimento e os variados recursos ao
conhecimento histórico, de modo a compreender a historicidade das experiências e as muitas
possibilidades de escrever e ensinar a História.
No que se refere às linhas de pesquisa três temáticas foram definidas. Saberes
Históricos no Espaço Escolar, Linguagens e Narrativas Históricas, Produção e Difusão e
Saberes Históricos em Diferentes Espaços de Memória.
Concluído o projeto do Mestrado Profissional em Ensino de História em rede nacional
tendo como âncora a UFRJ e reunindo 12 Universidades de diferentes localidades, o resultado
foi apresentado à Capes para avaliação e aprovado em agosto de 2013.
Iniciado com esse pequeno número de instituições, atualmente o ProfHistória reúne
39 núcleos distribuídos em quase todos os estados da federação, 554 professores
credenciados, já titulou 771 egressos e possui no momento 1141alunos matriculados. Esse
percurso seguido até aqui atesta a propriedade da opção feita no momento inicial e o empenho
e a dedicação daqueles que se engajaram nessa empreitada. A publicação agora lançada pelo
núcleo do ProfHistória da Universidade Federal de Tocantins com os trabalhos oriundos de
suas egressas, das egressas de outros núcleos e de algumas professoras do programa é um
exemplo da contribuição do ProfHistória para a formação continuada dos professores (as) e
para a melhoria da educação brasileira.
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APRESENTAÇÃO
É com grande satisfação que apresentamos o livro Fazer e ensinar História (s):
experiências femininas no ProfHistória. Essa coletânea tem por objetivo propagar os
conhecimentos produzidos no âmbito do ProfHistória - Programa de Mestrado Profissional
em Ensino de História -, especialmente, daqueles estudos que possam contribuir,
efetivamente, para a melhoria das práticas dos professores de História da educação básica
(Ensino Fundamental e Médio). Trata-se de um programa em rede nacional, coordenado pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Criado em 2013, com 12 núcleos. Hoje o
programa conta com 39 instituições associadas, espalhadas por todo o território nacional.
Os textos aqui apresentados são, na sua maioria, recortes nas dissertações defendidas
no núcleo da UFT-Araguaína, além de contribuições de professoras de outras instituições
associadas. Nossa inspiração para propor a coletânea nasceu da inquietação provocada pela
leitura dos escritos da intelectual negra feminista bell hoots (1995), que ainda no final do
século XX chamava a atenção para a importância da dedicação das mulheres negras ao
trabalho intelectual, por ele ser parte fundamental da luta pela libertação dos (as) oprimidos
(as). Tarefa hercúlea para as mulheres negras, inclusive com seu relato de experiência pessoal
já que, ainda muito jovem, foi obrigada a colocar os trabalhos domésticos acima dos prazeres
da leitura, sendo ameaçada pelos adultos de queimar os livros se as demandas dos trabalhos
diários não fossem realizadas. Quantas de nós, mulheres negras ou brancas, não vivenciamos
esses desafios de conciliar os trabalhos domésticos com a produção intelectual? Em tempos de
Covid-19, com trabalho remoto e inúmeras demandas cotidianas parece que estamos ainda
mais distantes do privilégio da dedicação prioritária ao trabalho intelectual, historicamente
considerado trabalho masculino.
Numa cultura racista, sexista e anti-intelectual, devemos reivindicar e exigir o direito
ao trabalho intelectual feminino. Historicamente, as mulheres tiveram maiores dificuldades de
frequentarem as escolas do que os homens. Tanto o direito à educação quanto a possibilidade
de se dedicar ao trabalho intelectual tem-se mostrado um enorme desafio para muitas
mulheres, no passado e no presente. De certo, nós mulheres/professoras/pesquisadoras, não
estamos reconciliadas com a hierarquização dos papeis sociais, naturalizados e referendados
pelas diversas instituições sociais que nos distanciam das atividades intelectuais.
Foi, portanto, em defesa desse direito das professoras/pesquisadoras de existirem
intelectualmente que organizamos esta coletânea. Geralmente, os problemas de pesquisa no
ProfHistória nascem da prática do ensino de História, dialoga com as teorias e metodologias e
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geram conhecimentos que podem ser utilizados por outros profissionais da História e do
Ensino de História. O que apresentamos é um grande mosaico da produção das mulheres
sobre diferentes temáticas, metodologias e referenciais teóricos.
O livro está organizado em cinco partes, a parte um traz discussões referentes ao
ensino de História e imagens, composta pelos capítulos: “Visualidades no Livro Didático:
Composição e Montagem”, de Heloisa Selma Fernandes Capel; “As Mulheres nos Livros
Didáticos de História”, de Priscila Cabral de Sousa e Vera Lúcia Caixeta; “O Uso do Filme
como Recurso Didático no Ensino de História: uma Experiência com Alunos da Educação de
Jovens e Adultos-EJA”, de Eliane Leite Barbosa Bringel.
A segunda parte trata do ensino de História na Educação de Jovens e Adultos – EJA.
Essa parte é composta pelos capítulos: “A Formação Continuada de Professores de História na
Educação de Jovens e Adultos em Araguaína-TO”, de Laila Cristine Ribeiro da Silva e Vera
Lúcia Caixeta; e “Ensino de História das Mulheres: Experiência na Educação de Jovens e
Adultos- EJA em Imperatriz-MA”, de Jucileide da Silva Almeida.
A terceira parte apresenta reflexões acerca das relações étnico-raciais no ensino de
História, composta pelos capítulos: “Vozes, Corpos e Saberes sobre o Maciço: um projeto de
intervenção didática” de Karla Andrezza Vieira; “Decolonialidade e Perspectiva Negra:
Discutindo as Relações Étnico-Raciais”, de Francy Leyla Salazar da Silva; “A Mulher Negra
e o Desafio de Repensar Narrativas: uma Metodologia para Descolonizar Saberes e Práticas
no Ensino de História” de Andreia Costa Souza; “Memes e narrativas da escravidão:
Aprendizagem histórica no Centro de Ensino Fortunato Moreira Neto, Porto Franco-MA”, de
Eliete Ribeiro Araújo; “Aprendizagem Histórica e Aprendizagem Significativa – Caminhos
Possíveis para um Ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira” de Edna
Santos Silva.
A quarta parte trata de temáticas relacionadas a Educação Patrimonial e a História
local, e é composta pelos capítulos: “Um passeio no tempo: possibilidades educativas de um
itinerário histórico pelos vestígios da Freguesia de São José e do bairro da Misericórdia / RJ “,
de Denise Maria Deodato Silva; “A história local e suas possibilidades para o ensino de
História na Educação Básica”, de Aline Nunes Ferreirinha de Souza; Hendy Helena
Maciqueira de Melo Ribeiro; “Patrimônio Cultural, Festa e Jogo Didático: Lambe-Sujo e
Caboclinhos no Ensino de História Local”, de Eliana Dias Ferreira Oliveira.
A quinta parte apresenta trabalhos com temáticas que tratam da História, da
Literatura e da autobiografia composto pelos capítulos: “Literatura e Construção de Saberes
Históricos”, de Lucialine Duarte Silva; “Reflexões sobre a ditadura civil-militar no Brasil
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(1964-1985) a partir da censura aplicada às músicas “bregas” e a construção de memórias na
sala de aula “, de Lívia Karolinny Gomes de Queiroz e Isaíde Bandeira da Silva; e, por fim,
“Relatos de uma professora sobrevivente da Covid-19” de Eldâiny Negreiros da Silva.
Deixamos registrado o nosso agradecimento a professora Drª Marieta de Moraes
Ferreira, que aceitou fazer o prefácio deste livro.
Nosso agradecimento as autoras, que compartilharam seus textos a partir das
experiências no ProfHistória.
Nosso a agradecimento à CAPES pela presente publicação.
Boa leitura
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PARTE 01 –
ENSINO DE HISTÓRIA E IMAGENS
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01. VISUALIDADES NO LIVRO DIDÁTICO:
COMPOSIÇÃO E MONTAGEM
Introdução
3
Heloisa Selma Fernandes Capel é bolsista produtividade 2/ CNPq. Atua nos programas de Pós-Graduação em
História e Ensino de História/ ProfHistória/ UFG e é membro da Comissão Acadêmica Nacional do ProfHistória.
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não serão tratadas neste texto. Nossa preocupação aqui está na constatação de que o livro
didático veicula elementos de visualidade e é um agente que conforma sentidos em seu projeto
didático, este é o foco para alguns apontamentos iniciais de uma pesquisa em curso.
É forçoso admitir que, para além do conteúdo adequado ao currículo e com
legibilidade apropriada ao público-alvo, o livro-didático deve apresentar configuração
adequada aos objetivos da aprendizagem e que envolvem uma organização dinâmica da obra,
algo que necessita planejamento, edição, movimento. O livro didático não é repositório de
conteúdo inocente, o livro didático é um ato.
Portanto, a despeito da ignorância ou insensibilidade daqueles que o produzem e o
utilizam quanto ao fenômeno visual, as conformações visuais nas páginas dos livros didáticos
“comunicam para além do seu conteúdo textual” (MORAES, 2010, p.30). Isso nos remete à
perspectiva de encarar o livro, dentre outros aspectos, em seu formato gráfico-editorial,
elemento a ser considerado por sofrer variações contextuais e que, também, pressupõe usos e
leituras culturais diversas ao longo do tempo. Para Chartier, “um processo de leitura pode ser
ajudado ou derrotado pelas próprias formas dos materiais que lhe é dado ler” (CHARTIER,
2001, p. 96). Esse autor admite a importância do tema e aponta a origem da relação imagem
e livro didático: “a valorização da imagem por sua aspiração ao naturalismo ocorreu com o
desenvolvimento das ciências a partir do século XVII e já esteve em páginas do que é
considerado o primeiro livro didático para crianças, Orbis Sensualium Pictus” (O Mundo
Visível em Imagens), de Comenius (CHARTIER, 1999, p. 251).
Por outro lado, compreendendo o livro didático como um gênero secundário de
discurso, poderíamos afirmar que “o projeto gráfico-editorial de um livro determina a ordem,
o acabamento, a combinação das “massas verbais” (BAKHTIN, 1997). Letras e sua estrutura
incluindo o desenho de tipos, a superfície resultante da união das linhas, dentre outros, são
elementos que conferem legibilidades em um modo visual e formam elementos definidos
culturalmente.
Nesse sentido, é forçoso admitir que mesmo destinada apenas à leitura do conteúdo
linguístico e despojada de imagens ou elementos gráficos, a página do texto de um manual
didático é sempre visual (MORAES, 2010): “como um texto falado que combina expressões,
gestos e posturas corporais, uma página de texto e os elementos e configurações materiais e
plásticos combinados informam e potencializam os efeitos da leitura” (MORAES, 2010, p.
34). Por essa razão, encarada de maneira interdisciplinar, no confronto entre a pedagogia, a
arte e o design, a visualidade de um livro didático não pode ser ignorada.
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Realizadas tais considerações, é preciso definir um percurso e alguns posicionamentos
para esta reflexão: centrada na ideia de pensar o livro didático em seus arranjos visuais
cognitivos, passa pela maneira como compreendemos a visualidade. Embora o termo não seja
devidamente explorado aqui é importante dizer que o consideramos não como algo resultante
de uma percepção natural, mas na perspectiva da dimensão cultural do olhar, como uma
experiência visual que se articula a diversas variantes e práticas culturais. Dito isso, é possível
definir concretamente o percurso destas considerações iniciais sobre a visualidade nos livros
didáticos: nossa intenção é promover o diálogo entre o aspecto visual de um livro e dois
autores que, com seus estudos, podem contribuir para o debate: um clássico do design, Jan V.
White, e o historiador da arte, teórico das imagens, Georges Didi-Huberman. Com eles vamos
realizar a interpelação necessária para iniciar a discussão de dois elementos interligados nas
páginas dos livros didáticos: a composição visual do espaço e a estratégia da montagem.
Segundo o livro clássico Edição e Design de Jan White (2006), fazer uma publicação é
como “dirigir um filme”, pois os espaços de uma página de um livro “não são estáticos, são
cinéticos, correm de um lado a outro, da esquerda para a direita e finalmente para a página
seguinte” (WHITE, 2006, p.15). Assim, a comunicação, argumenta, precisa ser “rápida e clara”,
acessada com facilidade e sem esforço. Não se trata, complementa, de usar todos os espaços em
branco de uma página, mas de considerá-los como matéria prima que deve ser usada de forma
ativa e com imaginação. E é aí que o autor indica que há relação das palavras com a forma e
que, por essa razão, o verbal e o visual devem trabalhar em harmonia, um reforçando o outro,
levando-nos a olhar de um lado do papel para o outro lado (WHITE, 2006, p.16).
É importante considerar, recomenda fortemente, que uma página não é uma unidade
individual isolada, mas é a metade geminada conjunta unida pela dobra, o que vai criar
hierarquias de espaços na perspectiva de sua legibilidade. Argumentando que a página é
curva, o que se quer mostrar deve ficar nas bordas exteriores, algo que facilite ao leitor que
queira apenas folhear rapidamente. O ver à primeira vista é vital para que a leitura mais
aprofundada do material pelos leitores aconteça (Figura I). Além disso, as áreas privilegiadas
de uma página são os cantos superiores e, dentre as mais desvalorizadas estão as inferiores e
próximas às dobras (WHITE, 2006, p.5).
20
Figura I - WHITE, Jan. Editing By Design. RR Browker, 1974, p.5.
Jan White também explica que espaços em branco não são espaços vazios em uma
publicação. A ideia do espaço em branco também aparece na história da arte, como no livro
Diante da Imagem (2013), do historiador da arte Georges Didi-Huberman. O autor dá especial
atenção a um detalhe específico da experiência estético-religiosa de Fra Angelico, algo que
embora tenha relação direta com a cor, nos remete ao vazio: o branco em sua pintura
Anunciação. A ordem do discurso vigente não conseguiu explicar esse detalhe, fruto de uma
perspectiva epifânica e contemplativa de Fra Angelico. Tal detalhe, entretanto, é fundamental
na imagem (Figura II)
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Figura II - Fra Angelico. Anunciação. Afresco, 187 x 157 cm. 1441- 1443.
Museu de San Marco, Florença.
Espaços em branco podem ser úteis e auxiliar a intenção didática em alguns casos (p.
28). Como é o caso da página no qual o “vazio” pode simular um céu. O espaço em branco
tem uma funcionalidade e deve ser observado em sua intencionalidade (Figura III). Assim,
não há espaços colocados aleatoriamente em um livro, há combinações provocadas que
envolvem massas visuais e que, em até em sua ausência podem carregar intencionalidades e
provocar efeitos.
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Figura III - WHITE, Jan. Editing By Design. RR Browker, 1974, p.22.
Didi-Huberman também nos lembra do poder das imagens montadas por cineastas
como Alfred Hitchcock, Jean-Luc Godard, dentre outros. Eles, exploram os efeitos da
montagem de imagens, seu poder de fazer ver. Para o mestre Hitchcock, o efeito da montagem
foi fundamental para provocar medo, enquanto para Godard, só pela montagem se pode
mostrar o que é impensável, provocando, assim, a imaginação e potencializando efeitos que se
quer produzir, ou que se produz mesmo inconscientemente (DIDI-HUBERMAN, 2012,
p.155-190).
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Nos livros contemporâneos a relação texto-imagem é complexa e não flui como um
continuum, mas está quebrada em blocos que recebem títulos intermediários, seções e boxes
para leitura paralela ou complementar. Em alguns livros, o autor pode ter vários pontos de
entrada, ao contrário da página tradicional. Existem, portanto, arranjos visuais cognitivos que
facilitam a legibilidade e a velocidade da leitura, o que para alguns estudos da psicolinguística
é elemento constitutivo de uma maior possibilidade de reconhecimento sintético e não um
processamento analítico-sintético. Uma leitura rápida permite reter melhor o que se lê,
especialmente pela limitação da memória de curto prazo (BOCCHINI, 2007).
Letras e sua estrutura construtiva (o desenho de tipos), a superfície resultante da união
das linhas, dentre outros, são elementos que definem legibilidades e formam elementos
definidos culturalmente. Segundo Moraes, como um texto falado que combina expressões,
gestos e posturas corporais, uma página de texto e os elementos e configurações materiais e
plásticos combinados informam e potencializam os efeitos da leitura (MORAES, 2010, p.34).
Dessa forma, elementos materiais e visuais de uma página são articulados segundo
uma lógica própria do modo visual. Assim, a leitura de um título, de uma legenda ou de um
bloco de texto seguirá o procedimento da leitura ocidental, no nosso caso, da esquerda para a
direita e de cima para baixo, antes das regras gramaticais. O momento e a sequência que a
leitura desse texto terá início e a importância e o significado de seu posicionamento em
relação com outros materiais gráficos serão determinados pela linguagem visual.
Assim, pode-se dizer que a composição visual do livro influencia os trajetos do olhar e
impacta no sentido pretendido para além da velocidade de leitura. E, aqui há mais hierarquias.
Imagens tem poder de atração e são vistas em primeiro lugar em relação às palavras. Imagens
são a primeira coisa que vemos em uma página, assinala White. São emocionais, instintivas e
não são elementos subordinados (WHITE, 2006, p. 143). Normalmente, a imagem é o ponto
de partida para se chegar ao texto. Quando a imagem não é ponto de partida, ela tende a ser
usada como ilustração, mas mesmo no grau extremo da autoridade do discurso, como diria
Roland Barthes (apud MORAES, p.38), ela interfere no arranjo visual. Sob essa perspectiva
nenhuma imagem é, a rigor, apenas ilustrativa, mesmo que a intenção do autor seja essa.
Consciente do poder da montagem, Jan White recomenda: junte imagens e forme um
bloco de impacto (WHITE, 2006, p. 144), enquanto Didi-Huberman cita o cineasta Jean-Luc
Godard para afirmar a mesma ideia, a de que “a montagem, [...] é o que faz ver” (DIDI-
HUBERMAN, 2012, p. 176). Na junção das imagens, apreende-se diferenças, cria-se sentidos.
Isso ocorre tanto na junção da montagem entre imagens ou na relação imagens e palavras.
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Portanto, refletir sobre o modo visual de um livro pode ser útil para investigar a
dinâmica pretendida, o leitor implícito pensado por quem executou o plano didático e a
proposta historiográfica que a sustenta. Além disso, pode ser útil para examinar o projeto
editorial e as perspectivas de leitura em articulação com as políticas públicas do livro didático
e as questões de mercado. Sob essa perspectiva, espaços e montagens são elementos, dentre
outros, que podem auxiliar a pensar o livro e seus movimentos.
Realizadas estas breves considerações, voltemos ao ponto inicial. Há uma defasagem
entre as finalidades didáticas de um livro e sua visualidade, um desconhecimento pelo
fenômeno visual do livro como modo de conhecimento. Isso ocorre porque, como afirmam
alguns autores, subordinamos a linguagem visual à verbal. Nossos manuais didáticos são
encarados como portadores exclusivos de conteúdos disciplinares, entretanto, compreendê-los
como meios de construção de sentidos em sua configuração visual pode nos ajudar a lidar
com eles de maneira mais ampla e reflexiva.
Referências
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02. AS MULHERES NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA
Introdução
Este texto centra-se nas representações das mulheres propagadas no livro didático de
História direcionado ao 9° ano do Ensino Fundamental e que integra a coleção Projeto
Mosaico elaborada pelos autores Cláudio Vicentino e José Bruno Vicentino. As análises que
fazemos pautam-se nas imagens e na abordagem narrativa constituída a partir delas como
meio para a problematização da construção representativa do feminino nos livros didáticos.
Trata-se de um ponto imperativo no que concerne a construção de um imaginário social
discriminatório, sexista e misógino que pode ser fomentado através desse importante
instrumento pedagógico. Ao longo deste texto buscamos responder duas questões: Como as
mulheres estão sendo representadas historicamente? Em que medida essas imagens
contribuem para consolidar – ou não – as hierarquias de gênero?
É consenso entre vários pesquisadores do ensino de História que o livro didático é um
instrumento fundamental que permite aos alunos(as) a aprendizagem do saber resultante da
investigação histórica. Na concepção de Rüsen (2011, p. 109), ele “é a ferramenta mais
importante no ensino de história”. Para Circe Bittencourt (2009, p. 295) eles são “suportes
fundamentais na mediação entre o ensino e a aprendizagem”. Em muitas situações, o livro
didático é, senão a única, pelo menos, a mais importante fonte de acesso aos conhecimentos
históricos por parte dos(as) estudantes. Para o(a) professor(a), ele é o recurso substancial para
o seu trabalho em sala de aula, priorizado em detrimento dos filmes, mapas, documentários,
fragmentos de jornais, livros de literatura, tabelas, dados estatísticos e vídeos, entre outros
(BITTENCOURT, 2009, p. 298-299). Enfim, de acordo com Rüsen (2011, p. 112), a
finalidade legítima do livro didático é possibilitar, impulsionar e favorecer a aprendizagem da
história.
Dada a importância do livro didático de história e sua enorme contribuição para a
aprendizagem histórica, não constitui nossa tarefa desqualificá-lo. Seus conteúdos não
4
Professora da Educação Básica com formação em História pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
(2014) e mestra em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, campus de Araguaína –
TO (2021).
5
Doutora em História. Coordenadora e Professora do Mestrado Profissional em História- ProfHistória;
Araguaína – TO. Professora nos cursos de Graduação e Licenciatura em História.
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consistem em meras adaptações dos resultados da ciência da História, pois nutre-se dos
resultados da historiografia e da didática, dois campos disciplinares específicos, distintos e
imbricados (RÜSEN, 2011, p. 111). Para além disto, é imperativo considerar o livro didático
“como objeto e produto cultural [que] traz consigo pedagogias que inscrevem padrões
normativos e hegemônicos sobre os sujeitos, suas relações, comportamentos, etc.” (SILVA,
2007, p. 224).
Outros elementos a serem considerados são que a produção de livro didático envolve
tanto a variável econômica – com as disputas no mercado editorial –, quanto o controle da
história a ser ensinada – a história propagada tem o papel de perpetuar os valores e padrões
normativos de comportamentos e relacionamentos entre os diversos sujeitos sociais. Foi a
partir da criação do Plano Nacional do Livro Didático – PNLD (1996) que adveio a
construção de ferramentas de auxílio aos professores para que observem critérios que lhes
permitam a escolha dos livros, levando em conta o Projeto Político-Pedagógico da escola e a
formação dos professores. Assim, a secretaria de educação, os professores e a direção devem
estar cientes da importância de considerar o público que é atendido. Entre os critérios
observados para a inclusão dos livros no Guia do Livro Didático estão os preceitos legais e
jurídicos e a construção da ética; adequação das concepções teórico-metodológicas e
articulação com proposta pedagógica, além dos aspectos gráficos e editoriais que também
devem ser observados (ALMEIDA, 2018, p. 47).
O PNLD elabora o Guia dos Livros Didáticos com as avaliações de cada coleção pré-
selecionada pelos especialistas. Ele apresenta uma análise detalhada de cada coleção. Nesta
avaliação, entre várias outras coisas, é verificado se a coleção está dentro dos padrões
exigidos quanto aos preceitos legais e jurídicos – a não aceitação da discriminação racial, do
preconceito e o atendimento ao compromisso com o ensino da diversidade étnico racial e de
gênero –, além dos valores éticos, a adequação das concepções teórico-metodológicas, e os
aspectos gráficos e editoriais. Ademais, a proposta pedagógica da coleção também é avaliada:
se as atividades propostas exigem a reflexão e a ação dos(as) alunos(as) e se estão vinculadas
aos textos propostos, à inclusão das imagens, às novas tecnologias e às atividades
interdisciplinares (ALMEIDA, 2018, p. 48-50).
Convém ressaltar que o livro didático de história ao qual nos referimos apresenta
estruturação didática e formato claro, contém glossários ao longo dos textos e propostas
pedagógicas para o trabalho com os(as) discentes, além de diversos tipos de imagens –
fotografias, charges e tirinhas – que provocam tanto a reflexão e permitem a interpretação e a
elaboração de novas hipóteses. Todavia, a obra está alheia à importância da História das
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Mulheres. Apesar de abordar as lutas e conquistas femininas, tanto em cenário nacional
quanto mundial, não supera o androcentrismo, pois, ora apaga as mulheres com uma narrativa
universalizante, ora reforça condições sócio-históricas por representá-las sem problematizá-
las. Além do mais, a maioria dos textos sobre as mulheres integram a Seção Conheça mais,
boxe em que o tema do capítulo é aprofundado e complementado. Essa situação nos remete
para o seguinte pensamento: há uma narrativa hegemônica e masculina que orienta toda a
organização do livro, no qual os sujeitos centrais são homens, e em alguns momentos, os
autores, em sobressalto, apontam para a questão feminina. Seria ausência de informações
sobre as mulheres e suas ações ao longo da História? Cremos que a causa vai além e tem viés
político e cultural.
É indubitável a existência de vasta produção historiográfica sobre as mulheres que
disputa espaço com a produção masculina 6. Com a emergência da segunda onda feminista –
entre os anos 1970 e 1980 – a História das Mulheres estabeleceu um campo definível dentro
da historiografia. Dessa forma, começou-se a problematizar a presença das mulheres enquanto
sujeitos de preocupação do relato histórico, isto é, o androcentrismo do ofício histórico
(BALTHAZAR, 2012, p. 91). Inicialmente, utilizou-se a categoria mulher em contraposição a
palavra homem enquanto termo universal. Cécile Dauphin (2012) sublinha que na década de
1920, a definição de história de Marc Bloch inseriu o homem, enquanto um termo assexuado
e universalizante e, dessa maneira, a História continua “um trabalho de homens que escrevem
a história no masculino, [e] não é de admirar que a exclusão da mulher tenha parecido e
pareça ainda absolutamente natural” (DAUPHIN apud BALTHAZAR, 2012, p. 92).
Joan Scott (1995) revela as dificuldades institucionais para romper com o “universal
masculino” e a invisibilidade das mulheres:
6
Segundo Joan Scott (1992), Os contextos de poder e conhecimento caracterizam a emergência do campo da
História das Mulheres: o poder, porque a História já consistiu um espaço hegemônico dos homens brancos; o
conhecimento porque considerando os requisitos de profissionalização da História, o que capacitava ou permitia
que alguém fosse reconhecido era o aperfeiçoamento acadêmico, o conhecimento de área e habilidades
intelectuais e de atuação, mas para as mulheres esses quesitos não foram inicialmente suficientes para garantir-
lhes igualdade nessa área, sendo ainda um reflexo da sua condição enquanto sujeito social.
29
Na concepção de Michelle Perrot (2019, p.15), a História das Mulheres esteve
associada às lutas feministas, sendo a “tradução e o efeito de uma tomada de consciência
ainda mais vasta: a da dimensão sexuada da sociedade e da história”. Porém, Scott (1992, p.
68) alerta para o equívoco de se “tomar a História das Mulheres simplesmente como um
reflexo da política feminista externa à academia”. Um movimento cujo intento fosse a gênese
de uma historiografia que tivesse como primazia as trajetórias femininas, emergiu a partir de
diversos fatores, e todos partiam de uma formação identitária coletiva das mulheres em torno
de sua condição na sociedade. Nesse sentido, Scott (1995) afirmou que o "gênero"
transformaria os paradigmas disciplinares.
[...] As concepções de gênero tanto são produto das relações sociais quanto
produzem e atuam na construção destas relações, determinando experiências,
influindo nas condutas e práticas e estruturando expectativas. Um “olhar de gênero”
não só procura o que há de cultural nas percepções das diferenças sexuais como
também a influência das ideias criadas a partir dessas percepções na constituição das
relações sociais em geral. (PINSKY, 2010, p.34)
Nesse mesmo sentido, em sua própria definição de gênero, Scott (1995, p. 86) denota
“um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre
30
os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”. A
dimensão do poder no conceito de gênero foi fundamental para desvincular a história das
mulheres da história social. Scott (2011, p. 69) esclarece que “o feminismo tem sido, nas
últimas décadas, um movimento internacional, mas possui características particulares,
regionais e nacionais”. Entre aquelas que criticam o uso do termo gênero como valor nominal
universal está a intelectual Oyèrónké Oyéwùmí que afirmou ser
[...] essa uma categoria particular da política das mulheres brancas anglófonas,
especialmente nos Estados Unidos. Talvez a crítica mais importante das articulações
feministas de gênero seja aquela feita por uma série de pesquisadoras afro-
americanas, as quais insistem que nos Estados Unidos não é possível de maneira
alguma que gênero seja considerado como algo independente das noções de raça e
de classe. Essa posição levou à necessidade de insistir na diferenciação entre as
mulheres e de teorizar múltiplas formas de opressão, particularmente aquelas nas
quais as desigualdades de raça, gênero e classe são evidentes. Fora dos Estados
Unidos, as discussões têm focado na necessidade de prestar atenção ao
imperialismo, à colonização e a outras formas locais e globais de estratificação, que
dão peso à afirmação de que o gênero não pode ser abstraído do contexto social e de
outros sistemas hierárquicos. (OYÉWÙMÍ, 2018, p. 173)
O que a autora refuta não é a validade das formulações acerca do gênero, mas a
utilização de seus postulados de forma única e/ou isolada de outros fatores de sujeição das
mulheres. Ao tratar dos desafios das epistemologias africanas, Oyéwùmí (2018, p. 177-178)
demonstra que as hierarquias oriundas do gênero não se aplicam, por exemplo, a família
Yorùbá, onde esta se dá pela senioridade e pela linhagem, entre outros. Logo, é fundamental e
imprescindível que sejam consideradas as particularidades das diversas mulheres no tempo.
Paul Ricouer (2007, p. 250) questiona “a capacidade do discurso histórico de representar o
passado” e ao tratar da representação historiadora, ele sublinha que:
31
maneira pela qual um acontecimento é explicitado determina o sentido e o significado do
relato, sendo este o próprio processo de construção do conhecimento histórico. Assim, a
narrativa é um nos elementos de constituição do nexo e de significação do passado.
Vivemos num momento em que as informações por meio das imagens nos são
apresentadas diuturnamente. Nesta tendência, os livros didáticos aumentaram o número de
imagens no seu interior buscando tornar o material mais rico e expressivo para os(as)
estudantes na medida em que chamam atenção e parecem transmitir com mais rapidez uma
dada mensagem: imagem e texto se complementam. De fato, as imagens “dinamizam a
narrativa. Nesse sentido, o quarto volume da coleção Projeto Mosaico: História apresenta um
número significativo de imagens femininas. Porém, muitas vezes, elas podem passar
despercebidas das discussões por não estarem acompanhadas de problematizações evidentes.
Assim, é imprescindível que esteja notável para alunos e alunas que muitas situações
associadas às mulheres e tidas como “naturais”, na realidade, correspondem às relações de
poder numa dada sociedade. Todavia, a maior parte das imagens em que aparecem mulheres
surge em conteúdos cujas temáticas têm alguma ligação com a esfera política. Em alguns
casos, elas aparecem porque sua imagem está ligada à do marido, que é ou foi uma
personalidade política de destaque conforme nas imagens a seguir:
Fonte: Vicentino (2015, p. Fonte: Vicentino (2015, Fonte: Vicentino Fonte: Vicentino (2015, p.
228.) p. 311) (2015, p. 49) 49)
7
As legendas das figuras 4, 5, 6, 7 e 8 foram transcritas do livro didático e têm a mesma
descrição atribuída pelos autores.
32
As figuras apresentadas aparecem no volume que trata das temáticas populismo e
ditadura na América Latina – com destaque, neste caso, para o governo peronista da Argentina
e os governos Lula no Brasil – e a Revolução Russa. Nas narrativas que tratam dos eventos
históricos destacados, as mulheres pouco aparecem e às vezes nem são mencionadas. Evita
Perón (Figura 1) e Alexandra (Figuras 3 e 4) têm seus nomes explicitados nas legendas das
imagens, enquanto Maria Letícia Rocco (Figura 2) aparece na fotografia ao lado do presidente
eleito na época, mas seu nome não aparece. Com essa mesma conotação, há ainda a imagem a
seguir, da arquiduquesa Sophia ao lado de seu esposo Francisco Ferdinando antes do atentado
que é considerado o estopim para a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
8
Segundo Lana Lage e Maria Beatriz Nader (2013), a ideologia patriarcal disseminou entre os homens um
sentimento de posse sobre o corpo feminino fazendo com que o comportamento da mulher definisse sua honra.
Como resultado, práticas de violência contra as mulheres eram naturalizadas, pois eram vistas como uma
maneira de discipliná-las, estabelecer sua honra reconduzindo-a ao padrão normativo, bem como limpar a honra
do marido e da família.
9
Principalmente nas imagens de Alexandra com o czar Nicolau II saindo da Igreja, e depois de ambos com os filhos.
34
Figura 6 – Trecho do Capítulo 16 contendo o subtema “O Governo de Dilma Rousseff” com o tópico “A
primeira mulher Presidente”.
A imagem exibe um trecho de uma reportagem de jornal que cita a eleição de duas
mulheres brasileiras pioneiras a ocupar cargos na esfera política. Dilma Rousseff, eleita
presidenta da República do Brasil em 2010, e Alzira Soriano, eleita prefeita da cidade de
Lages, no Rio Grande do Norte em 1928, foram expostas a várias injúrias por ocuparem um
espaço masculino por excelência. Nesse ponto, consideramos pertinente a abordagem do livro
didático, pois a questão social dos preconceitos contra mulheres foi problematizada. Logo,
neste conteúdo, o enfoque da narrativa foi centrado na trajetória histórica da mulher com
ênfase na construção das desigualdades e dos estereótipos que recaem sobre nós, assim como
também afetam os homens quando não têm o comportamento normativo esperado.
Para o trabalho pedagógico em sala de aula, consideramos possível problematizar o
porquê de a participação feminina na política ainda ser ínfima, conforme as imagens a seguir:
35
Figura 7 – Líderes dos cinco países que Figura 8– Governantes dos países membros do G20
compõem o BRICS em reunião em Fortaleza, em foto oficial, durante reunião ocorrida em novembro
Ceará, em 2014. de 2014, na Austrália.
37
Figura 11 – Seção “Conheça Mais: A educação no governo Vargas”.
Várias outras imagens exibidas no livro trazem explícitas as questões que envolvem o
gênero e a trajetória histórica das mulheres, como nas gravuras nas quais elas aparecem como
rostos anônimos em manifestações de rua reivindicando direitos políticos bem como os
exercendo.
Fonte: Vicentino (2015), p. 16. Fonte: Vicentino (2015), p. 137. Fonte: Vicentino (2015), p. 103.
38
Figura 15 - Ilustração de 1893 que retrata mulheres trabalhando na indústria de munições durante a Primeira
Guerra Mundial.
Mais adiante, e ainda sobre a temática da Primeira Guerra Mundial, o livro destaca um
trecho em que são abordadas as mudanças nas vestimentas das mulheres europeias como
reflexo do conflito. Segundo o texto, por causa do conflito, muita matéria prima utilizada para
fazer as vestimentas das mulheres da elite da Belle Époque tornou-se escassa. Além disso, por
precisarem substituir os homens nas fábricas, porque eles haviam sido recrutados para os
campos de batalha, elas passaram a usar roupas mais confortáveis que facilitavam o uso de
bicicletas para se deslocarem mais rapidamente de casa para o trabalho. Mesmo o texto
tratando de algumas poucas transformações no modo de vida das mulheres e dos seus papéis
sociais, consideramos a abordagem limitada por ter sido feita em apenas uma seção da obra,
como um complemento de uma narrativa oficial que passa a ideia de curiosidade e não
transmite as questões políticas reais implícitas.
39
Figura 16 – Seção “Conheça mais: O Espartilho, a bicicleta e a Primeira Guerra”.
No que tange ao período ditatorial no Brasil, que foi de 1964 a 1985, as mulheres são
representadas como transgressoras da ordem autoritária implantada no país por estarem
engajadas nas lutas armadas. Sobre a participação das mulheres no movimento de resistência
contra o regime militar, Cristina Scheibe Wolff afirmou que: Vários testemunhos de mulheres
que participaram das organizações de esquerda armada revelam algum ressentimento contra
essas organizações por não darem a elas as mesmas chances de reconhecimento de capacidade
política dadas aos homens. (WOLFF, 2013, p. 443).
Segundo Wolff, a presença feminina em lutas armadas em vários momentos da história
do Brasil foi inegável. Muitas atuaram como guerrilheiras no combate ao regime militar,
sofrendo também com as questões de gênero no interior dos grupos. Por integrar essas
associações de resistência, as mulheres, assim como os homens, foram vítimas das
autoridades sendo presas, torturadas e até mortas. O livro didático retrata essa resistência
feminina e a retaliação que receberam nos protestos realizados por meio de produções
culturais e artísticas como a música, conforme figuras 17 e 18.
40
Figura 17– Seção “Ponto de Encontro: A Figura 18 – Seção “Conheça Mais: A mulher brasileira
Canção de protesto no Brasil” com vai à luta” que exibe a letra da música Maria, Maria cujos
fotografia (1967) de Elis Regina se versos se tornaram símbolo de luta para as feministas e
apresentando no 3° festival de Música fotografia que mostra Elza de Lima Monerat deixando a
Popular Brasileira da TV Record. casa de detenção do Carandiru após ser anistiada.
41
Figura 19 – Mães argentinas em Figura 20 – Seção “Conheça Mais: As mulheres na
manifestação que exigia redemocratização” – aborda a participação feminina e os frutos
explicações oficiais sobre o de suas lutas na Carta constitucional de 1988. Também mostra
desaparecimento ocorridos durante fotografia da farmacêutica cuja experiência contribuiu para a
a ditadura. Buenos Aires, 2014. criação da Lei n. 11.340.
Certamente, uma abordagem calcada na História das Mulheres deve dar visibilidade às
lutas femininas, às suas formas de resistência e as formas de opressão que lhe recaíam ao
longo da História. Nesse caso, é necessário abordar a condição das mulheres por meio das
interseccionalidades. Segundo Carla Akotirene (2018), um olhar interseccional de gênero visa
preencher a lacuna que o movimento feminista branco e hegemônico deixou ao não considerar
as especificidades da condição da mulher negra e da mulher em condição socioeconômica
menos privilegiada. Para a autora, vários elementos de dominação recaem sobre as mulheres
além do sexo, nesse sentido, a “interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-
metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado –
produtores de avenidas identitárias onde mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo
cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.
(AKOTIRENE, 2018, p. 15).
Ademais, como ressalta Akotirene, abordar ou mesmo defender a causa feminina
considerando apenas um ou poucos aspectos e ignorando as particularidades da existência
feminina, é cair no esvaziamento. Por isso é fundamental a compreensão fluida “das
identidades subalternas” (AKOTIRENE, 2018, p. 33). Nesse sentido a narrativa do livro
didático torna-se limitada por retratar a mulher muitas vezes como um sujeito universal, não
destacando as especificidades de sua condição socioeconômica e cultural. A imagem a seguir
é o mais próximo que a narrativa didática alcançou ao retratar as mulheres a partir das
intersecções de gênero:
42
Figura 21 – Mulheres brasileiras em fila para sacar o benefício Bolsa Família após boatos sobre o cancelamento
do programa. Foto de 2013.
43
Figura 22 – Seção “Trabalhando com Figura 23 – Questão de atividade em que se
Documentos”: proposta de análise de um cartaz propõe a análise de cartazes que estimulam
publicitário de campanha pela defesa dos direitos mulheres a trabalharem na indústria de armamentos
da mulher. e a se alistarem no exército estadunidense.
Considerações Finais
45
imperativo que o homem não seja tomado como sujeito universal, e que às mulheres seja dado
também o seu lugar de direito: como sujeitas da história.
Referências
46
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
______. História das Mulheres. In: BURKE (org.). A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. P. 65-98.
SILVA, Cristiani Bereta da. O saber histórico escolar sobre as mulheres e relações de gênero
nos livros didáticos de história. Caderno Espaço Feminino. v. 17, n. 01, Jan./JuL. 2007. P.
219-246.
VICENTINO, Cláudio; VICENTINO, José Bruno. Projeto mosaico: história – anos finais –
ensino fundamental. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2015.
WOLFF, Cristina Scheibe. Em armas: Amazonas, soldadas, sertanejas, guerrilheiras. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria Pedro (Orgs.). Nova História das Mulheres
no Brasil. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2013. P.423-422.
47
03. O USO DO FILME COMO RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO DE
HISTÓRIA: UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS-EJA.
Considerações Iniciais
10
Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Licenciada em História pela
UNITINS. Egressa do Programa de Mestrado Profissional, ProfHistória. elianelbb@hotmail.com
elianelbbringel@gmail.com
11
Artigo escrito a partir da pesquisa de dissertação de mestrado - O Uso do Filme no Ensino E Aprendizagem de
História na Educação de Jovens e Adultos-EJA em Araguaína-TO - defendida e aprovada em agosto de 2016, na
Universidade Federal do Tocantins - UFT
48
desafiadoras, são realizadas por estes e os produtos daí são integrados na avaliação
(BARCA,2004, p. 132).
Para o desenvolvimento deste estudo, partimos da premissa de que o uso de filmes nas
aulas de História como recurso didático-pedagógico pode contribuir no processo de construção
de um conhecimento histórico significativo para os alunos da modalidade EJA, desde que esses
compreendam a estratégia que está sendo aplicada e, em decorrência, se sintam sujeitos do seu
próprio conhecimento. Nesta perspectiva, concretizamos uma experiência com o uso dos filmes
A História das Coisas e Tempos Modernos. Aplicamos a proposta didática “Mundo do
Trabalho” sobre o uso desses filmes. O estudo pretende contribuir com reflexões que possam
auxiliar o professor em suas práticas em sala de aula quanto à utilização do filme como recurso
didático para a construção do conhecimento histórico.
Enquadramento Teórico
A opinião padrão sobre o que a didática da história é, como ela funciona e onde está
situada no reino das humanidades é a seguinte: a didática da história é uma
abordagem formalizada para ensinar história em escolas primárias e secundárias, que
representa uma parte importante da transformação de historiadores profissionais em
professores de história nestas como disciplina acadêmica e o aprendizado histórico e
a educação escolar. É uma disciplina que faz a mediação entre história como
disciplina acadêmica e o aprendizado histórico e a educação escolar. Assim, ela não
tem nada a ver com o trabalho dos historiadores em sua própria disciplina. A
didática da história, sob essa visão, serve como ferramenta que transporta
conhecimento histórico dos recipientes cheios de pesquisa acadêmica para as
cabeças vazias dos alunos (RÜSEN, 2011, p. 23-24).
Para o autor, essa visão da didática da história é extremamente equivocada, pois falha
em não confrontar os problemas reais relacionados ao aprendizado e à educação histórica, bem
como a relação entre didática e pesquisa histórica. No âmbito desse entendimento, afirma que o
aprendizado histórico é uma capacidade que todos nós desenvolvemos. Por assim ser, destaca:
12
Esse método, que se fundamenta no desenvolvimento da capacidade do aluno em memorizar, criava uma série
de atividades para ‘o exercício da memória’, constituindo os chamados métodos mnemônicos. Um método
mnemônico muito difundido no ensino de História foi proposto pelo francês Ernest Lavisse, que pretendia
desenvolver a inteligência da criança por intermédio da capacidade da memorização (BITTENCOURT, 2011).
50
passa a compreender os acontecimentos e as pessoas que constituem a História. Ao discorrer
sobre o ensino de História, o autor pontua que saber trabalhar, compreender e analisar os
filmes é uma forma de entender o quanto essas obras influenciam na formação histórica da
sociedade e, consequentemente, dos nossos alunos.
Identificar os fatores inerentes ao uso eficaz e eficiente do filme em sala de aula,
assim como aqueles relativos à sua utilização de modo inadequado, não é uma tarefa fácil.
Como qualquer outro documento histórico ou obra historiográfica, o filme traz em si uma
construção a ser trabalhada, pensada, questionada e criticada.
Para Napolitano (2009), o professor deve buscar dimensões diferentes do filme,
indagando-se: “Qual o uso possível deste filme? A que faixa etária e escolar ele é mais
adequado? Como abordar o filme dentro de minha disciplina ou num trabalho interdisciplinar?
Qual a cultura cinematográfica dos meus alunos?” (NAPOLITANO, 2009, p. 12).
Por sua vez, Elias T. Saliba (1993) alerta também para o fato de ser necessário
perceber as formas de produção de um filme como forma de compreender o imaginário de
diferentes sociedades no processo de ensino.
51
sendo ensinado na sala de aula. É a influência de uma interpretação da realidade competindo
com outra realidade, a do espaço escolar.
No século XXI, o filme tem sido um recurso de comunicação audiovisual que
possibilita ao professor desenvolver suas aulas de maneira mais didática, tornando-as mais
atrativas para o educando. Podemos afirmar que o trabalho com obras cinematográficas não
só estimula a pesquisa sobre o passado como influência, de forma intensa, a imaginação do
espectador. Toda a sequência de imagens organizadas em quadros e acompanhadas por uma
trilha sonora propicia uma construção do imaginário. Nas palavras de Napolitano (2009),
Segundo esse autor, ao utilizar o filme como recurso didático em suas aulas, o
professor não deve esquecer que o filme é uma obra de arte que traz consigo suas
peculiaridades. Esse profissional deve atuar como mediador entre a obra e os alunos,
propondo-lhes leituras mais amplas, orientadas para além do puro prazer, com vistas a fazer a
ponte entre emoção e razão, de forma mais direcionada. Nessa perspectiva, deve incentivar o
aluno a se tornar um espectador mais exigente e crítico, estabelecendo relações de
conteúdo/linguagem do filme com o conteúdo escolar. Ainda conforme Napolitano (2009),
ao escolher um ou outro filme para incluir nas atividades escolares, o professor deve
levar em conta o problema da adequação e da abordagem por meio de reflexão
prévia sobre os seus objetivos gerais e específicos. Os fatores que costumam influir
no desenvolvimento e na adequação das atividades são: possibilidades técnicas e
organizativas na exibição de um filme para a classe; articulação com o currículo e/ou
conteúdo discutido, com as habilidades desejadas e com os conceitos discutidos;
adequação a faixa etária e etapa específica da classe na relação ensino
aprendizagem. (NAPOLITANO, 2009, p.16).
No processo de seleção do filme que irá trabalhar em sala de aula, ainda conforme o
Napolitano (2009), o professor deve levar em consideração o problema da adequação e da
abordagem, por meio de reflexão prévia de seus objetivos gerais e específicos. Em conclusão,
aponta para a necessidade de planejamento das atividades pedagógicas que fazem uso do
filme como recurso didático.
Vislumbrar metodologias que possam dar novos significados e motivar os alunos a se
apropriar do conhecimento histórico é de suma importância na prática pedagógica do
professor de História. Cabe ao docente buscar alternativas para o problema do “desinteresse”
e motivar o aluno em face do conteúdo abordado na aula de História. Compete, também,
construir propostas de ensino identificadas com as expectativas e a cultura do aluno. Nossa
52
proposta de uso de filme em sala de aula soma esforços aos intentos de utilização eficaz e
eficiente desse recurso didático-pedagógico.
53
filme como recurso didático no ensino de História e identificar como esse instrumento pode
contribuir no processo de construção do conhecimento histórico.
O Quadro 1, apresenta a Proposta didática: “Mundo do Trabalho”
Ações Período
1º Encontro: apresentação da metodologia da proposta didática “Mundo do Trabalho”, que utiliza o filme como
recurso didático. Aplicação do questionário II aos alunos participantes da pesquisa, para identificar a concepção Setembro e outubro–
desses sobre a metodologia. 2015– 9 - Encontros.
2º Encontro: aplicação do questionário III, com o intuito de gerar informações acerca dos conhecimentos prévios
dos alunos relacionados à temática que irá ser trabalhada: “Mundo do trabalho”.
3º Encontro - 1ª aula: reflexões sobre o consumo na sociedade capitalista. Aula expositiva e dialogada (Slides)
(anotações em diário de bordo).
4° Encontro - 2ª e 3ª aulas: exibição do filme A História das Coisas, de Annie Leonard (32 min.). Análise das
imagens e narrativas cinematográficas. Debate: observar se durante as discussões os alunos estabelecem relações
entre o que foi estudado sobre a temática e o que assistiram no filme (anotações em diário de bordo).
5° Encontro – 4ª e 5ª aulas: produção de poemas relacionados à temática do filme A História das coisas.
6º Encontro – 6ª aula: reflexões acerca das relações de trabalho e dos avanços tecnológicos no cotidiano. Aula
expositiva e dialogada (Slides) (anotações em diário de bordo).
7º Encontro – 7ª e 8ª aulas: exibição do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin (87 min.). Análise das
imagens e narrativas cinematográficas. Debate: observar se durante as discussões os alunos estabelecem relações
entre o que foi estudado sobre a temática e o que assistiram no filme (anotações em diário de bordo).
8º Encontro 9ª aula: produção de atividades relacionadas ao filme Tempos modernos. Os alunos deverão
mostrar, através de trabalhos como poemas, teatro e produções escritas, que conhecimentos históricos eles
conseguiram construir a partir dos filmes apresentados em sala de aula.
9º Encontro – avaliação – Aplicação do questionário V. O instrumento de investigação da proposta didática será
esse questionário, com questões relacionadas à metodologia da proposta didática “Mundo do Trabalho”. Tem-se
como intuito identificar e analisar as perspectivas dos estudantes quanto ao uso do filme como recurso didático
nas aulas de História. Objetiva-se, ainda, analisar se a metodologia que utiliza o filme como recurso didático no
processo de ensino e de aprendizagem de História na sala de aula vai além do senso comum de ilustrar as aulas e
se realmente contribui para que os alunos façam um paralelo entre seus conhecimentos prévios sobre o assunto e
desenvolvam o senso crítico, sentindo-se sujeitos partícipes da sociedade.
54
O Quadro 2 expõe a metodologia da aula oficina.
No modelo proposto pela Aula oficina, o professor é “um investigador social” que
deve, antes de tudo, “levantar e trabalhar de forma diferenciada as ideias iniciais que os
alunos manifestam tacitamente, tendo em atenção que estas ideias podem ser mais vagas ou
mais precisas, mais alternativas à ciência ou mais consentâneas com ela” (BARCA, 2004, p.
134).
Na Aula oficina, um componente muito importante é o processo de avaliação da
aprendizagem. Segundo Neves (2012),
56
Quadro 4 – Perfil do aluno trabalhador quanto à sua ocupação.
Quantidade de alunos Profissão
2 Empacotadores de supermercados
1 Recepcionista de hotel
1 Moto taxi
1 Proprietária de salão de beleza
2 Ajudantes em lava a jato
2 Pedreiros
2 Babás
4 Faxineiras
1 Eletricista
2 Chapas
2 Manicures
4 Não trabalhavam
Fonte: Dados da pesquisa.
57
Quadro 5 – Frequência com que assistem a filmes
Frequência Quantidade de alunos
Mais de três vezes por semana 7
Uma a três vezes por semana 5
Mais de três vezes por mês 6
Uma a três vezes por mês 6
Fonte: Dados da pesquisa.
58
Quando indagados se lembravam de algum filme ao qual assistiram e se a partir
desses aprenderam algo relacionado à disciplina de História, a maioria dos alunos citou “os
filmes históricos”. As produções mais citadas foram Tróia, Cruzada e Gladiador. Percebe-se
que os filmes elencados pelos alunos são os chamados históricos, o que justifica o comentário
de um dos alunos. “Os filmes antigos mostram como tudo aconteceu de verdade (Informante
Marcos)13”.
Notamos que a maior parte dos alunos tem uma ideia do filme como representação da
verdade. No entanto, destacamos que muitos filmes apresentam fatos históricos sob uma
perspectiva equivocada, assim como há pessoas que acreditam naquilo que estão assistindo,
sem questionar que essa postura pode conduzi-las a erros de concepção histórica.
Quando indagados sobre um filme que ressaltou algum aspecto histórico, a aluna
Adriana acabou por narrar um que nenhuma relação tinha com a temática. Isso demonstra o
distanciamento existente entre o que queremos em nossas aulas e aquilo que é apreendido
pelo aluno.
Sim, assisti ao filme O Pequenino era Um Anão que seu amigo vestiu ele de bebê
colocou em frente da casa de uma mulher e a mulher adotou o anão como seu filho
mais ele queria dar um golpe neles pra tomar seu diamante ele fingia que era um
bebê mais era um bebê homem (Informante Adriana).
Dos dois filmes utilizados em nossa proposta didática, o filme Tempos Modernos
despertou mais interesse da turma, tanto na exibição quanto nas discussões e manifestações
escritas sobre a narrativa fílmica e os conteúdos históricos.
13
Ao transcrever as narrativas das entrevistas, buscamos conservar a oralidade da linguagem e, por
questões éticas, não expusemos os nomes verdadeiros dos nossos colaboradores. Portanto, nas remissões às falas
dos alunos, utilizamos nomes fictícios.
59
Figura 1 – Exibição do filme Tempos Modernos.
Quanto à exibição do filme A História das coisas, muitos alunos não demonstram
interesse e nem participaram das discussões propostas em nossa metodologia. Isso levou as
respostas aos questionários a retratarem aspectos mais relacionados ao filme de Charles Chaplin.
Esse resultado evidenciou que os filmes de ficção são mais acessíveis aos alunos do
que os documentários. Também ficamos mais tranquilos em relação ao trabalho que foi
desenvolvido com a produção Tempos Modernos, pois é certo que esse filme é repleto de
informações e situações a serem analisadas. Porém, dadas as características técnicas (preto e
branco, longo e mudo), nos deixou apreensivos quanto a como seria a recepção dos alunos.
Tínhamos receio de que, devido a essas características, o trabalho com esse filme pudesse ser
entediante para os alunos.
Como parte das atividades avaliativas, os alunos foram instados a realizar trabalhos
em grupo. Na perspectiva da Educação Histórica, o professor deve, nas atividades em grupo,
atuar como um investigador social, com vistas a possibilitar uma aprendizagem
intelectualmente mais desafiadora no processo ensino-aprendizagem de História. Freire
(2011) defende que o professor deve atuar como mediador do processo de construção do
conhecimento, utilizando um “método que seja ativo, dialógico, crítico e criticista” (FREIRE,
2011, p.94), possibilitando uma interação maior entre docente e discente e favorecendo o
processo ensino-aprendizagem.
No 9º encontro aplicou-se o questionário V, para investigar a metodologia depois da
aplicação da atividade. Quando questionados sobre o que eles acharam da proposta didática
60
utilizada, os alunos foram unânimes em afirmar que a proposta era muito interessante.
Fizemos as seguintes perguntas: 1) Depois da aplicação da proposta didática “Mundo do
Trabalho”, que utiliza o filme como recurso didático no ensino de História, em sua opinião
ainda é possível aprender História assistindo a filmes? 2) Você gostou das atividades das aulas
que utiliza como metodologia o filme como recurso pedagógico no ensino de História?
As respostas a essas questões estão transcritas abaixo.
Considerações Finais
61
Referências
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do projeto à avaliação. In. ______. Para uma educação de
qualidade: atas da quarta jornada de educação histórica. Braga, Centro de Investigação em
Educação (CIED)/Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2004, p. 131-
144.
BITTENCOURT, Circe Maria. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4.ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
BRINGEL, Eliane Leite Barbosa. O Uso do Filme no Ensino e Aprendizagem de História
na Educação de Jovens e - EJA em Araguaína-TO. 2016. 118f. Dissertação (Mestrado
Profissional em Ensino de História) – Universidade Federal do Tocantins – UFT. Araguaína-
TO: 2016.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2009.
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Cristina Carapeto Lavrador (Org.). A avaliação da aprendizagem em História. São Paulo:
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fílmica. In: FALCÃO, Antônio Rebouças.; BRUZZO, Cristina. (Org.). Lições com cinema.
São Paulo: FDE, 1993, p. 87-107.
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Jörn Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA Isabel. Aprender História: perspectivas da
Educação Histórica. Ijuí: Unijuí, 2009.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
Filmografias
A História das Coisas. Produção de Annie Leonard. EUA: Free range studios, 2007. (21min.),
color.
Tempos modernos. Produção de Charles Chaplin. EUA: Warner, 1936. (87min.), preto e
branco.
62
PARTE 02 –
ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS-EJA
63
04. ENSINO DE HISTÓRIA DAS MULHERES: EXPERIÊNCIA
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS - EJA EM IMPERATRIZ-MA
Jucileide da Silva Almeida14
Introdução
14
Mestra em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins em História – ProfHistória. Professora
da Educação Básica em Imperatriz - MA.
64
prejudiciais às mulheres. Acreditamos que a escola e as aulas de história possam tanto ser
espaço para legitimação do status quo, quanto de emancipação e mudança.
Nossa proposta de pesquisa, ao dar visibilidade a esses excluídos da história, busca
ajudá-los a compreender como o passado pode ser apropriado, interpretado e significado,
tendo em vista as questões colocadas pelo presente. Os estudantes foram instigados a dar
novas significações ao passado e ao presente a partir da temática feminina, considerando a
categoria de análise gênero.
Esta pesquisa também se justifica por ressaltar a relevância do sujeito na história. Ao
colocar a história de vida dos/as estudantes no centro da investigação histórica, eles vão
perceber que não há neutralidade na produção da história, também não é possível apagar os
narradores e que, portanto, a narrativa histórica é construída com base em problematizações e
posicionamentos muito claros. Essas disputas são bem claras na contemporaneidade,
principalmente quando observamos o espaço de luta da disciplina de história. Há pressões por
parte daqueles que se sentem excluídos, como homens e mulheres em suas distinções de
raça/etnia, idade, classe e religião. Assim, pesquisas como a nossa contribuem para fazer
avançar as reflexões sobre as questões de gênero nas instituições de educação básica.
Ora, sabe-se que gênero, na condição de categoria de análise, ajuda a perceber os
significados, os símbolos e as diferenças construídas histórica e culturalmente para cada um
dos sexos. Assim, colocar em questionamento, visões estereotipadas sobre o masculino e o
feminino, ajuda a desnaturalizar as hierarquias.
15
Paulo Freire (1921 - 1997) – foi professor efetivo de filosofia e história da educação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Recife, tornou-se conhecido no Brasil no início de 1963 quando
seu método de alfabetização de adultos foi divulgado em ampla campanha publicitária pela Secretaria de
Educação do Estado do Rio Grande do Norte, na época fora designado pelo ministro Paulo de Tarso para a
presidência da recém-criada Comissão Nacional de Cultura Popular e, em março do ano seguinte, assumiu a
coordenação do Programa Nacional de Alfabetização (BEISIEGEL, 2010).O método de Freire passa por algumas
etapas: 1º- levantamento do universo vocabular dos grupos com quem se trabalhará; 2º- escolha das palavras
selecionadas do universo vocabular pesquisado; 3º- criação de situações existenciais, desafiadoras; 4º-
elaboração de fichas-roteiro – fichas que deverão servir como subsídios; e 5º- Elaboração de fichas com a
decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores”. (FEITOSA 1999, p. 52).
16
Segundo Carneiro (2004, p.26), não se pode considerar a Lei 5.692 propriamente uma Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. Primeiro, porque lhe faltava um sentido de inteireza, (...) já que deixava de lado o ensino
superior. Depois, a substância educativa, energia vivificadora de uma LDB, era substituída pela mera ‘razão
técnica’, com inegáveis prejuízos para os aspectos de essencialidade do ‘processo educativo’ (grifos do autor).
67
Com a redemocratização, é extinto o Mobral, que tem a Fundação Educar como
substituta, também extinta em 1990. Nesse período, o Brasil participa da Conferência
Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, onde foi aprovada a Declaração
Mundial sobre Educação para Todos, tornando-se, segundo Paula e Oliveira (2011, p.23), no
âmbito internacional, “um marco desse processo por estender aos povos do mundo o
compromisso de proporcionar oportunidades básicas de aprendizagem na compreensão da
educação como um direito universal”.
Ainda na década de 90, tem-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN 9394/96), que apresenta uma seção em que reafirma o compromisso com a
Educação de Jovens e Adultos. Esta lei trata da Educação de Jovens e Adultos no Título V,
capítulo II, seção V, artigos 37 e 38, como modalidade da educação básica, superando sua
dimensão de ensino supletivo (CNE, 2000), assinalando que a Educação de Jovens e Adultos
é destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudo na idade certa,
mantendo ainda cursos e exames supletivos, que compreendem a base comum do currículo,
oportunizando o prosseguimento nos estudos no ensino regular (CARNEIRO, 2004). Em
2000, foram apresentadas as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e
Adultos (DCN da EJA), marcos legais da Educação de Jovens e Adultos.
Certamente, constata-se a riqueza das discussões, desafios e avanços, mais também
contradições na Educação de Jovens e Adultos no Brasil. Ela não surgiu com o intuito de
favorecer a emancipação, posto que, em muitos momentos, era apenas para manter um
controle e garantir mão de obra, em outros momentos, para suplência e sentido
compensatório. Porém, isso vem mudando pelo empenho de grupos que defendem a educação
como direito e garantia de cidadania, sendo importante destacar que a busca pela melhoria da
educação não é só uma luta pontual da EJA, mas da Educação Básica no geral.
A seguir faz-se uma abordagem às questões de gênero relacionadas ao processo de
escolarização dos/as alunos/as da EJA.
Os jovens e adultos da EJA têm muita dificuldade de concluir seus estudos pela falta
de estrutura, e muitos não conseguem conciliar estudo e trabalho, e nem sempre as empresas
liberam os estudantes. Algumas mães não têm onde deixar os filhos no período em que vão à
escola. Ou seja, são várias e diferentes problemáticas. Porém, essas mesmas dificuldades
69
podem se tornar alicerces para continuação dos estudos, numa tentativa de que a situação
vivida não persista e não se perpetue nas gerações seguintes.
Guacira Lopes Louro (2000, p.21), ao tratar das pedagogias da sexualidade, ressalta a
importância da educação escolar para o autodisciplinamento dos sujeitos. Assim, um corpo
escolarizado é um corpo disciplinado, no sentido de conseguir ficar sentado por várias horas
seguidas, de desenvolver habilidades para gestos e comportamentos esperados, como saber
falar e calar para ouvir, além do autocontrole da raiva e das “explosões” ou manifestações
impulsivas e arrebatadoras. A educação escolarizada molda os sujeitos, capacitando-os a usar
as mãos, os olhos e ouvidos de forma particular. Em suas palavras:
Portanto, para a referida autora, diferentes instituições sociais como família, escola,
mídia e igreja participam da produção de sujeitos femininos e masculinos dentro das normas
consideradas “normais”.
Nas últimas décadas, tem-se intensificado a produção de análises sobre as relações de
gênero. Nem a anatomia nem a natureza explicam o domínio da mulher pelos homens, mas a
dominação social interpreta, utiliza, atribui um sentido à diferença biológica. As teorias de
gênero enfatizam a construção cultural das desigualdades entre os sexos. Então, o gênero pode
ser entendido como a tentativa de compreender como a diferença sexual é definida, ou seja,
como as mulheres estão sendo vistas em relação aos homens. Para Soihet (1997), gênero tem
sido, desde a década de 1970, um termo usado para teorizar a questão da diferença sexual.
Segundo ela, a palavra gênero indica uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso
dos termos como “sexo” ou “diferença sexual”. Sendo assim, ele se torna um modo de indicar
as “construções sociais”, ou seja, a criação social dos papéis próprios aos homens e mulheres.
Certamente, pensar as relações entre os sexos, na sua perspectiva cultural, e os seus
significados específicos pressupõe uma reflexão sobre a “diferença”. Diferença entre homens
e mulheres, entre gênero e raça, entre gênero e classe, entre gênero e cultura. Para Eni de
Mesquita Samara, o conceito de gênero é construído diferentemente nas diversas classes
sociais (SAMARA, 1997). Pensar o masculino e o feminino é mergulhar em nossa
sensibilidade. Para Michelle Rosaldo (1980, p.9):
70
A dominação masculina é evidenciada, acredito, quando observamos que as
mulheres em quase todos os lugares têm a responsabilidade diária de alimentar e
cuidar das crianças, dos maridos e parentes; enquanto que as obrigações masculinas
tendem a ser menos regulares e mais baseadas em laços extrafamiliares, certamente
o trabalho do homem em casa não vai ser sancionado pela força da esposa
(MICHELLE ROSALDO, 1980, p.9).
Por mais impressionante que essa estatística seja, ela não é sequer uma estimativa da
atenção constante e impossível de ser quantificada que as mães precisam dar às suas
crianças. Assim como as obrigações maternas de uma mulher são aceitas como
naturais, seu infinito esforço como dona de casa raramente é reconhecido no interior
da família. As tarefas domésticas são, afinal de contas, praticamente invisíveis:
Ninguém as percebe, exceto quando não são feitas (...).
A nova consciência associada ao movimento de mulheres contemporâneas encorajou
um número crescente de mulheres a reivindicar que seus companheiros ofereçam
algum auxílio nesse trabalho penoso. Muitos homens já começaram a colaborar com
suas parceiras em casa (...). Mas quantos desses homens se libertaram da concepção
de que as tarefas domésticas são ‘trabalho de mulher’? Quantos deles não
caracterizariam suas atividades de limpeza da casa como uma ‘ajuda’ às suas
companheiras? (DAVIS, 2016. p.225).
Nas condições atuais, a jornada de trabalho das mulheres reduz seu tempo para o
lazer, para atividades coletivas e para o engajamento político. Isso ocorre em
gradações que expõem a posição desvantajosa das mulheres relativamente à dos
homens e a realidade distinta das mulheres de diferentes classes sociais.
Esgotamento e falta do tempo para o autodesenvolvimento fazem parte do cotidiano
de muitas mulheres. Mas a impossibilidade do controle autônomo sobre o próprio
tempo é, sem dúvida, uma realidade do capitalismo que se impõe a mulheres e
homens e é mais inflexível entre os trabalhadores menos profissionalizados e com
maior vulnerabilidade ao desemprego (BIROLI, 2014a, p.40).
Quando a mulher tem filhos, seu tempo livre é mínimo. Ela não se qualifica e fica
relegada aos cargos mais baixos numa empresa. Segundo Perrot (2007, p.168), apesar de
muitas das conquistas femininas (“igualdade dos sexos”, “domínios do saber e poder”,
“liberdade”), há uma grande distância entre a teoria e a prática,
71
(...) o doméstico, que é pouco compartilhado. A criação que se esquiva. Com
frequência, as fronteiras se deslocam, mas os terrenos de excelência masculina se
reconstituem. De tanto que a hierarquia dos sexos está longe de ser dissolvida. As
aquisições são frágeis, reversíveis. Recuos são sempre possíveis. (...) Efeitos
perversos, inesperados, se produzem: solidão, confronto, violência conjugal ou de
outro tipo, talvez mais visível ou realmente agravada pela angústia identitária,
marcam as relações entre os sexos, quase sempre tensas (PERROT, 2007 p.169).
Os/as estudantes da EJA mostram como essas hierarquias de gênero ainda estão postas
e o quanto os “terrenos de excelência masculina” (PERROT, 2007, p.169) são constantemente
reforçados pelas lideranças religiosas, pelos/as professores/as e pela mídia. “Grande parte da
culpa de os homens não ajudarem suas esposas é culpa das mães que não ensinam os filhos
homens a fazer as tarefas domésticas” (Ildenes, caderno de campo 16/02/2017); “eu aprendi,
minha mãe me ensinou sempre que deveria aprender a fazer as coisas, que não é só dever da
mulher fazer” (Ildenes, roda de conversa, 03/04/2017); “o marido quando chega do serviço
não ajuda em nada” (Delbath, caderno de campo 16/02/2017); “(...) o homem acha que não
tem obrigação de pegar uma roupa para lavar porque ele vai se achar inferior à mulher, (...) a
responsabilidade de uma casa [cuidar] não é só da mulher, a responsabilidade de educar um
filho não é só da mulher, é do pai também” (Valdo, roda de conversa, 03/04/2018).
As estudantes da EJA destacam que as mulheres têm funções a cumprir com o esposo,
com a casa e que o homem também tem seus deveres, ainda pautados no modelo de família
tradicional. Elas fazem uma separação baseada no sexo, ou seja, há funções masculinas e
femininas diferenciadas. Elas não percebem que, ao assumir sozinhas as funções domésticas,
estão reforçando a dominação masculina, dificultando sua participação mais ativa na
sociedade, pois “a mulher com menos tempo livre, menos possibilidade tem de participar da
política de decisões e normas que afetam as próprias mulheres” (BIROLI 2014a p.32). A
mulher não tem tempo para refletir sobre sua situação, para propor ou lutar por políticas que
evidenciem sua ação na sociedade, seja no trabalho doméstico, seja no cuidar do outro, seja
no trabalho fora do lar.
Tedeschi (2012, p.56) ressalta que as representações construídas em relação às
mulheres no passado delimitaram lugares para elas ainda presentes no imaginário de muitos:
“os discursos e saberes acabaram por naturalizar o papel e as funções do feminino”, passando
a “demarcar uma série de atribuições (...), docilidade, cuidado dos filhos, emotividade, (...)
características calcadas na ideia de uma boa mãe”.
Ainda segundo o autor, as representações não são neutras, nem foram edificadas por
considerar que essas qualidades e capacidades femininas, de mãe, educadora, cuidadora do
lar, submissa sejam inatas, mas, sim, “por razões que surgiram dentro de um sistema cultural
72
ideológico” (TEDESCHI, 2012, p.105). O conceito de representações sociais surge
justamente de “uma crítica aos modelos que reduziam a participação do sujeito, tanto na
produção autônoma da história quanto da consideração de sua capacidade criativa através de
simbólica função complexa” (SOUZA FILHO, 2004, p.110).
Lahlou (2014, p.106 -107), aparando-se em Moscovici, postula que:
Contribuições do Trabalho
Referências
75
ROSALDO, Michelle. O uso e o abuso da Antropologia: reflexões sobre o feminismo e o
entendimento intercultural. 1980 (Publicado originalmente em Signs: Journal of Women in
Culture and Society. Spring 1980. Vol. 5. n.3: 389-417. Tradução de Cláudia Fonseca. Maria
Noemi Castilhos Brito e Rafael Rossotoloris). Disponível em :<http://repositorio.ufsc.br/
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76
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Educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed. 2 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. p.35-82.
77
05. A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE HISTÓRIA
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM ARAGUAÍNA-TO.
Introdução
Ninguém começa a ser professor numa certa terça-feira às 4 horas da tarde...
Ninguém nasce professor ou marcado para ser professor. A gente se forma como
educador permanentemente na prática e na reflexão sobre a prática (Paulo Freire19).
Como nasce um/a professor/a? A epígrafe acima revela possíveis respostas a essas
indagações e, também, é um grande ensinamento trazido por Paulo Freire (1991) que se aplica
no contexto da Educação de Jovens e Adultos. O tornar-se professor é um processo
permanente que se constitui na prática diária, mas que só se completa mediante a reflexão
sobre a própria prática. De certo que a prática é entendida não somente nas atividades
realizadas no dia a dia da sala de aula, que são permeadas pelos manejos técnicos, mas que
mobiliza muitas outras dimensões que instigam o trabalho cotidiano do professor, exigindo
reflexão, análise de situações e tomadas de posição. Para Tuan (1983, p. 10-11), “experienciar
é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele”.
Esta pesquisa foi desenvolvida junto aos colegas profissionais do ensino de História,
atuantes na Educação de Jovens e Adultos da rede municipal de Araguaína-TO, tendo como
base uma nova perspectiva da Formação Continuada promovida em parceria com a Secretaria
Municipal de Educação. Teve, pois, como objetivo, o desenvolvimento de uma metodologia
que valorizasse as identidades dos estudantes da EJA para que estas pudessem vir a ser
consideradas no aprimoramento do trabalho com o currículo escolar do ensino de História.
Pois, conforme argumenta Nóvoa (1991):
Pensar sobre o fazer profissional docente implica refletir sobre si mesmo e sobre sua
própria construção histórica. Nóvoa (1992), ao explicitar acerca dos pressupostos da
profissão, reflete sobre o elo entre os percursos profissionais e pessoais e como esses avançam
17
Mestre em Ensino de História pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História/
PROFHISTÓRIA/UFT. Professora para programas educacionais na Rede Municipal de Araguaína – TO.
18
Doutora em História. Coordenadora e Professora do Mestrado Profissional em História- ProfHistória;
Araguaína – TO. Professora nos cursos de Graduação e Licenciatura em História.
19
FREIRE, PAULO. A Educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991, p. 58.
78
e evoluem ao longo da vida, explicitando como esse fazer se constrói conjuntamente com as
experiências adquiridas e com as trocas de saberes entre as pessoas.
Nesse sentido, cabe promover, junto aos professores da EJA e, sobretudo, do ensino de
História, ações que possibilitem o conhecimento articulado sobre a sua própria atuação em
permanente troca com os colegas. É dentro do potencial formativo da prática que se torna
importante promover reflexões com os docentes acerca da necessidade de valorizar as
histórias de vida dos estudantes. Ao passo que, a partir das histórias de vida é possível
entender suas memórias, trajetórias, anseios e expectativa de futuro, buscando um processo de
aprendizado histórico significativo.
Segundo Marcos Silva e Amélia Porto (2012, p. 46), “o ensino torna-se significativo à
medida que permite ao estudante dialogar com sua realidade, compreendê-la e questioná-la de
forma mais sistemática”. Para Jörn Rüsen, é fundamental que “a aprendizagem da história seja
considerada pelos jovens como significativa em termos pessoais, capaz de proporcionar ao
aluno uma compreensão mais profunda da vida humana” (LEAL, 2011, p. 02). Dessa forma, é
viável afirmar que “o ensino de história é um importante instrumento na (re)construção de
identidades que trazem, muitas vezes, a marca do ser menos” (NICODEMOS, 2017, p. 71).
Francisco Imbernón (2010) no livro, “Formação Continuada de professores”, elenca
alguns aspectos reflexivos que podem auxiliar no entendimento das perspectivas do conceito
de formação continuada e que aqui, referendamos. A primeira delas ressalta que: “A formação
Continuada deve agir sobre as situações problemáticas dos professores” (2010, p.53).
Historicamente, os processos de formação foram permeados por tentativas de conceder
respostas e soluções uniformes, tentando solucionar problemáticas que supostamente seriam
comuns as diversas realidades docentes e que mereceriam soluções amplas e genéricas.
Entretanto, “isso acarretou para os processos de formação algumas modalidades em que
predomina uma grande descontextualização do ensino” (IMBERNÓN 2010).
Nossa intenção, ao contrário da geralmente utilizada, passou-se pela preocupação em
dialogar com os profissionais que atuam na disciplina de História. Para isso, escolhemos o
trabalho com oficinas e esse formato específico para uma área do conhecimento, causou
estranhamento. Pela primeira vez, estávamos em uma sala reunidos somente com os
profissionais atuantes no ensino de História na EJA, para pensar os problemas e apontar
soluções que se relacionam com a área de História, na modalidade da EJA.
Inicialmente, buscamos apresentar a proposta para promover a sensibilização já que o
trabalho deveria ser realizado em uma perspectiva colaborativa e no aspecto de autoformação.
Segundo Leitão (2004), isso reflete alguns cuidados que precisam ser considerados para
79
realmente envolver o professor no processo de mudanças qualitativas a partir da formação
continuada, isso porque:
[...] o que observamos é que nem sempre essas referências trazem modificações
substanciais às práticas, nem garantem uma relação afetiva, um melhor desempenho
na aprendizagem ou uma prática mais democrática, se os professores não estiverem
sensibilizados e sentirem necessidade de participar dessa mudança (LEITÃO, 2004,
p. 27).
Philippe Perrenoud (2001, p.174), ressalta a necessidade do “sujeito que toma sua
própria ação, seus próprios funcionamentos psíquicos como objeto de sua observação e de sua
análise [...]”. Para Francisco Imbernón: “Na formação é necessário abandonar o
individualismo docente a fim de chegar ao trabalho colaborativo” (2010, p.63). De certo, os
desafios enfrentados pelos professores na Educação de Jovens e Adultos são enormes.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE- PNAD 2019) revelam
o quantitativo de 11,3 milhões de analfabetos entre a população de 15 anos ou mais no Brasil, este
número corresponde a 6,8% da população. No ano de 2018, segundo o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Censo/INEP, 2018), o total de 3.598.988
brasileiros estavam matriculados na Educação de Jovens e Adultos. Essa estatística “não deixa
dúvida quanto à baixa efetividade das estratégias de governo para a elevação da escolaridade da
população [...]” (VENTURA, 2017, p.149). Ainda se soma a tais fatores, o número considerável
de alunos que evadem do sistema escolar, o que agrava o quadro de marginalização e negação ao
direito à educação e à cidadania plena de parte da população brasileira.
A Proposta Curricular da Educação de Jovens e Adultos, elaborada pela SEDUC,
ressalta que o Estado do Tocantins oferta, desde o ano de 1996, a modalidade educacional
EJA. O documento diz estar alicerçado em fundamentos e concepções de uma educação
problematizadora: “A Educação de Jovens e Adultos tem no ideário freireano sua gênese, no
qual o processo educativo parte do exame crítico da realidade e da possibilidade de sua
superação” (TOCANTINS, 2008 p. 37). Nesse sentido, as ações educativas devem ser
percebidas como uma ação social que “considere as relações escola-comunidade e o retrato
cultural” capazes de produzir “uma prática educativa articuladora da teoria com a prática”,
tendo o educando como sujeito do processo (TOCANTINS, 2008, p. 41). Porém, de acordo
com as Diretrizes Curriculares do Tocantins:
[...] A maioria dos professores da EJA, não são professores que tem sua carga
horária maior nessa modalidade. Quase sempre a EJA é utilizada como ponte para
garantir quarenta horas semanais e assim efetivar o máximo de recursos no holerite
no final do mês (TOCANTINS, 2008 p.35).
80
Segundo os dados do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, o IDHM/2010 de
Araguaína é 0,752. No que concerne à alfabetização local, a cidade possui um elevado
número de pessoas (quase 20%) que não completou o ciclo básico educacional (8 anos de
escolaridade), conforme observamos na Figura 2, a seguir:
82
Tabela 1 – Analfabetismo e gênero
20
Informações repassadas pela Diretora do Ensino Fundamental via questionário prévio para levantamento de
informações para a pesquisa.
83
percentual de amostragem dentro da realidade municipal que, como já foi explicitado, possui
10 escolas que trabalham com a modalidade EJA21.
O encontro com os professores resultou na construção de três oficinas que trataram de
questões ligadas à memória, Identidade e História. A ideia era despertar nos professores o uso
de novas metodologias, em especial a dos relatos autobiográficos que contribui para a
“vivacidade do passado, a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu”
(ALBERTI, 2004, p.16). Logo em seguida, passamos para as discussões sobre a elaboração de
um roteiro que desse conta de recolher a trajetória dos estudantes. Decidimos focar na
trajetória educacional: 1 - Lugar de origem; 2 - Início da vida estudantil; 3 - O distanciamento
da escola; 4 - A vida como lugar de aprender; 5 - Reencontro com a escola.
A segunda fase da pesquisa tratou da aplicação das oficinas pelo professor participante
e na produção da trajetória de vida dos estudantes. E, por fim, a realização de um novo
encontro de formação continuada para a análise coletiva dos relatos dos alunos juntamente
com a organização dos Eixos Temáticos articulados com as vivências e interesses locais, em
uma proposta de interação das trajetórias de vida com o currículo escolar da EJA.
Figura 1: Imagens dos Encontro de Formação Continuada para análise dos relatos autobiográficos dos
estudantes da EJA
Perfil dos Profissionais do Ensino de História que atuam na EJA da Rede Municipal de
Araguaína-TO.
21
Dados fornecidos a pesquisadora pela Secretaria Municipal de Educação do ano de 2018.
84
no demonstrativo das características dos sujeitos da EJA, realizada pela SEDUC, no ano de
2007, já haviam sido identificados alguns problemas relacionados à lotação e carga horária
entre os profissionais do estado, “isto é decorrente não só das próprias condições
institucionais, mas também devido aos não avanços na institucionalização das políticas
públicas voltadas para essa modalidade” (TOCANTINS, 2008, p. 35).
As informações obtidas especificamente sobre o perfil dos professores que se tornaram
interlocutores desta pesquisa podem ser conferidas no Quadro 122.
1.Sexo 2. Idade 3. Como você se 4. Qual o seu nível de 5. Há quantos anos você
considera? Escolaridade (Até a obteve o nível de
Graduação)? escolaridade assinalado
anteriormente?
Feminino 04 Até 24 anos 01 Branco (a) 01 Pedagogia 04 Há 02 anos ou 01
menos
Masculino 01 De 25 a 29 01 Preto (a) 01 História 01 De 03 a 07 02
A maioria dos professores é mulher, com idades variadas, sendo que dois participantes
possuem a faixa etária entre 30 e 39 anos. Em relação a raça, três dos sujeitos se consideram
pardos. No que se refere ao curso de graduação, a maior parte é formada em pedagogia, apenas
um professor possui Licenciatura em História. Destacamos, aqui, a necessidade de reflexão
quanto a função do pedagogo, no Brasil. Libâneo (2001, p.44), ao tratar sobre a busca da
identidade desse grupo, ressalta que o “Pedagogo é o profissional que atua em várias instâncias
da prática educativa, direta ou indiretamente, ligadas à organização e aos processos de
transmissão e assimilação ativa de saberes [...]”. Dessa forma, o desempenho de atividades
trabalhistas se manifesta de modos diferentes, legitimando inclusive a docência em diversos
níveis23. Schimidt alerta que precisamos “entender que o conhecimento histórico não é adquirido
como um dom” (2004, p.54), o que implica dizer que se exige formação na área específica.
22
As perguntas do questionário foram organizadas em blocos que representam os aspectos analisados; e os dados
estão dispostos em quadros para facilitar a compreensão.
23
Conforme a Resolução do CNE/CP nº 01, de 15 de maio de 2006, que institui as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura, o Art. 4º preleciona que “O curso de
Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério na
Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade
Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam
previstos conhecimentos pedagógicos” (BRASIL, 2016, p.11, grifo nosso).
85
Outro fator de destaque trazido pelos dados é o gênero feminino. Talvez, a
feminização do magistério como aponta Faria Filho (2005),
6.Em que tipo 7. De que forma 8. Indique a 9. Você participou de 18.Você utilizada os
de Instituição você realizou o modalidade de curso alguma atividade de conhecimentos
você fez o seu curso superior? de pós-graduação de Formação adquiridos nas
curso mais alta titulação Continuada nos atividades de formação
superior? que você possui: últimos dois anos? continuada em sala de
aula?
Pública 03 Presencial 03 Especialização 03 Sim 04 Quase 01
Federal (Mínimo de 360 sempre
horas)
Pública 01 Semipresencial 01 Não fiz ou ainda 02 Não 01 Eventual 03
Estadual não completei o mente
curso de pós-
graduação
Privada 01 À distância 01 - Quase 01
Nunca
86
(UNITINS), mantendo a maioria dos cursos centrados nas licenciaturas, até o ano de 2003,
quando toda a sua estrutura foi repassada para a implantação da Universidade Federal do
Tocantins, (UFT). Essa breve trajetória reforça a evidência que a universidade pública foi
responsável pela formação inicial de muitos profissionais que vieram a compor o corpo
docente do estado.
Nenhum dos professores possui formação específica para a atuação docente na Educação
de Jovens e Adultos. Soares (2008, p. 85-86) menciona que “as ações das universidades com
relação à formação do educador de jovens e adultos ainda são tímidas se considera (...) o potencial
dessa instituição como agências de formação”. As matérias curriculares obrigatórias, até mesmo
nos cursos de licenciatura em História, são inexistentes. É válido lembrar, ainda, que essa
necessidade já estava prevista no Marco de Ação de Belém, publicado em 2010, após a 6ª
CONFINTEA. Este documento demonstra uma preocupação com a qualidade na formação do
professor, para o bom desenvolvimento de experiências profissionais:
A rotatividade dos professores nas escolas pode ser explicada por muitos fatores,
desde uma mobilidade interna às redes e ao sistema, em que os professores optam
por mudar de escola por questões de ordem pessoal ou profissional, no sentido de
buscar melhoria nas suas condições de trabalho ou mesmo maior comodidade em
termos de localização geográfica, até em função do abandono da profissão
(PEREIRA e OLIVEIRA, 2016, p.315).
Nós professores (...) sabemos também que aprender, para nós e para os alunos, não
significa simplesmente acumular informações, mas selecioná-las, organizá-las e
interpretá-las em função de um sentimento que lhe atribuímos, decorrente da nossa
biografia afetivo-cognitiva (ALMEIDA, 2004, p.119).
89
Chama a atenção, nesses depoimentos, o fato de uma das professoras ressaltar que
achou que tivesse se equivocado e entrado na sala errada. Por que ela não estaria no curso de
formação para o qual havia sido convidada? Exatamente, porque não havia, por parte da
secretaria municipal de educação, o costume de organizar formação por áreas específicas.
Enfim, os trechos anteriores revelam dificuldades da prática docente e da formação
continuada de professores da EJA no município de Araguaína. Porém, de acordo com
Imbernón (2010, p.63), só a colaboração pode gerar “reais possibilidades de maior autonomia
e intervenção nessa modalidade de ensino, bem como a reorganização do currículo e das
práticas pedagógicas” (SÉRGIO, 2015, p. 118).
Após as atividades relacionadas com o primeiro encontro de formação continuada os
professores escolheram uma de suas turmas da EJA para o desenvolvimento metodológico das
aulas. Entretanto, os professores sugeriram que a metodologia fosse ampliada para mais
alunos o que veio a ocorrer dentro da singularidade do planejamento escolar de cada
professor, 02 participantes por exemplo, aplicaram as aulas a todos os discentes que faziam
parte de suas turmas, relatando que: “Precisavam conhecer mais de perto as histórias de vida
dos seus alunos...”25. Tais ações possibilitaram um alcance maior na quantidade de alunos
envolvidos na pesquisa como a seguir se pode observar:
Quadro 03: Número de Estudantes que participaram das aulas – oficinas sobre as orientações dos professores
participantes e acompanhadas pela pesquisadora
Quantidade de Turmas Quantidade de Estudantes
Professor 1 01 15
Professor 2 01 16
Professor 3 03 40
Professor 4 03 35
Professor 5 01 18
Total 09 124
Fonte: Dados da pesquisa
A atividade final das aulas – oficinas propunha aos estudantes a produção escrita dos
seus relatos autobiográficos e aos seus professores a escolha 26 de um relato para
posteriormente serem analisados no segundo encontro de formação continuada.
25
Dados registrados no caderno de Campo da pesquisadora.
26
A escolha foi feita livremente pelo professor participante sem critérios rígidos estabelecidos pela pesquisadora,
isso porque, como o trabalho foi desenvolvido na perspectiva da coletividade, é valido ressaltar, que no primeiro
encontro de formação continuada a pesquisadora propões ao grupo participante que pudemos definir alguns
pontos a se considerar durante a escolha. No diálogo estabelecido ficou acordado que o relato escolhido deveria
reunir uma das duas categorias, sendo a primeira: o relato que tivesse as características mais presentes na turma
90
Cabe agora descrever, mais precisamente os relatos autobiográficos no cunho dessa
pesquisa, pois essas narrativas constitui a interface entre o individual e o coletivo social. Isso
corresponde a dizer que quando os estudantes da EJA adentram suas salas de aula
diariamente, esta situação pode ser dita comum, parte dos “ritos” diários que fazem parte
desse universo escolar. Para perceber esta experiência singular Delory-Momberger ressalta
que, (2011, p. 50):
[...] seria necessário que cada participante pudesse formular a maneira como a
situação em questão se inscreve na sua equação pessoal, que dizer, como esta vem
“tomar lugar”, como esta vem tomar uma forma e um sentido na sua existência; ou
talvez nas representações que cada um faz de sua existência e na história que ele
constrói, nisso que eu chamo sua biografia dando a este termo seu sentido
etimológico de escrita de vida. (Grifo nosso)
trabalhada e a segunda que reunisse características únicas ou da minoria dos estudantes representando o espaço
da heterogeneidade presente nas salas de aula da EJA.
91
Alguns relatos, apenas para ilustrar a riqueza dessa experiência:
(Relato do Estudante D. N. da S. da Escola Municipal Francisco Bueno de Freitas. Texto transcrito de acordo a
escrita original do autor) 58 anos
Eu nasci no Estado do Tocantins em Araguaína, sou fruto dessa cidade conhecida como “boi gordo”. Lembro-
me vagamente da minha infância, pois de uma certa forma foi tão comum como a de muitas crianças, enfim no
início da minha vida quando eu passei a me entender por gente tudo era diversão. Fugia de casa para soltar
pipa, andar de bike. Comecei a estudar cedo nos meus 5 anos eu acho, recordo-me apesar dos meus 7 anos
adiante costumava ir todos os dias, e após meus pais se separarem perdi o foco na escola, já não ia lá. Comecei
a faltar muito aula e com a frequência de mudanças de cidade acabei desistindo, por um certo tempo fugi de
casa, por fraqueza psicológica me envolvi com drogas. Andei com pessoas que não tinha as melhores intenções,
houve o tempo que realmente acreditava que seria no crime que eu mudaria de vida, compraria uma casa para a
minha mãe, porém a vida me lutou com força, perdi amigos de infância, minha família já não me aceitava mais,
foi daí e uma certa quantidade de fatores me fizeram a repensar na vida, e o curto tempo que tenho para
construir um futuro, conquistar por meus méritos. Por isso voltei para a escola para terminar os estudos e talvez
até me formar.
(Relato do Estudante R. L. da Escola Municipal Drº Simão Lutz Kossobstks. Texto transcrito de acordo a escrita
origina do autor) 18 anos27
[...] A identidade pode ser vista como uma espécie de encruzilhada existencial entre
indivíduo e sociedade em que ambos vão se constituindo mutuamente. Nesse
processo, o indivíduo articula o conjunto de referenciais que orientam sua forma de
agir e de mediar seu relacionamento com os outros, com o mundo e consigo mesmo.
A pessoa realiza esse processo por meio de sua própria experiência de vida e das
representações da experiência coletiva de sua comunidade e sociedade, apreendidas
na sua interação com os outros. (NASCIMENTO, 2003, p.31).
Considerações Finais
95
sujeitos detentores de saberes e experiências possíveis de serem aproveitadas na construção de
suas aprendizagens.
Desta feita, a possibilidade de articular oportunidades para que os estudantes relatem
suas vivências históricas, suas narrativas acerca de si, é uma forma de combater essas
dificuldades, pois para apreender as singularidades dos sujeitos “é necessário que nós
compreendamos como cada um coloca esta situação para si mesmo e para sua história, como
ele biografa este contexto social e institucional do qual ele participa” (DELORY-
MOMBERGER, 2011, p. 50). Assim, a “escrita de si” é uma forma de articular suas relações
com o presente, passado e futuro, cabendo ao professor o impulsionamento das reflexões
sobre o conjunto mais amplo da realidade histórico e social.
Referências
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96
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formação. Porto Alegre: EDUFRN, 2014.
FEITOSA, Ana Regina Azevedo. Quando o Magistério passa a ser um trabalho de mulher:
percursos e impasses. Jamaxi, Edufac, v. 1, n. 1, 2017.
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Eletrônicos. Disponível em: <http://www.eventos.ufu.br/sites/eventos.ufu.br/files/documentos/
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98
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2008, p.83-100. ISSN 0102-4698.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.
99
PARTE 03 –
O ENSINO DE HISTÓRIA E AS
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS
100
06- VOZES, CORPOS E SABERES DO MACIÇO:
UM PROJETO DE INTERVENÇÃO DIDÁTICA
Introdução
28
Professora de História da Educação Básica da rede estadual de Santa Catarina. Possui graduação em História
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC/2001). Pós-graduada em Gestão Escolar e Metodologia do
Ensino Interdisciplinar (Faculdade Dom Bosco/2009). Mestre em Ensino de História (PROFHISTÓRIA) pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/2016). Doutoranda do Programa de Pós-graduação em
História da UDESC (2018). No presente é vinculada ao Laboratório de Ensino de História (LEH/UDESC), ao
Grupo de Pesquisa Ensino de História, Memória e Culturas (CNPq/UDESC) e ao Grupo de Pesquisa Oficinas de
História (CNPq/UERJ). É bolsista UNIEDU/SC. Área de atuação: História, Ensino, Relações Étnico-Raciais e
Gestão Escolar. karlaandrezzavieira@gmail.com.
101
Figura 1. Mapa aéreo do Maciço do Morro da Cruz.
29
Os números são pertinentes ao momento da pesquisa realizada entre os anos de 2014 e
2016. Não foram encontrados dados atualizados acerca da dimensão populacional dos
territórios do Maciço do Morro da Cruz.
102
uma região que se encontra submetida a uma situação de alto risco social, o Maciço do Morro
da Cruz, enfrenta sérios problemas em relação à falta de água, a moradia, ao saneamento
básico, a educação, aos espaços de lazer e ao transporte30. A ocupação do território deu-se
inicialmente por populações de origem africana libertas e, posteriormente pelas populações
pobres que foram expulsas das áreas centrais da cidade, em função do movimento sanitarista
ocorrido nas primeiras décadas do século XX. Entre 1970 e 1980 o Maciço recebeu muitos/as
trabalhadores/as advindos/as do meio rural, atraídos/as pelas possibilidades de uma nova vida
na capital. Recentemente o território foi receptor de uma grande leva de migrantes nortistas e
nordestinos, bem como imigrantes, especialmente haitianos, que adentraram no campo da
construção civil na cidade que agora se verticaliza por conta dos projetos de especulação
imobiliária (VARGAS, 2016).
A compreensão de que esse enredo pudesse ser mobilizado no chão da escola, me pôs
a investir na escrita de um livro que buscasse narrar as memórias e as histórias de vida das
populações de origem africana em territórios do Maciço do Morro da Cruz. O material foi
pensado e desenvolvido como uma proposta de intervenção didática junto ao curso de
Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC). O PROFHISTÓRIA, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, com oferta
simultânea nacional, estruturado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
tinha/tem por objetivo a promoção e a ampliação da formação docente em História.
Professores e professoras assim como eu, puderam/podem qualificar suas práticas,
desenvolver pesquisas no campo do ensino e especialmente contribuir para o aprendizado
histórico na Educação Básica31.
No mestrado profissional através da disciplina de Ensino de História e da Cultura
Africana e Afro-Brasileira, ofertada no ano de 2014, ministrada pela professora Doutora
Cláudia Mortari (UDESC), fui desafiada a pensar no livro de memórias, como uma
proposição atinente às demandas pautadas pela Lei nº 10.639/03 e pelo texto das Diretrizes
Curriculares Nacionais (BRASIL, 2004) em uma perspectiva crítica32. Digo crítica, no sentido
30
No contexto de crise sanitária que vivenciamos no tempo presente, por conta da pandemia
acarretada pela COVID 19 são também nos territórios do Maciço que encontramos as
situações mais vulneráveis e críticas.
31
Sobre as diretrizes acerca do Mestrado Profissional em Ensino de História ver o Regimento
Geral do PROFHISTÓRIA (UFRJ). O material encontra-se disponível online na página a
seguir: http://www.faed.udesc.br/arquivos/id_submenu/1226/profhistoria_em_rede___regim
ento_geral.pdf. Acesso em 30 de julho de 2020.
32
A Lei nº 10.639/03 é um marco na educação das relações étnico-raciais no Brasil. A legislação proeminente
percorre uma pauta de políticas afirmativas com vistas a implementar um conjunto de medidas e ações que visam
103
de problematizar as questões que envolvem a colonialidade do currículo e das experiências
pedagógicas ancoradas em bases eurocentradas. Escutar a voz daqueles/as que foram
relegados/as a um espaço de subalternidade me pôs em marcha. Compreender as vivências
das populações de origem africana em territórios do Maciço como conteúdo potente para o
ensino de História me impulsionou a realizar diálogos com epistemologias decoloniais e
interculturais33. Textos como de Alberto Quijano (2005), Antonieta Antonacci (2013),
Catherine Walsh (2009), Mario Rufer (2011), Ramón Grosfoguel (2008) e Walter Mignolo
(2003), ampararam a reflexão sobre os espaços de saber, de poder e as experiências do ser em
uma estrutura colonizada que necessita de ruptura.
No percurso da construção do trabalho estabeleci também, diálogos com os saberes
dos/as estudantes da Escola de Educação Básica Padre Anchieta. Através da aplicação de uma
sequência didática em turmas de sexto ano do Ensino Fundamental a respeito da História Local.
Nesse trabalho, identifiquei concepções carregadas de representações violentas e
preconceituosas acerca dos territórios do Maciço do Morro da Cruz. Entre as falas, a mais
recorrente consistia em afirmar que “lugar de negro é no morro”. Os primeiros passos foram
difíceis e algumas questões reverberaram: “Por que meus estudantes pensam assim? Que
experiências escolares e de vida estão representadas em tal afirmação? O que a escola
pode/deve fazer para enfrentar esses estereótipos?” (VARGAS, 2016, p. 9). Eis uma narrativa
racializada que precisava ser desnudada, muito embora, as fontes para tal enfrentamento fossem
escassas, dada a prevalência de um currículo calcado em experiências eurocêntricas e brancas.
As demandas advindas dos/as estudantes, desencadearam a necessidade da ampliação
do debate. Travei assim, um diálogo com os colegas profissionais da educação não somente
da escola em que atuei, mas também em outras unidades de ensino circunscritas pela
geografia do Maciço do Morro da Cruz: Escola de Educação Básica Hilda Theodoro Vieira e
34
A Escola de Educação Básica Hilda Theodoro Vieira, situa-se no Bairro Trindade e atende especialmente
estudantes oriundos do Morro da Penitenciária. A Escola de Educação Básica Jurema Cavallazzi, está localizada
no Bairro José Mendes e atende também as comunidades do Morro do Mocotó e Morro da Queimada,
essencialmente. São ambas, escolas públicas da rede estadual de Santa Catarina.
35
Todo o percurso metodológico encontra-se descrito no texto dissertativo defendido em banca no dia dezesseis
de agosto de 2016. A dissertação encontra-se disponível online, assim como o “produto” (livro de memórias).
https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/173542. Acesso em; 30 de julho de 2020. O trabalho esteve sob a
orientação da professora Doutora Núcia Alexandra Silva de Oliveira (UDESC).
105
Figura 3. Capa do livro de memórias.
36
O documentário procura captar as histórias de vida e a produção da vida material dos moradores e das
moradoras do Maciço do Morro da Cruz/Florianópolis. As entrevistas foram conduzidas pela professora e
historiadora Karen Cristine Rechia, cuja primeira exibição ocorreu no mês de março do ano de 2009. O material
encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-ObiWF_agFE. Acesso em: 30 de julho de 2020.
107
No terceiro e último eixo temático, Memória e histórias de vida, apresento aos
professores e professoras a questão da memória como uma referencialidade do passado que,
na pesquisa histórica, se coloca como fonte potente para nos reorientarmos no tempo. Os
estudos com memória permitem uma reabertura do passado, a partir das perguntas que
realizamos no presente. Mobilizar as memórias das populações de origem africana em
territórios do Maciço pode dar a este lugar e a vida dessas pessoas uma nova compreensão
histórica, superando quadros fundamentados no racismo, nas violências e em estereotipias.
Todavia, a memória concebida a partir de veredas decoloniais, requer uma ampliação
conceitual. Quando pensamos em novos espaços de enunciação, quando pensamos em novos
sujeitos para a escrita da História, quando estudamos novos corpos de memória, as
concepções epistemológicas hegemônicas não dão conta do que queremos dizer, quando
tratamos das memórias daqueles/as que carregam em seus corpos a insígnia da cor. São corpos
que emanam ancestralidade, performatividade... são corpos que comunicam histórias de vida.
A constituição dos eixos temáticos são contribuições teóricas para que professores e
professoras reflitam sobre e façam as suas escolhas pedagógicas. Não indico receitas prontas.
Penso que a atividade docente é também algo que se faz na experiência da sala de aula. A
perspectiva é a de que docentes junto a seus estudantes construam seus próprios caminhos. Ao
final de cada tema, deixo algumas sugestões de leituras, documentários, músicas, poesia e site
na perspectiva de contribuir para ampliação do repertório.
Deixo aos leitores e as leitoras da coletânea de textos por mim organizada, o documentário como indicação ao
trabalho docente.
108
Texto Diálogos sobre o Exercício da Ensinar História, por Maria Ensino de História e
Docência – recepção das leis Auxiliadora Schmidt e memória coletiva, por
10.639/03 e 11. 645/08, por Júnia Marlene Cainelli. Mário Carretero.
Sales Pereira.
Espaços coletivos de
Ensino de história:
Entre o “encardido”, o “branco” e esperança: a experiência
entre história e
o “branquíssimo”: Raça, política e pedagógica da
memória, por Ana
hierarquia e poder na construção Comissão de Educação do
Maria Monteiro.
da branquitude, por Lia Vainer Maciço do Morro da Cruz
Schucman. em Florianópolis, por
Jéferson Dantas.
Decolonialidade e perspectiva
negra, por Joaze Costa e Ramón O que pode o ensino de
Grosfoguel. História? Sobre o uso de
fontes em sala de aula, por
Interculturalidade crítica e Nilton Pereira e Fernando
pedagogia decolonial: in-surgir, Seffner.
re-existir e re-viver, por Catherine
Walsh.
Sites IHGB/SC.
109
compreender que a insígnia da cor pode ser caracterizada como elemento determinante para a
constituição das diferenças e da produção das desigualdades sociais e raciais em nosso país 37.
As sugestões destinadas ao eixo 2, percorrem a pauta da territorialidade do Maciço do
Morro da Cruz, como a tese de doutorado de Jéferson Dantas (2012) e o vídeo documentário
Maciço, por Pedro MC, anteriormente apresentado. Ainda para o segundo eixo temático,
deixo aos professores e as professoras possibilidades textuais alinhadas a História Local, a
partir do material Ensinar história (CAINELLI; SHIMIDT, 2009), bem como, ao uso de
fontes em sala de aula, a partir das reflexões de Nilton Pereira e Fernando Seffner (2008). O
site do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGB) aparece como indicação de
investigação para uma enormidade de fotografias e tantas outras imagens sobre a cidade de
Florianópolis em diferentes temporalidades, ângulos e corpos38. A música o Meu lugar,
composta por Arlindo Cruz e Mauro Diniz, faz parte do álbum Batuques do Meu Lugar
lançado no ano de 2012, indicada como reflexão aos docentes, coaduna as experiências dos
sujeitos inscritas em uma territorialidade. Esse pequeno inventário põe em diálogo as
proposições do livro de memórias com as narrativas das populações de origem africana do
Maciço do Morro da Cruz e tantos outros saberes que circulam nas esferas acadêmicas,
escolares e cotidianas.
Para o eixo 3, Memória e histórias de vida, as leituras de Mario Carretero (2007) e
Ana Maria Monteiro (2016) são centrais para a discussão do ensino de História e suas
interfaces no trabalho com a memória na escola. Conferindo uma dimensão estética às
reflexões sobre memórias ancoradas em corpos que carregam a insígnia da cor, registro a
indicação sonora e poética de Respeitem meus cabelos, brancos, composta por Chico César e
a experiência performática de Victória Santa Cruz em Gritaram-me negra39.
Vale dizer, que em todos os eixos temáticos descritos até aqui e que entoam a parte de
orientação à prática docente, mobilizei as narrativas dos sujeitos selecionados para a escrita
do livro de memórias. Como um movimento de fazer pensar a fala das populações de origem
africana em territórios do Maciço como instrumento potente para o desenvolvimento do
conteúdo didático em cada eixo estabelecido. O trecho do texto Lá de cima a vida não é tão
ruim! elaborado com base nos depoimentos de Linda Inês Flores (2016), estudante da Escola
37
O vídeo encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p5Wo6_qumJc. Acesso em 30 de
julho de 2020.
38
Para conhecer a fototeca do IHGB/SC ver: https://www.ihgsc.org/. Acesso em 31 de julho de 2020.
39
Respeitem meus cabelos, brancos foi composta e também interpretada por Chico César. Você pode encontrar a
canção no álbum de mesmo nome publicizado no ano de 2002. Gritaram-me negra, poema musicado na voz de
Victória Santa Cruz, encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g52jzCTUKXA. Aceso em
31 de julho de 2020.
110
de Educação Básica Padre Anchieta e moradora do território Santa Vitória, pode contribuir na
reflexão do eixo 2:
Da escola para o Santa Vitória tem sido minha vida. Vou driblando os problemas do
tráfico e os confrontos com a polícia. Vou driblando as dificuldades de acesso à
comunidade, o ônibus não chega até lá. Falta água e no verão é bem difícil. O
saneamento é bem precário. As casas são improvisadas e quando venta muitas vão
para o chão. Eu moro bem lá em cima e mesmo com todas as dificuldades as pessoas
se ajudam. Tem festa também. Aos finais de semana a vizinhança se reúne. As
crianças soltam pipa e jogam bola. A gente se respeita. (FLORES, 2016, p. 35).
Meu pai era pescador e minha mãe era doméstica. Eu nasci aqui no 25 e as coisas
eram diferentes. Lá em cima era tudo mato, não tinha luz, não tinha água, não tinha
calçamento. Eu estudava na escola Padre Anchieta quando era aqui perto da igreja
São Luís. Eu e meus irmãos aprontávamos muito na infância. Na escola cheguei a
ficar no quarto escuro. Quando jovem fui cuidar de minha formação. A gente
precisava trabalhar. Sou alfaiate aposentado. Trabalhei muitos anos na Penitenciária
do Estado. Eu gostava do que fazia e as pessoas também gostavam da minha arte.
Diziam que eu era muito caprichoso. Tenho boas recordações daquele tempo,
especialmente de quando nos reuníamos no clube. O Clube do 25 era um ponto de
encontro, de festas e de grandes bailes. Foi fundado no dia 25 de dezembro de 1933
era só para pretos e os brancos não podiam entrar. Lá em baixo tinha o Concórdia e a
gente não ia não. Na verdade, o Clube do 25 era nosso lugar. Eu me sentia bem
(SOUZA, 2016).
Muita gente sobe o Caieira para fazer o cabelo comigo. Me especializei em tratar de
cabelos como os meus e mostrar a beleza que temos. Vejo como isso tem crescido
muito. O mercado está bom para nós agora. Quando criança vivia com o cabelo
preso, achava feio. Hoje eu vejo é muita beleza! (HILÁRIO, 2016).
111
Luciana é uma personagem que nos coloca a pensar em movimentos de ruptura em
relação a uma colonização estética. Assim, ao preconizarmos um debate para as relações
étnico-raciais na escola de modo mais ampliado, podemos ouvir Luciana e decolonizar os
corpos que possuem a insígnia da cor. O texto É carnaval no Mocotó, elaborado a partir do
depoimento de Maria de Lourdes Fraga (2016), caminha nessa perspectiva.
Sobre a questão das identidades, explorada no eixo 1, Ensino de História e Educação
Étnico-Racial, professores e professoras a partir dos depoimentos de Dona Amália Rosa
(2016), podem trazer para as suas práticas pedagógicas a reflexão de que nos fazemos uns
com os outros e que nossos quadros de identificação são plurais e mutáveis:
Hoje meus netos quase não brincam na rua, vivem presos assistindo televisão ou
jogando no computador. Quando eu era criança as brincadeiras eram outras. Eu
reunia minhas amigas e a gente brincava de roda, de boneca de pano e de
cozinhadinho. A mãe ficava brava, pois precisávamos de alguns produtos para fazer
as comidinhas. A gente pegava ovos, batatas, pão e o que mais tivesse nos armários.
Cada amiga levava um pouquinho do que podia. A Maria era responsável pelo suco
de limão, ela catava tudo no pé que tinha no quintal de casa. A gente cozinhava de
verdade, tinha fogo e tudo. Era só juntar uns tijolos, pegar umas madeirinhas e
pronto. Era tudo regado a cantoria, a mais comum no nosso tempo era a ratoeira. Eu
ainda sei os versos que decorei (ROSA, 2016).
112
cima a vida não é tão ruim! Ouça a música; Minha escola; Quem é que sobe a Ladeira; É
carnaval no Mocotó; O Cabelo de Luciana e Brinquedos e Brincadeiras. Na tessitura,
ilustrações que estabelecem diálogo com o escrito e provoca reflexões para além do texto 40.
Algumas Considerações
40
As ilustrações que acompanham todo o livro de memórias foram elaboradas por Patrícia Maria Macedo Alves.
Professora de Artes da rede estadual de Santa Catarina, Patrícia subiu o Maciço comigo.
113
experiências de pessoas que foram subalternizadas em função de um projeto colonizador que
necessita ser desnudado. Desse modo, ao ensino de História cabe a apropriação de uma
paisagem decolonial. Como estabelecer um diálogo entre a História como disciplina escolar e
a Educação para as Relações Étnico-Raciais se não atravessarmos o currículo existente?
Assim, vejo potência no livro de memórias das populações de origem africana em territórios
do Maciço, por apontar caminhos no sentido de propor rupturas epistemológicas e
curriculares. Trata-se de outra lógica, que precisa ser incorporada por estudantes, docentes,
gestores/as, secretarias de ensino e universidades.
Referências
CAINELLI, Marlene; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Ensinar história. 2. ed. São Paulo:
Scipione, 2009.
FLORES, Linda Inês. Entrevista concedida a Karla Andrezza Vieira Vargas. Florianópolis, dia
04 de mar. de 2016. Duração 53 min. 02 seg. Entrevista.
MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de história: entre história e memória. 2. ed. Rio de Janeiro:
Ed. UERJ, 2009.
PEREIRA, Júnia Sales. Diálogos sobre o exercício da docência – recepção das leis 10.639/03
e 11.645/08. Educ. Real. Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 147-172, jan./abr. 2011.
PEREIRA, Nilton; SEFFENER, Fernando. O que pode o ensino de história? Sobre o uso de
fontes na sala de aula. Anos 90. Porto Alegre, v.15, n.28, p.113-128, dez. 2008.
ROSA, Amália. Entrevista concedida a Karla Andrezza Vieira Vargas em Florianópolis, no dia
01 de março de 2016. Duração 43 min. 04 seg.
SOUZA, Silvio de. Entrevista concedida a Karla Andrezza Vieira Vargas em Florianópolis, no
dia 29 de fevereiro de 2016. Duração 49 min. 17 seg.
VARGAS, Karla Andrezza Vieira. Vozes, corpos e saberes do Maciço: memórias e histórias
de vida das populações de origem africana nos territórios do Maciço do Morro da
Cruz/Florianópolis. 2016. 116 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de História) - Faculdade de
Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis.
115
07. DECOLONIALIDADE E PERSPECTIVA NEGRA:
DISCUTINDO AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Introdução
A temática das relações étnico-raciais nos últimos anos tem produzido discussões
acaloradas no Brasil e no mundo, não apenas nos movimentos sociais negros, – que por sua
vez, têm se difundido das formas mais diversas – como também nas universidades, tornando-
se palco de extensos debates acadêmicos. Porém ainda se apresentam de forma bastante
tímida ou pontuais nas escolas. Tratadas por muito tempo como “tabu”, tais relações foram
forjadas na prática de um racismo velado, porém estrutural na sociedade brasileira e suas
diversas instituições; na discriminação e na violência contra os corpos e as subjetividades de
homens e mulheres negras e indígenas. Essas relações tensionam a medida que os negros
avançam na ocupação de espaços anteriormente “destinados” aos brancos, legitimando uma
luta secular de segregação social e racial, num país que até pouco tempo não se reconhecia
como racista, e em que parcela significativa da população ainda acredita no mito da
democracia racial e trata a causa negra como vitimismo, “mimimi”, ou ainda “racismo
reverso”42.
As relações raciais que a princípio foram discutidas no campo acadêmico, em torno da
ideia da democracia racial, passam a ser pensadas a partir da realidade desigual em que se
encontra a maioria da população negra; e no último século, em decorrência das reivindicações
do Movimento Negro, e com o aumento do acesso de negros e negras ao ensino superior,
vários estudos têm-se apresentado, levando em conta a perspectiva negra acerca dessas
relações.
O tema das relações étnico-raciais, aqui proposto como discussão possível no campo
educacional, se ampara na perspectiva das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que trata da
obrigatoriedade da inserção de história e cultura afro-brasileira e africana, e indígena nas
escolas públicas e privadas, e das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), que traz as
41
Mestranda em Ensino de História pelo Programa de Pós-Graduação ProfHistória da Universidade Federal do
Tocantins. Graduada em História pela UEMA. Professora da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do
Tocantins/Araguaína/TO.
42
Racismo reverso seria a forma clássica de preconceito motivado pela raça, cor ou etnia, porém, contra brancos,
ou de negros contra brancos. O que não configura racismo, pois este é resultado de um processo estrutural
histórico, baseado no passado da escravidão. (PORFÍRIO, 2019).
116
orientações acerca deste ensino, bem como as lutas e conquistas do Movimento Negro. Nos
respaldamos ainda numa perspectiva decolonial e negra, com o objetivo de contribuir para a
tomada da consciência crítica e a reflexão sobre as identidades dos estudantes negros/as da 2ª
Série do Ensino Médio de uma escola militarizada de Araguaína – TO, no sentido de provocar
tessituras no processo de ensino e aprendizagem nesse ambiente.
A proposição desse estudo parte da constatação empírica e bibliográfica, do ainda
constante silenciamento e mesmo folclorização da negritude no currículo das humanidades, e
consequentemente no ambiente escolar, o que contribui para a reprodução de estereótipos
negativos acerca dos negros, e perpetuação de uma epistemologia predominantemente
eurocêntrica, branca e racista. Em se tratando de uma escola de perfil militarista essas
discussões tornam-se ainda mais relevantes, visto que, no contexto da escola militar a
hierarquização e a ideia de meritocracia fazem parte da proposta de ensino. A discussão
central é: como podemos pensar em decolonialidade num ambiente militarizado, onde a lógica
do grupo é pensada visando atender a hierarquias? Como inserir a temática das relações
étnico-raciais a partir dos grupos subalternizados, sem reforçar o mito da democracia racial,
ou os folclorismos acerca do negro ou do indígena? É isso o que nos propomos como desafio.
Reconhecer a existência do racismo para além da ofensa verbal é o primeiro passo
para a construção de uma educação antirracista. Para tanto é necessário um mínimo de
compreensão histórica sobre o “racismo à brasileira” e os silenciamentos que este provocou e
ainda provoca acerca dos problemas que afetam as populações negra e indígena no Brasil. Os
estudos decoloniais de Qüijano (2005), Mignolo (2005), Bernardino-Costa e Grosfoguel
(2016) nos ajudam na compreensão dessas relações, ao demostrar que é a partir da
colonização das Américas pelos europeus, que tem início a construção social-histórica do
racismo, no processo de categorização racial dos povos, da divisão racial do trabalho, das
novas relações de poder estabelecidas pelo capitalismo, e no menosprezo daqueles que foram
postos como inferiores, o “Outro” do “Eu” europeu/branco/ocidental. A decolonialidade não
se restringe a um projeto acadêmico (BERNARDINO-COSTA e GROSFOGUEl, 2016). Ela
se apresenta como uma prática epistêmica de oposição e intervenção ao eurocentrismo.
De outro modo, as organizações negras, ora no campo acadêmico ora nas vivências e
saberes das comunidades, nas ações culturais e religiosas vêm denunciando o descaso e o
abandono do poder público e muitas vezes sua ineficiência no que diz respeito a
aplicabilidade das políticas públicas de combate ao racismo e à discriminação, além da
invisibilização das suas lutas e existências, inclusive no campo educacional. Ao mesmo
tempo, feministas negras reivindicam o debate das relações raciais a partir do campo
117
interseccional, visto que sob estas mulheres recai não só a discriminação de raça, mas também
de gênero. Mulheres negras atreladas aos movimentos Negro e Feminista hegemônico, de
modo geral, mantiveram-se historicamente associada à luta racial negra, por se entenderem
como parte deste contexto, anulando-se muitas vezes da sua própria condição de ser mulher
(CARNEIRO, 2003; KILOMBA, 2019). Por outro lado, essas mulheres não se sentem
totalmente representadas no interior do Movimento de Mulheres hegemônico tendo em vista,
que a categoria “mulher” foi apresentada de forma universalizada, personificada na mulher
branca, ocidental, cisgênero, tomando por base teorizações da episteme ocidental,
desconsiderando a condição racial que potencializa as discriminações sofridas por mulheres
negras e demarca o lugar de subalternização delas mesmas. Esses e outros silenciamentos que
envolvem os grupos oprimidos, vêm sendo reproduzidos ao longo do tempo na formação de
alunos e professores, haja vista o currículo adotado nas nossas escolas ter privilegiado os
saberes de um grupo hegemônico em detrimento de outros tão relevantes e necessários
quanto.
Entendemos a escola como um espaço de vivências e socializações que deve contribuir
para a construção de identidades positivas, ou como afirma Nilma L. Gomes:
Levar esse debate para sala de aula, em vista de criar um espaço de diálogo
permanente, acerca das contribuições da população negra e indígena, não apenas no âmbito
cultural, mas em todo processo histórico brasileiro, tomando também por base a legislação
educacional acerca das relações étnico-raciais, se faz necessário e urgente, mediante as
manifestações constantes de racismo dentro e fora do ambiente escolar. Além de nos ajudar a
compreender o longo processo de racialização ao qual foram submetidas as populações
colonizadas, e como isso afeta nossas relações sociais, políticas, econômicas, e mesmo
afetivas, até os dias atuais, e que acabaram por delegar o lugar de subalternização de negros e
indígenas, e o lugar de privilégio do branco na nossa sociedade.
Neste trabalho em específico trataremos mais das questões concernentes aos negros.
Para tanto nos valemos dos estudos acerca das relações raciais de alguns dos principais nomes
da intelectualidade negra no Brasil e no mundo, e dos movimentos sociais negros e feministas
negras; das novas conceituações e perspectiva do Grupo Modernidade/Colonialidade; dos
118
propósitos de Paulo Freire de uma educação para conscientização e liberdade; e, também,
daqueles que se dedicam aos estudos sobre a cultura escolar. Neste artigo refletimos sobre
decolonial em vista de uma perspectiva negra e nos propomos a uma breve reflexão acerca do
diálogo sobre as identidades dos estudantes negros e negras do Colégio Militar do Tocantins
de Araguaína, fomentadas a partir da técnica da roda de conversa.
119
A colonialidade traduz-se como o lado perverso da modernidade e consiste num
processo de dominação epistêmica que sobreviveu aos colonialismos dos séculos XV ao XIX,
determinando uma hierarquia das relações capitalista de trabalho a partir da categoria raça,
com base no eurocentrismo. Com o tempo as relações sociais que surgiram fundadas na ideia
de raça produziram nas Américas identidades sociais historicamente novas: índios, negros e
mestiços, além de redefinir outras (QÜIJANO, 2005). “Assim, termos como espanhol e
português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou
país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma
conotação racial” (QÜIJANO, 2005, p. 117). Raça e identidade racial tornaram-se, portanto,
instrumentos de classificação social básica da população, sendo o europeu e seus
representantes coloniais, uma representação da categoria branco. Assim afirma Qüijano:
120
atributos de humanidade, o colonialismo obriga as pessoas que ele domina a perguntar-se: em
realidade quem eu sou?” (FANON apud WALSH, 2005, p. 22).
Devido a colonialidade, o mundo moderno europeu pôde produzir as ciências humanas
como modelo universal, transformando as demais epistemologias em periféricas em relação
ao Ocidente (OLIVEIRA e CANDAU, 2010). Por essa razão a decolonialidade nos sugere um
pensamento de fronteira, discutindo outros espaços geográficos não-privilegiados, além de
propor o “desengajamento epistêmico” em relação ao ocidentalismo, visto que sua retórica
salvacionista, civilizatória, e desenvolvimentista têm reduzido “cosmologias, manifestações
artísticas, ciências e tecnologias, formas de organização econômica e política” “Outras” à
“superstições, mitos, folclores e tradições irracionais, isso quando não são totalmente
suprimidas” (PINTO e MIGNOLO, 2015, p. 389).
Povos que foram categorizados racialmente, mais precisamente negros-africanos e
seus descendentes no Brasil, e que sofreram um processo de invisibização e silenciamentos
históricos, acabaram tendo que reconhecer tais processos, no intuito de reivindicar
equiparação histórica e simbólica. Reconhecemos as ações desses grupos como práticas
decoloniais, e entendemos a importância de historicizar suas lutas por integração e
reconhecimento como sujeitos ativos e participativos na construção da sociedade. Bernardino-
Costa e Grosfoguel (2016) ressaltam que os intelectuais da decolonialidade são responsáveis
apenas pelo desenvolvimento analítico dos conceitos, uma vez que podemos encontrar essas
formulações na tradição do pensamento negro, lembrando que os habitantes da fronteira do
sistema mundo/colonial não são passivos.
No caso brasileiro, o pensamento negro e sua intervenção político-acadêmica têm se
dado a partir da experiência da diferença colonial. “A partir do lugar epistêmico do negro
nessa sociedade” (BERNARDINO-COSTA e GROSFOGUEL, 2016, p. 20). Os esforços
desses intelectuais que militam na causa negra e dos vários movimentos sociais negros,
trouxeram à tona uma série de denúncias sobre as práticas racistas que se perpetuam na
sociedade brasileira, inclusive na educação, a começar pelos currículos das escolas públicas e
privadas. Esses movimentos têm buscado romper com o padrão epistêmico que nos foi
imposto pela colonialidade, e lutam pela coexistência das diferentes formas de conhecimento.
Neste sentido os avanços na criação de uma legislação antirracista para o país, especialmente
na área educacional perpassa pela persistência desses grupos subalternizados.
A busca pela compreensão das relações raciais no Brasil vem desde os idos da
República, pautando-se nos estudos comparativos, especialmente com os Estados Unidos
(GUIMARÃES, 1995), ora contribuindo para a negação da existência do racismo no Brasil e
121
afirmação do mito da democracia racial, ora ajudando a revelar a existência de uma espécie de
“racismo à brasileira”, sutil, disfarçado, mas não menos violento e excludente, sob os
eufemismos do “preconceito” e da “discriminação”. As pesquisas sobre as relações raciais, a
partir de Hasenbalg (1979) serviram para fazer uma relação direta do racismo brasileiro com o
sistema capitalista, buscando explicar as desigualdades socioeconômicas e educacionais
existentes, a partir da categoria raça.
Os estudos que se seguiram sobre o tema a partir da perspectiva negra, continuam se
utilizando do termo “raça” acrescido do termo “etnia”. De modo que não se pode falar de
relações étnico-raciais, sem antes entender a dicotomia dos termos “raça” e “etnia”. Gomes
(2005) lembra que o termo ‘raça’ deve ser usado para falar sobre a complexidade existente nas
relações entre negros e brancos no Brasil. Significa dizer que não cabe aqui o velho conceito
de raça no sentido biológico, como atesta a mesma autora ao citar a concepção utilizada pelo
Movimento Negro brasileiro:
O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo raça, não o fazem
alicerçados na ideia de raças superiores e inferiores, como originalmente era usada no
século XIX. Pelo contrário, usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na
dimensão social e política do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação
racial e o racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos
aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também
devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos
observáveis na estética corporal dos pertencentes às mesmas (GOMES, 2005, P. 45).
Portanto o conceito de raça é uma construção social e política, que nos ajuda a
compreender a dimensão histórica, no contexto brasileiro, das desigualdades naturalizadas,
das relações de exploração e hierarquização da sociedade a partir desse atributo. A
classificação dos indivíduos em categorias raciais é um fenômeno da modernidade.
O outro termo utilizado como marcador identitário, o de “etnia”, é usado para se
referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos em nossa
sociedade, (GOMES, 2005). Porém para estes intelectuais e militantes do Movimento Negro
substituir simplesmente o termo raça por etnia não surte o efeito esperado no caso brasileiro,
como também não altera a compreensão intelectual sobre o racismo. Por isso ao se referendar
ao “segmento negro utilizam o termo étnico-racial, demonstrando que estão considerando
uma multiplicidade de dimensões e questões que envolvem a história, a cultura e a vida dos
negros no Brasil" (GOMES, 2005, p. 47).
No entanto é importante ressaltar que a utilização da raça como critério adscritivo tem
sido mantida conscientemente pelos brancos, pois estes se beneficiam de forma material e
simbólica da mesma (HASENBALG, 1979), seguindo assim, uma lógica de racialização do
122
outro, ignorando sua própria racialização. Como atesta Fanon: “diferentemente da lógica da
branquidade que não assume sua marca racial e, portanto, apresenta-se como universal, o corpo
negro, como parte de um projeto de liberação, assume a sua localização dentro do mundo
colonial” (FANON apud BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 514). Neste sentido, torna-se
evidente que o conceito de branquitude tem a ver com o privilégio da brancura, em que numa
sociedade racista como a brasileira, o acesso aos espaços de poder se dá, especialmente, em
decorrência da cor/raça dos indivíduos, uma construída como referência de positividade, e,
portanto, merecedora; e a outra construída de forma extremante negativa, e inversa.
Para além da denúncia, as epistemologias negras se propõem à valorização das
identidades negras, as quais foram forjadas por muito tempo, de forma estereotipada, levando
a negação do ser negro. A identidade negra inclui-se no debate das relações raciais, e como
alerta Nilma L. Gomes “a reflexão sobre a construção da identidade negra não pode prescindir
da discussão sobre a identidade enquanto processo mais amplo”. (GOMES, 2005, p. 45).
Nesse contexto o antropólogo Kabengele Munanga (2012) ressalta que a identidade negra só
tem sentido em um contexto plural e multicultural. Para defini-la Munanga parte da
explanação sobre as várias identidades: da individual às coletivas, de modo que por identidade
coletiva entende-se uma “categoria de definição de um grupo” (idem 2012, p. 9), através de
alguns atributos selecionados no seu complexo cultural, histórico ou religioso, sendo que essa
identidade pode ser por autodefinição, mas pode ser também atribuída por outrem. É o que
ocorreu com populações colonizadas pelos europeus, que “a partir do seu olhar cultural
atribuíram a esses povos identidades que nada tinham a ver com as que esses povos se auto
atribuíam” (MUNANGA, 2012, p. 10).
Munanga (2012) ressalta ainda que a identidade negra do ponto de vista da comunidade
negra (e de seus representantes) é constituída a partir de alguns fatores: sua história, sua
cultura, e possivelmente sua psicologia (que ainda requer ser mais estudada, não do ponto de
vista biológico ou racial como já fizeram no passado recente, mas do ponto de vista histórico,
da ancestralidade, do condicionamento socioeconômico). Por isso, no processo de construção
da identidade coletiva negra é preciso resgatar sua história e autenticidade de forma positiva.
Daí a necessidade e importância de ensinar as histórias da África e do Negro no Brasil, a partir
de novas abordagens e posturas epistemológicas que visem romper com depreciação à pessoa
do negro, a fim de que se ofereça subsídios para a construção de uma identidade negra
positiva, na qual o negro seja visto não mais como objeto da história, mas sim como sujeito
participativo de todo o processo de construção da cultura e do povo brasileiro.
123
O intelectual e psiquiatra Frantz Fanon (2008) que pensou a questão da raça e a
importância do tema da identidade negra, pontua que é necessário que o negro como portador
de uma cultura, busque restituir sua humanidade que o colonialismo branco negou. Em
decorrência de tal colonialismo, o negro introjetou um complexo de inferioridade. Para Fanon o
homem negro só se libertará de tal complexo tomando consciência da sua realidade, se despindo
da máscara branca e vestindo a sua máscara negra. Assim escreve: “Desde que era impossível
livrar-me de um complexo inato, decidi me afirmar como negro. Uma vez que o outro hesitava
em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer” (FANON, 2008, p. 108). Nesse
processo de desalienação, Fanon diz que o negro precisa também tomar consciência da sua
realidade: “permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita
tomada de consciência das realidades econômicas e sociais” (FANON, 2008, p. 28). O pensar
faoniano evidencia outras intececnalidades que atravessam as populações em posição de
subalternidade, como também denota que “o privilégio racial é entrecortado por diversos outros
eixos de poder: classe, gênero, religiosidade, idioma, sexualidade, nacionalidade etc.”.
(GROSFOGUEL apud BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 509)
Sobre o papel da educação escolar, pensando a partir de Freire, ela ocupa uma posição
central no desenvolvimento crítico da consciência. Para Freire, o trabalho educativo se torna a
expressão da consciência crítica, quando professores e educadores em geral manifestam a
capacidade de diálogo orientada para a práxis. Esta é entendida como reflexão e ação dos
homens sobre o mundo para transformá-lo, sem a qual torna-se impossível a superação do
contraditório opressor-oprimido (FREIRE, 1997). Com isso é fundamental que a educação
não fique indiferente diante das mazelas da humanidade. A educação deve demonstrar que os
problemas não surgiram por mágica e, sim, por condições históricas elaboradas por pessoas
reais. E se são reais, podem ser responsabilizadas por isso. A própria educação é vítima desse
tipo de desarranjo (FREIRE, 1997).
Desse modo entendemos o tema proposto como relevante, no sentido de tornar o
ensino de História mais significativo e diverso, e provir nossa prática pedagógica como uma
ferramenta de combate ao racismo. As reflexões apresentadas fazem parte de um trabalho
mais amplo de pesquisa a nível de mestrado, que tem como título: O Ensino de História e as
Relações Étnico-Raciais na Sala de Aula, a partir do qual nos debruçamos a pensar
metodologias para fomentar o debate das relações étnico-raciais no ambiente escolar. Como
parte propositiva de ação realizamos uma Mostra de História afro-brasileira, junto ao corpo
discente das Segundas Séries do Colégio Militar do Tocantins (CMT) de Araguaína, adotando
os procedimentos metodológicos da pesquisa participativa, a pesquisa-ação (TRIPP, 2005). A
124
Mostra consistiu na apresentação das pesquisas realizadas pelo coletivo dos estudantes em
sala de aula, sob minha orientação, explorando temas da história negra no Brasil do passado e
da atualidade, a partir da utilização de fontes diversas, entrevistas, produção de material visual
e apresentações culturais. Na etapa de socialização das atividades desenvolvidas em sala,
abrimos o diálogo com toda a escola, a partir de palestras com representantes do movimento
negro/quilombola e da academia.
Para investigação e aprofundamento do debate racial nos propomos a reflexão sobre as
identidades dos estudantes interlocutores dessa atividade de pesquisa, autodeclarados negros e
negras. Percebemos nos estudantes, identidades negras ainda em processo de construção e de
reconhecimento como identidade coletiva. Como aponta Nilma L. Gomes (2002), a identidade
negra se constrói de forma gradual, o “tornar-se negro” (SOUSA, 1990) de forma positiva tem
sido um processo, inclusive político. Nesse sentido, entendemos a identidade negra como uma
construção social, histórica, cultural e plural, e, portanto, não fixa. Para o diálogo sobre as
identidades, nos utilizamos da técnica da roda de conversa 43 pensada por Paulo Freire a partir
do projeto do círculo de cultura44, também idealizada por ele, para evitar a ideia da sala de
aula tradicional e garantir a fluidez do debate. Assim, diferentemente de uma sala de aula em
que o saber do professor se impõe como único saber, no esquema de estudo elaborado por
Freire haveria uma troca dos saberes diferentes entre aqueles dispostos lado a lado. Como
descreve Brandão: “pessoas diversas trazem para o coletivo os saberes de suas vivências – a
sabedoria de vida. E então dialogam umas com as outras, pessoas reunidas ali para trocarem
saberes e aprenderem umas com as outras; umas através das outras” (BRANDÃO, 2018, p.
56). Para o registro das falas nas rodas de conversas utilizamos o gravador do celular, bem
como o caderno de campo, e gravamos as lives com os colaboradores (conversa pela internet).
Foram selecionados 15 estudantes, 10 moças e 5 rapazes, das seis turmas de 2ªs séries
do CMT – Araguaína, nas quais lecionei no ano de 2019. O interesse e a disponibilidade dos
estudantes, além da rotatividade obrigatória das turmas, me fizeram optar pelos colaboradores
de forma aleatória, sem necessariamente escolher uma turma. A partir de questionário
diagnóstico foi possível traçar o perfil dos colaboradores da pesquisa, todos autodeclarados
43
Importante ressaltar que em decorrência da pandemia do Covid-19, a estratégia inicial das rodas de conversa
se converteu em encontros virtuais, as chamadas atividades remotas, totalizando duas reuniões pela plataforma
Google Meet. Sendo possível apenas um encontro presencial antes do período pandêmico na unidade escolar.
Nos utilizamos também da comunicação via Whatzapp e por e-mail como garantia de participação de todos os
colaboradores.
44
Trata-se de um método de aprendizagem dialógica criado por Paulo Freire na década de 1960. O Círculo de
Cultura refere-se a um espaço educativo onde transitam diferentes subjetividades e convivem diferentes saberes,
a partir da experiência do diálogo de forma coletiva e solidária, em todas as etapas do processo de ensino e
aprendizagem, resultando daí o conhecimento gerado (Loureiro e Franco, 2012 p. 2).
125
negros, entre pretos e pardos, advindos na sua maioria de escolas públicas, ingressados na
escola militar por vontade dos pais e pela fama da escola.
Esses estudantes na sua maioria já haviam tido contato com a temática das relações
raciais, e confirmaram que alguns professores fomentam o tema no Colégio Militar, porém
quase sempre atrelado a datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra, ou lembram
da questão negra vinculada a escravidão. É válido lembrar que a escola em questão, não
realiza uma atividade comemorativa ao 20 de novembro com toda a unidade escolar, como
acontece em algumas escolas da rede estadual no Tocantins. O que ocorre são ações muito
pontuais, geralmente em sala de aula, organizadas por professores das áreas de ciências
humanas. Por isso mesmo, uma das dificuldades encontradas na realização desse trabalho, foi
quanto a sua socialização no pátio do Colégio com os demais estudantes e professores da
Unidade, com a atividade sendo deslocada para o horário de acréscimo (6º Horário), pelo fato
da mesma não está prevista no Projeto Político Pedagógico (PPP), no formato apresentado 45.
Entendemos que as atividades escolares precisam estar atreladas ao PPP, mas não
necessariamente engessadas, visto que, as mesmas, são passíveis de mudanças ao longo do
ano letivo.
Após a participação dos estudantes interlocutores na Mostra de História Afro-
Brasileira e nas rodas conversas, foi possível constatar a importância do trabalho
desenvolvido e a percepção dos estudantes acerca do racismo presente no ambiente escolar.
De maneira geral, os estudantes têm dificuldades em compreender o racismo de forma
estrutural, e como a instituição escolar faz parte dessa estrutura, identificando o racismo de
uma maneira mais individualizada. Chegando a relatar o descaso de alguns professores e
colegas com a questão. A interlocutora, que chamaremos Gabis 46 em sua participação em
roda de conversa afirmou:
[...] teve uma professora, eu lembro, ela falou assim pra gente, que já que era pra ser
todo mundo igual, por que que tinha de ter um dia pra gente falar sobre a nossa cor,
é... Se tem que ter um dia pra gente ter que ter consciência, sobre a forma que a
gente trata o outro? Eu fiquei pensando sobre aquilo... Ela pegou e falou assim: por
que tem que ter um dia especial pros negros? Ela tipo quis falar que... e eu, hum!
(GABIS, 1ª Roda de Conversa, 2020).
45
Foi solicitado aos demais professores o tempo das suas aulas para que atividade fosse socializada no pátio.
Enquanto alguns se manifestaram a favor, outros simplesmente não se manifestaram. As aulas foram somente
reduzidas.
46
Nominamos abreviadamente nossos interlocutores para evitar qualquer constrangimento ou identificação
direta dos mesmos. Utilizamos também no diálogo dos alunos as reticências para demarcar as pausas no discurso
dos interlocutores, mas também nos momentos de informações alongadas ou que podia comprometer suas falas
perante a escola.
126
A forma de pensar da professora não nos surpreende, visto que é um sentimento
compartilhado por um bom número de professores nas nossas escolas, evidenciando a
formação de base eurocêntrica dos professores, como também o imaginário social, que tem
criado uma ideia de diversidade dissociada dela mesma, ou seja, permite-se a existência da
diversidade, mas não a incentiva, nem a fomenta. É fato que o Estado precisa promover sim,
formações continuadas para a promoção e o respeito à diversidade, porém é necessário
também o enfrentamento ao racismo pedagógico, reforçado na ideia do despreparo
educacional para trabalhar a temática das relações étnico-raciais.
No decorrer das rodas de conversa alguns interlocutores retomaram momentos
significativos da sua experiência com as práticas discriminatórias, como consta no relato do
estudante Rui na nossa 1ª Roda de conversa:
[...] fui comprar o pão, e coloquei minha jaqueta. Aí quando estava passando na rua,
eu vi uma senhora com o filho dela, eu acho que era o neto. Quando ela me viu, ela
já se assustou e ela já foi logo para o outro lado da rua. Pensando que eu... acho que
ela pensou que eu ia assaltar ela [...], mas segui em frente. (RUI, 1ª roda de
conversa, 2020).
127
O relato acima de quase 2 minutos ininterruptos da estudante Nara, demostra a
importância do debate racial na escola para o fortalecimento de uma identidade mais
positiva diante do racismo. Ao relatar a ausência desse diálogo na escola, a aluna
demonstra se sentir desamparada, e em seguida vem um conformismo com a situação, a
aceitação como normalidade. A estudante trouxe em sua fala algumas reflexões das aulas
motivacionais sobre as condições desiguais da nossa sociedade entre brancos e negros,
constatada posteriormente pelos próprios estudantes em suas pesquisas, no decorrer da
elaboração da nossa Mostra. Freire (1979) vai apontar para a formação de uma
consciência ingênua, que condiz a um aprendizado superficial, caracterizado pelo
comodismo e conformação com a realidade vivida, como se ela fosse estática e
verdadeira. O silenciamento das questões raciais na escola se ampara no discurso da
igualdade, da ideia desta, como espaço neutro, na negação do racismo enquanto um
sistema estrutural e do qual a instituição escolar faz parte.
Para pensar a identidade ou as identidades negras para-além do senso comum,
propusemos a leitura de pequenos fragmentos textuais dos autores Nilma Lino Gomes
(2005), Kabengele Munanga (1994) e Frantz Fanon 2008) 47, no sentido de enriquecer o
debate e provocar um reposicionamento dos estudantes quanto a questão identitária. Para
tanto lançamos dois questionamentos: o primeiro – O que é possível compreender sobre a
questão da identidade negra ou identidades negras, a partir dos fragmentos dos textos ?;
e o segundo – Após uma reflexão sobre os textos lidos aqui, e sobre o trabalho
desenvolvido junto com professora pesquisadora, como você se identifica ao final desse
processo?
Destaco dois posicionamentos que considero significativos, entre os alunos que no
início do trabalho demonstraram uma certa insegurança em se identificarem como negros,
apesar de se autodeclarem pardos, não havia uma certeza sobre a qual grupo étnico ou racial
pertenciam. O primeiro relato é da estudante Dora. Para o primeiro questionamento a aluna
respondeu:
47
Os fragmentos dos textos utilizados são os mesmos que usamos na constituição desse artigo.
128
No início da pesquisa, por ignorância, eu me via no quadro de pessoa parda, fruto de
uma mistura, mas durante esse processo inúmeras vezes me vi pesquisando sobre
colorismo e trazer isso às discussões foi algo que me fez compreender sobre
‘eu’[mim] e a minha história. Ao final, pude compreender que a palavra “pardo"
pode ser uma forma de apagar negros, frutos do processo de eugenia, e enfim,
depois de duras reflexões, entendi que sou negra (DORA, 3ª Roda de Conversa,
2021).
A Identidade Negra durante anos foi escondida e vista com preconceito e até hoje,
não possui o mesmo espaço que as demais culturas nos espaços de educação
formais. Ademais, esse quesito é extremamente importante, haja vista que carrega
consigo como representação de pertencimento, é como o próprio se identifica
(DAVI, 3ª Roda de conversa, 2021)
E continua...
129
o resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa
apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras
ascendências étnicas, principalmente brancas, pois ao receber uma educação
envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas
afetadas. Além disso essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a
todos [...] (MUNANGA, 2008, p. 12).
A breve análise que trazemos com base nesses referenciais, se encontra em fase de
construção. Longe de resolver os problemas apresentados, não se tem pretensão de esgotar as
discussões, mas sim focar na possibilidade de contribuir para reflexão acerca da formação de
identidades negras conscientes e positivas. Uma prática pedagógica libertadora pressupõe que
os problemas sociais vigentes na atualidade foram construídos ao longo da história, segundo
uma trama de interesses nada aleatória. E se foram construídos, ao menos em tese, podem ser
desconstruídos.
Considerações Finais
130
saber. Compreender essas relações a partir das minhas próprias vivências sempre foi um
grande desafio, especialmente diante do racismo estrutural, transmutado em ações cotidianas.
Durante a escrita desse trabalho investigativo deparei-me com o depoimento da
professora Azoilda Loreto da Trintade48, o qual me tocou profundamente, ao falar de sua
consciência negra em tenra idade. Dizia saber desde cedo que era negra, “o que não significa
que em alguns momentos de sua vida não tenha desejado não ser”. Sinto que comigo tenho
ocorrido o mesmo. Os caminhos percorridos para a produção dessa escrita, perpassa pela
visitação às minhas dores e à de meus antepassados, bem como pela constatação de muitas
vezes ser o “Outro do Outro”.
Meu ingresso no programa de pós-graduação em Ensino de História – ProfHistória –
UFT, após longo doze anos afastada da Academia, não só me proporcionou o contato com
novas leituras, como também trouxe à tona a reflexão acerca da minha prática docente, pelo
mesmo período. A empolgação de quem recém chegava à educação somada aos desafios de
inserir a temática da história da África e dos afro-brasileiros para além do dia do folclore nas
minhas aulas, me fizeram pioneira na tentativa do cumprimento da Lei 10.639/2003 na cidade
de Araguatins e de inserção da comemoração do 20 de novembro nas escolas do município e
nas do Estado (centro da cidade), com o projeto “Valorização da Identidade Negra”.
Ao longo dos anos as atividades propostas para se pensar as relações raciais, tanto no
âmbito cultural quanto político, ganharam projeções coletivas favoráveis ao engajamento de
alunos e professores de toda Unidade Escolar. Na busca por inovação a cada ano, somamos
força junto ao Movimento Negro (Centro de Cultura Negro Cosme - Imperatriz), às lideranças
quilombolas de Araguatins, à UFT- Campus Araguaína, aos Núcleos de Estudos Afro-
brasileiros – NEABs, do IFTO – Araguatins/Araguaína, até a formação genuína do Coletivo
Feminino Dandaras do Mato, mas sem esquecer o mais importante, o aprendizado iniciado lá
na sala de aula. Entre erros e acertos na realização de projetos e atividades pelas escolas pelas
quais passei, acredito ter contribuído de alguma forma para ressignificação de saberes e
formação de identidades negras mais positivas.
Neste sentido, o Programa de Pós-Graduação ProfHistória me remete a um novo
desafio, que é pensar e atuar como professora-pesquisadora, aprendendo a registrar e a
observar melhor minha prática diária de sala de aula, fazer do exercício da pesquisa um meio
de melhorar e inovar o processo de ensino-aprendizagem. Desse modo, destaco a importância
do ProfHistória na formação prática e teórica de professores da educação básica, atentos as
48
Tecendo africanidades com brasilidades: desafios do cotidiano escolar. In: Sousa, Maria Helena Viana (Org.)
Relações raciais no cotidiano escolar: diálogos com a Lei 10639/2003, Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.
131
novas discussões acadêmicas, mas também antenados às diversas problemáticas trazidas a
partir das suas vivências em sala de aula e do convívio dos estudantes para com a comunidade
na qual estão inseridos.
Assim, acredito que a pesquisa que vem sendo desenvolvida no âmbito do
ProfHistória só tende a somar à minha prática pedagógica, atendendo um anseio não apenas
pessoal, mas também profissional. Intensificar o debate das relações raciais no ambiente
escolar é tornar o ensino de História mais significativo.
Referências
BRANDÃO, Carlos. Paulo Freire: uma vida entre aprender e ensinar. Ed. Ideias Letras. 1ª
Edição, 2018.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estud. Av. vol.17 nº 49. São Paulo. 2003.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Tradução de Renato da Silveira. - Salvador:
EDUFBA, 2008. p. 194.
132
Ambiente & Amp; Educação, 17(1), 11–27. Disponível em https://periodicos.furg.br/
ambeduc/article/view/2422 Acesso em 15 mar. 2021
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao
pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 24ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997
133
40. ISSN 0102-4698. Disponível em< http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982010000100002>
Acesso em 02/07/2020
PPP - Projeto Político Pedagógico. Colégio da Polícia Militar Dr. José Aluísio da Silva –
Unidade III, Araguaína – TO, 2019.
WALSH, Catherine. Introducion - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH,
C. Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito:
Ediciones Abya-yala, 2005. p. 13-35.
134
08. A MULHER NEGRA E O DESAFIO DE REPENSAR NARRATIVAS:
UMA METODOLOGIA PARA DESCOLONIZAR SABERES
E PRÁTICAS NO ENSINO DE HISTÓRIA
49
Mestra em Ensino de História (2020) pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História
(Profhistoria), da Universidade Federal do Tocantins (UFT), câmpus Araguaína. E-mail:
andreiacostasouza@gmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
135
ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes (...) estão envolvidos de modo cooperativo e participativo”.
Neste artigo, objetivo descrever alguns dos diversos momentos deste percurso
metodológico, buscando deter-me no modo como operei a metodologia e alguns dos impactos
gerados nos saberes estudantis sobre as questões que abordamos no decorrer da formação. Ao
todo, foram realizadas oito oficinas, rodas de conversa entre estudantes negras, diversas
observações sobre o campo da sala de aula, questionários e textos. Aqui trago a descrição de
apenas quatro oficinas que trouxeram resultados que considero muito importantes para a pesquisa.
Busquei, com tais atividades, identificar e confrontar narrativas colonizadoras no Ensino de
História, questionando, junto com as/os estudantes, quais sujeitos foram apagados e quais noções
e estereótipos foram estabelecidos sobre a mulher negra, por conta deste modo de narrar a
História. Avalio, ao final, o que também aprendi e ressignifiquei no processo da formação.
Assim busquei conduzir a formação, sem perder o racismo de vista. Para o filósofo
Silvio Luiz de Almeida (2018, p. 51), “o racismo constitui todo um complexo imaginário
social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e
pelo sistema educacional”. Ele sugere que o enfrentamento do racismo passa pela superação
de uma compreensão tradicional de “modernidade”. Acrescento que, indubitavelmente, esta
perspectiva de modernidade está refletida no Ensino de História:
Ao incorporar essas premissas à luta antirracista e, neste caso, ao Ensino de História que
pretende ser antirracista, a discussão sobre a representação em torno da África é necessária e
não apenas um complemento curricular. É preciso entender a diáspora, é preciso entender como
a “África se espalhou pelo mundo” por intermédio de mulheres e homens negros. E admito que
no cotidiano das aulas de História essa parte acaba quase sempre sendo “esquecida”.
Se a África e os/as afrodescendentes foram refutados ou tiveram sua imagem
deturpada, será preciso, no Ensino de História, buscar “reverter” essa estigmatização para que
seja possível compreender por que o Brasil é africanizado, porque negros e negras não têm
sua atuação e resistência destacada no modo tradicional de aprender História. Com este
propósito, as primeiras oficinas da formação foram pensadas.
Na primeira delas, fizemos um “contrato” oral, em que apresentei o tema da pesquisa
de forma bem simplificada. Falei que iríamos ter “aulas diferentes”, que dependeriam da
participação e colaboração de todos/as. A maioria falou ao mesmo tempo quando disse que
discutiríamos sobre racismo e machismo50, demonstrando empolgação. Perguntei se o racismo
era um problema no convívio da turma e alguns disseram que sim. Contudo sobressaíram
falas sobre bullying. Pedi que fizessem uma microbiografia, atividade em que cada um/a,
inclusive a pesquisadora, deveria se apresentar à turma, em poucas linhas escritas, e, depois,
iriamos ouvir os que quisessem se apresentar oralmente para a turma toda.
Para oficina seguinte, planejei duas atividades: um experimento chamado Imaginando a
África51 e a exibição do vídeo “O perigo de uma história única”, uma palestra da escritora
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. O experimento Imaginando a África consiste em pedir
que os/as estudantes escrevam em uma folha em branco as primeiras palavras que vem à cabeça
quando pensam/imaginam a África. A atividade baseou-se em intervenções didáticas feitas
anteriormente e descritas em dois artigos de professores dedicados ao estudo do ensino da
História Africana (OLIVA, 2007; RAMOS JUNIOR, 2017). A ideia principal é favorecer a
50
Optei por utilizar com os/as estudantes o termo machismo e não sexismo, por acreditar que o primeiro, além
de ser mais comum na nossa língua e permitir facilitar a didática das oficinas, é capaz de abranger as relações
desiguais entre os sexos/gêneros. Contudo, esclareci a diferença entre os termos.
51
Este experimento foi baseado no artigo “História da África: relato de experiência e análise de intervenção
didática”, do professor Dernival Venâncio Ramos Júnior (2017).
137
percepção de como os preconceitos raciais afetam a nossa visão sobre a África, africanos/as e
afrodescendentes, além de historicizar e visibilizar a diversidade cultural e histórica do continente.
Por conta da quantidade de alunos/as em sala, solicitei que escrevessem 5 palavras
apenas. Como algumas ideias eram bem semelhantes, uni em uma mesma categoria. As dez
palavras mais recorrentes foram: “fome”, “pobreza/pobre”, “sofrimento/sofridos”,
“negros(s)”, “morte”, “falta de água/seca/sede”, “esperança”, “solidariedade”, “tristeza” e
“doenças”. Por mais que não tenha sido uma completa surpresa o resultado da atividade, o
modo “automático” com que associaram África com diversas ideias que envolvem
precariedade, atraso, sofrimento e morte, me fez ter mais certeza de que não posso mais
deixar de tocar nessas ideias preconcebidas.
Outras palavras citadas foram: “racismo”, “animais/animais ferozes”, “dificuldade”,
“cultura”, “quente/calor”, “preconceito”, “imigrantes”, “comidas típicas” e “natureza”.
Percebi que mesmo quando buscaram citar palavras mais positivas, ainda assim reduziam o
continente africano à precariedade, a uma natureza que mais parece condenar seu povo à
“dificuldade” do que a uma vida digna e próspera.
De modo semelhante ao que foi observado pelos professores Oliva (2007) e Ramos
Junior (2017), ao constatarem que boa parte dos saberes sobre a África são concebidos a partir
de visões eurocêntricas que desconsideram “o outro”, observei nas palavras da turma o
mesmo impacto. O africano, de modo geral, não é tomado como um indivíduo que traz
consigo suas particularidades, costumes, rituais, crenças, visões de mundo etc., sendo
reduzidos a sujeitos que simplesmente padecem com a miséria e a pobreza do continente.
Penso que esse “olhar colonizado”, evidenciado por esta atividade e que não se restringe
aos/às estudantes que participaram da pesquisa ou dos experimentos dos/as professores/as
citados/as, é um convite aos/às educadores/as pensarem como problematizar, em sala, as raízes
e os modos de superação deste mesmo olhar. É incontestável como a invisibilidade e
estigmatização da África acabam consolidando saberes fundados em estereótipos, os quais
podem ocupar parte significativa das representações partilhadas pelos/as estudantes.
Quando buscamos camuflar ou folclorizar os elementos africanos que carregamos, tão
presentes em nossa linguagem e comportamento nada europeus, estamos apenas reproduzindo
hierarquias aprendidas em nossa cultura brasileira colonizada e subjugada pelo branco
europeu. Por termos internalizado a falsa superioridade do colonizador, nossas matrizes
africanas que deveriam ser motivações de orgulho e pertencimento, acabam sendo negadas.
Segundo Gonzalez,
138
(...) o racismo estabelece uma hierarquia racial e cultural que opõe a ‘superioridade’
branca ocidental à ‘inferioridade’ negro-africana. A África é o continente ‘obscuro’
sem uma história própria (Hegel); por isso, a Razão é branca, enquanto a Emoção é
negra. Assim, dada sua ‘natureza sub-humana’, a exploração socioeconômica dos
amefricanos por todo o continente, é considerada ‘natural’ (GONZALEZ, 2018, p.
330).
No meu ponto de vista, quando falavam da África, sempre veio na minha cabeça
pobreza, fome, angústia, dificuldades e sofrimento. Pois foi exatamente o que eu
escrevi quando minha professora pediu que colocássemos palavras que viessem em
nossa cabeça. Falamos na África, e isso é totalmente errado acharmos uma coisa
sobre um país, cultura, pessoas sem termos conhecido ou ao menos pesquisado. No
vídeo que eu vi, no qual o título é O perigo de uma história única falaram exatamente
o que eu falei e frisei no começo do texto e isso de falarmos o que achamos ao menos
sem saber pode ser visto como um certo preconceito por diversas pessoas, e eles estão
totalmente certos. Já pensou você falar mal do lugar onde seu amigo ou colega mora,
falando coisas e palavras ofensivas, como ele se sentiria mal. (...) pois tudo na nossa
vida é assim, se soubermos sempre os dois lados de uma história, de uma opinião, de
um pensamento das outras pessoas, nós teremos sempre que saber, a sua, a minha e
do outro... (Texto produzido por Beatriz, agosto de 2018).
Beatriz indica, em seu texto, ter percebido como uma narrativa única produz um
sentido unilateral e preconceituoso da realidade de um povo ou cultura, além do que se
sensibilizou com a necessidade de formar uma nova ideia sobre a África e sobre quem vive lá.
Beatriz ensina, assim como Lélia Gonzalez, que a forma tradicional de pensar a cultura
africana nos leva a desumanizar sujeitos e estigmatizar seus lugares, cultura, valores, crenças.
Quando questiona se seus próprios saberes não seriam preconceituosos, Beatriz
percebe a importância de “saber os dois lados de uma história” e entende que o “perigo de
uma história única” está em ter seu conhecimento limitado e ainda em excluir ou ofender
aquele de quem se “fala mal”. Com suas palavras, ela transmite a mensagem de Chimamanda
na palestra.
Na percepção de Beatriz, o entendimento de que uma narrativa única produz um
sentido unilateral da realidade, estimula a formação de uma imagem mais plural sobre a
África. Se os estereótipos reduzem e podem até ofender o “outro” que tem sua história
desconhecida, como sugere Beatriz, seus efeitos nocivos precisam ser superados. Ou como
enfatizou Chimamanda Adichie, “a consequência de uma única história é essa: ela rouba das
pessoas sua dignidade”. No entendimento de ambas, o preconceito racial permeia todos os
52
Transcrição do vídeo feita pela pesquisadora. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v
=D9Ihs241zeg>.
140
saberes construídos sobre quem são e como vivem os grupos racializados, mesmo sem
“termos conhecido ou ao menos pesquisado” em profundidade sua história e valores culturais.
Chimamanda destaca ainda como as narrativas históricas são produzidas por uma
lógica de superioridade da história de uma pessoa sobre outra, de um povo sobre outro: “a
forma como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo
depende do poder. Poder é a habilidade não só de contar a história de outra pessoa, mas de
fazê-la a história definitiva daquela pessoa”.
Como entender melhor essa lógica de superioridade e a construção histórica desse poder de
contar a história do “outro” de forma “definitiva”? Nas oficinas seguintes, a ideia foi desenvolver
esse entendimento por meio da reflexão sobre os estereótipos em torno da mulher negra.
141
pobreza, ainda que imaginasse que essas representações são consequências tanto do passado
histórico quanto do que os/as estudantes observam no presente.
O arquétipo da mulher negra guerreira e trabalhadora será melhor detalhado, aqui, pois
mostrou-se recorrente entre os dados gerados no encontro seguinte. Muitas teóricas me
fizeram entender com mais profundidade como foi estabelecida a relação entre mulher negra e
trabalho árduo. Com algumas questões semelhantes ao cenário brasileiro retratado por Lélia
Gonzalez (2018) e Sueli Carneiro (2011; 2018), Angela Davis (2016) aborda a história norte-
americana com a preocupação de retomar o legado do passado escravista na tentativa de
melhor compreender e desnaturalizar as representações correntes sobre as mulheres negras.
Sempre pensadas como trabalhadoras em potencial. Davis (2016, p. 17) enfatiza que,
historicamente, “mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs
brancas”, suportando o fardo da exploração e precarização do seu trabalho.
De tal forma, fica perceptível que este trabalho “fora de casa”, tanto no contexto
brasileiro quanto norte-americano, foi resultado de um processo pós-abolição que impeliu a
mulher ao trabalho doméstico nas casas de famílias brancas. Logo, a associação de mulher
negra a trabalho intenso e cansativo, como nas falas das/os estudantes, refere-se a um trabalho
considerado pouco qualificado e valorizado socialmente: o trabalho doméstico. Obrigadas a
acumular o trabalho das suas próprias casas com o trabalho na casa dos patrões, também por
conta de exclusões e poucas oportunidades no campo educacional, as mulheres negras foram
historicamente obrigadas a trabalhar dentro e fora de suas próprias casas.
“De baixa renda”, “humilde”, “sofrida” e literalmente “pobre”, denotam a classe social
como o eixo que fundamenta a imagem da mulher negra como uma “guerreira”. Por enfrentar
tantas “guerras”, nesta condição heroica, o cansaço físico e mental, a fragilidade em qualquer
esfera não é admissível. As representações usualmente atribuídas ao feminino não estão presentes.
Ao enfatizar o modo como racismo e sexismo convergem inseridos no modo de
produção escravista, Angela Davis evidencia como a mulher escravizada foi dissociada das
representações do gênero feminino, corrente no período, “já que as mulheres eram vistas, não
menos do que os homens, como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de
escravos, elas poderiam ser desprovidas de gênero” (DAVIS, 2016, p. 17).
Ao ter sua imagem naturalizada na função de trabalhadora resistente, com as mesmas
funções e tarefas atribuídas aos homens negros, a mulher negra sempre esteve longe dos
ideais de feminilidade atribuídos à mulher branca. Aquela autora busca evidenciar, direta ou
indiretamente, que beleza, fragilidade, subserviência, docilidade, marcas de um ideal branco
de feminilidade, são antíteses das características atribuídas às mulheres escravizadas. Davis
142
exemplifica o modo como foram “desprovidas de gênero” na visão e nas ações do
colonizador:
Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido
consideradas “só corpo, sem mente”. A utilização de corpos femininos negros na
escravidão como incubadoras para a geração de outros escravos era a exemplificação
prática da ideia de que as “mulheres desregradas” deviam ser controladas. Para
justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão,
a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em
representá-las como altamente dotadas de sexo (...). A aceitação cultural dessas
representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos
como “símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em
termos culturais, tida como bastante distante da vida mental (HOOKS, 1995, p. 469).
Ao tratar de sua experiência pessoal, Hooks (1995, p. 466) conta como desenvolveu a
percepção de que o “trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação,
fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas, que passariam
de objeto a sujeito, que descolonizariam e libertariam suas mentes”. A invisibilidade da
mulher negra como intelectual, destacada por Hooks (1995, p. 467) explica-se “ao mesmo
tempo em função do racismo, do sexismo e da exploração de classe institucionalizados”.
Na oficina seguinte, de acordo com a proposta concebida pela metodologia da
pesquisa-ação, repensei o que havia planejado, ao ler e analisar o que foi dito nos
questionários da oficina anterior, alertando para o fato de que o que encontramos na
“sociedade” é o que nós reproduzimos. Decidi desenvolver uma atividade que abordasse
figuras específicas de mulheres negras, que permitisse uma maior variedade de concepções
entre os/as estudantes sobre como pode ser e o que pode fazer uma mulher negra, buscando
144
transpor classificações racistas e sexistas. A proposta era relembrar e trazer mais informações
sobre Dandara e Chimamanda Adichie, mencionadas em oficinas anteriores, e apresentar
outra mulher negra inspiradora.
Optei por escolher outra mulher contemporânea que de alguma forma estivesse
atrelada a um trabalho intelectual: Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Ex-moradora de uma
favela paulistana, Carolina tornou-se uma escritora de destaque internacional através de seu
livro Quarto de Despejo (1960), traduzido para 29 idiomas53. Nesta obra, que reuniram textos
escritos em forma de um diário pessoal, a escritora narra sua vida como uma mulher negra
pobre, que sustentava três filhos trabalhando como catadora de papel.
Fiz a projeção de algumas imagens de Carolina de Jesus encontradas na internet,
enquanto falava sobre sua trajetória. Nesta oficina, especialmente, procurei falar das mulheres
negras sem caracterizá-las com qualidades, buscando apresentar apenas o que elas realizaram.
A ideia era tentar não influenciar a atividade seguinte que seria proposta: escrever três
características sobre as três mulheres negras que conheceram na pesquisa.
Assim os/as orientei, “pensando em todas as mulheres negras que conhecemos
através da pesquisa, cite três qualidades ou características destas mulheres”. As mais citadas
foram: “Guerreira/s”; “Fortes/força”; “Batalhadora”; “Trabalhadoras”; “Perseverantes”;
“Coragem/corajosa”; “Lutadora”; “Escritora”; “Sonhadora”; “Inteligentes”; “Independente”.
Diante do panorama geral das respostas, me chamaram a atenção alguns adjetivos.
Fiquei bastante entusiasmada, pois muitas representações positivas que, na oficina anterior,
não surgiram, agora foram trazidas pela história de Carolina de Jesus. Mas não poderia deixar
de criticar e investigar o que não mudou no panorama: a “guerreira”, adjetivo citado 14 vezes.
A “trabalhadora” e “batalhadora” também estavam lá para me lembrar de que os/as estudantes
permaneciam reproduzindo a ideia da mulher negra com uma predisposição natural para
ultrapassar sofrimento e dificuldade.
Se, estar sempre atrelada a uma vida que lhe exige guerrear, lutar, sobreviver, trabalhar
incansavelmente, é um fardo, atender à expectativa de ser a mulher negra “guerreira” é
também desumano. A despeito de surgir de modo romantizado, ela está claramente vitimizada
e sujeitada, por mais que seus esforços façam dela uma “heroína”, a mulher negra está refém
de um lugar que parece ser intransponível.
53
As informações que usei sobre a vida de Carolina de Jesus, para elaborar a oficina, foram extraídas
principalmente do site “A cor da cultura”. Disponível em:
<http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/carolinamariadejesus>. Acesso em: 02 set. 2018.
145
A crítica do feminismo negro a esta romantização das dificuldades enfrentadas pela
mulher negra, por conta do conjunto das discriminações múltiplas que enfrenta, denuncia a
naturalização de um imaginário da mulher negra que a destitui de humanidade. Uma mulher
que suporta mais dor, mais adversidades, sem, contudo, se revoltar ou fraquejar. Em seu
relato pessoal, no livro Quem tem medo do feminismo negro?, Djamila Ribeiro trata da
imagem da mulher guerreira como uma construção nociva, muitas vezes internalizada pelas
mulheres negras e que precisa ser rompida, pois:
Somos fortes porque o Estado é omisso, porque precisamos enfrentar uma realidade
violenta. Internalizar a guerreira, na verdade, pode ser mais uma forma de morrer.
Reconhecer fragilidades, dores e saber pedir ajuda são formas de restituir as
humanidades negadas. Nem subalternizada nem guerreira natural: humana
(RIBEIRO, 2018, p. 20-21).
A mulher negra guerreira, a exemplo da figura da mãe preta pensada por Lélia
Gonzalez, sugere um ideal de mulher negra com personalidade pacífica, compreensiva e
subserviente. Nos termos do ideal colonizador, aquela que se adaptou de modo exemplar às
violências e silêncios impostos a ela e a seu povo. Essa personagem não cabe, contudo, em
um ideal de feminilidade atribuído à mulher branca, inserido em uma exaltação ideológica da
maternidade. Mas aproxima-se muito mais de um animal doméstico utilitário e dócil. Está, de
muitas formas, ainda desumanizada.
Assim como no Brasil, a imagem da “mãe preta” também foi construída na cultura
estadunidense, de acordo com Hooks (1995). Essa autora destaca como, independentemente da
posição que ocupem, as mulheres negras são tratadas, nesta cultura, com a expectativa de servilismo
e zelo abnegado por todos, reduzidas ao trabalho doméstico. Nesse sentido, Hooks destaca:
Considero que o fato de ter apresentado Carolina de Jesus e Dandara, esta última o
exemplo de uma mulher que de modo literal ia à guerra, contribuiu para acionar esse padrão
presente nos saberes dos/as estudantes que, por sua vez, estão indiscutivelmente marcados por
narrativas pedagógicas eurocêntricas, a despeito dos avanços recentes que difundem uma
perspectiva decolonial para o Ensino de História.
146
As características menos citadas – duas ou uma vez cada uma –, foram: “Famosa”;
“Destemida”; “Vencedoras”; “Dedicada”; “Gentis”; “Belas”; “Determinadas”; “Inspiradoras”;
“Respeitadas”; “Reconhecidas”. Essas características, as quais gostaria que fosse padrão
sempre que uma mulher negra fosse mencionada, são alguns dos muitos incentivos e das
imensas recompensas que levarei deste trabalho.
Considerações Finais
Senti-me bastante desafiada, a partir da análise dos resultados da formação com os/as
estudantes, a elaborar estratégias que efetivem mudanças significativas quanto ao racismo que
identifiquei como uma “regra oculta” no interior da escola, o modo “normal” do meu
ambiente de trabalho. Para transpor essa normalidade instituída, compreendi que as minhas
próprias percepções deveriam ser ampliadas para a concretização de uma nova prática
pedagógica no Ensino de História.
As experiências anteriores de trabalho com a temática racial não haviam produzido
uma imersão tão profunda que me fizessem compreender o quão arraigado estava o racismo
na minha realidade de professora negra de uma escola pública, nas condições de trabalho
oferecidas, nas minhas práticas pedagógicas, ações, omissões. Como mostrar aos estudantes
que a “normalidade” do racismo não é nada normal e que não estamos predestinados a ela?
Que a mulher negra pode estar muito além do estereótipo de guerreira-sofrida? Entendi que
deveria perseguir o caminho de desvendar a normalidade na minha prática pedagógica na
tentativa de alcançar mudanças significativas.
É preciso lembrar que a mesma regra oculta que institui a normalidade racista “não
exclui os sujeitos racializados, mas os concebe como parte integrante e ativa de um sistema
que, ao mesmo tempo que torna possíveis suas ações, é por eles criado e recriado a todo
momento” (ALMEIDA, 2018, p. 39). Com o desejo de não ser apenas integrante dessa teia,
mas também ativa na criação de alternativas, o decorrer da formação também me ofereceu
esperanças e motivações.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo:
Boitempo, 2016.
GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. 1ª
ed. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? 1ª ed. — São Paulo: Companhia
das Letras, 2018.
148
09. MEMES E NARRATIVAS DA ESCRAVIDÃO:
APRENDIZAGEM HISTÓRICA NO CENTRO DE ENSINO
FORTUNATO MOREIRA NETO, PORTO FRANCO -MA
Introdução
54
Aluna da 3º Turma do Mestrado Profissional em História- Profhistória. Núcleo – UFT; Araguaína-TO; E-mail:
elietejatoba@hotmail.com.
55
A pesquisa teve como procedimentos metodológicos 04 exercícios. Apenas o primeiro deles é apresentado
nesse texto.
56
Porto Franco está localizada no Sul do Maranhão, a 700 km da capital, São Luís; possui população estimada de
23.885 mil habitantes, conforme dados do IBGE de 2019 e é banhada pelo Rio Tocantins e cortado pelas
rodovias federais BR-010 (Belém-Brasília) e BR-226, pela rodovia estadual MA-336 e pela Ferrovia Norte-Sul.
149
conhecimentos históricos, os estudantes se posicionaram em relação à questão étnico-racial
elaborando interpretações e sentidos por meio da competência narrativa, “fazendo efetiva
uma orientação temporal na vida prática presente por meio da recordação da realidade
passada” (SCHMIDT; BARCA; REZENDE, 2010 p. 59).
Nos memes apresentados em sala de aula, piadas comumente proferidas para se referir
à negritude desqualificando e subalternizando esta identidade são sobrepostas às imagens que
as representam visualmente, dando ao meme uma expressão de escárnio e ridicularidade. Na
atividade, o meme nego57 foi aplicado como mediação dessas ideias históricas. O objetivo era
observar se os estudantes percebiam que as mensagens do meme revelavam manifestações de
racismos e mobilizariam conhecimentos históricos para interpretar os preconceitos raciais
contra afrodescendentes nos dias de hoje.
Aprendizagem Histórica
Esse meme foi o nome dado a um “evento digital” propagado pela internet entre 2015 e 2016, no qual
57
[...] a consciência histórica pode ser descrita como a atividade mental da memória
histórica, que tem sua representação em uma interpretação da experiência do
151
passado encaminhada de maneira a compreender as atuais condições de vida e a
desenvolver perspectivas de futuro na vida prática conforme a experiência. O modo
mental deste potencial de recordação é o relato da história (relatar não no sentido de
entender uma mera descrição, mas no sentido de uma forma de saber e de
entendimento antropologicamente universais e fundamentais). Esta forma narrativa
que oferece uma interpretação da história do passado representado cumpre uma
função de orientação para a vida atual. Esta função se realiza como um ato de
comunicação entre produtores e receptores de histórias. Por isto, o aspecto
comunicativo da memória histórica é tão importante, porque é através da narrativa (e
da percepção) das histórias que os sujeitos articulam sua própria identidade em uma
dimensão temporal em relação com outras (e ao articulá-las se formam) e ao mesmo
tempo adquirem identificadores de direção (por exemplo, perspectivas de futuro)
sobre critérios de fixação de opinião para seu próprio uso. (RÜSEN, 2012, p. 112).
É assim que o aprendizado histórico permite ao sujeito lidar com o saber histórico de
forma consciente, interpretar e problematizar a partir deste saber e, finalmente, utilizá-lo
(FREITAS, 2016). A vivência em sociedade expõe a consciência histórica a diversas
intervenções, sejam elas intencionais ou involuntárias. Isso porque o discurso histórico
aparece em diferentes linguagens e constitui orientação temporal futura. Para Rüsen a cultura
152
histórica é:
O exercício com os memes selecionados foi realizado durante as duas aulas semanais
de História. Na primeira aula, a professora fez uma prévia com algumas orientações acerca da
atividade e buscou saber como os estudantes se autodeclaravam quanto à cor da pele. Na aula
153
seguinte, os memes foram exibidos com utilização de recurso data show. Em seguida, os
estudantes receberam um exercício escrito em que deveriam, individualmente, responder a
seguinte questão: “Você relaciona o meme nego com os seus conhecimentos históricos sobre a
escravidão africana no Brasil?” Após concluírem o exercício, os estudantes o entregaram a
professora.
A questão proposta pretendia observar se os estudantes podiam perceber alguma
conexão entre a escravidão (passado) e o racismo representado nos memes (presente). Desse
modo, os estudantes apresentaram ideias sobre a relação deles com a escravidão africana no
Brasil, elaborando argumentos históricos. Com isso, objetivava-se verificar se era possível
que conteúdos históricos fossem acionados pelos estudantes e os levassem a perceber as
mensagens dos memes como manifestações do racismo vivo em nossos dias contra pessoas
negras. Através de interpretação das narrativas dos alunos seria possível perceber como
mobilizariam ideias sobre relações raciais históricas.
Para análise dessas narrativas, categorizou-se as mesmas em grupos identificados a
partir da semelhança entre as ideias apontadas por cada estudante em suas atividades
individuais. Essas narrativas expressaram certas regularidades nas formas interpretativas dos
estudantes. Foram utilizados dois esquemas interpretativos. No primeiro deles, observou-se
em que medida as ideias históricas dos estudantes se aproximavam mais da narrativa histórica
escolarizada ou de discursos históricos extraescolares. Em contato com as narrativas dos
estudantes, percebeu-se que o acesso aos saberes históricos era um elemento importante de ser
considerado. Considerou-se a necessidade de destacar o peso dos discursos históricos
extraescolares no pensar histórico dos estudantes. Já no segundo esquema interpretativo,
verificou-se o modo como os discentes mobilizaram conhecimento histórico estabelecendo a
relação entre passado e presente.
No primeiro modo de interpretação, percebeu-se que, a maioria das narrativas
apresentou ideias históricas formadas a partir de novelas, filmes e outros discursos históricos
que circulam na internet. Na menor parte das narrativas, percebeu-se a manifestação de ideias
históricas com maior complexidade cognitiva, mais embasada no discurso histórico escolar
mediado pelo livro didático e, possivelmente, pela narrativa do professor de História. Com
isso, foi possível perceber o peso dado por eles à narrativa histórica escolarizada e como se
apropriaram dela em suas interpretações.
No primeiro caso, nomeado grupo A, identificou-se 25 narrativas que podem ser
demonstradas pelo relato abaixo:
154
Eu acho que é porque naquele tempo, os negros apanhavam muito nos troncos e
tinha muita violência e maldade do rei. Eles vinham da África porque nas guerras
eles sempre perdiam. Eu acho assim era falta de humanidade dos reis. Eles vinham
amarrados embaixo nos navios. Eu assisti um filme que mostrava eles sendo jogados
no mar, até as mulheres. (ALUNO A, 2019)58.
Os memes fazem humor com os negros que já foram escravos. Eu sei que a princesa
Izabel assinou as cartas de alforria, aí os escravos ficaram livres. Disseram que a
Izabel não era boa, não me lembro onde vi isso, mas eu acho que ela era sim porque
se não fosse ela assinar, os negros ainda não iam ser como nós hoje que não tem
mais escravidão. Mas nem Jesus agradou a todos, não é a princesa que vai, né?
(ALUNO B, 2019)59.
A narrativa indica que o estudante teve algum contato com discursos antagônicos
sobre a memória da princesa Izabel. A ideia histórica desse estudante revela as batalhas de
narrativas em nome de sustentações de posicionamentos políticos, em debates que circulam na
internet. O estudante se posiciona em favor do discurso de que a princesa demostrou bondade
ao assinar a Lei Áurea e, atribui a ela a razão da abolição ter sido levada a cabo, fato que teria
feito os negros se tornarem “como nós hoje”. A fala do estudante se encerra com uma
expressão muito comum utilizada em contextos nos quais pessoas não são reconhecidas pelo
bem que fazem: “nem Jesus agradou a todos”.
O quadro abaixo demostra os principais pontos sobre a escravidão africana no Brasil
citados pelos estudantes incluídos nessa categoria de narrativas:
58
ALUNO A, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
59
ALUNO B, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
155
Quadro 01 – Escravidão africana no Brasil de acordo com os estudantes
Grupo A
156
cronológica precisa da escravidão africana no Brasil, as atividades realizadas pelos escravos
na América portuguesa e aspectos das leis abolicionistas. A narrativa abaixo expressa a
interpretação histórica do estudante C, como ilustração dessa categoria:
Podemos pensar no que já ocorreu com os negros. No passado esse povo já sofreu
bastante. No século XVI, os portugueses estavam interessados nas riquezas do
Brasil, mas precisavam de mão de obra, foi aí que tiveram a péssima ideia de trazer
pessoas da África para trabalharem aqui. Essas pessoas não recebiam um salário,
elas eram escravas e trabalharam muito nos engenhos, no café e em muitos outros
serviços. Essa escravidão durou até o final do século XIX, quando finalmente os
escravos conseguiram a sua liberdade através de uma lei chamada de Lei Áurea.
(ALUNO C, 2019)60.
A lei simplesmente abolia. Dizia que a partir desta data não há mais escravos no
Brasil. Ponto final.A República, que viria um ano e meio depois, tentaria colocar
uma pedra no tema da escravidão. Como se tivesse ficado morto no passado junto
com o Império. Temos um hino da República, aquele que canta "liberdade,
liberdade, abre as asas sobre nós". E há uma estrofe que diz: "Nós nem cremos que
escravos outrora tenha havido em tão nobre país". Ou seja, um ano e meio depois,
(os republicanos) afirmavam não acreditar mais (que tivesse havido escravidão). Era
um processo de amnésia nacional (...). O (momento) pós-emancipação não teve
60
ALUNO C, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
157
nenhuma preocupação com inclusão dessas populações (de ex-escravos). Eu me
refiro a educação, saúde, habitação, todos os problemas estruturais. Mas isso não
quer dizer que a gente só deva culpar o passado. O que vemos hoje no país é uma
recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do
passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas
radicalizar o racismo estrutural. (SHWARCKZ, 2018, [online].)
Alguns pontos foram destacados com maior ênfase pelos discentes nas narrativas
incluídas nesse grupo:
TOTAL DE ALUNOS: 06
TOTAL 31 estudantes
Narrativa A
Não relaciono porque os memes são engraçados com os negros e não falam nada
sobre a escravidão que foi triste e cruel com eles. Eu gosto muito dos memes por
isso, fazem a gente sorrir e esquecer dos problemas que existem. No Brasil são
tantas tragédias, que só mesmo com muito bom humor para a gente vencer.
(ALUNO D, 2019)61.
O estudante afirma que, por ter sido muito ruim, a escravidão não pode ter nenhuma
relação com os memes que são engraçados e fazem sorrir. O estudante diz que gosta de
memes porque fazem esquecer os problemas. A presença do racismo recreativo, em suas
61
ALUNO D, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
159
sutilezas, como construção de poder simbólico de afirmação da superioridade branca é
marcante no relato desse estudante. Adilson Moreira assegura que “a afirmação da
superioridade da branquitude é um elemento central do racismo recreativo porque ela está por
trás da satisfação psicológica que elas obtêm ao reproduzir piadas racistas.” (MOREIRA,
2019, p. 153).
Em todas as narrativas incluídas nessa categoria, é possível perceber que os
estudantes se expressaram com base no senso comum e não elaboram pensamento histórico
mais sofisticado. Embora citem a escravidão, não veem relação dela com os memes, fora o
fato de que ambos possuem um assunto em comum que é a questão da negritude.
Narrativa B
Os escravos que eram os negros apanhavam até sangrar, viviam nas senzalas e não
podiam ser felizes e ter sua religião. As esposas dos donos dos escravos tinham
muito ciúmes das mulheres escravas e mandavam açoitá-las. A escravidão foi muito
ruim, mas devemos agradecer, pois hoje em dia os negros são iguais aos brancos e
não existe mais nada que impeça os negros de vencerem na vida, basta trabalhar e
ter fé em Deus. (ALUNO E, 2019)62.
A narrativa faz alusão aos horrores da escravidão, mas afirma que, felizmente eles já
foram superados e não há mais impedimentos para que negros vençam na vida nos dias de
hoje, bastando a eles que apenas trabalhem e tenham fé em Deus. O estudante expressa uma
visão idealizada, sinalizando que pode ter sido influenciado por discursos que afirmam a
meritocracia como preponderante para que negros superem as mazelas sociais e adquiram
prestígio social. Sílvio Almeida assim nos diz sobre a meritocracia e sua relação com o
racismo no Brasil:
62
ALUNO E, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
160
No Brasil, a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se
pelo discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela própria condição é
das próprias pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu
alcance. Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade,
a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a
discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal. No contexto,
brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente racista, vez que promove a
conformação ideológica dos indivíduos com a desigualdade racial. (ALMEIDA,
2018, p. 63).
Os negros eram escravizados pelos brancos antigamente, pois eles não sabiam de
seus direitos eram induzidos a trabalhar sem receber um dinheiro digno do trabalho.
Trabalhavam dia e noite, sem descanso e não tinham uma alimentação como a dos
brancos. Na verdade, os escravos eram desrespeitados e sofreram bastante, hoje em
dia não existe mais nada disso, pois todo mundo tem os mesmos direitos. (ALUNO
F, 2019)63.
Na narrativa, o estudante afirma que a escravidão ocorria porque os negros não sabiam
dos seus direitos, sugerindo que o seu fim foi possível porque negros passaram a ter
consciência dos seus direitos e como consequência, hoje existe igualdade entre brancos e
negros, na sociedade brasileira.
Narrativa C
A escravidão foi um fato muito marcante para a História do Brasil. No período pós-
abolição, podemos dizer que muitas conquistas aconteceram até hoje, mas sei que
ainda existem muitas atividades que reforçam as formas de racismo na sociedade de
hoje. (ALUNO G, 2019)64.
63
ALUNO F, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
64
ALUNO G, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
161
como comportamento individual e resumem o mesmo às dimensões de meras ofensas e
injúrias. Esse aluno, no entanto, demostra que teve algum acesso ao pensamento mais
sofisticado sobre o racismo, seu caráter institucional e estrutural (ALMEIDA, 2018).
Outro exemplo das narrativas incluídas nessa categoria também aponta para um
entendimento sobre a presença do racismo estrutural nas relações de trabalho do tempo
presente:
A escravidão africana já acabou há muito tempo, mas ainda existem pessoas negras
trabalhando como escravas em várias fazendas do Brasil, principalmente fazendas
grandes. Um tio meu foi trabalhar em São Paulo e lá o Ministério Público disse pra
ele que aquele trabalho era escravo. Pra quem pensava que não tinha mais
escravidão, infelizmente ainda existem pessoas que exploram as outras. (ALUNO H,
2019)65.
Considerações Finais
65
ALUNO H, Relato concedido à pesquisadora, 2019.
162
passei a ver as produções dos alunos com outros olhos e, em 11 turmas em que atuo entre 1º,
2º e 3º anos, depois da experiência com as narrativas do 2º ano F, dediquei-me a provocar os
meus alunos a produzirem narrativas. Difícil é avaliar todas elas! Expressar oralmente pode
ser uma alternativa, mas muitos se recolhem à timidez. Ler as narrativas dos meus alunos
passou a ser um ato de generosidade e extrema doação para mim. Nem sempre posso fazê-lo.
Ressalto esse ponto porque considero que isto seja inalcançável para professores de História
de escolas públicas, com cargas horárias extensas e turmas superlotadas.
Ao final dos bimestres, as provas que antes fazia com todos os exercícios de múltipla
escolha, devido à menor dificuldade para corrigi-las no curto prazo de entrega de notas,
comecei a inserir pelo menos um ou dois exercícios subjetivos, oportunizando o exercício da
narrativa. Dei-me conta da perversidade que há em nossas práticas avaliativas, especialmente
no Ensino médio, em que se adota um modelo baseado no Exame Nacional do Ensino Médio
- ENEM. Nas narrativas, os estudantes deixam as suas ideias históricas, posicionam-se,
exemplificam, expressam um modo de apropriação dos conteúdos quase sempre inesperado,
porque o que esperamos é que os reproduzam.
Por fim, pude constatar que, a experiência em utilizar memes de internet com
mensagens de subalternização da identidade negra nas mediações da aprendizagem histórica
acenaram para os estudantes a evidência dos mecanismos simbólicas do racismo em
representações difundidas nas mídias digitais e, perceber isso, os deixou surpresos. Para além
de brincadeiras e humor, os memes ganharam um novo sentido, um lugar de representação das
práticas culturais.
163
Referências
ALMEIDA, Sílvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
RÜSEN, Jörn. Cultura Faz Sentido. Orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis:
Vozes, 2014.
_____________. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Trad. Estevão C.
de R. Martins. Curitiba: Ed. UFPR, 2015.
_____________¿ Qué es la cultura histórica? Reflexiones sobre una nueva manera de abordar
la historia. Versão inédita em espanhol traduzida da versão original em alemão disponível em:
164
FÜSSMANN, Klaus; GRÜTTER, Heinrich Theo; RÜSEN, Jörn (Eds.). Historische
Faszination; Geschichtskultur heute; Keulen, Weimar and Wenen: Böhlau, 1994, p. 3-26.
SOUSA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
SOUSA JÚNIOR, Jaime de. O lado ‘nego’ dos memes da internet: Relações entre letramento
visual e a construção do negro no discurso online. Cadernos de Linguagem e Sociedade,
Rio de Janeiro num. 17, vol. 2. 2016.
165
10. APRENDIZAGEM HISTÓRICA E APRENDIZAGEM
SIGNIFICATIVA - CAMINHOS POSSÍVEIS PARA UM ENSINO
DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA
66
Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Maranhão – IFMA e Mestra em Ensino de História pelo Mestrado Profissional em Ensino de História,
ProfHistória pela Universidade Federal do Tocantins – UFT.
67
A pesquisa ora apresentada foi feita no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão –
IFMA Campus Avançado Porto Franco. Porém, desde julho de 2019 exerço o magistério no IFMA Campus São
João dos Patos.
166
processos educativos se explicam como elementos estreitamente ligados” (ZABALA, 1988, p.
17).
Diante do objetivo proposto, foi estabelecido como pressuposto o aperfeiçoamento da
prática pedagógica que une conhecimento e experiência. Nesse sentido, os conhecimentos
adquiridos por meio da pesquisa realizada foram sendo somados às práticas já efetivadas
enquanto professora de História.
Ao longo da minha ainda breve trajetória docente, tenho sido atraída de forma
crescente pelas discussões que envolvem o Ensino de História da África e da Cultura Afro-
Brasileira. Nesse percurso, não têm sido raros os contatos com relatos sobre as dificuldades na
implementação da Lei 10.639/2003, que incluiu o estudo da História da África e dos
africanos; a luta dos negros no Brasil; a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, buscando resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil. Em alguns casos, as falas apontam para
as escolhas docentes como um obstáculo para que as exigências do texto legal fossem
cumpridas na sua totalidade (SOUZA, 2012).
Se por um lado, o meu interesse pela temática crescia paralelamente ao exercício
docente, por outro, a experiência profissional acumulada de quem ministra aulas da disciplina
História, pelo menos desde o ano de 2012, amplia suficientemente as condições para a
identificação de defasagem de conhecimento discente sistematizado sobre a África e a Cultura
Afro-Brasileira. Em outros momentos dessa breve trajetória profissional, integrei projetos de
intervenções que visavam à (re)construção dos saberes sobre o tema em discussão.
No que diz respeito à construção preliminar da pesquisa, eis o primeiro desafio:
articular a experiência docente com uma investigação acadêmica, tornando possível a reflexão
sobre um caso particular (IFMA Campus Porto Franco) e que pudesse servir de instrumento
de análise para outros docentes. Nesse sentido, apresentar igualmente as dificuldades
encontradas naquela situação e possíveis formas de superá-las.
Assim sendo, muitos questionamentos surgiam vinculados às escolhas teórico-
metodológicas que podiam ser inicialmente vislumbradas. Prioritariamente, julguei ser
plausível realizar séries de entrevistas com alguns dos alunos ingressantes em 2018 no IFMA
Porto Franco. Interessava saber o que traziam consigo de imagens acerca da África e da
Cultura Afro-Brasileira; como eu poderia, na qualidade de professora, contribuir para tornar
significativa a aprendizagem dos temas incluídos no recorte estabelecido pela Lei
10.639/2003, e quais estratégias poderiam ser utilizadas para atingir esses propósitos.
167
Ao ser confrontada com uma quantidade significativa de discentes ingressantes em
2018 (120 divididos de forma igual para as três turmas de Ensino Médio Integrado ao
Técnico), percebi que seria inviável desenvolver uma pesquisa com a totalidade dos recém-
matriculados. Pensei em formas de selecionar alguns interessados em exercer o papel de
interlocutores do projeto. Assim, diante da necessidade de um diagnóstico com
fundamentação satisfatória, interroguei nas três turmas ingressantes naquele ano sobre quem
aceitaria, na condição de voluntário(a), contribuir com a pesquisa, ali breve e inicialmente
apresentada aos discentes. Na ocasião, em torno de vinte estudantes por turma indicaram
interesse em participar. No entanto, foi-se avisado que seriam selecionados apenas dez
voluntários (as) por sala, dadas as condições estruturais da escola.
Partindo desse momento preliminar de espera pela decisão de alguns discentes quanto
à disponibilidade de cada um, de acordo com as exigências da pesquisa, foi solicitado que
respondessem a um questionário inicial. Seu conteúdo ansiava por identificar noções prévias
dos discentes acerca do continente africano e da Cultura Afro-Brasileira e registrar os dados
pessoais dos potenciais colaboradores. Também lhes foi apresentada de forma mais
consistente a proposta da pesquisa que seria realizada a partir de algumas oficinas por meio
das quais discutiríamos os diversos saberes conservados e divulgados pelos discentes acerca
do tema apresentado.
68
Disponível na internet em: <https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg> Acesso em 25 Ago. 2018.
169
No segundo encontro, ocorrido em setembro de 2018, a partir de algumas observações
feitas durante o primeiro, solicitei aos participantes que desenhassem o que consideravam ser
o mapa da África, bem como que escrevessem palavras que eles acreditavam fazer parte
daquele território. Busquei encontrar nos saberes discentes elementos capazes de fortalecer a
prática pedagógica, uma vez que suas contribuições sugerem reflexões sobre o papel docente
e os meios utilizados para promover a aprendizagem no ambiente escolar.
No terceiro encontro, acontecido em outubro de 2018, o diálogo foi embasado pelo
texto “Diáspora africana”, de Ana Luíza Mello Santiago de Andrade (2017), disponível na
página do Geledés – Instituto da Mulher Negra 69 na rede mundial de computadores. Naquele
momento, a intenção era observar como os interlocutores viam a presença negra no Brasil,
sobretudo no que diz respeito à Cultura Afro-Brasileira. Para tanto, solicitei que eles
respondessem às seguintes questões: a) Como você reconhece a presença da cultura negra no
seu dia a dia? b) É possível perceber intolerância contra a pessoa negra no espaço escolar? Em
caso afirmativo, de que forma?
A previsão inicial era de que, paralelamente, a realização dos três encontros, fosse
analisados os produtos elaborados pelos interlocutores como respostas às questões propostas.
No entanto, durante o mês de novembro de 2018, foi realizada a II Semana da Consciência
Negra do IFMA Porto Franco. Na ocasião, alguns diálogos promovidos nas oficinas
integrantes da pesquisa puderam ser retomados e aprofundados ao longo do evento. Diante
disso, considerei por bem realizar um quarto, e último, encontro a fim de discutirmos as
percepções dos estudantes sobre a importância do Ensino de História da África como forma
de combater o racismo dentro do ambiente escolar. Devo afirmar, contudo, que essa demanda
surgiu como forma de dar resposta aos interesses dos interlocutores, demonstrado, sobretudo,
no evento de novembro de 2018.
Especialmente nesse último encontro, realizado em novembro de 2018, contei com a
participação do professor João Fernando Pereira (Sociologia). Na ocasião foi utilizada a
técnica do grupo focal, em cujo processo uma pessoa fica responsável por conduzir perguntas
e/ou proposições aos presentes em um grupo de reflexão. Todos os espectadores devem
participar. Contudo, o tempo de fala de cada um é controlado por um responsável na condução
69
Geledés é originalmente uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades
tradicionais yorubás. Expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem estar (sic) da
comunidade. No Brasil, o “Geledés” Instituto da Mulher Negra foi criado em 30 de abril de 1988. É uma organização
política de mulheres negras que tem por missão institucional a luta contra o racismo e o sexismo, a valorização e
promoção das mulheres negras, em particular, e da comunidade negra em geral. Disponível na internet em:
<https://www.geledes.org.br/o-que-e-o-geledes-instituto-da-mulher-
negra/?gclid=EAIaIQobChMIsdTsts2P5wIVi4SRCh2H4gIiEAAYASAAEgIQHfD_BwE> Acesso em 10 Dez. 2019 .
170
das atividades70. Para tanto, faz-se uso de uma rede de diálogos que busca promover
interações entre os membros do grupo escolhido. Sua intenção é estabelecer uma
oportunidade de trocas de ideias a partir de um processo dialógico flexível entre os
participantes. A partir daí o registro das interações produzidas durante o encontro torna-se
objeto de reflexão e análise por parte do pesquisador (GATTI, 2005).
Diante disso, pude perceber, por meio dos relatos daquele encontro, o quão impactante
foi para alguns dos discentes o contato com falas sobre relações étnico-raciais no ambiente
escolar, tornando possível o que acredito ser o foco do presente trabalho – a promoção de uma
aprendizagem significativa71, como resultado de um processo de interação entre
conhecimentos prévios e os saberes apreendidos.
A partir da realização dos encontros e do avanço das discussões, a intenção derradeira
era possibilitar aos discentes uma maior capacidade de intervenção promovida por eles no
espaço escolar e no seu entorno social imediato. Nesse sentido, cada um é um potencial
propositor do debate, apresentando questões ligadas à História da África e à Cultura Afro-
Brasileira presentes no cotidiano da comunidade. Igualmente, cada um assumiria o papel de
protagonista nas decisões que envolvem os eventos escolares vinculados ao tema, dentre eles,
a Semana da Consciência Negra. Tudo de acordo com o normatizado pela Lei 10.639/2003.
Diante do exposto, levando em consideração que para David Ausubel as experiências
prévias trazidas pelos estudantes produzem diversos conhecimentos ou estruturas cognitivas
(RONCA, 1994), fez-se necessário interrogar sobre o estado contemporâneo do aprendizado
histórico dos discentes em questão sobre o tema ora apresentado, surgindo questões como:
a) Quais os saberes conservados pelos discentes acerca da África e a Cultura Afro-Brasileira?
b) De que forma e em qual nível o presente estado da aprendizagem histórica discente é
carente de problematizações? c) Quais ações docentes poderiam contribuir para identificação
dos conceitos prévios mantidos pelos estudantes?
Estas questões nortearam a condução da pesquisa aqui apresentada. A análise do
material produzido pelos discentes resultou na construção da dissertação de mestrado e como
70
Neste encontro em especial o professor João Fernando atuou como mediador para que eu pudesse observar
melhor as reações e respostas dos discentes.
71
David Paul Ausubel (1918-2018) foi um pesquisador norte-americano que propôs o conceito de aprendizagem
significativa. Pensada para o contexto escolar, a teoria de Ausubel leva em conta a história do sujeito e ressalta o
papel dos docentes na proposição de situações que favoreçam a aprendizagem. De acordo com ele, há duas
condições para que a aprendizagem significativa ocorra: o conteúdo a ser ensinado deve ser potencialmente
revelador e o estudante precisa estar disposto a relacionar o material de maneira consistente e não arbitrária.
Disponível na internet em: <https://novaescola.org.br/conteudo/262/david-ausubel-e-a-aprendizagem-
significativa>. Acesso em 15 Jan. 2019.
171
produto final, uma proposta de sequência didática que pode servir de suporte para condução
de algumas ações por parte de professores de História dentro de suas realidades específicas.
72
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004).
172
A premissa adotada indica que mesmo com as inúmeras possibilidades oferecidas pelo
ensino escolar, este só se torna potencializado quando se leva em conta os saberes
compartilhados pelos diversos indivíduos dos seus mais variados contextos, sejam eles
familiares ou sociais. Dessa forma, a possibilidade de exercer um pensamento crítico não se
dá pela mera transmissão de conhecimentos por parte dos professores. Daí decorre que é
possível estimular uma aprendizagem significativa, ou seja, aquela que se dá por meio da
interação entre conhecimentos prévios e aqueles que são adquiridos, em uma aula de História,
por exemplo, por meio da qual o indivíduo torna-se capaz de assimilar novas informações às
estruturas mentais já existentes.
Portanto, a noção de aprendizagem significativa aponta para o fortalecimento das
relações entre as gerações que sucedem e convivem umas com as outras, por intermédio das
suas mesmas “raízes culturais e históricas”, em contraposição à “(…) perversa ênfase no
conteúdo” que leva as inúmeras disciplinas escolares a permanecerem estanques em “seus
territórios” promovendo uma “aprendizagem fragmentada da realidade” (BRASIL, 2002, p.
84; 49). Sendo assim, “como o processo é interativo, quando serve de ideia-âncora para um
novo conhecimento, ele próprio se modifica adquirindo novos significados, corroborando
significados já existentes” (MOREIRA, 2011, p. 14).
Nesse processo de interação
173
Ao longo dessa trajetória, fui percebendo que minha atuação de professora precisava
ultrapassar normas e currículos oficiais, no sentido de abrir espaço para discussões que não se
encerram nos conteúdos propriamente ditos (BRASIL, 2002). Deveria aprender a extrapolar
fronteiras delimitadas pelas dificuldades físicas das escolas, da falta de entusiasmo por parte
de muitos dos colegas ou mesmo do cansaço que tanto se faz presente em muitos momentos
da profissão docente. Vi ainda maior grandeza quando fui percebendo o quanto o Ensino de
História pode ser libertador, que por meio da consciência histórica73 é possível alcançar a vida
dos sujeitos, estimulando-lhes expandir seus aprendizados para além das salas de aula,
estabelecendo diálogos.
Partindo dessa concepção, entendo que a promoção desta dialogia que privilegie
saberes outros, não parte apenas da obediência, por assim dizer, à legislação em vigor. Não se
limita ainda à incorporação de novos conteúdos, mas faz parte de um conjunto de formas de
pensar que questionam a prioridade de saberes produzidos em espaços acadêmicos,
desconsiderando, portanto, as diversas formas de conhecimento compreendidos e vivenciados
por pessoas que nem sempre tiveram a oportunidade de acesso àqueles espaços. Para a
educadora Nilma Lino Gomes “trata-se da concepção que considera e elege o conhecimento
acadêmico como a única forma legítima de saber e menospreza os outros saberes produzidos
na dinâmica social” (GOMES, 2011, p. 44).
Nesse sentido, cabe evidenciar que as experiências proporcionam a formação de
conhecimento. Dizem respeito às vivências e às práticas cotidianas que, geradoras de
curiosidades, conduzem os docentes e os discentes a um processo de amadurecimento de tal
curiosidade tornando-a epistemológica (FREIRE, 2019). Portanto, na construção dos saberes
faz-se importante destacar os conhecimentos prévios dos estudantes e, a partir deles, refletir a
fim de poder transformar os conteúdos ensinados em realidade pensada, produtora de sentido.
Sobre essa perspectiva, afirma Paulo Freire
Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro antes que foi novo e se fez
velho e se dispõe a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental
conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à
produção do conhecimento ainda não existente. (FREIRE, 2019, p. 15).
73
Partindo do fato de que não há uma definição uniforme entre os autores que atuam com o conceito de
consciência histórica, as autoras Luíza Vieira Maciel e Clarícia Otto decidem pela perspectiva rüseniana. Para
elas, “a consciência histórica diz respeito a uma capacidade humana cognitiva de compreender-se e orientar-se
como sujeito de um determinado tempo histórico. Essa capacidade igualmente caracteriza uma necessidade, haja
vista que interpretar o presente, na interação com o passado, numa perspectivação de futuro, é crucial para a
manutenção da vida social cotidiana” (MACIEL; OTTO, 2016, p. 233).
174
Assim, a identificação do que os discentes conservam consigo como conhecimentos
acerca da História da África e da Cultura Afro-Brasileira deve ser prioridade não apenas por
curiosidade, mas a fim de possibilitar o (re)pensar da prática docente a partir das relações
étnico-raciais, de forma a privilegiar o debate em espaços públicos, por meio do
ensino/aprendizagem que efetiva a participação coletiva. E, por meio de tal (re)pensar,
possibilita-se uma formação ampla e capaz “de reconhecer e valorizar visões de mundo,
experiências históricas, contribuições de diferentes povos que têm formado a nação” (SILVA,
2011, p. 13), enriquecendo assim a prática docente.
Na constituição desse caminho, no qual me dispus a pensar a prática docente, entendo
a necessidade contínua de aperfeiçoamento de alguns objetivos. Dentre eles, proporcionar
aulas de História que contribuam para o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa,
levando em conta os diversos saberes considerados relevantes sobre História da África e da
Cultura Afro-Brasileira conservados e divulgados pelos interlocutores/discentes. De acordo
com Marco Antônio Moreira, a partir das elaborações de David Ausubel (1918-2008),
175
(RÜSEN, 2011, p. 44) possibilitando desta forma que “no horizonte das questões suscitadas no
presente, a experiência do passado transforma-se em experiência histórica específica, único
contexto em que tal experiência é efetivamente apropriada” (RÜSEN, 2011, p. 44).
Um segundo aspecto que chama atenção para o interesse anunciado é que deve ser
reconhecido, segundo Jörn Rüsen (2011), que a aprendizagem histórica não pode ser resumida
a uma operação cognitiva, pois o aprendizado histórico constitui-se como a capacidade
resultante dos processos mentais da consciência histórica “com os quais a história será
apontada como fator de orientação cultural na vida prática humana” (RÜSEN, 2011, p. 43).
Portanto, ao incluir a discussão sobre História da África e da Cultura Afro-Brasileira
nas experiências temporais que encaminham a reorganização da aprendizagem histórica,
acredito ser possível associar os saberes conservados e divulgados pelos estudantes a novas
exigências inscritas no tempo e no espaço.
Expostas sinteticamente, tais características da aprendizagem histórica sugerem a
possibilidade do encontro com distintos níveis de saberes em um mesmo ambiente escolar.
Essas discussões são pertinentes no campo do ensino, sobretudo, porque alcançam não apenas
os estudantes, mas colocam aos docentes algumas inquietações que estimulam a reflexão
sobre o fazer pedagógico. Assim, admite-se que todos os sujeitos envolvidos no processo de
aprendizagem trazem consigo uma consciência histórica, ou seja, uma produção de sentido
que deve ser ampliada a partir do contato com a formação presente no ambiente escolar.
Pelo exposto, é reforçada a ideia de que a Escola deve cada vez mais tomar parte nessa
busca em prol de um aprendizado histórico-crítico não por imposição, mas consciente do seu
papel de assumir um compromisso com um ensino de História da África e da Cultura Afro-
Brasileira eficaz, fundamentado em novas discussões historiográficas e abordagens
metodológicas diversificadas, capazes de superar as eventualidades e que tornem mais
consistente a produção de saberes.
Finalmente, pode ser afirmado que sendo o aprendizado histórico uma das
manifestações da consciência histórica (RÜSEN, 2011), tal aprendizado, no sentido aqui
exposto, proporciona não apenas aos estudantes, mas também aos docentes o contato com
múltiplas realidades, que apreendidas “pode reanimar o ensino e o aprendizado de história
ressaltando o fato de que História é uma matéria de experiência e interpretação” (RÜSEN,
2011, p. 40).
176
Considerações Finais
177
Finalmente devo ressaltar que, mesmo com todos os obstáculos possíveis de serem
encontrados pelo professor de História na condução de projetos que visem a discutir propostas
como essa, bem como as dificuldades para a sua execução, registro no presente trabalho uma
estratégia, dentre muitas possíveis, de como esse recorte temático pode ser trabalhado, tendo
em vista as orientações trazidas pela legislação em vigor.
A meta derradeira deve ser a promoção de uma aprendizagem que também seja capaz
de combater as práticas racistas e discriminatórias ainda tão presentes dentro da escola, e que
no caso do IFMA Porto Franco foram apontadas pelos discentes nos materiais produzidos nas
oficinas, sugerindo, portanto, diversas formas de destacar e problematizar as questões étnico-
raciais dentro do espaço escolar.
Referências
178
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ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Trad. Ernani F. da Rosa – Porto Alegre:
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179
11. O ENSINO DE HISTÓRIA E AS REPRESENTAÇÕES
SOBRE OS POVOS INDÍGENAS KRAHÔ
Nívia Alves Sales74
Introdução
74
Mestranda em Ensino de História pelo Programa de Pós-graduação ProfHistória. Professora da rede pública
do Estado do Tocantins., em Guaraí.
180
constituição de uma imagem estereotipada e discriminatória sobre as sociedades indígenas,
como bem demonstra Susane Oliveira (2015), remonta ao nosso passado colonial e tem muita
força ainda entre nós.
Neste contexto a priori, se observou que o estudo sobre os povos indígenas e suas
contribuições para a formação do povo brasileiro é pouco explorada, fato que ao se observar
os livros didáticos é manifesto que pouco, ou quase nada, contempla a história desses povos
de maneira contextualizada, ficando em destaque características exóticas e pouco
significativas. Não se procura demonstrar as problemáticas de identidade, diversidade, posse
da terra dentre outros.
O estado de Tocantins conta com número significativo de povos indígenas, de acordo
com o Núcleo de Estudos e Assuntos Indígenas (NEAI) da Universidade Federal do Tocantins
(UFT) são nove povos que habitam o território tocantinense. Os Krahô habitam o território
chamado de Kraolândia, e tem uma população de aproximadamente 3000 habitantes falantes
da língua do tronco Jê, seu território está situado nos municípios de Goiatins e Itacajá no
nordeste do Tocantins.
Apesar de um número de povos indígenas tão expressivo, pouco se sabe ou se trabalha
nas escolas sobre os mesmos, é possível observar durante as aulas o olhar perplexo de vários
alunos/as quando começa a se acentuar a localização e a forma como esses povos vivem, a
curiosidade, somado ao olhar preconceituoso diante de povos cuja história e riqueza cultural
desconhecem. Nessa perspectiva surgiu então o problema que envolveu o presente trabalho de
pesquisa: Quais as Representações sobre os povos indígenas Krahô presentes no imaginário
dos/as alunos/as da 2ª série do Ensino Médio do Colégio Comercial Impacto em Guaraí - TO?
O estudo teve como Objetivo principal Identificar as Representações sobre os Povos
Indígenas Krahô presentes no imaginário dos/as alunos/as da 2ª do Ensino Médio do Colégio
Comercial Impacto em Guaraí-TO, como secundários se propôs descrever as Representações
constituídas para o Ensino de História, contextualizando sua importância para uma
aprendizagem significativa no ensino de história, buscou-se também identificar as
Representações presentes no imaginário dos/as alunos/as sobre os povos indígenas; e como
proposta final visando desenvolver ações e material de apoio para o Ensino de História sobre
as Representações relacionadas aos povos indígenas Krahô do Tocantins.
A presente proposta se justificou pelo fato de que a prática de ensino e a gestão da sala
de aula, são fundamentais para a (re)construção novos saberes relacionados ao Ensino de
História, muito se vê no âmbito da sala de aula, os/as alunos/as questionando frequentemente
181
por que se estudar História? Para que serve a História? Qual a contribuição da História para a
vida? Pois bem, é preciso que o educando perceba e dê significado para a História.
Para tanto, se torna primordial o ensino de História no contexto de formação dos
sujeitos com o intuito de fomentar a percepção constitutiva em que se percebam agentes
históricos podendo analisar, refletir e principalmente aprender com novos olhares para
assuntos que estabelecem as relações entre os indivíduos através do tempo e em diferentes
espaços de diversidades.
Desenvolvimento
Os desafios para o ensino de história são refletidos pela luta impetrada para que a
disciplina se consagrasse na educação escolar de significativa para a formação dos sujeitos,
principalmente após a ditadura militar brasileira,
O ensino de História na educação básica brasileira foi objeto de intenso debate, lutas
políticas e teóricas no contexto de resistências à política educacional da ditadura
civil-militar brasileira (1964-1984). Isso significou refletir sobre o estado do
conhecimento histórico e do debate pedagógico, bem como combater a disciplina
“Estudos Sociais” e a desvalorização da História, os currículos fragmentados, a
formação de professores em Licenciaturas Curtas e os conteúdos dos livros didáticos
difundidos naquele momento, processo articulado às lutas contra as políticas de
precarização da profissão docente. (SILVA & FONSECA, 2010).
182
marginais, ladrões deflagram o total desconhecimento a respeito dessas populações”.
(BARÃO e FRAGA, 2010, p. 149)
Neste sentido uma das linhas a ser tecidas para o ensino de história, encontra-se nas
temáticas que envolvem o ensino de história indígena e as representações sociais, isso porque
a multiplicidade de informações e sentidos dados a essas informações acabam por vezes
engessando uma imagem representativa discriminatória arraigada no eurocêntrismo e na
própria construção historiográfica de um povo.
Como afirma Barão e Fraga
A construção de uma nação como o Brasil, que passou pelo processo de conquista e
colonização por parte de povos europeus, até adquirir sua independência e status de
Estado Nacional, foi fruto de uma tarefa árdua para os europeus, a princípio, e
depois, para os luso-brasileiros, sendo ao mesmo tempo destruidora. Nesse processo,
os povos autóctones sofreram o impacto do desaparecimento, seja ele físico ou
ideológico, já que não seria possível à infante nação brasileira admitir o passado
genocida, que exterminou fisicamente várias sociedades nativas para abrir espaço às
colônias europeia. (BARÃO e FRAGA, 2010, p. 141)
Neste contexto, a priori, se observa que o estudo sobre os povos indígenas e suas
contribuições para a formação do povo brasileiro ainda hoje é pouco explorado, já que não se
observa de maneira efetiva o ensino de história com este foco, fato que ao se observar os
livros didáticos, pouco, ou quase nada, contemplam a história desses povos de maneira
contextualizada, ficando em destaque características exóticas e pouco significativas, não se
procura demonstrar as problemáticas de identidade, diversidade, posse da terra dentre outros.
Apesar da população indígena, que já foi expressiva no passado e que ainda resiste
lutando pela vida, cultura e território, pouco se sabe ou se trabalha nas escolas sobre os
mesmos. É notório durante as aulas se observar o olhar perplexo de vários/as alunos/as
quando começa a se acentuar a localização e a forma como esses povos vivem, somada
também a curiosidade e o olhar preconceituoso diante de povos alheios ao conhecimento
das/os alunas/os.
Para tanto, se torna primordial o ensino de História no contexto de formação dos
sujeitos com o intuito de fomentar a percepção constitutiva para que se percebam agentes
históricos podendo analisar, refletir e principalmente aprender com novos olhares para
assuntos que estabelecem as relações entre os indivíduos através do tempo e em diferentes
espaços de diversidades.
É importante que desde a introdução dos indivíduos no cotidiano escolar, os
educandos se percebam como sujeitos históricos e que possuem vivências individuais e
coletivas que fazem parte de um processo que está constantemente sendo transformado ou que
183
apresentam permanências sociais que se consagram por meio das relações, se compreendendo
como seres críticos e sujeitos potencializadores críticos dos aspectos sociais, econômicos e
políticos no qual estão inseridos.
As Representações Sociais
184
Segundo Hegel apud Novelli (2001), não há sociedade que se sustente sem a
educação, pois ela é expressão da razão que busca estabelecer a liberdade e implantá-la
enquanto prática docente. Disso deriva a concepção hegeliana de homem que o caracteriza
pela construção de si com seus semelhantes através da história.
Tudo isso é fundamentado pela necessidade de se entender que a perceptividade
humana é feita por meio dos elementos simbólicos que cada um vai configurando ao longo da
sua construção histórica, por meio dessas simbologias acabam por expressar palavras, gestos,
imagens, linguagens e sentimentos em suas ações cotidianas.
Para Jodelet (1986) as representações sociais, são modalidades de conhecimento
prático orientadas para a comunicação e para a compreensão do contexto social, material e
ideativo que vivemos. O que representa dentro deste contexto buscar respostas para o
entendimento dos docentes sobre a identidade que construíram por meio destas representações
sobre a formação continuada para com o trabalho com a temática étnico-racial.
Ao se estudar alguns estudiosos sobre formação docente, se observa que é preciso
considerar os saberes docentes e contextualizá-los dentro de suas expectativas, a exemplo
disso Nunes (2001) afirma que:
185
linguagem, de signos e imagens que significam ou representam objetos”, estabelecendo um
processo nada simplório. (HALL, 2016, p.31)
Os significados vão ganhando forma de maneira natural e não há como isso não
acontecer, pois é a forma objetiva que nos apropriamos desde a infância, haja vista que
estamos inseridos dentro desse universo de signos e vamos nos apropriando de seus
significados, tendo também a possibilidade de os transformar (HALL, 2016).
Nessa perspectiva é preciso aprofundar conceito de representações nas ideias de
Michael Foucault75, que conclama o sujeito como mentor central do uso e funcionamento da
linguagem e, também, a influência do poder sobre a configuração do conhecimento e a
apropriação do poder sobre o discurso. O aporte de Foucault em relação ao pensamento de
Hall, envolvem o conceito de discurso, de poder e do sujeito. Segundo a teoria Foucaultiana
muda o termo linguagem para discurso, o que torna bem mais significativo seu pensamento
eis que:
75
Filosofo francês, que exerceu grande influência sobre os intelectuais contemporâneos. As teorias de Foucault
abordam principalmente a relação entre o poder e o conhecimento, e como elas são usadas com o objetivo de
controle social através das instituições.
76
Filósofo marxista, jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre teoria política,
sociologia, antropologia e linguística.
186
marxista havia uma tendência a redução das relações entre conhecimento e poder, e os
interesses entre as classes.
Tanto para Foucault e Gramsci segundo Hall, “grupos sociais particulares estão em
conflito de diversas formas, incluindo ideologicamente, para ganhar o consenso dos outros
grupos e alcançar um tipo de ascendência sobre eles, na prática e no pensamento” (p. 87).
Estabelecendo que o conhecimento é poder e sua efetividade se torna mais importante que a
veracidade, “o conhecimento não opera no vácuo. Ele é posto ao trabalho, por certas
tecnologias e estratégias de aplicação, em situações específicas, contextos históricos e regimes
institucionais” (HALL, 2016, p. 89).
Em se tratando do discurso é preciso identificar o locus do sujeito. “Os sujeitos podem
produzir determinados textos, mas eles funcionam dentro dos limites da episteme, a formação
do discurso, o regime de verdade, de determinado período e cultura” (HALL, 2016), com isso
determina que o sujeito faz parte do discurso e se sujeita ao mesmo, ou seja, o discurso produz
sujeitos e determina o lugar ocupado por cada um a partir de seus conhecimentos e dos
significados produzidos.
Os estudos sobre os conceitos de representações, perpassa também as articulações
sociais para a construção de imagens e estereótipos, embasado justamente pelas relações de
poder e dos discursos instituídos socialmente, ele parte da sua percepção construcionista em
que vê “o real como uma construção social” (HALL, 2016). As representações são atos
criativos em que se demonstram o que os sujeitos pensam sobre o papel de cada indivíduo no
mundo e como essa visão dos sujeitos acabam por transformar as representações sociais.
Em uma abordagem representativa para as imagens sociais, se estabelece a
necessidade de conhecer minimamente as noções de cultura, pois é na cultura que se observa
os significados compartilhados, isso porque segundo o autor “nada mais é do que o meio
privilegiado pelo qual damos sentido às coisas, onde o significado é produzido e
intercambiado, significados, só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem”
(HALL, 2016).
Essa conjuntura objetiva o entendimento de que a cultura se faz e se refaz, por meio do
compartilhamento dos significados de grupos ou sociedades. Esse entendimento postula o
entendimento de que a pluralidade pode ser conflituosa e enfatiza acima de tudo que “os
significados culturais, não estão somente na nossa cabeça, eles organizam e regulam práticas
sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais e práticos”
(HALL, 2016).
187
As representações são construídas socialmente, “damos sentido às coisas pelo modo,
como as utilizamos ou as integramos em nossas práticas cotidianas, concedemos sentido às
coisas pela maneira como as representamos” (HALL, 2016). Eis que diante de uma sociedade
tão diversa como no Brasil, é preciso repensar as representações construídas historicamente,
de preferência desconstruindo, questionando e contestando o que foi ao longo da história
postulado como verdade absoluta.
A cultura, podemos dizer, está envolvida em todas essas práticas que não são
geneticamente programadas em nós […], mas que carregam sentido e valores para
nós, que precisam ser significativamente interpretadas por outros, ou que dependem
do sentido para seu efetivo funcionamento. […] Nesse sentido, o estudo da cultura
ressalta o papel fundamental do domínio simbólico no centro da vida em sociedade
(HALL, 2016).
Este espaço é destinado à compreensão de quem são os povos Krahô, assim como no
restante do país os povos indígenas “são povos com saberes e processos culturais, sociais e
históricos densamente diferenciados”. (BRAND, 2011, apud FERREIRA, 2018)
Conforme os dados do Distrito Sanitário Indígena do Tocantins (DSEI) e o Instituto
Socioambiental (ISA) citados por Ferreira (2018) o Estado conta com uma população de
14.289 indígenas [...], registrando-se a existência de sete grupos étnicos: Karajá, Xambioá,
Javaé, Xerente, Krahô, Krahô Kanela e Apinajé.
191
Desse ponto de vista, a pesquisa-ação como processo de produção de conhecimento
desenvolve-se com vistas às necessidades que emergem da prática social. É
determinada, portanto, historicamente. Além disso, a pesquisa-ação tem se mostrado
capaz de produzir informações e conhecimentos de uso mais efetivo no âmbito
pedagógico, na constatação de “uma desilusão para com a metodologia
convencional, cujos resultados, apesar de sua aparente precisão, estão muito
afastados dos problemas urgentes da situação atual da educação” (THIOLLENT,
2002, p. 74).
192
povo brasileiro, este momento visava instigar as/os aluna/os a vivenciarem e reconstruírem a
imagem/ideia pré-concebida sobre os povos indígenas.
No retorno da visita in loco, realizando novamente a atividade de roda de conversa que
foi realizada no segundo momento, porém partindo dos olhares que elas/eles obtiveram com a
atividade de visita, instigando-as/os a relatarem o que foi possível observar, além disso,
solicitando que elas/eles fizessem uma análise de semelhanças e diferenças da imagem que
eles tinham e da imagem concebida com o exercício. Instigadas/os a se questionarem sobre o
porquê da invisibilidade desses povos indígenas o ensino de história pode contribuir para a
reconstrução de um novo olhar sobre essa população marginalizada pelos não indígenas.
A propositiva final fomentava uma exposição a ser organizada e desenvolvida pelos
próprios alunos/os mediante a experiência que elas/eles vivenciaram. A exposição estava
prevista para acontecer na escola e ser aberta não somente para as/os alunas/os da escola, mas
para todas as escolas do município, e que seria montado um cronograma de visitação guiada
para esses estudantes das outras escolas.
A exposição pautar-se-á em duas nuances, a da etnofotografia e da cartografia social, a
escolha dessas duas abordagens norteou-se no interesse de as/os alunas/os se perceberam
como pesquisadores sociais e a fotografia possibilitaria essa oportunidade, por meio dela as/os
alunas/os poderiam observar o espaço utilizado para a construção dos saberes históricos e
culturais desses povos indígenas, identificando e registrando os comportamentos sociais
presentes nessas comunidades, elas/eles precisariam desenvolver a capacidade de recortes
espaciais e temporais com base no ambiente que os acolheu, (TIBALLI e JORGE, 2007), por
meio da fotografia elas/eles poderiam demonstrar os saberes e as representações constituídas,
partindo da interação dos sujeitos envolvidos. Eis que a etnografia possibilita um campo ótico
do grupo que ele observa, pois “possibilita também a construção do diálogo referente aos
objetivos a serem alcançados pelos pesquisadores” (TIBALLI e JORGE, 2007).
Outro ponto que se visava desenvolver seria a exposição Cartográfica Social, a
utilização desta ferramenta permitiria que as/os alunas/os pudessem mapear o território por
elas/eles visitados e estudado, demonstrando com isso a localização dos povos indígenas em
questão, dessa forma poderiam situar os visitantes da exposição em relação aos territórios
ocupados pelos indígenas e demonstrar a importância desses territórios e de suas
demarcações.
De posse dessas informações e dos resultados da exposição, tencionava-se uma
propositiva didática a ser apresentada aos demais profissionais docentes de história. No entanto,
toda a proposta apresentada teve que ser alterada em virtude da pandemia do vírus SARS –
193
COV – 2 (Corona Vírus) causador da COVID-19 que acometeu não só o Brasil, mas todo o
mundo a partir do ano de 2020. As aulas foram suspensas em todo território nacional como
forma de evitar as complicações advindas da proliferação do vírus, o que impediu a circulação
de pessoas de forma a evitar as aglomerações acabando por impedir que as/os alunas/os fossem
visitar a aldeia conforme o pretendido para a culminância do trabalho e isso terminou afetando o
planejamento pensado inicialmente para o desenvolvimento do projeto de pesquisa.
A princípio o estudo seria realizado com alunos/as de uma Escola Estadual no
município de Guaraí - TO, porém com o impedimento da realização do trabalho, foi
aproveitada uma experiência anterior realizada com alunos/as de uma Escola Privada. Sendo
assim, o lócus da pesquisa foi o Colégio Comercial Impacto, situado no município de Guaraí,
a turma em que a atividade havia sido desenvolvida ainda no ano de 2019 foi uma turma da 2ª
série do ensino médio matutino, que durante este período enquanto conteúdo da disciplina
os/as alunos/as vislumbram o descobrimento do continente americano e dos povos nativos das
américas inglesas, espanholas e portuguesa. Na época a turma escolhida contava com 17
alunos/as, sendo 6 meninos e 11 meninas com idade entre 14 e 16 anos.
Como a viagem já havia sido feita, e após o retorno das atividades presenciais durante
a pandemia, foi preciso redirecionar as atividades de pesquisa, sem, no entanto, perder o foco
principal, as atividades apresentadas como proposta metodológica da pesquisa-ação, roda de
conversa, grupo focal e entrevistas, aconteceram conforme a intenção da pesquisa que se
apropriou dos resultados de uma experiência anterior. Infelizmente a Cartografia Social e a
exposição pretendida não foram possíveis realizar, no entanto, a proposta está sendo
apresentada para que posteriormente outros profissionais possam se apropriar desta atividade
que pode ser enriquecedora e transformadora quanto as representações que as/os alunas/os
possam construir sobre os povos indígenas, como também a prática docente da/o professora/o
de História.
Considerações Finais
194
Poder ressignificar o imaginário dos/as alunos/as foi de fundamental importância para
uma nova forma de trabalhar sobre os povos indígenas, em minha prática docente ao longo
dos meus vinte e um anos de docência venho tentando mostrar que é possível dar novos
significados a ideias pré-concebidas e após uma imersão teórica e de diálogos entre autores
que discorrem sobre a temática, me chamou a atenção sobre as possibilidades de mudança na
forma de se conceber os sujeitos e a história.
Espero que o resultado deste trabalho possa contribuir que outros professores, assim
como eu, possam entender que é possível promover uma aprendizagem significativa no ensino
de história, e mais que isso, que compreender a importância política do nosso ato de educar
por meio da história.
Referências
BRASIL. Lei nº 9394/96. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: 1996.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 31/10/2019
BRASIL. Lei nº 10.639. Ensino de História e Cultura Afro-brasileira. Brasília: 2003. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm Acesso em: 31/10/2019
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das narrativas na educação escolar do povo krahô. Dissertação de Mestrado Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás.
HALL, Stuart at al. Da Ideologia: Althusser, Gramsci, Lukács, Poulantzas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1980.
195
JODELET, D. La representación social: Fenômeno, concepto y teoria. In. Moscovici, S.
(org.) Barcelona, Ed. Paidós, 1986. P. 409-494.
LIMA, Márcio Antônio Cardoso; MARTINS, Pura Lúcia Oliver. Pesquisa-ação Possibilidade
para a prática problematizadora do ensino. Diálogo Educ., Curitiba, v. 6, n.19, p.51-63,
set./dez. 2006.
NOVELLI, P. G. O conceito de Educação em Hegel. Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.9, p.65-
88, 2001 http://www.scielo.br/pdf/icse/v5n9/05.pdf Acesso em 15/10/2019
OLIVEIRA, Susane Rodrigues de. História Indígena: Saberes Discentes, Práticas escolares e
formação docente no Distrito Federal. História e Perspectivas, Uberlândia (53): 211-238,
jan./jun. 2015. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/
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SILVA, Marcos Antônio da; FONSECA, Selva Guimarães. Ensino de História hoje: errâncias,
conquistas e perdas. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 60, p. 13-33 – 2010.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbh/v30n60/a02v3060.pdf Acesso em: 02/10/2019
TIBALLI , Elianda Figueiredo Arantes; JORGE, Luiz Eduardo. A Etnofotografia como meio
de conhecimento no campo da Educação. Goiânia, v. 5, n.1, p. 63-76, jan./jun. 2007
HABITTUS. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/download/
377/314 Acesso em: 20/10/2019
196
PARTE 04 –
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
E HISTÓRIA LOCAL
197
12. UM PASSEIO NO TEMPO: POSSIBILIDADES EDUCATIVAS
DE UM ITINERÁRIO HISTÓRICO PELOS VESTÍGIOS DA
FREGUESIA DE SÃO JOSÉ E DO BAIRRO DA MISERICÓRDIA / RJ 77
Denise Maria Deodato Silva78
Introdução
No livro Cidades Invisíveis (CAVINO, 1990), Ítalo Calvino descreve dois momentos
de Maurília que se contrapõe, identificando de um lado a magnificência e prosperidade da
metrópole atual e de outro a graciosidade perdida de uma velha cidade provinciana.
Antes de considerá-las uma sequência ininterrupta, Calvino defende a existência de
diferentes cidades que se sobrepõe umas as outras e que às vezes, como no caso de Maurília,
compartilham o mesmo nome.
Essa dualidade entre o perene e o efêmero, sobrepostas no mesmo espaço, pode ser
acessada por fragmentos do tempo, tais como os cartões postais, citados por Calvino, mas
77
Trabalho realizado no âmbito da disciplina “Cidade, Patrimônio Urbano e Ensino de História”, ofertada pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO e ministrada pela Profª. Drª Vera Lúcia Bogea
Bórges, durante o 2º período de 2020.
78
Mestranda do programa de Ensino de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
PPGH/UFRJ, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de História e Formação de Professores
(GEHPROF), coordenado pela Profª Drª Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação museal: conceitos, história e
políticas (GPEM), coordenado pela profª Drª Fernanda Santana Rabello de Castro, do Museu Histórico Nacional
- MHN E-mail: prof.denise.deodato@gmail.com
198
também por antigas fotos, desenhos e mapas que permitem que o que se tornou possa se
recordar daquilo que já se foi.
Através dessa perspectiva podemos refletir sobre as várias camadas de cidade, de
história e de memória que constituem o espaço ao nosso redor. Esse aspecto se torna ainda
mais significativo na medida em que problematizamos essa relação espacial-temporal de
forma a compreender as suas múltiplas singularidades e especificidades.
Dento dessa perspectiva, o presente trabalho se propõe a apresentar uma proposta
metodológica de educação patrimonial e sua aplicação através da criação de um itinerário
pedagógico por uma região do centro histórico do Rio de Janeiro que outrora estava
localizada no sopé do Morro do Castelo, em um local que já foi conhecido como freguesia de
São José e bairro da Misericórdia.
Em máxima instancia essa proposta de atividade educativa visa refletir sobre as
múltiplas possibilidades e potencialidades que um trabalho com educação patrimonial é capaz
de suscitar.
A atividade proposta foi pensada para uma turma do 2º ano do EM. Os alunos serão
divididos em quatro grupos, cada um ficará responsável por pesquisar e registar as
informações relativas à Ladeira da Misericórdia, a Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso, ao
Complexo arquitetônico da Santa Casa de Misericórdia e ao Complexo arquitetônico do
Museu Histórico Nacional - MHN. Para essa fase será disponibilizado um texto, mapas e
fotos para apresentação do itinerário sugerido.
199
Figura 1 - Itinerário cultural proposto – Fonte: Google Maps
I. Apresentação
Inicialmente fundada entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, em 1565, a cidade
do Rio de Janeiro foi refundada dois anos depois no alto do Morro do Castelo. No mesmo ano
foi aberta a primeira via urbana do Rio de Janeiro, que ficou conhecida como Ladeira da
Misericórdia, local onde se estabeleceram alguns dos principais órgãos de administração da
recém-fundada cidade.
Pouco a pouco essa região foi sendo ocupada por diversas construções entre as quais o
complexo da Misericórdia – igreja, hospital, orfanato e cemitério – e o Forte de São Tiago.
O complexo da Santa Casa de Misericórdia surgiu da devoção a Nossa Senhora da
Misericórdia e do fluxo de enfermos que buscavam a Igreja Nossa Senhora de Bonsucesso em
busca de socorro físico e espiritual. Considerada a mais antiga da cidade começou a ser
construída em 1567, sofreu diversas modificações e apenas em 1870 passou a ter a sua
fisionomia atual.
200
Perto da Igreja ficava o primeiro hospital da Santa Casa de Misericórdia, cuja
construção, atribuída a José de Anchieta, é estimada em torno de 1582 foi sendo
progressivamente expandida no sopé do Morro do Castelo. As suas funções originais foram
ampliadas com a criação do Recolhimento das Órfãs e a Casa dos Expostos, local onde os
enjeitados79 eram deixados.
O prédio destinado ao recolhimento das órfãs foi construído à esquerda da Igreja de
Bonsucesso, no Largo da Misericórdia. Já a casa dos expostos funcionou inicialmente dentro
do prédio das enfermarias do hospital, sendo transferida em 1821 para o Largo da
Misericórdia, em frente aos antigos prédios da irmandade.
Após a transferência do cemitério que existia para a Ponta do Calafate, no Caju, um
novo prédio foi construído para abrigar o hospital. O projeto previa a criação de alas
especializadas para cada uma de suas funções. Iniciada em 1840, quinze anos depois a obra
estava completamente finalizada.
Outra edificação que se destaca na paisagem, cuja construção foi iniciada em 1579, é o
forte do Rio, estrategicamente posicionado em uma área que lhe permitia colaborar para a
defesa do porto.
No início dos seiscentos, o forte foi reestruturado e passou a se chamar Forte de São Tiago
(1603). Nesse mesmo local, em 1693, por ordem do vice-rei Dom Luis de Vasconcelos foi criado
o calabouço para onde eram enviados os escravos que seriam castigados. A essa construção se
acrescentou, no século seguinte, a Casa do Trem (1762) e o Arsenal do Trem (1766).
Após a vinda da família real para o Brasil, em 1808, esse local passou a abrigar o
Arsenal Real do Exército (1811), onde se faziam reparos em armas e fabricação de munições.
No entanto, suas maiores transformações aconteceram no século seguinte, quando toda região
se modificou para sediar a Exposição do Centenário da Independência, na década de 1920.
Nesse contexto o complexo arquitetônico passou a abranger o Palácio das Grandes Indústrias
79
Esse termo era utilizado para se referir as crianças que ficaram órfãs ou que sofreram abandono por parte de
seus progenitores.
201
(1922) se tornando, no mesmo ano, sede do Museu Histórico Nacional – MHN, considerado
um dos principais do país:
Figura 2 - Panorama da cidade do Rio de Janeiro de Dom Miguel Blasco, bico de pena e aquarela, cerca de 1760.
Vê-se o casario desde a Ponta do Calabouço até o antigo Colégio dos Jesuítas, no Morro do Castelo. Original do
acervo do exercito – Fonte: Livro – Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio, 2017.
202
Figura 3 - Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro – Planta realizada a mando do príncipe Pegente –
Litogravura, 1817 – Mapoteca do Itamaraty – Fonte: Site Barão de Mauá: o empreendedor [sic]
Figura 4 - Parte do mapa do Centro do Rio, P.S. Souto, 1817. Fonte: Site Histórias e Monumentos
203
Figura 5 - Hospital da Misericórdia e Igreja Nossa Senhora de Bonsucesso, Thomas Ender, 1817. Acevo da
Alademie der Bilden den Kunsten, Viena. – Fonte: Livro – Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio, 2017.
Figura 6 - Largo da Misericórdia, 1845. Louis Buvelot (Paisagem), Augusto Moreau (figuras). Acervo da
Fundação da Biblioteca Nacional - Fonte: Livro – Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio, 2017.
204
Figura 7 - Imagem do edifício da Santa Casa de Misericórdia, feita por volta de 1858, por Victor Frond.
Podemos ver todo o percurso da Rua Santa Luzia, desde a Igreja de Santa Luzia, tendo ao fundo o Morro do
Castelo – Fonte: Site Alma Carioca.
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com
tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na
falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as
formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos
cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de
metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao
homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. (LE GOFF, 1996, p.
540)
205
modalidades, como a educação. No entanto, o que se observa na nossa realidade escolar é a
manutenção do livro didático como principal suporte pedagógico do professor.
Dentro dessa perspectiva, a nossa intenção é colaborar para a que o patrimônio
cultural, museus, monumentos, centros históricos, sítios arqueológicos, dentre tantos outros,
sejam problematizados e utilizados como fontes históricas.
Essa proposição justifica-se pelo reconhecimento de que o patrimônio, tido como fonte
histórica possibilita que se estabeleçam estratégias de ensino que favoreçam a identificação de
outras culturas e de outras temporalidades, em uma articulação que parte do presente para o
passado.
Tendo isso em mente apresentamos abaixo uma proposta metodológica de atividade de
campo, baseada do Guia de Educação Patrimonial, que contempla alguns monumentos de um
centro histórico.
A atividade proposta parte da preparação/ sensibilização dos alunos em sala de aula.
Momento de introduzir a discussão sobre o conceito de patrimônio bem como sobre a fonte
(monumentos, sítio históricos, arqueológicos, etc.) que será visitada. O que pode ser feito
através da apresentação de vídeos, fotos, músicas, roteiro, relato, mapa, etc. É importante que
se observe ainda o que os alunos precisam para o desenvolvimento da atividade de campo,
tendo em vista que pode ser necessário levar equipamentos eletrônicos ou outros objetos
considerados necessários.
Durante o desenvolvimento do itinerário proposto é importante observar o tempo
necessário para cada uma das atividades propostas. Se for um centro histórico, por exemplo,
deve-se levar em consideração a quantidade de lugares que serão visitados para que todos os
objetivos anteriormente elencados sejam contemplados. Em linhas gerais a atividade proposta
tem o objetivo em demonstrar que:
Qual a função atual desse Qual a função atual desse Que edifícios mantem a sua função
edifício? original? original? Por quê?
Qual a importância desse Qual a importância desse Esse edifício manteve a mesma
edifício hoje? edifício no passado?* importância que tinha no passado?
Por que essa instituição Por que essa instituição Faz sentido que essa instituição
está instalada aqui? estava instalada aqui?* continue ou não continue aqui?
Qual a importância desse Qual a importância desse Essa região manteve a mesma
sítio histórico hoje? sítio histórico no passado?* importância que tinha no passado?
Que grupos sociais ocupam Que grupos sociais Como o passado influencia as
esse espaço? ocupavam esse espaço?* pessoas a ocuparem ou a não
ocuparem esse espaço?
Que grupos sociais moram Que grupos sociais não Como o passado influencia as
nesse espaço? moram nesse espaço?* pessoas a morarem ou a não
morarem nesse espaço?
Você gostaria de morar Você gostaria de ter morado Como o passado influencia a
aqui hoje? aqui no passado?* forma de viver nesse local?
O que mais chama a sua O que mais chama a sua Qual a mudança mais significativa
atenção na paisagem deste atenção na paisagem deste que você observa nessa paisagem?
local hoje? local no passado?*
Elaborado pela autora81
Tendo como referência a tabela acima, durante a atividade de campo os alunos irão
investigar cada um dos locais previamente selecionados. Além da observação dos aspectos
materiais do patrimônio será sugerido que sejam feitos vídeos, fotos e entrevistas com
80
Ao provocar os alunos em relação ao passado é importante ressaltar em que passado. No âmbito do desta
proposta educativa poderiam ser os Séculos XVI, XVII, XVIII, XIX.
81
Elaborado pela autora a partir do referencial metodológico disponibilizado no “Guia Básico da Educação
Patrimonial”. Em sua composição foram observadas as especificidades do local a que o estudo é direcionado.
207
funcionários das instituições, de modo que eles possam colher informações pertinentes ao
desenvolvimento da atividade.
82
Sofre esse assunto, Adler Castro analisa que: “os arquivos do IPHAN, observa-se a opinião unanime dos
profissionais que estudaram o prédio, que o mesmo se encontrava irrecuperavelmente descaracterizado,
considerando que os acréscimos feitos na exposição de 1922 teriam destruído a “natureza” da obra de arte.”.
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Resgate de uma dívida: o tombamento do MHN, seu prédio e acervo.
Anais do Museu Histórico Nacional, v. 34, 2002.
208
Figura 13 - Sugestão para composição do álbum “Antes e depois” – Elaborado pela autora
Figura 14 - Sugestão para a composição de uma exposição com fotos do sítio histórico
registradas pelos alunos – Elaborado pela autora.
209
Considerações Finais
210
Referências
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CASTRO, Adler Homero Fonseca. Resgate de uma dívida: o tombamento do MHN, seu
prédio e acervo. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 34, Rio de Janeiro: MHN, 2002.
GANDELMAN, Luciana Mendes. A Santa Casa. In: MAGALHÃES, Aline Montenegro… [et
al.] Misericórdia: um bairro na paisagem do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Museu Histórico
Nacional, 2017.
HORTA, M. L. P., GRUNBERG, E., MONTEIRO, A. Q. Guia Básico de Educação
Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu
Imperial, 1999.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. 5° ed., Campinas, SP:
Editora UNICAMP, 1996.
211
13. A HISTÓRIA LOCAL E SUAS POSSIBILIDADES
PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Aline Nunes Ferreirinha de Souza83
Hendy Helena Maciqueira de Melo Ribeiro 84
Introdução
O presente artigo se refere à experiência vivenciada por suas duas autoras ao longo de
uma disciplina cursada por ambas no Mestrado Profissional em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA) - Grupo Rio de Janeiro. Apesar de termos nos conhecido na disciplina de
História Local, oferecida por um professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), estamos vinculadas como alunas do PROFHISTÓRIA em universidades diferentes:
uma das autoras é discente da Universidade Federal Fluminense (UFF) e a outra da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
É importante destacar que os discentes vinculados ao PROFHISTÓRIA podem cursar
disciplinas obrigatórias, optativas ou eletivas em qualquer uma das universidades públicas do
estado do Rio de Janeiro (chamado Grupo Rio) ao longo de sua formação no Programa, o que
permite uma maior interlocução entre os alunos e alunas de todas as universidade públicas do RJ
(UNIRIO, UFF, UFRJ, UERJ, UFRRJ), amplia as opções de disciplinas a serem cursadas com
temáticas bem diversificadas e possibilita os ajustes de horários que envolvem: ser professora
atuante na Educação Básica, rotina familiar, demais atividades profissionais e de vida e ser aluna
do mestrado, dentre outras questões.
Nosso encontro na disciplina de História Local, nos proporcionou a oportunidade de
partilhar a escrita deste artigo, a partir das possibilidades do uso da história local em
interlocução com o ensino de História em nossa atuação enquanto professoras da Educação
Básica, ampliando nosso entendimento sobre o que é a história local, seus desafios e
possibilidades. Nos deparamos com importantes e instigantes referências bibliográficas ao
longo da disciplina que cursamos, ouvimos as narrativas de professores e professoras que
trabalham no âmbito acadêmico universitário com essa temática, e promovendo relevantes
debates e ampliando nossas concepções acerca da história local e sua relação com o ensino de
História, além das possibilidades de seus usos em sala de aula.
83
Licenciada em História na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia (FFSD), pós-graduação latu sensu em
História Moderna e Contemporânea (FFSD), em Educação Especial e Inclusiva (Faculdade de Educação São
Luís) e em Gestão Escolar: Supervisão e Orientação (Centro Universitário Barão de Mauá). Mestra em Educação
(UFRRJ). Mestranda do PROFHISTÓRIA- Universidade Federal Fluminense (UFF).
84
Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Mestranda do PROFHISTÓRIA – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora de
História da rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
212
Consideramos relevante dizer, que ingressamos no PROFHISTÓRIA na turma de
2020 e ainda estamos cursando o mestrado, mas resolvemos encarar o desafio de compartilhar
a escrita do artigo, pois achamos muito interessante e inovadora sua proposta de divulgar as
pesquisas produzidas por alunas do Programa, com destaque à presença feminina na produção
científica no campo da História, da Educação e do ensino de História.
Ademais, é oportuno destacar que fizemos o processo seletivo para o Mestrado
Profissional em Ensino de História na segunda metade do ano de 2019 para ingressarmos na
turma de 2020, ou seja, ingressamos no Programa no início das medidas restritivas referentes
à Pandemia de Covid-19, no estado do Rio de Janeiro, em março de 2020, o que interferiu e
vem interferindo em nosso processo de formação no Mestrado. Muito provavelmente,
concluiremos nossa trajetória no PROFHISTÓRIA ainda sob vigência das medidas de
isolamento e distanciamento social, tão importantes para conter a transmissão do coronavírus.
O contexto da pandemia não está influenciando só a nossa formação por não podermos
frequentar presencialmente às aulas ministradas pelos professores e professoras do
PROFHISTÓRIA, mas também o aspecto emocional e nossas vivências, ou melhor a falta da
(con)vivência, seja ela discente-discente ou discente-docente. Sem contar, a saudade dos
nossos alunos e alunas, da partilha com nossos colegas de docência na educação básica, do
ambiente escolar de trabalho, do contato, da presença, de poder estar junto, enfim...
O uso emergencial do ensino remoto tem nos trazido o aprendizado do contato virtual,
seja no trabalho, seja no estudo, e tem também nos propiciado novos aprendizados em relação
ao uso das tecnologias. Porém, temos que conviver com novas e inúmeras angústias e
incertezas, com o uso excessivo das tecnologias por serem nossa principal ferramenta de
comunicação nesse momento, dentre outras questões. Sem dúvida todo este contexto
influenciará nossas pesquisas, assim como vem influenciando nossas vidas e o trabalho
docente em todos os seus níveis.
Portanto, apresentaremos ao longo do artigo uma proposta de atividade pedagógica
que pretendemos utilizar na nossa prática docente, como professoras de História na educação
básica, assim que for possível o retorno presencial e seguro às escolas de toda a comunidade
escolar. Atividade esta que envolve as potencialidades da história local e do ensino de história,
mas que só será posta em prática de forma presencial, por conta das limitações apresentadas
pelo ensino remoto no contexto que vivenciamos atualmente.
213
A História Local e Suas Possíveis Tessituras com o Ensino de História na Educação
Básica
Trabalhar a história local na sala de aula da Educação Básica não é uma tarefa simples
para os professores e professoras de História, pois envolve múltiplos desafios e dificuldades
que se iniciam no termo, local, que tem variados significados. Cavalcanti (2018, p. 275)
explicita esta questão,
Nesse sentido, dialogam com Edgardo Ossana (1994), uma das mais significativas
referências que discutem o trabalho com a História Local e o Ensino de História. No artigo
“Uma Alternativa en la Enseñanza de la Historia: El Enfoque Desde lo Local, Lo Regional” o
214
autor debate acerca da presença da História Local no currículo do Ensino Médio. Pensar o
local enquanto estratégia de ensino aproxima-se dos interesses dos jovens, bem como vincula-
se a suas atividades da vida cotidiana. Ossana elenca ainda as vantagens que a História Local,
enquanto estratégia de ensino, pode trazer para o aprendizado histórico, dentre os quais
destaca-se: a) a possibilidade de inserção do estudante no seu mundo conhecido, localizando a
si mesmo e ao seu ambiente próximo na História, b) a possibilidade de atitudes investigativas
a partir das realidade cotidianas, atendendo aos anseios pessoais, c) o trabalho com escalas
menores que contribui para uma melhor compreensão das rupturas e continuidades, d) o
favorecimento das discussões acerca de histórias menos homogêneas e mais plurais, sem
silenciar as especificidades (SUKOW e URBAN, 2017).
Outra questão que nos impõe mais um desafio é “encaixar” a história local no
currículo formal definido para a disciplina escolar de História, pois “dar conta” dos conteúdos
estabelecidos pelo currículo formal dentro dos tempos de aula delimitados para a disciplina já
é um desafio para a maior parte dos professores e professoras de História, quiçá incluir a
história local tentando encaixá-la nessa situação.
Porém, é possível perceber que geralmente a relação mais próxima do docente com a
localidade é um fator motivacional para a inclusão da história local em sua prática. Essa
proximidade se mostra um fator importante para o desenvolvimento de projetos, aulas,
exposições, ou qualquer outro trabalho desenvolvido nas escolas que se refiram à história local.
As relações com a localidade, as memórias, os esquecimentos, as afetividades, dentre outras
questões, muitas vezes impulsionam este docente a buscar uma interlocução entre a história
local e o conteúdo formal prescrito para a disciplina história ou mesmo quando é possível
encarar o desafio de desenvolver um projeto que fuja das prescrições curriculares oficiais.
O conceito de passado prático de Hyden White (2018) contribui para que possamos
refletir sobre esta questão. O autor demonstra como a transformação da História em uma
disciplina científica acabou por domesticar a imaginação não só sobre o passado, como
também sobre o futuro e o presente. Este passado “disciplinado” que tem como finalidade
estabelecer verdades puramente factuais, é chamado pelo autor de “passado histórico”, e,
segundo ele, diminuiu indagações mais amplas sobre os aspectos práticos que poderiam ser
derivados do conhecimento histórico. Para se contrapor a esta concepção, o historiador norte-
americano traz a ideia de um passado prático, que envolve a ação ativa de um presente que
busca não o simples empirismo de provar o que aconteceu, mas de encontrar no passado um
significado que lhe dê razões para ações a serem tomadas no presente em nome de um futuro
melhor do que aquilo que atualmente existe. Segundo White:
215
[...] a profissionalização dos estudos históricos requereu, pelo menos em princípio,
que o passado fosse estudado, como foi dito, “por si só” ou enquanto “uma coisa em
si mesma”, sem que qualquer motivo ulterior do que um desejo de verdade sobre ele
e sem qualquer inclinação para tirar lições de seu estudo e importá-las para o
presente a fim de justificar ações e programas para o futuro. [...] Tudo isso em
contraste com o passado prático que é estabelecido à serviço do “presente”, é
relacionado com este presente de um modo prático e do qual, então, podemos retirar
lições e aplicá-las ao presente. (WHITE, 2018, p.15).
Concordamos, portanto, com White (2014), pois acreditamos que precisamos pensar
urgentemente sobre que tipos de experiências de passado estamos deixando em nossos alunos,
especialmente se formos pensar no contexto atual que vivemos. O ensino de História carrega
consigo valores, que incluem a formação do cidadão, além da construção de identidades e
subjetividades. Nossa disciplina é uma importante ferramenta para a construção de uma
sociedade mais justa, igualitária e democrática. Certamente, não é algo simples de ser feito,
mas acreditamos que a história local pode ser uma potente aliada na construção desse
caminho, pois através dela, podemos ver a História ao nosso redor e permitir que os alunos se
reconheçam como sujeitos e produtores de conhecimentos, e que também se vejam como
objetos da História que estudam, indo, assim, além de uma História somente institucional,
biográfica, política, elitista e, muitas vezes, ainda eurocêntrica, pois, como mencionamos
anteriormente, por mais que tenhamos avançado nas discussões sobre estas questões, ainda é
possível esbarrar com práticas curriculares que insistem nesta direção. O próprio material base
com o qual trabalhamos em sala de aula, como livros didáticos ou apostilas, dificilmente
consegue dar conta das especificidades locais.
Igualmente válido para esta discussão, é trazer o conceito de memória, pois é através
dela que se chega a História Local, e no campo da memória e da Educação é importante
pensar que a memória se constitui em processos de lembrança e esquecimento que se
correlatam, uma vez que parte da memória histórica corresponde ao que foi excluído por não
fazer parte dos acontecimentos selecionados para serem lembrados. As histórias produzidas e
reatualizadas ao longo do tempo são marcadas não apenas pelas recordações e lembranças,
mas também por silenciamentos e ocultações.
A memória coletiva se transmite por meio de textos, monumentos, rituais, festas,
comemorações na família, na rua, na escola. Para além das memórias oficiais, coexistem
memórias de mulheres e homens trabalhadores, militantes, estudantes, migrantes, mesmo que
às vezes, elas encontrem-se na condição de memórias subterrâneas, que em silêncio
continuam o trabalho de subversão da memória oficial (GIL, 2019).
216
Andreas Huyssen é um autor que aprofunda estas reflexões sobre os usos políticos da
memória e suas integrações com a dinâmica do esquecimento. Segundo Huyssen (2014), na
cultura contemporânea, obcecada como é pela memória e o trauma, o esquecimento é
sistematicamente malvisto. Pensando nos casos da Argentina e da Alemanha, ele alega que o
esquecimento e a memória foram importantes no processo de transição da ditadura para a
democracia, visto que formaram uma forma de esquecimento necessária para se fazerem
reivindicações em prol de uma política nacional da memória. Segundo o autor:
[...] o opróbio continua reservado para o esquecimento, nunca para a memória. Pode
haver um excesso de memória, mas trata-se de um excesso de coisa boa. Enquanto
isso, o esquecimento continua suspenso sob uma nuvem de suspeita moral, como
uma falha evitável, uma regressão indesejável para a coesão social e cultural da
sociedade. Todos os tipos de identidade dependem dela. Uma sociedade sem
memória é um anátema. (HUYSSEN, 2014, p.157).
Huyssen (2014) nos lembra ainda que “o esquecimento precisa ser situado num campo
de termos e fenômenos como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgastem
repressão”, todos os quais revelam um espectro de estratégias tão complexo quanto o da
própria memória. Resgatar estas memórias, por meios das histórias dos moradores do bairro e
da história da própria comunidade escolar poderá trazer grande ganho pedagógico para os
estudantes, ao tornar disponíveis também as narrativas que podem ter sido silenciadas. Ao criar
vínculos com a memória familiar do local, estaremos, ao mesmo tempo, sendo cautelosos e
evitando a reprodução, em escala menor, da mesma narrativa de uma história feita pelos
“grandes” e “importantes” personagens do poder político e dos grupos dominantes locais.
Por fim, consideramos relevante trazer também a definição de “não lugares”, de Marc
Augé (1994), como conceito que justifica a relevância desta sugestão de trabalho para a
Educação Básica. Segundo o autor, o não lugar seria um reflexo do que ele denominou
“Supermodernidade”, um espaço prescritivo, de transitoriedade, que não constrói relações, e
que pode provocar uma perda de nós mesmos como grupo e como sociedade, com a
prevalência do indivíduo isoladamente. Ou seja, são espaços que não cumprem as
características do lugar antropológico e, portanto, não são identitários, relacionais ou
históricos. Tal conceito, se associado à epistemologia do saber escolar, pode nos levar a refletir,
sobre qual papel que a escola assume nesta “Supermodernidade”. É inegável a tentativa de se
fazer da escola um lugar mergulhado no mundo da economia, com enfoque na objetividade, na
padronização e no alcance de metas. Acreditamos que a história local possa ser um importante
contraponto, para fazer da escola o que Augé define como lugar antropológico, de interseção,
ou seja, aquele que permite a construção de identidades pelos sujeitos.
217
Romper com a visão da História como algo longínquo, feito por pessoas que tem uma
enorme capacidade de liderança e que envolvem somente um grupo determinado e não as
demais pessoas, apresentando uma visão que exalta o nível macro e invisibiliza o nível micro
da História, focando na tradicional divisão quadripartite tem distanciado nossos alunos da
educação básica dessa disciplina escolar que se torna assim somente um protocolo a ser
cumprido e não uma disciplina que pode contribuir para a formação do alunado para além dos
conteúdos: uma formação para a cidadania, para a vida.
No nosso caso, optamos por tentar “encaixar” as potencialidades da história local no
currículo prescrito, por isso a atividade que propomos pode a partir desta nossa opção ser
realizada no 3º ano do ensino fundamental, onde costuma se discutir o bairro, a cidade e a
localidade onde se vive, ou no 6º ano do ensino fundamental onde discutimos fonte histórica e
sujeito histórico, aproximando esses conceitos da história de vida dos alunos e familiares e
também da sua relação com o local ou no 1º ano do Ensino Médio onde geralmente
retomamos com outra perspectiva as mesmas discussões do 6º ano escolar.
A atividade que pretendemos realizar quando for possível retomar as aulas presenciais
na educação básica com segurança e com uma presença expressiva dos nossos alunos e
alunas, especificamente nas escolas onde atuamos, refere-se a um trabalho com fontes
históricas, a partir das experiências e memórias educacionais dos familiares de nossos alunos,
estabelecendo ligações com possíveis documentos que os mesmos ainda pudessem ter e/ou
guardar como cadernos, fotos, diplomas, enfim, registros de sua história e trajetória ao longo
de suas vivências escolares ou da ausência destas vivências e sua relação.
Posteriormente, vamos buscar relatos orais das pessoas consultadas pelos discentes e
deles próprios, para a partir destas narrativas e dos registros apresentados propor discussões
em sala de aula sobre nosso papel de sujeito histórico, como agentes sociais que interferem na
realidade e que também sofrem influência das relações sociais vigentes, não sendo somente
personagens passivos. A respeito da construção de narrativas diversas sobre a localidade, as
palavras de Costa (2017, p. 256) demonstram de que perspectiva de narrativa, nos referimos:
Posteriormente, vamos buscar relatos orais das pessoas consultadas pelos discentes e
deles próprios, para a partir destas narrativas e dos registros apresentados propor
discussões em sala de aula sobre nosso papel de sujeito histórico, como agentes
sociais que interferem na realidade e que também sofrem influência das relações
sociais vigentes, não sendo somente personagens passivos. A respeito da construção
218
de narrativas diversas sobre a localidade, as palavras de Costa (2017, p. 256)
demonstram de que perspectiva de narrativa, nos referimos.
A professora e historiadora Circe Bittencourt, por sua vez, ressalta que “a história
local tem sido indicada como necessária para o ensino por possibilitar a
compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre presente nos
vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho e lazer –
igualmente por situar os problemas significativos da história do presente”
(Bittencourt, 2009, p.168). Seguindo sua reflexão, ela destaca, todavia, os cuidados
para evitar que a história local não reproduza em escala menor a mesma narrativa de
uma história feita pelos “grandes” e “importantes” personagens do poder político e
das classes dominantes locais. Nesse sentido, é importante que a história local não se
limite a reproduzir, em dimensões micro, o estudo da vida e das atividades de
prefeitos e demais autoridades de determinado lugar, por exemplo. Para evitar essas
armadilhas, “é preciso identificar o enfoque e a abordagem de uma história local que
crie vínculos com a memória familiar, do trabalho, da migração, das festas...”
(BITTENCOURT, 2009, p.169).
Isso representa uma ação em que podemos partir do próximo para o distante, onde a
história local pode vir a ser um mecanismo de ligação com outros temas que estão presentes
no currículo de História, com os quais os estudantes não possuam um sentimento de
identificação promovendo uma tessitura entre os níveis micro e macro, buscando dar sentido a
conteúdos que parecem tão longínquos e inexpressivos para nossos alunos e alunas.
Em outras palavras, o objetivo do trabalho é desenvolver uma proposta pedagógica
que fará do local um constructo de pesquisa, através de uma abordagem micro para a
concepção do local como categoria de análise, pois a história local pode produzir efeitos de
reconhecimento e sensibilização nos discentes para questões que não são contempladas pela
221
análise macro. O que não significa, no entanto, o abandono deste, mas sim pensar em formas
de diálogos entre ambos, através de uma variação de escalas de observação (REVEL, 1998).
É preciso uma distância focal, que vai inserir o micro em contextos encaixados, e é
isso que vai fazer a história do local ter sentido. É um jogo de escalas que precisa ser
manipulado. Os acontecimentos são únicos, mas só podem ser compreendidos em sua
particularidade, se forem associados aos diferentes níveis de uma dinâmica histórica.
Isto significa dizer que a História Local possibilita a construção de uma História mais
plural, que não silencia a multiplicidade das realidades. Como afirma Barros (2013), através
dela podemos ensinar uma História que fala da vida das pessoas, das memórias e lembranças
dos sujeitos de todos os segmentos sociais, contribuindo assim para a formação de cidadãos
que possam ser críticos em relação à realidade na qual estão inseridos, devido ao fato de que
seus conceitos e conteúdos possam fazer com que os alunos debatam sobre o que está
acontecendo não somente sobre o passado, mas também sobre o presente e no ambiente em
que vivem. Como educadores, estaremos ensinando uma História que faz parte do cotidiano
do aluno, e assim o ensino de História para eles poderá ganhar outro significado.
Considerações Finais
223
Referências
COSTA, Aryana. História Local. In: FERREIRA, Marieta Moraes e OLIVEIRA, Margarida
Dias de (orgs). Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.
COSTA, Warley. Entre textos e imagens: a história do Rio de Janeiro narrada nos livros
didáticos de História regional dos anos iniciais do ensino fundamental. IN: MONTEIRO, Ana
Maria F.C. et alii. Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de História. Rio de Janeiro:
MauadX Editora, 2017.
GIL, Carmem Zeli de Vargas. Memória. In: FERREIRA, Marieta Moraes e OLIVEIRA,
Margarida Dias de (Orgs). Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro: FGV Editora,
2019.
SUKOW, Nikita Mary e URBAN, Ana Cláudia. História local e consciência histórica: uma
revisão bibliográfica. IN: Anais do XVII Congresso Internacional das Jornadas de Educação
Histórica- Teoria, Pesquisa e Prática. Foz do Iguaçu- PR, UNILA, 2017. Disponível em:
https://dspace.unila.edu.br/handle/123456789/4214?show=full. Acesso em: 14 de Maio de
2021.
WHITE, Hayden. Passado Prático. ArtCultura, Uberlândia, v. 20, n. 37, p. 9-19, jul-dez.
2018.
224
14. PATRIMÔNIO CULTURAL, FESTA E JOGO DIDÁTICO:
LAMBE-SUJO E CABOCLINHOS NO ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL
Introdução
85
Mestre em Ensino de História pelo ProfHistória/UFS; Licenciada em História pelo Departamento de História
da UFS; Professora da Rede Estadual do Governo do Estado de Sergipe.
225
Todas as manifestações do Largo foram pesquisadas via trabalho de campo no
intercâmbio com os grupos e estão imiscuídas no jogo (tabuleiro, cartas e cadernos de
referências culturais, atividades e regras), todavia, nesse artigo, houve a opção pela
apresentação da etnografia de percurso realizada na pesquisa de uma das estatuárias: o
Lambe-sujo e Caboclinhos.
A escolha dessa referência cultural foi motivada pelo fato de ser um “folguedo” que
reúne dois grupos que só fazem sentido na existência um do outro, trazendo à tona questões e
figuras do Brasil escravocrata, às quais permitem a compreensão da história do Brasil
escravagista e a reverberação de seus efeitos na sociedade contemporânea.
Para trabalhar com o patrimônio cultural imaterial muito além da leitura de livros,
jornais, revistas, artigos, observação de vídeos e fotografias, também é necessário um intenso
trabalho de campo, no qual as manifestações culturais são testemunhadas de perto, os
registros audiovisuais e etnográficos são coletados, sobretudo a percepção da reação subjetiva
do público e as emoções extrovertidas pelo grupo compõem um universo de experiências e
trocas onde a pesquisa se torna aprendizado contínuo.
Por isso, foram feitas imersões manifestação com observação participativa nos
municípios de Laranjeiras e no povoado Duro no município Itaporanga D’Ajuda, onde a
manifestação do Lambe-sujo e Caboclinhos ocorre, com semelhanças e distinções.
Vivenciar o momento é atravessar a tênue linha da racionalidade para a afetividade que
perpassa a vida dos sujeitos da festa, sob esse aspecto estudar folclore exige que a
pesquisadora saia de seu roteiro de apontamentos para cantar e dançar com Mestres e
Brincantes da Cultura Popular, acompanhando os cortejos, prestigiando os eventos. A
vibração das almas presentes assume o compasso harmônico do toque do pandeiro e do ganzá
e nesse momento, a pesquisa se torna também poesia.
226
Os folguedos não brotaram da imaginação, não se constituem como uma história
fictícia; eles nascem do povo, representam uma parte da nossa história, da nossa
ancestralidade e reproduzem, muitas vezes, cenas do passado histórico salvaguardadas pela
memória e oralidade.
As grandes propriedades de cana-de-açúcar, produtoras de riquezas, tinham como
força motriz da produção do seu ouro doce, o trabalho de homens, mulheres e crianças, que
chegavam ao Brasil através de uma desterritorialização forçada. Arrancando de diversas
regiões do continente africano, eram enviados para o Brasil, seres humanos, que escravizados
eram “objetificados”, negociados tal qual qualquer produto no mercado.
Eles passavam a ter um dono, “um senhor”, e a trabalhar sob a égide de castigos
físicos, sob forte vigilância de capitão do mato, o capataz. Apesar da espoliação da vida nas
propriedades escravistas, a ânsia do ser humano pela liberdade expressava-se nas diversas
formas de resistência, e dentre elas, as fugas e a criação de quilombos no meio da mata,
isolados, onde buscavam serem donos de seu próprio destino. Para Lopes, Siqueira,
Nascimento (1987, p.28), “Quilombo é o termo banto e quer dizer acampamento guerreiro na
floresta [...]. O quilombo no Brasil, toma uma feição política, social e ideológica. Foi sempre
confundido com rebelião ou insurreição”. Desse modo, o quilombo torna-se o símbolo da
resistência negra ao sistema escravocrata.
A manifestação cultural do Lambe-sujo e Caboclinhos é fruto das usinas e dos
banguês, de uma sociedade que escravizava africanos e afrodescentes, que invadia espaços,
expulsando os nativos das suas terras, ela conta a trajetória dos nossos antepassados nos
fazendo compreender que a cultura popular é uma forma de nos encontrar, Chesneax (1995,
p.24) “[...] se o passado conta, é pelo que significa para nós, [...] Ele nos ajuda a compreender
melhor a sociedade na qual vivemos hoje, saber o que defender e preservar e o que destruir”.
É uma questão sobretudo de identidade, de consciência e formação cultural do povo
brasileiro.
A escola tem o papel singular no processo de construção e compreensão de
identidades. Bittencourt (2004, p.121) afirma que: “A Constituição de identidades associa-se à
formação da cidadania, problema essencial na atualidade, ao se levar em conta as finalidades
educacionais mais amplas e o papel da escola em particular.”
Em Laranjeiras a festa ocorre no segundo domingo de outubro, quando os Lambe-
Sujos (que representam os africanos escravizados no litoral açucareiro do Brasil) e os
Caboclinhos (que representam os indígenas expulsos de suas terras, lutando para tê-las de
volta, liderados pelos portugueses) fazem uma teatralização ao ar livre de um combate entre
227
escravizados fugitivos e indígenas dos antigos Terços. Na tomada do quilombo pelos
indígenas, os escravizados fugitivos são aprisionados no conflito.
Essa representação das tensões do Brasil escravocrata se inicia no sábado pela manhã
e só termina no finalzinho da tarde do domingo. Os Lambe-sujos cobrem o corpo com uma
mistura de mel cabaú com pó xadrez preto (Fig. 2 e 3), enquanto os Caboclinhos se pintam de
água e roxo-terra (Fig. 4). Desse modo, os populares se transformam em atores entrando em
cena para reviver uma parte da história do Brasil.
228
Fonte: Foto Eliana Dias. 13 de outubro/2019.
As músicas vão ecoando pelas ruas da histórica cidade, contando um pouco de nossa
história, da nossa estrutura social, da nossa origem cultural:
Oia a Nega cum brinco na urêa
Essa Nega tá danada
Tá cum brinco na urêa
Essa Nega vai pra fonte, vai cum brinco na urêa
Essa nega vai lavar, vai cum brinco na urêa
Essa nega vai namorar, vai cum brinco na urêa.
Em toda a parte da cidade ao som dessas canções as pessoas dançam e cantam. Não
existe idade para fazer parte da festa, o pertencimento é construído nos braços dos pais. E
durante toda a festa, em todos os lugares, fotógrafos de diversas partes do Brasil não poupam
esforços buscando os melhores ângulos de registro.
Com o Pai Juá, os lambe-sujos seguem para buscar a mãe Suzana (única figura feminina
do folguedo) que sai com cesto na cabeça. A mãe Suzana (Fig. 14) aguarda em casa a chegada
dos Lambe-sujos, e pai Juá a cumprimenta. Então ela segue com ele palas ruas da cidade.
Os instrumentos musicais utilizados nessas manifestações são pandeiros, ganzás,
cuícas e tambor e a influência africana nos ritmos é forte, como não poderia deixar de ser. Os
lambe-Sujos cantam para mãe Suzana enquanto ela sai de casa:
Cadê mãe Suzana, ô Suzanê!
Mãe Suzana morreu, ô Suzanê!
Tá no oco do pau, ô Suzanê!
Tocando berimbau, ô suzane.
230
período pós-abolição, a cabeça da mulher negra, era usada um instrumento de trabalho para
transporte de produtos como frutas, quitutes, doces, para venda.
Fonte: Foto Eliana Dias. 13 de outubro / 2019; Fonte: Site Brasiliana Fotografia, 2020
Os comparativos com as fotos da mãe Suzana (Fig. 14,15, 16 e 17) mostram claramente
traços entre as imagens da história do Brasil e as imagens do folguedo aqui descrito.
Fig. 16: Mãe Suzana Fig. 17: Cena de Carnaval
Fonte: Foto: Eliana Dias. 13 de outubro/2019 Fonte: Site Arte artista, 2020
231
seguem pelas ruas da histórica cidade e no trajeto a imagem das crianças participando da festa
é comum (Fig.20).
O grupo anda até a casa da princesa dos caboclinhos, protegida por dois caboclinhos, e
a partir daí a princesa (Fig.19) integra o grupo e eles seguem pelas ruas com embaixadores,
brincantes e tocadores. Passam por sua taba, próximo à praça da Igreja Matriz, feita de
taquara e vão para o porto do Largo do Quaresma, nas margens do rio Cotinguiba, afluente do
rio Sergipe e lá fazem o reconhecimento do quilombo.
Fig. 18, 19 e 20: Os Caboclinhos em cena
Os africanos capturados e feito cativos, tinham sua liberdade aprisionada, não sua
cultura. O ser humano é feito de cultura, os homens brancos europeus conseguiam prender
seus passos, mas nunca a fé que os acompanhava, nem o canto guardado no peito. Africanos e
seus descendentes sofreram as mais diversas violências físicas, ainda assim, mantiveram suas
tradições e afirmaram sua presença. Uma mescla de diversas culturas africanas aportaram no
Brasil, formando a singular e rica cultura brasileira. Sergipe conta essa história de Laranjeiras
à Itaporanga d’Ajuda.
No povoado Duro no município de Itaporanga d’Ajuda, cidade banhada pelo rio Vaza-
barris, o folguedo Lambe-Sujo e Caboclinho (Fig.27) é mantido há várias gerações. Os corpos
são cobertos de óleo de soja de uso doméstico, misturado ao pó xadrez preto, calção preto ou
vermelho e gurita vermelha na cabeça, são os Lambe-Sujos. Com água e roxo-terra sobre o
corpo, calção e cocar de penas de aves, estão prontos os Caboclinhos. Aqui, o local de refúgio
dos lambe-sujos se chama rancho (Fig.25) e de frente para o local dos índios, ambos iguais,
feitos de palha de coqueiros, pindoba, de dendê, localizada na área de cultura, esporte e lazer
do pequeno povoado.
233
Fig. 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 32: Mosaico da festa em Itaporanga d’Ajuda (SE)
235
Assim, eles passam a manhã até chegarem ao povoado Araticum, nas proximidades do
povoado Duro, onde acontece o segundo encontro do folguedo. Primeiro chegam os Lambe-
Sujos, depois os Caboclinhos. Lambe-sujos e Caboclinhos não se misturam, cada um fica com
o seu grupo (Fig.28 e 29), sendo um momento especial, é nesse povoado que eles pegam as
rainhas dos Lambe-Sujos e a dos Caboclinhos. O momento é aguardado com ansiedade e
atenção pelos moradores do local, a saída delas reúne muitas pessoas e os brincantes (reis e
mestres) se emocionam, depois de uma apresentação, cada um segue com seu grupo. Logo
após, há o embate.
A opção pelo caminho dos jogos se deu devido aos benefícios que a atividade lúdica
provoca no processo de ensino-aprendizagem, a presença do desafio, do entusiasmo, da
movimentação, da inquietação, que é inerente ao ato de ludicidade presente no jogo, o desejo de
superar os limites, a relação com o(s) outro(s) jogadores e o caminho para a conquista da vitória.
236
Ao brincar e jogar na rua ou na escola podemos sentir em situações de acolhimento
étnico-cultural: valorização, receptividade, conforto e alegria. Como também, em situações de
tolhimento étnico-cultural: desvalorização, constrangimento, desconforto e tristeza. De um
modo ou de outro são momentos de aprendizagem que, no entanto, oscilam entre prazer e dor,
devendo as primeiras serem encorajadas e as segundas banidas de nossa sociedade
(PEREIRA; GONÇALVES JÚNIOR; SILVA, 2009, p.1).
O jogo com a representação do patrimônio cultural sergipano chama-se “Ponteiros da
Memória: Educação Patrimonial no Ensino de História em Sergipe”, (Fig.33 e 34) com o
formato de meia lua, incluso elementos culturais do Largo, e ponteiros que quando girados,
para onde o maior deles apontar, inicia o jogo. Há uma trilha, e a cada casa, uma surpresa, a
cada carta, uma curiosidade vai colocando o participante mais próximo ou mais distante do
ponto final da trilha, que é iniciado no barco de fogo, localizado no centro do monumento e
tem ele mesmo como ponto de chegada.
Foram feitas validações do jogo com alunos do Ensino Fundamental (Fig.36), Ensino
Médio, Graduações da UFS (Fig. 37 e 38) e ainda com os Mestres dos Folguedos. A
238
validação feita em uma instituição escolar no bairro industrial, em Aracaju/SE, foi aplicada
ao Ensino Fundamental II (Gráfico 1) e 11 estudantes responderam a tabela de registro.
Gráfico 1
Nas sugestões encontrou-se pedidos de “fazer um aplicativo do jogo pra poder jogar
em celular”. Outra mensagem chamou atenção ao dizer “A missionária da minha igreja que
veio do Paraná, diz todo dia que aquilo ali é tudo representação do demônio, mas não é, é só
cultura, o joguinho me mostrou isso bem”. Mais uma vez encontramos o Largo como algo
ligado a forças negativas e mais uma vez observamos a relevância do Ensino de História na
formação de um cidadão livre de preconceitos e por isso a responsabilidade que temos com a
história, com memória e com a formação da sociedade.
Fig. 37 e 38: Validação do jogo nas Licenciaturas em Geografia e em História da UFS
239
Considerações Finais
240
Referências
BRASIL, LDB, 1996, BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Brasileira - LDB
(1996). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm, Acesso em:
03/12/2018.
CHESNEAX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995, p.24.
LOPES, Helena T.; SIQUEIRA, José J.; NASCIMENTO, Maria Beatriz. Negro e Cultura no
Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO, 1987.
241
PARTE 05 –
HISTÓRIA, LITERATURA
E AUTOBIOGRAFIA
242
15. LITERATURA E CONSTRUÇÃO DE SABERES HISTÓRICOS
Introdução
86
Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins (2017). Atua como professora da
educação básica pela Secretaria de Educação do Estado do Tocantins.
87
A Educação Histórica é uma das correntes teóricas que vem ganhando cada vez mais espaço nas produções
acadêmicas sobre ensino de História, no Brasil e no mundo. Na Alemanha, essa corrente se inspirou nas
propostas do historiador, filósofo e pedagogo Jorn Rüsen, que é referência no campo da Teoria da História e que,
243
por Jorn Rüsen, pressupõe o ensino e aprendizagem em História como um processo que
ultrapassa a ministração de conteúdos, o percebendo como uma produção narrativa com
critérios próprios, que o distinguem de outros relatos.
Diante disso, propusemos a aplicação de um procedimento didático pedagógico,
pautado na produção de conhecimento histórico, em sala de aula e, para tanto, a nossa
proposta lança mão da fonte literária para subsidiar tal produção.
Na nossa concepção, a literatura, quando vislumbrada como fonte de produção de
conhecimento histórico, potencializa a investigação da dimensão imaginária da sociedade de
um período, indicando as sensibilidades de uma época. Ela indica traços de historicidade que
não estão presentes em todas as fontes históricas, nem, tampouco, nos materiais didáticos,
adotados pelas escolas. Afinal, ela nos leva para: “os imaginários sociais e seus os símbolos
(...), os mitos, as religiões, as utopias e as ideologias” (BACZKO, 1985, p.312). Outro aspecto
dessa narrativa, é que ela pode ser encarada como enunciadora da experiência humana no
tempo (RICOEUR, 2010) e nos permitir reconhecer “outras experiências com o tempo,
diferentes das experiências oferecidas pela história verificável” (CAMPOS, 2010).
Assim, acreditando que essa proposta didática pedagógica pode levar os educandos a
vislumbrarem a subjetividade do conhecimento histórico, as especificidades da sua produção
e as várias interpretações do passado, decorrentes de tais questões, nos propomos a tal
empreitada com uma turma da 3ª série, do Ensino Médio, do Colégio Militar do Tocantins –
Unidade III, localizado na cidade de Araguaína/TO88. E, para efetivarmos tal exercício, junto
aos nossos alunos, escolhemos dois contos do autor Monteiro Lobato, Urupês e Velha Praga,
ambos escritos na década de 1910. A escolha dos referidos contos, deu-se em função de
estarmos, na época em que aplicamos a atividade proposta, trabalhando o período da
República Velha com a turma em questão. E, dentro dos temas e assuntos abordados sobre
esse período, na História do Brasil, queríamos nos remeter aos conflitos entre o tradicional e o
moderno, vivenciados pela sociedade nacional com a implantação da República. Dessa forma,
também, passou a investigar metodologias para compor uma didática específica para o ensino de História e, a
partir dos seus pressupostos teóricos tem influenciado outros pesquisadores a se especializarem no campo da
Educação Histórica. Podemos destacar, como grandes expoentes da chamada Educação Histórica, Isabel Barca,
que vem desenvolvendo pesquisas na Universidade do Minho, em Portugal e Peter Lee, que coordenou vários
projetos de investigação relacionados ao ensino e aprendizagem de História no Reino Unido. No Brasil,
contamos com as pesquisas de Maria Auxiliadora Shimidt, que preside a Associação Iberoamericana de
Pesquisadores em Educação Histórica-AIPEDH.
88
Nessa Escola, que iniciou suas atividades no ano de 2016, vinculada à rede pública estadual de ensino,
trabalhamos como professora de História, em regime de 40h semanais. Localizada em uma região periférica da
cidade, essa unidade escolar atende alunos de vários bairros da cidade. A turma escolhida cursa o 3º ano, do
ensino médio e estuda no turno da manhã. Composta por 34 alunos, entre 16 e 18 anos de idade, tem apenas um
pequeno grupo que também trabalha, no período da tarde e, a grande maioria, desses alunos, cursou as séries
anteriores, também em escolas públicas.
244
pelos enredos e tramas, dos referidos escritos, se remeterem a essa situação específica, eles
passaram a compor as fontes empíricas, que nossos alunos analisam em sua prática de
construção de saberes históricos.
Ademais, esses contos de Monteiro Lobato foram eleitos para pautar a referida produção
discente, por serem escritos de um gênero literário que, por oferecer uma leitura curta, porém
rica em informações, facilita o interesse e entendimento dos alunos. Pois, diferentemente do
romance, tanto no tamanho, quanto na forma, o conto é uma narrativa estruturada a partir de
poucos personagens, sem muitos atributos de personalidade ou funções que assumem na trama,
facilita a sua leitura e interpretação, pelo leitor (GOTLIB, 2006, p. 21).
Importante destacar, que na aplicação do procedimento pedagógico proposto, nos
inspiramos na metodologia, da chamada etnografia. Pois, em todos os momentos do trabalho
com os alunos, lançamos mão da observação direta. Além disso, assumimos, dentro de nossa
pesquisa, uma posição participante, mediando o processo de ensino aprendizagem e
interferindo, efetivamente, nele.
Sobre a Literatura, é importante salientar que esta estabelece uma ligação com a
realidade a partir do momento em que observamos as suas condições de produção e
circulação. Nela, de acordo com Umberto Eco (2003), encontramos um universo das obras
literárias que constroem “lugares dos quais onde, através da educação e da discussão,
poderiam chegar até eles [os leitores] os ecos de um mundo de valores” (ECO, 2003, p. 12).
Assim, ao analisar essa espécie de narrativa e as formas como elas se configuram, podemos
entrever experiências humanas diversas através do tempo.
Na narrativa literária, podemos destacar algumas estratégias que buscam conferir o
efeito de real a partir da historiografia. Nesse caso, apresentaremos três delas: A primeira é a
busca por um referencial ou uma ilusão de realidade. A referencialidade seria um conjunto de
textos que relaciona o mundo com o texto escrito. No entanto, na narrativa literária não existe
um compromisso em atestar o que se apresenta por meio de fontes e métodos. É uma
artimanha para prender o leitor, que se vê como um espectador do tempo adquirindo
conhecimento histórico, de duas formas “ou ele se satisfaz com o painel oferecido pelo
romance como sinônimo da verdade histórica ou o romance funciona como motivo para
seguir rastros de outras pistas historiográficas” (NASCIMENTO, 2011, p. 63).
245
A segunda dessas estratégias utilizadas pela literatura é o recurso do insólito 89. Este
recurso promove uma contraleitura, buscando desmitificar a história colocando em jogo uma
simbólica teia de sentidos com uma proposta de superação do tempo linear. Uma maneira de
identificarmos esse recurso é conhecida como a mise en abyme onde a narrativa se apresenta
como uma estrutura em abismo, ou como a narrativa de outras narrativas. O recurso do
insólito também pode aparecer como um estranhamento. Para Ginzburg (2001), “o
estranhamento é um meio para superar as aparências e alcançar uma compreensão mais
profunda da realidade” (GINZBURG, 2001, p.36).
Por fim, o terceiro elemento em questão é o tempo. Ricoeur (2010) defende que a
análise das narrativas, sejam elas históricas ou ficcionais, devem dar primazia ao tempo, pois
“o desafio último, tanto da identidade estrutural da função narrativa quanto da exigência de
verdade de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana”. (RICOEUR,
2010, p. 15).
Nas observações de Peter Gay (2010), o referencial das obras literárias está pautado
em uma tríade de motivações: a sociedade, a arte e a psicologia. Para o autor, essas três
categorias são utilizadas na criação de seus personagens, de modo que elas se enlaçam,
invadindo-se e tornando o ato da criação um processo imbricado (GAY, 2010, p. 24). É
possível que, em determinadas obras, se verifique a preponderância de uma delas, dando ao
texto proporções únicas.
Diante disso, a literatura é uma fonte de grande valor que nos propicia uma renovada
representação da sociedade, bem como de uma época. Ela pode nos indicar o imaginário que
os grupos humanos constroem sobre si mesmos, tais como mitos, ideologias, conceitos,
valores etc. Assim como a história, a literatura é uma das formas que possibilitam ver o
mundo, sendo que a história tem a pretensão de alcançar o real acontecido e a literatura não
tem esse mesmo compromisso.
89
Ver sobre: NASCIMENTO, Naira de Almeida. Ficção histórica contemporânea: desdobramentos e
deslocamentos. In.: WEINHARDT, Marilene (org.). Ficção histórica: teoria e crítica. Ponta Grossa: Editora
UEPG, 2011, p. 57-94.
246
A literatura, como qualquer forma de arte que venha a ser tratada como fonte
histórica, precisa ser relacionada com a realidade na qual produzida. De acordo com Cândido
(2011), essa relação pode ser entendida sob duas feições: “a primeira consiste em estudar em
que medida a arte é expressão de uma sociedade; a segunda, em que medida ela é social, isto
é, interessada em problemas sociais” (CÂNDIDO, 2011, p. 27). Para esse autor, a literatura,
por sofrer interferência do meio social, no qual foi produzida, sempre carrega um traço de
“agregação” ou de “segregação”.
90
O conceito de interdisciplinaridade que compartilhamos é mesmo proposto por Yared (2008) que o considera
como um “movimento (inter) entre as disciplinas, sem a qual a disciplinaridade se torna vazia; é um ato de
247
promover nos alunos a criação de uma visão interdisciplinar do saber que pode ser
caracterizada como uma nova atitude em relação à produção de conhecimentos, possibilitando
o acesso aos aspectos implícitos da aprendizagem, ou seja, proporciona a obtenção de uma
postura interdisciplinar, a saber, uma mentalidade de diálogo profundo e verdadeiro que busca
recuperar uma totalidade cognitiva dos saberes (YARED, 2008, p. 162).
À vista disso, Lee (2006) considera que o conhecimento escolar do passado e
atividades estimulantes em sala de aula são inúteis se estiverem voltadas somente à execução
de ideias de nível muito elementar (LEE, 2006, p. 136). Assim, como premissa para atingir a
literacia91 histórica acreditamos que a narrativa literária contribui para desenvolver outra
habilidade necessária para que a aprendizagem histórica se efetue, isto é, desenvolver nos
alunos a capacidade imaginativa para conceber que as explicações históricas podem ser
motivadas e condicionadas por grupos que reivindicam justificativas históricas para questões
sociais atuais, propondo por meio destas mudança de padrões, crenças e valores e, não menos
importante “que as considerações históricas não são cópias do passado”, mas respostas a
determinadas perguntas elaboradas sobre o passado, não sendo sequer a resposta por
completo.
Diante dessas considerações, entendemos que a narrativa literária também contribui para
o ensino de História, pois se configura em forma de narrativa e, de acordo com Rüsen (2001), as
narrativas, são um procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e ao mundo,
relacionando o passado ao presente através de uma lógica própria da narrativa, o que acaba por
condicionar o pensamento dos homens sobre o passado e levando-os a elaborar um pensamento
histórico sobre ele, isto, formando uma consciência histórica (RÜSEN, 2001, p.149).
Em sala de aula, o contato com outra forma de narrativa que não a histórica
oportuniza o aprendizado histórico não apenas de forma cognitiva, mas como um processo
que gera as habilidades necessárias ao trabalho abstrato da análise do passado como a
experiência, a interpretação e a orientação dos indivíduos no tempo, pois:
reciprocidade e troca, integração e voo; movimento que acontece entre o espaço e a matéria, a realidade e o
sonho, o real e o ideal”. YARED, 2008, p. 165.
91
Historiador e filósofo inglês, Peter Lee, desenvolveu o conceito de literacia histórica dialogando,
principalmente, com o campo da Teoria da História e o da Didática da História, tendo como principal
interlocutor o alemão Jörn Rüsen. Para Lee, a literacia histórica é a capacidade de “ler do mundo” conjugada ao
conhecimento histórico. Ver sobre: LEE, P. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar em Revista.
Curitiba. Especial. Dossiê: Educação Histórica, 2006, p. 131-150.
248
cultural da vida prática humana. (RÜSEN, apud, SCHMIDT, BARCA e MARTINS,
2011, p. 44).
92
Ainda no primeiro encontro, organizamos um plano de trabalho, estabelecendo as etapas e as datas para a
realização da metodologia. Nesse momento, observamos que a turma fica dividida: um grupo de alunos sente-se
extremamente desafiado e entusiasmado com a possibilidade de construir algum saber histórico, demonstrando
até certa ansiedade para que essa metodologia fosse iniciada. No entanto, um segundo grupo, por acreditar que
esse tipo de conhecimento só possa ser construído na academia, demonstra pouco entusiasmo para tal tarefa.
93
Tal tarefa foi desenvolvida, de forma individual, no último encontro, contemplado para o exercício da nossa
proposta didático pedagógica.
94
Durante a aplicação desse procedimento pedagógico, recorremos à etnografia. Afinal, em todo o processo de
sua efetivação, houve, por meio da observação, a nossa direta interferência. É a chamada observação
participante, que ocorre quando o observador assume a função de mediar a aplicação da prática e, ao mesmo
tempo, em que interfere nesta, observa as reações mediante sua intervenção, pois: “é a partir da dialética entre
pesquisador e sujeito-objeto que se inicia o processo, estabelece-se as relações com o contexto a ser pesquisado,
desenvolve-se o trabalho de coleta de dados, processa-se as análises e se constrói o trabalho científico”
(MATTOS, 2011, p. 25).
249
Sensibilidades
Algumas das sensibilidades, perpassadas nas obras literárias, estão presentes nas
narrativas produzidas pelos alunos sobre o período da República Velha. Pois, na grande
maioria desses escritos, principalmente aqueles que se referem ao conto Velha Praga, há a
referência ao sentimento de preocupação com o advento da Primeira Guerra, que permeava a
sociedade brasileira, da época. Exemplo disso, pode ser observado nesse trecho da narrativa
da aluna ACGR (F)95.
O que mais chama a atenção na narrativa, dessa aluna, sobre essa questão, é o modo
como ela identifica as implicações diretas da guerra sobre a população brasileira, isto é, a
aluna reconhece, por meio do recrutamento e envio de soldados brasileiros para a Europa,
como essa guerra era encarada pela sociedade da época, ou seja, esse conflito não era apenas
um espetáculo a ser assistido, mas compelia o envolvimento da nação brasileira.
Verossimilhança
Uma das questões que trabalhamos com nossos alunos acerca da fonte literária foi a
verossimilhança, que nada mais é do que a influência de uma dada realidade trazendo para sua
escrita, vestígios do passado, indícios de uma época.
Por meio dessa narrativa, percebemos que o aluno PHSM (M) identificou a
imbricação entre a realidade do autor e a construção da sua narrativa ficcional. Situação que o
leva a perceber os Contos, de Lobato, como documentos históricos, permeados de
verossimilhança e, por isso, riquíssimos no que diz respeito a indícios de historicidade. Além
95
Para não expormos a identidade dos discentes que produziram as narrativas analisadas, optamos por indicar
apenas as iniciais dos seus nomes, bem como fazer menção, entre parênteses, ao sexo a que pertencem.
250
disso, o aluno destaca a importância do papel do leitor diante de um documento como esse,
reconhecendo que “qualquer obra literária é evidência histórica objetivamente determinada -
isto é, situada no processo histórico -, logo apresenta propriedades específicas e precisa ser
adequadamente interrogada” (CHALOUB; PEREIRA, 1998, p.7).
Durante a análise dos contos, nossos alunos foram orientados a buscar as influências
exercidas pelo meio social sobre a obra do autor, pois como afirma Cândido (2011) o caráter
social da obra de arte “depende da ação dos fatores do meio, que se exprimem na obra em
graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a
sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando nele sentimentos e valores” (CÂNDIDO,
2011, p. 30).
Nesse ponto, observamos que a maior parte dos alunos lançaram mão da biografia do
autor, que foi trabalhada, em sala de aula, para chegarem à conclusão de que Monteiro Lobato
apresenta uma literatura de agregação, tendo em vista que o autor reforça a ideologia do grupo
que exercia o domínio político do país, conforme podemos verificar na narrativa do aluno
NRS (M).
De acordo com os contos de Monteiro Lobato que abordam lados da história, dos
fazendeiros e dos caboclos, devido ao fato de Monteiro ser um fazendeiro e ele faz
uma narrativa em prol de sua classe social e classifica os caboclos como uma praga
(SILVA, 2017, p. 63).
Empatia Histórica
O destaque que o aluno MVFS (M) deu a personagem que é alvo das críticas do
autor, o levou a buscar menos a motivação de Lobato para criticar o caboclo e se dedicar em
tentar justificar o que levaria o matuto a agir conforme os contos relatam. Em seu exercício de
empatia, o aluno tentou compreender o papel social da personagem e verificou, com base nos
conteúdos estudados, que o grupo social que está representado na figura do camponês é um
grupo que assumiu uma posição de subserviência, diante da elite social do período. Essa elite,
que possuía além do poder econômico, o poder político, limitava as opções do caboclo, que
96
A educação histórica divide os conceitos fundamentais em História em duas categorias, para que haja a
compreensão do conhecimento histórico: conceitos substantivos e conceitos de segunda ordem. Os primeiros
correspondem aos conteúdos de História como renascimento, revolução, entre outros; já os conceitos de segunda
ordem são compreendidos como os conceitos básicos para que possa compreender quaisquer conteúdos
substantivos como, por exemplo, progresso, desenvolvimento, época, etc. Ver sobre: SCHMIDT, Maria
Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. 2ª ed. – São Paulo: Scipione, 2009, p. 23.
252
não oferecia resistência ao sistema e, se o fazia, não era de se admirar que não agisse com ares
de contestação e rebeldia.
O Tempo
No Ensino de História, o tempo é uma das categorias fundamentais que devem ser
trabalhadas em sala de aula. No entanto, a habilidade mental exigida para que essa categoria
tão abstrata seja aprendida pelos alunos, transforma o tratamento com o tempo, um dos
maiores desafios do professor de História.
Ao analisarmos as narrativas dos alunos em relação ao elemento tempo,
reconhecemos, também, os seus esforços em identificar algumas características peculiares do
seu próprio tempo. Partindo da análise dos contos, os educandos puderam compreender o
tempo para além de uma mera sequência cronológica, lidando com algumas noções temporais
como: sucessão, duração, simultaneidade, mudanças e permanências, continuidades, etc.
(SHIMIDT; CAINELLI, 2009, p. 98). Essas noções contribuem para ordenar os
acontecimentos, para que o aluno possa estabelecer as relações de causalidade, além de
contribuírem para que os alunos possam explicar o presente por meio da análise do passado e,
ao mesmo tempo, considerar o passado em meio às suas peculiaridades.
Nessa narrativa é possível afirmar que a aluna KBK (F) utilizou a noção temporal da
simultaneidade para reconhecer que a falta de solução para o problema das queimadas na
Serra da Mantiqueira, estava relacionada à guerra na Europa, que ocorria
contemporaneamente. Por meio dessa observação, a aluna também afirmou que esse fato
representava a prioridade que a sociedade brasileira concedia às questões externas, em
detrimento do que ocorria no país. O trecho da narrativa, que melhor releva essa
simultaneidade, ocorre em torno do jogo de sentidos agregados pela aluna à palavra fogo,
ressaltando que o “fogo real” estava atingindo o Brasil com maior impacto do que o “fogo das
armas” da Primeira Guerra Mundial.
Diante do exposto, podemos afirmar que, com a prática do procedimento didático
pedagógico proposto, além de conseguirmos oportunizar, aos alunos, uma melhor
compreensão da República Velha e, principalmente, uma maior reflexão e entendimento sobre
questões cruciais relativas à compreensão do passado e dos meandros da produção do saber
253
histórico, contribuímos para que nossos discentes tenham uma melhor leitura histórica, do
mundo.
Considerações Finais
254
Outro aspecto importante, que foi observado, em nossa prática, foi o exercício da
empatia histórica, efetivado por nossos alunos. Pois, por meio dela, os discentes ultrapassaram
a visão mais comum e anacrônica sobre os sujeitos de tempos diferentes, na qual o julgamento
das ações praticadas no passado é alicerçado na realidade do presente, em que os alunos estão
inseridos. Desse modo, verificamos que alguns discentes conseguiram refletir, tanto sobre a
postura de Monteiro Lobato, quanto em relação à apregoada apatia social e política do
caboclo, buscando compreender as motivações e influências que, as conjunturas da época,
impunham aos seus posicionamentos e ações.
Ademais, é possível deduzir que a turma, com a prática proposta, também
desenvolveu reflexões sobre o tempo, o que para nós é considerado um avanço extremamente
importante para aprendizagem histórica, tendo em vista que a temporalidade é uma das
habilidades que devem ser priorizadas no Ensino de História e que pressupõe “ter o tempo
como significante para que o sujeito, a partir de temporalidades diversas, possa perceber que
aprender história é reconhecer em outros tempos e sujeitos, experiências, valores e práticas
sociais” (SHIMIDT; CAINELLI, 2009, p. 106).
Além desses resultados positivos, alcançados com o procedimento didático-
metodológico adotado, destacamos que a nossa prática possibilitou o diagnóstico de alguns
fatores que podem ser considerados lacunas ou dificuldades do processo de ensino-
aprendizagem em história, na turma em questão. Dentre esses, detectamos que há, no grupo
trabalhado, diferentes graus de compreensão do passado, entre seus componentes. Além disso,
observamos que os discentes tiveram dificuldades para entender a linguagem rebuscada, dos
contos. E, sem dúvida, tais diagnósticos permitem intervenções do professor, em sala de aula,
que, por meio de atividades e metodologias próprias, pode estimular a superação dessas
lacunas por parte de seus alunos.
Contudo, acreditamos que parte dessas dificuldades se deve ao fato de que poucas
metodologias de ensino em História, terem sido aplicadas, com o intuito de promover a
construção da literacia histórica com esses alunos e, sem esse exercício, o ensino de História
não pode levar nossos alunos a compreensão de que a História “é em si uma realização
histórica, com suas próprias regras metodológicas e práticas, guiadas pela teoria” (LEE, 2006,
p. 135) e que esta fez parte da trajetória humana, desde os primeiros grupos humanos, que
procuravam formas de explicação sobre o tempo presente por meio de narrativas que
contassem suas origens.
De qualquer forma, torna-se importante ressaltarmos que, a descrição e análise do
procedimento didático metodológico proposto, nesse trabalho, bem como seus resultados, tem
255
o fito de indicar, somente, a nossa experiência com tal prática. Pois, sem dúvida, em cada
realidade, em cada grupo de alunos e professores, em que um procedimento, dessa
modalidade, é aplicado no processo de ensino e aprendizagem em história, os resultados serão
sempre diferentes. Contudo, acreditamos que, por temos atingido resultados positivos, no que
consiste à promoção da reflexão e do entendimento de questões relativas à construção de
conhecimento histórico, por parte dos alunos, essa prática pode potencializar a construção de
uma melhor leitura histórica, do mundo, por parte dos nossos discentes.
Referências
256
MATTOS, C. L. G. Estudos etnográficos da educação: uma revisão de tendências no Brasil.
In.: MATTOS, C. L. G. e CASTRO, P. A. (Orgs.) Etnografia e educação: conceitos e usos
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YARED, Ivone. O que é interdisciplinaridade? In.: FAZENDA, Ivani (Org.). O Que é
interdisciplinaridade? - São Paulo :Cortez, 2008.
257
16. REFLEXÕES SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR NO BRASIL
(1964-1985) A PARTIR DA CENSURA APLICADA ÀS MÚSICAS
“BREGAS” E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA NA SALA DE AULA
Lívia Karolinny Gomes de Queiroz 97
Isaíde Bandeira da Silva 98
Introdução
97
Cursando mestrado no Programa de Pós-graduação em Ensino de História (ProfHistória), pela Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte/UERN, orientada pela Profª. Drª. Isaíde Bandeira da Silva e graduação em
Letras-Espanhol, pela Universidade Federal do Ceará/UFC, livia.karolinny@gmail.com .
98
Universidade do Estado do Ceará/UECE e do Programa de Pós-graduação em Ensino de História
(ProfHistória), pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, isaide.bandeira@uece.br .
258
da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) com os pareceres de músicas que
foram censuradas, bem como entrevistas com cantores da música brega, censores da época,
cartas de telespectadores dos programas de TV, etc.
É de fundamental importância defender a questão de nomear o período de “ditadura
civil-militar”, fundamentada nas ideias de Reis (1997), tendo em vista que houve
envolvimento de amplos segmentos da população no golpe. Daniel Aarão frisa que “o golpe
de 1964 ocorreu com a participação de militares, populares, segmentos organizados, como a
OAB, a CNBB e a Imprensa.
Quando falamos sobre ditadura, música e censura, a tendência é que nomes como
Chico Buarque, Caetano Veloso venham à tona como imagens consagradas de artistas que
foram censurados pelo regime militar. Mas é preciso lembrar que alguns artistas do universo
“brega” também foram censurados, e por questões que não tinham ligação com protesto
político explícito. Salientamos que o nosso intuito não é negar a importância de movimentos
como “Tropicália” ou minimizar a influência de Chico Buarque, mas vemos que é necessário
falar sobre outras camadas da sociedade, outros gêneros musicais que foram censurados e são
importantes para entendermos a sociabilidade do período de ditadura no Brasil.
No final dos anos 1970, uma nova tendência surge no Brasil, através de vários
cantores com este novo estilo musical denominado brega e/ou cafona. Desde o começo da
década de 1980, se utiliza o termo “brega” para designar a música de mau gosto, geralmente
produzidas para as camadas populares; surgindo como uma forma pejorativa no que se refere
às preferências musicais das classes menos favorecidas economicamente.
A partir dessas questões surge a problemática norteadora deste trabalho, que é discutir
e analisar como a música “brega" pode ajudar a compreender a sociabilidade da ditadura civil-
militar no Brasil (1964-1985), partindo das motivações utilizadas para aplicar censura a essas
produções.
Com base no conceito de representação trazido por Chartier (1990), salientamos que a
música possui um papel importante enquanto forma de conhecimento histórico. A história
cultural é a forma como os indivíduos e a sociedade idealizam, imaginam e representam a
realidade e de como esse entendimento orienta suas práticas sociais.
Para compreender o sentido da história, nos valemos da interpretação de Rusen (2006),
entendendo que a relação temporal entre passado e presente acontece numa relação dinâmica
de representação e interpretação. Refletimos também sobre a elaboração do conceito de
consciência histórica, que acontece a partir da interpretação do passado de modo a
compreender o presente e orientar atitudes com perspectivas de futuro.
259
Recorremos a Napolitano (2002); ressaltando que as músicas podem ser um excelente
caminho para pensar a complexidade da ditadura, devem ser vistas como componentes
daquele contexto e algo relevante para uma reflexão crítica sobre o que foi a música naquele
período, a própria ditadura e seus significados atuais.
E ainda numa reflexão sobre a música brega dialogamos com o livro “Eu não sou
cachorro, não”, que rompe com alguns silêncios do que diz respeito à nossa música popular.
Araújo (2003) mostra o outro lado da MPB, onde os artistas tidos como “cafonas” não são
incluídos e “temos cristalizada, no campo da música popular, uma memória que associa o
período da repressão política no Brasil apenas aos cantores/ compositores da MPB”, sendo
que estes artistas bregas eram os que mais vendiam e atingiam a maior camada brasileira.
Cantores como Dom e Ravel e Odair José, entre outros, também foram perseguidos e vetados
pela censura no Brasil.
Existe uma intensa revisão sobre esse momento histórico e acreditamos que isto ocorra
devido às contradições que o período ainda provoca e às muitas visões e interesses que
existem sobre o mesmo. Existindo também uma tentativa de redefinir este passado tanto pelos
que vivenciaram o momento, como também pelos que investigam e interpretam com base em
documentos escritos e orais. Ressaltamos que existe uma necessidade problematização da
construção de memórias sobre o período, no debate entre as temporalidades. Como afirma
Aarão (1997), é importante perceber que a memória da ditadura está em disputa, e que
existem várias versões sobre o período.
Assim, verificamos que o período não deve ser interpretado como um jargão, e sim
dentro de uma perspectiva crítica em que os silêncios e desdobramentos do período sejam
sempre discutidos tendo em vista que as memórias do período estão em disputas.
Através de uma pesquisa documental – a qual tivemos acesso através do site censura
musical - trazemos uma análise da censura a partir da música brega e de alguns documentos
oficiais da censura, como os pareceres emitidos pelo departamento de censura, entrevistas
realizadas com cantores e censores. E ressaltamos a música brega como recurso para
compreender as disputas, versões e ficções acerca das memórias sobre a ditadura civil-militar,
através da oficina que será ministrada para estudantes do Ensino Médio, utilizaremos a
pesquisa-ação. Buscamos entender quais as ideias, opiniões e percepções desses estudantes
acerca da ditadura civil-militar e a censura.
Pretendemos com esse debate sobre música, ditadura e ensino contribuir para que as
novas gerações formulem uma visão crítica do período, reformulando uma consciência
histórica, identificando mudanças e continuidades. Por fim, esperamos contribuir com o
260
trabalho aqui proposto na ampliação de conhecimentos sobre o período e que a análise das
músicas venha trazer novos olhares (e audições) sobre a questão da ditadura e censura no
Brasil, além de dar maior visibilidade e importância a temas pouco estudados.
Quando falamos sobre ditadura, música e censura, a tendência é que nomes como
Chico Buarque, Caetano Veloso venham à tona como imagens consagradas de artistas que
foram censurados pelo regime militar. Mas durante o processo de pesquisa e produção,
tivemos contato com “documentos da censura” que nos instigaram e inquietaram, pois traziam
muitas informações sobre cantores bregas que tiveram suas músicas censuradas por fatores
que não tinham ligação com “protesto político explícito”.
Nosso intuito não é negar a importância de movimentos como “Tropicália” ou
minimizar a influência de Chico Buarque, mas vemos que é necessário falar sobre outras
camadas da sociedade, outros gêneros musicais que foram censurados e são importantes para
entendermos a sociabilidade do período de ditadura no Brasil.
Desde o começo da década de 80, se utiliza o termo “brega” para designar a música de
mau gosto, geralmente produzida por camadas populares; surgindo como uma forma
pejorativa no que se refere a preferências musicais das classes mais baixas. No final dos anos
70, uma nova tendência surge no Brasil, através de vários cantores com este novo estilo
musical denominado “brega” e/ou “cafona”. É importante ressaltar que nos últimos cinco anos
o “brega” passou por transformações, firmando-se com uma nova roupagem, acompanhado
por elementos da atualidade.
O gênero “brega” é pouco explorado na escola e em materiais didáticos, na academia e
nas pesquisas em geral, e isso já evidencia a importância de tornarmos essa temática como
objeto de investigação, que merece ser estudado e analisado de maneira mais dinâmica e
reflexiva.
Podemos, através da análise de canções bregas, entender o contexto histórico e
sociopolítico da ditadura civil-militar, como os autoritarismos do sistema implementado
261
interferiram na arte, na cultura, especificamente na música popular, por meio da repressão que
veio a se manifestar através da censura.
Ao problematizar a ausência da música brega nos acervos discográficos, Araújo (2003)
definiu esse gênero e produções como sendo parte de uma “vertente da música popular
brasileira consumida pelo público de baixa renda, pouca escolaridade” (2003, p.20).
Segundo Araújo (2013), o termo “brega” começou a ser divulgado na imprensa a partir
da década de 1980. Ao longo da década de 70, utilizava-se a expressão “cafona”. Após a
divulgação feita pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão “cafona” mantem-
se hoje como sinônimo de “brega”, como uma forma pejorativamente de designar esses
artistas românticos que começaram a fazer sucesso entre as camadas populares.
A música “cafona” ou “brega” era uma vertente considerada de “baixa qualidade”,
que, segundo o Dicionário Michaelis (2021), é um termo utilizado para designar algo de “mau
gosto”, “de qualidade inferior”, “medíocre”, “vulgar”. Composições e formas de cantar que
são consideradas exageradas e dramáticas, que não agradavam os críticos musicais.
A música é algo que está presente e tem vários papéis na vida de todos, além de ser
algo que embala as experiências humanas. As canções bregas suscitaram um enorme gosto e
curiosidade em despertar as memórias de um passado cheio de historicidade. Com base nas
ideias de Napolitano (2002); ressaltamos que as músicas podem ser um excelente caminho
para pensar a complexidade da ditadura, devem ser vistas como componentes daquele
contexto e algo muito relevante para uma reflexão crítica sobre o que foi a música naquele
período, a própria ditadura e seus significados atuais.
Na reflexão sobre a música “brega” estamos dialogando com o livro Eu não sou
cachorro, não, que rompe com alguns silêncios no que diz respeito à nossa música popular.
Vemos o outro lado da MPB, onde os artistas tidos como “cafonas” não são incluídos e
“temos cristalizada, no campo da música popular, uma memória que associa o período da
repressão política no Brasil apenas aos cantores/ compositores da MPB”, sendo que estes
artistas bregas eram os que mais vendiam e atingiam a maior camada brasileira.
Cantores como Dom e Ravel, Odair José, Nelson Ned, Paulo Sérgio, Luis Ayrão, entre
outros, também foram perseguidos e vetados pela censura no Brasil, mas infelizmente, hoje
estes cantores são pouco ou quase nada lembrados pela pesquisa acadêmica, é neste sentido
que Araújo (2003) afirma que é “preciso interrogar-se sobre os esquecimentos da nossa
história, os espaços em branco”, e fortalece a ideia do historiador francês Jacques Le Goff “
[...] devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos
documentos e da ausência de documentos.” (LE GOFF, 1996, p.109)
262
Ao falar sobre algumas ações dos fãs do cantor Paulo Sérgio, que realizam visitas
anuais ao túmulo do cantor, e de como os artistas bregas enfrentam uma espécie de
segregação musical, Araújo (2003) ressalta que:
A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isso
resumo perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se
nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida,
uma história, um mito, uma narrativa. (CANDAU, 2011, p. 16)
264
As músicas podem ser um excelente caminho para pensar a complexidade da ditadura,
pensando estas músicas como componentes daquele contexto e algo muito relevante para uma
reflexão crítica sobre o que foi a música naquele período, a própria ditadura e seus
significados atuais.
O cruzamento das reflexões sobre história, ditadura civil-militar, memória e música
pode possibilitar a contextualização das canções no período, dentro de um modo dinâmico de
pensar o sentido social e políticos das canções. Além da capacidade de pensar como foi a
censura, os porquês, a reação dos artistas e do público ao conteúdo e proibições das canções, e
elaborarmos nossas próprias ideias de como a música é importante na discussão da sociedade.
Entendemos que a música é um objeto de reflexões para analisar aspectos de nossa
sociedade, sejam eles políticos, econômicos ou sociais. Enxergamos algumas produções
“bregas” como fontes importantes, um tipo de memória na compreensão e construção de
narrativas sobre a ditadura no Brasil.
Nos valemos de uma pesquisa documental 99, trabalhamos com a intenção de refletir e
analisar documentos da censura, bem como os recursos musicais, enxergando a música
“brega” como uma fonte importante na construção da história e entendimento sobre a
sociabilidade da época da ditadura, elementos e motivações da censura e as críticas sociais
presentes nas canções bregas.
Buscaremos analisar como as memórias, músicas bregas e documentos da censura
ajudam a construir uma ideia de passado e versões sobre a ditadura civil-militar. Como foi a
censura, porque, a reação dos artistas e do público ao conteúdo e proibições das canções, e
farão suas próprias ideias de como a música é importante na discussão da sociedade.
Vemos que é importante analisar e discutir músicas como Uma vida só “Pare de Tomar
a Pílula” (1973), de Odair José, que diz o seguinte:
99
Frisamos que esses documentos foram disponibilizados do site www.censuramusical.com, dentre as fontes
documentais tivemos acesso a entrevistas realizadas com cantores, produtores e censoras da época da ditadura.
265
A música foi censurada por ir contra valores cristãos e também por ter sido lançada
quando no Brasil o governo fazia campanhas para ter um controle de natalidade entre as
populações pobres. Para os censores esta canção representava uma desobediência civil, além
de uma referência explícita à sexualidade.
Podemos falar também sobre a experiência dos cantores e compositores Dom e Ravel.
Os irmãos Eustáquio Gomes de Farias (Dom) e Eduardo Gomes de Farias (Ravel) nasceram
em Itaiçaba, no Ceará. Filhos de pai paraibano e mãe cearense, nos anos 50 mudaram-se para
São Paulo. Antes vistos como propagadores de ideias ufanistas através música “Eu te amo,
meu Brasil” (1969), composta pela dupla, fez grande sucesso com a banda “Os incríveis”,
chegou a ser rotulada como hino da ditadura.
No segundo LP Dom e Ravel fugiram da temática nacionalista, trazendo uma postura
diferente com algumas gravações que chamavam atenção para questões sociais. É o caso da
música “Animais Irracionais” (1974), uma das faixas que gerou mais incômodo para o
governo, pois a canção não estava de acordo com a ideia de “corrente de união” proposta
naquele contexto.
Essa nova proposta contrapõe o estilo ufanista presente nas canções anteriores.
Trazendo à tona uma narrativa de luta e sofrimento de pessoas que tentam sobreviver em meio
a um contexto de exploração. A canção denuncia as disparidades entre opressores e oprimidos.
Com a música “O caminhante”, Dom e Ravel conseguiram passar pelos “olhos” da
censura oficial, porém sofreram com a censura não oficial, tendo que conviver com ameaças e
represálias de fazendeiros e grandes proprietários de terra.
Uma vez, lá no Norte, na região do Araguaia” – recorda Dom – “nós cantamos essa
música num show. Na época a gente ainda não sabia o que estava acontecendo
naquela área. Mas ao final do show fomos abordados por uma pessoa ligada aos
proprietários de terra de lá. Ele me chamou a uma sala particular do clube e disse:
‘Olha, nós temos uma grande satisfação de recebê-los aqui, sabendo que vocês ainda
têm uma série de outros shows por toda essa região, então eu chamei você aqui para
lhe advertir de uma forma muito amistosa: não cantem mais essa música nesses
outros shows. Não cantem mais, porque vocês estão estimulando os nossos inimigos
contra nós. E nós não admitimos isso. (ARAÚJO, 2003, p. 43)
266
Em outro relato, questionados sobre o motivo de terem gravado essa canção, Ravel
responde o seguinte: “Porque nós sabíamos que esse problema da exploração do trabalhador
rural era muito grande no Brasil. As pessoas viviam no campo quase como escravos, com um
salário de miséria” (ARAÚJO, 2003, p.44).
Em um contexto em que havia a crítica à política social e trabalhista do regime
autoritário começava a ser pauta na sociedade, bem como o aumento da inflação e redução do
crescimento econômico era realidade no Brasil, a canção “O caminhante” era um barril de
pólvora prestes a explodir.
Diante disso, mais uma vez, ressaltamos a importância de canções “bregas” serem um
excelente recurso para compreender diferentes contextos do regime militar. E dialogaremos
com essas canções ao longo de nossa pesquisa.
Partindo de outros olhares, para além das músicas de protesto, nossa intenção é trazer
à tona esse gênero “marginalizado” como fonte importante na construção do entendimento
sobre o período de ditadura no Brasil, buscando novos olhares e significados sobre as
motivações da censura e entender aspectos importantes sobre a sociabilidade na época da
ditadura no Brasil.
Nossa pesquisa insere-se na discussão e reflexão sobre como a música “brega” pode
suscitar memórias e nos ajudar a compreender a sociabilidade da ditadura civil-militar,
ajudando a construir uma ideia de passado e versões sobre esse período da história do Brasil.
Destacamos a necessária problematização da construção de memórias sobre o período,
no debate entre as temporalidades. Durante o processo de pesquisa, poder construir um
material que seja utilizado na escola, é uma forma de ajudar da desconstrução de mitos e
estereótipos. É de fato cumprir as exigências da pesquisa histórica em buscar a
imprevisibilidade dos processos históricos em que os atores improvisam. É buscar conceitos
dinâmicos capazes de relacionar presente e passado na análise de experiências concretas de
ontem e hoje.
A música nos dá possibilidades de romper com o óbvio, levantando novas questões,
problemáticas, sendo um elemento capaz de informar, expor ou explicitar as ações humanas,
sua história, trajetórias, angústias, necessidades. Um exemplo típico da música como forma de
retrato social esteve presente no período do regime militar no Brasil, onde muitos artistas
utilizaram essa forma de expressão como meio de tornar públicas suas vivências políticas e
sociais.
Partimos das ideias de Rusen (2006), que busca em suas obras, definir um sentido para
a história da vida prática, uma função didática da história. Devemos nos questionar qual a
utilidade do conhecimento sobre censura e ditadura civil-militar para a vida prática e buscar
na teoria da história essa função didática de orientação temporal.
O sentido da história está nessa conexão temporal entre passado e presente, e acontece
numa relação dinâmica de representação e interpretação. As experiências no tempo nos
ajudam a elaborar o conceito de consciência histórica, interpretando o passado de modo a
compreender o presente e orientar atitudes com perspectivas de futuro. Partindo desse ponto,
268
queremos dialogar com músicas bregas e memórias da ditadura militar no Brasil, a fim de
construir um produto que possa ser utilizado pelos/as colegas professores/as e quem sabe ser
parte do processo de construção de memórias dos estudantes ao longo de suas vidas, no
convívio familiar, social e escolar.
Tendo uma perspectiva de analisar documentos e produzir um material-produto com
possibilidades de abordagens sobre o tema do nosso estudo, acreditamos que este é um
recurso que colabora com o processo de desenvolvimento do pensamento histórico dos
estudantes refletindo também sobre seus usos, partindo da reflexão de que estes documentos
devem ser motivadores e estimuladores, transformando-se em materiais didáticos facilitador
na compreensão dos acontecimentos históricos:
Um documento pode ser usado simplesmente como ilustração, para servir como
instrumento de reforço de uma ideia expressa na aula pelo professor ou pelo texto do
livro didático. Pode também servir como fonte de informação, explicitando uma
situação histórica, reforçando a ação de determinados sujeitos, etc., ou pode servir
ainda para introduzir o tema de estudo, assumindo neste caso a condição de
situação-problema, para que o aluno identifique o objetivo de estudo ou o tema
histórico a ser pesquisado. Desta forma os objetivos do uso de documentos são
bastante diversos para o professor e para o historiador, assim como os problemas a
que ambos fazem frente. Um desafio para o professor é exatamente ter critérios para
a seleção desse recurso. (BITTENCOURT, 2011, p.330)
269
que em algum momento existiu um contato, ainda que superficial, através das vivências de
seus pais, mães, tias, avós. Será interessante analisar essas questões e através de uma
pesquisa-ação, construir conhecimentos e visões sobre a ditadura no Brasil.
Pensamos que a produção de um guia de atividades com análises de canções “bregas”
censuradas pela ditadura no Brasil, os documentos dos pareceres expedidos pelo
Departamento de Censura, com o intuito de auxiliar colegas professores em suas práticas e
metodologias sobre música e ditadura civil-militar (1964-1985), além de dar voz ao gênero
brega, que é pouco retratado e abordado em pesquisas e materiais didáticos.
Dialogamos com o que Quinan (2016) fala a esse respeito:
Pensamos que é possível discutir música brega na sala de aula, e que este é um
recurso importantíssimo para o processo de compreensão sobre o contexto da ditadura no
Brasil. É de fato cumprir as exigências da pesquisa histórica em buscar a imprevisibilidade
dos processos históricos em que os atores improvisam. E através do uso de canções bregas
buscar conceitos dinâmicos capazes de relacionar presente e passado na análise de
experiências concretas de ontem e hoje, dramas e projetos políticos.
Entendemos como fundamental o estudo das relações de apropriação e representação
de conteúdos históricos, buscando compreender os resultados da convivência entre
representações sociais e suas relações com as vivências dos(as) alunos(as) no espaço escolar.
Recorremos a Chartier (1988), buscando a compreensão do sentido de apropriação,
quando o leitor é visto como um produtor de interpretações e sentidos e não apenas como um
consumidor do texto.
A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o
modo como indiferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos.
(CHARTIER, 1988, p. 16 e 17)
O contato com a obra, a forma de ler, olhar, escutar é um ato onde se confere sentidos
ao texto, à música, ao documento. A obra adquire sentido a partir da diversidade de
interpretações que constroem as suas significações.
270
Anular o corte entre produzir e consumir é antes de mais afirmar que a obra só
adquire sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas
significações. A do autor é uma entre outras, que não encerra em si a verdade
suposta como única e permanente da obra. (CHARTIER, 1988, p. 59)
Considerações Finais
271
Referências
Canções citadas
DOM. Animais Irracionais. In: Dom & Ravel. Rio de Janeiro: Beverly P. 1974.
DOM. Eu te amo, meu Brasil. In: Os Incríveis. Rio de Janeiro: RCA Victor P. 1970.
DOM. O caminhante. In: Dom & Ravel. Rio de Janeiro: Beverly P. 1974.
JOSÉ, Odair; MARIA, Ana. Uma vida só (Pare de Tomar a pílula). In: Odair José. São Paulo:
Polydor . 1973
272
17. RELATOS DE UMA PROFESSORA SOBREVIVENTE DA COVID-19
A Pandemia do Novo Coronavírus chegou para, entre outras coisas, expor ainda mais
as desigualdades sociais desse nosso grande e rico país chamado Brasil. “Não estávamos no
mesmo barco”, como alguns insistiam em afirmar. Estávamos, ou ainda estamos, na mesma
tempestade: alguns em iates, outros em navios, outros ainda em pequenos barcos, e a grande
maioria nadando, dando braçadas contra a maré.
A desigualdade social e econômica, tão clara e evidente em nosso país, foi sem dúvida
um dos principais fatores responsáveis pela alta taxa de mortalidade no Brasil. As medidas
preventivas atingiam bruscamente aqueles que foram impedidos de trabalhar; filas numerosas
se formavam nas agências bancárias compostas pelas pessoas que necessitavam do Auxílio
Emergencial para sobreviver. Realidades tão distintas, dificultavam ainda mais o
entendimento e o combate a Pandemia.
A Necropolítica se tornou evidente...
As políticas públicas se mostraram totalmente ineficazes e ficou cada vez mais
explícito, dentro desse processo, quais as medidas que apontavam para “aqueles que deveriam
morrer e quem deveria viver”. A proporção de leitos de UTI, para o número de habitantes de
cada região, foi um dos principais fatores que explicam a alta taxa de mortalidade assim
como, a limitação aos serviços de saúde, a falta de saneamento básico entre outros fatores que
agravaram a situação.
Para piorar as nossas mazelas, ainda estamos sob a direção de um desgoverno que
minimizou a doença e buscou priorizar a economia em detrimento da crise de saúde pública
que estamos submersos. “Em proveito do mercado, o holocausto de fez válido”.
Me chamo Eldãiny Negreiros da Silva, mulher, 40 anos, mãe, esposa, professora,
atualmente ocupo o cargo de Vice-Prefeita, aluna do curso de Pós-Graduação pela
Universidade Federal do Tocantins e, principalmente, sobrevivente à Pandemia do Novo
Coronavírus. Moro em Darcinópolis, uma pequena cidade ao norte do estado do Tocantins,
localizada a 463,2 quilômetros da capital Palmas. Segundo estimativas do IBGE hoje temos
uma população de aproximadamente 6.174 habitantes.
A cidade de Darcinópolis, ganhou destaque nas mídias estaduais desde maio de 2020,
por apresentar a maior incidência de casos de Covid-19 em todo o estado. Algo que parecia
273
tão distante de nós, tornou-se realidade de uma maneira rápida e assustadora. Vou buscar
relatar um pouquinho do que vivi nesse ano totalmente atípico de 2020.
Podem me chamar de Dany. Graduada em História e Pedagogia, fui aprovada em 2019
para a 5ª turma de Mestrado Profissional em Ensino de História – PROFHISTÓRIA, pela
Universidade Federal do Tocantins. Ingressar no Mestrado foi um sonho realizado! Confesso
que não me preparei tanto, sendo mãe, esposa e trabalhando por 40 horas semanais: tempo de
sobra não é algo que se dispõe. Quando fiz a prova fiquei confiante, sabia que havia me saído
bem, mas nunca imaginei alcançar o primeiro lugar. Nossa, eu não podia acreditar! Foi uma
vitória, uma conquista. Era como se eu dissesse para mim mesma: –Tá vendo? Você pode!
Você consegue! Toda minha família vibrou comigo. Meus pais sempre incentivaram a eu e
meus irmãos a estudar, sempre afirmavam que “o estudo é o maior investimento da vida, é
algo que ninguém nunca poderá tirar de vocês,” e de fato, o “saber” nos possibilita conhecer a
realidade na qual estamos submersos. Sou a mais velha de três irmãos, todos graduados em
História. Não sei explicar direito, mas temos uma relação muito próxima, algo indescritível e
normalmente nos apaixonamos pelas mesmas coisas. Meu irmão já é Mestre e me incentivou
bastante.
Iniciei o curso muito feliz, esperançosa e já me sentindo realizada. Mal sabia que,
difícil não tinha sido entrar no Mestrado mas sair dele [rsrsr]. Nossa primeira disciplina foi
realizada em módulo, de 09 a 13 de março do corrente ano. Já conhecia a professora Martha
Víctor dos tempos de graduação, simplesmente maravilhosa. A turma, parecia ter sido
escolhida a dedo, um pessoal muito “do bem”, esforçados e companheiros. A semana passou
rápido, deixamos tudo planejado para o nosso próximo encontro. Mal sabíamos que “a vida
não estava nem aí para o nosso planejamento”. Já na semana seguinte, mais precisamente no
dia 17 de março, saiu o primeiro decreto com as medidas preventivas às contaminações pelo
Novo Coronavírus. Muitos países pelo mundo já estavam sofrendo com a Pandemia. Para nós,
moradores de uma cidadezinha bem pequena e afastada dos grandes centros, parecia algo
distante.
Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo, uma enxurrada de informações,
muitas fake news, nos deixavam mais perdidos ainda. Não sabíamos ao certo o que fazer,
acredito que até o presente momento não sabemos ainda. O sistema de Saúde começou a
entrar em colapso, as escolas continuaram com suas atividades suspensas, comércios
fechados, distanciamento social, uso de máscara, situações novas e apavorantes. O medo
começou a povoar os pensamentos. Os decretos se repetiam a cada trinta dias, não tínhamos
274
ideia do que estava acontecendo e nem do que estava por vir, mas dava para sentir o perigo se
aproximando.
Após alguns dias, mais especificamente ao final de abril, a Secretaria de Educação
apresentou uma proposta de retorno das atividades educacionais. Adotou-se a modalidade
“aulas remotas” e foi um desafio gigante. Professores que não dominavam os recursos
tecnológicos, alunos sem acesso à internet, pais sem tempo e na maioria das vezes, sem o
conhecimento suficiente para acompanhar as atividades propostas... Foi uma angústia
coletiva. Foi necessário nos reinventar dentro desse novo cenário que ora se apresentava.
Os primeiros casos começaram a ser confirmados, Darcinópolis, uma pequena cidade
localizada a aproximadamente 463,2 quilômetros da capital Palmas, começou a chamar
atenção nos noticiários pela quantidade de casos. O pânico aumentou e os números
começaram a se tornar pessoas conhecidas. Na primeira quinzena de julho, a Covid-19 chegou
em minha casa, entrou sem ser convidado e fez estragos irreparáveis.
No dia 11 de julho, meu esposo, 43 anos, foi encaminhado ao Hospital de Doenças
Tropicais de Araguaína com sintomas da Covid-19. Quatro dias depois, precisou ser entubado
pois o quadro estava se agravando. No dia seguinte em que ele deu entrada na UTI, eu
também tive que ser hospitalizada pois, já estava com 50% dos pulmões comprometidos pelo
vírus. Nossos filhos ficaram sob os cuidados dos meus irmãos. Tudo aquilo parecia um filme
de terror.
Dias de angústia se seguiram, recebi alta hospitalar 5 dias depois. Na véspera do meu
aniversário. Confesso que havia planejado comemorar essa data de outra maneira. Mas, estar
viva e perto de meus filhos, era sem dúvida, o melhor presente que eu poderia ter. No mesmo
período, minha irmã, meu cunhado e minha filha mais velha, também testaram positivo para a
Covid. Já não havia mais palavras para descrever tanto terror. Meu esposo continuava
entubado e o quadro só se agravava. Foram inúmeras noites sem dormir. A minha fé me
sustentava, o apoio e o carinho dos amigos tornavam os dias mais fáceis. Nesse mesmo
período, um professor amigo da gente, faleceu pelas complicações causadas pelo vírus.
Infelizmente, a vaga de UTI que ele aguardava, chegou tarde demais.
Depois de alguns dias, recebi a triste notícia de que meu esposo havia tido um AVC
(acidente vascular cerebral) devido a complicações pelo Vírus. As chances de ele sair com
vida do hospital pareciam estar diminuindo. O tempo passava e, aos poucos ele começou a
reagir. As sequelas do AVC agora estavam mais perceptíveis. Tudo indicava que ele fosse
passar o resto da vida em cima de uma cama, vegetando. Não consigo descrever o que vivi, o
que senti. Foi um misto de dor, angústia, medo, desespero. Vinte e dois dias depois de dar
275
entrada na UTI, meu esposo teve alta (nesse momento, por diversas razões, comprei briga
com o hospital e questionei os procedimentos médicos – esse capítulo conto depois) e eu pude
vê-lo pela primeira vez, quase trinta dias depois dele ter saído de casa. Detalhe, meu esposo
saiu de casa aparentemente saudável, andando, falando e na garupa da moto de nossa filha.
Encontrei-o extremamente debilitado. O reencontro foi devastador tanto para mim
quanto para ele que, aos poucos começava a recobrar a consciência. Aparentemente, a pior
parte já havia passado, mas a batalha mais difícil estava apenas começando. Foram 40 dias
hospitalizado, agora podíamos voltar para casa. Todos os momentos a seguir foram muito
difíceis: o reencontro com os filhos, a clara percepção da atual situação e, o lento e doloroso
processo de reaprender a viver. Sim, meu esposo precisou reaprender a andar e aos poucos,
ser independente como antes. A reabilitação é um processo muito lento, ainda estamos
passando por ele, juntos aprendendo a reaprender.
Após a saída do meu esposo do hospital, tive que abandonar o trabalho. Infelizmente
não deu para conciliar, ele precisava de mim, era dedicação exclusiva. Tentei durante algum
tempo acompanhar a dura rotina das atividades remotas, elaboração e correção de atividades,
diários de classe, etc. Não deu. Como eu era apenas contratada, não havia muito o que fazer.
Pedi cancelamento do meu contrato e fiquei desolada: amo o que faço, sou professora por
vocação. Por pior que parecesse a situação, ainda posso me considerar uma privilegiada pois,
muitas pessoas não tiveram essa oportunidade de escolha.
Nos 30 dias que se seguiram foram muitos os desafios, grandes as dificuldades. Meu
esposo precisava de atendimento especializado e, tivemos que alugar uma casa em Araguaína,
cidade que fica a 80 quilômetros de nossa casa. Ele agora era totalmente dependente de mim,
não andava, não tomava banho sozinho, não conseguia se alimentar sem ajuda. Para
completar a rotina exaustiva, ainda tinha as constantes idas e vindas aos hospitais. O meu
cansaço físico era visível, e o que mais me incomodava era a saudade dos filhos. 30 dias após
ter saído do hospital, resolvemos voltar para nossa cidade. Uma prima muito querida do meu
esposo, se ofereceu para me ajudar a cuidar dele. A Lúcia foi um dos anjos que Deus colocou
em nosso caminho.
As atividades remotas do Mestrado, continuavam a todo vapor. Consegui concluir uma
disciplina, mas as que se seguiram não pude acompanhar. Reprovei na disciplina de
Metodologia da Pesquisa. No momento estou refazendo a mesma, junto com outra turma de
Mestrado. Conciliar os estudos e os cuidados com o meu esposo era humanamente
impossível.
276
Aos poucos, com o passar do tempo e o tratamento adequado, meu esposo começou a
apresentar grande evolução. Já conseguia andar, comer, tomar banho sozinho, e, a cada dia,
recobrava um pouco mais da memória. Apesar do extremo cansaço no qual me encontrava
(ou, seria mais correto dizer, me encontro) não podia deixar de me alegrar com cada uma de
suas pequenas conquistas.
Nesse mesmo período (incrível como tudo acontecia ao mesmo tempo), atendendo ao
desejo do meu esposo, me coloquei a disposição para concorrer ao cargo público de Vice-
Prefeita, nas eleições municipais em minha cidade. Até agora não acredito que fiz isso,
sempre fui avessa às práticas políticas ora adotadas em nossa sociedade. Meu esposo até
então, era o Vice-Prefeito da cidade, em virtude de sua doença, ficou impossibilitado de
concorrer novamente ao cargo. Entrei na disputa por ele e, com o propósito de manter seu
nome “vivo” no cenário político local. Vencemos as eleições. Hoje ocupo o cargo que era
dele, sou responsável pela casa, finanças, filhos... uffa!
Bem parecido com aqueles filmes norte-americanos, onde as pessoas trocam de vidas
por um dia: tenho a impressão de que aconteceu o mesmo conosco.
A pandemia ainda não acabou. Fala-se num segundo surto da doença e, também na
chegada de uma vacina, que por várias razões, ainda não chegou. O futuro ainda é incerto.
Não sabemos se as atividades escolares retornarão na modalidade presencial e os prejuízos
são incalculáveis. Tenho até medo de pensar no amanhã.
Atualmente meu esposo continua se recuperando, ainda depende de mim para muitas
coisas. No momento sou sua procuradora, me tornei a chefe da família, minhas
responsabilidades dobraram. Nossos filhos sofreram grandemente as consequências de tudo
isso. Antes cuidados, agora, precisavam cuidar do pai e, também, precisaram se adequar à
nova rotina de atividades escolares à distância. Contamos com ajuda de alguns familiares e
amigos. Confesso que por muitas vezes me sinto cansada e sem ânimo para prosseguir, mas
sei que preciso.
Para 2021, pretendo concluir o Mestrado. Sempre foi um sonho. Torná-lo realidade me
fará muito bem. Estudar para mim, é uma válvula de escape. Desejo encontrar um tempinho
também para cuidar de mim (é algo que no momento, se faz extremamente necessário), e
ainda pretendo desenvolver um bom trabalho nessa nova missão de vida pública. Nunca
planejei estar lá, mas já que estou, pretendo dar o meu melhor.
A única certeza que tenho é que 2020 foi um ano de muito aprendizado e que, ao
contrário do que as pessoas desejam, não, “eu não quero que as coisas voltem a ser como
eram”. Desejo que tudo possa ser bem melhor, como nunca antes fora.
277
18. SOBRE AS AUTORAS
280
Federal do Tocantins/UFT. Professora Substituta na Universidade Federal do Tocantins/UFT
(No curso de Licenciatura em História em 2009 e 2018); Professorada Rede Estadual do
Tocantins (Ensino Médio 2016-2021). Pesquisadora do Ensino de História com ênfase
Educação Histórica e História e Literatura.
Nívia Alves Sales: Mestranda em História pela UFT, com a dissertação “O Ensino de história
e as representações sobre os povos indígenas Krahô” sob a Orientação do Prof. Dr. Moisés
Pereira da Silva. Doutor em História Social pela (PUC-SP). Desde de Março de 1999 sou
professora da Educação básica na Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Estado do
Tocantins. Em 2002 comecei a atuar na Educação Superior na Faculdade de Guaraí como
docente e até 2019 como coordenadora do Curso de Pedagogia. Atuando também a partir de
2016 na rede privada de Ensino como docente em História. Já atuei na área de formação de
professores de História no programa Parâmetros Curriculares em Ação. Também cheguei a
atuar como Supervisora Escolar das Escolas da Rede Estadual de Ensino e também das
escolas indígenas.
Priscila Cabral de Sousa: Professora da Educação Básica com formação em História pela
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA (2014) e mestra em Ensino de História pela
Universidade Federal do Tocantins – UFT, campus de Araguaína – TO (2021).
Vera Lúcia Caixeta: Doutora em História Social pela UFRJ. Professora da Fundação
Universidade Federal do Tocantins. Em 2014 foi incorporada ao Programa de Pós-Graduação
em História, ProfHistória. Em maio de 2018 assumiu a coordenação do ProfHistória, UFT. Os
temas de pesquisa estão relacionados com a medicina, igreja católica, mulheres e ensino de
História.
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ISBN: xxxxxxxxxxxxx
e-book