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de História: experimentação de
tempos em Morte e Vida Severina
The Role of Literature in the Teaching of History:
Experimentation of Times in Morte e Vida Severina
RESUMO ABSTRACT
O presente trabalho visa discutir o papel This work aims to discuss the role of
da literatura no ensino da História, co- Literature in the teaching of History, as
mo modo de experimentação do tempo a way of historical time experimenta-
histórico e como metodologia de ensino tion and as a teaching methodology
que estimula a aprendizagem reflexiva, that stimulates the reflexive, critical and
crítica e sensível nos estudantes da Edu- sensitive learning in students of Basic
cação Básica. Discutiremos a respeito da Education. We will discuss about the
consciência histórica sobre o Nordeste e historical awareness of Brazilian North-
sua importância para a construção da east and its importance for the con-
identidade cultural dos estudantes e pa- struction of the cultural identity of stu-
ra os saberes profissionais situados na dents and the professional knowledge
formação de professores. Para tanto, situated in the teacher training. To this
analisaremos como a obra do poeta per- end, we will discuss how the composi-
nambucano João Cabral de Melo Neto tion of the Pernambuco poet João Ca-
Morte e Vida Severina pode ser traba- bral de Melo Neto’s Morte e Vida Seve-
lhada como mediadora dessa aprendiza- rina can be worked as a mediator of this
gem como fonte e/ou experimentação learning as a source and/or experimen-
do tempo histórico. tation of the historical time.
Palavras-chave: História; Literatura; Keywords: History; Literature; Brazilian
Nordeste; Experimentação de tempos. Northeast; Time experimentation.
mais do que ensinar fatos, eventos, falar de datas e personagens, mais do que fa-
lar do passado, o professor de história deve ser um veículo de experimentação
devem ser vistos como vestígios, como um texto cultural e proporciona ao aluno
a possibilidade de familiarizar-se com realidades passadas ou presentes, desen-
volvendo sua condição de raciocínio sobre situações concretas, dinamizando
suas reflexões, reduzindo a distância entre seu cotidiano e realidades distantes e
é bem mais do que uma habilidade pronta e acabada de ler textos literários, pois
requer uma atualização permanente do leitor em relação ao universo literário.
Também não é apenas um saber que se adquire sobre a literatura ou os textos li-
terários, mas sim uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de pala-
vras que falam de palavras, transcendendo os limites de tempo e espaço.
(COSSON, 2012, p. 203)
O retirante explica ao leitor quem é e a que vai: — O meu nome é Severino/ não
tenho outro de pia/ Como há muitos Severinos,/ que é santo de romaria,/ deram
então de me chamar Severino de Maria;/ como há muitos Severinos/ com mães
chamadas Maria,/ fiquei sendo o da Maria/ do finado Zacarias./ Mas isso ainda
diz pouco:/ há muitos na freguesia,/ por causa de um coronel/ que se chamou
Zacarias/ e que foi o mais antigo/ senhor desta sesmaria./ Como então dizer
quem fala/ ora a Vossas Senhorias?/ Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias,/
lá da serra da Costela/ limites da Paraíba./ Mas isso ainda diz pouco:/ se ao me-
nos mais cinco havia/ com nome de Severino/ filhos de tantas Marias/ mulheres
de outros tantos,/ já finados, Zacarias,/ vivendo na mesma serra magra e ossuda
em que eu vivia. (MELO NETO, 2009, p. 99-100)
Somos muitos Severinos/ iguais em tudo na vida:/ na mesma cabeça grande/ que
a custo é que se equilibra,/ no mesmo ventre crescido/ sobre as mesmas pernas
finas,/ e iguais também porque o sangue/ que usamos tem pouca tinta./ E se so-
mos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual/ mesma mor-
te severina:/ que é/ a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de
emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de
doença/ é/ que a morte severina/ ataca em qualquer idade,/ e até gente não nasci-
da)./ Somos muitos Severinos/ iguais em tudo e na sina:/ a de abrandar estas pe-
dras/ suando-se muito em cima,/ a de tentar despertar/ terra sempre mais extinta,
/a de querer arrancar algum roçado da cinza./ Mas, para que me conheçam/
melhor Vossas Senhorias/ e melhor possam seguir/ a história de minha vida, pas-
so a ser o Severino/ que em vossa presença emigra. (MELO NETO, 2009, p. 100)
A quem estais carregando,/ Irmãos das almas,/ Embrulhado nessa rede?/ Dizei
que eu saiba./ — A um defunto de nada,/ Irmão das almas,/ Que há muitas horas
viaja/ À sua morada./ — E sabeis quem era ele,/ Irmãos das almas,/ Sabeis como
ele se chama/ Ou se chamava?/ — Severino Lavrador,/ Irmão das almas,/
Severino Lavrador,/ Mas já não lavra. E de onde que o estais trazendo,/ irmãos
das almas,/ onde foi que começou vossa jornada?/ — Onde a Caatinga é mais
seca,/ irmão das almas,/ onde uma terra que não dá/ nem planta brava./ — E foi
morrida essa morte,/ irmãos das almas,/ essa foi morte morrida/ ou foi matada?/
— Até que não foi morrida,/ irmão das almas,/ esta foi morte matada,/ numa
emboscada./ — E o que guardava a emboscada,/ irmão das almas,/ e com que foi
que o/ mataram,/ com faca ou bala?/ — Este foi morto de bala,/ irmão das al-
mas,/ mais garantido é de bala,/ mais longe vara./ — E quem foi que o embos-
cou,/ irmãos das almas,/ quem contra ele soltou essa ave-bala?/ — Ali é difícil
dizer,/ irmão das almas,/ sempre há uma bala voando/ desocupada./ — E o que
havia ele feito,/ irmãos das almas,/ e o que havia ele feito/ contra a tal pássara?/
— Ter uns hectares de terra,/ irmão das almas,/ de pedra e areia lavada que culti-
vava./ — Mas que roças que ele tinha,/ irmãos das almas,/que podia ele plantar/
na pedra avara?/ — Nos magros lábios de areia,/ irmão das almas,/ dos intervalos
das pedras,/ plantava palha./ — E era grande sua lavoura,/ irmãos das almas,/
lavoura de muitas covas,/ tão cobiçada?/ — Tinha somente dez quadras,/ irmão
das almas,/ todas nos ombros da serra,/ nenhuma várzea./ — Mas então por que
o mataram,/ irmãos das almas,/ mas então por que o mataram/ com espingarda?/
— Queria mais espalhar-se/ irmão das almas,/ queria voar mais livre essa ave-ba-
la./... Vou eu, que a viagem é longa,/ irmãos das almas,/ é muito longa a viagem/ e a
serra é alta./ — Mais sorte tem o defunto, irmãos das almas,/ pois já não fará na
volta/ a caminhada./ — Toritama não cai longe,/ irmão das almas,/ seremos no
campo santo/ de madrugada./ — Partamos enquanto é noite,/ irmão das almas,/
que é melhor lençol dos mortos/ noite fechada. (MELO NETO, 2009, p. 101-102).
ser despertados para que eles próprios se reconheçam com agentes desse saber
e capazes de ampliar mais ainda essa dimensão, naquilo que Freire ensinou:
“Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” (FREIRE, 1996, p. 15). O
processo de ensino-aprendizagem deve ser construído a partir da mediação
didática docente, que, para isso, precisa considerar os saberes curriculares,
saberes profissionais e saberes da experiência (FONSECA, 2009, p. 118).
Ora, a escolha de uma obra que fora produzida sobre e no Nordeste pos-
sibilita essas reminiscências. Percebemos que muitos desses discentes viven-
ciavam situações semelhantes às elencadas no poema ou são descendentes de
“Severinos”. Percebemos a importância da mediação pedagógica em sua capa-
cidade de relacionar as situações indicadas no texto com a condição histórica
dos estudantes, seja como semelhanças e suas identidades, seja como diferen-
ças, através do estranhamento, outras formas de existir e resistir.
Assim, o trabalho pedagógico de História por meio da literatura possibi-
lita uma aprendizagem reflexiva, crítica e sensível. Reflexiva por irmos do mi-
cro ao macro histórico e percebermos como é construída a descrição dos reti-
rantes nordestinos. Crítica, por nos apropriarmos e aproximarmos dos
elementos que compõem o drama poético. E sensível porque ao final do poema
nos perguntamos: “Somos muitos Severinos?”. Quais as características próprias
da obra do autor que também nos são comuns?
São questões que envolvem e despertam as sensibilidades nos estudantes
e, com isso, possibilitam que se desperte as dimensões lúdica e cognitiva, o que
permite criar vínculo com os “severinos” – ao abrir espaço para a “simulação
e vivência, para a experimentação e degustação de outros tempos idos e pos-
síveis”, independente de sua proximidade temporal (ALBUQUERQUE JÚ-
NIOR, 2019, p. 221).
Outrossim, essa proposta interventiva nos interessa, enquanto professores
de História, por nos possibilitar a mediação da transposição didática de cultu-
ra histórica – qual seja, a forma que elaboramos as experiências humanas, si-
tuadas no tempo e espaço (GONTIJO, 2019). Assim, ao experimentar outros
tempos por meio da palavra escrita, a proposta viabilizou que discutíssemos
as três dimensões da cultura histórica: a estética, a política e a cognitiva (RÜ-
SEN apud GONTIJO, 2019).
Ao tratar do poema, evidenciamos junto aos estudantes que a dimensão
estética pode ser observada e problematizada no próprio gênero literário es-
colhido pelo autor, a poesia, assim como na escolha das palavras e do estilo
adotado para expressar suas impressões sobre o tema. Trabalhamos os poemas
como uma manifestação da sensibilidade humana e como registros de expe-
riências do passado. Nesse sentido, as palavras escolhidas para a proposta pe-
dagógica, tal qual as perguntas formuladas, tiveram a dimensão geradora, es-
timulando a formação da consciência histórica pelo reconhecimento ou pelo
estranhamento das situações estudadas.
Já no que diz respeito à política, essa característica da cultura histórica
está intrinsicamente discutida no decorrer de todos os poemas, sobretudo nas
discussões sobre o encontro de Severino com o Irmão das Almas. Além de
proporcionar a autonomia do pensamento dos educandos, as problematizações
permitem reconhecer em que medida a situação dos retirantes é apreendida
por eles e como cada um elabora sua consciência histórica acerca dos temas
tratados.
Com abordagens problematizadoras, os educandos passam a proceder à
identificação ou ao estranhamento dessas situações em relação às situações
vividas por eles, suas famílias e pela comunidade em que vivem. Com isso,
visamos ao desenvolvimento da autonomia crítica do pensamento nos apren-
dizes; a partir de elaboração de atividades como produção de cartazes, releitu-
ra da obra, recitação dos poemas, organização de saraus, para expressar, sob
diferentes linguagens o que foi apreendido nas aulas.
Por último, a dimensão cognitiva – responsável pela estrutura e organi-
zação das experiências humanas, em relação ao aprendizado de História por
meio da linguagem literária. Podemos destacar que ambas as disciplinas po-
dem tratar sobre o passado, seja por meio da narrativa fictícia ou histórica, e
que ambas também podem despertar o interesse e a compreensão sobre o
passado e suas conexões com o presente e o futuro.
uma geografia física, como também humana. Tanto a serra quanto os homens
são magros e ossudos. Nesse sentindo, além da experiência de ser sujeito em
outros tempos, o poema nos propicia abordar e problematizar com os estudan-
tes as descrições geográficas narradas por Severino ao longo de sua migração,
pois também são estudo da História as relações do homem com o espaço, e
a figura do homem está contida na natureza porque, antes de tornar-se o ser so-
cial que é, com relações entre seus pares, formando um contexto de sociedade,
ele é animal, biológico; é, dessa forma, parte integrante do que se tem como na-
tural. (PINHEIRO NETO, 2012, p. 323)
Como aqui a morte é tanta,/ só é possível trabalhar/ nessas profissões que fazem/
da morte ofício ou bazar./ Imagine que outra gente/ de profissão similar,/ farma-
cêuticos, coveiros,/ doutor de anel no anular,/ remando contra a corrente/ da
gente que baixa ao mar,/ retirantes às avessas,/ sobem do mar para cá./ Só os ro-
çados da morte/ compensam aqui cultivar. (MELO NETO, 2009, p. 115-116)
— Nunca esperei muita coisa,/ digo a Vossas Senhorias./ O que me fez retirar/
não foi a grande cobiça;/ o que apenas busquei/ foi defender minha vida/ de tal
velhice que chega/ antes de se inteirar trinta;/ se na serra vivi vinte,/ se alcancei lá
tal medida,/ o que pensei, retirando,/ foi estendê-la um pouco ainda. (MELO
NETO, 200, p. 121-122)
E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio,/ que/
também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica,/
vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim
pequena/ a explosão, como a ocorrida;/ mesmo quando é uma explosão/ como a
de há pouco, franzina;/ mesmo quando é a explosão/ de uma vida severina.
(MELO NETO, 2009, p. 144)
cia para com o diferente, com o estranho, com o distinto, com o distante, com
o estrangeiro (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019, p. 255).
Ao abordar a religiosidade popular em sala de aula, visamos discutir com
os estudantes acerca de nossa identidade cultural, como lembra a cientista da
religião Maria Augusta Torres
nossa identidade cultural foi formada sobretudo pela matriz religiosa cristã, de
cunho católico. Nossos primeiros catequizadores foram jesuítas, logo nossa cul-
tura é impregnada por uma religiosidade católica relevante, com o cultivo da
devoção aos santos, as romarias, as procissões e muitos outros. E esse projeto que
nos anos 1950 era dirimido entre as classes populares, que viviam à margem das
políticas sociais do Brasil, foi o contexto religioso da produção de Morte e vida
severina, embora nessa época já despontasse um cristianismo com certa veia
profética libertadora e comprometida com mudanças políticas e sociais.
(TORRES, 2016, s. p.)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
temas que aborda, dos meios pelos quais foi veiculada e das maneiras como foi
lida e apropriada, entre tantas dimensões que podem ser abordadas.
Além disso, a obra literária possibilita o despertar das sensibilidades esté-
tica, política e cognitiva – tão significativas no desenvolvimento do ensino de
História e de sua dimensão transformadora.
REFERÊNCIAS
NOTAS
1
Paráfrase do provérbio árabe utilizado pelo historiador francês Marc Bloch no capítulo “A
história, os homens e o tempo” do livro Apologia da História – ou ofício do historiador
(2001). Cf.: BLOCH, 2001.
2
Os autores produziram as seguintes obras, respectivamente: Auto da Compadecida (1955)
e De uma noite de festa, um auto de natal (1971). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/
wiki/Auto. Acesso em: 14 jun. 2020.