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toriador Thomas E.

Skiomore é muito conhecido entre


•nós. O seu livro Brasil: de Getúlio a Casiela, que a Editora PA /
E TERRA publicou, já está na 5*f edição e é consulta obrigatória
homas E.
T ■;!!

Skidmore
para os. que se interessam pela história política recente do
país. . . .
PRETO NO BRANCO é também um estudo de fôlego. I rãtt
das relações-de raça no Brasil' abstraindo a influência indígcqa •
centrando-se na euro-africana. O subtítulo — ffaça e NadonoU
dade no Pensamento .Brasileiro — revela o conteúdo é a meto­
dologia adotada pelo autor. Partindo' do pressuposto de que a
ideologia racial brasileira foi elaborada por. uma elite intelectual.
Skidmore estuda ás obras dessa elite entre 1870 e 1930. .Observa
‘ que, antes de T888, pòuca atenção havia sido dada ao' prOblcm;i
dás [elações de faça Como fenômeno social e suas çohseqüêheias
• • , pára q. futuro .da nSçá.o: Irifluendàda pelos preconceitos raçiai\
■\ vigorantes na" Eüropa no séc.' XIX, a/maior. parte .dessa, elite
ds. assimrla,' atribuindó o atraso.dó'Brasjl-aó, clima.tropical’e à
' / ãraçàò racjaí, esquedjda 'de'' que ,*©s .próprtcrs.europeus er
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suá Independência sob -ã- tiiícfe' ‘de “nrín mdnãrea português c a
República segundo um modelo de organização sócio-polítieu
importada. 1., ainda, a circunstância de sua elite intelectual sei
uma pequena minoria moldada pela cultura Irancesa e a tradição
jesuítica; de precisar enfrentar problemas cruciais como ít insti­
tuição de um sistema escolar generalizado a toda a população e
formar os altos quadros científicos e técnicos exigidos pelo pro­
gresso do país.
Tudo isto significa, segundo o autor, que a transformação
das instituições, e sua liberalização, resolveu alguns problemas de
BRANCO
superfície, inclusive no tocante as relações raciais em que predo­
minou a ideologia da branqui/ação. mas os de fundo, que exigem
mudanças estruturais, continuam pendentes.
RACÁ E NACIONALIDADE
*
L P A MAIS IM LANÇAMENTO PA/ 1 I ERRA
. I / l MA EDITORA A SERVIÇO DA CUÇI LRA
PAZ E TERRA
NO PENSAMENTO BRASILEIRO
o Realidades raciais e pensam ento
^ racial depois da Abolição

Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel, em nome do


pai enfermo e ausente, assinou a lei que abolia a escravatura sem
qualquer compensação aos senhores. Não era pouco o que esse
triunfo devia à flexibilidade pragmática dos donos de escravos.
Antônio Prado, por exemplo, um dos mais ricos fazendeiros de
São Paulo, apoiou a liberação incondicional (de 1888) embora
ainda em 1887 a tivesse combatido encarniçadamcnte. Os prós­
peros fazendeiros do Sul já andavam à procura de imigrantes ita­
lianos como fonte alternativa de mão-de-obra; e com a abolição
irtevitável, foram suficientemente astutos para perceber que se
presidissem ao último ato poderíam conservar em suas mãos o
controle político.

N a t u r e z a e o r ig e n s d a s o c ie d a d e m u l t ir r a c ia l b r a s il e ir a

Como esses perspicazes proprietários de terras haviam pre­


visto, a Abolição não trouxe a transformação econômica c social
esperada pelos abolicionistas — que eram mais inocentes1. Quando
se a fez o Brasil tinha, ainda, uma economia predominantemente
agrária. O sistema paternalista de relações sociais prevalecia até
nas áreas urbanas. Era o sistema de estratificação social, que dava
aos proprietários de terras brancos ou, ocasionalmente, mulatos

54

iL
i Ií ii o s ) virtual monopólio do poder — econômico, social e polí­
tico. As camadas mais baixas da população, inclusive os brancos
pobres e a maior parte dos libertos de cor, estavam acostumadas
li submissão e à deferência. Essa hierarquia, na qual a classifi­
cação social tinha muito a ver com a cor, desenvolvera-se como
parte integrante da economia colonial fundada no escravo. Mas,
ao tempo da Abolição, já não dependa da escravidão para sua
continuidade.
Precisar, exatamente, a que altura essa dependência cessou
6 questão que demanda ainda pesquisa. O (ponto) importante
(aqui) é que a maioria dos fazendeiros brasileiros, cspecialmente
os das prósperas regiões cafeeiras do Centro-Sul, chegaram a com­
preender que a Abolição não ameaçava necessariamente seu pre­
domínio econômico c social. Análise que demonstrou ser correta.
Os escravos rccém-libertados incorporaram-se à estrutura social,
multirracial e paternalista, que de há muito ensinara aos homens
livres de cor os hábitos dc deferência no trato com empregadores
e outros superiores sociais. Foi nesse contexto — a que o soció­
logo francês Roger Bastide chamou “pré-industrial” — que as re­
lações raciais prosseguiram, depois da Abolição2.
No alvorcscer no séc. XX, o Brasil exibia um complexo sis­
tema dc classificação racial de natureza pluralista ou multirracial,
cm contraste com o sistema rigidamente birracial da América do
Norte3. O meio milhão de escravos libertados em 1888 ingres­
sou, assim, numa estrutura complexa, que já incluía homens
livres dc cor (de todas as tonalidades). A cor da pele, a textura
do cabelo, e outros sinais físicos visíveis determinavam a cate­
goria racial em que a pessoa era posta por aqueles que ficava
conhecendo. A reação do observador podia ser também influen­
ciada pela aparente riqueza ou provável síalus social da pessoa
julgada, então, pelas suas roupas e pelos seus amigos. Donde o
cínico adágio brasileiro: “dinheiro branqueia” — se bem que
isso, na prática, só se aplicasse a mulatos disfarçados4. A soma
total das características físicas (o fenótipo) era o fator determi­
nante, embora sua aplicação pudesse variar de região para região,
conforme a área e o observador. O Brasil não teve nunca, pelo
menos desde o fim da Colônia, um sistema birracial rígido. Havia

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sempre uma categoria mediaria (os chamados mulatos ou mes­
tiços). A observância estrita da endogamia com base na cor,
santificada por lei nos Estados Unidos na década de 90, jamais
existiu no Brasil.
O fato de que o país tivesse escapado à rígida aplicação da
“regra de ascendência” — pela qual os antepassados e não a apa­
rência física (a não ser quanto a pessoa pode “passar” por
branca) determina a classificação racial — não deve ser exage­
rado5. As origens podiam ainda ser tidas por relevantes uma vez
que os mestiços — cm ascensão social — davam-se a grande
trabalho para esconder os seus antecedentes fenotípicos. Tal com­
portamento sugere que um mulato, a quem os traços fenotípicos
tinham permitido o desejado acesso social, podia sentir-se ainda
suficientemente inseguro para temer que a sua vivência na socie­
dade pudesse ficar ameaçada por uma redefinição de status com
base nas raízes familiares6. Pode-se dizer que o mulato foi a figura
central da “democracia racial” brasileira, por ter escalado permis-
sivamente — embora com limitações ao cume social mais elevado.
Os limites sociais da sua mobilidade dependiam sem dúvida da
aparência (quanto mais “negróide”, menos móvel) c do grau de
“brancura’ cultural (educação, maneiras, riqueza) que era capaz
de atingir. A bem-sucedida aplicação desse sistema multirracial
exigiu dos brasileiros uma apurada sensibilidade a categorias ra­
ciais e às nuanças da sua aplicação7. Provas da tensão geradas
por essa movente rede de linhas de cor podem ser encontradas
no volumoso folclore brasileiro sobre o mulato “falso”8.
Quais as origens do sistema multirracial? Para aqueles que
só conhecem uma sociedade rigidamente birracial é importante
sabê-lo.
Os quocientes demográficos dão uma chave do problema.
O Brasil já tinha antes da Abolição grande número de homens
livres de cor. Os escravos eram provavelmente, cm maior número
que os homens livres (brancos e de cor) no Brasil do séc. XVII;
e os brancos jamais constituíram maioria em nenhum lugar do
Brasil até que a imigração veio alterar radicalmente o equilíbrio
racial nos estados do Sul e do Centro-Sul. Aparentemente, a popu­
lação livre de cor crescera muito depressa no séc. XIX. Em 1819,

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ilc uma população total dc aproximadamente 3.600 mil, pouco
menos de um terço era constituído de escravos (v. tabela 1). Os
homens livres, de cor, representavam 10% a 15% da população
total. Durante o seguinte meio século essa população livre de cor
aumentou para 42% da população, enquanto que a população es­
crava ficou reduzida a menos de 16 por cento. Em 1872, havia
quase três vezes mais homens livres que escravos na população
de cor.

TABELA 1

P o p u la ç ã o e s c r a v a b r a s ile ir a c o m p a r a d a c o m a
p o p u la ç ã o to ta l, p o r re g iã o , 1819 e 1872

Porcentagem
Região * População População da população
total escrava escrava na
P- total

1819 1872 1819 1872 1819 1872

Norte 143 251 332 847 39 040 28 437 27.3 8.5


Nordeste 1 112 703 3 082 701 367 520 289 962 33.0 9.4
Leste 1 807 638 4 735 427 508 351 925 141 28.1 19.5
Sul 433 976 1 558 691 125 283 249 947 28.9 16.0
Centro-
Oeste 100 564 220 812 40 980 17 319 40.7 7.8
Total do
Brasil 3 598 132 9 930 478 1 081 174 1 510 806 30.0 15.2

* As províncias incluídas em cada região são: Norte: Amazonas,


P ará; Nordeste: Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, Alagoas; Leste: Sergipe, Bahia, Espírito
Santo, Rio de Janeiro, Corte (Cidade do Rio de Janeiro), Minas
Gerais; Sul: São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do
Sul; Centro-Oeste: Goiás e Mato Grosso.

F o n te s :para 1819: A rtur Ramos, “O negro no Brasil: escravidão


e história social”, Pedro M. Areaya et al., E s tú d i o s d e H is tó r ia de
A m é r ic a (México D.P., 1948), p. 159. Para 1872: Brasil, Diretoria
Geral de Estatística, R e c c n s e a m e n to do B r a s i l r e a liz a d o e m 1 d e se ­
te m b r o de 192 0, 5 v. (Rio de Janeiro, 1922-30), v. 1, 414.

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A existência desse numeroso contingente de homens livres
de cor criou modelos para a existência futura dos escravos alfor­
riados. Quando veio a Abolição o Brasil já tinha uma longa expe­
riência com milhões de homens de cor livres; e tinha uma tra­
dição ainda mais longa, que alcançava os primeiros séculos da
colonização, de mobilidade c ascensão social por um pequeno nú­
mero de homens livres de cor10. Havia, igualmente, padrões esta­
belecidos de movimentação do cativeiro para a liberdade. É plau­
sível que a escassez crônica de mão-de-obra branca especializada
e semi-especializada tivesse forçado os colonizadores europeus a
legitimar a criação de uma categoria de homens livres de cor,
capazes de desempenhar certas tarefas11. O mesmo processo, pro­
vavelmente, continuou no séc. XIX.
A fertilidade diferencial foi um segundo fator na criação do
sistema multirracial. A taxa a que os diferentes grupos raciais se
recompõem tem obviamente grande influência no padrão de rela­
ções raciais — grupos que crescem rapidamente passam a ter
progressivamente maior parcela do total que grupos que estão defi­
nhando12. A população escrava dos Estados Unidos, por exemplo,
cresceu numa razão relativamente rápida durante o séc. XIX. Da­
dos de recenseamento mostram que aumentou numa taxa média
de cerca de 23% por década no período de 1830 a 186013. E
desde que o tráfico de escravos nos Estados Unidos acabou em
1808, o aumento só pode ser explicado por um nítido cresci­
mento natural no seio da população escrava existente.
No Brasil, todavia, a tendência foi aparentemente oposta,
pelo menos antes do fim do tráfico, em 185014. Ao que parece,
tal fenômeno era comum naquelas economias que continuavam
a depender do comércio de escravos15 — onde as baixas taxas
de fertilidade dos negros têm sido explicadas por desvios da pro­
porção sexual (nítido excesso de homens sobre mulheres) e ele­
vados índices de doença e mortalidade16. No entanto, seria de es­
perar que esses fatores desaparecessem no Brasil depois do fim
do tráfico, com os pretos nascidos no país a exibir índice de
natalidade semelhante à do resto da população como de fato
ocorreu nos Estados Unidos.

58
Isso não aconteceu, todavia. Mesmo considerando as inexa­
tidões dos dados estatísticos brasileiros (como o classificar crian­
ças de sangue misturado cm grupo diferente do de suas mães), os
demógrafos concluíram que a população preta reproduziu-se num
ritmo mais lento depois da Abolição do que a branca e a mulata.
Pesquisas de amostragem sugerem que essa tendência (conside­
rando aqui pretos livres, não-cscravos) pode ser traçada rctros-
pectivamentc até pelo menos o começo do séc. XIX17. Seria o
caso de observar, parenteticamcnte, que essa taxa mais baixa de
fertilidade dos pretos contribuiu de maneira substancial para o
processo de “branqueamento”, cuja promoção tornou-se o co­
ração do ideal racial brasileiro que vai ser descrito abaixo. A
causa dessa fertilidade mais fraca permanece aberta à conjetura.
Uma das hipóteses mais prováveis é a da dificuldade de cruza­
mento encontrada pelas mulheres pretas18.
A relativa ausência de sectarismo no Brasil foi outro fator
que ajudou a produzir um sistema multirracial. A escravidão tor­
nou-se uma instituição regional nos Estados Unidos, enquanto que
no Brasil foi verdadeiramente nacional (v. tabela 1). No séc.
XVIII, o centro econômico do Brasil deslocou-se do Nordeste
produtor de açúcar como resultado do surto do ouro e dos dia­
mantes no Centro-Sul, c continuou para o Sul com o surto do
café, no séc. XIX. Como resultado, por volta do séc. XIX, toda
região de maior importância geográfica tinha percentagem signi­
ficativa de escravos na sua população. Em 1819, segundo uma
estimativa oficial, nenhuma região tinha menos de 27% de es­
cravos na população total (v. tabela 1).
Ao tempo em que começou a campanha da abolição, a popu­
lação escrava nacional estava concentrada — em números abso­
lutos — nas três maiores províncias produtoras de café, São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Mas, considerados como
percentagem da população total de cada região, os escravos con­
tinuavam a distribuir-se através do Império numa proporção nota­
velmente uniforme. Em 1872, quando os escravos representavam

59
até 15.2% da população nacional, nenhuma região tinha menos
de 7.8% da sua população ainda escravizada, e a taxa mais ele­
vada era apenas 19.5% (v. tabela 1). Embora algumas provín­
cias tenham feito a abolição anos antes da lei de Abolição na­
cional, as relações raciais não se tornaram objeto de jogo na polí­
tica regional. Nenhuma província pode pretender que seus inte­
resses econômicos ou que sua estrutura social tivessem sido preju­
dicados pela imposição da força por outra região do país. Obvia­
mente, devem ter havido variações regionais no relacionamento
racial durante os oitenta anos que se seguiram à Abolição. A evi­
dência até a data, no entanto, não indica variações tão grandes
que invalidem nossa tese de que houve um alto grau de seme­
lhança de tempo c de espaço no Brasil — pelo menos para o
fim que nos propusemos de estudar o pensamento racial a partir
de 187019.

A conclusão é que os homens livres de cor tiveram impor­


tante papel no Brasil muito antes da Abolição20. Haviam conse­
guido atingir considerável mobilidade ocupacional — admissão
a ocupações especializadas e, até, ocasionalmcnte, a posições pre-
eminentes como artistas, políticos e escritores — enquanto a es­
cravidão era, ainda, dominante em todo o país. Tais oportuni­
dades econômicas e sociais------ abertas aos homens livres de cor­
dão prova de que o padrão multirracial da categorização racial
estava firmemente estabelecido muito antes de 1888.

Embora a escola pluralista de classificação social tenha dado


ao Brasil uma flexibilidade que prima pela ausência em outras
antigas sociedades escravocratas, como a dos Estados Unidos, é
essencial compreender que a sociedade multirracial, não obstante,
repousava em premissas implicitamente racistas. O “caucásico” era
considerado o pináculo natural e inevitável da pirâmide social. O
europeu branco representava a “imagem normativa somática”
ideal21 — a frase cunhada por H. Hoctink para designar os ca­
racterísticos físicos mais estimados socialmente. Os brasileiros em
geral tinham o mais branco por melhor, o que levava naturalmente
a um ideal de “branqueamento”, que teve expressão tanto nos
escritos elitistas quanto no folclore popular22.

60
Curiosamente, o ideal parece ter sido realizado na prática,
como pode ser visto na figura 2. 1. Houve um rápido aumento
da população “branca” do Brasil, entre 1890 e 1950. Segundo
o reccnseamento oficial, a percentagem de brancos passou de 44%,
em 1890, para 62%, em 1950. O declínio concomitante da popu­
lação de cor foi mais sensível na categoria de mulatos, entre
1890 e 1940, quando caiu de 41% para 21%, embora tenha su­
bido a 27%, em 1950. Admite-se que os dados do senso devem
ser aceitos com cautela. A definição de categorias sociais deve ter
variado de acordo com o período histórico dos sensos, as instru­
ções dadas aos recenseadores e as implicações sociais havidas entre
estes e informantes. Sabe-se, por exemplo, que, no mais recente
período — 1940/50 — é possível fazer comparações (a ru­
brica raça foi omitida no censo de 1970 c os dados de 1960 não
foram até hoje publicados), pois houve agudas discrepâncias
nas instruções dadas aos recenseadores23. Além disso, entende-se
que as definições de fenótipos raciais tenham mudado com o
tempo. Mesmo levando cm conta todos esses fatores, conclue-se
que houve um branqueamento da população, nos últimos ccm anos,
para o qual há várias explicações aceitáveis, tais como:
Primeiro: a imigração, avassaladoramente branca. A partir de
1890, três milhões de europeus radicaram-se no Brasil. Segundo:
há evidência empírica nos dados censitários da cidade de São
Paulo (onde, na década de 20, observadores documentavam
um “déficit de negros” ) que apoiam a conclusão de que a popu­
lação negra teve uma baixa taxa de natalidade. Explica-se o fraco
índice de reprodução por vários fatores essenciais. Os escravos
importados (o tráfico cessou, como já tem sido dito, em 1850
— mas algumas levas de escravos chegaram mesmo até 1852)
eram, cm grande maioria, homens: fase que, enquanto durou, criou
um desequilíbrio no relacionamento sexual e, conseqüentemente,
um baixo índice de natalidade entre a população de cor. As mise­
ráveis condições de vida da maior parte da população de cor

61
Figura 2.1

População brasileira segundo a cor

percentagem
<la população
total

anos de recenseamento
Fonte: Brasil, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Con­
selho Nacional de Estatística, O B r a s i l e m N ú m e r o s (Rio de
Janeiro, 1966), p. 25.

podem ter contribuído também para diminuir a taxa de sobrevi­


vência dos seus filhos — o que é confirmado pelas estatísticas
vitais da cidade de São Paulo24.
Finalmente, ha uma explicação do efeito do llbranqueamento” :
isto é, a maneira pela qual a miscigenação ocorreu. Sc aceitarmos
as linhas do retrato de Gilberto Freire — e ele é corroborado
por muitas outras fontes — cumpre assinalar que os machos bran­
cos foram pais de muitas crianças mestiças, o quê, na certa, aumen­
tou a proporção de rebentos de pele clara na geração subseqücnte.
O ideal do branqueamento” — assim como o sistema social tra­
dicionalista — ajudou a influir entre homens de pele escura na
sua escolha de cruzamento racial e de ter o mesmo ativo papel
na reprodução. As fêmeas, por outro lado, movidas por uma forte
inclinação na preferência, escolhiam sempre, quando isso era pos­
sível, parceiros mais claros do que elas. Em suma, o sistema de

62
exploração sexual que dava aos homens da classe alta (c, até,
na classe média considerável licença para este comércio contri­
buiu para fazer com que a realidade social se conformasse de
maneira crescente com o ideal de “branqueamento”25.
Os brasileiros achavam até animador esse visível “clarcamen-
to” da população e sua ideologia racial ficava, assim, reforçada.
Desde que a miscigenação funcionasse no sentido de promover o
objetivo almejado, o gene branco “devia ser” mais forte. Ademais,
durante o período alto do pensamento racial — 1880 a 1920 —
a ideologia do “branqueamento” ganhou foros de legitimidade cien­
tífica, de vez que as teorias racistas passaram a ser interpretadas
pelos brasileiros como confirmação das suas idéias de que a raça
superior — a branca —•, acabaria por prevalecer no processo
de amalgamação.
Os reflexos desastrosos — e imediatos — da abolição parc-
receram dar razão à predição dos escravocratas empedernidos de
que ela traria confusão social26. Milhares de escravos deixaram
às tontas, as fazendas e mergulharam como grileiros numa agri­
cultura de subsistência onde quer que pudessem encontrar terras,
muito embora muitos ficassem logo ansiosos para juntar-se de
novo à massa trabalhadora rural e procurassem seus antigos se­
nhores. Outros muitos migraram para as cidades, que, aliás, des­
preparadas para receber tamanho influxo de oferta de mão-de-obra
não especializada. Alguns como se presumira, incorporaram-sc a
bandos de marginais urbanos cujos membros (capociristas) incre­
mentavam uma forma peculiar de ataque e defesa, aterrorizando
as cidades, assalados por aquelas multidões de cor sem eira nem
beira, largadas à sorte numa nova realidade social. Originária da
África, a capoeira fazia-os oponentes temíveis para quem quer
que não andasse preventivamente armado. Essa ameaça direta à
lei e à ordem confirmou os piores temores de muitos membros
da elite, que achavam menos embaraçoso preocupar-se com crimi­
nosos urbanos do que com as conseqüências sociais da abolição.
A atitude do público era influenciada mais pela dramatização do
processo abolicionista do que pelo número de escravos alforriados
que abandonavam o campo. Em conscqüência: a força policial foi
aumentada, e os grupos de capoeira tornaram-se alvo de penas

63
repressivas no novo Código Penal de 1890, com inclusive expul­
são do país. Tais violências reforçavam a imagem do negro como
um elemento atrasado e anti-social, dando assim à elite novo
incentivo para trabalhar por um Brasil mais branco.
Os trabalhadores não especializados que se dirigiam para as
cidades à caça de emprego encontravam poucas oportunidades.
No Sul, tinham de competir com imigrantes, muito mais bem equi­
pados para sobreviver no mundo capitalista urbano. No Norte,
por outro lado, havia mínimas chances devido à crônica e clás­
sica estagnação da economia. Assim, c indubitavelmente, os bra­
sileiros de classe baixa, que abrangiam a vasta maioria dos es­
curos, tinham mil dificuldades cm subir social e economicamente.
O fracasso dessa escalada confirmava a concepção sobre o que a
elite tinha deles — de peso morto para o desenvolvimento nacional.
Embora os brasileiros fizessem praça da ausência de precon­
ceito racial, a imprensa dava notícia, diariamente, de discrimina­
ção contra pretos c mulatos escuros. Os incidentes envolviam as
instituições oficiais que tinham contato com estrangeiros. Em
1904, o Correio da Manhã queixava-se de que os pretos eram im­
pedidos de servir como guardas no Teatro Lírico, um famoso tea­
tro do Rio. Em 1906, um editorial alegava discriminação tan­
to contra pretos como contra mulatos, no recrutamento da Guar­
da Cívica, ou milícia estadual, de São Paulo. Dizia-se que isso
era uma medida preparatória da chegada de uma missão de trei­
namento do exército francês, que os paulistas não queriam ofen­
der. O Correio da Manhã ridicularizava essa atitude, lembrando
aos seus leitores um rol de brasileiros ilustres de sangue mulato
inclusive Tobias Barreto e André Rcbouças. Dizia-se, inclusive,
que até o grande Rodrigues Alves, presidente da República e an­
tigo governador de São Paulo, tinha sangue negro 27.
A marinha, com a reputação de recrutar exclusivamente ofi­
ciais brancos, foi palco de vários incidentes. Em 1907, mari­
nheiros pretos foram, ao que se dizia, excluídos de uma missão
naval que partiu para os Estados Unidos. Acusou-se o governo
de tentar apresentar o Brasil (na Europa e nos Estados Unidos)
como um país branco, acusação que não era, obviamente, infun­
dada 28. Num incidente da mesma espécie, a marinha teria ex­

64
purgado de marinheiros negros a tripulação, do navio, em que o
general argentino Roca seria recepcionado2U.
A marinha, todavia, já havia sofrido desfeitas nos Estados
Unidos por motivo racial: cm 1905 um cruzador brasileiro fun­
deou em Norfolk, Virgínia, onde foi recusada hospedagem a al­
guns dos seus oficiais por serem negros — coisa particularmente
irritante à vista do aparente empenho da corporação em manter
branco o corpo de oficiais. O embaixador Joaquim Nabuco, na
ocasião, fez vigoroso protesto. Por certo, esse desagradável con­
tratempo cm Norfolk pode ter influenciado as posteriores tenta­
tivas de escolher, seletivamente, as tripulações destinadas aos Es­
tados Unidos 30.

V a r ie d a d e s d a t e o r ia r a c ia l a l ie n íg e n a

O séc. XIX havia sido testemunha de dois movimentos


contraditórios no pensamento racial. De um lado, os movimen­
tos abolicionistas triunfaram por todo o mundo do Atlântico Nor­
te e, finalmente, até do Atlântico Sul. No entanto, nesse exato
momento em que a escravidão recuava sob o impacto das mu­
danças econômicas e da pressão moral, pensadores europeus
ocupavam-se em sistematizar as teorias das diferenças inatas. A
era que produziu Wilberforcc também viu nascer Gobineau. O
racismo, que fora definido como “uma teoria pscudocicntífica,
nas racionalizada, postulando a inferioridade inata e permanen­
te dos não-brancos”, tornou-se uma formidável teoria 31. Um tal
corpo de pensamento racista sistemático não existia, ainda, na
.Europa de 1800. Por volta de 1860, todavia, as teorias racistas
tinham obtido o beneplácito da ciência e plena aceitação por par­
te dos líderes políticos e culturais dos Estados Unidos e da Euro­
pa. No curso do século, emergiram três escolas principais dc teo­
ria racista32. A saber, temos, exemplificativamente: a primeira
foi a escola etnológico-biológica, que sistematizou sua formulação
filosófica nos Estados Unidos nas décadas de 40/5033. Escola
etnológica que pretendia sustentar a criação das raças humanas
através das mutações diferentes das espécies (poligenia). Os etnó-
grafos Samuel Morton, Josiah Nott e George Glidden publicaram

65
tomos de “provas” (medidas cranianas de múmias egípcias etc.)
para concluir que as raças humanas tinham sempre exibido di­
ferenças fisiológicas, em sua conformação racial-genética. Ofere­
ciam, na realidade, uma nova versão da antiga hipótese polige-
nista da criação do homem. A base do seu argumento era que a
pretendida inferioridade das raças — índia e negra — podia ser
correlacionada com suas diferenças físicas em relação aos bran­
cos; e que tais diferenças eram resultado direto da sua criação
como espécies distintas34. Nisso, a teoria ganhou importante apoio
por parte de Louis Agassiz, o eminente zoólogo suíço, de Har-
vard, que se tornou o mais famoso propugnador científico da po-
ligenia na America. Agassiz acreditava que a criação de espécies
diferentes entre os animais havia sido imposta pela diversidade das
“províncias zoológicas” na terra, o que implicava em dizer que
as diferentes espécies (ou raças) do genus homo podiam ser atri­
buídas às diferentes regiões climáticas em que habitavam. Desde
que as presunções iniciais tinham rotulado a raça branca como
superior em qualidades mentais c sociais (como a de “construir
civilizações”), a superioridade branca recebia corolariamcnte base
científica, como um fato indiscutível. Contudo, na linha de re­
flexão, tal hipótese poligenista da escola americana foi logo der­
rubada pela teoria de Darwin. Mas ao peso da evidência cientí­
fica que ela compilara, indicando permanentes diferenças físicas
— e, por implicação, mentais — revelou-se duradouro. Nos cin-
qüenta anos seguintes, os cientistas continuaram a elaborar tabe­
las de medidas cranianas, estruturas do esqueleto e histórias de
doenças, segundo categorias — as “raças” —, tidas por cientifica­
mente definíveis. Virtualmente, todas as tentativas dessa natu­
reza repousavam sobre a idéia de que as diferenças físicas po­
diam, de algum modo, “provar” a existência de outras diferen­
ças — que mais tarde seriam chamadas “culturais”. Os vulgariza-
dores da escola etnológico-biológica usavam os instrumentos de
uma nova ciência, a antropologia física, para dar base científica
aos preconceitos preexistentes sobre o comportamento social dos
não-brancos, da mesma forma como outros pesquisadores preten­
diam encontrar provas da inferioridade mental dos negros nos re­
sultados dos seus testes de inteligência. A escola ctnológico-bio-

66
lógica, em suma, oferecia uma rationale científica para a subju-
gação dos não-brancos (se em servitude legal ou não tornar-sc-iaj
logo indiferente).
Embora a versão etnológica do pensamento racista tenha re­
cebido sua primeira formulação sistemática nos Estados Unidos,
logo se estendeu à Inglaterra e Europa, onde ganhou poderosos
partidários; e foi, primacialmente, através desses convertidos eu­
ropeus que atingiu o Brasil. O pequeno número de etnógrafos c
antropólogos ativos no Brasil, durante os anos que medeiam en­
tre 1870 e 1914, estava principalmente em contato com cientis­
tas franceses e alemães. Mas um dos mais importantes represen­
tantes da “escola americana” teve influência direta no Brasil —
Louis Agassiz. Sua Journey in Brazil foi largamente citada no
Brasil e deu curso entre a elite às idéias de diferenças raciais ina­
tas e de “dcgenerescência” mulata.
Um segundo bloco de pensamento racista a emergir nos Es­
tados Unidos e Europa demonstrou-se igualmcnte influente no
Brasil. Foi a escola histórica (bem representada pelo próprio Go-
bincau — discutido acima). Esses pensadores partiam da supo­
sição de que raças humanas — as mais diversas — podiam ser
diferençadas umas das outras — com a branca permanentemen­
te e inerentemente superior a todas. Confiavam, sobretudo, na
evidência histórica, aludindo que diferenças físicas permanerrtes
haviam sido estabelecidas de modo conclusivo por etnógrafos e
anatomistas. Na Inglaterra, por exemplo, Thomas Arnold, Ro-
bert Knox e Thomas Carlyle interpretavam a história como uma
sucessão de triunfos das raças criadoras, dentre as quais a anglo-
saxônica era preeminente. Gobineau e outros acólitos menos co­
nhecidos da escola histórica ajudam a propagar a mensagem pela
Europa de que a raça era o fator determinante da história humana.
Assim, a abordagem histórica do racismo enriqueceu-se de'
uma nuança a mais com o culto do arianismo. Proposto por pro­
fetas como Houston Stewart Chambcrlain, o arianismo se fez vir-
tuaimente um dogma na Alemanha depois da guerra franco-prus-
siana (1870-71). A impossibilidade da sua real verificação con­
feriu ao mito uma flexibilidade ideológica que o tornou aplicável
até mesmo à Inglaterra, onde a crença na superioridade da raça

67
anglo-saxônica tornou-se complementar ao arianismo, cm si mes­
mo. A teoria — de que o ariano (ou anglo-saxão) tinha atingido
o mais alto grau de civilização e estava, em conseqüência, dcstina-
■do, detcrministicamente, pela natureza e pela História, a ganhar o
■crescente controle do mundo — era sustentada por bem elabora­
das monografias históricas. As visíveis exceções à tese de que
não arianos jamais tinham produzido cultura digna desse nome,
levavam a intrincadas explicações de uma provável e indireta par­
ticipação ariana, no jogo da História. Não é necessário acrescen­
tar que a definição de “ariano” permaneceu evasiva, começando
como categoria lingüística e passando logo a significar “norte-
europeu nato, de raça branca”. Podia, igualmente, traduzir-se por
“nórdico”, como alguns partidários da doutrina pareciam preferir.
A terceira escola de pensamento racista era o darwinismo-
social. Conquanto diferisse de maneira singular da escola etnográ-
fico-biológica já acima discutida, as duas teorias acabaram, final­
mente, por mostrar-se conciliáveis. Em terreno científico, a tese
de Darvvin podia ser aceita apenas com o abandono da hipótese
poligenista, porque Darwin defendia um processo evolutivo que,
por definição, começava com uma única espécie.
O darwinismo podia, contudo, ser usado pelos racistas poli-
genistas, se modificassem as suas teorias. Se a evolução para
formas superiores de vida natural resultava da “sobrevivência dos
mais aptos”, numa competição de diferentes espécies e varieda­
des, logicamente admitia-se que as diferentes raças humanas ti­
nham passado por processo evolutivo semelhante. Nesse proces­
so, histórico-evolutivo, as raças “superiores” haviam predomina­
do, fazendo com que as “inferiores” parecessem fadadas a defi­
nhar e desaparecer. O próprio Agassiz nunca aceitou a teoria dar-
winista, mas outros proponentes da escola ctnológico-biológica
accitaram-na, e, até, relativamente depressa. Como observou um
estudioso atento do pensamento racial americano, “a essência do
pensamento poligenista cm matéria de raça foi preservada numa
moldura darwiniana” 35.

68
Darwinistas sociais descreviam os negros como “espécie in­
cipiente”, tornando assim possível continuar a citar toda a eviden­
cia — da anatomia comparada, frcnologia, íisiologia, e etnogra-
fia histórica — oferecida previamente em apoio da hipótese po­
ligenista, ao mesmo tempo em que se dava à teoria racista uma
nova respeitabilidade conceituai.
Assim sendo, tomadas em conjunto, essas três escolas do
pensamento racista influenciaram sobremodo os brasileiros que se
davam ao trabalho de pensar a sério sobre o problema racial. Como
o resto da América Latina, o Brasil cra vulnerável às doutrinas
racistas vindas do exterior. Dificilmente poderia ser de outra
maneira, uma vez que tais doutrinas eram parte vital da civilização
norte-americana tão ardentemente admirada e de maneira tão in­
condicional — pela maior parte dos intelectuais latino-americanos
antes de 1914. Quanto mais os brasileiros tomavam conhecimen­
to das últimas idéias geradas da Europa, tanto mais ouviam fa­
lar da inferioridade do negro e do índio. Semelhante fenômeno
era particularmentc verdadeiro por volta da passagem do século,
quando o condicionamento reflexo e a preferência dos brasileiros
pela cultura francesa levaram-nos, diretamente, a escritores racis­
tas populares como Gustave Le Bon e Victor dc Lapouge36.
A teoria da superioridade ariana era aceita como fato de de­
terminismo histórico, pela elite intelectual brasileira entre 1888
c 1914. Algumas teorias de “arianismo” eram bastante vagas
para incluir virtualmente todos os europeus como “arias” — mal­
grado as sutilezas da distinção entre “nórdico” e “celta , difíceis
para o entendimento brasileiro. A voga da superioridade européia
levou alguns escritores brasileiros a endossar a teoria da dege-
nerescência latina” — refletida nas freqüentes críticas relativas aos
portugueses — como os mais atrasados dos europeus — decor­
rentes da imprevidência, da indolência e da imoralidade 37• A tese,
por denegrir os iberos, agradava aos nacionalistas, que tinham
forte sentimento antiportuguês, mas era inconveniente também para
os nacionalistas que temiam a intervenção ou dominação anglo-
saxônica”. Porém, esses últimos não se davam ao trabalho
de repudiar a teoria ariana, insistiam simplesmente junto
aos seus compatriotas na necessidade de acordarem para a

69
lula darwiniana imposta por incursões americanas ou norte-euro-
péias, ou representada pelos grandes investimentos estrangeiros ou,
ainda, por colônias de imigrantes38. A aplicação da teoria aria­
na aos africanos não constituía problema, porque, nesse contex­
to, “ariano” podia ser prontamente traduzido por “branco”. Os
brasileiros estavam sempre dispostos a repetir a acusação dc que o
negro nunca construiu civilização alguma, citando relatórios in­
gleses e europeus sobre o caráter “primitivo” das estruturas so­
ciais africanas com que os governadores tinham sido obrigados a
manter contato por força da política colonial. Obras social-dar-
winistas, sobretudo, tinham grande influência no Brasil. Pratica­
mente, todo pensador social brasileiro — antes de 1914 — se
viu a braços com o darwinismo social. São freqüentes as citações
de figuras como Spcncer, Le Bon, Lapouge e Ingenieros39. Os
brasileiros, de regra, aceitavam o darwinismo social, em princípio,
tentando apenas descobrir como aplicá-lo à sua situação nacional.
Mas, para onde quer que se voltassem, encontravam o prestígio
da cultura e o da ciência “civilizadas” alinhados em posição de
combate contra o africano. O negro estava fadado à extinção,
como o dinossauro, ou, pelo menos, à dominação pelas raças bran­
cas, mais fortes e “civilizadas”. Como poderia um reles brasi­
leiro teimar com a evolução?

A TEORIA RACISTA NO BRASIL

Os brasileiros não teimavam com a evolução40. Sua reali­


dade social, todavia, era suficientemente diversa da realidade da
América do Norte — para não dizer da Europa — para forçá-
los a encontrar alguma maneira de torná-la consistente com as
teorias então ensinadas. O Brasil já era uma sociedade multirra­
cial. Ao contrário dos Estados Unidos, não tinha barreira de
cor institucionalizada. E também ao contrário dos Estados Uni­
dos, em vez de duas castas (branca e não-branca), havia no Bra­
sil uma terceira casta social bem reconhecida — o mulato.
Ao fim do séc. XVIII, o homem livre de cor no Brasil ti­
nha, já, lugar definido na sociedade enquanto seu semelhante nos
Estados Unidos enfrentava regime tão sistematicamente discri­

70
minatório (leis, no Sul; costumes, no Norte) que o impedia de
penetrar na ordem estabelecida, quer econômica quer social41.
Como resultado, não havia tradição no Brasil de supressão de não-
brancos dentro de um rígido sistema birracial, e o pensamento
racista não podia, cm conseqüência, ser usado para reforçar tal
sistema.
Em nenhum outro ponto é o contraste mais nítido do que
nas atitudes com relação à miscigenação. Americanos e europeus
do Norte tinham o casamento inter-racial por anátema. Embora
quanto a europeus a questão prática dificilmente se pusesse, para
os americanos o assunto era de profunda significação. Os ame­
ricanos não podiam fugir à realidade histórica de que a miscige­
nação ocorre com frcqiiência num regime escravocrata. Podiam,
porém, consolar-se com o fato de que os filhos de mulatos eram
rigidamente relegados à casta “negra”. Os mestiços eram olhados
como perdidos para a raça superior — um processo que, se a mis­
cigenação fosse praticada cm larga escala, poderia vir a ameaçar
seriamente a predominância numérica da raça superior . O re­
sultante temor de hibridização decadente era resultado direto des­
sa possibilidade e fator importante do profundo medo psicológi­
co na atitude americana a respeito da mestiçagem42.
Quando muito extremados, os poligenistas defendiam a tese
da esterilidade dos mulatos, uma vez que as leis da zoologia en­
sinavam que todo animal produzido por união de pais de espécies
diferentes nascia incapaz de procriar 43. E, no entanto, era óbvio
que os mestiços humanos não eram estéreis. Desde que nem o
poligenista mais fanático podia ignorar a evidência da fertilidade
do mulato, refugiava-se numa segunda linha de defesa, argumen­
tando que depois de uma geração uma das raças “puras” origi­
nais predominaria, eliminando, assim, a variedade híbrida. Tais
teorias continuaram a ser propostas na Inglaterra e nos Estados
Unidos nas décadas de 50 e 60, a despeito de abundante prova em
contrário, proveniente das índias ocidentais e de outros lugares44.
A teoria poligenista da esterilidade do mulato (ou da sua
esterilidade numa futura geração) ganhou poucos adeptos no Bra­
sil. Talvez por ser tão claramente desmentida pela realidade so-

71
ciai, não vingou. A alusão cra, ccrtamente, insuportável. Uma
coisa é pretender que os brancos (arianos) sejam superiores e os
pretos inferiores, outra, muito diferente, acrescentar que, qual­
quer mistura das duas, é intrinsecamente perniciosa. Podiam eu­
ropeus e norte-americanos “puros” contemplar a miscigenação
como problema de relevância remota para as suas sociedades —
embora para fazer tal atitude mais plausível os americanos ti­
vessem de manter, por segregação legal, uma estrutura social de
duas castas. Os brasileiros não tinham tal escolha. Sua socieda­
de já era mutirracial, e a casta intermediária era precisamente a
categoria social para a qual a flexibilidade das atitudes raciais
importava, sobremodo. Aceitar sua caracterização como degene­
rada ou improlífica seria ameaçar um dado aceito e estabelecido
pela sociedade brasileira. Seria também, deitar sombra sobre não
poucos membros da própria elite. Na realidade, a miscigenação
não despertava a oposição instintiva da elite branca no Brasil.
Pelo contrário, era o processo reconhecido (e tacilamente apro­
vado) pelo qual uns poucos mestiços (quase invariavelmente mu­
latos claros) tinham ascendido ao topo da hierarquia social e po­
lítica.
Os escritos dessa época de Sílvio Romero refletem bem a
inconsistência que a justaposição dos costumes domésticos e da
teoria importada tinha feito inevitável. No fim do Império, ele
fora dos primeiros a pedir que se reconhecesse o Brasil como pro­
duto da miscigenação. Tinha predito um feliz resultado para a
futura evolução étnica. Em 1904, rejeitara a descrição do Brasil
por Teófilo Braga, o intelectual português e líder político, que,
a seu ver, havia subestimado o papel do mestiço45. E, todavia,
cm 1906 definiu-se entre os que — com Gobineau, Ammon, La-
pouge e Chamberlain — acreditavam que os povos dolicocéfalos
— louros do Norte da Europa — eram superiores aos outros ho­
mens. Sua fórmula para melhorar o Brasil, consistia cm aumentar
o influxo de alemães, que deveríam ser distribuídos e dissemina­
dos pelo país a fim de absorver a cultura brasileira e aceitar a
autoridade do governo brasileiro 45 Em 1912, estava ainda lou­
vando Gobineau por sua “admirável visão genial” e pelas “sábias
palavras que merecem toda consideração”. Chegou, numa vio­

72
lenta polêmica, e levado pelo seu arroubo ao ponto dc endossar
uma versão extrema da teoria da degenerescência do mulato. Pre­
tendeu que “os mais competentes naturalistas demonstraram que
as raças demasiado distanciadas pouco coabitam e, quando o fa­
zem, ou não produzem, ou se produzem, são bastardos infecundos,
depois da segunda ou terceira geração”. Incluiu extensas citações
da notícia de Lapouge sobre a corrupção biológica da “primitiva
aristocracia gauleza”, por intrusões latinas como a dos exércitos
de Júlio César47.
Não é de causar surpresa que pouca análise rigorosa da teo­
ria racial cm si viesse do Brasil nesse período. Não havia facul­
dades superiores, exceto as de direito, medicina e engenharia, e
sem uma universidade era difícil para os futuros cientistas encon­
trar uma base de operações. (Essa relativa ausência de ciência
social organizada era comum através da América Latina antes da
I Guerra Mundial, mas o Brasil estava especialmcnte atrasado
na organização de universidades.)
A antropologia física foi das primeiras disciplinas reconheci­
das, em parte devido ao estímulo de uma série de importantes ex­
pedições por cientistas estrangeiros, freqüentemente alemães. Em
1876, um laboratório de fisiologia experimental foi fundado, em
conexão com o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. O primeiro
diretor, Ladislau Neto, organizou uma Exposição Antropológica
Brasileira em 1882, pioneira no país. Ele e o colega que o suce­
deu como diretor, em 1895, João Batista de Lacerda, conccntiâ-
ram-se no índio, utilizando as mais recentes técnicas européias
dc medição de crânios. Faltavam ao museu os fundos necessá­
rios para expedições de campo. Tais viagens continuavam a sêt
o virtual monopólio dos visitantes estrangeiros, especialmente aleu
mães e escandinavos, cujos trabalhos publicados forneciam im­
portante informação etnográfica e linguística 48. Outro centro de
antropologia física apareceu em 1893, com o Museu Paulista.
Seu fundador e primeiro diretor foi o zoólogo Herman von Ihe-
ring, imigrante alemão48. A pesquisa limitada que ai se fazia
centrava-se também exclusivamente no índio, e situação seme­
lhante prevalecia no Museu Paraense, fundado cm 1885 na ci­
dade, porto de Belém, pelo imigrante suíço Emílio Goeldi.

73
Juntos, os três museus eram os únicos centros devotados à
pcsquisu c publicações de caráter antropológico. Todos sofriam
de inadequados orçamentos. Igualmcnte importante para a his­
tória do pensamento racial, nenhum deles devotou qualquer aten-
çao ao africano no Brasil. Os povos “primitivos” estudados por
cies eram invariavelmente as remotas tribos índias. O “imigrante”
alricano e sua progênie afro-americana não despertavam o inte­
resse do pessoal dessas entidades * para a pesquisa dos estudos
etnográficos a eles atinentes.
O primeiro estudo etnográfico sério e respeitável do afro-
brasileiro por um brasileiro não proveio dos museus, mas de um
professor de medicina originário da prestigiosa faculdade da
Bahia. No começo da década de 90, Nina Rodrigues, jovem
doutor mulato, conquistara uma cátedra ali. Pelo fim da década,
já se distinguia como pioneiro cm dois campos: etnologia afro-
brasileira e mcdicina-legal. Nenhum — até a época de suas in­
vestigações iniciais — era reconhecido como campo de pesquisa
mas seus esforços contribuíram para lançar-lhes as bases de es­
tudo no Brasil. Embora tenha morrido cedo, em 1906, com a
idade de quarenta e quatro anos, já havia publicado inúmeros re­
latórios científicos e fundara a Revista Médico-Legal. Já havia
estreitado contatos com outros pesquisadores do exterior c era
membro de grupos como a Médico-Legal Socicty of New York e
a Société Médico-Psychologique de Paris. Quando morreu, já se
havia tornado figura altamente acatada e respeitada nos círculos
científicos brasileiros50. Destarte, Nina Rodrigues foi o primeiro
pesquisador a estudar a influência africana de maneira sistemáti­
ca. Tentou uma cuidadosa catalogação das origens etnográficas
africanas exatas dos escravos trazidos para o Brasil, e procurou

* À exceção de Melo Morais Filho, do Museu Nacional, que fez tra ­


balho pioneiro na coleta do folclore afro-brasileiro (Museu Nacio­
nal, Jo ã o B a t i s t a d e L a c e r d a : C o m e m o ra ç ã o do C e n te n á r io d e N a s ­
c im e n to , 1846-1946, Rio de Janeiro, 1951, 14-15). A principal edi­
ção da obra de Melo Morais é (Alexandre José de) Melo Morais
Filho, F e s ta s e T r a d iç õ e s P o p u la r e s do B r a s il, Rio de Janeiro, 1901.

74
identificar — sem as vantagens de um conhecimento de primei­
ra mão da África — os grupos lingüísticos primários. Colecionou
fotografias e desenhos de objetos de artes brasileiras de origem
africana e aprofundou-se também na questão da assimilação dos
africanos ao seu novo ambiente. Por todo o seu trabalho, acen­
tuou sempre a importância de distinguir claramentc entre as prin­
cipais regiões do Brasil ao discutir a assimilação do africano.
Apreciemos, agora, Nina Rodrigues e sua obra com mais des­
taque, cm vista do fato de ter sido levado, por sua alta responsa­
bilidade científica (e embora fosse mulato) a tornar-se o princi­
pal doutrinador racista brasileiro da sua época. Era muito lido
por todos os que se interessavam seriamente, pelo assunto racial
e ganhou com isto notoriedade; mas, mesmo assim, suas opiniões
ficaram à margem da corrente principal do pensamento brasilei­
ro. Enquanto poucos dos seus contemporâneos brasileiros pudes­
sem pretender alheamento ao que Nina Rodrigues chamava “essa
esfinge do nosso futuro — o ‘problema do negro’ no Brasil”51,
poucos correram o risco de adotar idéias racistas tão ortodoxas
quanto as deles 52.
Explicava Nina Rodrigues que a inferioridade do africano
fora estabelecida fora de qualquer dúvida científica. Em 1894,
desprezou como sentimental a noção de que um “representante
das raças inferiores” pudessem atingir através da inteligência, “o
elevado grau a que chegaram as raças superiores” 53. Em 1905,
estava disposto a admitir que os cientistas não conseguiam decidir
se a inferioridade do negro era inata ou transitória. Mesmo se a
hipótese da inferioridade transitória fosse verdadeira em tese —
concluía —, a civilização européia progredia rapidamente demais
para ser testada na prática54.
Não hesitou em seguir as implicações das suas doutrinas ra­
ciais, dizendo (com óbvia satisfação) que seus sentimentos pes­
soais nada tinham a ver com a teoria científica, mesmo porque
tinha “viva simpatia” pelo negro brasileiro55. Ao mesmo tempo,
e a medida que a sua pesquisa etnográfica pioneira gerava dados
baseados em testemunhos oraãs (recolhidos primariamente na
Bahia), aplicava a teoria da inferioridade racial diretamente ao
seu trabalho de medicina-legal. Nem se desculpava de dizer que

75
íis cnractcrísticas raciais inatas afetavam o comportamento social

c devcriam ser levadas em conta por legisladores e autoridades


policiais. Em livro de 1894, afirmou que a responsabilidade pe­
nal das “raças inferiores” não podia ser tratada como igual ou
equivalente a das raças brancas civilizadas ’. Embora uns pou­
cos indivíduos possam constituir exceção, especialmentc mestiços,
têm sempre o potencial para regredir. Recomendava, em conse-
qüência, que se atribuísse a negros c índios apenas uma “respon­
sabilidade atenuada”, status aparentemente igual ao do menor. Os
mestiços eram para ele, evidentemente, um problema. Evitou-o,
dividindo-os cm três subgrupos — a) o tipo süperior (inteira­
mente responsável, nó qual, e licito presumir, incluir-se-ia o pró-
piio Nina Rodrigues); b) os degenerados (alguns parcialmente
responsáveis; o resto, totalmente irresponsável; e c) os tipos ins­
táveis socialmentc, como os pretos e os índios, aos quais se podia
apenas atribuir responsabilidade atenuada"56. Em nenhum lugar
explicou como operavam essas categorias, ou a quem cabia de­
cidir da classificação racial de um cidadão determinado. Na rea­
lidade, a própria subdivisão dos mestiços em categorias ilustrava
o absurdo, uma vez que a “casta” do meio incluía precisamente
aqueles brasileiros para os quais as categorias raciais c lingüísti-
cas eram as mais elásticas. É possível suspeitar que, num litígio,
as distinções raciais ficariam a depender da vontade do juiz com­
petente.
De qualquer maneira, Nina Rodrigues produziu uma justi­
ficação teórica perfeita e acabada da impossibilidade de conside­
rar um ex-escravo capaz de comportamento “civilizado”. Pior
ainda, baniu qualquer possível direito do inferior: “A civilização
ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria da raça
branca a quem ficou o encargo de defendê-la, não só contra os
atos anti-sociais — os crimes — dos seus próprios representantes,
como ainda contra os atos anti-sociais das raças inferiores, sejam
estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam, ao con­
trário, manifestações do conflito, da luta pela existência entre a
civilização superior da raça branca e os esboços de civilização das
raças conquistadas ou submetidas57. Nem uma palavra sobre o

76
direito dos “inferiores" à proteção contra atos racistas da socie­
dade brasileira — seres humanos destinados a serem julgados se­
gundo sua suposta classificação racial. Na aceitação de teorias
racistas estrangeiras, Nina Rodrigues fora mais longe que a maior
parte da elite brasileira. É significativo, no entanto, que sua su­
gestão não tivesse qualquer influência sobre os responsáveis pela
revisão do Código Penal Brasileiro, de 1890. Ele próprio lamen­
tou essa falta de receptividade por parte de autoridades e legis­
ladores.
A genética não era, ainda, uma ciência desenvolvida quando
Nina Rodrigues morreu em 1906, e cientistas respeitáveis dis­
cutiam ainda se cruzamentos entre “raças” diferentes produziam
“híbridos vigorosos” ou degenerados físicos. Nina Rodrigues in-
clinava-sc para essa última posição. Citou Agassiz como autori­
dade em miscigenação, associando-se desse modo com o mais im­
portante dos teóricos norte-americanos da degcnerescência do
mulato. Em outro passo, citou a descrição de José Veríssimo dos
mestiços “degradados” da bacia amazônica, e Ladislau Neto (etnó-
grafo brasileiro e diretor do Museu Nacional até 1893) sobre o
suposto “atavismo” dos mestiços. Nina Rodrigues não foi tão lon­
ge quanto Agassiz na condenação dos mestiços; mas contradisse
frontalmcnte a opinião geral de que a miscigenação havia ajuda­
do a raça branca a adaptar-se e a sobreviver no Norte tropical do
Brasil. A influência do negro, disse, “há de constituir sempre um
dos fatores da nossa inferioridade como povo” 58; nada poderá
deter a “eliminação do sangue branco” naquela região. A misci­
genação apenas atrasara o processo. Nina Rodrigues opôs-se so­
bretudo à opinião “injustificadamente” otimista de muitos brasi­
leiros sobre o “valor social” do mestiço, escrevendo uma série de
ensaios técnicos sobre tópicos como “Antropologia patológica:
os mestiços” (1890); “Miscigenação, degenercscência e crime”
(1898); e “Degenerescência física e mental entre os mestiços nas
terras quentes” (inacaba ao tempo da sua morte). Isso o punha,
naturalmente, em oposição à crença difundida entre a elite de
que a miscigenação levaria, mais cedo ou mais tarde, a um Brasil
branco:

77
“Não ucrcdito na unidade ou quase unidade étnica, presente ou fu­
tura, da população brasileira, admitida pelo Dr. Sílvio Romero. Não
acredito na futura extensão do mestiço luso-africano a todo o ter­
ritório do país; considero pouco provável que a raça branca consiga
predominar o seu tipo em toda a população brasileira” 59.

Preocupava-se, sobretudo, com o Norte do Brasil. Embora


o processo de branqueamento pudesse, de fato, triunfar no Brasil
do Sul (temperado), pensava que a região tropical estava conde­
nada — o que o levava a temer a possibilidade de um Brasil ra­
cialmente dividido entre o Sul branco e o Norte mestiço00. Curio­
samente, voltava-se para o determinismo climático a fim de se­
lar a questão, “o clima intertropical” — disse — é “inóspito aos.
brancos . Um ensaio póstumo, muito embora caracterizasse o
português como “rotineiro c improgressista”, considerava dois fa­
tores mais importantes no desenvolvimento do Brasil. Um era a
forte barreira oposta ao branco pelo clima tropical; outro, “as
vastas proporções da mestiçagem que, entregando o pais aos mes­
tiços, acabará, por outro lado, privando-o, por longo prazo, pelo
menos, da liderança marcante da raça branca. E esta foi a garan­
tia da civilização nos Estados Unidos”61.
É interesasnte notar que, a despeito da sua aceitação da teo­
ria racista, Nina Rodrigues achava muito importante distinguir a
situação étnica do Brasil da situação dos Estados Unidos. Mes­
mo na década de 90, qualquer pessoa que discutisse o “proble­
ma do negro ’ no Brasil era vulnerável à acusação de que estava
a aplicar um paradigma norte-americano sem base científica. Foi
Nina Rodrigues, sensível a essa acusação e procurou refutá-la. As
teorias científicas da inferioridade racial nada tinham com a de-
lcsa da escravidão pelos senhores de escravos norte-americanos
— argumentava ele (revelando, assim, sua suspeita de que o lei­
tor brasileiro poderia rejeitar idéias racistas se fossem associadas
com as dos Estados Unidos). Como os Estados Unidos gozavam
de várias vantagens que o Brasil, conspicuamentc, não tinha —
um “superávit” de brancos e a ausência de clima tropical — os
debates do “problema do negro” pelos americanos eram dificil­
mente aplicáveis ao Brasil. É, todavia, significativo que ele não

78
tenha podido jamais explicar satisfatoriamente porque o grau de
preconceito de raça entre brancos brasileiros era “muito menor
do que dizem ser na América do Norte”62.
A qualidade de racismo doutrinário, revelado por Nina Ro­
drigues, vinha à tona, também, em declarações de altos funcio­
nários, tais como Joaquim Murtinho, ministro da Indústria, Via-
ção e Obras Públicas, que (no seu relatório dc 1897) rejeitou
qualquer tentativa de tomar os Estados Unidos como modelo de
industrialização, “porque não temos as aptidões da sua raça”63.
Filtrava, também, das penas dos pensadores sociais de segun­
da linha e propagandistas menores da década seguinte, como se
pode ver no discurso de Hermann Byron de Araújo Soares, ora­
dor da turma de 1913, da Faculdade de Direito do Recife. Pouco
conhecido daí por diante, Hermann Soares fez um discurso sem
originalidade mas que serve como típica sinopse das qualificações
brasileiras à teoria racista ortodoxa no começo do séc. XX:
“A raça latina não tem perseverança, não tem energia, não tem
caráter. . . ” — afirmou64. Era a familiar teoria da degencrescência
latina, que se fizera corolário da escola histórica do pensamento
racista. “Os ingleses, os norte-americanos, descendentes de outra
raça, que não a latina, são povos predestinados às grandes con­
quistas no universo” — reafirmava. O Brasil nunca poderia atingir
“os mais altos graus de desenvolvimento, como a América do Nor­
te”, por causa de suas origens. Essa triste história começou com
a colonização pelos portugueses, “povo em decadência” — con­
cluía.
Tal era a opinião muitas vezes expressa pelos intelectuais.
EirT 1914, por exemplo, um escritor que usava o pseudônimo “João
Grave” declarou que “a raça latina, criadora dc civilizações, guia-
dora da humanidade, achava-se exausta de fluido vital” 65. Alci­
des Bezerra, crítico literário de menor quilate, explicava que acre­
ditava “na superioridade dos homens do Norte sobre as raças la­
tinas no tocante às faculdades práticas’. A “raça ariana era
“dona e senhora do mundo pelos seus invejáveis predicados psí­
quicos”, e, em conscqüência, “a civilização moderna há de se
modelar pelos tipos inglês c norte-americano 66.

79
Para resumir o retrato de Hcrmann Soares, os acontecimen­
tos sc agravaram quando os colonizadores se misturaram “à raça
indígena, de grande indolência. .. apesar da sua perspicácia”, de­
pois com “esses infelizes vindos da Á frica... descendentes da
raça negra, desprestigiados de inteligência e de caráter, como to­
dos os filhos da Etiópia”. Citava Le Bon com relação à “perpétua
anarquia” que surge inevitavelmente em países afligidos com “um
excessivo número de mestiços”. (Lc Bon, por sua vez, tinha citado
Agassiz sobre a “decadência resultante dos cruzamentos efetua­
dos neste país mais largamente que noutro”.) 67 May, disse Her-
mann Soares, “não está completamente perdido o caráter brasilei­
ro”, se os nossos patrícios adotarem o sistema americano de edu­
cação, “que há elevado esse país aos mais culminantes píncaros”.
As escolas americanas produzem “as qualidades de caráter que
nos faltam , qualidades que fazem os Estados Unidos um país
onde “não há lugares para os fracos”. Copiando tais escolas, o
Brasil era capaz de governar com “mão de ferro”, coisa que Le
Bon sugerira como o único antídoto possível contra “a anarquia
dominante nesta nossa pátria”68.
Essa contradição de termos era típica e teve os seus seguido­
res. Hcrmann Soares observa que “a raça negra nada tem feito
em prol de qualquer idéia; existe, sem energia, sem vontade, ig-
norantemente”. (Mas cumpre notar que não descreveu tais defei­
tos como inatos ou irremediáveis.) Além disso, via a “absorção
da raça negra pela branca ’ como “um grande perigo para a se­
gurança , porque ‘ quanto maior o número de mestiços num país,
tanto maior a dcgenerescência da população”; e mais: Hermann
Soares condenava “a terrível humilhação” sofrida pelos negros na
América, “onde vivem sob a constante ameaça do terror” ou
“acabam sendo linchados”. Os americanos tratam os negros “como
se nem fossem seres humanos”, quando, na verdade, “são sem dú­
vida adaptáveis a todos os desenvolvimentos do país e à sua es­
pantosa civilização” 69.
Depois de tudo isso, Hcrmann Soares revela-se partidário do
ideal comum do “branqueamento” para o Brasil, isto é, o homem
de cor pode ser elevado — mas só por um maior investimento de
esforço. Para ele, o processo de aculturação pode transformar o

80
demento negro, uma vez que se dê à força “civilizada o tempo
necessário. Ela deve também levar suficiente vantagem: isto é,
o número de gente a ser “branqueada” culturalmcntc não pode
exceder a capacidade “civilizadora” dos “civilizados . Não arris­
cou opinião sobre a taxa crítica. ..

“ B r a n q u e a m e n t o ” , a s o l u ç ã o b r a s il e ir a

A teoria brasileira do “branqueamento” já tem sido men­


cionada. Aceita pela maior parte da elite brasileira nos anos que
vão de 1889 a 1914, era teoria peculiar ao Brasil. Poucas vezes
apresentada como fórmula “científica” e jamais adotada na Eu­
ropa ou nos Estados Unidos — merece ser explicada aqui com
algum detalhe.
A tese do branqueamento bascava-se na presunção da supe­
rioridade branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos raças “mais
adiantadas” e “menos adiantadas” e pelo fato de ficar em aberto
a questão de ser a inferioridade inata. À suposição inicial, jun­
tavam-se mais duas. Primeiro — a população negra diminuía pro­
gressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a
suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doen­
ças, e a desorganização social. Segundo — a miscigenação pro­
duzia “naturalmente” uma população mais clara, em parte por­
que o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas
procurassem parceiros mais claros do que elas. (A imigração bran­
ca reforçaria a resultante predominância branca70.)
Obviamente, a conclusão otimista dessa análise racial repou­
sava sobre uma afirmação chave: a de que a miscigenação não
produzia inevitavelmente “degenerados”, mas uma população mes­
tiça sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural
quanto fisicamente. Opinião que recebeu as bênçãos da ciência
através do diretor do Museu Nacional, Joao Batista de Lacerda,
que foi o único latino-americano a apresentar um relatório
(Os Mélis ou Mestiços do Brasil) no I Congresso Universal de
Raças, em Londres em 1911 71.
Na sua tese, João Batista de Lacerda começou pondo de
lado a teoria de que os fatos relativos a hibridação de animais

81
("dcduçócs dc Galton”) podiam ser aplicados a seres humanos.
Descreveu, cm seguida, os efeitos do processo histórico da misci­
genação entre africanos e europeus no Brasil (o índio não foi
mencionado). Seu tom, dificilmente, pode ser considerado mo­
derno. Declarou os mestiços “obviamente inferiores aos negros”
como “mão-de-obra agrícola”, tendo “pouca resistência às molés­
tias”; sua superioridade consistia, na sua opinião, em estarem
“física e intelectualmente muito acima do nível dos pretos”. A
tese do “branqueamento” era sustentada da seguinte maneira:

“Contrariamente à opinião de muitos escritos, o cruzamento do preto


com o branco não produz geralmente progênie de qualidade intelec­
tual inferior; se esses mestiços não são capazes de competir em
outras qualidades com as raças mais fortes de origem ariana, se
não têm instinto tão pronunciado de civilização quanto elas, é certo,
no entanto, que não podemos pôr o m é tis ao nível das raças realmente
inferiores”.

Tendo respondido, assim, à sua moda, a argumentação cien­


tífica contra os mestiços, João Batista de Lacerda prossegue invo­
cando em favor da sua tese uma descrição do grande papel que
tiveram os mestiços na história brasileira. Aqui seu tom fica me­
nos superior. A influência deles — diz — , cresceu, mesmo, quan­
do “o novo regime (isto é, a República) abriu as portas a todos
os talentos”, permitindo, assim, a “numerosos mulatos capazes”
o acesso “aos mais altos cargos políticos” e aos “mais altos ramos
da administração”. Ademais, os casamentos inter-raciais (entre
mulatos e brancos) “já não são olhados com desdém como outrora,
agora que a alta posição do mulato e a prova de suas qualidades
morais levaram as pessoas a fazer vista grossa ao evidente con­
traste dos seus caracteres físicos. Sua origem negra é esquecida
na comparação de suas qualidades morais e intelectuais com as
dos brancos”.
Chegou João Batista de Lacerda a afirmar que no Brasil
“já se viram filhos de métis apresentarem, na terceira geração,
todos os caracteres físicos da raça branca”. Alguns. — admitiu —,
“retêm uns poucos traços da sua ascendência negra por influên­
cia do atavismo.. . ” mas “a influência da seleção sexual.. . ten-

82
dc a neutralizar a do atavismo, e remove dos descendentes dos
métis todos os traços da raça negra. .. Em virtude desse pro­
cesso de redução étnica, é lógico esperar que no curso dc mais
um século os métis tenham desaparecido do Brasil. Isso coinci­
dirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio”. O
último processo mereceu explicação particular. Desde a Abolição,
os pretos tinham ficado “expostos a toda espécie de agentes de
destruição e sem recursos suficicnciais para se manter”. Agora,
“espalhados pelos distritos de população mais rala. . . tendem a
desaparecer do nosso território”.
A seu turno, Martim Francisco Ribeiro de Andrada — o
preeminente político republicano e escritor — concordava com
a previsão de João Batista de Lacerda. Em 1913, escreveu no
seu diário, durante uma viagem ao exterior, que, embora o negro
tivesse sido indispensável ao crescimento da agricultura brasi­
leira, o “sangue caucásico” era “mais forte” e, cm consequência,
estava agora a “dominar o etíope. . . Vencerá dentro de um sé­
culo, c conquistará, mais tarde, o índio”. Como prova, apelava
para observações feitas no seu estado natal: “Em São Paulo,
por exemplo, graças ao clima e a uma série de fatores antropoló­
gicos, o sangue negro desaparece na quinta geração”72.
A tese dc João Batista de Lacerda foi criticada, todavia, por
brasileiros, furiosos com a sua estimativa de tempo — achavam
muito longo um século. Em 1912, ele respondeu a esses críticos
— mostrando quão pouco, na verdade, diferia deles. Observou
que o representante do Haiti, “negro escuro e homem educado”
havia elogiado seu relatório, o mesmo fazendo W.E.B. DuBois,
um mestiço. Tendo conseguido, assim, a simpatia de membros,
daquelas raças fadadas à extinção no Brasil, argumentou que nãcr
podia então, ser considerado um erro o apontar a existência de
mistura racial no país. Quanto ao tempo previsto de um século
para o total “branqueamento”, haviam reproduzido mal suas pa­
lavras. Embora a resposta não dissesse abertamente que os bran­
cos já estavam em maioria, deixava isso implícito. No fim do
panfleto, apresentava, triunfalmente, as estatísticas que lhe forne­
cera Edgar Roquete Pinto, professor de antropologia do Museu
Nacional. O reccnscamento de 1890, embora mostrasse que a popu-

83
laçíío branca representava apenas 44% do total, os dados (não
oficiais) de Roquete Pinto para 1912 davam-na como represen­
tando exatamente 50 por cento. Isso, por coincidência, era o número
mínimo exigido pelos críticos de João Batista de Lacerda. (Não há
maneira de verificar a exatidão desses algarismos, uma vez que
o censo seguinte, feito em 1920, não foi desmembrado por raças.)
Mais tarde, o censo de 1940 mostraria que a população branca
representava 63% do total nacional. Usando ainda as estatís­
ticas de Roquete Pinto, João Batista de Lacerda produziu grá­
ficos com barras de muitas cores projetando a composição racial
da população brasileira, até o ano 2012. Durante o século inter­
mediário, a população branca subiria a 80% enquanto a negra
cairía para zero e a mestiça para 3% (de uma estimativa de 28%,
em 1912). A população índia subiria a 17%' (de um total esti­
mado de 13%, em 1912)73.
Nesse período, os brasileiros foram encorajados na sua ideo­
logia de “branqueamento” por estrangeiros de visita, como Pierre
Dcnis, que publicou em 1909 uma relação de viagem muito lida
sobre a sua estada no Brasil. Devotava todo um capítulo às “popu­
lações negras”, caracterizando-as como “indolentes e aludindo à
“irregularidade do trabalhador negro’. Achava ‘irrefutável’ a
inferioridade econômica e moral da população negra do Brasil”.
Roída pelo alcoolismo c por “uma falta total de higiene”, não
se multiplicava “como seria de esperar da sua extrema fecundi-
dade”. Suas conclusões devem ter tranqüilizado os proponentes
de um Brasil mais branco: “Seria, sem dúvida, exagerado pre­
dizer sua próxima extinção. Todavia, é provável que ela não
se desenvolva na mesma proporção que os outros elementos da
população brasileira. Seu papel, no Brasil, não pode senão decres-
-cer; ela não terá, jamais, influência decisiva sobre os destinos
-do país”74.
Seu livro recebeu, no Brasil, a crítica entusiástica de Tobias
Monteiro, o ilustre jornalista republicano e antigo assessor presi­
dencial. Reproduziu Tobias Monteiro quase textualmente a con­
clusão de Pierre Denis sobre o negro, sem uma só palavra de
restrição. Uma vez que o crítico elogiava Pierre Denis pela sua

81
■ '
exatidão e perspicácia, é lícito concluir que partilhava das opiniões
do autor sobre o presente c o futuro do negro brasileiro78.
Outro importante visitante estrangeiro a louvar sem rebuços
o processo de branqueamento foi o ex-presidente americano Theo-
dore Roosevelt, que, cm 1913-14, tinha empreendido expedição
científica ao interior de Mato Grosso, cm companhia do então
coronel Rondon. Em 1914, Roosevelt escreveu para a revista
Outlook um artigo entusiasta sobre a iminente “desaparição” do
negro brasileiro. O artigo foi traduzido e publicado em primeira
página pelo Correio cia Manhã, a saber: “No Brasil. . . o ideal
principal é o do desaparecimento da questão negra pelo desapa­
recimento do próprio negro, gradualmente absorvido pela raça
branca. Não quer isso dizer que os brasileiros sejam ou venham
a ser o povo de mestiços que certos escritores, não só franceses
c ingleses, mas americanos também, afirmam que são. Os brasi­
leiros são um povo branco, pertencente à raça do Mediterrâneo,
diferenciando-se das gentes do Norte, somente como delas dife­
rem, com seu esplêndido passado histórico, as grandes c civili­
zadas velhas raças de espanhóis e italianos. A evidente mistura
de sangue índio adicionou-lhe um bom, e não um mau elemento.
A enorme imigração européia tende, década a década, a tornar
o sangue preto um elemento insignificante no sangue de toda a
nação. Os brasileiros do futuro serão, no sangue, mais europeus
ainda do que o foram no passado e diferençarão de cultura so­
mente como os americanos do Norte diferem”76.
Retornemos, nessa questão, a Sílvio Romero que se achava,
outra vez, em minoria. Na sua opinião, a tese de João Batista
de Lacerda era vulnerável por causa do seu “otimismo”, esti­
mando em apenas um século a tríplice desaparição do negro, do
índio e do mestiço. Mostrava-se desdenhoso dos outros críticos:
“O nosso representante chegara a conclusões verdadeiramente oti­
mistas e, ainda assim, não escapou à sanha da patriotada aristo-
cratizada. . . europeizada. . . do momento. Uma comédia”77! Horro­
rizava-o o excesso de otimismo dos seus compatriotas na avaliação
dos progressos do “branqueamento” brasileiro. Comentando a gri­
ta provocada na imprensa brasileira — pela afirmação de um
belga de que vira negros e mulatos mesmo nas grandes cidades

85
do Brasil —, observou sarcasticamente: “A nação arianizou-se
de repente”.
Em sua História da Literatura Brasileira (1888), Sílvio Ro-
mcro estimava que o processo de “branqueamento” levaria de
três a quatro séculos. Agora, pensava que tomaria ‘‘uns seis ou
•oito, se não mais” — para a absorção de índios e negros. Ade­
mais, chegara à conclusão de que os mestiços jamais desapare­
ceríam. “É preciso ser completamente ignorante em coisas de
antropologia c etnografia para desconhecer o duplo fenômeno da
persistência dos caracteres fundamentais das raças, por um lado,
e, por outro, o fenômeno do cruzamento de todas elas, sempre
que se acham em contato.” O desparecimento total do índio, do
negro c do mestiço podería ocorrer, dizia Sílvio Romero, apenas
se toda a miscigenação futura incluir um parceiro extremamente
claro (senão branco). Não havia estatísticas na análise de Sílvio
Romero. Ele argumentava baseado nas suas próprias impressões
e leituras. Sempre indomado, era do seu estilo duvidar de toda
conclusão uma vez que se tornasse opinião estabelecida78.

C o m p a r a ç õ e s c o m o s E s t a d o s U n id o s

Uma das maneiras consagradas de explicar o “branquea­


mento” brasileiro consistiu sempre em comparar o Brasil aos Es­
tados Unidos. Como vimos acima, mesmo um pensador racista
relativamente ortodoxo — como Nina Rodrigues — perturbava-
se com o pensamento de que podia estar assemelhando o Brasil aos
Estados Unidos. Gente que esposava opiniões radicais mais oti­
mistas gostava de fazer essa comparação. Assim, a formulava
João Batista de Lacerda:

“ Enquanto que os portugueses não hesitaram em misturar-se aos


negros, com risco de produzir filhos mestiços, os anglo-saxões, ze­
losos da pureza da sua linhagem, guardaram o negro à distância, e
somente o usaram como instrumento de trabalho. É curioso e digno
de nota que nem a passagem do tempo nem qualquer outro fator foi
capaz de alterar essa primeiia atitude dos norte-americanos, que
mantêm a raça negra separada da branca até os nossos dias. O
Brasil agiu diversamente. Os brancos estabeleceram uma raça de

8.6
mestiços, que se encontra, hoje, espalhada por uma vasta extensão
do seu território”.

Essa descrição dos Estados Unidos de João Batista dc La­


cerda era, naturalmente, uma tolice. Fossem quais fossem as su­
postas diferenças dc comportamento racial, os americanos sempre
praticaram livremente a miscigenação. Em 1850, a população ne­
gra dos Estados Unidos incluía oficialmente 11% de mulatos;
por volta de 1910, tinha 21 por cento. E é de crer que os recen­
seadores norte-americanos tenham sido menos generosos na apli­
cação da categoria de mulato (em oposição a negro) do que
os seus colegas brasileiros o seriam79. Nenhuma sociedade escra­
vista nas Américas deixou de produzir uma vasta população mu­
lata. Não é no fato da miscigenação, mas no reconhecimento ou
não-reconhecimento dos mestiços como grupo separado que reside
a diferença. Discutindo os Estados Unidos, João Batista de La­
cerda confundiu o sistema de segregação legal e social com a su­
posta pureza racial — referindo-se, mesmo, aos mestiços como
“raça”. Na verdade, a sociedade branca norte-americana tinha
simplesmente empurrado seus mestiços para a categoria inferior
de “negros”.
A fé de Batista de Lacerda no “branqueamento” levou-o ain­
da mais longe na sua comparação no panfleto com que respondeu
aos críticos da memória de 1911. Nos Estados Unidos, afirmou,
os negros haviam sido “expulsos” da comunidade geral branca e
forçados, assim, a organizar instituições próprias a fim de pro­
teger-se. No seu estado dc segregação, provaram também que
eram prolíficos c dados à vida familiar. Ficava implícito, dessa
maneira, que o elemento negro crescia ou, pelo menos, perma­
necia estável, embora não fossem apresentadas estatísticas. No
Brasil, por outro lado, os negros eram desorganizados, “sem qual­
quer espécie de iniciativa, perdidos em estradas não mapeadas,
como animais que se desgarraram do rebanho” — o que fazia
inevitável, felizmente, o desaparecimento do negro brasileiro.
A comparação com os Estados Unidos era embaraçosa para
os brasileiros. Se o “branqueamento” fosse solução para o pro-

87
Mimim racial”, então por que não estavam os Estados Unidos em
melhor situação, uma vez que sua população branca já estava
em tal superioridade numérica? Nessa questão, Nina Rodrigues
já havia aludido quando observou que existia um “superávit” de
brancos nos Estados Unidos. Mas a maior parte dos analistas bra­
sileiros preferiam, como Batista de Lacerda, ou inferir, simples­
mente, que a miscigenação ocorrera muito pouco nos Estados Uni­
dos, ou que a segregação subseqüente tornara impossível qual­
quer diluição posterior do elemento africano. Sua conclusão era
a de muitos dos contemporâneos: no Brasil, a questão racial está
sendo resolvida sem esforço, enquanto que nos Estados Unidos
desafia e confronta, ainda, os estadistas com um problema inso­
lúvel, inçado de dificuldades e de perigo80.
Outra comparação na mesma tônica de análise veio da pena
de Manuel de Oliveira Lima, ensaísta e historiador muito lido,
que passara em Washington, D.C. como diplomata de carreira,
a década de 90. No livro que publicou mais tarde sobre os
Estados Unidos, o primeiro capítulo intitulava-se “O problema
negro”. Esboçava nele os acontecimentos desde a Guerra de Se­
cessão, observando que “na atualidade.. deve-se dizer que o ne­
gro na América é incontcstavelmente um mal” . . . Concentrou,
depois, sua análise no Sul, que julgava semelhante ao Norte do
Brasil. Lançando um olhar retrospectivo sobre a escravidão, afir­
mou que “a sorte dos trabalhadores era infinitamente pior que
no Brasil, mercê da superior predisposição ao afeto da raça latina
e do seu menor desprezo pelas raças inferiores”. “Os plantadores
americanos”, escreveu, “viviam num constante pavor de insurrei­
ção negra”, coisa que “nunca inquietou muito os senhores-dc-
engenho e fazendeiros do Brasil” (nisso, reescrevia a História do
Brasil)81. Sugeriu que o segredo do desenvolvimento subseqüente
era o relativo equilíbrio racial da população. Os pretos “melho­
ram num ambiente de brancos”. Mas o Sul dos Estados Unidos
tinha excesso de negros (embora essa percentagem fosse nota­
velmente mais baixa que a do Nordeste brasileiro) e, em consc-
qüência, “só a imigração branca”, combinada a um êxodo ma­
ciço de pretos do Sul para outros lugares do país, poderia res­
taurar a antiga prosperidade. Acrescentou que, também o Brasil

88
precisava mais imigrantes, principalmente em vista do “relativo
atraso mental c do enervamento da raça colonizadora”. A imi­
gração “corrigirá a extrema mestiçagem estabelecida pelo por­
tuguês e firmará a real supremacia dos brancos” que ainda “amea­
çam . . . afundar-sc num alastramento de raças inferiores”82.
A análise de Oliveira Lima era, sob vários aspectos, típica
da sua época. Primeiro, cie atribuía o contraste encontrado nas
delações raciais entre países a pretendidas diferenças no trato
dos escravos, da qual não oferecia provas. Essa, por sua vez,
era explicada como reflexo do caráter nacional. Segundo, fazia
de passagem uma concessão ao arianismo, admitindo o atraso dos
colonizadores latinos. Terceiro, o negro era descrito como infe­
rior mais redimível — sob a tutela branca e mediante a misci­
genação. Quarto, insistia na necessidade de um equilíbrio racial,
a ser ajudado pelo aumento da imigração branca. O tom gcral-
mente era otimista, dando a entender que o caráter nacional mais
flexível do Brasil tornava possível uma solução do problema negro
pelo “branqueamento”, aliás, caminho fechado, provavelmente, aos
norte-americanos por causa dos seus rígidos preconceitos raciais.
O Brasil jamais poderia proibir os casamentos mistos. Acentuava
Oliveira Lima: “A indulgência das nossas opiniões e dcsmazelo
dos nossos costumes impedem-nos de hostilizar o negro em qual­
quer terreno, mesmo no da mistura das raças”83.
As críticas brasileiras do livro de Oliveira Lima concentra­
ram-se, marcadamente, na sua discussão de raça. Duas serão ci­
tadas aqui como prova de que as opiniões dele eram correntes.
Os críticos divergiam do autor (e um do outro) apenas em graus
de otimismo. Por exemplo: José Veríssimo. O conhecido crítico
literário louvou o trabalho e acrescentou: “Estou convencido,
como o está o sr. Oliveira Lima, de que a civilização ocidental
pode ser construída por povos mestiços. Tenho, mesmo, tendência
a crer que os Estados Unidos devam seu rápido e constante desen­
volvimento à sua pureza étnica. Mas perguuto-me se o fato de
obtê-lo um século antes do tempo valia o sacrifício de milhões
de seres humanos”. Referia-se à Guerra de Secessão.

89
"Nilo há perigo”, como diz o sr. Oliveira Lima, "de que o pro­
blema negro venha a surgir no Brasil. Antes que pudesse surgir
Neria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o elemento
negro de sua importância numérica, diluindo-o na população branca.
Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e
o homem branco (com raras exceções). . . acolhe-o, estima-o e acei­
ta-o no seu meio. Com0 nos asseguram os etnógrafos, e como pode
ser confirmado à primeira vista, a mistura de raças é facilitada
pela prevalência do elemento superior. Por isso mesmo, mais cedo
ou mais tarde, ela vai eliminar a raça negra daqui. É óbvio que
isso já começa a ocorrer. Quando a imigração, que julgo ser a pri­
meira necessidade do Brasil, aumentar, irá, pela inevitável mistura,
acelerar o processo de seleção 84”

Na crítica que Medeiros e Albuquerque fez ao livro de Olivei­


ra Lima, presumia igualmentc a inferioridade do negro e a possi­
bilidade de um Brasil mais branco. Duvidava, porém, que a “fu­
são , que absorvera tão grande proporção do elemento africano,
tivesse produzido um elemento estável. Dizia: “Não se suprimem,
assim, tão facilmente, características orgânicas profundas. A pele
é o que menos importa. O que não está na pele, pode estar no
sangue, nos nervos, no cérebro.. . ” O jornalista não tinha dúvidas
de que o Brasil se tornaria mais claro e que milhões de imigrantes
levariam a obra a cabo. O que receava era a perda, no pro­
cesso, da identidade brasileira. Finalizava, então: “Resta v e r ...
se ficará ao fim alguma coisa que correspondia historicamente
àquilo que é conhecido como povo brasileiro”85.
A insistente visão de um Brasil branqueado aparece também
na ficção literária. A novela A Esfinge (1911), de Afrânio Pei­
xoto, que teve grande sucesso, reflete nos seus diálogos as preo­
cupações raciais da elite do Rio. Para o fim do livro, um homem
mais velho tranqüiliza um jovem patrício dizendo que o país
foi afortunado de ter recebido a colonização portuguesa, sem a
qual lhe faltaria “o belo gênio latino”. (Essa rejeição do aria-
nismo refletia a posição lusófila do próprio Afrânio Peixoto.)
Continua, explicando-lhe que o índio — e o negro também __
muito haviam contribuído para a História do Brasil mas que
“essas sub-raças tendem a desaparecer uma vez que a raça branca
se reintegre na posse exclusiva da terra”. Vem, aí, a crença na

90
fusão: os portugueses tinham “ainda uma vantagem — o cruza­
mento com o negro, “exterminando-o nas diluições sucessivas de
sangue branco”.
“A fusão lenta das misturas malfeitas ainda, a seleção reite­
rada da cultura, a disciplina forçada da vida social farão dessa
massa um povo forte, são e feliz, porque as qualidades dominantes
são boas. O esboço promissor de hoje dará um povo voluntarioso,
sentimental e inteligente, digno desta terra e do tempo em que
viver.” Seguia-se a inevitável comparação com a América do
Norte: “Em trezentos anos mais, seremos todos brancos; não
sei que será dos Estados Unidos, se a intolerância saxônia deixar
crescer, isolado, o núcleo compacto de seus doze milhões de
negros”86.
A comparação entre o Brasil e os Estados Unidos não es­
capou, também, a visitantes dos Estados Unidos. Alguns ficavam
favoravelmente impressionados com a solução brasileira do pro­
blema étnico. A ideologia do “branqueamento” despertou, por
exemplo, a admiração do americano Clayton Cooper, que pu­
blicou um relato da sua visita ao Brasil em 1917. Observou que
estava em curso “um novo experimento entre as nações” . . . “dife­
rente de tudo o que se conhece nos Estados Unidos ou em qual­
quer país da Europa na colonização de gente de cor diferente . . .
“Uma honesta tentativa está sendo feita aqui para eliminar os
pretos e pardos pela infusão de sangue branco. Pretcnde-se que
um dos fatores nesse processo é a seleção natural pela fêmea de
um parceiro de cor mais clara do que a sua.” Informou também
que “certas partes do Sul do Brasil, onde são encontrados compa­
rativamente poucos dos tipos negróides ou de pele escura, são
dadas como exemplo do progresso já alcançado nessa façanha
audaciosa e sem precedentes”. “Muitos dos brasileiros mais cultos
vos dirão que este país revelará um dia ao mundo inteiro o único
método existente de interpenetração racial, o único que evitará
guerras raciais c derramamento de sangue.” Mesmo a biologia,
para Cooper, era tranqüilizadoramente óbvia: “Parece tratar-se
de um caso nítido do processo seletivo de Lamarck e Darwin.
Se um certo tipo fica na moda por razões puramente sociais, todos

91
os casamentos tendem para ele, e o tipo, finalmente, prevalece
na raça”.
Ao cabo, vinha a mesma espécie de comparação tão co­
mum aos observadores brasileiros do seu próprio país: “Embora,
provavelmente, o americano médio expresse satisfação pelo fato
de que a sua civilização ponha muitos obstáculos ao desenvol­
vimento de tal princípio nos Estados Unidos, não reconhecer a
seriedade de motivo dos brasileiros, nessa mistura vital de raças,
seria lamentável”87.
Thcodoie Rooscvelt teve reação semelhante, e expressou-a
com tal detalhe que merece citação na íntegra:

A grande maioria dos homens e das mulheres que encontrei, expo­


entes do mundo das atividades políticas e industriais e das realiza­
ções científicas, mostravam um pouco mais de sangue negro do que
mostrariam pessoas de grupos semelhantes numa capital européia.
Não só há, em algumas classes, considerável infiltração de sangue
negro com uma tendência paralela para a desaparição do tipo
negro puro mas esse processo é aplaudido calorosamente pelos
mais autorizados estadistas do país. A opinião que esposam, tão
diversa da nossa, pode ser melhor traduzida pelo que um d eles_
de sangue branco puro — mc disse:
Naturalmente, a presença do negro é o verdadeiro problema, e pro­
blema muito sério, tanto no seu país quanto no meu. A escravidão
é um método intolerável de resolvê-lo, e tem de ser abolida. Mas
como o problema permanece. . . permanece a necessidade de encon­
trar outra solução. Vocês nos Estados Unidos conservam os negros
como um elemento inteiramente separado, e tratam-nos de maneira
a infundir neles o respeito de si mesmos. Permanecerão como ameaça
à sua civilização, ameaça permanente e talvez, depois de mais algum
tempo, crescente. Entre nós, a questão tende a desaparecer porque
os próprios negros tendem a desaparecer e ser absorvidos...
O negro puro diminui de número constantemente. Poderá desapa­
recer em duas os três gerações, no que se refere aos traços físicos,
morais c mentais. Quando tiver desaparecido, estará seu sangue,
como elemento apreciável mas de nenhum modo dominante, em cerca
de um terço do nosso povo; os dois terços restantes serão brancos
puros. Admitindo que a presença do elemento racial negro repre­
sente um leve enfraquecimento de um terço da população, os outros
dois terços terão, ao contrário, força integral. E o problema negro
terá desaparecido. No seu país foi toda a população branca que
guardou a força racial de origem, mas o negro ficou, e aumenta de

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número, com o sentimento cada vez mais amargo e mais vivo do seu
isolamento, de modo que a ameaça que representa será mais grave
no futuro. Não tenho por perfeita a nossa solução mas julgo-a me­
lhor que a sua. Fazemos face, vocês e nós, a alternativas diferentes,
cada qual com as suas desvantagens. Penso que a nossa, a longo
prazo e do ponto de vista nacional, é menos prejudicial e perigosa
que a outra, que vocês, nos Estados Unidos, escolheram 33.

A confiança da elite no branqueamento, tão pcrspicazmcnte


descrita por Theodore Roosevelt, continuou durante as duas pri­
meiras décadas da República89. Visto através do prisma dessa ideo­
logia, o Brasil parecia ter conseguido vantagem por dois lados:
evitara as amargas divisões raciais dos Estados Unidos, tidas por
fruto dos rígidos preconceitos anglo-saxões — traço de que eram
supostamente carentes os portugueses, de índole libidinosa e de
raça latina. E, agora, o Brasil estava a gastar o elemento racial
inferior pelo atrito natural — e por aquilo a que José Veríssimo
chamara, eufcmisticamcnte, “amor”. Dizia-se, então, que os brasi­
leiros iam escapar à armadilha determinista de Buckle e de Agassiz
numa ascensão contínua para a “brancura total. Negando, explí­
cita ou implicitamente, o caráter absoluto das diferenças raciais,
a explicação oferecia uma saída cômoda das conclusões sombrias
do pensamento racista ortodoxo.
Além disso, a ideologia do “branqueamento” enquadrava-se
com um dos fatos mais óbvios da história social brasileira a
existência de uma vasta “casta média” geralmente chamada “mu­
lata”. Dentro dessa categoria, cabiam enormes variações, que
iam desde prestigiosas figuras da sociedade que só poderíam ser
chamadas mulatas nos círculos mais íntimos, até criminosos do
submundo, que preencheríam a categoria penal sugerida por Nina
Rodrigues, de “degenerados”.
A julgar por quaisquer características físicas objetivas seria
tolice chamar a essa categoria toda “mulata”. No entanto, os brasi­
leiros faziam-no habitualmente, e sua crença na existência de tal
categoria era parte essencial do seu pensamento cm matéria de
raça. Dada a experiência da sua sociedade multirracial, a tese do
“branqueamento” oferecia aos brasileiros uma explicação para o
que acreditavam estar, já, cm curso. Tomavam de empréstimo a

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teoria racista da Europa e, em seguida, descartavam duas das
suas principais presunções: o caráter inato das diferenças raciais
c a degcncrescência dos sangues mestiços — a fim de formular
sua própria solução do “problema negro”. O sentimento de alívio
algumas vezes até de superioridade — que lhes dava a compa­
ração do seu futuro racial com o dos Estados Unidos não era o
menor dos atrativos da teoria.
Sugerir, agora, que todos os membros da elite brasileira es­
posavam as teses conhecidas como “ideal de branqueamento” se­
ria induzir em erro. Não obstante, no período entre 1889 e 1914,
a grande maioria tinha certamentc essas idéias. Uns poucos, como
Nina Rodrigues, adotavam a teoria racista ortodoxa de que as
diferenças eram inatas e de que o processo de “branqueamento”
não triunfaria cm todo o país. Outros poucos, inclusive imigran­
tes alemães radicados nos estados do Sul, mantinham opiniões
rigidamente racistas e tratavam de segregar-se da população nas­
cida no país. Finalmcntc, havia uns poucos livres pensadores (a
analisar mais tarde) que rejeitavam completamente a moldura
de referência da teoria científica racista, na sua busca de uma
definição mais autêntica da nacionalidade brasileira.

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