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Jaime Rodrigues

D infame
fComnercio
PROPOSTASE EXPERIÊNCIAS NO FINAL DO TRÁFICO DE
AFRICANOS PARA O BRASIL (1800-1850)
JAIME RODRIGUES
UNICAMP
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Reitor
HERMANO TAVARES
Coordenador Geral da Universidade
FERNANDO GALEMBECK
Pró-Reitor de Desenvolvimento Universitário
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Pró-Reitor de Extensão e Cultura
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Pró-Reitor de Graduação
ANGELO LUIZ CORTELAZZO
Pró-Reitor de Pesquisa
IVAN EMÍLIO CHAMBOULEYRON O INFAME COMÉRCIO
Pró-Reitor de Pós-Graduação
JOSÉ CLÁUDIO GEROMEL PROPOSTAS E EXPERIÊNCIAS NO FINAL DO TRÁFICO
DE AFRICANOS PARA O BRASIL

(1800-1850)
EDITORA DA
UNICAMP

Diretor Executivo
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Conselho Editorial
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RICARDO ANTUNES - SUELI IRENE RODRIGUESCOSTA

ercULT

Centro de Pesquisa em História Social da Cul tura


IFCH -Unicamp
Internet: www.unicamp.br/ cecult
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Consultoria
MARCUS JOAQUIM M. DE CARVALHO
SUEANN CAULFIELD FAPESP
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BIRMAOTECA CENTRAL. DA UNICAMP

Rodrigues, Jaime
R618i O infame comércio: propostas e experiências no
nal do trá co de africanos para o Brasil (1800-1850) /
Jaime Rodrigues. -- Campinas, SP: Editora da
COLEÇÃO VÁRIAS HISTÓRIAS
UNICAMP/CECULT,. 2000.
(Coleção Várias Histórias) istórias
1. Escravos - Trá co - Brasil - Séc. XIX. 2 - Escravidão. 3.
Escravos. 4. Justiça. I. Título.
CDD 981.
ACOLEÇĂÃOVÁRIASHISTÓRIAS divulga pesquisas recentes
301.4493 sobre a História do Brasil que apontam para a diversidade da
ISBN: 85-268-0525-8 340.11
formaçāão cultural brasileira. Ao centrar seu foco nas práticas,
fndices para catálogo sistemático: tradições e identidades de diferentes grupos sociais, seu elenco
1. Escravos - Trá co - Brasil Séc. XIX 981.I.03 de obras propõe uma re exāo sobre as tensões e os embates entre
2. Escravidão 301.4493
3. Escravos 301.3393 valores e interesses que se expressam no campo da cultura. Os
4. Justiça 340.11 trabalhos publicados estāo ancorados em sólidas pesquisas
Coleção Várias Históias empíricas e descobrem novos problemas de investigação a partir
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Unicamp, Cecult, 1999.
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Ruquel de Sena Rodrigues Tersi
Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Cam-
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pinas: Editora da Unicamp, Cecult, 1999.
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Web design de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. Campi-
Carlos Leonardu Lamari
nas: Editora da Unicamp, Cecult, 1999.
Capa
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Imagem de capa 04 - WLAMYRARIBEIRODEALBUQUERQUE. Algazarra nas ruas. Co-
Reprodução da aguada de Paul Harro-Harring, Débarguement d'esclaves nègres, l 840. memorações da independência na Bahia (1889-1923). Campinas:
Acervo do Instituto Moreira Salles.
Editora da Unicamp, Cecult, 1999.
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SUMÁRI0

PREFÁCIO.. 17
ABREVIATURAS UTILIZADAS. 21
APRESENTAÇÃO... 23
Notas 29

Capítulo 1
DIAGNÓSTICO DOS MALES 31
1.0"povo" brasileiro e a corrupção
dos costumes ....... 31
2. Apurando responsabilidades.. 38
3.O medo da africanizaçãoe da haitianização ... 50
Notas ******* 63

Capítulo2
CAUSAS "IRREALIZÁVEIS", "MPOSSÍVEIS" E "IMPOLÍTICAS"... 69
1. Manter o trá co e a escravidão ......ee.*.*e******** .... 71
2. Acabar com o trá co, manter a escravidão .... 77
3.O trá co e os projetos de abolição gradual ... 82
Notas.... 93
Capítulo 3
A PRESSẢOINGLESA: HONRA,INTERESSESE DIGNIDADE ...... 97
1. Tratados internacionais ...... 97
2. Os ingleses e a soberania nacional 101
3. Da Regência à lei de 1850. 107
Notas ***.. 120
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Capítulo 4
"GRANDES" E " PEQUENOS" NO FINAL DO TRÁFICO ..... 127
1. Os tra cantese seu "infame ...s.eeeeee 127
comércio".
2. Autoridades policiais ....... 142
3. Interesses locais ... .... 152 PREFÁCIO
Notas ........ ... 164
Capítulo 5 Há tempos os historiadores deixaram de ser simples
OUTRAS EXPERIÊNCIAS NO FIM DO TRÁFICO 171
colecionadores de fatos. Concebida como um ofício de ni-
do por seu objeto e por seus métodos, a História constitui
1. As "indignidades" da "ín ma populaça"......... 171 um esforço para compreender as ações humanas no passa-
2. Através da repressão: os africanos livres *.****. 184 do. Governado por problemas, o historiador busca suas res-
3. A busca da liberdade na "terra de brancos" ... 192 postas inquirindo fragmentos esparsos da experiência hu-
Notas 202 mana ao longo do tempo e obras que trazem o que sobre
ela já se produziu. Como bem observou F. Furet, "o fato
histórico já não é a irrupçāo de um acontecimento impor-
CONSIDERAÇÕES FINAIS.... ...209 tante que abre uma fenda no silêncio do tempo, mas sim
TABELAS **. 215 um fenômeno escolhido e construído": resultado do traba-
Iho do historiador, que analisa, seleciona, interpreta.
1. Escravos introduzidos durante o trá co Apesar disso, no entanto, muitas vezes passamos pe-
ilegal. .*.. 215 los fatos como se eles fossem dados "naturais": esquece-
2. Datas e locais de apreensão de navios do mos de perguntar sobre suas credenciais, veri car sua exa-
trá co ilegal..... **.. 216 tidão, localizar o modo como têm sido pensados e proces-
3. Médias de mortalidade transatlântica de sados. Adotamos marcações cronológicas e explicações dis-
escravos .... eee.eeee 217 poníveis, su cientemente estabelecidas pela historiogra a,
como se partilhássemos da máxima positivista-metódica
que acreditava ter certeza sobre o que realmente se pas-
FONTES... e****. 219
sou. Acabamos acostumados a certas "verdades factuais
BIBLIOGRAFIA ....e****...e .ee.*e.e. 229 e fazemos de conta que a lógica histórica pode ser simples
e linear, sem silêncios, contradições e nuances. Isso geral-
mente ocorre com os grandes acontecimentos que costu-
mam marcar a história e que aprendemos a encadear des-
de os bancos escolares: o descobrimento do Brasil, a inde-
pendência, a proclamação da república...
Pois é exatamente no sentido oposto, inquirindo um
destes fatos de modo diferente, transformando a rmações
em interrogações, que caminha Jaime Rodrigues neste li-
vro. Colocando a abolição do trá co de escravos africanos

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Jaime Rodrigues

Brasília: CNPq, 1988. No Simpósio "Histórias de liberdade: es-


cravos e cidadãos no mundo moderno", realizado em 1988 na
Universidade Estadual de Campinas, foram apresentados traba-
Ihos sobre o tema, entre eles o de Thomas C. Holt, "Slaves into
free men: the problem of freedom in Jamaica"; e os de Dale
Tomich, "A calculeted and calculating system: the struggle over
the working day under slavery" e "The other face of slavery: Capítulo 3
provision ground cultivation in Martinique. Integration,
adaptation and apropriation". José Capela menciona que em A PRESSÃOINGLESA: HONRA,
1865, a Junta Geral de Angola colocava-se contra o m do trá - INTERESSES E DIGNIDADE
co (ocorrido em 1836!). Contrários também à abolição da escra-
vidão nas colônias portuguesas, decretada em 1858, os membros
da Junta a rmavam que "os escravos não estavam preparados 1. Tratados internacionais
para receber proveitosamente a liberdade: só o dar-lhes foros de
livre seria um mal para eles; [...]. O Vice-Presidente da Junta a r-
mou que os escravos até preferiam aquela condição à de livres!". Uma das explicações mais freqüentes para o nal do
As burguesias portuguesas ea abolição do trá co da escravatura
trá co, encontrada na bibliogra a, é a da crescente pres-
(1810-1840). Porto: Afrontamento, 1979, p. 114.
51
AS, 15 jun., 1831, I, p. 364. são inglesa para o cumprimento dos tratados internacio-
$2 AS, 15 jun., 1831, I, pp. 366 e 369, respectivamente. Ver também nais uma pressão de longa data, importante e que se
AS, 21 jun., 1831, L, pp. 409-13. acirrou em meados da década de 1840. Apesar de virtual-
S3 "Projeto 124, vindo do Senado". ACD, 6 maio, 1835, I, p. 20. A mente unânime, creio tratar-se de um argumento contro-
discussão posterior acrescentou emendas no sentido de que os
verso, justamente por ser tomado, em geral, como deter-
julgamentos fossem efetuados por uma junta composta pelo juiz
de direito criminal e pelo juiz municipal, sendo presidente o que minação histórica.
fosse chefe de polícia. ACD, 20 jul., 1835, II, p. 91. Com efeito, a pressão do governo inglês para que ter-
S4
ACD, 7 maio, 1835, I, p. 22. Grifo meu. minasse o trá co no Brasil remonta à vinda da família real
s$ ACD, 2 set., 1837, II, p. 453. portuguesa para o Rio de Janeiro. Um empréstimo de 600
s6 ACD, 2 set., 1837, II, p. 454. O deputado Ferreira França apre-
mil libras concedido ao governo português em 1809 foi se-
sentaria um projeto sobre a distribuição dos africanos livres, em
1839, que ia frontalmente contra a proposta de Holanda Caval- guido, logo em 1810, por um Tratado de Aliança e Amiza-
canti. França defendia ser mais vantajoso se eles fossem empre- de, que estabelecia os princípios para uma futura abolição
gados exclusivamente em obras públicas enquanto não houves- do trá co. Nesse tratado, o príncipe regente se comprome-
se deliberação a respeito da reexportação dos mesmo para a Áfri- tia a manter o trá co apenas com aqueles territórios afri-
ca. Ver ACD, 13 maio, 1839, 1, pp. 73-4. canos que lhe pertencessem ou sobre os quais Portugal ti-
57
ACD, 2 set., 1837, II, p. 454.
s8 Du Bois, The supression, pp. 70-1.
vesse "legítimas pretensões",1
Nos dois anos que se seguiram à assinatura desse tra-
tado, 17 navios foram capturados pela marinha inglesa. Re-
correndo às "bases imutáveis da humanidade e da razão",
o ministro inglês no Rio de Janeiro, Lorde Strangford,
alertava para o uso indiscriminado da bandeira portugue-
sa por embarcações de outras países, a rmando que isto
não era admitido nos termos do tratado de 1810.2

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Jaime Rodrigues O infame comércio

As divergências em relação aos prejuízos causados Os termos desse novo tratado motivaram confrontos,
por essas capturas seriam resolvidas em 1815, no Congresso que apareciam principalmente nas reações dos comercian-
de Viena. O governo inglês se comprometia a indenizar o tes da Bahia e do Rio de Janeiro. Tais confrontos punham
governo português em 300 mil libras por esses apresa- em risco o patrimônio inglês no Brasil e revelavam a di -
mentos, ao mesmo tempo em que renunciava ao recebimen- culdade dos governos portugueses e brasileiros em fazer
to do empréstimo de 600 mil libras feito em 1809 e conse- cumprir os compromissos assumidos. Di culdades dessa
guia, por intermédio de outro tratado rmado no mesmo ordem se acentuariam no reconhecimento da independên-
Congresso, que o trá co fosse abolido ao norte do parale- cia brasileira pelo governo inglês, apesar das substanciais
lo do Equador. A proibição do trá co com essa região, que transformações ocorridas no cenário político da Grā-
incluía a tradicional fonte abastecedora da Costa da Mina Bretanha em meados da década de 1820.
(atuais Daomé e Nigéria, na África Ocidental) provocou no- As negociações entre os plenipotenciários britânicos
vos e acirrados atritos entre os tra cantes das capitanias e e portugueses vinham sendo encaminhadas, desde 1808,
os ingleses nelas residentes. A continuidade do trá co nas pelo ministro do exterior, Castlereagh. Após a morte deste
regiões ao norte do Equador seria, por muitos anos, moti- e a ascensão de Canning ao posto, em que pesem as dife-
vo de con itos e negociações entre os governos inglês, por- renças de origem e estilo entre os dois, alguns princípios
tuguês e, posteriormente, brasileiro. seguiriam norteando a política exterior do gabinete conser-
A convenção adicional de 28 de julho de 1817 funcio- vador inglês. Um desses princípios constava de uma carta
nou como uma regulamentação dos pontos rmados em ao Duque de Wellington, na qual Canning a rmava: "De
1815. Em seus itens principais, o novo acordo previa o di- uma coisa os aliados podem estar perfeitamente seguros,
reito recíproco de visita aos navios de ambos os países (Por- é que nenhum estado do Novo Mundo poderá ser reconhe-
tugal e Inglaterra),; o apresamento das embarcações que na- cido pela Grā-Bretanha se não tiver franca e completamente
vegassem ao norte do Equador carregadas de africanos; a abolido o comércio dos escravos. "3
indenização por apresamentos indevid os; a proibição de As conversações prosseguiram até 1825, centradas na
capturas em águas territoriais de ambas as nações; a cria- barganha envolvendo o reconhecimento da independência
ção de comissões mistas anglo-portuguesas no Rio de Ja- em troca de garantias seguras da abolição do trá co. Em
neiro, Serra Leoa e Londres. 1823, Canning instruía o representante inglês no Rio de Ja-
O procedimento jurídico a ser adotado nessas comis- neiro para que informasse ao novo governo brasileiro a res-
sões também foi objeto da convenção: compostas de um co- peito dos princípios condenatórios ao comércio de escra-
missário-juiz e um comissário-árbitro de cada nação, as co- vos, rea rmados em Verona em fevereiro daquele ano. Nas
missões julgariam a qualidade da presa e, em caso de libe- conversações, não deveria haver "um ar de ameaça ou de
ração, o valor a ser pago ao proprietário a título de indeni- intimidação, mas simplesmente exprimir o desejo do go-
zação. Cabia aos comissários-juízes dar a sentença, mas, verno britânico de que um gesto assim necessário fosse pro-
caso não houvesse concordância entre eles, um comissário- posto por um ato voluntário do governo brasileiro, em an-
árbitro seria sorteado para fazê-lo e a sentença nal ema- tecipaçāo ao desejo da Grā-Bretanha, antes de obter o re-
naria da assembléia dos dois comissários-juízes e do árbi- sultado por outros meios",4
tro escolhido pelo sorteio. Em caso de condenação, o pro- De início, o tom das negociações era bastante amigá-
duto da venda dos navios seria dividido entre os dois go- vel, até porque encontrava ressonância na gura do então
vernos. Os africanos apreendidos, por sua vez, receberiam ministro dos Negócios do Império e Estrangeiros, José
alforria e prestariam serviços como trabalhadores livres. Bonifácio. No entanto, como já vimos, Bonifácio defendia,

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em 1823, que a abolição imediata do trá co era precipita- 2. Os ingleses e a soberania nacional
da. Ele propunha uma suspensão gradativa, em dois ou três
anos, tempo necessário para que se encaminhasse a imigra-
ção branca para substituir a africana. Procurava, assim, evi- Entre os legados portugueses para o Brasil recém-
tar a suposta falta de mão-de-obra para a lavoura e a amea- emancipado estavam os tratad os rmados com o governo
ça de que o m imediato do trá co traria para o governo inglês. Em 1826, quando o legislativo brasileiro voltou a
recém-instalado no Rio de Janeiro, em função das pressões funcionar, ou melhor, iniciou seus trabalhos regulares, o
provinciais. trá co era um tema fundamental. A partir dali, porém, a
O reconhecimento da independência viria em 1825, discussão seria marcada pela pressão inglesa para sua
seguido pelo tratado anglo-brasileiro de 13 de novembro de extinção, o que se colocava aos parlamentares como uma
1826, prevendo o m do trá co de escravos para dali a três questão de soberania do Império frente às ingerências ex-
anos, mantendo os termos da Convenção Adicional de 1817. ternas.
Rati cado pelo Coroa inglesa em 13 de março de 1827, o Nesse ano, a discussāo tomou rumos que a historio-
novo tratado permitia a continuidade legal do trá co até 13 gra a assimilou, em parte, para explicar a pressão ingle-
de março de 1830. sa: o deputado Cunha Matos negou "que a intençāo ingle-
As repercussões do novo tratado foram enormes e sa fosse determinada pela lantropia: "os ingleses, excla-
marcaram profundamente as relações entre os governos bra- ma, querem fazer-se senhores da África; Deus os ajude, fa-
sileiro e inglês.5 As prolongadas negociações em torno des- lem-nos a verdade e não nos venham com lantropias ima-
te tratado e dos posteriores, assim como as transformações ginárias'",8 A pretensão inglesa de conquista da ẢÍrica e a
ocorridas na política inglesa ou as motivações abolicionis- explicação para sua insistēncia em eliminar a in uência
tas dos diversos segmentos da sociedade inglesa,, não se- comercial do Brasil naquele continente foram apontadas,
rão objeto privilegiado neste trabalho.6 Neste capítulo, as por alguns autores, como um dos motivos de sua exigên-
preocupações estarão ligadas a repercussões de outra na- cia de supressão do trá co transatlântico.
tureza. O foco estará centrado nas reações que se deram Nos debates, vinha à tona a questão da humanidade
no plano da política institucional brasileira, especialmen- da escravidāo e do progresso que seria por ela barrado. O
te na Câmara dos Deputados. A princípio, veremos o quan- ano de 1826 foi fértil em discussões, motivadas pela indig-
to as tentativas de proibição do trá co traziam elementos nação dos parlamentares diante da assinatura do tratado
para as disputas internas no legislativo brasileiro, para as que previa a extinção do trá co em três anos. Muitos depu-
disputas entre os poderes e para os projetos referentes ao tados não viam com bons olhos a assinatura de um acordo
entendimento do país que emergiu após a separação de tão lesivo e que previa ainda penas aos súditos brasileiros
Portugal. Como a pressão externa esteve sempre pairando que o descumprissem; achavam que tal medida era, em tese,
sobre o trá co de africanos, ela seria um fator importante prerrogativa do poder legislativo. 0
para a aglutinação das diferentes propostas que analisei no O tratado com a Inglaterra já fora assinado, embora
segundo capítulo. o cialmente a Câmara não o tivesse recebido para rati cá-
lo ou tomar conhecimento de seus termos. Antecipando-se
a esse envio o cial, o deputado Clemente Pereira, do Rio
de Janeiro, formulava um projeto que estipulava para 1840
a extinção daquele comércio, além da venda, em hasta pú-
blica, dos navios apreendidos após aquela data, recomen-
dando a elaboração de uma lei que regulasse "forma e
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modo de educar e empregar utilmente os mesmo liber- Teixeira de Gouveia já propusera, antes mesmo do primeiro
tos".11 parecer, que se consultasse o governo para saber se a Câ-
Mais do que uma iniciativa emancipacionista, o pro- mara podia ou não tratar do assunto, já que era "público
jeto de Clemente Pereira deve ser entendido como uma ten- (e) constante que o governo fez um tratado acerca do co-
tativa de dar vida mais longa ao trá co. Pelo acordo assi- mércio de escravos", " Retornando à Comissāo de Legisla-
nado, esse comércio deveria encerrar-se em 3 anos, e não ção, o projeto teria um encaminhamento conciliatório, desta
em 14 como pretend ia o deputado uminense. Se a ques- vez na forma de uma emenda que limitava a seis anos o
tão do trá co serviu muitas vezes como argumento para prazo legal do trá co.15 Porém, nada cou decidido naquele
rea rmar o princípio da soberania, o contrário também é ano.
verdadeiro. Sob o argumento da garantia da soberania tam- Após quase oito meses de recesso, a Câmara dos De-
bém se esconderam os interesses ligados ao comércio de putados voltou a se reunir em 1827.14 Neste ano, o debate
escravos. foi de nitivamente marcado pela questão do tratado com a
Pelos trâmites normais da Câmara, o projeto recebeu Inglaterra. Mesmo aceito pela Câmara, o tratado perdura-
parecer da Comissão de Legislação, que a princípio esten- ria como tema recorrente nos anos posteriores. Araújo Lima
deu ainda mais o prazo para a duração legal do trá co, fazia, no início dos trabalhos daquele ano, uma emenda ao
buscando conciliar a causa da humanidade com as neces- projeto de Clemente Pereira, reduzindo ainda mais o pra-
sidades da agricultura: zo para o nal do trá co – dezembro de 1829. Aceitando
as determinações do tratado, esse deputado procurava um
considerando quanto este comércioé contrário à boa meio de garantir a soberania brasileira por meio do julga-
razão e justiça natural, impróprio de um povo livre, mento de navios contrabandistas pelas autoridades brasi-
tolerado até hoje no Brasil somente por princípios leiras, e não pelas comissões mistas. 1" Manter o trá co até
de conveniência peculiar [..]. Desejaria a Comissão
que as condições permitissem seu m, ou seja, decidir a
que principiasse desde já esta proibição; mas con-
questão sem a ingerência inglesa era a tônica da discussão
siderando quanto a lavoura e os principais estabe-
lecimentos mananciais de riqueza do Brasil estão entre os deputados daquela legislatura.
dependentes dos braços escravos [...] convém em Assim, no âmbito do discurso parlamentar, a questão
que é necessário tolerar-se de quatorze anos, como tivera seu eixo deslocado: a indignação com as atitudes do
propõe o autor do projeto.12 governo inglêse com o executivo que assinara o tratado à
revelia da Câmara obscureciam qualquer referência à escra-
A manutenção do trá co por um prazo mais alonga- vidão com base na justiça, direito natural ou humanidade.
do, tal como aparece no projeto de Clemente Pereira e no As palavras de Holanda Cavalcanti expressam bem esse
primeiro parecer da Comissão de Legislação, demonstra a deslocamento: "Eu sou um dos que quer que ela (a escrava-
divergência existente entre o legislativo, de um lado, e o tura) se extinga com a maior brevidade possível, mas por
executivo e o moderador, de outro. A nal, um tratado já fora uma lei nossa, e não por tratado com o estrangeiro. "*
rmado, enquanto a Câmara propunha mais onze anos de Esta postura evidencia o comportamento de uma par-
sobrevida para a atividade, para além do que previa o acor- cela substancial dos parlamentares até o nal da década
do. Temos, portanto, divergências nas propostas da elite de 1820. A imobilidade, traduzida em inúmeras lamen-
política a respeito do encaminhamento da questão. tações pela intervenção estrangeira numa questão tão fun-
O executivo tinha formas de intervir no Parlamento damental, contrapunha-se a uma rapidez de decisões para
por meio de sua bancada de sustentação," O deputado a qual eles pareciam não estar preparados. Creio que esta

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Jaime Rodrigues O infame comércio

falta de preparo não era produto de uma eventual forma- rejeitar o tratado, alegando que a Constituição não permi-
ção cultural deturpada em comparação às matrizes euro- tia à casa deliberar sobre tratados internacionais depois de
péias das "luzes do século" ou à noção de progresso vi- sua rati cação, Cunha Matos foi mais prolixo e menos téc-
gente em outras partes do mundo dito civilizado. Ela pode nico em sua declaração de voto discordante.
ser creditada tanto à ausência de coesão majoritária em tor-
Honra, interesses, dignidade, independência e sobe-
no dos projetos em discussão, como também ao fato de que
rania eram, para ele, os elementos em jogo naquele momen-
esses homens viviam numa sociedade cujos valores enrai-
to. Todas as explicações dadas por Cunha Matos para a in-
zados na escravidão e nos interesses comerciais do trá co
conveniência de se aceitar o tratado evidenciam o choque
eram motivos su cientes para fazê-los lutar pela manuten- existente entre o m do trá co e as bases de qualquer pro-
ção do status quo. jeto de "nação".
Era, portanto, uma acomodação aparente e que não se
esgotava em si mesma, fazendo parte da estratégia da elite Em primeiro lugar, o tratado cerceava a atribuição
política da época enquanto não se chegasse a uma solução legisladora que cabia à assembléia, quando impunha pe-
que contemplasse setores importantes da sociedade brasi- nas e sujeitava súditos do Império a tribunais estrangei-
leira. Para chegar a isso, debates, convencimentos e lutas ros. Em segundo lugar, prejudicava o já limitado comércio
seriam freqüentes em vários campos da sociedade. Homens brasileiro, justamente numa área em que ele ainda podia
como o deputado Ferreira França admitiam a di culdade em competir com outros países: a Africa. A navegação e as ren-
alterar qualquer item da relação senhor-escravo por causa das públicas também minguariam, e todos esses fatores
da dependência que a sociedade criara em relação aos es- conjugados faziam do tratado um ato prematuro. O impos-
cravos, embora fosse reconhecido publicamente que a con- to arrecadado com o trá co e sua importância para os co-
dição deles era "oposta ao bem do gênero humano",1" fres imperiais seriam usados outras vezes depois do pro-
A indignação que tomava conta dos debates pelo não nunciamento de Cunha Matos. Numa longa e acirrada dis-
envio do tratado à Câmara não arrefeceu quando os depu- cussão sobre o arrendamento dos direitos de importação e
tados tomaram conhecimento dos termos dele. As declara- exportação a particulares, o deputado pernambucano
ções do plenipotenciário inglês, conforme explicou o impe- Almeida Albuquerque defendia que todos os direitos fos-
rador, faziam o tratado parecer uma concessão ao Brasil. Se sem arrematados, exceto os do trá co: "Os escravos não
quisesse, o governo inglês poderia exigir o cumprimento se podem esconder, como muitas outras mercadorias, por
dos acordos anteriores rmados com Portugal ou forçar a isso os direitos são certos. E com que precisão pois se há
antiga metrópole a proibir o comércio brasileiro com suas de dar a ganhar a negociantes uma coisa que o governo tem
possessões africanas e, assim, fazer com que o Brasil "den- certa? Não há razão alguma [...]. "2
tro de seis meses [...] não tivesse porto algum onde zesse Essa a rmação seria um indício de que a proximida-
aquele trá co, a nāo ser por contrabando",0 Essas medidas, de do m legal do trá co aumentaria de forma imprevisível
é claro, vinham seguidas de ameaças de bloqueio dos por- a demanda e a importação nos quatro anos seguintes, ge-
tos brasileiros. rando divisas tão vultuosas que não devia se cogitar repas-
A Câmara respondia estar inteirada dos termos do sá-las a particulares. A julgar pelas avaliações do próprio
tratado, exceto pelos votos em separado de dois membros Senado, inexistiam estatísticas o ciais sobre o número de
da Comissão de Diplomacia, os deputados Cunha Matos e africanos que ingressavam no Brasil,P o que di cultava o
Augusto May, de Goiás e Minas Gerais, respectivamente. cálculo exato da arrecadação dos direitos e também inibia
O segundo prendeu-se mais às formalidades jurídicas para iniciativascolonizadoras - aomenosnodiscurso - por
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não se saber quantos braços substitutos se deveria trazer trá co, como também poderia ser um lugar no "concerto
de outras partes do mundo que não a África. das nações civilizadas", tendo por paradigma a Europa,
Não se cogitava abrir mão do imposto gerado pelo onde a escravidāo era condenada no discurso dos abolicio-
trá co, especialmente às vésperas do m legal previsto nistas, em suas variantes continentale britânica.26
para 1830. O deputado Miranda Ribeiro elaborava, em Às vésperas do impedimento legal do comércio de
1828, um projeto para reduzir todos os impostos, que africanos, o discurso humanitário voltava-se contra o trá-
incidiam sobre os escravos, aos direitos de entrada, exclu- co. Caídas no esquecimento, as denúncias de maus-tra-
indo-se os demais, como por exemplo a sisa sobre as tos aos africanos apreendidos retornavam à ordem do dia
alforrias.24 nas falas parlamentares. O deputado Cunha Matos, que
Cunha Matos detalhou mais suas opiniões quando se anos antes se indignara contra o tratado com a Inglaterra
discutiu o parecer da Comissão de Diplomacia. Nesse dis- e dissera que o m do trá co era prematuro, mudava sen-
curso, reconheceu os atributos negativos dos africanos, mas sivelmente seu discurso:
continuou a de nir o trá co como provedor da mão-de-obra
e pilar da soberania brasileira: "[...] o comércio de escravos Lembrou a necessidade de dar um corte à introdu-
deve acabar, mas deve acabar quando assimo quiser a na- ção de escravos pela maneira que se tem feito até
ção brasileira, livre, soberana e independente dos caprichos hoje, pois que assim o exige a humanidade; enquan-
e da vontade do governo de Inglaterra. "25 to a nação nenhum lucro direto tira dessas introdu-
Manter tal decisão no âmbito da "nação brasileira" ções clandestinas, e se indiretamente algum interes-
se percebe, nemn por isso deixa de atacar as leis da
era uma solução bastante coerente com a de niçāo que os humanidade e o interesse da nação.?
parlamentares vinham construindo em torno desse concei-
to. A cidadania restrita aos proprietários, e a eles cabendo
o direito político de decidir os rumos da "nação", era uma 3. Da Regência à lei de 1850
maneira e caz de a rmar, perante o exterior, que a sobe-
rania nacional passava antes pela consolidação do poder Durante a Regência, iniciada em 1831, parecia haver
senhorial na sociedade brasileira. Consolidar essa ordem um clima propício à proibição do trá co. As perseguições
de coisas consistia, entre outros fatores, em regulamentar
dos cruzeiros ingleses aumentavam e, em contrapartida,
a sociedade por meio da criação do povo "melhorado" e
uma nebulosa situação política gerada pela abdicaçāo de
da constante vigilância policial, bem como de nir os limi- Pedro I, com a ascensão de um ministério liberal cujos mem-
tes do poder das autoridades na relação senhor-escravo, bros sempre defenderam o término da atividade, desen-
temas já tratados nos capítulos iniciais. corajou os importadores por algum tempo, embora o volu-
Assim, as ameaças externas contra o trá co não eram me de africanos introduzidos no período regencial seja uma
consideradas apenas em si, mas sim como diretamente li- incógnita." Às motivações políticas somaram-se a queda
gadas ao contexto interno de organizaçāo nacional expres- brutal nos preços do algodāo maranhense, onde "o trá co
sadas nos projetos dos parlamentares. A idéia da opressão escravista aparentemente havia terminado na primeira
externa retornava ao debate, exempli cada pela experiên- metade de 1830", e uma política mais severa de repressão
cia colonial. O Brasil vira-se submetido a Portugal e, uma aos desembarques de africanos nas províncias do norte do
vez independente, "passou a tomar o lugar que lhe com- país, entre Pernambuco e o Pará.>
petia". Esse lugar poderia ser, comno era para Cunha Ma- Foi sob a égide de um gabinete liberal, em 1831, que
tos, o lugar da soberania para optar pela manutenção do se votou a primeira lei abolindo o trá co. Mas o chamado

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"período liberal" de 1831 a 1837 não foi uníssono na ques- Quando a pressão inglesa se fez mais sensível, for-
tão; tanto que a lei permaneceu letra morta, e o trá co maram-se correntes divergentes a respeito do trá co. Sér-
reassumiu a constância anterior e até aumentou seu volu- gio Buarque de Holanda apontou pelo menos duas: a pri-
me, apesar das duras penas previstas na legislação. O pró- meira defendia que a entrada de mão-de-obra africana era
prio Feijó, em 1834 – antes, portanto, de assumir a regên- imprescindível a um país despovoado como o Brasil; a se-
cia una - pregava em seu jornal OJusticeiroa revogação gunda (o governo) defendia a supressão do trá co porque
da lei que extinguira o trá co, dizendo que "para acabar ele de fato não fez a fortuna de nenhum brasileiro, posto
com a escravidão, a medida indicada seria a fundaçāo de que os grandes capitais envolvidos na atividade eram por-
escolas normais de agricultura e a contratação de colo- tugueses.S No que se refere aos capitais investidos naque-
nos" Para muitos parlamentares desse período, trá co e le negócio, o estudo de Luiz Henrique Tavares trata da
escravidão eram questões distintas; alguns a rmavam de- modernização da atividade e sua capitalização, com o pa-
sejar uma vaga melhoria nas condições de vida dos escra- gamento das peças de escrav os em moedas e não mais na
vos, desde que se mantivesse sua condição social. O direi- forma de trocas por produtos brasileiros e europeus, com
to do senhor em obrigá-lo ao trabalho era inquestionável.31 a entrada de nanciamentos das grandes casas bancárias
O m do trá co perdurou como tema dos debates e comerciais londrinas, alemās e norte-americanas.4%
parlamentares até meados da década de 1850, mantendo- Logo depois da promulgação da lei de novembro de
se como pendência entre as representações conservadoras 1831, o poder legislativo passou a discutir diversos pontos
e liberais e entre gabinetes dessas mesmas tendências. E dela, tais como a atuação das comissões mistas anglo-bra-
clássica na historiogra a a constatação de que a política sileiras e a própria ine cácia da lei, e o trá co continuava
dos gabinetes de ambas as tendências era dúbia nessa ques- motivado por uma "maldita sede de torpes ganhos" e rea-
tão, embora todas as medidas efetivas contra o trá co te- lizado por pessoas "malvadas" 37
nham sido tomadas, depois de 1837, em gabinetes conser- O artigo referente à reexportação dos africanos ile-
vadores. Frente ao eleitorado de proprietários, os partidá- galmente importados foi, desde cedo, objeto de controvér-
rios dos dois grupos defendiam a permanência do trá co sias. O primeiro governo regencial considerava a reexpor-
como elemento indispensável ao bom desempenho da agri- tação "tarefa arriscada", julgando que, para cumpri-la, era
cultura; diante da Coroa, os partidos se dispunham a apre- necessário negociar com "bárbaros", ou seja, com os sobe-
sentar projetos para a extinção do trá co, que representa- ranos africanos que deveriam receber de volta um contin-
va um problema de relações exteriores, especialmente comn gente que, na versão da Secretaria de Estado, seria feito pri-
a Inglaterra." Os liberais, mesmo quando na oposiçãoe em sioneiro e vendido como escravo novamente.* No que se
franco con ito com o ministério conservador estabelecido, refere às comissões mistas, a estratégia governamental de
como no movimento praieiro de 1848 em Pernambuco, não deixar de enviar o juiz brasileiro para não referendar a le-
zeram qualquer proposta que alterasse radicalmente a gitimidade da comissāo não vinha dando os resultados es-
estrutura social e fundiária.3 De l837 a 1838, deu-se a tro- perados: os navios brasileiros julgados em Serra Leoa vi-
ca das tendências políticas no ministério: caiu um gabine- nham sendo sistematicamente condenados. O juiz designa-
te liberal e subiu um conservador liderado por Bernardo do ainda não embarcara até maio de 1833, "talvez recean-
Pereira de Vasconcelos. Analisando os Relatórios do Minis- do as tristes conseqüências de ir para um clima mui doen-
tério do Exterior nesses dois anos, Conrad apontou um tio, ou embaraçado pelos seus negócios domésticos" 9
abismo retórico entre eles, identi cando as mudanças de A ine cácia da lei de 1831 era atestada, segundo o
posição ocorridas,4 Marquês de Maricá, pelas "lições da experiência já adqui-
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rida sobre os meios e modos de continuaro contrabando". compradores de africanos eram excluídos de qualquer pena
Para coibi-lo, o Conselho de Estado estudava a proposta fei- referente ao crime de contrabando: "Nenhuma ação pode-
ta pela Inglaterra de um artigo adicional ao Tratado de rá ser tentada contra os que tiverem comprado escravos,
1826. A necessidade de obter aprovação do legislativo para depois de desembarcados, e ca revogada a lei de 7 de no-
a assinatura de tratados com nações estrangeiras era usa- vembro de 1831, e todas as outras em contrário.""
da como argumento por alguns conselheiros como o A pena para os réus seria de três a nove anos de de-
Marquês de Barbacena para obter dos ingleses a revo- gredo para Fernando de Noronha, além do pagamento das
gação da taxa xa de 15% sobre a importação de seus pro- despesasdereexportaçãodosafricanos - dispositivo que,
dutos pelo Brasil. Podendo estabelecer uma taxa livre so- previsto na lei de 1831, não havia sido utilizado até aque-
bre os diversos produtos, Barbacena acenava com a possi- le momento. Por este novo projeto, todo o risco da transa-
bilidade de estudar o artigo adicional.® ção cava sob a responsabilidade do tra cante e de seus
Na legislatura seguinte (1834-1837), apresentaram-se auxiliares, enquanto os senhores eram eximidos da culpa
esporadicamente projetos contra o trá co. As eleições de pela continuidade do "infame comércio". Menos rigoroso
1833 compuseram uma Câmara que representava majorita- do que a lei de 1831, o novo projeto de Barbacena contem-
riamente os senhores que se sentiam ameaçados pela lei de plava os senhores, ao livrá-los da responsabilidade, e tam-
1831. Nessa legislatura, esteve em pauta, várias vezes, a bém estimulava, indiretamente, a continuidade do trá co
revogação de todas as leis antitrá co e também ocorreram ilegal.
manifestações de imobilismo calculado para fazer vistas O projeto de Brant acirrou as questões com o gover-
grossas ao trá co clandestino. Foi também nessa legislatura no inglês, especialmente por sua intenção em revogar a lei
que Bernardo Pereira de Vasconcelos apresentou seu pro- de 1831. Ao senador Figueira de Melo, parecia de pouca
jeto de revogação da lei de 1831. Caldeira Brant, autor da valia aumentar a dotação orçamentária ouo pessoal do Mi-
lei que proibira o trá co, elaborava, em 1837, um novo pro- nistério de Negócios Estrangeiros, porque "a dignidade na-
jeto a ser discutido no Senado, desta vez para revogar a cional vinha sendo freqüentemente menoscabada, na pro-
lei de sua autoria. Nesse projeto, os africanos livres que porção mesmo em que se ampliavam as legações brasilei-
houvessem sido comprados como escravos cavam impos- ras no exterior", alusão óbvia aos apresamentos que os in-
sibilitados de reverter sua situação e reivindicarem a con- gleses estavam realizando no litoral brasileiro.2 Um exem-
dição de livres, porque os senhores que os houvessem com- plo desses problemas freqüentes relacionados ao trá co era
prado cavam a salvo de qualquer ação penal. Todo o ônus o caso da barca Especuladora, atingida pela artilharia de um
do trá co cava com o tra cante, mantendo-se como pas- navio inglês, o que provocou a morte do tripulante Joâo
síveis de processo os tripulantes das embarcações e os que Soares de Bulhões.O deputado Resende pediu a cópia de
auxiliassem nos desembarques. uma nota do Ministério inglês a respeito do episódio, pe-
Se nos lembrarmos dos dispositivos contidos na lei dido que o deputado Vaz Vieira entendia como manifesta-
de 1831, no que se refere ao rol dos culpáveis por crime de ção do desejo de vingança pela "honra nacional ofendida,
contrabando, e os compararmos a este projeto de lei, po- não só nas pessoas de alguns o ciais brasileiros, senão tam-
demos supor que a pressāo dos senhores nesses sete anos bém na desse cidadão que morreu vítima do desprezo com
tenha sido bastante intensa. Isso porque, no projeto apre- que nos tratam os ingleses". 43
sentado em meados de 1837, eram mantidos todos os pos- A pressão das assembléias provinciais soava na Câ-
síveis réus, tanto membros da tripulação quanto os que mara dos Deputados, a julgar pelas palavras do deputado
auxiliavam nos desembarques clandestinos; no entanto, os Montezuma. Ele a rmava que a Assembléia paulista envia-

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ria um requerimento por semana para fazer o projeto de Art. 1 - Fica revogada a lei de 7 de novembro de
Barbacena entrar em votaçāão em regime de urgência. Lem- 1831;
brava o brigadeiro Tobias de Aguiar, que, quando ocupa- Art. 2- Ficamrevogadasas leis em contrário.*
ra o cargo de presidente da província de São Paulo, tenta-
ra fazer cumprir a lei, mas, segundo Montezuma, só con- Talvez a estratégia do deputado fosse a de apresen-
seguiu angariar inimizades: tar um projeto sem detalhes para que as negociações se -
zessem em torno dele. O projeto foi julgado objeto de deli-
[...] alguns africanos mesmos que aquele ilustre e
beração da Câmarae mandado imprimir para posterior dis-
digno paulista mandou recolher à prisão, no dia se-
guinte fazendo-se uma vistoria sobre eles, de afri-
cussão.
canos boçais que eram apresentarem-se ladinos! Com a saída dos liberais do poder, após a Maiorida-
Milagre maior ainda houve, que foi a mudança de de, a Câmara foi dissolvida e só tornaria a funcionar em
sexo: porque entrando entre esses africanos algumas 1843, após algumas turbulências nas províncias de São Pau-
raparigas, no dia seguinte todos eram homens! (ri- lo e Minas Gerais. Os liberais retornaram ao Ministério em
sadas). E ainda mais milagre de saúde, porque um 1844, quando a Câmara voltou a se reunir, e tinham como
tinha entrado com fratura no braço e no dia seguinte tarefa a elaboração de um novo tratado antitrá co, já que
não se achou algum com fratura.4
o anterior expiraria no mesmo ano. Para isso, o novo gabi-
Para ele, essas trocas ocorridas dentro das prisões nete exigia tratamento preferencial aos produtos brasilei-
eram mais do que tentativas de desmoralizar o presidente ros no mercado britânico. O legislativo encontrava-se en-
da província. Eram indícios de que a população não tinha tre duas pressões poderosas: de um lado, os britânicos
aceitado a lei que proibira o trá co e que aprovava o co- pressionando pela manuternção dos termos do tratado de
mércio de escravos. Se o governo quisesse fazer cumprir a 1826 e da proibiçāo do trá co, exigências que não se limi-
lei, teria de dividir a naçāo: "Há de pegar a metade da na- tavam às conversações diplomáticas, mas que assumiam
ção, meter na cadeia, e a outra metade mnontar guarda? De- formas bélicas, como o apresamnento de navios no próprio
pois quem há de trabalhar?"45 Outros deputados, como litoral brasileiro; de outro lado, a pressão dos senhores bra-
Andrada Machado, discordavam da divisão da nação en- sileiros que, diretamente ou por meio das assembléias pro-
tre criminosos e algozes, mas todos estavam de acordo vinciais, pediam modi cações ou a revogação da lei de 7
quanto à existência de uma divisão acentuada quando o de novembro de 1831.47
tema em debate era o trá co de escravos. Tanto era assim Em relação ao novo tratado, os governos brasileiro e
que sua proibiçāão ainda não fora posta em prática, mesmo britânico vinham discutindo seus termos sem que a Câma-
sendo lei há quase dez anos e mesmo que o governo inglês ra conhecesse o teor da negociação. Embora desde 1840 não
continuasse a exigir seu cumprimento. Boa parte dos de- existisse mais a obrigatoriedade legal de pedir autorização
putados encarava a lei como resultado do tratado comn a à Câmara para estabelecer tratados com o exterior, a exis-
Inglaterra. Na década de 1840, ninguém mais questionava tência de projetos tramitando na casa a respeito da proibi-
os termos do tratado, talvez em função da ine ciência que ção do trá co dava aos deputados respaldo para solicita-
a lei e os responsáveis pelo seu cumprimento demonstra- rem informações a respeito da matéria em discussāo no
vam para acabar com o trá co. Executivo, 48
Projetos posteriores foram apresentados, antes de se Mesmo entre os governos, as negociações eram pro-
resolver o destino do projeto Barbacena. Curto e direto, o blemáticas. Em 1844, Paulino Soares de Souza listava nu-
deputado Carneiro da Cunha propunha: merosas queixas contra o comportamento dos ingleses na

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repressāo ao trá co brasileiro, em nota ao ministro Hamil- rantia para a manutenção da soberania ou se, ao contrá-
ton Hamilton, pois que por vezes apreendiam alguns afri- rio, a ameaçava.
canos, mas violavam a independência e o território brasi- A recusa sistemática do governo brasileiro em assi-
leiros: nar um novo tratado nos moldes em que o governo britâ-
nico desejava levaram ao m das negociações e à promul-
Em algumas dessas ocasiões têm sido apreendidos gação unilateral do bill Aberdeen, em 8 de agosto de 1845.
africanos, mas essa única vantagem não pode justi- Tratava-se de uma lei que autorizava o governo inglês a
car a violação clara e manifesta dos Tratados, julgar os navios brasileiros como piratas, em tribunais in-
nem o Governo Imperial pode crer que o de S. M. gleses, quaisquer que fossem os locais onde ocorressem as
Britânica adote o princípio de que o m justi ca os capturas., 9 A lei foi promulgada ignorando os protestos da
meios, e que pouco importa violar as obrigações as legação brasileira em Londres. 51
mais santas, e as mais solenes, contando que se Diante da ine cácia dos protestos e prevendo-se, no
apreendam mais 40 [sic] ou 500 africanos!"
Conselho de Estado, "quantos vexames devemos temer da
parte daquela potência" 52 a Câmara voltou a discutir o pro-
Tais palavras não comoveriam os ingleses, que con- jeto de Barbacena em substituição à lei de novembro de 1831.
tinuaram suas perseguições contra os tumbeiros brasilei- O projeto foi aprovado em setembro de 1848, exceto o art.
ros. A nota de Paulino de Souza lidava com dois pesos e 14, que revogava aquela lei e que teve sua votação adiada
duas medidas: os ingleses não respeitavam a Convenção para 1850. Ainda em 1848, o artigo seria discutido em ses-
de 1817, que proibia a visita ou detenção de navios em por- sões secretas.53
tos ou enseadas do Império, violando portanto "as obriga- Eusébio de Queirós seria o grande responsável pela
ções as mais santas", mas o governo brasileiro, por sua vez, retomada da discussāo do projeto Barbacena em 1850. O
tambémn não cumpria o tratado de 1826, que proibira o trá contínuo assédio da frota inglesa às águas brasileiras era
co de africanos a partir de 1830. o motivo que tornava a questão do trá co mais apaixonante,
De todo modo, o governo imperial zera a ligação a ponto de o taquígrafo das sessões ter registrado a movi-
direta entre o trá co e a garantia da integridade do terri- mentaçāão nas galerias:
tório brasileiro. Até poucos anos antes, a necessidade de
mão-de-obra era vista como alicerce do poder imperial e As galerias, tribunas e arredores da câmara apre-
como garantia da continuidade da produção agrícola, e o sentam o mesmo aspecto que o de segunda-feira
trá co era um elemento fundante da nação, justamente por próxima passada. Por toda parte se divisam os mes-
mos sinais de viva curiosidade. Pouco antes do
prover essa mão-de-obra destinada a tocar a produção. Até
meio-dia, o concurso numeroso que peja os corre-
os meados da década de 1840, os ingleses não haviam se dores e a sala do arquivo invade o recinto da Câ-
convencido de que o trá co era imprescindível para a pro- mara e apinhoa-se no espaço que ca por trás dos
dução brasileira, ou não se preocupavam com essa ques- bancos dos Srs. deputados, onde se conserva silen-
tão, tornando-se cada vez mnais insistentes para que a proi- cioso e na melhor ordem.s4
bição fosse cumprida. A ameaça à nação, representada pe-
las pressões inglesas, tornava-se mais forte do que a ame- Diversos deputados se pronunciaram e a tônica era a
aça difusa da falta de mão-de-obra. Fazia-se urgente a ava- indignação contra os apresamentos que os ingleses promo-
liação sobre a necessidade concreta de se manter o trá co viam contra os navios do trá co. Segundo Silveira da Mota,
de africanos e se ele dava, naquele momento, alguma ga- essas agressões já tinham uma longa história, desde 1810.

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O agravante era a entrada dos navios ingleses em portos do Eusébio de Queirós requereu discussão em sessão se-
brasileiros para capturar tumbeiros, além da consciência creta; ele só poderia fazê-lo como membro do governo e
da soberania ultrajada. Essa consciência, expressa por não como representante do Partido Conservador. O presi-
Silveira da Mota, não deixava de colocar na história do Bra- dente da Câmara negou sistematicamente a palavra a to-
sil a aliança tácita entre tra cantes, autoridades do Impé- dos os deputados que se inscreveram, pela ordem, para ma-
rio e senhores para manter o trá co em nome da manuten- nifestarem-se a respeito do projeto - Moraes Sarmento,
ção da agricultura escravista, aliança agora rechaçada, em Souza Franco, Mello Franco e Antão – suspendendo a ses-
razão da soberania ameaçada pelas agressões britânicas: são em meio à manifestação insistente das galerias:

[...] o tráfego tem continuado no Brasil por uma [...] (os espectadores das galerias começam a reti-
indeclinável necessidade da sua situação (apoiados rar-se. Alguns dos que se acham na galeria de terra
e não apoiados partem de diversos lados). Há no batem fortemente comn os pés ao descerem os de-
Brasil a opinião feita de necessidade dos braços afri-
graus).
canos, e essa opinião data da época do Brasil como O Sr. Presidente: Atençāo!
colônia, como reino unido e como império... Uma voz na galeria de terra: – Qual atenção!
Um Sr. Deputado: – Mas é falsa. O Sr. Presidente:- (com energia) Ordem, senhores
O Sr. GomesRibeiro: – Como Império, não. das galerias! (Apoiados gerais e estrondosos)
O Sr. Silveira da Mota: - Essa opinião (devo ter a Um espectador da galeria de terra (apontando para o
coragem de dizer), essa opiniäo tem no Brasil raízes Sr. Aprígio que acaba de voltar-se para a galeria):
muito profundas... Olhem esse patife! (partem de todos os lados da
DiversosSrs.Deputados: - Nãoapoiado. Câmara vivas reclamações tendentes a estigmatizar
O Sr. Jansen do Paço: Tem raízes nos peitos dos
o comportamento dos poucos espectadores que per-
africanistas; tem raízes nos peitos dos estúpidos ou turbaram a ordem. A voz do Sr. Presidente esforça-
dos velhacos. se por dominar o tumulto e fazer restabelecer a or-
O Sr. Silveira da Mota: - Esta opinião [...] pode ser dem) [..j"s6
deplorada [...] mas não pode ser negada [...].O trá-
fego, Sr. Presidente, tem continuado no Brasil por
uma necessidade da sua situação. Por quem foram Na votação realizada durante a sessão secreta, supri-
derrubadas e cultivadas as matas virgens que hoje miram-se artigos do projeto Barbacena, como o de número
são cidades e grandes mercados do império? Pelos 14, que revogava a lei de 1831, e outras mudanças signi -
braços africanos...55 cativas ocorreram nas alterações do projeto de 1837.
O trá co foi juridicamente equiparado à pirataria. Os
A rmando não defender o trá co, mas sim expor a tra cantes foram colocados sob a jurisdiçāo de um tribu-
história, Silveira da Mota identi cava o preconceito exis- nal especial a Auditoria de Marinha -, cando sujeitos
tente contra o trabalho braçal por ser ele ligado diretamen- a penas de prisāo e pagamento das despesas de reexporta-
te à gura do escravo africano, ao qual di cilmente o bran- ção dos africanos eventualmente embarcados de volta à
co se sujeitava se não fosse de forma autônoma. África. Os senhores de escravos que comprassem africanos,
O tom da discussão já pode ser sentido no calor das entretanto, passariam a ser julgados em outra categoria pe-
intervenções e apartes. A discussão nal do projeto de nal: cariam na alçada da justiça comum, certamente mais
extinção do trá co provocou a agitação do público na Câ- branda, escapando da Auditoria de Marinha. Os homens
mara. De início, levantou-se uma questão regimental quan- que coadjuvassem os negócios negreiros, apesar de reco-

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nhecidas suas culpas, não eram mais incluídos na catego- minhar uma solução adequada para a honra, os interesses
ria de "donos do negócio",$9 senhoriais e a dignidade nacional.
O projeto aprovado na Câmara era, do ponto de vis- O processo de transformação da imagem social dos
ta penal, menos abrangente do que a lei de 1831; a nal, ele tra cantes, que culminou na equiparação entre trá coe pi-
excluía da relação dos culpados aqueles que compravam rataria, tema que foi aventado no nal deste item, será ana-
os africanos ilegalmente importados, o que é um dado im- lisado no próximo capítulo, juntamente com o papel desem-
portante para entender a e cácia dessa lei quando compa- penhado pelas autoridades responsáveis pela repressão.
rada à de 1831 e ajuda a explicar a necessidade de uma se-
gunda determinação legal proibindo o trá co.
Alinhei até aqui diversas motivações para tentar com-
preender por que o m do trá co ocorreu depois de 1850
e não após 1831. Entre essas motivações, encontravam-se:
a maior coesão de parcelas da elite política; o esgotamen-
to do projeto de construção do mercado de mão-de-obra,
baseado exclusivamente no escravo como alicerce da pro-
dução; o vínculo estreito entre "corrupção dos costumes"
e escravidão; a manutenção do direito sobre a proprieda-
de existente; a pressão inglesa e a necessidade de garantir
a soberania perante ela.
A tudo isto aliava-se a identi cação dos tra cantes
a piratas. A separação entre os interesses senhoriais e os
do tra cante, do ponto de vista moral e legal - ainda que
nãoseja um elementodeterminante - propiciava o apoio
relativo dos senhores de escravos das províncias à nova lei,
já que eles não estavam mais ameaçados pela justiça por
comprarem homens livres e reduzi-los, ilegalmente, à es-
cravidāo.
Se a tudo isto somarmos o crescente medo das ações
coletivas dos escravos contra o cativeiro, é razoável a r-
mar que a conjuntura de 1850 mostrou-se bastante apro-
priada para aplicar a proibição do trá co com maior e -
cácia,desdeque a lei fosse -como era - mais branda com
os proprietários.
A pressāo enfática do governo inglês nas costas bra-
sileiras a partir do bill Aberdeen agitava as galerias da Câ-
mara e também reforçava o surgimento de um consenso en-
tre os parlamentares. Ao retomarem o projeto de Caldeira
Brant em 1848, os deputados e senadores pareciam enca-

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O infame comércio

a in uência brasileira sobre os reinos africanos. Logo depois da


extinção desse comércio, Inglaterra e França iniciaram a parti-
lha do continente. Ver Brasil e África, p. 204. Leslie Bethell opõe-
se a este argumento, embora a rme que, no tratado de reconhe-
cimento da independência, em 1826, havia uma cláusula por meio
da qualo Brasil renunciava a qualquer possessão na África. Ver
NOTAS A abolição, p. 60.
10
Os plenipotenciários que assinaram o tratado já previam sua pés-
sima repercussãoea instauração de um sistema de contrabando
após os três anos previstos de trá co legal. Verger, Fluxo e re u-
x0, pp. 314-5.
11 "Projeto de lei para a abolição do comércio de escravos", ACD,
As considerações sobre os diversos tratados desde 1810, assina-
18 maio, 1826, I, p. 86. A íntegra desse projeto pode ser encon-
dos entre os governos ingleses, portugueses e brasileiros, ba- trada em Góes, A abolição, I, p. 37.
seiam-se em Verger, Fluxo e re uxo, pp. 300-17. 12 "Parecer", ACD, 8 jun., 1826, II, p. 79.
Estes apresamentos provocaram reclamações dos negociantes da 13 Além das bancadas que sustentavam os gabinetes, outro elemento
Bahia, a quem pertenciam doze dos navios capturados, gerando
de composição da Câmara deve ser considerado para explicar
um prejuízo de 800 mil cruzados. Os atritos ocorridos em fun-
esta intervenção. Em 1850, 48% dos deputados eram funcionári-
ção desses episódios, além de envolverem ameaças aos navios
ingleses no porto de Salvador, apareceram também na impren- os públicos (magistrados, religiosos e militares) –o que, segun-
do José Murilo de Carvalho, fazia com que a possibilidade de
sa. Sobre este último aspecto, ver Maria B. Nizza da Silva, A pri-
interferência do executivo no legislativo fosse grande. Ainda de
meira gazeta da Bahia: Idade d'Ouro do Brasil. São Paulo: Cultrix;
acordo com o autor, isto talvez ajude a explicar a passagem de
Brasília: INL, 1978, pp. 71-6. leis que não representavam totalmente os interesses dos fazen-
Canning a Wellington, 27 set., 1822, apud José Honório Ro-
deiros. Embora os deputados fossem eleitos para representar es-
drigues, Independência: revolução e contra-revolução, v. 5–a polt- tes últimos, os impedimentos da lei eleitoral entăo em vigor não
tica internacional. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, pp. 16-7.
permitiam grande escolha de candidatos, situação que só come-
Verger, Fluxo e re uxo, p. 313.
çaria a ser transformada em 1855, no "Gabinete da Conciliação"
O trá co como questão diplomática e de direito internacional en-
do Marquês do Paraná, com a criação das incompatibilidades que
tre as nações já foi abordado por diversos autores. Ver, em es-
pecial, Robert Cover, Justice accused: antislavery and the judicial proibiam os funcionários públicos de concorrerem a cargos
eletivos nos distritos onde exercessem suas funções. Ver Teatro
process. New Haven / Londres: Yale University Press, 1975; e
de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Vértice /IUPERJ, 1988,
Bethell, A abolição.
6
Sobre este tema, ver Seymour Drescher, Capitalism and antislavery: p 146.
1" ACD, 24 maio, 1826, I, p. 127.
British mobilization in comparativeperspective. Nova York/Oxford:
1s "Emenda", ACD, 15 jun., 1826, II, p. 149. Sobre a discussão des-
Oxford University Press, 1987.
te projeto, ver também Beiguelman, Formação política, p. 46.
O relato dos deputados da Constituinte de 1823 informa que te- 16
Sobre a periodicidade das sessões na Câmara até 1845, seus in-
ria havido uma sessão secreta na qual fora votada a supressão
tervalos e prorrogações, ver Mapa denonstrativo das sessões das
do trá co, embora fosse reconhecida a legitimidade da escravi-
Câmaras Constitinte e Legislativa do Império do Brasil. Rio de Ja-
dão e sancionada a lenta emancipação dos escravos. Ver Alves,
neiro: Tip. de Francisco de Paula Brito, 1846, existente na Bibli-
"A questão do elemento servil", pp. 190-1. Segundo Conrad, a oteca Nacional, Seção de Obras Raras, Códice 102, 1, 23.
dissolução se deveu, em parte, à existência de um partido libe- 17 ACD, 14 maio, 1827, I, pp. 84-5.
ral fortemente tendente a abolir o trá co e, eventualmente, a pró- 18 ACD, 14 maio, 1827, I, p. 85. Holanda Cavalcanti continuaria suas
pria escravidão. Ver Tumbeiros, p. 96. queixas ao perceber que se tornava prática comum a assinatura
8 Alves, "A questão do elemento servil", p. 196.
de tratados à revelia do legislativo. Ver ACD, 12 maio, 1828, I,
9 Entre eles José Honório Rodrigues, para quem um dos interes- p. 62. Discussāo ocorrida no Conselho de Estado, em 1832, de-
ses ingleses, em sua cruzada pela abolição do trá co, era afastar monstra o incômodo provocado no executivo pelos pedidos que

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Jaime Rodrigues O infame comércio

vinham da Câmara a respeito das negociações com a Inglaterra 35 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. 11• ed. Rio de Ja-
em torno do trá co. O ConselheiroMarquês deBarbacena - au- neiro: José Olympio, 1977, pp. 43 e segs.
tor da lei de 1831 - achava que tal prestação de contas à Câma- 36
Luiz Henrique Dias Tavares. Comércio proibido de escravos. São
ra "produz via de regra mui graves inconvenientes [...] que in- Paulo: Ática, 1988, p. 31. O autor diz pensar "que o trá co ne-
amam os espíritos das duas Nações, e fazem perder o m da greiro se manteve para o Brasil depois de sua proibição porque
negociação". ACE, II, Sessão 89, 6 jul., 1832, p. 219. ainda ofereceu respostas ao capitalismo", rea rmando uma pas-
t9 ACD, 14 maio, 1827, I, p. 85. sagem anterior: "[...] é todavia necessário colocar desde logo que
20 "Exposição do Imperador", ACD, 22 maio, 1827, I, p. 154. o trá co negreiro continuou ou se manteve para o Brasil depois
21 ACD, 16 jun., 1827, II, p. 81. de proibido por causa da participação do capitalismo de ca-
22 ACD, 18 jun., 1827, II, p. 94. pitais, manufaturas e navios dos países capitalistas em ascensão
23
AS, 18 jun., 1827, I, p. 263. naquela época." Idem, pp. 27 e 36, respectivamen te.
* Ver discussão do projeto em ACD, 11 set., 1828, IV, p. 219. 37 Relatório da Secretaria de Estado referente às comissões mistas.
25 ACD, 2 jul., 1827, III, p. 13. ACD, 10 maio, 1833, I, p. 116.
26 Quanto ao paradigma europeu, a Inglaterra era o país mencio- 33 Ibidem. A versão do Relatório, que a rma serem os africanos
nado com mais freqüência. Tida como padrão no que se referia bárbaros, foi repetida em palavras bastante semelhantes por
ao progresso material e ao sistema político, era, no entanto, con- Pandiá Calógeras: "Ninguém se atrevia a ir negociar com tais po-
denada no Conselho de Estado por sua prepotência em relação tentados; além de bárbaros, interessados no trá co, não se po-
ao Brasil. A maneira incisiva com que os governos ingleses vin- deria ter con ança em tal auxílio." A política exterior do Império.
culavam a questão do trá co à exigência da assinatura de um São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1933, I, p. 330.
novo tratado comercial fazia com que vários conselheiros a r- 39 Relatório da Secretaria de Estado, doc. cit. Situação diferente te-
massem que a postura dos ingleses "era mais motivada por in- ria ocorrido nos primeiros anos de funcionamento da Comissão
teresses comerciais do que por razões humanitárias ou de civili- Mista do Rio de Janeiro. Conrad apresenta dados demonstrando
zação". Ver Carvalho, Teatro de sonbras, p. 116. que, em 1834, das quatro embarcações julgadas naquela Comis-
27 ACD, 13 maio, 1831, I, p. 29. são, duas haviam sido aprisionadas por navios de guerra brasi-
28 Ver Tabela 1, com as estimativas de importações de africanos leiros; no ano seguinte, cinco dos sete navios capturados o fo-
pelo portos brasileiros no século XIx. ram por brasileiros. Ver Tumbeiros, p. 102.
Conrad, Tumbeiros, pp. 91-2. 40 Ver ACE, II, 116 Sessão, 27 ago., 1833, pp. 295-6.
30
Cf. Paulo Pereira de Castro, "A experiência republicana", in Sér- AS, 30 jun., 1837, tomo único, apud Góes, A abolição, I, pp. 100-
gio B. de Holanda (dir.). História geral da civilização brasileira, 2
tomo II, v. 2. São Paulo: Difel, 1964, p. 40. 42
AS, 11 out., 1839, IV, p. 379. Essa situaçăo diferia da de 1831,
1 Conrad a rma que muitos deles "desejavam acabar com o trá - quando, após a proibição do trá co e a ascensão de um ministé-
co, mas poucos teriam ousado pedir a abolição da escravidāo em rio liberal, os tra cantes pareciam desencorajados, enquanto os
si". Tumbe iros, p. 108. ingleses animavam-se com as determinações aos juízes de paz
32 Beiguelman, Pequenos estudos, p. 20. José Murilo de Carvalho para que exercessem cerrada vigilância contra o trá co ilegal.
identi ca essa postura dúbia entre os membros da elite política: Sobre este assunto, ver Conrad, Tumbeiros, pp. 91-2 e 97, para
"O emprego público constituía a principal alternativa para os en- quem a volta de um governo conservador, em setembro de 1837,
jeitados do latifúndio escravista, mas, uma vez no governo, os foi o início da perda da batalha contra o trá co.
funcionários e a elite em geral não podiam matar a galinha dos 43 ACD, 4 jul., 1839, II, p. 60. Sobre as providências tomadas nesse
ovos de ouro que era a própria agricultura de exportação basea- caso - inquirição do soldadoinglêsacusadoda morte, aprisio-
da no trabalho escravo, fonte da maior parte das rendas públi- namento do brigue inglês Ganges e recusa do comandante do
cas." A construção da ordem, p. 131. mesmo em acatar ordens enquanto não recebesse instruções do
0 Beiguelman, Pequenos estudos, p. 145; Izabel Andrade Marson. O Almirantado – ver ACD, 9 jul., 1839, II, p. 125. Esse caso seria
império do progresso: a revolução praieira em Pernambuco (1842- retomado quando da discussão do novo tratado com a Inglater-
1855). São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 66-67. ra, em 1844. Ver nota do ministro Paulino Soares de Souza ao
M Conrad, Tumbeiros, pp. 114-5. ministro inglês Hamilton Hamilton, de 11 de novembro de 1844,
reproduzida em Góes, A abolição, I, p. 108.

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44
ACD, 23 maio, 1840, I, p. 435. dade de votos dos membros presentes em número de noventa e
45
Idem, p. 437. A forma como os diversos gabinetes encaminha- seis". ACD, 12 jul., 1850, II, p. 176.
vam (ou deixavam de encaminhar) a repressão ao trá co era, s ACD, 15 jul., 1850, II, p. 192.
ss Idem, p. 193.
como já foi observado, motivo de disputa entre os partidos re-
presentados no parlamento. Este tema, que não será tratado em 6 ACD, i8 jun., 1850, II, p. 211-2.
$7 Idem, p. 212.
minúcias neste trabalho, pode ser visto nas críticas do deputado
Montezuma ao Gabinete de 18 de maio de 1840, che ado por
Caetano Maria Lopes Gama, que "não cumpria sua palavra e não
deseja votar com urgência o projeto que vinha do Senado refe-
rente à proibição do trá co". ACD, 23 maio, 1840, I, p. 446. Um
estudo do tema sob a ótica das disputas partidárias está em
Beiguelman, Formação política do Brasil, passim.
4 ACD, 2 out., 1841, III, p. 384.
47 Representações nesse sentido surgem a todo momento nas falas
parlamentares, como por exemplo as que foram enviadas pelas
assembléias de Minas Gerais e Såo Paulo em janeiro de 1843, cf.
"Parecer". ACD, 30 jan., 1843, I, p. 439.
4s Solicitação desse tipo foi feita pelo deputado Rebouças, ACD 3
mar., 1843, II, p. 54. Ver também "Expediente", ACD, 3 fev., 1843,
I, p. 499, o offcio do ministro de Negócios Estrangeiros em res-
posta a um pedido de informações da Câmara de 30 de janeiro
do mesmo ano, e ACD, 26 abr., 1843, II, p. 918, requerimento de
Pereira da Silva, com resposta em ACD, 10 maio, 1843, I, p. 84.
49
Nota do Conselho de Estado, do imperador e do ministro dos Ne-
gócios Estrangeiros ao ministro Hamilton Hamilton, apud Góes,
A abolição, I, p. 109.
s0 As arrastadas negociações entre o Brasil e a Gră-Bretanha, que
culminariam no bill Aberdeen, foram abordadas por diversos au-
tores. Sobre este tema ver, entre outros, Bethell, A abolição, pp.
232-54; Beiguelman, Formação política, pp. 64-72; Verger, Fluxo e
re uxo, pp. 377-83.
5) Protesto da Legação Imperial do Brasil em Londres, em 25 jul.,
1845, contra o bill Aberdeen, em Discussão no Parlamento inglês,
assinado por José Marques Lisboa; Protesto do Governo Imperi-
al contra o bill Aberdeen (22 out., 1845), assinado por Antônio
Paulino Limpo de Abreu, apud Góes, A abolição, I, pp. 121-4 e
127-36, respectivamente. O texto do bill Aberdeen também en-
contra-se reproduzido na mesma obra, às pp. 124-7. Ver enca-
minhamento do Parecer da Seção de Negócios Estrangeiros do
Conselho de Estado, ACD, III, 7 mar., 1845, p. 101; ACE, III, 12
set., 1845, pp. 125-6; ACE, II, 16 set., 1845, pp. 127-30.
52 Ver fala de Lopes Gama, ACE, III, 12 jun., 1845, p. 108.
50 Cf. Beiguelman, Formação política, p. 78. Só em 1850 a Câmara
divulgou o resultado da sessão secreta: o art. 14 do projeto
Barbacena fora rejeitado, "decisão tomada por quase unanimi-

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