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Dale W.

Tomich

PELO PRISMA DA ESCRAVIDÃO


Trabalho, Capital e Economia Mundial

Tradução
Antonio de Pádua Danesi

Revisão Técnica
USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Rafael de Bivar Marquese
Reitor João Grandino Rodas
Vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz

edusp EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente Plinio Martins Filho

COMISSÄO EDITORIAL
Presidente Rubens Ricupero
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Antonio Penteado Mendonça
Chester Luiz Galvẫo Cesar
Ivan Gilberto Sandoval Falleiros
Mary Macedo de Camargo Neves Lafer
Sedi Hirano

Editora-assistente Carla Fernanda Fontana edusp


Chefe Divisão Editorial Cristiane Silvestrin
Copyright 2011 by Dale W. Tomich (er detalhes do coyright no fnal do livro)

Titulo do original em ingles:


Through the Prism of Slavery Labor, Capital, and World Economy

Ficha catalográfca elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema


Integrado de Bibliotecas da USP. Adaptado conforme normas da Edusp

Tomich, Dale W., 1946-


Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mun-
dial / Dale W. Tomich; tradução Antonio de Pádua Danesi; revisão
técnica Rafael de Bivar Marquese. - São Paulo: Editora da Universi-
dade de Sảo Paulo, 2011.
248 p.. 23 cm. Para Phil, Steve,Jim
e em memória de Terry
Tradução de: Through the Prism of Slavery: Labor, Capital, and
World Economy
Inclui bibliogra a.
ISBN 978-85-314-0262-3

1. Escravidão (História) - Caribe. 2. Trabalho Escravo (Histó-


ria) - Caribe. I. Danesi, Antonio de Pidua. I1. Marquese, Rafacl de
Bivar. III. Título. IV. Título: Trabalho, Capital e Bconomia Mundial.

CDD-326.0972

Direitos em língua portuguesa reservados à

Edusp- Editora da Universidade de Säo Paulo


Av. Corifeu de Azevedo Marques, 1975, térreo
05581-001- Butantả - SåoPaulo - SP- Brasil
Divisäo Comercial: Tel. (11) 3091-4008 /3091-4150
SAC (11) 3091-2911 - Fax (11) 3091-4151
www.edusp.com.br - e-mail:edusp@usp.br

Printed in Brazil 2011

Foi feito o depósito legal


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SUMÁRIO

Agradecimentos...
Introdução... 13

PARTE I-A EscravidãonaEconomia Mundial

1. Capitalismo, Escravidão e Economia Mundial.... 21


2. Mundo do Capital, Mundos do Trabalho... ........ 53
3. A "Segunda Escravidão" *** 81

PARTE II -0 Global no Local

4. Escravidão Mundial e Capitalismo Caribenho ...... 101


5. Espaços de Escravidão. .......s**. ... 123
6. Pequenas Ihas e Grandes Comparações ******** ******.151

PARTE III - Trabalho, Tempo e Resistência: Mudando os Termos de Comparação

7. Dias de Branco, Dias de Negro... ... 171


8. Uma Petite Guinée.. ... 185
9. Terrenos Contestados e****. ....... 209

Bibliogra a. *. ........:. 229

Sobreo Autor ... ...... 239


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3. A "SEGUNDA ESCRAVIDÃO"

TRABALHO ESCRAVO E A TRANSFORMAÇÃO DA


ECONOMIA MUNDIAL NO SÉCULO XIX

A
abolição do trá co de escravos e da escravidāo no Hemisfério Ocidental
está certamente entre as ocorrências mais signi cativas e dramáticas do
século XIX. Por meios tão diversos quanto a legislação, a revlução e a
guerra civil, a escravidão e o trá co de escravos foram erradicados numa sequên-
cia de acontecimentos que principiaram com a Revolução Haitiana em 1791e se
estenderam à emancipação dos escravos no Brasil em 1888. De fato, a força e a
e cácia do pensamento e da ação antiescravistas contribuiram signi cativamente
para a autoconsciéncia oitocentista como um período de crescimento da liberdade
humana e do progresso moral e material (ver, por exemplo, Davis, 1984). Durante
esse periodo, a escravidão veio a ser entendida como a antítese das formas emer-
gentes de Estado, sensibilidade moral e atividade economica: ela formava o padräo
negativo contra o qual as novas formas de liberdade se de niam. Na elaboração da
economia política, por exemplo, o forte contraste entre o escravo africano e o tra-
balhador livre da Europae da América do Norte foi usado para explicar o que era
caracteristico nas relações de propriedade capitalistas, trabalho assalariado e pro-
dução industrial (Smith, 1976, pp. 90 e 413; Marx, 1976, pp. 1031-1034). A escravi-
dão não era tratada como sendo simplesmente uma dentre várias outras formas de
trabalho humano; pelo contrário, ela veio a ser concebida como a oposição polar do
trabalho livre (assalariado). Era vista como a epitome da produção arcaica, inepta e
ine caz, e geralmente se presumia que ela era incompatível com o mundo moder-
no emergente, enquanto o trabalho livre (assalariado) era encarado como o ponto
de chegada universal dos processos históricos do desenvolvimento capitalista.
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A UNDA ESCRAVIDĀO"
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ndo moderno mori-ibunda. O arroz, o indigo e o tabaco eram de importåncia secundária nas
O pressupostode que a escravidão é incompatível com o mundo
olbnias escravistas da América do Norte. O Brasil estava no m do seu "ciclo
persistiuao longo do século XX. Nesse enquadramento, o debate dos esty.d
otoriais 0u morais foram mais importantes do ouro, e no império espanhol, com exceção de Cuba, a escravidão era margi-
concentrou-seemsabersefatoresmateriaisou morais foram mais i:
a aboli- .dasvia, no decurso do século XIX a escravidão expandiu-se numa escala
paraasua extinçảo. Seja qual for a interpretação preterida, o certo é ase
cão daescravidão foi entendida geralmente em uma dessas duas nmanciras. Iese maciça exatamente nessas áreas relativamente atrasadas para atender à crescen-

visão,queenfatiza o papel da Gra-Bretanha como precursora de uma modoe na te ema mundial de algodão, café e açúcar. Ao mesmo tempo, os antigos
ordem política, econômica e ideológica, assemelha-se a um tipo de teoris do contros de produção escravista declinaram. Esse segundo ciclo de escravidão
stino
efeito dominó. Quando a Grå-Bretanha aboliu o trá co de escravos. o dect. iniciou-se com o advento da hegemonia britânica e declinou com o desa o que
men- Ihe foi lançado quando a preeminência econômica e política dos Estados Uni-
da escravidão africana nas Américas estava selado, e puseram-se enm
essa dos aumentou no Hemisfério Ocidental e as depressões das décadas de 1870
to forças que de maneira lenta e desigual, porém inevitável, desantelaram
instituição peculiar em todo o hemistério. (Note-se que nessas explicacôes 1880 redundaram em crises nos mercados coloniais. O examedessesproces-
Revoluçåo de São Domingose a fundação do Hlaiti constituem aparentemen. sOs concomitantes de declínio e expansão enfatiza ao mesmo tempo as manei-
te aberrações que nãopodemn ser assimiladas à narrativae são ignoradas fuee ras complexas pelas quais a escravidão está imbricada nos processos econômicos
Trouillot, 1995,pp. 70-107]). A outra visão pöe em relevo as histórias nacionais mundiaisea intrínseca e irredutível desigualdade do desenvolvimento capitalista.
dasváriassociedadesescravistas das Américas. Em sua perspectiva, as contradi.
ções "internas" da escravidão são realçadas, e num caso após o outro as relacões
escravistas dão lugar a uma forma mais elevada de racionalidade econômica A HEGEMONIA BRITÅNICA EA NOVA
Ambas as interpretações pressupõem a singularidade da escravidão. A escravi- DIVISÁO INTERNACIONAL DO TRABALHO
dão é vista como (ou se presume ser) essencialmente o mesmo fenômeno em
toda parte, e os diferentes sistemas escravistas se distinguem uns dos outros As mudanças sobrevindas na economia mundial durante a primeira metade
apenas por seus contextos econômicos, culturais e políticos. Consequentemen- do século XIX alteraram fundamentalmente os parâmetros e as condições de
te, a abolição da escravidão, quer seja considerada na sua conexão internacional produção na periferia. Essas mudanças incluíram não apenas a redistribuição
ou nas suas diversas arenas nacionais, é tomada como uma transição unilinear espacial eo aumento quantitativo na produção de produtos tropicais mas tam-
das formas arcaicas de economia para as formas modernas. E esse pressuposto bém a reestruturação qualitativa das relações sociais e dos processos organiza-
da singularidade da escravidão que desejo examinar aqui. dores do mercado mundial. Anteriormente, as relaçõesentre centroe periferia
Meu objetivo neste capitulo é chamar a atenção para o caráter variável da fora constituída pelos impérios coloniais em competição uns com outros. Cada
escravidãona economia mundial do século XIX. (Note-se que não me propo- potència metropolitana mantinha uma esfera de produção exclusiva em suas
nho evitar explicar as causas da emancipação dos escravos, que permanecem colônias. A divisāo do trabalho entre metrópole e colônia e a natureza e direção
diversas e conjunturais.) Este capítulo mostra a formação e a reformulação das dos uxos de mercadorias se de niam mediante monopólios, privilégios e res-
relaçõesescravistas dentro dos processos históricos da economia capitalista trições determinados na metrópole e impostos politicamente. Cada metrópole
mundial. Sea escravidão foi ao m e ao cabo abolida em todos os quadrantes do reservava para si o produto de suas colônias, monopolizava as remessas feitas
hemisfério, o "século antiescravista" foi, não obstante, o apogeu do seudesen POr elas e as usavam como um mercado protegido para sua indústria. Graças
volvimento. Sob a aparente uniformidade da emancipação dos escravos doSe a essas políticas mercantilistas, Estados-nações rivais expandiam pela força os
culo XIX, encontramos trajetórias e resultados complexos e dliferenciados ue seus mercados, estimulavam a produção e promoviam a acumulação de riqueza
se podem remontar à posição de sistemas escravistas particulares na econona nacional. Esse sistema expressava nāo apenas os limites da produção e troca de
mundial. No nal do século XVII, a indústria açucareira do Caribe, particua mercadorias mas também a parca integração do mercado mundial durante esse
mente nos impérios coloniais britânico e francês, estava no cerne da proau Periodo. No bojo dessa estrutura de mercado, a produção mundial dematenas
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escravista na economia mundial. A escravidão nas áreas não-açucareiras coe Phmas coloniais aumentou de maneira constante, mas lenta, e os produtores
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PELO PRISMA DA ESCRAVIDĀO

nrincipal agente e bene ciário dessa transformação foi a Grå-Bretanha.


tavam
coloniaisse viam relativamente livres de competir rcado
entre si. is
metropolitano. Com o colapso da França e seu imperio colonial após 1815, não havia nenhu-
com ascondiçõespoliticas de seu monopólio do mercado me 1780 e noténcia capaz de rivalizar com a Grå-Bretanha na arena internacional, e
Todavia,essaforma de organização da economia mundial ruiy iniciou-se um processo de reintegração do mercado mundial sob a heg
olítica britânica assinalou o
1815, e a emergência da hegemonia econômica e política
mercado mundial.britâni
O mercado já não oanital britânico. A posição da Grå-Bretanha não se deveu simplesmente à
principio da transformaçãoestrutural do mercado mundial fontes da produ- unerioridade tecnológica. A supremacia comercial, nanceira e marítima bri-
eraconstituídomediante a dominação politica direta sobre as for
noder sob as condiçöes emergentes da economi tänica era sustentada por seu desenvolvimento industrial; e, por sua vez, sua
ção colonial. A chave para o poder sob as condie O nexo santagem produtiva sobre seus rivais aumentou, enquanto seu controle sobre
mundial eraantes o controle econômico sobre o uxo de mercado..
o mercado se via fortalecido. O controle das nanças internacionais por Lon-
docontrole colonial direto sedesfez,e o sistema da preferência imbe
Os autorregulador, contando para dres e a criação das novas instituições nanceiras da City representaram novos
De formacrescente,um mercado mais ou menos autorregulador. co
o Estado niveis de integração da economia mundial e novos canais para a dominação
tanto com as condições politicas mundiais mantidas e estabelecidas n
oferta, a economica. A Grā-Bretanha emergiu como a pedra angular do comércio inter-
britānico.tornou-seo mediador entre produtores e consumidores, ea ofr
iotrabalho nacional. A produçãoeo consumo mundiais foram moldados progressivamen-
demandaeo preçoapareceram como os determinantes da divisāo
-31). te em torno das condições impostas pelos requisitos da acumulação de capital
do uxo de mercadorias no mercado mundial (McMichael, 1984, Dn L.21
Essareestruturação do mercado mundial toi sustentada pelos processoe.
de britånicoe integrados aosseus ritmos eciclos.
industrialização, urbanização e crescimento populacional. Enquanto a taxa dn Embora a impulsão da atividade econômica britânica em direção à periferia

avançoeconômicodurante a primeira metade do século XIX foi lentacompara- tenha-se tornado mais pronunciada a partir de 1857, o desenvolvimento econo-
mico britânico tornou-se cada vez mais dependente do comércio com a perife-
da à da segunda metade, o avanço da industrialização na Europa e na América
ria, especialmente a América Latina e a India, para matérias-primas industriais,
do Norte mudou o padrão de demanda no mercado mundial no curso sse
géneros alimentícios e também, em menor grau, como uma saída para bens
periodo. A indústria moderna requeria novas materias-primas num escopo e
manufaturados e para o investimento dos excedentes acumulados durante a
escalasem precedentes, enquanto o crescimento da populaçãoeo desenvolvi.
primeira metade do século. O montante de algodão cru usado pela indústria
mento das classes média e trabalhadora predominantemente urbanas na Euro-
britanica aumentou quase cinco vezes entre 1800e 1830, e em 1831 suplantou
pa se associaram a novos padrões de consumo que aumnentaram a dependên-
O açúcar como a principal importaçāo do país. Por outro lado, o crescimento
cia da Europa em relação aos produtores periféricos de gèneros alimentícios.
das fäbricas de algodāo na Grā-Bretanha dependia não do consumo doméstico,
Embora sua importância relativa haja declinado, em termos absolutos oaçúcar
nas dos mercados da periferia. Particularmente importante nesse aspecto era
continuou sendo um item-chave do comércio mundial. Ao lado dele, o algo-
a América Latina. O Brasil constituiu o maior mercado singular para as expor-
dão e o café assumiram nova importância comercial. A produção e o consumo
taçöcs do algodão britânico durante a primeira metade do século (Hobsbawm,
desses artigos aumentaram numa escala maciça no decorrer do século, esua
1968, pp. 58, 135, 138 e l146-148; Woodruff, 1971, pp. 662-663).
importância cresceu. O capital europeu e norte-americano ampliou a área de
A medida que passou a controlar o comércio fora dos limites de seu próprio
fornecimento desses materiais e estabeleceu um sistema global de transporte
lmperio, a Grā-Bretanha tornou-se menos comprometida com o colonialismo
baseado na estrada de ferro e no navio a vapor, enquanto a região peritérica se
Tormal como meio de de nir a natureza e a direção dos uxos de mercadoria
especializavacada vez mais na sua produção. Criaram-se entre centro eperite
e a divisão do trabalho entre o centro e a periferia. Em vez disso, a superio-
ria novos pólos de atração econômica que não coincidiam com as antigastron
ndade comercial e industrial britânica capacitou-a a penetrar o mercado das
teirascoloniais. O comércio mundial e o cultivo de gêneros agricolasdestinados
denais potências colonizadoras e a estabelecer o comércio com a periferia na
ao mercado aumentaram drasticamente, embora de forma desigual, aolongo
de basc da complementaridade - bens manufaturados britânicos (e outros ser-
de todo o século, e os preços mundiais, e não os locais, passaram a đomina Viços, como capital, navios, bancos e seguro) por matérias-primas e produtos
(Hobs-
maneiracrescente o comércio dos produtos e matérias-primas agricOds gicolas periféricos. Ela era o maior consumidor dos produtos da periferia e o
bawm, 1968, p. 128; Woodruff, 1971, pp. 657-658; McMichael, 1984, PP.12-13).
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único comprador que podia absorver a crescente produção periférica. Na outra balho como um mercado livre universal. Em vez disso, as relações sociais ante-
face da moeda, era o único país que podia fornecer o credito, o maquinário e riormente existentes foram refundidas na nova constelação das forças políticas
os bens manufaturados requeridos para sustentar a sua expansão. O avanço da e econömicas. A interdependência anterior do colonialismo e da escravidão se
indústria britânica acentuou o diferencial relativo entre os preços industriais e rompeu e as condições de existência, função e signi cação de cada uma delas
agricolas na economia mundial e impeliu a Grå-Bretanha a desenvolver novas foram modi cadas. O advento da hegemonia britânica e a Revolução Industrial
fontes baratas de fornecimento na periferia a m de restabelecer o equilíbrio na Grå-Bretanha reestruturaram a divisão mundial do trabalho e estimularam
de seu comércio. O resultado foi uma crescente demanda europeia de produtos a expansão material da economia mundial. Esses desenvolvimentos não apenas
alimenticios tropicais e subtropicais, entre eles o açúcar, o algodão e o café, e criaram as condições para a extinçāo da escravidão dentro do Império britânico
uma crescente especialização internacional na produção de alimentos e maté- mas também encorajaram a expansão e a intensi cação da escravidão fora dele.
rias-primas. A drástica queda do preço dessas mercadorias bene ciou mais a Essa"'segunda escravidāo" se desenvolveu não como uma premissa histórica do
Grā-Bretanha que qualquer outro país (Hobsbawm, 1968, pp. 135 e 138-148). capital produtivo, mas pressupondo sua existência como condição para sua re-
O estabelecimento dessa divisāo de trabalho entre centro e periferia foi or- produção. O signi cado e o caráter sistêmicos da escravidão foram transforma-
ganizado pela City de Londres, cuja posição como centro do conmércio mundial dos. Os centros emergentes de produção escrava viam-se agora cada vez mais
tanto era instrumento como expressão da hegemonia britânica. A extensão da integrados na produção industrial e impelidos pela "'sede ilimitada de riqueza"
produção de mercadorias à periferia e a expansão não só do comércio britân- do capital.
co com a periferia mas também de seus rivais baseou-se no poder nanceiro As Índias Ocidentais britânicas foram os bene ciários iniciais do advento
dos bancos de Londres. Como observou McMichael, o empréstimo de capital da hegemonia britânica e do colapso da indústria açucareira colonial francesa.
britånico ampliou o escopo do mercado mundial para todos os Estados. Desen- Entre 179l e 1815, a produção de açúcar no Caribe britânico cresceu mais ra-
volveu-se um sistema de comércio multilateral que dependia tanto das balanças pidamente do que em qualquer outra época da sua história (ver Capítulo 4). As
em libras esterlinas e do crédito dos bancos de Londres quanto da capacidade velhas colônias aumentaranm sua produção, e acrescentaram-se novos territó-
da City de estabelecer indiretamente balanças comerciais entre os Estados. As rios produtores de açúcar ao império. Todavia, o impacto da transformação do
letras de cầmbio sacadas sobre os bancos de Londres substituiram a transferên- mercado açucareiro foi sentido diferentemente entre as diversas colônias bri-
cia de metais preciosos na organização das trocas internacionais, e as balanças tânicas. As pequenas ilhas das Lesser Antilles britânicas, exploradas de forma
em libras esterlinas eram usadas para ajustar o estatuto das moedas nacionais intensiva desde os séculos XVII e XVIII, expandiram-se celeremente durante
no mercado mundial. A centralização do sistema bancário permitiu à Grā-Bre- essesanos. Entretanto, no nal dos anos 1820 elas chegaram aos limites sicos
tanha manter e annpliar o comércio mundial e levar sua supremacia nanceira a e técnicos de expansão entrando num período de declínio. Na Jamaica, por
suplantar sua supremacia comercial e industrial (McMichael, 1984, pp. 12, 21- outro lado, havia espaço para a expansão territorial e novos investimentos. Essa
23 e 26-27). A criação dessas relações de trocas globais centradas na Grā-Breta- expansā0, contudo, estava nos vales interiores da ilha, e um transporte por ter-
nha estabeleceu uma divisão mundial do trabalho dependente de e responsivo ra dispendioso elevou o preço do produto jamaicano. A produção escrava nas
a um mercado mundial integrado. Nessa nova contiguração, alteraram-se as Indias Ocidentais britânicas fora montada para a organização pré-industrial
condições do trabalho escravo na economia mundial. da econonmia mundial e dependia agora de monopólios obsoletos. A produ-
tividade do trabalho escravo não podia ser aumentada, e não se dispunha de
novos tornecimentos de escravos e terra. Apesar dos ganhos auferidos durante
esse período, a expansāo e a intensi cação da produção açucareira levaram as
A TRANSFORMAÇÃO DA
colönias mais antigas ao seu limite e elas se viram ultrapassadas por produtores
ESCRAVIDÃO AMERICANA
nais novos num mercado em expansāo.
A alternativa foi iniciar a produção escrava em novas áreas. A Grā-Bretanha
O efeito desses desenvolvimentos nåo consistiu em destruir as formas arcal-
expandiu ainda mais o cultivo de açúcar ao introduzi-lo nas ilhas conquistadas
cas de organização social e estabelecer a mobilidade geral do capital e do tra-
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na Guerra dos Sete Anos - Granada e Granadinas, São Vicente, Trinidad e To. decadentes como nas colónias ainda com vitalidade. O alto preço do açúcar das
bago -, assim como nos territórios de Berbice, Demerara e Essequibo, recếm. Indias (Ocidentais britânicas e as tarifas protecionistas que ele requeria restrin-
adquiridos à Holanda. No entanto, se essas novas áreas de produção escrava giram o consuno doméstico britânico e enfraqueceram seriamente a posição da
eram mantidas dentro do antigo nexo colonial de monopólioe restriçāo, a pro- Grå- Bretanha no mercado de reexportação. A medida que o açúcar amnericano
dução excedente nas colônias mais antigas e menos produtivas seria subsidiada mais barato invadia os mercados europeus, as reexportações do açúcar das Ín-
dentro de relações sociais anômalas. Mas, se uma força de trabalho pudesse ser dias Ocidentais britânicas tinham de ser compensadas pelo governo mediante
garantida por outros meios nas novas áreas de produção, elas prosperariam e subsidios e concessões para exportação, a m de torná-las competitivas como
o mecanismo comercial de acumulação e reprodução expandida da economia açúcar de outros países que, não raro, eram clientes substanciais das manufatu-
mundial seria liberado. ras britånicas. As colônias açucareiras das Índias Ocidentais britânicas viram-
Com o comércio mundial centralizado em suas måos, já não havia necessi- se na impossibilidade de competir numa economia mundial em expansão. Sua
dade, para a Grå-Bretanha, de asseguraro seu próprio fornecimento de mão- posição foi minada não pela indústria britânica, mas pela produção mais ef-
de-obra para bens tropicais e semitropicais. Sua preocupação concentrava-se ciente nas novas zonas escravistas americanas e em outros lugares da periferia.
cada vez mais nas mercadorias baratas, independentemente da forma de tra-
Os mesmos processos que contribuíram para a abolição da escravidão no
balho que as produzia. O escravo comno mão-de-obra produtiva ganhou pre- Império britânico redundaram na intensi cação da produção escrava em outras
cedėncia sobre o escravo como mercadoria. Essas mudanças estruturais na partes do hemisfério. A demanda de algodāo, café e açúcar atingiu proporções
economia mundial contribuíram para a e cácia do movimento antiescravista sem precedentes durante o século XIX, e a produção dessas safras revitalizou a
na Grå-Bretanha. Todavia, o movimento contra o trá co de escravos não era escravidāo em Cuba, nos Estados Unidos e no Brasil como parte dessa emergente
simplesmente uma função de fatores econômicos, mas acrescentou outra d- divisão capitalista internacional do trabalho. Isso se re etiu na escala e na natu-
mensão aos processos que levariamà abolição da escravidão e impôs diferentes reza da própria produção escrava. Vastas extensões de terra foram abertas, e mi-
caminhos de desenvolvimento à Grā-Bretanha e às colônias não-britânicas. Ihões de escravos postos a trabalhar na produção dessas safras. A nova tecnologia
A aboliçảo do trá co de escravos nåo só interrompeu a oferta de trabalho às industrial - em especial a estrada de ferro, o navio e os engenhos a vapor - trans-
colôniasescravistas britânicas mas também, como indicou Paula Beiguelman, formaram o processo do trabalho nas novas fronteiras escravas. Por trás dessa
destruiuo mercado de bens mais intimamente ligados à forma escrava (Bei expansāo estava o poder do capital e do Estado britânico para organizar o merca-
guelman, 1978, pp. 71-80). Os estorços britânicos para suprimir internacio- do mundial e a divisão internacional do trabalho. Na primeira metade do século
nalmente o trá co de escravos formaram um contraponto à expansão da es- XIX, Londres forneceu o que Jenks descreveu apropriadamente como uma "ponte
cravidão em Cuba, nos Estados Unidos e no Brasil durante o século XIX. A de crédito aos Estados Unidos, ao Brasil e às colônias espanholas com o m de
escravidāo nessas áreas desenvolveu-se tanto em face da restrição e, em última estimulara produção e o comércio (Jenks, 1971, p. 67; McMichael, 1984, pp. 22-
análise, da eliminação do trá co de escravos quanto contra o maduro, difundi- 23). Por si mesmas ou em conjunção com bancos e casas mercantis estrangeiras,
do e bem-sucedido movimento abolicionista. especialmente norte-americanas, as instituições nanceiras de Londres fornece-
A interação das forças do mercado e do movimento antiescravista levou a ram capital mediante crédito e investimento direto para o desenvolvimento de
Grå-Bretanha a uma política de livre comércio e minou a posição competitiva plantações e estradas de ferro e os bancos que as sustentavam. O desenvolvimento
de suas colônias das Índias Ocidentais. Na altura de 1815, a expansāo britânica dessas novas zonas de plantation baixou os custos e aumentou a escala de produ-
no Caribe chegara ao m. Com exceção da Jamaica e da Guiana, a produção çäo, além de propiciar saídas para o capital excedente britânico de uma forma ou
açucareira do Caribe britânico alcançara o seu ponto de saturação. Ossenhores de outra. O crédito britânico também expandiu o comércio mundial e aumentou
de escravos das Indias Ocidentais britânicas viram-se às voltas com os custos a demanda de novas safras fora da Grä-Bretanha. Por exemplo, comerciantes e
crescentes e com a incapacidade de expandir a produção. A abolição do trá co banqueiros de Nova York, Boston e Filadél a podiam usar o excedente comercial
de escravos interrompeu o fornecimento de mão-de-obra, enquanto a emanci- proveniente das exportações de algodão para sacar letras nos bancos de Londres
pação dos escravos britânicos pôs termo ao trabalho escravo tanto nascolônias a m de nanciar nāo apenas a aquisição de manufaturas britânicas mas tam-
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90 | PELOPRISMADAESCRAVIDÄO
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Indias Ocidenta pro


woducão total. Mas a energia a vapor não tardou a aparecer, e os métodos da
bémquantidadessigni cativasde caté brasileiro e açúcar das Índ:
aisdado a construir as nanças, o comércio anufatura do açúcar em Cuba foram transformados pela aplicação de técnicas
Emboraessasatividadestenham ajudado a construir as
nércio multilateral ampliou o poder anceiro Actriais modernas. Segundo Knight, em 1827apenas2,5% dos mil engenhos
a indústria americanos,esse comércio multilateral amnlio.
volume de mercadorias em circulaçāo, desenvolea fontes de Cuba eram movidos a vapor. As estradas de ferro abriam novas terras e, em
britånico,aumentou o volume de mercadorias em circulacā
baratas de abastecimento e assegurou mercados para as manufat,. contraste com a situação na Jamaica, permitiam uma exploração lucrativa do
sndial. Foi nesse complexo de produção e troca mun inte or nela indústria açucareira. Em 1837, treze anos depois que o primeiro
em toda a economia mundial. Foi nesse complexo de producão
.rem a vapor começou a operar na Inglaterra, a primeira estrada de ferro na
que emergiu a "segunda escravidão: cala após aocupa-
A producãoaçucareira cubana cresceu rapidamente em escala América Latina, ou no Caribe, foi concluída entre Havana e Güines, Essa li-
e escra-
cảobritânica deHavana(1762), que resultou em maiores importa nha, criada para atender à indústria açucareira, tinha apenas 80 km de compri-
partir da década de 1790, ajudada pela
vOs.No entanto, ela foi impulsionada a partir da década de 1790 oento, mas foi bem-sucedida e logo as estradas de ferro estavam em operação
destruiçảodaproduçãoparaexportaçao em Saint Domingue e pelo del eclínio da em todas as áreas açucareiras da ilha. Os custos do transporte foram reduzidos
indústriaaçucareiradas Indias Ocidentais britânicas. Na altura de 1920 Cuba drasticamente e maximizou-se o uso da terra (Guerra y Sánchez, 1964, p. 66:
srainycomo o maior produtor do mundo, com uma produção de l04 971 to- Knight, 1970, pp. 32-33, 35-36 e 38; Scott, 1985, pp. 21-24).
neladas métricas. A demanda mundial continuava a crescer numa taxa acelh Os cubanos gozavam da vantagem tecnológica dos retardatários. Embora fos-
rada. e a produção cubana mais que lhe acOmpanhava o ritmo, Em 48. as
sem poucos em número, O apareCimento dos engenhos mecanizados representou
260463 toneladas métricas produzidas responderam por quase um quarto de uma transformação qualitativa nas condições da produção açucareira. O enge-
abastecimentomundial (Moreno Fraginals, 1978, I, pp. 46-47, 67-71, 95.10) nho cubano desenvolveu-se numa escala gigantesca, e a tecnologia da produção
167-255:Il., pp. 93-97 e 106-174; III, pp. 35-36; Scott, 1985, p. 10; Guerra vSán- deaçúcar alcançou ali o nível mais avançado conhecido soba escravidão. As mo-
chez, 1964, pp. 40-45e 52-53: Knight, 1970, pp. 14-18 e 40-41). endas a vapor e a caldeira a vácuo aumentaram a capacidade das plantações mais
Essaexpansãoda produção cubana foi acompanhada pore dependia de um adiantadas e produziram mais açúcar de alta qualidade. Nas grandes proprieda-
forte aumento na força de trabalho escrava. Em Cuba, as importações deescra- des introduziram-se pequenas linhas férreas, muitas vezes usando equipamento
vos aumentaram drasticamente e a composiçāo demográ ca da ilha foi trans. de tração animal, para transportar a cana dos campos para os engenhos, para o
formada,apesardas tentativas britânicas de pôr m ao trá co deescravos.Hu- transporte no interior das fábricase para os cais.Esses desdobramentos puseram
bert Aimes estima que quatrocentos mil escravos foram importados emCuba m à proporção xa entre terra, mão-de-obra e capacidade de moagem que tanto
entre 1762 e 1838. A população escrava de Cuba passou de 85 900 em 1792a limitara o desenvolvimento do velho engenho. Com a introdução do maquinário
199100 em 1817, e neste último ano importaramn-se mais de 32 mil escravos. a vapor, já não era necessário limitar a extensão do canavial. O uso do transporte
Na altura de 1827, a população de escravos cubanos chegou a 286900 e em1841 por via férrea dentro das propriedades possibilitou ampliar a área de cultivo, o
alcançou 436500, correspondendo a mais de 43% da população total. Otrá co que por sua vez proveu a maior quantidade de cana requerida pelas técnicas de
deescravos continuou a abastecer Cuba com mão-de-obra nova até meadosdos re nação modernas. A escala de produção aumentou, de modo que os engenhos
anos 1860, e a população escrava em 1862 era de 368550 (Curtin, 1969, p.34; podiam aumentar de tamanho. Os requisitos em capital para fundar um engenho
Knight, 1970, pp. 10-11, 22-23 e 41; Scott, 1985, p. 87). aumentaram enormemente. Com a introdução das vias férreas nas proprieda-
O desenvolvimento da indústria açucareira centrou-se na parteocidental des, houve uma competição implacável por terra e mão-de-obra. Os pequenos
da ilha. A cultura do açúcar expandiu-se para o suleo oeste deHavana,subs- Produtores viram-se prensados e emergiu uma economia de monocultura que
tituindo os produtores de café e tabaco e alcancando outras terras. Plantatios Toi dominada pelos grandes plantadores, capazes de pagar os custos maiores dos
novasecadavez maiores estabeleciam-se num ritmo frenético, enquanto san novos engenhos mecanizados. Estavam lançados os fundamentos para a posição
tigas aumentavam sua capacidade. O número de engenhos quase quadrupolicou cubana đe principal produtor açucareiro do mundo (Knight, 1970, pp. 18-19 e
entre 1800 e 1857. Durante as etapas iniciais da expansão, a multiplicaça0 das 30-40; Guerra y Sánchez, 1964, pp. 54e 66; Moreno Fraginals, 1978, I, pp. 167-
unidadesde produção tradicionais respondia por grande parte doaumento 255; 1l, pp. 93-97 e l06-174; 1II, pp. 34-36; Scott, 1985, pp. 20-21).
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"SEGUNDAESCRAVIDÃO" | 93
92 | PELOPRISMADAESCRAVIDĀO

anda industrial de algodão, a nova:


De modo similar, acrescente demanda industrial de al maté- estend
ondia-se por mais de mil milhas desde a Carolina do Sul até a região próxima
idos..Entre 1780
ria-prima porexcelência, reviveu a escravidão nos Estados Antonio e dominava a produçao mundial (Cohn, 1956, pp. 90, 95e 108-
ual de algodão pelas fábricas britânicae
emeados do século XIX, o consumo anual de algodão pelas f:1. Wright, 1978, pp. 13, 15-17 e 325; Gray, 1958, II, p. 691; Scherer, 1969. Pp
aumentoudeduas mil para250 mil toneladas.Essa demanda f: atendida me- 202-204 e 336-339).
diante o desenvolvimento de uma zona de abastecimento no Su Estados
de-obra escrava fornecia mão-de-obra barata su cienteparasusten-
Unidos. O algodão tinha desempenhado um papel relativanent pouco im or essa expansão. Escravidao e algodão caminhavam de mãos dadas atravớe
e.americana colonial,
portante na agricultura norte-americana colonial, e
e os
os forne,
fornecimentos de
algo- nana do Sul. A população escrava do Sul aumentoudecerca de um milhäo
dão à Grả-Bretanha foram de pouca signi cação comercial antes daa década de omeco do século para quatro milhões às vésperas da Guerra Civil. Gray
le El:
1790. Em 1793, o primeiro ano do descaroçador de algodão de Eli Whitney, 487
estima aue as importações de escravos para os Estados Unidos entre 1800e
mil libras foram enviadas à Inglaterra. As exportações de algodāo chegaram
1860 totalizaram cerca de 320 mil cativos, dos quais aproximadamente 270 mil
a 62 186 milhões de libras em 1811, às vésperas da guerra com a Inglatera
contrabandeados após a abolição do trá co transatlântico para o país
Do nal da guerra de 1812 até 1859, a quantidade de algodão Drod danos
1808. A maioria do fornecimento de mão-de-obra se fazia assim pelo notá-
Estados Unidos aumentou mais de trinta vezes, passando de menos
vel aumento natural dos escravos norte-americanos, único entre as populações
a4.541 milhões de fardos. O algodão tornou-se o principal produto de.
expor-
Pscravasdo Novo Mundo, e pela transterência regional dos cativos do Norte e
tação americano. Em 1860 ele respondia por mais da metade das exportacoes
do Alto Sul para o Cinturão Algodoeiro. No entanto, a disponibilidade de mão-
totais do pais (400 milhöes de dólares)e alcançara uma posição sen
de-obra escrava restringiu a expansão da indústria algodoeira. A demanda de
economia americana (Cohn, 1956, p. 88; Gray, 1958, II, p. 691; Scherer.1960
mảo-de-obra escrava elevou o preço de um bom escravo de duzentos dólares
pp. 125-126 e 142-146; Furtado, 1968, pp. 112-l13; Crawford. 192A PP.126,
em 1790 para dois mil dólares em 1860. A plantation algodoeira não requereu
129-131 e 137-139).
a forte capitalização exigida pela propriedade açucareira, mas os altos preços
A crescente demanda de algodão abriu um vasto território de terravirgem
dos escravos favoreceram as unidades produtivas maiores. Os grandes senho-
para a agricultura comercial eouso lucrativo de escravos. A invencão dades
esca-
res dos Estados do Golfo podiam absorver esses altos preços. Não apenas dis-
roçadeira de algodāo por Whitney permitiu o cultivo do algodão de bracurta
punham de propriedades maiores e mais produtivas, situadas em terras mais
em escala comercial nas áreas sujeitas a geadas. Até a Guerra Civil a cultura do
ferteis e com acesso mais fácil ao crédito em condições melhores, como ainda
algodão expandiu-se rapidamente para as terras férteis do Alabama,Mississi-
empregavam grandes turmas de escravos e podiam reproduzir mais facilmente
pDi, Louisiana, Arkansas, Texas e Flórida. Para atender à crescente demanda
a força de trabalho destes sem recorrer ao mercado. Desse modo eram capazes
mundial, terras menos férteis no Piedmont foram abandonadas em favordo
de aumentar sua vantagem às expensas dos pequenos senhores. A indústria al-
clima ideal e das boas condições do solo do baixo Sul. Essa migração foi me-
godocira absorveu quase todo o aumento veri cado na população escrava, e a
nos uma fuga da exaustão do solo do que, como observa Wright, "umprocesso
vasta maioria dos escravos concentrava-se no Cinturão Algodoeiro àsvésperas
racional de expansão e realocação geográ cas". As terras indígenas foramocu-
da Guerra Civil (Cohn, 1956, pp. 90-91 e l16-117; Scherer, 1969, pp. 149-150 e
padas e o sistema de plantation reviveu em vastas áreas da nova terra àmedida
199; Gray, 1958, II,p. 691; Furtado, 1968, pp. 124 e 127-128n).
que o reino do algodão deslocava o seu centro do Alto Sul para as terrasnovas
O café também se transformou num artigo de consumo em massa durante
e férteis dos Estados do Golfo. O navio a vapor trouxe métodos detransporte
0 século XIX, e o Brasil emergiu como o novo centro da produção mundial. O
modernos para os rios navegáveise as águas costeiras, e de 1845 a 1860 oSul
Progressoda cultura cafeeira no Brasil foi lento atéeste começar a ser exportado
construiu mais milhas de estrada de ferro do que a Nova Inglaterra e osEstados
em decorrência da restrição da oferta e dos altos preços causados pela Revo-
do Médio Atlântico juntos. Essa rede de transporte extensivo por águae ler
lução Haitiana. Mas na década de 1821-1831 o café já era a terceira principal
rovia abriu novas terras para a cultura do algodão, ligou o Sul a outrosmerca exportação do Brasil, depois do açúcar e do algodão, e respondia por 18% das
dos e reduziu o custo de vida no Sul ao fornecer um abastecimentoabundante CAportaçöes em termos de valor. Entre 1837 e 1878, as exportações anuais brasi-
de gèneros procedentes do Oeste. Na altura de 1850, o "Cinturão Algodoeiro Cas aumentaram drasticamente, de um milhão para quatro milhöes desacas,
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94 | PELO PRISMA DA ESCRAVIDĀOo
GUNDA
ESCRAVIDÁO"
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e em 1881 o café representava mais de 60% das exportações do nat


(geogi mente o leste e o nordeste da província de Säo Paulo, mas em ter.
(Prado, 1981, pp. 157-159; Furtado, 1963, pp. 121-124).
mos da expansão cafeeira, a oeste do Vale do Paraíba) goza de vantagens natu-
o desenvolvimento das fazendas do café no Brasil baseou-sem
baseou-se na utilizacāe
intensiva da mảo-de-obra escrava. O equipamento usado era mais
ande facilidade de transporte e comunicação emcomparaçāo com o
ale do Paraíba. O terreno irregular e variado do Vale do Paraíbae adispersāo
que o empregado na fabricaçảo do açucar e, mais trequentemente, de mnanufatu-
das encostas com exposiçao adequada ao sol e proteção contra o vento disse.
ra local. Os custos eram baixos e, se havia terra suticiente, a disDonibil: e de
mina as fazendas cafeeiras em pequenos núcleos separados uns dos outros.
mặo-de-obraera oúnico obstáculo ao seu crescimento. Curtin estimaa impor-
tacöes de escravos para o Brasil durante o seculo XIX eml,145 milbâo Todavia,
: ito e a mão-de-obra eram também relativamente pequenos, e as plan-
a elevada taxa de mortalidade dos escravos reduziu O mpacto dos novos africa- .cáes não excediam, quando muito, algumas dezenas de milhares de pés. Na
nos sobre a economia. Além disso, a economia cateeira contou, em primeiro h. nova regjão de São Paulo, o terreno continuo era coberto de um "mar de cafe
omo reservatório de måo-de-obra escrava subutilizada das antigasreuiòes uniforme e ininterrupto que dominava a paisagem até onde a vista alcançava.
de mineração e, depois, com as transterencias de mão-de-obra da indústrisaçu- Grandes propriedades começaram a tormar-se com maior frequência nessas
careira no Nordeste. Em 1823, as provincias do Rio de Janeiro, Minae novas zonas do Oeste Paulista. Doravante, as fazendas perfaziam centenas de
São Paulo tinham uma população escrava de cerca de 386 mil, enquanto a Bak:.
ia, milhares de pés, e no nal do século começaram a aparecemfazendascom mais
Pernambuco e o Maranhào, regióes açucareras e algodoeiras do Nordeste e do de um milhão de pés. A escala de produção, a dominação dos recursos pelas

Norte, contavam aproximadamente 484 mil. Nos cinquenta anos so de- grandes propriedades e o montante do investimento requerido tornaramessas
senvolvimento da indústria cafeeira reverteu essa situação. Bahia, Pernambuco novas terras menos acessiveis aos pequenos e médios produtores. Em contraste
eMaranbảo tỉnham cerca de 346 mil escravos, enquanto as prOvincias cafeeiras com as técnicas rudimentares que caracterizaram as primeiras produções ca-
do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo totalizavam mais de oitocentos mil feeiras no Vale do Paraíba, o Oeste Paulista produzia numa escala maior e com
(Curtin, 1969, pp. 234-237; Furtado, 1963, pp. 124 e 127-128n). maior so sticaçāo técnica. Essas grandes plantações utilizavamn equipamentos
A expansão inicial da cultura cafeeira no Brasil concentrou-se no Vale do modernos e elaborados para processar o café e mesmo fazendeiros menores
Paraíba, que continuou sendo o seu centro até o terceiro quartel do século XIX. enviavam seu produto às pequenas cidades para que fosse processado mecani-

Próxima ao Rio de Janeiro, essa área contava com um fornecimento de mão-de- camente. Essas grandes plantações podiam estender a área cultivada e empre-
obra relativamente abundante em função do declínio da economia minerado- gavam particularmente estradas de ferros próprias no lugar dos carros de bois
para levar o café ao centro da fazenda para processamento. A estrada de ferro
ra adjacente, enquanto abundantes comboios de muares propiciavam um fácil
possibilitou a exploração do Oeste paulista, e dependia, por sua vez, do café.
transporte ao porto vizinho. Todavia, à medida que o surto prosseguia, aestra-
Uma nova rede de linhas férreas centradas no eixo São Paulo-Santos reduziu
da de ferro ajudou a expandir a cultura cafeeira mais para o interior. AEstrada
oS custos de frete e uniu os produtores graças à crescente demanda mundial
de Ferro Central do Brasil (Dom Pedro II), construída pelo governobrasileiro,
de café. Além disso, a estrada de ferro abriu as vastas terras cafeeiras a oeste de
embora com a ajuda de empréstimos britânicos e dirigida por um empreiteiro
Campinas, assegurando assim a prosperidade da região na entrada do século
inglės, abriu os con ns extremos do Vale do Paraíba, partes de Minas e nal-
XX (Graham, 1968, pp. 45-46, 66-67 e 71-72; Prado Júnior, 1981, pp. l64-166).
mente o Oeste Paulista à cultura cafeeira. O efeito dessa via sobre a economiado
Vale do Paraíba não foi muito duradouro porque o vale quase já haviaatingido
seu pico de produtividade à época em que a ferrovia foi construída. Noentanto, CONCLUSÃO
serviu para prolongar sua prosperidade ao reduzir o custo do transporte.Alem
disso contribuiu para a intensi cação da produção de café na região (Furtado Este capítulo sustenta que o trabalho escravo e sua abolição não podem ser
1963, pp. 123-124; Prado Júnior, 1981, pp. 161-162; Graham, 1968, pp.52-54). tos cOmo um processo evolucionário linear, mas sim comorelaçôescom-
A especulação fundiária e as práticas agrícolas especulativas erama Plexas, múltiplas e qualitativamente diferentes dentro dos processos globais de
cultura do café ao Sul e ao Oeste da província de São Paulo. O Oeste au
aulista dcumulação e divisão do trabalho. Para os objetivos desta discussão, podem
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PELOPRISMA DA ESCRAVIDĀO "SEGUNDAESCRAVIDÃO" | 97
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discernir-seduasrelações qualitativamente distintas entre ão e proces-


eeravista - cada qual com diterentes papéis,
e signif- sto de reprodução da mão-de-obra assalaríada. À medida que a relação
sosdedesenvolvimentoescravista - cada qual com difere:
mundial do século XIX. A primeira era consti capital-trabalho assalariado ia se tornando largamente estabelecida, foi emer-
cados - na economia mundial do século XIX, A por
de processos
processos sócio-históricos
sócio-históricOs e
e de
desempenhoy aindo unm imperativo sistêmico, no sentido de aumentar a mais-valia mediante
um conjunto especí co de papel
particular na formação da economia mundial entre os séculos XVIe X. XIX.
.Essas a redução do valor da mão-de-obra, o que, por sua vez, requeria produtores
escrav ne nara fornecer benscadavezmaisbaratosparaoconsumodaclasse
relações foram ou destruídas ou radicalmente reconstituidas pelatransforma-
economia mundial no século XIX. A segunda foi criada nel trabalhadora.
lacões sociais Ao nesmo tempo que a hegemonia britānica criava um mercado mundial
históricos e pelo conjunto das relações sociais especihcas
especí cas da própria economia
mundial do mesmoséculo. A segunda escravidão consolidou uma no divisão
integr
oorado, as condições para a produçãoe a reprodução das relações sociais
do trabalho e forneceuum volume considerável de materias-primas de capital foram se tornando "nacionais“: as condições impostas pela divisão
alimentícios aos poderes industriais centrais. Longe de ser uma instituicão mo. bcional do trabalho ocasionaram uma variedade de respostas políticas
ribunda durante o século XIX, a escravidāo demonstrou toda a sua adaptabili. por arte das classes senhoriais de Cuba, da América do Sul e do Brasil. Ao
contrário de seus predecessores coloniais, elas desenvolveram variados graus
dade e vitalidade.
Dois processos de emancipação estão implicitos nesses dois ocessos de emodos de autoconsciência nacional por intermédio dos quaistentaram con-
desenvolvimento da escravidāão. Uma explicação completa da história dades- solidar sua posiçāo na economia mundial. As condições impostas pela divisão
scravidão durante o século XIX teria de levar em conta adiversida. internacional do trabalho acarretaram uma variedade derespostaspolíticas de
de dos fatores politicos, sociais e ideológicos, dos quais as ações dos prios sua parte, incluindo às vezes o anticolonialismo, a antiescravidāo e até mes-
escravizados não foram menos signi cativas. Não obstante, a transforma
maçãoda mo tentativas de estabelecer um Estado nacional independente. Ademais, os
economia mundial tornou as condições da existência do trabalho cravomais proprietários de escravos tinham de ser empresários preocupados com a pro-
Vulneráveis e voláteis do que antes. A competição dos preços num mercadoem dutividade do trabalho. Enquanto a Guerra Civil e a emancipaçåo truncaram
expansāo e o crescimento do trabalho assalariado tornaram mais a "evolução natural" da escravidão nos Estados Unidos, a busca de maior pro-
a produtividade do trabalho. As novas zonas de produção escrava já nãomais dutividade e a subsequente redução da mão-de-obra à supressão do tráico de
monopolizavam a produção de mercadorias especí cas, mas tiveram decom- escravos levaram os fazendeiros e senhores de engenho cubanos e brasileiros a
petir com outras formas de organização do trabalho em outros lugares daeco- experimentar em novas formas de organização do trabalho e novas fontes de
nomia mundial à medida que o espectro de formas de controle do trabalhose måo-de-obra. Nessas áreas a escravidão era complementada por outras formas
expandia e se criava a hierarquia global do trabalho. Os produtores escravistas
de controle do trabalho - trabalho por contrato, trabalhoassalariadoe trabalho
tinham de competir entre si e com outros produtores periféricos, e suaposição camponės. O desenvolvimento dessas formas de controle do trabalho é visto

nas relações de produção internacionais foi determinada pelo preço dasmaté- convencionalmente como evidėncia da dissolução da escravidão, mas os escra-
vos continuaram sendo o fulcro estratégico do processo de trabalho, e outras
rias-primas. Ao mesmo tempo, os diferenciais de preço foram niveladospela
tormas lhe foram complementares. Essas formas mistas de trabalho de planta-
produção industrial e pelo mercado mundial integrado, com oestabelecimen
tion são um testemunho da clasticidade e adaptabilidade do trabalho escravo.
to de preços globais. As relações entre centro e periferia foramdeterminadas
lais experiências foram características da segunda escravidão e ajudaram os
pela oposição preços industriais versus preços de bens primários e custoalto
fazendeiros e senhores de engenho de Cuba e do Brasil a negociar a transição
versus mão-de-obra barata. Além disso, o signi cado sistêmico daescravidão
Pra a produção pós-escravista com mais sucesso do que seuspredecessores.
transtormou-se com a emergência da relação capital-trabalho assalariadono
am
decurso do século XIX. Os produtos da mão-de-obra escravaentraram re"
escala
tamente no consumo da classe trabalhadora assalariada europeia, numa
a entre
Crescente. Foram importantes como meio para manter a relação detrocd
rabalho assalariado e capital, e também contribuíram diretamente pararedu-
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