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Tomich
Tradução
Antonio de Pádua Danesi
Revisão Técnica
USP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Rafael de Bivar Marquese
Reitor João Grandino Rodas
Vice-reitor Hélio Nogueira da Cruz
COMISSÄO EDITORIAL
Presidente Rubens Ricupero
Vice-presidente Carlos Alberto Barbosa Dantas
Antonio Penteado Mendonça
Chester Luiz Galvẫo Cesar
Ivan Gilberto Sandoval Falleiros
Mary Macedo de Camargo Neves Lafer
Sedi Hirano
CDD-326.0972
Agradecimentos...
Introdução... 13
A
abolição do trá co de escravos e da escravidāo no Hemisfério Ocidental
está certamente entre as ocorrências mais signi cativas e dramáticas do
século XIX. Por meios tão diversos quanto a legislação, a revlução e a
guerra civil, a escravidão e o trá co de escravos foram erradicados numa sequên-
cia de acontecimentos que principiaram com a Revolução Haitiana em 1791e se
estenderam à emancipação dos escravos no Brasil em 1888. De fato, a força e a
e cácia do pensamento e da ação antiescravistas contribuiram signi cativamente
para a autoconsciéncia oitocentista como um período de crescimento da liberdade
humana e do progresso moral e material (ver, por exemplo, Davis, 1984). Durante
esse periodo, a escravidão veio a ser entendida como a antítese das formas emer-
gentes de Estado, sensibilidade moral e atividade economica: ela formava o padräo
negativo contra o qual as novas formas de liberdade se de niam. Na elaboração da
economia política, por exemplo, o forte contraste entre o escravo africano e o tra-
balhador livre da Europae da América do Norte foi usado para explicar o que era
caracteristico nas relações de propriedade capitalistas, trabalho assalariado e pro-
dução industrial (Smith, 1976, pp. 90 e 413; Marx, 1976, pp. 1031-1034). A escravi-
dão não era tratada como sendo simplesmente uma dentre várias outras formas de
trabalho humano; pelo contrário, ela veio a ser concebida como a oposição polar do
trabalho livre (assalariado). Era vista como a epitome da produção arcaica, inepta e
ine caz, e geralmente se presumia que ela era incompatível com o mundo moder-
no emergente, enquanto o trabalho livre (assalariado) era encarado como o ponto
de chegada universal dos processos históricos do desenvolvimento capitalista.
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A UNDA ESCRAVIDĀO"
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ndo moderno mori-ibunda. O arroz, o indigo e o tabaco eram de importåncia secundária nas
O pressupostode que a escravidão é incompatível com o mundo
olbnias escravistas da América do Norte. O Brasil estava no m do seu "ciclo
persistiuao longo do século XX. Nesse enquadramento, o debate dos esty.d
otoriais 0u morais foram mais importantes do ouro, e no império espanhol, com exceção de Cuba, a escravidão era margi-
concentrou-seemsabersefatoresmateriaisou morais foram mais i:
a aboli- .dasvia, no decurso do século XIX a escravidão expandiu-se numa escala
paraasua extinçảo. Seja qual for a interpretação preterida, o certo é ase
cão daescravidão foi entendida geralmente em uma dessas duas nmanciras. Iese maciça exatamente nessas áreas relativamente atrasadas para atender à crescen-
visão,queenfatiza o papel da Gra-Bretanha como precursora de uma modoe na te ema mundial de algodão, café e açúcar. Ao mesmo tempo, os antigos
ordem política, econômica e ideológica, assemelha-se a um tipo de teoris do contros de produção escravista declinaram. Esse segundo ciclo de escravidão
stino
efeito dominó. Quando a Grå-Bretanha aboliu o trá co de escravos. o dect. iniciou-se com o advento da hegemonia britânica e declinou com o desa o que
men- Ihe foi lançado quando a preeminência econômica e política dos Estados Uni-
da escravidão africana nas Américas estava selado, e puseram-se enm
essa dos aumentou no Hemisfério Ocidental e as depressões das décadas de 1870
to forças que de maneira lenta e desigual, porém inevitável, desantelaram
instituição peculiar em todo o hemistério. (Note-se que nessas explicacôes 1880 redundaram em crises nos mercados coloniais. O examedessesproces-
Revoluçåo de São Domingose a fundação do Hlaiti constituem aparentemen. sOs concomitantes de declínio e expansão enfatiza ao mesmo tempo as manei-
te aberrações que nãopodemn ser assimiladas à narrativae são ignoradas fuee ras complexas pelas quais a escravidão está imbricada nos processos econômicos
Trouillot, 1995,pp. 70-107]). A outra visão pöe em relevo as histórias nacionais mundiaisea intrínseca e irredutível desigualdade do desenvolvimento capitalista.
dasváriassociedadesescravistas das Américas. Em sua perspectiva, as contradi.
ções "internas" da escravidão são realçadas, e num caso após o outro as relacões
escravistas dão lugar a uma forma mais elevada de racionalidade econômica A HEGEMONIA BRITÅNICA EA NOVA
Ambas as interpretações pressupõem a singularidade da escravidão. A escravi- DIVISÁO INTERNACIONAL DO TRABALHO
dão é vista como (ou se presume ser) essencialmente o mesmo fenômeno em
toda parte, e os diferentes sistemas escravistas se distinguem uns dos outros As mudanças sobrevindas na economia mundial durante a primeira metade
apenas por seus contextos econômicos, culturais e políticos. Consequentemen- do século XIX alteraram fundamentalmente os parâmetros e as condições de
te, a abolição da escravidão, quer seja considerada na sua conexão internacional produção na periferia. Essas mudanças incluíram não apenas a redistribuição
ou nas suas diversas arenas nacionais, é tomada como uma transição unilinear espacial eo aumento quantitativo na produção de produtos tropicais mas tam-
das formas arcaicas de economia para as formas modernas. E esse pressuposto bém a reestruturação qualitativa das relações sociais e dos processos organiza-
da singularidade da escravidão que desejo examinar aqui. dores do mercado mundial. Anteriormente, as relaçõesentre centroe periferia
Meu objetivo neste capitulo é chamar a atenção para o caráter variável da fora constituída pelos impérios coloniais em competição uns com outros. Cada
escravidãona economia mundial do século XIX. (Note-se que não me propo- potència metropolitana mantinha uma esfera de produção exclusiva em suas
nho evitar explicar as causas da emancipação dos escravos, que permanecem colônias. A divisāo do trabalho entre metrópole e colônia e a natureza e direção
diversas e conjunturais.) Este capítulo mostra a formação e a reformulação das dos uxos de mercadorias se de niam mediante monopólios, privilégios e res-
relaçõesescravistas dentro dos processos históricos da economia capitalista trições determinados na metrópole e impostos politicamente. Cada metrópole
mundial. Sea escravidão foi ao m e ao cabo abolida em todos os quadrantes do reservava para si o produto de suas colônias, monopolizava as remessas feitas
hemisfério, o "século antiescravista" foi, não obstante, o apogeu do seudesen POr elas e as usavam como um mercado protegido para sua indústria. Graças
volvimento. Sob a aparente uniformidade da emancipação dos escravos doSe a essas políticas mercantilistas, Estados-nações rivais expandiam pela força os
culo XIX, encontramos trajetórias e resultados complexos e dliferenciados ue seus mercados, estimulavam a produção e promoviam a acumulação de riqueza
se podem remontar à posição de sistemas escravistas particulares na econona nacional. Esse sistema expressava nāo apenas os limites da produção e troca de
mundial. No nal do século XVII, a indústria açucareira do Caribe, particua mercadorias mas também a parca integração do mercado mundial durante esse
mente nos impérios coloniais britânico e francês, estava no cerne da proau Periodo. No bojo dessa estrutura de mercado, a produção mundial dematenas
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escravista na economia mundial. A escravidão nas áreas não-açucareiras coe Phmas coloniais aumentou de maneira constante, mas lenta, e os produtores
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PELO PRISMA DA ESCRAVIDĀO
avançoeconômicodurante a primeira metade do século XIX foi lentacompara- tenha-se tornado mais pronunciada a partir de 1857, o desenvolvimento econo-
mico britânico tornou-se cada vez mais dependente do comércio com a perife-
da à da segunda metade, o avanço da industrialização na Europa e na América
ria, especialmente a América Latina e a India, para matérias-primas industriais,
do Norte mudou o padrão de demanda no mercado mundial no curso sse
géneros alimentícios e também, em menor grau, como uma saída para bens
periodo. A indústria moderna requeria novas materias-primas num escopo e
manufaturados e para o investimento dos excedentes acumulados durante a
escalasem precedentes, enquanto o crescimento da populaçãoeo desenvolvi.
primeira metade do século. O montante de algodão cru usado pela indústria
mento das classes média e trabalhadora predominantemente urbanas na Euro-
britanica aumentou quase cinco vezes entre 1800e 1830, e em 1831 suplantou
pa se associaram a novos padrões de consumo que aumnentaram a dependên-
O açúcar como a principal importaçāo do país. Por outro lado, o crescimento
cia da Europa em relação aos produtores periféricos de gèneros alimentícios.
das fäbricas de algodāo na Grā-Bretanha dependia não do consumo doméstico,
Embora sua importância relativa haja declinado, em termos absolutos oaçúcar
nas dos mercados da periferia. Particularmente importante nesse aspecto era
continuou sendo um item-chave do comércio mundial. Ao lado dele, o algo-
a América Latina. O Brasil constituiu o maior mercado singular para as expor-
dão e o café assumiram nova importância comercial. A produção e o consumo
taçöcs do algodão britânico durante a primeira metade do século (Hobsbawm,
desses artigos aumentaram numa escala maciça no decorrer do século, esua
1968, pp. 58, 135, 138 e l146-148; Woodruff, 1971, pp. 662-663).
importância cresceu. O capital europeu e norte-americano ampliou a área de
A medida que passou a controlar o comércio fora dos limites de seu próprio
fornecimento desses materiais e estabeleceu um sistema global de transporte
lmperio, a Grā-Bretanha tornou-se menos comprometida com o colonialismo
baseado na estrada de ferro e no navio a vapor, enquanto a região peritérica se
Tormal como meio de de nir a natureza e a direção dos uxos de mercadoria
especializavacada vez mais na sua produção. Criaram-se entre centro eperite
e a divisão do trabalho entre o centro e a periferia. Em vez disso, a superio-
ria novos pólos de atração econômica que não coincidiam com as antigastron
ndade comercial e industrial britânica capacitou-a a penetrar o mercado das
teirascoloniais. O comércio mundial e o cultivo de gêneros agricolasdestinados
denais potências colonizadoras e a estabelecer o comércio com a periferia na
ao mercado aumentaram drasticamente, embora de forma desigual, aolongo
de basc da complementaridade - bens manufaturados britânicos (e outros ser-
de todo o século, e os preços mundiais, e não os locais, passaram a đomina Viços, como capital, navios, bancos e seguro) por matérias-primas e produtos
(Hobs-
maneiracrescente o comércio dos produtos e matérias-primas agricOds gicolas periféricos. Ela era o maior consumidor dos produtos da periferia e o
bawm, 1968, p. 128; Woodruff, 1971, pp. 657-658; McMichael, 1984, PP.12-13).
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86 PELO PRISMA DA ESCRAVIDÃO
único comprador que podia absorver a crescente produção periférica. Na outra balho como um mercado livre universal. Em vez disso, as relações sociais ante-
face da moeda, era o único país que podia fornecer o credito, o maquinário e riormente existentes foram refundidas na nova constelação das forças políticas
os bens manufaturados requeridos para sustentar a sua expansão. O avanço da e econömicas. A interdependência anterior do colonialismo e da escravidão se
indústria britânica acentuou o diferencial relativo entre os preços industriais e rompeu e as condições de existência, função e signi cação de cada uma delas
agricolas na economia mundial e impeliu a Grå-Bretanha a desenvolver novas foram modi cadas. O advento da hegemonia britânica e a Revolução Industrial
fontes baratas de fornecimento na periferia a m de restabelecer o equilíbrio na Grå-Bretanha reestruturaram a divisão mundial do trabalho e estimularam
de seu comércio. O resultado foi uma crescente demanda europeia de produtos a expansão material da economia mundial. Esses desenvolvimentos não apenas
alimenticios tropicais e subtropicais, entre eles o açúcar, o algodão e o café, e criaram as condições para a extinçāo da escravidão dentro do Império britânico
uma crescente especialização internacional na produção de alimentos e maté- mas também encorajaram a expansão e a intensi cação da escravidão fora dele.
rias-primas. A drástica queda do preço dessas mercadorias bene ciou mais a Essa"'segunda escravidāo" se desenvolveu não como uma premissa histórica do
Grā-Bretanha que qualquer outro país (Hobsbawm, 1968, pp. 135 e 138-148). capital produtivo, mas pressupondo sua existência como condição para sua re-
O estabelecimento dessa divisāo de trabalho entre centro e periferia foi or- produção. O signi cado e o caráter sistêmicos da escravidão foram transforma-
ganizado pela City de Londres, cuja posição como centro do conmércio mundial dos. Os centros emergentes de produção escrava viam-se agora cada vez mais
tanto era instrumento como expressão da hegemonia britânica. A extensão da integrados na produção industrial e impelidos pela "'sede ilimitada de riqueza"
produção de mercadorias à periferia e a expansão não só do comércio britân- do capital.
co com a periferia mas também de seus rivais baseou-se no poder nanceiro As Índias Ocidentais britânicas foram os bene ciários iniciais do advento
dos bancos de Londres. Como observou McMichael, o empréstimo de capital da hegemonia britânica e do colapso da indústria açucareira colonial francesa.
britånico ampliou o escopo do mercado mundial para todos os Estados. Desen- Entre 179l e 1815, a produção de açúcar no Caribe britânico cresceu mais ra-
volveu-se um sistema de comércio multilateral que dependia tanto das balanças pidamente do que em qualquer outra época da sua história (ver Capítulo 4). As
em libras esterlinas e do crédito dos bancos de Londres quanto da capacidade velhas colônias aumentaranm sua produção, e acrescentaram-se novos territó-
da City de estabelecer indiretamente balanças comerciais entre os Estados. As rios produtores de açúcar ao império. Todavia, o impacto da transformação do
letras de cầmbio sacadas sobre os bancos de Londres substituiram a transferên- mercado açucareiro foi sentido diferentemente entre as diversas colônias bri-
cia de metais preciosos na organização das trocas internacionais, e as balanças tânicas. As pequenas ilhas das Lesser Antilles britânicas, exploradas de forma
em libras esterlinas eram usadas para ajustar o estatuto das moedas nacionais intensiva desde os séculos XVII e XVIII, expandiram-se celeremente durante
no mercado mundial. A centralização do sistema bancário permitiu à Grā-Bre- essesanos. Entretanto, no nal dos anos 1820 elas chegaram aos limites sicos
tanha manter e annpliar o comércio mundial e levar sua supremacia nanceira a e técnicos de expansão entrando num período de declínio. Na Jamaica, por
suplantar sua supremacia comercial e industrial (McMichael, 1984, pp. 12, 21- outro lado, havia espaço para a expansão territorial e novos investimentos. Essa
23 e 26-27). A criação dessas relações de trocas globais centradas na Grā-Breta- expansā0, contudo, estava nos vales interiores da ilha, e um transporte por ter-
nha estabeleceu uma divisão mundial do trabalho dependente de e responsivo ra dispendioso elevou o preço do produto jamaicano. A produção escrava nas
a um mercado mundial integrado. Nessa nova contiguração, alteraram-se as Indias Ocidentais britânicas fora montada para a organização pré-industrial
condições do trabalho escravo na economia mundial. da econonmia mundial e dependia agora de monopólios obsoletos. A produ-
tividade do trabalho escravo não podia ser aumentada, e não se dispunha de
novos tornecimentos de escravos e terra. Apesar dos ganhos auferidos durante
esse período, a expansāo e a intensi cação da produção açucareira levaram as
A TRANSFORMAÇÃO DA
colönias mais antigas ao seu limite e elas se viram ultrapassadas por produtores
ESCRAVIDÃO AMERICANA
nais novos num mercado em expansāo.
A alternativa foi iniciar a produção escrava em novas áreas. A Grā-Bretanha
O efeito desses desenvolvimentos nåo consistiu em destruir as formas arcal-
expandiu ainda mais o cultivo de açúcar ao introduzi-lo nas ilhas conquistadas
cas de organização social e estabelecer a mobilidade geral do capital e do tra-
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88 PELO PRISMA DA ESCRAVIDĀO A "SEGUNDA ESCRAVIDĀO" | 89
na Guerra dos Sete Anos - Granada e Granadinas, São Vicente, Trinidad e To. decadentes como nas colónias ainda com vitalidade. O alto preço do açúcar das
bago -, assim como nos territórios de Berbice, Demerara e Essequibo, recếm. Indias (Ocidentais britânicas e as tarifas protecionistas que ele requeria restrin-
adquiridos à Holanda. No entanto, se essas novas áreas de produção escrava giram o consuno doméstico britânico e enfraqueceram seriamente a posição da
eram mantidas dentro do antigo nexo colonial de monopólioe restriçāo, a pro- Grå- Bretanha no mercado de reexportação. A medida que o açúcar amnericano
dução excedente nas colônias mais antigas e menos produtivas seria subsidiada mais barato invadia os mercados europeus, as reexportações do açúcar das Ín-
dentro de relações sociais anômalas. Mas, se uma força de trabalho pudesse ser dias Ocidentais britânicas tinham de ser compensadas pelo governo mediante
garantida por outros meios nas novas áreas de produção, elas prosperariam e subsidios e concessões para exportação, a m de torná-las competitivas como
o mecanismo comercial de acumulação e reprodução expandida da economia açúcar de outros países que, não raro, eram clientes substanciais das manufatu-
mundial seria liberado. ras britånicas. As colônias açucareiras das Índias Ocidentais britânicas viram-
Com o comércio mundial centralizado em suas måos, já não havia necessi- se na impossibilidade de competir numa economia mundial em expansão. Sua
dade, para a Grå-Bretanha, de asseguraro seu próprio fornecimento de mão- posição foi minada não pela indústria britânica, mas pela produção mais ef-
de-obra para bens tropicais e semitropicais. Sua preocupação concentrava-se ciente nas novas zonas escravistas americanas e em outros lugares da periferia.
cada vez mais nas mercadorias baratas, independentemente da forma de tra-
Os mesmos processos que contribuíram para a abolição da escravidão no
balho que as produzia. O escravo comno mão-de-obra produtiva ganhou pre- Império britânico redundaram na intensi cação da produção escrava em outras
cedėncia sobre o escravo como mercadoria. Essas mudanças estruturais na partes do hemisfério. A demanda de algodāo, café e açúcar atingiu proporções
economia mundial contribuíram para a e cácia do movimento antiescravista sem precedentes durante o século XIX, e a produção dessas safras revitalizou a
na Grå-Bretanha. Todavia, o movimento contra o trá co de escravos não era escravidāo em Cuba, nos Estados Unidos e no Brasil como parte dessa emergente
simplesmente uma função de fatores econômicos, mas acrescentou outra d- divisão capitalista internacional do trabalho. Isso se re etiu na escala e na natu-
mensão aos processos que levariamà abolição da escravidão e impôs diferentes reza da própria produção escrava. Vastas extensões de terra foram abertas, e mi-
caminhos de desenvolvimento à Grā-Bretanha e às colônias não-britânicas. Ihões de escravos postos a trabalhar na produção dessas safras. A nova tecnologia
A aboliçảo do trá co de escravos nåo só interrompeu a oferta de trabalho às industrial - em especial a estrada de ferro, o navio e os engenhos a vapor - trans-
colôniasescravistas britânicas mas também, como indicou Paula Beiguelman, formaram o processo do trabalho nas novas fronteiras escravas. Por trás dessa
destruiuo mercado de bens mais intimamente ligados à forma escrava (Bei expansāo estava o poder do capital e do Estado britânico para organizar o merca-
guelman, 1978, pp. 71-80). Os estorços britânicos para suprimir internacio- do mundial e a divisão internacional do trabalho. Na primeira metade do século
nalmente o trá co de escravos formaram um contraponto à expansão da es- XIX, Londres forneceu o que Jenks descreveu apropriadamente como uma "ponte
cravidão em Cuba, nos Estados Unidos e no Brasil durante o século XIX. A de crédito aos Estados Unidos, ao Brasil e às colônias espanholas com o m de
escravidāo nessas áreas desenvolveu-se tanto em face da restrição e, em última estimulara produção e o comércio (Jenks, 1971, p. 67; McMichael, 1984, pp. 22-
análise, da eliminação do trá co de escravos quanto contra o maduro, difundi- 23). Por si mesmas ou em conjunção com bancos e casas mercantis estrangeiras,
do e bem-sucedido movimento abolicionista. especialmente norte-americanas, as instituições nanceiras de Londres fornece-
A interação das forças do mercado e do movimento antiescravista levou a ram capital mediante crédito e investimento direto para o desenvolvimento de
Grå-Bretanha a uma política de livre comércio e minou a posição competitiva plantações e estradas de ferro e os bancos que as sustentavam. O desenvolvimento
de suas colônias das Índias Ocidentais. Na altura de 1815, a expansāo britânica dessas novas zonas de plantation baixou os custos e aumentou a escala de produ-
no Caribe chegara ao m. Com exceção da Jamaica e da Guiana, a produção çäo, além de propiciar saídas para o capital excedente britânico de uma forma ou
açucareira do Caribe britânico alcançara o seu ponto de saturação. Ossenhores de outra. O crédito britânico também expandiu o comércio mundial e aumentou
de escravos das Indias Ocidentais britânicas viram-se às voltas com os custos a demanda de novas safras fora da Grä-Bretanha. Por exemplo, comerciantes e
crescentes e com a incapacidade de expandir a produção. A abolição do trá co banqueiros de Nova York, Boston e Filadél a podiam usar o excedente comercial
de escravos interrompeu o fornecimento de mão-de-obra, enquanto a emanci- proveniente das exportações de algodão para sacar letras nos bancos de Londres
pação dos escravos britânicos pôs termo ao trabalho escravo tanto nascolônias a m de nanciar nāo apenas a aquisição de manufaturas britânicas mas tam-
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90 | PELOPRISMADAESCRAVIDÄO
A "SEGUNDA ESCRAVIDÃO" | 91
Norte, contavam aproximadamente 484 mil. Nos cinquenta anos so de- grandes propriedades e o montante do investimento requerido tornaramessas
senvolvimento da indústria cafeeira reverteu essa situação. Bahia, Pernambuco novas terras menos acessiveis aos pequenos e médios produtores. Em contraste
eMaranbảo tỉnham cerca de 346 mil escravos, enquanto as prOvincias cafeeiras com as técnicas rudimentares que caracterizaram as primeiras produções ca-
do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo totalizavam mais de oitocentos mil feeiras no Vale do Paraíba, o Oeste Paulista produzia numa escala maior e com
(Curtin, 1969, pp. 234-237; Furtado, 1963, pp. 124 e 127-128n). maior so sticaçāo técnica. Essas grandes plantações utilizavamn equipamentos
A expansão inicial da cultura cafeeira no Brasil concentrou-se no Vale do modernos e elaborados para processar o café e mesmo fazendeiros menores
Paraíba, que continuou sendo o seu centro até o terceiro quartel do século XIX. enviavam seu produto às pequenas cidades para que fosse processado mecani-
Próxima ao Rio de Janeiro, essa área contava com um fornecimento de mão-de- camente. Essas grandes plantações podiam estender a área cultivada e empre-
obra relativamente abundante em função do declínio da economia minerado- gavam particularmente estradas de ferros próprias no lugar dos carros de bois
para levar o café ao centro da fazenda para processamento. A estrada de ferro
ra adjacente, enquanto abundantes comboios de muares propiciavam um fácil
possibilitou a exploração do Oeste paulista, e dependia, por sua vez, do café.
transporte ao porto vizinho. Todavia, à medida que o surto prosseguia, aestra-
Uma nova rede de linhas férreas centradas no eixo São Paulo-Santos reduziu
da de ferro ajudou a expandir a cultura cafeeira mais para o interior. AEstrada
oS custos de frete e uniu os produtores graças à crescente demanda mundial
de Ferro Central do Brasil (Dom Pedro II), construída pelo governobrasileiro,
de café. Além disso, a estrada de ferro abriu as vastas terras cafeeiras a oeste de
embora com a ajuda de empréstimos britânicos e dirigida por um empreiteiro
Campinas, assegurando assim a prosperidade da região na entrada do século
inglės, abriu os con ns extremos do Vale do Paraíba, partes de Minas e nal-
XX (Graham, 1968, pp. 45-46, 66-67 e 71-72; Prado Júnior, 1981, pp. l64-166).
mente o Oeste Paulista à cultura cafeeira. O efeito dessa via sobre a economiado
Vale do Paraíba não foi muito duradouro porque o vale quase já haviaatingido
seu pico de produtividade à época em que a ferrovia foi construída. Noentanto, CONCLUSÃO
serviu para prolongar sua prosperidade ao reduzir o custo do transporte.Alem
disso contribuiu para a intensi cação da produção de café na região (Furtado Este capítulo sustenta que o trabalho escravo e sua abolição não podem ser
1963, pp. 123-124; Prado Júnior, 1981, pp. 161-162; Graham, 1968, pp.52-54). tos cOmo um processo evolucionário linear, mas sim comorelaçôescom-
A especulação fundiária e as práticas agrícolas especulativas erama Plexas, múltiplas e qualitativamente diferentes dentro dos processos globais de
cultura do café ao Sul e ao Oeste da província de São Paulo. O Oeste au
aulista dcumulação e divisão do trabalho. Para os objetivos desta discussão, podem
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PELOPRISMA DA ESCRAVIDĀO "SEGUNDAESCRAVIDÃO" | 97
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nas relações de produção internacionais foi determinada pelo preço dasmaté- convencionalmente como evidėncia da dissolução da escravidão, mas os escra-
vos continuaram sendo o fulcro estratégico do processo de trabalho, e outras
rias-primas. Ao mesmo tempo, os diferenciais de preço foram niveladospela
tormas lhe foram complementares. Essas formas mistas de trabalho de planta-
produção industrial e pelo mercado mundial integrado, com oestabelecimen
tion são um testemunho da clasticidade e adaptabilidade do trabalho escravo.
to de preços globais. As relações entre centro e periferia foramdeterminadas
lais experiências foram características da segunda escravidão e ajudaram os
pela oposição preços industriais versus preços de bens primários e custoalto
fazendeiros e senhores de engenho de Cuba e do Brasil a negociar a transição
versus mão-de-obra barata. Além disso, o signi cado sistêmico daescravidão
Pra a produção pós-escravista com mais sucesso do que seuspredecessores.
transtormou-se com a emergência da relação capital-trabalho assalariadono
am
decurso do século XIX. Os produtos da mão-de-obra escravaentraram re"
escala
tamente no consumo da classe trabalhadora assalariada europeia, numa
a entre
Crescente. Foram importantes como meio para manter a relação detrocd
rabalho assalariado e capital, e também contribuíram diretamente pararedu-
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