Você está na página 1de 12

Fichamento

AUERBACK, Erich. Mimesis.

I. A CICATRIZ DE ULISSE
O autor começa o texto retomando o trecho clássico da anagnolisis da Odisseia,
em que Euricleia antiga ama de Ulisses, reconhece-o pela sua cicatriz quando estava
transformado em um forasteiro como um rito de hospitalidade (p. 1). Sem que Penélope
perceba, Euricleia, depois de apalpar a cicatriz, cai para traz, deixa o pé cair na bacia e
tem um alegre sobressalto.
Tudo isso é feito a partir do DISCURSO DIRETO, os personagens conhecem
seus sentimentos e ideias a partir dessa fala pormenorizada. A descrição do tempo e do
espaço e demorada e pormenorizada também.
O momento da cicatriz, “momento da crise” (p. 2) abre um precedente
para a anacronia, em que há uma analepse para a explicação do
surgimento da cicatriz: “descreve a origem da cicatriz, um acidente
dos tempos da juventude de Ulisses, durante uma caça ao javali por
ocasião de uma visita ao seu avô Autólico. Isto dá, antes de mais nada,
motivo para informar o leitor acerca de Autólico, sua moradia, grau
de parentesco, caráter, e, de maneira tão pormenorizada quão
deliciosa, seu comportamento após o nascimento do neto; segue-se a
visita de Ulisses, já adolescente; a saudação, o banquete de boas-
vindas, o sono e o despertar, a saída matutina para a caça, o rastejo do
animal, a luta, o ferimento de Ulisses por uma presa [etc.] [...] tudo é
narrado, novamente, com perfeita conformação de todas as coisas,
não deixando nada no escuro e sem omitir nada nenhuma das
articulações que as ligam entre si. E só depois o narrador retorna ao
aposento de Penélope, e Euricleia, que tinha reconhecido a cicatriz
antes da interrupção, só agora, depois dela, deixa cair assutada, o pé
na bacia (p. 2)

Os acontecimentos da Odisseia acontecem sempre com estrema clareza,


reduzindo a margem para uma segunda interpretação, deixa poucas “pontas soltas”,
porque tudo é dado pela narrativa. O foco do autor não é aumentar a tenção, pois “o
elemento de TENSÃO é muito débil nas poesia homéricas, elas não se destinam, em
todo o seu estilo, a manter em suspenso o leitor” (p. 2). O não preenchimento total do
presente – que não é feito em Homero, já que ele preenche tudo – “faz parte de uma
interpolação que aumenta a tensão mediante ao retardamento” (p. 3), mas Homero não
retarda os acontecimento para que o leitor espere a resolução deles, que ele fique
intrigado com o que vai acontecer, ele descreve minimamente para deixar tudo claro na
narrativa, ou seja, ela não se estabelece por uma tensão, mas sim, é clara, ocorre em um
“primeiro plano”:
O não preenchimento total do presente faz parte de uma
interpolação que aumenta a tensão mediante ao retardamento; é
necessário que ela não aliene da consciência a crise pro cuja solução
se deve esperar com tensão, para não destruir a suspensão do estado
de espírito; a crise e a tensão devem ser mantidas, permanecer
conscientes, num SEGUNDO PLANO. Só que Homero, e teremos de
voltar a isto, não reconhece segundos planos. O que el nos narra é
sempre somente o presente, e preenche completamente a cena e a
consciência do leitor. É o que acontece na passagem citada. Quando
a jovem Euricléia põe o recém-nascido Ulisees no colo do avô
Autólico, após o banquete, a velha Euricléia, que poucis versos antes
tocara o pé do viandante, desaparece por completo da cena e da nossa
consciência. (p. 3)

Homero narra tudo o que ta acontecendo e não dá a oportunidade para ficarmos


tensos pensando no que pode acontecer ou em como isso se deu, porque ele estabelece
uma sequencia de imagens que imaginamos, tudo em um primeiro plano. Não há
IMPRESSÃO DE RETARDAMENTO, “mas a verdadeira causa da impressão de
retardamento parece-me residir em outro coisa; precisamente, na necessidade do estilo
homérico de não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado” (p.
3). Mesmo no auge de alguns combates, coisas, pessoas ou apetrechos “são descritos
pormenorizadamente quanto a sua espécie e origem” (p. 4). O elementos não podem
“emergir simplesmente da escuridão de um passado obscuro; ele deve sair
claramente à luz” (p.4). Homero não tem pressa e mesmo no auge da batalha “ainda há
tempo suficiente” (p. 4) para estabelecer essas DIGRESSÕES, que sempre vai explicar
algo e vai contribuir para o contexto. Os textos homéricos tem uma necessidade
estética de
No próprio impulso fundamental do estilo homérico: representar os
fenômenos acabadamente, plapáveis e visíveis em todas as suas
partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais.
[...] As personagens de Homero dão a conhecer o seu interior no
seu discuso; o que não dizem para os outros, falam para si, de
modo a que o leitor saiba. (p. 4)

Os retrocessos de volta para o passado, em Homero, não acontecem de maneira


subjetiva. Esse retorno se torna um presente, esquecemos o que condicionou isso por
um tempo e o acontecimento atual se torna um presente “independente e plano” (p. 5).
Auerbach contrapõe esses traços da Odisseia com outro texto antigo: o relato do
sacrifício de Isaac, da Bíblia, que é oposto ao poema de Homero.
Nesse relato, tudo é muito impreciso, não é totalmente descrito, de modo, que
muita coisa não fica claro para o leitor. Não é descritivo como Homero. Quando Abraão
conversa com Deus, não sabemos onde eles estão e de onde cada um fala. Nada se diz,
inclusive, “da causa que o movera a tentar Abraão tão terrivelmente” (p. 6) e nem o que
se passa na cabeça dos dois. Até mesmo a figura de Deus não é descrita:
Aqui, porém, Deus aparece carente de forma (e, contudo, “aparece”),
de algum lugar, só ouvimos a sua voz, e está não chama nada além do
nome: sem adjetivo, sem atribuir à pessoa interpelada um epiteto,
como seria o caso em qualquer apóstrofe homérica. [...] Assim, nada
dos interlocutores é manifesto, exceto as palavras, breves, abruptas,
que se cocam duramente, sem preparação alguma [...] tudo fica no
escuro. [...] Aqui seriam impensável descrever um apetrecho que é
utilizado, uma paisagem pela qual se passa, os servos ou o burro que
acompanham a comitiva, e até mesmo, a ocasião em que foram
adquiridos, sua origem e o material de que são feitos [...] eles não
suportam um adjetivo [...] sem epítetos; têm que cumprir a
finalidade que Deus lhes indicara; o que mais eles são, foram ou
serão permanece no escuro (p. 6)

Desta forma, a narrativa da bíblia é estramemente, pelo seu tom religioso,


subjetiva, como se toda a humanidade e todo que não convém ao acontecimento e à
ordem divina não conviesse para a situação, de modo que “um acontecimento não tem
presente e que esá alojado entre o que passou e o que vai acontecer” (p. 7), a situação
exclui tudo o que é exterior ao seu objetivo.
Tudo é apresentado pelo aqui e pelo agora, Isaac, filho de Abraão é apresentado
apenas como seu filho, não sabemos se ele é “belo ou feio, inteligente ou tolo, alto ou
baixo, atraente ou repulsivo – nada disto é dito. Só aquilo que deve ser conhecido a seu
respeito aqui e agora dentro dos limites da ação, aparece iluminado – para salientar
quão terrível é a tentação de Abrãao, e quão consciente é Deus desse fato” (p. 8).
Em Homero, é excluído totalmente uma TENSÃO OPRESSIVA da narrativa,
visto que ela preenche todo o presente e o imaginário do leitor. No caso da passagem
bíblia, isso acontece fortemente, o que contribui para o seu aspecto doutrinário
religioso, como se fosse algo trágico (teatro) (p. 8)
Quando Homero manifesta o DISCURSO DIRETO é com a função de
exteriorizar pensamentos. Enquanto que, no relato bíblico, tem a função de “aludir a
algo implícito, que permanece inespresso” (p. 8).
Auerbach dá uma ótima síntese de todas essas ideias a seguir:
De uma lado [Homero], fenômenos acabados, uniformemente iluminados,
definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num PRIMEIRO
PLANO; pensamento e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem
com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado, só é acabado formalmente aquilo que
nas manifestações interessa à meta da ação; o resto fica na escuridão. Os pontos
culminantes e decisivos para a ação são os únicos a seres salientados; o que há
entre eles é inconsistente; tempo e espaço são indefinidos e precisam de
interpretação; os pensamentos e os sentimentos permanecem inexpressos; só são
sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários. O todo, dirigido com máxima
e ininterrupta tensão para um destino [COMO SE TIVESSE UM CABRESTO] e, por
isso mesmo, muito mais unitário, permanece enigmático e carregado de SEGUNDOS
PLANOS.”

PRIMEIRO E SEGUNDO PLANO: “Falei mais acima do estilo homérico


como sendo de ‘primeiro plano’, porque, apesar dos muitos saltos para trás ou para
diante, deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente único e puro,
sem perspectiva. [...] Deus é sempre [segundo plano] na bíblia, pois não é, como Zeus,
apreensível na sua presença. [...] Mas os próprios seres humanos dos relatos bíblicos
são amis ricos em SEGUNDOS PLANOS do que os homéricos; eles têm mais
profundidade quanto aot tempo, ao destino e à consciência. [...] seus pensamentos e
sentimentos tem mais camadas e são mais intrincados [...] o seu interior está
profundamente excitado, entre a indignação desesperada e a esperança confiante;
a sua silenciosa obediência é rica em camadas e em planos” (p. 9). Algo relacionado
à subjetividade, escuridão de um narrar ou até mesmo de um personagem e de seu
psicológico “a multiplicidade de camadas dentro de cada homem” (p. 10), de uma
ambiguidade. De modo que os heróis do Velho testamento são
mais plenos de desenvolvimento, mais carregadas da sua própria
história vital e mais cunhadas na sua individualidade do que os heróis
homéricos. Aquiles e Ulisesse são descritos magnificamente, por
meio de muitas e bem formadas palavras, carregam uma série de
epítetos, suas emoções manifestam-sem sem reservas nos seus
discursos e gestos – mas eles não tem desenvolvimento algum e a
história das suas vidas fica estabelecida univocamente. Os heróis
homéricos estão tão pouco apresentados no seu desenvolvimento
presente e passado que, na sua maioria – Nestor, Agmemnon, Aquiles
– aparecem com uma idade pré-fixada. [...] [Por exemplo,]
Penálope pouco mudou nesses vinte anos. Ulisse tem um
envelhecimento meramente físico (p. 14)

Outra questão sobre os personagens bíblicos que valem serem notadas. Os


personagens bibliocos estão mais próximos da realidade do que os homéricos (?
Interpretei certo? Ler movamente):
Abraão, Jacóe Moisés têm um efeito mais concreto, próximo e
histórico do que as figuras do mundo homérico, não por estarem
melhor descritos plasticamente – o caso é o contrário – mas porque a
variedade confusa, contraditória, rica em inibições dos
acontecimentos internos e externos, que a história autêntica mostra,
não está desbotada na sua representação, mas está ainda nitidamente
conservada. (p. 17)

Falamos porque os relatos bíblicos são dessa maneira, mas ele explica os
homéricos também:
Os poemas homéricos [....] na sua imagem do homem, relativamente
simples, [...] a sua relação com a realidade da vida que descrevem. A
alegria da existência é tudo para eles, e a sua mais alta intenção é
apresentar-nos esta alegria [...] Revelam uma tranquila aceitação dos
dados da existência humana (p. 11).

Enquanto isso, O narrador bíblico tinha que escrever uma doutrina e tinha que
acreditar nela, visando uma verdade. Eles estabelecem essa TENSÃO OPRESSIVA
porque: “Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de
Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é no dominar,
e se negamos a isto, então somo rebeldes. O crente se vê motivado a se aprofundar uma
e outra vez no texto e a procurar em todos os seus pormenores a luz que possa estar
oculta. E como, de fato, há no texto tanta coisa obscura e inacabada, e como ele sabe
que Deus é um deus oculto, o seu afã interpretativo encontra sempre o alimento” (p. 12).
Um ponto interessante que pode ser útil caso tomemos uma abordagem marxista
é a relação dos personagens servis e secundários com os seus amos, Laerte ou Penélope
e Ulisses. Eumeu e Euricléia, por exemplo, passam a vida a serviço dos amos e se torna
estreitamente unida ao seu destino, ama-os e compartilha os seus
interesses e sentimentos. Mas não possui vida nem sentimentos
próprios mas só os dos seus senhores. Também Eumeu, não obstante
ainda se lembre de ter nascido livre e pertencer até a uma família
nobre (fora roubado quando criança), já não tem, nem na prática, nem
seus sentimentos, vida própria, estando inteiramente atado aos
seus senhores. Essas duas personagens são, porém, as únicas que
Homero anima para nos e que não pertencem à classe senhorial. Com
isso, chega-se à consciência de que a vida, nos poemas homéricos, só
se desenvolve na classe senhorial – tudo o que porventura viva além
dela só participa de modo serviçal. A classe senhorial é ainda tão
patriarcal, tão familiarizada com as atividades quotidianas da vida
econômica, que às vezes se chega a esquecer seu caráter de classe. [...]
Como estrutura social, este mundo é totalmente imóvel; as lutas só
ocorrem entre diferentes grupos de classes senhoriais; de baixo,
nada surge (p. 18)
Em Homero os personagens perdem a sua atuação política e passam a viver não
a sua individualidade, mas as metas e sentimentos (medos, amores e angústias) dos seus
amos. Isso pode ser usado numa interpretação social, até negando isso, dizendo, por
exemplo, “tal personagem, ao contrário dos indivíduos servis de Homero, não perdem
sua individualidade e se rendem a sua condição para viver a vida e o destino dos seus
senhores, na verdade, eles perceveram, e se tornam mais ricos em camadas”.
Enquanto isso, o estilo do Velho Testamento é mais sublime e elevado, enquanto
Homero tem o realismo caseiro, a representação da vida cotidiana, idílica- pacífica, o
Velho Testamento “o sublime, trágico e problemático se formam justamente no caseiro
e cotidiano”, visto que “ a sublime intervenção de Deus age tão profundamente sobre o
quotidiano que os dois campos do sublime e do quotidiano são não apenas
efetivamente inseparados mas, fundamentalmente, inseparáveis” (p. 19). Ou seja, no
VT as ações campestres e cotidianas estão cercadas pelo Deus onisciente e onipresente
da tradição judaico-cristã.
Por fim, um último resumo das ideias do capítulo:
Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um
lado, descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem
interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano,
univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto
ao humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes
e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do
tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de
interpretação, pretensão à universalidade histórica, desenvolvimento
da apresentação do devir histórico e aprofundamento problemático (p.
20)

XX. A MEIA MARROM

O capítulo trata de um trecho do Romance Ao farol, de Virgínia Woolf, na qual a


mãe da família, senhora Hamsey, está fazendo uma meia marrom para um dos filhos do
operário do farol. O “molde” para a construção da meia é um dos seus filhos, que morre
de ciúmes do filho do operário. Isso é descrito, e outros acontecimentos paralelos ao
fazimento da meia, durante narrativa, ou seja, podemos alcançar demoradamente,
durante um simples fazimento de uma meia que poderia ser resumido desta maneira
pelo narrador, tudo o que cerceia esse acontecimento um tanto quanto prosaico. A linha
central da narrativa, o fluxo primeiro, “é fornecid[o] por uma ocorrência externa que
envolve Mrs. Ramsay e James [a mãe e o menino que serve de molde]: o ato de medir o
comprimento da meia” (p. 477).
Auerbach faz uma síntese, no segundo parágrafo da página 477, do episódio
narrados. Isso é interessante porque, nela, o autor exclui tudo o que é exterior à essa
linha central do romance a partir desse sumário, mostrando o que realmente acontece
dentro da narrativa se excluirmos tudo o que é exterior a trama em si.
Consequentemente, esse ato revela como esse acontecimento descrito pela narrativa é
prosaico e desimportante:
Neste episódio, CARENTE DE IMPORTÂNCIA são entretecidos
constantemente outros elementos, os quais, sem interromper o seu
prosseguimento, requerem muito mais tempo para serem contados
do que ele duraria na realidade. Trata-se, preponderantemente, de
MOVIMENTOS INTERNOS, isto é, de movimentos que se
realizam na consciência da personagem. [...] Simultaneamente,
introduzem-se ainda acontecimentos como que secundários,
exteriores, de lugares e tempos totalmente diferentes (p. 477)

Em seguida, o autor faz um caminho diferente para o mesmo trecho: ele resume
tudo o que acontece, todos os movimentos, externos e internos, que ocorreram nesse
meio tempo (p. 478). Entretanto, essas mudanças de pensamentos interferem na
mudança do espaço e do tempo, os CENÁRIOS mudam a partir da consciência que
acessamos, isso acontece de maneira natural, como se a mudança tivesse acontecido
momentaneamente até voltarmos para o cenário anterior:
Mas também aqui se trata apenas de uma mudança externa; um
cenário anteriormente abandonado torna a aparecer, repentinamente e
com tal falta de transição, como se nunca tivesse sido abandonado,
como se a longa interrupção fosse só um olhar (p. 481)

Essa ideia é importante não só para trabalharmos as questões do fluxo de


consciência, ou do discurso indireto livre, mas para explorarmos as questões sobre o
ESPAÇO nas narrativas.
Outra questão interessante sobre esse trecho é que Auerbach diz que o “autor”,
leia-se narrador, “desaparece quase completamente”:
O escritor, como narrador dos fatos objetivos, desaparece quase que
completamente; quase tudo o que é dito aparece como reflexo na
consciência das personagens do romance. Quando se trata, por
exemplo, da casa ou da criada suíça, não nos é transmitido o
conhecimento objetivo que Virginia Woolf tem desses objetos da sua
força de imaginação criadora, mas aquilo que Mrs. Ramsay pensa ou
sente a respeito, num determinado instante. Tampouco nos é
comunicado o conhecimento de Virginia Woolf [do narrador] sobre
a essência de Mrs. Ramsay, mas reflexos dessa essência e dos seus
efeitos sobre diferentes figuras do romance [...] Isto vai tão longe, no
nosso trecho, que nem parece existir de modo algum um ponto de
vista exterior ao romance [parece que não está presente a figura de
uma narrador onisciente], a partir do qual os seres e os acontecimentos
internos ao mesmo são observados, assim como também não parece
existir uma realidade objetiva, diversa do conteúdo da consciência
das personagens do romance. [...] O acontecimento é descrito
objetivamente [sem interferência do narrador]; mas com respeito à
interpretação, resulta, do tom empregado, que o escritos não observa
Mrs. Ramsay com OLHOS SAPIENTES, mas com OLHOS
DUVIDOSOS, INTERROGATIVOS – da esma forma como uma
personagens do próprio romance, que visse Mrs. Ramsay na situação
descrita, teria ouvido o pronunciamento das palavras em questão(p.
481–482)

Agora, discorrendo sobre esse trecho, podemos ver como Auerbach discorre
sobre uma questão que se assemelha ao que Arrigucci diz sobre a DISTÂNCIA do
narrador. No trecho em questão, Auerbach mostra como o autor está distante da
narrativa e como podemos apenas acessar o que os personagens entendem da situação.
Assim, o caráter da personagem não é construído a partir da descrição do autor, mas dos
reflexos das suas ações e pensamentos que acessamos em sua consciência. Assim, não
se trata de um narrador onisciente que descreve tudo o que acontece na mente de cada
leitor, porque a consciência age por si, parecendo até que nem o narrador sabe o que
acontece na mente da senhora Ramsay, por isso, parece que ele tem “olhos duvidosos”,
como se o seu conhecimento do realidade não fosse maior que a dos personagens
envolvidos. DUVIDA: O FLUXO DE CONSCIENCIA OU O DISCURSO INDIRETO
LIVRE IMPLICAM UM NARRADOR ONISCIENTE QUE ACESSA AO QUE
TODOS PENSAM?O TRECHO EM QUESTÃO SE CONSTRÓI A PARTIR DO
DISCURSO INDIRETO LIVRE OU PELO FLUXO DE CONSCIÊNCIA?
O que Virgínia W. faz é “que se confunda ou que até, que desapareça totalmente
uma impressão de realidade objetiva” (p. 482). Isso contrapõe alguns autores de grande
nome, em que o narrador controla tudo o que acontece e descreve tudo (e apenas) o que
condiz com o acontecimento em questão:
Goethe ou Keleer, Dickens ou Meredith, Balzac ou Zola, comunicam-
nos partindo de um conhecimento seguro, o que as suas
personagens faziam, o que pensavam ou sentiam ao agirem, de que
forma deveriam ser interpretadas as ações ou pensamentos; estava
perfeitamente informados sobre os seus caracteres (p. 482)
Entretanto, o que Virgínia traz de novo é justamente esse jogo entre
consciências. Ela não se limita a um monólogo para apresentar o sentimento e a
psicologia dos personagens, mas sim estabelece quase um jogo polifônico entre as
consciências dos personagens:
Só que, em tais casos [dos clássicos citados na citação anterior], quase
nunca se tentava reproduzir o vaguear e o jogar da consciência, que
se deixava impelir pela mudança das impressões [...] senão o que o
conteúdo consciente indicado limitava-se racionalmente àquilo que se
referia ao acontecimento narrado em cada caso ou à situação escrita
(p. 483)
Esses autores trazem o que contribui para a questão da situação narrativa, o que
contribuía para história ou para a tensão da narrativa, e não para o que estava realmente,
em tempo real, passando na consciência dos personagens. No caso de VW, o que ocorre
é:
É que não se trata apenas de um sujeito, cujas impressões conscientes
são reproduzidas, mas de muitos sujeitos. [...] Da pluralidade dos
sujeitos pode-se concluir que, apesar de tudo, trata-se da intenção de
pesquisar uma realidade objetiva, ou seja, nesse caso concreto, de
pesquisar uma “verdadeira”, Mrs. Ramsey. Embora seja um enigma, e
assim se mantenha fundamentalmente, é como que circunscrita pelos
diferentes conteúdos de consciência dirigidos para ela (inclusive
dela mesma) (p. 483)

Ou seja, Mrs. Ramsey é apresentada pelas consciências que circundam a


narrativa, inclusive dela mesma “obtidas por diferentes pessoas [que ele chamará de
PLURIPESSOAL], em diferentes instantes” (p. 483) que “diferencia-se nisto
fundamentalmente do SUBJETIVISMO UNIPESSOAL, que só permite que fale um
único ser, [...] que só considera válida uma visão da realidade” (p. 483)
O TEMPO REPRESENTAÇÃO PLURIPESSOAL DA CONSCIÊNCIA: O
ato de medir a meia, por conta do acesso às consciências, leva muito menos tempo do
que é narrador, isso acontece porque “o caminho percorrido pela consciência é
completado, por vezes, muito mais rapidamente do que a linguagem é capaz de
reproduzir” (p. 484); o que gera um “contraste entre tempo ‘exterior’ e tempo
‘interior’” (p. 485). Esse jogo entre o interior e o exterior, chega a influenciar, de certa
maneira, no ESPAÇO:
Os acontecimentos exteriores perdem por completo o seu domínio;
servem para deslanchar e interpretar os interiores, enquanto que,
anteriormente [NOS OUTROS AUTORES] e em muitos casos ainda,
os movimentos internos serviam preponderantemente para a
preparação e a fundamentação dos acontecimentos exteriores
importantes (p. 485)

Ou seja, em VW e nos escritores modernos, o exterior e o cenário passam a


servir para as intrigas que ocorrem no interior dos personagens, enquanto eu, nas
tradições anteriores, o movimento era o contrário: as reflexões internas estavam
presenta apenas para contribuir com os acontecimentos importantes da narrativa.
*** IMPORTANTE: COMPARAÇÃO ENTRE WOLF E HOMERO:
No texto de Homero, a digressão ligava-se à cicatriz, que Euricléia
toca com as mão e, embora o momento em que ocorre o ato de tocar
seja elevada a tensão dramática, introduz-se um outro presente,
claro, luminoso como o dia, que parece até ter como intenção
desligar a tensão dramática e relegar ao esquecimento, por um
instante, toda a cena do lava-pés. Aqui, o trecho de Virginia Wolf,
não se pode falar em suspense; não acontece nada importante no
sentido dramático, trata-se do comprimento de uma meia. [...]
Ligam-se a isto várias digressões, ou mais exatamente, três, todas elas
diferentes no tempo e no espaço e também diferentes quanto à exata
determinabilidade no tempo e no espaço e também diferentes quanto à
exata deternabilidade espaço no tempo [....] Nenhuma delas, contudo,
é vista com a mesma exatidão temporal dos episódios subsequentes
da história da juventude de Ulisses, pois mesmo para a cena do
telefonema a indicação temporal é vaga. Desta forma, a despedida
do lugar junto à janela é efetuada muito mais imperceptível e
paulatinamente do que a mudança de cenário e de tempo no episódio
da cicatriz (p. 486)

Enquanto que no Velho Testamento e em Homero, as anacronias tendem a uma


tensão ou a uma explicação importante, em VW elas (que são várias e não uma) não
revelam nada de importante no sentido dramática. Além disso, todas elas são
temporalmente imprecisas, não sabemos se foi há muito tempo, na infância e da viagem
de Ulisses, por exemplo. Além disso, essas digressões não tem unidade, não retomam a
um todo: “as três partes da digressão nada tem a ver entre si; não têm qualquer decurso
comum e exteriormente conexo como os episódios da cicatriz; só estão unidos pelo
olhar comum sobre Mrs. Ramsay”(p. 486).
Auerbach chama esse jogo polifônico entre consciências como
REPRESENTAÇÃO DA CONSCIÊNCIA PLURIPESSOAL que se articula com o
TEMPO da narrativa:
Com isto, fica também nítida a estreita relação entre o tratamento do tempo e a
‘representaçãoda consciência pluripessoal’ de que falamos antes. As representações
da consciência não estão presas à presença do acontecimento exterior, pelo qual foram
liberadas. (p. 487)
Em seguida, o autor faz uma síntese do estilo da WF:
A técnica característica de Virginia Wolf, tal como se apresenta no
nosso texto, consiste em que a realidade exterior, objetiva do
presente de cada instante, que é relatada pelo autor de forma imediata
e que aparece como fato seguro, isto é, a medição da meia, é apenas
uma ocasião (ainda que não seja uma ocasião totalmente casual):
todo o peso repousa naquilo que é desencadeado, o que não é visto
de forma imediata, mas como reflexo e o que não está preso ao
presente do acontecimento periférico libertador (p. 487)

A importância do estilo de VW repouso não no que acontece materialmente, na


realidade externa a consciência, mas sim no que é desencadeado nas consciências, ou
seja, o cenário só condiciona o que deve acontecer.
Para esclarecer essa questão, o que funcionou bem, Auerbach recorre à
comparação com o estilo de Proust cuja “forma de proceder está atada ao reencontro
da realidade perdida na memória, liberada por um acontecimento exteriormente
insignificante e aparentemente causal.” (p. 488), o maior exemplo disso é o sabor da
Madeleine que desencadeia diversas memórias “[e] desta lembrança reencontrada,
surge, de forma mais autêntica e real do que qualquer presente vivido, o mundo da sua
infância à luz da representabilidade, e ele começa a narrar” (p. 488)
Em Proust a memória se desenvadeia em diversas CAMADAS DA
CONSCIÊNCIA REMEMORANTE (p. 489), isto é, um acontecimento produz
diversos níveis de lembranças na consciência de Marcel.
Auerbach faz uma pequena síntese do estilo que ele discute: “Nas peculiaridades
aqui constatadas no romance realista do período entre guerras – REPRESENTAÇÃO
CONSCIENTE PLURIPESSOAL, ESTRATIFICAÇÃO TEMPORAL,
RELAXAMENTO DA CONEXÃO ENTRE ACONTECIMENTOS, MUDANÇAS
DA POSIÇÃO DA QUAL SE RELATA” (p. 492).
Auerbach discorre sobre a principal característica e peculiaridade do estilo de
VW, mas mostra como isso também está persente em escritores modernos, e cita Proust,
Thomas Mann, Hamsun e Flaubert:
Comecemos com uma tendência queé especialidade evidente do texto de
Virginia Woolf. Ela se atém a acontecimentos pequenos, insignificantes, escolhidos
ao acaso: a medição da meia, um fragmento de conversa com uma criada, um
telefonema. Não ocorrem grandes mudanças, momentos cruciais exteriores da vida,
ou catástrofes, e, ainda que tais coisas sejam mencionadas em To the lighthouse, isto é
feito rapidamente, sem preparação nem contexto, de forma aproximada e, por assim
dizer, apenas informacional” (p. 492).
O autor continua sobre o romance moderno, argumentando que eles “preferem
exaurir acontecimentos cotidianos” (p. 494), segundo ele
Pode-se esperar relator com certa perfeição aquilo que aconteceu a poucas
personagens no decurso de alguns minutos, horas ou, em último caso, dias; e com
isto encontra-se, também, a ordem e a interpretação da vida, que surge dela própria, isto
é, aquele que se forma, em cada caso, em cada personagem; aquela que é encontrável,
em cada caso, na sua consciência, nos seus pensamentos e, de forma mais velada,
também nas suas palavras e ações. Pois, dentro de nós realiza-se incessantemente um
processo de formulação e de interpretação, cujo objeto somos nós mesmos: a nossa
vida, com passado, presente e futuro; o meio que nos rodeia; o mundo que vivemos,
tudo isso tentamos incessantemente interpretar e ordenar, de tal forma que ganhe
para nós uma forma de conjunto, a qual, evidentemente, segundo sejamos obrigados,
inclinados e capazes de assimilar novas experiências que nos apresentam, modifica-
se constantemente de forma mais rápida ou mais lenta, mais ou menos radical, estas são
as ordenações e as interpretações que os escritores modernos de que tratamos
tentam apanhar num instante qualquer; e não uma, mas muitas , quer de diferentes
personagens, quer da mesma personagem, em instantes, de tal forma que a partir do
entrecruzamento, da complementação e da contradição surfe algo assim como uma
visão sintética do mundo ou, pelo menos, um desafio à vontade de interpretar
sintaticamente do leitor (p. 494-495)
Essa necessidade de assimilar as experiências se dá principalmente pelo
crescimento das experiências vividas pelos próprios sujeitos, “é facilmente
compreensível que um tal processo deve ter-se formado paulatinamente, e que se
formou precisamente nos decênios ao redor da Primeira Guerra Mundial e depois dela.
O alargamento do horizonte do ser humano e o enriquecimento em experiências,
conhecimentos, pensamentos e possibilidades de vida” (p. 495)
Outra síntese do romance é dado novamente por Auerbach:
O que ocorre aqui, no romance do farol foi tentado em toda parte nas
obras deste gênero, claro que nem sempre com a mesma introspecção
e mestria: enfatizar o acontecimento qualquer, não aproveitá-lo a
serviço de um contexto planejado de ação, mas sim e si mesmo; e
com isto, tornou-se visível algo de totalmente novo e elementar:
precisamente, a pletora de realidade e a profundidade vital de
qualquer instante ao qual nos entregarmos sem preconceito (p.
497)

Você também pode gostar