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I. A CICATRIZ DE ULISSE
O autor começa o texto retomando o trecho clássico da anagnolisis da Odisseia,
em que Euricleia antiga ama de Ulisses, reconhece-o pela sua cicatriz quando estava
transformado em um forasteiro como um rito de hospitalidade (p. 1). Sem que Penélope
perceba, Euricleia, depois de apalpar a cicatriz, cai para traz, deixa o pé cair na bacia e
tem um alegre sobressalto.
Tudo isso é feito a partir do DISCURSO DIRETO, os personagens conhecem
seus sentimentos e ideias a partir dessa fala pormenorizada. A descrição do tempo e do
espaço e demorada e pormenorizada também.
O momento da cicatriz, “momento da crise” (p. 2) abre um precedente
para a anacronia, em que há uma analepse para a explicação do
surgimento da cicatriz: “descreve a origem da cicatriz, um acidente
dos tempos da juventude de Ulisses, durante uma caça ao javali por
ocasião de uma visita ao seu avô Autólico. Isto dá, antes de mais nada,
motivo para informar o leitor acerca de Autólico, sua moradia, grau
de parentesco, caráter, e, de maneira tão pormenorizada quão
deliciosa, seu comportamento após o nascimento do neto; segue-se a
visita de Ulisses, já adolescente; a saudação, o banquete de boas-
vindas, o sono e o despertar, a saída matutina para a caça, o rastejo do
animal, a luta, o ferimento de Ulisses por uma presa [etc.] [...] tudo é
narrado, novamente, com perfeita conformação de todas as coisas,
não deixando nada no escuro e sem omitir nada nenhuma das
articulações que as ligam entre si. E só depois o narrador retorna ao
aposento de Penélope, e Euricleia, que tinha reconhecido a cicatriz
antes da interrupção, só agora, depois dela, deixa cair assutada, o pé
na bacia (p. 2)
Falamos porque os relatos bíblicos são dessa maneira, mas ele explica os
homéricos também:
Os poemas homéricos [....] na sua imagem do homem, relativamente
simples, [...] a sua relação com a realidade da vida que descrevem. A
alegria da existência é tudo para eles, e a sua mais alta intenção é
apresentar-nos esta alegria [...] Revelam uma tranquila aceitação dos
dados da existência humana (p. 11).
Enquanto isso, O narrador bíblico tinha que escrever uma doutrina e tinha que
acreditar nela, visando uma verdade. Eles estabelecem essa TENSÃO OPRESSIVA
porque: “Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de
Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é no dominar,
e se negamos a isto, então somo rebeldes. O crente se vê motivado a se aprofundar uma
e outra vez no texto e a procurar em todos os seus pormenores a luz que possa estar
oculta. E como, de fato, há no texto tanta coisa obscura e inacabada, e como ele sabe
que Deus é um deus oculto, o seu afã interpretativo encontra sempre o alimento” (p. 12).
Um ponto interessante que pode ser útil caso tomemos uma abordagem marxista
é a relação dos personagens servis e secundários com os seus amos, Laerte ou Penélope
e Ulisses. Eumeu e Euricléia, por exemplo, passam a vida a serviço dos amos e se torna
estreitamente unida ao seu destino, ama-os e compartilha os seus
interesses e sentimentos. Mas não possui vida nem sentimentos
próprios mas só os dos seus senhores. Também Eumeu, não obstante
ainda se lembre de ter nascido livre e pertencer até a uma família
nobre (fora roubado quando criança), já não tem, nem na prática, nem
seus sentimentos, vida própria, estando inteiramente atado aos
seus senhores. Essas duas personagens são, porém, as únicas que
Homero anima para nos e que não pertencem à classe senhorial. Com
isso, chega-se à consciência de que a vida, nos poemas homéricos, só
se desenvolve na classe senhorial – tudo o que porventura viva além
dela só participa de modo serviçal. A classe senhorial é ainda tão
patriarcal, tão familiarizada com as atividades quotidianas da vida
econômica, que às vezes se chega a esquecer seu caráter de classe. [...]
Como estrutura social, este mundo é totalmente imóvel; as lutas só
ocorrem entre diferentes grupos de classes senhoriais; de baixo,
nada surge (p. 18)
Em Homero os personagens perdem a sua atuação política e passam a viver não
a sua individualidade, mas as metas e sentimentos (medos, amores e angústias) dos seus
amos. Isso pode ser usado numa interpretação social, até negando isso, dizendo, por
exemplo, “tal personagem, ao contrário dos indivíduos servis de Homero, não perdem
sua individualidade e se rendem a sua condição para viver a vida e o destino dos seus
senhores, na verdade, eles perceveram, e se tornam mais ricos em camadas”.
Enquanto isso, o estilo do Velho Testamento é mais sublime e elevado, enquanto
Homero tem o realismo caseiro, a representação da vida cotidiana, idílica- pacífica, o
Velho Testamento “o sublime, trágico e problemático se formam justamente no caseiro
e cotidiano”, visto que “ a sublime intervenção de Deus age tão profundamente sobre o
quotidiano que os dois campos do sublime e do quotidiano são não apenas
efetivamente inseparados mas, fundamentalmente, inseparáveis” (p. 19). Ou seja, no
VT as ações campestres e cotidianas estão cercadas pelo Deus onisciente e onipresente
da tradição judaico-cristã.
Por fim, um último resumo das ideias do capítulo:
Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um
lado, descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem
interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano,
univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto
ao humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes
e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do
tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de
interpretação, pretensão à universalidade histórica, desenvolvimento
da apresentação do devir histórico e aprofundamento problemático (p.
20)
Em seguida, o autor faz um caminho diferente para o mesmo trecho: ele resume
tudo o que acontece, todos os movimentos, externos e internos, que ocorreram nesse
meio tempo (p. 478). Entretanto, essas mudanças de pensamentos interferem na
mudança do espaço e do tempo, os CENÁRIOS mudam a partir da consciência que
acessamos, isso acontece de maneira natural, como se a mudança tivesse acontecido
momentaneamente até voltarmos para o cenário anterior:
Mas também aqui se trata apenas de uma mudança externa; um
cenário anteriormente abandonado torna a aparecer, repentinamente e
com tal falta de transição, como se nunca tivesse sido abandonado,
como se a longa interrupção fosse só um olhar (p. 481)
Agora, discorrendo sobre esse trecho, podemos ver como Auerbach discorre
sobre uma questão que se assemelha ao que Arrigucci diz sobre a DISTÂNCIA do
narrador. No trecho em questão, Auerbach mostra como o autor está distante da
narrativa e como podemos apenas acessar o que os personagens entendem da situação.
Assim, o caráter da personagem não é construído a partir da descrição do autor, mas dos
reflexos das suas ações e pensamentos que acessamos em sua consciência. Assim, não
se trata de um narrador onisciente que descreve tudo o que acontece na mente de cada
leitor, porque a consciência age por si, parecendo até que nem o narrador sabe o que
acontece na mente da senhora Ramsay, por isso, parece que ele tem “olhos duvidosos”,
como se o seu conhecimento do realidade não fosse maior que a dos personagens
envolvidos. DUVIDA: O FLUXO DE CONSCIENCIA OU O DISCURSO INDIRETO
LIVRE IMPLICAM UM NARRADOR ONISCIENTE QUE ACESSA AO QUE
TODOS PENSAM?O TRECHO EM QUESTÃO SE CONSTRÓI A PARTIR DO
DISCURSO INDIRETO LIVRE OU PELO FLUXO DE CONSCIÊNCIA?
O que Virgínia W. faz é “que se confunda ou que até, que desapareça totalmente
uma impressão de realidade objetiva” (p. 482). Isso contrapõe alguns autores de grande
nome, em que o narrador controla tudo o que acontece e descreve tudo (e apenas) o que
condiz com o acontecimento em questão:
Goethe ou Keleer, Dickens ou Meredith, Balzac ou Zola, comunicam-
nos partindo de um conhecimento seguro, o que as suas
personagens faziam, o que pensavam ou sentiam ao agirem, de que
forma deveriam ser interpretadas as ações ou pensamentos; estava
perfeitamente informados sobre os seus caracteres (p. 482)
Entretanto, o que Virgínia traz de novo é justamente esse jogo entre
consciências. Ela não se limita a um monólogo para apresentar o sentimento e a
psicologia dos personagens, mas sim estabelece quase um jogo polifônico entre as
consciências dos personagens:
Só que, em tais casos [dos clássicos citados na citação anterior], quase
nunca se tentava reproduzir o vaguear e o jogar da consciência, que
se deixava impelir pela mudança das impressões [...] senão o que o
conteúdo consciente indicado limitava-se racionalmente àquilo que se
referia ao acontecimento narrado em cada caso ou à situação escrita
(p. 483)
Esses autores trazem o que contribui para a questão da situação narrativa, o que
contribuía para história ou para a tensão da narrativa, e não para o que estava realmente,
em tempo real, passando na consciência dos personagens. No caso de VW, o que ocorre
é:
É que não se trata apenas de um sujeito, cujas impressões conscientes
são reproduzidas, mas de muitos sujeitos. [...] Da pluralidade dos
sujeitos pode-se concluir que, apesar de tudo, trata-se da intenção de
pesquisar uma realidade objetiva, ou seja, nesse caso concreto, de
pesquisar uma “verdadeira”, Mrs. Ramsey. Embora seja um enigma, e
assim se mantenha fundamentalmente, é como que circunscrita pelos
diferentes conteúdos de consciência dirigidos para ela (inclusive
dela mesma) (p. 483)