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O objetivo central que pretendemos neste artigo é analisar o processo de construção
social da oposição masculino e feminino contida no texto de CLASTRES3. Intencionamos
demonstrar quais os símbolos dão visibilidade à oposição e como essa oposição organiza o
espaço dos trabalhos dos grupos. Levantaremos os mecanismos simbólicos- as pedagogias
guaiquis, que organizam a sobrevivência física e cultural dessa sociedade impondo
interdições recíprocas às mulheres e homens. Recorreremos sempre que necessário ao exame
de três teóricos da antropologia (GEERTZ, 1978; CLASTRES, 1979; MEAD, 1988) para
fundamentar a nossa reflexão. Antes de entrar na análise apresentaremos um resumo do texto
de Clastres.
Trata-se do resultado de uma pesquisa etnográfica4 realizada por Clastres entre os
índios Guaiaqui, onde a oposição entre homens e mulheres era muito clara e organizava e
dominava toda a vida cotidiana. No grupo em questão os homens caçavam com o arco e as
mulheres fabricavam o cesto que era utilizado para a guarda e transporte dos alimentos e
coisas. Segundo o autor a oposição entre homens e mulheres era perpetuada através de um
sistema de proibições recíprocas: era proibido às mulheres tocar o arco dos caçadores e aos
homens tocar no cesto. Qualquer transgressão acarretaria o “pané”, como por exemplo, a má
sorte na caça, o que seria desastroso na economia guaiaqui. Quando um homem não
conseguia se realizar como caçador, ele cessava de ser homem, era obrigado a abandonar o
arco, inútil para ele, e, renunciando à sua masculinidade, “trágico e resignado” se encarregava
de um cesto. Era esse mesmo sistema de proibições que estruturava o tempo e o espaço dos
guaiaqui. Também são as interdições impostas que estruturavam aquilo que o autor chamou
de divisão do trabalho lingüístico. Essa divisão estaria presente nos corpos e cantos dos
Guaiaqui. Igualmente faz parte da oposição masculino e feminino a proibição aos caçadores
de alimentar-se de sua própria caça, de modo que todos são obrigados a dividir com os
membros do bando os alimentos caçados. Isso proporcionaria ao ache5 livrar-se do pané e
poderia assim estabelecer um laço social definitivo , uma vez que afastando se da própria caça
o caçador aproximaria dos demais caçadores. Observa-se no grupo um excesso e homens em
relação ao número de mulheres. Esse desequilíbrio obriga os guaiaqui a instituir um sistema
de casamento poliândrico. E o excedente de homens é absorvido pelas mulheres sob a forma
de marido secundário. A poliândria resolve o problema do déficit de mulheres porém os
homens guaiaquis estão longe de se sentir à vontade com essa situação.O tabu alimentar e o
déficit de mulheres exercem, cada um em seu plano próprio, funções paralelas: garantir a
existência da sociedade pela interdependência dos caçadores , assegurar sua permanência pela
divisão de mulheres. Uma ultima análise feita no texto diz respeito à linguagem que segundo
o autor tem no canto guaiaqui a expressão máxima de sua dupla função: de um lado
estabelecer a comunicação , colocar o outro em jogo e do outro a constituição de um ego e
intenção do caçador guaiaqui de escapar a sujeição do homem à rede geral dos signos.
A antropologia classica6 sempre se ocupou do masculino e feminino7 no estudo da
organização social e do parentesco. Mas como toda ciência social seu discurso esteve ligado
ao masculino , ocidental o que portanto acarretou uma abordagem etnográfica que excluía o
discurso das mulheres8 . Dizendo de outra forma, como a autoridade da fala não é igualmente
distribuída o etnógrafo respondeu muito bem a perguntas como é que a economia , o
parentesco e o ritual são estruturados pela diferença de gênero , entretanto deixou de observar,
descrever e perguntar como o gênero, no caso o feminino, é estruturado e experiênciado pela
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cultura. Sem que se pretenda responder a essa ultima pergunta , mas lançando novos
questionamentos , passaremos a analisar o texto de Clastres abrindo espaço de fala para
aqueles que não o possuem por desígnios culturais: as mulheres.
A oposição sócio- econômica entre homens e mulheres estrutura o tempo e o espaço dos
Guaiaqui
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como observar ; separar; pensar e classificar , atribuindo uma ordem totalizadora ao mundo , é
fundamental para se compreender o conceito de cultura que se distancia de uma mera
realização de mecanismos cognitivos internos e se aproxima substancialmente de respostas
públicas ao relacionamento social .
Considerando a cultura sob a perspectiva semiótica e partindo da premissa
interpretativa poderíamos dizer que o arco e o cesto são as insígnias mais evidentes da
oposição homem e mulher na Sociedade Guaiaqui. E é através desses dois símbolos que o
sistema de interdições recíprocas garantirá a organização e sobrevivência física e culturas dos
Guaiaqui.
Se o arco e o cesto são os signos de duas existências opostas, também são neles que as
interdições recíprocas aos homens e mulheres vão explicar as pedagogias guaiaquis. Ao
homem é terminantemente proibido toca o cesto e é insuportável a vergonha de transportar
um cesto. O homem ao tocar o cesto fica incapacitado de exercer sua função de caçador o que
lhe obriga a renunciar sua masculinidade. A mulher teme tocar o arco pois sua junção atrairia
sobre o proprietário do arco o pané o que seria desastroso para a economia guaiaqui. Da
perspectiva guaiaqui, o contato da mulher com o arco é mais grave do que do homem com o
cesto. Retomamos aqui, a discussão entre o público e privado pois uma ação realizada pelo
caçador impingiria a ele uma desordem pessoal , ou seja a renuncia de sua masculinidade e
então cessaria sua existência , uma vez que os homens só existem como caçadores. Já a
interdição importa a mulher, de tocar o arco, evitaria uma desordem coletiva que poderia
ocasionar a ruína da economia da Sociedade Guaiaqui.
Outra simbologia que analisaremos e a oposição entre o conto masculino – prerä e o
canto feminino- chengaruvara exprimem dois modos de existência , duas presenças no
mundo, dois sistemas de valores bem diferentes uns dos outros. O chengaruvara é uma
saudação chorosa , queixosa em que as mulheres cantam juntas e geralmente em rituais
durante o dia. Cantam agachadas, com o rosto escondido demonstrando assim um gesto de
humilhação. Os temas são a morte, a doença, violência dos brancos. As mulheres assumem na
tristeza de seu canto toda a infelicidade. O prerä é uma louvação enfática que o caçador
endereça a si mesmo. Exaltação das aventuras vividas por eles , sobre os animais que
encontraram , as feridas que receberam. Cada caçador é um solista, cuja voz poderosa ressoa
de forma brutal , quase simulando uma irritação. Único elemento “produtivo” da sociedade
Guaiaqui, o caçador tem no plano da linguagem uma liberdade de criação que a situação de
“grupo consumidor” proíbe as mulheres. Existe no canto uma divisão sexual do trabalho
lingüístico.
Existe para o caçador aché um tabu alimentar que formalmente o proíbe de comer a
carne de suas presas. Essa interdição resulta que cada homem passa sua vida caçando para os
outros e recebendo deles sua própria alimentação. O tabu se justifica por que segundo os
guaiaqui comer de sua própria carne é a forma mais segura de atrair o pane. A disjunção do
caçador e de sua caça funda a conjunção dos caçadores entre si, isto é , o contrato que rege a
Sociedade Guaiaqui. Do mesmo modo, por causa de um desequilíbrio do sex ratio, onde
existe entre os Guaiaquis um excesso de homens em relação ao numero de mulheres constata-
se uma situação análoga em relação ao homem como caçador e como esposo. Os animais e as
esposas possuem um lugar equivalente. Assim como o homem é separado radicalmente de sua
caça , uma vez que não deve consumi-la; no outro ele não é nunca completamente um
marido, mas, na melhor das hipóteses, um semimarido: entre um homem e sua mulher vem
interpor-se o terceiro termo: o marido secundário. Assim como um homem, para se alimentar,
depende da caça realizada pelos outros, assim o marido, para “consumir” sua esposa11
,depende do outro esposo, cujos desejos, sob pena de tornar a coexistência impossível deve
também respeitar. A troca das mulheres é em si mesma criadora de aliança entre famílias; mas
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a poliandria, sob a sua forma guaiaqui, torna possível a vida em comum e a sobrevivência da
sociedade.
Feminino Masculino
Toda oposição entre homens é mulheres numa dada organização social não é dada
pela natureza , alias dizemos que o natural faz parte do universal e o cultural do particular , a
diferenciação entre os sexos e universal , mas a distinção que fazemos entre masculino e
feminino não o é. Nessa perspectiva a cultura seria particularizada , entidade que se
sobreporia à capacidade individualizadora do gênero. É como se existisse uma consciência
sexual- consciência de ser homem e mulher , mas inexistisse uma consciência de gênero (a
consciência do significado de ser homem e der ser mulher em uma dada sociedade). Cada
sociedade atribui papeis masculinos e femininos aos seus membros , assim como impõe
interdições ou permissões. Deste modo vão tecendo significados culturais as formas naturais
de existência da sexualidade biológica. A Sociedade Guaiaqui não é diferente. Até aqui o que
vimos é que não existia um padrão sentimental distinto para homens e mulheres. Existia sim ,
um tipo de personalidade ou temperamento socialmente aprovado para todos os integrantes da
sociedade. Era enfatizado na Sociedade Guaiaqui uma relação de sexo e divisão das tarefas.
Esperava-se que de acordo com a sexualidade do individuo ele desempenhasse
determinadas tarefas e funções. Assim coube ao grupo dos homens a caça e as mulheres a
confecção do cesto. No entanto existia entre os guaiaqui dois homens cuja divisão sexual do
trabalho não era ligada ao sexo e sim a condição de pané. Era o Chachubutavachugi que na
sua condição de panema coletava frutas e lavras e realizava pequenas caças. Era viúvo e
objeto de zombarias, pois, era desintegrado do meio masculino e feminino (não acompanhava
os homens à caça e andava com as mulheres, mas, carregava o cesto que uma mulher dera a
ele de modo diferente delas). Era um escândalo, como explicou o autor, pois, era homem sem
ser caçador. Não era bem vindo nos lares por que tinha grande apetite e não contribuía com a
caça. Achava-se rejeitado no campo simbólico do cesto. Krembégi era homossexual pro que
era panema , vivia como mulher e havia adotado as atitudes e comportamentos próprios desse
sexo. Mantinha os cabelos longos, tinha mais talento para as artes do que as próprias
mulheres. Recusava-se terminantemente o contato com o arco.
No exemplo dado, os dois homens são “obrigados” a desistir de ser homem por
incompetência na função de caçador (econômica), mas, só um adota atitudes e
comportamentos peculiares ao sexo feminino. O que não se tornou mulher é caracterizado
pelo autor como: desintegrado, ocioso, nervoso e descontente. O outro fazia os trabalhos com
arte, era adaptado, sereno, à vontade e integrado ao meio feminino. Não podemos dizer , nos
dois casos , que existia uma inadaptação desses indivíduos cujo ajustamento a vida é
condicionado por sua finidade temperamental com um tipo de comportamento considerado
inatural a seu próprio sexo e natural ao sexo oposto. No caso do guaiaqui homossexual ele não
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despertava atenção especial do grupo, inclusive era usado pelos caçadores como parceiro
sexual. A sua condição de ser um homem tornado mulher não lhe causava sofrimento por que
representava uma forma legitima de exercer a sua sexualidade nata. Mas é importante notar
que o grupo o considerava adaptado , porém não há como se falar em inadaptado por que não
sofria coerção do grupo para comportar-se como membro do seu próprio grupo.
No caso do chachubutavachugi ele era considerado inadaptado pelo grupo e também
se considerava desajustado , caçoado por todos, desprezado pelos homens. As mulheres riam
dele e as crianças tinham um respeito menor . No cesto manifestava sua injunção de ser
caçador sem arco. Temos nesse segundo caso que seu temperamento foi condicionado ao
longo dos anos e que por isso ele desenvolveu características próprias para o seu sexo , mas
que por uma imposição cultural perdeu o seu estatuto de homem e é obrigado por sua cultura
comportar-se de uma forma estranha a sua personalidade social.
Esse artigo mostre e analisa por que o sucesso da existência da Sociedade Guaiaqui
deve-se basicamente a divisão sexual das tarefas e quais as interdições recíprocas colocadas
ao grupo para que essa oposição masculino e feminino estruture o tempo e os espaços. Essa
análise indica que a organização dos atributos distribuídos entre os sexos revela uma direção e
um sentido peculiar àquela cultura .A organização binária pressupõe hierarquias e como
vimos as mulheres guaiquis ocupam espaços particulares e conseqüentemente de menos
prestígio.
Marca desse desprestígio pudemos observar quando o guaiaqui –chachubutavachugi,
que perde sua conjunção com o arco se vê obrigado a renunciar sua masculinidade. O
incomodo sofrido por ele em que se percebe sendo homem sem ser caçador aponta para a
“fabricação” de inadaptados como bem salientou MEAD em seu livro Sexo e Temperamento
em que advoga
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estrutura social menos arbitrária, na qual cada dote humano diferente
encontrará um lugar adequado.( Mead, 2006, p. 3003)”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
3
Um famoso texto do antropólogo Pierre Clastres, A Sociedade contra o Estado, apresenta um
capítulo – “O Arco e o Cesto” - em que explica a vida tribal em moldes estruturalistas.
4
Clifford (1986) entende a etnografia como sendo uma “performance” cuja trama projeta estórias
poderosas. Comunicadas em informes escritos, estas estórias, tanto descrevem eventos culturais reais
quanto fazem afirmações morais, ideológicas e cosmológicas.
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Aché : autodenominação dos Guaiqui.
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(BENEDICT, 1928;MORGAM, 1970;MEAD, 1988)
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Estamos nos referindo aos estudos que antecedem a efervescência teórica do feminismo dos anos 70
e 80. Anterior a isso entendemos que o masculino e feminino baseiam-se , o mais das vezes, sobre
aquilo que, no sentido ocidental, funda sua diferença: a biologia. Uma vez que distinguem por seus
corpos , secreções e suas funções procriativas, o homem e a mulher são considerados por dois termos
que devem, necessariamente, opor-se.
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Além de estar diretamente ligada ao problema mais geral da hegemonia da perspectiva masculina nas
ciências sociais, a invisibilidade das mulheres indígenas é um caso específico da invisibilidade dos
próprios índios, categoria étnica e racial ainda atrelada, na visão do senso comum, a representações
enraizadas em fontes remotas, e cuja elaboração inicial recua aos primeiros séculos da colonização do
novo mundo.
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Sendo nômades ignoram a fixação e sua economia apóia-se exclusivamente na exploração dos
recursos naturais que a floresta oferece. Exaurindo esses recursos inicia-se uma nova travessia da
floresta em busca de novos espaços e são as mulheres responsáveis com seus cestos por essa travessia.
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Essa “oposição” público e privado remete à oposição casa e rua analisada por Damatta. A casa –
esfera privada- segundo Damatta, é o lugar das hierarquizações, um universo marcado e controlado
pelas relações pessoais. É o lugar do descanso, da harmonia, do respeito, da segurança, da afetividade
e da tranqüilidade por isso , a casa está geralmente associada as mulheres, ao domínio doméstico. Em
oposição, a rua – esfera pública- indica basicamente o mundo com seus imprevistos. É o lugar da
individuação, das relações impessoais, da racionalidade, do conflito, da aventura , do perigo. Na rua ,
“o mundo tende a ser visto como um universo hobbesiano, onde todos tendem a estar em luta contra
todos” (DAMATTA,1997:91).
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Não se trata de jogo de palavras: em guaiaqui um mesmo verbo deigna a ação de alimentar-se e a de
fazer amor( tyku)