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“[...] Recorporificações biotecnológicas, por sua vez, são mais cultivadas do que
manufaturadas - elas não são fabricadas em si, mas fabricadas para assumir uma forma
através da manipulação dos modos como os potenciais expressam a si mesmos. No
infranível, o que está em questão é um verdadeiro devir, um engendramento de
determinada existência de algo prefigurado apenas no caminho, no influxo de um
potencial, cuja forma é, até então, indefinida. Modular ou manipular aquilo que vem
desse nível constitui uma forma extrema de poder: o poder de fazer ser; o poder de
engendrar; o poder de domar a transformação qualitativa. Chamo isso de ontopoder
(“onto” de “ontogênese”, ou o processo de devir do ser).” p. 8-9
“Eu disse anteriormente que a economia se tornou um regime de poder por si só. O que
eu queria dizer com isso é que o processo capitalista fez de si mesmo um ontopoder.
Isso tem implicações de longo alcance para a democracia liberal quando se considera
que o neoliberalismo, de acordo com seus teóricos - tanto seus mais astutos proponentes
quanto seus críticos não produz apenas objetos, mas também seus próprios sujeitos.
Foucault chamou o sujeito neoliberal de “sujeito de interesse”, enfatizando que a sua
forma é homóloga à da empresa. Os teóricos fundadores do neoliberalismo chamaram
essa empresa-sujeito de “capital humano”. Em meus livros, O poder para além da
economia e Ontopower, tento olhar para o modo como o ontopoder do capitalismo se
estende à produção dos indivíduos assaz capitalizados - as formas de vida do capital -
que povoam o seu campo. O capitalismo encontrou meios de acessar de maneira
produtiva as matrizes de emergência. Ele funciona, agora, cada vez mais no nível
infraindividual, por onde quer que o capital flua - ou seja, por toda parte. O capital se
infiltra no nível afetivo do potencial sentido, antes mesmo de os potenciais vitais se
concretizarem em determinada forma de vida - ali onde a vida ainda está por emergir.”
p. 9-10
“Esse nível se revolve em micromovimentos. Denomino tais movimentos em formação,
isto é, ainda não totalmente formados, de “atividade nua”. No que diz respeito ao infra-
humano, eles são os altos e baixos do desejo, tendência, medo, esperança, interesse
pessoal, simpatia, tensionamentos por ação e aliviamentos em relações. Modular esses
altos e baixos a fim de orientar a sua tomada-de-determinada-forma é tão simples
quanto um clickbait [isca de cliques], O capitalismo aprendeu a descer até o infranível,
até o ponto onde o indivíduo está emergentemente dividido entre as inflexões potenciais
dos seus próprios movimentos autoformativos. Deleuze, ao levar essa autodivisão, essa
“esquize” em consideração, cunhou uma palavra para o sujeito neoliberal: o “divíduo”.”
p. 10-11
“É importante, ao pensar no que a democracia pode vir a ser, tentar teorizar esse devir-
integralmente-afetivo da política e o papel do indivíduo. Isso precisa ser feito sem dar
crédito à ideia de que racionalidade e afetividade são opostos. É preciso ser capaz de
pensar a esse respeito e de experimentar os modos pelos quais a política baseada na
afetividade pode dar origem a formas radicalmente inclusivas de democracia direta.
Vislumbres prefigurativos daquilo que poderia ter sido visto nos movimentos auto-
organizados espontâneos dos anos 2010, com seu poder de contágio para além das
fronteiras da identidade. Nada emergiu como modelo definitivo - mas algo vem se
revolvendo. As políticas por vir provavelmente não terão um modelo definitivo, graças
ao movimento transformativo. Nem um modelo sequer, mas muitas matrizes
relacionais, em ressonância e interferência.” p. 14-15
“Se isso for possível, só o será por meio da ação direta no registro do afeto. Nenhuma
análise ou persuasão ideológica pode ter efeito, já que a política programática está tão
implicada em estruturas de representação e de identidade quanto a democracia liberal,
embora a partir de um outro ângulo (como, por exemplo, um disfarce de “desejo do
povo” encabeçado por uma vanguarda, explicitamente ou na forma implícita de uma
elite tecnocrata). As contratendências de que falo são tão moventes, tão emergentes e,
enfim, tão automáticas quanto a máquina do próprio capitalismo — só que com um
sentido diferente, não monetário e diretamente qualitativo de valor. Um sentido, a saber,
do valor dos movimentos, dos acontecimentos, das relações, em si e por si mesmos; um
sentido de vivacidade, o sentido de intensidade que vem com a experiência da
potencialidade. Essas mais-valias de movimento não monetizáveis se retroalimentam
com sua própria moeda de potencial experienciado, esboçando altereconomias de
relação transformacional. Elas são tendencialmente contraontopoderes anticapitalistas
imanentes ao campo capitalista. Qualquer democracia porvir chegará como
corporificação coletiva de intensidades emergentes da experiência cuja vivência é o seu
próprio valor, imanentes a esse acontecimento vivo - antes de serem engessadas em
algum arcabouço institucional — e com tendência a atravessar e a exceder toda e
qualquer incorporação regulariza d ora ou regulatória, num ciclo perpétuo de captura
estabilizante e de escape revivificante.” p. 17-18
“Ora, um presídio privado está embebido na relação capitalista. Ele participa dela por
todos os lados, inclusive o de dentro. Ele vive em função dos fluxos de capital que
captura e canaliza para a produção de mais-valia. Mas ele também captura fluxos de
criminalidade e os canaliza para outra forma de produção de mais-valia: uma mais-valia
de ordem social, de normalização - ou, ao menos, para a produção de uma mais-valia de
afetos associados a tais fluxos - ainda que as extremidades da ordem social e da
normalização não tenham, efetivamente, se encontrado. Dessa maneira, o presídio
privado, enquanto instituição disciplinar, também se alimenta dos modos de relação que
não são capitalistas, que têm forma própria. Essa forma é a criminalidade, que tem
como função uma lógica institucional de carceralidade própria.” p. 22-23
“Um processo é indelimitado - mas limitado. É limitado pela sua habilidade de imergir
no ilimitado do grande fora. Essa reserva de atividade nua que ele ladeia é o seu limite
imanente; o que é um modo de dizer que o processo capitalista - enquanto aparelho de
captura de mais-valia monetária em simbiose com qualquer número de instituições e
semi-instituições que compartilhem do seu campo - é paradoxalmente limitado pelo
potencial. Há sempre um excesso de potencial em relação à captura, de atividade nua
em relação à função útil, de recém-despontamento em relação à operação normalizada.
Se você define ação em termos de funcionalidade ou operatividade, então há sempre um
excesso de atividade em relação à ação. No vocabulário de Deleuze e Guattari, há
sempre “linhas de fuga": movimentos tendenciais que, caso não capturados, iriam se
mover em muitas direções diferentes dos canais preestabelecidos. Estes são os
contraontopoderes que mencionei anteriormente.” p. 26-27
“A distinção entre atividade e ação faz com que seja possível – absolutamente
necessário, de fato - afirmar um ativismo contra o capitalismo, e sugere que isso pode
ser feito sem resvalar automaticamente “para dentro” desse mesmo saco. Isto não
significa que seja possível, para qualquer atividade, permanecer fora dele. No grande
fora não há pontos de apoio fixos. O fora absoluto é uma reserva de potencial, não um
lugar de refúgio para se abrigar. No momento em que uma linha de fuga começa a se
delinear, ela começa a entrar no panorama institucional/semi-insitucional. Ainda que
consiga evitar ser capturada por uma formação particular, ela vai necessariamente
navegar no fora relativo das fendas entre instituições - e essa necessidade inflete o seu
curso. Ela também pode se encontrar num confronto direto, quando é imediatamente
identificada nos termos que uma formação particular usa para designar o seu fora
inassimilável: inimigo, criminoso, depravado, refugiado, parasita. Essa nomeação é, em
si mesma, uma assimilação parcial, uma vez que influencia o arco do movimento de
resistência. Há a tendência inelutável de um movimento contraontopotente de recair em
alguma forma de cumplicidade.” p. 28-29