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Berardi: o árduo resgate do erótico e do crítico - Outras Palavras 20/06/2022 23'10

Berardi: o árduo resgate do erótico e do


crítico
Filósofo autonomista provoca: hiperaceleração digital devasta tanto as
sugestões amorosas quanto o tempo necessário para enxergar e refletir sobre
o mundo. Mas não há saída sem o contato entre os corpos, em sua dimensão
sensual e política

OUTRASPALAVRAS OUTRA POLÍTICA


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Por Franco Berardi Publicado 11/03/2022 às 20:59


Atualizado 11/03/2022 às 21:05
(https://outraspalavras.net/author/franco-
berardi/)

Franco “Bifo” Berardi


Berardi, entrevistado por Amador Fernández-Salvater
Fernández-Salvater, em
Rebelión (http://www.rebelion.org/) | Tradução: Vitor Costa

No início da década de 1970, Pier Paolo Pasolini falava em “mutação


antropológica” para se referir aos efeitos que a penetração da cultura de
consumo causava na Itália. O consumo atingiu e alterou camadas do ser que
nem mesmo o fascismo havia tocado. Todas as respostas – da política, da
cultura, da filosofia – tiveram que ser repensadas à luz dos acontecimentos,
segundo o poeta-cineasta.

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Berardi (Bifo), filósofo e participante ativo dos movimentos autônomos
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italianos desde a década de 1970, descreve a “mutação antropológica” de &
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nossos dias: o impacto das tecnologias digitais sobre nossa percepção e nossa
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! sensibilidade. O que é sensibilidade? É a capacidade de interpretar
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sinais não discursivos e não codificados. Bem, essa capacidade está #
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sendo atrofiada pela nossa exposição a tecnologias digitais, que (http://www.outraspalavras.net/feed/)
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e Tudo deve ser repensado, afirma também Bifo, e o alcance da mutação digital
! também é muito profundo. A atrofia da sensibilidade implica uma atrofia
da empatia
empatia, que é a capacidade de “sentir com”, de sentir o outro como
extensão da minha existência e do meu corpo. A base sensata da
solidariedade. Quais monstros habitam essa dessensibilização radical?
Como é possível repensar, criar e lutar em condições de transformação
radical da percepção? Que tipo de ser humano estamos nos tornando?

Uma epidemia de descortesia

Ao contrário de suas outras obras, eu diria que este é um livro sobre


estética, ao invés de um livro político. Um livro onde a estética está
em primeiro plano e, em todo caso, a política é redefinida como uma
questão estética, como algo relacionado a nossa percepção e que afeta
nossa sensibilidade. Está de acordo?

Sim, o significado da palavra “estética” é muito amplo: é a ciência da


percepção, etc. Mas me parece que a estética também deve ser erótica
erótica: a
compreensão da relação entre os corpos. Parece-me que essa dialética entre
estética e erótica é central para compreender a mutação contemporânea.
Como a mutação digital modifica a percepção estética e a percepção
erótica? Esse é o objetivo do meu livro.

Hoje vivemos uma mudança de percepção erótica do corpo do outro para uma
percepção cada vez mais informatizada: o corpo do outro nos aparece
como signo, como informação
informação. Esta mutação tem um forte componente
patogênico. É uma mutação que produz muito sofrimento, efeitos de pânico e
depressão devido à abertura desse organismo sensível que somos a uma
supersaturação de estímulos
estímulos, chegando finalmente a uma paralisia do
corpo erótico.

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No centro do seu livro estão dois conceitos principais: “lógica


conjuntiva” e “lógica conectiva”. Você diz que a mutação atual é
explicada pela passagem da primeira para a segunda. Explique melhor
pra gente?

A conjunção é uma dimensão interpretativa vibratória e ambígua. Talvez o


melhor exemplo seja um cortejo amoroso: as palavras que dizemos se prestam
a uma interpretação não codificada. É uma interpretação de signos ambíguos
e o significado muda constantemente durante a própria relação. Essa é a
conjunção, uma conjunção fundamentalmente entre os corpos.

Ao contrário, a lógica conectiva é uma relação na qual a interpretação do


sentido é formatada, reduzida a um formato. É a relação entre uma máquina e
outra máquina – ou entre um ser humano e uma máquina – onde o signo
significa apenas uma coisa. Se duas máquinas estão formatadas de forma
diferente, elas não podem se entender: precisamos de uma redução do
formato que permita a interpretação exata dos sinais.

Na relação conjuntiva não existe exatidão. Não há exatidão porque a relação


humana conjuntiva é essencialmente uma relação de ambiguidade
ambiguidade.
Naturalmente, é um tipo de relação em que a violência pode nascer se não
houver educação para a conjunção, que na modernidade era chamada de
“cortesia”. O que estamos vivendo no mundo no momento me parece ser
essencialmente uma epidemia de grosseria, ou seja, de uma incapacidade de
decifrar signos de acordo com o desejo.

Donald Trump, a vitória sombria do barroco

Em culturas muito diferentes, você encontra a mesma rejeição da


lógica conjuntiva: o medo do corpo, especialmente do corpo feminino,
da mistura e da confusão, da ambiguidade do significado. E uma
defesa e elogio do ideal, do modelo, da pureza. Você encontrou algum
“húmus cultural” alternativo onde há elementos de outra sociabilidade
possível, de outra relação entre corpo e signo?

Para descrever a transição para a hegemonia do conectivo, pareceu-me


necessário fazer uma espécie de cartografia das formas culturais que se
desenvolveram na história humana. Naturalmente, escolhi apenas alguns
momentos e reduzi esta investigação antropológica a uma alternativa
essencial: entre o puritanismo e o barroco.

O puritanismo é culturalmente, além de sua definição estritamente religiosa,


um cancelamento da ambiguidade na relação inter-humana. Portanto, um
cancelamento da própria história. Considere a criação dos Estados Unidos.
Um historiador disse que são a primeira nação do mundo que nasceu como
expressão da palavra: primeiro vem a Constituição, depois vem a comunidade.
Mas é claro que antes da palavra está a destruição da história anterior: a
história dos povos indígenas que ali viveram.

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E não só isso: também a destruição, o cancelamento e o esquecimento de tudo


o que aconteceu antes na Velha Europa. Os puritanos, os pais fundadores,
fogem da Europa para esquecer a história suja do catolicismo e do
protestantismo europeus. Esquecendo-se da impureza europeia e suprimindo
a impureza indígena, eles diziam a si mesmos: “fundaremos a pureza, a cidade
sobre as colinas, a Nova Jerusalém”. Não nos surpreende que seja nesta
mesma terra, que nasce da pureza da palavra, onde mais tarde nasceu a
pureza da comunicação digital.

Por outro lado, há o barroco. Como você interpreta o barroco?

É um fenômeno que acompanha a história do puritanismo, como corrente


cultural, estética, perceptiva e política minoritária, mas sempre presente
durante os séculos da modernidade. O barroco é essencialmente a
proliferação dos signos, é o espetáculo dessa proliferação. Não é por acaso
que o barroco foi a ferramenta política da igreja católica da Contrarreforma,
que exibiu não um discurso de persuasão, mas uma demonstração de
sedução. A proliferação de signos na época barroca católica é uma história de
espetacularização e multiplicação das ambiguidades.

O barroco desaparece em determinado momento da história moderna, quando


a burguesia puritana nórdica constrói um mundo onde a ambiguidade é
considerada perigosa. Mas em um certo momento, ele explode de volta ao
cenário mundial. Eu diria que este momento é a década de oitenta do século
XX. Paradoxalmente, o barroco retorna como forma dominante, majoritária,
graças à proliferação de signos que a comunicação puritana e digital
produziu. A máquina digital produziu tal excesso e proliferação de signos que
a recepção estética é incapaz de produzir uma interpretação adaptada e
adequada. E o barroco explode nos anos oitenta, noventa e hoje de forma
dominante. Acredito que a vitória eleitoral de Donald Trump seja
essencialmente a vitória do barroco, como a indecifrabilidade de sinais
totalmente contraditórios.

Você pode explicar mais sobre essa relação entre um fenômeno como
Trump e o barroco?

Sugiro ler uma feminista americana chamada Angela Nagel. Nagel escreveu
um livro muito interessante – e também muito ambíguo – que não compartilho
essencialmente, mas que contém muitos elementos para entender a vitória de
Donald Trump. O título do livro é Kill all normies e é um livro sobre a cultura
da alt-right, sobre a relação entre a cultura libertária, transgressora, e a
cultura da extrema direita, que é uma direita paradoxalmente irônica, ou
melhor, cínica.

O que é ironia, o que é cinismo? É justamente o problema que o barroco


propõe. A ironia é a consciência da ambiguidade. Essa consciência da
ambiguidade tem duas faces possíveis. O rosto cortês, ou seja, quando os

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sinais são ambíguos e decifro essa ambiguidade conforme o desejo, para


aumentar o meu prazer e o seu prazer.

Mas há também um lado cínico na ironia. E o que é cinismo? É uma pergunta


muito difícil. Eu diria que o cinismo é uma consciência da ambiguidade, mas
que aceita apenas a interpretação do poder como uma interpretação possível.
O mais forte é aquele que interpreta. Os sinais são ambíguos, então eu os
interpreto de acordo com minha vontade, porque sou o mais forte.

Onde estamos hoje? Estamos no território do triunfo total do puritanismo


digital, mas, paradoxalmente, esse triunfo produziu um efeito hiperbarroco na
dimensão erótica e social, onde continuamente perdemos o rumo.

“Não
Não é não”: quando a ambiguidade se torna perigosa

Você diz no livro que, embora possa parecer paradoxal, a pornografia é


o ponto de chegada da transformação puritana do mundo.

Como digo, acho que a relação entre os corpos se empobrece devido ao


deslocamento da comunicação da relação empática para o campo da
comunicação conectiva. Recentemente, li uma mensagem de um garoto de 19
anos que dizia: “Desde que nasci meu relacionamento principal sempre foi
com autômatos inteligentes que encontrei na rede, por que tenho que fazer
sexo com humanos? Os humanos são mais brutais, menos inteligentes e
menos interessantes que os autômatos.” Parece-me claro: os seres humanos
estão falando com autômatos e perdendo a capacidade de falar com outros
seres humanos. A relação entre os seres humanos tornou-se uma relação sem
cortesia, sem esse tipo de sabedoria especial que é a decifração da
ambiguidade em condições de empatia. A pornografia é precisamente a
sexualidade sem ambiguidade, onde a ambiguidade é anulada desde o início.
Você sempre sabe o que vai acontecer.

Os movimentos de mulheres são talvez os que mostram mais


vitalidade na Espanha neste momento, e não só. Que potencial você
acha que esses movimentos podem ter para repensar e refazer códigos
de comunicação afetiva e inter-humana?

Não sei se Camille Paglia é conhecida na Espanha… O que diz Camille Paglia?
Em primeiro lugar diz: sou barroca, sou católica e latina. Segundo: minha
figura de referência é Madonna. E seu trabalho é uma crítica ao feminismo
puritano, que tem um papel fundamental, provavelmente majoritário, na
experiência do feminismo americano. Ler Camille Paglia, para mim e falar em
geral para as mulheres da minha geração, foi uma experiência enriquecedora.
Mas a certa altura as coisas mudaram e a atitude de Camille Paglia tornou-se
cada vez mais minoritária e hoje ela está, parece-me, completamente
esquecida, pelo menos nos EUA.

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Por quê? As mulheres feministas se tornaram muito puritanas e hipócritas?


Não, é que o mundo mudou, o mundo mudou de uma forma que torna cada
vez mais difícil interagir de forma ambígua e educada. A ambiguidade tornou-
se perigosa porque a polidez desapareceu e então somos forçados a dizer “sim
é sim, não é não”. Não gosto dessa binarização da comunicação, mas hoje
parece inevitável. Porque fora da redução do “sim-sim, não-não”, há
constantemente o perigo da violência.

Se não há ambiguidade, não há erotismo, porque o erotismo é essencialmente


o fenômeno de detectar a intenção implícita de uma comunicação ambígua.
Mas se acabam os contextos em que é possível interpretar a ambiguidade a
partir do prazer da relação e da empatia, então a única forma de nos
entendermos é “sim-sim” e “não-não”. A mutação atual não é apenas
tecnológica, mas comunicativa: a mutação das possibilidades de interpretação
produziu um efeito de “pornografia” do panorama erótico contemporâneo.

Política crítica, política memética

Como você interpreta a ascensão da extrema direita que vemos em


tantos lugares?

Acho que esse retorno do fascismo que estamos testemunhando em nível


planetário deve ser interpretado de uma nova maneira. Há certamente muitos
sinais do fascismo clássico: nacionalismo, agressividade, propagação da
guerra, racismo… Mas a gênese do fenômeno atual é diferente, e temos que
interpretá-lo em sua diferença.

O que está acontecendo? Acredito que estamos saindo – ou já saímos – da


dimensão que possibilitou a política da modernidade, ou seja, o pensamento
crítico. O que é pensamento crítico? O que é crítica? A crítica é a capacidade
de distinguir o que é verdadeiro ou falso, bom ou ruim, em uma afirmação, em
uma informação, em um evento. Mas para discriminar criticamente
precisamos de tempo.

A crítica tornou-se possível quando a escrita e a imprensa permitiram uma


releitura, uma reversibilidade e, sobretudo, um tempo de discriminação
crítica. A burguesia esclarecida fez da crítica o poder essencial da decisão
política. Os fatos acontecem, as informações os narram, mas temos que
decidir se isso é verdadeiro ou falso, bom ou ruim. E a partir dessa
discriminação torna-se possível uma decisão politicamente crítica.

Mas isso não existe mais. A situação em que nos encontramos hoje não
permite uma decisão política crítica. Na verdade, já não falamos de “governo”,
mas de “governança”. O que é governança? É uma automação da decisão. Se
pensarmos no que acontece no campo das finanças, por exemplo, onde há
trilhões e trilhões de informações circulando continuamente pelo mundo na
velocidade da luz, como podemos decidir se investimos em uma direção ou
outra? Não podemos! Então automatizamos a decisão.

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E o que acontece no território da política? A decisão racional e sequencial é


substituída por uma forma de comunicação que chamamos de “memética”. É
o meme que produz os efeitos da política contemporânea. O que é um meme?
Um meme é uma unidade mínima hiperintensa e hipersugestiva, mas não
racional, de comunicação política. Pepe the Frog, o símbolo usado pelos
supremacistas americanos pró-Trump, parece ter tido um enorme efeito nas
decisões de voto de milhões de jovens americanos. O livro de Angela Nagel
traz muitas informações sobre essa forma de comunicação.

Marshall McLuhan, em seu livro Understanding Media (“Os meios de


comunicação como extensões do homem”, na tradução brasileira), de 1964,
que provavelmente é um dos livros fundamentais para entender o que está
acontecendo hoje, diz: quando o universo da tecnologia da comunicação passa
da sequencialidade alfabética impressa para a dimensão da simultaneidade
eletrônica, o pensamento deixa de ser crítico e se transforma em pensamento
mitológico. O que é mitologia? A mitologia é um pensamento, não é loucura, é
um pensamento, mas é um pensamento no qual, como no inconsciente
freudiano, o princípio da contradição não funciona. Apolo, o deus, pode estar
morto e vivo: hoje ele está morto e amanhã ele vive novamente. Pode ser
branco e pode ser preto ao mesmo tempo. Isso é mitologia: a coexistência de
uma possibilidade contraditória. Apenas o oposto da revisão. Segundo
McLuhan, a transição da sequencialidade alfabética para a simultaneidade
eletrônica produz um efeito de aniquilação da própria possibilidade de crítica.
Mas isso significa que aniquila a política ao mesmo tempo.

Você acha que a esquerda deveria retornar à tradição do pensamento


crítico ou aprender a se mover nessas “novas” condições mitológicas?

Em um artigo recente, Geert Lovink pergunta: “A esquerda sabe fazer


memes?” Ou seja, podemos usar o meme como forma de comunicação? É um
problema sério. Minha resposta imediata é sim. Na minha história pessoal, as
experiências políticas do movimento nos anos 1970 italianos foram mais um
fenômeno de comunicação mitológico-memética do que um fenômeno de
comunicação crítica. E toda a cultura do rock, particularmente na época dos
anos 80, foi uma experimentação da mitologia do pensamento coletivo. Mas,
ao mesmo tempo, a pergunta é: podemos abrir mão da decisão crítica?
Podemos abrir mão do entendimento crítico que fundamenta a decisão? Não
tenho resposta para esta pergunta. Tenho a sensação de que, se não se pode
decidir politicamente sem discriminação crítica, isso significa que o fascismo
veio para ficar e isso não me agrada nem um pouco.

A revolução do tédio

Os aniversários da Revolução Russa, da morte de Che, do Maio de


1968, foram celebrados recentemente… Queria pedir-lhe uma última
palavra sobre a necessidade de reimaginar a mudança social, a
revolução. Se, como você explica, a emancipação não pode mais ser

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esse projeto racional, articulado por uma estratégia de meios e fins,


porque tudo isso antes pertenceria ao paradigma da crítica, como
podemos repensá-la, reimaginá-la?

Me convidam muito para falar de 1968: eu tinha 18 anos na época, estava


matriculado na Faculdade de Filosofia de Bolonha. Enfim, sou um cara de
sorte: tudo me parecia perfeito, o mundo era exatamente o que eu estava
imaginando, desejando e pensando.

Mas podemos pensar em replicar algo semelhante hoje? Não estou dizendo
que não, mas problematizo a coisa dizendo o seguinte: o 68 nasce do tédio. Os
anos 1960 são anos chatos, no bom sentido. O tédio não é uma coisa ruim, é
passar uma tarde imaginando coisas, sem saber exatamente o que fazer. A
intensidade foi muito grande nos anos sessenta, são anos de grande vitalidade
cultural, artística e musical. Há um mundo inteiro que se abre. Mas estou
aqui, na minha casinha com minha avó, e estou muito entediado. Então eu
quero aventura, tenho um desejo de aventura.

Hoje vivemos na condição totalmente oposta: uma condição de angústia, de


excesso de aventuras, aventuras demais que não vivo. Não vivo a aventura,
mas a aventura me cerca, me obriga a viver algo que não estou vivendo. Essa
parece ser a condição atual.

Acabei de ver o segundo filme de Zvyagintsev, um diretor russo muito triste e


muito gelado, chamado Loveless. Loveless é a história do relacionamento
entre uma mãe e um menino de 8 anos chamado Alyosha, que desaparece em
um determinado momento. Por quê? Porque é “loveless”, “sem amor”? Porque
a mãe, por motivos sociais, relacionais, de casal, de trabalho, de precariedade,
por causa do celular que toca constantemente, não é capaz de amar. E ela diz:
“Eu tive um filho, mas foi um erro porque não sou capaz de amar, não sei
como essa criança pode ser amada”.

O menino desaparece. Eles o procuram em todos os lugares, mas não o


encontram. Ele está morto ou escondido ou foi assassinado, não sabemos. O
filme termina assim, não sabemos. Esse é o problema hoje, que não sabemos
nada. Não sabemos se, numa situação angustiante, de aceleração, de
hipersaturação do espaço de atenção, o prazer da relação entre corpos que
falam pode ser reativado.

A palavra foi separada do corpo. Conversamos muito, mas os corpos não são
encontrados. E quando os corpos se encontram não sabem falar. Esse é o
problema da relação erótica, mas também o problema da relação política e da
relação social.

Uma política de emancipação começaria com o encontro entre os


corpos?

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Temos que começar, não apenas um discurso, mas uma prática de


relaxamento de expectativas, antes de tudo na dimensão da existência
cotidiana, mas não só. Você tem que dizer: “sim, a aceleração e o desejo de ter
muitas coisas venceram, mas o que me importa?” O importante, repetindo
Carlos Castañeda, não é ganhar ou perder, mas manter-se impecável. E o que
significa “permanecer impecável”? Impecável significa que não há regras, que
eu decido as regras com meus amigos. E a única regra que é válida é a regra
que nós decidimos. A política pode ser fundada na ideia de que não existem
regras, apenas as regras que decidimos de forma afetiva, erótica, sempre
provisória, sempre redefinida.

Essa também é a maneira de enfrentar o medo. Do que temos medo? Temos


medo da percepção de que a vida está nos escapando e não a estamos vivendo.
Mas, por que temos que pensar que a vida tem que ser a aventura que lemos
ou vimos na tela? Quem disse isso? Quem disse que a vida tem que ser como
maio de 68? A boa vida pode ser um retorno ao tédio. Voltar ao tédio como
terapia para a ansiedade me parece uma forma possível de lidar com o
problema.

A verdade é que não tenho muitas respostas. Nosso problema atual é que todas
as respostas do passado não funcionam porque o contexto relacional mudou
totalmente. Mas, ao mesmo tempo, insistimos em fazer perguntas que
impliquem uma resposta do passado. Um movimento de relaxamento das
expectativas aventureiras pode ser um começo para uma nova aventura.

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FRANCO BERARDI
Franco Berardi, mais conhecido por Bifo, é um filósofo, escritor e agitador cultural
italiano. Oriundo do movimento operaísta, foi professor secundário em Bolonha e
sempre se interessou sobre a relação entre o movimento social anticapitalista e a
comunicação independente.
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