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Sociologia

vol.2
Profº: Anderson G. Vitorello.
5. Gilberto Freyre
1. Contexto

A obra de Gilberto Freyre Casa Grande & Senzala é a obra inicial


da sociologia brasileira. É ela que traça a questão fundamental
que perseguimos inconscientemente desde a independência do
Brasil em 1822: quem somos nós brasileiros?

A escrita de Casa Grande deu-se em um momento em que era


necessário romper com teorias evolucionistas que
sedimentavam uma visão determinista e racista sobre o atraso
brasileiro. Políticos, Intelectuais e Médicos desejavam, ao final
do século XIX, ingressar o Brasil em uma política de
branqueamento, pois após o fim da escravidão a falta de
assistência social dada aos negros tornava suas presenças um
problema social. A negligência do estado brasileiro jogava-os na
miséria e no esquecimento de tal modo que os presídios e casas
de correção passavam pouco a pouco a ser habitadas por
pessoas negras.

Foram personagens como Nina Rodrigues (1862 – 1906) que


incentivaram tais políticas. O médico maranhense irá
desenvolver estudos em criminologia biológica, um ramo da
criminologia desenvolvido por Cezare Lombroso que acreditava
ser possível diagnosticar um delinquente nato, isto é, alguém
que nasce com a propensão ao crime. Obviamente, os estudos
desenvolvidos ao longo de uma população carcerária insipiente
no Brasil confirmariam um dado absurdo para os padrões atuais:
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negros tendem a cometer crimes por uma propensão biológica
justificada pela sua raça. Na época, acreditava-se que havia um
componente morfopsicomoral do delinquente, evidenciados na
anatomia craniana, na psicologia e na psicopatologia de um
criminoso. Essas características eram buscadas para que fosse
possível emparelhá-las com dados relativos à raça. O médico
defendeu que havia diferentes graus de civilização entre as
raças, como os demais cientistas, mas tentou mostrar que havia
uma anterioridade do branco, do negro e do vermelho. Essas
raças eram chamadas primitivas e se contrapunham às raças
cruzadas. As raças cruzadas seriam os mulatos, mamelucos ou
caboclos, os cafuzos e os pardos.

Tais ideias levavam a conclusão de que para se modernizar o


Brasil deveria modificar a “presença excessiva de pessoas de
pele negras”. Contudo, será justamente contra essa visão que
Gilberto Freyre escreve seu livro.

Ao estudar em Nova Iorque, na universidade de Columbia,


Gilberto Freyre entrou em contato com as ideias de Franz Boas.
Boas era um etnólogo que fundou o culturalismo na
Antropologia. Nesse mesmo sentido, Freyre irá fazer uma
investigação acerca das raízes da cultura brasileira.

2. Casa Grande & Senzala

O livro Casa Grande é um estudo das raízes da cultura brasileira


a partir de evidências coletadas na vida cotidiana da família
patriarcal. Freyre deseja compreender quem somos nós a partir
do entendimento dos hábitos alimentares, formas de convívio,
ocupação dos espaços e até mesmo a partir da sexualidade.

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A tese central do livro é que o Brasil é uma democracia racial,
isto é, o Brasil é o país do encontro de três raças que se
misturaram cultural e geneticamente. Para demonstrar como
essas três vertentes se cruzam, Freyre dividiu seu livro em três
momentos principais: a descrição dos brancos portugueses, dos
indígenas da américa e dos negros africanos.

A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a


distância social que de outro modo se teria conservado enorme
entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a
senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata
realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade
brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante
lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos
antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos
sociais da miscigenação. - Freyre, G. Casa-grande & senzala.

3. Os Portugueses

Gilberto Freyre descreve os portugueses como um povo dado


ao contato cultural. Segundo o autor, a cultura portuguesa do
período colonial havia se modificado muito em função dos
constantes contatos com povos árabes e subsaarianos. Ele
lembra que por duzentos anos os portugueses tiveram
entrepostos comerciais na África e o contato com a Índia levara
os portugueses a modificarem suas convicções culturais
enormemente.

“Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na


estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica,
híbrida de índio - e mais tarde de negro - na composição. Socie-
dade que se desenvolveria definida menos pela consciência de
raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do
que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de
profilaxia social e política.” - Freyre, G. Casa Grande & Senzala

Para Freyre, o português seria o menos europeu dos povos e


dera cores africanas a inúmeras instituições europeias. Um
historiador da época chamado Audrey Bell, por exemplo,
descreve os portugueses como o povo que personifica o
barroco, pois o passado cristão contrastava com a oleosidade e
maleabilidade da absorção da africanidade.

A singular predisposição do português para a colonização


híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o
seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre
a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma nem de
outra, mas das duas. A influência africana fervendo sob a
européia e dando um acre requeime à vida sexual, à
alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por
uma grande população brancarana quando não predominando
em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar
quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de
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cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e
doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo,
ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa
reinando, mas sem governar; governando antes a África -
Freyre, G. Casa Grande & Senzala

4. Os Indígenas

A utilização do termo indígena já mostra o quanto a pluralidade


cultural encontrada aqui não foi respeitada na análise de Freyre.
Os povos indígenas eram muitos e contribuíram de diferentes
modos nas tradições do Brasil atual, contudo eles são vistos por
Freyre como contribuintes menores para a civilização brasileira.
Para o autor, tratava-se de uma cultura ainda vivenciando sua
infância, o que mostra que ainda havia resquícios de
evolucionismo no seu pensamento.

“De modo que não é o encontro de uma cultura exuberante de


maturidade com outra já adolescente, que aqui se verifica; a
colonização europeia vem surpreender nesta parte da América
quase que bandos de crianças grandes; uma cultura verde e
incipiente; ainda na primeira dentição; sem os ossos nem o
desenvolvimento nem a resistência das grandes semi-
civilizações americanas.” - Freyre, G. Casa Grande & Senzala.

Na cultura alimentar o hábito de comer o caju e a mandioca são


extremamente importantes. Na área de cultura material, o uso
de fibras na confecção de cestos, a arte em cerâmica é também
muito importante até hoje. Há inúmeros casos de adaptação da
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vida indígena às necessidades de portugueses e negros, mas
muito dessa contribuição ainda está por ser reconhecida. Por
outro lado, no que diz respeito à miscigenação genética, as
mulheres indígenas são reconhecidas como parte integrante da
família brasileira – elas, em suas práticas tradicionais,
experiências e utensílios irão legar para a civilização tropical
marcas indeléveis.

“Organizou-se uma sociedade cristã na superestrutura, com a


mulher indígena, recém- batizada, por esposa e mãe de família;
e servindo-se em sua economia e vida doméstica de muitas das
tradições, experiências e utensílios da gente autóctone.” -
Freyre, G. Casa Grande & Senzala

5. Os africanos

A contribuição Africana para a cultura brasileira é densamente


descrita por Gilberto Freyre. O autor acredita que a partir da
análise do cotidiano das famílias patriarcais era possível
vislumbrar diferenças na escravidão brasileira
comparativamente à escravidão americana.

O menos cruel nas relações com os escravos. É verdade que,


em grande parte, pela impossi- bilidade de constituir-se em
aristocracia europeia nos trópicos: escasseava-lhe para tanto o
capital, senão em homens, em mulheres brancas. Mas
independente da falta ou escassez de mulher branca o
português sempre pendeu para o contato voluptuoso com
mulher exótica. Para o cruzamento e miscigenação. Tendência
que parece resultar da plasticidade social, maior no português
que em qualquer outro colonizador europeu. – Freyre, G. Casa
Grande & Senzala

Freyre acredita que essa situação de maior tolerância se dava


em função da maior liberdade nas relações sexuais.
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Portugueses nunca se restringiram a ter contato sexual somente
com mulheres europeias. Primeiramente porque o concubinato
foi uma das tradições herdadas por portugueses em seu contato
com árabes. Além disso, há casos de missões de povoamento
contato sexual teria criado uma maior paisagem social aqui no
Brasil, pois haveria espaço para formas de jogos de poder mais
diversos nessa sociedade. Ora, de um lado o cristianismo
pressiona para o reconhecimento da paternidade, de outro, a
promiscuidade e o desejo afloram a culpa. Foi desse modo que
inúmeras figuras sociais brotaram nos interstícios da sociedade
colonial.

Esses hábitos, além de horizontalizarem relações de poder,


terminam por criar hierarquias internas à condição de escravo.
Nem todo escravo estará no “eito” trabalhando de sol a sol e
sofrendo violência. Haverá inúmeras posições que podem ser
ocupadas por escravos dentro da chamada Casa Grande.
Haverá espaço para mucamas, sinhamas, molecas e meninos
de brincar.

Todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro, traz na alma,


quando não na alma e no corpo - há muita gente de jenipapo ou
mancha mongólica pelo Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta,
do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande
do Sul e em Minas Gerais, sente-se a influência direta, ou vaga
e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se


deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala. no canto
de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de
vida. Trazemos quase todos a marca da influência negra. Da
escrava ou sinhama que nos embalou, que nos deu de mamar.
Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão
de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias

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de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o
primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou
no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a
primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o
nosso primeiro companheiro de brinquedo. Freyre, G. Casa
Grande & Senzala

Freyre irá então perceber que o convívio em pontos estratégicos


da Casa Grande terminou por influenciar na alimentação, nos
mitos e lendas, assim como no comportamento sexual do
brasileiro.

Na alimentação há diferenças gigantes no que diz respeito ao


modo como a culinária negra entrou para o cardápio nacional.
Nos EUA, a culinária negra é conhecida como Soul Food. Trata-
se de comida da alma porque é a comida que fornece energia
para o trabalho pesado. Tal comida é reconhecidamente comida
afro-americana e não é tratada como comida nacional. Já no
Brasil, os pratos da comida afro-brasileira foram elevados a
pratos nacionais. É o caso da feijoada, que existe no Brasil como
prato nacional e nos EUA como prato afro-americano. Qual a
diferença? Gilberto Freyre tende a ver isso como um sinal de
integração cultural, mas a crítica recente entende que isso são
estratégias de apagamento.

Do mesmo modo, a presença negra na vida sexual do patriarca FIGURE 1: AMA DE LEITE DO
causou uma tendência no comportamento sexual brasileiro que MENINO EUGEN KELLER (1874)
será futuramente tematizado quando falarmos do feminismo
negro no Brasil. A mulher negra foi durante séculos tratada como
objeto sexual, ser hipersexualizado e sem voz. Isso criou
dicotomias observáveis nos costumes do brasileiro em tratar a
família como um lugar sem realização sexual e a vida com as
amantes como o verdadeiro lugar de realização da
masculinidade. Isso, no entanto, formou o que chamamos de
vilania masculina – o homem é ser dividido, onde o amar é sem
sexo e o sexo é sem amar.

É verdade que as condições sociais do desenvolvimento do


menino nos antigos engenhos de açúcar do Brasil, como nas
plantações ante-bellum da Virgínia e das Carolinas - do menino
sempre rodeado de negra ou mulata fácil - talvez expliquem por
si sós, aquela predileção. Conhecem-se casos no Brasil não só
de predileção, mas de exclusivismo: homens brancos que só
gozam com negra. De rapaz de importante família rural de
Pernambuco conta a tradição que foi impossível aos pais
promoverem-lhe o casamento com primas ou outras moças
brancas de famílias igualmente ilustres. Só queria saber de
molecas. Outro caso, referiu-nos Raoul Dunlop de um jovem de
conhecida família escravocrata do Sul: este para excitar-se
diante da noiva branca precisou, nas primeiras noites de casado,
de levar para a alcova a camisa úmida de suor. impregnada de
budum. da escrava negra sua amante. Casos de exclusivismo
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ou fixação. Mórbi- dos, portanto, mas através dos quais se sente
a sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do
brasileiro. – Freyre, G. Casa Grande & Senzala

6. A Democracia Racial

Freyre acreditava que a democracia racial era um trunfo para o


futuro. Um país que tivesse pacificadas as relações de raça teria
menos dificuldades em um futuro globalizado que já se
desenhava no capitalismo do início do século XX. Tal país, ficou
cunhado nas palavras de Stefan Zweig como o país do futuro –
um lugar para ser feliz e ser aceito. É sobre esse legado ou
projeto de nação que iremos conversar nos próximos capítulos.

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6. Sérgio Buarque
de Holanda
1. Contexto

Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982) é autor do livro


Raízes do Brasil. Esta obra é certamente uma das mais potentes
em povoar o imaginário brasileiro ao lado de Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre, pois construiu o mito da herança
maldita e o mito da cordialidade brasileira. Raízes do Brasil foi
escrito e publicado no período da ascensão de Getúlio Vargas.
Nesse período, o nazismo e o fascismo traziam uma forte
reflexão sobre quais os limites saudáveis do nacionalismo, ao
passo que o próprio Getúlio Vargas elaborava uma forma de
política em que a aliança com o liberalismo americano era
importante. Raízes do Brasil é, contudo, uma obra muito mais
aguda do que seus mitos fizeram dela e por isso vale a pena
deter-se em seus argumentos principais.

Metodologicamente, Holanda se filiou aos estudos culturais de


Weber. Sua busca será por compreender o Brasil e o brasileiro
a partir dos tipos de ação e dos tipos ideais. Para isso, ele irá
traçar uma genealogia do caráter do brasileiro a partir dos
portugueses.

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A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso
território, dotado de condições naturais, se não adversas,
largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da
sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em
consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de
convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em
manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e
hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. [...] o
certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça
parece participar de um sistema de evolução próprio de outro
clima e de outra paisagem. - Holanda, S.B. Raízes do Brasil.

1. A tese da modernidade

A primeira tese de Sérgio Buarque de Holanda nasce do


comparativo entre instituições da modernidade europeia e
instituições brasileiras. A modernidade europeia viu nascer por
meio da ação racional, instituições que se caracterizam pela
racionalidade, pelo cálculo, pela previsão e domínio burocrático
do âmbito social e político. Na Europa, o senso republicano de
respeito às leis e de cuidado com a coisa pública promoveu um
ambiente de profunda consideração do coletivo sobre o
individual. Por outro lado, a modernidade brasileira viu não
ocorreu do mesmo modo. A forma principal de ação que teria
varrido a civilização portuguesa dos trópicos foi a afetiva
permeada por altas doses de irracionalidade. As instituições
seriam profundamente marcadas pela falta de objetividade, pela
ausência de planejamento e por relações de domínio
carismático.

Holanda planeja mostrar, por meio do mapeamento da ação de


inúmeros tipos ideais portugueses como o tipo ideal brasileiro
nasceu. Por esse motivo, passamos à análise das ações desses
tipos.

Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático


jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente
esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e
simples de uma autoridade incomoda, confirmando nosso
instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com
familiaridade os governantes. - Holanda, S.B. Raízes do Brasil.

2. O Fidalgo

Sérgio Buarque de Holanda percebe que o português que


desembarca nas terras brasileiras tem alguns hábitos que
contrastam com a realidade social dos países do norte europeu.
Em primeiro lugar, o senso de individualidade contrasta com a
identidade grupal e o senso de nacionalismo dos alemães e
franceses. O português não se apaga e não se dobra diante de
instituições e quando chega no Brasil, cria um falso
pertencimento à nobreza para justificar seus mandos e
demandos. Holanda diz que era comum que o tráfego entre
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capitanias hereditárias fosse taxado para aqueles comerciantes
e traficantes que quisessem trafegar dentro dos territórios.
Contudo, quando capitães e outras pessoas de maior
ranqueamento social cruzavam os limites de capitanias era
comum que apresentassem sua filiação, seus relacionamentos
pessoais e passado como um subterfúgio para conquistar
favores. Desse modo, a américa portuguesa apresentou desde
sempre uma forte presença de relações personalistas que
prejudicavam o fortalecimento das instituições e o seu
funcionamento objetivo.

FIGURE 2: FIDALGO PORTUGUES COM A MEDALHA DA ORDEM DE


CRISTO

Holanda fala-nos de como a ausência do senso de dever e a


presença do senso de obediência cega se criaram neste país. O
senso de dever é aquele que aparece no respeito às instituições,
na compreensão de que as pessoas não têm privilégios diante
do tratamento isonômico. Já o senso de obediência cega brota
neste país justamente porque a busca do privilégio pessoal faz
com que os laços pessoais sejam mais fortes que a frieza da lei
e das instituições.

“Não era fácil aos detentores das posições públicas de


responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a
distinção fundamental entre os domínios do privado e do público.
[...] Para o funcionário “patrimonial” , a própria gestão política
apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as
funções, os empregos e os benefícios que deles aufere
relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a
interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado
burocrático, em que preva- lecem a especialização das funções
e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos
cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções
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públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que
mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas
capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que
caracteriza a vida no Estado burocrático.” - Holanda, S.B. Raízes
do Brasil.

3. O Aventureiro

O aventureiro é um tipo ideal que nasce do espírito que as


navegações incutiram no português. As navegações criaram
uma geração de homens destemidos e com anseios de
enriquecimento. Lançar-se ao mar e abandonar a família era
algo comum na Lisboa dos anos 1500. Foi assim que nasceu um
homem com anseios de enriquecimento rápido e empreendedor.

O homem europeu do norte estava habituado a criar sua fortuna


por meio do trabalho e do encontro com a vocação. Weber fala-
nos da busca pela vocação como uma missão religiosa. O
trabalho é o ponto central de uma identidade e de uma visão de
mundo onde o mérito passa a ser o valor fundamental.

Uma consequência interessante desse espírito aventureiro foi a


aversão ao trabalho. Dado que portugueses desde o início
utilizaram trabalho escravo, seja indígena ou africano, a imagem
do trabalho como um esforço lucrativo não esteve associada ao
espírito brasileiro tal como esteve no europeu. O trabalho é coisa
“que não vai pra frente” na visão do aventureiro.

FIGURE 3: SUPOSTO DESEMBARQUE DE PEDRO ÁLVARES CABRAL

Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no


exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que
sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho.
[...] Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até
mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que
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a luta insana pelo pão de cada dia. - Holanda, S.B. Raízes do
Brasil.

4. A Herança Rural

Um dos traços fundamentais do caráter do brasileiro foi


produzido pela herança rural. Inúmeros portugueses vindos para
cá trouxeram consigo um estilo de vida forjado no campo
português. O mundo colonial brasileiro será agrário dedicado ao
plantio de cana e, posteriormente, dedicado ao café. Holanda
acredita que o perfil agrário brasileiro contrasta com o perfil
urbano europeu. No mundo camponês é possível perceber uma
tendencia maior ao conservadorismo – mundo cíclico, ligado à
estabilidade do campo e do contato com a natureza.

Além disso, o mundo urbano brasileiro, ainda incipiente na


década de 30 em que o livro foi escrito, demonstrava ser
enormemente dependente do campo. A elite urbana brasileira
tinha o campo como seu apêndice ineliminável, pois
profissionais liberais aqui tinham uma visão de mundo
conservadora. Desse modo, o mundo agrário brasileiro foi
determinante para o fracasso da modernidade na civilização dos
trópicos portugueses.

FIGURE 4: ENGENHO DE AÇUCAR DO NORDESTE, 1816

5. O Semeador

Por fim, uma das características que o autor elenca como sendo
também efeito dos tipos ideais que aqui aportaram é observável
na ocupação do espaço. Segundo Holanda, o espaço brasileiro
não foi ocupado de modo racional e planejado. Não houve aqui

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uma burocracia capaz de sistematizar e organizar atividades
econômicas, militares e de povoamento. A profunda liberdade,
organicidade e naturalidade são as marcas da ocupação do
espaço. Jogos de alianças com tribos nativas, atividades
econômicas que brotavam ao acaso, movimentos migratórios
sazonais que cruzavam o continente traficando gado e escravos.
Além disso, missões jesuíticas penetravam os territórios além do
Tratado de Tordesilhas. Tudo isso foi a marca de um espaço que
se ocupou aos moldes de uma semeadura – alguns lugares
brotando em vida, outros permanecendo virgens.

Em nosso próprio continente a colonização espanhola


caracterizou-se largamente pelo que faltou à portuguesa: por
uma aplicação insistente em assegurar o predomínio militar,
econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas,
mediante a criação de grandes núcleos de povoação estáveis e
bem ordenados. Um zelo minucioso e previdente dirigiu a
fundação das cidades espanholas na América. - Holanda, S.B.
Raízes do Brasil.

FIGURE 5: PLANTA BAIXA DA OCUPAÇÃO DA CIDADE DE SALVADOR

6. O Homem Cordial

Assim, podemos finalmente nos questionar quem é o tipo-ideal


brasileiro. A resposta de Sérgio Buarque é que somos homens
cordiais. Contudo, engana-se quem pensa que essa
característica descreve um ser somente amável e dócil. A
cordialidade é uma característica derivada da irracionalidade, da
afetividade, do personalismo, do conservadorismo, da
naturalidade. Portanto, reflete também o lado irascível e violento
do brasileiro.

“no “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma


verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo
mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as
circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para
com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social,
periférica, que no brasileiro — como bom americano — tende a
ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. [...] Já
se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira
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para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o
“homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos
visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter
brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e
fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano,
informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que
essas virtudes possam significar “boas maneiras” , civilidade.
São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo
extremamente rico e transbordante. - Holanda, S.B. Raízes do
Brasil.

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7. Raymundo Faoro
1. Contexto

Raymundo Faoro (1925 – 2003) foi um jurista, historiador e


sociólogo brasileiro que se tornou notável por suas contribuições
sociológicas de influência cruzada entre o weberianismo e o
marxismo. Sua obra mais importante chama-se Os Donos do
Poder e nela temos um diagnóstico de como os jogos de poder
foram jogados desde os tempos coloniais até o final do primeiro
mandato de Getúlio Vargas.

2. A Tese do Estamento Patrimonial

O conceito central da análise de Faoro é a existência de um


estamento. O estamento é um grupo diferente de uma elite
burguesa porque ela consiste em uma miscelânea de agentes
sociais. O estamento é um grupo que compreende uma nobreza,
burocratas e militares que se utilizam de suas funções e do

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poder de estado para manter a sua influência política e para o
controle de bens e riquezas. Desse modo, Faoro também
atribuiu ao Brasil um projeto moderno fracassado, mas com uma
análise um tanto diferenciada das formas de poder.

Segundo Faoro, o estamento patrimonial é um grupo que


funciona como um centro de gravidade que puxa pessoas para
buscarem algum tipo de filiação. O personalismo identificado por
Holanda segue sendo reconhecido como uma característica
brasileira, mas agora há um grupo que orienta a formação da
rede de laços pessoais. Além disso, Faoro agrega à dominação
carismática as formas de dominação tradicionais, pois a nobreza
e os militares são grupos cuja força se perpetua a partir de
instituições pré-modernas.

“O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando


aparece o estado-maior de comando do chefe, junto à casa real,
que se estende sobre o largo território, subordinando muitas
unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia
dispersa assume caráter patriarcal, identificável no mando do
fazendeiro, do senhor de engenho e nos coronéis. Num estágio
inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo
estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute
dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o
setor público e o privado, que, com o aperfeiçoamento da
estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de
poderes, sepa- rando-se o setor fiscal do setor pessoal.”– Faoro,
R. Os Donos do Poder

Uma das consequências desta formação social brasileira é o


relativo distanciamento entre povo e estado. Se supõe que o
estado nacional é uma formação político-jurídica que espelha a
identidade nacional. Contudo, quando um grupo absorve as
instituições políticas e as controle ao seu favor, esse
espelhamento entre povo e estado passa a refletir uma imagem
borrada e irreconhecível. Por esse motivo, Faoro seguidamente
diz que o brasileiro é um povo sem estado.

Esse distanciamento permite que mais problemas sejam


criados. O uso privatista dos poderes do estado cria a situação
de nepotismo. O nepotismo é a prática de atribuição de cargos
políticos, técnicos e da burocracia em geral a familiares. O poder
é todo distribuído entre pessoas que tem confiança uma nas
outras. Deflagra-se a impossibilidade de trabalhar com pessoas
diferentes, mas com quem se concorda em atingir o bem
comum.

“O patrimonialismo – com a sua criatura, o estamento


burocrático – continha, no próprio seio, o germe do suicídio
econômico. Desenvolvera uma concepção de vida avessa ao
trabalho produtivo e à rotina, comprazendo-se, exclusivamente,
no amor aos postos e empregos públicos.” – Faoro, R. Os Donos
do Poder
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3. O Capitalismo Politicamente Orientado

Faoro critica a formação do estamento patrimonial brasileiro


porque uma das consequências nefastas de sua constituição é
a distorção da formação do capitalismo brasileiro. Segundo o
sociólogo, o capitalismo brasileiro tem uma orientação política e
não livre. Não houve ambiente para a livre iniciativa florescer no
brasil em função de que os donos do poder se colocam como
contendores ou viabilizadores de qualquer empreitada
econômica em território nacional.

Segundo Faoro desde o período colonial as formas de


relacionamento entre a coroa e a população foi profundamente
paternalista.

O capitalismo cresce à sombra da casa real, faz-se apêndice do


Estado. A economia racional, entregue às próprias leis, com a
calculabilidade das operações, é frustrada no nascedouro. Esse
pecado original da formação portuguesa ainda atua em suas in-
fluências, vivas e fortes, no Brasil do século XX. O capitalismo,
tolhido em sua manifestação plena, desvirtua-se, vinculando-se
à política. É o capitalismo político, que vai encontrar campo de
expansão nos monopólios reais, nos arrendamentos de tributos,
na venda de cargos, nos fornecimentos públicos, nos privilégios.
O comércio e a indústria reduzem-se a alimentar as
necessidades do Estado.

O capitalismo politicamente orientado — o capitalismo político,


ou o pré-capitalismo —, centro da aventura, da conquista e da
colonização moldou a realidade estatal, sobrevivendo, e
incorporando na sobrevivência o capitalismo moderno, de índole
industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do
indivíduo — liberdade de negociar, de contratar, de gerir a
propriedade sob a garantia das instituições. A comunidade
política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como
negócios privados seus, na origem, como negócios públicos
depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a
sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a
explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa
realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder,
institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja
legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque
sempre foi.

O estado patrimonial é também profundamente patrimonialista,


pois ele garante que as empreitadas econômicas tenham a
segurança necessária para enfrentar instabilidades de mercado.
O mercado não é livre ele é profundamente marcado pelas
relações daqueles que são íntimos das estruturas de governo e
por meio dessas relações o poder se perpetua nas mãos
daqueles que tradicionalmente estiveram na posição de cima da
hierarquia social brasileira.

19
Um outro fenômeno importante que será tratado por Raymundo
Faoro e que ganhará notoriedade é o coronelismo.

"O coronel, antes de ser um líder político, é um líder econômico,


não necessariamente, como se diz sempre, o fazendeiro que
manda nos seus agregados, empregados ou dependentes. O
vínculo não obedece a linhas tão simples, que se traduziriam no
mero prolongamento do poder privado na ordem pública.
Segundo esse esquema, o homem rico - o rico por excelência,
na sociedade agrária, o fazendeiro, dono da terra - exerce poder
político, num mecanismo em que o governo será o reflexo do
patrimônio pessoal." Faoro, Raymundo. Os Donos do Poder

4. Coronelismo e Personalismo

Vale agregar a este capítulo mais um dos estudiosos da sina


personalista brasileira. O advogado Victor Nunes será outro
grande estudioso das formas de dominação que travestem
interesses privados em ações do poder público. O caso em
questão é a análise do fenômeno tipicamente brasileiro do
coronelismo. Este é definido como “o resultado da superposição
de formas desenvolvidas do regime representativo a uma
estrutura econômica e social inadequada”. Ou seja, o
coronelismo é um sistema de barganha entre um poder público
muito fortalecido e um poder privado decadente em que o poder
privado migra para a estruturas públicas para seguir fazendo
seus jogos.

“Ali o binômio ainda é geralmente representado pelo senhor da


terra e seus dependentes. Completamente analfabeto, ou
quase, sem assistência médica, não lendo jornais nem revistas,
nas quais se limita a ver as figuras, o trabalhador rural, a não ser
em casos esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é
dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura
existência conhece. Em sua situação, seria ilusório preten- der
que esse novo pária tivesse consciência do seu direito a uma
vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico
20
é o que presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel”
e pelo “coronel”. Aí estão os votos de cabresto, que resultam em
grande parte, da nossa organização econômica rural.” – Nunes,
V. Coronelismo, Enxada e Voto

Victor Nunes coloca o coronelismo como um fenômeno nascido


do grande latifúndio e que autorizava, na base do poder
econômico, um poder privado que se expressava através do
crescente poder público. O termo “coronel” é derivado da
existência da antiga Guarda Nacional que autorizava homens a
manterem seus exércitos particulares na ausência de um
exército nacional. A diferença, nesse caso, é que, agora, tais
coronéis usam capangas e milicianos para intimidação dos mais
pobres e para agir nos interstícios da lei.

Nesse sentido, Nunes aponta ainda um paradoxo. Ele mostra


que o poder publico alimenta o privatismo, no caso do
coronelismo. Isso era possível porque o sistema eleitoral dos
anos iniciais da república era coordenado com uma mentalidade
privatista, agressiva e controladora por parte dos barões
brasileiros e porque o mundo brasileiro, nos anos iniciais da
república, ainda não poderia prescindir da vida rural.

“Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento


primário desse tipo de liderança é o “coronel” que comanda
discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto.
A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroa-
mento da sua privilegiada situação econômica e social de dono
de terras. Dentro da esfera própria de influência, o “coronel”
como que resume em sua pessoa, sem substitui-las, importantes
instituições sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdição
sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e
proferindo, às vezes, verdadeiros arbitra- mentos, que os
interessados respeitam. Também se enfeixam em suas mãos,
com ou sem caráter oficial, extensas funções policiais, de que
frequentemente se desincumba com a sua pura ascendência
social, mas que eventualmente pode tornar efetivas com o
auxílio de empregados, agregados e capangas.” .” – Nunes, V.
Coronelismo, Enxada e Voto

Se por um lado o mundo rural era ainda a base econômica e


social do país até os anos 50, por outro lado o mundo urbano ia
pouco a pouco crescendo. Pode-se dizer que, nesses anos, o
mundo urbano ainda depende do mundo rural. Advogados,
médicos e toda classe de profissionais liberais ainda é atrelada
ao campo, seja porque seus pais lá se encontram, seja porque
os exercícios dessas ativi- dades têm como cliente a família
patriarcal do interior do Brasil. Assim, o sistema chamado de
coronelismo é mais do que a mera presença do coronel e seus
capangas, mas é toda a gama de pessoas ligadas a ele seja por
laços de sangue, por compartilhar um status de privilégio, por,
na cidade, depender ainda do mundo rural, ou por ser um
miserável trabalhador do campo.
21
22
7. Caio Prado
Júnior
1. Contexto

Caio Prado Júnior (1907 – 1990) foi um advogado paulista que


dedicou sua obra ao entendimento da sociedade brasileira. Suas
obras foram as primeiras a adaptar o pensamento marxista no
Brasil e espalham-se pela história, geografia, sociologia e
filosofia. Além de pensador, Caio Prado atuou como membro do
Partido Comunista Brasileiro e foi deputado estadual em São
Paulo e foi vítima dos expurgos da ditadura militar. Sua obra
prima é Formação do Brasil Contemporâneo, um conjunto de
três volumes que visa dar um diagnóstico do sentido de ser
brasileiro a partir do entendimento da colonização.

2. Formação do Brasil Contemporâneo

“Qual o sentido do Brasil?” eis a pergunta que guia a


investigação de Caio Prado ao longo de sua obra. Para ele
entender o sentido do Brasil iniciava pela compreensão do
processo que forma a nação e o estado brasileiro. Acontece que
para dar uma resposta a essa pergunta, Caio Prado demonstra
que é necessário aprofundar-se em uma compreensão de
estruturas temporais de longo alcance e por isso ele retorna ao
entendimento do Brasil Colônia.

23
Para Caio Prado, a chave da compreensão do Brasil atual
passava pelo entendimento do papel do Brasil Colônia na
estruturação do capitalismo moderno. O Brasil entra na
economia capitalista ocupando uma posição de país exportador
que deveria fornecer tabaco, açúcar, algumas drogas do sertão
e que, mais tarde, passou a fornecer ouro e diamante, para por
fim, fornecer café para o comércio europeu.

“O Brasil contemporâneo se define assim: passado colonial que


se balanceia e encerra no século XVIII, mais as transformações
que se sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no
atual. Naquele passado se constituíram os fundamentos da
nacionalidade: povoou-se um território semideserto, organizou-
se nele uma vida humana que diverge tanto daquela que havia
aqui, dos indígenas e suas nações, como também embora em
menor escala, da dos portugueses que empreenderam a
ocupação do território. Criou-se no plano das realizações
humanas, algo novo.” – Prado Júnior, C. Formação do Brasil
Contemporâneo

A agroexportação brasileira colocou o país em uma condição de


atraso histórico com relação às demais economias capitalistas.
Caio Prado acreditava que parte do entendimento do que é o
Brasil passa por compreender as razões do atraso brasileiro.
Nesse sentido, o autor acreditava que o imperialismo e o
colonialismo eram chaves fundamentais para responder a essa
pergunta. Só em função da agroexportação uma estrutura social
foi delineada: a escravidão foi o modo de produção utilizado no
Brasil e isso trouxe um atraso na adoção da mão de obra
assalariada e um consequente atraso na formação de uma
classe operária brasileira. Ademais, a estrutura agrária produziu
uma elite patriarcal ligada aos valores do campo, que deixou a
sociedade brasileira sem uma burguesia ansiosa por
modernização.

Dessa formação social brasileira surge uma crítica importante ao


pensamento marxista universalista. O marxismo universalista
propunha que para encontrar um caminho seguro para a
revolução socialista era necessário que as diferentes nações
formassem um proletariado consciente de si como classe e que
promovesse uma revolução contra as estruturas de poder. Caio
Prado acredita que a história brasileira difere de europeia. O
Brasil não passara por um regime feudal, pois não tinha um
regime de servidão, mas tampouco não tinha uma escravidão
aos moldes da escravidão antiga. Por isso sua formação de
classe não corresponderia ao que era esperado pela ortodoxia
marxista.

Outra consequência importante advinda da compreensão do


papel do Brasil na economia colonial é o entendimento dos ciclos
econômicos. A economia brasileira jamais foi planificada, pois
ela sempre foi elaborada a partir de demandas externas. Os
ciclos econômicos que se sucederam no Brasil foram:
24
a. Ciclo Pau-Brasil: um ciclo de extração de madeira.
b. Ciclo da Cana-de-açúcar: ciclo que plantava cana para
produção de açúcar.
c. Ciclo do Café: ciclo que plantava e torrava café para
abastecer trabalhadores industriais.

Em nenhum dos casos o Brasil produziu um produto que tivesse


concorrência com os países centrais da Europa. Justamente aí
que Caio Prado parecia entender que haveria um passo histórico
a ser vivido. O autor defenderá uma espécie de nacional
capitalismo que seria necessária para completar a transição da
economia colonial para uma economia nacional. O
desenvolvimento de uma burguesia nacional parece uma
necessidade do desenvolvimento nacional.

FIGURE 6: UM ENGENHO DE AÇÚCAR EM PERNAMBUCO COLONIAL,


PELO PINTOR HOLANDÊS FRANS POST (SÉCULO XVII).

A consequência positiva do desenvolvimento de um


industrialismo brasileiro seria o desenvolvimento de um mercado
interno. Ao desenvolver um mercado interno, o Brasil seria então
capaz de superar as suas deficiências de povoamento – Caio
Prado mostra que somos um povo atrelado ao litoral justamente
por olhar sempre para fora e nunca para dentro do país.

3. Comparações e Analogias

Caio Prado compara a formação histórica brasileira com a


americana. Ele percebe que uma diferença fundamental entre
ambas é o fato de que nos EUA houve o que ele chamou de
colonização de povoamento. Para a américa do norte, houve
inúmeras famílias que cruzaram o atlântico porque eram
perseguidos religiosos. Não havia o projeto de retornar para a
Europa enriquecido ou a ideia de tornar-se um fidalgo agente da
exploração. Já para o Brasil, as pessoas vindas faziam parte da
25
empresa colonial portuguesa em que a colonização serve para
o único propósito de enriquecer a metrópole. O Brasil tornou-se
uma colônia de exploração. Desse modo, ao sul do equador,
todo projeto nacional que diverge da posição subalterna no
capitalismo encontra uma forte resistência para se desenvolver
– algo que o norte dos EUA não encontrou por um longo período.

FIGURE 7: O LAVRADOR DE CAFÉ, OBRA DE CANDIDO PORTINARI (1939)

Caio Prado irá traçar um perfil da ocupação do espaço brasileiro.


Para ele, a ocupação é divida em orgânica e inorgânica. Ser
orgânico significa participar e estar conforme ao projeto de
explorar ao Brasil. Nessa categoria encaixam-se latifundiários e
extrativistas. Já na posição de inorgânico, encontram-se
jesuítas, pequenos proprietários e mercadores do comércio
interno. A organicidade é a capacidade de estar conectado ao
comercio mundial e de participar da formação do capitalismo. Já
a inorganicidade é o avesso disso, portanto, significa a empresa
que fica alheia aos projetos de exploração.

26
27
9. Florestan
Fernandes
1. Contexto

Florestan Fernandes (1920 – 1995) é o sociólogo marxista mais


influente do século XX. Suas investigações penetram no terreno
do entendimento da desigualdade brasileira e criticam o
imaginário de democracia racial presente na sociedade. Para
compreender por que a sociedade brasileira apresenta uma
mobilidade social restrita e uma estrutura condizente com o
mundo colonial, Florestan elabora um entendimento do
capitalismo brasileiro e o conecta com a situação racial dentro
do Brasil.

FIGURE 8: O SOCIÓLOGO E ESCRITOR BRASILEIRO FLORESTAN


FERNANDES

2. Brasil: um país capitalismo dependente.

Florestan parte de ideias que já eram discutidas pela tradição


marxista do Brasil. Questões como o atraso brasileiro no
capitalismo, a desigualdade social e a herança econômica e
social sempre foram problemas que tiveram importância na
academia como na política brasileira. Florestan irá inovar
discordando da tese de que o Brasil é um país subdesenvolvido
pela ausência de uma burguesia urbana.

A tese da ausência de uma burguesia urbana fora defendida pela


ortodoxia marxista durante os anos 20 e 30, mas cada vez mais
28
ela perdia força. Florestan irá mostrar que o crescimento urbano
brasileiro a partir dos anos 40 já dava condições para o
desenvolvimento de um proletariado urbano e uma nascente
burguesia industrial. Em meados dos anos 50 e 60 já havia uma
burguesia brasileira consciente de si e poderosa. Era necessário
compreender qual era a postura da burguesia brasileira.

Florestan Fernandes irá lançar a tese da hegemonia de


burguesias. Tal tese credita ao comportamento da burguesia
nacional brasileira uma relação de cumplicidade com a ordem
global capitalista. Tal como diz a professora Miriam Limoeiro-
Cardoso, especialista na obra de Florestan:

Por um lado, “o problema não é que existam duas ‘burguesias’,


mas uma hegemonia burguesa duplamente composta, graças à
qual interesses burgueses internos e externos se fundem,
funcionando estrutural e dinamicamente de forma
interdependente e articulada. Esta associação cria a
inviabilidade da América Latina sob o capitalismo, porque é ela
que origina, preserva e legitima um padrão de mudança social
que continuamente reorganiza a dependência, a expoliação, a
miséria e as iniqüidades sociais, que tornam a revolução
nacional uma improbabilidade histórica” – Limoeiro-Cardoso, M.
Capitalismo Dependente, Autocracia Burguesa e Revolução
Social em Florestan Fernandes.

Assim, as revoluções, ciclos econômicos e mudanças políticas


do Brasil tem um comportamento que busca preservar a
estrutura social brasileira de modo a retroalimentar a situação de
dependência. A sustentação de processos democráticos é
constantemente ameaçada em função de que, na medida que a
classe trabalhadora inicia processos revolucionários ou até
mesmo de reforma social, as burguesias hegemônicas articulam
golpes ou promovem políticos que lhes servem de interesse.
Florestan caracteriza essa situação político-econômica brasileira
de capitalismo dependente. Esta seria uma

“forma periférica e dependente do capitalismo monopolista (o


que associa inexorável e inextrincavelmente as formas
‘nacionais’ e ‘estrangeiras’ do capital financeiro)” – Fernandes,
F. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina

A manutenção dessa situação lega ao proletariado brasileiro


uma situação crítica, pois sobre ele aplica-se não somente a
mais valia natural no capitalismo nas relações de classe, mas o
que ele chama de uma sobreexpropriação e uma
sobrealienação, pois ela é duplamente exercida.

“De fato, a econo- mia capitalista dependente está sujeita, como


um todo, a uma depleção permanente de suas riquezas
(existentes ou potencialmente acumuláveis), o que exclui a
monopolização do excedente econômico por seus agentes
privilegiados. Na realidade, porém, a depleção de riquezas se
29
processa à custa dos setores assalariados e destituídos da
população, submetidos a mecanismos permanentes de
sobreapropriação e sobreexpropriação capitalistas” –
Fernandes, F. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na
América Latina

A situação do proletariado brasileiro na ordem capitalista afeta


naturalmente a questão racial. Florestan identifica na formação
da classe trabalhadora duas vertentes: uma herdeira da
escravidão e outra vinda da imigração. Florestan irá mostrar que
o imigrante ainda que tenha tido dificuldades em se firmar no
Brasil, não enfrentou o problema da cor. O proletário negro teve,
e ainda tem, de enfrentar o estigma social do passado
escravocrata.

FIGURE 9: IMAGEM DE DALRYMPLE DO TIO SAM ENSINANDO AOS


PAÍSES DO CARIBE

Para abordar tal questão, Florestan ataca o mito da democracia


racial. Tal mito fora construído a partir da obra Casa Grande e
Senzala de Gilberto Freyre, mas também já estava tão
disseminada que era repercutida em documentos oficiais das
nações unidas sem qualquer base empírica. Florestan então irá
propor que a sociologia passa a investigação da situação do
negro no mundo branco brasileiro.

“Na verdade, a hipótese sustentada pelo dr. Donald Pierson, de


que o Brasil constitui um caso neutro na manifestação do
“preconceito racial”, teve de ser revista, mau grado o empenho
da Unesco pela confirmação da hipótese. Ao que parece, essa
instituição alimentava o propósito de usar o “caso brasileiro”
como material de propaganda. Se os brancos, negros e mestiços
podem conviver de “forma democrática” no Brasil, por que o
mesmo processo seria impossível em outras regiões? Não

30
obstante, o que é uma democracia racial? A ausência de tensões
abertas e de conflitos permanentes é, em si mesma, índice de
“boa” organização das relações raciais? Doutro lado, o que é
mais importante para o “negro” e o “mestiço”: uma consideração
ambígua e disfarçada ou uma condição real de ser humano
econômica, social e culturalmente igual aos brancos?”
Fernandes, F. O Negro no Mundo dos Brancos.

Primeiramente, Florestan propõe um conceito radical de


democracia. Democracia é o sistema no qual existe equidade
nas relações entre os diferentes grupos econômicos, políticos e
raciais. Assim, enquanto não houver políticas que promovam
justiça social e uma compensação histórica, não podemos
admitir que o Brasil seja uma democracia em qualquer sentido
da palavra.

“não é só a democracia racial que está por constituir-se no Brasil.


É toda a democracia na esfera econômica, na esfera social, na
esfera jurídica e na esfera política. Para que ela também se
concretize no domínio das relações raciais, é mister que
saibamos clara, honesta e convictamente o que tem banido e
continuará a banir a equidade nas relações de “brancos”,
“negros” e “mestiços” entre si.” Fernandes, F. O Negro no Mundo
dos Brancos.

Porém de onde brota a constrangedora ideia de que o Brasil é


uma democracia racial? Florestan irá notar que o brasileiro tem
dificuldade em considerar-se preconceituoso. O passado
católico obriga o brasileiro a ter no coração um espírito
universalista e de aceitação do outro. São os preceitos do amor
cristão que conduzem o brasileiro a não querer admitir que
discrimina. Contudo, como sabemos, ele termina por discriminar
porque, a despeito do seu cristianismo, as estruturas coloniais
escravistas e senhoriais predominavam sobre os costumes
cristãos.

“O que há de mais evidente nas atitudes dos brasileiros diante


do “preconceito de cor” é a tendência a considerá-lo algo
ultrajante (para quem o sofre) e degradante (para quem o
pratique). Essa polarização de atitudes parece ser uma
consequência do ethos católico, e o fato dela se manifestar com
maior intensidade no presente se prende à desagregação da
ordem tradicionalista, vinculada à escravidão e à dominação
senhorial. No passado, escravidão e dominação senhorial eram
os dois fatores que minavam a plena vigência dos mores
cristãos, compelindo os católicos a proclamar uma visão do
mundo e da posição do homem dentro dele, e a seguir uma
orientação prática totalmente adversa às obrigações ideais do
católico.” Fernandes, F. O Negro no Mundo dos Brancos.

Assim, há no diagnostico de Florestan Fernandes uma


contradição fundamental no plano do discurso e da ação do
brasileiro. O discurso obedece à lógica das idealizações de si
31
mesmo, enquanto as ações repercutem a herança colonial
senhorial e racista.

“Os valores vinculados à ordem social tradicionalista são antes


condenados no plano ideal que repelidos no plano da ação
concreta e direta. Daí uma confusa combinação de atitudes e
verbalizações ideais que nada têm a ver com as disposições
efetivas de atuação social. Tudo se passa como se o “branco”
assumisse maior consciência parcial de sua responsabilidade na
degradação do “negro” e do “mulato” como pessoa, mas, ao
mesmo tempo, encontrasse sérias dificuldades em vencer-se a
si próprio e não recebesse nenhum incentivo bastante forte para
obrigar-se a converter em realidade o ideal de fraternidade
cristão-católico.” Fernandes, F. O Negro no Mundo dos Brancos.

Para não modificar suas atitudes, a elite branca recrimina a


discriminação como mecanismo de manutenção e
acobertamento de suas atitudes. Essa elite nem sempre é uma
elite econômica, mas é uma elite em termos de prestígio e paz
social, pois não é acossada constantemente pela vigilância e
repressão do estado.

“O “preconceito de cor” é condenado sem reservas, como se


constituísse um mal em si mesmo, mais degradante para quem
o pratique do que para quem seja sua vítima. A liberdade de
preservar os antigos ajustamentos discriminatórios e
preconceituosos, porém, é tida como intocável, desde que se
mantenha o decoro e suas manifestações possam ser
encobertas ou dissimuladas (mantendo-se como algo “íntimo”;
que subsiste no “recesso do lar”; ou se associa a “imposições”
decorrentes do modo de ser dos agentes ou do seu estilo de
vida, pelos quais eles “têm o dever de zelar”).” Fernandes, F. O
Negro no Mundo dos Brancos.

32
10. Sociologia do
Brasil Atual
1. Contexto

No período que coincide com a abertura lenta e gradual ao final


da ditadura, passando pelos anos 80, 90 e 2000, a sociologia
brasileira intensificou sua produção e gerou novas questões.
Entre os filósofos que merecem destaque nessa nova geração
estão Roberto DaMatta e Jessé Souza.

FIGURE 10: DAMATTA DURANTE PALESTRA PARA A ESCOLA DE


GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

2. Roberto Da Matta

Roberto DaMatta é um sociólogo que tenta não se prender às


tradições marxistas ou weberianas. Sua busca é por entender
aspectos atemporais do brasileiro na tentativa de mais uma vez
responder o que faz do Brasil, Brasil. Assim, para fugir de uma
análise da herança cultural ou de um passado colonial, DaMatta
elabora o método comparativo. O autor compara aspectos

33
culturais e sociais do Brasil com a sociedade americana e a
indiana.

A busca pela especificidade do Brasil é uma das tarefas mais


difíceis do ponto de vista histórico, pois inúmeros países tiveram
uma mistura de raças semelhante, inúmeros países tiveram uma
inserção no capitalismo semelhante à brasileira e inúmeros
países tem uma formação geográfica variada como a nossa.
Portanto, é difícil rastrear nossa especificidade somente através
de fatores históricos externos. Há algo que criamos e foi, em
certa medida, acidental e interno. Algo que diz respeito somente
a nós enquanto nação. - DaMatta, R. Carnavais, malandros e
heróis

De início, DaMatta compara o Brasil aos EUA no que diz respeito


à coexistência racial. Ele percebe que os modos de segregação
do Brasil são diferentes daqueles adotados entre os norte-
americanos.

“Ver o Brasil em sua especificidade é também procurar


interpretá-lo pelo eixo dos seus modelos de ação, paradigmas
pelos quais podemos pautar nosso comportamento e marcar
nossa identidade como brasileiros. É buscar entender nossas
irmandades e associações populares, sempre voltadas para o
alto e para fora do sistema, onde, com certeza, encontram seu
lugar ao sol. É, enfim descobrir que, ao contrário dos EUA, nunca
dizemos “iguais, mas separados”, porém “diferentes, mas
juntos”, regra de ouro de um universo hierarquizante como o
nosso.” - DaMatta, R. Carnavais, malandros e heróis

Os brasileiros têm uma segregação menos territorializada que


os americanos, pois não dividem o espaço racialmente em
bairros de moradia branca, latina ou negra. Nos EUA a igualdade
jurídica é suficiente para poder afirmar o direito ao não-convívio.
Já no Brasil, as favelas cariocas mostram que a moradia é um
quesito de integração. Não há igualdade jurídica, pois a justiça
não é cega. Contudo convivemos intensamente a despeito de
nossas diferenças sociais. Muitas vezes só percebemos tais
diferenças porque adotamos códigos e simbologias para
demarcar essa segregação no convívio.

Para entender o Brasil é necessário penetrar na análise dos


súbitos contrastes, das mudanças bruscas e das dicotomias. O
Brasil é o país onde há o convívio do improvável, do passado
formando um paradoxo com o presente, da revolta com a
subserviência, do prazer e da culpa. Trata-se de uma país onde
estranhas hierarquias ainda sobrevivem porque encontraram
sua forma de subsistir em um sistema de compensações que
contém a revolta do trabalhador por meio de mecanismos que
suspendem a verticalidade das relações para logo em seguida
restabelecê-las.

34
“Não se trata de discutir uma história de três raças, seis regiões
ou duas classes sociais que se digladiam pelo poder, mas de
entrar nas razões sociais do dilema que coloca uma sociedade
às voltas consigo mesma. Porque, como veremos em detalhe
mais adiante, temos no Brasil carnavais e hierarquias,
igualdades e aristocracias, com a cordialidade do encontro cheio
de sorrisos cedendo lugar, no momento seguinte, à terrível
violência dos antipáticos “sabe com quem está falando?” e
também temos samba, cachaça, praia e futebol, mas de permeio
com a democracia relativa e “capitalismo à brasileira”, um
sistema onde só os trabalhadores correm riscos, embora, como
se sabe, não tenham lucro algum. - DaMatta, R. Carnavais,
malandros e heróis

2.1. Os mundos indiano, americano e brasileiro

Um dos conceitos interessantes de DaMatta é o conceito de


mundo. O mundo é a ordem social vigente em cada país e o
modo como ela é justificada para os seus atores. A hierarquia
indiana por exemplo é amparada por um mundo que tem um
sistema de castas permite uma compreensão espiritualizada das
diferenças entre grupos. Não há um questionamento ostensivo
dessa estrutura porque esta é a única interpretação possível das
diferenças. O sistema é unitário.

Na Índia, isso talvez não ocorre porque o sistema é unitário, com


uma autonomia que se inscreve na história daquela civilização.

Já o mundo americano é diferente. É um mundo totalizador,


inescapável e devorador dos seus antagonistas.

[…] como é o renunciador do universo nos Estados Unidos?


Aqui, a pergunta se torna uma espécie de falsa questão. Pois
será mesmo possível escapar do sistema americano? Tudo
indica que não. Lá, um único movimento parece possível:
marchar sempre na direção do sistema, procurando, nele e
através dele, cravar a direção do sistema, ou a inovação que,
anteriormente, sugeria a renúncia e/ou a mudança social radical.
É assim que todo o chamado movimento hippie já pertence ao
estabelecimento, na dialética sistemática e perene de
canibalização de todas as vanguardas que caracteriza o
American Way of Life - DaMatta, R. Carnavais, malandros e
heróis

Diferente de todos, o mundo brasileiro é um mundo dual. Nele


há o espaço para o reconhecimento da pessoa dotada de
história e pertencente às relações de compadrio e parceria. Mas
há também o mundo frio da lei, da modernidade liberal, que
desconsidera a identidade, a peculiaridade e a história. É nesse
mundo brasileiro que surge a dicotomia central: ou você é
malandro ou é otário.

35
Mas no Brasil, a comparação por contrastes revela uma dupla
possibilidade. E mostra que o sistema é dual: de um lado, existe
o conjunto de relações pessoais estruturais, sem as quais
ninguém pode existir como ser humano completo; de outro, há
um sistema legal, moderno, individualista (ou melhor: fundado
no indivíduo), modelado e inspirado na ideologia liberal e
burguesa. [...] Em comparação com o mundo indiano e
americano, o mundo brasileiro é possível de ser abandonado,
mas esse abandono tem um custo. Dado que entrar para o
mundo brasileiro significa passar a pertencer a um sistema de
relações intersubjetivas onde posições demarcadas tem de
obedecer e mandar, aos que desejam não pertencer a esse
mundo um outro sistema lhes aguarda. Esse mundo é o mundo
frio e calculado da lei. Como diz o ditado “Aos inimigos a lei; aos
amigos, tudo!” - DaMatta, R. Carnavais, malandros e heróis

2.2. Pessoas e Indivíduos

O sistema de apadrinhamento e relações interpessoais é o


mundo que deve ser aceito no Brasil para que a pessoa possa
iniciar sua escalada educacional e profissional. Contudo, cabe
perguntar sobre uma possibilidade que acima mencionamos: o
que acontece com aquele que rejeita os ritos brasileiros, suas
hierarquias, seus jogos implícitos e seus silêncios?

Se ela aceita o jogo e busca sucesso nesse mundo, então ela


poderá ser uma pessoa: alguém com biografia, história e vida.
No caso, ele é tratado de modo próximo, com uma hierarquia
definida e de modo pessoal. A pessoa é o personagem social
pertencente ao sistema de laços. É reconhecido.

Se ela não aceita esse jogo, ela torna-se um indivíduo. Alguém


tratado de maneira anônima. É alguém que é tratado de acordo
com os ditames da lei. Um indivíduo não é alguém para outro
alguém, é meramente alguém perante a lei.
36
Naturalmente, esse mundo é cheio de hierarquias que devem
ser reconhecidas. Elas não são necessariamente hierarquias
econômicas, pois o pertencimento ao grupo não
necessariamente se reflete em ganhos em dinheiro. São
hierarquias de prestígio, trânsito social, que autorizam pequenas
ilicitudes e uma certa sensação de reconhecimento. Elas se
espalham por um tecido complexo onde a conexão social é o
que realmente importa.

De fato, existem medalhões em todos os domínios da vida social


brasileira: na favela e no Congresso; na arte e na política; na
universidade e no futebol; entre policiais e ladrões. São as
pessoas que podem ser chamadas de "homens", "cobras",
"figuras", "personagens" etc. [.] Medalhões são frequentemente
figuras nacionais. [...] Ser o filho do Presidente, do Delegado, do
Diretor conta como cartão de visitas. - DaMatta, R. Carnavais,
malandros e heróis

2.4. Hierarquia e Linguagem

DaMatta não hesita em mostrar que algumas práticas sociais


estão fundadas nos jogos de reconhecimento. Uma delas é a
intimidação por meio da ameaça de pertencer a um círculo
social. A intimidação se dá por meio de falas que visam trazer à
tona um imaginário de dominação e poder.

O "Você sabe com quem está falando?" não parece ser uma
expressão nova, mas velha, tradicional, entre nós. Na medida
em que as marcas de posição e hierarquização tradicional, como
a bengala, as roupas de linho branco, o anel de grau e a caneta-
tinteiro no bolso de fora do paletó se dissolvem, incrementa-se
imediatamente o uso da expressão separadora de posições
sociais para que o igualitarismo formal e legal, mas cambaleante
na prática social, possa ficar submetido a outras formas de
hierarquização social. - DaMatta, R. Carnavais, malandros e
heróis

2.5. O Carnaval

Como antídoto a esse mundo hierarquizado e multifacetado, um


rito se sobressai como uma espécie de alívio e cancelamento.
Eis a função do carnaval na sociedade brasileira.

Penso, pois, que o Carnaval põe o Brasil de ponta-cabeça. Num


país onde a liberdade é privilégio de uns poucos e é sempre lida
por seu lado legal e cívico, a festa abre nossa vida a uma
liberdade sensual, nisso que o mundo burguês chama de
libertinagem. Dando livre passagem ao corpo, o Carnaval
destitui posicionamentos sociais fixos e rígidos, permitindo a
"fantasia", que inventa novas identidades e dá uma enorme
elasticidade a todos os papéis sociais reguladores. DaMatta, R.
O que o Carnaval diz do Brasil.

37
O carnaval mobiliza o povo. É a festa do povo para o povo. Nela
a sensualidade reprimida, a totalidade de gestos proibidos e o
anonimato do cotidiano são superados dando espaço para
aqueles que são esquecidos pelas instituições. É o momento em
que a suspensão da realidade aterradora favorece, por meio de
uma catarse, a possibilidade de continuidade do Brasil como um
país.

FIGURE 11: NA PARTE DE CIMA VEMOS O ENTRUDO (CELEBRAÇÃO COM


ÁGUA NAS RUAS) QUE TEM ORIGEM POPULAR

3. Jessé Souza

Jessé Souza é um sociólogo crítico da tradição de intérpretes do


Brasil. Em sua opinião, a tradição iniciada por Gilberto Freyre,
continuada e perpetuada por Sérgio Buarque de Holanda e por
Faoro ao invés de interpretar o Brasil, deu às elites as
ferramentas da dominação ideológica.

Em sua visão o Brasil é composto por uma elite do Atraso, uma


classe média moralista e uma ralé. Essas três categorias são
muito importantes de serem assim chamadas porque elas
nascem de formulações de linguagem próprias. A Elite do atraso
é assim chamada justamente porque ela, além de conservadora,

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promove o atraso de modo voluntário. Jessé acredita que a
herança cultural não é uma razão suficiente para promover o
atraso brasileiro. Além deles há uma classe média que vive no
tensionamento entre a cultura da elite e as condições de trabalho
da ralé.

A classe média é parte importante da história do país, pois ela


se enxerga como tendo os mesmos direitos da elite e vindo das
mesmas tradições. Assim, ela espera ser servida e ter um
padrão de vida que só pode ser construído com base na
produção de uma classe baixa que tem um passado herdado da
escravidão e que não consegue se enxergar em outra posição.

"No passado, quando se falava em redistribuição de renda,


sempre se argumentava que os pobres, com o crescimento de
sua renda, tenderiam a consumir mais e, portanto, a taxa de
poupança cairia. Hoje, o paradoxo é que os ricos brasileiros é
que têm uma altíssima propensão a consumir. A renda não se
concentra para aumentar a taxa de poupança, e sim para
aumentar o consumo dos mais ricos. E escandalosa a distância,
no Brasil, entre o consumidor popular e o consumidor médio e
rico. Sem lugar a dúvida, essa defasagem é das maiores do
mundo. Na índia, os 20% mais ricos têm em média uma renda
quatro vezes maior que a dos 20% mais pobres; no Brasil essa
relação é de um para trinta e três vezes. Por outro lado, o abuso
do consumo contamina as classes mais pobres, que gastam em
produtos nem sempre necessários." - Furtado, C. Em Busca de
Novo Modelo - reflexões sobre a crise contemporânea.

Justamente essa classe absolutamente baixa e que corre risco


de vida é a ralé. Jessé não a chama assim para ofendê-la, mas
porque é o modo irônico pelo qual ela é chamada. A ralé
brasileira não pode ter acesso às coisas mesmo que tivesse
dinheiro, pois há coisas que o brasileiro da elite e da classe
média não autoriza e não permite que ela tenha. Essa classe
vive à margem dos holofotes do país e sobre ela pesa o
preconceito. Tal discriminação se dá no gosto, no simples fato
de que um padrão de consumo seja inacessível ao outro.
Ademais, a elite do atraso padroniza a beleza e define o que ela
é de acordo com suas experiências desconectadas do resto da
população.

“Como houve continuidade sem quebra temporal entre a


escravidão, que destrói a alma por dentro e humilha e rebaixa o
sujeito, tomando-o cúmplice da própria dominação, e a produção
de uma ralé de inadaptados ao mundo moderno, nossos
excluídos herdaram, sem solução de continuidade, todo o ódio e
o desprezo covarde pelos mais frágeis e com menos capacidade
de se defender.” – Souza, J. A elite do atraso.

Souza (2018) fez um profundo estudo sobre a "ralé brasileira",


expressão popular pejorativa no Brasil para se referir às classes
pobres e miseráveis. Segundo ele, há no Brasil um "preconceito
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estético" contra as classes populares que legitima, por exemplo,
os privilégios das classes mais abastadas. Os de "cima", as
classes dominantes, na estrutura social da sociedade brasileira,
por possuirem a capacidade econômica de poder comprar uma
garrafa de vinho de 15 mil reais ou possuirem carros de luxo,
tomam a posse de tais bens para si como uma distinção. O poder
de consumo, assim, gera uma sensação de "superioridade inata"
atrelada à ideia de "bom gosto". Tal consumo distinto afasta as
classes abastadas de todos aqueles das classes mais baixas
que gostam de cerveja ou cachaça baratas e carros populares.
- SOUZA, Jessé. A rale brasileira: quem é e como vive.

Continua no VOL.03

REFERÊNCIA:

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