Você está na página 1de 8

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE EDUCAÇÃO - CED


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE
MESTRADO ACADÊMICO EM EDUCAÇÃO

DAVI BARBOSA MACÊDO

BORDEANDO EM PALAVRAS BORDADOS DE UMA VIDA: form(ação) e


(auto)biografia.

FORTALEZA – CEARÁ
2023
Uma proposta, uma aposta. O texto que há de vir é fruto de sementes que
foram lançadas à disciplina de Pesquisa em Educação, germinando na construção
coletiva de relatos autobiográficos. Entre escritos e narrados, o sujeito se desenha, é
corporificado em presença visual, acústica, histórica, política, visceral. A trajetória
revela o processo formativo do “vir-a-ser” e, por formação, tomando emprestado
escritos de Josso (2004), implica-se reconhecer um caldeirão de conceitos
geradores de processos que agrupam “... temporalidade, experiência,
aprendizagem, conhecimento e saber-fazer, temática, tensão dialética, consciência,
subjetividade, identidade” (p. 38). Não se aplicaria à vida cotidiana tais noções?
A proposta trata-se de um convite a mim, enquanto sujeito e existência
que, no ato de narrar a própria história, expressa discursos (FOUCAULT 1969/2008,
1979/1998, 1987/1999), contextos e reverberações outras que possibilitam, também,
uma leitura particularizada da cultura, da política e dos atravessamentos que me
cercam. No que se refere a aposta, encontro a experiência nova de uma produção a
partir de outros fundamentos estéticos, capturas outras que se deixam passar entre
um recorte metodológico e outro, mas que não deixam de existir no campo prático
enquanto possibilidade (RABELO, 2022).
O trabalho de rememorar, se pensado a partir das reflexões de Ribeiro
(2019), implica reconhecer que a memória pode ser compreendida a partir de três
momentos, sendo o primeiro uma espécie de panorama de tudo – narrando uma
vida do nascimento aos dias presentes –, o segundo atravessado por tempos
marcantes – momentos, dias, meses, anos – e, por fim, através de um breve ou
longo recorte – geralmente atrelados a uma ação, por exemplo, o tempo de um
governo político.
Dito desta forma e, ainda, militando no discurso histérico (LACAN, 1969-
1970/1992), não irei me dispor de determinações lógicas na estruturação da trama
narrativa, escrevo o que lembro a partir de momentos marcantes e, adicionado a
isso, o que consigo contar de cada uma destas marcas, sendo, aqui, o desejo meu
guia e a verdade um enigma. Com sua licença, as palavras que seguem bordeiam
recortes de uma vida em fluxo, contando com as minhas próprias memórias como
testemunhas de uma trajetória.
Nascido ali, nas terras da depressão geográfica sertaneja, me encontro
em Crateús, ao sul da Chapada da Ibiapina e às margens do rio Poti, clima quente e
bem conhecido que se converte tanto no calor de suas temperaturas, como na
receptividade de seus citadinos. O ano era 1996 e eu não poderia deixar de “curtir o
meu último final de semana”, oficialmente imprimindo os pés no mundo em uma
segunda-feira, capricorniano nato.
Minhas primeiras memórias me são alheias, pelo menos em seu caráter a
priori, são contadas a partir de um Outro, há uma rede de significantes que me
precede e me é incorporada a partir de um “banho de linguagem” (SZEJER, 1997).
Sendo daí “... que se produz, de maneira mais e mais complicada, a encarnação do
simbólico no vivido imaginário” (LACAN, 1954/1998, p. 250).
Impressas “palavristicamente”, as trajetórias de educadoras na família
não puderam deixar de reverberar em mim suas contribuições. De minha mãe,
reconheço o incentivo à leitura, mesmo cansada de sua jornada dupla (que por um
período se tornou tripla) de trabalho, sempre encontrou um jeito amistoso de tornar
livros e suas histórias apetitosas à curiosidade e ao ócio. Mesmo não despertando
em mim a voracidade que só se manifestaria depois, suas primeiras pinceladas
marcaram um hábito, sempre que me levava à biblioteca pública para locar um livro
que se debruçaria comigo como passa tempo ao final de semana.
A educação sempre foi uma aposta, mesmo na incerteza de seu sucesso,
a fé por dias melhores era a gasolina de nosso deslocamento. O sonho da
mobilidade social e da melhoria da qualidade de vida, agora também era dividido
com a prole, quando sem ter de onde tirar nem pôr, assumiam-se dívidas com
empréstimos em banco para financiar as mensalidades de um colégio (empresa) de
referência na cidade, até o momento em que estudar em uma escola de bairro se
tornou mais viável. Assim, se debruçar sobre o papel da educação em suas práticas,
formas de ensinar, aprender e ler o mundo, sempre foram questões que me
rondaram enquanto agente de meu processo de construção, possibilitando, hoje,
fazer questões em cima desta e buscar a produção de novos saberes.
Embora com as dificuldades, lembro que o lúdico sempre me foi amigável,
as brincadeiras de infância que envolviam os meus irmãos e amigos as vezes eram
direcionadas por mim, daí se via o dia da escolinha (brincadeira), da peça teatral
elaborada no quintal de casa sob uma tarde quente, os clubes secretos com seus
respectivos integrantes (de secreto não tinham nada) e carteirinhas de sócio criadas
à mão e folhas em branco de papel A4 sequestrados da gaveta de vendas do meu
pai, que por tempos trabalhou como representante de vendas.
A adolescência é marcada pelas suas transformações e crises, e ao meu
ver, tudo se torna mais explícito na escola. No desenho de minha trajetória
formativa, uma possibilidade foi manifesta em um processo seletivo para um curso
técnico integrado em química, em um instituto federal que havia sido construído há
pouco tempo na cidade, já que eu ingressei na terceira turma.
Ao mesmo tempo que as coisas andavam bem, eu ia mal, pois justo neste
período, os traços de personalidade ficam mais evidentes, as identidades são postas
à mostra de forma espontânea e visceral. É tempo de uma nova compreensão
enquanto sujeito enlaçado com o mundo. A compreensão e entendimento de minha
orientação sexual parece ser um divisor de águas.
Lugares que posso ocupar livremente, crédito e/ou validação da minha
palavra, competência, moral, tudo isso passa a ser questionado dentro e fora das
instituições, a experiência da homofobia é avassaladora quando se tem 15 anos.
Tudo isso passa a ser lido, entendido e aceito como parte da realidade, sendo minha
saída, o escape à sobrevivência, encontrados na militância, possível apenas no ato
de reconhecimento como pessoa LGBT. Assim, me reconheço: um percurso nascido
de um tropeço e seguido de uma avalanche de descobertas. Corpo (in)ferido em
palavras que se refaz no bordar teórico de sua própria existência. Não uma
“metamorfose ambulante”, mas perto disto.
Uma existência marcada pelos seus próprios conflitos (que também são
coletivos) é o que se manifesta como meu guia, pois desde cedo encontrei, na
pesquisa e na educação, um refúgio e, ao mesmo tempo, um palco possível para
manifestação de incômodos e, posteriormente, questões acerca da realidade que
me atravessa. Enquanto homem gay, por exemplo, sempre fui “pesquisador”, mas
não desta formalizada que se reconhece nas academias. Mas sim, um pesquisador
empírico de mundo que enxerga a partir das suas próprias questões. Afinal, quais
potencialidades e limitações estão discursivamente implicadas no significante
“homossexual”?
O meu problema de pesquisa, dessa pesquisa empírica que é minha vida,
é visceral, complexo, próximo ao mesmo instante em que é distante, impossível de
se desconsiderar em qualquer outra leitura realizada. A experiência da homofobia
me mobiliza irracionalmente com afetos correntes e dissidentes, sendo plano de
fundo das minhas primeiras críticas, reflexões e crises com a apreensão da
realidade, como uma tentativa de resposta à norma do discurso em questão.
Lembro de um alívio quando estava concluindo o ensino médio, por estar
encerrando uma etapa e, ao mesmo tempo, uma angústia com os rumos que
tomaria e definiriam os meus próximos passos. O desejo era latente por uma
formação em psicologia, entretanto, as opções disponíveis eram cursos de exatas e
natureza, algo que eu nunca ousaria tentar, biológicas, talvez uma possibilidade e,
por fim, na categoria humanidades, contando apenas com pedagogia e letras, as
opções que havia aceitado.
Como reviravolta, uma transferência de trabalho é possível justo no
período em que estava tentando ENEM e vestibulares, sendo viável a moradia na
região metropolitana de Fortaleza, o que me aproximaria da chance de uma vaga no
curso em questão. Ao entrar no curso de Psicologia do Centro Universitário da
FAMETRO – UNIFAMETRO em 2015, pelo PROUNI, os estudos dedicados às
disciplinas de humanidades (História da Psicologia, Epistemologia, Sociologia, Ética,
Psicologia Social Crítica, Psicanálise, etc.) chamaram-me atenção por suscitarem
muitos questionamentos e reflexões que transpassavam o campo da individualidade,
da moralidade e do ceticismo científico que paira sobre leituras qualitativas da
realidade com seus problemas e dilemas ético-políticos, implicações estas que
permearam (e ainda permeiam) o processo formativo.
Os movimentos em torno da graduação de psicologia foram se
distanciando de uma leitura individualizada dos fenômenos e, cada vez mais,
aproximando-se de reflexões apoiadas em estudos culturais e políticos que
permitiam, não apenas uma leitura do fenômeno em si, mas uma compreensão e
localização de seus efeitos no tempo e na produção de subjetividades.
Aqui destaco, como “virada de chave”, o contato com a disciplina de
Psicologia Social II, que permitiu a aproximação com as produções de Martin Baró e
Paulo Freire no cenário conhecido, respectivamente como Psicologia e Pedagogia
da Libertação. Desde aqui reconheço a aproximação de uma área e outra, além da
importância de uma psicologia, ou pedagogia, crítica ao seu tempo e à sua própria
história, reconhecendo o lugar de seus paradigmas e as suas interferências no modo
de ler e produzir subjetividades.
É no ato de bordar os caminhos retalhados que os pontos vão amarrando
um sentido. O contato com o campo de estágio, também, em psicologia social, onde
o trabalho se fazia com o acompanhamento de juventudes que frequentavam um
equipamento voltado para cultura e lazer, é outro ponto que que faz enlace entre os
retalhos do meu passeio formativo.
Durante esse período, leituras como interseccionalidade, lugar de fala,
biopoder, cultura e direitos humanos foram marcantes, tanto na construção de
bagagem teórica de leitura de mundo, como na reflexão ética da própria prática.
Compreender o meu corpo, sua função e o lugar político que seus efeitos ocupavam
nas relações sociais foi mais um desafio, principalmente quando este se colocava
em sala, uma vez por semana, como facilitador no processo de formação política
que era proposto pelo Departamento de Direitos Humanos do próprio equipamento
para jovens que frequentavam um programa preparatório para o Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM).
Após a conclusão de uma graduação e uma formação vomitada no
epicentro de uma pandemia de COVID-19 que se arrastava em quarentenas, crises
políticas e econômicas, o sonho da profissionalização parecia distante demais.
Citando Don L, o que reconheci nesse momento é que a vida nada mais é do que “...
uma luta contra o mundo pra fazer parte do mundo”.
Tal como aponta Freud (1914-1916/2010) nas suas primeiras elaborações
acerca do narcisismo, aos poucos vou me deslocando deste eu-lírico
“ensimesmado” – como que em uma espécie de estado primário, desconhecido de
si, temente do mundo, dependente – e vou me despindo da captura de sentidos,
para além daquilo que já habita em mim, o outro me parece, agora, interessante. O
olhar sobre o outro é, também, um olhar corajoso.
Minha coragem é a minha saída, é o fluxo dos novos tempos, é aposta
que se faz na certeza de uma paixão, mas que se sustenta no arrocho da palavra,
direcionada para outra área de formação, para outras questões distantes daquelas
gestadas como embriões de minha própria sorte, no momento em que já pude ser
favorável à libertinagem de me conhecer. Nos tortuosos andares, me encontro com
os trópicos PEMO e histórias de outros, inclusive outros interessantes,
incalculavelmente mais do que este que vos fala.
Educadora, referência histórica na cidade em que me fiz gente, Dona
Delite se apresenta, entre tantos, como a Outra que mobiliza novas paixões. O
encontro com essa é inevitável quando se convive, ou até mesmo transita, no
espaço-tempo peculiar da Princesa do Oeste, Crateús. Embora presentificada aqui,
Dona Delite hoje é uma habitante das memórias que narram sua trajetória, sendo
lembrada, sempre que possível, por figuras que participam ativamente dos
movimentos da cidade.
Para além de seu tempo, ela contava com uma prática pedagógica que
não se esgotava no ensino teórico em si, haja vista sua preocupação com a prática
dos conhecimentos específicos do ambiente escolar e, também, práticos para a vida
funcional enquanto adultos futuramente. Ela lecionou até quando ainda teve forças
para verbalizar seus saberes, sendo reconhecida como professora e educadora por
não saber ser outra coisa, prova disso se manifesta no seu apego pelo sino do
intervalo, ferramenta que carregou até seus últimos dias da velhice, como aquele
instrumento que foi e por muito tempo continuou sendo a sua voz.
Assim, concluo, ao menos por hora, que pensar a educação,
primeiramente enquanto um direito e dever do Estado para todos, é, também,
reconhecê-la politicamente enquanto articuladora de reformas que garantam
políticas de promoção e/ou redução de desigualdades sociais. Dessa forma, há de
se galgar, na Educação, espaço para que outras narrativas distintas daquelas de
sua história enquanto espaço elitista, machista e moralista, possam se inscrever no
seu caminhar enquanto campo de atuação prática, teórica, ética e política.
REFERÊNCIAS

FOUCAULT, M. Arqueologia do saber (1969). 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2008.

______. Microfísica do poder (1979). 13ª. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão (1987). 20ª. ed. Rio de Janeiro:
Petrópolis, 1999.

FREUD, S. (1914-1916). Obras completas, vol. 12: introdução ao narcisismo,


ensaios de metapsicologia e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.

JOSSO, M-C. Experiências de vida e formação. Trad. José Cláudino e Júlia


Ferreira. São Paulo: Cortez, 2004.

LACAN, J. (1954). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Trad. V.


Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

______ (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

RABELO, J. K. Da beira-rio do sertão à beira-mar da cidade: uma trajetória de


vida. 1ª. ed. Marília: Lutas Anticapital, 2022.

SZEJER, M. Nove meses na vida da mulher: uma abordagem psicanalítica da


gravidez e do nascimento. Trad. M. N. B. Benetti. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1997.

Você também pode gostar