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Teoria e prática da formação do leitor 35

sentido do leitor, não prevê que nesse ato acontece uma relação in­ter­­­­sub­
jetiva. O autor, nesse caso, é o dono das respostas sobre o texto, nor­malmente
pré-fabricadas pelo professor. A democracia da diversidade de leitura é
substituída pelo autoritarismo de uma in­ter­pretação única ou o utilitarismo
massificador da repetição.
O texto literário é arte, não é pedagogia. Dialoga com a subjetividade,
não com a técnica.
Não há nada de errado em utilizar textos da literatura quando tra­
ta­mos do estudo da língua portuguesa; seria incoerente pensar assim,
quando reconhecemos na literatura uma especial manifestação da língua.
A ressalva está na tendência a sua pura escolarização. Dar utilidade para
o texto literário, antes de permitir o encontro do estudante com a arte,
é sabotar o leitor e desconsiderar o papel humanizador que a escola pre­
cisa ter.
4 Leitura e leitura da literatura

O aprendizado da leitura é diferente de um trabalho com literatura.


O aprendizado da leitura é um processo normal e esperado dentro do de-
senvolvimento infantil. Em princípio, todos possuem capacidade para de-
cifrar o código escrito, sendo papel da escola organizar e sistematizar esse
ensino. Trabalhar a literatura é tomá-la como um conteúdo, portanto, algo
que possui um caminho estabelecido pela regra e pela norma. Parte das
dificuldades na aproximação ao texto literário ocorre em virtude do isola-
mento da técnica à cultura. Em outras palavras, ensinar a leitura como
técnica é importante para o aprendizado do código e da sua função social,
entretanto não assegura o prazer no encontro com o texto literário.
Por que ler? Para que ler? E o que ler? Ao mesmo tempo em que o
estudante procura responder a essas perguntas e convive com as imposi-
ções de conteúdos, currículo e o acelerado tempo de aprendizado da es-
cola, ele escuta sobre a importância do gostar de ler e do prazer que se
deve ter em ler literatura. Confuso com essas demandas, ele pula de um
texto, tentando dar conta de responder às suas perguntas.
Por que ler? Num mundo tão informatizado, com apelos visuais tão
interessantes e respostas tão imediatas, onde encontrar motivação para ler,
um “trabalho” mais árduo que irá exigir do estudante um tempo maior de
dedicação e um exercício de pensamento crítico?
Está mais do que provado que o que enreda o estudante na direção
do saber, antes do conteúdo, é quem lhe leva esse conteúdo, ou seja, o
professor. Todo conteúdo vem depois do professor. Rubem Alves defende
que o professor deveria se apresentar como um “pastor da alegria” – consi-
derando que todo conhecimento deveria ser acompanhado de uma dose
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de prazer e alegria, “era, de fato, difícil amar as disciplinas representadas


por rostos e vozes que não queriam ser amados” (Alves, 1994, p.16).
Todas essas reflexões remetem aos primeiros encontros informais
com a palavra (cantigas e contos). O saber que se formava, por trás da-
queles contatos com a leitura da literatura, contribuía para o desenvolvi-
mento da criança e a fazia “pensar o mundo”. A lógica dos acontecimentos
faz pensar que isso deveria continuar nesse caminho: prazer, descobertas,
conhecimento e saber. Tudo isso tendo, na leitura, seu ponto de partida.
Mas não é isso que se revela. Ao entrar na escola, a leitura tende a
mudar de roupagem. Gratuidade e leveza se perdem, dando espaço a
metodologias, técnicas e cobranças. Sem a motivação do prazer, abando-
nam-se o interesse e a curiosidade.
O prejuízo pela perda do interesse e da curiosidade assume propor-
ções amplificadas em todas as áreas de conhecimento. Se não compreen-
demos o que pede um problema matemático, não o desenvolveremos,
mesmo que saibamos executar os cálculos. O professor que sinaliza para
a aprendizagem de seus conteúdos, através das descobertas, tem a ga-
rantia de um estudante envolvido com todos os projetos pedagógicos.
Por outro lado, se o que está em jogo é um professor, cuja relação com o
saber não possui o sabor necessário, o estudante que se formará estará
próximo do estudante da repetição, aquele que só memoriza textos e re-
gras para a sua respectiva reprodução nas avaliações.
A pergunta “Para que ler?” poderia ser substituída por “Para quem ler?”.
Se a partir de agora, passamos a acreditar que é na figura do educador que
se encontra o sabor pelo conhecimento, então o estudante já tem a quem de-
volver seu crescimento e suas descobertas. Uma vez ensinado “o caminho
das pedras”, o estudante se converterá em leitor e pesquisador e terá imenso
prazer em presentear o professor (modelo inicial) com suas descobertas.
O que ler? Essa, talvez, seja a mais delicada das três porque remete às
escolhas e aos planejamentos do corpo docente. Em qualquer área de co-
nhecimento essa decisão fica nas mãos do professor. O que é justo: ele sabe
do assunto; ele prevê os textos necessários; ele é quem conduz a sala de
aula. Alguém TEM que dar o primeiro passo nas escolhas da leitura.
Entretanto, o percurso do aprendizado, qualquer que seja, solicita
mais do que o básico. Pede que o professor abra espaço para que o estu-
dante traga novas leituras e questione o conteúdo – nenhuma verdade é
irrefutável. A história da ciência e da humanidade ensina isso: saberes
são dinâmicos e conhecimentos são mutáveis, basta que alguém apresen-
te uma nova “leitura” para o mesmo evento.
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A trilha do conteúdo pode já estar marcada pelo professor, mas são os


atalhos, ou os percursos mais longos que fazem ampliar todo nível de co-
nhecimento. Ser flexível à participação dos estudantes na escolha da leitura,
dar opções e fazer votações, mostra o nível de respeito que se tem sobre a
bagagem de seus ouvintes e revela que, mesmo na posição de professor, vo­
cê também não esgotou as leituras que deve fazer sobre aquele assunto.
Como ressalva, gostaria de dizer que pôr isso em prática significa cor-
rer riscos: risco de mais trabalho; risco de reformulações no planejamento;
risco de sair do fio condutor; risco de não ter todas as respostas (e ter que
buscá-las com os estudantes); risco de sair do óbvio e risco de conseguir es-
tudantes mais questionadores e mais apaixonados pela disciplina.

Literatura, linguagem, escola e escrita

A expressão “crise da leitura”, tão escutada nos meios educacionais


e familiares, remonta a origens bem mais anteriores do que se pode ima-
ginar. A leitura faz parte de um todo educacional que, desde a coloniza-
ção, deixou uma marca na formação cultural do cidadão brasileiro: a da
precariedade e do improviso.
Num primeiro momento, a corte portuguesa exigia, como forma de
manter o controle, que os caminhos daquele que desejasse seguir os es-
tudos passasse pelas decisões dos que estavam no poder. Assim, os elei-
tos para esse lugar eram poucos e as escolas eram, necessariamente, as
religiosas (jesuítas). Mesmo já sendo uma história conhecida por todos,
é importante que se repita essa realidade para que se possa compreender
o porquê de tantas lacunas atuais nas competências da educação. Não
que esse quadro não tenha sofrido alterações, ou que o governo não te-
nha se apercebido dessa realidade, mas é preciso revisar a imensa “bola
de neve” que até hoje se tenta diminuir e conter.
Após quase 40 anos de conflitos ideológicos quanto aos rumos que
deveria tomar a educação, houve, entre as décadas de 1930 e 1940,
um desejo de renovação: escolas públicas para atender à população de
baixa renda e capacitação de professores que pudessem atender a essa
demanda imediata. Acontece que esse reformismo da urgência não
trouxe resultados efetivos. Os professores apresentaram uma relação
com um ensino ocupado em repetir padrões e, visivelmente, desprepa-
rado culturalmente. (Aliás, a distância entre o grupo docente e a cultu-
ra aumenta a cada dia.)
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Por volta da década de 1970, o problema com a educação persistia,


e a formação do professor, a essa altura, já se encontrava no topo da pre-
cariedade, como aponta Regina Zilberman:

A solução foi trocar o docente por engrenagens que atuassem em seu lugar:
uma metodologia que acreditasse em mecanismos autorreguláveis, como a
cibernética, que, na mesma época, fazia sua estreia na educação nacional;
uma fachada de modernização, fornecida pela mesma metodologia, para
encobrir a improvisação; e a adoção de técnicas didáticas que, por funcio­
narem sozinhas, podiam dispensar a interferência – e esconder as falhas –
do professor ... (Zilberman, 1991, p. 74-75)

Não é proposta, aqui, negar o uso da metodologia e da didática –


sabemos que são orientadores do trabalho do professor – mas revelar
suas limitações e suas consequências: os diálogos internos na escola fica-
vam escassos e o aprendizado, comprometido. O professor, encontrava-
se preso a uma linguagem pré-fabricada para esconder sua defasagem
cul­tural; o estudante, por sua vez, trazia uma bagagem popular e coti-
diana que ficava sem ter onde colocar: ele não era escutado em sua rea-
lidade. Resultado: falta de comunicação, interação e relação. Justo a pri-
meira condição para se compreender a linguagem e a leitura em sua for-
ma mais ampla.
Compreender o panorama era confuso. Agir sobre uma realidade na
proporção territorial do Brasil, mais confuso ainda. As propostas conti-
nuavam na direção de algum acerto, alguma mudança substancial.
Após tentativas na capacitação do professor, era hora de se pensar no
estudante. Foco escolhido (e muito necessário!!): a linguagem. Lingua­gem
enquanto expressão. As tendências levavam ao estudo da gramática: saber
escrever a própria língua e se comunicar bem através dela. Isso denunciou
outros problemas:

A tendência mais marcante é a de reforçar o ensino da gramática nor­mativa. A


maior parte dos cursos propõe-se a revisar conteúdos de sintaxe e morfologia,
o que é revelador dos problemas vividos pelo ensino da Lín­gua Portuguesa.
Seus conteúdos, uma vez que dizem respeito à estrutura gramatical da língua,
são, de certo modo, imutáveis. Portanto, supõe-se que, uma vez apreendidos,
não serão mais esquecidos, porque não apenas não se modificam, como con­
sistem na condição de comunicação por parte de cada indivíduo.
A necessidade, segundo os projetos, de revisá-los indica então que não fo­
ram introjetados durante a escolarização do professor. E, se assim se passa,
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é porque o professor foi diplomado apressadamente – logo, foi objeto de uma


escolarização de menor qualidade, como a destinada às camadas mais inferio­
rizadas da pirâmide social – ou ele domina padrões de comunicação que a es­
cola despreza, mas que se mantêm vigentes, legando, por dividir o professor
entre o que sabe e não pode ensinar e o que não sabe e deve ensinar, uma
contradição que solapa e impede a virtual eficiência do primeiro grau.
[...[ Porém, outros projetos perguntam-se se é esta a função do primeiro
grau: ensinar a norma gramatical sob sua forma descritiva, em detrimento
da produção de linguagem. Por isso, propõem outro caminho: ainda que
de­sejando transmitir e fixar as regras da língua portuguesa, substitui-se o
ensino normativo pelo produtivo, entendido este como a aprendizagem,
suscitada pelo estudo do texto, da utilização adequada do código linguís­ti­
co. (Zilberman, 1991, p. 78-79)

Partir da linguagem como saída para uma modificação do perfil e


da competência dos estudantes é, sem dúvida, a base para todas as ou-
tras áreas. E, embora existam divergências sobre qual aspecto deve ser
relevante no papel da escola, surge um ponto comum, até então ignora-
do: pensar em escrita é pensar em leitura.
A linguagem deve ser desenvolvida pela escola e as ações pedagógi-
cas são de extrema importância na alfabetização, mesmo reconhecendo
que a criança é exposta ao universo da escrita, antes da sua formaliza-
ção. A escrita como representação de domínio da língua, ou como apro-
priação gramatical, isoladamente, não trará grande benefício ao cresci-
mento do estudante, se considerarmos que a língua é um halo de muitas
implicações e que, só em parceria com a leitura, o estudante poderá re-
velar resultados precisos e verdadeiros.
Já sabemos um pouco sobre que percursos são feitos sobre os textos
em sala de aula. Abordamos o reducionismo dos livros didáticos e a frag-
mentação de textos literários que privam o leitor de um contato maior
com a fonte originária desse material, a fonte que o posiciona na arte,
acima de tudo.
Desde o tempo da cartilha (e aqui estou considerando que esse tem-
po já passou), o ensino das letras passeava por textos que priorizavam
elementos da escrita enquanto decodificação, desconsiderando o interes-
se da criança (Quem não se lembra de “Ivo vê a uva”?). Surgiu, então, a
literatura infantil como possibilidade para associar texto, aprendizado da
leitura e formação do leitor. No entanto, para se realizar esse trabalho, a
marcha de arranque seria uma metodologia específica para o uso da lite-
ratura na sala de aula, mas ainda não possuímos um traço pedagógico
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que una a arte ao contexto escolar formal. Desenha-se aí uma proposta


inovadora sem prejuízos para nenhuma das categorias.
Durante o processo de alfabetização, a escola deve ter uma visão ul-
terior da relação que o leitor estabelecerá com o texto – seja literário, in-
formativo ou didático. É nesse sentido que marcamos a literatura como
um texto fundante para o sujeito e de extrema serventia na sedimenta-
ção de uma proposta alfabetizadora, visto que ele traz elementos fami-
liares e curiosos, que despertam o interesse do leitor iniciante. A literatu-
ra traz da realidade os conteúdos que dizem respeito ao homem, ao mes-
mo tempo em que os transforma, potencialmente.
Além disso, a estética própria desse tipo de texto joga com as pala-
vras, possui licenças gramaticais que saem do rigor e fazem o texto cami-
nhar em direção à fantasia, ao imaginário, ao faz de conta e às chaves
alegóricas que desembocam na decifração do enigma. E de jogos e ima-
ginações as crianças entendem muito bem. O terreno, então, fica propí-
cio para um resultado favorável à leitura e ao leitor. Quem, assim, não se
disponibilizaria ao aprendizado de uma língua para ter mais opções de
voo e pilotar, sozinho alguma aeronave perdida em busca de novas aven-
turas? O código e sua decifração entram por acréscimo, numa relação
maior: a do prazer pela história e pelo lúdico.
O livro de literatura, diferente do livro pedagógico, brinca, ainda,
com outras possibilidades de leitura: as imagens e as variações das letras
(tamanho e forma). Elas também comunicam e apelam por uma partici-
pação maior do leitor do que aquela solicitada por um texto moldado
para alfabetizar num só peso e numa só medida.
Tudo parece encaixado para que leitura, literatura e aprendizado se
entrelacem, possibilitando a formação de um leitor integral, envolvido
nessa grande manifestação cultural e artística. E tudo, de fato, comunga
para que isso ocorra. Mas os fatores de formação do corpo docente que
foram citados e todo o percurso de aproximação desse grupo com a lite-
ratura, enquanto arte, não favorece para que esse trabalho aconteça da
maneira como deveria: com leveza e prazer pelo texto escrito.
O encontro com a literatura, enquanto texto que possibilita uma
série de links com o aprendizado da leitura, abre diversos caminhos pa­
ra o leitor. O primeiro deles é o do reconhecimento de si na voz do per-
sonagem. A isso se segue a diversão, a brincadeira e o lúdico. Trata-se
de um texto que assume a sua condição de aberto, natureza que não
pa­ra de se multiplicar e que se oferece ao leitor como fonte de prazer,
acima de tudo.
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Que fique clara, então, a prioridade de se fazer desse uso um uso de


prazer. Para ler literatura não é necessário uma atividade ao final do li-
vro. Ainda que a atividade possa fluir e ela pareça livre, transgressora e
criativa, é fundamental que ela não venha antes do desejo de viver a his-
tória, pura e simplesmente.
O texto da literatura se mostra disponível, alimento para ser rapida-
mente absorvido pela alma, antes mesmo de o ser pelo cognitivo. Segu-
rá-lo com as duas mãos, com força, para que se garanta extrair dele
tudo, absolutamente tudo, é perder sua essência. Sua diferença funda-
mental está exatamente, no fato de sempre restar um pedaço para ser
consumido, numa nova leitura que se faça, ou numa interpretação que
surja, vinda de um “leitor flutuante”, atento à força da identificação.

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