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Inicia o ano letivo e, com ele, a maquinaria da escola se põe a funcionar com
maior vigor. Dia a dia, estudantes têm aulas, professoras(es) planejam suas atividades
e, como elas(es), outras e outros trabalhadoras(es) desenvolvem suas ações. De
longe, poderíamos dizer que, em qualquer escola, as rotinas transcorrem com certa
semelhança, fixadas em uma aparente organização similar: grade curricular,
disciplinas, horários, aulas, intervalos, recreios, provas, conselhos de classe, notas,
recuperação, prova final... “A-Provação ou Re-Provação?” – Eis a questão que se faz
presente no final dos anos letivos para muitas(os) estudantes e suas famílias.
Em certos aspectos, essa organização escolar pode nos remontar a tempos
comenianos e trazer os ares do século XVII quando, com sua “Didática Magna”, João
Amós Coménio5 propunha uma escola que correspondesse a um relógio, em todos os
pontos, “construído segundo as regras da arte e elegantemente ornado de
cinzeladuras variadas” (COMÉNIO, 1966, p. 186).
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João Amós Coménio (1592 – 1670), pedagogo, educador, bispo protestante, escritor tcheco, é con-
siderado “o pai da Didática Moderna”. Teve sua vida marcada pela Guerra dos Trinta Anos e de-
senvolveu obras sobre educação, que tiveram grande disseminação em diversos país, inclusive no
Brasil, sendo a de maior destaque a “Didática Magna”, a qual foi publicada pela primeira vez em
1657.
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Essa arte referida por Coménio se relaciona com o ato de ensinar tudo a todos,
o que, feito com exatidão, facilitaria o ordenamento do ensino e garantiria à juventude
formação nos estudos e educação nos bons costumes. Em suas palavras,
A arte de ensinar nada mais exige, portanto, que uma habilidosa repartição
do tempo, das matérias e do método. Se a conseguirmos estabelecer com
exactidão, não será mais difícil ensinar tudo à juventude escolar, por mais
numerosa que ela seja, que imprimir, com letra elegantíssima, em máquinas
tipográficas, mil folhas por dia, ou remover, com a máquina de Arquimedes,
casas, torres ou qualquer outra espécie de pesos, ou atravessar num navio o
oceano e atingir o novo mundo. E tudo andará com não menor prontidão que
um relógio posto em movimento regular pelos seus pesos. E tão suave e
agradavelmente como é suave e agradável o andamento de um autómato. E,
finalmente, com tanta certeza quanta pode obter-se de qualquer instrumento
semelhante, construído segundo as regras da arte (COMÉNIO, 1966, p. 186).
Acredito que caibam muitas indagações ao texto de Coménio. Por exemplo,
poderíamos nos questionar sobre o que seria “tudo” e quem seria o “todos”
mencionado pelo educador? Como a sua obra mais conhecida mundialmente
contribuiu para propagar uma visão de mundo e proposta de educação?
Embora o movimento investigativo desta tese não se debruce com mais
profundidade nessas questões lançadas, entendo que é fundamental mencionarmos
que a “Didática Magna” se colocava como um tratado da arte universal e se voltava a
“todas as comunidades de qualquer Reino cristão, cidades e aldeias”, com ênfase à
“toda a juventude de um e de outro sexo, sem exceptuar ninguém em parte alguma”
(COMÉNIO, 1966, p. 43).
Nessa obra, o processo de colonização vivenciado no Brasil daquele século ou
mesmo as diferenças das juventudes indígenas, quilombolas, nas cidades ou no
campo presentes em nosso território não haviam sido vislumbrados. Questões
relacionadas à escravização sofrida pelos povos de África e o colonialismo
intensificado ao longo dos séculos nas linhas abaixo do Equador não circulavam nos
debates propostos. Então, ao considerar um olhar universal para as práticas
escolares, podemos perceber evidentemente o quão desafiador e parcial se propunha
esse tratado.
Para nossa pesquisa, colocamos mais intensidade neste formato escolar
semelhante ao relógio, fabricado pelas ideias comenianas, com vistas ao ensino
universal. É possível notar que a influência de Coménio e seu tratado encontram
ressonâncias desde os séculos XVII e XVIII, sendo atualizadas e presentes em pleno
século XXI.
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Refiro-me aqui à canção Cotidiano, de Chico Buarque de Holanda.
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Para outras informações: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/cerca-de-20-instituicoes-fede-
rais-de-ensino-estao-sob-intervencao-no-pais1. Acesso em 18 out. 2021.
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Para mais informações: https://www.camara.leg.br/noticias/742580-docentes-das-universidades-
federais-reclamam-de-intervencao-do-governo/. Acesso em 18 out. 2021.
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Vale um breve registro para partilhar que muito tem sido produzido acerca desse conceito “resiliên-
cia”, proveniente originalmente da Física. É possível encontrar livros, artigos, entre outros materi-
ais, que irão explorar esse conceito, tendo, inclusive, uma vasta literatura na área de recursos hu-
manos e do desenvolvimento pessoal. No entanto, nessa pesquisa, não temos a intenção de apro-
fundar esse debate, mas apenas ressaltar um discurso muito presente na escola, que valoriza a
meritocracia e o individualismo. Portanto, a menção aqui feita a esse termo ocorre em virtude da
utilização recorrente da resiliência como referência a um movimento capaz de suportar as condi-
ções adversas, superar as dificuldades para se obter sucesso profissional e/ou para se atingir obje-
tivos ou metas. Isto é, em certa literatura, esse termo se refere à capacidade do indivíduo ser flexí-
vel e persistente, o que me parece dar pistas a um olhar focado no sujeito individual, no seu capital
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humano, ignorando uma leitura crítica do modo de produção capitalista neoliberal e os aspectos
mais coletivos presentes nas relações de trabalho.
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Para mais informações sobre o PISA no Brasil: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/ava-
liacao-e-exames-educacionais/pisa . Acesso em 03 nov. 2021. Ademais, sugerimos ainda outras
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leituras sobre este programa, que colocam em análise sua proposta, limitações e impactos em di-
versos países: https://avaliacaoeducacional.com/category/exames-e-indices/pisa/ . Acesso em 03
nov. 2021.
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Registro feito em caderno pessoal. Agosto, 2016.
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Sobre o pensamento eugenista no Brasil, o artigo a seguir contribui para compreendermos histori-
camente a influência dessas ideias no país. De modo breve, neste artigo, podemos conhecer al-
guns argumentos usados por intelectuais no início do século XX e que ainda ganham repercussão
em nossa vida social: https://www.geledes.org.br/eugenia-no-brasil-movimento-tao-absurdo-que-e-
dificil-acreditar/. Acesso em: 09 nov. 2021.
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Ao retomar o meu caderno pessoal usado na escola, bem como o meu diário
de campo, reencontro registros de falas de professoras(es) em que mencionam a
dificuldade percebida ao corrigirem provas discursivas e se depararem com respostas,
dadas pelas(os) estudantes, consideradas mais subjetivas. Alguns docentes
compartilham em conselhos de classe: “Como avaliar sem cair num olhar muito
subjetivo para não perder os critérios? Se perde o parâmetro, aí dá pano pra
manga...”.
Há professoras(es) que endossam a presença da dimensão subjetiva como um
fator que atrapalha as avaliações e, como uma solução ideal, entendem que os
instrumentos avaliativos devem buscar, do ponto de vista técnico, afastar essa
respectiva dimensão. Essas(es) docentes acreditam que vão obter resultados menos
contaminados pela subjetividade ao modificar o instrumento, tornando-o mais objetivo
possível com o intuito de diminuir a presença da subjetividade.
Essa ideia de contaminação somada a esse olhar negativo para a interferência
da subjetividade na avaliação são construções bastante comuns no cotidiano escolar
e nos mostram a importância de evidenciarmos essa discussão entre a dicotomia
objetividade-subjetividade, pois ainda há muitos profissionais forjados com este olhar.
Embora essa dicotomia não seja o foco da nossa pesquisa, ao tratarmos a
objetividade em oposição à subjetividade, percebemos que essa ideia caminha
distante da perspectiva apresentada pelos filósofos da diferença, como Michel
Foucault, que vai considerar a avaliação como dispositivo que contribui no processo
de produção subjetiva.
Esse discurso da suposta contaminação e a oposição objetividade e
subjetividade me faz pensar sobre outras questões: é possível ter avaliações neutras
em uma relação formativa, como é o caso da relação professor(a)-aluno(a)? Como
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