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No âmbito da questão central da pesquisa proposta, no segundo capítulo, trarei


alguns entrelaçamentos que pude fazer a partir de algumas experiências em escolas
públicas, o que me permitiu delinear a composição teórico-metodológica da pesquisa,
dialogando com a Análise Institucional e a pesquisa-intervenção.
Integrada à análise das práticas avaliativas e os seus efeitos, no terceiro
capítulo, tive a intenção de desenvolver os diálogos e as ressonâncias percebidas a
partir de um vídeo – “A hora do desespero” (A HORA…, 2016) – produzido por
estudantes. Busquei partilhar as indagações que têm me acompanhado a partir das
experiências como pedagoga de uma escola pública federal e evidenciar os
procedimentos metodológicos adotados, como as entrevistas realizadas.
Percorrendo os estudos desenvolvidos por Michel Foucault sobre o poder
disciplinar, no terceiro capítulo, procuro apresentar aproximações com as linhas
emergentes mapeadas nas entrevistas com estudantes, equipe multiprofissional e
docentes, articulando contribuições mais especificamente voltadas à avaliação das
aprendizagens para, assim, trazer elementos para o debate sobre as produções
(in)visíveis no cotidiano escolar.
Articulada aos debates apresentados, no quarto capítulo, trago diálogos
transversais sobre a complexidade do processo de avaliar e os significados presentes
da avaliação escolar, acenando para o capítulo seguinte, em que pude me debruçar
no debate sobre o exame.
Interligando ao objetivo que propõe colocar em análise as práticas avaliativas,
no quinto capítulo, procurei apresentar discussões sobre o Estado avaliador e o
neosujeito, as quais nos permitem pensar sobre a racionalidade neoliberal. Neste
capítulo proposto, conectada em especial à incorporação das contribuições trazidas
pelas(os) estudantes egressos e professoras(es) entrevistadas(os), pude evidenciar
ainda o debate sobre a prática da cola.
Finalmente, no último capítulo, retomo a minha caminhada investigativa e as
questões evidenciadas ao longo da pesquisa e apresento as minhas considerações
provisórias.
Relaciono o meu processo de pesquisa a um trecho de uma peça teatral cha-
mada “A invenção do Nordeste”, encenada pelo grupo teatral Carmim, que muito me
afetou pelas desnaturalizações que provoca sobre questões muito interessantes,
como a própria ideia de criação, no caso da peça, da região Nordeste e o que se
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propaga com relação às(aos) nordestinas(os), principalmente de modo bastante pre-


conceituoso, como vimos no último período eleitoral no Brasil. Assim, é dito por uma
das personagens:
[...] Hoje, eu não tenho certezas. Elas foram queimadas pela história. Redu-
zidas a cinzas. Hoje eu sei que o dilema não é “ser ou não ser”. É “ser e não
ser”. Viver “entre”, viver “quase”. Andar nas frestas, nas fronteiras. Cruzar os
limites, deixar a poeira subir e, mesmo com a vista embaçada, olhar pra frente
e continuar (GRUPO CARMIM, 2017, p.105).
Percebo que as minhas certezas se esvaem quando me coloco nesse cruza-
mento dos limites do sentir, do pensar, do agir, o que me ajuda a inventar novas fron-
teiras, em muitos sentidos e dimensões. Essa pesquisa manifesta o meu desejo de
andar por essas frestas possíveis criadas do/no cotidiano escolar, que apostam no
entre, nas singularidades e na produção de vida como potência.
Com esse horizonte, tenho acreditado que, na escola pública brasileira, é pos-
sível oportunizar experiências diferenciadas a todas e todos que nela circulam, se for-
mam e convivem diariamente. Nesse sentido, tenho apostado nas possibilidades de
tecer relações outras na escola, considerando que podemos contribuir para a produ-
ção de subjetividades outras, fabricadas a partir da ampliação da vida e das práticas
de liberdade.
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1 COTIDIANO DA ESCOLA: ACONTECIMENTOS MÚLTIPLOS, ESPAÇOTEMPO


CAÓTICO

Ao nos assumirmos como nosso próprio


objeto de estudo, se coloca para nós a
impossibilidade de se pesquisar ou de se
falar “sobre” os cotidianos das escolas. Se
estamos incluídos, mergulhados, em
nosso objeto, chegando às vezes, a nos
confundir com ele, no lugar dos estudos
“sobre”, de fato, acontecem os estudos
“com” os cotidianos. Somos, no final de
tudo, pesquisadores de nós mesmos,
somos nosso próprio tema de
investigação.
Carlos Eduardo Ferraço

Inicia o ano letivo e, com ele, a maquinaria da escola se põe a funcionar com
maior vigor. Dia a dia, estudantes têm aulas, professoras(es) planejam suas atividades
e, como elas(es), outras e outros trabalhadoras(es) desenvolvem suas ações. De
longe, poderíamos dizer que, em qualquer escola, as rotinas transcorrem com certa
semelhança, fixadas em uma aparente organização similar: grade curricular,
disciplinas, horários, aulas, intervalos, recreios, provas, conselhos de classe, notas,
recuperação, prova final... “A-Provação ou Re-Provação?” – Eis a questão que se faz
presente no final dos anos letivos para muitas(os) estudantes e suas famílias.
Em certos aspectos, essa organização escolar pode nos remontar a tempos
comenianos e trazer os ares do século XVII quando, com sua “Didática Magna”, João
Amós Coménio5 propunha uma escola que correspondesse a um relógio, em todos os
pontos, “construído segundo as regras da arte e elegantemente ornado de
cinzeladuras variadas” (COMÉNIO, 1966, p. 186).

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João Amós Coménio (1592 – 1670), pedagogo, educador, bispo protestante, escritor tcheco, é con-
siderado “o pai da Didática Moderna”. Teve sua vida marcada pela Guerra dos Trinta Anos e de-
senvolveu obras sobre educação, que tiveram grande disseminação em diversos país, inclusive no
Brasil, sendo a de maior destaque a “Didática Magna”, a qual foi publicada pela primeira vez em
1657.
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Essa arte referida por Coménio se relaciona com o ato de ensinar tudo a todos,
o que, feito com exatidão, facilitaria o ordenamento do ensino e garantiria à juventude
formação nos estudos e educação nos bons costumes. Em suas palavras,

A arte de ensinar nada mais exige, portanto, que uma habilidosa repartição
do tempo, das matérias e do método. Se a conseguirmos estabelecer com
exactidão, não será mais difícil ensinar tudo à juventude escolar, por mais
numerosa que ela seja, que imprimir, com letra elegantíssima, em máquinas
tipográficas, mil folhas por dia, ou remover, com a máquina de Arquimedes,
casas, torres ou qualquer outra espécie de pesos, ou atravessar num navio o
oceano e atingir o novo mundo. E tudo andará com não menor prontidão que
um relógio posto em movimento regular pelos seus pesos. E tão suave e
agradavelmente como é suave e agradável o andamento de um autómato. E,
finalmente, com tanta certeza quanta pode obter-se de qualquer instrumento
semelhante, construído segundo as regras da arte (COMÉNIO, 1966, p. 186).
Acredito que caibam muitas indagações ao texto de Coménio. Por exemplo,
poderíamos nos questionar sobre o que seria “tudo” e quem seria o “todos”
mencionado pelo educador? Como a sua obra mais conhecida mundialmente
contribuiu para propagar uma visão de mundo e proposta de educação?
Embora o movimento investigativo desta tese não se debruce com mais
profundidade nessas questões lançadas, entendo que é fundamental mencionarmos
que a “Didática Magna” se colocava como um tratado da arte universal e se voltava a
“todas as comunidades de qualquer Reino cristão, cidades e aldeias”, com ênfase à
“toda a juventude de um e de outro sexo, sem exceptuar ninguém em parte alguma”
(COMÉNIO, 1966, p. 43).
Nessa obra, o processo de colonização vivenciado no Brasil daquele século ou
mesmo as diferenças das juventudes indígenas, quilombolas, nas cidades ou no
campo presentes em nosso território não haviam sido vislumbrados. Questões
relacionadas à escravização sofrida pelos povos de África e o colonialismo
intensificado ao longo dos séculos nas linhas abaixo do Equador não circulavam nos
debates propostos. Então, ao considerar um olhar universal para as práticas
escolares, podemos perceber evidentemente o quão desafiador e parcial se propunha
esse tratado.
Para nossa pesquisa, colocamos mais intensidade neste formato escolar
semelhante ao relógio, fabricado pelas ideias comenianas, com vistas ao ensino
universal. É possível notar que a influência de Coménio e seu tratado encontram
ressonâncias desde os séculos XVII e XVIII, sendo atualizadas e presentes em pleno
século XXI.
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Essas ressonâncias e atualizações vão criando uma amálgama de tal modo


que podemos reconhecer uma forma escola, que foi se configurando ao longo dos
séculos e, até hoje, vai ganhando materialidade no nosso cotidiano através de falas
que circulam pelos corredores, nas práticas avaliativas, nas propostas curriculares,
nas metodologias de ensino, no trabalho pedagógico, em políticas públicas voltadas
à Educação, de modo geral.
Pensar essa forma escola ou as escolas que coexistem em um mesmo
espaçotempo, perceber os seus modos de se constituir, as relações que pulsam e
colocar em análise os seus saberesfazeres, pode nos oferecer caminhos para
cartografar as forças que habitam essa instituição. Forças essas que produzem
sentidos a partir dos acontecimentos vividos e que podem nos afetar em diferentes
níveis, nos marcando profundamente.
Se, por um lado, falar de escola pode nos sugerir um lugar em que, durante
todo o ano, repete-se a mesma cartilha ou seguimos o mesmo modo de operar, como
nos canta Chico Buarque6, por outro lado, pensar, a partir do cotidiano escolar e das
práticas fabricadas nele, nos traz outras possibilidades de indagarmos: todo o dia ela
– a escola – faz tudo sempre igual?
Considero, nesse trabalho investigativo, a perspectiva de que, na escola, assim
como na vida, o cotidiano se faz permeado pelas mais diversas situações, desde as
mais surpreendentes e inusitadas a outras que, à primeira vista, nos parecem simples
e corriqueiras e que, talvez por isso, não costumam chamar a nossa atenção, como
sublinha Maria Teresa Esteban (2002).
Assim como em uma canção, que pode ser tocada de modos distintos, com
variações de ritmos e melodias, temos também, no cotidiano da escola, nuances,
intensidades, ângulos que se deslocam e, por não ficarem estáticos, podem se
movimentar em várias direções, muitas vezes, nada previsíveis. Da sala de aula a
outros espaços existentes, o que nos parece “tudo sempre igual”, pode também se
mostrar bastante incomum, múltiplo e potente.
Esse texto, por exemplo, se faz e refaz permeado pelos dias vividos em meio à
crise política e econômica do país, a partir da qual podemos considerar muitos
episódios críticos que tem levado ao seu acirramento, principalmente a partir das
políticas empreendidas pelo governo federal empossado em janeiro de 2019. Tais

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Refiro-me aqui à canção Cotidiano, de Chico Buarque de Holanda.
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políticas públicas têm provocado uma série de cortes orçamentários em vários


campos, como Saúde e Educação, além das reformas previdenciária, trabalhista,
entre outras que foram aprovadas de modo aligeirado e implementadas
autoritariamente.
Essas crises política e econômica se articulam à crise humanitária e sanitária
decorrente da pandemia do coronavírus (COVID-19), que tem assolado o mundo
desde dezembro de 2019, trazendo desdobramentos inéditos neste século em
diversos países, como a necessidade do distanciamento social sistemático, uso de
máscaras faciais e vacinação ampla da população, como medidas para combater a
proliferação do vírus.
Somado a esse cenário, tivemos ainda ações austeras implantadas pela
administração federal nos sistemas de educação do país. Uma delas, vivenciada na
Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), abriu
condições para que intervenções7 ocorressem em estabelecimentos de ensino, como
o Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), o Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), a Universidade Federal de
Itajubá (UNIFEI) de Minas Gerais, entre outros institutos e universidades.
De acordo com o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino
Superior (ANDES-SN), em janeiro de 2021, em torno de 20 instituições federais
estavam sob intervenção do governo federal, que nomeou reitoras(es) ou diretor pró-
tempore, como no caso do CEFET/RJ, de acordo com interesses e articulações
políticas, contrariando os resultados das consultas feitas às comunidades
acadêmicas.
Além destes dados divulgados pelo ANDES-SN, podemos encontrar
movimentos relacionados ao processo de militarização8 das escolas e perseguições
políticas ocorridas nas redes federal, estadual e municipal. Todos esses processos
têm, sem dúvida, efeitos na escola e são fios que permeiam o seu cotidiano.
É também nesse cotidiano escolar que temos condições de trabalho, que, por
vezes, são precárias e pouco favoráveis à realização de algumas atividades em
virtude da falta de infraestrutura e de materiais adequados. A ausência de salários

7
Para outras informações: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/cerca-de-20-instituicoes-fede-
rais-de-ensino-estao-sob-intervencao-no-pais1. Acesso em 18 out. 2021.
8
Para mais informações: https://www.camara.leg.br/noticias/742580-docentes-das-universidades-
federais-reclamam-de-intervencao-do-governo/. Acesso em 18 out. 2021.
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dignos e de recursos financeiros contribuem para um cenário bastante desolador. É a


chuva forte que destelha o prédio e a verba que não cobre todas as necessidades; a
instabilidade do sistema eletrônico que dificulta o andamento dos processos; os
materiais que estão em falta; as turmas com um grande quantitativo de estudantes;
as pressões vividas no interior das escolas com as exigências impostas pelas políticas
implementadas pela gestão municipal, estadual e/ou federal.
Em um cenário recente provocado pela pandemia, vemos ainda desafios –
alguns não tão novos – serem (re)colocados no contexto escolar, como o ensino
remoto e a sua interferência nas relações de trabalho, os usos das plataformas digitais
e os novos recursos para o desenvolvimento das atividades síncronas e assíncronas,
entre muitos outros que poderiam ser aqui citados.
Cenários desafiadores que convivem com as inúmeras possibilidades criadas
com o intuito de garantir aos sujeitos escolares processos de aprendizagens potentes
e interessantes. Aqui falamos de propostas pedagógicas que procuram fugir ao
tradicionalismo do modelo escolar, romper e questionar com o que se faz sempre
igual. Refiro-me a cine-debates desenvolvidos por docentes e estudantes; encontros
promovidos por coletivos feminista e negro; aulas dadas por professoras e professores
em espaços externos às tradicionais salas; projetos de teatro e dança promovidos
pela equipe multidisciplinar; visitas a outros espaços educativos, como museus,
fábricas, centros culturais; projetos de extensão e de pesquisa com atividades
diversificadas em laboratórios e na própria sala de aula. Experimentações vivenciadas
na escola que não se opõem aos desafios registrados anteriormente.
Compartilho tantas situações – e poderia citar outras – que coexistem e, muitas
vezes, dialogam no cotidiano escolar para apresentar, ainda que de modo limitado,
acontecimentos produzidos no interior de muitas escolas. Tais situações trazidas não
se colocam em defesa de uma suposta resiliência 9 necessária a quem trabalha na
escola pública.

9
Vale um breve registro para partilhar que muito tem sido produzido acerca desse conceito “resiliên-
cia”, proveniente originalmente da Física. É possível encontrar livros, artigos, entre outros materi-
ais, que irão explorar esse conceito, tendo, inclusive, uma vasta literatura na área de recursos hu-
manos e do desenvolvimento pessoal. No entanto, nessa pesquisa, não temos a intenção de apro-
fundar esse debate, mas apenas ressaltar um discurso muito presente na escola, que valoriza a
meritocracia e o individualismo. Portanto, a menção aqui feita a esse termo ocorre em virtude da
utilização recorrente da resiliência como referência a um movimento capaz de suportar as condi-
ções adversas, superar as dificuldades para se obter sucesso profissional e/ou para se atingir obje-
tivos ou metas. Isto é, em certa literatura, esse termo se refere à capacidade do indivíduo ser flexí-
vel e persistente, o que me parece dar pistas a um olhar focado no sujeito individual, no seu capital
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Contrariando o que vemos publicado em muitos veículos de comunicação – os


quais, em geral, tendem a valorizar a precarização da educação pública e dão maior
visibilidade às difíceis condições de trabalho –, o cotidiano da escola se mostra
permeado pela pluralidade dos sujeitos; é também constituído pelo ordinário e pelo
que nos parece invisível.
Como nos diz o poeta Murilo Mendes, em seu livro de aforismos, “o invisível
não é o irreal: é o real que não é visto”. Podemos, então, considerar o cotidiano da
escola como significativo campo de consistência desta pesquisa, entendido como
espaçotempo ambivalente, caótico, em que a vida acontece, se produz e é produzida
cotidianamente.
Há quem desqualifique o caos presente na escola pública, marcada por alguns
reveses e, ao longo de décadas, por muitos ataques. Caos que, de modo habitual, é
associado negativamente à desordem, à falta de controle, considerado
pejorativamente como um problema para o andamento do trabalho pedagógico. É
preciso arrumar bem para que funcione melhor, dizem por aí... Sem ordem, não há
progresso... Será?
É possível pensar em outra direção, como Esteban (2002) nos aponta, em
diálogo com os estudos de Ilya Prigogine (1996), ao realçar que “um estado de não-
equilíbrio pode ser de maior complexidade que o estado de equilíbrio” (ESTEBAN,
2002, p. 19). Para a pesquisadora, esse entendimento pode ampliar as correlações
dos fenômenos analisados no cotidiano escolar, reconhecendo, assim, a
complexidade do processo ensinoaprendizagem.
A partir do seu movimento caótico, a escola e os sujeitos vão se produzindo e,
em meio a esse processo, é que se engendram as relações, os sentidos e os efeitos
das práticas realizadas. Ao tentarmos ordenar ou desqualificar este caos, assumimos
o risco de fazer análises rasas e simplistas sobre os processos que estão sendo
fabricados na escola, distanciando-os da vida que pulsa pelos sujeitos que compõem
o seu cotidiano.
Quando consideramos o processo ensinoaprendizagem como complexo, pode-
mos dar passagem a uma outra compreensão para a relação pedagógica, que não

humano, ignorando uma leitura crítica do modo de produção capitalista neoliberal e os aspectos
mais coletivos presentes nas relações de trabalho.
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esteja sustentada “na ideia de ensino como transmissão de conteúdo, de aprendiza-


gem como recepção e armazenamento do conteúdo transmitido e de avaliação como
meio para quantificar quanto do transmitido foi armazenado e pode ser reproduzido”
(ESTEBAN, 2002, p. 20). Damos abertura à potência dos encontros e às diferenças
que emergem ao longo do processo, deslocando a avaliação da lógica da classifica-
ção, hierarquização e do controle para uma perspectiva mais aberta à heterogenei-
dade e à invenção.
Cabe ressaltar que, nesta tese, a noção de potência é fundamental e está
relacionada à força que nos mobiliza à criação, à expansão de possibilidades de afetos
e que podem dar sentidos outros às experiências. Estamos nos referindo à força que
pode nos levar à produção de processos de singularização, que, de acordo com Felix
Guattari e Suely Rolnik (1996) são

[...] uma maneira de recusar esses modos de encodificação preestabelecidos,


todos esses modos de manipulação e tele comando, recusá-los para
construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o
outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma
subjetividade singular. Uma singularização existencial que coincida com um
desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no
qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos
de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p.17).
Ao pensar na contribuição de Guattari e Rolnik (1996), articulada ao olhar
trazido por Esteban (2002) acerca da complexidade do processo ensinoaprendizagem
e da avaliação, reconheço a escola pública como instituição ímpar que pode colaborar
profundamente na formação de sujeitos, potencializando, a partir de suas práticas, a
ampliação de horizontes, produzindo experiências outras.
Sem reforçar dicotomias, tenho também compreendido que, historicamente, a
escola tem se somado aos processos de serialização em massa, como preconizou
Coménio, atendendo ao governamento dos corpos, se tomarmos as ferramentas
foucaultianas em nossas análises. Nesse sentido, ao levarmos em consideração o seu
funcionamento disciplinador e homogeneizante, tenho me indagado se é possível
pensar práticas pedagógicas, em especial, avaliativas que propiciem processos de
singularização na escola.
Nesta pesquisa, tenho caminhado com a esperança equilibrista, que me faz
vislumbrar horizontes possíveis e potentes na escola ao apostar na compreensão de
que é um espaçotempo onde coexistem forças e movimentos. Assim como na vida,
convivemos – sobretudo, na escola pública – com a heterogeneidade de saberes e
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culturas, a diversidade de gêneros e gerações, diferentes condições sociais e


econômicas e distintas visões de mundos, que são trazidos para seu interior pelas(os)
estudantes e trabalhadoras(es).
É nesse contexto caótico – em que os processos não são previsíveis, não estão
estanques uns dos outros e também não estão isolados em si – que vemos as
relações entre os sujeitos se estabelecerem a partir das interações e práticas
fabricadas no espaçotempo escolar. Essas práticas, ao afetar os sujeitos, terão
efeitos, que acontecem de modo singular em cada um de nós.
Pensar sobre essas práticas produzidas na escola, a partir da perspectiva da
produção de subjetividades, têm sido um caminho potente nesta pesquisa, que
valoriza o ordinário, o dito e o não dito no cotidiano escolar. Pretendo colocar
intensidade nas relações estabelecidas neste cotidiano, as quais estão permeadas
pelos fios que também constituem o contexto mais amplo. Imersa nesta perspectiva,
coloco as práticas avaliativas em análise ao considerá-las como dispositivos
pedagógicos, o que aprofundaremos ao longo da tese.

1.1 Inquietudes, provocações e entrelaçamentos: O que tem mobilizado essa


caminhada investigativa?

Ao longo do ano letivo, a avaliação recorrentemente é trazida para o centro dos


debates na escola. Em reuniões pedagógicas, nas trocas feitas pelos corredores, nas
salas de aula, nos acompanhamentos feitos junto às(aos) estudantes, nos encontros
com as famílias, até mesmo no recreio, é considerada um tema quente e polêmico. A
avaliação é, muitas vezes, definida por estudantes, como a responsável por definir
caminhos ou sendo “a salvadora de almas”. Há, nitidamente, a conexão aqui entre o
processo avaliativo e o instrumento que produz o rendimento, o que, em geral, é
chamado prova.
É muito comum encontrarmos relatos de familiares, amigas(os), colegas de
trabalho, pessoas ao nosso redor que compartilham lembranças dos momentos em
que foram avaliadas na escola. Talvez as nossas próprias histórias nos tragam à
memória esses momentos e como nos sentimos ainda hoje em meio a um processo
avaliativo. Podemos revisitar nossas memórias ao nos indagarmos: O que se
passa(va) conosco quando avaliadas(os)? Como a avaliação nos marcou? Como nos
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sentíamos? Lembramos mais de momentos de angústia ou outras emoções, trocas e


de parcerias?
Empiricamente, a partir de conversas travadas nos mais variados espaços e
com grupos distintos, tenho percebido que muitas memórias relacionadas à avaliação
estão associadas a momentos de estresse e testagem de conhecimentos. Com menor
frequência, encontramos pessoas que tenham relatos mais positivos ou memórias
agradáveis dos momentos em que foram avaliadas na escola.
Já pude ouvir de colegas nas escolas por onde trabalhei que consideram esses
momentos de avaliação necessários para o desenvolvimento de competências
importantes aos tempos atuais, como “prestar mais atenção”, “ter foco nas atividades,
“obedecer enunciados”, “memorizar conteúdos”, “aprender a estudar individualmente”.
Há quem diga, enaltecendo uma suposta função da avaliação escolar: “Assim como
na vida, a avaliação ajuda a separar o joio do trigo...”.
Uma associação muito habitual – porém, equivocada – ocorre entre avaliação
e prova, muitas vezes, usadas como sinônimos. Esse olhar limitado que essa
associação produz do processo avaliativo nos oferece pistas importantes para
pensarmos sobre esses instrumentos comumente utilizados para quantificar e
classificar as(os) estudantes a partir da aferição dos conteúdos adquiridos. Isto é, uma
avaliação dentro de uma perspectiva seletiva e usada como medida, em que a
aprendizagem será observada de acordo com o rendimento das(os) discentes.
Compreendo que tal correlação muito presente no cotidiano escolar nos
apresenta um olhar bastante simplista para a ação avaliativa ao reduzi-la a somente
um único instrumento, como a prova. Nessa pesquisa, venho me indagando sobre
essas naturalizações construídas sobre a avaliação, que costumam reforçar padrões
de aprendizagem, disseminar modelos de ensino e normas curriculares, tanto no
cotidiano escolar quanto nas políticas públicas adotadas nas últimas décadas em
nosso país e, de modo mais amplo, em outros lugares do mundo.
Vemos a materialização desses padrões em determinados discursos e práticas
que defendem a qualidade da escola; entretanto, buscam estabelecer parâmetros
uniformes para realidades distintas, como é o caso dos exames adotados no sistema
de avaliação brasileiro referenciados no Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes10 (Pisa).

10
Para mais informações sobre o PISA no Brasil: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/ava-
liacao-e-exames-educacionais/pisa . Acesso em 03 nov. 2021. Ademais, sugerimos ainda outras
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Tais naturalizações podem – e, a meu ver, devem – ser estranhadas,


sobretudo, quando notamos que os efeitos delas têm nos levado a (re)produzir uma
escola que coloca à margem crianças, jovens e adultos que não seguem padrões (de
comportamento, de rendimento, entre outros) definidos como normais ou que não
apresentem ritmos de aprendizagem considerados como regulares. Ou seja, uma
escola que, embora seja para todas(os) devido à democratização do seu acesso, em
seu interior, ainda é capaz de criar mecanismos e usar dispositivos que excluem e/ou
dificultam a permanência das(os) estudantes.
Inquieta com as situações que vivencio como pedagoga e integrante de uma
equipe multiprofissional em um centro de educação tecnológica da rede federal de
educação, venho colocando em análise algumas práticas muito recorrentes e
questões que emergem das muitas partilhas feitas pelas(os) estudantes e suas
famílias, professoras(es) e colegas de equipe. Tenho entendido que essas práticas,
em especial as avaliativas, e as questões emergentes se relacionam a um modo de
funcionamento da escola, que é fabricado e atualizado ao longo de décadas.
Nesse sentido, a pesquisa não se filia à perspectiva de responsabilização
individual, pois entende a dimensão coletiva e relacional do trabalho pedagógico. O
propósito aqui pactuado é pensar sobre e com o que tem sido produzido na escola,
complexificando as questões que pulsam no cotidiano. Assim, tenho o desejo de
potencializar diálogos e dar visibilidade a entrelaçamentos possíveis nos mais
variados campos de saber, analisando, de modo transversal, contextos e relações
tecidas.
Em minha atuação como pedagoga, inserida em uma equipe multiprofissional,
junto a outras(os) trabalhadoras(es) de diferentes formações e áreas – como Serviço
Social, Matemática, Psicologia e História –, temos um contato diário e próximo à
comunidade escolar, em geral. Entre os muitos episódios cotidianos, durante uma
reunião com um estudante para conversarmos sobre a sua situação acadêmica,
houve um relato que me marcou:
Depois de muitas aulas e eu vendo que ‘não ia’ [referindo-se a aprender o
conteúdo de uma determinada disciplina], perguntei para o professor:
“- Professor, você sabe grego?”
Ele me disse claramente que não.

leituras sobre este programa, que colocam em análise sua proposta, limitações e impactos em di-
versos países: https://avaliacaoeducacional.com/category/exames-e-indices/pisa/ . Acesso em 03
nov. 2021.
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Foi quando eu respondi: “Pois é exatamente assim que me sinto na sua


prova...”11
Breve conversa. Ruidosa colocação. A meu ver, expressa o incômodo de um
estudante frente a uma prova, que lhe pareceu ser feita em outro idioma, o qual não
dominava. Diante do seu não saber e na tentativa de manifestar o seu desconforto, o
discente faz essa analogia, indagando ao professor sobre um idioma estranho aos
dois e que, pela resposta dada, o docente também não dominava.
Em diálogo posterior com esse aluno sobre a situação vivida em sala de aula
no dia da referida prova, ele me relatou as suas questões na compreensão da
disciplina e que se esforçava na elaboração dos exercícios em sala, mas, ao chegar
na prova, sentia-se bloqueado. Em suas palavras, “não saía o que havia estudado”,
deixando-o angustiado, preocupado com suas notas baixas e bastante tenso com uma
possível reprovação. O aluno ainda me relatou que sentia “muitas dificuldades no
conteúdo porque não entrava na cabeça” e não havia tido uma “boa base anterior por
nunca ter estudado” a disciplina em questão.
Em nossa conversa, pude perceber que a prova gerava um certo temor porque
ressaltaria mais o que ele não sabia, reforçando os seus desconhecimentos e
aparentes erros, o que poderia levar a um lugar de exclusão. Em seu relato, esse
estudante, embora não tenha sido o único, enfatizou o seu desconforto com este lugar
de quem não sabe, sobretudo porque havia uma grande pressão familiar com relação
à reprovação.
Suas falas expressam preocupações comuns entre as(os) estudantes que,
inseridos em uma lógica de avaliação amparada na perspectiva seletiva e
classificatória, vêm marcando muitas relações na escola. A reprovação, inclusive, é
vista por muitas(os) alunas(os) como castigo às(aos) que não souberam se comportar
e seguir as regras ou como punição a quem desperdiçou o tempo e as oportunidades
dadas no ano letivo. Ser reprovada(o) é também um ano a mais no ensino médio, o
que significa se formar mais tarde e retardar a entrada no ensino superior ou no
mercado de trabalho, segundo os relatos que ouvimos com certa frequência em
nossos atendimentos na equipe multiprofissional.
Trago o breve relato – que me acompanha desde 2016, quando fiz um curto
registro em meu caderno pessoal usado na escola – por me chamar atenção aos

11
Registro feito em caderno pessoal. Agosto, 2016.
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efeitos produzidos nas(os) estudantes a partir das provas realizadas ao longo da


jornada escolar.
Cabe aqui ressaltar que é muito comum que as(os) estudantes entendam por
avaliação toda situação ou instrumento de coleta de dados, como provas, testes,
trabalhos em grupos, listas de exercícios, entre outras atividades propostas pelas(os)
professoras(es) ao longo do ano letivo, em que serão atribuídas notas, computadas
em suas médias parciais e/ou finais.
Assim como este, outros relatos são compartilhados pelas(os) discentes com
grande recorrência nos atendimentos individuais ou em reuniões coletivas junto à
equipe no qual atuo. São falas bastante impactantes acerca desses efeitos que as
avaliações – como as(os) estudantes costumam nomear – têm nas relações que
estabelecem com a escola e, de modo mais amplo, afetam também suas vidas, o que,
a meu ver, merece bastante atenção por envolver dimensões mais sensíveis. Esses
efeitos têm me trazido indagações, em especial quando se tratam de práticas
avaliativas desenvolvidas no processo ensinoaprendizagem, por tensionarem o que
parece já estabelecido na cultura escolar.
Os atendimentos realizados pela equipe multiprofissional são feitos a partir das
demandas mapeadas nos conselhos de classe (COCs) ocorridos ao longo do ano
letivo ou por demandas espontâneas das(os) próprias(os) estudantes e corpo
docente. Nos COCs, há uma recorrência de encaminhamentos feitos pelas(os)
professoras(es) devido a baixos rendimentos e frequência das(os) estudantes, além
de questões relacionadas a comportamentos considerados inadequados para sala de
aula. A partir do mapeamento das demandas ou encaminhamentos feitos durante os
períodos letivos, as(os) estudantes são convidadas(os) pela equipe multiprofissional
para encontros individuais e/ou dinâmicas coletivas. Em alguns casos, as famílias
também são envolvidas nos desdobramentos das ações.
Em paralelo aos atendimentos feitos junto às(aos) estudantes, podemos
encontrar na escola falas de professoras(es) que associam boas notas a bom
comportamento, ressaltando uma lógica escolar que faz crer nos efeitos positivos de
uma avaliação que preze pela seletividade como garantia de uma educação de boa
qualidade. Essa lógica produz efeitos nos corpos dos sujeitos de diversos modos e a
avaliação legitima o discurso meritocrático e aposta na quantificação e na
classificação dos rendimentos obtidos, a partir dos instrumentos utilizados.
33

Nessa esteira, é possível ouvir falas de professoras(es) que valorizam o uso


desses instrumentos avaliativos para enfrentar questões, como a indisciplina. Em tom
de ameaça, são propagadas falas, tais quais: “Se vocês não ficarem quietos, vou
aplicar uma prova agora!”. Outros comentários atribuem à avaliação o poder de
confirmar o que supostamente já se sabia ou se esperava de um(a) estudante ou de
um grupo: “A prova mostrou o que já esperava dessa turma...”; “Não esperava outro
resultado do estudante A com aquele comportamento...”.
Há ainda as(os) que proferem: “Os bons [alunos] naturalmente sobrevivem e
serão selecionados por seus méritos”, endossando um olhar que flerta com a teoria
do darwinismo social, na qual se prega a competividade natural entre os indivíduos e
a hierarquia das sociedades supostamente mais evoluídas. Essa teoria tem justificado
práticas atreladas ao pensamento eugenista12 nos mais variados espaços sociais,
inclusive, na escola, ainda que de modo velado. Como nos diz a canção, interpretada
pela icônica cantora Gal Costa, “é preciso estar atento e forte” para as armadilhas com
as determinadas práticas tão naturalizadas podem estar filiadas e observar as
ressonâncias de ideais conversadores em nosso cotidiano escolar.
Nessa estreita relação fabricada entre binômios como avaliar-premiar e avaliar-
punir, percebemos lógicas comuns de funcionamento, que vão maquinando a escola
e afetando os sujeitos, tanto estudantes quanto trabalhadoras(es). Tem me chamado
atenção a relação existente entre a avaliação e o juízo de valor moral, que pode,
inclusive, sustentar o uso punitivo do instrumento avaliativo. Acompanhamos esse uso
quando, para reduzir as conversas paralelas nas aulas, provas são aplicadas de modo
mais rigoroso.
Observamos que a coibição da prática da “cola” – vista como trapaça ou
corrupção, de acordo com falas trazidas por alguns professores em conselhos de
classe – passa, muitas vezes, pelo nível de exigência cobrado nas avaliações. Há
quem diga: “É assim, sempre foi assim e não morri por isso!”. Cabe nos indagarmos:
Será que sempre foi assim?
Podemos pensar, inclusive, se determinadas práticas avaliativas não
produziram e ainda produzem outras mortes simbólicas ao longo da vida, no sentido

12
Sobre o pensamento eugenista no Brasil, o artigo a seguir contribui para compreendermos histori-
camente a influência dessas ideias no país. De modo breve, neste artigo, podemos conhecer al-
guns argumentos usados por intelectuais no início do século XX e que ainda ganham repercussão
em nossa vida social: https://www.geledes.org.br/eugenia-no-brasil-movimento-tao-absurdo-que-e-
dificil-acreditar/. Acesso em: 09 nov. 2021.
34

de nos tirar a potência, de gerar silenciamentos ou contribuir para apagamentos de


saberes e culturas.
Acredito que, para além desses binômios tão difundidos e normalizados, como
avaliar-medir e avaliar-punir, podemos pensar de modo mais complexo e transversal
sobre as lógicas que permeiam tais ideias. Nessa direção, vale ainda nos questionar
sobre como são produzidas tais lógicas e como elas afetam os sujeitos na escola.

1.2 Objetividade versus subjetividade: desmanchando naturalizações

Ao retomar o meu caderno pessoal usado na escola, bem como o meu diário
de campo, reencontro registros de falas de professoras(es) em que mencionam a
dificuldade percebida ao corrigirem provas discursivas e se depararem com respostas,
dadas pelas(os) estudantes, consideradas mais subjetivas. Alguns docentes
compartilham em conselhos de classe: “Como avaliar sem cair num olhar muito
subjetivo para não perder os critérios? Se perde o parâmetro, aí dá pano pra
manga...”.
Há professoras(es) que endossam a presença da dimensão subjetiva como um
fator que atrapalha as avaliações e, como uma solução ideal, entendem que os
instrumentos avaliativos devem buscar, do ponto de vista técnico, afastar essa
respectiva dimensão. Essas(es) docentes acreditam que vão obter resultados menos
contaminados pela subjetividade ao modificar o instrumento, tornando-o mais objetivo
possível com o intuito de diminuir a presença da subjetividade.
Essa ideia de contaminação somada a esse olhar negativo para a interferência
da subjetividade na avaliação são construções bastante comuns no cotidiano escolar
e nos mostram a importância de evidenciarmos essa discussão entre a dicotomia
objetividade-subjetividade, pois ainda há muitos profissionais forjados com este olhar.
Embora essa dicotomia não seja o foco da nossa pesquisa, ao tratarmos a
objetividade em oposição à subjetividade, percebemos que essa ideia caminha
distante da perspectiva apresentada pelos filósofos da diferença, como Michel
Foucault, que vai considerar a avaliação como dispositivo que contribui no processo
de produção subjetiva.
Esse discurso da suposta contaminação e a oposição objetividade e
subjetividade me faz pensar sobre outras questões: é possível ter avaliações neutras
em uma relação formativa, como é o caso da relação professor(a)-aluno(a)? Como
35

afastar a subjetividade dessa relação formativa? Acreditar que a melhoria do


instrumento avaliativo virá a partir da retirada da sua dimensão subjetiva, buscando
trazer mais objetividade e, hipoteticamente, mais imparcialidade aos resultados é
mesmo possível?
Essa ideia de almejar uma avaliação objetiva é problemática em si por guardar
equivocadamente a ilusão de que podemos ter um processo menos subjetivo em uma
relação formativa, como é a relação professor(a)-aluna(o). Embora existam
professoras(es) que acreditam na suposta verdade de que é possível separar
objetividade e subjetividade no campo da formação, sabemos que há outras
perspectivas teóricas que refutam essa separação e apontam a fragilidade dessa
pseudodicotomia.
Mais do que procurar respostas a essas questões e fortalecer verdades, tenho
me dedicado a problematizar também as minhas próprias perguntas, em um processo
de desnaturalização que, como nos inspira Regina Benevides de Barros (1997, p.
121), “argui o que se apresenta como dado, que busca instituir outras formas para
aquilo que se apresentava como único; que põe a funcionar outros modos, inventando
fugas, penetrando no plano da subjetividade”.
Pensar nessas e em outras questões me move ao debate acerca da noção de
subjetividade, em que podemos identificar, ao menos, duas posições. Embora se
articulem, essas posições são diferentes: uma é a oposição entre subjetividade e
objetividade, já apontada no texto e muito comum no cotidiano da escola, que se
assenta em uma concepção de sujeito do conhecimento e de mundo a ser conhecido.
Luciana Lobo Miranda (2000) e Benevides de Barros (1997) vão desenvolver
melhor essa discussão, trazendo elementos interessantes sobre a influência das
ideias cartesianas e kantianas, principalmente, para compreendermos as noções de
sujeito e objeto que percorreram séculos e contribuíram para formulação de um
sistema de conhecimento binário.
Outra posição, da qual me aproximo para pensar as questões que trago nesta
pesquisa, aborda a subjetividade sob o prisma da produção, usando como referência
a obra de Félix Guattari e seus comentadores. São contribuições relevantes que nos
ajudam a colocar em análise a produção de subjetividades a partir das práticas
avaliativas, abrindo possibilidades para (re)pensarmos a maquinaria engendrada na
escola.
36

1.3 Olhares para a subjetividade sob o prisma da produção

Ao nos colocarmos abertas(os) ao fluxo de ideias, pistas e provocações que


emergem do cotidiano, podemos olhar de diferentes modos o que experenciamos na
escola. Nesse fluxo, quando me questiono sobre as lógicas que estão permeando e
constituindo as práticas avaliativas, tenho me sentido instada a entender que
subjetividades são produzidas por tais práticas.
Por esses caminhos e dobras, outra indagação também têm animado esta
pesquisa e se direciona a dialogar sobre qual seria a relação ou as relações que
podemos perceber entre as subjetividades e as práticas avaliativas.
Temos aqui a oportunidade para falar sobre diferentes noções de subjetividade.
Uma delas aponta para o entendimento da subjetividade como natureza, interioridade,
substância inata e se contrapõe à noção de construção social, a partir dos inúmeros
agenciamentos coletivos, conceito-ferramenta trazido por Félix Guattari.
Na escola, trabalhamos com diferentes sujeitos, inseridos nos mais variados
contextos e histórias. Nela, podemos encontrar uma variedade de entendimentos para
o termo “subjetividade”, que, como ressalta Leonardo Barros Soares e Luciana Lobo
Miranda (2009, p. 409), ora é utilizado para qualificar, ora para desqualificar uma
opinião, análise ou decisão.
Nessa pesquisa, não estamos pensando em um indivíduo isolado em suas
opiniões e experiências particulares, haja vista que esse caminho poderia reduzir o
debate à categoria, indivíduo-sujeito-questões subjetivas, aqui constituída por termos
justapostos e que, muitas vezes, são considerados equivocadamente como
sinônimos.
Esse debate não se restringe ao campo das ciências psicológicas e, diante
disso, é fundamental considerarmos algumas noções e perspectivas existentes sobre
subjetividade para analisarmos as relações construídas no processo de formação.
Então, como nos provoca Miranda (2000): “de qual subjetividade estamos falando?”
Por se tratar de um debate vasto e complexo, sendo possível percorrer
caminhos a partir de distintos aportes que delimitam este conceito, dialogo com
Miranda (2000, p. 30) ao demarcar que “a subjetividade e a noção de sujeito têm sido
pontos centrais na discussão e questionamento dos paradigmas das ciências
humanas”.
37

A autora mapeia interlocutores e contribuições significativas com relação à


constituição das correntes de pensamento que estão presentes neste debate e
destaca que são traçados vários perfis de sujeitos – sujeito do conhecimento, o sujeito
psicológico e o sujeito do inconsciente – com a finalidade de buscar a “verdade” sobre
a condição humana.
Em paralelo, nesse contexto do debate epistemológico, Miranda (2000, p. 30)
ressalta o “subjetivismo” que acompanha a subjetividade, o qual ora é negado pela
objetividade científica (neutralidade), ora caminha levado por uma constituição
estrutural e universal do sujeito.
Nos desdobramentos desta discussão, Miranda (2000, p. 31) evidencia que
ambas as concepções “subjetivista” e “objetivista” apontam para o mesmo lugar: o
sujeito transcendental, a subjetividade individualizante, prisioneira de uma
interioridade, o que parece conduzir o discurso “psi” (psicologia, psicanálise,
psiquiatria) para “a redução da subjetividade a uma dimensão psicológica interior,
isolando-a de um contexto mais amplo”. A pesquisadora faz crítica a um psicologismo
estéril, que se distancia das problemáticas sociais, econômicas, políticas, estéticas e
tecnológicas.
Trazendo outros elementos ao debate, Soares e Miranda (2009) ressaltam
importantes contribuições para a diferenciação destes pensamentos. Os autores
descrevem, apoiados por Garcia-Roza (1988 apud SOARES; MIRANDA, 2009), uma
geografia do pensamento ocidental, tendo dois grandes eixos: um vertical, dos
conhecimentos, da episteme, em que o platonismo é o seu maior representante, com
orientação ascendente; e, o eixo horizontal, o dos acontecimentos, em que se situam
a tradição das escolas cínicas e sofistas.
É nesta composição que, aproximando-se da perspectiva de David Hume –
que, em sua filosofia, faz uma crítica aguda às representações na filosofia platônica
por não apresentarem as relações nelas envolvidas –, Soares e Miranda (2009)
dialogam com Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari em uma proposta de
alargamento do conceito de subjetividade.
De acordo com Soares e Miranda (2009), na topologia deleuziana, Hume
apresenta uma consistente crítica ao projeto platônico-hegeliano hegemônico na
filosofia ocidental. Acrescentam que esta filosofia é “uma das principais contribuições
do empirismo para uma concepção de subjetividade não substancializada e imanente,
38

forjada no seio do socius e constitutiva de uma filosofia do acontecimento, localizada


no eixo horizontal do pensamento” (SOARES; MIRANDA, 2009, p. 413).
A partir daí, temos uma potente discussão de subjetividade como processo
permanente, que se situa num plano histórico-político, no entrecruzamento de
diversos fatores, na produção de si e do mundo vivido. Assim, como nos colocam os
autores,

[...] cortadas de suas realidades políticas, de suas condições de produção, de


sua polifonia constitutiva e de seu caráter processual, as subjetividades se
particularizam, se autonomizam na esfera individual e se tornam
idiossincrasias, uma “questão de gosto” remetidas a uma instância oculta, a
uma “alma” descolada do corpo, sede do entendimento, da razão e das
emoções do sujeito. Já considerar a subjetividade a partir do ângulo da
produção, assim como proposto por Guattari aproxima-se, a nosso ver, da
perspectiva de Hume, que advoga em favor de um sujeito prático que
conforma uma subjetividade igualmente prática” (SOARES; MIRANDA, 2009,
p. 415).
A subjetividade sob o prisma da produção, tendo como referência Guattari,
ajuda a romper a compreensão particularizada e as amarras de um olhar
individualista; contribui para diferenciar os chamados “aspectos subjetivos” como algo
meramente individual.
Com as contribuições de Guattari, mais especificamente com a professora e
pesquisadora Suely Rolnik (1996), dando contornos aos processos de subjetivação
na contemporaneidade, temos ainda como referência as noções de máquina e de
agenciamento coletivo de enunciação. Nas palavras de ambos,

A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos


de subjetivação, de semiotização – ou seja, toda a produção de sentido, de
eficiência semiótica – não são centrados em agentes individuais (no
funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem em
agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o
funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza
extrapessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais,
tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, enfim sistemas que
não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-
humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de
sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor,
modos de memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de
automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc.)
(GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 31).
Faço coro com Soares e Miranda (2009, p. 417) ao considerarem que o
conceito de máquina é bastante hermético; no entanto, acredito que este conceito
pode ser uma ferramenta interessante para geografar as linhas de forças que
constituem os corpos e as práticas, nos deslocando dos olhares que buscam
conservar forças e individualizar questões.
39

Entender a avaliação como dispositivo, produzida historicamente e por sujeitos


permeados por olhares de mundo e, portanto, perpassada por interesses e por
distintas forças, nos ajuda a perceber que as nossas práticas avaliativas hoje não
estão dadas e podem ser (re)inventadas a todo instante. Nesse sentido, podemos
também compreender que, como dispositivo, a avaliação contribui para a produção
de subjetividades, o que nos abre a possibilidade de (re)considerar caminhos na
tentativa constante e permanente de escapar a modelizações dominantes.
Somos também produzidos(as) por inúmeros agenciamentos coletivos, assim
como a própria educação, e apostar nas frestas cotidianas como caminhos possíveis
para produções outras é um convite para disputarmos o terreno das subjetividades,
como nos provoca Tatiana Roque (2017).
Nesse movimento, colocar em análise as relações que estabelecemos e nos
perceber implicadas(os) nesse processo, atentas(os) ao que nos agencia
constantemente, pode ainda esgarçar as nossas percepções sobre o que vêm sendo
engendrado na escola com relação às subjetividades. Como colocado por Guattari
apud Soares e Miranda (2009, p. 421),

[...] nada está dado, é preciso, a partir da compreensão de que a subjetividade


é constantemente produzida, lutar por novos campos de possibilidades,
inventando no cotidiano novos modos de existência, novas relações consigo
mesmo e com o mundo.
Pensar na escola como alternativa de outros encontros e acontecimentos,
participando ativamente dessa disputa no terreno das subjetividades, me instigou a
esta proposta de pesquisa, que se inspira na construção de um espaçotempo escolar
que incorpore as diferenças e se aproprie positivamente da pluralidade de saberes e
culturas. Venho me esperançando nas possibilidades de (trans)formação da
avaliação.
Ao dar destaque às práticas avaliativas, trazendo para o foco da nossa
pesquisa as situações vividas no cotidiano e os saberes compartilhados pelas(os)
estudantes e demais sujeitos, podemos pensar sobre um conjunto de questões que
vão estar presentes no trabalho pedagógico e para além dele. Tenho acreditado que
a escola, sobretudo a pública, pode se constituir em um espaço onde se experimente,
de modo efetivo, práticas que ofereçam condições para potencializar relações mais
solidárias, coletivas e democráticas.
Optar por uma metodologia que possa respeitar esses processos e os sujeitos,
os acontecimentos cotidianos, sendo sensível às imprevisibilidades que compõem as
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relações, é uma aposta desafiadora. Pretendo conectar os debates enfrentados na


pesquisa a outros cotidianos e práticas avaliativas, indagando, em meio às turbulên-
cias, cotidianos e análises: como pensar outros modos de avaliar que possam contri-
buir para uma produção de subjetividades outra?

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