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Revista de Educação

1997, Vol. 1, n° 2,37 - 46

o processo de ensino e aprendizagem


Maria Eugênia L.M.Castanho

"Amor corre para amor, como as


crianças fogem da escola; mas amor se afasta do amor com os olhos tristes, como criança quando
vai à escola". (Shakespeare, Ato 11,cena 2).

Introdução cesso pelo qual alguns preferentemente ensi-


nam e outros eventualmente aprendem.
Sou professora há três décadas e tenho Se a Psicologia teve que ir cedendo, a
tido o privilégio de participar, durante esse contragosto, seu espaço para a Sociologia, a
tempo, de todo o processo de reflexão e de ação Antropologia, a Lingüística e a Política, não se
que tem reformulado a educação brasileira. pode dizer que é uma ciência em extinção.
Desde muito cedo, aos 16 anos, quando minis- Desse modo, pretendo no presente texto apontar
trei minha primeira aula a alunos de 4a série onde reside sua contribuição para o debate in-
primária, descob~ia paixão da experiência do- terdisciplinar sobre a educação e resgatar sua
cente na sala de aula. importância no marco de uma posição coerente
Trabalhando e estudando, debruçando- teoricamente com pressupostos ligadosao papel
me sobre as idéias dos mais variados autores em que o fenômeno educacional pode e deve ter
numa sociedade como a atual.
diversas áreas, venho procurando definir uma
prática coerente, conseqüente e competente que
represente aquilo em que acredito. Nessa Antecedentes históricos
caminhada, fui aprendendo por conta própria,
mas não sozinha (conforme Bakhtin, toda fala é o quadro atual da educação nacional (e
abstraída de um diálogo). Assim, o que pretendo também mundial, respeitadas as especificidades
fazer aqui é apresentar algumas idéias e senti- culturais e políticas) não é animador. Problemas
mentos que me parecem relevantes quando se de toda ordem, quer de natureza extra-escolar,
discute o processo de ensino e aprendizagem, quer de natureza intra-escolar são postos em
muito mais que apresentar exaustivamente al- discussão a todo momento e parecem muitas
gumas teorias sobre o assunto. vezes insolúveis.
Há muitas teorias e cada uma delas A deterioração constante das condições
tributária de determinadas orientações epis- de funcionamento da escola no contexto educa-
temológicas. Se há algumas décadas era a Psi- tivo tem raízes históricas que não serão aqui
cologia o campo por excelência para ditar o analisadas, uma vez que mereceriam um estudo
como fazer, o como ensinar, observa-senos dias aprofundado, impossível de ser realizado nos
limites da presente reflexão.
atuais um movimento muito mais abrangente e
No entanto, faremos menção a apenas um
interdisciplinar para entender e explicar o pro-
nome histórico pelas razões a seguir apontadas.
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o holandês João Amos Comênio publicou em (1975) apontou os mecanismos de alienação na


1657 sua Didática Magna. Há 339 anos, no sala de aula, analisando o verba/ismo como forte
contexto socioeconômico-político de meados
fator de alijamento do estudante de seu mundo:
do século XVIl, esse educador, considerado o
palavras a serem ouvidas, repetidas, memori-
fundador da didática, já apregoava as principais
zadas geralmente sem o correspondente na rea-
idéias das bandeiras atuais dos educadores.
lidade.1
É considerado o precursor da psicologia
Comênio afirma que não são somente os
genética mais de cem anos antes de Rousseau e
filhos dos ricos que devem ter acesso ao saber
o pai da pedagogia moderna. Comênio con-
mais culto porque não são somente os filhos
tribuiu para a criação de uma ciência da edu-
destes que nascem para subir aos altos cargos
cação. Sua Didática Magna tem 33 capítulos
mas também os outros, que não devem ser pos-
divididos em 4 partes. Na primeira, apresenta os
tos à parte como gente sem esperança (cap.
fundamentos filosóficos da educação; na
XXIX, 2).
segunda, os princípios da didática geral, em que
Na década de 1990 do século XX, con-
afirma que todos devem ir à escola, inclusive
tinuamos com essas bandeiras. A situação esco-
mulheres, pobres, deficientes. Foi ardente de-
lar que vivemos apresenta-se caótica. Por isso
fensor da democratização do ensino, da univer-
nos reunimos, nos encontramos tanto. Não dis-
salização do ensino. Na terceira parte, apresenta
cutimos sempre a mesma coisa. Não nos satis-
a didática especial, orientando sobre como ensi-
fazemos e por isso vamos discutir até o fim,
nar as ciências em geral, as artes, as línguas, a
porque sonhamos. O fim da utopia está quando
moral, a disciplina (é contra os castigos corpo-
desaparece a capacidade de sonhar. Reunimo-
rais, que geram tédio e aversão), num contexto
nos tanto porque queremos fazer avançar o
em que tais práticas eram correntes.
sonho. Somos agentes políticos da mudança, a
Comênio (1985) propõe os mesmos con-
educação é a eterna criação da novidade. Fomos
teúdos nos diferentes níveis, porque correspon-
feitos para sermos felizes: por isso lutamos pela
dem a necessidades permanentes. Diferem no
felicidade coletiva, não nos conformamos. A
modo como são reestruturadosou reelaborados.
liberdade de um acaba quando a do outro tam-
Trata-se, segundo ele, de aprender as mesmas bém acaba.
coisas, de maneira diversa: isto coincide com a
proposta de Jerome Bruner, três séculos depois,
A escola nos dias de hoje
do currículo em espiral e remete à descoberta de
Jean Piaget sobrefimções intelectuais constan-
Observando-se de modo panorâmico a
tes em todo ser humano e estruturas variáveis. escola e seu funcionamento, podemos notar a
Ensinar as coisas e o discurso é uma das presença de uma série de mecanismos, geral-
idéias pedagógicas centrais de Comênio. Fun- mente idealistas ou racionalistas. Encontramos
damenta a importância de começar a partir das profissionais pensando uma escola com con-
coisas, que são objeto da inteligência e do dis- dições ideais (o que justifica que hoje não é
curso. E no entanto essa segue sendo uma das
possível fazer muita coisa), ou profissionais
questões mais graves do ensino. Teima Nudler

1. Nudler (op. cit.) aponta ainda os seguintes mecanismos: congelamento do real, formalismo: adaptação às
estruturas, detalhismo/compartimentalização/acumulação, crime de lesa-curiosidade, mercantilismo e com-
petição.
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conformados com um trabalho insatisfatório, à experimentação. Isso não é freqüente. Há ne-


porque "a realidade é assim mesmo". cessidade de suscitar a adesão, a vontade, o
Por que isso ocorre? Perrenoud (1993) desembaraço para a aventura didática. Gusdorf
aponta uma série de motivos que resumo a (1987) aponta muito bem que no debate entre
seguir, numa interpretação livre. professor e aluno cada um está exposto ao outro
e ninguém pode dizer como terminará a aven-
I.Muitos que escrevem ou pensam sobre a edu- tura.
cação escolar têm pouca familiaridade com a
escola pública real, dela estando afastados há 8.Muitos professores ignoram ou desdenham a
muito tempo e recordando-se a partir de sua formação contínua. É como se quisessem ser
deixados cada um no seu canto.
experiência passada, em contextos absolu-
tamente diferentes.
9.0 professor é artesão numa prática pessoal
2.Muitas vezes, fraciona-se a realidade, subes- (integrando as várias contribuições).
timando-se a complexidade da situação escolar,
enfatizando-se um ou outro aspecto como se As contribuições são muitas. Várias teo-
fosse o mais relevante. Enfim, enfatiza-se o rias de várias campos do conhecimento ofere-
fragmento (a didática, a avaliação etc.). cem as mais variadas explicações, que
necessitam de um trabalho de síntese. Dado que
3.Não é raro encontrar presente em muitos pen- por questão de tempo e da natureza da presente
sadores uma visão mítica do aluno, ignorando- exposição não poderei abarcar um grande
se suas características reais, sua rebeldia, apatia, número delas, ater-me-ei especialmente às con-
arrogância etc. tribuições na área da Psicologia.
4.Visão mítica da relação professor-aluno. O
ensino exige negociação, envolve medição de
força, domínio e controle (através de mecanis- A Psicologia no limiar do
mos declarados ou sutis). século XXI

5.Há uma diversidade impressionante entre os


Bruner (1991) em recente e instigante
alunos, não se podendo dirigir o ensino para o estudo apontou que a Psicologia (a ciência da
aluno médio ou ao grupo-classe. mente) perdeu seu centro e corre o risco de
6. É preciso pensar qual é, de fato, o currículo perder a coesão necessária para poder fazer um
real. O professor é ator da transposição didática. intercâmbio interno que justifique a divisão do
Há 3 fases a que a escola submete os saberes: trabalho entre suas partes.

· da cultura extra-escolar para o currículo formal. As partes - cada uma com sua própria
identidade organizativa, seu próprio aparato
· do currículo formal para o currículo real. teórico e suas próprias revistas - converteram-se
· do currículo real para a aprendizagem efetiva em especialidades cujos produtos são cada vez
menos exportáveis. Afirma ele que as partes
encerram-se em sua própria retórica e isolam-se
7. É preciso levar em conta o perfil dos profes-
em sua paróquiade autoridades.Corre-seo risco
sores. Geralmente também se tem deles uma
de que cada parte se encontre cada vez mais
visão mítica, associando-os ao risco, à aventura,
longe de outras investigações dedicadas à com-
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preensão da condição humana (campo das hu- sencialmente com o significado, sendo uma Psi-
manidades e outras ciências sociais). Isso cologia cultural, isto é, tentar compreender
talvez, segundo Bruner, tenha ocorrido como como os seres humanos interpretam seus atos de
reflexo de uma mudançade paradigma nas ciên- interpretação. Estudo difícil e urgente este em
cias humanas. que devemos ser capazes de compreender o que
No entanto, os grandes temas e interro- o homem pensa de seu mundo, de seus seme-
gações da Psicologia continuam vivos. Os lhantes e de si mesmo.
psicólogos atuais são tributários do passado: Para esse tipo de abordagem convergem
Chomsky reconhece sua dívida com Descartes; as posições de Vigotsky, elaboradas com ante-
Piaget com Kant; Vigotsky com Hegel e Marx. cedência histórica de décadas em relação aos
A "teoria da aprendizagem" construiu-se sobre atuais teóricos. Bruner, ao apresentar em 1961,
a obra de Locke. A revolução cognitiva mais para o público norte-americano a versão em
recente depende do clima filosófico que a su- inglês do livro "Pensamento e Linguagem" de
porta. Nietzsche, Wittgenstein, Saussure, Vigotsky, não percebia que o autor já apontava
Husserl, Cassirer e Foucault são exemplos de para a emergência de um novo paradigma. A
cientistas sociais interessados em questões clás- leitura atenta e rigorosa do prefácio escrito por
sicas que vêm sendo colocadas pela Psicologia. Bruner revela sua admiração pelo autor russo,
Assim, produziu-se uma reação contra o porém incompreensão sobre como articular
estreitamento e o encerramento em si mesmo suas posições científicas com as daquele autor.
que ocorre na Psicologia. A comunidade in- Só na década de 1990 é que Bruner amadurece
telectual mais ampla tende a pouco considerar para alargar sua compreensão sobre o
as revistas de Psicologia, que Ihes parece con- paradigma emergente. Antes de analisar as
terem estudos de pouca importância e deslo- questões básicas presentes no novo paradigma
cados intelectualmente, oferecendo respostas a do qual Vigotsky é indiscutivelmente o repre-
pequenos estudos similares. sentante maior, examinemos a evolução das
No entanto, as grandes questões psi- idéias sobre a psicologia cognitiva no campo do
cológicas estão voltando a ser colocadas, ensino e aprendizagem.
questões sobre a natureza da mente e seus pro-
cessos, questões sobre como construímos os
significados e as realidades, questões sobre a o Cognitivismo e o
formação da mente pela história e pela cultura. Interacionismo
Estas questões, muitas vezes, são investigadas
com mais vigor fora da Psicologia "oficial" e A psicologia cognitiva é interacionista
estão se reformulando com a sutileza e o rigor porque, ao analisar a construção dos processos
necessários para produzir respostas ricas e mentais, reconhece a indispensabilidade de se
fecundas.
considerar o sujeito e o objeto as características
A Psicologia atual tem confusões, deslo- pessoais e o papel da cultura, a construção da
camentos e novas simplificações. Seu objetivo subjetividade em permanente troca com o meio,
principal é a natureza da construção do signifi- principalmente cultural.
cado, sua conformação cultural e o papel essen- Bruner, 17 anos mais jovem que Piaget,
cial que desempenha na ação humana. Deve a
responsável pelo new /ook sobre os estudos
Psicologia, segundo Bruner, preocupar-se es-
sobre a percepção, propôs, na década de 1960,

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talvez a primeira teoria de ensino. Até então Bruner é o criador do conceito de cur-
falava-se de teorias de aprendizagem e a partir rículo em espiral, cujos princípios, dentre ou-
delas se prescrevia o que deveria ser feito para tros, são:
ensinar. Sua idéia básica é a de que a avaliação 1.0 atendimento à estrutura básica da matéria:
do ensino é mais importante que a avaliação da
para isso é necessário selecionar e organizar as
aprendizagem, sendo esta conseqüência idéias fundamentais.
daquela.
É importante pensar uma teoria de ensino 2.atender ao desenvolvimento dos alunos.
porque há uma série de atos (docentes) que
3 .perm itir a solução de problemas e a
constituem o fenômeno chamado ensino, de tal descoberta.
maneira que se pode ter ensino e não se ter
aprendizagem, o que significará que houve
Quanto à estrutura da matéria é preciso
ensino ineficiente, inadequado, incompetente,
conhecê-Ia, o que garante o conhecimento sig-
ineficaz etc.
nificativo e duradouro. Isso permite relacionar
As idéias principais para uma teoria de
o conhecimento a outras situações e observar o
ensino, segundo Bruner (s.d.) são, dentre outras:
amplo relacionamento das coisas. Quanto mais
fundamental (estrutural) for a idéia aprendida,
I.Predisposição para aprender. Existem fatores
maior será a amplitude da aplicação. A volta
que estimulam ou diminuem a tendência a ex- constante, o re-exame das mesmas idéias em
plorar alternativas (condição para a aprendi- profundidade garante a forma de uma espiral.
zagem). Por exemplo, a relação professor-aluno A descoberta e solução de problemas é a
nunca é indiferente quanto a seus efeitos sobre característica do currículo em espiral. A
a aprendizagem. Inúmeras pesquisas já apon- descoberta é decorrência de um currículo que
taram a força do elogio (condizente com uma permita a aquisição de idéias gerais ou funda-
postura democrática do professor), o papellimi- mentais. Quando o aluno consegue captar o
tado da censura (ligado a posturas autoritárias)
significado de uma idéia geral, adquire o poder
e a nula eficácia da indiferença, associada a de descobrir outras coisas.
professores de tipo laissez jaire. David Ausubel, cognitivistanorte-ameri-
2.Estrutura do conhecimento. Trata-se de um cano, em um livro de 625 páginas sobre a Psi-
conjunto reduzido de princípios ajudando a cologia da educação (1980), assim resume sua
compreender o que é relevante. posição:
"Se eu tivesse que reduzir toda a Psicolo-
3.A seqüência ótima. É preciso buscar seqüên- gia educacional a um único princípio, diria isto:
cias de aprendizagens que otimizem os ob- o fator isolado mais importante que influencia a
jetivos, explorando estratégias que aumentem a aprendizagem é aquilo que o aluno já conhece.
possibilidade de o conhecimento ser convertido Descubra o que elejá sabe e baseie nisso os seus
em estruturas conceituais e que levem o aluno a ensinamentos".
transferir o conhecimento para novas situações. Os conceitosbásicos que apresenta sãú os
4."Encorajamento". Prever recompensas para de aprendizagem significativa (aprender o que
otimizar o andamento do processo. é incorporável à estrutura cognitiva própria) e
de aprendizagem mecânica (aquilo que não é
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incorporável e que será esquecido porque não se Apenas para tocar de leve na rica e im-
articulou com o existente na estrutura prévia). portante problemática sobre a dimensão do de-
Geralmente se discute sobre processos sejo na vida do estudante cito uma reflexão de
mentais, sobre seu desenvolvimento e for- Kupfer (1989) em seu livro Freud e a educação:
talecimento mas na prática de sala de aula não "A abertura de oportunidades de relações
são observadas atividades que estejam levando autênticas, humanizadoras, não depende
à consecução de tais objetivos. O exame da somente de métodos pedagógicos sofisticados,
taxonomia simplificada de Bloom, Hastings e da denúncia das ideologias embutidas nos con-
Madaus (1975) é útil para entender a afirmação. teúdos escolares, da grita por instituições mais
A taxonomia tem 6 itens hierarquicamente dis- livres e menos arcaicas.[...] Ao professor,
postos, partindo do trabalho mais elementar e guiado por seu desejo, cabe o esforço imenso de
chegando ao ápice de se ter o trabalho inde- organizar, articular, tomar lógico seu campo de
pendente e autônomo do aluno. São eles: conhecimento e transmiti-Io a seus alunos. Ao
aluno cabe a apropriação dos elementos que se
1. Conhecimento de terminologia
engancham em seu desejo, que fazem sentido
2. Conhecimento de fatos específicos
para ele. Se o professor souber aceitar isso (sem
3. Conhecimento de regras e princípios
renunciar às suas próprias certezas, já que é
4. Habilidade de efetuar processos e procedi-
nelas que se encontra seu desejo) estará con-
mentos
tribuindo para uma relação de aprendizagem
5. Habilidade de efetuar tradução
autêntica" .
6. Habilidade de efetuar aplicação
Como apontou Alves (1991 e 1992), a
Analisando-se as atividadescorrentes em tarefa primordial do professor é seduzir o aluno
nossas salas de aula, pode-se observar que a para que ele deseje e desejando, aprenda. É
maior parte delas desenvolve, na melhor preciso levar a explorar o não-saber com as asas
hipótese, a aquisição de conhecimentos e que do pensamento, criar pessoas que se atrevam a
poucas são conseqüentes para o desen- sair das trilhas aprendidas, com coragem de
volvimento de processos mentais, não obstante explorar novos caminhos. Ensinar a caminhar
tais objetivos constem da maioria dos planos. com passos firmes mas também a saltar sobre o
O sistema escolar, de modo geral, tem se vazio, a aprender o fascínio do ousar. Não ter
preocupado quando muito com o desen- medo da queda pois a ciência construiu-se pela
volvimento da dimensão intelectual. No en- ousadia dos que sonham e não pela prudência
tanto, o aluno é uma personalidade complexa, dos que marcham. Rubem Alves afirma que o
com múltiplas dimensões e acredita-se que a conhecimento é a aventura pelo desconhecido
Psicologia do século XXI será uma ciência em em busca da terra sonhada.
que haverá uma confluência e interseção dos Mas para ensinar nessa linha há que haver
estudos sobre as dimensões afetivas e intelec- competência, profundo conhecimento do fun-
tuais. Na situação da sala de aula, cadapalavra cionamento da mente humana. Na linha do que
repercute diferentemente no psiquismo de cada vimos discutindo, considero relevante a apre-
ser subjetivo, dependente da história pessoal sentação dos pontos principais da teoria de Jean
incluindo-se aí toda a experiência consciente e Piaget, o autor que mais profundamente estudou
inconsciente nas dimensões emocionais, afeti- a evolução da inteligência humana, tendo fun-
vas, fisicas, culturais, sociais e políticas. dado uma epistemologia genética.
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A teoria de Piaget conjunto o teórico pode formular leis abstratas,


mas, na criança não há nada de abstrato, nada de
Em 1977 Piaget gravou um filme onde
teórico - há apenas um poder de coordenar idéias
resumiu suas idéias, concretizando um antigo
entre si. Um conjunto de possibilidades de coor-
desejo de esclarecer do modo mais claro
denação.
possível os equívocos de que sua teoria foi alvo.
A estrutura não é simplesmente a cons-
Nessa ocasião, afirmou que sua epistemologia
trução de uma organização seria I mas a possi-
genética trata do estudo do desenvolvimento do
bilidade de tirar conclusões que a pessoa nunca
conhecimento e que sobre ela gostaria de dar
tinha pensado antes. A estrutura é fonte de poder
duas palavras já que sempre foi mal com-
dedutivo. É o conjunto do que a pessoa sabe
preendida.
fazer e não a idéia que faz desse saber.
Piaget não é um empirista ou um inatista.
Assim, os conhecimentos não são pré-
Foi considerado empirista (ou neo-behavio-
formados no objeto (empirismo) ou no sujeito
rista) porque sempre enfatizou que o conhe-
(inatismo), mas construídos sucessivamente. O
cimento vem da ação do indivíduo sobre os
desenvolvimento da inteligência é uma série de
objetos. Há aí uma confusão, porque não se está
construções sucessivas por degraus sucessivos,
dizendo que o conhecimento provém dos obje-
hierárquicos, constituindo-se em 4 estádios:
tos em si. O conhecimento não é cópia dos
Os quatro grandes níveis ou estádios são:
objetos. É sempre assimilação (interpretação
através da integração do objeto às estruturas
I.Antes do aparecimento da linguagem. É a
anteriores do sujeito). O desenho da criança é
inteligência sensorial motora.
um exemplo muito bom: ela não desenha o que
2.Estágio pré-operatório, quando dão-se as
vê, mas a idéia que faz do objeto.
primeiras representações, com linguagem, sem
Foi considerado um neo-maturacionista
atingir ainda as operações.
ou inatista, porque se refere à ação do sujeito.
3.Estágio das operações concretas, que se reali-
Mas as ações do sujeito são sobre o objeto,
zam com objetos manipuláveis ou manipulados.
havendo assim interações e não ações. A 4.Estágio das operações formais, quando ra-
história da ciência é uma construção contínua. ciocina-se com hipóteses e não sobre objetos.
Foram necessários séculos para que os conhe-
cimentos fossem construídos. A matemática, Piaget trabalhou 50 anos com isso. Duas
por exemplo, não aparece na criança de um dia principais descobertas impressionantes foram
para o outro. É construída pelas ações do sujeito. feitas. A primeira é a de que crianças de uma
Procededa coordenação das ações do sujeito,da mesma idade dão sempre respostas iguais. A
lógica de suas ações. Tudo é construído.
segunda é a de que ocorre sempre a mesma
Piaget é construtivista, entendendo que o ordem de sucessão nas respostas dadas, isto é,
conhecimento não é pré-formado nem no su-
os níveis são seqüenciais. As idades em que
jeito, nem no objeto, havendo auto-regulação, ocorrem esses níveis variam, quer se trate de
isto é, construção e reconstrução. Seu conceito sujeitos da África, da Ásia, índios da América
básico é o de estrutura, pelo que entende aquilo doNorte etc. Resultados similares foramencon-
que a pessoa sabe fazer e não o que pensa trados, por exemplo, entre sujeitos de Teerã e de
apenas. É um conjunto de poder dedutivo, de Genebra. Analfabetos das montanhas ou do
possibilidades de coordenar idéias. Sobre esse
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campoapresentaram respostas"atrasadas" mais A grande contribuição dessa abordagem


ou menos em três anos. é a explicitação dos processos pelos quais o
Piaget, no filme citado, realizado de desenvolvimento é socialmente constituído.
acordo com sua vontade, afirma que o fato im- Isso é feito a partir de dois conceitos básicos:
pressionante no desenvolvimento do conhe- internalizaçãoe desenvolvimentoproximal.
cimento é sua criatividade contínua. Outro fato O funcionamentono plano intersubjetivo
que impressiona bastante é a regularidade, a cria o funcionamento individual. O plano in-
generalidade desses estádios, sua seqüência, terno não consiste de reprodução das ações no
que são reencontrados por toda parte, na mesma plano externo. O plano intrasubjetivo da ação é
sucessão. formado pela internalização de capacidades
Para a Psicologia, explicar um fenômeno originadas no plano intersubjetivo. O plano in-
psicológico significa reconstituir sua formação. tersubjetivo não é o plano do outro mas sim o
A psicogênese é um terreno específico de expli- plano da relação do sujeito com o outro
cação em psicologia. Do ponto de vista (Goés,1991).
epistemológico, o ensinamento é o de que, Para discutir os mecanismos pelos quais
vendo-se como um conhecimento se constrói, as experiênciasde aprendizagemcriam o desen-
pode-se compreender melhor sua natureza. volvimento, Vigotsky cria o conceito de Zona
Tudo isso não significa que tudo está explicado. de desenvolvimento proximal. São funções
Há ainda muito por ser explorado. emergentesno sujeito,capacidadesapoiadas em
Dado que o conhecimento é construído recursos auxiliares oferecidos pelos outros. As
pela ação do sujeito sobre o objeto, resta apontar funções consolidadas refletem o desen-
que Piaget aprofundou-se durante mais de 50 volvimento atingido. A zona de desen-
anos no estudo do que acontece no indivíduo, volvimento proximal é a distância entre o nível
não tendo realizado uma teoria consistente so- real e o nível potencial determinado pela re-
bre o meio, a cultura, o outro pólo. Vigotsky, solução de um problema com colaboração de
psicólogo russo, também interacionista, lançou um adulto ou companheiro mais capaz. Isso
uma série de instigantes questões sobre o papel significa que há possibilidade de sintonia com
do objeto (da cultura) na formação do sujeito (da o outro mesmo que a estrutura operatória não
subjetividade). esteja pronta.
Refinando-se e internalizando-se, essas
capacidades transformam-se em desen-
A teoria de Vigotsky volvimento consolidado, abrindo novas possi-
bilidades de funções emergentes. Assim, a boa
É chamada teoria sócio-histórica, porque aprendizagem é aquela que consolida e princi-
aponta caminhos para a superação da dicotomia palmente cria zonas de desenvolvimento proxi-
individual/social. Vigotsky mostra que há uma mal sucessivas. Nesta teoria, o sujeito não é
vinculação genética entre esses dois planos, ativo nem passivo, é interativo. Há uma postura
pois a ação do sujeito é considerada a partir da claramente sócio-interacionistana teoria,já que
ação entre sujeitos. Sua ênfase está na intersub-
nela o conhecimento é construído na interação
sujeit%bjeto sendo que a ação do sujeito sobre
jetividade, no plano das interações, dando à
o objeto é socialmente mediada. Como aponta
Psicologia uma dimensão social e individual.
Goés, a criança é um ser social que se faz
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indivíduo ao mesmo tempo em que incorpora avaliação no contexto de uma turma, um ano,
formas maduras de atividade de sua cultura: um horário.
individualiza-se e socializa-se.
Vigotsky também fala da lei da dupla
formação dos processos superiores, mostrando Concluindo ou sobre o
ou

que toda função aparece duas vezes: ]0) entre horizonte para a prática pessoal
pessoas; 2°) no interior da própria pessoa.
A gênese do conhecimento é social. A Vivemos um tempo extremamente con-
presença do outro é constitutiva do conhe- turbado e complexo. Vivemos num contexto de
cimento. O outro está na gênese do co- exclusão social cada vez mais acentuada. Tra-
nhecimento. Assim, a relação entre sujeito e balhamos com educação, geralmente dentro de
objeto é socialmente mediada. Todas as funções instituições escolares, onde sentimos a cada mo-
têm origem nas relações entre as pessoas. mento os efeitos de uma situação macro-estru-
tural que é perversa para as maiorias sociais.
Lutamos, buscamos um projeto educacional que
A prática pessoal se consolide na sala de aula, na relação com os
estudantes. Vivemos um tempo em que pre-
O verdadeiro objetivo da formação do- domina um discurso chamado por Paulo Freire
cente, principalmente da formação contínua, é (1994) de "pós-modernamente reacionário".
dar aos profissionais uma identidade, um pro- Nesse contexto, é preciso ter clareza de
jeto, meios para encontrar prazer profissional que o sonho socialista não acabou, exatamente
numa prática exigente (Perrenoud, 1993). Todas porque estão aí a miséria, a injustiça e a
essas idéias que acabamos de apresentar repre- opressão. É preciso viver a história como possi-
sentam princípios de teorias importantes e cor- bilidade, compreendendo que o futuro deve ser
rentes, mas não são suficientes para explicar o construído porque não está dado.
fenômeno de ensino e de aprendizagem. É pre- É preciso compreender o papel histórico
ciso ver o professor como um artesão numa da consciência, o papel da subjetividade na fei-
prática pessoal, integrando as várias con- tura da história, como aponta Freire. A raiz da
tribuições das várias disciplinas. É preciso que democracia está na natureza inalienável da in-
o professor não fique na dependência do espe- dividualidade dos sujeitos.
cialista, que seja um prático-reflexivo, capaz de Homens e mulheres são seres pro-
auto-observação, auto-avaliação e auto-regu- gramados para saber. Não determinados, mas
lação. programados. Por isso somos capazes de pensar
Para fugir de um idealismo ingênuo (pen- sobre a programação e até invertê-Ia, somos
sando práticas ideais e inexeqüíveis) ou um capazes de interferir na programação de que
realismo conservador (práticas efetivas e insa- resultamos. Nossa vocação é a de saber o mundo
tisfatórias), Perrenoud propõe um realismo ino- através da linguagem que fomos capazes de
vador (procurando encontrar equilíbrio entre o inventar socialmente.
existente e o que se quer implantar). É preciso Como mostrou Paulo Freire, o saber fun-
romper com a imagem simplista da ação. Ensi- damental continua a ser a capacidade de desve-
nar é fabricar artesanalmente os saberes, tor- lar a razão de ser do mundo e esse é um saber
nando-os ensináveis, exercitáveis e passíveis de que não é superior nem inferior aos outros, é um
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saber que desoculta, ao lado da necessária for- GUSDORF, G. Professores para quê? São Paulo:
Martins Fontes, 1987.
maçãotecnológica. "Se sou cozinheiro,se quero
ser um bom cozinheiro, preciso conhecer muito KUPFER, M.C. Freud e a educação. São Paulo:
bem as modernas técnicas da arte de cozinhar Scipione, 1989.
mas preciso saber sobretudo, para quem co- NUDLER, T.B. La educación y 10s mecanismos
zinho, por que cozinho, em que sociedade cozi- ocultos de Ia aIienación.In: ILLICH, Ivan et aI.
Crisis en Iadidáctica. Buenos Aires: Axis, 1975.
nho, contra quem cozinho, a favor de quem
cozinho". PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão
Este é o saber político que deve ser criado docente eformação. Lisboa:Dom Quixote, 1993.
e construído para que a pós-modernidade de- PIAGET, J. Piaget por Piaget. Texto relativo a filme
mocrática e progressista se instale contra a força gravado pelo autor, 1977 (divulgação restrita).
da pós-modernidade corrente que é reacionária. SHAKESPEARE,W. Romeu e Julieta. In: MANA-
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