Você está na página 1de 208

Espada do caos

Tradução: Rubi Elhalyn


Tradução feita de fã para fã sem fins
lucrativos com o intuito de suprir a
carência da obra na língua portuguesa
(BR)

Conheça mais sobre a saga em


Darkover BR
Sword of Chaos
Darkover® Anthology 02

Edited by
Marion Zimmer Bradley
The Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust
PO Box 193473
San Francisco, CA 94119
www.mzbworks.com

Edição da capa:

‘Schwert des Chaos’ (2004), Weltbild Editionen


ÍNDICE
Introdução ..................................................................................................................... 5
Depois da Chegada ........................................................................................................ 6
Um dom de amor ........................................................................................................... 7
Os ciclos de Lendas ...................................................................................................... 20
Lady Negra ................................................................................................................... 21
Uma lenda das Hellers ................................................................................................. 29
Nos Cem Reinos ........................................................................................................... 33
Na Garganta do Dragão................................................................................................ 34
Música do vento .......................................................................................................... 54
Escapar ........................................................................................................................ 69
Renascimento .............................................................................................................. 71
Uma espada chamada caos .......................................................................................... 72
Entre as Eras ................................................................................................................ 90
Di Catenas .................................................................................................................... 91
De duas mentes ......................................................................................................... 100
Através do fogo e da geada ........................................................................................ 109
Nos dias do Comyn .................................................................................................... 124
O caminho de um lobo ............................................................................................... 125
Corredor frio .............................................................................................................. 137
A lição da estalagem .................................................................................................. 150
Confidência ................................................................................................................ 160
O Império e além ....................................................................................................... 165
Camilla ....................................................................................................................... 166
Onde o coração está .................................................................................................. 183
Cético ......................................................................................................................... 191
Uma receita para a falha ............................................................................................ 207
Bônus do Tradutor ..................................................................................................... 208
Darkover Antologias................................................................................................... 208
Espada do caos |5

Introdução
Marion Zimmer Bradley

Quando me sentei para trabalhar em “Torres de Darkover”, olhei para trás e descobri
que edito antologias há dez anos. Minha carreira de antologia começou enquanto Don
Wollheim, o lamentável editor-chefe e fundador da DAW Books, me permitiu fazer “O preço
da Guardiã”. Os volumes “Sword and Sorceress” começaram quando ele estava trabalhando
com um indivíduo que, embora realmente fosse um editor de crackerjack, tinha uma
personalidade abrasiva. Don foi ouvido dizer que desejava encontrar um editor igualmente
competente e um pouco mais fácil de trabalhar. Eu disse que sempre quis editar uma
antologia, então ele me deixou tentar. E apesar da sabedoria convencional que diz que os
contos não vendem, todos os meus volumes ainda estão impressos e ainda estou pagando
royalties por eles.

-Marion Zimmer Bradley


Espada do caos |6

Depois da Chegada

Darkover, o planeta do sol vermelho sangrento, foi colonizado por uma nave Terranan
“Perdida” e, ao longo de incontáveis Eras, evoluiu para sua própria sociedade alienígena.
Instrumentais nesta grande mudança foram os chieri, de seis dedos, duplamente sexuados
e dotados de curiosos poderes psíquicos... e ainda assim humanos o suficiente para cruzar
com os recém-chegados, reforçando os poderes psíquicos erráticos da raça humana.
Em uma sociedade em crescimento, onde a tecnologia dos Terrans teve que ser
descartada para garantir a sobrevivência na frágil ecologia de Darkover, onde a
humanidade teve que aprender a confiar e usar seus novos poderes, muitos dos padrões
culturais arraigados dos colonos Terrans tiveram que ser implacavelmente colocados de
lado em favor de novos padrões sociais que seriam pró-sobrevivência. De uma sociedade
onde um povo superpovoado desprezava as instalações reprodutivas, os colonos
desenvolveram um novo conjunto de valores onde as crianças eram genuinamente
indispensáveis à sociedade e ao indivíduo.
Diana Paxson, em sua primeira contribuição para o volume original, atacou
frontalmente a questão de como uma sociedade igualitária se tornou feudal quando
descobriu que certas pessoas eram mais dotadas para a sobrevivência do que outras. Agora
ela escolheu estudar uma faceta da sociedade que mais tarde se tornou exclusivamente
darkovana.
Espada do caos |7

Um dom de amor
Diana L. Paxson

Eu não posso suportar... Lionora pensou. Que tipo de mulher suportaria tal coisa? Ela
estendeu a mão para as pedras brutas da lareira que dominavam no grande salão de El
Haliene como se buscasse seu apoio. Minha própria lareira! Eu devo ficar sorrindo enquanto
Darriel traz outra mulher para ser sua amante aqui?
Lionora puxou seu xale sobre seus seios cheios, tremendo mesmo ao lado do fogo. O
inverno darkovano estava afrouxando seu aperto, mas o frio ainda era intenso quando o sol
vermelho escorregou atrás das colinas. Ela não precisava sair para visualizar o traçado das
copas das árvores no horizonte ocidental e a lacuna onde a estrada para Macrae seguia
pelas colinas. Ela observou a estrada com demasiada frequência, esperando que seu marido
voltasse da caçada com Robard Macrae ou de expedições mais perigosas contra os errantes
humanos que estavam substituindo os ya-men diminuídos como o principal perigo da terra.
Nas quatro gerações, uma vez que o acidente de sua nave havia forçado os seres
humanos a começar uma nova civilização no mundo que agora estavam chamando
Darkover, os homens se instalaram amplamente. Mas agora o clima ruim agravado tornou a
agricultura difícil, e muitos acharam mais fácil viver atacando seus vizinhos do que
aprendendo a se ajustar ao frio. E os proprietários de terras, reagindo a esse perigo,
começaram a se cercar de homens poderosos como Darriel di Asturien que, com a ajuda de
Robard Macrae, se tornara Lorde de Valeron, na verdade, se não em nome.
E eu estava tão orgulhosa dele. Lionora pensou. Eu aplaudi todas as inovações e
encorajei-o mesmo enquanto os outros temiam. Até agora...
Desta vez, a companhia de Macrae viria lentamente, tochas brilhando nas poças
enquanto os pôneis se afastam da última da neve, escoltando a ninhada que trazia a nova
noiva de Darriel.
E Margalys será sua esposa, seja qual for o título que lhe derem para polpar meu
orgulho... A mão de Lionora fechou na pulseira de cobre em seu pulso esquerdo, a pulseira
que Darriel havia lhe dado quando a tirou da casa de seu pai em New Skye. Na época
aquela pulseira representou uma boa parte da riqueza de Darriel, um símbolo apropriado
de seu contrato com a filha de uma das maiores famílias de negociantes em Darkover.
Agora ele tinha riqueza o suficiente, mas precisava de algo que Lionora, com todas as suas
conexões familiares e vinte anos de amor por ele, não poderia fornecer.
Lionora havia dado dois filhos vivos para a casa de Di Asturien e outro que morrera,
mas os homens que seguiam Darriel exigiam-lhe um herdeiro que possuísse os estranhos
poderes que eram a base de sua liderança. Ela pensou em seu filho Dawyd, agora
Espada do caos |8

alegremente aprendendo os negócios de seu avô em New Skye, e sua filha Joanna. Ela se
alegrou quando cresceram sendo "normais", como ela mesma, sem sinal dos episódios de
dor e confusão através da qual ela havia apoiado Darriel tantas vezes. Embora sua doença
às vezes desse a Darriel o poder de ver o futuro ou conhecer as mentes dos homens,
sempre pareceu a ela que o preço era alto demais.
Mas agora os homens estavam chamando essa doença de laran e exigindo isso
naqueles que os guiavam. Como Darriel, Margalys Macrae era descendente de Lori Lovat, e
o sangue do não-humano pai de Lori havia dado seus poderes estranhos e às vezes úteis. A
proposta de trazer Margalys parecia simples o suficiente quando Darriel explicou. Lionora
era sua esposa, mas ela não teria mais filhos. Robard se ofereceu para enviar sua filha para
viver com Darriel e, se possível, gerar sua criança com o tal laran. Afinal, nos primeiros dias
a fidelidade conjugal havia sido desaprovada, cada mulher devia dar filhos a vários homens
para aumentar as chances de sobreviver. Por que ela deveria se importar agora?
Eu me importo porque ele está trazendo-a aqui, porque ela vai tomar o lugar que é
meu! Lionora pensou amargamente.
- Senhora, as mesas estão prontas. Vamos começar a aquecer o vinho?
Com esforço Lionora focou no rosto de Sarena e se adiantou. Sarena tinha estado com
Lionora desde o casamento e, como os outros membros da casa, desaprovou a decisão de
Darriel de trazer Margalys. Mas Lionora não encontrou conforto no pensamento de que,
com uma palavra, ela poderia ter dispensado El Haliene de servos e feito Darriel voltar a um
salão vazio. Ela não queria o amor dos servos, ela queria de Darriel.
Homens e mulheres correram ao redor dela, ajustando os tecidos que cobriam as
tábuas das paredes, fazendo adições de última hora à comida que já pesava as longas
mesas. Darriel pediu-lhes que dessem uma festa para a filha de Robard, como se isso
pudesse compensar o sacrifício de Macrae, orgulho de deixá-la vir a ele.
O orgulho de Robard é o preço do herdeiro de Di Asturien, o orgulho de Robard e o
meu. Lionora pensou. E, por mais relutante que Darriel professe ser, só ele sai disso com
ganho.
Lembrou-se de que Margalys tinha crescido e era muito bonita, e imagens da garota
atormentava-a, embora ela não tivesse visto a filha de Robard desde que ela tinha ido viver
com o povo da mãe, em Delleray, alguns anos antes.
Eu deveria ter ido embora quando Darriel me disse o que faria, mas ele disse que
precisava de mim! Ela poderia se juntar a seus filhos em New Skye e dito a seu pai para
cortar o comércio sobre o qual o vale do Valeron dependia. Melhor ainda, ela poderia ter
chamado sua família para vingar esse insulto com homens e braços fortes. Eu teria aberto o
portão para deixá-los entrar com prazer!
Espada do caos |9

Houve um barulho no portão, um longo ronco que insinuava que a barra pesada fora
movida longe. Houve gritos de saudação e comentários obscenos. Lionora endureceu e
virou-se para encarar a porta, sabendo que a luz do fogo mostraria os fios de prata em seus
cabelos escuros e as sombras de rugas que haviam surgido em seu rosto naquelas semanas,
mas naquele momento só temia desmaiar, se humilhando diante de todos.
Amanhã! Ela pensou descontroladamente. Se eu puder sobreviver a esta noite,
amanhã irei embora.
Em seguida, a porta se abriu e a luz da tocha afastou-se pelas placas desgastadas do
chão para encontrar a luz mais forte do fogo. Darriel estava de pé na porta, seu ar leve
contra o peso da garota em seus braços. Tudo que Lionora podia ver dela era o cabelo da
cor dos broches de cobre que apertavam sua capa. Os olhos cinzentos de Darriel fixaram
nos dela como se apelassem.
Automaticamente, Lionora se adiantou em resposta à sua necessidade. Então
Margalys levantou a cabeça e o ressentimento da mulher mais velha foi substituído pela
percepção de que a face branca da menina não demonstrava triunfo, nem mesmo
antecipação, apenas um forte medo.
Lionora não deixou El Haliene no dia seguinte, nem nas semanas que vieram depois.
No começo, ela teve piedade pelo pânico de Darriel com a perspectiva de lidar com uma
garota que estava doente demais para deixar sua própria cama, muito menos compartilhá-
la. Se passaram duas semanas antes que ele pudesse dormir com Margalys e até Lionora
poderia dizer que a experiência não trouxe muita alegria. Ela observou isso com uma
maravilha fraca, pois no brilho do cabelo da mulher mais nova e a clareza de seus olhos
Lionora reconheceu o tipo de beleza que ela, de cabelos negros e de pele-oliva, era sempre
mais desejada.
Naquela época, Lionora estava cuidado de Margalys, bem como a admirando,
consciente agora que a mulher mais nova havia sido dada e ganhara tão pouco nesse
arranjo quanto ela. Mas eu posso sair... Lionora refletiria enquanto observava Margalys
lutar para balançar a grande chaleira de bronze sobre a lareira. Nós poderíamos sair juntas!
Ela sorriu imaginando como Darriel iria se virar caso ficasse sem nenhuma mulher.
Isso foi antes que Margalys se encontrasse grávida. Darriel parecia pouco se importar,
exceto por isso o ter libertado da obrigação de compartilhar sua cama com ela nas raras
ocasiões em que ele estava em casa. Um bando de lobos estava invadindo as caravanas na
estrada para New Skye e os homens de Valeron levaram a maior parte do verão para pegá-
los.
Mas para Margalys, o verão foi uma época de dor e fraqueza que continuou até que
Lionora se perguntasse como ela conseguia continuar carregando a criança. Agora Margalys
estava presa e Lionora, sentada ao lado de sua cama quando ela não conseguia dormir, ou
E s p a d a d o c a o s | 10

criando novas infusões na esperança de encontrar algo que a garota seria capaz de se
manter no estômago, sabia que não podia deixá-la. Ela não podia ir embora até que a
criança nascesse e Margalys recuperasse a saúde novamente. Por enquanto, Lionora
também estava presa.
E então ela permaneceu enquanto o breve verão passou e o frio voltou mais uma vez,
e chegou a hora da criança de Margalys nascer.

~o⭐o~
- Minha senhora, estou com medo... - O rosto gordo da parteira enrugou com
preocupação enquanto olhava para Margalys. - A garota é muito estreita para dar à luz
facilmente e ela não tem força para suportar o trabalho por muito tempo.
Lionora seguiu seu olhar para a figura na cama, agora tensionando com a proximidade
de outra contração, depois balançou a cabeça. Doria era a parteira mais experiente do vale,
e ela mesma havia ajudado em muitos partos. Certamente elas poderiam ajduar Margalys
através deste.
- Eu sofri mais do que isso com meu segundo bebê e sobrevivi. - Ela disse em voz alta.
- Você era mais forte, - respondeu Doria - e queria a criança.
Margalys choramingou e seus dedos se fecharam no tecido. - Novamente...novamente
... Lionora, onde você está?
Lionora se moveu rapidamente para a cama e pegou a mão de Margalys. Doria estava
certa, seu aperto estava mais fraco agora. Ela olhou para a garota e suavemente alisou o
cabelo emaranhado de sua testa. Mesmo que Darriel a amasse, ele não teria a achado linda
agora. O peito de Lionora doía com uma espécie de desejo protetor e seu corpo tensionou
como se sentisse a dor de Margalys. Ela estendeu a mão com uma onda de emoções que
não sabia nomear.
- Poderíamos dar a ela um pouco daquela tintura que você faz das flores de kireseth?
Não me importo com o que isso faz para a criança!
- Sem a permissão de seu Lorde? - Doria franziu a testa. - Em qualquer caso, não
ajudaria. Ele destaca a mente do corpo e sua única chance é ficando com isso para o corpo
para lutar.
A permissão do meu Lorde! Ele não se importaria com o que aconteceria com
Margalys, ou qualquer um deles, se ela apenas entregasse essa criança miserável! Sua
mente se encolheu da memória do pequeno monte fora da neve onde a terra fria recebeu o
corpo de seu filho, dez anos antes. Esta é uma terra difícil para as crianças. A raiva de
Darriel derreteu seu medo.
E s p a d a d o c a o s | 11

Abruptamente ela gesticulou para Doria. - Fique com ela e faça o que puder. Eu
voltarei. - No rescaldo dos dedos da contração, os dedos de Margalys estavam fracos, e
suavemente Lionora soltou sua mão.
Ela encontrou Darriel de pé na grande lareira no corredor, sorrindo
desconfortavelmente para as brincadeiras dos outros homens. Eles estavam bebendo, mas
o copo na mão de Darriel ainda estava cheio. Ele se virou e seus olhos se iluminaram
quando Lionora entrou, mas a esperança desbotou enquanto leu a expressão no rosto dela.
Ele parecia leve, ao lado de seus irmãos e dos outros homens. Mesmo Robard Macrae
parecia acima dele, parecendo mais jovem, embora ele e Darriel tivessem a mesma idade.
- Não, a criança ainda não veio. - Lionora disse acidamente. – Com sua licença,
mestres, preciso falar com meu marido agora.
- Lionora... E Margalys... Como ela está? - Robard tinha dado um passo rápido para
frente, sua voz dura.
Lionora viu o medo em seu rosto resistente e sabia como ele se culparia se sua filha
morresse. - Ela está viva, - ela disse mais gentilmente - mas está fraca. Acredite em mim,
Robard, quando digo que me importo com ela. Farei o que puder por ela.
Robard olhou para ela por um momento, depois engoliu e se afastou. Darriel ainda se
levantou onde ela o encontrara, seu corpo se preparou contra suas palavras como um
homem esperando um golpe.
- Se Margalys morrer, eu terei matado. - Ele disse baixinho depois de um momento.
Lionora olhou para ele, sentindo os restos de sua raiva. Ela nunca foi capaz de brigar
com ele quando estavam juntos e mesmo sem laran ela podia sentir sua dor. E, no entanto,
o que ele disse era verdade.
- Quero que você vá até ela... - Ela disse de repente.
- Na câmara de parto? Mas eles não me deixaram...o costume.... - Suas palavras
pararam. Lionora entendeu. Uma parte dela ficou surpresa com suas próprias palavras,
como se ela tivesse proposto algum sacrilégio.
- Ainda sou sua mulher aqui - ela disse em voz alta - e eu farei o costume aqui. Quero
que você veja o que fez!
Sua cabeça afundou em seu peito e ela viu como seu cabelo ruivo estava bagunçado. -
Lionora... Você não entende? - Ele disse em voz baixa. - Ver é o menor problema! Eu não
serei capaz de me proteger da dor dela. Agora mesmo agora eu sinto como se o frio de
inverno vazasse ao redor da porta. Como posso encarar Margalys sem memória de alegrias
para equilibrar?
- Você levou homens em batalhas e os viu morrer!
Ele estremeceu, assentindo. - É por isso que sei o que isso fará comigo. No entanto,
eles me seguiram de bom grado para proteger suas casas. Margalys... - Ele vacilou. -
E s p a d a d o c a o s | 12

Lionora, eu juro que não a tomei com luxúria! Foi fraqueza, talvez, porque me
pressionaram. Ou talvez fosse orgulho e um desejo de gerar um filho com laran que
poderia ser para aqueles homens o que eles me tornaram.
- Laran! É apenas uma arma então? Mas Margalys também... Darriel, quero que você
vá para ela e use todos os poderes que você tem. Fortaleça ela como se fosse um dos seus
preciosos. Pois se é apenas algo para ser usado em guerra, então é melhor que o dom do
laran morra com você!
O coração de Lionora estava acelerado. Ela percebeu que estava enfrentando-o com
punhos cerrados, embora tivesse mantido sua voz baixa.
Darriel olhou para ela sombriamente. - Domna... - Sua voz era aborrecida com a
derrota, ou talvez com medo, mas quando Lionora se virou para voltar a Margalys, ele a
seguiu.
Darriel parou longe, apenas dentro da câmara de Margalys, pressionando as mãos
contra seus ouvidos. Lionora olhou, pensando que certamente os sussurros chocados das
outras mulheres não podiam incomodá-lo. Então Margalys gritou e ela percebeu que agora
devia estar recebendo a força total da dor da menina. Ela colocou os braços ao redor dele.
Seu rosto parecia mais velho e Lionora se sentiu de repente mais alta, mais sólida do que
ele. Oh meu amado, seus braços se apertaram ao redor dele, o que eu fiz com você?
Depois de alguns momentos, a contração de Margalys amenizou e Darriel deixou suas
mãos caírem. Ele estava pálido e, embora o fogo na pequena lareira tivesse sido alimentado
até o quarto ficou muito quente, Lionora sabia que não era a razão pela qual o suor brilhava
na testa dele.
Os olhos de Margalys estavam abertos agora, dilatados pela dor até parecerem negros
como as janelas na noite. Darriel encontrou seu olhar e se endireitou, depois soltou-se de
Lionora e estendeu as mãos para Margalys em um movimento rápido e seguro como um
guerreiro que ia se encontrar com seu inimigo. Toda a indecisão o deixou, se concentrando
totalmente na mulher diante dele, dando sua fina graça e suas características firmadas em
certeza, e Lionora entendeu por que seus homens o seguiam tão alegremente.
Darriel se estabeleceu na cadeira ao lado da cama, ainda segurando as mãos de
Margalys. Sua voz era dura quando finalmente falou.
- Não vou te pedir para me perdoar... Mas devo pedir para você confiar em mim. Eu fiz
isso, um pouco, para homens feridos, mas a mente de uma mulher é diferente... Eu posso
tentar absorver parte da sua dor e dar-lhe um pouco da minha própria energia.
Margalys engoliu. Já sua barriga estava começando a mudar de forma abaixo do lençol
quando a próxima contração surgiu. Sua resposta foi um suspiro: - O que devo fazer?
- Você deve se abrir para mim.
E s p a d a d o c a o s | 13

Havia dor em sua voz e os olhos de Margalys se arregalaram de medo. Foi isso que
estragou o amor, Lionora imaginou. Margalys dobrou o medo da penetração ao seu corpo e
mente? Lionora tinha ficado irritada com a ideia de que Darriel tinha tomado a garota sem
gentileza, mas talvez ela tivesse julgado ele. - Margalys... - Darriel implorou: - Por favor,
deixe-me entrar...
Já tensa contra o convulsionamento de seu corpo, Margalys só podia acenar e fechar
os olhos contra sua agonia.
Lionora limpou a garganta para perguntar se ela poderia ajudAR, mas Darriel se
recostou na cadeira, ainda segurando a mão de Margalys, e seus olhos também se
fecharam. Havia uma expressão interior em seu rosto, como se ele tivesse fechado sua
consciência, e ela sabia que se falasse, ele não a ouviria agora. E ainda havia algo... Lionora
sentia-se tensa como se fosse ver na escuridão ou ouvir um som muito macio para orelhas
humanas.
Observando-os, ela teve que se forçar a respirar. Por um longo momento, ela viu
apenas a testa franzida no rosto de Darriel em concentração. Então suas feições se
retorceram com agonia e surpresa, e houve uma facilitação no estado de Margalys. Lionora
mordeu o lábio em angústia. Desde o início dos tempos os maridos desejavam poder
compartilhar as dores do nascimento com as mulheres, ela pensou, e agora finalmente isso
está acontecendo. Ela controlou o impulso de segurá-lo como se pudesse proteger ele da
dor. As mulheres foram criadas para esperar isso, seus corpos sintonizados para suportar a
longa agonia, mas os homens foram criados para as ações acentuadas da batalha. Como
Darriel poderia suportar?
E ainda assim, ele suportou e, para Lionora pareceu que nunca o amara como agora.
À medida que as horas passavam, ela acompanhou o progresso do trabalho de parto
de Margalys no rosto de Darriel. Uma vez que ele ajudava na dor dela, as contrações
passaram a vir mais rápido como se sua própria resistência as estivesse diminuindo antes. O
corpo de Darriel se contraiu, refletindo os transtornos musculares que afetavam a mulher
que carregava seu filho.
Depois de sua primeira onda de desaprovação, Doria voltou ao lado da cama, jogando
de volta as capas e verificando o progresso de Margalys com gentil conhecimento. Lionora
foi para a cabeceira da cama e segurou os ombros de Margalys como se, com Darriel
guiando o espírito da menina, seu corpo estivesse em perigo de perder o contato com a
terra também.
Então Doria olhou para cima de um de seus exames sorrindo e Lionora sentiu seu
próprio coração pulsar.
- Posso sentir a cabeça da criança! – A parteira disse. Seus dedos descansaram
levemente na barriga de Margalys enquanto ela avaliava o progresso dos poderosos
E s p a d a d o c a o s | 14

músculos em direção ao seu objetivo. Ela se virou para Darriel. - Agora! Meu Lorde, você
deve fazê-la empurrar a criança para fora agora!
Lionora apoiou Margalys meio sentada contra seu seio. Ela estava ciente do corpo da
menina se esforçando como se fosse parte dela e se perguntou se era isso que Darriel
sentia.
Então ela esqueceu o pensamento quando Margalys se contorceu novamente e ela
lutou para segurá-la. Depois de tantas horas de espera, as coisas estavam indo muito
rapidamente agora. Darriel se inclinou para frente, o rosto contorcido. O corpo de Margalys
endureceu e mais uma vez e relaxou.
Então Margalys e Darriel gritaram juntos, como guerreiros unidos, como os amantes
no clímax do prazer, e seu grito foi ecoado por outro fino e protestante. Doria se moveu
rapidamente e Lionora a viu segurando algo vermelho e se contorcendo, coroado com um
cabelo de chama. A criança... Uma criança masculina e saudável.
Agitada, Lionora deixou Margalys afundar contra os travesseiros mais uma vez. As
outras mulheres estavam se aglomerando para espioná-la e ajudar. Elas sabiam o que fazer
por ela agora. Lionora ficou de pé e percorreu a cama até Darriel que se sentava caído em
sua cadeira. Sua roupa estava encharcada de suor.
Ela tocou o ombro dele. - Você precisará de roupas secas e algo quente para beber. -
Ele não parecia ouvir.
Doria tinha terminado com o bebê e o segurou em direção à ela. Ele era tão pequeno,
como uma pena nos braços dela. Seus próprios filhos foram tão pequenos? Ele colocou a
cabeça contra o peito de Lionora e ela tremeu com uma pontada que parecia perfurar do
coração ao ventre. Ela se virou para Darriel.
- Meu Lorde, veja aqui. Este é seu filho!
Darriel olhou para cima, a compreensão surgindo lentamente em seu rosto enquanto
colocava o bebê em seus braços. Com cuidado, ele apertou-o contra o peito, como se
temesse que a pequena criatura fosse quebrar.
- Está vivo! - Ele sussurrou em espanto, sua voz fraca. Ele se virou para Margalys, que
estava limpa e finalmente quieta. Mas seus olhos estavam abertos e, quando ela o viu com
o bebê, um sorriso cresceu entre eles, nos dois rostos uma maravilha espelhada cujo brilho
parecia encher a sala.
Eles haviam conseguido! Margalys e a criança estavam vivos. Mas quando ela assistiu a
comunhão silenciosa entre as duas pessoas que mais amava, Lionora começou a chorar sem
saber o por quê.

~o⭐o~
E s p a d a d o c a o s | 15

Eles deram ao bebê o nome de Rafael. Margalys não tinha leite suficiente, mas
encontraram uma ama de leite, e a saúde de Margalys começou a retornar. Lionora
trabalhou febrilmente em toda a casa, recuperando todas as tarefas que sofreram
enquanto ela cuidava de Margalys, continuando seu serviço de desde que seus próprios
filhos eram pequenos. Ela se levantava cedo e se deitava tarde, quando já não conseguia
mais ficar de pé. Muitas vezes quando ela procurava a grande cama com seus que podia
suportar até três pessoas, ela dormia sozinha.
Certamente, qualquer que fosse a barreira que havia entre Darriel e Margalys, a
catarse do parto a destruíra. Eles eram como amantes... Eles eram amantes que não
precisavam de desculpas para se tocar, amar ou falar para comunicar o que desejassem.
Lionora não os censurou. Como ela poderia, quando ela fez tudo o que podia para os
tornar unido? Mas ela os evitava e, quando seu temperamento ficou mais irritadiço, o resto
da casa aprendeu a evitá-la.
E, quando a primavera chegou ao Darkover com ventos macios como a pele do bebê e
um sol tão brilhante quanto o cabelo de Margalys, o calor da terra despertando
descongelou a dormência que protegeu o espírito de Lionora e ela sabia que não podia
mais ficar.

~o⭐o~
Lionora já estava no Passe pelas Colinas que dividia o Valeron das planícies de Arilinn
quando sentiu o primeiro beijo úmido de neve em sua bochecha. Assustada, ela se virou na
sela para olhar para o vale e viu as pesadas nuvens atrás, movendo-se inexoravelmente
para o leste do mar. A terra rica dos campos que se estendiam pelo vale estava velada com
verde. Além deles, ela vislumbrou uma pequena onda de fumaça e as fronteiras de El
Haliene cercadas por árvores. Ela não viu ninguém na estrada.
Eles até sabem que parti? Ela pensou amargamente. Eles se importam?
Ela havia escapado no amanhecer assim que viu que o clima seria calmo, embalando
as ancas do pônei com roupas, peças de reposição e comida suficiente para durar até uma
viagem a New Skye. O céu estava claro então! Mesmo agora as plantas que se elevavam
diante dela formavam um contorno acentuadamente gravado contra um puro céu
ametista. Ela tinha certeza de que o clima se manteria assim por tempo suficiente para ela
atravessar as colinas. No entanto, havia se passado muito tempo desde que ela tinha
viajado sozinha. Talvez ela tivesse perdido seu sentido. Sempre dependi de Darriel para
isso...
Ela fechou o pensamento e cavou os calcanhares nos lados do animal. Os pequenos
sinos em seus chifres tilintaram alegremente enquanto balançava a cabeça e seguia em um
trote. Lionora olhou para a estrada. Alguns montes de neve meio derretidos ainda
E s p a d a d o c a o s | 16

afundaram, mas nas encostas ela viu flores precoces espalhadas como joias. Mesmo que a
tempestade a ultrapassasse, não poderia ser muito ruim. Afinal, era a primavera!
Ela tinha visto uma cabana de pastor no topo da passagem da última vez que viera por
esses lados. Haveria lenha lá e paredes para abrigar ela e seu animal durante a tempestade.
Mas o vento parecia mais frio agora. Ela puxou seu capuz sobre a cabeça e chutou os lados
do pônei mais uma vez.
Duas horas depois, a neve estava girando cegamente ao redor dela, e o pônei
tropeçou com tanta frequência que ela não poderia ter certeza de que ainda estavam na
estrada. A picada de neve contra suas bochechas se tornara uma dor surda. Mesmo através
de suas luvas pesadas, suas mãos doíam de frio e as camadas extras de roupas que ela
havia colocado não podia mais parar seu tremor convulsivo. Até mesmo o pônei
fortemente atingido pela neve estava se movendo mais devagar agora. Ela não acreditava
que uma tempestade poderia vir tão rápido.
Logo, ela sabia, a dor desapareceria. Seus membros não doeriam quando o frio tivesse
os dominado e a neve até pareceria quente. Então, ela não se sentiria mais dor no corpo ou
na mente, e talvez fosse melhor assim. Darriel e Margalys poderiam esquecê-la e ser feliz se
ela realmente desaparecesse. Ela se perguntou se alguém sofreria por ela.
Mas seu corpo ainda estava apegado teimosamente à sela. O pônei parou, ela se
afastou desajeitadamente no pescoço. Demorou mais dois passos, estremeceu e afundou-
se aos joelhos na neve.
Velho amigo, me desculpe. Lionora pensou. Agora nós dois morreremos. Sua mente
pairava em algum lugar acima de seu corpo. Ela observou quando o pônei rolou de lado, viu
pastar livremente, depois se amontoou contra o abrigo duvidoso da barriga ainda quente
enquanto os flocos de neve cobriam o que parecia um pacote de trapos até que eles
fossem apenas outro monte de neve. Por um momento, seus pensamentos giraram sem
rumo como os flocos de neve. Então, como os flocos de neve, o vento espalhou-os e ela não
tinha mais consciência.

~o⭐o~
Suas mãos e pés estavam em chamas. Mas o inferno é frio... Lionora pensou
vagamente. Alguém gemeu e ela se esforçou para se afastar do som, para voltar ao lugar
onde não havia dor.
- Fique mais perto do fogo. A água não está quente ainda?
Ela estava em um inferno de fogo então, enquanto os monges acreditavam em... O
nome lhe fugiu. Através daspálpebras fechadas, ela sentiu um brilho corado. Seu corpo
remexeu e ela choramingou quando as agulhas de fogo perfuraram seus membros.
E s p a d a d o c a o s | 17

- Lionora, você deve acordar e nos ajudar! Se não pudermos te aquecer, você vai
morrer!
Era a voz de uma mulher. Será que Margalys a tinha seguido até ali para atormentá-la?
- Por que você está me punindo? - Ela sussurrou.
- Oh Lionora, preciosa. Estamos tentando salvar sua vida! - Era a voz de um homem
que vacilou na última palavra. Lionora lutou para abrir os olhos. Ela sentiu algo quente e
molhado em sua testa e viu vagamente Margalys acima de seu rosto, brilhando com
lágrimas e o rosto de Darriel, contorcido em uma tentativa de sorrir.
No momento, parecia muito difícil perguntar como ela poderia estar viva e o que
estavam fazendo ali. Ela fechou os olhos novamente, mas agora podia sentir panos quentes
sendo enrolados em volta de seus membros, ouvia o crepitar o fogo e, acima dele, o uivo
do vento contra as paredes finas de madeira. Eles deviam estar na cabana do pastor. Darriel
e Margalys deviam tê-la levado até ali.
- Como você me achou? – Por fim, ela sussurrou.
O rosto de Darriel se fechou um pouco quando ele olhou para ela. - Margalys se juntou
à sua mente. Nós poderíamos sentir a cintilação da sua vida, mesmo sob a neve.
- Você poderia ter morrido... Você não deveria ter me seguido. – Lionora disse.
- Você quase morreu! Lionora, como pôde fazer isso? - Darriel agarrou seus ombros.
Ela podia ver claramente os remendos avermelhados em suas bochechas onde o frio tinha
ferido. Margalys havia cuidado um pouco.
Lionora balançou a cabeça ligeiramente, recuando da dor no rosto de Darriel. - Eu
estava tentando alcançar New Skye, mas a neve veio e... Eu não queria que minha morte
manchasse sua felicidade... - Ela fechou os olhos, tentando conter as lágrimas. Ela era fraca
demais no autocontrole e havia coisas em seu coração que ela não devia dizer em voz alta.
- Como estão os pés dela? - Darriel perguntou secamente.
- Melhor. A circulação voltou. Nós a encontramos bem a tempo.
Darriel colocou a mão na testa de Lionora, levantou o braço para sentir seu pulso.
Lionora estremeceu e seu aperto se fechou na mão dela.
- Podemos ter evitado o congelamento, mas o choque e a exposição são o perigo
agora... - Ele parou. - De alguma forma, devemos te aquecer.
- Está tudo bem. - Lionora disse cansada e acrescentou para a mulher. - Não é sua
culpa. Apenas me deixe ir...
- Se não é minha culpa, por que você fugiu? – Margalys gritou. Ela se lançou nas caixas
empilhadas ao lado de Lionora, apertando-a como se pudesse forçar calor de seu próprio
corpo para o dela.
As palavras saíram dos lábios de Lionora como se o toque de Margalys as tivesse
libertado. - Você não precisa de mim! Você tem a criança e vocês têm um ao outro agora.
E s p a d a d o c a o s | 18

Vocês têm um ao outro! Você não entende? Vocês podem compartilhar todo o
pensamento, mas não posso falar com você nem ouvir o que você diz. Você descobriu que
sua maldição é um presente depois de tudo, Darriel, mas é um que não posso
compartilhar... - Ela engasgou com o próprio ar. - Margalys é do mesmo tipo que você e eu
não sou... E sou velha... E ela é linda!
- Mas eu pensei... Pensei que você me amava, Lionora... – Margalys choramingou.
- Eu te amo, breda. É por isso que tive que ir embora.
- Breda! - A voz de Margalys se alterou. - Eu nunca tive uma irmã e minha mãe... Ela
pensou que eu estava apenas tentando chamar atenção quando a doença de laran veio e
me enviou para Delleray porque ela disse que eu não tinha nenhuma serventia para ela. Eu
não servia para ninguém até que eles pensassem em me enviar para Darriel!
Lionora estendeu a mão para ela, pensando que se a tivesse conhecido anos atrás,
poderia ter sido capaz de aliviar a vida da criança de alguma forma. Mas isso foi há muito
tempo...
- Mas agora você tem Darriel e ele ama você. – Ela disse em voz alta.
- Sim, e isso é uma maravilha que me surpreende todos os dias. – Margalys disse,
ruborizando. - Mas sei que é parcialmente porque ele é diferente também. Ele é capaz de
me amar porque ele se valoriza, e ele aprendeu a se valorizar por sua causa!
Lionora olhou para Darriel com espanto. Seu marido sorriu para ela um pouco torto e
levantou a mão para os lábios.
- E parece-me neste verão que você me amou também! - Margalys sacudiu seu cabelo
ardente. - Você consegue imaginar quanto isso significou para mim? Quando eu estava
carregando Rafael, senti a força da mente de Darriel. Mas também senti força vindo do seu
corpo, Lionora, para mim. Eu preciso de você!
- Ela está certa, Lionora. Você deve saber como preciso de você, depois de tantos anos.
- Darriel disse suavemente. - Você me entende e, quando as mentes dos outros estão
clamando de modo que mal posso dizer quais dos pensamentos são meus, você tem o dom
de se envolver em silêncio. Em todos esses anos de guerra, pensei em você quando me
perguntava pelo que estávamos lutando. A única razão pela qual eu gostaria de poder
dividir meu dom com você, amada, era para convencê-la o quanto você significa para mim.
Lionora sentiu lágrimas escorregando de seus olhos. Ela lutou pelo controle, mas não
havia nada para esconder. Ela viu por seus rostos que qualquer barreira que tivesse
mantido seus pensamentos ocultos estava sumindo. Ela estremeceu de novo e fechou os
olhos.
- Ela ainda está muito fria... Acho que nossa roupa ajudará a dividir nosso calor com
ela. – Margalys disse.
E s p a d a d o c a o s | 19

Lionora ouviu roupas farfalhando, sentiu-se sendo despida e olhou para cima,
assustada, quando Margalys escorregou sob o manto de pele e apertou-a em seus braços.
- Eu cumpri meu propósito em El Haliene. E pelo menos conheci o amor por um
tempo. Não devo roubar sua felicidade. Eu serei a única a ir embora.
- Não... - Lionora balançou a cabeça, mas não conseguiu dizer mais.
- Lionora. - Darriel também a segurou. - Quando fui embora neste verão, você não
ficou feliz por ter Margalys lá?
- Feliz? - Lionora tentou sorrir. - Foi a primeira vez que não senti sua falta, Darriel.
Suponho que, depois de viver com você, pessoa como eu não parecem muito interessantes.
Mas você quer que eu seja forte para vocês dois e não posso fazer isso, nem todo o
tempo...
- Oh Lionora! - As lágrimas de Margalys estavam molhando seu pescoço. - Quando
Darriel e eu estamos separados, precisamos de você para sobreviver, mas quando estamos
juntos, também vamos te amar!
Darriel beijou Lionora e algo que estava congelado dentro dela por fim começou a
derreter. Ele se enrolou ao redor dela como tinha feito tantas vezes na grande cama em El
Haliene. Margalys bateu as mãos e os colocou por fim na dobra calorosa sob o braço dela.
Chorando um pouco, Lionora segurou a garota contra seu seio.
Lionora mal soube quando começou a se aquecer novamente e o toque de outras
mãos em seu corpo se tornou uma carícia. A princípio, ela estava acentuadamente
consciente da diferença entre a resistência do corpo de Darriel e a maravilhosa pele lisa de
Margalys e de seu cabelo sedos cor de chama. Mas, ao longo do momento, a experiência de
Darriel ensinou Margalys, enquanto sua compreensão do corpo de uma mulher o educou, e
Lionora não sabia mais quem a estava tocando.
Parecia-lhe que este presente era mais do que ela poderia suportar. Mesmo em seu
êxtase ela era brevemente grata por não poder viver em tais alturas por muito tempo. Era o
suficiente compartilhar seu amor com Darriel e Margalys sem perder sua própria
identidade.
Mas, no final, talvez a intensidade do momento permitisse que suas barreiras tivessem
cedido, pois ela nunca soube se o êxtase final pertenceu a Darriel, Margalys ou ela mesma.
E s p a d a d o c a o s | 20

Os ciclos de Lendas

Entre a colônia da "nave perdida" da Terra e a época em que o Comyn e as grandes


Torres de Darkover criaram sua cultura baseada em laran, um grande abismo de tempo se
passou, levemente preenchido apenas por lendas. O grande ciclo de lendas de Darkover é
baseado na hiastória de Hastur e Cassilda. Como Hastur, filho de Aldones, Senhor da Luz,
encontrou-se com a filha de uma mulher humana e um chieri, chamada Cassilda, e como de
seus filhos surgiram toda uma linhagem de Hastur, dencendentes dos deuses. A religião
darkovana reconhece quatro grandes deuses: Aldones, Senhor da Luz; Evanda, Deusa da
vida, primavera e do crescimento; Avarra, Mãe Negra do nascimento e da morte; e Zandru,
Senhor de Fogo, do conhecimento do bem e do mal e das escolhas.
A origem de todas essas coisas é perdida em algum lugar no abismo do tempo entre os
colonos e a época em que eles emergiram no que agora sabemos como as Eras do Caos. Em
algum lugar naquela época reside uma idade de ouro remota, o auge das torres. Ty Nolan,
em "Uma lenda das Hellers", e Jane Brae-Bedell, em "Lady Negra", escolheram escrever
sobre esse período lendário na história de Darkover.
E s p a d a d o c a o s | 21

Lady Negra
Jane Brae-Bedell

A lenda de Avarra, Lady Negra, da noite e da morte, é baseada em uma mulher mortal,
Eadar, a lady do conforto, cujo nome significa "em conjunto". E em como ela se tornou uma
inspiração para a Deusa que também é uma lenda...
A regência de Buchan se sediou por gerações em Caol, ou Estuário, de Altyre no
Domínio Aillard. Seu forte foi construído de pedra e algumas madeiras enormes, agarrado à
encosta íngreme como se tivesse sempre crescido ali. Suas salas abobadadas eram
enfeitadas com espessas tapeçarias tecidas das boas lãs de ovelhas de Buchan penduradas,
e peles dos mesmos animais que amorteciam os pisos de granito. O lado do mar, um
continuo mergulhou direto, uma parede pura trabalhada, tinha poucas janelas que eram
firmemente fechadas contra os estragos do mar muitas vezes irritado. O lado da terra subia
a encosta norte do Estuário em uma série de terraços de pedra largos e murados que
estavam protegidos do spray de sal junto ao volume do prédio. No verão, esses terraços
floresciam em vegetais e flores, para a corrente sul do mar que temperava o clima, os
verões eram gentis e pacíficos, o ar claro e o mar calmo.
Ninguém vivo naquela época poderia lembrar da região de Buchan sem Torcall de
Buchan na residência. Passado de pai para filho em uma linhagem longa, raramente
quebrada, o nome era sinônimo de poder e ambos eram um símbolo da ordem que o
domicílio e os proprietários da terra aliados tomaram como o estado natural das coisas em
Caol Altyre.
Em um final do dia de verão, quando a temporada começou a diminuir no outono e as
folhas estavam começando suas mudanças em cores de ouro e vermelho, o Torcall de
Buchan, um jovem alto, bem construído, com vinte e oito temporadas, deitou em sua sala
da torre, morrendo. Os curandeiros foram convocados e fizeram exames, mas tinham
partido sem deixar uma cura para o mal-estar que estava deteriorando o corpo jovem.
Noite e dia alguém sentava com ele, segurando sua mão febril, tentando fazê-lo comer e
beber. Sua mãe, Roualeyn, que havia vindo há muito tempo das altas montanhas para olhar
para o mar e ficara como esposa do anterior Torcall de Buchan, estava lá. Sua ama, a velha
e enrugada Ailean que amamentou o pai do menino como se fosse seu, agora mantinha a
vigília para seu jovem favorito. E, então veio Eadar, a irmã mais nova de Torcall. Ela tinha
apenas quinze anos, uma leve e suave lady com olhos verdes como o mar de verão e o
cabelo preto como as noites quentes do verão. Torcall, de todos os seus irmãos e irmãs, era
seu favorito.
E s p a d a d o c a o s | 22

- Venha, criança, vou sentar aqui por algum tempo. Você deve ir até sua mãe por um
tempo. - Ailean suavemente fez Eadar se levantar. - Vá agora. - Ela se estabeleceu na
cadeira na cabeceira de Torcall.
Obedientemente, a garota foi para a câmara da mãe.
- Oh, venha, Eadar. Eu estava apenas olhando para as saias de lã que Shonnag usava
no inverno passado. Imagino que elas servirão em você este ano. Shonnag está muito alta
agora. - Roualeyn testou uma saia de tartã na cintura de Eedar. - Como eu pensava. Uma
boa peça para este ano, até você crescer, claro. - Ela começou a pegar as roupas de um baú
robusto, de madeira, bem feito e protegido contra as depredações de insetos. Eadar ajudou
a sacudir as peças, tirar os fragmentos de madeira, inspecionou cada vestimenta e dobrou-
a novamente na cama.
Uma vez, as mãos de mãe e filha se tocaram sobre uma jaqueta lindamente tricotada,
aparada em pele. Seus olhos se encontraram e elas trocaram um abraço apertado, mas
quando Eadar abriu a boca para dar palavras de conforto e consolo que se acumulavam
dentro dela, Roualeyn balançou a cabeça fracamente. Ela estava muito perto das lágrimas,
muito perto do desespero, de forma que uma palavra teria quebrado a paz frágil e
momentânea. Roualeyn sorriu e continuou a dobras as roupas.

~o⭐o~
Dias se passaram e Torcall não melhorou. Conforme seus resquícios de força haviam
sido drenados, ele escorregou agora de um estado de delírios febris para um coma
intermitente.
Eadar estava com ele um fim de tarde cinzento-amarelado, quando o sol vermelho
afundou no mar vítreo. Ela estava limpando seu rosto e pescoço com água fria, pois isso
parecia aliviar um pouco seu tormento, e por um momento deixou de mudar a água quente
em sua bacia para observar o pôr do sol.
Quando voltou, ela se surpreendeu ao encontrar uma mulher estranha sentada junto à
cama de Torcall.
- Oh! Perdoe-me! - Eadar parou na porta. - Você é um dos curandeiros?
A mulher olhou para ela de debaixo do capuz de seu casaco azul-escuro. Seu rosto
estava magro e pálido, os ossos de seu rosto quase visíveis sob a pele translúcida. O cabelo
branco-prateado foi puxado para trás em um penteado alto, suavizando a testa e o arco da
maçã do rosto curvado para baixo, as narinas finamente esculpidas, lábios cheios, mas
pálidos. Então Eadar olhou em seus olhos. Eles eram incolores, como poças de água que
refletem tanto sol quanto as luas imparcialmente, e parecia brilhar fracamente com a sua
própria luminescência interior.
E s p a d a d o c a o s | 23

Eles eram grandes demais para o rosto delicado e parecia crescer ainda mais conforme
Eadar olhava para as imensas profundezas líquidas. Por vários segundos as duas mulheres
permaneceram assim, unidas por seus olhos. Depois, a lady lentamente piscou e o feitiço se
quebrou.
Eadar também piscou, mas em confusão, e avançou hesitante pelo quarto.
A lady apontou para a tigela que Eadar usava e tinha esquecido entre as mãos. - O que
está fazendo, filha?
Estupidamente, Eadar olhou para baixo e depois balbuciou: - Água. Eu... Eu estou
molhando o rosto de Torcall com água fria. Ele parece se acalmar porque logo não fica mais
tão inquieto.
Ela colocou a bacia sobre a mesa ao lado da cama.
- Você deve ser Eadar, a mais jovem. - A voz da lady era profunda para uma mulher,
possuindo tons ricos em harmonia, mas de alguma forma, apesar do tom caloroso, parecia
triste.
- Sim, domna, sou eu. - A curiosidade dominou Eadar. - Por favor, quem é você? Você é
um dos curandeiros?
A lady sorriu gentilmente, seus olhos buscando um horizonte distante, antes de
responder, muito suavemente. - Sim, suponho que você poderia dizer que eu sou uma
curandeira. - Em seguida, a cabeça se virou para olhar outra vez diretamente para Eadar. -
Você pode me chamar de... Akhal, se desejar.
Eadar sorriu timidamente, gostando súbita e inexplicavelmente dessa lady estranha.
- Domna Akhal.
- Eadar. - Akhal sorriu de volta.
Então Torcall virou na cama e suavemente suspirou. Instantaneamente Eadar
ajoelhou-se ao lado dele, acalmando-o com a sua voz e uma mão fria na testa suada.
Suplicante, ela se virou para Akhal.
- Ele não está melhor. Nada do que fazemos parece ajudar. Você pode ajudá-lo,
senhora, por favor? - Ela olhou para o rosto de seu irmão, a pele fina sobre os ossos, e as
lágrimas se formaram novamente em seus olhos. - Eu faria qualquer coisa, daria tudo,
absolutamente tudo, para devolver-lhe sua vida e saúde.
- Qualquer coisa, Eadar? - Akhal perguntou suavemente.
Eadar olhou para o rosto perigosamente pálido e mais uma vez nadou nas profundezas
cristalinas dos olhos insondáveis.
- Qualquer coisa! - Ela sussurrou ferozmente e as lágrimas deslizaram por suas
bochechas.
- Muito bem, minha filha, vou fazer-lhe uma proposta. Para cada dia que passar
comigo a meu serviço, darei ao seu irmão um ano de sua vida e de boa saúde. Mas, - ela
E s p a d a d o c a o s | 24

levantou uma magra mão de seis dedos - você deve estar comigo em cada momento, sem
falhar, não importa onde eu vá ou o que eu faça, ou nosso acordo será desfeito.
Eadar arregalou os olhos para ela. - Quem é você que pode fazer tal coisa?
A lady suspirou. - Você não me conhece, filha? Minha filha presidiu seu nascimento...
Mas não importa. Digamos apenas que tenho o poder para fazer tal acordo. Preciso da sua
resposta, Donzela de Buchan.
Não havia nenhum som, mesmo o murmúrio incessante do mar havia silenciado.
Como se o tempo estivesse prendendo a respiração para ouvir a resposta há muito
esperada.
Eadar firmou sua mandíbula e seus olhos se estreitaram. Secando as lágrimas em seu
rosto, orgulhosamente decidida, ela respondeu: - Feito, domna. Eu irei atendê-la em troca
da vida de meu irmão.
- Assim como seu pai. Você é realmente sua filha. Vá, traga sua mãe para mim, pois ela
deve ser avisada e devemos ir antes que o sol se ponha.
Quando Eadar saiu da sala, ela olhou apenas para seu irmão, não vendo que havia
lágrimas agora nos estranhos e não humanos olhos.
- Eadar... - Veio o sussurro fantasmagórico. - Eu esperei tanto tempo...

~o⭐o~
- Você não lhe deu um nome, domna?
- Não. - Akhal sorriu. - A ninguém, mas você pode... Vai usá-la. A você, portanto,
pertence a nomeação. - Eadar deu um tapinha no pescoço da égua. - Bem, desde que você
é loura, mas não totalmente branca, eu te chamarei de Bhan que siginifca ‘louro, branco’
no antigo dialeto das montanhas.
- E esta será Liath1, então, porque ela é cinza.
Eadar cavalgou atrás de sua nova companheira pela estrada estreita e lisa que seguia
através da aldeia de Buchan em Altyre, e daí para as colinas além. A garota estava um
pouco assustada por deixar sua casa, pois ela nunca viajara mais longe do que a aldeia, mas
seu medo era temperado por uma sensação crescente de grande propósito. Por toda sua
vida lhe parecia que ela estava esperando algo. Não impacientemente, mas não menos
esperando, pois sua vida agora estava começando a acontecer. Ela se sentiu dedicada a
essa estranha lady andando tão silenciosamente diante dela, ligada a mais do que ao
acordo pela vida de seu irmão. As marés do tempo em sua alma estavam se aproximando
do dilúvio.

1
N. da T. – ‘Liath’ em irlandês significa ‘cinza, cinzento’
E s p a d a d o c a o s | 25

Eadar estava perdida em pensamentos, seus olhos fixos no capuz azul escuro que
cobria a cabeça e o rosto da lady. Então, gradualmente, a estrada simples e lisa se
transformou em névoa. A névoa fluiu rapidamente sobre os cascos de seus cavalos,
passando como uma fantasia cinza no crepúsculo crescente. Os trotes dos cavalos
cresceram abafados, silenciosos, na escuridão.
Gradualmente, o mundo surgiu novamente sobre eles e, à esquerda, surgiu um leve
brilho na noite. Liath virou-se em direção à essa luminosidade isso, Bhan em seu rastro,
como se guiado, mas a figura de Akhal não se mexeu.
Eadar se sentou em linha reta e olhou para ela. Eles estavam passando pelos arredores
de uma cidade bem grande, com moradias próximas umas das outras em cada lado da
estrada. As casas pareciam normais, usuais, sem nada notável sobre elas, mas, de alguma
forma, todas pareciam irreais. Elas não tinham substância. Os pedregulhos brancos até a
montanha pareciam fantasmas, com visão através deles.
Eadar olhou em volta em espanto.
- Lady! - Ela chamou suavemente. - O que é este lugar? Nada é...sólido. Olhe para as
casas!
- Não, filha, eles não são reais para você e para mim, nesse momento. - Akhal
respondeu. - Temos apenas um propósito aqui e isso serve.
Eadar seguiu Akhal até uma estrutura que acabara recentemente caindo. Os resquícios
de poeira fantasmagórica ainda brilhavam de forma transparente na tocha fina. Um grupo
de pessoas igualmente vestidas estavam reunidas com tochas para procurar através dos
escombros. Akhal guiou seus cavalos para um lado e escorregou facilmente da sela, Eadar
seguindo de perto. Elas seguiram através dos pedaços de rochas caídas e entulho, Akhal
procurando por algo no chão.
De repente, ela parou e se abaixou. Enfiando os braços através da poeira giratória,
através das próprias pedras, ela pegou uma criança pequena. Virando-se para Eear, ela
disse: - Aqui, você carrega o menino. Devo buscar o pai. – E colocou a criança ternamente
nos braços de Eadar.
O pequeno devia ter cerca de seis ou sete anos apenas, um pequeno pacote de braços,
pernas e cabelos desgrenhados. Eadar alisou os fios escuros de sua testa, enquanto
embalava a criança contra ela, e fez sons suaves que as mães costumam fazer para acalmar
bebês inquietos. O menino não se mexeu.
Akhal estava retornando, carregando uma forma escura tão facilmente quanto Eadar
carregava a criança, movendo-se em torno de grupos de pessoas que não notaram sua
passagem. Quando ela se aproximava, Eadar viu que ela carregava um homem com a
cabeça contra o ombro dela.
E s p a d a d o c a o s | 26

- Vamos. Devemos ir. - Foi tudo o que ela disse, e montou seu cavalo, ainda
carregando seu fardo.
Os cavalos se afastaram, movendo-se rapidamente para a estrada, pálidos na tocha, e
as terras se dissolveram em névoa novamente sob seus cascos silenciosos.
Uma grande paisagem cinza e lisa se esticou diante delas. Sem características e plana,
se estendia infinitamente em todas as direções sob um céu igualmente simples e cinza. Não
havia horizonte real, com terra e ar da mesma cor, e a distância poderia ser qualquer coisa
do alcance do braço a meio mundo de distância.
Akhal pousou, surpreendentemente escura em seu manto cora da meia-noite em meio
ao cinza pálido e colocou o homem de pé. Para a surpresa de Eear, ele permaneceu ereto e
Akhal gentilmente o afastou dela, com as mãos nos ombros.
Sem uma palavra, o homem começou a se afastar para o cinza, cada passo
carregando-lhe a uma tremenda distância. Ele desapareceu rapidamente para a infinita
tristeza, nunca olhando para trás.
Akhal então veio ficar no joelho de Eadar e segurou os braços da criança. Eadar olhou
pelo que pareceu um longo momento nos olhos luminosos e depois entregou o menino.
Mais uma vez, em silêncio, o menino seguiu seu pai, diminuiu rapidamente para uma
partícula escura, e se foi.
Akhal montou em Liath, quase da mesma cor da paisagem ao redor, e virou a égua
para que ela ficasse ao lado de Bhan. Mais uma vez os olhos se encontraram, lady e
seguidora, com o rosto de Akhal em plena calma. Nenhuma alegria surgia nas fontes
brilhantes de seus olhos, mas nenhuma sombra de desespero se via lá também. Havia
apenas aceitação sem julgamento do que era e o que será.

~o⭐o~
A batalha se desenrolava furiosamente sob elas enquanto estavam sentadas em seus
cavalos em uma pequena colina. Como os mares furiosos de terra natal de Eadar, a maré de
homens em apuros ia para frente e para trás nas margens verdes do monte, mas sem
perceber as duas sombras nela. Silenciosas como as duradouras colinas, Eadar e Akhal
esperaram.
Os membros do clã dos Domínios foram melhor treinados do que os bandidos. E muito
melhor. Eadar viu o uniforme preto do líder e por isso o reconheceu imediatamente como
um dos fabulosos Guardas da cidade. Quando os bandidos finalmente perderam e correram
para a segurança de suas colinas, o Guarda reuniu seus homens, alocando alguns para
cuidar dos feridos e direcionou o resto para perseguir os bandidos mesmo em suas próprias
fortalezas, lutando nas montanhas.
E s p a d a d o c a o s | 27

Agora, como tinha feito muitas vezes antes, Eadar recebeu os guerreiros mortos em
seus braços, segurando suas essências frágeis com facilidade suave para a viagem longa e
estranha que terminava no eterno cinza da terra e do céu. O segundo homem que recebeu
era apenas um menino, com faces lisas intocadas pela navalha, o cabelo loiro brilhando no
sol da manhã quando sua cabeça caiu contra seu ombro. Akhal demorou um momento, os
olhos incolores fixos no rosto liso do jovem. A lady nunca falou enquanto estava em seu
trabalho macabro, mas Eadar pensou ter ouvido uma palavra, ou melhor, um sussurro
suave em sua mente.
- ... Ah, tão jovem...
Após a batalha numa floresta, Akhal levou-as a uma pequena clareira protegida,
brilhante no sol quente para agradar seus olhos e sentir o aroma das últimas flores do
verão. Os cavalos foram deixados para aproveitar as gramíneas e Akhal caiu na relva com
um suspiro grato.
- Ah, é bom ter o sol na minha cara! - Ela empurrou o capuz para trás.
- Aqui, domna. - Eadar entregou-lhe um copo de água. - A primavera é fria, mas doce.
Akhal tomou o cálice e olhou para a água por um minuto, em seguida, levantou os
olhos para Eadar.
- Meus agradecimentos, criança. Você é boa para mim. - Ela sorriu suavemente e
bebeu.
Deixando de lado o copo vazio, Akhal encostou-se uma grande pedra, suavizada por
eras de gotas de chuva persistentes, e olhou para o sol. Ela olhou diretamente para a esfera
de fogo, sem pestanejar nem desviar da sua feroz luz vermelha, mas com respeito como a
um igual. De repente, para sua surpresa, ela sentiu a cabeça de Eadar contra seu joelho, e
seus olhos se desviaram da luz brilhante para cabeça escura da menina.
- Diga-me, domna, por que quando estamos sozinhas este mundo é real, como sempre
souber por toda a minha vida, mas quando estamos entre as pessoas torna-se apenas uma
sombra?
- Bem, - Akhal começou - é porque aqui não estamos sobre o nosso ... negócio, mas
estamos aqui apenas para nós mesmas. As rochas e o céu não pertencem a nós quando
trabalhamos, mas sim para os humanos, e por isso mesmo são sólidas para nós aqui, agora.
- Timidamente, ela levantou a mão e acariciou o cabelo escuro brilhando. - Não é uma coisa
fácil de explicar, mas talvez... - A voz dela vacilou, sua mão parou a carícia. – Eadar... - Ela
disse finalmente - Você conquistou uma vida longa e saudável para seu irmão. A sessenta e
três dias você tem estado comigo. Agora você pode ir para casa sem medo.
Eadar nem sequer levantou a cabeça. - Sim, lady, eu irei para casa, mas apenas para
dizer à minha mãe que encontrei o desejo do meu coração. Vamos dizer a ela que irei me
tornar uma curandeira sob a sua tutela.
E s p a d a d o c a o s | 28

- Olhe para mim, criança. – Akhal disse, quase sem fala pelas palavras da menina. -
Você sabe o que esatá dizendo?
- Sim, eu sei. - Eadar respondeu de maneira uniforme, sentando-se. - Eu sei bem o que
sou e o que quero.
- Não, não. - Akhal gentilmente tocou a bochecha rosa com sua mão fria. - Você não
entende. Você não sabe quem eu sou? - A tristeza imortal agora surgiu nos grandes olhos.
- Eu sabia o tempo todo, domna. Sei desde quando a conheci que você é a Deusa, a
Lady Avarra que traz a noite. E a morte.
- Então, você não pode ficar comigo - a Deusa sussurrou - e não vou te segurar aqui. Eu
não sou cruel.
- Na verdade, eu posso permanecer porque você precisa de uma companheira. - Eadar
levou a mão fria entre as dela, quentes. – Primeiro senti medo de você, medo de perder a
vida de Torcall, e a minha própria. Mas isso passou há muito tempo. Você se lembra da
velha senhora em Shainsa que parecia conhecê-la e sorriu quando a levou em seus braços?
Ela disse à neta dela o seu segredo e lembro bem. Ela disse: ‘sem morte, não haveria
espaço neste mundo para as crianças, e quem gostaria de viver para sempre sem filhos?’
Então, domna, eu descobri o que desejo fazer. - Eadar sorriu, sua expressão começando a
da Lady: atemporal, aceitação suave.
A deusa deu um sorriso, sondando profundamente nos olhos verdes-mar, tão
brilhantes agora sob o sol de Darkover.
Finalmente ela falou. - Muito bem, filha, mas não vou a unir comigo contra sua
vontade. Você pode me acompanhar o máximo que desejar, mas você só precisa pedir e
será devolvida à sua família no mesmo dia em que os deixou. O tempo é meu para
comandar e prometo a você sob meu nome: você poderá voltar. Eu juro!
Os olhos verdes ficaram luminosos por conta própria. - Você sabe porque eu fico, Mãe.
Por amor a você. E agora você deve deitar de novo. - E Eadar, cujo toque é conforto e cujo
nome significa "em conjunto", segurou suavemente os ombros da Lady. - Porque uma deusa
não poderia nem mesmo dormir sob o sol quando está cansada?
E s p a d a d o c a o s | 29

Uma lenda das Hellers


Ty Nolan

Há um antigo conto que eles contam nos corredores de Hastur quando as luas se
movem de uma certa maneira e a noite fria acena como uma meretriz das Hellers.
Há muito tempo na Era do Caos, o vento fantasma ecoou sua loucura nas almas dos
homens com pequeno poder, e, porque seus corações também eram pequenos, a chamada
para um poder maior retumbou dentro deles. E assim, homens e mulheres se uniram como
gado e depois caminhos para criar o desconhecido e ajudar o conhecido.
Erharth, um rei menor de um pequeno reino, olhou para uma esterilidade rochosa,
estreitando os olhos cinzentos para ver os limites de outra das facções que um dia seriam
conhecidas como os Cem Reinos.
- Outro bebê morto. – Ele disse ao vento. O vento não disse nada.
- Outro filho morto. – Ele gritou com seus conselheiros. - E este é o exército que você
reúne para mim? Minha semente está sem esperanças como sementes que nossos pais
inutilmente plantaram nas rochas e no gelo dessa terra sem valor?
Três homens se entreolharam e então seus olhos procuraram as pontas de suas botas
furadas. Seu silêncio pareceu irritar mais ainda conforme os olhos de Erharth ficaram mais
cinzentos do que verdes.
- Meu laran não deve morrer. – Ele sussurrou, como sussurrara tantas vezes nas
pedras de sua terra natal. Era como se ele esperasse que a suavidade persistente de suas
palavras invadisse o granito como um fio de água. Mas a força de tal agressão era o tempo,
e tempo para Erharth era tão raro quanto as flores da estrela em seu castelo bruto.
Há uma maneira, insinuou-se em sua mente e os olhos de um conselheiro não
estavam mais focados em seus próprios pés.
Erharth se virou para a porta pesada de neve para buscar o orador de sua mente.
- Não há um caminho sem riscos para vingar pelo menos um. - Erharth disse em voz
alta. Para a vergonha de Erharth, sua mente ouvia, mas mal era capaz de falar de uma para
outra. Na verdade, a mente de Erharth poderia transmitir sentimentos, mas não palavras. E
agora os três conselheiros e o quarto na porta foram lavados em desespero quando os
olhos de Erharth pareceram se acinzentar.
Quer o risco ou ficar sem sua ninhada como banshees, poderoso Erharth, a resposta
atingiu sua mente, com uma pitada de ironia amarga em ‘poderoso’.
- Chega, Danlyn! – Erharth gritou e todos os quatro conselheiros recuaram da mente
do seu rei. Embora sua raiva pudesse aleijar, eles sabiam que não podia matar.
E s p a d a d o c a o s | 30

O suspiro de Erharth atirou uma lufada de ar gélido, mas sua decisão fora tomada. –
Tragam-na. - Ele sussurrou e desapareceu na frieza de seu castelo para encarar seu filho
ainda mais frio.
E naquela noite, quando a segunda lua floresceu em plenitude, Danlyn e sua irmã
Dania cantaram em suas pedras azuis, uma bruxaria. Esses foram os dias em que leronis
realmente significava ‘feiticeira’. Essa foi a época anterior aos círculos que formaram as
Torres, agora como círculos inconstantes.
Irmão e irmã cantaram harmonias feitas em fitas azuis pulsantes rodando em uma
pedra compartilhada aparentemente brilhando como lua pela janela. O brilho da grande
pedra queimava, misturando-se nos pequenos fogos de quatro pedras iguais definidas nas
quatro direções em uma mesa.
Eles cantavam enquanto uma terceira lua acendeu o céu, e suas palavras eram de uma
língua mais antiga que o casta.
Então, à luz das pedras da estrela e duas luas, todo o metal no quarto quebrou. Os
punhais cerimoniais em suas cinturas se espalharam no chão e, da chama azul na mesa, os
irmãos giraram, para cima e para fora, tão alto quanto um humano.
Irmão e irmã foram jogados no chão enquanto a luz se tornou intolerável e a sala ficou
mais fria do que do lado de fora, algo inédito nas Hellers.
O gelo brilhava nas cinco pedras, agora pretas como ônix, e uma mulher estava na
mesa, com os olhos de um azul mais brilhante que as pedras.
Seu vestido era de estilo antigo e seu cabelo estava amarrado com cetim amarelo. Ela
era linda e gelada como a noite nas Hellers.
Quem me chama?
Danlyn estremeceu, mas não de frio. Dania respondeu: Nós de um útero te chamamos,
da sua casa para as Hellers para alimentar os sonhos de um rei de meia-idade de um reino
sem importância.
Dania!
- Não. – A mulher murmurou em voz alta, suntuosa em sua mesa. – Encolha-se em seu
canto enquanto sua irmã fala de pequenos reis e grandes sonhos. - Sua voz era suave e suas
palavras estranhamente acentuadas de uma maneira agradável. Seus olhos, no entanto,
eram gélidos.
- Sabe então, oh Rainha. – E, para seu crédito, Dania inclinou a cabeça enquanto seus
dedos afiados se agarravam no chão. - Não é nosso desejo chamar você, mas esta terra é
dura e seu governante mais difícil ainda. Cinco esposas e três vezes isso foi o número de
filhos que morreram enquanto o Rei Erharth entoa sua tristeza ao vento. Sua semente tem
frutos que não vingam.
E s p a d a d o c a o s | 31

- E seu sonho é apenas as crianças? - Ela perguntou, olhando para baixo e sorrindo
pela primeira vez.
- O que mais é o esporte comum de um rei do que a conquista e a dinastia? – Danlyn
murmuou.
0 No entanto, há mais. – A mulher disse e os irmãos não perceberam que sua
respiração não deixava sinais no ar.
- Você não acha que teríamos ido além de pedras e gelo há pouco para buscar climas
mais quentes no sul? Estamos presos aqui pelos desejos dele em deixar um herdeiro antes
que ele se aventure em batalha. - Danlyn se levantou enquanto falava.
- No entanto, seus filhos morrem antes de nascerem. – Dania acrescentou.
- Ele procura passar seu laran para seus filhos, reproduzindo-se em plebeus e Comyn
igualmente pela maior força de cada relação.
- Reprodução? - A mulher perguntou, sentando-se graciosamente na mesa.
- O mais forte para o mais forte. – Danlyn disse.
- Como criar falcões de Syrtis. – Ela disse suavemente, a mão direita acariciando o
preto brilhante do grande cristal morto. - Fale rapidamente. Por que você me chamou?
Meu tempo aqui é curto. Não se iluda achando que foram os primeiros a me convocar. O
feitiço de suas pedras da estrela foi uma compra cara por um período do meu tempo. Vou
voltar para o meu lugar legítimo, independentemente do que você fizer agora. Mas estou
curiosa. O que você quer de mim?
- Uma bênção, uma criança, um motivo para transformar Erharth no guerreiro que ele
foi uma vez. - Dania levantou-se, seus olhos cinzentos nivelados com os olhos azuis da
mulher sentada na mesa.
- E o seu rei, levará o amor para sua cama e sua noiva? - Ela perguntou baixinho.
Danlyn estremeceu de novo porque seu tom era o mesmo que Erharth tinha sido aquela
manhã enquanto ele gravava pedras.
- Seu amor é para seu reino e ele mesmo. – Dania respondeu.
- Deixe-me ver esse rei do seu reino sem importância.
E assim eles a levaram da sala de lascas de gelo e metal para um corredor com
tapeçarias roubadas pelo pai de Erharth grosseiramente penduradas.
Os olhos cinzentos de Erharth se arregalaram com sua beleza e um calor brotou de sua
mente, mas seu olhar permaneceu frio. O calor de Erharth não era luxúria, pois sua
qualidade era tal que ele nunca poderia possuí-la, e assim admiração, como se admira um
amanhecer, ou o oceano, pela primeira vez.
Ele não conseguia pensar e seus olhos não podiam deixar seu rosto, sua beleza
emoldurada por um curioso pano de cetim amarelo.
E s p a d a d o c a o s | 32

- Quinze crianças mortas. – Ela contou, em seu sotaque estranho e agradável. - Cinco
esposas mortas e um trono inflexível. Seu laran é um tesouro para este lugar que parece
uma rocha nevada?
- Não fale para mim de reino gélido, minha Lady... – Erharth começou.
- Não fale para mim de reprodução, pequeno de olhos cinzentos e de coração menor e
mais cinzento ainda. Seus servos bruxos pagaram por minhas palavras com suas pedras da
estrela e uma parte de suas vidas, embora não soubessem o preço. Ouça então, o que foi
pago. Embora você se deite com cinco vezes cinco esposas, e cada uma romper seu ventre
com cinco filhos, nenhum viverá. Sente-se sozinho no trono de madeira, tolo, você que fala
tão conscientemente de laran, mas nem sequer reconhece o seu próprio.
E, embora a raiva de Erharth se levantasse como as luas esquecidas, seus lábios
permaneceram em silêncio enquanto ela falava.
- Você abraça seu canto frio porque tem medo de liderar seu exército esfarrapado. -
Ela tirou de seu peito uma pedra da estrela em prata reluzente e, enquanto falava, um
feitiço da verdade surgiu até que o brilho pálido da gema brilhava em todas as faces
presentes no corredor. - Embora você diga que não, Erharth, você usa a desculpa das
crianças mortas para se salvar do campo de batalha. - O fogo da pedra nunca vacilou. -
Quinze crianças e cinco esposas você abateu durante o nascimento com o seu laran.
- Não! – Danlyn gritou. - Seu poder não pode matar, pode causar dor, mas não
assassinar. Não foi por isso que trouxemos você! - Os olhos cinzentos de Erharth mudaram
para a cor da pedra enquanto ele desviou o olhar da mulher para Danlyn e o conselheiro
começou a empurrar, seus punhos se cerrando e se movendo em uma dança sem sentido.
O sangue sumiu de seus lábios e ele caiu morto.
Lágrimas correram dos olhos de pedra de Erharth quando ele se virou novamente para
a mulher que começou a desvanecer-se como as estrelas da manhã.
- Maldita seja você... – Ele sussurrou, enquanto ela desaparecia. – Maldita seja,
Cassilda!
E s p a d a d o c a o s | 33

Nos Cem Reinos

Ao emergir dos tempos perdidos e lendários, Darkover foi varrida pelos ventos da
mudança. As Torres tornaram-se decadentes. Um programa de reprodução para fixar os
dons de laran das grandes famílias, que ainda não tinham se tornado o Comyn, cresceu,
como muitas tentativas bem-intencionadas de melhorar a humanidade e terminou se
tornando uma grande tirania. A guerra atormentou a terra, dividindo o campo em muitos
pequenos reinos. Torres guerrearam com outras Torres e Reis com outros Reis, usando
armas de laran e feitiçaria. Há uma antiga maldição chinesa que diz: Que você viva em
tempos interessantes.
Esses tempos eram mesmo interessantes... E muitos dos escritores de Darkover
escolheram esses tempos fascinantes e complexos para seus próprios contos. Durante esse
período pouco conhecido na história de Darkover, quando os poderes de laran estavam
sendo descobertos e redescobertos, usados e mal utilizados, quase tudo poderia ter
acontecido e provavelmente acontecia.
No primeiro conto dessa época, Susan Shwartz contou a história do incêndio da Torre
Arilinn e a morte terrível da Guardiã, Marelie Hastur. Agora ela conta a história de um
sobrevivente de Arilinn, Amaury O Músico, e sua tentativa de escapar de suas memórias...e
de si mesmo em "Na garganta do dragão".
Mary Frances Zambreno, em "Música do vento", conta uma história dos dias do
programa de reprodução, com seus fracassos e seus sucessos, e um menino
implacavelmente medido contra a busca de sua família por laran e o poder de laran pela
sobrevivência. Um dos usos mais bizarros do laran aparece na história de um feiticeiro de
Leslie Williams, "Escapar". Depois de lê-lo, durante a ediçaõ deste volume, Elisabeth Waters
descobriu que a história "Escapar" lhe deu arrepios, então ela prontamente forneceu uma
sequência em "Renascimento" e comentou que "então eu pude dormir à noite”.
Muitos escritores confundem laran com feitiçaria. Talvez porque, durante as Eras do
Caos, a linha divisória entre a tecnologia das matrizes da pedra da estrela, e os poderes de
magia, era uma linha muito fina. Em “A Herança de Hastur”, escrevi sobre uma espada em
cuja lâmina estava escrita: "Nunca saque-me, a menos que eu possa beber sangue". E aqui,
em "Uma espada chamada caos", conta a história dessa espada de lenda terrível.
E s p a d a d o c a o s | 34

Na Garganta do Dragão
Susan Shwartz

O homem que se chamava Amaury, o músico, sabia que apenas loucos ou


desesperados arriscavam viajar no inverno. Mesmo no sopé beirando Serrais, as nevascas
podiam surgir repentinamente e jogar um homem das montanhas ou envolve-lo em
perseguições perigosas. Amaury temia que tivesse enlouquecido uma vez, a tempos atrás.
Agora ele só estava desesperado. Ele estimulou seu chervine e a fera, cansada, tropeçou,
caiu e começou a mergulhar.
Amaury rolou livre. – Pelos Infernos de Zandru! – Ele praguejou. - Isso será meu fim. -
Ele se ajoelhou para recuperar seu equipamento, então matou o chervine com a faca que
era sua única lâmina. Embora três bandos de bandidos o seguissem, ele não podia
abandonar a fera, que o tinha servido até os limites de sua força, à morte pela fome, dor e
frio.
Então os bandidos surgiram. Ele estava seguindo um grupo o dia todo e suspeitava que
eles soubessem disso desde a última parada. Alguns deles deviam ter dobrado de volta. Em
um momento Amaury estava agachado sobre o chervine morrendo... No seguinte, um golpe
o derrubou e arrastou na neve e as mãos de alguém apertavam sua garganta?
Anos de prática o ensinaram a não lutar diretamente contra esse aperto, em vez disso
ele usou um joelho contra seu atacante, a mão pousando automaticamente na espada que
ele não usava mais, depois em sua faca, qualquer arma serviria. Mas um chute violento
afastou sua mão. Outro atingiu suas costelas, jogando-o de cara na neve pisoteada e
avermelhada pelo sangue.
- Amrek! Mate um músico e você morrerá uivando! - Ele ouviu um bandido avisar seu
atacante.
Eu irei dever minha vida a uma superstição? Ele esperava que sim.

~o⭐o~
- Este é o espião que nos seguiu de Carthon! Você está dizendo que tenho que deixar
ele viver? - Seu atacante fez uma pausa enquanto Amaury se sentia quente de medo e
escaldante vergonha.
Covarde! Eu pensei que você queria morrer. Ele disse a si mesmo. Depois que Marelie
Hastur tinha morrido em Arilinn, Amaury havia quebrado sua espada, havia deixado Arilinn
para sempre, abandonando a lareira e o Lorde, o direito de cantar canções de amor e
prazeres de uma noite. Passou a andar sem dormir, fora de si em Carthon (sua comida,
cama e vinho de má qualidade pagos por ouvintes entusiasmados), ele ouviu um sussurro
E s p a d a d o c a o s | 35

chegando mais perto, foi descoberto e forçado a fugir até que ele pudesse se esconder. Os
bandidos estavam indo em direção a Serrais.
Pela primeira vez desde a morte de Marelie Hastur, Amaury acordou com algo além de
seu próprio desgosto. Serrais foi onde ele havia fomentado; Ao sul, perto de Temora, estaa
sua propriedade, uma pequena região no Domínio Elhalyn. Um lugar que ele de repente se
lembrou que amava.
Amaury estava na neve, esperando o golpe do bandido e pensou em sua casa,
queimando, seu povo morrendo. Mais uma vez ele não poderia salvar o que mais amava.
- Quieto, você! - O homem de pé sobre ele o chutou novamente, mais fraco do que
antes. Se ele gemeu antes, desta vez ele respondeu apenas com a sensação de dor. A ironia
o deixou quase tão doente quanto o chute: pensar que ele morreria sem salvar a casa que
abandonou ... Justo quando ele aprendeu a amar e cuidar disso!
- Ele está sem espada, Amrek. Que kihar você terá se massacrar um homem sem
espada? Isso e mais a maldição. Derrube-o e deixe as tempestades levá-lo e a maldição do
músico também. Pegue sua mochila.
Algo caiu ao lado da cabeça de Amaury na neve. - Sua harpa, músico. - Amrek rosnou
em um dialeto das Cidades Secas tão espesso que ele mal conseguia entender as palavras. -
Louve aos deuses do Mar de Lobos porque eu não te matei.
- Você vem? Ou você é um ombredin que prefere ter seu prazer com ele aí na neve? -
O líder gritou.
- Ombredin, sou eu! - A raiva diminuiu a voz do homem ainda mais, tornando-a
distante. A dor explodiu em uma tempestade de luzes até a base do crânio de Amaury.
Luzes...como o fogo em uma pedra da estrela, um refluxo... NÃO! No fogo queimava um
rosto, lindo, amado, mas queimando, sendo consumido... E ele também estava
queimando...

~o⭐o~
Depois ele sentiu que mãos o levantavam e o mundo foi sacudido, repleto de gemidos
e protestos, sentindo-se como se estivesse deitado em uma sela bem desgastada. Depois
foi colocado em tendas armadas com cobertores velhos e galhos mortos. Havia as mãos
então, também, levantando-o, examinando seu crânio com cuidado, mas ainda assim,
agonizante. Então, depois de um tempo de aumento do conforto, um pouco de calor,
jogaram uma abençoada água em sua cabeça e boca, limpando o gosto ruim de doença.
- Desta vez você não vai morrer, músico. - Era a voz de uma mulher. Os habitantes das
Cidades Secas levavam suas mulheres ao longo das fronteiras das montanhas? Amaury não
acreditava nisso. Em dado momento ele sentiu que seria seguro abrir os olhos. A mulher
E s p a d a d o c a o s | 36

era magra e magra, suas roupas surradas e escuras, seu cabelo cortado bem curto. Que tipo
de mulher era aquela que viajava pelas montanhas sozinha?
- Isso mesmo, sente-se agora. – A mulher disse. Agora amaury poderia colocá-la. Ela
deve ser uma das Amazonas que Varzil, o Bom tinha contratado e feito negócios,
permitindo que elas viverem como homens, trabalharem como homens, livres das regras
dos homens. Em toda a sua vida como lutador, laranzu, e agora, auto-exilado músico,
Amaury nunca havia conhecido uma.
- Renunciante. - A mulher o corrigiu bruscamente. Ele devia ter falado em voz alta. -
Sou uma Com'hi Letzii.
Amaury passou a língua sobre os lábios. - Há uma vida entre nós, domna.
Ela riu, um som ainda mais brusco do que sua correção. - Não há necessidade de me
chamar de domna.
- Você salvou minha vida, mestra, e agradeço. Eu tenho uma dívida com você.
- Polpe suas belas palavras! Todos, aqueles gre'zuin deixaram você e sua harpa.
Quando sua cabeça parar de doer o suficiente para a música, você pode tocar para mim.
Nesse momento então você pode usar essas palavras.
Amaury piscou. Nunca antes ele ouviu uma mulher usar aquele palavrão.
Mais uma vez, ela riu, desta vez um som de diversão irônica. Seu rosto enrugou com a
risada e Amaury viu que ela era jovem, com olhos escuros cautelosos em um rosto pálido,
meio escondido por aquele emaranhado absurdo de cabelos.
- Terei meu próprio músico como uma verdadeira Lady Comyn! Agora, antes de você
dizer outra palavra, beba isso.
Amaury tomou a sopa quente, esperando que, depois da última dor na cabeça,
pudesse acalmá-la. A dor permaneceu com ele, a sopa o aqueceu e ele sentou-se, meio
inclinado, piscando dificilmente para o fogo minúsculo acesso pela Amazona.
Não. A Renunciante... Ele pensou, embalando a caneca maravilhosamente quente em
suas mãos calosas pelo trabalho com harpa.
- Posso - sua voz estava mais forte agora, embora ainda um tanto instável – conhecer o
nome de minha socorrista?
- Você pode. Sou Chimene n'ha Gwennis. - Ela o observou como se esperasse um
comentário sobre a forma do nome que ela usou: Chimene, filha de Gwennis. - Por que está
tão carrancudo, músico? O nome pode ser um pouco simples, mas essa sou eu, não uma
performista lírica cujo charme e voz devem ganhar o pão. Qual é o seu nome?
- Amaury. – Ele disse e fechou os lábios rachados antes que o resto saísse. Apenas o
Comyn se preocupava com nomes longos.
E s p a d a d o c a o s | 37

- Amaury. Você nunca conseguiu esse nome, vou apostar, em uma fazenda... Nem esse
cabelo vermelho. Algum bastardo de um Lorde o expulsou por você ter mais cabeça para
canções e não muito juízo?
Mais cabeça para música e não muito juízo! Isso o descrevia muito bem nos dias de
hoje. Foi estranho para ele não ter se ressentido com tais palavras. Ele olhou para longe de
Chimene ao redor do pequeno abrigo. Os alforjes estavam ao lado dela. Ele descobriu que
estava apoiado sobre um segundo par. Mas o pequeno dele havia sido roubado... Então, o
acompanhante dela deveria estar do lado de fora, cuidando dos chervines. Nem mesmo as
Renunciantes viajariam sozinhos nessas colinas.
- De fato, sem muito juízo, mestra, a ponto de ser capturado por ladrões. - Ele sorriu,
tentando usar o charme e a voz que ela relegou a artistas líricos. Apesar de qualquer ligação
que ele tivera com um Lorde, de ser um fugitivo e um covarde, ele era também um músico
e músicos não gostavam de ouvintes descontentes.
- Eles são mais que isso, Amaury. Como acho que você já sabe. Não apenas bandidos,
mas invasores tentando enfraquecer os Domínios para que eles possam se estabelecer
neles, assim como aconteceu com Ridenow em Serrais há muito tempo. Onde você esteve,
músico, para não ter ouvido que em todos os Domínios nestas três temporadas, bandidos
têm atacado... Até mesmo em Arilinn...
Então a morte de Marelie se encaixava em um plano maior. Ele orou a Aldones para
que ele pueesse ajudar a pará-los.
- Eu sabia que eles estavam por perto, sim. Eu os rastreei desde Carthon, na verdade.
Casa... Eu tenho que avisá-los... E então chegar a Elhalyn em si...
Amaury lutou para se levantar, mas Chimene o empurrou. - Você não poderia chegar à
próxima curva na estrada. – Chimene disse. - Rafaella e eu estávamos a caminho da Casa da
Guilda de Temora quando ouvimos as notícias. Meu pequeno amor...nós... eu... Eles iam em
direção ao Comyn, mas a encontraram! Deuses, eu os odeio, eu gostaria de poder explodir
o bando imundo deles, ou que Zandru os atacassem formigas-escorpião e chicotes!
A raiva fez sua voz estrenecer. Amaury, lembrando o golpe em sua cabeça, recuou
levemente, fechando os olhos para bloquear sua consciência de sua raiva. Amazonas
odiavam os habitantes das Cidades Secas por manterem as mulheres em correntes. Mas a
raiva na voz de Chimene continha um ódio mais profundo e pessoal.
- Rafaella, mestra? Eu notei outro pacote e pensei que talvez sua parceira tivesse
ficado do lado de fora.
- Rafi... Minha pobre Rafi... Ela está morta. Alguns dias atrás nos separamos na estrada.
Tenho parentes por aqui e queria vê-los. Então me afastei. No momento em que a alcancei,
lá estava ela, morta, um membro do bando das Cidades Secas sobre ela. Ela lutou e o
venceu para que não fosse estuprada e... Eles deixaram os equipamentos.
E s p a d a d o c a o s | 38

Amaury olhou o rosto tenso, as bochechas finas sob os olhos escuros escavavam mais
por memória e pesar. - Um lobo em forma de homem... - Seu tom fez a palavra soar como
um xingamento - o único animal que estupra, bem como mama. Mas ela morreu antes de
conseguirem estuprá-la.
- Eu sinto muito, mestra. – Amaury começou. Marelie tinha sido estuprada, mas
voltara a Arilinn e ele não sabia, não tinha sido capaz de consolá-la, compartilhar o fardo da
defesa de Arilinn. E então ela morrera.
- Sente? Porque? Eu honro sua memória. - Ela se inclinou sobre o fogo, mexendo
enfaticamente para mantê-lo acesso. Mas algo assobiou nas brasas e Amaury entendeu que
ela chorava.
- Você devia se importar muito com essa Rafaella. – Ele começou delicadamente.
- Fomos companheiras livres! - Ela respondeu. - A única mulher, a única pessoa que eu
realmente amei! Você, você se saente chocado, cabelo do Comyn e mãos de músico?
As más línguas ruidosamente pregavam que todas as Renunciantes eram amantes de
mulheres. Amaury tinha minizado tais histórias. Algumas delas, ele devia ter advinhado,
eram realmente... Assim como alguns homens, em quaisquer grupos, preferiam os homens,
exceto, talvez, entre os monges de São Valentim das Neves. Criado como um Lorde Comyn
ele tinha sido educado para se sentir ultrajado por uma mulher amando outra mulher,
afinal sempre lhe diziam o quanto era importante ele ter herdeiros, especialmente
herdeiros do sexo masculino, e muitos deles se possível. Mas Chimene e sua companheira
livre tinham amado uma à outra, tiveram uma à outra, pelo menos por algum tempo. Ele
não tinha tido tanta sorte.
Chimene estava esperando por uma resposta, as mãos agarrando e torcendo o que
Amaury reconhecera como a correia de transporte de sua rryl.
- Deixe-me pensar nisso. – Ele disse. - Como eu me sinto? Amor é amor. Se você
encontrou o amor, esteve feliz com Rafaella, a única coisa que posso dizer é que lamento
por você pela morte dela? Eu... Eu também...
- É por isso que você viaja tão imprudentemente nas Hellers, não é? Alguém que você
amava também morreu e agora você não sente que tem muito pelo que viver.
Ela poderia ser uma Ridenow por o ler tão bem. Amaury deu de ombros, tentando
bloquear a dor que suas palavras despertou.
- E você sente, Evanda e Avarra nos proteja, que é culpada. As vezes conto as horas,
perguntou se eu não poderia tornar minha visita mais curta, viajar mais rápido, não parar...
Pelo menos ter estado lá para lutar ao seu lado. Certamente há algo que eu poderia ter
feito... - As palavras de Chimene saíram suavemente e Amaury entendeu que ela tinha
esquecido sua presença. Então, como se lembrando dele, ela balançou a cabeça, o cabelo
escuro caindo sobre a testa.
E s p a d a d o c a o s | 39

- O que o faz chorar, Amaury, diga-me...


Ele estendeu a mão para desembrulhar sua harpa. Ela colocou a mão para ajudá-lo,
mas ele evitou tocá-la com tanto cuidado como se fosse um Guardião dentro de um círculo.
Delicadamente, ele a tirou do da caixa de couro fino, um instrumento principesco, e passou
os dedos carinhosamente ao longo das cordas. Uma tinha sido afrouxada e ele a apertou.
Chimene ergueu as sobrancelhas para a elegância do instrumento e seu tom profundo, rico
quando ele passou os dedos em um toque suave sobre as cordas novamente.
- Você quer saber da minha Lady? O nome dela era Marelie e nunca foi minha, mas,
por Aldones, como sonhei com ela! - Na escuridão iluminada pelo fogo, parecia fácil falar,
mesmo para essa sádica Amazona de luto, sobre a mulher morta: Guardiã, comynara, tão
diferente de tudo que Chimene e sua companheira livre falecida poderiam ter sido. Ele
cantarolou, os lábios, treinando o som. Sim, ele seria capaz de cantar naquele tom.

"Eu vi minha Lady ao sol,


Seu cabelo estava balançando, um feixe de asas,
E o vermelho da luz solar estava atrás de tudo.
Eu a vi lá dentro de sua casa,
Com seis grandes safiras penduradas ao longo da parede,
Baixa, em forma de painel, ao nível dos joelhos..."

Sua voz vergonhosamente vacilou e ele se atrapalhou nas últimas palavras e notas da
música.
- Você fala dela como se fosse a filha dos deuses. A menos que, claro...suas mãos, e
esse cabelo vermelho! Amaury não é seu único nome, é?
Ela salvara sua vida. Ganhara o direito de conhecer seu nome completo. – Ridenow-
Elhalyn. Um filho mais novo, mas bastante legítimo. Tenho uma propriedade perto de
Temora. E eu costumava viver em Arilinn. Mas saí...depois que a Guardiã lá...morreu.
- Marelie Hastur. – Chimene disse no tom de quem finalmente resolvia um quebra-
cabeça. - Estuprada por bandidos e abandonada para morrer. Mas ela voltou... Ela voltou e
lutou contra os bandidos. Eu ouvi músicas...
- Ela morreu e eu não pude ajudá-la! - Amaury abaixoua rryl, um som discordante e
incômodo soando depois da música. - Eles cantam sobre ela, assim como eu faço, mas um
morto continua morto. Não creio, depois do que eles fizeram com ela, que ela quisesse
viver, que pudesse suportar o fato de que os homens puderam... Que uma Hastur de Hastur
tinha sido tão violentamente atacao.
- Nós Renunciantes, nenhuma de nós, considera o estupro como o pecado de uma
mulher. Sua Lady era uma Hastur e teria continuado a ser uma Hastur, não importando o
E s p a d a d o c a o s | 40

que tivesse acontecido. O que aconteceu, o que eles fizeram com ela, a tornou menos a
seus olhos?
- Oh deuses! - Amaury exclamou, depois lutou para evitar os soluços. As palavras
sairam de seus lábios como sangue de um homem moribundo. - Se ela apenas tivesse
confiado em mim... Eu era seu técnico, poderia ter parado ela. Você imagina como era, ser
seu técnico, amá-la a cada minuto, mas esconder tão bem que ela, que era uma Guardiã
que conhecia atá as almas de seu círculo, nunca adivinhara? Você, possivelmente, não
pode! Mas eu fiz isso. E se eu podia fazer isso, talvez pudesse ter poupado um pouco... Mas
já está feito. Ela morreu, então fiquei apenas tempo suficiente para ver o monumento que
construíram para ela em Arilinn, e depois...
- E depois? - Ele ousou olhar para Chimene e quase engasgou. Não havia condenação
em seus olhos.
- Fui embora. Vaguei para Nevarsin e além, além do Kadarin, cantando minhas
músicas.
- Em nossas Casas da Guilda, ensinamos as mulheres que não precisam considerar a
estupro como pior do que a morte, que nem elas e nem seus parentes devem puni-las por
serem vítimas. Se sua Marelie soubesse disso. Se sua Lady Hastur tivesse sido uma de nós,
ela nunca...
A ideia de Marelie, radiante, imperial, viajando através dos Domínios em calças e
túnica, uma Amazona de cabelos cortados, fez Amaury estremecer.
Chimene riu brevemente. - Pelo menos seu choque é melhor que a autopiedade, Dom.
– Ela disse. - Mas isso foi a três estações atrás. Certamente, desde então seu Domínio, sua
propriedade não tiveram você, mas devem precisar de você...
- Eu jurei quando ela morreu - Amaury enfatizou o pronome como se o nome dela fosse
sagrado demais para ele pronuncianr - que nunca serviria em uma Torre ou com uma
espada, já que nem laran e nem arma me serviram para salvá-la. Depois que falhei com ela,
como eu poderia ouvir qualquer homem me chamar de Lorde? Vai dom! - Ele riu
amargamente. - Mas não estou tão perdido para aguentar enquanto os bandidos das
Cidades Secas matam meu povo. E tenho uma dívida de sangue agora contra esses
bandidos...
- Verdade. Mas você não está em condições de viajar sozinho. E eu tenho um chervine
sobressalente agora. De Rafaella. Já que, como você disse, há uma vida entre nós, vamos
viajar juntos.
- Você me empresta graça, mestra.
Chimene balançou a cabeça. – Polpe suas cortesias formais para seu próprio habitat,
Dom. Ainda não chegamos lá. Uau! Isso soa como o tema de uma velha balada: o músico
acaba por ser um Lorde Comyn. Por favor, Dom Amaury, cante para mim. Rafaella... Ela
E s p a d a d o c a o s | 41

amava uma boa música. - Seu lábio tremeu e ela continuou rapidamente. - Cante algo de si
mesmo.
- O que devo dizer de mim mesmo? - Amaury perguntou ao ar ironicamente. - Talvez
isso?

“A lua é minha amante constante,


E a humilde coruja meu amanhã.
O dragão flamejante e o corvo da noite
Cantam uma música para minha tristeza.”

- Imagino uma coruja para ser algo como um pequeno banshee. - Ele acrescentou.
- Você precisa se machucar com seu próprio dom? Como o homem que colocava
espinhos em sua pele para se assegurar que ainda podia sofrer... Acho que em todas essas
temporadas você está se atormentando, colocando espinhos em seu coração, então você
sabe que ainda pode doer.
- Isso não é melhor que a dormência?
Na próxima respiração, Amaury lamentou sua pergunta. O humor de Chimene cintilou
entre sarcasmo e compaixão. Ele não queria aliená-la. Com prazer ele teria tentado
consolá-la, mas tinha pouco conforto para si mesmo.
- Não importa a dormência. Cante para mim. Cante uma canção para a vida, para Rafi
que não pode ouvi-lo, mas que teria amado sua música. Por favor.
Amaury inclinou a cabeça sobre a rryl, observando suas inserções de cobre brilhando
no fogo. Ele tocou distraidamente, seus dedos vagando de uma melodia para a próxima até
que, por si mesmos, seus dedos começaram a tocar uma canção de sonhos, de despertar
dos sonhos para cura e a vida. Uma canção de inverno, cedendo a primavera e à colheita
como outros invernos haviam feito. Ele cantou, como todos os amanhãs circulando sob as
luas. Ele não saberia dizer o exato momento em que a música morreu no ar frio e a rryl caiu
de sua mão. Ele dormiu, sem sonhos, dor ou culpa.

~o⭐o~
- Músico, Amaury! - A voz de Chimene trouxe Amaury de volta à vigília. – Deixei você
dormir o quanto pude, mas agora temos que desmontar o acampamento. O café da manhã
está pronto. Notei que você não tinha uma faca. Se você vai comer, terá que usar a
pequena de Rafi. Aqui, mas...mas...
- Eu entendo. Aceito a faca, sem presumir que isso significa o que o presente ou o
empréstimo de uma faca normalmente significaria. - Então Renunciantes não renunciaram
a ideia de irmãos jurados. Ou irmãs.
E s p a d a d o c a o s | 42

Amaury notou que Chimene estava ainda mais abrupta do que o habitual, como se as
confidências sobre o fogo na noite anterior a tivessem envergonhada. Músico, fugitivo
Lorde Comyn e a Renunciante: O que eles tinham em comum além do sofrimento? Amaury
não precisava da empatia Ridenow para sentir o constrangimento de Chimene. Ele o
compartilhava.
Depois de uma refeição silenciosa de mingau e carne seca, eles saíram. Chimene
mostrou Amaury o que ele iria montar.
- Me sinto envergonhado. – Ele murmurou. - Você me encontrou sem nada.
- Concordamos ontem que ninguém viaja sozinho nos Hellers de bom grado. É um
negócio justo. Eu só queria que você não estivesse sem uma espada.
- Mas não estou indefeso. – Ferido pela crítica implícita ao seu juramento, Amaury
pegou sua matriz não utilizada desde aquela noite terrível quando Marelie morrera. - Isso
nos permitirá ver se algo como um Ya-Man ou homem-gato nos seguir ou se nos
aproximarmos dos habitantes das Cidades Secas. Sabe, às vezes eles lutam ao lado dos
homens-gato.
A matriz brilhava e Chimene se aproximou intrigada. - Não olhe para isso. – Ele avisou.
Amaury olhou em suas profundezas, sua mente sentindo o contato telepático com os
não humanos usando a empatia Ridenow. Pense como homem-gato, Amaury: precisão
feroz, orgulho, violência, rapidez, selvageria...kihar...homens-gato! Sua pedra de matriz
oscilou e ele lutou contra o medo de ver na pedra o rosto de Marelie Hastur, como ela
estava pouco antes de morrer. Então ele enviou sua mente para acima do corpo...
Tocando uma fome, vaidade, alerta pré-cio... Homem-gato! E eles tinham algum tipo
de laran. Dizia-se que as gerações passadas, antes que os Ridenow tivessem sido qualquer
coisa além de si mesmos, que tinham sangue de Homens-gato. Havia um "lamento" mental
quando este detectou sua presença. Amaury se retirou apressadamente, sentindo, quando
sua mente retornou ao corpo, a investida de "garras" mentais afiadas nele.
- O bando está próximo! - Amaury disse a Chimene. - Os bandidos estão apenas alguns
metros à frente e um dos seus gatinhos domésticos sentiu minha sondagem.
Ele esporeou o chervine de Rafaella, lamentando os segundos que tinha que
desperdiçado baixando seus estribos. - Eu conheço esta estrada. - Ele disse. - Siga-me.
Seu instinto de montaria gritou avisos contra a velocidade que cavalgavam, mas
Amaury forçou seu chervine em galope na trilha grosseira. Os estrangeiros sabiam de sua
aproximação? Ou os sentidos do homem-gato que o detectou iria levar os bandidos
diretamente para ele?
O chão áspero se elevou agudamente e Amaury diminuiu, se aproximando mais do
monte.
E s p a d a d o c a o s | 43

- Nós os encontraremos logo se eles ainda não tiverem se movido. Olhe ali. Eu desci de
Carthon por esta rota, - ele se ajoelhou na neve, arrumando neve e pedras em um mapa
grosseiro - e esta é uma crista das Hellers. Além disso fica o limite de Serrais.
- A Guilda aconselhou a mim e Rafi para evitar os passes nesta época do ano. –
Chimene disse. Dedos enluvados traçaram uma rota dos Hellers e para baixo, ao redor
deles, e novamente nos Domínios. - Esta foi a estrada que deveríamos ter tomado.
- É um caminho muito lento. Quando chegarmos na fronteira do Domínio, os
habitantes das Cidades Secas podem estar lá por cerca de dez dias.
Chimene parecia aflita, fazendo com que a Amaury revisasse seu palpite pela idade
dela em alguns anos a menos. Ela e sua Rafi já teriam sido enviadas para tão longe de sua
Guilda antes? Ele duvidava. A garota era absurdamente jovem para que esse fardo de
repente fosse jogado sobre ela.
Ela estava com medo. Em sua defesa, ela parecia estar se controlando bem, lutando
contra o próprio medo para cumprir seu dever, como uma mulher de sua casta que ele
conhecera. Como a jovem Felizia, lutando agora para preencher o lugar de Marelie.
Possivelmente por causa de seu longo serviço na Torre, ele conseguia entender que uma
mulher também tinha que enfrentar e dominar o medo para sobreviver. Não era isso que as
mulheres de Arilinn faziam toda vez que entravam no contato? A própria Marelie devia ter
passado por isso na noite anterior à...ao fim. Quanto a ele, ele prometera lidar com o
problema, mas também sentia medo.
- Quanto tempo levará para atravessar os passes? - Ela finalmente perguntou, sua voz
estável.
- Há apenas um passe. – Amaury disse e apontou no mapa. - Mas é o mais alto nesta
parte das Hellers. Essa passagem é chamada de Garganta do Dragão. Já a cruzei antes. É
possível que os bandidos também o façam. Olha, vou te mostrar.
Em um novo pedaço de neve, ele começou a moldar o passe. Para enfrentar o medo
era preciso visualizar o que se temia e Chimene precisava saber como era a passagem.
- Primeiro, há uma longa abordagem. Nós vamos ter que andar, mas temos um
consolo. Como há apenas dois de nós, podemos nos mover muito mais rapidamente do que
nossos inimigos. Provavelmente eles se separarão em dois grupos. Um grupo pode pegar a
rota pela planície, a mesma que sua Mãe da Guilda sugeriu. Provavelmente o que estiver
com o Homem-gato. Os homens-gato não gostam dos passes altos. Espero que você não se
importe com eles.
Chimene encolheu os ombros. Seu sotaque não aparentava ser das planícies, então ela
podia ter alguma resistência nas alturas. Mas o que preocupava Amaury era sua resistência
nas altitudes maiores em que apenas montanhistas ou tolos se arriscavam. Se o corpo dela
não pudesse suportar o ar rarefeito, ela provavelmente morreria de ataque cardíaco,
E s p a d a d o c a o s | 44

embora ela parecesse jovem e resistente. Amaury começou a avisá-la, depois parou. Ele
teria sorte se sua lesão na cabeça não o tornasse uma presa fácil para a vertigem que
poderia derrubá-lo das rochas. Vertigem, ventos e rochas eram os maiores inimigos na
Garganta do Dragão.
- Isso não é um nome muito bom. – Ela disse.
- É um nome perfeito para esse passe. A abordagem é estreita e se retorce conforme o
caminho segue, como um dragão...um dragão esperando para nos devorar. Então, aqui há
uma das paredes da rocha que passamos mais fechado, sem muito acesso até para gotas de
chuva, com mais rochas abaixo semelhante à presas. Um minuto você se verá cercada por
pura rocha. No seguinte, haverá vários milhares de metros de ar frio à sua direita e o vento
que é...muito ruim. Aqui é como a respiração do dragão. É um dragão gelado, acredite em
mim.
- E as presas são as rochas abaixo? Há banshees?
- Não da última vez que cruzei.
- Avalanches de rochas?
- São piores na primavera.
- Isso não é resposta clara. – Chimene disse.
- Chimene, o passe da Garganta do Dragão não dá respostas claras. Se houver um
deslizamento enquanto estamos na aproximação ou na borda, que tem menos de um
metro de largura, acabou. Mas se os bandidos vierem por trás, isso também vai acabar com
os planos deles. Pelo menos, eles terão que percorrer o caminho mais longo e talvez Serrais
possa se defender se tiver tanto tempo de preparo.
Chimene riu. - Então, somos simplesmente iscas! Dom, se você não estivesse sofrendo
de uma batida na cabeça, eu diria que você estava ouvindo muitas de suas próprias
baladas! No entanto, não nenhuma outra escolha para nós e eles me devem uma vida.
Quando partimos?
Amaury se levantou, limpando as mãos. Ele pegou sua matriz novamente, colocando-a
contra sua boca, usando a respiração para aquecer cristal e mãos. Mais uma vez, sua mente
impulsionou para tocar a do homem-gato, provocando-o o não-humano com um uivo
raivoso, impulsionando os bandidos a os seguir. Mentalmente, ele se esquivou de garras de
homem-gato e presas cuspindo fúria. Ele se retirou da outra mente deixando uma dica de
sua localização para provocar a criatura e que informaria seus aliados.
- Uma boa provocação para homem-gato e os outros estarão em nossa trilha. Vamos.
Eles montam e cavalgaram pelo resto da manhã. Pararam ao meio-dia. Mais uma vez,
Amaury verificou a posição dos bandidos. Eles ainda estavam em sua trilha, mas estavam
próximos, muito próximos. Amaury e Chimene quase não teriam uma margem de
segurança ou erro.
E s p a d a d o c a o s | 45

Ele começou a dizer isso, então, de repente, quase caiu, descostumado ao trabalho
com a matriz, afetado pelo golpe na cabeça e a crescente altitude que quase escurecendo o
céu e as luzes violentas começaram a surgir por trás de seus olhos. De uma grande
distância, ele sentiu Chimene puxando seus ombros, ouviu sua voz chamando seu nome,
pedindo...
- Você pode andar? - Ela estava perguntando. Seu braço fino estava em torno de seus
ombros, segurando-o na sela. Quando ela puxou de volta, ele ficou tonto novamente.
- Onde...?
- Estou aqui, Amaury. - Sua voz assegurou. - Apenas desmontei para amarrá-lo na sela.
Deixe-se cair para a frente se isso for mais confortável. Apenas durma. Vou levar as rédeas.

~o⭐o~
Amaury acordou, tentou virar e se viu amarrado. Foi um momento de puro terror.
Então ele se lembrou que tinha desmaiado e confiado sua vida a Chimene. Mais uma
vez ela o salvara.
Ela tinha ouvido os movimentos que ele fizera naquela luta convulsiva pela liberdade. -
Você está acordado novamente. Vou te desamarrar na próxima parada.
- Você coloca correntes em homens, mestra? - Amaury forçou uma risada.
- Não quero perder tempo para desmontar. Nós estamos subindo constantemente nas
últimas horas e nosso ritmo diminuiu.
Claro que ela estava certa, Amaury pensou. Mas ele tinha que confiar em sua liderança
enquanto estivesse inconsciente, mas agora desperto ele não se sentia totalmente
confortável com isso.
- É uma experiência nova para você. - Chimene disse ironicamente. - Você é mais velho
do que eu, viajou por todos os Domínios, enquanto eu estou no que deveria ser para mim e
Rafi o primeiro grande empreendimento. Nós planejamos ver o porto, talvez até contratar
um dos barcos. Você viu tudo, foi tudo, desde laranzu até músico errante, mas nunca se
sentiu amarrado.
- Você já? - Amaury achou incongruente a ideia de uma Chimene dócil, subjugada,
olhando para seus chinelos como uma Lady Comyn. Falcões foram feitos para voar.
- Antes de chegar à Guilda, meu tio que era meu guardião e minha tia, queriam que eu
me casasse com um dos seus filhos mais novos. Oh, ele e eu gostávamos um do outro, mas
nenhum de nós gostou da ideia. Assim como eu, Coryn queria vagar pelo mundo e eu já
sabia que preferia a companhia de mulheres. E havia uma garota na aldeia que me atraía.
Meu tio descobriu e, embora ele tivesse o comando de minhas terras e dito que gostava de
mim, me trancou no meu quarto e ameaçou me chicotear a menos que eu casasse com
Coryn imediatamente e me comportasse como uma verdadeira mulher. - Ela cuspiu a frase.
E s p a d a d o c a o s | 46

- Ele permitiu que minha tia me visitasse, mas passou a maior parte do tempo chorando.
Mas Coryn... Bem, a garota falou com ele, armaram uma história e me ajudaram a escapar.
Então fui para a Guilda, onde conheci Rafi e achei que minha vida havia seguido o caminho
que eu queria...
Mas, como o meu, foi interrompido pela tragédia. Você vai acabar com sua amargura,
Amaury pensou. Você é mais jovem do que eu, não teve uma tradição de ancestrais
heróicos espelhados em você até se tornar seu fantoche, mas ter que continuar lutando. Se
Aldones nos comparasse agora, você ganharia. Você nunca fugiu de suas funções, nunca
vagou entoando canções tristes depois que sua Rafi morreu. E você ainda pode acabar
morrendo me ajudando, o que me fará admitir minha própria negligência com meus
deveres.
Quando finalmente a inclinação em direção ao passe se tornou tão íngreme que não
podiam mais montar, Chimene desmontou para ajudar Amaury, rígido por sua longa
imobilidade, a descer das costas de seu chervine. Ambos vasculharam os alforjes em busca
de frutas secas, nozes, pão de viagem, qualquer coisa que pudesse lhes dar energia para a
próxima e mais difícil parte de sua jornada. Quando terminou de comer, Amaury se forçou
a se recuperar vigorosamente. Ele bateu os braços para frente e para trás, tentando
restaurar o fluxo sanguíneo para os dedos e pernas.
Chimene olhou para o céu. Embora Liriel estivesse baixa, brilhando na luz violeta da
tarde, eles ainda tinham várias horas de luz do dia. E, graças à Evanda e Avarra, o céu
estava claro, com apenas uma fina eclosão de nuvens altas. Amaury observou pelo canto do
olho, depois com um olhar claro, medindo.
- Você está em forma? – Ela perguntou. - Porque se está, já que conhece esta região, é
melhor você liderar. - Foi uma concessão relutante da autoridade que ele sabia que ela
gostava.
- Mas se eles nos alcançarem, então você... - Amaury se interrompeu ao se lembrar
que ele era um homem sem espada. - Eu vou liderar. – Ele concordou.

~o⭐o~
O sol sangrento estava seguindo em direção ao horizonte e o vento aumentava
quando Amaury parou. - Pegue algo para comer enquanto pode, Chimene. – Ele ordenou. -
Este é o último lugar que podemos parar. Vou verificar nossos amigos.
Usar a matriz podia drenar fatalmente sua energia agora, mas a dúvida de não saber o
quão longe deles seus inimigos estavam podia ser ainda pior. Eles não ousariam perdê-los.
Mas se, no instante seguinte, ouvissem os sons de sua aproximação, a miastura de botas e
cascos na neve na volta do passe, seria o fim dos dois. Depois desse ponto de parada, eles
não tinham mais uma rota de fuga. Em declive, as rochas em forma de presas os cercavam
E s p a d a d o c a o s | 47

de ambos os lados. A pedra brilhava nas mãos de Amaury. Quase imediatamente ele gritou
e colocou de volta dentro de sua roupa.
- Rápido! – Ele disse.
Arrastando seu animal pelas rédeas, Chimene o seguiu, rezando para escapar Garganta
do Dragão. Agora, em ambos os lados, a rocha gelada se afastou deles.
- Lembre-se. - Amaury a avisou. - A rocha declina na borda que cruzamos. Vamos ter
que procurar uma posição lá ou talvez possamos atravessar primeiro...
- E talvez o burro de Durraman tenha asas. Não afronte a masculinidade de Zandru,
você está bem em sua grande casa. Mas, seja como for, vamos pressionar o mais que
pudermos. Na pior das hipóteses, podemos pular das rochas. Rafi estava certa. Melhor
morto do que desonrado. Essa é a minha escolha. Mas você, Dom, se contentará em ser
feito refém em troca de um resgate?
- Eu j[a desgracei demais minha família... – Amaury disse. - Vamos lá! - Ele sacudiu as
rédeas de seu animal, forçando sua cabeça, praticamente o arrastando pelo caminho.
- Se pudermos fazer isso na borda, na chamada Língua do Dragão...
- Eles podem nos derrubar brincando. - Ela se opôs. - Somos alvos perfeitos.
- Os chervines nos darão alguma proteção. - Amaury vasculhou o conteúdo dos alforjes
de Rafaella, puxando um cobertor e comida. - Tente embalar enquanto você anda,
Chimene. Mesmo que tenhamos que sacrificar os animais no passe, ainda precisaremos de
comida depois.
Essa área era mais fria e íngreme do que Amaury se lembrava. Ele esperava ter se
lembrado melhor disso do que lembrava de... outras coisas. Seu olhar pousou no couro
desgastado de uma bainha. A espada de Rafaella. Mas, como dissera a Chimene, ele já tinha
desgraçado sua família o suficiente. Mesmo que usasse essa espada, enviasse Chimene à
frente e morresse em uma tentativa de lhe dar tempo, ele estaria quebrando um
juramento. E também ele duvidava que ela aceitasse esse plano.
A rocha ficou irregular sob os pés. Amaury se amparou com uma mão contra a barreira
à esquerda. À direita, as presas davam para um abismo vertiginoso. O ar, já frio e rarefeito,
parecia piorar. E, sim, o medo se formou em seu peito. Sua respiração raspou e suor
escorreu por suas costas. Seus pulmões pareciam ter facas os golpeando e a angústia
aumentou. Ele teve que parar, se curvar e lutar para respirar.
- Pelo menos, - Chimene ofegou - eles terão... o mesmo problema...
Ele se maravilhou pelo fato dela ser capaz de falar. Deuses, ela era forte!
Anos atrás, muito antes de ter perdido seus nervos em uma explosão com chama azul
da matriz de uma Guardiã, Amaury passou pela Língua do Dragão. Ele teria que fazer isso de
novo: um engano poderia destruir a mulher que lutou em cada passo com ele. Rasgando o
lenço de sua roupa, ele usou-o como venda. – Calma agora, bom companheiro. - Ele
E s p a d a d o c a o s | 48

murmurou, usando também as mãos, voz e laran para acalmar o chervine. - Firme. - Se
entrasse em pânico, provavelmente o animal o derrubaria no abismo... E Chimene iria com
ele.
O vento o atingiu quando a abordagem abriu para a passagem em si. Ele pressionou
contra a face do penhasco, disposto a não pensar no vazio abaixo ou na violência do vento,
as pedras afiadas como os dentes dos lobos de Alar. Abaixo de seus pés, no abismo, as
densas nuvens misericordiosamente ocultavam as rochas.
- Firme. – Ele disse, movendo-se à frente, com a intenção de focar em cada passo,
sentindo com as mãos, pensando também em Chimene. O chervine tremeu quando sentiu o
vento no flanco, mas seguiu obediente.
Ele o guiou para a fina passagem que chamavam de “Língua”. Pelo meio do caminho...
Cuidado com aquela rocha solta... Três quartos ... - Vire aqui! - Ele disse, esperando que o
vento soprasse sua advertência. À frente, a passagem subitamente se inclinou. Um tolo
poderia se apressar naquele caminho e ali seria a última loucura que ele cometera.
Descendo.
Cuidado.
Rochas lascadas surgiam na borda, pedregulhos e beve as atingiam fazendo um
barulho mortal que tentava distraí-los. Então finalmente ele estava completamente do
outro lado da Garganta, puxando o chervine, acariciando-o para o acalmar enquanto seguia
o caminho que iria se alargar e os levar até o vale e a segurança... Se eles tivessem tempo
para se esconder.
Ele estendeu a mão para Chimene, cansada e rígida como ele, mas igualmente forte, e
puxou-a também para a segurança.
- Lá! – Ela apontou. - Atrás de nós, na borda. Eles abandonaram seus chervines. É
seguro montar?
- O caminho é mais amplo aqui, mas ainda podemos quebrar nossos pescoços. –
Amaury disse. Ele se sentiu mal. Haviam cruzado a passagem, enfrentado uma descida
perigosa, mas em segurança, mesmo não conseguiram evita-los ali. Eles teriam que lutar. E
ele era um homem sem uma espada. No entanto, ele lutaria. Sua mão desceu para o cinto
com a faca que Chimene lhe emprestara.
- Pegue a lâmina de Rafi! - Ela pediu.
- Não para salvar a minha vida...ou a sua! - Ele protestou. - Meu juramento...
- Bobagens de homens! – Ela se enfureceu.
- E você... As Amazonas dão tão pouco valor à sua palavra jurada?
- Maldito, você não sabe nada sobre as Renunciantes! Pegue a lâmina. Não é uma
espada! Você não sabe nada? Quando Varzil, o Bom nos liberou também nos permitiu
portar armas, mas não espadas ... É uma faca longa, diferente ao redor do punho, apenas o
E s p a d a d o c a o s | 49

suficiente para lutar. Saque-a! - Ela sacou a de sua bainha, uma lâmina que, por algumas
polegadas, não era uma espada. - Minha faca e a sua! - Ela disse. - Ou você prefere cantar
enquanto eles o matam?
- Minha faca e a sua. - Amaury consentiu. A arma era menor e mais leve do que as
espadas que ele tinha renunciado, mas a sensação de seu punho contra a palma da mão
encheu-o com força. Não era mais o cantor sem lar para quem o luto tinha substituído a
honra. Mais uma vez ele era ele mesmo, Amaury, Príncipe Elhalyn, defendendo Serrais, que
o havia promovido. Ele balançou a lâmina, ouvindo o som no aço afiado. Rafaella tinha
cuidado como um perito de sua arma. Ele colocou um dedo contra a lâmina para marcar o
primeiro sangue e, quando se aproximou do lado de Chimene para lutar, ele riu.
Confrontados com uma lâmina brilhante, duas lâminas, na rocha nua, com nuvens
girando abaixo deles, o primeiro bandido caiu em pânico aos gritos. O segundo...
- Deixe para mim! - Chimene gritou. Amaury se virou, costas com costas, um
guardando o outro. Ela tinha uma skean2 na mão direita, uma faca longa na esquerda, e
ambas estavam vermelhas. Ele chutou um homem barbudo na barriga, ouviu 'humf' e
depois um grito quando ele perdeu o equilíbrio e caiu. Então ele se virou para ajudar a
eliminar o último dos homens.
- Peguei ele! - Chimene disse. Ela movimentou sua lâmina para baixo em um arco
rápido, mas o homem desviou e o golpe atingiu a rocha. Sua lâmina trincou e quebrou, o
cabo caiu enquanto o bandido foi em direção à ela. Quando Amaury mergulhou em sua
direção, ela se deixou cair contra seu agressor, aproveitando a surpresa do homem para
enfiar a skean em sua garganta. Ele caiu pesadamente, arrastando-a para baixo e ambos
rolaram, indo cada vez mais para perto da borda do penhasco. Amaury se jogou no chão e
agarrou seu braço.
- Aguente!
Quando o bandido caiu na Garganta do Dragão, levando a adaga de Chimene e quase
levando ela também. Amaury sentiu o braço dela esticar-se para agarrar o seu. Por um
instante, com seus corações acelerados, eles se equilibraram arduamente, pendurados
entre a rocha e a queda vertiginosa. Então ela usou os dois braços para segurar os dele,
depois soltou um para segurar na pedra, ele a ajudou a balançar as pernas para se firmar e
logo ambos caíram sobre a bem-vinda segurança da borda.
A respiração dela tocou seu rosto e ele a puxou para perto antes de deixá-la rastejar
na frente. Meio rastejando, meio subindo de joelhos, ele seguiu, e encontrou-a ao redor da
curva, inclinando-se contra a rocha, ainda se esforçando para respirar. A faca e o fragmento
restante dela, preso por um cordão, estava pendurado em seu pulso.

2
N. da T.- ‘Skean’: antiga adaga típica da Escócia e Irlanda.
E s p a d a d o c a o s | 50

Amaury cambaleou até Chimene, atirou os braços sobre ela, meio em triunfo, meio
para ajudar a si mesmo ficar de pé, e eles se abraçaram.
Aldones! A sensação dela viva em meus braços...
Marelie tinha sido uma rainha, uma deusa, para ele: serena e intocável em suas vestes
vermelhas. Mas essa mulher, pouco saída da infância, com seus cabelos curtos e
emaranhados, os braços que o apoiaram, a arma forte e intensa, nada de uma beleza fina,
ela não era como uma deusa. Ela era a Chimene que salvou sua vida. Ele a segurou,
inconsciente quando mudou de um abraço da vitória para um abraço diferente. Ele inclinou
a cabeça, seus lábios procuravam sua boca. Ele estava tonto mais do que só pela altitude e
a luta
Ela se afastou dele.
- Pensar que uma vez que eu disse a Rafi que talvez os Lordes Comyn tinham outras
coisas além de moedores em suas mentes! - Suas palavras sarcásticas, com mais crueldade
e pontaria do que qualquer luta, quebrou sua atração nela. Em um momento de
constrangimento e exaustão, ele a observou pegar as rédeas de seu chervine. Em alguns
minutos haveria na trilha um lugar em que eles poderiam parar. E então, por todos os
infernos de Zandru, ele iria falar com ela. Ele salvou sua vida, não foi? E tudo o que ela
conseguia fazer era o insultar? Silencioso, ele a seguiu.
Chimene ficou esperando por ele, seu animal descansando, ofegante e com um
cobertor jogado sobre suas costas. Ela manteve as mãos em seus lados, a espada (não uma
espada, e era por isso que ambos estavam vivos) pendurada absurdamente de seu cordão
desgastado.
- Deixe-me falar primeiro. - Ela disse. - Eu não...Nem você, Amaury...Bem...Eu não
desejo o toque dos homens. Nem de mulheres agora, não tão logo após Rafi ter... Você sabe
o que sou. - Ela passou a mão no rosto o limpando, secando os olhos.
O gesto era tão absurdamente vulnerável que a raiva de Amaury desapareceu. E ele
pensou que ele não tinha perdido seu kihar ou ferido seu orgulho com a recusa dela. Ele
estava errado sobre isso, como tinha estado sobre tantas coisas. Em alívio e vitória, ele agiu
sem pensar nela e, tendo feito uma escolha, ela o recusou... E a recusa foi o correto a se
fazer.
- Eu tinha esquecido que você é uma amante de mulheres. - Ele disse. - Eu esqueci
tudo. Sinto muito. - Desculpe insultá-la, desculpe por esquecer seu sofrimento por Rafaella,
e desculpe pelo sangue quente da vitória em suas veias teria que esfriar sozinho.
- Eu também sinto muito... Mas há uma faca entre nós, vai dom. E uma vida. A minha.
Eu que agradeço.
- Houve uma vida entre nós antes. Amaury espondeu. - Você salvou minha vida. Nós
estamos no mesmo patamar. - Ele a observou estreitamente. Vamos manter nossa relação
E s p a d a d o c a o s | 51

assim e partir? Pode ser mais fácil do que enfrentar outro grupo em Serrais. A tristeza
cintilou em seu rosto. - Você me deu uma lâmina... A lâmina de sua Rafi. Você a quer de
volta? - Sem pensar, ele uso o modo mais formal do casta, cobrindo o constrangimento
entre eles com cortesia ritual.
- O presente foi bem dado. - Ela disse, usando o mesmo modo. - Rafi não teria
reclamações. Nem eu. Sua faca é a minha, bredu.
A inflexão que ela escolheu fez a palavra significar "amado irmão". Não amante. Isso
resolvia tudo, Amaury pensou. Todos podiam rir em Elhalyn ou Serrais, ou rejeitá-lo no
Conselho, mas ele se sentiria orgulhoso até o final de seus dias por ser o bredu dessa
mulher.
- Breda. - Ele disse simplesmente e estendeu as mãos. Ela veio a ele para o abraço de
bredin. Ele a segurou brevemente, cuidadosamente, depois recuou antes que ela o fizesse.
Aquele toque e seu cuidado para não ofendê-la despertou seu laran.
...Se eu não fosse o que eu sou, menhiédris, um amante de mulheres... E eu não tenho
conflitos com isso... Mas a Guilda disse a mim e Rafi quando nos comprometemos: ‘Pode vir
o dia em que vocês desejarão filho. Especialmente quando forem mais velhas’. Como posso
saber agora o que desejarei depois?
Seus pensamentos pareciam lhe pedir respostas. - Eu nunca tentaria prendê-la ou
invadir sua privacidade, Chimene. Além disso, isso me transformaria em um Drytowner3.
Mas sou um Ridenow e sinto seus pensamentos. Um dia pode vir, como sua Mãe da Guilda
disse, quando você vai querer ter filhos. Embora você seja amante de mulheres, se tal dia
vier, me procure. Saber que eu e você compartilhamos uma criança me daria uma grande
alegria.
- E um Lorde Comyn daria um de seus herdeiros, uma criança que talvez tenha laran,
para uma Amazona? - O termo correto, como ela havia lhe dito claramente várias vezes, era
Renunciante. Lágrimas caíam em suas bochechas embora sua voz fosse dura e fina com
sarcasmo. Mas ele conhecia essa sua breda agora, conhecia a faca feita de sagacidade e
palavras dolorosas que ela costumava usar para se defender contra suas emoções. Como
ele, ela sentia muito bem agora.
- Que tipo de pergunta é esta para uma breda fazer? Bredin compartilham. – Amaury
disse. Ele ficaria orgulhoso de ter um filho com sua coragem ou uma filha que cresceria para
ser tão forte e orgulhosa quanto sua mãe. Sim, ele se casaria e teria filhos legítimos,
herdeiros para seu clã, mas se Chimene queria uma criança ele adoraria a conceder tal
desejo ou mesmo acolher seu filho ou filha se ela desejasse. Ou, se ela nunca desejasse
mais dele mais do que o calor da lareira que agora estava ansioso para defender contra os

3
N. da T.- ‘Drytowner’: se refere à um habitante das Dry Towns (‘Cidades Secas’ em português); por ser um gentílico, em
teoria não deve ser traduzido e evita a repetição desnecessária do termo ‘habitante das Cidades Secas’.
E s p a d a d o c a o s | 52

próximos invasores, ele aceitaria isso também. E de bom grado. Com o tato da empatia
Ridenow, ou de um músico, ele mudou de assunto, sabendo que qualquer decisão de
Chimene seria a melhor.
- Se nós acelerarmos agora, podemos estar no vale ao anoitecer. As fronteiras de
Serrais não estarão muito longe então e podemos encontrar um abrigo na estrada,
Chimene. Isso seria como um luxo! Você não acha que merecemos isso? Podemos ficar e
deixar os chervines descansarem, depois correr para Serrais, para minha propriedade ou
algum lugar perto o suficiente para que eu possa enviar uma mensagem com meu laran.
Mas insisto que você tente a hospitalidade Comyn, você sempre é tão ágil para depreciar
essas coisas.
Ela encontrou seus olhos. - Devo enviar informações para a Casa da Guilda de Temora
em breve.
- Eu sei. Mas você precisa de equipamentos para a viagem, comida, roupas frescas e
uma nova lâmina. - Ele gesticulou para o que restava de sua arma. Seus olhos seguiram os
dele e ela riu sem amargura pela primeira vez desde que ele a conhecera. Ela deixou o
cordão cair de seu pulso.
- Suponho que as casas dos nobres guardem um suprimento de tais lâminas, certo?
- Dificilmente. Uma que possa ser carregada por uma Renunciante não é algo que
mantemos conosco. Mas havia uma pequena de quando eu era criança, curta o suficiente
para não violar sua Carta. E se for preciso fazer alguma alteração nela, os ferreiros em
minha propriedade irão obedecer suas instruções.
Ela ergueu a cabeça desafiadoramente. - Tal lâmina não deveria passar para o seu
filho?
- Deixe-me ter um filho primeiro. Você não me deu um compromisso quando me
entregou arma de Rafaella, e não vou lhe dar um com a minha. Use-a com minhas bênçãos
apenas. Se eu tiver qualquer filho podemos esperar até que ele cresça para sequer pensar
em uma espada que renunciei. Sabe, Chimene, cada um de nós renunciou a alguma coisa.
Você vai aceitar a minha lâmina?
- Com orgulho, bredu. E agora, se já acabamos com nossas cortesias como um par de
conversadores no Meio do Inverno, vamos para Serrais antes de congelarmos.
Quando o sol sangrento se pôs deixando o céu escuro, o caminho da Garganta do
Dragão se abriu em uma pista, depois em uma trilha que seguia em curvas fáceis em
direção à estrada. As luas estavam no céu para iluminar o caminho, tornando a viagem
noturna deles mais segura. O primeiro abrigo que eles encontraram estava vazio. A madeira
seca e abundante estava empilhada ao lado da lareira. Depois que eles comeram, Amaury
colocou mais madeira no fogo e pegou sua rryl, cansaço e o brilho do fogo, embalando-o
distraidamente em uma canção.
E s p a d a d o c a o s | 53

Para sua própria surpresa, seus pensamentos não se transformaram em pequenos


lamentos para uma Lady perdida. Em vez disso, seus dedos começaram a tocar uma
melodia marcial. Uma boa melodia para uma canção de aventura, Amaury pensou. Ela
serviria para sua própria aventura.
- Que tal essa música para a nossa jornada, breda? - Ele perguntou a Chimene. – Vou
chamar de ‘O músico e a heroína’. Você escolhe. Devo escrever como uma canção épica ou
uma balada?
- Faça uma sátira. - Ela respondeu bocejando. - Mesmo depois que os drytowners
forem enviados de volta para suas terras, mesmo depois de Eras, ninguém vai acreditar em
qualquer música que você faça sobre nós!
Por uma vez, Amaury decidiu que iria provar que Chimene estava errada.
E s p a d a d o c a o s | 54

Música do vento
Mary Frances Zambreno

Corys Ridenow abaixou a pequena harpa e suspirou. – Nunca consigo tocar esse
acorde corretamente.
- E como é o correto? - Lady Marelie Ridenow de Serrais perguntou divertida. - Para
que soe certo?
- Não é que... Oh, você sabe. Fazer parecer bom é suave. - A pequena, fina e delicada
mão do menino, uma mão diferente, ondulou sobre as cordas. - Isso soa bem, mas não
parece certo... - Ele tentou de novo e novamente os dedos pareciam desajeitados. -
Suponho que você acha que sou tolo.
- Eu? Não. - Sua mãe ficaria muito feliz por ela ter controlado seu riso. Esse filho mais
novo dela era astuto. - Me dê sua mão. Agora conte. - Cansado, ele obedeceu. - Um, dois,
três, quatro, cinco, seis. O que há de tão terrível em ter seis dedos? Suas mãos ainda não
são grandes o suficiente para tocar o acorde com cinco.
- Não é tão terrível. – Ele disse. - É só que... Oh, eu não sei. Auster e Kell têm apenas
cinco dedos... E Dorata também e...
E seu pai, Marelie acrescentou por ele silenciosamente. Rannan, a quem o garoto
tanto admirava quanto temia. O garoto não via o que havia nele para seu pai se ressentir.
- Margatta tem seis. – Ela disse rapidamente.
- Margatta é apenas um bebê.
E você é um homem crescido? Oh meu filho...
- As mãos de seis dedos não são incomuns na minha família. – Ela disse
pacientemente. - É uma parte da sua herança. Você deveria ficar orgulhoso.
Embora seu sorriso não fosse exibido na face, Corys o sentiu. Isso de se orgulhar de
sua mão de seis dedos nunca teria ocorrido a qualquer um de seus irmãos Serrais. Era o
sinal de sangue chieri e, ocasionalmente, era um traço emmasca. Mas a um filho de
Ridenow, cuja mãe não tinha o direito de fazê-lo sofrer, tais sinais podiam ser uma marca
de orgulho, indicando parentesco com o sangue de Hastur e Cassilda. Ou, ela se corrigiu,
com os Lordes feiticeiros dos Domínios.
- Mãe, o que você está pensando?
- No meu próprio pai.
- Você costuma pensar muito nele?
- Não. - Deliberadamente ela afastou seus pensamentos. O irmão mais novo no Lorde
Serrais não aprovara o que ela fizera, seu casamento, seus filhos. Mas uma mulher podia
ver apenas uma quantidade de bebês morrendo. Ela era muito jovem quando Rannan a
E s p a d a d o c a o s | 55

escolheu, mas ela foi com ele de bom grado. Não tinha sido a filha mais velha de Serrais
mesma que liderara o caminho? Mesmo assim, era difícil acreditar que toda criança tinha
uma forte chance de vida. E nenhum ainda tinha sido perdido na adolescência. Embora os
velhos temores ainda persistissem, afinal, onde havia laran, havia a doença do limiar. - Ele
morreu há muito tempo.
- Antes de você se casar com meu pai?
- Muito antes.
- Mãe, - O menino estalou as mãos do menino e dedilhou uma melodia- por que você
fez isso? Casar com o pai, quero dizer.
- Por que, porque era o meu desejo. Você sabe disso, meu filho.
Ela me chama assim, mas nunca Auster ou Kell. Será porque eles são mais velhos?
Dorata também já disse isso. Dorata é casada agora e diz que a mãe só se importa com os
jovens. Margatta é muito pequena para saber, mas eu posso ver...
- Lady Cyrilla se casou com meu tio Garris pela mesma razão? - Ele perguntou. - Daryl
diz às vezes que suspeita que ela odeia seu pai.
- Lady Cyrilla se ressente por ter sido forçada à escolha que fez. – Marelie disse. - Mas
ela não odeia o pai de Daryl e ela ama seus filhos. Como está o Daryl? Ele não veio mais...
- Ele está mal. Tossindo.
- Isso pode ser ruim. Sua mãe morreu da doença de tosse.
- A velha Anya diz que não é nada. Ela diz que sempre se faz uma confusão sobre
pequenas doenças. Mãe, por que a velha Anya não gosta de Daryl? Ela não se importa com
os filhos de Lady Cyrilla.
- Seu tio se casou com Cyrilla quando sua primeira esposa já era velha e tinha sido
colocada de lado pela mãe de Daryl. - A pobre e frágil Damris, tão pálida e obviamente
imprópria para o clima severo desta região montanhosa, fora trazida por seu marido. - Os
filhos de Anya eram todos crescidos, viviam em Shainsa naquela época, ela já não tinha
mais disposição para sentir ciúmes. Além disso, contra Cyrilla, ela só podia perder, e ela
sabia, mas não esqueceu as antigas intrigas contra a amante anterior.
- Oh. - Isso levaria algum tempo para ser digerido, mas estranhamente não era uma
surpresa. - Devo tentar o coro de novo?
- Sim. - Ela pegou o tópico de linha. Era incrível a maneira como as crianças em
crescimento rasgavam suas roupas...
- O que é isso? Música novamente? - Rannan Ridenow ficou na porta, grande, loiro e
dominante. Corys pareceu se encolher.
- Ele me entretém enquanto conserto as roupas. - Sua mãe rapidamente. - Tal trabalho
é muito chato.
E s p a d a d o c a o s | 56

- Mande uma das servas fazer isso. – Rannan disse. Essa sua esposa elegante às vezes
era difícil de entender. Ela o amava, ela disse isso, tentava obedecê-lo, mas ele não podia
ter certeza de algumas coisas... Além disso, não o agradava vê-la fazendo trabalho servil. E
por que ela sempre precisava proteger o menino?
- É uma música nova. - Corys disse calmamente, olhando para frente. - Eu estava
tentando acertar.
Sua mãe mordeu o lábio. Meu filho, meu filho, todo orgulhoso, vermelho, em desafio...
Você acha que eu não sei como você tem medo da raiva de seu pai?
- Eu deveria pegar essa harpa e quebrá-la sobre sua cabeça! - Rannan gritou. - Música!
Por que? Na sua idade...
- Rannan. – Ela chamou. - Não é ruim ser musical. Por favor, entenda, ela implorou. Ele
é meu filho...o primeiro que eu desafiei ao amar desde nascimento. Ele é diferente do que
você está acostumado.
Por sua causa, Rannan tentou se controlar. Ela raramente o corrigia, menos ainda na
frente das crianças. E, ao contrário de algumas esposas de Serrais, ela mantinha a preciosa
honra do marido fora da família imediata. Se ela podia aprender a obedecer, ele poderia
aprender a ser gentil. Apenas este filho é que tornava mais difícil. Mesmo com o bebê não
era tão ruim. Se Corys tivesse sido uma menina, como Margatta, então ele não teria sentido
essa lealdade dividida. Por que, até mesmo o nome do menino que ele queria que fosse
chamado Sheen, como seu avô, mas de alguma forma a escolha de Marelie venceu. Corys, o
alegre...
- Quando eu tinha a sua idade, - ele disse calmamente - e era um dia de caça, eu não
tinha tempo para desperdiçar minha manhã com música.
- Uma caçada? - Marelie olhou para cima.
- Eu...eu esqueci. – Corys disse.
- Esqueceu! Você esperava que eu esquecesse de vir buscá-lo, isso sim. Pegue suas
coisas. Eu fiz Auster separar um animal para você. Partiremos logo. A rryl pode ficar com
sua mãe.
Corys colocou o instrumento na mão de sua mãe e se apressou, a relutância em cada
passo.
- Ele precisa mesmo? - Marelie perguntou. - Ele odeia caçar.
- Precisamos de carne. - Rannan disse brevemente. - Estaremos de volta amanhã.
Garris não é fraco de mente para querer ser pego em uma tempestade. Ou para ficar sem
carne durante uma tempestade.
- Eu sei, mas Corys... - Ela estremeceu. Ele não olhou para ela. - Tenho medo por ele.
- Por que?
- Ele é diferente... Ele me lembra do meu irmão Edric.
E s p a d a d o c a o s | 57

- Não conheço esse nome.


- Não. Ele morreu quando éramos pequenos. Rannan...Cuide do meu filho. - Ela olhou
para ele implorando e ele se sentiu comovido. Era muito raro ela pedir qualquer coisa.
Sempre uma montanha de orgulho.
- Ele também é meu filho. - Ele se inclinou para lhe dar um beijo de despedida,
sabendo que ela não o beijaria no pátio lotado. - Mas ele deve aprender a fazer sua parte.
Corys estava fumegando enquanto corria para pegar seu equipamento. Ele havia
esquecido, mas seu pai nunca acreditaria nisso, pois a antipatia do filho mais novo pela
tarefa era bem conhecida. Oh, se ao menos eles tivessem ido sem ele. Correndo ele virou
uma curva e quase caiu.
- Acalme-se, garoto. - Kell disse alegremente. A criança está branca como a neve. Me
pergunto o que pai disse a ele? - Lá na parede. O jovem Daryl está segurando sua besta.
- Daryl? Daryl vai também? - Corys olhou para o irmão alto. Distraidamente Kell notou
o quanto o menino crescera nesta temporada.
- É o que parece, embora eu não diria que ele está bem o suficiente para uma longa
viagem. Bem, pelo menos ele será uma companhia para você.
Corys deslizou pelo pátio lotado, tentando não atrair atenção. Se Daryl ia também
poderia não ser tão ruim. Era tão raro Daryl caçar. Ele adoecia muitas vezes e o tio Garris
ficara sempre zangado, até dizia que não havia vantagem em criar um filho tão fraco, que a
cadela devia ter lhe mentido sobre a paternidade dele. Como se qualquer pessoa com olhos
não pudesse ver que Daryl era filho dele!
- Rys! Aqui! - Daryl estava segurando as rédeas de dois chervines plácidos, frágeis
demais, mas considerados adequados para crianças. Ninguém acreditaria que ele era duas
estações completas mais velho que Corys.
- Pensei que você estivesse doente. – Corys disse, enquanto pegava seu chervine.
- Oh, eu estava. - Seu amigo respondeu. - Mas o pai disse que estou bem o suficiente
para uma caçada curta. Não haverá muitas mais antes do inverno começar, sabe.
- Eu sei, graças a Aldones!
- Rys! - Daryl olhou ao redor com medo.
- Por que não? A mãe chama por ele.
- Eu quis dizer... Bem, melhor se preocupar com o sinal.
Apressadamente Corys verificou a sela e os suprimentos, acenou um adeus para sua
mãe e seguiu a caçada. Marelie ficou olhando eles partirem, a bebê Margatta em seus
braços, mas ela, que tinha sido treinada como uma feiticeira em sua juventude, sabia bem
como esconder seus desejos. Ninguém, nem mesmo as mulheres que a serviam, poderiam
dizer o que seus olhos ocultavam enquanto ela os via ou o por quê. Margatta se contorceu
E s p a d a d o c a o s | 58

ansiosamente. Ela estava fria. Suspirando, Marelie virou-se para voltar ao ambiente
fechado e quente.

~o⭐o~
Eles tiveram uma caça muito ruim o dia todo e acamparam no sotavento de uma
pequena colina sem mata. Garris culpou o atraso do início e Rannan teve que controlar os
lábios para evitar reclamar com o filho mais novo, zangado com o menino por tê-lo exposto
a isso. Mas Corys não se importava. Ele se sentira estranho o dia todo, como se o vento
assobiando através das árvores altas estivessem dentro de sua cabeça, causando dores. Àd
vezes parecia que ele não podia ouvir os avisos em voz baixa de Daryl, ou mesmo os
comandos gritados por seu pai. Ele sabia que Rannan ficaria com raiva se ele fizesse um
espetáculo, mas o vento uivava... Ele ficou feliz pela parada da noite. Auster, no entanto,
que tinha uma nova esposa e esperava voltar cedo, não ficara.
- Arrumem seus animais, Daryl e Corys! – Ele disse bruscamente. - Não se dêem. Daryl,
seu pai quer você cuidando do fogo quando terminar. Corys, há um riacho abaixo da grande
árvore. Busque água e seja rápido, de preferência no tempo em que arrumarmos o
acampamento.
- Rys, você está bem? - Daryl perguntou. - Você eastá parecendo tão estranho.
Corys sacudiu a cabeça. - Estou bem. – Ele disse com firmeza. - Onde ele disse que o
riacho estava?
- Vou te ajudar.
- Vá até o tio Garris primeiro. Não há nenhum sentido em deixa-lo com raiva de você.
Aquilo podia ter sido um riacho respeitável na primavera ou no alto verão, mas agora
estava seco, sendo só uma pequena goteira percorrendo o terreno árido. Corys se ajoelhou
para encher os baldes: o vento e o riacho pareciam falar com ele, seu uivo suavizado para
um sussurro íntimo. Chamados, ele ouviu... Estavam chamando seu nome.
Seu pai o encontrou lá com um estranho olhar escuro em seus olhos que teriam
assustado Marelie. Rannan viu apenas um garoto em devaneios, lhe bateu e segurou o
menino por uma orelha. Para Corys, foi como se o mundo se dividisse em dois.
- Leve a água! - Seu pai disse irritado. – Agora! Você nos atrasou o suficiente por um
dia.
Corys balançou a cabeça para limpá-la. O chamado do vento se foi. Mas, de alguma
forma, ele sabia que aquilo voltaria. Ele estava tremendo e duvidava de sua própria força.
- Rys! - Daryl chamou. - O que aconteceu?
- O pai...o pai estava com raiva porque demorei demais. - Ele se sentou, piscando. - Eu
não percebi...
- Ele te bateu muito forte?
E s p a d a d o c a o s | 59

- Acho que sim. Estou tonto.


- Aqui-me dê isso.
Com ajuda de Daryl, ele voltou ao acampamento, mas não tinha apetite para a
refeição. Não foi feito muita coisa, era comida de viagem, coisas pobres. Seu pai observava
discretamente. O menino parecia pálido. Bom, era mesmo hora dele enfrentar algumas das
realidades difíceis da vida.
Corys pegou o primeiro turno de vigia, um presente de Kell. A primeira vigia significava
que ele poderia dormir o resto da noite. Ele preferia ter ficado de vigia com Daryl, mas não
ousava dizer isso, não com Kell parecendo tão satisfeito e generoso. Ele gosta de mim,
Corys percebeu. Meu irmão gosta de mim.
Isso lhe deu algo para pensar em seu posto. O filho de Garris, assim como ele, também
tinha laran, mas seu laran o tornava, na melhor das hipóteses, um pobre conversador. Por
alguma razão era muito difícil ficar alerta. Conversar teria ajudado. Cansado, ele tentou
contar as sombras. Haviam tantas...
- Bandidos! – Veio o som à esquerda. - Estamos sob... - Um grito foi sufocado - ...Que?
- Chocado e plenamente consciente, Corys pegou seu arco e recuou para o fogo, gritando
seu próprio alerta.
- Pai! Auster! Kell! Estamos sendo atacados por bandidos! – Seriam realmente
bandidos das montanhas ou Lordes dos Domínios que faziam um ataque noturno aos
Drytowners?
- Corys, para a fogueira. Kell, fique com ele. Auster, venha comigo. - Seu pai estava lá,
alto e infinitamente tranquilizador, mesmo no escuro, de repente gritando ordens. - Não,
Garris, não acho que são invasores. Eles estariam melhor organizados e não se
preocupariam com uma companhia de caça. Algumas flechadas irão assustar e expulsar
essa ralé!
Flechas? Mas haviam homens lá fora. Ele podia ver os olhos deles brancos na
escuridão, desesperados, com medo, com raiva de uma possível emboscada. Ele agarrou
sua besta com ambas as mãos e tentou rezar. Aldones, Senhor da Luz... Daryl, ao seu lado,
soltou uma flecha e um homem gritou.
Sangue, sangue borbulhando da garganta, uma dor terrível, ardor e medo, então a
escuridão... Ele estava chorando.
- Corys, fogo! - Daryl gritou com urgência. - Eles vêm para nós!
Não vacile, ele tentou atirar. Suas mãos tremiam tanto que ele não conseguia soltar a
flecha. Uma única flecha voou inclinada para cima, sem atingir nada.
- Se você vai desperdiçar as flechas como se fossem lixo, não atire! - Auster disse com
raiva, e empurrou-o de lado.
Sem mais dor, sem mais medo, uma pulsação dolorosa surgiu em suas têmporas.
E s p a d a d o c a o s | 60

Auster levou uma punhalada no ombro, mas nem Kell e nem Rannan foram feridos.
Além do guarda que tinha sido morto a soar o aviso, ninguém ficou gravemente ferido.
Quatro bandidos estavam mortos, um deles com a flecha de Daryl na garganta.
Garris estava orgulhoso de seu filho antes considerado fraco. Passou horas se gabando
para todos que o rapaz tinha sangue bom nele e ele sabia que os deuses fariam aflorar mais
cedo ou mais tarde. Daryl sorriu um tanto sem graça, afinal o elogio de seu pai significava
pouco para ele ultimamente. Quanto a Corys...
Rannan levou seu filho de lado, envergonhado. Ele tentou dar desculpas dizendo que
era a primeira luta do menino, que ele não estava pronto, a mãe do menino o tinha
mimado, mas o fato de que Corys desgraçara seu pai e mãe esta noite permanecia.
- Você vai ficar de guarda o resto desta noite, - disse ele, com uma calma fria que
deveria ter congelado até os ossos de Corys - para reparar seu comportamento. Isso lhe
dará tempo para pensar. Amanhã, você vai viajar com seu irmão Auster, que foi ferido,
talvez, pelo homem que você deveria ter matado. Faça o que ele mandar. Você não voltará
a caçar ou ficará comigo até que tenha se provado digno de ser chamado de meu filho.
Corys mal ouviu seu pai. Sua cabeça ainda vibrava com a dor e ele estava começando a
tremer de novo, como se estivesse preso em uma corrente de vento gélido. Eu sou um
covarde? Corys se perguntou. Talvez, mas o medo agora se foi. Tudo se foi...
Daryl não teve chance de conversar particularmente com ele. Oh, por que eu tive que
chamar atenção negativa para ele assim? Daryl pensou miseravelmente. Ele me protegeu
tantas vezes. Se eu não tivesse gritado daquela forma, talvez ninguém teria notado que ele
não estava atirando.

~o⭐o~
No caminho de volta, eles mataram duas caças em pouco espaço de tempo, o que foi
bom, por que Garris teria ficado com raiva por voltar para casa de mãos vazias, exceto por
um homem morto. Auster perdeu a noção de onde Corys estava na pressa, mas não falou
sobre isso. O menino provavelmente estava mau humor. Bem, não havia dúvida de que ele
merecia tudo o que Rannan tinha lhe dito, mas seu pai às vezes podia pegar pesado. Foi só
quando se aproximaram de Serrais que Rannan começou a temer que Marelie estivesse
furiosa por Corys ter voltado para casa com seu chervine sozinho, antes mesmo do final da
caçada. Rannan contou o que acontecera e Daryl serviu como testemunha. Daryl se
ofereceu para ir à procura de seu amigo, tentando sentí-lo, com algo ainda o chocando em
sua mente. Cyrilla e Garris não gritavam um com o outro, eram sempre polidos e frios em
sua casa, exceto pela malícia de Anya. No entanto agora ele sentia a emoção crua de um
jeito quase palpável.
E s p a d a d o c a o s | 61

- Você deixou ele sozinho? - Marelie gritou, pálida. - Seu filho! E você nem sequer tem
certeza de quando foi a última vez que ele esteve com você?
- Eu mandei ele ficar com Auster. - Rannan disse impaciente. - Ele provavelmente vai
vir esgueirando-se depois de escurecer, envergonhado. Não precisa se preocupar.
- Por que ele deveria se sentir envergonhado?
O rosto de Rannan endureceu.
- É bom que ele sinta. Agora deixe-me passar. Estou cansado e Auster está ferido.
- A esposa de Auster pode cuidar do ferimento. – Marelie disse. - Onde está meu filho?
- Seu filho está aqui, mulher, e ferido! - Rannan rugiu. - E seu outro filho está trazendo
carne para sua mesa. Será que não é o bastante para você?
A raiva de Marelie estava pior do que nunca, mais intensa do que já tinha estado
antes. Pela primeira vez desde seu casamento, ela não prestou atenção a sua honra em
público.
- Corys tem treze anos. – Ela disse com uma calma que de repente o deixou tenso. -
Suficientemente velho para a doença do limiar.
Rannan bufou.
- Bem, se for isso o que aconteceu, sem dúvida ele estará aqui antes que escureça,
sentindo-se pena de si mesmo. Mas não espere que eu desculpe sua má conduta
facilmente.
- Não. Oh não. - Marelie sorriu friamente. - Se ele voltar, não espero que você o
desculpe.
Ela voltou para dentro, Rannan mordeu o lábio olhando para ela, então deu de
ombros. Se o menino estava doente, isso explicava muita coisa, é claro. Mas, por enquanto,
ele estava cansado, com frio e com fome demais para se preocupar. A caminhada para casa
podia não ser agradável, mas nenhuma tempestade era prevista por várias horas ainda e o
rapaz não sofreria nenhum dano. Auster e Kell tinham tido alguma dose da doença,
sentindo aquele desorientamento peculiar que acompanha o despertar do poder
telepático, mas não tiveram nada pior. Corys levaria um susto que poderia lhe fazer bem...
Ainda assim, Rannan se sentiu desconfortável, msd não podia começar uma busca agora.
Havia trabalho a ser feito e tal preocupação também desonraria o menino e ele próprio.
Certamente Marelie veria isso. Haveria tempo suficiente para se preocupar se o menino
não retornasse ao anoitecer.

~o⭐o~
Ao cair da noite, Daryl já tinha percorrido um caminho de meio-dia além de Serrais,
guiando seu chervine através do anoitecer. Ele não tinha pensado que iria tão longe. A fera
não queria deixar seu conforto, sentindo o cheiro de uma tempestade se aproximando.
E s p a d a d o c a o s | 62

Mas ele não podia deixar Corys ali sozinho e doente, não quando a situação era em parte
culpa dele. Daryl sabia que nada mais importava agora. Ele não podia deixar o amigo em
perigo, sabendo que mais ninguém iria atrás dele.
Corys estava onde ele tinha caído, à sombra de uma pequena colina. Uma mão de seis
dedos foi usada para diminuir o efeito da luz em seu rosto. Ele estava deitado de costas,
ouvindo o vento, consciente da aproximação cautelosa de Daryl, mas não realmente se
importando. Na verdade ele não se importava muito com mais nada, exceto os espasmos
que agitavam seu corpo em intervalos cada vez mais curtos até que ele pensou que iria ser
quebrado.
- Corys. - Ofegante, Daryl tentou levantá-lo. - Corys, eu sinto muito. – Corys tinha olhos
assustadores, escuros e vazios como os olhos do bandido morto. Seus olhos não tinham
ficado assim quando ele teve a doença do limiar. - Rys! Sou eu, Daryl! – Ele o sacudiu. -
Acorde!
E de repente Corys estava lá novamente.
- Daryl! - Ele disse com admiração. - O que aconteceu? Eu caí?
- Sim, seu estúpido idiota! - Daryl quis rir de alívio, mas apenas conseguiu tossir. Estava
frio e começava a nevar. - Vamos. Você ficou aqui esse tempo todo?
- Eu não sei. Creio que sim. – Ele respondeu e pareceu angustiado. - Oh, Daryl, eu senti
o homem que você matou. Eu o senti morrer! - Os tremores começaram de novo e seu
corpo se encolheu em uma agonia antecipada.
Algo duro e frio foi pressionado contra seus lábios. Gemendo, ele tentou se virar.
- Beba, Rys. - Daryl pediu. – Foi o que Lady Cyrilla me deu para cuidar do laran quando
estava doente. Ela disse que...
Ele bebeu mais para agradar Daryl do que qualquer coisa. O líquido tinha um sabor
agradável e estranho. Ele podia sentir a preocupação de Daryl queimando contra ele, como
um fogo que alguém poderia usar para aquecer as mãos...
- Agora levante, Rys! Venha, mova-se! É preciso!
De pé, na posição vertical, o mundo parecia mais certo. Os espasmos diminuíram. Se
foi o medicamento ou a presença de Daryl, ele não sabia, mas sentia-se grato.
- Há uma abertura próxima. - Daryl estava dizendo. - Eu vi esta manhã, uma espécie de
meia-caverna. Nós podemos descansar lá.
Não, o vento sussurrou.
- A tempestade. - Corys engasgou.
- Você não pode andar agora. Vamos esperar se for preciso! - Daryl disse. - Venha!
Após apenas alguns passos trôpegos no abrigo, a tempestade os atingiu fortemente.
Uma típica e intensa tempestade de neve das montanhas, a primeira da temporada. Daryl
E s p a d a d o c a o s | 63

colocou o chervine na entrada. O animal forneceria algum calor e ele poderia construir uma
pequena fogueira.
Corys permaneceu doente ao longo da primeira noite. Já que Daryl lhe dera algumas
gotas do remédio, ele não tinha mais e não teria ousado dar mais de qualquer forma. Corys
delirava com o vento e se acalmava nos momentos em que a neve caía mais silenciosa. Ao
amanhecer, ele acordou um pouco mais consciente no abrigo dos braços de Daryl.
- Rys? - Daryl quase não se atrevia a respirar mais forte. Uma vez, durante a noite, uma
pequena tosse sua havia feito Corys delirar de novo. Mas a febre parecia mais controlada
agora.
Vai voltar. - Corys com o pensamento. - A tempestade está muito ruim?
- Muito. Ninguém vai nos procurar no meio disso.
- Não.
Eles ficaram quietos por um momento.
- Rys...
- Sim?
- Você pode dizer o que estou pensando?
- Um pouco. Por quê?
- Eu não sabia que o laran funcionava assim. O laran não pode...
- Não acho que Kell ou Auster também possam. - Corys concordou. - Mas a mãe pode,
às vezes.
- Oh. Você esperava por isso, então.
- Não. E não parece importar agora. - Ele se moveu para olhar o rosto magro de Daryl,
parte de seu cabelo loiro caindo em sua testa. - Você se importa?
- Não, não realmente. Só vai demorar um pouco para nos acostumarmos.
- Suponho que sim.
Eles ficaram em silêncio por um momento e Daryl tossiu nervosamente.
- Você não deveria estar do lado de fora com aquele frio. – Rys disse. - Poderia ser a
sua morte. Um presente grande demais para dar em troca da minha vida.
- Oh, você acha que salvei sua vida?
- Você duvida disso? Se a doença não me matasse, a tempestade iria. Agora pode
matar a nós dois.
O vento retornou naquele momento.
No dia seguinte, foi Daryl que se contorceu e murmurou com a febre. Rys o segurava,
esperando o retorno de sua própria fraqueza com certo pavor. A tosse estava além do
controle do garoto agora e havia sangue em seus lábios. Preocupado, Corys o pressionou
mais perto, tentando aquecê-lo. Não é justo, ele pensou sombrio.
- O que não é justo? - Daryl perguntou, os olhos azuis agora brilhantes.
E s p a d a d o c a o s | 64

- Você saiu para me salvar. - Corys disse hesitante. - E você conseguiu. Agora, nós dois
morreremos. Sobre mim, não importa. Eu teria morrido de qualquer maneira, se você não
tivesse vindo. Mas você...
Daryl riu e o som suave se transformou em um acesso de tosse.
- Posso te contar um segredo? - Ele disse quando conseguiu falar. – Sobre mim, não
importa também. Você não pode ver? Eu serei conhecido por muito tempo a partir de
agora. Oh Corys, Corys. – Ele riu mais suavemente, a tosse áspera intercalando. - Não é
óbvio? Eu não fui feito para essas colinas mais do que minha mãe fora.
Sobriamente, Corys considerou esse pensamento. Sim, ele podia entender agora.
Havia a morte nos olhos azuis calmos, o rosto corado e fino. Uma velha morte familiar,
como um amigo da casa.
- Por que seu pai não envia você de volta a Shainsa? - Ele perguntou, lutando contra
isso. - O ar do deserto não é tão ruim. Você pode ficar bem.
Daryl encolheu os ombros.
- O que eu faria em Shainsa? - Ele perguntou. - Fui criado aqui e os filhos de Anya têm
o lugar do meu pai lá. Não. - Ele tossiu. - Estou melhor como sou aqui. Além disso, já é tarde
demais.
Sim...tarde demais. A doença não era algo tolerado em Shainsa, e nos Domínios não
era tão diferente assim. Não havia lugar para Daryl no mundo, mas ali, no coração da
tempestade, uma tempestade pior do que qualquer uma que eles tinham imaginado, o fim
viria mais cedo. Os braços de Corys apertaram quando seu amigo começou a tossir
novamente. Estava ficando mais frio quando o dia desapareceu. Ele não achou que
conseguiria chamar agora, mesmo que a equipe de busca viesse.
O vento se enfureceu.
De repente ele sentiu que estava na casa de sua mãe com um rosto inclinado
ansiosamente sobre ele. Lady Cyrilla! Por que ela parecia estar tão preocupada? Ele abriu a
boca para perguntar, mas nenhum som saiu.
Eu não posso encontrá-lo, Marelie. Lady Cyrilla disse. Ele está longe demais.
Sua mãe estava chorando, mas antes que ele pudesse consolá-la o vento soprou tudo.
Kell, pálido, estava ao lado de sua mãe. Vou buscar Auster e Dorata, ele disse. Talvez...
Não! Marelie respondeu. Auster está ferido e Dorata carrega uma criança. Não há
nada que possamos fazer agora. Quando a tempestade passar você deve ir com seu pai e
buscar...
E novamente o vento a levou. Então ele viu alguém alto, pálido, gentil... Daryl? Não,
era alto demais e o cabelo era prateado, não loiro.
Eu vi você antes, Corys disse à sombra em sua mente.
Você viu, pequeno? O estranho pálido disse. Descanse agora...
E s p a d a d o c a o s | 65

Daryl se mexeu e murmurou... Estranho que aquele que não tinha mãe deveria chamar
por uma... Então Corys se sentiu quente e seguro e, de alguma forma, soube que o vento
não podia mais levá-los. Ele dormiu.
Corys acordou primeiro, no segundo amanhecer. A tempestade havia aliviado um
pouco e era possível ver a brancura rodopiante. Mas apenas um louco tentaria viajar
sozinho agora. Era melhor esperar até que o céu estivesse claro. Ansiosamente, ele olhou
para Daryl. O rapaz loiro não estava melhor. Na verdade, parecia pior. Ele não estava em
condições de uma viagem dura, isso se o chervine enfraquecido pudesse carregar tudo.
Suspirando, Daryl abriu os olhos.
- Eu estava tendo um sonho tão lindo. - Ele disse sonolento. - Um sonho tão lindo e
quente.
- Eu sei. – Corys disse. – Também sonhei isso.
Daryl lutou para se mexer. - Deve haver um pouco de comida nos meus alforjes.
Corys encontrou e comeu um pouco. Daryl comeu ainda menos. Ele pegou uma xícara
de neve e derreteu em sua pequena fogueira. Estranho....
- Daryl, você acendou o fogo. Havia muita madeira?
- Não, na verdade não. - Daryl olhou pensativo para o fogo. - Deveria ter se esgotado
agora. - Ele começou a tossir. Corys o pegou pelos ombros e pressionou-o suavemente de
volta ao chão.
- Posso ver árvores daqui. Não demorará muito se precisarmos buscar mais. Temos o
suficiente para durar um dia.
Eles fizeram três viagens até as árvores para reunir madeira suficiente e na terceira
viagem estavam tão cansados que, se não fosse pelas rédeas do chervine presas ao cinto,
não teriam conseguido voltar. A meio caminho, Rys congelou. Aquele ruído... Oh, maldita
neve!
- Daryl, olhe! - Agachando-se nas sombras, os meninos olhavam pelo pequeno vale.
Uma tropa com cavaleiros, lordes e leroni passava. Eram os mais estranhos que Corys já
havia visto.
- Invasores. - Daryl sussurrou. - Olhe para o cabelo deles.
Corys sentiu seu próprio couro de cabelos vermelhos arrepiar.
- Eles estão indo para Serrais.
Daryl olhou para ele sem palavras.
- A tempestade. – Corys disse. - Ouvi dizer que os leroni podm controlar o tempo.
- Lady Cyrilla disse que isso é um absurdo. – Daryl respondeu. - Mas eles podem
aproveitar isso.
Um exército invasor indo atacar Serrais. Não seria a primeira vez que isso acontecia.
Os filhos de Hastur e Cassilda não eram gentis com as mulheres que se casavam com os
E s p a d a d o c a o s | 66

bárbaros das Cidades Secas, voluntariamente ou não. E havia alguns que nunca
acreditariam que tinha sido de bom grado.
Demorou para todo o exército passar. Corys, com sua nova consciência, sabia que essa
não era uma grande força de ataque, mas apenas alguns cavaleiros com intenção de tentar
um ataque surpresa. E com a tempestade ajudando, essa surpresa poderia ser bem
sucedida além de suas mais selvagens imaginações. Serrais era bem defendida, mas a
gravidade do clima havia pego todos de surpresa.
- Eles devem ser avisados. - Daryl disse finalmente.
- O que? - Corys virou de sua contemplação fascinada.
- Você, - Daryl estava firme - deve avisá-los. Pegue o chervine e vá. Não vai ser fácil.
- E deixar você aqui para morrer?
Daryl balançou a cabeça, impaciente.
- É mais arriscado você morrer cavalgando em uma tempestade de neve próximo de
soldados inimigos do que eu aqui. – Ele disse. - Mas alguém deve ir e eu não estou forte o
suficiente para tal jornada. Tem de ser você.
Era verdade. Daryl não estava forte o suficiente. Corys olhou para ele, negando.
- Rys. - Daryl disse gentilmente. - Por favor vá. Por favor, avise-os.
Por um longo momento, Corys se manteve paralisado. Até a tosse e o vento pareciam
em pausa.
- Tenho que ir logo então. - Ele disse finalmente. - Antes que fique doente novamente.
Vou deixar os cobertores e comida. Há madeira suficiente...
- Eu ficarei bem.
- Eu voltarei para você.
- Sim. Tenha cuidado, Rys. Você precisa chegar lá.
Eles não falaram mais nada.

~o⭐o~
Meio dia depois, Corys caiu da sela nos braços de Kell, gelado, tremendo e lutando
com a antiga tontura.
- Daryl...esgotado. - Ele engasgou. – Eu... eu tenho que avisar... Devo voltar. Devo
chegar.
- Avisar? Corys, você parece um homem morto a cinco dias! A mãe tem estado
frenética. Onde está Daryl? Avisar sobre o que?
- Invasores... um grande ataque... - Então a escuridão o dominou.
Vagamente, ele ouviu os gritos de alarme de Kell. Sempre poderiam confiar na
liderança de Kell. Ele não percebeu que o próprio Rannan o levou para dentro de casa e
ficou com o rosto vazio sobre ele, um homem quebrado, enquanto Marelie se preparava
E s p a d a d o c a o s | 67

para lutar contra essa doença com a força de alguém que ataca um antigo inimigo... Um
inimigo antigo e temido. Nenhum dos outros jamais teve doença limiar com tamanha
gravidade e Rannan sempre sorriu quando as mulheres ficavam tão gratas cada vez que
uma criança sobrevivia à ela... Os irmãos de Marelie haviam morrido, mas Rannan nunca
considerou a possibilidade de passar o dom com tanta força para seus filhos. E agora havia
uma batalha para lutar.
- Vá. - Marelie disse-lhe diretamente. - Você não pode fazer nada aqui. Vá vencer sua
guerra.
- É sua guerra também! – Ele disse, de repente irritado.
- Sim. - Seu sorriso era amargo. - Minha guerra também. Mas hoje eu luto em um
campo diferente. Cyrilla pode atuar como leronis. Eu ficarei aqui.
- Lute bem. – Ele sussurrou e se foi antes que ele pudesse ver a maneira como suas
mãos se estendiam para ele em repentina necessidade.
Corys não morreu, mas foi por pouco, e isso deixou os homens que se casaram com as
mulheres de Serrais de coração abalado. Realmente mais abalado do que a pequena
batalha fruto de alguma tentativa de agradar o rei. Um ataque apressado para aproveitar a
tempestade. Embora também pudesse ter tido maior sucesso se não fosse pelo aviso.
Três dias após seu retorno, Rannan finalmente recebeu permissão para ver seu filho.
Ele encontrou o menino pálido e magro como se fosse um fantasma, olhando para o teto.
- Corys. - O menino não olhou para ele. - Sua mãe deve ter lhe dito: a batalha acabou.
Nós vencemos. - Nada ainda. - Eles estavam contando com o elemento surpresa...
- E Daryl? - Ele falou sem virar a cabeça.
- Garris foi procurar. Não pudemos encontrá-lo.
- Foi ideia dele. O aviso.
- Um bom pensamento.
Um longo silêncio se seguiu.
- Eu prometi voltar para ele.
- Sim. - Rannan limpou a garganta. - Bem, você está doente. Se você nos disser onde
olhar...
Corys se virou para olhar para ele, os olhos cinzentos como se pudessem queimar
buracos em seu rosto.
- Vou te dizer. – Ele respondeu. - Mas também irei. Eu prometi.
Bem, uma promessa era uma promessa. Nem Garris ficaria irritado com a presença do
garoto doente indo em tributo ao filho. Mas...
- Não há muita esperança.
- Não há esperança. - Corys o corrigiu. - Ele não está lá. Não posso sentí-lo em lugar
nenhum. Mas prometi.
E s p a d a d o c a o s | 68

- Entendo. – Ele precisava dizer algo. Qualquer coisa, para confortar essa dor sombria
regada à remorso. - Você precisava vir, Corys. Muitos teriam morrido. Daryl...Daryl era um
rapaz corajoso. Ele viu a necessidade.
- Ele viu melhor do que eu. – O filho de Rannan disse e se afastou.
O chão entre eles parecia ter rachado em dois, os separando. Rannan olhou, chocado.
- Corys, você não condenaria sua mãe, suas irmãs, todos nós, à morte ou mesmo à
escravização...
- Não. - A voz do jovem soou implacável. - Eu não condeno ninguém à morte. Nunca.
A divisão entre eles pareceu aumentar. Rannan viu que ele estava ficando de pé.
- Corys...
- Você fez essa guerra. Daryl estava satisfeito por matar e morrer em sua guerra. Eu
não estou.
- Nós fizemos você também. - Seu pai disse. - Você não seria o que é se fosse só meu
filho. E se fosse só o filho de sua mãe agora você estaria morto, como os irmãos dela. Eles
eram sensíveis demais para viver.
Os olhos cinzentos olharam para ele friamente. A divisão estava aumentando e Corys
parecia ser assim. Ele não respondeu.
- Bem, bem, você está cansado e doente. – Seu pai disse, tentando soar normalmente.
– Foi tolo de minha parte incomodá-lo agora. Você se sentirá melhor depois de descansar.
Corys fechou os olhos. Ele não ouviu seu pai, ou mesmo sua mãe indo e vindo. Do lado
de fora, o vento estava chamando seu nome.
E s p a d a d o c a o s | 69

Escapar
Leslye Williams

Dom Felix se retirou da mente do homem em que fazia buscas e suspirou. - Isso é mais
perturbador.
Caltus se moveu ansiosamente para a frente na luz solar. - Devo dar a ordem para
matar os carcereiros, meu Lorde?
Passando a mão sobre as fechaduras vermelhas, Felix balançou a cabeça. - Não. Isso se
trata de feitiçaria, não de segurança. - Lentamente ele circulou o cativo sentado. - Isso é
estranho. Ele não está em seu corpo, mas não consigo encontrá-lo em nenhum lugar no
mundo. Ele é um homem simples e comum, um intendente. Ele não deveria ser capaz de se
esconder de mim! – Ele deu uma pausa, esfregando uma palma na outra, então perguntou:
- Você disse que ele estava sozinho em sua cela?
- Sim, meu Lorde. Bem, exceto pelo cão dele.
O olhar de safira de Felix procurou o animal silencioso na coleira, firme ao lado de
outro guarda.
O enorme e peludo animal seguira seu mestre submissamente durante a missão e
agora esperava pacientemente ao lado da janela.
- Ninguém mais entrou ou saiu, então?
- Ninguém.
Olhando cruelmente para seu paxman, Felix rosnou: Então, onde no Sétimo Inferno de
Zandru ele está?
Caltus desviou os olhos, temeroso. - Eu não sei, meu Lorde.
Endireitando-se e dobrando os braços, o Lorde Comyn começou a andar. - Não saberei
para onde enviar o fogo aderente até ver esses mapas que ele copiou. Sou treinado em
uma Torre, Lorde de um Domínio, e o imundo grézuin consegue esconder-se de mim? Há
algo muito errado aqui!
Silenciosamente ruminando, o mestre observou enquanto o guarda segurando o cão
acariciou a cabeça do animal. Como o animal exibiu a língua e lambeu a mão do homem,
virou os grandes olhos cinzentos para Lorde Felix e...
A inteligência racional se agita nesse olhar. Depois observou como o animal abaixou a
cabeça para coçar uma pulga.
Felix sorriu. Ele se levantou, seguiu ao redor do corpo imóvel do prisioneiro e ergueu
uma sobrancelha em avaliação. - Bem, Caltus. Eu pensei que esse homem poderia ser de
alguma utilidade, mas parece não. - Olhando para o cão, ele sorriu novamente quando o
medo ficou evidente naqueles olhos cinzentos. – Vamos colocar esse aí com meus cães e
E s p a d a d o c a o s | 70

treiná-lo cuidadosamente. Cuide dele e certifique-se de que não fique fora. Vai ficar comigo
por algum tempo.
- E quanto à concha vazia deste homem...
O terror dominou aquele animal que observava inteligentemente e ele saltou. Quando
estava quase caindo sobre o Lorde, o guarda o puxou pela coleira.
Sacando sua faca afiada, Felix cortou a garganta do prisioneiro.
E s p a d a d o c a o s | 71

Renascimento
Elisabeth Waters

Ann'dra choramingou quando acordou de seu pesadelo e olhou ao redor do canil,


pouco iluminado por duas das quatro luas. Todos os outros cães estavam dormindo ao
redor dele, mas eles tinham a vantagem de ter nascido cães, enquanto ele, até um mês
atrás, era um humano, secretário de um lorde vizinho. Ele foi capturado por Dom Felix,
lorde deste castelo, e torturado até que revelasse a informação que ele estava copiando.
Em vez de ficar em seu corpo quebrado sob torturas, ele havia deixado seu corpo e,
sabendo que Dom Felix o encontraria no mundo inteiro, escondeu-se no corpo do seu cão.
Infelizmente, Dom Felix adivinhou o que acontecera, e Ann'dra ainda acordou de pesadelos
vendo o sorriso malicioso do Dom Felix enquanto ordenava que o cachorro fosse levado
para os canis e cortasse a garganta do homem.
Ann'dra coçou uma pulga e tentou encontrar uma posição confortável. Ser um cão
certamente tinha suas desvantagens, mas pelo menos ele não seria mais ser forçado a
revelar os locais para onde Dom Felix deveria enviar fogo aderente. Coisas imundas. Devia
existir um uso melhor para o laran do que a produção de fogo aderente enviado para
queimar plantações, animais e pessoas indiscriminadamente, ou espionagem, ou todas as
outras coisas que os leroni faziam ao serviço de seus lordes em guerra. Bem, pelo menos o
laran poderia tirá-lo desse corpo mordido por pulgas um pouco.
Ele escorregou com gratidão do corpo do cachorro e assistiu enrolar e se acomodar
para dormir, animado agora apenas pela mente do cão, depois vagou no castelo.
Verificando Dom Felix, ele o encontrou na cama, como esperava, mas nem Dom Felix e nem
sua lady estavam dormindo. Ann'dra, não sendo voyeur, estava prestes a sair, quando
notou algo que o fez parar. A senhora estava raiva, e um novo corpo estava sendo criado.
Escolhendo seu momento cuidadosamente, ele se fundiu com o embrião, tomando o novo
corpo como seu e se estabelecendo para aguardar o nascimento.
- O que você acha que será desta vez, Felix? - A lady murmurou sonolenta.
- Um filho. – Felix respondeu sem hesitação. - Ele será um laranzu e guerreiro, e
ninguém será capaz de ficar contra ele, e ele será conhecido como Varzil o Grande!
Não. Ann'dra/Varzil pensou. Não haverá mais guerras. É hora de terminar a luta.
E s p a d a d o c a o s | 72

Uma espada chamada caos


Marion Zimmer Bradley

‘Pensamentos são coisas. Qualquer pensamento que agita o éter não deixa nenhum
átomo, mas a marca desse pensamento deixa um rastreamento eterno sobre as mesmas
coisas do universo. O que quer que seja desejado com toda a sinceridade e com todo o
coração é impresso no tempo e no espaço tão fortemente que deve inevitavelmente se
tornar realidade. E, portanto, meus irmãos, cuidado com o que orarão. Pois será
inescapevelmente dado a você e, a partir daí, não há como escapar no tempo ou na
eternidade.’

De ‘O Livro dos Fardos’, mosteiro de Nevarsin.

Estupro sempre foi algo que acontecia com outras pessoas.


Antes disso.
Mhari estava chorando. Ela tinha chorado por um longo tempo. Por todo tempo que
ela conseguia se lembrar, ao que parecia. Ela não conseguia se lembrar muito do outro lado
das lágrimas. A pessoa que ela tinha sido, talvez quarenta dias atrás, parecia ter existido no
outro lado de um gigantesco abismo, alguém segura, feliz, alguém que tinha sonhado há
muito tempo, há muito tempo.
Parecia que o mundo que ela vivia agora estava cercado de gritos, brigas, confrontos
furiosos com espadas e coisas do tipo. Ela vira seu pai e dois de seus irmãos serem mortos e
não fazia ideia do que acontecera com sua mãe, o que a deixava aliviada por não ter mais
essa dor em sua mente. O som dos gritos de suas irmãs ainda soava em sua cabeça toda vez
que ela parava de chorar o suficiente para pensar sobre isso e lembrar o que havia
acontecido naquele dia. Devia ter havido uma dúzia de homens, talvez mais. Ela não sabia
que tinha sido pior: ouvir os gritos ou tentar não pensar no que aconteceu depois que os
gritos pararam. A mesma coisa aconteceu com a mais próximas dentre as mulheres de sua
mãe e com a barragana de seu pai.
Mhari supôs que ela tinha tido sorte. O chefe do bando a queria para ele. Então
haveria apenas um homem e, como ele queria que ela sobrevivesse, não haveria mais
brutalidade do que ela poderia suportar. Afinal, ela era seu único passaporte para a posse
legítima de Sain Scarp. Ela era a única Delleray viva de seu clã e enquanto ela permanecesse
ali, sentasse ao lado dele em seu alto assento e dormisse em sua cama, ele poderia
E s p a d a d o c a o s | 73

reivindicar ser casado com a única sobrevivente e com direito de herança, não apenas mais
um bandido.
Com aquela relativa frieza nascida de 40 dias de pensamentos sobre o impensável e
suportando o insuportável, agora lhe ocorrera que talvez o que acontecera com ela não era
muito pior do que o que acontecia com qualquer mulher casada com algum estranho e
contra a sua vontade por razões políticas. Ela cortou esse pensamento porque isso era
realmente loucura. Pensar que seu pai e seu avô poderiam ter ganhado o direito sobre Sain
Scarp com movimentos cruéis como esse. Através de todos os Cem Reinos, coroas e
castelos haviam sido ganhos e perdidos, mas quem poderia dizer como ou com que direito
um Lorde sentara no alto assento de cada reino ou como vencera o Lorde anterior?
Mas até as lágrimas tiveram um fim, e Mhari, que uma vez se orgulhara de ser a filha
do Lorde Farren de Sain Scarp, sentou-se e tirou o cabelo molhado do rosto sentindo que
tinha alcançado um lugar além das lágrimas.
Abaixo dela nas encostas, o castelo ainda se erguia e a última luz carmesim do sol
vermelho de Darkover parecia sangue sobre as velhas torres. Três das quatro luas estavam
penduradas no céu. Enquanto ela observava, uma quarta rastejou lentamente sobre as
árvores. Quatro luas no céu. Um tempo de loucuras e de estranheza. O que é feito sob as
quatro luas não precisa ser lembrado nem lamentado, dizia o velho ditado. Talvez, neste
momento de dificuldade, ela poderia de alguma forma aprender a enfrentar o que sua vida
devia ser a partir deste dia, quando ela finalmente esgotou as profundezas dos medos e de
sua dor.
Havia sempre uma escolha, seus pensamentos corriam. Posso viver como devo viver,
renunciando à tudo, com filhos do bandido, sua língua se recusava a pronunciar o nome
mesmo em pensamento, ajudando uma dinastia a crescer, Narthen de Sain Scarp, onde
uma vez foi a casa de Delleray. Ela considerou por um momento, desapaixonadamente.
Algumas mulheres encontraram piores destinos, como suas irmãs e sua mãe, e nenhum
luto ou tristeza poderia trazer os mortos de volta à vida, restaurar Farren Delleray em seu
alto assento ou colocar seus irmãos no lugar que seu pai fez para eles. Ela vivera onde
outros morreram. Ela deveria aceitar esse destino e regozijar-se pelo sol, o vento e a vida
em suas veias, depois que tanta vida foi tirada? Ela, algum dia, se orgulharia de seus filhos,
se não do pai de seus filhos, e assim se faria as pazes com o destino e a inevitabilidade?
Não. Isso seria cruel com até o menor dos leais homens e mulheres que haviam
seguido seu pai e Lorde para o silêncio da morte. Os rostos daqueles que morreram por
Sain Scarp iriam censurá-la para sempre além do túmulo se ela se entregasse a
esquecimento traiçoeiro. Melhor do que isso seria seguir esses servos leais e procurá-los
nas margens da morte. Ela não estava sendo vigiada mais tão de perto agora. De alguma
forma, ela poderia seguir pelos caminhos da morte. Suas pequenas mãos talvez não
E s p a d a d o c a o s | 74

pudessem levantar a adaga vingativa contra o usurpador e o ravino, mas elas serviriam para
abrir uma veia em sua garganta e a levar à morte rápida, uma que ela havia procurado
naquele dia terrível, uma morte mais limpa do que a de suas irmãs e sua mãe. Ela não a
evitaria mais. Morrer com honra quando a vida não era mais honrável era digno de uma
filha de Delleray de Sain Scarp.
Não. Isso seria abandonar de uma vez por todas os pensamentos de vingar pai e
parentes, mãe e irmãs. Isso não ajudaria em nada, seria como submeter-se mecanicamente
ao destino que de alguma forma a preservou viva. Por que ela viveu quando outros se
encontraram com a morte? Certamente os deuses, se houvesse, afinal, todos os deuses,
haviam salvo sua vida por algo diferente disso.
E, no entanto... Mhari olhou para baixo, se desesperando, vendo o pátio ocupado logo
abaixo dela. De onde ela estava sentada, os homens e cavalos no pátio pareciam figuras de
brinquedo do castelo de papel de uma criança. Parecia quando seu pai reinava ali... Exceto
que seu pai nunca teria dado a casa ou o serviço a um bando qualquer de vilões e
assassinos. Somente os deuses sabiam onde Narthen havia encontrado tal coleção de
brutos! Ou como ele reinava sobre eles... Era apenas sendo um bruto maior do que o pior
deles!
Fugir? Ela era observada dia e noite. Mesmo agora, um bandido corpulento estava
parado abaixo dela nas encostas, com um grande corte de espada em sua bochecha, era
um premiado ladino dentre todos os assassinos de Narthen. Observar a mulher do chefe
era uma tarefa que era um claro sinal da lealdade desse homem. Ela estava sozinha na
encosta só porque não havia lugar para correr e ninguém para levá-la se ela conseguisse
escapar. Quarenta vars das trilhas mais estranhas, mais desoladas nas Hellers estavam
entre Mhari e seus parentes em Scaravel, e ela não tinha cavalo, nem provavelmente seria
permitido algum passeio que lhe desse a oportunidade para roubá-lo. Também não tinha
comida, nem mesmo roupas quentes para sobreviver às duras noites de inverno que logo
fechariam a passagem entre Sain Scarp e quaisquer homens civilizados. Se ela não pudesse
escapar nos próximos dias antes das neves fecharem os passes, não haveria chance até a
primavera, e nessa época, Mhari sabia bem, ela estaria morta ou para sempre em
submissão depois de muitos espancamentos. Ou sua mente se enloqueceria e ela viveria
sendo uma coisa com sentido vago, compartilhando placidamente a cama de Narthen e
carregando seus filhos sem resistir ou pensar no que poderia fazer.
Escape parecia impossível. No entanto, a alternativa era pior. Escapar, talvez, para
trazer seus parentes sobre Narthen e vingar seu pai, mãe, irmãs, irmãos...todos os seus
parentes, abatidos em uma noite, caídos pela traição de Narthen que, afinal, uma vez fora o
homem jurado de seu pai e conhecia todas as defesas de Sain Scarp.
E s p a d a d o c a o s | 75

Não tinha parentes perto para a vingança... Exceto seu único irmão, adotado em
Scaravel com seus primos, e que não sabia da morte de seus parentes, ou que Mhari
sobrevivera e como sobrevivera. Ela se deixou pensar em Ruyven, salvo em Scaravel. Se ele
soubesse, ele viria para mim. Ele me resgataria. E com ele viria seu irmão jurado, Rafael.
Rafael, que na noite no Meio do Inverno dançou comigo, sussurrou para mim, roubou um
beijo da ponta de meus dedos, jurou que em outra noite no Meio do Inverno ele falaria com
meu pai para que Ruyven se tornasse seu cunhado e não apenas seu irmão jurado.
Na noite no Meio do Inverno, se os passes estivessem abertos, Ruyven e Rafael viriam
até ali... Se vivessem o suficiente. Mas até então, ela sentia isso, ela deveria ser espancada
até se tornar para sempre submissa. Rafael pegaria o que sobrasse do ataque de Narthen?
Sem dúvida, até lá, ela estaria grávida do filho de Narthen. Mesmo agora, já poderia ser
assim... E Narthen deixaria mesmo um último Delleray viver para algum dia recapturar Sain
Scarp? Se não, era possível que seu irmão fosse emboscado nos passes...
Se eu fosse treinada com laran ou se a leroni da família tivesse sobrevivido, eles já
saberiam e os parentes estariam a caminho para me resgatar...
Mas não. Não haveria resgate. Foi improvável que ela pudesse conseguir até mesmo
um momento de acesso aos pássaros-mensageiros para enviar um a Scaravel, com uma
breve mensagem amarrada à pata. Embora, talvez, se de alguma forma ela pudesse colocar
fogo nos estábulos, na confusão poderia soltar as aves. Mesmo sem uma mensagem
escrita, se três dúzias de aves fossem soltas, uma dúzia poderia chegar a Scaravel e eles
saberiam que algo estava errado ali.
Observada dia e noite, como teria acesso aos estábulos? Era mais possível que ela
conseguisse escalar o Alto Kimbi em suas macias sandálias de verão!
Sem esperança, então, sem esperança... Não posso nem avisar meu irmão e seu
parente, muito menos levá-los a vingança! Ela bateu o ar em frustração e raiva.
Deuses! Deuses, se há algum, onde vocês estão agora? Eu daria minha vida e minha
alma por vingança! Ela cerrou os punhos, olhando para os rostos pálidos dos discos da lua.
Espíritos, preságios, deuses, o que de bom vocês dão? Quero vingança! Vingança! Minha
vida por vingança! Parecia que ela podia ver a intensidade de suas palavras, tremendo em
seu coração enquanto suas mãos tremiam, pulsando pelo lugar vazio deixado para trás
pelas lágrimas secas e do luto. Ela gritou em voz alta.
- Deuses! Ouçam-me! Deuses ou todos os demônios!
Veio o silêncio. Ela não esperava uma resposta, de qualquer forma. O silêncio caiu ao
redor dela, quebrado apenas pelo relincho de um cavalo em algum lugar, o distante latido
de um cachorro, o farfalhar de um pequeno animal na grama. Ela estremeceu. Estava frio.
Ela se sentiu vazia, vaga, como se a morte tivesse chegado a ela onde antes estava o luto.
Uma dormência pior do que todas as lágrimas dos últimos quarenta dias. Ela deu um
E s p a d a d o c a o s | 76

suspiro longo, agitado e cansado. Logo, enquanto as luas sumissem e a escuridão se


adensasse, seu guarda-costas a buscaria e a acompanharia ao destino que a aguardava,
para o qual, ela supôs, ela se resignaria a menos que ela pudesse ter sorte o suficiente para
morrer. Ela não conseguiria aguentar esperar por uma vingança contra Narthen que talvez
nem viesse ou morrer ao gerar seu primeiro filho. Ela preferia morrer para que ele não
tivesse filho de uma Delleray para apoiar suas reivindicações mentirosas.
É assim que vou dar a minha vida, então, por vingança? É assim que os deuses ouvem
minhas orações?
Eu não sei nada de deuses e orações, disse uma voz em sua mente, mas se você
realmente se entregar a vingança, eu a ajudarei.
Mhari tremeu e olhou descontroladamente sobre seu ombro, imaginando quem tinha
vindo responder sua oração. Ela estava sozinha no declive. Então viu algo cintilante no ar,
um brilho pálido e um homem. Um homem? Ele estava diante dela.
Ele era alto, com os cabelos castanho-avermelhados, fios finos e afiados de um
laranzu, um feiticeiro. Um anel brilhava no dedo e parecia pálido como geada, havia neve
em seu cabelo e seus olhos tinham um brilho metálico da cor do gelo. Ela olhou para ele,
chocada, esperando ver o guarda-costas que deveria ter se apressado para se interpor com
seu próprio corpo entre a mulher do chefe e qualquer estranho.
Então ela percebeu que podia ver pedras, árvores, as montanhas e grama através de
seu corpo.
Bem, ele não estava lá. Sua mente havia pregado uma peça, isso não era mais do que
um sonho reconfortante, uma ilusão...
Vingança. O estranho disse e, por um momento, a palavra soou tão clara que ela ficou
encostada na pedra, parecendo culpada, temendo que o guarda-costas tivesse ouvido. Mas
não havia som além de um zumbido de algum pequeno inseto na grama.
Você duvida de sua sanidade, Mhari, minha mais distante parente? Bom. Pois você
precisa estar bastante enlouquecida por vingança antes que eu possa ajudá-la e deve jurar
pagar meu preço.
- Qualquer coisa. - Ela disse fervorosamente. - Mas como você, que é transparente,
incorpóreo, sem substância, pode me trazer a vingança que eu anseio?
Isso deve ser revelado a você quando você pegar minha espada. Existe algum preço
que você não pagaria?
- Nenhum. – Ela sussurrou. - Eu juro.
Uma espada. Em sua infância ela compartilhava as lições do irmão em espada. Ela
havia caçado e matado seu animal. Ele achava que ela encolheria a vista do sangue de um
inimigo?
E s p a d a d o c a o s | 77

É o que eu anseio, ele disse, e seus lábios não se moveram. Minha espada terá o
sangue do usurpador. Jure que você vai alimentar minha espada com o sangue e ela será
sua.
- Eu juro por minha vida. – Ela disse em voz alta e depois olhou ansiosamente para a
descida temendo que o guarda-costas a tivesse ouvido conversando aparentemente
sozinha.
Se isso é verdade, então vá para a Capela dos Quatro Ventos e repita seu juramento,
então pegue o que você encontrar lá. Loucura. Mhari reuniu suas saias e fugiu pela colina.
Olhando para trás, ela viu que o homem da estranha aparição não estava mais lá... Ele
estiver lá antes, para começar? Certamente não. Ela ficou brava.
E, no entanto, se ele não era mais do que uma voz em sua mente então por que ela
precisaria ir até a capela para jurar? O juramento de um louco poderia ser tomado em
qualquer lugar!
Ela tinha corrido apenas algumas dúzias de degraus quando se tornou consciente de
que o homem estava seguindo seus passos, firme em seus calcanhares. Ele disse, sua voz
uma mistura estranha de insolência e servilidade: - Onde vai você, domna Mhari?
- Para a capela, - ela disse, sua voz tremendo - orar pelos meus mortos e parentes. Ou
você presume que deve me parar?
Ele se afastou, inclinando a cabeça e ficou à sua frente, lhe abrindo passagem. Na
porta da Capela dos Quatro Ventos, ela pisou imperiosamente passando por ele.
- Espere aí fora, companheiro! Ou eu chamarei os fantasmas dos mortos para
atormentar você!
- Fantasmas! - Ele bufou, rindo mais para dentro, fazendo sua grande barriga de
cerveja tremer, encolheu os ombros e encostou-se na parede. - Não há outra saída daqui,
domna. Ore em paz, eu estarei esperando!
Ela sempre foi ensinada a só entrar na Capela depois de ter se lavado, acalmado e
vestido sua melhor roupa. Isso era apenas por simples respeito aos deuses. No entanto, ela
sabia em seu coração cheio de orações que aquilo não importava. E se ela estivesse brava,
que diferença faria? Ela entrou, olhando em volta nas luzes cintilantes, antigas pedras
luminosas, sob tal brilho pálido ela podia claramente ver as pinturas penduradas acima dos
altares para os Quatro Ventos; Avarra, Mãe escura de nascimento e morte; Evanda na
primavera verde de suas flores; Aldones, brilhando com o sol atrás da cabeça; Zandru, com
as balanças de escolha, o bem e o mal pesado em equilíbrio. Ela se ajoelhou no altar
central, toda a sua alma pulsando com a paixão que a varreu.
Eu terei minha vingança! Eu juro!
Lentamente, diante de seus olhos no altar vazio, ela começou a notar um brilho
gelado. Era pálido, cintilante, como o brilho pálido que cercava o estranho laranzu.
E s p a d a d o c a o s | 78

Então surgiu a forma de uma espada onde antes não tinha espada nenhuma.
Estenda a mão, disse a voz do estranho, embora ela não pudesse vê-lo. Pegue a
espada.
Seu coração estava batendo tão rápido que ela sentia que ele iria explodir em seu
peito. Certamente não havia nada alo, era um sonho fruto da loucura. Mas os dedos dela se
fecharam em algo duro no altar e, quando ela puxou de volta, o brilho fantasmagórico
desapareceu e havia uma espada em sua mão. Sólida, dura, fria e real. Uma espada com um
cabo de prata marcado com um traço sedoso azul claro pálido, um brilho oscilou nela na luz
pálida. Não havia um brilho etéreo em torno dela agora, era simplesmente uma espada
com uma bainha de couro. Segurando o punho, ela puxou um pouco. Letras onduladas e
cintilantes brilhavam com uma luz carmesim e ela focou os olhos para lê-las.
NUNCA SAQUE-ME, A MENOS QUE EU POSSA BEBER SANGUE.
Com a espada sólida e real na mão, ela realmente engasgou em voz alta. A voz disse
em sua mente:
Você não precisa de habilidade para usar essa espada. Ela vai beber o sangue que é
devido, de sua livre vontade, e a vida de seus inimigos com ele.
O guarda-costas impaciente empurrou a porta e entrou. Ele disse com suspeita: - Eu
pensei ter ouvido uma voz... – Então parou, olhando para ela.
- Vá em frente. – Ela disse friamente. – Procure atrás do altar e das tapeçarias. Talvez
meus parentes mortos tenham ressuscitado do túmulo!
- Eu ouvi você falando, domna...
- Eu estava orando. – Ela disse.
Ela se moveu para que a espada ficasse escondida atrás do altar, entre a pedra e seu
corpo. Ele andou ao redor, olhou fixamente e fez uma careta. Algo nela gritou: Matar,
matar, ele é o pior deles! Era quase uma dor, algo cantando alto em sua mente. Nunca
saque-me... Saque-me para que eu possa beber sangue, sangue! Eu terei sangue...
Não, ela pensou. Agora não. Narthen morrerá primeiro. Por que matar o homem leal
enquanto o mestre sobrevive? Se se fosse descoberto que ela tinha uma espada, ela não
poderia ter chance com Narthen. E se ela o matasse, o que importaria o que acontecesse
depois disso?
Ele se aproximou dela. Parecia que a espada pulsava em sua mão e ela pensou: eu
posso não não ter escolha...
Sangue! Eu vou ter sangue! Mate ele!
Ele estava olhando direto para ela. Ele disse, franzindo o cenho em confusão: - Pensei
por um momento que você tinha algo na mão, domna.
Ela disse cinicamente: - Venha e veja. - E pensou: Posso ter que matá-lo, matá-lo, dar
sangue para esta espada beber...
E s p a d a d o c a o s | 79

Ele colocou a mão em sua própria espada e então recuou, balançando a cabeça.
- Deve ter sido a luz... - Ele murmurou, deslizou sua própria arma de volta para a
bainha rude.
Mhari deixou sua respiração sair.
Ele não pôde ver a espada! No entanto, estava fria e firme em sua mão, o alto zumbido
como cem abelhas vindo dela.
Ele virou as costas e saiu da capela, murmurando. - Este lugar, droga, me dá arrepios
por toda a minha espinha.
Mhari engoliu em seco. Sua garganta estava seca. Ela começou a empurrar a espada
de volta para a bainha.
Pague meu preço! Sangue... A espada resistiu a seus esforços de colocá-la na bainha e,
finalmente, sabendo intuitivamente o que devia fazer, Mhari colocou a lâmina contra a mão
e cortou, manchando-a de sangue. Então a espada voltou para a bainha humildemente,
como se Mhari tivesse sonhado com aquela resistência.
Quando se acalmou ela resolveu: você nunca será desembainhada até que o sangue de
Narthen possa alimentar sua lâmina.
Ninguém mais podia ver a espada. Não Narthen, nem seu homem. Mhari colocou a
bainha ao redor de sua cintura. Ela podia sentir seu peso, mas, olhando diretamente, ela
não podia vê-la, a menos que ela segurasse o punho da esapada.
Agora será usada em Narthen. E terei a vingança!

~o⭐o~
Narthen tinha arranjado para que ela se sentasse ao lado dele, no alto assento, no
final da longa mesa e, embora nos últimos quarenta dias Mhari nunca tivesse sentado lá
sem lágrimas borrando os olhos, vendo em sua agonizante lembrança o rosto nobre de
Farren Delleray lá, sua mãe Liana ao lado dele e, do outro lado, sua barragana Stelli, pálida
e muito bela como Liana tinha sido quando era uma jovem donzela. Ela era, na verdade,
prima de Mhari e próxima de Liana. Todas as noites as lágrimas tinham desfocado os rostos
dos bandidos sentados de forma barulhenta pela longa mesa, tinindo canções obscenas
com as piores das mulheres da casa e os poucos servos infieis que sobreviveram. Seus
olhos, ao invés disso, sempre lhe mostrava os amados rostos de seus mortos.
Hoje à noite, porém, seus olhos eram duros, secos e sem lágrima. Parecia que ela
quase podia ler nos olhos de Narthen a surpresa grata quando, pelo menos uma vez, ela
ficou em seu assento sem chorar e, quando ele entregou a ela um prato de carne, ela
colocou o garfo e levou quatro vezes em sua boca tranquilamente. Uma mão estava em seu
colo, fechada no punho invisível da espada, e ela comeu com fome, sentindo seus dentes
cortando e mastigando a carne bem passada, pensando na garganta de Narthen.
E s p a d a d o c a o s | 80

Ele pensou que ela estava apenas cansada de chorar, decidida a aceitar o inevitável.
Ela seguiu os olhos dele quando se desviaram para sua cintura e quase podia ouvir a
questão neles. Quarenta dias. Tempo suficiente para ela saber se ele a tinha engravidado e
então era também o tempo certo para ela se acalmar e aceitar o que tinha de ser. Ele se
acariciou, batendo em sua barriga, suas mãos se demorando na roupa fina que ele havia
encontrado em algum lugar nas despesas de armas de Sain Scarp, ele cantarolou alegre
como um gato preso a muito leite, contemplando uma boa vida futura em sua nova casa.
Os dentes de Mhari quebraram um osso. Foi a primeira boa refeição que ela tivera desde
aquele dia em que o mundo se dissolveu ao seu redor e ela não tirou os olhos do pescoço
vermelho grosso de Narthen, exceto uma vez, quando ela se virou para olhar para o
guarda-costas, e se perguntou se de alguma forma ela poderia matar os dois.
Espada, você vai fazer uma refeição tão boa quanto eu!
Quando terminaram de comer, por muito tempo continuaram sentados, bebendo
muito vinho, rugindo canções de bêbados e um homem levantou uma das mulheres que
tinha sido uma das putas mais sujas usadas no celeiro, agora vestindo roupas caras,
arrogante. Ela foi colocada sobre a mesa fazendo uma dança para eles.
- Vá em frente, garota, abras suas pernas, balance suas mamas agora! – Um dos
soldados gritou e a garota, rebolando desajeitadamente entre os pratos, levantou suas
saias em uma paródia de uma das danças que Mhari tinha dançado Meio do Verão. Ela
apertou os dentes de repente, irritada. Aquele vestido de seda violeta bordado com
borboletas pentencera a sua irmã Lauria que o havia bordado antes dela ter quinze anos. E
agora Lauria estava morta, morta só Avarra sabia nas mãos de quantos homens, seu corpo
jovem brutalizado. Oh, Lauria, Lauria, também farei isso por você. Ela apertou as mãos no
punho da espada até seus dedos doerem sabendo que não devia se levantar e rasgar o
vestido dos ombros sardentos da garota louca. Eu nunca vi, eu sentei aqui noite depois da
noite e nunca vi aquela vagabunda imunda da Beria usando os meus vestidos, de minha
mão ou que suas mulheres tinham feito para as filhas dela.
Lauria, Janna e Gavriela. E eu...minhas irmãs e eu. Oh, irmãs... Vocês morreram e eu
vivi por quarenta dias nisso. Mas irei vingar todos vocês.
Até mesmo os bandidos ao redor da mesa finalmente começaram a sair para o
corredor, puxando as mulheres enquanto saíram, os braços enlaçados. Dois dos homens
entraram em uma luta e facas foram sacadas. Narthen saltou de seu assento na mesa alta e
separou-os com um chute ou dois bem colocados, pegando a faca de uma mão e jogando-a
desdenhosamente na lareira. - Pelo fogo do inferno, rapazes, qual é a diferença entre uma
saia e outra quando a lâmpada está apagada? Encontre outra moça ou dividam esta, mas
sem brigar em minha mesa!
E s p a d a d o c a o s | 81

Minha mesa. Com que rapidez ele se considera mestre. Aproveite enquanto pode,
Narthen. Ela sentiu a espada na mão como se estivesse lutando para lutar contra o escudo.
No entanto, ela não devia sacar ainda, não até que o momento fosse propício para
alimentá-la no sangue de Narthen. Ela forçou a mão a soltar o punho, prometendo em um
sussurro: - Em breve... Logo, logo você será alimentada.
- Você estava falando comigo, domna Mhari? - Narthen perguntou, naquela paródia de
bondade que era mais odiosa para ela do que sua pior brutalidade. - O que será em breve?
Ela queria gritar para ele, se regozijar em sua cara... Mas ainda não era a hora. Ela
disse mal-humorada: - Eu estava falando com o meu cachorro de estimação debaixo da
mesa, prometendo-lhe que logo ele deveria ter um petisco do meu prato. - Ela se forçou,
apertando os dedos, para tirar algumas lascas do assado no centro da mesa, agora quase
pura, mas com alguns pedaços, quase sem sangue, agarrando-se ao osso, e se inclinou para
frente, deixando o cachorro pegar de seus dedos. O filhote choramingou e recuou,
recusando a delicia oferecida e Mhari sentiu o sangue escurecendo os dedos.
- O que há de errado com a pequena besta?
- Ela tem medo de você. - Mhari disse firmemente. – Não duvido que você o tenha
chutado quando eu não estava.
- Que Zandru me envie um chicote de escorpiões! - Ele rosnou. - Você ainda me acha
tão monstro? Não há mulheres ou cães agradáveis. Eles vão te morder quando quiserem!
Vá! - Sua mão se apertou em seu ombro. - Vá para o seu quarto. Chame suas mulheres para
desnudar você. Eu estarei lá em breve. Quero outra taça de vinho.
Em qualquer outra noite, Mhari teria ouvido esta notícia com alegria. Uma ou duas
vezes ele tinha de fato permanecido ali pela metade da noite, adormecido e seu servo
tivera que levá-lo para sua cama, ou cambaleado pelo caminho muito bêbado para fazer
qualquer coisa além de cair em um sono pesado ao seu lado. Agora parecia que ela não
poderia suportar aquele atraso. Ela disse, olhando para o rosto corado e forçando seus
lábios para se esticar em uma paródia medonha de um sorriso: - Não fique muito tempo,
meu Lorde.
O rosto dele ficou vermelho com satisfação e Mhari se encolheu com o que ela sabia
que ele estava pensando, mas a mão dela estava apertada no punho da espada, e ela se
sentiu sussurrando: - Breve...em breve.
A mão áspera dele passou por seu rosto e seios em uma carícia grosseira. - Oh, eu não
irei demorar muito tempo. – Ele prometeu, seus olhos calorosos e Mhari, mesmo quando
se encolheu, sentiu uma luxúria gostosa, uma alegria enorme, pensando em como ela iria
atacar e no sangue dele sobre ela e a espada.
Narthen gritou: - BERIA! LANILLA! Cuide da Lady Mhari! - E as mulheres vieram se
agrupando ao redor de todo o caminho até a câmara dela.
E s p a d a d o c a o s | 82

Por quarenta dias ela compartilhara a cama de Narthen na grande câmara, onde seu
pai dormira com Stelli desde que sua mãe se aproximara da morte há oito anos quando seu
último filho tinha nascido. Stelli não tinha filho e embora Mhari a perdoe por isso, ela
amava os bebês anuais nascidos na casa e teria gostado de uma pequena meia-irmã ou
irmão. Agora ela estava feliz por não haver mais pequenos para Narthen matar,
transformar em um de seus homens ou corromper por sua liderança ali.
Mhari colocou a espada do outro lado da cama. Ela tinha certeza de que nenhuma das
mulheres podia ver, mas parecia tão forte e firme em sua mão que quase não podia
acreditar que uma delas, quando a despiam, não podiam sentir isso, amarrado em sua
cintura. Elas a lavaram e a colocaram em um vestido noturno de seda que pertencia à
amante de um dos paxman de seu pai. Narthen, ela pensou estranhamente, nunca teria
acreditado que as filhas do Lorde dormiam em trajes completos de linho e meias de lã, com
tijolos quentes a seus pés. Ela odiava o vestido de seda que deixava seus seios expostos ao
olhar lascivo e ao frio. Mas quando a colocaram na cama, ela estendeu a mão, segurando o
cabo invisível da espada, se acalmando com aquela firmeza sob a mão, e novamente o
zumbido alto começou a pulsar em sua mente: Sangue, sangue, eu terei sangue, saque-me
para que eu possa beber...
Quando o rosto corado de Narthen apareceu na porta, ela não conseguiu conter
algumas lágrimas. Não de medo desta vez, mas sim de pura alegria.
Ele entendeu mal e disse em sua voz bêbada e tola: - Ah, você mal pode esperar agora,
não é, minha pequena. Eu te disse que você gostaria de mim no devido tempo. Estou indo
para você. - E seus dedos bêbados se atrapalharam com os fechos de suas roupas. Ele foi
em direção a ela, nu, cambaleante, seu órgão já pulsando ereto, inclinando-se sobre ela.
Sangue! Saque-me para que eu possa me alimentar!
O som alto estava enchendo todo a sala e, através da névoa diante de seus olhos, ela
podia ver os olhos gelados do espírito da espada, o vermelho claro translúcido de seu
cabelo de laranzu, e parecia que era a mão dele em vez da sua própria que movia a espada.
- Ah, minha pequena Mhari... – Narthen murmurou.
A espada assobiou quando moveu pelo ar e, com uma força Mhari não sabia que tinha
em seus braços, cortou a barriga nua de Narthen. Ele teve um momento para uivar
descontroladamente: - Socorro! Assassinato! - Então ele caiu para frente, jorrando sangue,
através das pernas de Mhari.
Ela não se lembrava de ter puxado a espada livre do corpo dele. A espada deslizou de
volta para a bainha, zumbindo suavemente. Mhari ainda ficou abaixo do corpo do homem
que matou seu pai, a violou, teria herdado seu alto assento em Sain Scarp. Ela olhou para
cima por um momento nos olhos frios do laranzu... E então ele se foi, como se nunca
tivesse estado lá. Mhari se contorceu debaixo do corpo de Narthen, vendo, como se suas
E s p a d a d o c a o s | 83

mãos pertencessem a outra pessoa, que elas estavam manchadas com o sangue dele. Ela as
secou, selvagem, na camisola de seda.
O guarda-costas de Narthen explodiu no quarto, gritando: - Meu Lorde! - Ele parou
petrificado na porta, olhando para baixo, de olhos arregalados e boca aberta, para Mhari,
em seu vestido manchado de sangue, suas mãos com sangue coagulado.
A espada cantarolou, alta, estridente, gritando: Sangue! Sangue! Ainda tenho sede,
não estou saciada...
- Meu Lorde! – O homem gritou, atravessou a sala, jogando-se de joelhos sobre seu
mestre morto. - Oh, meu querido Lorde... Fale comigo, fale com Haddell...
Mhari gritou: - Ele não falará mais com você!
Haddell arrancou sua adaga da bainha e pulou para ela. - Você! Seu inferno, eu disse a
ele para tomar cuidado... Mas vou cuidar disso...
- Vamos! Venha, então! - Mhari gritou. - Você quer um pouco também? - A espada
assobiou, parecendo puxá-la para aquele desejo de sangue, e cortou o pescoço de Haddell
quase o decapitando. Ele balançou com seu próprio impulso depois de morto e caiu
pesadamente no chão.
As mulheres, Beria e Lanella, vieram correndo atraídas pelos gritos, mas recuaram ao
cheiro da morte e do sangue que parecia estar por toda a parte na sala. Então correram
gritando. A espada parecia pulsar em sua mão, sedenta.
Sangue, sangue, mate-as também.
Mhari deu um passo, a espada firme entre as mãos. Então, voltando rapidamente à
sanidade, parou. Não. É o suficiente. O suficiente por agora. Deliberadamente, ela forçou a
espada relutante de volta à bainha. As mulheres podiam ou não dar o alarme, mas devia
haver um momento para retornar à sanidade. Afinal, ela não podia matar todos no castelo,
nem mesmo com uma espada encantada.
Ela lavou as mãos e o rosto, tirou a camisola embebida em sangue e a jogou no fogo,
encontrou um dos seus velhos vestidos de lã e colocou. Agora ela precisava encontrar uma
forma de chegar ao estábulo, pegar um cavalo, escapar ou, pelo menos, libertar os pássaros
mensageiros.
Ela correu pelo grande salão, ouvindo vozes e confusão.
- Ninguém viu nada, uma morte do nada, nenhuma espada ou qualquer coisa por
perto... Apenas um som no ar e Haddell caiu morto sobre o corpo do chefe...
- Domna Mhari o cortou?
- Não, não, ela não poderia. Deve ter sido alguém que estava escondido na sala, talvez
um dos homens do velho Lorde que escapou e voltou.
- Onde ela foi? Onde ela está se escondendo?
E s p a d a d o c a o s | 84

- Cuidado, quem matou o chefe e seu homem também pode estar se escondendo com
ela em algum lugar.
Mhari se abraçou com uma satisfação feroz, arrancou um punhado de carnes e pão
frios da mesa, uma garrafa de couro de vinho e correu para o estábulo. Quando correu pelo
corredor deserto, ela alcançou um manto pertencente a um dos soldados, uma coisa grossa
coberta de lã branca por dentro e um frisado marrom áspero na camada externa. Ele
arranhou sua pele e tinha um cheiro forte de lã, mas a mantinha aquecida.
Lá fora estava nevando, atrapalhando fortemente a visão, e seus pés tocaram uma
crosta dura já congelada de neve. Ela correu para o estábulo, olhou para trás e viu lanternas
em todos os lugares, homens se espalhando para procurar. Ela nunca poderia passar por
eles. Nem mesmo à noite, não com um cavalo que ela nem sabia como iria encontrar e
selar no escuro. Ela correu desesperadamente, subiu a polida escada para o celeiro. Ela foi
saudada pelos murmúrios sonolentos dos pássaros-mensageiros e o cacarejar das galinhas.
Mhari abriu a porta do viveiro e balançou os braços, incitando em um tom severo: - Xô! Xô!
Fora, fora! Voem!
Eles voaram pela janela redonda do celeiro e ela observou suas silhuetas contra a
neve, girando e se aproximando uns dos outros brevemente como um rebanho, confusos
com a liberdade repentina. Então, quase como se fossem controlados por uma única
inteligência, pairaram no ar, depois giraram e voaram através da tempestade, cada vez mais
longe sobre o passe para Scaravel.
Lá eles saberão que algo está errado. Eles virão, virão me resgatar... Meu único irmão,
Ruyven, e meu primo, parente e amante, Rafael.
Ofegante com esforço, ela se inclinou contra a viga mestra do celeiro. O feno era tão
macio sob os pés que ela queria afundar nele e dormir, dormir, dormir para sempre...
- Olha - alguém gritou do lado de fora, brandindo uma lanterna - lá se vão todos os
pássaros! Tem elguém no sotão, homens! Pegue ele! Lá em cima! Venham comigo!
Seus braços e mãos estavam tremendo de cansaço. Mhari abaixou o saco de carnes e
pão ela tinha pego e agarrou a espada com as mãos cansadas. Ela ouviu o som de pés na
escada, viu a luz de uma lanterna nas frestas do alçapão. Ela recuou da abertura no chão,
segurando a bainha da espada e se escondendo. Ela ouviu o som estridente dos homens e o
feno farfalhando sob os pés deles.
- Aqui! Aqui! – O homem gritou. – Comigo por a...
A cabeça dele esguichou sangue antes mesmo que Mhari percebesse que a espada
estava fora da bainha. Seu corpo tombou caindo de cabeça sobre os bandidos agrupados
abaixo. Então houve silêncio e depois de um tempo as lanternas sumiram, foram embora.
A espada deslizou de volta, zumbindo de prazer.
E s p a d a d o c a o s | 85

~o⭐o~
A luz cinza escura invadiu o celeiro, a neve entrando pela janela. Mhari esfregou a
neve no rosto para se refrescar, os olhos quentes e ardendo. Narthen estava morto e os
bandidos estavam correndo no pátio como um monte de formigas-escorpiões quando
alguém mata sua rainha. Alguns deles foram andando, outros estavam gritando, brigando
sobre quem iria lidera-los agora.
Se afastando pela colina sobre um burro estava uma das mulheres, com um pano de
prato cinza à sua frente e sua saia encolhida até os joelhos mostrando vários centímetros
da meia de lã listrada. Mhari ouviu dois dos bandidos argumentando sobre ir atrás dela,
mas eles começaram a lutar pelo saque que desejavam fazer.
Com sorte, eles vão brigar, lutar, matar um ao outro. Posso ficar escondida aqui até
eles irem embora. Esta noite os pássaros podem ter chegado à Scaravel. Mesmo que
metade deles morra no frio, na tempestade, por predadores, o resto deles alertará Scaravel
de que algo está errado.
Ela comeu um pouco do pão e bebeu um pouco do vinho azedo fazendo careta e
desejando que fosse água ou leite. Depois de um tempo, ela ouviu passos no estábulo
abaixo dela. Mas era apenas alguém guiando um cavalo e ela relaxou.
O som alto e estridente começou em sua mente.
Sangue, sangue, eu vou ter sangue.
Não, ela disse a si mesma. Agora não. Ela se esconderia ali em silêncio até que eles
fossem embora. Não havia necessidade de mais derramamento de sangue. Os homens não
tinham mais um líder, antes talvez já não tivessem porque Narthen nunca entraria em
acordo com ele sobre como manter este lugar. Quando o socorro chegasse de Scaravel, se
livrar dos poucos que permanecessem seria um trabalho curto.
Tenho sede! Vou ter sangue!
Mhari apertou os dentes, forçando a voz a se calar, mas, contra sua vontade, sua mão
foi para o punho da espada. Então de repente ela estava em sua mão, nua na mão sem a
bainha, e o som alto pareceu preencher todo o mundo.
Nunca saque-me, a menos que eu possa beber sangue! Você jurou pagar meu preço
em sangue, sangue, sanguesanguesangue... O som cantarolado era tão estridente que
Mhari se surpreendeu. Soluçando, ela percebeu que estava de pé, que seus passos estavam
se movendo em direção à escada.
- Não! Oh, Deuses, não, não! - Ela chorou, meio em voz alta, mas a espada parecia
puxar, arrastá-la até que ela sentia que caia de cabeça pelo alçapão. Sem seu controle, seus
pés seguiram buscando pontos de apoio na escada, levando-a para o pátio entre os homens
que estavam brigando. A espada brilhou...
E s p a d a d o c a o s | 86

Um homem estava morto a seus pés, depois outro. Ela se sentiu estocada, sentiu os
braços se movendo, matando sem pensamento ou distinção. Um homem uivou, caiu a seus
pés. O braço de outro caiu de seu corpo, estava gritando, gritando e sangrando até que os
gritos silenciaram sob os golpes inparáveis dela. Mhari se sentiu como se estivesse à parte
daquilo e chegou a vomitar, mas o som alto e estridente da espada se alimentando encheu
sua mente e o mundo ao redor.
A espada de sangue, invisível, carregando a morte, brilhou, ergueu e atingiu de novo,
de novo e de novo...
Então os bandidos, gritando em pânico, se viraram e correram descontroladamente do
pátio, caindo um sobre o outro. Alguns fugiram a pé, outros se jogaram sobre cavalos e
fugiram sem nem montar direito, a pilhagem foi esquecida, tudo foi esquecido, exceto a
morte invisível que saiu do nada para atingi-los. Então o pátio estava vazio e uma jovem
garota ficou soluçando, vazia e doente, nas pavimentação de pedras, sob a neve que caía,
suas mãos cerradas, reivindicando inutilmente, e não havia som, mas o murmúrio satisfeito
de espada.
Depois de um longo tempo ela se levantou e entrou no castelo, onde alguns dos servos
restantes que haviam curvado a cabeça para o novo mestre para salvar suas vidas,
inclinaram-se para ela e foi até sua câmara para arrastar e enterrar os corpos de Narthen e
seu capanga.
No final daquela noite pássaro-mensageiro voou para o quintal e Mhari, ouvindo o
suave som, foi até ele, alimentou o animal e tirou da perna o minúsculo pergaminho que
dizia:

Se alguém sobrevive em Sain Scarp, saiba que estamos chegando, estaremos com você
no segundo amanhecer a partir deste dia.

Ruyven Delleray

Mhari chorou, segurando o pequeno pergaminho. Meu irmão, meu irmão ainda vive!
Ela pensou. E ele estará aqui amanhã. Mas eu vingei meu pai, minha mãe, minhas irmãs e
irmãos.
Na cintura, a espada pulsou.
Não. Minha vingança está feita. Ela sussurrou, mas o som alto e estridente parecia
preencher todo o espaço. Quando sentiu a espada girar no ar, sem pensar ela apertou as
mãos em uma resistência inútil.
O pássaro caiu morto a seus pés, seu corpo tremendo e Mhari, olhando horrorizada
para o sangue do pássaro na espada, explodiu em um choro incontrolável.
E s p a d a d o c a o s | 87

Ela cambaleou sob os pés fracos para a capela e colocou a espada lá, tropeçando
rapidamente como se temesse que a espada a seguisse.

~o⭐o~
No momento em que um pequeno exército de homens apareceu sobre a colina, com
espadas sacadas e preparados, os poucos servos remanescentes haviam esfregado o
sangue dos paralelepípedos no quintal e a neve fresca cobria a quadra com um cobertor
branco liso. Mhari correu para eles, vendo Ruyven na liderança. Ele parou, pulando de seu
cavalo e tomando-a em seus braços.
- O que aconteceu? Ah, Abençoada Avarra, todos eles foram embora? Como você
escapou viva? Todos mortos, a mãe, o pai...?
Agarrando-se a ele, chorando, Mhari gaguejou toda a história da invasão, traição,
batalha, assassinato e sua violação. Ruyven chorou enquanto ouvia, depois virou o rosto
aeaçadoramente para onde a cabeça de Narthen pendia, flanqueada pelas de seus homens.
- E você, você, irmãzinha... Você vingou todos eles?
- Não sozinha. Eu tive ajuda de uma feitiçaria. – Ela sussurrou. - Um dos nossos
parentes distantes... - E, enquanto o conduzia, ela lhe contou toda a história.
- E onde está agora a espada, pequena Mhari?
- Encontra-se na capela. – Ela murmurou. - Escondido novamente como estava quando
fui lá no início.
- Eu ouvi falar dessa história. - Rafael disse. - Um dos seus antepassados, Ruyven, fez
um pacto com um espírito chamado Chaos em troca de vingança. A lenda diz que, quando
qualquer um de sangue Delleray grita por vingança, ele vem em seu socorro. A espada foi
forjada e temperada com seu próprio sangue e clama pelo sangue dos inimigos de seu clã.
Mas não consigo me lembrar o resto do conto. É estranho lidar com essas coisas.
- Oh, era horrível! - Mhari chorou. - Continuou matando e matando, mesmo quando
eu não queria, quando todos eles foram embora...
- Pobre Mhari. - Rafael murmurou, pegando a mão dela. - Você pagou um preço
terrível, e depois de tudo que sofreu! - Ele se aproximou, colocou um braço em volta da
cintura dela e encarou Ruyven.
- Bredu, - ele disse suavemente - você sabia que Mhari é, dentre todas as mulheres, a
mai querida para mim, como você é o mais querido de Kin. Mhari agora não tem outro
parente. Você me concede ela em casamento?
- De bom grado. – Ruyven disse, pegando seu amigo e sua irmã em um grande abraço.
- Nada poderá aplacar minha dor por meus parentes. Mas não há como consertar, nem
trazê-los de volta da morte, e agora sou o Lorde de Sain Scarp e Delleray. O casamento
pode ser realizado assim que desejarem.
E s p a d a d o c a o s | 88

- Você aceitaria... Você ainda me aceitaria mesmo sendo o resto dos usos de Narthen?
Estou suja por ele e marcada pelo seu sangue... - Mhari perguntou, ofegando de vergonha.
- Ah, Mhari. – Rafael murmurou, puxando e cobrindo suas mãos com beijos. - Você é
ainda mais querida para mim por tudo que sofreu. E o sangue que você derramou foi
derramado pela honra de sua casa e por vingança por seus parentes de sangue e servos.
Tenho orgulho de ter você como esposa, Mhari. A mais corajosa mulher espadachim de
Sain Scarp! Você quer se casar comigo amanhã para que eu possa te fazer esquecer suas
tristezas?
Encostada à vontade contra o peito dele, ela sussurrou: - Sim, eu quero.

~o⭐o~
Todos os seus parentes vieram para o casamento e Mhari, com um vestido simples
azul facilmente encontrado depois que os trajes caros tinham sido usados por ela sob
ordens de Narthen. Ela estava na Capela dos Quatro Ventos ao lado de Rafael. Ruyven,
sorrindo, prendeu as pulseiras em seus pulsos.
- Que vocês sejam para sempre um. – Ele disse e reivindicou um beijo de sua irmã,
mesmo antes de seu jovem marido.
Mhari beijou o marido em seus lábios e então congelou. No altar vazio, um brilho
longo, pálido e azul estava se espalhando lentamente, e, aterrorizada, ela parecia ver os
olhos do laranzu de Chaos. O som alto e estridente em sua mente fez até mesmo a voz de
Rafael sumir.
Sangue, eu terei sangue... Você jurou que nenhum preço era alto demais para pagar...
- Não! Não! - Ela gritou, colocando as mãos sobre as orelhas para abafar o som
aterrorizante, mas aqueles olhos impiedosos encheram todo o espaço e ela sentiu o arrasto
impiedoso da espada, puxando suas mãos, puxando, puxando, se fechando.
- NÃO! – Ela gritou de novo, mesmo quando a espada se moveu em um grande e
aterrorizante arco e cortou. Rafael, o sorriso alegre de seu beijo nupcial ainda em seus
lábios, caiu sem gritar. Mhari, gritando, lutou para ir para trás, olhando loucamente para o
corpo de seu amante, sua veste nupcial salpicada de sangue.
- Ah, Mhari, Mhari! AH! Você, seu demônio do inferno, o que você fez? – Ruyven
gritou em horror.
Sangue! Tenho sede! Sangue, mais sangue, mais sangue,
maissanguemaissanguemaissangue...
Ruyven, seu grito de indignação e desânimo de repente se transformando em terror,
gritou: - Mhari...irmã, irmã, não...NÃO...
- NÃO! – Ela gritou. - Não! Ele, não, seu demônio do inferno! Eu não vou, eu não vou...
É demais, demais...chega....é o suficiente... Não Ruyven, não Ruyven também...
E s p a d a d o c a o s | 89

Implacavelmente, a espada subiu, ela tentou força as mãos a obedecer. – Não! - Ela
chorou, de forma maníaca. - Não! Ah não! Poupe...
Ah, agora eu sei o preço, o único sangue que vai parar a morte. Ela finalmente
entendeu.
Ruyven, branco de terror, observando, correu para a frente para tentar evitar a luta de
Mhari que tentava vencer a espada, e viu quando ela aparentemente e impiedosamente
levou a lâmina para baixo.
Então o sangue surgiu de seu coração, ela deslizou para baixo e com sua última força
jogu a espada longe de Ruyven.
No ar, ela parou, brilhando em azul. Em torno e através dela, uma figura se
materializou, alta, sobressalente, ruiva como um laranzu, os olhos azuis oscilando como
cobre em chamas. Então desapareceu, a espada ficou visível por um momento no altar e
depois desapareceu novamente.
Ruyven passou a mão sobre o altar. Mas o altar estava frio e vazio, e Mhari estava
sorrindo, seus olhos aberto e, de alguma forma, a mão dela caíra na mão morta de Rafael.
E s p a d a d o c a o s | 90

Entre as Eras

A cronologia sempre foi um negócio problemático nos contos de Darkover. As três


histórias a seguir poderiam ter sido colocadas em quase qualquer seção, desde a época dos
primeiros assentamentos e o primeiro surgimento dos poderes de laran, até mesmo na
queda final do Comyn. Era impossível atribuir a cronologia definitiva a qualquer uma delas.
Depois de movê-las de seção em seção várias vezes, comecei a me sentir como a centopeia
na velha rima...

‘Uma centopeia estava feliz,


Até um sapo divertido lhe perguntar:
"Qual perna se move depois de qual?”
O que dominou seu pensar
Até em exaustão numa vala ela descer,
Não sabendo mais como correr.’

Portanto abandonei qualquer esforço para determinar qual perna se move após qual
(a cronologia nos romances de Darkover nunca foi meu ponto forte de qualquer maneira), e
decidi trazê-los para você em uma seção separada.
Sobre "Di Catenas", por Adrienne Martine Barnes, ela diz que foi uma tentativa de
explorar os primórdios desse costume, onde a noiva e o noivo usam pulseiras duplas em
seus braços como fechos em seu compromisso duradouro. E, portanto, deve se passar
muito cedo na história de Darkover.
Susan Hansen em "De duas mentes" talvez poderia ser designado seu conto nas Eras
do Caos, já que possivelmente lida com os dias do programa de reprodução, mas também,
poderia ter acontecido a qualquer momento, já que o nascimento de uma criança tão
deficiente quanto Mikhail poderia ter ocorrido a qualquer momento depois que os dons de
laran eram conhecidos.
E, finalmente, Dorothy Heydt em "Através de fogo e da geada" poderia ter sido
colocado em qualquer momento durante a história de Darkover. Dorothy disse sobre sua
história que tínhamos ouvido muito sobre os deuses de Darkover, mas que ignorávamos a
religião baseada na tradição dos cristoforos, e ela sentiu que era tempo de apresentar esse
lado da história. Foi também sua intenção, ela disse, apresentar uma história em que não
havia nemhum personagem rude, nem da aristocracia e em que ninguém tinha laran ou
usava uma pedra de matriz. E, no entanto, mesmo com tudo isso, a história surgiu com um
sabor exclusivamente darkovano.
E s p a d a d o c a o s | 91

Di Catenas
Adrienne Martine-Barnes

Ela moveu a pulseira para frente e para trás em seu pulso. Não importa como ela
virasse, a cabeça horrível da figura serpentina, com seus olhos de pedras da estrela, parecia
olhar para ela. O corpo da coisa, pois ela não tinha nenhum nome para o animal, era um
entrelaçado de arco-íris de alguma substância vítrea sobre o metal, cores entrando e saindo
em curvas ocasionais. Parecia quase fluir ao longo da pulseira, como se estivesse viva.
Alais estava fria. Ela estava fria desde que deixaram a casa do pai três dias antes,
andando para evitar o próximo assalto do inverno nas colinas. Seus pés estavam úmidos e
seu corpo doía do passo saltitante do pônei. Mas a pulseira era tudo que tomava sua
consciência. Era, ela sabia, uma coisa bonita, uma obra-prima do trabalho do artesão, mas
ela odiava desde o dia, sete anos antes, quando tinha sido fechada no braço de sua irmã.
Parecia, de alguma forma, a indignidade final, que ela deveria ter a relíquia dada a Enid e
depois ser ligada ao mesmo objeto que transformou a irmã de um raio de luz dourada em
uma sombra doente.
- Pare de mexer com isso! - Ele rosnou.
Alais pulou ao som da voz dele, seu cabelo longo e úmido, encostando em sua
bochecha. Ela olhou para o marido de quatro dias e lembrou-se de como ela tinha pensado
nele quando ele veio para Enid sete anos antes. Ele ainda era bonito, de uma maneira
florida, embora agora seu cabelo vermelho escuro estivesse ligeiramente riscado de
branco, e uma pequena cicatriz curva marcasse uma bochecha. Isso o fazia parecer
resoluto, mas cansado também. A cicatriz era como uma lua branca contra sua pele e havia
linhas profundas indo do nariz à boca que não estavam lá antes. Mas ele ainda mantinha os
ombros com a mesma arrogância insuportável que ela havia achado ao mesmo tempo
atraente e repelente quando ele se casou com Enid.
Se meu pai não fosse tão idiota e determinado a manter seu sangue puro. Se Roderick
não tivesse ido procurar o mar sobre o qual cantamos, mas que ninguém jamais viu, exceto
em sonhos. Faz três anos que ele foi embora. Sei que você não está morto, meu irmão, mas
por mais querido que você seja para mim, bem pode estar morto mesmo. A mãe nem
protestou, mesmo que esse homem tenha matado minha irmã.
Sua mão voltou para a pulseira sem sua vontade. Doeu, não uma dor física, e nem
mesmo ela própria, mas uma agonia especial por ter sido de Enid. Alais tinha uma sintonia
com as vozes dos objetos, um pequeno talento entre outros, que ela guardava para si
mesma, respeitando a violenta objeção de seu pai a qualquer sugestão dos poderes
invisíveis que foram estimados e procurados em muitas das famílias das colinas. Rodrigo
E s p a d a d o c a o s | 92

Asturien descartava todos esses assuntos como um absurdo supersticioso ou, pior, como
algo ruim e, mesmo tendo se casado com uma filha de tais famílias, seus filhos não deviam
mostrar evidências de laran.
Alais se perguntou como Enid suportara aquela coisa, ela que odiava metal, que não
podia nem suportar o maravilhoso fecho de cabelo prateado que tinha sido um presente de
aniversário de um ano. Para Alais, Enid tinha sido a criatura mais maravilhosa do mundo,
com seu cabelo dourado pálido e olhos cinzentos, suas longas pernas que poderiam superar
até mesmo o menino mais rápido, sua determinação e riso fácil. Ela tinha se sentido um
pouco ciumenta quando Enid se casara com Bryan Aldon, um pouco triste com a separação,
mas com certeza uma mulher tão bonita quanto sua irmã merecia um homem igualmente
bonito. Alais pensava em seu cabelo de cor de chama e olhos verdes como algo feio.
Ela tentou transformar mentalmente o rosto dele em feio e feroz. Foi por isso que você
a fez usá-la, porque você sabia que ela odiava metal? Alais levantou os olhos para estudar
Bryan novamente. Você jurou que iria dominá-la, minha irmã selvagem, mas você não fez.
Eu ouvi você se gabar na noite antes do casamento, quando eu deveria estar no meu
quarto. Mas você só a quebrou. E agora, porque você é o homem mais rico do distrito, fez
isso e se tornou costume colocar essas coisas no braço de uma mulher para marcá-la como
serva de um homem. Raoul Benjamin quase ficou pobre para conseguir uma dessas para
sua nova noiva, e os Benjamin são ricos. Os servos fazem de madeira para suas mulheres.
Me pergunto porque você não o para marcar o pescoço dela. É tão difícil pensar. Isso me faz
sentir fraca.
- Eu te disse para parar com isso. - Seus olhos quase dourados pareceram escurecer
enquanto ele falava.
Alais estremeceu, pois o quarto estava frio. A Casa Aldon estava quase deserta, o que
a surpreendeu quando chegaram. Havia um velho reumático que pegou os pôneis e uma
velha vacilante que abriu a porta. O fogo na lareira era pequeno e havia grandes teias
enfeitiçando as vigas na sala. Os cantos das paredes estavam descascando e todo o lugar
cheirava a decadência.
Era um quebra-cabeça, tão grande quanto a pressa desajeitada de Bryan para trazê-la
à sua casa, antes mesmo que a festa do casamento fosse aproveitada bastante por eles.
Alais gostava de problemas para resolver, desde algo como uma roda d'água recalcitrante
no moinho até teias de aranhas nas vagens. Se tivesse visto o lugar seu pai nunca teria
deixado ela se casar com Bryan, pois seu orgulho era tão grande quanto sua teimosia.
A pele sob a pulseira estava vermelha prls fricção. Alais moveu a mão, mas deslizou de
volta em seu colo para evitar a coisa quase imediatamente.
- Vá sentar no seu polegar! - Ela respondeu rudemente. Suas palavras assustaram o
homem à sua frente. Seu irmão sempre dissera: Alais não vaiaria nem uma galinha
E s p a d a d o c a o s | 93

selvagem. E era verdade. Ela era tão quieta quanto Enid era ardente. - De preferência em
banco de neve.
Bryan se eriçou e se inclinou para ela. Alais enrubesceu e se afastou, relutante ao
toque dele e sua cadeira caiu de lado. A taça de vinho azedo que a velha trouxera caiu
sobre as pedras oleosas e se tornou uma poça sangrenta. Ela estava cheia de uma raiva
trêmula, em parte pela pulseira cortando sua carne. Não, a coisa estava solta. Por que
parecia ferir a pele onde tocava?
Ele se levantou e a pegou pelos ombros. Ela olhou para o rosto e a cicatriz curva. De
repente, ela entendeu que Enid o atingira no rosto com a pulseira e ficou horrorizada. Uma
mulher não deve oferecer violência ao marido, nunca.
Ele a estudou com alguma intensidade também. - Você está tremendo toda. Você está
doente, Alais? Você ficou gelada. Vamos, vamos, criança, eu não vou te machucar. Não sou
um monstro. Por que você me olha assim? - Bryan a puxou contra o peito e acariciou seu
cabelo úmido suavemente.
A ternura em sua voz e toque a surpreendeu. Seu peito parecia pesado e morto
debaixo de sua bochecha e ela queria recuar. Ele não sentia o frio? Onde estavam seus
servos? Ele estava bravo ou era apenas estúpido? Ela tentou encontrar as curiosas linhas
coloridas em seu corpo, as linhas que lhe diziam muito sobre as pessoas ao seu redor, e não
havia nenhuma. Ela nunca conhecera alguém que ela não podia "ver" e isso a perturbou
mais do que qualquer coisa.
- Por favor, Alais, não fique muda comigo. Eu já tive anos de silêncio. Tente me dizer
qual é o problema. - Sua voz ficou rouca. - Eu nunca vou conseguir entender como uma
mulher pode ter um cheiro tão bom depois de três dias de viagem, enquanto um homem
fede como algo que mesmo um banshee se afastaria.
Ele era de fato um pouco alto, mas Alais estava acostumada com isso. Os homens
sempre tinham um cheiro um pouco forte mesmo. As mãos dele tocaram seu rosto e ela
sentiu seus lábios encostarem em sua testa dando um beijo leve. Era um gesto praticado,
um pouco astuto e manipulador, e ela endureceu. Quão maravilhoso devia ser ter tal
poder, fazer uma carícia para mudar a mente de uma mulher. Foi este o segredo que
tornou os homens mestres e as mulheres suas servas? Ela odiava a ideia de ser diferente de
um ser racional, de se tornar uma fera, e se afastou de suas mãos.
- Você é muito seguro de si mesmo, Bryan. Por que você me escolheu? Matar minha
irmã não foi o suficiente? Você não poderia ter me deixado em paz?
- Assassinato? É isso que você acha? Enid morreu no parto, algo normal que acontece
com muitas mulheres desde o início dos tempos. Nós fizemos tudo para salvá-la. Eu trouxe
os melhores curandeiros nas colinas, as melhores parteiras. Mas foi inútil. Eu acho que ela
queria morrer. E eu não sei por quê. Você sabe?
E s p a d a d o c a o s | 94

Alais franziu a testa. Ela olhou para o cômodo em sua grande decadência e se
perguntou se era assim quando Enid chegara. Ela amava sua irmã, filha do primeiro
casamento de seu pai, como se adora um irmão mais velho, mas ela não a conhecia tão
bem. Havia muitos anos entre elas e Enid tinha sido uma pessoa curiosamente vaga, quase
como se ela fosse parte da floresta que cercava a casa. Ela admirava a constante rebelião
de Enid, mas não tinha coragem suficiente para imitá-la. - Você quebrou seu espírito.
- Eu o quê? Alais, eu não sou um homem muito paciente e, às vezes, sou um pouco
rude como minha mãe sempre me dizia, mas eu juro que nunca toquei em Enid com raiva.
Nem mesmo quando ela me provocou a isso. - Ele tocou a cicatriz. - Ela gritava comigo e
arranhou meu rosto e braços como uma gata selvagem. Era como uma loucura.
- Você não precisou. Você não sabe o que isso...essa coisa fez com ela?
- O bracelete? Do que você está falando?
- Você é insensível ou meramente sem perspicácia? Você não sentia o que estava
fazendo com ela? Dói em mim e olha que eu posso até aguentar o metal no meu corpo. Ela
não podia. Por que você deu isso à ela? Diga-me.
Uma expressão estranha cruzou o rosto dele como se estivesse travando alguma luta
em sua mente. Bryan estendeu a mão e pegou a pulseira em seus dedos. As pontas dos
dedos traçaram as escamas ao longo do corpo da besta. – Me aconselharam. – Ele disse
com alguma dificuldade.
- Quem te aconselhou a fazer isso?
Mais uma vez, a curiosa pausa, o olhar de dor antes de falar. - Minha prima, Katria, a
vidente, recomendou antes de morrer. Aqui, sente-se. - Ele arrumou a cadeira e pegou um
cobertor gasto, perto da lareira. Ele colocou sobre os ombros dela e sentou na cadeira
como uma criança. Então encheu sua taça e entregou a ela. - Você está branca como a
morte.
Os dentes de Alais bateram contra a borda da taça, trêmulos. Ela engoliu uma grande
golada e cuspiu quando um pouco desceu de maneira errada. Ela disse, quando parou de
tossir: - Eu devia ter adivinhado que a mão da velha bruxa estava envolvida nisso. Minha
mãe sempre disse que ela tinha um talento para vingança. Não pareça tão estupefato.
Bryan, você não pode ser tão ignorante sobre essa disputa.
- Parece que sou. Conte, ilumine-me.
- O pai da minha mãe, Artros Macgowan, se recusou a casar com Katria, embora o
acordo já tivesse sido feito por suas famílias. Em vez disso, ele escolheu Caitleen MacAran.
Eu não sei por quê. Mas eles parecem ter tido um bom casamento, com quatro filhos e
duas filhas, todos saudáveis e fertéis. Isso parece ter irritado mais a velha demônia. Minha
mãe chamava ela de hada maleveo.
E s p a d a d o c a o s | 95

- Uma esperta perversa? Mas essa é uma história antiga. O que tem a ver comigo, você
ou Enid?
- Perversa a um nível que mal posso pensar. - Alais esfregou o pulso. - Não me admira
que Enid tenha ficado um pouco louca. Não, Bryan, não é uma história antiga. Histórias não
terminam quando as pessoas morrem. Você aprende coisas que estão guardadas no peito
de sua mãe e repassa para seus filhos. Mas eu gostaria de saber o que ela estava fazendo
nesta pulseira. Você não pode sentir isso?
- Não. Para mim, é apenas um lindo pedaço de metal.
Alais bebeu seu vinho pensativa. Havia um quebra-cabeça aqui e talvez ela pudesse
organizar as peças. Ela fechou os olhos e se esticou. A pulseira era como uma parede
brilhante em sua mente, confinando-a e quebrando as linhas de energia de seu corpo. Ela
podia ‘ver’ além dela, mas apenas vagamente, como sombras pálidas em vez da clareza
brilhante que ela estava acostumada.
Ela ‘entrou’ na pulseira e havia um sentido repugnante de confusão, uma torção,
aquele enrolamento mental da loucura. Alais se afastou da coisa e forçou seus olhos a
abrirem. Ela sufocou a náusea que quase a vencera, ofegou e sua cabeça e coração bateram
acelerados.
- Que besta é essa? - Ela perguntou devagar.
- Uma criatura antiga e fantasiosa, a salamandra. É uma coisa do fogo, um elemental.
Por que?
- Fogo? É compreensível. Katria lhe deu o padrão, sim?
- Ela deu.
- Quem forjou isso?
- Um ferreiro em Neskaya, Guilliume.
- Ele está morto agora, não é?
- Sim. Isso foi a última coisa que ele fez.
- Você tem tão pouca astúcia que nunca se perguntou por que ele morreu, ou porque
Enid odiava isso, ou por que Katria projetou isso?
- Eu nunca pensei nisso, verdadeiramente. Você tem razão. Essa ideia é quase invisível
para mim. Na verdade, me dá dor de cabeça quando penso nisso.
- Você vai tirar isso de mim?
Toda a cor escorreu de seu rosto e gotas de suor surgiram em sua testa. Suas mãos
cerradas, depois torcidas e esticadas. - Não enquanto você viver. - Suas palavras foram
sussurradas. Os ombros fortes e largos estremeceram e se inclinaram para frente.
Alais sabia que não eram suas palavras, nem sua voz, que ela não entendera. Ela se
perguntou se alguma vez ‘viu’ Bryan ou se ele era o remanescente de um homem, mesmo
E s p a d a d o c a o s | 96

quando ele foi até Enid, uma peça de roupa em que Katria vestiu sua malícia. O que, ela se
perguntou, tinha a velha dado para ele? Que dom especial ela possuía?
Esses presentes, ou truques, ou poderes, estavam causando uma espécie de guerra
entre as famílias da colina. As famílias com crianças talentosas queriam mais e as famílias,
mesmo as lideradas por conservadores teimosos, como o pai dela, sabiam que alcançariam
alguma dominação casando-se em clãs com laran. Os Aldons eram uma família segura, pela
estimativa de seu pai, porque não mostravam evidências de quaisquer poderes estranhos.
E então havia os cristais, as azuis pedras da estrela, como os dos olhos da besta em seu
pulso. Esses objetos pareciam melhorar os poderes naturais de alguns indivíduos. As pedras
eram um presente do povo bonito, os lendários espíritos das árvores. A avó de Enid era
supostamente um desses espíritos e Alais sempre se perguntou se o desgosto de seu pai
por videntes e profetas não estava ligado à sua primeira esposa. Ele até violara o código das
colinas e não dera abrigo à uma leronis durante uma tempestade. – Deixe que usem seus
poderes para evitarem ser congelados, se puderem. – Ele dizia.
A velha Katria era conhecido nas colinas como uma mulher de grande capacidade. Ela
foi temida e odiada, mas nunca perturbada. Alais a vira uma vez, no festival dosa coelhos-
de-chifres, uma velha magra com olhos selvagens.
Ela sabia que algumas das famílias agora estavam fazendo um esforço deliberado para
entender os dons que pareciam correr em suas linhagens de sangue. Os testes tinham sido
elaborados, mas Alais nunca havia passado a eles. Seu pai nunca teria permitido isso.
Mas ela se treinara para usar os pequenos ‘truques’ para os quais ela não tinha nome.
Seguindo a sabedoria de sua mãe, ela nunca deixou seu pai ver nenhum deles, e, já que
Rodrigo em seu egoismo declarava que tais coisas não existiam, então para ele não
existiriam mesmo. Com grande dificuldade, ela usou um agora.
Alais se retirou um pouco de seu corpo. Ela sentiu como se estivesse sentada em um
pedestal, olhando para si mesma e Bryan. A pulseira puxou-a torndo o feito quase
impossível, e ela só conseguia realiza-lo por alguns segundos de cada vez.
O senso cintilante de ‘ver’ dentro e fora do corpo era terrível, mas ela conseguiu olhar
para Bryan. Ela estudou a forma dele das botas até a testa, buscando as linhas coloridas e,
finalmente, encontrou uma pequena faísca, como uma brasa, na base de sua garganta. Algo
como um véu preto denso parecia cobri-lo e a faísca brilhou como uma vela ao vento. A
pulseira prendia ela, mas não era só isso, e ela sabia que tinha que descobrir o que era.
Ela voltou a si e tocou a pulseira, então tentou olhar de novo. Os arcos coloridos do
corpo pareciam retroceder na frente de seus olhos, como se não desejasse ser olhado.
Alais assentiu e quase sorriu. Ela havia odiado a pulseira porque a machucava e
pensara nela como nada além de uma decoração sobre seu corpo. Agora ela sabia que o
padrão era tão importante quanto o próprio metal. De alguma forma, interrompia as linhas
E s p a d a d o c a o s | 97

de energia do corpo. Ela envolveu o cobertor em volta da mão esquerda e segurou a


pulseira para que não tocasse seu braço em qualquer momento. Um tipo de força surgiu
através dela, como uma inundação de primavera nas colinas.
Alais se inclinou para frente e rasgou uma larga tira da bainha de sua saia. Então ela
começou a enrolá-la em torno da pulseira, sobrepondo a cada volta até que o metal fosse
completamente coberto. Ela rasgou o final com os dentes e fez um nó desajeitado e
apertado.
- O que você está fazendo? - Bryan estava observando-a, sua cor quase normal.
- Apenas certificando-me de nunca cortar seu rosto bonito com essa coisa. – Ela
respondeu trêmula. - Além disso, é feia. Por que você não conseguiu uma nova? Odeio usar
qualquer coisa de Enid. Não foi feito para mim.
Bryan franziu a testa, como se ouvisse as palavras em sua mente. - Mas é assim.
Desembrulhe!
- Não! - Ela não queria sentir aquela fraqueza horrível novamente nunca mais.
Ele cambaleou como um bêbado e balançou em direção a ela. Alais sentiu que ele
estava sendo arrastado contra sua vontade. Ela estendeu a mão e alinhou os braços atrás
do pescoço, para que ele não pudesse alcançar seus pulsos. Ele puxou os cotovelos para
baixo, afrouxou a força do dela aperto com facilidade e se atrapalhou com o nó do da tira.
Alais deslizou a mão esquerda sob a camisa dele e encontrou uma tanga de couro.
Sem pensar, ela empurrou com toda a sua força. No segundo puxão, ele estacou e ela
sentiu uma pedra da estela tão escura que era quase preta. Ela lançou-a longe dele
enquanto ele pegava sua mão. A pedra quebrou nas pedras na lareira. Houve um som de
agitação, como uma quebra de sincelo, e um tilintar vítreo.
Bryan ficou atordoado. Seus olhos tinham um vazio e ele balançou. Então Alais viu a
faísca como chamas em sua garganta, as linhas de sua força vital percorrendo seu corpo.
Ele olhou para ela, desnorteado. - Engraçado. Não lembro porque ou quando vim até
você.
- Para tirar a pulseira. - Ela podia sentir a confusão em sua mente.
- Sério? Por que?
- Não sei, acho que porque eu não gosto dela.
- Você não sabe? - Ele soltou o nó e começou a desembrulhar as tiras. Então seus
dedos tocaram o metal exposto. Ele gritou e caiu no chão, se contorcendo e rasgando suas
roupas. Alais sentiu sua agonia e ela se inclinou para tocá-lo.
- Ahh! Não, não. Eu sinto muito! Eu não sabia! Eu sinto muito! Não me toque. Isso dói.
Ah, como isso dói!
Alais percebeu que a pedra que ela tirara da garganta dele o protegia da pulseira de
alguma forma. Ele não estava blindado agora, estava nu e desprotegido, e Alais recuou.
E s p a d a d o c a o s | 98

Então ela arrancou uma bolsa de seu cinto e derramou o conteúdo em seu colo. A pequena
chave parecia se afastar dela e ela se atrapalhou para agarrá-la. Ele tinha desembrulhado
metade da pulseira e a fechadura estava logo abaixo da boca feia da salamandra. Os olhos
pareciam deslumbrá-la. A chave vacilou em sua mão, sua visão ficou borrada. Ela tentou
colocar a chave na fechadura e falhou. O turbilhão em sua mente era como um diabo de
poeira e ela se sentiu mal.
Finalmente, ela fechou os olhos e se atrapalhou para acertar a fechadura apenas pelo
toque. A própria sensação da fechadura era fria e viscosa e Alais precisou de várias
tentativas. Finalmente, a pulseira abriu e caiu em suas saias. Com um movimento
atrapalhado, ela caiu no chão e Alais se abaixou para pegar o objeto. Ela se levantou e fez
uma espécie de dança sobre ela, como se a pulseira fosse um inseto vivo embaixo de seus
pés.
Bryan estava sentado e a observando. Não havia cor em seu rosto e ele estremeceu. -
Está frio aqui. – Ele disse como se fizesse uma nova descoberta. - Por que o fogo está tão
pequeno? Não há quase nada de madeira.
- Eu não sei. - Ela deu a pulseira uma última pisada e ouviu um triturar vítreo sob o
calcanhar. - O lugar parece deserto.
- Deserto. Sim, ele está. Eu me lembro agora. Todos eles se arrumaram e partiram
quando minha mãe morreu. Eu sinto como se estivesse longe, como se minha vida fosse
uma pequena imagem que observei na parede. Como um sonho. Lembro-me de Katria
colocando a joia em volta do meu pescoço, e então tudo ficou...pequeno.
- Saia do chão.
- Sim. - Ele não se mexeu, mas olhou para o quarto. - Foi muito bonito, uma vez.
- Levante-se, Bryan. Eu não posso te levantar. - Ela estava tremendo de fadiga, mas sua
perplexidade rasgou seu coração.
Bryan estendeu a mão e pegou a pulseira quebrada do chão. Ele arrancou os trapos
restantes e olhou pensativo para o objeto arruinado. - Parece estar morto. Pobre Enid. Eu
nunca soube que isso a machucava. E nunca vou esquecer a dor. Eu me pergunto se a
fechadura pode ser concertada.
Alais ficou horrorizada. - Por que?
Ele apertou a pulseira desajeitadamente sobre seu enorme pulso. - Não. Nunca se
encaixaria. Eu não quero esquecer nunca que isso aconteceu, entende?
Alais olhou para a cabeça curvada e entendeu que era a sua maneira de mostrar
remorso. Ela balançou a cabeça. O egoísmo saudável de seu pai e a curiosidade egoísta de
seu irmão a deixaram despreparada para testemunhar culpa ou tristeza em um homem. Ela
achou enfurecedor e lamentável.
E s p a d a d o c a o s | 99

- Bryan, derreta e faça uma nova. Há metal suficiente para duas, e... Faça duas. Nós
dois as usaremos para sempre lembrar. - Ela odiava esse pensamento, mas qualquer coisa
era melhor do que vê-lo cabisbaixo e quebrado.
- Você faria isso?
- Sim, meu marido.
Ele se levantou e colocou um braço em volta dos ombros dela, a puxando para ele. Ela
sentiu o calor de seu peito e a batida sanguínea em suas veias. Ele estava vivo novamente e
ela descobriu que estava feliz por ele. - Eu não mereço você.
- Não, você não merece. Mas você está preso a mim de qualquer maneira. - Ela disse
com uma risada para cobrir a alegria em seu coração. Então ela viu que ele estava chorando
e levantou a mão para limpar as lágrimas da bochecha cicatrizada. - Você é um amante
apaixonado preguiçoso, meu marido. Se passaram quatro dias e ainda sou uma donzela.
- Então vamos esperar que o fogo no quarto seja melhor do que este.
E s p a d a d o c a o s | 100

De duas mentes
Susan M. Hansen

Chega um ponto na vida de cada pessoa quando ela tem certeza de que sua vida
nunca mudará. Então algo acontece.
Minha vez veio cedo, quando eu estava no meu décimo quinto ano. Uma época em
que morava na maravilhosa terra baixa, onde eu esperava assumir todas as
responsabilidades da masculinidade e nenhum dos seus privilégios. Eu era apenas Dawyd
MacAran, filho das relações pobres de uma família orgulhosa. Um feudo que tinha dividido
meu pai de seus nobres irmãos, e naquele dia ele jurou que ele não teria relação com eles.
Para Ian MacAran, o orgulho era mais importante que a riqueza ou o prestígio. Há aqueles
que discordariam dele e o chamariam de tolo, mas eu não estou entre esses.
Meu pai ganhava pouco em uma pequena aldeia nas Colinas Venza. Meu irmão Robard
ajudou-o quando chegou à masculinidade. Eu provava ser muito menos útil, escolhendo
servir como aprendiz da antiga curandeira, Marguerida. As energias da minha mãe foram
usadas em amar o marido e os cinco filhos e tentar alimentar todos nós. Liriel, minha irmã
mais velha, a ajudou a cuidar dos pequenos, Alaric e Maellen. Eu não servia de muita ajuda,
realmente, mas não acho que me tornei um caso perdido. Nessas noites, quando
Marguerida me recompensava por um dia de trabalho com uma refeição noturna, minha
mãe tentava esconder seu alívio por polpá-la do trabalho. Eu nunca a recriminei por isso. Os
pequenos ainda estavam crescendo e uma boca a menos para preencher significava mais
para eles.
Marguerida estava ficando fraca e, conforme os anos de meu aprendizado iam
acabando, ela ficava mais lenta, frágil, deslizando lentamente para a senilidade. Ela disse
uma vez que eu tinha um dom para a cura e suponho que ela estava certa, pois seu declínio
tornou-se cada vez mais aparente, as pessoas começaram a confiar mais em mim com seus
males. Eu não me importava com poses, focado apenas na minha alegria no trabalho da
minha vida que eu havia escolhido. Eu tinha encontrado meu lugar e permaneceria nele.
Ou foi o que pensei.
A leronis andavam em um castrado castanho. O dia era brilhante e quente, e as flores
eram uma profulsão de cores vivas. Sua chegada criou bastante algazarra. Era raro que
qualquer um dos vai leroni vieassem a uma vila humilde como a nossa. Uma pequena
multidão se reuniu para assistir enquanto ela cavalgava na estrada empoeirada com sua
pequena companhia composta por dois guarda-costas de aparência forte em libré e uma
donzela frágil e jovem em um chervine marrom.
E s p a d a d o c a o s | 101

O que uma leronis, uma telepata treinada do Comyn, queria de nós? Como se para
responder à pergunta silenciosa, ela guiou seu cavalo e se dirigiu à multidão.
- Eu gostaria de falar com os anciãos da aldeia.
Dentro de momentos foi tudo organizado. Logo depois, com toda a pressa, sua missão
foi explicada para nós. Parecia muito simples, mas fazia pouco sentido. Seu nome era
Melisande e ela vinha da Torre Hali. Sua tarefa era testar as crianças da aldeia entre dez e
dezesseis anos para os dons telepáticos de laran.
Perfeitamente lógico, mas ultrajante. Nunca os leronyn das Torres procuraram seu tipo
entre os assentamentos humildes. Entendia-se que o sangue de Comyn deveria ser mantido
puro, sem mestisagem. Para que propósito eles se buscavam em tais profundidades?
Eu não esperava uma explicação e, quando chegou a minha vez, depois que uma dúzia
ou mais filhos tinham sido afastados e alguns disseram que eles tinham algumas
habilidades latentes não correspondentes, a leronis não se ofereceu para explicar nada. Ela
me disse para se sentar e relaxar. Ela parecia um pouco entediada com o assunto.
Recolhendo-se para se concentrar, Melisande descubriu gentilmente sua pedra da
estrela, o brilhante cristal azul usado para amplificar os poderes psiônicos daqueles
treinados nas Torres. Podia ser usado para comunicação, localizar objetos perdidos ou
pessoas, psicocinese ou cura. Isso também aprendi com Marguerida que, por muitos anos,
fora parteira para os Altons de Armida onde essas coisas eram comuns. A maioria das
pessoas temia as pedras da estrela como ferramenta de feiticeiros. Eu conhecia melhor,
mas temia mesmo assim.
- Olhe para a pedra. – Ela ordenou. - Não toque nela, simplesmente olhe e diga o que
acontece.
Eu obedeci. Meus olhos pareceram cauterizar em uma dor cegante e algo parecia se
retorcer. Luzes minúsculas dentro da pedra pareciam se contorcer e dançar e meu
estômago começou a imitar seus movimentos.
- Acho que vou ficar doente. – Eu disse com voz rouca, fechando meus olhos. Com um
ar suave de triunfo e surpresa, Melisande cobriu sua matriz, e o mau estar desapareceu.
Desnorteado, pensei: o que isso significa?
- Não fique tão assustado, criança. – A leronis sorriu gentilmente. - Posso fazer-te
algumas perguntas?
Eu assenti. Ela sorriu de novo.
- Você tem saúde frágil? Você frequentemente fica doente? - Ela arrumou a bolsinha
de camurça que segurava sua pedra da estrela.
Eu balancei a cabeça. Ela pareceu um pouco surpresa. - Nenhuma tontura,
desorientação, pesadelos?
E s p a d a d o c a o s | 102

Isso trouxe de volta algumas memórias não tão agradáveis de quando eu tinha doze
anos. Por meses, meus pais acharam que eu estava perdendo o juízo, pois fui atormentado
por dores de cabeça, visões e vozes, nenhuma das quais eu poderia explicar. Felizmente,
elas se desvaneceram conforme os meses passavam e agora eu não os tinha mais, até tinha
esquecido.
Eu relatei isso a Melisande, que assentiu como se entendesse. Sem outra palavra, ela
mediu algum líquido de um frasco de cristal em um pequeno copo.
- Beba. – Ela ordenou.
Um pouco hesitante, eu cheirei primeiro, mas isso não me deu nenhuma informação.
Então eu bebi. O líquido ácido pareceu evaporar na minha língua. E depois apenas esperei.
Dawyd MacAran. A voz silenciosa de Melisande falou. Mas ela não tinha falado.
Eu olhei para a leronis com medo e confuso demais para falar. Ela sorriu fracamente,
assentiu e ouvi a voz dela novamente.
Dawyd, você tem laran. Não treinado, subdesenvolvido, mas com treinamento você
será um telepata forte.
Eu venho procurando por um garoto como você, com um laran, para servir Lorde
Marius que se senta no trono em Thendara. Você conhece seu filho, Mikhail?
Eu não tinha certeza de como responder. Eu tinha ouvido muito sobre ele. Ele era um
idiota, cego, surdo e mudo.
A voz de Melisande retornou, pesada com tristeza. Isso é verdade. Mas ele deve ter um
companheiro agora que conhela e serva suas necessidades. É assim que você pode servir
Lorde Marius.
Isso eu entendi, mas por que um pobre das colinas? Por que não um filho do Comyn
privado de uma herança decente por uma dúzia de irmãos mais velhos, estranhos, nobres,
como ele? Até mesmo o nedestro de algum Lorde seria uma escolha mais lógica do que eu.
Melisande ouviu esses pensamentos e respondeu. Há aqueles, Dawyd, que podem
usar tal posição para ganhar influência, poder. Para qualquer um de sangue Comyn a
tentação seria demais. Não somos santos, você sabe. Eu senti risos sob o pensamento. No
entanto, a pobreza e o laran não eram os únicos pré-requisitos. Você acha que é a única
criança talentosa que encontrei em minhas viagens? Ela olhou para mim, meio séria, meio
zombando.
Depois de um momento, falei em voz alta pela primeira vez no que parecera horas. -
Su serva, domna. Eu irei.
Então deixei minha aldeia, junto com Melisande, para ir à Torre em Hali. Lá eles me
ensinaram a dominar meu dom e transformá-lo em uma habilidade. Com o tempo, recebi
uma matriz, fui treinado em seu uso e, em seguida, jurei nunca usar ou permitir seu uso
indevido.
E s p a d a d o c a o s | 103

~o⭐o~
Mesmo enquanto eu montava escoltado em direção aos portões do Castelo Hastur, o
cordão de seda e a bolcinha suave de camurça parecia estranha e desconhecida no meu
pescoço. Pouco mais de um mês atrás eu usava trapos desgastados. Agora eu usava um
bom libré, digno de um filho do Comyn.
Um servo nos encontrou no portão, acenou para um menino para ele cuidar dos
cavalos e pegou o pequeno saco em que eu levava meus poucos pertences. Ele me levou
pelos corredores e escadas que me pareceram um labirinto até um quarto grande e
ricamente decorado. Em uma pequena mesa estava um homem alto e esbelto com cabelo
ruivo cinzento nas têmporas e olhos cinzentos afiados. Ao seu aceno de cabeça, o velho
servo desapareceu e eu fiquei sozinho com Marius Hastur, Lorde dos Sete Domínios.
Depois de um momento, ele disse: - Vamos, rapaz, relaxe. Eu não mordo. Sente-se. -
Eu obedeci e ele sorriu. – Assim é melhor. Sua viagem foi longa. Você está cansado?
Eu balancei a cabeça e falei pela primeira vez. - Não, meu Lorde. O passeio não foi
extenuante. - Meu medo tirou o melhor de mim e mal consegui dizer essas palavras.
Finalmente, Marius jogou a cabeça para trás e riu. - Você me faz sentir como se eu
fosse um ogro, jovem Dawyd! Sou tão temível assim?
A tensão sumiu e eu relaxei. Ele podia ser o Lorde dos Domínios, descendente dos
Deuses, mas, cara a cara, ele era um homem, cansado, mas gentil. - Não, vai dom. -
Respondi, tentando devolver o sorriso dele. - Sinto muito.
- Não me ofendi, mas isso também não é importante. O importante é que você
perceba que aceitou uma tarefa difícil, criança.
- Eu sei, Dom Marius. – Era cansativa, sem dúvida, mas quão difícil poderia ser cuidar
de uma criança desamparada?
Marius continuou. – Não quero que você leve a tarefa de ânimo leve. Apesar de tudo o
que ele é, Mikhail é meu único filho. - Havia um mundo de dor nessa voz e eu não
suportava isso.
- Ele será tratado como se fosse meu irmão de sangue, Lorde. Eu juro.
Os olhos de Marius por um momento pareceram perfurar a minha alma. Então,
levantando abruptamente, ele ordenou: - Bem, então, é hora de você conhecer Mikhail.
Lorde Marius me levou a uma suíte bastante inacessível de quartos no lado leste do
castelo. Sentado em uma janela estava a criança mais linda que já vi. Seu rosto era fino e
sem marcas, seus traços suaves, cabelo vermelho escuro com tons de cobre brilhante. O
que mais me assombrou, porém, foi os olhos dele. Eram cinzas e quase incolores,
parecendo vazios e sem expressão.
Nós éramos muito diferentes. Embora ele estivesse abaixo do peso, Mikhail era
sutilmente construído, enquanto eu era alto para a minha idade e magro. Meus olhos não
E s p a d a d o c a o s | 104

eram cinzentos, mas sim azul brilhante, e meu cabelo escuro marrom tinha apenas alguns
tons sutis do vermelho que Mikhail possuía em abundância. Dificilmente duas pessoas
poderiam ser menos parecidas.
Marius colocou a mão no ombro do filho. Como um gato, Mikhail se virou e... bem,
suponho que a melhor maneira de descrever seja que ele atacou a mão de Marius, primeiro
cheirando-a, depois pressionando-a em sua bochecha. A criança então relaxou
visivelmente. Observei espantado com sua rapidez. Marius retirou e fez sinal para que eu
seguisse seu exemplo.
Eu hesitei, inseguro. Marius esperou, com expectativa e finalmente coloquei minha
mão no ombro da criança.
Mais uma vez, a reação foi rápida, mas apenas Mikhail não foi tão rápido para relaxar.
Em vez disso, ele franziu a testa e repetiu seus movimentos. Então, como se tivesse
arquivado a informação em algum lugar em seu cérebro, ele soltou minha mão.
Marius riu. - E agora que você foi introduzido corretamente, vou deixar você
descansar. Então você estará revigorado o suficiente para jantar comigo esta noite. Nos
falaremos mais tarde.
Com isso, ele saiu. Mikhail parecia bastante satisfeito naquele momento, então
caminhei no quarto que deveria ser meu, me sentindo desconfortável. Algo não tinha ido
na última cena. Eu não conseguia descobrir exatamente o que era, mas algo estava
estranho...
Espere. Tudo o que eu conseguia lembrar era a dor velada de Marius, preocupação,
meu próprio medo. Depois de um tempo, quando você é uma telepata, a aura emocional
ao seu redor se torna parte da sua memória também e eu não tinha nenhuma de Mikhail.
Sem medo, sem curiosidade, nem mesmo tédio. Nada.
Eu não conseguia entender isso. Até mesmo um idiota deveria ter emoções. Seria
algum tipo de escudo natural, algum fluxo estranho ou ele podia realmente estar tão longe
do mundo?
Bem, se preocupar com ele não vai mudá-lo, pensei. Pelo menos não hoje à noite. Eu
tinha cerca de uma hora antes de ir jantar com Lorde Marius. Decidi usar esse tempo para
tomar banho e me tornar apresentável. Que estranho, pensei. Sujo e empoeirado como eu
estava, vestido com roupas viagem desgastadas na estrada (melhores do que quaisquer
outras que já tivera antes, mas ainda assim na extrema necessidade de lavar), eu passei a
última hora falando com um rei. Bem, eu agora eu já podia me livrar da sujeira. O banho
luxuoso foi rápido e notei uma muda de roupas espalhadas na cama.
Uma vez limpo, mexi nelas e achei que poderiam muito bem ter sido feitas sob medida
para mim de tão bem costuradas no meu tamanho. Uma camisa branca com bordados de
linho na manga, uma túnica azul que por coincidência combinava com meus olhos, e calças
E s p a d a d o c a o s | 105

marrons que se arrumei dentro de botas de couro fino. Eu parecia um príncipe, mas eu me
sentia como um menino ignorante vestido como um príncipe.
Uma ama idosa veio para ficar com Mikhail durante a noite e, em pouco tempo eu
estava sentado à mesa de Lorde Marius. Nós não estávamos na enorme sala de jantar
formal, mas na pequena sala onde nos conhecemos. A primeira parte da noite foi gasta
trocando futilidades educadas. Então, sem nenhuma razão aparente, ambos ficamos em
silêncio. A tensão aumentou. Finalmente, Marius falou.
- Dawyd, eu disse antes que você não tem uma tarefa fácil. E isto é verdade. Acho que
você não percebe o que significa cuidar de uma criança que não pode dizer nem por que
chora e nem por que ri. Você vai limpá-lo, alimentá-lo, vesti-lo, e ele não vai te dar nada em
troca. E você vai começar a amá-lo, também, se você é a pessoa que acho que você é, e
Mikhail não é uma criança fácil de amar. Confie em mim, eu sei. - Seus olhos ficaram graves
e tristes. Eu senti sua dor como se fosse minha.
Ele olhou para mim sombriamente. - Mas se você começar a amá-lo ou não, seja gentil
com ele. Isso é tudo que te peço. Seja amável, porque os Deuses irão cuidar de você da
mesma forma que você cuidou de meu filho. Camilla e eu nos sentimos irados com ele
algumas vezes. Ela não gerou qualquer criança viva desde Mikhail. Talvez a abençoada
Avarra permita que este viva. Senhor da Luz, ouça as nossas orações.
As palavras não ditas ecoaram como se fossem ditas em voz alta.
Uniforme e silenciosamente eu respondi: - Eu não vou ficar irritado com ele, vai dom.
Marius sorriu um pouco, meio zombeteiro. - Ah, eu acredito em você, chiyu. Foi minha
própria consciência dolorida falando. Meu filho não é o que o mundo espera que ele seja e,
apesar do poder e das riquezas que tenho, há pouco que posso dar-lhe, mesmo quanto se
trata de tempo. Raramente fico aqui com ele e a dor e culpa que Camilla sente fazem o
cuidado com Mikhail se tornar insuportável, o que, por sua vez, apenas aumenta sua
angústia. Ela está grávida novamente e tem tanto medo de abortar que ela mal se mexe em
sua cama. A parteira disse que logo ela estará muito velha para o parto. - Marius bebeu seu
vinho, pensativo. - Meu sobrinho, Damon, é meu herdeiro designado. O Conselho nunca
aceitaria Mikhail. - Suas palavras simples ficaram suspensas no ar.
De repente, percebi como eu estava cansado e empurrei meu vinho. Não é cortês
adormecer na frente de um rei, nem mesmo de um tão gentil. Marius enrubesceu.
- Você tem sido um bom ouvinte, Dawyd, e agora você deve descansar. Sua tarefa
começará em breve.

~o⭐o~
E assim aconteceu, mas não foi uma tarefa tão difícil no começo. Mikhail era passivo,
flexível. Ele parecia se importar pouco com o que era feito com ele e menos ainda com
E s p a d a d o c a o s | 106

quem estava fazendo isso. De qualquer forma, se não fosse assim eu também não poderia
dizer, pois não havia nenhum traço de contato entre nós. Ele tinha algum tipo de barreira
natural que eu não tinha a habilidade de transpassar, então eu deixei em paz, sozinho.
Mikhail, como notei antes, gostava de tocar as coisas, sentir suas texturas. Ele poderia
se sentar por horas explorando um objeto com os dedos, como se estivesse tentando
determinar seu significado e propósito. Era quase místico. O que acontecia em sua mente, o
que havia nele, atrás dos vazios olhos cinzentos? Eu transformei isso em um jogo, dando-
lhe coisas novas, que ele aceitava ansiosamente, para tocar e sentir. Eu também lhe dava
coisas familiares, que, incrivelmente, ele reconhecia. Uma vez, trouxe uma rryl, deixando-o
sentir que as vibrações percorriam as cordas enquanto eu tocava diferentes acordes. Ele
até aprendeu a tocar alguns. Ele nunca sorria ou demonstrava fisicamente reconhecer de
alguma forma, mas de algum jeito, eu sabia que eles o agradavam.
Tudo isso somado, foi uma existência tranquila e pacífica. Não tive nada dele
especialmente, mas vivi muito melhor do que eu já tinha vivido em minha casa. Mas depois
de um tempo, comecei a me sentir enjaulado. Eu ansiava por companhia. Estar com Mikhail
tomava todo o tempo de meus dias, mas muitas vezes era o mesmo que ficar sozinho na
sala. Minha frustração cresceu à medida que as semanas se passaram.

~o⭐o~
Então, os sonhos começaram. Eles são difíceis de descrever, pois eles não envolviam
imagens que eu lembrasse, muito menos algo que fosse criar relações. Suponho que
parecia principalmente como ondas e mais ondas de fortes emoções, frustração sem
palavras, dor, raiva, uma solidão dolorosa como uma dor de ser esfaqueado ou esganado,
confusão, ansiedade.
O que estava acontecendo?
Os sentimentos sumiam pela manhã e eu queria lembrá-los mais claramente do que
qualquer sonho normal. Essas experiências perturbadoras me deixaram ainda mais
inquieto. Me tornei irritável e indisposto. Uma vez, eu mesmo levantei a mão para bater em
Mikhail quando ele acidentalmente derrubou um jarro de vidro. Ele recuou, como se
pudesse ver a minha intenção.
Isso me chocou a tal ponto que retomei os sentidos antes do golpe. Abracei-o mais ou
menos como um pedido de desculpas e me perguntei o que tinha acontecido para o fazer
recuar de forma instintiva. Hábito, talvez? Se suas amas o tivesasem tratado assim ninguém
nunca saberia. Fosse o que fosse, eu não faria o que fizeram com ele antes, por isso não
importava. Mas eu sabia que precisava sair por um tempo antes que eu ficasse agitado
demais para cuidar dele apropriadamente.
E s p a d a d o c a o s | 107

Pedi uma ama, uma senhora de idade em quem eu confiava, para ficar com Mikhail
durante o dia. Então convidei Felix, o filho do coridom, para me acompanhar. Ele era um
rapaz rude, mas amigável, tinha quase a minha idade e seria uma companhia agradável. Eu
não pensei em Mikhail, afinal sinceramente eu duvidava que ele sabia ou se importava com
quem estava com ele. Assim, desde que a pessoa fosse familiar e cuidasse de suas
necessidades, ele ficaria calmo e dócil. Então eu o beijei na testa com o carinho que eu
estava apenas começando a perceber que sentia por ele, e saí.
Fiquei inquieto o dia todo. Então voltei à noite e encontrei a antiga ama, Gwynnis,
perto da histeria.
- Eu nunca vi o rapaz em tal estado! Durante o dia todo não me permitiu tocá-lo, não
quis comer, apenas ficou ali, quieto como um rato, chorando. Abençoada Cassilda, qual é o
problema com a criança?
Fiquei intrigado. Ele nunca tinha se comportado dessa maneira na minha presença.
Entrei na sala de Mikhail.
Ele estava sentado ali, brincando com um pedaço de fio. Não havia nenhum traço,
nenhum sinal da cena que Gwynnis havia descrito. Olhei para ela e seu rosto tinha uma
expressão assustada. Ela não estava mentindo. Algo estava terrivelmente errado.
Eu levantei o queixo de Mikhail em minha mão e apertou minha bochecha à sua. - Olá,
chiyu. - Eu disse, exclusivamente para o meu próprio benefício já que isso estava se
tornando um hábito, afinal só o silêncio me respondia.
Com uma ferocidade que eu nunca tinha visto nele antes, Mikhail pegou minha mão e
apertou-a contra seu rosto. Durante o que pareceu um longo tempo, ele segurou-a
firmemente, calorosamente.
Desnorteado, eu gentilmente a retirei dali. O que isso poderia significar?
Naquela noite, sonhei novamente.
Temor. Abandono. Uma solidão tão profunda que parecia uma queda sem fim, caindo,
caindo... Um buraco negro de dor oca. Uma raiva impotente parecia devorar as defesas
como um ácido forte. Um desespero indescritível, insuportável.
Me sentei na cama confuso, mas totalmente acordado. As emoções frenéticas ainda
me sobrecarregavam como um fumaça densa me sufocando. Às cegas, sem pensar, me
levantei da cama e segui um puxão subliminar para a fonte da minha aflição.
Então me vi ajoelhado ao lado da cama de Mikhail. Ele estava acordado, imóvel como
uma estátua ou um cadáver, os olhos abertos, sem piscar. Ele mal parecia estar respirando.
Enquanto me ajoelhei ao seu lado, as ondas de dor quase me fizeram chorar em voz alta. E
então eu entendi.
Laran. Que tipo de laran um idiota poderia ter? Por que eu não percebera mais cedo?
Os sonhos vinham apenas à noite. Ele sabia o que estava fazendo?
E s p a d a d o c a o s | 108

...Mas um idiota não poderia saber. No entanto... Era muita coincidência. Demais. Um
idiota não poderia saber.
Então Mikhail não era um idiota. Ele estava tentando comunicar seus sentimentos da
única maneira e na única língua que ele conhecia. Ele estendia a informação à noite,
quando eu podia ouvir, quando eu não estava o vestindo, alimentando ou limpando,
cuidando dele, mas nunca realmente se importando com ele, se preocupando com o quão
solitário ele era e com quem poderia falar.
A criança estava presa dentro de si mesma, sua infelizmente, seu imperfeito escudo
em forma de um corpo, a mais de dez anos. Coloquei meus braços em volta de seus ombros
frágeis, segurei-o com força. Eu estava chorando. Acho que ele também estava.
- Eu ouço você, Mikhail. - As palavras não significavam nada. Mas o toque abriu uma
chama de contato entre nós e senti o desespero quebrado por uma alegria faminta por ser
alcançado...
...Combinado, unido...
Senti a umidade de suas lágrimas na minha bochecha e soube, talvez com um lampejo
de precognição, que essa criança em meus braços significaria mais para mim do que um pai,
mãe ou irmão.
- Bredu, irmão amado. - Sussurrei, engasgando com minhas palavras.
Nós não tivemos facas para trocar. Mas poderíamos usar a lâmina fina de nosso laran
para cortar os laços de sua prisão.
Mikhail tinha muito a aprender.
E s p a d a d o c a o s | 109

Através do fogo e da geada


Dorothy J. Heydt

Um vento gelado veio da montanha, através das árvores de cheiro pungente, sobre o
couro cabeludo nu de Padre Piedro e pelo pescoço. Estranho, um vento leste no meio do
inverno. O vento das Hellers, tão gelado e muito mais forte, deveria estar soprando do
noroeste e por cima do ombro. Mas nenhum homem sábio confiava no tempo para fazer o
que deveria. Sem dúvida, mudaria novamente em algumas horas.
O mundo estava cheio de sussurros sob esse vento suave: o farfalhar das árvores, o
toque suave dos cascos dos burros através das agulhas caídas com sua fina queda de neve,
o murmúrio das orações de Padre Piedro. Duzentos salmos cantados em quatro horas e se
repetindo novamente, mantendo metade de seu consciente ocupado enquanto sua alma
meditava sobre os sagrados mistérios que o uniam ao mundo e tudo o que estava nele, e,
também, o que o mantinha aquecido mesmo nas neves de Nevarsin.
Ele era um jovem alto e gorducho, seu cabelo preto despenteado em torno de sua
coroa raspada, as cicatrizes dos problemas de pele juvenis ainda eram visíveis em suas
bochechas. Os pés com sandálias depois de suas longas pernas quase alcançando o chão
sob os flancos do burro. Ele acabara de completar apenas seu vigésimo aniversário e já fora
ordenado como Padre cristoforo e o Mestre Padre tinha lhe concedido permissão para
passar o Festival do Meio do Inverno com sua família no mundo exterior. Sua barriga ainda
estava cheia do pão de especiarias de sua tia e seus alforjes repletos de pacotes da erva
espinheir com propriedades curativas do jardim dela.
O burro levantou a cabeça cinzenta e zurrou suavemente, quase um gemido. Padre
Piedro trouxe sua atenção de volta à terra. - Você sentiu o cheiro de alguma coisa,
irmãozinho? Eu também. - O perfume era mais forte conforme o vento soprava mais
suavemente: fumaça de resina. Em algum lugar, a floresta havia queimado ou estava
queimando ainda. Fora um inverno seco.
Qualquer homem forte, até mesmo um monge, estava fadado a tomar o seu lugar nos
linhas de fogo para ajudar. Mas onde estava o fogo? Ele não sabia se rezava para encontrá-
lo para que pudesse ajudar a extinguir a ameaça tão mortal ou se para não encontrar e
assim poder continuar seu caminho até Nevarsin sem atrasos.
A estação de fogo de Cormac estava logo à frente, seus poucos telhados musgosos se
tornando visíveis através das árvores. Ele pensou em dar o alarme ali, mas certamente já
havia sido dado. Os homens da montanha não eram suscetíveis a dormir enquanto a
fumaça subia pelas árvores. Ele bateu na parte traseira angular do burro e fez o pequeno
animal seguir em um meio trote relutante.
E s p a d a d o c a o s | 110

Não havia homens na estrada entre a meia dúzia de cabanas ásperas do


assentamento. Nenhuma mulher coletando água da pequena primavera que escorreu fora
da rocha para cair a mil pés no vale. Nem mesmo as crianças que deveriam ter saído com a
curiosidade superando a timidez para olhar o estranho. Os homens podiam estar fora nas
linhas de fogo, mas onde estavam os outros? Havia alguma doença na região? Ele colocou o
pé no último palmo do chão e balançou sua longa perna sobre a cabeça do animal. O burro
levou mais alguns passos antes de perceber que seu piloto havia desmontado e era hora de
parar. Ele inclinou a cabeça para olhar para a cabana mais próxima. Estava deserta. Seu pé
atingiu uma xícara de madeira abandonada no limiar. Ele atravessou o lugar. Doença, ele
pensou, ou então eles temiam que o fogo estivesse chegando aqui e saíram da região. Ele
olhou para outra cabana. Também estava vazia.
Ele abriu a porta da terceira, suas dobradiças de couro fazendo barulho, e uma voz lá
dentro chamou: - Mikhail? – Era a voz de uma mulher, estridente com medo ou raiva.
Ele abriu mais a porta e entrou.
A mulher estava deitada sobre um palete de resina fina perto da lareira, coberta com
uma colcha remendada. A colcha estava manchada de sangue, mas a mulher parecia bem,
embora seu rosto estivesse muito pálido contra seu cabelo escuro. Ela tinha se elevado
apoiada em um cotovelo e estava tentando ver seu rosto indistinto como devia parecer
com a luz do sol de inverno brilhando por trás dele. Quando ele se ajoelhou ao lado dela,
ela afundou no colchão. - Você não é... Me desculpe, Padre. Por um momento pensei que
você fosse meu marido.
- Sou o Padre Piedro. Está tudo bem, minha filha? Onde estão os outros?
- Sou Catriona. Os homens estão nas linhas de fogo. Mhari e os outros foram embora
ontem. O fogo estava se aproximando, mas não veio.
- Eles deixaram você aqui?
- Eu estava em trabalho de parto e não poderia viajar. - Seus olhos se fecharam por um
momento. - Doeu muito. Eu não podia andar, não conseguia nem ficar de pé. Eu os mandei
ir ou todos teriam morrido comigo. Mas o fogo não veio e, à noite, tive meu bebê. - Ela
puxou para baixo a borda da colcha e Padre Piedro viu o cabelo escuro emaranhado e
achatada rosto de um recém-nascido. - Ela não é linda?
- Encantadora. - Ele concordou. Para ele o bebê era idêntico ao novo filho de sua irmã
e feio como um coelho-da-lama afogado. Mas toda criança era bonita aos olhos de sua
mãe. Ele tentou se lembrar o pouco que tinha lido sobre os cuidados com mães e bebês. Os
Padres curandeiros não ensinaram obstetrícia. - Você amarrou e cortou o cordão umbilical?
- Sim, e queimei a placenta no fogo. Depois apenas ficamos na cama. Seu nome é
Alanna. Meu futuro marido... - Ela parou, os olhos arregalados, e lá fora, na estrada, o burro
E s p a d a d o c a o s | 111

gritou. Piedro se pôs de pé, com a cabeça tocando de leve o inferior do colmo. O cheiro de
fumaça era forte em suas narinas. O vento tinha mudado.
- Este vento leste foi enviado por misericórdia, - disse ele - para deixá-lo ter sua filha.
Agora o fogo está chegando de novo e temos de andar rápido. Você pode se levantar?
- Sim, eu levantei esta manhã para pegar uma roupa limpa. - Ela pôs-se de joelhos. - Eu
preciso outra agora. Alanna está molhada ou pior. - Ela pegou uma pequena pilha de
tecidos dobrados: uns trapos do bebê cuidadosamente recolhidos de cada pano desgastado
que ela conseguiu encontrar. - Mas acho que não posso andar muito.
- Não precisa. Você vai montar meu burro. - Ele deu as costas enquanto ela habilmente
limpava o minúsculo corpo do bebê e amarrava a nova fralda no lugar. Não era realmente
apropriado para ele assistir e, ainda assim, ele sempre se perguntou como essas coisas
eram amarradas fixadas no lugar.
Ele olhou ao redor da cabana procurando algo que valesse ser salvo, mas as parentas
de Catriona tinham despojado o lugar. Ele achou parte de um pão bannock4 e uma garrafa
de couro com cerveja amarga na lareira e os apanhou. Eles poderiam ser necessários antes
de chegarem a próxima aldeia.
- Você tem roupas quentes para o bebê? Uma bolsa de pele? Vamos atravessar a neve
até a guarda de Maclidan. Me dê o resto dos trapos. Não, não o sujo, não em meus alforjes
cheios algumas coisas simples. É melhor se apoiar em meu braço. – Ele a ajudou a ficar de
pé e levou-a para fora da cabana.
O cheiro de resina queimara agora era forte. O burro ficou tremendo no meio da
estrada, suas orelhas para trás, o branco de seus olhos à mostra, quase pronto para
enlouquecer e correr. – Calma, irmãozinho, calma. Vamos sair daqui. - Ele colocou os trapos
do bebê nos alforjes e ajudou Catriona a colocar o pé no estribo.
Ela montou com bastante facilidade, mas, em seguida, levantou-se imediatamente nos
estribos com um olhar chocado em seu rosto. - Ai! Padre, dói para sentar.
- Sente em um lado. - Ele disse com firmeza, sentindo seu rosto ficar vermelho e
quente. Do pouco que sabia sobre a mecânica da gravidez, ele acreditava que partes
inferiores da mulher estavam doloridas, mas ela não podia ficar ali para se recuperar. –
Mova sua outra perna por cima e sente-se na lateral da sela como uma Com'ynara. Isso
mesmo.
Ele voltou para a cabana para pegar o bebê, seguramente escondido em uma bolsa de
couro com uma pequena capa em seu rosto. A pele ao redor da abertura era pobre e o
couro desgastado. Alanna poderia ter sido o décimo segundo ou o quinquagésimo bebê no
pequeno povoado de tê-lo usado. Quando ele a pegou, ela abriu os olhos. Eles eram um

4
N. da T.- ‘Bannock’: tipo de pão feito com farinha de trigo, moldado em bolos redondos e planos, fritos ou assados.
Originário da culinária canadense indígena.
E s p a d a d o c a o s | 112

estranho azul-esverdeado, como os olhos de seu pequeno sobrinho, porém mais


profundos: da mesma cor de nuvens carregadas ou talvez do mar que nenhum deles jamais
tinha visto. Ela não estava realmente olhando para ele, mas seus olhos pareciam
devastadores. De repente, ele percebeu que estava na presença de uma pessoa real, não
apenas um tipo de ovo com pernas, mas um ser humano em seu próprio direito, embora
pequeno o suficiente para segurar em seus braços.
- Olá. – Ele disse suavemente. O bebê olhou para seu nariz primeiro e depois todo o
seu rosto. - Olá, Alanna. - Ela espirrou, um som pequeno como um rato irritado, ele riu e
levou-a para fora da cabana.
Catriona conseguira se acomodar com relativo conforto nas costas do burro, sua
colcha dobrada sob ela e seu pesado manto ao seu redor. Ele colocou o bebê em seus
braços.
- Aí está você, pequena. - Ela esfregou o nariz contra o pequeno rosto do bebê e fez
um som tolo como uma pomba bêbada. Alanna gorgurlhou. Piedro parecia um pretendente
rejeitado. - Ela não é linda? - Ela disse novamente.
- Linda. - Ele disse, sinceramente desta vez. - Em doze ou treze anos você terá que
controlar grupos e mais grupos de rapazes em sua porta.
Que maneira de um padre falar, ele pensou. Ele pegou as rédeas do burro e se virou
para estrada. A fera não precisou nem ser forçada a seguir, notoriamente aliviada.
Ele tentou calcular quanto tempo eles tinham. Com o vento noroeste novamente, o
fogo iria montanha acima até chegar faminto a linha de madeiras e repleto de combustível.
Quanto tempo isso levaria dependia não apenas de quão rápido o fogo poderia queimar,
mas também de quão longe a montanha estaria. Ele havia planejado chegar ao pequeno
abrigo na linha de árvores ao anoitecer, uma questão de duas ou três horas. Mas isso seria
andando, não trotando. Não que eles pudessem correr todo o caminho até a montanha.
Mas então, Catriona e Alanna juntas não pesavam tanto nas costas do burro como ele. Ele
percebeu com uma sensação de frustração que não tinha como descobrir se eles
escapariam do fogo ou não.
E, portanto, claramente não era problema dele. Foi uma questão para o santo
cristoforo, Portador dos Fardos, ou para o Arcanjo Rafael que se importava com as crianças
desamparadas. Ele colocará seus anjos para cobrar de você, fará com que você bata teu pé
contra uma pedra. O fogo não irá te consumir durante o dia, nem o frio à noite. Tudo que
Piedro tinha que fazer era confiar nisso e manter o burro em movimento. Ele alongou seu
passo um pouco. Logo ele estava cantando de novo, sua mente inferior ocupada indo de
um salmo para o próximo, sua mente superior contemplando os arcanjos sagrados. Alguma
parte entre elas o mantinha na estrada.
E s p a d a d o c a o s | 113

As árvores diminuíram, a neve ficou mais profunda sob os pés do annimal. No


comprimento do alcance de uma flecha após os afastamento das árvores uma pilha de
escombros cobertos de neve estava ao pé de uma geleira pequena e suja. – Louve o santo,
oh seus filhos, lovem seu nome. Sob o sol se levantando para o seu cenário, louve o... -
Piedro saiu de suas meditações, parando no meio de um salmo, para perceber que eles
estavam quase fora da madeira e protegidos do fogo. Mas também percebeu que ouvia um
som crepitante, não tão longe atrás. Algo estava batendo pelas árvores: um animal? Não,
era acima de sua cabeça, quebrando galhos como se fosse um pássaro incrivelmente
enorme, então ele puxou o freio do burro, gritando - Pare! – E puxou a fera assustada do
caminho, entre as árvores, a cinco metros da estrada, cerca de dez pés. Acima de suas
cabeças, uma grande árvore estava caindo, uma árvore ancestral das outras, suas raízes
mortas sob o tronco, rangendo enquanto galhos caiam. Pequenas chamas surgiram ao
redor. Piedro se esforçou entre as árvores, arrastando o burro aterrorizado atrás dele,
inseguro do caminho, mas esperando que fosse o caminho para a segurança. A luz estava
aumentando à frente dele e, por um momento, ele temeu que ficassem cercados pelas
chamas, mas então ele se viu tropeçando pelo caminho aberto, as árvores atrás dele, o fogo
atrás dele, refletindo no campo de neve.
- Você está bem, minha filha? E o bebê? - Filha, ele pensou descontroladamente. Ela é
mais velha do que eu.
- Estamos bem, padre. Alanna, acredite se quiser, ainda está dormindo.
Piedro olhou por cima do ombro: o brilho do fogo misturado com a luz do sol poente.
As árvores atrás estavam queimando, mas ficou claro que eles tinham escapado. Um veado
saiu correndo da floresta com seu pêlo chamuscado. Ele os evitou e saltou para longe,
correndo por todo o pé da geleira. Então a neve começou a cair.
Primeiro alguns flocos, à deriva loucamente nas correntes ascendentes do fogo, até
que seu calor os derreteu em pingos de chuva que cairam chiando no fogo. Mas uma
nuvem escura estava rolando para cima e a neve caiu mais grossa e mais pesada enquanto
eles observavam, flocos juntos em grupos que atingiram o chão coberto de neve com
estalos audíveis, uma queda de lama ao invés de neve, úmida e suja de fumaça e cinzas. o
avanço do fogo diminuiu e vacilou. Os galhos em chamas na árvore mais próxima foram
apagadoas, um por um. O rugido das chamas morreu, deixando a montanha em silêncio,
exceto pelo tamborilar fraco da precipitação lamacenta.
- Obrigado, Santo Rafael. – Piedro disse. - A maior parte desta terra não está
realmente morta e voltará a crescer na primavera.
- Talvez eles encontrem um laranzu para trazer a neve. – Catriona disse.
- Talvez. – Piedro disse. Ele não se incomodaria em discutir os poderes relativos dos
homens e dos anjos. - Se o fizerem, será uma boa. Olhe a neve! Nós nunca vamos superar o
E s p a d a d o c a o s | 114

cume para a Maclidan esta noite. Vamos nos abrigar na caverna. - Ele levou o burro através
dos escombros cobertos de neve até a escarpa de uma rocha que marcava o final da
passagem. Aqui, há mais tempo do que qualquer um se lembrava, homens fortes
empilharam três lajes de pedra juntas para dar um abrigo rudimentar: um telhado e duas
paredes contra o pé da escarpa. Mal havia espaço para todos eles com o jumento. Como
Piedro esperava, os galhos da árvore que os viajantes anteriores tinham cortado para fazer
uma cama ainda estavam ali, secos agora, mas era melhor do que ficar sobre neve ou
rocha. Ele colocou Alanna, ainda envolta em sua bolsa, em uma cama de galhos de árvores
e ajudou Catriona a sair do burro. Ela deslizou de joelhos e deitou-se ao lado de sua filha.
Alanna começou a choramingar, então Catriona abriu a túnica e a colocou no peito. Piedro
pegou a colcha da sela e colococu sobre elas.
- Não se instale ainda. – Ele disse. Ele se atrapalhou na escuridão perto da sela. - Se
meu irmãozinho fizer o que eu pedir, vou lhe conseguir uma linda almofada quente. - Ele
convenceu o burro a ajoelhar-se e colocou Catriona contra seu flanco, Alanna na dobra do
braço dela. Em um dos alforjes havia um pequeno saco de grãos para o jumento e ele
estendeu-o sob seu nariz. No outro saco estava o pão e a cerveja de Catriona. Ele procurou
mais a fundo sob o espinheiro cheiroso, procurando o pacote de bolos doces de sua tia
Adriana, e o encontrou pelo aroma e tato. O sol já tinha se posto e a escuridão era quase
absoluta. - Liriel está quase cheia esta noite. - Ele comentou. - Quando ela nascer sobre as
montanhas teremos um pouco de luz. Enquanto isso, vamos comer. - Ele se estabeleceu ao
lado Catriona contra a lateral do burro, dividiu o bannock e um dos bolos doces, e colocou a
garrafa no chão entre eles.
- Acho que não podemos fazer uma fogueira.
- Eu não tenho com medo. – Ele disse. – Mas não há nada para queimar, apenas os pés
da cama, e eu prefiro manter isso entre nós e o pedra. Nem iria durar muito tempo. Nós
três amontados contra o burrico vai nos manter mais aquecido.
Eles sentaram-se juntos por um tempo, sem falar, apenas a leve mastigaçao do burro
com sua aveia, a dos dois adultos com o bannock e som mais suave do fungado úmido de
Alanna em sua própria ceia.
- Mmmm! 0 Catriona disse indistintamente, a boca cheia, o cheiro de bolo doce forte
no ar. - Isso nunca foi cozido em um mosteiro.
- Não, eu trouxe isso de casa. – Piedro disse. - Minha tia Adriana tem um grande dom.
Sua culinária é a única coisa no mundo que eu realmente sinto falta em São Valentim.
- Mesmo? - Catriona disse, surpresa. - Eu teria pensado...bem. - Claramente ela tinha
decidido não dizer o que tinha pensado. - Por que você estava agradecendo ao santo
Rafael? Ele é bom com fogo?
E s p a d a d o c a o s | 115

- Ele é o patrono das crianças. – Piedro disse. – No Livro dos Fardos diz-se que, uma
vez quando houve peste nas Cidades Secas, o Santo Rafael assumiu a forma humana e foi
resgatar duas crianças, Tobias e Sara, que haviam ficado órfãos. Eles deveriam ser vendidos
como escravos. Os drytowners viram o anjo como um lindo homem e pensaram em vendê-
lo com um propósito maligno. Mas quando eles o jogaram no complexo, ele pegou as duas
crianças em seus braços e caminhou direto para fora invisível, e deixou os portões
trancados atrás dele. Ele levou as crianças para as colinas e cobrou uma dívida do pai de
Tobias para fornecer bens para eles, lhes deu proteção e depois desapareceu. E quando as
crianças cresceram, elas se casaram.
Catriona não respondeu. Havia um pequeno luar no abrigo agora, difundido pelos
flocos de neve caindo, e ele viu que ela estava dormindo, enrolada contra o lado quente do
burro, com Alanna dormindo em seus braços. Cuidadosamente, sem a tocar, ele puxou as
dobras de sua túnica sobre o seio, colocou a colcha firmemente ao redor deles e se
aprumou para ver a neve cair. Seria melhor não dormir, ficar atento, então voltou para os
salmos.
Mas ele não conseguia manter sua mente em suas orações. Ele continuava se virando
para olhar Alanna, imóvel nos braços da mãe. Padre Colin lhe ensinara tudo o que sabia,
tudo o que um homem sem laran poderia aprender, mas quase nada sobre bebês. Ele tinha
a vaga lembrança de ter ouvido que às vezes morriam sem aviso, simplesmente paravam de
respirar. Catriona estava roncando fracamente, mas ele não podia ouvir nenhum som de
Alanna. Ele tocou sua bochecha com a ponta do dedo. Estava fria. Bem, é claro que está
fria, ele disse a si mesmo sensatamente, está nevando lá fora e hpa muito gelo pouco acima
de nós. Mas, quase ao mesmo tempo, ele se inclinou em pânico e colocou o ouvido perto
do rosto de Alanna até que conseguisse ouvir o pequeno som de sua respiração. Então ele
se sentou de volta, tremendo de alívio e disse a si mesmo que era um tolo.
Ele realmente não sabia nada sobre crianças, menos ainda sobre crianças tão
pequenas. Os meninos iam para São Valentim, assim como ele mesmo, aos dez anos de
idade, quando já pensavam por si próprios e pouco precisavam de ajuda com cuidados
básicos. Seus irmãos e irmãs tinham eram pequenos assim na época, mas ele não tinha
prestado atenção a eles, nem no bebê de sua irmã. Claramente ele estava perdendo
alguma coisa.
Ele se inclinou ao longo da parte óssea do burro e olhou sobre o ombro de Catriona. As
pálpebras fechadas de Alanna pareciam ter sido esculpidas em cera translúcida, um golpe
delicado do cinzel. Sua boca estava moldada como o arco de um caçador, um arco cortado
apertado feito para um caçador do tamanho do polegar. Seu lábio inferior se contraiu,
como se ela sonhasse. Tão pequena... Ela havia colocado uma mão em seu rosto. As pontas
dos dedos eram visíveis através da abertura do tecido, inclinadas com pequenas pontas de
E s p a d a d o c a o s | 116

pétalas de flores rosas. Eu nunca poderia ter criado esses pequenos dedos, ele pensou, nem
se eu tentasse por dez mil anos. Apenas um deus poderia fazer algo tão perfeito como isso.
Então o rosto dela se contorceu e a boca se abriu com um choro fino arranhado, como
um gatinho indignado ou um banshee muito distante. Ela acabara de ser alimentada, então
ele não conseguia entender o motivo. Talvez Catriona ainda não tivesse leite suficiente? Um
verdadeiro leite de cabra não chegava a quantia certa até o terceiro dia depois que ela
tivesse parido, mas o filhote também não precisava até esse tempo. Se Alanna precisasse
de algo mais do que tais filhotes, sua mãe deveria poder dar a ela, ele não sabia o que
poderia fazer. Ela podia beber neve derretida? O som fraco de seu choro tornou muito
difícil pensar.
- Se chorar, - disse a voz de uma mulher em sua memória - você o alimenta. - A voz de
sua mãe, ele pensou, ou possivelmente de tia Adriana. - Se não estiver com fome, você olha
a frauda. Se estiver molhado, você muda. Não há muita coisa que eles precisem.
Ele a pegou e segurou-a de pé contra o ombro. Ela suspirou e chorou novamente. Ele
acariciou as costas, desajeitadamente, sem ter certeza de onde a bolsa de couro tinha
parado e Alanna começou. - Acho que entendi você. – Ele disse. - Eles estão no alforje e, se
você não se importa de cheirar como o espinheiro... E não consigo pensar porque você
deveria... - Ele a colocou de volta em seu lugar, ela soluçou, olhou para ele e continuou a
chorar. Catriona devia estar esgotada do trabalho de parto na noite anterior para dormir
tão profundamente. Ele encontrou uma fralda limpa no alforje. Parecia bastante simples,
com pedaços de cordão para serem amarrados de cada lado.
A bolda de couro era fechada por meia de dúzia de botões de osso na frente. Ele
desabotoou todos e puxou o bebê úmido e quente. Ela se contorceu e chiou em suas mãos.
Sua cabeça passou para frente em seu peito,e ele rapidamente a colocou na borda da
colcha.
A bainha de seu vestido de lã foi fechada com um cordão, envolvendo os pés em uma
segunda bolsa. O cordão estava molhado e difícil de desatar. Dentro do vestido, a fralda
estava encharcada e os cordões ainda mais difíceis de desamarrar. Deveria haver alguma
maneira mais fácil de fixar essas coisas, ele refletiu quando puxou e Alanna reclamou, e ele
imaginou que aquilo sempre ficaria molhado quando chegasse a hora de soltar.
Talvez eles devam ter botões, como a bolsa. Ele perguntaria a Catriona sobre isso
quando ela acordasse. O nó se soltou e ele jogou a fralda molhada do lado de fora para
congelar. Talvez ele pudesse secá-la mais tarde, mas não iria colocá-la em seu alforje se
pudesse evitar. Afinal ele ainda esperava entregar aquele espinheiro para o Padre Colin em
condição utilizável. Ele se virou para Alanna e descobriu que o que ele tinha ouvido era
verdade: meninas eram moldadas de forma diferente dos meninos. Quão inteligente, quão
simples: uma forma suave como a casca de uma amêndoa, não mais. Um dos projetos
E s p a d a d o c a o s | 117

inspirados na natureza. Embora algum dia ela deveria ter na hora de urinar na neve. Ele
colocou a fralda limpa sob o ela e amarrou-a em volta da cintura.
Nunca pousar a mão em qualquer mulher de forma desonesta, a parte inferior de sua
mente lembrou-lhe nervosamente. Nunca olhe com pensamento lascivo para uma criança
ou uma virgem prometida.
Cale a boca, ele disse. Não há ofensa aqui para a modéstia de Alanna ou a minha. Ele
amarrou o vestido em volta dos pés. Estava frio agora e ela começou a choramingar
novamente. Se o pai de Alanna estivesse aqui, ele mudaria suas fraldas para ela, não é? -
Venha aqui, criança. Vamos manter os pés aquecidos.
Ele afrouxou sua túnica, colocou ela dentro, se instalou com o pequeno peso em seu
peito, a cabeça dela enfiada sob seu queixo e ele pensou em Mikhail, um guarda florestal
da Estação de Cormac. O homem reconhecia sua bênção? Não, claro, ele estava fora nas
linhas de fogo desde antes que Alanna nascesse. Piedro esperava que ele estivesse bem.
Talvez ele estivesse em Maclidan quando chegassem lá. Quão feliz esse homem seria. Os
filhos eram o que havia de mais importante no mundo para um homem, é claro, mas
também nenhum homem poderia evitar amar uma filha tão perfeita.
O burro virou a cabeça e emitiu um som não muito alto, mas Alanna se mexeu como
se tivesse sido incomodada. - Shhh, irmãozinho. – Piedro disse e esticou a mão livre para
tocar as orelhas do animal e depois seu focinho aveludado. Sua respiração estava quente
em seus dedos, assim como Alanna no pescoço. Ele envolveu os braços ao redor do
pequeno pacote em sua túnica e suspirou. Eu sou a imagem de um tolo, ele pensou. Acabei
de ter o direito de ser chamado de ‘padre’ concedido, precisamente porque prometi nunca,
entre outras coisas, ter filhos. E agora olhe para mim.
Não que ele realmente ansiasse fisicamente pela paternidade. Pelo menos, ele achava
que não. Sua imaginação encolheu perante a ideia de gerar Alanna no corpo misterioso de
Catriona. E um homem no mundo tinha que passar a maior parte do tempo trabalhando na
fazenda ou na floresta, não na casa cuidando das crianças. Esse era o trabalho de uma
mulher. E, ainda assim... Todo o trabalho do mundo e todo o santo trabalho no mosteiro,
orações, músicas, leituras de histórias e até mesmo a instrução dos novatos, parecia
obsoleto e monótono agora, nesta noite, com a criança em seus braços. Paz, parlador, ele
disse a si mesmo. Você vai se sentir muito mais como você mesmo de manhã. Ele começou
a cantar de novo, retomando de onde parou. - Ele ergue os fracos da poeira e o pobre
homem do estrume, para colocá-los com os lordes de seu povo. - Apenas a paciência de dez
anos do Padre Gabriel fez até ele se tornar um cantor aceitável, mas Alanna parecia estar
gostando. Talvez as notas baixas a fizessem feliz. - Ele torna a mulher estéril que cuida da
casa uma alegre mãe de crianças sem pais.
- Padre, estou com sede.
E s p a d a d o c a o s | 118

Ele olhou para Catriona. A garrafa de couro estava entre eles, vazia. - Aqui, pegue a
bebê. Vou te dar um pouco de neve. - Ele colocou Alanna em seus braços, enfiou a colcha
ao redor delas e saiu.
Um vento forte estava soprando, mas a neve quase cessara. As nuvens estavam
recuando pelo céu, revelando o disco brilhante de Liriel e a opaca Mormallor próxima do
horizonte. Piedro pegou um duplo punhado de neve limpa e levou para dentro. Catriona,
criada nas montanhas, sabia como tomá-la em pequenos goles, não congelando a garganta.
- Obrigada. – Ela disse finalmente. - Padre, você canta muito bem, mas sobre quem é
essa música? O Portador dos Fardos cuida para dar bênçãos a quem carrega seus próprios
fardos?
Ele riu. - Não tenho certeza. Muitos dos salmos antigos não citam nomes. Talvez seja o
Santo Arcanjo Rafael novamente, fornecendo às crianças sem mães outras mães.
- De qualquer forma, eu nunca fui uma mulher estéril. Carreguei quatro outros filhos, e
dois deles ainda estão vivos.
- Duvido que o poeta sagrado tivesse especificamente você em mente. - Ele ficou ao
lado dela novamente. – De qualquer forma, esse salmo remonta ao começo dos tempos.
- Padre, você nunca quis se casar?
Ele olhou para ela em espanto. - Filha, você já foi testada para o laran?
- Claro que não, eu não tenho um dos golpes do com'yn. Isso não te preocupa, que
você nunca possa dormir com uma mulher?
- Não realmente. - Ele disse, chocado com a fala simples. - Eu nunca fiz isso, afinal. Eles
dizem que a rebelião da carne só morre meia hora antes de fazer ou talvez seja meia hora
depois. Mas é difícil se sentir rebelde de carne com algo que nunca se tentou ou pensar
nisso quando se tenta aprender a não congelar, e, no momento em que o novato é bom o
bastante para não congelar, a carne está domada e não se rebela muito.
- E você nunca quis ficar em casa com sua família?
Ele olhou para fora do abrigo, onde o crescente luar brilhava na neve como um novo
leite. - É melhor nos movermos. O vento está vindo do Ocidente e, se ficarmos aqui, vamos
congelar, mas também está soprando a neve e poderemos ultrapassar o cume. - Ele fez o
burro se levantar, o selou enquanto Catriona fachava a bolsa de Alanna e dobrou sua
colcha. Ele carregou o burro, levou-o para fora do abrigo, subiu a trilha em um ritmo rápido
e, na verdade, o vento era forte e intenso vindo do Ocidente. Mas qualquer coisa era
melhor do que ficar no abrigo e continuar aquela conversa.
A trilha parecia ferida estreita entre as paredes da rocha, meros rachaduras acidentais
onde a montanha parecia apresentar uma frente sólida. Ali estava escuro, o luar nunca
chegando ao fundo, mas isso também os protegia do vento. Quando saíram para a face do
penhasco, onde a longa trilha enrolava a montanha para Maclidan, o vento os derrubou
E s p a d a d o c a o s | 119

como a mão de um gigante. Ele havia mudado novamente em direção ao noroeste, o


verdadeiro vento das Hellers, carregando a neve, e o caminho ficaria livre dos bancos de
neve em breve ou não ficaria tão cedo. Outra questão para se pedir ao Santo Arcanjo
Rafael, enquanto Piedro e o burro se concentravam em se manter firmes.
Enquanto o luar durou, eles fizeram um bom tempo, as sandálias de Piedro se
arrastando sobre a rocha nua e os pequenos cascos do burro clicando atrás. Mas então a
luz diminuiu e Piedro olhando para trás por cima de seu ombro viu nuvens deslizando pela
face de Liriel e os olhos ansiosos de Catriona.
A neve começou a cair silenciosamente, alguns grandes flocos à frente do vento. Eles
atacavam o rosto, a manga ou a rocha e caíam sem grudar. Outros flocos se seguiram,
menores, mas tão secos, quebrando como pó sob os pés. Eles difundiram o que restava da
luz em vez de obscurecê-la, de modo que Piedro estava andando vigorosamente em um
desfiladeiro estreito novamente, entre uma parede escura de rocha e uma parede mais
suave sob o escuro luar violeta. Mas apenas um deles iria apoiá-lo se ele tropeçou e caisse.
- Padre, vamos conseguir fazer isso? - Catriona perguntou após a descida da primeira
hora.
- Tenho esperança de que vamos. – Ele disse. – Já estamos no meio da trilha. Sob isso
há apenas a escada.
- Devo descer e andar?
- Não. O burro é mais firme em sua patas do que você em seus pés. E a bebê? Tudo
bem?
- Sim, ela parece bem. Mantenho ela sob meu manto e ela não está muito fria.
Piedro andou sem responder. A escada no sopé da trilha, cujos últimos passos eram
nas paredes de Maclidan, era uma coleção de blocos de granito cortados, mais íngremes do
que a trilha, mas com o passo mais fácil de ser firmado. Mas para encontrá-la era preciso
uma luz e, entre o fim da luz do sol e a luz vinda de Liriel, haveria mais de uma hora de
escuridão.
Seus pés estavam na escada antes que a luz sumisse. Ele calculou os próximos três
passos memorizando o que via, antes que a imagem do granito áspero desaparecesse de
seus olhos na fosforescência branca da neve. Depois disso, ele teve que seguir seu caminho
lentamente, deslizando os pés a cada passo até encontrar a borda, testando a descida para
o próximo passo, finalmente abaixando o pé. Duas vezes ele não encontrou nenhum lugar
abaixo do que ele estava e precisou voltar no caminho para cima antes de tentar descer
novamente.
A segunda vez que ele parou para recuperar o fôlego, encostou a cabeça desgrenhada
no burro. Ele não devia se permitir desistir. Se continuasse descendo com cuidado,
eventualmente encontraria alguma parte das paredes de Maclidan e poderia se guiar até o
E s p a d a d o c a o s | 120

portão. Ou em uma hora o sol se elevaria. Ele tentou não se lembrar de que o vento estava
ficando mais frio, frio o suficiente para incomodar um monge e o cansar. Não havia nada
para fazer além de continuar. Ele não tinha fôlego para orar em voz alta, nem concentração
para orar em silêncio. De qualquer maneira, ele também não saberia o que pedir, nem o
que poderia fazer. Ele estava andando sem pensar na neve e rocha, mas sim apoiado na
vontade de poderes maiores, e só podia reconhecer que ele estava em suas mãos e
continuar se movendo como lhe permitissem. Ele guiou o burro uma dúzia de passos de
lado ao longo da parede em que estavam de pé e então começaram a descer novamente.
Foi quando ele ouviu uma voz.
- Ei, cara! Não dessa maneira!
Piedro ficou parado, sem acreditar no que ouvira. Passos soaram na neve e a voz
ecoou novamente: - Não há nada lá embaixo, apenas uma queda de cem pés. Vamos. Nos
dê sua mão. - Piedro estendeu a mão e sentiu-se contente: era a mão larga de um homem,
forte, mas de pele suave, como a mão de um nobre.
- Quem é você?
- Seu camarada e servo. Cuidado com o próximo passo, deve ser longo.
Piedro esticou uma perna até o fundo do passo e guiou o burro para baixo. Catriona
era uma forma de textura grosseira, encolhida em sua capa, apegando-se ao pescoço do
burro. Não vendo nada além do branco da neve, ele seguiu a linha de vida no final do braço.
A mão era surpreendentemente quente. Somente pela força que fluia de volta, ele
poderia dizer o quão perto da borda tinha estado. Se esse estranho surpreendente não
tivesse se materializado para fora da tempestade de neve, ele poderia... Ele não gostava de
pensar nisso. Nenhum monge decente temia a morte, mas o que teria sido de Catriona e
Alanna? - Vivemos sob a Regra em liberdade excepcional. – Ele se lembrou do Noviço
Mestre dizendo: - Mas um homem no mundo, com esposa e família, é refém da sorte. - Ele
pensou em Catriona e Alanna caídas no fundo da escada, e seu coração se apertou.
- Está tudo bem. - Disse a voz da neve, como se ele tivesse pensado em voz alta. –
Daqui, vá para a esquerda.
Ele tinha saído do perigo e sentiu o vento mais suave. Ele havia chegado ao abrigo do
vento de algo alto e sólido. A face do penhasco? Não, por todos os anjos, era uma parede.
- Vinte passos irão levá-lo até o portão. – A voz disse e a mão quente soltou a dele.
- Obrigado. - Piedro disse o vento. - Quem é você?
Mas não houve resposta. Ele puxou o freio do burro e seguiu o caminho em direção ao
portão.
Surpresos, os homens no portão o abriram para ele, um mero monge de sandálias
aparecendo na neve, no escuro, antes do amanhecer e vivo. Eles levaram ele, o burro e
Catriona e a bebê através dos grandes portões. O salão estava cheio de pessoas, os
E s p a d a d o c a o s | 121

habitantes de uma dúzia de aldeias queimadas ou ameaçadas pelo fogo. A maioria deles
estava dormindo. O calor das três largas lareiras fazia o interior parecer estar no verão.
Piedro tirou o capuz do rosto de Catriona e ficou aliviado em vê-la se endireitar e olhar para
ele.
- Estou sonhando de novo. – Ela disse. - Pensei que você estava conversando com
alguém na neve.
- Eu estava. – Ele disse. Piedro a ajudou a descer do burro e caminhar até a lareira.
Havia uma idosa ali, cuidando de algumas mulheres cansadas e crianças adormecidas. Ela
colocou Catriona em um palete perto do fogo e lhe deu uma xícara de sopa.
- Padre, estou muito feliz em ver você. – Ela disse. - Você é um curandeiro? Temos
algumas queimaduras e congelamentos e seis ou sete pessoas estão dormindo sob efeito
de remédios, abaladas porque não sabem o que aconteceu com seus parentes.
- Eu sou cerca de dois terços de um curador. – Ele disse. - O Padre Colin não terminou
meu ensinamento ainda. Farei o que puder. Tem alguém que possa trazer meus alforjes do
meu burro?
Catriona desabotoou a bolsa de Alanna, para deixar o calor do fogo ajudar. - Então
com quem você estava falando? - Ela perguntou. - O Santo Rafael novamente?
- Talvez eu fosse. – Ele disse. - Quem quer que fosse, apareceu do nada e me levou à
parede da que cerca este lugar. Provavelmente um dos guardas pertencentes à Maclidan.
- Não. – A velha disse, dando a Piedro uma xícara de sopa. - Não há nenhum dos
nossos aí fora. Mas eles disseram que há um laranzu sobre o cume em Corbie que vai
derrubar a neve no fogo. Eles podem fazer coisas estranhas, andar no Mundo Superior e
não sei mais o que. Ele pode ter enviado sua mente para encontrá-lo e te guiar. Essa pode
ser a resposta.
- Talvez. – Piedro disse. Ele bebeu sua sopa, que realmente não precisava. Ele se
lembrava do calor fluindo do estranho na neve. Mas ele não ia discutir os méritos relativos
aos laranzu'in...
Então houve um berro soando no ar, como chamado de amor de um ya-man,
chamando o nome de Catriona, e ela foi arrebatada no abraço de um enorme homem de
barba negra. Mikhail, pois obviamente era ele, afundou no palete com sua esposa,
mergulhando seu rosto espinhoso em seu pescoço e chorando. Piedro correu para pegar
Alanna antes que alguém sentasse nela.
Ela estava acordada novamente, olhando Piedro com os olhos azuis-esverdeados. - Seu
pai, minha querida. – Ele disse. - Vão apresentar você para ele mais tarde. - Ele encontrou
um lugar para sentar perto do fogo, onde Mikhail estivera.
Havia duas crianças mais velhas sentadas ali. Elas haviam acordado ao som do
entusiasmo de Mikhail. Havia uma garotinha de cerca de cinco anos que estava chorando e
E s p a d a d o c a o s | 122

um menino de cerca de nove anos que estava tentando consolá-la. Ambos tinham forte
semelhança com Catriona. Finalmente, o menino levou sua irmã para onde seus pais ainda
sentavam se abraçavam no palete e a ajudou a subir no colo de Catriona. Então ele voltou
para Piedro.
- Sou Brion, filho de Mikhail. - Ele disse. - Obrigado, Padre, por cuidar da mamãe.
- Foi um prazer. – Ele disse. - Esta é sua nova irmã, Alanna.
Brion deu-lhe um breve olhar. - Eu já tenho uma irmã. Ah bem, certo.
- Quantos anos você tem, Brion?
- Oito. Mas eu fingi ter dez hoje, nas linhas de fogo. - Ele ergueu o braço, mostrando a
Piedro uma queimadura desagradável nas costas da mão e antebraço.
- Você não deveria ter feito isso. Mesmo que você seja grande para a sua idade. Deixe-
me pegar algo para essa queimadura.
- Não dói muito.
- Se você vai fazer o trabalho de um homem, você precisa obedecer como um homem
e fazer o que seu curador lhe diz. Ah, obrigado, filha. - A velha trouxera seus alforjes. - Esta
‘filha’ é velha o suficiente para ser minha avó, acha que foi um laranzu. Ele pensou. E
porque eu me importo? O Santo Rafael me trouxe para fora da tempestade! - Deixe-me
cuidar dessa queimadura e depois irei para os outros . Brion, qual é o nome da sua irmã? A
outra.
- Marguerida.
- Marguerida, você gostaria de segurar sua irmãzinha? - Ele colocou Marguerida ao
lado de sua mãe no palete e colocou Alanna no colo dela.
A garotinha sorriu encantada. - Oh! Que bebê foooooofo!
- Muito mesmo. – Ele disse e voltou para Brion. Ele encontrou o kit de ervas e
bandagens no fundo dos alforjes e enfaixou o braço do menino. - Mantenha isso limpo e
vou olhar isso novamente em alguns dias, se ainda estiver aqui. - O sol estava subindo
sobre as Hellers, sua luz descendo nas encostas abaixo de Maclidan: era um vale e uma
colina, então mais um e depois a grande subida para Nevarsin.
- Por aqui, Padre, se você estiver pronto. - Ele seguiu a velha do outro lado do corredor
para onde um homem estava gemendo com uma queimadura em toda uma lateral de seu
corpo.
- Padre, faça parar.
- Calma, meu filho. Isso vai entorpecer a dor.
Padre Piedro se ajoelhou em seu trabalho, quase não pensando agora em seu
encontro na neve, embora ele teria que dizer ao Padre Mestre sobre isso mais tarde. Seus
filhos e filhas precisavam de seu cuidado.
E s p a d a d o c a o s | 123

Muitas são as crianças. – O ensinamento passou por sua cabeça. Muitos são os filhos
estéreis de pais, mais do que os da que tem um marido. Ele teria que meditar nisso.
- Filha, vou precisar de água estéril. Você me entende? Ferva a água, cubra e deixe
esfriar.
Muitos são os filhos dos jurados, ele pensou, mais do que daqueles que tem uma
esposa. Não, isso não estava certo. Precisava de uma desilusão na primeira linha. Ele
pensaria em uma. Ele teria tempo.
E s p a d a d o c a o s | 124

Nos dias do Comyn

O período mais familiar da história darkovana (pelo menos, para mim) é aquele onde
os Sete Domínios eram governados pelo Conselho Comyn em Thendara. Vários de nossos
colaboradores colocam suas histórias nesse período familiar.
Uma das coisas que procurei em contribuições para este volume foi originalidade. Um
uso inesperado do laran, talvez. Em "Corredor frio", Aly Parsons nos mostra um uso novo e
diferente, mas completamente elevado e moral, dos poderes de laran... Será? O Festival do
Meio do Inverno é um período típico de descanso nas montanhas. Só que este foi
diferente...
Em geral, recebemos mais histórias sobre as Amazonas Livres do que qualquer outro
assunto. Na verdade, recebemos mais histórias das Amazonas Livres do que todas as outras
histórias combinadas. A menos que as histórias tenham algo diferente ou incomum sobre
elas, geralmente parecem seguir muito de uma triste mesmice. Lynne Holdom, no entanto,
em "O caminho de um lobo", mostra uma Amazona Livre em uma aliança original
resultando também em uma história muito diferente da de Susan Shwartz em uma seção
anterior deste volume.
No primeiro volume das antologias, “O preço da Guardiã”, a história com título hom
ônimo tratou de Hilary de Arilinn, uma jovem Guardiã com saúde ruim, forçada a deixar a
Torre e fazer uma vida nova para si mesma. Mas uma Guardiã falida pode esperar da vida?
Em "A lição da estalagem", eu tentei continuar a história de Hilary e descrever o que
aconteceu com ela no dia inevitável quando enfrentou os destroços de sua vida.
E, com uma mudança completa de humor, Wayne, em "Confidência", conta um breve,
mas forte conto de uma jovem treinada na Torre, cuja confiança e senso de sobrevivência,
são severamente testados quando ela é atacada e capturada por misteriosos inimigos.
E s p a d a d o c a o s | 125

O caminho de um lobo
Lynne Holdom

A chuva estava começando a virar granizo quando o cavalo de Liane n'ha Janella
perdeu uma ferradura. Ela amaldiçoou em voz alta, usando todos os palavrões que havia
aprendido durante seu tempo na Campanha Windriver. Ela não queria atravessar as terras
dos Leyniers e Lanarts, muito menos sozinha, já que antes de se unir à Irmandade, ela era
uma nedestra de Serrais. Foram os soldados e laranzu'in de Serrais que causaram a
devastação tão evidente ao redor dela. Ainda havia algum tipo de paz agora e ela usava a
faixa branca de um mensageiro neutro. A urgência de sua mensagem sozinha a forçou a
viajar através de terras que ela pessoalmente considerava como "território inimigo",
embora ela nunca tivesse lutado por qualquer lado.
No momento em que ela avaliava seu cavalo. Uma fumaça se ergueu entre as árvores
do oeste. Onde havia uma aldeia, com sorte, havia uma pousada e um ferreiro. Sua herança
de Serrais não era evidente em sua aparência. Seus cabelos curtos eram marrons escuros
em vez do ouro loiro ou vermelho típico de Serrais...ou Ridenow, como era chamado agora.
A neve estava começando a derreter quando Liane chegou à aldeia. Isso fez com que
os paralelepípedos irregulares ficassem ainda mais escorregadios e seu cavalo parou para
mordiscar alguns tufos de grama espreitando bravamente pela neve. Um vento estava
aumentando e as persianas ângulosas enfurecidas estavam batendo violentamente. Quase
metade das casas que cercavam esse fim da praça estavam escuras com chaminés sem
fumaça enquanto algumas casas obviamente habitadas ostentavam as janelas quebradas.
A alça da bomba também estava quebrada. Liane suspirou. Ela puxou sua pesada capa
vermelha com mais força ao seu redor e andou, de cabeça baixa, até o extremo da praça.
Havia uma pousada ali com um estábulo anexo e, graças a Avarra, um ferreiro. Conseguir
comida e água para os dois era a primeira prioridade de Liane. Ela entrou na pousada. Atrás
de uma longa mesa na entrada havia um homem magro e moreno.
- Eu gostaria de um quarto para a noite e lugar protegido para meu cavalo que
também precisa de uma nova ferradura. – Ela disse educadamente.
O homem olhou de cima à baixo de uma maneira que ela não gostou, mas já tinha se
acostumado. - Nós não servimos o seu tipo aqui. Veio roubar as poucas crianças que nos
restou?
Liane ficou surpresa, mas sabia que seria fatal se perdesse o autocontrole. - Só quero
abrigo para a noite, uma refeição quente e o mesmo para o meu cavalo. – Ela disse
uniformemente. – Irei embora de manhã.
E s p a d a d o c a o s | 126

O homem parecia que querer cuspir nela. – Levando nossas filhas, sem dúvida. Nós
conhecemos bem você, sua bre'suin. - Ele andou até a porta curta dupla que levava à
taverna. - Rory, Cathal, Mikhail! Há outra dessas mulheres antinaturais aqui. Mostre a ela o
que fazemos com o tipo dela no forst High Pines.
Antes que Liane pudesse sair ou mesmo pegar sua adaga, vários homens, mais do que
os três que tinham sido chamados, apareceram na entrada e a arrastaram para a neve.
- Isso é por Camilla! – Um dos homens gritou. Ele jogou uma bola de neve bem
misturada com seixos que atingiu Liane no ombro.
Logo bolas de neve, pedras e outros detritos estavam no ar. Liane, com todo o
treinamento, estava indefesa contra esse ataque e foi atingida repetidamente. Ela
escorregou e caiu nas pedras cobertas de neve.
- Misericordiosa Avarra. – Ela disse suavemente. - Eu vim para este forst para morrer? -
Sua mensagem urgente não alcançaria Arilinn depois de tudo.
- Parem! - Uma voz veio do outro lado da praça. - Isso por acaso é um bando de lobos
descido das Hellers para se alimentar que vejo diante de mim? - A multidão se separou.
Alguém vestido de azul se ajoelhou ao lado de Liane, colocando um manto enrolado sobre a
cabeça.
- Dom Gervase. - Um dos homens disse. – Foi ela que levou Camilla para a morte e
voltou para roubar outra criança. Estamos cuidando com ela para que ela nunca mais faça
isso.
Os profundos olhos azuis de Dom Gervase pareciam firmemente focados em Liane.
Então ele se levantou e se virou para a multidão. - Você tem certeza de que ela é a
responsável pela morte de Camilla? Ela admitiu isso?
- O senhor sabe que ninguém admitiria algo assim. - Um homem disse teimosamente. -
Mas ela está usando as mesmas roupas que antes.
- Entendo. - Dom Gervase disse e olhou para Liane. - E você, o que você diz?
- Nunca estive neste forst antes ou mesmo nesta área. Tudo que eu quero é abrigo
para mim e meu cavalo antes de viajar para Arilinn. Eu nunca prejudicaria uma criança. Eu
sou uma guerreira, não uma carniceira.
Os profundos olhos azuis de Dom Gervase pareciam firmemente focados em Liane.
Então ele se levantou e se virou para a multidão. - Você tem certeza de que ela é a
responsável pela morte de Camilla? Ela admitiu isso?
- O senhor sabe que ninguém admitiria algo assim. - Um homem disse teimosamente. -
Mas ela está usando as mesmas roupas que antes.
- Entendo. - Dom Gervase disse e olhou para Liane. - E você, o que você diz?
E s p a d a d o c a o s | 127

- Nunca estive neste forst antes ou mesmo nesta área. Tudo que eu quero é abrigo
para mim e meu cavalo antes de viajar para Arilinn. Eu nunca prejudicaria uma criança. Eu
sou uma guerreira, não uma carniceira.
- Existe uma diferença? - Dom Gervase disse suavemente, então acenou para um dos
homens. - Cathal, leve o cavalo para o estábulo. Qualquer que seja a verdade disso, e sugiro
que busquemos um laranzu em Neskaya para descobrir a verdade, o cavalo não é culpado
de qualquer crime. Quanto ao resto, está frio e nevando. Voltem para suas casas antes que
congelem. Vou garantir a segurança desta mulher se ela me der seu juramento de que não
tentará escapar. - Ele se ajoelhou ao lado de Liane novamente. – É melhor fazê-lo, - ele
sussurrou - ou sua vida acabará. Eu não conseguirei segurá-los. Ninguém conseguiria.
Liane não era idiota. Ela deu seu juramento. Então agora havia uma vida entre eles.
Mas como, o pensamento veio rapidamente, ela levaria sua mensagem para Arilinn a
tempo?
Dom Gervase vivia em uma casa de pedra resistente no final da pousada. Liane foi
escoltada para uma grande sala branca dominada por uma enorme lareira. Evidentemente
servia como cozinha e aposentos. – Por ali, - disse Dom Gervase, apontando para uma porta
pesada - é a sala onde eu costumo ver meus pacientes. No entanto, vamos ficar aqui onde é
mais quente já que você está encharcada. - Com isso ele colocou Liane sentada em uma
cadeira de madeira perto do fogo, onde o conteúdo de uma enorme chaleira de metal
emanava um aroma tentador. Liane percebeu que estava faminta.
Dom Gervase seguiu seu olhar. - Normalmente tenho uma mulher aqui para me
ajudar, mas ela está cuidando de sua filha que está morrendo, ela estava na Floresta
Aetheling logo depois que os Altons jogaram aquela abominação oleosa nela. Agora ela está
tossindo sangue como todos os outros. Então você terá que se satisfazer com minha
culinária. Vamos comer logo depois de ter certeza que seu tornozelo está apenas torcido,
não quebrado. - Com isso ele olhou em seu anel, uma pedra da estrela, Liane percebeu
repentinamente, e passou as mãos sobre seu corpo sem tocar em sua roupa. – Não há nada
quebrado. Vou cuidar de seu tornozelo. Tudo que você precisa é de um banho quente e
descanso. Você teve sorte.
- Graças à você. - Então Liane lembrou-se da acusação contra ela. – Mas quem era
Camilla e como ela morreu?
Dom Gervase usou uma concha e encheu duas vasilhas com ensopado da chaleira. -
Camilla era a filha do estalajadeiro. Ela costumava ajudar lá fora. Todo mundo gostava dela.
Um dia, uma mulher de sua Irmandade veio para a cidade. Quando ela foi embora no dia
seguinte, Camilla também desapareceu. Mais tarde Camilla foi encontrada morta e o corpo
mutilado. - Dom Gervase provou o ensopado. - Não está ruim, mas precisa de mais sal.
E s p a d a d o c a o s | 128

Agora onde eu estava? Oh sim, aparentemente eles confundiram você com a pessoa por
causa da roupa. O laranzu descobrirá a verdade e você estará livre para seguir seu caminho.
- Mas minha missão à Arilinn é urgente. Não posso esperar dez dias para que um
laranzu venha de Neskaya.
Dom Gervase comeu silenciosamente por um longo tempo. Então ele suspirou. - Com
esta neve você não pode ir a qualquer lugar esta noite. De qualquer forma, você precisa
dormir. - Depois da refeição, ele a levou para uma pequena sala atrás da chaminé. – Este
quarto é o mais quente da casa. Você pode dormir tranquilamente. Há travas no interior da
porta.
Liane teve uma grande sensação de alívio. Dom Gervase não parecia o tipo de homem
que estuprava, mas a experiência passada a ensinou a ser cautelosa até mesmo com o
homem que mais parecesse gentil. No entanto, Dom Gervase era um quebra-cabeça de
outras maneiras. O que alguém de nascimento nobre, e isso era óbvio por sua fala, vivia
naquela aldeia e naquela casa meio deserta sem sequer servo? E, ainda mais intrigante, ela
percebeu de repente, era o fato de que ele falava o puro casta das planícies de Valeron.
Quando ela despertou, Dom Gervase tinha mingau pronto junto com duas canecas de
cerveja azeda que Liane não gostava, mas se acostumou já que era a bebida padrão dos
soldados. O sol brilhava sobre a mesa com vigas de carvalho. Uma Liane faminto sentou-se
ansiosamente.
- Um mensageiro partiu para Neskaya. - Dom Gervase disse enquanto colocava uma
colherada de mingau na tigela de barro. - Se o tempo permanecer firme, você deve estar de
volta ao seu caminho em seis ou sete dias.
- Isso é muito tempo. Você não poderia enviar um pedido de laranzu para Arilinn? Fica
mais perto.
Dom Gervase sentou-se em frente a ela. - Você honestamente espera que um laranzu
dessa Torre controlada por Serrais seja confiável para as pessoas daqui? Os laranzu'in são
responsáveis pela devastação e morte nesta área. Já é muito difícil eles confiarem em
qualquer laranzu, até mesmo vindo de Neskaya. Mesmo isso só foi possível porque o
Guardião de Neskaya, Varzil, prometeu que Neskaya não produzirá armas de guerra.
Liane não podia entender a objeção. Em sua experiência, um ex-inimigo muitas vezes
se tornava um aliado na próxima campanha. - Ainda assim... - Ela começou.
- Ainda assim, não espero que você tenha horror à armas de guerra ou políticas
anteriores de Serrais. Afinal, você trabalha com a guerra e vende seus serviços para o maior
lance. Você nem tem a fraca, mas muito humana, desculpa de lutar para proteger sua casa
e parentes, que, se eu não estiver enganado, seriam os de Serrais. - Dom Gervase terminou
por ela.
E s p a d a d o c a o s | 129

Liane teve o suficiente dos estigmas expressos por Dom Gervase. - O que você quer
que eu faça? Fique em casa para ser o brinquedo dos filhos do Lorde Serrais, quer eu deseje
ou não, assim como minha mãe era? Então, esses mesmos filhos se recusariam a dar o
reconhecimento de nedestro ao seu fruto porque não podiam ter certeza de quem era o
pai? Não! - Ela disse batendo a mão direita na mesa com tanta força que os pratos
saltaram. - Eu decidi que teria algo a dizer, a fazer na minha vida, não apenas ser um
prêmio de jovens dandies em disputas. - Ela olhou bem nos olhos dele: - Você era um
nobre, então você não veria nada de errado nisso, não é?
Ela esperou pela explosão, mas Dom Gervase estava muito calmo. – Entendo. - Ele
disse tão suavemente que Liane não tinha certeza se ele falara. Então Dom Gervase tomou
alguns goles de cerveja e continuou. – O que você está dizendo é que em um mundo de
lobos e ovelhas, é melhor ser um lobo. Eu poderia discutir o ponto, mas... Você esquece
que quando as ovelhas acabam, os lobos se unem para cortar e rasgar.
- Porra, claro que eu prefiro ser um lobo! - Liane disse com raiva. - Ninguém seria uma
ovelha por escolha. Apenas um covarde ou um tolo não está disposto a lutar pelo que
deseja.
- Como os filhos de Lorde Serrais que pegavam o que queriam? - Dom Gervase disse
suavemente. - No entanto, o cão pastor, o melhor protetor de ovelhas, já foi um lobo.
Liane de repente se lembrou de algo. - Poderíamos terminar essa farsa facilmente. –
Ela disse, ficando de pé. - Você é um laranzu e pode detectar a verdade no que digo. Ou
você tem alguma razão para me impedir de alcançar Arilinn? - Liane perguntou com raiva.
Dom Gervase ignorou a acusação. - Eu, um laranzu? O que lhe deu essa impressão?
- A pedra no seu anel. É uma pedra de feiticeiro, não é?
- Oh. - Dom Gervase levantou a mão direita e olhou para o anel como se o notasse pela
primeira vez. - Sim, eu tenho uma matriz, esse é o nome correto, e aprendo algo de seu uso
na Torre Dalereuth quando cheguei à maioridade. Mas conheço minhas limitações. Eu não
posso detectar a verdade. Meu talento é apenas a cura. Se eu fosse uma mulher, eu teria
ido para a Ilha Sagrada. Mas, como sou um homem, estudei entre os monges em Nevarsin.
Era muito pacífico lá... - Ele olhou para o nada, perdido em memórias. - Eu teria ficado lá,
mas não sou cristoforo e me dei uma tarefa.
- Que tarefa?
Dom Gervase se recusou a revelar mais. - Eu tenho que ajudar mulheres no parto
agora. Não há parteira para fazê-lo. Deixarei você aqui sozinha confiando em sua honra de
guerreira para que você não quebre seu juramento feito a mim. Ah, e você pode limpar a
mesa e lavar, se o seu orgulho guerreiro permitir isso. - Com isso ele saiu pela porta.
Liane fez o que ele pediu e depois rondou pela sala como um animal enjaulado,
avaliando sua situação. É verdade que ela havia dado sua palavra e havia uma vida entre ela
E s p a d a d o c a o s | 130

e Dom Gervase. Mas seu juramento com a Irmandade não era mais importante? Elas
estavam contando com ela para alcançar a Arilinn. Por que ele não podia entender isso?
Provavelmente porque, apesar de seu nascimento nobre, ele era um covarde que se
escondera em Nevarsin estudando cura em vez de aprender as artes marciais costumeiras a
alguém de sua casta. Ele queria ir para a Ilha Sagrada! Liane não negava que as mulheres na
Ilha Sagrada faziam um trabalho importante, mas uma mulher forte devia aprender a se
proteger e lutar suas próprias batalhas, não ficando sentada e dependendo de Avarra para
luta-las. Os deuses ajudam aqueles que se ajudam, como dizia o velho provérbio. Então, o
que era um juramento para alguém como Dom Gervase? Tanto ou mais do que o juramento
de lealdade à Irmandade? Provavelmente, quase certamente, não. No entanto, ela não
podia quebrar um juramento e tremera ao pensar nisso. Ela ainda tinha mais um dia antes
de precisar sair para alcançar Arilinn e antes que isso importasse, então ela só teria que
usar o tempo para fazer com que Dom Gervase a liberasse. Depois disso... Bem, ela veria.
Durante toda a tarde Liane ficou sentada observando enquanto uma multidão colorida
dos doentes da área circundante entrava e saia. Havia mulheres velhas com olhos úmidos,
homens aleijados e velhos demais para trabalhar, jovens mães que pegavam suas crianças
mal vestidas e deformadas e afastavam quando Liane fizera menção de ir falar com eles.
Deformidade. Essa foi a coisa que atingiu Liane mais duramente. Não havia mais crianças
saudáveis? Dom Gervase ficou especialmente atento a um pequeno menino de cabelos
vermelhos, provavelmente o filho nedestro de algum pequeno lorde das montanhas. Ele
parecia normal, exceto por um lábio leporino5. Pelo menos ele podia correr e brincar, o que
era mais do que a maioria das outras crianças conseguiram fazer.
- Por que tanta deformidade? - Dom Gervase disse em resposta à pergunta de Liane
quando se sentaram e relaxaram depois que as tarefas da noite estavam completas. - Eu
não sei. Houve tantas batalhas aqui que é difícil saber o que culpar. Tudo o que se pode
fazer é esperar que algumas pessoas permaneçam saudáveis e superem essas coisas. Agora
você começa a ver por que eu odeio guerra e soldados. Eu tive que lidar com muitos de
seus males resultantes.
- Isso não é uma guerra honesta. – Liane disse. – Uma coisa é lutar com espadas e
facas, mas isso... Só preciso de uma espada como arma. Nesse tipo de batalha ambas as
partes estão em igual risco de morte. Apenas covardes lutam de outra forma. - Mesmo
enquanto dizia tais palavras, Liane as lamentou. Este não era o caminho para ganhar a
liberação de seu juramento.

5
N. do T.- 'Lábio leporino': também chamado de 'fenda palatina', é uma anomalia caracterizada pela fenda no céu da
boca e/ou lábios.
E s p a d a d o c a o s | 131

- Mas ambas as partes estão em igualdade de perigo? - Dom Gervase perguntou


gravemente. - Se você e eu fôssemos lutar com espadas, posso assegurar-lhe que eu estaria
em maior perigo.
Mas isso não seria necessário se você tivesse interesse e treinando normal para alguém
de sua origem, Liane pensou com raiva. O homem estava realmente desfilando sua falta de
honra diante dela. Então ela rapidamente ocultou seu aborrecimento temendo que Dom
Gervase tivesse o poder dos feiticeiros para ler pensamentos. No entanto, ela acreditou
nele quando ele disse que não era verdadeiramente talentoso, pois todos os feiticeiros que
Liane já tinha ouvido falar eram ruivos, enquanto o cabelo de Dom Gervase era preto como
uma noite sem lua. Ainda assim, ela não ia arriscar.
- Você não pode ver qualquer virtude em um guerreiro? Não lhe dói o conhecimento
de que muitas pessoas vão morrer se eu não entregar minha mensagem para Arilinn?
- Toda a morte me dói. - Dom Gervase disse suavemente. - Mas a falta de confiança é o
que torna os homens temerosos e prontos para matar. Ninguém vai arriscar atacar
desarmado para ser morto. E como você pode confiar em alguém que quebra um
juramento?
Liane não pôde responder a isso. Ela apenas olhou para o fogo. Ela concordava com
Dom Gervase, mas ela devia sua lealdade a algo maior neste caso. Seu juramento para a
Irmandade vinha em primeiro lugar. Pela manhça ela partiria para Arilinn.

~o⭐o~
Mesmo depois de anos de campanha, Liane achou difícil despertar no crespúsculo
cinzento e se vestir silenciosamente sem o calor do fogo. Na meia-luz havia algo estranho e
ameaçador mesmo nos lugares mais inocentes. Desta vez, o sentimento foi intensificado
porque Liane sentiu que estava fazendo algo errado ao sair dali. A única coisa que a fazia se
sentir pior era a ideia de ficar e deixar as pessoas morrerem pela ausência de sua
mensagem. Felizmente, aquela não era uma região agrícola onde o pré-amanhecer era a
hora comum da saída para o trabalho. Aqui os homens e mulhes honestas ainda estariam
em suas camas àquela hora. Dom Gervase ainda estava dormindo. Pelo menos a porta de
seus aposentos estava fechada. Durante a noite ela temeu que alguém despertasse o
curandeiro em busca de tratamento. Ela conseguiu sair da casa sem problemas e
lentamente seguiu para o estábulo pelas ruas desertas. Ela só esperava que sua sorte se
mantivesse e não encontrasse ninguém montando guarda no estábulo.
Foi como ela esperava. O estábulo esatava deserto, exceto por três cavalos, um dos
quais era o seu enquanto os outros dois pareciam já na extrema velhice. Bom. Ninguém
seria capaz de segui-la. Não com aqueles cavalos.
E s p a d a d o c a o s | 132

No momento em que o Sol estava claro do horizonte, Liane já estava bem longe,
subindo a trilha que circulava de forma íngreme em direção ao Passo de Cluthra, que, em
teoria, separava as terras dos Lanarts das terras dos Ridenows. Liane inspirou e expirou. Ela
tinha uma sensação de desconforto. Sua fuga tinha sido muito fácil. E ela sabia que essa
sensação não sumiria até que deixasse as terras dos Lanarts. Infelizmente, a natureza da
trilha a impedia de viajar rapidamente e as grossas madeiras de abeto e as rochas salientes
a impediam de ver a qualquer distância. Era um excelente local para uma emboscada. Mas
se sua sorte continuasse, ela atravessaria o passe por volta do meio-dia.
Quando ela estava passando por um local difícil onde a trilha se estreitou e o chão
inclinou bruscamente, Liane ouviu um grito agudo. O cavalo escorregou, quase a jogando
no chão. Liane o controlou e falou suavemente para acalmá-lo. Ela não queria que qualquer
um deles caísse no vale lá embaixo. Então o grito soou novamente. E de novo. No início,
Liane pensara que era um pássaro banshee, mas depois percebeu com horror que era
humano, de uma mulher ou uma criança.
Ela guiou o cavalo para um local mais amplo, onde poderia amarrá-lo a uma árvore.
Então, com sua faca na mão, ela se dirigiu através das árvores em direção à fonte do choro.
Mensagem urgente ou não, ela não poderia ignorar isso. Por um momento, ela sentiu a dor
aguda de um esfaqueamento em sua virilha. De repente, as árvores diminuíram ao redor.
Em uma clareira estava uma pequena criança ruiva sendo atacada por um lobo rosnando.
Quando Liane correu para ajudar a criança, ela viu que não era um lobo, mas sim um
homem extremamente sujo e desgrenhado.
- Pare! - Ela gritou. O homem se virou para ela. Liane sentiu uma onda de loucura a
engolir. Então foi embora e a luz brilhou no aço. O homem tinha uma faca! - Corra, criança!
Vá para casa! - A roupa do menino estava esfarrapada e sangrenta. Havia sangue por toda a
volta no chão e havia manchas vermelhas e brilhantes na neve que ainda permaneciam
firmes.
- Fique fora disso, cadela. - O homem falou arrastado. Ele estaria bêbado? Ele se virou
para o menino que não tinha se movido. Por que não? Ele estava muito assustado ou muito
fraco? Novamente a luz brilhou e o garoto gritou.
Liane atravessou a clareira. - Deixe o garoto em paz. - O homem se virou com raiva em
direção a ela e novamente Liane sentiu uma onda de loucura, desta vez combinada com
luxúria. Ela lutou para ficar calma. Se não o fizesse, ela poderia facilmente morrer ali.
- Eu te disse para ficar fora disso, cadela. - Os olhos do homem eram selvagens. - Agora
você vai morrer junto com o garoto. Lidar com uma cadela parece mesmo um uso
adequado para uma adaga. - Ele riu insanamente. As colinas ecoaram seu riso. Ele se virou
para Liane e novamente a luz do sol brilhou na lâmina.
E s p a d a d o c a o s | 133

Liane não teve problemas para bloquear o impulso do homem, pois ele não era
realmente habilidoso em luta com faca. O que a espantou foi a força bruta por trás do
golpe que momentaneamente torceu seu braço. Ele era muito mais forte do que qualquer
homem com quem ela lutara antes. Mas, de qualquer forma, homens ruins muitas vezes
eram extremamente fortes.
Logo ficou claro que a estratégia do homem era divertir-se com ela em vez de matá-la
rapidamente. Ele podia ter sucesso, pois conhecia suas limitações. Enquanto ele não era
habilidoso no ataque, era realmente astuto o suficiente para impedir que Liane atingisse
qualquer golpe, já que seu alcance era mais longo que o dela. Ele parecia saber
instintivamente o quão perto poderia ir até Liane sem perigo para si mesmo. O que ele
estava fazendo era como atacar com o frenesi de um cachorro raivoso. Ele certamente
salivava como um.
Os dois circularam de novo e de novo na clareira. Fora, pelo canto do olho, Liane
notou que o menino ainda não tinha feito nenhum movimento para fugir. Por que não?
Misericordiosa Avarra, ela estava ganhando tempo justamente para ele fazer isso. No
entanto, Liane não podia se preocupar com o menino agora. Tudo o que ela poderia fazer
era focar em se manter viva.
- Morra, cadela, morra! - O homem disse repetidamente como se fosse algum tipo de
canto ritualístico. Ele se aproximou mais e mais, porém não tão próximo que Liane
conseguisse atingir com sucesso. - Mas antes de você morrer, cadela, - disse ele naquele
discurso estranhamente enrolado, - tenho que me enfiar no seu... - Ele terminou com a gíria
mais obscena dos soldados. Eles continuaram sua dança de circulação mortal.
De repente, os olhos do homem frenético ficaram brancos. Ele caiu para frente,
derrubando Liane no chão. Ela rapidamente se levantou para retomar o ataque. No
entanto, não havia necessidade. O homem estava morto. Uma flecha estava cravada na
base de seu crânio.
Liane pulou atrás de uma rocha, mas então se lembrou do garoto. - Venha aqui. - Ela
chamou. Quando ele se moveu para obedecer, ela pegou o braço dele e o puxou para o
chão. Ele começou a gritar novamente. Liane tentou acalmá-lo enquanto olhava em volta. O
arqueiro devia estar nas árvores mais ao longe na montanha. Não havia como dizer quem
deveria ser sua vítima.
Então alguns galhos das árvores balançaram e um homem carregando uma besta
começou a descer em direção a ela. Dom Gervase! Ela observou quando ele andou
lentamente para onde estava o homem morto. - Não há necessidade de se esconder de
mim, Liane. Eu não a machucaria. Eu nunca teria ferido Cathal, mas... - Ele ficou em silêncio
ao lado do corpo, depois se ajoelhou, colocou os dedos no eixo da flecha e rapidamente os
afastou como se queimasse. Por um breve momento, Liane se sentiu como se unida com
E s p a d a d o c a o s | 134

Dom Gervase e sentiu todo o vazio, pesar e horror que o dominava a tal ponto que ele
andou rapidamente para o lado da clareira e parecia sentir-se mal. Ele teria que viver com
essa culpa pelo resto de sua vida.
- Não sabia que você atirava bem assim, Dom Gervase. - O menino disse. Ele tentou se
levantar, mas caiu de volta no chão.
- Ele perdeu muito sangue. – Liane disse, um pouco desnecessariamente,
considerando a roupa sangrenta e esfarrapada do menino, isso sem mencionar as manchas
de sangue no chão. - Ele tem uma ferida profunda na virilha. – Ela acrescentou, sabendo
disso, mas incapaz de explicar como ela sabia.
Dom Gervase se apressou. Ele tirou a capa e colocou no menino. - Eu esperava chegar
a tempo de salvar o Domenic. Temos que parar o sangramento.
Liane tinha visto o efeito pós-batalhas vezes o suficiente para agir automaticamente,
fazendo o que era preciso, então os dois trabalharam juntos em silêncio. - Acho que parou
por enquanto. - Ela disse finalmente.
O curandeiro assentiu. Só então ele respondeu à pergunta não falada de Liane. - Uma
vez, no que agora parece ter sido outra vida, fui o Arqueiro Mestre no exército de Lady
Aillard, uma parente minha. Ainda tenho a habilidade embora eu faça pouca prática de vez
em quando matando pequenos animais para alimento. Você achou que eu condenaria algo
sem conhecer?
Liane ficou em silêncio. Ela estava muito ocupada reorganizando todas as suas ideias
sobre aquele homem.
- Você poderia ter sido culpada pela morte de Domenic, assim como a outra de sua
Irmandade foi culpada pela de Camilla. - A voz de Dom Gervase invadiu os pensamentos de
Liane.
- E você sabia quem era o verdadeiro assassino! – Liane disse, um pouco de sua velha
raiva retornando. - Você me manteve lá apenas por um falso pretexto!
- Eu suspeitava, mas não sabia. - A voz de Dom Gervase era firme. - O laranzu era
necessário para descobrir a verdade. Se, como eu fortemente suspeitava, - ele piscou um
olho e sorriu - você saísse antes da chegada dele, o cavalariço seria forçado a agir. - Dom
Gervase olhou para o nada. - Como ele o fez. - Então ele olhou para o garoto deitado no
chão e depois se virou para Liane. - Seu cavalo está por perto, sim?
- Um pouco mais abaixo.
- Então você vai me ajudar a levar Domenic ao forst onde poderei atendê-lo melhor?
Certamente sua viagem a Arilinn pode ser atrasada um pouco mais, considerando que você
se importou o suficiente para o resgatar em primeiro lugar?
Liane não conseguia recusar e ela realmente não queria recusar.
E s p a d a d o c a o s | 135

Juntos os dois levaram o menino de volta para a casa de Dom Gervase no forst. Liane
se atrasou mais ainda lá por ter tentado tranquilizar uma mulher quase histérica, a
convencendo de que seu filho ficaria bem graças aos excelentes cuidados de Dom Gervase.
- Você tem a sorte de tê-lo aqui. – Ela concluiu.
- Eu sei, eu sei. - A mulher perturbada contorceu as mãos. - Esse homem é muito
especial, tocado por Avarra, de grande nobreza. Lorde Lanart foi quem ordenou a
destruição da cidade de Dom Gervase e assassinou todos os seus parentes. Dom Gervase
veio aqui trazendo a destruição? Não. Ele veio como curandeiro. Ele é especial, eu digo. O
escolhido de Avarra, com certeza. Ah, espero que Domenic esteja bem. – Ela disse quando a
porta se abriu e Dom Gervase entrou na sala comum.
- Ele vai ficar bem. - Dom Gervase disse com simpatia. - Por que você não entra para
vê-lo agora? Apenas lembre-se que ele está muito fraco pela perda de sangue.
A mulher entrou na sala indicada. Liane ficou feliz em se livrar de seus lamentos. Ela
olhou interrogativamente para Dom Gervase que estava limpando as mãos em um pano
úmido.
- Não era minha intenção que você soubesse disso. – Ele disse finalmente.
- Mas por que? - Não fazia sentido.
- A cadeia de ódio precisa ser quebrada em algum lugar.
A sala ensolarada desapareceu e Liane se viu em uma escuridão repleta pelas ondas de
loucura e raiva que possuía um homem com a morte de sua cidade, seus parentes e,
especialmente, de seu filho pequeno. O riso frenético do cavalariço morto ecoou. Tudo isso
diminuíu lentamente, dando lugar a solidão, meditação e disciplina encontradas em uma
célula de um monge sem alegria. Somente quando os últimos remanescentes foram
completamente purgados, Dom Gervase descobriu seu talento para a cura.
Então seus pensamentos se voltaram para seu pai desconhecido que tinha sido
orgulhoso demais para se prestar a reconhecer a criança que ele não podia ter certeza de
ter gerado. Para a casa sem alegria de sua infância, onde sua mãe definhara sob a falsa
culpa do estupro e culpava sua filha por existir, uma filha que a incomodava. E na
Irmandade? O que ela encontrou lá? Uma camaradagem áspera, mas ninguém de quem ela
sentiria falta ou que lamentaria a morte dela. Ela se viu tremendo apesar do calor da sala.
- Devo ir a Arilinn. – Ela disse quando se acalmou. - Devo isso a Irmandade. Mas vou
voltar. Eu prometo. Até darei meu juramento, se é que ainda vale algo. - Ela tentou, sem
sucesso, forçar uma risada.
Dom Gervase foi com ela para onde ela havia deixado o cavalo. - Não será fácil, sabe. –
Ele disse segurando as rédeas enquanto ela montava. - Sua Irmandade vai chamar você de
covarde, traidora ou pior. - Ele sorriu. - Bem-vinda à vida de um cão pastor.
E s p a d a d o c a o s | 136

- Eu ainda prefiro ser um lobo. - Liane disse quando acenou e se afastou. - Mas o
mundo vai como vai e nenhum de nós realmente tem alguma escolha. Não nestes dias.
Ela se dirigiu para a trilha da montanha. Estava com pressa para alcançar Arilinn.
Quanto mais cedo ela chegasse lá, mais cedo ela retornaria. Com sorte, ela passaria pelo
Passo de Cluthra e estaria no território de Serrais ao pôr do sol.
E s p a d a d o c a o s | 137

Corredor frio
Aly Parsons

Fredrik Ardais olhou o Grande Salão amargamente, pensando que para uma noite de
Festival aquilo devia superar as espectativas. Os mais velhos já haviam se retirado há muito
tempo com as crianças, deixando os jovens adultos para seu prazer sem companhia
indevida. Os músicos não estavam indo bem, talvez, ele pensou. Houve uma superluidade
dos das danças em círculos grupais, enquanto as danças de casais eram muito raras.
Vendo Colryn olhar ao redor, Fredrik deu dois passos rápidos para ficar na posição de
paxman de seu Lorde e primo. Colryn Ardais sorriu para ele e se aproximou. - Por que essa
frequente proximidade durante o Festival em nosso próprio salão? A Guarda da Cidade não
treinou você para ser social? Eu pensei que você teria encontrado uma prima distante para
se aproximar.
- O mesmo para você. – Fredrik respondeu. - Devia ter adequadamente se retirado
com sua dama agora.
- Ah, ainda não estou cansado. - Colryn respondeu distraidamente, então levantou
uma sobrancelha para Fredrik, cujo pensamento desprotegido correu: e ela se esgotou
bastante. Colryn olhou para a murcha e ofegante Lira quando ela saiu de um círculo de
mulheres e caiu pesadamente em um banco baixo e almofadado.
Fredrik ficou favoravelmente impressionado com Lira quando ela o recebeu no Castelo
Ardais dois dias antes, mas agora, em contato leve com Colryn, seu julgamento foi
temperado pelas percepções de Colryn.
Lira estava inclinada indelicadamente contra a parede. Seu cabelo ruivo estava
escapando de seus fechos de jóias verdes e os fios desarrumados estavam grudados em seu
pescoço. Seu vestido verde escuro era baixo ao extremo mostrando uma linha fina do
pescoço e seios que sumia no corpete fazendo o vestido parecer insinuante e imodesto.
Com um encolher de ombros impaciente, Colryn se virou. Fredrik franziu a testa.
Cautelosamente barricando seus pensamentos, ele refletiu: apesar da saúde ruim de seu
pai, Colryn parece não ter cuidado para cumprir seu dever e conseguir um herdeiro. Seu
casamento deve ser tão aborrecido quanto esta festa.
Mantendo o ritmo atrás e à esquerda de Colryn, Fredrik teve que se forçar a relaxar. O
palpitar de sua pedra da estrela contra o peito finalmente tinha parado, mas tinha o
incomadado demais naquela noite.
Fredrik e Colryn chegaram na mesa de refrescos a tempo de ver uma tigela de bebida
ser lançada e o vinho ser despejado com força na cabeça de um convidado. Colryn agarrou
E s p a d a d o c a o s | 138

o braço da vítima enquanto falava surpreso e furioso contra o atacante. Fredrik puxou o
culpado para trás, dizendo: - Auster, como pôde?
O homem encharcado murmurou: - Bastardo filho de seis pais! Você honra seus
muitos pais, não os renega. Exatamente como eu disse.
Colryn repreendeu em tom baixo: - Fale gentilmente da irmã do meu pai nesta casa,
parente.
O homem balançou a cabeça confuso. – Não falei mal de nenhuma dama. Falo apenas
desse bastardo.
Auster abafou um bocejo, então comentou: - Ele estava falando assim por tempo
suficiente. Achei que encharcado por fora controlaria o que tem por dentro.
- Imundo, filho de seis pais. - O homem murmurou enquanto o menino se movia pela
mesa em busca de um prato de bolos de mel. Auster balançou a cabeça, seu cabelo
bagunçado balançando descuidadamente.
Colryn fez sinal para um Guarda e educadamente solicitou que ele acompanhasse o
homem encharcado para uma câmara de hóspedes e o vigiasse, evitando diplomaticamente
uma prisão ou a censura de um convidado na noite do Festival. Ele torceu o vinho de suas
mangas enquanto ele e Fredrik olhavam para as costas de Auster que parecia estar
comendo tudo o que via pela mesa. Fredrik comentou: - Seu uso do vinho como arma
mostra uma restrição considerável. Ele estava só jogando conversa fora, uma bobagem
comum.
Auster, a uma mesa de distância, virou-se e engoliu uma última mordida de bolo de
nozes. Seu queixo levantou e seus olhos brilharam. - Conversa comum de pessoas comuns é
difícil de ignorar. Especialmente quando não há escolha! - Ele lançou esta última frase
amargamente na direção de Colryn. Então sorriu docemente para Fredrik, fez uma
reverência cortês, como uma despedida para ambos e passeou até a mesa seguinte.
Fredrik estremeceu ligeiramente. - Ele ainda não aceitou a negação de seu pedido para
ir a Nevarsin.
Colryn observou Auster. Momentaneamente tinha esquecido seu dilema. - O pai acha
que seu trabalho aqui é mais importante do que enviá-lo para o mosteiro para escapar do
escândalo da vergonha de sua mãe. Depois de sua última briga, o pai ordenou que ele se
controlasse com dignidade e parasse de tentar bater em todas as más línguas com os
punhos. - Colryn riu. - Se o pai ouvir sobre o banho de vinho desta noite, aposto que ele
achará graça da maneira de preservar sua dignidade sobre o bêbado. Também não tinha
muita dignidade a perder de qualquer maneira!
Vendo Auster pegar uma cunha de queijo frio e coloca-lo em uma fatia de pão de noz,
Colryn acrescentou: - Pai poderia enviá-lo para Nevarsin alegremente se soubesse que o
menino comeria seu peso em comida a cada dia!
E s p a d a d o c a o s | 139

Fredrik viu que a breda e amiga de infância de Lira, Camilla, se juntou a ela, e as duas
estavam evidentemente compartilhando alguma piada, suas cabeças juntas, seus ombros
tremendo. Fredrik, seus olhos focados na beleza escura ao lado de Lira, inclinou a cabeça na
direção de Colryn e sugeriu: - Vamos implorar uma melodia adequada aos músicos e
aproveitar algumas parceiras?
Colryn perguntou, com estranha preocupação: - Ainda estou apresentável?
Fredrik ficou surpreso e olhou seu primo de cima a baixo avaliando. Com um
semblante sério, ele respondeu: - Se eu fosse sua lady, dançaria nossa guiando para a galrie
escura mais próxima com você.
Um fraco rubor apareceu nas bochechas de Colryn. - Você dança até sua galeria e eu
dançarei até a minha. - Ele caminhou até o palanque dos músicos e pediu um ritmo de
dança comum. Fredrik olhou com desfavor. Nos grandes bailes em Thendara, era um toque
de luxo colocar os melhores músicos nos Sete Domínios posicionados fora de vista. Aqui,
nas Hellers, se achava de mau gosto e ofensivo esconder o talento local. Além disso, ele
gostava de assistir músicos tocando.

Colryn caminhou do outro lado do corredor, seguindo o rastro de um bêbado para


evitar os dançarinos, e Fredrik caminhou meio dançando atrás dele, guiando uma parceira
invisível. Na metade do piso de dança, ele notou Camilla o observando, rindo de suas
palhaçadas. Fredrik se viu desejando que seu tédio tivesse terminado e a festa salva por
ele. Ele virou sua companheira imaginária várias vezes, enquanto conseguia manter os
olhos e o sorriso focado descaradamente em Camilla. Então saltou para alcançar Colryn,
chegando ao seu lado quando ele parou diante das duas jovens mulheres.
De repente, Fredrik ofegou e se girou para encarar a pista de dança, seu corpo meio
agachado e sua adaga em mãos. Sua pele estava arrepiada enquanto seus olhos pousavam
na multidão, procurando a fonte do ataque que veio... Ou, ele se questionou, era um
ataque iminente?
Alerta pelo seu movimento, Colryn se virou um momento depois de Fredrik. Colryn,
estreitando seus olhos, procurava na multidão. - O que foi, primo? - Ele perguntou.
Com sua sensibilidade aflorada, Fredrik sentiu a onda de surpresa de Camilla e a
impaciência de Lira. Ele sabia que sua tensão e confusão devia ser evidente para Colryn,
mas nada parecia estar errado. Incomodado e envergonhado, Fredrik guardou sua adaga
meio virada, ainda muito cauteloso para virar as costas ao possível perigo.
Lira enrugou o nariz e perguntou: - Você bebeu a noite toda, Colryn, a ponto do vinho
agora com sua dama ser demais?
Sobre os primórdios dos protestos de Colryn, Camilla zombou. - Se sim, ele teve um
companheiro nisso. Aquele que prefere suas mulheres invisíveis que são mais fáceis e
E s p a d a d o c a o s | 140

avançadas! Ou que você lançou um glamour em si mesmo para tornar qualquer mulher
disposta e ainda não aprendeu o truque para remover o feitiço?
Seu tom somado à desconfiança de Fredrik e vários sentimentos piscavam em sua
mente. Mas nem a obscuridade, a indignação defensiva ou as explicações pareciam
apropriadas, então ele apenas sorriu. Colryn, que captou alguns desses pensamentos,
começou a rir.
Olhando de um homem para o outro, os olhos de Lira se encheram de lágrimas
irritadas. Camilla olhou rapidamente para ela e depois se levantou, apertando a mão de Lira
e a levantando também. Camilla parecia querer passar por Fredrik e ela disse: - Venha,
minha lady. Nós deixamos seus convidados sozinhos por muito tempo.
Fredrik não bloqueou o caminho delas. Ele não tinha certeza se imaginou ou ouviu o
pensamento passando entre as duas: Vamos deixar esses cafajestes.
Colryn afundou no local que sua esposa havia desocupado e descansou o queixo na
mão. Ele olhou para Fredrik e perguntou: - O que fizemos? - Sua angústia estava clara para
Fredrik. Casado a um semestre, nós tínhamos gostado um do outro nas poucas vezes que
nos vimos antes de nos casarmos, mas temos sido estranhos desde então. Mesmo o desejo
de viver juntos é saciado por nossos jogos...
Fredrik sofria com a dor de seu amigo, mas ele próprio estava muito tenso e inquieto
para se sentar. - Colryn... - Ele começou. Ele estava preocupado com os problemas de
Colryn, mas ele não podia voltar seus pensamentos para eles agora. Ele se virou e examinou
o salão novamente.
Colryn tocou em seu ombro e ele pulou. Então, agarrando rudemente o braço de
Colryn, arrastou-o ao longo da parede até uma pequena alcova. Fredrik parou com as costas
na parede lateral da alcova e soltou uma respiração profunda. Colryn olhou para ele.
- Bredu, qual é o problema?
Fredrik balançou a cabeça. - Eu senti como se o Pacto tivesse sido quebrado e os
arqueiros estivessem prontos, ocultos nas varandas, todos apontando para você... Para nós!
Claro que eu sei que essas armas de covardes não estão aqui realmente, mas algo...
Com um choque de desânimo, ele descobriu que a mão esquerda já estava puxando o
cordão ao redor do pescoço, pegando a pequena bolsa de couro oculta abaixo da camisa.
Ele sentiu o pânico frio crescendo quando se virou para encarar o corredor. Então suas
emoções se dissolveram e ele se sentiu um espectador, calmamente olhando sobre o
ombro de um estranho conforme suas mãos abriam o cordão e cuidadosamente abriam a
seda isolante. Inclinando a bolsa, ele deslizou o cristal de matriz em sua mão em concha.
Quando ele olhou para as profundezas da pedra, sabia que as luzes dentro já estavam
pulsando no ritmo de seu batimento cardíaco. Ele se fundiu com o estranho, sentindo a
calma que se espalhava por todo o corpo.
E s p a d a d o c a o s | 141

Sua consciência se expandiu para abranger as presenças vivas. Ele sabia que Colryn,
levemente curioso, estava observando-o, mas com pensamentos centrados em Lira. Onde o
vinho fluía muito livremente no corredor, algumas brigas estavam começando. Em outros
lugares, pequenos desentendimentos estavam sendo mascarados por uma polidez gelada.
Havia tamvém uma ocupação concentrada, o que era surpreendente a esta hora, e ele logo
identificou como sendo os cozinheiros e servos da cozinha. Apesar de toda a energia da
dança, uma lassidão parecia estar afetando a multidão ali.
Uma onda de hostilidade inchou e ele virou o rosto para sua fonte. Três homens
vestidos com o carmesim e cinza de Ardais estavam vindo em direção a ele. Ele percebeu
que na luz azul da matriz, ele era claramente visível apesar da escuridão da alcova. A
suspeita dos Guardas e o medo martelaram nele e ele isolou apressadamente a jóia azul,
guardando-a.
- O que você está fazendo aí? – O líder dos Guardas perguntou duramente. - Que
truques de feiticeiro você está jogando nos convidados de Lorde Ardais?
Fredrik sentiu Colryn se mover para o seu lado e se sentiu seguro em ignorar a
pergunta do Guarda enquanto tentava consolidar suas impressões. Havia algo estranho...
Colryn falou com autoridade, atraindo toda a atenção dos Guardas e distraindo
Fredrik. - Dom Fredrik é meu convidado e procura um inimigo de Ardais.
- Vai dom! Eu não o vi. Se você precisar de privacidade...
Os Guardas pareciam prontos para recuar, mas Colryn os manteve ali com um gesto. -
O que você descobriu? - Ele perguntou a Fredrik.
Fredrik tinha certeza que seu rosto estava ficando vermelho e não sabia como
responder. Lentamente ele disse: - Não encontrei a ameaça, mas ainda assim... - Ele
colocou um dedo na parte de trás da mão de Colryn para facilitar a comunicação. Algo está
errado. Eu sei disso. Mas sou não qualificado no trabalho de matriz. Talvez se você
tentasse...
Colryn franziu a testa, quebrou o contato e disse em voz alta: - Não há perigo no
momento. Meu primo sentiu algum perigo aqui, mas se está no futuro ou talvez ele tenha
vislumbrado a batalha no Meio do Inverno nos tempos demeu avô quando os bandidos
montavam disfarçados como convidados...? Em qualquer caso, Eduin, Hjalmar, por favor,
faça as rondas entre os que estão de plantão. Certifiquem-se de que todos estejam alertas,
mas não soem nenhum alarme. Radan, fique perto de nós enquanto percorre o salão.
Quando os dois Guardas se afastaram, Fredrik viu Eduin sacudir a cabeça e claramente
ouviu seu comentário resmungado: - ...Passado, presente, futuro... Quem se importa? O
problema virá quando tiver de vir. Por que aquecer uma panela quando a armadilha está
vazia?
E s p a d a d o c a o s | 142

Fredrik mordeu o lábio inferior e começou a examinar cuidadosamente as muitas


entradas, recessos e varandas. Radan se afastou para fora da audição e seguiu com os olhos
os jovens nobres enquanto se moviam ao longo da parede. Depois de um olhar em volta,
Colryn olhou para o rosto de Fredrik.
- Durante os nossos momentos juntos em Thendara eu nunca soube que você usava
uma matriz... - Colryn murmurou.
- Nunca senti necessidade de usá-la antes. Por que você não escaneou o corredor com
a sua? - Fredrik disse firmemente.
- Por que já captei a maior parte do que você sentiu... E pareceu bastante normal.
Você não sabia que eu estava ‘escutando’?
- Você parecia tão distraído. - Fredrik percebeu, tardiamente, que assim como ele
tinha captado e tentado suprimir os pensamentos de Colryn sobre Lira, Colryn devia ter
partilhado as impressões que sentiu.
Colryn persistiu. - Pensei que você tinha encontrado algo no momento em que voltei
minha atenção para os Guardas. Se não, por que você ainda está tão preocupado?
Fredrik levantou uma barreira para conter sua crescente vergonha e medo.
Relutantemente, ele respondeu: - Eu não sei. Talvez a matriz tenha causado meu
desconforto.
Colryn parou na entrada de uma das longas galerias e o encarou. - Você estava
desconfortável antes de pegar sua pedra da estrela. - Ele lembrou.
Fredrik olhou para o chão. Em uma imitação inconsciente do Guarda mais velho, ele
murmurou: - Passado, presente, futuro... A matriz se relaciona com o tempo e o espaço. -
Seus medos trouxeram gotas de suor em seu rosto e corpo. Ele desejou poder escapar da
franqueza do olhar de Colryn.
Colryn tocou seu braço, dizendo em tom baixo e calmo: - É uma ferramenta que deve
ser usada, como você deve ter sido ensinado na Torre.
Fredrik endureceu. - Eu me lembro pouco do meu tempo lá. Entre as crises da doença
de limiar, usei a matriz... aprendi a controlar meus pensamentos e criar barreiras. Mas
meus pais pediram meu retorno assim que eu fiquei fora de perigo. Depois de perder duas
filhas e um filho quando cada um alcançou a adolescência, eles queriam me manter por
perto. - Ele encolheu os ombros ligeiramente. - Agora que meu irmão mais novo passou
pelo limiar com segurança, posso arriscar-me em tal tolice como viajar aqui no clima no
meio difícil.
- Não há muito risco, considerando a experiência combinada da sua escolta! – Colryn
zombou. - Ricard e Gwynn poderiam atravessar as geleiras sob os bicos de banshees. E
aquela guia Amazona mirrada. Certamente ela já vivia nas montanhas antes mesmo de
nascer!
E s p a d a d o c a o s | 143

Um canto da boca de Fredrik se contorceu em reconhecimento da piada de Colryn e se


moveu para andar na frente. Mas a mão de Colryn em seu braço novamente o
interrompeu.
A voz de Colryn, embora suave, adquiriu uma ligeira firmeza. - Bredu, me contaram
como a doença do limiar devastou sua família. O que isso tem a ver com o que está
perturbando você agora?
Fredrik afastou-se, incapaz de encarar o olhar de Colryn ou suportar seu toque. Se suas
barreiras fossem violadas, sua aflição certamente alcançaria todos os telepatas no castelo.
Colryn estava esperando com uma paciência implacável. Desidido, Fredrik se pegou
falando.
- Na Torre, ouvi os pensamentos com tanta frequência... Nenhum deles parecia
acreditar que poderia sobreviver ou fazer algo melhor do que viver por um tempo como
minha irmã viveu, sem uma mente. Como posso ter certeza que sobrevivi a esse período
ileso? - Sua voz começou a se elevar. Ele engoliu em seco, depois continuou em um
sussurro forçado. - Não consegui me impedir de usar a matriz agora. E se os motivos para
usar o laran forem de alguma forma distorcidos? - Finalmente erguendo os olhos para o
rosto de Colryn, Fredrik ficou surpreso ao ver impassividade em vez da simpatia que ele
esperava.
- Você esteve na Torre a cinco anos. Sou o primeiro com quem você se abre? - O tom
de Colryn era incrédulo e Fredrik só conseguiu responder com um aceno mudo.
Sem ouvir, Fredrik sabia que a próxima palavra de Colryn seria ‘tolo’. - Um Guardião,
ou melhor ainda, um bom monitor, poderia ter aliviado seus medos a qualquer momento.
Você poderia ter feito pleno uso de seu laran nos últimos anos sem nada para o impedir. -
Seu pensamento passou através das defesas vacilantes de Fredrik: eu toquei sua mente e
você não é um monstro. Fredrik sentiu seus medos dissipando-se sob a confiança de Colryn.
Uma quietude se estabeleceu entre eles e Colryn disse baixinho: - Queria que meus
problemas fossem resolvidos tão facilmente.
Ele moveu seu olhar pelo salão e, seguindo seu olhar, Fredrik viu Lira parada no meio
de um círculo de dançarinos, o olhar fixo em Colryn. A solidão mútua e infelicidade estava
espelhada em seus rostos. Nenhum se moveu para o outro.
- Vá até ela. – Fredrik sugeriu.
Colryn levantou a mão como se quisesse ir em direção a ela, mas depois a abixou e
voltou seu foco para dentro da galeria. Seu pensamento, mais uma vez claro para Fredrik,
tocou com tristeza dentro dele, Não adianta. Como o envolvimento de um manto de pele
bem sobre si mesmo, Colryn ergueu suas barreiras no lugar, fechando seus pensamentos e
emoções na privacidade.
E s p a d a d o c a o s | 144

O guarda se moveu para perto de Fredrik e seguiram Colryn. Fredrik perguntou


impulsivamente em voz baixa: - O você sabe de algum problema entre Dom Colryn e sua
lady?
Radan respondeu sem hesitação. Ele tinha protegido Colryn e Fredrik quando eram
companheiros inseparáveis na infância. - Só o que todos os Guardas da casa viram e
ouviram. Eles são muito formais um com o outro e, por vezes, mal conseguem ser
civilizados. Um é frequentemente ouvido criticando o outro e, mesmo assim, parecem
ansiar pela companhia um do outro. É muito estranho.
- De fato. – Fredrik murmurou. Ele não podia fazer mais do que estar preparado para
ouvir sempre que Colryn desejasse discutir seus problemas. Colryn queria falar mais cedo,
mas o ritmo lento de Fredrik no pressentimento do perigo interferiu. Um frio interior
permeou seu devaneio, obrigando-o a fazer uma pausa, a atenção totalmente em seus
arredores.
Depois do calor, luz e barulho do Grande Salão, a galeria estava fria, escura, mesmo
com seções isoladas sendo iluminadas pelo brilho romântico de chamas através de metal
perfurado e vidro colorido. Colryn passou pelo fulgor morno à frente, seu cabelo e enfeites
momentaneamente brilhando. Depois foi engolido pela escuridão além. Radan seguiu com
a cabeça girando de um lado para lado. Os ecos de suas botas na pedra mudaram
sutilmente. Fredrik se moveu para frente, seus sentidos formigando. Ele notou que a
parede perto da luz era enfeitada por um mural. A parede oposta tinha uma abertura em
arco para baixo que era cercada por duas imagens coloridas. Hastur e Cassilda, ele
observou automaticamente. Dentro da abertura, a forma curva de um divã podia ser
notada sob a luz. Ele olhou rapidamente, mas notou que estava vazio. Fredrik correu para
alcançar o Guarda e Colryn.
Os seguindo aproveitou para fazer uma busca rápida nas áreas circundantes do
corredor. Ele se deparou com duas convidadas dormindo em cadeiras, um jarro vazio entre
elas. Na entrada para outra galeria encontrou um jovem desesperado cujo rosto carregava
uma marca de mão avermelhada. Foi só isso.
- As galerias estão vazias! - Fredrik expressou o óbvio.
Ele percebeu que fora isso que o havia perturbado antes ao usar sua matriz. Ele
esperava, inconscientemente, tocar e precisar ignorar a libertinagem usual em qualquer
noite de Festival. Mas o alto astral havia sido reservado ao ‘permitido’ aos olhos. Mesmo os
flertes suaves tinham sido poucos. Vendo agora o ‘brilho’ que faltara na festa e notando os
olhares intrigados pela distância entre ele e seu primo, Fredrik pensou que ironicamente
que talvez os problemas de Colryn fossem contagiosos.
Olhando distraidamente, Fredrik viu Auster roubar uma bandeja de doces de um servo
e equilibrá-la de um lado remexendo em outra. Ao nota-lo ao mesmo tempo em que a
E s p a d a d o c a o s | 145

música parou, Colryn explodiu, irritado: - Pelos Infernos de Zandru! O rapaz os come como
um carcereiro!
Auster congelou e a bandeja de madeira deslizou de lado. Os pratos de cristal se
quebraram e os doces quebraram se desintegrando. Auster piscou e olhou para baixo, caiu
de joelhos e começou a limpar a bagunça.
Colryn fez um som de desgosto e se afastou, mas Fredrik se moveu para ficar com
Auster. Ele olhou pensativamente para as mãos de Auster, instáveis enquanto ele juntava
as peças de vidro e comida.
- Você está nervoso, primo. - Fredrik murmurou. Ele se agachou, ostensivamente para
ajudar, mas mais ainda para tentar vislumbrar o rosto de Auster.
- Deixe-me sozinho, primo. - Auster pronunciou a última palavra como uma maldição.
Um pé delicado em couro verde sujou com um dos doces da pilha. Lira, segurando
suas saias contra as pernas para mantê-las longe dos doces, perguntou: - Por que está
sendo tão duro, Auster? Ele só quer ajuda-lo. Tanto faz. Os servos estão vindo com
vassouras.
Fredrik se levantou e entregou um guardanapo de pano para Auster.
- Eu estava vindo arrancar Colryn do seu lado e dizer boa noite. - Lira disse. - Esta festa
parece pronta para acabar, mas a menos que Colryn e eu façamos o primeiro movimento
em direção a cama, todos podemos acabar levando a festa até a hora do almoço.
Colryn tinha seguido adiante, mas voltou ao ouvir a voz de Lira como se atraído por
um ímã. Fredrik os notou sorrir timidamente um para o outro e se perguntou se eles
estariam muito cansados de brigar. Eles eram um casal bonito: Colryn, sua dignidade nobre
tingida com timidez, e Lira, lindamente desgrenhada, sonolenta e relaxada.
Fredrik sentiu a alegria de Colryn quando Lira lhe permitiu colocar um braço em volta
dos ombros, ao mesmo tempo em que ela tocou seu rosto com ternura e ele lhe deu um
abraço de desculpas. Sua mão deslizou por baixo de uma mecha de cabelo ruivo na nuca.
Fredrik desviou o olhar da intimidade daquela carícia, se esforçando para quebrar o contato
entre Colryn e ele.
Auster estava sorrindo para o casal em um humor que Fredrik não conseguia
entender. Auster empurrou um polegar por baixo do laço de sua túnica e fechou os dedos
no interior da gola aberta de sua camisa. Fredrik olhou para o casal quando algo mudou na
atmosfera e sentiu sua pele formigar, seus sentidos pulando para o estado de alerta total.
A consciência da Lira sobre Colryn alcançou Fredrik. Seu perfume guerreou com o
aroma de especiarias no ar. Os cosméticos em seu rosto pareciam notoriamente evidentes,
seu cabelo estava visivelmente desgrenhado de um jeito nada agradável, a parte de trás do
feltro em seu pescoço esta úmido com suor...
E s p a d a d o c a o s | 146

Lira soltou uma exclamação abafada e se esquivou do braço de Colryn. Ela deu dois
passos para trás e ficou imóvel, rígida, suas bochechas em chamas. - Como se atreve a me
tocar em público?! Você não tem senso de decência em sua propriedade?
Suas palavras reverberavam dentro de Fredrik, ecoando entre as mentes dele e de
Colryn. A raiva de Colryn surgiu intensamente. Sem se mover, ele de repente estava perto
dela.
- Puta! - Ele gritou. – Você aprendeu suas ‘boas’ maneiras em uma Guilda de
Amazonas, para seduzir e depois recusar um homem? Mas claro que não! Até mesmo as
Amazonas Livres costumam agir mais decentemente em sua aparência!
Ela engasgou em indignação, depois olhou incerta, ambas as mãos no peito, em
choque.
A raiva irracional de Colryn batia dentro da mente de Fredrik e ele ergueu as mãos na
cabeça. Até mesmo a angústia de Lira era perceptível e rapidamente se tornava mais
intensa, pois sua receptividade para as emoções aumentava também.
- Pare com isso! - Fredrik rosnou entre os dentes cerrados. – Parem com isso, vocês
dois! - O contato com Colryn parecia ter abaixado suas defesas e agora ele não conseguia
barrar nenhum deles. Ele balançou tentando se mover para procurar Auster que tinha
desaparecido e, de alguma forma, isso aumentou sua dor. O rosto sorridente de Auster se
sobrepôs em sua visão do salão. Ele entendeu que, embora não pudesse parar a
tempestade emocional do casal, poderia remover esse sorriso. O único lugar que Auster
poderia ter ido para desaparecer tão rápido era para a galeria mais próxima. Fredrik
inclinou a cabeça e passou lentamente em direção à entrada. Ele sentiu Colryn e depois
Lira, cuidar dele, preocupados, focando em outras emoções.
Uma corrente de ar frio o recebeu quando entrou e ele finalmente conseguiu quebrar
o contato com o casal. Ele andou com gratidão na frieza, sentindo como se estivesse se
afastando do fogo que antes ardia dentro de sua cabeça. Auster tinha aberto uma porta e
esatava encostado na grade, na altura do peito, e sua silhueta era vista contra o brilho do
luar e na neve que caía lá fora. A neve estava sendo pulverizada para cima por rajadas de
vento e a corrente de ar soava alto o suficiente para abafar o som da aproximação de
Fredrik e forte o suficiente para carregar a risada de Auster.
Fredrik segurou ao redor da cintura magra de Auster, tirou sua adaga, a jogou e ela
caiu ruidosamente nas pedras do chão atrás dele. Assustado, Auster virou-se, uma mão
indo para o punho da adaga desaparecida. Fredrik jogou-o de volta contra o peitoril,
mostrando intencionalmente o brilho de sua própria faca.
- Quem...? - A pergunta de Auster foi cortada quando a mão direita de Fredrik segurou
sua garganta. Auster jogou a cabeça para trás e disse com dificuldade: - Deixe-me pegar
minha faca e vou lutar com você, seu...
E s p a d a d o c a o s | 147

Fredrik segurou-o mais forte, rosnando: - O que te faz pensar que você merece uma
luta justa? Contenha-se, covarde, e talvez você não sinta nada.
Auster foi mantido inclinado para trás, seus pés quase fora do chão, seus ombros
voltados para a canhoneira. Ele fez um movimento desajeitado com o braço para a faca de
Fredrik, mas Fredrik previra isso e facilmente evitou o movimento e levou sua faca para o
peito de Auster. Quando a ponta da faca deslizou entre os laços da túnica de Auster, Fredrik
rasgou-a para baixo, cortando o cordão de couro.
- Fredrik, você ficou louco? - Atrás dele, Colryn chamou.
Fredrik deu uma pequena risada reprovadora, exultando silenciosamente: Se há
qualquer loucura aqui não é minha!
Auster fez um esforço mais frenético para escapar, mas havia pouco ele pudesse fazer
em sua posição desajeitada. Quando Auster deu um soluço estrangulado, Fredrik soltou a
garganta dele e pegou a gola do colarinho da camisa. Mais uma vez a faca rasgou a roupa
em vez da pele, tirando uma parte da lateral esquerda da frente da camisa, de modo que
uma grande aba de pano caiu em dobras. Em seguida, pegando o braço de Auster, Fredrik o
puxou da abertura e o empurrou violentamente contra a parede mais próxima.
- Fredrik, o que você fez? - A voz de Lira estava fria como a neve. - Auster nunca
provocou uma briga!
- Disso eu tenho certeza. - Fredrik disse calmamente. Ele fechou a mão sobre a peça
solta de tecido e não ficou surpreso ao ver Auster recuar, meio atordoado. Fredrik abriu o
pano e o virou do avesso. Um pequeno bolso de seda estava costurado com um fino fio de
metal preso nele. Segurando o tecido da camisa além da seda, ele cortou a linha superior
de pontos e tirou um triângulo da seda. Uma joia azul, presa em uma bobina de fio de
cobre e firmemente presa ao pano, foi revelada.
Auster se contorceu convulsivamente, pegando o pano e acertando o braço de Fredrik.
Em seguida, ele tropeçou através da abertura que havia criado, desatento em suas costas.
Fredrik bufou desdenhosamente e empurrou seu punhal de volta na bainha.
Radan e outro Guarda que tinham seguido Colryn e Lira, pegaram Auster depois de
uma breve luta. O menino olhou grogue, mal conseguindo ficar de pé, embora os Guardas
não fossem duros com ele.
- Será que ele roubou isso? - Radan perguntou, quase pegando o objeto.
Fredrik, Colryn e Lira gritaram ao mesmo tempo: - NÃO! – Um grito de tal apreensão
que Radan congelou, seus dedos perto da joia reluzente.
No silêncio momentâneo que se seguiu, os dentes de Auster podiam ser ouvidos
batendo enquanto ele tremia violentamente no aperto dos Guardas, os olhos fechados,
uma expressão de medo em seu rosto.
E s p a d a d o c a o s | 148

Colryn falou baixinho: - Afaste-se, Radan, e não toque na joia. - Ele apontou para uma
porta próxima e acrescentou: - Leve-o para lá e permita que ele se sente.
Lira e Fredrik levaram luzes para a sala e os Guardas retiraram, com mensagens para
que ninguém entrasse atrás da pesada cortina.
Fredrik soltou um suspiro de alívio e comentou: - Ninguém merece a morte em troca
de brincadeiras rudes.
Auster estava sentado, seus antebraços sobre a mesa diante dele, os dedos abertos.
Fredrik pensou que ele olhava como se estivesse pronto para brigar.
- Pensei que você queria... - Auster sussurrou.
- Fui sua vítima apenas por uma noite. Se você deseja misericórdia, implore para
Colryn e Lira. - Fredrik disse secamente.
- Não vou implorar e nem pedir desculpas. - Auster murmurou. - Eu não fiz nada,
apenas impedi a indecência nesta casa. - Ele se inclinou seu peso em seus braços, os olhos
meio fechando, então piscou em alerta novamente. Uma sequência de rostos passou pela
mente, cada uma refletindo a visão que Fredrik tivera de Auster em forma de um sorriso
convidativo deslocando através aversão e desinteresse. Auster começou, então olhou
diretamente para Fredrik. Seu pensamento queimou, você nunca teria conhecido, mas
havia tantos... Eu fiquei tão cansado... Uma imagem repetitiva de uma mão tocando na tela
dos músicos percorreu Fredrick e ele percebeu que Auster havia solicitado muitas canções
assim. Fredrik sae retirou antes que os esforços cansados de Auster o prendessem.
Fredrik gentilmente apertou uma das mãos de Lira e tocou a de Colryn com a outra.
Sua perplexidade e desconfiança sumiram. Eles olharam nos olhos um do outro e Fredrik
ficou maravilhado. Ele percebeu que esta era a primeira vez que o casal estava em contato
claro com os pensamentos um do outro. Sombriamente, Fredrik sentiu a sobreposição da
crescente alegria pela visão de Auster alcançando a matriz e a mudança subsequente nas
percepções do casal. Auster tinha ampliado as falhas das pessoas com aquele tipo de ‘anti-
glamour’ e provavelmente amou as fortes emoções que criou fazendo todos tão
indesejáveis quando ele mesmo.
Lira foi a primeira a reagir, enviando uma rápida impressão de suas próprias suspeitas,
agora confirmadaa, e se recusando a ceder. Ela então entendeu: me convenci de que
qualquer menino em fase de crescimento comeria tanto quanto ele... Na verdade, ele está
se empanturrando para reabastecer a energia que usava contra nós!
Colryn quebrou o contato, seu rosto endurecendo enquanto confrontava Auster. -
Seus truques sujos transformaram minha esposa uma estranha para mim e ameaçaram
nosso casamento. Você ilegalmente interferiu com a vida de muitos aqui esta noite. Se
nossos convidados soubessem do seu crime clamariam para que seus centros de laran
fossem destruídos! É assim que você paga seu Lorde, meu pai, por ter te tratado
E s p a d a d o c a o s | 149

generosamente, dando-lhe responsabilidades o suficiente para construir seu senso de valor


nesta casa? Apenas sua idade poderá protegê-lo da punição mais severa.
Auster inclinou a cabeça perante a raiva de Colryn e Fredrik viu a matriz parecer
espumar e depois desvanecer ao seu antigo embotamento.
Colryn mudou para um tom mais razoável. - Mas suponho que você é muito jovem e
inexperiente para entender as paixões que tornam a vida interessante.
Lira e Fredrik trocaram olhares, então ambos riram. Colryn olhou para eles, franzindo a
testa, então sorriu. - Ele fez isso para mim de novo!
Auster levantou a cabeça lentamente e olhou de um lado para o outro da sala, suas
características relaxadas. Depois colocou cuidadosamente sua bochecha na mesa e fechou
os olhos.
Olhando para o menino indefeso, os círculos cinzentos ao redor de seus olhos, Fredrik
não conseguiu manter a raiva. - Pobre rapaz. A festa toda o manteve tão ocupado esta
noite que não tem mais energia nem para uma discussão.
Lira sorriu para Colryn. - Temo que não possamos compensar os mal-entendidos de
um semestre em uma única noite, mas... - Seu sorriso se intensificou por um momento. -
...podemos fazer um começo. - Ela olhou gravemente para Auster. – Vamos deixá-lo
descansar e terminaremos isso amanhã. Ele deve estar à beira do choque pelo excesso de
gasto de energia. Não sei onde ele conseguiu sua matriz, mas devemos mandá-lo para uma
Torre para aprender o uso adequado, sem mencionar as responsabilidades.
Fredrik disse, com um sorriso irônico para Colryn: - Eu poderia acompanhá-lo e
terminar meu treinamento.
Colryn aderiu: - Ele evidentemente tem um laran forte e até mesmo o pai concordaria
que, com treinamento adequado, ele seria mais útil trabalhando em uma Torre do que
como um lacaio de Ardais. - Ele sorriu um pouco torto. - A Torre não aprovaria seu talento
na aplicação da castidade. Mas, futuramente, se ele ainda pensar nisso, ele seria bem
recebido no mosteiro para praticar sua perversão útil.
E s p a d a d o c a o s | 150

A lição da estalagem
Marion Zimmer Bradley

Hilary Castamir cavalgava de cabeça baixa, seu manto cinza amarrado apertadamente
sobre ela, o capuz ocultando seu rosto. Ela não virou para dar sua última olhada em Arilinn.
Ela havia falhado...
Ela nunca mais iria ser conhecida como Hilary de Arilinn, ou envelhecer a serviço da mais
antiga e prestigiosa das Torres dos Sete Domínios, reverenciada, quase adorada. Guardiã de
Arilinn. Nunca mais. Ela havia falhado, falhado...
Seria Callista, agora, que ficaria no lugar de Leonie quando a velha feiticeira finalmente
abandonasse o seu fardo. Eu não a invejo, Hilary pensou. E ainda assim, paradoxalmente,
Hilary sabia que invejava Callista.
Callista Lanart. Treze anos de idade, agora. Cabelo vermelho e olhos cinzas como todos os
Altons - como a própria Hilary, pois Hilary também tinha sangue Comyn. Por que Callista
deveria ter êxito aonde ela havia falhado?
Leonie tentara suavizar o choque.
- Minha mais querida criança, você não é a primeira e nem será a última a ter o trabalho
de uma Guardiã acima de suas forças. Todos soubemos o quanto sofreu, mas já é o bastante.
Não podemos exigir mais nada de você. - Então disse as palavras formais que iria
formalmente libertar Hilary dos votos que havia tomado aos onze anos. E parte de Hilary
estava tremendo com o desejado alívio. Não ter de sofrer mais aquilo, nunca mais ter que
esperar, em desamparado horror, os ataques de dor que a atravessavam nos dias de seus
ciclos femininos, nunca mais sofrer a dolorosa desobstrução dos canais nervosos...
Ou pior que isso, repetidamente, a desesperada espera de que desta vez fosse apenas a
cãibra, a dor espasmódica, a fraqueza que a deixava de cama, doente, exausta e esgotada.
Aquilo ela podia aguentar, havia aguentado; havia pacientemente engolido todos os
medicamentos que supostamente a ajudariam e de algum modo nunca ajudou; ela nunca
perdeu a esperança de que naquele mês a dor simplesmente diminuiria como aconteceu com
as outras mulheres. Mas todo mês era o mesmo terror, também, e a culpa. O que fiz que não
deveria ter feito?
O que eu fiz? Por que eu sofro tanto? Tenho fielmente observado as leis das Guardiãs, não
toquei nenhum homem ou mulher, eu nem mesmo me permiti a ter pensamentos proibidos...
Misericordiosa Avarra, o que estou fazendo de errado que não consigo manter meus canais
puros e descontaminados como deveria uma virgem e uma Guardiã?
Todo o treinamento que sofrera, todo o sofrimento, todo o terror e a culpa, a culpa... tudo
por nada. E sempre ouve a suspeita. Sempre que uma Guardiã não mantêm seus canais
limpos há uma suspeita, nunca dita em voz alta, mas sempre ali.
Os canais de uma virgem, descontaminados, estão limpos. O que está errado com Hilary,
que esses canais nervosos, esses mesmos canais que em uma mulher adulta carregam a
sexualidade, não podem permanecer limpos para o uso correto do laran? Mesmo Leonie
havia olhado para ela em severo questionamento, uma vez ou outra, a dúvida não dita tão
E s p a d a d o c a o s | 151

clara para a garota telepata que Hilary irrompera em um choro histérico, e nem mesmo
Leonie pôde duvidar da total sinceridade do espanto.
Eu não quebrei meu voto, nem pensei em quebrá-lo. Tenho fielmente mantido todas as leis
de uma Guardiã, eu juro, juro por Evanda e Avarra e pela Abençoada Cassilda, a mãe dos
Domínios...
E então, no final, Leonie não teve escolha senão mandar Hilary embora. Hilary estava
quase histérica em alívio por sua longa e agonizante provação ter acabado, mas ainda estava
doente com culpa e terror. Quem iria acreditar em sua inocência, quem iria acreditar que ela
não estava sendo mandada embora em desgraça, seus votos quebrados? Afundada na
miséria, ela nem mesmo se virou para dar sua última olhada em Arilinn.
Sete anos, então, foram em vão. Ela nunca mais usaria o manto vermelho de uma Guardiã,
nem trabalharia novamente nas transmissões... enquanto cruzavam o passo, havia um
estreito espaço onde tinham que desmontar e andar cuidadosamente ao longo da estreita
trilha enquanto os cavalos guiavam ao longo da beira do abismo. e quando ela olhava abaixo
para dentro do apavorante precipício terminando nas planícies a uns 300 metros abaixo,
passava em sua mente que ela poderia dar um único passo descuidado, nada mais, e seria
tão fácil, um acidente, e então ela nunca mais precisaria enfrentar o pensamento da falha de
novo. Ninguém nunca mais olharia para ela, e sussurraria quando ela não estivesse na sala
que aquela era a Guardiã que havia sido mandada embora de Arilinn, ninguém saberia o por
quê...
Um único passo em falso. Tão fácil. E ainda assim ela não podia encontrar coragem o
suficiente para fazer isso. Você é uma covarde, Hilary Castamir, disse a si mesma. Ela se
lembrou de como a própria Leonie, e o jovem técnico Damon Ridenow, que algumas vezes
havia ajudado Leonie com a desobstruição de seus canais, haviam elogiado sua coragem. Eles
não me conheciam realmente; não conheciam a covarde que eu sou. Bem, eu nunca os verei
de novo, isso não importa. Nada mais importa. Não agora.
Perto do meio da tarde, enquanto desciam para um vale do outro lado do círculo das
montanhas que isolavam as Planícies de Arilinn do mundo exterior, pararam em uma
estalagem para os cavalos descansarem. O homem da escolta dissera que ela seria conduzida
a um vestíbulo particular dentro da estalagem, aonde poderia se esquentar e comer alguma
coisa se desejasse. Ela estava cansada de cavalgar, pois havia levantado muito cedo naquela
manhã; estava feliz pela chance de desmontar, mas quando o homem, numa cortesia
automática, ofereceu-a ajuda, ela desceu sem tocá-lo, tão habilidosa que nem mesmo tocou
em sua mão estendida.
E quando um estranho na porta de entrada estendeu a mão, cortês, - Cuidado com os
degraus, damisela, estão escorregadios com a neve, - ela recuara como se o toque de sua
mão a contaminasse de um modo sem volta, e abriu a boca para dizer-lhe umas palavras
severas. E então ela se lembrou, com uma chata sensação de cansaço. Ela não estava, agora,
vestindo o manto vermelho que a protegeria contra um toque descuidado, até mesmo um
olhar à toa. Seu manto cinza com capuz era a vestimenta comum de viagem de qualquer
mulher nobre; mesmo ocultando sua face dentro dele, não a protegeria completamente.
Parecia, enquanto entrava através do vestíbulo da estalagem, que podia sentir olhos sobre
E s p a d a d o c a o s | 152

ela de todos os lados.


Todos os homens, sempre, observam as mulheres deste modo? ela se perguntou. E nunca
nenhum olhar masculino descansara sobre ela por mais de um instante, como se estivessem
observando um cavalo ou um pilar; esse era apenas o modo que a olhavam, seus olhos não
eram automaticamente recuados como faziam em Arilinn quando ela cavalgava adiante com
as outras mulheres da Torre, e ninguém deu um passo para o lado, como ela estava
acostumada que fizessem, esperando que ela passasse.
No saguão ao qual o empregado a conduzira, ela desamarrou seu manto e abaixou o capuz,
indo para o fogo para se aquecer; mas não tocou a jarra de vinho que lhe foi estendida.
Depois de um longo tempo ela ouviu um leve som da porta. Uma mulher estava ali, de
corpo roliço, envolta por um largo avental; devia ser a esposa do proprietário ou filha, ou
uma empregada. Ela disse com leve cortesia, - Eu aumentarei o fogo para você, minha dama,
- e passou para colocar lenha seca. Então ela piscou em espanto. - Mas ainda está vestindo
seu manto, damisela. Deixe-me ajudá-la. - Ela veio, e Hilary começou a se afastar,
automaticamente... nenhum ser humano havia colocado mais do que a ponta do dedo em
suas vestimentas, por anos. Então ela se lembrou que essa proibição não mais se aplicava a
ela, e permaneceu imóvel, aguentando o toque impessoal das mãos da mulher, removendo
sua capa e o cachecol de seu pescoço.
- Você também quer tirar seus sapatos, minha dama, para aquecer seus pés no fogo?
- Não, não, - disse Hilary, embaraçada. - Não, eu ficarei bem... - ela se curvou para descalçar
suas botas de viagem.
- Mas realmente, você não deve. - disse a mulher, escandalizada, se ajoelhando para retirá-
las. - Estou aqui para servi-la, dama... Ah, como estão frios os seus pés, pobrezinha, deixe-me
esfregá-los para você com esta toalha... - ela insistiu, e Hilary, extremamente embaraçada,
deixou-a fazer como queria.
Eu não sabia o quanto meus pés estavam frios até que ela me dissesse. Eu fui ensinada a
aguentar calor e frio, fogo e gelo, sem reclamar, sem nem mesmo perceber... mas agora que
estava consciente do frio, tremia como se não pudesse mais parar.
A mulher retirou uma chaleira fumegante do suporte da lareira e despejou algo quente em
uma caneca. - Agora beba isto, pequena dama, - ela disse com compaixão, - e deixe-me
envolvê-la em seu manto novamente. Isto irá aquecê-la agora. Aqui, ponha seus pés para
cima no fogo deste jeito, - ela disse, puxando um banquinho de apoio de um canto para que
Hilary se acomodasse em uma cadeira com as solas dos pés apoiadas próximas às chamas do
fogo. - Você tem meias secas em seus alforjes? Acho que deve colocá-las, ou pegará um
resfriado. - E antes que Hilary percebesse, seus pés estavam aquecidos em meias secas, e ela
estava sorvendo da cerveja quente temperada que, suspeitava, tinha algo bem mais forte do
que vinho adicionado. Uma sensação bem prazerosa começou a invadi-la.
Eu nunca estive tão confortável há muito tempo, ela pensou, quase com uma culpa secreta,
há muito, muito tempo. Ela concordou com a cabeça e cochilou com o calor. Algum tempo
depois acordou para descobrir que um travesseiro fora colocado atrás de sua cabeça no
braço da cadeira, e alguém a cobrira com um cobertor. Ela nunca havia dormido tão bem há
muito tempo, também.
E s p a d a d o c a o s | 153

O pensamento começou a se remexer vagamente em sua consciência. Tenho sido ensinada


a ser indiferente a todas essas coisas, indiferente a dor, frio, fome, solidão. Tais pensamentos
não tem valor para uma Guardiã. Eu aprendi a sofrer todas essas coisas, ela pensou. E ainda
assim eu falhei...
Do lado de fora do saguão ela ouviu vozes suaves; então houve uma batida tímida na porta.
Rapidamente Hilary abaixou sua saia para baixo dos finos joelhos. Mesmo que eu não seja
mais uma Guardiã, ela pensou, devo me comportar tão prudente como uma, pois meu
comportamento lhes daria um motivo para pensarem que fui mandada embora de Arilinn por
algo que fiz. Ela se levantou e disse, - Entre.
O líder da escolta mandado pelo seu pai parou hesitante na porta, dizendo
acanhadamente, - Minha dama, a neve começou a cair tão grossa que não poderemos
continuar. Decidimos permanecer aqui para a noite, se lhe aprouver.
Se me aprouver, ela pensou. Mas as palavras eram apenas cortesia formal. Aonde eles
possivelmente iriam se isso não me aprouvesse? Tentariam forçar seu caminho através da
tempestade, e talvez se perderiam ou seriam congelados em uma nevasca? Ela não olhou
para o homem; estava de rosto virado, como sempre na presença de estranhos, e desajava
pela proteção de seu manto encapuzado, pendurado na cadeira para secar. Ela disse com
reservada cortesia, - Deve fazer o que achar melhor, - e o homem se retirou.
Mais tarde ela ouviu vozes no vestíbulo.
- Olhe, eu não me importo quem vai domna é, ao menos que seja a Rainha em pessoa ou
Dama Hastur. De uma vez por todas, estamos abarrotados e estafados aqui, com a
tempestade e todos esses viajantes; ninguém tem tempo livre para ir e vir por todos esses
corredores com travessas e refeições especiais agora. A valorosa dama pode muito bem
arrastar seu honorável esqueleto para baixo até a sala coletiva como todos os outros, ou
pode ficar em seu precioso saguão privativo e ficar com fome, pois pouco me importa.
A raiva de Hilary foi puramente automática. Como eles se atreviam a falar deste modo? Se
uma Guardiã de Arilinn escolheu honrar sua miserável estalagem, como ousavam a lhe
recusar a proteção de sua privacidade? Então, estupidamente, Hilary relembrou. Ela não era
mais uma Guardiã, nem mesmo uma leronis de Arilinn. Ela não era nada. Era Hilary-Cassilde
Castamir, segunda filha de Arnad Castamir, que era apenas um nobre menor de uma pequena
propriedade nas Colinas Kilghard. Ela se lembrou, sombriamente, como algo em um sonho,
algo que seu pai lhe dissera. Tinha sido no ano antes de ela ir para Arilinn, mas já havia sido
testada e começara a sonhar em ser uma das grandes Guardiãs. Ela tinha por volta dos nove
anos.
- Filha, os servos e vassalos têm tarefas muito mais difíceis que as nossa, por todo o tempo.
Você nunca deve desnecessariamente fazer de suas vidas mais penosas; não é correto uma
mulher nobre dar ordens apenas pelo prazer de vê-los obedecer. - Hilary pensou; Eu não
preciso de nada, irei dizer-lhes que não estou com fome, então posso ficar aqui em paz,
sossegada. Não precisam mandar ninguém para me servir. Mas havia um cheiro delicioso de
comida por todo o vestíbulo, e Hilary refletiu que para dizer-lhes isso, ela precisaria descer à
sala coletiva de qualquer modo. E havia tomado o desjejum bem cedo, e bem fraco, e não
havia tomado nada exceto a bebida que a mulher lhe servira. Ela pôs seu fino véu sobre a
E s p a d a d o c a o s | 154

cabeça, e passou pelo corredor indo até a sala coletiva.


Enquanto ela entrava, a mulher que a servira antes veio em sua direção; Hilary parou na
porta, possuída pela timidez e pelo impacto da sala aglomerada, mais pessoas do que ela já
havia visto em um só lugar em muitos anos; homens, mulheres e crianças, estranhos, todos
surpreendidos pela tempestade. A mulher a levou rapidamente para uma pequena mesa,
separada das outras, aonde poderia sentar-se na sombra da projeção da lareira e não seria
vista. Os quatro homens da sua escolta estavam comendo e bebendo com grande apetite,
rindo em cima de sua comida e vinho; o líder se aproximou e inquiriu amavelmente se havia
algo de que ela precisasse. Ela consentiu timidamente sem erguer os olhos.
A mulher ainda estava parada protetoramente ao seu lado. - Meu nome é Lys, minha
dama. Irá querer vinho, ou lente quente? A comida será trazida a você em um momento. O
vinho é de Dalereuth e é muito bom.
Hilary disse timidamente que preferia leite quente. A mulher se retirou e depois de um
momento uma mulher bem gorda, com um grande avental branco amarrado ao pescoço, se
aproximou, arrastando uma enorme bacia contendo algo que servia em conchas em cada
prato. Ela passou pela mesa isolada de Hilary e serviu uma grande porção do que quer que
fosse em seu prato, então passando para a próxima mesa. Hilary olhou consternada. Era
algum tipo de guisado, grandes pedaços de carne cozida e alguns tipos de vegetais cortados
grosseiramente, branco, laranja e amarelo.
Hilary raramente sentia fome. Ela tinha estado tão doente que nunca pensara com prazer
na comida. Quando estava fazendo o pesado e estenuoso trabalho nas telas de matriz, ficava
faminta e comia qualquer coisa que pusessem na sua frente sem saborear; não importava o
que fosse, contanto que substituísse a energia que seu corpo exausto necessitava. Nas outras
ocasiões precisava de tão pouca comida que os outros em seu círculo se esforçavam para
pensar em delícias especiais que, delicadamente servidas, pudessem tentar seu apetite
instável pelo menos um pouco. Este ensopado do prato comunitário parecia apavorante. Mas
cheirava surpreendentemente bem, quente e saboroso, e além disso ela não podia sentar ali
e olhar com desdém para a comida coletiva. Ela deu uma colherada, delicadamente, e depois
outra; aquilo tinha o gosto tão bom quanto o seu aroma, e ela comeu tudo, e quando a
mulher Lys se aproximou com seu leite quente ela adicionou mel e também bebeu tudo,
surpresa consigo mesma.
Enquanto os adultos na sala se ocupavam em comer e beber, duas crianças se
aproximaram e se ajoelharam na lareira, suas saias de tartã espalhadas em volta. Uma das
garotinhas abriu uma pequena bolsa que carregava e retirou um pedaço pequeno de tecido
e cristais coloridos. Hilary conhecia o jogo; ela o havia jogado com Callista, para tentar divertir
a criança doente em sua primeira vez sozinha. Enquanto escolhiam as pedras, uma delas caiu
na borda da saia verde de Hilary; elas a olharam, muito tímidas para ir buscá-la, e Hilary se
abaixou estendendo-lhes a pequena pedra esculpida.
- Aqui, - ela disse, - venha e pegue. - Não lhe ocorrera ficar tímida com as crianças.
A mais alta das garotinhas - tinham por volta de seis e oito, com longos cabelos louro-
claros presos em rabos de cavalo abaixo das costas - disse, - Qual é o seu nome?
- Hilary.
E s p a d a d o c a o s | 155

- Sou Lilla, e minha irmãzinha é Janna. Gostaria de jogar com a gente?


Hilary hesitou, então percebeu que na escuridão da sala, provavelmente a tomaram por
uma criança como si próprias. Acordando cedo em Arilinn naquela manhã, ela simplesmente
amarrara seu cabelo na nuca sem se importar em enrolá-lo. A garotinha instigou, - Por favor.
Não é tão divertido apenas nós duas jogarmos, - e aquilo a lembrara de algo que Callista
dissera uma vez. Sorriu e sentou-se ao pé da lareira, ajeitando cuidadosamente sua saia. Lilla
disse, - Você pode começar se quiser, pois é nossa convidada. - e à cuidadosa cortesia da
criança, teve vontade de rir. Agradeceu Lilla e jogou os brinquedos no chão. Depois de um
tempo a mulher Lys se aproximou para retirar os pratos e canecas, e olhou assustada ao ver
Hilary no chão com as crianças. Percebendo, Hilary procurou em volta por sua escolta, que
estavam discutindo com o proprietário, perto da porta. As crianças se levantaram
rapidamente. Lilla disse educadamente, - Minha mãe estará nos procurando. Obrigada por
jogar conosco. Devo levar minha irmãzinha para cama, - mas a pequena Janna se aproximou,
abriu os braços e deu em Hilary um beijo úmido e um abraço.
Hilary, muito tímida para corresponder ao beijo, sentiu as lágrimas em seus olhos.
Ninguém a havia beijado há muitos anos. Minha mãe me beijou, na despedida, quando fui
para a Torre. Ninguém mais, nem mesmo minha mãe quando a visitei, nem minhas irmãs;
elas ouviram falar do tabu, de que eu não deveria tocar ninguém, nem com a ponta dos dedos.
Callista não me beijou quando parti. Callista, que será Dama de Arilinn. Callista dará uma boa
Guardiã. Ela é fria, acha fácil obedecer à todas as leis e regras da Torre... e novamente ela
sentiu o peso de sua culpa e vergonha, o peso da falha. Por uns poucos minutos, jogando
com as garotinhas, ela havia esquecido.
A escolta e o proprietário da estalagem ainda estavam discutindo, e a mulher Lys passou
por eles e veio em direção a Hilary. Disse, - Dama, meu mestre não pode desalojar nenhum
hóspede que tenha reservado um aposento antes de ti. Mas eu ofereço - é simples e pobre,
dama, mas o aposento que compartilho com minha irmã e seu bebê tem duas camas; eu
dividirei a cama com minha irmã e você ficará com a minha, é muito bem-vinda. - E quando
Hilary hesitou, - Gostaria que houvesse algum lugar melhor para ti, dama, mas não há nada,
estamos muito lotados, a única alternativa é esticar seus cobertores na sala coletiva com seus
soldados, e isso uma dama não pode fazer...
- Você é muito gentil. - Ela se sentia entorpecida pelos vários choques. Havia se alimentado
em uma sala coletiva cheia de estranhos, jogado com crianças estranhas, agora teria que
compartilhar um aposento com duas mulheres estranhas e dormir na cama de uma serva.
Mas era preferível, é claro, a dormir entre sua escolta de soldados. - Você é muito gentil, -
ela disse, e foi com Lys, apenas meio consciente dos olhares de alívio de sua escolta pela
solução.
O aposento era escuro, apertado e frio, mas o chão e paredes estavam limpos, e os lençóis
e colcha estendidos na cama impecáveis. Entre as duas camas estava um berço, pintado de
branco, e na outra cama, uma mulher estava sentada, segurando um bebê rechonchudo em
seu colo e vestida com roupas limpas. Lys disse, - Esta é minha irmã Amalie. Domna, eu devo
ir terminar meu trabalho na cozinha. Sinta-se em casa; pode dormir ali, na minha cama. - Os
alforjes de Hilary tinham sido trazidos e empurrados em um espaço apertado aos pés das
E s p a d a d o c a o s | 156

cama, e Hilary começou a procurar por sua camisola. A mulher com o bebê olhava para ela
com curiosidade, e Hilary murmurou uma tímida frase de agradecimento.
- É muito gentil da sua parte dividir seu quarto com uma estranha, mestra.
- Espero que a bebê não a mantenha acordada, dama. Mas é um bebê bonzinho e não
chora muito. - Como se para lhe contrariar, o bebê começou a torcer seus pequenos pulsos
fechados e a chorar fortemente, e Amalie riu.
- Danadinha, quer me fazer passar por mentirosa? Ela está com fome agora, minha dama,
quer seu jantar; depois irá dormir.
- Ouvi falar que chorar é bom para eles, - Hilary disse timidamente. - Ajuda seus pulmões
a crescerem fortes. Qual a idade do bebê? E o seu nome?
- Tem apenas quarenta dias, - Amalie disse, - e desde que meu marido aluga sua espada
para Dom Arnad Castamir, eu lhe pus o nome de uma das filhas de seu lorde: Hilary.
Então o bebê tem meu nome. A mulher não podia fazer melhor para sua criança do que lhe
dar o nome de uma perdedora, uma Guardiã desonrada? Mas ela não podia dizer aquilo. Ela
disse, - Meu nome também é Hilary, - e estendeu a sua mão para a chorosa criança
rechonchuda. O pulso virou, encontrou o dedo de Hilary e o agarrou surpreendentemente
forte. Amalie estava desamarrando seu vestido; ela era magra, mas Hilary ficou surpresa ao
ver seus seios, grotescamente inchados, ao ponto da deformidade. Os mamilos já estavam
escorrendo. Amalie levantou o bebê, cantando baixinho.
- Aqui, sua bebê gulosa, - ela disse, e a pequena boca rosada agarrou forte o mamilo
inchado, o choro se reprimiu em um lamúrio. O bebê fazia pequenos ruídos de engasgo
enquanto sugava, torcendo seus pulsos cerrados ritmicamente, junto com os ofegos. Hilary
nunca tinha visto uma mulher amamentando sua criança antes - ao menos, não desde que
podia se lembrar.
- Eu ouvi dizerem na estalagem que você veio de Arilinn, - Amalie disse. - Ah, deve estar
contente de estar voltando para a casa de sua mãe, e ela ficará feliz também. Acho que
partiria meu coração se algum dia minha filha fosse para tão longe de mim. - Ela alisou a testa
de seu bebê com o delicado dedo, afastando os cachos incolores da face miúda. - Elas vivem
vidas tão tristes e solitárias na Torre, pobre damas. Você era muito infeliz lá, está feliz por ir
embora?
Nenhuma palavra ou sussuro de desonra. Nada além de você estar feliz de ir para casa de
sua mãe. Minha mãe, Hilary pensou. Minha mãe é uma estranha, tornou-se uma estranha
para mim. E uma vez estivemos próximas... tão próximas quanto isto aqui, Hilary pensou,
olhando para a mulher com a criança em seu peito. Minha mãe não precisa ser uma estranha
agora. Talvez, quando souber o quanto me esforcei, não me culpará pela minha falha...
Os pulsos do bebê ainda estavam abrindo e fechando ritmicamente enquanto sugava, seus
dedos dos pés se esticando em avidez. Os olhos da mulher estavam fechados. Parecia feliz e
em paz. De repente Hilary sentiu uma dor em seus próprios seios, uma cãibra desceu através
de seu corpo inteiro, não diferente do que sentia nas vezes de suas recorrentes provações,
apenas que agora, por alguma razão, não era particularmente doloroso ou mesmo
indesejável. Era tão intenso que por um momento pensou que iria desmaiar, e agarrou a
beira da cama; então ela rapidamente se virou e recomeçou a procurar em seus alforjes por
E s p a d a d o c a o s | 157

sua camisola.
Ela foi para cama, e deitou-se observando a amamentação, sentindo-se estranhamente
esgotada. A dor havia passado, mas seus seios estavam estranhos, tensos, como se pudesse
sentir os mamilos se esfregando fortemente contra sua grossa camisola. A mulher finalmente
afastou o bebê, saciado e feliz, de seu peito, amarrando sua camisola, e levou-a para Hilary
enquanto estava deitada na estranha cama.
- Gostaria de segurá-la por um minuto, Domna?
Hilary esticou os braços, e Amalie lhe passou o bebê; ela a segurou desajeitadamente
contra seu próprio peito magro. Saciado e sonolento, o bebê se contorcia, aninhando sua
boca contra a camisola de Hilary, e a mulher ria enquanto as pequenas mãos se fechavam
nos seios de Hilary.
- Não vai achar nada aí, gulosinha, e está tão cheia quanto um porco já criado, - ela ralhou,
brincando, - mas daqui um ano ou dois, bem, ela poderá ter mais sorte, talvez, dama?
Hilary corou, olhando para o bebê em seus braços, passando seus dedos sobre a suave
cabecinha. Parecia seda, plumas, nada no mundo pareceu tão macio para ela. O suave peso
sonolento contra seu corpo a fez sentir-se exaurida, com uma prazerosa exaustão. Quando
Amalie pegou o bebê para colocá-la no berço, os braços de Hilary pareceram repentinamente
frios e vazios, e depois que a luz se extinguiu ela ficou ouvindo a suave respiração da mulher
e da criança, sentindo a curiosa dor em seu corpo. O que mais seria sentir como, se
amamentasse uma criança daquele modo, sentir aquele puxão faminto em seus seios? Sentiu
seus mamilos latejarem novamente. Ela nunca havia tido consciência deles antes, eles
simplesmente estavam ali, parte de si mesma, como seu cabelo e suas unhas. Colocou as
mãos sobre eles, desajeitadamente, tentando sem resultado acalmar a dor; sentiu frio, uma
casca vazia, tremendo, finalmente puxando o travesseiro e o apertando firmemente, em uma
tentativa de aquietar a estranheza que não podia acalmar. De repente, exausta pela
estranheza e cansaço, ela adormeceu.
Quando acordou o aposento estava iluminado pela luz do sol, Amalie e o bebê haviam
saído, e Lys estava se desculpando, - Desculpe por te acordar, minha dama, mas sua escolta
mandou dizer que deverá estar pronta para cavalgar dentro de uma hora.
Hilary sentou-se na cama e piscou; havia dormido demasiadamente até tarde.
- Pode se lavar ali, dama, trouxe-lhe um pouco de água quente. Trarei seu desjejum se
preferir.
- Posso ir à sala coletiva para o desjejum, - Hilary disse, - mas gostaria que me ajudasse a
amarrar meu vestido. - Ela deu a Lys um presente em dinheiro antes de ir. Quando a mulher
protestou, dizendo ser desnecessário, ela disse, - Dê para sua irmã, então, e diga-lhe para
comprar algo bonito para o bebê.
Nos degraus da estalagem, cheios por causa dos hóspedes inesperados da tempestade se
aprontando para partir, o pátio cheio com os cavalos e homens, ela repentinamente ouviu,
do canto, a voz de um homem.
- Quem é a bela jovem dama no vestido verde e o manto cinza? Eu a vi na noite anterior
na sala coletiva, e novamente esta manhã, mas não a conheço de nome.
Foi um de sua escolta quem respondeu. - É a dama Hilary Castamir; a estamos trazendo de
E s p a d a d o c a o s | 158

Arilinn. Ouvi dizer que achou o trabalho lá muito pesado e desgastante para sua saúde, então
está voltando para sua família.
Agora irá começar, Hilary pensou, suportaria os jestos indecentes sobre uma Guardiã que
achara muito difícil manter sua virgindade, as rudes especulações, o assunto sobre votos
quebrados, desonra... mas o primeiro homem apenas disse, - Ouvi falar que o trabalho lá é
realmente difícil. Deve ser uma grande pena para uma jovem mulher viver todos os seus dias
presa dentro de uma Torre, e crescer tão cinzenta e sombria quanto a velha feiticeira de
Arilinn. Ela é apenas uma bela garota agora, mas se posso julgar, um dia será uma das
mulheres mais adoráveis que eu já vi. Espero que a esposa que meu pai escolherá um dia pra
mim seja ao menos metade tão adorável.
Hilary escutou, chocada - como se atreviam a falar dela desta maneira? Então, devagar,
ela percebeu que na verdade a estavam elogiando, que pensavam bem dela. Ela se perguntou
se era realmente bonita. Nunca lhe havia ocorrido pensar sobre isso. Ela sabia, de um modo
vago, que a maioria das mulheres achavam uma boa coisa se os homens as achavam bonitas;
até mesmo aquelas mulheres em Arilinn que não viviam sob as leis de uma Guardiã, as
monitoras, técnicas e mecânicas dali, aguentavam grandes dores para se manterem
belamente vestidas e atraentes quando não estavam trabalhando. Mas ela, Hilary, sempre
achara que essas coisas não eram para ela. Se vestia para se aquecer e modestamente, vestia
o manto vermelho ao qual todos os homens desviavam os olhos por instinto, foi ensinada a
não perder tempo ou pensamentos com esses assuntos.
As mulheres nas Torres, aquelas outras mulheres que não precisavam viver pelas leis da
Guardiã, sabiam o que era pensar nos homens como os homens pensavam nelas...
Hilary sempre soube que as mulheres e homens em Arilinn se deitavam juntos se
quisessem, esteve consciente muito vagamente de que as mulheres sentiam prazer nessas
coisas; mas ela, uma Guardiã, uma virgem jurada, foi ensinada, em todos os tipos de maneiras
engenhosas e exigentes, a direcionar seus pensamentos para outro lugar, nunca pensar nisso
nem mesmo por um lapso mental momentâneo, nunca saber ou entender o que ocorria ao
seu redor, a reprimir todos os reflexos de seu corpo despertando... Hilary se manteve
paralisada nos degraus, imóvel pelo impacto de um pensamento que lhe tinha ocorrido;
relembrando a curiosa dor em seus seios na noite anterior enquanto observava a criança
sendo amamentada.
Eu tenho me negado tudo isso. Até mesmo os prazeres do calor e da comida. Ensinei meu
corpo a não sentir nada, exceto dor... que eu não podia bloquear, mas exceto pela dor que eu
não podia negar, me recusei a saber que tinha um corpo, pensando nele somente como um
instrumento mecânico para o trabalho nas transmissões, não como carne e sangue. Aprendi
a não sentir nada, nem mesmo fome ou sede. E talvez a dor fosse a vingança de meu corpo
por deixá-lo sem sentir nada mais do que aquilo... por não lhe permitir nenhum conforto,
nenhum prazer...
O líder da escolta se aproximou e fez uma reverência.
- Seu cavalo está pronto, dama. Devo ajudá-la a montar?
Ela começou a montar sem ajuda, do modo antigo. Porquê, sim, você deve. Ela pensou com
surpresa. Ela disse, com um sorriso que o surpreendeu, e a si mesma, - Obrigada, senhor. -
E s p a d a d o c a o s | 159

Momentaneamente, e pelo hábito, ela ficou tensa enquanto ele a erguia, então relaxou, e o
deixou erguê-la para a sela.
- Está confortável, minha dama?
Ela ainda era muito tímida para olhar para ele, mas disse suavemente, - Sim, obrigada.
Muito confortável.
Enquanto cavalgavam para fora do pátio, ela colocou seu capuz, deleitando-se com o calor
do sol em seu rosto.
Eu sou bonita, pensou desafiante. Sou bonita, e estou feliz. Virou-se para olhar a estalagem,
com um calor parecido com o amor, e por um momento pareceu a ela que havia aprendido
mais em uma única noite do que em todos os anos que passara antes.
Eu posso beijar uma criança. Posso segurar um bebê em meus braços, e pensar como se
estivesse segurando o meu próprio bebê, ter meu próprio bebê aos meus seios. Não preciso
sentir culpa se homens olharem para mim e me acharem bonita. E amanhã deverei ver minha
mãe, e me jogarei em seus braços, e a beijarei como costumava fazer quando era apenas uma
garotinha.
Eu não posso fazer nada.
Pobre Callista. Ela será Dama de Arilinn, mas nunca terá nada disto aqui.
Estou livre!
Enquanto cavalgava para fora do vale, ela estava cantando.
E s p a d a d o c a o s | 160

Confidência
Phillip Wayne

A consciência voltou lentamente.


A dor apagou tudo. À medida que tudo clareava, parte dela voltou também. A queda
do pônei da montanha no profundo desfiladeiro abaixo.
Pegue um arbusto! Afunde na neve!
Reflexivamente, sua mão fechou-se sobre o material abaixo dele.
Pano? Ele balançou a cabeça, tentando clareá-la. Sua identidade voltou para ele. Dom.
Manuel Rodrio... alguma coisa... Hastur Elhalyn.
Sua cabeça ainda estava confusa. Uma cortina vermelha parecia pendurada sobre seus
olhos, obscurecendo sua visão.
- Bem, finalmente estamos acordados?
Ele se virou para a voz repentina. - Quem é Você?
- Eles me chamam de Vraga a Rocha. - A mulher deu uma risadinha. - E quem pode ser
voce? Todo frio e meio exposto nas Hellers quando te encontrei...
- Eu sou Manuel Elhalyn Hastur. Estava cavalgando quando a tempestade caiu e meu
pônei me jogou. Há quanto tempo estou aqui?
Sua visão estava clareando. A mulher parecia muito mais velha do que imaginara. Não
mais do que trinta, ele adivinhou. Ela usava roupas de homem, com uma bandana
manchada de vermelho amarrada em volta da cabeça. Enquanto falava, ela levou a ponta
de uma adaga fina aos lábios.
- Cerca de um dia. - Ela se recostou em pensamentos. - Esse nome soa como se você
fosse do Comyn. Agora...quem imaginaria isso?
- Todo mundo nas Hellers conhece minha família.
- Eu conheço os Elhalyn. Mas também sei alguma coisa sobre o Comyn. Quando eles
chegam aos vinte... e não tente me dizer que você é mais jovem do que isso... eles já têm
suas pedras-da-estrela. Onde está a sua?
Sua mão foi para a bolsa em sua garganta... deveria estar l[a. É impossível. Se fosse
arrancada de mim, eu estaria morto. Misericordiosa Avarra! O que aconteceu com minha
pedra da estrela?
- Não tente fingir. Nós dois sabemos que nenhum Comyn poderia viver sem sua pedra-
da-estrela. - Ela riu de novo. - Agora, quem realmente é você?
Manuel balançou a cabeça novamente. É verdade. Se eu fosse realmente Comyn, eu a
teria. Mas eu sou o Comyn! Onde está minha pedra?
Ele balançou sua cabeça. - Não sei. Posso levantar?
E s p a d a d o c a o s | 161

- Se você for cuidadoso. Eu não me moveria muito, pela sua própria segurança. Alguns
dos meus servicin são muito protetores comigo. Eles podem ficar com a ideia errada se
acharem que você é um bandido. - Ela passou um dedo levemente pela garganta.
Servicin. A palavra rolou em sua cabeça como uma pedra em um dos chocalhos das
Cidades Secas. Era uma gíria, usada apenas por alguns dos menos honestos bandidos que
vagavam pelas Hellers no meio do inverno.
Ao seu redor, ele podia ver três paredes sólidas de terra. Eles não tinham janelas e
nem ornamentos. No quarto, uma porta de madeira grossa ficava a poucos passos de uma
lareira acesa.
- Posso comer alguma coisa?
Ela caminhou até a chaleira no fogo e serviu a sopa em uma tigela que pegou ao lado
da lareira.
Ele a observou caminhar, notando o leve mancar de seu pé esquerdo. Algo sobre ela...
Eu sei o nome de algum lugar. Onde?
- O que você estava fazendo nas Hellers, vai domil?
Aos ouvidos de Manuel, o diminutivo soou à beira do insulto.
- Estou na Torre. Voltei para mais treinamento. Realmente? Eu não tenho matriz. Sua
mão foi para o caroço em sua cabeça. Eu nem tenho certeza de quem eu sou! A queda
afetou minha mente? Se eu fosse quem penso que sou, teria uma pedra da estrela.
- Eu viajei para as Hellers... não me lembro o por quê. Havia uma razão.
Vraga, a Rocha, olhou para ele com ceticismo. - Eu acho que você é um espião.
Enviado aqui para nos espionar. Somos pessoas simples e trabalhadoras tentando ganhar a
vida com essas montanhas difíceis.
Meu pai estava falando sobre ela um pouco antes de eu ir para a Torre. Por que não
consigo me lembrar? Ele sentiu a nuca formigar.
Houve uma batida na porta.
- Entre! - Sua voz parecia acostumada a comandar.
O homem entrou com sua espada desembainhada. Ele olhou para Manuel enquanto
se abaixava para sussurrar no ouvido de Vraga. Ela acenou com a cabeça e, em seguida, fez
sinal para que ele voltasse para a porta.
Eu me lembro! Meu pai disse que ela era uma fora da lei quando ele era criança nas
montanhas. Como isso é possível? Meu pai tem quase cinquenta anos e esta mulher tem
apenas trinta. Ou isso também é produto do galo em meu crânio? Impossível! Nada disso
faz algum sentido!
Vraga encostou-se na porta, a ponta da adaga ocasionalmente tocando a ponta da
língua. Como um gato que observa um rato, Manuel pensou, pouco antes de seu salto. O
que ela quer?
E s p a d a d o c a o s | 162

A sopa era escura e cheirava a carne. Ele observou seu reflexo no líquido enquanto
este oscilava. Eu me pergunto, ele pensou sombriamente, se o eu do outro lado da sopa
também vê meu reflexo. Eu pareço tão desgrenhado. Lembro-me do espelho de cobre no
apartamento da minha mãe. Havia uma imagem nítida, não assim como em uma tigela de
sopa.
- O que você quer de mim? - Ele perguntou finalmente.
Vraga sorriu e mais uma vez bateu a ponta da língua na ponta da faca. - O que você
tem?
Manuel estendeu as mãos à sua frente. - Só o que você vê. Mas meu pai vai me
resgatar, se é isso que você tem em mente.
Vraga girou o pulso. O movimento foi quase casual, mas fez com que a faca passasse
correndo pela orelha de Manuel e fosse contra a parede atrás dele. Ele sentiu uma pequena
mancha úmida na parte superior de sua orelha e colocou a mão sobre ela.
Havia uma mancha vermelha.
- Eu acertei o que pretendia e não se esqueça disso. Se eu quisesse aquela lâmina
entre seus olhos, é para onde ela teria ido. Agora quero saber quem você é e por que
estava nas Hellers, e quero saber agora!
- Já disse, sou Dom Manuel Rodrio Elhalyn Hastur. Meu pônei me jogou e você me
encontrou. Não há mais nada a dizer!
Ele viu a outra faca em seu cinto, mas suas mãos estavam bem longe dela. Enquanto
falava, ele recuou lentamente em direção à parede. Se eu conseguir pegar aquela adaga,
terei pelo menos uma chance de lutar.
Ele sentiu a terra fria em suas costas e sua mão percorreu a parede em um movimento
rápido. Ele virou a cabeça para encontrar a faca e ouviu um assobio rápido. Sua mão estava
ao redor do punho, mas sua manga estava presa à parede com seu par.
- Às vezes, as pessoas carregam uma faca na bainha das costas também. Você deve ser
muito cuidadoso. Agora acho melhor você não se mover até que eu pegue as outras duas
facas, ou terei que atirar rápido demais e errarei.
Enquanto ela se aproximava dele, ela manteve uma mão na adaga restante em seu
cinto.
Ele a observou. Ninguém é tão preciso. Não é possível. Aquela pequena manca, muito
parecida com Arianna, uma das trabalhadoras de matriz na Torre. Também fisicamente são
muito semelhantes. Acho que há uma chave aí. Mas qual?
- Thomaso! - Ela gritou. A porta se abriu novamente. - Amarre-o. Então, vamos
questioná-lo novamente. Ele não responde bem à gentileza, então tentarei outros
métodos. - A língua saltou novamente para a ponta. - Talvez não tão gentis.
Ela caminhou até a lareira e colocou duas das adagas com a ponta nas brasas.
E s p a d a d o c a o s | 163

Ela o sentou em uma cadeira e Thomaso fez seu trabalho bem e rápido. Manuel não
conseguiu soltar as cordas que o prendiam à cadeira.
Ela puxou uma das facas do fogo e cuspiu nela. A saliva chiava, mas ela balançou a
cabeça e colocou a lâmina de volta nas brasas.
É tudo tão impossível! Ele pensou. Vraga deveria ser mais velha que meu pai, mas não
é. Minha matriz não poderia ter se perdido, mas se foi. Ninguém poderia ser tão preciso
quanto ela com uma faca, mas ela é. Nada disso faz sentido algum.
Vraga puxou a faca novamente. A ponta brilhou em um vermelho opaco. Ela balançou
a cabeça e colocou-o de volta nas chamas. O que diabos no sétimo inferno de Zandru está
acontecendo? O que meu pai costumava dizer... ‘-Se não cheira a um cralmac, então não é
um, não importa a aparência.’
Manuel olhou para o fogo, sentindo o calor das chamas no rosto. Deixe-me começar de
novo e ver como é o cheiro. Primeiro, é impossível que minha matriz tenha sido tirada de
mim, então ainda devo tê-la. Mas eu não consigo senti-la!
Queria que minhas mãos estivessem livres! Segunda impossibilidade... Aquela mulher
não pode ser Vraga. Ela estava morta antes de meu nascimento. Ela é Arianna então? Não,
isso deve ser real! Posso ver, sentir, saborear e até sentir o aroma.
Mas, se ela é Arianna, então eu ainda devo estar na Torre. Mas por que a Torre faria
isso comigo?
Arianna-Vraga puxou a lâmina de uma das adagas das brasas. - Agora, você vai nos
contar o que estava fazendo nas Hellers, e desta vez dirá a verdade. Ou talvez você gostaria
de sentir como é ter um olho queimado.
- Eu não posso te dizer nada! - Ele gritou com ela.
A ponta da faca baixou em direção a sua bochecha. Ele podia sentir o calor disso. Ela o
tocou e ele gritou.
A dor foi intensa, mas momentânea.
Por que a Torre faria isso? Vim aprender a usar a visão. Isso é um teste disso? Isso é
apenas uma ilusão controlada pelo círculo de matriz na Torre, para testar o quão bem eu
aprendi? Se for, então por Avarra, eu posso quebrá-la!
Vraga-Arianna se aproximou. Ele podia sentir o hálito dela. - Não vou perguntar muito
mais vezes.
Ele lutou para acreditar que não havia perdido a matriz. Ainda está lá, em volta do
meu pescoço. Se não estivesse, eu teria morrido. Deve ainda estar lá!
A lâmina quente desceu em sua outra bochecha. Ele gritou novamente.
- Você ainda vai contar aquela história sobre ser um dos Elhalyns? Conhecemos a
verdade quando a ouvimos!
E s p a d a d o c a o s | 164

Devo saber para ver. Por que não posso acreditar que ainda tenho minha pedra? Eu
não estou morto. Eu devo ter ela.
Ele tentou deixar sua consciência afundar, como havia feito tantas vezes antes, mas
não encontrou nada.
Até mesmo uma ilusão pode matar, se acreditarmos nela. Toda a lógica diz que isso
não é real. Eu não devo acreditar! Minha matriz está em meu pescoço, onde sempre esteve.
Devo acreditar nisso para sobreviver.
Mais uma vez, ele deixou sua consciência afundar. Então ele a sentiu! Ela está aqui!
Ele sentiu a fusão; a fusão doce, silenciosa e estrondosa com o poder da matriz.
Existem tópicos aqui...tópicos de controle! Eu tinha razão. Estou sendo controlado!
Mesmo enquanto os destacava, ele podia ver a lâmina da adaga, brilhando com o calor
quando alcançou seu olho. Com cuidado, ele separou cada um e o deixou cair no vazio.
Vraga e sua faca brilharam e então desapareceram quando a última caiu.
Em torno dele estava o círculo de trabalho da Torre.
Arianna estendeu a mão para firmá-lo.
Ele se apoiou nela. - O que teria acontecido se eu tivesse falhado?
O Guardião olhou para ele de forma estranha. - Nós teríamos enviado seu corpo para
casa para ser enterrado com honra. Isso não teria sido adequado?
Alguém o abraçou e ele adormeceu.
E s p a d a d o c a o s | 165

O Império e além

Os leitores da Saga Darkover são suscetíveis de tomar partido, muito violentamente,


pró-Darkover e anti-Império. Embora, entre os fãs de Darkover, seja uma reação bastante
saudável, parece estar começando a surgir indicações de que o Império não é tão ruim e
que talvez Darkover não seja completamente perfeito. Essa tensão de forças equilibradas,
de culturas em conflito, muitas vezes traz o pior de cada lado... Ou o melhor. Este conflito e
tensão é plenamente explorado em "Camilla", de Patricia Mathews, uma história de
aventura, conflito e personagem, que reintroduz uma velha amiga dos fãs que leram “A
corrente partida” e "Para manter o juramento": Camilla n'ha Kyria. Renunciante, Amazona
Live e, nesta história, agente Terran.
Outra velha amiga que retorna é Millea Kenin em "Onde o coração está". No final de
“A espada de Aldones” (ou de “O exílio de Sharra”, como você preferir) Lew Alton deixa
Darkover com sua esposa e sua filha Marja, para nunca retornar. Muitos leitores
perguntaram o que aconteceu com ele, em qualquer mundo estranho que ele encontrou, e
o que aconteceu com Marja. Millea Kenin conta uma história convincente de Marja Alton,
que herdou o laran de seu pai e achou um caminho para explorar as mentes e corações de
uma espécie alienígena em um mundo que ainda não seria sua casa.
E ainda outros velhos amigos, David Hamilton e Jason Allison, retornam para carregar
a história do Projeto Telepata, quando o Império concorda em explorar o laran darkovano,
e surge uma forma mais incomum de poder psíquico, e um homem que nunca acredita em
qualquer coisa que ele não possa experimentar. Na história de Lynn Mims, encontramos o
esse “Cético” e descobrimos seus motivos.
E, finalmente, só porque toda antologia deve o deixar sorrindo no final, apresentamos
a história mais incomum já enviada a um editor.
Ao colocar os requisitos para esta antologia, afirmamos que seia dada prioridade a
histórias muito curtas, e (porque recebemos tantas tragédias sombrias) que esperávamos
que alguns dos colaboradores enviassem uma ou duas histórias engraçadas.
Bem, a história do título desta coleção reforça o velho ditado: tenha cuidado com o
que você pede, pois você pode conseguir. Millea Kenin, cuja história curta "Onde o coração
está", já havia sido aceita, trouxe também "Uma receita para a falha" em uma noite no
círculo das mulheres e começou a mostrar. Uma após a outra, todo o grupo explodiu em
risos indefesos. Então ligaram para mim.
Então, aqui, com permissão especial de Anne McCaffrey, apresentamos uma história
que não é bem, não inteiramente, uma história de Darkover. Mas eu disse uma só vez, que
já havia usado dragões em Darkover, e, provavelmente, usarei novamente.
E s p a d a d o c a o s | 166

Camilla
Patricia Shaw Mathews

Prólogo
Lentamente, com cuidado, Alicia Crowley, de Mapeamento e Exploração, levantou um
blaster longo para o homem alto e médio através da fogueira dela. – Kireseth. - Ela disse
com a calma fria, resultado do choque. - Tudo bem, Roger, mãos para cima.
Roger Benson hesitou e avaliou suas chances de pular para alcançar a arma. A cena foi
fantástica: chamas cor-de-rosa contra um céu índigo, uma lua violeta sobre as cristas de
montanhas mais altas e selvagens do que qualquer uma encontrada na Terra, uma caixa de
plástico quebrada derramando flores alucinogênicas douradas e secas nas areias e no
cordovão. E Lish, totalmente prosaica em couro preto, a jaqueta aberta para revelar uma
túnica iridescente em tons de arco-íris, uma faixa de pálida nas suas maçãs do rosto
aristocrático como o único sinal de tensão. Lish, segurando uma arma, era a parte mais
fantástica da cena toda.
- Solte sua arma. – Ela acrescentou, aproximando-se lentamente, arma firme. - Mãos
na frente.
Roger sorriu fracamente. – Vamos, Lish, você não pode estar imaginando...
Mantendo sua arma apontada, ela pegou o cabo de outra numa bolsa. - Você sempre
foi um jogador, Roger, mas desta vez você perdeu. - Ela chegou perto o suficiente para
envolver as mãos estendidas com uma corda ao redor dos pulsos. Roger lutou. Ela disparou,
e o fedor de carne e pele sintética encheu a noite com os gritos de dor de Roger. Ela recuou
e foi para o kit de primeiros socorros da aeronave enquanto Roger uivava, praguejava e
gritava pedidos de ajuda. Ela jogou-lhe um pequeno frasco de uma distância segura.
- Analgésico. Tome três, sente-se e coloque as mãos à sua frente. – Ela mexeu a arma
em sua mão sinalizando. Ela esperou até que ele obedecesse, as feições dele mais relaxadas
e os olhos se fechando. A dose normal era um comprimido.
A próxima coisa que Roger notou era que eles estavam no ar. Ele estava preso no
banco do passageiro da aeronave de Alicia, com o cinto de emergência contra colisão ao
seu redor. Seu ombro parecia como se estivesse em chamas. Havia turbulência e o voo
parecia como se estivesse pesado. A caixa de kireseth devia estar a bordo, afinal era a
evidência que o impediria de voltar ao planeta e o condenaria a cinco ou dez anos de
reabilitação. Experimentalmente ele moveu e testou os nós.
- Olá de novo, Roger. Estamos passando por alguma turbulência aérea superior. - Alicia
disse distraidamente, a maior parte de sua mente focada em manter a perigosa carga em
segurança. Ela era um piloto habilidoso, mas as colinas de Darkover, como o planeta era
E s p a d a d o c a o s | 167

conhecido, tinha algumas correntes cruzadas infernais. Em algum lugar ao longo da faixa
que os habitantes das Cidades Secas chamavam de Colinas Negras, ela perdeu a batalha e
forçou a nave em um pouso forçado.

~o⭐o~
O telefone zumbiu nos aposentos da Assistente do Coordenador Terran em Carthon.
Sonolenta ela respondeu e a voz de seu oficial de segurança disse: - Maggie? Dave. Há um
avião perdido nas Colinas Negras e não poderemos contar com a busca nativa para o
resgate desta vez. - Ele parecia jovem e assustado.
- Por que? - Ela perguntou bruscamente, vestindo suas calças e camisa e verificando o
relógio. Três horas da manhã! Que idiota estaria fazendo um vôo noturno nessa região?
- Estava carregando contrabando, eu acho, e se ainda existir a menor chance de...
- Sim.
- Além disso, é o país dos dry-towners. As equipes darkovanas não arriscarão uma
guerra entrando nessa região. Pelo mesmo motivo não podemos recorrer às Amazonas. E o
piloto era Crowley. Eu não confiaria em uma equipe de drytowners para resgatar um oficial
feminino, Mag.
- Dave, você está absolutamente certo. - Ela acendeu a luz e olhou para a cidade de
Carthon, uma cidade tão antiga, onde um verdadeiro carthene desprezava os habitantes
das Cidades Secas e os Domínios vistos como recém-chegados.
Havia uma pessoa que conhecia os drytowners e estaria disposta a arriscar uma
expedição como essa. Agora tudo o que ela tinha que fazer era tirar essa agente de uma
aposentadoria muito confortável e persuadi-la a assumir uma tarefa extremamente
perigosa, com baixo orçamento, dado o nível em que se encontrava o escritório do
Coordenador Assistente em Carthon. Eles a chamavam de Camilla n'ha Kyria. Ela tinha acres
largos e verdes nas colinas atrás de Carthon, onde cuidava de cavalos finos e gatos ainda
mais finos, vivendo em longa solidão. Às vezes podia-se encontrá-la na Guilda das
Amazonas quando ela estava na cidade. Mas era mais provável que ela estivesse na casa de
jogos de Purdah chamada Véu, também conhecida pela Inteligência Terran como Clube
Diana. E, graças à deusa, a Coordenadora Assistente pensou com sinceridade, que a
Inteligência havia conquistado com sua equipe feminina uma associação muito bem quista
na região, visto que todas as fofocas em Carthon passavam pelas salas de ganho do Diana.
Ela deixou seu escritório na primeira hora que pareceu razoável, foi verificar no clube e
foi recebida por uma recepcionista não-humana, branca, que murmurou um pedido para
levar seu sobretudo. Sobretudos darkovanos e véus de mulheres das Cidades Secas
estavam ao lado dela no armário. Mag se sentou na cadeira confortável da mesa antiga de
xadrez da Inteligência Terran e deixou a barman lhe servir um uísque azedo.
E s p a d a d o c a o s | 168

A barman era uma jovem que falava todas as três línguas fluentemente. Fantasiada,
como todos os servos do Clube Diana, em calças volumosas sob botas suaves e baixas no
tornozelo, uma jaqueta limpa e uma blusa bordada de manga comprida. Não é era um traje
de qualquer uma das quatro culturas que se pode encontrar ali: terran, dry-towner,
darkovana e amazona. Mas era aceitável em todos. A mulher terran pensou que um dia
provaria o quão óbvio era o fato de que a Inteligência possuía o lugar.
Uma mão magra passou sobre a mesa para o tabuleiro de xadrez e moveu um peão. -
Bom dia, Margala. - Disse uma voz seca. - O que traz o Império Terran aqui a esta hora?
Margala olhou para uma mulher magra na metade de seus quarenta anos com o rosto
de alguém que viveu duramente e a expressão de quem agora estava vivendo muito bem.
Ela se vestia de forma simples e com um vestido, embora seu cabelo fosse curto e escovado
para trás. - Nunca pensei em ver você em um vestido, Camilla. – Ela sorriu, depois
acrescentou: -Temos um avião nas Colinas Negras com Alicia Crowley a bordo. Estou
tentando montar uma companhia de resgate.
- Não estou mais disponível para alugar. – Camilla disse, em seu tom darkovano
cordial. - Tenho tudo que preciso: meus cavalos, meus gatos e minha terra.
- Em nome da deusa, Camilla.
O rosto de Camilla estava frio e mortal. - Não exija minha ajuda ao Império Terran em
nome da Deusa, Margala! - Ela disse baixo e uma longa e magra adaga estava na mão dela.
Margala balançou a cabeça. - Não exijo isso pelo Império Terran. - Ela disse a sua
antiga companheira de equitação e nemesis. - Eu peço isso por Alicia Crowley, uma
companheira, que morrerá ou será levada a algum harém nas Cidades Secas, se ela tiver
sorte, ou para os bordéis de Ardcarran, a menos que você a ajude. Ela apelou para mim...
- Em nome do Império Terran...
- E eu apelo para você.
Camilla deixou sua luta entre o código vitalício e o desejo de manter sua confortável
solidão. - Se eu concordar, quando iremos?
Margala balançou a cabeça. - Seu piloto será alguém do escritório de examinadores
médicos, segurança e homem. Você sabe que é um óbvio suicídio enviar uma mulher para
território das Cidades Secas. Você, claro, é uma especialista em disfarce.
O sorriso de Camilla reconhecia seu próprio sucesso. - Envie-me esse menino. Eu
estarei pronto para sair ao amanhecer.
Margala se levantou e levou as mãos de Camilla. - Obrigada.
- Não me agradeça. Isso vai custar caro ao Império Terran.

~o⭐o~
E s p a d a d o c a o s | 169

Bobby Ffoulkes nunca tinha visto uma extensão de terra tão grande, exceto em
reservas do governo. O pensamento de que tudo era uma propriedade privada o atingiu
como algo obsceno. Ele voou sobre a cerca de sinalização, seus nervos esperando um sinal
de aviso automático, embora ele soubesse que este mundo não estava à altura desse nível
tecnológico. Não havia orientação automática. Ele tinha que voar visualmente e pelo mapa.
Por fim, ele viu um complexo de edifícios de madeira sem pintura e resistiu ao impulso
de usar o rádio para pedir permissão para pousar. Não havia rádios neste mundo. Com
cuidado, ele desistiu e saiu, orgulhoso de sua pilotagem.
Uma voz seca disse: - Bem, chiyu, você precisou de todos esses jatos para pausar e
aterrorizar meus gatos? Eu tenho duas rainhas de reprodução prestes a ter gatinhos.
Bobby engoliu. - Certo, senhora. - Ele disse, lembrando de suas ordens. Pessoal nativo
muito importante. Não antagonize. Com raiva ele se perguntou se essas recomendações
iam nos dois sentidos. Camilla! Era uma piada ruim dar a esta velha agente endurecida o
nome da Lady das Camélias? Ela parecia do tipo que causava o inferno a outros facilmente.
Ele a seguiu, observando-a pegar um dos gatos gentilmente e pensou que eles eram a única
coisa no mundo que poderia querer ficar tão perto dela.
Camilla colocou o gato no chão e moveu a cabeça em direção a uma porta. Atrás da
porta havia um pequeno escritório e um braseiro com um pote de jaco. Bobby nunca
conseguira gostar de jaco, mas aceitou uma xícara e acrescentou leite e mel.
Camilla observou-o com olhos estreitos. – Então foi com você que os Terrans
decidiram que devo viajar.
- Oh, não se preocupe, senhora! - Ele disse com uma garantia que não sentia. - Eu
trabalhei com agentes femininas antes. Você não terá problemas comigo para trata-la como
uma igual. Eu sou liberal. - Ele olhou para ela como um cachorrinho esperando para ser
acariciado na cabeça, esperando por sua aprovação.
Seu rosto explodiu em ira e incredulidade e ela se levantou com mão na mesa. –
Preste bem atenção, chiyu. Eu não gosto de homens. Tudo o que eles fazem é atrapalhar
quando há um trabalho a ser feito. Agora, se você puder trabalhar para mim sem esperar
que eu o lisonjeie, atenda você, espere por você, e sem tentar assumir a missão, eu
permitirei que você venha comigo simplesmente porque você sabe como voar nessas
máquinas Terran. Mas me recuso a atravessar as Cidades Secas, a menos que eu possa
contar com você para não me causar problemas. Entendeu? Sugiro que você responda com
um ‘sim, senhora’ ou vai retornar bem rápido ao escritório de Margala com a sugestão de
que ela me envie um ser humano melhor. Voce entendeu?
Será que ela foi rejeitada? O jovem Terran se perguntou, a raiva lutando com a
tolerância autoconsciente. Provavelmente ninguém lhe deu atenção em anos, afinal ela é
tão simplória. Oh, os sacrifícios que fazemos pelo Império.
E s p a d a d o c a o s | 170

Camilla esperou. Se os Terrans quisessem que a expedição não fosse mal, a deixariam
fazer isso em seus próprios termos e lhe enviariam três boas amazonas que falassem o
Terran e pudessem pilotar uma aeronave ou alguém que tivesse experiência suficiente para
ter algum juízo nele. Não este filhote de cachorro patriarcal. Ela pensou em Buck Kendricks.
Ela e o homem da Força Espacial sabiam se tratar cordialmente o suficiente para trabalhar
juntos. Kendricks aprimorara seus métodos ao longo dos anos. O cachorrinho parecia
irritado e chocado, como se nenhuma mulher tivesse sido hostil com ele antes, muito
menos o desprezado em sua vida.
Bobby Ffoulkes olhou para Camilla novamente e decidiu, corretamente, que ela
esperava que ele saísse. Então ele se decidiu. - Sim, senhora.

~o⭐o~
Camilla carregou seu equipamento na parte traseira da aeronave como se fosse algo
normal para ela. Ela usava baixos botas, calças e uma camisa solta de mangas, tudo em tons
de laranja e marrom. Ela carregava um comunicador Terran e duas facas. Ela guardou seu
equipamento e pegou Bobby a olhando. - Pilote o avião, chiyu. – Ela disse, sem maldade, e
se inclinou para trás, cabeça e costas contra seu saco de dormir. Bobby se perguntou
brevemente o que ela estava pensando.
Ele carregou sua própria bagagem, atirando-a na parte de trás, e subiu no cockpit. A
voz aguda de Camilla interrompeu. – No armário, chiyu. Nós não temos o dia todo.
- Senhora, por que você não me chama de tenente Ffoulkes? - Bobby perguntou,
aborrecido, sua voz soando melancólica mesmo para seus próprios ouvidos.
- Os Terrans te deram esse título, não eu. – Ela respondeu, sem se mover de onde
estava sentada. Ela acendeu um pequeno, cigarro adocicado, enquanto Bobby se perguntou
ressentido se ela ia sentar ali sem levantar nenhum dedo para ajudar. Ele enfiou seu saco
de dormir dentro do armário mais próximo e colocou sua bolsa atrás, sob os olhos
penetrantes da mulher darkovana. Quando acabou, ele olhou para ela em tom de censura,
como se esperasse louvor. Tudo o que ela disse foi: - Isso vai servir por agora.
Quando ele começou a voltar para a cabine, ela disse: - Chiyu, na trilha cada um de nós
leva a própria carga ou é dividida em partes iguais. Uma menina de Renunciante de quinze
anos sabe disso mais do que você, mas não é sua culpa. No entanto, você vai ter que
aprender e rápido. Não podemos permitir um peso morto em uma expedição. Pilote o
avião.
Ele subiu no assento do piloto e ligou os motores quase mecanicamente. Ele não podia
cancelar a missão agora sem uma nota negativa em seu registro. Falhar totalmente em uma
missão por incapacidade de trabalhar com os nativos era algo especialmente condenatório.
Mas quando ele tivesse a salvo de volta na Sede e estivesse longe dos ouvidos dessa cadela
E s p a d a d o c a o s | 171

chamada Camilla, ele seria claro com o Legado. Satisfeito, ele verificou os instrumentos e
decolou.
- Um pouco apressado, mas vai servir. - Camilla disse criticamente.
Bobby Ffoulkes era um bom piloto. Seu único defeito é que ele era um pouco
demasiado ciente disso. Uma vez que o avião estava no ar, ele estava em melhor humor
para falar.
- Me pergunto por que não há pilotos nativos? Eles simplesmente não se interessam?
Ou será que todas essas gerações em uma cultura de baixa tecnologia simplesmente deixou
de produzir a aptidão mecânica?
- Pergunte aos Terrans. - Camilla respondeu secamente. - Até agora, eles são as únicas
pessoas dando aulas de vôo em torno Carthon. Se você não se importa, chiyu, estou
cansada de conversa e tenho o resto desta missão para pensar. Aconselho você a fazer o
mesmo.

~o⭐o~
O avião de Alicia Crowley havia caído na lateral de uma colina de terra baixa, coberta
de vegetação e ervas daninhas secas.
As áreas de choque da colisão os protegeram do pior, mas seu corpo inteiro estava
machucado e havia um corte profundo em sua perna, onde os lados do avião haviam
cedido e quebrado.
Roger, no lugar seguinte, parecia morto, mas ela podia ouvir ele respirando
superficialmente. O kit de primeiros socorros estava espalhado por toda a parte de trás do
avião. A caixa de kireseth tinha caído por uma abertura de uma escotilha de carga que
agora pendia, a porta ainda presa em uma dobradiça, de um buraco curvado e fivelado.
O sinal luminoso ainda estava transmitindo e isso era uma boa notícia, a menos que
Roger estivesse com um círculo de contrabandistas que o seguiriam com isso. Alicia riu um
pouco. Esse era um enredo digno de um drama televisivo, não tão provável em Darkover.
Com certeza, os nativos não tinham como captar o sinal. Os habitantes das Cidades Secas
achavam que os Terrans eram uma invenção da imaginação dos Domínios e Terra não iria
iluminá-los. Os drytowners perto de Carthon, que eram um pouco melhor informados,
também sabiam que não era bom se meter com o Império.
Isso foi uma espécie de evasão. Forçando a si mesma a desfazer a teia do acidente, ela
começou a se testar suas opções. Ela podia se levantar e até mesmo andar, essa era a
primeira coisa. As rações estavam em todo o lugar, mas os pequenos sacos de plástico que
as protegia estavam intactos. Eles não morreriam de fome. Pegando o anti-séptico e
algumas ataduras do kit de primeiros socorros, ela cuidou de seu corte. Isso teria que servir
até que pudesse ter acesso a um médico e dar pontos.
E s p a d a d o c a o s | 172

A água era pouca. O acidente tinha quebrado o tanque de água, causando um


vazamento em cerca de um terço do caminho. Eles teriam que beber o que sairia da fervura
de suas rações congeladas.
Eles tinham abrigo e comida. Provavelmente poderiam queimar umas gotas do
combustível se tivessem cuidado para não começar um incêndio florestal. O avião estava
completamente morto. Quando ela tentou fazê-lo funcionar, soou um ruído fraco e
metálico, depois desistiu. Provavelmente, o impacto havia quebrado o sistema de partida.
O rádio não funcionava.
Roger tinha uma lesão na cabeça. Abruptamente ela pensou que danificar o cérebro
de Roger era como trazer areia para as Cidades Secas. Ela limpou o rosto dele com um
pouco, muito pouco da água. Ele se mexeu debilmente e ela testou suas amarras
novamente. Ela pensou no período de tempo que ele estava no assento, pegou uma arma e
cautelosamente soltou ele. Ele parecia atordoado. Ela o levou pelo braço para as
instalações sanitárias do avião. Ela até deixou-o trancar a porta atrás dele. Então ela
posicionou a válvula vermelha negativa e, em sua cabeça, o sinal acendeu: - Estamos em
uma área pouco povoada. Pra que o rubor? Feche a tampa quando sair. - De dentro, ela
ouviu o som abençoado de Roger rindo.

~o⭐o~
O murmúrio do localizador tinha ido de inaudível para subliminar e Bobby se
perguntou quando Camilla iria lhe ordenar, duramente, para desligar a maldita coisa.
Quando ela não fez, ele decidiu que ela não deve ter ouvidos humanos normais. Talvez sua
audição tivesse se acostumado como as mãos calosas e o rosto endurecido dela. Eles não
sentem coisas do jeito que fazemos, ele pensou vagamente. - Estamos chegando lá,
senhora. - Ele disse esperançosamente.
- Eu posso ouvir. - Ela respondeu e acendeu o segundo dos seus engraçados cigarros
nativos.
- Isso cheira bem, senhora. – Ele disse então. – Tem algum problema se eu provar um?
- O garotinho quer provar vícios femininos? - Ela perguntou quase com um sorriso. -
Não agora, chiyu. Talvez mais tarde. Sua máquina diz até onde temos que ir?
Pela recusa, Bobby resolveu não compartilhar seu pacote de seis cervejas com a velha
bruxa. - Não em alguns quilômetros, senhora, mas temos um bom alcance. Você pode ler
um mapa?
Camilla só sorriu àquele absurdo e se inclinou sobre o assento, estendendo a mão com
um dedo fino nas colinas ao sul e oeste. - Espero que você não esteja planejando ir por aqui
- Ela disse - ou andarmos daqui. – Seu dedo pousou em um ponto muito curto do marcador
que indicava o avião caído. – ...Até aqui.
E s p a d a d o c a o s | 173

De repente, Bobby se virou. - Com todo o respeito, minha senhora, eu estou voando
este avião. – Ele retrucou.
- Muito bem. – Ela disse e voltou para o assento nas costas.
Isso a colocou em seu lugar, Bobby pensou com satisfação e virou o avião para o sul e
oeste. Sua satisfação durou várias horas.

~o⭐o~
Um Bobby Ffoulkes muito assustado se agarrava ao equipamento de direção da
aeronave e lutava com o avião contra os ventos altos e turbulentos das Colinas Negras. O
canto da mente que segurava seu orgulho instável continuou correndo a cena esperada
com Camilla, assim que estivessem no chão. Pelo menos ela tinha o sentido de não
exercitar seu gosto por o irritar enquanto ele estava tentando pousar. Mas sua mente
subconsciente estava muito mal e na defensiva. Quem poderia ter esperado que ela
soubesse alguma coisa sobre as condições de voo nas Colinas Negras?
Ela podia querer falar que ele recusara seu conselho porque era uma mulher ou
porque era uma nativa. Não iria admitir que ele recusara porque ela estava aquém de seus
conhecimentos. A última coisa que ele precisava era alguém o chamando de imaturo.
Por que ela não dissera alguma coisa?
Um vento alto o atingiu violentamente pela direita. Ele voou sobre a corrente e quase
rasgou uma asa quando inclinou acentuadamente para evitar uma encosta. Corrigindo a
direção, ele murmurou algumas coisas, viu um leito suave de sujeira à frente e se dirigiu
para lá.
Da parte traseira do avião, Camilla falou pela primeira vez em várias horas. - Terra
afinal. É uma areia macia aqui embaixo.
- Sim, senhora. – Ele disse e notou que não havia raiva nela. Puxando lentamente, ele
deslizou sobre a areia até que pudesse ver onde a textura mudava e reduziu a velocidade
muito cuidadosamente até o pouso. O motor rodou alguns minutos e parou. Bobby
continuou sentado lá, tremendo. Então ele disse sinceramente: - Obrigado, Camilla.
Camilla assentiu. - Traga água para três dias. - Foi tudo o que ela respondeu.
Eles usavam toucas típicas das Cidades Secas e as calças usadas por homens dos
Domínios. Camilla acrescentou uma camisa-capa gasta de drytowners e armas no estilo dos
Domínios. Para Bobby, ela tinha uma jaqueta de serviço muito gasta com os botões e
insígnias arrancadas.
Ele olhou para o disfarce duvidoso. - Por que não usamos equipamento nativo? Não
seria menos chamativo?
Camilla assentiu e, em um dialeto, que ele mal conseguia seguir, disse: - Quem era o
teu pai, irmão de água? E qual é a tribo do teu pai? Oh? Eu nunca ouvi falar de um Jalak,
E s p a d a d o c a o s | 174

filho de Yussoph nas proximidades dos Poços de Shieth. Quem te deu licença para beber
dos poços da tribo?
- Entendo. - Bobby disse finalmente. - É uma grande rede de parentesco e você não
pode conectar-se aleatoriamente, posso ver que não sei nada sobre as Cidades Secas. - Ele
olhou para o mapa e franziu a testa. - Não parece um bom país para caminhadas. Tem
certeza de que conhece um caminho através dessas colinas?
- De várias formas. – Ela disse. - Traga o fabricante de sons gritantes para nos guiar.
Funciona na linha de visão, mas a ‘visão’ dele é melhor que a nossa.
- Sim senhora. – Ele disse em respeito assustado.
Eles pegaram suas cama e bolsas e começaram. Bobby mordeu a língua para não dizer
que tentaria manter seu ritmo suave até que ela pudesse combinar facilmente e, depois de
um tempo, ficou feliz por ter mantido a boca fechada. Nunca havia cruzado em sua mente a
ideia de que uma mulher vinte anos mais velha do que ele poderia seguir um ritmo como
aquele.
Seu erro no voo ainda o incomodava. Depois de um tempo ele disse: - Sinto muito pelo
avião. Quero dizer, sobre não ouvir você. Eu não percebi que você conhecia...
- Só não tente provar seus pontos quando os dados forem jogados seriamente, chiyu. -
Ela respondeu secamente.
- Eu não estava tentando provar nada.
- É só que você não precisa de uma mulher para lhe dizer o que fazer. - Ela se virou
para olhar para ele como se fosse um cavalo que ela estava prestes a se livrar. - Os Terrans
me mandam todos os filhotes afligidos. – Ela disse. - As meninas, não as chamo de
mulheres, ainda estão amarradas às cordas dos aventais de suas babás. Os meninos não
foram domanos. Só posso imaginar que Margala sabe que não tolero nenhum absurdo. - Ela
se virou para a frente e continuou se movendo.
As colinas eram baixas e sinuosas, cobertas escassamente com gramas e ervas
daninhas. As ervas daninhas eram altas, espetadas e equipadas com uma grande variedade
de espinhos que se prendiam a roupas e meias, entrando e saindo do tecido em pontos
finos. O chão estava empoeirado, irregular, com rochas e tocas de animais e lugares
erodidos. Camilla manteve um ritmo constante. Bobby, cuja ideia básica de grama era uma
camada esverdeada sobre espuma em uma base de concreto, achou aquela cena estranha.
Havia insetos. Ele havia esperado que os insetos darkovano não picassem devido ao
metabolismo incompatível com Terrans ou algo assim. Foi uma esperança vã.
Havia pó no ar, agarrando-se ao interior das narinas de Bobby, secando a boca. Ele
nunca havia pensado muito sobre beber água. A fonte sempre estava no corredor. Ele
começou a beber de sua cantina, imaginou o quanto ele poderia poupar, observou Camilla,
E s p a d a d o c a o s | 175

e percebeu que ela não havia tocado em seu cantil. Claro, ela podia ser capaz de armazenar
água como um camelo, ele pensou amargamente.
Lawrence da Arábia, lembrou-se, havia feito um ponto sobre se recusar a beber até
que suas tribos desérticas o fizessem. Isso estava em um filme que ele tinha visto na
Academia.
Vamos, Bobby, seja um herói!
Era difícil quando o interior de sua boca estava ficando mais e mais seca. Aquela velha
tinha praticado isso por toda a vida, ele pensou ressentidamente, pendendo para frente
mais e mais, lentamente. Suas costas doíam pelo peso desacostumado, pois ele não era
muito de caminhadas. Seus pés doíam e não havia alívio à vista.
No topo de uma colina, Camilla parou e analisou o terrano, sombrendo os olhos com
uma mão. - Use seu localizador, Bobby. – Ela disse distraidamente e pegou seu cantil.
Bobby ligou o aparelho e se perguntou se não deveria tentar aguentar um pouco mais
a sede. Era embaraçoso ser superado por uma velha!
- Beba, chiyu. - Ela disse duramente. - Não vou carregar três corpos daqui por causa do
kihar do homem da Terra. - Ele pefou seu cantil e começou a beber. Ela o parou com uma
mão em seu cantil. - Devagar ou você ficará doente.
Chateado pelo fato de precisar de uma babá, ele bebeu lentamente, como ela sugeriu,
guardou o cantil e se moveu quando ela o fez.
No momento em que o sol carmesim estava a meio caminho em um céu violeta,
Bobby estava pronto para enfrentar o fato de que ele não iria chegar ao pôr do sol. Cada
passo era uma agonia e sua respiração estava ficando curta. Suas pernas doíam e sua
mochila batia contra seus ossos ou o músculo errado, uma agonia desconfortável. Ele
estava esgotado, colocando um pé na frente do outro por um ato de pura força de vontade.
Ele havia esgotado sua gota de inspiração nos heróis há muito tempo. Ou eles eram feitos
de coisas diferentes que Bobby Ffoulkes ou era esse maldito planeta alienígena, onde a
gravidade parecia errada, o ar era rarefeito demais, e até mesmo a textura da sujeira e
ervas daninhas eram erradas.
Ele também estava exausto da necessidade de agir como um homem. Camilla, por
esse padrão, era muito mais homem do que ele. Em uma voz sibilada, ele reconheceu isso.
Camilla se virou, os olhos frios em um rosto agredido pelo tempo. – Me chame disso
novamente e eu vou deixar você onde está. Acha que considero uma honra ser chamada de
homem? Sou uma mulher. Aprenda isso, chiyu, e lembre-se bem.
Bobby andou mais devagar ressentido e percebeu que Camilla tinha entendido - assim
como uma mulher sempre fazia - que seu comentário era um golpe em sua feminilidade em
vez de uma homenagem a suas melhores qualidades. Você não pode agradá-las, ele pensou
amargamente, não importa o que você faça ou diga. Você simplesmente não pode ganhar!
E s p a d a d o c a o s | 176

Camilla olhou para ele e não disse nada, mas andou de volta para o lado dele. Era
impossível pensar coisas desagradáveis com ela de volta dessa maneira, e cuidadosamente
ele reprimiu a maior parte de sua raiva. A masculinidade ainda exigia que ele não parasse,
pelo menos não antes dela, mas ele estava feliz em desacelerar.
- Onde você foi criado, chiyu? - Ela perguntou abruptamente.
- Colônia Alfa, senhora.
Ela buscou em sua memória. - Onde não há nada ao ar livre, mas apenas um grande
prédio, pois a terra é tão árida que ninguém cruza a pé, apenas tolos e suicidas. Onde todas
as coisas pesam três quartos do que fazem aqui, embora como isso ocorre não tenha
conseguido me explicar, e Margala tentou. - Ela se virou para encará-lo, parecendo um
animal feroz. - A arrogância é uma falha do seu povo. A fraqueza física não é, a menos que
haja um motivo. É a sabedoria das Amazonas: sempre procure o motivo. Mas é uma grande
loucura dos homens sentirem que devem fazer mais do que podem, por seu kihar, e que as
mulheres devem desacelerar e andar ao lado deles. Sente-se.
Ele sentou. Ela o fez tirar suas botas e franziu a testa ao ver seus pés. - Alguém te disse
que tipo de calçado usar para isso? Da próxima vez, chiyu, use dois pares de meias pesadas
de lã ou forros de bota de pele de carneiro. - Ela pegou um frasco de sua mochila. – Use isto
e coloque os pés para cima. - Ela olhou para a mochila apoiada contra a rocha mais
próxima. - Amanhã vou ajudá-lo a encaixar isso às suas costas. Aceite a ajuda ou não, como
você deicidr. Agora deixe-me montar o acampamento hoje à noite e amanhã. Você cozinha.
Ele abriu a boca, depois percebeu que não podia se levantar novamente mesmo se
quisesse. Enquanto ela se movia e fez todo o trabalho de montar o acampamento, ele
colocou algumas rações em uma lata de água fervente e observaram até que cozinhasse.
Ela comeu tão bem quanto trabalhou e disse enquanto comia mais que ele: - Não vou
te tirar das montanhas nas minhas costas porque você não vai reabastece seu corpo. -
Depois do jantar, ela pegou uma pequena harpa do bolso e começou a tocar uma das
músicas selvagens dos darkovanos das colinas.
O sol carmesim desceu sob o horizonte e o fogo cintilou mais baixo. Bobby, de repente
muito sonolento, se surpreendeu perguntando: - Como você se tornou uma Amazona? Ou
você nasceu uma?
- Não. Alguns são desde o nascimente, mas eu era a filha de um proprietário de terras,
e supostamente fiquei estragada demais para ser protegida. É uma longa história, chiyu, e
uma que contei a apenas duas pessoas, uma das quais está morta. - Bobby engoliu,
imaginando a causa da morte, Camilla continuou: - Ela era minha mãe de juramento e mais
querida para mim do que minha mãe, irmã ou qualquer ser vivo. A outra é uma irma de
juramento e quase tão querida. - Então ela disse: - Eu me pergunto como Alicia Crowley
estará hoje à noite?
E s p a d a d o c a o s | 177

~o⭐o~
Alicia Crowley bocejou, contou as rações novamente e tentou ignorar a dor irritante na
perna. Ele estava começando a coçar, o que era um bom sinal, mas estava a deixando
louca. Seu rosto parecia sujo e seu cabelo coçava.
Ela tentou se interessar no romance que trouxera com ela, mas agora era quase
impossível se concentrar. Ela se esticou e moveu seus ombros para aliviar a dor nas costas e
olhou para a hora na tela.
Fique com o avião. Foi ensinado a eles na escola de voo que a coisa mais tola que um
piloto poderia fazer era abandonar o avião, exceto em circunstâncias extraordinárias. Os
aviões eram mais fáceis de localizar pelo ar do que as pessoas. Alicia Crowley suspirou e
bocejou. Era uma tentação arrumar suas coisas e sair, só para fazer alguma coisa. Qualquer
ação parecia melhor do que nenhuma. Ela olhou os anúncios na parte de trás da revista
Fortunesaeker de Roger e olhou os pequenos empreendimentos em devaneios de riqueza
instantânea.
Talvez essa fosse a forma de Roger fazer algo.

~o⭐o~
Camilla e Bobby estavam de pé ao amanhecer. Por consentimento não dito, Bobby fez
café da manhã enquanto Camilla guardava as coisas. Ele nunca tinha comido essas rações e
ficou surpreso com o quão saborosas elas eram. Camilla comeu com um apetite saudável.
Ele achou isso satisfatório, quase uma homenagem à sua culinária. Uma brisa suave soprou,
trazendo com ela os aromas fracos e nítidos da vegetação. Em algum lugar um inseto ou um
pássaro chamava por outro.
Camilla embalou a metade da carga e veio até a fogueira, onde Bobby estava franzindo
a testa para o restante dela. – Esfregue os restos com areia, - ela disse em tom neutro - e
enterra as mosquetas. O lixo vai na parte inferior da sua mochila. Como estão seus pés?
Ele tentou julgar se poderia andar mais um dia sem admitir que precisava de ajuda.
Camilla bufou. - Kihar é um luxo que não carrego na trilha. Tire suas botas, passe isto nos
pés e use isto. - Ela jogou-lhe dois pares enrolados de meias nativas. Quando ele colocou
suas botas de volta, ela o ajudou a colocar sua mochila. Eles cobriram todos os vestígios de
seu acampamento e foram andando, guiados pelo sol, a bússola e o sinalizador de Bobby.
Ele estava todo dolorido. Havia uma grande diferença entre treinar na academia e
ação real ao ar livre. Mas a dor estava amenizando conforme andava e ele não esperava por
isso. Algo voou de um arbusto, assustando-o. As Colinas Negras apareceram à frente,
escuras e estéreis, fazendo as colinas em que estavam agora parecem verdes e
convidativas, quase caseiras.
E s p a d a d o c a o s | 178

Um pássaro corria em seu caminho como se estivesse em uma competição. Camilla,


em silêncio até agora, apontou as flores e padrões de folhas em alguns dos arbustos, seu
uso, seus nomes e algumas das formações geológicas das rochas. Bobby começou a
perceber que isso era um mundo inteiro e ouviu com interesse.
Eles subiram mais e, mesmo com o sol se tornando mais quente enquanto o dia
passava, o vento desenvolveu uma característica fina e fria. Os pés de Bobby estavam
começando a machucar novamente antes que ele percebesse que estava gostando da
caminhada. Apesar das instruções de Camilla, ele sofreu com os pés doloridos em silêncio
por muito tempo pelo amor ao seu orgulho e começou a fazer disso um jogo. Quanto
tempo posso aguentar? Mas seu passo diminuiu e ficou instável. É apenas dor, ele disse a si
mesmo.
Camilla veio para trás ao lado dele. - Então, perdemos mais um dia em sua loucura. -
Ela disse duramente. - Tire suas botas.
Ela fez uma careta com o que viu e não apenas porque seus pés fediam.
- Bolhas. Claro. Mais bolhas do que o senso comum consideraria suportável. - Sua mão
levantou e atingiu a bochecha dele. Ele gritou e caiu para trás, mas a mão dela agarrou seu
pulso e o segurou com força. - Eu deveria mandar você voltar sozinho para os Terrans e
deixar os kyorebni te comerem vivo no caminho de volta. – Ela disse friamente, seus olhos
duros. - Você, menino que não consegue resistir a jogar seus joguinhos pondo vidas em
jogo, têm sido muito mais problema do que você vale a pena até agora. Agora coloque
aqueles sapatos nos pés, caminhe ao meu lado o melhor que puder e siga minha liderança e
minhas ordens ou vai voltar para a casa da mamãe. Entendido?
Bobby engoliu em seco e depois, engolindo seu orgulho, disse: - Eu não entendo. Sei
que cometi algum tipo de erro, mas não entendo por que parece ser um grande problema.
Eu tenho bolhas, mas tenho andado um longo caminho e nem mesmo sou um alpinista.
Estou tentando o meu melhor, mas não é o meu mundo e eu sou um iniciante neste.
- Princípio da sabedoria. - Camilla disse muito mais suavemente. - Algumas bolhas são
inevitáveis sim. Mas se você prejudicar a si mesmo, não poderemos continuar e qualquer
atraso pode significar a vida de Alicia Crowley e seu parceiro. Temos um ditado aqui: 'Não
há ninguém tão velho que não possa aprender e ninguém tão jovem que não possa
ensinar.’ Mas, para minha tristeza devo lembrar que no caso de muitos de vocês ‘não há
ninguém tão jovem que não possa aprender!’

~o⭐o~
Roger estava delirando. Alicia Crowley sentiu seu rosto e descobriu que estava quente.
Ela tentou dar-lhe outra pílula contra a febre. Ele olhou para ela com olhos castanhos e
murmurou: - Cadela.
E s p a d a d o c a o s | 179

- Sente-se, cale a boca e tome. - Ela estalou, sua paciência acabando depois de quatro
dias de tédio, dor e preocupação.
- Pobre Roger. – Ele zombou. – A grande e heróica Lish tem que cuidar do pobre Roger,
não é? O que é, Lish? Sentindo-se mal porque você foi a lugares que eu não pude? Eu entro
em todas essas festas nos rabos de saia! Todas as missões boas que conseguimos é porque
Crowley está correndo atrás das coisas. Desde que fomos colegas na Academia, Lish
Crowley era a grande agente e o pobre Roger se arrastava atrás dela.
Pálida, Lish fechou o punho. - Pegue esta maldita pílula, Roger, antes que eu me encha
e te esgane. Você está doente, ferido e delirando. Se você quiser, ficarei feliz em te obrigar.
Aquela sua pequena travessura que nos trouxe a isso já acabou com minha paciência e
falaremos sobre isso quando você estiver fora da reabilitação.
A resposta de Roger foi um gesto obsceno.
Lish apertou os pontos de pressão da mandíbula dele, forçando sua boca a abrir,
despejou a pílula e a água, e fechou a boca, acariciando sua garganta do mesmo modo que
faria com um animal teimoso. Seus olhos se moveram para o farol. – Que porra! Quando o
resgate vai chegar?
Quando Roger dormiu novamente, ela andou pelo piso do avião caído, mordendo o
lábio. Ela deveria saber.... Havia sinais sobre o ressentimento e ciúmes de Roger por seu
sucesso. Ela havia dispensado tais ideias antes como algo absurdo. Se ela tivesse sido um
dos tipos chamativos e brilhantes a quem o sucesso vinha facilmente, o tipo que Roger tão
desesperadamente invejava e queria ser, ela até poderia entender. Mas Lish era uma
pessoa fria e impassiva. Seu sucesso veio pelo trabalho duro e Roger sabia disso. Ele tentara
arrastá-la para longe do trabalho com frequência.
Eles tinham sido colegas e amigos. Em seu último ano ninguém pensava em Lish sem
Roger, ou Roger sem Lish. Eles eram amigos e ninguém sentiu o ódio coalhado sob a
amizade. A amizade, irremediavelmente quebrada pela descoberta de Lish do contrabando
de kireseth de Roger, morreu, deixando apenas uma dor vazia.
Quando essa equipe de resgate apareceria? Seria ser uma longa noite.

~o⭐o~
A pequena lua Kyrrdis estava subindo sobre a crista das colinas quando duas figuras
mudas e sombrias se aproximaram da aeronave Terran destruída. Lish Crowley, dormindo
levemente em sua ansiedade inquieta, acordou instantaneamente e congelou no banco do
piloto, imóvel e quase não respirando. Uma mão foi para a arma que ela agora carregava
em todos os momentos. Na escuridão ela podia ver as vestes e toucas das tribos do
deserto, ao contrário dos contornos costurados de uma companhia Terran.
E s p a d a d o c a o s | 180

Havia apenas dois deles e estavam a pé. Ali havia apenas ela e estava armada. Sua
perna estava inflamada agora, mas ela ainda podia ver o suficiente para atirar.
Ela tinha a arma quase desencadeada quando a figura menor chamou em um sussurro:
- Alicia Crowley? - O sotaque era dos Domínios.
Ela não disse nada. Uma segunda voz se somou à primeira. - Capitã Crowley? Nós
somos da Sede em Carthon. Tenente Ffoulkes e Camilla n'ha... - Sua voz parou como se
tivesse esquecido e ficou envergonhado. Crowley riu.
- Venham a bordo, amigos. Espero que tenham trazido alguma ajuda. Temos um
inconsciente, um ferido e nenhuma maneira de tirar esse pássaro daqui.
Camilla abaixou sua mochila e abriu duas macas desmontáveis de alumínio. Ela
organizou um tipo de rede entre eles e prendeu duas barras transversais para firmar. - Vim
preparada para carregar vocês dois se for preciso. – Ela disse.
O queixo de Bobby caiu. - A pé? Apenas nós dois?
- E esta é a primeira vez que você se perguntou como faríamos isso? - Camilla estalou.
Ela puxou uma garrafa de gás altamente comprimido da mochila. - Sua metade, chiyu. - Ela
disse em um tom impessoal. Bobby abriu o pacote e montou uma segunda maca e garrafa
de gás. Camilla os enxugou e, para a espanto de seu companheiro mais jovem, anexou o
que parecia ser um balão em cada canto. Cuidadosamente ela inflou os balões. Ela e Bobby
carregaram o inconsciente e drogado Roger para a primeira maca. Lish Crowley agradeceu
na segunda. Bobby pegou a parte de trás, Camilla a frente e desceram pelas colinas.
- Balões como este já foram usados pelos Terrans para voar, não é? - Ela perguntou. –
Não vamos fazê-los voar em colinas como estas, mas se eles voam, certamente irão aliviar
nossas costas de metade do peso. Pensei nisso enquanto ponderei como o peso das coisas
pode variar de lugar para outro no Império Terran. Margala de bom grado, me deixou usar
essas coisas e acho que ela vai usar a ideia futuramente. Vamos ver se funciona.
- Espero que sim. - Bobby disse fervorosamente.
– A boa e velha Camilla. – Lish riu. - Ela rasgou várias tiras da minha pele quando eu
estava em treinamento. Dissera-me que se eu era uma amostra do que os Terrans
tornavam as mulheres, todos nós deveríamos ser vendidas para os drytowners como
animais de estimação. Irmã fraca foi a menor coisa de que ela me chamou.
Essa era uma ideia nova para Bobby. - Você também? - Ele perguntou.
Lish continuou falando. - Você pegou o que eu mencionei no rádio. Não é? Eu não
quero aquela coisa solta na terra! Olha, Roger não quis causar nenhum dano, mas...
- Que alívio. - Camilla rosnou, irônica. - Irmã, não estou preocupada com o que ele
queria dizer ou não quis causar. Estou preocupado que a kireseth não seja vendida como
uma recreação, uama droga entre os Terrans. Se eu fosse você e não pudesse controlar
E s p a d a d o c a o s | 181

alguém abaixo de mim, valtaria e imploraria para as Mães da Guilda me ensinar a mais
simples das lições das meninas.
Lish parou de falar enquanto Bobby ficou boquiaberto por ouvir mais uma bronca em
termos mais duros do que ela havia usado com ele.
- Você não deixará de ser muito dura com Roger, não é? - Lish perguntou novamente e
então ficou em silêncio.
A aeronave de Bobby estava esperando por eles na beira das Colinas Negras. Assim
que os passageiros e a carga foram colocados a bordo, e Roger preso em uma maca
especial para acidentes, todos usaram as instalações para se limpar e comer. Ele abriu a
cerveja e repassou. Um registro ruim em sua ficha o aguardava por ele ter pilotado
descuidadamente, o que seria o menor das coisas que estaria aguardando por ele na Sede
devido a isso. Mas ele conhecia seu trabalho e isso não o incomodava mais. Ele vencera.
Pareceu-lhe que havia um pouco mais que ele tinha ganho além do pagamento.
Ele os voou para o Carthon, ajudou a descarregar Lish no hospital e Roger em um
hospital prisional, e Camilla a quartos de solteiro, todos aproveitaram então uma boa noite
de sono. De manhã, a Assistente do Coordenado o chamou para fazer o relatório.
- Então, você acha se saiu bem? – Ela perguntou.
Bobby olhou para o chão. - Não Senhora. Eu cometi erro após erro. – Ele admitiu. –
Alguns simplesmente estúpidos. Eu fui cabeça dura e não quis ouvir. Mas nós fizemos o
trabalho.
- Você fez. - A mulher que os nativos chamavam Margala pensou por um minuto e
olhou para o nada em especial. - O que você acha de Camilla como parceira?
Bobby engoliu. – Madame, acho que ela é competente, muito competente. Sua única
falha é que ela não consegue trabalhar com as pessoas.
Um leve sorriso surgiu na boca de Margala, como se ela estivesse se lembrando de
algo. - Ela não consegue, eh? Você quer dizer que ela não é agradável. Ela é abrupta, brusca
na forma de falar...
- Abrasiva, beligerante, sim, senhora. - Bobby franziu a testa, como se detectasse algo
imperceptivelmente indo errado ali.
- Então você não trabalharia com ela para treinar pilotos nativos? Esse foi o preço que
ela exigiu para assumir essa missão.
Bobby achou que aquilo acabaria rapidamente, e sendo justo, apenas por um
momento passou por sua cabeça que danos a sua carreira seriam causados por se recusar. -
Eu acho que poderia, sim, senhora.
Sua oficial superior sorriu abertamente. - Abrasiva, beligerante, abrupta, intolerante
com absurdos, uma mulher que nunca se incomodou em cultivar uma personalidade
agradável. Não, ela não é uma diplomata. Mas já lhe ocorreu que esta é a descrição perfeita
E s p a d a d o c a o s | 182

de um oficial de treinamento básico? - O sorriso de Margala quase brilhou. – E, até onde ela
está preocupada, você ganhou suas asas. Parabéns, Tenente Ffoulkes. Você acabou de se
formar.
Depois de alguns minutos, Bobby também riu. Então ele disse: - Quando começamos?
E s p a d a d o c a o s | 183

Onde o coração está


Millea Kenin

O céu era um cinza leve, luminoso e o sol brilhava como uma pérola pálida atrás da
fina cobertura de nuvens permanente. Nas ilhas, folhagem verde prata e rochas arroxeadas
foram refletidas no mar tranquilo. A garota delgada e ruiva chamada Marja virou o leme
fracionador e soltou a vela, pegando cada pedaço da leve brisa com habilidade praticada.
Ela se perguntou se o ar quente e úmido, as cores silenciadas parariam de parecer erradas
para ela.
Seu irmãozinho e irmã não notificaram nada de errado. - Olha, uma Sirene! - Dori
gritou.
- Onde? - Ken perguntou. - Não, é só água.
As crianças mais jovens não conheciam outro mundo. Onde quer que viessem morar,
em qualquer um dos muitos planetas, sem dúvida, céus cinzentos e mares quentes repletos
de pequenas ilhas seria o mesmo que um lar para eles. Para Marja, o lar era muito
diferente. Um grande sol vermelho em um céu violeta, montanhas, ar claro e frio cheio de
aromas que ela podia lembrar claramente, mesmo que não pudesse se lembrar de nenhum
dos detalhes de sua primeira infância.
Darkover! Havia dor e medo nos detalhes de suas primeiras memórias, e calor e amor
em sua vida atual, mas ela sabia que um dia voltaria para aquele lugar.
O púrpura e cinza escuro em qualquer lugar ali em Sirenia nunca pareciam estar
bastante em foco para Marja, embora sua visão tivesse sido testada exaustivamente e não
demonstrasse nada anormal. Mas hoje estava pior. Ela se sentia tonta, quase nauseada.
Poderia ser a doença do limiar? Dio, a mãe adotiva de Marja, a avisou desse perigo que
poderia vir com as mudanças agora começando a acontecer em seu corpo. Se o mal estar
não passasse logo, ela diria a seus pais naquela noite.
- Agora é uma Sirene! - Dori saltou e foi puxada por seu irmão.
- Sente-se e pare de balançar o barco! - Ken rosnou em uma voz que era profunda
demais para um garotinho.
- Marja. - Dori chorou. - Ken machucou meu braço!
- Eu estava apenas tentando evitar que ela caísse do barco.
- Eu não ia cair!
- Parem de brigar, vocês dois. - Marja deu-lhes apenas um pouco de sua atenção. Ela
podia ver pela forma dos estreitos triangulares que cortavam a água silenciosa que três
Sirenes estavam nadando em direção ao seu barco. Ela segurou a vela e esperou para ver o
que eles queriam.
E s p a d a d o c a o s | 184

Logo eles vieram até o veleiro e ficaram em uma posição ereta, como seres humanos
pisando na água. Eles eram elegantes, seres resistentes à água um pouco maiores que os
humanos, pele em tom de lavanda acinzentado borrachuda. Eles usavam colares e pulseiras
de fios dourados torcidos com conchas amarradas, tinham rostos suaves e inescrutáveis,
com olhos escuros e planos, seus ouvidos e narinas eram fendas que podiam abrir e fechar.
Então eles falaram em uma frequência que nenhum humano poderia ouvir.
Saudações, irmãzinha.
Sua mensagem telepática foi, como de costume, clara para Marja. Ela não sabia por
que nem Dio e nem seu pai, Lew, podiam se comunicar com as Sirenes. Podia ser algo em
seu tipo particular de laran, ou poderia ser as próprias Sirenes que tinham escolhido falar
com ela. Eles tinham lhe pedido para prometer não revelar que ela poderia entendê-los até
que estivessem prontos, ou quisessem revelar, e ela havia concordado com relutância.
Relutantemente, porque seus pais estavam envolvidos em um projeto para tentar se
comunicar com as Sirenes, até agora em vão. Foi doloroso para Marja esconder algo tão
importante dos companheiros telepatas que ela amava.
Saudações, ela respondeu. Aqueles três eram amigos de Marja e ela enviou uma
sensação de alegria e reconhecimento. Eles não tinham nomes que ela pudesse chamá-los.
Você deve voltar. Todos eles se agitaram. É hora de contar ao seu pai sobre nós.
Porque agora? Qual é a pressa?
Os fabricantes de gaiolas levaram um ancião da Irmandade e eles estão tentando fazer
seu pai...
Então a comunicação vacilou. Ela não conseguia entender o conceito que as Sirenes
estavam tentando transmitir, embora cada uma delas tentasse em óbvio desespero para
expressar de maneiras diferentes.
Não importa o por que, disse o maior e mais velho Sirene. Seu pai estará em perigo se
você não lhe disser para falar conosco através de você.
Tudo bem. Marja havia se preparado para esse acontecimento.
- O que você está fazendo? - Ken perguntou.
- Indo para casa.
- Mas acabamos de começar! - Dori protestou.
- Os Sirenes disseram que o pai está em perigo. Temos que ir para casa e ajudar.
- Os Sirenes falam com você? Eu pensei que ninguém pudesse entendê-los.
- Que tipo de perigo?
Ambas as crianças falaram ao mesmo tempo e Marja respondeu: - Sim, eles dizem
coisas em minha mente, da mesma forma que os seres humanos fazem, exceto que nem
sempre consigo entendê-los. Eu não entendi que tipo de perigo, embora tenham tentado
me dizer. Mas disseram para me apressar.
E s p a d a d o c a o s | 185

~o⭐o~
O punho de Vance Tellerin bateu na mesa de Lew. - Droga, Lanart, a única razão pela
qual você foi contratado para este projeto é pelo seu talento selvagem. Não há nada que
você esteja fazendo agora que qualquer jovem na faculdade não poderia fazer melhor por
metade do seu salário. Agora tentamos quase todas as malditas coisas possíveis e você terá
que me dar resultados.
O rosto com cicatrizes do outro homem endureceu. - Mesmo que eu pudesse garantir
a capacidade de forçar o relacionamento com um membro de uma espécie não humana...
- Você está tentando me dizer que não sabe se pode fazer isso?
- Eu não sei se posso. - Ele manteve sua voz cuidadosamente no nivelada. - Estou
tentando apontar que poderia ser muito perigoso se eu tiver sucesso.
- Posso entender você estar assustado, mas...
- Ouça-me, Van. - Lew não levantou sua voz, mas algo em seus olhos fez seu supervisor
parar e obedecer. - Você não entende. Passei por coisas semelhante que prefiro nem
mencionar. Quando falo de perigo, não quero dizer apenas para mim. Para começar, seria
mais provável do que não matar o Sirene envolvido.
- Isso é um risco que eu vou assumir a responsabilidade.
Vance pensava como um comandante militar: saia, mate ou seja morto, resultado é o
que importa...mas dentro da cabeça, como pode ser? Em Darkover, mesmo no conflito
armado, nunca se rendia ou abandonava a própria responsabilidade. Lew nunca conseguiria
fazer Vance entender isso. Ele resolveu lhe dar então outra razão mais urgente.
- Como mencionamos em nossos relatos, pelo que eu e Dio fomos capazes de obter
dos Sirenes, chegamos à conclusão de que eles são telepatas na comunicação uns com os
outros, mas nos bloqueiam, seja deliberadamente ou porque suas mentes trabalham de
maneira diferente da nossa, ainda não sabemos. Se matarmos um deles é provável que os
outros saibam e não sabemos qual será a reação deles.
- Não temos provas de que eles tenham armas ou mesmo qualquer capacidade de
violência.
- Não sabemos o que eles têm ou não! - Lew percebeu que estava levantando a voz,
apesar de todos os seus esforços para permanecer calmo. - Não é esse o ponto?
- Sabemos que eles têm uma tecnologia baseada em princípios que não podemos
adivinhar. Eles produzem ouro puro sem o uso de fogo. A Terra precisa dessa informação.
- Você está recebendo pressão de setores mais altos, Tellerin?
Talvez fosse essa a causa da explosão do homem. O peito de Vance Tellerin inchou e
seu rosto corou. Então ele relaxou e seus lábios se contraíram em um breve sorriso irônico.
- Bem, sim. Isto é, resumindo em poucas palavras. É por isso que não podemos esperar
E s p a d a d o c a o s | 186

pelos resultados doas experimentos da teoria de Ordaz ou do Projeto Órfão para agir, não a
menos que possamos provar que tentamos todo o resto. Se você não tentar o seu charme
psíquico...
Lew estremeceu. Bem, ele dificilmente poderia ficar ressentido pelo desprezo de
Tellerin. O sentimento era mútuo.
Tellerin continuou: - ...ou, se não funcionar, não terei opção a não ser deixar Karajan ir
em frente com seus testes de tolerância ao estresse e autópsias dos espécimes. Precisamos
ter algo para mostrar nossos esforços no momento em que a próxima nave da Terra chegar.
Lew pensou na idosa fêmea Sirene que agora nadava em uma pequena piscina do
tamanho de uma cela solitária. O pior que poderia acontecer com ela como resultado de
qualquer coisa que ele pudesse fazer era a morte súbita. Isso era preferível ao experimento
lento da tortura que Karajan infligiria nela.
- Tudo bem. - Ele se levantou e ficou imponente em frente ao outro homem, sabendo,
como sempre, que Tellerin se ressentia disso. - Podemos ir em frente, assim que Dio puder
deixar seus órfãos.
- Por que você precisa dela?
- Porque ela é a única pessoa em todo este planeta que é treinada como monitora.
Acredite em mim, se eu pudesse mantê-la fora disso, eu faria. - A sensibilidade que fazia
parte do dom empático de sua esposa tornaria difícil para ela permanecer fora do
relacionamento e a deixaria vulnerável a toda a dor que tanto ele quanto a Sirene poderiam
experimentar. Mas ela teria que estar lá para acompanhar sua pulsação, sua respiração,
seus músculos. Ele não teria consciência de seu corpo, afinal.
Lew e Tellerin foram para a piscina onde Dio e Anji Wong de Samarra trabalhavam
com seus espécimes: duas Sirenes encontradas ainda bebês na terra em uma enseada
rochosa depois de uma tempestade, ligeiramente feridas, sem adultos à vista. Eles tinham
cerca de três anos no padrão terráqueo agora e eram muito parecidos com crianças
humanas dessa idade. Poderiam se passar muitos anos antes que algum deles
desenvolvessem os poderes telepáticos que lhes permitiriam ser uma ponte entre sua
espécie nativa e a adotiva. Os filhos de Lew e os outros filhos humanos em Sirenia muitas
vezes vinham brincar com eles, mas eles não estavam lá agora. Lew se lembrou que Marja
pegara Ken e Dori e os levara em um barco à vela para um piquenique na ilha mais próxima.
Os dois órfãos vieram nadando para o lado da piscina, deliberadamente espirrando
com suas nadadeiras largas. Suas vozes soavam como pequenos gritos até que usassem
seus comunicadores, envoltos em plástico à prova d'água, nos lábios.
- Venha na água conosco, Anji.
- Venha jogar bola.
E s p a d a d o c a o s | 187

Os sons eram transformados em sons na frequência auditiva humana. A jovem com


cabelo preto curto se juntou aos dois na piscina, enquanto Lew explicava a Dio o que iria
acontecer. Ela estava tão angustiada quanto ele sobre isso, mas não pôde encontrar
qualquer alternativa. Não havia sentido em atrasar o inevitável.
Dentro de poucos minutos, Lew estava deitado em uma cama improvisada ao lado da
pequena piscina, onde o velho Sirene nadava indiferente em círculos, enquanto Dio sentava
ao lado dele, não realmente tocando-o, apenas os dedos perto de um ponto em seu pulso.
Ele olhou para a matriz, a pedra da estrela que sempre carregava, mas raramente removia
de sua bolsa de couro.
Gradualmente, ele começou a perceber os padrões de pensamento superficiais da
criatura na piscina. Havia uma sensação de derrota, desespero, mas não de resignação.
Havia energia, embora não fosse um poder que pudesse ser usado para salvar a si mesma.
Não era seu próprio poder, exatamente, mas sim um poder que ela mantinha contato e
confiava, de alguma forma indiscutível, apesar de sua crença de que ela estava além da
ajuda.
Naquela mente ele percebeu vagamente uma disciplina, estranha à sua experiência,
mas que o lembrou dos Guardiões. Ele enviou uma mensagem telepática e soube que foi
recebida, embora não soubesse quanto dela foi entendida. Ele a avisou sobre o que ele iria
fazer. Se você puder relaxar, não resistir, me permitir entrar, não deve se ferir. Se você
tentar me bloquear, precisarei tentar romper sua barreira.
Ele focou a força psíquica de seu dom hereditário e se aproximou da barreira sólida
que havia em todos os Sirenes. Como um raio de luz focado por um rubi produzindo um
laser, seu pensamento passou pela matriz, afiada, estreitada, intensificada, irresistível...
Foi como uma explosão. Ele havia planejado o tempo todo cortar a conexão no último
minuto se fosse a única alternativa contra a destruição, mas aconteceu muito rápido. Ele
aprendeu um milhão de coisas ao mesmo tempo, ficando confuso. Os Sirenes usavam uma
espécie de laran para trabalhar os metais inertes sem usar o fogo. Algo muito bom para os
Terrans!) Ele percebeu a natureza da Irmandade e o que significava ser um ancião, embora
ele não pudesse explicar e realizar o mesmo, sabendo que forçar o relacionamento em tal
criatura era como estuprar uma Guardiã virgem.
Dor e nojo de si mesmo ameaçaram separá-los. No entanto, ele não sabia o que mais
poderia ter feito. Ele deixou a onda passar sobre ele (era essa sua visão? Não, da Sirene) e
se viu na paz cinzenta do Mundo Superior.

~o⭐o~
Guiada pelas três Sirenes, Marja navegara de volta para a doca tão rápido quanto a
brisa errática permitia. Ken, satisfeito com sua habilidade, rapidamente prendeu o barco.
E s p a d a d o c a o s | 188

As Sirenes nadaram sob a doca, onde estariam escondidas nas sombras. Depressa! Eles
pediram.
- Vamos, rápido! - Marja chamou e começou a correr em direção ao prédio do
laboratório na parte de trás. Ela podia sentir telepaticamente que Ken e Dori a seguiam,
embora estivessem assustados e confusos. Ela quase sempre podia sentir a localização de
todos que ela amava bem como seus sentimentos superficiais.
O que seu pai estava sentindo agora a aterrorizava. Ela não podia deixar de notar que
era como se estivesse sendo puxada, como em uma banheira de hidromassagem. Havia
ódio pelo que ele estava sendo forçado a fazer, o desespero da Sirene e dor, dor, dor!
Em seu próprio corpo, ela foi esmagada pela náusea e vertigem. Era como se ela e
tudo ao seu redor estivessem se dissolvendo em uma turbulência. Ela caiu, ou o caminho
levantou-se para encontrá-la, e ela não sabia se caíra duramente no chão ou se tinha se
derretido em um fluxo de redemoinho.
Então, ela estava de pé em um lugar cinzento e tranquilo. Outros também estavam lá,
muito longe em diferentes direções. Um deles era um jovem alto que ela sabia que, apesar
dele ter duas mãos e seu rosto estava sem machucados, era seu pai, Lew. A outra era uma
Sirene muito bonita, cujo rosto transmitia uma calma e um sorriso radiante, e parecia
flutuar acima da superfície cinzenta onde Marja estava de pé, ereta, como Sirenes faziam
quando mantinham uma posição na água. Um terceiro era um jovem que ela nunca tinha
visto antes. Ele parecia magro, mas forte, e tão estranho eram as cores naquele lugar que
ela não sabia se seu cabelo era vermelho ou branco.
Embora eles estivessem em lugares diferentes, Marja descobriu que podia abordar
todos ao mesmo tempo e todos eles pareciam estar se aproximando dela. Ela não estava
caminhando passo a passo, mas sim deslizando sobre o chão como ela tinha feito às vezes
em sonhos. No entanto, ela sabia que não estava sonhando agora. Ela não estava presa em
sua própria mente. Ela estava em um lugar onde muitas mentes poderiam se encontrar.
Este, ela tinha certeza, era o Mundo Superior.
Aos poucos, eles se aproximaram um do outro e começaram a conversar
telepaticamente. A Sirene explicou que seu povo tinha bloqueado a comunicação com os
humanos, com exceção de Marja, até que eles tivessem aprendido o suficiente pela menina
para se sentirem mais seguros sobre como lidar com esses seres estranhos que invadiram
seu planeta. No entanto, eles tinham tido conhecimento de muita coisa que estava
acontecendo na mente dos participantes do projeto e ficaram intrigados, temerosos pelo
contato forçado de Lew, temendo que poderia matar ela e ele, se Marja foi não fosse parte
do contato.
Marja ainda não entendia por que sua presença era necessária. As Sirenes
classificavam, estudaram, desenvolveram e usavam o laran de uma maneira muito
E s p a d a d o c a o s | 189

diferente dos darkovanos e eles pareciam pensar que, dentre os telepatas desenvolvidos
em Sirenia (ela, Lew e Dio), apenas ela tinha o tipo certo.
No entanto, tinha alguma coisa errada. Não era isso o que deveria ter acontecido. Os
três estavam presos no Mundo Superior, incapazes de retornar a seus corpos, e, se não o
fizessem em breve, eles morreriam.
O estranho homem respondeu. Não, não era um estranho. Regis! Lew enviou um
pensamento feliz, como se estivesse cumprimentando um velho amigo que esperava nunca
mais ver novamente. Onde você está?
Aqui e em Darkover. Ele sorriu. Marja então soube que ele era Regis Hastur do Projeto
Telepata em Darkover, chefe do Conselho dos Telepatas que substituiu o antigo Conselho
Comyn.
Eu poderia voltar! Lew pensou e sua alegria foi sombreada com pesar: este novo
desenvolvimento, onde todos os telepatas darkovanos, independentemente da
ancestralidade, poderiam se encontrar como iguais, havia acontecido tarde demais para
seu irmão Marius.
Sim, mas você não precisa. Você é um contato onde está. Este evento é doloroso,
embora esteja no fim, mas abriu um canal de comunicação entre Darkover e Sirenia. E
poderá sempre ser utilizado. Você pode começar um círculo aí. Nós vamos ajudar.
Mas o que deu errado agora e como poderá ser consertado? Marja se perguntou, e
Regis ouviu e respondeu. Isso aconteceu quando ela estava começando uma crise da
doença limiar e trouxera um ataque quase fatal. Lew tinha presumido que a doença do
limiar não seria um problema para Marja, já que seu laran tinha sido bem estabelecido
muito antes da puberdade.
Regis explicou que, como parte do Projeto Telepata, havia uma tentativa de encontrar
quaisquer registros sobreviventes das Eras do Caos com informações perdidas. As histórias
de famílias particulares permitiram reconstruir algumas das etapas do programa de
reprodução que fixaram certos dons de laran nas famílias do Comyn e os tornaram um
pouco raros entre outros darkovanos. O início precoce do laran quase desaparecera
precisamente porque era associado geneticamente com uma doença do limiar muito mais
terrível.
Então, o que Lew precisava fazer era atrair a força do círculo de Regis para retornar ao
seu próprio corpo, e depois entrar em relacionamento com Dio e conseguir a ajuda para
Marja. Ali no Mundo Superior, onde não havia coisas como o tempo, Marja se encontrou
estremecendo como se estivesse com frio com o pensamento da dor que esperava por ela
uma vez que sua consciência se reunisse com o corpo, embora ela não pudesse sentir isso
agora.
E s p a d a d o c a o s | 190

~o⭐o~
Ela acordou para e se percebeu deitada em uma cama ao lado da piscina. Dori e Ken
deviam ter corrido em busca de ajuda e a levaram até ali. Ela se sentiu dolorida por toda
parte e, pelo gosto ruim em sua boca e a ardência em sua garganta, ela sabia que devia ter
vomitado, mas agora estava limpa e envolta em um cobertor. O rosto de Dio se inclinou
sobre ela, sua preocupação relaxando quando seus olhos se encontraram.
Seu semblante fino e justo com aquele ar maternal se acalmou. Ela suspirou e a
abraçou. - Como está se sentindo, querida?
- Horrível!
- Algum sinal de visão borra? Qualquer sinal de que as coisas não estão bastante
sólidas?
- Não! As coisas são muito sólidas! - Ela fez uma careta.
- Avise-me imediatamente se você começar a se sentir tonta ou se as coisas parecerem
começar a se dissolver. Você terá que se levantar e andar, não importa o quão doente você
se sinta.
Marja se levantou em um cotovelo. Houve um breve momento de tontura, mas passou
antes que ela pudesse mencioná-la. Lew estava deitado na cama seguinte, com as duas
crianças mais jovens enroladas com ele, e a Sirene estava inclinana em seus cotovelos na
borda da piscina. Todos eles tinham sorrisos exaustos.
O chefe de Lew, Vance Tellerin, estava de pé de alguns passos, parecendo confuso e
irritado, mas ninguém estava prestando muita atenção a ele.
Marja se deitou e relaxou. Mais pungente mesmo que antes, uma lembrança das
colinas e do sol sangrento de Darkover surgiram em sua mente e ela jurou que um dia
voltaria. Mas agora ela sabia que não havia pressa. De acordo com um velho ditado Terran,
o lar é onde o coração está. E agora ela entendeu, com um sorrisinho, o que isso significava.
O dela estava batendo de forma constante dentro do peito e, enquanto ela vivesse, ela
teria que levar seu lar, Darkover, aonde quer que ela fosse.
E s p a d a d o c a o s | 191

Cético
Lynn Mims

- Tinha que acontecer em algum momento, - disse Jason Allison - e está acontecendo
agora.
David Hamilton olhou para cima do seu feixe de relatórios. O Projeto Telepata estava
funcionando sem problemas. O novo lote de telepatas completara seus testes e estavam
entrando nas aulas de orientação. A inquietação de Jason era perturbadora.
- Qual é o problema, Jason?
Allison jogou uma correspondência em resposta. David leu:

‘Caleb Hargraves e assistente chegando ao Espaçoporto de Thendara na nave


Palladium. Hargraves deverá realizar a investigação do Projeto Telepata sob autoridade do
Senador Mark Velosin. Oficiais do Projeto Telepata, Allison e Hamilton, aconselhados a
cooperar com as Hargraves em todos os sentidos.
Casterbridge, Antropologia Alienígena.’

- Então? Nós já recebemos outros convidados.


- Não assim. Hargraves é um cético profissional. - Jason sorriu para a surpresa de seu
amigo. - Ele fez sua carreria, uma muito boa ao que parece, expondo charlatões e falsos
psíquicos. Nas pausas de sua caça às bruxas, ele trabalha dando palestras em
Universidades.
- Se ele está vindo aqui para encontrar charlatões, ele vai ficar desapontado. – David
disse e tentou aliviar o humor de Jason acrescentando: - Nós teríamos que esbarrar com
alguém como Hargraves em algum momento. Quando o Conselho começou a treinar
telepatas dos mundos, não havia como evitar que as notícias se espalhassem. Além disso,
estamos em boa forma médica e antropolófica, Jason. Eles sabem o que estamos fazendo e
eles controlam o dinheiro. Nós vamos conseguir passar por ele.
- Pode ser. Só para garantir, fiz algumas verificações. Hargraves é uma lenda entre
desmascaradores. Para ele, tudo são dados falsificados ou mal interpretados. Ele alega que
nunca viu evidências conclusivas de que a telepatia existe e ele sempre corre atrás de novos
alvos. Temo que desta os alvos somos nós.
- Mas não somos falsos. - David colocou os relatórios de lado. - Venha e sente-se.
Vamos começar planejando como lidar com Hargraves.
- Espero que possamos. – Jason disse. Ele abandonou sua preocupação com esforço. -
Tudo bem. Quem podemos usar para demonstrar a telepatia básica?
E s p a d a d o c a o s | 192

~o⭐o~
David fez uma pausa na borda da praça do hospital e bebeu observando a beleza de
uma manhã tardia de primavera. As nuvens não haviam permanecido através do
amanhecer, então o sol sangrento brilhava em tom granada num céu cor de água-marinha.
O vento balançou sua jaqueta de pele. Depois das tempestades de inverno, esse tempo
parecia quase amigável. Através dos tons petróleo e plastificados do espaçoporto, havia um
aroma de coisas verdes e pedra fresca. David inalou contente. Era o cheiro de casa.
Hargraves não conhece isso. Ele se sacudiu e caminhou em direção ao QG do
Espaçoporto, onde Hargraves e sua assistente foram alojados. A nave Palladium havia
chegado no dia anterior. David não o vira ainda e ele estava curioso para ver como era o tal
"cético profissional" de Jason.
Jason o encontrou no lobby do QG. - Estamos alguns minutos adiantados.
- Como foi a primeira reunião?
- Legal. Hargraves é surpreendente, mas sua assistente... Quero tirá-la de perto dele
por tempo suficiente para executar alguns testes.
David sorriu. - Ruiva?
- Se alguém se encaixa no padrão com perfeição, esse alguém é Sasha Hargraves.
- Esposa dele? - David sentiu a fisgada familiar de intuição na espinha. Jason balançou
a cabeça.
- Irmã. Eu estou feliz por voce estar aqui. Você é muito mais sensível do que eu. Ali
vem eles.
David se virou nesse momento para ver Hargraves e sua irmã se afastarem de um
grupo de servidores públicos Terran e vir em direção a eles. Ele os estudou com cuidado.
Hargraves era mais jovem do que ele esperava, na casa dos trinta anos. Tinha cabelos
escuros, prematuramente prateado nas têmporas, o que o fazia parecer mais velho. Ele
tinha a impressionante aparência digna de um político experiente, com olhos acusadores de
um inquisidor. Seu sorriso era uma decoração puramente temporária.
David se sentiu vagamente desconfortável quando o homem se aproximou. Ele
arquivou mentalmente essa apreensão e virou-se para a irmã. Jason estava certo: se alguém
já se encaixaria perfeitamente no padrão...
Sasha Hargraves era alta, quase tão alta quanto David. Talvez dez anos mais jovem que
seu irmão e não havia muita semelhança entre eles. Seu cabelo ruivo, olhos cinzentos e
pele pálida a separavam de todos os outros Terran no lobby. Com as roupas certas, ela
poderia se passar por um membro do Comyn. Ou não poderia?
Havia algo faltando e David identificou-o como uma sensação de presença. Um não-
telepata, com aquela aparência? Ela encontrou seus olhos, ela própria brilhando com
E s p a d a d o c a o s | 193

humor e algo mais. Curiosidade? E quando foi que ele precisou se preocupar com isso?
Droga, Hargraves não vai me bater!
Hargraves apertou a mão de Jason e agora estava se virando para a de David. Seu leve
sorriso desapareceu quando o outro não respondeu. - Dr. Hamilton?
- Bem-vindo a Darkover. - David disse. - Espero que possamos fazer sua visita valer a
pena.
- Tenho certeza que valerá. - Hargraves concordou. Ele deixou Jason apontar para a
saída, continuando falando enquanto eles emergiam na luz da manhã. - Primeiro, deixe-me
entender, você é um telepata e médico? Entendi que eles tinham um tabu contra o toque.
- Contra contato físico casual, particularmente com estranhos. - David desejou por um
segundo que ele tivesse quebrado o hábito do contato. Algo sobre Hargraves estava
deixando-o desconfortável e ele queria saber o porquê. - Quanto a ser um telepata, não
muito, apenas um pouco. Eu capto emoções mais do que pensamentos. Há telepatas muito
mais fortes no projeto.
- Eu gostaria de conhecê-los. - Hargraves disse. Ele continuou a fazer perguntas sobre
tudo o que via, como pessoas, edifícios, a cor do céu... Abruptamente ele parou e apontou.
- E isso, senhores?
Ele encontrou um dos poucos lugares para obter uma boa visão do maior marco de
Thendara. - É o Castelo Comyn. - Jason disse. - A sede do governo aqui por Deus sabe
quantos anos. É agora a sede do Conselho Telepata.
- Conselho Telepata. - Hargraves continuou observando o enorme edifício visível
através de lacunas nas torres espaciais enquanto andaram. - Darkover foi governada por
uma aristocracia telepática, correto? Até cinco ou seis anos atrás, quando os últimos
remanescentes sucumbiram a problemas internos. Interessante. Eles alegaram habilidades
mágicas...
- Magia, não. - David disse categoricamente. - Ciência. A ciência de uma espécie que na
Terra nunca se desenvolveu, mas tão firmemente baseada na lei natural como qualquer
uma das nossas próprias disciplinas.
- E tão útil. Esse castelo foi construído usando técnicas de matriz. - Jason acrescentou. -
Dizem que os principais blocos foram encaixados sem o toque de uma única mão humana.
- De fato. - Hargraves murmurou. - Lendas são sempre instrutivas. Nada mais fornece
tantas formas de percepção de como uma cultura percebe seu universo.
David lançou um rápido olhar para seu amigo. As mãos de Jason estavam cerradas,
depois relaxaram quando ele conseguiu se controlar. - Essas lendas são bem definidas,
doutor.
- Certamente. Certamente. Sempre há um pouco de verdade no fundo de uma lenda,
por mais distorcida pela tradição e tempo. Séculos, você diria? Ou mais?
E s p a d a d o c a o s | 194

- Não mais, Caleb. – Sasha disse. Ela tinha uma voz baixa e bem controlada. - Ninguém
tem certeza de como as taxas de tempo correspondem: os antigos drives M-AM analisaram
de forma estranha o tempo subjetivo, mas não tem mais do que 2100 anos desde a nave
perdida que fundou Darkover deixou a Terra. Muito tempo para culturas crescerem e
morrerem várias vezes. A história darkovana é documentada apenas desde a chegada do
Império e o pouco mais do século anterior. No entanto, esses documentos registram
entrevistas com darkovanos cujos ancestrais imediatos testemunharam a conclusão do
castelo usando as técnicas de matriz. - Ela sorriu se desculpando. - Está nas fitas, Caleb.
Uma nota de zombaria ecoou na voz de Hargraves. - Eu confio em sua memória, Sasha,
como sempre. - O tom zombeteiro permaneceu quando ele acrescentou: - Senhores,
espero que não estejamos muito longe de seus escritórios. Estou pronto para começar
meus estudos.
- Estamos quase lá. – Jason disse de forma neutra.
O espírito de David se elevou. Vamos ver o que ele dirá quando ver Kathie e os outros!
Ele pensou.
As portas do hospital se fecharam atrás deles alguns momentos depois.

~o⭐o~
A tarde foi um desastre. Começou bem: os dois médicos guiaram cuidadosamente os
Hargraves pelos resultados dos testes de membros do Projeto Telepata reunidos em seus
dois anos de existência. No início Caleb parecia indiferente. Então ele começou a fazer
perguntas detalhadas e inteligentes. Sasha disse pouco, mas seguia a discussão com
intensidade quase desesperada.
Falar das características físicas dos telepatas levou naturalmente a falar de suas
diversas habilidades. Jason enfatizou os primeiros achados do projeto, incluindo David e
seu resgate, junto com seu companheiro livre Keral, da amante e o bebê de Regis Hastur.
Sasha interrompeu o questionamento seco de seu irmão.
- Então você e Keral... um nativo? Você e Keral previram o ataque do assassino,
embora vocês estivessem em outra ala do hospital?
- Isso mesmo.
- Como? O que parecia?
- Não é fácil descrever. - David disse lentamente. - Eu sabia que eles estavam em
perigo, mas não havia nenhuma sugestão verbal. Eu só sabia.
Hargraves disparou um olhar irritado para sua irmã. - Estranho. Eu imaginei que a sala
estaria sob constante vigilância, considerando a importância da família da jovem e da
situação diplomática.
- Estava. - Jason disse. 0 O assassino conhecia bem seu trabalho e desativou o sistema.
E s p a d a d o c a o s | 195

- Oh. - Hargraves fez uma nota em seu notebook preto antiquado.


David lutou contra a raiva. Me pergunto por que ele se incomodou em vir. Sua mente é
obviamente fechada. A irmã... Bem, vamos ver.
Ele decidiu que era hora de oferecer uma demonstração para Hargraves. Kathie devia
ter a "exibição" pronta a essa hora. Se ele tentasse explicar a Hargraves, isso devia lhe dar
dores de cabeça.
Jason descreveu a origem da exposição. - Queríamos algo que poderíamos usar para
testar a telecinese. Até que o projeto começasse, a telecinese em larga escala sem uma
matriz era quase inédita. Vários membros do projeto são telecinéticos. Um deles nos
causou muitos problemas. - Jason poupou um instante para pensar em Missy.
David estava imaginando quanto problema para refinar a ‘exposição’ Hargraves teria
em seu escrutínio. Perda de tempo. Os telepatas recém-chegados não tinham o
treinamento para produzir truques realmente espetaculares e os membros do Comyn e
mais velhos do projeto tinham melhores coisas para fazer com seus talentos do que
proporcionar entretenimento para um cético como Caleb.
Felizmente, eles tinham uma artista nata em Kathie Marshall, a filha do Legado Terran
em Samarra. Kathie visitara Darkover anos antes e retornou no segundo lote de telepatas
Terran. Suas habilidades com uma matriz eram excelentes e ela gostava de exibi-las. Vamos
mostrar a ele primeiro Kathie, então a sessão de prática dos recém-chegados e depois
disso... Bem, vamos esperar que isso faça o truque. Porque não há muito mais que
possamos fazer!
Sasha estava observando o pessoal do hospital. Os escritórios do projeto estavam
todos fora dos principais departamentos, deliberadamente isolados, mas havia uma
dispersão de técnicos nos corredores. David quase perdeu o cumprimento de uma
enfermeira querida e jurou para si mesmo. Normalmente eu posso reconhecer Forrest em
qualquer lugar. O que há de errado comigo, afinal?
Eles entraram em outro corredor e pararam na primeira porta. - Aqui estamos. – Jason
disse. - Este não é nosso laboratório habitual, mas queríamos um pequeno quarto extra. -
Ele tocou a maçaneta da porta. - Como você poderá ver...
David teve um segundo vislumbre quando olhou sobre o ombro de Sasha. A
organização de Kathie era simples: uma rede de tubulação em uma estrutura de apoio,
cheia de líquidos coloridos. Kathie usou seu laran para manter os fluidos se movendo
desafiando a gravidade, depois conduzindo gotas e glóbulos separados no ar livre. Foi uma
visão de tirar o fôlego, um tanto inútil, e Kathie se orgulhava dela. Os líquidos escarlate e
cobalto estavam fluindo quando a porta se abriu. As primeiras gotas do fluxo estavam se
formando. E então, sem mais aviso do que o grito de protesto de Kathie, toda a estrutura
E s p a d a d o c a o s | 196

estremeceu e quebrou em pedaços. A ‘exposição’ pousou no centro da mesa do laboratório


como um acidente altamente anticlimático.
Kathie estava de coração partido. - Eu não entendo, David, isso sempre funcionou. -
Ela se virou para Hargraves. - Você tem que acreditar nisso, senhor.
Hargraves assentiu gravemente e fez mais notas. – Poderes psíquicos são
notoriamente erráticos. - Ele disse.
Kathie olhou para ele em súbita raiva.
- Mas esse é o ponto. A razão para o projeto é mostrar que não precisam ser... - Ela viu
Hargraves não estava ouvindo e então ficou em silêncio. David viu ela morder o lábio,
tentando manter sua decepção longe da visão de Hargraves.
Ele viu a mágoa e olhares defensivos de novo e de novo, sempre que os ‘filhos’ do
Projeto Telepata cumprimentavam Hargraves e falhavam em seu desafio silencioso. As
gêmeas cujo contato era tão pleno que elas desenvolveram uma língua particular, ficaram
mudas diante dele. A clarividência do menino adolescente de cabelos vermelhos falhou,
mas ele era orgulhoso demais para admitir isso.
- Espere. - Ele chamou desesperadamente quando Hargraves se afastou. – Só mais
uma vez, eu sei que posso fazer isso se você apenas... - Seus ombros finos caíram. - Apenas
me dê outra chance. – Ele terminou.
David tocou seu ombro em conforto. - Eu sei o que você pode fazer, Peter, e você
também sabe. Isso é o que importa. - Ele desejou poder dizer mais, mas isso era tudo o que
ele poderia oferecer.
Peter tentou sorrir. - Claro, Dave.
Ele encontrou os outros o esperando no corredor. Hargraves parecia entediado. David
pensou no rosto jovem e magoado de Peter e decidiu que seria fácil odiar Caleb Hargraves.
- Acho que vimos o suficiente por um dia. – Hargraves anunciou. - Se você nos
desculpar, vamos voltar aos nossos alojamentos.
David e Jason encolheram os ombros. O que faremos agora? David pensou. Não havia
nenhuma resposta óbvia.

~o⭐o~
David teve uma profunda sensação de alívio enquanto ele e seu amigo relaxaram em
seus aposentos. Ele quase podia sentir sua alma desacelerar e se esticar agora que era livre
para fazê-lo. Jason relaxou de outra maneira: uma série de palavrões que ele nunca ouvira
entre os Terran.
- De onde os Hargraves saíram, afinal? Nós não o interrogamos aqui. Nós não
precisávamos ser tão cooperativos. Então, o que ele faz em reconhecimento? Nos trata
como mentirosos baratos de alguma casa de prazer do distrito vermelho!
E s p a d a d o c a o s | 197

Ele se arrefeceu ainda mais, em uma amarga quietude. - Enquanto você estava com
Peter, tentei obter alguma reação de Hargraves. Qualquer reação, apenas um pouco de
sentimento humano. Foi como conversar com um manequim.
David pegou um trabalho de madeira cinzelada, um presente de amor de Keral, e o
estava acariciando. Agora o sentimento posto em espera se transformou em excitação. -
Sim. Essa é uma boa maneira colocar. Nenhuma resposta humana e sem emoções
humanas...
- Você não captou nada nele? - Jason assobiou. - Lembro que Regis disse que passou
por algo semelhante. Ele disse que as pessoas com laran mínimo muitas vezes têm
barreiras incríveis e precisam delas para manter sua sanidade. Você supõe Hargraves é uma
dessas pessoas?
- Faz sentido. – David disse. - Algo está o inspirando além da ganância ou ambição. Há
formas mais fáceis de satisfazer os dois do que a vida que ele escolheu.
- Mas por que todo mundo desmoronou ao redor dele é algo que não entendo. - Jason
dispensou o pensamento. - Eu gostaria de testar os Hargraves, mas não consigo vê-lo
aceitando isso.
- Nem eu posso. Nós podemos falar com Sasha.
- Sasha? Sim, é uma ideia. - Jason sorriu pela primeira vez em horas. - Vou manter o
Hargraves ocupado amanhã de manhã e você pode falar com ela. Se alguém sabe o que o
faz trabalhar nisso, esse alguém é ela.
- Imagino que sim. - David falou com força inesperada. - Ela pode ser a chave para todo
esse problema.
- Espero que sim. Porque precisamos de uma.
Deixar Sasha Hargraves livre de seu irmão foi mais fácil do que David havia imaginado.
Ela o chamou cedo na manhã seguinte. A tela do comunicador acendeu enquanto ele
estava a usando.
- Dr. Hamilton? Eu gostaria de falar com você. Pode ser agora? No escritório do
projeto? Tudo bem. Eu terminarei em alguns minutos. E obrigada!
Ele ensaiou suas palavras de abertura enquanto esperava por ela no salão onde os
primeiros membros do projeto se conheceram. Quando ela entrou, ele as esqueceu. A
empatia que era seu maior dom ficou chocantemente aflorada enquanto fechava a porta
atrás dela. Não percebi isso ontem? Como eu perdi isso?
Mas, naquele momento, ele conseguia captar um rico fluxo de imagens emocionais.
Havia curiosidade, cautela, humor forte... E, abaixo disso, sugestões de frustração e dor
antiga. Uma personalidade complexa e convincente gerava esses sentimentos.
Ela aceitou uma cadeira e se sentou antes de falar. - Eu tenho que pedir desculpas pelo
comportamento de Caleb ontem. - Ela disse. - Ele é brilhante, mas ele tem toda a sutileza
E s p a d a d o c a o s | 198

de uma besta do deserto. Qual a criatura aqui assim...? Ah sim! Toda a sutileza de um
oudrakhi. - Ela sorriu. - E ele não se incomoda com isso!
Ele teve que sorrir também. - Pensei que era seu comportamento habitual. Há quanto
tempo você trabalha com ele, Sasha?
Muito tempo, ela pensou, mas respondeu: - Meio período, por quatro anos. Tempo
integral, um ano, desde que consegui meu diploma. Sou historiadora. Então faço a pesquisa
inicial de Caleb, depois venho para a visita e para agir como espalhador de óleo calmante.
- Eu posso ver porque ele precisa de um pacificador. E é isso que ela está fazendo
agora?
Seu sorriso desapareceu. - Dr. Hamilton, seu projeto está em perigo.
- Por causa de seu irmão?
- Sim. - Ela olhou para as mãos por um momento, acalmando seus nervos. David podia
sentir sua relutância, a sensação de traição. Eu nunca pensei que teria que agir contra ele...
E eu o amei, uma vez. Ela suspirou profundamente e se endireitou.
- Eu não conheço toda a situação, mas sei que o Senador Velosin quer que Caleb leve
um relatório negativo. Ele parecia quase sentir um rancor contra Darkover, como se tivesse
perdido dinheiro aqui. Isso significa algo para você, doutor?
- Me chame de David. E acho que sim. Nós nunca descobrimos quem estava por trás
dos Destruidores de Mundos. Continue.
- Caleb não queria aceitar o trabalho no começo. Mas ele concordou em fazer a
pesquisa inicial. - Sasha lidara com isso, como de costume. O que ela encontrou a deixou
ansiosa para vir a Darkover e tinha transformado a indiferença de Caleb em paixão.
- Você tem que entender, Caleb é um homem honesto, mas ele realmente acredita
que qualquer coisa que ele não possa tocar ou ver não existe. Ele descartou os registros
darkovanos como propagandas do Comyn. Os registros Terran, no entanto, não poderiam
ser tão facilmente descartados. - Ela encolheu os ombros. - Apenas um tolo, ou meu irmão,
poderia ler os registros da Rebelião de Sharra e não acreditar nas ciências de matriz. Esses
registros, além dos dados médicos do seu projeto, foram o que o levaram mais perto de
admitir que os talentos psíquicos existem em toda a sua vida. E é por isso que ele é
perigoso. Ele está com medo.
- Do que? Que podemos ser reais ou que podemos não ser?
- Eu não sei. E duvido que ele saiba.
David fez uma pausa. A questão mais importante ainda era outra, embora ele
pensasse que ele conhecia a resposta. - Por que você está me contando isso?
A culpa e a relutância construíram uma parede tangível ao redor dela, engasgando sua
resposta. Ela lutou contra isso ferozmente. - Depois que eu e Caleb saímos daqui ontem,
deslizei de volta e falei com alguns dos seus funcionários. - Ela forçou suas palavras a
E s p a d a d o c a o s | 199

sairem. – Eu...eu geralmente posso dizer quando alguém está mentindo, quando Caleb não
está por perto para rir da minha ‘intuição’. Seu povo acreditava que eles podem fazer o que
afirmam e eu acredito neles. Não posso deixar Caleb fazer uma piada com eles ou, pior,
deixá-lo se sujar com um relatório falso. Eu não posso. E não vou.
Ela parou à beira das lágrimas. David pensou que era uma coisa boa que sua ‘intuição’
fosse certeira. Caso contrário, ela seria terrivelmente vulnerável. Ela soluçou, rindo com voz
rouca.
Você não acha que eu me abro assim para qualquer um, não é? Tenho procurado
telepatas por anos: é por isso que me juntei a Caleb. Estive muito sozinha.
Não está mais agora e nem nunca mais estará. O contato cantarolou entre eles,
delicado como o tom de um sino de cristal. Não tão profundo ou doce quanto o de David
com Keral. Como algo poderia se comparar com aquilo, de qualquer forma? Mas este
ecoava uma fome que ele entendia muito bem. Fizera parte dele até sua vinda para
Darkover.
O contato diminuiu, deixando um legado de calor e fome meio saciados. O rosto de
Sasha estava sutilmente diferente, mais relaxado, conforme ela começava a afrouxar sua
armadura mental longamente utilizada. - É estranho saber que eu estava certa em
continuar procurando. – Ela disse. - Agora, se pudermos convencer Caleb...
- Talvez possamos. Você disse que ficou impressionada com os registros médicos do
projeto?
- Os padrões de ondas cerebrais. O fato de você ter talentos psíquicos em uma base
fisiológica... Oh, entendo. - Ela se levantou e se esticou, deixando mais tensão sair.
David assentiu.
- Nós mostraremos a ele o seu EEG6. Vamos ver o que ele diz sobre ter uma irmã
telepata.

~o⭐o~
- Tudo bem. Jason está trazendo ele agora. - David terminou de colocar os eletrodos.
Em impulso, ele virou o interruptor de ativação do EEG. - Nervosa?
Ele não precisava perguntar. Os remanescentes do contato praticamente gritavam. O
sorriso de Sasha era instável.
- Sim. Não posso evitar. Isso pode ser um tiro pela culatra, você sabe. Se ele... Oh!
Os últimos fios do contato se separaram dolorosamente e Sasha estremeceu. David
praguejou num sussurro. Algo estava errado novamente.

6
N. do T.- 'Eletroencefalografia': tipo de exame com eletrodos no couro cabeludo utilizado para registrar a atividade
elétrica do cérebro.
E s p a d a d o c a o s | 200

Hargraves não abriu a porta com um chute, mas deu essa impressão. Ele caminhou
diretamente para o lado de Sasha, através da mesa de exame de David e da fita EEG. Jason
apareceu na porta e parou.
Hargraves olhou para sua irmã brevemente. - Então, - disse ele - eu esperava algo
assim. O que te disseram? Ou devo perguntar o que você disse a eles?
Ela endureceu. Jason se aproximou alguns passos. - Eu tentei explicar isso no caminho
até aqui, Hargraves. Isso foi parcialmente ideia da sua irmã. Nós não coagiamos ninguém
- Eu ouvi o suficiente, Dr. Allison. - Hargraves foi categórico. - Não achei que demoraria
muito para dois homens psicologicamente treinados como vocês usarem a ingenuidade de
minha irmã. Suspeitei que você tinha perdido sua objetividade a algum tempo, - ele
acrescentou para ela - embora até agora você conseguisse esconder.
- Bom Deus, cara, você ouve o que está dizendo? - A indignação de Jason dificilmente
parecia real para David. Toda a cena era remota, não um confronto vivo. Essa impressão
permaneceu mesmo quando Sasha puxou os eletrodos os arrancando e sentou-se.
- Depois de três anos com você, irmão, uma coisa que não sou é ingênua. - Sua voz
estremeceu com raiva mal suprimida. - Se você quer uma briga familiar, eu te darei uma.
Mas vamos para onde não seremos interrompidos.
- A sensação é mútua. - Hargraves recuou para deixá-la ficar.
Ela tomou a frente até a porta e parou por um instante. - Eu voltarei. - Ela prometeu
categoricamente. Então ela e seu irmão foram embora.
Jason olhou incrédulo para eles. - Esse homem é insano. Ele está sem dúvida delirando
como um louco!
Quando ele não recebeu uma resposta, olhou para o amigo. David estava estudando a
fita incompleta de EEG, com o rosto branco como sua túnica.
- Então é isso. – Ele suspirou.
- O que?
- A razão pela qual os Hargraves nunca viram um trabalho com talento psíquico. A
razão pela qual ninguém conseguiu demonstra um ontem...ou hoje. - David removeu a fita
do EEG e pareceu voltar à vida. - Preciso falar com Kathie e os outros. – Ele decidiu. - Sei
que estou certo, mas gostaria de verificar com eles de qualquer maneira antes de jogar isso
em você ou Sasha. Deus sabe que ela merece uma explicação.
- Afinal o que você descobriu? - Jason perguntou.
- Algo único. Mesmo para Darkover. Algo único...

~o⭐o~
E s p a d a d o c a o s | 201

Era noite quando David estava pronto para compartilhar sua descoberta. Até então,
ele estava tremendo muito de excitação. A evidência fora espalhada na mesa de trabalho
em seu quarto. Ele só tinha que esperar pelos outros chegarem.
Jason veio primeiro, trazendo Regis Hastur com ele.
- Jason me contou sobre Hargraves. Sua cegueira é realmente importante para nós?
- Sasha, irmã dele, acredita que sim. - David transmitiu o que Sasha lhe contara sobre o
desejo do Senador por um relatório negativo e suas suspeitas.
A expressão de Regis endureceu em desgosto e raiva.
- Não há como provar nada disso?
- Não imediatamente. – David respondeu. - Mas agora que sabemos onde procurar...
- Podemos tentar encontrar uma prova. – Jason completou. - Mas isso não resolve
nosso problema atual. O que faremos sobre Hargraves?
- Isso é algo que temos que trabalhar. - David olhou para o relógio. - Espero que Sasha
venha. Ela é a chave para o problema. Mas até que ela o faça, permitam-me contar mais
sobre o que aconteceu ontem.
A campainha da porta soou alguns minutos depois. Sasha se moveu hesitantemente,
como se ela pudesse quebrar. Seus olhos cinzentos se escondiam atrás de pálpebras
inchadas e vermelhas. Seus olhos se arregalaram quando ela viu a elegância do cabelo
branco de Regis. Ela conseguiu emitir uma saudação educada e aceitou uma cadeira ao lado
de David.
- Caleb está em seu quarto. – Ela disse. - Se ele não fosse meu irmão mais velho que
conheço bem, diria que ele está de mau humor. Mas ele ainda está falando comigo... Eu
acho. - Ela descansou a cabeça nas mãos por um momento. - Você pegou os resultados
dele, David?
- Sim. Veja. - Todos se aproximaram quando ele puxou as fitas de EEG. - Aqui está a
impressão da testagem de hoje. Aquele acima é o padrão de um não-telepata e o abaixo é
de verdadeiro telepata, um tesouro de fato. - Sasha sorriu.
Todos eles se inclinaram sobre as três tiras de fita. – Entendo. – Sasha murmurou. Seus
dedos traçaram a linha do meio, seguindo seus mergulhos irregulares. - Sua linha tem um
determinado padrão, assim como a minha. Este outro não tem, embora realmente não seja
uma grande diferença. – A dúvida ecoou em seus pensamentos, revelada apenas pela
fadiga e turbulência emocional que enfraqueceram suas barreiras. Uma coisa tão pequena.
E Caleb... Deus me ajude! Eu tinha tanta certeza esta tarde, mas ele também acha que está
certo. O Comyn...
O Comyn não mente.
Ela levantou a cabeça, encontrou o olhar calmo de Regis, em seguida, virou-se. Seu
rosto mais vermelho que o cabelo dela.
E s p a d a d o c a o s | 202

- Está tudo bem. - David disse gentilmente. - Leva tempo para se acostumar com
outros telepatas. Foi difícil para mim também. Você vai aprender.
- É melhor que sim. - Ela olhou para Regis. - Eu sinto muito. Pode me perdoar?
- Não há nada a perdoar. Como David disse, quando estiver entre nós por algum
tempo você vai pegar nossos costumes facilmente. Você vai ficar?
- De jeito nenhum Caleb pode me parar. - Ela fez um som que David percebeu que
deveria ser uma risada. Tinha sido um dia difícil para Sasha e o seguinte não era susceptível
de ser mais fácil, mas ela ainda tinha um pouco de humor para usar. - Tenho vontade de
dizer a ele que vou ficar longe por meses para treinar.
- Esse é o espírito. - Jason respondeu a ela. Ele abaixou-se novamente para os EEG’s,
franzindo a testa. - O que?
- Isso foi o que eu vi esta tarde. Vê, Regis? Sasha?
Regis notou primeiro. - O padrão telepata diminui até que seja dificilmente visível.
Esse decréscimo coincide com a chegada de Caleb Hargraves?
- Exatamente. E se tivéssemos Kathie, Pedro ou as gêmeas ligados ao EEG, seus
padrões iriam mostrar as mesmas alterações.
- Você está dizendo Hargraves é um amortecedor telepático que anda e fala? - Jason
perguntou.
- Sim.
Sasha sacudiu a cabeça. - Pobre Caleb. Procurar talentos psíquicos por todos esses
anos e nunca encontrar nenhum por que ele mesmo os bloqueava.
- Eu sinto mais pena das pessoas que ele investigou. - Jason disse severamente. -
Muitos deles provavelmente eram falsos, mas quantos não eram?
Regis suspirou. – Isso é um dom... Dom? Uma maldição! Talvez Desideria já tenha
ouvido falar de algo assim. Ou talvez ele seja um telepata, cujo laran está bloqueado como
uma defesa contra alguma dor insuportável. - Regis suspirou de novo, seus olhos metálicos
distante com lembranças.
- De qualquer maneira nós temos um problema. – David disse. - Ele provavelmente
tem o tipo usual de barreira, mesmo com o efeito de amortecimento que deveria ter sido
capaz de pegar alguma coisa dele. Mas não sei se nós devemos quebrar essas barreiras, e
não imagino como poderíamos fazer isso, pelo perigo de destruir sua mente também.
- Então o que podemos fazer? - Sasha perguntou.
David mal podia suportar tirar a visão do rosto miserável dela. O que podemos fazer?
Além de deixá-lo ir? Pelo menos Sasha pode ficar fora de seu alcance. O pensamento saltou
para ele. Fora de alcance?
E s p a d a d o c a o s | 203

- Nós podemos... – Ele disse e estendeu a mão para tocar a de Sasha. - Você está
disposta a arriscar a ira de seu irmão ou pior, para ajudá-lo a admitir que nós não estamos
mentindo para ele?
Seus olhos prateados brilhavam quando ela balançou a cabeça. – Sim, estou.
- Bom. Então vá descansar um pouco. Você precisará estar forte amanhã. - Ela
começou a protestar, mas desistiu.
David esperou até que ela tinha ido para falar. - Aqui está a minha ideia...

~o⭐o~
Hargraves mostrou todos os sinais de uma noite sem dormir quando David o viu na
manhã seguinte. David se perguntou se o ressentimento e a raiva o mantiveram acordado
ou se ele teve uma discussão com Sasha.
De qualquer forma, ele não se opôs a ideia de encontrar com David no café da manhã.
- Eu quero me desculpar. - David disse. - Se o nosso...
- O pedido de desculpas não é necessário, doutor. – Hargraves o interrompeu. - Sasha
deixou claro que ela de bom grado cooperou com o seu programa de teste.
- Eu também o lembrei que sou uma adulta maior de idade e não precisava de sua
permissão para fazer qualquer coisa. - Sasha disse, atrás de Davi. Ela colocou a bandeja ao
lado dele e sentou-se.
- Fico feliz que esteja resolvido, então. - David disse educadamente. – Hargraves, você
nos permitira fazer um registro do seu EEG?
Hargraves não parecia surpreso com o pedido. - Eu irei. – Ele disse, enquanto limpava
o último pedaço de ovo de seu prato com um pedaço de pão. – Por que você quer isso?
Acha que posso me qualificar para aderir ao seu projeto?
Ele está usando o sarcasmo para disfarçar sua tensão, pensou David. Agora que ele
sabia o que esperar, a preocupação de que pudesse sentir o efeito de amortecimento
pareceu pressionar seus nervos. Mas ele não permitiu que isso afetasse sua fachada
profissional.
- Quem sabe? Quero o seu EEG pela mesma razão que eu queria o de Sasha. Para
comparação e estatística. E, falando no EEG de Sasha, quando pegarmos o seu eu gostaria
que você visse o dela. Você vai achar interessante.
- Tenho certeza que vou. Especialmente já que ela não me contou sobre os resultados.
Sasha, há algo errado?
Uma nota de preocupação genuína soou em sua voz. Sasha deu uma pausa em seu
café da manhã, apoiou os cotovelos sobre a mesa e a cabeça nas mãos. Pela primeira vez,
David viu vestígios de algo além de orgulho e zombaria em Hargraves e simpatizou um
pouco com ele.
E s p a d a d o c a o s | 204

Sasha levantou a cabeça. - Estou bem. Eu só tive uma noite difícil.


- Você tem certeza?
- Tenho certeza! Apenas... - Ela desviou o olhar e voltou para encará-lo diretamente. -
Tenha cuidado, irmão. Cuide de si mesmo, certo? Eu tive alguns pesadelos realmente
medonhos sobre você.
Hargraves começou a tentar alcançar a mão dela. Ela recuou como se queimasse. –
Sasha...
- Não comece de novo, Caleb. - Ela parecia cansada em vez de furiosa. - Não quero
ouvir isso. - Ela saiu do assento, deixando a bandeja. – Te encontrarei no hospital.
Os olhos de seu irmão a seguiram para fora da cafeteria. Ele franziu a testa,
esquecendo a presença de David. Seu rosto refletia preocupação e apreensão honestas.
Então ele se recuperou. - Suponho que devemos segui-la, doutor.
As ruas estavam lotadas e barulhentas, com os trabalhadores do turno da noite se
dirigiam para seus aposentos e os trabalhadores do turno matinal seguiam para seus
escritórios e locais de construção. Eles se apressaram na fina luz avermelhada, casacos
firmes contra o corpo frio. O Castelo Comyn brilhou com uma leve camada de neve, gelo
brilhava nos telhados do espaçoporto. Hargraves estremeceu. - Este é o tempo ameno da
Primavera?
- Na verdade, está bem ameno. A neve vai derreter ao meio-dia. - Ele sorriu para a
expressão assombrada de Hargraves. - Agora você sabe por que o inferno dos darkovanos é
frio.
- Sim. - Hargraves andou um pouco mais rápido.
Havia uma grande praça entre os alojamentos e o hospital. O tráfego a pé estava
diminuíndo, os caminhões motorizados se tornando mais comuns. Uma linha deles entrou
na praça da direita, seu rugido sumindo com os outros ruídos da rua.
- Comboio. - David apontou. - Vamos atravessar antes que bloqueie a rua.
Hargraves assentiu. Eles correram através do caminho da longa linha. Então Hargraves
parou e praguejou.
- Deixei minha caneta cair. Espere por mim.
Ele correu de volta para o comboio, seus olhos fixos no chão. Era costume levar
suprimentos dos armazéns portuários para os canteiros de construção. Assim, os
transportadores estavam quase cheios. Cerca de metade esatava totalmente carregada, o
resto carregando materiais volumosos ou desajeitados. Seu barulho fez os dentes de David
sacudirem mesmo a essa distância. Ele se perguntou como Hargraves podia ficar tão calmo.
Ele quase perdeu o rápido balanço da cabeça escura de Hargraves quando o homem olhou
para os transportadores. Ele estava levando muito tempo para caçar uma caneta barata.
E s p a d a d o c a o s | 205

David praguejou e foi atrás dele. Ele entendeu o propósito de Hargraves: ele estava
deliberadamente desconsiderando o aviso de Sasha, abusando, testando o destino. Uma
reação previsível, mas irritou David, embora ele devesse esperar.
O comboio quase tinha passado. Hargraves parou de caçar sua caneta, se endireitou
para assistir os últimos caminhões passarem. Ele viu o rosto de David e começou a dizer
alguma coisa.
Uma rachadura, como uma fera monstruosa quebrando o chão, afogou suas palavras.
Sasha gritou, mentalmente: David! Caleb! Abaixem-se!
David se lançou com na primeira palavra e puxou Hargraves. Eles pousaram
esparramados no concreto frio.
Algo se mantinha preguiçosamente acima deles. David arriscou uma olhada. A tira de
aço que segurava a carga dos caminhões no lugar havia quebrado e estava balançando livre
cerca de três metros acima. David a viu se mover e começou a rir.
Hargraves ficou de pé. Sem palavras, ele ofereceu uma mão ao homem mais jovem.
Sasha veio correndo e jogou os braços ao redor do pescoço do irmão. - Sinto muito, Caleb.
Eu peguei uma rua lateral e me perdi, então quando te vi, pensei em me juntar a você e
aquele som... - Ela fez uma pausa para recuperar o fôlego. - De onde eu estava parecia que
essa coisa poderia cair sobre você. - Ela terminou.
- Entendo. - Hargraves se soltou muito gentilmente e recuou. Seus olhos se moveram
para David e havia uma aceitação relutante neles. - O que fez você reagir assim, Dr.
Hamilton?
- O grito de Sasha.
- Eu não ouvi nada. E você estava olhando para mim, não para o caminhão de carga. -
Por um instante David pensou que ele iria rejeitar o que tinha visto.
Mas ele cedeu e falou: - Acredito que você tem algumas gravações de ondas cerebrais
para me mostrar, não é doutor?
E tão rapidamente quanto começou, isso acabou.

~o⭐o~
Três pessoas foram ver Caleb Hargraves: David, Jason e sua irmã, Sasha. Sasha ainda
estava se recuperando dos choques e stress de seus primeiros dias em Darkover.
- Quando você disse que arriscaria a raiva de Caleb, ou pior, não achei que você
quisesse arriscar sua vida! Ou mesmo a sua, David.
- Nós não arriscamos. Nós jogamos com uma coisa garantida: você.
- Não entendo.
- Você estava fora da área de alcance do dom de Caleb. Seu efeito de amortecimento é
altamente limitado pela distância. Nós apostamos que seu laran, aumentado por seu amor
E s p a d a d o c a o s | 206

pelo seu irmão e o medo, seria capaz de me alcançar, embora eu estivesse dentro do
alcance dele. E assim aconteceu.
Ela assentiu em dúvida, depois sorriu. - Ele passou seus últimos dois dias examinando
esse momento e tentando descobrir se você tinha sabotado para lhe dar uma
‘demonstração’. Claro que a equipe do comboio não gostou disso, mas eles lhe deram os
registros para análise. Foi fraqueza estrutural, como se o aço apenas tivesse se desfeito.
- Sim. – Jason disse. - Uma matriz pode fazer isso e Kathie queria provar que ainda
tinha ‘seu toque’.
- E você não estava em perigo porque sabia o que fazer e onde aquilo não iria o
alcançar. Tanto para meus sonhos proféticos...
- Não fique tão chateada. Teria sido surpreendente se você não tivesse sonhado em
Caleb.
- Então você nos preparou, me guiando para onde eu poderia ver isso acontecer, e
pronto. Bem, acabou bem desta vez. Mas não vamos fazer isso de novo! - Sua voz suavizou
quando Caleb se aproximou. - Caleb?
Ele não tentou tocá-la. - Você tem certeza que quer ficar?"
- Tenho certeza. Cuide-se, irmão. E volte agora logo. Quem sabe? - Sua voz vacilou. –
Talvez possamos trabalhar juntos novamente.
Ele sorriu tristemente. - Eu não sei. Mas vamos ver. – Então ele a alcançou. Ela o
abraçou, deixou-o ir.
- Eu ouço os alarmes de chamada. – Ele disse. - Tome cuidado, Sasha. Espero que você
fique feliz aqui. - Um pouco de sua antiga maneira ressurgiu. – Assim que possível enviarei
uma mensagem para contar como o Senador reagiu ao meu relatório. Você provavelmente
vai gostar.
Ele trocou algumas despedidas educadas com David e Jason, se virou e se fundiu na
multidão. Enquanto se afastaram, David ouviu Sasha chorando.
- Eu estava pensando. - Ela disse, instável. - Para o resto de sua vida, Caleb vai
acreditar que eu o enganei ou passará sua vida sabendo que há um universo ao seu redor
que ele nunca conseguirá alcançar.
- Pelo menos agora ele sabe que existe. – David disse.
Um segundo depois, eles saíram do espaçoporto, indo para seu lar.
E s p a d a d o c a o s | 207

Uma receita para a falha


Millea Kenin

Provérbio darkovano: ‘É mal negócio acorrentar um dragão para assar sua carne’.
Logo depois ficou claro que Darkover nunca se juntaria ao Império, o Império cedeu e
se juntou a Darkover. Este foi o começo de uma nova Era de Cobre para os seres sapientes,
mas nem todos os resultados foram afortunados. Por exemplo, havia Black Angus, o dono
de restaurante em Thendara, que, no mundo recém-redescoberto em uma parte distante
da Galáxia, tinha um show com um dragão e um caçador de dragões. Seu dragão, como os
extintos há muito tempo em Darkover, era uma grande criatura colorida cor de bronze
fornecendo um espetáculo único para os clientes no restaurante de Angus, o Standing Rib.
As pessoas se reuniam ali, uma vez, para assistir o dragão assando seu chervine e coelho-
de-chifres pedidos pelos clientes. No entanto, poucos deles voltavam. A comida não
igualava o show.
O dragão, cujo nome era Broth, e seu cavaleiro T'spoon tinha um tipo especial de laran
diferente dos tipos conhecidos em Darkover. Broth podia se comunicar apenas com
T'spoon, embora o dragão aparentemente aprendesse o cahuenga tão rapidamente quanto
o homem e parecia entender tudo o que alguém dizia. Broth era capaz de teletransportar-
se enquanto voava e gostava de explorar Darkover, mas voltava para o restaurante tarde
demais para cozinhar tantas vezes que Angus finalmente o manteve acorrentado durante o
horário de trabalho, apesar de um dragão deprimido não produzir muito fogo.
Um problema ainda pior, do ponto de vista do dono do restaurante, era que Darkover
era carente de pedras de fogo que os dragões deviam mastigar a fim de cuspir fogo. Angus
lhe fornecia um caldo muito bom, rico em carvão, mas esse caldo era um combustível que
produzia chamas que se erguiam e morriam rápido e intenso demais, queimando a parte
externa dos assados até eles ficarem pretos, enquanto a parte interior ficava praticamente
crua.
Era impossível corrigir essa situação. Então, eventualmente, Angus fechou o
restaurante, e T'spoon e Broth retornaram ao seu planeta natal. Mais uma vez foi provado
que, embora possa ser raro acorrentar um dragão para assar sua carne, ainda era mais raro
isso ser um bom negócio.
E s p a d a d o c a o s | 208

Bônus do Tradutor

Capa (1116 x 1707)


Edição alemã, ‘Schwert des Chaos’ (2004), de Weltbild Editionen

Darkover Antologias®

O preço da Guardiã (The Keeper’s Price)- 1980


A Espada do Caos (Sword of Chaos)- 1982
As Amazonas Livres de Darkover (Free Amazons of Darkover)- 1985
O outro lado do espelho (Other Side of the Mirror)- 1987
Sol Vermelho de Darkover (Red Sun of Darkover)- 1987
Quatro luas de Darkover (Four Moons of Darkover)- 1988
Domínios de Darkover (Domains of Darkover)- 1990
Renunciantes de Darkover (Renunciates of Darkover)- 1991
Leroni de Darkover (Leroni of Darkover)- 1991
Torres de Darkover (Towers of Darkover)- 1993
Darkover de Marion Zimmer Bradley (MZB's Darkover)- 1993
Neves de Darkover (Snows of Darkover)- 1994
Música de Darkover (Music of Darkover)- 2013
Estrelas de Darkover (Stars of Darkover)- 2014
Dons de Darkover (Gifts of Darkover)- 2015
Reinos de Darkover (Realms of Darkover)- 2016
Máscaras de Darkover (Masques of Darkover)- 2017
Encruzilhadas de Darkover (Crossroads of Darkover)- 2018
Fortalezas de Darkover (Citadels of Darkover)- 2019
Uma onda de calor nas Hellers (A Hate Wave in the Hellers and others)- 2019
Esquiar as Hellers (Ski the Hellers)- 2020

www.mzbworks.com

Você também pode gostar