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Página de título
Agradecimentos
Nota do Autor
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Muito obrigado ao pessoal da HarperVoyager que fez tudo isso acontecer e le‐
vou o livro até as mãos de vocês.
Agradeço especialmente a Jane Johnson por seu apoio constante em tudo
e sua edição valiosíssima.
Agnes Meszaros também foi de grande ajuda para levar este livro aos fãs de
Jalan e Snorri. Estou em dívida com ela pelas gentilezas como leitura beta, re‐
visão, vinho e chocolate.
Por m, mais uma salva de aplausos para meu agente, Ian Drury, e para a
equipe da Sheil Land por todo seu trabalho primoroso.
Nota do Autor
Para vocês que tiveram de esperar muito tempo por este livro, aqui estão algu‐
mas recapitulações para o Livro 3, para vocês refrescarem suas memórias. As‐
sim, evito a estranheza de fazer os personagens dizerem uns aos outros coisas
que eles já sabem.
Aqui relembro apenas o que tem importância para a história a seguir.
1. Jalan Kendeth, neto da Rainha vermelha, tem poucas ambições. Ele quer
voltar à capital de sua avó, ser rico e car fora de perigo. Também adora‐
ria assenhorear-se à frente de seus irmãos mais velhos, Martus e Darin.
5. Jalan possui a chave de Loki, um artefato que pode abrir qualquer porta.
Muitas pessoas desejam tê-la, principalmente o Rei Morto, que poderia
usá-la para surgir do Inferno.
6. Neste livro, uso tanto Inferno quanto Hel para descrever a parte do além
na qual nossos heróis se aventuram. Hel é como os nórdicos a chamam.
Inferno é seu nome na cristandade.
8. Vimos Jalan, Snorri, Kara e Hennan pela última vez nas profundezas da
mina de sal onde vivia Kelem, o mago das portas.
10. Snorri atravessou a porta de Hel para salvar sua família. Jalan disse que
iria com ele, e deu a chave de Loki para Kara, para que não caísse nas
mãos do Rei Morto. A coragem de Jalan enfraqueceu e ele não foi com
Snorri. Ele roubou a chave de Kara e no instante seguinte alguém do lado
de Hel abriu a porta e o puxou para dentro.
11. Mais considerações gerais: a avó de Jalan, Alica Kendeth, a Rainha Ver‐
melha, vem travando uma guerra secreta com a Dama Azul e seus aliados
há muitos anos. A Dama Azul é a mão por trás do Rei Morto, e o necro‐
mante Edris Dean é um de seus agentes.
12. Auxiliando a Rainha Vermelha estão seus irmãos gêmeos mais velhos, a
Irmã Silenciosa — que vê o futuro, mas nunca fala — e seu irmão de ci‐
ente Garyus, que comanda seu próprio império comercial.
15. A Rainha Vermelha crê que o desastre pode ser evitado — ou que pelo
menos ela deva tentar. A Dama Azul quer acelerar o m, acreditando que
ela e alguns poucos escolhidos possam sobreviver e se tornar deuses no
mundo que vier em seguida.
16. Dr. Raiz-Mestra parecia ser um dono de circo cuidando de seu negócio,
mas Jalan o viu nas memórias de sua avó sessenta anos atrás, atuando co‐
mo chefe de segurança do avô dela, e praticamente com a mesma idade
que tem agora…
Nas profundezas do deserto, entre dunas maiores que qualquer torre de ora‐
ção, os homens tornam-se minúsculos, menores que formigas. Lá o sol arde, o
vento sussurra, tudo está em movimento, lento demais para os olhos, mas mais
certo que a visão. O profeta disse que a areia não é nem bondosa nem cruel,
mas, naquela fornalha do Sahar, é difícil não pensar que ela odeia você.
As costas de Tahnoon doíam e sua língua roçou seca no céu da boca. Ele
prosseguiu, curvado, balançando-se no ritmo de seu camelo, com os olhos
apertados contra a claridade, mesmo por trás do tecido no de seu turbante.
Ele afastou o desconforto. Sua coluna, sua sede, a dor da sela, nada disso im‐
portava. A caravana atrás dele dependia dos olhos de Tahnoon, apenas disso.
Se Alá, abençoado seja seu nome, permitisse que ele visse com clareza, então
seu propósito foi cumprido.
E então Tahnoon seguiu em frente, observou e contemplou a in nidade
de areia e o imenso vazio daquilo, quilômetro após quilômetro escaldante.
Atrás dele vinha a caravana, serpenteando nas profundezas das dunas onde as
primeiras sombras se formariam quando chegasse a noite. Ao redor da carava‐
na, os outros Ha’tari cavalgavam pelas dunas, direcionando sua vigilância para
fora, protegendo os delicados al’E em com sua fé maculada. Só os Ha’tari
cumpriam os mandamentos em espírito, tanto quanto em palavra. No deser‐
to, esse rígido cumprimento era tudo que mantinha um homem vivo. Outros
podiam atravessar e sobreviver, mas só o povo de Tahnoon vivia no Sahar,
sempre a um poço seco de distância da morte. Sempre por um triz em tudo.
Puros. Os escolhidos de Alá.
Tahnoon inclinou seu camelo encosta acima. Os al’E em às vezes davam
nomes às suas feras. Outra fraqueza de tribos que não nasceram no deserto.
Além disso, eles pulavam a segunda e a quarta oração todos os dias, negando a
Alá seu devido valor.
O vento aumentou, quente e seco, fazendo a areia chiar ao removê-la da
crista esculpida da duna. Chegando ao topo do aclive, Tahnoon olhou para
baixo, para mais um vale vazio e castigado pelo sol. Ele balançou a cabeça e
seus pensamentos voltaram por seu rastro até a caravana. Ele olhou para trás,
para o ressalto curvo da próxima duna. Atrás dela, seus encarregados se esfor‐
çavam pelo caminho que ele havia lhes deixado. Esses al’E em especí cos esta‐
vam em seus cuidados já fazia vinte dias. Em mais dois ele os levaria à cidade.
Mais dois dias para aguentar o sheik e sua família até eles pararem de enchê-lo
com seus modos decadentes e ímpios. As lhas eram as piores. Caminhando
atrás dos camelos de seu pai, elas não usavam a kandura de doze metros dos
Ha’tari, mas sim uma abominação de nove metros, enrolada tão justa que suas
dobras mal escondiam a mulher por baixo.
A curva da duna chamou sua atenção e por um segundo ele imaginou um
quadril feminino. Ele afastou a visão da cabeça e teria cuspido, se sua boca não
estivesse tão seca.
“Deus, perdoe-me pelo meu pecado.”
Dois dias mais. Dois longos dias.
O vento passou de gemido a uivo de supetão, quase derrubando Tahnoon
de sua sela. Seu camelo resmungou de reprovação, tentando virar a cabeça con‐
tra as pinicadas da areia. Tahnoon não virou a cabeça. Apenas vinte metros à
sua frente e um metro e oitenta acima da duna, o ar brilhava como se fosse
uma miragem, mas diferente de todas as que Tahnoon já tinha visto em qua‐
renta anos de secura. O espaço vazio ondulou como se fosse prata líquida e em
seguida se abriu, apresentando vislumbres de algum lugar do outro lado, um
templo de pedra iluminado por uma luz alaranjada e morta que despertava to‐
das as dores que os Ha’tari vinham ignorando, transformando cada uma delas
em um sofrimento latejante. Os lábios de Tahnoon recuaram, como se um
gosto azedo lhe enchesse a boca. Ele lutou para controlar sua montaria, pois o
animal sentiu aquele mesmo medo.
“Quê?” Um sussurro para si mesmo, perdido embaixo dos resmungos do
camelo.
Revelada em tiras esfarrapadas, através de fendas no tecido do mundo,
Tahnoon viu uma mulher nua, o corpo esculpido por todos os desejos que um
homem poderia ter, cada curva contornada pela sombra e acariciada por aque‐
la mesma luz morta. A voluptuosidade da mulher prendeu os olhos de Tahno‐
on por dez longos batimentos cardíacos, antes de seu olhar nalmente vagar
até o rosto dela e o choque lhe derrubar. Mesmo ao cair no chão, a cimitarra
continuou em sua mão. O demônio xara os olhos sobre ele, vermelhos como
sangue, a boca aberta, exibindo presas como as de uma dúzia de najas gigantes.
Tahnoon correu de volta para o topo da duna. Sua montaria apavorada ha‐
via ido embora, com os sons das patas diminuindo atrás dele enquanto fugia.
Ele chegou à crista em tempo de ver o véu rasgado entre ele e o templo bem
aberto, como se um invasor tivesse cortado a lateral de uma tenda. O súcubo
estava totalmente à mostra e, diante dela, agora saindo daquele lugar e atraves‐
sando o ar partido, estava um homem, seminu. O homem bateu com força na
areia, deu um salto para cima em um instante e esticou-se para cima. O súcubo
foi atrás dele, tateando até a fresta por onde ele entrara de cabeça. Ao esticar
os braços na direção dele, com garras feito agulhas que saíam das pontas dos
dedos, o homem deu um soco para cima, com alguma coisa preta presa a seu
punho. Com um estalo, tudo desapareceu. O buraco aberto para outro mun‐
do — desapareceu. O demônio de olhos escarlate e seios perfeitos — desapare‐
ceu. O templo antigo desapareceu, e a luz morta daquele lugar terrível nova‐
mente se fechou por trás da coisa tênue que nos separa do pesadelo.
“Caralho! Caralho! Caralho!” O homem começou a saltar, descalço, de um
pé para o outro. “Quente! Quente! Quente!” Um in el, alto, muito branco,
com os cabelos dourados do norte distante, do outro lado do mar. “Caralho.
Quente. Caralho. Quente.” Colocando uma bota que deve ter caído consigo,
ele caiu, queimando as costas nuas na areia escaldante e saltando de pé outra
vez. “Caralho! Caralho! Caralho!” O homem conseguiu puxar sua outra bota
antes de cair novamente e desaparecer rolando do outro lado da duna gritando
obscenidades.
Tahnoon se levantou lentamente, en ando sua cimitarra de volta na bai‐
nha curva. Os xingamentos do homem diminuíram ao longe. Homem? Ou
demônio? Havia escapado do inferno, portanto, demônio. Mas suas palavras
eram na língua do velho império, com o sotaque forte dos nórdicos, colocando
ângulos desconfortáveis em cada sílaba.
O Ha’tari piscou e ali, gravado de verde sobre vermelho no interior das
pálpebras, o súcubo se esticou em sua direção. Piscou novamente, uma, duas,
três vezes. A imagem dela permaneceu, sedutora e mortal. Com um suspiro,
Tahnoon começou a descer atrás do in el barulhento, prometendo a si mesmo
nunca mais se preocupar com as kanduras escandalosas de nove metros das
al’E em.
1
Tudo que eu precisava fazer era caminhar pela extensão do templo e não ser
seduzido para sair do trajeto. Isso levaria duzentos passos, no máximo, e eu po‐
deria sair do Inferno pelo portão dos juízes e estar em qualquer lugar maldito
que bem quisesse. E o lugar que eu desejaria ir seria o palácio de Vermelhão.
“Merda.” Apoiei as mãos para me levantar da areia ardente. Ela cobria
meus lábios, enchia meus olhos com mil grãozinhos ásperos e até parecia es‐
correr de meus ouvidos quando inclinava a cabeça. Eu me agachei, cuspindo,
apertando os olhos contra a claridade do dia. O sol ardia com uma fúria tão
despropositada que quase dava para sentir minha pele murchando. “Bosta.”
Ela realmente era linda, no entanto. A parte de minha mente que sabia
que aquilo era uma armadilha só agora conseguiu sair debaixo das outras par‐
tes, mais lascivas, e começou a gritar “eu avisei!”.
“Droga.” Fiquei de pé. Uma enorme duna de areia curvava-se bem íngre‐
me à minha frente, mais alta do que parecia razoável e quentíssima. “Um mal‐
dito deserto. Ótimo, maravilha.”
Na verdade, depois das terras mortas, nem um deserto parecia tão ruim.
Claro que era quente demais, ávido para queimar toda pele que tocasse a areia
e propenso a me matar dentro de uma hora, se eu não encontrasse água. Mas,
tirando tudo isso, ele estava vivo. Sim, não havia nenhum vestígio de vida
aqui, mas esse lugar não foi feito com malícia e desespero, o chão não lhe suga‐
va a vida, a alegria e a esperança, como um mata-borrão absorve a tinta.
Olhei para o azul inacreditável do céu. Na realidade era um azul desbotado
que parecia ter cado tempo demais no sol, mas após o céu morto e imutável,
com sua luz laranja e monótona, todas as cores pareciam boas aos meus olhos:
vivas, vibrantes, intensas. Estiquei os braços. “Caramba, como é bom estar vi‐
vo!”
“Demônio.” Uma voz atrás de mim.
Eu me virei lentamente, mantendo os braços abertos, as mãos vazias e
abertas, a chave en ada no cinto desamarrado que mal segurava minhas calças.
Um homem de alguma tribo estava ali, de túnica preta e espada curva
apontada para mim, com os rastros de sua passagem duna abaixo gravados na
ladeira atrás dele. Não consegui ver o rosto dele por trás desses véus que eles
usam, mas ele não parecia feliz em me ver.
“As-salamu alaikum”, disse a ele. Isso é tudo do idioma pagão que apren‐
di durante o ano que passei na cidade desértica de Hamada. É a versão local de
“olá”.
“Você.” Ele fez um gesto brusco para cima com sua espada. “Do céu!”
Eu virei as palmas das mãos para cima e dei de ombros. O que eu poderia
lhe dizer? Além do mais, qualquer mentira boa seria desperdiçada com aquele
homem, se ele entendesse a língua do Império tão mal quanto falava.
Ele me olhou de cima a baixo, e de alguma maneira seu véu não foi uma
barreira para demonstrar sua reprovação.
“Ha’tari?” perguntei. Em Hamada, os moradores dependiam de mercená‐
rios nascidos no deserto para transportarem-nos por ali. Tinha quase certeza
de que se chamavam Ha’tari.
O homem não disse nada, apenas me observou, com a lâmina a postos. Por
m ele fez um gesto com a espada para cima da duna de onde havia descido.
“Vá.”
Assenti e comecei a trilhar de volta o rastro deixado por ele, agradecido
por ele ter decidido não me furar ali mesmo e me deixar sangrando. A verdade
é que ele obviamente não precisava da espada para me matar. Só me deixar pa‐
ra trás já seria uma sentença de morte.
•••
Dunas de areia são muito mais difíceis de escalar do que qualquer morro com
o dobro do tamanho. Elas sugam seus pés para baixo, roubando a energia de
cada passo, de modo que você já está ofegante antes de escalar o equivalente à
sua própria altura. Após dez passos eu estava com sede; na metade do cami‐
nho, ressecado e tonto. Mantive a cabeça baixa e me esforcei para subir, ten‐
tando não pensar no estrago que o sol devia estar fazendo nas minhas costas.
Eu tinha escapado do súcubo por sorte, não por discernimento. Foi preci‐
so enterrar meu juízo bem fundo para me permitir ser conduzido por ela, de
qualquer modo. É verdade, ela foi a primeira coisa que vi em todas as terras
mortas que parecia viva — mais que isso, ela era um sonho de carne e osso,
prometendo satisfazer todos os desejos de um homem. Lisa DeVeer. Um tru‐
que sujo. Mesmo assim, não posso dizer que não tenha sido alertado. Quando
ela me puxou em seus braços e seu sorriso se abriu em uma boca mais larga
que a de uma hiena, cheia de presas, eu só quei meio surpreso.
De alguma maneira consegui me desvencilhar, perdendo minha camisa
nesse processo, mas ela teria vindo para cima de mim rapidamente, se eu não
tivesse visto as paredes ondularem. Então eu soube que os véus eram muito ‐
nos ali, muito nos mesmo. A chave os abrira para mim e com um salto eu os
atravessei. Não sabia o que estava à minha espera, certamente nada de bom,
mas provavelmente teria menos dentes que minha nova amiga.
Snorri tinha me dito que os véus cavam mais nos onde o maior número
de pessoas estivesse morrendo. Guerras, pragas, execuções em massa… qual‐
quer lugar onde almas estavam sendo separadas de corpos em grande quanti‐
dade e precisavam passar para as terras mortas. Portanto, ver que estava em
um deserto vazio, onde ninguém estava propenso a morrer, além de mim, foi
uma surpresa.
Cada parte do mundo corresponde a alguma parte das terras mortas —
onde quer que aconteça um desastre, a barreira entre os dois lugares desvane‐
ce. Dizem que no Dia dos Mil Sóis tanta gente morreu, em tantos lugares ao
mesmo tempo, que o véu entre a vida e a morte se rompeu e nunca mais se res‐
tabeleceu adequadamente. Os necromantes exploram essa fraqueza desde en‐
tão.
“Lá!” A voz do tribal me trouxe de volta a mim e percebi que havíamos
chegado ao topo da duna. Acompanhando a linha de sua espada vi, no vale lá
embaixo, entre a nossa crista e a próxima, a primeira dúzia de camelos do que
eu esperava ser uma grande caravana.
“Alá seja louvado!” Dei ao pagão meu sorriso mais largo. A nal, era me‐
lhor não contrariar.
•••
Outros Ha’tari chegaram até nós antes de alcançarmos a caravana, todos de tú‐
nica preta, um deles levando um camelo perdido. Meu captor, ou salvador,
montou no bicho e um de seus companheiros lhe entregou as rédeas. Tive de
deslizar duna abaixo a pé.
Quando chegamos à caravana, dava para vê-la por inteiro, com pelo menos
cem camelos, a maioria carregada de mercadorias, fardos enrolados em pano e
em pilhas altas em volta das corcovas dos animais, grandes frascos de armaze‐
namento pendurados de cada lado, com as bases cônicas quase batendo na
areia. Mais ou menos vinte camelos tinham homens montados, de túnicas de
cores variadas, branca, azul claro ou xadrez escuro, e mais uma dúzia de pagãos
seguiam a pé, envoltos em montes de panos pretos e supostamente sufocando.
Um punhado de ovelhas magrelas se arrastava atrás, o que era uma extravagân‐
cia, considerando-se quanto devia custar para mantê-las hidratadas.
Fiquei de pé, queimando debaixo do sol, enquanto dois Ha’tari intercep‐
tavam o trio de cameleiros vindos da caravana. Outro do bando deles me de‐
sarmou, pegando a faca e a espada. Após um minuto ou dois gesticulando e fa‐
zendo ameaças de morte, ou possivelmente argumentando racionalmente —
as duas coisas tendem a soar iguais no idioma do deserto — os cinco retorna‐
ram, com um de túnica branca no meio, um de túnica xadrez de cada lado e os
Ha’tari anqueando.
Os três novatos tinham o rosto à mostra, escurecidos pelo sol, nariz adun‐
co, olhos como pedras pretas. Supus que eram parentes, talvez um pai e seus ‐
lhos.
“Tahnoon me disse que você é um demônio, e que devemos matá-lo à mo‐
da antiga, para evitar um desastre,” disse o pai, com lábios nos e cruéis den‐
tro de uma barba curta e branca.
“Príncipe Jalan Kendeth de Marcha Vermelha ao seu dispor!” Eu me cur‐
vei até a cintura. Gentileza não custa nada, o que faz dela o presente perfeito
quando se é tão pão-duro quanto eu. “E na verdade sou um anjo da salvação.
Deve me levar com o senhor.” Testei meu sorriso com ele. Não estava funcio‐
nando recentemente, mas era praticamente tudo que eu tinha.
“Um príncipe?” O homem sorriu de volta. “Maravilha.” De alguma ma‐
neira, um movimento de seus lábios o transformou. As pedras pretas de seus
olhos brilharam e se tornaram quase bondosas. Até os rapazes de cada lado pa‐
raram de fazer cara feia. “Venha, jantará conosco!” Ele bateu as mãos e gritou
alguma coisa para o lho mais velho, com a voz tão má que eu acreditaria que
acabara de mandar estripar a si mesmo. O lho saiu montado com pressa.
“Sou o sheik Malik al’Hameed. Meus meninos, Jahmeen,” ele acenou para o ‐
lho ao lado dele, “e Mahood,” apontou para o homem que se afastava.
“Encantado.” Curvei-me novamente. “Meu pai é…”
“Tahnoon disse que caiu do céu, perseguido por um demônio-puta!” O
sheik sorriu para o lho. “Quando um Ha’tari cai de seu camelo, há sempre
um demônio ou um djinn embaixo — um povo orgulhoso. Muito orgulhoso.”
Eu ri com ele, principalmente de alívio: estava prestes a me declarar lho
de um cardeal. Talvez eu já estivesse com insolação.
Mahood voltou com um camelo para mim. Não posso dizer que goste des‐
ses bichos, mas montar talvez seja meu único talento verdadeiro, e já havia pas‐
sado tempo su ciente me equilibrando nas costas de camelos para dominar o
básico. Subi na sela com bastante facilidade e z a criatura sair atrás do sheik
Malik, que foi na frente. Supus que as palavras que ele murmurou aos lhos
fossem de aprovação.
“Vamos acampar.” O sheik ergueu o braço quando nos juntamos aos pri‐
meiros do bando. Ele puxou fôlego para gritar a ordem.
“Ai, Jesus!” O pânico fez as palavras saírem mais alto do que o pretendido.
Prossegui, esperando que o “Jesus” passasse despercebido. A chave para fazer
um homem mudar de ideia é fazer isso antes que ele anuncie seu plano. “Meu
senhor al’Hameed, precisamos seguir em frente. Algo terrível vai acontecer
aqui, muito em breve!” Se os véus não haviam enfraquecido por causa de al‐
gum massacre em andamento, isso só podia signi car uma coisa. Algo muito
pior iria acontecer e as paredes que dividem a vida e a morte estavam desaban‐
do por antecipação…
O sheik se virou na minha direção, novamente com os olhos de pedra, e
seus lhos se retesaram como se eu tivesse feito uma ofensa grave ao interrom‐
pê-lo.
“Meu senhor, seu homem Tahnoon acertou metade da história. Não sou
nenhum demônio, mas realmente caí do céu. Algo terrível irá acontecer aqui
em breve e precisamos nos afastar o máximo possível. Juro pela minha honra
que isso é verdade. Talvez eu tenha sido enviado para cá para salvá-lo, e o se‐
nhor tenha sido enviado para cá para me salvar. Sem o outro, com certeza ne‐
nhum de nós sobreviveria.”
Sheik Malik estreitou os olhos para mim, exibindo pés-de-galinha profun‐
dos, pois o sol não deixa lugar para a idade se esconder. “Os Ha’tari são um
povo simples, príncipe Jalan, e supersticioso. Meu reino ca ao norte e chega
até o litoral. Estudei na Mathema e não devo obediência a ninguém em toda
Liba, a não ser ao califa. Não me tome por um tolo.”
O medo que estava me agarrando pelas bolas apertou ainda mais. Eu já ti‐
nha visto a morte em todas as suas formas horríveis e escapado com muito cus‐
to para estar aqui. Não queria me ver de volta às terras mortas dentro de uma
hora, desta vez como apenas mais uma alma desprendida do corpo e indefesa
contra os terrores que existem lá. “Olhe para mim, senhor al’Hameed.” Abri
os braços e olhei para minha barriga avermelhada. “Estamos no meio do deser‐
to. Passei menos de quinze minutos aqui e minha pele está queimando. Em
mais uma hora, criará bolhas e irá descascar. Não tenho túnicas, nem camelo,
nem água. Como é que eu poderia ter chegado aqui? Eu juro, meu senhor, pe‐
la honra de minha casa, se não partirmos imediatamente, o mais rápido possí‐
vel, iremos todos morrer.”
O sheik olhou para mim como se me visse pela primeira vez. Um longo
minuto de silêncio se passou, interrompido apenas pelo chiado da areia e os
roncos dos camelos. Os homens à nossa volta observaram, preparados para
agir. “Arrume uma túnica para o príncipe, Mahood.” Ele ergueu o braço nova‐
mente e gritou uma ordem. “Seguiremos!”
•••
A fuga prometida se mostrou bem mais vagarosa do que eu gostaria. O sheik
discutiu assuntos com o chefe dos Ha’tari e nós subimos uma duna, aparente‐
mente em um trajeto perpendicular ao original. O ponto alto da primeira ho‐
ra foi beber água. Um prazer indescritível. Água é vida, e nas terras áridas dos
mortos eu já havia começado a me sentir quase morto. Derramar aquela vida
maravilhosa e molhada em minha boca foi um renascimento, provavelmente
tão barulhento e difícil quanto o primeiro, considerando quantos homens fo‐
ram precisos para me arrancar o jarro de água.
Mais uma hora passou. Foi preciso todo o autocontrole que eu tinha para
não meter os calcanhares no bicho e sair fugindo em disparada. Eu tinha parti‐
cipado de corridas de camelo durante minha temporada em Hamada. Não era
o melhor, mas tinha boas probabilidades, sendo estrangeiro. Estar em um ca‐
melo galopante é bastante semelhante a sexo energético com uma mulher in‐
crivelmente forte e muito feia. Agora era tudo que eu queria, mas o deserto é
uma maratona, não corrida de velocidade. Os camelos fortemente carregados
cariam exaustos em menos de um quilômetro, menos ainda se tivessem de
carregar os andadores, e embora o sheik tivesse sido instigado a agir pela mi‐
nha história, ele claramente achava que a possibilidade de eu ser louco era mai‐
or que a vantagem que ganharia ao deixar suas mercadorias para trás nas du‐
nas.
“Para onde estão indo, senhor al’Hameed?” Eu estava montado ao lado de‐
le, perto da frente da coluna, precedido por seus dois lhos mais velhos. Três
outros herdeiros vinham mais para trás.
“Estávamos indo para Hamada e ainda chegaremos lá, embora este não se‐
ja o caminho direto. Pretendia passar esta noite no Oásis de Palmeiras e Anjos.
As tribos estão se reunindo lá, um encontro de sheiks antes de nossas delega‐
ções se apresentarem ao califa. Nós chegamos a um acordo no deserto antes de
entrar na cidade. Ibn Fayed recebe seus vassalos uma vez por ano, e é melhor
falar ao trono com uma só voz, para que nossos pedidos sejam ouvidos com
mais clareza.”
“E ainda estamos indo para o oásis?”
O sheik fungou catarro, um costume que os locais parecem ter aprendido
com os camelos. “Às vezes Alá nos manda mensagens. Às vezes estão escritas
na areia, e precisa ser rápido para lê-las. Às vezes está no voo dos pássaros, ou
nos pingos de sangue de uma ovelha, e é preciso ser inteligente para com‐
preendê-las. Às vezes um in el cai em cima de você no deserto, e precisaria ser
um tolo para não lhe dar ouvidos.” Ele olhou em minha direção, com os lábios
apertados em uma linha implacável. “O oásis ca cinco quilômetros a oeste do
ponto onde o encontramos. Hamada ca dois dias ao sul.”
Muitos homens teriam escolhido levar meu alerta até o oásis. Senti um
momento de grande alívio por Malik al’Hameed não ser um deles, senão neste
momento, em vez de estar me afastando diretamente de onde havia saído, eu
estaria a cinco quilômetros de distância, tentando convencer uma dúzia de
sheiks a abandonarem seu oásis.
“E se todos eles morrerem?”
“Ibn Fayed ainda ouvirá uma única voz.” O sheik pressionou seu camelo
adiante. “A minha.”
•••
Um quilômetro e meio depois eu me dei conta que, apesar de Hamada car
dois dias ao sul, nós na verdade estávamos rumando para o leste. Eu me apro‐
ximei novamente do sheik, afastando um dos lhos.
“Não vamos mais para Hamada?”
“Tahnoon me disse que há um rio ao leste que irá nos levar em segurança.”
Virei-me na sela e olhei xamente para o sheik. “Um rio?”
Ele deu de ombros. “Um lugar onde o tempo ui de maneira diferente. O
mundo está maluco, meu amigo.” Ele levantou a mão em direção ao sol. “Ho‐
mens caem do céu. Os mortos estão inquietos. E no deserto há fraturas onde o
tempo foge de você, ou com você.” Uma encolhida de ombros. “A brecha en‐
tre nós e o que quer que seja esse perigo seu irá crescer mais rapidamente se
rastejarmos por aqui do que se corrermos em qualquer outra direção.”
•••
Eu já tinha ouvido falar nessas coisas antes, embora nunca as tivesse visto. Nas
encostas Bremmer, em Ost Reich, há bolhas de lentidão temporal que podem
prender uma pessoa e soltá-la após uma semana, um ano ou um século em um
mundo envelhecido, enquanto ele simplesmente piscou. Existem outros luga‐
res onde alguém pode envelhecer e descobrir que, no resto da cristandade,
apenas um dia se passou.
•••
Seguimos em frente e talvez tenhamos encontrado esse suposto rio do tempo,
mas não havia muito para mostrar. Nossos pés não correram, nossos passos
não devoraram sete metros de cada vez. Tudo o que posso dizer é que entarde‐
ceu muito mais rápido do que o esperado e a noite caiu como uma pedra.
Devo ter me virado na sela umas cem vezes. Se eu fosse a mulher de Ló, a
estátua de sal caria na porta de Sodoma. Eu não sabia o que estava procuran‐
do, demônios fervilhando nas dunas, uma praga de escaravelhos carnívoros…
Lembrei dos Vikings Vermelhos nos perseguindo até Osheim, no que parecia
uma eternidade atrás, e quase esperei que eles apontassem no alto de uma du‐
na, com machados em riste. Mas não importa o que o medo pintasse ali, o ho‐
rizonte permaneceu teimosamente livre de ameaças. Tudo o que via era a reta‐
guarda dos Ha’tari, reforçada a pedido do sheik.
O sheik nos manteve em movimento noite adentro, até que nalmente o
ronco dos bichos o convenceu a fazer uma parada. Eu me recostei, bebendo
água de um odre, enquanto o pessoal do sheik montava acampamento de ma‐
neira econômica e prática. Grandes tendas foram desenroladas dos lombos dos
camelos, linhas amarradas a estacas chatas e compridas o su ciente para se r‐
marem na areia e fogueiras feitas com estrume de camelo, que era coletado e
transportado na viagem. Lampiões foram acesos e posicionados debaixo dos
toldos das tendas, lampiões de prata para a tenda do sheik, queimando óleo de
pedra. Caldeirões foram descarregados, frascos abertos, até um pequeno forno
de ferro montado sobre seus próprios queimadores de óleo. Aromas de tempe‐
ros encheram o ar, de certa maneira ainda mais estranhos do que as dunas e as
estrelas esquisitas acima de nós.
“Estão abatendo as ovelhas.” Mahood chegou atrás de mim, fazendo eu me
assustar. “Papai as trouxe por todo esse caminho para impressionar o sheik
Kahleed e os outros no encontro. Mande antes, eu falei, mande entregar de
Hamada. Mas não, ele queria banquetear Kahleed com carne de Hameed, dis‐
se que ele perceberia qualquer enganação. Carneiro curtido pelo deserto é ‐
broso, duro, mas tem um sabor único.” Ele observou os Ha’tari enquanto fala‐
va. Eles estavam patrulhando a pé agora, nas areias enluaradas, chamando uns
aos outros de vez em quando com gritos suaves e melodiosos. “Papai vai que‐
rer lhe perguntar de onde veio e quem lhe deu essa mensagem de desgraça,
mas esta é uma conversa para depois da refeição, entende?”
“Entendo.” Pelo menos aquilo me dava tempo de inventar mentiras apro‐
priadas. Se dissesse a verdade sobre os lugares onde havia estado e as coisas que
havia visto… bem, isso lhes reviraria os estômagos e eles iriam se arrepender de
ter comido.
Mahood e outro lho se sentaram ao meu lado e começaram a fumar, re‐
partindo um único cachimbo longo, lindamente esculpido em espuma-do-
mar, no qual pareciam estar queimando lixo, a julgar pelo fedor. Eu o afastei
com um aceno quando me ofereceram. Após meia hora relaxei e me deitei, ou‐
vindo os Ha’tari ao longe e olhando para o brilho das estrelas. Não é preciso
passar muito tempo no Inferno para sua de nição de “boa companhia” se re‐
duzir a “não morto”. Pela primeira vez em muito tempo eu me senti confortá‐
vel.
Com o tempo, o bando em volta das panelas diminuiu e uma la de carre‐
gadores levou os produtos de todo aquele trabalho para a tenda maior. Um
gongo soou e os irmãos se levantaram ao meu redor. “Amanhã veremos Hama‐
da. Hoje nos regalamos.” Mahood, magro e melancólico, esvaziou seu cachim‐
bo na areia. “Deixei de ver muitos amigos antigos no encontro do oásis esta
noite, príncipe Jalan. Meu irmão Jahmeen iria conhecer sua prometida hoje.
Apesar de achar que ele esteja bem contente de atrasar esse encontro, pelo me‐
nos por um ou dois dias. Vamos esperar, para o seu bem, que seu aviso prove
ter fundamento, senão meu pai vai perder prestígio. Vamos esperar, para o
bem de nossos irmãos na areia, que você esteja errado.” Com isso, ele saiu e eu
fui atrás, até a tenda iluminada.
Puxei as abas para entrar, que ainda balançavam após Mahood passar, e ‐
quei parado, ainda curvado e momentaneamente cego pela luz de uns vinte
lampiões cobertos. Um tapete amplo e suntuoso de seda trançada, em padro‐
nagem brilhante vermelha e verde, cobria a areia, com tapetes menores onde
cariam a mesa e as cadeiras. A família de Sheik al’Hameed e seus serventes se
sentavam em volta de um tapete central cheio de bandejas de prata, todos com
montes de comida: arrozes aromáticos amarelo, branco e verde; damascos e
azeitonas em tigelas; tiras de carne de camelo marinada, seca e doce, assadas em
fogo aberto e polvilhada com pólen de rosa-do-deserto; e mais uma dúzia de
outros pratos que apresentavam mistérios culinários.
“Sente-se, príncipe, sente-se!” O sheik apontou para o meu lugar.
Levei um susto quando me dei conta pela primeira vez que metade das
pessoas sentadas em volta do banquete eram mulheres. Jovens e lindas mulhe‐
res, aliás, vestidas com quantidades imodestas de seda. Impressionante tam‐
bém era a quantidade de ouro que enchia os pulsos elegantes em pulseiras cin‐
tilantes, e brincos elaborados caíam em cascatas de pétalas até os ombros ex‐
postos ou atrás das clavículas.
“Sheik… eu não sabia que tinha…” Filhas? Esposas? Fechei bem minha bo‐
ca ignorante e me sentei de pernas cruzadas onde ele havia indicado, tentando
não encostar os cotovelos nas beldades de cabelos escuros nos meus dois lados,
cada uma delas tão tentadora e potencialmente tão fatal quanto o súcubo.
“Não viu minhas irmãs andando atrás de nós?” disse um dos irmãos mais
novos, cujo nome eu não guardara, claramente se divertindo.
Meu queixo caiu. Aquelas eram mulheres? Elas podiam ter quatro braços e
chifres debaixo de todos aqueles panos dobrados, e eu continuaria sem saber.
Sensato, não deixei palavras escaparem de minha boca aberta.
“Nós nos cobrimos e caminhamos para satisfazer os Ha’tari” disse a garota
à minha esquerda, alta, magra, elegante e que não devia ter mais de dezoito
anos. “Eles se chocam com facilidade, esses homens do deserto. Se fossem ao li‐
toral eles cariam cegos, sem saber onde repousar os olhos… pobrezinhos. Até
Hamada seria demais para eles.”
“Lutadores destemidos, no entanto,” disse a mulher à minha esquerda, tal‐
vez da minha idade. “Sem eles, cruzar as areias seria uma grande provação. Até
no deserto há perigos.”
Em frente a nós, duas outras irmãs zeram alguma observação, olhando na
minha direção. A mais velha das duas riu a plenos pulmões. Olhei desespera‐
damente para seus olhos escurecidos com kajal, lutando para não baixar o
olhar para o balanço de seus seios fartos debaixo da gaze de seda bordada com
lantejoulas. Eu sabia que a realeza libana, quer fossem os príncipes onipresen‐
tes, os sheiks mais raros ou o único califa, tinha a reputação de proteger as mu‐
lheres de sua família com um zelo mitológico e de alimentar rixas durante sé‐
culos por causa de um mero olhar cobiçoso. O que seriam capazes de fazer por
uma donzela de orada cabia aos horrores da imaginação.
Eu me perguntei se o sheik me via como uma oportunidade de casamento,
por ter me sentado no meio de suas lhas. “Estou muito agradecido por ter si‐
do encontrado pelos Ha’tari,” falei, xando o olhar na comida.
“Minhas lhas Lila, Mina, Tarelle e Danelle.” O sheik sorriu indulgente,
apontando para cada uma delas.
“Prazer.” Imaginei de que maneiras elas me dariam prazer.
Como se lesse minha mente, o sheik ergueu seu cálice. “Não somos tão rí‐
gidos em nossa fé quanto os Ha’tari, mas as leis que seguimos são à risca. Você
é um convidado bem-vindo, príncipe. Mas, a menos que que noivo de uma
de minhas lhas, não encoste nelas nenhum dedo que queira manter.”
Enrubesci e comecei a vociferar. “Senhor! Um príncipe de Marcha Verme‐
lha jamais…”
“Toque mais que um dedo nela e eu a presentearei com seus testículos, ba‐
nhados a ouro, para usar como brincos.” Ele sorriu como se estivéssemos fa‐
lando sobre o tempo. “Hora de comer!”
Comida! Pelo menos havia a comida. Eu comeria a ponto de car cheio
demais até para o menor dos pensamentos lascivos. E caria feliz. Nas terras
mortas você passa fome. Do primeiro instante em que entra naquela luz morta
até o momento em sai dela, você passa fome.
O sheik conduziu as orações pagãs, ditas na língua do deserto. Demorou
tempo para caramba, com minha barriga roncando o tempo todo e a boca sali‐
vando para o banquete à minha frente. Por m, todos se uniram por uma ou
duas frases e terminaram. Todas as cabeças se voltaram para as abas da tenda,
com expectativa.
Dois criados mais velhos entraram com o prato principal em bandejas de
prata, quadradas, ao estilo araby. Sentado no chão, eu só conseguia ver o mon‐
te de comida acima dos pratos, com certeza carneiro assado, considerando o
abate mais cedo. Obrigado, Deus! Minha barriga rugiu feito um leão, atraindo
acenos de aprovação de Sheik Malik e seu lho mais velho.
O criado pôs o prato à minha frente e seguiu adiante. A cabeça esfolada de
uma ovelha olhava para mim, fumegando de leve, os olhos fervidos com uma
expressão divertida, ou talvez fosse apenas o sorriso naquela boca sem lábios.
Uma língua escura se enrolava embaixo de uma leira de dentes surpreenden‐
temente retos.
“Ah.” Fechei minha própria boca com um estalo e olhei para Tarelle à mi‐
nha esquerda, que havia acabado de receber sua própria cabeça decapitada.
Ela me deu um sorriso doce. “Maravilhoso, não é, príncipe Jalan? Um ban‐
quete como este no deserto. Um gostinho de casa, após tantos quilômetros ár‐
duos.”
Ouvi dizer que os libanos podiam car quase tão furiosos se você não to‐
casse na comida deles quanto se tocasse suas mulheres. Voltei o olhar à cabeça
fumegante, o caldo escorrendo em volta, e pensei na distância que estava de
Hamada e os poucos metros que conseguiria percorrer sem água.
Peguei o arroz mais próximo e comecei a encher meu prato. Talvez pudes‐
se dar àquela pobre criatura um enterro decente sem ninguém perceber. Infe‐
lizmente, eu era a curiosidade deste banquete de família e a maioria dos olhos
estavam voltados para mim. Até as doze ovelhas pareciam interessadas.
“Está com fome, príncipe!” disse Danelle à direita, com o joelho roçando
no meu cada vez que ela se esticava para pegar um damasco ou uma azeitona
para pôr em seu prato.
“Muito,” disse com seriedade, jogando arroz por cima da minha mons‐
truosidade. Aquele troço tinha tão pouca carne que era praticamente um crâ‐
nio sorridente. A presença de uma colher claramente curva entre os talheres
chatos sugeria que se esperava uma bela escavação. Pensei se não era questão
de etiqueta usar a mesma colher para os olhos que se usaria para o cérebro…
“Papai disse que os Ha’tari acham que caiu do céu,” disse Lila do outro la‐
do.
“Com uma mulher-demônio vindo atrás!” riu Mina. A mais jovem delas,
silenciada por um olhar sério do irmão mais velho Mahood.
“Bem,” falei. “Eu…”
Alguma coisa se mexeu debaixo de minha pilha de arroz.
“Sim?” disse Tarelle ao meu lado, o joelho tocando o meu, nua por baixo
das sedas nas.
“Eu certamente…”
Diacho! Lá estava outra vez, alguma coisa se contorcendo como uma ser‐
pente na lama. “Eu… o sheik disse que seu soldado caiu do camelo.”
Mina era uma coisinha delicada, mas desmedidamente linda, talvez ainda
nem tivesse dezesseis anos. “Os Ha’tari não são nossos. Nós somos deles, agora
que estão com o dinheiro de Papai. Deles até sermos entregues em Hamada.”
“Mas é verdade,” disse Danelle, com a voz sedutoramente rouca ao meu
ouvido. “Os Ha’tari prefeririam dizer que a lua se balançou baixo demais e os
derrubou do que admitir que caíram.”
Risos gerais. A língua roxa do carneiro apareceu através do meu enterro,
enrolando-se no meio do arroz aromático amarelo. Espetei-a com meu garfo,
prendendo-a ao prato.
O movimento repentino chamou a atenção. “A língua é minha parte favo‐
rita,” disse Mina.
“O cérebro é divino,” declarou Sheik al’Hameed da cabeceira. “Minhas
meninas fazem um purê com damascos, salsinha e pimenta, e depois colocam
de volta no crânio.” Ele beijou as pontas dos dedos.
Enquanto ele tinha a atenção dos lhos, rapidamente cortei a língua e, ser‐
rando freneticamente, a reduzi a seis pedaços ou mais.
“Boas habilidades culinárias são um ótimo bônus em uma esposa, não são,
príncipe Jalan? Mesmo que ela jamais precise cozinhar, é bom conhecer o bas‐
tante para instruir os funcionários.” O sheik trouxe o foco de volta a mim.
“Sim.” Misturei os pedaços de língua no arroz e coloquei mais por cima.
“Com certeza.”
O sheik pareceu satisfeito com aquilo. “Deixem o pobre homem comer! O
deserto lhe abriu o apetite.”
Por alguns minutos comemos quase em silêncio, e cada viajante dedicou-se
à sua refeição, após semanas de alimentação pobre. Eu comi o arroz em volta
do enterro, sem querer colocar o carneiro contaminado nem perto de minha
boca. Ao meu lado, a deliciosa Tarelle inverteu a cabeça de seu carneiro e co‐
meçou a meter colheradas de cérebro na boca, que de repente cou bem me‐
nos desejável. A colher fazia barulhos desagradáveis, raspando dentro do crâ‐
nio.
Eu sabia o que tinha acontecido. Enquanto estava nas terras mortas, a cha‐
ve de Loki cou invisível ao Rei Morto. Talvez fosse uma brincadeira de Loki,
fazer a coisa se tornar aparente apenas quando estivesse fora do alcance. Não
importa o motivo, conseguimos viajar pelas terras mortas com menos perigo
oferecido pelo Rei Morto do que durante o ano anterior no mundo dos vivos.
É claro que tínhamos mais perigos de todas as outras malditas coisas, mas isso
era outro assunto. Agora que a chave estava de volta entre os vivos, qualquer
coisa morta podia caçá-la para o Rei Morto.
Eu tinha quase certeza de que os carneiros de Tarelle e Danelle viraram
aqueles olhos esbugalhados para mim, e não tive coragem de tirar o arroz dos
olhos do meu, por medo de encontrar aquela coisa me encarando. Consegui
comer uma enorme quantidade de comida, experimentando os pratos no cen‐
tro, ao mesmo tempo em que aumentei o monte no meu prato. Após meses
nas terras mortas, seria preciso mais do que uma cabeça decapitada em meu
prato para me fazer perder o apetite. Bebi pelo menos um galão, constante‐
mente enchendo meu cálice com um jarro próximo. Infelizmente era só água,
mas as terras mortas haviam me dado uma sede que só um pequeno rio mata‐
ria, e o deserto só a fez aumentar.
“Esse perigo sobre o qual você alega ter vindo para nos alertar.” Mahood
empurrou seu prato. “O que é?” Ele apoiou as duas mãos na barriga. Tão ma‐
gro quanto seu pai, ele era mais alto, de feições a ladas, bexigoso, e rapida‐
mente mudava de amistoso a sinistro com o mínimo movimento do rosto.
“É ruim.” Aproveitei a oportunidade para empurrar meu próprio prato.
Não conseguir esvaziar seu prato é um elogio à generosidade de um an trião
libano. O meu era simplesmente um elogio maior que de costume. “Não sei
que forma ele irá tomar. Só rezo para estarmos bem longe em segurança.”
“E Deus enviou um in el para entregar este aviso?”
“Uma mensagem divina é sagrada, não importa onde esteja escrita.” Agra‐
deço ao bispo James por essa pérola. Ele me fez aprender essa frase — mas não
o sentimento — à força depois que decorei a parede da privada com aquela
passagem da bíblia sobre quem estava se unindo a quem. “E é claro que nunca
se deve culpar o mensageiro! Essa é mais velha que a civilização.” Suspirei alivi‐
ado quando meu prato foi retirado sem comentários.
“E agora a sobremesa!” O sheik bateu as mãos. “Uma verdadeira sobreme‐
sa do deserto!”
Olhei para cima com expectativa, enquanto os criados voltaram com ban‐
dejas quadradas menores empilhadas nos braços, quase esperando receber um
prato de areia. Eu teria preferido um prato de areia.
“É um escorpião,” disse.
“Tem o olho a ado, príncipe Jalan.” Mahood me lançou um olhar som‐
brio por cima do cálice de água.
“Escorpião cristalizado, príncipe Jalan! Como pode ter passado um tempo
em Liba sem experimentar isso?” O sheik pareceu surpreso.
“É uma iguaria deliciosa.” O joelho de Tarelle bateu no meu.
“Tenho certeza de que vou amar.” Forcei as palavras entredentes. Dentes
que não tinham a menor intenção de se abrir para aquele troço entrar. Olhei
para o escorpião, um monstro de mais de vinte centímetros de comprimento,
da curva da cauda arqueada sobre as costas até as duas garras enormes. O arac‐
nídeo tinha uma tonalidade levemente translúcida, com a carapaça laranja bri‐
lhando pela cobertura açucarada. Se fosse maior, poderia ser confundido com
uma lagosta.
“Comer o escorpião é uma arte delicada, príncipe Jalan,” disse o sheik, exi‐
gindo nossa atenção. “Primeiro, não que tentado a comer o ferrão. Para o res‐
to, os costumes variam, mas em minha terra nós começamos pela parte de bai‐
xo das pinças, assim.” Ele segurou a parte superior e pôs a faca entre as duas
metades. “Uma torcidinha de leve para quebrar…”
Pelo canto do olho, vi o escorpião do meu prato se agitar na minha dire‐
ção, com as pernas duras, seis patas glaceadas tentando se apoiar na prata. Bati
meu cálice naquela coisa, esmagando suas costas, partindo as pernas, partes vo‐
ando em todas as direções, um xarope turvo escorrendo de seu corpo quebra‐
do.
Todos os nove al’Hammed me olharam espantados e boquiabertos.
“Ah… é…” Tentei inventar algum tipo de explicação. “É assim que faze‐
mos, de onde eu venho!”
Um silêncio se espalhou, rapidamente passando de embaraçoso a descon‐
fortável, até que, com uma risada gutural, Sheik Malik bateu o cálice em seu
escorpião. “Não é sutil, mas é e caz. Gostei!” Duas lhas e um lho zeram o
mesmo. Mahood e Jahmeen caram me observando de olhos estreitos, e come‐
çaram a desmembrar sua sobremesa parte por parte, seguindo à risca a tradi‐
ção.
Olhei para a meleca de fragmentos em meu prato. Só as garras e o ferrão
haviam sobrevivido. Eu ainda não queria comer nenhuma parte. À minha
frente, Mina botou um pedaço gosmento de escorpião em sua bela boca, sor‐
rindo o tempo todo.
Peguei um pedaço, a ado e pingando gosma, esperando por alguma dis‐
tração para poder jogar o troço longe. Era uma pena os pagãos serem contra
cachorros. Um cão em um banquete é sempre uma mão na roda para se livrar
de comida indesejada. Com um suspiro, levei o fragmento em direção à boca.
Quando a distração veio eu estava quase distraído demais para aproveitar a
oportunidade. Em um instante nós estávamos iluminados pela luz bruxulean‐
te de uma dúzia de lampiões a gás, no outro o mundo lá fora se acendeu mais
claro que o sol do meio-dia, atravessando até as paredes da tenda. Dava para
ver as cordas esticadas através do material, o contorno de um criado passando.
A intensidade do clarão passou de inacreditável a impossível, e lá fora os gritos
começaram. Uma onda de calor me atingiu como se eu tivesse passado da som‐
bra para o sol. Mal tive tempo de me levantar quando o brilho desapareceu,
tão rápido quanto surgira. A tenda de repente pareceu escura. Eu tropecei em
cima de Tarelle, sem conseguir enxergar ao redor.
Saímos em uma confusão desordenada para olhar a enorme coluna de fogo
surgindo ao longe. Uma coluna de fogo tão grande que subiu bem alto, bateu
no teto do céu e voltou-se sobre si em uma nuvem de fogo em formato de co‐
gumelo.
Durante muito tempo observamos em silêncio, ignorando os gritos dos
criados com a mão no rosto, o pânico dos animais, e o cheiro de queimado que
saía das tendas, que aparentemente estavam quase a ponto de pegar fogo.
Mesmo naquele caos, tive tempo de re etir que as coisas pareciam estar in‐
do bastante bem. Eu não só tinha escapado das terras mortas e voltado à vida,
como agora havia claramente salvado a vida de um homem rico e de suas lin‐
das lhas. Quem sabe eu teria uma recompensa grande? Ou linda!
Ouviu-se um barulho distante por baixo dos gritos das pessoas e dos ani‐
mais.
“Alá!” Sheik Malik estava ao meu lado, da altura do meu ombro. Ele pare‐
cia mais alto em seu camelo.
A velha sorte de Jalan estava começando a fazer efeito. Tudo estava can‐
do uma beleza.
“É onde o encontramos,” disse Mahood.
O barulho se tornou um estrondo. Precisei levantar a voz, concordando,
tentando parecer sério. “Ainda bem que me deu ouvidos, Sheik Mal…”
Jahmeen me interrompeu. “Não pode ser. Aquilo foi a trinta quilômetros
daqui. Nenhum fogo pode ser visto de tão…”
As dunas à nossa frente explodiram, primeiro as mais distantes, depois a
próxima, a próxima, a próxima, tão rápido quanto se pode tocar um tambor.
Em seguida o mundo se elevou à nossa volta e foi só tendas voando, areia e es‐
curidão.
2
“Então, sobre esses gênios…” Não tínhamos viajado nem quatro quilômetros e
de alguma maneira já era dia entre as dunas, um calor escaldante, ofuscante,
horrível como sempre. Ao deixarmos o rio do tempo, em vez de nos apressar‐
mos para o dia seguinte, parecia que tínhamos voltado àquele do qual escapá‐
ramos. O sol na verdade nasceu no oeste, em uma inversão do pôr do sol que
vimos muitas horas antes. A sensação era decididamente perturbadora e, con‐
siderando minhas experiências recentes, “perturbadora” não é uma palavra su‐
ave! “Conte mais.” Eu realmente não queria saber mais sobre os djinns, mas se
o Rei Morto estava mandando mais criados atrás da chave, eu deveria pelo me‐
nos conhecer do que estava fugindo.
“Criaturas do fogo ardente invisível,” disse Mahood à minha direita.
“Eles se atraem ao Sol dos Construtores,” disse Jahmeen à minha esquer‐
da. Eles me ladearam a viagem inteira, aparentemente para me impedir de con‐
versar com suas irmãs.
“Deus fez três criaturas com o poder do pensamento,” gritou Sheik Malik
para nós. “Os anjos, as pessoas e os djinns. O maior de todos os djinns, Shay‐
tan, desa ou Alá e foi rebaixado.” O sheik desacelerou seu camelo para chegar
mais perto. “Há muitos djinns que dançam no deserto, mas esses são do tipo
inferior. Nesta parte do Sahar só há um grande djinn. É ele que devemos te‐
mer.”
“Está me dizendo que Satanás está vindo atrás de nós?” Olhei para o alto
das dunas.
“Não.” Sheik Malik exibiu uma leira de dentes brancos. “Ele mora no Sa‐
har profundo, onde homens não resistem.”
Afundei em minha sela ao ouvir aquilo.
“É só um primo dele.” E com isso o sheik pressionou o camelo na direção
onde estavam os Ha’tari.
A caravana irregular seguiu em frente, serpenteando entre as dunas, limi‐
tada ao passo dos feridos que estavam a pé, queimados de várias maneiras pela
luz do Sol dos Construtores, quebrados pela explosão que nos atingiu minu‐
tos depois e dilacerados pelos ossos de homens que surgiram das areias, mor‐
tos há muito tempo.
Curvei-me sobre minha montaria malcheirosa, balançando com o movi‐
mento, suando em minha túnica e desejando que os quilômetros entre nós e a
segurança das muralhas de Hamada desaparecessem. De alguma maneira eu
sabia que não conseguiríamos chegar. Talvez o simples fato de falar sobre os
djinns havia selado nosso destino. Por falar no diabo, como se diz.
O Sol dos Construtores deixava um fogo invisível — todo mundo sabia
disso. Havia lugares, até mesmo em Marcha Vermelha, ainda marcados pela
sombra dos Mil Sóis. Lugares onde um homem podia passar e ver sua pele cri‐
ando bolhas sem nenhum motivo, fazendo-o ter uma morte horrível nos pró‐
ximos dias. Chamavam esses lugares de Terras Prometidas. Um dia elas seriam
nossas outra vez, mas não logo.
Quase esperei que os gênios aparecessem desse jeito, como a luz do Sol dos
Construtores, mas invisíveis, transformando o primeiro homem, depois o se‐
guinte, em colunas de fogo, com a gordura derretida escorrendo. Vi coisas ru‐
ins no Inferno e minha imaginação tinha muito material com que trabalhar.
Na verdade, os djinns queimam os homens por dentro.
Começou com escritos na areia. À medida que passamos entre as dunas,
suas laterais ofuscantemente brancas caram marcadas com a escrita curva dos
pagãos. A princípio, eram vistos apenas quando o sol incidia na encosta a um
ângulo raso o bastante para as letras em relevo formarem sombra.
Ninguém sabia, antes de Tarelle perceber as marcações, por quanto tempo
estávamos viajando entre encostas marcadas com as descrições de nossos desti‐
nos.
“O que diz aí?” Eu não queria realmente saber, mas é uma daquelas per‐
guntas que se faz automaticamente.
“Nem queira saber.” Mahood parecia enjoado, como se tivesse comido
muitos olhos de carneiro.
Das duas, uma: ou a caravana inteira sabia ler ou a ansiedade era contagio‐
sa, porque minutos após a descoberta de Tarelle, todos os viajantes pareciam
montar ou caminhar em sua própria bolha de desespero. Orações foram feitas
com vozes trêmulas, os Ha’tari se aproximaram e o deserto inteiro pressionou-
se contra nós, vasto e vazio.
Mahood estava certo, eu não queria saber o que os escritos diziam, mas
mesmo assim parte de mim estava se doendo para que me contassem. As li‐
nhas das palavras, elevadas nas dunas lisas, chamavam minha atenção, enlou‐
quecedoras e apavorantes ao mesmo tempo. Eu queria sair e apagar as mensa‐
gens, mas o medo me fez car no meio dos outros. A coisa mais importante
quando o perigo ataca é ser discreto. Não chame atenção para si mesmo —
não seja o para-raios.
“Quanto falta ainda?” Já tinha feito essa pergunta algumas vezes, primeiro
irritado e depois desesperado. Estávamos perto. Em quinze quilômetros, tal‐
vez vinte, as dunas se abririam e revelariam Hamada, mais uma cidade espe‐
rando sua vez de ser engolida pelo deserto. “Quanto falta?” perguntei, como se
a repetição fosse encurtar a distância de maneira mais e caz que os passos dos
camelos.
Ao ver que havia sido ignorado por Mahood, virei-me para Jahmeen e des‐
cobri que eu já era o centro de sua atenção. Alguma coisa na maneira como es‐
tava rígido, a estranheza com que montava seu camelo me fez parar e a per‐
gunta cou entalada em minha garganta.
Olhei em seus olhos. Ele me lançou o mesmo olhar implacável que seu pai
tinha — mas foi aí que eu vi o brilho de uma chama tremendo na pupila de ca‐
da olho dele.
“O que… o que está escrito na areia?” Uma nova pergunta saiu gaguejante.
Jahmeen abriu os lábios e eu achei que ele iria falar, mas sua boca se abriu
tão grande que sua mandíbula rangeu, e tudo que saiu dali foi um chiado, co‐
mo a areia que era retirada das dunas. Ele se inclinou para frente, agarrando
meu pulso, e embaixo da palma da mão dele um fogo se acendeu, tentando me
devorar, tentando invadir. Meu mundo passou a ser aquele toque ardente —
nada mais, nem visão, nem audição, nem respiração, só a dor. Dor e lembran‐
ças… as piores lembranças de todas… lembranças do Inferno. E enquanto eu
sofria e me perdia nela, quanto tempo levaria para o djinn sair de Jahmeen e
escavar minha pele, levando minha alma desnutrida para o Inferno para sem‐
pre? Eu vi Snorri, parado ali na minha lembrança, parado ali no começo de
uma história que eu não tinha a menor vontade de acompanhar, com aquele
sorriso dele, aquele sorriso despreocupado, idiota, corajoso e contagiante…
Tudo que eu precisava fazer era me ater ao presente. Eu tinha que car ali, no
presente, com meu corpo e com a dor. Eu só precisava…
•••
A mão de Snorri está agarrada ao meu pulso, a outra em meu ombro, impe‐
dindo-me de cair. Estou olhando para cima e ele está emoldurado pelo céu
morto, de onde sai uma luz alaranjada monótona. Todas as partes do meu cor‐
po doem.
“A porta escapou de você, hein?” Ele me põe de pé. “Eu mesmo não conse‐
gui segurá-la — tive de puxar você rápido, antes que se fechasse de novo.”
Eu engulo o grito de puro pavor, antes que ele me sufoque na tentativa de
se libertar. “Ah.”
A porta está bem na minha frente, um retângulo prateado gravado na late‐
ral cinzenta e sem graça de uma enorme pedra. Ela está sumindo diante de
meus olhos. Toda a vida, todo o meu futuro, tudo que eu conheço está do ou‐
tro lado daquela porta. Kara e Hennan estão parados lá, a apenas dois metros,
provavelmente ainda olhando para ela, confusos.
“Espere um minuto para Kara trancá-la. Depois sairemos,” diz Snorri,
aparecendo do meu lado.
Em pouco tempo, a confusão de Kara irá se transformar em raiva, quando
perceber que roubei a chave de Loki do bolso dela. Aquela coisa pareceu pular
na minha mão e grudar em meus dedos, como se quisesse ser roubada.
Olhei rapidamente ao meu redor. O além parece ser incrivelmente chato.
As histórias infantis contam que os Construtores zeram navios que voavam,
e que alguns subiam acima das nuvens e saíam pela escuridão entre as estrelas.
Dizem que o rei mais rico uma vez faliu todos os nobres de tantos impostos, e
construiu um navio tão grande e rápido, debaixo de uma vela de mil acres, que
levou os homens até Marte, que, assim como a Lua, é um mundo totalmente
diferente. Eles viajaram toda aquela distância incalculável, milhares de quilô‐
metros, e voltaram com imagens de um lugar cheio de pedras vermelhas mo‐
nótonas, terra vermelha monótona e um vento seco que soprava constante‐
mente… e os homens nunca mais se deram ao trabalho de voltar lá. As terras
mortas são bem parecidas com isso… só um pouco menos vermelha.
A secura pinica minha pele como se o próprio ar estivesse com sede, e cada
parte de mim está dolorida como um hematoma. À meia-luz, as sombras do
rosto de Snorri têm um aspecto sinistro, como se sua própria pele fosse uma
sombra em cima do osso por baixo, e que a qualquer momento poderia sumir,
deixando apenas o crânio exposto olhando para mim.
“Que diabos é aquilo?” apontei um dedo acusador por cima do ombro de‐
le. Eu tentei fazer isso quando nos conhecemos, e ele sequer piscou. Agora,
movido pela con ança, ele se vira. Rapidamente tiro a chave de Loki do bolso
e a meto na direção da porta desvanecida. Uma fechadura aparece, a chave en‐
tra, eu giro, giro de volta e tiro. Mais rápido que um instante. Trancada.
“Não estou vendo nada.” Snorri ainda está olhando para as pedras amon‐
toadas quando me viro para trás. É um troço útil, con ança. Eu guardo a cha‐
ve. Ela valeu sessenta e quatro coroas de ouro para Kelem. Para mim, vale uma
rápida estadia nas terras mortas. Abrirei a porta de novo quando tiver certeza
de que Kara não vai estar do outro lado esperando. Aí irei embora para casa.
“Deve ter sido uma sombra.” Examino o horizonte. Não é inspirador. Co‐
linas baixas, permeadas por ravinas profundas, estendem-se pela névoa som‐
bria. A enorme pedra ao nosso lado é uma das muitas que enchem a ampla
planície de rocha fragmentada, pedaços escuros e irregulares de basalto enter‐
rados na terra avermelhada e monótona. “Estou com sede.”
“Vamos.” Snorri repousa o cabo de seu machado no ombro e sai, saltando
de uma pedra pontuda para a próxima.
“Para onde?” Eu o sigo, concentrando-me nos saltos, sentindo os ângulos
desconfortáveis atravessando as solas de minhas botas.
“Para o rio.”
“E você sabe que ca nesta direção… como?” É difícil manter o ritmo. Não
está quente nem frio, só seco. Está ventando, não o bastante para levantar a
poeira, mas ele sopra através de mim, não em volta, mas atravessando, como
uma dor no interior dos ossos.
“Estas são as terras mortas, Jal. Todo mundo está perdido. Qualquer dire‐
ção o levará aonde estiver indo. Você só precisa ter esperança de que é lá que
quer estar.”
Eu nem comento. Os bárbaros são imunes à lógica. Apenas olho de volta
para a pedra onde cava a porta, tentando guardá-la na memória. Ela está tor‐
ta para o lado direito, quase como a letra “r”. Tenho a habilidade de abrir uma
porta em qualquer lugar que escolha, mas não estou com muita vontade de
pôr isso à prova. Foi preciso um mago como Kelem para nos mostrar uma por‐
ta, e é provável que ele esteja nas terras mortas agora. Pre ro não ter de lhe pe‐
dir para me mostrar a saída.
Seguimos adiante, pulando de pedra em pedra com os pés doloridos e atra‐
vessando a terra quando as pedras cam escassas. Não há nenhum som além
de nós. Nada cresce. Apenas uma vastidão seca e interminável. Eu esperava
gritos, corpos despedaçados, tortura e demônios.
“É isso que você esperava?” Alargo os passos para me aproximar de Snorri
novamente.
“Sim.”
“Sempre achei que o Inferno fosse ser mais… animado. Tridentes, almas la‐
mentosas, lagos de fogo.”
“As völvas dizem que a deusa cria um Hel para cada pessoa.”
“Deusa?” Bato o dedão em uma pedra escondida na terra e prossigo cam‐
baleando e xingando.
“Você passou um inverno em Trond, Jal! Não aprendeu nada?”
“Caralho.” Continuo mancando. A dor em meu pé quase me debilita. É
como se eu tivesse pisado no ácido e ele começasse a corroer minha perna. Se
só bater o dedão nas terras mortas dói desse jeito, estou morrendo de medo de
ter qualquer ferimento signi cativo. “Aprendi muita coisa.” Só não sobre as
malditas sagas deles. A maior parte delas parecia ser sobre Thor batendo nas
coisas com aquele martelo. Verdade que eram mais interessantes que as histó‐
rias que Roma tentava nos empurrar, mas não eram um manual de como vi‐
ver.
Snorri para e eu continuo mancando por mais dois passos antes de perce‐
ber. Ele abre os braços quando me viro. “Hel é quem manda aqui. Ela observa
os mort…”
“Não, espera. Eu me lembro dessa.” Kara havia me contado. Hel, coração
gelado, aberta do nariz até a virilha por uma linha que dividia o lado esquerdo
de azeviche do lado direito de alabastro. “Ela observa a alma das pessoas, o
olho claro vê o que há de bom nelas, o olho escuro vê o que há de mal, e ela
não liga para nenhum dos dois… acertei?” Pulo de um pé só, massageando
meu dedão.
Snorri encolhe os ombros. “Quase isso. Ela vê a coragem das pessoas. Rag‐
narok está chegando. Não é os Mil Sóis dos Construtores, mas o nal verda‐
deiro, em que o mundo se parte, se queima e os gigantes surgem. Coragem é
tudo o que importará nesse momento.”
Olho para as pedras em volta, a terra, as colinas áridas. “Então cadê o meu?
Se este é o seu inferno, onde está o meu?” Não quero ver o meu. Mesmo. Mas
mesmo assim, car vagando pelo inferno de um bárbaro parece… errado. Ou
talvez um elemento importante do meu inferno pessoal seja que ninguém re‐
conhece a precedência da nobreza sobre os plebeus.
“Você não acredita nele,” diz Snorri. “Por que Hel o construiria para você
se não acredita nele?”
“Acredito sim!” Protestar minha crença em todas as coisas é um re exo
meu.
“Seu pai é padre, certo?”
“Cardeal! Ele é cardeal, não um padreco de um vilarejo qualquer.”
Snorri dá de ombros, como se aquelas fossem apenas palavras. “Filhos de
padres raramente acreditam. Homem nenhum é um profeta em sua própria
terra.”
“Esse tipo de bobagem pagã pode…”
“É da bíblia.” Snorri para novamente.
“Ah.” Eu paro também. Ele está certo, acho. A religião nunca teve muita
utilidade para mim, a não ser quando se trata de xingar ou pedir clemência.
“Por que paramos?”
Snorri não diz nada, então olho para onde ele está olhando. À nossa fren‐
te, o ar está se estilhaçando, e pelas rachaduras vejo vestígios de um céu que já
parece impossivelmente azul, cheio demais de energia vital para ter lugar nas
terras áridas da morte. Os rasgos cam maiores — vejo o arco de uma espada
— um esguicho de carmim e um homem aparece do nada, com as rachaduras
se fechando atrás dele. Digo um homem, mas na realidade é uma lembrança
dele, esboçada em linhas fracas, ocupando o espaço onde ele deveria estar. Ele
se levanta, sem perturbar um grão de terra sequer, e eu vejo o ferimento sem
sangue que o matou, um talho sobre a testa que desce até sua clavícula quebra‐
da, atravessando-a até a carne.
Enquanto o homem se levanta, o processo se repete à direita e à esquerda
dele, e outra vez vinte metros atrás desses. Outros homens atravessam, caídos
do campo de batalha onde estão morrendo. Eles nos ignoram, parados de ca‐
beça baixa, alguns com restos de armaduras, todos sem armas. Estou prestes a
gritar para o primeiro, quando ele se vira e sai andando, fazendo um caminho
parecido com o nosso, mas desviando um pouquinho para a esquerda.
“Almas.” Minha intenção era dizer em voz alta, mas apenas um sussurro
sai.
Snorri levantou os ombros. “Mortos.” Ele começa a caminhar também.
“Vamos segui-los.”
Começo a avançar, mas o ar se parte à minha frente. Eu vejo o mundo,
posso sentir seu cheiro, sentir a brisa, o gosto do ar. E de repente compreendo
o desejo nos olhos dos homens mortos. Estou nas terras áridas há menos de
uma hora e o desejo que só esse vislumbre de vida me causa é avassalador. Há
uma batalha acontecendo que faz a Passagem Aral parecer uma briguinha: ho‐
mens cortando os outros com aço brilhante e gritos selvagens, os urros das tro‐
pas, os gritos dos feridos, os grunhidos dos agonizantes. Mesmo assim, estou
indo em frente, tão desesperado pelo mundo dos vivos que até mesmo alguns
poucos momentos antes de alguém me espetar parecem valer a pena.
É a alma que me impede. A alma daquele que abriu esse buraco para a
morte. Eu o encaro de frente, surgindo, nascendo para a morte. Não existe na‐
da nele, apenas as linhas tênues que o relembram — isso e o uivo de fúria, me‐
do e dor de seus últimos segundos. É o su ciente para me deter, no entanto.
Ele passa por cima de minha pele como uma queimadura, penetra nela e eu
caio para trás, gritando, tomado por suas memórias, afogando-me em seu so‐
frimento. Martell é o nome dele. Martell Harris. Parece mais importante que
meu próprio nome. Tento dizer meu nome, seja ele qual for, e percebo que
meus lábios se esqueceram como formá-los.
“Levante-se, Jal!”
Estou no chão, com poeira levantando ao meu redor. Snorri está ajoelhado
ao meu lado, com os cabelos escuros em volta do rosto. Estou perdendo-o.
Afundando. A poeira levantando, mais grossa a cada instante. Sou Martell
Harris. A espada entrou em mim como o gelo, mas estou bem, só preciso vol‐
tar para a batalha. Martell mexe meus braços, esforça-se para levantar. Jalan
desapareceu, afundando-se na poeira.
“Fique comigo, Jal!” Posso sentir as mãos de Snorri sobre mim. Nada
mais, apenas aquelas mãos de ferro. “Não deixe ele afastar você. Você é Jalan.
Príncipe Jalan Kendeth.”
O fato de Snorri dizer meu nome correto — com título e tudo — me saco‐
de do abraço macio da poeira.
“Jalan Kendeth!” As mãos se apertam. Dói muito. “Diga! DIGA!”
“Jalan Kendeth!” As palavras saíram de mim em um grande grito.
•••
Eu me vi cara a cara com a coisa que um dia foi o lho de Sheik Malik, Jah‐
meen, antes de o djinn queimá-lo até car oco. De alguma maneira, a lembran‐
ça daquela alma infernal se empurrando para dentro de mim, roubando meu
corpo, levou-me de volta àquele momento, lutando com o djinn por controle,
usando todos as artimanhas que havia aprendido nas terras áridas.
O aperto em meu pulso é como ferro, ancorando-me. E que dor! Com a
volta dos meus sentidos, descobri que meu braço inteiro estava pegando fogo.
Desesperado para escapar antes que o djinn pudesse sair de Jahmeen e me pos‐
suir no lugar dele, dei-lhe uma cabeçada bem na cara e soltei meu braço com
um puxão. Um segundo depois, meti os dois calcanhares com fúria nas laterais
de meu camelo. Com um solavanco e berro de protesto, o bicho começou a ga‐
lopar, comigo balançando em cima, segurando-me com todos os membros à
minha disposição.
Nem olhei para trás. Donzelas em perigo que se danassem. Antes de me li‐
vrar daquele aperto, eu havia sentido uma sensação familiar. À medida que o
djinn tentava entrar em mim, eu saía de mim. Eu sabia exatamente como o In‐
ferno era, e era exatamente para lá que o djinn estava tentando mandar as par‐
tes de mim de que não precisava.
•••
Cerca de um quilômetro e meio depois, ainda seguindo o canal entre as duas
grandes dunas que nos cercavam, meu camelo parou. Enquanto os cavalos fre‐
quentemente ultrapassam os limites de sua resistência quando recebem estí‐
mulo su ciente, os camelos são animais de temperamento muito diferentes. O
meu simplesmente decidiu que já tivera o bastante e parou abruptamente,
usando a areia para deter seu avanço. Um viajante experiente normalmente
capta os sinais de alerta e se prepara. Um viajante inexperiente, assustado, pre‐
cisa contar com a areia para parar também. Isto é alcançado ao permitir que o
impulso do viajante o lance por cima da cabeça do camelo. O resto se resolve
sozinho.
Rapidamente me levantei, cuspindo areia. Se tiver medo ou constrangi‐
mento su ciente, um homem ca imune a tudo, exceto à pior dor. Lá atrás,
pela rota sinuosa que tracei entre as dunas, uma tempestade de areia havia se
formado. Quatro coisas me preocupavam a respeito disso. Primeiramente, ao
contrário da poeira, a areia precisa de um vento do caramba para voar pelos
ares. Segundamente, em vez da tradicional parede tempestuosa que avança, es‐
sa tempestade parecia estar localizada no vale entre as duas dunas, com menos
de duzentos metros de distância entre elas. Terceiramente, o vento mal estava
soprando. E nalmente, o pouco vento que havia estava soprando na direção
da tempestade, e no entanto ela parecia estar vindo para cima de mim a uma
velocidade e tanto!
“Merda. Merda. Merda.” Saltei na direção do camelo e subi rapidamente
pela lateral dele. De algum modo, meu pânico contagiou o camelo e o bicho
maldito saiu correndo antes que eu me sentasse na sela. Fiquei deitado, estate‐
lado em cima de sua corcova por vinte metros, segurando-me desesperada‐
mente, mas já é bem difícil car em cima de um camelo galopante quando se
está no lugar certo, e às vezes, infelizmente, o desespero não é um aderente su‐
ciente. Meu camelo e eu nos separamos, deixando-me com um punhado de
pelo de camelo na mão, um cobertor fedido, e uma queda de dois metros até o
chão.
As extremidades da tempestade de areia chegaram até mim antes que eu
conseguisse recuperar o ar que o impacto havia retirado de meus pulmões. Da‐
va para sentir o djinn ali, mais difuso do que quando estava con nado dentro
de Jahmeen, mas ainda assim estava ali, arranhando os dedos arenosos em meu
rosto, queimando em todo grão que o vento levava.
Desta vez a invasão veio indiretamente. O djinn já tinha tentado me domi‐
nar e chutar minha alma para o Inferno, mas, por algum motivo, talvez por‐
que acabara de voltar de lá, ou talvez pela magia que corre nas veias dos Ken‐
deth, eu consegui resistir. Agora, ela tirou minha visão e minha audição, e en‐
quanto eu estava lá curvado, tentando respirar algum ar que não me queimas‐
se os pulmões, esperando não ser queimado vivo, o djinn al netava o fundo de
minha mente, procurando uma entrada. Mais uma vez, as lembranças da via‐
gem ao Inferno vieram à tona, com Snorri me agarrando, tentando me ajudar
a expulsar a alma daquele estranho, tentando me ajudar a manter meu corpo.
“Sem chance.” As palavras saíram entre dentes cerrados e lábios apertados.
O djinn não me enganaria duas vezes. “Sou Jalan Kendeth e conheço seus
tru…”
Mas a areia agora é poeira, uma poeira sufocante, e estou sendo carregado
através dela por uma grande mão, com os dedos enrolados em minha camisa.
“Sou Jalan Kendeth!” grito, e caio tossindo. A poeira misturada à minha
saliva parece sangue em minhas mãos — exatamente igual a sangue. “…alan”
cof “Kendeth!”
“Muito bem!” Snorri me põe de pé, dando tapas para tirar a poeira de
mim. “Um dos mortos trombou com você — quase arrancou seu corpo fora!”
Senti que estava em outro lugar, algum lugar arenoso, fazendo alguma coi‐
sa importante. Havia algo de que eu precisava me lembrar, algo vital… mas o
que era, exatamente, não consigo me lembrar nem fazendo força.
“Arrancar meu corpo? Eles… eles podem fazer isso?” Mais tosses. Meu pei‐
to dói. Limpo as mãos na minha calça, que já viu dias melhores. “Os mortos
podem tomar seu corpo?”
Snorri dá de ombros. “Melhor não car no caminho deles.” Ele espera eu
me recuperar, impaciente para seguir as almas que vimos.
“Poeira e pedras.” Ainda não estou pronto. Inspiro o ar áspero. “É esse o
além mais assustador dos contadores de histórias nórdicos?”
Novamente a encolhida de ombros. “Não somos como vocês, seguidores
do Cristo Branco, Jal. Não há paraíso em vista, nem vagar em campos verdes
para os abençoados, nem tomento eterno para os perversos. Há apenas Ragna‐
rok. A batalha nal. Não existe promessa de salvação nem nal feliz, apenas
que tudo terminará em sangue e guerra, e os homens terão uma última chance
de erguer seus machados e gritar sua resistência ao m dos tempos. Os padres
dizem que a morte é só um lugar para esperar.”
“Maravilha.” Eu me endireito. Estendendo a mão quando ele tenta sair,
digo: “Se é um lugar para esperar, para que tanta pressa?”
Snorri ignora. Ele simplesmente estende o punho fechando, abrindo-o e
revelando a palma cheia. “Além do mais, não é poeira. É sangue seco. O sangue
de todas as pessoas que já viveram.”
“Posso fazê-lo ver o medo em um punhado de poeira.” As palavras me es‐
capam sem querer.
Snorri sorri ao ouvir aquilo.
“Elliot John,” digo. Uma vez passei um dia decorando citações da literatu‐
ra clássica para impressionar uma mulher de cultura considerável — além de
uma fortuna considerável e curvas como uma ampulheta cheia de sexo. Não
consigo me lembrar das citações agora, mas de vez em quando uma delas vem
à tona aleatoriamente. “Um grande bardo da época dos Construtores. Ele
também escreveu algumas das músicas que vocês vikings estão sempre assassi‐
nando em suas cervejarias!” Começo a me limpar. “São só palavras bonitas,
contudo. Poeira é poeira. Não me importa de onde veio.”
Snorri deixa a poeira escorrer entre os dedos, levada pelo vento. Por um
instante é apenas poeira. Só depois é que eu vejo. O medo. Como se a poeira se
tornasse uma coisa viva, torcendo-se à medida que cai, insinuando um rosto,
de um bebê, de uma criança, confuso demais para distinguir, podia ser qual‐
quer um… eu… de repente sou eu… ele envelhece, abatido, oco, um crânio, so‐
me. Tudo que ca é o terror, como se eu visse minha vida passando em um
instante, poeira no vento, levada de maneira tão rápida quanto sem sentido.
“Vamos.” Preciso sair, estar em movimento, sem pensar.
Snorri vai na frente, indo na direção que as almas tomaram, embora não
haja nem sinal delas agora.
•••
Caminhamos por uma eternidade. Não há dias e noites. Estou com fome e
com sede, com mais fome e sede do que jamais estive, mas isso não piora e eu
não morro. Talvez comer, beber e morrer sejam coisas que não aconteçam
aqui, apenas esperar e sofrer. Esse lugar começa a corroer você. Estou seco de‐
mais para reclamar. Só existe a poeira, as pedras, os morros distantes que nun‐
ca se aproximam, e as costas de Snorri sempre seguindo em frente.
“Imagino o que Aslaug pensaria deste lugar.” Talvez a assustasse também,
sem escuridão, com uma luz morta que não traz calor nem forma sombras.
“Baraqel teria sido o melhor aliado para trazer para cá,” diz Snorri.
Eu franzo os lábios. “Aquela velho chato? Ele certamente encontraria mui‐
to material para seus sermões sobre moralidade.”
“Ele era um guerreiro da luz. Gostava dele,” diz Snorri.
“Estamos falando do mesmo anjo irritante, sim?”
“Talvez não.” Snorri deu de ombros. “Nós lhe demos voz. Ele se construiu
a partir de nossas imaginações. Talvez para você ele fosse diferente. Mas nós
dois o vimos na porta do mago do mal. Aquele Baraqel seria útil.”
Tive de concordar com aquilo. Com metros de altura, asas douradas e uma
espada de prata. Baraqel podia ser um saco, mas seu coração estava no lugar
certo. Agora mesmo eu caria feliz em tê-lo em minha cabeça me dizendo que
eu era um pecador, se isso signi casse que ele apareceria quando o perigo se
aproximasse. “Acho que posso ter julgado mal…”
“Quê?” Snorri para, esticando o braço para me parar também.
Bem à nossa frente está uma pedra velha, cinzenta e desgastada. Ela tem as
runas romanas do algarismo seis e sangue fresco brilhando em um dos lados.
Olho em volta. Não há nada mais, apenas este marco na poeira. Ao longe,
muito atrás de nós, consigo ver, entre as formas das enormes pedras espalha‐
das pela planície, outro marco que parece tombado para a direita, quase como
a letra “r”.
Snorri se ajoelha para analisar o sangue. “Fresco.”
“Não deviam estar aqui.” Há sangue correndo em letes pelo rosto do me‐
nino que está falando, uma criança pequena, um pouco mais alta que o marco
de pedra. Ele não estava ali um segundo atrás. Deve ter no máximo seis ou sete
anos. Seu crânio está afundado, seu cabelo loiro está escarlate de um lado. O
sangue escorre em linhas paralelas no lado esquerdo de seu rosto, enchendo
seu olho, dividindo-o como a própria Hel.
“Estamos de passagem,” diz Snorri.
Há um rosnado atrás de nós. Lentamente me viro e vejo um cão-lobo se
aproximando. Já vi um lobo Fenris, então já vi maiores, mas este cachorro é
enorme, a cabeça da altura das minhas costelas. Ele tem aqueles olhos que di‐
zem o quanto irá gostar de comer você.
“Não queremos causar problemas.” Ponho a mão na minha espada. A es‐
pada de Edris Dean. A mão de Snorri cobre a minha antes que possa sacá-la.
“Não tenham medo, Justiça não irá machucá-los, ele só veio me proteger,”
diz o menino.
Eu me viro e co com um lado voltado para cada um deles. “Não estava
com medo,” minto.
“O medo pode ser um amigo útil — mas nunca é um bom professor.” O
menino olha para mim, com o sangue pingando na poeira. Ele não soa como
um menino. Pergunto-me se ele decorou aquilo do mesmo livro que usei.
“Por que está aqui?” pergunta-lhe Snorri, ajoelhando-se para car no mes‐
mo nível, apesar de manter distância. “Os mortos precisam cruzar o rio.”
O cachorro dá a volta e para ao lado do marco de pedra, e o menino levan‐
ta a mão para lhe fazer carinho nas costas. “Eu me deixei aqui. Uma vez que se
cruza o rio é preciso ser forte. Eu só tomei o que precisava.” Ele sorri para nós.
É um menino de boa aparência… tirando todo o sangue.
“Olhe,” digo. Eu me aproximo dele, passando por Snorri. “Você não deve‐
ria estar aqui sozi…”
De repente o cachorro é maior do que qualquer lobo Fenris, e está em cha‐
mas. As chamas envolvem a fera, da cabeça às garras, brilhando em seus olhos.
Sua bocarra está a trinta centímetros do meu rosto, e quando ele a abre para
uivar, um inferno explode, atravessando seus dentes.
•••
“Não!” gritei e me vi cara a cara com o djinn, no centro da tempestade de
areia. De alguma maneira eu conseguira resistir às suas tentativas de me expul‐
sar de meu corpo outra vez. Talvez o cachorro infernal daquela criança o tenha
assustado. Certamente me assustou para cacete, e bem rápido!
Eu só vi o djinn porque cada grão de areia que atravessava seu corpo invi‐
sível se aquecia a ponto de incandescência, revelando o espírito formado pelo
brilho, deixando um rastro de areia ardente do lado oposto de onde o vento
passava. Ali, diante de mim, estava um demônio como eu sempre imaginei, sa‐
ído da imaginação fértil dos religiosos, com chifres, presas e olhos ardentes.
“Caralho.” Minha próxima descoberta foi que estar enterrado até o peito
na areia di culta a fuga. E a descoberta seguinte foi pior. Através da tempesta‐
de, dava para ver um corpo, esparramado na duna atrás do djinn. Uma calma‐
ria momentânea possibilitou uma visão melhor… e de alguma forma era eu
deitado ali, de boca aberta e cego. O que signi cava que era eu quem estava
observando… uma alma ejetada sendo sugada para o Inferno!
O djinn manteve sua posição, bem à minha frente, ilustrado pela areia bri‐
lhante atravessando seu corpo. Ficou parado ali, entre mim e o meu corpo, ao
alcance da mão. Ele nem precisava me empurrar, a duna parecia ávida por me
engolir. Morrendo de medo, en ei meus braços para baixo e tentei sacar mi‐
nha espada, mas a areia me derrotou e minha mão voltou vazia. Tirei a chave
do meu peito, sem saber como ela iria ajudar… nem se aquela realmente era a
chave, já que aparentemente havia uma idêntica pendurada no pescoço de
meu corpo, quando me olhei durante a calmaria. Apertei a chave com a maior
força que pude. “Vamos lá! Me dê alguma coisa que eu possa usar!”
No instante da minha reclamação, a areia à minha volta desabou, revelan‐
do um alçapão incongruentemente inserido na duna, e eu com dois terços do
corpo dentro dele. À medida que a areia caiu pelo buraco, eu caí também.
Consegui colocar os dois braços para fora e me segurar ali, pendurado sobre
uma planície árida familiar iluminada pela mesma luz morta. “Ah, essa não!”
Encontrando pouco apoio na duna, e ainda escorregando para dentro do
buraco, centímetro a centímetro, agarrei a única outra coisa ali. Parte de mim
esperava que minhas mãos ardessem, mas, apesar do efeito que tinha na areia,
eu não tinha sentido calor nenhum no djinn, apenas a explosão silenciosa de
sua fúria e ódio.
Embaixo dos dedos da minha alma, o djinn era borbulhantemente quente,
mas não tanto que eu quisesse me soltar e cair no Inferno, deixando meu cor‐
po de brinquedo para ele. “Desgraçado!” Eu me arrastei para cima do djinn,
agarrando chifres, esporões, pneuzinhos, o que estivesse à mão. Com uma for‐
ça nascida do medo, eu estava dois terços para fora do alçapão antes que o
djinn sequer percebesse o que havia acontecido. A surpresa desequilibrou o
gênio e, embora minha alma não pesasse tanto na balança quanto algumas, foi
o su ciente para puxar o djinn para frente e para baixo enquanto eu subia.
Em instantes, nós dois estávamos entrelaçados, cada um tentando jogar o
outro dentro do alçapão, os dois metade dentro, metade fora. Meus principais
problemas eram que o djinn era mais forte que eu, mais pesado que eu — o
que parecia totalmente injusto, considerando que o vento soprava através dele
— e abençoado com os já mencionados chifres e esporões, além de um conjun‐
to de dentes triangulares que pareciam capazes de cortar ossos.
O fato é que, quando é sua alma que está lutando, chifres a ados e bordas
pontudas são menos importantes do que a sua vontade de ganhar — ou, no
meu caso, de me libertar. O pânico pode não ser muito útil na maioria das si‐
tuações, mas o pavor bem focado pode ser uma bênção. En ei a chave de Loki
no olho do djinn, agarrei os dois lóbulos das orelhas, e me puxei por cima dele,
metendo o pé na sua nuca e jogando-o mais para dentro do alçapão… onde seu
peso o deixou entalado. Precisei pular em cima dele várias vezes, com os dois
pés esmagando seus ombros, até que, como uma rolha estourando de uma ân‐
fora, ele atravessou com tudo. Quase caí junto dele, mas com um salto, uma
corrida e uma boa dose de pânico, eu me vi deitado na duna, com os ventos di‐
minuindo e a areia se assentando ao meu redor.
Rapidamente fechei o alçapão e o tranquei com a chave de Loki, perceben‐
do naquele instante que a porta havia desaparecido, e eu estava en ando a cha‐
ve na areia. Dei de ombros e me aproximei com cuidado para inspecionar meu
corpo. Reabitar seu próprio corpo é incrivelmente fácil, o que é bom, porque
imaginei o sheik e seus homens aparecendo e me encontrando ali, e meu eu-al‐
ma teria que ir atrás deles a pé, enquanto me jogavam sobre um camelo e me
sujeitavam a indignidades pagãs. Ou pior ainda, eles poderiam passar por mim
sem me ver, debaixo de minha capa de areia, e me deixado olhando meu corpo
se ressecando, a pele seca descascando no vento, até eu car sentado sozinho,
vendo o deserto engolir meus ossos… Então foi uma sorte que, assim que eu
pus o dedo de minha alma em meu corpo, fui sugado para dentro e acordei
tossindo.
Eu me sentei e imediatamente pus a mão na chave em volta do pescoço. Eu
não fazia ideia do quanto daquilo que havia visto era real ou se era apenas a
forma como minha mente interpretou a luta com o djinn. Até descon ei que
a própria chave tinha criado aquelas cenas para mim, baseadas no senso de hu‐
mor distorcido de Loki.
•••
Os batedores da caravana me encontraram cerca de meia hora depois, agacha‐
do na duna escaldante, a cabeça coberta com o cobertor fedido que arrancara
de meu camelo. Os Ha’tari me escoltaram de volta até Sheik Malik, empurran‐
do-me à frente deles como um prisioneiro fugido.
O sheik veio com seu camelo em nossa direção enquanto nos aproximáva‐
mos, com dois guardas anqueando-o no trajeto. Atrás dele, na frente da cara‐
vana, eu vi Jahmeen, caído em cima de sua sela, com seus dois irmãos mais no‐
vos vindo de cada lado e mantendo-o no lugar. Imaginei que o sheik não esta‐
ria com o melhor dos humores.
“Meu amigo!” Levantei a mão e lhe dei um sorriso largo. “Que bom ver
que não há mais djinns. Estava com medo que aquele que afugentei pudesse
não ser o único agressor!”
“Afugentou?” A confusão desfez a dureza em torno dos os olhos do sheik.
“Eu vi que o monstro tinha pegado Jahmeen, então o empurrei para longe
e saí correndo imediatamente, sabendo que ele viria atrás de mim para se vin‐
gar. Se eu casse, ele teria procurado um alvo mais fácil para habitar e usar
contra mim.” Balancei a cabeça com um ar sábio. É sempre bom ter alguém
que concorde com você numa discussão dessas, mesmo que seja só você mes‐
mo.
“Você empurrou o djinn para longe…”
“Como está Jahmeen?” Acho que consegui fazer com que a preocupação
soasse verdadeira. “Espero que ele se recupere logo… Deve ter sido uma coisa
terrível.”
“Bem.” O sheik olhou para seu lho lá atrás, imóvel sobre o camelo para‐
do. “Vamos orar para que seja logo.”
Eu tinha sérias dúvidas. Pelo que tinha visto e sentido, achei que Jahmeen
havia sido queimado por dentro, com o corpo quente, mas praticamente mor‐
to, com a alma nas terras mortas, aproveitando o que sua fé lhe dizia ser o des‐
tino de um homem de sua estirpe. Ou talvez padecendo disso.
“Em alguns dias, espero!” Continuei sorrindo. Dentro de meio dia nós es‐
taríamos em Hamada e eu me livraria do sheik, de seus camelos e seus lhos
para sempre. Infelizmente me livraria também de suas lhas, mas era um pre‐
ço que estava disposto a pagar.
4
Em Marsail, Lisa e eu passamos dois dias e uma noite nos recuperando anoni‐
mamente. Pegamos dois quartos — por insistência dela — em uma bela pou‐
sada na Prada Royal, que passa embaixo dos vários palácios dos antigos reis de
Marsail. Gastei mais dinheiro de Omar para nos deixar vestidos decentemente:
um belo casaco para mim, com brocados su cientes só para insinuar uma liga‐
ção militar sem ser vulgar, calças cinzas e neutras, botas pretas e altas, engraxa‐
das de maneira tão brilhante que dava para ver o rosto de alguém re etido ne‐
la. Lisa abandonou o vestido sujo e escolheu roupas de viagem recatadas, que
nem a envergonhariam nem chamariam muita atenção.
Uma passada na casa de banho, no barbeiro, uma bela refeição em um dos
restaurantes melhores ao lado do porto, e começamos a nos sentir um pouco
mais humanos. A conversa entre nós ainda uía de maneira irregular e em
rompantes esquisitos, evitando falar do casamento dela, mas ainda assim fa‐
lando diversas vezes sobre as preocupações dela com Barras e os apuros que
poderia encontrar em sua busca por ela. Mesmo assim, vi lampejos da antiga
Lisa, esboçando alguns sorrisos e rubores quando falei dos velhos tempos, cui‐
dadosamente evitando mencionar seu irmão e pai mortos.
No m, o pavor de Lisa de mais uma viagem de barco, mesmo que por um
rio, acabou nos fazendo viajar a Vermelhão por carruagem expressa, chacoa‐
lhando pelas várias estradas que seguem o percurso do Seleen em direção à ca‐
pital ao leste. Passamos vários dias lado a lado, em frente a um padre velho e
um comerciante de cabelo escuro de algum porto distante da Araby. De noite,
sacolejamos sonolentos, um apoiado no outro, enquanto a carruagem prosse‐
guia, mudando de cavalos em vários pontos de parada pelo caminho. Fiquei
feliz ao descobrir que, dormindo com a cabeça em meu ombro, Lisa cheirava
tão bem quanto eu me lembrava. Quase tão bem para apagar a memória do fe‐
dor que exalava quando saiu cambaleando do Santa Maria em Marsail. Du‐
rante uma dessas longas noites, quando a cabeça de Lisa escorregou do meu
ombro para o colo, ocorreu-me que, embora todas as três irmãs DeVeer tives‐
sem se casado com uma pressa indecente após minha suposta morte, Micha
com meu irmão Darin, Sharal com o assassino conde Isen, e Lisa com meu
amigo desleal Barras Jon — a quem eu jamais trairia — na verdade era só a
perda de Lisa que eu lamentava.
Tudo caria bem. Casa. Paz. Segurança. A chave estaria a salvo no palácio.
O Rei Morto podia ser uma ameaça para pequenos grupos de viajantes nas
profundezas do deserto ou na selvageria das montanhas, mas di cilmente po‐
deria fazer um exército marchar por Marcha Vermelha e sitiar a capital da Rai‐
nha Vermelha. E quanto a tentativas mais sorrateiras, certamente as magias da
Irmã Silenciosa não permitiriam que a necromancia funcionasse nos salões
onde ela e seus irmãos viviam.
Quilômetros e quilômetros desapareceram debaixo de nossas rodas, e
quando as terras de minha avó passaram por nós, hipnotizantes com aquela fa‐
miliaridade desenhada de verde, pensamentos passaram por minha mente. As
coisas que havia visto, pessoas, conversas, tudo passou tranquilamente pela
minha cabeça. Vez ou outra, levantava a cortininha e colocava a cabeça para fo‐
ra da janela para apreciar a brisa. Foi só depois que senti uma ponta de preocu‐
pação. A estrada estendendo-se para frente, as sebes paralelas, uma de cada la‐
do, apontando ao longe, chegando cada vez mais perto e nunca se encontran‐
do, perdidas no futuro. Só quando eu olhava para frente daquele jeito é que
meus medos me perseguiam, vindo atrás da carruagem. Maeres Allus estava es‐
perando por mim lá, no meio de minha cidade.
Contei meu problema a Jorg Ancrath naquela noite embriagada em um
telhado de Hamada. Ele me deu alguns conselhos, aquele assassino marcado
por espinhos, e ali, naquela escuridão quente do deserto, parecia uma solução
sensata. A nal, ele não era o rei de Renar? Mas também era apenas um garo‐
to… Além disso, o que quer que tenha me dito foi apagado por um rio de
whisky, e tudo que conseguia me lembrar era da expressão nos olhos dele en‐
quanto me contava, e em como acreditei totalmente que ele tinha razão.
•••
A carruagem balançou e sacolejou, quilômetros foram percorridos sob nossas
rodas e estávamos cada vez mais perto de casa. Ultrapassamos três longas colu‐
nas de soldados marchando na direção da capital. Em diversos momentos, a es‐
trada cou tão lotada que tivemos de nos espremer ao lado de comboios de ba‐
gagem parados, carroceiros discutindo, soldados gritando comandos para as ‐
leiras. E, de alguma maneira, em meio a todo aquele estardalhaço, ao calor, ao
barulho, à expectativa… peguei no sono.
Sonhei com João Cortador, que havia cado enorme e satânico, como se a
realidade já não fosse ruim o bastante. Eu o vi tentando me pegar com o braço
remanescente, pálido e com os troféus macabros de seu ofício pendurados, os
lábios que havia arrancado para Maeres Allus e usava como pulseiras. Tentei
fugir, mas me vi amarrado à mesa outra vez, de volta aos salões de papoula de
Allus. Aqueles dedos brancos enormes procuraram por mim, chegando mais
perto… mais perto… e eu gritando o tempo todo. Ao gritar, as paredes e o chão
sumiram, virando pó no vento seco e revelando um céu de luz morta, da cor
da desgraça. A mão de Cortador se encolheu e, naquele momento, sabendo
que estava novamente no Inferno, gritei para que ele me segurasse e me er‐
guesse de volta, sem ligar para o destino que me esperava — pois a melhor de‐
nição do Inferno talvez seja que não existe nenhum lugar e nenhum tempo
para o qual você não correria para poder fugir dele.
•••
“Algo está errado.”
Levanto a cabeça e vejo que Snorri parou na minha frente, olhando para as
cordilheiras à nossa volta. “Tudo está errado. Estamos no Inferno!” As pala‐
vras não de nem bem, mas mesmo que você esteja apenas caminhando por
uma ravina árida seguindo o uxo das almas, o Inferno é pior do que tudo que
você conhece. Você sente dor, o bastante para fazê-lo chorar, sente sede, uma
fome que chega a doer, o sofrimento pesa sobre você como se fosse uma cor‐
rente em volta do pescoço, e apenas car parado ali é como observar tudo que
já amou na vida morrer miseravelmente diante de você.
“Ali!” Ele aponta para uma coleção de pedras irregulares na colina à nossa
esquerda.
“Pedras?” Não vejo mais nada.
“Alguma coisa.” Snorri franze a testa. “Alguma coisa rápida.”
Continuamos a caminhar, cansados até os ossos. Em alguns pontos a terra
está rachada, ssurada. Longas labaredas saem dali, em direção ao céu, e o ar
está podre de enxofre, ardendo meus olhos e pulmões. A ravina se alarga em
um vale árido, repleto de pedras. O vento as esculpiu em formatos estranhos, e
muitas se parecem perturbadoramente com rostos. Começo a escutar cochi‐
chos, a princípio indistintos, tornando-se mais claros quando me esforço para
entender as palavras.
“Trapaceiro, mentiroso, covarde, adúltero, blasfemo, ladrão, trapaceiro,
mentiroso, covarde, adúltero…”
“Está ouvindo isso, Snorri?”
Ele para e me deixa alcançar. “Sim.” Ele olha em volta, ainda espantado.
“Vozes. Ficam me chamando de assassino. Sem parar.”
“Só isso?”
“…blasfemo, ladrão, trapaceiro, mentiroso, covarde, adúltero…”
“Não está ouvindo ‘trapaceiro’ nem ‘ladrão’?”
Snorri franze o rosto para mim. “Só ‘assassino’.”
Eu ponho a mão atrás da orelha. “Ah, sim, está mais claro agora. Estou ou‐
vindo ‘assassino’ também.”
“…covarde, adúltero, blasfemo…”
“Blasfemo? Eu? Eu?” Olho em volta para os rostos petri cados apontados
na minha direção. Cada pedra durante uns cinquenta metros parece ter um
conjunto de feições grotescas que não destoariam das estátuas que decoram a
torre de meu tio-avô.
“Ira: você cometeu o pecado da ira…” vindo de umas vinte bocas.
“Não estou irado, cacete!” grito de volta, sem saber por que estou respon‐
dendo, mas levado pela maré de acusações.
“Luxúria: você cometeu o pecado da luxúria…”
“Bem… tecnicamente…”
“Jal?” A mão de Snorri repousa em meu ombro.
“Avareza: você cometeu o pecado da avareza…”
“Ah, espere aí! Todo mundo comete esse! Quer dizer, me mostre uma pes‐
soa…”
“Jal!” Snorri me sacode e me vira para encará-lo.
“Sim. Quê?” Olho para ele, piscando.
“Luxúria: você cometeu o…”
“Está bem! Está bem!” grito por cima das vozes. “Eu me entreguei à luxú‐
ria. Mais de uma vez. Levanto a mão para todos os sete, apenas cale a boca.”
“Jal!” Um tapa, e minha atenção se volta rmemente ao nórdico. “Essas
não são coisas com que os deuses se importam. Este é o seu credo. Estas são as
bobagens que os religiosos proclamam.”
Faz sentido. “E daí?”
“As terras mortas são moldadas pela expectativa, mas somos dois e nossas
fés discordam.” Ele me solta. “Estamos no domínio de Hel, onde ela reina so‐
bre tudo que está morto. Mas…”
“Mas?”
“Agora acho que entramos no seu Inferno.”
“Ai, meu Deus.”
“…não usará o nome de Deus em vão…” disse a voz do bispo James, embo‐
ra o subordinado de meu pai nunca tivesse soado tanto como se quisesse me
arrancar o couro.
Hel, a deusa duas-caras de Snorri, domina um submundo que é um lugar
bem horrendo, mas tenho a impressão de que o meu Inferno de fogo e enxo‐
fre, cheio de pecadores e com diabos para assá-los, pode superá-lo na sordidez.
“Vamos voltar.” Dou meia-volta e começo a retraçar nossos passos. “Como
foi que acabamos aqui? Você que é o crente.”
“…descrente, descrente, queime o descrente…”
“Quis dizer que você é quem tem a fé mais forte.”
“…infiel, infiel, atormente o infiel…”
“Não que a minha fé não seja bem forte também, louvado seja Jesus!” Faço
o sinal da cruz, Pai, Filho e Espírito Santo, e nem foi aquele aceno meia-bom‐
ba que Papai faz, mas sim a ação deliberada e precisa que o bispo James utiliza.
“Pode não ser você, Jal.” A mão de Snorri em meu ombro novamente, con‐
tendo meu movimento. Olho para trás e ele acena para frente com a cabeça.
Alguma coisa passa rapidamente na fresta entre duas pedras maiores espa‐
lhadas pelo chão do vale. Tenho apenas o vislumbre de alguma coisa — algu‐
ma coisa magra e pálida — alguma coisa ruim.
“Este é o Inferno do nosso inimigo. Ele o trouxe consigo na caçada.” Snor‐
ri está com o machado na mão agora.
“Mas ninguém sabe que estamos aqui…” Ponho a mão na chave, ali debai‐
xo de meu justilho, logo acima do coração. De repente ela parece pesada. Pesa‐
da e mais fria que gelo. “O Rei Morto?”
“Pode ser.” Snorri revira os ombros, com os olhos azuis quase pretos na
luz morta e xados na pedra onde a criatura despareceu. “Se de alguma manei‐
ra foi alertado de nossa presença, ele pode simplesmente querer vingança por
mantermos a chave longe dele.”
“A propósito…”
A criatura rouba qualquer conversa adicional, surgindo das sombras ao pé
da pedra e começando a correr em nossa direção com uma velocidade espanto‐
sa. Ela se impulsiona para frente com pernas nas feito ossos, e a força de cada
investida a inclina para um lado e é corrigida pelo próximo, traçando um ca‐
minho errático pelo campo de pedras, costurando-se entre elas e deixando os
rostos de pedra gritando de horror em seu rastro. Aquela coisa me faz lembrar
dos lamentos brancos que se vê no músculo de um homem quando é aberto
por um golpe de espada. Nervos, como chamou um dos meus tutores, apon‐
tando para os desenhos pavorosos em algum livro antigo de anatomia. Aquilo
se parece com um nervo: branco, no, longo, dividindo-se em membros que
por sua vez se dividem em três dedos que parecem raízes. A cabeça é uma cu‐
nha sem olhos, aguda o su ciente para se enterrar em uma pessoa.
“Lichkin.” Snorri diz o nome da fera e dá três passos em sua direção, me‐
dindo o tempo de seu golpe. Ele urra quando a cabeça de seu machado rasga o
ar, os músculos se contraindo ao impulsioná-lo para frente. O lichkin se obs‐
curece debaixo do ataque e ressurge pegando Snorri pelo pescoço, a outra mão
em sua barriga, levantando-o do chão e atirando-o para baixo com um barulho
chocante. A poeira se levanta em torno do impacto e não consigo ver como ele
aterrissou, mas, com tantas pedras, é improvável que tenha sido bem.
“Merda.” Finalmente me lembro de sacar minha espada. Ela sai cantando
da bainha, com a luz morta re etindo-se nas runas gravadas em sua extensão.
Minha mão está tremendo.
O machado de Snorri se ergue, instável no meio da poeira levantada, e o li‐
chkin o pega, continua o movimento para dar a volta e baixá-lo, em um círcu‐
lo que enterra a lâmina aproximadamente onde espero que a cabeça de Snorri
esteja. O impacto é abafado e nal. Só consigo ver o cabo do machado aponta‐
do para cima, quando o lichkin o abandona e vem na minha direção, com a
poeira ainda subindo em volta como fumaça. Aquela coisa emana um pavor
como o calor de uma fogueira.
“Ai, droga.” En o a mão pela gola do justilho e puxo a chave de Loki para
fora. “Olhe, pode car com ela, só me deixe…”
O lichkin avança, e é tão rápido que acho que eu devo ter cado paralisado
onde estava. Em um momento ele está ali ao lado da nuvem de poeira, e no ou‐
tro está com uma mão em volta do meu pescoço e a outra no punho do braço
que seguro a espada. O toque daquela coisa é mais abominável do que se pode
imaginar. Sua pele branca se une à minha, parecendo se fundir. Parece que
inúmeras raízes estão se afundando em mim, entocando-se entre as veias, cada
uma queimando com uma dor ácida que não deixa nem espaço para gritar.
Estou preso, inútil e imóvel enquanto aquele rosto branco e pontudo me
examina, e tudo que consigo fazer é implorar para morrer, mas incapaz de di‐
zer as palavras, com a mandíbula tão tensa que estou esperando meus dentes
se quebrarem a qualquer momento, simplesmente todos estraçalhados ao mes‐
mo tempo.
A cabeça do lichkin se abaixa na direção da chave de Loki, presa entre nós,
apontada para frente, com meu braço rígido e paralisado.
Avisto um objeto grande e fumegante, atrás da cabeça do lichkin, corren‐
do na nossa direção. No último instante eu percebo que é Snorri, com a poeira
se levantando dele a cada passo pesado. Ele está de mãos vazias, como se esti‐
vesse pensando em rasgar a criatura em pedaços apenas com a força. O lichkin
se vira, mais rápido que o pensamento, e o pega pelos ombros. Apesar de sua
magreza, o lichkin ca grudado ao chão e absorve todo o ímpeto do ataque do
viking, precisando apenas de um único passo brusco para trás.
Eu co ali, ainda paralisado naquele momento. A espada de Edris Dean
caiu da mão que o lichkin soltou, mas ainda não atingiu o chão. Meus olhos
acompanham seu progresso e veem que, ao pisar para trás, o lichkin se colocou
contra a haste preta da chave de Loki, cuja ponta entrou dois centímetros na‐
quela carne branca.
Todo que posso fazer é girá-la.
Ao girar, o negrume dela invade o alabastro do lichkin, disparando letes
de ébano por seu corpo, cada um se bifurcando e rami cando, manchando,
corrompendo. A gravidade me alcança e estou caindo, soltando a chave com
um puxão, mas mesmo comigo batendo no chão e levantando poeira, vejo que
o lichkin começa a se desfazer, como se fosse mil os, mil tubos brancos, agora
cinzentos e putrefatos, cada um se separando do próximo, a coisa toda se
abrindo, se espalhando, caindo.
•••
“Vermelhão!” Uma batida no teto da carruagem, com a voz rouca do bronco
que naquele momento estivesse nas rédeas. Sentei-me com um solavanco, en‐
sopado de suor.
“Ai, graças a Deus!” Calafrios correram por meu corpo. Olhei para meu
pulso, esperando ver a marca de queimado da mão do lichkin ainda ali. Lisa
fez um resmungo sonolento, com o rosto escondido pelos cabelos e a cabeça
em meu colo. O velho, Padre Agor, estreitou os olhos claros para mim com re‐
provação.
“Ele disse Vermelhão?” Levantei a cortininha e olhei para fora, apertando
os olhos contra a claridade. Passávamos pelos subúrbios de Vermelhão. “Final‐
mente!”
“Chegamos?” disse Lisa, piscando, com o rosto vincado onde estava deita‐
da e os de cabelo presos no canto da boca.
“Chegamos!” falei, com um sorriso tão largo que meu rosto doeu.
Lisa segurou minha mão e sorriu de volta, e de repente tudo estava certo
no mundo. Pelo menos até eu me lembrar de Maeres Allus.
Minutos depois, Lisa e eu desembarcamos no palácio de justiça na Praça
Golloth e camos duros, espreguiçando-nos, olhando em volta sem acreditar.
Padre Agor jogou uma moeda para um carregador, que pegou sua bagagem
em cima da carruagem e saiu atrás dele, com uma mala embaixo de cada braço.
Nosso comerciante silencioso partiu, com um garoto e uma mula carregando
seu baú, deixando Lisa e eu sozinhos em uma rua movimentada, e a carruagem
saiu sacolejando até algum estábulo que a recebesse.
Em minha viagem ao sul com Snorri, eu passava boa parte do dia planejan‐
do e esperando meu retorno a Vermelhão. Viajando com Lisa, eu mal disse
uma palavra sobre o assunto — talvez com medo de dar errado ou sem acredi‐
tar que, após tudo que havia aguentado, nosso lar estaria mais uma vez espe‐
rando para nos acolher, como se nada tivesse mudado. Mas ali estava ela, cheia,
quente, envolvida em suas próprias preocupações e indiferente à nossa chega‐
da. Um grande número de tropas estava reunido na Praça Adam, com seus su‐
primentos empilhados ao lado da academia de guerra.
“Pode me levar para casa, Jal?” Lisa virou-se da rua e olhou para mim.
“Melhor não. Conheci seu irmão mais velho, e ele não gosta de mim.” Lor‐
de Gregori teria me fatiado pessoalmente, se eu não tivesse me escondido atrás
de minha posição e feito ele incentivar conde Isen a fazer o serviço em seu lu‐
gar.
“Moro no palácio agora, Jal.” Ela olhou para os pés, de cabeça baixa.
“Ah.” Eu tinha me esquecido. Ela quis dizer nos quartos do apartamento
de Grand Jon na ala de hóspedes. Aqueles que dividia com seu marido. “Não
posso. Tenho uma coisa muito importante que preciso fazer imediatamente.”
Ela levantou os olhos, decepcionada.
“Olhe.” Eu balancei as mãos como se houve alguma coisa nelas que pudes‐
se explicar. “É melhor que eu não esteja lá. Não quando se encontrar com Bar‐
ras. E di cilmente irá lhe acontecer alguma coisa daqui até os portões do palá‐
cio.” Ela manteve aqueles olhos grandes em mim, sem dizer nada.
“Eu teria me casado com você, sabe disso!” As palavras me pegaram de sur‐
presa, mas agora já tinham saído e palavras não podem ser desditas. Elas cam
pairando ali entre vocês, esquisitas e desconfortáveis.
“Você não é do tipo para casar, Jal.” A cabeça inclinada, com um toque de
surpresa no rosto dela.
“Eu poderia ser!” Talvez eu pudesse. “Você era… especial… Lisa. Nós tí‐
nhamos uma coisa boa.”
Ela sorriu, fazendo eu desejá-la ainda mais. “A minha varanda não era a
única que você escalava, Jal. Nem mesmo no terreno de meu pai.” Ela pegou
minhas mãos. “Mulheres também gostam de se divertir, sabia? Principalmente
mulheres nascidas em famílias como a minha, que sabem que vão se casar para
a conveniência de seu pai, em vez de por escolha própria.”
“Seu pai teria agarrado a oportunidade de ter um príncipe para uma de su‐
as lhas!”
Lisa apertou minhas mãos. “Nosso irmão agarrou a oportunidade.”
“Darin.” Seu nome tinha o gosto azedo. O irmão mais velho. O que não
era visto saindo trôpego de bêbado dos bordéis ao amanhecer, ou apostando o
dinheiro de outros homens. O que não estava afogado em dívidas com crimi‐
nosos do submundo.
De repente eu não consegui aguentar a bondade dela nem mais um minu‐
to. “Olhe. Tenho uma coisa para fazer. Não pode esperar. Realmente preciso
fazer isso. E…” vasculhei o bolso interno de meu casaco. “Preciso de sua aju‐
da.” Tirei a chave de Loki, enrolada em um pano de veludo grosso bem amar‐
rado com um cordão. “Guarde isto para mim. Não abra. Pelo amor de Deus,
não toque nisso. Não mostre para ninguém.” Fechei as mãos dela em volta do
pacote. “Se eu não voltar ao palácio dentro de um dia, leve isso até a Rainha
Vermelha e diga que veio de mim. Pode fazer isso? É importante.” Ela fez que
sim e eu soltei suas mãos. E, de alguma maneira, embora a chave fosse de longe
a coisa mais valiosa no reino de Marcha Vermelha, pela qual lutei, sangrei e li‐
teralmente atravessei o Inferno para manter, não senti nenhuma angústia ao
deixar Lisa DeVeer levá-la. Apenas uma sensação de paz.
“Está me assustando, Jal.”
“Preciso sair e encontrar Maeres Allus. Devo muito dinheiro a ele.”
“Maeres Allus?” franziu a testa.
Lembrei que, para a maior parte de meu círculo, Allus era um comercian‐
te, certamente rico, mas nada além, e quem tem tempo para se lembrar dos no‐
mes de comerciantes? “Um homem perigoso.”
“Bem… deve lhe pagar.” Ela pegou minha mão nas dela. “E tome cuidado.”
A velha Lisa teria rido e me dito para dizer a esse sujeito Maeres que espe‐
rasse — e se ele tivesse a audácia de encostar a mão em mim, que eu sacasse mi‐
nha espada e fosse para cima dele. A nova Lisa estava muito mais familiarizada
com a realidade de espadas encontrando o corpo. A nova Lisa queria que eu
engolisse meu orgulho e pagasse ao homem. Houve no passado um Jalan que
teria aconselhado a brandir a espada também — mas aquele Jalan tinha oito
anos de idade, e fazia muito tempo que não nos reconhecíamos.
•••
Fui primeiro até a Guilda do Comércio, uma grande cúpula que pode ser
adentrada por muitos arcos em volta de sua circunferência. Embaixo da cúpu‐
la, em um amplo chão de mosaico, comerciantes de certo nível de riqueza se
reúnem para fechar negócios e fazer as fofocas que lubri cam as engrenagens
da indústria. Uma galeria passa em volta da cúpula, vários andares acima das
negociações, com portas que dão para escritórios com vista para a cidade ao re‐
dor.
Peguei dinheiro emprestado no pregão primeiro. Pedi em nome de minha
família, deixando a espada de Edris Dean como garantia adicional — não im‐
porta que mal a maculasse, ninguém podia negar a qualidade do aço, coisa an‐
tiga derretida das ruínas dos Construtores: nenhum ferreiro hoje tem a habili‐
dade de se equiparar à sua força. Não perguntei se notícias de minha prisão
por dívida em Umbertide haviam chegado a Vermelhão ainda, mas parecia im‐
provável, já que saí da Guilda com cinquenta coroas de ouro.
Com esse dinheiro e o restante das barras libanas de Omar, comprei rou‐
pas de qualidade su ciente para corresponder à minha posição, além de uma
corrente de ouro contrabandeado, um anel de rubi e um brinco de diamante.
Os trajes tiveram de ser ajustados ao meu corpo rapidamente, adaptados das
dimensões de seus destinatários pretendidos, mas paguei generosamente e per‐
doei quaisquer falhas no corte.
Para pegar muito dinheiro emprestado é preciso ter aparência correspon‐
dente. Um rei esfarrapado não vai ganhar nenhum crédito, não importa que
garantias possa ter.
Sem um tostão novamente, subi as escadarias da galeria, onde os presta‐
mistas mais ricos de Vermelhão ofereciam seus serviços. Maeres Allus jamais
teria permissão de ter uma sala neste círculo, embora tivesse grana para gurar
entre eles. O que mandava ali era dinheiro antigo, dinastias mercantes de boa
reputação e longos laços com a coroa. Escolhi me aproximar de Silas Marn, um
príncipe comerciante sobre quem meu tio-avô Garyus tinha uma boa opinião
ao longo dos anos.
Os homens na porta levaram minha petição para dentro e Silas teve a deli‐
cadeza de não me deixar esperando. Ele me recebeu pessoalmente em sua sala
de entrevistas, um aposento abobadado, todo de mármore, com bustos de vá‐
rios Marn mortos nos espiando das alcovas.
O homem, tão velho que praticamente rangia, levantou-se de sua cadeira
quando entrei, sobrecarregado por seus trajes de veludo. Gesticulei para que se
sentasse, e ele desistiu da tentativa antes que conseguisse se levantar por com‐
pleto.
“Obrigado por me receber em tão pouco tempo.” Sentei onde ele acenou e
camos frente a frente com uma mesa de mogno brilhante no meio.
“Jamais mandaria embora um príncipe do reino, príncipe Jalan.” Silas
Marn me olhou com os olhos castanhos turvos, quase perdidos nas várias do‐
bras de seu rosto, a pele coriácea e manchada pela idade. Dei-lhe um sorriso
largo e ele devolveu um mais cauteloso. Orelhas grandes e um nariz semelhan‐
te a um bico dominavam sua cabeça pequena, embora isso pareça ser o destino
de todo homem que vive tempo demais. “Como posso ajudá-lo?”
Empurrei a documentação relevante sobre a mesa. O papel amassado não
parecia estar em melhor estado que Silas, tão manchado e vincado quanto ele,
as palavras quase ilegíveis, o selo de cera rachado.
“Parece que atravessou o inferno.” Silas não se moveu para pegá-lo. “O
que é?”
“Escrituras de treze ações, de um total de vinte e quatro, nas minas de sal
de Crptipa.”
“Estou ciente de seus… contratempos em Umbertide, príncipe Jalan. Fo‐
ram feitas acusações contra você de natureza seríssima. Um assassino de crian‐
ças teria mais facilidade de conseguir crédito do que um falido acusado de vá‐
rias fraudes. Tenho certeza de que essas acusações não têm fundamento, é cla‐
ro, mas o simples fato de existirem é um impedimento terrível para…”
“Não estou procurando crédito. Quero vender. As minas de Crptipa têm
amplas reservas de sal, imediatamente adjacentes a alguns dos maiores merca‐
dos de portos do Império Destruído. Estão com a infraestrutura montada pa‐
ra aumentar a produção, agora que a saída de Kelem abriu áreas de exploração
que caram proibidas durante séculos. A produção da mina pode ser mais ba‐
rata que o fornecimento importado, mas ainda gerando lucros consideráveis
em cada tonelada. Como devedor, estou livre para conduzir negócios de modo
a gerar fundos para arcar com minhas obrigações.”
Silas pôs a mão enrugada sobre a escritura de venda. “Estou vendo que o
sangue de seu tio-avô não está totalmente ausente de suas veias, príncipe Ja‐
lan.”
Senti uma pontada de culpa nesse momento. “Ele está bem? Quer dizer…
três navios…”
Aqueles olhos velhos se estreitaram de reprovação, os lábios secos forman‐
do uma linha na. O comerciante me observou por um momento e depois re‐
laxou em um sorriso mínimo. “Seria preciso mais que três navios para fazer
um buraco nos negócios de seu tio. Mesmo assim — e com o maior respeito —
não foi bom perdê-los.”
“Quanto vai me dar?” batuquei na mesa.
“Direto.” O sorriso de Silas se alargou. “Talvez ache que um homem da
minha idade não tem tempo para perder com rodeios?”
“Faça uma oferta. O lugar vale cem mil.”
“Estou ciente de seu valor. As minas têm sido objeto de uma especulação
considerável. As legalidades de sua alegação, no entanto, exigiriam esclareci‐
mentos consideráveis e correm o risco de nesse meio tempo o duque de Um‐
bertide decretar o con sco de seus bens, devido à sua saída sem autorização.
Vou lhe dar dez mil. Considere um favor à sua família.”
“Dê cinco mil, mas me deixe comprá-la de volta por dez mil dentro de um
mês.”
O velho inclinou a cabeça, como se escutasse os conselhos de algum asses‐
sor invisível. “Fechado.”
“E preciso sair daqui com o ouro dentro de uma hora.”
Aquilo fez as sobrancelhas brancas se levantarem uma distância considerá‐
vel. “Será que é possível um homem carregar cinco mil em ouro?”
“Já z isso antes. Os braços doem no dia seguinte.”
•••
E foi assim que, uma hora depois, saí carregando uma pequena caixa, porém
extremamente pesada, apertada contra o peito. Foi preciso meia dúzia de su‐
balternos idosos correndo sob da cúpula da Guilda do Comércio, pedindo fa‐
vores a torto e a direito, mas Silas reuniu as moedas necessárias, e eu entreguei
o controle acionário da mina de sal mais valiosa do Império Destruído.
Caminhei pelas ruas principais desejando ter aceitado a oferta de Silas de
levar um carregador, enquanto ao mesmo tempo ainda concordava com meu
próprio argumento de que ninguém deveria perder a oportunidade de carre‐
gar tanto ouro. Minha passagem atraiu alguns olhares, mas ninguém seria tolo
o su ciente de pensar que eu carregaria tanta riqueza desprotegido, e, mesmo
que soubessem, poucos seriam tolos o su ciente de tentar me roubar nas lar‐
gas avenidas do centro da cidade. De qualquer modo, minha roupa nova vinha
com uma pequena faca em um bolso interno, logo acima do punho, pronta
para se soltar rapidamente e furar as mãos dos ladrões.
Quando cheguei ao grande abatedouro, a quinhentos metros da sede da
Guilda do Comércio, meus braços pareciam ser duas vezes mais compridos e
feitos de gelatina. Olhei para o edifício impressionante acima. Parecia que
uma eternidade tinha se passado desde que estive ali dentro pela última vez.
Pouco mais de um ano, de acordo com o calendário. Mais de três mil e duzen‐
tos quilômetros, a pé. No passado um abatedouro de gado, carne para as mesas
da realeza, e agora um lugar onde homens cortavam carne humana, os Buracos
Sangrentos eram um dos lugares favoritos de Maeres Allus.
Os brutamontes na porta me deixaram entrar sem pestanejar. Homens ri‐
cos vinham todos os dias para ver pobres morrendo e apostar nos resultados.
O irmão mais velho dos Terrif, Deckmon, com certeza me reconheceu, levan‐
tando os olhos de sua mesa de apostas. Ele pôs o dedo na pele sob o olho es‐
querdo e puxou para baixo, avisando que minha entrada havia sido marcada.
As pessoas de sempre circulavam em torno dos quatro grandes fossos, e os
homens dos números cavam às margens, com as probabilidades escritas a giz
acima de seus postos. Tirei um momento para absorver aquilo, a cor, o baru‐
lho, os aristocratas perseguidos por seus bajuladores, como um círculo de pa‐
rasitas, e passando para lá e para cá havia vendedores de vinho, de papoula, e
damas de afeto negociável.
O cheiro de sangue permeava tudo, constante. Eu não tinha notado, em
todos aqueles anos que passei ali, apostando na carni cina. O cheiro me trou‐
xe lembranças, não dos Buracos Sangrentos, mas da Passagem Aral e do Forte
Negro. Por um instante, senti as águas geladas do Slidr me envolverem e o ca‐
lor berserker subindo ao encontro delas.
Cruzei o caminho até Will Comprido, um técnico e caça-talentos, um a‐
po de homem, coroado por cabelos grisalhos espetados. “Maeres está aí?”
Will Comprido apontou com a cabeça na direção do Ocre. Dos quatro
grandes fossos, era o que cava mais longe das portas principais. Passei no
meio da multidão, suando, e não só pelo esforço de carregar meu tesouro. Só
de pensar em Maeres Allus eu já cava arrepiado, e minhas pernas cavam tão
fracas quanto meus braços trêmulos — embora com esse medo tivesse vindo
também uma raiva, um calor crescente que estava ali, por baixo do pavor, fa‐
zendo-me companhia durante toda a viagem longa e sacolejante de Marsail.
Uma menina bonita passou os dedos pelo meu cabelo, um vendedor de vi‐
nho me empurrou um cálice de estanho. Olhei de maneira incisiva para o co‐
fre que ocupava minhas duas mãos.
“Príncipe Jalan?” Alguém me reconhecendo, sem certeza.
“É Jalan?” Um barão gordo do sul. “Não pode ser.”
Subalternos se afastaram diante de mim quando me aproximei do grupo
reunido à beira do Ocre. Mais de um ano. Milhares de quilômetros. Dos deser‐
tos de gelo às areias escaldantes. Caminhei pelo Inferno… e ali estava eu nova‐
mente, de volta ao ponto de partida. Catorze meses depois, mal me reconheci‐
am naquele lugar onde eu passava tanto tempo, gastava tanto dinheiro e des‐
perdiçava tanto sangue de outros homens.
Um burburinho cresceu ao meu redor: mesmo que a multidão não tivesse
certeza do meu nome, ela reconhecia um homem determinado caminhando
para o centro das coisas. As últimas camadas se afastaram, homens que eu co‐
nhecia de vista e de nome, os associados de Maeres, comerciantes controlados
por ele, lordes inferiores procurando empréstimos ou sendo procurados para
levar vantagem em alguma coisa. O negócio dos negócios, enquanto sete me‐
tros abaixo dois homens lutavam, cada um fazendo seu melhor para bater no
outro até a morte com os punhos.
Dois slovianos de rosto estreito se afastaram e lá, revelado entre eles, estava
Maeres Allus, pequeno, moreno, de túnica modesta — olhando para ele nin‐
guém diria que era dono do local e de muito mais. Ele não demonstrou nem
surpresa nem interesse por minha aparição.
“Príncipe Jalan, esteve longe por muito tempo.” Um urro de triunfo sur‐
giu do fosso atrás dele, mas ninguém mais parecia interessado. Imaginei o luta‐
dor vitorioso olhando para cima, esperando rostos comemorando, e vendo
apenas o parapeito de madeira e uma ou outra nuca.
Jorg Ancrath, aquele prodígio sobre o qual muitas profecias pareciam cir‐
cular, aquele jovem feroz e vitorioso em torno de quem os planos de minha
avó pareciam girar, o jovem rei que acendeu um Sol dos Construtores em Gel‐
leth e outro na porta de entrada de Hamada… havia me dado um conselho so‐
bre como lidar com Maeres Allus. Ele disse as palavras na escuridão quente e
ébria de uma noite hamadiana, e agora, com Allus nalmente à minha frente,
aquelas palavras esquecidas começaram a borbulhar das profundezas escuras
de minha memória. “Vim acertar nossas contas, Maeres. Talvez possamos ir a
algum lugar com privacidade.” Apontei com os olhos para as alcovas cortina‐
das onde se conduziam todos os tipos de negociações dos Buracos Sangrentos,
das carnais às comerciais, não que a primeira não fosse igual à segunda.
Os olhos escuros de Maeres repousaram sobre o cofre em meus braços.
“Acho que talvez nossos negócios tenham acontecido demais atrás de portas
fechadas, príncipe Jalan. Vamos resolver nossas pendências aqui.”
“Maeres, é pouco adequado…”
“Aqui.” Foi um comando. Ele queria me humilhar diante de testemunhas.
“Eu realmente não…”
“Aqui!” Desta vez um brado. Não me lembro de Mares Allus levantar a
voz antes disso. Ele olhou sobre o ombro para o fosso abaixo. “Uma pobreza
de luta. Ponha o urso lá dentro.”
Se havia alguém nos Buracos Sangrentos tão envolvido em seus próprios
assuntos e que não estava olhando na minha direção, a menção ao urso logo
mudou isso. Uma onda se agitou pela multidão, e ao mesmo tempo todos co‐
meçaram a seguir na direção do Ocre, atraídos pelos gritos de misericórdia do
lutador e pela possibilidade de vê-lo não ser atendido.
Maeres não se virou para assistir ao espetáculo, mantendo os olhos em
mim em vez disso. Ficamos parados ali daquele jeito, com a turba à nossa volta
berrando por sangue, as vozes competindo inicialmente com os gritos do ho‐
mem, e depois com o barulho macabro do urso despedaçando sua refeição.
“Tinha assuntos a tratar, príncipe Jalan?” Maeres levantou a cabeça, con‐
vidando minha resposta. Dois de seus capangas estavam ao meu lado agora,
homens durões que sobreviveram aos fossos e foram alçados à sua posição atu‐
al.
“Vim aqui quitar minhas dívidas, Maeres. Pedi emprestado de boa fé e dei
minha palavra que pagaria na íntegra. Meu pai é lho da Rainha Vermelha e
não faço promessas à toa.” Peguei pesado na fanfarra. Se era para gastar milha‐
res em ouro, pelo menos que eu aproveitasse o momento. “Lembre-me de
quanto é o débito.”
Maeres estendeu a mão e um sujeito pesadão de preto pôs uma lousa na
palma dele. Eu sabia que o cara era contador de Maeres, mas com aqueles de‐
dos grandes como salsichas ele parecia mais adequado para lutar com trolls do
que para lidar com números. “A dívida está em três mil e onze coroas de ou‐
ro.” Um forte sobressalto correu pelos espectadores, talvez até o próprio pré‐
dio tenha sugado suas paredes ao ouvir aquela quantia. Muitos ali teriam di ‐
culdade de imaginar uma soma tão alta, e ninguém da pequena nobreza era
tão rico que a perda de três mil não faria falta.
Três mil excedia o que eu pegara com Maeres por uma margem considerá‐
vel. Mesmo com meses de juros. Descon ei que estava sendo cobrado pelos
serviços dos homens que mandou atrás de mim, Alber Marks, João Cortador e
os irmãos slovianos que foram incumbidos de me devolver à cidade para uma
morte secreta e horrível. Com um grunhido de esforço, apoiei a caixa em um
braço dolorido e abri a tampa com a outra mão. “Se quiser mandar seu ho‐
mem contar a quantia necessária.” Dei um passo à frente, de modo que o cofre
quase chegou até Maeres, na altura da sua cabeça, com o brilho das moedas
iluminando seu rosto.
Demorou um pouco, mas cada cavada que o contador dava com aquelas
mãos de pá aliviava meu peso. Ele pesou as moedas em suas balanças, dizendo
os valores em voz alta e depois jogando o monte reluzente em um saco de cou‐
ro. Ele rapidamente pediu outros dois ao perceber que o que tinha era peque‐
no demais para receber meu pagamento.
“Mil.”
Enquanto o contador cavava e pesava, pesava e cavava, Maeres continuou
olhando para mim, com os olhos escuros e indecifráveis. A loucura que havia
visto neles, naquele dia nos salões de papoula, agora estava escondida.
“O pagamento de um empréstimo é sempre bem-vindo, mas me diga, o
que ocasionou essa mudança de comportamento, de um homem tão ávido pa‐
ra pegar emprestado para um homem tão disposto a pagar?”
“Dois mil.” O contador amarrou um segundo saco.
Encarei de volta. Será que Maeres estava me convidando a anunciar seus
métodos? Me provocando? Esse assassino de gostos depravados, matando den‐
tro das muralhas de Vermelhão, jantando tão perto do palácio que as sombras
das torres seriam capazes de tocar sua mansão, mais rico que muitos lordes,
criando suas próprias leis e executando sua própria justiça. “Conheci um rei e
pedi seus conselhos.”
“E ele lhe aconselhou a me pagar?”
Pensei em meu encontro com Jorg Ancrath. Quando falei de meu proble‐
ma, ele cou quieto no início, depois sério, como se nem uma gota tivesse pas‐
sado em seus lábios a noite toda. “Ele me disse para dar a você o que deseja.”
Pus o cofre no chão entre nós e esfreguei os braços.
“Um rei realmente sábio.”
“Três mil.” O contador amarrou o último saco, depois se curvou sobre o
cofre mais uma vez e começou a contar as últimas onze moedas.
“Parece um homem mudado, príncipe Jalan. Espero que suas viagens no
que resta de nosso antigo grande império não o tenham amargurado.”
“Seis… sete… oito.” O contador pôs as moedas em um bolso de seu avental
de couro.
“Atravessei o Inferno, Maeres.”
“As estradas podem mesmo ser perigosas,” assentiu. “Ainda assim, tenho
certeza de que veremos o retorno do antigo príncipe, um rapaz tão alegre, tão
certo de suas opiniões, tão disposto a gastar.”
“Nove… dez…”
“Também espero, mas por ora o príncipe que está vendo à sua frente terá
de servir.” Lembrei da sensação de estar amarrado à mesa dele, da expressão
em seu rosto quando me passou para João Cortador, de como gritei e implo‐
rei. Snorri confundiu aquilo com bravura.
“Onze.” O contador se endireitou, parecendo relutante em deixar o cofre
ainda com ouro no fundo. “A dívida está quitada.”
“Muito bem.” O sorriso de Mares me disse que sabia que, apesar das cor‐
rentes da dívida serem retiradas, ele agora realmente me possuía muito mais
do que antes. Senti um calafrio, o desa o gelado do Slidr, e o calor vermelho
que me zera atravessar o rio mais a ado do Inferno agora surgiu para afastar
aquele frio. Lembrei-me de todas as palavras do menino-rei.
“Jorg Ancrath me disse: ‘Dê a ele o que deseja’.” Dei um passo para frente,
abaixando para pegar meu cofre.
“Mais uma coisa, príncipe Jalan,” disse a voz de Maeres, me fazendo parar
quando estava me curvando. Uma mão fria se fechou em torno de meu cora‐
ção e eu soube que o único caminho aberto para mim era o de Jorg.
“Ele falou que você diria isso.” Eu me lembrei de tudo. Lembrei da escuri‐
dão, do calor, da previsão de Jorg Ancrath: “Depois que você pagar, ele vai pe‐
dir mais. Só mais uma coisa, ele vai dizer.” E me lembrei da expressão nos
olhos do menino-rei.
“Ele disse: dê a ele o que deseja.” Eu me endireitei, rápida e tranquilamen‐
te, sem encostar na caixa. “Então tome o que deseja.” Com um movimento do
meu pulso, arrastei as costas da mão pelo pescoço de Maeres. A pequena faca
triangular, antes oculta em minha manga e agora com a lâmina saindo entre
meus dedos, cortou o pescoço dele. Eu quase nem senti.
Peguei-o pela nuca e o segurei bem perto, soltando jatos vermelhos e ten‐
tando falar. Terminei o serviço antes de todos os homens dele sequer percebe‐
rem o que havia acontecido.
“Sou neto da Rainha Vermelha.” Urrei as palavras no meio do silêncio.
“Maeres Allus está morto. Sua vida acabou nas minhas mãos. Não há mais na‐
da a proteger aqui.” Sangue quente ensopava meu peito enquanto eu segurava
Allus contra mim, levantando o queixo quando um dos braços dele se ergueu,
fraco, tentando arranhar meu rosto. “Não me importa como seus bens serão
divididos, mas se levantarem uma mão para mim eu juro por Deus que irão
perdê-la.”
A multidão se afastou de nós, horrorizada, como se a violência a que assis‐
tiam todos os dias, sete metros abaixo do nível de seus sapatos, fosse algo dife‐
rente, uma farsa talvez, mas um homem de túnica bem-feita sangrando entre
eles era real demais e os deixou pálidos com uma expressão de repulsa.
Os guardas de Allus também recuaram. Seu chefe estava morto, e o cora‐
ção dele perceberia isso em breve. Eles não tinham nada a ganhar cando con‐
tra mim agora. Tudo havia terminado para eles no instante em que cortei a
garganta de seu mandachuva.
Empurrei Allus para longe. Ele cambaleou para trás, com sangue pulsando
de seu corte no pescoço, tentando se apoiar no parapeito de madeira. Fui atrás
e o empurrei, metendo as duas mãos com força em seu peito. Ele virou de per‐
nas para o ar e caiu para trás por cima da barreira. Olhei para ele de cima. “O
urso é grande o bastante para você?” gritei em um volume para toda a multi‐
dão ouvir, embora o próprio Maeres já não escutasse mais.
Eu me virei e peguei meu cofre. Pude ver alguns aduladores de Allus sain‐
do por várias saídas. O contador estava apertando uma ferida na lateral e os
três sacos haviam desaparecido. Brigas começaram mais para trás da multidão.
Meia dúzia dos guardas dos irmãos Terrif estavam me cercando.
“Ele está morto!” gritei para eles. “Sou um príncipe do reino, porra. Vão
encostar em mim?” Passei pelo primeiro deles, sem lhe dar atenção. “Ah,
bom!” Continuei caminhando, deixando os espectadores saírem da minha
frente.
Longo antes da entrada eu virei para trás. Várias lutas sangrentas estavam
acontecendo e os elementos mais ricos começaram a fugir do local.
Utilizei meu grito majestoso para ser ouvido. “As tropas de minha avó irão
queimar as papoulas ao anoitecer. Mandados de morte serão expedidos para os
capitães de Allus. Espero ver a cabeça de Alber Marks em um espeto pela ma‐
nhã. A de João Cortador também, e haverá leniência a qualquer pessoa que
ajude a colocá-las lá.”
Virei e fui embora, saindo pelas portas principais, com alguns lordes que
tinham se perguntado sobre a minha identidade agora correndo pela rua à mi‐
nha frente, e muitos outros se aglomerando atrás de mim. Foi aí que ouvi o
murmúrio pela primeira vez. “Príncipe Vermelho.” Abaixando a cabeça e
olhando para mim, saindo à luz do dia, vi que poucas partes de mim não esta‐
vam vermelhas com o sangue de Maeres Allus.
Andei vinte passos e me apoiei em um dos grandes pilares que sustentam
as paredes do abatedouro, com a testa na pedra fria por causa da sombra. Vi
minha faca cortar a garganta de Allus, repetidamente. Na terceira vez, vomitei
até car vazio. Por m, fui embora, fraco e trêmulo, limpando a boca.
“Dê a ele o que deseja,” Jorg havia dito. “Depois tome o que você deseja.
Ninguém ca mais vulnerável do que em seu momento de vitória, e você sabe
que, não importa o que faça, esse homem jamais deixará você em paz enquan‐
to estiver vivo.”
Fui embora, com o cofre pesado em meus braços, ainda um covarde. Não
era nem o velho Jalan, nem aquele que saiu de Vermelhão um ano atrás. Talvez
um pouco de ambos — ainda covarde, mas, quando você olha para sua antiga
vida com olhos que viram o Inferno, uma nova perspectiva é descoberta e você
percebe que só aguenta ser pressionado até certo ponto.
8
Voltei ao Salão Roma e encontrei meu irmão Martus de péssimo humor, pres‐
tes a atacar. “Aí está ele. Para onde você sumiu, inferno?” Ele saiu de uma an‐
tessala do saguão de entrada.
“Tinha negócios com…”
“Bem, não importa. Que bom que se limpou. Teve sorte de não levar um
tiro, confundido com um ghoul.”
“Um ghoul?”
“Sim, um maldito ghoul. Não sabe o que está acontecendo? Onde diabos
você se meteu? Debaixo de uma pedra?”
“Bem, sim, durante um tempo. Mas mais recentemente, Marsail, as Ilhas
Corsárias, o deserto libano e o Inferno. Então, o que está acontecendo?”
“Problemas! É isso. Vovó está marchando o Exército do Sul para a Slóvia
em uma campanha mal concebida. Ela nem se importa com a Slóvia, está atrás
é de uma maldita bruxa. Diz ela que os duques da Slóvia estão protegendo a
mulher. Um exército inteiro! Por causa de uma mulher… e o pior de tudo é
que o meu comando vai car aqui.”
“Sim, é a pior parte.” Eu z que ia embora. Estava de estômago vazio e tive
um desejo repentino de enchê-lo com alguma coisa deliciosa.
“Aquele maldito Gregori DeVeer.” Martus estendeu a mão e segurou meu
ombro, impedido minha fuga. “Aquele exército de peões dele está se formando
como a vanguarda. Ele vai voltar como um maldito herói. Eu já sei. Vai car
remoendo essa campanha durante os jantares no refeitório dos o ciais durante
anos, en leirando as uvas: ‘a tropa sloviana estava defendendo a serra’, empur‐
rando as cerejas: ‘nossa coluna de infantaria de Marcha Vermelha atacou pelo
oeste…’. Caramba. E aquela velha vai me deixar aqui de babá da cidade.”
“Bem. Seria bom se pudesse mantê-la em uma parte só.” Cocei a barriga.
“Mas será que é realmente preciso… quantos vocês são?”
“Dois mil homens.”
“Dois mil homens!” Tirei a mão dele do meu ombro. “Do que está espe‐
rando nos proteger? Estamos em Vermelhão! Ninguém vai nos atacar.”
“Acabei de lhe dizer, idiota!”
“Você não disse… Espere, ghouls?”
“Ghouls, trapoeiros, homens-cadáveres. Têm sido vistos por toda a cidade
nos últimos dois meses. Nada que a guarda não consiga administrar, mas as
pessoas estão cando assustadas. Elas já estão com medo su ciente só com o
Exército do Sul lotando as ruas.”
“Bem… melhor prevenir do que remediar, acho. Vou dormir melhor na ca‐
ma de outra pessoa sabendo que está patrulhando as muralhas, irmão.” E com
isso eu me virei e saí rapidamente, para escapar de alguma mão controladora
que pudesse vir em minha direção.
•••
Por mais que eu quisesse deixar os assuntos de estado para as pessoas que im‐
portavam, não consegui me esquecer das reclamações de Martus. Não que eu
me importasse com suas chances perdidas de glória — mas quei preocupado
com ideia de que vovó estava mandando o exército para uma guerra que pare‐
cia bastante arbitrária, bem na hora que Vermelhão estava começando a ver
evidências reais dos perigos sobre os quais ela nos alertara durante anos. As
perguntas sem respostas me zeram voltar às escadarias de Garyus. Duvidei
que a Rainha Vermelha fosse ser especialmente receptiva, principalmente de‐
pois de nossa última reunião, e francamente eu não conhecia mais ninguém
em Marcha Vermelha que, além de ter a informação que eu procurava, tivesse
a disposição de dividi-la comigo.
O velho estava onde eu o deixara, curvado sobre um livro.
“Livros!” disse ao entrar. “Ninguém põe nada de bom em um livro.”
“Sobrinho-neto.” Garyus pôs o objeto ofensivo de lado.
“Explique esse negócio sloviano para mim.” Parecia não haver sentido em
fazer rodeios. Queria tranquilizar minha cabeça para poder sair e car bêbado
em boa companhia. “Ela está começando uma guerra… para quê? Por que ago‐
ra?”
Garyus sorriu, um troço torto. “Não sou o guardião de minha irmã.”
“Mas você sabe.”
Ele deu de ombros. “Algumas partes.”
“Há ghouls na cidade. Outras… coisas também. O Rei Morto voltou suas
atenções para cá. Por que ela sairia para lutar com estrangeiros a centenas de
quilômetros daqui?”
“O que fez a atenção do Rei Morto se voltar para cá?” perguntou Garyus.
Sem querer dizer a culpa era minha, eu não disse nada. Embora, para ser
justo, o relato de Martus tenha indicado que os mortos vinham se agitando
dentro de nossas muralhas fazia algum tempo, e eu tinha acabado de voltar.
“A Dama Azul comanda o Rei Morto,” Garyus respondeu por mim.
“E por quê…”
“Alica diz que nosso tempo está se esgotando, e rápido. Que os problemas
aqui em Vermelhão são para distraí-la, para mantê-la aqui. O verdadeiro peri‐
go não está em deter a Dama Azul. A Roda de Osheim ainda está girando…
quanto tempo nos resta, não se sabe, mas se a Dama Azul não for controlada e
continuar a empurrá-la, nossos últimos dias escorrerão por entre os dedos
com tanta rapidez que até os velhos como eu carão preocupados.”
“Então realmente é um exército inteiro, uma guerra inteira, só para matar
uma mulher?”
“Às vezes é o necessário…”
•••
Cheguei aos aposentos de meu pai também sem saber por quê. Descobrir mais
sobre a guerra da mãe dele foi a desculpa que me levou até lá, mas a Rainha
Vermelha preferiria contar seus planos ao bobo da corte — se tivesse um — do
que a Reymond Kendeth.
Bati na porta do quarto dele e uma empregada abriu. Não percebi qual
empregada. O vulto na cama prendeu minha atenção, curvado sobre si mesmo
na penumbra, com os contornos delineados apenas em alguns pontos, onde a
luz do dia encontrava uma fresta nas venezianas.
A empregada fechou a porta atrás de si ao sair.
Fiquei parado ali, sentindo-me como uma criança novamente, sem pala‐
vras. O lugar cheirava a vinho azedo, mofo abandonado, doença e tristeza.
“Pai.”
Ele levantou a cabeça. Parecia velho. Careca, grisalho, a carne afundada
nos ossos, com um brilho doentio nos olhos. “Meu lho.”
O cardeal chamava todo mundo de “meu lho”. Centenas de sermões em‐
poeirados me vieram à mente — todas as vezes em que quis um pai e não um
clérigo, todas as vezes, desde que mamãe morreu, que eu desejei ver o homem
que ela via nele, pois, arranjado ou não, ela não se entregaria a um homem por
quem não sentisse respeito ou desse valor.
“Meu lho?” repetiu ele, com a voz rouca. Bêbado outra vez.
O motivo pelo qual eu viera me escapou e me virei para sair.
“Jalan.”
Virei-me outra vez. “Então está me reconhecendo.”
Ele sorriu. Uma coisa fraca, quase uma careta. “Estou. Mas você mudou,
menino. Cresceu. Primeiro pensei que fosse seu irmão… mas não saberia dizer
qual dos dois. Você tem coisas de ambos.”
“Bom, se for apenas me insultar…” Na verdade, eu sabia que era um elo‐
gio, pelo menos a parte de Darin. A parte de Martus, talvez. Pelo menos Mar‐
tus era corajoso, e praticamente nada mais.
“Nós…” Ele tossiu e apertou o peito. “Tenho sido um péssimo…”
“Pai?”
“Eu ia dizer cardeal. Mas fui um péssimo pai também. Não tenho descul‐
pa, Jalan. Foi uma traição de sua mãe. Minha fraqueza… o mundo passa tão rá‐
pido, e os caminhos mais fáceis são… mais fáceis.” Ele se abateu.
“Você está bêbado.” Embora esse fosse um julgamento que eu não podia
usar contra ninguém. Nós nunca conversamos daquela maneira, nunca. Mui‐
to bêbado. “Deveria dormir.” Eu não queria aquelas desculpas esfarrapadas,
esquecidas no dia seguinte. Não conseguia olhar para ele sem repulsa, apesar
de não saber se aquilo era apenas medo de estar olhando para um espelho e
vendo a mim mesmo velho. Eu queria… Queria que as coisas tivessem sido di‐
ferentes… Eu o via pelo outro lado da morte de mamãe agora. Snorri havia fei‐
to isso por mim, me mostrado que a dor de um marido pode arrasar até o mai‐
or dos homens. Queria que ele não tivesse me mostrado — era mais fácil odiar
papai, compreendê-lo só me deixava triste.
“Devíamos… passar um tempo juntos, conversar, fazer o que quer que…”
Outra tosse. “O que quer que devemos fazer. Minha mãe… bem, você a conhe‐
ce, ela não foi tão boa nessa parte das coisas. Eu sempre disse que me sairia me‐
lhor. Mas quando Nia morreu…”
“Você está bêbado,” disse-lhe, percebendo minha garganta apertada. Fui
até a porta e a abri. De alguma maneira, não consegui apenas sair — as pala‐
vras não queriam ir embora comigo, precisava deixá-las no quarto. “Quando
estiver melhor. Então conversaremos. Ficaremos bêbados juntos, como deve
ser. Cardeal e lho.”
•••
Dois dias depois, a Rainha Vermelha conduziu o Exército do Sul a sair de Ver‐
melhão, as colunas de dez mil soldados marchando pelas largas avenidas do Pi‐
atzo até o Portão da Vitória. Vovó estava montada em um enorme garanhão
vermelho, com sua armadura de metal gótica e esmaltada de carmim como se
tivesse acabado de mergulhar em sangue. Eu havia testemunhado a Rainha
Vermelha ganhando seu apelido e tinha poucas dúvidas de que logo ela estaria
usando uma armadura mais prática e mesmo assim estaria preparada para
mergulhar pessoalmente em sangue de verdade, caso fosse necessário. Ela não
deu a menor atenção à multidão, com o olhar xo nos amanhãs que viriam.
Seus cabelos, de ferrugem e ferro, puxados para trás sob um círculo de ouro.
Estava para ver uma velha mais assustadora — e já tinha visto várias.
Atrás da rainha vinham os remanescentes de nossa cavalaria, antigamente
orgulhosa, soltando uma quantidade considerável de bosta para a infantaria
atravessar. É o que eu digo: comece como quer continuar.
Fiquei ao lado de Martus e do meu outro lado estava Darin, que voltou do
seu ninho de amor no interior. Ele trouxe Micha de volta com ele ao Salão Ro‐
ma, aparentemente com um bebê, embora eu só tivesse visto uma cesta com
correntes prateadas penduradas e cheia de lacinhos. Darin cou ameaçando
me apresentar para minha nova sobrinha, mas até agora eu havia evitado o en‐
contro. Não me dou muito com bebês. Costumam vomitar em mim ou então
desafogar o outro lado.
— Viva… um des le… — O sol do outono nos castigava enquanto aplaudí‐
amos e acenávamos do camarote real. A multidão de espectadores recebeu
bandeiras com as cores do sul, e muitos balançavam bandeiras de Marcha Ver‐
melha, divididas na diagonal, vermelho em cima pelo sangue derramado na
marcha, preto embaixo pelos corações de nossos inimigos. Martus lamentou o
estado da cavalaria e o fato de ter sido deixado para trás. Darin observou que o
inverno na Slóvia podia ser rigoroso, e esperava que as tropas estivessem equi‐
padas para isso.
“Eles vão voltar em um mês, seu tonto.” Martus deu a nós dois um olhar
de escárnio como se eu tivesse alguma coisa a ver com aquela insinuação.
“A experiência nos ensina que os exércitos geralmente atolam — não im‐
porta quão seco seja o clima,” disse Darin.
“Experiência? Que experiência você tem, irmãozinho?” Um deboche com‐
pleto de Martus agora.
“História,” disse Darin. “Pode encontrá-la nos livros.”
“Bah. Tudo que a história nos ensina é que não aprendemos nada com
ela.”
Deixei a discussão deles de lado e assisti à marcha da infantaria, com lanças
sobre os ombros e escudos nos braços. Veteranos ou não, poucos deles pareci‐
am mais velhos que Martus e alguns mais novos que eu.
Dez mil homens parecia uma força pequena para desa ar a potência de
Slóvia, mas na verdade um exército de soldados bem treinados e equipados co‐
mo os do sul pode fazer cinco vezes mais recrutas camponeses saírem correndo
pelos campos. Considerando-se o objetivo de vovó, dez mil parecia su ciente.
Era o bastante para um ataque, bastante para atingir a área desejada, e bastan‐
te, quando a Dama Azul fosse arruinada, para lutar em retirada até as frontei‐
ras defensáveis.
Desejei a eles alegria no que estavam fazendo. Minha maior prioridade
permanecia a mesma. A busca do lazer — por de nição uma perseguição meio
lânguida. Eu queria relaxar em Vermelhão, com minha liberdade nanceira re‐
cém-adquirida, livre das ameaças de Maeres Allus e de todas aquelas dívidas
cansativas.
“Príncipe Jalan.” Um dos guardas de elite de vovó estava ao meu lado, sur‐
gindo de maneira irritante. “O comissário deseja sua presença.”
“O comissário?” Olhei para Martus e Darin, que encolheram os ombros
de modo exagerado, tão interessados quanto eu na resposta.
O guarda respondeu apontando para o Portão da Vitória e levantando o
dedo. Lá na muralha, logo acima do portão, estava um palanquim, enfeitado e
cortinado, com dois grupos de quatro homens nas barras de transporte de ca‐
da lado e guardas ladeando-os. Guardas de vovó.
“Quem…”
Mas o guarda já havia saído. Engoli minha curiosidade e me apressei atrás
dele. Trilhamos um caminho por trás da multidão até uma das escadarias que
levavam ao interior da muralha da cidade. Após subirmos ao parapeito, fomos
até o palanquim, onde os homens me conduziram por uma faixa perigosamen‐
te estreita da passarela que não estava ocupada pela caixa do comissário. Ao
chegar às cortinas, abaixei-me para entrar, sem esperar um convite.
Entrei, bastante curvado para não arrastar a cabeça e me en ei no banco
oposto. Garyus não conseguia se sentar no assento, e apenas se recostou em
uma rampa de almofadas empilhadas ali. “O que diabos é isso? Vovó pôs você
de regente?”
Ele encrespou o rosto em um sorriso. “Acha que não sou capaz de dar con‐
ta, sobrinho-neto?”
“Não, bem, quer dizer, sim, claro…”
“Um voto retumbante de con ança!” riu-se ele. “Aparentemente ela ‘rou‐
bou meu trono’, então vou tê-lo de volta por alguns meses.”
“Bom, eu nunca disse… Bem, talvez tenha dito, mas não quis dizer… na
verdade eu quis…” O calor naquela caixa apertada era opressivo, e o suor saía
de mim com tal rapidez que achei que fosse murchar e morrer. “O trono era
seu.”
“Traição, Jalan. Tire essas palavras da sua boca.” Garyus sorriu novamen‐
te. “É verdade que, como éramos grudados, fui eu quem viu a luz primeiro.
Mas me reconciliei com a nova ordem das coisas há muito tempo. Quando era
garoto, admito que me magoou. Temos sonhos grandes e é difícil abrir mão
deles. Queria dar orgulho a meu pai — fazê-lo ver além…” ele ergueu o braço
retorcido “…disso.” Ele se estremeceu e abaixou o braço. “Mas minha irmãzi‐
nha tem sido uma grande rainha. A história se lembrará do nome dela. Nestes
tempos, ela tem sido exatamente o que nossa nação precisa. Um rei comercian‐
te teria melhor serventia na paz — mas paz não foi o que recebemos.” Ele
abriu a cortina um pouquinho. Lá embaixo o orgulho marcial de Marcha Ver‐
melha passava, leiras e mais leiras, reluzentes, gloriosas, com galhardetes
agitando-se na brisa acima. “O que me traz ao motivo de meu convite.” Ele
pôs a mão em uma cesta ao seu lado e procurou alguma coisa. Ela caiu no chão
quando a retirou.
Eu me abaixei para pegar. “Uma mensagem?” Peguei um estojo de perga‐
minho, de ébano com desenhos de prata e adornado com os selos reais.
“Uma mensagem.” Garyus inclinou a cabeça. “Você é o Marechal de Veme‐
lhão.”
“Não fode!” Minha vez de deixar o estojo cair, como se estivesse quente.
“…comissário.”
“‘Alteza’ é a forma correta de se dirigir quando o comissário tem nasci‐
mento nobre… se estivermos sendo formais, Jalan.”
“Não fode, alteza.” Eu me recostei e soltei a respiração, e em seguida lim‐
pei o suor de minha testa. “Olhe, sei que a intenção é boa e tudo mais. Foi ba‐
cana você querer fazer algo por mim como forma de agradecimento pela cha‐
ve, mas sério, o que eu sei sobre defender cidades? Estamos falando de tropas
— deve haver dezenas de pessoas mais quali cadas…”
“Centenas, imagino.” Garyus disse aquilo de maneira entusiástica demais
para o meu gosto. “Mas desde quando uma monarquia tem a ver com recom‐
pensar méritos individuais? Promover dentro de casa é o nosso mantra.”
Fazia sentido. O reinado contínuo dos Kendeth dependia da mentira cui‐
dadosamente arquitetada de que éramos naturalmente melhores naquilo do
que quaisquer outros candidatos, e também da noção de que aquilo era a von‐
tade de Deus.
“É um belo gesto, tio-avô, mas realmente pre ro que não.” Ser marechal
soava como se pudesse envolver muito mais trabalho do que eu tinha interesse
em fazer — que era nenhum. Meus planos envolviam principalmente vinho,
mulheres e música. Na verdade, esqueça a música. “Não sou adequado.”
Garyus deu aquele sorriso torto e olhou para a fenda clara do mundo lá fo‐
ra, visível entre as cortinas. “E eu não sou adequado a ser comissário, não é
mesmo? Governar Vermelhão — Marcha Vermelha toda, na verdade — porém
escondido, para não desmoralizar nossas tropas com minhas imperfeições físi‐
cas. Mas aqui estou, por ordem de sua avó. Que, aliás, é de quem veio sua no‐
meação. Eu não sou tão cruel para separar você de seus vícios, Jalan.”
“Vovó? Ela me tornou marechal?” Da última vez que a vi ela parecia estar
tão próxima de pedir minha execução que o algoz provavelmente já tinha pe‐
gado sua pedra de amolar.
“Foi ela.” Garyus balançou sua cabeça pensativa. “Sabe que tem um uni‐
forme, não é? E estará no comando de seu irmão Martus.”
“Estou dentro!”
10
Corremos até a sala do trono para interrogar Luntar dentro da proteção dos
vigias mais fortes da Rainha Vermelha. Durante todo o trajeto, precisei car
parando para apressar os carregadores de Garyus, enquanto atravessavam com
o palanquim pelo palácio. Consegui me convencer, pelo menos quando não
olhava para Luntar, de que não deveria levar tão a sério as previsões de um vi‐
dente qualquer. Ao olhar para aquele horror esfolado, era difícil imaginá-lo
um charlatão. Mesmo assim, como um homem se afogando se agarra a palhas
utuando, eu me agarrei à ideia de que ele poderia estar errado, ou pelo menos
mentindo.
A sala do trono nunca foi um local de multidões e agitos. Nos dias seguin‐
tes à partida da Rainha Vermelha, as coisas mudaram. Com o palanquim de
Garyus posto diante da cadeira alta de vovó, a sala parecia ter adquirido vida
nova. Além de suas enfermeiras, o velho tinha turnos de músicos entrando e
saindo, enchendo o ambiente de música e de sons de uma dezena de países, en‐
quanto ele lidava as petições de seus súditos. Ele conversava principalmente
com comerciantes, importantes ou não, e tinha a tese de que as nações depen‐
diam do comércio e da produção, e tudo mais era secundário.
Ele me falou: “Dizem que dinheiro é a raiz de todos os males, Jalan, e tal‐
vez seja. Mas também é a raiz de muitas coisas que são boas. Vista seu povo,
encha suas barrigas e poderá ter paz. A necessidade é que gera guerra.”
Aquela atmosfera relaxada desapareceu com nossa chegada apressada e os
cortesãos se espalharam, pressentindo que o velório de um príncipe não era o
pior que este dia tinha a oferecer.
Os cuidadores de Garyus o colocaram em um sofá com muitas almofadas,
apoiando-o em uma posição que parecia ser a menos desconfortável. Fiquei de
pé ao lado dele, batendo involuntariamente o pé enquanto observamos a guar‐
da do palácio enxotar da sala os últimos suplicantes do dia. Os músicos do dia,
um grupo de ciganos da ilha distante de Umber, guardaram suas autas e suas
partituras rapidamente.
“Quais são as notícias da cidade externa?” perguntou Garyus.
Menos de uma semana. De Repente os relatórios perimetrais pareciam
bem menos importantes.
“Problemas,” falei. “Algumas covas que ainda não havíamos alcançado fo‐
ram esvaziadas. Ocupantes desaparecidos. Uma dúzia de ataques a cadáveres
relatados. Duas famílias… desaparecidas.” Estremeci. A guarda tinha me leva‐
do até uma casa perto da Estrada do Norte. Sangue no chão, nas paredes, mó‐
veis quebrados. Moscas por toda a parte. Sem ocupantes. Exceto um bebê em
seu berço. Ou melhor, os restos dele. “Os vizinhos não viram nada.” Isso foi
difícil de imaginar, com as casas coladas umas nas outras. Mandei a guarda ba‐
ter nas portas e corri de volta ao palácio para me encontrar com Luntar.
Garyus queria a privacidade da sala do trono para concluir nossa discussão e
Luntar tinha outras pessoas para ver antes de partir. Ele mencionou Dr. Raiz-
Mestra como sendo um desses, embora não tivesse ouvido dizer que o circo es‐
tava na cidade. “Preciso voltar e supervisionar uma série de inspeções.” Eu me
virei de frente para a sala do trono e parei, com uma surpresa momentânea.
“Não vou prendê-lo por muito tempo.” Luntar estava diante de nós, e nós
éramos suas duas únicas testemunhas. Ele escapava da memória de todas as ou‐
tras pessoas, mesmo enquanto elas o viam. Uma espécie de invisibilidade. Se
havia alguma coisa no sangue dos Kendeth que era imune ao truque ou se ele
simplesmente permitia que nos lembrássemos dele, isso ele não disse, apesar
de, no mesmo minuto em que virei as costas para Luntar para reportar ao co‐
missário, eu me esquecer da sua presença.
“Se todos vocês puderem fazer a gentileza de dar a mim e meu sobrinho-
neto um pouco de privacidade.” Garyus levantou a voz para ser ouvido. Os re‐
manescentes de sua corte começaram a se dirigir às portas. “Até você, Mary.”
Isso para a mais antiga enfermeira dele, uma matrona robusta que parecia se
achar indispensável. “E cavalheiros, por favor.” Ele acenou para os guardas
que o anqueavam. “Todos os meus guardas.”
“O capitão se aproximou, com as botas pesadas no chão polido.” Comissá‐
rio, é nosso dever protegê-lo.
“Se eu morrer na sua ausência o príncipe Jalan deverá ser rebaixado a ple‐
beu. Pronto, será que agora estou seguro o su ciente?”
O capitão da guarda franziu o rosto, com a palavra ‘mas’ fazendo força pa‐
ra escapar de seus lábios.
“E realmente, eu insisto,” disse Garyus.
Cinco minutos depois, após a guarda veri car novamente cada recanto es‐
curo, camos a sós.
“Eu esperava encontrar a Rainha Vermelha aqui,” disse Luntar. “Agora pa‐
rece que terei de segui-la até a Slóvia.”
Resisti à brincadeira óbvia de que ele deveria ter previsto essa circunstân‐
cia. Sem dúvida ele havia interferido no destino de vovó no passado e se negou
a ter mais visões do futuro dela. Ou isso ou a Irmã Silenciosa a protegeu dessas
vidências.
“Quando precisa partir?” O dia anterior à chegada dele seria ótimo, por
mim. Eu ainda achava Luntar altamente perturbador, e aquelas queimaduras
em carne viva exigiam uma reação que, já que não partia dele, certamente cau‐
sava algo muito próximo da dor em mim. A Irmã Silenciosa olhou tão longe
em nosso futuro brilhante que isso a cegou de um olho. Luntar enxergou ain‐
da mais além e se queimou da cabeça aos pés com o que viu. Da maneira que
Garyus falava, em algum lugar não muito distante o brilho impossível de mil
Sóis dos Construtores consumiria todos os nossos futuros.
“Partirei imediatamente após concluirmos nossa discussão aqui,” disse
Luntar. “É uma longa caminhada, e nenhum cavalo me carrega.”
“Diga-me…” Olhei para Garyus, mas ele fez sinal para eu continuar. “Di‐
ga-me, esse futuro que o queimou, que você diz que está chegando, é este o
m que a Rainha Vermelha teme? A destruição que os Construtores nos ar‐
maram quando zeram suas ciências e mudaram o mundo?” Tentei fazer aqui‐
lo não soar como uma acusação, mas era. Luntar e sua laia vinham rompendo
a realidade durante gerações, levando-nos ao limite, enquanto passavam cada
vez mais magia pelas estruturas do mundo.
Ao meu lado, Garyus assentiu com a cabeça pesada. Seu olhar repousou-se
sobre o cubo de plastik branco em seu colo — a caixa de fantasmas que Luntar
lhe dera.
“Não há nada que possamos fazer?” perguntei. Só algum lugar seguro para
correr já seria bom.
Luntar pôs as duas mãos no rosto e as deslizou em direção à testa, como se
afastasse o cansaço. “Em alguns futuros, é a rachadura do mundo que acaba
conosco, escuridão e luz, os elementos assumindo formas monstruosas, desfa‐
zendo a própria substância da qual somos feitos… Em outros futuros, é a luz
das armas dos Construtores que nos queima.”
“Merda.” Eu havia visto aquela luz. Tentei tirar o gemido de minha voz e
soar mais como Snorri. “Duas vezes no período de um ano Sóis dos Constru‐
tores se acenderam. Ouvi falar de um em Gelleth, em minha viagem ao norte,
e depois em Liba vi um com meus próprios olhos, queimando o deserto.
Quem está usando as armas desses homens mortos contra nós, e por quê?”
“A morte não é o que era.” Luntar estendeu seu braço sem pele e o exami‐
nou.
“Os Construtores estão mortos. Viraram pó mil anos atrás.” Mas ao dizer
aquilo eu me lembrei das palavras de Kara. A völva me disse em seu barco que
Baraqel e Aslaug foram humanos no passado, Construtores que escaparam co‐
mo espíritos quando o mundo queimou. Ela alegou que outros se copiaram
em suas máquinas antes do m. Seja lá o que isso signi que. “Não pode ser os
Construtores. Mesmo que não estivessem mortos, por que nos desejariam
mal?”
“Você se lembra de como os Construtores trouxeram a magia para o mun‐
do inicialmente, príncipe Jalan?”
“Giraram uma roda… Acho que foi assim que vovó descreveu. Eles zeram
isso para que a vontade de uma pessoa pudesse mudar o que é real. Mas aí veio
o Dia dos Mil Sóis e a roda continuou girando sem ninguém para contê-la, e a
magia foi cando mais forte.”
“É mais ou menos isso,” disse Luntar. “Mas essa roda não é só uma manei‐
ra de falar. Não são só palavras para descrever uma imagem que possamos en‐
tender. Existe uma roda. Em…”
“Osheim.” A palavra escapou de meus lábios, apesar de instruções rigoro‐
sas para não sair.
“Sim.”
“Essas explosões em Gelleth e em Liba, porém…”
“Pergunte aos fantasmas,” disse Luntar. “É o trabalho deles.” E com isso
ele desapareceu.
“Como?” Dei um passo para frente, balançando o braço no espaço que o
homem queimado havia ocupado muito recentemente.
“Da mesma maneira que todos os outros homens partem,” disse Garyus.
“Ele simplesmente nos fez esquecer.”
“Mas que droga! Por que ele não podia car e responder à minha maldita
pergunta? Por que diabos precisa ser tão misterioso em tudo?”
Com esforço, Garyus levantou a cabeça e sorriu para mim. “Sempre achei
que aquelas histórias que Vó Willow contava para vocês seriam bem mais cur‐
tas se fossem francas. Mas talvez você saiba a resposta.”
“Malditos jurados pelo futuro!” Eu quase cuspi no chão, mas a presença
de vovó ainda assombrava demais a sala do trono para isso. Luntar previu um
futuro que poderia ser melhor do que aqueles que o queimaram, mas se nos
conduzisse nessa direção, ele começaria a se afastar. Se respondesse às nossas
perguntas, toda aquela possibilidade poderia evaporar como a névoa da ma‐
nhã. O próprio fato de nos dar a caixa o deixaria cego para nossos caminhos
agora, tornando sua visão menos clara. Não faça nada e veja tudo que aconte‐
cerá com uma clareza perfeita e impotente — ou tente mudar as coisas e, como
a mão que toca a água, destrua o re exo do amanhã. A frustração disso me le‐
varia à loucura.
“Abrimos a caixa?” Garyus pôs a caixa em questão na mesinha que eu car‐
regara até ali. Coloquei um lampião ao lado: a tarde estava caindo em direção
à noite e as sombras se multiplicavam em cada canto. “Abrimos a caixa…” Ele
bateu os dedos na superfície polida.
“Sabe-se que isso já deu errado no passado,” falei.
Garyus ergueu uma sobrancelha. “Pandora?”
“Todos os males do mundo,” concordei. “Além do mais, ele disse que está
cheia de fantasmas. Já seria o caso de a enterrarmos imediatamente.”
“Ele também disse que deveríamos fazer nossas perguntas a ela.”
Olhei para a caixa e percebi que minha curiosidade havia se esgotado.
“Está com medo, Jalan?” Garyus olhou para mim, com a luz e a sombra
conspirando para torná-lo um monstro. Sua deformidade tinha essa caracte‐
rística — em um momento ele parecia inocente, até mesmo digno de pena, e
no outro sinistro, maligno. Nessas horas eu não tinha dúvidas de que ele era
gêmeo da Irmã Silenciosa.
“Medo não é bem a palavra.” O plastik parecia-se mais com osso à luz do
lampião. Visões do Inferno borbulharam no fundo de minha mente e eu me
perguntei quanto daquele lugar a habilidade dos Construtores conseguiria en‐
ar em uma pequena caixa. “Petri cado.”
“Faz você se sentir vivo, não é?” E Garyus abriu a caixa.
“Vazia!” Uma gargalhada brotou de mim, de certa forma pequena e oca no
vazio daquele salão.
“Ela realmente parece estar…” Garyus retraiu a mão com um xingamento.
Uma impressão digital vermelha permaneceu onde ele tinha tocado a tampa.
“Sangue?” indaguei, inclinando a cabeça para analisar a marca.
Garyus fez que sim, com o dedo na boca. “Esse troço me mordeu!”
Enquanto observamos, a marca carmim sumiu, e o sangue foi absorvido
no material de plastik sem deixar mancha. Alguma coisa piscou no ar acima da
caixa aberta. Um vulto, que apareceu e depois sumiu, nebuloso, como se tives‐
se se formado e se perdido em uma respiração fria. Mais outro surgiu, piscan‐
do na forma de um homem, talvez de uns cinquenta centímetros de altura, e
sumiu.
“Kendeth.” A palavra veio da caixa, uma voz atemporal, calma e límpida.
Uma série de vultos agora, homens, mulheres, jovens, velhos, cada um re‐
torcendo-se no outro.
“Pare…” Garyus ergueu a mão na direção da caixa e, ao fazer isso, os movi‐
mentos piscantes cessaram, apenas um vulto ali agora, um fantasma pálido,
com as linhas da mesa visíveis através de seu corpo.
“James Alan Kendeth,” disse o fantasma, sem olhar para nenhum de nós,
mas para algum ponto distante no meio.
“Você é o fantasma de meu ancestral?” perguntou Garyus.
O fantasma franziu o rosto, cintilou e replicou. “Sou um registro de bibli‐
oteca para os dados gravados de James Alan Kendeth. Posso responder per‐
guntas. Para acessar a simulação completa, é necessário o acesso a um terminal
de rede.”
“O que ele está dizendo?” perguntei. Algumas palavras faziam sentido, as
outras podiam muito bem ser outra língua.
Garyus me mandou car quieto. “Você é um fantasma?”
O fantasma franziu o rosto e depois sorriu. “Não. Sou uma cópia de James
Alan Kendeth. Uma representação dele baseada em observações detalhadas.”
“E o James?”
“Morreu mais de mil anos atrás.”
“Como ele morreu?”
“Um dispositivo termonuclear detonado acima da cidade onde ele vivia.”
Um momento de tristeza no rosto pálido do fantasma.
“Um o quê?”
“Uma explosão.”
“Um Sol dos Construtores?”
“Um dispositivo de fusão… então é como o sol, sim.”
“Por que os Construtores se destruíram?” Garyus olhou para o pequeno
fantasma utuando acima da caixa vazia, com sua enorme testa amontoada so‐
bre a intensidade de seus olhos.
O fantasma piscou e, por uma fração de segundo, vi sua pele borbulhar co‐
mo se se lembrasse do calor. “Nenhum motivo que importe. Um agravamento
retórico. Um dominó caindo contra o outro e em poucas horas tudo virou
cinza.”
“Por que eles fariam isso outra vez agora?” indagou Garyus. “Por que nos
destruir?”
“Para sobreviver.” Nosso ancestral distante olhou de Garyus para mim e
novamente para Garyus, como se nos visse como pessoas pela primeira vez, e
não só como vozes com perguntas. “O uso continuado da vontade causa um
desequilíbrio…” Ele parou, com o olhar em alguma coisa distante em outro lu‐
gar. “…a equação Rechenberg — é assim que eles chamam — governa a mu‐
dança, o que vocês chamam de ‘magia’. Nós também chamávamos de magia,
para dizer a verdade. Talvez uma em cada dez mil pessoas compreendesse. O
restante de nós apenas sabia que os cientistas haviam mudado a maneira como
o mundo funcionava e pou, a magia se tornou possível, superpoderes! Não era
como é hoje, porém — era mais difícil de usar — tínhamos treinamentos e…”
“Nossas magias estão desbalanceando sua equação,” Garyus o interrom‐
peu. “Para que nos matar?”
“Se todos morrerem, não se usará mais magia. A equação pode se balance‐
ar. A mudança pode parar. O mundo poderia sobreviver e os ecos de dados ar‐
mazenados na deepnet seriam preservados.”
“Vocês nos sacri cariam por ecos? Mas… vocês não são reais. Não estão vi‐
vos,” falei. “Vocês são memórias em máquinas.”
“Eu me sinto real.” O James fantasma pôs as mãos fantasmas em seu peito
transparente. “Eu me sinto vivo. Quero continuar. De qualquer maneira, se
não os destruirmos, vocês só destruirão a si mesmos e nós iremos junto.”
Nisso ele tinha razão, mas eu não simpatizava nem um pouco com qual‐
quer razão que acabaria me empalando. “Então por que ainda estamos aqui?
Por que só duas explosões?”
“Há um desacordo. Não é a maioria que é a favor da solução nuclear. Ain‐
da. Gelleth foi um acidente. Hamada foi um teste que deu errado.”
“Por que está nos contando tudo isso?” Eu não teria sido tão franco no lu‐
gar dele.
“Sou um registro de biblioteca. Responder é o meu propósito.”
“Mas em algum lugar… nas máquinas… existe uma cópia completa de Ja‐
mes Alan Kendeth? Com opiniões e desejos?”
O fantasma assentiu. “Mesmo assim.”
“A Roda pode ser girada para trás?” perguntou Garyus com uma urgência
repentina.
Uma pausa. “Está se referindo à instalação IKOL em Leipzig?” James pare‐
cia que estava lendo de um livro.
“A Roda de Osheim.”
James Alan Kendeth fez que sim. Outra pausa. “É um acelerador de partí‐
culas, um túnel circular de mais de trezentos quilômetros de comprimento. O
conceito de uma roda direcionadora do universo é uma maneira simpli cada
de compreender a mudança que a instalação IKOL efetuou e continua a exer‐
cer. Os motores da IKOL giram uma roda hipotética, um sintonizador, por as‐
sim dizer, mudando as con gurações padrão da realidade. As máquinas na câ‐
mara de colisão fariam suas catedrais parecerem pequenas. Em suma é uma
máquina, não uma roda que pode ser girada.”
“É uma máquina!” Eu me ative à ideia. “Você é uma máquina. Desligue-
a!”
“O sistema é isolado para prevenir interferência. Aproximar-se dela sica‐
mente seria… difícil. O campo Rechenberg oscila descontroladamente quan‐
do alguém se aproxima.”
“Paciência.” Estendi a mão para a caixa, querendo fechá-la. Toda história
ruim sempre começava com Osheim, e eu sabia muito bem como as coisas ca‐
vam ruins ao se aproximar dela. Eu esperaria que vovó nos salvasse. “Então
não há nada que se possa fazer.” Minha mão cou gelada antes que meus de‐
dos sequer alcançassem a caixa, como se eu a tivesse mergulhado em água fria.
“Emaranhamento detectado.” A voz original da caixa, nem masculina,
nem feminina, nem humana. O fantasma de nosso ancestral desapareceu com
um brilho e foi substituído por um homem idoso de rosto estreito. Ele cou
diante de nós por um momento e depois desvaneceu-se em uma mulher jovem
de cabelos curtos e olhos rodeados por olheiras, sem beleza, mas notável. O
homem voltou, e em seguida a mulher. De alguma maneira ambos pareciam
familiares.
“Pare,” eu disse, e a mulher cou.
“Asha Lauglin,” disse a voz atemporal e depois cou em silêncio. A mulher
levantou a cabeça e me olhou nos olhos.
“C… como você morreu?” Retirei a mão. Alguma coisa em seu olhar me
assustava.
“Eu não morri,” disse ela.
“Você é apenas um eco, uma história em uma máquina, sabemos disso.
Como foi que a Asha real morreu?”
“Ela não morreu.” Asha olhou para Garyus e depois voltou seu olhar para
mim.
“O que aconteceu com ela no Dia dos Mil Sóis?”
“Ela se transmutou por força de vontade. Sua identidade foi mapeada em
estados de energia negativos, na energia sombria do universo.”
“Quê?”
“Ela se tornou incorpórea.”
“Quê?”
“Um espírito.”
“Um espírito sombrio.” Fiquei olhando para a mulher. “Aslaug?”
“Ela cou aprisionada na mitologia dos humanos que repovoaram as regi‐
ões do norte, sim. A crença de muitas mentes destreinadas se mostraram mais
fortes que a determinação dela.”
Pensei em Aslaug, lha de Loki, nascida de uma mentira, com sua sombra
aracnídea e sua forma monstruosa naquele dia em que atravessou a porta dos
magos do mal em Osheim. “Sinto muito.”
O fantasma dos Construtores deu de ombros. “Não é um destino raro.
Quantos de nós camos aprisionados nas histórias contadas sobre nós, ou por
nós?” Ela me lançou um olhar duro e debochado que me fez lembrar ainda
mais de Aslaug.
Não gostei muito da insinuação e comecei a vociferar. “Bem, eu não es‐
tou…”
“Há uma história sobre um príncipe charmoso tentando armar uma cilada
para você neste exato momento, Jalan. Há outra história que conta para si
mesmo que pode levá-lo em um caminho bastante diferente.”
“Você fala demais para um registro de biblioteca.” Mais uma vez eu me
movimentei para fechar a caixa.
“Nunca gostei de seguir as regras, Jalan.” Ela deu aquele sorriso sombrio
que eu conhecia tão bem.
Uma batida nas grandes portas da sala do trono abafou qualquer resposta
que eu pudesse ter e o chefe da guarda do palácio entrou sem esperar resposta.
“Comissário, marechal, a cidade está sob ataque! Os mortos estão no rio!”
12
O ataque veio pelas duas margens do Seleen, anunciado pela chegada de uma
balsa de cadáveres utuando na correnteza. Os corpos, mais de uma centena,
pelo resquício de cor que tinham, pareciam ter morrido na guerra, com o ata‐
que de Orlanth a Rhone. Quando as equipes saíram de barco para interceptá-
la, logo cou claro que monstros do lodo haviam se insinuado no meio da
massa, segurando-se às beiradas, apenas com as cabeças escuras acima da água,
ou então deitados por cima dos corpos emaranhados, com as zarabatanas a
postos.
•••
“Mandem o Casco de Ferro nos encontrar na ponte Morano!” gritei as ordens
enquanto cavalguei em direção ao Portão dos Cavalos para sair do palácio.
Após me tornar marechal, consegui um belo cavalo de batalha chamado Mur‐
der, um bicho enorme e fogoso. Muito difícil de controlar, no entanto, e a
ponto de sair galopando a qualquer momento. “Diga a príncipe Martus para
manter o Sétimo nos portões do palácio até sabermos a situ… Uou!” Puxei a
cabeça de Murder para trás e me inclinei para frente quando ele tentou empi‐
nar. “Diga a ele para mandar mensageiros a todas as torres da muralha.”
“Sim, marechal!” O capitão da guarda do palácio havia me seguido da sala
do trono com mais cinco homens, recebendo e supostamente guardando as
ordens que dei enquanto pegava Murder nos estábulos. Agora, com o capitão
Renprow e dez mensageiros da guarda regular do palácio à minha volta, acenei
para que os portões fossem abertos. Iríamos até a ponte Morano, o melhor
ponto para ver uma grande extensão das margens do Seleen, tanto a leste e a
oeste, acima e abaixo do rio. Os relatos que recebi já tinham meia hora: onde a
luta estava agora e qual situação encontraríamos, eu não sabia. O Casco de
Ferro atualmente não era nada além de um clube de bebidas dos lhos mais ri‐
cos da aristocracia, mas todos eles foram o ciais da cavalaria antes de vovó dis‐
solvê-la e, apesar de lanceiros terem pouca utilidade na cidade, pelo menos
conseguiriam chegar aonde estavam indo rapidamente.
Avistei um dos guardas da casa, Dobro, saindo para fazer alguma incum‐
bência e o mandei de volta ao Salão Roma com ordens de proteger o local. Ele
era o mais jovem da guarda da casa de papai, e provavelmente o único ainda
capaz de se defender em uma briga. “Não deixe ninguém que não conheça en‐
trar, vivo ou morto! Especialmente morto. Mesmo que o conheça!”
Dobro saiu correndo de volta ao salão e eu dei uma última olhada em vol‐
ta. As sombras da Casa Milano se estendiam em direção ao Palácio Interno,
como se Hertet estivesse se esticando na direção do trono de sua mãe. O sol
brilhava fraco nas paredes, sem calor. O dia estava morrendo. “Vamos!”
Em instantes, estávamos passando embaixo do arco do portão e correndo
pela Via dos Reis, com os cascos soltando faíscas nos paralelepípedos. Durante
os próximos minutos, a atividade de cavalgar rapidamente por vias de vários
tipos, cheias, estreitas, sinuosas ou tudo isso ao mesmo tempo, ocupou nossas
atenções. Atropelar um ou dois camponeses tudo bem, mas, se estiver com
pressa de chegar a algum lugar, isso pode atrasá-lo. Além disso, em Vermelhão
os camponeses são poucos, e é capaz de você acabar com o pai do ferido, a guil‐
da, ou seja lá o que for acampado na porta do palácio no dia seguinte queren‐
do compensação. Ou, pior ainda, justiça.
Fui na frente, galopando ao longo da margem oeste em direção à ponte
Morano. Eu não queria liderar, mas todo mundo se submetia a mim por ser
marechal, e Murder relutava em deixar qualquer outro cavalo ir na frente,
mesmo quando eu tentava desacelerá-lo. A via ao longo da margem oeste é lar‐
ga em trechos e até pavimentada em alguns, mas perto da ponte era uma faixa
de terreno difícil, alternando entre pés de taboa que vão até a água e um ema‐
ranhado de espinheiros que subiam até as paredes das casas dos comerciantes
ribeirinhos. Vi vultos à frente e gritei para eles liberarem o caminho.
“Marechal!” Capitão Renprow gritando atrás de mim. Houve outras coi‐
sas que se perderam no estrondo dos cascos.
As pessoas à frente se mostraram lentas demais, e considerando as opções
de parar, desviar à esquerda para a margem pantanosa, à direita para os espi‐
nheiros, ou simplesmente passar por cima de camponeses lamacentos, optei
pela solução principesca e segui em frente. Meu desprezo pela segurança pú‐
blica mostrou-se prudente quando se viu que os vultos eram cadáveres incha‐
dos e cobertos de lodo que queriam me puxar da sela.
Uma dúzia de homens do Casco de Ferro nos alcançou quando viramos
para a ponte, pegando um caminho alternativo. Metade deles parecia que ha‐
via vindo direto do almoço. O lho de lorde Nester ainda estava com o guar‐
danapo en ado na gola, embora o jovem Sorren tivesse pensado em colocar o
peitoral.
“Casco de Ferro, ho!” Liderei o grupo para cima da ponte Morano, uma
ambição de criança, e chegamos até o meio dela.
“Os inimigos parecem não precisar de pontes.” Darin chegou ao meu lado,
pois havia se unido ao bando despercebido quando deixamos o palácio. “Eles
estão felizes o bastante em se molhar.”
“Sou eu que preciso da ponte.” Levantei-me nos estribos, esperando que
pelo menos agora Murder casse quieto. Nunca prestei muita atenção às nos‐
sas aulas de estratégia e tática, mas uma lição que pareceu ter sido martelada
su cientemente fundo era que um comandante precisava ver seu campo de
batalha. Quando seu campo de batalha era uma cidade inteira, na qual enxer‐
gar de uma ponta a outra da estrada podia ser difícil, essa lição vinha assom‐
brá-lo bem depressa. Tudo o que eu tinha para prosseguir eram relatos curtos
que agora já eram quase de uma hora atrás. Qualquer novo conhecimento que
não fosse visto por meus próprios olhos teria de seguir uma cadeia cada vez
mais longa de instruções para chegar até mim.
Olhei para cidade de Vermelhão. Inúmeros telhados, pináculos aqui e aco‐
lá, mansões nas encostas que davam para o rio, estorninhos girando no alto, o
grande céu azul acima, pontilhado por nuvens, e o ar fresco daquele jeito
quando as folhas estão se colorindo e criando coragem para o outono. Em al‐
gum lugar no meio disso tudo, o inimigo já estava trabalhando. Os mortos do
rio podiam ser facilmente descobertos ao nal de uma série de pegadas molha‐
das, mas os necromantes eram mais difíceis de encontrar. Algum operário da
morte das Ilhas Afogadas podia ter alugado um quarto em uma taberna ao la‐
do do rio e estar nos observando agora mesmo através das venezianas.
“Ali!” disse Darin, com seu corcel perigosamente perto da balaustrada da
ponte, e apontou rio abaixo, na direção da margem leste.
“O quê?”
“Ainda é outono e nem está frio,” disse ele.
“E daí?” Eu o odiava às vezes.
“As pessoas parecem estar acendendo as fogueiras cedo…”
Era verdade. O que eu achara que era fumaça saindo de várias chaminés
agora parecia mais sinistro.
“Todo aquele tempo gasto supervisionando nossas muralhas e os subúrbi‐
os teria sido melhor aproveitado aqui,” disse Darin. “O rio é a nossa fronteira
mais fraca.”
“Marechal.” Capitão Renprow apontou rio acima para a margem oeste,
salvando-me de ter de responder. Um emaranhado de vultos, minúsculos ao
longe, lutando em um ancoradouro, com unidades da guarda municipal avan‐
çando pelo caminho do rio.
Ao olhar para a margem oposta, vi mais vultos, alguns fugindo, alguns
perseguindo. Onde o sol ainda batia no telhado de duas águas da Santa Maria
do Seleen, vi formas em movimento, a apenas trezentos metros de distância: as
formas pretas e araneiformes dos monstros do lodo subindo pela beira do te‐
lhado.
“Eles estão por toda a parte.” Os cadáveres deviam estar escondidos debai‐
xo d’água onde a correnteza era fraca, ou afogados na lama do rio, esperando o
sinal de atacar. Não dava para saber quantos eram — não parecia um exército
enorme, mas estavam se dispersando para o coração de minha cidade, à caça de
presas, e se o Rei Morto estava com a atenção totalmente voltada para nós, ca‐
da morte seria um acréscimo ao número deles. “Mande avisar às guarnições de
guarda em Taggio, Saint Annes, Doux e LeCrosse. Todas as guardas da cidade
devem avançar para o Seleen em grupos de pelo menos vinte, evacuando as ru‐
as pelo caminho. Todos os besteiros devem estar a postos, prestando atenção
aos ghouls nos telhados.”
“Majestade!” disse um cavaleiro do Casco de Ferro ao meu lado, o lho
mais novo de lorde Borron. Ele acenou para a ponta oposta da ponte. Mais ou
menos uma dúzia de vultos começaram a se aproximar.
“Que diabos?” A princípio eu não consegui entender. Homens do rio in‐
chados, cobertos de lodo, cambaleando na nossa direção com passos desajeita‐
dos; mas guardas da cidade também, exibindo o vermelho escuro de seus ta‐
bardos, o sol reluzindo nos capacetes… aquele que ainda os tinham.
“Estão todos mortos,” disse Darin ao meu lado. Ele tinha razão: eles não
estavam lutando uns com os outros, estavam avançando sobre nós.
“Bem, o que estão esperando?” perguntei. “Passem por cima deles. São
lanceiros ou amas de leite?” Para ser justo, nenhum cavaleiro do Casco de Fer‐
ro tinha lança, mas ainda tinham a vantagem de estarem montados em cavalos
criados para a guerra.
“Só estava esperando ser liderado, marechal Jalan.” Darin deu um sorriso e
fez um gesto de ‘vá na frente’.
“Ah.” As probabilidades estavam a nosso favor, mas havia um bocado da‐
queles desgraçados, e na guerra eu gosto das probabilidades tão grandes a meu
favor que o único perigo seja ser esmagado por eles caso caiam. “Veja bem…”
Capitão Renprow veio ao meu auxílio. “O marechal é responsável pela de‐
fesa da cidade inteira, príncipe Darin. Não pode se dar ao luxo de entrar em
combate real. Seria um desastre se ele casse incapacitado.”
“É isso aí. É exatamente isso.” Eu me contive para não ir até lá e abraçar
Renprow. “Muito me dói não poder entrar lá no meio deles, balançar minha
espada e tudo mais, mas o dever fala mais alto.”
Darin revirou os olhos. “Chamem Martus aqui com seus homens. É uma
loucura deixá-los no palácio.” Com isso, ergueu sua espada acima da cabeça e
berrou: “Pela Rainha Vermelha!” Em seguida, batendo os calcanhares: “Ver‐
melhão!” E saiu, com os outros indo atrás. Um barulho ensurdecedor de cas‐
cos e cerca de dez toneladas de bichos ferozes se lançaram em direção às criatu‐
ras do Rei Morto.
Consegui impedir um dos guardas do palácio de se unir ao ataque, segu‐
rando seu ombro e exigindo que casse. Naquele momento de distração, Mur‐
der quase me escapou e saiu atrás de Darin, mas se existe uma coisa que eu fa‐
ço bem é lidar com cavalos, e consegui virá-lo.
“Certo,” falei. “Precisamos de algum plano.”
O homem que segurei deu um tapa em seu pescoço. “Jesus!”
“Não um plano,” disse. “O que nós…” Parei de falar quando ele retirou a
mão e revelou um pequeno dardo preto ncado na pele, logo abaixo do pomo-
de-adão. “Jesus.” Olhei em volta desesperado e avistei o mostro do lodo res‐
ponsável, agora subindo sobre a balaustrada, com a zarabatana em uma das
mãos.
“Eu mantive você aqui exatamente para esse tipo de coisa,” disse ao guar‐
da. “Mate-o rápido! Não se preocupe com o dardo, é só veneno.”
O homem me lançou um olhar muito sombrio por debaixo da aba de seu
capacete.
“Quero dizer, só deixa você fraco — se se apressar, pode matar o ghoul an‐
tes…”
“Marechal… não estou enxergando.” Ele estendeu uma mão na frente do
rosto, como se precisasse da con rmação. Seus olhos realmente haviam cado
escuros, e a parte branca cou cinza.
“Fique calmo, só dura algumas horas.” Tomei as rédeas dele. Snorri havia
se recuperado da fraqueza. “Renprow.” Acenei para o ghoul que agora estava
com os dois pés no pavimento da ponte e en ando outro dardo no tubo.
“Marechal.” Renprow sacou sua espada e foi a meio-galope até o ghoul,
dez metros mais próximo da margem.
“Estou cego, porra.” O guarda tocou os olhos, esquecendo-se de príncipes,
marechais e tudo mais agora. Suas palavras saíram enroladas.
“Você precisa car calmo,” falei. “Vai melhorar.”
Nisso, o guarda escorregou de sua sela com a elegância de um saco de
aveia. Ele caiu sobre a cabeça e o ombro com um estalo bastante repugnante, e
cou ali estatelado, com o pescoço em um ângulo nada natural e um pé ainda
nos estribos.
“Talvez não melhore,” admiti. Olhei para a ponte acima, em direção à re‐
frega onde Darin e seus companheiros estavam distribuindo socos entre eles,
após terem pisoteado metade dos inimigos com seu ataque. Dei mais uma
olhada para meu companheiro caído e meti a bota no cavalo dele, com a máxi‐
ma força. Os olhos do morto se abriram pouco antes de o cavalo entrar em
movimento e o arrastar em direção a meu irmão, com a cabeça batendo em ca‐
da calombo da estrada.
Um baque e o som de uma luta devolveram minha atenção a Renprow e o
ghoul. De alguma maneira, o monstro o puxara de sua sela, ganhando um ta‐
lho na lateral, mas agora lutando com o capitão no solo. Ambos estavam com
facas, a do capitão era uma peça longa e limpa de aço, a do ghoul uma lâmina
curva e cruel, com manchas tão escuras quanto as de seu couro.
“Vamos lá, capitão!” ofereci apoio moral do lombo de Murder. Apesar de
sua magreza, o ghoul parecia possuir uma força espantosa, e sua faca se movia
inexoravelmente na direção do pescoço de Renprow, apesar de seus melhores
esforços para detê-la. “Ah, inferno.” Desci da sela e saquei a espada de Edris
Dean. Uma oportunidade se apresentou, então corri para frente e golpeei na
nuca do ghoul — pouco mais do que uma abaixada de braço, na verdade —
com uma lâmina a ada e pesada daquelas eu supus que qualquer coisa a mais
seria capaz de decapitar o monstro e atravessar até o homem por baixo.
Na verdade, descobri que pescoços são resistentes para caramba. Minha lâ‐
mina entrou pouco mais de um centímetro e se alojou no osso da espinha do
ghoul. Mesmo assim, comigo tentando soltar a espada e Renprow aproveitan‐
do a oportunidade para golpear a criatura várias vezes no fígado, conseguimos
triunfar. O capitão rolou de quatro e depois cou de pé, coberto de sangue
imundo, enquanto eu olhei sobre a balaustrada e rapidamente puxei a cabeça
de volta.
“Vá buscar pedras da margem do rio. Grandonas!”
“Quê?” Renprow levantou a cabeça depois de inspecionar sua túnica sal‐
picada de sangue.
“Grandonas! Corra!”
Arrisquei outra olhadela boba pela lateral e um dardo ghoul quase me re‐
partiu os cabelos. O suporte da ponte estava coberto deles. Quatro, cinco,
meia dúzia? Era difícil dizer, pois subiam uns sobre os outros, pingando, qua‐
se nus, mas sem a menor di culdade em conseguirem se segurar.
Fiquei no meio do espaço, sabendo que os ghouls poderiam subir pelos
dois lados igualmente bem. Os sons do combate ainda saíam do lado oposto.
Eu não podia arriscar olhar para ver como Darin e os outros estavam se sain‐
do.
O primeiro vislumbre da zarabatana do ghoul parecia uma haste preta
saindo entre os pilares de pedra da balaustrada. Eu corri, me atirei, deslizei e
acabei com minha espada enterrada no olho do ghoul quando ele levantou a
cabeça para soprar seu dardo. A criatura caiu sem fazer som e quase levou mi‐
nha espada junto.
Quando consegui chegar ao outro lado, Renprow estava se aproximando,
mostrando um ritmo decente para um homem carregado com quatro ou cinco
pedras de bom tamanho.
“Fique do outro lado.” Larguei minha espada e peguei a pedra de cima
com respeito renovado pela força daquele pequeno homem — aquela coisa pe‐
sava uma tonelada.
“Marechal.” Renprow ofegou, deixando mais uma pedra cair antes de ar‐
rastar as outras para onde eu tinha matado o último ghoul.
O veneno com que as criaturas revestiam seus dardos se mostrou impressi‐
onantemente resistente à água, mas, vindo dos pântanos de Brettan, isso não
parecia tão surpreendente. Apenas deprimente. Ao avançar sobre a balaustra‐
da, eu não tinha muitas ilusões sobre meu destino se um daqueles dardos me
atingisse. Teria saído correndo, não fosse o fato de que minhas melhores chan‐
ces estavam em acertá-los enquanto estavam subindo, em vez de tentar desviar
de seus mísseis enquanto corria pela ponte.
“Acho que não.” Dei um último passo largo e consegui colocar o pé em ci‐
ma da próxima zarabatana que apareceu.
Com um grunhido de esforço, ergui a pedra por cima da beira e, sem
olhar, a deixei cair sobre o ghoul cujo tubo eu acabara de prender. Com um
pouquinho de sorte, ela arrancaria várias outras criaturas do suporte da ponte
na descida. O mais rápido que pude, peguei a segunda pedra e repeti o proces‐
so um pouco mais à direita. Não houve gemidos grati cantes de desespero
nem guinchos de dor, mas as pancadas fortes e o barulho da batida na água pa‐
reciam promissores.
“Peguei eles, marechal!” gritou Renprow.
Outros homens estavam se aproximando da ponte pela Via Morano, o ca‐
minho que os cavaleiros do Casco de Ferro haviam tomado. Soldados, do tipo
de nitivamente vivo, em vez dos mortos-vivos, enchiam a estrada de um lado
a outro, marchando en leirados, todos na sombra, pois agora o sol só brilhava
nos telhados.
“Veri que o meu lado.” Acenei distraidamente para Renprow do outro la‐
do da ponte e comecei a caminhar na direção das tropas que avançavam.
Quando cheguei ao nal da ponte, avistei Martus, quatro leiras atrás sobre
seu cavalo, resplandecente com seu peitoral, capacete cônico com visor e um
almofar de malha de aço que caía sobre os ombros.
A visão de Martus e seu exército pelo menos encheu os cidadãos de con ‐
ança su ciente. Alguns abriram suas janelas e se debruçaram para aplaudir,
enquanto os homens marchavam abaixo. De minha parte, senti apenas uma
sensação de desconforto irritante, que utuou sobre um mar de medo primiti‐
vo. Eu nem queria a faixa de marechal, para início de conversa, e ela estava co‐
meçando a se parecer cada vez mais com uma armadilha.
Martus parou a cinquenta metros da ponte, com seus soldados saindo pe‐
los dois lados e indo nos dois sentidos ao longo das margens.
“Dei ordens para você car no palácio!” gritei, avançando sobre ele.
“Que bom que o ignorei!” Ele levantou seu visor para conseguir berrar
com total e cácia. “Temos mais de uma dúzia de incursões nas duas margens.
É preciso pisotear esses troços antes que eles tomem conta. São como uma pra‐
ga, esses mortos-vivos. Um transforma o outro e por aí vai…”
“Eu sou o marechal, porra, e você obedece minhas ordens!” Eu me senti le‐
vemente idiota gritando para ele montado em seu garanhão, mas não iria per‐
der a autoridade para ele, mesmo que nossa plateia fosse de soldados comuns
de infantaria.
Capitão Renprow chegou montado atrás de mim, trazendo Murder. Da‐
rin nalmente o alcançou, trazendo uma boa quantidade dos homens, machu‐
cados, sujos de sangue, mas na maioria inteiros.
“Tem que seguir minhas ordens, Martus,” disse, sem gritar, mas alto o bas‐
tante para que todos ouvissem. “Senão mando enforcá-lo.”
“Enforcar é improvável.” Darin passou montado entre Martus e eu, inter‐
rompendo a resposta de nosso irmão. “Uma semana na masmorra, por outro
lado…” Ele olhou signi cativamente para Martus, depois olhou adiante e fran‐
ziu o rosto. “O que é aquilo?”
“Fumaça vermelha.” Acompanhei o olhar dele. “Merda. As muralhas.” Fu‐
maça vermelha era a instigação minha de que mais me orgulhava. Cada torre
da muralha agora tinha um estoque de pó-de-fogo embrulhado em papel que
soltava uma abundância de fumaça vermelha quando aceso. A ideia era que
qualquer emergência pudesse ser sinalizada rapidamente por Vermelhão desta
maneira, mais rápida que mensageiros e com alcance maior do que sinos no
meio da cacofonia da cidade. Como bônus, os sais raros usados na fabricação
do pó-de-fogo eram caros e retirados das minas de Crptipa, resultando em um
belo lucro que voltava diretamente para o meu bolso. Agora, porém, vendo
aquela coluna com sete pontas de fumaça vermelha subindo das torres do les‐
te, eu abriria mão com prazer de toda e qualquer renda proveniente da neces‐
sidade de reabastecimento do pó-de-fogo.
“Não está fazendo o menor sentido… marechal.” Martus se virou e olhou
para a fumaça acima da cabeça de sua tropa.
“Estamos com metade da guarda da cidade e dois mil soldados atrás de
menos de duzentos mortos pelar margens do rio. Enquanto isso, na muralha
da cidade, sete capitães das torres viram alguma coisa que os assustaram o su ‐
ciente para acenderem o sinal de emergência…” Cada torre tinha dezoito me‐
tros de altura, com ameias como uma fortaleza e guarnecida com vinte e cinco
homens, com espaço para cem. Eu realmente não queria saber o que motivou
sete deles a gritarem por socorro ao mesmo tempo. “Isto aqui não é o ataque, é
a distração!”
13
“Peço a Deus que vovó tenha nomeado você marechal por um bom motivo.”
Darin se uniu a mim no alto da torre esquerda, entre as duas que anqueavam
o Portão Appan, com a voz espantada. “A maioria dos nossos primos achou
que fosse piada.”
“A maioria?”
“Os outros acharam que foi castigo.”
Olhamos para os arredores de Vermelhão, a parte estendida da cidade que
se espalhava por quase um quilômetro depois das muralhas e ainda mais se‐
guindo a Via Appan, como se estivesse desesperada para arrancar mais algu‐
mas moedas de qualquer viajante que fosse tolo o bastante para ir embora.
Pessoas mortas lotavam o espaço diante dos portões — homens, mulheres, cri‐
anças — os mortos cinzentos e descamados nos restos imundos de suas roupas
da cova; os mortos recentes, com as feridas ainda escarlates, uma turba silenci‐
osa que se estendia em volta das muralhas, ao longo da estrada principal, aper‐
tada nos becos entre as casas.
Mesmo a dezoito metros de altura e com uma brisa leve, o fedor era invasi‐
vo e arranhava minha garganta, ardia meus olhos. Várias refeições foram des‐
pejadas muralha abaixo. A visão e o cheiro de seus primeiros mortos-vivos faz
isso com você.
“Dei ordens expressas para não usarem arcos,” disse a Renprow, agora
com o sangue secando nele após nossa partida da ponte às pressas. Uma boa
quantidade dos mortos mais perto do Portão Appan tinha duas, três, às vezes
cinco echas ncadas nos braços e peitos — uma velha tinha uma no olho. “É
um desperdício.”
“Mandarei a ordem novamente, marechal. Para os homens é difícil não
atirar quando o inimigo avança sobre as posições deles.”
Mandei Renprow embora com um aceno. Soldados da guarda da muralha
lotavam o topo da torre, na maioria homens de meia-idade, muitos barrigudos
e grisalhos, achando que passariam os últimos anos caminhando paci camen‐
te nas muralhas da capital. A tarefa principal de um guarda da muralha de
Vermelhão é avistar incêndios. Fora isso, eles são basicamente uma reserva mó‐
vel da guarda municipal, e a única agitação que veem é quando são chamados
à cidade para apoiarem seus escassos irmãos da farda vermelha municipal.
“Saiam!” Atrás de mim, Martus abriu caminho no meio da guarda, gritan‐
do para qualquer um que não se mexesse rápido o bastante. “Saiam do meu ca‐
minho! Sou um príncipe, caramba. Vou… Minha nossa…” Martus parou no
meio da ameaça, estreitando os olhos contra o sol poente e olhando para a hor‐
da de mortos. “Minha nossa.” Ele cou pálido. “Nunca vi nada parecido
com… isso.”
“Eu já.” Inclinei-me para fora, com as mãos nas ameias para me apoiar. “Já
vi pior.” E naquele momento percebi que, embora o medo me atravessasse da
cabeça aos pés, não era aquele pavor debilitante que havia sentido em tantas
outras ocasiões. Então pensei que talvez soubesse o motivo de vovó ter me es‐
colhido. “Já vi o Inferno.” Levantei a voz. “Vi o Inferno e não é isso aí. Somos
os homens da Rainha Vermelha e temos toda Vermelhão nos apoiando. Não é
um bando de cadáveres emaranhados que irá tirá-la de nós!”
Aplausos surgiram e me pegaram de surpresa. Para dizer a verdade, foi
Renprow que puxou, mas o fato é que os homens à minha volta haviam perdi‐
do a coragem e algumas palavras fortes de um homem assustado lhes devolvera
um pouco dela.
“Em nome de Deus, como foi que…” Martus olhou para a multidão nova‐
mente, “…um exército de três mil mortos chegou às nossas muralhas sem qual‐
quer alarme?”
Darin coçou a barba em seu queixo. “Como se não desse para sentir o chei‐
ro deles a um quilômetro de distância! Você não mandou nenhum patrulhei‐
ro, Jal?”
Olhei para meus irmãos. Algumas pessoas os chamavam de gêmeos, embo‐
ra Martus tivesse porte mais pesado e Darin feições mais a ladas. Ninguém ja‐
mais nos chamou de trigêmeos, mas na verdade, se eu fosse cinco centímetros
mais alto, talvez achassem isso, com a luz fraca. Por mais que eu declarasse não
gostar deles, era bom ter a família me apoiando — ter gente comigo na torre
que genuinamente não esperava que eu resolvesse seus problemas ou que fosse
acertar.
“Tenho mais de cem homens em patrulha e nenhum exército poderia atra‐
vessar por Marcha Vermelha sem notícias vindas das cidades e vilarejos. Isso…”
apontei para nosso inimigo, “…foi feito aqui. A maioria deles provavelmente
foi morta em suas casas nas últimas horas, enquanto estávamos caçando
ghouls pelo rio.” Eu me perguntei quantos necromantes poderiam estar no
meio daqueles becos ou trabalhando em praças arborizadas, passando por lei‐
ras do meu povo, recém-mortos e estirados nos paralelepípedos lado a lado,
uma família de cada vez.
“O que vamos fazer?” perguntou Darin. O Darin de antigamente que eu
conhecia estaria me dizendo o que deveríamos fazer, explicando tudo com
uma con ança jovial. Estreitei os olhos para ele, imaginando que bicho o mor‐
dera, até me lembrar dos três quilos de carne nova e rosada que chegara recen‐
temente. Misha pusera o bebê nas minhas mãos quando ela e Darin nalmen‐
te me prenderam no Salão Roma algumas noites atrás. Uma coisinha minús‐
cula.
“Demos o nome de Nia,” disse Misha. Olhei para a criança de nome em
homenagem à minha mãe e senti meus olhos arderem.
“Melhor pegar a ferinha de volta, antes que molhe minha camisa,” falei,
empurrando minha sobrinha de volta para a mãe, mas era tarde demais. Aque‐
la velha mágica que bebês fazem tão bem havia me pegado, contaminando
mais rápido que mijo, vômito, ou qualquer outro uido corporal que os re‐
cém-nascidos gostam tanto de compartilhar. Até mesmo uma vida inteira fu‐
gindo de todas as obrigações impostas a mim se mostrou insu ciente para me
desvencilhar daquela ali como das outras. Imagina para o pai como não devia
ser?
Darin pegou Nia e a levantou. “Se a minha garota quiser sujar as penas de
pavão do tio, será um atestado de seu bom gosto.” Mas ele não cou ofendido.
Ele viu alguma coisa tomando conta de mim no momento em que a segurei,
apesar de eu ter tentado esconder, e me deu um sorriso esperto e muito irri‐
tante.
“Quais são suas ordens, marechal?” perguntou capitão Renprow, trazen‐
do-me de volta ao horror do alto da torre e do exército do Rei Morto.
“Minhas ordens?” olhei novamente para os mortos lá embaixo. “Eles pare‐
cem não ser uma grande ameaça para a cidade principal. Não têm máquinas
de cerco, nem cordas, nem arcos. Será que estão planejando nos matar de té‐
dio?” Não fazia muito sentido. Eu ouvia gritos fracos, trazidos pelo vento e
vindos da cidade externa.
“Minha esposa está lá fora,” disse um homem com o uniforme cinza da
guarda da muralha, um soldado comum. Ele apontou para uma pequena ele‐
vação com uma igreja em cima e casas circundando-a como ondas. Um múscu‐
lo se contorceu em sua mandíbula. “Meus lhos e os lhos deles cam na via
Pendrast.” Balançou o braço para indicar outra região, com fumaça subindo
acima dos telhados. “E mais…”
“Segure a língua, soldado!” disse um sargento pesadão, de rosto vermelho.
“Vinte e três mil pessoas vivendo além das muralhas da cidade de acordo
com o último censo, marechal.” Renprow relatou o número com a voz pene‐
trante.
“Espero que estejam fugindo.” Esperei pelo bem deles e pelo nosso. Se a
horda de mortos fosse in ada por mais de vinte mil novos recrutas, eles pode‐
riam rodear a cidade de maneira tão e caz que caríamos sitiados.
“Será que não podemos…” Darin não terminou a pergunta, pois sabia que
a resposta era não. Não podíamos ir até lá.
“Não temos gente su ciente.”
Atrás de nós, uma equipe de homens lutava para posicionar o escorpião,
um enorme dispositivo de ferro, madeira e cordas, capaz de atirar uma lança
pesada a quatrocentos metros. De perto, ele podia fazer essa lança atravessar a
porta da frente de uma casa, abrir um buraco em três homens atrás dela e sair
pela porta de trás.
“Não podemos car aqui olhando para eles o dia todo,” falei. “Temos
mortos nas ruas e monstros do lodo. Eles precisam ser pisoteados, e com for‐
ça.”
Três dos quatro capitães da guarda da cidade haviam se unido a nós no to‐
po lotado da torre e agora estavam se aproximando. O comandante deles, lor‐
de Ollenson, iria supervisionar a operação no rio — era isso ou participar de
sua própria decapitação pública amanhã — mas o alarme da muralha havia
trazido os capitães Danaka, Folerni e Fredrico para o meu lado.
“Danaka, quero você com três esquadrões na vigia norte.” Duas torres da‐
vam para o ponto onde o Seleen entrava na cidade, cada uma com os pés na
água, terminando a muralha. “Fredrico, três esquadrões para a vigia sul.” As
forti cações que davam para a saída do rio eram menos formidáveis. Qualquer
barco que tentasse entrar em Vermelhão por ali teria que lutar contra a cor‐
renteza, tornando-o lento e pesado.
Virei-me para Folerni, um homem magricelo, com o olho esquerdo leitoso,
a sobrancelha acima e a bochecha abaixo dele divididas por uma cicatriz. Seu
visual me lembrava a Irmã Silenciosa e eu z uma pausa. Antes que pudesse
encontrar as palavras, um uivo terrível se sobrepôs a qualquer coisa que eu te‐
ria dito. O tipo de som que faria estátuas correrem no sentido oposto. Girei
lentamente na direção das muralhas, embora o som tivesse me abatido e eu
não quisesse olhar.
Meus olhos se xaram em uma agitação depois dos mortos que lotavam o
Portão Appan. Algumas centenas de metros atrás, ao longo da estrada princi‐
pal, algo havia mudado nos cadáveres que bamboleavam na direção da mura‐
lha. Parecia quase uma onda passando pelas leiras deles. Suas cabeças se esta‐
laram para cima, eles caram terrivelmente alertas e suas bocas se abriram bas‐
tante para emitir aquele grito horrível. Talvez apenas os mortos recentes pu‐
dessem gritar, mas parecia que o barulho vinha de pulmões corroídos por
muito tempo, a voz dos túmulos, a própria morte falando de maneira nada su‐
ave. O uivo ondulante vinha ameaçador, prometendo os piores tipos de dor.
A cada lugar por onde a mudança passava, os mortos se moviam mais rápi‐
do, com uma energia desenfreada, subindo em prédios e despedaçando telha‐
dos, procurando qualquer um que pudesse ter sido deixado lá dentro, derru‐
bando portas ou correndo na nossa direção com um entusiasmo que subita‐
mente transformou as muralhas da cidade em um pequeno consolo. Ouvi ar‐
cos rangerem ao meu lado.
“Não atirem.”
A onda de ‘despertamentos’ moveu-se continuamente na direção dos por‐
tões, um bando denso dos mortos reanimados avançando para frente. Mas eu
percebi uma coisa. Antes de minha temporada no Inferno, meus olhos teriam
cados fascinados demais pelo horror daquele espetáculo para perceberem de‐
talhes, mas o tempo que passei lá me modi cou. No fundo da onda, vi os mor‐
tos voltarem a seu bamboleio, novamente mais próximos de sonâmbulos do
que de carcajus.
“Estão virando!” gritou Martus sob os gritos dos mortos.
A princípio, parecia que ele estava certo, mas eles não estavam virando, era
o efeito que estava virando. A área onde os mortos se reavivaram desviou-se
para a esquerda a cem metros dos portões. Aqueles que estavam uivando por
nosso sangue caram calados e sombrios novamente, e outros mortos, ho‐
mens, suas esposas e lhos, de repente começaram a gritar nas ruas à esquerda
da Via Appan.
“É como se…” Falei as palavras apenas para mim. Era como se eles sentis‐
sem algum calor terrível que os deixava violentos, e a coisa que irradiava esse
calor… estivesse em movimento. Tentei ver onde o foco desse efeito estava… e
vi um ponto se deslocando, quase como se o mundo se dobrasse sobre si mes‐
mo para ocultar algo que os olhos não deveriam enxergar. “Ali!” Levantei a
voz, agora apontando. “Ali! Estão vendo?”
“Vendo o quê?” Martus se empurrou para o muro ao meu lado.
“Há… alguma coisa,” disse Darin do meu outro lado, apertando os olhos.
“Alguma coisa… errada.”
“Não estou vendo coisa nenhuma! Onde?” disse Martus, protegendo os
olhos contra os últimos raios de sol.
Fiquei olhando, rastreando o ponto, perdendo-o atrás de casas, encontran‐
do-o novamente. Um espaço onde a luz parecia se desdobrar. Um ponto cego
da visão. E então, apenas por um momento, eu realmente vi. Talvez fosse o sol
se pondo que me emprestou um pouco da velha visão sombria que Aslaug cos‐
tumava trazer, ou talvez o Inferno tivesse treinado meus olhos para ver o que
as pessoas não deveriam ver. Um lampejo de movimento, um corpo impossi‐
velmente no, branco como um nervo, coberto por um manto oscilante cin‐
zento: talvez substância de almas, fantasmas de pessoas que assombravam o
corpo do lichkin como uma roupa.
“Merda.”
“O quê? O que é?” disse Darin, ainda olhando.
“Um lichkin,” falei. Um lichkin, um dos parasitas que Edris e sua laia bo‐
tavam para transportar as crianças desnascidas que matavam. Foi um troço
desses que prendeu minha irmã e queria apenas usar seu corpo para entrar no
mundo dos vivos. Mas aqui tínhamos um lichkin nu, que invadira o mundo
sabe lá Deus por qual fresta, e tão perigoso quanto um desnascido, pelo que
havia visto no Inferno.
“Aonde ele está indo?” perguntou Martus. O som dos gritos cou mais
distante conforme o lichkin se afastou.
“Caçar,” disse, e senti o olhar de vovó sobre mim com tanta certeza quan‐
to se estivesse diante de seu trono, com aqueles olhos duríssimos, sem o menor
pingo de transigência. Finalmente me lembrei de quando abri o estojo de per‐
gaminho que Garyus me dera, vi o selo da Rainha Vermelha e o rompi para ler
as palavras de seu próprio punho. Marechal de Vermelhão. E um bilhete: “Vo‐
cê diz ter visto a defesa de Ameroth. Reze para ter aprendido essa lição e reze
com mais afinco ainda para jamais precisar demonstrar que a aprendeu.”
Cem homens estavam atrás de mim e uma cidade atrás deles, para eu ma‐
nejar, para eu proteger. Em todas as minhas aventuras pela face do Império
Destruído, nunca quis tanto estar em outro lugar quanto naquele momento.
Olhei sobre os telhados lá fora, todos à sombra agora, o céu ardendo, verme‐
lho e fervilhante acima do sol que se pôs. “Queimem tudo.”
Os uivos passaram, quase inaudíveis, e os mortos abaixo de nós estavam
em silêncio. Ninguém disse nada. Ouvi o agito das bandeiras, o sussurro do
vento e bem longe, dentro das muralhas, o grito de um vendedor ambulante
anunciando seus produtos.
Virei e andei em direção ao escorpião. Os homens abriram caminho.
“Queimem tudo.” Bati a mão na pesada lança carregada na máquina. “Panos e
óleo. Atirem nos telhados. Mandem avisar todas as torres.”
Martus me agarrou e me virou. “Isso é loucura! Que diabos há de errado
com você?”
“Não podemos defender a cidade externa. De manhã já estarão todos mor‐
tos, aumentando o exército em nossos portões.”
“É insano! Não está certo.” Martus me sacudiu, levantando a voz, com
murmúrios de todos os lados somando-se ao seu protesto.
“Você levaria o Sétimo lá fora?” Inclinei a cabeça na direção das ruas escu‐
recidas da cidade externa. Dava para ouvir gritos distantes, mais uma casa in‐
vadida.
“Bem… eu…” Martus contorceu o rosto, prenunciando um de seus rom‐
pantes furiosos. “Seria loucura.”
“Eu não deixaria.” Desvencilhei-me dele e procurei o guarda que tinha
apontado para sua casa, perto da igreja no morro. “Você. Seu nome.”
“Daccio, alteza.” Ele estava com uma expressão de derrota, sem raiva, em‐
bora ela agora aparecesse nos rostos de seus companheiros.
“Daccio. Sinto muito mas sua esposa está morta, seus lhos também. Ou
estão escondidos em suas casas esperando ser salvos.” Olhei em volta para a
guarda da muralha, en leirada de cinza. “Você vai salvá-los? A guarda da mu‐
ralha vai descer estes muros pela última vez e se aventurar por onde o Sétimo
Exército tem medo de pisar? Ou será que os lichkin vão descobri-los? Se não
zermos nada, ao amanhecer veremos sua família ensanguentada diante de
nossos portões.” Peguei um pano na base do escorpião, um troço oleoso usado
nos braços dos arcos para não enferrujarem. “O fogo é limpo. Melhor queimar
do que deixar aquelas criaturas te pegarem. E que chance melhor nosso povo
terá de fugir do que na fumaça e confusão de uma grande con agração?” Co‐
loquei o pano na mão de Daccio. “Faça isso.”
E ele fez.
14
O lichkin voltou antes que as chamas tomassem conta por completo. Fiquei
na torre, precisando enxergar, embora não quisesse. Darin permaneceu do
meu lado. Martus saiu para orientar o Sétimo, despachando-o para as seções
mais vulneráveis da muralha às centenas, cada esquadrão liderado por um ca‐
pitão. Por ordem minha, quinhentos homens do Sétimo cariam com Martus
de reserva no palácio. Disse a Martus para insistir que a guarda do palácio —
uns quatrocentos homens, na maioria veteranos — fosse enviada para unir-se
ao meu comando.
Os mortos inicialmente se agruparam no Portão Appan e a multidão ali
crescia constantemente, mesmo depois que dei a ordem e o barulho dos escor‐
piões começou a soar por toda a muralha. O fogo tomou conta: um telhado
aqui, uma carroça coberta ali, labaredas alaranjadas subindo, ávidas por novos
sabores, e uma nuvem de fumaça utuou sobre os mortos.
“Jamais seremos perdoados por isto.” Darin olhou para o fogo com os
olhos descrentes.
“É a mim que não irão perdoar,” falei. “E sem isso não restará ninguém
para exercer o perdão.”
“Nunca pensei que tivesse essa capacidade, Jal.” Barras Jon havia me pro‐
curado, decidido a fazer sua parte na defesa. Ele parecia pronto para as listas
de torneio com sua armadura vyenense, seguindo a última moda lamelar, e ca‐
da placa de ferro tinha o relevo do símbolo de rosa de sua família. “Parece o In‐
ferno lá embaixo.”
“Está chegando perto disso.”
A noite estava escura e sem lua, mas os incêndios que causamos ilumina‐
vam a cena com tons inegavelmente infernais. Barras enxugou o rosto, esfre‐
gando uma cinza em sua bochecha pálida. Parecia loucura, nós dois ali, olhan‐
do para um exército de mortos iluminado pelo inferno cada vez maior de Ver‐
melhão. Eu esperava ver o rosto dele por cima de um cálice de vinho, ou ilumi‐
nado pela animação das corridas, não emoldurado por um capacete de ferro,
com os olhos arregalados de medo. Ele abaixou seu visor perfurado e se tornou
ainda mais desconhecido.
Através da fumaça e das chamas, vimos algumas de minhas previsões tor‐
nando-se realidade, as pessoas impulsionadas pelo medo da con agração sain‐
do da segurança de suas casas e correndo pelos campos abertos. Tinham uma
chance muito melhor, nesse êxodo em massa involuntário, do que esperando
pela invasão dos mortos. Quando o lichkin chegasse perto, os mortos reanima‐
dos arrombariam suas portas e não haveria escapatória. Agora, embora elas en‐
frentassem hordas de cadáveres ambulantes, pelo menos eram do tipo bambo‐
leante, em vez dos velozes.
Ademais, a simples quantidade de cidadãos em fuga, além do fogo alto e
da fumaça espessa, confundiu tanto aquele cenário que parecia que muitos sú‐
ditos de vovó realmente conseguiriam se libertar e assistir aos acontecimentos
da noite de algum milharal solitário ou de um trecho distante de oresta. Mes‐
mo assim, enquanto os via correr, eu sabia que haveria outros que cariam pa‐
ralisados demais pelos horrores lá fora para saírem, mesmo quando a fumaça
passasse por baixo de suas portas e as chamas começassem a destruir seus telha‐
dos. Se eu tivesse comido mais recentemente, talvez tivesse dado minha pró‐
pria contribuição aos muros manchados de vômito.
“Não consigo entender como eles podem nos fazer algum mal,” disse Da‐
rin ao meu lado, como se quisesse uma a rmação. “Eles não têm armas. Não
conseguem atravessar paredes nem empurrar os portões. Não conseguem esca‐
lar… esses aí só cam bamboleando, e mesmo quando carem com raiva não
irão escalar muros. Eles não têm cordas, escadas, nada…”
Eu não tinha resposta para ele. Mesmo assim, o fato de não saber me dei‐
xava com medo, em vez de con ante.
“Jesus, o que é aquilo?” Barras Jon se virou, fazendo barulho, quase empa‐
lando um guarda com sua espada.
“Você enxergaria melhor se tirasse esse negócio.” Darin bateu os nós dos
dedos no enorme capacete de Barras. Qualquer outra piada morreu ali, pois
ele também ouviu o som do grito de morte.
“O lichkin está voltando.” O urro distante, mas ainda ameaçador o su ci‐
ente para dilacerar um homem, aproximava-se do oeste. Os mortos abaixo de
nós haviam triplicado em número desde que ele partira, e chegavam mais a ca‐
da minuto. Eles tinham um medo rudimentar de fogo, su ciente para fazê-los
se afastarem, mas, com tão pouco espaço disponível, os que estavam mais pró‐
ximos dos prédios em chamas começaram a soltar fumaça. Vi uma moça de
vestido azul — lha de um comerciante, talvez — e sem marcas visíveis de vio‐
lência no corpo se acender como uma tocha ao lado de uma taberna em cha‐
mas. Uma vez eu tomei cerveja ali, mas não conseguia me lembrar do nome do
lugar. Seu cabelo se acendeu em um halo de fogo e ela começou a subir nas
costas de outros cadáveres para escapar do calor.
Conseguir uma contagem dos mortos à nossa frente cou difícil, com a
fumaça e a densidade dos prédios escondendo muitas ruas da vista, mas nin‐
guém que estava ali comigo discordava que houvesse menos de dez mil mortos
diante dos portões de Vermelhão. O barulho chegou mais perto, e a velocidade
de sua aproximação era aterrorizante.
“Lá vem! Às armas! Sua cidade está com vocês!” Gritei as palavras acima
do uivo crescente, enquanto em algum lugar no escuro, em meio ao inferno
cada vez maior, o lichkin corria em nossa direção.
O lichkin atravessou aqueles milhares tão rápido quanto um cavalo galo‐
pante, indo em direção aos portões. Inclinei-me para fora o máximo que tive
coragem para acompanhar seu progresso, mas ele desapareceu da minha vista
embaixo da guarita, no espaço imediatamente em frente às portas de Verme‐
lhão.
Quando ele alcançou os portões, os mortos ali enlouqueceram, batendo e
berrando para as tábuas. Imaginei punhos batendo na madeira com tanta for‐
ça que seus ossos se estilhaçavam. As batidas diminuíram e os gritos enlouque‐
cedores se intensi caram quando a grande massa de cadáveres atrás deles pres‐
sionou-se para frente, aumentando lentamente a pressão. Os portões começa‐
ram a ranger, a princípio como uma casa se ajeitando à noite, e depois mais al‐
to, com uma série de respostas agudas das tábuas lutando umas contra as ou‐
tras. Por baixo disso, um grunhido grave das barras de bloqueio aguentando o
esforço, três grandes núcleos de ferro no centro de carvalhos milenares. Um
barulho agudo em algum lugar, quando um rebite saltou de seu local.
“Mandem homens lá para baixo! Empurrem de volta.” Minha fé absoluta
na força dos portões durou menos de um minuto. “Rápido, caramba! Quero
trezentos homens lá embaixo agora!” Eu mesmo queria estar lá embaixo, me‐
tendo os ombros nos portões, mas precisava ver.
Inclinei-me sobre as ameias para olhar para o alto da guarita, pouco abaixo
de nós. Os soldados lá tinham dois grandes caldeirões de óleo colocados sobre
carvões acesos para ferver.
Barras chegou ao meu lado. “Acha que mortos vão sequer perceber óleo
fervente?” Uma mistura de pessimismo e esperança na voz dele. Eu a conhecia
bem das longas noites na mesa de dados, onde ele perdeu uma fortuna, e na
mesa de cartas, onde ele a recuperou… principalmente de mim.
“Pode incomodá-los… um pouco.” Encolhi os ombros. “O importante é
que os homens tenham algo para fazer.” Em momentos assim, é melhor ter al‐
go para fazer do que deixar o medo en ar as garras em você.
“Óleo em chamas, isso sim seria alguma coisa!” disse Barras. “Isso eles per‐
ceberiam!”
“Só um idiota começa um incêndio aos pés de seus portões, Barras,” disse
Darin, unindo-se a nós.
É raro eu apoiar um irmão acima de um amigo, mas ele estava certo. “Esse
óleo não queima, é um óleo mineral de Attar. Dá para apagar uma fogueira
com ele. Custa caríssimo, mas é melhor despejar dinheiro no inimigo do que
algo com que eles possam incendiar seus portões!”
Darin ergueu uma sobrancelha. “Está sabendo das coisas, irmãozi…”
“Eu sou a porra do marechal, Darin.”
“Está sabendo das coisas, marechalzinho.” Ele sorriu.
“Sou um bom aluno quando se trata de segurança.” Darin nunca acredi‐
tou na história do herói da Passagem Aral e eu não sentia necessidade de ngir
para o bem dele.
Os homens ao lado dos caldeirões agora estavam olhando para mim, ao
perceberem que tinham plateia.
“Derramem!” gritei. Não tinha visto sinal de necromantes, mas sempre
havia uma chance de estarem misturados aos mortos, escondidos à vista de to‐
dos. Edris Dean me ensinara que não eram homens comuns, mas mesmo as‐
sim, um banho de óleo fervente certamente estragaria com o dia deles.
Ao meu comando, os homens começaram a destapar as troneiras e prepa‐
rar os suportes que virariam os caldeirões.
O óleo desceu as troneiras com um chiado grati cante, mas não houve se‐
quer uma mudança de tom nos gritos lá de baixo.
“Droga.” Um pouco desanimado, voltei para observar da frente da torre.
Durante dez minutos, os mortos uivantes atiraram seu peso contra o Por‐
tão Appan, e cada estalo e gemido da madeira revirava minhas entranhas gela‐
das. O lichkin mexia-se para frente e para trás, entrando e saindo da guarita,
mandando ondas de fúria crescente de encontro às portas. Ouvi um estilhaço
e mordi o lábio para não adicionar minha própria nota de desespero ao con‐
junto.
“O fogo está realmente tomando conta.” Darin se engasgou com a fumaça,
como se quisesse provar que tinha razão. Eu estava com o olhar xo nas costas
dos mortos se empurrando, mas agora, olhando novamente para a cidade ex‐
terna, vi que Darin estava certo. A parte de cima de várias casas próximas à
muralha havia desabado, fazendo enormes colunas de fogo subir acima dos
muros, jogando fagulhas e cinzas pelos ares. Por toda a cidade externa, o fogo
saltava de telhado em telhado, perseguindo cercas, lambendo portas. Em toda
a parte, os mortos estavam chamuscados e com bolhas, alguns com os cabelos e
as roupas queimados. Dava para ver os restos de outros, curvados no meio das
chamas que se alastravam. Por um momento pensei em papai em sua pira.
Tossi e pressionei as mãos nos olhos ardendo. “Estão se movendo!”
O lichkin atravessou as leiras de cadáveres, abandonando o ataque aos
portões. O fogo havia retirado o luxo do tempo de nosso inimigo. Um general
talvez tivesse batido em retirada para as fazendas ao redor e esperado nos oli‐
vais até retornar no dia seguinte, mas supus que mortos e espíritos eram mais
elementares do que estratégicos. O que eu sabia do Rei Morto em si, e era bem
pouco, o retratava não como um planejador, mas como uma força destruidora
involuntariamente conduzida pelas maquinações da Dama Azul.
Os mortos não se retiraram e o lichkin não tentou escapar das chamas —
apenas se afastou de nós e foi ao redor das muralhas, como se procurasse uma
fraqueza.
Duzentos metros ao leste, os mortos, que antes estavam de vigília diante
da muralha, agora se avivaram e começaram a arranhar a base de uma torre
que cava tão próxima que um homem no alto dela poderia atirar uma lança
nos vigias e ter uma boa chance de acertar um deles.
Eu havia visitado a mesma estrutura dias antes — uma torre de água que
abastecia as casas bem equipadas de vários comerciantes que tinham condições
de morar dentro dos limites da cidade, porém em mansões consideravelmente
menos imponentes. A torre também fornecia água para uma próspera ferraria
que atendia às necessidades de vários fabricantes de rodas, de carroças e presta‐
dores de serviços com pontos na Via Appan, assim que ela saía dos portões.
Estranhei o fato de vovó ter permitido a torre tão perto de suas muralhas,
apesar de suas repetidas ameaças de arrasar os subúrbios à menor insinuação
de guerra. Acabou que a licença foi concedida baseada no fato de que a estru‐
tura foi concebida para cair. Fortes pilares de madeira sustentavam a parede da
torre e, sem eles, o troço desabaria. Em vez de oferecer uma plataforma da qual
arqueiros pudessem esvaziar nossas muralhas, a torre era uma armadilha mor‐
tal. Mirar nos pilares com echas de ferro, atiradas de um escorpião, derruba‐
ria a torre, matando todos os inimigos nela e se possível vários outros por per‐
to.
“Que diabos…” A torre desabou antes que eu pudesse terminar. Mais de
vinte mortos foram estraçalhados pela avalanche de alvenaria e madeira.
Outros mortos avivados se aproximaram dos escombros, agora envoltos
em poeira, além de fumaça. Em instantes eles estavam se mexendo, transpor‐
tando as pedras quebradas até a muralha, homens mortos carregando vigas
grossas e estilhaçadas, crianças mortas levando pedaços menores. Outros vie‐
ram correndo de ruas próximas empurrando carrinhos, carroças, portas arran‐
cadas das casas, jogando tudo em uma pilha desordenada diante da muralha.
“Estão construindo uma rampa!” Darin se agarrou às ameias. “Precisamos
ir até lá.”
O parapeito daquele trecho, como todos os outros, estava bem vigiado,
embora pelos velhos da guarda da muralha, e outros mais estavam chegando
àquele ponto pelos dois lados. “Precisamos detê-los, isso sim, e não car espe‐
rando que eles façam isso.” Comecei a sair em direção aos degraus da torre,
mas acabei me virando para as ameias que davam para os portões. Os caldei‐
rões vazios estavam ao lado das troneiras, fumegando de leve.
“Encham estes com óleo de fogo!” Acenei para os homens do escorpião,
que havia sido manobrado para a frente de nossa torre. “Levem-no até eles.”
Eles tinham pequenos barris do material e tinas de alcatrão, tudo usado para
detonar os subúrbios. “Vocês! Todos vocês.” Apontei para a guarda da mura‐
lha ao fundo. “Corram para as outras torres e peguem o óleo de fogo e alcatrão
deles.”
“Estão jogando pedras neles, Jal!” gritou Barras do outro lado da torre,
olhando para mim, com o visor levantado e o rosto corado. “Isso deve resol‐
ver!”
Corri até lá para ver. Os guardas estavam jogando pedras de cima da mura‐
lha, algumas do tamanho da cabeça de um homem, a maioria bem maior. Ho‐
mens com carrinhos se apressavam com mais munição das reservas ao longo
do parapeito. Lá embaixo, a carni cina reinava, as cabeças dos mortos se estra‐
çalhando, molhadas, conforme as pedras os atingiam. Outros, envolvidos na
atividade de colocar seus pedaços de alvenaria na pilha, caíam despedaçados
quando as pedras batiam em suas costas.
“Está dando certo!” disse capitão Renprow ao meu lado.
“Sim, mas não para nós,” falei, estreitando os olhos para a pilha, tentando
atravessar a névoa de poeira e fumaça. Nenhum dos homens à minha volta
compreendia os mortos e seu rei como eu. Virei-me para Renprow. “Detenha-
os! O mais rápido possível. Só estão ajudando a construir a rampa deles.”
Aquela chuva de pedras e os corpos esmagados criados por ela estavam se
amontoando na base da muralha. Novos mortos simplesmente substituíam os
antigos, descarregando a alvenaria e a madeira em cima dos restos que ainda se
mexiam a seus pés. “Precisamos reforçar aquela área. Mandem os soldados de
Martus para lá.” Não falei em voz alta, mas não levava muita fé na guarda da
muralha. A idade pode deixar um homem um pouco mais sábio, mas deixa o
braço da espada bem mais lento. Nunca pareceu provável que Vermelhão fosse
atacada, certamente não sem avisos consideráveis. Transformar a guarda da
muralha em um plano de aposentadoria para velhos soldados parecia uma
ideia sensata na época. Agora nem tanto.
As mensagens levaram uma eternidade para serem enviadas. A primeira
carga de óleo de fogo só foi despejada no primeiro caldeirão após vários minu‐
tos. Com os mortos uivando e a rampa crescendo, pareceu uma eternidade. Só
para fazer a guarda da muralha parar de atirar pedras nos adversários levou
minutos, quando segundos já seriam demais.
“Eles jamais chegarão ao topo,” disse Darin. Fazia sentido. A muralha pa‐
recia baixa, do alto de uma torre de dezoito metros, mas ainda cava nove me‐
tros acima da cidade externa, e a rampa dos mortos mal chegava a três metros,
talvez com o dobro de largura. O que acontece em uma pilha é que, quanto
mais alta, mais lentamente ela cresce, porque se espalha e precisa de dez vezes
mais esforço e materiais para duplicar em altura. “Jamais.” Mesmo assim, a
a rmação de Darin parecia mais uma oração.
Durante dez minutos nós camos observando-os construir, enquanto o
fogo fora da rampa aumentou até o barulho das chamas car mais alto que a
fúria dos mortos. Talvez os necromantes nos observassem pela noite, de algu‐
ma maneira enfrentando o incêndio, mas eu não vi nada além de cadáveres e
mais cadáveres, todos concentrados na direção da muralha e do monte de pe‐
dras e corpos quebrados. Avistei o lichkin de tempo em tempo, e me arrependi
até mesmo de procurar por ele. Uma vez ele virou aquela cabeça estreita e sem
olhos para a nossa torre, e o horror frio de seu olhar se abateu sobre mim co‐
mo um grande bloco de gelo. Recuei rapidamente, depois me agachei, quase
me atirei e saí da vista, abaixo do nível do muro da torre.
“Marechal?” Renprow veio atrás, abaixando para me pegar.
“Vamos lá, Jal,” disse Barras, agarrando meu braço para me colocar de pé.
“Não podemos deixar nosso glorioso líder desmaiar. É ruim para o moral.”
“Deixei cair uma coisa.” Fingi en ar alguma coisa escondida na mão em
um bolso debaixo da cota de malha que estava usando. Não houve tempo de
pegar minha armadura no palácio, e assim o Marechal de Vermelhão estava
com uma malha dos estoques da guarita que mal lhe servia. “Onde está o mal‐
dito óleo? Os caldeirões ainda não estão cheios?”
“Alguma coisa está chegando!” disse um arqueiro à frente da torre.
“Alguma coisa grande!” disse o homem ao lado dele, segurando sua lança
como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
Renprow soltou meu braço e se meteu no meio para ver.
“Muitos deles!” Um homem grande e barbudo, recuando do muro de uma
maneira que se assemelhava muito a uma retirada.
“Marechal!” chamou Renprow.
O medo quase me empurrou de volta ao chão, mas caminhei para frente e
me juntei a ele, apertando os olhos contra a fumaça ardida. Os vultos que se
aproximavam, escuros em contraste com as chamas dos dois lados da Via Ap‐
pan, eram do tipo que davam pesadelos. Tinham alguma coisa de aranha, mas
também lembravam uma mão, ou talvez um cachorro mutilado, oco e andan‐
do com os cotocos das patas. Dava para identi car guras de homens atrás de‐
les, e naquele momento percebi que cada um dos seis monstros era maior do
que dois cavalos de carga juntos.
“Mandem aquele escorpião para frente outra vez!” Eu me virei. “Agora,
porra! E deem sinal para as outras torres abrirem fogo. Arqueiros nos homens
atrás! Cada homem com um arco.” Rezei para que aqueles nalmente fossem
os necromantes, e que enchê-los de echas fosse derrubá-los. “E, pelo amor de
Deus, levem os caldeirões até a rampa. Não quero nem saber se estão cheios!”
Os homens ao meu redor começaram a atirar echas para o céu. Se esta‐
vam acertando ou não, não dava para saber, até que nalmente um dos ho‐
mens mais ao fundo da coluna caiu, segurando o rosto.
“Mirem nos homens! Mirem nos homens! São necromantes!”
O primeiro tiro do escorpião passou longe. Empalou três mortos-vivos
cambaleando bem na frente da primeira monstruosidade, atravessando e sain‐
do pela estrada atrás deles. Os três se viraram preguiçosamente, girando uma
vez, duas, e caindo. Todos já tinham se levantado quando o próximo tiro foi
disparado. Os monstros avançaram e a fumaça soprou de lado por um instan‐
te, deixando o brilho do fogo revelá-los. Cada um deles tinha desenho seme‐
lhante, como uma mão sem os dois dedos do meio, andando com três pernas,
que pareciam feitas com os fêmures de seis homens, brilhando com resquícios
de músculos e unidos por metros de tendões. Várias hastes de echa saltavam
dos membros e costas do primeiro, sem lhe causar nenhuma inconveniência
óbvia. A carne vermelha envolvia o corpo como heras grossas, e uma massa
branca e glutinosa de gordura obscurecia o vértice onde os três membros se
encontravam.
“Jesus.” Barras ainda estava com a espada para fora por algum motivo, mas
agora com o braço prostrado do lado.
Eu sabia que necromantes atacavam túmulos, praticando as artes que fazi‐
am os mortos se levantarem, cheios de violência e fome. Este era um horror
novo. Aqui eles tinham se tornado artistas do corpo, esculpindo cadáveres em
formas novas e grotescas. Aquilo me lembrou os desnascidos, tomando formas
horrendas de qualquer carniça que estivesse ao alcance. O único pequeno con‐
solo estava no fato de que, enquanto as criações dos desnascidos tinham velo‐
cidade e coordenação mortais, as coisas que os necromantes construíram se
moviam lentamente e sem elegância. Eram tão esquisitos, na verdade, que era
difícil perceber como poderiam ser uma ameaça. O primeiro deles parecia que
teria de ser separado por três homens com grandes espadas, antes de conseguir
formar um ataque. Eu me virei. “Atirem neles.”
Arqueiros inclinaram seus arcos e soltaram mais echas. Quatro homens
trabalhavam enrolando a corda do escorpião, puxando o grande braço da bes‐
ta para trás, enquanto outro esperava com a lança a postos para carregá-la. Os
uivos da rampa chegaram a novos patamares e agora os mortos se atiravam pa‐
ra frente freneticamente, trançando os braços, en ando os dentes uns nos ou‐
tros, segurando rme enquanto novos cadáveres subiam em cima deles. Já ha‐
via visto algo parecido antes, quando formigas formam uma ponte sobre um
minúsculo riacho, construindo aquela extensão com seus próprios corpos,
centenas delas bem juntas, enquanto outras atravessam.
“Cadê o óleo de fogo?” gritou Darin, olhando para fora da parte de trás da
torre.
Corri até ele, e assim redescobri o quanto era difícil correr para qualquer
lugar de cota de malha. Dois times de soldados haviam chegado aos degraus da
muralha, cada um carregando um caldeirão pendurado em uma haste resisten‐
te de madeira. “Andem logo!” gritei, embora di cilmente eles poderiam ouvir
qualquer coisa além dos gritos dos mortos e da voz do fogo.
Ao retornar para a frente da torre, vi que os homens que impulsionavam
os monstros haviam desaparecido, embora mais um corpo estivesse caído na
estrada, pisoteado por outros mortos que chegaram. Os próprios monstros
haviam se desviado na direção da rampa e se moviam com mais velocidade, sa‐
cudindo e balançando pelo caminho.
Os mortos na rampa agora chegavam a dois metros do topo do muro, e a
guarda lá havia voltado a atirar pedras neles. Quase nada os prendia à muralha
— aqui e ali dedos mortos se en avam em frestas entre as pedras, onde o ci‐
mento havia se soltado, despedaçado por alguma geada forte no inverno e que
cara sem manutenção. Havia partes da muralha em pior estado, por onde se‐
ria mais fácil subir, mas os mortos se reuniram ali por causa do ataque ao por‐
tão e, com a cidade externa em chamas, qualquer reorganização do ataque pro‐
vavelmente cozinharia metade deles. Eu tinha mandado homens trabalharem
em partes da muralha à nossa volta na semana anterior. Se tivessem feito um
trabalho melhor, as tentativas de escalar o muro estariam acontecendo bem
mais lentamente. Por outro lado, se não tivesse lhes incumbido dessa tarefa, já
teríamos sido invadidos a esta altura.
“Não vamos aguentar!” Barras apontou para onde outros cadáveres subi‐
am pela torre de corpos. Um guarda da muralha se debruçou para meter sua
lança para baixo. Ele deu uma estocada em seu alvo, uma velha de vestido sujo
de fuligem, os cabelos brancos e desgrenhados, com o braço esquerdo chamus‐
cado pelo fogo. A lança a atingiu no pescoço e ela a agarrou, caindo para trás.
O guarda caiu com ela, surpreso demais para soltar sua arma.
“É uma corrida,” cochichou Darin ao meu lado. Os homens dos caldeirões
haviam chegado ao parapeito e precisavam navegar por cinquenta metros no
topo lotado da muralha. Os monstros estavam se aproximando da rampa, tal‐
vez faltando o dobro dessa distância, movendo-se mais rápido e com mais con‐
ança, agora que se aproximaram da órbita do lichkin e também se avivaram
por sua presença.
Vários escorpiões dispararam em sucessão rápida. O monstro da frente, já
furado por uma lança, agora recebeu mais duas, uma atravessando uma perna
e estilhaçando ossos. Ele caiu, debatendo-se, mandando mortos-vivos pelos
ares com os chutes descontrolados de suas pernas. Sem conseguir se levantar,
começou a se arrastar em direção à rampa. Outro monstro perdeu o equilíbrio
quando foi atingido por uma echa de escorpião e saiu descontrolado, cho‐
cando-se em um estábulo em chamas e derrubando a estrutura enfraquecida
ao redor.
Examinei aquela cena, tentando extrair algum signi cado daquele caos.
Alguma coisa me chamou a atenção. Não era um monstro, nem um lichkin,
nem as chamas rugindo entre as vigas. Um único vulto entre os milhares. Às
vezes não é a maneira como uma pessoa se mexe que a revela, e sim como ca
imóvel. A única coisa que atraiu meu olhar foi a corrente dos mortos passando
em volta do ponto onde ele estava. Fora isso, nada o destacava. Fumaça e cin‐
zas o manchavam como tantos outros, colorindo sua túnica e calça de um cin‐
za sujo. Sangue antigo cobria metade de seu rosto e descia por seu pescoço em
letes escuros. Ambas as mãos estavam vermelhas até os cotovelos. Ele segura‐
va o pescoço em um ângulo estranho, com uma cicatriz escura por cima. A
princípio pensei que a cicatriz pudesse ser do golpe que o matou, e que a faixa
escura sobre a cabeça grisalha fosse apenas cinzas da madeira queimada. Em
seguida ele levantou os olhos para a torre, para mim, e eu o reconheci.
“Edris Dean!” gritei, embora ninguém à minha volta soubesse seu nome.
“Atirem nele! Atirem naquele desgraçado, bem ali!” Apontei, peguei um arco
do homem atrás de mim e pedi uma echa, para que pudesse obedecer à mi‐
nha própria ordem. “Necromante!” gritei, e isso os fez se mexerem.
Onde minha echa caiu, eu não fazia ideia. Duvido muito que tivesse
emulado a façanha de minha avó em Ameroth, mas ela estava mirando em sua
irmã e nós, os Kendeth, nos saíamos bem melhor em circunstâncias assim. Das
mais de uma dúzia de echas atiradas em Edris, duas o atingiram e algumas
outras pegaram em cadáveres andando por ali, mal fazendo-os diminuir o pas‐
so. Uma das duas que o atingiu o pegou no ombro; a outra, e vou levar o cré‐
dito por ela, haja o que houver, ncou em seu peito. Por ter visto Edris Dean
escapar da Torre das Fraudes em Umbertide, apesar de ter cortes tão profun‐
dos que só os ossos do pescoço impediam sua decapitação, em vez de comemo‐
rar eu comecei a ordenar uma segunda saraivada. Antes de terminar de gritar
o comando, Edris se estilhaçou, como se fosse um re exo em um painel de vi‐
dro. Seus pedaços sumiram de vista, perdidos na maré de cadáveres ambulan‐
tes.
“Inferno.” Empurrei o arco que roubara de volta ao dono.
“O que… foi aquilo?” perguntou Barras.
“Um necromante,” falei.
“Nós o matamos?” Darin usou o ‘nós’ da realeza: ele não tinha arco, mas
provavelmente teria chegado mais perto do alvo que eu, se tivesse tentado.
“Eu não apostaria nisso.” Já tinha visto muita mágica de espelho para
achar que estava destruído. Apenas imaginei quantos outros re exos ele pode‐
ria ter espalhado entre nossos inimigos e pensei em como poderia evitar en‐
contrar qualquer um deles. A mão do Rei Morto podia estar por trás desse
exército de cadáveres, e ele podia ter angariado necromantes em sua causa, mas
pelo menos um tinha uma mão azul em seu ombro. O Rei Morto estava gas‐
tando seu poder aqui, caçando a chave de Loki para poder entrar no mundo,
mas a Dama Azul sem dúvida tinha objetivos mais prementes — com vovó e
sua Irmã Silenciosa indo atrás do reduto da Dama Azul na Slóvia, talvez ela
quisesse desviar Alica Kendeth de seu caminho com um ataque direto ao cen‐
tro de seu reino. Se esse fosse o caso, então ela claramente não conhecia minha
avó muito bem. A Rainha Vermelha sacri caria a todos nós para ganhar essa
guerra, à noite se deitaria na cama e dormiria tranquilamente.
“Carreguem mais rápido! Carreguem mais rápido!” Os comandos apavo‐
rados do capitão Renprow me tiraram de meus próprios pensamentos apavo‐
rados. Ele direcionou o escorpião para a base da rampa, agora invisível sob o
peso dos cidadãos mortos aglomerados nela.
Dava para ver o pavor nos rostos dos soldados em cima da muralha, lutan‐
do para conseguir colocar os dois caldeirões pesados no lugar. Nenhum ho‐
mem sozinho seria capaz de levantá-los e, com muitos galões de óleo de fogo e
alcatrão dentro, os quatro homens que cabiam em volta de cada caldeirão ti‐
nham di culdade de posicioná-los.
Logo abaixo dos guardas que lutavam com o peso dos caldeirões, um mar
de mortos-vivos se agitava, gritando, sendo levado até a rampa de pedra que‐
brada, madeira quebrada, corpos quebrados. O andaime de cadáveres chegou
a um metro do topo da muralha, com centenas na construção e dezenas de ou‐
tros subindo, berrando sua fome terrível. E atrás daquele andaime, atravessan‐
do a horda de mortos, esmagando alguns, derrubando outros, vinham os
monstros, os trípodes, brutos, ensanguentados, correndo como aranhas. E no
entanto a guarda da muralha se manteve rme. Aqueles velhos de quem eu
duvidara caram em suas posições, respeitando seu juramento e sua obrigação,
enquanto eu teria fugido.
“Isso aí!” gritaram Darin, Barras e todos os homens à minha volta quando
duas tochas foram colocadas nas bocas dos caldeirões e eles começaram a se in‐
clinar.
Dois jatos de fogo começaram a descer pela pirâmide de mortos achatada
contra a muralha. Todos os guardas comemoraram. No entanto, os mortos
abaixo se mantiveram rmes, mesmo em chamas, com a pele murchando no
calor, os cabelos e as roupas queimando, a pele chiando.
A primeira monstruosidade de três pernas começou a escalada, ancorando
as pernas na torre de cadáveres em chamas e subindo na direção do muro.
Uma onda de óleo ardente passou por cima dele, mas ainda assim o monstro
seguiu em frente, com outros mortos subindo atrás. Os escorpiões da torre
não podiam mais atirar nele, por estar tão perto dos guardas, e, com um últi‐
mo impulso, ele enganchou duas pernas sobre a beira da muralha. Mortos em
chamas subiram em suas costas, uivando, e se atiraram nas equipes dos caldei‐
rões, que recuaram em pânico. O resto do óleo de fogo se derramou dos caldei‐
rões soltos, ateando fogo ao parapeito.
“Mandem mais homens lá para baixo! Agora!” Balancei minha espada des‐
necessariamente. “Anunciem a invasão!”
Trompetes gritaram, um alarme que nenhuma pessoa viva de Vermelhão
jamais ouvira, exceto em treinamento. A cidade havia sido invadida.
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Durante meia hora, parecia que conseguiríamos segurar as forças do Rei Mor‐
to em cima da muralha e talvez até fazê-las recuar, depois que os soldados do
Sétimo chegassem ao combate e socorressem os velhos soldados da guarda. No
parapeito estreito, os mortos só podiam avançar na guarda da muralha dois ou
três por vez. Eles se atiravam para frente com uma velocidade espantosa, acei‐
tando as estocadas das espadas e lanças para se aproximarem de seus adversá‐
rios e apertar as mãos nos pescoços dos homens.
“Esses mortos sempre querem estrangular. Qual o sentido disso?” Na mi‐
nha opinião, não era uma maneira muito e ciente de matar alguém, principal‐
mente no meio de uma batalha intensa.
“Que outras opções eles têm?” perguntou Darin.
“Dedos nos olhos? Cabeça esmagada na parede?” Eu havia passado tempo
demais com Snorri.
“E tem aquilo também!” Barras apontou para outra dupla lutando. A
agressora era uma moça queimada de óleo de fogo e ainda fumegando, agora
com uma lança atravessada na barriga. Ela agarrou o guarda que a lanceara e
os dois despencaram da passarela, uma queda de oito metros, de cabeça nos
paralelepípedos abaixo.
Observamos da torre enquanto a luta avançava. Considerando a estreiteza
da frente de batalha, não havia muito mais a fazer. Naqueles primeiros mo‐
mentos, a invasão parecia um desastre total, mas dez minutos depois os mor‐
tos já tinham empurrado a guarda da muralha talvez uns vinte metros de cada
lado, pela perda de vários do bando deles.
“Eles os estrangulam porque é mais fácil fazer um cadáver intacto se levan‐
tar novamente,” disse Darin. Nisso, lá no parapeito, duas mãos enluvadas esti‐
caram-se sobre o muro e um guarda se levantou, com o pescoço pálido e o gri‐
to mortal irrompendo de seus pulmões.
“Eles não têm inteligência nenhuma, no entanto,” disse Barras. “Olhem.
Metade deles simplesmente cai direto do outro lado, logo após subirem na
muralha. Deve estar uma bagunça dos infernos lá embaixo.”
Observei por um momento. Ele estava certo. O uxo de cadáveres, após es‐
calar aquele andaime escurecido e fumegante de mortos, atirava-se sobre a
muralha como se esperassem imediatamente encontrar alguém com quem lu‐
tar. Pelo menos metade deles não conseguia se segurar nas pedras oleosas, aca‐
bava chegando à beira do parapeito e caindo para sua desgraça.
“Merda!” Meu sangue gelou. “Sigam-me!” Teria demorado demais para
explicar ou emitir ordens. Peguei uma das tochas de óleo ao lado do escorpião
e desci correndo a escada espiral que atravessava a torre. “Sigam, malditos!”
Centenas de cidadãos assistiam das ruas detrás dos portões, a mais ou me‐
nos cinquenta metros dali, aglomerados em grupos nervosos. Rapazes, na mai‐
oria, portando lanças, facas de açougueiro, uma ou outra espada, qualquer coi‐
sa com que pudessem se armar, mas havia homens mais velhos também, meni‐
nos e até moças e mães grisalhas, todos atraídos pela ideia do espetáculo. Di‐
zem que as pessoas estão morrendo de vontade de serem entretidas, e ali estava
uma plateia que parecia pronta para fazer exatamente isso. Vendedores ambu‐
lantes passavam entre eles, levando lanternas para exibir seus produtos, salga‐
dos e salsichas, doces e maçãs ácidas. Duvido que tivessem muitos fregueses,
com aquele fedor de morte, a fumaça que pairava e os uivos mortais de revirar
o estômago. O fato de as pessoas ainda estarem ali era a con rmação da fé que
tinham em nossas muralhas, mas se algum deles realmente soubesse o que
aguardava do outro lado, eles estariam correndo para casa e gritando pela mi‐
sericórdia de Deus.
“Que foi?” Darin me alcançou na base da torre.
Olhei para trás para conferir se não estávamos sozinhos. Renprow, Barras
e agora um grande uxo de guardas surgiram atrás de nós, com mais dois tra‐
zendo tochas. “Todos aqueles mortos caindo…” falei. “Está ouvindo-os aterris‐
sar?” Abri caminho pela completa escuridão ao longo da base da muralha e de‐
pois diminuí o ritmo para os guardas nos ultrapassarem. Não tinha a menor
intenção de car na leira da frente. “Renprow! Mande mais homens aqui pa‐
ra baixo. E mande buscar os reforços de Martus.” Eu tinha certeza de já ter
mandado que se apresentassem na muralha. “E onde está a guarda do palácio,
cacete?”
“Mas por que estamos aqui embaixo?” repetiu Darin.
“Os mortos da muralha. Consegue ouvi-los batendo no chão?” perguntei,
com os olhos rondando a escuridão, desejando que Aslaug estivesse ali para me
ajudar.
“Não consigo ouvir nada além de você gritando,” disse Barras, fazendo ba‐
rulho com sua armadura luxuosa de torneio.
Estava lá, porém, por baixo do barulho dos homens lutando e morrendo,
por baixo dos urros mortais, um baque seco, sem ritmo, como os primeiros
pingos pesados de chuva pressagiando a tempestade.
“Por que está assustado?” Darin segurou sua enorme espada à frente, re e‐
tindo a luz da tocha. “É uma queda de quase dez metros no chão duro. Isso é
mais que tornozelos quebrados, são canelas quebradas, joelhos, quadris, tudo.
Não me importo que não morram, mas eles não vão perseguir ninguém.” Ele
pisou lentamente, apesar de suas palavras, como se não acreditasse que o calça‐
mento não fosse morder.
“Eram dez metros para a primeira dúzia. Já vimos mais de cem cair. A essa
altura eles estão caindo sobre uma pilha macia de corpos quebrados.”
Agora dava para ouvir com clareza, uma batida rápida e irregular, de cor‐
po se chocando contra corpo, um batimento errático na escuridão atrás da
muralha.
A luz da tocha mostrou vultos à frente. Muitos vultos, parados ali na escu‐
ridão total, sem falar. Mais alguns passos para perto e as sombras mostraram
outros mais. Eles levantaram as cabeças ao mesmo tempo, os olhos re etindo
as chamas e devolvendo-as. Então atacaram. E começaram os gritos.
•••
De perto, a ferocidade dos mortos reanimados era uma coisa chocante. Sua
completa fúria e falta de preocupação com pontas a adas fazia a defesa parecer
uma futilidade, um atraso momentâneo do inevitável. A primeira leira de
guardas caiu em instantes, levados ao chão, com mãos mortas fechando-se em
seus pescoços. A segunda leira desabou em pouco tempo, com outros mortos
surgindo pelas laterais de meu bando de uns trinta homens, o que me deixou
cercado e atacado por um gordo esfarrapado que parecia ter passado duas se‐
manas no túmulo, antes de ser ressuscitado para se unir às festividades do dia.
Nem tive tempo de reclamar que o enterro dele era uma contravenção direta
das ordens da Rainha Vermelha, para não dizer das minhas como marechal.
Eu mal tive tempo de gritar.
O negócio de mortos-vivos que não podem morrer novamente, e que pre‐
cisam ser desmembrados se quiser detê-los, é que tudo é ótimo enquanto você
relembra essa informação. Mas quando um desses desgraçados pula em você
gritando com uma fúria terrível… você quer atravessá-los com uma arma. É
instinto. Deviam colocar isso na minha lápide. ‘Morto por instinto.’
Desa ando a razão, contudo, aquele apetite deixou os olhos do homem-ca‐
dáver no momento em que o cabo de minha espada encontrou seu peito, aci‐
ma daquele coração corrompido e parado. O peso dele me atirou para os guar‐
das atrás, mas com a ajuda deles eu me mantive de pé e consegui puxar minha
lâmina de volta, enquanto meu inimigo — agora um simples cadáver, do tipo
que ca parado e espera virar esqueleto — caiu de lado. A próxima coisa mor‐
ta veio para cima de mim no mesmo instante. Repetindo meu erro, cortei o
pescoço dele, e, repetindo o milagre, ele caiu apertando o sangue frio que bro‐
tou do corte em sua garganta. A espada de Edris Dean parecia vibrar na minha
mão como se estivesse viva. Arrisquei uma olhadela para a lâmina quando a
en ei pela boca aberta da próxima morta-viva da la que queria me matar,
uma jovem de porte delicado que talvez tivesse sido bonita, debaixo de toda
aquela fuligem, sangue e apetite assassino. Por toda a extensão de minha espa‐
da, o sangue de pessoas mortas se agarrava aos escritos gravados no aço. A ar‐
ma de um necromante — a ferramenta de seu ofício — aparentemente tão há‐
bil em cortar as cordas que animam um cadáver quanto as que fazem uma pes‐
soa viva atravessar a dança dos dias.
“Cuidado!”
Não tive tempo de contemplar minha descoberta. Um homem que havia
morrido no auge atlético de sua vida se atirou para cima de mim, prendendo
minha espada, e me derrubou ao chão. Nunca fui atacado por um cachorro,
mas imagino que a experiência seja igualmente apavorante. O som dos urros
daquela coisa preencheu meu mundo. Sua força superava totalmente a minha
e, se eu não estivesse com a cota de malha, ele estaria arrancando a carne de
meus ossos. Outras mãos me agarraram e me senti sendo arrastado pelo chão,
embora tivesse perdido o rumo e não soubesse em que direção. Eu quase espe‐
rei que fosse para a massa dos mortos, onde pelo menos poderia esperar uma
morte rápida.
No instante seguinte, descobri qual é a sensação de estar na mesa do açou‐
gueiro. Espadas subiam e desciam acima de mim. Ouvi e senti o impacto das
lâminas na carne. Lutei enquanto o sangue frio jorrava em cima de mim, e,
após o que pareceu uma eternidade, mãos fortes me puseram de pé.
“Marechal!” disse Renprow, segurando minha cabeça e me examinando à
procura de ferimentos, enquanto meu agressor, agora desmembrado, contor‐
cia-se no chão diante de nós. Os sons da batalha rugiam ali perto, não o cho‐
que de aço no aço ou a vibração das cordas dos arcos, apenas os gritos, tanto
dos vivos quanto dos mortos, e o barulho maçante de carne sendo cortada.
“Marechal? Está meu ouvindo?”
“Que foi?” Olhei em volta. Homens da guarda se amontoavam por todos
os lados, com reservas trazidas pela longa estrada circular que o parapeito da
muralha formava. Acima de nós, a guerra de exaustão ainda estava sendo tra‐
vada, com os mortos avançando lentamente do ponto onde subiam na mura‐
lha, mas a verdadeira batalha estava à minha frente. Mais mortos continuavam
a ser despejados da muralha em uma chuva constante, aterrissando em cima
daqueles que estavam feridos demais pela queda para seguirem em frente. A
queda provavelmente ainda seria capaz de matar uma pessoa, mas não quebra‐
va ossos su cientes para deter o exército do Rei Morto, e agora os guardas re‐
cém-esganados estavam enfrentando seus antigos colegas. “Onde estão nossas
reservas? Cacete! Precisamos do Sétimo! Precisamos da guarda do palácio!”
Deixei Renprow me conduzir de volta entre as leiras. Nossa presença ha‐
via atraído os mortos, mas não tínhamos homens su cientes para contê-los.
Um necromante poderia dar ordens para que eles se espalhassem pela cidade.
Talvez a única coisa que os mantivesse ali fosse o desejo de seus mestres de ve‐
rem os o ciais e comandantes da defesa de Vermelhão mortos.
“Darin? Cadê Darin?” Eu me soltei de Renprow. “Cadê Barras?”
Renprow levantou os olhos para encarar os meus, sendo empurrado quan‐
do outros guardas passaram correndo para entrar na briga. Ele me prendeu
com a intensidade sombria de seu olhar. “Marechal, a única coisa que separa
esta cidade do desastre é o seu comando. É preciso se concentrar no que é mais
importante…”
Segurei-o pelo pescoço no mesmo instante. “Onde está meu irmão?”
gritei na cara dele.
“Príncipe Darin caiu.” O capitão engasgou as palavras. “Enquanto estava
ajudando a arrastar você para longe.”
Deixei Renprow cair e me curvei para frente, dobrado pelo soco no estô‐
mago — embora nada tivesse me atingido, além da verdade. “Não.”
Existe uma fúria vermelha que corre bem no fundo de mim, tão fundo
que você não perceberia sequer uma insinuação, mesmo estando em minha
companhia mês após mês. Mesmo assim, ela está lá. Edris Dean a de agrou no
dia que atravessou a espada na barriga de minha mãe. Ele pegou a bravura da‐
quele menino, sua raiva, seu desespero, e com um golpe separou aquilo de
mim, amarrou bem apertado em algo novo, algo mais sombrio, mais amargo, e
mais letal. E, durante os anos de minha vida, vivi em uma superfície, abaixo da
qual essa fúria carmesim corria desconhecida e insuspeita, roubada de mim,
deixando para trás um homem diferente.
“Não!” Essa velha fúria surgiu nesse momento, de suas profundezas até a
superfície, e eu a acolhi. Ao correr de volta pelas leiras de meus soldados, ur‐
rei boas-vindas a ela de uma maneira que Snorri se orgulharia, como se saudas‐
se uma velha amiga.
A espada de Edris Dean, a mesma lâmina que moldou minha vida, manda‐
va os mortos de volta ao túmulo com a mesma facilidade que mandava os vi‐
vos em sua primeira visita. Havia uma diferença crucial, porém: os mortos não
tinham medo de homens com espadas. Isso facilitava que eu os matasse. Corri
entre eles, golpeando com cada gota de habilidade que meus antigos mestres
espadachins en aram em mim por insistência de vovó, e cada lição que as ex‐
periências indesejadas me ensinaram desde então. Os homens de Vermelhão
seguiram em formação estreita atrás de mim, e a cada corte, a cada talho, eu
berrava o nome de meu irmão. Chutei cadáveres para longe de suas vítimas, fa‐
tiei os braços presos aos pescoços dos homens, furei e matei até minha lâmina
começar a pesar como chumbo e meus braços me traírem, sem forças.
Uma morta-viva me agarrou nas pernas, outra agarrou meu braço esquer‐
do, tentando enterrar os dentes na dobra de meu cotovelo. A cota de malha re‐
peliu a mordida, e um lanceiro enterrou sua arma na cabeça da mulher, embo‐
ra sua força não tivesse diminuído. Braços fortes me envolveram por trás e me
puxaram de volta entre meus soldados. Sem poder lutar com eles, desabei na‐
quele abraço. Por um momento, o mundo escureceu, a luz da tocha e do lam‐
pião diminuiu e o estrondo de meu coração encheu meus ouvidos.
“Darin?” Fiz a pergunta ofegante, entre grandes tomadas de fôlego e com
a garganta dolorida. “Barras?”
Pisquei e clareei a visão. Os homens ao meu redor eram do Sétimo. Ren‐
prow estava de pé olhando para mim, fazendo eu perceber que estava deitado.
Eu havia desmaiado, mas não fazia ideia de quanto tempo cara inconsciente.
Pisquei novamente. Prima Serah estava ao lado do capitão Renprow, com o
rosto sujo de fuligem e emoldurado por um capuz justo de cota de malha. Seu
irmão Rotus estava atrás dela, com o corpo esguio de armadura e sua expres‐
são azeda de costume.
“Cadê meu irmão?” perguntei, me sentando e sentindo a dor das costelas
machucadas.
O capitão inclinou a cabeça, com o rosto dividido em três rugas paralelas
sobre a bochecha. Acompanhei o gesto e vi Darin, sentado contra o Portão
Appan, mais pálido do que jamais o vira.
“Barras?” indaguei ao me levantar.
“Quem?” Serah estendendo a mão para me ajudar.
Eu a afastei.
“Barras Jon, lho do embaixador de Vyene. Casado com Lisa DeVeer,” dis‐
se Rotus, sempre cheio de fatos — mesmo no meio da batalha.
“Minha espada!” gritei, até que a encontrei na bainha. “E onde está Barras,
cacete?”
Capitão Renprow sacudiu a cabeça. “Eu não o vi.”
Cheguei ao lado do meu irmão e me ajoelhei em frente ao médico que o
examinava.
“Como…” Minha voz se embargou, então tossi e tentei novamente. “Co‐
mo você está, irmão?”
Darin levantou a mão, como se fosse a coisa mais pesada, e a colocou no
pescoço, dilacerado pelas unhas dos mortos, a carne esfolada cheia de sangue
tanto acima quanto abaixo da pele. “Estive… melhor.” Um sussurro doído.
Olhei para o médico, um pro ssional do campo de batalha, grisalho, de ar‐
madura de couro com rebites, ostentando as lanças cruzados do Sétimo. Ele
balançou a cabeça.
“Como assim, ‘não’?” Eu o encarei, ultrajado. “Dá um jeito nele! É um
príncipe, caramba. O irmão mais velho dele é o responsável pelo seu exército
inteiro… e eu sou o marechal, caralho!”
O homem me ignorou, tão acostumado à histeria da batalha quanto aos
ferimentos da batalha, e tocou o peito de Darin, acima das costelas. “Rompeu
um vaso na traqueia. Seus pulmões estão se enchendo de sangue.” Ele pôs os
dedos no pescoço de meu irmão para medir seu pulso.
“Dane-se isso!” Eu fui agarrar aquele suposto curandeiro. “Por que você
não…” A mão de Darin no meu pulso me fez parar no meio do movimento,
apesar de não haver força naquela pegada.
“Você… voltou… por mim.” Tão fraco que tive de me aproximar para ou‐
vir. Foi aí que ouvi as borbulhas do sangue nos pulmões.
“Agora me arrependi!” gritei para ele, com fumaça ardendo tanto em meus
olhos que mal conseguia enxergar. “Se está planejando só car deitado aí e
morrer.” Alguma coisa se prendeu em minha garganta, talvez mais fumaça, e
eu engasguei. Quando falei novamente, foi baixinho, só para ele. “Levante-se,
Darin, levante-se.” Minha voz saiu com o gemido de uma criança.
“Nia.” Achei por um instante que ele estava falando de mamãe — só por
um instante, depois me lembrei de sua nova lha, pequena e macia nos braços
de Micha. Ela jamais o conheceria.
“Eu a protegerei. Juro.”
A cabeça de Darin pendeu de lado e meu coração pareceu parar dentro de
mim, embora eu nunca tivesse declarado amor por meus irmãos, nem mesmo
pelo meu favorito. Mas ele levantou as sobrancelhas e seu segui a direção de
seu olhar até seus dedos, brilhando com algum líquido transparente.
“Óleo,” disse Darin.
Era verdade, estávamos agachados no óleo, que felizmente estava frio ago‐
ra: deve ter vazado por baixo do portão, após ser despejado pelas troneiras.
Darin esfregou os dedos escorregadios em cima da minha mão.
“Parou… eles.”
Fiquei intrigado com aquilo por um instante. O óleo não os parou. En ei
os dedos nele e os deslizei sobre o calçamento. “É mesmo!” Compreendi, pas‐
sando da confusão à clareza em um instante. Os mortos abaixo da guarita do
portão não conseguiam empurrar, não tinham tração no solo. Tudo que eles
podiam ser era um tampão de carne para transmitir os empurrões do lado de
fora. As portas estavam apenas segurando. O óleo os salvara. Um momento de
triunfo me iluminou. “Eu sabia que se…” Mas Darin havia partido.
O médico manteve os dedos no pescoço de Darin por mais um momento,
sentindo o batimento. Ele balançou a cabeça. Assim, cego pelas lágrimas que
nunca foram causadas pela fumaça, saquei minha espada.
Alguma coisa se mexeu debaixo da pele de meu irmão. Grande o bastante
para conseguir enxergar até com meus olhos marejados. Como uma pequena
mão deslizando para cima de seu pescoço. Seu corpo se contorceu como se um
golpe tivesse sido desferido dentro de seu peito.
“Em nome de Deus, o que é isso?” O médico saltou para trás estupefato,
claramente sem conhecer totalmente a natureza de nosso inimigo.
Os lábios de Darin se retorceram. Xingando, deslizei minha espada através
do esterno de meu irmão até o coração, e sem fazer barulho ele relaxou na ver‐
dadeira morte.
“Não é su ciente,” disse Serah atrás de mim. “Você precisa amarrá-lo…”
“Com esta espada é su ciente.” Puxei a lâmina para trás, vermelha com o
sangue de meu irmão, e me levantei para encarar meus primos.
“Isso foi diferente dos outros — o que aconteceu com ele…” Rotus aproxi‐
mou-se, espiando.
“Não.” Os mortos sempre despertavam em um instante, com fome nos
olhos, prontos para matar. Darin foi diferente. Como se… como se alguma
coisa estivesse tentando sair de dentro dele. Ou através dele. “Eu…” Foi aí que
percebi. “Os gritos dos mortos… pararam.” Eu me dei conta de que, desde que
havia recuperado os sentidos depois daquele ataque insano, os mortos estavam
em silêncio. Os gritos e berros que ouvia agora vinham das gargantas vivas, al‐
gumas cheias de raiva, outras de pavor ou de dor, mas aquele grito horripilan‐
te e interminável dos mortos atacando havia… terminado.
“Os mortos estão mais lentos,” relatou Renprow, olhando para mim como
se eu pudesse desmaiar outra vez, ou me atirar de volta à luta. “Mas mal conse‐
guimos contê-los, e eles continuam vindo — devem ter uma rampa utilizável
para o alto da muralha a essa altura.”
“Volte para a torre, capitão. Precisamos car de olho nisso.” Do outro lado
da muralha, o barulho do fogo parecia um rio completamente tumultuoso.
Prima Serah se aproximou, erguendo a mão até meu braço. Um toque sua‐
ve. “Sinto muito sobre Darin, Jalan. Era um bom homem.”
Eu já até me esquecera dele. Simples assim, meu próprio irmão, caído mor‐
to no chão atrás de mim, sangrando do corte que eu lhe zera. De repente,
precisava me ocupar com alguma outra coisa. Naquele momento, estava até
agradecido pelo ataque. Passei por Serah. “Esses não podem ser o Sétimo todo!
Onde está Martus?” Havia menos de cem homens com os uniformes do Séti‐
mo em volta de nós, e a linha de batalha contra os mortos estava a apenas vinte
metros de distância. Os cidadãos que apareceram para o espetáculo já tinham
fugido fazia tempo, de preferência espalhando o pânico necessário cidade afo‐
ra. “Onde diabos está a guarda do palácio? Talvez possamos contê-los com to‐
das as nossas forças aqui.”
Serah se pôs à minha frente mais uma vez. “Vim do Portão da Vitória. Vi‐
mos os incêndios começando e trouxemos estes homens para ajudar.” Ela
olhou sobre o ombro para a batalha, pálida, mas com a boca séria e demons‐
trando determinação.
“Vim do palácio,” disse Rotus, surgindo atrás de sua irmãzinha. “Tio Her‐
tet comandou que Martus mantivesse o Sétimo próximo das paredes….”
“Por que ele não está aqui então, caralho?”
“As paredes do palácio,” disse Serah. Ela realmente parecia ter dezessete
anos.
“Ele ordenou que a guarda do palácio permanecesse em seu posto e o de‐
fendesse a todo custo,” disse Rotus.
“Que desgraçado.” Embainhei minha espada, ainda vermelha com o san‐
gue de meu irmão. “O que diabos Garyus está fazendo, deixando Hertet dar
ordens?” Vou voltar. Vocês vão ter de aguentar aqui. Vou buscar os reforços.
“Aguentaremos.” Esperei que Rotus zesse a promessa, mas foi Serah
quem falou. Ela prendeu meu olhar por um momento e vi algo familiar. Algo
que vi pela última vez nos olhos de sua avó, nas muralhas de Ameroth.
“Eu sei que sim.” E comecei a abrir caminho entre as tropas, na direção da
rua principal que saía do Portão Appan, iluminada apenas por alguns lampi‐
ões caídos.
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Voltei a mim com um susto, atordoado por um segundo, e depois culpado, es‐
perando ter apenas descansado na cadeira por alguns momentos. Levantei a
apalpei a bainha vazia em meu quadril. O quarto não tinha uma espada substi‐
tuta.
“Nisso eu surpreendi você, sua bruxa velha!” Não consegui dar um sorriso
pela vitória. Aquilo tinha sido um momento de loucura, do qual me arrependi
quase imediatamente. Ainda assim, esperava que Martus tivesse sobrevivido.
De que outro jeito eu poderia levar o crédito por isso, em cada oportunidade,
pelo resto de nossas vidas?
“Lisa!” Eu quis dizer Micha e Nia também, mas foi o nome de Lisa que
brotou de mim quando de repente me dei conta e saí correndo. Se Hertet ha‐
via reunido todos os guardas do complexo ao seu lado, então o Palácio Interno
seria o lugar para car em segurança. As irmãs DeVeer estariam lá, abrigadas
debaixo da asa do novo rei com a lha de Darin.
Ninguém no saguão escuro da entrada Palácio Pobre, nenhum guarda na
porta. Subi os degraus da frente em um passo só. A aterrissagem me lembrou
do quanto meu joelho doía. Uma corrida manca me levou para o outro lado
do pátio, através de uma passagem, e após outro pátio me levou até o Palácio
Interno. Virei para a ala de hóspedes.
“Pare!” Uma voz estrondosa. “Pare bem aí!”
Parei a dez metros da entrada da ala de hóspedes, virei-me e vi um guarda
alto do palácio se aproximando, com um esquadrão de doze guardas da mura‐
lha atrás e lanças nos ombros.
“Preciso ver…”
“Ninguém pode desrespeitar o toque de recolher.” A voz do homem era
muito grave, do tipo que parece que dói. “Por ordem do rei!”
Eu o olhei. Jovem, musculoso, um peitoral reluzente, o rosto daquele tipo
de beleza que declara abertamente uma falta de imaginação. “Seu nome, guar‐
da?” Tentei parecer no comando. Tecnicamente, eu estava.
“Sub-capitão Paraito.”
“Olhe, sub-capitão, sou o príncipe Jalan.” Não estava com energia para dar
meu grito real. “Preciso dar uma conferida na minha família e depois vou ver
Hertet, então…”
“Ponha-o nas celas com os outros dissidentes.” Paraito fez sinal para os ho‐
mens se aproximarem. Quatro guardas da muralha, de armadura de malha de
metal, vieram à frente. Tentei pegar minha espada ausente, o que estava se tor‐
nando ao mesmo tempo um hábito e uma de ciência.
“Olhem!” Encontrei meu urro quando os quatro homens tentaram me pe‐
gar. “Sou o marechal da porra dessa cidade toda, nomeado pela Rainha Ver‐
melha em si e, caso não tenham percebido, Vermelhão está sob ataque. Metade
dela está em chamas e há coisas mortas à espreita neste exato palácio.” Dei um
tapa para afastar a mão mais próxima. “Então, se estão pensando em sobrevi‐
ver para ver o dia nascer, aconselho fortemente a me levar até meu tio. Agora!”
O sub-capitão olhou para mim quando dois de seus subordinados pega‐
ram meus braços. A ruga em sua testa bonita sugeria que de repente eu tinha
colocado uma pulga atrás de sua orelha. “Vamos levá-lo à corte e deixar o rei
decidir se quer vê-lo.” Ele se virou e saiu.
“Espere!” Pressionei os calcanhares no chão, mas comecei a andar quando
cou claro que eles me arrastariam. “Espere! Aonde estamos indo?” O homem
do palácio saiu de volta para cruzar o pátio, na direção oposta do Palácio In‐
terno.
“O rei estabeleceu a corte na Casa Milano.”
“Mas… isso é loucura.” Será que o palácio estava comprometido e Hertet
se estabelecera como rei em sua antiga casa? O Palácio Interno fora o trono
dos reis durante gerações. Feitiços e proteções deixavam camadas mais grossas
naquele lugar do que qualquer tapete ou tapeçaria: era um lugar seguro con‐
tra magias negras. Até onde eu sabia, qualquer coisa morta que cruzasse sua
entrada queimaria ou viraria pó… ou simplesmente se tornaria o tipo mais tra‐
dicional de cadáver, livre dos controles dos necromantes. Eu tinha sérias dúvi‐
das se a Casa Milano oferecia as mesmas proteções. Ainda assim, tio Hertet vi‐
nha praticando para ser rei debaixo daquele teto por mais tempo que eu tinha
de vida. Talvez se sentisse mais seguro lá. Talvez o trono da Rainha Vermelha
lhe metesse medo. Eu teria. Principalmente se me arrogasse prematuramente…
Ao passar pela Travessa dos Escribas, vi a forma delgada de um monstro
do lodo, em contraste com a lua, só por um instante quando ele chegou ao cu‐
me do telhado.
“Ali!” Girei para soltar um braço e fracassei. “Lá em cima, um ghoul!”
“Não estou vendo.” O sub-capitão Paraito olhou para cima sem diminuir
o passo.
“Não vai nem mandar homens para investigar?” Consegui me desvenci‐
lhar de um dos guardas. “Me solte, seu estúpido, meu tio é exatamente quem
eu quero ver. Não preciso ser arrastado até lá!”
“O rei ordenou que todos os homens de armas defendessem a Casa Mila‐
no. Nossas patrulhas são para recolher traidores e prevenir qualquer ataque.
Não devemos sair perseguindo sombras.”
Balancei a cabeça e continuei caminhando. Para dizer a verdade, as som‐
bras provavelmente devorariam Paraito e seu esquadrão, se eles se aventuras‐
sem até lá.
Não tentei me libertar novamente até passarmos à vista do Salão Roma.
Em um dos aposentos superiores, uma luz fraca escapava pelas venezianas. Eu
me soltei e dei um passo. Mais um passo e eu teria cado livre, mas um dos
guardas da muralha, ou por acidente ou de propósito, colocou a haste de sua
lança entre as minhas pernas e eu caí, com dois homens se amontoando em ci‐
ma de mim.
Eles me puseram de pé, cuspindo sujeira do chão.
“Amarrem o prisioneiro!” O sub-capitão Paraito fez um sinal para um dos
guardas.
“Eu não estava tentando fugir, seu idiota!” Uma pitada da fúria berserker
passou por mim e outros guardas chegaram para ajudar a segurar meus braços.
“A esposa e a lha de príncipe Darin estão sozinhas na Casa Roma com um
necromante.” Respirei fundo quando eles amarraram a corda nas minhas
mãos. “Vou lembrá-los mais uma vez. Sou um príncipe e o marechal dessa mal‐
dita cidade inteira! Se deixarem minha cunhada morrer… Esperem! O necro‐
mante! Ele é uma ameaça a Hertet — ao rei, quero dizer. É seu dever v…”
“É meu dever incluir essa informação no meu relatório.” O sub-capitão fez
sinal para seus homens seguirem, e lá foram eles, me arrastando enquanto eu
lutava com minhas amarras.
Ao nos aproximarmos da Casa Milano, vi um monte de homens de arma‐
dura reunidos em volta dos muros, com tochas queimando com tal profusão
que iluminavam o pátio inteiro. Vi membros da guarda do palácio, da elite da
sala do trono, da guarda da muralha, da guarda terrestre, os remanescentes
aristocráticos das cavalarias da Lança Vermelha, da Lança Longa e do Casco de
Ferro, guardas das prisões da torre de Marsail e até mesmo guardas domésticos
das casas nobres.
“Alphons!” Avistei um dos soldados de papai no grupo reunido diante dos
degraus da frente. “Alphons! Lady Micha está segura? Lady Lisa?”
Ele gritou alguma coisa, mas eu só entendi a palavra ‘dobro’ antes de meus
captores me forçarem a subir os degraus e passar por um corredor estreito de
cavaleiros de armadura. As grandes portas de bronze se abriram uns sessenta
centímetros, relutantes, permitindo que entrássemos em la no hall de entra‐
da lotado.
“Segurem-no bem rme.” E Paraito nos deixou, supostamente para arqui‐
var seu relatório.
Fiquei ali, suado, machucado e, acima de tudo, furioso. Todas as pessoas
amontoadas no saguão de entrada pareciam estar falando ao mesmo tempo, e
a onda do falatório diminuiu apenas um pouco quando me trouxeram. A an‐
tessala continha uma dúzia de grupos de lordes, uma ou outra dama, alguns
barões, um duque, até comerciantes empetecados com suas roupas mais caras,
todos falando uns com os outros, alguns alegres, outros preocupados, alguns
esquentados. Vi a duquesa Sansera aparentando a idade ali, com todos os seus
diamantes, lorde Gren, meu antigo adversário quando se tratava de apostar
em cavalos ou homens, parecendo mais nervoso do que jamais esteve nos fos‐
sos, e mais um monte de bem-nascidos que talvez esperassem falar por mim.
Alguns olharam na minha direção, mas as cordas nos meus pulsos os desenco‐
rajaram de vir na minha direção.
“Não podemos car parados aqui!” Olhei em volta para os quatro homens
especi cados para me vigiarem, uma presença visivelmente deselegante no
meio das sedas e ouros dos nobres e poderosos. “Vocês viram o que está acon‐
tecendo lá fora… Vocês…”
“Primo Jalan!” O segundo lho mais velho de Hertet, Roland, entrou pe‐
las portas principais, avistando-me imediatamente. Martus o chamava de ‘o
Prodígio Sem Queixo’. A bem da verdade, deixar crescer uma espécie de barba
para esconder esse fato e gerar o primeiro bisneto da Rainha Vermelha eram
os maiores de seus poucos feitos notáveis. “Papai vai querer vê-lo!”
Olhei naqueles olhos azuis aguados, e ele parecia alheio ao fato de que eu
estava sob guarda. Consegui dar um sorriso e z um aceno com a cabeça. “Vá
na frente.” E, com um rodopio de sua capa esmeralda, bordada com os trevos
que tio Hertet havia adotado para a sua parte da família Kendeth, primo Ro‐
land mostrou o caminho.
“Um momento, primo!” Parei Roland quando nos aproximamos das por‐
tas do grande salão. “Conhece as DeVeer? Todo mundo conhece.” Não lhe dei
tempo de responder. “Um necromante tomou a Sta. Inês. Receio que Lisa e
Micha DeVeer ainda possam estar na casa principal com minha sobrinha pe‐
quena. Seria um grande favor para mim se pudesse mandar um esquadrão de
homens para garantir que elas escaparam e trazê-las à segurança, caso seja ne‐
cessário.”
“Um necromante?” Roland enrolou a língua e deixou a boca aberta de
surpresa. “No palácio?”
“Na igreja. No Salão Roma. Um bebê em perigo!” Acenei e deixei tudo
bem simples. Esperei que a menção ao bebê fosse comovê-lo, por ser pai. “Po‐
dia mandar alguns guardas.”
Roland piscou. “Com certeza.” Ele ergueu a mão e convocou: “Sir Roger!
Sir Roger!” Um cavaleiro baixo, com a armadura mais brilhante que já vi na
vida, andou barulhenta e desengonçadamente na nossa direção. “Damas em
apuros no Salão Roma, Sir Roger!” Roland falava ‘Uoger’ em vez de ‘Roger’.
“Vou cuidar do assunto, príncipe Roland.” Roger, bexigoso e ostentando
um bigode grosso e preto, fez uma mesura curta, todo e ciente e decidido.
“Leve doze homens, Sir Roger,” foi todo o conselho que eu pude dar, en‐
quanto Roland continuou em direção às portas. “Dos bons!”
Primo Roland passou pelos guardas de elite na entrada da corte de seu pai,
quatro deles com a armadura de fogo da rainha e suas plumas escarlates. Em‐
purrou com as duas mãos os altíssimos painéis de carvalho e entrou no grande
salão.
Eu não entrava no grande salão da Casa Milano desde o casamento de Ro‐
land, quando eu tinha treze anos. Papai e seu irmão mais velho haviam briga‐
do por causa de alguma questão relacionada à disciplina do padre da casa. Não
realmente sobre o padre, claro, mas sim sobre quem mandava em quem, como
é a maioria das disputas entre irmãos. De qualquer modo, palavras pesadas fo‐
ram ditas de maneira leviana e papai levou seu rebanho embora do salão alta‐
mente indignado, com Martus separando à força um jovem príncipe Jalan, le‐
vemente embriagado, de uma bela dama de honra de cujo nome me esqueci.
Na década seguinte, o salão mudou e cou irreconhecível. Dezenas de lam‐
piões enfeitados se uniam para lançar uma luz brilhante no que era sem dúvi‐
da o salão com a decoração mais esplêndida em que já pusera os olhos. As ta‐
peçarias atrás do trono de mogno de Hertet tinham os de ouro e prata, os ta‐
petes de seda dos indus, com cores tão vivas que chocavam os olhos. Armadu‐
ras douradas estavam em volta do perímetro do salão, entremeadas com a
guarda de vovó, tão imóveis que era difícil dizer quais armaduras estavam va‐
zias e quais continham homens.
A sala do trono se mostrou menos lotada do que a câmara antes dela, com
mais ou menos trinta favoritos de meu tio reunidos ali, cálices de vinho em
punho, e criados pairando. Vi uma dúzia de lordes familiares porém anôni‐
mos, Sir Grethem todo de armadura, como se estivesse preparado para um dos
torneios que zeram sua reputação, Lady Bellinda, de pé perto do centro, a
mais recente e a mais jovem da longa lista de amantes de Hertet. Ao lado dela,
talvez o defensor mais poderoso de Hertet, o duque de Grast, um sujeito cor‐
pulento com uma espessa barba grisalha, um homem sobre o qual eu talvez te‐
nha espalhado alguns boatos maldosos ao longo dos anos, após ele me pegar
com sua irmã.
A cadeira escura de Hertet cava em uma plataforma e subia mais alta que
ele, com o encosto espalhando-se de maneira dramática, cada linha contorna‐
da por rubis encaixados, re etindo a luz do lampião como se fossem gotas bri‐
lhantes de sangue.
Nada desse esplendor atraiu tanto o meu olhar quanto a coroa na cabeça
do novo rei. A coroa imperial de vovó, um troço pesado de ferro, homenage‐
ando seus ancestrais mais sangrentos e os dias de Marcha Vermelha em que
éramos todos guerreiros. Os séculos haviam suavizado o ornamento com uma
profusão de diamantes e um contorno de ouro vermelho, mas ainda assim
lembravam o poder vencido na espada e no arco.
Hertet parecia perdido no assento escuro de seu trono, afundado em um
manto volumoso dourado, todo trabalhado em elaborados verticilos e espirais
do tipo de Brettan. Fui atrás de Roland, percebendo a palidez doentia de meu
tio, suando debaixo da coroa, mais abatido do que estivera no funeral de papai
naquela manhã.
“Papai!” O leve problema de fala de Roland dava um toque cômico na
maioria das palavras. Um pai mais gentil teria mudado o nome de seu lho pa‐
ra John quando o problema com os ‘erres’ se tornou aparente. Roland passou
por mais alguns lordes e levantou tanto a mão quanto a voz. “Pai! Encontrei
príncipe Jalan, que veio lhe prestar juramento!”
Roland deu um passo para o lado para me apresentar, abaixando os olhos
para meus pulsos atados pela primeira vez, um pouco confuso, e depois olhan‐
do para as roupas rasgadas e salpicadas de sangue.
“Sobrinho. Parabenizo-o por ser o primeiro dos meninos de Reymond a
dobrar o joelho… mas veio a mim com trapos e cordas? Uma nova moda, tal‐
vez? He? He?”
Sua gargalhada espalhafatosa de agrou ecos naqueles puxa-sacos dos com‐
panheiros de corte, zombando do meu estado.
Hertet levantou as duas mãos, um pedido tolerante de silêncio. “Então,
onde estão esses irmãos seus? Martus deveria estar oferecendo sua lealdade. Ele
agora é o chefe de sua casa, não? Pelo menos até o novo cardeal botar todos vo‐
cês na rua!” Mais gargalhadas depois disso.
“Martus está lutando com o inimigo na frente dos muros do palácio, por
ordem sua… tio.” Não consegui chamá-lo de rei, não ainda. “Da última vez
que o vi ele estava prestes a atacar um trapoeiro. Não sei se…”
“Um o quê?” perguntou Hertet.
O duque de Grast interrompeu antes que eu pudesse responder, com os
olhos gelados em mim. “Um trapoeiro, majestade. É o nome dos camponeses
para os redemoinhos que sopram de vez em quando. Eles acham que são as‐
sombrados.”
“He! He! Esse menino! Sempre falei que ele brigaria com o vento se não ti‐
vesse com quem mais lutar! Não falei isso, Roland? Não falei?” Hertet tirou os
os grisalhos da testa quando a gargalhada obrigatória veio em seguida.
“Não sei se Martus sobreviveu.” Levantei a voz. “E Darin está morto, as‐
sassinado atrás da muralha da cidade por mortos-vivos que invadiram o Por‐
tão Appan. A cidade externa está em chamas. Temos que…”
“Sim. Sim.” A testa de Hertet se enrugou embaixo da coroa, demonstran‐
do irritação na voz. “Você não é o marechal, sobrinho? Não deveria estar lá fo‐
ra dando um m nisso tudo? Ou não é páreo para a tarefa?” Ele parecia tão
nervoso quanto irritado, contorcendo-se no trono.
Senti uma fraqueza nele. Eu jamais conseguiria a ajuda que precisava no
portão se os deixasse rir de mim na corte, então ataquei. “Como foi que conse‐
guiu a coroa, tio?” O brilho dos diamantes re etiu em meu olho. “Estava tran‐
cada no tesouro real.” Meu pai me contara sobre a caixa-forte de ferro. O pri‐
meiro Gholloth gastou uma pequena fortuna para defender uma grande for‐
tuna. Mestres ferreiros turcos vieram do leste para construí-la no local. Com
tempo, a caixa-forte poderia ser violada, mas tão rápido? “A Rainha Vermelha
ca com a chave.”
Após os sobressaltos espalhados por conta de minha audácia veio o silên‐
cio. Hertet en ou a mão na gola dourada de seu manto e tirou a chave de Loki
de dentro, rodando lentamente no m de uma corrente retorcida de prata.
“Não foi preciso esforço algum para arrancar isso daquele velho feio que ela
mantém na torre. Está muito mais segura comigo, e é tão boa para abrir por‐
tas! Você não acredita nos segredos que descobri ou quanto ouro minha queri‐
da mãe tem escondido…”
“Você a pegou?” É claro que sim. Garyus não a daria a um sobrinho idiota,
não enquanto fosse o comissário. “É uma péssima ideia tomar essa chave de al‐
guém. Ela precisa ser dada.”
“Bobagem.” Ele se contorceu, e depois forçou um sorriso. “Sou o rei e pe‐
garei o que quiser. É minha por direito. E não é da sua conta. Tire essas suas
cordas ridículas e dobre o joelho. Depois pode voltar ao que deveria estar fa‐
zendo. Ou será que devo nomear alguém mais competente?”
Todos os instintos tentaram me deixar de joelhos, mas uma pergunta me
manteve de pé. “Garyus está… vivo?”
Hertet franziu o rosto. “É claro que está. Não sou nenhum monstro. Está
trancado em segurança até começar a ver as coisas do meu jeito. Algumas pes‐
soas…” Ele lançou um olhar para a la cintilante de cortesãos mais próximos
do trono. “Algumas pessoas aconselharam uma solução repentina e brusca.
Mas isso agora já passou. Não sou minha mãe.”
Fiquei sobre um joelho assim que ouvi que Garyus estava vivo. Nunca tive
o menor problema em abandonar meu orgulho se ele estiver no caminho da
ambição, seja de escapar ou de cair na cama de uma dama. Hertet podia car
com minha lealdade, ela não valia muito mesmo. “Meu rei, preciso da guarda
do palácio no Portão Appan, e todos os homens do Sétimo que puderem ser
reunidos. Uma batalha está comendo solta lá fora e não estamos vencendo. Se
o portão cair, o palácio irá cair. Ele não foi feito para defesa. Nossos homens
de armas irão servi-lo melhor na muralha da cidade.”
Hertet guardou a chave de Loki e fez uma careta. “Quer deixar seu rei des‐
protegido? À mercê de qualquer dissidente que consiga reunir um grupo? Isso
não é uma demonstração de lealdade à coroa, marechal!”
Vozes de acordo se elevaram por todos os lados, não só dos puxa-sacos,
mas por interesse próprio. Mandar seus guardas para longe enquanto a cidade
queima e a batalha acontece nunca é uma coisa fácil de convencer. Assim co‐
mo jogar longe sua espada enquanto se está sendo perseguido, parece uma coi‐
sa bem idiota a se fazer.
Fiquei novamente de pé, desajeitado com as mãos ainda amarradas. “Ma‐
jestade, não está entendendo a dimensão da ameaça. Milhares de mortos-vivos
estão aglomerados na muralha da cidade, talvez dez mil. Se conseguirem to‐
mar o Portão Appan e entrar à força, Vermelhão está perdida. O palácio, esta
casa, tudo ruiria dentro de uma hora. A muralha da cidade é nossa única defe‐
sa, e é o único lugar onde nossas tropas importam. Os homens do lado de fora
da sua porta estão sendo desperdiçados. No portão, ainda podem virar o jogo.
Príncipe Rotus e princesa Serah estão com nossas forças lá. Eles precisam de
apoio.” Vi um pouco de con ito no rosto de Hertet. Ele podia ser idiota, mas
não totalmente idiota. Eu descon ava que a maioria de suas medidas atuais
fossem resultado de uma paranoia, da crença possivelmente válida de que sua
família ou a cidade, ou as duas coisas, rejeitaria sua reivindicação ao trono e
colocaria algum Kendeth mais jovem e mais capaz no assento da Rainha Ver‐
melha.
“Conte a papai sobre o necromante, Jalan!” disse Roland ao meu lado,
prestativamente confundindo ainda mais as coisas.
“Necromante?” Hertet sacudiu-se para frente, com as mãos nos braços do
trono.
“Há um sub-capitão no saguão alegando que há mortos vagando pelos pá‐
tios e ghouls nos telhados!” disse um lorde recém-chegado lá atrás nas portas
principais.
Abri as mãos o máximo que as cordas permitiam. “É apenas uma pequena
parte do que está por vir se não defendermos o Portão Appan. Estes são ape‐
nas observadores, e mesmo assim os muros do palácio não signi cam nada pa‐
ra eles!”
“Necromantes e mortos-vivos nos meus degraus!” Hertet levantou-se do
trono, cando vermelho, a voz elevando-se em um grito. “E está tentando
mandar minha guarda pessoal embora?”
“Vermelhão irá ruir! Você tem que…”
“Tenho?” Hertet jogou a cabeça para a esquerda e depois para a direita, co‐
mo se procurasse ecos de sua indignação. “Tenho? Sou o rei de Marcha Verme‐
lha, de mar a mar, não ‘tenho’ que fazer nada!”
“Ouça o que estou dizendo!” gritei para ser ouvido.
“Ponham príncipe Jalan nas celas. Deixem-no esfriar a cabeça e recuperar
o juízo.” Hertet caiu novamente em sua cadeira, a raiva indo embora com a
mesma rapidez que surgiu. “Marechal Roland, reúna cinquenta homens da
guarda terrestre e cuida da situação no Portão Appan. Quero um relatório pe‐
la manhã.”
“Isso é uma loucura!” Comecei a subir na plataforma, mas braços fortes já
tinham me pegado, me arrastando na direção da saída. “Todos vocês vão mor‐
rer aqui se forem atrás desse idiota…” Um punho pesado arrancou a traição da
minha boca e o resto do mundo caiu na escuridão no momento seguinte.
19
Em matéria de tirania, até que tio Hertet não era tão terrível. Eles me arrasta‐
ram, atordoado e desorientado, até uma de suas grandes salas de estar, onde as
‘celas’ eram uma coleção de poltronas grandes e confortáveis, às quais uns oito
ou nove homens bem vestidos estavam levemente acorrentados. Eu parecia um
mendigo perto deles, e uma empregada correu para pegar uma capa de prote‐
ção antes que os guardas me jogassem em minha própria cadeira confortável.
“Hertet gosta de manter seus inimigos por perto,” falei, recostando-me
com um gemido. Poucas partes de mim não doíam.
“Príncipe Jalan?” Uma voz preocupada bem atrás de mim. “Está ferido?”
“Estou bem. A pior dor está no meu… corpo.” Estiquei o pescoço para ver
quem estava se dirigindo a mim. Apertando os olhos contra os resquícios de
visão dupla, identi quei um homem magro e careca com a última moda de
Rhone, botões amarelos em uma jaqueta de veludo preto. As duas imagens se
uniram e revelaram suas feições pontiagudas, ostentando uma mancha da cor
de vinho do porto abaixo de um olho. “Bonarti Poe!” Em minha lista de pro‐
váveis rebeldes, Bonarti Poe me faria companhia na seção dos covardes, lá no
fundo. “O que você fez? Foi para cima de meu tio gritando ameaças de mor‐
te?”
Poe deu uma gargalhada aguda e afobada. “Não! Não, jamais!” Ele tossiu
em um lenço rendado. “O rei me considera um homem do conde Isen e não
con a em mim.” Mais uma tosse e ele levantou a voz. “Mas não existe homem
mais leal ao trono de Marcha Vermelha do que Bonarti Poe!”
“Isen é contra meu tio?” Aquilo soava promissor. Conde Isen era mais
louco que um saco de furões, mas muito capaz e com seu próprio exército per‐
manente.
“Tenho certeza de que a lealdade do conde é irrepreensível,” retrucou Poe.
“Mas ele ainda não conseguiu expressar sua opinião sobre o assunto. Mesmo
com o mensageiro mais rápido saindo de seu salão imediatamente, o conde
não deve estar nem perto de Vermelhão. Receio que o rei tenha simplesmente
antevisto uma oposição onde não há nenhuma, tenho certeza.”
Eu tinha bem menos certeza, mas a opinião do conde não importava, de
uma maneira ou de outra, se ele ainda estava em suas terras no sul. “Então es‐
tamos condenados a passar o resto de nossas vidas neste maldito calabouço
terrível?” me afundei ainda mais na poltrona e sorri para a criada de serviço
entre dois guardas na porta. Uma moça bonita com cachos ruivos.
“Eles nos levarão para as celas de Marsail pela manhã,” disse um lorde ve‐
lho e caquético que reconheci mas não me lembrava do nome. “Aquele garoto
bobão está com medo demais para dispensar os homens agora.”
“Hummm.” Testei minha corrente. Descobri que correntes pesadas são só
para mostrar. Uma corrente leve é que prende um homem. Eu tinha mais
chance de quebrar a perna da cadeira onde a outra ponta estava enrolada. Na
verdade, se não fosse a meia dúzia de guardas posicionados em volta das pare‐
des, eu poderia simplesmente virar a poltrona para baixo e soltar a corrente.
Mas sem minha espada, minha faca con scada e o fato de que eu não tinha a
menor intenção de lutar com seis guardas treinados, com ou sem espada, mi‐
nhas opções eram limitadas.
“Eles parecem estar se divertindo.” Os sons da conversa da corte de Hertet
nos alcançaram, um murmúrio baixo e contínuo, entremeado por gargalhadas
ocasionais ou salvas de aplausos.
“Estão morrendo de medo, a maioria deles,” disse o barão de Strombol,
um homenzinho corpulento e feroz que governava um território considerável
nas montanhas ao norte. “Apavorados com o que está em nossos portões, com
medo de que a Rainha Vermelha não volte para salvá-los, ou com medo de que
ela volte.”
“Ela não está morta?” Eu nunca acreditei nisso de verdade. Achava que ela
não podia morrer. Não uma mulher dura daquele jeito. E a Irmã Silenciosa
sempre pareceu velha demais para a morte se preocupar com ela.
O barão jogou as mãos para o alto, batendo as correntes. “Vai saber! Her‐
tet diz que está, mas não tive nenhuma notícia disso além da dele. Pensamento
positivo?”
Apertei os lábios. Talvez aquela fosse a melhor chance que o herdeiro não-
aparente teria na vida de usar a coroa. Talvez ele tenha simplesmente decidido
apostar. Nós dois tínhamos a mesma fraqueza. De apostas eu entendia.
Ficamos sentados e o tempo passou. Peguei um cálice de vinho e belisquei
uma tigela de azeitonas. Sorri para a criada e ela fez cara feia para mim. Algu‐
mas partes de mim até pararam de doer, apesar de saber que eu estaria andan‐
do como um velho amanhã, se é que ia conseguir car de pé. Teria sido bem
agradável, não fosse a insistência de um pensamento indesejado. Eu havia dei‐
xado a esposa e a lha de Darin aos cuidados de um necromante e mandado
apenas doze homens sob o comando de um cavaleiro reluzente para salvá-las.
Além da consciência farpada, também tinha o ‘pavor acachapante’ para estra‐
gar minha noite. A certeza de que as forças do Portão Appan logo desmorona‐
riam, se é que já não tinham desmoronado, e a maré de cidadãos mortos que
tomaria o palácio e mataria todos nós.
Tive menos de uma hora de descanso incômodo até os gritos começarem.
Eu os reconheci imediatamente, apesar de o som chegar bem fraco pelas jane‐
las com cortinas. O grito da morte, saindo das bocas dos cadáveres por todo o
complexo do palácio.
“Mas o que…?” O barão mexeu seu corpanzil nos limites estreitos de sua
cadeira.
“O lichkin está aqui.” Minha intenção era ser um anúncio resignado, mas
saiu mais como um sussurro agudo.
“O quê?” Bonarti Poe parecia tão assustado quanto um homem podia es‐
tar a respeito de uma coisa sobre a qual não sabia nada.
“Uma coisa ruim,” falei.
Pelos barulhos, o lichkin não tinha vindo na liderança de uma invasão pe‐
lo portão. Os gritos da morte estavam espalhados demais e baixos demais para
isso. Mesmo assim, havia muitos mortos, e o lichkin por si só já era algo a te‐
mer. No Inferno, um único lichkin derrotou Snorri ver Snagason em instan‐
tes.
Minha cadeira de repente parecia menos confortável, mais como uma ân‐
cora prendendo a ovelha para o abate. A iluminação das velas e lampiões do
novo rei parecia car mais escura a cada momento, como se fosse um segundo
pôr do sol, que não ligava a mínima para o trabalho dos homens, apenas fazen‐
do a luz morrer. As sombras se alongaram e caram mais escuras, contorcen‐
do-se de possibilidades.
E então o lichkin se aproximou. Dava quase para senti-lo através do muro
externo da Casa Milano, espreitando pela noite. As cores morreram de tom
em tom, deixando o ambiente deprimido, e uma grande tristeza abateu-se so‐
bre nós, mais sombria que o pior dia de cão — a certeza de que a alegria havia
desaparecido e que nada mais caria certo no mundo outra vez.
Aquilo durou uma eternidade, mas nalmente a sensação foi passando
pouco a pouco. Os choramingos de Poe se acalmaram em um suspiro profun‐
do. A opressão melhorou o bastante para eu imaginar o quanto deve ter sido
terrível para os homens lá fora, no escuro, apenas com a iluminação fraca das
tochas e da lua entre eles e aquele horror. Foi terrível até mesmo na segurança
da luz, do conforto e da proteção da casa.
Um grito mortal bem abaixo da janela respondeu à minha pergunta e me
fez dar um salto tão grande na cadeira que ela quase virou. Homens morreram
lá fora de puro medo, e agora estavam dilacerando seus colegas vivos, espa‐
lhando horror e pânico.
Olhando em volta, vi que as cortinas tinham desenvolvido áreas escuras
onde o material apodreceu. As maçanetas de latão das portas tinham um as‐
pecto embaçado. Todos nós, prisioneiros e guardas, parecíamos envelhecidos,
como se tivéssemos passado uma semana sem dormir.
“Precisamos sair daqui. Precisamos sair daqui. Precisamos…” Um lorde
magrelo de bigode no cou de pé num pulo, puxando a corrente que o amar‐
rava. Ele já tinha derrubado a cadeira e conseguido tirar a corrente da perna
quando os guardas o derrubaram.
“Quieto! Quietinho!” Um dos guardas da confusão cou de pé, com a
mão dolorida de socar o queixo do lorde magrelo. Ele parecia mais assustado
do que o prisioneiro caído, os olhos fundos naquela cara de porco com uma
expressão de ter visto o açougueiro vindo lhe tirar o bacon.
Os sons de luta e de pânico chegaram a nós lá de fora. Gritos, tanto dos
mortos famintos quanto dos vivos aterrorizados, ecoaram na frente da casa.
Ouvimos venezianas se estilhaçando no aposento ao lado do nosso.
“As janelas! Bloqueiem as janelas!” Fiquei de pé, levantei minha cadeira,
soltando a corrente da perna, e andei com ela na direção das cortinas. Ne‐
nhum dos guardas se mexeu para me impedir, apenas olharam em volta procu‐
rando qualquer coisa que pudesse ajudar na tarefa.
Fui ajudar dois guardas que estavam fazendo força com uma estante pesa‐
da, derrubando a valiosa cerâmica das muitas prateleiras. Ninguém comentou
o fato de a corrente em meu punho estar pendurada, sem me amarrar a meu
assento. Ajudei com uma armadura e seu pedestal, e depois saí para pegar mais
alguma coisa para usar… e continuei assim.
Os sons da luta lá fora eram apavorantemente familiares. Se eu fechasse os
olhos, poderia estar de volta ao Portão Appan. Novos sons próximos, de vidro
quebrando e madeira estilhaçando, deram um pouco mais de ritmo à minha
fuga. Eu não tinha certeza da distância que havia sido arrastado após ser leva‐
do da sala do trono, nem em que direção seguir para sair do prédio. Nem ti‐
nha certeza absoluta se queria ir lá para fora. Abri uma porta que dava para
uma biblioteca, que não era enorme, mas estava forrada de livros do chão ao
teto. As janelas não tinham cortinas — meia dúzia de arcos altos e estreitos,
cada uma contendo doze placas de vidro ligadas com chumbo. Quando fui pu‐
xar a porta para fechá-la, sangue espirrou nas janelas todas, exceto nos painéis
mais altos. Como uma onda de sangue quebrando no prédio. O desespero to‐
mou conta de mim e depois diminuiu quando o lichkin se afastou novamente,
perseguindo mais vítimas do lado de fora da casa.
Bati a porta, me virei e vi Hertet correndo pelo corredor na minha dire‐
ção, com a coroa torta na cabeça. Um grupo de cavaleiros vinha atrás dele. Seu
olhar passou por mim sem me registrar, com o rosto pálido como a morte.
Percebi que seu manto dourado tinha um esguicho escarlate no meio, como se
alguém tivesse sido estripado na frente dele. Eu me espremi contra a porta pa‐
ra deixá-los passar.
“Ele quer a chave!” gritei quando ele passou por mim. Não sei ao certo por
que disse isso.
Hertet parou e me viu pela primeira vez. “Jalan. Filho de Reymond.” Ele
estendeu a mão e tocou a minha. “Você sempre foi um bom menino.” Sua ou‐
tra mão tirou a chave debaixo da gola. Ele a puxou e ela se soltou, embora a
corrente parecesse forte demais para se quebrar daquele jeito. “Aqui. Fique
com ela. Você vai saber o que fazer.” Ele dobrou minha mão em volta da chave
de Loki e seguiu em frente sem parar nem olhar para trás. “Podemos ir para os
porões e…” Não ouvi mais a voz dele debaixo dos passos das armaduras dos ca‐
valeiros que passaram por mim.
Fiquei parado por um instante no corredor, com sons caóticos vindos da
direção da sala do trono, gritos e urros ecoando de tempos em tempos de sen‐
tidos aleatórios. O pretume da chave, fria e pesada em minha mão, prendeu
meu olhar. Consegui tirar a atenção do presente de Loki e conferir os dois sen‐
tidos ao longo do corredor, percebendo distraidamente uma longa mancha de
sangue pelo painel da parede oposta e um quadro, derrubado da parede, com a
moldura partida: o jovem Hertet olhando para mim com uma expressão heroi‐
ca e pegadas sobre o rosto. Na outra ponta do corredor, três mulheres passa‐
ram correndo de roupa nas de seda, uma velha, duas jovens. Num segundo
elas estavam ali, no outro sumiram.
Os gritos da sala do trono caram mais desesperados. Alguma coisa bateu
nas portas que saíam de lá com tanta força que os ecos tremeram em meu pei‐
to.
A chave. A chave havia dado m a um lichkin no Inferno. Mas aquilo foi
puro acaso. Sorte. Meu olhar se voltou ao negrume dela, desvendando as lem‐
branças daquela vitória, e num instante elas me sugaram.
•••
Snorri está diante de mim, um gigante de uma cor só, coberto pelo sangue em
pó do Inferno. Uma ssura atrás dele lança labaredas carmim, e o ar se enche
do cheiro de enxofre. Estou segurando a chave de Loki à frente, na altura da
cintura, e o lichkin sumiu, cando apenas uma mancha preta onde seus restos
corrompidos caíram ao chão. A chave o desfez. O lichkin deu um passo para
trás ao bloquear o ataque de Snorri e se empalou, só dois centímetros, mas foi
o su ciente. Eu girei a chave e o lichkin se desfez.
O olhar de Snorri está em minha mão. Ele achava que a chave estava a sal‐
vo com Kara, lá no mundo dos vivos.
“Ora, vejam só,” digo, abrindo os dedos e revelando a chave por completo.
“O negócio é…” Eu tenho di culdades de inventar uma explicação. “O que é
importante lembrar é que… sem isto, nós dois estaríamos mortos.” Levanto
minha outra mão para detê-lo. “E não estou falando do tipo bom de morto.
Do tipo muito, muito nojento.” Eu me estremeço, lembrando-me da dor
quando o lichkin me segurou. Nunca havia sentido nada parecido, e nunca
quero sentir de novo.
“Você trouxe essa chave para Hel?” Snorri parece não ter ouvido nenhuma
palavra que eu cuidadosamente disse em minha defesa. “Para Hel?”
“Ouviu a parte sobre salvar nossas vidas?”
Snorri parece assustado. É uma das coisas mais preocupantes que já vi, em
uma vida que é praticamente uma preocupação atrás da outra. “Precisamos ti‐
rá-la daqui. Você tem que levá-la de volta, Jal. Agora!”
Olho em volta. Um vale amplo e empoeirado iluminado por um céu de
uma cor triste e antiga. Aberturas de fogo, pedras de formatos perturbadores
espalhadas. “Como?” Não que vá discutir sobre ir embora. Eu estava fazendo
o possível para nem vir, para início de conversa.
Snorri franze o rosto, concentrando-se, mas incapaz de segurar seus pensa‐
mentos. “O que estava pensando? Esse tempo todo você estava carregando…”
Ele parece tão decepcionado comigo que eu quase entendo o lado dele.
“Os gregos antigos tinham um salão de julgamento…” digo, mais para dis‐
traí-lo.
“Os gregos? O que os gregos têm a ver com isso?”
“Bem…” Muitas vezes eu bolo meus melhores planos abrindo a boca e es‐
cutando as palavras que saem. Desta vez, parece não estar funcionando.
“Bem… estávamos atravessando o seu submundo, o domínio de Hel. E agora
estamos no meu Inferno, ou o Inferno do Rei Morto…”
“Mas a mitologia grega nós dois conhecemos desde sempre! Então nós dois
podemos dar forma a ela. Brilhante!”
A verdade era que eu tinha aprendido a antiga mitologia grega na marra,
durante o enorme desinteresse da adolescência, com um professor que eu de‐
testava, chamado Soros, que usava um cajado pontudo e um sarcasmo a ado.
Ainda não faço a menor ideia por que aquilo era considerado necessário, mes‐
mo que algumas pessoas naquelas regiões tenham voltado a praticar o culto.
Eu, no entanto, a aprendi su cientemente bem para evitar o cajado, se não o
sarcasmo.
“En m. Os gregos tinham um salão de julgamento com três juízes para di‐
recionar as almas dos mortos a suas várias recompensas e punições.” Começo a
caminhar de novo. O lichkin podia ser apenas uma mancha no chão, mas é
uma mancha ao lado da qual eu não quero car mais tempo que o necessário.
Cuspo para tirar o gosto de enxofre da boca. Não dá certo.
“Está pensando em sair das terras mortas dessa maneira?” indaga Snorri.
“Porque depois do salão de julgamento há um enorme cachorro chamado Cér‐
bero, e se você não for comido por ele, depois vêm o rio Aqueronte e o rio Es‐
tige, que são os rios do infortúnio e do ódio. O barqueiro supostamente é
um…”
“Não importa,” digo. “Não estou morto. Não deveria estar aqui. Assim
que eu chegar aos juízes, eles verão que estou no lugar errado e vão me mandar
de volta para casa. É isso que eles fazem, mandam as pessoas para o lugar de‐
las.”
“Você acha isso?” Snorri parece duvidar, que é o oposto do que eu preciso.
“Acredito nisso,” digo. “E é isso que importa.” Parece-me que, neste Infer‐
no, um homem de determinação su ciente, um homem disposto a sacri car
qualquer coisa talvez consiga dobrar o mundo em torno de seu desejo e criar
sozinho tudo aquilo que desejar. Também me parece que eu não sou esse ho‐
mem.
O longo passo de Snorri o traz para perto de mim. “Então tudo que preci‐
samos fazer é levar você ao salão dos juízes.”
“Esta é uma das partes mais fracas da ideia,” admito, diminuindo o ritmo
para procurar por pistas em volta, mas é claro que não há nenhuma. Só poeira
e pedras.
Snorri continua andando. “Você não entendeu esse lugar ainda,” diz ele
sobre o ombro. “A direção não importa. É como nos sonhos. As coisas que vo‐
cê quer vêm até você. As coisas que não quer também.”
Eu corro para alcançar. “Vamos simplesmente andar nesta direção?”
“Sim.”
“Até encontrarmos?”
“Sim.”
“Kara disse que a porta estaria em toda a parte,” digo, sempre querendo
evitar uma longa caminhada.
“Se você a vir antes de chegarmos lá me avise.” Snorri ri. “Como você acha
que esse salão deve ser? Quais são os nomes dos juízes?”
Caminhamos por um vale que lentamente se torna plano, sob um céu que
escurece aos poucos, lançando sombras sobre nós. Durante todo o tempo,
conversamos sobre o submundo de Hades, os deuses do Olimpo e as lendas
que os antigos criaram sobre tudo. Depois dos Mil Sóis, muitos perderam a fé
no Deus de Roma e voltaram-se para deuses mais antigos, cujos fracassos esta‐
vam muito distantes para relembrar. Enquanto lembramos da forma e da his‐
tória de Hades, nós nos vemos entrando nela, ou melhor, na parte das terras
mortas moldada pela fé daqueles que acreditam nessas histórias.
“Qual é o lance dos infernos pagãos com cachorros?” pergunto. “E rios?”
“Como assim?” Um tom defensivo aparece na voz de Snorri.
“Os gregos têm o rio Estige, cruzado por um barqueiro que deixa você em
uma margem guardada por um enorme cão chamado Cérbero. Os nórdicos
têm o rio Gjöll, cruzado por uma ponte que leva você a uma margem guarda‐
da por um enorme cão chamado Garm.”
“Não estou entendendo.”
“É como se vocês tivessem copiado item por item, só mudando um ou ou‐
tro detalhe e usando seus próprios nomes.”
A discussão que se seguiu me distraiu do sofrimento inclemente que é an‐
dar nas terras mortas. Inferno é inferno, não importa em que mitologia você o
enfeite. Todas as partes de mim estão secas. Todas as partes doem. A fome e a
sede zeram de mim sua morada, no fundo dos ossos. À medida que escurece,
qualquer esperança que havia em mim murcha e minha língua perde o interes‐
se em conversar… a não ser discutir, atormentar o nórdico, isso ainda tem ape‐
lo su ciente para me impedir de deitar na poeira e esperar minha vez de soprar
no vento.
Jalan.
É só a brisa, dizendo meu nome em uma pausa na conversa.
Jalan.
Mas quando o vento diz seu nome na escuridão do Inferno, existe um ar‐
repio que vem junto.
Com o tempo, até o prazer de irritar Snorri diminui e eu prossigo camba‐
leando, carregando um fardo insuportável de dor e exaustão. Meus arredores
podiam ser só escuridão, poeira e um vento contrário baixo, porém constante,
mas na minha cabeça eu voltei ao inferno singular que foi nossa viagem pelo
Gelo Implacável. Estou lá mais uma vez, com os nórdicos morrendo ao meu la‐
do a cada passo, Ein, Arne e Tuttugu, todos nós nos arrastando por aquele de‐
serto branco sem nada para nos impulsionar para frente, além das costas largas
de Snorri ver Snagason sempre em movimento.
“Para cima!”
Descubro que caí de joelhos, de cabeça baixa, sem me mexer.
“Peguei você.” A mão de Snorri se fecha em meu braço e ele me põe de pé.
“Desculpe.” Sigo em frente.
“Este lugar derruba qualquer um,” diz ele.
“Desculpe.” Estou exausto demais para explicar, mas lamento por tudo.
Lamento que tive de ser arrastado por aquela porta antes que pudesse cumprir
minha promessa, lamento por deixar Snorri sozinho no Inferno, lamento pela
família dele, lamento por não acreditar em sua busca, lamento por saber que
irá fracassar. “Desculpe por…”
“Eu sei,” diz ele, e me pega antes que eu caia novamente. “E nenhum ho‐
mem que atravessa o Inferno por um amigo tem que pedir desculpas por algu‐
ma coisa.”
“Eu…” Um som ao longe, fraco, me poupa de mais besteiras, e logo some.
“O que é isso?”
“Também ouvi.”
Depois de ouvir apenas o vento por tanto tempo, o grito estranho parecia
pressagioso.
Ele surge novamente, um pouco mais alto.
Jalan.
Mais alto que minha imaginação desta vez. Uma voz, dizendo meu nome,
ou pelo menos fazendo o som dele, tornando-o algo estranho.
“Corremos?” Descubro que tenho mais energia do que pensava. Não su ‐
ciente para correr, isso é só o medo falando, mas o su ciente para sair cambale‐
ando em um ritmo decente.
“Vamos continuar seguindo.” Snorri vai na frente.
“Mas o que é isso?”
“O que você acha que é?” pergunta ele.
Jalan. É quase a maneira que minha mãe costumava dizer meu nome. A
maneira que uma criança tem di culdade de reproduzir as duas sílabas. Não
quero dizer, como se identi car meu medo o tornasse real, mas de alguma for‐
ma eu sei o que está por vir, o que está nos caçando. No Inferno, com sua falta
de direção peculiar, todos os seus medos encontram você mais cedo ou mais
tarde. É minha irmã e o lichkin que se vinculou a ela para corromper sua alma.
Se me matarem aqui, minha morte abrirá um buraco pelo qual eles poderão
passar para o mundo dos vivos. A rainha desnascida, o condutor e a conduzi‐
da, nascidos em um corpo morto tantos anos após a concepção. Todo o poten‐
cial de minha irmã solto pelo mundo nas mãos de um lichkin… Para ser since‐
ro, todas essas outras coisas são apenas a cobertura de um bolo altamente in‐
tragável — eu parei de me importar depois da parte de “me matarem aqui”.
“Aquilo ali é uma luz?” apontei.
“Sim.” Snorri con rma que não estou alucinando de puro pavor.
JALAN! O berro vem de trás de nós, distante, mas não distante o bastan‐
te. JALAN! Logo se vê que eu consigo correr.
Snorri corre ao meu lado e, com uma lentidão agoniante, a luz passa de
uma para muitas, contornando o telhado e muitas colunas de apoio de um
prédio alto, todo esculpido em pedra branca, exatamente como descrevemos
um para o outro.
Almas se aglomeram na escuridão perto do tribunal. De tempos em tem‐
pos, uma nova alma desce correndo os degraus, uma lembrança translúcida de
um homem ou uma mulher, sem manter uma única forma, mas passando por
memórias de suas vidas, principalmente momentos de terror. Nenhum ca
onde a luz incide, eles correm até a escuridão os abrigar, como se a luz dos juí‐
zes os queimasse. Eles se afastam de Snorri e de mim também. Talvez doa olhar
a vida que ainda persiste em nós, com olhos nos quais não resta nenhuma.
Paramos a cem metros do salão com muitos pilares. Paredes brancas e lar‐
gas se erguem atrás dos pilares, cada centímetro esculpido com cenas lendárias.
Uma porta está aberta, permitindo às almas julgadas fugir da culpa. Nossos
rostos são jogados em um relevo acentuado pela iluminação inclinada. Mesmo
de longe, aquela luz promete água corrente, ar quente e coisas verdes crescen‐
do.
O ar parece frágil aqui, cheio de possibilidades. Tenho essa mesma sensa‐
ção quando as almas dos mortos atravessam do mundo dos vivos e avisto o céu
azul pelos buracos que eles fazem. Este é um lugar de portas. Posso sentir a
chave em meu peito, fria e depois quente, vibrando em algum tom inaudível.
Quando Kara disse que a porta entre a vida e a morte estava em toda parte, era
só papo. Era tão impossível avistar aquela porta do meio do Inferno quanto da
praça da feira de Vermelhão em um dia quente. Mas aqui… aqui parece que
minha casa está logo ali. Aqui parece que a porta que preciso pode surgir do
nada e aparecer na minha frente. O mundo dos vivos está tentadoramente
próximo, só é preciso… que alguma pequena coisa aconteça, como uma pala‐
vra perdida nalmente saindo da ponta da minha língua, para eu poder ver a
porta…
Meu nome soa novamente, um uivo, agora alto, ecoando pelas paredes, um
barulho ondulante e vazio em um instante e violento no outro, cheio de apeti‐
te e malícia. Dou mais um passo para a luz. “Deveria vir comigo, Snorri.” As
palavras são difíceis de dizer. “Você já viu este lugar. Nada de bom pode ser ti‐
rado daqui.”
Espero pela raiva, mas não há nenhuma raiva nele. Ele abaixa a cabeça, re‐
cusando-se a olhar para o brilho perante nós. “Arran Vale.”
“Quê?” Eu quero ir, mas co.
“Você se lembra de Arran Vale?” pergunta ele.
“Hum.” Eu deveria estar correndo, mas a coragem de Snorri não me deixa.
A imagem que ele tem de mim me prende aqui. Eu deveria estar em disparada
até o salão, mas em vez disso co parado e tento responder a ele. Arran Vale?
Minha mente percorre nomes, rostos e lugares, dezenas, centenas, todos co‐
nhecidos em nossas longas viagens. “Talvez… um vale em Rhone? Perto da‐
quela cidadezinha com uma igreja e três bordéis, onde…”
“O avô de Hennan, neto de Lotar Vale.”
“Quem poderia se esquecer de Lotar Vale? O herói em quem você nunca
tinha ouvido falar até o momento em que o velho disse esse nome!”
“Não importa.” Snorri levantou a cabeça para me olhar xamente com
aqueles olhos azuis. “O que importa é que Arran Vale tinha uma história, raí‐
zes, um motivo para viver, um motivo que valia pena defender.”
“Só me lembro que você e Tuttugu estavam prestes a jogar a vida de vocês
fora ao lado de um velho fazendeiro qualquer que tinham acabado de conhe‐
cer, tudo isso para defender seu casebre e objetos sem valor de vikings que pro‐
vavelmente nem se dariam ao trabalho de roubá-los.” O chão está tremendo
agora, a poeira começando a dançar. Minha irmã está perto e se aproximando
rápido.
“Uma vida bem vivida é aquela que você não está preparado para fazer
concessões só para prolongá-la por mais um dia.”
“Bem…” Ler a lista de coisas que eu faria para viver mais um dia consumi‐
ria todo o dia extra em questão.
“A questão é que existem coisas pelas quais estou preparado para morrer.
Momentos em que o certo é tomar uma posição, seja lá quais forem as chan‐
ces. E se Tuttugu e eu zemos o que zemos pelo avô de Hennan, um velho
que, como você bem disse, nem conhecíamos, então o que acha que sou capaz
de fazer pelos meus lhos? Por minha esposa? Se é ou não é possível ganhar
não faz diferença.”
Já tivemos essa conversa antes. Eu não esperava que ele tivesse mudado,
mas às vezes é preciso tentar.
“Boa sorte!” Bati a mão no ombro de Snorri e saí. A escuridão atrás dele
parece mais forte, como se uma tempestade estivesse se aproximando de nós.
Ela está no centro dela, aquela cuja boca sabe meu nome: minha irmã sem no‐
me e o lichkin que está usando sua alma.
Estou a cinco metros de distância quando ele diz: “Mostre-me a chave.”
Estendo as mãos, uma na direção de Snorri e a outra para a porta do salão
dos juízes. “Tenho que ir!” A noite infernal está fervendo a escuridão atrás de‐
le, e o grito surge novamente, tão alto que abafa minhas objeções. Todos os pe‐
los do meu corpo tentam se eriçar.
Mesmo assim, puxo a chave de dentro de minha camisa, no cordão em vol‐
ta do pescoço, e corro de volta até ele. Snorri tira a faca do cinto e encosta a lâ‐
mina na palma da mão.
“Jesus, não!” Eu balanço a mão no que espero ser um sinal negativo. “Que
mania é essa que vocês nórdicos têm de se cortar? Eu me lembro do que acon‐
teceu da última vez que você experimentou essa merda viking comigo. Que tal
um simples aperto de mão?”
Snorri sorri. “A chave será nosso elo. Você de volta no mundo. Eu aqui. O
sangue nos unirá.” Ele corta a palma e eu me estremeço só de ver o sangue bro‐
tando onde a ponta da faca passou.
“Como é que você sabe disso?” Eu ainda espero que haja uma maneira de
sair dessa sem ter de abrir um corte em mim. Uma névoa escura está surgindo
agora, afastando a luz. As almas se espalham. Elas sabem que algo ruim está
chegando. De repente me vejo preparado para cortar a mão fora, se isso signi ‐
car que posso ir embora. Mesmo assim eu co, com a amizade de Snorri me
prendendo da mesma maneira que quase me puxou pela porta do Inferno. “O
sangue nos unirá? Você está inventando isso agora, não está?”
Snorri olha nos meus olhos, os ombros levemente encolhidos. “Se aprendi
alguma coisa com Kara é que na magia o que conta é a determinação. As pala‐
vras, os feitiços, pergaminhos, ingredientes… é tudo para mostrar, ou talvez se‐
ja melhor dizer que são como as armas do guerreiro, mas é a força do braço do
guerreiro que realmente importa. Ele pode matá-lo com as mãos, com ou sem
arma.” Ele estende a mão e a fecha sobre a chave. “Este será nosso elo. Quando
você abrir a porta, irá me encontrar.”
A escuridão cou carregada à nossa volta, e fria. É como se Snorri não vis‐
se, no entanto: ele não tem medo. Já eu tenho o bastante para nós dois. Um ui‐
vo surge com a meia-noite, do tipo que mil lobos fariam… se ateasse fogo a
eles. Perto agora. Perto e se aproximando rápido.
“Como é que eu vou achar a porta? Como vou saber que está pronto para
voltar? Minha nossa, olhe, eu preciso ir…”
“Você precisa desejar para que isso aconteça.” Snorri puxa a mão para trás.
Não há sangue na chave, embora seu punho fechado esteja pingando verme‐
lho. “Vai funcionar — ou não vai. Era para Kara abrir caminho para meu re‐
torno. Kara ou Skilfar, se ela tivesse levado a chave de volta para sua avó como
lhe prometera. Agora tudo que tenho é você, Jal. Então guarde a chave em se‐
gurança e escute meu chamado.”
Guardo a chave. “Vou escutar.” Nem é tanto uma mentira. Eu nem sei o
que ‘escutar’ signi ca. No meu peito, a chave esquenta como se a mentira a
agradasse. Tento pensar em algumas últimas palavras para Snorri. ‘Adeus’ pa‐
rece pomposo. ‘Fique bem’ obviamente não vai acontecer.
“Infernize-os.”
O uivo está tão alto e próximo que parece um soco. Estou correndo, cor‐
rendo em direção à luz, aquela luz maravilhosa, viva, de olho na entrada.
“Tenha cuidado!” grita Snorri atrás de mim. “Eles irão testar você.”
Não gostei nada de ouvir isso, mas com ou sem teste, estou indo para casa.
Eu me aproximo da porta e passo correndo pela alma de uma moça que es‐
tá acabando de sair. Posso ver o pavor em seus contornos fracos. Ela corre,
abaixada, como se uma grande águia pudesse arrebatá-la a qualquer momento.
Eu faço praticamente a mesma coisa, só que na direção contrária.
A escuridão vem atrás de mim como uma onda correndo para a praia, me
ultrapassando dos dois lados, congelando meus calcanhares. Eu voo pela por‐
ta, conseguindo tropeçar no degrau e caindo estatelado no corredor lá dentro.
Ao olhar para trás com medo, vejo a escuridão bater no prédio e a entrada vi‐
rar um retângulo preto, um tremor atravessar o chão, mas nem uma gota da
escuridão entra na passagem onde estou caído, e não se vê nada do horror lá
fora. Se ela está uivando lá, não dá para ouvir.
Eu me levanto, sacudindo a poeira, ainda olhando nervosamente para a es‐
curidão lá fora. Preparando-me, arrisco desviar o olhar para o salão dos juízes.
Não é o que eu esperava. Não há tribunais, nem almas en leiradas esperando
o veredito de suas vidas, nem o trio dos bastardos de Zeus sentados em julga‐
mento. Não existe nada além de um longo corredor, longo demais para caber
no prédio, embora a estrutura seja imensa. Do outro lado, alguma coisa arden‐
do, brilhante — um azul, um verde, uma promessa. Tudo que preciso fazer é
andar para frente e estarei em casa. Sinto isso bem fundo. Nem preciso da cha‐
ve do mentiroso. Este é um caminho verdadeiro, por onde podem passar os
justos.
Dou um passo à frente e portas aparecem ao longo das duas paredes. Uma
porta simples de madeira a cada dez metros, muitas delas. Dou mais um passo
e cada uma delas se abre, primeiro as mais próximas, depois as seguintes no
próximo instante, e assim por diante, criando uma onda na direção da pro‐
messa azul-verde ao longe.
É fácil passar pelas salas atrás das primeiras portas. A primeira à esquerda
está vazia, a não ser por uma bolsa jogada no meio do chão. A da direita tam‐
bém está vazia, exceto por moedas de prata espalhadas. As duas seguintes estão
vazias, exceto por uma espada jogada e um pequeno caixão fechado.
“Está tentando me provocar?” A risada vem fácil e eu aperto o passo, sem
nem olhar para as salas ao passar.
Cem portas depois, paro como se tivesse batido em um poste. O cheiro
mais delicioso da história dos aromas entrou em meu nariz e virou minha ca‐
beça sem pedir permissão. Uma mesa foi posta na sala à minha esquerda. Uma
mesa simples, sem toalha ou prataria, e nela há um prato de madeira onde
meia galinha assada está fumegando. Minha boca se enche de água instantane‐
amente, e meu estômago dá um nó apertado e exigente. Toda parte de meu
corpo grita de desejo por aquela carne assada e quentinha. Vivi com fome no
Inferno por tanto tempo que meu corpo literalmente grita em resposta ao
chamado de uma boa refeição.
Soluçando, eu me afasto, só para ver na sala oposta um simples cálice de vi‐
dro transparente, cheio de água. No momento em que ponho os olhos nele,
sei que aquela é a mais pura das águas de nascente, brotando de baixo de pe‐
dras antigas, e que deixá-la uir por minha garganta seca e tocada pela morte
levará a sede embora num instante. A qualquer pessoa que não conhece o res‐
secamento das terras mortas, a noção de que um homem possa se sacri car
apenas por um copo d’água pode parecer loucura. Mas é algo que precisa ser
vivido para se compreender. Já estive seco no deserto de Sahar. É coisa pouca,
comparada à sede que um dia no Inferno dá a um homem.
Mesmo assim, eu me afasto e continuo cambaleando, com o corpo dolori‐
do pela vida despertada nele de maneira tão repentina pela proximidade do
mundo, após tanto tempo caminhando nas terras mortas.
Outros cheiros me atacam, cada um mais delicioso que o outro. Maçãs, ca‐
ramelos, pão assado na hora… cerveja. Cerveja nova, cheirando a lúpulo, o som
dela saindo da torneira… isso quase me fez virar. Dou uma olhada nas salas:
uma é um prado ensolarado, outra um cavalo pronto para ser montado, um
animal magní co, os músculos amontoados sob o pelo escuro, pronto para ga‐
lopar o dia todo. Há salas onde tesouros jazem aos montes, ouro su ciente pa‐
ra comprar reinos inteiros. Concentro minha visão naquele retângulo distante
de grama verde e céu azul, mais perto a cada passo. Minha determinação é de
ferro. Eu compreendo o teste e não virarei.
Estou a vinte metros da porta nal. Consigo ver o céu azul, o verde do jar‐
dim e um muro atrás. Parece o jardim real de ervas atrás dos estábulos dos
mensageiros. Começo a correr.
“Volte para a cama, Jal.”
Uma olhada de soslaio e eu paro, viro e dou três passos para trás. Reconhe‐
ço o ambiente, um quarto. A luz entra na diagonal pelas venezianas, dividindo
a cama em linhas paralelas de luz e sombra. Cada linha clara passa sobre ela,
descrevendo seus contornos, a pele morena e macia naquele corpo quente. Ela
está deitada nua, exatamente como a deixei, os lençóis de seda indo até a meta‐
de de suas costas e acompanhando suas curvas tão elmente quanto a luz.
“Lisa?”
Ela não fala, apenas dá aquela espreguiçada lânguida que só é possível nos
momentos entre acordar e dormir.
Esta é uma porta para o passado. O próprio ar cintila com aberturas, ra‐
chaduras para o mundo, cada uma levando a novas possibilidades, novas ver‐
sões da minha vida. Se eu tivesse cado com ela naquela manhã, se tivesse vira‐
do na porta quando ela me chamou, ainda meio sonhando, se tivesse me deita‐
do ao lado dela mais uma vez… nada disso teria acontecido. Eu teria perdido a
reunião de vovó. Eu nunca teria visto Snorri. Ele teria seguido seu próprio ca‐
minho para casa. Eu teria vivido como sempre vivi. Talvez teria pedido Lisa
em casamento e gastado seu dote pagando Maeres Allus, e os dias ociosos, fá‐
ceis e suaves da minha vida teriam continuado.
Esse pensamento me avassala. Volte. Volte atrás. Faça de novo. Esse pensa‐
mento e aquela vivacidade gloriosa dela, após tanto tempo nas terras mortas.
Lisa DeVeer, alta, magra, bonita, quente, macia, vital. Percorra o corredor e re‐
torne ao presente, ao palácio de Vermelhão, onde ela está casada e o mundo es‐
tá contra mim… ou vire aqui no último momento e volte para aquela primeira
manhã onde tudo deu errado e poderia ter sido evitado com tanta facilidade.
Um passo é o bastante. O resto eu nem me lembro. Ponho a mão no qua‐
dril dela e me sento ao seu lado. Começo a tirar as botas. Lisa estende a mão
para me puxar até ela, virando lentamente, os cabelos escuros caindo sobre os
ombros.
Ela não tem rosto, apenas uma cabeça afunilada de onde saem muitas pre‐
sas de cobra, a adas, pingando veneno. Eu caio da cama com um grito de pa‐
vor, rasgando a camisa, com a maior parte cando nas garras dela. Pego a cha‐
ve e sairia correndo para a porta, mas não há porta nenhuma. Engatinho para
trás no chão do quarto enquanto aquela coisa que não é Lisa se levanta da ca‐
ma. Encurralado em um canto, estico a mão para abrir a veneziana, mas tudo
que ela mostra é o céu morto do Inferno — a condenação espera por mim lá
fora. À luz morta, os brilhos onde os mundos se esbarram aparecem com mais
clareza, e a Não-Lisa se parece mais com alguma coisa feita, em vez de nascida,
carne impura sobre ossos antigos. Ela sai da cama, desajeitada, os membros se
contorcendo, e vem em minha direção.
No desespero, en o a chave no lugar mais próximo onde a luz se fratura.
Não é uma porta, mas quase poderia ser. É uma quase chance, e eu a aprovei‐
to. Sinto a chave de Loki se enganchar, prendendo os dentes em alguma coi‐
sa… e eu a viro.
Um instante depois estou caindo no forno do Sahar, areia escaldante, calor
ofuscante, um lugar que devora a esperança e enterra os ossos… e a sensação é
ótima.
•••
“Marechal?” Alguém balançou meu braço, com força. “Marechal!”
É Bonarti Poe, pálido e tremendo. Tirei os olhos da chave e me vi sentado
no corredor, exatamente onde estava quando Hertet a pressionou em minhas
mãos.
“Quanto tempo eu…”
“Acho que todos estão mortos!” Poe olhou para a passagem atrás. Um gri‐
to horrível ecoou para contradizê-lo — o tipo de grito que ouvimos em câma‐
ras de tortura.
“Precisamos ir.” Fiquei de pé usando a parede para me escorar. Estava es‐
curo, apenas um lampião gotejando em um nicho entre nós e a porta da sala
do trono, com o óleo já quase no m.
“D-disseram que você sabe a respeito… dessa coisa que está nos atacando?”
Bonarti ainda não havia soltado meu braço.
“Já vi um no Inferno.”
“Ai meu Deus.” O aperto dele começou a doer, então eu o afastei. “Mas
você sabe como derrotá-lo, certo?”
A porta no m do corredor se estilhaçou em pedaços, poupando-me de
uma resposta. O lichkin estava lá, como uma ferida em meu olho, ali porém
invisível, avistado no momento seguinte, não como aquele nervo branco e ex‐
posto, mas envolto em fantasmas, usando as almas cinzentas das pessoas como
uma pele.
O ar entre nós se ondulou, com falhas e fraturas vistas em um instante e
depois sumindo, algumas brilhantes, algumas escuras. Foi sobre essa destrui‐
ção que Luntar nos alertara. Não o lichkin causando mortes às pencas, aos mi‐
lhares, mas a quebra da criação. Eu tinha visto as mesmas fraturas quando o
salão dos juízes cou no limiar entre mundos, e aqui a criatura do Rei Morto
fez dois mundos se chocarem, levando os habitantes do Inferno de volta a seus
corpos e para a terra dos vivos. É da natureza de qualquer rachadura se expan‐
dir e, com o giro lento da Roda impulsionando-as, as fraturas se alastrariam
cada vez mais rápido e mais longe. A Roda de Osheim podia estar a incontá‐
veis quilômetros de distância, mas sua in uência chegava ao coração de todos
os lugares, levada pelo imenso e incansável maquinário dos Construtores, ain‐
da pulsando com a energia deles, apesar de estarem mortos há mil anos.
O lichkin se aproximou lentamente, como se nos desa asse a correr. Eu sa‐
bia como aquele troço podia ser rápido e não z nenhum movimento que o
pusesse em ação. Apenas me ative àqueles últimos momentos de vida que me
restavam. Bonarti, que não tinha esse conhecimento, saiu correndo. Deu dois
passos até o lichkin acertá-lo nas costas. Ele uiu para dentro dele como um
tendão sendo sugado por uma boca faminta. Avistei um brilho branco como
um nervo quando a última parte de seu corpo delgado desapareceu sob a pele
para envolver a coluna dele. O manto de fantasmas do lichkin se afastou quan‐
do ele encontrou um corpo, enrolando-se como fumaça em torno do homem
paralisado.
O grito de Bonarti felizmente foi curto, mas sua dor não terminou com
ele. Um instante depois, uma centena de cortes de navalha se abriram por to‐
do seu corpo, apenas na profundidade da pele. Com o lichkin ancorado no
corpo de Bonarti eu teria corrido, mas ele bloqueou meu caminho para longe
da sala do trono, e na entrada dela cadáveres se aglomeravam, ávidos, contidos
apenas pelo desejo do lichkin de brincar com sua comida. Eu não tinha para
onde ir nem onde me esconder.
Bonarti se virou para mim com os olhos arregalados e a boca retorcida em
um sorriso que não era dele. Sua pele começou a descascar, uma dúzia de faixas
largas esfolando-se lentamente entre os cortes paralelos. Chega um ponto em
que você ca com tanto medo que realmente não importa para onde está cor‐
rendo, contanto que esteja correndo. Eu sabia que todas as semiaberturas e
chances partidas que estavam por trás das fraturas à minha volta levavam dire‐
to ao Inferno, mas, para ser franco, o Inferno já tinha vindo visitar e, por mais
terríveis que todas as partes dele fossem, eu preferia estar correndo para algu‐
ma parte que não tivesse um lichkin. A criatura tentou me pegar com a mão
vermelha e em carne viva de Bonarti, com a pele esfolada pendurada. Com o
mesmo grito que um homem dá ao se preparar para alguma tarefa terrível, co‐
mo cortar fora um membro para escapar de um incêndio, enterrei a chave de
Loki na fratura mais próxima. A falha mais próxima cintilou na parede ao
meu lado e havia quase sumido quando minha mão a alcançou. A chave en‐
controu seu encaixe e cou ali, ancorando a fratura. Os dedos úmidos de Bo‐
narti encontraram meu pescoço e, ainda gritando, girei a chave.
Naquele momento pareceu que o mundo se quebrou. Em vez de atravessar
o buraco que abri, eu voei para trás quando alguma coisa grande saiu dele me
jogando para o lado. Alguma coisa grande, dura e veloz.
Snorri golpeou por cima da cabeça e seu machado atravessou a clavícula de
Bonarti Poe e entrou fundo em seu peito. A bota pesada, esmigalhando as cos‐
telas, deu o apoio para puxar de volta a lâmina de Hel. O próximo golpe do
nórdico veio de lado, antes do corpo de Bonarti bater no chão, arrancando seu
braço na altura do cotovelo e entrando na direção da espinha.
Snorri acompanhou o corpo, rugindo, com poeira avermelhada saindo de
seus cabelos e roupas. Atrás dele, a janela aberta para o Inferno começou a se
fechar, e a realidade ainda foi capaz de se curar. Por pouco.
O lichkin forçou o corpo de Bonarti a rastejar sob a saraivada de golpes de
machado. Os fantasmas surgiram para cegar e arranhar Snorri, mas ele mal no‐
tou, cortando fundo a carne do homem debaixo dele. Filetes brancos se estica‐
ram, procurando outros corpos, carne morta para habitar, mas o nórdico os
atingiu com agilidade e e ciência. Adequadamente atrelado a um hospedeiro,
como os lichkin fazem com os desnascidos, aquele monstro poderia ter sugado
os mortos e os vivos de maneira mais e caz para se restaurar, mas este lichkin
desgarrado havia se tornado imprudente, querendo brincar com a comida e,
ao se enrolar tão fortemente em volta de Bonarti, acabou cando vulnerável.
A carni cina continuou comendo solta. Snorri sabia que seu inimigo esta‐
va enterrado no fundo do corpo à sua frente. Eu avistei a brancura do lichkin
quando o machado de Snorri estraçalhou a espinha de Bonarti. Um segundo
depois, a criatura começou a se desenrolar dos destroços do cadáver. Mas, as‐
sim como eu, Snorri parecia conseguir enxergá-lo, com o tempo que passou
nas terras mortas contribuindo algo para sua visão. Seu machado virou um
borrão, cortando o lichkin, de alguma maneira tornando-o sólido naquele mo‐
mento em que tentou se livrar do corpo. Talvez ter passado tanto tempo no
Inferno havia dado ao machado de Snorri a capacidade de encontrar até mes‐
mo o lichkin, ou molhar o machado com o sangue de demônios havia encanta‐
do a lâmina. De uma maneira ou de outra, cortava.
Em Trond, realizam-se competições para espantar o tédio do inverno. Em
uma delas, um nórdico precisa meter o machado no tronco de um abeto, da
grossura de um homem, e o primeiro a atravessar totalmente o tronco é o
campeão. O ataque de Snorri ao lichkin era bem parecido àquela competição
e, antes que aquele troço escapasse dos destroços de Bonarti, ele chegou bem
perto de ser atravessado. No instante que o último lete branco se retirou dos
restos sangrentos à nossa frente, o lichkin dobrou o mundo em volta de si e
caiu para as terras mortas. Com um urro animal, Snorri se atirou atrás dele. Se
não fosse minha perna estrategicamente posicionada, ele teria desaparecido de
volta no Inferno em busca de sua presa. Assim, ele se estatelou de cara no sun‐
tuoso, apesar de imundo, tapete de Hertet. O ar se ondulou onde o lichkin
abrira o buraco no mundo, depois cou imóvel, e o portal sumiu.
Olhei de volta para os mortos-vivos observando da entrada da sala do tro‐
no. Talvez, se não tivesse olhado, eles continuariam parados ali assistindo por
mais cinco minutos. Minha olhada pareceu animá-los, e eles avançaram ao
mesmo tempo.
“Levante-se!” Dei um pulo até Snorri e tentei levantá-lo. Só de encostar
nele minhas mãos sentiram novamente aquela sensação de secura da morte,
transformando minha pele em papel, sugando a vitalidade de meu corpo. “Le‐
vante-se!” Eu teria mais sorte levantando um cavalo.
Snorri pôs os braços embaixo do corpo e se levantou assim que os mortos
nos alcançaram. Eles haviam perdido sua agilidade, agora que o lichkin tinha
fugido, mas ainda eram em grande número.
A quantidade parecia não importar. Snorri os atravessou como uma foice.
Aquilo me fez lembrar de minha vitória gloriosa contra os garotos do balde lá
no teatro de ópera. Snorri atravessou os mortos como um príncipe de Marcha
Vermelha atravessa moleques de rua apavorados. O machado é realmente a ar‐
ma certa para esse tipo de trabalho. A espada é uma língua: ela fala e dá voz
eloquente à violência, procurando os órgãos vitais do inimigo e dando m a
ele. O machado apenas urra. Os ferimentos que ele causa são destruidores e,
nas mãos de Snorri, praticamente todos os golpes parecem arrancar uma cabe‐
ça ou um membro.
Dois minutos depois, o nórdico estava no meio do massacre que criou, tal‐
vez vinte cadáveres agora divididos a tal ponto que a necromancia não poderia
usá-los de maneira perigosa. Eu o segui até a sala do trono, lançando olhares
nervosos sobre o ombro, na possibilidade de novos inimigos avançarem pelo
corredor. Muitos mortos tinham espadas, ainda embainhadas nos quadris. Pe‐
guei uma que parecia ter sido forjada para usar e não para mostrar.
“Você… você está bem?” Olhei em volta do salão. Snorri estava de pé, cabe‐
ça baixa, coberta com o sangue de outros homens, respirando ofegantemente.
Segurava o machado na altura do quadril, com uma mão logo abaixo da cabe‐
ça e a outra na ponta do cabo. Ele não parecia bem. Nem a sala, com todas as
superfícies sujas, o trono derrubado, as tapeçarias pisoteadas, o local todo fe‐
dendo a morte e destruição. “Snorri?” Ele parecia quase um estranho.
Ele ergueu a cabeça, olhando para mim por baixo do véu preto de seus ca‐
belos, indecifrável, capaz de qualquer coisa. “Eu…” A primeira palavra que me
disse desde que nos separamos no Inferno. Meses haviam se passado para mim.
Isso seria a sensação de quantas eternidades naquele lugar?
Do canto mais escuro da sala, um morto-vivo surgiu de baixo de uma tape‐
çaria, alguma vitória retratada em linha prateada, agora manchada de sangue e
sujeira. Ele avançou na direção das costas de Snorri, trazendo o tecido bordado
como uma bandeira. Snorri atacou para o lado, quase sem olhar, o machado
como uma extensão de seu braço. A cabeça do homem voou longe, seu corpo
cambaleou e despencou.
“Estou em paz,” disse Snorri, e se aproximou para me dar um abraço de
guerreiro.
20
“Quantos homens você tem?” Garyus estava sentado no trono de vovó, apoia‐
do por almofadas e anqueado por dois guardas de elite com suas armaduras
de bronze-fogo. Ele tinha mais dez homens desses espalhados pelo salão, al‐
guns ensanguentados do trabalho noturno.
“Uns sessenta.” Eu estava diante da plataforma com Snorri ao meu lado.
“Há mais dezenas deles espalhados pelo palácio. Mandei o ciais os reunirem
perto dos portões.”
Garyus me olhou com um olho escuro. O outro havia sido fechado pelo
punho de Hertet. Tio Hertet tinha ido ao quarto de Garyus na torre após es‐
curecer. Na semana anterior, eu perguntara a meu tio-avô por que ele não
transferia seus aposentos para o Palácio Interno, agora que era comissário, mas
ele balançou a cabeça e me disse que pensava melhor em um lugar alto. “Além
do mais, as pessoas só o importunam se for importante. Cem degraus dão uma
perspectiva diferente ao que importa e ao que é só perda de tempo.”
“E Hertet?” perguntei. “Foi encontrado?” Ele estaria entre os mortos. A
carni cina na Casa Milano havia sido completa.
“Ainda não.” Garyus tocou o inchaço em torno de seu olho. “Houve in‐
cêndios na casa, e parte da parede dos fundos ruiu. Talvez até mesmo contar os
mortos esteja além do nosso alcance. Mas não tive nenhuma notícia de que ele
tenha escapado.” Ele balançou a cabeça, e seu pesar parecia genuíno. “Garoto
tonto.” Talvez ele se lembrasse da criança, e não do homem que tomou seu lu‐
gar.
“Preciso pegar os homens que temos e voltar ao Portão Appan.” A frase
não se parecia com algo que eu diria, mas se os mortos invadissem em quanti‐
dade nenhum de nós veria o próximo pôr do sol.
“Tenho uma tarefa mais importante para vocês dois,” disse Garyus.
Levantei a sobrancelha ao ouvir aquilo e me perguntei se o soco de Hertet
também não tinha confundido as ideias do tio dele. “O que poderia ser mais
importante? Por Cristo! Eles estavam pulando a muralha horas atrás. É bem
capaz de já terem tomado o portão a essa altura. Precisamos…”
Garyus levantou a mão. “Tenho relatos mais recentes. Marechal Serah es‐
tá…”
“Marechal Serah? Quantos marechais esta cidade vai ter em uma noite? E
Serah é uma criança, caramba!” Embora, para ser sincero, ela estava fazendo
um trabalho e ciente organizando a defesa quando eu saí.
Garyus esperou, franzindo os lábios para ver se eu tinha mais alguma re‐
clamação. Segurei a língua. “Há relatos de que a invasão foi contida. Os mor‐
tos que caram fora das muralhas se tornaram menos… vitais… e não conse‐
guiram seguir os outros para cima da rampa e do andaime. Reforços chega‐
ram: uma força mercenária a meu serviço, junto de cidadãos armados, incluin‐
do vários que antes ganhavam a vida nos Buracos Sangrentos e outros antros
de luta ilegais…” Aqui o olho dele vagou na direção de Snorri, deixando claro
que a história do nórdico e do urso havia chegado aos seus ouvidos. “E esses
reforços garantiram a destruição dos mortos que entraram na cidade.”
“Eles vão atacar em outro lugar! A muralha perto da Praça do Curtume
mal está de pé da maneira que está. Eu…”
“O fogo na cidade externa cremou um grande número de cadáveres amoti‐
nados contra nós, e diminuiu fortemente a habilidade dos que restaram de se
mover em torno da muralha. Meus relatos indicam que falta ao grupo dos
mortos liderança ou direção.”
“Mas havia necromantes… Eu mesmo vi Edris Dean! Eles devem estar pla‐
nejando alguma coisa… Os bueiros!”
“Você mesmo cuidou dessa fraqueza, Jalan, e não há nenhum indício de
ataque. Parece que o Rei Morto perdeu o interesse nessa investida.”
“Mas… por quê? Porque mandamos o lichkin dele de volta ao Inferno?”
Não fazia sentido. Ele estava quase vencendo. Por que desistir?
“Um comerciante perguntaria que lucro nosso adversário estava querendo
ganhar.” Garyus se recostou, fazendo uma careta. “Por que ele usou sua força
aqui, contra esta cidade?”
“Porque a Rainha Vermelha nos deixou. Que ocasião melhor para atacar
Vermelhão?”
“Você está pensando nas coisas a que nós damos valor, Jalan, não no que o
Rei Morto dá valor. Por que ele se importa com Vermelhão? Ou com toda a
Marcha Vermelha? Há muitas cidades, muitos lugares onde os vivos podem
ser convertidos em mortos com muito mais facilidade do que no coração de
Marcha Vermelha, não importa onde a Rainha Vermelha esteja.”
“Tudo isso pela chave? Tudo isso?” Não parecia possível, embora no ins‐
tante em que eu falei a chave cou gelada em meu peito.
“Que outra coisa lhe traria mais vantagens?”
“Mas…” Pus a mão sobre a chave. “Ele não a pegou. Por que desistir ago‐
ra?”
“Não sei, Jalan. O que eu sei é que o poder dele não é in nito, e a possibili‐
dade de vitória, do tipo que ele precisaria para conseguir a chave, tornou-se
pequena quando o lichkin foi embora e nossas defesas se mostraram mais for‐
midáveis do que talvez ele esperasse.”
“Ou ele encontrou algum outro tesouro,” troou Snorri ao meu lado.
“Talvez.” Garyus não demonstrou irritação pela interrupção de um bárba‐
ro. “Considerei essa possibilidade. Mas que outra compensação poderia satis‐
fazê-lo?”
Um pensamento horrível se desenrolou e, por mais que eu tentasse dobrá-
lo de volta em um pequeno pontinho de possibilidade, ele não quis ir embora.
“Por que eles vieram aqui, para começo de conversa?”
“Quem?” Garyus transferiu o olhar de Snorri para mim.
“Os desnascidos.” Tantos quilômetros haviam passado debaixo de meus
pés e ainda assim me vi de volta ao começo de tudo. Eu e Snorri juntos na sala
do trono da Rainha Vermelha novamente, falando sobre os mortos mais uma
vez. E. na noite daquele mesmo dia, cruzei com o Príncipe Desnascido na ópe‐
ra, um lugar onde nada de bom jamais aconteceu. “Por que os desnascidos vie‐
ram para cá, primeiramente?”
“Vieram trazer ao mundo outro desnascido. Um poderoso.” Garyus me
olhou com uma intensidade peculiar. “Devia ser poderoso, para arriscar os
dois maiores servos do Rei Morto dentro dos limites de Vermelhão com a Rai‐
nha Vermelha na cidade.”
“Minha irmã.”
“Você não tem uma irmã, Jalan…”
“Edris Dean a matou no ventre de mamãe na noite em que esteve no palá‐
cio. Eu vi minha mãe testar a barriga com o seu oricalco pouco antes do ata‐
que. A luz… era como se o sol tivesse vindo para a Terra…” A mão de Snorri
apertou meu ombro, em um momento de empatia, e depois se afastou. “Mi‐
nha irmã me perseguiu até eu sair do Inferno. Se ela tivesse me pegado, eu te‐
ria sido o portal dela para o mundo. Acho que ela tentou atravessar por papai
quando ele morreu. E novamente quando Darin caiu na muralha. Alguma
coisa tentou atravessá-lo.”
“Mas não teve êxito?” Garyus franziu o rosto. “Então por que o Rei Mor‐
to retirou suas forças…”
“Martus!” Uma certeza fria se apertou em meu peito. “Mande buscar notí‐
cias de meu irmão!”
Garyus abaixou a cabeça. Com esforço, levantou a mão e fez sinal, com
dois dedos esticados. Um soldado ensanguentado saiu do lado de um dos
guardas reais, com o homem menor sendo escondido pelo maior até agora. Ele
parou a cinco metros do trono. O uniforme rasgado o proclamava um o cial
do Sétimo. Vários cortes nos em suas mãos e rosto sugeriam um encontro re‐
cente com um trapoeiro.
“Capitão Davio iria dar seu relato quando nossos assuntos fossem concluí‐
dos,” disse Garyus. “Diga o que sabe, capitão.” Garyus fez sinal para o homem
se aproximar.
“General Martus…” O capitão engasgou e segurou sua mandíbula como se
quisesse conter a emoção em sua voz. “Príncipe Martus, alteza… ele…” Davio
retirou a mão, deixando as duas bochechas manchadas de sangue. “Ele liderou
o ataque. Não havia medo nenhum nele. Correu direto para aquela ventania
do mal. Eu o vi cortar dois fantasmas pela metade e o vento foi para cima dele.
Nós estávamos lutando com os possuídos, mas general Martus foi direto para
o centro. Eu o perdi de vista… e depois acabou. O vento morreu. Trapos, vi‐
dros e pedras caindo do céu… e os possuídos enlouquecidos, sem nada mais
que os organizasse.”
“E meu irmão?” Eu sabia a resposta.
“Nós o encontramos no meio daquilo, senhor, alteza. Cortado e dilacera‐
do. Medi o pulso, mas dava para ver que estava morto, senhor. Chamei ho‐
mens para carregá-lo até o palácio, e vi a espada dele ali perto. Aconteceu
quando eu estava pegando a espada no chão.” Ele cou em silêncio, olhando
para alguma lembrança, e pensei que Garyus fosse ter de perguntar, mas assim
que chegamos ao ponto em que algum de nós teria de falar, o capitão sacudiu
a cabeça na direção de Garyus e continuou. “Os olhos dele se abriram. Os
olhos do general Martus se abriram e eu achei que ele fosse se levantar como os
outros que tínhamos perdido, maluco e morto, precisando ser esquartejado.
Os caras todos levantaram suas espadas e machados… nós tínhamos deixado de
lado nossas lanças e pegado qualquer coisa que cortasse. Os que não tinham
espadas caram com machados de lenhador, facas de açougueiro, tudo que
conseguimos encontrar… Ninguém queria ser o primeiro a acertá-lo. Por ele
ser um príncipe, e nosso general.”
“Mas ele não se levantou com um salto. O corpo dele… se mexeu… mas era
como se alguma coisa o estivesse corroendo por dentro. Seus ossos… nós os ou‐
vimos estalando, e ele parecia estar cheio de serpentes, se contorcendo. O cor‐
po dele inteiro se afundou… só os olhos que não mudaram.” Davio conteve o
choro. “Eles continuaram olhando para nós. E aí… e aí…”
“Apenas nos conte os fatos, capitão,” disse Garyus, mas de maneira nada
ríspida. “Eles deixarão menos cicatrizes quanto mais rápido os disser.”
“Sim, senhor comissário.” Ele tomou fôlego. “E aí a coisa saiu dele. Foi
uma bagunça sangrenta e vermelha, como um cachorro esfolado, só que com
os olhos dele, os olhos do general Martus. Aquilo saiu com tudo de dentro de‐
le como se ele fosse um saco onde o puseram para se afogar, e saiu correndo,
muito rápido. Batran Deens tentou impedi-lo. Mãos rápidas, daquele homem.
Ele se atirou para cima daquilo quando passou. Pôs os dois braços em volta de‐
le. Mas a coisa escorregou por ele e o deixou gritando. Em todo lugar onde ele
o tocara, a carne estava derretida, totalmente… Eu vi os ossos dos braços dele.”
O capitão abaixou a cabeça, olhando para o chão.
“Eis aí a compensação do Rei Morto,” falei. Minha irmã nalmente estava
no mundo. Eu não senti nada — apenas um vazio.
Ficamos em silêncio por um momento, contemplando o tamanho da mer‐
da em que estávamos metidos. Eu havia queimado meu pai, queimado metade
da cidade onde morava, perdido dois irmãos e ganhado uma irmã desnascida
homicida, tudo no mesmo dia. Duvidei que fosse possível encaixar mais des‐
graça entre um nascer do sol e outro.
Garyus falou primeiro. “Você precisa levar a chave para o norte.”
“Isso é loucura. O Rei Morto vai nos alcançar e pegá-la!” Eu já não me sen‐
tia mais seguro atrás da muralha de Vermelhão, mas ainda assim era bem mais
seguro do que fora dela.
“O Rei Morto não o alcançou durante todo o tempo que passou viajando
de Trond a Umbertide. Você passou meses nessa viagem.” Garyus olhou para
Snorri como se quisesse con rmação. “É quando a chave está parada que ele a
encontra. Enquanto ela estiver aqui, a cidade inteira correrá perigo.”
“Para onde a levaríamos? Quer que a gente simplesmente saia correndo até
despencarmos dos con ns do mundo?”
“Os mortos fora de nossas muralhas não são a maior ameaça que enfrenta‐
mos, Jalan.” Garyus examinou a palma de sua mão. A Rainha Vermelha tinha
a mesma mania quando estava pensando.
“Existe uma ameaça maior?” Senti, sem ver, Snorri se virar para olhar para
mim. A pergunta dele parecia arder na minha nuca, sem ser dita.
Levantei as mãos. “Admito que o m iminente do mundo seja um proble‐
ma maior. E…” Virei bruscamente para olhar para Snorri. “Não quero ouvir
um pio sobre Ragnarok. Não tem nada a ver com isso. É aquela sua maldita
roda, ela vai partir o mundo em dois. Ou melhor, está deixando que nós faça‐
mos isso. Ou melhor, está deixando gente como a Dama Azul, Kelem e o Rei
Morto fazerem isso. Então sim, todos nós iremos morrer. E talvez nem tenha‐
mos a chance de destruir o mundo porque as máquinas que os Construtores
deixaram para trás provavelmente vão acender mais um monte de sóis e nos
queimar da face terrestre para impedir que isso aconteça… De um jeito ou de
outro, coisa boa não é.”
Snorri me olhou com uma intensidade que geralmente reservava aos ho‐
mens em quem estava prestes a atirar seu machado. “Iremos até Osheim e fare‐
mos a Roda parar de girar.”
“Isso é só papo de viking.” Eu me virei para Garyus. “O que devemos fazer
de verdade?”
“Vocês precisam levar a chave até a Roda de Osheim,” disse Garyus.
“Levar…” E eu duvidava ser possível en ar mais desgraça em um mesmo
dia. Eu estava errado. “Quê? Por quê?” Eu pretendia simplesmente dizer não,
mas quando abri a boca as perguntas saíram.
“A chave precisa ser levada ao centro. Ninguém jamais escapou daquele lu‐
gar. É um dos poucos lugares que devem ser seguros. Se o Rei Morto, seus ser‐
vos ou qualquer um for atrás dela, eles não voltarão.”
Pigarreei. “Acho que está se esquecendo de um ponto importante aqui.
Ninguém jamais escapou daquele lugar.”
“O ponto é exatamente esse, Jalan. Não me esqueci.”
“Eu…” Eu havia me en ado no Inferno por não ter a coragem de admitir
minha covardia. Decidi não entrar numa situação parecida outra vez. “Olhem.
Vou dizer logo. Não sou a favor de nenhum plano que não preveja meu retor‐
no, e ponto nal. Tenho certeza de que há voluntários bem mais capazes de fa‐
zer… essa coisa.”
“Eu vou,” disse Snorri. Nós dois o ignoramos.
Garyus manteve os olhos em mim. “O resto da questão é que você não irá
até lá simplesmente para colocar a chave em um lugar seguro. Irá até lá para
usá-la. A Roda é a origem de nossos problemas e a chave é a única coisa que
pode pará-la. Você irá até lá para girar a Roda para trás. Se fracassar, a chave
estará em um lugar perigoso de alcançar e impossível de escapar, mas se tiver
sucesso o mundo não se partirá, você conseguirá retornar e todos viveremos as
vidas que estavam estabelecidas para nós.”
Suspirei aliviado. O velho estava louco. Alguém precisava substituí-lo co‐
mo comissário e então poderíamos todos car sentados até a Rainha Vermelha
voltar para nos salvar. Se é que ainda estava viva.
“Sim.” Snorri parecia que não precisava ser convencido de nada. “Deve‐
mos partir hoje.” Nós dois o ignoramos.
“Tio-avô.” Tentei fazer uma voz compreensiva. “A Roda de Osheim… não
é uma roda de verdade, sabe? É um túnel subterrâneo bem profundo que for‐
ma um círculo de quilômetros de largura. Ela não pode ser ‘girada’.”
“É uma máquina. Foi isso que Kara me contou,” disse Snorri. “É uma má‐
quina que mudou o mundo mil anos atrás e ainda está mudando. Ela foi inici‐
alizada, portanto pode ser parada.”
“Interessante,” falei, e com isso eu quis dizer ‘feche a porra da boca’. Por
que Snorri estava com tanta vontade de sair correndo para Osheim, eu não fa‐
zia ideia. Acariciei o queixo como se considerasse as palavras dele e tentei não
soar irritado demais. “Túnel, máquina, tanto faz, é enorme e não dá para girar
para trás.”
“Mas dá para desligar,” disse Garyus. “Se tiver a chave certa.”
22
Ficamos com Dr. Raiz-Mestra nos portões destruídos do forte, uma ilha em
meio a um mar de neblina, o céu acima preto como uma bíblia e cravejado
com diamantes.
“Tem que vir conosco!” falei. “Quem poderia nos ser mais útil em parar a
Roda do que um Construtor de verdade, vivinho da silva! Foi o seu povo que
construiu esse troço maldito!”
“E eu passei mil anos sem conseguir desligar as máquinas que a movimen‐
tam,” replicou Raiz-Mestra. “A chave reuniu o que ela precisa para fazer o ser‐
viço.” Ele abriu os braços na direção de nós quatro. “Se eu fosse necessário pa‐
ra o seu sucesso, a chave não me deixaria ir embora, ela encontraria alguma
maneira de me manter aqui. É assim que ela funciona. Loki é um danado. En‐
tão continuem com seu plano. Vão a Osheim e testem a chave.”
“Esse é seu melhor conselho, Raiz-Mestra? Testá-la?” Snorri não parecia
nem um pouco impressionado.
“Você deve ter algo melhor que isso.” Tentei conter o tom de reclamação
em minha voz. “Cadê a sabedoria milenar? Estou lhe perguntando! Quero di‐
zer, você é mais velho que minha avó. Cacete, você é mais velho que a avó de
Kara.” Acenei na direção da volva. Raiz-Mestra fazia os trezentos anos de Skil‐
far parecerem joviais.
Raiz-Mestra sorriu se desculpando e fez sinal para o céu noturno. “A luz
do sol é recém-nascida, quente dos fogos do céu, e diz verdades cruéis, como
costumam os jovens. Mas a luz das estrelas, a luz das estrelas é antiga e atraves‐
sa um vazio inimaginável. Todos nós somos jovens sob as estrelas.”
“Muito bonito,” falei. “Mas não ajuda muito.”
“Meu chefe tinha isso em um mostrador atrás de sua mesa.” Raiz-Mestra
encolheu os ombros.
“Loki?” troou Snorri, com o rosto indecifrável. “Trabalhou para Loki?”
“Con e em mim, não lhe fará nenhum bem saber.” Raiz-Mestra começou
a seguir o caminho pelos escombros, na direção da superfície ondulada da ne‐
blina que envolvia a encosta logo abaixo de nós.
“Con ar em você?” gritei para ele. “Loki é o pai das mentiras!” Pensei em
Aslaug. Até ela me alertara contra Loki.
“Uma mentira pode ser feita com muitas verdades, e a verdade construída
de inúmeras falsidades empilhadas até os céus.” Raiz-Mestra acenou para nós
com aquela mão de dedos longos, por cima do ombro. “Boa sorte em sua bus‐
ca. Farei o que for possível para ganhar tempo para vocês. Não o desperdi‐
cem.”
Ele estava até os joelhos na neblina, e as correntes lentas subiram para en‐
volvê-lo na brancura. Com mais três passos ele desapareceu.
•••
Encontrei a lente dele no bolso de minha calça no segundo dia. Dedos procu‐
rando uma moeda descobriram a superfície lisa e fria do vidro, e eu puxei o
aro de prata para fora. O velho devia ter botado ali, talvez quando estávamos
no fundo do buraco. Segurei-a contra o sol, deixando a luz brilhar através de‐
la.
“O que é isso?” Hennan aproximou seu cavalo na minha direção. A essa al‐
tura ele já era um cavaleiro decente.
“Só um brinquedo.” Observe-me. Segurei-a no olho e olhei para o garoto.
Ele não pareceu diferente. Encolhendo os ombros, coloquei-a novamente no
bolso.
•••
Durante mais dois dias, atravessamos o interior cada vez mais devastado pela
guerra. Chegamos à retaguarda do exército da Rainha Vermelha e passamos
para os arredores de Blujen. Acampamos na chuva, com as estacas enterradas
na lama enegrecida pelas cinzas. O fogo queimava nas orestas, queimava na
serra ao oeste, nas ruínas antes das muralhas da cidade e depois delas. As cha‐
mas ardiam nas janelas dos esqueletos vazios de pedra que no passado foram
casas de homens ricos.
En amos quatro pessoas em uma tenda que seria confortável apenas para
mim e Snorri e, à luz do oricalco, assistimos à chuva cair através do encerado.
Vários grupos de escaramuçadores de Milano estavam com acampamentos
montados ao nosso redor. No mastro da frente da barraca, hasteamos as lanças
cruzadas de Marcha Vermelha, para dissuadir as patrulhas de nos espetar atra‐
vés do encerado e só depois nos questionar. Quando amanhecesse, faríamos a
viagem sobre os destroços dos portões da cidade e entraríamos em Blujen para
encontrar a Rainha Vermelha. Uma viagem que era melhor fazer à luz do dia,
caso esperasse sobreviver a ela.
Ocasionalmente, um grito distante rompia a noite. As forças de Marcha
Vermelha ainda estavam fazendo brincadeiras mortais de esconde-esconde
com os defensores sobreviventes da Slóvia no meio das ruínas em chamas. Eu
esperava entrar e sair o mais rápido possível, pois havia rumores de que dois
exércitos slovianos estavam a apenas um dia de distância, e que seus batedores
já estavam circulando pelos campos a menos de dois quilômetros da muralha
de Blujen.
O sono veio rápido, como acontece na maioria dos dias em que se percorre
cinquenta quilômetros. Fiquei deitado sem sonhar até Kara me acordar, enga‐
tinhando por cima da minha coberta até a saída, com os cabelos roçando nos
meus lábios. Ela desapareceu noite afora e o sono foi com ela, deixando-me na
escuridão, sozinho com meus pensamentos. Além de um viking que roncava e
um garoto que chutava dormindo. O tempo passa lento nessas circunstâncias,
mas mesmo levando isso em consideração, chega um ponto em que você perce‐
be que não vai voltar a dormir, que a völva já está muito tempo fora para uma
simples ida ao banheiro e que, não importa como você se deite, uma pedra
sempre estará se en ando em você.
Saí e descobri que a chuva havia parado e que Kara estava sentada em um
muro quebrado, observando o movimento lento das estrelas acima das nuvens
esfarrapadas.
“Veio conferir se estou bem?” perguntou ela quando me aproximei, trope‐
çando no terreno desconhecido.
“Queria que as pessoas viessem me conferir com mais frequência,” falei.
“Muitas vezes a ajuda seria útil.”
“Sua avó e a irmã dela estão prendendo a Dama Azul lá.” Kara acenou na
direção do clarão acima dos telhados de Blujen.
“Ela merece o que terá.” Fiquei perto de Kara agora e apoiei o quadril no
muro onde ela estava sentada. “Ela merece tudo isso.”
“Será?” Kara apertou os lábios e voltou sua atenção às estrelas.
Abri a boca, mas demorou um pouco para as palavras saírem. “É claro! Ela
quer queimar o mundo inteiro, Kara! Não um celeiro ou uma vila ou…” olhei
em volta, “… uma cidade. O maldito mundo inteiro. Só para poder ser a impe‐
radora do fogo.”
Kara sugou o lábio. “A Roda está girando. Os sábios dizem que ela não po‐
de ser detida. Tudo que a Dama Azul está fazendo é empurrando com um
pouco mais de força. Escolhendo seu próprio tempo para o m. Um tempo
em que alguns poucos possam sobreviver. Se o m está próximo, será que é tão
terrível assim fazer com que este m chegue um pouco mais cedo?”
“Sim!” Abri os braços e lancei um olhar de incredulidade para ela. “Hen‐
nan vai morrer um dia… então vamos esfaqueá-lo agora, se houver alguma
vantagem nisso? A Dama Azul merece tudo que minha avó var dar a ela.”
“Suponho que sim, mas isso não é o mesmo que estar errado. Já pensou no
que estamos fazendo, Jalan?”
“Não tenho pensado em outra coisa. A última coisa que eu queria fazer,
menos que ir a Osheim, era caminhar até o Inferno.”
Ela olhou para a tenda nesse momento. “Você já conversou com ele?”
“Sobre Osheim?”
Ela estreitou os olhos para mim. “Sobre Hel. Sobre o que aconteceu com
ele quando você o abandonou.”
“Eu não…” A careta dela me fez desistir de negar. “Ele diz que está em paz.
Não quer conversar.”
“Homens. Idiotas, todos vocês. Grandes ou pequenos. Jovens ou velhos.”
Ela balançou a cabeça. “Ele precisa conversar. Não vai acabar até ele contar aos
amigos o que aconteceu. Qualquer tolo sabe disso. E você é tudo que restou a
ele.”
“Hummm.” Eu colocaria ‘ter essa conversa com Snorri’ bem alto na lista
de coisas que eu jamais queria fazer. “O que exatamente você quis dizer antes,
sobre a Dama Azul não estar errada? A chave pode nos salvar… certo? Não es‐
tamos fazendo isso totalmente em vão, não é? Quero dizer… não me importo
com chances remotas…” Na verdade eu me importava, eu me importava mui‐
to. “Mas uma missão suicida?”
“Skilfar diz que, mesmo que consigamos desligar a máquina dos Constru‐
tores em Osheim, isso talvez só atrase as coisas. A máquina está nos levando à
destruição, mas quando você para de empurrar uma coisa, muitas vezes ela
continua rolando sozinha, e se chegou a uma ladeira, pode continuar até che‐
gar no m.”
“Skilfar diz? Como é que ela sabe? E como você sabe que ela sabe?”
Kara sorriu, fazendo eu me lembrar que já tive uma queda por ela. “Pesso‐
as como minha avó podem alcançar mentes treinadas a qualquer distância, e
quando ela escolhe falar comigo eu posso responder.”
Aqueles sentimentos calorosos que estavam sendo atiçados desapareceram
no momento em que imaginei Skilfar me observando através dos olhos de Ka‐
ra. Por um instante, minha imaginação desenhou rugas no rosto de Kara, esti‐
cou a pele dela ali, afrouxou-a aqui, apontou isso, diminuiu aquilo e me mos‐
trou a própria bruxa do gelo, me avaliando com o olhar mais gelado.
Kara passou a mão pelo cabelo, como se procurasse pelas runas que usava
no passado. Aquilo desfez o encanto.
“Então devemos simplesmente desistir porque pode não dar certo?” Eu
era menos contrário à ideia do que minha pergunta insinuou.
“A chave pode ser usada para facilitar a passagem do que vem antes da con‐
junção para o que vem depois. Alguns diriam que seria melhor usar a chave
para herdar o futuro, em vez de correr um risco desses para tentar salvar o pas‐
sado.”
“Mas quando a Roda for longe demais, tudo irá queimar — é isso que to‐
do mundo ca me dizendo!”
“A Dama Azul diz que haverá um depois. Diferente de tudo que conhece‐
mos. E aqueles que passarem pela conjunção serão deuses em um novo mun‐
do. A Dama Azul não está destruindo este mundo, são os Construtores e sua
roda. Ela não pode pará-la. Sua avó não pode pará-la. Skilfar não pode pará-la.
Estamos todos indo em direção às cataratas, e não importa o quanto reme‐
mos… todos vamos cair. Tudo que a Dama Azul está fazendo é remar para
frente, pegando velocidade para fazer do salto algo novo. Ela não se importa
com o Rei Morto, ela não quer o que ele quer. Ele é apenas a ferramenta que
ela está usando para partir o mundo mais cedo, em vez de mais tarde.”
“Você andou falando com ela!” Eu soube que era verdade assim que disse
as palavras.
“Eu a vi em meu espelho,” desdenhou Kara. “Ela não é o diabo, e eu não
sou nenhuma ovelha para ser in uenciada pela opinião dos outros. Eu presto
atenção. Re ito. Eu me decido sozinha.”
“E?” Abri as mãos.
“Estou indecisa.” Ela se endireitou e desceu do muro. Pingos de chuva co‐
meçaram a cair à nossa volta.
“Mas ela é má! Eu a vi matar…”
“Você diz que ela é má porque uma das pessoas que a causa dela precisava
que morressem era sua mãe. Mas a causa da Rainha Vermelha levou à morte de
milhares, muitas delas mães. Olhe ao seu redor.” Ela abriu o braço para as ruí‐
nas.
“Eu… eu suponho…” Tentei encontrar as palavras para explicar por que
ela estava errada. “A maioria deles provavelmente fugiu.”
“Seu povo é que é o invasor. Snorri me disse que viu o homem de um bra‐
ço só que torturou você aqui em Blujen, de tabardo de Marcha Vermelha, ca‐
minhando com os soldados.”
“João Cortador?” Percebi que eu estava me abraçando e que a noite pare‐
cia mais fria, mais cheia de terrores. “Achei que o desgraçado já estaria morto a
esta altura.”
“Homens que conseguem informações dos prisioneiros com rapidez são
um recurso valioso na guerra, Jal.”
“É um engano. Marcha Vermelha não tem uma inquisição. Nós somos os
mocinhos… Vou contar à rainha. Vou…”
“Olhe atrás do muro,” disse ela baixinho para a noite.
A chuva caía mais forte agora e eu não queria olhar atrás do muro.
“Tome sua própria decisão, Jalan. Mas faça isso de olhos abertos.” Ela pas‐
sou por mim, saindo para a barraca.
A chuva começou a cair para valer e as nuvens haviam roubado a luz da lua
e das estrelas, mas uma labareda ainda ardia em uma pilha de vigas pretas, dez
metros depois do muro onde Kara estava sentada. Xingando, curvei os om‐
bros com o frio dos pingos e me inclinei por cima do muro, na parte mais bai‐
xa.
O corpo de uma menina estava enrolado ao pé do muro. Ela estava ali co‐
mo estivera durante toda nossa conversa, como estivera quando armamos a
barraca e enquanto dormíamos, com os olhos para o céu, cheios de água fria.
Metade de seu rosto estava preto de queimaduras, com a pele descascando em
quadrados escuros, mas dava para ver que ela era jovem, bonita até, de cabelos
longos e escuros como os de minha mãe. Eu quase me afastei antes de perceber
que o embrulho apertado contra seu peito era um bebê. Queria ter feito isso.
•••
Chegamos a Blujen em uma manhã cinzenta debaixo de chuva fria. Lágrimas
para os mortos.
Um esquadrão de dez soldados da infantaria de Marcha Vermelha nos es‐
coltou pela rua alta da cidade. O fogo havia apagado muitos sinais da luta, mas
não precisei fazer força para vê-los. Em um ponto, os corpos estavam empilha‐
dos, civis uniformizados com lama, um monte silencioso. O Rei Morto os fa‐
ria me perseguir, se eu casse tempo su ciente para ele localizar a chave. Vi
soldados trazendo tábuas prontas para fazer uma pira, em ritmo relaxado e re‐
clamando do peso. Se estivessem na muralha de Vermelhão uma semana antes,
estariam correndo para construí-la.
Avistamos a torre antes de ver qualquer sinal da Rainha Vermelha ou de
suas forças. Digo que vimos a torre, mas na verdade era apenas o re exo relu‐
zente do céu, e ao nos aproximarmos nossos próprios re exos se deformaram,
junto com as ruínas ao redor, na superfície de uma parede de espelho. Os ho‐
mens me disseram que a torre era como qualquer outra, alta, feita de pedra,
com um círculo de janelas estreitas debaixo de um telhado cônico. Quando os
primeiros soldados chegaram lá, a parede espelhada brotou e cou desde en‐
tão, imune a ataques, re etindo de volta toda a violência.
Os soldados que ocupavam as ruínas, sujos de cinza e lama, alguns com fe‐
rimentos, olharam com dureza para nós. Eles deviam me conhecer como o ma‐
rechal que deixou Vermelhão queimar. Alguns zeram um aceno sério quando
passamos. Talvez soubessem como a Rainha Vermelha lidaria com esse fracas‐
so e sentissem pena de mim.
Eles nos levaram até o pavilhão real, um edifício escarlate muito maior
que as tendas dos generais e dos pavilhões dos lordes atrás delas. Sir Robero,
um dos soldados experientes de vovó que participou dos con itos de Scorron,
levou os nórdicos sob sua custódia enquanto uma dupla de guardas reais me
conduziu. Entreguei minha espada e adaga na entrada.
O pavilhão de vovó era melhor do que minha tenda: uma camada externa
de seda, esticada sobre o feltro encerado mais resistente, parecia espantar o pi‐
or do outono sloviano, embora eu tenha cado satisfeito em ver uma tigela em
um canto coletando o pinga-pinga de uma emenda lá no alto.
Guardas e o ciais se afastaram, abrindo caminho até o trono de madeira.
O lugar cheirava a corpos molhados e suor velho. Uma dúzia de lampiões não
conseguia conter a escuridão e os tapetes grossos debaixo de meus pés estavam
cheios de faixas enlameadas. Vovó estava sentada ereta, mas envelhecida, como
se dez anos tivessem se passado desde a última vez que nos vimos, com os gri‐
salhos entremeando o vermelho escuro de seus cabelos.
“Conte-me sobre minha cidade.”
Quanto será que ela já sabia? Não consegui ver a Irmã Silenciosa no meio
das pessoas. Eu me endireitei perante a Rainha Vermelha, agora encurvada em
sua cadeira, e ali, à meia-luz, contei a história de Vermelhão. E, no meio de to‐
da aquela conversa sobre queimar metade da cidade para salvar o que estava
dentro da muralha, sobre a traição de seu lho, e sobre a morte de meus ir‐
mãos… acabei me esquecendo de mentir.
“E agora estamos indo para Osheim com a chave de Loki, por instrução do
comissário.” Um silêncio seguiu minhas últimas palavras. Esperei o julgamen‐
to.
“É a vida.” Vovó soou cansada. Eu nunca a tinha visto cansada antes.
“Ofereço-lhe a chave, alteza.” Fiquei sobre um joelho e levantei a chave
com as duas mãos. O velho desejo de car com ela havia passado, já que se tor‐
nou aparente que a chave era minha passagem direta para Osheim. “Tenho
certeza de que ela lhe abriria a torre da Dama Azul.”
“Quando eu mais queria isto… você a entregou a outra pessoa.” Ela se in‐
clinou para frente, estendendo a mão enrugada. “Você parecia ter opiniões
fortes acerca do direito de meu irmão de determinar o destino desta chave.”
Fiquei de boca fechada, sabendo que ela só me cavaria um buraco mais
fundo. A chave parecia gelada em minhas mãos, como se pudesse escorregar a
qualquer momento.
Os dedos da rainha se esticaram para o presente de Loki, escuro como a
mentira e reluzente. “Não.” A mão se fechou. “Garyus merece nossa con an‐
ça… minha fé. Você a levará a Osheim e desfará a loucura dos Construtores.”
Um suspiro me escapou e, olhando para cima, fechei a mão em volta da
chave. “Envie alguém mais adequado à tarefa?”
Vovó me deu um raro sorriso, apesar de severo. “Foi você que me lembrou
do valor de meu irmão, Jalan. Eu não apoiaria o plano dele para depois me
opor à escolha de seu herói.”
“Herói?” Arregalei os olhos ao ouvir aquilo, sem conseguir esconder total‐
mente o surto de orgulho bobo que começou a passar por mim.
“Além do mais,” disse ela. “Você está com o nórdico. Ele parece capaz.”
•••
Implorei por uma escolta até o norte, claro, mas vovó insistiu que os soldados
de Marcha Vermelha atrairiam mais problemas do que afastariam, enquanto
viajássemos pelos fragmentos do império. Contra-argumentei que poderiam
viajar sem uniformes ou símbolos que os marcassem, mas ela repetiu a boba‐
gem de Garyus sobre grupos pequenos passarem despercebidos, ao passo que
grupos maiores chamariam atenção. A surpresa maior foi quando ela recusou
minha oferta de desbloquear a torre da Dama Azul.
A Rainha Vermelha me conduziu à saída da tenda. “A parede de Mora Shi‐
val não irá resistir à minha irmã por muito mais tempo.”
Demorei um pouco para ligar a Dama Azul ao seu nome — eu preferia
pensar nela como um título. Um nome a tornava humana demais. Ela já havia
sido jovem, como eu, como Kara. Pensar nela dessa maneira me deixou des‐
confortável. O rio do tempo nos levaria adiante, girando com cada redemoi‐
nho da correnteza… e o que poderíamos nos tornar?
“Mas… é só girar a chave e…” Fiz o gesto da abertura dos portões.
Ficamos sozinhos, com o vento chuvoso puxando nossas capas, um grupo
de guardas dez metros atrás, e à nossa frente o dedo espelhado da torre da Da‐
ma Azul, apontado para o céu.
“Dizem que nenhum mago do mal jamais deixou a Roda.” A Rainha Ver‐
melha manteve os olhos na parede de vidro, como se procurasse algum sentido
na distorção ali. “Estão incorretos. Dois deixaram. Mora Shival foi uma das
duas pessoas que escaparam. Ela tem um portão dentro de sua torre. Uma
combinação de suas artes com a ciência dos Construtores. Um vidro fractal. A
maioria de suas portas de espelho está quebrada agora, e as que sobrevivem se
quebrarão quando esta parede for quebrada. O vidro fractal, no entanto, irá
sobreviver, e ele leva a…”
“Osheim.”
Vovó inclinou a cabeça.
“Espere. Se ela pode correr para Osheim, por que ela não vai para lá agora?
Você mesma disse que os exércitos não servem de nada lá. A Roda é uma defe‐
sa melhor do que essa parede dela.”
“O coração da Roda é difícil de aguentar, até mesmo para um mago do
mal. A dama está enfraquecida ultimamente. Perdeu re exos demais para es‐
perar em Osheim sem grandes riscos. Ela só correria para lá se nenhuma outra
alternativa se apresentasse — ou no m das coisas, quando restar pouco tem‐
po no mundo.”
“Enquanto batemos na parede dela, sua atenção se mantém aqui, sua força
é empregada para manter suas defesas. Você terá de encontrar e destruir a saí‐
da dela em Osheim. Este será o momento de romper as barreiras dela, quando
não tiver mais para onde fugir. Nenhum buraco para se esconder. É aí que ire‐
mos pegá-la.” A mandíbula da Rainha Vermelha se apertou como se imaginas‐
se aquele momento. “Quando você zer isso, minha irmã saberá, e iremos
agir.”
“Você não viu Osheim. É enorme. Como posso esperar encontrar um es‐
pelho?” Como se desligar as engrenagens da Roda não fosse impossível o su ‐
ciente, agora eu tinha uma agulha para encontrar em um palheiro de oito qui‐
lômetros de largura.
“Ele estará no coração de tudo. Você o encontrará.”
Após fracassar em entregar a chave a vovó, fracassar em fazê-la mandar ou‐
tra pessoa, e fracassar em fazê-la enviar um exército para me proteger, só me
restava um lugar para correr. “E se ela estiver certa?” perguntei, invocando os
argumentos de Kara. “Se estamos todos perdidos, de um jeito ou de outro,
que diferença faz se o mundo queimar hoje ou amanhã? Por que os mais fortes
e os mais espertos não devem se salvar, já que não podem salvar mais nin‐
guém? Já cogitou se unir a ela?” Eu deixei a parte ‘e me salvar’ sem dizer.
O tapa não foi uma grande surpresa. Nem mesmo a força dele, que me le‐
vou ao chão segurando o rosto.
“Somos Kendeth, Jalan!” Ela se aproximou de mim. “Nós lutamos. Luta‐
mos quando as esperanças já se foram. Lutamos enquanto ainda restar sangue
em nós.” Ela me pôs de pé como se eu fosse uma criança, em vez de um ho‐
mem de mais de um metro e oitenta. “Nós lutamos.” Os olhos dela se xaram
aos meus, duros como pedra. “Aquela mulher matou meu avô. Derramou o
sangue dele na minha casa. Tentou me matar e, ao me defender, meus irmãos
foram transformados… e viraram o que são hoje.” Ela baixou a voz, com a rai‐
va diminuindo mas ainda me segurando rme. “Aquela mulher já viveu tempo
demais, e irá sacri car os amanhãs de um milhão para poder viver mais vidas.
Sim, eu quero salvar minha cidade, meu país, meu povo, e sim, isso vale a mi‐
nha vida e a sua, para dar a eles outro ano, mês ou dia. Mas de verdade? No
fundo do meu coração, Jalan? O que me impulsiona é que eu não vou deixar
aquela vaca ganhar. Ela levantou a mão para mim e para os meus. Ela morrerá
pelas minhas próprias mãos. Não vai haver vida eterna para aquela lá. Nem
mundo novo. Isso é uma guerra, rapaz. A minha guerra. Eu sou a Rainha Ver‐
melha, e eu não perco.”
Ela me soltou e quei novamente de pé. Eu sabia o que ela iria dizer. E sa‐
bia que estava certa também. Ou pelo menos mais certa que a Dama Azul. É
difícil quebrar velhos hábitos, no entanto, e eu tinha que pelo menos tentar
cada rota de fuga.
“Se a vir em Osheim, a matarei com a espada que matou minha mãe.” Eu
tinha minha própria vingança para fazer, meu próprio fogo e minha própria
medida do sangue da Rainha Vermelha.
“Faça isso.” Um raro sorriso nos lábios de vovó.
Suspirei e apertei minha capa. “Que sorte que vou para Osheim com a cha‐
ve, então. Senão nada disso daria certo.”
Vovó virou a cabeça e olhou além de mim. Eu me virei também e acompa‐
nhei seu olhar. A Irmã Silenciosa estava parada atrás de mim, desconfortavel‐
mente perto. Ela me olhou daquele jeito estranho, um olho cego branco e
cheio de mistérios, o outro tão escuro quanto qualquer buraco. “Sorte? Vamos
deixar a sorte para o m do jogo,” disse a Rainha Vermelha. “Você precisar de
muita para a Roda. Ninguém prevê esse futuro, nem uma olhadela.”
“Então… acho que vou indo.” Por pior que Osheim parecesse, eu realmen‐
te não queria car ali entre aquelas duas velhas assustadoras nem um momen‐
to a mais. “E se… se tudo der certo? E aí?”
Vovó deu mais um de seus raros sorrisos, tão sombrio quanto o primeiro.
“O mundo continuará girando. Este m terá sido evitado, ou mais provavel‐
mente atrasado. A Guarda Gilden chegará em um mês para me levar ao Con‐
gresso e a Centena repetirá os mesmos argumentos que são ditos desde os tem‐
pos de meu avô. Talvez dessa vez nós realmente elejamos um novo imperador e
consertemos este nosso império destruído.”
Levei um tempo para perceber que o chiado seco ao meu lado era a risada
da Irmã Silenciosa. Supus que era minha deixa para ir embora.
•••
Snorri e Kara estavam me esperando com os cavalos perto do maior depósito
de suprimentos, entre vários. O garoto não estava em nenhum lugar visível.
Invejei sua liberdade de sair vagando.
“Vamos partir?” Snorri elevou a voz por cima do barulho à nossa volta. Os
soldados de Marcha Vermelha trabalhavam como formigas sob a direção dos
gritos dos mestres dos depósitos para dividir e distribuir as pilhas de comida e
equipamento.
Fiz que sim. “Encontrem-me na estrada principal, perto da igreja grande.
Só preciso de um instante.”
“Quê?” Snorri enconchou a mão à orelha, mas Kara já estava empurrando-
o para longe, com a mão no peito dele.
Ela olhou para mim por cima do ombro. “Não vai fugir, hein?”
Não respondi, mas quei pensando, e não foi a primeira vez, se ela conse‐
guia ler minha mente.
Vaguei pelas ruínas sem direção, mas ainda dentro do perímetro de defesa.
Não tinha a menor vontade de me explicar para um bando de slovianos vinga‐
tivos. Vovó tinha uma posição forte com um grande número de tropas experi‐
entes, mas, para defender este terreno até eu chegar à Roda de Osheim e blo‐
quear a última saída da Dama Azul, seria preciso uma tática genial, para não
dizer todo tipo de sorte. Sua única esperança real era que Rei Lujan confun‐
disse o objetivo dela e mantivesse suas forças em Julana, achando que ela esta‐
va preparando um ataque à sua capital.
Entrei no esqueleto de uma construção sem teto para sair da chuva na
que soprava no vento frio de outono, daquele jeito que encharca o rosto e en‐
che os olhos. Parado debaixo do arco da entrada, ponderei minhas opções e
percebi que eram limitadas. De alguma maneira eu estava rumando ao norte
outra vez, ainda preso ao viking, e por correntes que compreendia tão mal
quanto da primeira vez. Eu havia sido praticamente arrastado ao Inferno pela
força singular da boa opinião que Snorri tinha de mim, embora a força de seu
braço tenha sido necessária para me levar lá, no m das contas. Agora, de al‐
gum jeito, as boas opiniões de muita gente — desde a rainha de Marcha Ver‐
melha até aquela criança pagã — estavam me levando a um inferno na Terra.
Como tanta gente havia enterrado suas garras em minha armadura, eu não sa‐
bia. Só sabia que não gostava disso nem um pouco. O Jalan que pulou da va‐
randa de Lisa DeVeer teria saído correndo e continuado a correr. Será que um
único ano havia acarretado tantas mudanças em mim?
Alguma coisa chamou minha atenção para o interior coberto de fuligem
da casa. Ela tinha sido grandiosa no passado. Comecei a identi car os objetos
escurecidos em meio à confusão. O busto estilhaçado de algum santo ou ante‐
passado da família, os cacos irregulares de vasos quebrados. Observei mais de
perto — uma espada partida em pedaços, como se também fosse de cerâmica.
Mexi os fragmentos com a bota, percebendo as bordas brilhantes. Ao me
aproximar e me abaixar para ver melhor, vi que até os pedaços de madeira que
restavam, tábuas caídas do telhado, enegrecidas pelas chamas e acres pela chu‐
va, tinham pontas irregulares como se também tivessem se estilhaçado, as ra‐
chaduras ignorando os veios. Eu me levantei, virando lentamente. Tudo à mi‐
nha volta estava em pedaços de pontas a adas por baixo da camada preta, co‐
mo se todo o ambiente tivesse se estilhaçado como vidro em uma única explo‐
são.
Um quadro emoldurado estava apoiado à parede da porta arqueada por
onde entrei. A única coisa inteira do lugar. Fui até ele, estendendo o dedo para
limpar um trecho. A fuligem caiu no instante em que a ponta do meu dedo
fez contato. Não só onde eu encostei, mas inteira, caindo como um pedaço de
seda preta deslizando sobre uma mesa polida. E embaixo dela… o rosto de um
homem, mas não era um retrato, era eu, olhando de volta para mim com sur‐
presa na superfície lisa e limpa de um grande espelho.
“Olá, Jalan,” disse eu. Vi meus lábios se mexerem com as palavras. Mas não
era minha voz.
“Fique longe de mim!” Essas eram minhas palavras, mas a boca de meu re‐
exo continuou fechada. Ele me olhou com olhos que não eram meus. Tentei
me virar, mas aquele olhar me prendeu.
“Não sou sua inimiga Jalan. Você quer escapar. Eu quero ajudá-lo a esca‐
par. Você é uma peça no tabuleiro da Rainha Vermelha e ela ca botando você
em perigo, não importa o que faça. Posso ajudá-lo a jogar seu próprio jogo.”
“Você é minha inimiga,” falei, embora ela estivesse certa sobre a parte de
escapar. “Suas mãos estão vermelhas com o sangue de minha família e meus
amigos. Sangue demais para ser perdoada.”
Ela sorriu, com a boca mais dela do que minha agora, curvando-se como
eu lembrava da juventude de vovó. “Mostramos mais nossas fraquezas quando
olhamos para nós mesmos, Jalan. Eu já vi você se olhando. Ouvi os segredos
que contou ao seu re exo, as dúvidas, as verdades, cada con ssão. Todos nós
sabíamos que você seria especial. Você ou sua irmã. E nós o observamos, mas
enquanto a Irmã Silenciosa estudou os caminhos que podem levar vocês a to‐
dos os seus amanhãs, eu z um estudo do homem, analisei-o. Um covarde po‐
de se perdoar de qualquer coisa se tiver a desculpa certa, Jalan. Acredite em
mim quando digo que a dor de qualquer traição, seja aos vivos ou aos seus
mortos, durará apenas um momento, comparada às alegrias que esperam por
você. A liberdade de fazer o que você quiser, sem se restringir por moralidades
problemáticas, livre daquela voz chata da consciência que os outros impuse‐
ram a você, com a qual infectaram você.”
“Mentira,” disse.
“A Roda está girando, Jalan. Ela não pode ser detida. A mudança não pode
ser detida. Tudo que conhecemos irá terminar. A decisão não é como comba‐
tê-la, mas sim como sobreviver a ela. Eu observei você, e você, Jalan Kendeth,
é, acima de tudo, um sobrevivente.”
“Mentira,” repeti, mas o pior de tudo não era que ela estava provavelmen‐
te certa sobre a Roda ser imparável. O pior é que estava certa sobre mim. Eu
podia ir embora. Podia trair qualquer con ança para salvar minha própria pe‐
le. Claro que isso magoaria, e sim, eu iria me xingar e car triste… mas depois?
Eu achava que aquilo não iria acabar comigo — não da maneira que acabaria
com Snorri, se ele fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Eu não tinha tanta
força assim. Eu não era igual a ele. Snorri era a verdade. Não desistia nunca.
In exível. Ou tudo ou nada, nada no meio. Já eu? Príncipe Jalan era uma
mentira que contava a mim mesmo, mutável, adaptável, duradouro… um so‐
brevivente. “Como é que alguém pode sobreviver ao m de tudo?”
E lá estava. Praticamente uma traição. Eu havia pedido à Dama Azul para
plantar uma semente de esperança em mim. Meu re exo agora se parecia com
nós dois — uma mistura — a idade dela nos meus ossos, as palavras dela nos
meus lábios.
“Há maneiras que os que têm poder conhecem. O verdadeiro poder que
existe na mente, em vez de títulos, terras ou o comando de grandes exércitos.
Levarei aqueles que me servem através da conjunção das esferas, até um novo
mundo. Mas eles precisam estar próximos no momento nal. Próximos o bas‐
tante para tocar.”
“Tudo que eu preciso fazer é atravessar sua parede e me juntar a você na‐
quela torre, não é?” Era no máximo uma pequena esperança, mas eu não espe‐
rava que azedasse tão rápido.
“Existe outra maneira. Para um homem com a chave de Loki.”
“Estou ouvindo.” Minha mão encontrou a chave.
“O coração da Roda é o centro da tempestade. Quando os mundos se esti‐
lhaçarem como espelhos e todos os pedaços desabarem, quem estiver no cora‐
ção da Roda passará ileso.” Meu re exo tinha pouco de mim agora, apenas
meus olhos no rosto de uma velha.
“Me disseram que não é um lugar onde ninguém escolheria car esperan‐
do.”
“As engrenagens da Roda continuam mudando o mundo. A Roda conti‐
nua girando, mas essa nunca foi a intenção dos Construtores. As engrenagens
foram feitas para girar até certo ponto, não mais, e mantê-la naquele ponto,
para dar um pouco de magia a cada Construtor e mudar o mundo deles de
uma coisa estabelecida para outra. O fato de a Roda ter continuado a girar,
sempre lentamente, foi um erro, um imprevisto. Somos nós que giramos a Ro‐
da ao usarmos o poder que ela nos dá, e as engrenagens de Osheim nos ajudam
a girá-la consideravelmente mais rápido do que conseguiríamos sozinhos.”
“A guerra deles acabou com o interesse no assunto, e mil anos transforma‐
ram um pequeno erro que poderia ter sido corrigido em um grande que não
pode.” A Dama Azul me olhou do espelho, sem o menor vestígio do meu ros‐
to agora. Ela parecia velha, mas não tanto quanto minha avó e a irmã dela. Seu
rosto, no entanto, tinha muito menos vitalidade — a pele bem repuxada sobre
os ossos, níssima, os olhos nebulosos. “Algumas pessoas pensam que a chave
pode ser usada para desativar as engrenagens da Roda e que fazer isso pode re‐
tardar a conjunção inevitável. É possível, embora improvável, e um desperdí‐
cio tão grande… a chave destruída para ganhar um punhado de meses, alguns
anos no máximo. Muito melhor girá-la para o outro lado — colocar aquelas
engrenagens no máximo, girar a Roda como os Construtores zeram e provo‐
car o m em instantes. O homem que zesse isso garantiria uma vaga na nova
ordem das coisas, e uma transição limpa e brusca facilitaria as coisas para aque‐
les de nós habilitados a sobreviver à mudança, trazendo não só alguns poucos
seguidores, mas dezenas, talvez centenas.”
“Você mandou Edris Dean matar minha mãe.” Eu me ative à raiva, pelo
menos isso parecia honesto e descomplicado.
“Não foi um ato de malícia, Jalan. Foi de sobrevivência. Você sabe, lá no
fundo, que quando se trata de se queimar no fogo ou não, você escolheria sal‐
var a si mesmo antes dos outros. Isso é honestidade. Essa é a verdade, no fun‐
do, do que nós somos. Você precisa…”
Alguma coisa passou chiando pelo meu ouvido e o mundo explodiu.
Abri os olhos depois de uma quantidade de tempo indeterminada e desco‐
bri que o mundo explodiu menos do que imaginei, embora estivesse com uma
aparência estranha, como se a casa inteira tivesse caído para o lado. Levei um
tempo para entender que eu é que tinha tombado.
Alguma coisa me puxando e grunhindo indicou que alguém estava tentan‐
do me colocar de volta em posição de sentado, apesar de estarem fazendo um
péssimo trabalho.
“Estou bem.”
Eu me sentei, passei a mão sobre o rosto, e encontrei Hennan franzindo a
testa para mim. Ao olhar para a palma da minha mão, vi que estava vermelha.
“Merda! Não estou bem! Estou sangrando até a morte!” Consegui car de pé.
Cacos cintilantes de espelho estavam por toda a parte, triturando-se sob mi‐
nhas botas.
“Está com um corte abaixo do olho,” disse Hennan. “Um pedaço deve ter
pegado em você quando atirei a pedra.”
“Atirou?”
“O espelho estava fazendo alguma coisa com você. Estava todo azul — co‐
mo um céu errado. Atirei uma pedra nele.”
“Ah,” falei. “Bem.” Olhei em volta. Só eu e Hennan na estrutura emprete‐
cida da casa de um comerciante. “Bom. Vamos embora.”
26
Deixei Snorri e Kara nos guiar pela saída dos jardins de Blujen e seguindo para
o norte da Slóvia. O instinto de Snorri ao ar livre parecia tão aguçado entre os
bosques e campos dos reinos centrais quanto era nas pedras e no gelo de Nor‐
seheim. Kara também mostrou seu valor, jogando as runas toda vez que a es‐
trada nos oferecia escolhas e selecionando o caminho de menor resistência.
A Slóvia, é claro, estava em um estado de alta ansiedade, com boatos cor‐
rendo soltos pelo interior, e qualquer cidade que tivesse muralha estava prepa‐
rando os nervos para a guerra. Havia fortes suspeitas de que qualquer estra‐
nho pudesse ser um espião de Marcha Vermelha, mas até a imaginação fértil
dos slovianos teria di culdade de conceber a Rainha Vermelha recrutando
vikings gigantes, völvas loiras ou garotos ruivos do norte como agentes secre‐
tos. Fiz o que pude para me esconder atrás de Snorri e dizer o mínimo possível
durante os encontros. A tática deu certo, tornando-se mais fácil a cada quilô‐
metro que deixávamos a zona de guerra para trás, e dentro de poucos dias re‐
tornamos ao progresso constante e às noites confortáveis das tabernas que
aproveitávamos pelo caminho.
Após consultar os mapas no quartel general de vovó e discutir o assunto
com um homem de aparência perigosa, que descrevia sua ocupação apenas co‐
mo ‘viajando a serviço do estado’, pretendíamos deixar a Slóvia pela fronteira
de Attar-Zagre e passar rapidamente para Charlândia, cruzando o espaço da‐
quela nação desfavorecida antes de viajar por Osheim até a Roda.
•••
Não sou um homem que gosta de viajar. Gosto de cavalgar, é verdade, mas de
maneira geral pre ro terminar o dia onde comecei, isto é, em casa no palácio
de Vermelhão. Não aprovo lugares estrangeiros. Países vizinhos são no máxi‐
mo um mal necessário para reduzir a quantidade de litoral, já que a única coisa
pior que uma longa jornada por terra é uma viagem de qualquer distância pela
água. Em suma, mesmo com estradas decentes, estalagens quentes e comida ra‐
zoável, esse negócio de ir de A até B é superestimado.
Eu poderia dar uma lista praticamente interminável de pequenas cidades
percorridas, camponeses preguiçosos encontrados, mantimentos comprados,
ferraduras colocadas, cerveja bebida, geadas matinais, as cores fogosas do outo‐
no, pores do sol vagarosos no oeste… mas a verdade é que, quando nos depara‐
mos com o desastre, uns cento e cinquenta quilômetros haviam passado debai‐
xo de nossos cascos sem acontecer absolutamente nada.
Para um mundo supostamente no m, as coisas pareciam em grande parte
tranquilas, pelo menos a julgar pelo que podia ser visto do lombo de um cava‐
lo no meio do Império Destruído. O céu continuou variando entre azul ou
cinza, sem demonstrar tendência a rachar ou arder. A terra tinha os tons outo‐
nais de ocre molhado, sem ravinas sulfurosas se abrindo no meio dos campos
baixos nem labaredas saindo de ssuras recém-formadas. Até o incêndio que
lambeu as muralhas de Vermelhão parecia um sonho distante agora.
Tentei em algumas ocasiões abordar o assunto da viagem de Snorri a Hel.
Eu teria chegado lá no meu próprio tempo, sem Kara me lançando olhares.
Meu próprio tempo, contudo, seria quando fôssemos velhinhos. Felizmente,
ele apenas balançou a cabeça e pegou sua cerveja. “O que passou, passou, Jal.
As histórias se revelam na hora certa. E para algumas histórias a hora nunca é
certa.”
Durante a primeira semana de nossa viagem, cada espaço sombreado re‐
presentava uma ameaça. Eu sabia que Edris Dean estava em algum lugar após
fugir do cerco quando as coisas azedaram. Sabia que o Príncipe Desnascido es‐
tava percorrendo os reinos, fazendo os trabalhos do Rei Morto. E pior que
Dean, pior até que o Príncipe Desnascido, sabia que minha irmã estava à mi‐
nha procura. Kelem havia me dito que minha irmã precisava da minha morte
para se rmar neste mundo. Marco con rmou isso quando o encontramos
pregado à arvore nas terras secas. Minha irmã havia saído de seu longo exílio,
passando para o nosso mundo através da ferida deixada pela morte de um ir‐
mão. Desnascida do inferno e vinculada a um lichkin, ela agora buscaria a
morte de seu último irmão para ancorá-la aqui. Eu precisava de alguma coisa
mais sagrada que a cruz benzida por meu pai para separar minha irmã do li‐
chkin. Fiquei de olhos abertos enquanto viajamos, mas relíquias de igreja são
raras na maioria dos lugares, então mantive os olhos abertos principalmente
para horrores despelados nos arbustos tentando me atacar.
Tudo isso seria su ciente para deixar qualquer homem prisioneiro de seus
medos, considerando cada noite como um longo horror em que seus inimigos
poderiam aparecer sem avisar. Mas, de alguma maneira, após tantos dias se
passarem sem incidentes, a normalidade da estrada encolheu aqueles medos
que deveriam me deixar tremendo e de olhos arregalados a algo quase abstra‐
to. Viajando com Snorri de um lado, Kara do outro, o sol inesperado do outo‐
no nas costas, o garoto trotando na frente… não parecia possível que o mundo
tivesse pesadelos como aqueles.
“Acho que um pouco dos vikings está passando para mim.” Fiz como se es‐
tivesse limpando a manga da camisa, quando Snorri passou lentamente com
seu cavalo por Murder. O garanhão havia se acalmado um pouco na viagem e
permitia que os outros se revezassem na liderança, supostamente consideran‐
do-os como arautos que vão na frente do rei para anunciar sua chegada imi‐
nente. “Não estou achando essa viagem ao norte tão horrível quanto a últi‐
ma.”
“Esta é a magia dos ordes.” Snorri sorriu. “Eles te chamam de volta. Nin‐
guém viaja mais longe que os vikings, mas nós voltamos. O norte nos chama
para casa.”
“Bobagens sentimentais.” Kara nos alcançou, aproximando-se do meu la‐
do esquerdo. “Há mais vikings estabelecidos nas Ilhas Afogadas e ao sul de
Karlswater do que morando em todo o Norseheim.”
Senti mais uma daquelas discussões intermináveis deles chegando. Os dois
podiam debater a menor questão durante horas naquele bate-bola cantado
que os nórdicos tinham. Eles acabavam esmiuçando algum ponto absurda‐
mente maçante da história viking. De repente o mundo dependia de saber se
Olaaf Thorgulson, o quarto lho de Thorgul Olaafson, partiu de Haagenfast
no vigésimo oitavo ano dos Jarls de Ferro ou no vigésimo sétimo…
Olhei rapidamente em volta procurando alguma coisa para distrai-los an‐
tes que começassem.
“Puta que pariu! É a Papa,” falei, sem acreditar muito, pois encontrar sua
santidade em uma estradinha da fronteira de Zagre-Attar parecia uma possibi‐
lidade tão pouco real quanto um desnascido saindo dos arbustos.
“Isso parece improvável.” Snorri se levantou em seus estribos para ver me‐
lhor. À nossa frente, a estrada seguia reta dividindo a terra, subindo e descen‐
do com cada ondulação. Saindo do declive oculto do próximo vale, uma longa
caravana havia começado a despontar no alto da elevação seguinte. Até a um
quilômetro e meio de distância eu reconheci a bandeira papal sem di culdade,
uma cruz roxa se agitando horizontalmente na âmula branca. Uns doze ho‐
mens ou mais carregavam uma grande liteira, em cujo teto havia uma cruz
dourada que gritava ‘roubem-me’ à distância, e dois esquadrões de alabardei‐
ros, uns vinte na frente e atrás, protegiam a coisa, carregando pontas de aço
su cientes para fazer até o pior dos bandidos desistir.
“Bom, se não for a Papa é alguém importante para cacete.” Papai nunca te‐
ve uma escolta dessas, apesar de ser cardeal.
“Devemos car longe deles,” disse Snorri.
“Não se preocupe, a igreja deixou de queimar pagãos há anos.” Estendi a
mão para lhe dar um tapinha condescendente no ombro. “Você vai car bem.
Hoje em dia eles só perseguem bruxas… ah.” Olhei para Kara atrás. “Talvez se‐
ja melhor mesmo car longe deles. Uma caravana tão grande assim com certe‐
za vai ter pelo menos um inquisidor.”
É claro que, quando as pessoas que você quer evitar estão na sua frente, na
melhor estrada de uma região desconhecida, e indo na mesma direção que vo‐
cê, só que mais devagar… isso signi ca que precisa reduzir sua própria veloci‐
dade e segui-los.
Cavalgamos atrás em velocidade de caminhada, mantendo uns bons oito‐
centos metros entre nós. De vez em quando o comboio papal aparecia nova‐
mente, subindo um dos morros da paisagem ondulada. Começou a chover.
“Podíamos simplesmente ultrapassá-los,” disse Hennan.
“O menino tem razão,” disse Snorri. “A meio-galope levaríamos dez segun‐
dos da traseira até a dianteira.”
“Eles estão enchendo a estrada. Teriam de chegar para o lado para passar‐
mos,” falei. “Podem questionar nossas atividades e, se houver um inquisidor
com eles, logo descobririam.” Meus dedos encontraram o calombo que a chave
de Loki formava debaixo de meu casaco. Inquisidores tinham um faro para es‐
sas coisas, mas acusá-los de usar encantos seria o mesmo que se amarrar ao pos‐
te e pedir uma tocha. Explicar a chave a um agente da Inquisição de Roma não
era algo que eu queria ter de fazer. Pessoas tiveram as línguas arrancadas só
por mencionar os nomes de deuses falsos.
A chuva engrossou à medida que a luz diminuiu, e mesmo assim os cléri‐
gos e seus guardas não deram o menor sinal de que iriam sair da estrada e pro‐
curar abrigo durante a noite.
“Vamos acabar seguindo-os até Osheim,” disse, cuspindo a água da chuva.
A escuridão crescente dava uma sensação opressiva, com todas aquelas amea‐
ças que eu passara a esquecer com tanta habilidade ultimamente. Espontanea‐
mente, uma imagem de Darin me veio à mente, meu irmão caído morto ao la‐
do do Portão Appan… um instante depois, vi a mão de minha irmã desnascida
se mexer debaixo da pele dele, procurando uma saída. Dei paz a Darin com a
espada em meu quadril, mas minha irmã encontrou a passagem de que preci‐
sava horas depois, abrindo o caminho para este mundo através do corpo ainda
quente de Martus. Será que ela estava ali fora agora? Uma criatura do Inferno,
ainda fresca de seu nascimento falso e ávida pela minha vida?
“Jal?” Uma mão no meu ombro. A mão de Kara.
Levei um susto e quase dei um ataque. “Quê?” A palavra saiu meio ríspi‐
da.
“Alguém está vindo,” disse ela.
O barulhos dos cascos se aproximou e nos afastamos para a esquerda. Um
único cavalo, sendo cavalgado com força.
O homem saiu da escuridão e da chuva e já havia quase sumido de vista
novamente quando parou, com o cavalo empinando e relinchando uma recla‐
mação.
“A escolta do cardeal passou por vocês?” Ele tirou o capuz. Cabelos pretos
grudados na testa, o rosto para lá de magro, os dentes expostos por exaustão
ou por medo.
“Não,” disse. “Que cardeal? O que eles estão fazendo neste lugar?”
O homem me ignorou, colocando o capuz e botando o cavalo de volta na
estrada. Talvez o ‘neste lugar’ o tenha ofendido. Sempre me esqueço que as
pessoas que não são de Marcha Vermelha tendem a achar que seu país é o cen‐
tro do império.
“Que cardeal?” gritei.
“Hemmalung,” um grito sobre o ombro, quase perdido no meio da chuva
e das batidas dos cascos.
“Que diferença faz o nome dele?” perguntou Hennan.
“Dela,” falei. Uma ideia começou a se formar, uma ideia tão grande que só
uma ponta conseguiu penetrar meu crânio até o momento. “Hemmalung é a
segunda cidade da Charlândia.” A verdade é que eu não sabia o nome da pri‐
meira cidade nem de qualquer outra, ou nenhum fato sobre o reino — mas sa‐
bia que Hemmalung era uma cidade porque conhecia a cardeal de lá.
“E qual o nome dela?” Snorri inclinou-se para ouvir, passando a mão pelo
pequeno matagal preto de sua barba, como se quisesse espremer a chuva dela.
“Gertrude.” Eu me lembrei dela, uma mulher corpulenta, chegando aos
sessenta, lábios nos, olhos fundos, cachos grisalhos. Ela visitou papai no Sa‐
lão Roma em mais de uma ocasião. “Vou cavalgar na frente e me reapresentar
à boa cardeal.”
“Para quê?” Kara parecia tão ensopada e suja quanto seu cavalo, com a
chuva caindo do nariz dela e do dele. “Podemos procurar uma estalagem. Um
abrigo para a noite. É bem provável que eles já tenham saído do caminho
quando amanhecer.”
“Ela tem uma coisa que eu preciso. Snorri pode lhe dizer o que é.”
“Não posso, não,” disse ele.
“Nos contaram a respeito em Hel…” Empinei a cabeça com expectativa e,
ao ver que Snorri ainda estava com a expressão vazia e meu ouvido se enchen‐
do de água, agitei a mão. “Por uma alma sombria merecidamente pregada a
uma árvore bem grande…”
“Marco?” Snorri jogou as mãos para o alto exasperado. “Você não devia
acreditar em nada que ele disse!” Ele se virou para Kara. “Jal acha que o sinete
de um cardeal irá separar sua irmã do lichkin que a tirou de Hel.”
“E vai mesmo!” Eu tinha certeza disso. “Os mortos não mentem.” Depois
com menos certeza. “Mentem?”
“É besteira, de qualquer modo.” Snorri pôs seu cavalo em movimento com
um chute. “Se o sinete de um cardeal é tão sagrado, então como você espera se‐
parar cardeal Gertrude do dela?”
“Vou roubá-lo.” Olhei na direção de Hennan. “Sou tão temente a Deus
quanto qualquer príncipe, e escrupulosamente honesto, mas tempos de deses‐
pero…”
“Você roubou a chave de Loki de Kara,” disse o garoto.
“Ah, bem… ela era minha, para início de conversa. En m, pare de confun‐
dir a questão. Vou pegá-la.”
“Vai ‘pegá-la’?” Snorri ergueu a sobrancelha. Já passei horas tentando
aprender a manha de elevar uma única sobrancelha, mas não tenho esse talen‐
to. Provavelmente é alguma coisa inata dos nórdicos.
“Como?” perguntou Kara. “Não está fazendo o menor sentido.”
“Pós-coito.” Sentado em um cavalo molhado na chuva, aquilo não parecia
muito apetitoso. Lembrar da última vez também não abriu meu apetite.
“Você dormiu com uma cardeal?” Snorri se aproximou, com surpresa e de‐
leite lutando pelo controle de suas feições.
“Bem, tecnicamente ninguém dormiu.” Tentei encontrar o tom certo da
indiferença contida. Não sei se consegui. “Mas nos conhecemos no sentido bí‐
blico, sim.”
“Seus cardeais não são… gente velha?” perguntou Hennan.
“Quanto tempo faz isso?” indagou Kara.
Fiz Murder ir mais rápido, tentando me desvencilhar dos nórdicos curio‐
sos me pressionando por todos os lados. “Muito tempo atrás.”
“Quanto tempo?” alcançou Snorri. “Não faz muito tempo você tinha doze
anos. Você não tinha doze anos, tinha?”
“Claro que não. Bem mais velho que isso.”
“Ele está mentindo,” disse Kara, de volta à minha esquerda.
“Um pouco mais velho.” Dava para ouvir Snorri rindo baixo por cima da
chuva. “Se quiserem saber, Gertrude foi minha primeira. Ela foi muito delica‐
da…”
Risadas dos dois lados me interromperam.
“Danem-se vocês, pagãos!” Botei Murder a meio-galope. “Voltarei com o
sinete pela manhã. E se os guardas pegarem vocês por perto vou recomendar
que os queimem como bruxas.”
•••
Deixei Murder tomar a frente. A chuva e a escuridão mantinham a visibilida‐
de em trinta metros ou menos, mas nunca tinha visto uma estrada tão reta, e
com a superfície tão bem conservada, na maior parte de cascalho, mas em al‐
guns trechos de pedra ou até mesmo pavimentada. Existe alguma coisa em ga‐
lopar um cavalo que nunca vai me cansar. É uma espécie de união que põe vo‐
cê no controle de uma força muito maior que a sua… controle é uma palavra
forte demais, se fosse controle, boa parte da alegria se perderia. Você é um
guia, um condutor. Acho que é o mais próximo de compreender a bruxaria
que já cheguei.
Dez minutos depois, ensopado até os ossos, mas entusiasmado com o calor
da corrida, eu sabia que devia estar perto de alcançar a cardeal. Reduzi para
um trote, sem querer pegá-los de surpresa e me ver acidentalmente empalado
em uma alabarda antes de conseguir declarar minhas intenções… ou melhor,
declarar minhas mentiras, já que minhas verdadeiras intenções provavelmente
me fariam ser empalado de propósito.
Quase passei direto pelo cavalo, parado nas margens da estrada em meio à
chuva torrencial. Um único cavalo escuro, de cabeça baixa, de costas para as
margens de um pequeno bosque não muito longe da estrada. Sempre tive olho
bom para cavalos e aquele ali me pareceu familiar. Ao olhar em volta, vi uma
mancha no cascalho que parecia mais escura que o restante… talvez uma man‐
cha de sangue. Cavalguei até o cavalo. Ele saiu trotando, arisco, mas vi o su ci‐
ente para ter mais certeza de que era o bicho que o mensageiro que passou por
nós estava cavalgando.
“Um assassino?” falei as palavras em voz alta, embora não houvesse nin‐
guém para ouvir e a chuva as abafasse.
Virei Murder de volta para a estrada e continuei em ritmo mais lento, per‐
plexo.
Não demorou muito para chegar à retaguarda da coluna, sombreada na
chuva, com as alabardas sobre os ombros, balançando no ritmo da marcha.
“Viajante passando!” Achei melhor manter meu anonimato o máximo
possível. A princípio, nenhum deles deu o menor sinal de ter me ouvido. “Via‐
jante passando!” gritei novamente, e ao mesmo tempo todos eles pararam.
Sem nenhuma cabeça virada na minha direção, a retaguarda, umas duas dúzias
de homens no total, afastou-se para a lateral da estrada.
“Passando…” Passei a pé com Murder pelas leiras, oito las de três, ne‐
nhum deles me olhando, todos com aquelas expressões vazias que os soldados
do serviço doméstico muitas vezes usam para dar a ilusão de privacidade àque‐
les que protegem.
A liteira era larga, grande o bastante para levar seis pessoas apertadas lado
a lado. Lampiões pendiam de cada canto do teto retangular, mas nenhum esta‐
va aceso. Cardeal Gertrude estaria viajando com um secretário pessoal, um as‐
sistente e uns dois padres, no mínimo. Esperei que não tivesse sobrado ne‐
nhum espaço para a inquisição.
“Vou fazer um cumprimento à cardeal…” Falei alto o bastante para ser ou‐
vido por cima do barulho da chuva no teto preto alcatroado da liteira fechada.
Adequadamente, o capitão da guarda deveria ter se apresentado a essa altura e
exigido minhas credenciais. Em vez disso, a coluna inteira simplesmente cou
parada ali me ignorando. “Olhem aqui…” A ameaça sumiu de minha voz
quando nenhum rosto se virou para mim. A água gelada escorria pelas minhas
costas, junto com a certeza de que alguma coisa estava muito errada ali.
Fiz Murder dar meia-volta, um movimento elegante no qual o garanhão
havia sido bem treinado. Com as duas pernas apertadas às laterais dele, pude
sentir os movimentos nervosos de seus músculos — o cavalo estava assustado
e, considerando que recebeu o nome por sua reação normal a ameaças, aquilo
me deixou com medo também. Olhei para a porta preta e brilhante da liteira,
com a ordem papal blasonada ali, molhada, acima da coroa e foice de Hemma‐
lung. Os carregadores caram parados, de cabeça baixa, pingando, e de repen‐
te eu não queria nem um pouco que aquela porta se abrisse.
Enquanto olhava, parecia que a água escorrendo por baixo da porta estava
mais escura do que deveria estar, como se estivesse manchada.
“Eu… é… esqueci uma coisa.” Bati os calcanhares nas costelas de Murder.
“Desculpem, foi mal.”
A porta da liteira começou a se abrir, lentamente, como se o vento tivesse
entrado e começado a puxá-la. Uma mão fria e etérea afundou os dedos em
meu peito, entrelaçando-os entre os ossos de minhas costelas e apertando com
força.
Uma rajada soprou e escancarou a porta, batendo contra a parede da litei‐
ra. A luz que restava do dia se mostrou insu ciente para desa ar a escuridão lá
de dentro, revelando apenas uma coisa: uma máscara branca laqueada, do tipo
que um homem rico usaria para um baile de máscaras. Os olhos por trás da
fenda permaneciam invisíveis, mas eram cortantes como vidro quebrado mes‐
mo assim. A máscara da Ópera de Vermelhão!
Bati os dois calcanhares nas laterais de Murder e ele saiu como um dardo
atirado de uma balestra. O Príncipe Desnascido saiu da liteira da cardeal com
tanta violência que estilhaços dela passaram voando pela minha orelha quan‐
do me curvei para galopar. Ele veio atrás de nós com ímpeto, como se fosse um
vento forte atravessando uma oresta. Um som molhado nos perseguiu estra‐
da abaixo. Os alabardeiros se viraram quando passamos por eles, tentando bo‐
tar suas armas em ação, mas se mostraram lentos e estranhamente descoorde‐
nados, mesmo para guardas mais cerimoniosos. Tive que me abaixar para evi‐
tar as lâminas das duas últimas alabardas, e em seguida estávamos livres e de‐
simpedidos, Murder e eu, na escuridão e na chuva.
Olhar para trás raramente é aconselhável, especialmente ao fugir com tudo
do perigo. O que você vai fazer, correr mais rápido? Não deu muito certo para
a esposa de Ló e, apesar de ter aprendido poucas lições da bíblia, eu devia ter
aprendido essa. Pelo menos me mantive em cima do cavalo, por um triz. Tal‐
vez a escuridão tenha me salvado, ocultando detalhes su cientes para preser‐
var minha sanidade. Quando o Príncipe Desnascido voou pelos guardas, agi‐
tando sua túnica de cardeal, cada homem se abriu em uma carni cina verme‐
lha de carne dilacerada e ossos brancos. O conteúdo de seus corpos foi vomita‐
do na direção do príncipe, grudando onde encostava, uindo, reorganizando-
se, de maneira que a cada passo ele crescia e mudava.
“Meu Deus!” Chutei Murder para se esforçar mais, mas ele já estava dando
tudo de si. Ele podia ser o garanhão mais feroz que já havia percorrido os cam‐
pos do império, mas neste instante o mesmo pavor irracional transformou nós
dois em covardes.
Seja lá o que o Príncipe Desnascido estava se tornando, uma coisa era cer‐
ta: não era lento. O barulho furioso, molhado e esmagador da fera não parecia
estar diminuindo com a distância, conforme Murder esticava as pernas. Na
verdade, estava cando mais alto, mais perto e mais furioso.
O baque dos pés pesados começou a abafar o estrondo dos cascos de Mur‐
der. Sangue gelado espirrava nas minhas costas a cada urro do monstro. Em
instantes um movimento de suas mandíbulas me arrancaria da sela. Na estra‐
da à frente, vultos se formaram na escuridão, com meus olhos cheios de chuva
repelindo os detalhes.
“Salvem-me!” Um grito que esvaziou meus pulmões de cima a baixo.
Sem mais alternativas, virei para a direita, puxando as rédeas de Murder e
impulsionando-o em um enorme salto que nos levou por cima da vala e da cer‐
ca viva de um metro e oitenta atrás dela. No auge do salto, avistei meu perse‐
guidor começando a me ultrapassar, mas ainda na estrada, tentando acompa‐
nhar, pesado demais para corresponder à nossa curva. A coisa que o desnasci‐
do havia virado parecia um dragão de alguma lenda. Um dragão enorme, esfo‐
lado, em carne viva, cuja boca úmida e nervosa abrigava dentes que pareciam
costelas.
A última coisa que vi do desnascido, antes da cerca ocultá-lo, foi os pés
sangrentos com garras de fêmur tentando se agarrar à estrada de pedra en‐
quanto virava, começando a virar de banda para os três cavaleiros em seu ca‐
minho, que neste momento tentavam se jogar de suas montarias para se livrar
da colisão.
Aterrissamos com um choque e por pouco eu não bati meus dentes da
frente na nuca de Murder. O instinto me disse para continuar em frente, cru‐
zando o campo em linha reta. O bom-senso só conseguiu dar um pequeno gri‐
to lá no fundo de minha mente, para onde havia sido relegado, mas já que esse
grito dizia respeito à inevitabilidade de aleijar Murder, cruzando velozmente
um terreno irregular no escuro, e de eu acabar cando sozinho, esperando o
dragão-cadáver me achar… eu escutei. Puxei com força para a esquerda e o le‐
vei a uma parte mais baixa da cerca.
O monstro desnascido deve ter perdido o equilíbrio e batido de lado nos
cavalos. Dois estavam caídos de costas na beira da estrada, debatendo as per‐
nas. Os nórdicos pareciam ter se safado sem serem esmagados. Snorri estava se‐
gurando Hennan, tirando-o do alcance dos cascos enquanto a égua mais pró‐
xima tentava se endireitar.
O terceiro cavalo caiu junto com o dragão-cadáver e agora estava emara‐
nhado com ele, diminuído pela fera, gritando em um tom que teria esvaziado
minha bexiga, se eu já não tivesse passado desse ponto muitos metros atrás.
Quando o desnascido conseguiu car de pé, o animal, a égua castanha de Hen‐
nan, Escudeira, se ‘descascou’ e se tornou parte do monstro, com sua carne e
seus ossos sendo atraídos e redistribuídos sobre o corpo fabricado. O lampião
que um dos cavaleiros estava carregando estava caído em uma poça de chamas
dançantes, lançando um relevo medonho sobre o desnascido.
Snorri, deixando Hennan aos cuidados de Kara, voltou a pé para o meio
da estrada.
“Nadei no Rio das Espadas. A ei meu machado nos ossos dos jötnar nos
lugares frios do submundo. Sou Snorri ver Snagason e já destruí seu tipo an‐
tes.” Ele ergueu o machado e de alguma maneira o o re etiu o brilho da noi‐
te. “Esta noite você retorna a Hel.”
O dragão-cadáver se sacudiu e a carne dilacerada se balançou sobre o corpo
musculoso, apoiado em quatro patas grossas. A cabeça, cuja boca era grande o
bastante para engolir um homem, inclinou-se primeiro para um lado e depois
para o outro, com os ossos amontoados estalando por baixo da carne roubada
que se exionava. A máscara de porcelana agora estava enterrada na testa do
bicho, como uma única escama branca no meio de toda aquela carne exposta.
Dois buracos de olhos olharam para o viking. Os olhos que eu tinha visto mui‐
to tempo atrás na ópera de Vermelhão observavam daquelas órbitas — eu não
conseguia vê-los, mas senti o ódio deles.
“Você.” Primeiro foi o som do sangue gorgolejando na garganta mórbida,
depois de alguma maneira aquilo virou linguagem. “Você ousa se defender de
mim?”
“Defender?” Snorri parecia muito só ali no meio da estrada vazia, com a
chuva pingando de todas as partes de seu corpo. “Vikings não se defendem!”
Com o machado elevado acima do ombro, o pobre louco começou a atacar.
O desnascido parecia tão surpreso quanto eu e cou observando Snorri
percorrer a distância entre eles. Quanto mais perto ele chegava, mais o desnas‐
cido parecia enorme, e mais injusta a disputa.
Quando Snorri atravessava os últimos metros, urrando seu grito de guer‐
ra, o desnascido deu-lhe um golpe com a pata de carne viva e garras de osso,
cuja largura era a metade do tamanho de Snorri. O nórdico se atirou por baixo
do golpe, com os pés para frente, deslizando sobre as pedras molhadas e de al‐
guma maneira se levantando e abaixando Hel em um arco violento que termi‐
nou no centro da testa do desnascido, estraçalhando a máscara de porcelana e
enterrando a lâmina até o cabo.
O desnascido, vestido com seu corpo de muitos corpos, balançou a cabeça
dragônica, arrancando Hel das mãos de Snorri e pegando-o de lado, do qua‐
dril até a axila. O ângulo era errado para morder, mas a força do impacto le‐
vantou o nórdico do chão, atirando-o pelo ar e lançando-o em uma trajetória
que o tirou da estrada, passando por cima da cerca até o campo, onde ele caiu
na lama um metro à minha frente com um baque abafado.
Na minha experiência limitada, qualquer golpe que tire um homem do
chão tende a ser um golpe que o mata. Uma vez, vi um garanhão chutar um
dos rapazes do estábulo do palácio. Os pés dele saíram do chão e ele voou tal‐
vez um quinto da distância que Snorri percorreu. Não sei se ele estava morto
antes de aterrissar, mas se não estava não deve ter demorado muito. Eles o vi‐
raram e eu vi as fraturas pontudas de suas costelas, onde o casco o atingiu. O
restante dos ossos cou enterrado em seus pulmões.
Comparado ao desnascido, os perigos de galopar pelo campo no escuro
não eram nada. Eu deveria ter saído do alcance da visão e da audição antes de
Snorri atingir o chão, mas acabei me pegando ajoelhado na lama, virando-o
para cima. A lateral inteira dele estava suja de sangue.
“P-poderia… ter sido melhor.” Ele crocitou as palavras conforme o ar vol‐
tava aos seus pulmões.
“Você está… machucado.” Não consegui pensar em nada melhor para di‐
zer. Do outro lado da cerca, o desnascido rugia e se debatia. Ele não parecia es‐
tar se aproximando. Talvez estivesse devorando Kara. Eu já tinha imaginado
muitos ns tristes para mim, mas nenhum deles envolvia ser assassinado na la‐
ma por um monstro em um trecho solitário de estrada.
Snorri grunhiu e rolou para o lado ileso, segurando as costelas. Sua mão
saiu suja e meu estômago se revirou.
“Estou inteiro.” Ele conseguiu dar um sorriso com os dentes vermelhos e
eu percebi que o sangue havia saído do desnascido. “Sangue de Odin!” Snorri
cou sentado, curvado como um homem quebrado por dentro.
“Como é que sequer está vivo?” Eu me levantei, dando um passo para trás.
Parecia que a velocidade relativamente lenta e a grande área do impacto cons‐
piraram para lançar Snorri ao ar sem reduzir seu corpo a polpa.
Abaixei para ajudá-lo a se levantar, mas antes que ele pudesse car de pé a
cerca se escancarou, com o desnascido abrindo caminho à força.
“Merda!” Saquei minha espada: um palito de dentes teria a mesma utilida‐
de. “O que está fazendo?” Snorri ainda estava no chão, lutando com alguma
coisa brilhante no embrulho em seu quadril. “Guarde isso!” A luz só o ajuda‐
ria a nos encontrar mais rápido.
Tarde demais, a enorme cabeça daquele pesadelo se virou na nossa direção
e a maldade fria daqueles olhos ocultos me penetraram. Fiquei parado, parali‐
sado, a ponto de largar minha espada e sair correndo, abandonando toda a
honra pelo privilégio de morrer cinquenta metros depois. A coisa deu um sal‐
to para frente com um gorgolejo medonho, mas parecia não conseguir se sol‐
tar da cerca. Ganchos pretos parecidos com raízes se enrolaram nos pés dele.
“Kara!” A völva devia estar fazendo aquele feitiço do emaranhamento, que
teve um efeito tão maravilhoso contra os Vikings Vermelhos perto da Roda de
Osheim. A força voltou à minha mão e meus dedos se apertaram no cabo da
espada. Olhei para Snorri ali embaixo. “Que diabos?” Ele estava com a caixa de
fantasmas, brilhando e fazendo silhuetas escuras das mãos dele enquanto a
abria, virada para o rosto.
“Precisamos de Baraqel!” gritou ele para a boca da caixa, onde havia uma
mistura caótica e fervilhante de luz e escuridão.
Na cerca, o desnascido rugiu e se atirou para frente, e as raízes seculares
rangeram e racharam com o esforço. Várias se partiram com barulhos altos.
Em outros lugares, a carne morta se abriu para deixar as amarras escorregarem
e se reagrupou depois.
Snorri se ajoelhou. “A chave, Jal, é a maneira de libertá-lo. Ele mora aqui
dentro.”
“Não funciona assim, seu grande… viking idiota.” Mas, ao mesmo tempo
que disse isso, peguei a chave de Loki e apontei a lâmina trêmula na direção do
desnascido, que agora estava arrancando o último espinheiro que o ancorava.
“É assim, sim!” Snorri se levantou, com um braço segurando a lateral, e o
outro estendendo a caixa na minha direção. “É. Assim. Sim.” Ele me olhou
com tanta convicção que comecei a acreditar naquilo também.
As garras de ossos se enterraram na lama e o desnascido entrou em movi‐
mento. Larguei minha espada.
“Baraqel!” berrei, pegando a caixa de fantasmas e apontando a abertura
para o desnascido. En ei a chave na base da caixa e a girei.
A luz que saiu eu já tinha visto uma vez antes, embora daquela vez eu esti‐
vesse dentro de uma tenda que quase entrou em chamas. Agora, como da ou‐
tra vez, a luz do Sol dos Construtores transformou a escuridão na brancura
ofuscante das dunas debaixo do sol mais quente. O desnascido gritou, com a
carne borbulhando. No momento seguinte, a claridade impossível daquela
iluminação anormal parou e no lugar dela estava Baraqel, exatamente como o
vimos no passado, diante do portão dos magos do mal, um anjo brilhante com
uma espada forjada pelo sol, de quase três metros de comprimento e ardendo.
No instante que ele apareceu eu o reconheci. Ninguém mais conseguia fazer
aquela expressão de reprovação quando olhava para mim.
Um instante depois, o desnascido se chocou com Baraqel, cuja espada des‐
ceu sobre ele. Nem um anjo de três metros e meio conseguiu deter a criatura.
O corpo de dragão que ele usava tinha sido feito com cadáveres de cinquenta
pessoas ou mais, e Baraqel foi jogado para o lado. Mas asas de bronze e ouro se
abriram para absorver o impacto e sua espada brilhante arrancou a cabeça do
desnascido em um único golpe.
Sangue vermelho-escuro jorrou do pescoço do desnascido em uma torren‐
te grumosa, enquanto toda a extensão de seu corpo sinuoso teve convulsões,
agitando-se para frente e para trás. Um momento depois, ele se contorceu e se
partiu como uma massa, com cabeças de cadáveres e olhos desencarnados apa‐
recendo em suas costas, novos membros se formando, terminando em garras
de costelas ou meia-dúzia de espinhas dorsais se debatendo como tentáculos.
Mais uma convulsão e aquela massa mutante envolveu Baraqel em uma espi‐
ral, derrubando-o ao chão.
“Venha!” Snorri pegou minha espada e, mancando, correu para o comba‐
te.
“Venha? Você acabou de pegar minha espada, cacete. Eu vou usar o quê?
Palavrões?”
Saquei minha adaga e quei observando. A luta confundia minha vista: es‐
pirais rápidas e furiosas de carne morta, preta em contraste com os membros
brilhantes do anjo, asas claras batendo, garras pretas arranhando, e de vez em
quando um vislumbre daquela espada ardente lançando sombras ágeis pelo
campo. Avistei Snorri em alguns pontos, como um camundongo atacando
uma píton dos indus, com a espada de Edris Dean cortando a necromancia
que dava suporte ao desnascido, mas certamente com cortes pequenos demais
para fazer diferença.
Olhei para os dez centímetros de ferro em meu punho, depois para trás,
procurando por Murder, e vi que ele havia sumido. Até sua ferocidade virou
pavor com a visão e os sons de uma batalha daquelas. A fúria rubra quase es‐
perada do berserker não conseguiu brotar em mim, apenas uma amargura,
uma raiva pelo fato desta criatura feita com o pior ódio das pessoas, aquele
que se embrenha nas fendas mais profundas do Inferno, ter me assombrado
por tanto tempo. O desnascido foi o início de minha jornada, acabando com a
minha vida, e agora parecia que era o m mesmo. Segurei a adaga à minha
frente. Morrer lutando ao lado de Snorri na luz ou sozinho alguns minutos
depois no escuro? Às vezes a escolha do covarde se alinha à do herói.
Kara contou que eu estava gritando ‘Undoreth’ quando ataquei. Não te‐
nho nenhuma lembrança disso, mas tenho certeza de que seria ‘Marcha Ver‐
melha’.
27
“Vá embora, caramba, e diga a Ballessa que quero arenque para o café da ma‐
nhã.” Apertei bem os olhos contra a claridade do dia. “E feche essas malditas
cortinas!”
“Hora de levantar, majestade.” A empregada me soou sarcástica, em vez de
respeitosa.
Tentei me aconchegar debaixo das cobertas e vi que estavam molhadas e
frias. “Que diabos?” Abri os olhos, piscando com a luz forte perto do meu ros‐
to. Meu corpo inteiro doía. Pelo menos tinha parado de chover.
“Como está se sentindo?” disse Kara, agachada ao meu lado, com os cabe‐
los molhados e suja de lama. Ela estava segurando o oricalco entre nós.
“Estou morrendo.” Com uma mão eu mexi o queixo. “Acho que quebrei
tudo.”
“Ele está bem,” gritou ela sobre o ombro.
Snorri saiu da escuridão e ofereceu uma mão para me colocar de pé. Hen‐
nan apareceu do nada, mais lama do que garoto, e se en ou debaixo do meu
outro braço para me ajudar a levantar enquanto Snorri puxava.
Respirei fundo e me arrependi. “Parece um enterro em uma latrina.”
“Isso é apenas você.” Snorri botou o braço em volta dos meus ombros e me
guiou na direção das ruínas fétidas do desnascido. Penas longas enchiam o
chão esburacado, com a luz delas diminuindo.
“Baraqel?” perguntei.
Snorri balançou a cabeça. “Destruíram um ao outro.”
A caixa de fantasmas estava enterrada na lama ali perto, com o brilho me
chamando a atenção. Gesticulei para ela. “Pegue aquilo, Hennan.” Quando ele
saiu correndo, acrescentei: “Não deixe encostar na sua pele.”
Ele voltou, segurando-a cuidadosamente, com as mangas cobrindo as
mãos. Afastei o braço de Snorri e dei um passo à frente para pegar a caixa. An‐
tes que ela pudesse invocar algum parente antigo, gritei para dentro dela: “Ba‐
raqel!”
Imediatamente aquela mesma luz difusa se acendeu nas profundezas da
caixa e, quando a afastei de mim, o fantasma de um Construtor apareceu aci‐
ma da abertura. Dava para ver alguma coisa de Baraqel no homem à minha
frente, o mesmo nariz pontudo, os olhos um pouco rasos acima das maçãs do
rosto proeminentes, a testa larga, mas foi a maneira como aquele fantasma in‐
candescia, com luz muito mais forte que a de todos os vistos anteriormente,
que me convenceu de que aquele era Baraqel.
“Confusão detectada,” disse a voz da caixa. “Bareth Kell.”
O fantasma olhou nos meus olhos e disse com sua própria voz: “Pode me
chamar de Barry.”
“Eu…” Aqueles troços sempre me deixavam nervoso. “Você está morto?”
“Sou apenas um registro de biblioteca, Jalan. Bareth Kell morreu há mui‐
tos séculos, na terceira guerra.”
“Mas eu conheço você. Você é Baraqel.”
O fantasma brilhou ainda mais forte. Cobri os olhos. “Quando o mundo
ardeu, fui um dos poucos que puderam sair de seus corpos e se moldar ao u‐
xo de energia. Eu me tornei uma aparição, um espírito, se preferir. O Barry
que viveu no corpo onde minha mente nasceu… se queimou. Foi uma época
triste.”
“Baraqel? É você, não é?” Inclinei a caixa e o fantasma se inclinou junto.
Havia algo mais naquele fantasma do que um mero ‘registro de biblioteca’, ele
parecia vivo, cheio de energia e de personalidade. Vi quando ele se inclinou
com a caixa, aquela testa franzida meio rabugenta, uma espécie de julgamento
quando ele apertou os lábios. “É você, sim!”
Baraqel deu um aceno e um sorriso relutante. “Sou eu. Ou pelo menos um
eco meu ressoando neste dispositivo. Não vou durar muito tempo. Onde está
o pagão? Traga-o à frente.”
Snorri entrou na luz. “Baraqel. Você lutou bem.”
“Você nos salvou.” Franzi o rosto para o anjo, agora apenas o fantasma de
um homem que morreu um milênio atrás, um homem de seus cinquenta
anos, cando careca. Ele não chamaria atenção na rua, no entanto deixou sua
marca no universo por força de vontade, tão profunda que carregou seu espí‐
rito por todos esses anos desde que seu corpo virou cinzas. “Como… como foi
que passou disso…” inclinei-o de volta. Se pusesse uma túnica nele, poderia ser
criado do palácio. “Para aquilo?” Acenei na direção dos restos mortais do des‐
nascido e as grandes feridas fumegantes que a espada de Baraqel deixara em
seu corpo.
Baraqel sorriu, acenando com a mão na frente da cabeça, autodeprecian‐
do-se. “No começo, era como se nós fôssemos deuses, aqueles que escaparam
para… os elementos, vamos chamar assim… Tínhamos um alcance muito gran‐
de. O mundo é como uma folha, e nós tínhamos acesso à árvore. Os anos pas‐
saram despercebidos. Foi sutil no começo. As pessoas retornaram, apenas al‐
guns sobreviventes saindo dos bunkers após gerações, ou espalhando-se a par‐
tir das profundezas de lugares tão remotos que não sofreram nenhum dano
direto. Eles nos atraíram de volta. Achamos que a ideia era nossa — que havía‐
mos voltado para observar a humanidade ressurgir, para guiá-la. Mas a verda‐
de é foram as expectativas deles que nos atraíram, e em seguida as histórias de‐
les nos moldaram, pouco a pouco, tão lentamente que não percebemos nem
compreendemos o processo, e nos tornamos as histórias que eles contavam so‐
bre nós.”
Enquanto Baraqel falava, a luz de seu fantasma de dados diminuiu. “Vivi
tempo demais. Muitos anos, muitos arrependimentos.” Ele cou mais escuro.
“Eu adorava ver o sol nascer. Antes da mudança. Antes de o mundo parar de
ser tão simples. Costumava acordar só para vê-lo surgir sobre os Pireneus.” A
voz dele abaixou, enrolando-se nas palavras. “Eu não vi o sol nascer naquele
último dia. Eu queria… eu me arrependo disso. Talvez… mais do que do res‐
to.” Ele fez uma pausa, agora mais fraco do que os fantasmas que a caixa nor‐
malmente produzia. A caixa também escureceu com ele, e seu brilho diminuiu
debaixo de meus dedos. “Às vezes acho que, quando a bomba me pulverizou, o
verdadeiro Barry Kell morreu naquele dia, e tudo que sou é um eco, uma vari‐
ação na luz.” Ele me olhou, como uma aparição, as linhas fracas insinuando o
homem. “E o que… vocês estão vendo aqui é só um eco desse eco, fazendo ba‐
rulho em uma caixa de truques, o velho Baraqel… O anjo sobreposto a uma
simples IA para dizer suas últimas palavras.”
“Obrigado,” disse Snorri ao meu lado. “Foi uma honra lutar ao seu lado,
Baraqel, uma honra conter a noite.”
“Posso vê-lo.” As palavras tão fracas agora que poderiam ter sido imagina‐
das.
“O que você pode ver, Baraqel?” Eu zombava dele e o achava um pé no
meu saco real quando estávamos vinculados, mas agora minha garganta se fe‐
chou em volta das palavras e tive de cerrar os dentes para dizê-las sem falhar.
“O sol nascendo… não… não estão… vendo?”
“Eu estou vendo,” disse Snorri.
“É… lindo.”
“Sim.”
A caixa cou escura em minhas mãos. Em silêncio.
•••
É estranho ver a morte de um espírito com o qual compartilhou sua mente.
Nem Snorri nem eu falamos ao caminharmos de volta para a estrada.
Mais estranho ainda descobrir que no passado ele foi um homem, com so‐
nhos e esperanças como você, e todas as bobagens que os homens carregam
consigo. Pensei no que Baraqel disse naqueles minutos nais, sobre como ele
escapou do corpo e se sentiu como um deus, com potenciais ilimitados, apenas
para se ver atraído às histórias que as pessoas contavam sobre ele, restringido
pelas expectativas delas e por m moldado por aquelas histórias, transformado
em algo novo.
“Sinto pena dele,” disse, cruzando a vala, olhando para trás e vendo os ou‐
tros atravessarem aos chutes o que restara da cerca. “Nunca chegou a ser o ho‐
mem que queria… ou o espírito… ou seja lá o que for.”
Kara olhou para mim ao passar, com um leve sorriso nos lábios. “Você
acha que é tão diferente, príncipe Jalan?”
Franzi o rosto e estava prestes a contradizê-la, mas a bruxa estava certa. As
expectativas das pessoas me levaram ao norte, contra todos os instintos que
possuía, um vínculo tão forte quanto a magia da Irmã. A palavra ‘príncipe’, o
nome ‘Kendeth’, a história da Passagem Aral, tudo eram laços que me prendi‐
am. Certamente eu tentei usá-los, escapá-los, retorcê-los… mas ao me retorcer
eu me transformava em algo novo. Assim como Baraqel. E igualmente desavi‐
sado.
•••
Os cavalos sobreviventes foram fáceis de reunir. Talvez estivessem com tanto
medo de carem sozinhos ali no meio do mato quanto eu estava, mas todos os
três rondaram de volta à estrada pouco depois de nos reunirmos lá. Cavalga‐
mos pela estrada escura, apenas para nos afastar dos restos do desnascido. Nin‐
guém gostava da ideia de dormir com aquilo caído ali, mesmo que não fosse
visto, mas próximo.
“Venha.” Puxei Hennan para cima de Murder, atrás de mim, percebendo
o quanto o garoto estava mais pesado. Botei o garanhão para andar, afastando-
o da montaria de Kara. “Calminho. E nada de morder, senão vou mudar seu
nome para Desertor.”
Alguns minutos depois, chegamos à ruína da procissão do cardeal. A estra‐
da parecia o chão de um ossário, com pedaços espalhados de homens que o
desnascido não teve tempo de incorporar decorando um trecho de cem metros
da via. Snorri fechou o punho em volta do oricalco e ocultou de nós a pior
parte daquilo.
“Esperem.” Parei ao chegarmos aos restos estilhaçados da liteira da cardeal
Gertrude. “Preciso de um instante.” Desci da sela e lembrei que meu corpo in‐
teiro doía. Pisando cuidadosamente, cheguei aos destroços sem pisar em nada
que havia sido humano. Revirei vários pedaços maiores, pegando várias farpas
até encontrar o que estava procurando. Limpei o sangue dos cadáveres das mi‐
nhas mãos e passei a bagagem da cardeal para os outros.
“Ainda está esperando encontrar o sinete?” perguntou Kara.
“Era a isca. O príncipe teria cado com ele para usar novamente, se essa es‐
tratégia não tivesse dado certo. Mas não o guardaria consigo nem com ne‐
nhum de seus mortos.”
“Ele matou todos eles só para fazer uma armadilha para você?” perguntou
Hennan, que parecia esquisito montado nos ancos de Murder.
“Provavelmente gostou de fazer isso. E também foi um bom disfarce para
rumar ao norte, ressuscitar os mortos e caminhar pela estrada. Quem é que vai
parar um cardeal? E os desnascidos sabem que eu preciso de algo como… isto!”
Puxei o sinete de um saco bem embrulhado de vestimentas roxas. “Se quiser
sobreviver a um encontro com minha irmã.” Virei-o sobre a mão, uma polega‐
da cúbica de prata rebuscadamente decorada em quatro lados, formando um
anel no quinto e com um selo entalhado no sexto lado. Pressionado a uma go‐
ta de cera quente, um selo assim poderia autorizar a queima de um herege,
fundar um monastério ou recomendar um pecador para a santidade. Eu o ex‐
perimentei em cada dedo e consegui chegar até o m do dedo anelar da mão
esquerda. Felizmente a cardeal Gertrude era uma mulher de certa circunferên‐
cia e dedos roliços. “E é claro que a cereja do bolo deste pequeno plano era que
a ameaça de um Inquisidor Papal, com suas opiniões notoriamente negativas
de pagãos, provavelmente faria com que eu me apresentasse sozinho.”
Levantei e joguei o saco fora, sem encontrar nenhum outro símbolo do
ofício da cardeal. Eu poderia ter saqueado os cruci xos dourados se estivesse
sozinho, ou talvez até diante de uma plateia de descrentes, mas, seguindo para
Osheim, não parecia um bom momento para irritar o Altíssimo.
“Este belo companheiro me salvou,” bati no pescoço de Murder. “Bem, e
você também, Snorri, e Baraqel.”
Kara tossiu sobre a mão.
“E Kara. Hennan também, provavelmente. E os outros cavalos.” Olhei pa‐
ra ela para ver se estava satisfeita. “En m. Se Murder não fosse tão bom em fu‐
gir, o herói da Passagem Aral talvez tivesse encontrado um m pegajoso bem
aqui.”
28
Snorri sobe o des ladeiro, passando pelos restos dos demônios que seu primo‐
gênito matou em defesa de sua família.
Acima dele, o redemoinho no céu se aperta e se estreita. Logo, Snorri sabe,
ele estará embaixo de seu centro, no olho de um furacão invisível.
O des ladeiro se alarga em um vale, agora inclinado para baixo, saindo das
terras altas. Snorri segue mancando, com seus ferimentos se enrijecendo, a fe‐
rida em seu ombro ainda bombeando sangue e a dor atravessando seu corpo
inteiro.
À frente, o vale chega a uma garganta e depois cai tão vertiginosamente
que não se pode mais vê-lo. Atrás desse ponto estreito, abre-se uma vista que
Snorri jamais imaginou ver em Hel. Ele ca parado, com a visão preenchida
pelo orde de Uulisk, com sua bruma suave, suas encostas verdejantes na pri‐
mavera, cabras pretas e peludas pontuando o alto das colinas Ni r do outro
lado, onde o sol tinge a terra de dourado. Devia haver uma vila aqui, casas es‐
palhadas descendo até a beira da água, mas tudo que Snorri vê são os oito cais,
esticando os dedos nos pelo orde e, cem metros acima da encosta, uma úni‐
ca casa. Familiar mesmo àquela distância. Sua casa.
O gelo enche suas veias. O redemoinho no céu está centrado acima daque‐
la casa solitária. O grande turbilhão no céu, o labirinto de pedra abaixo dele,
tudo o trouxe até aqui, ao seu passado, seu presente, um lugar sem futuro.
Snorri endurece a mandíbula, segura o machado bem perto do peito e segue
andando, tão cheio de emoções partidas que parece um homem em chamas, e
no entanto a mão perto de seu coração está mais fria que nunca.
À medida que caminha, Snorri vê a chacina que aconteceu ali também, a
carni cina espalhada por toda a parte. Um braço aqui na sombra das pedras,
uma cabeça acolá, órgãos espalhados por uma ampla faixa de pedra. Não eram
demônios disformes, e sim homens, ou seres como eles, e não só homens, mu‐
lheres também, donzelas escudeiras com armaduras ao estilo do norte, portan‐
do machados, lanças e martelos. Cada uma daquelas pessoas, porém, seja alta
ou baixa, larga ou estreita, tem em comum uma característica que denuncia
sua origem. Cada pessoa caída ali tem a metade direita branca, e a esquerda
preta, e a mesma coisa com a armadura, cada machado ou espada feitos de me‐
tal branco como leite, e escudos tão pretos que podiam ser buracos abertos no
espaço.
“Servos da deusa.” Snorri se ajoelha, retraído, para analisar uma escudeira.
Um golpe de machado atravessou a lateral de seu capacete. Hel deve tê-la envi‐
ado com os outros para reaver as almas de Freja e das crianças. Quem matou
aqueles ali não foi gentil, mas aquilo não era obra da espada de Karl. Snorri
examina o olho branco da mulher, re etindo o redemoinho acima de seu om‐
bro, e o preto, como uma pedra preta polida. Seus lábios estão retraídos com o
rosnado que estava dando quando foi atingida, e os dentes atrás serrilhados
como uma serra. Não era humana, então.
Embora Hel não tenha sol, há um sol ali na memória do Uuliskind, e ele
está se pondo. À frente dele, na garganta do vale, preto contra o sol, está um
único guerreiro, largo, com armadura de pedaços descombinados, os braços
abertos, um broquel em uma das mãos e um machado na outra, com a lâmina
curva para perfurar cota de malha.
“Sven Quebra-Remo?” Por um instante, Snorri conhece o medo. O gigan‐
te é o único homem que o derrotou: sua força não é humana. Fraco pela perda
de sangue e prejudicado por seus ferimentos, ele sabe que esta luta está acima
de suas capacidades. Ainda assim, de joelhos, o nórdico sussurra uma prece, a
primeira que passou por seus lábios em muito tempo. “Pai de todos, eu z o
meu melhor. Olhe por mim agora. Só peço que me dê a força que me abando‐
nou.” A prece de um homem que enfrentou seus desa os com um machado e
o coração valente. A prece de um homem que sabe que isso não bastará. A pre‐
ce de um homem que não viverá para fazer outra.
Snorri se levanta com um rosnado, sem se preocupar com os ferimentos,
sabendo que os deuses estão olhando por ele. Ele ca de pé, coberto com o
sangue preto dos demônios e o escarlate do seu próprio, quase impossível de
distinguir das feras que ele abateu em grandes quantidades.
“Estou pronto.” Se Hel pôs Sven Quebra-Remo entre ele e sua família, en‐
tão Sven Quebra-Remo irá morrer a segunda morte. “Undoreth!” ruge ele, e
como se seu grito fosse uma lança atirada para o alto, o céu ca vermelho co‐
mo sangue atrás dele. E então ele ataca.
•••
O guerreiro ca rme enquanto Snorri corre em sua direção. Ele está usando
uma grande proteção de ombro, de ferro preto com pontas, e um elmo apenas
com uma fenda para os olhos e perfurações na boca. Faixas pretas de ferro em
volta de seu peito e cintura cingem uma camisa grossa de couro e camadas de
amortecimento. Placas de ferro costuradas à sua calça de couro defendem as
duas pernas. Cada parte de sua armadura traz sinais de batalha, cortes brilhan‐
tes, respingos vermelhos desbotados, metal amassado, couro rasgado.
Vinte metros restam entre eles. O guerreiro ergue seu machado acima da
cabeça. Dez. O guerreiro inclina a cabeça. “Snorri?” Cinco. E deixa o machado
cair.
Snorri, tomado pela fúria da batalha, golpeia seu machado em um arco de‐
capitador, o aço a ado impulsionado pela força dos dois braços. No último
momento, a mente suplanta o músculo e gritando de esforço ele interrompe o
golpe, conseguindo conter a maior parte de sua força. A lâmina de Hel atinge
o gorjal, tirando um som agudo da gola de metal antes de se afastar.
“Snorri?” As mãos com manoplas se atrapalham no visor articulado do el‐
mo.
Snorri abaixa o machado e o utiliza para se apoiar, com a respiração ofe‐
gante.
O visor se abre.
“Tutt?”
“Sabia que você viria.” Tuttugu sorri. Ele está sem barba, com o queixo em
carne viva onde ela foi arrancada. O corte vermelho que a faca de Edris Dean
fez ainda marca o pescoço de Tuttugu, e seu rosto está pálido. Seus olhos, po‐
rém, brilham de alegria. “Sabia que conseguiria.”
“Em nome de Hel. O quê… Tuttugu… como?”
“Ssshhh!” Tuttugu levanta a mão. “Não fale o nome dela… não aqui. Ela
vai mandar mais guardas, e eles são difíceis de derrotar.”
Snorri olha para o vale cheio de corpos espalhados ali atrás. “Você fez tudo
isso?”
Tuttugu sorri. “Eles não vieram todos ao mesmo tempo.”
“Mas mesmo assim…”
“Eu não podia deixar Freja e as crianças serem levadas, Snorri.”
“Mas Karl…”
“Karl podia lutar com os demônios, são apenas bichos seguindo seus ins‐
tintos de caçar almas perdidas. Mas ir de encontro aos servos de Hel que estão
cumprindo ordens? Isso poderia fazer com que ele fosse expulso de Valhalla.
Não queríamos isso.”
“Mas você…”
“Eu ainda não peguei meu lugar, então eles não podem me expulsar.
Quando você está destinado aos salões, você guarda seu corpo em Hel… ou
uma cópia dele, acho… En m, eu saí à procura de Freja em vez de ir para onde
eu deveria.”
Snorri estende o braço e põe a mão no ombro de Tuttugu. “Tutt.” Ele per‐
cebe que não tem palavras.
“Está tudo bem. Você faria o mesmo por mim, irmão.” Tuttugu segura o
pulso de Snorri e depois sai para mostrar o caminho.
Snorri olha mais uma vez para o des ladeiro que Tuttugu defendeu de to‐
dos que vieram, e depois segue seu amigo, descendo a encosta até as águas pa‐
radas lá embaixo.
•••
Um barco a remo está perto da margem, amarrado a uma pedra na parte rasa.
Logo depois da pedra, o leito do orde afunda abruptamente e se perde na
água límpida e escura. Snorri pisa na água e pega a corda. A terrível sede que
ele sente grita para ele beber, mas ele não estava ali pela água.
Snorri sobe no barco e pega os remos. Tuttugu entra pela lateral para se
sentar na popa, e Snorri sai remando pelo lago. Não há nenhum sinal de perse‐
guição lá atrás, onde o vale se une ao orde. O céu é o céu do mundo dos vi‐
vos, cheio de nuvens escuras, como se retorcidas pelo dedo de um deus em
uma grande espiral acima deles. Obra de Thor, talvez. Será que o trovão irá
troar antes desta viagem terminar?
Uma névoa noturna paira perto das águas. O frescor do ar lembra o come‐
ço do outono, trazendo toques de fumaça de lenha, peixe e do mar distante.
Cada mergulho do remo o leva mais perto. No vale, o medo havia tomado
conta dele — medo de que sua força não fosse su ciente para vencer, e de que
nalmente o caminho do guerreiro não o levasse ao desejo de seu coração.
Agora cresce um novo medo nele, com uma voz mais alta a cada remada. O
que ele irá encontrar? O que ele dirá? Que futuro haverá para eles? Snorri veio
salvar seus lhos, mas se sente mais criança a cada momento que passa — com
medo de encarar a família com a qual fracassou, medo de estar aquém de qual‐
quer tarefa que seja exigida dele agora.
O instinto diminui o ritmo das remadas. Ele levanta os remos, pingando, e
o barco bate de leve no Cais Comprido. Snorri enrola a corda em um poste an‐
tigo e sobe na passarela, com seus machucados transformando-o em um velho.
Às encostas à sua frente são aquelas onde ele nasceu, onde foi criado do
berço à idade adulta, onde criou seus próprios lhos. Tuttugu e Snorri pesca‐
vam nos cais quando garotos, corriam desembestados entre as cabanas quando
os dracares velejavam na primavera e perseguiam garotas. Uma em particular.
Qual era o nome dela? Um sorriso torce a boca de Snorri. Hedwig, a namora‐
dinha de Tuttugu quando eles tinham nove anos. Ela havia escolhido Tutt em
vez dele, talvez sua única vitória em todos esses anos, e Snorri aceitou mal o fa‐
to.
Tuttugu está com Snorri ao pé da subida, esperando. Snorri se vê prote‐
lando. Apenas sua casa está ali na encosta. Seu caminho está livre. E mesmo as‐
sim ele está parado ali, em vez de se mover. O vento o puxa. A grama se dobra
no mesmo ritmo. Lá no alto, na serra, cabras traçam seus caminhos lentos. Lá
acima do orde uma gaivota desliza no vento. Mas nada disso tem som, nem
um único barulho. E a casa está ali, à espera.
“Vou car olhando o lago,” diz Tuttugu.
A coragem vem de várias formas. Algumas são mais difíceis para um ho‐
mem do que para outro. Snorri busca bem fundo a coragem necessária para fa‐
zer essa coisa que o prendeu por tanto tempo, que o levou tão longe e por ca‐
minhos tão estranhos. Ele põe um pé na frente do outro, repete, e anda pelo
caminho batido que trilhou tantas vezes antes.
À porta de sua casa, Snorri precisa buscar novamente. Imagens da noite
que Sven Quebra-Remo trouxe os mortos a Oito Cais encheram sua visão. O
som dos gritos deles o ensurdece, aqueles gritos enquanto ele estava sem ação
ao lado da cabana, enterrado pela neve que caiu do telhado.
Cego, ele põe a mão na porta, mexe no trinco e empurra.
A lareira está fria, a cama embaixo das peles de cobrir e as peles sob som‐
bras, o canto da cozinha arrumado, a escada do sótão no lugar apropriado.
Eles estão de pé, os três, de costas para ele. Freja entre as crianças, com uma
mão no ombro de Egil e a outra na cabeça de Emy. Todos os três em silêncio,
imóveis, de cabeça baixa.
Snorri tenta falar, mas a emoção aperta sua garganta com muita força e ele
não consegue formar palavras. O ar vem até ele em respirações curtas e ofegan‐
tes, do tipo que um homem talvez tenha quando uma lança o atravessa e ele
procura dominar a dor. Ele sente seu rosto se contorcer em uma careta, com as
bochechas se levantando como se pudessem de alguma forma conter as lágri‐
mas. Na entrada de sua casa, Snorri ver Snagason cai de joelhos, pressionado
ali por um peso maior do que a neve que o segurou, com a força roubada de
maneira mais e caz que por qualquer dardo envenenado. Tomado por um
choro soluçado, ele tenta dizer seus nomes, mas nenhum som sai de seus lá‐
bios.
Freja está de pé, os cabelos dourados descendo em ondas pelas costas, a
mulher que o salvou, que foi sua vida. Egil, o terror de cabelos de fogo, atrevi‐
do, traquinas, um menino que adorava o pai e acreditava que Snorri lutaria
com trolls para mantê-lo a salvo. E a doce Einmyria, morena como o pai, linda
como a mãe, perspicaz e inteligente, con ante e honesta, sábia demais para sua
idade, um tempo curto demais brincando perto do Uulisk.
“Apenas as tristezas deles estão aqui.” Tuttugu chega ao lado de seu amigo,
estendendo o braço e pondo a mão em seu ombro. “Não precisavam mais de‐
las. Eles não vão se virar. As tristezas deles não podem ver você, porque você
não faz parte delas. Quando você for embora deste lugar, eles desaparecerão.
Mas enquanto estiver aqui, Freja e as crianças podem ouvi-lo. O que disser
aqui chegará até eles.”
Snorri enxuga o rosto. “Onde eles estão?”
Tuttugu suspira. “Uma völva me contou. Uma que você conheceu. Ekatri.
Ela veio aqui.”
“Ela está morta?”
“Não sei. Sim. Talvez. Não faz diferença. O que ela me disse é que é impor‐
tante, e é complicado, então não me interrompa, senão vou esquecer algumas
partes e falar errado.
“A magia que vemos no mundo — os necromantes, magos como Kelem,
tudo isso… vem da Roda. É o que os Construtores zeram conosco, com eles
próprios. Isso tornou cada um de nós capaz de fazer magia apenas concentran‐
do nossa vontade. A Roda permite que as vontades se tornem reais. Alguns de
nós são melhores nisso que outros, e, sem treinamento, nenhum de nós parece
ser muito bom.
“O negócio é que, mesmo que a maioria de nós não seja boa em controlar
a magia que a Roda nos deu, juntos podemos mover montanhas. Quando al‐
guém conta uma história, e essa história se espalha e cresce, e as pessoas acredi‐
tam nela e desejam aquilo… a Roda gira e torna isso real.
“Tudo isso.” Tuttugu abre o braço para o orde. “Tudo está aqui porque
nos disseram que estava aqui, nós queríamos que estivesse aqui. Não estou fa‐
lando só deste lugar. Estou falando de Hel inteiro. Estou falando das almas,
dos rios, de cada pedra e rocha, cada demônio, a própria Hel, tudo isso. Não é
real — é o que a Roda nos deu porque as histórias que contamos a nós mes‐
mos nos prendem com tanta força que acreditamos nelas, as desejamos e agora
nós as temos.”
Snorri respira fundo, com a cabeça girando em grandes círculos, tão lentos
quanto o redemoinho acima da casa. “Onde está minha família, Tutt?”
Tuttugu aperta o ombro dele. “Antes da Roda, existia uma magia mais an‐
tiga, muito mais profunda, menos chamativa, mais impressionante. Ainda
existe. Ninguém a compreende. Mas sentimos que ela está aí. Todo mundo
tem suas próprias ideias a respeito, sua própria história para contar. Nossos
ancestrais contavam uma história sobre Asgard e os deuses. Talvez seja verda‐
de. Mas isso aqui.” Ele acena novamente. “Não é. Isso é o sonho das pessoas.
Feito para nós.”
“Freja e as crianças estão aguardando ao lado de um portão que não irá se
abrir até a Roda de Osheim ser quebrada. Atrás do portão está aquilo que
sempre esperou por nós quando morremos. O verdadeiro m da viagem.
“Você já viu esse lugar. Você não teve a impressão de estar errado? Será que
é realmente isso que está à nossa espera por toda a eternidade?” O viking gor‐
do se curva. “Não sou nenhum sábio, Snorri. Mal consigo pronunciar ‘ loso‐
a’, muito menos entendê-la. Mas é neste lugar que quer seus lhos até o m
dos tempos? Mesmo se Hel mandá-los para a montanha sagrada… Helgafell é
um lugar que você pode visitar, igual a este aqui. Não quer algo para eles que
esteja além da sua imaginação, em vez de uma cópia dela? É isso que Freja
quer…”
“Quem…” Snorri pigarreia, com as palavras roucas. “Quem os levou até es‐
se portão?”
Tuttugu suspira novamente. “Ekatri. Ela disse que sabia que você viria
aqui e que, se encontrasse Freja e a trouxesse junto com as crianças, seria uma
coisa terrível para todos vocês, pior que a morte. Não no começo, mas lenta‐
mente, aos poucos, vocês começariam a se odiar, e no m esse ódio consumiria
todos vocês por completo.
“E também você poderia quebrar o mundo ao fazer isso.”
Snorri abaixa a cabeça. Uma dor vazia o preenche, e perto dela o incômo‐
do dos cortes e da carne rasgada não é nada.
“Fale com eles, Snorri. Eles sabem que você está aqui. Esperaram por você
e irão ouvi-lo. Vá em frente,” diz Tuttugu, com a voz suave. “Eles caram por‐
que sabiam que você viria. Não porque precisavam que viesse.” Ele se vira para
sair, de machado em punho.
Snorri olha da entrada para a descida até o lago. Três guerreiros altos estão
saindo de um barco, todos eles pretos do lado esquerdo e brancos do direito.
“Fique, converse,” insta Tuttugu. “Eu lido com eles.”
Snorri se mexe para car ao lado de Tuttugu, pegando seu próprio macha‐
do.
Tuttugu balança a cabeça e fecha seu visor. “Você não veio aqui para isso.”
Ele se vira. “Nenhum de nós consegue contar o número de batalhas em que
você já me salvou. Agora é a minha vez. Vá.”
Snorri olha mais uma vez para seu amigo e faz que sim.
“Nos encontraremos novamente em Valhalla.” Tuttugu sorri. “Não vou
enfrentar o Ragnarok sem você do meu lado.”
“Obrigado.” Snorri inclina a cabeça, com os olhos cheios mais uma vez.
Tuttugu aperta o ombro de Snorri uma última vez e sai da casa.
•••
Conforme o silêncio longo prosseguia, comecei a enxergar o túnel, com a luz
do oricalco de Kara lançando nossas sombras na curva da parede, sem som,
nossos passos abafados pela poeira de mil anos.
“Você falou com eles?” Minha voz saiu áspera e ecoou à frente, seguindo o
arco da Roda e desaparecendo na escuridão.
“Falei,” disse Snorri. “E isso me deu paz.” O viking andou cem metros an‐
tes de voltar a falar e, enquanto cou quieto, comecei a ouvir sons distantes da
perseguição atrás de nós.
Snorri pigarreou. “Quando saí da casa, Tuttugu estava à minha espera. Ele
disse que os protegeria enquanto pudesse. Eu disse a ele que pararia as engre‐
nagens da Roda e libertaria Freja e meus lhos de Hel. Ou morreria tentan‐
do.”
“Para onde eles irão?” Eu não tinha entendido essa parte muito bem, nem
achava que Tuttugu era capaz de fazer um discurso desses. Mas eu sempre su‐
bestimara aquele homem.
“Para aquilo que sempre nos esperou do outro lado da vida,” disse Snorri.
“Eles estarão livres da Roda. Libertados dos sonhos, das histórias e das menti‐
ras dos homens. Você já viu com seus próprios olhos, Jal. É lá que deseja que as
pessoas que você ama passem a eternidade?”
Minha mãe estava seguramente no paraíso, mas por outro lado meu pai,
cardeal ou não, estava de nitivamente no Inferno se as regras que ocasional‐
mente pregava tivessem alguma verdade. O mais importante, porém, é que lá
não era onde eu gostaria de passar a eternidade.
“O que é isso?” Hennan apontou para uma placa pregada à parede, tão co‐
berta de sujeira que quase havíamos passado direto.
“Não temos tempo!” Olhei para a escuridão lá atrás, com os ouvidos agu‐
çados procurando aqueles sons novamente. A qualquer momento João Corta‐
dor podia aparecer correndo.
“Internacional…” Kara já estava limpando a poeira da placa com a manga
da roupa. “Kollaboração…”
“Parece ininteligível para mim, vamos!” As letras eram estranhas, porém
vagamente familiares.
“É uma versão antiga do idioma do Império, bastante corrompida.” Ela
limpou mais a poeira. A placa parecia ser de metal esmaltado, e em vários luga‐
res a corrosão havia partido a superfície embaixo da sujeira. “Não consigo ler
o resto. As primeiras letras são maiores, no entanto. I.K.O.L. A última palavra
talvez seja ‘Laboratório’.”
“O que é laboratório?” perguntou Hennan, olhando para mim, por algum
motivo.
“É uma coisa que te faz perder tempo enquanto monstros saem da escuri‐
dão para te matar,” falei.
“Tem uma imagem aqui também.” Kara limpou com a manga imunda.
“Não pode ser…”
Apesar de meus medos, fui mais para perto dela. Embaixo do grande títu‐
lo, que tomava mais de um metro do alto da placa, havia três guras, lado a la‐
do, retratos de pessoas pintados com detalhes primorosos. Um homem meio
careca e grisalho com lentes de vidro sobre os olhos; um homem sério de meia-
idade de cabelos pretos, com o rosto dividido por um nariz adunco; e um jo‐
vem de cabelos castanhos e desgrenhados, feições estreitas e olhos grandes e es‐
curos.
“Professor Lawrence O’Kee,” li, confuso com as letras retorcidas. “Dr.
Dex… não, Fexler Brews e Dr. Elias Raiz-Mestra!”
“Raiz-Mestra era responsável pela Roda?” perguntou Snorri, aproximan‐
do-se de nós enquanto Hennan se en ou entre Kara e mim para ver mais de
perto.
“Importante o bastante para estar nesta placa,” disse Kara. “Estou supon‐
do que o responsável seja este aqui, porém.” Ela pôs o dedo no mais velho dos
três, o professor.
O barulho de corrida deu m às perguntas, os pés batendo no túnel empo‐
eirado, aproximando-se rapidamente de nós. Comecei a sair sem os outros,
disparando para a escuridão, e dei cerca de vinte passos até bater em alguma
coisa muito sólida. Vi um leve contorno só a tempo de levantar os braços.
Mesmo assim, quando dei por mim eu estava sendo levantado do chão por
Snorri.
“Cadê ele?” Virei a cabeça para um lado e para o outro, caçando João Cor‐
tador na escuridão.
“Os passos sumiram quando você bateu na grade.” Kara surgiu atrás de
mim com a luz.
“Grade?” Agora eu vi, barras reluzentes de aço prata, cada uma da grossu‐
ra do meu braço.
O som dos pés começou novamente atrás de nós, talvez cinquenta metros
atrás. Empurrei Snorri para longe e procurei a chave. Ela escapou de meus de‐
dos, traiçoeira como gelo, mas a correia a prendeu e eu a peguei novamente.
“Abra!” Encostei-a na barra mais próxima e todas elas se deslizaram para seus
buracos, a metade superior para o teto e a inferior para o chão.
Pulei antes que elas afundassem totalmente e me virei abruptamente, com
os outros me acompanhando. As sombras mostraram João Cortador vindo
correndo à toda. “Feche!” Bati a chave no círculo reluzente de uma barra, ago‐
ra no nível do chão. Fiquei parado, paralisado pela visão daquele monstro ar‐
regalado correndo na minha direção. Snorri me puxou para trás, mas não an‐
tes de eu ver João Cortador saltar pela fenda que se fechava… e errar. Ele bateu
com tanta força que eu juro que as barras chegaram a reverberar.
“Vamos.” Snorri me puxou para frente.
“As barras irão segurá-lo,” falei. Eu quase acreditei.
Cinquenta metros depois, o túnel entrava em uma câmara do tamanho da
nova catedral de Remes. O tubo preto que passava pelo centro do túnel conti‐
nuava no meio do espaço aberto e desaparecia na boca de um túnel do lado
oposto. Seu caminho o levava ao núcleo de uma enorme máquina no chão da
câmara, quinze metros abaixo de nós, e que se estendia mais quinze metros
acima de onde o tubo preto atravessava.
Luzes embutidas no teto, fortes demais para olhar, iluminavam a câmara
de cima a baixo como se fosse um dia de verão. O ar cheirava a relâmpago e
pulsava com os batimentos de enormes motores.
Estávamos à beira de onde o túnel se abria e caía para o andar lá embaixo.
Se em algum momento houve algum parapeito ou escadas, eles não tinham si‐
do feitos com material tão durável quanto as barras lá no meio do caminho ou
a máquina titânica diante de nós, e talvez agora fossem apenas as manchas
amarronzadas nas paredes e no chão.
“Tem alguém lá embaixo,” apontou Hennan.
Na base do enorme bloco de metal, havia uma alcova embutida no corpo
da máquina, uma alcova forrada com placas de vidro e iluminada com símbo‐
los e rabiscos. No meio dela, do nosso ângulo apenas visível dos ombros para
baixo, estava um homem de túnica ou algum tipo de casaco branco, de costas
para nós.
“Ele não está se mexendo,” disse Kara.
Ficamos olhando por um minuto inteiro, ou pelo menos eles caram: eu
cava olhando para trás, no caso de João Cortador nos alcançar e nos empur‐
rar lá embaixo.
“Uma estátua?” supôs Hennan, chegando à beira da queda.
“Ou congelado no tempo, como Raiz-Mestra naquele cofre dos Constru‐
tores.” Snorri puxou Hennan para trás.
Bem longe atrás de nós, um barulho abafado começou a soar. “Precisamos
descer lá e descobrir,” disse.
“Como?” Kara aproximou-se da borda com menos audácia que Hennan,
de quatro.
“Voando?” Bati os braços. “A nal, agora somos magos do mal!” Eu desejei
sair do chão, levantando os ombros e cando na ponta dos pés. Nada aconte‐
ceu, além de eu ter sido forçado a dar um passo para frente para não cair, e ‐
quei muito feliz de não ter tentado mais perto da beira. “Por que não está fun‐
cionando?”
“As máquinas dos Construtores devem fazer contrafeitiços para se prote‐
gerem. De que outra maneira ainda poderia estar funcionando após tantos
anos?” Kara inclinou a cabeça e o peito para fora da borda. Snorri foi mais rá‐
pido que eu na tarefa de segurar as pernas dela. “Há degraus presos na pedra
da parede, iguais aos do túnel que descemos.”
Ela se afastou, sacudiu as pernas para se soltar e depois girou por cima da
beirada, com os pés procurando os apoios. Com a forte suspeita que os baru‐
lhos metálicos eram as barras do túnel cedendo a João Cortador, deslizei por
cima da borda logo atrás dela.
Mais ou menos um minuto depois, nós quatro estávamos no chão da câ‐
mara nos sentindo formigas, tanto em tamanho quanto em signi cância.
Snorri foi na frente até a alcova na base da máquina. O mecanismo alto de aço
prata, através do qual passava o tubo preto da Roda, ocupava a maior parte da
câmara, mas havia uns bons vinte metros entre a parede da câmara e o revesti‐
mento externo na máquina. A coisa era diferente de todas as engrenagens que
já havia visto. Não havia rodas nem correias, nenhuma peça móvel, mas a es‐
trutura parecia ser feita de várias seções e vários tubos serpenteados sobre a su‐
perfície, encontrando-se e dividindo-se em desenhos complexos. O edifício in‐
teiro zumbia de energia — não um zumbido confortante, mas um som indeli‐
cado que trazia consigo harmonias atonais perturbadoras, e que não podiam
ter saído de nenhuma mente humana.
“É aquele homem da placa.” Hennan caminhou ao lado de Snorri, com
uma grande faca que o viking devia ter lhe dado a postos em sua mão.
“Professor O’Kee,” disse Kara.
Ele estava parado, congelado como Raiz-Mestra tinha estado, analisando
um dos painéis de vidro e o desenho de luzes que brilhava nele. Também na al‐
cova, de certa maneira surpreendente, havia uma pilha bagunçada de lençóis
sujos, livros espalhados, restos de comida em um prato e uma poltrona man‐
chada. Logo à frente dele, talvez derrubado pela mão apoiada na mesa semicir‐
cular que ocupava a extensão da alcova, havia um pequeno objeto, um cilindro
no, mais estreito e um pouco mais longo que meu dedo, que fora capturado
logo depois de cair da superfície plana. Ele pairava no meio da queda, a cerca
de noventa centímetros do chão.
Saquei minha espada e fui à frente para cutucá-la na direção do velho. Bati
na parede invisível bem antes de onde eu esperava que estivesse, quase esma‐
gando meu rosto nela pouco depois de começar a levantar minha espada.
“É grande!” falei, para disfarçar meu constrangimento.
“Raiz-Mestra chamava de estase,” disse Kara. “Um campo de estase.”
Snorri pôs a mão no limiar liso entre o tempo e o não-tempo. “Use a cha‐
ve.”
“Ele não está congelado,” disse Hennan.
“Está, sim.” Eu me apalpei procurando a chave sempre arredia.
“Aquele… troço… caindo da mesa está mais baixo agora.”
Eu olhei. O cilindro realmente parecia um pouco mais próximo do chão,
mas podia muito bem ser ilusão de ótica. “Bobagem.”
“Ele está certo.”
Demorei um tempo para perceber que não reconhecia a voz que endossava
a opinião de Hennan. Virei e vi que Snorri já estava com o machado descon‐
fortavelmente próximo do pescoço do recém-chegado. “Quem é você?” rosnou
o viking.
“Não está me reconhecendo?” O homem estava usando o mesmo casaco
branco comprido e ajustado que O’Kee usava, de calça preta e sapatos pretos e
brilhantes por baixo. Estava na casa dos vinte anos, talvez um pouco mais ve‐
lho que eu, os cabelos escuros em desalinho, com tufos para cima como se ele
tivesse o hábito de puxá-los, e mais ralos na parte de cima da cabeça. Seus
olhos arregalados brilhavam de divertimento, certamente mais do que eu de‐
monstraria com o machado de um bárbaro a apenas centímetros do meu ros‐
to. Alguma coisa nele realmente parecia familiar.
“Não,” respondeu Snorri. “Por que o reconheceria?”
Kara olhou para o homem, com o rosto franzido. “Você é um Construtor
mágico.”
“Ah, vamos lá! Estou olhando para o seu rosto.” Ele balançou os dedos de‐
baixo do queixo e gesticulou a outra mão na direção da alcova. “Viu?”
O’Kee estava de costas para nós, então não foi nem um pouco óbvio, mas
era de onde vinha a familiaridade. Ele se parecia um pouco com o homem
mais velho, ou pelo menos como eu me lembrava dele pela imagem. “Você é ‐
lho dele? Irmão?”
“Filho. Por maneira de dizer.” Um sorriso largo. “Podem me chamar de
Larry. Em todo caso, o rapaz tem razão. Olhem, a caneta chegou ao chão.”
Todos nós viramos, exceto Snorri, guerreiro demais para cair em uma sim‐
ples pegadinha. O cilindro realmente havia batido no chão e talvez estivesse
em processo de quicar.
“É a lentidão temporal,” disse Larry. “Um ano passado ali é um século pas‐
sado aqui fora.”
“Precisamos falar com o professor,” falei.
“Pode perguntar para mim?” Ele sorriu.
“É uma pergunta bem grande,” disse. “Realmente precisamos falar com o
responsável. Vamos desligá-la.”
“O que vocês vão desligar?” perguntou Larry.
“Isto.” Acenei para a máquina, que era tão grande quanto a torre de um
castelo. “Tudo isso.” Gesticulei para as bocas dos túneis dos dois lados da câ‐
mara. “A Roda.”
“O professor pode fazer isso por nós.” A voz de Snorri não deixava espaço
para escolha. “É criação dele.”
Larry deu de ombros. “É a criação de centenas, senão milhares, das mentes
mais brilhantes da época dele, mas sim, ele supervisionou o projeto. Ele vem
trabalhando no desligamento de tudo pelos últimos mil anos — dez anos no
tempo dele — mas sem sucesso. Há uma quantidade muito grande de proces‐
sos que precisam ser primorosamente balanceados para uma conclusão bem-
sucedida da operação. O menor erro nos cálculos pode fazer o efeito se acele‐
rar… ou pior.
“Mesmo assim, iremos falar com ele.” Snorri pôs a palma da mão na super‐
fície onde o tempo do professor encontrava o nosso.
“Fiquem à vontade.” Larry abriu as mãos na direção do professor. “Mas
vão precisar da chave. E se não tiverem isso, receio que terei de acompanhá-los
até a saída.”
Olhei para Snorri, com o rosto congelado em uma carranca, depois nova‐
mente para Larry. A maioria das pessoas acha um viking enorme intimidador.
Larry de alguma maneira passava a impressão de considerar todos nós crianças
travessas.
“Eu tenho a chave.” Puxei-a e fui recompensado com uma pequena hesita‐
ção de Larry antes de seu sorriso se alargar.
“Maravilha! Realmente, uma maravilha. Você não faz ideia de quanto
tempo eu estou esperando para vê-la outra vez.”
“Outra vez?” Balancei a cabeça para aquele absurdo e me virei para o pro‐
fessor. “Abra!” En ei a chave na barreira… e não encontrei nenhuma resistên‐
cia.
A ‘caneta’ quicou mais uma vez e rolou para baixo da poltrona.
Professor O’Kee estalou a língua. Ele tocou a placa de vidro que estava
olhando — sobre a qual luzes, linhas e números estavam se movendo em uma
confusão clara e colorida — e se virou, curvando-se para pegar a caneta caída e
parando no meio da ação ao ver três pagãos do norte selvagem e um príncipe
de Marcha Vermelha.
“Ah, graças a Deus!” disse ele. “Larry, ponha a chaleira no fogo.”
“Estamos aqui para desligar a Roda,” disse Snorri. “A chaleira vai ajudar
com isso?”
“É claro que estão.” O professor nos deu um sorriso jovial e acenou na di‐
reção da minha mão ainda esticada. “Você trouxe minha chave de volta.”
“Sua chave? Esta é a chave de Loki. Foi feita em Asgard,” encrencou Snor‐
ri.
“Tenho certeza de que sim.” O professor concordou e mancou até sua pol‐
trona. Ele não parecia bem. “Eu ofereceria que todos se sentassem, mas receio
que só tenha esta cadeira. Preferência dos mais velhos, e tudo mais.”
Larry, que estava de pé em frente à mesa da alcova agora voltou com uma
xícara de líquido marrom fumegante. Ele a ofereceu ao professor, que a pegou
com a mão trêmula da velhice, ameaçando derrubar o conteúdo primeiro de
um lado, depois do outro. Levou-a até os lábios sem incidentes e deu um gole
barulhento.
“Isso é chá!” disse. Os outros olharam para mim.
“Muito bem, garoto.” O professou deu mais um gole e fez um ‘ah’ de satis‐
fação.
Fiz um curto aceno com a cabeça, aceitando o elogio. Minha mãe trouxe as
folhas da planta de chá dos Indus, secas e prensadas, e costumava tomar uma
infusão delas em água quente.
O velho olhou para Snorri. “Não tem chaleira, só uma máquina de água
quente e saquinhos de chá muito velhos. É uma expressão, a linguagem se ape‐
ga às coisas muito depois de já termos esquecido o que elas eram.”
“Você diz que a chave é sua,” desa ou Kara.
“Uma maneira de dizer. Várias maneiras de dizer, na verdade.”
“Você é Loki?” perguntei, permitindo uma leve insinuação de escárnio na
pergunta.
O professor me lançou um olhar que tinha certa dureza e, soprando seu
chá, bebeu profundamente. “Acho que devemos prosseguir logo. Não posso
passar muito tempo fora da lentidão temporal, senão os ratos vão me pegar.”
“Ratos?” Olhei em volta.
“Sim. Não os suporto.” Ele apoiou a xícara. “É o que a parte de minha
mente que quer me matar chama para fazer o serviço.”
“Mas não estamos protegidos aqui? Não podemos fazer a magia funcionar
como podíamos na superfície…” Olhei para a boca do túnel lá no alto da pare‐
de, esperando ver João Cortador parado ali com seu alicate a postos.
“Há um campo amortecedor, sim, mas os, hum, lamentáveis efeitos colate‐
rais do experimento ainda podem se manifestar, só demoram um pouco mais.
Dentro da bolha de lentidão temporal estou completamente a salvo, mas de‐
pois de muito tempo na câmara aqui fora os ratos começam a rastejar.”
“Larry estava aqui fora,” ressaltei.
“Sim.” O professor olhou para Larry. A semelhança familiar era bastante
impressionante agora que o jovem estava ao lado da cadeira do professor.
“Bem, Larry… Larry é…”
“Um homem mecânico maravilhoso,” disse Larry, e executou uma mesura
pontual.
O professor deu de ombros. “Construí Larry para transportar meu eco de
dados. Ele é, como falou, um autômato, que armazena… bem, eu, ou pelo me‐
nos a cópia de mim que as máquinas salvam. Temos uma brincadeirinha: eu
sou o pai…”
“Eu sou o lho,” disse Larry.
“E Loki é o Espírito Santo,” terminou o professor.
“Não entendi,” disse Kara. Nenhum de nós entendeu, claro, mas a völva
dava mais valor ao conhecimento do que ao orgulho.
“Você conheceu Aslaug, sim?” O professor esforçou-se para sair de sua ca‐
deira, caindo de volta uma vez e dispensando a ajuda de Larry na segunda ten‐
tativa. O autômato — uma espécie de soldado mecânico, eu supus — lançou
um olhar constrangido para nós. “Muitos contemporâneos meus saíram de
seus corpos quando os ataques nucleares aconteceram, começando e termi‐
nando a guerra em uma questão de poucas horas. Eles conseguiram, com a aju‐
da das mudanças que nosso trabalho aqui acarretou na estrutura das coisas,
projetar seus intelectos em várias formas diferentes. Aslaug era Asha Lauglin,
uma física brilhante. Ela se projetou em estados de energia negativa no campo
de matéria escura. As projeções todas acham que sobreviveram. É claro que
não, Asha Lauglin foi carbonizada em uma explosão nuclear. Ela morreu há
mil e cem anos. Aslaug é uma cópia, assim como Larry aqui, mas que se tor‐
nou corrompida ao longo dos anos, presa no folclore das pessoas que repovoa‐
ram. Remodelada pelas crenças e a vontade coletiva dos crentes…”
“E Loki?” interrompeu Kara. Eu bem que gostei. Achei que o professor
devia dar palestras, além de suas outras obrigações: poucas pessoas são tão
apaixonadas pelo som da própria voz.
“Loki é a cópia de mim que projetei. Só que eu não morri. Essa não é uma
parte necessária da equação, mas o esforço envolvido e a dor que ele causa são
tamanhos que, sem a ameaça de morte iminente para incentivá-los, poucas
pessoas se submeteriam ao processo.”
“Loki é você?” perguntei desnecessariamente. Meus lábios só queriam al‐
guma coisa para dizer.
“Não eu, uma cópia de mim. Eu não o controlo e nós nos… distanciamos.
Mas temos em comum o mesmo núcleo e muitos objetivos iguais. Seu poder
de in uenciar os acontecimentos é ao mesmo tempo aumentado e limitado
pela armadilha na qual ele caiu.”
“Armadilha?” Tornar-se um deus era uma armadilha na qual eu cairia com
gosto.
“O mito de Loki. Ele me precede por muito tempo, por mais velho que eu
possa lhe parecer, rapaz. Receio que meu… vamos chamá-lo de meu ‘eco espiri‐
tual’ possa ter caído nessa armadilha especí ca por causa de algo tão pueril
quanto um trocadilho.”
“Não estou entendendo.”
“Meus contemporâneos me chamavam de Loki na escola. Suponho que
talvez eu fosse um gozador naquela época, mas na realidade era apenas como
meu nome aparecia nos registros. Lawrence O’Kee. Percebe? L. O’Kee. Sim‐
ples assim.”
“Então sua cópia espiritual acha que é Loki…” disse Kara.
“Sim.”
“Mas não é.”
“Não. Mas por estar aprisionado nas histórias que muitas pessoas acredi‐
tam, ele tem acesso ao poder da crença delas, que por sua vez é corroborado
pelo que vocês chamam de Roda. As mudanças que nossas máquinas aqui ze‐
ram à realidade permitem que a crença de todas essas pessoas dê a Loki poder
de verdade. Assim como imediatamente acima de nós essas mudanças permi‐
tem a cada um de vocês provocar fogo, voar, ou realizar o que quer que dese‐
jem realizar. Antes que suas imaginações criem monstros para matá-los, claro.”
“E quanto à chave?” perguntei, erguendo-a.
O professor bateu o dedo nela. Por um instante ela se tornou uma peque‐
na chave prateada de desenho peculiar e de no máximo dois centímetros e
meio de comprimento. Eu quase a deixei cair. Quando parei de me atrapalhar,
a chave voltou a sua aparência usual preta e vítrea, estendendo-se da palma de
minha mão até a ponta do meu dedo indicador.
“É a chave de autorização para o painel de controle manual do complexo
de processadores centrais. Eu a entreguei à minha projeção — a Loki — como
uma espécie de plano b, caso minhas tentativas de nalizar o projeto IKOL
não dessem certo no tempo disponível. Para ser sincero, isso começou mais co‐
mo uma brincadeira do que uma tentativa série de resolver o problema. Àque‐
la altura eu achava que levaria seis meses para desativar o anel acelerador. Não
imaginava que passaria os próximos dez anos da minha vida trabalhando nis‐
so… e que caria sem tempo e a maldita situação casse crítica.” O velho pas‐
sou a mão pelos cabelos brancos e ralos. O cansaço aparecia nas rugas nos can‐
tos dos olhos dele. “Agora a chave parece ser nossa única esperança. Mandei a
chave com Loki para que ela ganhasse crença. A ideia era tramá-la nas histó‐
rias, torná-la parte da mitologia. Quanto mais ela se enraizasse na consciência
das pessoas, mais força ela poderia tirar da vontade coletiva, da imaginação
adormecida deles. Então, como pode ver, a chave se tornou um símbolo que
indiretamente se alimenta do próprio poder da Roda. Se ela funcionar, a Ro‐
da irá efetivamente se desligar.”
“Dê a chave a ele, Jal.” Snorri se aproximou, olhando para nós dois. “O
professor irá saber o que fazer com ela para desligar a máquina.”
Minha mão se fechou por vontade própria, os dedos apertados em volta da
chave fria. Abrir mão da chave a essa altura parecia como ter minhas escolhas
retiradas de mim. Desligar os motores da Roda agora supostamente daria à fa‐
mília de Snorri a chance de passar para o desconhecido que aguardava as pes‐
soas mortas no tempo dos Construtores. Snorri queria isso… mas uma outra
vida nesta Montanha Sagrada não parecia tão ruim. E desligar o motor não fa‐
ria a Roda parar de girar, apenas a atrasaria. Sem os motores de Osheim, a úni‐
ca coisa a girar a Roda e continuar a mudar a maneira como a realidade funci‐
ona seríamos nós: cada vez que um mago usava magia, isso abalava as estrutu‐
ras do mundo. As rachaduras se espalhariam, a Roda giraria, mais lentamente
do que antes, mas giraria mesmo assim, levando-nos todos na direção do m.
O mundo ainda se partiria, só que em alguns anos, em vez de algumas sema‐
nas. Se girasse a chave para o outro lado, essas últimas semanas seriam compri‐
midas em alguns segundos e, de acordo com a Dama Azul, eu enfrentaria o
m de todas as coisas no lugar mais seguro de todos, garantiria uma passagem
segura para o novo mundo, destinado a reinar não como rei ou imperador,
mas como um novo deus. A Dama Azul podia ter mentido: eu não con ava
naquela vaca nem um pouco, mas ela havia feito deste lugar seu último escon‐
derijo por um motivo.
“Jal?” Snorri bateu no meu ombro.
“Desculpe, viajei aqui.” Abri os dedos, olhando para a chave. “Bem…”
“O acesso ao complexo de processadores centrais é bastante esquisito.” O
professor pressionou as duas mãos ao peito como se quisesse impedir a possi‐
bilidade de qualquer um colocar a chave na sua mão. Talvez, quando ele a to‐
cou, ela tivesse lhe dado uma mordida. “O trabalho de verdade sempre foi fei‐
to remotamente na sala de controle.” Ele acenou para algum lugar acima de
nós. “Mas, para o controle superexato que precisamos, é melhor estar lá onde
os processadores principais estão.”
Assenti como se aquilo zesse qualquer sentido.
“Para chegar à câmara certa é necessário subir sete ou oito escadas e vários
lugares apertados. Se eu fosse um homem mais jovem… Além do mais, não te‐
nho certeza de que consigo durar muito tempo fora da minha lentidão tempo‐
ral para alcançá-la.” Seu olhar se xou em um ponto acima do meu ombro.
“Na verdade, receio que já tenha começado.”
Eu me virei, acompanhando o olhar do professor, e me peguei olhando pa‐
ra um grande rato preto empoleirado em um ressalto do lado do mecanismo,
alguns metros acima de nós. Ele cou nos observando, imóvel, com os olhos
brilhantes.
Uma pancada alta atrás de mim tirou minha atenção do rato.
“Merda.”
João Cortador se desenrolou da bola em que havia sido compactado pela
queda de quinze metros da beira do túnel. Recuei para a alcova, puxando
Hennan comigo pelo ombro. O professor se mexeu para vir comigo. Larry deu
alguns passos para frente e cou de guarda na frente da alcova. Kara sacou sua
faca e deslizou para um lado, enquanto Snorri deu um passo à frente para in‐
terceptar. João Cortador correu direto para cima de mim com tudo.
O viking aguardou, perfeitamente imóvel, até na última fração de segundo
girar para o lado, formando um arco ascendente com Hel para golpear o
monstro embaixo do queixo.
O grito de triunfo morreu em minha garganta quando, em vez de bater no
chão em duas partes, João Cortador foi simplesmente levantado pela force do
golpe, pois a lâmina do machado não o pegou. Ele caiu pesadamente, mas se
levantou ao mesmo tempo em que Snorri ergueu Hel acima da cabeça para
um segundo ataque.
“Larry é muito con ável, mas eu me sentiria mais seguro se…” O professor
esticou a mão para um painel próximo e tocou em um quadrado aceso. “Pron‐
to.”
Não tive tempo de dizer ‘pronto o quê?’. Imediatamente a cena lá fora se
acelerou a um ritmo que pareceria cômico, se o teor dela não fosse tão pertur‐
bador. Com uma velocidade estonteante, João Cortador defendeu uma rajada
de golpes e desferiu um que jogou Snorri estatelado e mole no chão. Em al‐
gum momento no meio disso tudo, Kara deve ter aparecido por trás para ten‐
tar esfaquear João Cortador. Eu a avistei caída atrás dele quando ele veio em
nossa direção como um borrão. A luta com Larry durou um pouco mais, com
socos voando, sem nenhum dos dois ceder um centímetro. Por um segundo,
que deve ter sido mais de um minuto do lado de fora, os dois caram travados
em um teste de força. De repente, em uma explosão de faíscas, o braço de
Larry saiu voando pela câmara. João Cortador o jogou de revés a uma parede
de metal da máquina e lá estava ele, o torturador, com o rosto pressionado à
parede de nossa bolha de lentidão temporal.
Eu havia segurado Hennan para trás. Agora nem precisava. O rosto de Jo‐
ão Cortador tinha uma feiura que desanimaria qualquer um.
“Nossa, isso é ruim,” disse o professor. “Muito ruim.”
“Não pode fazer alguma coisa?” gritou Hennan. “Precisamos ajudá-los!”
Eu sentia a mesma coisa, embora estivesse pensando principalmente em
mim com relação à ajuda. Mas não consegui falar. O medo tinha levado minha
voz embora. E eu não conseguia parar de olhar.
“Bem,” disse o professor atrás de mim. “Há sempre isso…”
“Uma bengala?” disse Hennan. “Como é que…”
Alguma coisa estalou perto da minha nuca. Eu vi dois pedaços de bengala
partida voando por mim, um de cada lado do meu rosto. Depois disso, foi só
uma queda.
31
“Ai!” Alguma coisa me bateu no rosto. Outra vez. “Cacete!” Levantei a cabeça
e mais um degrau de metal passou a um dedo do meu nariz. “Onde diabos…”
Eu parecia estar jogado em cima das costas de alguém. “Me põe no chão!”
“Se quiser.” A voz de Snorri, bem perto do meu ouvido. “Mas provavel‐
mente é melhor esperar até chegarmos no topo. É uma longa queda daqui e é
capaz de você estragar alguma coisa importante.”
Olhei em volta e imediatamente me arrependi de ter mexido a cabeça.
Quando os lampejos brancos de dor diminuíram, consegui ver que estávamos
em um tubo vertical de metal, fracamente iluminado por uma faixa brilhante
em toda sua extensão. Atrás de mim, Kara e Hennan estavam subindo, e abai‐
xo deles o tubo descia talvez mais uns dez metros. Apertei os braços em volta
do pescoço de Snorri, apesar do fato de meus pulsos parecerem já estar amar‐
rados.
“Aquele velho desgraçado me bateu!”
“Ele falou que era a única maneira de se livrar do homem de um braço só
que você ca evocando. Bem, ele disse que matar você também funcionaria.”
“Você nem o reconhece, não é?”
“Quem?”
“O homem de um braço só!”
“Deveria?”
“Bem, você é a razão de ele ter um braço só!”
Com um grunhido, Snorri se jogou por cima do alto da escada e me largou
no chão de uma pequena câmara. Eu quei gemendo enquanto Kara e Hen‐
nan se uniram a nós. Telas e painéis de acesso pontuavam as paredes, e o espa‐
ço remanescente era cheio de tubos. Três túneis estreitos saíam dali, um deles
verticalmente.
“Onde estamos?” O que eu realmente queria perguntar era onde estava Jo‐
ão Cortador.
“Dentro da máquina,” disse Kara. “O professor nos deu um mapa do lu‐
gar onde podemos usar a chave.” Ela olhou para baixo do túnel por onde vie‐
mos. “Ele falou que a proteção é mais forte aqui, então seu amigo pode demo‐
rar um pouco mais a nos encontrar.”
“Exceto onde não é,” acrescentou Hennan.
“Como?” Dei uma rápida espiada por cima da beira. Nada.
“A proteção é mais forte na maioria dos lugares. Mas há áreas desprotegi‐
das também,” disse Kara. “Elas estão marcadas com placas amarelas.”
Fiquei de pé, usando a parede para me apoiar, e soltei as amarras das mi‐
nhas mãos. “Então vamos andar logo com isso.” Fiz sinal para Kara ir na fren‐
te. Ela consultou o papel em sua mão e saiu pela passagem à esquerda.
Caminhei na retaguarda, esfregando a nuca. Se ter uma bengala quebrada
no crânio não tivesse me deixado com dor de cabeça, a pulsação da luz fraca e a
vibração penetrante do maquinário oculto teria. As condições apertadas por si
só já eram claustrofóbicas, mas aquilo conseguia ser muito pior que isso. O ar
tinha um fedor enjoativo e as paredes eram apertadas, como se a qualquer mo‐
mento o motor dos Construtores pudesse exionar os músculos e fechar os
buracos já apertados ali dentro.
Lá na frente, a passagem se abria em uma câmara que só tinha espaço su ‐
ciente para nós quatro carmos de pé juntos, e depois seguia em frente. En‐
quanto eu me espremia para entrar, Kara pôs os dedos em um painel de espe‐
lho de formato irregular embutido na parede. O re exo dele parecia embaçado
nas bordas e vários re exos menores de Kara apareciam onde seus dedos fazi‐
am contato. De repente, o rosto dela despareceu do espelho e foi substituído
pelo do professor.
“Ah, estou vendo que o jovem Jalan se recuperou! Deixem que ele use a
chave. Uma imaginação tão hiperativa quanto a dele tem… desvantagens, co‐
mo vimos, mas deve permitir um vínculo forte com a chave e aumentar os
efeitos da…”
“O que é esse negócio aqui?” interrompi.
“Que negócio?”
“Isto!” Passei por Kara e meti o dedo na imagem do professor. “Era um es‐
pelho.”
“Bem.” O professor se in ou como um tutor prestes a distribuir sabedo‐
ria. “Levaria muito tempo para listar todas as suas funções, mas ele tem uma
variedade de usos importantes na sala principal de análise, talvez o menor de‐
les seja a comunicação. Você verá muitos painéis desses ao percorrer a rota até
o processador central, mas na verdade todos eles são o mesmo objeto. É muito
difícil de explicar… nós o chamamos de espelho fractal…”
“Quebre-o, Snorri! Rápido!”
Convencido pelo meu tom de voz, para variar Snorri fez o que lhe disse‐
ram, e com um golpe violento meteu os chifres de seu machado no rosto do
professor.
“Não pode quebrá-lo!” O professor nos deu um sorriso indulgente quan‐
do o machado deslizou sobre a imagem dele sem deixar marca. “E por que fa‐
ria isso?”
“A Dama Azul vai usar o espelho para vir para cá… se é que não já está
aqui. Ela pode ver através dos espelhos, e se nos vir, bem, teremos um proble‐
ma: ela não quer que a Roda seja parada.”
“Se quebrar o espelho, o con namento magnético se tornará instável. To‐
dos os tipos de processos podem ir além de seus limites designados…”
“Estamos aqui para desligar a máquina. Não importa se a estragarmos um
pouco antes.” A Dama Azul podia olhar na nossa direção a qualquer momen‐
to. O espelho era sua última rota de fuga da torre em Blujen: ela di cilmente a
ignoraria. O pânico que vinha borbulhando em mim até a altura do peito, des‐
de que recuperei os sentidos, agora começou a subir até meus olhos.
“Bem…” Professor O’Kee premiu os lábios. “Vocês teriam que descer até o
espelho original no Corredor E. Está marcado no mapa. Mas se quebrarem a
imagem primordial, talvez lhes restem apenas alguns minutos.”
“Antes de quê?”
O professor apertou os dedos em um único punho. “Eu me apressaria.”
“Kara?” Virei para a völva, suando frio.
Ela levantou a cabeça do mapa. “Sigam-me.”
Fiquei bem perto dela, sentindo a urgência atrás de mim. Três corredores
apertados, uma curva à esquerda, duas à direita, uma escada subindo e uma
descendo. Passamos por facetas do espelho em três pontos, e em cada um o
rosto nervoso do professor nos observou passar. Toda vez, meu coração bateu
o ritmo do pânico em meu peito. Cada faceta era uma janela através da qual
uma série de horrores podia estar observando.
“Estamos perto,” disse Kara, agachando-se para passar por baixo de mais
uma faceta do espelho.
“Preciso ver,” falei.
“O quê?” A boca de Kara tornou-se uma linha na.
Ser observado sem saber se está sendo analisado ou não é ser uma presa. O
predador persegue escondido. “Preciso ver,” repeti, pegando a chave. Fui até o
espelho. Por um momento, ele mostrou imagens espalhadas do príncipe Jalan
cintilando em volta do re exo principal, cada uma tão pálida de medo quanto
a outra, diminuindo até carem insigni cantes. O rosto do professor reapare‐
ceu, franzindo. Antes que ele pudesse falar, encostei a chave no espelho. “Mos‐
tre-me.”
A cena mudou, da alcova na base da máquina e o chão de pedra exposta
atrás para uma sala luxuosa cheia de tapetes, forrada com aparadores elegan‐
tes, e em um deles uma caixa marchetada vomitando colares de pérolas e cor‐
rentes de ouro sobre o topo polido. E, em todas as paredes, espelhos, dezenas
deles, de todos os tamanhos, de todos os formatos, com molduras de prata, de
ferro retorcido, madeiras rebuscadamente esculpidas, douradas e reluzentes,
de pinho branqueado, lascados pelos maus tratos… quase todos estilhaçados,
os cacos pendurados como dentes quebrados, espalhados pelo chão.
“Essa é a torre dela. Agora também podemos vê-la, se vier nos espiar.” Eu
me senti um pouco melhor. Não muito.
Kara segurou meu braço e me puxou para longe do espelho. “Venha.”
Mais um corredor e uma rápida descida nos levaram a uma porta trancada
de aço prata. Bati nela com a chave. Nada aconteceu.
“O que há de errado?” Snorri desceu o último degrau, amontoando-se
atrás de nós.
“Não sei.” Procurei uma fechadura. Normalmente a chave criava a sua
própria.
“Tente de novo,” chiou Hennan atrás de mim.
“Jura?”
“Sim.” É um desperdício usar sarcasmo com crianças.
Pressionei novamente a chave à porta, apertada de lado entre a palma da
minha mão e o aço. “Abra!”
O portal se estremeceu e um barulho como se fosse um gigante rangendo
os dentes começou abaixo de nós, vibrando através das solas das minhas botas.
“Abre, cacete! Em nome de Loki!”
Senti uma dor aguda entre os olhos e, em algum lugar naquela parede
grossa, alguma coisa inquebrável se quebrou. A porta se arrastou para trás em
um recesso na parede.
“As fechaduras dos Construtores foram feitas para durar,” disse Kara, em‐
purrando-me para frente.
A sala do outro lado se acendeu quando passei pela porta. Um grande es‐
pelho dominava a parede oposta. Digo que era um espelho, mas ele só mostra‐
va a sala da Dama Azul, e nada naquele lugar se mexia, então podia-se pensar
que era uma pintura. Tinha talvez três metros de altura e era da largura dos
meus braços abertos. As bordas se partiam em desenhos estranhos, quebran‐
do-se em letes de espelhos e nalmente em uma estranha poeira ou fumaça
cintilante.
Dei mais um passo antes de parar, girando os braços para tentar não dar
outro, o que não foi fácil com os outros se aglomerando atrás de mim. “Pa‐
rem!”
“Por quê?” perguntou Kara atrás de mim.
Abri o braço como resposta, com os dedos indicadores estendidos para
apontar para a faixa hachurada pintada de amarelo no chão, subindo pelas du‐
as paredes e no teto. “Não tem proteção.”
“Não pode ser tão ruim.” Snorri agarrou meu ombro e me jogou para
frente.
Em um piscar de olhos, eu me vi cara a cara com João Cortador, o rosto
cortado por aquele sorriso de caveira que era muito mais aterrorizante que a
fúria. Os dedos duros como ferro se fecharam em meu braço e na clavícula.
Snorri me puxou para trás e eu me libertei com um grito, com a pele rasgada e
machucada onde João Cortador quase tinha me pegado para valer.
Snorri e eu caímos para trás, com o viking batendo na parede e conseguin‐
do retardar minha descida ao chão. João Cortador se atirou para frente… e se
achatou contra os escudos invisíveis, espalhando-se e dissipando-se como lí‐
quido no vidro.
“Ele sumiu,” disse Snorri, puxando-me para levantar.
“O que diabos estava fazendo?” gritei.
“Testando.”
“Então teste com você mesmo da próxima vez, cacete!” Endireitei minha
camisa, e depois tentei esfregar os arranhões que os dedos de João Cortador
deixaram em mim. Eles doíam. Fazendo uma careta, levantei a cabeça e vi
Snorri seguindo meu conselho, dando um passo à frente, o cabo do machado
segurado contra o peito como uma barra para se proteger de ataques.
O vulto surgiu quase imediatamente, o chão se abrindo e engolindo-se a si
próprio para revelar uma ssura como a do fundo da Caverna de Ruinárida
em Harrowfjord, aquela que engoliu a sombra de Kelem de volta ao Inferno.
Dali saiu Einmyria, enlameada e gritando, um som horrível que me fez
querer en ar uma faca em cada ouvido para parar de ouvir. Quando a lha de
Snorri levantou o rosto esfolado para nós, moscas surgiram ao seu redor, cus‐
pidas do fosso aos milhares. Vi as mãos dela, a ponta de cada dedo transfor‐
mando-se em uma garra preta e cruel. E depois não vi nada além de moscas
zumbindo até Snorri se atirar de volta por cima da faixa amarela e todo aquele
pesadelo se dissipar como uma fumaça subindo no ar parado.
Snorri, mais uma vez contra a parede, cou encurvado, com o rosto escon‐
dido atrás dos cabelos escuros. Por um longo minuto ninguém disse nada. Ob‐
servei o espelho, aquela calmaria falsa do santuário de Mora Shival, rezando
para que a Dama Azul não voltasse de onde quer que estivesse em sua torre e
nos visse como nós a víamos.
“Desculpe,” disse Snorri por m. “Foi errado eu ter empurrado você para
frente. É difícil compreender a profundidade do medo de outra pessoa.”
“Podíamos jogar alguma coisa para quebrar o espelho…” sugeriu Hennan.
“Não tenho nenhuma pedra,” falei. “E não gostaria de perder minha espa‐
da. Além do mais, não há nenhuma garantia de que o espelho irá se que‐
brar…” Olhei de soslaio para Snorri. “Um machado é uma boa arma para ati‐
rar…”
Snorri fez uma careta e, afastando-se da parede, arrancou a adaga da bai‐
nha em meu quadril e a atirou para o espelho. Ela bateu exatamente no meio,
com força su ciente para enterrá-la até o cabo em uma pessoa… e quicou para
trás, deslizando por cima da fronteira pintada.
Kara en ou-se entre nós enquanto eu pegava minha adaga.
“Se eu jogar isso no espelho,” Kara abriu a mão e revelou uma runa de fer‐
ro do tamanho da unha do meu polegar, “e disser brjóta, que signi ca ‘que‐
brar’ no idioma antigo, ele se quebrará.”
Gesticulei para o espelho. “Fique à vontade.”
Kara estreitou os olhos para mim e depois avançou para a fronteira, com o
braço estendido e um dedo esticado para frente. Ela se moveu tão devagar que
às vezes achei que estava imóvel. Mesmo assim, o efeito se mostrou repentino.
A escuridão brotou onde a ponta de seu dedo raspou no limite da proteção,
espalhando-se como gotas de tinta na água. Em instantes a noite havia engoli‐
do o espaço à frente e um silêncio penetrante nos envolveu.
Nenhum som. Prendi a respiração. E depois um rangido baixíssimo. Tal‐
vez uma tábua debaixo de um pé.
Kara puxou a mão para trás como se tivesse sido mordida. “Não posso en‐
trar aí,” sussurrou ela. Eu me arrepiei só de pensar em uma escuridão que me‐
teria medo em uma bruxa jurada pela escuridão. O medo a fez parecer mais ve‐
lha, como se alguma coisa preciosa tivesse sido sugada dela. Ela respirou fundo
enquanto a escuridão evaporou.
“Eu vou.”
Eu me virei.
“Eu faço.” Uma voz pequena, porém rme. Hennan estendeu a mão para
Kara. “Me dê a runa.”
“Não pode.” Snorri sacudiu a cabeça. “Você viu como é ali dentro. E não é
com o que viu que deve se preocupar, é com o que está dentro de você que vai
sair. O efeito aqui embaixo é muito mais forte do que era na superfície…”
Hennan ignorou Snorri, olhando xamente para Kara. “Foi você que disse
a eles que eu deveria vir. Você disse: ‘O que poderia ser mais valioso do que al‐
guém cuja família resistiu à atração da Roda por gerações?’.”
“Sim, mas…” Kara hesitou. “Isso é diferente. Você viu…”
“Qualquer um que chegue perto da Roda pode se considerar um mago do
mal,” disse Hennan, interrompendo-a. “Jal fez o chão se abrir e engolir uma
pessoa.” Ele fez a mímica com as mãos. “Mas a maioria não é um mago do mal
por muito tempo. A Roda os mata.”
“Certíssimo!” falei. “E não é uma morte boa, aliás. Você é louco de querer
entrar ali.” Percebi que não queria ver o garoto morrer.
“O avô do meu avô foi Lotar Vale. Ele fez suas magias mais perto da Roda
do que praticamente todo mundo antes ou depois dele, e fez isso por dez anos,
e ainda teve forças para ir embora! É por isso que minha família não sente a
atração. O sangue de Lotar corre em nossas veias. Os horrores não vêm para ci‐
ma de nós.” Seria preciso um mentiroso experiente para detectar a hesitação,
mas pude perceber que ele estava apenas supondo.
“Você não sabe o que está dizendo,” disse Kara.
“Deixe-o tentar,” resmungou Snorri.
“Quê?” Kara pegou o braço do menino, como se ele pudesse se atirar por
cima da fronteira a qualquer momento.
“Ele já tem idade su ciente para saber o que quer. Em dois anos será um
homem. A não ser que fracassemos aqui, mas nesse caso ninguém vai ser nada
daqui a dois anos.” Snorri acenou para o espelho. “Se não o quebrarmos e a
Dama Azul nos vir, vocês acham que ela vai pegá-lo para ser seu ajudante? Ou
vai matá-lo conosco?”
Kara não disse nada, mas estendeu a mão, com a pastilha de ferro escura
contrastando com a brancura de sua palma. Hennan a pegou, passou a mão
pelos cabelos ruivos desgrenhados, olhou nervosamente para Snorri e para
mim, e em seguida pôs o pé por cima da fronteira. Deu mais um passo. Com‐
pletamente dentro da área desprotegida agora, ele olhou para trás, com os lá‐
bios contorcendo-se em um sorriso.
“Rápido!” Kara acenou para ele prosseguir.
O ar começou a se agitar em volta de Hennan quando se virou novamente
para o espelho, com passos rápidos, as mãos na frente do corpo como se esti‐
vesse atravessando teias de aranha. Formas quase invisíveis moveram-se ao seu
redor como guras feitas de vidro, vistas apenas como uma confusão de super‐
fícies re etindo e distorcendo a luz.
Ao se aproximar do espelho, uma das formas se escureceu e ganhou cor.
Alguma coisa como uma serpente enrolou-se em seu pulso quando ele o esten‐
deu com a runa.
“Não!” Hennan parecia estar mais com raiva do que com medo. A cobra,
ou o tentáculo, ou o cipó se tornou vitri cado quando ele olhou para ele, e de‐
pois tornou-se insubstancial de novo, e Hennan pressionou a pastilha contra a
superfície do espelho.
“Brjóta.” Por um momento a palavra cou suspensa no ar, estremecendo-
se através dos horrores semi-invisíveis enquanto a Roda tentava lhes dar for‐
ma. No momento seguinte, o espelho se rachou com um estrondo que deixou
meus ouvidos zumbindo. Uma teia de rachaduras o atravessou de cima a bai‐
xo. Imediatamente uma buzina soou, estridente, e a luz passou daquele branco
constante a uma pulsação de vermelhos, em tons que iam de carvão quente até
escarlate.
Hennan deu meia-volta, afastando as mãos translúcidas, passando por ou
através de guras que surgiam por todos os lados. Ele correu para nós, com ca‐
da passo mais lento que o outro, como se estivesse atravessando um pântano.
O ar cou enevoado à sua volta, mas vermelho como o sangue, com os avisos
luminosos.
“Não pare!” berrei.
Faltava um metro agora. Uma na linha carmesim se abriu em sua boche‐
cha quando uma garra vitri cada o cortou. A névoa cou um tom mais escu‐
ro.
Nós três camos parados na fronteira, gritando para ele seguir em frente.
Ele conseguiu dar mais um passo, movendo-se com uma lentidão agonian‐
te, até que outro corte se abriu, agora mais profundo, passando por sua testa e
escorrendo sangue.
Nós nos esticamos para pegá-lo, embora eu felizmente tenha tido o bom-
senso de fazer isso uma fração de segundo depois dos outros dois. Kara foi a
mais rápida, atirando-se até os ombros na escuridão profunda que brotou no
instante em que seus dedos cruzaram o limiar. Escuro ou não, ela pegou o me‐
nino e o arrastou de volta para nós. Eu a peguei quando caiu para trás. Seu
braço não aparentava marcas, mas ela cou deitada em meu colo, tremendo
como se tivesse mergulhado no mar de Norseheim, sem conseguir recuperar o
fôlego, com os olhos arregalados e xos.
“Está tudo bem.” Snorri a levantou de cima de mim.
Eu me levantei e puxei Hennan de pé. Com um pano do meu bolso, enxu‐
guei o sangue de seus olhos. Ficamos parados por um minuto, esperando nos‐
sos corações pararem de tentar saltar de nossos peitos. Kara se desvencilhou de
Snorri e começou a tratar as feridas de Hennan com uma pasta em um saqui‐
nho de couro, e a garota assustada foi banida mais uma vez à parte da mente
onde Kara a guardava, e novamente conosco estava a völva, toda séria.
“Precisamos ir.” Comecei a recuar pela porta. Vovó disse que a Irmã Silen‐
ciosa saberia quando o espelho se quebrasse. Elas começariam agora seu ata‐
que nal à torre, e eu não estava a m de descobrir se a Dama Azul tinha mais
algum truque guardado na manga.
Hennan veio na retaguarda e, ao olhar para trás, vi o ar em torno de seus
ombros enevoar-se brevemente e depois sumir, como se as proteções que antes
se atinham à fronteira pintada pudessem estar falhando, partidas de maneira
tão profunda quanto o espelho.
Depois que os botei em movimento, deixei Kara ir na frente com o mapa e
passei para o meio de nosso pequeno grupo, logo atrás de Hennan. “Bom tra‐
balho ali, rapaz.” Dei um soquinho em seu ombro da maneira que tinha visto
Snorri fazer para demonstrar aprovação. “Se eu ainda for marechal quando
voltar para Vermelhão, viu recomendá-lo para ganhar uma medalha.” Disse a
palavra ‘quando’ silenciosamente em minha boca. Ainda não sabia ao certo o
que faria quando a chave estivesse naquela fechadura nal. Eu podia ter impe‐
dido a Dama Azul de vir visitar através daquele espelho fractal, mas suas pala‐
vras ainda me atingiam. Eu podia ser um deus no novo mundo ou queimar
com os camponeses no antigo…
“Olhem!” Chegamos a uma das facetas do espelho fractal e o encontramos
coberto por uma teia de rachaduras, mas Kara estava apontando para a sala
depois dele, e não para o estrago.
“Não estou vendo…” E aí eu vi. A sala toda tinha um leve tremor e nuvens
nas de poeira branca de gesso começaram a cair sobre a mobília polida. “Ve‐
nham!” O tempo de todo mundo estava se esgotando cada vez mais rápido.
Agora o tempo da Dama Azul havia se esgotado, e de alguma maneira eu acha‐
va que ela não iria dar seu último adeus de maneira suave.
32
Kara nos conduziu pelo interior do gigante adormecido, a máquina que havia
desprendido aquela Roda que no passado guiava o barco do universo em ca‐
minho reto pela noite in nita. A máquina que até agora girava a Roda cada
vez mais longe da posição correta, ameaçando a qualquer momento nos levar a
um precipício, a uma queda que poderia destruir mundos.
A luz pulsante continuou a piscar por toda a estrutura, a sirene penetran‐
do cada canto, tornando quase impossível falar.
“Precisamos correr!” gritei as palavras atrás de Kara para poder ser ouvido.
“Não temos muito tempo.” Desde que quebramos o espelho, eu vinha ouvin‐
do várias partes das grandes engrenagens ganharem vida, ou melhor, sentindo
aquilo na sola das minhas botas. Por baixo da sirene, os mecanismos resmun‐
gavam e gemiam, em um tom nada saudável.
Kara se afastou da porta à sua frente e estreitou os olhos para mim, por ci‐
ma da cabeça de Hennan. “Talvez a pessoa com a chave que abre tudo deva ir
na frente?”
Eu podia entregar a chave, mas isso daria a sensação de entregar minhas es‐
colhas. Então me espremi entre eles e segurei a chave contra a porta até as tra‐
vas ocultas se abrirem e a placa de metal sair do meu caminho.
Passamos por meia dúzia de facetas do espelho, posicionadas como se fos‐
sem janelas para o interior das criações dos Construtores, mas cada uma mos‐
trando o sacrário da Dama Azul. Outras duas vezes vi o recinto se estremecer,
e, na segunda vez, pedaços maiores caíram do teto, junto com várias molduras
de espelho e inúmeros cacos cintilantes dos espelhos quebrados cujos dentes
foram sacudidos.
“Para cima?” Olhei para o túnel estreito, pulsando vermelho.
“Para cima,” assentiu Kara.
“Será que Snorri vai conseguir? Ele é bem gordo.”
Snorri rosnou, com a luz brilhando nos músculos suados pela temperatura
que subia à nossa volta.
Respirei fundo e me arrependi. “Parece que o restante dos Construtores
veio aqui para morrer.”
O espaço apertado do túnel abafou a sirene, mas quando saí para a peque‐
na câmara no topo ela voltou com força total. Cambaleei até a faceta espelhada
embutida na parede e bati a chave em uma das telas apagadas embaixo. “Faça
isso parar!”
A palavra ‘parar’ ecoou pela sala em silêncio. Kara olhou para mim ao sair
do buraco.
“Muito bem.” Esfregando os ouvidos, ela recuou para ajudar Hennan a
sair.
“Graças aos deuses por isso.” Snorri saiu apertado do túnel, exionando os
ombros.
“Estamos perto agora. A câmara central é depois da próxima. Por aqui.”
Kara apontou para uma abertura estranha, alta, estreita, que levava ao que pa‐
recia ser um pequeno armário.
O som de uma porta se abrindo com tudo fez todos nós girar para trás. A
Dama Azul estava na entrada da sala atrás do espelho, com os braços abertos
como se estivesse prestes a fazer algum feitiço pavoroso, os cabelos grisalhos
desgrenhados, uma capa azul-escuro girando ao seu redor. A velhice dela me
chocou. Eu sabia que ela tinha mais de cem anos nas costas, mas nunca a vira
daquele jeito, como algo que poderia estar empilhado no carrinho de cadáve‐
res do fundo da prisão de devedores: ossos cobertos por pele velha que se en‐
rugava em volta de cada junta. Pior que a idade dela era a maneira como se me‐
xia, possuída com uma vitalidade desnatural, ávida, os olhos febris. Ela correu
para a superfície entre nós, percorrendo a distância em um momento. Seu ros‐
to preencheu o espelho, guinchando pragas para nós em uma língua que feliz‐
mente eu não entendia.
Dei um passo para trás quando duas mãos enrugadas cobriram a faceta es‐
pelhada e a coisa toda cou escura. “O que ela está fazendo?” Mora Shival po‐
dia parecer uma sombra de si mesma — não uma sombra, era mais como se ti‐
vesse se desgastado demais ao longo do dia — mas ainda me metia um puta
medo. “O que ela está fazendo?”
“Não sei,” disse Kara. “Mas devemos continuar seguindo.”
“Para onde?” perguntei.
Kara apontou para a abertura que havia indicado anteriormente.
“Mas é só um armário ou coisa parecida…”
“O mapa diz que é por aqui.” Ela olhou para o papel em sua mão, franzin‐
do a testa.
“Ok.” Passei por Snorri e en ei a cabeça na abertura. “Só tem espaço para
uma pessoa de pé aqui, e nenhuma outra saída.”
“Talvez ela vá para cima,” disse Snorri.
Não gostei nem um pouco disso.
“Entre aí e experimente.” Pelo menos ele não me empurrou desta vez.
“Isso deve dar.” Uma voz estranha atrás de mim.
Ao me virar, vi as mãos se afastarem do espelho facetado, revelando nova‐
mente o rosto abatido e os olhos brilhantes da Dama Azul. “Isso deve dar,” re‐
petiu ela, com a voz rouca, sem um vestígio da cultura e do humor de que eu
me lembrava pelas memórias da Rainha Vermelha.
“Dar o quê?” eu quis perguntar, mas minha língua emperrou quando mi‐
nha boca cou seca. Pude ver algumas linhas níssimas da testa se fechando.
“O espelho está se regenerando.” Kara se afastou. “Ande! Rápido!”
Feliz de me afastar agora, entrei no espaço depois da abertura, cruzando os
braços sobre o peito. Fiquei de pé em um tubo vertical pouco mais alto que
eu. Um painel prateado sem indicações estava embutido na parede curva à mi‐
nha frente. Na falta de outra ideia, pressionei a chave a ele. “Abra.” A estrutu‐
ra se estremeceu. “Abra!” O painel cou preto. “Abre, cacete!” Alguma coisa
começou a se mexer com o som de aço sendo torturado, um terrível barulho
arranhado que me fez cerrar os dentes.
“Jal!”
Virei a cabeça bem a tempo de ver Snorri desaparecer quando o cilindro
interno girou comigo dentro, fechando o buraco da abertura. Mantive a chave
pressionada ao painel e rezei com força a qualquer deus que quisesse me acei‐
tar. A luz gaguejou e se apagou. Já tive semanas que passaram mais rápido que
os trinta segundos que se seguiram. Por m uma linha vertical brilhante apa‐
receu, alargando-se com uma lentidão agoniante até uma fresta grande o bas‐
tante para eu atravessar, à media que a abertura do cilindro interno girou, ali‐
nhando-se à abertura que dava acesso à sala seguinte.
“Ciclo de descontaminação completo,” disse uma voz sem vida no cilindro
quando saí.
A primeira coisa que me pegou foi o fedor, como se alguma coisa tivesse se
rastejado até ali para morrer. Felizmente, foi a única coisa que me pegou. A câ‐
mara era maior do que eu esperava, com paredes irregulares dando para passa‐
gens convolutas e estreitas que seguiam além do alcance da luz vermelha pul‐
sante. Uma estrela temporal utuava na altura da cabeça, no centro da câma‐
ra, brilhando azul acima de um disco preto no chão de aço prata. Tentei não
car olhando para ela, sentindo que aquele troço podia fascinar uma pessoa,
fazendo-a passar o resto da vida olhando para aquilo.
Uma faceta do espelho fractal havia sido colocada em uma das poucas se‐
ções planas da parede. A teia de fraturas continuou seu lento processo de rege‐
neração, e por um momento a Dama Azul voltou suas atenções à porta de seu
sacrário. Nas paredes em volta dela, mais de uma dúzia de espelhos intactos
agora estavam pendurados nos locais onde os ocupantes originais haviam sido
derrubados. Todos eram iguais: um espelho simples em uma moldura barata
de pinho… O mesmo espelho que vi pendurado em vários pontos da cela de
Tuttugu enquanto ele jazia morto.
Na seção da parede diretamente oposta a mim havia uma válvula igual à
que eu acabara de atravessar, ao lado de um grande painel retangular preto.
Pressionei a chave à parte externa da válvula que me deixou entrar. “Continue
girando.” A coisa rodou com uma preguiça agoniante, lutando a cada centí‐
metro do processo.
No espelho, a porta da Dama Azul se estremeceu com um grande golpe.
Depois outro. Na terceira pancada ela se estilhaçou como se fosse feita de vi‐
dro, com pedaços a adíssimos voando em todas as direções. A Irmã Silenciosa
se revelou na entrada, encurvada em seus trapos cinzentos como sempre, com
aquele vestígio de sorriso enigmático enfeitando os lábios nos, um olho escu‐
ro e penetrante, e o olho cego brilhando como se sua cabeça estivesse cheia de
luz. Atrás dela, mais alta, mais larga e de armadura carmesim estava a Rainha
Vermelha, com fumaça subindo do manto em seus ombros como se ela pudes‐
se a qualquer momento entrar em combustão.
“Alica.” A Dama Azul inclinou a cabeça para reconhecer suas visitantes.
“E sua irmã. Nunca guardei direito o nome dela.”
Atrás de mim, Kara saiu da válvula que continuou girando, rodando a
abertura novamente na direção de Snorri e Hennan. “Não olhe para a estrela,”
chiei, virando o rosto dela com uma mão.
“Talvez possa nos apresentar?” disse a Dama Azul.
Minha avó não respondeu. A Irmã Silenciosa entrou na sala e, ao fazer is‐
so, re exos da Dama Azul saltaram dos espelhos novos nas paredes, cada um
correndo em direção à original, para dentro dela, e de alguma forma unindo-se
a ela. Cada união dessas rmava mais a presença de Mora Shival no mundo,
dando de nição a ela, fazendo o azul de sua túnica mais forte, mais intenso,
mais vibrante, tornando sua carne mais sólida em cima dos ossos.
“Não.” A Irmã Silenciosa disse apenas essa palavra e todos os espelhos ex‐
plodiram-se em fragmentos, com nuvens cintilantes surgindo na frente de ca‐
da moldura. Até as rachaduras no espelho fractal se espalharam por um mo‐
mento, em vez de se regenerarem. Não conseguiria descrever como era o som
dela, só sei que a palavra foi dita.
“Isso foi uma tolice.” A Dama Azul limpou a boca onde um caco voador a
cortara. “Gastar seu poder assim.”
“Você não vai fugir desta vez.” Minha avó apareceu ao lado de sua irmã.
Ela estava segurando uma espada longa e na com runas em sua extensão.
“Você não pode impedir isto, Alica.” A Dama Azul deu um passo para
trás, na direção do espelho fractal. “Este mundo está destruído. A morte está
destruída, junto com a escuridão e a luz. Há uma vida melhor à espera daque‐
les de nós que têm a força mental para resistir. O rebanho está perdido de uma
maneira ou de outra, mas os pastores podem sobreviver.” Ela encarou as mu‐
lheres velhas à sua frente, mas eu sabia que suas palavras eram para mim.
“As pessoas podem ser salvas.” Vovó ergueu sua espada, apontando-a para
o coração de sua inimiga. “E eu lutarei para salvá-las, por menor que seja a es‐
perança de sucesso.”
Mora Shival balançou a cabeça. “Você fala das pessoas, garota, mas foi tu‐
do sempre para manter o poder nas suas duas mãos. É o medo que a mantém
lutando. Medo do que você pode ser sem a história, sem o trono e a coroa para
encher as gargantas dos seus plebeus com vivas. Você nasceu para o poder.
Chegou a ele passando por cima dos corpos e mentes arruinados de seus ir‐
mãos. Em algum lugar atrás desses olhos ferozes o sonho de ser a Imperadora
Vermelha ainda arde, não é, Alica? Você vem planejando um caminho para o
trono maior durante tantos anos que não consegue abrir mão dele nem se ten‐
tar. Você arruinou o poder do Czar Keljon no oriente, neutralizou Scorron,
pôs o temor a Deus nos Reinos Portuários às suas costas… e aqui está você,
avançando pela Slóvia com um pretexto, destinada a Vyene. Está empilhando
cadáveres mais rápido que o Rei Morto, então não me venha com esse papo de
‘as pessoas’.
Snorri juntou-se a Hennan atrás de mim e gesticulou em silêncio para a
válvula do lado oposto.
“A última câmara,” cochichou Kara. “Você pode acabar com tudo isso.”
Corri, abaixado e com medo, para o outro lado da câmara, contornando a
estrela azul ardendo no centro. A válvula se mostrou idêntica à primeira. Pres‐
sionei a chave a ela, causando o mesmo tremor quando aquilo que a segurava
ali fez força para me negar, e em seguida veio a mesma volta lenta e arrastada
do cilindro interno. Por cima do barulho arrastado, ouvi um último trecho do
confronto na torre de Mora Shival em Blujen.
“Como está aquele menino querido que você arruinou se livrando de mim
lá em Vermelhão? Ele não deveria ser o terceiro Gholloth? Se existe alguém
que tem direito a ser imperador, é ele. O último imperador, retorcido e baban‐
do no trono maior enquanto observa o mundo à sua volta morrer.”
Eu quis gritar que Garyus daria um ótimo imperador — melhor que qual‐
quer uma delas — mas a entrada se estreitou a um dedo de largura e depois de‐
sapareceu, isolando o som e me jogando mais uma vez na escuridão.
A estrutura inteira se estremeceu, um grunhido gutural ressoando pela su‐
perestrutura de metal. Por toda a grande máquina, em engrenagens que as me‐
lhores mentes entre os Construtores conceberam e forjaram, um elemento lu‐
tava com o outro, descontrolados agora que o espelho, que era ao mesmo tem‐
po único e múltiplo, estava rachado.
Girei com o cilindro e por m a abertura reapareceu à minha frente, pri‐
meiro uma nesga cinza-escuro, depois da largura de um dedo apenas um tom
mais claro que a escuridão ao meu redor, a largura de uma mão, mais larga…
atravessei.
Um único painel de luz no teto fez força para ganhar vida, substituindo a
escuridão quase impenetrável com uma meia-luz vermelha e bruxuleante, per‐
seguindo as sombras na direção dos cantos, e depois recuando e deixando-as se
reagruparem. Quatro pilares grossos e quadrados ocupavam o meio da sala, ca‐
da lado coberto com telas, todas escuras.
Imediatamente vi que a pouca quantidade de luz que havia visto no recin‐
to a princípio vinha da janela ao lado da válvula. Achei que fosse um painel
preto, mas na verdade era uma janela de vidro grosso que dava vista para uma
sala escura, e que agora mostrava Snorri e os outros esperando do outro lado
da válvula.
À minha esquerda, um pano cinza e sujo estava pendurado sobre alguma
coisa na parede. Puxei o troço e vi que era uma capa, esfarrapada e manchada
de tanto uso. Ela estava cobrindo a faceta do espelho do recinto. A Dama Azul
estava próxima ao espelho agora, de costas para ele, com as mãos levantadas.
Os lampiões de seus aposentos lançaram sua sombra sobre mim, com o restan‐
te da luz entrando na câmara. Vovó e sua irmã estavam diante da Dama, com
os rostos tensos de concentração. Eu já havia visto aquela expressão antes, nas
memórias de vovó, quando as duas lutaram com seus re exos na infância. Um
brilho prateado, avistado entre os dedos da Dama Azul, con rmou que em ca‐
da mão ela segurava um pequeno espelho apontado para suas inimigas.
O esforço no rosto delas prendeu minha atenção. Manteve a respiração
presa em meu peito. Fez eu car em silêncio. Foi aí que ouvi o passo atrás de
mim.
“Ai meu Deus. É João Cortador.” A mão gelada do medo entrelaçou os de‐
dos nas minhas entranhas.
“Não importa quem seja esse seu bicho-papão, ele é criação sua. Só pode
machucá-lo de maneiras que consiga imaginar. Eu, por outro lado, vou ma‐
chucá-lo de maneiras piores. Maneiras que não pode imaginar.”
Eu me virei com as pernas quase fracas demais para me segurarem. Edris
Dean estava ali, diabólico na luz vermelha pulsante, com a crista escura de seus
cabelos pretos como a noite no meio das entradas em sua testa. A cicatriz clara
e horizontal embaixo de seu olho direito parecia sublinhar suas palavras. Uma
cicatriz mais escura, grossa e rugosa corria pela lateral de seu pescoço, onde
Kara quase arrancara a cabeça dos ombros dele.
Um movimento no canto do meu olho chamou minha atenção para a ja‐
nela por um momento. Mortos-vivos estavam surgindo pelos corredores retor‐
cidos que saíam para as profundezas da máquina na câmara atrás de mim. Pu‐
de ver a boca de Snorri se abrindo em um rugido, Kara berrando alguma coisa
ou gritando, mas nem vestígio do som chegou até mim.
“A Dama Azul me mandou pelo espelho na frente dela… com alguns ami‐
gos… para proteger a Roda e assegurar que ninguém tentaria fazer nenhuma
bobagem, como desligá-la.” Edris sorriu. Ele estava segurando uma espada
curva de ferro preto, com a ponta repousando preguiçosamente no chão entre
nós. Ela me lembrava as lâminas que os Ha’tari carregavam nas profundezas
do Sahar.
Olhei para a janela mais uma vez. Havia muitos mortos-vivos. Todos de ar‐
madura de couro com debruns azuis. Eles se moviam com uma rapidez preo‐
cupante, os rostos cheios de fúria e escuros com sangue antigo. O machado de
Snorri abriu um caminho entre dois deles, espirrando na janela.
“São os soldados da Dama Azul,” falei. “Você os matou.”
Edris inclinou a cabeça. “Mortos são melhores em obedecer ordens.”
No espelho, a Dama Azul jogou as mãos na direção da Irmã Silenciosa e da
Rainha Vermelha. “Você foi tola em deixar seu exército sangrar aqui por tan‐
tas semanas, Alica.” Ela chiou as palavras como se estivesse forçando-as entre‐
dentes. Vovó caiu de joelhos com um grito, com as mãos para frente, lutando
com o invisível. A Irmã cou de joelhos lentamente, aos poucos, primeiro so‐
bre um, depois com os dois, como se um grande peso estivesse sobre ela, au‐
mentando a cada instante. “Você desperdiçou tantas vidas e tanto de sua for‐
ça… e para quê? Para morrer aos meus pés.” A Dama Azul balançou a cabeça.
“Não foi você que se tornou mais forte com os anos.”
“Você deveria ter protegido o espelho,” disse a Edris, e pus a mão no cabo
da minha espada, a lâmina que havia tomado de Edris lá na Torre das Fraudes
em Umbertide. “Agora sua patroa está trancada lá.”
“Achei que poderia chegar até aqui,” disse ele. “Você e o nórdico.” Ele ace‐
nou para a janela salpicada de sangue. Não dava para ver muita coisa através
dela, a não ser o contorno das pessoas, todos em movimentos violentos. “E a
vadia.” Ele esfregou distraidamente o pescoço e a cicatriz preta acima da claví‐
cula. “Achei que pudesse quebrá-lo para mim, então eu deixei. Sabe, nunca
gostei muito da Dama, e ela nunca con ou muito em mim, pois eu me recusa‐
va a aparecer em qualquer futuro que os sábios conseguem ler. Sou a favor do
plano dela, e tudo mais. Só que pre ro me ver na cabeceira da mesa quando os
novos deuses se reunirem no mundo que vier depois deste. Edris, o Senhor da
Criação. Soa bem, isso é verdade.” Ele ergueu sua espada maligna, com a ponta
a um palmo da minha barriga. “Se puder me passar essa chave agora, farei as
honras.” Ele fez sinal com a cabeça além dos pilares. A luz do espelho revelou a
parede dos fundos, projetando suas próprias rachaduras sobre as muitas telas
embutidas ali, rachaduras que ainda estavam se fechando, talvez na metade do
caminho para uma recuperação completa. No meio da parede dos fundos esta‐
va o painel prateado que o professor tinha descrito, com a legenda ‘Aciona‐
mento Manual’ acima dele. Uma linha escura no meio que devia ser a abertura
da chave.
Olhei para a ponta a ada abaixo, no nível do meu umbigo, e depois para
vovó e a Irmã Silenciosa lá atrás, de joelhos, fazendo força para se levantarem,
mas sendo inexoravelmente pressionadas para baixo, com sangue começando a
escorrer pelos cantos dos olhos. Pensei em Hennan na Torre das Fraudes, com
a espada de Edris Dean contra o pescoço. Eu havia dado a chave de Loki para o
menino entregar ao necromante e ele a atirara de volta para mim. Recusando-
se a me deixar comprar sua liberdade. Meus olhos se voltaram para a ponta da
espada à minha frente. No m, as coisas sempre se resumem à ponta da espa‐
da. Edris tinha me ameaçado com horrores que eu não poderia imaginar. Eu
não podia imaginar direito aquele ferro preto entrando na minha barriga.
Um grito agudo de dor ecoou atrás de mim. Uma velha machucada. Algu‐
ma coisa escura e sangrenta bateu na janela ao meu lado, escorregando sem fa‐
zer barulho. Era um vulto franzino… talvez Hennan…
Atirei a chave e, que Deus tenha misericórdia com minha alma herege, re‐
zei para Loki, mesmo sabendo que ele não era nada além de uma gravação de
um professor velho, registrado no mundo e formado por lendas. Rezei e
acompanhei a rotação da chave pelo ar com uma única palavra, ‘desligar!’, es‐
colhida pelo único motivo de querer o oposto de qualquer coisa que Edris De‐
an quisesse. Nós todos ainda estaríamos rumando para o Inferno em um carri‐
nho de mão se a máquina se desligasse: A Roda continuaria a girar, embora
mais lentamente, impulsionada pela incapacidade do homem de não usar o
poder para ganhos pessoais. Mas, mais que tudo, eu queria que Edris Dean
fosse para o Inferno primeiro.
É claro que não se pode esperar atirar uma chave para uma fechadura pe‐
quena a dez metros de distância e esperar acertar, quanto mais entrar e girar.
Mas Loki é o deus dos truques.
Existe um benefício em fazer coisas muito idiotas. Elas surpreendem as
pessoas. Jogar a chave do outro lado da sala surpreendeu Edris Dean o su ci‐
ente para eu sacar minha espada e afastar o golpe atrasado dele da minha barri‐
ga, ao mesmo tempo que saltava para trás. Uma sensação quente e úmida em
meu quadril me disse que eu não tinha escapado ileso, mas pelo menos a espa‐
da de Edris não estava atravessada em mim.
Edris golpeou novamente e eu girei sua espada. Atrás dele, todos os painéis
da parede oposta se acenderam, com uma enxurrada de números descendo so‐
bre eles como se fosse um rio de dígitos caindo por um penhasco. A chave,
agora en ada na fechadura, começou a fumegar de leve, como se a obsidiana
estivesse soltando escuridão em vapor. Todos os barulhos, rangidos e tremores
anteriores pareciam ín mos se comparados aos sons torturados que agora
atravessavam o chão de metal. Em algum lugar bem fundo das máquinas de
cálculo dos Construtores, uma guerra criptológica de códigos e cifras estava
sendo travada, pois a chave buscava tanto controlar a segurança que protegia a
função principal da Roda quanto solucionar os problemas que derrotaram o
professor O’Kee durante tantos anos, fazendo os motores diminuírem de tal
modo que não nos lançassem para o precipício que estávamos tentando evitar.
Edris atacou minha cabeça. Defendi o golpe, com o choque do aço quase
perdido na cacofonia à nossa volta. No m das contas, com tantas maneiras de
morrer me rodeando, percebi que o medo era menos importante para mim do
que o fato de o homem que matou minha mãe estar diante de mim. Defendi
novamente e dei uma estocada, furando sua túnica e deixando um arranhão
reluzente na cota de malha por baixo.
“Se me matar, não vai ter tempo de forçar a chave para o outro lado!” gri‐
tei. “E se tentar fazer isso antes de me matar, corto sua cabeça fora.”
Edris deu um golpe com força e saltou para trás. Ele limpou a boca, ensan‐
guentada pela língua mordida, e me olhou com a respiração pesada.
Pela faceta do espelho na parede entre nós, avistei vovó e a Irmã Silenciosa,
ambas de quatro, os braços curvados sob o peso invisível, e a Dama Azul indo
em direção a elas, triunfante.
“Você veio salvar o mundo, Alica,” chiou ela. “Mas se esqueceu de trazer
alguém para salvar você.”
A Irmã conseguiu levantar a cabeça, o olho escuro como um buraco à
meia-noite, e o olho cego um buraco para o sol do meio-dia. A deusa de Snor‐
ri, Hel, tinha olhos assim. A velha conseguiu erguer uma mão, com os dedos
em forma de garra, e por um momento o avanço da Dama parou, mas só por
instantes. A cabeça da Irmã baixou outra vez, com o rosto escondido pelos os
grisalhos.
Edris assistiu, tão fascinado pelo espetáculo quanto eu. As mãos que nos
manipularam em seu tabuleiro a vida inteira agora se encontravam para um
acerto de contas nal.
“Elas não me trouxeram. Eu vim.” Um vulto na entrada da Dama Azul,
coberto de pó de alvenaria, cinza como um fantasma. A princípio, não pareceu
humano: grandalhão demais, muitos membros em ângulos estranhos.
Um passo para frente e a nova gura desabou, agora fazendo certo senti‐
do. Um homem carregando outro. O homem de joelhos, baixo, robusto, mo‐
reno por baixo da poeira, com cara de secretário em vez de herói, apesar do
uniforme e da espada em seu quadril. Capitão Renprow, assistente do mare‐
chal de Vermelhão, minha mão direita na organização da defesa.
“Não!” Se o espelho realmente fosse uma janela, eu teria me atirado atra‐
vés dele. A gura menor, que caiu estatelada, rolando no meio dos cacos de es‐
pelho, era retorcida de maneira tão cruel quanto qualquer vítima na mesa de
João Cortador. Um velho, deformado, que mal conseguia se virar sozinho, e
no entanto, naquele momento em que levantou sua cabeça malformada, era
mais nobre que qualquer homem que já vi em um trono.
“Madame.” A voz de Garyus saiu rouca de sua garganta. A viagem de Mar‐
cha Vermelha não devia ter sido fácil para ele, e a viagem da base da torre me‐
nos ainda. “Você subestima o quanto um lho de Kendeth está disposto a sa‐
cri car por sua irmã.”
Uma mão retorcida se estendeu e os dedos velhos com juntas exageradas
envolveram o tornozelo da Irmã Silenciosa. Eu vi a dor até mesmo daquela pe‐
quena ação no rosto dele — o frio sempre perturbou as juntas de Garyus, e na
Slóvia o inverno tem dentes.
A irmã Silenciosa exionou os ombros e depois endireitou os braços, com
a cabeça ainda baixa. O som de estilhaçamento preencheu o ar. Ela cou de jo‐
elhos, tomando fôlego ruidosamente.
“Para baixo!” A Dama Azul juntou as duas mãos como se estivesse esma‐
gando alguma coisa entre elas.
A Irmã Silenciosa se levantou com um movimento lento, deliberado,
acompanhado a cada etapa pelo som de vidro se quebrando, até não restar
mais nada para quebrar. Nas mãos da Dama Azul os dois últimos espelhos se
partiram. A Dama abriu os dedos assustada e cacos de espelho caíram em meio
ao sangue escorrendo, com as mãos cortadas pelos fragmentos.
Alica Kendeth, a Rainha Vermelha, cou de pé com um rugido furioso,
balançando sua espada.
Com um grito, a Dama Azul se afastou da luta girando sobre o pé, de al‐
guma maneira rápida o bastante que a ponta da espada de vovó abriu apenas
um sulco em seu ombro, e se atirou para seu último espelho, para direção de
Osheim, para mim. Por uma fração de segundo, sua imagem preencheu a face‐
ta. Ela atingiu as rachaduras remanescentes que a cortaram como arames atra‐
vessando um queijo. E ela despareceu — sem restar nada no espelho a não ser
uma mancha carmesim, com o recinto do outro lado visto fracamente através
dele. Sangue escorria sobre a imagem da Rainha Vermelha, com a espada es‐
tendida, a ponta contra o espelho que sua inimiga havia atravessado. Tinha
poucas dúvidas de que uma visita ao espelho fractal muito abaixo de nós reve‐
laria um monte úmido de partes do corpo bem cortadas, os últimos vestígios
de uma mulher que teria sacri cado um mundo para ser um deus em outro.
A lâmina de Edris piscou na minha direção. Eu quase não a desviei de meu
peito. Minha falta de atenção me presenteou com um corte super cial no bra‐
ço. Os painéis da parede distante agora brilhavam vermelhos, e pensei ter visto
uma gura se mexendo atrás deles, como se cada um fosse uma janela na pare‐
de para algum espaço do outro lado. O som havia parado de certa forma, redu‐
zido a grunhidos metálicos graves e o barulho lento de uma engrenagem, com
um dente após outro passando por ela.
Edris ngiu um ataque, e nossas lâminas rasparam as pontas. “Não tenho
tempo de matar você,” disse ele. “Felizmente, trouxe alguém comigo que
tem.” Ele se afastou e o desnascido se desdobrou como uma aranha do teto es‐
curecido, onde havia se escondido nas sombras atrás dos pilares. Ele desceu no
espaço que Edris abriu entre nós, um horror feito com carne fresca rearranja‐
da sobre os ossos dos homens que a Dama Azul enviara com Edris. Um tronco
sobre pernas grossas, abaixado por cinco membros nos e brutos saindo de
seu peito aberto, cada um de dois metros ou mais, com uma dúzia de articula‐
ções, e terminando em uma ponta a ada de osso.
Edris virou de costas e caminhou até a parede distante e a chave. “Com es‐
sa espada que você roubou de mim, talvez até consiga mandá-la de volta ao In‐
ferno. Mas ela ainda estará ligada ao lichkin. Em todo caso, vou ganhar o tem‐
po necessário e lidarei com você depois, se for preciso.” Ele pôs a mão na chave
e suspirou quando as mentiras dela o envolveram. “Embora não vá haver de‐
pois.” O pulso dele girou, forçando a chave para o outro lado, e as grandes en‐
grenagens uivaram uma nova nota. “É assim que o mundo acaba. Sem explo‐
sões, sem choradeira, apenas o giro de uma roda.”
No m, há poucas coisas mais capazes de arrancar estupidez e coragem de
um homem em medidas iguais — se é que elas não são a mesma coisa. A famí‐
lia faz isso, e também a visão de alguém que você odeia muito prestes a con‐
quistar seu momento de triunfo.
“Nunca subestime o que um lho de Kendeth está disposto a sacri car
por sua irmã.” As palavras saíram de meus lábios sem qualquer vestígio de me‐
do.
Não foi um berserk que se apossou de mim. Acho que a fúria que me en‐
volveu naquele dia que cortei a garganta de Maeres Allus nunca havia real‐
mente me largado, nunca se aninhou de volta naquele espaço minúsculo e es‐
quecido onde eu a guardava, mas sim se misturou ao meu sangue como acon‐
tece com qualquer outro homem, às vezes quieta, às vezes estrondosa. A raiva
que ergueu minha mão era toda minha, comprada e quitada. Atirei a espada
de Edris girando pelo ar, assim como a chave havia feito. E assim como a chave
de Loki acertou o alvo, a lâmina ímpia de Edris também o fez, acertando-o en‐
tre as escápulas.
O desnascido recuou entre nós, fechando os braços à minha volta como os
dedos de uma mão. De alguma maneira, Snorri havia visto a essência de seu ‐
lho dentro daquele desnascido que nos atacou dentro da abóbada do Forte
Negro. Na época, eu não tinha entendido como ele viu seu lho naquela cari‐
catura podre de carne de cadáver e chorou para dar m a ela. Eu também não
via agora, mas sabia que minha mãe teria visto sua lha, e isso foi o su ciente.
Não foi minha faca que en ei no coração aberto do desnascido, mas o sinete
do cardeal daquela estrada distante, passando pela fronteira de Attar-Zagre.
Não foi a minha fé que separou a criança que nunca veio ao mundo do mons‐
tro forjado no Inferno. Foi a fé dos milhões amontoados em suas igrejas, es‐
condendo-se dos sonhos inquietos em suas camas, intimidados por sinais e
presságios, agarrados ao seu deus à medida que o m dos tempos se aproxima‐
va. Aquela fé, aquela determinação, aquela crença, fortalecida pela própria
Roda, separou a criança do horror e deixou a carne morta despedaçada no
chão.
Eu não tinha sentido as pontas me perfurando. Não senti a dor até rolar e,
ao me ver no chão, tentar levantar. O sangue jorrava dos ferimentos em meus
ombros e lateral, escorrendo quente em minhas costas. Virei de lado e quei
deitado ali, observando. Edris estava virado para mim agora, com o rosto con‐
torcido de fúria, a ponta de sua própria espada saindo logo abaixo das costelas.
Eu não me importava mais com Edris. Olhei em volta e vi os dois, o li‐
chkin e minha irmã sem nome. Ela estava de pé, um espírito pálido, crescida
como a mulher que havia visto quando a cortei da árvore de Hel. Ela tinha
tanto a minha mãe quanto a Rainha Vermelha dentro de si, linda, forte, deste‐
mida. O lichkin, branco feito um nervo e nu, escondendo-se no ponto cego
dos meus olhos, estendeu-se para se vestir com o fantasma de minha irmã. Ela
tomou os dedos dele nos seus e enrolou todo o corpo dele rapidamente em
uma bola, maior que uma cabeça, depois comprimiu a bola até ela car menor,
menor, do tamanho de um punho, um olho, uma ervilha… sumiu.
A imagem dela ondulava como um re exo na água, mudando, esvanecen‐
do, encolhendo, uma moça mais jovem, uma criança…
“Não vá.” Tentei levantar a mão para ela.
Edris apareceu ao lado dela, com sangue ensopando a camisa cinza sobre o
abdômen. “Não vá,” repetiu ele. “Tenho certeza de que posso encontrar outro
mestre para você.” Seus dedos se mexeram para lançar runas no ar, tramando
uma nova teia de necromancia para prendê-la outra vez.
Minha irmã, uma criança pequena agora, fez a seu algoz uma carranca que
eu conhecia do rosto da Rainha Vermelha nas muralhas de Ameroth. Ela ba‐
teu o pé, esmurrando com os dois punhos, e num instante Edris foi arremessa‐
do para baixo, gemendo ao meu lado na bagunça fétida de restos do desnasci‐
do. O gemido se transformou em um rosnado e ele cou de joelhos, encarando
os leves contornos que eram tudo que restava de minha irmã, bloqueando-a da
minha vista. Minha espada ainda estava en ada entre os ombros dele, com o
cabo virado para mim, balançando um pouco fora do alcance.
Eu não tinha forças para me mexer. Mas tinha o desejo, e me movi mesmo
assim. Com um último surto de energia, puxei a espada para trás e arranquei a
cabeça dele com um golpe violento, mais por sorte do que por discernimento.
Edris cou ajoelhado mais um momento, espirrando sangue, depois tom‐
bou.
De minha irmã não havia nem sinal.
Levei uma eternidade para chegar à parede dos fundos, rastejando, atraves‐
sando a imundície, enquanto à minha volta as engrenagens dos Construtores
gritavam pelo m do mundo. De alguma maneira minha mão se fechou em
volta da chave e eu a girei para a posição do meio, neutra.
E ali, no m de todas as coisas, eu hesitei. Se deixasse a chave de Loki con‐
cluir seu trabalho, eu garantiria uma passagem segura para o novo mundo que
a Dama Azul tanto desejou. Um deus. A posição que sempre procurei, e mui‐
to mais, jogada no meu colo. Nada mais daquele principezinho supér uo vi‐
vendo às margens da corte de minha avó. Se virasse a chave novamente para a
esquerda, os grandes motores se desligariam, a magia sairia deste lugar e, sem
nada para impulsioná-la para frente, a Roda que os Construtores zeram gi‐
rar, mudando o equilíbrio entre o desejo e a matéria sólida do mundo, dimi‐
nuiria e acabaria parando. Talvez ela até girasse para trás e nos levasse de volta
à vida que as pessoas conheciam durante todos esses longos anos desde que al‐
gum idiota nos espalhou pela face da Terra.
Se escutasse os sábios, contudo, você saberia que eles previram o adiamen‐
to da destruição, não o seu m. A Irmã Silenciosa viu aquela mesma Roda gi‐
rar sob pressão da ganância dos homens pelo poder e partir tudo, jogando a
nós, mortais inferiores, no fogo e na destruição. Eu podia me salvar agora e
dar m a inúmeras nações… ou entregar a mim mesmo e todas aquelas pessoas
à fogueira em poucos anos. Embaixo da minha mão, a chave fumegou e ao
meu redor a máquina reclamou e rugiu. A chave ainda batalhava com o fecho,
lutando por controle, e a máquina, sem o espelho fractal para moderar suas
energias, cou descontrolada.
As muitas telas dos meus dois lados continuaram a mostrar porções de
uma cena maior, como se elas perfurassem a parede, revelando o que estava
acontecendo na mente da máquina do outro lado.
“Preciso…”
“Os homens não sabem do que precisam.” Um vulto se virou, interrom‐
pendo a primeira pessoa que falou, oculta. “Eles mal sabem o que querem.”
Ele parecia um homem baixo, embora não houvesse nada para medi-lo por
comparação e as telas o mostrassem em tamanho maior que o real. Nem novo
nem velho, os cabelos escuros arrepiados como se estivessem em choque. Ele
usava um casaco de muitas cores. Mas, quando se virou, o casaco cou doura‐
do e costurado com inúmeros bolsos. No momento seguinte, as roupas pretas
de um moderno orentino, arrematadas com um chapéu de três andares. Não
importa o que usasse, ele parecia familiar. “Eu? Sou apenas o bobo na corte
onde o mundo foi feito. Dou cambalhotas, faço brincadeiras, danço a jiga. Te‐
nho pouca importância.”
“Professor…” Vi o rosto do velho ali, traços dele por trás da con ança e da
astúcia de Loki.
O deus continuou a se dirigir a seu alvo invisível. “Mas imagine só… se fos‐
se eu quem puxasse as cordas e zesse os deuses dançar. E se lá no fundo, se ca‐
vasse o bastante, você descobrisse todas as verdades? E se no centro de tudo
houvesse uma mentira, como uma minhoca no centro da maçã, enrolada co‐
mo Oroborus, assim como o segredo da humanidade se esconde no centro de
cada parte de você, por mais nas que as corte?”
Segurei a chave com força e aquele gelo preto deslizou em minha mão. As
telas caram pretas.
“Essa não seria uma bela piada?” Loki estava ao meu lado.
“O-o que você quer?” Tentei me afastar sem soltar a chave.
“Eu?” Loki deu de ombros. “Eu estarei acabado quando quebrar minha
chave, e ela se quebrará quando zer seu trabalho. Vire para a esquerda, vire
para a direita. Decida-se, Jalan.”
“Eu… eu não sei.” O suor escoria em mim, minha mão pálida pela perda
de sangue, trêmula. “A Dama Azul estava dizendo a verdade quando ela…”
“Verdade?” Loki jogou as mãos para o alto, agitando os dedos. “As menti‐
ras são a nossa base: todos nós começamos com uma mentira e construímos
nossa vida sobre ela. As mentiras são mais duradouras que a verdade, mais
mutáveis, capazes de mudarem para preencher os requisitos.”
“Preciso da verdade. Foi você que me botou nesse caminho da verdade
quando me mostrou a morte de minha mãe. A chave não me jogou no deserto
à toa… era tudo parte de um plano. Conhecer Jorg Ancrath, encontrar o aço
para matar Maeres Allus. Você estava me preparando para esta tarefa, assim
como fez a chave e a mandou pelo mundo afora para ganhar força.”
“Talvez.” Loki deu de ombros. “Os fatos são os melhores amigos de um
mentiroso. Tantas verdades são descobertas na procura por uma mentira plau‐
sível. Por que não trabalhar com elas?” Ele se virou para acenar para a câmara,
um salão de maravilhas, cheio de morte. “Que teia emaranhada tecemos quan‐
do começamos a prática de enganar. O Grande Escocês escreveu isso, quando a
lua ainda parecia mais nova.” Um suspiro. À medida que a escuridão fumega‐
va em volta da chave em minha mão, Loki parecia diminuir, envelhecendo, a
luz dentro dele se apagando. “Esta foi minha primeira obra e, eu admito, é um
emaranhado. Onde está o covarde que não ousa lutar por esta terra? Mais uma
frase do Grande Escocês, e aqui está você, meu covarde. Você ousa?”
“Mas será que eu deveria…”
“Não me importa!” troou Loki à minha frente, agora encovado e doente.
“Apenas saiba que não precisa da verdade. A verdade não libertou você. Era
mentira. Você não viu sua mãe morrer. Você não estava na sala. Você nem esta‐
va no Salão Roma naquele dia.”
“Quê?”
“Eu menti para você.”
“Como…”
“Ódio, coragem, medo… tudo mentira. Não procure motivos. Faça o que
sente. Não o que você sente que é certo, apenas o que sente.”
“Eu tenho a cicatriz…” Minha mão se mexeu até o peito onde a espada de
Edris me pegou aquele dia.
“Você fez isso subindo em uma cerca.”
“Seu mentiroso desgraç…”
“Sim, eu sei. Agora dá para andar logo? Estou caindo aos pedaços aqui.”
Olhei para trás, além do falso deus, uma coisa que se tornou real pelos so‐
nhos dos homens, e vi, parado na janela suja de sangue da outra sala, o vulto
grandalhão do meu amigo, apenas com os olhos nitidamente visíveis onde a
mão tinha limpado o vidro.
Virei a chave.
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