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O Voto Eterno

Christie Golden

Ocoração de Wrathion doía com mágoa e ardia com fúria.


Manchas de profundo escarlate manchavam a areia dourada no que
aqueles que sangravam mergulhavam na atemporalidade. Tudo era
atemporal aqui nas Cavernas do Tempo, e eram os preciosos percursos
temporais aqui dentro que os dragões caídos de Azeroth tinham morrido

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para defender.
Wrathion, Guardião da Terra, Aspecto da Revoada Dragônica Negra,
transformava areia em vidro com o magma que soprava. Sua leal revoa-
da, uma onda dançante de reluzentes escamas de ébano, o seguia, entre-
meando os pilares rodopiantes de areia para rechaçar a maré de trevas
infinitas. Todos tão livres quanto ele da loucura que tinha amaldiçoado
o primeiro Aspecto Telúrico. Neltharion — também conhecido como
Asa da Morte — se fora para sempre. Vivia apenas como uma distante
memória, a única habilidade de causar mal era a lembrança dos feitos
perversos.
Wrathion liderava a Revoada Dragônica Negra agora, batalhando para
proteger Azeroth ao lado de quatro outras revoadas: azul, verde, verme-
lha e bronze. Estavam unidos em propósito, finalmente.
Então ele chegou, como sempre chegava. A sombra, recaindo sobre
eles.
Sobre ele.
Não. Não posso olhar para cima.
Porém, assim que pensou, começou a se retorcer e guinchar. Placas de
metal se espalharam sobre ele, contendo uma forma que se tornava me-
nos carne sólida e mais fogo líquido. Quando a horrenda transformação
se concluiu, o monstro em que ele se tornara, alimentado por ódio e ira,
abriu as imensas mandíbulas de ferro. “Não há Wrathion!”, urrou a coisa
de magma e metal. A voz era horrível, de parar o coração e... familiar.
“Só existo eu, Asa da Morte — agora e sempre”, sibilou Wrathion,

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"Só existo eu, Asa da Morte — agora e sempre",
sibilou Wrathion, sem poder se deter.

sem poder se deter.


Mas não foi a própria boca que o disse.
Ele observou, indefeso, no que os Aspectos mergulharam para ata-
cá-lo, no que os dragões negros deram a volta para destruí-lo, o velho
inimigo refeito... Só enxergavam Asa da Morte.
E Wrathion só via jatos fulgurantes de chamas dragônicas vindo
na direção dele. Só ouvia a própria voz berrando: “Você é meu legado.
Jamais escapará da minha sombra.”
Fogo, preenchendo a visão, o calor, o brilho...
“Eu nunca serei você!”
Wrathion se levantou num só movimento, garganta ferida com o
grito. Levou um bom tempo para entender que não estava nos percursos
temporais, sob ataque pelos próprios irmãos. Estava seguro, numa cama
confortável na estalagem Repouso de Verão em Pandária.
Wrathion se reorientou, respirando fundo e lentamente, e se con-
centrou no ambiente. Notou os mapas afixados nas paredes. As cadeiras
cobertas com roupas sujas de lama. A mesa laqueada, obscurecida por
garrafas vazias e resmas de anotações das viagens. Em meio aos detritos,
um pergaminho, corretamente enrolado e carimbado com não só um,

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mas dois selos de cera.
Alguém bateu de leve à porta. Wrathion se recompôs rapidamente,
vestiu um roupão bordado e passou os dedos pelos espessos cabelos
negros. Sem dúvida, a pandarena à porta ouviu o grito vindo do pesadelo,
mas ele jamais admitiria uma coisa assim.
“Pode entrar”, disse ele, com o timbre sedoso de sempre.
Mifan entrou com uma bandeja cheia de delícias locais. Os dois
fingiam que nada, absolutamente nada, tinha acontecido enquanto ela
abria um espaço na mesa bagunçada e pousava a bandeja. O terror puro
do sonho ainda persistia, mas o estômago de Wrathion roncou quando
ele espiou o chá, bolinhos de arroz e pãezinhos. Comida era bom. E
calmante.
“Posso lhe trazer mais alguma coisa?”
“Não, isso é tudo”, respondeu Wrathion com um sorriso, depois
acrescentou, “Aliás, Mifan, você poderia trazer meu almoço mais tarde?
Acho que vou ficar no quarto e dar uma de preguiçoso, para variar.” Ele
fingiu não notar os olhares de Mifan para todas as garrafas de vinho
vazias.
“Fico honrada em servir um hóspede tão estimado. Se o senhor dese-
jar mais alguma coisa...”
“Sim, sim, eu toco o sino, eu sei. Obrigado.” Ele acenou com a mão
num gesto de dispensa e Mifan, nada intimidada, fez uma mesura e
fechou a porta ao sair.
Wrathion deixou escapar um suspiro e escolheu um bolinho de arroz,

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Era constante, essa melancolia
que o assolava recentemente.

ignorando ostensivamente a condenação silenciosa do pergaminho. En-


quanto ele comia, os fiapos restantes do sonho recorrente se dispersaram,
mas as perguntas persistiam: seria possível não seguir os passos do Asa
da Morte? Se livrar das sombras? Ou era provável que Wrathion um dia
sucumbiria àquelas sombras?
Uma dor baça no peito o despertou dos pensamentos incertos.
Era constante, essa melancolia que o assolava recentemente.
Por anos, Wrathion já pesquisava o lugar misterioso chamado Ilhas do
Dragão. Não era lenda, mas bem poderia ter sido. A famosa Ilha Errante
de Pandária era o lugar mais fácil do mundo de se achar, comparada a
essas ilhas.
Wrathion tinha buscado informações... sem sorte. As coisas que ele
fizera, os lugares aonde fora, os acordos que fechara... Tanto esforço, tão
poucas respostas. A maioria das pessoas interrogadas nada sabia, e muitas
das que sabiam não pareciam dispostas a revelar nada além de migalhas de
informações incrivelmente inúteis. Irritante.
Por falar em irritante... Ele fitou o pergaminho novamente.
O rolo estava ali, provocativo. Rosnando, Wrathion o pegou e desen-
rolou.

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A PRIMEIRA ARCANISTA THALYSSRA E
O LORDE-REGENTE LOR’THEMAR THERON
SOLICITAM O PRAZER DA SUA COMPANHIA
QUANDO ELES UNIREM CORAÇÕES,
MÃOS E ALMAS NA PROPRIEDADE DOS LUNASTRE.
SOLICITA-SE TRAJE FORMAL.

Wrathion fungou. O prazer da sua companhia. Hah! Esse casamento


era um evento monumental na história de Azeroth — a união de dois
poderosos líderes —, mas ele sabia que só fora convidado por cortesia.
Ninguém em Azeroth realmente quereria um dragão negro — especial-
mente ele — em qualquer tipo de grande ocasião. Era um teatrinho polí-
tico vantajoso exibir alguém tão vital na derrota do Deus Antigo N’Zoth
e salvação do mundo, mas nem o casal nem os convidados importantes
considerariam a companhia dele um prazer.
Wrathion amassou o pergaminho com vigor desnecessário e o atirou
num canto. Casamentos são eventos notoriamente emotivos, e esse seria
particularmente assim. De acordo com os relatos dos agentes da Garra
Negra, era uma união de amor verdadeiro, uma chama que se acendeu
numa competição de poesia, por incrível que pareça. Haveria outros casais
risonhos; família com crianças animadas; velhos amigos se reencontran-
do.
Era de revirar o estômago.

Wrathion chegou na Propriedade dos Lunastre com a cerimônia de


casamento a todo vapor.

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Ele tinha torcido para que o comparecimento lhe oferecesse um alívio
tanto do pesadelo incômodo quanto da busca infrutífera pelas Ilhas do
Dragão, além de ser uma chance de ser visto. Afinal, ele merecia estar lá,
em meio aos grandes nomes de Azeroth, especialmente já que se tornaria
o Aspecto da revoada negra um dia.
Todos os olhares fitavam o casal do momento. Com os poderosos
olhos de dragão, Wrathion percebia a magia que restava do domo que um
dia protegeu Suramar; a leve curva e a área devastada pela vileza que o
domo conteve tão bravamente eram testemunhos de tudo que os Filhos
da Noite tinham enfrentado.
Wrathion voltou a atenção à Lady Liadrin, a líder ruiva dos Cava-
leiros Sangrentos, que celebrava a união de Thalyssra e Lor’themar. Os
dois pombinhos diante dela estavam lindos, Wrathion tinha que admitir.
Lor’themar estava quase irreconhecível, pois Wrathion jamais o vira
vestindo algo além de armadura e uma expressão severa. Conhecendo a
história do povo dele, Wrathion também não poderia culpá-lo. Agora,
o líder dos elfos sangrentos trajava tecidos coloridos drapeados e sorria
delicadamente, o guerreiro cedendo espaço para o amante. Ainda que
Lor’themar não exibisse um sorrisão extravagante, ainda tinha postura
mais suave e parecia iluminado por uma alegria discreta. Thalyssra não
fazia nenhuma tentativa de esconder a felicidade, e seu sorriso era cheio
e livre.
Por que não seria?, pensou Wrathion. O lugar inteiro brilhava com
gente de perto e de longe. Ao lado da noiva estavam seus conselheiros e

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antigos companheiros em armas na rebelião dos Noctívoros. Wrathion
avistou o Arcanista Valtrois, Ly’leth Lunastre e Silgryn com a coruja,
Kal. O amigo mais próximo de Theron, General-patrulheiro Halduron
Asaluz, era só sorrisos, enquanto o Grão-magíster Rommath vestia
vestes e um raro sorriso.
Em meio aos convidados, a variedade era ainda mais evidente. Thrall,
ex-líder da Horda e agora integrante do novo Conselho da Horda, trouxe
a família — a esposa, Aggralan, e os dois filhos, Durak e Rehze. Os
jovens eram muito bem comportados, presumiu Wrathion, ainda que
soubesse muito pouco sobre crianças. Bem, não sabia nada, na verdade,
e não tinha a menor vontade de aprender. Considerou a Rainha Talanji,
que viera de Zandalar, trazendo consigo Zekhan, outro convidado mais
jovem. Rokhan, líder dos trolls Lançanegra, estava com eles. Lá estava o
Grande Chefe Baine Casco Sangrento, que, Wrathion observou com um
sorrisinho, viera com Mayla Alta Montanha. Lilian Voss acompanhava
Calia Menethil, outrora princesa de Lordaeron, agora parte do Conselho
Desolado dos Renegados. Ao lado dela, seu campeão, Derek Proudmo-
re. No passado, Wrathion buscara proteger Azeroth jogando a Horda
contra a Aliança para determinar qual lado seria o mais poderoso. Agora
ele entendia que o destino do mundo dependia não da conquista, mas da
colaboração.
Ao fitar a congregação cativada, Wrathion ficou orgulhoso da Horda,
de Lor’themar e Thalyssra, que tinham convidado a Aliança. E ele
respeitava aqueles na Aliança que aceitaram o convite, desde o Lorde

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Comandante Turalyon, regente de Ventobravo e protetor da Aliança,
sua companheira, Alleria e o filho meio elfo deles, Arator, até Mathias
Shaw, que certamente estava de olho no líder da Aliança num casamen-
to da Horda. Anduin, o rei de Ventobravo que esteve ausente daquela
função nos últimos anos, sempre acreditou que a paz permanente entre
as duas facções era possível. Ele tinha trabalhado por essa causa com uma
tenacidade comedida que Wrathion sempre admirou. Depois da Quarta
Guerra, a esperança de Anduin se tornou uma realidade cautelosa,
enquanto a esperança de Wrathion fora pervertida e forçada contra ele na
forma daquele sonho tenebroso.
A voz de Lor’themar invadiu os pensamentos sombrios de Wrathion.
Ele recitava os votos... em forma de poema: “Minha amada Thalyssra, a
dádiva do pesar é a bênção da alegria. A dádiva do fardo é sua libertação.
A dádiva da tempestade é o céu límpido. A partir deste momento, juro
estar ao seu lado tanto no pesar quanto na alegria. Juro compartilhar de
seus fardos. Juro suportar as tempestades ao seu lado e abraçar de coração
cheio o brilho das estrelas.”
Wrathion nunca vira um lugar tão cheio de gente ficar tão sem movi-
mento.
As lágrimas de Thalyssra corriam como cristal líquido pelo rosto la-
vanda enquanto ela respondia com uma voz suave com emoção, mas tão
clara, as mãos segurando as mãos do noivo: “Lor’themar, meu coração,
os anos de antes agora ecoam com arrependimento que não entendia até
este momento. Não sabia quanto eu ansiava até que você estava lá para

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aliviar meus anseios. Meu mundo está pintado com cores explosivas, a
paleta de sonhos outrora escondidos, agora manifestos. Vamos criar com
palavra e feito, com mente, corpo e coração, essa nova existência em que
dois são um. Agora e para sempre, e além da eternidade, eu amarei você.”
Wrathion não deveria ter se surpreendido que os votos fossem versos.
Tinha selado o amor deles e sempre seria a linguagem do coração dos
dois. O próprio coração de Wrathion teve uma pontada súbita daquela
dor peculiar, e ele esfregou o peito, na esperança de melhorar com uma
massagem.
“Perante todos os presentes, e perante a própria Luz Sagrada”, profe-
riu a Lady Liadrin, “confirmo com estas palavras: Thalyssra e Lor’the-
mar entrelaçaram suas vidas, seus destinos e seus corações.” Ela sorriu.
“Que o amor e a Luz sempre iluminem vocês dois.”
Então Lor’themar ergueu o rosto e Thalyssra baixou o dela e, quando
os lábios se tocaram e os braços enlaçaram os corpos, vivas, aplausos e
gritos animados soaram.
Wrathion queria parabenizar os recém-casados e partir, mas eles não
tinham nem descido os degraus do tablado quando os convidados se
aglomeraram ao redor.
Wrathion revirou os olhos. Vou perambular por aí até o casal feliz estar
menos acossado.
Mais uma vez, a presença dele não passou despercebida enquanto
Wrathion navegava pela multidão com peito estufado e queixo erguido,
como seria adequado para um futuro Aspecto. Os olhares de espanto e

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admiração o agradavam, aliviando a dor no peito e lhe devolvendo a velha
confiança de volta nos passos. Ele tinha andado Azeroth praticamente
inteira numa jornada de autodescoberta, estudando o mundo e apren-
dendo tudo que podia sobre seus habitantes. Lutou ao lado dos maiores
heróis do mundo, mesmo contra a própria espécie, para proteger Azero-
th. Certamente que fizera o bastante para provar que não era parecido em
nada com Asa da Morte.
Surpreendeu-se com a sensação agradável de ser absorvido pela atmos-
fera. Quando chegou a uma área agitada de bar, se sentia mais como si
mesmo. E ali, não só ele poderia curtir um drinque, mas talvez também
ouvir coisas interessantes. Algo lhe disse que seria uma atividade frutífe-
ra. Como é que os goblins diziam? Bingo.
Enquanto aguardava por um cálice muito desejado de vinho arcano,
se encostou no balcão ao lado de Taelia Fordragon de Kul Tiraz. Ela
conversava com o antigo Aspecto dragônico azul, Kalecgos, que vestia a
aparência de um meio elfo com a mão no peito, como se prestasse jura-
mento. Wrathion notou que ele parecia um tanto triste.
“A Lorde-almirante vai bem”, contou Taelia a Kalecgos. “A Grã-se-
nhora Jaina queria tanto estar presente, mas está com as mãos muito
cheias. Temos alguns problemas com... piratas.”
“Piratas? De novo?", interrompeu-a Filinto Belvento, amigo de Taelia.
“Que desagradável. Que bandeira eles içam? Podem ser velhos camaradas
meus. Se for o caso, eu lhes conto todos os truques deles.”
Kalec respondeu com uma risadinha educada.

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“Ele não está brincando”, assegurou Mathias Shaw com voz séria.
Filinto riu feliz para Shaw, e o lábio deste se moveu sob o bigode...
Aquilo era um sorriso? Wrathion pensou que o velho ditado “os opostos
se atraem” certamente era o caso com esses dois. Filinto era um pirata
reformado, e Shaw liderava a AVIN de Ventobravo, uma agência de
espionagem. Porém, aqui estavam eles, um casal feliz entre outros casais
felizes. Ninguém mais viera sozinho?
“Wrathion!”, exclamou Kalec, caloroso. “Que bom que você resolveu
comparecer.”
“Faltar ao evento nem me passou pela cabeça.” Wrathion ergueu a
taça de vinho arcano em comemoração. “Seria uma pena perder a chance
de gozar de um vinho arcano tão bom... e tão boa companhia.”
Os olhos de Taelia se arregalaram, e ela deu um passo até ele. “É uma
honra conhecer você. Soube que o mundo lhe deve muita gratidão.”
Wrathion respondeu com um aceno benevolente da cabeça. “Sirvo
Azeroth com alegria, de qualquer forma que puder. Como todos nós”,
acrescentou ele graciosamente, indicando o mar de convidados com um
gesto.
“Taelia?” Derek Proudmore se aproximou com Calia e Lilian e tirou
o chapéu. “É tão bom ver você, ainda que eu gostaria que minha dileta
irmã pudesse ter comparecido.”
Wrathion não conseguiu evitar e ficou boquiaberto, incrédulo, en-
quanto Taelia recebia os três calorosamente. Ali estava o irmão de Jaina,
um Renegado, aceito por sua família e antigos compatriotas. Ainda

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assim, ele se manteve próximo de Calia.
Teoricamente, ele tem inimigos em todos os lados, pensou Wrathion,
mas ele também tem família — de sangue ou escolhida — em todos os lados.
Wrathion se deu conta de que sentia um pouco de... inveja.
Ele tomou nota de quem mais não estava presente. “Não posso deixar
de notar que não há elfos noturnos aqui”, disse ele alegremente. Suas
Garras haviam dito que Tyrande e Malfurion ainda sofriam após aquilo
que passaram nas mãos da Aliança durante a guerra, que julgavam ser
abuso. Wrathion também descobriu que os kaldorei estavam preocupados
com algo novo que surgia. Ele não sabia do que se tratava . . . ainda.
Taelia olhou em volta. “Tenho certeza que os elfos noturnos foram
convidados.”
“Certamente.” Wrathion saboreou lentamente o seu vinho arcano.
“Eu vejo a Rainha Mia.”
A rainha chegara ao invés de seu marido — uma sábia decisão, já que
aparentemente o Rei Genn Greymane ainda odiava a Horda. Além disso,
a pequena e sociável Mia aquecia corações com sua presença, misturando
bondade com uma praticidade alegre. Ela enchia um prato com iguarias
de Suramar em uma mesa de banquete ali perto.
A delegação dos Renegados trocava olhares desconfortáveis.
“Foi um prazer ver a rainha novamente”, disse Calia diplomaticamen-
te.
Wrathion ficou observando enquanto Mia começou a conversar com
Alleria Correventos. Ela sussurrou algo para o patrulheira e Alleria

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começou a rir. Wrathion levantou uma sobrancelha. Alleria sempre foi
séria — tanto ela como Turalyon, que estava conversando com Talanji
em frente ao imponente bolo de casamento com cobertura de lavanda.
Thalyssra havia colocado o bolo cuidadosamente em um pequeno carri-
nho que podia ser levado a vários locais. Assim, todos poderiam admirar
a magnitude do bolo. Wrathion percebeu que Turalyon parecia estranha-
mente relaxado em meio ao coração do território da Horda.
O dragão negro desviou seu olhar, ele pensava que o comportamen-
to dos convidados dizia muito sobre as mudanças que ocorreram nos
últimos cinco anos. Então, ele se deu conta de que seus leais espiões, que
o mantinham informado, disseram que há tempos havia uma tensão
entre eles. Wrathion imaginou que mil anos de guerra poderiam fazer
isso com um casal. Mas, aparentemente, o paladino imbuído na Luz e a
elfa tocada pelo Caos tinham reacendido o que uma vez tinha sido um
romance lendário.
“Wrathion?” Kalec olhava para ele com curiosidade. “Você está bem?”
“Melhor do que nunca”, mentiu Wrathion. Ele levantou sua taça e
curvou-se diante dos outros convidados. “Com licença, acredito que
avistei Magni brilhando logo ali. Eu deveria cumprimentá-lo.”
Realmente, ele tinha visto Magni brilhando. Ele brilhava frequen-
temente, às vezes forte demais. Felizmente, o tênue crepúsculo de
Suramar não fez com que o brilho ficasse muito forte. O antigo rei
enânico uma vez tentou realizar um ritual — logo antes do Asa da Morte
irromper das profundezas da terra, trazendo morte e destruição — para

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falar com Azeroth. Funcionara . . . com algumas ressalvas. Embora Mag-
ni agora fosse o Mensageiro de Azeroth, ele tinha sido transformado em
diamante puro. Isso não pareceu aborrecer nem a ele, nem a sua família.
Magni, seus irmãos e sua filha estavam morrendo de rir com o jovem
troll Zekhan, que olhava para ele com admiração.
Wrathion abriu seus braços enquanto andava em direção a eles.
“Magni!”, exclamou, genuinamente feliz de tê-lo visto, pois trabalharam
juntos para derrotar N’Zoth.
“Tchê! Wrathion! Vem cá, camarada, e deixa eu te apresentar pra
minha família. Meus irmãos, Muradin e Brann, e minha cara filha,
Moira.”
“Claro que sei os nomes de vocês”, disse Wrathion dando uma pis-
cadela rápida. Era verdade. “E que prazer finalmente conhecer vocês”,
falou para o grupo animado.
“Ah, a gente te conhece também!”, disse Moira. “Minha filha aqui
não fica quieta!”
Wrathion foi pego de surpresa. Boas-vindas tão calorosas quase o
transformaram. A sensação era... contagiosa.
Magni inadvertidamente veio ao resgate. “Nós, os garotos Barbabron-
ze, acabamos de voltar de uma exploração em Nortúndria. E quem mais
poderia ouvir essas histórias se não o jovem Zekhan aqui?”
Zekhan estava quase dando pulos de alegria.
“Estou orgulhoso em conhecer você, Zekhan. Mas . . . acredito que
ainda preciso conhecer mais alguém. Moira, o futuro imperador acom-

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Wrathion esvaziou a taça e a estranha
dor em seu peito voltou.
“Você é meu legado... e jamais escapará da minha sombra..."

panhou você hoje?”


“Sim. Mas eu tive que tirar a cara dele de dentro de um livro”, disse
ela, “Que bom que tirei. Olha lá.”
De acordo com os relatórios de suas Garras, Dagran II, filho de uma
princesa Barbabronze e de um imperador Ferro Negro, era o herdeiro
de ambos os tronos. Sua aparência física tinha traços de sua mãe e de
seu pai. Sua pele era de um tom cinza, quente, e seus olhos eram verdes.
Wrathion ouvira falar que era possível ver um brilho vermelho poderoso
neles. Os longos cabelos brancos de Dragan estavam puxados para trás
em uma trança apertada, e seu corpo desajeitado estava vestido com um
traje formal elegante que ele provavelmente arruinara sentando na grama
sob uma árvore. Arator sentara ao seu lado e eles conversaram amigavel-
mente enquanto o primeiro folheava um grande livro — talvez aquele
que Moira precisava que Dragan deixasse de lado — e o garoto enânico
examinara uma bela adaga cerimonial que Arator usara no casamento.
“Dagran é meu coração em carne e osso”, disse Magni carinhosamen-
te. “E Arator é um bom rapaz. Gentil. Dragan não tinha muitos amigos

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na infância.”
Wrathion sabia como era não ter muitos amigos — ou nenhum amigo.
Ele nunca tinha sido uma criança de verdade. Crescera tão rápido e
atraiu-se por um propósito tão obscuro que não houve tempo para brin-
cadeiras. Claro, uma infância corrompida por guerras e conflitos também
não ajudou. Encontrar Anduin em Pandária fora, ao mesmo tempo, um
presente e uma maldição. Um presente porque Wrathion soubera que
alguém, não importa quem, poderia achar que ele era digno de carinho.
Uma maldição porque ele escolhera explorar a confiança de Anduin em
uma tentativa mal planejada de proteger Azeroth. Eles se encontraram
novamente anos depois, e esse encontro fora . . . bom, basta dizer que
Anduin tinha um direito cruzado muito melhor do que Wrathion
imaginava. Ele esperava que pudessem se reconciliar uma vez que
Anduin voltasse de . . . onde quer que ele estivesse.
Wrathion esvaziou a taça e a estranha dor em seu peito voltou.
“Você é meu legado... e jamais escapará da minha sombra...”
“Quer conhecer ele?” A pergunta de Moira acordara o dragão negro.
“Eles parecem contentes. Vou esticar as pernas um pouco. Prazer em
conhecê-la.”
Mais à frente havia um lago sereno. Ele não tinha certeza se fora o
vinho arcano, o número de convidados em volta dele ou a dor, mas ele
decidiu que iria caminhar um pouco e então partir.
Eu não deveria ter vindo. Vou deixar meus espiões buscarem o que eu
prec...

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Para quê? Ele nunca encontraria as Ilhas do Dragão. Ele nunca seria
capaz de fazer — e manter — uma amizade verdadeira, inspirar tropas
ou experimentar o tipo de alegria que Lor’themar e Thalyssra encon-
traram. Ou mesmo os Barbabronze. Com o olhar fixado no lago, ele
caminhou rápido em sua direção e parou, grunhindo, quando uma voz
calorosa e estrondosa o chamou.
“Ah, Wrathion! Achei você!”
Wrathion fechou seus olhos e, então, virou-se e deu um sorriso
forçado. “Baine! Mayla!” O bolo viajante chegara nesta área e, já que um
serviçal passava por ali, Wrathion pegou outra taça de vinho arcano. Ele
estava precisando.
“Estou surpreso — e feliz — em ver que você escolheu vir”, disse
Baine.
“Sim, bem, a lista de convidados chamou os melhores e mais brilhan-
tes de Azeroth.”
Eles riram. Ele bebeu. Mayla deu o braço a Baine, e o grande chefe
colocou o seu por cima. Wrathion precisou se esforçar para controlar o
impulso de jogar sua taça no chão.
Ele esperara que o casamento fosse ser... bem, um casamento. Mas foi
muito mais que isso, e em todo lugar havia essa sensação de pertencimen-
to e amor e conexão, impossível de escapar, como uma praga alegre que
contamina e asfixia a todos com um contentamento confortável. Todos
menos ele, é claro. Ele . . . e aquele tauren do outro lado.
Ele era coberto de pelos negros e tinha marcas em seu focinho. Não

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estava vestido com trajes formais, como o convite pedia, mas sim com
vestes xamânicas, e segurava um cajado.
E os encarava diretamente.
“Com licença, Grande Chefe”, disse Wrathion a Baine, que conti-
nuava olhando o estranho, “. . . aquele companheiro antissocial é seu
amigo?”
Baine seguiu seu olhar e fechou a cara. “Kurog. Um dos Temíveis
Totens de Magatha.” Disse ele praticamente cuspindo suas palavras.
Baine tinha motivos para se sentir assim. Wrathion soubera através de
seus espiões que Magatha Temível Totem envenenara secretamente a
arma que matou o pai de Baine, Cairne, fazendo de um arranhão uma
sentença de morte e instigando um golpe. O Penhasco do Trovão acabara
por voltar às mãos dos Cascos Sangrentos e Baine, mostrando piedade,
exilara Temível Totem. Claramente ainda havia hostilidade entre eles.
Muita hostilidade, como era possível ver na cara daquele traiçoeiro.
Kurog avançou em direção a eles.
“Thalyssra e Lor’themar destruíram suas reputações ao convidar
dragões, ainda mais um dragão negro”, disse o xamã. “O mais anormal de
todos.”
Wrathion não sabia por que um xamã saberia tanto sobre dragões ne-
gros. A mão que segurava a taça tremeu por um breve momento quando
ouviu aquilo.
Placas de metal pressionando . . . forçando o magma a reter uma for-
ma . . .

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Wrathion respirou fundo, controlando-se. Ele faria o papel de um
futuro Aspecto, não de um monstro. Com um sorriso no rosto ele foi
cortês, curvou-se, e prestou atenção em quantas cabeças viravam para
assistir àquela cena. Era aqui onde o show acabava?
“Você não devia estar aqui”, disse Baine.
“Tenho direito de estar aqui tanto quanto você”, replicou Kurog.
Wrathion ficou calado.
“Eu sou um xamã”, continuou Kurog. “Toda a terra é meu domínio.”
“Oh, duvido disso profundamente.” A voz de Wrathion era tão suave
quanto uma nuvem. “Os Filhos da Noite sofreram demais protegendo
Suramar para que uma gentalha como você passeie por aí. Falando nisso,
onde está seu convite?” O de Wrathion estava em seu bolso, embora
tivesse sido amassado em seu ataque de raiva mais cedo. “Quem o deixou
entrar? Não importa, eu vou alegremente levá-lo até a saída antes que
alguém mais veja você fazendo papel de trouxa.”
Wrathion ouvia os transeuntes assistindo à cena tranquilamente. Que
assistam.
Kurog continuou, examinando-o minuciosamente. “Como você
foi feito, Wrathion? Foi montado usando partes de cadáveres? Você e
sua raça suja . . . vocês são o maior exemplo de tudo o que deu errado
nesse mundo.” Enquanto grande parte dos transeuntes murmuravam
chocados com as palavras de Kurog, Wrathion ouviu uma voz em meio à
multidão apoiando o tauren.
Ele sentiu um arrepio na espinha, mas não por causa da voz dissiden-

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te. Foi pelo fato de um xamã saber algo tão específico como aquilo. Ele
refletiu se ele era a razão pela qual o tauren decidira aparecer...
Kurog deu um sorriso malicioso. Era feio, cruel e comemorava o des-
conforto de Wrathion. “Você pode salvar Azeroth mil vezes, mas nunca
será parte dela. Você é um proscrito. O fedor de quem você é jamais vai
passar.”
Um esqueleto de ferro, não de ossos . . . a raiva queimando mais do que o
próprio fogo...
De repente, algo quebrou.
A dor tomou conta da mão de Wrathion, vinda dos pedaços de vidro
da taça de vinho arcano que ele acabara de estilhaçar. Ignorando a dor, ele
avançou, agarrou as vestes do xamã e levantou o enorme tauren como se
ele não pesasse nada.
“Eu poderia incinerar você em um piscar de olhos.” Wrathion rosnou,
sua voz era grave, ríspida e . . . estranha. Ele continuava, chacoalhando o
xamã. “Com um único movimento de minhas garras seu sangue correria
até...”
As Areias do Tempo . . . manchadas com o sangue de tantos . . . as
explosões de magma . . . minha própria revoada dragônica vindo a meu
encontro . . . e a sombra, sempre a sombra...
Wrathion sentiu uma mão tocar em seu braço. Era Kalec. Wrathion
usou todas as suas forças para se controlar e não atacá-lo também.
“Deixe-o ir. Agora", disse o dragão azul calmamente.
Wrathion respirou fundo algumas vezes antes de empurrar Kurog para

—21—
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longe. O xamã cambaleou e caiu sobre o carrinho que carregava o bolo
inspirado em uma fonte. O carrinho virou antes que o servente, embas-
bacado, pudesse reagir, e o imponente bolo caiu no chão de pedra.
Kurog endireitou-se com a ajuda de seu cajado e grunhiu, pronto para
atacar.
Alguns transeuntes gritaram preocupados com Wrathion . . . já outros,
apoiando Kurog. Kalec procurou tranquilizar Wrathion colocando a
mão em seu ombro, mas, desta vez, o dragão negro desvencilhou-se dele.
Wrathion cerrou seus olhos vermelhos que fitavam o tauren com raiva.
“Parem!” A voz de Thalyssra, normalmente calma e modulada, ecoou
como o barulho de um chicote.
Wrathion congelou, Kurog também.
“O que aconteceu aqui?” A Primeira Arcanista controlou-se, apesar
de sua fúria. Suas mãos cintilavam, cheias de um poder tão palpável que
Wrathion quase podia sentir o cheiro. Ela procurou na multidão por
quem estragara seu bolo de casamento.
Wrathion começou a falar.
“Este Temível Totem”, Mayla interrompeu com uma voz tão rígida
como a de Thalyssra, “invadiu nossas terras e adentrou nossa festa com o
único intuito de incomodar nossos convidados!”
Thalyssra olhou para Kurog, avaliando o bruto. “Lhe darei mais uma
cortesia, tauren, ainda que você não tenha sabido fazer o mesmo. Permi-
tirei que saia daqui andando. Vá. Antes que eu mude de ideia.” A magia
pulsante envolvendo suas mãos não perdeu a força, nem por um instante.

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Havia dois tipos de agressores, Wrathion sabia disso. Aqueles que
murchavam como uma flor antes da primeira neve, e aqueles que, apesar
de todos os avisos, não resistem a um último ataque.
Kurog era claramente o último, e ele cuspiu aos pés de Wrathion. Ele
olhou para a multidão presunçosamente. “Em breve vocês todos co-
nhecerão o verdadeiro poder dos taurens.” Então ele curvou-se, tirando
sarro da cortesia de Thalyssra, encarou Baine e Mayla com descontenta-
mento e virou as costas para ir embora.
Baine e os outros pareciam estar tão intrigados pelo aviso do tauren
quanto Wrathion.
Thalyssra assentiu para Silgryn, que, sem dizer uma só palavra, seguiu
o invasor. O brande-feitiço garantiria que Kurog não se perderia até
sair da festa. Wrathion constatou que muitos dos transeuntes olhavam
fixamente para o xamã e davam sorrisos estranhos para Wrathion como
uma forma de apoio. Já outros sorriam maliciosamente. Seus rostos
mostravam um nojo mal disfarçado. Os ouvidos aguçados de Wrathion
escutaram as palavras feias e cruéis que acharam que ele não ouviria.
E então, outra voz. Dessa vez em sua mente.
“Você é meu legado . . . e jamais escapará de minha sombra . . .”
Wrathion endireitou-se, desviando o olhar do bolo e encarando suas
próprias mãos. A raiva havia passado, e a outra dor, de alguma forma pior
que a raiva, emergia mais uma vez.
Uma onda de calor tomou conta da face de Wrathion e ele xingou si-
lenciosamente sua falta de controle. Recompondo-se, ele disse: “Lamen-

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to não ter me expressado de uma maneira mais . . . civilizada.”
Fazendo o que pôde para recuperar o resto da dignidade que ele havia
perdido, Wrathion forçou-se a olhar para Thalyssra e Lor’themar. “Sin-
to muito por ter causado tal incidente.”
“Não é preciso desculpar-se”, disse Lor’themar com uma piscadela.
“Os confeiteiros têm muito mais bolos de onde veio este.”
“Lamentamos que nossa segurança não tenha sido suficiente”, acres-
centou Thalyssra. “Nenhum dos nossos convidados deveria ter passado
por tal afronta.”
“É muita gentileza, mas eu devia ter presumido que minha presen-
ça seria tão . . . provocante . . . para alguns. Espero que isso não tenha
maculado as memórias desta ocasião tão alegre. Preciso partir agora, mas
desejo a vocês nada menos que felicidade em todos os dias de suas vidas.”
Eles não contestaram sua vontade.
“Devo lhe agradecer”, disse Baine cordialmente. “Kurog é um xamã
poderoso. Ele . . .”
Wrathion levantou uma mão com um sorriso charmoso: “Não precisa
agradecer”. O dragão negro fez uma reverência, alinhou os ombros e foi
embora sem dizer outra palavra.

Wrathion não sabia quem as gigantescas estátuas gêmeas no vinhedo


representavam. Eram Filhos da Noite, segurando estandartes ao vento.
As armações dos estandartes eram adornadas por uma lua crescente
esculpida, cuja superfície parecia confortável, e isso era tudo o que ele
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precisava saber. Ele deitou-se em uma delas, cruzando os calcanhares de
suas longas pernas e entrelaçando as mãos atrás da cabeça.
Ele estava exausto e um pouco bêbado. A busca infrutífera pelas
Ilhas do Dragão e o assombroso sonho que continuamente estilhaçava
seu sono esgotaram toda a sua tenacidade; e considerando a persistente
pontada no peito que o abalava enquanto acordado, era possível entender
o porquê de ele beber tanto vinho ultimamente.
O desastroso dia apenas reforçou cada pensamento inquietante que
ele tinha sobre si. Tantos da multidão aderiram rapidamente à zombaria.
Ele se deixou zangar tão rápido, não estava apto a governar . . . Não após
ameaçar Kurog tão violentamente por causa de meras palavras. Até mes-
mo agora, Wrathion sentia a sombra de Asa da Morte sobre si.
Seria tolice esperar que fosse diferente.
Seu devaneio sombrio foi interrompido por uma voz chamando seu
nome. Ele a ignorou.
“Wrathion!”, a voz chamou novamente.
Com um suspiro, o dragão negro olhou para baixo. Assim como ele, o
outro dragão ainda estava em sua forma paisana, que era tão admirável
quanto sua forma real: “Kalecgos! O que quer de mim?”
O dragão azul levantou uma garrafa de vinho arcano e duas taças:
“Quero ajuda para beber este belo vintage”.
Uma ideia não tão ruim. O casamento não o ajudou a escapar de seu
desconforto acumulado. Talvez mais vinho arcano resolvesse o problema.
Wrathion saltou de seu poleiro improvisado, mudando para sua forma
real e retornando à forma paisana depois do pouso.
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“Não acho que minha companhia será agradável”, disse Wrathion ao
aceitar uma das taças de Kalec, fazendo referência às palavras ingênuas
no convite, “mas a dividirei com você.”
Kalec olhou para ele com compaixão enquanto caminharam em
direção a um banco e se sentaram. “Não foi culpa sua, Wrathion. Você
foi convidado. Já o Temível Totem, não. Ele veio apenas para causar
confusão e, infelizmente, conseguiu. Os taurens são um povo notável
e bondoso”. Ele encheu a taça de Wrathion. “A maioria é, ao menos. É
claro que existem exceções para tudo.”
“Menos para os dragões negros, aparentemente”, respondeu Wra-
thion. “Parece que sentir ódio pela minha revoada é unânime, você não
acha? Até eu senti que era necessário . . . reduzir os números dela.” Ele
pensou nos olhares que recebeu de alguns dos convidados antes de partir.
O medo. A repulsa. A voz de Asa da Morte em sua mente. “Kurog não
era o único enojado ali.”
“Você foi em grande parte responsável pela derrota de N’Zoth.”
“Responsável também por fatos muito menos agradáveis.” Ele tomou
um gole; o vinho era doce e forte. “Eu não deveria ter vindo. Tenho
certeza de que Lor’themar e Thalyssra concordam.”
Kalec tomou um gole comportado do seu próprio vinho arcano. “Já
eu acredito que eles deixaram claro que estão furiosos por um penetra ter
insultado alguns de seus ilustres convidados.”
O canto da boca de Wrathion denotou um sorriso melancólico.
“Talvez. Mas mesmo que seja o caso, é apenas porque eles, e você, são

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extremamente bondosos e tolerantes. Já o resto . . . Bem, nós, dragões
negros, somos um mau presságio.”
Kalec comprimiu os lábios, e então suspirou. “Os outros podem
ter certa . . . dificuldade para confiar na sua revoada”, disse ele em tom
sereno. “Eu entendo um pouco a sensação. Também sei que talvez
nunca saibamos se Neltharion adotou a loucura dos Deuses Antigos de
propósito.”
Wrathion virou o rosto. Ele não quis mostrar o quão impactantes
aquelas palavras tinham sido.
“É possível que ele tenha sido vítima da influência deles — que não
tenha escolhido o destino que teve”, continuou Kalec, acrescentando
após uma pausa: “Assim como Malygos não escolheu a dor que tornou
sua mente e espírito cruéis”.
Wrathion quase nunca estremecia. E não estremeceu na hora, embora
tenha sentido o impulso. Ele sabia que o primeiro aspecto da revoada
dragônica azul costumava ser caloroso, bem-humorado e gentil . . . assim
como Kalecgos, em sua opinião. Mas depois de ver quase toda a sua
revoada ser massacrada, a mente do aspecto azul se afundou no luto por
éons. Após se recompor, Malygos estava tão diferente que tentou exter-
minar qualquer mortal que ousasse utilizar magia. No fim, seu próprio
povo não teve escolha exceto atacar e matá-lo.
“Como eu disse, você é bondoso . . . bondoso o bastante para não
mencionar que foi a traição de Neltharion que arruinou seu mais querido
amigo, Malygos, e resultou no fim da sua revoada.”

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“Ouvi falar que eles eram mesmo próximos. Amigos que trocaram
muitos segredos que, infelizmente, ficaram perdidos no tempo.” Kalec
encheu sua taça de vinho arcano novamente. Seu tom de voz, em segui-
da, foi direto e seguro: “Mas você, Wrathion, não é Neltharion”.
Queria acreditar mesmo nisso . . .
Mas Neltharion tornou-se Asa da Morte, não? Quem Wrathion se
tornaria?
Ele e Kalec brindaram com suas taças. “E você não é Malygos.”
Era para ser um elogio, mas Wrathion viu Kalec encolhendo os
ombros. O dragão azul riu tristemente. “Eu já não sou mais ninguém.
Agora, a revoada dragônica azul quase não existe mais. Não devíamos ter
nos separado enquanto éramos tão poucos.” Kalec pressionou uma mão
contra o peito, e então a deixou cair enquanto olhava o céu noturno.
Os aspectos renunciaram aos poderes titânicos que receberam para
finalmente destruir Asa da Morte de uma vez por todas. Eles ainda eram
dragões, claro, mas apenas com o título de aspectos. Wrathion sabia que
os azuis tinham ido para lugares diferentes, se espalhado pelo mundo.
“Olha só”, disse Wrathion, descontraído, tentando animar o clima,
embora talvez fosse o vinho arcano aflorando seu lado mais alegre, “so-
mos uma dupla e tanto, não? Dois dragões jovens, bonitos, inteligentes
e sem revoada. Já que não temos uma comunidade da qual falar, minha
sugestão é: se nossos aspectos puderam ser amigos, então com certeza . . .
nós também podemos. Afinal, é como os mortais gostam tanto de dizer:
a miséria adora companhia.”

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"não é exatamente dor, está mais para tristeza.
Na minha vida, por muitas vezes me senti... desolado.
Sozinho. Senti que havia algo que eu queria,
precisava, mas não podia ter."

Isso arrancou um riso sincero de Kalecgos. “Você ajudou a matar um


deus antigo. É capaz que os outros fiquem longe de nós. Mas . . . Há uma
coisa que eu queria saber. Em nossa última conversa, você perguntou
sobre as Ilhas do Dragão. Lamento não ter sido capaz de ajudar mais. As
informações sobre ela ficam tão ocultas de mim quanto ficam de você.
Descobriu mais alguma coisa?”
“Nada”. Wrathion olhou para o céu. “Você foi o único que falou algo
útil — que a magia das ilhas adormeceu há muito, muito tempo.”
“Eu ainda nem tinha nascido. Não acredito que esse detalhe foi a única
informação que você conseguiu. Com quem mais você falou?”
Wrathion contou nos dedos. “Perguntei a Crona se ela sabia a locali-
zação”, disse ele, referindo-se à dragonesa bronze. “Ela falou que sim.
Depois, que não. E então confessou que estava confusa. Ysera . . . se foi.”
Ele se recompôs por um segundo ao pensar na ausência do aspecto da
revoada verde. “E Nozdormu sequer aceita me ouvir.” Nozdormu, líder
da revoada bronze, estava ocupado cuidando dos infinitos percursos
temporais.

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“E Alexstrasza?” Perguntou Kalec, mantendo um tom neutro ao
mencionar o aspecto da revoada vermelha. Os vermelhos tiveram um
passado complicado com Wrathion, chegando a tentarem se matar mais
de uma vez. Ele estava tão desesperado para saber mais que engoliu o or-
gulho e falou com a rainha dragonesa, cuja gentileza o surpreendeu. Ain-
da assim, ela apenas suspirou e disse: “É um lugar que nós perdemos.”
“Nada de mais”, foi tudo o que Wrathion disse. Sua voz soou abatida;
era como ele se sentia há algum tempo, e esconder esta dor estava ficando
cada vez mais difícil para ele. Frequentar o casamento havia apenas
aprofundado esse sentimento. Ele notou que estava com a mão no peito,
pressionando-o como quem queria amenizar a dor. Ao olhar para o lado,
viu que Kalec estava fazendo o mesmo.
“Kalec . . . ?” Perguntou Wrathion suavemente: “Está doendo?”
Kalec estava perdido nos próprios pensamentos, até que falou. “Ah!
Não, não... Bem”, corrigiu, “não é exatamente dor, está mais para triste-
za. Na minha vida, por muitas vezes me senti... desolado. Sozinho. Senti
que havia algo que eu queria, precisava, mas não podia ter.”
“Ando tendo a mesma sensação”, disse Wrathion, apertando os olhos
vermelhos. “É como se houvesse um peso em meu peito . . . Um senti-
mento nos meus ossos que não consigo exprimir . . .”
“Isso! É exatamente assim!”, exclamou Kalec. “Também é . . . como
sentir falta de uma parte de mim que eu não sabia que existia, mas . . .
agora eu anseio por ela.”
Eles olharam um para o outro por um longo momento.

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Wrathion falou com cautela. “Se ambos sentimos a mesma sensa-
ção . . .”
“Então talvez os outros dragões também sintam”, disse Kalec com
um suspiro.
Pela primeira vez em muito tempo, Wrathion sentiu uma fagulha de
esperança; e foi tomado por um desejo de encontrar um certo alguém,
como se tivesse sido evocado. “Odeio ter que me rebaixar novamente, e
não sei se isso me dará alguma resposta, mas talvez devêssemos . . .”
“Ir até o Repouso das Serpes e fazer algumas perguntas para Alexs-
trasza.”
Wrathion levantou uma sobrancelha. “Vamos parar de completar as
frases um do outro, sim?”
Kalec riu, e então movimentou as mãos com elegância, abrindo um
portal. Um vislumbre no centro revelava uma paisagem fria, branca e
com tons de azul.
“Perfeito. Eu estava ficando um tanto desconfortável com todo este
roxo.” E com isso, Wrathion atravessou o portal.

“Parece que não somos os únicos sofrendo deste mal-estar misterio-


so”, apontou Wrathion.
“Para dizer o mínimo”, murmurou Kalec.
Eles haviam materializado próximo à base do Templo do Repouso das
Serpes, encontrando-se em meio à maior aglomeração de dragões que

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Wrathion já vira. Alguns estavam em suas formas paisanas, e Wrathion
não deixou de notar, ocasionalmente, muitos pressionando a mão sobre o
peito —sobre seus corações— esperando a rainha dragonesa se manifestar.
Wrathion não esperava ver outros de sua própria revoada lá, é claro.
Havia muitos dragões vermelhos e bronze, muitos verdes também,
mas o entristeceu ver tão poucos dragões azuis. Kalec tinha razão, eles
estavam separados.
“Agora, a revoada dragônica azul quase não existe mais . . .”
“Fique aqui e espere com o resto, se quiser”, disse Wrathion a Kalec.
“Mas eu me recuso a desperdiçar outro segundo sequer.”
A sensação de inquietação não estava diminuindo, mas sim aumen-
tando. Fazendo conforme disse, Wrathion trocou de forma e voou
direto para o topo do templo. Ele havia cansado de esperar. De esperar
encontrar as Ilhas do Dragão, esperar que o sonho o deixasse em paz,
esperar para entender o que era essa sensação amaldiçoada e o porquê de
ele temer o desconhecido.
Ainda assim, conforme ele lembrava da alegria que testemunhou no
casamento — o calor dos entes queridos, a força dos laços, do perten-
cimento — Wrathion sentia pavor em presumir que o que Alexstrasza
diria não seria bom. Que, mesmo após ter ganhado um nome, aquilo que
seu coração buscava não seria dele, seja lá o que fosse.
Alexstrasza estava em sua forma paisana, cabelos longos e de um ver-
melho quase tão quente quanto o de seu manto, olhando para a multidão
de dragões reunida abaixo. Com ela, estava Nozdormu. Ele costumava

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ser estoico e difícil de decifrar, até para Wrathion — o que era bom,
provavelmente, considerando seu poderoso conhecimento sobre passado
e futuro. Mas agora ele parecia pensativo. Desconexo, talvez.
Ao seu lado, estava a filha de Ysera, Merithra, que havia assumido
informalmente a liderança da revoada dragônica verde após perder sua
mãe. Embora Merithra segurasse sua mão contra o peito, ela não parecia
incomodada. Em vez disso, seu rosto de elfa noturna exprimia . . . paz?
“Alexstrasza . . . essa sensação, esse . . .” Sem saber descrever, Wrathion
bateu em seu peito. “O que está havendo conosco?”
Ela virou-se, e seu rosto, assim como da última vez que a visitou,
estava gentil e iluminado com alegria. “Direto ao ponto. Você continua o
mesmo, Wrathion”, disse ela, gentil e bem-humorada.
“Ora, obrigado.”
Alexstrasza aproximou-se e, como se nunca houvesse desconfiança e
ressentimentos entre os dois, acariciou a bochecha dele gentilmente. Para
sua própria surpresa, ele permitiu, entendendo que a importância desse
momento era maior que qualquer inimizade.
“Meu jovem,” disse a rainha dragonesa, trocando um olhar cheio de
sabedoria com Nozdormu, “você ouviu o chamado . . . e você o atendeu.”
Wrathion não compreendeu. “O chamado?”
“Sim, o chamado”, afirmou ela, voltando-se para todos os que esta-
vam próximos. “O tão aguardado. Todos —nós aqui, aqueles lá embaixo,
ou em qualquer lugar do mundo — foram chamados, o ouvimos com
nossos corações. As Ilhas do Dragão estão aguardando nosso retorno.”

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“Wrathion,” disse ela docemente,
“o que sente é saudade do seu lar.”
A dor. A busca desesperada
por algo que ele nunca teve.

“Mas . . .” Wrathion balançou a cabeça, ainda sem entender.


“Wrathion,” disse ela docemente, “o que sente é saudade do seu
lar.”
A dor. A busca desesperada por algo que ele nunca teve.
“Saudade do meu lar?”
As Ilhas do Dragão nunca renunciaram a ele. Elas estavam ape-
nas esperando. Por ele e por todos os outros dragões em Azeroth.
Seu povo. Wrathion não havia sido excluído.
Ele estava sendo acolhido.
Ele pertencia.
Agora, ao saber o que representava a dor em seu peito, ela pas-
sou, transformando-se em algo parecido com regozijo. E enquanto
a rainha dragonesa voltava-se a todos os reunidos abaixo para
proferir a jubilosa revelação, Wrathion, o príncipe negro, o dragão
sem revoada, percebeu que seu pesadelo recorrente também tinha o
poder para transformar.
Ele o viu não como presságio de uma descida às trevas, mas

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como um desafio a ser aceito — e
superado. Todos os dragões se tor-
naram, neste momento, seu povo.
Todos os dragões reunidos abaixo
celebraram e aplaudiram com a
notícia em uníssono.
“Saudades do meu lar . . . ,” ele
refletiu consigo mesmo.
Mas agora ele tinha um lar. E
logo . . . logo, teria uma revoada.
Wrathion pensou nos votos que
foram trocados mais cedo, pro-
messas de devoção e zelo eternos; e
agora, ele fez uma.
Seria ele, e não Asa da Morte,
que guiaria sua revoada rumo ao
futuro.
E essa promessa ele cumpriria.

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CRÉDITOS
AUTORA:
Christie Golden

EDITOR:
Eric Geron

DESIGN:
Einav Aviram

PRODUÇÃO:
Brianne Messina

CONSULTORIA DE HISTÓRIA DO JOGO:


Courtney Chavez, Sean Copeland,
Damien Jahrsdoerfer, Justin Parker

CONSULTORIA CRIATIVA:
Ely Cannon, Steve Danuser, Korey Regan

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS:
Matthew Cohan, Elana Cohen, Ed Fox, Chloe Fraboni,
Jamie Ortiz, Corey Peterschmidt

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