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ESTRELAS DA NOITE
ESTRELA DA NOITE
O CÉU SE TORNOU MAIS CLARO; a vida, menos cinzenta, e uma tímida luz
nascia no horizonte quando a fêmea de dragão decidiu parar. O forte, seu
calabouço, e toda a escuridão de um passado solitário e tortuoso ficaram
para trás. Estava em uma nova etapa, estava viva, e as correntes não mais a
privavam de seu sonho de liberdade e descoberta. Ela cultivava muitas
perguntas, todas relacionadas a sua longa estadia na prisão, os anos que
perdeu, a infância que não experimentou, o mundo que não conheceu.
Mas qual era seu nome mesmo?
Ela não lembrava: seu passado estava apagado e tudo o que restava
eram fragmentos do dia em que acordou na escuridão... sozinha.
Um raio solar fez todos esses devaneios se dissiparem no movimentar
de um ponteiro. Era o sol que nascia. Era o momento em que os homens
questionariam se era dia ou noite, se o sol renascia, ou acordava; e se a lua,
sempre brilhante, era vencida pelo fogo que queimava no astro rei.
Questionamentos, porém, não tiveram importância no instante em que os
olhos da fêmea atingiram o sol que ela ousou esquecer em seu
confinamento. Sua garganta ardeu, a respiração ficou pesada, as mãos
tremeram e todo o corpo congelou. Ter o sol, sua luz, trouxe a ela uma
familiar sensação de conforto.
Ela se sentiu nostálgica.
...e desejou jamais se distanciar do astro enquanto estivesse viva.
A mulher caminhou durante o anoitecer. Uma chuva se iniciara com o
decorrer das horas. Seus ouvidos estavam atentos. Ela sentiu o sopro gelado
da floresta contra sua pele humana e parcialmente coberta. A pouca
experiência com a vida, e da própria espécie, a fez desperceber das
necessidades de trajar roupas adequadas quando se afastou do forte. Vestia
apenas um manto esfarrapado por cima dos ombros e suas pernas estavam
nuas. Sua atenção, vez ou outra, era roubada pelas claridades que rompiam
os céus, a tempestade apenas aumentava e o mundo escurecia. Ela tinha
pouca noção para onde deveria seguir, sentiu as pedras machucar as solas
dos seus pés humanos; e com horas de caminhada, sangue brotou de feridas
abertas.
A dor proporcionou a primeira parada em horas: uma árvore robusta
foi o abrigo dela enquanto olhos dourados percorreriam toda a vegetação.
Desabitada. Escura. Troncos se erguiam por quase cinco metros diante dela,
cobertos de galhos que farfalhavam na tempestade. Um estrondo repentino
a fez se proteger contra a árvore. Seu estômago roncava, seu corpo estava
fraco, magro pelos anos de péssima alimentação. Sua fonte de nutrientes no
confinamento era de pequenos roedores e pedaços podres de carne que o
draconiano raramente trazia.
Um segundo trovão a fez cobrir os olhos.
No terceiro, porém, uma sombra se iluminou na mata. A mulher
observou com curiosidade: o vulto era alto, estava montado em um
garanhão negro e se vestia com a cor da noite. Ele não se moveu, observou
com o rosto oculto pelo capuz.
O cavalo se moveu inquieto com um quarto trovão e o vulto o
acalmou.
O estranho murmurou e ela, de pé, não reconheceu o idioma dele. Ele
desmontou e ajeitou as rédeas com calma enquanto a mulher se
aproximava. O maior esforço dela foi para falar, seus braços gesticulavam,
mas a voz morria em sua garganta. Ela piscou por um segundo e, no outro,
o estranho estava em sua frente. Perto demais. Rápido demais. Forte
demais. Ele a derrubou facilmente com um movimento. A fêmea de dragão,
escondida na imagem humana, gemeu ao sentir o impacto em seu corpo
desprotegido. O tempo se movera depressa; e o homem se pôs sobre ela.
Um trovão iluminou o rosto dele: olhos doentios, olhos estranhamente
peculiares. Um era negro; outro, prata. Fios escuros e longos deslizavam
livremente em seu pescoço.
Ele estava sério, uma cicatriz grossa manchava sua expressão.
— Era tudo o que eu precisava para acalmar meu sangue. — a voz dele
era rouca e havia uma ponta de sarcasmo no tom.
As pupilas da mulher se dilataram no instante que ele se colocou sobre
o corpo dela com uma força descomunal. Ela se debateu inutilmente, estava
fraca, não se alimentava há dias, talvez semanas, e se sentia tonta devido a
desidratação. O sangue dela ferveu, seu coração acelerou e, por um
momento, a imagem do draconiano que a torturara se assemelhou ao
estranho.
Então o fluxo do tempo se moveu de forma irregular e a adrenalina a
corroeu. Sua forma mudou: ganhou tamanho, peso, escamas e garras. Sua
forma de verdade. O homem escapou dela antes de ser atingido — e saltou
com perícia a uma distância que considerou segura. A fêmea rugiu em
desespero, com fúria, os dentes levemente deformados e o lábio inferior
tremendo. Mas o homem não se demonstrou ameaçado. Ele não correu ou
pareceu surpreso. Primeiro suas palavras foram murmuradas num idioma
desconhecido, então, disse com fervor:
— Que porra de sorte eu tenho.
Os olhos heterocromáticos dele brilharam.
— Eu acenderia velas em templos divinos para agradecer. Eu nunca
mais estupraria por prazer. — e o capuz escorreu entre suas palavras para
relevar uma expressão sorridente e doentia. — Se eu acreditasse em deuses
ou fosse um bom homem... Eu encontrei a Estrela da Noite que surgiu! — e
elevou uma lança em direção ao céu.
Ela se perguntou com o coração apertado: o que significava tal
expressão? Estrela da Noite. Embora ansiasse por uma resposta, não era o
momento de questionar. Pressentia em suas escamas o quão perigoso o
guerreiro poderia ser. Precisava enfrentá-lo. No entanto, ela sequer chegava
aos dois metros de altura, longe da fase adulta e com músculos atrofiados
pelo confinamento quase-eterno. Suas asas poderiam ser longas, simétricas,
mas sequer sabiam como alcançar o céu — faltava-lhe uma dose de
aprendizado. Na cabeça, dois pequenos chifres recém nasciam e um
aglomerado de espinhos tortos, finos, cresciam desregulares na extensão do
pescoço alongado. O homem, porém, era maior que ela; dois metros, um
pouco mais, corpulento e leve. Uma máscara de ganância desenhara a
expressão dele; e nela, o deleite, o prazer e a fúria habitavam.
— Onde está seu guardião de merda, Estrela da Noite? — e ele
avançou contra ela. A lança dele se movimentou com tanta maestria que
assim que ela piscou, desconcentrada e confusa, sentiu a ponta laminada
entre suas mandíbulas. A fêmea de dragão inclinou o longo pescoço para
deter o ataque, seus dentes serviram como escudo.
Não havia sido sua melhor ideia: o guerreiro girou a lâmina e causou
um profundo corte na língua do dragão. Ela recuou, entre rugidos
agoniados, vendo o sangue verter e pingar em suas patas.
— Acha que pode vencer, estrela vagabunda? — o homem gritou com
euforia. Sua lança estava vermelha. — Aprenda como um draconiano caça
de verdade!
Draconiano.
A palavra fez um frio percorrer sua espinha. Um homem como aquele
a torturou durante toda a infância e cuspiu nela desprezo e preconceito. Ele
se dizia de uma raça superior e caçadora de dragões, seres que herdavam a
vitalidade e a perseverança da Mãe da Noite. Eram nobres, eram líderes,
eram cruéis; e ela, ingênua em sua compreensão de mundo, jamais
compreendeu o ódio reservado a ela em anos de cativeiro.
...e então uma dor repentina fez todos os seus membros tremerem.
Ela desabou desnorteada.
Tu deves correr, e a voz de alguém soou distante, preocupada.
Um relâmpago a fez recobrar os sentidos depressa; tarde, porém, para
escapar da lâmina que penetrou em uma de suas asas. A fêmea de dragão
rugiu, sentiu o aço reverberar em sua carne e torturar seus sentidos. O
guerreiro arrancou a lança das escamas dela e uma torrente de sangue
expeliu pelos ares e se misturou na chuva. A fera reagiu por instinto: usou a
cauda como arma e aprendeu com o erro. O draconiano se apoiou na grande
lança para impulsionar suas pernas e esquivar da investida. Ele deu uma
pirueta no ar, movimentou a arma com destreza e se encarregou de
direcionar a lâmina no dorso da fera. Acertou-a em cheio, deliciando-se
com a sinfonia de dor enquanto montava o dragão como montaria um
cavalo.
A fêmea de dragão sentiu as mãos do draconiano em sua asa ferida.
Pesadas. Cruéis. Sedentas. Ele agarrou o osso, a parte que se unia aos
nervos das costas. Primeiro viera a força; depois, um estalo e uma agonia
aterradora: ela sentiu cada junta e ligamento se romper num segundo.
Ele queria quebrar sua asa.
Ou pior, arrancá-la.
O dragão tombou no chão pela segunda vez junto ao adversário.
Ambos caíram em um baque surdo; ela desnorteada, ele equilibrado. O
homem urrou com o rosto vermelho, uma veia se salientou em seu pescoço
e a força de seus braços distenderam o músculo que ligava a asa ao corpo da
fera — e isso não fora o suficiente para alegrá-lo. O draconiano fez mais,
ele fez pior: dera três golpes cheios de fúria no osso da membrana e se
deleitou ao ouvi-lo se fragmentar dentro das escamas.
O rugido da fêmea de dragão cortou o coração da noite.
Ela perdeu a consciência e o caçador a fez acordar com um golpe cruel.
— O que acha de voar agora, Estrela da Noite? — o ceifador
questionara com um sorriso psicótico. Ele tomou distância do dragão e
recuperou sua lança: queria assistir o sofrimento sem perder um suspiro.
O corpo dela estava gelado: tremia, formigava... e se desmanchava.
Sua asa direita não mexia, ela estava leve e pendia como um galho de
árvore podre. Mas a estrela não acreditava — não queria acreditar. O céu
que ela desejava alcançar ficara mais alto e seus sonhos de tocar as nuvens
se despedaçaram num segundo.
Ela moveu os olhos desnorteada, desesperada.
Em um momento estava sonhando com a liberdade, com o sol que
esquecera e com o escuro que abraçava todo o seu passado, no outro, já
livre, estava fugindo para não ser acorrentada novamente. Ela queria viver,
entender o sentido da própria existência. Morrer, ser presa era algo que
desejava distância. Não queria ser capturada, não entendia o porquê de estar
sendo caçada, mas havia uma certeza: ser uma Estrela da Noite, como o
homem dizia, era o motivo da desgraça que se encontrava no momento e,
talvez, dos anos perdidos no calabouço. Ela sentiu medo, era uma jovem
fêmea perdida em um mundo hostil, e que sequer tinha para onde correr.
Seu corpo escamado se modificou e tomou a forma de uma mulher.
Sua mão e seu corpo se arrastaram na terra molhada.
Precisava fugir.
Porque embora não tivesse certeza, seus instintos sussurravam: o
mundo é grande, e sempre há um lugar para todos. Até mesmo para os
perdidos. A visão dela, então, ficava negra, e via, na noite iluminada, os
passos de seu ceifador se aproximar.
...e depois mais nada.
A escuridão a envolveu.
Estrela da Noite despertou com desespero. Com medo de perder a
liberdade. Os devaneios, porém, dissiparam-se perante a luz solar que
aqueceu o seu corpo humano. A íris de seus olhos dourados refletiu os
raios, ela piscou algumas vezes pela intensidade, e viu-se inteiramente
perdida no topo de uma montanha. Uma montanha cercada por uma floresta
tão imensa que engolia o horizonte. A paisagem era uma pintura, de
detalhes e belezas naturais, inabitada.... quente. O calor abraçou o coração
da fêmea, era estranhamente nostálgico ver o sol de lá, ver suas cores
queimando em tons alaranjados e rosados.
Era estranho sentir seu coração tão acelerado.
Onde estava? Ela deu um passo. O topo era plano e com raízes grossas
que nasciam entre as rochas com cheiro de umidade.
“Eu avisei você.” e uma voz infantil sussurrou ao seu lado. Era um
menino, magricelo, de pele pálida e madeixas de um loiro tão claro que
pareciam brancas. Todavia, o que se destacava eram seus olhos: azuis,
profundos, safiras, o misterioso oceano que parecia estar vivo em seu
âmago. Ela tremeu diante dele, seu coração pulsou descompassado e, com
cautela, aproximou-se. “Eu avisei você tantas vezes...” ele continuou com
melancolia.
Mas era incapaz de alcançá-lo.
“Avisei que as coisas mudariam para nós... e que eles iriam nos separar.
Eles queriam nos separar.”
A voz da Estrela da Noite morreu em sua garganta.
“Eu fiz uma promessa, lembra?” o menino a encarou, e ela sentiu
vontade de perder-se nos olhos dele. “Fizemos uma promessa.”
Uma promessa que ela não conhecia.
“Eu ainda estou esperando você. Eu estou esperando... porque você
não é apenas uma Estrela da Noite, mas o pôr-do-sol, o calor que me
mantem vivo.”
O menino colocou uma mão no peito e suspirou.
“Volte logo, por favor.”
A fêmea queria tocá-lo: ergueu as mãos, tateou o ar, mas ele se
fragmentou e se perdeu em pedaços de escuridão.
DRACONIANO
HUMANOS
DRAGÕES
Escuridão.
O corpo humano da Estrela da Noite tremia e seu sangue ficava gelado.
Os pesadelos estavam a assombrando, ela via vultos rastejar no chão úmido,
mãos negras envolviam seus tornozelos e a ocasionavam espasmos
agoniados. A fêmea estava lutando com os fantasmas que a tragavam para o
mesmo abismo passado, um lugar frio e sem luz, um lugar que ela temia
tanto como esquecer o sol. Ela batia constantemente as correntes contra a
terra, o som a mantinha na realidade e afastava os pensamentos psicóticos
que a deixariam insana se desistisse. Sair. Sair. Sair. A Estrela da Noite
repetia constantemente. Se permanecesse mais um dia naquela escuridão
sem fim, enlouqueceria. O som das correntes não mais a salvaria e ela
estaria perdida para sempre.
Você vai sair.
A fêmea abriu os olhos em um sobressalto. O dourado ganhou luz na
penumbra que a envolvia. Você vai sair, a estranha voz feminina repetiu.
Havia confiança e perseverança em seu tom.
Sair? e a estrela duvidou. Eram alucinações que ouvia? Ilusões de um
medo que a corrompia? Sim, você vai sair, e a voz respondeu de modo
confortável o bastante para arrancar a dúvida nos pensamentos da fêmea.
Então a barulhenta entrada de Leto Demétrius no ambiente arrancou a
fêmea de dragão de seus devaneios desesperados, devaneios de liberdade. O
homem cambaleava, tropeçava em seus pés e era parcialmente oculto pelas
sombras que dominavam o calabouço. Duas velas estavam acessas em um
lampião que ele carregava, fracas, e logo morreriam, extinguindo a luz, mas
deixando o predador em vantagem. Leto era esse predador, e ela não tirou
os olhos dele, observou em silêncio, procurou sua vulnerabilidade. Onde ele
estivera, ela não sabia, porém o sangue impregnado nas roupas do homem a
deixaram tensa.
Demétrius matara alguém.
A jovem aprendeu na rápida convivência que odiava os draconianos.
Eles causavam arrepios, uma mescla de raiva e medo, embora a imagem do
guerreiro de olhos melancólicos e suas desculpas estivessem ainda quentes
em seus pensamentos. Não sabia o nome dele, tampouco confiava. Mas não
esqueceria o modo que ele a observou... com confusão, com incerteza, com
pena.
— Como está sua asa, Estrela da Noite? — e nas palavras do
draconiano, cheias de desdém e prazer, o corpo humano dela estremeceu.
Sua asa. Ela lembrava agora: Leto Demétrius quebrara sua asa. Com um
desespero crescente, a mulher-dragão buscou sua verdadeira forma e não a
encontrou.
Por que não sentia a dor da asa fragmentada?
Por que não conseguia se transformar?
Demétrius a observava. Estava sentado frente a ela, uma mão no
queixo, mas com dois pés além da realidade. Ele cheirava a álcool e sangue.
Ela rangeu os dentes, seu corpo tremeu, e a incapacidade de ser o que
realmente era, um dragão, a contaminou de uma sensação tortuosa.
Tamanha era sua fúria, a sua vontade, que sua voz se fez ouvida após anos.
Era gaguejada, mas cheia de vida.
— ...Des... desgraçado! — vociferou. O general permaneceu em
silêncio, sentado, refletindo, e no fim, levantou o corpo. O olho prateado e o
outro negro ganharam um estranho cintilar. Ele não se vangloriou como de
costume, apenas deslizou pelo ambiente. Estava sério, os fios escuros
cobrindo o semblante que, antes oculto, focou-se nela, na caça. As correntes
não a deixariam escapar da fúria dele. O draconiano se aproximou
assassino, com o punho fechado, flexionando um joelho para alcançar a
altura da Estrela da Noite.
Os olhos heterocromáticos de Leto Demétrius eram assustadores.
— Eu não gosto de ser insultado.
A fêmea de dragão cuspiu nele, dentes trincados e corpo trêmulo.
Ela não imaginou o resultado de sua ousadia, e se imaginou, fora
ameno, de pouca dor e violência. Demétrius, porém, mostrou-lhe não ser
um homem de compaixão, desferindo um golpe que com a força, não
apenas quebrou o nariz da Estrela da Noite, como deslocou também a
mandíbula. Ela perdeu os sentidos, ganhou-os em seguida, e tonta, sequer
pode protestar a dor e repudiar a corrente de sangue que manchava seu
rosto. Leto agarrou-a pelo pescoço, tão firme a ponto de sufocá-la, e a
arrancou das correntes que nem ela antes havia conseguindo arrebentar. A
brutalidade causou uma luxação no pulso esquerdo e um segundo
deslocamento no direito. A fêmea gemeu, com dificuldade para respirar,
mas o homem não parou.
Leto Demétrius não iria parar até matá-la.
Seu corpo foi arremessado ao chão, contorceu-se banhada com o
próprio sangue, e logo recebeu a segunda remeça de uma tortura que ela
jamais imaginou ser capaz de passar. A dor, porém, não a fez implorar pelo
fim, pela morte, e jamais desejaria implorar um estado semelhante ao que
passara na escuridão por tantos anos. Diferente de prisioneiros que
buscavam a morte para se libertar, a fêmea de dragão negro queria a
liberdade em vida, e enfrentaria, resistiria, ao mundo se precisasse alcançar
seu objetivo.
Esse era o motivo de não gritar por misericórdia.
Ela não gritou por uma pausa.
Ela não gritou pela morte.
Entre a consciência e a inconsciência, absorvida por uma dor
torrencial, ela manteve-se firme, quieta, e sua ousadia dava fruto a fúria do
draconiano que a torturava. O guerreiro a arrastou pelos cabelos, uma linha
vermelha ficou impregnada no chão, levando a Estrela da Noite ao centro
da taverna, onde todos presentes, soldados draconianos e humanos,
observaram abismados. Leto a levava ao centro da cidade. Ela perdeu a
consciência três vezes no processo, as escoriações no seu corpo eram
horrendas, e quando apagava, o homem a chutava para que despertasse e
presenciasse o próprio tormento.
A fêmea resistia entre murmúrios.
— General! Você enlouqueceu! Você está a matando! — Hanzor se
aproximou depressa. Os habitantes da Estação Leste que antes se recolhiam
em suas casas, pararam para observar os atos do superior. Poucos pareciam
assustados enquanto a grande maioria urrava o desejo de morte aos dragões.
— Isso não é necessário, General!
— Sabe o que não é necessário? Um filho de uma puta como você
dizer o que tenho que fazer! Cale essa sua boca suja e veja como nós,
draconianos, exterminamos a porra da nossa caça! — veias estavam
salientes no pescoço pálido de Demétrius, o rosto dele queimava. — Agora
obedeça e traga a minha maldita lança!
— O que você pretende fazer? — Hanzor sentia o coração acelerado.
— Preste atenção, todos vocês. Eu vou dizer somente uma vez:
arrancarei os membros dessa vadia e violarei cada maldito buraco ela tem!
Hanzor estremeceu e ele viu a fêmea, semiacordada, tremer diante a
loucura do general. Alguns humanos tinham expressões de pavor para o
general. Mas quem desobedeceria? Quem ousaria julgar as escolhas de um
superior?
O vento soprou quente de repente.
Hanzor ousou dizer uma palavra, mas seus instintos o fizeram se calar.
Calor, fogo, um arrepio em sua espinha.
Um som que silenciou a multidão.
...e um rugido atravessou o céu vazio.
— Dragão! — alguém berrou.
A lua iluminou suas escamas. Elas tinham a cor da noite; a cor que
muitos veem ao fechar os olhos e temem com a ausência da luz. Eram
escamas de um negro intenso, e um segundo rugido revelou os olhos
sedentos do colosso: ouro e sol. O ruflar de suas asas fizeram as pessoas
correrem num desespero eminente, porque não era um dragão comum ou
uma fera pequena: era um dos Primeiros Dragões.
Ele rugiu uma terceira vez e uma avalanche efervescente cobriu o céu.
O fogo consumiu as estruturas de uma área da cidade em questão de
segundos, tudo de uma vez só. Humanos foram atingidos pelas labaredas e
arderam numa sinfonia de morte, muitos queimaram numa rapidez sem
escapatória.
— Um Kyn! — berrou Hyun-seo ao montar em seu cavalo. —
Homens! Preparem os arcos! General! — o jovem moveu os olhos
desesperados para o superior. Demétrius estava em silêncio. — Precisamos
parar o dragão antes que ele destrua a cidade!
Leto Demétrius observou o céu.
— Caralho! — vociferou o draconiano. — Eu vou arrancar a vida
desse filho da puta desgraçado! Vanadis! Leve essa vagabunda para outro
lugar e não falhe em sua missão. O dragão sabe que a outra Estrela da Noite
foi morta, mas não tem conhecimento dessa.
Hanzor assentiu em silêncio.
— Lobo! — continuou Demétrius ao se dirigir para Hyun-seo. — Junte
os homens e me deem cobertura, eu enfrento o dragão!
Hyun-seo seguiu as palavras sem qualquer hesitação.
A arrogância e a crueldade não ofuscavam o que Demétrius era: o
melhor caçador de dragões do Império Draconiano. O título não lhe fora
dado por caridade, afinal, segurando a lança de aço de cristal que herdara do
Senhor de Gelo, o general poderia enfrentar exércitos. Não que ele os
vencesse sozinho, nenhum homem era fisicamente capaz — mas sempre
seria o último a cair no campo de batalha.
...e não era por menos que carregava a morte de cinquenta dragões nas
costas.
Cinquenta e um, na verdade.
O primeiro dragão caíria naquela noite.
Ele fragmentou as flechas que lançaram em sua direção, suas chamas
mudaram a atmosfera da cidade e um calor insuportável se proliferou. O
fogo deles, da espécie de escamas negras, era diferente, mortal: queimavam
e destruíam mais rápido que a de um dragão comum; e quanto o colosso
pousou, pesado sobre a terra, a cidade estremeceu. Pessoas foram
esmagadas, devastadas e arremessadas pela cólera eminente da fera.
Todos o temiam.
Leto Demétrius, porém, o desejava, a lança empunhada.
— Eu devorei a sua Estrela da Noite. — dissera o draconiano num
sussurro. Ele sabia, no entanto, que o dragão seria capaz de ouvir e sentir.
...e o gigante de quase dez metros ergueu o focinho na direção dele.
Leto Demétrius seria o seu ceifador.
Enquanto isso, Hanzor sentiu o peso da fuga cair em suas costas. Ele
não era um privilegiado ao escapar do confronto, mas o estado da Estrela da
Noite lhe causava uma sutil preocupação. O Vanadis estava aliviado por ela:
ganharia horas extras de vida e uma pausa da crueldade do general.
Crueldade... o jovem ponderou as palavras por instantes. Ele estava
com a mulher em seus braços, o sangue dela em sua armadura, enquanto,
com vontade de viver, a fêmea mantinha os olhos abertos. Ambos estavam
no centro da ponte que ligava a cidade ao resto do continente. O mar estava
furioso na noite do ataque.
O guerreiro ainda ouvia homens gritando e o dragão rugindo.
— Além da ponte existe a floresta de Krynhild... eu vou te deixar por
lá e retornar a cidade. Não se preocupe, Estrela da Noite, você estará segura
do dragão...
Segura do dragão... e ele parou para pensar uma segunda vez. Eram os
dragões o problema dela ou os draconianos? A resposta não era difícil e
havia uma certeza gritante: os dragões jamais a deixariam no estado em que
se encontrava. Uma Estrela da Noite era como uma deusa viva para os Kyn,
muitos as protegiam, eram eleitos guardiões e davam suas vidas para
mantê-las seguras.
Hanzor diminuiu seus passos.
— Eu não posso... eu não posso fazer nada, me desculpe Estrela da
Noite. — e a largou com cuidado sobre a estrutura rochosa. Um gemido de
alívio escapou dos lábios rosados dela. Hanzor hesitou mais e mais. — Eu
posso livrar você do sofrimento se quiser... eu posso... matá-la. Eu serei
rápido e farei com que não sinta dor.
Um vento gelado soprou suavemente.
A fêmea de dragão elevara com esforço os olhos para o homem, os
dela eram o sol, dourado e iluminado; os dele, o fogo, vermelho e quente.
Então, ela moveu a cabeça, de um lado a outro, negando as palavras
proferidas.
— Demétrius fará você sofrer de todas as formas. Você quer realmente
esse sofrimento? Eu vi uma Estrela da Noite morrer nas mãos dele... e eu
não quero ver isso de novo.
A voz do draconiano era trepidante.
— Eu sempre admirei a história que minha ama contava sobre vocês,
histórias que davam vida a minha imaginação... histórias que... estão
desaparecendo. Eu sou um draconiano, um guerreiro, mas repudio a
crueldade contra vocês, Estrela da Noite. Eu nunca gostei de sofrimento e
imagino que você também não. Demétrius gosta e dará o mais terrível
sofrimento antes de matá-la. Eu prometo ser rápido... e você descansará e
estará livre na morte.
A Estrela da Noite fechou os olhos, sua respiração era lenta e sua voz
era fraca.
— Livre... eu quer ser...
Hanzor segurou a espada.
— ...em vida. — e ela finalizou. O draconiano espantou-se, refletiu e
sorriu tristemente. Ele enxergou a determinação fluir nas palavras da
estrela. Comovido, Hanzor ajoelhou-se diante dela.
— Você é diferente, Estrela da Noite. Enquanto Myllanea implorou
pela morte e pelo fim do sofrimento, você implora pela vida... por mais
doloroso que possa ser. — ele deslizou seus dedos sobre o rosto da mulher.
— Eu vou ajudar você. Eu prometo.
Um rugido cortou a frase do draconiano de repente. Ele sobressaltou e
observou o céu: o dragão negro estava lá.
— Draconiano... — murmurou o dragão em um tom gutural. — Vocês
mataram a minha estrela, mas não farão o mesmo com essa!
As cicatrizes de batalha eram eminentes no gigante. Ele havia sido
recentemente ferido: seu focinho estava sangrando e um de seus olhos
estava fechado. O que assustou Hanzor, no entanto, não foram os
ferimentos e, sim, a lembrança que a imagem despertava: seu pai morto e o
Dragão dos Dragões com as narinas vermelhas... o Dragão dos Dragões lhe
direcionando o olhar como o dragão no presente também lhe direcionava.
Asssassino, e Hanzor empunhou a espada.
Ele trincou os dentes.
— Se depender de mim, jamais tocará nessa Estrela da Noite.
O dragão rosnou.
...e ele avançou com os dentes salivando.
Hanzor estava em vantagem, o dragão não poderia usar suas chamas, e
se ousasse, iria ferir, ou talvez matar, a Estrela da Noite recostada na ponte.
A única alternativa era sua força, seu peso, suas garras, fatores que, embora
não soubesse, também levaria à morte da fêmea que desesperadamente
tentava proteger. A passagem estava cedendo, não aguentaria o peso do
gigante por mais de cinco minutos. Mas eles não perceberam: o Vanadis se
defendeu das investidas com a espada, recuou das garras e, num golpe
involuntário, perfurou parte do focinho da fera.
Ela rugiu em fúria, inclinando o pescoço para o alto e pisoteando o
chão num trote insistente. A ponte tremeu e, só então, o draconiano notou o
perigo. Desviando de uma nova investida, Hanzor correu de encontro a
Estrela da Noite. O dragão o seguiu, e a movimentação de ambos foi o peso
que faltava para a estrutura se partir em pedaços. Uma explosão. A travessia
da Estação Leste se rompeu em várias partes, uma delas onde a fêmea
estava. Ela se segurou nas rochas com uma mão, mas ela não aguentaria;
faltava-lhe força e resistência.
— Droga! Aguente, Estrela da Noite! — Hanzor conseguiu alcançar
uma parte que permanecera instável, mas em pedaços. O dragão estava no
mesmo local, um pouco atrás do draconiano, com seus olhos dourados
focados na mulher.
— Não vou perder o meu tempo com você, draconiano! — e a fera
bradou com rugido ao erguer as asas. Sua prioridade passou a ser a fêmea:
ele saltou para levantar voo, mas o descuido acarretou no pior.
No instante em que saltou, poucos centímetros acima de Hanzor, a
espada deste penetrou em seu peito e rasgou as escamas até a parte da
barriga, um corte tão longo e profundo que uma chuva de sangue cobriu a
ponte. O dragão perdeu o equilíbrio de seu corpo, embolou-se no ar e caiu
sobre a estrutura que a Estrela da Noite lutava para se segurar. O impacto
foi certeiro: o resto da ponte cedeu rumo ao mar.
...e ambos caíram.
— Não! — Hanzor praguejou.
Mas era tarde demais.
A Estrela da Noite e o dragão negro haviam sido tragados pelo oceano
escuro.
CAPÍTULO CINCO
ESCURIDÃO ALÉM DO
ÂMAGO
ESTRELA DA NOITE.
A fêmea de dragão abriu os olhos lentamente e uma luz azulada a
cegou. Era brilhante. A luz, porém, enfraquecia aos poucos, cercada por
uma escuridão que a sufocava, era aterradora, dolorida. A fêmea estava
perdida nessa penumbra e a safira era sua única iluminação. Lembrou-se de
ter caído. Teria morrido na queda? Tão rápido? Morrido sem ter
experimentado a recente liberdade? A sensação de vazio a frustrou.
Praguejara em pensamentos. Estando morta, como iria responder seus
questionamentos? Como iria descobrir o seu nome? Ela tentou se mover,
mas seu corpo parecia congelado.
Estava imóvel e caindo.
Estaria ela entre a vida e a morte? Ela ergueu os braços na inútil
tentativa de se agarrar a luz, e não conseguiu.
Estrela da noite, alguém sussurrou. Seu coração acelerou, mesmo que
a expressão soasse desconhecida e distante. Ela sentia o ventre formigar e
uma vontade incontrolada de descobrir a verdade. O desespero, então, a fez
se implorar com ardor: não queria morrer, não podia morrer.
A ti a decisão caberá, disse a luz que ela tanto tentou alcançar na
escuridão. Ela brilhava intensamente, era doce, aquecida, e fez a fêmea de
dragão perder todo o desespero que a sufocava. Encheu-a de esperança. O
que tu és não está perdido, Estrela da Noite; o que tu procuras está
próximo... dentro de ti.
Ela se perguntou quem era e o motivo que levava a voz a chamá-la de
Estrela da Noite. O dragão fechou os olhos para se conter, uma estranha dor
atravessava seu corpo.
Eu sou tu, tu és eu. Não temas o poder que tens, porque se continuares
caindo, a queda tornar-se-á teu fim; e o sol jamais verá.
Mas ela queria ver o sol.
Tu tens o sangue dos primeiros dragões, és uma Kyn.
Se era tão importante assim, se tinha o sangue dos primeiros dragões,
como poderia ser ficado tanto tempo sozinha? Por que ninguém jamais a
buscou? Ela cobriu os olhos em confusão.
Ela não sabia voar.
Agora voe!
A fêmea de dragão despertou.
...e a dor quase a devorou.
Ela estava aos pedaços, suada e com o corpo marcado: escoriações,
cortes, hematomas... Cada centímetro latejava e cada ferida parecia uma
estaca sobre suas entranhas. Sofrimento. Agonia. Vida. Ela estava viva — e
as sensações negativas a aliviaram de certo modo. A morte não lhe
alcançara, não ainda. A Estrela da Noite forçou os olhos e sua visão
lentamente recuperou o foco. Era tudo escuridão.
Ela estava nua e com frio.
As horas anteriores lhe eram estranhas: ela sequer recordava do
momento em que o dragão avançou e a separou do draconiano de mãos
quentes e olhar nostálgico. Hanzor, ela ouvira o nome dele. Ele não era um
homem corrompido, era diferente dos outros e a fêmea de dragão desejou
que ele tivesse sobrevivido.
Porque ele havia sido o primeiro a se importar.
A Estrela da Noite se lembrava, porém, do momento em que caíra no
mar. Um negror intenso a abraçou. Então estava num sonho, não, corrigiu-
se. Era um pesadelo cheio de angústia e solidão. Mas a repentina voz de
uma mulher a salvara do desespero. Muitas palavras, nenhuma explicação.
A jovem não iria esquecê-la tão facilmente; e acreditou que não deveria.
Ela, então, gemeu com a dor que irrompeu de seu maxilar, estava deslocada
e qualquer movimento causava uma pontada capaz de arrepiar sua pele. Era
difícil respirar também, seu nariz provavelmente havia sido quebrado e uma
crosta de sangue bloqueava as narinas. Com o braço dolorido, a Estrela era
incapaz de levantar; e sua perna, imóvel e pesada, parecia um bloco de
pedra. Era um corte profundo; e o estado dele, o cheiro forte que emanava,
a fez vomitar o vazio de seu estômago: sua perna direita estava roxa e
infeccionada.
A Estrela da Noite delirou por minutos ou horas, presa na frágil
imagem humana. Sua verdadeira forma, o dragão, permanecia inacessível,
escondido dentro dela, destruído e derrotado. Um ruído, de repente,
dissipou sua frustração. Era um vulto na mata, um semblante que por
segundos a desesperou.
O coração dela bateu depressa.
— Hatanyar seja louvado... — dissera a voz de um homem, a lua
revelou sua expressão sofrida. Traços fortes, músculos robustos e um
ferimento na barriga que manchava suas roupas de sangue. — Você está
viva... Estrela da Noite. — ele tinha pouco mais que dois metros, uma barba
negra e espessa, e nenhum cabelo.
Ele caminhou em direção a Estrela da Noite e se ajoelhou diante o
corpo dela.
— Não tema... eu não lhe farei nenhum mal.
Os olhos dele eram dourados como os dela; as mesmas fendas negras, a
mesma cor-de-sol. Mas ele respirava com dificuldade, estava ferido
também, mas se esforçou para agarrar o tronco da mulher e apoiá-la em sua
perna com todo o cuidado que era capaz; e ela, assustada, sequer tinha
forças para resistir a aproximação. Mas as mãos dele eram quentes,
confortáveis... e familiares.
— Por Hatanyar... o que fizeram com você?
Ela tinha essa pergunta desde o dia em que acordou na escuridão,
cresceu na escuridão e sofreu na escuridão. Mas ninguém respondia; o que
faziam era torturá-la e tratá-la como uma caça. O homem, então, retirou o
manto que usava e pôs sobre ela. A Estela da Noite precisava de calor, de
alimento, de água e, principalmente, de afeto. Por isso, quando o homem,
limpando o sangue do rosto dela, a carregou nos braços, ela não temeu ou
se desesperou. Fechou os olhos — ouvindo o que ele sussurrava em outro
idioma.
...e o coração dela descansou.
Adormecida.
Ela despertou mais tarde com um suspiro. Seu corpo estava leve e
menos dolorido, havia ataduras improvisadas no corte da perna e o mesmo
manto a protegia do frio. Uma fogueira estava acesa no ambiente. O céu, o
sol, porém, ela não viu, e se sentiu ligeiramente assustada. Estava em uma
gruta úmida e gelada, uma luz sutil adentrava pelas falhas nas paredes e
uma brisa soprava por entre as rochas. Acostumada a violência, a calmaria
soou estranha a ela: moveu os olhos, observou o lugar e encontrou o
homem que a salvara na noite anterior: um primeiro dragão. Ele estava com
o tronco nu e tecidos manchados sobre o ferimento do peito.
Os olhos dele estavam fechados. Não parecia bem: a respiração era
pesada, a ferida no peito insistia em sangrar e a pele ao redor apodrecera
como se a espada que o feriu carregasse alguma maldição. A jovem,
preocupada, reuniu forças para se levantar e se aproximar do estranho. Ela
cambaleou algumas vezes, aguentou a dor que alfinetava seu corpo miúdo e
se sentou com dificuldade.
O homem-dragão abriu os olhos e sorriu.
— Parece que você acordou melhor que eu. — e ele se inclinou
lentamente para tocá-la no rosto. A mulher recuou depressa. — Não tenha
medo. Nenhum primeiro dragão jamais... jamais feriu uma Estrela da Noite.
Vocês são a vida que nos ilumina e nos dá força para continuar.
Ela desviou os olhos para o chão.
— Por que... eu sozinha... a vida...?
Os anos no calabouço roubaram parte da voz dela. Jamais tivera
conversas ou uma interação decente. Seu único contato com as palavras era
a partir dos termos que era chamada pelo draconiano.
— Por que você está sozinha? — ele perguntou para ter certeza do que
ela dizia. A Estrela da Noite assentiu em silêncio. — Eu deveria fazer o
mesmo questionamento... uma estrela não deve ficar sozinha. — o homem-
dragão tossiu e a fez erguer os olhos com uma mão. A mulher recuou
novamente, arisca e assustada. — Você me lembra alguém... Diga, estrela
da minha vida, qual o seu nome?
A pergunta doeu nela.
Ela não tinha um nome, um passado, uma história.
Somente cicatrizes e incertezas.
— Não saber... o nome... eu. — mas ela queria saber. Era o que mais
desejava. Um nome e uma identidade. O homem pareceu surpreso com a
resposta e uma expressão melancólica o dominou. — Você... o meu... — e
se esforçava para falar.
— O que está querendo dizer?
— Você... como eu... conhece eu...
— Ah, sim... Se eu conheço mais Estrelas da Noite? Sim... existe mais
uma. Vocês duas são tudo o que restou de nossa história; e somente você,
pequena estrela, é capaz de dar continuidade a nossa espécie. — o homem-
dragão suspirou pesadamente. As palavras o machucavam. — A outra
Estrela da Noite não pode gerar vida... porque eles... eles...
Ele tremia em fúria.
Mas se conteve: sorriu e ergueu os olhos para a mulher.
— A segunda Estrela da Noite está no Desfiladeiro dos Dragões
Gigantes... onde você deveria estar.
Se semelhantes estavam no desfiladeiro, o passado da Estrela da Noite
também estaria. Seria a chance de encontrá-lo e agarrá-lo, sua chance de
descobrir o nome que ganhara ao nascer. A possibilidade fez seu coração
palpitar e sua respiração acelerar; a ansiedade dela cultivou um sorriso
esperançoso no homem-dragão.
Ela queria ter sorrido também, se soubesse como.
Com um esforço que não tinha, o homem se pôs em pé e estendeu a
mão para a mulher.
— Darei a minha vida se for preciso, Estrela da Noite, para que
possamos chegar ao desfiladeiro... ao nosso lar.
O caminho era longo.
NO HORIZONTE EM
CHAMAS
Fogo.
Roren se preocupou. Chamas não eram comuns na floresta viva, a
presença delas poderiam ser um presságio de que o perigo estava próximo e
ele tinha um nome cruel: draconianos. Há menos de cinco dias, rumores da
destruição da Estação Leste correram pelas terras do Leste. Um dragão
atacou tropas draconianas que ocupavam a cidade, mas não venceu. Ele
havia sido derrotado pela perícia da raça inimiga. A invasão da criatura, no
entanto, tomaria proporções maiores: Roren sabia que o rei imploraria pela
ajuda do império draconiano e, em um pouco tempo, o continente de
Tannenberia estaria infestado por eles.
Era esse o motivo que o fazia se assustar com o fogo no horizonte.
Tiggrë e Lucinda se aproximaram devagar. A menina estava com uma
mão agarrada à camiseta de seu amigo, nos olhos, uma sutil preocupação a
consumia.
— Estranho, não? — disse Roren.
Tiggrë assentiu em silêncio.
— Se for os draconianos... espero que não avancem. Tenho medo que
nos encontrem por aqui. — Roren suspirou.
Porque eles tinham um dragão com eles. Um adulto grande o suficiente
para ganhar a atenção de caçadores — e se encontrassem Mom-mom, todos
seriam acusados de traição e decapitados pelos algozes dos grandes
senhores.
— Mom-mom tá dormindo... Ele vai ficar bem, num vai? — Lucinda
sussurrou. A lua iluminava parcialmente sua pele bronzeada e os olhos
castanhos, estes com lágrimas tímidas. — Tiggrë?
O menino esboçou um sorriso.
— Eles não vão nos encontrar, Luce, não chore.
Roren hesitara muito em aceitar a presença de Mom-mom. Ele não
teve medo da criatura, pelo contrário, sentiu-se extremamente nostálgico ao
vê-la. Era um dragão com mais de cem anos, maltratado pelo tempo e pelo
cativeiro, que precisava encontrar a paz em seus dias. Mas se o
encontrassem seria um segundo massacre. Dragões viveram na região no
passado, eram sempre dias ensolarados que, repentinamente, foram
pincelados de sangue pelas mãos draconianas.
Ninguém precisava de um segundo massacre.
Roren despertou de seus devaneios ao perceber as crianças adentrarem
na mata. Ele os seguiu com uma tênue aflição. A noite tinha vida, tinha
mistérios escondidos e uma escuridão traiçoeira que ele jamais desafiaria. A
lua, porém, mostrava-lhe sempre o caminho; e a noite se tornava menos
sombria. As duas estrelas a acompanhavam, solitárias no manto negro.
Roren se pegou pensando nas histórias sobre uma noite coberta de estrelas e
iluminada como o dia.
Era impossível contá-las. Hoje, porém, olhar para o céu era doloroso.
Os homens estavam destruindo o mundo.
Tiggrë parou de repente e fez um sinal para que Roren e Luce fizessem
o mesmo.
— Vocês sentem o cheiro do fogo? — perguntou o menino. — O fogo
comum não tem esse cheiro, ele também não se propaga tanto... tem alguma
coisa errada.
— Pode ser fogo de... um dragão?
O pequeno tigre assentiu.
— Um dos Primeiros Dragões.
— Precisamos voltar.
Roren estremeceu e colocou as mãos nos ombros das crianças.
...porque os ventos sopravam que o mundo estava para mudar.
CAPÍTULO SETE
OS VENTOS DA
ESPERANÇA
O PEQUENO TIGRE
ESTRELA PERDIDA
ELA NÃO DISSE O NOME DELA... Estava tão ferida que fiquei com medo que
não resistisse, senhor Roren. Eu estou preocupado... Ela parece perdida
nesse mundo e dentro dela.
A mulher-dragão ouviu parte da conversa enquanto estava entre a
consciência e a inconsciência. O menino cumprira com suas palavras de que
tudo ficaria bem, as dores estavam distantes e um abraço quente envolvia
seu corpo. Fumaça. Fogo. Água. Ela sentiu os elementos ao redor, as
sensações impulsionaram seu despertar. Abriu os olhos e se viu em um
ambiente estranho. Haviam paredes de madeira ao redor, um cheiro forte de
hortelã fresco e uma fumaça branca que ocultava parte do cômodo. O céu,
porém, estava oculto e o desespero de estar presa novamente contaminou os
pensamentos da jovem. Ela se debateu e o mundo se afogou numa escuridão
densa.
A Estrela da Noite não conseguiu respirar. Sua boca se encheu de água
e sua garganta fechou.
Deuses! Ela está se afogando!
Mãos enrugadas tragaram-na para superfície e uma lufada de ar
invadiu seus pulmões. O vapor se dissipou e sua visão se acalmou: ela
estava em uma enorme banheira de madeira — coberta até os ombros de
água. Não fora o menino que a ajudara, mas um velho e encurvado humano
de fios grisalhos. Ele a observou assustado e ofegante enquanto gotas de
suor escorriam na testa. A Estrela da Noite afastou o toque dele depressa e
escorregou uma segunda vez na água quente. Seus dedos agarraram
desesperadamente as beiradas da banheira e ela retornou à superfície
tossindo.
O homem tentou tocá-la, mas ela o impeliu com o que restava de sua
força. Calma, o ouviu dizer e não encontrou a tranquilidade enquanto não
soubesse onde realmente estava. O menino que a ajudara, Tiggrë, se fez
presente com um amontoado de ervas e tecidos velhos em seus braços. Ele
os lançou sobre a mesa e aproximou da mulher-dragão com os braços
abertos como se tentasse explicar que não havia o que temer.
— Tudo vai ficar bem... lembra? — e seus cabelos de fogo escorreram
úmidos em seus olhos. Ele estava inteiramente suado. — Tudo vai ficar
bem.
A Estrela da Noite se encolheu na água e seus olhos ficaram atentos na
chama bruxuleante de uma vela. Tudo vai ficar bem, ela queria acreditar
que fosse verdade e, assim, seu coração bateu em ritmo e seu corpo parou
de tremer. Uma pontada intensa alfinetou suas costas, mas ela ignorou com
um gemido contido. A fêmea de dragão sabia o que era... sua asa, quebrada,
despedaçada e destruída pelo ceifador e sua ganância. Os draconianos e sua
crueldade. Ela fechou os olhos e sobressaltou ao sentir um toque repentino
em sua pele. Era gentil e reconfortante. Tiggrë usou um pano úmido para
tirar as crostas de sangue e sujeira que a Estrela da Noite tinha no pescoço.
Roren, o mais velho, tentou ajudar na limpeza, mas o olhar raivoso dela o
afastou.
Ela percebeu a expressão de Tiggrë mudar durante o banho. O sorriso
iluminado e cheio de luz do menino deu lugar a preocupação e ao medo. Ele
suspirou em um momento e seus olhos encontraram os de Roren em um
aviso silencioso. A Estrela da Noite não entendeu, e permaneceu na água
enquanto seus longos cabelos negros flutuavam ao redor. Um sussurro
incerto do menino pediu que ela ficasse de costas. Ela o fez, embriagada
pelas sensações que experimentava pela primeira vez depois de anos em um
calabouço escuro.
Um tempo que ela queria esquecer. Principalmente do homem sem
nome e sem rosto que a torturou naquele lugar. Ele nunca revelou o motivo
da violência; e com o tempo, ela aprendeu que suplicar por compaixão era
em vão. Aprendeu a suportar. Aprendeu a sentir raiva. Aprendeu odiar; e
era por isso que ela não entendia bons sentimentos.
Porque jamais os aprendeu.
— Ei. — e a voz dele a despertou. Só então a Estrela da Noite
percebeu o quão sonolenta estava: o corpo mole, os olhos pesados e o
desejo de adormecer sem medo. Sem nenhuma dor. — Está gostando da
água? Eu coloquei uma essência que faz o corpo relaxar... Talvez queira
ouvir uma história enquanto descansa?
Ela não o respondeu, não gostava de histórias ou lendas que não
pudesse comprovar com os próprios olhos. Tiggrë sorriu e ensaboou uma
mecha de cabelo dela. Ele não parecia ter desistido de dar vida as suas
palavras. O silêncio da madrugada lhe foi favorável e ele sussurrou
docemente:
Agëa, o mundo, como é conhecido hoje; ontem, era Mundus, o plano
divino. Ele nasceu de duas entidades, não eram deuses, estavam a um passo
disso e partilhavam a dualidade de suas essências. Nin era a existência, a
luz e a ordem. Ein era a inexistência, a escuridão e o caos. Dizem que eles
não têm uma forma exata, mas Nin se assemelhava à um corpo humano e
Ein era uma serpente alada. Nin e Ein criaram Mundus quando o tempo era
incerto e o habitaram com a noite, Lunyar, na imagem de uma mulher; o
dia, Sunyar, na imagem de um homem, e o tempo, Hatanyar, um dragão.
Hatanyar foi o primeiro a descer em Mundus e o primeiro a propagar
seres vivos racionais no plano mortal: os Kyn. Eles eram a imagem de seu
criador, dragões com escamas negras que representavam a essência de Ein e
olhos dourados como as chamas vivas do deus-dragão. A raça, porém, era
constituída apenas de machos — incapazes de dar continuidade a espécie. O
poder de Hatanyar estava escasso após a criação que o inibiu de dar origem
as fêmeas, então, ele pediu ao seu criador, Ein, que propagasse em Mundus
seres semelhantes a raça dos primeiros dragões. O pedido fora cedido, mas
os dragões de Ein eram diferentes dos Kyn de Hatanyar; e a espécie dos
primeiros dragões perdeu aos poucos seu sangue nobre.
Hatanyar, enfurecido, os separou dos demais dragões e os exilou nos
abismos do mundo — onde a raça não pudesse ser corrompida. Isso não
resolveu o problema da continuidade dos primeiros dragões e Hatanyar
buscou auxílio com a deusa da noite, Lunyar, e ambos se apaixonaram. Ela,
no entanto, pertencia a Sunyar, o deus do dia, e ele a puniu num exílio
eterno sobre Mundus: a lua. O deus-dragão jurou vingar sua amada e,
sacrificando parte de sua imortalidade, deu origem as estrelas.
Ele as chamou de Estrela da Noite: porque no céu, elas eram
fragmentos brilhantes que iluminariam a escuridão e protegeriam a deusa
durante a eternidade; e no plano mortal, elas eram as fêmeas dos primeiros
dragões. O poder que elas guardavam era tão intenso que os machos da
espécie se ajoelharam diante delas e as adoraram como adorariam um deus.
Tiggrë encerrou a história com as bochechas coradas.
— As Estrelas da Noite... olhos como o sol, escamas como a noite e a
esperança de uma raça em extinção. — e o menino murmurou com os dedos
entrelaçados nos fios molhados das mechas da mulher. — Você é uma
Estrela da Noite... não é?
Ela o observou. Ela era uma realmente uma Estrela da Noite. O
ceifador exclamara isso aos céus, o draconiano bondoso sussurrou sobre sua
admiração pelas estrelas e o dragão mencionou que o mundo era perigoso
demais para uma. Ela se encolheu e suspirou — não havia como se
esconder do que era. Não existia um ser vivo que compartilhasse os
mesmos olhos que os dela: olhos de dragão.
Aru Tiggrë mostrou uma grande sabedoria ao contar o que sabia sobre
as Estrelas da Noite apesar de sua pouca idade. Ele contou cada detalhe
com um entusiasmo admirável como se a história fosse a sua favorita. As
estrelas, infelizmente, estavam desaparecendo. O céu estava se tornando
negro e a lua residia sozinha. Restavam duas Estrelas da Noite... duas para o
mundo mergulhar no caos.
— Mas sempre há esperança. As Estrelas da Noite guardam um poder
inimaginável dentro delas. Eu acredito que o deus Hatanyar jamais deixaria
suas filhas serem extintas... há relatos de uma essência que as Estrelas da
Noite carregam. Os draconianos chamam isso de maldição... e as caçam
porque temem.
— Esse... — o corpo dela estremeceu. As palavras morriam em sua
garganta.
— Essência. Eu não sei o que muito sobre... na verdade, poucos sabem.
Dizem ser parte do poder que o deus-dragão compartilhou com suas filhas.
Deuses. Lendas. Não era palavras verdadeiras, mas crenças de um
povo, de culturas, palavras que eram soltas ao vento e recontadas à sua
maneira.
...e ela dormiu sem acreditar nelas.
ESTRELA ENCONTRADA
AMBIÇÃO FORJADA EM
SANGUE
ERA DE TIGGRË.
A garganta de Yanaamahka secou e seu coração sangrou.
Hanzor previra que o menino se colocaria no caminho e controlou sua
força na investida, caso contrário, teria decepado a mão. Ele manobrou a
espada e arrancou Tiggrë de seu caminho com um chute pesado. O pequeno
rolou entre as flores, seu sangue se misturando a cor escarlate do jardim.
Roren correu para socorrê-lo e a Estrela da Noite se manteve imóvel.
Ela tremia.
A tênue confiança que depositara no draconiano se estilhaçara em mil
pedaços. Não restava nada além de decepção e frustração. Seu corpo
humano estremeceu e a forma de dragão implorou para ser libertada, para
abrir as asas e lutar. Mas ela era fraca, e estava impossibilitada. A Estrela
da Noite se levantou cambaleante e depositou seu olhar dourado no
semblante do homem. A arma de Hanzor estava na direção dela.
Os olhos do draconiano queimavam como fogo. Mas ela não tinha
medo dele ou de Leto Demétrius. O que ela temia, no entanto, era que mais
vidas fossem perdidas por causa dela como a do dragão negro fora. Roren e
Tiggrë não mereciam a punição draconiana.
— Eu não... posso morrer. — e ela sussurrou entre suas reflexões. Seus
olhos, antes indiferentes, encararam o draconiano com determinação. —
Não vou implorar... pedir por clemencia. Mas... não... aceitar seu
julgamento.
Os punhos dela se fecharam.
Hanzor fez menção de atacar: moveu o corpo sutilmente e empunhou a
espada. Uma sombra, contudo, o fez retardar o avanço. Ela crescera nas
costas de Yanaamahka, talvez com quase dois metros e o formato de um
homem. Era um homem, na verdade; e o draconiano se certificou quando os
olhos do estranho foram revelados pelos feixes alaranjados do pôr do sol.
Eram brancos, cobertos por cicatrizes. Roren, ao vê-lo, expressou um
sorriso de alivio. Ambos, estrela e humano, o conheciam.
— Quem é você? — Hanzor sussurrou com a espada em riste.
— Klud! — Roren se exaltou com Tiggrë desacordado em seus braços.
— Ele é um draconiano! Ele está ameaçando tirar a vida dela!
Os olhos de Klud estavam baixos e fechados.
— Um cego... — o guerreiro riu nervosamente. — Seria covardia
minha...
— É melhor você correr.
A primeira e última palavra de Klud não puderam ser questionadas: o
corpo dele se envolveu por uma vibrante luz azulada. O fluxo do tempo
congelou por segundos; então, a imagem humana desapareceu. Braços se
alongaram e se deformaram para dar lugar as escamas resplandecentes na
luz solar; uma cauda serpenteou iluminada; asas se estenderam para o alto;
presas se delinearam no focinho elegante e alongado. Era um dragão de pele
lapidada como safira, escamas cintilando como se possuíssem luz própria.
A fera moveu a cabeça na direção do vento, sua respiração era pesada,
sonora.
Klud arrastou as patas na direção do draconiano.
O rosnado do dragão fez a terra tremer. Ele tinha pouco mais de seis ou
sete metros de altura. Não era grande, mas Hanzor, acuado, se manteve
imóvel. Se fosse um caçador de sangue frio, o draconiano teria se
vangloriado por encontrar um dragão da espécie nyn, desaparecida há anos,
e uma Estrela da Noite na floresta. Mas ele não era — e o que sentia era
medo. A criatura escamada diante seus olhos não era como as outras.
Havia algo de diferente nela.
Klud rugiu e avançou, sua mandíbula mordiscou o ar na direção de
Hanzor e a lâmina da espada se prendeu entre as presas. O draconiano
firmou suas mãos para não ter a arma arremessada, mas a força do gigante o
fizera ir pelos ares, corpo e espada; e num piscar, num segundo, o Vanadis
vira Luz se fragmentar diante seus olhos. Hanzor caiu desajeitado sobre
arbustos e recebeu uma chuva de cristais brilhantes.
Os olhos dele estremeceram.
Luz estava em pedaços — a espada que pertencera ao seu pai. Ela era
forjada com o Aço de Cristal, uma matéria-prima das terras draconianas e
eficiente para caçar dragões. Diziam que ela resistia ao calor das chamas e a
força dos dentes de um colosso... e nenhuma que se despedaçou por mais de
duzentos anos.
Até agora.
— Por Lunyar... como você fez isso? — Hanzor sussurrou entorpecido.
Estava indefeso e parcialmente ferido com o tombo. Ele não poderia lutar, e
não queria. Seus instintos de guerreiro o alertavam do perigo que a fera
cega emanava. Era, de fato, um dragão incomum. Os pensamentos do
jovem foram interrompidos por uma investida furiosa. Ele esquivou com
um salto e mergulhou na mata. Sua corrida era desesperada e o dragão o
seguiu como um predador.
Yanaamahka permaneceu imóvel e distante quando ambos
desapareceram na escuridão que se aproximava da floresta.
Roren sussurrou preces aos deuses.
O mundo era mais traiçoeiro do que imaginavam.
HERDEIRAS DE FOGO E
VENTO
A ENTIDADE DE SAFIRAS
A ESSÊNCIA DO MUNDO
A DAMA DE FERRO
MATEM TODOS.
O sangue derramado nas terras de rebeldes não chocou os olhos
gelados do comandante. Ele observava a destruição sem expressar sequer a
vitória contra os inimigos. Não havia glória na guerra, Ahuriel vön
Krimnell lera em um livro e acreditava ser uma das mais importantes
certezas na vida de um homem. A guerra trazia a morte; e morrer era
escapar, era desistir, era ser derrotado. Era por esse motivo que o guerreiro
não festejava mais uma conquista das tropas draconianas sobre um povoado
rebelde.
Mas ele era o único.
Homens urravam e brandiam suas espadas para o céu. Um dia cinzento
honrava os nomes das famílias de cada um, as armaduras brilhavam na luz
das chamas. Eram draconianos, tinham o sangue quente e o coração
aventureiro. Eles nasciam guerreiros e tinham o prazer de morrer por sua
nação. Nenhum, felizmente, perecera na batalha. Porque atacaram um
povoado desprotegido, sem força de ataque, com predominância de velhos e
mulheres. Os rebeldes não resistiram. Eles imploraram por clemência —
nenhum fora poupado.
Ahuriel moveu os olhos pelos restos do vilarejo costeiro. Fogo, sangue
e terror se misturavam à paisagem colorida do continente. Homens haviam
sido decapitados, idosos queimados e mulheres violadas. O cavalo do
comandante relinchou inquieto e o Krimnell despertou de uma reflexão
profunda para entrar em outra. Uma menina morta entre os destroços de
uma casa ganhara sua atenção. Sua garganta estava cortada e ela mantivera
os olhos abertos ao morrer.
Olhos cor de sangue.
Os antigos escritos de Sahel, um estudioso sobre as origens
draconianas, diziam que a coloração escarlate era uma característica
predominante em um grupo de ancestrais da raça durante a Era dos Céus.
Os Rubros. Eles viviam nos vulcões de Almathumbria, continente que se
despedaçou e formou Aumastris e Nothumbria, e suportavam grandes
calores. A raça, nos primórdios, era dívida entre esse grupo e os Cinzentos,
residentes do sul do antigo território, as montanhas geladas e quem,
consequentemente, resistiam a temperaturas negativas. Ambos se
diferenciavam pela coloração dos olhos, um prateado e outro vermelho; e
pela pele, um pálido, o outro negro.
Se as teorias de Sahel fossem verdadeiras, a menina rebelde poderia ter
o sangue mais puro que qualquer guerreiro draconiano ao redor. Ela seria
mais nobre que o próprio comandante. Mas o estudioso fora um homem
condenado à morte por suas blasfêmias: ele defendia um sutil parentesco
entre os draconianos e os dragões. Seus livros foram queimados e sua fama
esquecida.
Sahel despareceu no mundo sem deixar rastros.
Ahuriel, no entanto, reservara uma cópia de cada um dos escritos. Não
por ousadia ou difamação ao seu povo, ele era um homem extremamente
compromissado aos seus deveres; e, sim, por curiosidade e prazer.
O comandante e seus homens retornaram à Aumas em uma noite
abafada. Muitos ficaram na cidade baixa de Amaezis para encontrar suas
famílias. A grande maioria dos guerreiros não eram draconianos de origem
nobre, mas filhos de comerciantes e camponeses que não tinham um passe
livre para além dos portões entre as duas partes da capital. Amaezis e
Aumas eram dividas por uma passagem fortemente vigiada: guerreiros
defendiam a entrada e a longa escadaria que se elevava ao berço do Palácio
da Aurora de Cristal.
O som das cachoeiras era tudo o que os menos privilegiados poderiam
desfrutar.
Ahuriel vön Krimnell avançou pelos degraus sentido respingos de água
lavar seu cansaço. Ele estava quieto e sozinho, sua armadura negra
carregava a luz da lua e resquícios da batalha de outrora. Não... ele se
corrigiu. Havia sido um massacre. Mas as estradas do rei estavam
finalmente livres e a Muralha Dourada protegida. O comandante se
aproximou da ponte que o levaria ao palácio e parou por um estante. A
cidade estava silenciosa e tranquila. Somente a canção das cachoeiras era
ouvida. Todos os draconianos nobres estavam reclusos em seus casulos.
Ninguém perambulava pelas ruas de marfim ou observava a lua de suas
janelas.
Era quase meia noite quando o comandante retornou aos seus
aposentos. Ahuriel esperava receber um ambiente dominado pela penumbra
e silêncio. Ele aproveitaria para lavar o cheiro de sangue de sua armadura e
ler para combater seu forte problema de insônia. Mas o que encontrou na
saleta fora diferente do cenário que imaginara: luzes acessas, livros
espalhados e sua mulher adormecida entre eles.
O sangue dele ferveu.
Ele deixara clara suas ordens ao sair em missão: a jovem não poderia
deixar o quarto. Nem por um minuto. Nem por um segundo. Desde o dia em
que ela desmaiara nos jardins do palácio, o comandante decidira mantê-la
presa para não prejudicar o herdeiro que se formava no ventre dela.
— Criança. — dissera ele num misto de raiva. A moça despertara com
um sobressalto, o corpo miúdo vacilou e ela tropeçou desajeitada entre os
livros. Ahuriel se aproximou e agarrou bruscamente pelo punho. Ele a
levantou de forma violenta. — Quem deu-te a liberdade de profanar minhas
ordens?
O rosto de Luna ficara vermelho entre as lágrimas.
— Perdão! — e ela sentiu o baque em seu corpo quando o marido a
lançou de volta ao chão. Uma estranha sensação floresceu em seu peito. O
vento queria acordar. Misairuzame a queria proteger. — Meu senhor, eu só
estava...
Ahuriel teria a batido e se a entrada repentina de Eun-seo não o
houvesse parado.
— Comandante! O que está acontecendo? — o cavaleiro perguntara
depressa ao se pôr entre seu senhor e sua protegida. — Ela está grávida!
Eun-seo vira a cólera contaminar os olhos do draconiano.
— Minhas ordens foram claras a ti. Esta maldita deveria estar no
quarto e permanecer nele até o meu retorno. — Ahuriel direcionou a ela um
olhar de desprezo. A moça se encolheu e segurou as lágrimas. — Volte para
o quarto, desgraçada, e não ouse sair novamente.
Lunaysis observou seu cavaleiro por instantes, Eun-seo não falara
nada, mas seus olhos diziam que ela deveria obedecer. A jovem se levantou
sozinha e correu depressa para o quarto, pequenas gotas de sangue a
acompanharam. Ela estava ferida, o guerreiro pensou com as mãos
trêmulas. Se ele não fosse tão inferior ao seu comandante, o teria matado ali
mesmo.
— Perdão, meu senhor. Eu a deixei sair um pouco. Ela estava pálida e
queria muito ler. — Eun-seo se explicou com reverência. Ahuriel o
observava com seus olhos gelados.
— Se ela pedisse para fugir, tu a deixaria?
Eun-seo estremeceu.
— Uma mulher não tem direito ou liberdade para fazer o que quiser.
Eu a comprei e farei o que bem entender. Se quiser espancá-la, espancarei.
Se quiser matá-la, matarei. — os olhos azulados do comandante emanavam
uma frieza como se fossem de vidro. — Se me parar novamente, sir Eun-
seo, farei com que ela durma com sua cabeça decapitada pelo resto da vida.
Ahuriel observou a bagunça ao redor.
— Tu estás proibido de vê-la e alimentá-la até segunda ordem. Agora
organize os livros e peça para prepararem meu banho.
O homem não pode fazer nada além de assentir.
Uma onda de silêncio abraçou a saleta com a saída do cavaleiro.
Ahuriel suspirou pesadamente para amenizar o badalar em sua cabeça.
Insônia. Cansaço. Irritação. Ele deixou o corpo despencar numa poltrona
aveludada e observou a bagunça do ambiente. A desordem causava-lhe
desconforto, sua rotina estava recheada de momentos em que ele organizava
duas, quatro, seis vezes os papéis em sua mesa, os livros na biblioteca, as
espadas em seus suportes. Era uma sutil obsessão: organizar e manter
organizado. No entanto, muitas vezes era prejudicado pela falta de sono. Se
deitasse na cama, o silêncio o faria lembrar dos compromissos; e dormir
significava, perder tempo.
As olheiras eram uma consequência.
Ahuriel desfez a longa trança que prendia seus cabelos prateados e
estalou os músculos doloridos no pescoço. Ele observou os livros
espalhados no chão, títulos que sua mulher havia escolhido por algum
motivo. Ele conhecia todos os nomes, eram histórias da criação e contos de
bardos apaixonados durante a guerra contra as raças antigas. O que chamou
a atenção do comandante, porém, fora um conjunto de folhas no meio de
um volume pesado de Ein e Nin na origem de Mundus.
O draconiano teria ficado irritado ao ver pedaços de papel inútil em um
livro tão precioso em sua coleção se as palavras escritas não estivessem
frescas. Ele os juntou entre suas garras salientes e analisou por segundos
uma parte do texto:
...O vento questionou, como é a liberdade?
Ela tem asas, não se esconde, não vaga, o tempo quem respondeu.
O tempo explica a liberdade? o vento indagou.
A liberdade não espera, não aguarda
Precisa ser alcançada.
Ahuriel interrompeu a leitura. A caligrafia era como um desenho,
delineada com um traço suave e um cuidado exagerado. Ele não conhecia a
letra, se era de sua mulher ou de algum empregado, não sabia, mas não
poderia negar que a mensagem o deixou intrigado por um momento.
Liberdade...
Ele amassou as páginas.
C I C AT R I Z E S D E O U T R O S
TEMPOS
Yanaamahka.
A pele do homem se arrepiou e um gemido abafado escapou de seus
lábios no momento de êxtase. O corpo suado desmoronou sobre o seu. A
mulher respirou com dificuldade e abraçou os últimos fragmentos do calor
trocado. Os dedos bronzeados dela deslizaram sobre o rosto pálido de Klud,
as cicatrizes, os fios grudados na testa, enquanto pedia aos deuses para
germinar uma vida em seu ventre. Mas nunca acontecia. A semente jamais
crescera nas relações contínuas de ambos, porque ele era um dragão e ela,
uma humana. Não havia possibilidade. As raças não se misturavam.
— Você disse algo? — ela sussurrou ao elevar os olhos para o homem.
Klud os mantinha sempre fechados durante as relações.
— Yanaamahka. — ele repetiu.
Klud sempre dizia o nome dela. Ele a amava e a desejava... porque era
nela, somente nela, que o homem pensava. Mare, porém, sabia disso: ela
conhecia os sentimentos do companheiro, mas sonhava em mudá-los. Ela
queria que ele dissesse o seu nome como sussurrava o de Yanaamahka.
— Roren me contou sobre ela... uma Estrela da Noite. — Mare
murmurou enquanto traçava uma linha imaginária no peito de Klud. — Ela
nutre os mesmos sentimentos por você?
A ausência de uma resposta fez a humana entender.
— Por que você continua insistindo? Você tem a mim, Klud, e eu
posso corresponder todos os seus sentimentos. Não existe necessidade para
se prender nesse sofrimento. Não percebe que vai ter uma vida solitária ao
lado dela?
Ele permaneceu em silêncio e lágrimas rolaram na pele de Mare.
— Por que você vem todos os dias pedir o meu calor se a ama?
Klud a afastou com sutileza. Ele se sentara na cama; ela, se encolhera
com as mãos sobre o rosto. Mare chorou profundamente ao ouvir o homem
se afastar sem palavras, seco como o deserto, indiferente como um
carcereiro. Ele estava predestinado a vida solitária, e não porque os deuses
queriam, era o desejo dele seguir o caminho de sombras, até que
Yanaamahka o tirasse de lá.
Ele caminhou silencioso nas passagens de terra da floresta. A noite
tinha uma canção suave, o vento era um bardo sábio, dedilhava as árvores,
soprava as folhas, acalmava corações atormentados, corrompidos pelo
mundo. O homem, porém, não se encantava com o som. Ele sentia falta do
mar, seu companheiro na infância, o gigante que o abraçou em noites
solitárias. Passaram-se tantos anos que Klud não mais recordava o gosto das
águas salgadas e o cheiro de areia, mas a imagem do azul, o colosso sem
fim, era nítida em suas lembranças.
Klud não podia voltar porque tinha uma promessa.
Yanaamahka. O homem sentiu a presença dela no vento. Um aroma
sutil de girassóis. Ela sempre cheirava a girassóis quando pequena, Klud
recordava, mas nunca essa flor nascera nas planícies quentes do continente
de Tannenberia. Ele se guiou pela mata, o cheiro, o desejo, a ansiedade de
abraçar tempos dourados, dias em que a inexistência de sua origem não
mais o perturbava.
A Estrela da Noite estava em uma pequena clareira na floresta de
Krynhild, poucos metros da casa de Roren. Sozinha. Klud não podia vê-la,
mas se pudesse, teria admirado os olhos dela durante a lua e o nascimento
do sol. Eles eram o sol, o ouro, a vida, e tinham o satélite prateado como
foco de sua atenção. Os fios negros, longos, dançavam com o vento em seu
rosto pálido. Ela devaneava quando fora interrompida pelo caminhar dele,
seus lábios entreabriram, suspiraram; e os olhos, inexpressivos, observaram
o semblante do homem.
Klud sentiu a pressão do olhar da Estrela da Noite: o peso de sua
desconfiança e desinteresse. Ele a ouviu se levantar e dar um passo
próximo, mas não ousou se aproximar mais — como se o homem fosse uma
ameaça silenciosa. A possibilidade o encheu de uma fúria inexplicável. A
Yanaamahka que ele conhecera no passado, quem o salvara de uma
depressão sem fim, havia desaparecido. Tudo o que restava dela era uma
casca oca que sequer reagia ao vê-lo depois de tantos anos.
Ele não aguentou.
O homem deu as costas e se afastou com passos ligeiros.
A Estrela da Noite, no entanto, sentiu uma sutil necessidade de segui-
lo. Não porque lembrava quem ele fora no passado ou porque desejava
descobrir mais sobre quem era, mas porque Klud também era um dragão —
e havia uma possibilidade dele conhecer o desfiladeiro. Por isso o seguiu
entre as árvores e os sussurros da floresta. O homem estava descalço, usava
uma calça escura de linho e uma túnica tão desgastada a ponto de revelar
parte dos músculos dele. Eram brancos como a lua que os iluminava. Ele
era pálido demais como se houvesse rejeitado a luz do sol desde a infância.
Klud caminhou como se o caminho estivesse desenhado em seus
pensamentos. Os passos o guiaram e a estrela o seguiu com uma distância
favorável.
Ambos percorreram Krynhild com os relâmpagos rugindo no manto
negro. Os longos fios negros de Yanaamahka eram esvoaçados pelo vento
intenso a cada novo passo, a cada nova elevação e declive de terra. Então,
de um minuto para o outro, ela reconheceu a trilha. As montanhas. Klud
seguida para a cadeia de montanhas solitárias no centro da floresta. O
mesmo lugar em que ela o vira em seus sonhos, a criança com olhos de
vidro e palavras pesadas de tristeza. A Estrela da Noite parou por um
instante e suspirou as dores em seu corpo. A pontada nas costas, o punho
deslocado pelo ceifador e os hematomas que se espalhavam por seu corpo
magricelo.
Nenhuma dor no mundo, porém, a deteria.
Quando, enfim, após uma subida desagradável, alcançou o topo da
montanha menor, Yanaamahka o perdeu de vista. O céu rugiu e gotas de
chuva despencaram como a lua lamentasse a escuridão do mundo. A
floresta de Krynhild se estendia majestosamente na noite, sem fim,
ultrapassando o horizonte. As nuvens pesadas da tempestade abraçavam a
região e escondiam a solidão bestial. Duas estrelas.
Um calafrio. Ela se arrepiou. Uma respiração quente alcançou o seu
pescoço e uma sombra cresceu em suas costas. Yanaamahka teve a intenção
de se afastar, fugir, mas quando virou, a mão do estranho agarrou seu
pescoço. Ele a suspendeu do chão.
Um relâmpago o iluminou: Klud. A Estrela da Noite estremeceu ao ver
seu corpo suspenso sobre o abismo de Krynhild. A chuva se intensificou e o
mundo desabou nas montanhas. Árvores pareciam minúsculas, mas letais, e
bastaria um movimento para que o homem a deixasse cair para a morte
certa. Porque ela não sabia voar. Ela não podia voar.
A força dos dedos de Klud ao redor de seu pescoço dificultaram a
respiração. Ela agarrou os pulsos dele com ambas as mãos, a pele quente e
sensível, mas a força de Yanaamahka se esvaziava na medida em que seu
cérebro parava de receber oxigênio. Ele poderia matá-la de dois modos: por
sufocamento e pela queda.
— Traga ela de volta. — ele murmurou, havia um ódio contido em
suas palavras. — Traga Yanaamahka de volta.
Roren dissera que ela era Yanaamahka. Hanzor a atacara por ser
Yanaamahka. Todos deram esse nome a ela como se estivesse escrito em
sua testa, mas desde então, mesmo com o sonho de seu irmão e a visão de
seu pai, a Estrela da Noite não conseguia encontrar a Yanaamahka dentro
dela. Ela estava perdida, esquecida, porque os quais deveriam buscá-la
haviam a deixado apodrecer nas correntes.
Mas se a antiga Yanaamahka fosse resgatada...
O que ela era agora jamais iria desaparecer.
Ela seria a Yanaamahka Draconis do passado e a do presente — e não
perdoaria o mundo que a esquecera no calabouço.
— Não... — a voz dela começou a falhar com a escuridão que se
aproximava. — quem eu... era... não... procure.
Os dedos de Klud se firmaram mais, mais e mais.
— É tarde... demais... para... para... você.
Um estrondo varreu o céu.
Ele a deixou cair no abismo da floresta.
CAPÍTULO DEZESSETE
DESEJOS REPRIMIDOS
O VENTO DE ESMERALDAS
O Q U E M E R E S TA D E V O C Ê
A DEUSA E O DRAGÃO
LÁGRIMAS HUMANAS
HOMEM DE CONTINENTE
NENHUM
INSTINTOS DRACONIANOS
O Grande Deserto.
A maior parte de Tannenberia era um deserto de areias douradas e
temperaturas extremamente elevadas. Ele representava a batalha do Sol em
Chamas na linguagem dos homens comuns. Sunyar confrontara o deus
dragão e o derrotara com o calor do astro rei — um poder tão intenso, tão
destrutivo, que abalou a natureza ao redor. Rios secaram, montanhas
derreteram e árvores foram transformadas em fragmentos de ouro que
deram origem ao deserto. A história era interessante, de fato, mas o
comandante dos Cavaleiros Negros não entendia o motivo que levara os
humanos a construir a capital nas areias selvagens da região oeste. Era
quente demais, inóspita demais e estranhamente habitada.
Um lugar que não o atraia.
Ahuriel vön Krimnell respirou fundo e decidiu parar de analisar os
mapas.
Era noite.
Ele estava desde cedo empenhado em delinear estratégias para proteger
a capital humana de um possível ataque durante o Festival de Sunyar. O
dever de proteger a cidade era dos draconianos — e eles não falhariam. Não
com tantos guerreiros famosos a caminho de Tannenberia no Lua Dourada.
O próprio comandante era um deles, ele não hesitaria em caçar dragões com
sua montante e arrancar escamas com sua lâmina.
O Lorde Krinmell estalou o pescoço e se levantou. Ele organizara os
mapas, os livros e a sala antes de se dirigir para seus aposentos. Seu corpo
ansiava, clamava, por um descanso digno depois de horas e mais horas de
trabalho. Ahuriel, porém, não se sentia irritado ou com a paciência escassa
como quando a insônia lhe era como um inimigo cruel. As leituras de sua
mulher — quem ele não se importara de lembrar o nome — estavam
afastando os problemas com a falta de sono. Ele dormia por mais de duas
horas, cinco talvez, como um draconiano normal deveria.
Ahuriel encontrou sua senhora encolhida nos lençóis ao entrar no
quarto como se estivesse se protegendo de algo ou alguém em uma
armadura de tecidos. Ela sobressaltou a vê-lo, fez uma sutil reverência,
antes de se sentar na cama e fitar as próprias mãos. Os dedos dela tremiam.
O comandante se ajeitou na poltrona, desafivelou lentamente as travas de
sua armadura e pediu, na verdade, ordenou que a jovem iniciasse a leitura.
Um processo simples, entre sussurros, que faria o corpo do draconiano
reclamar e ser abraçado pela escuridão.
— Leia. — ele disse como passara a dizer em todas as noites.
O guerreiro desviou a atenção para a draconiana e percebeu que ela se
levantava.
— Meu senhor. — o corpo inteiro dela tremia, o rosto estava vermelho
e a respiração entrecortada. Ahuriel, porém, não demonstrou preocupação.
Somente uma raiva crescente. — Eu não quero ler essa noite.
— Quem lhe dissera, mulher, que tens livre arbítrio?
Ela não hesitou e se levantou.
A camisola de seda delineava suas curvas, seu corpo e sua barriga
inchada. A jovem caminhou devagar, como um felino ousado, enquanto ele
mantinha a cabeça inclinada e os olhos atentos — gelados como o inverno
— na direção dela.
Mas não era o corpo dela que o atraia.
Ele observava os olhos, o fogo, o vermelho cor-de-sangue.
— Volte para a cama, mulher. — e o comandante se perguntou as
intenções dela. Era a primeira vez que sua mulher, constantemente quieta e
submissa, uma marionete, dava um passo para a desobediência. Deveria
dar-lhe uma punição, talvez espancá-la como o pai dela, o general Vanadis,
sugerira. Os pensamentos dele trabalhavam, a paciência se esvaziava aos
poucos, mas todo o fluxo de questionamentos foi interrompido por uma
atitude corajosa, e também ousada: a camisola escorreu pelos ombros da
draconiana, deslizou pelo busto, a cintura, as pernas e encontrou o chão.
Os olhos do comandante percorreram cada centímetro, cada curva e
cada linha do corpo de sua mulher, não, ele se corrigiu, uma menina que
brincava de ser mulher. Porque na primeira vez que a vira em sua
intimidade, a draconiana estava com lágrimas nos olhos e fraco desejo de
viver. No presente, meses depois, uma sutil determinação queimava nos
olhos dela — e Ahuriel suspirou em um misto de sentimentos. Não era
atração, tampouco admiração ou excitação; e, sim, desafio.
Ele se levantou e se pôs em frente à sua senhora.
— Vista-se, desgraçada.
Ele a sentiu ser afetada, sucumbir.
Mas ela se manteve imóvel.
— Eu não vou pedir de novo.
A draconiana o encarrou. A desobediência dela, o desafio impregnado
no rosto, fez o sangue do comandante dos Cavaleiros Negros ferver: ele a
esbofeteou com uma mão pesada e grande. Ela era tão pequena, tão frágil,
que a força a fez cair em um baque surdo no chão, as mãos na boca, os
cabelos nos olhos. Um gemido escapou dos lábios dela e Ahuriel acreditou
que ela choraria como a criança que era, a criança que sempre seria.
O que ele não esperava era vê-la se levantar e o encarar com um filete
de sangue escorrendo pelo nariz. Lágrimas pairavam nos olhos dela, em
abundância, mas a draconiana não ousou derramá-las.
Um misto de confusão e fúria contaminou o comandante.
— Como ousa me desafiar dessa forma, mulher?
A resposta viera com um movimento dela: ergueu o braço, o mesmo
com a mão enfaixada, em direção ao rosto do draconiano. Ele a segurou
pelo pulso antes que pudesse tocá-lo, antes que os dedos suaves, dedos que
nunca ergueram uma espada, alcançassem sua pele. Um cheiro repentino,
então, o embriagou. Era doce como as longas primaveras de Aumastris, os
dias ensolarados e as flores que cresciam ao redor das montanhas que eles
viviam. Ahuriel trincou os dentes, detestou como o aroma enfrentava os
seus instintos mais primitivos, empurrando a draconiana violentamente em
direção da cama.
Os lençóis ampararam a queda dela. O comandante a viu se mover,
suspirar, sem hesitar aos olhos em cólera que eram direcionados em sua
direção — e se surpreendeu quando ela se pôs em pé uma segunda vez.
— Meu nome... — ela sussurrou com os mesmos olhos de fogo. Os
cabelos dourados cobriam seu busto, mas o resto de seu corpo, os detalhes
de suas curvas sinuosas, estavam visíveis. Ahuriel, no entanto, prestava
atenção somente no semblante dela. Na coragem. Na perseverança. — Não
é desgraçada ou mulher. Eu era Lunaysis rön Vanadis e sou Lunaysis vön
Krimnell, então, peço, meu senhor, que me respeite como sua senhora.
O comandante a viu fraquejar por um segundo.
Lunaysis secou as lágrimas depressa e juntou a camisola. O movimento
do corpo dela, só então, ganhou a atenção do draconiano. Os lábios dele se
entreabriram, sem voz, os olhos deslizaram pela pele pálida e um repentino
tremor o acometeu. Desejo: um sentimento carnal que o fez dar um passo
para trás.
Ele trincou os dentes antes de se pronunciar:
— Não haverá uma segunda chance. — e então saiu do quarto.
...e o comandante se sentiu derrotado por seus instintos pela primeira
vez.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
ESCREVENDO HISTÓRIAS
PERDIDAS
SOB AS SOMBRAS E AS
LUZES
CORAÇÃO DE ESTRELAS
O G R A N D E D E S E RT O
UMA CANÇÃO
AMALDIÇOADA
AMANHECIA LENTAMENTE.
Yanaamahka vomitou tudo o que tinha e não tinha no estômago.
Um súbito mal-estar a fez deixar a taverna que estavam hospedados às
pressas, a mesma sensação que sentira dias atrás antes de encontrar Tiggrë
— como se suas entranhas estivessem apodrecendo por dentro. Era o
líquido negro, espesso, sem cheiro, um pedaço de escuridão que escapava
aos montes de seu interior. A Estrela da Noite precisou correr e correr para
encontrar um canto que ninguém a veria seu estado deplorável de náuseas e
fraquezas. Estava em um campo vazio, de árvores escassas e casas
pequenas e distantes. Nem uma sombra humana pairava por lá, só a luz da
lua, despedindo-se para dar espaço ao sol, mas os resquícios da
comemoração estavam em todos os lugares. Arrius cheirava a fogo, carne e
suor.
Yanaamahka se ajeitou, ela estava de joelhos sobre uma inclinação de
terra, limpando a boca com a manga da túnica. Ela se questionava em
silêncio porque estava passando mal mesmo depois de receber a medicação
de Tiggrë. O menino afirmara ser o suficiente para enfrentar a infecção na
asa, mas o tônico parecia servir apenas para aliviar os sintomas por um
período de tempo. A Estrela da Noite mordeu os lábios com a cólera
contida, pendendo a cabeça para o lado e deixando que o vento soprasse o
que restara dos cabelos dela. As madeixas longas de outrora haviam sido
perdidas, restando apenas fios disformes na altura do queixo e uma franja
bagunçada para ocultar parte do dourado dos olhos dela.
Tiggrë dissera que a estrela seria facilmente confundida com um
homem — era magricela, sem músculos, sem traços femininos marcantes.
As roupas também não a favoreciam; e Yanaamahka era tão reta quanto a
lâmina de uma espada. Só que ela não se importava muito com a imagem de
sua forma humana.
Porque, antes de tudo, era um dragão.
Então vomitou mais uma torrente de líquido negro.
Sentindo-se estranha, ingênua herdeira? era Mahoutsukai, a divindade
que se dizia viver dentro dela. Yanaamahka tentou dissipar e ignorar a
presença da entidade, mas esta se tornou mais forte e presente.
— Pensei que tinha desa... desaparecido. — a estrela murmurou com
desdém.
A risada de deusa ecoou fortemente.
Aqui estou, herdeira, desde que chegaste a este mundo e aqui estarei
até o fim dos teus dias. Sou a essência que te mantem viva, e Yanaamahka
sentiu um arrepio atravessar sua espinha. Mahoutsukai estava tão presente
no interior da fêmea de dragão que era difícil esconder qualquer
pensamento dela. Por que tu duvidas tanto de mim?
— Eu fiquei... doze anos... sozinha... você poderia ser uma inven...
invenção disso. — a mulher-dragão respondeu com receio.
Tu sobreviveste doze anos na escuridão por causa minha, Yanaamahka
Draconis, eu sempre estive ao teu lado. Pense com cuidado, a voz da deusa
se tornou um murmúrio impaciente, sobre o que tu és. Tu achas que
sobrevivera as torturas do draconiano ou a ausência de comida decente
por tantos anos?
Yanaamahka não respondeu, não havia o que dizer: porque não queria
aceitar na possibilidade de Mahoutsukai estar certa, na possibilidade de ter
sobrevivido por causa do poder da deusa e não porque fora sua própria
força de vontade, seu desejo de liberdade. Era tudo o que tivera na
escuridão e preferia não os ver como uma farsa.
— O que mais você sabe e esconde de eu? — perguntou então, o
coração palpitante com as vibrações de seu mal-estar.
Muito, e nenhuma outra palavra.
— Por que me esconde... se eu ser... Eu sou sua herdeira, como diz. —
a indagação da Estrela da Noite saiu um grunhido.
Eu posso te contar tudo, Yanaamahka, tudo; mas preciso de algo em
troca.
A mulher-dragão esperou pela oferta.
O Tempo do Sono Eterno, dissera Mahoutsukai.
— O que é isso?
Pergunte ao menino que lhe acompanha; ele saberá te responder, mas
isso não é o que quero de ti, herdeira; ah, não. A sabedoria tem um preço
alto.
Como poderia saber que a deusa não estava mentindo?
Eu não estou mentindo, respondeu a mãe das safiras ao ler os
pensamentos da estrela. Por que faria eu algum mal a ti se minha existência
depende da tua?
Yanaamahka olhou em frente, para os campos que se iluminavam
sutilmente com os primeiros raios do sol e percebeu um menino
acompanhando duas ovelhas. Ela sentiu o cheiro dos animais, da carne, da
fome; e por um minuto se sentiu inclinada a avançar e devorar ambas. Eram
seus instintos, o dragão que era.
Só que seria arriscado demais.
— É um lugar? — Yanaamahka perguntou com um sussurro e a
presença da deusa em seu interior soou distante. — ...Mahoutsukai.
Um calor repentino se acendeu na Estrela da Noite.
Sim, ele fica há cinco dias ao sudoeste do Grande Deserto.
Cinco dias para ir. Cinco dias para voltar. Yanaamahka não queria
atrasar seu destino, não queria perder tempo, mas sentiu em seu íntimo que
o pedido de Mahoutsukai era importante e que o templo citado por ela
também.
Esperava não se arrepender.
O TEMPLO DO SONO
ETERNO
V I N G A N Ç A PA R A O S T O L O S
N A L U Z , D E S A PA R E C E M O S
TU ESTÁS MORRENDO.
Só que Yanaamahka não queria morrer — ela não podia morrer; e o
medo da escuridão eterna a fez despertar embriagada pela dor. Seu corpo
permanecia atirado contra o próprio sangue, os escombros do templo
espalhados ao redor sobre uma fina camada de poeira negra. A Estrela da
Noite se encontrava em um estado deplorável, vulnerável, que sequer seria
capaz de se defender se o draconiano a encontrasse... e desejava
profundamente que o ceifador houvesse morrido naquela queda.
A queda era culpa dele, a lança em suas entranhas era culpa dele.
A morte era pouco para o que ele merecia.
Yanaamahka tentou apoiar o frágil corpo humano com os braços,
buscara os resquícios de força que tinha; e não conseguiu — não quando
uma dor monstruosa lhe atingiu por inteira. Vomitou. Caiu, a lâmina
draconiana reverberando no interior de sua carne. Ela observou o ferimento
e quase colocou o estômago para fora diante da imagem: a arma de
Demétrius não apenas atravessara sua barriga como infeccionara a região
com algum veneno potente. A pele estava roxa, morta, quase necrosada... o
mesmo ferimento que provocara a morte do dragão que a salvara dos
draconianos naquela noite. A Estrela da Noite conteve o grito de dor em sua
garganta, mordendo os lábios e pensando em um modo de tirar a lança de
seu corpo.
Tu não irás conseguir sozinha, a voz de Mahoutsukai ecoou.
Yanaamahka sentiu um súbito desejo de mandar a entidade de safiras para
longe, qualquer lugar escuro e desgraçado, por tê-la deixado se ferir tão
gravemente durante a batalha contra o draconiano. A mulher-dragão sequer
era capaz de respirar direito, seu pescoço estava inchado e as marcas da
pressão dos dedos de ceifador a sufocavam aos poucos. O fogo de safira
não poderá curá-la... não com o aço de cristal na tua carne. Ele inibe meu
poder e contém um veneno perigoso para dragões, morrerás em breve se
não o tirar.
A Estrela da Noite arrastou seus dedos humanos pelos escombros,
agarrando parte da lâmina enterrada em suas costas. Somente o toque de
seus dedos fez a dor avassaladora dominar o corpo e fazê-la berrar de raiva,
fúria. Sangue fresco verteu novamente da ferida, e a quantidade de líquido
viscoso ao redor dela demonstrava a situação difícil que estava. Se
continuasse perdendo sangue de tal forma, ela não acordaria, não resistiria.
O draconiano. Ele está vivo.
Yanaamahka engoliu parte da dor.
Ele é tua única alternativa.
Ela nunca o ajudaria — não depois de tudo. A asa quebrada, a
violência, as palavras odiosas. Tudo estava errado desde o dia que
Demétrius a encontrara naquela floresta. Se não fosse por ele, Yanaamahka
poderia estar voando, desbravando o mundo do alto. É arriscado, entendo;
e também entendo que se tua vida perecer, a minha existência terá o mesmo
destino. A voz de Mahoutsukai se tornou mais distante, fraca, influenciada
pelo estado da estrela. Tu não queres morrer aqui, herdeira; e eu, como tu,
tenho o mesmo desejo. Encontre-o antes que o veneno do aço de cristal se
torne irreversível.
— ...Eu não posso... não quero. — Yanaamahka resistiu ao pedido,
inconformada, frustrada por não existir outra alternativa.
Então tu queres morrer nesta escuridão?
Desgraçada, era o que a mulher-dragão gostaria de ter gritado com tudo
que restava de sua voz. Mahoutsukai era tão mau humorada quanto ela,
ambas dividiam semelhanças; e talvez a entidade estivesse com tanto medo
como a estrela de desaparecer, de se fragmentar e se perder na escuridão do
templo. Yanaamahka praguejou mentalmente duas ou três vezes mais, a
lâmina dançando em sua carne, enquanto se esforçava para tirar os
escombros de seu caminho. Ela rastejou então, os fantasmas da
inconsciência indo e vindo, o cheiro de sangue descendo por sua garganta.
Um gemido abafado e familiar ecoou entre os escombros e escuridão.
Era o draconiano — ferido e quebrado em algum lugar do ambiente.
Yanaamahka não imploraria pela ajuda dele, seu orgulho era uma besta
indomável, mas também não morreria naquele templo. Ela escaparia e
depois culparia a deusa de safiras também por tê-la enfiado naquele fim de
mundo.
Yanaamahka seguiu o som, a respiração lenta que se misturava ao
movimento contínuo de água entre as paredes. Ela mordeu os lábios a cada
vibração da lâmina em suas costelas, o veneno do aço de cristal era cruel,
eficaz, uma estratégia inteligente dos draconianos para caçar dragões. A
mulher teria sucumbido perante a dor se os fios negros de Demétrius não
houvessem surgido diante seus olhos dourados: o guerreiro estava
parcialmente desacordado entre os escombros, o braço deslocado torto ao
lado de seu corpo. A perna direita dele estava imobilizada por uma placa de
pedra — tão pesada capaz de triturar os ossos dentro de sua pele. A imagem
causou segundos de satisfação em Yanaamahka: lá estava o maldito
ceifador, enfim, destruído, aos pedaços como merecia. Mas precisava dele,
por isso rastejou, trincando os dentes. A cada movimento dela, a lâmina
rasgava mais sua carne por dentro. A arma era pesada, dolorosa, tão
semelhante ao homem que a empunhava.
Demétrius abriu os olhos então: um negro, um cinzento — cores que
lentamente se tornavam opacas. O draconiano riu com desdém ao vê-la. Ele
observara a lança, o sorriso de satisfação ao perceber que acertara o golpe
final antes de caírem.
— Não existirá vencedores nessa batalha... Estrela da Noite. — o
homem murmurou com dificuldade, banhando de escuridão e poeira, os
dentes manchados de vermelhos, a grossa cicatriz acentuado a corrupção
das palavras dele. Era quase difícil observar Demétrius de perto.
Yanaamahka cuspiu sangue na direção dele. Como se ela fosse se
deixar morrer com ele, era o que queria ter dito e não o disse por que o que
lhe restava de resistência estava por um fio de se acabar, segundos entre a
consciência e a inconsciência. Ela sucumbiu perante a dor e caiu em meio
ao próprio sangue, as dores reverberando por seu âmago.
A Estrela da Noite deslizou os dedos pelo chão.
— Mahoutsukai... — e sussurrou com o que tinha de voz.
A presença da deusa se manteve distante.
— Mahoutsukai! — e gritou com o que não tinha quando seus dedos
encontraram os do draconiano, a expressão dele tão negra quanto a morte.
Só então a energia azulada do Fogo de Safiras de acendeu no peito dela:
dançou na liberdade e iluminou o ambiente com seus fragmentos de luz
incandescente. Yanaamahka sentiu cada pequeno fiapo de sua vida se tornar
um bloco de gelo, perdeu o calor, as cores, o mundo. Era a primeira vez que
via as consequências de seu poder... a crepitação enfurecida e também
suave. A chamas azuladas caminharam sobre a pele humana dela e
saltitaram sobre a draconiana dele. Demétrius sentiu a essência em seu
íntimo, as vibrações e vozes que sussurravam palavras que ele não
conhecia.
Então cada músculo do guerreiro se tencionou.
Um estalo — e o braço dele retornou à posição simétrica, não mais
deslocado.
Um gemido — e a visão dele se iluminou.
Um suspiro — e sua perna imobilizada e fragmentada se moveu
perfeitamente.
O fogo azul se tornou uma pira enorme diante dele, transformando
todos os escombros ao redor em cinzas. Aquela era a maravilha de um
poder esquecido: a benção do fogo safiras, os antigos chamavam, uma
benção proibida e temida por todos os draconianos que viviam em Agëa —
e o general Demétrius jamais fora um deles. A essência era quente, sutil e
acolhedora. A Estrela da Noite usara de seu poder para livrá-lo das vigas do
templo, sussurrando com esforço antes de apagar complemente:
— ...Não me deixe morrer. — e ele não soube a quem a mulher-dragão
se manifestava, se a ele ou a divindade no interior dela.
O draconiano se levantou então: tão facilmente, tão renovado. Era
como se houvesse nascido de novo, como se houvesse sido arrancado mais
uma vez do ventre materno e lançado ao mundo gelado de Nothumbria.
Demétrius observou a escuridão, sombras que cresciam e se aproximavam
dele; depois, para o corpo desacordado, inerte, diante dele.
Lá estava finalmente sua oportunidade de exterminar a penúltima
estrela.
O general sorriu psicótico.
— Você escolhe as pessoas erradas para confiar, Estrela da Noite.
Por favor esteja bem, a voz do pequeno tigre sussurrou e soprou toda a
escuridão... os pequenos fragmentos de vazio que sobrevoavam a mente da
Estrela da Noite pelos segundos, minutos ou horas que lutara contra a
inconsciência. Tiggrë observava o céu, pedindo aos deuses-animais que
acreditava, clamando que eles o ouvissem e a protegessem. Se aquilo era
uma verdade presente na realidade ou se os pensamentos do menino
estavam conectados com os dela, a mulher-dragão não tinha sabia
exatamente. Mas esperava que fossem reais, a voz do humano era como um
calmante para a existência dela. Os monólogos, as histórias e a proteção
desnecessária do humano começavam sutilmente a se tornar parte dela.
Porque ele lhe dera um nome, um sorriso, uma atenção que ninguém,
desde então, oferecera. Tiggrë, a Estrela da Noite se viu murmurando para a
escuridão e, repentinamente, seu corpo se tornou mais leve. Então, numa
súbita dualidade de sensações, Yanaamahka despertou nos escombros do
templo.
No mesmo lugar: a dor estava tão presente quanto nos minutos ou
horas anteriores. A respiração era dificultosa e o simples movimentar de
seus pulmões humanos, enfraquecidos pelo ferimento, causavam uma onda
de sensações negativas, avassaladoras; e ela não suportou o cheiro que
sentiu do próprio corpo. Era um misto de podridão, sangue e urina. A
mancha arroxeada ao redor da lâmina havia crescido consideravelmente,
enrugando a pele com o veneno do aço de cristal. Yanaamahka moveu os
olhos com dificuldade e encontrou os do draconiano, heterocromáticos.
Leto Demétrius estava sentado sobre uma rocha em pedaços, as mãos
inquietas jogando pedras para o alto.
Ele a observava em silêncio antes de se pronunciar:
— Você está finalmente morrendo. — e a voz dele era vazia de
sentimentos.
A Estrela da Noite gemeu em protesto, esperando que o draconiano
fizesse o mesmo por ela: que a libertasse daquela lança antes que fosse
tarde demais, mas a raça era imprevisível. Sem honra. Demétrius
provavelmente a veria morrer e não a ajudaria... e tudo teria sido em vão.
Era o que ele sempre desejara, na verdade, ser o ceifador da penúltima
estrela.
— Eu a analisei de perto enquanto estava inconsciente... — o general
draconiano, indiferente ao modo que ela se contorcia no chão gelado,
levantou-se e arremessou as pedras na escuridão. — Meus pensamentos me
corroeram, meu sangue ferveu e você se fosse capaz de imaginar o que
quero fazer com você, não teria me ajudado. Eu posso fazer o que quiser...
— e ele chegou mais perto. — ...e ninguém virá te proteger.
— ...você fala demais. — ela respondeu dolorosamente.
Demétrius flexionou o joelho para ficar próximo dela, no chão.
Ele não piscou em nenhum momento.
— Só não o fiz ainda porque esse maldito lugar só funciona com a
merda da sua vida. — e a agarrou pelos cabelos curtos. Yanaamahka
mordeu os lábios com a intensidade dos dedos dele, gemendo. — Então não
pense que estou fazendo algo por você porque me ajudou, vadia desgraçada.
— Demétrius largou a cabeça dela e se levantou.
Ele a observava de cima.
— Somente observe o que eu posso fazer com seus ossos. — a mão
dele envolveu o enorme cabo da lança penetrada das costas da mulher-
dragão. Ela sentiu o peso em sua carne, a pressão, o aço. Então o rosto do
homem ficara vermelho com a força que usara para partir haste da lança em
duas: a parte menor continuou na pele dela, a maior, na mão dele.
Yanaamahka sentiu cada vibração do quebrar em seu interior, a vontade de
gritar e implorar que o desgraçado parasse e deixasse sua maldita lança
parada, imóvel nela. Só que a estrela não gritou, resistiu com os dentes
fazendo seus lábios sangrarem, as novas e velhas feridas vertendo tanto
sangue que a deixara tonta.
Demétrius arremessou a parte maior da lança no ambiente.
— Vai sangrar até a morte se eu tirar o resto. — e um sorriso de puro
êxtase estampava a expressão dele, o draconiano sorria ao vê-la sofrer,
quase urrar com o padecimento imposto pelos ferimentos.
— Não... — Yanaamahka sussurrou gemendo. Se a sua essência era a
cura do mundo, se o seu Fogo de Safiras havia fluído pelas veias
draconianas e o renovado, o poder também a ajudaria. Era o que
Mahoutsukai lhe dissera: as safiras lhe protegeriam nos momentos mais
críticas.
Mas há um preço, o coração da Estrela da Noite quase parou ao ouvir a
deusa. Só se pode dar vida em troca de vida... e o Fogo de Safiras
consumirá cada resquício de sua vida até que não reste mais nada.
Yanaamahka estremeceu e ignorou as consequências. Ela não precisava
viver no futuro, era o passado que lhe importava, assustava, cativava; então,
escondendo a presença da divindade na parte mais escura de seus
pensamentos, a Estrela da Noite aspirou, transpirou, murmurou.
Mahoutsukai, e as chamas vibraram dentro de seu peito.
— Depressa! — a mulher-dragão disse entre os dentes para o
draconiano que observava atentamente. Demétrius permaneceu um curto
período de tempo quieto, estudando suas próprias ações. Ele não era, e
nunca seria, nenhum cavalheiro: as mãos dele eram ásperas demais,
descuidadas demais, mãos que não conheciam o mínimo de afeto. O
draconiano se ajoelhou diante a estrela e a mudou de posição para que o
restante da lâmina estivesse em seu alcance. Então, ele apoiou as costas
dela na perna dele; e Yanaamahka fechou os olhos diante o ceifador, a
brutalidade de cada movimento ressonava pelos músculos dela. Era
constrangedor e humilhante precisar da ajuda de quem ansiava por sua
morte.
Yanaamahka abriu os olhos e encontrou os do inimigo. A verdade era
que Demétrius não queria deixá-la morrer tão facilmente: ele mesmo queria
ter o prazer de exterminar a vida dela.
— Reze para seus deuses de merda, Estrela da Noite. — ele disse
enfim.
— Eu não acredito em deuses.
O que ela sentiu no momento em que a lança caminhou em suas
entranhas, não poderia descrever. Era diferente de qualquer ferimento que
tivera ou de uma asa rompida: era a dor de estar viva, era a dor de lutar pela
vida, era a dor de enfrentar o mundo que a desafiava todos os dias para
levá-la a morte. Render-se, porém, descansar num sono eterno e sem
sofrimento, não era uma alternativa. Era um inimigo que ela derrotaria
sempre. A morte não era uma escolha para ela, era um castigo, o
esquecimento. Um purgatório de sonhos despedaçados. Yanaamahka
resistiria. Ela gritou, seus olhos dourados estavam cobertos por lágrimas,
seu rosto estava vermelho e seu corpo inteiro tremia com cada milímetro de
lança que se separava de sua carne. Ela viu o mundo se fragmentar, viu a
luz ir embora, mas se agarrou a todos os resquícios de sanidade e se
manteve consciente até o último minuto.
Porque ela resistiria.
A lâmina saiu junto de uma torrente sangue e a Estrela da Noite urrou
porque permanecia viva, precisava continuar viva. Suas mãos trêmulas
tatearam depressa o buraco em sua barriga. Mahoutsukai, ela sussurrou,
dando vida para gerar vida. As chamas azuladas brotaram de seus dedos e
mergulharam na carne, roubando o calor de seu corpo e, por fim, a sua
consciência.
Demétrius acompanhou as chamas surgirem e desaparecer azuladas
diante seus olhos, cores vibrando e dançando. Ele largou o restante de sua
lança no chão, a lembrança de quem era e de onde viera, o que fora e o que
se tornara. Um pedaço corrompido de destruição que se deleitava com as
novas sensações que corriam por seu corpo: mais fortes, mais intensas
desde o toque de safira. A essência lhe dera uma sensação estranha como se
houvesse sido forjado de novo. Era bom, intensamente bom. Ele estava em
vantagem, seus músculos rugiam e seu sangue fervia, era capaz de matar a
Estrela da Noite com uma mão, arrancar seus membros e cumprir seus
desejos mais cruéis. Ela estava inerte a sua frente, desacordada e banhada
de sangue, vulnerável como uma caça. O draconiano estalou o pescoço e
cruzou os braços. Torturas eram mais deleitosas com vítimas conscientes; e
ele não esperara o descanso da Estrela da Noite, não quando ela era a chave
para que o lugar acordasse. A escuridão do ambiente não o incomodava,
mas, sim, a atmosfera. Era sombria e carregada, ambos estavam numa
câmara fechada entre quatro paredes com um tênue som de água em
movimento. Eram passagens miúdas que circulavam a sala e se ligavam ao
chão e paredes, desaparecendo em caminhos que levavam a áreas além
daquela.
Demétrius não se interessou em descobrir o mistério da água, sua
intenção era encontrar uma saída e não obteve sucesso. Tudo o que seus
olhos viram foram marcas em uma das paredes, formas que se uniam e
formavam dizeres.
Drago’skar: linguagem de dragões.
Provavelmente a Estrela da Noite conhecia.
O ceifador caminhou até ela. O cheiro não o agradou, era pior que o
seu: sangue e suor. Uma mulher que fedia pior que um homem. Ele decidiu
que acordá-la com os pés fosse a melhor opção. Deu-lhe três ou quatro
chutes nas pernas, nem forte ou fraco, mas o suficiente para fazê-la
protestar com um gemido de sofrimento. Yanaamahka abriu os olhos com
relutância, perdida entre o mundo dos sonhos e o da realidade. Ela estava
em pedaços. Seu corpo inteiro parecia mais pálido que o habitual, os lábios
estavam rachados e o dourado, um sol fraco e sem brilho.
— Levanta, porra. — e ele sequer pensou em estender a mão para
ajudá-la. Yanaamahka se moveu devagar, as mãos tremiam, e usou parte dos
escombros para se apoiar e firmar as pernas.
Ela caiu cinco vezes antes de permanecer em pé: parte da barriga dela
estava exposta onde a lança rasgara a carne e as roupas. A pele continuava
horrenda, tons arroxeados e vermelhos se mesclavam sobre o ferimento
cicatrizado superficialmente pelas chamas azuis, sob o sangue coagulado.
Yanaamahka colocou a mão no local antes de observar o ambiente.
— Nos tire daqui. — e ele apontou em direção as escritas. — Agora.
— Não me diga o que fazer. — a mulher-dragão respondeu com
esforço. A reação do draconiano viera um segundo mais tarde: Demétrius
sorriu, um sorriso perturbado, as sombras do ambiente acentuando sua
cicatriz, os olhos heterocromáticos e a expressão doentia. A Estrela da
Noite só teve tempo de sentir o estalo quando, então, o punho draconiano
acertou seu nariz.
Creck, os nós dos dedos dele provocaram.
Yanaamahka instintivamente correu as mãos para o ferimento, sangue
escapando pelos dedos e pingando depressa, manchando seu pescoço, os
resquícios de suas vestes. Ela caiu desengonçada entre os escombros,
imaginando que as ações draconianas terminassem ali, mas não — um nariz
quebrado não contentaria o ceifador de espinhos. Demétrius a chutou três,
quatro vezes, indiferente ao vômito de sangue que a Estrela da Noite,
tremendo, cuspia.
— Para aprender a se colocar no seu lugar. — ele disse após o sexto
pontapé.
— Vai... — as palavras foram entrecortadas pelo líquido rubro, os
olhos se fechando lentamente. — ...para o maldito fim do mundo... seu
desgraçado!
O sétimo golpe na cabeça a apagou por completo.
Leto Demétrius não perderia mais um minuto naquele templo de
merda: ele agarrou o corpo inconsciente da Estrela da Noite e o atirou sobre
o ombro, as mãos negligentes em relação ao estado dela. Ele poderia não
entender um único sinal das escritas nas paredes, mas se aproximou delas
mesmo assim — sentindo o sangue da estrela escorrer quente pelo pescoço,
o coração dela bater lentamente no peito. A proximidade, então, causou
uma súbita mudança nos símbolos como se o corpo da herdeira os fizesse
reagir. Drago’skar se iluminou em tons de safira em um segundo e uma
passagem de pedra se abriu no outro: o draconiano observou com uma
expressão dúbia, o cheiro de bolor escapando pelo portal e a escuridão a
diante. O movimento das águas tornou-se mais intenso.
Eles haviam caído antes; e provavelmente estavam abaixo do nível do
mar.
Que ideia mais desgraçada a de um templo de fogo submerso em água.
O general avançou pela passagem com a estrela nos ombros —
nenhum resquício de luz ambiente os envolvia como se a Noite Eterna de
Nothumbria houvesse se derramado sobre o interior da construção. Era
gelado. Era denso. Tudo o que o draconiano era capaz de identificar eram os
reflexos das cores de safira que brotavam sobrenaturais da penumbra,
formando uma linha linear e fraca ao longo do corredor estreito. Demétrius
deu mais dez passos e parou.
Não porque queria: mas porque diante dele outras dez novas passagens
se revelaram.
Ele cuspiu no chão e praguejou.
— Porra. — os lábios rachados murmuraram.
C A P Í T U L O T R I N TA E S E I S
A ENTIDADE DO FOGO E
DA VIDA
A QUEDA DO OUTONO EM
FLORES
SANGUE.
Fora a primeira coisa que Kluddihargën sentira ao cair no interior do
templo; depois, viera o calor das chamas que queimavam ao redor e, por
fim, o cheiro dos girassóis. Yanaamahka. O aroma dela estava mesclado ao
odor corrompido de ferro e fogo, provenientes de uma respiração além da
dela, mais pesada, mais forte. Pequenos fragmentos de rocha caíam do
buraco aberto pela fera, a luz forte do sol esgueirava sutilmente pelas fendas
acompanhada pela maresia da praia; detalhes estes que avançavam sobre a
escuridão da sala do altar. O dragão era incapaz de reconhecer o ambiente,
mas seus sentidos aguçados — mais do que qualquer outro de sua espécie
— ajudavam a traçar um mapa mentalmente. Nada lhe escapava: tanto o
maior dos seres vivos quanto os menores.
Ele ouviu o movimento do desconhecido, o modo que ele se inclinava
contra o dragão e erguia a sobrancelha.
— O que temos aqui? — era a voz de alguém, um draconiano; o
mesmo cheiro de todos os outros, mas duas vezes pior. Klud sentiu as
vibrações dele, cada respiração, o modo que o tórax se movia no processo,
as mãos sujas de sangue. Yanaamahka estava no chão, então, ao lado do
inimigo, encolhida e parcialmente consciente. — Não me diga que veio
buscar a estrela? — e ele gargalhou.
Ele não pode ver, mas pode sentir — uma perfeição avassaladora — o
movimento do draconiano ao colocar o pé sobre a cabeça da Estrela da
Noite; e ela proferiu um gemido entrecortado. A situação de Yanaamahka
era crítica, seu corpo inteiro, manchado por sangue, tremia lentamente.
Klud se enfureceu; seu focinho se ergueu revelando sua coleção de pressas
afiadas. Ele se deixara vencer antes, a consequência fora cruel; e não se
perdoaria se cometesse o mesmo erro.
Klud acompanhou o vento, os sussurros da entidade mostrando a
extensão do ambiente. Era grande, mas não resistente o suficiente para
suportar suas chamas — e havia a possibilidade de acertar a Estrela da
Noite. Então, transformou sua imagem: o humano surgiu diante o
draconiano de punhos fechados. Seus fios platinados caíram sutilmente
sobre as cicatrizes nos olhos, a pele pálida como leite era como uma luz
resplandecente na penumbra do altar.
— Lutará comigo, dragão?
Klud não lutaria, embora um desejo perverso de queimar o draconiano
consumisse suas entranhas. Ele moldara uma estratégia simples; e pensando
nela, caminhou na direção do inimigo, desarmado. A respiração de
Yanaamahka revelava a posição dela: perto demais de seu ceifador. Klud só
precisava estar perto, e durante o avanço, a quietude do adversário se
manteve. Ele era um guerreiro inteligente, caso contrário, reagiria contra o
homem-dragão — e era esse detalhe o preocupava. Era no silêncio que o
perigo ressidia; e, definitivamente, o draconiano não era semelhante aos
demais que enfrentara.
Exatos dois metros separavam ambos.
O cheiro de sangue ficou mais forte com a proximidade, a intensidade
era atordoante para ele. Se havia vantagem em ter os sentidos aguçados,
também existiam consequências: como odores pesados ou ruídos agudos
demais. Era por esse motivo que ele odiava as tempestades e os trovões que
a acompanhavam. O homem-dragão engoliu as sensações e levantou o olhar
cego, focando na constante respiração adversária.
— Me devolva a estrela — Klud murmurou. — ...e eu poupo sua vida
dessa vez.
— Poupar a minha vida? Como se ela tivesse algum valor. — o
inimigo respondeu repleto de um entusiasmo sombrio. — Uma pena que
você é incapaz de ver essa vagabunda, eu ficaria contente se pudesse ver
enquanto eu fodo com a vida dela.
Klud engoliu o controle de suas veias e fez menção de atacar o
inimigo, e a reação de defesa dele fora o necessário para pôr sua estratégia
em ação: ele se transformara em dragão durante o avanço e seu corpo
escamado se chocou contra a solidez do draconiano — e por uma questão
de milímetros sua asa não acertara Yanaamahka no chão. Ele teria prensado
o adversário se o mesmo, talvez prevendo a situação, não houvesse usado
da própria agilidade draconiana para se esquivar com perfeição. Demétrius
lançou o corpo contra o chão, rolando para a direita, momentos antes, então,
de ser atingido. Klud o ouvira praguejar durante o ato, porque, embora
estivesse se defendendo, estava ferido em um dos braços.
O dragão rugiu irritado e se lançou na direção da respiração de
Yanaamahka, farejando o sangue no chão. Ele a tiraria de lá e esqueceria do
inimigo, era o que planejava, só que o adversário, grunhindo com a dor das
queimaduras que carregava, privou a realização do plano: ele saltou na
direção da criatura como se tivesse asas e agarrou a cauda com mãos
firmes. Uma fisgada viera primeiro; depois, a reação do dragão perante a
força que o inimigo exercia em seu membro.
Ele estava tentando partir a ponta da cauda.
Klud rosnou e moveu o focinho para trás. Ele usaria seu fogo para
conter o draconiano — talvez matá-lo — mesmo que a sala inteira
sucumbisse. A intensidade poderia prejudicar Yanaamahka, a forma
humana dela não seria capaz de aguentar o aquecimento. Mas a protegeria:
Klud usaria as próprias asas sem temer qualquer consequência.
— Eu lhe avisei... — e o dragão entreabriu o focinho.
O inimigo praguejou.
Porque o mundo se acendeu em Fogo Azul.
As chamas de Klud não eram como as dos dragões de sua espécie: não
eram vermelhas ou alaranjadas: era o próprio Fogo de Safira encarnado,
evocado por uma essência que ele não tinha. As chamas azuis correram e
preencheram quase toda a extensão da sala. Os pilares cederam um a um, o
teto estremeceu e se fragmentou, enquanto as asas do dragão envolviam o
corpo da estrela. Então, antes que não conseguisse escapar do tremor,
agarrou Yanaamahka com patas dianteiras e saltou na direção do teto que
desmoronava, o céu era seu destino.
Altar e draconiano desapareceram em questão de segundos.
Klud a deitou sobre a areia.
As ondas beijam a praia em uma suavidade quase divina — o cheiro de
sal e maresia se misturavam. Aromas estes que, no entanto, não eram
capazes de dissipar o sangue que a Estrela da Noite perdia a cada segundo.
As mãos do homem-dragão tatearam, desesperadas, o corpo dela em busca
do ferimento, estremecendo ao encontrarem a adaga penetrada na carne.
Klud a arrancou e sentiu o corpo de Yanaamahka, inconsciente,
movimentar-se com a dor. O ferimento expelira uma quantidade enorme de
sangue, manchando de vermelho a areia ao redor deles. Ele suportou a
súbita náusea graças ao odor intenso, estancando a ferida com os dedos; e a
impotência, de repente, o acometera. Ele não era capaz de tratá-la
devidamente. A incapacidade era a corrupção dele, o pior dos inimigos, só
que não forte o bastante para fazê-lo desistir. Klud rasgou parte da túnica
desgastada para fazer um curativo: as mãos dele trabalharam depressa para
calcular a exata localização do ferimento; e quando, enfim, terminara,
sentado sobre a beira-mar, colocou a Estrela da Noite em seu colo.
Ele a abraçou fortemente. A visão era perturbadora: sangue e mais
sangue os cobria na luz do sol, destruindo a beleza daquele lugar em frente
ao oceano. Klud amava o mar, crescera diante do gigante, mas naquele
momento, com Yanaamahka desacordada entre seus braços, não conseguia
admirar nada, não conseguia pensar em nada a não ser nela. O homem-
dragão nunca soubera exatamente em qual momento de seu passado o seu
amor por ela surgira. Ambos eram pequenos, ele tinha quase dez anos a
mais que ela, e tinham inúmeras diferenças. Klud gostava da solidão, do
mar; Yanaamahka, de companhia, do céu. Eram dualidades: acreditar e
desacreditar, dia e noite, lua e sol; tempestade e calmaria; e mesmo com tão
pouco em comum, ele a amara. Ela era como os verões na Floresta Viva,
como os dias ensolarados, como os girassóis de um continente esquecido.
Existiam flores em Tannenberia, costumava dizer Roren, que
guardavam uma semelhança, embora sutil, com as quais cresciam em
Degail antes da peste que o devastou. Klud gostava de observá-las na
companhia da estrela: o modo que os raios solares acariciavam a terra e
aqueciam os corações dos quais, corrompidos por uma solidão eterna,
tinham a ousadia de sonhar com a promessa de dias melhores. Ele recebera
a promessa: Yanaamahka, o pequeno pôr-do-sol; não do mundo, não de
Agëa, mas do mundo dele — e talvez houvesse a amado quando ela não o
rejeitou. Ela o aceitou: indiferente ao monstro que ele se dizia ser.
Não me abandone jamais, dissera ela na inocência de sua pouca idade.
Uma promessa que Klud guardou e que cumpriria.
...mas onde estava a Yanaamahka que pronunciara tais palavras?
— Volte... por favor. — e ele a abraçou mais forte.
Só que a esperança dele estava cada vez mais abalada: a sua Estrela da
Noite poderia nunca mais retornar. A febre de Yanaamahka aumentou no
início da noite. O homem caminhou por quase dez quilômetros para se
afastar da praia. Ele mantivera a imagem humana para evitar possíveis
caçadores; principalmente com as estradas abarrotadas de caravanas que
rumavam a capital. As festividades de Sunyar estavam chegando — época
em que os habitantes de Tannenberia se uniam para comemorar a queda e o
nascimento solar: marcada pelo término do ano. Klud evitou qualquer
aproximação, inclusive um senhor que o abordara para perguntar se ele
precisava de ajuda. O caminho dele fora guiado pelo vento e terra; sussurros
que a natureza mostrava a ele.
Klud parou em uma planície longe da estrada: correntes abafadas
sopravam vindas do oeste. Era o Grande Deserto que os aguardava, a
promessa de um horizonte dourado e um mar de calor. Lugar que o homem-
dragão deveria evitar — que Yanaamahka deveria evitar — porque o perigo
residia lá. Ele estivera na capital no passado, desembarcara no porto pouco
depois da morte de seu pai adotivo, um draconiano, rebelde e sem lei, que
dera a ele o próprio nome. Nome este que a Estrela da Noite confessara ser
difícil demais e o substituiu por apenas quatro letras. Klud suspirou em
meio a lembrança e deitou a mulher em um amontoado de folhas secas.
Duas estrelas solitárias brilhavam acima deles.
Ele desceu seus dedos no ferimento e sentiu o corpo de Yanaamahka
vibrar diante o toque. Ela não estava melhorando; não melhoraria se não
fosse devidamente tratada — o que ele era incapaz de fazer. Era um cego e
nunca saberia como ela foi ferida ou qual era a profundidade do corte.
Yanaamahka poderia ter o sangue dos Primeiros Dragões, mas parecia que
sua recuperação estava lenta e prejudicada como se o corte houvesse sido
causado por algo diferente do aço comum. Aço de Cristal: assassino de
dragões. O curativo improvisado estava ensopado de sangue, mas o que o
preocupava era o calor que se dissipava do corpo da estrela. Na primeira
hora da madrugada, Yanaamahka começou a delirar e murmurar,
inconsciente. Klud quis amaldiçoar os deuses e o mundo pela falta de
alternativas, quis retornar ao templo para exterminar os restos do
draconiano culpado, mas, antes que pudesse, antes que se levantasse e
cuspisse fogo por sobre a terra, o vento soprou — o vento soprou e trouxe
uma mensagem. Havia uma alternativa. Embalado as brisas quentes, a
presença do pequeno tigre chegou até o homem-dragão.
Klud se levantou depressa e deu dois passos à leste. Tiggrë — o
menino sábio de doze anos estava próximo. Ele era o que a Estrela da Noite
precisava para se recuperar. Só que junto dele estava o draconiano que
enfrentara; o Cavaleiro Negro que carregava o mesmo nome de um
assassino. Klud, porém, escondeu toda sua fúria contida para dar espaço a
principal prioridade: a recuperação de Yanaamahka. A possibilidade de
abandoná-la brevemente o corrompia, mas era necessário. A vida dela
dependia daquilo; e não poderia se deixar levar por egoísmo. As duas
estrelas solitárias, então, iluminaram as escamas de safira do dragão quando
ele surgiu na noite e se elevou no céu.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA
O FUTURO É UM PESADELO
D I S TA N T E
Que o fogo da Estrela da Noite os fizesse queimar, todos eles, até que
não restasse mais nada, nenhum draconiano ou humano; então o mundo se
curaria de sua doença e os dragões reinariam. Era o que Rhenna vrön
Skaargärd desejava, que o mundo se acabasse em cinzas — e ela
descansaria enfim. Encontrá-lo-ia no plano de Lunyar, seu pequeno menino
com olhos de vidro.
Se não fosse para o plano dos caídos pelas escolhas que fizera em vida.
Mas precisava que tudo acabasse logo. Que os draconianos em sua
frente fossem destruídos pela própria ambição. Estavam todos reunidos na
Sala de Guerra com o príncipe Serge para discutir a captura da Estrela da
Noite e a defesa da cidade real para o inimigo à espreita. O general
Demétrius estava presente, o melhor caçador do império, e traria a vitória
para os guerreiros como antes fizera. Rhenna, no entanto, o odiava, o modo
doentio que o desgraçado se portava. Era um assassino. As tradições eram
assassinas — porque obrigaram uma menina de doze anos a se casar com o
general, como ela também havia sido obrigada na infância, corrompida
pelos quais deviam protegê-la.
A mulher pertence ao seu senhor — e a ele pertencerá para todos os
fins.
O general Belpheggör e o comandante Ahuriel ouviam as palavras de
Demétrius com atenção. Ambos confiavam no ponto de vista dele, era um
bom estrategista. A guerra contra os rebeldes de Duar vyr Duan no passado
fora vencida pelas artimanhas do general. Ele mencionou o poder da Estrela
da Noite, exibiu as armas roubadas e congelou o coração de Rhenna ao
ressaltar que a caça era uma herdeira da entidade de safira. Eram
semelhantes: o poder de Rhenna, sua maldição, vinha da Estrela da Noite.
Sua fonte. Se a matasse, o Fogo de Safira desapareceria e levaria aqueles
que dele dependiam. Belpheggör poderia encontrar uma forma de roubar a
essência dela — o que fizera a Nahemidraal no passado. Os Cristais de
Rubi da Estrela da Noite pertenciam a ele, um draconiano. Mas nenhum
homem ousara enfrentar ou questionar o general. Nem mesmo o Imperador
Darius, alegando que o poder proibido dele seria um presente à nação.
Mas era doentio.
Porque a essência de Nahemidraal era ligada existência dela — e a
alma dela estava presa dentro do draconiano.
— Conte-nos, querido general, como devemos nos preparar? —
Belpheggör questionou com o cálice de vinho entre os dedos.
— É uma vadia imprudente e ingênua, se vocês precisam de um plano
para capturá-la, não passam de uns merdas. — e o general ignorou o olhar
repressivo dos demais. — Basta saberem que a Estrela da Noite não pode
estar na sua verdadeira forma. Acredito que saibam o porquê.
Rhenna notara a diferença no rosto do homem: do lado direito do
pescoço à têmpora, bolhas cicatrizavam. A queimadura o acompanharia
pelo resto de seus dias, marcada como o corte profundo da bochecha e da
orelha ausente. Demétrius raspou as laterais do cabelo como se desejasse
mostrar o ferimento como um troféu, deixando as madeixas restantes cair
picotadas em suas costas.
— As flechas com sangue de Nyr serão suficientes. — Demétrius
concluiu.
— O que são essas flechas? — o príncipe questionou.
— Nyr são dragões praticamente extintos, Majestade, mas que
guardavam um poder devastador. Nós, draconianos, os caçamos por causa
dos ossos deles, ingrediente necessário para o Aço de Cristal; e o sangue,
venenoso ao ponto de congelar as habilidades de um dragão e causar
feridas quase irreversíveis. — e Ahuriel respondeu. Ele colocou um
pequeno recipiente sobre o mapa; dentro, um líquido negro residia. — É
vossa arma contra os Primeiros Dragões... o Sangue de Nyr neutraliza os
poderes deles.
— Uma flecha é o suficiente?
— Não. — Belpheggör quem respondeu dessa vez. — Depende do
dragão, querido príncipe. Precisamos saber o peso ou tamanho.
— Ela é pequena. — Demétrius cruzou os braços. — Como se
houvesse parado de crescer na infância. Não passa de dois metros e dez
centímetros e não deve pesar mais que duzentos quilos.
— Curioso. — comentou o segundo-general. — Suponho que cinco
flechas serão mais que o necessário. O que me incomoda, cavalheiros, é a
possibilidade do outro dragão atacar nesse meio tempo.
— Sir Hanzor chegará em cinco ou seis dias. Teremos tempo para fazer
as buscas na cidade. — Serge se fez ouvir. — Agora que o general
Demétrius está conosco, podemos caçar o inimigo com mais facilidade.
— Está feito. — e o citado estalou um músculo do pescoço. —
Comandante Krimnell, espero que não se queime ao capturá-la. Será
interessante ver a vadia lutar. Ela não desiste fácil.
— Hanzor chegará pelos portões do Sul de acordo com a última
mensagem. Enquanto vocês esperam, meus homens, o general Belpheggör e
a general Rhenna estaremos espalhados pela capital. Qualquer
movimentação suspeita será reportada, nenhum inimigo atacará. — disse o
príncipe com confiança e os demais assentiram.
Quem era o inimigo?, era um questionamento que despertava a
curiosidade dos homens. As mensagens disseram ser um dragão do tamanho
de uma montanha, com asas que traziam a noite. Mas humanos
exageravam. Poderia não ser o Dragão dos Dragões; poderia ser somente
um deles procurando pela estrela perdida.
Que fosse ele. O homem, o dragão, seu guardião.
...e que matasse todos.
— Está feito. — murmurou a general depois um longo silêncio.
C A P Í T U L O Q U A R E N T A E Q U AT R O
A ESPERANÇA DE UM
AMANHÃ
ESTRELA ESTILHAÇADA
Pare de chorar.
Tiggrë não conseguia. As lágrimas silenciosas rolavam em seu rosto
pálido, os soluços presos entre os dentes. A mão de Hanzor estava no
ombro dele, o guiando na movimentação constante do distrito da poeira. O
draconiano o afastara dos demais, alegando estar protegendo o menino dos
superiores — e não o mataria como o comandante pedira. Era um favor,
dissera o Vanadis, mas sequer mencionara traição durante o percurso. Eles
haviam a levado, arrastaram-na como um cadáver morto nas areias do
deserto. A imagem dela, o sangue, a crueldade draconiana, trouxeram a
lembrança do massacre contra os Animanos no passado. A raça fizera o
mesmo com a mãe do pequeno, a torturaram e a violaram; e ele era jovem
demais para protegê-la. Tiggrë ainda era jovem demais, e talvez não fosse
capaz de proteger Yanaamahka também. Pensar no que poderiam fazer com
ela… O menino arqueou o corpo e vomitou, as lágrimas se misturando em
sua boca.
Ele caiu de joelhos antes que o draconiano pudesse ampará-lo.
Hanzor se aproximou depressa e o levantou, mas Tiggrë o afastou entre
lágrimas incansáveis. Está tudo bem?, ousara perguntar o Vanadis. Era
irônico; estar tudo bem. Yanaamahka estava presa, sabe se lá aonde; e o
homem não demonstrava sequer um fragmento de arrependimento. O
vermelho-avelã dos olhos de Hanzor continha uma indiferença aterradora, o
que fizera o menino questionar como ele conseguiu sorrir tão
frequentemente para eles dias antes.
Como Hanzor sorria sincero sabendo o que estava planejado?
Uma súbita frustração fez o rosto do menino enrubescer.
— O que você vai ganhar com isso? — a indagação viera como a noite,
sussurrada e gelada; o vento soprando entre eles. As pessoas ao redor
seguiam suas rotinas, o fluxo contínuo da vida. Tiggrë as observava, o
modo como o mundo não desacelerava mesmo que muitos estivessem
sofrendo. — Ouro? Fama? Espero que a motivação não sejam essas.
— Por favor... — Hanzor bagunçou os fios castanhos ao suspirar. —
Estou ajudando você.
— Você nunca teve a intenção de levar eu e a na’na para o
desfiladeiro. — lágrimas corriam nas bochechas dele, a voz entorpecida. —
Eu acreditei em você. Acreditamos em você, Hanzor... por um momento eu
pensei que nem todos os draconianos eram iguais. Mas não. Vocês são todos
cruéis. — e secou o rosto com as mãos trêmulas. — Como uma raça que
queima suas próprias mulheres pode ser considerada confiável?
O cavaleiro o observou em silêncio como se estivesse absorvendo as
palavras.
— Por quê? — Tiggrë insistiu.
— Ela merece. — e o tom impregnado em cada sílaba fez a pele do
pequeno tigre se arrepiar. Desprezo. Ódio. Hanzor nunca havia sorrido com
sinceridade para Yanaamahka. Era uma máscara. A verdade sobre o
draconiano jazia naquela tarde na Floresta Viva, quando ele a ameaçou de
morte. Aquele era o verdadeiro Hanzor, o inimigo. — Ela merece morrer
como meu pai morreu. O Dragão dos Dragões o assassinou por causa dela,
ele tirou aquele que era mais importante para mim, para o meu povo; e eu
vou devolver na mesma moeda.
— A vingança é uma doença! — Tiggrë o empurrou com a sutil força
que tinha, mas o draconiano sequer se moveu. — Você vai se arrepender!
Eu espero que você se arrependa e nunca seja perdoado!
— Eu nunca vou me arrepender.
— Eu não o odeio, Hanzor... mas sinto pena de você. — e o menino
deu um passo para trás, o rosto lavado. Algumas pessoas passavam e os
observavam, curiosas; mas se arrependiam ao perceber o draconiano. —
Pena por não entender a verdade. Pena por estar cego por sua vingança.
— Vou deixá-lo aqui. — o homem disse, ignorando as palavras recém
proferidas. — Quantas moedas de ouro você quer? Dez? Vinte? — e o peso
do metal tilintou dentro do saco que ele estendia na direção do menor.
Tiggrë deu um tapa nelas e todas se espalharam pelo chão.
— Eu não preciso de seu ouro! — e deu as costas para o homem,
ignorando todos que se aproximavam do draconiano para juntar as moedas
caídas. Tiggrë não olhou para trás enquanto corria, suas lágrimas se
misturando a brisa fria que se espalhava na noite.
Ele só parou de correr quando suas pernas falharam, cansadas; o corpo
do menino entre a poeira e seus pertences saltaram de suas mãos. Os
tônicos, ervas e medicamentos, materiais que reunira com cuidado para
tratar a asa da estrela. Um soluço doloroso escapou dos lábios do humano, a
dor impregnada em sua expressão. Yanaamahka poderia nunca mais voar se
a ferissem mais. Yanaamahka poderia não sobreviver se ele não a
encontrasse.
Mas Tiggrë não sabia por onde procurar. Ele nunca estivera na cidade
real, somente ouvira histórias sobre a capital, o deserto; e elas não o
ajudariam a salvar a Estrela da Noite. O menino se levantou devagar o
pegou o livro, a essência do mundo, sua bolsa com alguns pertences e os
protegeu entre os braços. Seguiu em frente, ignorando os demais itens no
chão, imaginando uma forma de encontrar sua na’na.
Para onde eles a tinham levado?
Ele olhou ao redor, as construções precárias amontoadas umas às
outras, os muros imponentes que protegiam a cidade — ou prendia seus
habitantes? — mas nenhuma solução surgia. Solnascente era vasta,
inúmeros distritos, inúmeras localizações. Yanaamahka poderia estar do
outro lado da capital, presa em algum calabouço gelado. A cada passo a
diante olhos se dirigiam para o semblante dele, o vermelho intenso de seus
cabelos. Tiggrë segurou o livro com firmeza e aumentou o ritmo de sua
caminhada, preocupado com o cochichar distante, a ganancia que se
formava entre os quais imaginavam que ele, um mero humano das terras
perdidas de Degail, tinha algum valor. Era uma ilusão, embora os fios-de-
sangue pudessem ser vendidos à um bom preço no mercado negro.
Tiggrë se afastou de toda a movimentação ao entrar em um beco
deserto, abandonado e abarrotado de objetos destruídos. A lua o iluminou
por instantes, acompanhada da escuridão de duas estrelas. Então, o menino
se enfiou entre os destroços de uma caixa antiga. Não era o melhor
esconderijo, mas ninguém o incomodaria; e poderia se acalmar, pensar.
Ele encontraria uma forma de salvar Yanaamahka.
Ele a salvaria e a levaria embora — ambos encontrariam o desfiladeiro
e vivenciariam a paz que almejavam.
Sem draconianos. Sem caçadores. Sem inimigos. Sem mentiras.
A paz que o menino vivera ao lado de seu povo, ao lado de Roren e
Lucinda. Tiggrë queria, desejava com todo seu coração, que a Estrela da
Noite experimentasse aquela sensação — que sorrisse e chorasse de
felicidade, que simplesmente vivesse.
Mas ele era apenas uma criança de doze anos.
Como poderia salvá-la e levá-la para o desfiladeiro se nem o caminho
conhecia? Tiggrë não mais conteve as lágrimas e chorou intensamente.
Sozinho. Perdido. Chorou até que sua cabeça doesse; parando, porém,
quando um vulto desconhecido atravessou o beco e desapareceu como
sombra e fumaça. Bastaram segundos para que, então, o semblante de uma
mulher, uma draconiana, surgisse na noite. A armadura dela fez o menino
estremecer: negra, a imagem do Império de Aumastris desenhada no aço.
Tiggrë se encolheu entre os escombros, pedindo aos divinos que não fosse
encontrado.
Só que suas preces não foram o suficiente.
O olhar rude da guerreira o encontrou; e ela se aproximou dele com
uma expressão inquisitiva.
— O que tu estás fazendo escondido, garoto? — a presença dela era
amedrontadora. A draconiana era mais alta e musculosa que Hanzor, o que
não era comum para os padrões da raça.
Tiggrë escondeu o rosto no livro.
— Me deixa em paz. — o menino murmurou no idioma típico da raça,
surpreendendo a estranha. Ele aprendera o Dovaris durante os anos como
escravo, memorizando palavras soltas para se comunicar com seu mestre.
Depois, aprendeu sozinho; e Roren sempre dissera o quão bom o menino
era com cada pronúncia. — Vocês draconianos são todos mentirosos...
vocês a pegaram... enganaram. Ela está sozinha por culpa da ganância de
todos!
— Tu sabes o que estás dizendo?
— Não importa! — Tiggrë se exaltou ao responder e o movimento
abrupto fizera o livro cair de seus braços. A draconiana observou o volume,
cada palavra pintada na capa de couro fervido. A essência do mundo, dizia o
nome, mas não no idioma dela e, sim, a linguagem ancestral dos primeis
dragões.
Mas a expressão dela congelou de repente.
— O que está fazendo com esse livro?
— A na’na me deu! É um presente! Não tente tirar ele de mim!
— ...Nana? — a estranha questionou desconfiada; então, ajoelhou-se
para enxergá-lo melhor. — Tu não és de Tannenberia... És um refugiado de
Degail provavelmente.
— Você vai me prender por isso? — como todos faziam com os
refugiados. Eles não eram livres, somente escravos como se precisassem
pagar uma dívida pela estadia no Continente do Sol.
— Eu quero explicações. Quem é a tua nana...
— Você está falando errado! É na’na. — o humano entonou a
pronuncia corretamente. — Ela é a Estrela da Noite que vocês prenderam!
A minha Estrela da Noite! — mas a coragem que o pequeno segurava
desapareceu ao lembrar de Yanaamahka, do que os draconianos fizeram.
Tiggrë começou a chorar. — Ela está ferida!
— Yanaamahka? — a mulher sussurrou com o olhar distante.
— Vá embora! — ele exclamou.
— Eu sei onde ela está.
— Óbvio que você sabe! Você é um deles! Ela está presa porque vocês
a enganaram... nos enganaram.
— Tu queres salvá-la? — a pergunta repentina fez o menino levantar
seus olhos, atentos no semblante indiferente e, ainda assim, profundo. —
Queres tirá-la dos draconianos?
— Por que está perguntando isso?
— Porque eles não podem tê-la. — e as mãos da guerreira correram à
fivela que prendia o tapa olho em seu rosto. O objeto deslizou sobre a pele
dela, entre as mechas douradas, revelando uma marca que fez Tiggrë
estremecer. — Não podem matá-la.
Ela era uma Mulher Amaldiçoada: herdeira do Fogo de Safira.
O que significava que Yanaamahka era a fonte do poder dela. Tiggrë
não conhecia as consequências se ousassem matar a Estrela da Noite. O
poder desapareceria, era um fato, mas o que aconteceria com as draconianas
ligadas ele?
Morreriam?
Deixariam de ser amaldiçoadas?
— Eu dependo dela.
— Mas se você salvá-la... será morta por traição. Eu conheço as
tradições draconianas. São severas e...
A guerreira o interrompeu.
— Eu estou parcialmente morta há mais de trinta anos.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E S E T E
ESTRELA ENCLAUSURADA
CHAMAVAM-NA.
Era uma voz distante, sombria, impregnada de lembranças roubadas.
Uma faísca se iluminou no escuro, era azul como o céu, espantando a
escuridão crescente. Yanaamahka conhecia aquela luz: o Fogo de Safira, a
essência trancafiada nos abismos de seu âmago. Lançara o poder no lado
negro e o deixara escondido, quase apodrecendo, junto da presença da
deusa. Mahoutsukai tentara se comunicar com ela — dizia ser capaz de
ajudá-la —, mas a Estrela da Noite ignorou todos os chamados; e
continuaria a ignorá-los. Não aceitaria; não depois do que acontecera no
templo, as palavras, as mentiras.
A faísca se apagou.
Yanaamahka se encontrou na escuridão e lá ficou — porque nada
existia nela.
Yanaamahka, mas alguém continuou chamando.
— Desapareça. — ela grunhiu, os dentes rangendo.
Não há nada lá, disse a voz, não há nada no escuro; não tenha medo,
continuou, cada sílaba reverberando por sobre a pele dela. Era uma
entonação do passado, palavras escondidas em uma realidade perdida.
Você está comigo? Dessa vez, contudo, a voz era dela; infantil, um
filhote ingênuo que ousava acreditar que jamais a abandonariam. Eles a
abandonaram, porém; desapareceram e a deixaram na escuridão por tantos
anos. Você estará comigo? Se eu desaparecer... você vai me esperar?
Sempre, disse o outro. Mas não desapareça, por favor.
Nunca, ela disse.
Sempre. Nunca.
Era promessas — e elas não haviam sido cumpridas. Yanaamahka
desaparecera e ninguém esperou por ela. Era justo; se ela não havia
concretizado a promessa, porque o outro, desconhecido, o faria? A
escuridão se tornou mais densa, gelada, os pensamentos dela se mesclando,
os fragmentos do presente buscando o passado. Neles, encontrara uma
passagem recente, um pronunciamento que a trouxe confusão e medo.
Doze anos. Dez meses. Seis dias. Esse foi o tempo que eu esperei por
você.
O corpo da Estrela da Noite estremeceu, afogada em sombras: porque
as palavras trouxeram as dores. Elas vieram como a morte — repentina e
fria —, arrancando dela a resistência que lhe restava. Yanaamahka respirou
lentamente, mas não conseguiu suportar as sensações; e quando sucumbiu
perante elas, destruída, a escuridão se estilhaçou em partículas de luz.
...e ela acordou.
Sua visão demorou a tomar foco. Lembrava-se somente do calor do
deserto, das muralhas da capital e... Atirem. Ela fora atingida pela realidade,
os golpes do inimigo, as recordações sangrentas. Estava claro: Hanzor a
traíra e ela havia sido capturada. Yanaamahka deslizou os dedos sobre o
chão que estava deitada, era gosmento e úmido; o cheiro de suor, urina e
sangue a faria vomitar se seu estômago estivesse cheio. Mas vomitara o
suficiente antes — o peso dos punhos daquele draconiano estavam
presentes no corpo dela. A boca inchada, cortada; ferimentos passados,
porém, haviam sido tratados: a barriga dela estava enfaixada e as flechas
haviam sido retiradas, restando apenas curativos onde a lâmina pontiaguda
fora enterrada. Ela gemeu com o desconforto ao mover o braço, nada via
naquele lugar sombrio. Mas sentia.
Alguém tocara seu rosto e passeara com os dedos ao longo do pescoço.
Yanaamahka gemeu de novo — a mão desconhecida traçando linhas que
iam de seu rosto ao busto. Ela não o via; a escuridão não a ajudava e a visão
turva transformava qualquer semblante em um mero borrão. O corpo dela
se arrepiou quando sentiu a presença roçar em seus lábios, dedos quentes e
suaves. Ela piscou, forçando as pálpebras; e olhos vermelhos se iluminaram
nas sombras. Fios dourados os acompanharam, embalados por um sorriso
traiçoeiro.
O estranho sorriu ao vê-la acordar.
— Sentindo-se bem, Estrela da Noite? Espero que não. — e a mão dele
segurou o queixo dela. — Estava eu aqui, esperando por meu pai; e
enquanto ele demora, pensei que poderia conhecer você.
O corpo da Estrela da Noite estremeceu quando os dedos dedilharam
seus lábios, a expressão corrompida do homem a estudando como se fosse
um animal inofensivo. Ela buscou se afastar do toque, revidar, chamar o
dragão, mas nenhuma força existia nela — era difícil até piscar.
— Meu pai disse que não devemos matá-la, Estrela da Noite.
O coração dela começou a bater depressa.
Yanaamahka quase se engasgou com a própria saliva quando o
draconiano beliscou a boca dela forte o suficiente para sangrar.
— Mas não me privou de aproveitar. — os dedos deslizaram para
dentro da boca dela. — Pensei em... — aquele gosto maldito de draconiano
a deixou enojada, furiosa e sem controle. — Experimentar como é ter...
...e a Estrela da Noite mordeu os dedos do inimigo.
Com força. Com raiva. Com tudo que restava.
Yanaamahka ignorou o sangue que escorria por sua língua ou os berros
dolorosos do homem. Seus dentes, os caninos, rasgaram a pele e sentiram a
carne, o gosto, o cheiro, escorrendo pela garganta. Não o soltou, ossos se
fragmentando e se quebrando. Não o soltou, a outra mão do draconiano a
atingindo com golpes incansáveis. Ela resistiu até o momento que membros
se separaram do corpo: arrancou três dedos dele, mas não os engoliu.
Cuspiu todos na direção dele, sangue — que não era seu — escorrendo
pelos lábios. O guerreiro urrou nas sombras, o braço umedecido em
abundância pelo líquido viscoso, tentando em vão conter o sangramento.
— Sua vagabunda! — ele gritou na direção dela. — Eu vou matar
você!
Ele a teria chutado se uma segunda voz na escuridão não houvesse o
interrompido.
— Leovrumund. — dissera o outro. — Eu avisei. — e o semblante
dele surgiu no corredor iluminado por um lampião. A mesma imagem do
primeiro draconiano, no entanto, mais velho; os cabelos dourados
escorrendo elegantes pelos ombros. Yanaamahka observou os olhos dele
por instante. — Pague o preço por tua ousadia. Suma daqui. — a voz
profunda daquele estranho reverberou pela pele da estrela. Ela não o
enxergava com clareza, as dores haviam piorado com os golpes, mas algo
naquele homem a arrepiava.
— Pai! — ele segurava a mão com força. — Veja o que essa
vagabunda me fez! Ela destruiu minha mão! Como vou enfrentar os meus
inimigos assim?!
— Meu querido Leovrumund. — disse o desconhecido com uma
encenada ternura. — Tu usas desta mão para empunhar tua espada? Não. Tu
enfrentas teus inimigos? Não. Então suma da minha frente antes que eu faça
cada centímetro de teu sangue congelar.
Nenhuma palavra viera como resposta: Leov se desculpou entre uma
reverência forçada e sumiu na escuridão da qual o segundo draconiano
viera. Ele, no entanto, permaneceu parado, o lampião em mão, uma garrafa
de vinho na outra. Um sorriso delineou os lábios vermelhos dele, as chamas
iluminando o rosto destorcido naquele calabouço.
Yanaamahka piscou e quase perdeu a consciência.
— Suponho que não se recorde de mim, minha querida. — e o estranho
colocou a garrafa sobre uma mesa de madeira no canto da cela. Uma taça
dourada repousava sobre a superfície. — Tantos anos. Lembro-me que era
um mero fragmento, um pequeno dragão esperando para crescer e desbravar
o céu. Uma Estrela da Noite peculiar, digamos. Não... — o homem serviu o
cálice com vinho. — Uma Estrela de Fogo. Tu me odiavas, querida; e dizia
tão ingenuamente que eu estava roubando tua mãe. Bons tempos, confesso.
O homem bebericou o vinho.
— Nahemidraal era uma Estrela da Noite como nenhuma outra. — e
ele balançou o liquido entre os dedos. — Sabe por quê, minha querida? Ela
odiava os primeiros dragões, a raça que pertencia. Lembro-me de cada
palavra... essas lembranças. Traiçoeiras. Ela disse que morreria por mim.
Logo, querida estrela, matá-la havia sido um favor, não concorda?
No âmago, a entidade de safiras gritava o nome da estrela.
Mas Yanaamahka não a ouvira — ela não queria ouvir.
Seus olhos piscaram devagar, centrados no homem, no semblante, nos
olhos vermelho-sangue, tão familiar, tão assustador, que o corpo se
contraiu. Porque o conhecia. Porque sabia o nome dele.
Belpheggör rön Vanadis.
O corpo dela começou a tremer.
— Tua mãe, minha querida, me amava, dizia me amar perdidamente...
sempre ingênua em relação ao amor. Mas era inteligente e cheia de vida. —
e o homem se levantou e caminhou em torno da estrela. — Era incrível
como ela acreditava em tudo que eu contava... doce criatura. Infelizmente,
minha querida, o amor não é importante se comparado ao poder: amor é
uma mera distração, um empecilho, na verdade, e eu me tornaria fraco se
me deixasse dominar.
Belpheggör derramou o vinho sobre o rosto dela.
Yanaamahka tossiu e cuspiu o gosto amargo.
— Infelizmente, Yanaamahka Draconis, tu nunca serás um fragmento
do que tua mãe fora, mas morrerá como ela.
A Estrela da Noite queria ter respondido, contra argumentado, mas fora
vencida não pelo cansaço ou pela condição deteriorada.
Mas por um nome.
— Maetsumina. — proclamou o draconiano.
A deusa dos rubis, o poder roubado de Nahemidraal.
...e a escuridão se tornou vermelha.
Hanzor rön Vanadis não estava confiante em encontrar o seu tio. Ele o
esperava na sala de reunião cedida aos draconianos pelo rei de Tannenberia,
acompanhado da própria solidão. Estava com saudade de casa, dos irmãos e
da mãe, mas não poderia retornar enquanto não cumprisse sua vingança.
Temia, porém, pelas condições da matriarca. Elleonora precisava da
companhia dos filhos. Ela poderia aparentar solidez e luto eterno, mas não
resistiria à ausência de suas crias por muito tempo — e ela provavelmente
colocaria o império abaixo se ousassem desafiá-los ou enganá-los.
Ela dizia que a família Vanadis estava amaldiçoada. Três membros
haviam morrido em um período de um ano: primeiro Hiborym, seu marido;
assassinado por dragões; depois, Gorgona, irmã deste, sentenciada a morte
por ser uma Mulher Amaldiçoada. Ela tinha dezessete anos quando fora
descoberta — e havia duas punições: ou seria queimada viva na corte
pública ou decapitada pelo progenitor. Gorgona escolheu morrer pelas mãos
do pai, o Arquiduque de Vanadis, e ele o fez; resultando na morte de Hanna,
sua esposa, quem disse ser incapaz de viver em um mundo em que um pai
assassinava a filha. Ela se enforcou no próprio quarto uma semana depois
da morte de Gorgona e cinco meses após a morte de Hiborym.
O Arquiduque se exilara nas Muralhas Douradas desde então.
Hanzor continuou esperando pelo tio, impaciente pelos minutos que
avançavam sem a presença do general. Eles não tinham um relacionamento
familiar decente. O Cavaleiro Negro nunca aprovou as escolhas de
Belpheggör, o modo indiferente que ele tratava os filhos, principalmente
Lunaysis, pelo fato de ser uma mulher, deixando com que Leovrumund, o
irmão gêmeo dela, a batesse e abusasse na infância. Leavrumund, o terceiro
filho do general, que vivia com o Arquiduque nas muralhas, estava
abandonado por ser psicologicamente instável.
A ambição do general era maior que o amor a sua prole.
Hanzor, porém, gostava dele. Via no homem um alicerce, um mentor.
Ele também precisava da aprovação do tio — a morte de Hiborym, o
herdeiro dos Vanadis, dera a Belpheggör o cargo de superior na família.
Metade das forças estavam no comando dele; a outra, sob o do avô, e se o
Cavaleiro Negro desejava caçar o Dragão dos Dragões, precisaria de auxílio
e autorização.
O general Vanadis chegara atrasado. Quase uma hora além do
combinado, o que o draconiano mais jovem não protestou, apenas esperou.
Belpheggör entrara elegantemente, o cálice de vinho entre os dedos, o
líquido tão espesso que Hanzor se perguntou o teor da bebida. Era parecido
com sangue. Ele estava sem a armadura, vestindo uma túnica vermelha e
dourada, a espada, porém, visível na bainha ornamentada por rubis. O
general sorriu antes de se sentar, seguido de um gesto de convite para que
Hanzor fizesse o mesmo. Era noite; e a luz da lua adentrava pelas vastas
aberturas que rodeavam a sala oval.
— Sinto muitíssimo por meu atraso, querido sobrinho. — Belpheggör
murmurou com uma entonação dolorosa, encenada. — Suponho que esteja
sedento, aceitaria uma taça do meu melhor vinho? — e gesticulou
brevemente para uma empregada. Hanzor não a vira antes, ela era pequena
demais para ser uma humana, bastara, então, as características incomuns
para que o draconiano percebesse que se tratava de uma mestiça.
— Agradeço, mas vou passar.
— Tu és a imagem de teu pai, não? Hiborym, que Lunyar o tenha,
nunca apreciou a bebida. — o general bebericou o vinho. — Enfim.
Devemos nos ater aos assuntos pertinentes? Tu fizeste um trabalho
esplendido, meu querido sobrinho. A captura da Estrela da Noite foi mais
fácil do que esperávamos. Estive com ela recentemente. Uma pena que ela
esteja tão quebrada que se recusou a falar. Precisei experimentar o pouco
do poder dela... e, confesso, um fracasso. Pensei que por ter o sangue de
três dragões poderosos seria forte, mas não; é fraca, uma mera sombra de
estrela.
— O que você pretende fazer com ela? Vai levar ao imperador? —
Hanzor questionou com curiosidade. Ele esperava que sim: se Yanaamahka
fosse levada a Aumastris, as chances de encontrar o Dragão dos Dragões
seriam mais altas. Ela serviria como uma isca.
— As ordens do Imperador Cassius foram brandas. — os fios dourados
de Belpheggör farfalharam com a brisa que invadiu a sala. As chamas
bruxulearam, diminuindo a iluminação ao redor. — Eu a manterei como
prisioneira em meus domínios, meu querido. Colocá-la na cidade imperial
seria um risco; e eu não me importo em abrigá-la.
— Você não pretende caçar o Dragão dos Dragões?
— Vlanhonder Draconis. — os lábios do general estalaram. —
Pergunto-me com frequência o que aconteceu a ele. Suponho que esteja
vagando pelo mundo, arrependido por ter abandonado ambos os filhos.
Gostaria de presenciar, querido sobrinho, a reação dele ao saber que aqueles
que ele mais ama sob o meu poder.
Hanzor se endireitou e esperou.
— Mas respondendo tua pergunta, querido, não.
— Eu tenho. — Hanzor disse depressa, os punhos fechados sobre as
pernas. Belpheggör bebeu o vinho e gesticulou para que a serviçal o
servisse mais. — Eu pretendo caçar o Dragão dos Dragões.
O general sorriu cinicamente.
— Tu e mais quem, meu querido?
— Eu preciso da sua ajuda. — o jovem respondeu com firmeza. — Eu
quero encontrá-lo e fazê-lo pagar pela morte de meu pai, pela destruição de
Aumas no passado; só que preciso de apoio. Eu trouxe a Estrela da Noite,
fiz tudo como o prometido. Espero conseguir a sua aprovação nessa caçada.
— Minha aprovação? — e os olhos vermelhos do general analisaram o
semblante de Hanzor. — Tu lembras, doce Cavaleiro Negro, quantos
draconianos morreram contra o ataque do Dragão dos Dragões à capital?
Milhares, o que inclui, além de vosso amado Hyborim, o Imperador Darius.
— Não estávamos preparados. — Hanzor contra argumentou. — Eu
não preciso de milhares de guerreiros, mas de uma estratégia; e só posso
conseguir isso se tiver apoio do império.
Belpheggör não respondeu de imediato: ele bebeu o último gole da taça
e se levantou, caminhando lentamente pela sala. Só parou em frente as
janelas, diante a sacada, para, então, observar o céu; não, Hanzor se
corrigiu, o general estava observando ambas as estrelas.
— Restam duas estrelas. — o homem disse com melancolia. — Uma
está conosco; outra, com os Primeiros Dragões. Só que esta situação, meu
querido, pode mudar se com tua estimada ajuda. Deixe-me questioná-lo: tu
sabes o nome da penúltima delas? Quem eles guardam com tanto cuidado?
— Rhaelynaar?
— Exato. Rhaelynaar Draconis é a penúltima Estrela da Noite, quem
eles chamam de Estrela da Manhã devido a características peculiares,
suponho. Ela nasceu branca, diferente de todos os outros de sua espécie. Se
um dragão negro, querido, é considerado raro; um branco, raríssimo. Eu não
tenho nenhum interesse nela, no entanto, seria interessante tê-la. —
Belpheggör deslizou pela sala enquanto se pronunciava. — Imagine. Os
Primeiros Dragões estariam em nossas mãos se as tivéssemos.
— Mas por que está mencionando isso?
— Eu darei a ti, doce sobrinho, o auxílio em tua caçada contra o
Dragão dos Dragões com uma condição: traga Rhaelynaar Draconis para
vosso império, para mim.
Era uma proposta absurda.
A penúltima estrela não era como Yanaamahka — ela era irmã de
Nahemidraal, protegida pelos Primeiros Dragões e experiente o suficiente
para não confiar em draconianos.
Como ele a capturaria?
— O que me diz, sobrinho? Darei o apoio necessário para encontrá-la
em Degail, não estará sozinho nessa empreitada.
Seria uma nova provação. Hanzor suspirou e pensou por segundos que
pareciam horas, eternidade. Então, levantou os olhos, encontrou os do
general e concordou lentamente.
— Eu a trarei para o império.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E O I T O
SOB AS ESTRELAS, AS
S O M B R A S D E S A PA R E C E M
SANGUE DE PRIMEIRO
DRAGÃO
A escuridão sussurrava.
Rhenna estivera em calabouços piores — as celas de Nothumbria, lar
do Senhor de Gelo, eram o purgatório do plano dos vivos. Aumastris,
porém, não possuía celas para prisioneiros, eles executavam todos; e ela
detestava como os superiores sentenciavam os culpados. Injustamente. Era
essa a realidade, o mundo corrompido que as raças criaram, que a general se
despediria em breve. Ela escolhera morrer por um motivo nobre e
caminhava rumo a ele: a cela da Estrela da Noite. Esperou que todos
estivessem ocupados demais para interrompê-la; então, dispensando os
humanos encarregados de vigiar os portões da prisão, seguiu obstinada.
A draconiana conversara com o menino de cabelos vermelhos horas
antes. Tiggrë era o nome dele, corajoso o suficiente para desafiá-la com
palavras. Rhenna se sentiu tocada pela sabedoria do menino e jurou em
nome da deusa de safiras que o ajudaria. Só que antes a general precisava se
certificar do exato local que a estrela estava, assim, planejariam uma forma
de resgatá-la. Bastara uma caminhada pelas celas para que percebesse a
localização: a prisão de Tannenberia ficava no subsolo da cidade, esgotos.
A entrada era pelo castelo de Solnascente, mas a saída não; o que
significava que qualquer túnel de esgoto na cidade poderia levá-los a ela.
Seria fácil. Rhenna respirou fundo e apoiou o corpo nas paredes mofadas.
O cheiro era insuportável, a temperatura abafada.
Mas seguiu em frente, cuspindo o sangue que se acumulava em sua
garganta.
E quando alcançou a cela mais funda, quase vomitou. O cheiro de
sangue e urina fizeram seus olhos lacrimejar: a Estrela da Noite estava
jogada no chão, desacordada, banhada na própria podridão. O corpo dela
estava encolhido, as roupas manchadas de vermelho e a pele com crostas de
sujeira. Rhenna se aproximou com cuidado, ajoelhou-se e apoiou as costas
da mulher-dragão em suas pernas. Por um minuto, somente a observou.
Aquela mesma cena acontecera a ela — trinta anos antes —, mas na época,
a mulher apoiada nela estava morta. Uma estrela, na verdade. A Mãe dos
Primeiros Dragões, Nusheymara, morrera nos braços dela.
Sua única amiga: quem a presenteou com a verdade sobre a raça deles.
Ela era mãe de Nahemidraal e avô de Yanaamahka, e ter esta, no presente, a
fez recordar daqueles anos.
— Eu vou conseguir dessa vez. — Rhenna murmurou e abraçou a
estrela fortemente. — Vou salvar uma estrela. Nem que eu morra tentando.
— e seus dedos correram em direção as feridas no rosto da jovem. —
Mahoutsukai.
O Fogo de Safira em seu peito chiou — duas vezes mais intenso do
que o normal. Yanaamahka era a fonte de todas as herdeiras draconianas da
essência, e tê-la perto era como uma chama perto da faísca. Rhenna
estremeceu sentindo seu calor se esvair e correr em direção à mulher-
dragão. Ela não poderia curá-la, mas daria o poder que tinha para ajudá-la.
Sutilmente, o fogo da estrela se agitou, robusto, e ocasionou um sutil
gemido de sua hospedeira: cortes no rosto dela se fecharam, desapareceram
como os ferimentos no resto do corpo.
A essência de safira era a vida — e para gerar vida, era preciso dar
vida. Rhenna conhecera melhor o poder que julgava amaldiçoado com
Nusheymara. Ela explicara que o Fogo de Safira, como o Vento, é uma
tênue faísca que chamam de passiva. Ele somente cura. No entanto,
evoluído — quando a herdeira o aceita como parte dela —, torna-se uma
chama; e não mais cura, mas destrói. O vento, a proteção passiva, é a
tempestade ativa. Por último, os cristais, o mais temido, passivo é a
devastação, ativo, a morte.
Mahoutsukai é a deusa da vida.
Misairuzame é a deusa da esperança.
Maetsumina é a deusa da morte.
— Mãe? — o sussurro delirante da Estrela da Noite encontrou a
atenção de Rhenna. A essência fizera efeito e recuperara parte da resistência
de Yanaamahka; então, abriu os olhos. — Por que... me... odeia?
A draconiana não conhecera Nahemidraal. Ela tinha pouco mais de dez
anos quando Rhenna escapou do desfiladeiro. A pergunta, porém, a fez
estremecer. Lembrou-se de seus filhos. Como uma mãe poderia odiar uma
cria? Ela daria um mundo para ser chamada de mãe novamente.
— Eu não a odeio. — Rhenna respondeu, mas não sabia se era
verdade. Ela afastou uma mecha negra dos olhos da estrela antes de
prosseguir. — Está tudo bem, Yanaamahka. Tu saíras desse lugar maldito e
encontrará o desfiladeiro; e quando o fizer, diga a ele, diga a Kzaharaeggär,
que eu sinto muito.
A Estrela da Noite piscou com dificuldade.
Ela não estava enxergando a draconiana, talvez uma ilusão, uma
sombra, o passado. Rhenna a tocou no rosto, buscando ver as recordações
dela — o dom de Mahoutsukai —, mas não encontrou nada além de um
vazio interminável.
Yanaamahka estava vazia. Sem passado.
— O que fizeram contigo... — a general murmurou.
— Pergunte ao Dragão dos Dragões, minha querida; o culpado pelo
esquecimento dela. — a voz viera de suas costas. Rhenna o observou pelos
ombros, o draconiano vestido em sua armadura negra. Belpheggör
caminhou lentamente até ambas, observando com um sorriso contido. —
Seria ousadia minha questionar, doce general, o que tu estás a fazer com
minha prisioneira? Suponho que teu estranho comportamento diante dela
não seja recomendado.
— Ela é prisioneira do império. — Rhenna soltou a estrela com
cuidado e se virou para o companheiro. — Não sua. Eu que devo interrogá-
lo, segundo general, quanto as condições dela.
Belpheggör arqueou uma sobrancelha.
— Devemos, por acaso, ser hospitaleiros? A Estrela da Noite merece,
talvez, uma cama e um quarto dourado? — ele continuava sorrindo cínico.
— Confesse, querida, tu estavas tocada pela presença dela. Será que a
estadia com os dragões no passado lhe fez diferente?
Rhenna fraquejou — porque era verdade.
Seu cativeiro com os Primeiros Dragões havia a mudado: ela não fora
prisioneira deles. Não. Mais que isso. Companheira. Guerreira. Amiga.
Amante.
— Não ouse falar sobre isso.
— Por que não? Suponho que não será um problema para ti, afinal,
minha querida, eles são nossos inimigos.
— Porque o que sofri com eles não é de sua conta.
— Sofreste? — o general riu brevemente. — Sofrimento é uma coisa
bela, não? Nos torna mortais. Diga-me, Rhenna vrön Skaargärd, o quão
profundo foi teu sofrimento ao perder aquele mestiço bastardo? Aquele
monstro que você gerou ao acasalar com um dragão?
Mestiço. Bastardo. Monstro.
Rhenna ficou sem voz, sem ar, sem chão.
— Pergunto-me como foi possível, como ninguém nunca percebeu
aquele pequeno monstro que tu chamavas de filho. Teu marido, tolo, nunca
percebera a diferença? Talvez seja esse o motivo que Khan tenha deixado o
menino se afogar. Porque desconfiava de tua infidelidade.
— Tu não sabes o que estás falando! — Rhenna vociferou, mas a
expressão dela denunciava a verdade.
— Seria esse o motivo, doce general, que estás a ajudar nossa inimiga?
Rhenna não conseguiu responder.
Ela estava tremendo.
— Ou porque compartilham a mesma essência das deusas esquecidas?
A draconiana não esperava a atitude seguinte do semelhante:
Belpheggör empunhou a espada e desferiu um golpe ligeiro sobre o rosto
dela, não na pele, mas no tapa-olho — e o tecido rolou de encontro ao chão,
revelando o olho de safira que escondia. Rhenna o cobriu com uma mão.
— Amaldiçoada. — ele dissera com um deleite doentio e empunhou a
espada na direção dela. — Tu serás julgada por teus crimes. Rhenna vrön
Skaargärd, em nome do imperador de Aumastris, eu a sentencio à morte por
adultério e traição, por ser uma Mulher Amaldiçoada e por auxiliar o
inimigo.
Ela deu um passo para trás.
— Morrerás por minha espada e...
— Mahoutsukai! — ela o interrompeu ao invocar a deusa de sua
essência. Rhenna, porém, sentiu o poder faiscar e não se acender. Estava
fraca: dera parte do que tinha a Estrela da Noite.
Belpheggör gargalhou com a espada empunhada.
— Veja o que é poder de verdade...! — e a lâmina dele causou um
corte proposital na própria pele. — Maetsumina! — berrou o draconiano.
A única gota de sangue que pingou do ferimento se tornou uma lâmina
rubra nas mãos do general, depois, para o desespero dela, o sangue da
Estrela da Noite ao redor flutuou como se fossem pequenos fragmentos
brilhantes. Eles foram mudando, tomaram a forma de estacas e correram
contra a guerreira. Se elas a atingissem, perderia: porque os Cristais de
Rubi eram alimentados por sangue; e se um corte fosse ocasionado nela,
Belpheggör tomaria controle dele e faria o corpo de Rhenna simplesmente
congelar.
Ele congelaria o sangue dela e a mataria em um segundo.
Esse era o porquê da essência de Maetsumina ser tão perigosa.
As estacas voaram ferozes contra Rhenna — e ela teve um segundo
para pensar: seu corpo resvalou e caiu de encontro ao chão. Nesse mesmo
instante, seus dedos encontraram a pele gelada da Estrela da Noite. Se
Yanaamahka era a sua fonte, provavelmente daria a draconiana a quantidade
necessária de poder; não para ser a vencedora contra o inimigo, mas pará-lo
por alguns minutos.
— Mahoutsukai! — ela gritou de novo; e a faísca rugiu, tornando-se
uma chama furiosa dentro dela. Rhenna sentira o corpo de Yanaamahka
ficar mais gelado, fraco. Calor se propagou na sala, um calor tão repentino
e intenso que as estacas vaporizaram.
A sensação teria afetado Belpheggör também se o sangue dele não
houvesse o protegido: uma cúpula de rubi transparente o envolveu enquanto
calor causava destruição, sem fogo, sem luz, apenas a sensação térmica que
crescia a cada segundo como se estivessem no inferno.
Rhenna juntou o corpo da Yanaamahka depressa e jogou por cima do
ombro.
O calor aumentou mais: as barras de ferro da cela começaram a
derreter.
Mas a cada aumento de temperatura ambiente, o corpo da Estrela da
Noite ficava gelado — era uma troca. O Fogo de Safira roubava calor para
gerar calor, o mesmo que fazia com a vida. Rhenna correu e deixou o
draconiano aprisionado no próprio poder para trás.
Belpheggör não abandonaria sua proteção até que o calor regularizasse.
E essa seria a oportunidade de Rhenna fugir.
Mas assim que virou o corredor da prisão, a terra tremeu.
...e um rugido gutural chacoalhou o deserto.
C A P Í T U L O C I N Q U E N TA
D O V E N T O À T E M P E S TA D E
Disparem!
As flecham avançaram como um mar negro de lâminas incandescentes.
Acertaram a carne inimiga e desapareceram entre as escamas como
pequenos fragmentos de derrota. Era inútil, concluiu o comandante. Era um
dragão grande, assustadores vinte metros de altura e incertos de largura; as
asas dele eram membranas longas como a noite e a cada ruflar, a escuridão
cobria o céu. Os draconianos não estavam acostumados a enfrentar uma
criatura daquele tamanho, com aquele poder de destruição. Caçavam
Estrelas da Noite, espécies menores e menos destrutivas. Não um Primeiro
Dragão — não um líder. O gigante, porém, não tinha idade avançada. A cor
das escamas era um preto vivo, brilhante, diferente das cores opacas e
ancestrais do Dragão dos Dragões.
Ahuriel observou com cuidado a fisionomia do inimigo. Cem anos,
talvez mais; ainda assim, perigoso o suficiente para destruir a cidade inteira
se não fosse parado. As flechas não teriam efeito com ele — nenhum
veneno o imobilizaria ou o transformaria em humano. Mas o comandante
precisava tirar o gigante da Sala do Trono. Derrubá-lo-ia: o dragão estava
pendurado na estrutura do castelo e suas garras enormes estavam enfiadas
no concreto. Era o equilíbrio dele.
Se as flechas acertassem aquela estrutura, ele cairia.
O comandante saltou sobre seu cavalo e cavalgou frente a linha de
arqueiros preparados para o próximo comando. Todos estavam reunidos no
jardim do palácio, entre escombros e flores mortas. A população daquela
área fora evacuada pelos Guerreiros do Sol, eles a levaram para os distritos
não afetados pelos terremotos do dragão; outros, protegeram os príncipes,
restando aos draconianos enfrentar o adversário. O rei estava na Sala do
Trono, disseram os combatentes, mas Ahuriel acreditava ser tarde demais
para o soberano. Infelizmente, não puderam salvá-lo. Salvariam, porém, a
cidade.
— Mudem o alvo! — berrou o comandante sobre seu cavalo, as
madeixas trançadas escorriam sobre sua armadura como prata derretida. —
Atirem contra as patas! Derrubem-no!
Cem flechas foram disparadas sob a luz do pôr do sol.
Furiosas. Velozes. Muitas delas acertaram as juntas do dragão, mas a
maioria encontrou as paredes do palácio. O inimigo rugiu, arqueando o
pescoço para trás e levantando as asas; depois, mais um disparo
sincronizado. Parte da estrutura cedeu, outra se despedaçou com o peso
excessivo da criatura.
O dragão caiu, cuspindo fogo para o céu.
Ahuriel bradou para que todos se afastassem e os draconianos se
moveram depressa. O impacto fizera a terra estremecer, escombros se
formaram e estátuas se despedaçaram ao redor do palácio. As ruinas de
Sopoente, construído há quase quinhentos anos, era uma imagem que os
humanos não esqueceriam — a mesma imagem que os draconianos
presenciaram com a queda de Aumas doze anos antes, passado este que se
repetia pelo fogo de um Primeiro Dragão. Enfurecida, a fera se levantou e
arqueou o pescoço para frente, a boca de dentes recortados se entreabriu ao
lançar o calor do sol contra todos.
— Protejam-se! — vociferou o comandante.
Fogo de Primeiro Dragão.
Muitos draconianos foram enganados pelas chamas.
Arderam. Gritaram. Morreram. Outros, no entanto, encontraram
escudos improvisados entre os pedaços destruídos do castelo. Ahuriel se
colocou entre os guerreiros e observou o inimigo. Precisaria de um plano
para vencê-lo, um modo de fazê-lo recuar tempo o suficiente para que os
reforços chegassem.
Ele olhou para o palácio, olhou para o jardim, olhou para os
escombros.
Mas não encontrou nada.
— Comandante! — a voz de Hyun-seo soou entre os demais. —
Precisamos de algo mais pesado que flechas para causar dano nele. Algo
que podemos acertá-lo com pouco esforço.
Ahuriel estudou as possibilidades: o dragão caíra ao lado do castelo e
outros pedaços da estrutura sólida estava pendurada no concreto. Um
pequeno tremor e o resto desmoronaria; contudo, um grande tremor
derrubaria a torre da Sala do Trono contra o inimigo.
Ele só precisava ficar parado.
— Mantenham o dragão imóvel... — o comandante segurou firme as
rédeas de seu cavalo. A besta estava estranhamente parada, esperando. Suas
asas alongadas se equilibravam no vento do deserto. Estava tramando, era
um líder e não se deixaria vencer por draconianos. Ademais, o olho da
maldição. Ahuriel sabia o quão perigoso poderia ser a fera escamada. Mas
ele não poderia esperar mais, era a única ideia que tinha. — Atirem! —
ordenou e esporeou o animal, galopando na direção do castelo em ruínas.
Os guerreiros bradaram e prepararam suas flechas.
As primeiras foram lançadas como uma distração para o gigante, uma
distração para que ele ignorasse o comandante que cavalgava.
Mas ele não ignorou.
O dragão rugiu e chicoteou os escombros com sua cauda: pedaços de
pedra foram lançados contra os arqueiros enquanto o gigante se posicionava
para atacar o homem sobre o cavalo. Draconianos que receberam o peso do
concreto jogado, despedaçaram-se, sangue manchou a areia e outros
guerreiros gritaram para que evacuassem. Hyun-seo quem os manteve
unidos, a coragem restaurada perante o adversário que se preparava para
atacar — e não eles. Mas Ahuriel. O comandante só tivera uma fração de
segundos para agir, sequer pudera praguejar: ele gritou para o cavalo e,
depois, saltou, soltando as rédeas e deixando o animal ser pego pelas
chamas de sangue.
Ahuriel rodopiou no ar e caiu desajeitado sobre parte da estrutura do
palácio; e esta cedeu, derrubando-o entre fragmentos de pedra e estatuas
despedaçadas. Sangue escorreu de um corte em sua bochecha. Sangue que o
inimigo controlaria se visse. Limpou o ferimento depressa e o pressionou
com a luva para conter o sangramento. Suor escoria de suas têmporas, a
trança havia se desfeito e as longas madeixas prateadas dançavam sobre sua
armadura negra.
A estrutura ao redor dele tremeu de repente.
Comandante!
A voz de um dos guerreiros o fizera levantar o olhar: o inimigo estava
diante dele, presas a mostra, o fogo prestes a ser lançado. Ahuriel, porém,
não se deixou morrer nas garras de um dragão. Ele rolou entre os
escombros e se jogou na tênue proteção de um concreto despedaçado da
Sala do Trono — e nessa atitude a risada sombria de uma mulher ecoou na
cabeça dele.
As chamas não foram lançadas pelo gigante.
Ele levantara o focinho para o outro lado da praça.
— Herdeira de Misairuzame. — dissera de repente.
Ahuriel moveu os olhos na mesma direção.
Ele a viu.
Lunaysis?, seus lábios não se moveram.
DANÇANDO COM
DEMÔNIOS
Yanaamahka morreu no mesmo dia que sua mãe e o que temos agora é
alguém diferente, uma Yanaamahka diferente, renascida.
As palavras de Roren sempre o incomodaram, o modo que o humano
se manifestava em relação a Yanaamahka. Ele insistia que o passado, o
sentimento entre ambos se fragmentou com o tempo; e o que restava era
somente imagem, uma idealização conservada por Klud durante sua espera.
Ele era cego, e talvez esse fosse o motivo que o fizesse insistir naquela
imagem. No filhote de dragão, na Estrela da Noite, naquele pequeno
fragmento dourado que iluminava o mundo dele.
Yanaamahka era, e continuava a ser, a única que conhecia a verdade.
O homem suspirou e ouviu os passos dela, o vento soprando a presença
dela. Aproximava-se, lenta e cautelosamente; as mãos inquietas, a
respiração perdendo a sincronia. Ele a ouvia, tudo e cada movimento; ele a
sentia, tudo e cada hesitação. Porém não a via — porque o tempo estava o
fazendo esquecer como ela era no passado também; e sequer tinha uma
noção do presente ou teria do futuro. Klud colocou a mão sobre a areia e a
ouviu parar, o vento trouxe a localização dela: a exatos seis metros de
distância dele. Se fosse outro, estaria contente em os seus sentidos
aguçados. Era um caçador nato, mas ele trocaria tudo pela visão, pela
possibilidade de ver o céu e o mar... e ela.
Ele suspirou de novo e agarrou um punhado de areia entre os dedos.
— Eu nunca pensei que eu me sentiria cansado de esperar por você.
Mas o cansaço está cada vez maior... — ele murmurou esperando que ela o
ouvisse. Yanaamahka era um dragão, era mais dragão que ele; logo, ouvir
em meio as lufadas de vento não seria um problema. — Talvez eu tenha
esperado demais e nunca tenha recebido nada.
— Então para de esperar. — as palavras dela eram como o deserto que
os cercava.
— O que me restaria? — e o homem se perguntou. Se deixasse de
esperá-la, se deixasse a promessa com a antiga Yanaamahka desaparecer, o
que restaria a ele? Era vazio, sem nada, sem ninguém, perdido em um
mundo que nunca o aceitaria. Klud apertou a areia até que sua mão doesse.
— Eu vivi todos esses anos somente por isso... eu não sei fazer outra coisa a
não ser esperar.
Klud a ouviu dar um passo em frente.
— Eu apenas quero estar com você como antes. Como éramos antes.
— ele continuou. — Eu quero te ajudar a voltar ao normal.
— Eu sou normal.
— Mas você não é mais a mesma.
— Eu nunca mais vou ser a mesma... depois do que vocês fizeram
comigo.
Não foram as palavras que doeram, ele esperava por elas, mas o modo
que foram proferidas: cobertas por frustração, ódio e raiva. Sentimentos que
a Yanaamahka do passado nunca carregou. Era verdade, Roren estava certo:
a Estrela da Noite estava morta, e lá, diante dele, estava alguém diferente da
qual amara antes, alguém com o cheiro dela, mas sem qualquer semelhança
na personalidade. O homem respirou com dificuldade e se levantou,
decepcionado. Talvez ele também não conseguisse voltar ao normal depois
de doze anos de espera. O que o incomodava, porém, era o porquê.
Por que Yanaamahka não era mais Yanaamahka?
Quem fizera isso com ela?
...e por que ele simplesmente não conseguia a deixá-la ir?
Klud deu um passo na direção dela, buscava palavras, qualquer solução
para o vazio que crescia em seu peito, mas o vento trouxe a ele um cheiro
diferente.
— Draconiano. — ele murmurou e elevou os olhos além dela. O
coração de Yanaamahka disparou: ela se virou e correu depressa.
Klud a seguiu, porque, no fundo, aquele cheiro lhe era familiar.
— O Tiggrë tá do outro lado! — ela disse enquanto corria,
cambaleando, o ferimento se abrindo em sua barriga. Klud sentiu o cheiro
forte de sangue dela e também o cheiro de medo. Uma rajada de vento
atravessou o deserto e o fez estremecer: correu e seguiu a mulher-dragão,
embora cada passo dele estivesse carregado de hesitação.
Porque a presença no vento era alguém que ele precisava evitar.
Yanaamahka parou e ele parou também.
...e ele ouviu a respiração do estranho a frente.
QUEBRADO.
Hanzor se distanciou da palavra o máximo que pode; no fim, porém,
era inevitável. Estava, de fato, quebrado. Os curativos ao redor da mão
eram recentes, manchados por sangue e derrota. Sozinho, nas sombras do
quarto, o cavaleiro se perguntava como seria o seu futuro — como caçaria o
Dragão dos Dragões, como vingaria o pai assassinado. Incapaz de brandir
uma espada... incapaz de lutar por sua nação. Os questionamentos o
incomodaram e ele, desejando retornar para casa, caminhou pelo cômodo à
sacada. Os draconianos foram deslocados para uma das hospedarias que se
mantiveram intactas na cidade; e das janelas, a destruição central era
eminente do castelo. A força de um único dragão, a mesma força que
despedaçou a capital de Aumastris no passado.
Ele suspirou e observou o anoitecer.
Pensava na mãe, nos irmãos... no seu mentor. O comandante Khan
estava foragido, sentenciado por proteger uma Mulher Amaldiçoada. Como
contaria aos irmãos que o homem que eles consideravam como um pai não
mais retornaria para o continente? Kain e Kaz estavam na barriga da mãe
quando Hiborym morreu, não o conheceram; logo, não compartilhavam a
mesma saudade que o irmão mais velho. Dificilmente entenderiam os
motivos de Hanzor. Ninguém além de Belpheggör entendia.
Os devaneios dele foram interrompidos por batidas na porta. Hanzor
caminhou e ouviu a voz de seu amigo do outro lado. Era Hyun-seo. Ele
abriu e o convidou para entrar.
— Não esperava vê-lo tão tarde! — Hanzor sorriu para esconder toda a
frustração que sentia. Hyun-seo, porém, não sorriu; somente caminhou pelo
quarto, observando os detalhes. — Está tudo bem? — o draconiano insistiu.
— Eu não queria vir tão tarde. — Hyun-seo respondeu indiferente. —
Mas talvez eu não tivesse outra oportunidade.
— Como assim? — Hanzor convidou o amigo a se sentar em uma das
poltronas instaladas no centro do quarto, mas este se recusou e permaneceu
em pé, estático.
— Eu estou deixando os Cavaleiros Negros.
— O quê? Hyun-seo! O que você está dizendo? Nos sempre... sempre
desejamos estar entre os superiores. — Hanzor se sentou, inconformado. —
Por que essa decisão?
— Eu soube o que aconteceu entre você e o general Demétrius. — mas
o companheiro ignorou as perguntas, caminhando despreocupado pelo
cômodo, sem olhar para o amigo.
Hanzor suspirou.
— Ah... — e observou o curativo. — Estou me acostumando...
Belpheggör disse que posso treinar com o braço esquerdo, mas... o assunto
não é esse. Não ignore minhas perguntas. Nós prometemos entrar na elite
juntos, lembra? Luna era a nossa testemunha.
— Sim, ela era... Pensou em visitá-la antes de partir? Eu soube que a
embarcação para Aumastris partirá em breve.
— Ah, eu preciso vê-la! — Hanzor colocou a mão boa sobre os
cabelos e os bagunçou. Ele havia se esquecido completamente da prima. —
Sabe como ela está? Acredito que bem.
— Ela não está bem. — a resposta de Hyun-seo era fria. — Eu não sei
onde Luna está... ninguém sabe. Ela fugiu.
Hanzor piscou com dificuldade.
— Luna foi sentenciada à morte por assassinato e por ser uma Mulher
Amaldiçoada. Ela está sendo caçada, não ficou sabendo? — e a
naturalidade do guerreiro assustou Hanzor, as palavras dele travaram e,
então, Hyun-seo prosseguiu. — Claro que não. Porque você realmente não
se importa com ela ou ninguém além de você mesmo. Você nunca se
importou, nunca se perguntou sobre como ela estava.
Era como um golpe; e doera mais que os ferimentos causados pelo
general draconiano.
— Isso não é verdade. Eu estou caçando a Estrela da Noite para...
— Para sua própria vingança tola. — Hyun-seo o interrompeu com
uma expressão corrosiva. Hanzor se levantou e rangeu os dentes,
consumido por uma repentina cólera.
— Como ousa falar desse jeito comigo? Vingança tola? Você não sabe
como eu me sinto, Hyun-seo! Eu perdi o meu pai por causa dos dragões! —
e vociferou, ignorando as dores no corpo.
— Eu perdi o meu pai por causa dos draconianos! — Hyun-seo
rebateu, lágrimas escondidas nos olhos cinzentos. A notícia surpreendeu o
Vanadis. — Ah, desculpe, Hanzor. Esqueci que você não sabia. Estava tão
preocupado consigo que nunca prestou atenção no que acontecia ao seu
redor... e agora fica se lamentando por essa vingança.
— Mas os dragões... — Hanzor não continuou.
— Eu perdi a minha mãe, meu pai e agora a mulher que eu amo por
causa dos draconianos. Eu perdi muito mais que você; e olhe para mim,
veja se estou me lamentando e prometendo vingá-los? Não. Estou fazendo o
meu melhor por esse império despedaçado!
— Eu não quero ouvir! — Hanzor vociferou; e não porque não se
importava, mas, sim, porque não tinha argumentos.
— Como você nunca quis. — Hyun-seo sorriu com desgosto. — Basta
ver como você capturou aquela estrela. Você a enganou. Imagine o que seu
pai diria... Já pensou?
— Saia daqui!
Hyun-seo se manteve quieto por segundos.
— Saia agora!
— Que seja. — e se manifestou. — Espero que você se afogue no seu
próprio egoísmo, Hanzor.
E o draconiano saiu, batendo a porta.
Hanzor não soube por quanto tempo ficara lá no escuro, refletindo,
pensando, esperando. No fim, no breu de seu quarto, quando nada mais
podia ser feito, ele colou as mãos sobre o rosto e chorou.
...tudo estava tão errado.
O HOMEM QUE CAÇA A LUA
O VENTO O GUIARIA.
O dragão azul pousou exausto sobre montanhas despedaçadas,
estilhaçadas pela força da natureza. Cinzentas. Frias. Uma bruma espessa
rodeava a região, as correntes de vento tinham um cheiro podre como se a
morte velejasse através dele, apodrecendo o mundo. Um continente inteiro:
Degail sucumbira pela força da mãe natureza há esquecidos anos; sofrera
sozinho, os chamados de ajuda ignorados pelas nações vizinhas. Antes, o
território que, diziam os Antigos, guardava a magia dos dragões; agora,
nada além de escuridão e morte. Por ser cego, era incapaz de ver a
destruição, mas a sentia, estava no vento, no cheiro, por todas as partes. O
silêncio enlouqueceria os fracos — o mesmo silêncio que matara os
habitantes nas sombras daquela praga.
Eternaria.
Ele voara sobre as águas tempestuosas do vasto oceano de Tel Vozz e
enfrentara a fadiga, a fome e o frio; dias sem pausas, dias que suas
membranas estremeceram com o esforço contínuo. Mas o motivo era nobre
— não para o mundo, não se importava — para ele, para seu coração, para
Yanaamahka. Ele encontraria o Dragão dos Dragões e a traria de volta, cada
fragmento dela perdido no tempo, arrancados e amaldiçoados por um pai
corrupto.
Kluddihargën lançar-se-ia ao fim do mundo por causa dela.
Só retornaria, então, se encontrasse o que prometera: a Yanaamahka
que, supostamente, estava morta.
Ele não teria medo das sombras do Continente dos Mortos.
Não teria medo de alcançar o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes: lugar
que Vlanhonder Draconis estava.
O C E I FA D O R E X I L A D O
SUOR ESCORRIA POR ENTRE AS TÊMPORAS; parte caía ao chão pútrido, parte
se aglomerava nos fios negros. Músculos tensionados. Veias salientes.
Tórax desnudo. Demétrius controlou a respiração, vibrações se espalhando
por seu corpo numa súplica constante por descanso. Ele cerrou os dentes.
Não descansou, alcançou o limite e o quebrou com voracidade. Era o que
gostava de fazer — quebrar limites e anestesiar a existência de qualquer
dor. Por isso, manteve-se na mesma posição: seu corpo estava suspenso no
ar da cela. As pernas dele equilibravam o peso do corpo enlaçadas em uma
barra de ferro presa às paredes de pedra. Fique um dia sem treinar e seus
músculos atrofiarão, costumava dizer o Senhor de Gelo. Mesmo preso.
Mesmo com as mãos acorrentas em grilhões pesados.
Preso.
O melhor caçador do império preso e enganado como um qualquer. Era
engraçado. Ele sorriu e o suor escorreu do pescoço ao canto de sua boca.
Seu cérebro parecia pensar melhor de cabeça para baixo. Sangue correndo
entre os olhos, o corpo formigando. Suspirou, e usou a força nos músculos
superiores para erguer o tronco repetidas vezes para completar os
abdominais. Treinar era uma forma de esfriar seus pensamentos. Colocá-los
no lugar. Porque em pouco tempo, menos do que esperava, estaria nos
domínios do Senhor de Gelo.
Demétrius não esperava vê-lo tão cedo — não depois de ter
assassinado o herdeiro favorito do pai, os netos e a nora. Não por inveja,
que o trono de Nothumbria explodisse, mas como uma provação. Queria
mostrar ao Senhor de Gelo que poderia ser tudo menos nada. Era um
assassino, um louco e um torturador. Ceifador, como o chamavam.
Nothumbrianos acreditavam que o draconiano era forte pelo número de
herdeiros que tinha. Demétrius, por ser estéril, não tinha nenhum; e, logo,
sempre fraquejaria. Por isso perdeu o direito ao trono e o reconhecimento
do pai por ser o primogênito.
...e por isso prometeu caçar todas as Estrelas da Noite.
Para mostrar que poderia ser forte sem filhos.
Mas não mais; não preso, não exilado.
Demétrius ergueu o tronco no último abdominal e segurou a barra com
uma mão. Arfava, o rosto vermelho por cansaço e cólera. A promessa de
retornar a Nothumbria com as Estrelas da Noite extintas não se
concretizaria. Restavam duas. Restaria uma se os desgraçados não
houvessem lhe privado.
Que eles pagassem pelos erros.
Passos ecoaram nos corredores e quatro homens se puseram diante a
cela. Demétrius largou a barra e aterrissou no chão sem cambalear,
observando a expressão dos guerreiros. Eles hesitavam e temiam,
entreolhavam-se numa discussão silenciosa sobre quem abriria a cela. Um
deles deu um passo à frente e berrou sobre o fato do prisioneiro estar com
as mãos pressas. Demétrius quis rir. Se quisesse matá-los, faria somente
com as pernas.
A cela foi aberta enquanto espadas eram empunhadas.
— Você será transferido! — bradou um deles com uma coragem
encenada. Demétrius esperou. — A embarcação para Nothumbria sairá em
dois dias e você será levado para o porto.
— Coopere e não será ferido! — a lâmina do segundo tremeu na
direção do ceifador.
— O que posso fazer? — e o draconiano elevou as mãos acorrentadas.
Eles se aproximaram e o rodearam. Cautelosos. Demétrius cooperou com
um sorriso psicótico, seguindo as instruções dos homens. Era divertido ver
como eles acreditavam que estavam seguros — que as correntes do
prisioneiro o privariam de se libertar. Se desejavam servir o império,
precisavam deixar a ingenuidade de lado e se prender a seriedade.
Demétrius decidiu ensiná-los.
...e no passo seguinte, suas mãos unidas acertaram o rosto de um deles.
A intensidade do soco deslocara a mandíbula do humano, os braços de
Demétrius eram três vezes maiores do que a do guerreiro e ele, desatento,
sequer teve como bloquear; e se tentasse, talvez não conseguisse. O homem
gritou e os outros se posicionaram em vão. Demétrius bloqueou o ataque de
uma lâmina com as correntes, faíscas iluminaram a escuridão, e desviou de
outra em suas costas com um rápido movimento de corpo. Depois, chutou o
terceiro que avançava e agarrou o quarto nas correntes dos grilhões. O
jovem gritou por clemência, mas o draconiano não era familiarizado com o
termo, sequer o entendia: a força de seus músculos fez o aço das algemas
sufocar o guerreiro, os olhos se esbugalharam enquanto as correntes
adentravam a pele que esguichava sangue pelos ares.
O corpo inerte desmoronou nos pés do general.
Os outros dois avançaram gritando. Demétrius se esquivou de uma
espada e segurou a outra com a mão, sangue escorrendo pelos seus dedos. A
dor lhe encheu de prazer. Ele precisava dela — era sua fonte de força. Por
isso sorriu, experimentou a sensação e urrou quando puxou a lâmina,
roubando a espada de seu adversário um segundo antes de enterrá-la no
olho dele.
A cor da morte o deliciou.
Restavam um — e era decepcionante como o infeliz não ousava
brandir a espada. Tremia, incapaz de se mover contra um prisioneiro
acorrentado. Eram fracos, e o draconiano se perguntou como os superiores
esperavam derrotar os Primeiros Dragões, caçar as Estrelas, treinando
guerreiros como aqueles.
— Não confiem em grilhões. — Demétrius anunciou, as tochas ao
redor destacando o rosto parcialmente desfigurado. — Muito menos em
espadas. O inimigo pode foder vocês sem elas.
Ele estendeu as mãos acorrentadas.
— Agora me levem para a porra do navio.
Nothumbria era seu destino.
Mas não esqueceria de seu principal propósito: caçar a Estrela da Noite
que sempre escapava por entre seus dedos.
A DONZELA COM SONHO DE
LIBERDADE
HUMANOS DIZIAM QUE O SOL ERA um deus assim como a lua. Impiedoso,
porém; quem lançava seu poder sobre a terra durante os dias ensolarados.
Enquanto Lunyar, a mãe dos draconianos, iluminava o mundo contra a
escuridão da Noite Eterna, Sunyar propagava luzes incandescentes e
multifacetadas: elas eram benéficas, alimentavam a fauna e aqueciam os
homens; e maléficas, causavam doenças e desidratação com um contato
excessivo. O deserto era o campo de batalha de Sunyar, a região que ele
dominava, lançando baforadas de calor como se fosse o deus-dragão. À
noite, porém, quando partia, os sussurros gelados de Nothumbria varriam a
terra e açoitava os habitantes com temperaturas negativas.
Essa era a situação do Grande Deserto. A situação que Lunaysis
enfrentava sozinha.
As horas eram indiferentes. Não tinha certeza de quanto tempo
caminhara sozinha sobre as areias — vira o dia se fragmentar e a noite se
dissipar, vira o mundo queimar em cores quentes. Tudo estava quente; e na
metade do segundo dia, a draconiana começou a delirar. Luna se perguntou
se seria capaz de resistir se não estivesse protegida pela deusa. A resposta,
porém, perdeu-se no vento; e a cada novo passo, a força dela se dissipava.
Sobre as areias, vira as imagens de sonhos perdidos, contos esquecidos,
canções entristecidas. Depois, o cansaço; caminhou com os olhos naquelas
imagens, desejando que tomassem formas iluminadas: sonhos realizados,
contos lembrados, canções apaixonadas. Era o que esperava — da
esperança, do mundo. Um lugar que pudesse, de fato, viver e não
simplesmente existir; um lugar que não fosse mais acorrentada pelas
tradições.
Luna delirou uma última vez e, incapaz de resistir a fadiga, fome e
tontura, desmaiou sobre o dourado da areia. Uma risada na escuridão;
alguém que sorria e acreditava na esperança. Misairuzame? Seria a deusa
lhe puxando para a realidade? Lunaysis quis acreditar na possibilidade e
estendeu a mão para a luz que se dissipava nas sombras. Então, a esperança
lhe segurou. Ela abriu os olhos e foi recebida por um sorriso esperançoso.
— Que os Doze a protejam! — disse uma senhora com expressões
humildes, enrugadas. Doze eram as entidades dos povos de Degail, dos
refugiados que fugiram dos massacres draconianos. — Você está tão pálida,
minha querida! Mas eu tinha esperança que fosse acordar! Está tudo bem,
moça. Você estará segura conosco, os Doze irão nos proteger.
A draconiana forçou os olhos e a claridade quase a cegou. Uma gaivota
emitiu um canto agudo, mergulhando em um céu azul e limpo.
— Onde? — ela se esforçou para sussurrar.
— Você estava muito fraca... e grávida! Sinto muito que a tenha trazido
conosco, mas eu não poderia deixá-la sozinha no deserto.
— Mas onde estou?
— Em lugar nenhum... por enquanto. — sussurrou a senhora e Luna
sentiu o cheiro de água salgada, do mar. — Mas chegaremos em Castora em
uma semana, querida.
O coração de Luna se encheu de paz e lágrimas cresceram em seus
olhos.
— Obrigada... obrigada. — sussurrou e os fechou.
Ela estava livre do deserto, livre dos draconianos e de um casamento
que a mataria.
Estava livre para ver sua filha nascer.
— Obrigada. — repetiu e a mulher colocou a mão sobre a dela.
Os ventos da esperança estavam do lado dela. Sua liberdade estava um
passo mais próxima.
O D R A G Ã O B A N H A D O D E M O RT E
MORTE.
Ela maculara o mundo com seu abraço escuro e suas promessas
sombrias. Traiçoeira. Senhora da Noite. Ceifadora Noturna. Aquela que traz
o silêncio eterno. Por séculos os homens deram a ela inúmeros nomes e
definições. Muitos diziam não a temer, outros buscavam o elixir da vida
para retardá-la. No fundo, ninguém escapava. Todos estão fadados a
sucumbir perante ela, um toque gelado que nos alcança como um sussurro
solitário. Ela nos pega de surpresa, a morte; rouba-nos a luz quando
pensamos que a segurança nos rodeia.
A morte é inimiga mais cruel dos seres vivos.
Porque ela não pode ser derrotada.
Era essa a Senhora da Noite que abraçara o mundo dela.
A mulher elevou os olhos e estremeceu. O dourado neles, fraco e
vacilante como a luz mundana, apagou-se com o uivo entristecido do vento.
A natureza estava em luto e se lamentava profundamente. A mancha
cinzenta, antes uma extensão infinita de cores vivas, agora uma negritude
sem fim, cobriu a terra e roubou o coração de todos os seres que lá viviam.
Somente a Morte vagava por lá, encapuzada, cautelosa, esperando por
aqueles perdem o sol de vista.
Yanaamahka caiu de joelhos. Sozinha, observou os restos daquela
lembrança se fragmentar: a Floresta Viva de Krynhild era um mero borrão
chamuscado. As árvores estavam secas, as flores murcharam e nenhum
fruto crescera ou cresceria novamente. As chamas de um dragão queimaram
lá, um Primeiro Dragão, um semelhante dela; alguém que se levantara sobre
a imensidão da região e destruíra a paisagem com uma baforada.
As chamas de Kyn queimam a vida toda.
Ela rastejou entre a fuligem.
Roren. Luce. Mare.
Nomes que pertenciam ao presente e, ao mesmo tempo, passado. Se
eles tinham sobrevivido, era incapaz de saber... Porque o mundo era
perverso. A prova estava diante dela Yanaamahka se levantou e caminhou
devagar, as lembranças lhe guiando, a ausência do cheiro de hortelã
causando calafrios.
Eu sou Aru Tiggrë! Você tem um nome?
Galhos secos estalavam sob seus pés, fumaça se erguia ao céu nublado;
era um sinal angustiante de que o fogo — talvez de dias, meses —
continuaria a arder. A Morte caminhava nas sombras do entardecer e a
mulher se encolheu com a brisa que a acompanhava. Era fria, embora
estivesse quente. Então, entre plantações devastadas e árvores secas, Yanaa
viu os sinais de uma casa. Ela correu, os pés cambaleando, seu coração
pulsando.
Tudo vai ficar bem. O mundo pode ser miserável, mas ele também é
belo.
Yanaamahka tropeçou de repente e caiu.
...e vomitou ao ver no que tropeçara: um corpo em decomposição. A
expressão estava chamuscada, os olhos haviam sido devorados por larvas
ou pássaros selvagens. Contudo, o que chamara a atenção dela fora a mão
do homem — estava fechada firmemente sobre uma lembrança. Era uma
carta. Queimada. Chamuscada. Yanaa a arrancou do humano e desdobrou as
partes legíveis... e, então, seu coração se apertou diante as letras.
Ela não sabia ler.
Nós encontraremos o desfiladeiro juntos!
Eu nunca vou abandonar você, na’na. É uma promessa.
A carta estremeceu em seus dedos.
Tudo vai ficar bem.
Era mentira.
Nada mais ficaria bem. Nunca mais. O mundo continuaria, o tempo
avançaria, a vida seguiria e... nada mudaria.
Yanaamahka amassou a carta e colocou nas mãos do homem
queimado. A decomposição poderia tê-lo deixado irreconhecível, o cheiro
pútrido poderia estar a sufocando, mas um dragão não esquece; nunca
esquece, e naqueles traços cobertos de morte, a Estrela da Noite reconheceu
aquele homem. Apesar da morte tê-lo alcançado, talvez cruel demais, ele a
tinha aceitado: estava com os braços abertos. Provavelmente morrera de
frente para o dragão. Sorrindo. Implorando. Lamentando. Nunca saberia.
Não queria saber.
Não queria mais. A garganta dela estava trancada por um sentimento
corrosivo, entorpecido. Yanaamahka cerrou os punhos e olhou ao redor, a
destruição, o sopro de vida que se afastava da Floresta Viva. Por anos na
escuridão, a Estrela da Noite se perguntou se existiria um lugar no qual
poderia sempre voltar. Um lugar que alguém estaria lhe esperando; e, presa
na busca do passado, de quem era, acreditou que o Desfiladeiro dos
Dragões Gigantes fosse o lugar. Mas nunca esteve tão enganada. A verdade
era que ela esperava um lugar como a Floresta Viva, repleto daqueles que
lhe eram queridos, que lhe disseram que o mundo era belo.
Mas aquele lugar não existia mais.
Todos estavam mortos. Todos haviam sido arrancado dela.
Yanaamahka cobriu o rosto com as mãos e chorou.
Ela não conseguia sentir nada além de tristeza. De dor. De
arrependimento. De corrupção. De ódio. Então, socou a terra e gritou para o
céu.
...e desejou não sentir mais nada.
Mas não.
Algo dentro dela negava essa vontade de desistir e sucumbir aos
caçadores. Algo que a fazia se prender a vida — embora estivesse se
afogando na escuridão. Um feixe de luz repentino se esgueirou pelos galhos
secos ao redor, uma incandescência que iluminava o rosto da Estrela Caída.
Yanaamahka olhou para o horizonte, para o sol.
O que estaria a impedindo de desistir?
Porque ela desejava continuar enfrentando seus caçadores?
O vento lhe acariciou o rosto.
Então a luz alcançou os olhos dela, cobertos por lágrimas trancadas.
Alguns segundos, talvez uma eternidade inteira, passou diante dela: a
primeira história, a primeira sensação de conforto, o primeiro abraço e o
primeiro sorriso. Todos foram construídos não no passado que ela perdera
há tantos anos, mas no presente, nos dias afogados pela caçada draconiana.
Dentre tanta corrupção, lá estava a beleza do mundo.
Yanaamahka não precisava buscar o passado para se sentir completa,
bastava se lembrar do que vivera naqueles dias. Aquilo a fizera se sentir
viva.
Uma lágrima escorreu no rosto dela.
...e ela sentiu que não poderia desistir, não poderia morrer.
Porque se morresse, as lembranças de Tiggrë morreriam com ela e...
não seria mais capaz de lembrar dele.
Yanaamahka se levantou e secou as lágrimas.
Ela olhou para o horizonte, para o sonho que o menino tanto contava: e
seus passos a levaram para o Sul. Ela iria para Nothumbria; e de lá, para o
desfiladeiro.
...como Tiggrë sonhava.
CAÇADA ÀS ESTRELAS DA NOITE
C O N T I N U A R Á E M...
CANÇÕES ÀS
ESTRELAS DA NOITE
APÊNDICE
CAÇADA ÀS
ESTRELAS DA NOITE
V O L U ME I
TA MA N H O D O S D R A G Õ E S N O P R I ME I R O L I V R O
Yanaamahka: 2 metros
Shurgakian: 20 metros
Kluddihärgen: 7 metros
Mom-mom: 9 metros
Hieronymus: 20 metros
Vlanhonder: 87 metros
P R O N Ú N C I A S D O P R I ME I R O L I V R O
Hyun-seo – ri-UM-se-O
Eun-seo – i-UM-se-O
Mahoutsukai – ma-ROU-t-SU-cai
Misairuzame – mi-SAI-ru-ZA-me
Maetsumina – mae-TSU-mi-na
CONTINENTES
NOTHUMBRIA, o continente-de-homem-nenhum
População: draconiana e mestiça.
Idioma: Draconemia e Dunarena (idioma menor falado pelos povos
afastados da capital e pelos mestiços).
Religião: não há a crença em um deus e, sim, na Noite Eterna como
entidade viva.
Capital: Valenevado.
Imperador: Hygörn dur-Valeas al Vossler.
Cidades Principais: não há.
O continente de Nothumbria só possui duas estações: o Inverno Eterno
e a Primavera, o primeiro com 345 dias, o segundo com 20. Não os anos, e
sim, as Eras, a cada cinco invernos.
Durante todo o Inverno Eterno, é sempre noite em Nothumbria, o que o
torna um dos continentes mais desabitados em Agëa, uma vez que apenas
20% de seu território é habitável, a área restante é tão fria que nenhum
homem sobreviveria.
Nenhum homem jamais chegou ao centro do continente: é tão frio e
escuro que os corajosos enlouquecem e congelam antes mesmo de alcançá-
lo.
Acredita-se que Aumastris e Nothumbria eram um só continente antes
da queda de Hatanyar, o deus-dragão, formando o antigo território de
Aumathumbria.