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CAÇADA ÀS

ESTRELAS DA NOITE

SOB O CÉU DA NOITE ETERNA


V O L U ME I

YASMIM MAHMUD KADER


201 8
Yasmim Naif Amin Mahmud Kader
Copyright © Yasmim Mahmud Kader

Livro: Caçada às Estrelas da Noite


Registro: Fundação Biblioteca Nacional
Arte da Capa: Yasmim Mahmud Kader

KADER, Yasmim Mahmud. 1ª ed. — Publicação Independente. 2018.


1. Literatura Brasileira. 2. Fantasia Sombria

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados à autora desta obra. Proibida reprodução, no


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justiça.
Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

Recomendado para maiores de 16 anos.


O mundo está em pedaços;
e a cada girar da roda do tempo,
mais inevitável sua ruína se torna.
Antes de tudo, não havia nada.
Nem o sol, nem a lua, nem o tempo.
O universo era negro.
Então o desejo de existir eclodiu em três formas.
Um homem, Sol;
uma mulher, a Lua,
e uma serpente alada, o Tempo.
PRÓLOGO

DIZEM QUE AS LEMBRANÇAS têm uma conexão íntima com o coração.


Elas são as responsáveis pela pulsação, as responsáveis pelo
movimento continuo do sangue em nossas veias, as responsáveis pela vida.
Todos temos lembranças, umas boas, outras ruins. A primeira palavra, o
primeiro passo, o primeiro sorriso, o primeiro amor, a primeira morte. Cada
momento está gravado em nossa alma, e se por ousadia tentamos distanciar
de memórias que nos perturbam ou nos dilaceram com saudade, elas se
tornam mais fortes e nunca desaparecem. São eternas e devoram o nosso
coração... essas lembranças traiçoeiras. Mas também são doces. Elas nos
fazem sentir: aquecem em noites frias, causam lágrimas na solidão, trazem
risadas em companhias e ardem com paixões.
Lembranças são a nossa identidade.
Elas são o nosso viver.
Arranque as lembranças de um homem e destruirá seu coração. Porque
não se pode viver sem elas, não se pode viver sem um passado. A ausência
de identidade nos torna vazios, doentes, mortos. As cores se tornam cinzas;
o mundo se apaga e o que deveria ser um símbolo infinito de luz — o sol —
transforma-se em escuridão.
Ela vivia nessa escuridão: tinham lhe arrancado o coração.
Ela estava sozinha, sem calor para aquecer sua pele enfraquecida pelo
confinamento eterno. Era eterno porque ela não tinha mais noção de
quantos anos se passaram. A luz, ela perdera de vista; o sol, esquecera seu
toque. Crescera na ausência de lembranças e passado, longe de afeto e de
alguém que lhe desse esperança de dias melhores. Ela sequer tinha um
nome, acostumara-se com os termos pejorativos que um estranho homem a
chamava. Monstro. Aberração. Praga. Desgraça dos Deuses. Inferior. Eram
tantos, cheios de ódio, que ela decorou cada um e os repetia todas as noites.
Repetia-os como um remédio para a dor de seus músculos atrofiados e o
sufocamento das correntes que rodeavam seu pescoço. Eram diversas,
pesadas, curtas, que a privavam de escapar do calabouço.
O homem que a torturava também não tinha um nome. Dizia-se
somente ser um draconiano, uma raça superior e descendente dos deuses.
Ele se autoproclamava um mestre. Era um guerreiro robusto de armadura
negra, desgastada pelo malcuidado e pelo tempo, olhos inundados por um
ódio e preconceito doentio.
Ele a torturava todas as noites. Você deve me respeitar! Sou o seu
mestre! O draconiano dizia com correntes pontudas que a feriam na alma.
Cada golpe era uma torrente de sangue que banhava o chão imundo do
calabouço, e ela jamais pode revidar a violência dele. Era pequena, frágil e
jovem: uma fêmea de dragão com pouco menos de dois metros de altura
que sequer conhecia suas chamas. Ela rosnava, rugia, usava as garras, mas o
homem era hábil e gargalhava com a impotência de uma criatura glorificada
pelas lendas. Ele partia e a deixava no chão, em um estado deplorável,
enjoada com o cheiro do próprio sangue, num pesadelo que devorava sua
carne numa sinfonia lenta.
Ela não aguentava mais o som da morte.
Mas ela jamais desejou a morte. O sofrimento, a solidão, as dores e a
constante fome de calor não eram motivos para fazê-la desistir de sua vida.
Eram, na verdade, fatores que a fortaleciam e davam-lhe a esperança de um
amanhecer. Ela ansiava pela liberdade e pelas lembranças roubadas. Ela
acreditava que iria crescer, ser forte e revidar o draconiano que a castigava
por um motivo tolo: ser um dragão.
As noites frias trouxeram-lhe mais solidão. Os ferimentos recém
ganhos causaram-lhe alucinações: ela via as estrelas, a lua, o céu, a imagem
desfigurada de um dragão gigantesco. Ele estava acompanhado por uma
criaturinha frágil e saltitante, era um filhote de olhos dourados como o sol
que ela ousou esquecer. O maior protegia o menor com tanto cuidado que a
fêmea sentiu a respiração falhar.
Ela desejava um cuidado. Ela desejava uma liberdade. Ela desejava
uma luz.
O desespero aterrador desenvolvera nela um colapso mental e todo o
seu corpo escamado se tornou leve. Seria essa, enfim, a sensação de estar
morta?
Não! Ela acreditou, e implorou, que não.
Ela lutaria contra a morte para viver mais e ver mais. O mundo estava
esperando por ela. Um estalo, um estrondo; e a fêmea despertou de seu
transe. Sua respiração estava em sincronia. Aspirava. Transpirava. Um
músculo se moveu e, finalmente, a verdade das sensações foram reveladas:
seu corpo não era mais o mesmo. Era menor. Era semelhante ao draconiano.
Uma jovem. Uma mulher.
Mãos trêmulas tatearam o chão na escuridão. Umidade. Sangue. Ela
sentiu tudo na ponta de seus dedos. As correntes ficaram enormes,
soltaram-se e deram a ela o primeiro gosto da liberdade. Um segundo
estrondo e alguém entrou.
— Pelos deuses! — o draconiano gritou com uma tocha em mãos. —
Você finalmente fez um progresso!
Ela o observou com o corpo vacilante.
O homem fez menção de falar, mas interrompeu sua voz de repente.
Ele trincou os dentes e praguejou ao olhar para trás. Não disse nada, não
explicou, e correu na escuridão da qual viera. A mulher ficara lá, sem
entender, desejando que aquela fosse sua chance de liberdade. A ansiedade
fez seu sangue ferver. A nova forma proporcionou a ela um locomover
menos barulhento apesar de desajeitado. As paredes serviram de apoio, e a
prisioneira caiu algumas vezes antes de se habituar com as duas pernas. Ela
encontrou degraus na escuridão e os subiu devagar. Havia uma porta
entreaberta no final das escadas. Um berro angustiante cortou o ar e a fêmea
de dragão resvalou no musgo impregnado no chão. Alguém gritava,
implorava e chorava por perdão. Ela reconheceu a voz: era o draconiano.
Ele conversava com alguém no outro lado da porta, numa sala tão escura
como a qual ela estava.
Não... por favor... Éramos companheiros! Vencemos batalhas! Por que
está fazendo isso?, a jovem ousou espiar por uma fresta. O ceifador estava
de joelhos em frente à um homem duas vezes maior que ele. O estranho
estava coberto por um capuz e um manto negro que ocultava sua expressão.
Ela sentiu um arrepio... e num piscar, uma lança surgiu na escuridão e
atravessou a cabeça do draconiano que pedia por misericórdia. Ele morreu
em silêncio.
A prisioneira recuou e estremeceu. O estranho era perigoso. Ela o
ouviu caminhar; ora perto, ora longe, como se estivesse vasculhando o
ambiente, utensílios foram ao chão e móveis se quebraram. Um minuto,
dois, dez, e a presença do estranho desapareceu. O coração dela palpitou
acelerado. Ela tremia de ansiedade, e seu corpo hesitava em dar os
primeiros passos. Um novo mundo a aguardava. A fêmea de dragão
caminhou desajeitada com o corpo de mulher: duas pernas eram traiçoeiras,
ela cambaleava vez ou outra, e precisava usar as paredes para prevenir uma
queda dolorosa.
Num momento ela estava no calabouço; no outro, na sala que o
ceifador jazia morto. A fêmea olhou para o corpo ainda quente, não sentiu
pena, nem alívio, era indiferente do mesmo modo que sua existência fora
para o mundo durante o cativeiro. Ela tivera a liberdade privada e ninguém
jamais se importou. Então, ignorou o homem, os objetos ocultos na
escuridão e seguiu por um novo conjunto de degraus que se elevavam na
parede. Uma nova porta. Fechada. Inchada. Pesada.
...e ela abriu o caminho para o novo mundo.
A luz mundana explodiu do outro lado e a prisioneira caiu de joelhos
com os olhos cobertos. Acostumada a escuridão, a claridade parecia
queimar sua visão deteriorada, o que necessitou de um longo período de
pausas para ela se habituar ao ambiente. A passagem a levou à uma sala
arruinada pelo abandono. Os móveis jaziam em pedaços pelos cantos,
animais apodreciam e livros estavam destruídos pela água que alcançava os
tornozelos da fêmea de dragão.
Um cheiro de podre pairava na atmosfera. Entre todos os detalhes, um
deles ganhou sua atenção: fragmentos brilhantes. Eles cintilavam no chão,
restos de um espelho, mas que ainda cultivavam a capacidade de transmitir
imagem, e foi através deles que a ela viu sua forma humana pela primeira
vez. A pele alva; os cabelos, cascatas negras, e os olhos... ah, os olhos:
havia neles o astro rei que um dia ela ousou esquecer. Admirada, tentou
tocar o reflexo, mas o pequeno corte que ganhara no dedo a fez recuar. O
sangue não a assustou, tampouco a surpreendeu, pois no momento em que a
primeira gota caiu no chão, a ferida se fechou. Não satisfeita com o que via,
e duvidosa quanto sua verdadeira forma, ela descuidadamente fez seu corpo
inteiro se modificar uma segunda vez.
Um dragão voltara a ser, e seu tamanho foi capaz de destruir o que
restava da sala. A cauda longa, de escamas escuras, chicoteou o ar, acertou
as paredes e provocou tremores na estrutura. O pescoço inclinado bateu no
teto, os chifres em crescimento rasparam na pedra e poeira caiu sutilmente.
A sala era pequena demais para ela e suas asas que não sabiam voar. A falta
de espaço provocara a terceira transformação, e ela viu as mãos humanas se
formar diante de seus olhos. Sentiu frio, estava nua, e, instintiva, pegou
tecidos esfarrapados no chão para cobrir seu corpo que não era verdadeiro.
Ela decidiu caminhar, desbravar a estrutura que a acompanhou por tantos
anos; e uma última porta deu-lhe acesso a natureza — ao mundo. Um céu
vazio e negro, uma lua, duas estrelas. Sentiu-se hipnotizada: a imensidão
roubou a luz de seus olhos e longos foram os minutos que ela perdeu ao
sentir o vento, o cheiro, o ar... a vida.
A estrutura do forte estava em ruínas, o teto havia cedido e a vegetação
cobria o que restava das paredes. Uma natureza selvagem se estendia ao
redor de montanhas colossais e árvores gigantes. O som do mar estava no
horizonte. A liberdade recém ganha aflorou a ansiedade por respostas, e ela
caminhou sobre um mundo que desconhecia.
Caminhou e não temeu, ainda que fosse ingênua demais para o que a
aguardava no outro lado do horizonte.
O C AVA L E I R O D E D O I S
CORAÇÕES

O MENINO SUSPIROU E FECHOU O LIVRO.


As páginas finais estavam manchadas como se alguém houvesse
roubado as palavras para que nunca mais fossem lidas. Mas o pequeno
ficara curioso, desejando descobrir o final da história — embora muitos
condenassem o livro por suas mentiras. Censuraram-no; e o escritor fora
sentenciado a morte por suas blasfêmias contra o império. Uma pena,
pensou o menino, as mãos com garras que cresciam lentamente sobre a capa
de couro. Era uma bela história sobre como o povo dele, os draconianos,
nasceram. Homens beijados pela lua, amados pela luz prateada que os
protegia no anoitecer sem estrelas.
Draconianos. Guerreiros. Caçadores. Deuses Vivos.
Esses eram o nome que eles se davam, nomes que o mundo se
orgulharia de ter criado, assim diziam os superiores, e o menino de
ingênuos sete anos precisava acreditar. Era obrigado a acreditar. Não há
raça mais poderoso que a nossa, costumava dizer seu pai ao treiná-lo, não
há, o menino repetia e repetiu ao se levantar com o livro em mãos. A chama
de um candelabro o iluminou na escuridão da biblioteca, as feições pálidas
de seu rosto, suas orelhas delicadamente pontiagudas e os olhos cor-de-
sangue de sua família.
— Filho? — e o pequeno sobressaltou com a entrada repentina do pai.
Deixara o livro cair, o impacto ganhando a atenção deste: o olhar paterno se
concentrou no volume e as feições, antes serenas, ficaram duras. — Por que
estás com esse livro? — ele o juntou depressa. — Sabes que é proibido!
— Perdão, senhor. — o menino se encolheu, evitando o olhar do pai,
um homem alto como todas as figuras masculinas da raça. — Mas se é
proibido... por que está aqui em nossa casa?
— Não me questione, Hanzor. — o homem disse o rosto sombrio, o
mesmo tom de sua armadura. Era um superior, um líder, um cargo
semelhante ao do imperador. — Apenas aceite, são as regras do nosso povo.
— É que eu não entendo... O livro diz que dragão são nossos...
— Inimigos. — o pai interrompeu. — Somos superiores e caçadores,
deve acreditar nisso e em nada mais. Lembre-se dos ensinamentos da
Deusa da Noite, nossa mãe.
— Abençoe e abençoado será. — Hanzor sussurrou com receio. Antes
que saísse, porém, observou o pai uma última vez. — Você odeia os dragões
tanto assim?
— Eu sigo apenas o meu império. — e aquela resposta ficou guardada
no coração do menino de sete anos.
...e então ele cresceu com perguntas censuradas.
Seu coração era silencioso; e os anos lhe ensinaram que a liberdade
dada pelos superiores era uma farsa. Expressar-se era perigoso, causava
mortes, como se o império temesse que a população abrisse os olhos:
porque um povo ignorante era mais fácil de governar. Logo, ninguém
ousava, ninguém falava, apenas viviam para servir — e Hanzor mentia
viver; e por mais que as dúvidas o incomodassem, era o seu povo, sua
nação, seu mundo.
Com doze anos, então, precisou servir o império como todo os meninos
draconianos. Eram as tradições: homens serviam como guerreiros, mulheres
serviam como reprodutoras. Com doze anos, eram vendidas, não importava
a nobreza que tinham, e obrigadas a se casarem cedo — como objetos,
incapazes de se pronunciar. Não havia cargo de imperatriz. E os
draconianos mais matavam suas mulheres do que seus próprios inimigos.
Mas Hanzor era incapaz de mudá-las. Tudo o que queria, de verdade, desde
a infância, era se tornar um dos Cavaleiros Negros e lutar ao lado de seu
pai.
Ele acreditou que seria capaz.
Mas não foi.
A morte cantava.
Era lúgubre, fúnebre, e seus tons cobriam a capital com sangue. Era o
sangue de inocentes mortos pela fúria do gigante, quem os guerreiros
desejavam extinguir — um sonho incomum entre todos daquela nação. As
notas dessa canção entonaram as chamas e propagaram a destruição sobre o
solo de um continente abençoado pela lua. Aumastris ardia; e sua capital, a
sagrada Aumas, chorava diante os mortos; números que cresciam a cada
baforada do inimigo. Era noite, a guerra que ganharia o nome de Colosso
Negro, estava no auge, o som das armas e dos urrares eclodiam por um céu
negro, ausente de estrelas. Guerreiros enfrentavam o gigante não apenas
para defender suas famílias ou sua nação, mas, também, para imortalizar o
que eram de verdade: draconianos caçadores de dragão.
Ele, assim como seus semelhantes, daria sua vida para proteger o
império. Mas não precisava estar lá — estava em fase de treinamento, não
tinha mais que doze anos —, mas, como um Vanadis, para honrar o nome
de sua família e orgulhar o pai, protegeria os habitantes contra o inimigo,
um dragão, somente um. Mas não um qualquer; o mundo temia aquele
gigante e os bardos escreviam canções sobre a fúria do Dragão dos
Dragões, uma lenda viva que amas de leite costumavam mencionar para
atormentar crianças na hora de dormir: o dragão que anoiteceu a terra.
O jovem olhou para o céu, lembrou das canções de sua ama, do que
seu pai costumava dizer sobre o gigante, e o viu — escamas como a noite e
olhos como o sol. O dragão rugiu e a capital draconiana estremeceu, as asas
ruflando e destruindo com o vento que causavam.
Oitenta e sete metros de altura, incertos metros de largura.
O dragão rugiu novamente e seu largo focinho se enterrou na estrutura
do palácio; os pedaços da construção voaram pelos ares e caíram violentos
sobre aqueles que fugiam. O jovem sentiu as pernas fraquejarem, o coração
palpitar: porque naquela parte da construção, agora destruída, estava seu
pai, o Superior da nação, e o imperador.
Corram!, os guerreiros ao redor dele bradaram, protejam o imperador!,
urraram e avançaram pelo palácio em ruínas. O jovem os acompanhou,
meio atormentado, meio desligado. Ele correu também, rumo ao palácio,
pedindo a deusa-mãe que protegesse seu pai, seu herói; e seu desespero fora
tanto que chegou primeiro na sala do trono.
...e o que viu, nunca mais esqueceu.
Vlanhonder estava lá, o Dragão dos Dragões, a cabeça enfiada na sala,
escamas cobertas de sangue.
O corpo dilacerado do Superior e o do Imperador.
Hanzor rön Vanadis nunca pode dizer adeus ao pai.
E naqueles doze anos que se passaram, naquela guerra passada que
marcara a nação com sangue e fogo, o draconiano, agora um Cavaleiro
Negro, jurou vingança contra o gigante.
O Dragão dos Dragões pereceria por suas mãos.
O HOMEM QUE AMOU A LUA

A NATUREZA DANÇOU NUMA SINFONIA ENCANTADORA. O vento era seu


maestro, o mundo, sua plateia. Cores alaranjadas queimavam por sobre as
folhas, as flores, as árvores, e proporcionavam uma sensação de paz.
Diziam que a floresta de Krynhild, nas margens do Vale de Águas Douradas
e a Ilha da Tartaruga, era um lugar que os mortos caminhavam e
assombravam. Lendas, rumores, histórias que maquiavam a verdadeira
essência de um lugar tão selvagem e vasto. A beleza, a pureza, as imagens
de um pôr do sol que roubaria o coração do mundo se a ambição não o
cegasse.
O mundo era cego.
Diferentemente cego do homem sentado nas margens de um córrego de
superfície dourada. Ele daria a vida para ver as cores, a vida para ver
imagens que aos poucos se tornavam borrões. Memórias que o tempo
venceria e fragmentaria. O tempo era o inimigo mais perverso daquele
homem de cabelos ensebados e pele exageradamente branca. O fluxo
contínuo dos segundos atropelava sua vida e roubavam o que restava de
mais precioso.
O tempo estava levando suas lembranças.
A floresta recuava dele. Os animais não se aproximavam, todos eram
amedrontados pela áurea negra que o homem exalava. Ele movia os dedos
nas águas do córrego, cada detalhe ele sentia: a suavidade, o beijar do
vento, o aquecer do sol. Seus sentidos eram invejáveis. Quem o visse
dedilhar a correnteza, absorto numa realidade distante, pensaria em um
camponês calmo e despreocupado.
Seu interior, porém, nunca estava em paz.
Ele era amargo: pela perda e pela incapacidade.
O sol iluminou sutilmente o rosto dele e revelou as cicatrizes em seus
olhos, sequelas de um passado manchado de sangue. Uma derrota que o
acompanharia para sempre: olhos brancos e sem cores. Era esse o fardo que
Klud carregava aos vinte e sete anos. Um fardo que o impossibilitava de
seguir sua vida normalmente. Ele perdera a batalha e as cores — detalhes
pelos quais era apaixonado. As consequências fizeram-no o que era; e aos
poucos exterminariam o que lhe restava. O homem moveu os olhos para o
alto e controlou a respiração acelerada, a fúria contida. O sol queimava a
pele pálida e frágil que nascera, as lembranças caminhavam pelos dias em
que o azul vivido de seus olhos existia, dias em que sua vida se resumia na
felicidade de estar ao lado dela.
Klud moveu as mãos no córrego e banhou o rosto com o frescor. A
sensação fez seu corpo inteiro se arrepiar e os lábios estremecerem.
A água o acalmava.
Ele costumava observar o Vale das Águas Douradas na presença dela
no passado. Eram duas crianças inocentes. Sabe por que o vale tem esse
nome?, Klud dissera a ela um dia. Porque Sunyar caminhou por essas
terras durante a criação do mundo. O sol vive na água. Não era verdade.
As algas eram as responsáveis pela coloração da água, mas o modo que ela
sorria ao ouvir a história, o modo que acreditou nele, o fez sustentar a
mentira por tantos anos.
A água do sol, dizia ela e ele se apaixonou em segredo. Mas tudo foi
perdido.
Klud levantou e se afastou da correnteza. A noite chegaria em breve e
seus instintos se aflorariam. Ele era como um animal sedento.
— Klud? — uma voz irrompera nas margens da floresta. Era um velho
com o qual o homem vivia há mais de doze anos. Eles, no entanto, não
tinham nenhuma proximidade. Conversas raramente existiam.
O motivo que fazia Klud permanecer na região era uma promessa.
Uma ilusão que ele chamava de esperança.
— Eu estava procurando por você. — o nome do ancião era Roren. Ele
caminhava desajeitado e levemente curvado. — Eu preciso um pouco de
sua ajuda.
Klud passou reto por ele.
— Kluddihargën! — as olheiras de Roren ficaram visíveis num
momento, o cabelo calvo e a expressão cansada eram partes de sua
essência. Klud o conhecia há anos, muito antes de perder as cores. Sabia
como o velho era, como sua pele negra estava sempre coberta com o barro
das verduras que cultivava. Mas... não mais lembrava os olhos do homem,
se eram castanhos claro, escuros ou acinzentados. Logo, possivelmente
esqueceria mais coisas e seria vencido pelo tempo.
Agora, porém, parava e suspirava.
Aquele nome: o seu nome.
— O outono está chegando. Sua ajuda seria realmente bem-vinda na
colheita. Tiggrë e Luce estão ajudando também. — Roren prosseguiu.
O vento resmungou com a início da noite.
— Volte para o presente, meu jovem. — e a voz do velho se tornou um
sussurro nostálgico. — Deixe o passado para os mortos.
Klud se pôs a caminhar lentamente.
— Aconteceu há muito tempo... — Roren suspirou e seguiu o mais
novo. A expressão de Klud era uma sombra de apatia. — Eu entendo a sua
dor, eu realmente entendo. Eu também compartilho. Mas você está com
quase trinta anos e continua vivendo no passado. Corra para o mundo!
Encontre alguém, Klud, alguém que também vai te aceitar como ela fez.
Roren percebeu o caminho que o homem percorria: o do santuário.
Era uma clareira rodeada por flores e cores. Um grilo cantou próximo e
pequenos vagalumes planaram sobre uma rosa vermelha, formada por
pétalas de cristal, no centro do ambiente. Uma pedra de superfície lisa
estava ao lado da flor. Nela, um nome, uma data, uma mensagem. Os anos
poderiam ter apagado parte da escrita, no entanto, a lembrança permanecia
intacta.
Roren sorriu tristemente.
Mas acontecera há tanto tempo. A tragédia, a separação, a promessa.
Espere por mim! Por favor, espere por mim!, dissera ela no dia em que
a Floresta Viva, machada de sangue, nunca mais foi a mesma.
...e ele esperava desde então.
Porque havia prometido.
A DONZELA VESTIDA DE
SOLIDÃO

UMA MULHER ESTAVA EM PRANTOS.


Seu destino seria cruel: morreria porque, diziam os aparentes sábios,
estava amaldiçoada por uma essência, uma maldição herdada de entidades
esquecidas; e não poderia permanecer viva em solo draconiano. Ela
morreria diante os nobres, diante sua família e seus conhecidos, receberia o
castigo da deusa-mãe do continente e jamais encontraria o descanso eterno.
Sua alma vagaria no plano da escuridão.
A mulher estava em prantos porque acreditava não merecer o
julgamento. Muitos estavam presentes para vê-la morrer, e não havia sequer
uma palavra que a salvasse da morte eminente. Seu marido não poderia
intervir, o filho era forçado a assistir e todos que a amavam escondiam suas
lágrimas como fragmentos de gelo. Seriam duas mortes naquela noite: a
mulher amaldiçoada estava grávida; e os superiores, seres de coração negro,
não lhe deram a chance de gerar a criança.
Eles eram cruéis, era como pensava a pequena menina de quase
quatorze anos que assistia ao julgamento de perto. As mãos dela tremiam,
uma lágrima escorria em seu rosto toda vez que ouvia os gritos de socorro
da mulher que considerava a mãe que jamais teve. Ela não queria vê-la
morrer, não queria ficar sozinha e, principalmente, não queria ouvir as
calúnias dos superiores, tampouco presenciar tamanha barbárie. A
sentenciada era sua ama de leite — quem a criara na ausência da mãe e lhe
protegera nas longas noites em que a solidão a acometera. Só que a menina
estava sendo forçada pelo próprio pai a assistir; e ele mencionou com todas
as letras que faria o mesmo caso suspeitasse que ela fosse amaldiçoada
também. Seu patriarca a odiava... não importava o quão semelhante a ele
era, o general jamais seria capaz de amá-la pelo simples fato de ter nascido
uma mulher.
Quando, finalmente, o pranto da sentenciada se cessou, a pequena
soube que a morte abraçara sua ama de leite e a levara para o escuro
infinito. A menina rezou pela alma dela, sua amiga, e a da criança não
nascida — que encontrassem a luz e fossem recebidas em Ceudus, o plano
divino, pela deusa-mãe da raça. Todos os presentes se afastaram em silêncio
com o termino do julgamento; o filho e o marido da mulher amaldiçoada
ficaram, ambos destruídos perante as chamas que a consumiam. Ela havia
sido queimada viva como todas as outras que nasciam com a maldição.
É uma benção, dissera sua ama antes de ser julgada e a pequena queria
ter acreditado no sorriso dela. Porque, infelizmente, também fora
afortunada com o mesmo destino: a maldição corria por suas veias e seria
uma questão de tempo para ser descoberta, sentenciada, morta.
Ela só esperava que esse dia não chegasse tão cedo.
Então, engolindo as tímidas lágrimas, a menina fora levada para a
gaiola que chamavam de quarto na fortaleza de seu pai — ambiente que
ficara até o dia de seu casamento. Ela fora comprada pelo marido, a família
dela era uma das mais influentes dentro do império e os nobres dariam
fortunas para gerar herdeiros com o sangue dos Vanadis.
...e como uma mulher draconiana, Lunaysis rön Vanadis precisava
aceitar aquele destino. Ela chorou durante os dias e as noites que
antecederam a cerimônia. As histórias que ouvira de seu futuro marido
eram obscuras, um homem com quase vinte anos a mais que ela. Ele a
levaria para longe da fortaleza de seu pai e nunca mais teria permissão para
ver aqueles que lhe eram queridos.
Casou-se três semanas após sua ama de leite ser queimada. Rodeada
pela Primavera Eterna do continente de Aumastris, a menina dirigiu para
uma cerimônia pequena e solitária no Ducado de Vanadis. Seu pai não
estava lá, seus irmãos também não, ninguém de sua família, somente o
sábio responsável pela união, o draconiano que ela casaria e a solidão.
Temerosa, não ousou desviar o olhar para seu marido em nenhum momento;
e o homem, impaciente, não se dera ao trabalho de avaliá-la, ordenou pressa
nos discursos e repetiu as palavras das tradições com tanto desinteresse que
lágrimas rolaram pelo rosto corado da menina. As roupas douradas, os
cabelos perolados e decorados com ouro, os adornos refinados, os detalhes,
nada era capaz de mudar a imagem dela: uma garota assustada em um
mundo que não a perdoaria. Sem esperança, sem nada, baixou os olhos cor-
de-sangue e esperou pelo término da cerimônia em silêncio. Um dos
cavaleiros juramentados de seu marido, quem ocupava o comando das elites
do império, a acompanhou até o quarto em que o casamento seria
consumado; e Luna, trêmula, esperou sentada na cama, as mãos firmes nas
rosas brancas em seu colo.
A menina adormeceu na espera sem fim.
A primeira noite, a segunda, a terceira; o primeiro ano, o segundo, o
terceiro, mas seu senhor e marido jamais viera para consumar a união. Luna
raramente via o comandante, ambos tinham horários diferentes: as refeições
eram separadas, os quartos, distantes, o diálogo, nulo. Ingênua, chorou nos
primeiros meses de casamento, a infelicidade quase a corrompeu, mas as
janelas de seu quarto — lugar que seu senhor a aprisionara e a privara de
sair — deram-lhe a visão de um horizonte de esperança. Ela estaria segura
naquela gaiola, ninguém desconfiaria dela ou descobriria o que guardava
em segredo
Mas lamentava a solidão.
— O vento irá me proteger... — ela dizia todas as noites.
Um sentimento que perdurou até aquele quinto ano de casamento.
O C E I FA D O R D E E S P I N H O S

HAVIA MEDO NA ATMOSFERA.


Havia medo nos olhos de muitos e desprezo em poucos. Ninguém tinha
bons olhos para o prisioneiro. Sua libertação seria um sonho, a condenação
era eminente. Ele morreria: seria sentenciado e decapitado em público para
que seus crimes fosse um modo de mostrar que todos estavam destinados a
morte; alguns mais cedo, outros mais tarde. O prisioneiro julgou que fosse
tarde para morrer, ele não era nenhum inocente, tinha consciência de seus
atos e de sua insanidade.
O ceifador de espinhos ou demônio negro, como era conhecido no
império, admirava o medo bordado nos olhos dos quais o observavam.
Sentia prazer desse sentimento, era o seu alimento favorito, e o grito
agoniado de suas vítimas durante as torturas era como uma canção materna.
Mas ele jamais teve uma — sua infância fora inundada de ódio e rejeição.
Ele cresceu com ausência de afeto, de cuidado e de amor. A mãe não o
desejava: o arrancou prematuro do ventre e se mutilou para nunca mais
gerar uma criança. Mas ele se sentia aliviado com o passado.
Com a sobrevivência.
Leto Demétrius era o mais poderoso guerreiro do império draconiano
porque não tinha ao que se apegar. Vencedor de inúmeras batalhas em nome
da nação, protegera a capital durante a guerra contra o Colosso Negro e
durante a tentativa de ataque dos selvagens de Duar vyr Duan — e se suas
conquistas o salvassem das condenações, ele faria mais, mataria mais e
torturaria mais. Era evidente que se livrar da morte não o tornaria um
draconiano melhor; e todos os presentes no julgamento tinham essa certeza.
— Toda a corte conspira contra ti, general Demétrius. O que tens a
dizer a teu favor? — dissera o imperador, um menino magricelo de quinze
anos.
Um sarcástico sorriso se formou nos lábios rachados do condenado:
crianças não podem se sentar no trono.
As correntes que o prendiam não eram o suficiente. Os músculos
rígidos, o corpo e a força de um urso o fariam arrebentar o ferro se quisesse.
Então, lançar-se-ia na direção do jovem com a coroa e a esmagaria em sua
cabeça. Ele não tinha a quem se curvar — somente o seu orgulho, uma
besta selvagem e indomada, e o Senhor de Gelo, quem o moldara. Leto
Demétrius, no entanto, conteve o seu desejo de sangue e observou a plateia
sem piscar. Seus olhos representavam sua corrupção. Heterocromáticos. Um
era a morte: uma escuridão sem fim que consumira a existência da pupila; o
outro, era a ilusão: cinzento e obscuro. A pupila deste, negra, era maior que
a de homens comuns. É a maldade que está saindo para fora, diziam os
rumores; e eles sempre divertiam o prisioneiro. Gostava de ser odiado e,
principalmente, temido.
— Eu estaria mentindo, majestade, se dissesse algo ao meu favor.
Então prefiro me calar e ouvir as merdas que esses nobres filhos da puta
têm a dizer. — seu tom era afiado como a lâmina de uma lança. A
expressão de desdém em seu rosto acentuava a cicatriz, com a espessura de
uma adaga que começava no canto do lábio, traçava a bochecha direita e
cortava sua orelha. Só havia um buraco com resquícios do que um dia fora.
Era a lembrança do afeto de seu pai, gostava de dizer.
Uma aglomeração de vozes e injúrias se estenderam pelo salão. Muitos
dos nobres bradavam por uma condenação, pela morte de general. Ninguém
estava a favor dele — Leto Demétrius não tinha família no continente de
Aumastris ou companheiros, sequer uma casa onde morar. Ele estripara a
noiva e queimara o pedaço de terra que tinha. Não lhe restava nada.
Somente uma lança que ele trouxera de seu continente natal.
Um repentino levantar, no entanto, calou a todos.
Olhos vermelhos. O ceifador de espinhos conhecia aquele homem.
Todos conheciam.
Mate uma Estrela da Noite e a liberdade será tua novamente.
A proposta o interessou. Não porque Leto Demétrius ansiava pela vida
ou liberdade, não, pouco se importava se morreria ou viveria, mas, sim,
porque fora ungido caçador na infância. Caçador de Estrelas; e um dos
maiores prazeres de sua vida era devorá-las e exterminá-las.
...e quando encontrou, a fez suplicar pela morte em lágrimas de sangue.
A atmosfera era vermelha.
O homem respirava sangue. Suas mãos estavam impregnadas; suas
roupas, manchadas e sua alma parcialmente saciada. A escuridão o rodeava,
sussurrava-lhe palavras negras enquanto ele, em silêncio, observava o corpo
inerte da mulher nua aos seus pés. Inerte e morta. Ele a matara — destruíra.
Cabelos manchados de rubro, expressão de terror e uma morte lenta. Ela
ainda estava com os olhos abertos: o dourado que um dia possuíra o calor
do sol estava, então, opaco. Sem vida.
Ele a torturou e a devorou. De todas as formas — formas que o mundo
jamais admitiria. Mas ele era um homem sem lei, de terras distantes e de
nenhuma compaixão. Demétrius a matara porque queria... embora
precisasse também. O homem sorriu, vitorioso, e respirou o sangue de uma
estrela que se apagara. Estrela porque a imagem de uma mulher não era
verdadeira: era um disfarce. Estrela porque a mulher representava uma
espécie ancestral e rara: as Estrelas da Noite.
Fêmeas dos Primeiros Dragões.
...e Demétrius matara a penúltima delas.
Restava uma; uma Estrela da Noite para contar a história de uma lenda.
O homem, contudo, jamais se interessou por contos de fada; e estava
instigado a exterminar as estrelas — todos estavam: reinos humanos e
draconiano participavam dessa caçada violenta. Existiam milhares de
caçadores para somente uma presa.
— Tire o corpo da desgraçada daqui. — Leto Demétrius limpou as
mãos ensanguentadas ao falar com um guerreiro que entrara na cela. —
Preciso de uma bebida. Minha boca está com gosto de vagabunda. — e
partiu para comemorar sua caçada de sucesso.
O draconiano e seus homens ocupavam uma cidade humana da região
no leste do continente de Tannenberia. Estavam em caça, estiveram, e a
morte da penúltima Estrela da Noite reuniu todos os guerreiros na taverna.
Eles seriam agraciados e afortunados, urravam todos com os beiços
lambuzados de vinho. O único que não estava contente era o jovem
draconiano encarregado de queimar os restos da vítima: Hanzor rön
Vanadis. Ele não amava os dragões, tinha uma sede de vingança por um
deles, mas a forma que as fêmeas eram mortas, lhe causava uma forte
angústia. Acreditava, em segredo, que elas não eram apenas Estrelas da
Noite, e, sim, geradoras de vidas, de histórias e de sonhos que, infelizmente,
estavam acabando com a extinção.
— Somos realmente heróis? — ele perguntara a si mesmo, ou talvez
para o vento. Hanzor não esperava ser respondido, mas a aparição do
general o fez sobressaltar. Leto Demétrius estava escorado na estrutura da
taverna na companhia de uma caneca de bebida parcialmente vazia. Mas
não ficara feliz em vê-lo: o general era um draconiano que não caía em seus
agrados. Era cruel demais... e tinha costumes e tradições diferentes por
nascer em terras distantes e geladas, longe, muito longe, para aprender a ter
apreço pela vida.
— Pensei que estivesse comemorando, general.
— Eu estou. — Demétrius desviou seu olhar para o céu negro. —
Completei a merda da missão que seu imperador me deu.
— Deveria ter mais respeito por Sua Majestade. — Hanzor sussurrou e
acompanhou o olhar de seu superior. A nostalgia o abateu. No manto negro
que envolvia a região, uma estrela restava ao lado da lua, o resto era
escuridão.
Hanzor suspirou e uma fina garoa acariciou seu corpo.
Ele fitou o alto uma segunda vez; e um estranho cintilar agraciou seus
olhos. Nas poeiras estrelares diante da lua e a última estrela, um fragmento
brilhante se formou. Ele brilhou tímido, mas segundos bastaram para que
ganhasse força e banhasse a terra com fragmentos cintilantes... de uma nova
estrela.
O corpo do jovem estremeceu. A risada do general se cessou.
O fragmento estrelar continuava brilhando.
Ambos se mantiveram em silêncio. Mas Hanzor rön Vanadis e Leto
Demétrius carregavam uma certeza diante a luz que cintilava em seus olhos:
uma nova Estrela da Noite havia surgido.
Restavam duas estrelas no céu novamente.
PARTE I
ESTRELA CADENTE
CAPÍTULO UM

ESTRELA DA NOITE

O CÉU SE TORNOU MAIS CLARO; a vida, menos cinzenta, e uma tímida luz
nascia no horizonte quando a fêmea de dragão decidiu parar. O forte, seu
calabouço, e toda a escuridão de um passado solitário e tortuoso ficaram
para trás. Estava em uma nova etapa, estava viva, e as correntes não mais a
privavam de seu sonho de liberdade e descoberta. Ela cultivava muitas
perguntas, todas relacionadas a sua longa estadia na prisão, os anos que
perdeu, a infância que não experimentou, o mundo que não conheceu.
Mas qual era seu nome mesmo?
Ela não lembrava: seu passado estava apagado e tudo o que restava
eram fragmentos do dia em que acordou na escuridão... sozinha.
Um raio solar fez todos esses devaneios se dissiparem no movimentar
de um ponteiro. Era o sol que nascia. Era o momento em que os homens
questionariam se era dia ou noite, se o sol renascia, ou acordava; e se a lua,
sempre brilhante, era vencida pelo fogo que queimava no astro rei.
Questionamentos, porém, não tiveram importância no instante em que os
olhos da fêmea atingiram o sol que ela ousou esquecer em seu
confinamento. Sua garganta ardeu, a respiração ficou pesada, as mãos
tremeram e todo o corpo congelou. Ter o sol, sua luz, trouxe a ela uma
familiar sensação de conforto.
Ela se sentiu nostálgica.
...e desejou jamais se distanciar do astro enquanto estivesse viva.
A mulher caminhou durante o anoitecer. Uma chuva se iniciara com o
decorrer das horas. Seus ouvidos estavam atentos. Ela sentiu o sopro gelado
da floresta contra sua pele humana e parcialmente coberta. A pouca
experiência com a vida, e da própria espécie, a fez desperceber das
necessidades de trajar roupas adequadas quando se afastou do forte. Vestia
apenas um manto esfarrapado por cima dos ombros e suas pernas estavam
nuas. Sua atenção, vez ou outra, era roubada pelas claridades que rompiam
os céus, a tempestade apenas aumentava e o mundo escurecia. Ela tinha
pouca noção para onde deveria seguir, sentiu as pedras machucar as solas
dos seus pés humanos; e com horas de caminhada, sangue brotou de feridas
abertas.
A dor proporcionou a primeira parada em horas: uma árvore robusta
foi o abrigo dela enquanto olhos dourados percorreriam toda a vegetação.
Desabitada. Escura. Troncos se erguiam por quase cinco metros diante dela,
cobertos de galhos que farfalhavam na tempestade. Um estrondo repentino
a fez se proteger contra a árvore. Seu estômago roncava, seu corpo estava
fraco, magro pelos anos de péssima alimentação. Sua fonte de nutrientes no
confinamento era de pequenos roedores e pedaços podres de carne que o
draconiano raramente trazia.
Um segundo trovão a fez cobrir os olhos.
No terceiro, porém, uma sombra se iluminou na mata. A mulher
observou com curiosidade: o vulto era alto, estava montado em um
garanhão negro e se vestia com a cor da noite. Ele não se moveu, observou
com o rosto oculto pelo capuz.
O cavalo se moveu inquieto com um quarto trovão e o vulto o
acalmou.
O estranho murmurou e ela, de pé, não reconheceu o idioma dele. Ele
desmontou e ajeitou as rédeas com calma enquanto a mulher se
aproximava. O maior esforço dela foi para falar, seus braços gesticulavam,
mas a voz morria em sua garganta. Ela piscou por um segundo e, no outro,
o estranho estava em sua frente. Perto demais. Rápido demais. Forte
demais. Ele a derrubou facilmente com um movimento. A fêmea de dragão,
escondida na imagem humana, gemeu ao sentir o impacto em seu corpo
desprotegido. O tempo se movera depressa; e o homem se pôs sobre ela.
Um trovão iluminou o rosto dele: olhos doentios, olhos estranhamente
peculiares. Um era negro; outro, prata. Fios escuros e longos deslizavam
livremente em seu pescoço.
Ele estava sério, uma cicatriz grossa manchava sua expressão.
— Era tudo o que eu precisava para acalmar meu sangue. — a voz dele
era rouca e havia uma ponta de sarcasmo no tom.
As pupilas da mulher se dilataram no instante que ele se colocou sobre
o corpo dela com uma força descomunal. Ela se debateu inutilmente, estava
fraca, não se alimentava há dias, talvez semanas, e se sentia tonta devido a
desidratação. O sangue dela ferveu, seu coração acelerou e, por um
momento, a imagem do draconiano que a torturara se assemelhou ao
estranho.
Então o fluxo do tempo se moveu de forma irregular e a adrenalina a
corroeu. Sua forma mudou: ganhou tamanho, peso, escamas e garras. Sua
forma de verdade. O homem escapou dela antes de ser atingido — e saltou
com perícia a uma distância que considerou segura. A fêmea rugiu em
desespero, com fúria, os dentes levemente deformados e o lábio inferior
tremendo. Mas o homem não se demonstrou ameaçado. Ele não correu ou
pareceu surpreso. Primeiro suas palavras foram murmuradas num idioma
desconhecido, então, disse com fervor:
— Que porra de sorte eu tenho.
Os olhos heterocromáticos dele brilharam.
— Eu acenderia velas em templos divinos para agradecer. Eu nunca
mais estupraria por prazer. — e o capuz escorreu entre suas palavras para
relevar uma expressão sorridente e doentia. — Se eu acreditasse em deuses
ou fosse um bom homem... Eu encontrei a Estrela da Noite que surgiu! — e
elevou uma lança em direção ao céu.
Ela se perguntou com o coração apertado: o que significava tal
expressão? Estrela da Noite. Embora ansiasse por uma resposta, não era o
momento de questionar. Pressentia em suas escamas o quão perigoso o
guerreiro poderia ser. Precisava enfrentá-lo. No entanto, ela sequer chegava
aos dois metros de altura, longe da fase adulta e com músculos atrofiados
pelo confinamento quase-eterno. Suas asas poderiam ser longas, simétricas,
mas sequer sabiam como alcançar o céu — faltava-lhe uma dose de
aprendizado. Na cabeça, dois pequenos chifres recém nasciam e um
aglomerado de espinhos tortos, finos, cresciam desregulares na extensão do
pescoço alongado. O homem, porém, era maior que ela; dois metros, um
pouco mais, corpulento e leve. Uma máscara de ganância desenhara a
expressão dele; e nela, o deleite, o prazer e a fúria habitavam.
— Onde está seu guardião de merda, Estrela da Noite? — e ele
avançou contra ela. A lança dele se movimentou com tanta maestria que
assim que ela piscou, desconcentrada e confusa, sentiu a ponta laminada
entre suas mandíbulas. A fêmea de dragão inclinou o longo pescoço para
deter o ataque, seus dentes serviram como escudo.
Não havia sido sua melhor ideia: o guerreiro girou a lâmina e causou
um profundo corte na língua do dragão. Ela recuou, entre rugidos
agoniados, vendo o sangue verter e pingar em suas patas.
— Acha que pode vencer, estrela vagabunda? — o homem gritou com
euforia. Sua lança estava vermelha. — Aprenda como um draconiano caça
de verdade!
Draconiano.
A palavra fez um frio percorrer sua espinha. Um homem como aquele
a torturou durante toda a infância e cuspiu nela desprezo e preconceito. Ele
se dizia de uma raça superior e caçadora de dragões, seres que herdavam a
vitalidade e a perseverança da Mãe da Noite. Eram nobres, eram líderes,
eram cruéis; e ela, ingênua em sua compreensão de mundo, jamais
compreendeu o ódio reservado a ela em anos de cativeiro.
...e então uma dor repentina fez todos os seus membros tremerem.
Ela desabou desnorteada.
Tu deves correr, e a voz de alguém soou distante, preocupada.
Um relâmpago a fez recobrar os sentidos depressa; tarde, porém, para
escapar da lâmina que penetrou em uma de suas asas. A fêmea de dragão
rugiu, sentiu o aço reverberar em sua carne e torturar seus sentidos. O
guerreiro arrancou a lança das escamas dela e uma torrente de sangue
expeliu pelos ares e se misturou na chuva. A fera reagiu por instinto: usou a
cauda como arma e aprendeu com o erro. O draconiano se apoiou na grande
lança para impulsionar suas pernas e esquivar da investida. Ele deu uma
pirueta no ar, movimentou a arma com destreza e se encarregou de
direcionar a lâmina no dorso da fera. Acertou-a em cheio, deliciando-se
com a sinfonia de dor enquanto montava o dragão como montaria um
cavalo.
A fêmea de dragão sentiu as mãos do draconiano em sua asa ferida.
Pesadas. Cruéis. Sedentas. Ele agarrou o osso, a parte que se unia aos
nervos das costas. Primeiro viera a força; depois, um estalo e uma agonia
aterradora: ela sentiu cada junta e ligamento se romper num segundo.
Ele queria quebrar sua asa.
Ou pior, arrancá-la.
O dragão tombou no chão pela segunda vez junto ao adversário.
Ambos caíram em um baque surdo; ela desnorteada, ele equilibrado. O
homem urrou com o rosto vermelho, uma veia se salientou em seu pescoço
e a força de seus braços distenderam o músculo que ligava a asa ao corpo da
fera — e isso não fora o suficiente para alegrá-lo. O draconiano fez mais,
ele fez pior: dera três golpes cheios de fúria no osso da membrana e se
deleitou ao ouvi-lo se fragmentar dentro das escamas.
O rugido da fêmea de dragão cortou o coração da noite.
Ela perdeu a consciência e o caçador a fez acordar com um golpe cruel.
— O que acha de voar agora, Estrela da Noite? — o ceifador
questionara com um sorriso psicótico. Ele tomou distância do dragão e
recuperou sua lança: queria assistir o sofrimento sem perder um suspiro.
O corpo dela estava gelado: tremia, formigava... e se desmanchava.
Sua asa direita não mexia, ela estava leve e pendia como um galho de
árvore podre. Mas a estrela não acreditava — não queria acreditar. O céu
que ela desejava alcançar ficara mais alto e seus sonhos de tocar as nuvens
se despedaçaram num segundo.
Ela moveu os olhos desnorteada, desesperada.
Em um momento estava sonhando com a liberdade, com o sol que
esquecera e com o escuro que abraçava todo o seu passado, no outro, já
livre, estava fugindo para não ser acorrentada novamente. Ela queria viver,
entender o sentido da própria existência. Morrer, ser presa era algo que
desejava distância. Não queria ser capturada, não entendia o porquê de estar
sendo caçada, mas havia uma certeza: ser uma Estrela da Noite, como o
homem dizia, era o motivo da desgraça que se encontrava no momento e,
talvez, dos anos perdidos no calabouço. Ela sentiu medo, era uma jovem
fêmea perdida em um mundo hostil, e que sequer tinha para onde correr.
Seu corpo escamado se modificou e tomou a forma de uma mulher.
Sua mão e seu corpo se arrastaram na terra molhada.
Precisava fugir.
Porque embora não tivesse certeza, seus instintos sussurravam: o
mundo é grande, e sempre há um lugar para todos. Até mesmo para os
perdidos. A visão dela, então, ficava negra, e via, na noite iluminada, os
passos de seu ceifador se aproximar.
...e depois mais nada.
A escuridão a envolveu.
Estrela da Noite despertou com desespero. Com medo de perder a
liberdade. Os devaneios, porém, dissiparam-se perante a luz solar que
aqueceu o seu corpo humano. A íris de seus olhos dourados refletiu os
raios, ela piscou algumas vezes pela intensidade, e viu-se inteiramente
perdida no topo de uma montanha. Uma montanha cercada por uma floresta
tão imensa que engolia o horizonte. A paisagem era uma pintura, de
detalhes e belezas naturais, inabitada.... quente. O calor abraçou o coração
da fêmea, era estranhamente nostálgico ver o sol de lá, ver suas cores
queimando em tons alaranjados e rosados.
Era estranho sentir seu coração tão acelerado.
Onde estava? Ela deu um passo. O topo era plano e com raízes grossas
que nasciam entre as rochas com cheiro de umidade.
“Eu avisei você.” e uma voz infantil sussurrou ao seu lado. Era um
menino, magricelo, de pele pálida e madeixas de um loiro tão claro que
pareciam brancas. Todavia, o que se destacava eram seus olhos: azuis,
profundos, safiras, o misterioso oceano que parecia estar vivo em seu
âmago. Ela tremeu diante dele, seu coração pulsou descompassado e, com
cautela, aproximou-se. “Eu avisei você tantas vezes...” ele continuou com
melancolia.
Mas era incapaz de alcançá-lo.
“Avisei que as coisas mudariam para nós... e que eles iriam nos separar.
Eles queriam nos separar.”
A voz da Estrela da Noite morreu em sua garganta.
“Eu fiz uma promessa, lembra?” o menino a encarou, e ela sentiu
vontade de perder-se nos olhos dele. “Fizemos uma promessa.”
Uma promessa que ela não conhecia.
“Eu ainda estou esperando você. Eu estou esperando... porque você
não é apenas uma Estrela da Noite, mas o pôr-do-sol, o calor que me
mantem vivo.”
O menino colocou uma mão no peito e suspirou.
“Volte logo, por favor.”
A fêmea queria tocá-lo: ergueu as mãos, tateou o ar, mas ele se
fragmentou e se perdeu em pedaços de escuridão.

Klud despertou com o corpo encharcado. Sonhara com uma mulher,


uma mulher que queria se aproximar, queria tocá-lo, mas parecia sempre
distante. Nos olhos dela, uma familiaridade nostálgica; no rosto, medo e
solidão. Estava no sol, longe das sombras que dizia temer com tamanha
exaltação. Teria sido uma visão comum, um pesadelo qualquer, se o medo
do escuro não fosse tão familiar a ele. Nas doces brincadeiras da infância,
quando a noite caia lentamente, ela escondia-se e negava-se abrir os olhos e
dizia temer o que na escuridão espreitava. ...E nessa tão simplória
característica, tão ingênua e contagiante, o homem se apaixonou
perdidamente. Cuidou dela com carinho e ensinou que não havia nada
escondido na penumbra. Lembrava-se ainda de suas palavras: sempre que
houver a lua, não tema, ela vai iluminar seu caminho e afastar qualquer
sombra que queira te fazer mal.
Como desejava dizer isso novamente para ela.
— Klud? — uma mulher despertou na cama ao seu lado, o corpo suado
pelo calor recém trocado. Era incapaz de vê-la, mas tinha uma ideia da
aparência dela; dos cabelos cor-de-terra, da pele bronzeada do Grande
Deserto, das curvas pequenas que se arrepiavam todas nas noites sob o
toque dele. — Você tá bem? Ouvi você sussurrar enquanto dormia... se
desculpando.
Mas ele não respondeu; e ela, cuidadosa, o envolveu em um abraço
pelas costas, o rosto apoiado no ombro dele. O corpo dele se aqueceu, mas
não porque retribuía os sentimentos dela. Na verdade, pensava em outra,
sempre em outra, no amor perdido que ele esperava há tanto tempo. Ele
suspirou e colocou os pés no chão gelado.
Chovia muito naquela noite.
— A chuva está forte... Fique comigo. Pelo menos até o amanhecer.
— Eu preciso ter certeza de uma coisa. — e a afastou com suas mãos
geladas. Klud levantou e vestiu as roupas que estavam no chão, sem
dificuldade, acostumado ao breu que sempre o acompanhava. Mas os
sentidos o ajudavam também; o vento era seu guia, o construtor de um
mapa mental que ele constantemente criava para se localizar.
Resultado do que era, como nascera.
Mare sabia que ele era diferente, conhecia os perigos e as
impossibilidades.
Mas ela simplesmente não se importava. Quando descobrira a verdade
sobre o homem com quem se deitava, sobre o que ele era, não fizera nada
além de sorrir e dizer: que bom que você não é um draconiano.
— Eu quero viver com você... Eu quero cuidar de você pelo resto dos
meus dias... Por favor, desista disso tudo. — ela sussurrou e segurou a mão
dele, o rosto melancólico, o corpo quente. Mare era madura, dez ou doze
anos a mais que ele, quem o ensinara sobre prazer a dois no final de sua
adolescência; e em todas as noites que dormiam juntos, a humana dizia o
mesmo: desista. Mas ele nunca ouvia.
— Volte a dormir.
Klud atravessou o quarto sem nenhuma dificuldade, acostumara-se
com a presença dos móveis, tinha uma noção de onde todos estavam, o que
facilitava sua andança pela pequena moradia. Sentiu a chuva em sua pele, o
vento em seu rosto, os trovões em seus ouvidos. Caminhar em tempestades
não era o passatempo favorito dele, mas se precisasse, ele caminharia
duzentas vezes. Tudo para chegar ao seu santuário. Era dentro da floresta, o
lado mais profundo e escuro dela, onde trilhas de arbusto escondiam um
pequeno caminho de chão batido. Klud subiu por lá, como subia todos os
dias para se certificar de uma dúvida que sempre o acompanhava.
Era um dia ensolarado quando o homem, um menino na época, chegou
às pacíficas terras do leste do continente. Ele enfrentara uma longa
empreitada do oceano até aquela região, havia tantas feridas em seu corpo
pálido, desacostumado com o sol, que o menino desmaiou na Floresta Viva.
Ao acordar, porém, deparou-se com uma criaturinha tão miúda que poderia
segurá-la em seu colo. Mas esse não foi o primeiro pensamento dele. Estava
faminto e viu no animal a oportunidade para algumas moedas de ouro.
Mas ele não conseguiu.
Não tivera forças e nem vontade, e o pequeno dragão, um filhote,
mordiscou os fios de seus cabelos molhados. A criaturinha sequer sabia
falar, mas pareceu se encantar por ele. Grunhia, rosnava, brincava e batia as
pequenas asas que não poderiam nunca sustentar o seu corpo. A lembrança
era doce, e ele era fortemente apegado a ela, mas a perdera de vista. Tudo o
que o homem mais desejava era encontrá-la, não apenas sua lembrança, mas
quem ajudou-o a criá-la: aquela que roubou o seu coração.
CAPÍTULO DOIS

DRACONIANO

O HORIZONTE SEMPRE DEU ASAS À sua imaginação — do nascer do sol ao


domínio da lua. Era uma visão que enchia o coração da jovem de uma falsa
esperança de liberdade. A rotina dela se resumia a uma janela, cortinas e
vidros embaçados por sua respiração. Era como uma princesa presa em uma
masmorra, um beija-flor engaiolado, se acreditasse que seu marido fosse o
vilão de seu conto de fadas. Ela não tinha uma visão negativa de seu senhor,
era ingênua, talvez, por acreditar que ele também fosse um prisioneiro das
ilusões do império, uma criança que o mundo roubou o que era bom e
deixou a parte ruim. Se ele se salvaria da própria corrupção, a jovem não
sabia, e não tinha motivos para desejar que sim ou não.
Ela somente o respeitava.
Lunaysis vön Krimnell não nutria sentimentos por seu marido. Era
difícil amar um homem de mãos geladas e palavras escassas. Cinco anos de
casamento e nenhum contato: Ahuriel vön Krimnell jamais consumara a
união. Ele sequer tocara um dedo nela. Era distante e a mantinha presa em
um quarto sozinha.
Os motivos para tamanha distância eram desconhecidos pela jovem de
dezenove anos; e ela muitas vezes se perguntou os motivos que pudessem
explicar o confinamento e a ausência do marido. Ele não a deixa sair
porque não há draconiana mais bela que você, diziam as criadas que, de
fato, estavam certas; não quanto ao motivo, era tolo pensar que ele a
prenderia por isso, mas porque Lunaysis era sim bela como um beija-flor.
Bastava encarar seus olhos cor-de-fogo, mornos como as primaveras do
continente, herança de sua família de sangue; seu rosto, de traços suaves,
como de alguém que você vê uma vez e se perde; e seus cabelos dourados e
ondulados que escorriam livres pelo corpo desenhado, um corpo
amaldiçoado.
Uma beleza amaldiçoada.
Os dedos dela deslizaram pela superfície da janela.
Ela se limitou a sorrir.
— Minha senhora? — uma criada entrou no quarto após suaves
batidas. Era uma mestiça magricela, pálida como estrelas. — Eu vou
preparar seu banho.
— Deixe para mais tarde, por favor. — Luna manteve os olhos no
horizonte.
— Perdão, minha senhora, mas o senhor Krimnell ordenou que a
deixasse bem limpa para a noite.
A draconiana não pode esconder a surpresa. Ela e seu marido jamais se
encontraram à noite. Eles tinham horários e rotinas diferentes. Por um
momento, mesmo que breve, ela sentiu seu coração apertado e temeroso. A
maldição que tinha era seu segredo, um detalhe que escondia a sete
chaves... e morreria se descoberta. Eles a matariam como matavam todas as
outras que nasciam como ela. Por isso o confinamento em seu quarto não
incomodava mais: ninguém a veria entre quatro paredes.
Mas se ele houvesse descoberto, seria seu fim.
— Os ventos irão me proteger... — a jovem sussurrou enquanto era
banhada. A água em seus cabelos escorria pelo rosto e escondiam suas
tímidas lágrimas. Era o medo que a assolava; um medo comum a qualquer
mulher draconiana.
Porque elas eram mortas.
Porque elas não tinham chance de redenção.
Porque elas não poderiam viver.
Bruxas, chamavam-nas e queimavam-nas em praça pública para que
servisse de exemplo a população. Lunaysis presenciou sua mãe de criação
morrer grávida porque também fora condenada por uma maldição
repudiada pela raça draconiana. Eles a mataram, mataram sua criança e as
esperanças de viver livre como o vento.
Os ventos irão me proteger, ela repetiu as palavras que lhe traziam um
tênue conforto. O dia se estendeu mais do que a draconiana esperava, as
horas não passavam e o sol insistia em brilhar alto no horizonte. Acreditou
que fosse um presságio: deveria aproveitar as horas restantes de sua vida
antes que fosse presa e morta por uma maldição que não desejava. Uma
essência, dizia sua ama, essência e não maldição; mas, habitada pelo
desespero, a jovem não conseguia pensar em nada. Por isso escreveu,
perdeu o tempo que lhe restava com as palavras e sua grande admiração ao
dar vida a elas. No anoitecer, um subordinado do comandante Krimnell a
acompanhou pelos corredores mórbidos da casa, um ambiente vazio gelado.
A residência era carente de calor, infestada pela atmosfera sombria que
pairava nos limites do Ducado de Vanadis.
Lunaysis lamentou a solidão que sentia: morreria sozinha, longe de
todos que amava e com sonhos de liberdade despedaçados pelo homem que
a comprara. O comandante era estranho para ela, um desconhecido; nunca
conversaram ou trocaram olhares, ele estava sempre ausente, distante,
atarefado em seus compromissos com o império. Diziam os empregados
que ele era como todos os outros — opressor e conservador — mas sem
tempo para a vida comum. Eun-seo, o guardião dela, comentara que seu
marido era desinteressado: os prazeres não o inspiravam; e por isso,
diferente dos outros grandes senhores, o homem não tinha amantes.
Não que Luna se importasse com os hábitos dele.
Apenas os temia — e preferia se manter longe, escondida.
— Os ventos irão me proteger... — sussurrou ao entrar no quarto de
seu marido. Era a primeira vez que visitava o ambiente e talvez fosse a
primeira mulher ao fazê-lo. A frieza do espaço a fez estremecer: um quarto
escuro de mobília escura. A única luz contra as trevas era a de um castiçal
ao lado da cama, sobre uma mesa ornamentada. Livros estavam empilhados
ao lado, escritos de estudiosos e anotações recentes de outro. Luna sempre
vira os livros na decoração da casa, existia uma biblioteca enorme no
terceiro andar e outra no primeiro, mas nunca imaginou que Ahuriel os
lesse de verdade.
Lunaysis percebeu, entre os volumes grossos e bem cuidados, A
Guerra dos Divinos, escrito por Roxy rön Vanadis, sua antepassada; e uma
edição única de O Draconiano que caminhou na Lua, da autoria de Sahel,
um estudioso das origens da raça. Ela ouvira falar desses livros, eram
raridades, e sentiu uma vontade imensa de ter a oportunidade de folhá-los
um dia... porque era o único modo de conhecer o mundo.
— Gostas de ler?
A voz repentina fez todo o seu corpo estremecer.
O comandante estava sentado em uma poltrona de veludo negro em um
canto escuro do quarto. Chamas bruxuleantes iluminavam a expressão
indiferente dele. Seus olhos, como fragmentos vitrais, de um azul quase-
gelo, piscaram; e a draconiana estremeceu diante a visão. Olhos de Vidro,
ela ouvira os criados murmurar e criar rumores no ducado, no império.
Porque Ahuriel vön Krimnell era o único homem na nação inteira com tal
característica, enquanto os demais compartilhavam tons entre vermelho,
sendo os mais puros pertencentes a família Vanadis, e prateado, das famílias
Virtaria e Vossler, a linha soberana do império.
A moça desviou a atenção depressa.
— Sim... meu senhor. — e respondeu com os olhos no chão, um
silêncio dominando a atmosfera. — Sir Eun-seo trouxe os livros que eu
tinha na casa do general Vanadis. Não são muitos. Decorei as páginas de
tanto ler. Eu escrevo também, pequenos poemas.
...e mais silêncio.
Ela estava tremendo. Desabaria e fraquejaria se não estivesse repetindo
que o vento era seu aliado. O comandante, antes quieto, os olhos nela,
levantou-se, os longos cabelos prateados, outra característica inexistente na
raça, dançando em suas costas largas. Ele era alto demais perto dela, e cada
passo delineava os músculos trabalhados sem aparentar robustez.
— Eu me casei por dois motivos.
A moça sabia a resposta.
— Herdeiros e teu nascimento, tu és uma Vanadis, filha de Belpheggör
rön Vanadis. Será o suficiente para que me dê herdeiros fortes.
Ela sempre soube ser o objeto. Primeiro de seu pai, quem a odiava com
uma intensidade monstruosa; depois, do marido, quem a via como um
casulo para suas crias.
Mas ela queria ser o vento... o livre vento.
— Tu me darás herdeiros nesta noite. É o teu dever como mulher. —
Luna sempre odiou aquela sentença. É teu dever como mulher. Escondera,
porém, sua angústia e sua frustração, e encarou o marido. Era impossível
decifrar a expressão de Ahuriel. Se as palavras causavam nele algum prazer,
a draconiana não sabia. Ele caminhava no quarto como se o mundo
estivesse ajoelhado em seus pés. Era soberano como um rei deveria ser. —
Se não o fiz antes, era porque tu eras demasiadamente jovem para carregar
uma criança em teu ventre. Fará dezessete em breve, não?
— Fiz dezenove há duas semanas, meu senhor.
Não era uma data que ele lembraria, os olhos cor-de-fogo estavam
distantes nos livros. Nem seu pai lembrava.
— Está mais do que na hora. — o olhar dele desenhou o corpo da
jovem. Era como se visse através das camadas do vestido. — Teu pai, o
general Vanadis, mencionara que eras intocada no acordo de casamento,
estou certo? Teu irmão não a maculara?
Primeiro viera o desconforto da pergunta; depois, a raiva. Luna queria
esquecer o que suportara ao lado o irmão gêmeo, o desejo dele por ela.
Então, segurando as lágrimas, assentiu enquanto o comandante se
aproximava, gigante perto dela.
— Pode deitar. — ele ordenou. — Tire as roupas.
Em seus contos de fada e seus livros de poetas apaixonados, a
draconiana imaginara um casamento com rosas e felicidade. Uma união
com quem ela amaria e a quem ela se entregaria de corpo e alma. Mas a
realidade era diferente: por ser mulher e, principalmente, por ser
draconiana.
Ela se sentou na beirada da cama e suspirou, nervosa.
— Seu nome? — e as palavras de Ahuriel a congelaram.
A resposta viera com lágrimas. Cinco anos. Cinco Primaveras.
Incontáveis dias. Esse era o tempo que seu casamento tinha, o tempo que
vivia nos domínios de seu senhor... o tempo que sequer o fizera se importar
em saber o nome dela. A indiferença estilhaçou o coração da jovem, sua
alma e os sonhos ingênuos que cultivara na infância. A vida não era o conto
de fadas, não existiam príncipes e o amor era um sentimento em extinção.
Luna, então, conteve seu choramingar e se despiu devagar. Seu corpo estava
gelado, suas mãos tremiam e a respiração falhava a cada segundo que ela
percebia os olhos de seu senhor.
O draconiano era uma estátua, sem reação, sem coração.
...e ela sentiu uma imensa vontade de odiá-lo.
Mas na calada da noite, nas horas que percorreram a madrugada, negou
o ódio para dar espaço a confusão. O comandante não fora o homem de
mãos frias que ela imaginava em seus devaneios: eram hesitantes, quase
inexperientes; de alguém que nunca encontrara outro corpo. Eram mãos de
um guerreiro cuidadoso, um guerreiro escondido nas máscaras de um
homem corrompido pelas tradições do império. Ele a tocou com o cuidado
de um poeta. Semanas se passaram e o resultado naquela noite se espalhou
pelos domínios do comandante.
Lunaysis estava grávida.

Seus olhos sempre foram um motivo de atenção.


Era de um azul peculiar, vibrante, gelado e misterioso. Diziam ser a cor
de uma pedra de safira lapidada por deuses — e em nenhum outro
draconiano o tom se fazia presente. Era uma coloração rara que
representava a ambivalência entre calmaria e tempestade, medo e coragem,
temor e conforto. Rumores se espalhavam pelos guerreiros do império:
diziam que o Comandante dos Cavaleiros Negros não tinha o sangue puro
como os nobres, era um mestiço disfarçado. A verdade, porém, estampava a
aparência dele: as mesmas garras, as orelhas acentuadas e a agilidade
comum aos draconianos mais puros.
Os rumores eram criados pela inveja.
Por que ele era o segundo melhor guerreiro do império de Aumastris.
Um homem empenhado no que fazia e de prazeres escassos.
Prazeres que, pela primeira vez, desfrutara na noite gelada.
Ahuriel vön Krimnell observava o céu noturno.
As canções dos bardos estavam sempre corretas sobre as noites etéreas
do continente draconiano: um manto negro se estendia no mundo repleto de
fragmentos pequenos e brilhantes. Eram chamados de poeira estrelar, os
restos das estrelas que foram assassinadas ao longo dos séculos. Os poetas
diziam que no dia em que todas as Estrelas da Noite fossem mortas, a lua se
apagaria e Agëa mergulharia nos domínios da Noite Eterna. O comandante,
no entanto, não era um homem que acreditava em lendas, ele gostava de ler
apenas para combater sua insônia intensa.
Era homem de poucas admirações e de inquietações constantes.
Seus olhos deixaram o céu, viajaram no horizonte e contemplaram seu
vasto domínio: as Montanhas do Luar. Uma região pacífica e pouco
habitada, o draconiano fazia questão que estivesse vazia. O silêncio era o
melhor aliado para suas madrugadas de leitura e sua constante batalha para
vencer a insônia. Eram dois, três e, às vezes, cinco dias sem dormir,
permeado por um cansaço crônico e por sussurros de origem desconhecida.
Seus pensamentos eram sempre um campo de guerra.
...e naquele momento, ele estava sendo derrotado.
O vento soprou em sua pele pálida. Ele estava na sacada do quarto,
desprovido de qualquer veste e com toda a sua intimidade amostra para o
mundo. Ahuriel não era robusto, era alto como todo homem de sua raça, de
porte atlético, mas cada centímetro de seu corpo era rígido, de músculos
treinados e resistentes. Ele se esforçara para ser o melhor — e não faltava
muito para tal façanha no auge de sua idade: alguém autoritário demais,
sério demais, conservador demais. Eram esses os motivos que o fazia ser
derrotado por seus pensamentos: porque momentos antes, no anoitecer, ele
desfrutara o corpo de uma mulher pela primeira vez em trinta e quatro anos
de existência. A ansiedade por herdeiros, no entanto, fora a força maior para
que experimentasse o corpo de uma mulher, não o prazer, não o amor, não o
instinto, embora se sentisse arrepiado com cada nova sensação.
O comandante retornou ao quarto.
As cortinas de seda dançaram numa canção silenciosa do vento; um
sussurrar harmonioso e cuidadoso como se temesse despertar a mulher
adormecida entre os lençóis. Um castiçal com velas jazia aceso sobre um
cômodo ao lado da cama e iluminava parcialmente o rosto da jovem, suas
curvas e o corpo acentuado demais para a pouca idade. Era um convite para
os observadores e os apaixonados — e Ahuriel vön Krimnell nunca seria
um deles. Ele observou o semblante de sua mulher com uma mistura de
desprezo e superioridade. Não se casara pela beleza ou paixão, e sim pelo
sangue Vanadis que ela tinha em suas veias: a mais influente família no
império.
Uma linhagem de heróis e caçadores.
Esperava que seus herdeiros nascessem logo.

O palácio da Aurora de Cristal era uma arte.


Uma arte que poucos tinham a possibilidade de ver ou estar. A
construção se erguia majestosamente ao redor de um círculo de montanhas:
o centro da sagrada capital de Aumas, berço do império draconiano. Uma
ponte suspensa entre cachoeiras naturais e árvores silvestres dava acesso
aos portões da estrutura. Vermelhas, verdes, amarelas, roxas, as cores se
mesclavam na paisagem, fruto de uma raça orgulhosa e ambiciosa. O
palácio fora construído em formato oval, uma parte menor e uma maior
com um domo de cristal no teto. Uma claraboia em formato de lua brilhava
em tons dourados na parte mais alta do palácio, era ornamentada por ouro
maciço e guardava a sala mais importante do império: o trono.
Bandeiras com o símbolo da nação decoravam a ponte de acesso: uma
lua dourada com uma espada alada em diagonal. A passagem transbordava
vida com raízes esverdeadas e flores coloridas que cresciam e cobriam as
rochas de marfim. Todos esses detalhes somados ao som das cachoeiras
tornava o caminho para o palácio um momento digno de lembranças —
digno de deuses.
Os draconianos se autoproclamavam deuses do mundo.
E o comandante Krimnell carregava essa superioridade em seu olhar.
Ele sempre perdia minutos, ele preferia dizer que ganhava, observando a
paisagem e os abismos em que a água corria livremente. O palácio era a sua
segunda casa, talvez a primeira, uma vez que ocupava a maior parte de seu
tempo treinando seus homens e perambulando pelos corredores imperiais.
Ele atravessou os mesmos corredores que estava habituado e dirigiu-se
as escadarias que o levariam a sala do trono — um caminho tão estonteante
quanto o primeiro. Era uma passagem ao ar livre com pilares dourados que
sustentavam uma grossa placa de mármore na parte central do ambiente.
Desenhos haviam sido talhados na pedra e representavam a história da
criação dos draconianos, sua cultura e adoração pela mãe-lua que regia o
continente: Lunyar.
Ahuriel gostava da lenda da criação. Ele a lera diversas vezes: era a
história de um cristal prateado que se fragmentou com o sopro da deusa e
tomou a forma de um homem pálido. Esse homem uniu-se a Lunyar, e deles
os draconianos nasceram. Essa história era fortemente representada no
palácio e em todos os cantos que o império draconiano se expandia.
A imagem de Lunyar fora esculpida na lateral de um jardim na
passagem. Ela estava ajoelhada com a lua cheia em suas mãos. As fases da
lua representavam diferentes hábitos na cultura draconiana; e era na cheia
que todos os nobres se reuniam para agradecer as dádivas que recebiam. O
comandante Ahuriel vön Krimnell muito apreciava a mãe-lua, como todo o
nobre de sangue puro, mas ele optava pela adoração silenciosa. Ele
acreditava que os deuses não eram capazes de mudar o destino dos homens,
o destino era escrito com a mão e o suor dos próprios.
Ahuriel ignorou a paisagem e parou frente as portas da sala do trono.
Dois homens encarregaram-se de abrir a passagem, e um terceiro caminhou
ligeiramente para anunciar a chegada do comandante.
— Lorde e Comandante Ahuriel vön Krimnell dos Cavalheiros Negros
e senhor das Montanhas do Luar se faz presente, Vossa Graça.
Um jovem de quinze anos estava num trono desenhado aos moldes de
uma lua minguante: Cassius rüne-Dagon ar Virtaria, um menino com um
olhar ingênuo demais para ser um imperador. Ele ocupara o trono
precocemente, era uma criança de fácil manipulação e sonhos de uma nação
utópica — oposto de Darius rüne-Dagon ar Virtaria, assassinado durante a
guerra. Seu pai era um homem cruel e impiedoso, mas a personalidade
negra não fora passada para o primogênito. Cassius era bondoso como
nenhum outro imperador havia sido. Mas era fraco e sem voz, incapaz de se
livrar dos métodos perversos de seus antecessores.
Era um menino com medo de agir.
Cressia rüne-Dagon ar Virtaria, gêmea dele, quem também se fazia
presente na sala do trono, estava sentada ao lado do irmão. Ambos
compartilhavam os olhos cinzentos e o cabelo negro comum aos
draconianos de sangue ancestral. Adamus zön Veridius, general draconiano,
e Renar vrön Skaargärd, conselheiro e guardião do imperador, aguardavam
próximos ao trono em silêncio.
— Vossa Majestade. — Ahuriel fez uma leve reverência e ignorou a
moça ao lado. Não existia espaço e respeito às de mulher na corte
draconiana.
— Comandante! — Cassius estava animado. — Lunyar, de fato, não
pecou em tua criação. Imagino que nunca o verei chegar atrasado.
— Vossa Majestade. — Adamus se pronunciou de repente. Era um
homem grande como um urso e de armadura negra. Os cabelos louros
escurecidos estavam elegantemente presos e a barba bem aparada. —
Perdão por minha interrupção, mas acredito ser pertinente falarmos sobre a
real razão para o comandante Krimnell se fazer presente.
— As Mulheres Amaldiçoadas. — Renar murmurou em seguida.
Cassius não pareceu contente com o assunto.
— Os deuses, Majestade, conceder-te-ão tranquilidade. Eu e o general
Adamus fizemos nossas buscas minuciosas na capital. Encontramos uma
amaldiçoada, e ela está a caminho de ser executada na cidade de Amaezis.
— Ahuriel dissera em um tom honroso.
— Será queimada em público para que sirva de exemplo as demais. —
Adamus completou com seriedade.
Mulheres Amaldiçoadas — o termo surgira há séculos para designar as
mulheres da raça que nasciam doentes pelas essências de três entidades
antigas, ditas como filhas de Hatanyar, deus dos dragões. A história por trás
delas era uma blasfêmia para os draconianos, eles repudiavam a lenda e
executavam qualquer sombra de ligação que existisse entre as entidades. No
entanto, o motivo maior era que a suposta essência vinha das Estrelas da
Noite. Se estas e as Mulheres Amaldiçoadas tinham alguma semelhança,
eles não sabiam, mas temiam um pacto entre elas; restando, o extermínio de
ambas.
Estrelas e Mulheres.
Porque draconianos temiam o poder dessas essências.
Eles temiam uma força semelhante à de Nusheymara Draconis — a
mais forte Estrela da Noite que pisara em Agëa. Felizmente, assassinada
pela raça.
Ahuriel não era um caçador de dragões, seu papel era a contenção dos
rebeldes no estado independente de Castora e o extermínio das mulheres
amaldiçoadas.
...e ele mataria quem fosse para manter o império protegido.
Até mesmo sua mulher.
CAPÍTULO TRÊS

HUMANOS

A LUA ILUMINAVA O MUNDO.


Na solidão de suas estrelas, ela precisava ser forte e brilhar com mais
intensidade para banir as trevas e encorajar os que na sua luz acreditavam.
A lua não era tímida, suas filhas, as estrelas, sim; eram fragmentos
apagados no vasto céu noturno. O mundo as assustava, e elas se encolhiam
numa escuridão sem fim. Restavam duas; e a lua, insistente, brilhava mais e
mais para mostrar que havia esperança em terras tão perigosas. Mas não
havia esperança para todos. Se um homem obtinha sucesso, outro falharia;
se um homem morria, outro vivia, e naquela noite, tão iluminada e quieta,
os guerreiros eram os quais perdiam a batalha. Uma linha de sangue
delineava as árvores, suas folhas, os arbustos, suas flores; restos de batalha
corrompiam a beleza da paisagem.
O som era de ossos sendo quebrados.
Uma criatura mastigava depressa. Os dentes cresciam tortos para fora
de seu focinho largo e manchado de vermelho. Carne e sangue. Eram
draconianos em pedaços. Eram armaduras destroçadas. A criatura cuspiu os
ossos que seu estômago rejeitou; nos olhos negros um desespero pairava.
A criatura estava com medo.
A lua iluminou a pele enrugada da besta, escamas cinzentas, cicatrizes
escuras, asas com membranas rasgadas. Era um dragão maltratado pelos
anos e por uma possível batalha: havia flechas penetradas em suas costelas
e pescoço. Mas a fera era indiferente aos seus ferimentos; parecia ilesa, e
quando terminou de mastigar suas vítimas — por prazer e não por fome —
saltou e bateu suas longas asas.
Ela ganhou o céu, a lua e a noite.
O mesmo céu que inspirava os sonhos de duas crianças.
A menina sorria alegremente, saltitando como um pequeno cervo, as
mãos ocupadas com algumas maçãs recém colhidas. O menino carregava
gravetos. Era mais alto, menos bronzeado e igualmente magricelo. Mas eles
tinham suas diferenças: ela era uma mestiça, filha de uma humana das terras
quentes de Tannenberia e um draconiano das primaveras de Aumastris; ele,
um humano das montanhas esquecidas de Degail — o continente dos
mortos. Ela não tinha peculiaridades em sua aparência, era uma moça
simples de sorriso gentil; ele, era um literalmente um tigre, dizia o homem
que o adotara como aprendiz. Suas madeixas assemelhavam-se a pelagem
do grande felino, uma mistura de alaranjado e vermelho com menor
intensidade da cor nas pontas. Fios desengrenados caiam sobre os olhos
verdes como folhas de uma árvore jovem. Eu nasci no ano do tigre, dizia o
menino com orgulho. Mas ele não tinha a força ou a coragem do animal.
— Tiggrë! — a garota rodopiou entre as árvores da floresta. A noite
não os assustava. Ela era uma aliada, e ambos estavam habituados a
caminhar livremente pela região.
Viviam em uma floresta que se estendia por quase toda a área leste do
continente de Tannenberia.
— Olha as estrelas, Tiggrë!
O menino olhou para o alto, alguns galhos longos atrapalhavam sua
visão.
— Você já se perguntou como era antes? — Lucinda era o nome da
mestiça. Ela tinha energia e vida de sobra, era uma menina de coração doce
e sonhos exagerados. Tiggrë precisava tirá-la das nuvens o tempo todo.
— O senhor Roren diz que o céu era bordado de estrelas. — ele
respondeu.
— A noite devia ser iluminada.
— Era. — o menino desviou o olhar do céu e recolheu um novo
graveto. — Os draconianos destruíram até mesmo o céu... — havia
melancolia na voz dele.
— Eles destruíram a sua tribo porque vocês adoravam os dragões... o
senhor Roren me contou. — Luce parou por um instante. — Tinha muitos
dragões lá, Tiggrë? Com asas! Com escamas! Com fogo!
Tiggrë riu divertidamente.
— Eu morava margens das montanhas que separavam o continente do
Desfiladeiro dos Dragões Gigantes... Era comum ter dragões sobrevoando.
— Um dia vou ter um para mim!
— Você não pode ter um dragão. Ele a devoraria antes que você
tocasse nele.
— Mas e o Klud?
— Você não acha que ele é um pouco... — e ele se silenciou: havia um
homem parado entre duas árvores, a pele pálida como a lua, madeixas
brancas e olhos incapazes de ver o mundo como as crianças viam.
Luce segurou firme as maçãs em seu colo e saltitou para longe.
— Por que ele sempre faz isso... — Tiggrë murmurou incomodado. As
atitudes solitárias de Klud não caiam no seu agrado: ambos tinham histórias
parecidas, perderam tudo o que mais amavam, mas a diferença era que o
menino desfrutava a vida, sorria e aproveitava cada segundo. O mais velho,
porém, lamentava a sua existência. — Ele deveria seguir o conselho de
Roren e parar de viver no passado.
— Mamãe gosta dele, mas ela disse que o senhor Klud tem pesadelos
todos os dias. Ele chama o nome de alguém... — Luce sussurrou em um
tom tristonho. — O senhor Roren me contou. Era alguém que ele gostava,
mas os draconianos mataram ela.
Tiggrë deu as costas.
— O senhor Roren precisa de ajuda e ele se lamenta com os fantasmas
do passado. — e iniciou passos ligeiros para se afastar. Luce o seguiu, sem
olhar para trás.
Mare recebeu as duas crianças com um sorriso aberto e contente. Ela
era mãe de Lucinda, uma humana de feições singelas, desprovida de sonhos
extraordinários, diferente da filha. Roren contara que a mulher chegara
grávida à Floresta Viva, sem nada, usada por um draconiano que lhe dera
promessas falsas. Como todos faziam, pensou o pequeno. Mare agradeceu
ao menino pelos gravetos e preparou o fogo. A casa era humilde, pequena,
mas aconchegante e com cheiro de rosas do campo. Tiggrë gostava do
aroma, recordava-se de seu lar, sua mãe e irmãos. Sentia saudade deles o
tempo todo.
— Pode me ajudar a descascar as maçãs, Tiggrë? — Mare o arrancou
de seus devaneios doloridos. — Soube que você ganhou a admiração de
muita gente nos mercados de Solstício.
— Sim! Eles ficaram impressionados com as histórias e as ervas. Eu
aprendi com minha mãe. Ela era muito boa nisso. — o menino disse com
um sorriso aberto.
— Você é incrível, pequeno tigre. Tenho certeza que vai ser um homem
melhor ainda, o mundo tá precisando de pessoas como você. — e ela o
acariciou no topo da cabeça.
O rosto dele corou.
Roren fora o primeiro a chamá-lo de pequeno tigre. Tigre porque ele se
assemelhava a um com seus cabelos cor-de-fogo e olhos verdes, Pequeno
porque ele era como um filhote, manso e curioso. Tiggrë sorriu com o calor
em suas bochechas, o menino ganhara uma vida nova ao ser salvo pelo
decano. Era um refugiado, forçado a trabalhar, vendido inúmeras vezes —
embora a escravidão em Tannenberia houve sido considerada um crime —
e, quando doente, fora jogado para morrer nos arredores de uma cidade
mercante. Roren o encontrou. Ele o ajudou e se impressionou com o
conhecimento acumulado do menino. Tiggrë sabia ler e escrever aos seis
anos, ansiava em desbravar o mundo e seus olhos brilhavam ao aprender.
Ele era esperto demais para os seus doze anos, diziam.
E seus dias eram cheios de aventuras pelos arredores da Floresta Viva.
Mas embora vivesse em paz... ele tinha sonhos maiores.
Conhecer diferentes culturas e povos. Conhecer o mundo.
No dia seguinte, Tiggrë e Luce desbravaram as redondezas da floresta.
Chamam-na de Floresta Viva com um bom motivo: muitos homens
perderam suas vidas na imensidão, diziam que a alma da região rejeitava
seres de coração perverso e as raízes os devoravam. Era possível ouvi-los
gritar durante a noite, e seus murmúrios eram sempre silenciados pelo chiar
sinistro do vento. Lendas e mais lendas.
O menino se sentia feliz ao saber que muitos acreditavam nelas. A
floresta jamais fizera mal algum a ele ou Luce, Roren e Mare, talvez porque
eles fossem bons, talvez porque fosse somente uma história para afastar
homens maus...
Draconianos.
Luce caminhava saltitante a frente, o vestido bege rodopiando em sua
cintura, os pés dela estavam descalços, como Tiggrë, mas carregava a
firmeza de uma dançarina em seus passos. O menino a observava enquanto
carregava uma cesta com dois pequenos frascos para que pudesse guardar a
seiva da árvore que procuravam. Luce aproveitou para recolher frutos no
caminho: limões, laranjas, maçãs e se exaltou ao colher uma pera madura.
Era a fruta favorita dela, e Tiggrë cedeu sorrindo. A menina guardou no
bolso do vestido. Uma hora e meia fora o tempo necessário para que
alcançassem a única Árvore de Coração de Krynhild, e ela sempre enchia os
olhos do menino com admiração e surpresa.
Tratava-se de uma espécie robusta com folhas cor de sangue em um
formato arredondado semelhante à um coração de verdade. Os galhos
cresciam para o alto, raízes vermelhas se enroscavam neles e ficavam
suspensas como se fossem veias. Era possível ouvir uma pulsação no
tronco, um palpitar que acelerava e se tornava lento. Era a vida da floresta,
diziam acreditar. Tiggrë recolheu algumas raízes e ouviu o coração da
árvore bater em ritmo desenfreado. Era um ser vivo, afinal, e tinha medo
como qualquer animal que tivesse parte de sua pelagem arrancada.
Luce acariciou o tronco da árvore.
Ela tinha o hábito de fazê-lo sempre que iam buscar a seiva, sussurrava
palavras doces e o coração se acalmava. A menina tinha essa habilidade:
seu olhar, suas mãos e seu tom de voz davam coragem a qualquer entidade
viva na floresta. Tiggrë a presenciou fazer amizade com cervos, pássaros e
até mesmo lagartos, e ele admirava profundamente essa bondade que Luce
carregava. Seu coração era ingênuo e sensível.
— Você sempre assusta ela, Tiggrë! Se você pedir licença da próxima
vez, ela não vai ficar nervosa não! — a menina circulou o tronco e o sol
iluminou parte de seu rosto bronzeado. Luce tinha belos olhos castanhos.
— Você fala como se pudesse ouvir ela. — Tiggrë riu enquanto
colocava as raízes na cesta. Elas serviriam como um ingrediente importante
nas refeições. Roren as chamavam de carne da natureza. — Os Eternos do
meu povo conversavam com as plantas e os animais. Mas só eles, humanos
normais não.
— Mas eu gosto de imaginar ela falando! — Luce acompanhou a
risada. — Você adora contar histórias, mas tem pouca imaginação, ora! —
ela apertou os lábios e juntou uma folha de coração do chão.
— A diferença é que eu imagino com os pés no chão.
— Roren disse que você é um Animano... vocês podem falar com os
animais?
Tiggrë se encolheu com a lembrança de seu povo — mortos por
draconianos.
— Só os Eternos falam com os animais. Mas somos chamados de
Animanos, Luce, porque não acreditamos em Sunyar como o deus maior
igual aos humanos desse continente. Nós temos crença em animais... doze
animais sagrados.
— É por isso que seu é Tiggrë?
— Sim. — o rosto do menino se iluminou com orgulho. — Eu nasci no
ano do Tigre. Por isso o meu nome. Minha mãe também nasceu... o nome
dela era Taigä e um dos meus irmãos nasceu no ano da Serpente e ele
ganhou o nome de Sërpen. — e o coração dele ficou apertado. Lembrar era
doloroso.
— São lindos! — Luce disse depressa e o fez esquecer o sofrimento.
— Eu queria ter um nome bonito como o seu.
— Seu nome é lindo, Luce, não tem por quê.
Luce saltitou e dançou entre as folhas antes de responder.
Sua voz, porém, fora interrompida por um estrondo que balançou a
terra. Ela caiu sentada. Tiggrë agarrou a cesta firmemente para se perder na
imagem que seus olhos viram. Um dragão. Uma colossal criatura de mais
de sete metros e escamas cinzas. Suas asas estavam elevadas na direção do
céu, os olhos negros caíram no semblante das crianças.
Então, rugiu.
Ele pousara nas proximidades da árvore.
Tiggrë correu e se juntou a menina. O dragão tinha presas desformes
que saltavam para fora de sua boca e um corpo magricelo bordado por
cicatrizes. Era um adulto maltratado pelo tempo e por um possível cativeiro.
O formato de seu focinho e asas de membranas pontiagudas trouxeram ao
menino recordações: ele conhecia a espécie. Era um Nyr, espécie
exterminada por draconianos. Eles usavam os ossos para forjar o Aço de
Cristal — único material para combater os Primeiros Dragões.
Enquanto Tiggrë suava em desespero — ele sabia que um passo em
falso faria a criatura atacar sem compaixão —; Luce parecia admirada. Seus
olhos brilhavam, talvez porque ela não conhecesse o perigo. Ela era
sonhadora demais, alienada a crueldade que vagava no mundo. Tiggrë
segurou firme a mão dela, fez um sutil movimento para a direção contrária
do dragão e percebeu os lábios do inimigo tremerem de fúria. Ele havia sido
manipulado ao ódio, talvez a caça o tivesse corrompido, porque a espécie,
como lembrava o garoto, era pacífica.
Tiggrë fez uma menção para que a garota percebesse sua intenção de
fugir, mas o gesto acarretara num erro. Luce pisou desajeitada e o
movimentou provocou o ataque do dragão. Ele avançou desenfreado, seu
corpo mergulhou na direção das crianças e a boca abriu como a de um
tubarão, recheada de dentes pontiagudos. O menino se moveu
instintivamente: empurrou a mestiça na direção oposta à sua e deixou o
próprio corpo cair.
Ele sentiu a boca do dragão passar de raspão por sua cabeça. Os
segundos pararam num instante de adrenalina. Tiggrë moveu seus olhos e
encontrou o corpo de Luce, ela se levantava com olhos trepidantes, tentando
entender o que acontecia. O dragão, no entanto, manteve sua postura
raivosa e avançou uma segunda vez, escolhendo a criança mais desprovida
de agir.
Luce. A menina dos sonhos exagerados.
Ele iria devorá-la.
Tiggrë rugiu em desespero. Suas pernas tremeram, seu coração
desacelerou, sua capacidade de agir foi roubada. Mas os deuses mudaram as
palavras escritas no livro do destino de Luce, e reservaram-na um momento
de extrema surpresa: o dragão não a atacou. Ele moveu freneticamente o
focinho sobre as roupas da menina — e poderia tê-la engolido se quisesse
— enquanto ela ficava pálida como a neve, sem reação. A criatura, então,
abocanhou o bolso do vestido e encontrou a pera que a mestiça reservara
para o jantar.
O dragão engoliu a fruta e tornou a cheirar a menina.
Ele babava e rosnava. Mom-mom-mom, e pareceu decepcionado ao não
encontrar outra fruta. A cor retornou à pele da menina, ela respirava
novamente, e a possibilidade de estar salva acarretou uma risada delicada.
Luce cobriu o rosto com suas mãos e ganhou a atenção do dragão. Ele
inclinou o pescoço e a observou com seus olhos negros, a raiva
desaparecera dele com as estrelas desaparecem no amanhecer.
A cena envolveu os olhos de Tiggrë. Era como o livro de um poeta
apaixonado que ousara escrever sobre O Dragão e a Donzela, uma história
em que a fera sucumbira ao sorriso de uma princesa — e fora derrotada
quando nenhum outro guerreiro foi capaz de fazê-lo. Luce não era uma
princesa ou donzela, era uma simples mestiça com coração grande demais.
Ela era muito mais que uma princesa e donzela.
Ela tinha humanidade.
A atração do dragão na menina risonha deu a Tiggrë a oportunidade de
se mover. Um segundo erro: o gigante percebeu e lançou sua atenção para o
garoto. Rugiu, babou sua suposta raiva e avançou contra a cesta de frutas.
Ele abocanhou inteira, deliciando-se com as laranjas, reprimindo os limões
e ferindo-se com os cacos de vidro que seus dentes estilhaçaram. O dragão
rolou na grama e grunhiu como um porco quando o sangue brotou entre
seus caninos. Ele não tinha língua, Tiggrë percebeu numa tentativa frustrada
da fera ao balbuciar palavras.
Luce se levantou depressa.
— Você comeu os vidros do senhor Roren, ora! — ela disse com as
mãos na cintura. Tiggrë teria gritado para ela se afastar do dragão se o
mesmo não houvesse gemido em frustração e culpa. Ele era enorme; ela,
pequena. — A seiva vai te ajudar!
— Luce não... — as palavras foram o suficiente para incomodar a fera.
O dragão rosnou e mostrou seus dentes para Tiggrë que se silenciou
rapidamente. Ele não queria acreditar que a menina fora capaz de acalmar
um dragão, e ele parecia atraído a ela: grunhia e rolava na grama com os
grandes olhos atentos na mestiça.
Ela saltitou na direção da árvore e recolheu um pouco da seiva que
escorria pelo tronco. Era como um antídoto para a dor: amenizava as
sensações e acelerava o processo de cicatrização de ferimentos. O dragão
pareceu completamente anestesiado quando Luce derramou a seiva nos
dentes dele. Depois, ela bateu palmas e sorriu, sem medo, sem preconceitos,
sem julgamentos com a aparência estranha do gigante. Aquele era a criatura
mais feia que Tiggrë vira: os dentes eram tortos, os chifres estavam
quebrados, parte das escamas estavam marcadas por cicatrizes, asas com
membranas rasgadas e queimadas.
Mom-mom-mom, repetia o dragão de barriga para o alto.
— Mom-mom-mom! — Lucinda fez o mesmo som e agarrou as
narinas da fera. Eram maiores que suas mãos. — Seu nome será Mom-
mom! Posso ficar com ele, Tiggrë?
— Você não pode ter um dragão! — Tiggrë berrou com a voz trêmula.
— Dragões são seres livres!
— Você disse que um dragão iria me devorar antes que eu desse um
nome a ele! Ele tem um nome e não me devorou!
Mom-mom-mom.
Lucinda riu e saltitou.
— Não acho que ele vai entrar em casa com esse tamanhão!
O problema seria fazer Roren e Mare aceitá-lo. Ele não era como Klud,
consciente de seus atos... e o dragão poderia ser perigoso, poderia não ser,
poderia ser um presságio para tempos difíceis que viriam ou poderia ser o
destino. O importante era que Tiggrë teria uma história para contar nas
cidades mercantes.
A mestiça e o dragão.
Chamá-lo-iam de tolo.
Um tolo de verdades, ele diria.
C A P Í T U L O Q U AT R O

DRAGÕES

ELA DESPERTOU COM BERROS.


Deixara um pesadelo para cair em outro pior: a realidade. Ela estava
em um quarto mal iluminado, úmido e abafado. O ambiente, contudo, não
ganhou sua atenção. Mas a dor. Uma torrencial dor que esmagava sua
cabeça, seus ossos, seu âmago. As imagens das horas passadas inundaram
seus pensamentos e a fizeram gemer ao sentir cada centímetro de seu corpo
dolorido. Havia sangue em seus lábios humanos, hematomas em seu rosto e
cortes profundos em suas costelas. Ela estava nua — marcada.
O ceifador a havia espancado.
A mulher-dragão respirou com dificuldade, suas mãos algemadas
causaram um repentino desespero nela. Temendo a liberdade roubada, ela
moveu os olhos ao redor, a escuridão estava ao seu lado, não havia luz; e na
ausência de calor, o coração dela ficou gelado. Remexeu-se nas correntes,
mas estavam tão presas que ela sequer era capaz de mover o corpo. O som
do tilintar do metal ecoou nas paredes geladas e a lembrança do calabouço
de sua infância lhe causaram arrepios. Ela não queria ser presa novamente.
Sua verdadeira forma estava inacessível e, presa na imagem humana, ela
não tinha forças para escapar.
Por que estava sendo perseguida como uma caça?
Ela lembrou de outrora, do modo que o guerreiro a chamara: Estrela da
Noite.
O nome causou um sutil arrepio. Seria o termo a chave para encontrar
suas respostas? Sua identidade? Ela balançou a cabeça e levantou o olhar
dourado. Alguém a observava no silêncio da escuridão. Era um homem.
O olhar dele era cheio de significados: uns diriam que era nostálgico,
cheio de lembranças; outros apostariam na indiferença, no desapego; alguns
diriam ser olhos de compaixão, de quem tem pena e de quem teme, mas os
mais ousados, os apaixonados, exclamariam a admiração, a vontade de
salvar e ser salvo. Seja qual era o olhar de Hanzor rön Vanadis naquele
momento, não durara o suficiente para ser entendido. Uma expressão de
surpresa cobriu o seu rosto e ele, meio desajeitado, deixou-a apática para
encontrar o dourado ofuscante dos olhos da prisioneira que despertara.
Ambos trocaram olhares diretos, ele percebeu o medo vagar a Estrela da
Noite acorrentada. Ela moveu os lábios, mas não tinha voz, sequer força ou
conhecimento do real motivo de estar lá. Ou talvez soubesse, era uma Kyn,
mas, refletia o draconiano por instantes, por que uma Kyn estaria perdida?
Hanzor suspirou e se aproximou sutilmente.
A confusão no semblante dela proporcionou uma dor no peito dele e,
embora seu dever de não mostrar afeição pela raça inimiga, o jovem
flexionou os joelhos para ficar à altura da Estrela da Noite. Ela estava
jogada ao chão, vulnerável com olhos que sequer entendiam o que
acontecia com ela. Os dedos de Hanzor tocaram o corte que ela tinha no
canto do lábio. A fêmea recuou com os dentes trincados. Havia um misto de
medo e raiva nela, um misto que o homem entendeu o motivo.
— Eu sinto muito. — Hanzor sussurrou e observou o ferimento. — Eu
realmente sinto muito, Estrela da Noite... o general Demétrius a envenenou
para que não se transforme, mas é temporário. Não se preocupe, sua
verdadeira forma está aí, dentro de você.
O draconiano se afastou sutilmente.
Ele vagou na escuridão e juntou um pequeno cantil de água que estava
próximo à saída. A Estrela da Noite o observou no silêncio, resistindo para
se manter consciente quando todo o seu corpo latejava. O draconiano se
aproximou novamente, a decepção desenhada em seu rosto de expressões
suaves, boas demais para pertencer a maldita raça que a torturava. Seus
olhos, um castanho escarlate, eram brasas que insistiam em permanecer
vivas nas sombras.
— Isso vai ajudá-la. — ele sussurrou como se temesse ser ouvido.
Hanzor levara o cantil aos lábios machucados da mulher-dragão e o
inclinou para que ela bebesse. A voracidade dela a fez se engasgar e tossir.
— Com calma.
Ela bebeu tudo e desejou mais.
— Era tudo o que eu tinha.
O draconiano se levantou. A armadura negra o fazia quase desaparecer
na penumbra que abraçava a cela. Hanzor a observou uma última vez, os
olhos em chamas que morriam aos poucos, e partiu.
Mais tarde.
Hanzor deslizava os dedos sobre o aço de sua espada. Era uma peça de
valor; fora forjada nas Fornalhas de Cristal com o melhor aço dos
draconianos. Era longa, de lâmina esbranquiçada e um cabo dourado
ornamentado por diamantes. Luz, seu pai a batizara, um nome sagrado para
algo que se banhava continuamente com sangue. O jovem tinha apreço pela
arma, mas ela não lhe trazia boas recordações. Ele não a recebera de acordo
com as tradições, o pai não a entregara em suas mãos, tampouco
mencionara a honra de passá-la ao filho. Hanzor rön Vanadis a recuperou
das mãos frias do pai assassinado. Um pai morto. Um pai que ele não pode
dizer adeus.
Eram pensamentos negativos, dizia seu treinador Khan, mas o jovem
jamais desistira de sua vingança. Ele queria matar a lenda que o mundo
temia, o Dragão dos Dragões: Vlanhonder Draconis, e qualquer um que
tivesse seu sangue.
Ele o mataria...
Ele...
Hanzor.
O jovem ergueu os olhos para receber o cumprimento de Hyun-seo, um
Cavaleiro Negro como ele. Ambos desfrutavam o ambiente tranquilo de
uma taverna em Estação Leste, um bardo tocava seu alaúde, a música
transmitia vibrações calorosas e os poucos presentes bebiam entre
conversas costumeiras. Eram todos guerreiros, soldados humanos e
draconianos que ganhavam o privilégio de ter espaços reservados a eles.
— Estava divagando? — Hyun-seo sentou-se ao lado do amigo em
uma mesa distante das conversas alheias. Ele sorriu, os olhos claros, cinza-
nublado, concentrando-se na moça sorridente, um pouco roliça, que servia a
bebida. Ela piscou na direção dele e o homem, acuado, se encolheu e
desviou a atenção.
— Você continua com medo de mulheres? — Hanzor sorriu.
O jovem, um pouco mais alto, franziu o cenho.
— Não é medo... é que...
— Você quer se manter casto para sua donzela, conheço seu segredo.
— o Vanadis piscou e suspirou, passando os dedos pelos cabelos castanhos.
— Eu queria poder estar no seu lugar... e me preocupar com pouca coisa.
— Tem algo que te incomodando?
— Sim... — Hanzor olhou para a mulher que piscara antes. — Eu
estava observando a Estrela da Noite mais cedo... e existe uma sensação
nela que me causa estranhamento. Na noite em que o general Demétrius
matou Myllanea, quem deveria ser a penúltima, eu presenciei um fragmento
se tornar uma estrela distante no céu. Restava uma com a morte de
Myllanea, mas repentinamente, estávamos com duas. Para minha surpresa
maior, Demétrius encontrou a que, creio eu, representa esse fragmento que
se formou. Não há informações dela em nossos estudos, e ela não parece
estar ciente do que é. Isso tudo não soa estranho para você?
— Não vou negar ter estranhado isso também, mas nosso dever é
apenas caçar as Estrelas da Noite, não? O que existe além disso... bem, é
problema dos estudiosos. — Hyun-seo murmurou ao bebericar a caneca de
cerveja. Hanzor, porém, não pareceu satisfeito.
— A última Estrela da Noite é Rhaelynaar, protegida por todos os
primeiros dragões. Se essa penúltima apareceu de repente, ela deveria ser
um filhote e não deveria estar nesse continente. — Hanzor bagunçou os
cabelos durante a reflexão. — É isso que não entendo. Porque essa Estrela
da Noite que encontramos está quase na fase adulta.
Hyun-seo não se manifestou e um suspiro deixou os lábios do Vanadis.
— Nosso general decidiu o que irá fazer com ela?
— Pouco ouvi dele. O general Demétrius decide tudo sozinho, receio
que ele vá matar a estrela antes de partirmos para a capital.
— Matar? Não seria melhor avisar nossos superiores? Eles precisam
saber dessa nova estrela! — Hanzor guardara a espada instintivamente.
Seus dedos estavam agora sobre a mesa, o punho fechado e a voz com uma
leve alteração. — Por que Demétrius sempre decide que a morte a solução
para tudo? Ah. — ele suspirou. — Me pergunto todos os dias o que fez dele
um general do império.
— Ele não é diferente dos outros... — Hyun-seo sussurrou.
— O que você quer dizer?
— Demétrius é um assassino... mas isso não faz dele pior daquele que
vende a filha para um homem duas vezes mais velho ou aquele que bate na
mulher. — e o jovem se levantou, os olhos baixos. — ...e todos eles são
generais.
Hanzor se manteve silencioso nas palavras do companheiro. Viu-o se
despedir e desaparecer entre os demais. Não que fosse uma mentira... mas o
jovem Vanadis acreditava que existiam sim homens bons no império.
Seu pai, Hiborym rön Vanadis, fora um deles.
Mais tarde, o jovem se recolheu em seus aposentos. Era um quarto
pequeno, com camas de madeira e feno e móveis arruinados pelo tempo e
pouco cuidado, ainda assim, os melhores aposentos que a taverna tinha a
oferecer para o grupo de draconianos e soldados humanos. Hanzor estava
pouco acostumado a simplicidade das terras humanas, ele nascera em um
berço de ouro, filho de um superior, membro de uma das mais poderosas
famílias da capital. Experimentara o melhor: roupas, armaduras,
alimentação, confortos e treinamentos. As acomodações de Tannenberia o
incomodavam.
Ele sentou-se para escrever uma mensagem. Hanzor tinha a intenção de
enviar corvos ao imperador e seus generais para informar a aparição da
recente Estrela da Noite. Achava necessário, embora sequer houvesse
pedido permissão a Leto Demétrius para tal, seu superior. Lacrou a carta
com o selo do império e escolheu dois das melhores aves para enviar a
informação. O caminho era longo.
— Agora preciso pensar em uma forma para manter essa Estrela viva
para levá-la à capital.
Hanzor teria dificuldades.

Escuridão.
O corpo humano da Estrela da Noite tremia e seu sangue ficava gelado.
Os pesadelos estavam a assombrando, ela via vultos rastejar no chão úmido,
mãos negras envolviam seus tornozelos e a ocasionavam espasmos
agoniados. A fêmea estava lutando com os fantasmas que a tragavam para o
mesmo abismo passado, um lugar frio e sem luz, um lugar que ela temia
tanto como esquecer o sol. Ela batia constantemente as correntes contra a
terra, o som a mantinha na realidade e afastava os pensamentos psicóticos
que a deixariam insana se desistisse. Sair. Sair. Sair. A Estrela da Noite
repetia constantemente. Se permanecesse mais um dia naquela escuridão
sem fim, enlouqueceria. O som das correntes não mais a salvaria e ela
estaria perdida para sempre.
Você vai sair.
A fêmea abriu os olhos em um sobressalto. O dourado ganhou luz na
penumbra que a envolvia. Você vai sair, a estranha voz feminina repetiu.
Havia confiança e perseverança em seu tom.
Sair? e a estrela duvidou. Eram alucinações que ouvia? Ilusões de um
medo que a corrompia? Sim, você vai sair, e a voz respondeu de modo
confortável o bastante para arrancar a dúvida nos pensamentos da fêmea.
Então a barulhenta entrada de Leto Demétrius no ambiente arrancou a
fêmea de dragão de seus devaneios desesperados, devaneios de liberdade. O
homem cambaleava, tropeçava em seus pés e era parcialmente oculto pelas
sombras que dominavam o calabouço. Duas velas estavam acessas em um
lampião que ele carregava, fracas, e logo morreriam, extinguindo a luz, mas
deixando o predador em vantagem. Leto era esse predador, e ela não tirou
os olhos dele, observou em silêncio, procurou sua vulnerabilidade. Onde ele
estivera, ela não sabia, porém o sangue impregnado nas roupas do homem a
deixaram tensa.
Demétrius matara alguém.
A jovem aprendeu na rápida convivência que odiava os draconianos.
Eles causavam arrepios, uma mescla de raiva e medo, embora a imagem do
guerreiro de olhos melancólicos e suas desculpas estivessem ainda quentes
em seus pensamentos. Não sabia o nome dele, tampouco confiava. Mas não
esqueceria o modo que ele a observou... com confusão, com incerteza, com
pena.
— Como está sua asa, Estrela da Noite? — e nas palavras do
draconiano, cheias de desdém e prazer, o corpo humano dela estremeceu.
Sua asa. Ela lembrava agora: Leto Demétrius quebrara sua asa. Com um
desespero crescente, a mulher-dragão buscou sua verdadeira forma e não a
encontrou.
Por que não sentia a dor da asa fragmentada?
Por que não conseguia se transformar?
Demétrius a observava. Estava sentado frente a ela, uma mão no
queixo, mas com dois pés além da realidade. Ele cheirava a álcool e sangue.
Ela rangeu os dentes, seu corpo tremeu, e a incapacidade de ser o que
realmente era, um dragão, a contaminou de uma sensação tortuosa.
Tamanha era sua fúria, a sua vontade, que sua voz se fez ouvida após anos.
Era gaguejada, mas cheia de vida.
— ...Des... desgraçado! — vociferou. O general permaneceu em
silêncio, sentado, refletindo, e no fim, levantou o corpo. O olho prateado e o
outro negro ganharam um estranho cintilar. Ele não se vangloriou como de
costume, apenas deslizou pelo ambiente. Estava sério, os fios escuros
cobrindo o semblante que, antes oculto, focou-se nela, na caça. As correntes
não a deixariam escapar da fúria dele. O draconiano se aproximou
assassino, com o punho fechado, flexionando um joelho para alcançar a
altura da Estrela da Noite.
Os olhos heterocromáticos de Leto Demétrius eram assustadores.
— Eu não gosto de ser insultado.
A fêmea de dragão cuspiu nele, dentes trincados e corpo trêmulo.
Ela não imaginou o resultado de sua ousadia, e se imaginou, fora
ameno, de pouca dor e violência. Demétrius, porém, mostrou-lhe não ser
um homem de compaixão, desferindo um golpe que com a força, não
apenas quebrou o nariz da Estrela da Noite, como deslocou também a
mandíbula. Ela perdeu os sentidos, ganhou-os em seguida, e tonta, sequer
pode protestar a dor e repudiar a corrente de sangue que manchava seu
rosto. Leto agarrou-a pelo pescoço, tão firme a ponto de sufocá-la, e a
arrancou das correntes que nem ela antes havia conseguindo arrebentar. A
brutalidade causou uma luxação no pulso esquerdo e um segundo
deslocamento no direito. A fêmea gemeu, com dificuldade para respirar,
mas o homem não parou.
Leto Demétrius não iria parar até matá-la.
Seu corpo foi arremessado ao chão, contorceu-se banhada com o
próprio sangue, e logo recebeu a segunda remeça de uma tortura que ela
jamais imaginou ser capaz de passar. A dor, porém, não a fez implorar pelo
fim, pela morte, e jamais desejaria implorar um estado semelhante ao que
passara na escuridão por tantos anos. Diferente de prisioneiros que
buscavam a morte para se libertar, a fêmea de dragão negro queria a
liberdade em vida, e enfrentaria, resistiria, ao mundo se precisasse alcançar
seu objetivo.
Esse era o motivo de não gritar por misericórdia.
Ela não gritou por uma pausa.
Ela não gritou pela morte.
Entre a consciência e a inconsciência, absorvida por uma dor
torrencial, ela manteve-se firme, quieta, e sua ousadia dava fruto a fúria do
draconiano que a torturava. O guerreiro a arrastou pelos cabelos, uma linha
vermelha ficou impregnada no chão, levando a Estrela da Noite ao centro
da taverna, onde todos presentes, soldados draconianos e humanos,
observaram abismados. Leto a levava ao centro da cidade. Ela perdeu a
consciência três vezes no processo, as escoriações no seu corpo eram
horrendas, e quando apagava, o homem a chutava para que despertasse e
presenciasse o próprio tormento.
A fêmea resistia entre murmúrios.
— General! Você enlouqueceu! Você está a matando! — Hanzor se
aproximou depressa. Os habitantes da Estação Leste que antes se recolhiam
em suas casas, pararam para observar os atos do superior. Poucos pareciam
assustados enquanto a grande maioria urrava o desejo de morte aos dragões.
— Isso não é necessário, General!
— Sabe o que não é necessário? Um filho de uma puta como você
dizer o que tenho que fazer! Cale essa sua boca suja e veja como nós,
draconianos, exterminamos a porra da nossa caça! — veias estavam
salientes no pescoço pálido de Demétrius, o rosto dele queimava. — Agora
obedeça e traga a minha maldita lança!
— O que você pretende fazer? — Hanzor sentia o coração acelerado.
— Preste atenção, todos vocês. Eu vou dizer somente uma vez:
arrancarei os membros dessa vadia e violarei cada maldito buraco ela tem!
Hanzor estremeceu e ele viu a fêmea, semiacordada, tremer diante a
loucura do general. Alguns humanos tinham expressões de pavor para o
general. Mas quem desobedeceria? Quem ousaria julgar as escolhas de um
superior?
O vento soprou quente de repente.
Hanzor ousou dizer uma palavra, mas seus instintos o fizeram se calar.
Calor, fogo, um arrepio em sua espinha.
Um som que silenciou a multidão.
...e um rugido atravessou o céu vazio.
— Dragão! — alguém berrou.
A lua iluminou suas escamas. Elas tinham a cor da noite; a cor que
muitos veem ao fechar os olhos e temem com a ausência da luz. Eram
escamas de um negro intenso, e um segundo rugido revelou os olhos
sedentos do colosso: ouro e sol. O ruflar de suas asas fizeram as pessoas
correrem num desespero eminente, porque não era um dragão comum ou
uma fera pequena: era um dos Primeiros Dragões.
Ele rugiu uma terceira vez e uma avalanche efervescente cobriu o céu.
O fogo consumiu as estruturas de uma área da cidade em questão de
segundos, tudo de uma vez só. Humanos foram atingidos pelas labaredas e
arderam numa sinfonia de morte, muitos queimaram numa rapidez sem
escapatória.
— Um Kyn! — berrou Hyun-seo ao montar em seu cavalo. —
Homens! Preparem os arcos! General! — o jovem moveu os olhos
desesperados para o superior. Demétrius estava em silêncio. — Precisamos
parar o dragão antes que ele destrua a cidade!
Leto Demétrius observou o céu.
— Caralho! — vociferou o draconiano. — Eu vou arrancar a vida
desse filho da puta desgraçado! Vanadis! Leve essa vagabunda para outro
lugar e não falhe em sua missão. O dragão sabe que a outra Estrela da Noite
foi morta, mas não tem conhecimento dessa.
Hanzor assentiu em silêncio.
— Lobo! — continuou Demétrius ao se dirigir para Hyun-seo. — Junte
os homens e me deem cobertura, eu enfrento o dragão!
Hyun-seo seguiu as palavras sem qualquer hesitação.
A arrogância e a crueldade não ofuscavam o que Demétrius era: o
melhor caçador de dragões do Império Draconiano. O título não lhe fora
dado por caridade, afinal, segurando a lança de aço de cristal que herdara do
Senhor de Gelo, o general poderia enfrentar exércitos. Não que ele os
vencesse sozinho, nenhum homem era fisicamente capaz — mas sempre
seria o último a cair no campo de batalha.
...e não era por menos que carregava a morte de cinquenta dragões nas
costas.
Cinquenta e um, na verdade.
O primeiro dragão caíria naquela noite.
Ele fragmentou as flechas que lançaram em sua direção, suas chamas
mudaram a atmosfera da cidade e um calor insuportável se proliferou. O
fogo deles, da espécie de escamas negras, era diferente, mortal: queimavam
e destruíam mais rápido que a de um dragão comum; e quanto o colosso
pousou, pesado sobre a terra, a cidade estremeceu. Pessoas foram
esmagadas, devastadas e arremessadas pela cólera eminente da fera.
Todos o temiam.
Leto Demétrius, porém, o desejava, a lança empunhada.
— Eu devorei a sua Estrela da Noite. — dissera o draconiano num
sussurro. Ele sabia, no entanto, que o dragão seria capaz de ouvir e sentir.
...e o gigante de quase dez metros ergueu o focinho na direção dele.
Leto Demétrius seria o seu ceifador.
Enquanto isso, Hanzor sentiu o peso da fuga cair em suas costas. Ele
não era um privilegiado ao escapar do confronto, mas o estado da Estrela da
Noite lhe causava uma sutil preocupação. O Vanadis estava aliviado por ela:
ganharia horas extras de vida e uma pausa da crueldade do general.
Crueldade... o jovem ponderou as palavras por instantes. Ele estava
com a mulher em seus braços, o sangue dela em sua armadura, enquanto,
com vontade de viver, a fêmea mantinha os olhos abertos. Ambos estavam
no centro da ponte que ligava a cidade ao resto do continente. O mar estava
furioso na noite do ataque.
O guerreiro ainda ouvia homens gritando e o dragão rugindo.
— Além da ponte existe a floresta de Krynhild... eu vou te deixar por
lá e retornar a cidade. Não se preocupe, Estrela da Noite, você estará segura
do dragão...
Segura do dragão... e ele parou para pensar uma segunda vez. Eram os
dragões o problema dela ou os draconianos? A resposta não era difícil e
havia uma certeza gritante: os dragões jamais a deixariam no estado em que
se encontrava. Uma Estrela da Noite era como uma deusa viva para os Kyn,
muitos as protegiam, eram eleitos guardiões e davam suas vidas para
mantê-las seguras.
Hanzor diminuiu seus passos.
— Eu não posso... eu não posso fazer nada, me desculpe Estrela da
Noite. — e a largou com cuidado sobre a estrutura rochosa. Um gemido de
alívio escapou dos lábios rosados dela. Hanzor hesitou mais e mais. — Eu
posso livrar você do sofrimento se quiser... eu posso... matá-la. Eu serei
rápido e farei com que não sinta dor.
Um vento gelado soprou suavemente.
A fêmea de dragão elevara com esforço os olhos para o homem, os
dela eram o sol, dourado e iluminado; os dele, o fogo, vermelho e quente.
Então, ela moveu a cabeça, de um lado a outro, negando as palavras
proferidas.
— Demétrius fará você sofrer de todas as formas. Você quer realmente
esse sofrimento? Eu vi uma Estrela da Noite morrer nas mãos dele... e eu
não quero ver isso de novo.
A voz do draconiano era trepidante.
— Eu sempre admirei a história que minha ama contava sobre vocês,
histórias que davam vida a minha imaginação... histórias que... estão
desaparecendo. Eu sou um draconiano, um guerreiro, mas repudio a
crueldade contra vocês, Estrela da Noite. Eu nunca gostei de sofrimento e
imagino que você também não. Demétrius gosta e dará o mais terrível
sofrimento antes de matá-la. Eu prometo ser rápido... e você descansará e
estará livre na morte.
A Estrela da Noite fechou os olhos, sua respiração era lenta e sua voz
era fraca.
— Livre... eu quer ser...
Hanzor segurou a espada.
— ...em vida. — e ela finalizou. O draconiano espantou-se, refletiu e
sorriu tristemente. Ele enxergou a determinação fluir nas palavras da
estrela. Comovido, Hanzor ajoelhou-se diante dela.
— Você é diferente, Estrela da Noite. Enquanto Myllanea implorou
pela morte e pelo fim do sofrimento, você implora pela vida... por mais
doloroso que possa ser. — ele deslizou seus dedos sobre o rosto da mulher.
— Eu vou ajudar você. Eu prometo.
Um rugido cortou a frase do draconiano de repente. Ele sobressaltou e
observou o céu: o dragão negro estava lá.
— Draconiano... — murmurou o dragão em um tom gutural. — Vocês
mataram a minha estrela, mas não farão o mesmo com essa!
As cicatrizes de batalha eram eminentes no gigante. Ele havia sido
recentemente ferido: seu focinho estava sangrando e um de seus olhos
estava fechado. O que assustou Hanzor, no entanto, não foram os
ferimentos e, sim, a lembrança que a imagem despertava: seu pai morto e o
Dragão dos Dragões com as narinas vermelhas... o Dragão dos Dragões lhe
direcionando o olhar como o dragão no presente também lhe direcionava.
Asssassino, e Hanzor empunhou a espada.
Ele trincou os dentes.
— Se depender de mim, jamais tocará nessa Estrela da Noite.
O dragão rosnou.
...e ele avançou com os dentes salivando.
Hanzor estava em vantagem, o dragão não poderia usar suas chamas, e
se ousasse, iria ferir, ou talvez matar, a Estrela da Noite recostada na ponte.
A única alternativa era sua força, seu peso, suas garras, fatores que, embora
não soubesse, também levaria à morte da fêmea que desesperadamente
tentava proteger. A passagem estava cedendo, não aguentaria o peso do
gigante por mais de cinco minutos. Mas eles não perceberam: o Vanadis se
defendeu das investidas com a espada, recuou das garras e, num golpe
involuntário, perfurou parte do focinho da fera.
Ela rugiu em fúria, inclinando o pescoço para o alto e pisoteando o
chão num trote insistente. A ponte tremeu e, só então, o draconiano notou o
perigo. Desviando de uma nova investida, Hanzor correu de encontro a
Estrela da Noite. O dragão o seguiu, e a movimentação de ambos foi o peso
que faltava para a estrutura se partir em pedaços. Uma explosão. A travessia
da Estação Leste se rompeu em várias partes, uma delas onde a fêmea
estava. Ela se segurou nas rochas com uma mão, mas ela não aguentaria;
faltava-lhe força e resistência.
— Droga! Aguente, Estrela da Noite! — Hanzor conseguiu alcançar
uma parte que permanecera instável, mas em pedaços. O dragão estava no
mesmo local, um pouco atrás do draconiano, com seus olhos dourados
focados na mulher.
— Não vou perder o meu tempo com você, draconiano! — e a fera
bradou com rugido ao erguer as asas. Sua prioridade passou a ser a fêmea:
ele saltou para levantar voo, mas o descuido acarretou no pior.
No instante em que saltou, poucos centímetros acima de Hanzor, a
espada deste penetrou em seu peito e rasgou as escamas até a parte da
barriga, um corte tão longo e profundo que uma chuva de sangue cobriu a
ponte. O dragão perdeu o equilíbrio de seu corpo, embolou-se no ar e caiu
sobre a estrutura que a Estrela da Noite lutava para se segurar. O impacto
foi certeiro: o resto da ponte cedeu rumo ao mar.
...e ambos caíram.
— Não! — Hanzor praguejou.
Mas era tarde demais.
A Estrela da Noite e o dragão negro haviam sido tragados pelo oceano
escuro.
CAPÍTULO CINCO

ESCURIDÃO ALÉM DO
ÂMAGO

ESTRELA DA NOITE.
A fêmea de dragão abriu os olhos lentamente e uma luz azulada a
cegou. Era brilhante. A luz, porém, enfraquecia aos poucos, cercada por
uma escuridão que a sufocava, era aterradora, dolorida. A fêmea estava
perdida nessa penumbra e a safira era sua única iluminação. Lembrou-se de
ter caído. Teria morrido na queda? Tão rápido? Morrido sem ter
experimentado a recente liberdade? A sensação de vazio a frustrou.
Praguejara em pensamentos. Estando morta, como iria responder seus
questionamentos? Como iria descobrir o seu nome? Ela tentou se mover,
mas seu corpo parecia congelado.
Estava imóvel e caindo.
Estaria ela entre a vida e a morte? Ela ergueu os braços na inútil
tentativa de se agarrar a luz, e não conseguiu.
Estrela da noite, alguém sussurrou. Seu coração acelerou, mesmo que
a expressão soasse desconhecida e distante. Ela sentia o ventre formigar e
uma vontade incontrolada de descobrir a verdade. O desespero, então, a fez
se implorar com ardor: não queria morrer, não podia morrer.
A ti a decisão caberá, disse a luz que ela tanto tentou alcançar na
escuridão. Ela brilhava intensamente, era doce, aquecida, e fez a fêmea de
dragão perder todo o desespero que a sufocava. Encheu-a de esperança. O
que tu és não está perdido, Estrela da Noite; o que tu procuras está
próximo... dentro de ti.
Ela se perguntou quem era e o motivo que levava a voz a chamá-la de
Estrela da Noite. O dragão fechou os olhos para se conter, uma estranha dor
atravessava seu corpo.
Eu sou tu, tu és eu. Não temas o poder que tens, porque se continuares
caindo, a queda tornar-se-á teu fim; e o sol jamais verá.
Mas ela queria ver o sol.
Tu tens o sangue dos primeiros dragões, és uma Kyn.
Se era tão importante assim, se tinha o sangue dos primeiros dragões,
como poderia ser ficado tanto tempo sozinha? Por que ninguém jamais a
buscou? Ela cobriu os olhos em confusão.
Ela não sabia voar.
Agora voe!
A fêmea de dragão despertou.
...e a dor quase a devorou.
Ela estava aos pedaços, suada e com o corpo marcado: escoriações,
cortes, hematomas... Cada centímetro latejava e cada ferida parecia uma
estaca sobre suas entranhas. Sofrimento. Agonia. Vida. Ela estava viva — e
as sensações negativas a aliviaram de certo modo. A morte não lhe
alcançara, não ainda. A Estrela da Noite forçou os olhos e sua visão
lentamente recuperou o foco. Era tudo escuridão.
Ela estava nua e com frio.
As horas anteriores lhe eram estranhas: ela sequer recordava do
momento em que o dragão avançou e a separou do draconiano de mãos
quentes e olhar nostálgico. Hanzor, ela ouvira o nome dele. Ele não era um
homem corrompido, era diferente dos outros e a fêmea de dragão desejou
que ele tivesse sobrevivido.
Porque ele havia sido o primeiro a se importar.
A Estrela da Noite se lembrava, porém, do momento em que caíra no
mar. Um negror intenso a abraçou. Então estava num sonho, não, corrigiu-
se. Era um pesadelo cheio de angústia e solidão. Mas a repentina voz de
uma mulher a salvara do desespero. Muitas palavras, nenhuma explicação.
A jovem não iria esquecê-la tão facilmente; e acreditou que não deveria.
Ela, então, gemeu com a dor que irrompeu de seu maxilar, estava deslocada
e qualquer movimento causava uma pontada capaz de arrepiar sua pele. Era
difícil respirar também, seu nariz provavelmente havia sido quebrado e uma
crosta de sangue bloqueava as narinas. Com o braço dolorido, a Estrela era
incapaz de levantar; e sua perna, imóvel e pesada, parecia um bloco de
pedra. Era um corte profundo; e o estado dele, o cheiro forte que emanava,
a fez vomitar o vazio de seu estômago: sua perna direita estava roxa e
infeccionada.
A Estrela da Noite delirou por minutos ou horas, presa na frágil
imagem humana. Sua verdadeira forma, o dragão, permanecia inacessível,
escondido dentro dela, destruído e derrotado. Um ruído, de repente,
dissipou sua frustração. Era um vulto na mata, um semblante que por
segundos a desesperou.
O coração dela bateu depressa.
— Hatanyar seja louvado... — dissera a voz de um homem, a lua
revelou sua expressão sofrida. Traços fortes, músculos robustos e um
ferimento na barriga que manchava suas roupas de sangue. — Você está
viva... Estrela da Noite. — ele tinha pouco mais que dois metros, uma barba
negra e espessa, e nenhum cabelo.
Ele caminhou em direção a Estrela da Noite e se ajoelhou diante o
corpo dela.
— Não tema... eu não lhe farei nenhum mal.
Os olhos dele eram dourados como os dela; as mesmas fendas negras, a
mesma cor-de-sol. Mas ele respirava com dificuldade, estava ferido
também, mas se esforçou para agarrar o tronco da mulher e apoiá-la em sua
perna com todo o cuidado que era capaz; e ela, assustada, sequer tinha
forças para resistir a aproximação. Mas as mãos dele eram quentes,
confortáveis... e familiares.
— Por Hatanyar... o que fizeram com você?
Ela tinha essa pergunta desde o dia em que acordou na escuridão,
cresceu na escuridão e sofreu na escuridão. Mas ninguém respondia; o que
faziam era torturá-la e tratá-la como uma caça. O homem, então, retirou o
manto que usava e pôs sobre ela. A Estela da Noite precisava de calor, de
alimento, de água e, principalmente, de afeto. Por isso, quando o homem,
limpando o sangue do rosto dela, a carregou nos braços, ela não temeu ou
se desesperou. Fechou os olhos — ouvindo o que ele sussurrava em outro
idioma.
...e o coração dela descansou.
Adormecida.
Ela despertou mais tarde com um suspiro. Seu corpo estava leve e
menos dolorido, havia ataduras improvisadas no corte da perna e o mesmo
manto a protegia do frio. Uma fogueira estava acesa no ambiente. O céu, o
sol, porém, ela não viu, e se sentiu ligeiramente assustada. Estava em uma
gruta úmida e gelada, uma luz sutil adentrava pelas falhas nas paredes e
uma brisa soprava por entre as rochas. Acostumada a violência, a calmaria
soou estranha a ela: moveu os olhos, observou o lugar e encontrou o
homem que a salvara na noite anterior: um primeiro dragão. Ele estava com
o tronco nu e tecidos manchados sobre o ferimento do peito.
Os olhos dele estavam fechados. Não parecia bem: a respiração era
pesada, a ferida no peito insistia em sangrar e a pele ao redor apodrecera
como se a espada que o feriu carregasse alguma maldição. A jovem,
preocupada, reuniu forças para se levantar e se aproximar do estranho. Ela
cambaleou algumas vezes, aguentou a dor que alfinetava seu corpo miúdo e
se sentou com dificuldade.
O homem-dragão abriu os olhos e sorriu.
— Parece que você acordou melhor que eu. — e ele se inclinou
lentamente para tocá-la no rosto. A mulher recuou depressa. — Não tenha
medo. Nenhum primeiro dragão jamais... jamais feriu uma Estrela da Noite.
Vocês são a vida que nos ilumina e nos dá força para continuar.
Ela desviou os olhos para o chão.
— Por que... eu sozinha... a vida...?
Os anos no calabouço roubaram parte da voz dela. Jamais tivera
conversas ou uma interação decente. Seu único contato com as palavras era
a partir dos termos que era chamada pelo draconiano.
— Por que você está sozinha? — ele perguntou para ter certeza do que
ela dizia. A Estrela da Noite assentiu em silêncio. — Eu deveria fazer o
mesmo questionamento... uma estrela não deve ficar sozinha. — o homem-
dragão tossiu e a fez erguer os olhos com uma mão. A mulher recuou
novamente, arisca e assustada. — Você me lembra alguém... Diga, estrela
da minha vida, qual o seu nome?
A pergunta doeu nela.
Ela não tinha um nome, um passado, uma história.
Somente cicatrizes e incertezas.
— Não saber... o nome... eu. — mas ela queria saber. Era o que mais
desejava. Um nome e uma identidade. O homem pareceu surpreso com a
resposta e uma expressão melancólica o dominou. — Você... o meu... — e
se esforçava para falar.
— O que está querendo dizer?
— Você... como eu... conhece eu...
— Ah, sim... Se eu conheço mais Estrelas da Noite? Sim... existe mais
uma. Vocês duas são tudo o que restou de nossa história; e somente você,
pequena estrela, é capaz de dar continuidade a nossa espécie. — o homem-
dragão suspirou pesadamente. As palavras o machucavam. — A outra
Estrela da Noite não pode gerar vida... porque eles... eles...
Ele tremia em fúria.
Mas se conteve: sorriu e ergueu os olhos para a mulher.
— A segunda Estrela da Noite está no Desfiladeiro dos Dragões
Gigantes... onde você deveria estar.
Se semelhantes estavam no desfiladeiro, o passado da Estrela da Noite
também estaria. Seria a chance de encontrá-lo e agarrá-lo, sua chance de
descobrir o nome que ganhara ao nascer. A possibilidade fez seu coração
palpitar e sua respiração acelerar; a ansiedade dela cultivou um sorriso
esperançoso no homem-dragão.
Ela queria ter sorrido também, se soubesse como.
Com um esforço que não tinha, o homem se pôs em pé e estendeu a
mão para a mulher.
— Darei a minha vida se for preciso, Estrela da Noite, para que
possamos chegar ao desfiladeiro... ao nosso lar.
O caminho era longo.

As mãos do homem tremiam.


Ele estava tenso e furioso.
O cheiro de sangue não o tranquilizava e a morte dos invasores era
indiferente para a vitória. Leto Demétrius não se sentia vitorioso. Ele
perdera a Estrela, sua caça favorita, para o miserável dragão que ousara
desafiar a cidade, agora, destruída. Bastara um Kyn para que a Estação
Leste fosse dizimada; a ponte, em pedaços, rompera a ligação entre a ilha e
o resto do continente. As chamas da criatura alada queimavam com ardor
no amanhecer, e continuariam queimando intensas, ferozes e indomáveis. O
fogo de um dragão comum era traiçoeiro, o de um Kyn, era mortal: os
humanos que foram pegos pelas labaredas queimaram em questão de
segundos, sem tempo de gritar, enquanto suas carnes eram ofuscadas de
negro e cinza.
A palavra Kyn significava o primeiro ou o herdeiro, e eles eram
considerados os primeiros dragões a pisarem no mundo há milhares de
anos. Hatanyar os criou de seu sangue e os fez à sua imagem: feras negras e
de olhos dourados, maiores e mais fortes que os dragões comuns. A caçada
desenfreada de suas fêmeas, conhecidas como Estrelas da Noite, porém,
culminou na extinção; e os Kyn se esconderam nos lugares mais escuros do
mundo.
Mas eles desapareceriam em breve.
Leto Demétrius prometeu exterminá-los antes que completasse
cinquenta anos.
Os sobreviventes do ataque juntavam seus pertences em meios aos
escombros, lamentavam a morte dos entes queridos e carregavam os corpos
para enterrá-los com dignidade. Soldados humanos se preparavam para
partir à capital, outros enviavam corvos com a mensagem do ataque; e
talvez os rumores chegassem antes que os pássaros. Rumores se
espalhavam como chamas na mata seca, pensava o jovem lobo ao observar
o cenário da destruição. Hyun-seo caminhou lentamente entre os escombros
para alcançar seu general.
— Devemos partir também? — o cavaleiro podia sentir a aura negra
que envolvia seu superior, e um Demétrius irritado era capaz de qualquer
atrocidade. — Os soldados humanos vão dar conta dos reparos a cidade e
outros vão partir à capital. O melhor é avisar o general Vanadis do ocorrido.
Leto Demétrius não se manifestou. Seus olhos queimavam diante as
chamas.
— General? O imperador pediu somente que...
— Foda-se o pedido do garoto! — vociferou o general. — Eu não vou
partir, não sairei dessa imunda região até encontrar a Estrela da Noite que
perdi. Prepare o meu cavalo, lobo, vou partir em uma hora. Preciso foder
alguém antes, meu sangue está fervendo.
Ninguém deve contrariar Demétrius, dissera uma vez o seu pai e o
jovem o agradeceu mentalmente pelo conselho. Ele assentiu em silêncio ao
pedido de seu superior e se afastou com uma reverência. O superior, porém,
permaneceu imóvel e com os olhos no céu. O sol invadia o horizonte e
escondia as duas últimas estrelas no céu.
Ele iria encontrá-las, torturá-las e devorá-las.
Hanzor, por outro lado, retornou aos escombros da cidade com as mãos
machadas de sangue. Ele estava ileso para o alívio de seus companheiros e
de Hyun-seo, quem cavalgou depressa ao seu encontro. Ambos trocaram
olhares e o Vanadis sorriu com frustração. O general Demétrius o condenara
pela perda da Estrela da Noite, gritara aos ventos, e jurou castigar a falta de
responsabilidade em missão de Hanzor no futuro. O jovem, no entanto,
ignorou a cólera do semelhante e procurou sua montaria no meio da
destruição.
— Eu teria um motivo para ganhar um lugar de confiança nos
Guardiões de Lunyar se tivesse matado Shurgakian. Não tive sorte e apenas
tomei um banho com seu sangue. Ele desapareceu com a Estrela da Noite.
— Hanzor comentou sobre seu cavalo. Ele e Hyun-seo caminhavam entre o
que restara da cidade, auxiliando os soldados e a população restante.
— Acha que eles podem ter sobrevivido? — Hyun-seo questionou.
Hanzor olhou para o céu.
— A Estrela da Noite continua viva. Caso contrário o céu estaria mais
vazio... deuses, me pergunto como ela pode ter sobrevivido com tantos
ferimentos. Ela caiu em direção ao mar... — e um suspiro escapou dos
lábios do cavalheiro. Ele puxou as rédeas de sua montaria e observou o
horizonte por instantes.
— Se estiver realmente viva, meu amigo, será uma questão de tempo.
— Hyun-seo comentou ao parar ao lado dele. — O general Demétrius
partiu há pouco tempo rumo a floresta de Krynhild. Ele estava obstinado a
encontrar a estrela.
— Sozinho? — o cavalo de Hanzor sapateou sobre a terra queimada.
— Sim, ele estava furioso e negou qualquer companhia; disse que
mataria quem o seguisse.
O jovem Vanadis ficou em silêncio por instantes.
— Quantos homens nos restam, Hyun-seo?
— Pouco mais de cem.
— Lidere-os à cidade mais próxima. Não há o que fazer por aqui, as
chamas dos dragões continuarão queimando por horas. — e estava quente
demais. Gotas de suor resvalavam na testa do draconiano, sua armadura
parecia duas vezes mais pesada com a sensação abafada. — Os moradores
também devem partir.
Hyun-seo deu uma rápida olhada no ambiente.
— Muitos morreram aqui, não há razões para que reconstruam a
cidade.
— Sim, guie todos com sabedoria. Eu irei para outra direção. — um
sorriso sutil iluminou o rosto do mais jovem.
— Ah, não, Hanzor... não me diga que pensa em seguir o general
Demétrius?
— A Estrela da Noite vale mais viva do que morta nesse momento.
Você sabe mais do que ninguém quais são minhas reais intenções nessa
missão. Se eu levar essa estrela até nossos superiores... Vou ter a confiança
que preciso para caçar sozinho o Dragão dos Dragões.
Hyun-seo suspirou.
— Hanzor, por favor, você é homem feito... não pode carregar essa
vingança para sempre... Ninguém, nem você, está preparado para enfrentar
o Dragão dos Dragões sozinho. Nem o general Demétrius. Se for atrás da
Estrela da Noite, terá que enfrentar ele também.
Hanzor sorriu abertamente.
— Sou um Vanadis, meu amigo. Não é um general ou um dragão que
vão me parar.
Hanzor partiu na tarde do mesmo dia. Sozinho. Ele cavalgou veloz,
com pressa, com preces, pedindo aos deuses que encontrasse a Estrela da
Noite antes do general Demétrius. O jovem precisava dela, não por afeição,
mas porque seus planos de vingança dependiam de uma caça valiosa.
Ele dependia da caçada à Estrela da Noite.
CAPÍTULO SEIS

NO HORIZONTE EM
CHAMAS

UM PESADELO HAVIA RETORNADO.


Era pincelado de negro. Vozes roucas, lamentações de sangue e
presenças desconhecidas vagavam na escuridão. Um homem gritava; ele
corria, rápido, em desespero, mas jamais alcançava o seu destino: a Estrela
da Noite. Ele queria estar perto... e estava tão longe. Ela não o conhecia, era
um estranho de feições pálidas e leves. Ele a observou e um sentimento de
conforto dominou a mulher-dragão. O vazio que a abraçava pareceu menos
pesado, a vida mais leve. O estranho a alcançou e estendeu a mãos. Então, o
pesadelo terminou de forma sangrenta: ele era devorado por uma entidade
maligna, sem rosto ou calor. A criatura negra riu ao consumir o homem. A
imagem era tão assustadora que fez a Estrela da Noite despertar aos berros.
As fendas verticais se seus olhos se dilataram, a ilusão se mesclou a
realidade e causou tonturas que tardavam em se dissipar.
...e ela despertou para a realidade.
— Estrela da Noite? — o homem-dragão sussurrara com visível
preocupação. Era a segunda noite deles na gruta, e ele se recuperava
lentamente do corte profundo em sua barriga. Ele não demostrava melhoras.
Delirava durante nas madrugadas e chamava pelo nome de alguém.
Myllanea, dizia, sua fêmea assassinada pelos draconianos.
A jovem se perguntou se alguém chamava seu nome em algum lugar.
Um nome que ela sequer conhecia.
A Estrela da Noite apresentara uma recuperação significante em seus
ferimentos. O homem fizera o possível para ajudá-la, mas ele não era capaz
de ajudar a si mesmo; e precisava mais do que ela. A infecção o mataria em
breve. A jovem se encolheu no manto cedido pelo companheiro e sentiu a
crueldade draconiana em sua pele. Os ferimentos recentes não eram os
únicos: cicatrizes bordavam seu corpo, resultado da infância solitária, dos
anos de cativeiro e de um ódio que ela não compreendia.
Ela lembrou de sua asa por um instante.
Por que ela não sentia dor e por que não conseguia se transformar?
— Estrela da Noite. — o homem repetiu. Sua voz não era mais alta que
um murmuro. Ele estava se esforçando e resistindo. — Precisamos partir.
O dourado dos olhos dele estava opaco.
— Minha vida e a sua estão em risco... Eu não serei capaz de alcançar
Degail com esse ferimento. Nossa chance está nas cidades portuárias.
Ela forçou os lábios para repetir a última palavra.
— Sim, minha estrela... portuária. Estaremos em breve no desfiladeiro.
A Estrela da Noite observou o homem por instantes. Ele não revelara
seu nome em nenhum momento, e isso a deixou sutilmente mais
confortável: ela poderia se igualar a ele porque também não tinha um nome
para revelar. Muitas vezes a Estrela da Noite pensava nos sonhos que tivera,
nos draconianos que a torturaram, o terrível Leto Demétrius em especial, e
o que a ajudou, Hanzor. Estava distante dos draconianos, todavia, sentia que
eles não iriam desistir tão fácil dela. Esse era o peso de ser uma Kyn? O
peso de ter o sangue dos primeiros dragões e ser uma Estrela da Noite?
O homem respondeu essas perguntas ao dizer que ela somente estaria
salva no Desfiladeiro dos Dragões Gigantes.
Ela o acompanhou à saída da gruta. Seu corpo estava mais leve e
menos dolorido, mas o cheiro de sangue impregnado nas feridas causava-
lhe enjoo. O homem atravessou a cachoeira com passos mancos e saltou
num lago que a envolvia. Ele emergiu na superfície com uma forma
diferente: um dragão. Escamas negras, olhos dourados e um corpo
arruinado por ferimentos e cicatrizes de batalhas passadas.
As árvores da floresta eram tão altas e espessas que a jovem pouco via
o céu e a lua. Seus sentidos estavam atentos nos sons, nos chiados das
corujas, nos uivos de gatos-do-mato e zumbidos de pequenos animais que a
circulavam. Vagalumes, vez ou outra, proporcionavam uma suave
decoração entre folhas e arbustos. Ela perdia seus passos ao observá-los,
admirada com um mundo cheiro de cores que as correntes lhe roubaram.
A Estrela da Noite passou a repudiar a escuridão.
— Se esse lugar impressiona seu olhar, Estrela da Noite... ficará
encantada com o céu do Desfiladeiro dos Dragões Gigantes. — disse o
dragão ao sair da água. As gotas que pingaram de corpo robusto brilharam
como pequenos diamantes.
A Estrela da Noite queria ficar encantada com o desfiladeiro, seu
coração queimava com a possibilidade de alcançar suas respostas e um
passado que os ceifadores destruíram, roubaram.
— Você será protegida e terá a companhia de todos nós. Não somos
muitos... mas somos o suficiente.
Alguém que chamasse o nome dela.
Mas, repentinamente, o mundo atrasou o desejo de paz de ambos: uma
flecha surgiu na noite e desenhou o corpo humano da Estrela da Noite. A
seta vermelha penetrou numa árvore ao lado dela.
Ela e o dragão observaram a mesma direção.
Um homem, um cavalo, uma expressão que a fêmea de dragão jamais
esqueceria.
— Eu tinha certeza que esse cheiro podre era de dragões. — Demétrius
tinha faíscas em seus olhos heterocromáticos. Ele prendeu o arco no cavalo
e arrancou uma lança das bagagens. A arma tinha o tamanho dele, a lâmina
era forjada no formato de uma garra longa e afiada.
Leto Demétrius saltou da montaria e empunhou sua arma.
— Para trás, estrela da minha vida. — o dragão murmurou. — Ele não
vai tocar em você.
A expressão de Leto Demétrius era sombria. Seu rosto, os fios de
cabelo negro sobre os olhos peculiares, tornavam-no assustador e insano.
O dragão rosnou.
— Você já está morto, Kyn!
A jovem não percebeu Leto avançar, a velocidade dele era como o
vento, e este parecia estar a favor do guerreiro. Ela piscou, e o homem
estava com a lança entre os dentes da criatura. O dragão sequer pode se
defender das investidas — ele estava debilitado demais. Bastara três ou
quatro golpes para que uma torrente de sangue vertesse da ferida que o Kyn
tinha em seu peito. Ele rugiu em agonia e tombou pesadamente. A
oportunidade deu a Leto um golpe de crueldade: a lâmina de sua lança
penetrou a carne negra e arrancou parte do focinho do gigante.
A Estrela da Noite observou a batalha com o corpo solidificado. Seus
olhos não se moviam, seu coração estava gelado. O dragão negro poderia
ser grande, ter força, mas o homem, o draconiano armado, era mais ágil
como se estivesse prática contra eles.
A noite estava sendo machada de vermelho.
— Fuja! — o Kyn urrou no momento que sua investida falhara. Leto
Demétrius saltou com perícia e o atingiu nas escamas das costelas. —
Estrela da Noite!
O general gargalhou.
— Fugir? — o draconiano manobrou a lança em suas mãos. — Ela terá
seu mesmo destino, dragão desgraçado. Farei o mesmo que fiz com a outra
Estrela: vou despedaçar e violar até que não reste mais nada.
As palavras do general fizeram os olhos do colosso arderem. O
dourado se tornou rubro; o calor da fúria encheu os pulmões do dragão e ele
desferiu uma torrente poderosa de fogo. As chamas varreram a floresta em
uma linha reta, elas se espalharam e ganharam força na vegetação —
intensas, cheias de vida e de morte.
A Estrela da Noite perdeu o semblante de Leto Demétrius em meio ao
caos vermelho. Ela desejou que o ceifador estivesse morto, mas o Kyn a
alertou do perigo e implorou que ela fugisse. Conseguiria tempo e a
alcançaria, prometeu o dragão; e, de fato, a jovem não poderia permanecer
por muito tempo no campo de batalha: o calor das chamas começava a criar
bolhas na pele humana. Então, ela correu desajeitada, seus pés tropeçavam
em raízes pelo caminho, galhos a feriam no rosto e dificultavam seu
movimento. A adrenalina crescente a impossibilitou de pensar com clareza,
o medo de perder a liberdade a consumiu por instantes, o suficiente para
fazê-la perder o equilíbrio e desmoronar na terra.
Ela cospiu sangue, sentiu-se tonta e arrastou os dedos no chão. O
ferimento de outrora abrira em sua perna. Estava sangrando. Estava... não, a
mulher-dragão piscou e engoliu a dor para se pôr em pé.
Porque precisava seguir em frente.
Ela não iria desistir. Ela não iria perder a liberdade.
Então, continuou correndo.
A corrida desenfreada da Estrela da Noite teve uma pausa quando ela
alcançou um córrego, seguido de uma cachoeira de quase dez metros. Ela
não poderia seguir em frente, e talvez não fosse capaz: seus pés sangravam
e doíam a ponto de torturá-la numa sinfonia lenta. O corte na perna estava
horrendo, o calor das chamas do dragão criou bolhas sobre o sangue e em
seus braços finos.
O corpo dela mal aguentava os ferimentos.
Há quanto tempo não se alimentava ou se hidratava?
Ela olhou para o céu o culpou as estrelas. O mundo a caçava por causa
delas e por ter o sangue dos primeiros dragões. A jovem se perguntou se o
mesmo aconteceria se fosse somente um dragão.
Seu corpo desabou sentado. Não apenas os ferimentos passaram a
incomodá-la no tempo em que permaneceu em silêncio na mata —
recuperando o fôlego perdido — mas uma repentina ardência em suas
costas humanas. Era diferente de dor, mas tão desconfortável quanto. A
Estrela da Noite suspirou cansada. Um piscar, no entanto, a fez perceber o
maldito vulto negro em sua frente. O som das grevas do guerreiro causou-
lhe um estremecer: se Leto Demétrius se aproximava... o dragão havia
falhado. Ele estava morto e não seria capaz de levá-la ao Desfiladeiro dos
Dragões Gigantes.
A lança do inimigo estava em riste.
O olhar dele — negro e cinza — desenhava cada centímetro do corpo
da estrela.
Ela manteve a cabeça baixa.
— O desgraçado estava podre por dentro... — Demétrius disse com
desprezo, e a estrela passou a odiar a voz dele. — Vocês são uma farsa.
Uma farsa? Ela não era uma farsa, sequer possuía uma identidade…
como, então, poderia ser uma farsa?
...e ela se sentiu cansada demais.
O mundo a queria fazer desistir, queria vê-la sofrer sem esperança e
pedir pela morte. Mas ela nunca desistiria. Sua vontade de viver e desfrutar
a liberdade era duas vezes maior que a de morrer e descansar. Se precisasse
sofrer, a Estrela da Noite sofreria, mas ela jamais soltaria as mãos da vida.
Foi por esse motivo que ela parou a lâmina da lança de Leto Demétrius
com a mão. A arma teria acertado seu crânio, teria destruído o seu sonho de
liberdade e satisfeito os desejos do draconiano. Mas não. A ponta afiada
atravessou a pele e rasgou a palma, gerando uma torrente de sangue que
resvalou pelos pulsos da Estrela da Noite. Ela não expressou dor ou
sofrimento, pelo contrário, seus olhos dourados enfrentaram os do ceifador.
Ele demonstrou satisfação; ela, ódio.
— Você nunca… ter a minha vida. — o ouro queimava em chamas. —
Minha vida… nunca. Mas… — ela ofegou. — A sua… a sua… um dia ser
minha! — e aproveitou a baixa na guarda do inimigo para movimentar a
lança com a pouca força que lhe restava. O golpe o acertou de raspão no
rosto e causou um pequeno corte na sobrancelha. Não o bastante, ela
separou a lâmina da carne e correu.
A Estrela da Noite parou em frente a queda d’água e olhou para baixo.
Um abismo sem fim de uma escuridão sem fim.
Mas ela viveria; e, confiante, saltou, ciente que acordaria no próximo
amanhecer.
Leto Demétrius não saiu de seu lugar. O sangue escorria no canto do
rosto. Ele poderia tê-la matado, tê-la violado ali mesmo, mas não o fez. O
draconiano esperou e a avaliou enquanto um sorriso crescia nos lábios
rachados.
— Interessante… — e suas palavras soaram deleitosas.

Fogo.
Roren se preocupou. Chamas não eram comuns na floresta viva, a
presença delas poderiam ser um presságio de que o perigo estava próximo e
ele tinha um nome cruel: draconianos. Há menos de cinco dias, rumores da
destruição da Estação Leste correram pelas terras do Leste. Um dragão
atacou tropas draconianas que ocupavam a cidade, mas não venceu. Ele
havia sido derrotado pela perícia da raça inimiga. A invasão da criatura, no
entanto, tomaria proporções maiores: Roren sabia que o rei imploraria pela
ajuda do império draconiano e, em um pouco tempo, o continente de
Tannenberia estaria infestado por eles.
Era esse o motivo que o fazia se assustar com o fogo no horizonte.
Tiggrë e Lucinda se aproximaram devagar. A menina estava com uma
mão agarrada à camiseta de seu amigo, nos olhos, uma sutil preocupação a
consumia.
— Estranho, não? — disse Roren.
Tiggrë assentiu em silêncio.
— Se for os draconianos... espero que não avancem. Tenho medo que
nos encontrem por aqui. — Roren suspirou.
Porque eles tinham um dragão com eles. Um adulto grande o suficiente
para ganhar a atenção de caçadores — e se encontrassem Mom-mom, todos
seriam acusados de traição e decapitados pelos algozes dos grandes
senhores.
— Mom-mom tá dormindo... Ele vai ficar bem, num vai? — Lucinda
sussurrou. A lua iluminava parcialmente sua pele bronzeada e os olhos
castanhos, estes com lágrimas tímidas. — Tiggrë?
O menino esboçou um sorriso.
— Eles não vão nos encontrar, Luce, não chore.
Roren hesitara muito em aceitar a presença de Mom-mom. Ele não
teve medo da criatura, pelo contrário, sentiu-se extremamente nostálgico ao
vê-la. Era um dragão com mais de cem anos, maltratado pelo tempo e pelo
cativeiro, que precisava encontrar a paz em seus dias. Mas se o
encontrassem seria um segundo massacre. Dragões viveram na região no
passado, eram sempre dias ensolarados que, repentinamente, foram
pincelados de sangue pelas mãos draconianas.
Ninguém precisava de um segundo massacre.
Roren despertou de seus devaneios ao perceber as crianças adentrarem
na mata. Ele os seguiu com uma tênue aflição. A noite tinha vida, tinha
mistérios escondidos e uma escuridão traiçoeira que ele jamais desafiaria. A
lua, porém, mostrava-lhe sempre o caminho; e a noite se tornava menos
sombria. As duas estrelas a acompanhavam, solitárias no manto negro.
Roren se pegou pensando nas histórias sobre uma noite coberta de estrelas e
iluminada como o dia.
Era impossível contá-las. Hoje, porém, olhar para o céu era doloroso.
Os homens estavam destruindo o mundo.
Tiggrë parou de repente e fez um sinal para que Roren e Luce fizessem
o mesmo.
— Vocês sentem o cheiro do fogo? — perguntou o menino. — O fogo
comum não tem esse cheiro, ele também não se propaga tanto... tem alguma
coisa errada.
— Pode ser fogo de... um dragão?
O pequeno tigre assentiu.
— Um dos Primeiros Dragões.
— Precisamos voltar.
Roren estremeceu e colocou as mãos nos ombros das crianças.
...porque os ventos sopravam que o mundo estava para mudar.
CAPÍTULO SETE

OS VENTOS DA
ESPERANÇA

LUNAYSIS VÖN KRIMNELL DESBRAVA UMA realidade diferente da sua: a


leitura lhe deu asas e ela voou sobre o mundo. Liberdade. As palavras
arrancavam doces sorrisos da draconiana, os pontos faziam seus lábios
entreabrirem em surpresa e, em cada entrelinha, suspiros de alívio. O
homem que amara a Lua, era o nome do livro. Um presente de quase duas
mil páginas que ela recebeu na noite anterior — na companhia de outros
dois volumes sedentos por um leitor. A jovem estava ansiosa para
mergulhar nas páginas e ver o mundo que ela não tinha acesso em sua
pequena gaiola.
Os livros haviam sido entregues após o jantar por um dos vassalos de
seu senhor. Luna não pode conter a felicidade ao ouvir as palavras do
guerreiro: sir Eun-seo mandou que entregassem a senhora. Seu cavaleiro e
melhor amigo. Eun-seo a vira crescer a guardava um amor de pai para a
moça.
Ele era o único que sabia de seu dom.
Ele a protegeria, mas se um dia o seu senhor descobrisse, mataria
ambos.
A possibilidade de ter o seu segredo descoberto fez a jovem estremecer
e interromper a leitura. Seu maior medo não era sua vida, mas sim a da
criaturinha que se formava em seu ventre. Luna sabia que estava destinada a
morte desde o dia em que as entidades esquecidas lhe concederam a
essência. Essa era a realidade de sua nação, de sua cultura, das Mulheres
Amaldiçoadas.
— Lyz. — a senhora Krimnell chamou a criada de repente. A moça
viera às pressas e se curvou em respeito. — Eu não vi o senhor Krimnell
partir para a capital pela manhã. Ele se faz presente?
— Sim, minha senhora. O senhor Krimnell aguardava a visita da
general Skaargärd. Ela está reunida com ele no salão de batalhas.
Rhenna vrön Skaargärd: um nome de peso, o nome de uma mulher — a
primeira a alcançar uma das posições mais altas em uma sociedade
patriarcal. Rumores se espalhavam nas ruas da capital sobre a reputação da
general, muitos a chamavam de louca, embora, em segredo, Luna guardasse
uma sutil admiração pela guerreira. Pela força. Pela resistência: ela era uma
draconiana corrompida pela vida e amargurada pela perda dos dois filhos de
forma negligente: o primeiro nascera morto, o marido estava em viagem, os
empregados não a ouviram gritar e a criança morreu em seu ventre; o
segundo, morreu no mar com dois anos.
Mas era feita de aço, primogênita e herdeira de todo o Ducado de
Skaargärd.
— Você ouviu os guerreiros comentarem sobre a vinda dela?
— Não, minha senhora; e não deveria. — Lyz respondeu depressa. —
O senhor Krimnell nos proíbe de conversar com os soldados e prometeu
punir os que ousassem tentar. Eu não quero perder a minha vida... — a voz
dela era trêmula.
Ela poderia descobrir: a ideia alimentou a imaginação da draconiana.
Não seria a primeira vez que ela escaparia de seus aposentos para
perambular como um gato noturno nos corredores da residência. Eun-seo
sempre dizia que ela se arriscava demais ao fazê-lo, mas era insuportável
viver trancada em quatro paredes dia e noite, noite e dia. Luna suspirou e
observou sua criada por segundos.
Lyz era uma das muitas pessoas que não poderia confiar nos domínios
de seu senhor. A construção era infestada por guardas e empregados. Eram
como fantasmas de olhos atentos que não perderiam a oportunidade de
denunciar algo ao comandante, qualquer palavra que os fizessem ganhar
confiança. Felizmente, a jovem pensou, todos tolos — pelo menos o
suficiente para serem enganados por ela. Eun-seo era o único guerreiro que
sabia farejá-la na escuridão. Ele era como um lobo; e tinha os instintos e a
herança de um.
— Lyz. — a Krimnell sussurrou com sutileza. — Eu preciso que me
prepare um chá quente. Estou um pouco nauseada, deve ser a criança. — e
fez sua melhor encenação para preocupar a criada. A moça se alertou e
prometeu preparar a bebida às pressas antes de deixar o quarto.
Bastara dois minutos da ausência de Lyz para que a draconiana
escapasse de sua gaiola e mergulhasse nas sombras da fortaleza do Lorde
Krimnell. Ela se movimentou com um instinto felino, descalça, silenciosa e
atenta. O medo a acompanhou, mas a lembrança da infância lhe deu
coragem. A jovem costumava espreitar os domínios do general Vanadis na
companhia de Hanzor e Hyun-seo. Eles invadiam a cozinha e roubavam os
doces que uma mestiça rechonchuda cozinhava. Luna adorava os bolos de
cenoura dela, a cobertura de mel e amoras. Um dia, no entanto, seu pai
descobrira e a jovem nunca mais viu a empregada. No passado, acreditou
que ela houvesse ido embora; hoje, porém, ao conhecer a verdadeira
natureza de Belpheggör rön Vanadis, sabia que a mestiça havia sido morta
pelos vassalos do general.
Mestiços não tinham segundas chances.
Luna desceu um lance de escadas, atravessou corredores longos e
portas pesadas para chegar ao destino desejado. Ela conhecia por instinto o
caminho da sala de batalhas — um lugar com cheiro de morte. O
comandante passava a maior parte de seu tempo naquele lugar, onde ele
colecionava suas recordações de batalhas vencidas e inimigos derrotados. A
atmosfera era pesada no ambiente: ossos de dragões, espadas com sangue
envelhecido, garras de criaturas caçadas e armaduras como decoração. Os
livros de Ahuriel também se faziam presentes no salão, estantes altas e
escuras, organizadas minuciosamente pelos caprichos do guerreiro, todos
separados e datados. Essa era a parte que a jovem admirava no marido, a
leitura, embora jamais houvesse trocado palavras sobre o assunto para
conhecê-lo melhor.
Ahuriel vön Krimnell estava sentado em uma poltrona musgo de
escamas de dragão, as pernas cruzadas e uma postura autoritária; e Rhenna,
a general, estava diante dele. Luna sentiu um arrepio ao observá-la: a
presença dela ofuscava toda a escuridão presente na sala. Um metro e
oitenta e cinco, uma altura peculiar para as mulheres da raça, a maioria
tinha um padrão abaixo de um metro e setenta. Somente os homens
chegavam aos dois metros. Apesar de todo o seu tamanho, e a armadura
masculina, os traços do gênero eram acentuados — seios fartos, pernas
grossas e um cabelo dourado como o sol do meio-dia.
— ...e os guerreiros também devem avançar. — Luna ouviu parte da
frase da general. A voz dela se propagou por toda a extensão da sala.
Rhenna tinha o olho esquerdo, por sobre o qual lhe caía a franja de ouro,
coberto por um tapa-olho. — Espero que leve sua mulher, comandante.
Luna observava ambos de uma localização privilegiada. A sala
ocupava dois andares e, na parte superior, uma sacada proporcionava uma
ampla visão do andar de baixo. A draconiana permaneceu nas sombras,
tentando escutar, inclinada sutilmente sobre o guarda-corpo da sacada.
— Será um empecilho ter uma mulher grávida no meu comando. —
respondeu o homem, indiferente; e a moça, observando, não sentiu nada.
Ambos não tinham nenhuma intimidade ou amor. Eram apenas casados.
— Não a leve, então. — e Rhenna cruzou as pernas. — Experimente
como é perder o primeiro filho dessa forma. — como a general havia
perdido. Luna a analisava de longe quando, de repente, quase tropeçou nos
próprios pés, estava descalça. Só que manteve o equilíbrio. Um segundo,
porém, lhe fez gelar: ao olhar para baixo, percebeu que a draconiana mais
velha a observava.
Braços firmes a puxaram antes que Ahuriel pudesse vê-la também. Ela
teve a boca coberta e o corpo tragado num abismo sem cores. Teria se
desesperado, teria chorado ou implorado por clemência se uma voz familiar
não houvesse acalmado o seu coração assustado. Era Eun-seo, seu amigo,
guardião e a única fonte de confiança na casa.
— Não é a primeira, nem a segunda vez que a encontro correndo riscos
tão grandes, minha senhora. — Eun-seo suspirou com apreensão, as chamas
bruxuleantes do corredor iluminando seu rosto negro e seus cabelos
sutilmente grisalhos. — É perigoso. As paredes têm olhos e ouvidos.
— Eu faço isso desde o dia que me casei, sir Eun-seo.
— Sim, você é uma criança teimosa, minha senhora, mas precisa tomar
cuidado e prezar a sua vida. Lembre-se que nem todos serão bondosos
como eu.
A draconiana encolheu os ombros.
— Eu queria ouvir a conversa entre eles.
— Não há nada a temer, minha senhora. Eles conversavam somente
sobre assuntos imperiais. — Eun-seo ofereceu o braço para guiar a jovem
nos corredores longos e escuros da casa. Eles conversavam entre sussurros.
A mão livre dele pousava sobre a espada na cintura. — Eu soube que uma
cidade em Tannenberia foi atacada por um dragão. Era um Kyn. O rei
Gureryne pediu ajuda aos draconianos, e o imperador estará enviando os
melhores guerreiros para as terras humanas. Seu marido será um deles.
— Acha que eles estão bem? — Luna se referia aos seus dois
companheiros de infância: Hanzor, seu primo, e Hyun-seo, seu melhor
amigo.
— Sim, eu confio nos dois. Hyun-seo sempre colocou o juízo que
faltava na cabeça de Hanzor. No entanto, minha senhora, temo que o
comandante Ahuriel a leve nessa missão. Você sabe que pode ser perigoso.
Luna estremeceu.
— Será qiue eles descobriram sobre a essência?
— Receio que não, contudo, sua ida a capital humana pode resultar em
um desastre. Lembra o que aconteceu com minha mulher? Eles a mataram
grávida porque ela era amaldiçoada. — Eun-seo parou por um instante. —
Se descobrirem que você tem a essência das três entidades esquecidas, irão
matá-la da mesma forma; e eu se eu perder você, minha doce criança, eu
não terei mais motivos para brandir uma espada.
Lunaysis tinha a esperança de Misairuzame em suas veias. No entanto,
jamais entendera o motivo de nascer com uma essência que julgavam ser
amaldiçoada. Procurou em livros e tudo que encontrou foram teorias não
concretizadas. Não existia histórias sobre a essência, nenhuma mulher
sobreviveu o suficiente para dominar o poder dado pelas entidades; e a
moça esperava não ter o destino delas, esperava não ser morta pelos
superiores draconianos.
Tudo o que ela queria era viver, criar seu filho e ser livre.
— Lembra, minha senhora, como ela costumava te chamar?
— Filha da Esperança... — Luna sussurrou com os olhos marejados.
Nar-ha era como a mãe que a jovem jamais tivera.
O guerreiro sorriu.
— Misairuzame não a presenteou em vão. Nossa raça precisa aprender
o que esqueceu e respeitar a vida como ela é, não do modo que acreditam
ser. — e a moça retribuiu o sorriso após as palavras de seu guardião. — O
que acha de voltar para o seu quarto agora? Prometo deixar-te informada de
tudo, minha senhora.
Luna recebeu a mensagem sobre a viagem às terras humanas de
Tannenberia na noite do mesmo dia. Ela encenou uma falsa surpresa, pediu
as criadas que preparassem seu banho e implorou a sua entidade que
protegesse seu caminho. A jornada ao continente vizinho seria um desafio,
uma provação. Ela precisaria ter cautela e se manter invisível aos olhos dos
superiores, caso contrário, se descoberta, morreria; o que a confortava era o
fato de ter Eun-seo e Hyun-seo ao seu lado.
Vinte vassalos do comandante Krimnell a acompanharam até a
carruagem na manhã seguinte. Ela e o marido ficariam hospedados no
Palácio da Aurora de Cristal por alguns dias, e a notícia encheu o coração
da jovem de uma repentina alegria. Seria a primeira vez que visitaria a mais
importante construção draconiana. Eles partiram cedo pelos caminhos de
terra que ligavam a cidade de Almae’khat à capital.
A sagrada Aumas era localizada em terras elevadas em um ninho de
cachoeiras colossais. A cidade parecia flutuar em meio as águas
transparentes que corriam depressa e despencavam em jorros torrenciais. O
sonho de draconianos menos privilegiados, mestiços e escravos era
atravessar a ponte de marfim e o portão de cristal que separava a capital das
terras baixas para se encantar na paisagem etérea da capital.
Mas eles não podiam.
Aumas era um local sagrado: pouco acesso e muita proteção. Era
guardada noite e dia, de primavera a primavera, por guerreiros que não
hesitariam em tirar a vida de quem ousasse se aproximar dos portões. As
casas da capital seguiam um padrão de cores esbranquiçadas, semelhantes a
lua; e as ruas eram decoradas com cristais e flores vibrantes. O centro de
tudo era o palácio — imponente e belo como uma morada de deuses.
O comércio era proibido na capital, o que fazia as ruas serem calmas e
de pouca movimentação. Draconianos nobres caminhavam em praças
floridas, observavam a beleza das cascatas, admiravam as fontes com a
imagem de Lunyar e conversavam tranquilamente para ressaltar a raridade
de seu berço natal. O que se destacava em Aumas, porém, era a vasta
Acatemia, principal campo de treinamento para guerreiros draconianos, e a
torre de Spiratemia, local em que pesquisadores tentavam desvendar as
origens do mundo e o poder da lua. Toda a imponência dessas construções
não era capaz de contagiar o coração da draconiana da mesma maneira que
o Jardim dos Cristais de Arco-Íris. Era um ambiente pacífico no topo de
uma cachoeira menor. O sol que brilhava acima do jardim fazia as cores das
flores formar um pequeno arco-íris na paisagem que provocava sorrisos
ingênuos da senhora Krimnell. Ela estava ajoelhada, as mãos ao redor de
uma flor de um verde quase brilhante.
O Olho de Ysis, era o nome, a favorita dela.
Uma cor semelhante a essência que amaldiçoava sua vida.
— Nar-ha nunca chamou essa essência de maldição. Ela chamava de
benção... então eu quero acreditar... — ela sussurrou com a flor entre os
dedos. — Eu quero acreditar que não nasci com uma maldição, e sim uma
benção.
Elas irão nos abraçar se aceitarmos suas essências como parte do
nosso ser, Nar-ha dizia todos os dias. Ela acreditava que o poder das
entidades, deusas como ela dizia serem, iria unir todas as raças em um
mundo mais igual.
— Eu quero acreditar... porque eu sempre acreditei nas palavras dela.
— e a jovem observou o céu. — Como faço para acreditar em vocês,
deusas?
O vento soprou gentilmente em seu rosto como um beijo de mãe.
Lunaysis sentiu seus dedos formigarem e pequenos fragmentos de
esmeralda cintilaram ao redor da flor. Deram-lhe brilho, beleza, vida... uma
imagem que moldou um sorriso nos lábios rosados da draconiana. Ela era
herdeira de Misairuzame, a deusa dos ventos de esmeralda, quem trazia
esperança em suas brisas.
— Eu aceito... — Luna continuou sorrindo. — Eu aceito o seu poder,
Misairuzame.
E os ventos da esperança contagiaram o mundo.
CAPÍTULO OITO

O PEQUENO TIGRE

A ESTRELA DA NOITE ABRIU OS OLHOS e estremeceu. Sua imagem humana


havia desaparecido, as escamas negras retornaram e seu corpo fragilizado
rastejava nas margens de um riacho. Ela moveu o focinho, era noite e a
floresta densa a envolvia num abraço sombrio. O som da cachoeira estava
distante, o ceifador estava distante, mas suas dores e os ferimentos estavam
próximos. Uma dor torrencial na asa a fez lacrimejar. O membro quebrado
pendia desajeitado ao lado de seu corpo — uma infecção negra se alastrou
pela membrana e criou um ferimento amargo que fez o estômago vazio dela
urrar em desconforto. Uma fratura exposta a atormentou, e se não o tratasse
em breve, provavelmente perderia a asa.
Jamais experimentaria a sensação de voar e satisfaria o desejo do
draconiano.
Ela não conseguia se levantar; e se não levantasse, se não se
escondesse, caçadores a encontrariam facilmente. Ele a encontraria. Uma
fêmea de dragão negro perdida na floresta era como um baú de ouro. Todos
a caçariam... ninguém ajudaria.
O desespero e o desejo de se salvar ocasionou em três trocas de forma
seguida. O dragão se tornou humano, o humano se tornou dragão... e
humano novamente. Ela sentiu a pele se arrepiar como se seus ossos
estivessem aumentando e diminuindo ao mesmo tempo — e havia muita
dor no processo. A mulher-dragão rastejou nua pela margem do lago e o
cansaço a venceu na terra molhada. Então, entre um suspiro entrecortado e
um gemido abafado, desmaiou. Mais tarde, ela despertou com o coração
acelerado. Seu corpo inteiro formigou e a cabeça latejou. Ela não sabia por
quanto tempo ficara inconsciente, mas se sentia aliviada ao ver que nenhum
caçador a encontrara. A palavra aliviada causou uma estranha sensação
nela. Ela, de fato, se sentia assim. Não por ter a sua vida salva pelo acaso,
mas, sim, pela ausência repentina de muitas de suas constantes dores.
Ela abriu os olhos e feixes solares a iluminaram.
Era dia, um calafrio percorreu sua espinha e o sol a aqueceu. Ela não
iria falhar: encontraria o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes e faria a vida
do dragão que a ajudara não ter sido em vão. O desejo de melhora
alimentou seu coração ferido; e ela, fatigada, moveu os olhos. Sua visão
estava parcialmente turva, estava ainda fraca e debilitada, no entanto, pode
ver um semblante entre arbustos próximos.
O sol delineava sutilmente os traços do estranho. Ele se moveu com
cautela, as mãos ocupadas e se sentou ao lado dela. Ela sentiu um toque
suave em sua pele humana, depois uma sensação de frescor — como se
todos as suas feridas houvessem desaparecido naquele instante, ou talvez se
amenizado. A jovem suspirou e ouviu uma risada, leve, ingênua, infantil.
Ela não podia ver as feições dele, estavam embaçadas, mas os cabelos
alaranjados, quase vermelho, emanavam vida e calor.
Você está segura agora, foram as palavras dele. A Estrela da Noite
adormeceu uma segunda vez e ouviu em seus sonhos as palavras de
conforto que o menino sussurrou no escuro. A luz estava extinta e a mulher-
dragão se viu implorando pelo calor do sol e a tranquilidade de dias de
liberdade. Nesse amontado de sentimentos, então, a jovem não encontrou a
rotineira sensação de solidão que seu coração se apegara. A presença do
estranho, a criança de mãos quentes, confortou seu âmago perante abismos
de medos.
Era a primeira vez que não se sentia sozinha.
Seu corpo se aqueceu e a luz a puxou para a realidade.
A luz, o fogo, os olhos de esmeralda.
Ela viu o rosto do menino. Ele se ocupava com uma porção de ervas e
as misturava em uma pequena vasilha. A noite se estendia na região e um
céu vazio os observava, sem estrelas, somente a lua. A mulher-dragão
percebeu uma melhora em seus ferimentos: a perna estava enfaixada, as
bolhas ocasionadas pelas chamas do dragão estavam menores e quase sem
dor.
Ela dirigiu a atenção para o menino e seus olhos se encontraram.
Um sorriso iluminou o rosto dele.
— Você finalmente acordou! — havia um profundo alívio em seu tom.
Ele segurou firme o recipiente e se inclinou na direção da estrela. — Eu
tinha esperanças que iria resistir. A seiva da Árvore de Coração trata
infecções e alivia a dor… vai estar melhor em breve! Você esteve
inconsciente por dias. Fico realmente feliz em te ver melhorar.
...e ele cuidou dela todos os dias?
O mundo não parecia tão corrompido como ela imaginava.
— Eu sou Aru Tiggrë! Você tem um nome?
Ela não tinha, e buscou força para falar. Era impossível, todavia, não
desistiu: respirou fundo para lembrar a voz que esquecera no silêncio de
anos de isolação e tortura. Seu coração estava tão cheio de vontade que ela
se viu ofuscada por um grito cheio de energia.
O menino se assustou.
— Está tudo bem! Não se preocupe! Não se preocupe! — ele disse
depressa com as bochechas coradas. — Tudo bem se não consegue agora,
podemos tentar depois. Eu acho que o mais importante é ver seus
ferimentos. Você estava muito machucada. Lembra quem fez isso a você?
Nunca esqueceria: os draconianos. Eles fizeram muito: prenderam-na,
torturaram-na e julgaram-na. Contudo, eles não pareciam ser os culpados
pela perda de seu passado ou de sua voz; e ela não tinha conhecimento de
quem o fizera.
A mulher-dragão respondeu com um sussurro forçado.
— Draconianos... — e o menino ponderou no nome. A expressão dele
mudou e uma sutil preocupação o dominou. — Devem ser caçadores. Eu
preciso tirar você daqui ou eles vão te encontrar... Será que você tem forças
para andar?
Tiggrë fez menção de ajudá-la a se levantar, mas recusou depressa ao
ver o semblante dela se fechar.
Ele sorriu tristemente.
— As pessoas que te machucaram devem ter feito coisas horríveis...
Desculpa. Você consegue se levantar sozinha?
A Estrela da Noite tentou e tentou e tentou. Sua força, porém, estava
ausente; e ela caiu cinco vezes. Sentiu o gosto da terra, o gosto da dor e
recusou o gosto da derrota. Ela tentaria dez, quinze vezes se fosse
necessário. Todavia, na sexta, o menino se ajoelhou ao lado dela e lhe
estendeu a mão.
Os olhos dele brilhavam como esmeraldas.
— Eu tinha quatro quando os draconianos me machucaram muito
também. Eles assassinaram meus irmãos e minha mãe, eu pude assistir tudo
porque eles não me mataram. Olhe para ele, podemos vender, eles
disseram. — Tiggrë contava a história como se estivesse lendo em um livro.
As palavras saiam como música de seus lábios. — Fui escravo por dois
anos, dois anos em que vivi em um mundo miserável e sem cores. Eu tinha
seis anos quando fiquei doente e quando alguém estendeu a mão para mim.
Eu não aceitei no começo, eu havia sofrido tanto que era difícil confiar que
pudesse existir pessoas boas. Mas ele sorriu... — e o menino sorriu. — e
disse que tudo ficaria bem.
A mulher-dragão sentiu cada sensação em sua pele.
— Tudo vai ficar bem. O mundo pode ser miserável... mas ele também
é belo.
Ela precisava de alguém que lhe mostrasse que a vida não era
dominada por dor e sofrimento, alguém que lhe mostrasse que o mundo era
realmente belo e que havia chance de ser livre. Tiggrë proporcionou esse
sentimento ao sorrir e estender a mão. Ela a aceitou, então; menino a
amparou, consideravelmente alto para sua idade, ajudando-a a se escorar
em um tronco.
— Muito bem! — ele comemorou com euforia. — Está sentindo
alguma dor?
A Estrela da Noite negou.
Seu corpo permanecia envolvido pelo manto do dragão que a ajudara.
— Não se mova, por favor, eu vou chamar Roren para me ajudar.
Lembra minha história? Foi ele que me encontrou e me deu uma segunda
vida. É um humano bondoso! Espere por mim, está bem?
Tiggrë correu apressado como se temesse deixá-la sozinha por
minutos. Ela o esperou sem se mover; e nem poderia. Seu corpo humano
estava dolorido e a fatiga dificultava o ato de respirar. A Estrela da Noite
fechou os olhos para dissipar os devaneios confusos, o formigamento
insistente e seu desejo de seguir em frente. Ela se sentia atrasada, e as
respostas de seu passado não esperariam por ela. Dolorida, não soube por
quanto tempo permaneceu com os olhos fechados. Talvez minutos, talvez
horas; a concepção de tempo é estranha quando estamos cansados, mas a
movimentação na mata a fez ter certeza que o menino se aproximava com
companhia.
Mas ao abrir os olhos viu três figuras desconhecidas.
Três humanos. Armados. Caçadores.
— Uma mulher! — riu o maior deles. Ele tinha músculos robustos e
um tom rouco. Uma cicatriz profunda marcava sua testa. O que a confortou,
num primeiro momento, foi o fato de não ser reconhecida por sua origem.
Eles não sabiam o que ela era de verdade. — Se um é uma mulher perdida
nesse fim de mundo.
Ela sentiu a cabeça doer, sequer tinha forças para reagir.
— Podemos vender ela na cidade de Solaris. A caça na floresta não tá
rendendo nenhuma porra de lucro. — disse o segundo. Ele tinha uma
expressão assustadora, mas não se comparava a sombria de Leto Demétrius.
O terceiro era um homem rechonchudo. O suor lhe escorria pelas
bochechas e pescoço, e ele a observava como se a mulher fosse algum
alimento. A Estrela da Noite tentou se mover, teria chance se corresse,
porque se fosse se transformar, causaria um alvoroço e outros caçadores
poderiam aparecer. No entanto, a mão pesada de um do primeiro homem a
agarrou pelos cabelos. Ele a segurou violentamente e a fez o encarrar de
perto.
A mulher-dragão fechou os olhos para não ser descoberta.
— A vagabunda tem todos os dentes. Olha só! Deve ter vindo daquele
continente amaldiçoado. — o homem a avaliou e os outros se aproximaram.
Ela tentaria escapar se não se sentisse tonta e a beira da inconsciência.
A pressão que o caçador fazia ao segurar os seus cabelos piorava a dor de
cabeça. Doía tanto a ponto de explodir. Mas ela precisava reagir... se não o
seu sofrimento, a morte do dragão e os cuidados do menino não teriam
valido a pena. A jovem agarrou o pulso do homem com suas unhas
disformes e as enterrou na pele dele. Ele praguejou, depois riu, lançando-a
com brutalidade no chão. Um chute nas costelas a fez vomitar bolas de
sangue.
Um deles arrancou o manto que a envolvia, e os três riram com
satisfação.
— Segurem a vadia, quero me divertir antes de vender ela.
As mãos que a agarram não foram bondosas, provavelmente deixariam
marcas em sua pele frágil. As intenções perversas dos caçadores, no
entanto, sequer foram iniciadas: o cheiro de sangue fresco cortou o coração
da floresta e os impediu de qualquer ato. Não era dela; e um urrar de agonia
se espalhou com o vento. De olhos fechados, ela ouviu os homens se
afastarem depressa e gritarem palavras sem sentido. Houve um som de
espadas repentino, mas ele se silenciou tão rápido quanto surgiu. A Estrela
da Noite ousou abrir os olhos e uma torrente de sangue esguichou no rosto
dela.
A cabeça de um homem rolou aos seus pés.
O segundo morreu em silêncio.
O terceiro desapareceu em um grito agudo de pavor.
— Desgraçados! — e uma voz masculina de tom odioso reverberou ao
redor. A Estrela da Noite a procurou na mata e não encontrou ninguém.
Seus olhos vacilaram e ela apagou por segundos. No momento seguinte, viu
um homem manchado de sangue se aproximar.
Me deixem em paz... era o que queria ter dito.
CAPÍTULO NOVE

ESTRELA PERDIDA

ELA NÃO DISSE O NOME DELA... Estava tão ferida que fiquei com medo que
não resistisse, senhor Roren. Eu estou preocupado... Ela parece perdida
nesse mundo e dentro dela.
A mulher-dragão ouviu parte da conversa enquanto estava entre a
consciência e a inconsciência. O menino cumprira com suas palavras de que
tudo ficaria bem, as dores estavam distantes e um abraço quente envolvia
seu corpo. Fumaça. Fogo. Água. Ela sentiu os elementos ao redor, as
sensações impulsionaram seu despertar. Abriu os olhos e se viu em um
ambiente estranho. Haviam paredes de madeira ao redor, um cheiro forte de
hortelã fresco e uma fumaça branca que ocultava parte do cômodo. O céu,
porém, estava oculto e o desespero de estar presa novamente contaminou os
pensamentos da jovem. Ela se debateu e o mundo se afogou numa escuridão
densa.
A Estrela da Noite não conseguiu respirar. Sua boca se encheu de água
e sua garganta fechou.
Deuses! Ela está se afogando!
Mãos enrugadas tragaram-na para superfície e uma lufada de ar
invadiu seus pulmões. O vapor se dissipou e sua visão se acalmou: ela
estava em uma enorme banheira de madeira — coberta até os ombros de
água. Não fora o menino que a ajudara, mas um velho e encurvado humano
de fios grisalhos. Ele a observou assustado e ofegante enquanto gotas de
suor escorriam na testa. A Estrela da Noite afastou o toque dele depressa e
escorregou uma segunda vez na água quente. Seus dedos agarraram
desesperadamente as beiradas da banheira e ela retornou à superfície
tossindo.
O homem tentou tocá-la, mas ela o impeliu com o que restava de sua
força. Calma, o ouviu dizer e não encontrou a tranquilidade enquanto não
soubesse onde realmente estava. O menino que a ajudara, Tiggrë, se fez
presente com um amontoado de ervas e tecidos velhos em seus braços. Ele
os lançou sobre a mesa e aproximou da mulher-dragão com os braços
abertos como se tentasse explicar que não havia o que temer.
— Tudo vai ficar bem... lembra? — e seus cabelos de fogo escorreram
úmidos em seus olhos. Ele estava inteiramente suado. — Tudo vai ficar
bem.
A Estrela da Noite se encolheu na água e seus olhos ficaram atentos na
chama bruxuleante de uma vela. Tudo vai ficar bem, ela queria acreditar
que fosse verdade e, assim, seu coração bateu em ritmo e seu corpo parou
de tremer. Uma pontada intensa alfinetou suas costas, mas ela ignorou com
um gemido contido. A fêmea de dragão sabia o que era... sua asa, quebrada,
despedaçada e destruída pelo ceifador e sua ganância. Os draconianos e sua
crueldade. Ela fechou os olhos e sobressaltou ao sentir um toque repentino
em sua pele. Era gentil e reconfortante. Tiggrë usou um pano úmido para
tirar as crostas de sangue e sujeira que a Estrela da Noite tinha no pescoço.
Roren, o mais velho, tentou ajudar na limpeza, mas o olhar raivoso dela o
afastou.
Ela percebeu a expressão de Tiggrë mudar durante o banho. O sorriso
iluminado e cheio de luz do menino deu lugar a preocupação e ao medo. Ele
suspirou em um momento e seus olhos encontraram os de Roren em um
aviso silencioso. A Estrela da Noite não entendeu, e permaneceu na água
enquanto seus longos cabelos negros flutuavam ao redor. Um sussurro
incerto do menino pediu que ela ficasse de costas. Ela o fez, embriagada
pelas sensações que experimentava pela primeira vez depois de anos em um
calabouço escuro.
Um tempo que ela queria esquecer. Principalmente do homem sem
nome e sem rosto que a torturou naquele lugar. Ele nunca revelou o motivo
da violência; e com o tempo, ela aprendeu que suplicar por compaixão era
em vão. Aprendeu a suportar. Aprendeu a sentir raiva. Aprendeu odiar; e
era por isso que ela não entendia bons sentimentos.
Porque jamais os aprendeu.
— Ei. — e a voz dele a despertou. Só então a Estrela da Noite
percebeu o quão sonolenta estava: o corpo mole, os olhos pesados e o
desejo de adormecer sem medo. Sem nenhuma dor. — Está gostando da
água? Eu coloquei uma essência que faz o corpo relaxar... Talvez queira
ouvir uma história enquanto descansa?
Ela não o respondeu, não gostava de histórias ou lendas que não
pudesse comprovar com os próprios olhos. Tiggrë sorriu e ensaboou uma
mecha de cabelo dela. Ele não parecia ter desistido de dar vida as suas
palavras. O silêncio da madrugada lhe foi favorável e ele sussurrou
docemente:
Agëa, o mundo, como é conhecido hoje; ontem, era Mundus, o plano
divino. Ele nasceu de duas entidades, não eram deuses, estavam a um passo
disso e partilhavam a dualidade de suas essências. Nin era a existência, a
luz e a ordem. Ein era a inexistência, a escuridão e o caos. Dizem que eles
não têm uma forma exata, mas Nin se assemelhava à um corpo humano e
Ein era uma serpente alada. Nin e Ein criaram Mundus quando o tempo era
incerto e o habitaram com a noite, Lunyar, na imagem de uma mulher; o
dia, Sunyar, na imagem de um homem, e o tempo, Hatanyar, um dragão.
Hatanyar foi o primeiro a descer em Mundus e o primeiro a propagar
seres vivos racionais no plano mortal: os Kyn. Eles eram a imagem de seu
criador, dragões com escamas negras que representavam a essência de Ein e
olhos dourados como as chamas vivas do deus-dragão. A raça, porém, era
constituída apenas de machos — incapazes de dar continuidade a espécie. O
poder de Hatanyar estava escasso após a criação que o inibiu de dar origem
as fêmeas, então, ele pediu ao seu criador, Ein, que propagasse em Mundus
seres semelhantes a raça dos primeiros dragões. O pedido fora cedido, mas
os dragões de Ein eram diferentes dos Kyn de Hatanyar; e a espécie dos
primeiros dragões perdeu aos poucos seu sangue nobre.
Hatanyar, enfurecido, os separou dos demais dragões e os exilou nos
abismos do mundo — onde a raça não pudesse ser corrompida. Isso não
resolveu o problema da continuidade dos primeiros dragões e Hatanyar
buscou auxílio com a deusa da noite, Lunyar, e ambos se apaixonaram. Ela,
no entanto, pertencia a Sunyar, o deus do dia, e ele a puniu num exílio
eterno sobre Mundus: a lua. O deus-dragão jurou vingar sua amada e,
sacrificando parte de sua imortalidade, deu origem as estrelas.
Ele as chamou de Estrela da Noite: porque no céu, elas eram
fragmentos brilhantes que iluminariam a escuridão e protegeriam a deusa
durante a eternidade; e no plano mortal, elas eram as fêmeas dos primeiros
dragões. O poder que elas guardavam era tão intenso que os machos da
espécie se ajoelharam diante delas e as adoraram como adorariam um deus.
Tiggrë encerrou a história com as bochechas coradas.
— As Estrelas da Noite... olhos como o sol, escamas como a noite e a
esperança de uma raça em extinção. — e o menino murmurou com os dedos
entrelaçados nos fios molhados das mechas da mulher. — Você é uma
Estrela da Noite... não é?
Ela o observou. Ela era uma realmente uma Estrela da Noite. O
ceifador exclamara isso aos céus, o draconiano bondoso sussurrou sobre sua
admiração pelas estrelas e o dragão mencionou que o mundo era perigoso
demais para uma. Ela se encolheu e suspirou — não havia como se
esconder do que era. Não existia um ser vivo que compartilhasse os
mesmos olhos que os dela: olhos de dragão.
Aru Tiggrë mostrou uma grande sabedoria ao contar o que sabia sobre
as Estrelas da Noite apesar de sua pouca idade. Ele contou cada detalhe
com um entusiasmo admirável como se a história fosse a sua favorita. As
estrelas, infelizmente, estavam desaparecendo. O céu estava se tornando
negro e a lua residia sozinha. Restavam duas Estrelas da Noite... duas para o
mundo mergulhar no caos.
— Mas sempre há esperança. As Estrelas da Noite guardam um poder
inimaginável dentro delas. Eu acredito que o deus Hatanyar jamais deixaria
suas filhas serem extintas... há relatos de uma essência que as Estrelas da
Noite carregam. Os draconianos chamam isso de maldição... e as caçam
porque temem.
— Esse... — o corpo dela estremeceu. As palavras morriam em sua
garganta.
— Essência. Eu não sei o que muito sobre... na verdade, poucos sabem.
Dizem ser parte do poder que o deus-dragão compartilhou com suas filhas.
Deuses. Lendas. Não era palavras verdadeiras, mas crenças de um
povo, de culturas, palavras que eram soltas ao vento e recontadas à sua
maneira.
...e ela dormiu sem acreditar nelas.

O conforto improvisado cedido pelos humanos não foi o suficiente


para fazê-la descansar. Os ferimentos estavam melhorando, as ervas
anestesiaram a dor, mas a ansiedade era mais forte e a Estrela da Noite
pensou no Desfiladeiro dos Dragões Gigantes durante a madrugada. Ela
esperaria o suficiente para melhorar e partiria em busca do destino
mencionado por seu semelhante. Seria lá que ela se encontraria.
Tiggrë despertou no raiar do dia. Ele dormira amontoado de cobertas
no chão e cedera sua cama para a mulher-dragão. Ela não demonstrou
gratidão pelo gesto do menino, não porque era arrogante — e talvez fosse
—, mas, sim, porque jamais lhe ensinaram o significado dessa palavra; e se
o fizeram, ela havia esquecido junto com o seu passado. A Estrela da Noite
mancou com dificuldade para o exterior da casa. A paisagem iluminada e os
raios quentes do sol prenderam a respiração dela. A clareira em que a
moradia era situada estava abarrotada de pequenos canteiros das mais
diversas verduras e legumes. Tiggrë mencionou ser o sustento deles e que o
velho Roren cuidava do plantio como cuidaria de um filho. Ele não tinha
uma família de sangue e tudo o que o menino sabia do humano era que ele
havia sido um escravo, antes da lei de abolição, nas cidades costeiras
durante a adolescência. Ele pouco falava de seu passado.
O cheiro de hortelã que a Estrela da Noite sentia com frequência era
originado de extensas mudas que rodeavam a casa. Era um aroma forte e
estranhamente familiar. A clareira proporcionava a mulher-dragão um
sentimento nostálgico e inexplicável como se o lugar, o cheiro, a
intensidade, fossem parte de dias que se perderam dentro dela. Por que seu
coração estava tão acelerado? O menino segurou a mão dela e a puxou para
a realidade. Tiggrë sorriu e mencionou a existência de mais moradores na
proximidade. Eram pessoas bondosas que não fariam mal — e que havia
um semelhante dela.
— Ele é um dragão também. — o garoto disse com euforia. — Ele nos
encontrou há algumas semanas... não sabemos de onde ele veio.
Tiggrë teria explicado mais se o citado não estivesse os observando
entre as folhagens com seus grandes olhos negros. As escamas cinzentas do
gigante demonstravam que apesar de serem semelhantes, ele e a Estrela da
Noite eram de espécies diferentes. Ele deu um passo à frente e deixou
esconderijo. Cinco ou seis metros, ela observou e o encarou.
— É o Mom-mom! — Tiggrë disse depressa.
A fera descansou suas patas dianteiras e arrastou o corpo com as
traseiras. Grunhia como um filhote, cheio de doçura, cheio de compaixão na
tentativa de convencer que não era uma ameaça.
A mulher estendeu uma mão e o dragão a acariciou com seu focinho.
Era enorme e coberto por cicatrizes.
— Isso é um milagre! Ele nunca é gentil com ninguém além da Luce.
— e o menino fez menção de acariciar o gigante também. Contudo, Mom-
mom rosnou em ameaça. — Eu disse!
— ...O que ele... fazendo aqui? — ela questionou.
— Eu sinceramente não sei, nem o senhor Roren sabe. O Mom-mom
apareceu aqui com muita raiva, cheio de cicatrizes e ferimentos, mas
demonstrou afeto por uma mestiça. Ele é de uma espécie extinta de dragão.
Acredito que tenha fugido de algum cativeiro.
Os olhos nebulosos de Mom-mom causaram aflição na Estrela da
Noite. Eram cansados, de quem vivera na escuridão e vira o pior do mundo.
Ela se viu nele, no medo que exalava ao pensar em ser acorrentado
novamente e ter a liberdade roubada. O dragão respirou devagar e
balbuciou palavras indecifráveis. Ele não era capaz de usar as palavras com
a ausência da língua, mas a Estrela da Noite era capaz de entendê-lo
somente pelo olhar. Ele ronronou como um filhote e inclinou o focinho
contra a mão dela.
Era cinco vezes maior que ela.
— Você deve ser a Estrela da Noite que o senhor Roren falou! — a voz
viera de trás do dragão. Era Lucinda. Ela se aproximou devagar com um
punhado de frutas enroladas no vestido e um sorriso estampado em seu
rosto. — Ele disse que você é um dragão, é verdade?
As fendas negras nos olhos da mulher se dilataram, mas não
respondeu.
— Não tente, Luce! Você já tem um dragão! — Tiggrë saltou em
frente. Era estranho para a Estrela da Noite ver como ambos pareciam tratar
os dragões como um brinquedo, sem preconceito ou ambição como se
estivessem acostumados.
— Ela é muito linda! — Luce riu docemente.
— Eu que encontrei! Agora ela é minha estrela! — e o menino insistiu
com as mãos na cintura e o cenho franzido.
Estrelas... A mulher-dragão ignorou o tagarelar das crianças e prendeu
sua atenção nas luzes douradas do sol. Elas penetravam por entre as folhas e
iluminavam seu rosto. A sensação era quente, acolhedora e seus olhos se
fecharam para melhor sentir o toque do astro rei. Então, o silêncio repentino
dos mais jovens a fez despertar e observar a paisagem mais uma vez.
Um homem se aproximava deles. Cabelos prateados. Olhos
esbranquiçados. Tiggrë murmurou o nome Klud e o estranho parou a exatos
dois metros deles. Ele respirava com dificuldade, os fios disformes de seu
cabelo grudavam na testa e suas mãos tremiam intensamente.
— Doze anos. Dez meses. Seis dias.
...e a voz dele cortou o mundo.
— Esse foi o tempo que esperei por seu retorno... Yanaamahka.
Um nome distante.
As palavras que deixaram os lábios do homem pálido fizeram o mundo
da Estrela da Noite se partir ao meio.
Yanaamahka.
Um nome. Uma identidade. Vozes surgiram ao redor e se direcionaram
a ela, mas seus pensamentos vagavam numa realidade negra na tentativa
frustrada de encontrar resquícios daquele nome dentro dela. Não havia
nada, sequer uma sombra, um sussurro, um fragmento. Seu interior era
vazio como sua expressão exterior. Não existia o que sentir — somente a
confusão, essa ceifadora cruel e destruidora.
Tiggrë agarrou a mão dela e a jovem moveu seus olhos dourados para
ele. O menino a observava com temor, preocupado com a possibilidade da
revelação contagiar o coração perdido que ela tinha. Ele tentou falar, seus
lábios se moveram, mas a Estrela da Noite não ouviu nada; e quando
direcionou a atenção para o homem que sussurrara o nome dela, a escuridão
a abraçou.
...e ela despertou com um sobressalto mais tarde. Seu corpo inteiro
estremeceu e uma pontada nas costas causou um desconforto incessante. As
dores, as cores, as sensações das horas anteriores estavam presentes e ela
sentiu um arrepio ao lembrar das palavras do homem. Doze anos. Dez
meses. Seis dias. Seria esse o tempo em que ela ficara aprisionada na
escuridão do calabouço?
Yanaamahka, ela repetiu o nome.
Sua linha de raciocino fora interrompida pela entrada barulhenta do
menino tigre e do velho homem chamado Roren. Ambos se amontoaram ao
redor da cama como se a jovem fosse algum tesouro perdido. A expressão
deles estava inundada de sentimentos; de surpresa, de incredibilidade e de
ansiedade. Tiggrë, porém, era quem mais transbordava reação: ele parecia
maravilhado, as mãos trêmulas com a pequena vela que segurava. Era noite:
ela havia apagado por mais de dez horas.
— Quando a vi chegar... — Roren dissera de repente. — Eu não a
reconheci... mas agora. Deuses. Posso estar velho, mas meus olhos não
mentem. É realmente você... Yanaamahka.
O coração dela palpitou.
— Klud é cego... como ele pode reconhecer ela? — Tiggrë quem
indagou.
— Ele a reconheceria mesmo depois de cinquenta anos.
Eles iniciaram uma conversa sobre ela, mas a Estrela da Noite não
prestou atenção no que diziam. Seus olhos estavam na chama da vela, no
calor singelo que ela emanava, enquanto seus pensamentos vagavam em
terras distantes.
Seu nome era Yanaamahka?
Teria ela finalmente encontrado sua identidade?
Ela o repetiu em silêncio e se sentiu desesperada. Se esse era o seu
nome, porque então se sentia distante e vazia?
— Você não parece muito bem... — Roren dissera com um sorriso
triste. Ele estendeu uma mão para tocá-la, as a jovem se afastou depressa.
— Há algo em seus olhos... você está me entendendo, Yanaamahka?
Os lábios dela secaram.
As pessoas lembravam dela, elas sabiam o seu passado, mas nada
restava a não ser um vazio que ela não conseguia se livrar. A Estrela da
Noite desviou os olhos para o chão e se manteve em silêncio.
— Talvez ela precise descansar mais, senhor Roren. — Tiggrë colocou
a vela no suporte sobre a cadeira. — Os ferimentos dela não melhoraram
muito.
— Tudo bem. — e o homem desviou os olhos cansados para ela antes
de sair. — Você tem todo o tempo do mundo para descansar.
Tiggrë permaneceu ao lado dela na madrugada como fizera na floresta.
Ele preparou um ensopado de batatas. O alimento não era um dos melhores,
mas a fome dela era tanta que não se importou com o sabor ou com a
necessidade de um pedaço de carne — ela devorou sete vasilhas cheias. O
menino se comunicou o tempo todo, seu monólogo era incansável e suas
histórias sem fim. A Estrela da Noite não prestou atenção em grande parte
das palavras do pequeno, mas observou curiosamente o modo que sua
expressão mudava a cada sílaba. Ele constantemente ficava com as
bochechas ruborizadas. Tiggrë somente se calou quando percebeu a
expressão azeda dela, e dormiu amontoado em cobertas no chão do quarto.
A mulher-dragão não adormeceu no silêncio.
Era a segunda noite que não conseguia dormir.
Seus dedos se arrastaram pelos tecidos ásperos da cama e seu coração
palpitou ansiado. Ela precisava se levantar, não queria partir, mas caminhar
e dispersar os pensamentos que atormentavam seu coração. Ela encarou o
menino adormecido, precisava ter certeza que ele não acordaria, e elevou o
tronco com o apoio das mãos. Uma leve tontura se manifestou, mas a
Estrela da Noite se manteve firme e cautelosa ao deixar a cama com os pés
descalços.
A casa inteira estava quieta e ninguém a veria sair.
Ela queria lembrar sozinha o que seu coração insistia em esquecer.
Se aquele era realmente o cenário de sua infância, ela precisava
desbravá-lo e senti-lo para que pudesse se familiarizar. Yanaamahka — era
estranho pensar no nome como se fosse seu — atravessou a cozinha
apertada com passos desajeitados, uma dor nas costelas a fez morder os
lábios e praguejar contra os caçadores que a atacaram. Eles estavam mortos,
felizmente. A floresta lhe causou um arrepio quando saiu. A casa de Roren
se localizava numa clareira apertada por árvores robustas que pareciam
encarar quem olhasse. As folhas farfalhavam sinistras com a brisa noturna e
nenhum animal sussurrou nas redondezas. Ela ouviu, porém, um chiar baixo
de uma cachoeira distante e o som de um córrego em movimento.
Sombras a envolviam na mata da Floresta Viva, elas pareciam ter
olhos, pareciam agarrá-la; e muitas vezes a Estrela da Noite fechou os olhos
para ter certeza de sua sanidade. Muito acontecera nos últimos dias,
liberdade, conhecimento, caça, violência, tortura, sangue, fogo e morte. Ela
experimentou sentimentos, sensações, a vida que no calabouço não
acreditava existir. Era como se estivesse oca por dentro, seu coração
poderia palpitar descompassado a cada arbusto ou raiz que atravessava, mas
nenhum laço a ligava as memórias perdidas.
O caminhar a guiou por uma elevação sutil de terra escondida nas
folhagens. Um percurso íngreme se elevava a frente e rodeava uma pequena
montanha que se interligava nas demais. Os picos pareciam adagas
apontadas para o céu com pedras perigosas e formações traiçoeiras — e que
pareciam sussurrar a mulher-dragão para desbravá-las. Yanaamahka seguiu
em frente com a respiração acelerada e avançou com a calma de um clérigo.
Ela tropeçou algumas vezes, praguejava para o ferimento em sua perna,
usava as mãos para se apoiar nas árvores e suspirava para afastar as
pontadas que sentia em suas costas. A dor era um convite para a desistência,
e seria tentador sucumbir ao cansaço se ela não possuísse perseverança e
teimosia em sua personalidade.
Ela jamais desistiria facilmente.
A insistência de Yanaamahka resultou em uma visão que fez seu
coração estremecer. Ela havia alcançado o topo da montanha: uma
paisagem tão bela e estonteante que a estrela se sentiu voando. As nuvens
estavam próximas, o vento soprava como um toque de afeto que ela não
conhecia e a lua desaparecia lentamente. O sol nasceria em breve e
Krynhild o saudaria em toda sua extensão. Era possível ver a floresta
alcançar o horizonte, as árvores, rochas e detalhes da natureza intocada da
região oeste do continente. Todos os detalhes contagiaram os olhos da
Estrela da Noite.
O mundo estava diante dela. Ela não lembrava de sua família, de seu
passado, da vida que experimentara na infância, mas o lugar... Yanaamahka
caiu de joelhos.
Ela conhecia o lugar.
Ela o vira em seus sonhos. Havia um menino neles, de olhos azuis e
palavras doces.
— Yanaamahka.
A voz repentina a fez sobressaltar. Ela havia ouvido antes contra os
caçadores. Então, ergueu os olhos e percebeu o semblante de um homem.
Ele se aproximou devagar, pálido como a lua, roupas surradas e mãos
trêmulas.
— Yanaamahka?
Klud, os lábios dela sussurraram.
Ele deu um passo e a mulher-dragão se arrastou para trás. Os olhos
brancos dele a assustaram, o modo como ele observava uma direção que
não era a dela.
— Eu daria tudo para te ver. — ele tentou extinguir a distância entre
ambos, mas o ranger dos dentes dela o fez parar. A expressão do homem
ficou gelada. — Nossa promessa.
Uma promessa. Os olhos da Estrela da Noite se arregalaram em um
instante. Ela conhecia a promessa. Ver Klud, sua pele da cor da lua, seus
cabelos quase brancos, trouxera o sonho do menino. Eu ainda estou
esperando você. Eu estou esperando... porque você não é apenas uma
Estrela da Noite, mas o pôr-do-sol, o calor que me mantem vivo, foram as
palavras dele.
Yanaamahka se levantou com dificuldade e o encarou em silêncio.
Klud fez menção de tocá-la, mas ela o repeliu com palavras forçadas.
— Não... toca!
E se afastou mais.
— Por que você está se afastando?
Se ele prometeu esperá-la porque jamais fora encontrá-la?
Salvá-la?
— Eu... não lembrar... você... nada.
A frase atingiu as costas do homem como uma adaga.
Ele engoliu seco e respirou com dificuldade. Sua expressão, os olhos
brancos e cobertos por cicatrizes, era de sofrimento. Ele se manteve em
silêncio e ela não soube expressar o que seu coração desejava — a raiva
crescente de ser abandonada por aqueles que tinha laços no passado. Eles
não mereciam nada além de seu desprezo.
Porque ela estava cansada de promessas ao vento.
CAPÍTULO DEZ

ESTRELA ENCONTRADA

O DIA AMANHECEU DEVAGAR. YANAAMAHKA retornara ao casebre de Roren


e o esperou ao lado de fora. Suas pernas doíam e sua cabeça latejava, seria
melhor descansar como lhe haviam aconselhado, mas ela se sentia tão
ansiosa com as palavras de Roren que sequer encontrou o sono. Tiggrë fora
o primeiro a encontrá-la sentada entre as plantações, ele avaliou seus
ferimentos e disse que precisaria mudar o curativo da mão e perna mais
tarde.
Ela não sentiu necessidade de afastar o menino como fizera com Klud
ou Roren, o toque dele em seus ferimentos era como um calmante. Ela
podia sentir a bondade no olhar de Tiggrë e seu cuidado em cada gesto.
Yanaamahka teria dado a vida se alguém como ele a houvesse encontrado
na escuridão, a libertado das correntes, alguém que afastasse toda a solidão
de seu coração. O humano se sentou ao lado dela e sorriu, suas mãos frágeis
agarraram uma fruta madura de um cesto de palha enquanto contava
histórias sobre a origem do mesmo. Ela não tinha certeza se era verdade ou
se ele inventava — embora nunca prestasse atenção por mais de cinco
minutos. O que ela se concentrava era nele: no modo que as palavras
pareciam ganhar vida, asas, cores.
O que ela não entendia era a estranha devoção do menino.
Roren os cumprimentou minutos mais tarde. Ele estava com o cabelo
desgrenhado e o rosto amassado como se houvesse dormido mais que o
necessário. Tiggrë o saudou calorosamente e por um instante Yanaamahka
se perguntou se a gentileza do menino não era apenas com ela. Ele parecia
ser bom para todos ao seu redor.
— Conseguiu descansar, Yanaamahka? — Roren perguntara com um
sorriso. Ele se sentou ao lado dela e a mulher-dragão se afastou
consideravelmente. Aproximações a deixavam irritada e nervosa. — É
estranho ver você tão quieta... Lembro como costumava espantar todos os
animais da floresta. Parece que agora está com o temperamento de seu pai.
Yanaamahka sequer tinha uma imagem do pai em seus pensamentos.
— ...não... lembrar passado.
— Não lembro, na’na. — Tiggrë a corrigiu com suavidade. Ela não
entendeu o significado da expressão e não se interessou em perguntar. — O
senhor Roren disse que o passado é triste.
— A verdade está manchada de sangue. — o mais velho sussurrou.
Yanaamahka se sentiu sufocada e permaneceu em silêncio. — É incrível
pensar que você não lembra de nada, mas eu realmente fico feliz que esteja
aqui.
O que preocupou Roren durante suas palavras foi a indiferença no
olhar de Yanaamahka. Ela não demonstrou nenhuma gratidão ou reação
pelo que lhe era feito ou contado, sua expressão estava distante e seus olhos
opacos. O brilho dourado da infância havia desaparecido, seus sentimentos
também. Porque... o passado era o passado, e o que pertencia à ele, ficava
nele. O velho sabia que a antiga Yanaamahka Draconis morrera no dia em
que se separou de sua família e se perdeu no mundo. Talvez ele não
conseguisse trazer ela de volta, nem mesmo Klud; e o que restava a eles era
conhecer a nova Yanaamahka.
— ...o que... — a mulher-dragão engoliu as palavras. Era difícil se
expressar depois de tantos anos em silêncio. — ...como... acontecer...
aconteceu. — ela se corrigiu depressa com uma sutil irritação.
Tiggrë e Roren a observaram sem resposta. Yanaamahka respirou com
raiva.
— O passado...
— Ela está querendo saber o que aconteceu, senhor Roren! Para de
enrolar!
Roren riu brevemente e, então, ficou sério.
— Não é tão fácil de contar, crianças. Você conseguiria contar seu
passado agora, pequeno tigre? — e as palavras do velho fizeram o menino
encolher os ombros. A Estrela da Noite jurou ter visto um ponto cintilante
nos olhos dele. — O que aconteceu nessa floresta no passado... é difícil de
descrever.
Então ele se pôs em pé.
— Venham comigo.
A verdade está manchada de sangue, e pelo pouco que conhecia de
sentimentos e do mundo, a Estrela da Noite percebeu uma tênue tristeza na
voz do humano.
Ele caminhou devagar e cabisbaixo.
Eles abandonaram a clareira na qual a casa era localizada e
mergulharam na mata por um caminho estreito. O sol se levantava no
horizonte, luzes alaranjadas iluminaram a folhagem e os olhos de
Yanaamahka brilharam como ouro. O astro dourado era fogo, era vida, era
uma parte do mundo que cultivava uma admiração profunda no íntimo da
Estrela da Noite. O sol a fazia se sentir viva. Tiggrë segurou a mão dela, ela
caminhava atrás dos demais, perdida em seus devaneios ingênuos; e viu no
sorriso do menor a semelhança com o símbolo do continente dos humanos.
Tiggrë seria um sol?
Yanaamahka sentiu o peito queimar.
Dez minutos de uma marcha lenta bastaram para que os três
alcançassem o destino: um jardim florido entre árvores e mais árvores.
Pequenos animais circulavam o local, pássaros beijavam as flores e
cantavam uma melodia matinal, harmoniosa; o som causava arrepios na
pele humana de Yanaamahka. Era belo, era nostálgico. No centro do jardim,
havia uma pedra talhada, e rosas vermelhas eram abraçadas por uma cintilar
incomum.
Cristais? Diamantes? Rubis.
A Estrela da Noite aproximou-se da pedra. Havia letras, formas que
para ela não possuíam sentido nenhum. Tiggrë parou ao lado dela, os olhos
verdes ficaram inquietos por instantes.
— Esse jardim é o dela, senhor Roren? — o menino questionou de
repente.
— É o santuário dela.
— O que... é? — Yanaamahka sussurrou.
Tiggrë se ajoelhou diante as escritas.
O belo vermelho, o quente carmesim, o preciso rubi e o intenso sol.
Descanse em paz amada Estrela da Noite. As maravilhas do mundo lhe
foram privadas, mas as deusas te esperam.
Nahemidraal Draconis
A leitura do tigre tivera uma pausa.
— Ela era como você... Uma Estrela da Noite.
— Nahemidraal era sua mãe. — Roren se manifestou com a voz
trepidante. Ele se ajoelhou ao lado de Tiggrë para tocar as palavras talhadas.
O tempo as danificara suavemente. — Nahemidraal era jovem demais...
bela demais para ser assassinada daquela forma. Um draconiano a matou.
Ele se dizia um amigo, um protetor, um guardião, mas a apunhalou na
primeira oportunidade que teve. As intenções dele eram as piores... e ele
também queria matar você, Yanaamahka.
Ela estava em silêncio. Embora prestasse atenção no que Roren dizia,
um estranho movimentar na floresta a alertou.
Alguém estava observando.
— Ele não a encontrou? — Tiggrë indagou com a atenção na pedra.
— Encontrou... confesso que o draconiano a teria matado com o
mesmo sangue frio que matara Nahemidraal. Mas a Klud a protegeu. Ele
perdeu o que tinha de mais precioso nesse dia... a visão e quem amava. —
Roren elevou os olhos para o céu como se estivesse revivendo o passado.
— Seu pai, Yanaamahka, o separou de todos naquele dia. Ele a levou para
longe e voltou sem você. Eu ainda lembro das palavras dele... a lembrança
sempre me foi dolorida.
Os deuses levaram as minhas estrelas, as palavras surgiram de repente.
— Klud salvou a na’na... mas o pai dela não o ajudou e separou os
dois?
— Eu não sei... pequeno.
— Mas Klud merecia ser salvo! — Tiggrë elevou seus olhos para a
Estrela da Noite. As palavras fugiam da boca dela. — Não merecia?
Yanaamahka se sentia tortuosamente confusa. Lágrimas, porém,
ganharam a atenção dela: Tiggrë soluçou e conteve o choro.
— Por que você está chorando? — Roren perguntou.
— Por que ela não chora! — e cobriu os olhos com as mãos pequenas.
— Ela não chora! Ela não sorri! Ela... não fica triste ou alegre... Estou
fazendo isso por ela. Minha mãe foi assassinada e eu chorei muito... muito...
como agora!
Yanaamahka não soube respondê-lo ou interpretá-lo. Tiggrë
demonstrava o que ela por hesitação, por medo, por raiva, não conseguia.
Mas seu coração gritava com o desejo de mostrar ao mundo que ela também
sofria, só que não sabia, não encontrava, uma forma de demonstrar. A
Estrela da Noite suspirou e seus olhos caíram nas palavras desgastadas.
Ela queria lembrar de sua mãe.
Ela queria saber como era ter uma mãe.
Mas ela não conseguia sentir ou lembrar nada.
Nem uma gota, nem uma voz. O vazio a fez estremecer e um forte
desejo de encontrar o que estava perdido a fez elevar os olhos para o céu,
um infinito que confortava os resquícios de seu ser fragmentado. O vento,
no entanto, trouxe-lhe uma mensagem repentina: alguém estava se
aproximando. Talvez quem estivesse observando antes. A atenção da
Estrela da Noite caiu sobre o amontoado de árvores e arbustos que
abraçavam o jardim e viu um homem familiar. O medo não a assolou nos
primeiros segundos porque ela o conhecia.
Você é diferente, Estrela da Noite. Eu vou ajudar você. Eu prometo.
Ela jamais esqueceria as primeiras palavras de afeto que ganhara de um
draconiano. Ele a ajudou quando foi capturada por Leto Demétrius e sorriu
como ninguém antes havia. A Estrela da Noite deu um passo à frente com
os lábios trêmulos, seu corpo ficou quente e sua respiração lenta.
...Hanzor, seus lábios sussurraram.
Mas no minuto seguinte, desfez suas lembranças recentes do
draconiano.
Ele se aproximou dela e empunhou sua espada.
— Yanaamahka Draconis. — Hanzor murmurou em um tom odioso e
diferente de como ela se recordava dele. Sua expressão havia mudado e os
olhos de compaixão desaparecido. Ele parecia ser outro homem. — Eu
deveria ter imaginado desde o começo. Uma Estrela da Noite não surgiria
da noite para o dia sem uma história por trás, e você tem a pior delas. Os
draconianos caçam por você e seu maldito pai.
Roren estremeceu ao lado dela. O humano arregalou os olhos como se
visse a morte em sua frente e não pudesse escapar. Ele deu um passo
desajeitado para trás. Tiggrë entendeu a reação dele.
— O dragão que devorará o mundo... — o draconiano sussurrou com
desdém enquanto se aproximava devagar. — O Dragão dos Dragões.
Vlanhonder Draconis.
— O Colosso Negro que destruiu a capital draconiana no passado? —
o menino esboçou surpresa em seu semblante. Ele olhou nervoso na direção
de Roren. — A Na’na é realmente a filha dele?
— Quem é você? — mas o velho o ignorou e se direcionou ao
guerreiro. Hanzor trincou os dentes.
— Meu pai está morto por sua causa! — e ele vociferou com a espada
tremendo na direção da mulher-dragão. Ela, no entanto, não soube como
reagir. Uma pontada crescia em seu peito, uma angústia de ser culpada por
algo que sequer possuía conhecimento. — Hiborym rön Vanadis desejava a
paz entre todas as raças e... morreu injustamente pelo que acreditava! Ele
foi assassinado pelo Dragão dos Dragões!
Roren manifestou um eminente pavor ao ouvir o nome do indivíduo.
Seus lábios ressecados proferiram duas vezes a palavra Vanadis como se o
nome fosse uma maldição que o draconiano trouxera de longe. As
características do jovem assustavam o humano: os olhos cor de sangue, as
orelhas delicadamente pontiagudas e as garras — as mesmas de alguém que
ele conhecera no passado. Tiggrë, porém, engoliu o próprio medo e se pôs
entre a estrela e o inimigo. Yanaamahka não se moveu ou piscou. Ela
tentava entender a fúria e o ódio repentino que cresciam no draconiano. As
mãos dela tremeram.
— Eu não... conhecer o... pai. — e sua voz saiu com vitalidade,
diferente dos sussurros e murmúrios que todos estavam acostumados.
Hanzor a observou por instantes, cego por sua vingança e por sua
raiva.
— Não importa! — ele urrou. — Eu jurei diante o corpo do meu pai
que caçaria todos que tivessem o sangue de Vlanhonder Draconis.
Todos! O draconiano avançou com vento ao seu lado. Os guerreiros
draconianos não eram apenas aclamados por suas perícias em batalha, mas
também a leveza de seus corpos. Eles eram rápidos e leves com uma
investida letal. Yanaamahka provara isso em seu encontro com Leto
Demétrius e não esperava menos de Hanzor, mas ela estava tão abalada que
não o viu dar o primeiro golpe. Uma linha de sangue cruzou seus olhos
dourados e acertou pequenos respingos carmim em seu rosto.
Ela respirou com dificuldade.
Porque estava no chão. Porque não havia dor.
Porque o sangue não era dela.
Era de Tiggrë.
CAPÍTULO ONZE

AMBIÇÃO FORJADA EM
SANGUE

ERA DE TIGGRË.
A garganta de Yanaamahka secou e seu coração sangrou.
Hanzor previra que o menino se colocaria no caminho e controlou sua
força na investida, caso contrário, teria decepado a mão. Ele manobrou a
espada e arrancou Tiggrë de seu caminho com um chute pesado. O pequeno
rolou entre as flores, seu sangue se misturando a cor escarlate do jardim.
Roren correu para socorrê-lo e a Estrela da Noite se manteve imóvel.
Ela tremia.
A tênue confiança que depositara no draconiano se estilhaçara em mil
pedaços. Não restava nada além de decepção e frustração. Seu corpo
humano estremeceu e a forma de dragão implorou para ser libertada, para
abrir as asas e lutar. Mas ela era fraca, e estava impossibilitada. A Estrela
da Noite se levantou cambaleante e depositou seu olhar dourado no
semblante do homem. A arma de Hanzor estava na direção dela.
Os olhos do draconiano queimavam como fogo. Mas ela não tinha
medo dele ou de Leto Demétrius. O que ela temia, no entanto, era que mais
vidas fossem perdidas por causa dela como a do dragão negro fora. Roren e
Tiggrë não mereciam a punição draconiana.
— Eu não... posso morrer. — e ela sussurrou entre suas reflexões. Seus
olhos, antes indiferentes, encararam o draconiano com determinação. —
Não vou implorar... pedir por clemencia. Mas... não... aceitar seu
julgamento.
Os punhos dela se fecharam.
Hanzor fez menção de atacar: moveu o corpo sutilmente e empunhou a
espada. Uma sombra, contudo, o fez retardar o avanço. Ela crescera nas
costas de Yanaamahka, talvez com quase dois metros e o formato de um
homem. Era um homem, na verdade; e o draconiano se certificou quando os
olhos do estranho foram revelados pelos feixes alaranjados do pôr do sol.
Eram brancos, cobertos por cicatrizes. Roren, ao vê-lo, expressou um
sorriso de alivio. Ambos, estrela e humano, o conheciam.
— Quem é você? — Hanzor sussurrou com a espada em riste.
— Klud! — Roren se exaltou com Tiggrë desacordado em seus braços.
— Ele é um draconiano! Ele está ameaçando tirar a vida dela!
Os olhos de Klud estavam baixos e fechados.
— Um cego... — o guerreiro riu nervosamente. — Seria covardia
minha...
— É melhor você correr.
A primeira e última palavra de Klud não puderam ser questionadas: o
corpo dele se envolveu por uma vibrante luz azulada. O fluxo do tempo
congelou por segundos; então, a imagem humana desapareceu. Braços se
alongaram e se deformaram para dar lugar as escamas resplandecentes na
luz solar; uma cauda serpenteou iluminada; asas se estenderam para o alto;
presas se delinearam no focinho elegante e alongado. Era um dragão de pele
lapidada como safira, escamas cintilando como se possuíssem luz própria.
A fera moveu a cabeça na direção do vento, sua respiração era pesada,
sonora.
Klud arrastou as patas na direção do draconiano.
O rosnado do dragão fez a terra tremer. Ele tinha pouco mais de seis ou
sete metros de altura. Não era grande, mas Hanzor, acuado, se manteve
imóvel. Se fosse um caçador de sangue frio, o draconiano teria se
vangloriado por encontrar um dragão da espécie nyn, desaparecida há anos,
e uma Estrela da Noite na floresta. Mas ele não era — e o que sentia era
medo. A criatura escamada diante seus olhos não era como as outras.
Havia algo de diferente nela.
Klud rugiu e avançou, sua mandíbula mordiscou o ar na direção de
Hanzor e a lâmina da espada se prendeu entre as presas. O draconiano
firmou suas mãos para não ter a arma arremessada, mas a força do gigante o
fizera ir pelos ares, corpo e espada; e num piscar, num segundo, o Vanadis
vira Luz se fragmentar diante seus olhos. Hanzor caiu desajeitado sobre
arbustos e recebeu uma chuva de cristais brilhantes.
Os olhos dele estremeceram.
Luz estava em pedaços — a espada que pertencera ao seu pai. Ela era
forjada com o Aço de Cristal, uma matéria-prima das terras draconianas e
eficiente para caçar dragões. Diziam que ela resistia ao calor das chamas e a
força dos dentes de um colosso... e nenhuma que se despedaçou por mais de
duzentos anos.
Até agora.
— Por Lunyar... como você fez isso? — Hanzor sussurrou entorpecido.
Estava indefeso e parcialmente ferido com o tombo. Ele não poderia lutar, e
não queria. Seus instintos de guerreiro o alertavam do perigo que a fera
cega emanava. Era, de fato, um dragão incomum. Os pensamentos do
jovem foram interrompidos por uma investida furiosa. Ele esquivou com
um salto e mergulhou na mata. Sua corrida era desesperada e o dragão o
seguiu como um predador.
Yanaamahka permaneceu imóvel e distante quando ambos
desapareceram na escuridão que se aproximava da floresta.
Roren sussurrou preces aos deuses.
O mundo era mais traiçoeiro do que imaginavam.

O ferimento de Tiggrë precisou de mais de dez pontos.


O menino aguentou com lágrimas contidas em seus olhos de
esmeralda. Ele se sentia orgulhoso e repetia constantemente como tivera
coragem para proteger a Estrela da Noite. Yanaamahka, porém, cultivava
uma frustração interna por ter deixado uma criança inocente ser ferida para
protegê-la. Ela deveria ter o feito, deveria ser forte e arcar com o peso das
consequências.
Porque o draconiano era sua culpa.
Ela confinara nele, nas palavras dele, nos olhos dele. O modo que
Hanzor agira depois de sua promessa na ponte fazia o peito dela sufocar,
seu coração odiar. O mundo estava realmente corrompido, e havia mais
pessoas dispostas a mentir e ferir do que ajudar. Os que mentiam, eram os
piores. Yanaamahka jurou não se deixar levar por palavras gentis
novamente. Roren e Tiggrë estavam na cozinha. O mais velho terminava de
tratar o ferimento do menino e preparou um chá quente para a dor. O
pequeno, no entanto, carregava tanta energia em suas palavras e sorrisos
que era difícil acreditar que ele havia sido ferido pelo draconiano. A Estrela
da Noite estava no batente da porta de saída, o vento suave da noite
farfalhava seus cabelos negros suavemente. Ela respirou fundo com a
insistente pontada em suas costas e murmurou após um longo momento de
reflexão:
Hanzor havia mudado depois de ouvir o nome de Nahemidraal.
Haviam se passado horas desde o acontecimento, e nenhuma notícia do
draconiano ou do dragão havia chegado.
— Seu pai é uma lenda, Yanaamahka. — Roren dissera de repente
como se pudesse ler os anseios dela. A expressão melancólica do velho
estava começando a incomodá-la. Os olhos cansados dele estavam fixos na
bebida de Tiggrë. — Não há ninguém nesse mundo que não o conheça. Eu
me pergunto frequentemente o que fizeram a você para ter esquecido tudo
isso.
— Quem... ele ser?
— Eu contarei tudo o que sei, Estrela da Noite.
Vlanhonder Draconis.
O Dragão dos Dragões.
Yanaamahka pensou nisso pela madrugada silenciosa que se sucedera.
As palavras do humano eram firmes, cheias de certezas, de verdades. Eram
sobre histórias em que o mais poderoso dragão era o protagonista, não
importava se ele era um vilão ou um herói, todos o temiam. Diziam as
lendas e as canções dos bardos que Vlanhonder devoraria o mundo e
roubaria o dia com suas asas — e a Noite Eterna reinaria.
Mas a mulher-dragão repudiou as histórias.
Ela tinha suas dúvidas: se tão poderoso era seu pai... por que ele a
deixara apodrecer na escuridão por tanto tempo?
Por que Vlanhonder Draconis a abandonara?
Roren não soube responder as perguntas dela. As palavras dele
falharam e ele as recompensou ao reforçar que o Dragão dos Dragões
amava sua família e jamais faria nenhum mal a eles.
— O mundo é grande, Yanaamahka. Eu tenho certeza que seu pai e
irmão estão em algum lugar... esperando por você.
Ela tinha um irmão?
Roren lembrou a existência dele: Vandoharen, uma sombra que fugiu
um dia antes de Nahemidraal ser assassinada.
— Seu irmão vivia em constante conflito com o Dragão dos Dragões.
Eles não se entendiam, as brigas eram violentas... — Roren sussurrou como
se a lembrança se materializasse diante seus olhos cansados. — Você era a
única que ele demonstrava um pequeno afeto. Vivo ou não, Vandoharen
sempre será uma sombra para mim.
Yanaamahka sentiu as palavras de Roren como uma flecha em suas
escamas. Ela tinha finalmente um nome e um passado. O que lhe faltava,
porém, era uma aproximação de todas as coisas que ouvia.
Seu coração continuava duvidando.
Eles se recolheram no auge da madrugada e Tiggrë insistiu em
acompanhá-la enrolado em um tecido encardido. O menino recusou se
afastar dela, ele estufava o peito e se autoproclamava um guardião.
Yanaamahka perdeu a paciência diversas vezes com ele, o teria mandado
ficar quieto se as palavras dele não a ajudassem a recuperar as dela. O
humano adormeceu balbuciando histórias, e embora se sentisse cansada e
irritada, a Estrela da Noite não conseguiu dormir.
A dor nas costas piorava.
Klud não retornou na manhã seguinte. Roren se preocupou, mas
decidiu acreditar que o homem era forte o suficiente para não ser morto por
um draconiano. Ele tinha o costume de desaparecer por dias, as vezes
semanas, sempre retornando como se sua ausência não houvesse sido
notada. Tiggrë e Yanaamahka caminharam nas redondezas da casa do velho
na tarde do mesmo dia. Eles encontraram uma sombra tranquila, o pequeno
insistiu que sentassem por lá e Yanaamahka precisou aceitar para não ter
dores de cabeça. Ela as sentia frequentemente, sem uma razão, se pensasse
demais no passado que perdeu, o latejar surgia e a incomodava.
Mas ela não conseguia parar de pensar.
Vlanhonder, Vandoharen e Nahemidraal: sangues de seu sangue. O pai
a abandonou e jamais se preocupou em libertá-la das correntes; a mãe,
assassinada, parecia indiferente e distante; o nome do irmão era a sombra
que Roren havia mencionado.
— Você está se sentindo melhor? — Tiggrë perguntou em um
momento. Ele brincava com a grama enquanto raios solares queimavam em
seu cabelo de fogo. — Desculpe por antes. Você pediu e ignorei, mas eu
estava com medo que o draconiano fizesse mal a você.
— Mas ele fez... você.
Tiggrë riu corado.
— Eu sou quase um homem! Sou forte! — o menino exclamou com
um orgulho exagerado e se recolheu depressa ao sentir a dor de seu
ferimento no braço. — Você precisa ser protegida!
A Estrela da Noite se emburrou.
— Não... preciso que me protegida. — e os olhos dela viajaram pelo
céu, distante como seus pensamentos. A lembrança de Hanzor lhe doía. O
draconiano de olhos bondosos mudou num segundo; e ela começou a se
perguntar se todas os seres vivos eram assim: num minuto mostravam amor
e cuidado, no outro, ódio.
Yanaamahka observou Tiggrë em silêncio, o modo que ele sorria para
ela, seus gestos e a admiração estampada no rosto a cada história
proclamada. Poderia ele, um dia, fazer o mesmo que os outros? Seria ele
capaz de olhar para ela com a mesma raiva de Hanzor ou Leto Demétrius?
Ela desejou que não.
Porque estava cansada de inimigos.

A noite era seu descanso.


A escuridão, uma ilusão que ele cultivava por prazer, era íntima como
um perfume de mulher. O homem apreciava o silêncio, ele admirava
também como as chamas bruxuleantes se esforçavam para sobreviver nas
sombras e como morriam para os ventos que sopravam entre as cortinas. As
luzes estavam desaparecendo da sala, e era um deleite para o homem que
emoldurava um sorriso sedutor. Ele estava em sua poltrona, um veludo tão
vermelho quanto seus olhos e o cálice de vinho em seus dedos.
Toda a casa estava silenciosa. Existia uma regra: os empregados e
guerreiros deveriam agir como mortos no cair da noite — eles deveriam ser
mortos. Sem som, sem vozes, sem suspiros; e o motivo para ordem era um
capricho. Porque o homem confortável em seus aposentos encontrava no
silêncio o significado da paz de espírito enquanto observava o retrato de
uma mulher. Ele mesmo o pintara: uma moldura enorme com bordas
douradas e carmesim. A donzela exalava uma beleza rara em cada
centímetro de seu corpo. Ela estava parcialmente nua, de curvas acentuadas,
pele pálida e cabelos incrivelmente negros.
Ela tinha olhos dourados e um rosto tão expressivo como se estivesse
viva.
Mas ela estava morta. Morrera pouco depois de ser pintada.
O rosto do homem era como uma rocha diante a imagem: sua
indiferença era demasiada. Se a mulher fora importante em sua vida,
ninguém jamais descobriu, tampouco o nome dela, mas os especuladores
diziam que Belpheggör rön Vanadis, segundo general draconiano, era
incapaz de amar uma mulher. A esposa, com quem ele tivera três filhos,
cometeu suicídio por desgosto e depressão; e com a morte dela, vendeu a
filha ao primeiro homem que pudesse pagar uma fortuna.
Mas não se arrependia: era seguidor fiel às tradições de seu povo e a
ambição o seduzia mais do que os laços familiares. Sua nação, porém, o
amava e admirava: por onde passava o draconiano era reverenciado e
aplaudido. Nunca temido — embora o poder que guardava fosse capaz de
amedrontar o mais poderoso dos dragões. Seus lábios estalaram e fios
dourados caíram sobre seus olhos cor-de-sangue, expressivos, cheios de
vida; e diziam os rumores que ele era capaz de conquistar reis e
imperadores com o olhar. Mas eram suas palavras, bem-escolhidas e sábias,
que alcançava o coração das pessoas. Colocando-se em pé, Belpheggör se
afastou do retrato, caminhando devagar, com elegância, pelo cômodo
desabitado. Cada passo demarcava seu corpo moldado, trabalhado,
parcialmente oculto no robe de seda.
Um murmúrio, no entanto, interrompeu seus pensamentos mais
profundos. Ele moveu os olhos com sutileza, ouviu passos cautelosos e uma
tremida batida na porta. Um guerreiro somente ousaria perturbá-lo se
houvesse um motivo. Talvez fossem suas crias, pensou o draconiano, eram
animais agitados e selvagens.
O comandante de seus guerreiros entrara em tropeços, o rosto
vermelho e suado.
— General Vanadis! — e ele tinha conhecimento da verdadeira faceta
de seu senhor: por isso se ajoelhou e colocou a cabeça no chão. — Eu sinto
muito, perdoe meus homens e a mim, mas o seu dragão não foi encontrado.
Nenhum guerreiro foi capaz de conter aquele monstro. Muitos morreram!
Sombras cobriram a indiferença na expressão do homem.
— Tu sabes por quantos anos esse dragão está nas mãos dos Vanadis,
meu querido? — Belpheggör sorriu e o homem, trêmulo, curvou mais o
corpo. — Cento e dez anos. Tu não eras nascido quando o compraram do
antigo Senhor de Gelo em Nothumbria.
Seria uma perda inenarrável: o dragão era nyr, um dos últimos de sua
espécie, se não o último, era indomado e perigoso demais para estar solto
em Agëa — e ele valia fortunas graças aos ossos e o sangue que os
draconianos usavam como armas. Por anos, incontáveis, o general tentou
domá-lo, torná-la uma montaria digna, mas era uma criatura imprevisível:
capturado filhote, sem contato com o mundo, o dragão mataria tudo e todos
que visse em seu caminho para se vingar dos anos de cativeiro.
Uma dor de cabeça que Belpheggör não precisava.
— Perdão, general Vanadis... perdão. Nós tentamos capturá-lo, mas
todos os homens foram mortos. Ele era forte demais. — o comandante
normalizava sua postura. O medo assolava sua alma e ele não ousava
levantar os olhos para Belpheggör. Nenhum empregado ousava; o último
que o fizera, morrera cego. — Mas eu trago boas notícias, general. Uma
mensagem. É de seu sobrinho, o cavaleiro Hanzor rön Vanadis.
Belpheggör esboçou um sorriso sombrio.
— Uma mensagem de meu adorável sobrinho? Não concordas comigo,
meu caro, que uma carta com tamanha importância deve ser lida
imediatamente? — e o general recebeu o papel das mãos trêmulas do
comandante. — Suponho ser uma mensagem sobre a missão com o terceiro
general Leto Demétrius.
O draconiano vagou lentamente pela sala enquanto desenrolava a
mensagem com selo imperial. Uma de suas mãos se ocupava com o cálice
de vinho, e ele bebericou sutilmente. Seus olhos cor de sangue analisavam
as palavras.
— A Estrela da Noite de Shurgakian está morta? — sua atenção se
ocupou com o céu noturno. Duas estrelas brilhavam ao lado da lua.
Então continuou a leitura; e as frases finais o deleitaram com a mesma
intensidade da bebida. Belpheggör sorriu em êxtase e fios dourados
cobriram seus olhos. O gosto de um passado perdido no tempo o atingiu
como uma avalanche... e o calor em seu corpo fez, repentinamente, o vinho
congelar.
...e se tornar um cristal.
— Sabe o que significa, meu amado comandante? Não morrerás nesta
noite, nem na próxima, porque a deusa da sorte tocou sua alma. —
Belpheggör gesticulou para que o comandante se levantasse. — Sente como
o vento mudou? Como ele está soprando o doce gosto da esperança?
— Meu senhor? — o jovem draconiano disse com receio.
— Saia.
O guerreiro assentiu e saiu às pressas com uma expressão de
sofrimento. Belpheggör permaneceu no silêncio e na penumbra, os dedos
inquietos ao redor do cálice de vinho solidificado. Ele lamentava, era de
uma safra excessivamente cara e preciosa, e perder qualquer quantidade o
deixava melancólico — e satisfeito. Satisfeito porque o poder que seu corpo
draconiano guardava era de tamanha intensidade que sequer podia
controlar.
Um poder que aumentaria.
Belpheggör sorriu e tornou a observar o retrato desenhado com tinta e
sangue.
— Sabe o que isso significa? — questionou com os olhos brilhando. —
A nossa estrela está viva.
CAPÍTULO DOZE

HERDEIRAS DE FOGO E
VENTO

HOMENS URRARAM EUFÓRICOS QUANDO OS portões do Forte Skaargärd


foram abertos.
O comandante retornava de uma longa viagem e seus vassalos os
recebiam com saudações calorosas. Pouco mais de trinta guerreiros
juramentados, nenhum de berço nobre, muitos mestiços e nenhum humano.
Eram bárbaros, homens de postura robusta e semblantes assustadores,
imagem semelhante ao senhor que os governava: sir Khan vrön Skaargärd,
Comandante dos Sentinelas de Prata.
A pele negra do draconiano estava suada e coberta de poeira e o rosto,
de traços fortes e grosseiros, movia-se entre todos os presentes em um
cumprimento silencioso. Apesar das características distintas dos nobres de
pele alva e cabelos claros de Aumastris, dourado ao castanho-outono, o
comandante era de uma linhagem tão pura quanto a deles — uma linhagem
livre que não servia ao imperador e eram donos de suas vidas. Rebeldes
contra o Império e assassinos de monarcas, caçados e caçadores do Estado
Independente de Castora. Khan, no entanto, redimira-se a uma vida regrada:
ele pediu perdão ao imperador e a majestade draconiana o recebeu sem
punições para com a origem dele. Diziam que um rebelde valia por dez
guerreiros nobres, e as façanhas logo o fizeram ser reconhecido em sua
nova vida.
Casou-se com a filha do Duque de Skaargärd e recebeu o nome deles.
Não que houvesse sido um processo fácil.
— Estávamos esperando o seu retorno, comandante. — um dos
vassalos o saudou e Khan seguiu pelo pátio do forte sobre seu alazão negro.
A barba do draconiano estava salpicada de branco e o fazia parecer um
urso. Dois metros de altura, característica típica da raça além das orelhas
levemente pontiagudas. Ele desceu do cavalo e retirou o longo manto,
revelando um pouco das tatuagens em seus braços musculosos. Eram
símbolos, palavras e imagens de sua linhagem antiga. — Eu soube que a
defesa das Muralhas Douradas foi impenetrável.
— Os rebeldes retardaram o ataque e nos deram a vitória. — ele
respondeu com a voz gutural. — O Arquiduque de Vanadis mandou
agradecer a todos pela missão e nos presenteou com cerveja e cinco ovelhas
para o abate. Festejaremos mais tarde. — e todos se exaltaram, agradecendo
o comandante.
Khan entregou as rédeas ao companheiro e seguiu rumo a fortaleza —
sua casa. Desejava um banho quente e uma refeição decente depois de
tantos dias acampando e comendo carne seca. A residência era um enorme
amontado de pedras negras, frias, e janelas vitrais; a herança da primogênita
da família Skaargärd.
— Hassan. — Khan cumprimentou o homem que o esperava na
entrada, um jovem, na verdade, recém dezoito anos no rosto com os traços
de sua família: olhos cinzentos e um sorriso desajeitado. Os Skaargärd não
eram homens de sorrisos encantadores; e eram mais conhecidos por suas
expressões frias e raivosas. — Agradeço por ter ficado com ela em minha
ausência. — e Khan o reverenciou sutilmente. — Como minha senhora
está?
— Ela vomitou sangue pela manhã. Eu a ajudei... mas tu sabes como
minha irmã odeia ajuda. Orgulhosa demais. Ela está no quarto agora. —
respondeu o jovem. Era uma relação conturbada a do casal: a morte de
ambos os filhos do casal criou um muro de afastamento. Rhenna nunca o
amara... e não amaria. Mas Khan a entendia, ele sempre tentava entender,
por mais que não recebesse nada em troca, por mais que, não sendo culpa
dele, fosse condenado por tê-la obrigado a se casar. Na época, ela com doze
anos; ele, com trinta.
Não era culpa dele... ele também foi obrigado a se casar.
Mas Khan nunca a desrespeitou — pelo contrário. Havia nele um
sentimento de respeito para com a menina que quebrara o nariz dele no
casamento com um candelabro e ameaçara matá-lo se tocasse nela. O
sangue dele serviu para enganar o duque que a celebração havia sido
consumada; e o comandante nunca se aproximou sem que ela permitisse.
Trinta e cinco anos de casado.
E nunca houvera um sentimento reciproco por parte dela.
Mas ele insistia. Cuidava. Zelava. A doença estava a quebrando aos
poucos.
— Minha senhora? — e ele sussurrou ao adentrar o quarto que
partilhavam. Era noite. A mulher estava sentada em uma poltrona frente as
janelas e, no colo, ela tinha uma almofada surrada pelos anos. Era uma
recordação. Seu segundo filho. Morto pelo mar. Ela costumava acomodá-lo
naquele tecido enquanto contava-lhe histórias diante a lua. Foram as únicas
vezes que Khan a viu demonstrar amor por alguém.
O quarto estava escuro e a mulher não se moveu.
Uns diziam que Rhenna estava doente pelos sintomas de uma tristeza
profunda, outros opinavam sobre os anos que ela passara como prisioneira
dos dragões. Nenhum clérigo descobriu a origem real dos sintomas,
tampouco uma forma para retardá-los. Disseram que ela morreria, mas a
general pareceu pouco afetada. Talvez ela estivesse desejando morrer, e
morta, finalmente, cuidaria dos filhos que perdera.
Mas Khan a desejava viva.
— Rhenna. — o comandante a chamou novamente. Sem resposta.
Sequer a respiração dela podia ouvir. — Eu retornei o mais rápido que pude
ao ser avisado de sua viagem. Eu estava com o coração apertado... Você
está doente e precisa de mim, tem certeza que essa viagem lhe fará bem?
Ela não o respondeu.
Um suspiro escapou dos lábios de Khan.
— Tenho meus receios. O rei Gureryne está desesperado com o ataque
à cidade humana, disseram ser um dos Primeiros Dragões, e ele teme que a
Cidade Real seja o próximo alvo. — o silêncio continuo o fez mudar de
posição: Khan se aproximou da poltrona e se pôs entre a lua e sua mulher.
A pele negra dele foi iluminada. — Rhenna, por Lunyar, me escute.
Khan se ajoelhou diante dela.
— Eu senti muito a sua falta. Não houve uma noite em que meus
pensamentos não foram seus, minha senhora.
— Khan. — e ela disse de repente.
O draconiano sentiu um calor familiar irradiar no quarto.
...e ele sabia o que significava.
— Não, minha senhora. Controle-se. — ele sussurrou e agarrou uma
mão dela. Khan sentiu os dedos arderem e queimarem por dentro. Uma dor
intensa agarrou seus ossos, sua pele se arrepiou com sensações que ele
aprendera a suportar.
A atmosfera estava densa e o ar pesado.
Respirar era quase impossível.
— Rhenna! — Khan bradara entre os dentes. A draconiana desviou os
olhos para ele: o direito, prateado; o esquerdo, safira, de tamanha
intensidade que parecia ser de vidro, e o qual ela constantemente escondia
por um tapa-olho. A diferença no tom de seus globos era sua maldição.
— Teus sentimentos não trarão os meus filhos de volta. — o quarto
ficava mais e mais quente a cada palavra. Elas eram cheias de ódio. — Nem
tua morte. — ela poderia tê-lo queimado vivo se quisesse, poderia tê-lo
matado e dizimado o corpo a cinzas.
Mas Rhenna não o fez; ela sempre desistia de sua corrupção e
desabava num silêncio quase eterno.
Restava a Khan os ferimentos pelo calor e pelo coração despedaçado.
Mas ele nunca revelou a verdade sobre ela ao império.

Lunaysis vön Krimnell observou o espaço vazio na cama e suspirou


tristemente.
Sentiu-se gelada e fraca. Era sua terceira noite nas acomodações do
famoso Palácio da Aurora de Cristal e em todas elas a solidão a
acompanhou nas sombras. Ela estava acomodada no mesmo quarto de seu
senhor — um detalhe inédito em cinco anos de casamento — mas Ahuriel
vön Krimnell passava as madrugadas distante com seus compromissos
imperiais. Ele nunca estava no quarto e nunca permitia que a jovem saísse.
Ela continuava na mesma gaiola... só que em um lugar diferente.
A draconiana sonhara com o palácio desde sua infância. Sua ama
contava-lhe histórias sobre a beleza e a raridade da construção; e o maior
desejo da moça era desbravar os corredores dourados e os jardins floridos.
Ela esperava que quando partisse para o continente humano no Lua
Dourada, seu senhor lhe deixasse conhecer o grande deserto de Solnascente.
Sonhos... Ela esperava realizá-los, e assim adormeceu com a imagem de
flores e areia inundando seu subconsciente.
Eun-seo, seu guardião, a visitou cedo na manhã seguinte. Ele afastara
as grandes cortinas de seda e permitiu que o sol iluminasse o rosto
semiacordado da jovem. Luna murmurou preguiçosamente e rolou entre os
lençóis. Uma brisa arrepiou sua pele, suas curvas suavemente expostas no
tecido da camisola. Ela sorriu e seus olhos contemplaram o cavaleiro. Ele
trazia consigo uma bandeja farta para o desjejum da draconiana: mingau
com aveia e mel, frutas caramelizadas, leite e uma porção generosa de pães
amanteigados. Nenhuma carne. Essa era a razão pela qual o guerreiro se
prontificou de preparar o desjejum de sua protegida todas as manhãs.
Luna tinha uma dieta restrita.
— Eu reforcei sua refeição hoje, minha senhora. — disse gentilmente o
cavaleiro. Ele pôs a bandeja sobre a cama e sorriu. — Há uma vida em seu
ventre e você precisa se alimentar por duas, tenho notado você cada vez
mais miúda.
A jovem retribuiu o sorriso e bebeu um pouco de leite.
— Como estão as coisas lá fora, sir Eun-seo? Eu tenho muita vontade
de caminhar pelos jardins do palácio... Mas o meu senhor não permite. — e
um suspiro desenhou os lábios rosados dela como uma botão de rosa. —
Como minha criança pode se formar bem se sequer tenho a oportunidade de
sentir o sol? — Luna experimentou o mingau com um silêncio de
frustração. Seus olhos queimavam na luz do sol.
— Por que não diz isso ao seu senhor? — Eun-seo sugeriu com uma
postura carinhosa. O modo que ele se expressava sempre fazia a jovem se
sentir melhor. — Ahuriel está lendo na sala ao lado de seu quarto. — a
surpresa estampou o rosto delicado da draconiana. As acomodações
reservadas aos nobres no palácio eram vastas, quartos tinham áreas de lazer
e sacadas para as cachoeiras da capital.
Ela queria tanto ver as cachoeiras, mas seu senhor a privava.
Mas e se tentasse perguntar não por ela e, sim, pela criança em seu
ventre?
— Você é como um beija-flor, minha senhora. Seu lugar não é em um
quarto escuro, você precisa estar entre as flores. — e as palavras de Eun-seo
encheram-na de esperança. O vento sussurrou-lhe também, a deusa das
esmeraldas estava ao seu lado. Era a herdeira dela, Misairuzame a
protegeria; e precisava honrar a essência que lhe fora concebida. Os Ventos
da Esperança. Ela mordiscou um último pedaço de fruta caramelada e sorriu
com o rosto corado.
— Devo me preparar, sir?
— Com o seu mais belo vestido, minha senhora.
Lunaysis vön Krimnell treinara inúmeras vezes as palavras que diria ao
seu senhor. Eun-seo fora o seu guia e cúmplice, ele convocou as criadas
para que a vestisse e preparasse o seu cabelo. A draconiana optara por sua
cor favorita: o vermelho, a cor de seus olhos, e desfilou com o longo
vestido pelo quarto. Era uma peça nova, Eun-seo quem a presenteara, com
mangas longas e renda dourada. Lascas de rubi decoravam os braços de
tecido esvoaçante, flores foram bordadas na cintura e a saia era tão
volumosa que a moça sentiu dificuldade de manter equilíbrio. A beleza da
vestimenta, no entanto, impulsionou a coragem de encarar o seu senhor.
Luna se fez presente na área de lazer do quarto com a postura austera de
uma dama. O marido estava sentado em uma poltrona, o ambiente era
silencioso e bem iluminado por janelas enormes. O sol reinava em todos os
cantos da sala de paredes douradas; e raios vibrantes iluminavam as
madeixas prateadas do comandante dos Cavaleiros Negros. A atenção de
Ahuriel em um livro era tanta que ele sequer notara a entrada da draconiana
nos aposentos.
Eun-seo estava próximo a porta com a mão na bainha de sua espada. O
cavaleiro combinara de anunciar a entrada da moça e dar-lhe um apoio
silencioso.
— Comandante Krimnell. — dissera o guerreiro seriamente. — Sua
senhora, Lunaysis vön Krimnell, se faz presente. — a expressão de Eun-seo
não se alterou.
Ahuriel não levantou os olhos do livro.
— Meu senhor. — embora seu coração esbanjasse coragem, a voz da
moça não fora mais forte que um sussurro. — Eu tenho um pedi...
— Tu sabes que não deve sair de teu quarto. — Ahuriel a interrompeu.
Ele se concentrava nas palavras e não nas vozes ao seu redor.
— Sim... perdão, meu senhor... mas... — ela fraquejou e perdeu sua
coragem e esperança de sentir o sol e ver as flores.
— Volte para o teu quarto, criança.
O coração dela estremeceu.
— Eu preciso... somente... — e travou.
— Não irei repetir.
Luna sentiu o vento desaparecer ao redor dela e lágrimas crescerem em
seus olhos. Desde a infância ela era privada de ver o mundo, o pai a
trancara em um quarto escuro do mesmo modo que o marido, dissera que
ela não merecia a liberdade por ser uma mulher. Mas ela sempre cultivou o
desejo de ser o beija-flor que sua ama e seu guardião lhe comparavam.
Ela não era mais apenas um beija-flor.
Seria livre e, ainda assim, seria mulher.
Era abençoada porque o vento a protegeria sempre.
...e ela precisava ser o vento.
— Meu senhor! — Luna disse de repente. Havia força e euforia em sua
voz. Eun-seo direcionara um olhar surpreso a ela. — Peço que, por
educação, olhe para mim enquanto falo.
Só então o comandante elevou seus olhos.
Ele tinha olheiras intensas causadas pela insônia.
Luna sentiu cada centímetro de seu corpo tremer quando ele a
observou.
— O que eu peço é um momento nos jardins do palácio. Não para
mim, mas para o seu filho que cresce em meu ventre... Se quer um herdeiro
forte, ele precisa sentir e ouvir o mundo desde seus primeiros meses de
formação. — e ela colocou ambas as mãos sobre a barriga. Não havia
nenhum inchaço, era uma gestação recente, mas suas palavras eram
verdadeiras.
Ahuriel vön Krimnell fechou o livro e o pôs de lado.
Era sempre difícil decifrar o que o comandante estava pensando... sua
expressão era indiferente, sólida, uma máscara que, talvez, nunca deixasse
cair. Ahuriel perdera segundos analisando o semblante firme de sua mulher
antes de se pronunciar.
— Tu tens uma hora.
Um mar de felicidade invadiu o coração da draconiana.
Ela não conteve o sorriso, as lágrimas que ela segurava rolaram em seu
rosto e teve dificuldade para respirar.
Era a primeira vez que o seu senhor lhe concebia um desejo.
Luna não perdera nem um minuto de sua liberdade temporária e, na
companhia de Eun-seo, desbravou os corredores do Palácio da Aurora de
Cristal. As paredes eram estonteantes: brancas com inúmeros detalhes
barrocos em dourado. A luz do sol os fazia brilhar de modo que roubavam
os suspiros apaixonados da draconiana. Arcos de ouro maciço circundavam
as janelas e vasos com as mais belas flores da capital decoravam os espaços
entre pilares dourados. Ela lera em livros de história sobre os construtores
que ergueram o palácio. Eram homens que buscavam agradar a deusa com
sua arte — e o fizeram com tamanho empenho que a graciosidade do
Aurora de Cristal era contada pelos quatro cantos do planeta. Muitos
sonhavam em conhecê-lo, poucos tinham o privilégio.
O som de uma harpa ganhou a atenção da jovem quando se aproximou
de um dos jardins internos. Um homem tocava na companhia do sol e das
flores brilhantes — elas pareciam diamantes, diziam os bardos. Luna
apreciou a música e o modo como ela se harmonizava com as águas em
movimento das cachoeiras e cascatas que circundavam a capital. A pele da
moça se arrepiava sempre que parava para escutar — era como elas
tivessem vozes.
O sol iluminou o rosto de Lunaysis.
— Quero sentir cada minuto. — ela sussurrou enquanto uma borboleta
sobrevoava ao seu redor. As asas pareciam esmeraldas. — É tudo tão calmo
e mágico. Desde criança tenho o sonho de viver nesse palácio... ser parte
dele.
— Você pode, minha senhora. — Eun-seo disse ao lado dela. Uma mão
do cavaleiro repousava sobre a espada. — Basta se tornar um deles.
— É possível uma mulher estar entre os superiores?
— Me diga você mesma. — e o cavaleiro ergueu os olhos castanhos
para uma área mais afastada do jardim. Luna o acompanhou e percebeu um
semblante familiar. Uma sombra. Um olhar gelado. Um caminhar pesado. A
general Rhenna vrön Skaargärd estava no outro lado do jardim,
acompanhada. A moça o observou com cautela e uma sutil admiração. Ela
era a primeira em um cargo tão prestigiado, mas sempre ofuscada por um
olhar gelado. Se ela sabia sorrir... não demonstrava a ninguém.
A menina ao lado dela contemplava as flores. Não, corrigiu-se a jovem
depressa, a princesa Cressia. Ambas conversavam silenciosamente.
— Ela está sempre com o Ahuriel — Luna sussurrou para seu
guardião. — Mas eu não entendo o porquê... mas, diferente dos outros, ele
parece respeitá-la.
Eun-seo coçou a barba salpicada de branco.
— A general Rhenna quem treinou o comandante na infância, acredito
que ela procure nele o que perdeu, minha senhora.
— Os filhos? — Luna questionou com a borboleta em seus dedos.
— Suponho... A questão é que a general Rhenna mudou muito após a
guerra em Kunt’hud, no extremo leste do continente. Ela liderou muitos
guerreiros para combater os primeiros dragões. Dizem que lutou
bravamente: matara um Kyn e feriu três antes de perder as forças e ser
capturada. Os dragões mataram todos os draconianos... menos ela. Rhenna
desapareceu por três anos e muitos acreditaram que eles a torturaram e a
mataram. Ninguém mais acreditava em seu retorno... e, em um dia qualquer,
ela foi encontrada em um estado deplorável, quase morta, nos domínios do
Duque Skaargärd.
Os olhos de Eun-seo brilharam com melancolia.
— Nunca saberemos o que realmente aconteceu lá.
As palavras de seu protetor fizeram a moça levantar seus olhos cor de
sangue para a general. Ela os encarava, diretamente... sem piscar.
Desconfiada. Não... a Krimnell se corrigiu, Rhenna vrön Skaargärd estava
concentrada nela como um caçador avalia sua presa antes do abate. Cressia,
a princesa regente, fizera o mesmo; e por um instante, seus olhos prateados
brilharam carmesim. Um arrepio percorreu a espinha da moça e ela desviou
o olhar. Suas mãos tremeram. Seu corpo esquentou repentinamente e suas
pernas fraquejaram.
Num minuto ela respirava, no outro sentia a garganta sufocar. Lunaysis
vön Krimnell desmaiou nos braços de seu protetor. A escuridão a engoliu
como um dragão enfurecido com chamas azuladas e cristais rubros. Sua
última imagem foram duas mulheres.
Duas irmãs. Duas deusas.

Os humanos não tiravam os olhos do céu. O medo estava desenhado


em seus rostos, recolhiam-se depressa na noite e rezavam ao sol para
proteger a cidade dos gigantes escamados. Essa a imagem que o Cavaleiro
Negro presenciou ao chegar no povoado no crepúsculo do dia. Sua
presença, sua armadura negra, o alazão robusto, encheram os olhos dos
homens, trouxeram-lhe esperança; e crianças o acompanharam eufóricas e
exaltadas. Mas os Cavaleiros Negros não eram heróis.
Eram caçadores, assassinos e draconianos com ego inflamado. Eles não
chegavam aos pés dos comandantes, generais e duques do império. Era uma
posição inferior — longe dos superiores que o jovem almejava alcançar.
Seu pai fora o mais importante de todos. O mais amado e respeitado
superior que a nação conheceu. Ele empunhava luz, a espada passada a
Hanzor e que, drasticamente, havia sido destruída por um dragão. O
cavaleiro perdera a Estrela da Noite e sua espada, mas ele não desistiria:
Hanzor levaria a estrela para os seus superiores para, enfim, se tornar um.
Yanaamahka Draconis seria a peça necessária para encontrar o Dragão
dos Dragões: Vlanhonder — o mais temido inimigo da raça. A
possibilidade de um novo ataque do gigante fazia a população humana e
draconiana observar o céu com hesitação. Eles temiam. Eles viviam com
medo. Que o Grande Sol vigie os céus, diziam.
Preciso de uma boa noite de sono... ele pensou ao desmontar em uma
taverna. Afagou o animal e retirou seus pertences. Seu corpo estava
dolorido, o sol queimara sua pele pálida e o estômago rugia como um
animal enfurecido. O interior da taverna era barulhento: um aglomerado de
homens disputava a força em uma queda de braço, muitos urravam e
apostavam no vencedor, outros praguejavam a derrota.
Eram humanos, selvagens, mas com uma vontade de viver que
contagiava o jovem draconiano. Os habitantes de Tannenberia vinham do
Grande Deserto, uma região de sol escaldante e calor intenso com homens
de ébano. Eles tinham expressões acentuadas e a força de um touro. Hanzor
não poderia negar que se sentia bem ao vê-los, embora estivesse
acostumado as ruas calmas e as palavras rebuscadas de seu continente natal.
— Eu preciso de um quarto. — disse Hanzor ao dono do
estabelecimento, um homem roliço e pele escura. Ele tinha um estranho
cheiro de carne em decomposição.
— Vai dormir com os porcos essa noite, cavaleiro. — o taverneiro
sorriu com seus dentes amarelados e podres. — O último quarto está com
um de seus homens.
Hanzor teria questionado se a euforia dos homens não houvesse
explodido em uma cachoeira de sangue que inundou o piso. Um selvagem
perdera a cabeça, seu corpo caíra desajeitado e o membro rolou nos pés dos
demais. Alguns riram. A maioria se silenciou. Somente um falou. A
violência de seus atos e a força de sua voz eram familiares ao jovem.
O general estava com as mãos sujas de sangue.
— Eu disse que não havia regras. — e agarrou uma caneca de bebida
ao dar um tapa no traseiro de um jovem magricelo que servia. Bebeu
avidamente. As roupas leves que vestia estavam encardidas e manchadas de
cerveja. Hanzor percebeu que ele estava sem a armadura. — Agora voltem
para suas rotinas miseráveis!
Ninguém ousou intervir. Ele também estava bêbado.
Um Demétrius bêbado poderia ser mais imprevisível do que um lúcido.
Hanzor ouvira histórias: se o ceifador era perigoso com os pés na realidade,
era duas vezes pior distante dela.
— General Demétrius. — Hanzor sussurrou ao se sentar na mesma
mesa. O citado observou pelo canto dos olhos, as cores escuras o faziam
parecer duas vezes mais psicótico do que costumava ser. — Não pensei que
o encontraria por aqui.
Leto Demétrius sorriu com hálito de álcool.
— Um Vanadis numa taverna com cheiro de bosta de cavalo? Pensei
que sua bunda de ouro não frequentasse lugares como esses.
Hanzor pigarreou com uma sutil irritação.
— Eu preciso conversar, general. — ele pretendia contar tudo, sem
medo da reação que pudesse causar em seu superior. Leto Demétrius
deixara claro que mataria qualquer homem que o seguisse. Mas Hanzor não
temeria. Ele era um Vanadis. Membro da mais poderosa família draconiana
em Aumastris. — Sobre a Estrela da Noite que escapou no ataque à Estação
Leste. Eu a encontrei.
Um som de um alaúde ressoou próximo. Um jovem de pele bronzeada
e cabelos espessos tocava com os olhos fechados e a serenidade de um
príncipe. A música abraçou o ambiente e todos os presentes, menos o
general. Hanzor percebera o modo como ele observou o rapaz, os olhos de
um lobo faminto.
— General. — e o cavaleiro tentou chamá-lo.
Leto Demétrius respondeu com os olhos no bardo.
— Já fodeu uma mulher-dragão, Vanadis? — ele bateu a taça na mesa
para pedir mais bebida. Sua atenção, no entanto, permaneceu no jovem de
beleza sutil. — Elas não são diferentes das humanas ou draconianas.
Hanzor se irritou.
— Você deveria se preocupar com os próprios deveres, general
Demétrius.
— Pensa em entregar a vadia para os superiores? — Leto Demétrius
murmurou. Ele deixara de observar o jovem para direcionar os olhos ao
cavaleiro. O Vanadis sentiu o frio em sua espinha. — Não me diga que
pensa em ganhar uma melhor posição com isso? Você é um bosta como o
seu pai.
Hanzor não permitiria que um homem, seja um superior ou um
inferior, difamasse a memória Hiborym rön Vanadis em sua frente. Jamais.
Ele reagiu contra as palavras: agarrou a adaga embainhada em sua cintura e
teve a intenção de ferir seu semelhante. Ele queria fazer Leto Demétrius
engolir o insulto. Mas falhou e sofreu as consequências de seu ato. O
general agarrou a lâmina entre os dedos, usou de sua força para arrancar a
arma da posse do mais jovem e a manobrou com perícia. A adaga afundou
na mesa num piscar — milímetros de distância da mão livre de Hanzor. A
lâmina causou-lhe um corte de raspão. Uma tensão pairou entre ambos.
— Lembre-se, Vanadis: o mundo não está a favor da sua vingança tola.
O general se afastou para pegar mais bebida e provavelmente, alguém.
CAPÍTULO TREZE

A ENTIDADE DE SAFIRAS

YANAAMAHKA SE VIU FORÇADA A ENCARAR sua asa quebrada.


Ela desmaiara numa tarde com as fortes pontadas em suas costas e
precisou retornar a sua verdadeira imagem: o dragão negro. A jovem estava
evitando se transformar para não ver o que Leto Demétrius havia feito, e a
decisão quase a levou a morte. O ferimento infeccionou e se tornou uma
visão horrenda para os estômagos fracos. A própria Estrela da Noite
vomitou com o cheiro de carne em decomposição. Mas o pior viera depois.
Ela urrou: vibrações dolorosas alcançavam seus músculos e nervos
como uma tortura lenta. Era como o chicote do draconiano que a açoitara na
infância, impiedoso a ponto de fazê-la derramar lágrimas de sangue. O ódio
a alimentou naqueles dias escuros — ele deu-lhe forças para resistir. Para
continuar. Ela sempre tentou se acostumar a dor, entender como seu
organismo refratava a angustia e a dissipava em suas veias. Mas jamais
conseguiu. A dor era traiçoeira e encontrava uma nova forma de ser duas
vezes pior do que antes.
Seu focinho estava enterrado na terra. As garras destroçavam os traços
verdes de grama. Sua cauda chicoteava inquieta. Ela rosnou e Roren pediu
para que aguentasse um pouco mais. Tiggrë sussurrou ao lado dela, a
menina saltitante cantou para acalmá-la e até o dragão cinza se mostrou
preocupado com seu incansável mom-mom-mom.
Yanaamahka fechou os olhos e buscou o ar. As mãos de Roren se
afastaram de sua asa. A membrana pendia sem vida ao lado do corpo negro.
Ela não era capaz de movimentar sequer um centímetro do músculo; e se
tentasse, uma erupção de dor afetava seus sentidos. Era terrível o modo
como o ceifador a deixara: tendões rompidos, osso fragmentado e a
esperança de alcançar os céus, despedaçada. Terrível, na verdade, eram as
palavras que Roren proferira no momento seguinte: A asa dela não iria
melhorar.
Ela jamais aprenderia a voar.
A raiva corrompeu o peito da Estrela da Noite. Ela negou a verdade e
cuspiu palavras odiosas ao velho que sequer soube o motivo de tanta
frustração. Yanaamahka negou a ajuda de Tiggrë e Luce, e desapareceu na
floresta durante o pôr do sol com o desejo repentino de solidão.
Era o auge da noite.
O vento soprava a vida adormecida da floresta, folhas dançavam no ar
e se erguiam na escuridão, rumo ao céu, a lua e as estrelas. As luzes se
escondiam entre as nuvens cinzentas, diziam que a chuva estava para
chegar, mas, na verdade, as estrelas se escondiam do mundo. Elas estavam
com medo, elas estavam sozinhas e eram as últimas a iluminar Agëa. Se
elas desaparecessem, se elas fossem mortas como as outras, o que restaria
para a lua? Solidão. Vazio. Tristeza. Roren contara que o mundo tivera uma
noite de roubar suspiros de homens apaixonados durante a ascensão dos
Primeiros Dragões. Era como um quase-sol na escuridão. As estrelas que
representavam a vida das Estrelas da Noite brilhavam com tamanha
magnitude que eram capazes de transformar a noite em dia. Eram tantas,
eram incontáveis, tantas cores, tantos sonhos — mas frágeis.
A caçada destruiu o céu.
Se uma fêmea de Kyn morria, uma estrela explodia em pequenos
fragmentos sem luz, opacos, que os sábios chamavam friamente de poeira
estelar. Aos poucos, talvez até rápido demais, os globos brilhantes que
iluminavam as noites foram desaparecendo e escurecendo o mundo.
Restam duas, os lábios dela sussurram. Seus olhos dourados estavam
nessas estrelas, uma próxima à lua, branca e luminosa; outra distante,
sutilmente azulada. Yanaamahka se perguntava qual estrela representava a
sua vida. Ela não conseguira dormir naquela noite, as preocupações
roubavam seu sono, sua tranquilidade e sua paciência. A notícia da asa fora
o ápice de toda a sua frustração. Então, escolhera a floresta para se
acomodar e pensar, para ver o céu e se acalmar. Mas não pode — a solidão
das duas estrelas sufocava seu coração.
A solidão que antes buscava a deixou entorpecida.
O mundo a desafiava, ele queria acabar com as estrelas; e se
dependesse dele, as noites seriam tão negras quanto os abismos que a
engoliam. Ela não estava segura: havia o Leto Demétrius, o draconiano que
destruiu sua possibilidade de voar; havia Hanzor, quem feriu sua confiança
e havia muitos caçadores à espreita. Todos esperavam uma oportunidade
para alcançá-la e destruí-la.
Havia também seu pai, Vlanhonder, seu irmão, Vandoharen e seu
amigo, Klud.
Eles haviam a abandonado.
Você estará segura no Desfiladeiro dos Dragões Gigantes, dissera o
dragão negro que dera a vida para salvá-la. Talvez fosse verdade.
Talvez a liberdade que ela ansiava e o passado que desejava estivesse
além do horizonte, em terras distantes e longe de draconianos.
— Na’na? — a voz de Tiggrë a incomodou por segundos. Ela sabia
que ele estava na espreita há horas, mas não esperava que ele fosse se
aproximar. O pulso do menino estava melhorando desde o ataque do
draconiano, e a mulher-dragão não o viu em nenhum momento reclamar de
dor. — Você ainda está com dor?
Tiggrë, pelo contrário, se esforçou para ajudá-la com a infecção da asa.
Era estranho como ele provocava um misto de sentimentos nela.
Ela negou com a cabeça.
— Vai caminhar? Sozinha? — Tiggrë se apressou para alcançá-la. —
Vou com você!
Yanaamahka não era a favor e nem contra, então decidiu não discutir
com o menino. Ele a seguiu como um pequeno cão, cheio de coragem,
falante e saltitante embora estivesse parcialmente ferido. Tiggrë teve uma
conversa solitária por quase vinte minutos e quando o silêncio da Estrela da
Noite pareceu inquebrável, ele se limitou a caminhar. A floresta se movia
sombria ao redor, árvores grandes pareciam ter olhos, galhos longos se
esticavam na direção deles. O menino se encolhia vez ou outra, talvez
acuado, mas espantou o medo ao murmurar sua bravura.
Eu nasci no ano do Tigre! Eu sou o Tiggrë!
Então, o humano colheu flores para desafiar as sombras. O caminhar
apressado da Estrela da Noite tinha um destino: uma trilha que cheirava a
cinzas. Levou mais que uma hora de pequenas elevações, córregos e lagos
que se escondiam na mata fechada da Floresta Viva. O cheiro de queimado
se tornou intenso mais tarde.
...e ela soube onde estava.
Ela se aproximava do campo de batalha entre o Kyn e o draconiano.
Yanaamahka não sabia quanto tempo se passara, mas as lembranças de Leto
Demétrius e o dragão negro estavam vivas em sua mente. O nome do
ceifador fazia seu coração ferver odioso. Ela não esperava vê-lo novamente,
nunca mais.
Tiggrë se assustou ao perceber a vegetação seca e destruída.
Ele abraçou as flores que colhera e se encolheu na proteção da Estrela
da Noite. A coloração verde da natureza se transformara em um cinza
lúgubre, um marrom pálido, tons com cheiro de morte. Yanaamahka
caminhou devagar, gravetos secos quebravam sob seus pés, o solo estava
quente, o calor era mais forte e nenhuma vida germinaria por meses, talvez
anos. O menino sussurrou sobre o fogo dos primeiros dragões. Eram cruéis.
Seus vestígios continuariam a arder por anos, causavam doenças e
queimaduras irreparáveis.
Cidades desapareceram com as chamas das feras negras.
Yanaamahka percorreu a área com seus olhos dourados e inquietos.
Um amontoado de folhas secas e troncos podres ganhou sua atenção. A
vegetação resvalava por uma decline de terra. A mulher se aproximou
devagar e prendeu a respiração quando tropeçou nas escamas de uma cauda.
Era o dragão. O corpo dele. Leto Demétrius o matara e negara um fim
digno. A carne do Kyn estava em decomposição, o cheio de podre era
insuportável, vermes comiam as feridas e a imagem fez a mulher sentir
náuseas.
Ela teria vomitado se seu estômago não estivesse vazio.
— É um dragão morto! Um semelhante seu! — Tiggrë berrou e cobriu
os olhos. As flores que ele carregava caíram no chão.
Yanaamahka deu um passo e se ajoelhou.
Seus olhos dourados tremiam.
— Você o conhecia, na’na?
— Não. — a Estrela da Noite tocou o peito. Ela sentia a garganta arder
e não entendia. Era sensações novas, arrepiavam sua pele e apertavam seu
coração. — Mas... ele der a vida dele para salvar... eu.
— Você é uma Estrela da Noite... — Tiggrë juntava as flores. — Os
Primeiros Dragões se orgulham de se sacrificar pelo que eles consideram o
maior tesouro de sua espécie. — e o menino se ajoelhou ao lado dela. —
Você. A Estrela. Ele morreu orgulhoso e feliz, eu tenho certeza. Porque
você está viva!
Yanaamahka olhou para as estrelas no céu.
— Ninguém morrer feliz.
— Pessoas morrem felizes. — e o menino curvou os lábios agarrado as
flores. — Se eu morresse por algo que acredito, eu me sentiria feliz,
orgulhoso. Triste, na’na, é morrer sem ter no que acreditar, sem ter valido a
pena. — Tiggrë caminhou na direção dela e estendeu uma das flores sobre o
cabelo dela. Yanaamahka recuou e baixou o olhar, ignorando.
As ações dele — as expressões dele — causavam confusão e
inquietação nela.
— Ele falar... um desfiladeiro. — e ela mudou o assunto.
O Desfiladeiro dos Dragões Gigantes, o destino que ela precisava
encontrar.
Tiggrë sobressaltou ao ouvir o nome.
— O Desfiladeiro? Eu vivia perto do Desfiladeiro dos Dragões
Gigantes! Eu sempre desejei conhecer o berço dos dragões. Dizem que é
um lugar lindo e mágico!
Ela queria alcançá-lo, ela queria estar próxima dos que lhe eram iguais
e descobrir mais de sua história fragmentada. Descobrir sem que ninguém
contasse. Descobrir com os próprios olhos. Antes, porém, o dragão que
salvara sua vida merecia um fim digno. Yanaamahka levantou e juntou
folhas secas para cobrir o grande corpo do Kyn. Tiggrë a ajudou em
silêncio, fez o que podia e usou as flores como se também lamentasse a
morte do gigante.
Ambos terminaram uma hora antes do sol nascer.
— Eu não... não voar e não aprender... o fogo... — ela lamentou. O
menino sorriu tristemente e usou sua habilidade com pedras para gerar uma
faísca. Uma chama cresceu entre as folhagens e ganhou intensidade ao
alcançar o corpo do dragão negro. Uma enorme fogueira iluminou a floresta
e os olhos da Estrela da Noite.
Yanaamahka sentiu o coração leve.
— Um dia... o nome dele eu queria saber. — e sussurrou para si.
— O nome dele é Shurgakian Draconis, o irmão do poderoso Dragão
dos Dragões.
Ela desejou não ter reconhecido a voz.
Era arrepiante, nauseante e odiosa. Cada sílaba do nome daquele
homem fazia seu corpo esquentar e doer. Leto Demétrius: o draconiano que
destruíra o sonho do dragão negro e roubara sua vida. Ele estava à poucos
metros, o corpo suado e a armadura negra com marcas de uma batalha
passada. Ele a vencera. Os cabelos negros e longos do general estavam
presos num alto rabo de cavalo, fios caiam em seu rosto comprido e sobre
os olhos heterocromáticos. Um era o abismo; outro, a morte. Um corte
recente marcava a parte superior de sua sobrancelha, mas a cicatriz que
cortava a bochecha à orelha era duas vezes mais assustadora.
Demétrius também estava com uma mão levemente queimada, coberta
por ataduras.
Talvez a luta contra o dragão negro não houvesse sido tão fácil como a
Estrela da Noite imaginava.
— Eu tinha certeza que você retornaria, estrela. — e o ceifador riu com
desdém enquanto brincava com a lança entre os dedos encardidos.
— Ele tem a mesma armadura que o outro draconiano, na’na...
O inimigo estalou o pescoço.
— Eu queria te dar uma morte rápida, estrela, arrancar cada membro
de seu corpo e violar cada buraco. — e ele deu um passo. — Mas eu quero
mais, quero ver o seu limite e me divertir até o momento em que implore
pela morte.
Ela nunca imploraria.
Yanaamahka tinha um nome, uma liberdade e parte de sua história, não
iria desistir ou temer o homem em sua frente.
Pelo contrário. Ela iria enfrentá-lo.
O calor em seu corpo humano se descontrolou pela raiva crescente e a
imagem de dragão surgiu sem que ela desejasse. As falsas curvas de mulher
deram lugar às escamas negras, as garras, os chifres e um conjunto de
pressas afiadas. No entanto, quando a transformação se concluiu, uma
pontada de dor rasgou as entranhas de sua alma. A asa quebrada pendeu
imóvel ao lado, dificultando a respiração e os movimentos dela.
— Eu vou fazer um favor a você, estrela, e quebrar a outra! — o
homem gargalhou.
Ele avançou como um animal sedento: a lança o acompanhou no calor
das chamas que se erguiam na floresta e iluminavam o campo de batalha. O
guerreiro era rápido, de ataques precisos, que obrigaram o dragão a se
defender com a dor da asa açoitando suas escamas. Principalmente porque
ambos tinham o mesmo tamanho: dois metros.
Yanaa era pequena demais para sua idade.
Ela urrou e conseguiu um primeiro ataque. Seus dentes recortados
agarraram o cabo da arma e a lançou à poucos metros. Leto saltou junto,
hábil, e caiu em pé com sua lança em mãos. Ele riu, debochou e investiu
contra o dragão novamente. Yanaamahka percebeu a realidade num
movimento dele: o draconiano estava brincando com ela. Ele não estava
lutando a sério, porque era melhor do que aquilo; e ser subestimada fez
florescer uma intensa irritação nela. Rugiu então, sentido as vibrações de
dor em sua asa, e atacou cegamente. O guerreiro fez pouco: girou o corpo,
manejou a haste e direcionou a lâmina no osso da asa quebrada.
A sensação... era como mil adagas dilacerando sua carne.
O rugido da Estrela da Noite cortou o coração do pequeno tigre. Era
dor. Era sofrimento. Era derrota. O menino estava imobilizado, o medo
prendera seus pés e o fizera assistir a um massacre. Um massacre que ele no
passado havia presenciado. Draconianos assassinaram sua mãe, ignoraram
as suplicas, violaram-na, bateram-na, mataram-na. Tiggrë vira tudo, não se
mexeu, não evitou, porque o mesmo medo que o prendia no presente, o
prendera naqueles dias sangrentos.
Mas ele não queria que acontecesse de novo.
Ele não queria perder de novo.
Leto Demétrius penetrara a lâmina de sua arma tão fundo nas escamas
de sua caça que pode se equilibrar sobre o cabo. Ele cruzou os braços em
uma sincronia perfeita com o próprio equilíbrio e encheu sua expressão de
deleite:
— Está sentindo, estrela? — e ela sentia. O peso do corpo dele no cabo
da lança reverberava ondas de dor no lugar em que a lâmina havia
perfurado. — Está sentindo as consequências de se manter viva?
O draconiano saltou com uma pirueta e arrancou a lança com sua força
descomunal no movimento. Sangue manchou a Floresta Viva. Sangue de
Estrela. Yanaa rugiu, desnorteada, desesperada; viu as chamas, as folhas
secas desaparecendo; viu a lua, a luz iluminando o mundo; viu Tiggrë, suas
lágrimas contidas. O fluxo do mundo seguia, a roda do tempo girava, mas o
de sua vida se interrompia.
Se morresse... sua falta seria sentida?
Se morresse... seu pai perceberia?
Se morresse... o que levaria de recordação de sua existência vazia?
Se morresse... Tiggrë também morreria.
Se morresse... duas vidas teriam sido em vão: Shurgakiaan, o dragão
negro, irmão de seu pai, sangue de seu sangue; e Tiggrë, o menino com o
sorriso de sol que lhe mostrou que o mundo não era tão corrompido.
Leto Demétrius avançou com a arma em riste na direção dela.
A lâmina brilhou e a Estrela da Noite agiu: o corpo escamado
desapareceu para revelar o semblante feminino. Yanaa rolou no chão e
escapou do ataque do inimigo, entre cinzas e terra. A força demasiada de
Demétrius fizera a lâmina se enterrar na terra, no entanto, não se preocupou
em recuperá-la. Seu foco era a mulher-dragão, e, cambaleante, ela pouco
poderia se defender dos golpes — estava à beira de um colapso.
Yanaamahka se defendeu de uma ofensiva, seus braços magricelos
bloquearam o punho do adversário, mas a dor que irrompeu segundos após
o impacto, a fez morder os lábios a ponto de fazê-los sangrar.
Ela cambaleou desajeitada, piscou, e sentiu o segundo golpe nas
costelas. A violência da investida fez seu corpo desmoronar com um estalo.
Sentiu o gosto de terra, sangue e humilhação. O ceifador ria e se divertia.
Ele era o vencedor desde o momento que pisou na floresta, e sabia disso,
treinara a vida toda para caçar as estrelas. Ela, contudo, sequer alcançar os
céus era capaz. Vivera na escuridão e na ignorância, sem chamas, sem
poder, sem nada.
Um terceiro golpe a fez beirar a inconsciência.
Demétrius a agarrou pelos cabelos. Ele desferiu um golpe pesado no
canto esquerdo do rosto dela, fazendo o mundo se tornar borrões disformes
e escuros, enquanto a lançava de volta ao chão, violentamente. Yanaamahka
piscou, inerte, e viu o semblante distorcido do draconiano se aproximar. As
expressões dele não passavam de um abismo sem definições, num piscar ele
estava lá, diante dela, no outro, ele cambaleava e se recuperava. Sangue
impregnou a atmosfera. A Estrela da Noite moveu os olhos com
dificuldade. Percebera Tiggrë, suas mãos pequenas, um pedaço de madeira
largo e um movimento inesperado: o menino avançou com uma coragem
cega contra o guerreiro.
Não… os lábios de Yanaamahka não se moveram, era tarde demais
para agir, e se não fosse, ela não conseguiria.
O inimigo agarrara o menino pelos cabelos também, suspendera-o do
chão e fechara o punho para desferir um golpe que o lançou por quase um
metro. Dois dentes saltaram na paisagem, vermelhos, manchados de sangue.
Tiggrë, porém, permaneceu consciente e corajoso: levantou, caiu e se
ergueu novamente. Cuspiu o líquido viscoso e apontou um dedo para o
draconiano. Ela é minha estrela!, o tigre bradara. Era uma criança e estava
se mantendo em pé. Era um humano e estava defendendo um dragão.
Demétrius se aproximou dele, empenhou sua lança... e o tempo parou diante
os olhos dourados da Estrela da Noite.
...e o sangue dela ficou quente demais.
Acorde, dissera uma voz feminina e familiar, acorde, estrela, e
vencerá. Era a mesma mulher que se pronunciara outrora em seus sonhos e
pesadelos. Era a entidade com as cores de safira. Sou Mahoutsukai, ela
dissera, mãe das safiras e das chamas azuladas, e você, criança, me
pertence. A imagem dela estava presente no campo de batalha. Mas o
mundo parecia congelado ao seu redor, nada se movia ou respirava. As
palavras sequer saiam da boca de Yanaamahka. Era como a primeira vez,
como quando o abismo a abraçou e ela se sentiu caindo.
O mundo continuava parado.
Cada segundo, é um segundo a menos na vida do menino, e
Mahoutsukai apontou para Tiggrë. A expressão dele estava imóvel, mas
seus olhos emitiam a dor que enfrentava. Yanaamahka sentiu seu coração
doer.
— Por que você... por que... tudo isso? — ela perguntou mais a si
mesma do que para a entidade. Mahoutsukai não expressava nenhuma
reação.
Eu estou dentro de ti. Faço parte de teu coração, tua vida. O fogo que
queimava o dragão negro morto aos poucos se tornava azulado, chamas de
safira, e Yanaamahka sentiu seu corpo tão quente que ela poderia derreter
num minuto. O que queima em ti é o poder que carregas por ser uma
Estrela da Noite... como todas as outras.
A entidade elevou um braço na direção das chamas.
A imagem de Mahoutsukai desaparecia lentamente.
Acorde, Estrela de Fogo.
O fluxo do tempo alcançou a normalidade em uma explosão de chamas
azuladas. Yanaamahka estava quente, suas mãos estavam quentes e a
floresta, lentamente, perdia suas cores e se tornava fria. O sopro de calor
estava desaparecendo... não, a Estrela da Noite estava o roubando. Ela
sentiu-se tonta e nauseada, mas seus olhos brilhavam em contraste com o
fogo de safira que queimava o corpo do dragão negro enterrado. Uma
demasiada surpresa contaminou o semblante do ceifador. Demétrius estava
incrédulo e, ao mesmo tempo, fascinado. Tiggrë, no entanto, não tivera
forças para resistir aos ferimentos e perdera a consciência. Ela precisava
ajudá-lo, precisa certificar-se que o menino estava fora de perigo e vivo.
Mas o calor a impossibilitava de qualquer movimento, seu corpo estava
preso por uma pressão invisível... e era insuportável se manter acordada.
Yanaamahka não aguentou e desmoronou com olhos entreabertos.
— Mahoutsukai... — seus lábios proferiram num sussurro.
Então as chamas, antes vermelhas, agora azuis, rugiram. Mahoutsukai,
o nome pairou no ar e nos pensamentos do draconiano. Leto Demétrius deu
um passo para trás, o rosto suado e a expressão sombria. Ele trincou os
dentes: malditas mulheres e suas entidades esquecidas. As chamas azuladas
silvaram contra ele.
Se ousasse se aproximar, seu corpo, seus ossos e sua alma seriam
queimados pela vida que irradiava da essência proibida.
O Fogo de Safira estava vivo.
Era belo. Era traiçoeiro. Era letal.
Demétrius se afastou com um desejo crescente.
— Você se salvou hoje, Estrela da Noite.
C A P Í T U L O Q U AT O R Z E

A ESSÊNCIA DO MUNDO

ESTOU DENTRO DE VOCÊ. Não há como escapar.


A voz feminina arrepiou cada centímetro de seu corpo. Yanaamahka
acordou na escuridão e a viu, o semblante azulado e os olhos de vidro. Os
cabelos dela eram longas cascatas de safira que beijavam o chão. A
entidade sorriu como se fosse a vitoriosa de algum desafio por um momento
e, então, as sombras vieram. Elas tinham olhos profundos e um cheiro
pútrido, estavam famintas. A Estrela da Noite se sentiu tragada por um
abismo vazio e gelado. Ela se encolheu e fechou os olhos, mas um
choramingar familiar a fez estremecer. As sombras deram forma à um
filhote de dragão negro que seguia desesperadamente uma luz que se
afastava. A claridade rugiu como um dragão adulto e se materializou em um
homem de semblante irritado. Ele tinha os olhos dela, dourados como o sol,
mas sua expressão demonstrava uma mistura de ódio e amargura que fez o
coração de Yanaamahka murchar.
O filhote grunhiu choroso ao lado dele, mas ele o ignorou e segurou
correntes pesadas entre os dedos. Então, o homem o acorrentou e o prendeu
na escuridão. Na expressão, o estranho tinha lágrimas de sangue. O que
você está fazendo? dizia com olhos marejados. Respostas, porém,
perderam-se.
Mas as palavras seguintes congelaram o mundo.
Tuas lembranças, teu passado, teu nome...
O que tu eras, não serás mais.
O que tu viveste, não viverás mais.
Tu estarás morta; e, morta, renascerás.
Sem lembranças, sem passado, sem nome.
Sem nada.
Mas ela não desejava renascer.
Yanaamahka despertou com um sobressalto.
Havia lágrimas em seus olhos. Lágrimas que ela engoliu enquanto seu
corpo gelado repousava numa cama improvida com feno e um tecido
desgrenhado. Ela sentiu um badalar incansável em sua cabeça, uma pressão
que parecia esmagar seus ossos e trincou os dentes quando a dor irrompeu
por sua pele. Sua visão turva ganhou foco e a Estrela da Noite se viu na
pequena casa de Roren, suas feridas estavam tratadas, mas a realidade a
fatigava. Muito acontecera nas horas em que estivera inconsciente, viu o
estranho e uma possível verdade que a incomodava:
Ela não foi abandonada — mas acorrentada. Ela fechou os olhos e
mordeu os lábios. A mulher de safiras também causava incomodo. Estou
dentro de você, ela dissera; e Yanaamahka tentou buscar a presença dela em
seu íntimo. Mas não encontrou nada. Somente escuridão. Mahoutsukai era o
nome dela, pensar nisso fazia um estranho calor subir por suas entranhas e
aquecer seu coração. O que a estranha era, não sabia, mas tinha certeza que
era muito mais que uma ilusão de seus pensamentos confusos.
Caso contrário, a expressão do ceifador não teria...
Leto Demétrius!
As lembranças da noite passada a invadiram como uma avalanche e
corroeram os resquícios de suas forças. Ela lembrou do homem e de suas
ações, o modo cruel que ele a espancou. Ele estava brincando com ela — e
Yanaa se perguntou por quanto tempo o draconiano a perseguiria. O
coração dela sufocou repentinamente. As formas e imagens ficaram nítidas
em sua mente, e ela pode ver o pequeno tigre usando tudo o que tinha para
protegê-la. O draconiano o feriu e... A estrela moveu os olhos dourados
depressa e sentiu um alívio ao perceber o corpo do menino adormecido ao
seu lado. Ele estava vivo... vivo.
Tiggrë tinha ataduras na cabeça e lábios inchados.
A Estrela da Noite moveu uma mão e o tocou sutilmente sobre a testa.
Se ele tivesse morrido como Shurgakiaan, o dragão negro, morreu, ela não
se perdoaria. Yanaamahka suspirou irritada, seus dedos ficaram quentes
sobre a pele do pequeno e uma escuridão repentina cobriu o mundo. Tudo
se fragmentou enquanto as sombras a abraçavam. Tiggrë desapareceu de
seu toque, a casa fora engolida e toda a luz desapareceu.
Os olhos dourados da Estrela da Noite estremeceram.
A resposta do que estava acontecendo viera com um fluxo de imagens.
Ela viu um menino, talvez cinco ou seis anos, correndo desesperado na
noite chuvosa. Os cabelos cor de fogo, os olhos de esmeralda: ela o
conhecia. Era Tiggrë. Havia respingos de sangue em seu rosto, suas mãos e
pés estavam feridos e ele sussurrava constantemente as mesmas palavras.
Ma’ma. Ma’ma. Ma’ma.
Então tropeçou e caiu. As lágrimas cresciam em abundância em seus
olhos, sofridas, apavoradas; e, afogado no desespero dele, Yanaamahka
tentou alcançá-lo. Mas não pôde. Tiggrë olhou para trás e seus olhos se
encheram de desespero e pavor: um homem de armadura negra se
aproximava com a espada. Banhada de sangue. Está procurando por sua
mãe? perguntou o homem. A semelhança de sua voz com a crueldade de
Leto Demétrius era assustadora. Eu a trouxe para você, veja! disse o
inimigo, lançando a cabeça da mulher na direção do menino.
...e tudo desapareceu.
A realidade a atropelou: tudo estava como deveria estar: Tiggrë
dormindo ao seu lado, seus dedos, agora gelados, sobre a testa dele e a
constante dor que a fazia estremecer. Yanaamahka suava e se perguntava o
que significavam as imagens. Se eram verdadeiras ou uma invenção cruel
de sua consciência conturbada, não soube, mas sentiu, no peito, no âmago,
o quão doloridas eram.
Ela entreabriu os lábios e não conseguiu falar.
— Yanaamahka?
A voz do Roren a fez sobressaltar violentamente.
— O que houve?! — o homem perguntou assustado ao perceber o
pavor nos olhos dela. — Pelos deuses, o que aconteceu com você?
A Estrela da Noite precisou respirar com calma para acalmar o palpitar
agitado de seu coração. Sua cabeça doía. Eram tantas perguntas, tantas
lembranças confusas, que receber as de outras pessoas a deixavam fatigada.
Ela colocou uma mão sobre o rosto e sentiu seu corpo queimar por dentro.
A mesma sensação de quando Mahoutsukai se aproximou a falou das
essências.
— Me deixe em paz. — a mulher sussurrou com um rosnado.
— Não se preocupe, ele está bem. Tiggrë está fora de perigo.
Era uma questão de tempo para que o menino acordasse bem — o que
a aliviava.
Mas ela não entendia o porquê da lembrança dele. Yanaamahka
mordeu os lábios. Ela devia sua vida a ele. Tiggrë não a abandonou e a
protegeu com toda a coragem que imaginava não ter.
Era a culpada. Estava destruída.
Mas, estranhamente, sem dores físicas.
— Ele está em pé no amanhecer, não se preocupe, as ervas não falham.
— Roren trazia uma vasilha com frutas doces e amassadas, e mel. — Eu
trouxe um alimento.
— Eu não tenho fome. — a voz de Yanaamahka era seca. Ela não
tirava os olhos do menino.
— Experimente pelo menos.
— Eu não quero.
— Yanaamahka, você precisa...
— Eu disse para me deixa em paz! — vociferou. — Eu não preciso de
nada!
Roren baixou os olhos e se despediu, depois saiu.
Ela estava com o coração ferido, confuso e culpado. Precisava refletir
e, principalmente, entender uma realidade tão cruel a ela. Yanaamahka,
apesar das dores, se manteve acordada ao lado de Tiggrë; e a apreensão que
a corrompia desapareceu na madrugada. Felizmente, o menino despertara
disposto e cheio de energia, contando os sonhos que tivera, ressaltando a
coragem ao sorrir sem dois dentes. Não havia traços de recordações sobre
as imagens que a Estrela da Noite vira ao tocá-lo.
Yanaamahka sentiu o frágil coração que tinha bater tranquilizado. A
camada exterior, a mesma que ela demonstrava aos demais, era dura e
impenetrável — algumas vezes gelada. Mas o interior... sofria e sangrava.
Roren preparou uma refeição substanciosa para os dois: sopa de batatas
e cenoura. Ela, porém, se sentiu nauseada com o cheiro e o menino devorou
e lambeu os dedos. Ele repetiu três ou quatro vezes, a Estrela da Noite
perdeu o interesse de contar, mas experimentara um pouco e optou por
continuar com fome.
— Klud encontrou os dois. — Roren dissera com um suspiro aliviado.
Ele também comia a sopa com colheradas lentas. — Vocês estavam
desacordados e feridos. Quando Klud trouxe vocês, eu quase tive um ataque
do coração. Eu não sei o que aconteceu... mas quem atacou desistiu de
matar. Sunyar seja abençoado!
Yanaamahka ponderou as palavras por segundos.
— Ele queria... matar... — e sussurrou com os pensamentos distantes.
Tiggrë estava ao seu lado com uma coberta ao redor dos ombros. —
Recuou... quando viu o fogo... o fogo azul.
Os olhos de ambos os humanos se arregalaram.
— Fogo Azul? — Tiggrë se levantou depressa. — Você está dizendo o
Fogo de Safiras?
— As essências esquecidas?! — Roren quase cuspiu a comida.
— Mahoutsukai... — e ela sussurrou e sentiu o calor irromper.
— A filha do deus-dragão! — o menino disse depressa, dois dentes da
frente faltando. — Os Eternos do meu povo falavam sobre ela! A deusa das
safiras, da vida, da... pelos doze!
A estrela estava com o cenho emburrado.
— Todas as Estrelas da Noite nascem com uma essência, Yanaamahka;
e é estranho que você tenha uma diferente de sua mãe e sua avó. Ambas
herdaram os Cristais de Rubi, o mais devastador entre os três. Você não...
— Roren a encarava com olhos distantes. — Você recebeu a cura.
— A vida! — Tiggrë ergueu os braços.
— Eu não entender.... diferença... diferença disso ter.
— A diferença é que sua essência, Yanaamahka, te protege, ela é o que
te dá vida, força. Me diga: quantas vezes você esteve à beira da morte? Não
só isso. Você esteve presa por quase quinze anos sem se alimentar direito.
Sabe quantos são capazes de sobreviver? Essa é a diferença: seu poder te
protege.
Não, ela queria ter dito; não sobreviveu àquela escuridão por causa de
uma essência, e, sim, porque queria, porque resistia. Fora a sua força de
vontade. Roren se levantou de repente, pedindo que esperassem, e retornou
com um objeto enrolado em um tecido negro. Era um livro de páginas
amareladas e bordas desgastadas. Tiggrë se inclinou, curioso, atento ao
título costurado na capa. A estrela, porém, não reconheceu os sinais, mas
soube, no íntimo, que eram estranhamente familiares.
— A essência do mundo? — o menino perguntou.
— Eu não sei ler dragos’kar antigo, mas, sim, a essência do mundo. —
e ele colocou o volume entre ambos. — Esse livro pertenceu a Satridunkaal,
o Dragão Milenar, seu avô, Yanaamahka. Vlanhonder me entregou, pediu
que eu guardasse... Mas eu nunca aprendi o idioma deles, o seu idioma,
então... acho que você pode aproveitar ele.
— Ajuda... de um livro?
Tiggrë colocou as mãos na cintura.
— Que pergunta mais boba! Há muito o que aprender nos livros.
Yanaamahka revirou os olhos.
— Ele tem razão... Seu avô quem escreveu esse livro; e ele, com a
sabedoria que tinha, colocou tudo o que conhecia das essências aqui. Há
capítulos para cada irmã. — e ele folheou as páginas. Apenas sinais e mais
sinas, nenhuma letra. — Uma pena é que eu não entenda esse idioma.
Ela forçou as vistas sobre o livro.
— Não entender.
— Não? — Roren pareceu abismado.
— Eu entendo um pouco! — e Tiggrë agarrou o livro. — Posso
aprender mais e ajudar a Na’na com isso! Descobriremos sobre sua essência
juntos!
— Mas eu não querer descobrir... não quer.
O menino, no entanto, não deu ouvidos e folheou o livro de modo
frenético.
— A Benção do Fogo de Safiras! — e leu em voz alta. Concentrou-se,
então, apesar dos sons irritados que a estrela emitia. — Ele diz que as
draconianas também recebem o poder. Não todas elas, mas algumas... e o
poder vem das estrelas?
— Há relatos. — Roren balançou os ombros. — Alguns acreditam que
é verdade, e por isso caçam as estrelas, outros dizem que o poder vem das
próprias irmãs. O interessante é que...
Yanaamahka o calou ao se levantar sorrateiramente.
— Eu não querer saber! — e rangeu os dentes.
Tiggrë se encolheu e Roren a encarou.
— Você precisa acreditar e aceitar a essência que tem. Sua mãe aceitou
a dela.
— Eu não ser ela, não ser igual.
O homem fez menção de falar, mas ela deu as costas, uma ferroada a
incomodando
— Não sou nada.
...e era vazia.
CAPÍTULO QUINZE

A DAMA DE FERRO

MATEM TODOS.
O sangue derramado nas terras de rebeldes não chocou os olhos
gelados do comandante. Ele observava a destruição sem expressar sequer a
vitória contra os inimigos. Não havia glória na guerra, Ahuriel vön
Krimnell lera em um livro e acreditava ser uma das mais importantes
certezas na vida de um homem. A guerra trazia a morte; e morrer era
escapar, era desistir, era ser derrotado. Era por esse motivo que o guerreiro
não festejava mais uma conquista das tropas draconianas sobre um povoado
rebelde.
Mas ele era o único.
Homens urravam e brandiam suas espadas para o céu. Um dia cinzento
honrava os nomes das famílias de cada um, as armaduras brilhavam na luz
das chamas. Eram draconianos, tinham o sangue quente e o coração
aventureiro. Eles nasciam guerreiros e tinham o prazer de morrer por sua
nação. Nenhum, felizmente, perecera na batalha. Porque atacaram um
povoado desprotegido, sem força de ataque, com predominância de velhos e
mulheres. Os rebeldes não resistiram. Eles imploraram por clemência —
nenhum fora poupado.
Ahuriel moveu os olhos pelos restos do vilarejo costeiro. Fogo, sangue
e terror se misturavam à paisagem colorida do continente. Homens haviam
sido decapitados, idosos queimados e mulheres violadas. O cavalo do
comandante relinchou inquieto e o Krimnell despertou de uma reflexão
profunda para entrar em outra. Uma menina morta entre os destroços de
uma casa ganhara sua atenção. Sua garganta estava cortada e ela mantivera
os olhos abertos ao morrer.
Olhos cor de sangue.
Os antigos escritos de Sahel, um estudioso sobre as origens
draconianas, diziam que a coloração escarlate era uma característica
predominante em um grupo de ancestrais da raça durante a Era dos Céus.
Os Rubros. Eles viviam nos vulcões de Almathumbria, continente que se
despedaçou e formou Aumastris e Nothumbria, e suportavam grandes
calores. A raça, nos primórdios, era dívida entre esse grupo e os Cinzentos,
residentes do sul do antigo território, as montanhas geladas e quem,
consequentemente, resistiam a temperaturas negativas. Ambos se
diferenciavam pela coloração dos olhos, um prateado e outro vermelho; e
pela pele, um pálido, o outro negro.
Se as teorias de Sahel fossem verdadeiras, a menina rebelde poderia ter
o sangue mais puro que qualquer guerreiro draconiano ao redor. Ela seria
mais nobre que o próprio comandante. Mas o estudioso fora um homem
condenado à morte por suas blasfêmias: ele defendia um sutil parentesco
entre os draconianos e os dragões. Seus livros foram queimados e sua fama
esquecida.
Sahel despareceu no mundo sem deixar rastros.
Ahuriel, no entanto, reservara uma cópia de cada um dos escritos. Não
por ousadia ou difamação ao seu povo, ele era um homem extremamente
compromissado aos seus deveres; e, sim, por curiosidade e prazer.
O comandante e seus homens retornaram à Aumas em uma noite
abafada. Muitos ficaram na cidade baixa de Amaezis para encontrar suas
famílias. A grande maioria dos guerreiros não eram draconianos de origem
nobre, mas filhos de comerciantes e camponeses que não tinham um passe
livre para além dos portões entre as duas partes da capital. Amaezis e
Aumas eram dividas por uma passagem fortemente vigiada: guerreiros
defendiam a entrada e a longa escadaria que se elevava ao berço do Palácio
da Aurora de Cristal.
O som das cachoeiras era tudo o que os menos privilegiados poderiam
desfrutar.
Ahuriel vön Krimnell avançou pelos degraus sentido respingos de água
lavar seu cansaço. Ele estava quieto e sozinho, sua armadura negra
carregava a luz da lua e resquícios da batalha de outrora. Não... ele se
corrigiu. Havia sido um massacre. Mas as estradas do rei estavam
finalmente livres e a Muralha Dourada protegida. O comandante se
aproximou da ponte que o levaria ao palácio e parou por um estante. A
cidade estava silenciosa e tranquila. Somente a canção das cachoeiras era
ouvida. Todos os draconianos nobres estavam reclusos em seus casulos.
Ninguém perambulava pelas ruas de marfim ou observava a lua de suas
janelas.
Era quase meia noite quando o comandante retornou aos seus
aposentos. Ahuriel esperava receber um ambiente dominado pela penumbra
e silêncio. Ele aproveitaria para lavar o cheiro de sangue de sua armadura e
ler para combater seu forte problema de insônia. Mas o que encontrou na
saleta fora diferente do cenário que imaginara: luzes acessas, livros
espalhados e sua mulher adormecida entre eles.
O sangue dele ferveu.
Ele deixara clara suas ordens ao sair em missão: a jovem não poderia
deixar o quarto. Nem por um minuto. Nem por um segundo. Desde o dia em
que ela desmaiara nos jardins do palácio, o comandante decidira mantê-la
presa para não prejudicar o herdeiro que se formava no ventre dela.
— Criança. — dissera ele num misto de raiva. A moça despertara com
um sobressalto, o corpo miúdo vacilou e ela tropeçou desajeitada entre os
livros. Ahuriel se aproximou e agarrou bruscamente pelo punho. Ele a
levantou de forma violenta. — Quem deu-te a liberdade de profanar minhas
ordens?
O rosto de Luna ficara vermelho entre as lágrimas.
— Perdão! — e ela sentiu o baque em seu corpo quando o marido a
lançou de volta ao chão. Uma estranha sensação floresceu em seu peito. O
vento queria acordar. Misairuzame a queria proteger. — Meu senhor, eu só
estava...
Ahuriel teria a batido e se a entrada repentina de Eun-seo não o
houvesse parado.
— Comandante! O que está acontecendo? — o cavaleiro perguntara
depressa ao se pôr entre seu senhor e sua protegida. — Ela está grávida!
Eun-seo vira a cólera contaminar os olhos do draconiano.
— Minhas ordens foram claras a ti. Esta maldita deveria estar no
quarto e permanecer nele até o meu retorno. — Ahuriel direcionou a ela um
olhar de desprezo. A moça se encolheu e segurou as lágrimas. — Volte para
o quarto, desgraçada, e não ouse sair novamente.
Lunaysis observou seu cavaleiro por instantes, Eun-seo não falara
nada, mas seus olhos diziam que ela deveria obedecer. A jovem se levantou
sozinha e correu depressa para o quarto, pequenas gotas de sangue a
acompanharam. Ela estava ferida, o guerreiro pensou com as mãos
trêmulas. Se ele não fosse tão inferior ao seu comandante, o teria matado ali
mesmo.
— Perdão, meu senhor. Eu a deixei sair um pouco. Ela estava pálida e
queria muito ler. — Eun-seo se explicou com reverência. Ahuriel o
observava com seus olhos gelados.
— Se ela pedisse para fugir, tu a deixaria?
Eun-seo estremeceu.
— Uma mulher não tem direito ou liberdade para fazer o que quiser.
Eu a comprei e farei o que bem entender. Se quiser espancá-la, espancarei.
Se quiser matá-la, matarei. — os olhos azulados do comandante emanavam
uma frieza como se fossem de vidro. — Se me parar novamente, sir Eun-
seo, farei com que ela durma com sua cabeça decapitada pelo resto da vida.
Ahuriel observou a bagunça ao redor.
— Tu estás proibido de vê-la e alimentá-la até segunda ordem. Agora
organize os livros e peça para prepararem meu banho.
O homem não pode fazer nada além de assentir.
Uma onda de silêncio abraçou a saleta com a saída do cavaleiro.
Ahuriel suspirou pesadamente para amenizar o badalar em sua cabeça.
Insônia. Cansaço. Irritação. Ele deixou o corpo despencar numa poltrona
aveludada e observou a bagunça do ambiente. A desordem causava-lhe
desconforto, sua rotina estava recheada de momentos em que ele organizava
duas, quatro, seis vezes os papéis em sua mesa, os livros na biblioteca, as
espadas em seus suportes. Era uma sutil obsessão: organizar e manter
organizado. No entanto, muitas vezes era prejudicado pela falta de sono. Se
deitasse na cama, o silêncio o faria lembrar dos compromissos; e dormir
significava, perder tempo.
As olheiras eram uma consequência.
Ahuriel desfez a longa trança que prendia seus cabelos prateados e
estalou os músculos doloridos no pescoço. Ele observou os livros
espalhados no chão, títulos que sua mulher havia escolhido por algum
motivo. Ele conhecia todos os nomes, eram histórias da criação e contos de
bardos apaixonados durante a guerra contra as raças antigas. O que chamou
a atenção do comandante, porém, fora um conjunto de folhas no meio de
um volume pesado de Ein e Nin na origem de Mundus.
O draconiano teria ficado irritado ao ver pedaços de papel inútil em um
livro tão precioso em sua coleção se as palavras escritas não estivessem
frescas. Ele os juntou entre suas garras salientes e analisou por segundos
uma parte do texto:
...O vento questionou, como é a liberdade?
Ela tem asas, não se esconde, não vaga, o tempo quem respondeu.
O tempo explica a liberdade? o vento indagou.
A liberdade não espera, não aguarda
Precisa ser alcançada.
Ahuriel interrompeu a leitura. A caligrafia era como um desenho,
delineada com um traço suave e um cuidado exagerado. Ele não conhecia a
letra, se era de sua mulher ou de algum empregado, não sabia, mas não
poderia negar que a mensagem o deixou intrigado por um momento.
Liberdade...
Ele amassou as páginas.

Rhenna vrön Skaargärd sempre ignorava os detalhes da sala do


conselho: a Aurora da Primavera, no idioma comum. A natureza e a estação
das flores desenhadas nas paredes do ambiente oval há muito perderam o
encantamento para ela. Nem o ouro, nem os diamantes e pedras preciosas
eram capazes de ganhar a sua atenção. A abóboda de cristais, os
ornamentos em marfim e as imagens das glórias da nação eram para a
general detalhes que sempre passavam despercebidos. Não porque ela era
ignorante e não conhecia as artes, pelo contrário, o calor da vida no peito de
Rhenna se apagara há muito tempo — e tudo que lhe restava era uma
caminhada cinzenta pelos domínios draconianos.
A sala do conselho, apensar de todo o seu desinteresse, era uma obra
prima da nação. Ela fora construída para abrigar todos os superiores em
uma imensa mesa oval. A superfície do móvel era peculiarmente detalhada:
ela se assemelhava a um relógio sem a divisão de doze números; e, sim,
com as fases da lua. A nova, a crescente, a cheia e a minguante. No centro
de tudo, onde deveria haver os ponteiros, estava o astro rei representado
pelo deus Sunyar.
As fases da lua os envolviam como o abraço caloroso da deusa Lunyar.
As cadeiras de ouro e veludo dourado que rodeavam a mesa eram todas
semelhantes para manter a igualdade entre os lordes. Tapeçarias nas cores
bordo se estendiam pelos pilares que circundavam a sala; e nelas havia a
imagem da lua e todas as suas fases.
Rhenna fora a primeira a se fazer presente no conselho. Era sua forma
de evitar olhares maldosos com a sua chegada. Era a primeira general, o
cargo mais próximo do rei e do superior, e o fato de ser uma mulher a
ocupar uma posição tão importante fazia os demais desejarem sua morte.
Era uma sociedade patriarcal, conservadora e odiosa, na opinião dela. Por
mais que possuísse homens de confiança, a draconiana estava acostumada
as palavras de ódio que cuspiam em suas costas. Ela era alvo de constante
assédio, calunia e preconceito. Se não fosse tão sólida como pedra, teria
sucumbido há muito tempo.
Mas eles cairiam um dia.
Seriam os culpados do próprio apogeu. Só que ela não estaria mais
viva para presenciar a queda dos draconianos. Seus dias estavam contados:
a doença em seu corpo se tornava cada vez mais forte. A general recusava
ajuda porque a decadência de sua saúde era sua culpa.
O rosto da general relaxou quando seu olho direito percebeu a
aproximação de um homem. Uma franja grossa e dourada escondia o olho
esquerdo enquanto seus lábios se abriam num sussurro inaudível: Ahuriel, a
general sentiu o coração angustiado esfriar. O comandante lhe dirigiu a
atenção e sua sutil reverência. Eles não trocaram palavras, mas na atmosfera
pairava uma estranha admiração.
Ele se sentara em um lugar oposto ao dela e esperou em silêncio.
Minutos bastaram para que as demais figuras do conselho se fizessem
presente. Todos homens. O duque Corvus vön Skaargärd ocupou uma
cadeira ao lado da mulher, guardião da Fortaleza de Prata e pai de Rhenna.
Ela era a primogênita dele. O marido dela, Khan vön Skaargärd, também se
fez presente e se sentou próximo a Ahuriel. O coração da general se apertou
ao vê-los tão próximo.
O duque Merseille zön Veridius, guardião do Rochedo de Bronze, e seu
filho, o general Adamus zön Veridius chegaram em seguida com seus traços
assustadoramente belos. Mas eram draconianos perigosos. Todos eram. Os
condes Kurdan sön Thenardier e Gilgondorin wön Zyegnard entraram
juntos entre sussurros e contemplações para os demais. Mas fora a entrada
do segundo general, Belpheggör rön Vanadis, que ganhou a atenção de
todos os presentes. O favorito do império — e o primeiro homem, o
primeiro draconiano, a ser aclamado, amado, por um assassinato hediondo.
Rhenna o odiava por isso; odiava todos os demais que, como ele, foram os
culpados daquela morte.
...e ela não pode protegê-la das mãos dos draconianos.
Rhenna despertou de sua angústia com o anúncio da chegada do
imperador: Cassius rüne-Dagon ar Virtaria, um jovem ingênuo e facilmente
manipulado. Se Hiborym rön Vanadis, morto pelo Dragão dos Dragões,
estivesse vivo e no cargo de Superior, talvez o menino houvesse aprendido
a ser um líder. Mas não era e demoraria a ser.
— Eu agradeço a presença de todos. — Cassius se manifestou com um
sorriso gentil. Os olhos prateados do menino brilharam. Ele era baixo e
magricelo, frágil como um filhote de coelho. As roupas negras com
bordados de ouro sequer eram capazes de fazê-lo parecer mais velho.
Rhenna percebia o nervosismo do imperador ao estar presente.
— Nos reunimos hoje perante a ascensão da lua cheia e devemos
saudar a deusa Lunyar que nos abençoa todos os dias. — o menino
sussurrou e todos assentiram em respeito. Depois de um minuto de silêncio,
ele continuou. — O motivo de chamá-los todos hoje está relacionado com o
ataque a cidade humana há algumas semanas. Um de nossos guerreiros em
missão junto ao general Demétrius, relatou a presença de um dos dragões
negros.
Rhenna se sentiu desconfortável com a citação.
— O rei Gureryne Lachance teme que o ataque seja um prelúdio para
uma invasão maior na capital humana como no passado aconteceu conosco.
Então, ele pediu... clamou por ajuda draconiana.
Murmúrios de desaprovação se alastraram pela sala.
Então Belpheggör se levantou e tomou a palavra.
— Não temam, meus caros, o que forjamos com sangue é incapaz de
ser abalado uma segunda vez. Somos mais fortes e mais numerosos. As
estrelas estão desaparecendo e, com isso, o poder dos primeiros dragões. Se
queremos exterminá-los, amigos, o que pode ser melhor do que uma aliança
com os humanos? — os olhos cor-de-sangue do segundo general eram
como rubis que ardiam em seu interior.
Os superiores se entreolharam por instantes.
— Como pretende ajudá-los, Lorde Vanadis? — o duque Corvus, o
protetor do Leste, se manifestou entre os demais, os cabelos dourados
escorrendo graciosos em suas costas. Rhenna o encarou por um momento,
aflita, rancorosa, em relação ao pai. Há anos não conversava decentemente
com ele.
— Duque. — Belpheggör fizera uma reverência em respeito. O ducado
de Skaargärd era o segundo mais rico no Império. — Sua Majestade
sugerira nomes a mim, contudo, meu caro, tomei a liberdade de fazer
algumas mudanças com a permissão de vosso imperador. Como todos
sabemos, o general Demétrius se encontra em território humano e somará
forças para defendermos nossos aliados caso um segundo ataque realmente
aconteça. Além dele, a presença do comandante Krimnell e quinhentos e
cinquenta cavaleiros das elites será mais que o necessário. — e o
draconiano moveu os olhos para seu superior. Cassius o observou em
silêncio. — Se, é claro, o imperador permitir.
Cassius permitiria, sua escassez de coragem ou confiança o fazia
aceitar grande parte das propostas de todos os integrantes do conselho.
Rhenna não suportava ver como os demais se aproveitavam do menino.
Darius, seu antecessor, morto pelo Dragão dos Dragões, era um imperador
diferente e sábio — embora fosse perverso como a noite mais escura. A
general, porém, não permitiria que os planos dele fossem executados... não
sem antes fazer de tudo para infernizá-los.
A voz dela reverberou pelo salão de repente:
— Eu irei também. — e todos direcionaram olhares para ela.
Belpheggör a observou com desprezo. Cassius suspirou e o Duque Corvus
cruzou os braços com um orgulho secreto.
— General Skaargärd, querida, receio que não esteja em condições
para enfrentar o clima quente de Tannenberia. — Belpheggör disse com
falsa preocupação. — Acredito que está mais do que na hora de descansar.
O que acha de viajar pelas cidades portuárias? Ah! Perdão, general. Eu
esqueci que você odeia o mar.
O mar havia levado seu filho.
Mas não deixaria que isso se tornassem uma fraqueza.
— Guarde suas palavras, Vanadis. — Rhenna disse firmemente. —
Não serão o bastante para me fazer ficar. Eu irei à capital de Solnascente
queira você ou não.
— Enviar uma mulher ao lado dos melhores guerreiros draconianos?
— o general Adamus se fez ouvir com um tom de provocação. Ele vinha de
uma família nobre e conservadora demais. Os traços delicados de sua
linhagem o faziam parecer cavaleiro bondoso e radiante. No entanto, havia
escuridão demais em seu coração. Em todos eles. — Deixe eu ir no lugar
dela, Majestade. Serei muito mais útil e não corro o risco de abrir as pernas
para o rei humano a fim de conseguir um cargo de general lá também.
As provocações nunca a atingiam. Rhenna aprendera a ser sólida e
esconder suas fraquezas no âmago de sua alma. Seu pai a treinara dessa
forma, com sangue e fogo, e palavras nunca a afetariam. Porque ela sabia o
que era, nada no mundo poderia mudá-la, nem mesmo a morte. Seu marido,
no entanto, estremeceu de ódio no outro lado da mesa. Ele era um
comandante e não tinha a liberdade de se pronunciar se não fosse
autorizado durante as reuniões do conselho, mas se pudesse, o guerreiro
saltaria e faria Adamus e o Duque Merseille engolir a lâmina de sua
montante.
— Por favor, peço que haja um pouco mais de respeito no conselho. —
Cassius dissera com a voz entrecortada. Adamus cruzou os braços com
desdém. — General Rhenna, tu tens a liberdade que necessita para
acompanhar os demais, mas temo em relação a tua saúde. Eu soube que tens
tido problemas durante os treinamentos em Acatemia.
— Uma doença qualquer não irá me impedir. — a general disparou.
— Não há generais demais no continente humano? — o conde Kurdan
se manifestou após um longo silêncio. Ele era um homem com uma barba
branca espessa e olhos cansados. Era o encarregado pelos cofres do
império, e talvez fosse o mais velho entre todos os presentes. — O general
Demétrius está completando uma missão em Tannenberia. Ele é nosso
melhor caçador de dragões, não há razão de enviar mais generais.
Perderemos força caso os rebeldes ataquem.
— O general Demétrius não tem condições para manter os próprios
homens, como poderia cuidar da defesa de um aliado? — Rhenna rebateu
com indiferença. O demônio negro, como Demétrius era conhecido, estava
em sua lista de draconianos que ela desejava ver morrer lentamente. A
mulher lutara com ele no passado, o general se gabou que a venceria em
cinco movimentos e a violaria no sexto. Ele, de fato, fora o vitorioso, mas
com mais de vinte movimentos, um pulso quebrado e nenhuma violação.
A general moveu a atenção para o conde Kurdan antes de continuar:
— Se me permite, conde, tu enviaste teu filho para caçar dragões em
Tannenberia, o que significa que tu não estás preocupado com a defesa de
vosso povo. Ele é um Cavaleiro Negro e deveria estar aqui, protegendo o
império. — as palavras dela fizeram o homem se mover inquieto no
assento. Kurdan desviou o olhar, resmungou e não disse mais nada.
Então Rhenna se ocupou com Adamus.
— Receio que não deves falar sobre abrir pernas, general, porque teu
cargo lhe foi dado por caridade; o que mais tu fazes além de assassinar
mulheres enquanto é protegido por teus homens? — e as palavras dela
fizeram Adamus trincar os dentes, entreabrir os lábios para protestar, mas o
gesto repentino de Belpheggör o silenciou.
O Vanadis sorriu forçadamente.
— Minha querida. O que acha de facilitar esta reunião e cooperar
conosco?
— Não. — e se levantou sem tirar seus olhos do semblante do Vanadis.
Embora Belpheggör encenasse uma expressão gentil e amorosa, havia fogo
em seus olhos. — Não se dirija a mim, segundo-general Vanadis, — ela deu
ênfase na palavra. — como querida de novo. Não sou íntima tua e nem lhe
dei a liberdade. Sou primeira-general Skaargärd, se preferir. — Rhenna
desviou, então, os olhos para o imperador. — Se me permite, Vossa Graça,
tenho compromissos com a princesa.
— Tu tens a permissão para sair, general. — Cassius murmurou com
dificuldade. A atmosfera na sala do conselho não era nada agradável.
Rhenna deixou a sala sem olhar para trás, sentindo o peso de suas
escolhas dificultar parte de sua respiração.
CAPÍTULO DEZESSEIS

C I C AT R I Z E S D E O U T R O S
TEMPOS

YANAAMAHKA SONHOU COM A RISADA ousada de Mahoutsukai. A deusa


caminhou em seus pensamentos e murmurou verdades que a Estrela da
Noite não queria ouvir: não importa onde tu vás, herdeira, jamais mudarás
o que és. Ela seria caçada pelo que era, o mundo não daria a liberdade
desejada ou a deixaria viver em paz. Não existia paz para uma fêmea dos
primeiros dragões. O que viera depois, no entanto, dissipou as angústias da
jovem como uma brisa quente de verão. Alguém se aproximou dela na
escuridão de seus sonhos e encheu de luz. O ser não tinha nenhuma forma,
era apenas um borrão claro na confusão que eram as lembranças dela.
A Estrela da Noite não o entendeu. Era um idioma esquecido por ela,
mas as palavras eram tão familiares que o sono dela se estendeu por horas
de tranquilidade e conforto.
Então, a luz se tornou fraca e a fêmea de dragão não se sentiu pronta
para dizer adeus. Ela não queria se afastar. Era um conforto inigualável,
uma cumplicidade especial e um carinho sem limites. Mas ele precisava
partir. Ele não podia ficar.
...Vandoharen. Os lábios da Estrela da Noite se moveram suavemente.
Ela despertou e o mundo ficou gelado de repente.
Yanaamahka estava deitada na proteção de uma árvore coberta por
frutos maduros. Era uma tarde abafada e o menino tigre descansava ao lado
dela com o livro que um dia pertencera ao ancestral dos primeiros dragões.
O menino estava empenhado em decifrar as palavras do Kyn e estudava por
horas a linguagem arcaica. A Estrela da Noite, no entanto, não tinha tempo
para pensar em lendas e histórias. Sua cabeça estava ocupada demais com
todos os obstáculos de sua jornada: o ceifador, a essência de Mahoutsukai,
sua origem e, enfim, o nome do irmão. As preocupações sempre a
rodeavam e dilaceravam seus resquícios de tranquilidade.
Lucinda, a mestiça com o coração do tamanho do mundo, recolhia
frutas com uma tranquilidade invejável próxima a eles. Ela as colocava na
saia do vestido, as pernas finas sutilmente bronzeadas se esticavam para
alcançar os alimentos no alto. Mom-mom estava atrás dela com o grande
focinho aspirando o cheiro doce das maçãs. A personalidade do dragão não
correspondia a sua aparência sofrida e as cicatrizes que bordavam suas
escamas. Tiggrë mencionara que a fera surgira repentinamente na floresta e
se encantou pela menina como se ela fosse o refúgio que ele buscava. O
dragão deveria ter sofrido o mesmo que Yanaamahka: anos e mais anos em
um calabouço escuro sem ver o sol.
Mom-mom era como ela.
Ele queria viver sem temer os caçadores.
Mas não havia paz em um continente habitado por humanos ou
draconianos.
Somente em um lugar: o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes.
Ela precisava chegar lá. O mundo, porém, parecia impedi-la de todos
os modos. Ele era cruel, e os hematomas no rosto do menino tigre eram a
prova de quão terrível Agëa poderia ser. Os ferimentos de Tiggrë não
melhoravam com a mesma rapidez dos dela. Ele era um humano, e
humanos se quebravam facilmente. Se Tiggrë permanecesse ao lado dela...
ele estaria fadado a sofrer. Ele seria corrompido pelo mundo e não mais
sorriria ou contaria suas histórias cheias de imaginação. O menino seria
como ela: incapaz de sorrir ou sentir felicidade.
Eu não posso seguir com ele, Yanaamahka concluiu na quietude da
tarde. O menino a observou e sorriu ingenuamente.
— O que houve, na’na? — ele questionou sem tirar o sorriso do rosto.
O livro estava aberto em seu colo. A Estrela da Noite desviou os olhos para
o céu antes de responder. Na’na e Ma’ma. Duas expressões semelhantes
que ouvira Tiggrë dizer. A primeira era como ele carinhosamente a
chamava; a segunda, como ele chamou sua mãe na visão que a estrela tivera
ao tocá-lo enquanto ele dormia.
— Nada. — Yanaamahka respondeu e sentiu uma sutil pontada em
suas costas. A asa quebrada se tornava uma dor crônica. — O que
significa... isso? Na’na.
Tiggrë sorriu docemente e Luce se sentou ao lado dele para ouvir.
— É um termo de Qat’ar. O idioma do meu povo. Na’na é como
chamamos alguém por quem nutrimos um afeto semelhante a de um filho
para uma mãe. Significa quem nos cuida com o coração. — as bochechas
do menino queimaram como os feixes de sol que acendiam suas madeixas
de fogo. — É semelhante à ma’ma que significa mãe.
— Que lindo! — Luce se agitou com o rosto iluminado. — Eu quero
chamar o Mom-mom de alguma coisa também. Me ensina, Tiggrë! Me
ensina palavras assim!
O dragão rolou na grama ao lado da menina como um felino dengoso.
Ele era grande demais e sua longa cauda arrasou as mudas que Roren
plantara durante a manhã. Os quase sete metros da criatura causavam
desastre por onde ele passava, embora a menina pouco se importasse em
consertar o que seu companheiro destruía. Havia uma amizade
estranhamente bela entre os dois.
Yanaamahka decidiu não pensar nas palavras de Tiggrë e na animação
da mestiça nas horas que se passaram. A noite viera depressa com nuvens
negras no horizonte, uma tempestade se aproximaria em breve e a Estrela
da Noite se manteve ao lado de fora da casa enquanto as crianças se
apressavam para o jantar. Era ensopado de coelho — cortesia de Mare
depois de uma visita nas cidades mercantes da região oeste.
Um relâmpago iluminou o céu noturno e Yanaamahka sentiu um
arrepio em sua pele humana. Seu corpo estava trêmulo e a ansiedade de
mudar de forma consumia as entranhas de sua sanidade. Ela precisava
retornar às escamas, mas encarar a asa estraçalhada era algo que a jovem
não desejava. Roren estava tratando da infecção com misturas de ervas que
Tiggrë o ajudava a preparar, no entanto, não havia nenhum sinal de
melhora.
Mas ela não podia ficar parada.
— Eu vou partir. — e então dissera a Roren na mesma noite. Ambos
estavam ao lado de fora da casa. Tiggrë e Luce jantavam no interior. —
Sozinha.
O velho degustava uma bebida caseira enquanto relâmpagos se
acendiam no horizonte.
— Partir? Para onde?
Yanaamahka não respondeu.
— Você sabe os perigosos? O que irá fazer com sua asa?
As perguntas de Roren a incomodaram de algum modo. Ela desejava
encontrar o destino que o dragão negro assassinado por Leto Demétrius
dissera ser seguro: o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes. Os perigos eram
eminentes, o mundo a caçaria, não seria fácil, mas ela desejava encontrar o
que lhe fora roubado com os próprios olhos. Sem ter alguém que lhe
contasse como acontecera ou como era. Ela queria lembrar. Porque se não
lembrasse... o passado desaparecia sem ao menos perceber.
— Você é uma Estrela da Noite. — e um suspiro escapou dos lábios
dele. — Sinto muito em dizer isso... mas o que você procura, a liberdade, é
impossível de alcançar. O mundo vai te caçar... não importa onde esteja, se
no desfiladeiro ou no fim do mundo. Seu pai sabia disso... ele sabia do
amargo destino das Estrelas da Noite, era por isso que ele se importava
tanto em escondê-la. Você era tudo para ele.
Yanaamahka elevou uma mão em frente ao peito. Se era realmente
tudo, por que ele a abandonara em um lugar escuro?
— Eu sei que você duvida de minhas palavras, Yanaamahka. Não te
culpo. — Roren sorriu tristemente com o vento que acariciava sua pele
enrugada. — Você sofreu muito e sozinha por tantos anos. Mas tente pensar
em Vlanhonder com seu coração e não com suas lembranças.
Yanaamahka sentiu o coração apertar. A risada de Tiggrë a alcançou de
repente e a sensação de sufoco aumentou. Desde a tarde que o humano dera
as definições das palavras de seu idioma e como ele se empenhava em
descobrir o passado, um estranho sentimento floresceu nela. A Estrela da
Noite não sabia o que era ou como defini-lo... Mas ela não podia se
acostumar a sensação porque precisava partir sem ele.
— Não conte... não conte ele. — Yanaamahka se referiu ao menino.
— Se você partir realmente, eu tenho certeza que Tiggrë vai fazer de
tudo para te acompanhar. Não importa se for perigoso ou não. É estranho
ver como o menino se acostumou com sua presença. Parece que você deu
vida pra ele.
A Estrela da Noite ficou em silêncio por um momento. Ela desejava
uma companhia — ela sempre desejou em seus dias de cativeiro. Alguém
que pudesse ouvir e ter certeza que não estava sozinha.
Mas ela era um dragão; ele, um humano.
...e humanos se quebravam fácil demais.
— Eu não quero ter medo... — ela sussurrou. Ela realmente não queria
sentir o mesmo medo que sentiu ao ver Tiggrë ser atacado por um
draconiano.
Roren sorriu serenamente.
— Todos sentimos medo, Estrela da Noite. Ser forte é uma questão de
aprender a enfrentar e viver com esses medos.
Yanaamahka não disse nada e Roren sabia o que significava: ela iria
sozinha.
— Quer deixar alguma mensagem para ele?
Talvez as palavras fossem doer mais nela do que no menino. Ela não
tinha a noção de agradecimentos ou de como demonstrar o que sentia, era
como se o mesmo vazio de suas lembranças a dominasse e roubasse tudo o
que queria dizer.
Então achou melhor partir em silêncio.
— ...Não.
Roren assentiu.

Yanaamahka.
A pele do homem se arrepiou e um gemido abafado escapou de seus
lábios no momento de êxtase. O corpo suado desmoronou sobre o seu. A
mulher respirou com dificuldade e abraçou os últimos fragmentos do calor
trocado. Os dedos bronzeados dela deslizaram sobre o rosto pálido de Klud,
as cicatrizes, os fios grudados na testa, enquanto pedia aos deuses para
germinar uma vida em seu ventre. Mas nunca acontecia. A semente jamais
crescera nas relações contínuas de ambos, porque ele era um dragão e ela,
uma humana. Não havia possibilidade. As raças não se misturavam.
— Você disse algo? — ela sussurrou ao elevar os olhos para o homem.
Klud os mantinha sempre fechados durante as relações.
— Yanaamahka. — ele repetiu.
Klud sempre dizia o nome dela. Ele a amava e a desejava... porque era
nela, somente nela, que o homem pensava. Mare, porém, sabia disso: ela
conhecia os sentimentos do companheiro, mas sonhava em mudá-los. Ela
queria que ele dissesse o seu nome como sussurrava o de Yanaamahka.
— Roren me contou sobre ela... uma Estrela da Noite. — Mare
murmurou enquanto traçava uma linha imaginária no peito de Klud. — Ela
nutre os mesmos sentimentos por você?
A ausência de uma resposta fez a humana entender.
— Por que você continua insistindo? Você tem a mim, Klud, e eu
posso corresponder todos os seus sentimentos. Não existe necessidade para
se prender nesse sofrimento. Não percebe que vai ter uma vida solitária ao
lado dela?
Ele permaneceu em silêncio e lágrimas rolaram na pele de Mare.
— Por que você vem todos os dias pedir o meu calor se a ama?
Klud a afastou com sutileza. Ele se sentara na cama; ela, se encolhera
com as mãos sobre o rosto. Mare chorou profundamente ao ouvir o homem
se afastar sem palavras, seco como o deserto, indiferente como um
carcereiro. Ele estava predestinado a vida solitária, e não porque os deuses
queriam, era o desejo dele seguir o caminho de sombras, até que
Yanaamahka o tirasse de lá.
Ele caminhou silencioso nas passagens de terra da floresta. A noite
tinha uma canção suave, o vento era um bardo sábio, dedilhava as árvores,
soprava as folhas, acalmava corações atormentados, corrompidos pelo
mundo. O homem, porém, não se encantava com o som. Ele sentia falta do
mar, seu companheiro na infância, o gigante que o abraçou em noites
solitárias. Passaram-se tantos anos que Klud não mais recordava o gosto das
águas salgadas e o cheiro de areia, mas a imagem do azul, o colosso sem
fim, era nítida em suas lembranças.
Klud não podia voltar porque tinha uma promessa.
Yanaamahka. O homem sentiu a presença dela no vento. Um aroma
sutil de girassóis. Ela sempre cheirava a girassóis quando pequena, Klud
recordava, mas nunca essa flor nascera nas planícies quentes do continente
de Tannenberia. Ele se guiou pela mata, o cheiro, o desejo, a ansiedade de
abraçar tempos dourados, dias em que a inexistência de sua origem não
mais o perturbava.
A Estrela da Noite estava em uma pequena clareira na floresta de
Krynhild, poucos metros da casa de Roren. Sozinha. Klud não podia vê-la,
mas se pudesse, teria admirado os olhos dela durante a lua e o nascimento
do sol. Eles eram o sol, o ouro, a vida, e tinham o satélite prateado como
foco de sua atenção. Os fios negros, longos, dançavam com o vento em seu
rosto pálido. Ela devaneava quando fora interrompida pelo caminhar dele,
seus lábios entreabriram, suspiraram; e os olhos, inexpressivos, observaram
o semblante do homem.
Klud sentiu a pressão do olhar da Estrela da Noite: o peso de sua
desconfiança e desinteresse. Ele a ouviu se levantar e dar um passo
próximo, mas não ousou se aproximar mais — como se o homem fosse uma
ameaça silenciosa. A possibilidade o encheu de uma fúria inexplicável. A
Yanaamahka que ele conhecera no passado, quem o salvara de uma
depressão sem fim, havia desaparecido. Tudo o que restava dela era uma
casca oca que sequer reagia ao vê-lo depois de tantos anos.
Ele não aguentou.
O homem deu as costas e se afastou com passos ligeiros.
A Estrela da Noite, no entanto, sentiu uma sutil necessidade de segui-
lo. Não porque lembrava quem ele fora no passado ou porque desejava
descobrir mais sobre quem era, mas porque Klud também era um dragão —
e havia uma possibilidade dele conhecer o desfiladeiro. Por isso o seguiu
entre as árvores e os sussurros da floresta. O homem estava descalço, usava
uma calça escura de linho e uma túnica tão desgastada a ponto de revelar
parte dos músculos dele. Eram brancos como a lua que os iluminava. Ele
era pálido demais como se houvesse rejeitado a luz do sol desde a infância.
Klud caminhou como se o caminho estivesse desenhado em seus
pensamentos. Os passos o guiaram e a estrela o seguiu com uma distância
favorável.
Ambos percorreram Krynhild com os relâmpagos rugindo no manto
negro. Os longos fios negros de Yanaamahka eram esvoaçados pelo vento
intenso a cada novo passo, a cada nova elevação e declive de terra. Então,
de um minuto para o outro, ela reconheceu a trilha. As montanhas. Klud
seguida para a cadeia de montanhas solitárias no centro da floresta. O
mesmo lugar em que ela o vira em seus sonhos, a criança com olhos de
vidro e palavras pesadas de tristeza. A Estrela da Noite parou por um
instante e suspirou as dores em seu corpo. A pontada nas costas, o punho
deslocado pelo ceifador e os hematomas que se espalhavam por seu corpo
magricelo.
Nenhuma dor no mundo, porém, a deteria.
Quando, enfim, após uma subida desagradável, alcançou o topo da
montanha menor, Yanaamahka o perdeu de vista. O céu rugiu e gotas de
chuva despencaram como a lua lamentasse a escuridão do mundo. A
floresta de Krynhild se estendia majestosamente na noite, sem fim,
ultrapassando o horizonte. As nuvens pesadas da tempestade abraçavam a
região e escondiam a solidão bestial. Duas estrelas.
Um calafrio. Ela se arrepiou. Uma respiração quente alcançou o seu
pescoço e uma sombra cresceu em suas costas. Yanaamahka teve a intenção
de se afastar, fugir, mas quando virou, a mão do estranho agarrou seu
pescoço. Ele a suspendeu do chão.
Um relâmpago o iluminou: Klud. A Estrela da Noite estremeceu ao ver
seu corpo suspenso sobre o abismo de Krynhild. A chuva se intensificou e o
mundo desabou nas montanhas. Árvores pareciam minúsculas, mas letais, e
bastaria um movimento para que o homem a deixasse cair para a morte
certa. Porque ela não sabia voar. Ela não podia voar.
A força dos dedos de Klud ao redor de seu pescoço dificultaram a
respiração. Ela agarrou os pulsos dele com ambas as mãos, a pele quente e
sensível, mas a força de Yanaamahka se esvaziava na medida em que seu
cérebro parava de receber oxigênio. Ele poderia matá-la de dois modos: por
sufocamento e pela queda.
— Traga ela de volta. — ele murmurou, havia um ódio contido em
suas palavras. — Traga Yanaamahka de volta.
Roren dissera que ela era Yanaamahka. Hanzor a atacara por ser
Yanaamahka. Todos deram esse nome a ela como se estivesse escrito em
sua testa, mas desde então, mesmo com o sonho de seu irmão e a visão de
seu pai, a Estrela da Noite não conseguia encontrar a Yanaamahka dentro
dela. Ela estava perdida, esquecida, porque os quais deveriam buscá-la
haviam a deixado apodrecer nas correntes.
Mas se a antiga Yanaamahka fosse resgatada...
O que ela era agora jamais iria desaparecer.
Ela seria a Yanaamahka Draconis do passado e a do presente — e não
perdoaria o mundo que a esquecera no calabouço.
— Não... — a voz dela começou a falhar com a escuridão que se
aproximava. — quem eu... era... não... procure.
Os dedos de Klud se firmaram mais, mais e mais.
— É tarde... demais... para... para... você.
Um estrondo varreu o céu.
Ele a deixou cair no abismo da floresta.
CAPÍTULO DEZESSETE

DESEJOS REPRIMIDOS

OS PUNHOS DE KLUD ESTAVAM CERRADOS.


Ele sentiu o cheiro da Estrela da Noite no vento, o aroma de girassóis e
o gosto salgado do suor. Yanaamahka estava inconsciente — o corpo dela
descansava sobre um amontoado de folhas macias e flores recém arrancadas
de suas raízes. A queda havia sido mais violenta do que ele imaginara: no
momento em que a soltou no abismo da floresta, as mãos da mulher-dragão
agarraram as rochas desesperadamente e um gesto descuidado ocasionou
numa forte pancada. Ela bateu a cabeça ao tentar se segurar, o impacto fora
intenso e roubara a consciência dela. Klud se amaldiçoou por isso e saltou
atrás dela. Não como homem; e, sim, como dragão. Uma besta azulada com
escamas de safira e asas que se ergueram para o céu. Ele a pegou no ar e a
levou em segurança para a terra. Era um campo aberto dentro da floresta,
maior que a clareira que Roren vivia, desprovido de árvores e com um lago
de água transparente.
Ele moveu os olhos brancos para ela — pedindo aos deuses que lhe
concebessem um minuto de visão. Seus pedidos, no entanto, foram
negados; e tudo o que restou a ele foram as lembranças de olhos dourados e
um coração de ouro.
A criança com o coração forjado por estrelas e por safiras. Um
coração que te aceitou, que te deu tudo o que o mundo recusou... e tu
jamais será capaz de vê-la novamente.
As palavras surgiram nos pensamentos dele. Elas pertenceram ao
homem que roubara sua visão. Tu jamais serás capaz de vê-la novamente,
ele dissera antes de destruir seus olhos — na época Klud era apenas um
garoto. Ele jamais as esqueceria, estavam marcadas a fogo e eram a
consequência de sua derrota: falhara em protegê-la e perdeu sua visão por
isso. Ele respirou com dificuldade e se ajoelhou diante a mulher
adormecida. Um cheiro de sangue se misturava ao dela, fresco, intenso,
resultado do impacto nas rochas durante a queda. Um formigar repentino o
alcançou nos dedos enquanto traçava uma linha entre a grama ao redor e o
ferimento da estrela. Era no rosto, um pouco acima da sobrancelha e
profundo como a queda que eles enfrentaram.
Klud não queria um resultado como aquele... uma queda desesperada e
um rancor sem fim. O homem não conseguia controlar a frustração de ser
esquecido depois de quase treze anos de dedicação. Ele não fizera nada a
não ser esperar por ela, perdera milhares de oportunidade para ver o mar no
qual crescera, um bastardo sem mãe ou pai. Tudo o que tinha era os laços
com os rebeldes que o criaram e com a Estrela da Noite que o aceitou.
Ela havia o aceitado.
O homem sentiu a pele dela em seus dedos. Ele segurou o rosto da
estrela entre suas mãos e tentou imaginar como ela se parecia depois de
treze anos. Teria os olhos dourados se tornado mais intenso? Teria a
expressão de curiosidade desaparecido? Teria o mundo roubado o sorriso
dela? O corpo dele estremeceu e ele a soltou ao se levantar depressa. Klud
não podia ficar mais, nem um minuto, nem um segundo, ou não seria capaz
de controlar a confusão de sentimentos que o corrompia.
Ele se transformou e o dragão azul se elevou na escuridão.

Roren se perguntou sobre a ausência da Estrela da Noite durante a


madrugada que avançava. O menino insistira em procurá-la na floresta, mas
o mais velho o aconselhou a esperá-la e Tiggrë adormeceu com o avançar
das horas. O humano esperava que a jovem não houvesse partido
repentinamente como dissera que faria. Ela não estava em condições: as
feridas se recuperavam aos poucos e a asa dela precisa de atenção diária
para não ocasionar problemas maiores. Roren decidiu não pensar na
situação e separou um punhado de legumes recém colhidos para descascar.
O sono estava distante e a atividade o ajudava contra a insônia nos dias
quentes da primavera de Tannenberia. A prática era antiga e o homem havia
a aprendido durante a adolescência. Não por escolha, mas por ser sua única
opção.
Aprenda se não quer roubar novamente, garoto. Era engraçado como
Roren lembrava de cada entonação do passado e de cada palavra do homem
que ensinara tudo a ele: as letras, os números, as estações, a história do
mundo e dos deuses. A amizade de ambos durou por anos incontáveis. O
humano era um adolescente quando o conheceu e tinha cabelos brancos na
última vez que o viu.
Roren sorriu com nostalgia ao materializar suas memórias.
O encontro dele e de Vlanhonder havia sido tragicômico: o homem-
dragão encontrara Roren com alimento roubado nas margens da floresta de
Krynhild e o observou em silêncio. O humano reconheceu os olhos
dourados na época e implorou a fera que não o devorasse antes que pudesse
se alimentar. Dizem que morrer de barriga vazia o faz sofrer por toda
eternidade. Os mortos sentem uma fome eterna e não podem se alimentar.
Vlanhonder riu dele por mais de uma hora. Roren era um garoto. Dezesseis
anos. Bastardo. Filho de prostituta. Sozinho. Talvez o líder dos primeiros
dragões houvesse sentido pena do menino ou o encontrado em um momento
que precisava de alguém para conversar.
Roren jamais soubera a verdade sobre a amizade...
Mas esperava ver Vlanhonder novamente.
Um ruflar de asas repentino assustou Roren e o fez tirar uma lasca de
pele com a faca. O som viera do exterior, as árvores rugiram e o vento
soprou como se alguém houvesse pousado desajeitadamente. Poderia ser
Mom-mom, acreditou o homem, a fera de asas desajeitadas que
provocavam destruições constantes. Ele, então, não dera importância e
buscou por um esparadrapo para tratar o corte. O que viera em seguida,
porém, o fizera esquecer o ferimento: Klud estava na porta. O rosto suado, a
respiração ofegante e uma expressão incomum à indiferença constante que
transmitia. Parecia que o jovem enfrentava uma guerra em seu interior.
— Pelos deuses e por Sunyar, você quer me matar do coração? —
Roren dissera sem a esperança de ser respondido. Klud raramente dirigia
palavras a ele.
— Yanaamahka. — e se surpreendeu com a palavra que escapou dos
lábios ressecados dele. Klud se escorou no portal, as mãos trêmulas se
esconderam atrás de suas costas. Fios prateados caiam sobre seus as
cicatrizes de seus olhos. — Eu a derrubei de uma montanha.
O velho sobressaltou com os olhos arregalados.
— Ela bateu a cabeça nas rochas.
— O que você tem nessa sua cabeça, Kluddihargën?
Klud odiava aquele nome.
— Eu a salvei... — e de novo e de novo e de novo. Ele sempre a
salvava, sempre a observava nas sombras como se em algum momento o
que ela era no passado pudesse retornar. Mas isso não acontecia. — Eu não
sei o que fazer com ela.
Roren suspirou e cuidou do pequeno corte em seu dedo.
— O que eu vejo, desde o retorno dela, é o egoísmo de ambos. Talvez
o seu seja o pior. Pense comigo, Klud, nós não sabemos em que lugar a
Yanaamahka esteve presa todos esses anos e como fez para manter a
sanidade. O pior: não sabemos o que a levou a esquecer tudo. Ela se recusa
a contar. Tudo o que sei é que alguém fez isso; e não ela. Quando
Vlanhonder retornou sem ela há mais de doze anos, ele disse que
Yanaamahka jamais retornaria. — o humano esfregou a têmpora com uma
mão. — A Yanaamahka do passado não retornou e o que temos é a do
presente.
Klud mantinha a cabeça baixa. Era um costume dele: os olhos de Klud
nunca encontravam o de ninguém desde a infância quando a cegueira não
lhe era comum. O azul de vidro se escondia sempre abaixo de seus fios e se
elevavam somente na presença da Estrela da Noite.
Yanaamahka deveria ser a única a lembrar os olhos de Klud.
— Deixe o passado para os mortos. — Roren continuou. — O futuro
para os deuses e viva o presente.
Mas era impossível. O passado era a vida de Klud; e se o deixasse para
trás, se esquecesse todos os dias ensolarados e chuvosos que compartilhou
com Yanaamahka, ele estaria vazio... morto.
Porque o passado era tudo que Klud tinha.
Ele não era capaz de ver mais nada.
Roren o viu se afastar em silêncio e suspirou ao imaginar que suas
palavras houvessem sido em vão. Elas sempre seriam — porque o homem
no qual elas eram dirigidas possuía um escudo negro ao seu redor; e nada o
faria mudar. Klud precisava reconhecer o seu defeito e mudar sozinho.
O dia amanheceu ensolarado e quente. Roren despertou com o saltitar
agitado do menino tigre e sua curiosidade de saber o paradeiro da Estrela da
Noite. Yanaamahka não havia retornado, o que preocupou ambos os
humanos. Tiggrë se preparava para encontrá-la quando a mulher-dragão
adentrou a casa com um semblante fechado. Ela ignorou o cumprimento
caloroso do pequeno e bufou com a dor que emanava de um galo em sua
testa. Uma consequência das instabilidades emocionais de Klud — motivo
este que fizera o velho não revelar o desejo de Yanaamahka em partir
sozinha.
Era melhor que Klud não fosse junto com ela.
Ele jamais aceitaria a Yanaamahka do presente.
...e era melhor que ela ficasse sem ele.
CAPÍTULO DEZOITO

O ADEUS NÃO DITO

O MUNDO NÃO ESTÁ A FAVOR de sua vingança tola.


Mas a vingança era tudo o que Hanzor rön Vanadis tinha — tudo que
lhe restava como motivação. Ele não pudera dizer adeus a seu pai, nenhuma
palavra, somente o silêncio e uma cicatriz irreparável. Hiborym era o seu
melhor amigo, o seu herói, a razão para que o jovem ingressasse e
alcançasse cedo um lugar entre os Cavaleiros Negros. Ele queria orgulhá-
lo... e não pode, porque no dia em que seu recebeu seu posto, o Dragão dos
Dragões atacou a capital do Império da Aurora de Cristal.
...e matou seu pai.
A perda dele afetou toda a família Vanadis. Seu avô, o Arquiduque de
Vanadis, se isolou nas Muralhas Douradas e entrou numa depressão
profunda. Ele sempre deixara claro que Hiborym era o seu filho mais
amado. Elleonora, a mãe de Hanzor, vestiu o luto e prometeu nunca mais
tirá-lo. Ela enlouqueceu com a morte do marido.
Toda a nação lamentou a perda do herói.
Mas ele seria vingado — ele seria lembrado.
Hanzor suspirou com a ausência de Luz em sua bainha. Ele não
conseguia entender como uma espada forjada para resistir a dragões fora
destruída por um. Era impossível. Era inaceitável. Um dragão comum não
era capaz de danificar nenhuma arma draconiana, sequer danificá-las. Elas
eram preparadas com um material resistente, o aço de cristal, leve e capaz
de imobilizar um Kyn. Como, então, uma espécie comum pode estilhaçar
luz com uma mordida?
O draconiano bebeu a caneca de vinho e praguejou.
Tudo o que planejara havia sido em vão: ele perdera a Estrela da Noite
e parte de sua dignidade ao fugir. Era preciso pensar mais, planejar de novo
e refletir as possibilidades: poderia Yanaamahka confiar nele uma segunda
vez? Era uma opção. Ganhar a confiança da fêmea dos primeiros dragões e
levá-la facilmente para o covil dos superiores. Desse modo, Vlanhonder
Draconis estaria a um passo de ser encontrado e Hiborym rön Vanadis,
vingado.
— Mais bebida, cavaleiro?
Hanzor escapou de seus devaneios.
A moça sorria com gentileza. Dezesseis ou dezessete anos, não mais
que isso, com traços suaves e um corpo pequeno. Ela tinha a pele
ligeiramente dourada, um longo cabelo castanho e olhos esverdeados, o que
fez o draconiano quase acreditar que fosse uma estrangeira do continente
esquecido. Mas um movimentar revelou a fisionomia das orelhas dela:
estreitas e horizontais. Elas não acompanhavam o formato do rosto, e, sim,
cresciam de modo desproporcional.
Uma mestiça: filha da união entre um humano e um draconiano.
Hanzor aprendera a reconhecer os mestiços durante seu treinamento
em Acatemia: nas orelhas, no porte e na coloração da pele. Os draconianos
eram sempre altos; os humanos, altos e medianos. A mistura de ambas as
raças resultava em mestiços baixos com ossos leves — o que os tornava
silenciosos. Eles eram perfeitos para o serviço de ladino ou de serventes,
mas a maioria servia como empregados. A segunda característica marcante
eram as orelhas horizontais: os draconianos tinham orelhas delicadamente
pontiagudas, como se um artista divino os houvesse esculpido para serem
admiradas; enquanto a dos humanos eram arredondas.
Mas a peculiaridade não era motivo de admiração.
Mestiços eram escravos para os draconianos — mal-vistos e rejeitados.
— Por favor. — e apesar de todo o preconceito que sua raça guardava,
Hanzor não demonstrou nenhum ao respondê-la. Ele sorriu e estendeu o
copo para a moça.
Os olhos dela brilharam como duas estrelas.
— Você vem de onde, cavaleiro?
— Aumastris. — o draconiano respondeu e degustou a bebida.
— Meu pai é de Aumastris. Minha mãe me contou ser um continente
estonteante com uma primavera eterna. — e ela se apoiou no balcão. —
Meu pai é um draconiano, mas eu não cheguei a conhecer ele.
Hanzor se sentiu envergonhado por um momento.
Mas era comum: os draconianos usavam as humanas como diversão e
geravam crias bastardas por todos os cantos.
— Aumastris é um lugar incrível. — o Vanadis sussurrou sem jeito.
Não havia o que dizer ou fazer. A realidade não mudaria, o mundo não
mudaria e a vida permaneceria inabalável. O que o draconiano precisava se
preocupar era com seu próximo passo: para onde ir e como se aproximar da
estrela. — Poderia lhe pedir um favor, senhorita?
A moça se encheu de alegria.
— Meu nome é Annis! — ela precisou se inclinar nas pontas do pé
para se aproximar do homem. Um metro e meio, ou um pouco menos,
talvez fosse a altura dela. Apesar do tamanho, o sorriso a tornava gigante.
— Pode pedir o que quiser.
— Então, senhorita Annis. — o draconiano bebericou um segundo gole
e a observou nos olhos. A mestiça parecia hipnotizada pela íris escarlate
dele. — Sou um Cavaleiro Negro e estou em missão em Tannenberia com
meus companheiros. O problema é que me separei deles e preciso encontrá-
los novamente.
— Um Cavaleiro Negro! — a moça dissera depressa e saltitou como se
houvesse encontrado um baú de tesouro. — Você é o segundo que visita a
taverna em menos de dez dias. Um rapaz teve aqui, muito simpático...
cabelos castanhos e um pouco tímido. Ele era uma graça!
— Para onde ele foi? — se não estivesse enganado, era Hyun-seo que a
mestiça descrevia.
— Ele partiu para Solaris!
— Muito obrigado, Annis. — o agradecimento a fez ficar vermelhas
O sorriso dela não poderia ter sido mais iluminado.
Hanzor, porém, não se importou em observá-la; não quando a Estrela
da Noite se materializava em seus pensamentos.
Ele colocou a caneca sobre a mesa e encarou a jovem.
— Poderia me servir mais bebida?
Porque a viagem seria cansativa.
Mas valeria a pena.

Yanaamahka observou a mistura com olhos desconfiados.


Roren dissera a ela que talvez houvesse encontrado uma solução para
as frequentes pontadas nas costas — e para vencer a infecção na asa. Ela
precisaria ingerir um tônico pastoso e com cheiro forte que a fez sentir
vontade de vomitar. No entanto, se era uma possibilidade de voar
novamente, a Estrela da Noite não hesitou e engoliu cada gota como se
fosse a mais deliciosa bebida. O corpo dela se arrepiou e o dragão
escondido em seu interior rugiu, deuses, o gosto era pior do que a
aparência. O velho a observou no processo, fez perguntas nervosas e
pareceu desanimado quando a mulher-dragão dissera não sentir nada de
novo. Ele também usou a mistura na parte ferida da asa dela. Nenhum
resultado efetivo; e tudo que a Estrela da Noite sentiu foi dor e desconforto.
Ela, no entanto, disse não ter tempo para esperar mais e pediu que
Roren a ajudasse a partir sem que ninguém percebesse. Seria na madrugada,
todos estariam dormindo e ela teria horas ao seu favor para escapar da
floresta. O velho não pode intervir na decisão dela, Yanaamahka estava
decidida e não existia uma palavra que a faria mudar a decisão de seguir em
frente e encontrar seu destino.
— Não quer deixar nenhuma mensagem a Tiggrë mesmo? — Roren
insistiu. Ele terminava de costurar uma calça escura com as medidas da
mulher-dragão. A peça pertencera ao pai dela e o velho decidiu dá-la a
Yanaamahka.
— Não. — a resposta dela era firme e sem a hesitação enquanto
ajeitava a camiseta em seu corpo magricelo. Ela engordara alguns quilos
desde o dia em que chegara a Krynhild, mas seus ossos ainda estavam
salientes e os músculos, atrofiados. Roren precisara diminuir muito a roupa
para servir nela.
— Está sentindo alguma coisa desde que tomou o tônico? — e o
humano insistiu ao medir a calça com os olhos estreitos. Era noite. Tiggrë
estava lendo o livro dos ancestrais ao lado de Lucinda no interior da casa,
despreocupado com o que Yanaamahka e Roren faziam.
— Só vontade de vomitar.
Roren suspirou.
— Deve ter alguma coisa errada... mas enfim. Coloque a calça. Veja se
serviu. Eu não vou diminuir mais porque se você engordar, não vai mais
servir.
Ele estendeu a veste para a mulher-dragão que aceitou em silêncio.
Yanaamahka, para a surpresa e desconforto dele, retirou a que vestia sem
nenhum pudor. As pernas dela eram mais finas que os braços de Roren, e
havia alguns hematomas nas cochas e joelhos. As calças serviram bem,
embora alguns centímetros houvessem sobrado. Ela experimentou os
calçados de couro fervido em seguida, e o humano precisou ajeitá-los
porque a Estrela da Noite não tinha nenhuma noção de como arrumar as
fivelas. Se a vissem de longe, com certeza não a reconheceriam como
mulher. Não havia nenhum volume em seu busto e nenhuma curva em seu
corpo magricelo.
Yanaamahka era alta, mas não tinha um músculo sequer.
— Se lembre de nunca olhar nos olhos de ninguém, Yanaamahka. —
Roren dissera em um momento. — Todos vão reconhecer o dourado de seus
olhos. Você é um dragão e nenhuma roupa humana vai mudar isso.
— Eu não quero que mude. Eu não vou viver escondida para sempre.
— Mas por enquanto você precisa, entendeu? Agora vamos jantar. Eu
não quero que saia daqui com o estômago vazio.
Era melhor vazio do que os ensopados enjoativos dele.
As horas que antecederam a partida foram contraditórias. A animação
de Lucinda e Tiggrë era contagiante, eles sorriam e riam o tempo todo
durante a refeição; e o menino contava histórias cômicas sobre andarilhos e
princesas roubadas. A imaginação dele era sua melhor arma, e não havia
uma alma que não fosse derrotada pelas palavras encenadas do tigre. Roren
dissera uma vez que o garoto era um Animano: uma tribo de humanos do
norte do continente de Degail que adoravam os animais como deuses. Entre
as adorações estava o dragão, motivo que fizera os draconianos massacrá-
los cruelmente. O que restava da tribo estava vivendo como escravos e
objetos de diversão para os superiores.
Esse fato, porém, não impossibilitou Tiggrë de contar suas histórias —
e talvez essa perseverança fosse um alvo de inveja para os draconianos ou
humanos. Um homem feliz é um homem perigoso para os tiranos.
Yanaamahka observou os detalhes de cada um dos presentes durante o
jantar. Lucinda falava sem parar que deixaria sobras de seu alimento para
Mom-mom e perguntava a Tiggrë o significado de algumas palavras em
outro idioma. Mare, quem a Estrela da Noite jamais trocara uma sílaba,
comia em silêncio com suas olheiras marcadas e o rosto cansado. Vez ou
outra, ela desviava um olhar temeroso para a estrela como se tivesse algo a
dizer. Mas ela raramente se pronunciava. Roren, por outro lado, encorajava
as crianças como se fosse uma delas.
Toda a agitação, de algum modo, estremeceu o corpo de Yanaamahka.
Ela não sabia, mas sentiria falta deles.
A madrugada seguiu silenciosa quando todos se recolheram. Roren
cumprira sua promessa de sigilo e cobriu a partida da Estrela da Noite
enquanto todos dormiam na floresta viva. Ele a acompanhou por um
caminho estreito enquanto a aconselhava sobre o perigo de ser reconhecida
como fêmea dos primeiros dragões. Yanaamahka ouviu tudo com a cara
emburrada — porque ela não precisava ouvir o que sentira na pele.
A violência de caçadores não havia sido gratuita.
O humano também avisou sobre as consequências de partir com a asa
quebrada. Aconselhou-a com a entender, mas a estrela negou entre os
dentes. Era a sua asa e se precisasse sofrer as consequências por mantê-la
em um estado deplorável, ela sofreria e resistiria.
— Estou com medo que o medicamento tenha efeito tardio. O melhor
seria esperar para ver o que pode acontecer. Mas você é insistente como sua
mãe... Deve se lembrar sempre de tomar ele direto, entendeu? — e Roren
enrolou várias folhas secas em um pedaço de pano. — Ele pode te fazer mal
se você não seguir minhas recomendações. Agora tenha cuidado, lembre
que sua asa está se recuperando.
Yanaamahka suspirou, mas aceitou.
Além das roupas cedidas pelo humano, ela usava uma capa negra com
capuz.
— Esqueci uma coisa! — as mãos de Roren tatearam depressa os
bolsos da calça que vestia. Ele retirou um embrulho pequeno e bem
amarrado. — Leve com você, mas não abra agora... nem amanhã. Somente
quando se sentir pronta. Você é herdeira de Mahoutsukai, Yanaamahka,
como sua mãe era de Maetsumina. Deusas opostas, com desejos e
personalidades opostas.
— O que tá dizendo, velho?
— Apenas se lembre do que eu disse.
Ela hesitou incomodada, mas não ignorou o pedido do humano, porque
ele não havia ignorado o dela.
Yanaamahka pedira que ele desse o livro de seu antepassado ao menino
Tiggrë.
Nenhuma outra palavra fora dita depois.
A Estrela da Noite não se despediu — sequer olhou para trás —
quando partiu.
Ela era como a mãe dela...
Uma estrela que sonhava com liberdade e com dias melhores.
Nahemidraal fora enterrada com seu sonho. O mundo a engara e a
matara no auge de seus anos. Roren, no entanto, desejou e rezou aos deuses
para que guiassem o caminho de Yanaamahka.
Ela precisava. Ela precisaria.
Porque era ingênua demais.
...e o mundo a enganaria como fizera com Nahemidraal.
CAPÍTULO DEZENOVE

O VENTO DE ESMERALDAS

ERA O TERCEIRO DIA DO LUA DOURADA, principal navio draconiano, no


mar. Ele embarcara numa manhã nublada com destino às terras do sol. As
águas do oceano Tel Voz eram calmas, o vento cochilava entre as nuvens e
as noites eram quietas como o sono de um ancião. A senhora Krimnell
apreciava essas características. Ela ouvira histórias em sua infância,
histórias sombrias sobre o oceano de Tel Mora, nas proximidades do
Continente Esquecido, capazes de amedrontar os homens mais corajosos de
Agëa. Dizia sua ama, sempre com a voz sussurrada, que as águas escuras
era o lar de uma besta marítima que engolia as embarcações em um piscar
de olhos. Poucos eram os que atravessavam Tel Mora com vida — e
nenhum sobrevivente estava vivo para contar o que viu nas tempestades
negras do oceano.
O vento me protegerá, a draconiana sussurrou ao sentir um arrepio.
Uma preocupação maior revirava o estômago de Luna: a essência da
deusa de esmeraldas que rugia dentro dela. A cada dia o poder de
Misairuzame se tornava mais intenso, mais indomável, como se desejasse
se libertar e ser revelado. Se isso acontecesse... os superiores a chamariam
de draconiana amaldiçoada e a executariam na frente de todos para que
servisse de exemplo as demais.
Não importaria se ela estivesse grávida ou não: morreria.
Luna, no entanto, queria viver pela criança em seu ventre.
O suficiente para que ela pudesse nascer.
Mas ela era herdeira de uma entidade proibida. Eles chamavam de
maldição e nenhuma mulher draconiana sobreviveu após ser descoberta. A
maioria delas não conseguia conter o poder e os revelava, facilitando o
trabalho violento dos superiores. O comandante estava entre eles, os
grandes senhores do império; e se ele descobrisse, não hesitaria em matá-la.
Não existia amor, respeito ou compreensão no coração dele. Em equilíbrio
com essa escuridão, felizmente, sempre existia a luz: os draconianos de
sangue quente. Homens bondosos. Homens raros. Eram poucos, de fato,
mas Luna se sentia aliviada por tê-los ao seu lado. Seu primo, o sonhador
Hanzor rön Vanadis, era um deles. A infância os fez cultivar uma amizade e
respeito mútuo. Seu cavaleiro, sir Eun-seo, com a constante preocupação.
Ele dera o afeto que o pai da jovem negou. O terceiro draconiano, porém,
era alguém que Luna pensava todos os dias.
Hyun-seo.
O companheiro de infância que ela guardava um carinho a sete chaves.
Ela deseja de todo o coração que ele estivesse bem nas terras humanas.
Eun-seo entrara no quarto horas mais tarde. Era um ambiente pequeno
em relação as acomodações do palácio da Aurora de Cristal, mas
minuciosamente mobilhado. Um dossel decorava a grande cama com seda
dourada, as paredes de madeira escura realçavam o tom do tecido e dos
móveis. Uma mesa pequena e uma poltrona ocupavam o canto esquerdo do
quarto enquanto um grande armário guardava os inúmeros vestidos da
jovem e os pertences de seu marido — embora Ahuriel não houvesse
trazido nada além da armadura e da montante.
— Tenho boas notícias! — o cavaleiro dissera com entusiasmo. As
rugas deles eram mais salientes quando sorria. — Seu senhor entrou em
reunião com os superiores e irão demorar. Sabe que isso significa?
Os olhos dela se acenderam diante o crepitar do candelabro.
Significava que ela iria ver o mar.
Lunaysis decidiu não se preocupar com o vestido que iria ou como seu
cabelo estava. Os minutos de liberdade eram mais valiosos que minutos
gastos com a aparência. Ela somente colocou um manto bege sobre os
ombros e acompanhou Eun-seo pelos corredores do Lua Dourada. A
embarcação abrigava nomes de respeito. O comandante Khan vrön
Skaargärd, sua mulher, a general Rhenna vrön Skaargärd e o general
Belpheggör rön Vanadis, draconianos nobres que o rei das terras humanas
clamara por ajuda. Ele prometeu riquezas para os benfeitores que
vingassem a cidade destruída pelo gigante alado. A jovem Krimnell fora
ensinada a temer e repudiar os dragões, fizeram-na acreditar que sua mãe
morrera nas garras dos inimigos. Uma ilusão. Lissandra rön Vanadis
escolheu acabar com sua vida do que viver no desgosto que o marido a
dera.
O conservadorismo da raça era a causa da morte de muitas mulheres.
Luna esperava não ser uma delas.
Ela se mantinha em silêncio em assuntos reais, não questionava o
marido, não caminhava sozinha pelas cidades e se portava como uma
mulher submissa. Mas essas não eram suas vontades. A moça era como um
passarinho, ela queria voar e ser respeitada, falar e ser ouvida.
Ser livre.
O sol iluminou o seu sorriso quando ela se inclinou nas bordas do
navio. O sonho de liberdade parecia menos utópico diante os ventos da
bondade de sua essência. Misairuzame prometera dias melhores, dias de
esperanças, dias de liberdade. A proa estava praticamente vazia, apenas um
marinheiro se certificava das cordas que sustentavam as velas, os superiores
estavam todos reunidos e a jovem tinha o prazer de ver o mar que a cercava
com todas as cores. Aumastris ficara para trás e um horizonte azulado se
estendia no infinito.
O mundo era enorme: Luna aprendera a admirar todo ele.
Os quatro continentes: Aumastris, sua terra natal de primavera eterna;
Nothumbria, o lar dos draconianos nascidos da Noite Eterna; Tannenberia, a
terra dos humanos douradas; Degail, o continente esquecido; e as ilhas
gêmeas de Eletta e Etella, distantes e quase intocadas pela mão do homem.
Tantos destinos e horizontes que, sonhadora, a moça se perguntou se um dia
seria capaz de conhecer todos.
— Tenho o direito de perguntar o motivo de um sorriso tão encantador,
minha senhora? — Eun-seo perguntara de repente. O sol da tarde revelava
todos os fios de cabelo branco escondidos em meio as madeixas castanhas
dele e idade avançada se mostrava aos poucos. O cavaleiro, no entanto,
lutava como um jovem. Ele fora o comandante dos Cavaleiros Negros no
passado, cargo de Ahuriel, mas abandonara o posto para se dedicar a mulher
grávida.
Eun-seo, porém, não pode ver seu segundo filho nascer.
— Perdão, Eun-seo. Eu estava sonhando acordada. O vento está calmo
hoje, mais calmo do que costumo ver em nossas terras. Me sinto bem.
— Seu conforto é o meu conforto, minha senhora, porém receio sobre
estadia na capital humana, são terras quentes. Solnascente cresceu no meio
de um deserto. — o cavaleiro lançou seus olhos ao mar. — Farei o possível
para que se sinta em casa.
— Eu sinto um pouco de medo, sir. É o nosso terceiro dia em mar e a
cada... — Luna se silenciou por um momento. Ela precisava se certificar
que ninguém estava ouvindo. Todos eram suspeitos. — A cada dia
Misairuzame está mais presente dentro de mim. — e sua voz não saiu mais
que um sussurro. — Eu tenho medo de não controlar e ser descoberta.
O draconiano segurou uma mão dela.
— Não tema, minha senhora, ninguém irá descobrir. Se caso aconteça,
eu a protegerei com minha vida e você verá sua criança nascer.
O coração de Luna bateu com tranquilidade. Ela sorriu e agradeceu em
um sussurro silencioso, um sussurro entrecortado pelos passos de uma nova
presença no convés. A áurea negra se espalhou, arrepiando o corpo frágil da
draconiana. Ela conhecia a sensação, era a mesma que sentira no dia em que
desmaiara nos jardins do palácio. Luna levantou os olhos e viu o semblante
gelado da general Rhenna vrön Skaargärd na direção oposta da proa. Ela
estava de costas, os cabelos dourados dançando ao sabor do vento, as mãos
pressionadas sobre a borda como se desejasse mergulhar na imensidão
marítima para nunca mais retornar. A draconiana perdera seu segundo filho
para o mar: o corpo do menino nunca foi encontrado.
Eun-seo, então, pediu que a moça o acompanhasse.
Eles não poderiam confiar na general — ela era uma superior e a
missão deles era exterminar qualquer draconiana amaldiçoada na nação.
Luna assentiu ao pedido, pensou em seu quarto e nos poemas que desejava
escrever sobre dias de liberdade, mas não pode seguir caminho. Um mal-
estar a acometeu, uma queimação subiu por sua pele e deixou seu corpo
pesado e imóvel.
O vento está em todo o lugar. Nós estamos em todo o lugar.
Era a voz de Misairuzame.
Nós somos o vento.
O mundo de Lunaysis vön Krimnell se acendeu.
As ondas se agitaram ao redor do navio e o vento rugiu furioso. Não
era uma rajada comum, proporcionada pela natureza; e, sim, criada a partir
de fragmentos de esmeralda brilhantes que flutuavam ao redor da
draconiana. As mãos dela tremeram, as lufadas de ar cresciam, suas
madeixas farfalhavam e aos poucos a essência dentro dela era revelada.
O Vento de Esmeraldas.
Luna caiu e Eun-seo tentou ampará-la aos berros. Controle o vento, ele
dizia, mas o desespero a dominara e ela somente era capaz de pensar na
criança se formando em seu ventre. Rhenna veria tudo e a denunciaria.
Ahuriel a mataria. Suas histórias, a liberdade, desapareceriam. Os olhos
escarlates da draconiana se encheram de lágrimas que não foram
derramadas. O vento as dissipou como se Misairuzame, a deusa das
esmeraldas, dissesse que havia uma esperança.
Uma esperança no horizonte.
— Mahoutsukai. — a voz de Rhenna trouxe Luna para a realidade. A
general envolveu a jovem com seus braços longos e sussurrou o nome de
uma das três entidades esquecidas. Com isso, o corpo da Krimnell gelou e
as lufadas de ar desapareceram de repente. Todas as esmeraldas que a
circundava se dissiparam como poeira.
O mar e o mundo se acalmaram.
A jovem observou atônita os olhos de Rhenna: um prata, exposto; um
safira, escondido pelas franja dourada. Era a marca da maldição.
— Somos iguais. — Rhenna murmurou.
Lunaysis chorou intensamente.
Porque havia esperança.

O comandante dos Cavaleiros Negros estava em seu limite.


Era o quinto dia sem dormir.
Ahuriel vön Krimnell deixou a reunião com os demais superiores com
os músculos doloridos e a cabeça pesada. Ele não conseguiu dar a atenção
que desejava aos assuntos tratados e sequer prestou atenção nas
coordenadas de seu general para os primeiros dias no continente humano. O
draconiano precisaria retomar a reunião mais tarde, retomar toda a linha de
raciocínio que perdera com a insônia. Ele ouvia sussurros incertos em sua
cabeça — palavras e um badalar incansável como se os deuses lhe
estivessem amaldiçoando. Tudo o que ele deseja era fechar os olhos e se
render a escuridão.
Ele também não conseguia ler no estado em que estava. As letras e
suas mensagens se embaralhavam diante os olhos cansados. A concentração
desaparecia e sua paciência, pequena, perdia-se. Ahuriel caminhou pelos
corredores que lhe guiariam para o convés do Lua Dourada sentido a
armadura pesar em seus ombros. As noites lhe proporcionavam a
tranquilidade que ele raramente experimentava. Estava sempre ocupado
demais, irritado demais e com pensamentos demais. Um clérigo dissera que
o somatório de todos os afazeres exagerados era o motivo da insônia do
comandante. Mas ele não acreditava. Sua insônia era crônica — uma
companheira de anos e mais anos. Era sua sombra.
A mesma sombra que pairaria sobre ele e seus pais. Ahuriel não os
visitava há cinco anos e teria aumentado esse número se a viagem às terras
humanas não houvesse acontecido. Ele não tinha afeição para com seus
progenitores, nem uma sombra de sentimento ou semelhança. Kaelus vön
Krimnell, seu pai, era um desertor que abandonara sua nação para se aliar
aos humanos. O comandante ouvira rumores que Kaelus era um importante
membro da corte de Gureryne Lachanche III. A mãe, Aniel, era uma
draconiana totalmente devota ao marido. Fraca e tola demais para que
Ahuriel pudesse se orgulhar do ventre que nascera.
Ele não tinha irmãos ou irmãs — e se sentia obrigado a propagar o
nome dos Krimnell. Esse fora o motivo de seu casamento e da escolha de
sua mulher: uma Vanadis de sangue nobre e filha do draconiano mais
influente no império. Seus herdeiros, dessa forma, teriam orgulho de seus
antecessores e não seriam como o comandante que tentava apagar a árvore
genealógica de sua família.
Ahuriel se dirigiu as suas acomodações no Lua Dourada enquanto a
ansiedade tumultuava seus pensamentos. Ele precisava de minutos de
sossego e silêncio, segundos que pudesse fechar os olhos sem pensar em
mais nada além da escuridão.
Ele esperava encontrar sombras ao adentrar o quarto, mas se deparou
com a senhora Krimnell encolhida no chão ao lado da cama. Ela se levantou
depressa, se desculpando e sussurrando que retornaria a cama com a voz
entorpecida. Os olhos escarlates dela estavam inchados como se houvesse
chorado por horas e mais horas. Ahuriel, no entanto, não se prendeu a ela e
seu sofrimento. Ele caminhou lentamente à sua poltrona de costume e se
sentou com o peso da armadura lhe incomodando.
A atenção dele se focou no movimento e no barulho que a moça fazia
ao se ajeitar no leito. O menor dos sons o irritava e sua paciência estava a
um passo de se romper. Antes, porém, percebeu um detalhe sutil na mão
direita de sua mulher: estava enfaixada e manchada de sangue. Ela a
escondeu entre os cobertores e um amontado de papéis que tinha sobre a
cama.
Qual era o nome dela mesmo?
Ahuriel não lembrava. Tudo o que sabia era que ela estava grávida, era
uma Vanadis e filha do general Belpheggör.
— O que tu fizeste com a mão? — a pergunta pegara a jovem
desprevenida. Ela arregalou os olhos cor-de-sangue e os desviou para a luz
do candelabro.
A cor se acendeu como fogo.
— Tive um pesadelo e caí da cama, meu senhor. — e as palavras dela
saíram com firmeza. Não havia um pingo de hesitação em sua voz.
O silêncio se apropriou da atmosfera.
Ahuriel fechou os olhos para buscar a paz que nunca encontrava e o
sono que lhe escapava como água por entre os dedos. Um minuto de
sossego... dois, cinco e dez; o som contínuo de tinta sendo deslizada pelo
papel o alcançou de repente. Ele conhecia com perfeição aquele
movimento, mas não era um escritor e optava pela leitura ao invés da
escrita. Então, curioso e incomodado pela tranquilidade interrompida, o
comandante abriu olhos novamente e contemplou a concentração da jovem
diante as folhas ao seu redor. A mão direita, supostamente ferida, molhava o
pincel e o delineava em uma caligrafia caprichada.
— Mulher. — e a chamou.
A draconiana sobressaltou assustada.
— Fique quieta.
— Me perdoe se eu o acordei, meu senhor.
O comandante a observou com seus olhos de safira. Em nenhum
momento, mesmo que por segundos, a senhora Krimnell ousou desviar a
atenção para ele.
Ela demonstrava medo.
— O que tu estás fazendo?
— Escrevendo poesia, meu senhor. Eu gosto de escrever poesia para
me distrair.
Ahuriel desejava pegar um bom livro para se distrair, cair no sono e
aliviar o cansaço crônico de seu corpo. No estado em que se encontrava, há
dias sem dormir, sequer era capaz de entender as letras.
— Então leia, mulher. — e talvez a draconiana pudesse ler por ele.
Para que pudesse se distrair e descansar das sombras que o envolviam. A
moça, porém, surpresa, hesitou e agarrou seus escritos em frente ao busto.
— São poemas sobre... o vento e a liberdade, meu senhor. Eu não sei
se...
— Leia.
A draconiana não hesitou dessa vez. Ela desamassou os papéis e os
organizou sobre a cama enquanto Ahuriel a observava sem desviar os olhos.
A moça sussurrou como se fosse um bardo cantando suas aventuras.
O vento me alcançou num dia ensolarado;
Somos o vento, a deusa sussurrou
O mundo a saudou e seu poder se alastrou.
Somos o vento, a deusa proclamou.
O vento que viaja pelos céus,
O vento que percorre as montanhas,
O vento que alimenta a alma.
Somos o vento,
Somos o fogo,
Somos uma...
As palavras da jovem dançaram no quarto em um ritmo sussurrado.
Ahuriel sentiu cada entonação, cada sensação e cada forma que as palavras
construíam ao serem proferidas. Ele não precisou fechar os olhos para
chamar a escuridão e a paz, ele não precisou se concentrar para encontrar a
tranquilidade do sono... tudo o que o comandante dos Cavaleiros Negros fez
foi sentir a voz de sua mulher.
...e ele não percebeu o sono lhe alcançar.
CAPÍTULO VINTE

ASAS QUE NÃO VOAM

O MUNDO ERA ENORME.


A Estrela da Noite percebeu esse detalhe com o primeiro passo que deu
além da floresta. Ela viu o mundo, as planícies, as montanhas com o
dourado de seus olhos e sentiu o gosto de liberdade. Amanhecia lentamente,
o céu era pincelado por tons de azul e dourado pelos feixes solares que
surgiram no horizonte. A floresta ficava para trás e a frente um córrego
largo se estendia com rochas e pedras como se separasse Krynhild do resto
da região leste. As mesmas árvores robustas estavam no outro lado da água,
porém, menos numerosas sobre terras que se estendiam além da visão. A
paisagem era embriagada pelo verde, mas o que ganhava a atenção de
Yanaamahka era o nascer do sol. Ela perdeu segundos, minutos ou horas
para presenciar a ascensão do astro rei que tanto sonhou em seus dias de
cativeiro.
Yanaamahka seguiu em frente somente quando o sol estava no alto.
Um novo passo e a floresta finalmente ficaria para trás. Tudo que ela
vivera lá ficaria para trás: Tiggrë, e sua doce proteção; Luce, e seu coração
de ouro; Roren, com suas preocupações exageradas, Mom-mom, e seu
rugido dengoso; e Klud, quem ela não entendia e sentia mágoa. Ela não se
despediu de ninguém, mas esperava não esquecer deles como esquecera de
seu passado.
A Estrela da Noite saltou desajeitadamente sobre as rochas e a água, e
sentiu um arrepio com a sensação de umidade em seus pés. As dores em seu
corpo eram tênues, ela seguiu em frente sem fraquejar com o destino
traçado em sua mente. Yanaamahka encontraria o Desfiladeiro dos Dragões
Gigantes e descobriria a parte esquecida dentro dela. Roren a aconselhara
seguir para as cidades mercantes, porque o desfiladeiro não estava em
Tannenberia, mas em um continente distante chamado Degail. É um lugar
esquecido pelos homens, você precisa tomar cuidado, ele dissera e o mais
importante: jamais diga o que procura a ninguém. Yanaamahka precisaria
chegar ao seu destino sozinha.
Confiante, então, ela atravessou o córrego e seguiu para o oeste.
As horas seguiram num fluxo silencioso sob o sol do continente. A
Estrela da Noite não caminhou pelas estradas para não chamar atenção e
optou por trilhas escondidas entre as árvores de uma planície sutilmente
elevada. Ela viu montanhas se erguerem majestosas ao Sul, estavam longe,
mas eram tão imensas que ultrapassavam as nuvens e rasgavam o céu. O
topo era decorado por um manto branco. Neve. Tiggrë falara sobre a neve.
O inverno não era rigoroso na região leste, nunca nevava, mas o Sul do
continente era gelado: resultado sua proximidade com o continente-de-
homem-nenhum. O sol baixou e a noite viera com uma brisa sutil. As
pernas da Estrela da Noite fraquejaram, ela precisou parar e descansar com
o repentino cansaço que a abraçara. O dragão escondido dentro da sua
imagem humana estava calmo; a asa, quieta, felizmente, sem nenhuma dor
para incomodá-la. Talvez a mistura horrorosa de Roren estivesse fazendo
efeito ou, talvez, o acaso olhou para ela e concedeu-lhe uma noite sem
nenhuma preocupação. Ela precisava se lembrar da medicação, o uso
contínuo... Mas estava tão cansada, tão ansiosa, que deixou para depois
quando seu estômago roncou. Ela não trouxera nenhum alimento e os frutos
que encontrara pelo caminho não lhe eram nem um pouco apetitosos, o que
ela precisava era de carne — um pedaço suculento e enorme. A região, no
entanto, era tão silenciosa que a Estrela da Noite não encontrou nada além
de pequenos insetos; e se houvesse animais, seria uma jornada cansativa
caçá-los. Restava, então, as maçãs. Ela comeu duas para enganar a fome e
seguiu caminho durante a madrugada.
Pequenos vagalumes a acompanharam na escuridão, ofuscados pela
curiosidade dela em tentar agarrá-los. A iluminação deles a intrigava e a
fazia refletir. Olhou para o céu no auge da noite, as estrelas estavam
sutilmente escondidas entre as nuvens e a lua cintilava solitária. A luz
prateada não era suficiente para o mundo, nem a das duas estrelas, nem a
dos vagalumes... Agëa se afogava no mar da própria corrupção e ausência
de solidariedade. Os homens não eram mais os mesmos, Roren dissera, a
lealdade fora perdida e a ambição os dominara.
Yanaamahka também havia sido corrompida. Porque a abandonaram.
Um, três, cinco dias se estenderam na jornada da Estrela da Noite. Ela
não encontrou nada além de morros, planícies e árvores em seu caminho.
Muitas vezes acreditou estar andando em círculos e precisou de uma
estratégia para memorizar o trajeto. Ela observou a paisagem com mais
atenção, aos poucos percebeu uma mudança tênue na coloração das árvores,
no clima e na proximidade das montanhas. Roren dissera a ela que os
limites da região leste com a oeste eram demarcados por uma cidade nas
margens do Vale das Águas de Prata: um aglomerado de montanhas
medianas por onde muitos mercadores atravessavam para chegar à Solaris.
Era uma cidade de comércio e uma das maiores da região — por onde ela
deveria passar.
A ansiedade, então, a fez esquecer a dor — e uma sutil tontura — e
avançar.
O Desfiladeiro dos Dragões Gigantes não a esperaria para sempre.
A Estrela da Noite encontrou a primeira cidade depois de uma semana
caminhando no silêncio mundano. Anoitecia. A solidão a abateu nesses
dias, a ansiedade de ter alguém para trocar palavras e não esquecer a voz
que tinha. Ela sussurrava sozinha muitas vezes, as sentenças ditas por
Tiggrë e suas histórias cheias de imaginação. A Estrela da Noite não
lembrava a maioria delas, mas tentou murmurar as palavras que o menino
lhe ensinara na floresta.
O povoado estava do outro lado da cadeia de montanhas e se localizava
na encosta de um rio estreito e longo que seguia para o horizonte.
Yanaamahka observou os detalhes do vilarejo com atenção, as casas, as
construções, as pessoas, os animais e o cheiro de carne assada que se
dissipava pelo ar. Era pequeno, não era a Solaris que Roren mencionara,
mas era o caminho para a cidade principal da região. O desejo de encontrar
informações sobre o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes, porém, não foi o
motivo que a fizera se aproximar do povoado; e, sim, a fome. Estava
faminta, seu estômago rugia e ela não aguentava mais se alimentar com
frutas.
Sem medo, sem hesitação, ela desceu o pequeno morro e se
aproximou. Yanaamahka pôs o capuz para não ser reconhecida, fios negros
caiam em seus olhos e escondiam o dourado intenso. As casas estavam
aglomeradas em torno de uma pequena fonte central que não funcionava —
e flores cresciam onde deveria haver água. Crianças corriam ao redor,
descalças, sujas, sorridentes enquanto as mulheres carregavam cestos com
verduras e legumes recém recolhidos. Elas eram rechonchudas e
bronzeadas, como todos os demais presentes. Um grupo de homens ria ao
redor de uma fogueira improvisada que cozinhava a carcaça de um animal,
estava crua, mas o cheiro a hipnotizou. Ela deu um passo em frente,
degustou o aroma com os olhos fechados e sentiu o dragão rugir em seu
interior.
Os homens, no entanto, não pareciam dispostos a partilhar o alimento.
Eles estavam armados com arcos de madeira e espadas pequenas. Se
desconfiassem dela, atacariam e a reconheceriam — o que causaria um
alarde. A consequência disso poderia ser o pior: Leto Demétrius ou
qualquer caçador de dragão poderia encontrá-la. Yanaamahka suspirou
irritada e fez menção de se afastar quando, repentinamente, uma tontura a
perturbou. Um passo desajeitado a fez cambalear e chamar a atenção dos
humanos; eles a observaram em silêncio, enquanto ela tentava recuperar o
equilíbrio.
Yanaamahka não conseguiu e sentiu um gosto amargo em sua garganta.
Ela cobriu o estômago com os braços, sentiu um calafrio, mas não
resistiu. Vomitou. Um líquido negro e pegajoso foi ao chão e salpicou as
botas dela. Todos ao redor observaram assustados: os homens seguraram os
arcos, as crianças correram para suas mães e o silêncio se propagou na
atmosfera. A Estrela da Noite percebeu a desconfiança de todos e tentou se
afastar, correr, mas uma segunda tontura a fez tropeçar nos próprios pés
com vômito na garganta. Antes que pudesse cuspir ou reagir, porém, o
dragão escondido dentro dela se descontrolou e perfurou o disfarce humano.
Num minuto, Yanaamahka era mulher; no outro, era uma fêmea de escamas
negras e asa quebrada. Os gritos ecoaram no vale.
O coração de Yanaamahka acelerou, cheio de medo, no momento em
que os homens reunidos bradaram em fúria e dispararam em sua direção.
Eles eram caçadores humanos, caçadores famintos, que talvez nunca
houvessem visto um dragão na vida — e a oportunidade da caça encheu-
lhes de coragem. Eles correram com seus arcos e suas lanças de madeira
improvisadas enquanto os demais se escondiam no interior de suas casas. O
corpo escamado da Estrela da Noite estalou, uma flecha passou reto por ela,
centímetros da asa amolecida ao seu lado. Tudo o que podia era correr; e,
então, correu. Sem dor. O membro quebrado pelo draconiano parecia não
pertencer a ela, ela não sentia nada, somente o peso e o desconforto de se
movimentar pelos obstáculos do caminho.
Ela seguiu o lago estreito e desviou das árvores que cresciam na
escuridão. Elas eram ligeiramente diferentes das quais estava acostumada
na floresta de Krynhild, eram menores e menos espessas; e não havia um a
possibilidade de se esconder entre elas. A noite, no entanto, estava a favor
dela. Porque a noite era a sua cor, a cor de suas escamas e... uma nova
tontura. Yanaamahka cambaleou, sentiu um novo estalo, e num segundo,
seu corpo mudou contra sua vontade. A imagem humana surgiu, as pernas
dela se confundiram e a Estrela da Noite rolou no chão com o gosto de terra
em sua boca. As vozes dos caçadores, antes distantes, se aproximaram
como lobos famintos atrás do coelho. Yanaamahka se arrastou e se escorou
em um tronco podre. Um calafrio percorreu seu corpo, o fez suar frio, o fez
fraquejar e ficar pesado.
As tochas dos cinco caçadores se iluminaram na escuridão, suas risadas
ecoaram na noite. A ambição os corrompera, e eles não demonstravam
medo: nenhum homem demonstraria medo para um dragão com uma asa
quebrada. Mas o coração de Yanaa se acalmou de repente. Ela não queria
fugir, ela não queria sentir medo, ela não queria ser a caça. Porque ela não
era uma humana ou uma draconiana — ela também não era um cervo para
ser devorado. Ela era um dragão. Eles é que deveriam temê-la.
A sensação nauseante a acometeu novamente, gelou sua pele e fez o
gosto azedo do liquido negro subir por sua garganta. Talvez fossem as
malditas maças da estrada, a mulher-dragão acreditou ao se pôr de pé com
o apoio do tronco. Uma gota de suor deslizou em seu rosto, os lábios
entreabriram e seus olhos procuraram o rastro dos caçadores na escuridão.
Não, ela se corrigiu. Eles não eram mais os caçadores. Eles eram a caça; e
ela podia vê-los com o instinto de sua raça. A visão noturna proporcionou a
ela uma vantagem, embora a cada minuto sentisse uma nebulosidade pairar
diante seus olhos. Os humanos estavam divididos. Um deles estava nas
proximidades do rio, outros dois se esgueiravam por alguns arbustos
enquanto os restantes seguravam o arco com cautela.
Eles não a viam na escuridão; ela, sim.
Yanaamahka deu um passo desajeitado e se apoiou numa árvore. Se ela
alcançasse o homem sozinho perto do rio, estaria em vantagem. Tudo o que
precisava era pegá-lo desprevenido e usar o dragão para vencê-lo. Um
passo em falso, infelizmente, a denunciou e uma flecha correu na direção
dela. O aço a acertou no ombro e atravessou o osso em um baque surdo. Ela
urrou e mordeu a língua, sentindo um temor se arrastar por seu corpo. Os
caçadores vieram depressa e uma segunda flecha a acertou na perna
esquerda enquanto a Estrela da Noite tentava correr. Ela caiu. Os homens a
cercaram e as tochas a iluminaram.
Mas ela não seria derrotada por meros humanos.
Um segundo bastara: um caçador se aproximou dela com a espada em
riste e o dragão surgiu com os dentes sedentos. Yanaamahka agarrou o
braço do inimigo com a boca e a força descomunal de suas escamas. Sua
cabeça se movimentou depressa de um lado ao outro, o gosto de sangue
desceu por sua garganta e a dor adversária fez seus instintos estremecerem.
Ela separou membro e corpo do inimigo. Sua cauda chicoteou um dos
caçadores que se aproximava por trás, ele fora lançado na mata enquanto
outros se afastavam com o desespero estampado em seus olhos.
O dragão engoliu o braço do primeiro homem e rugiu com o terceiro, e
último corajoso, que a desafiou com uma espada curta. Ele desferiu um
golpe preciso, mas não rápido o suficiente para escapar das garras afiadas
que se projetaram em seu peito. A floresta se cobriu de vísceras.
...e o silêncio contaminou a atmosfera.
Yanaamahka sentiu seu corpo escamado estremecer novamente. Era a
transformação, estava descontrolada. O dragão negro desapareceu e deu
lugar a imagem da mulher banhada de sangue. As mãos da Estrela da Noite
tremeram. Ela mordeu os lábios, ajoelhada no chão, para resistir à uma nova
mudança. Se não o fizesse, permaneceria naquele maldito ciclo de trocas
involuntárias que fazia seus ossos rugirem. Ela se arrastou na grama, sobre
um dos corpos, enquanto as duas flechas permaneciam grudadas em sua
carne.
Eu posso te ajudar. A voz de Mahoutsukai ressoou nos pensamentos da
estrela. Yanaamahka bufou e tentou dissipar a presença da suposta deusa. Tu
não podes se livrar de mim, herdeira de safira. Estou dentro de ti.
A Estrela da Noite a ignorou e segurou firme o cabo da primeira
flecha.
Estava em seu ombro.
— Não existe nada dentro de mim. — e ela arrancou sem hesitar. Uma
descarga de dor percorreu o corpo da mulher-dragão quando a seta se
separou de sua carne. Yanaamahka mordeu os lábios com força, sentindo o
próprio sangue e o do caçador se misturarem em sua boca. O líquido
vermelho escorreu da ferida aberta. A Estrela da Noite a pressionou com a
mão. A dor, porém, permaneceu irreparável.
Tu sabes do que sou capaz, minha herdeira. Tu sabes do que tu és
capaz. As Chamas de Safiras não são como o fogo dos homens. Elas são os
dois lados de uma moeda. Elas protegem e queimam. Tudo o que tu
precisas fazer é me libertar.
As palavras de Mahoutsukai a incomodaram.
— Libertar? — Yanaamahka murmurou. O sangue ao redor lhe
causava calafrios. Estava faminta e o cheiro humano fazia seu estômago
ansiar por alimento.
Diga meu nome, minha herdeira.
— No que seu maldito nome irá ajudar?
A mulher de safiras não respondeu e Yanaamahka praguejou derrotada.
— Mahoutsukai. — então proferiu.
Então o fogo selvagem dentro dela se acendeu. A Estrela da Noite o
sentiu em cada centímetro de seu corpo, o calor, a intensidade, a essência.
Uma queimação aos poucos envolveu o ferimento dela, a luz azulada
irradiou minúscula sobre a pele e fechou o corte sem deixar vestígios.
Partículas de safiras unidas e brilhantes que formavam a essência da deusa
esquecida.
Yanaamahka sentiu um frio exagerado no minuto seguinte. Roren
estava certo. Tiggrë estava certo. Ela era a herdeira de um poder que curava:
a Benção das Chamas de Safira. Teria, então, a essência lhe ajudado a
resistir aos anos e mais anos na solidão de seu confinamento? Teria ela,
dessa forma, morrido na escuridão se não fosse o elemento?
Sim. Mahoutsukai respondeu de repente. Tu terias sucumbido.
— Não. — a Estrela da Noite sussurrou. — Não for causa sua...
Sobrevivi porque eu... era eu... que quereria.
Aceite teu poder, herdeira. Tu não o recebeste apenas por ser uma
Estrela da Noite. Tu tens vidas que dependem da tua.
— Não quero história. — e Yanaamahka estendeu o braço para
alcançar a segunda flecha. Ela estava alojada em sua perna direita. Tudo o
que ela queria era a liberdade e o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes. —
Mahoutsukai.
Ela arrancou a flecha de sua carne e o ferimento se fechou.
Tu negas o teu poder e ousa usufrui-lo?
— Sim... porque não ser... tola... de sangue até a morte.
Tua arrogância será tua ruina. Se negar teu poder, morrerás.
Mas se ela morresse, a deusa também morreria.
Yanaamahka não respondeu e observou os corpos mortos com
indiferença, ignorando a presença da entidade. Não era tola e não seria
controlada, tampouco presa; por isso, quando sentiu o dragão estremecer
faminto em seu âmago, esqueceu a mulher-fantasma e se concentrou no
cheiro de sangue que contaminava a floresta.
Qual seria o gosto da carne humana?
CAPÍTULO VINTE E UM

O Q U E M E R E S TA D E V O C Ê

A ESTRELA DA NOITE PERDERÁ o seu poder.


Uma exclamação de surpresa escapou os lábios do menino. Seus olhos
varreram a página rapidamente e um sorriso se moldou em sua expressão.
Ele havia conseguido: o sentido do capítulo havia sido traduzido, embora
não houvesse certeza na tradução de algumas palavras. Dragos’kar era um
idioma arcaico e muitas palavras antigas não se conectavam com a
linguagem dos homens. Termos de definições vagas ou pedidas no tempo; e
somente um dos primeiros dragões, os Kyn, seriam capazes de desvendar.
Principalmente porque a linguagem deles não havia sido criada para ser
escrita, apenas falada. O importante era que o pequeno tigre havia
entendido parte dos escritos de Satrindukaal. Ele mencionava aspectos
importantes da essência das mulheres esquecidas — e o que mais intrigava
o menino era fato de mulheres draconianas serem agraciadas com o mesmo
poder das Estrelas da Noite.
Havia, no entanto, uma diferença entre elas: todas as Estrelas da Noite
tinham a essência, enquanto somente algumas draconianas tinham uma
chance de nascer com o poder. Satrindukaal escrevera que dependia da
linhagem delas — quanto mais pura, maior a possibilidade de uma
draconiana ter a essência. Tiggrë se preocupara com um parágrafo que
mencionava a perda da essência das Estrelas da Noite, mas ele não conhecia
uma tradução para as palavras guar’ani, ao lado de hzark, que significava
assassino, e jyur kar, o que impossibilitava o avanço de seu conhecimento.
Outro fator importante era a definição do nome de cada dragão. Tiggrë
descobrira que a raça não nomeava suas crias em vão e cada sílaba
representava um símbolo no idioma deles. O menino ficara animado em
descobrir que Yanaa, estela em Drago’skar, e Mahka, o fogo, significavam
juntas Estrela de Fogo ou Estrela Incandescente. Ele também desvendara o
nome de Nahemidraal. Nah significa Aurora, Emi era uma terminação para
a palavra coragem, ou um adjetivo, corajoso; enquanto Draal era vermelho,
rubro, escarlate.
Aurora da Coragem Rubra. Estrela de Fogo.
Ambas receberam o nome que se aproximavam de suas essências: as
Estrelas eram nomeadas a partir delas. Elas descobriram a afiliação no
nascimento, num ritual, marcadas pelo destino. Tiggrë se arrepiou e sentiu a
necessidade de contar todas suas descobertas a Yanaamahka. Ela ficaria
orgulhosa, sorriria e emitiria uma sincera felicidade que ele buscava nela.
Por isso, apressado, correu em direção a casa de Roren. O velho estava
quieto na mesa, sem se ocupar da habitual limpeza de suas verduras recém
colhidas. Ele pensava longe, os dedos inquietos e os olhos pesados. O
menino observou ao redor e não encontrou a Estrela da Noite, sequer a
ouviu, estranhando a ausência. Tiggrë acordara cedo, não a viu pela manhã
e acreditou ingenuamente que ela estava ocupada na floresta.
Mas Yanaamahka não retornou.
— Senhor Roren... — o menino colocara o livro sobre a mesa antes de
continuar. O humano mais velho o observou assustado. — Você viu a
na’na? Eu não a vejo desde cedo. Será que ela foi brigar com o Klud?
Roren não respondeu.
Ele olhava para Tiggrë, mas seus pensamentos estavam distantes.
— Senhor?
— Eu sinto muito, pequeno tigre. — a voz de Roren estava
entorpecida. — Eu tentei de tudo, mas Yanaamahka ignorou e seguiu em
frente.
Os lábios do menino se entreabriram, mas as palavras permaneceram.
— Ela partiu durante a madrugada sem se despedir de ninguém.
— Roren. — Tiggrë sussurrou. Lágrimas cresciam em seus olhos. — A
na’na não pode ficar sozinha. Ela é uma Estrela da Noite... e não sabe nem
usar o poder que tem. A asa dela está quebrada!
— Eu sei, menino. Eu tratei a asa dela antes que partisse... está tudo
bem.
Tiggrë ficou pálido de repente.
— Você pelo menos disse que ela precisa medicar a asa todos dias?
Ele dissera, era o que deveria responder; mas, como um homem sábio,
tinha certeza que a Yanaamahka esqueceria.
Como o pai dela costumava esquecer de tudo.
Como o irmão dela esquecera da própria família.
— Eu irei atrás dela! — Tiggrë disse de repente, toda a coragem de
seus doze anos estampada em seus olhos.
— Menino, entenda, o mundo não é como floresta que vivemos. Ele é
negro e cheio de crueldade. Você sabe disso. Você viu como os seres vivos
não se importam com o sofrimento alheio. — o velho murmurou com o
coração apertado. — Não existe lugar para compaixão.
— Eu entendo, senhor Roren. Eu entendo muito bem. Sempre lembro
do dia que os draconianos atacaram meu povo... — o menino uniu ambas as
mãos. — Mas meu povo acredita, eu acredito, que há um equilibro; e se
existe o mal, senhor, existe também o bem, mesmo que ele esteja quase
extinto.
Um sorriso bordou os lábios dele.
— Eu acredito nisso e quero fazer a na’na acreditar também. Ela está
buscando o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes e eu quero estar ao lado dela
nisso. Ela é a minha Estrela da Noite! É meu dever protegê-la.
Roren se sentiu emocionado.
Ele não conseguiria mudar a decisão do menino do mesmo modo que
ele não conseguira mudar a de Yanaamahka. Ambos tinham essa
semelhança — um desejo avassalador de desbravar um mundo que
acreditavam valer a pena. Uma história antiga lhe pareceu pertinente então:
a do tigre a do dragão. O garoto deveria conhecê-la porque era uma lenda
de seu povo, os Animanos, que contava a história de um dragão, um ser
repleto de energia negra, que caminhou por sobre a terra e espalhou a
escuridão. O tigre, o ser da luz, o acompanhou para equilibrar a essência de
seu companheiro e manter o equilibro de suas existências.
Eles, juntos, eram a luz e a escuridão. Dualidades que se igualavam.
Tiggrë tinha essa luz e Yanaamahka precisaria dela para conter sua
escuridão.
O menino se preparou durante a tarde e se certificou de levar todas as
ervas e ingredientes que precisaria para tratar a Estrela da Noite durante a
jornada. Luce o ajudou a pegar também a seiva da Árvore de Coração
enquanto Mom-mom rolava pela floresta como um filhote que não era.
Roren se orgulhou de como o menino havia crescido desde que o trouxera
para a floresta — e não apenas em tamanho. Ele amadurecera e era quase
um homem.
A noite viera depressa como se estivesse a favor de Tiggrë e sua
partida. Ele colocou tudo que precisava em uma bolsa de couro com a alça
comprida e usou as botas, seus únicos sapatos, que ganhara de Roren há
alguns meses. O mais velho costurou uma túnica e calças marrom para ele
também, uma vez que as roupas do menino eram sempre duas vezes
maiores que ele. Luce os acompanhava com uma expressão entristecida. A
mestiça crescera ao lado de Tiggrë e saber que ele partiria causou nela
tristeza incomum.
Todos estavam reunidos em frente à casa.
— Eu prometo voltar um dia, Luce! — Tiggrë disse com ternura para
acalmar sua amiga. Ela choramingava baixinho ao lado de Mom-mom, e o
dragão resmungava constantemente ao ver a menina triste. — Vou trazer
muitos presentes para você, o que acha? Eu tenho certeza que vou encontrar
coisas lindas no caminho do desfiladeiro.
— Eu só quero um presente. — Lucinda sussurrou e Mare, quem
também os acompanhava, colocou uma mão sobre a cabeça dela. — Ver
você a moça-dragão de volta. Você promete mesmo voltar?
— Mas é claro! Você precisa me ensinar como pegar a seiva da Árvore
de Coração, não é mesmo? Eu nunca consigo sozinho.
A menina riu então.
— Se cuide, pequeno tigre. Eu quero ouvir suas histórias quando
retornar. — Mare quem dissera. A mulher sorria.
— Muitas histórias! — Luce complementou e ergueu os braços.
— Vou lembrar de escrever todas! — disse o menino. — Eu realmente
agradeço a todos vocês... por tudo. Vocês me deram uma vida nova e eu vou
honrar isso ao salvar a na’na.
— Seja a luz que ela precisa. — foram as palavras de Roren.
Os olhos do menino se encheram de lágrimas. Ele não dissera mais
nada e abraçou um por um antes de se despedir. Então, com o mesmo
sorriso, Tiggrë partiu apressado e com esperança. Ele encontraria a Estrela
da Noite, a salvaria e, juntos, chegariam ao destino principal: o Desfiladeiro
dos Dragões Gigantes.
Klud ouvia a despedida nas sombras da floresta.
Quieto. Trêmulo. Enfurecido. O homem não conteve a fúria de seu
interior e desferiu um pesado golpe na árvore mais próxima. A força de seu
ataque partiu o tronco em dois e causou uma queda barulhenta nas
proximidades. O dragão dentro dele rugiu, desejando rasgar a pele humana
e revelar suas escamas de safira, mas Klud não permitiu. Ele conteve a fera,
conteve seu desejo de fazer os céus arderem e respirou profundamente —
mas em nenhum momento acreditou que a distância da estrela fosse culpa
dele. Porque ele estava preso demais ao passado.
Um passado em que Yanaamahka só via a ele, ele a ela.
Ele esperou que Roren se recolhesse na moradia para que pudesse
avançar e tentar refletir o que havia acontecido. A madrugada se iniciava
lentamente, fria, quando o homem-dragão se aproximou da casa e
encontrou o velho concentrado na seleção de legumes e verduras. O
humano não ficara surpreso em vê-lo.
— Yanaamahka... — as palavras de Klud saíram com dificuldade.
— Eu estava me perguntando quanto tempo levaria para que você
percebesse a ausência dela. O suficiente. — Roren dissera com
tranquilidade. — O suficiente para eu entender que não há nada ser feito
entre vocês dois. Você está vivendo o passado; ela, o presente, como se
fossem duas linhas paralelas que andam juntas e nunca se encontram.
— Você está certo. — os dedos de Klud percorreram a superfície da
mesa. Ele olhava para o alto com seus olhos brancos. — Estamos
separados, mas farei ela me encontrar e reconstruir nosso passado.
Roren tentou intervir com suas palavras, mas o homem deu as costas e
sussurrou suas últimas palavras.
— A Yanaamahka do passado retornará.
Klud iria onde ela estivesse — porque era no lado dela que deveria
ficar.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

A DEUSA E O DRAGÃO

SE HÁ ALGO QUE PRECISA SABER, Estrela da Noite, é que tu deves observar


o céu. Observe o céu, sua imensidão, como ele abraça o mundo. Se um dia
sentir a escuridão dentro de ti reinar, levante os olhos, encontre o gigante e
se acalme. Porque o céu lhe aproxima de quem está distante — seres que
estarão olhando para ele também e pensando em ti. Nós dividimos o mesmo
céu, o mesmo destino... um destino.
Eu não posso alcançar o céu.
Ele dará um jeito de te alcançar.
— Eu não posso voar. — e Yanaamahka dissera de repente. Ela piscou
lentamente e o fluxo do tempo ao seu redor retornou à normalidade. A
mulher-dragão respirou e abraçou o corpo, sentindo cada traço de
pensamento se misturar numa corrente de imagens sem sentido. Vez ou
outra, ela se pegava murmurando sozinha e xingando as sombras que
cresciam ao seu redor como se fossem inimigos. Sua tontura ia e vinha,
traiçoeira, e muitas vezes ocasionou tombos nela.
Ela caia e a natureza ao redor desaparecia.
— O que está acontecendo? — porque algo estava muito errado dentro
dela. Desde que tivera as mudanças abruptas de forma, desde que vomitara
o líquido negro, seu corpo não parecia mais o mesmo. Estava mais pesado...
quase que com vida própria. Após vencer os caçadores, ela se alimentou da
carne de um dos mortos e sentiu o gosto de sangue humano ferver suas
escamas. Era horrível, podre, mas a única fonte que faria seu corpo fraco se
levantar e melhorar.
Yanaamahka mastigou e engoliu contra a própria vontade.
Mais tarde, vomitou tudo.
Amanhecia na região, ela se afastara consideravelmente da pequena
cidade que encontrara os caçadores e parou em uma planície elevada
próxima à uma estrada de terra. Uma árvore solitária proporcionou a ela um
esconderijo de um grupo de humanos que passaram na estrada uma hora
antes. Eles não estavam armados e, talvez, não fossem capazes de
reconhecê-la como dragão ou fazer algum mal, mas a Estrela da Noite
optou por distância.
Ela não queria ver mais caçadores.
Caçadores de gosto podre.
O amanhecer trouxera nuvens pesadas em poucas horas para a região.
Um vento soprou agitado e arrancou as poucas folhas que restavam na
árvore. O outono estava próximo, ela lembrava Tiggrë dizer. Dias de poucas
flores e um céu cinzento, o mesmo céu que a intrigava desde as vozes sem
sentido que a alcançaram durante o delírio. Yanaamahka tentou esquecer e
se sentou na proteção da árvore — uma fina garoa se iniciava lentamente. A
chuva lavaria as mãos dela, o sangue inimigo e cheiro de carne que
impregnava suas roupas. A Estrela da Noite também estava com o rosto
salpicado de sangue seco e os lábios gordurosos.
Yanaamahka tateou os bolsos ao lembrar de um aviso de Roren. Não
esqueça de medicar sua asa, dissera o velho. Mas o corpo dela gelou ao
perceber o vazio de seus pertences. Ela perdera a medicação,
provavelmente durante o conflito com os caçadores, talvez antes, não sabia.
Mas antes que se importasse em procurar, encontrou outro item, enrolado
com tiras de couro e tecidos desgastados. Os dedos dela, dormentes,
delinearam a forma da embalagem e sentiram, repentinamente, uma
alfinetada: havia uma ponta cortante escondida. A curiosidade da Estrela da
Noite a fez arrancar as cordas para desenrolar o conteúdo.
Uma adaga caiu entre as pernas da mulher-dragão.
Ela sobressaltou ao perceber a arma.
A lâmina era escarlate como se fosse um grande rubi lapidado. O cabo
era prateado e ornamentado em linhas que formavam uma única asa de
dragão arqueada para baixo. Havia uma esfera de rubi na extremidade presa
por ornamentos semelhantes a uma rosa.
Era uma adaga assustadoramente bela.
Yanaamahka esticou o braço para tocá-la e, no momento que seus
dedos alcançaram a lâmina, o mundo se acendeu em tons de vermelho.
Alguém gritou em desespero, uma mulher, mas sua voz fora silenciada pelo
sobressalto da Estrela da Noite ao atirar a adaga para longe. A chuva
retornara e a visão escarlate desapareceu em um piscar enquanto a jovem,
ofegante, não conseguia se mexer.
A voz era familiar demais.
A Essência da Estrela. Esta adaga era parte da essência de
Nahemidraal, tua mãe, assassinada e aprisionada por um draconiano. O
que ela guarda, além do loreas, o poder em um idioma antigo, são as
lembranças dela.
As palavras de Mahoutsukai causaram um arrepio da mulher-dragão.
— Eu não entendo... nada do que falar você. — Yanaamahka sussurrou
impaciente.
Seus dedos tremiam e seu corpo estava gelado.
Tua ignorância é a culpada. Tu sequer sabes, herdeira, do poder que
tens e insiste em negá-lo. Jamais alcançarás o que precisas desta forma.
— Eu não querer... quero ele. — ela respondeu. A deusa a incomodava,
o modo que aparecia repentinamente e tentava dominar seu corpo.
Seria essa a razão para se sentir tão estranha nos últimos dias?
Mas ela não deixaria a deusa dominar.
A presença da deusa se desfez e Yanaamahka segurou a adaga de rubi
com cuidado. Nenhuma voz ou imagem surgiu dessa vez, somente uma
sensação estranha que ela não soube identificar. Era forte, pesada, como se
arma tentasse se comunicar. O mais estranho, porém, era que a jovem não
conseguia encontrar qualquer linha de sentimento que a ligasse a sua mãe.
Nada: nem luz, nem escuridão.
Yanaamahka guardou a arma.
Ela seguiu a estrada sob a chuva forte do anoitecer. Ouvira os aldeões
no caminho e seus sussurros sobre o nome da cidade seguinte. Solaris: um
de seus primeiros destinos. Alcançar a principal cidade da região a deixaria
mais perto do desfiladeiro; e, de lá, deveria seguir para o Sul em direção aos
portos que a levariam para as proximidades do que chamavam de continente
esquecido ou continente dos mortos. Mas ela não se importou em perguntar
o motivo do nome. A chuva se acalmou durante a madrugada, uma brisa
fria a encontrou e fez suas roupas encharcadas parecerem duas vezes mais
geladas. Seus cabelos negros grudavam em sua pele pálida, grandes demais
para não chamarem a atenção de curiosos. A dor da asa permanecia ausente,
os ferimentos de batalhas passadas também, o que fizera a Estrela da Noite
acreditar que sua jornada seria tranquila.
Mas não: porque o mundo estava contra ela.
Uma cruel náusea a abateu de repente, a mesma tontura que fizera sua
forma humana chacoalhar e ser rasgada pelo dragão uma vez atrás da outra.
Yanaamahka colocou uma mão sobre a barriga e olhou ao redor. Planícies e
campos a cercavam na estrada vazia, nenhuma árvore próxima, nenhuma
montanha que pudesse se esconder. Ela se moveu devagar, a visão aos
poucos se tornando embaçada, quando um passo em falso a fez cair e cuspir
o mesmo líquido negro de outrora.
Yanaamahka praguejou e se perguntou o porquê.
A resposta viera com cheiro de morte.
A chuva se silenciou, o vento não soprou e o tempo parou.
A Estrela da Noite estava no chão de uma escuridão sem fim, não
havia sequer um traço da paisagem. Nada... quase como se o mundo
houvesse se apagado para sempre. Yanaamahka tentou se levantar, mas seu
corpo não se moveu, seus membros pareciam pedras e sua respiração estava
tão pesada que ela se sentiu sufocando.
O medo a dominou por um momento.
...e alguém sussurrou de repente.
Não sou eu, é você.

Aru Tiggrë chegara à Solaris em seu quinto de viagem — duas vezes


mais rápido que esperava. Ele encontrou um mercador simpático no
caminho que se encantou pelas madeixas cor-de-fogo do menino e sua
capacidade de ler. O homem ofereceu uma carona em sua carroça em troca
de ajuda com um mapa antigo. A carisma do jovem contagiou todos que
estavam presentes na caravana e suas histórias foram ouvidas durante as
longas noites de jornada. O pequeno era como um bardo sem alaúde:
encantava a todos com suas lendas e sua imaginação do tamanho do mundo.
Ele não precisava ser um draconiano, um dragão ou ter magia, não, bastava
ter um coração para que as palavras ganhassem vida em sua boca.
Os homens precisavam de histórias para acreditar, dizia sempre seu
pai.
Era um homem grande e com os mesmos cabelos rubros do menino.
Tiggrë havia sido o único filho dele entre tantos que herdara a coloração.
Mas ele não o conhecia. Sua mãe nunca permitiu a aproximação, apenas
conversas rápidas e trocas de olhares distantes. O porquê, a mãe nunca
explicou. Ele é importante demais para nós, dizia ela para os cinco filhos.
Mas nada além disso.
Tiggrë sentiu um aperto no peito ao lembrar de seus irmãos e mãe —
mortos por draconianos. Mas não chorou; e, sim, sorriu. Seu povo, os
Animanos, cultivavam uma tradição ao lembrar o morto: não era permitido
chorar ou lamentar a ausência de entes queridos, deveriam sorrir, saudar a
vida que tiveram e os momentos felizes que viveram.
Era por isso que o menino sempre sorria ao lembrá-los.
Porque a natureza estaria com eles.
Os pensamentos de Tiggrë, de repente, foram interrompidos quando as
estátuas do deus do sol, Sunyar, se ergueram no horizonte. Solaris estava a
sua frente e se estendia pelas montanhas que separavam a região leste da
região oeste. Era a segunda maior cidade do continente de Tannenberia e
um dos principais polos mercantis dos grandes senhores.
As estátuas demarcavam o portão de Solaris e haviam sido construídas
com bronze e madeira. A figura de Sunyar estava em uma posição
imponente enquanto erguia o astro rei acima de sua cabeça com a mão
direita e a Espada dos Sóis de Fogo na esquerda. Os muros da cidade eram
rodeados pelo Vale das Águas de Prata e proporcionava um plantio
favorável aos agricultores que viviam nas redondezas. Os mais pobres, no
entanto, aglomeravam-se do outro lado dos muros de Solaris em casebres
pequenos e cinzentos. Se não fossem as árvores ao redor, toda a cidade teria
a cor triste do inverno.
Os portões de Solaris foram abertos para que a caravana passasse.
Vários guerreiros inspecionavam a mercadoria de todos e se certificarvam
da ausência de suspeitos — todos estavam em alerta desde o ataque de um
dragão à Estação Leste. Tiggrë sentiu um arrepio quando um dos homens
questionou sua origem — era raro ver um humano de cabelos de cor tão
intensa —, mas o mercador o ajudou e o afastou o homem que o
interrogava. Principalmente porque refugiados eram mal vistos.
Era noite em Solaris e a luz das chamas iluminava as construções de
pedra e madeira de pinho. Grande parte das casas, mercados e hospedarias
haviam sido levantadas com as rochas das montanhas mais próximas que
faziam a cidade parecer duas vezes mais escura. As ruas de paralelepípedos
se interligavam para chegar a praça central do comércio que funcionava
noite e dia. O que mais chamara a atenção do menino, porém, fora a grande
igreja de pedra que se erguia majestosamente na cidade — e era maior que a
casa do senhor que regia Solaris.
Os humanos de Tannenberia não eram apegados a religião quanto os
humanos de Degail ou os draconianos de Aumastris, mas tinham suas
crenças e tradições. A adoração por Sunyar era a mais forte, embora
houvesse deuses que os humanos também se apegavam.
O comerciante e seus companheiros pararam em uma hospedaria
grande nas proximidades do comércio. Ele oferecera ao menino um lugar
para dormir, mas Tiggrë agradeceu e recusou ao dizer que desejava
conhecer a cidade um pouco. Era a sua primeira vez lá. Então, com sua
pequena bolsa de viagem, o jovem saltou da carroça e se despediu com um
sorriso.
Se estivesse certo... Yanaamahka estava próxima.
O cheiro de especiarias o levou à praça do comércio no início da noite.
Muitas barracas e tendas estavam cheias, uma música era tocada por um
grupo ao redor de uma fogueira alta e um grande pedaço de carne estava
assando. O cheiro fizera o estômago do menino roncar, ele não se
alimentava desde manhã e se arrependeu de ter recusado uma refeição do
mercador antes de chegar à cidade. Tiggrë reconheceu draconianos,
mestiços e humanos de outros continentes no meio da multidão, muitos dos
quais desviavam olhares curiosos, outros desconfiados, graças a cabeleira
que destacava no mar sem cores.
Mas ele seguiu em frente e de cabeça alta.
Tiggrë trocava sua única moeda de bronze por um punhado de carne
seca quando ouvira dois homens murmurarem em um canto. Eram
guerreiros, caçadores, carregavam suas espadas na cintura e tinham
músculos definidos por baixa das túnicas de linha sofisticada. Era uma
Estrela da Noite, um deles dissera de repente, uma fêmea dos primeiros
dragões. Os caçadores foram atrás dela e não venceram, dois estão mortos
e encontraram os restos de um terceiro. Aconteceu nas proximidades, ela
deve estar perto, então mande os homens ficarem atentos.
O menino estremeceu.
Tiggrë deu um passo para melhor ouvir os homens e avistou uma
figura conhecida ao virar uma esquina na praça. Ele jamais esqueceria dos
olhos do draconiano que torturou a Estrela da Noite... um negro, outro
cinzento. O homem que destruiu a asa dela, o desejo de tocar o céu e
experimentar a liberdade. O pequeno ainda sorria sem os dois dentes por
causa dele: o ceifador de espinhos. O guerreiro estava ocupado com um
grupo que parecia ser também de draconianos. Uma veia estava salientada
no pescoço do general, seus punhos fechados como se desejasse esmurrar
todos que estivessem à sua frente. Ele berrou algumas palavras, inúmeros
xingamentos, os homens assentiram e se afastaram às pressas enquanto o
ceifador desviava seus olhos ao redor.
Tiggrë se escondeu na sombra de duas mulheres que falavam um
idioma incomum. Dovaris, o idioma popular dos draconianos de Aumastris.
Um suspiro escapou por entre os lábios do menino. A preocupação
com o paradeiro da Estrela da Noite o fez dar meia volta. Se ela estava nas
redondezas, ele precisaria atravessar os portões para procurá-la antes que os
caçadores ou os draconianos pudessem encontrá-la. Ademais, a ausência de
medicação poderia estar piorando a situação da asa dela.
Era uma questão de tempo.
O menino se moveu depressa na multidão, seus fios queimavam nas
chamas que iluminavam o comércio. Tiggrë pensou em Yanaamahka e no
que ela poderia estar passando. Ela era um dragão ingênuo e com um
coração coberto de raiva e frustração.
Ela precisava ser libertada da própria escuridão.
Os pensamentos distraídos, porém, fizeram o pequeno se chocar com
um semblante que surgira em meio à multidão. Tiggrë caiu sentado e
choramingou a dor do impacto, pedindo desculpas sem olhar para o alto. A
voz que lhe respondera, no entanto, o obrigou a levantar o rosto
rapidamente.
— Eu conheço você, menino. — os olhos de avelã escarlate se
iluminaram de repente. Era Hanzor rön Vanadis, o draconiano que ameaçara
a vida da Estrela da Noite por causa de sua descendência. — O que você
está fazendo por aqui?
Tiggrë levantou lentamente com o rosto pálido.
Dois draconianos perigosos estavam em Solaris — dois draconianos
que caçavam Yanaamahka como ladinos caçavam ouro. Ele precisava se
afastar deles, os afastar dela ou os inimigos a encontrariam. Hanzor fez
menção de falar, esboçou um sorriso, mas o pequeno não lhe deu a
oportunidade: Tiggrë correu e avançou pela aglomeração de pessoas. Ele
pediu perdão e desculpas exageradas pelas quais precisou empurrar no
caminho, seus olhos se encheram de lágrimas e seu coração palpitou
acelerado com a adrenalina que corria por sua pele. O draconiano não o
chamou, talvez para não ganhar a atenção dos demais, mas o menino teve
certeza que ele o seguia.
Tiggrë atravessou uma das ruas principais e se dirigiu para ruelas que
se interligavam na área menos favorecida de Solaris. A música ficara para
trás, a falação também e a escuridão reinou ao seu redor com a ausência de
uma iluminação decente. As únicas luzes provinham de estabelecimentos
com um odor forte e pútrido, álcool e suor. Alguns homens com expressões
sombrias se aglomeravam na frente das tavernas e riam enquanto mulheres
praticamente nuas desfilavam entre eles. Ladrões, assassinos, caçador,
prostitutas... por onde o pequeno olhasse, a escuridão dos seres se
aproximava.
Tiggrë deu um passo para trás e dois homens altos e roliços o barraram.
— Está perdida, queridinha? — um dos sujeitos dissera. Ele tinha uma
barba espessa e gordurosa que escondia seu pescoço rechonchudo.
— Eu não sou uma menina, senhor. Eu só estou procurando...
O segundo homem agarrou seus cabelos.
— Com uma maquiagem, você vai enganar bem. — ele disse com um
sorriso sinistro no rosto. Tiggrë estremeceu, seus olhos estavam
semicerrados enquanto tentava encontrar um modo de escapar daquele
lugar. — Os fregueses vão adorar uma puta de cabelos vermelhos.
Eles o empurraram e o forçaram a seguir a diante. O pequeno
choramingou, implorando que o deixassem em paz, mas sua voz sequer foi
ouvida. As consequências seriam piores, muito piores, se uma espada não
houvesse decepado a mão do homem que agarrava os cabelos de Tiggrë.
O homem gritou com o rosto vermelho.
— Eu deveria ter arrancado a sua cabeça por tentar levar uma criança
para seu negócio imundo. — a mesma voz de antes, o mesmo draconiano.
Hanzor empunhava a espada com um olhar frio para os homens. —
Agradeçam a misericórdia e desapareçam.
Nenhum dos sujeitos ousou desafiar a voz draconiano. Eles não
estavam armados e sabiam o que a armadura de Hanzor rön Vanadis
representava: os Cavaleiros Negros de Aumastris. Guerreiros de Elite que
se destacavam no Império Draconiano, conhecidos e aclamados em todo o
mundo. Os dois homens partiram depressa e deixaram um rastro de sangue
no caminho, choramingando e repudiando os deuses. Hanzor limpou a
espada com um movimento rápido e a guardou na bainha em sua cintura,
antes de desviar um olhar com uma estranha gentileza para o menino.
Tiggrë encolheu os ombros.
— Você não é muito bom em encontrar esconderijos, pequeno. — e os
olhos frios de segundos antes haviam desaparecido. Hanzor sorria. — Eles
te machucaram?
— Não. Eu estou bem. — o menor respondeu na defensiva.
O guerreiro percebera que dois dentes faltavam na boca do menino.
Hanzor suspirou.
— Não se preocupe... Eu não pretendo machucar você e...
— Você me machucou antes e tentou ferir a na’na. — Tiggrë o
interrompeu com a voz coberta por mágoa. — Você está caçando ela como
todos os outros.
— Eu entendo que desconfie de mim. — e o draconiano fez menção
para que o menino o seguisse. Tiggrë hesitou e se manteve imóvel. — Eu
cometi um erro, não me controlei quando descobri que sua amiga, a Estrela
da Noite, era filha do dragão que assassinou meu pai.
— Minha mãe e irmãos foram mortos por um draconiano com os seus
mesmos olhos e eu não me descontrolo. — o modo que as palavras de
Tiggrë deixaram sua boca fez o draconiano se arrepiar. A naturalidade que o
pequeno falava sobre a morte da família era assustadora. Ele parecia
maduro demais para o seu tamanho.
Maduro a ponto de não se surpreender pelos gemidos das mulheres,
pela violência dos homens e pelos xingamentos que ecoavam no beco ao
redor.
— Me desculpe. — Hanzor sussurrou com sutileza. — Existe alguma
forma de provar minha inocência? Uma forma de me desculpar pelo que
fiz?
— Eu nunca vi um draconiano se desculpando... ou salvando uma vida
humana, mas agradeço por ter salvo a minha. — Tiggrë sussurrou com as
bochechas coradas.
— Então estou desculpado?
— É claro que não! — e disse depressa. Um sorriso melancólico se
desenhou nos lábios do homem mais velho. — Não sou eu que devo
desculpar você, é a na’na. Ela é quem decide!
— Onde a sua na’na está, pequenino?
— Eu... não sei. — Tiggrë desviou os olhos para o chão. — Ela se
perdeu. Eu preciso encontrar ela antes que seja tarde... antes que vocês
draconianos a encontrem! — e tornou a fitar o draconiano. Seus olhos de
esmeralda brilharam com determinação e coragem, sentimentos que eram
raros em uma criança jovem como ele.
Hanzor se sentiu admirado.
Ele cruzou os braços e encarou o menino com um sorriso bobo.
— Diga-me, qual o nome do pequeno guerreiro que desafia um
cavaleiro negro?
As bochechas do garoto ficaram da cor de um tomate.
— É Aru Tiggrë...! — e respondeu com a voz trêmula e firme ao
mesmo tempo.
Hanzor riu.
— É um nome corajoso e voraz, combina com você. — o cavaleiro
colocou as mãos na cintura e sorriu abertamente. — O que acha, menino
tigre, de fazermos um acordo para encontrar a sua estrela?
Fazer acordo com um draconiano. Era arriscado.
Mas Tiggrë faria de tudo para encontrar a sua estrela.
Porque o tempo estava acabando.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

LÁGRIMAS HUMANAS

O LOBO DE BRONZE CHOROU NO silêncio de seus aposentos.


A mensagem mais recente do Lobo de Prata, Eun-seo, seu pai, lhe
causara uma cruel depressão. Ele sempre fora um draconiano sensível, seus
companheiros o chamavam de fraco na infância e diziam que as lágrimas de
um guerreiro era um sinal de extrema fraqueza de espírito. Hyun-seo, na
verdade, diferente das palavras que lhe caluniavam, eram um dos poucos —
se não o único — draconiano que não temia mostrar os seus sentimentos
para o mundo. Dizia seu pai, e também sua mãe, que os mais fortes
cavaleiros eram aqueles que tinham um coração capaz de demonstrar
compaixão.
Hyun-seo se tornara com Cavaleiro Negro não apenas pela bondade.
Mas porque desejava o reconhecimento e a possibilidade de se casar
com a donzela que carregava a luz e a lua em seu nome. Ambos se
conheceram na infância, cresceram juntos e partilharam um sentimento
inocente. Hyun-seo jamais dissera o quanto a amava, mas prometeu a si
mesmo que estaria entre os superiores para tê-la como sua senhora.
Um desejo que não se concretizaria.
Ela se casara com outro, o comandante, e estava grávida dele.
Cinco anos, ele havia contato. Cinco anos desde a que a vira pela
última vez antes de ser enviada para as terras do comandante Krimnell.
Luna perdera a liberdade, ela não tinha permissão para sair, para encontrar a
família ou escrever cartas para os quais lhe eram queridos.
Sua senhora está grávida e se fará presente na capital humana com o
comandante em um mês.
As mensagens de Eun-seo eram sempre discretas. Desde a morte da
esposa, e mãe de Hyun-seo, o cavaleiro abandonou seu posto como
comandante e se prontificou a proteger Luna sem um motivo aparente.
Talvez o jovem fizesse isso em breve, talvez fosse melhor abandonar os
Cavaleiros Negros e se juramentar a família Krimnell pelo resto de seus
dias. Jamais houvera esperança para ele, nem uma sutil possibilidade de
união. Ele era somente um homem sem um nome de peso; ela, com o
sangue da mais influente família do Império Draconiano.
Um baque repentino na porta fez Hyun-seo sobressaltar e limpar
depressa os olhos vermelhos. Era noite, o quarto estava escuro e não
suspeitariam de seu olhar cansado. Era parte de seu treinamento, ele poderia
dizer. A figura de Hanzor, seu amigo e primo de Luna, se fez presente com
o rosto iluminado. Ele era um cavaleiro de formalidades, mas não se
importou em fazê-las como se o que tivesse a dizer fosse desaparecer em
um piscar.
— Que bom que te encontrei, meu amigo! — os olhos do Vanadis
brilhavam sob o crepitar das velas. — Trago boas notícias! A Estrela da
Noite está nas proximidades de Solaris e encontrei um garoto que a
conhece. Nós vamos procurá-la juntos na primeira hora da manhã.
Hyun-seo não demonstrou surpresa com as palavras de seu
companheiro. Era como se esperasse por elas. O desejo de vingança estava
transformando Hanzor em um draconiano diferente, obcecado e corrompido
— diferente do menino sonhador que costumava ser,
— Você está pensando em partir sozinho novamente? Aliás... — e o
lobo caminhou em direção às janelas. Ele não queria que o amigo visse sua
expressão e as lágrimas contidas. — Não foi você que tentou matar ela
quando a encontrou? Eu duvido muito que ela aceite cooperar.
— Eu sei, meu amigo, eu sei. — Hanzor futricou em seus pertences no
canto do quarto. Eles dividiam as acomodações, uma vez que as tavernas
humanas não tinham capacidade suficiente para todos os draconianos em
missão. — Eu vou me desculpar, inventar qualquer coisa. Eu preciso ganhar
a confiança dela. Pense como será mais fácil levá-la as superiores desse
modo! — e retirou uma espada comum de sua bagagem. Hyun-seo ouvira o
companheiro lamentar que a Luz, a lâmina que herdara do pai, havia sido
destruída por um dragão.
Mas nenhum dragão era capaz de quebrar um aço de cristal.
— Vai enganar ela?
— Eu não diria enganar. — Hanzor sorriu abertamente. — Eu só
preciso dela para ganhar confiança dos superiores e caçar o Dragão dos
Dragões. Se ele descobrir que a filha dele está viva... virá buscá-la, eu tenho
certeza, e poderei fazê-lo sofrer por ter assassinado meu pai. — e o sorriso
se tornou sombrio.
O Hanzor de antes, sempre cheio de brincadeiras, estava perdido em
algum lugar da vingança que o consumira.
Hyun-seo esperava que ele melhorasse um dia.
— Você vai seguir para a capital, meu amigo?
— Sim. — o lobo respondeu. — Eu não sei o que o general Demétrius
pretende, talvez esteja aproveitando a liberdade, mas suponho que os
demais guerreiros avancem comigo à capital.
— Nos encontraremos de novo na capital.
O Vanadis embainhou a espada.
— Dessa vez... estarei com a Estrela da Noite.
Hyun-seo pediu à a natureza que o protegesse.
Porque vingança geraria mais vingança.

A sombra pairou, se moveu e soprou. Suave, gelada e estranhamente


familiar. Era como as noites de tempestades, noites de sobrevivência, noites
que assombraram o calabouço e fizeram as correntes mais pesadas.
Correntes. Aço. Confinamento. A sensação percorreu a pele humana da
Estrela da Noite e a arrepiou em meio ao desespero de ser trancafiada
novamente. O medo de perder também a juventude a consumiu, a iludiu e a
fez correr na escuridão com o som das correntes ecoando no vazio.
Ela caiu, um baque surdo e sem dor.
Então, distante, a voz de alguém ecoou.
A Estrela da Noite caiu, dissera, A Estrela Caída se levantará, e
terminou com um sussurro fraco que trouxera uma luz repentina.
Yanaamahka abriu os olhos.
O gosto do líquido negro estava em sua boca, as dores da queda
repentina se alastraram por seu corpo humano e o dragão estava adormecido
dentro dela. Os pensamentos exaustos tentavam em vão entender o estava
acontecendo com ela, e o porquê de estar vendo e ouvindo coisas além da
realidade. As perguntas despertaram nela uma sutil curiosidade e,
repentinamente, percebera o mundo ao seu redor. Estava deitada, coberta e
protegida. Seu corpo descansava sobre um amontoado de tecidos macios e
com cheiro de limpeza. O aroma fresco de frutas e verduras pairava no ar,
sobre as caixas que a cercavam por todos os lados. Um cavalo bufou
próximo e o lugar que ela estava deitada se moveu alguns centímetros. Uma
carroça, percebeu e refletiu rapidamente o acontecera ao apagar: uma alma
de boas intenções a encontrou e a acolheu, talvez porque não soubesse sua
origem, talvez porque soubessem e desejavam levá-la aos caçadores.
Mas se soubessem...
Haveria correntes, grades, grilhões.
Nada, porém, a cercava além de comida e o cheiro de flores.
Yanaamahka sentiu o corpo mais leve de repente, o sangue impregnado
havia sido limpo de seu rosto e os arranhões em seus braços, tratados. O
estômago da mulher-dragão era o único a permanecer intocado — e ela se
sentiu aliviada por isso. Se houvessem tentado alimentá-la, mesmo que
forçadamente, veriam os dois caninos salientes que revelavam parte de sua
identidade.
Uma conversa distante, de repente, roubou sua atenção.
— Eu juro pela luz de Sunyar, meu senhor! — um homem implorava e
chorava em eminente desespero. Era cedo, o sol nascia no horizonte e luzes
douradas se esgueiravam através das montanhas. A Estrela da Noite se
movimentou sutilmente, apoiou o corpo em um ombro e ergueu o tronco
para tentar enxergar o que estava acontecendo.
Fios negros caíram sobre os olhos dourados e selvagens.
O humano que implorava estava de joelhos em frente à cinco homens
de armadura prateada. Adiante, por uma estrada de paralelepípedos
destruídos e flores monocromáticas, uma grande muralha se erguia. Os
portões estavam fechados e uma fila de carroças e a carruagens eram
inspecionadas antes que entrassem. Yanaamahka percebeu duas estátuas que
Roren mencionara antes dela partir. O homem que segura o sol, uma
divindade, uma figura de importância para a raça humana e quem protegia o
continente de Tannenberia.
Mas não a protegeria.
— Apenas deixem as minhas meninas em paz! Podem levar tudo! — o
mesmo homem dissera com lágrimas rolando em seu rosto. Duas
garotinhas, talvez de cinco ou seis anos, estavam afastadas dele, próximas
aos guerreiros que vigiavam o leste dos portões. Elas choravam baixinho,
sem entender o que haviam feito de errado. Eram pequenas como o pai,
magricelas e de pele negra.
Um dos guerreiros fez menção falar, questionar, mas um vulto negro se
posicionara entre eles com uma enorme lança em mãos.
Tudo aconteceu rápido demais: o golpe certeiro, a torrente de sangue, a
cabeça rolante, o grito das crianças e o olhar assustado dos guerreiros que
antes interrogavam o camponês em prantos. Agora morto.
— A próxima vez que eu ver que hesitaram, me encarregarei de
arrancar as estranhas de cada um e foder seus corpos mortos.
Uma voz desgraçada, uma arrogância mortal. Se havia uma voz que a
Estrela da Noite não esqueceria era a dele: o draconiano de olhar assustador
e heterocromático.
Leto Demétrius limpou o sangue da lança nas roupas do corpo inerte.
— Perdoe-nos, general, queríamos interrogá-lo.
— Um homem que fede à dragão não precisa ser interrogado. — e o
draconiano desviou os olhos para as meninas. O modo que ele as observou,
a depravação contida em sua expressão, causou um arrepio na Estrela da
Noite. Se ela soubesse, se tivesse ideia dos pensamentos horrendos que
vagavam pela mente doentia do general, teria se importado em salvar as
crianças das garras dele.
Teria refletido também: o mundo a salvaria do mesmo destino?
Ela ignorou as irmãs em choque.
— Levem-na para meus aposentos, vou ensinar a elas que essa merda
de vida não é justa. Agora desapareçam. Eu vou verificar a carroça do
desgraçado.
Yanaamahka precisava escapar.
Rápido.
Ela estava há poucos metros de Leto Demétrius e se ele a visse, se
descobrisse que ela, a Estrela da Noite que caçava, estava tão perto, a
farejaria como um animal faminto. Yanaamahka mordeu os lábios e se
moveu depressa, com cuidado, controlando a palpitação em seu peito. Um
matagal denso de alongava ao lado direito da estrada, um pouco antes das
montanhas; e ao esquerdo, estava abarrotado de pessoas e guerreiros que se
enfileiravam para entrar em Solaris.
A pequena floresta no pé da montanha era sua única alternativa.
Os cinco homens levaram as meninas com eles em direção aos portões
enquanto o general os observava. Quieto. Era o minuto que ela precisava.
Yanaamahka ignorou o latejar em seus músculos, a mesma tontura que a
acompanhava durante a viagem, e saltou desajeitada da carroça. Ela caiu
com um pé em falso e acertou com os joelhos no chão duro, mas não se
preocupou em sentir a dor — não havia tempo nem para respirar.
O coração dela saltou pela garganta ao se levantar.
Yanaamahka olhou para a direção do draconiano.
Leto Demétrius olhava na direção dela.
Era o fim.
Era o fim?
A expressão do draconiano não mudou, seus músculos não se
contraíram e sua respiração permaneceu a mesma como se... Ele não estava
enxergando? Yanaamahka deu um passo, trêmula dos pés à cabeça. O
general, porém, moveu-se somente para arrumar os longos cabelos negros
que caíam sob seus olhos. Ele inclinou a cabeça na direção dos homens e
das meninas novamente, a cicatriz que cortava sua bochecha, toda uma
orelha, mais grossa que um polegar, ficara eminente entre as madeixas de
nanquim.
Leto Demétrius agiu como se não a visse.
Ele moveu os olhos na direção dela novamente e começou a andar.
Yanaamahka correu sorrateiramente em direção da mata.
...e ela percebeu o general se alertar.
A Estrela da Noite mergulhou na mata com a adrenalina vibrando em
cada centímetro de seu corpo. Ela não havia sido nada silenciosa,
provavelmente o caçador estaria em seu encalço e precisaria enfrentá-lo,
mesmo estando vulnerável, mesmo sentindo que colidiria com a mesma
escuridão de outrora. Mahoutsukai não se manifestou, a mulher se
mantivera ausente desde que Yanaamahka a rejeitara, mas a estrela a sentia
em seu interior... esperando.
A jovem se esgueirou por entre as árvores de pinho, seus calçados
esmagaram as folhas secas do outono e um vento gelado soprou seu rosto
pálido.
Ela precisava se afastar...
Ela precisava escapar...
O desejo de liberdade a deixou cega, distraída o suficiente para não
prever a mão que se fechara em seu ombro. Dedos pesados, fortes e
precisos; eles a puxaram rapidamente, percorreram sua nuca e envolveram o
pescoço em um abraço forçado. Yanaamahka se chocou com o peito do
estranho, seus músculos, a cota de malha escondida entre as roupas e o viu
cobri-la com um enorme manto negro.
Antes que a escuridão a envolvesse, os olhos dele brilharam.
Uma mistura de rubro e bronze.
A Estrela da Noite estremeceu porque os conhecia: o mesmo homem
que lhe dirigira palavras de esperança, o mesmo homem que também lhe
dirigiu palavras de ódio e traição. Ele havia a ferido no passado, no interior,
a sutil confiança despedaçada e no ataque certeiro contra Tiggrë.
— Por favor, não se mova. — Hanzor sussurrou para ela e a empurrou
contra uma árvore. As costas dela sentiram a madeira do tronco e a pressão
do corpo draconiano contra o seu. Hanzor desceu os lábios em seus
ouvidos. — Coopere comigo, Yanaa, se quiser sobreviver.
Primeiro viera a raiva, a sensação odiosa que se formou pelo modo
leviano que o homem pronunciava o nome dela. Era como se o que fizera
antes, o modo que a julgara assassina pelo fantasma do pai, sequer houvesse
acontecido. Depois, o desespero, um sentimento inesperado que se formou
com a proximidade exagerada. O coração dela bateu depressa, o corpo
pareceu pesado; e então, tremendo, a estrela tentou se livrar, se afastar e o
empurrar, mas a força que ele exercia sobre ela era intensa. O manto dele a
escondia, o draconiano era dez centímetros mais alto, mais rígido, de modo
que a fazia parcialmente desaparecer por baixo do tecido.
A respiração dela começou a falhar.
Algo no contato, na aproximação, a fazia estremecer. Mas não por um
bom motivo... era angustiante.
Presa na escuridão, no abafamento, Yanaamahka percebeu a adaga
presa a cintura do cavaleiro.
Precisava pegá-la.
Alguém se aproximou deles.
— Que porra você está fazendo, Vanadis? — a voz de Leto Demétrius
irrompeu no ambiente. Ela o sentia próximo, o vento trazia o cheiro dele até
ela... e levava o dela para a direção contrária.
— General Demétrius! — Hanzor disse com uma falsa surpresa. Ele
moveu parcialmente o corpo, sem tirar a força que a segurava e escondia
contra o peito. Ela, porém, moveu a mãos livre e tateou a cintura do
draconiano, arfando, tonta, angustiada. Seus dedos trêmulos agarraram o
cabo da adaga, moveram-na, mas o jovem a interrompeu repentinamente ao
segurar a adaga pela lâmina. Uma linha de sangue emergiu da pele dele. O
guerreiro, então, sorriu para o superior. — Privacidade, se é que me
entende. É difícil resistir a beleza das mulheres humanas.
Yanaamahka sentiu a pressão da presença de Leto Demétrius.
Hanzor conteve um gemido com o ferimento recém-aberto e a força
que exercia para deixar a adaga imóvel nas mãos da mulher-dragão.
— Um Vanadis perdendo o tempo com putas?
— Nenhum homem é de ferro, general. — ele disse sem dor, sem
hesitação.
A Estrela da Noite sentiu uma gota de suor escorrer por sua testa. Ela
não os enxergava, mas os sentia, o cheiro podre de draconianos, enquanto
sua raiva e seu medo cresciam perante a imponência e a vulnerabilidade.
Seu corpo começava a formigar.
— Então por que a mantem a puta escondida?
Ela sentiu a pele do cavaleiro estremecer contra o dela.
Mas ele não soltou a lâmina da adaga.
— É a filha de um mercador famoso em Solaris. — as palavras de
Hanzor foram naturais como se ele estivesse acostumado a encenar. — Ela
me pediu que fosse em segredo... não quer desgraçar o nome da família.
O vento soprou novamente na direção oposta. Hanzor havia sido
esperto ao colocá-la contra uma árvore a favor das lufadas de ar. O cheiro
dela, de dragão, de estrela, de sangue, não seriam percebidos pelo general.
— Elas não têm o direito de pedir nada, somente ficar caladas e de
quatro.
— Sou um cavaleiro.
— Então faça seu trabalho.
A conversa se encerou.
Demétrius seguiu pela mata, sem se importar com a mulher que o
draconiano escondia sob seu manto. Apesar da distância do ceifador,
Yanaamahka não conseguiu se sentir aliviada — não quando o outro
homem a segura, a prendia, a sufocava involuntariamente. Ela o ouviu
suspirar. Passaram-se cinco, depois seis e, enfim, sete minutos e ele
diminuiu o peso contra ela ao ter certeza que o general não retornaria.
A Estrela da Noite o empurrou com toda a força que tinha.
Os cabelos dela estavam grudados em sua testa, enquanto mantinha os
caninos parcialmente expostos entre os lábios entreabertos.
Hanzor sorriu abertamente.
— Que bom que você não tem a força de um dragão, donzela! — o
tom divertido dele a fez grunhir. Ela permaneceu imóvel e ofegante. O
draconiano limpou o sangue de seus dedos e guardou a adaga. — Não vai
me agradecer por ter salvo sua vida, Yanaamahka Draconis?
— Você... — a mulher-dragão limpou o suor.
Na’na!
...e Yanaamahka esqueceu a raiva.
Ela esqueceu os medos, a ansiedade e a tontura que a fazia piscar entre
a escuridão e a luz. A voz juvenil, que aos poucos se tornava mais madura,
extinguiu toda a solidão que a Estrela da Noite sentira em seus dias de
viagem — todos os sentimentos negativos que eram cultivados dentro dela.
A culpa por tê-lo deixado para trás sem dizer nada e a culpa por não
entender as sensações de paz que ele transmitia.
Tiggrë. O menino de cabelos vermelhos correu em sua direção. Os
raios solares do amanhecer o iluminaram, seu rosto, seu sorriso de dois
dentes faltando. Yanaamahka o observou por instantes, as palavras faltaram-
lhe para descrever o sentimento que fez seu coração se sentir em paz.
Então seus lábios se moveram por conta própria.
Yanaamahka Draconis sorriu pela primeira vez em doze anos.
Um sorriso que poderia iluminar o mundo.
C A P Í T U L O V I N T E E Q U AT R O

HOMEM DE CONTINENTE
NENHUM

O CEIFADOR DE ESPINHO TRINCOU os dentes quando o ápice lhe atingiu.


Ele arqueou o corpo para frente e empurrou o humano de quatro com
os punhos fechados. Ele se encolheu no canto, cansado, quebrado, enquanto
o general se afastava na escuridão do quarto. O draconiano estava nu, a pele
suada e manchada por cicatrizes horrendas, marcas que assustariam
carcereiros e torturadores. O corpo de Demétrius era uma bagunça de
músculos firmes e lembranças de batalhas que lutara — e vencera. Ele
deixara o ventre da mãe lutando, sobrevivera a crueldade do Senhor de Gelo
e aprendera a degustar a rejeição que o mundo lhe presenteara. Ele jamais
esqueceria a primeira vez que seu pai o espancara: Leto Demétrius tinha
cinco anos. Ele fora obrigado a assistir sua mãe, quem havia esquecido o
nome, a ser queimada viva por ser uma mulher amaldiçoada. Então, o
Senhor de Gelo bateu-lhe a ponto de fazê-lo vomitar sangue por mais de um
mês — e quebrara o próprio pulso de tanto açoitar o menino.
A cicatriz grotesca na bochecha e a ausência da orelha haviam sido
uma herança do amor que o Senhor de Gelo guardava para o seu
primogênito. Leto Demétrius era o primeiro filho entre trinca e cinco na
época. Todos homens. As mulheres que nasciam eram mortas ao deixar o
ventre, sem a chance de conhecer o mundo a qual esperavam quase um ano
para ver. Era o Senhor de Gelo que as matavam, sem compaixão; ele era um
draconiano cruel demais — e Leto Demétrius era somente uma sombra se
comparado ao seu pai.
Lembre-se que é mortal. Lembre-se que pode morrer, o Senhor de Gelo
sempre repetia os mesmos dizeres.
A morte era a única certeza na vida de um Nothumbriano; e eles
cresciam e levavam esse pensamento para uma existência cercada pela
escuridão da Noite Eterna. Demétrius sentiu um arrepio com as recordações
de seu continente natal: o frio intenso estava em suas veias, e em seu sangue
corria o mesmo sangue dos draconianos ancestrais que viveram durante a
ascensão da raça — a mesma linhagem dos imperadores de Aumastris.
Não que o general se importasse com a história de sua descendência,
ou com o trono que era seu por direito. A Estrela da Noite era o que
desejava. Ele mataria a penúltima e a última como fizera com mais de
quinze da espécie antes que completasse cinquenta anos.
Um sorriso cheio de perversão se desenhou em seus lábios cortados.
Ele a sentira, o cheiro dela, o sangue quente que corria por suas veias.
A Estrela da Noite. O general não era um tolo, tampouco ingênuo, e sentiu a
presença fétida dela se misturar com a de Hanzor rön Vanadis. O cavaleiro
negro acreditou tê-lo enganado, acreditou piamente que o ceifador de
espinhos, forjado desde a infância para destruir qualquer rastro de luz das
estrelas, não fosse identificá-la contra o vento. Leto Demétrius não o
desmascarou, não avançou e acabou com a vida de ambos, porque queria se
divertir.
Ele queria experimentar todas os sabores da Estrela da Noite.
A escuridão que a jovem emanava como nenhuma estrela antes havia.
Demétrius vestiu suas roupas: as calças de couro negro batido e uma
túnica de algodão desgastada, marcadas pela robustez de seu corpo de dois
metros. Ele, então, marchou descalço para o exterior do quarto, ignorando o
rapaz que usufruíra; o general provavelmente o tomaria mais uma vez antes
de dispensá-lo ou matá-lo, dependendo do seu humor. Não gostava de
vítimas silenciosas, sua excitação vinha das implorações — os pedidos
desesperados por clemência. Guerreiros draconianos estavam aglomerados
no salão principal da taverna, alguns jogavam e apostavam moedas de
bronze, outros bebiam com prostitutas quase nuas no colo. O lugar fedia
mais que o general: suor, sangue e podridão.
Ele deixou o estabelecimento e a noite estava em seu auge.
A rua estava movimentada. Humanos carregavam caixas e mais caixas
abarrotadas de ornamentos e recursos que seriam destinados à capital
durante o Festival de Sunyar. Superiores draconianos foram enviados a
Solnascente para proteger a cidade durante as festas — e Leto Demétrius
deveria estar entre os guardiões. Ele era um superior, o terceiro general, mas
o seu desejo de saquear e torturar era mais forte do que o de proteger.
— Com licença, general Demétrius. — e a voz do cavaleiro Hyun-seo
surgira de repente nas sombras. As estrelas remanescentes não eram
capazes de propagar luz pelo mundo de Agëa. — Um corvo de Aumastris
chegou a menos de trinta minutos.
Demétrius observou o rapaz por cima dos ombros.
— É do general Vanadis. Ele solicitou vossa presença na capital
humana o quanto antes. Eu tomei a liberdade de preparar os homens para
partir no amanhecer e alcançar a cidade antes que o Lua Dourada chegue no
caís.
Merda draconiana, era o que a mensagem significava. Demétrius não
tinha nenhuma intenção de seguir para o oeste e enfrentar o Grande Deserto
de Tannenberia, não quando tinha uma Estrela da Noite para se divertir.
Então, indiferente, estalou o pescoço e prestou atenção no movimento
constante do comércio: ambos estavam próximos do centro de Solaris e os
humanos que caminhavam por lá eram obrigados a desviar o olhar do
Ceifador de Espinhos. Era medo e pavor, repulsa talvez, que os assustavam.
Demétrius não era um draconiano de feições etéreas — não como os demais
draconianos.
— Onde está seu amigo, cavaleiro?
Uma gota de suor escorreu pelo rosto de Hyun-seo.
— Fazendo merda como todo Vanadis faz. — o general não esperou
por uma resposta. O rosto dele estava sombrio. — Parta para o oeste como
quiser, leve todas essas escórias draconianas para a porra da capital. Eu
farei questão de limpar a sujeira de seu amigo e, quem sabe, Lobo, enfiar a
lâmina da minha lança na cabeça dele enquanto estiver fodendo corpo
morto do filho da puta.
— General... — Hyun-seo hesitou por instantes, pavor correndo seu
rosto. — Você será condenado se...
Demétrius gargalhou de modo doentio.
— Condenado? A palavra pode assustar vocês, escórias, mas não a
mim.
Porque ele já havia sido condenado.
Em seu nascimento; em seu crescimento.
Mas um homem não temia condenações, dizia o Senhor de Gelo. Um
homem do continente-nenhum extinguiria todas as estrelas sem temer a
escuridão da Noite Eterna.
Caçando a estrela, todas elas, o ceifador de espinhos provaria seu valor
ao patriarca que o deserdara há mais de vinte anos, provaria que era digno
de ser chamado pelo seu verdadeiro nome.
Demétrius dur-Valeas al Vossler, primeiro herdeiro do trono de
Nothumbria.

A menina saltitava nos limites da floresta viva.


Lucinda esperava pela mãe como sempre costumava esperar — sem
deixar a proteção das árvores. Mare jamais levou a menina para as cidades.
Eram lugares que não a mereciam, dizia a mãe para protegê-la e a mestiça a
respeitava. Ela aprendera com as palavras de Tiggrë e Roren que o mundo
era perigoso demais para as pessoas de bom coração. Esse fato, porém, não
impossibilitava a jovem de sonhar com contos de fadas e cavaleiros que
viviam além do horizonte.
A menina de sonhos exagerados, o pequeno tigre dizia.
Sonhos que a faziam feliz e satisfeita com a simplória vida que tinha.
Luce perambulou entre arbustos floridos e árvores carregadas de folhas
douradas. Era o outono que se aproximava, o frio que chegaria, noites que
se reuniria com Tiggrë e Roren ao redor da fogueira e se lambuzariam de
melado. Então, percebeu ela, que o próximo inverno seria diferente: seu
melhor amigo havia partido em uma jornada e não ouviria as histórias dele
por um tempo. Mas não chorou ou se entristeceu — Tiggrë prometera voltar
com mais contos do que ela poderia imaginar.
A menina sorriu com a lembrança do companheiro e seus olhos cor-de-
mel foram iluminados pelo entardecer. Ela havia se sentado em um
amontoado de folhas secas que fizera enquanto esperava o retorno da mãe.
Anoitecia lentamente, o céu ganhava tons alaranjados, o sol se escondia nas
montanhas distantes e duas estrelas brilhavam tímidas na imensidão
azulada.
Mare, no entanto, não retornara. A mestiça mordeu os lábios quando a
escuridão mundana abraçou a floresta e extinguiu a luz do dia. Era noite e
ela precisava voltar, mas antes se prontificou de juntar algumas frutas que
encontrara pelo caminho. Seus pés descalços percorreram a floresta como
se possuísse um mapa mental, estava tão habituada a Krynhild que nem
medo era capaz de sentir. As sombras não lhe assustavam, eram, na
verdade, obstáculos pelos quais saltitava para se manter no rastro de luz da
lua.
Luce jamais saiu da floresta.
Era um lugar pacífico para se viver, disso ela tinha certeza, e teve até o
momento que tochas se iluminaram em sua frente. A menina elevou os
olhos para o alto, viu homens e suas espadas, seus rostos pálidos e suas
feições limpas. Eram draconianos, três deles, caçadores que se esgueiravam
na mata na esperança de encontrar uma caça que valesse a pena. Era
incomum, raro, vê-los pela região ou pelo continente. Roren dissera que a
raça optava somente pelas grandes cidades, lugares que os manteriam
próximo do luxo que estavam acostumados.
Não em florestas.
Não em Krynhild.
O coração da menina bateu acelerado ao imaginar que eles estivessem
procurando o rastro de Mom-mom. Ele era um dragão extremamente
peculiar, não em personalidade, mas em aparência. As marcas que ele
carregava, as cicatrizes, as queimaduras, ressaltavam um pouco do que
poderia ter acontecido com ele antes de chegar em Tannenberia. Tiggrë
suspeitara que o dragão houvesse crescido em cativeiro graças a ausência da
língua e demais detalhes que davam a ele uma aparência horripilante — e o
motivo para o cárcere talvez fosse a espécie: um dragão de Nyr, extintos
pela caça aos seus ossos: material que os draconianos chamavam de Aço de
Cristal.
Nenhum dragão era capaz de quebrá-lo e eram venenosos contra
dragões.
Luce deu um passo para trás quando um dos draconianos se
aproximou. Ele tinha cabelos dourados, roupas sofisticadas e armas de
qualidade. Não era um guerreiro qualquer. A menina tinha um limitado
conhecimento em relação a raça, tudo o que sabia havia aprendido com
Tiggrë ou Roren, nada além de histórias. O homem se ajoelhou diante dela,
sorria com intenções que ela não reconheceu enquanto os outros dois
olhavam ao redor.
— O que uma mestiça faz sozinha em uma floresta assombrada? —
perguntara o draconiano de fios de ouro. Ele tinha olhos exóticos, um cinza
límpido, que fez Luce se perguntar se o seu pai, quem ela não conhecia,
tinha os mesmos olhos.
— Eu estava esperando a minha mãe, senhor. — ela respondeu com
um sorriso. A proximidade não assustou, o perigo lhe era desconhecido,
somente temia a possibilidade de tais homens encontrarem o seu
companheiro. Luce uniu ambas as mãos em frente ao busto e se inclinou na
ponta dos pés. — Vocês são caçadores?
O draconiano observou seus comparsas por um momento.
— O que você sabe sobre caçadores, menina?
— Eles caçam. — Lucinda respondeu com toda sua ingenuidade e os
estranhos riram. Ela não entendeu e sorriu docemente enquanto ajeitava as
frutas que colhera em seu vestido. Alguns fios de cabelo castanho caíram
em frente aos seus olhos. — O que vocês caçam? Coelhos? Cervos?
— Dragões. — o draconiano respondeu sem hesitar.
A expressão da menina mudou, um misto de medo e preocupação, mas
se manteve firme. Lucinda protegeria seu amigo como Tiggrë protegera a
Estrela da Noite, sem temer nada ou ninguém.
— Não há dragões por aqui, senhor.
— Então por que tem o cheiro deles, mestiça?
— Eu tenho? — e ela cheirou as mãos. — Mamãe diz que tenho cheiro
de cravo e canela, não de dragões, senhor.
O draconiano sorriu e pôs a mãos sobre a cabeça dela ao se levantar.
Então, dera as costas e fizera um gesto para os outros dois.
— Matem-na.
Os guerreiros que o acompanhavam se puseram em direção da menina
com olhos sombrios. Estamparam sorrisos perversos, empunharam armas e
fecharam os punhos, prontos, preparados para uma violência que a menina
não conhecia. Luce somente arregalou os olhos, sem entender a atitude
repentina dos draconianos, enquanto se perguntava o que realmente havia
acontecido.
A maldade no mundo lhe era estranha.
Mas a dor lhe foi real: um dos homens a agarrou pelos cabelos. A
mestiça lacrimejou, pediu para que a soltasse em um sussurro fraco, mas
eles deram risada e dissera uma frase que ela não esqueceria nunca mais:
mestiços são as merdas dos draconianos, só servem para feder.
Um dia Mare dissera que a menina era diferente por ser uma mestiça,
um pouco de sol e lua, dizia sua mãe, mas Luce entendera tais palavras
como uma boa qualidade. Ela sempre se orgulhava de suas orelhas pontudas
e horizontais, suas mãos pequenas e as características que a diferenciavam
de Tiggrë, um humano. O tom draconiano, no entanto, o ódio impregnado
na voz, causara lágrimas na garota de treze anos.
Mestiços são as merdas de draconiano. Luce chorou e, então, o mundo
inteiro se rasgou com um estrondo.
A menina caiu no chão e o vulto do dragão cinzento surgiu na
escuridão. Mom-mom avançou sobre o draconiano que a segurava com uma
fúria monstruosa, o rugido dele era tão pesado que ecoou floresta adentro.
O guerreiro escapou, manobrou a espada e saltou à uma distância segura
com seus companheiros. Eles demonstraram, respectivamente, medo,
surpresa e excitação. O líder empunhou sua lâmina, cintilante como a lua,
sorrindo para o dragão que rosnava em sua direção.
— Apresento-lhes, amigos, o último da espécie de Nyr. — o
draconiano dissera com euforia. — Dragões que nos privilegiaram com
isto! — e estendeu a espada em direção a besta. Luce, afastada e atenta,
percebeu que a arma do inimigo era forjada do mesmo material das garras
de Mom-mom: o Aço de Cristal.
O dragão rugiu e avançou como um animal domado pela fúria. Os
guerreiros se dividiram, saltaram entre as árvores com a agilidade típica da
raça, enquanto se comunicavam com um idioma que Luce não conhecia. O
líder deles, mais hábil, gesticulou para que os outros dois sacassem seus
arcos e se posicionassem para atirar. A menina os viu agir em sincronia
como se fossem acostumados a enfrentar dragões, enquanto Mom-mom,
perdido na própria cólera, corria de um lado ao outro em um trotar pesado.
A raça, Tiggrë explicara a ela uma vez, não era capaz de lançar fogo, mas a
resistência os tornava dragões difíceis de enfrentar.
O draconiano menor surgiu das sombras e lançou a primeira flecha
contra o Nyr, a seta penetrou no pescoço da criatura, mas não causou
nenhum dano. O dragão avançou sobre ele, saltou e moveu suas longas asas
em um voo baixo. O homem saltou em um galho próximo, se segurou em
outro com precisão, fugindo, enquanto uma segunda flecha o salvava da
mandíbula da besta. Mom-mom rugiu irritado, mudou se alvo e se lançou
na direção do segundo draconiano enquanto seu corpo pesado pousava
sobre a terra. Uma terceira flecha o fez mudar de alvo novamente,
novamente e novamente, até o momento em que o terceiro draconiano,
armado, saltou nas costas do dragão.
Ele enterrou a espada nas escamas de Mom-mom e Luce gritou.
Havia mais de vinte flechas penetradas no corpo da criatura, mas ela
parecia tão lúcida como se não houvesse nenhuma.
— As flechas de veneno! — o draconiano líder bradou ao se afastar. —
Ele não vai cair com flechas normais! Se o capturarmos e o devolvermos ao
general Belpheggör, seremos ricos por mais duas vidas!
General Belpheggör? Luce se perguntou em lágrimas. O sangue de
Mom-mom estava por todos os lados, o rugido dele aos poucos era
substituído por uma canção de agonia e dor; e quando as novas flechas o
acertaram, o dragão tombou como se fosse um mero fantoche.
— Comandante Thenardier! As correntes! — um dos guerreiros bradou
para o líder de cabelos dourados. Ele estava com uma flecha em posição e
a lançou precisamente contra o focinho do dragão. — Ele está sem forças!
— Eu o quero vivo! — gritou o comandante com sua espada de cristal
pintada de vermelho. Ele estava ileso como os demais. Mom-mom sequer
havia encostado neles, não porque lhe faltava habilidade, mas porque ele
fora domado por uma fúria que a menina jamais vira. — Meu pai, o Conde
Kurdan, ficará muito satisfeito e talvez se torne um Duque em Aumastris!
A última flecha, repleta de uma substância arroxeada, provou que o
dragão não mais se movia. Um dos draconianos lançou uma seta para se
certificar de que a besta estava realmente inconsciente e obteve sucesso. Ele
e o segundo guerreiro guardaram seus arcos enquanto se aproximavam com
cautela. O Thenardier, porém, cheio de um sorriso vitorioso, cruzou os
braços diante o gigante adormecido e riu na companhia dos demais. Mom-
mom, repentinamente, pareceu pequeno e inofensivo em seu sono profundo.
Luce chorava baixinho.
— Precisamos de uma boa dose desse veneno se quisermos mantê-lo
dormindo por mais tempo. Muitos cavalos também. Vai levar tempo para
carregar o dragão ao porto. — o comandante murmurou ao circular o
dragão. Os olhos dele estavam fixos nas garras do mesmo. — Não se
esqueçam disso. Venderemos o Aço de Cristal nas cidades mercantes de
Aumastris.
— Comandante Thenardier. — o draconiano mais baixo fez uma
reverência acentuada. Ele tinha o rosto cheio de sardas e uma cicatriz
pequena na sobrancelha. O terceiro guerreiro, um draconiano com algumas
rugas, retirava algumas flechas das escamas da criatura adormecida. — É
um prazer lutar ao seu lado. Receio que não teremos uma batalha como essa
tão cedo.
— Podemos nos divertir com esse aqui. — e colocou um pé sobre o
longo pescoço do dragão. — Será um treinamento muito eficaz se o...
Mom-mom abriu os olhos. Os dentes disformes dele abocanharam a
perna do comandante com tamanha força que separou o membro do corpo
em um segundo. O nobre sequer teve oportunidade de gritar ou lamentar a
dor: o Aço de Cristal das garras do dragão mostrou o porquê de sua raridade
ao decepar a barriga do draconiano como se fosse papel. O guerreiro menor,
que antes estava próximo de seu superior, tentou sacar seu arco e tomar
distância, mas a boca enorme de Mom-mom o alcançou antes e o lançou
cruelmente contra as árvores enquanto o terceiro homem, nas costas do
dragão, recebeu todo o peso deste quando o mesmo rolou na grama.
Ossos se partiram, Mom-mom se levantou sem cambalear, sem hesitar,
sem fraquejar, como se as inúmeras flechas não fossem nada além de poeira
em suas escamas. O dragão pisou sobre a cabeça do draconiano quebrado e
avançou contra o qual havia lançado em direção aos troncos. O rapaz se
levantava, desnorteado, quando a criatura o abocanhou e o chacoalhou no ar
ocasionando uma chuva de sangue, membros e entranhas. Os pedaços do
draconiano se espalharam ao redor e Mom-mom os mastigou sem engolir.
Não era fome, era fúria.
Luce assistiu ao massacre sem piscar. Ela se levantou devagar,
tremendo, enquanto seu dragão, o gentil gigante que adorava frutas,
estraçalhava os restos do draconiano. A menina sussurrou o nome dele,
murmurou para que parasse e que fossem embora daquele ambiente
impregnado de morte.
Mom-mom, ela choramingou a centímetros de distância.
Mas não esperou o movimento seguinte. O dragão rugiu e avançou
contra ela.
...e as garras de aço a atingiram.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

INSTINTOS DRACONIANOS

LUNAYSIS VÖN KRIMNELL OBSERVAVA AS chamas do candelabro.


Os cabelos dourados escorriam na cama, seus dedos descansavam
sobre um livro recém lido e a mão direita estava enfaixada. Um ferimento
proposital. Ela não havia caído como dissera ao seu senhor; e, sim, cortado
a si mesma com uma adaga. O ferimento precisou de cuidados, de faixas,
pontos, que envolveram sua pele e esconderam uma recente marca:
Misairuzame. A essência se propagara em seu corpo desde o incidente e um
símbolo traçado com esmeraldas surgiu repentinamente nas costas de sua
mão direita. Escondê-lo seria um desafio para a jovem, uma sobrevivência,
mas ela se empenharia — não por sua vida, não por sua essência.
A razão era a criança que crescia em seu ventre.
Ela nascera e veria o mundo como Luna não tinha a permissão de ver.
Ela seria livre.
Rhenna prestara ajuda a Krimnell e dissera que a marca poderia ter
aparecido em um lugar pior. A primeira general tinha o símbolo de
Mahoutsukai em seu olho direito: o anterior havia sido substituído por uma
safira vibrante. A draconiana não perdera a visão com o ocorrido, pelo
contrário, viu cada detalhe do mundo com uma intensa precisão. Ela era
capaz de enxergar no escuro, de ver por uma distância maior que os
draconianos e perceber qualquer movimento inesperado.
Luna observou a marca da general com atenção.
— Como você consegue esconder por tanto tempo de seu senhor? — a
jovem Krimnell questionou com um sussurro. Rhenna lhe fazia companhia
desde o início da tarde para se certificar que a draconiana havia se
recuperado do pânico. Luna, no entanto, percebeu que quem realmente
precisava de cuidado era a general. A expressão dela estava péssima como
se houvesse sofrido a noite inteira.
— O comandante sempre soube. — a mulher murmurou com
seriedade.
Luna colocou as duas mãos em frente aos lábios.
— Ele não entregou você para os superiores?
— O comandante é um rebelde com diferentes crenças e tradições, não
importa quanto tempo sirva para o império.
Luna sorriu, embora Rhenna permanecesse séria.
— O senhor Khan deve amá-la também. Eun-seo também me ama e
nunca me entregou para os superiores, sempre me protegeu. Às vezes
penso, general, se é possível o mesmo acontecer com o meu senhor. Você
acha que ele me entregaria aos superiores se me amasse?
Luna pensava na hipótese desde o dia que Ahuriel lhe pedira para ler o
poema. O guerreiro frequentava o quarto com mais frequência desde então
para relaxar — e sempre fazia o mesmo pedido: o da leitura. Nada mais
havia mudado. Ele permanecia distante, nunca perguntava sobre o herdeiro
e não buscava saber de sua mulher. O draconiano não prezava nada além do
próprio conforto e precisaria de Luna somente para dormir ou carregar suas
crias no ventre.
— Sim. — Rhenna respondeu de repente e trouxe a jovem de volta a
realidade. Luna se perguntou quanto tempo a general pensara na resposta.
— Eu o conheço melhor do que qualquer um.
As palavras causaram um repentino mal-estar na Krimnell.
— Eu não entendi... — Lunaysis sussurrou.
— Se deseja a admiração de Ahuriel, não o tema, não aja como se
fosse uma draconiana fraca e submissa. Você é a herdeira de Misairuzame,
senhora Krimnell, ouça a sua deusa e busque a força dentro de você. Os
draconianos temem as mulheres fortes.
A jovem sentiu um arrepio.
— Você escuta Mahoutsukai, general?
— O que você sabe sobre a essência que tem? — e a general ignorou a
pergunta como se não houvesse ouvido.
— Minha ama era uma draconiana com a essência. Ela não me contou
muito... e tudo o que sei é em relação ao poder de Misairuzame, o vento,
sobre a esperança que remete o nome da deusa. — Luna dissera com receio
de que a general risse de sua própria ignorância. A mais velha, porém,
manteve-se sólida e atenta.
A Krimnell encolheu os ombros.
— É tudo o que sei, general.
Rhenna a observou com cautela. Sob o olhar da superior, Lunaysis se
sentia acuada, quase oprimida.
— Cada deusa tem um dom específico. O vento de Misairuzame
sussurra as possibilidades que existem no futuro, as chamas de Mahoutsukai
queimam no passado e os cristais de Maetsumina refletem o caos de uma
existência... — Rhenna fez uma pausa rápida como se estivesse se
certificando que ninguém as ouvia na escuridão. — Mas é um dom
perigoso, descontrolado as vezes. É por isso que existem aqueles que
compartilham uma ligação com as essências das Estrelas. Eles podem
sentir... ou até mesmo usar. Os Primeiros Dragões chamam de Guardiões.
— Um guardião?
A draconiana assentiu com o olhar distante.
— São eles que protegem as herdeiras.
— Eu posso escolher quem vai me proteger?
— Você não escolhe. É o Vento de Esmeraldas que o faz, sem sequer
consultar suas vontades. — e a general respirou lentamente. —
Misairuzame pode escolher quem você menos espera, basta alguém ter uma
conexão com você. Eu nunca entendi o que significava, mas... talvez seja
alguém que te passe confiança e segurança.
Luna refletiu as palavras por instantes.
— Aconteceu com você? Mahoutsukai escolheu por você?
As palavras criaram uma sombra no rosto de Rhenna. Ela desviou o
olhar para as chamas, os fios dourados cobriram-lhe a expressão como se
ela houvesse sido transportada para outra realidade, outro tempo.
— Sim. — e respondeu após um longo silêncio.
Luna decidiu não questionar sobre.
Havia uma ferida na história de Rhenna que não parecia ter cicatrizado
— algo forte o suficiente para fazê-la desistir de encontrar uma cura para a
doença que a matava. Seria a morte de seus filhos? Seria os anos em
cárceres com os dragões? Seria a pressão de sobreviver como herdeira em
um mundo que a puniria?
— Se o meu senhor for escolhido como meu guardião por
Misairuzame, senhora Rhenna, será bom? — Luna mudou o foco da
conversa.
— Ele lhe passa segurança?
— Não... — a jovem respondeu melancólica.
— Então o faça passar. Não demonstre medo e o desafie. Pode parecer
ruim no começo, perigoso, pode odiá-lo, mas eu o conheço. Eu o conheço
muito bem. Ele admira tudo e todos que não pode controlar.
Mas era quase impossível afastar o medo, a possibilidade de ser
descoberta.
Luna estremeceu.
— Houve uma única vez que ele, o comandante, foi gentil com você?
— Rhenna perguntou de repente e a herdeira de Misairuzame se encolheu
na cama. As bochechas dela ficaram quentes. Sim, houvera. A primeira vez
que Ahuriel vön Krimnell experimentou o calor do corpo dela com o intuito
de gerar herdeiros. Acontecera somente uma vez, há meses, e desde então o
draconiano não demonstrava nenhum sinal de desejo.
Ele nunca a procurava ou se deitava na cama ao lado dela.
Luna sentiu um arrepio de repente: seu marido era frio, mas as mãos
dele, estranhamente, eram quentes.
Rhenna não precisou de resposta para prosseguir.
— Só existe duas coisas capaz que enfraquecem um homem, e não é
um ferimento em batalha. Porque, mesmo ferido, um guerreiro vai até o
fim. Mas experimente provocar seus sentimentos e seus instintos.
A senhora Krimnell refletiu a frase por longas horas.

O Grande Deserto.
A maior parte de Tannenberia era um deserto de areias douradas e
temperaturas extremamente elevadas. Ele representava a batalha do Sol em
Chamas na linguagem dos homens comuns. Sunyar confrontara o deus
dragão e o derrotara com o calor do astro rei — um poder tão intenso, tão
destrutivo, que abalou a natureza ao redor. Rios secaram, montanhas
derreteram e árvores foram transformadas em fragmentos de ouro que
deram origem ao deserto. A história era interessante, de fato, mas o
comandante dos Cavaleiros Negros não entendia o motivo que levara os
humanos a construir a capital nas areias selvagens da região oeste. Era
quente demais, inóspita demais e estranhamente habitada.
Um lugar que não o atraia.
Ahuriel vön Krimnell respirou fundo e decidiu parar de analisar os
mapas.
Era noite.
Ele estava desde cedo empenhado em delinear estratégias para proteger
a capital humana de um possível ataque durante o Festival de Sunyar. O
dever de proteger a cidade era dos draconianos — e eles não falhariam. Não
com tantos guerreiros famosos a caminho de Tannenberia no Lua Dourada.
O próprio comandante era um deles, ele não hesitaria em caçar dragões com
sua montante e arrancar escamas com sua lâmina.
O Lorde Krinmell estalou o pescoço e se levantou. Ele organizara os
mapas, os livros e a sala antes de se dirigir para seus aposentos. Seu corpo
ansiava, clamava, por um descanso digno depois de horas e mais horas de
trabalho. Ahuriel, porém, não se sentia irritado ou com a paciência escassa
como quando a insônia lhe era como um inimigo cruel. As leituras de sua
mulher — quem ele não se importara de lembrar o nome — estavam
afastando os problemas com a falta de sono. Ele dormia por mais de duas
horas, cinco talvez, como um draconiano normal deveria.
Ahuriel encontrou sua senhora encolhida nos lençóis ao entrar no
quarto como se estivesse se protegendo de algo ou alguém em uma
armadura de tecidos. Ela sobressaltou a vê-lo, fez uma sutil reverência,
antes de se sentar na cama e fitar as próprias mãos. Os dedos dela tremiam.
O comandante se ajeitou na poltrona, desafivelou lentamente as travas de
sua armadura e pediu, na verdade, ordenou que a jovem iniciasse a leitura.
Um processo simples, entre sussurros, que faria o corpo do draconiano
reclamar e ser abraçado pela escuridão.
— Leia. — ele disse como passara a dizer em todas as noites.
O guerreiro desviou a atenção para a draconiana e percebeu que ela se
levantava.
— Meu senhor. — o corpo inteiro dela tremia, o rosto estava vermelho
e a respiração entrecortada. Ahuriel, porém, não demonstrou preocupação.
Somente uma raiva crescente. — Eu não quero ler essa noite.
— Quem lhe dissera, mulher, que tens livre arbítrio?
Ela não hesitou e se levantou.
A camisola de seda delineava suas curvas, seu corpo e sua barriga
inchada. A jovem caminhou devagar, como um felino ousado, enquanto ele
mantinha a cabeça inclinada e os olhos atentos — gelados como o inverno
— na direção dela.
Mas não era o corpo dela que o atraia.
Ele observava os olhos, o fogo, o vermelho cor-de-sangue.
— Volte para a cama, mulher. — e o comandante se perguntou as
intenções dela. Era a primeira vez que sua mulher, constantemente quieta e
submissa, uma marionete, dava um passo para a desobediência. Deveria
dar-lhe uma punição, talvez espancá-la como o pai dela, o general Vanadis,
sugerira. Os pensamentos dele trabalhavam, a paciência se esvaziava aos
poucos, mas todo o fluxo de questionamentos foi interrompido por uma
atitude corajosa, e também ousada: a camisola escorreu pelos ombros da
draconiana, deslizou pelo busto, a cintura, as pernas e encontrou o chão.
Os olhos do comandante percorreram cada centímetro, cada curva e
cada linha do corpo de sua mulher, não, ele se corrigiu, uma menina que
brincava de ser mulher. Porque na primeira vez que a vira em sua
intimidade, a draconiana estava com lágrimas nos olhos e fraco desejo de
viver. No presente, meses depois, uma sutil determinação queimava nos
olhos dela — e Ahuriel suspirou em um misto de sentimentos. Não era
atração, tampouco admiração ou excitação; e, sim, desafio.
Ele se levantou e se pôs em frente à sua senhora.
— Vista-se, desgraçada.
Ele a sentiu ser afetada, sucumbir.
Mas ela se manteve imóvel.
— Eu não vou pedir de novo.
A draconiana o encarrou. A desobediência dela, o desafio impregnado
no rosto, fez o sangue do comandante dos Cavaleiros Negros ferver: ele a
esbofeteou com uma mão pesada e grande. Ela era tão pequena, tão frágil,
que a força a fez cair em um baque surdo no chão, as mãos na boca, os
cabelos nos olhos. Um gemido escapou dos lábios dela e Ahuriel acreditou
que ela choraria como a criança que era, a criança que sempre seria.
O que ele não esperava era vê-la se levantar e o encarar com um filete
de sangue escorrendo pelo nariz. Lágrimas pairavam nos olhos dela, em
abundância, mas a draconiana não ousou derramá-las.
Um misto de confusão e fúria contaminou o comandante.
— Como ousa me desafiar dessa forma, mulher?
A resposta viera com um movimento dela: ergueu o braço, o mesmo
com a mão enfaixada, em direção ao rosto do draconiano. Ele a segurou
pelo pulso antes que pudesse tocá-lo, antes que os dedos suaves, dedos que
nunca ergueram uma espada, alcançassem sua pele. Um cheiro repentino,
então, o embriagou. Era doce como as longas primaveras de Aumastris, os
dias ensolarados e as flores que cresciam ao redor das montanhas que eles
viviam. Ahuriel trincou os dentes, detestou como o aroma enfrentava os
seus instintos mais primitivos, empurrando a draconiana violentamente em
direção da cama.
Os lençóis ampararam a queda dela. O comandante a viu se mover,
suspirar, sem hesitar aos olhos em cólera que eram direcionados em sua
direção — e se surpreendeu quando ela se pôs em pé uma segunda vez.
— Meu nome... — ela sussurrou com os mesmos olhos de fogo. Os
cabelos dourados cobriam seu busto, mas o resto de seu corpo, os detalhes
de suas curvas sinuosas, estavam visíveis. Ahuriel, no entanto, prestava
atenção somente no semblante dela. Na coragem. Na perseverança. — Não
é desgraçada ou mulher. Eu era Lunaysis rön Vanadis e sou Lunaysis vön
Krimnell, então, peço, meu senhor, que me respeite como sua senhora.
O comandante a viu fraquejar por um segundo.
Lunaysis secou as lágrimas depressa e juntou a camisola. O movimento
do corpo dela, só então, ganhou a atenção do draconiano. Os lábios dele se
entreabriram, sem voz, os olhos deslizaram pela pele pálida e um repentino
tremor o acometeu. Desejo: um sentimento carnal que o fez dar um passo
para trás.
Ele trincou os dentes antes de se pronunciar:
— Não haverá uma segunda chance. — e então saiu do quarto.
...e o comandante se sentiu derrotado por seus instintos pela primeira
vez.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

ESCREVENDO HISTÓRIAS
PERDIDAS

A MONTANHA ESTAVA MANCHADA DE VERMELHO.


Sangue. Sangue por toda a parte. As rochas deixaram de ser cinzentas
para ganhar uma coloração viva e fresca, um doce aspecto de morte que
envolvia os presentes. Um homem de cabelos dourados manobrou sua
espada — uma obra de arte de lâmina rubra — e lançou o sangue
impregnado nela em direção ao chão. As feições dele eram
assustadoramente belas e sedutoras que se deleitavam com a escuridão ao
redor. Os olhos dele tinham a intensidade da cor que manchava o ambiente:
vermelho. A armadura era a noite; seu sorriso, o dia, e as garras salientes o
tornavam um draconiano temível. Ele sorriu, os lábios entreabertos e um
suspiro de êxtase ao observar o jovem de joelhos em sua frente.
O cavaleiro deu um passo e se aproximou do rapaz. Ele tremia, de dor,
de raiva, com coragem, o que deleitava o adversário em sua frente. Não
havia uma sombra de medo ou hesitação. Era de se admirar o modo que o
menor se esforçava para se manter consciente com tantos ferimentos
recentes.
O que mais se destacava no jovem, porém, eram os olhos: vibrantes e
estonteante como safira.
Não eram olhos humanos, não eram olhos de um dragão.
Tampouco draconianos.
Ele moveu o rosto, sua atenção caíra no filhote de dragão encolhido,
ferido, à suas costas. A criatura tremia, entre a consciência e a
inconsciência; e caso ele falhasse, ela não mais abrira os olhos que tanto
amava. Então, com o desejo de protegê-la, o garoto trincou os dentes e
avançou cegamente contra o adversário, desarmado e com os punhos
fechados. O draconiano se divertiu, deixou-o acreditar na esperança,
enquanto desviava de uma investida lenta e cheia de dor. A inexperiência e
a fatiga fizeram o menor tropeçar, mas não cair, porque o inimigo o agarrara
pelos cabelos. O golpe que viera no momento seguinte, o impacto dos ossos
draconianos contra seu rosto, acarretou na perda rápida de consciência.
Ele foi lançado ao chão, cruelmente, e despertou com o aço das grevas
adversárias em sua barriga.
O jovem vomitou sangue.
O pior viera em seguida: uma das botas pesadas do guerreiro pousou
sobre a cabeça dele. O garoto gemeu com a dor, sentindo o sangue verter do
recente nariz quebrado.
A risada do draconiano soou como um relâmpago.
— Uma pena! Uma pena! — disse o draconiano. A voz dele era suave
e perversa ao mesmo tempo. Ele tinha um corpo esguio e alto, sem
músculos salientes, mas com força o suficiente para esmagar a cabeça do
menino se assim quisesse. — Tua incapacidade de protegê-la, minha doce
criança, me toca o coração. O que ela diria se visse que tu falhaste? Ah,
deuses! — disse com falsa tristeza. Ele pressionou o peso da bota na cabeça
do menino e respirou ansioso ao ver sangue verter dos ferimentos recém-
abertos.
O menor não se moveu.
— Pergunto-me, com o coração em prantos, onde estariam os seres de
tamanha audácia que lhe deram a vida. Mortos, suponho eu. Mortos porque
tu, criança, nasceste. Uma ofensa para esse maldito mundo. — e ele moveu
seus olhos escarlates na direção ao filhote desacordado. Um sorriso
prazeroso embriagava sua expressão. — Veja, Kluddihargën, observe! Use
os olhos que os deuses lhe presentearam! Veja tua amada uma última vez...
Ele a observou e estendeu os dedos na direção dela.
— Ambos terão o mesmo destino, mas jamais se encontrarão na pós
vida. Sabe por quê, meu menino? Porque tu és um monstro.
Monstro.
— Maetsumina. — e os lábios draconianos proferiram em intenso
êxtase o nome de uma entidade proibida. O sangue ao redor, a cor carmesim
que manchava a montanha, flutuou e dançou como se fossem partículas de
cristal. O guerreiro se admirou com o próprio poder, enquanto movia o dedo
para solidificar os fragmentos.
O draconiano riu como se o mundo estivesse em suas mãos — e ele
tinha.
Era o mundo de Klud, um mundo fragmentado diante seus olhos de
vidro.
A doce Yanaamahka, murmurou o homem, a criança com o coração
forjado por estrelas e por safiras. Um coração que te aceitou, que te deu
tudo o que o mundo recusou... e tu jamais será capaz de vê-la novamente.
Jamais.
...e os olhos de vidro foram quebrados.
Yanaamahka abriu os olhos de repente. Seu coração batia devagar, seus
pensamentos se moviam em um fluxo lento como se estivessem
processando o que vira minutos antes. Ela fechou os olhos novamente,
sentiu um temor repentino, uma ponta forte no peito. As horas anteriores
lhe eram confusas: a Estrela da Noite lembrava de ter encontrado Tiggrë, do
sorriso dele e o sorriso que ele cativara nela. Depois, um súbito mal-estar e
uma escuridão sem fim.
Mas o que realmente a intrigava era a imagem de Klud.
O porquê de ver as lembranças pelos olhos dele.
Era como se ela houvesse entrado na consciência de Klud para navegar
no passado. Yanaamahka sentira tudo o que ele sentiu, o desespero em
falhar para protegê-la e a fúria pela própria incapacidade. Ela pensava no
que vira, nas sensações, quando seu coração acelerou de repente. A
recordação... a Estrela da Noite sabia o que significava: o assassinato de sua
mãe. O fragmento se ascendeu na mente dela como o sol no verão, cheio de
calor e cores. Mas a lembrança não pertencia a ela. Não. Era de Klud, vinha
dele... e não dela. Yanaamahka, então, se agarrou ao pedaço de memória e
implorou para que mais viessem, para que uma luz iluminasse a escuridão
em seu peito. Ela, porém, recebeu um nome ao invés de respostas:
Belpheggör rön Vanadis.
Belpheggör, ela sussurrou o nome.
Ela abriu os olhos novamente e nada viu, nada além de vazio sem fim.
O vento não soprava, o silêncio a abraçava. Há dias se sentia estranha e
diferente.
Mas não havia uma explicação, um motivo plausível. Era como se seu
corpo estivesse rejeitando algo, uma partícula, um fragmento apodrecido
dentro dela. Tiggrë provavelmente saberia o motivo, mas... Yanaamahka
tricou dentes e tentou enxergar a realidade que desaparecia. Não encontrou
nada; e, num desespero crecente, gritou contra o escuro. Vozes retumbaram
ao redor, sussurros incertos e lamentações constantes. Estavam em todas as
direções, atormentando sua frágil consciência. Ela queria acordar —
precisava acordar e ter certeza que estava viva. Ver as estrelas, as duas
solitárias luzes que acompanhavam a lua, ver céu e o sol.
Um murmúrio viera do aglomerado de exclamações fantasmagóricas,
chamava por seu nome e viera acompanhado por uma pressão intensa como
se houvesse uma força invisível sobre ela.
A Estrela da Noite berrou contra o desconforto.
...e as cores do mundo se revelaram.
Primeiro o vermelho — os olhos de sangue que encaravam os dela do
alto. Em seguida, o prateado — a lua que iluminava a noite sem estrelas. As
demais cores se perderam, Yanaamahka não lhes deu atenção, porque o
corpo de Hanzor rön Vanadis estava sobre o seu. Ele a prendia pelos pulsos,
o rosto pálido, as feições assustadas que se misturaram as dela em um
segundo de confusão. Se ele desejava se manifestar, explicar os motivos que
o levara a prendê-la, não teve tempo.
Porque um dragão negro surgiu na noite.
A adrenalina atravessou as veias de Yanaamahka e a fez mudar de
forma abruptamente. O draconiano escapou a tempo, um salto fora o
suficiente para afastá-lo da criatura que rugiu furiosa na direção dele. A
Estrela da Noite inclinou o focinho da direção do cavaleiro, mostrou seu
conjunto de pressas enquanto a cauda dançava de um lado ao outro no ar.
— Fique calma! Calma! — Hanzor gesticulou depressa com os braços.
Yanaamahka o ignorou e avançou.
A asa quebrada se arrastou ao lado dela, sem dor, sem movimentos,
durante a investida contra o draconiano. Ela era mais alta que ele, dez ou
quinze centímetros, mas não rápida o suficiente para acertá-lo. Seus dentes
mordiscaram o ar. Hanzor se esquivou da boca do dragão com uma
agilidade sobre-humana, as botas dele deslizaram nas rochas com
graciosidade enquanto seus olhos se mantinham concentrados na fera.
Yanaamahka bufou irritada, arranhou o chão sob suas patas e mergulhou
contra de seu suposto adversário.
O Cavaleiro Negro era como o vento: ele deu um mortal para trás,
apoiou o peso de seu corpo em um braço e com um terceiro movimento,
aterrissou sentando em uma rocha de superfície plana, ágil e preciso como
pássaro sem asas, uma das muitas características draconianas. Ele sorriu
para a Estrela da Noite — e em nenhum momento sacou a espada ou
contra-atacou. A passividade dele provocou uma onda de fúria no dragão.
Yanaamahka rugiu, ergueu a asa não-quebrada e buscou a chama extinta em
seus pulmões. Ela era um dragão e o fogo era uma parte dela, deveria ser.
Era comum a raça aprender durante os primeiros anos, quando suas
membranas ainda não eram fortes o suficiente para sustentar o corpo
durante o voo.
A questão era que Yanaamahka não tivera essa oportunidade.
Consequentemente, somente fumaça e cinzas saíram por suas narinas.
Yanaamahka tossiu guturalmente enquanto ouvia a risada zombeteira
do cavaleiro.
— Por Lunyar! Você não é um bom exemplo de Primeiro Dragão.
Sempre ouvi histórias sobre o quão fortes e destemidos eles são. — e
terminou com um sorriso bobo.
Os olhos de Hanzor eram chamas escuras que queimavam contra o
dourado dela.
— O que você... você fizer com Tiggrë? — ela questionou entre os
dentes.
— Fez. — Hanzor a corrigiu.
Ele se levantou e alongou os músculos tensionados.
— O pequeno foi buscar lenha, mas não se preocupe, Yanaa, ele levou
minha espada como garantia de que eu não fosse te matar. — o homem
continuava sorrindo. — O que ele não sabe é que posso fazer isso com
minhas mãos.
O draconiano piscou.
— Se quisesse.
Yanaamahka rosnou.
— Então, Yanaa, não vai me agradecer por ter salvo sua vida duas
vezes?
— Você não nunca salvar a minha vida. — ela murmurou com as
pressas a mostra e a cauda inquieta. — É um draconiano... como outros.
— Eu disse para você desde o começo, Yanaa...
— Não chama assim! — Yanaamahka rugiu.
— Yanaa. — o cavaleiro repetiu. — Suave e ao mesmo tempo
misterioso como você. Fico feliz que esteja bem, você nos deu um susto
quando desmaiou e vomitou o suficiente para criar um lago de meleca.
Yanaamahka respirou impaciente.
— Tenho a permissão, Estrela da Noite, para me confessar?
— Você deixar eu me confessar... na noite aquela?
A pergunta pegara o draconiano desprevenido.
— Você já cometeu erros? Escolhas que fizeram você se arrepender
horas mais tarde? — o sorriso nos lábios de Hanzor desapareceu por um
instante. Ele observou o horizonte, as montanhas que se erguiam além dele,
enquanto bagunçava os cabelos com os dedos grossos.
— Eu não lembro. — a resposta viera seca como o deserto.
— Você é difícil de lidar, hein. — e ele riu brevemente. — Eu cometi.
Julguei você pelos erros de seu pai e não era o certo a ser feito. Eu prometi
ajudá-la antes, lembra, naquele dia na ponte? Porque apesar de minha
origem, Yanaa, admiro vocês... as Estrelas da Noite.
— Não é o bastante...
— Eu salvei você, estrela ranzinza. Não mereço alguns pontos por
isso?
— Você me salvou porque quer caçar a eu.
— Me caçar. — e ele corrigiu de novo, um sorriso animado no rosto.
— Eu não quer caçar você. — a estrela respondeu.
Hanzor só não riu porque seria maldade.
Yanaamahka não parecia esperta a ponto de conhecer os próprios erros.
Tampouco a ausência de interpretação. Mas ele não a culpava.
Poderiam haver motivos para tal comportamento.
— Deixe-me, então, mostrar que está errada. Uma segunda chance. —
o draconiano deu um passo em direção ao dragão. O segundo viera depois,
sucedido de um terceiro e uma linha de dentes ameaçadores que ela revelou
para ele.
— O que eu ganhar com isso?
Hanzor sorriu abertamente.
— Eu vou levá-la ao Desfiladeiro dos Dragões Gigantes.
O coração de Yanaamahka bateu mais forte.

O menino de olhos brilhantes dificilmente sorria. Em seu primeiro ano


de vida, sequer expressara seus momentos de felicidade — não porque ele
não os tinha ou porque nascera com um coração gelado. A verdade era que
ele demonstrava os seus sentimentos de uma forma incomum e totalmente
inspiradora: os gestos. Era pequeno demais para falar, mas os grandes olhos
de safira lapidada falavam por ele. Uma criança atenta, de dedos carinhosos
e toque quente. A mãe sempre percebia o modo que ele a observava ao ser
amamentado. O pequeno amava sem palavras, ele amava com o silêncio e
descobria o mundo através dos olhos de sua mãe.
Meu pequeno, sussurrava a mãe. Tu tens a natureza admirável de teu
pai, o mesmo semblante, o mesmo modo de ver o mundo com o coração.
Ela o abraçava com um amor que orgulharia os deuses. A mãe o protegia
todos os dias e era protegida por ele ao mesmo tempo. A simples presença
da criança a enchia de vida.
Ela deu tudo a ele: seu tempo, sua atenção, sua alma.
Dedicação essa que se perdeu quando a criança completou dois anos.
Rhenna acordou chorando.
Lágrimas silenciosas rolavam em seu rosto e o peito queimava como
mil sóis. Ela se encolheu entre os lençóis e se cobriu: os deuses levaram seu
filho, dissera os guerreiros que o procuraram por doze dias e onze noites na
costa do continente de Aumastris. Os primeiros meses que procederam a
perda haviam sido difíceis; o ano, um desespero; e a general se escondeu na
escuridão. O duque, seu pai, oferecera a ela todo o conforto do mundo; o
comandante, seu marido, dera tudo que tinha, mas ninguém fora capaz de
amenizar a dor da perda.
— Minha senhora? — Khan sussurrou ao lado dela. Eles não
compartilhavam a cama, mas o comandante se recusava ao deixá-la sozinha
no quarto. Ele dormia em pé, algumas vezes sentado, ao lado dela como um
guardião. Mas ele não era um: Mahoutsukai não o escolhera. — Você está
chorando?
Ela o ignorou.
— Está se sentindo bem? — ele questionou gentilmente e pôs a mão
sobre a testa dela. O toque de Khan era áspero, uma característica do sangue
selvagem dos draconianos de Castora. Rhenna havia procurado o calor
desse toque no passado, todas as noites, todos os dias, mas jamais fora
capaz de amá-lo de verdade. — Chegaremos em Tannenberia em breve e
você poderá descansar.
— Você acha que preciso descansar, comandante? — Rhenna
murmurou com suor em suas têmporas. Ela estava realmente com febre.
Khan engoliu seco.
— Sim, minha senhora. Está doente e...
— Eu vou morrer, comandante, se descansar ou não. — e ela se afastou
abruptamente do toque dele ao sentar na cama e se levantar em seguida. O
navio chacoalhou e fios dourados escorreram pelo rosto dela, sobre o olho
azul, o olho da maldição. Rhenna sentia a essência de Mahoutsukai em seu
interior, uma energia que enfraquecia aos poucos e morreria junto com a
draconiana.
A general caminhou pelo quarto com o vestido negro que dormia — as
curvas marcadas no tecido.
Khan a acompanhou com os olhos.
— Eu não quero pensar nisso, minha senhora. — ele respondeu ao
desviar a atenção para o chão. — Você é uma das herdeiras de
Mahoutsukai, a entidade da vida, da proteção, como pode, então, morrer? O
Fogo de Safiras deveria te proteger de qualquer praga.
As chamas a protegiam de qualquer ameaça, esse era o motivo de ser
adorado por povos antigos, mas não a curavam de doenças. Eles também
diziam que as essências das deusas esquecidas possuíam dois níveis: o
primeiro era passivo; o segundo, ativo. Rhenna aprendera há muito tempo
que o Fogo de Safiras era uma benção na forma passiva e uma devastação
na forma ativa. As draconianas amaldiçoadas morreriam com a essência em
seu estágio mais fraco, o passivo, sem sequer conhecer a parte ativa.
Mas os draconianos superiores experimentaram no passado a essência
das deusas esquecidas em sua forma ativa: a Estrela da Noite chamada
Nusheymara, a Rainha de Sangue ou Mãe dos Primeiros Dragões. Ela era
herdeira da deusa mais temida das três e os Cristais de Rubi dela, que
sobrepunha o Fogo de Safira e o Vento de Esmeraldas juntos, estava em seu
nível ativo, o caos, capaz de extinguir vidas com um sopro.
Os draconianos a assassinaram e acreditaram que o poder dela havia
desaparecido. Até descobrirem que sua filha, Nahemidraal, também era
uma herdeira dos Cristais de Rubi. Eles a mataram também... de uma forma
cruel e desumana. Um draconiano se tornou o guardião dela, a enganou e a
matou para, então, cometer um tabu.
Aprisionar a essência dela dentro dele.
Rhenna sentiu um aperto no peito.
Ela não conhecera Nahemidraal, mas Nusheymara era sua melhor
amiga; e não pode salvar nenhuma.
— O meu poder não me protege porque não há uma solução para o que
tenho, comandante. — e Rhenna sabia que tinha a devastação do Fogo de
Safira em suas veias e que era a primeira mulher draconiana a experimentar
a essência em sua forma perfeita, mas o seu poder não se comparava ao de
uma Estrela da Noite. As fêmeas dos primeiros dragões eram como uma
fonte das essências enquanto as draconianas tinham somente um fragmento.
Nusheymara dissera um dia que as Mulheres Amaldiçoadas eram
receptoras do poder das estrelas. Tudo o que Rhenna sabia, todo o poder
que guardava, era devido aos anos que passara como prisioneira dos
dragões.
O ano que conheceu seu guardião.
A general sentiu a pressão da presença de Khan à suas costas e se virou
para encará-lo. Havia dor nos olhos dele, necessidade e desespero. Ele
queria se aproximar mais, senti-la, mas não era capaz de agir pela força
como os outros draconianos faziam com suas mulheres. Ele elevou uma
mão na direção dela, mas Rhenna afastou o toque do marido com um tapa.
Ambos se encararam por um momento.
— Pense, comandante, pense no que poderá fazer se eu morrer o
quanto antes. Um novo casamento, uma mulher tola para finalmente
compartilhar a cama e retribuir seus sentimentos inúteis.
Rhenna não esperou por uma resposta ou se importou com a reação do
comandante. Ela pegou um longo sobretudo, pôs nos ombros e deixou o
quarto em direção à proa. Um oceano negro se estendia ao seu redor e no
horizonte os primeiros sinais do continente de Tannenberia se revelavam.
Eles chegariam na manhã seguinte e protegeriam a capital durante as
celebrações. A draconiana gostaria que os dragões atacassem.
...porque haveria uma chance dele estar presente.
Sob o céu de duas estrelas, então, Rhenna sussurrou para vento o nome
do dragão que há quase trinta anos havia abandonado.
Sem nunca ter dito o porquê.
CAPÍTULO VINTE E SETE

SOB AS SOMBRAS E AS
LUZES

O CENTRO DE SOLARIS ESTAVA MOVIMENTADO.


Os draconianos se organizavam para partir em uma hora e quase trinta
homens de armadura se aglomeravam próximo aos portões. Dentre os
guerreiros, três armaduras de ouro branco e uma de obsidiana se
destacavam: os melhores de Aumastris. Três pertenciam aos Sentinelas de
Prata, comandados por Khan vrön Skaargärd; e um aos Cavaleiros Negros,
comandados por Ahuriel vön Krimnell, mas que no momento estavam sobre
as ordens do general Leto Demétrius.
Não que ele gostasse de ter vassalos.
Eram todos tolos, incompetentes que se contentavam em ter um
superior cagando em suas cabeças. Demétrius não admitia o mesmo, talvez
fosse esse o motivo de ser constantemente julgado e sentenciado por uma
morte que sempre lhe escapava. Pouparam-lhe a vida em troca da vida de
uma Estrela da Noite — e ele não o fez apenas parar se livrar da
condenação.
Mas porque fora ungido caçador de estrelas.
Morrer caçando era uma vitória — principalmente para um
Nothumbriano, feito gelo e dor, fogo e ferro. Ele não temia a morte; seu pai,
o Senhor de Gelo, lhe ensinara que viver era pior que morrer. Leto
Demétrius lembrou dele por um momento. Diziam que não havia
draconiano mais gelado que o Grande Senhor das terras-de-homem-
nenhum. Era verdade: o general era a prova viva da crueldade de Hygörn
dur-valeas al Vossler.
As últimas palavras dele marcaram a pele de Leto Demétrius:
Tu não és nada, nunca serás nada, nem que tu extermines todas as
estrelas do céu e se torne um superior draconiano. Não terás legado, não
terás história ou alguém de teu sangue para lembrar teu nome. A Noite
Eterna não lhe deu a capacidade de gerar herdeiros porque tu és fraco,
filho de uma Mulher Amaldiçoada, não mais digno do trono que deveria ser
teu. Tu morrerás, Demétrius, então, será como nunca tivesse existido.
Demétrius, o primogênito, herdeiro do trono de Nothumbria, partiu
para Aumastris somente com uma lança.
Mas ele não partiu como um nada.
Mas como um assassino.
Um dia antes de embarcar para Aumastris, Demétrius decapitou
Davion, seu irmão, o segundo herdeiro e quem receberia a coroa, durante o
sono e serviu a cabeça dele no café da manhã do Senhor de Gelo.
Principalmente porque, entre tantos filhos, Davion era o favorito.
Demétrius também violentou a mulher do irmão e assassinou os três
sobrinhos.
Não por vingança, não, que isso ficasse para os fracos e tolos. Ele
somente queria mostrar ao Senhor de Gelo era tudo, menos nada.
Deixou Nothumbria como um assassino, mas prometeu retornar como
um Superior, um Caçador e, enfim, um Ceifador.
Um dos guerreiros se aproximou do general com a armadura negra. Ele
percebeu o pavor no semblante do rapaz, um draconiano jovem que sequer
sabia esconder sua fraqueza. Leto Demétrius o observou com uma
expressão severa, o olho direito completamente negro e o esquerdo,
prateado, uma peculiaridade que nenhum clérigo soube explicar; e aos
poucos, a segunda íris se tornavam escura também.
— General Demétrius. — o jovem Cavaleiro Negro fizera uma
reverência acentuada. — Estamos prontos para seguir oeste. Seu cavalo
também está a sua espera.
Leto Demétrius encarou o rapaz e sorriu com desdém.
— Diga-me, Hyun-seo dos Lobos de Aumastris, está seguindo para
oeste por quê? Para agradar a merda de seu imperador? — e o draconiano
se levantou e estalou um músculo do pescoço, o sol da manhã acentuava a
larga cicatriz que deformava um lado de seu rosto. — Talvez por que seu
amigo, o lixo Vanadis, disse que quer capturar a estrela sozinho? Nenhuma
Estrela da Noite chegará a capital se depender de mim, o mesmo vale para
Hanzor. Ele pode ser um Vanadis, um Skaargärd, um Veridius, de qualquer
porra de família... Se estiver em meu caminho, lobo, eu vou matá-lo.
Hyun-seo ousou se manifestar por coragem ou talvez tolice.
Ele ergueu o braço numa tentativa infeliz de se pronunciar e o ceifador
segurou o punho e o torceu. O cavaleiro sentiu um estalo, mordeu os lábios,
buscou revidar e se afastar, mas o movimento piorou a situação: Demétrius
manobrou seus dedos e, com precisão, deslocou o braço do jovem.
Mas não o soltou.
— A próxima vez eu deixá-lo sem membros. — e o general murmurou
em um tom doentio. Ele segurava o pulso do homem tão firmemente que
sentia o osso dele se partir entre seus dedos. — O primeiro vai ser o que
está em suas pernas.
Então fez o Cavaleiro Negro experimentar a terra ao largá-lo.
Leto Demétrius partiu da cidade de Solaris trinta minutos mais tarde.
Ele fez questão de saciar seus desejos antes — tantos os carnais quanto os
que alimentavam seu estômago. Não vestiu a armadura, ele a perdera em
algum lugar da cidade, mas levou sua lança e o cavalo que haviam lhe
preparado. Os draconianos seguiriam para Sonar, nas margens do Grande
Deserto, mas ele não.
Porque conhecia as estratégias de Hanzor.
O Cavaleiro Negro não era completamente tolo, poderia estar
corrompido pela vingança, mas aprendera com o comandante dos
Sentinelas de Prata. Rebeldes eram ótimos estrategistas e sabiam como
evitar as tropas adversárias. Demétrius também, só que era melhor e não
seria enganado por um simples cavaleiro.
Conhecia Hanzor, suas estratégias, e tinha certeza que ele evitaria a
cidade de Sonar e escolheria Arrius por dois motivos: uma população
menor e um caminho mais seguro à capital.
Demétrius sorriu: não seria mais um caminho seguro.
O Desfiladeiro dos Dragões Gigantes.
A Estrela da Noite dos Primeiros Dragões e o Cavaleiro Negro de
Aumastris estavam em uma disputa silenciosa de olhares. Dourado. Vinho.
As colorações se encontravam e duelavam entre expressões sólidas e
sobrancelhas erguidas. Yanaamahka erguia o focinho, bufava, mostrava sua
coleção de dentes pontiagudos e amarelados num misto de desaprovação
enquanto Hanzor exibia os seus, brancos e perfeitos, com sorrisos
zombeteiros. Ele a desafiava pela provocação, pela diversão; ela, pela fúria
e incompreensão. Nenhum ousava desistir e desviar o olhar, o ego deles não
permitiria e a noite prometeria ser longa. Cansativa também. Era a mesma
noite em que a mulher-dragão despertara de um súbito mal-estar e
encontrara o draconiano, seu suposto inimigo, dizendo que a levaria para o
Desfiladeiro dos Dragões Gigantes.
Hanzor dissera suas intenções, o desejo de encontrar Vlanhonder
Draconis, o quão arrependido estava de tê-la ameaçado por uma vingança
que não era dela e sua intenção de ajudá-la como prometera no passado. As
palavras dele causaram um súbito arrepio nas escamas da Estrela da Noite
— a lembrança dele na primeira vez, o modo preocupado que a observara
nas correntes ou como lhe dera água em um momento de necessidade, fez o
coração dela bater depressa.
Mas Yanaamahka não acreditava nele.
Tiggrë também não. Ambos discutiram por horas e mais horas sobre a
permanência do draconiano e por mais que concordassem ser perigoso, o
menino se sentia em débito. Hanzor rön Vanadis salvara a Estrela da Noite
de um ceifador e tudo o que pedira em troca fora uma chance de redenção.
Uma segunda chance, ele disse com um sorriso.
Ela teria o rejeitado se não fosse a insistência de Tiggrë. Ele dissera
que a companhia de um draconiano também tinha um lado bom: as cidades
seguintes ou os mercadores que encontrassem sequer suspeitariam de um
guerreiro imperial e não perseguiriam a mulher e a criança de cabelos
vermelhos que o acompanhavam. Hanzor concordou com o menino,
chamou-lhe de esperto, mas não se atreveu a mencionar seus reais planos ao
ajudar. Yanaamahka tinha quase certeza que não era porque ele se sentia
arrependido de suas atitudes passadas.
Mas a Estrela da Noite queria acreditar no desfiladeiro.
Ela refletiu a promessa de Hanzor durante a disputa de olhares e as
horas que antecediam o amanhecer.
— Sua comida, na’na. — Tiggrë a fez retornar para a realidade
enquanto carregava uma tigela rasa com uma mistura bege. O cheiro era
horrível e doce o suficiente para fazer o focinho do dragão coçar.
Yanaamahka estava em sua verdadeira forma desde que o menino pedira
avaliar as condições da asa quebrada. Nada havia mudado: infecção, ossos
estraçalhados e músculos deformados. — Você está sentindo dor?
Yanaamahka não sentia nada — e essa era a pior parte.
Ela retornou a imagem humana para se concentrar na minúscula
quantidade de comida que Tiggrë lhe dera. Era mingau de aveia, e a
refeição tinha um aspecto semelhante aos dejetos que Yanaamahka havia
vomitado ao se alimentar de carne humana, mas precisou se forçar a
experimentar. Seu estômago rugia de fome. A Estrela da Noite elevou a
tigela em direção a boca e mordiscou erroneamente um pedaço molengo
enquanto outros sujavam suas bochechas. O sabor a surpreendeu de repente.
Não era ruim como representava a aparência e tinha uma sensação familiar
no gosto. Então, sequer mastigou as porções seguintes, engoliu-as e limpou
a boca com as mangas da túnica desgastada como se fosse uma criança que
comia pela primeira vez na vida.
Tiggrë não se importou com os modos dela, ele se concentrou no livro
e sorriu ao vê-la bem, enquanto Hanzor permanecia calado. O draconiano se
manteve distante desde o final da discussão, mas a Estrela da Noite, vez ou
outra, percebia o olhar dele no semblante dela como se estivesse a
analisando. Ela não deu importância e mordiscou os dedos para saborear o
resto de aveia preso em suas unhas.
Os três permaneciam na segurança das montanhas desde então.
Hanzor dissera ser necessário, os caçadores estavam na cidade de
Solaris e seguiriam para o oeste em breve. Era preciso esperá-los avançar,
tomar distância, para que o caminho estivesse seguro.
Yanaamahka se perdeu na imensidão do céu enquanto as horas da noite
avançavam. Era um céu de duas estrelas. Um céu que anunciava a vida dela
para o mundo inteiro; e eles, os caçadores, não descansariam até ver os dois
fragmentos brilhantes desaparecerem.
A Estrela da Noite não queria fugir a vida inteira, mas, sim, encontrar a
parte perdida dela sem esquecer o que os anos haviam lhe tornado. Ela
queria conhecer a Yanaamahka do passado, descobrir seus anseios e
dúvidas, sem precisar que terceiros a contassem como era. Ela queria ver
com os próprios olhos, sentir com o próprio coração e se aproximar do que
lhe era distante. Shurgakiaan, o dragão de seu sangue, dissera que a paz
reinava no Desfiladeiro dos Dragões Gigantes, dissera em esperança e em
semelhantes.
Ela aprenderia a ver o passado que esquecera.
As árvores ao redor farfalharam com o vento e a Estrela da Noite
fechou os olhos. Estava quente, uma brisa abafada, mas que trouxera
consigo um aroma suave. Era hortelã. O cheiro a transportou para a casa de
Roren, nos dias em que o velho lhe acolhera e lhe dissera quem ela era:
Yanaamahka Draconis. O nome era estranho no começo, distante, aos
poucos, no entanto, ganhou peso e a estrela se agarrou a ele. Porque era
uma parte dela e ninguém poderia tirar.
O cheiro de hortelã se intensificou. Roren dissera uma vez que o cheiro
não era da casa e que as mudas que plantava eram fracas e não possuíam
nenhum aroma. Como, então, era possível senti-lo na época? Yanaamahka
mordeu os lábios. Ela sempre o sentia pouco antes de alguém se fazer
presente. Um homem, na verdade. Um suposto amigo, diziam. Ela se
levantou depressa e assustou o draconiano e o menino. Tiggrë se aproximou
dela e questionou o movimento repentino. Então, o vento trouxera a
resposta dela em um sussurro.
— Ele está aqui. — Yanaamahka fechou os punhos firmemente.
Então ela disparou entre as rochas estreitas e íngremes da montanha. A
voz do menino ficara para trás, a de Hanzor soou mais alto, é perigoso, ele
dissera, um aviso que a mulher-dragão ignorou ao subir rapidamente por
pedras amontoadas. Os montes que dividiam a região oeste da região leste
cresciam tão próximas umas das outras que era possível se movimentar
livremente entre elas. Era preciso, no entanto, um pequeno cuidado ao se
esgueirar por fendas escuras. Porque havia abismos escondidos, armadilhas
que esperavam tolos para morrer em sinfonia lenta e apertada.
Yanaamahka conhecia a escuridão, consequência de seus anos e anos
vivendo no escuro, então, nada a assustou, ou a assustaria, durante o
percurso em direção ao cheiro de hortelã. Somente o medo de ser esquecida
no escuro novamente. Medo das sombras crescerem e a engolirem. A
mulher-dragão somente parou, talvez dez minutos mais tarde, quando seus
pés humanos tocaram o limite de uma montanha. Um vasto oceano de
árvores, planícies e lagos se estendia em um território plano. Era a região
oeste, lar do Grande Deserto, dizia Tiggrë, a mais populosa parte do
continente de Tannenberia. Vários pontos brilhantes chamaram a atenção da
estrela em um momento, eles deveriam estar a vários quilômetros de
distância. Eram homens, cavalos, armaduras, que se movimentavam em
direção ao extremo oeste.
A fêmea de dragão não sabia contar, mas os considerou como muitos.
— Caçadores draconianos. — as palavras repentinas a assustaram.
Yanaamahka deu um passo em falso, cambaleou no precipício, mas o dono
das palavras lhe segurou por um ombro. Ele a puxou para uma distância
segura da queda, mas se arrependeu quando a viu mostrar os dentes. —
Acredito que não saiba voar para arriscar uma queda dessas, então, calma.
— Por que está me seguindo? — o tom ofensivo dela estranhamente o
fez sorrir.
— Está vendo aqueles draconianos? — Hanzor bagunçou os cabelos
com os dedos antes de apontar. Yanaamahka o acompanhou com olhos
estreitos e desconfiados, irritada também. — Estão seguindo para a capital.
São esses draconianos, Yanaa, que deve se preocupar, não comigo, caso
contrário, não estaríamos mais com duas estrelas no céu, entende?
— Está me ameaçando?
— Claro que não, nunca. — Hanzor riu divertidamente e pôs a mão na
cintura, ele estava sem a espada. — Sou um draconiano de palavra, basta
acreditar nela. Tiggrë me contou um pouco do que aconteceu com vocês e
sobre seu encontro com o meu general, Leto Demétrius. Confesso que
fiquei surpreso, talvez você seja a primeira Estrela da Noite a escapar do
ceifador de estrelas.
Yanaamahka sentiu um arrepio com o nome do draconiano.
— Vocês são parecidos. — e ela se moveu sutilmente pelo caminho de
volta.
— Parecidos? — Hanzor a seguiu depressa. Ele franzira o cenho e
abrira os braços em eminente frustração. — Sério? Eu sou muito mais
atraente e tenho um mínimo de respeito por uma donzela.
A Estrela da Noite o ignorou, caso contrário, teria discordado das
palavras do draconiano e dito que, diferente dele, o ceifador dizia a verdade.
Ambos retornaram à companhia de Tiggrë em poucos minutos e o menino
exagerou ao demonstrar sua preocupação. Ele a segurou pelas mãos,
questionou sobre as condições da asa ou sobre qualquer dor recente, mas
desistiu de perguntar graças as respostas monossilábicas e desinteressadas.
Yanaamahka estava sem paciência e cansada.
Ela havia sentido o cheiro de Klud na montanha, a hortelã, por isso
avançara freneticamente em busca dele para questioná-lo: por que monstro?
Yanaamahka praguejou e se sentiu irritada com as luzes que bagunçavam
suas recordações obscuras de uma hora para a outra. Eram confusas, eram
sem sentido e totalmente desnecessárias. Não queria ver o que dizia a
respeito dos outros, mas sim, dela e do que era, do que fora, antes de
esquecer tudo.
O que fizera a Yanaamahka do passado?
— Podemos partir no amanhecer. — Hanzor anunciara finalmente. Ele
estava com uma mão sobre o cabo da espada e os olhos no horizonte. — Os
caçadores estão avançando para oeste, é nossa oportunidade de seguir nas
sombras deles.
— Vamos seguir para o oeste então? — Tiggrë questionou com um
mapa surrado em mãos. O horizonte se iluminava aos poucos, raios solares
se esgueiravam pelas rochas e iluminavam os três. — As cidades portuárias
ficam à mais de três semanas de distância. Há uma à oeste, nas margens do
Grande Deserto, e uma ao sul, além do Vale do Lobo Gigante.
— Você tem certeza que tem doze anos, menino? Como aprendeu a
ler? — Hanzor perguntou com as sobrancelhas arqueadas.
— Meu pai me ensinou, ele era um homem muito sábio. — Tiggrë
respondeu com as bochechas coradas. Um brilho de orgulho cintilava nos
olhos dele. — Eu aprendi o idioma comum dos draconianos também, o
Dovaris, mas minha língua materna é o Q’atar. Eu quero aprender
Drago’skar futuramente.
— Seu pai deveria ser um homem importante.
— Eu nunca soube quem ele era realmente.
Yanaamahka ouvia a conversa com os braços cruzados.
— Talvez eu encontre ele um dia e descubra. — e o menino terminou
com um sorriso de esperança. A Estrela da Noite sentiu uma semelhança
entre ela e o garoto. Ambos buscavam o que não conheciam, o que haviam
perdido, sem temer os obstáculos que os aguardavam. A luz nas palavras de
Tiggrë a fez se sentir leve e em paz.
Hanzor retribuiu o sorriso.
— As cidades à oeste são mais próximas e menos hostis. — Hanzor
respondeu sem precisar pensar muito. — As cidades do sul são geladas e
elas possuem somente embarcações para Nothumbria.
— Mas ainda existe embarcações para Degail? Desde que... — o
humano engoliu as palavras amargura. — Desde que a praga de alastrou os
continentes vizinhos evitaram viajar para lá.
— Praga? — Yanaamahka decidiu perguntar.
— Eternaria. — Tiggrë murmurou com os olhos baixos e a Estrela da
Noite sentiu um arrepio como se houvesse ouvido o nome antes. Tratava-se
de uma doença pandêmica que surgiu repentinamente há vários anos no
continente e exterminou mais da metade da população. Era o Continente
dos Mortos, como chamavam Degail, porque não havia mais vida, não
havia mais luz. — Existe uma parte intacta! — o menino exclamou ao
limpar uma tímida lágrima do olho esquerdo. — Era onde eu vivia com
meu povo... nas proximidades do Desfiladeiro dos Dragões Gigantes. É
para lá que devemos ir, na’na.
Yanaamahka acreditou nele, acreditou na esperança que os olhos dele
transmitiam, porque embora houvesse caos e destruição, também havia paz
e tranquilidade.
— Realmente não existe embarcações para Degail, mas isso não quer
dizer que eu não possa conseguir uma. — Hanzor afirmou alegremente. —
Sou um Cavaleiro Negro de Aumastris, não há um capitão que rejeite me
levar para Degail ou para qualquer outro lugar em Agëa.
Tiggrë se encolheu ao abraçar o mapa.
— Por que quer nos ajudar tanto?
— Eu fiz uma promessa. — e o draconiano desviou os olhos rubros
para a Estrela da Noite ao sorrir com gentileza.
Ela não retribuiu o sorriso a ele.
— Mas então, pequeno sábio, sabe me dizer a cidade mais próxima no
seu mapa?
— Sonar, dependendo do ritmo, podemos chegar em três dias.
— Não iremos para Sonar. — o draconiano respondeu. — Arrius será
nosso primeiro destino. É uma cidade menor e menos movimentada. Os
caçadores provavelmente irão para Sonar, então devemos evitá-la.
— Pra que ir numa cidade? — Yanaamahka decidiu participar da
conversa. Ela não via necessidade de parar um lugar repleto de humanos se
o verdadeiro destino estava à milhares de quilômetros de distância.
— Você quer caminhar até as cidades portuárias sem nenhum recurso,
Yanaa? — ele sorriu abertamente.
— O que é recurso? — ela questionou confusa e ambos riram.
— Comida, na’na! — Tiggrë respondeu sorrindo.
— Comida e montaria. — Hanzor completou ao bagunçar os cabelos
preguiçosamente com os dedos. — Não espera que iremos caminhar o
tempo todo, espera? Posso ser um draconiano treinado, mas não me arrisco
a seguir viagem somente com minhas pernas.
— Um cavalo deve custar muito dinheiro, sir. — o menino disse.
— Essa é minha última preocupação, pequeno. — o draconiano piscou
e estalou os músculos do pescoço.
O sol ascendeu no horizonte e trouxe a luz de um novo dia.
— Estão prontos? — e o guerreiro perguntou.
Tiggrë agarrou uma mão da Estrela da Noite e sorriu para ela. Eles
estavam prontos, sempre estiveram, e Yanaamahka sentiu vontade de sorrir
também — embora houvesse escondido seu sentimento numa máscara de
indiferença — porque um passo em direção ao Desfiladeiro dos Dragões
Gigantes havia sido dado.
— Tiggrë... — e antes de partir a mulher-dragão o chamou. O menino
lhe observou com os olhos brilhando, inundado por sentimento de paz. Não
era todo o dia que ele a ouvia chamá-lo pelo nome. — Eu gosto de na’na.
— dissera como o vento, sussurrando suave.
O rosto do humano se acendeu.
— É como eu vejo você, na’na.
— Nana. — Yanaamahka repetiu sem a sutil pausa que era comum no
termo de Q’atar. Ela gostava de como soava, como os lábios do menino
proferiam com ternura. Era o nome que ele dera a ela e que a fizera ficar
mais próxima da luz. A Estrela da Noite aceitou o nome como parte de seu
ser e seguiu caminho ao lado da luz, de Tiggrë, das chamas que se acendiam
pela primeira vez em seu peito.
A jornada seria longa.
PARTE II
ESTRELA CAÍDA
CAPÍTULO VINTE E OITO

CORAÇÃO DE ESTRELAS

NÃO DEIXE QUE VEJAM SEUS OLHOS.


Yanaamahka Draconis, ou Nana como ela passou a gastar de ser
chamado, mas por Tiggrë, não deu importância para as palavras do
draconiano; não quando a Cidade das Luzes, como Arrius era conhecida,
estava vibrando diante de seus olhos. Era como se sol houvesse se
despedaçado sobre a cidade e criado pequenos fragmentos que afastavam a
escuridão da noite sem estrelas. Tiggrë contara que as chamas sobre os
pilares que se espalhavam pelas ruas era uma oferenda ao deus maior,
Sunyar, mas também aos deuses menores que a cultura de Tannenberia
acreditava. O fogo era uma espécie de proteção contra o deus sombrio,
Castor, filho da noite e da lua, uma entidade adorada pelos draconianos
independentes de Aumastris. A Estrela da Noite, ignorando a história,
decidiu acreditar que a luz era somente a luz — um pedaço de sol.
As casas em Arrius eram amontoadas umas às outras sem uma
organização específica: os pobres moravam ao lado dos ricos, os ricos ao
lado dos pobres enquanto tavernas e hospedarias se esgueiravam pela Praça
das Luzes. A localização recebera tal nome depois que o senhor-regente,
Otavius Lachance, um familiar distante do rei, construíra uma enorme
fogueira no centro da praça central, onde os pilares de luz, que se iniciavam
nas extremidades da cidade e traçavam formas espirais pelas ruas,
terminavam. Era um lugar extremamente belo durante a noite e os morados
diziam que estar perto do Grande Fogo era como sentir o abraço e o calor
de Sunyar.
— Vocês dois: eu quero se mantenham os mais discretos possíveis
enquanto tento conseguir dois ou três cavalos antes de seguirmos viagem.
— Hanzor anunciou em um momento, a espada bem presa na bainha, os
olhos atentos no horizonte. Yanaamahka percebeu que o draconiano tinha
essa mania: perder atenção no que estava distante como se temesse que algo
ou alguém surgisse nos céus. — Tiggrë, pode nos conseguir comida? O
resto deixa comigo.
O menino iria protestar em relação ao pedido. Era difícil conseguir
comida sem sequer uma mísera moeda de bronze, mas Hanzor o calou ao
lhe entregar um pequeno punhado de moedas de ouro. Não era bronze ou
prata, mas ouro. Talvez nem o comerciante mais rico de Arrius possuísse
mais que cinco daquelas.
— Como iremos te encontrar depois? — Tiggrë decidiu perguntar. Ele
precisou segurar a túnica da Estrela da Noite para não deixá-la seguir em
direção à cidade, as pessoas, ao movimento, sozinha.
— A Praça das Luzes. — o draconiano sorriu ao bagunçar os cabelos.
— Duas horas é o suficiente para ti, pequeno?
Tiggrë também sorriu. Era mais que o suficiente para desbravar o
comércio e conhecer histórias novas. O menino partiu agarrado a mulher-
dragão enquanto o draconiano os acompanhava com os olhos. Yanaa não
gostava do modo que Hanzor a observava... Era como se houvesse algo não
dito, não feito. Decidiu, então, que era melhor esquecê-lo, pelo menos
durante sua caminhada nas ruas da cidade iluminada. Na medida em que o
humano a arrastava cauteloso pelas ruelas e calçadas, a Estrela da Noite deu
atenção a todos os detalhes ao seu redor.
Era a primeira vez que andava livremente por uma cidade humana.
Pessoas se movimentavam animadas no centro de Arrius e o motivo
fora revelado por uma senhora de cabelos grisalhos que conversava com o
neto: era a semana do Festival das Luzes que antecedia as Festas de Sunyar,
o marco do fim do ano. Todos festejavam e se reuniam para dançar e cantar
nas praças da cidade enquanto as luzes dos pilares eram prestigiadas. Um
banquete enorme havia sido servido na praça central para reunir
camponeses, comerciantes e os senhores na última noite de festa. O próprio
senhor-regente da cidade estava presente na comemoração. Tiggrë
aproveitou o aglomerado de vendedores para buscar a comida que os três
precisariam para seguir viagem — e Yanaamahka exigiu mingau de aveia.
Ela acompanhava o pequeno com os olhos baixos, com o cabelo no
rosto e com o capuz de sua capa, então, toda a atenção dos curiosos era
direcionada para as madeixas vermelho alaranjadas do menino. Ele havia
sido abordado duas ou três vezes por humanos que insistiam de perguntar se
ele era um estrangeiro. Sou de Tannenberia, o menino dizia, porque sabia
que se dissesse seu continente natal, Degail, onde a maldição de Eternaria
reinava, um ligeiro preconceito surgiria.
Tiggrë encontrara um comerciante gentil que lhe ofereceu ervas e
tônicos para ossos quebrados e ambos iniciaram uma conversa que durou
minutos, minutos e minutos. Yanaa sentia sua paciência esgotar, estava sem
humor e com fome, mas bufar e fazer cara feia não foi o suficiente para que
o menino entendesse a pressa dela. O cheiro de comida, carne fresca, fez a
fome da mulher-dragão se tornar mais intensa. Ela moveu os olhos na
multidão, sentiu o cheiro da noite e viu, a menos de cinco metros, um
homem carneando um cervo. Carne fresca. Crua. Os instintos a fizeram
estremecer e dar um passo para a perdição.
O menino estava tão concentrado na conversa que sequer percebeu a
Estrela da Noite se afastar, movida pela fome. Ela era um dragão, não era
como Tiggrë ou Hanzor que ficavam satisfeitos com duas refeições por dia,
mas, sim, mais; o suficiente para fazer seu estômago parar de roncar.
Yanaamahka caminhou devagar, os olhos atentos no homem com a faca, na
carne que ele cortava. O comerciante chamava as pessoas para ver sua
mercadoria. Então, cortou um pedaço, deixou a lâmina de lado e deu as
costas para oferecer à dois homens interessados.
Yanaamahka agarrou o pedaço maior sobre a mesa ensanguentada e
mordeu vorazmente. A carne crua estava macia e se desmanchou entre seus
dentes, sangue lhe escorrendo pelos lábios. Ela engoliu tudo sem que o
homem percebesse, seus dedos agarraram um segundo naco do cervo e,
então, colocou inteiro na boca ao dar as costas para a mesa. A Estrela da
Noite não considerou um roubo, ela não tinha noção do que a palavra
significava, mas se sentiu satisfeita quando a comida suculenta desceu por
sua garganta e forrou seu estômago.
Pessoas ao redor lhe direcionaram um olhar de repugnância. O rosto, as
mãos, até mesmo alguns fios de cabelo, estavam vermelhos de sangue. Não
que ela se importasse com a aparência ou com o cheiro que transmitia.
Yanaamahka não encontrou Tiggrë em seu caminho de volta, talvez
porque não lembrasse se ele estava à direita ou à esquerda das inúmeras
barracas do comércio. Ela, no entanto, não se preocupou e seguiu o fluxo de
pessoas e luzes que se entrelaçavam rumo ao centro da cidade. Durante o
caminho, próxima a uma estalagem, a Estrela da Noite encontrou Hanzor
conversando com um senhor de meia idade. Um grupo de camponesas se
aglomerava entre as tendas e cochichavam risonhas ao observar o
draconiano. Não somente elas, homens e mulheres que estavam de
passagem, olhavam admirados para o cavaleiro.
— Ele é um Vanadis! — dizia um homem entre sussurros para os
companheiros.
— Os draconianos são tão elegantes! Dizem que os Vanadis são os
mais influentes de todo o continente de Aumastris! — uma mulher
suspirava para as moças que a acompanhavam com os rostos corados.
Yanaa fez cara de nojo para todos.
Humanos eram criaturas estranhas, ela pensava ao seguir em frente e
ignorar o draconiano. A noite avançou e as pessoas foram se reunindo na
Praça das Luzes, mas a estrela decidiu que não deveria ir para lá, não
quando estivesse lotada. Ela se esgueirou pelas ruas, as casas e acompanhou
a música de bardos que tocavam nas redondezas. O comércio, lentamente,
adormeceu enquanto homens guardavam a mercadoria e as comidas que
não haviam sido vendidas. Tiggrë não se mostrou presente em nenhum
canto, o que fez a suspeitar que ele estivesse em meio à multidão da praça
central, procurando por ela.
Ela caminhou, então, desatenta ao seu redor, divagando com os olhos
nas estrelas e na lua. Não eram elas que iluminavam a cidade, a luz não era
forte o suficiente para afugentar a escuridão, mas era Arrius, os pequenos
sóis nos pilares, que iluminavam o céu noturno.
Talvez ninguém sentira falta da luz das estrelas caso desaparecessem.
— Está perdida? — e Yanaamahka sentiu uma pontada nas costas.
Uma adaga estava contra ela, ameaçando rasgar a pele, enquanto um
homem lhe agarrava pelos cabelos. — É muito corajoso de uma mulher
passear sozinha à noite, não acha? Está pedindo para ser pega.
Uma ameaça e um comentário estúpido.
Ela sentiu o cheiro do humano, podre e perverso como o de
draconianos.
Uma raiva crescente a arrepiou.
— Bem quieta, sua vagabunda. — ele sussurrou no ouvido dela e a
forçou a dar um passo à frente com a pressão da adaga. A outra mão dele a
segurava firmemente pelos cabelos, o que a irritou mais. Porque não era a
primeira vez que suas madeixas longas eram o motivo de ser pega. O
ceifador fizera o mesmo antes, rira dela, mas Yanaamahka não permitiria
que acontecesse de novo.
Porque não tinha medo.
Não de um humano; e também não teria medo de um draconiano.
— Uma adaga não ser... é... o bastante. — a Estrela da Noite
murmurou. Não havia ninguém por perto, todos estavam reunidos na Praça
das Luzes; poderia se tornar um dragão, despedaçar o homem que ninguém
veria.
— Cala boca, vadia! — e ela sentiu a ponta da arma penetrar
levemente em suas costas. Um pequeno filete de sangue emergiu do corte.
— Vou te matar se...
Era tarde demais. A fera de escamas negras surgiu na noite como um
pesadelo surge no sono, repentinamente. O homem ficara sem reação nos
primeiros segundos da transformação, mas nos momentos seguintes, ao
abrir a boca para gritar, as mandíbulas do dragão acertaram sua cabeça.
Bastara um mísero de força, um movimento sutil, um estalo do crânio sendo
quebrado, para que ele morresse com o desespero sufocado na garganta. O
gosto do sangue humano lhe encheu a boca, mas Yanaamahka apenas o
soltou quando sentiu a cabeça explodir.
Ela largou o corpo humano no chão em uma poça de sangue,
decapitado. A imagem não a assustou, pelo contrário. Yanaamahka deu um
passo para trás, observou ao redor e retornou a imagem humana sem
nenhum arrependimento. Sangue impregnava a atmosfera, mas,
estranhamente, havia cheiro de fogo também. Sangue e fogo. Um odor que
a fazia se recordar de alguém... mas quem? Ela decidiu esquecer e se afastar
depressa, sequer se preocupou em esconder o corpo, precisava encontrar
Tiggrë e ter certeza que o menino estava bem.
Na escuridão alguém a observava com um sorriso.
Mas não a seguiu: brincou com a lança entre os dedos e desapareceu
nas sombras.
Tiggrë, felizmente, a encontrou dez ou quinze minutos mais tarde com
lágrimas abundantes em seus olhos. Ele se dizia preocupado, quase
desesperado, de tanto procurar o rastro dela pela cidade. Disse ter
imaginado o pior e chorou ao vê-la segura. Yanaamahka decidiu não contar
sobre o homem ou revelar o motivo do sangue seco em suas mãos. Tiggrë
não pareceu notar também. Ambos se dirigiram à Praça das Luzes e
esperaram afastados pelo retorno do draconiano.
Hanzor os encontrou mais tarde. Ele tinha marcas vermelhas no
pescoço e estava com o cabelo bagunçado, mas não entrou em detalhes
sobre onde estivera. O mais importante era que o draconiano havia
comprado dois cavalos e conseguido um lugar para que passassem a noite.
Era seguro, dissera, uma taverna pequena e pouco movimentada que
pertencia ao homem que fizera negócio.
Era um quarto pequeno com apenas uma cama de casal, mas que o
cavaleiro rapidamente disse estar reservada para o menino e a mulher-
dragão. Uma cadeira de madeira com um pé quebrado também fazia parte
da decoração do ambiente, além de banco que servia de apoio para um
lampião e uma vasilha de madeira com pão duro. Era melhor que nada, mas
Yanaamahka não se sentia confortável em passar a noite em um ambiente
de quatro paredes.
— Tiggrë. — ela sussurrou para o menino que se ocupava em
organizar os alimentos que comprara no comércio. Hanzor o ajudava.
Ambos, então, moveram os olhos para a estrela enquanto ela terminava de
falar. — Preciso cortar meu cabelo.
— Cortar o seu cabelo? — o menino perguntou surpreso. — Por quê?
O seu cabelo, na’na, é lindo!
— Mas eu não quero.
— Você tem certeza, na’na?
— Cabelo cresce. — Hanzor decidiu se manifestar sorrindo.
Yanaamahka o ignorou e se concentrou em Tiggrë, o rosto dele havia
sido banhado por uma expressão melancólica.
— Posso, pelo menos, ficar com um pouco do seu cabelo?
— Faça o que quiser. — ela respondeu.
Que os doze divinos lhe guiem, Tiggrë murmurou e depois repetiu as
mesmas palavras durante todo o processo de corte. Era um ritual comum
entre os Animanos — os sábios cortavam o cabelo dos mais jovens e
rezavam para os animais sagrados durante o ritual de passagem para a fase
adulta. Então, durante os sussurros do menino, as madeixas da Estrela da
Noite foram caindo. Uma cascata negra encontrou o chão. Yanaamahka
estremeceu de repente: uma parte dela estava partindo, uma imagem dela
estava sendo destruída, porque o mundo, o maldito mundo, queria derrotá-
la.
Mas ela não seria mais a caça.
Ela seria a caçadora.

O cavaleiro observava as estrelas em silêncio.


A cidade de Arrius dormia; as luzes, porém, permaneciam. Ele deixara
a hospedaria para pegar um ar e pensar e refletir. Dizia um sábio que as
estrelas eram guardiãs do mundo, do dia, contra a escuridão da noite. Ele
acreditava que Agëa, o planeta, não poderia sobreviver sem o brilho delas.
Mas a roda do tempo continuava a girar com a extinção das Estrelas da
Noite. Era um fato, nenhum nascimento poderia impedir o fim: elas iriam
desaparecer.
Hanzor rön Vanadis aprendera em Acatemia, berço dos guerreiros
draconianos, que os primeiros dragões se reproduziam somente durante a
Lua de Sangue: um evento que ocorria no solstício de inverno a cada cinco
anos. As Estrelas da Noite não eram férteis em outras épocas e nenhum ovo
nascia fora desse período. Era por esse motivo a espécie tinha dificuldade
em crescer — também devido à frequência dos filhotes natimortos. Raro,
porém, era o nascimento das fêmeas: vinte anos havia se passaram e
nenhuma nova estrela surgiu no céu.
Yanaamahka havia sido a última a nascer depois de Rhaelynaar.
Ele descobrira sobre as fraquezas dos primeiros dragões e como agir
caso precisasse enfrentar um. Nunca os enfrente sozinho, dizia Khan. As
escamas das feras eram resistentes como obsidianas, eram maiores que
dragões normais e as chamas, que os draconianos chamavam de Fogo de
Sangue, causavam destruição em tudo que tocavam. Sahel, o sábio que lhe
ensinara sobre a história do mundo, dizia que se os primeiros dragões
fossem mais populosos, eles seriam capazes de queimar Agëa inteira com
uma baforada. Eles são os avatares do deus-dragão, ele dissera antes de ser
sentenciado a morte por blasfêmias contra o império. Sahel desapareceu no
mundo do mesmo modo que o Dragão dos Dragões: sem deixar rastros.
Hanzor suspirou de repente. Ele estava com a Estrela da Noite em suas
mãos; e ela, sem saber, seria a chave dele para completar a vingança contra
o dragão que roubara a vida de Hiborym rön Vanadis. O draconiano não era
a favor da caçada às estrelas, nunca seria, desde a infância admirou a
história delas, mas Yanaamahka era diferente. Ela tinha o sangue de um
assassino, era a filha de um assassino — e fora por causa dela que o Dragão
dos Dragões atacou a capital de Aumastris no passado.
Yanaamahka Draconis era a culpada.
Yanaamahka Draconis deveria sofrer o que ele sofrera ao ver o pai em
pedaços.
Hanzor cerrou os punhos e observou as estrelas no céu mais vez antes
de partir.
— Falta pouco. — ele sussurrou.
Só mais um pouco e a vida dela desapareceria para sempre.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

O G R A N D E D E S E RT O

TANNENBERIA, O CONTINENTE DO SOL.


Era a primeira vez que Luna visitava as terras quentes do território, a
primeira vez que tinha o privilégio de ver o que antes somente podia ler.
Seus olhos viram as margens do Grande Deserto, construídas por falésias
brancas das areias que se solidificaram com os anos. Dunas se estendiam no
horizonte, onde o sol, principal entidade do continente, queimava como
fogo. Eram terras vermelhas, sussurrava Eun-seo ao lado dela no convés,
enquanto os demais se mantinham silenciosos durante a chegada. O porto
de Solnascente se estendia através das dunas e das antigas deformações de
rochas que se fragmentaram ao longo dos anos — o que os sábios diziam
ser obra da grande batalha entre o deus-dragão e o deus-do-sol durante a
criação do mundo.
Lunaysis esteve ao lado do comandante, seu marido, o tempo todo; e
não ousou desviar sequer o olhar para ele. As imagens da noite que o
desafiara estavam intactas na cabeça dela, na pele também. O modo que ele
a batera, friamente, sem pensar na criança que crescia no ventre da mulher...
Ahuriel vön Krimnell jamais poderia amá-la, tampouco ser um guardião
como a general Rhenna mencionara, ele era um homem que se preocupava,
e sempre se preocuparia, com os próprios interesses. Era doloroso para a
jovem pensar de tal forma, principalmente porque estaria ao lado dele até o
dia de sua morte — o que poderia ser em breve se dependesse da essência.
O Lua Dourada chegou ao cais no calor do meio-dia.
Um grupo de humanos de pele dourada ajudou no descarregamento do
navio, eles eram fortes e tinham músculos queimados pelo sol. Berravam
em um idioma diferente, humanis, um pouco mais áspero que o dovaris dos
draconianos. Luna não conhecia muito o idioma estrangeiro, ela não pode
frequentar as aulas em Acatemia por causa de seu irmão e pai, mas
aprendera o draconemia — a linguagem dos nobres de Aumastris —
frequentemente usada nos livros e predominante entre os mais velhos ou
estudiosos.
Eun-seo esteve ao lado dela no convés também; e a acompanhou
durante a descida do navio no porto. O cavaleiro andou bem próximo a ela,
a mão na espada, cauteloso com todos que se moviam ao redor. Luna
entendia o motivo, então não protestou, rezando silenciosamente a deusa
Misairuzame para lhe proteger. A senhora Krimnell se sentiu tonta a cada
novo passo sobre o píer, o calor era intenso; e ela, quem nunca saíra do
centro de Aumastris, não estava habituada. A situação era pior devido seu
longo vestido e as luvas que usava para esconder a marca do Vento de
Esmeraldas. Ahuriel caminhava próximo, mas não se preocupou com o
estado de sua mulher; ele parecia atento no horizonte, na areia, na
população.
O porto de Tannenberia era sempre movimentado. O cais fora
construído em uma enorme plataforma que se estendia por quase dez
quilômetros de comprimento diante do oceano de Tel Mora. Embarcações
chegavam de todas as regiões do continente ou partiam para os demais
territórios, os tamanhos delas eram variados e os modelos sofisticados. Um
amontoado de humanos, mestiços e até draconianos de nascimento inferior
se esgueiravam pelas caixas, barris e pertences para vender suas especiarias
e as frutas típicas do Grande Deserto. Um homem magricelo viera oferecer
tâmara do deserto a Luna, um fruto visualmente apetitoso, mas Eun-seo
afastou o vendedor antes que ela pudesse experimentar.
Mas ela não deveria aceitar nem se quisesse.
Era proibido.
Luna aprendera na infância que uma mulher draconiana deveria ser
silenciosa e impassível em público — principalmente ao lado do marido ou
de algum superior. Ela não estava apenas na companhia de seu senhor, mas,
também, dele: o segundo general Belpheggör, seu pai que não via há mais
de cinco anos. A moça o observou pelo canto dos olhos, o modo elegante
que ele se movia e sorria para os quais o saudavam. O Vanadis era adorado
em Aumastris e em Tannenberia, os humanos homenageavam o nome dele,
mas Luna sabia a verdade sobre seu patriarca.
Era um homem ambicioso e igualmente perverso.
O coração dela doía ao lembrar como ele a desprezara na infância.
...de como a vendera como um mero objeto.
Os Guerreiros do Sol, principal força do reino humano, esperavam
pelos draconianos no centro da cidade portuária; e entre eles, contornado
pelas armaduras de bronze, estava o Superior, o conselheiro do reino de
Tannenberia. Luna escondeu a surpresa ao perceber que o homem não era
um humano, mas, sim, um draconiano de expressões austeras. Ele estava
montado em um alazão malhado, a armadura polida e estampada pela
insígnia do continente — o sol de dois rostos —; enquanto o cabelo
cobreado, trançado por contas de topázio, escorria nos ombros largos.
— Superior Krimnell. — o general Belpheggör o cumprimentou com
um aceno respeitoso e o citado fez o mesmo. Krimnell era o nome da
família de Ahuriel, o que fez a draconiana se perguntar se o superior era o
pai de seu marido. Era estranho: ambos os guerreiros não tinham uma
semelhança sequer.
— Estão atrasados em dois dias. — o superior dissera em um tom
impaciente no idioma comum dos draconianos.
— Tu conheces Tel Mora como ninguém, caro Krimnell, águas
pacíficas, mas imensas como o continente de Aumastris. Estávamos no Lua
Dourada, logo a viagem ocorreu mais rápida que qualquer embarcação
humana. — o Vanadis sorriu cinicamente.
— Não percamos mais tempo. — e o Krimnell murmurou sem
cordialidades, sólido e sério como nenhum outro homem presente.
Luna observou os Guerreiros do Sol abrirem caminho no mar de
curiosos perambulantes — e ninguém ousou desafiar a elite humana. Eram
homens de ébano, musculosos e de aspecto rígido, rostos que não hesitaram
diante os moribundos. Eles prepararam os cavalos e carruagens para os
draconianos serem guiados à capital de Tannenberia. Solnascente estava há
dois dias de distância do porto e a senhora Krimnell se arrepiou ao pensar
que enfrentaria mais uma longa viagem sem ter a chance de se banhar
devidamente.
Eun-seo guiara a moça para a carruagem: era pequena e arejada,
igualmente confortável às de Aumastris, só que sem o excesso de luxo dos
draconianos. Luna acreditara piamente que sua viagem seria solitária em
direção à capital, mas se enganara. Ahuriel entrara no veículo e se sentara
diante dela; a expressão dele carregada pelas olheiras negras. Há quantos
dias o comandante dos Cavaleiros Negros não dormia? A moça suspirou e
desviou o olhar para a pequena abertura que servia como janela.
Um mar de areia a cercava por todos os lados.
Ela percebeu pelo canto dos olhos o modo que o marido lhe encarava:
ele não piscava ou se movia como uma estátua de olhos gelados. Vez ou
outra, as pálpebras do comandante se fechavam por segundos, mas se
abriam em seguida, a visão atenta e vermelha, o cansaço crônico o
castigava. Ele esperava que a moça lesse talvez, que o livrasse da insônia,
mas a draconiana se recusou a sussurrar qualquer poema que escrevera. Não
depois de ter sido esbofeteada pelo marido, não quando a violência afetava
também a criança que crescia no ventre dela. Luna era o vento, o livre
vento; e não leria novamente se não tivesse um bom motivo.
Um sutil raio de sol fez a moça despertar na manhã seguinte. Luna
havia dormido por um descuido e encontrara a carruagem vazia. Seu marido
provavelmente cansara de esperar e decidira seguir o resto da viagem
cavalgando, o sol forte do Grande Deserto castigando todos. As
consequências da temperatura estavam visíveis no rosto da moça, uma linha
de suor escorria pelo seu rosto e tonturas recentes a acometiam. Um banho
relaxante e uma refeição substanciosa era tudo o que desejava — e Eun-seo
realizou o segundo desejo dela no final do dia. O sol estava se pondo e a
noite uivando no horizonte dourado quando tambores distantes ressonaram:
Solnascente estava diante da frota.
A cidade era como uma miragem — grande e imponente — era como o
sol que iluminava o mundo, que emanava calor e conforto nas noites frias,
que arrepiava a pele dos quais buscavam refúgio, perdidos o infinito mar de
areia. A capital do Reino de Tannenberia não era apenas um aglomerado de
edificações jogadas no meio do Grande Deserto. Era mais: escritos
contavam a história da cidade e sua perfeita sincronia de com o clima
quente da região, um mundo escasso de verde, mas cheio de vida e sorrisos
dos habitantes. Humanos, diziam os sábios draconianos, eram seres com a
essência quente do sol em seu interior, como eles chamavam o coração; e
talvez tal característica fosse a responsável por uma capital de encher os
olhos.
Solnascente era o sol que carregava no nome.
Toda a estrutura da cidade fora construída para imitar o símbolo do
astro rei: um gigantesco círculo de muros ocre foi elevado no centro de um
oásis. Mas a água da cidade vinha de um rio doce que cortava e irrigava a
cidade, desaguando, por quase cem quilômetros de distância, no vasto
oceano de Tel Mora. Distritos menores cresciam diagonalmente além da
primeira construção como um sol de pedra e areia. Os portões da cidade
eram dispostos entre longas colunas de quase quinze metros de altura,
acompanhadas por uma linha de cactos e vegetações típicas da região
desértica. A entrada era também protegida pela imagem colossal do deus
maior do continente e sua lendária espada — eles a chamavam de Mil Sóis
—, usada para derrotar o deus-dragão na Era da Escuridão de Agëa. Era
uma lenda, não havia provas que a arma realmente existira, mas a herdeira
de Misairuzame não negaria sua tênue admiração pela história dos
humanos. Tampouco sua surpresa. Era a primeira vez dela na capital
humana. Tambores ecoavam sobre os muros, homens berravam ordens no
idioma comum e corriam para preparar a entrada dos draconianos.
Luna não estava satisfeita com a espera — nem com o clima. Desde
que deixara o Lua Dourada, os sintomas da gravidez duplicaram e qualquer
cheio a fazia estremecer com as náuseas. Eun-seo insistira em alimentá-la,
mas a draconiana recusou, caso contrário, vomitaria a carruagem inteira.
Ela se ajeitou no interior e viu, então, os portões serem abertos, fazendo-a
esquecer de todo e qualquer mal-estar.
A rua principal era um longo caminho de paralelepípedos tão perfeitos
que sequer uma planta poderia crescer entre eles. Mas estava vazia — não
porque era comum em uma cidade tão grande, mas porque um decreto real
aconselhara todos a permanecerem afastados durante a chegada dos
draconianos. Em cada canto, em cada edificação, em cada detalhe, a
imagem do sol de duas faces estava estampada. Dourado. Bronze. Marrom.
Ocre. As cores variavam, mas nunca deixavam de se aproximar uma da
outra e representar o astro que regia toda a região do Grande Deserto. O que
chamou a atenção da moça, a princípio, foram as estruturas de madeira
paradas ao longo do percurso deles. Catapultas. Eun-seo comentara sobre
elas. Uma das invenções da engenharia humana que os draconianos
comprariam em breve.
Uma arma eficiente contra dragões.
Luna estremeceu e observou o horizonte; e, então, entre tantos
detalhes, encontrou a imagem do castelo.
Sopoente era o nome da construção. Era impossível vê-lo com
perfeição, mas a luz do sol que a construção emitia era tão bela, tão intensa,
que Luna precisou desviar o olhar para não ser hipnotizado. Diziam que a
cúpula do castelo era construída com a essência do sol, uma energia capaz
de tragar qualquer vida que ousasse desafiá-la por mais de um minuto com
o olhar.
A carruagem parou de repente e Luna percebeu que todo o resto da
frota de draconianos continuava se movendo em direção à casa real, onde
seriam hospedados, menos ela. Um aviso chegara de Eun-seo então: eles
iriam para a residência dos Krimnell em um distrito próximo.
A garganta dela se apertou.
Luna decidiu esconder suas perguntas. Eun-seo dissera que a residência
dos Krimnell era a mais linda de toda a cidade, mas ela não acreditou a
princípio e lamentou seu pensamento ao ver a exuberante construção surgir
diante da carruagem. A casa ocupava um distrito inteiro e tinha uma vista
privilegiada do castelo de Sopoente. Era uma larga área com oásis artificiais
e jardins silvestres — não coloridos como os de Aumastris, mas igualmente
belos. As brisas quentes do Grande Deserto sopravam pelas árvores
desérticas que cresciam paralelas no caminho à casa, junto dos tanques de
água que traziam uma sensação de frescor ao ambiente.
A casa estava fortemente protegida também.
Eun-seo a ajudara a descer da carruagem quando, enfim, paparam em
frente à residência. Ela se sentiu tonta com os fortes raios de sol, mas tentou
esconder sua fraqueza ao perceber o olhar avaliativo do Superior Krimnell.
As expressões dele a assustavam como se carregassem a mensagem de
desprezo.
Ela respirou fundo, então entrando na casa.
O corpo de Luna estremeceu com a água morna do banho.
Era tudo o que precisava desde que pisara na embarcação rumo ao
continente. Uma criada limpava suas costas; outra, os longos cabelos e uma
terceira enchia a grande banheira com óleos perfumados. A draconiana
relaxou, permitiu que seus pensamentos ficassem livres como o vento, mas
teve todo o cuidado de esconder a marca de Misairuzame em sua pele. As
humanas provavelmente não tinham conhecimento sobre as Mulheres
Amaldiçoadas, mas Luna decidiu não correr nenhum risco. Distante ou não
de Aumastris, ela permanecia rodeada de draconianos dispostos a assassiná-
la se soubessem a verdade.
Ahuriel estava no quarto também.
Luna conseguia ouvir o comandante folhar um livro qualquer, suspirar
impaciente e esperar o sono que tardava em vir — ou nunca vinha. Ele
pedira um momento de descanso ao Superior Kaelus depois da longa
viagem à capital, e ambos marcaram uma reunião para o início da noite. A
curiosidade de Luna estava no auge, a moça queria conhecer a mãe de seu
marido: Aniel, quem, de acordo com os empregados, era uma draconiana
quieta demais. Luna tentou imaginar a personalidade dela com o rumor e a
idealizou como alguém de palavras sofisticadas como o filho, os mesmos
olhos intensos.
As criadas a secaram e envolveram com um tecido transparente.
A moça caminhou em direção ao quarto com o corpo encolhido nas
vestes, o coração acelerado pela presença do marido. Ele a deixava trêmula,
quase sem chão; principalmente com a atenção que deixava cair no
semblante dela. Sentado na ponta da cama, com um livro sobre as pernas,
os cabelos livres pelos ombros, Ahuriel suspirava irritado. Luna o observou
pelo canto dos olhos, o draconiano de fios prateados e olhos azuis, dissera
Eun-seo antes do casamento ao ressaltar que a raridade na aparência do
comandante era acidental. Acreditavam os sábios ser uma doença causada
durante a gravidez, mas o homem era sempre tão saudável que a moça
duvidava de qualquer fraqueza.
As criadas humanas se aproximaram para vesti-la; e sem dizer nada,
elas se puseram a tirar o robe, a deixando nua. Luna não protestou, mas
suportou a atenção do marido em seu corpo como se estudasse em silêncio.
A atitude a fez acreditar que as palavras da general Rhenna estivessem, de
fato, corretas: o comandante admirava somente o que não era capaz de
controlar. Ele se esforçava, talvez, para entender a mudança repentina na
moça: primeiro quieta; depois, submissa e, então, distante.
— Saiam. — o comandante rosnou para as criadas antes que pudessem
vestir a draconiana. Luna juntou depressa os tecidos do chão para cobrir seu
corpo, as mechas douradas escorrendo úmidas em suas costas. — Por que tu
estás me desafiando?
Ela estremeceu.
— Eu não estou, meu senhor.
— Por que continua a se opor às minhas regras?
— Eu não me...
— Eu não tolerarei qualquer deslize teu, então, leia. — mas ele a
cortou com rigidez.
Mas Lunaysis não leria: não começaria o mesmo ciclo vicioso.
O medo, porém, quase fez sucumbir.
A moça fraquejou e lágrimas surgiram em seus olhos: Tu és o vento,
somos o vento, minha herdeira. Eu proteger-te-ei, não temas.
— Estou indisposta, meu senhor. — e as palavras saltaram de seus
lábios. Ela sentia a presença da entidade, o poder dela, a coragem que os
ventos da esperança lhe sussurravam. Ahuriel ficara em silêncio como se
refletisse o que ouvia.
As olheiras o faziam parecer quase insano.
O draconiano colocou uma mão em frente ao rosto
— Leia. — ele repetiu em um tom cheio de fúria contida e fatiga
eminente.
As mãos de Luna suaram.
Lunaysis, a deusa a envolveu em um abraço de calor, minha doce luz,
não temas, nunca. Tu és a esperança e se este sentimento sucumbir, o que
vos restareis? Acredite, minha herdeira. Tu és esperança e vento.
— Eu não temo. — ela sussurrou, não para o marido, mas para a
entidade que murmurava ao seu lado. Luna deu um passo cheio de tontura,
a presença da entidade sugava suas energias. Então, num piscar, a lâmina da
montante de Ahuriel cruzou o caminho. Ele empunhava a espada na direção
dela — tocava a barriga dela.
Um passo e Ahuriel a atingiria, um passo e ele arrancaria a criança
prematura.
— Eu não vou repetir. — ele a ameaçou.
Luna sentiu que iria chorar.
— Por... — e ela interrompeu o por favor. Misairuzame a proibira de
dizer e a instigou a resistir e ter coragem. — Não. — Luna disse enfim.
A lâmina soprou vento sobre a draconiana grávida.
O draconiano manuseara sua montante com tamanha fúria e cólera que
a fez atingir um móvel ao lado de sua mulher, o aço se prendendo na
madeira.
Um segundo bastara para que a draconiana voltasse a respirar.
Um segundo para que não visse mais nada.
C A P Í T U L O T R I N TA

SOB O CÉU SEM ESTRELAS

LUCINDA JAMAIS SENTIRA A ESCURIDÃO eterna tão próxima.


A frieza das sombras arrepiou sua pele, fizeram-na se encolher naquele
vazio sem fim; um vazio que trazia a sensação de todos os sentimentos
negativos conhecidos pelos homens — e os desconhecidos também. O
medo de não acordar, desaparecer, caminhou sobre a alma dela; a esperança
também, uma luz tênue que traçou linhas em conjunto com a angústia,
formando uma dualidade de emoções. A ceifadora negra tentava alcançá-la,
levá-la para sempre, mas a luz lhe prendia a vida como se houvesse alguém
do outro lado lhe segurando a mãos, um toque quente e acolhedor.
A menina sorriu para a escuridão diante dela e acreditou que acordaria.
Não era sua hora de morrer.
...e a primeira coisa que vira ao abrir os olhos fora a expressão de sua
mãe.
Mare chorou ao vê-la acordar, Roren sorriu entre lágrimas, aliviado,
enquanto as chamas de um lampião afastavam a escuridão do quarto. Luce
se sentiu tonta, com a visão turva, enquanto levantava com dificuldade uma
mão e tocava no rosto — a lembrança do que lhe acontecera antes ainda lhe
era confusa. Ela sentiu os tecidos que enrolavam grande parte de sua
cabeça, um lado de seu rosto estava oculto e doía sutilmente.
A menina respirou devagar e sussurrou mom-mom.
— Aquele monstro! — Mare dissera com eminente frustração e fúria.
Ela parecia duas vezes mais velha com as olheiras e os olhos inchados de
tanto chorar.
— Mare, por favor... Luce está bem, passou. — Roren respondeu com
um sussurro. As mãos dele estavam ocupadas com uma pequena vasilha de
ervas e sementes amassadas. A menina conhecia o cheiro: era a seiva da
Árvore de Coração... para ferimentos.
Seu dragão havia lhe ferido.
— Mom-mom. — Luce repetiu e lágrimas rolaram em suas bochechas
coradas.
A menina, porém, era incapaz de culpá-lo.
— Ele destruiu o rosto dela! — Mare disparou e segurou a mão da
filha.
...porque não era culpa de ninguém.
As lembranças do ataque estavam perdidas, quase apagadas, mas se
lembrava, antes da escuridão, de um rugido de dor.
De mágoa. De arrependimento.
— Ele a trouxe até aqui, Mare, entenda... se não fossem as lágrimas
dele, o veneno do aço de cristal teria a matado. — Roren murmurou com
pesar e colocou uma mão sobre as faixas que cobriam parte do rosto da
menina, suspirando. — Precisamos tirar isso para tratar suas feridas.
Luce assentiu levemente tonta e sua mãe a ajudou a ficar sentada.
Roren se ocupara com o curativo, cada toque dele sobre o tecido era como
uma pontada forte na alma da menina. A dor lhe fizera viver de novo os
minutos ao lado dos draconianos, o modo que eles seguraram seus cabelos e
lhe chamaram de merda por ser uma mestiça, por ser o que os superiores
recusavam. Ela decidiu não contar o que ouvira a ninguém, não por
vergonha... mas porque a lembrança era tão dolorosa que as palavras lhe
feririam de uma maneira que gostaria de evitar.
Os tecidos caíram no colo da menina quando Roren finalizara.
Marcados por sangue.
Mare começou a chorar de novo, horrorizada por alguma coisa que
Luce não conseguia entender; e até mesmo o homem pareceu afetado ao
retirar o curativo.
— O que houve...? — e a mestiça percebeu que só era capaz de
enxergar com o olho direito, o esquerdo estava cego. Lucinda moveu a mão
instintivamente em direção ao rosto, mas Roren a segurou antes que
pudesse tocá-lo. — Eu não estou conseguido enxergar... senhor. O que tem
de errado comigo?
— Eu quero que me escute com atenção, Luce, por favor. — e ele fez
uma pausa para esperá-la assentir. — As garras de Mom-mom são feitas do
Aço de Cristal, um material que os draconianos usam para caçar dragões
por causa da eficácia e pelo veneno que contem... O efeito dele é
avassalador sobre qualquer escama e um segundo sobre a pele humana pode
causar danos irreparáveis.
— Eu não vou mais enxergar? — Luce perguntou.
— Eu sinto muito. — as rugas se suavizaram no rosto moreno do
humano.
A menina forçou um sorriso ao mover o olhar ao redor, o quarto
pequeno e simplório que chamava de seu: não havia nada lá além de uma
cama improvisada com feno e tecido desgastados, um apoio para as velhas e
pequenos potes com flores que Luce juntava na Floresta Viva. Ela nunca se
importara com a ausência de qualquer riqueza, talvez porque nascera sem
nenhuma, mas sentiu o ar gelado sem a presença do dragão roncando em
sua janela.
— Mom-mom foi embora? — ela perguntou com o rosto baixo, a mãe
lhe acariciava os cabelos e chorava baixinho.
— Ele está na floresta... com medo de se aproximar. Mom-mom quem
a trouxe até nós e eu nunca vi um dragão chorar daquele jeito. — Roren
pegou um punhado da mistura pastosa entre os dedos e passou lentamente
sobre o lado esquerdo do rosto da menina. Luce permaneceu quieta,
ouvindo, sentindo. O toque de Roren lhe causava uma dor suave sobre a
pele dela. — Eu sinceramente não sei o que pode ser feito com ele.
— Esse monstro tem que partir... dragões não prestam! — Mare disse
entre os dentes, mas Lucinda sabia que a mãe não odiava as feras
escamadas. Ela estava apenas ferida interiormente por Klud tê-la
abandonado e rejeitado.
— Eu quero ir atrás dele, senhor Roren. — a mestiça dissera com
convicção.
Roren sorriu de repente.
— Você não o culpa? Pelo que aconteceu?
— Não é culpa dele... — o toque gelado da mistura a fez suspirar.
— Você não vai se aproximar dele, Lucinda, nunca mais. — Mare
ressaltou.
— Eu não tenho medo dele, mamãe.
Nunca teria medo dele — de seu companheiro e amigo. Mom-mom
não era um dragão perverso, ele tinha um coração enorme, mas ferido,
machucado por um passado que a menina não tinha conhecimento. Luce
precisava ir atrás dele para mostrar que não o odiava e, principalmente, não
o culpava pelo que ocorrera.
Para mostrar que havia sempre uma segunda chance para todos.
— Ele desformou o seu rosto! Você era linda e agora tá... As pessoas
vão te olhar e sentir nojo por causa do que ele fez! — a mulher disse quase
gritando e a menina encolheu os ombros.
Tiggrë dissera uma vez que ela era linda. Só que não era o mesmo
linda que sua mãe se referia: a beleza ressaltada pelo menino vinha do
interior, o coração. Ele dizia que Luce tinha sorte de ser uma mestiça
porque carregava o sol dos humanos no peito e a lua dos draconianos no
sorriso — ela tinha a luz duas vezes mais que qualquer ser vivo em Agëa.
Era por isso que era linda, pelo que demonstrava, não o que parecia.
— Eu continuo a mesma, mamãe... — e Luce aceitou o pequeno
espelho que o mais velho lhe entregara. Nunca esqueceria da primeira vez
que viu seu reflexo em um lago, tinha sete anos, espelhos eram caros
demais e sua mãe só fora ganhar uns três anos mais tarde. As feições suaves
e os olhos cor-de-mel, com seu amigo dizia.
Só que agora era diferente: a parte direita de seu rosto estava realmente
deformada. As garras de Mom-mom eram enormes e haviam provocado
cicatrizes profundas, o veneno do aço de cristal também pesara na situação,
derretendo a pele em torno das marcas. Elas desciam em diagonal ao
pescoço, local em que um vermelhidão intenso residia. A sobrancelha dela
havia desaparecido, fios de cabelo caído e a orelha parcialmente afetada. A
imagem a assustou a princípio, mas os segundos de pânico não se tardaram.
Luce ajeitou os fios de seu cabelo sobre a parte esquerda do rosto e
observou a direta, intacta, no espelho. Ela sorriu então.
— Eu continuo a mesma... — a mestiça repetiu ao lembrar como
Tiggrë costumava chamá-la de menina dos sonhos exagerados. Mare não
dissera nada e Roren fora instigado a sorrir com a reação tão simplória da
menina.
Sua mão baixou o olhar e concordou em silêncio.
— O que acha de tentar chamar ele? Eu tenho certeza que o Mom-
mom iria ouvir o seu sussurro mesmo no outro lado de Agëa. — o homem
sussurrou.
Luce recebeu ajuda para se levantar e precisou de alguns minutos para
se acostumar com suas próprias pernas, estava fraca, os dias de
inconsciência haviam roubado parte de sua energia, mas ela não hesitaria
em encontrar seu companheiro — amigo e dragão. Era noite, a Floresta
Viva sussurrava ao seu redor e o vento soprava canções fúnebres como se
lamentasse o que ocorrera dias antes; então, apoiada na pequena janela de
seu quarto, a menina encheu os pulmões de ar.
— Mom-mom! — a mestiça o chamou com os resquícios de voz que
tinha. As dores dos ferimentos estavam presentes, Roren dissera que
demorariam para se afastar, mas ela aguentou e seguiu em frente.
Lucinda repetiu o chamado e um chiado distante a alertou.
Roren e Mare a ajudaram a deixar o quarto e a casa segundos depois, o
vento farfalhando os resquícios de cabelo da menina. Ela se sentou em
frente à moradia, levemente cansada pelo esforço e quase sem voz pelo
chamado. Luce teria usado o que lhe restava de fôlego para chamar o nome
do dragão mais uma vez, mas não precisou; mom-mom surgiu entre as
árvores negras e o véu da noite como um animal sem lar, moribundo. O
pescoço dele estava inclinado para baixo, as asas dobradas, o focinho
inquieto de um lado ao outro entre palavras balbuciadas.
A menina hesitou por um segundo, um mísero segundo; e se
arrependeu completamente no outro quando o gigante rugiu cheio de
melancolia na direção dela — como uma canção triste. Mom-mom deitou o
corpo contra a grama como se tentasse mostrar que não era uma ameaça ou
buscasse redenção pelo que fizera. Lucinda sorrira, então, na direção do
gigante ao entender uma mão.
— Eu não tô zangada com você não, Mom-mom. — a mestiça
sussurrou com o rosto iluminado pelo sorriso. Roren e Mare deram um
passo para trás, mantendo a distância, cautelosos e inquietos com a presença
do dragão. — Tá tudo bem, você me salvou daqueles draconianos e eu não
te culpo pelo que aconteceu.
Mom-mom grunhiu e se arrastou na direção dela, as garras destruindo
parte da vegetação por onde passava. Luce permaneceu sentada, a mão
esticada, esperando, observando o gigante de escamas cinzentas e olhos
negros. Ele tinha as cicatrizes dele também, marcas por toda a extensão do
corpo, dores que não haviam sido causadas por um acidente, dores que
haviam sido infringidas com ódio. As dela não, Mom-mom não atacara
porque queria — o medo o dominara, o mesmo medo dos draconianos que
lhe açoitaram no passado.
Luce queria mostrar para ele que não precisava mais ter medo.
...que ela estaria com ele.
Então o gigante tocou a ponta do focinho na mão dela; um enorme,
outra pequena. A cabeça de Mom-mom era quase maior do que ela, embora
parecesse tão pequeno quando rosnava como um filhote dengoso,
emburrado, faminto. As obsidianas nos olhos dele encontraram os dela e
Luce teve quase certeza que ouviu o dragão murmurar um pedido de
desculpas.
Ela segurou uma das narinas dele com as duas mãos e sorriu
abertamente.
— Eu sempre vou desculpar você, dragão bobo. — e Mom-mom
ergueu o focinho entre as palavras dela, suspendendo a menina do chão.
Mare ousara intervir na interação da menina e do dragão por um segundo,
mas Roren colocara a mão sobre o ombro dela, uma mensagem silenciosa
de está tudo bem.
Mom-mom abriu sutilmente o focinho cheio de dentes tortos e a
menina encontrou um espaço entre eles para apoiar os pés, subindo no nariz
do dragão, depois segurando nas escamas. Era a primeira vez que ela subia
nele; e Luce quase ficou sem fôlego quando deslizara pelo pescoço do
gigante e caíra desajeitada nas costas dele, coberta de escamas pontiagudas.
A menina se agarrou nelas, as mãos trêmulas e nervosas enquanto seu
amigo grunhia sem parar e dirigia olhares apreensivos para Roren e Mare,
os quais o encaravam. Luce tentou acalmá-lo, encostou o rosto dolorido no
pescoço do dragão e ouviu o coração dele bater acelerado. Minutos
bastaram para que a criatura se tranquilizasse e desse um passo para trás, as
asas longas se abrindo ao lado do corpo.
A mestiça olhou para a mãe e o velho humano, então o caloroso sorriso
deles a encontrara. Luce sorriu para eles, depois para o céu e a lua e as
estrelas.
— Será que podemos tocar as nuvens, Mom-mom? — a menina de
sonhos exagerados sussurrou e o dragão grunhiu docemente em resposta.
Sim, era o que ele queria ter dito. Ele a levaria até as nuvens e a faria ver
que a floresta, mundo, guardava também uma beleza interior que somente
alguns conseguiam enxergar.
O dragão rugiu e saltou em direção à luz da lua. A mesma luz que
iluminou o rosto da mestiça — o mundo era mesmo, sempre seria o mesmo
enquanto a roda do tempo continuasse a girar. Assim como ela: Lucinda
sempre seria a mesma... com cicatrizes ou não. O vento beijou seu rosto,
afastou suas dores.
Então a menina agradeceu por estar viva e ser capaz de sorrir.

O duque Corvus gostava de dizer que sua filha nascera Na Noite em


que os Deuses se Afastaram de Agëa, o pior inverno de Nothumbria.
Ressaltava ele que o continente gelado congelara o coração de sua
primogênita e o transformara em pedra. Rhenna sempre admirou as
histórias de seu pai porque elas a faziam se sentir forte, sobrevivente
quando milhares de recém-nascidos congelaram nos braços de suas mães, as
vozes sufocadas em suas gargantas. A verdade era que as fábulas do
patriarca dos Skaargärd sempre foram reais: a general era o inverno
encarnado, indomado, diferente da mãe e dos cinco irmãos. Ela cresceu
entre os guerreiros do pai e aprendeu a empunhar uma espada com seis
anos, e lembrava de como o duque se mostrara contente ao descobrir que
sua filha optava pelo aço às aulas de bons modos.
As tradições draconianas não vinham bem um senhor que seu
primogênito era uma menina — diziam dar má sorte — e Rhenna fizera
questão de demonstrar o quão errados os superiores estavam. Só que ela
continuava sendo uma mulher — uma draconiana amaldiçoada em segredo
— e todas eram obrigadas a se casar depois do primeiro sangramento. Ela
se casara com Khan obrigada, mas as espadas e os treinamentos
permaneceram até mesmo durante a gravidez avançada. Rhenna não queria
ser reconhecida por ser uma draconiana com a força de um homem, longe
disso; e, sim, uma mulher simplesmente forte sem ser comparada a
ninguém.
Mas o que adiantava tanta força se no final tudo se perdia?
Era como a areia entre seus dedos: deslizando e desaparecendo por
mais que a agarrasse firme. Rhenna deixou a areia dourada cair, deixou o
mar levá-la, respirando a maresia do porto. O oceano estava furioso: ondas
rugiam e quase engoliam a praia além da cidade, como se fossem entidades
vivas. Era uma entidade, a água, caso contrário, jamais teria se alimentado
da alma de uma criança, um menino dourado de dois anos. Seu filho. A
general se ajoelhou diante o mar, os cabelos dançando em suas costas, a
armadura resplandecendo sob o sol.
— Rhenna. — Khan sussurrou atrás dela, o rosto negro suado, as rugas
pouco salientes. O comandante a seguia fielmente sobre as areias, sempre
atento, sem reclamar das ações dela. Era raro vê-lo discutir; e a general
sempre se perguntara o motivo, o porquê de tanta lealdade. Era impossível
que fosse apenas amor e respeito.
— Vá em frente. — a draconiana respondeu e direcionou a atenção
para o mar, o gigante assassino.
— Não posso deixá-la sozinha, minha senhora. Tenho medo que...
— Vá. Agora.
— Rhenna. Por favor. Me ouça. Eu não quero que você... — e as
palavras suplicantes foram interrompidas por uma espada. A draconiana a
empunhou contra o marido. A lâmina forjada por aço de cristal era a
herança dos Skaargärd, uma arma ancestral passada de primogênito a
primogênito, ornamentada por um punho de pedras que imitavam escamas
de uma cobra, o símbolo da família. O comandante parou a espada dela com
sua: uma montante, o único pertence que ele mantivera de suas origens.
Ambos os aços se beijaram em um tilintar agudo.
— Eu cortarei sua língua se ousar dirigir a palavra a mim novamente.
— e ela afastou sua arma, mantendo a lâmina em uma posição favorável
para um golpe.
Khan sabia mais do que ninguém do que ela era capaz; ele sabia que a
sua senhora não hesitaria em atacar. Conhecia-a — a voracidade, a força e o
egoísmo. A general enfrentara três primeiros dragões no passado sozinha
porque se recusava a qualquer ajuda; e por causa disso, por causa do
temperamento individualista dela, o guerreiro a perdeu por quase três anos e
a perderia de novo por causa da suposta doença que adquirira com os
dragões. Mas ele não a perderia facilmente: lutaria se fosse preciso.
— Venha comigo.
As palavras dele foram o suficiente para fazê-la agir: a draconiana
urrou e manuseou sua espada, um golpe certeiro como os desejos dela. O
comandante o bloqueou com a montante, as duas mãos firmes enquanto as
lâminas duelavam em uma disputa de força. Então, separaram-se em um
ímpeto de rigidez e juntaram-se de novo com um segundo golpe dela, mais
pesado e mais intenso que o primeiro. Ambos se enfrentaram no passado —
muitas vezes — durante os árduos treinamentos que ela se forçava; e o
draconiano sabia o quão difícil era vencê-la. Rhenna tinha ardor e
perseverança, era fria e calculista, tinha o Fogo de Safira ao seu lado.
Khan não desejava a luta: era o que diziam seus golpes defensivos. A
fúria a acometeu e o calor do deserto ao redor deles se tornou uma arma.
Porque o Fogo de Safira precisava de calor para ser invocado — e estavam
no continente do sol, um território escaldante e sufocante.
— Rhenna! — Khan entendeu as intenções dela. — Não faça nada
imprudente!
— Mahou... — e não concluiu as palavras.
Não concluiu porque um súbito mal-estar a acometeu: a espada
resvalou das mãos dela e a montante de Khan a atingiu no ombro,
espalhando sangue sobre a armadura. A general caiu com os dentes
trincados, vomitando o mesmo líquido vermelho de seu ferimento.
— Minha senhora! Perdão! — o comandante largou a arma e correu
para ampará-la. Ele a abraçou entre sussurros constantes de arrependimento
como se houvesse cometido um crime. Se ele fosse outro draconiano,
afogado nas tradições conservadores, nunca se desculparia: eles tinham o
direito de bater em suas mulheres, tinham o direito de espancá-las se
quisessem. Porque era a cultura deles — as crenças, a história. Mas não a de
Khan.
Ele era bondoso apesar de toda sua aparência robusta e expressão
carrancuda. Ele a amava e a respeitava como os primeiros dragões
respeitavam suas Estrelas da Noite. Era por isso que Rhenna não poderia
amá-lo. Porque não o merecia — não o merecia depois de tudo o que fizera
contra ele no passado.
...e nunca contara.
C A P Í T U L O T R I N TA E U M

UMA CANÇÃO
AMALDIÇOADA

AMANHECIA LENTAMENTE.
Yanaamahka vomitou tudo o que tinha e não tinha no estômago.
Um súbito mal-estar a fez deixar a taverna que estavam hospedados às
pressas, a mesma sensação que sentira dias atrás antes de encontrar Tiggrë
— como se suas entranhas estivessem apodrecendo por dentro. Era o
líquido negro, espesso, sem cheiro, um pedaço de escuridão que escapava
aos montes de seu interior. A Estrela da Noite precisou correr e correr para
encontrar um canto que ninguém a veria seu estado deplorável de náuseas e
fraquezas. Estava em um campo vazio, de árvores escassas e casas
pequenas e distantes. Nem uma sombra humana pairava por lá, só a luz da
lua, despedindo-se para dar espaço ao sol, mas os resquícios da
comemoração estavam em todos os lugares. Arrius cheirava a fogo, carne e
suor.
Yanaamahka se ajeitou, ela estava de joelhos sobre uma inclinação de
terra, limpando a boca com a manga da túnica. Ela se questionava em
silêncio porque estava passando mal mesmo depois de receber a medicação
de Tiggrë. O menino afirmara ser o suficiente para enfrentar a infecção na
asa, mas o tônico parecia servir apenas para aliviar os sintomas por um
período de tempo. A Estrela da Noite mordeu os lábios com a cólera
contida, pendendo a cabeça para o lado e deixando que o vento soprasse o
que restara dos cabelos dela. As madeixas longas de outrora haviam sido
perdidas, restando apenas fios disformes na altura do queixo e uma franja
bagunçada para ocultar parte do dourado dos olhos dela.
Tiggrë dissera que a estrela seria facilmente confundida com um
homem — era magricela, sem músculos, sem traços femininos marcantes.
As roupas também não a favoreciam; e Yanaamahka era tão reta quanto a
lâmina de uma espada. Só que ela não se importava muito com a imagem de
sua forma humana.
Porque, antes de tudo, era um dragão.
Então vomitou mais uma torrente de líquido negro.
Sentindo-se estranha, ingênua herdeira? era Mahoutsukai, a divindade
que se dizia viver dentro dela. Yanaamahka tentou dissipar e ignorar a
presença da entidade, mas esta se tornou mais forte e presente.
— Pensei que tinha desa... desaparecido. — a estrela murmurou com
desdém.
A risada de deusa ecoou fortemente.
Aqui estou, herdeira, desde que chegaste a este mundo e aqui estarei
até o fim dos teus dias. Sou a essência que te mantem viva, e Yanaamahka
sentiu um arrepio atravessar sua espinha. Mahoutsukai estava tão presente
no interior da fêmea de dragão que era difícil esconder qualquer
pensamento dela. Por que tu duvidas tanto de mim?
— Eu fiquei... doze anos... sozinha... você poderia ser uma inven...
invenção disso. — a mulher-dragão respondeu com receio.
Tu sobreviveste doze anos na escuridão por causa minha, Yanaamahka
Draconis, eu sempre estive ao teu lado. Pense com cuidado, a voz da deusa
se tornou um murmúrio impaciente, sobre o que tu és. Tu achas que
sobrevivera as torturas do draconiano ou a ausência de comida decente
por tantos anos?
Yanaamahka não respondeu, não havia o que dizer: porque não queria
aceitar na possibilidade de Mahoutsukai estar certa, na possibilidade de ter
sobrevivido por causa do poder da deusa e não porque fora sua própria
força de vontade, seu desejo de liberdade. Era tudo o que tivera na
escuridão e preferia não os ver como uma farsa.
— O que mais você sabe e esconde de eu? — perguntou então, o
coração palpitante com as vibrações de seu mal-estar.
Muito, e nenhuma outra palavra.
— Por que me esconde... se eu ser... Eu sou sua herdeira, como diz. —
a indagação da Estrela da Noite saiu um grunhido.
Eu posso te contar tudo, Yanaamahka, tudo; mas preciso de algo em
troca.
A mulher-dragão esperou pela oferta.
O Tempo do Sono Eterno, dissera Mahoutsukai.
— O que é isso?
Pergunte ao menino que lhe acompanha; ele saberá te responder, mas
isso não é o que quero de ti, herdeira; ah, não. A sabedoria tem um preço
alto.
Como poderia saber que a deusa não estava mentindo?
Eu não estou mentindo, respondeu a mãe das safiras ao ler os
pensamentos da estrela. Por que faria eu algum mal a ti se minha existência
depende da tua?
Yanaamahka olhou em frente, para os campos que se iluminavam
sutilmente com os primeiros raios do sol e percebeu um menino
acompanhando duas ovelhas. Ela sentiu o cheiro dos animais, da carne, da
fome; e por um minuto se sentiu inclinada a avançar e devorar ambas. Eram
seus instintos, o dragão que era.
Só que seria arriscado demais.
— É um lugar? — Yanaamahka perguntou com um sussurro e a
presença da deusa em seu interior soou distante. — ...Mahoutsukai.
Um calor repentino se acendeu na Estrela da Noite.
Sim, ele fica há cinco dias ao sudoeste do Grande Deserto.
Cinco dias para ir. Cinco dias para voltar. Yanaamahka não queria
atrasar seu destino, não queria perder tempo, mas sentiu em seu íntimo que
o pedido de Mahoutsukai era importante e que o templo citado por ela
também.
Esperava não se arrepender.

Tiggrë organizava seus pertences cuidadosamente.


— É perigoso sair sozinha, na’na. — o menino dizia com a expressão
entristecida. Ele havia a encontrado horas antes no amanhecer, estava
preocupado com ela e com as constantes quedas; e se mostrara bastante
surpreso ao descobrir que o antídoto não tivera um efeito duradouro nela. O
quarto em que estavam era pequeno e abafado. Hanzor dissera ser a
hospedaria mais vazia da cidade e ninguém desconfiaria. — principalmente
depois que o draconiano afirmara sorridente ao taverneiro que estava em
viagem com sua família. Era uma ideia ridícula na concepção da Estrela da
Noite, mas ela não protestou e passou a noite no chão, sentada, observando.
Só havia uma cama e Tiggrë ficara com ela.
O cavaleiro concordou com as palavras do humano, sem manifestar o
que pensava; e Yanaamahka mostrou os dentes para ele. Hanzor, escorado
na janela, observava as montanhas ao sul, o sol da manhã fazendo seus
olhos parecerem brasas quentes. Ele havia passado a noite fora (e este fora
um dos motivos que fizera a Estrela da Noite se manter acordada), dizendo
precisar encontrar um amigo antigo. Só retornou durante a manhã,
sorridente.
— Precisamos descobrir o que está acontecendo de verdade com você.
— Tiggrë continuou, a atenção dele estava no pesado livro ancestral. —
Mas eu suspeito de algo, é uma doença comum à sua espécie. Mas não sei
muito sobre ela... Será que você comeu algo ruim nas últimas semanas?
Ela havia se alimentado de carne humana, mas vomitara tudo; e não era
o mesmo líquido negro.
— Não. — e respondeu.
— Pode ser o flagelo... É uma doença de estrelas. Mas eu só ouvi
comentários sobre elas. Não sei quais são os sintomas, na’na. Deveríamos
perguntar quando chegarmos ao desfiladeiro.
— Mahoutsukai disse que pode contar... o que ter de errado.
Ambos a fitaram com os olhos arregalados.
— Você é herdeira da entidade das safiras? — Hanzor perguntou. Era
uma nova informação para o draconiano, porque nem ela nem o pequeno
tigre haviam falado sobre a essência desde que o cavaleiro passou a
acompanhá-los. — Interessante. — e a expressão dele se tornou reflexiva.
— Vocês, draconianos, conhecem as entidades esquecidas pelo que sei.
— Sim, Tiggrë. — o homem respondeu sorrindo. — Somos obrigados
a aprender sobre elas em Acatemia, mas não por um bom motivo.
— Eu sei... — e o menino baixou o olhar. — Vocês matam suas
mulheres.
Hanzor assentiu em silêncio.
— O que isso tem a ver comigo? — Yanaamahka questionou
impaciente.
— As draconianas são como você, na’na, elas também herdam o poder
das deusas esquecidas. A diferença é que todas as Estrela da Noite têm o
poder, mas somente um número bem pequeno das draconianas têm... Só que
ninguém entende o motivo dessa semelhança e os draconianos acreditam
que há um pacto entre essas mulheres e os primeiros dragões.
Tiggrë abraçou o grosso livro sobre a essência do mundo.
— Então eles as matam.
— São chamadas de Mulheres Amaldiçoadas. — Hanzor completou.
— Não que eu seja a favor disso, é claro, mas são as crenças do meu povo.
— Você não parece muito afetado por isso. — a Estrela da Noite o
observou por instantes, movendo os olhos dourados para o menino. —
Mahoutsukai disse para mim perguntar sobre o Templo do Sono Eterno.
O nome surpreendera tanto o menino que ele se esqueceu de corrigir o
erro nas palavras da mulher-dragão. Tiggrë abriu o livro depressa, folheou
entre murmúrios em um idioma desconhecido e parou em um capítulo
específico: a casa das deusas era o título gravado nas páginas.
— Ele fala sobre esse templo! — ele exclamou.
Hanzor se aproximou para observar o livro melhor.
— Existem três: um em Tannenberia, um em Aumastris e outro em
Nothumbria; e o de Mahoutsukai, o que ele chama de O Templo do Sono
Eterno, fica aqui nesse continente! Dizem que foi construído há mais de mil
anos por homens que acreditavam nas deusas, mas eles pereceram com o
tempo. — cada palavra fazia os olhos de Tiggrë brilhar. Era admirável vê-lo
se apaixonar por histórias e lendas.
— Quer dizer que devemos ir a esse templo? — Hanzor arqueou uma
sobrancelha. — Não seria melhor irmos para a capital primeiro?
— O que você acha, na’na?
Yanaamahka observou o draconiano por instantes — e percebeu que
ele não parecia nem um pouco feliz com a descoberta.
— Eu quero ir nesse templo. — ela respondeu com convicção,
ignorando a expressão hesitante do draconiano.
— Sabemos onde fica? — o cavaleiro perguntou com uma mudança na
voz.
— Mahoutsukai disse que fica a cinco dias ao sul.
Hanzor suspirou e bagunçou os cabelos com os dedos.
— Não é você que quer chegar logo ao Desfiladeiro dos Dragões
Gigantes? Não acha que vamos perder tempo demais com isso?
— Eu acho importante ela ir... — Tiggrë sussurrou. — A na’na é uma
herdeira e precisa conhecer melhor a essência que tem.
— Tudo bem. — e o draconiano murmurou após perceber que a estrela
não mudaria os planos. — Eu posso tentar conseguir um mapa na cidade,
alguma informação sobre a localidade desse templo, porque cinco duas ao
sul não ajuda muito.
— Seria ótimo ter um mapa! — o menor disse sorrindo. — Posso ir
com você, Hanzor? Eu queria aproveitar e ver se tem algum vendedor de
tônicos para ferimentos na cidade, é importante para tratar a asa da na’na.
Yanaamahka fez menção de segui-los.
— Você fica, na’na! É dia! — e Tiggrë se pôs em frente a ela. —
Podem notar seus olhos dourados de longe e ver que você não é uma
humana, ainda mais mostrando esses dentes toda hora.
— Não vou ficar em um quarto o dia todo.
— Deixa ela ir, pequeno, eu cuido dela. — Hanzor deu-lhe uma
piscadela.
— Como se eu precisar de algum cuidado de você. — e a mulher-
dragão saiu, passando o manto pelos ombros, colocando o capuz e batendo
a porta.
Tiggrë e Hanzor riram por um instante.
Arrius parecia ainda mais movimentada após as festividades. O senhor
da cidade estava na praça das luzes agradecendo a presença de todos e
prometendo um espetáculo ainda maior no ano seguinte. Tiggrë dissera que
os humanos em Tannenberia eram os mais festivos de todos os continentes.
Eles gostavam de música, comida e diversão, enquanto em Degail, pelo
menos das histórias que ouvia do continente antes de ser afetado pela praga,
os habitantes eram mais reservados. Hanzor completou as palavras do
menino ao contar sobre os povos de Aumastris, mas não entrara em tantos
detalhes — afirmando apenas que os draconianos enfrentavam uma batalha
acirrada com os rebeldes há mais de duzentos anos. Yanaamahka os
acompanhava com os olhos baixos, grunhindo para as pessoas que se
aproximavam demais.
A estrela quase entrou uma confusão depois de roubar alimentos de um
vendedor de carnes, mas Hanzor, sorridente e persuasivo, atirou uma moeda
de ouro ao homem que sequer abriu a boca para protestar. Tiggrë comprara
tônicos com o dinheiro do draconiano também e ambos conseguiram o
mapa desejado depois de algumas voltas na praça principal.
— Veraneio fica no Sul, mas é um povoado, não tem nem senhor-
regente e não tem nenhuma marca da localização do templo. — Hanzor
comentou com o mapa em mãos. Era final da tarde e as fracas luzes do sol
entravam sutilmente pela janela entreaberta da hospedaria. Eles estavam na
recepção, um lugar com várias mesas, um balcão, bebidas e nenhum cliente.
O dono e uma empregada baixinha era os únicos presentes além dos três; e
Yanaamahka estava concentrada demais em um pedaço suculento de ovelha
para dar atenção a conversa do menino e do homem.
— É um templo em ruinas — Tiggrë murmurou. — e esquecido, então
é normal não aparecer em mapas, mas veja só... — e ele abriu o livro no
capítulo que informava sobre o templo das deusas. Havia uma espécie de
mapa da página, as legendas eram antigas e em outro idioma, mas tinha a
mesma forma do mapa mais recente. — É como uma versão antiga e aqui
está o templo. — o menino apontou com o dedo ao comparar os dois
mapas.
— Que menino esperto! — Hanzor sorriu abertamente e observou os
mapas. Eram realmente o mesmo, um antigo, de quase mil anos; e o outro
recente. — Quer dizer que o templo fica ao sudeste do povoado? Não
parece complicado de encontrar.
— Sei que há planícies por lá. — Tiggrë respondeu. — Fica perto da
praia.
— Mahoutsukai disse sudoeste, não sudeste. — Yanaamahka
murmurou com a boca cheia e engordurada. Ela recebeu o olhar de ambos.
— Sudoeste. — repetiu.
— Você tem certeza, na’na? — Tiggrë observou os mapas com mais
cuidado. Ela assentiu e mordeu o ultimo pedaço, as mãos brilhavam com a
gordura.
— Se ela diz... — Hanzor comentou sem convicção. — Devemos
seguir para Sudoeste então? Se não quisermos nos atrasar, devemos partir o
quanto antes e...
Cinco homens armados entraram na taverna de repente.
Hanzor interrompeu a própria fala para observá-los e fez um gesto sutil
para que o menino guardasse o livro na bolsa.
— Um homem foi encontrado morto no amanhecer. — disse um dos
guerreiros para o taverneiro. Só então Yanaamahka levantou os olhos de sua
comida. Um homem havia sido morto, de fato, por ela na noite anterior. Só
que não contara a ninguém, havia sido algo tão momentâneo que acabara
esquecendo. — Você sabe de alguma coisa, senhor?
O dono do estabelecimento gesticulou negativamente.
— A cabeça estava irreconhecível. — outro guerreiro se manifestou, o
rosto queimado pela constante exposição ao sol do Grande Deserto.
Todos eles eram de pele morena, bronzeada e negra.
— Nada de estranho por aqui. — o taverneiro respondeu assustado
enquanto Hanzor moveu a mão para a espada. Bastaria um minuto, um
minuto de concentração nos olhos da Estrela da Noite para eles a
reconhecerem. Porque eram guerreiros treinados, do próprio reino do sol e
não simples humanos armados.
Um deles, quem deveria ser o líder, desviou a atenção para os três
sentados.
— Vocês? Sabem de alguma...
Só que então Yanaamahka vomitou de novo o líquido negro, uma
quantidade assustadoramente grande. Os guerreiros observaram a cena
espantados, alguns quase passaram mal também, mas o pior viera em
seguida quando a estrela, sentindo os batimentos acelerarem por causa do
descontrole, levantando os olhos assustados, fez seu corpo inteiro se
transformar abruptamente: o dragão negro surgiu em um piscar.
O corpo grande e escamado destruiu a mesa e se chocou desajeitado
em uma parede de madeira. A cauda chicoteou o ar, enquanto entre berros
humanos, Hanzor agarrava Tiggrë e empunhava a espada. Os guerreiros
bradaram e se armaram, mas não chegaram a atacar o dragão — não depois
de terem visto que não era uma simples besta perdida entre os homens.
Uma Estrela da Noite, um deles gritou e o draconiano teve que gritar junto
para que Yanaamahka corresse. O corpo dela rolou, bateu a asa em uma
mesa, derrubou bebidas e copos, entre um rugido de agonia e outro de dor.
Acuada, a fêmea se chocou contra uma parede de madeira e destruiu metade
dela, correndo, com um rastro de poeira a seguindo.
Hanzor gritou de novo, sudoeste, esperando que ela entendesse a
mensagem e que, também, soubesse a direção certa. Tiggrë tentou segui-la,
mas o draconiano o segurou, explicando que precisavam despistar os
guerreiros ou eles a seguiriam até o outro continente. Ela era a penúltima
Estrela da Noite afinal, todos estavam sedentos para encontrar e capturar os
resquícios de uma raça lendária — a fortuna oferecida por reinos e o
império não era modesta. Riquezas por mais de cem gerações, eles
prometiam.
O cavaleiro se colocou entre os cinco homens que berravam e pediam
suas montarias, sorrindo confiante. A espada dele estava em riste quando o
líder do grupo percebeu as intenções do draconiano: eles não passariam. O
taverneiro e as empregadas estavam encolhidos atrás do balcão, tremendo e
murmurando preces ao deus do sol; e ao longe, na cidade de Arrius, cinco
ou seis pessoas gritaram.
O estabelecimento era longe do comércio e da multidão, felizmente.
— Você é um draconiano. — dissera o guerreiro humano com o rosto
surpreso, os outros estavam com as armas em punho. — Está acobertando a
fuga de uma Estrela da Noite? Ela vale uma fortuna!
Hanzor sentiu as mãos de Tiggrë em suas costas.
Os humanos poderiam estar protegidos por armaduras e o draconiano
não, mas havia uma grande diferença entre habilidades. O Vanadis não era
um Cavaleiro Negro por causa de seu nome, não, longe disso.
Era por isso que sorria sem medo, os músculos tensionados.
— Talvez eu queira a fortuna só para mim. — Hanzor respondeu
zombeteiro.
Os guerreiros avançaram, corajosos, contra o draconiano, cinco contra
um. O jovem lamentou por um segundo a ausência de sua espada, Luz,
forjada com aço de cristal, quando sua lâmina atual, forjada com um
material qualquer, tilintou na armadura inimiga. As armas vieram sedentas
contra ele, mas o primeiro homem a investir, talvez ingênuo para as
capacidades da raça adversária, sentiu o gosto a espada comum do
Cavaleiro Negro antes dela atravessar o pescoço dele. Hanzor pegou a
espada dele, banhada de sangue e suor, segurando a sua na outra mão, e
defendeu dois golpes consecutivos.
Ele se moveu com maestria com duas espadas — embora todos os
draconianos fossem treinados a usar uma —, as lâminas dançando numa
sinfonia rápida entre investidas e bloqueios. Cinco minutos foram o
suficiente para que o chão da taverna fosse lavado de vermelho. O Vanadis
sabia quais os pontos vitais de um homem, os que sangravam mais e
matavam mais rápido. Aprendera com seu mentor, Khan, um rebelde,
ungido assassino antes de se aliar ao imperador e a vida regrada.
Um baque surdo ecoou quando o ultimo guerreiro caiu morto.
Hanzor largou uma das espadas, uma linha de suor escorrendo o rosto
enquanto analisava os estragos do ambiente. Tiggrë estava atrás de uma
mesa virada, protegendo os pertences e o livro, mas não demonstrava
nenhuma surpresa com o sangue e a violência como se estivesse
acostumado a crueldade do mundo.
— Eu tenho certeza que ela não sabe o que é sudoeste! — e o pequeno
bradara com os olhos cheios de preocupação. Tiggrë observou o sangue por
instantes, as espadas, suspirando, e correu para o exterior através da
passagem que a Estrela da Noite havia criado na taverna.
— Tem certeza? — Hanzor o seguiu e percebeu que uma aglomeração
de pessoas se aproximava depressa do ambiente. Eles haviam ouvido os
gritos, a destruição, o vulto negro. — Merda. Temos que ir. Agora.
Mais guerreiros estavam vindo. Hanzor se aproximou do estábulo ao
lado da taverna e verificou os dois cavalos que havia comprado no dia
anterior.
— Eles vão nos seguir... e consequentemente seguir a na’na!
— Vamos para o noroeste primeiro, depois encontramos ela. — o
draconiano dissera ao ajudar o menino a montar no animal, subindo no
outro em seguida. — Confie em mim, pequeno. Eu sei o que estou fazendo.
Tiggrë observou as rédeas por um momento.
— Eu acho que confio... só não sei se a na’na sabe o que está fazendo.
— Ensinamos ela depois! — o cavaleiro sorriu e cutucou a montaria.
Hanzor esperava estar fazendo o certo.
Ele não podia perder a Estrela da Noite uma segunda vez.
C A P Í T U L O T R I N TA E D O I S

O TEMPLO DO SONO
ETERNO

YANAAMAHKA ABRIU OS OLHOS DEPRESSA.


Estava na imagem humana, ferida, parcialmente molhada. A água
tocava seus dedos, um córrego deslizava lentamente pela planície, seguindo
por um conjunto de morros espaçados no horizonte. As árvores cresciam e
acompanhavam uma linha em ziguezague pela terra, corres diferentes,
menores do que a Estrela da Noite vira na Floresta Viva. Ela estava longe
demais, soprava a atmosfera seca sobre seus lábios.
Yanaamahka se lembrava do coração palpitante, da dor, da escuridão
repentina e o sussurro constante da divindade em seu interior. Nada mais;
nada além de uma quietude quase mortal. Ela se levantou devagar,
espasmos corriam por todo seu corpo, sangue fresco manchava as mangas
de sua roupa. Havia um ferimento no queixo, provavelmente da queda e...
ela percebeu a ausência de Tiggrë e do draconiano. A fêmea olhou ao redor,
sentiu o vento, nenhum som, nada além da própria natureza que a abraçava.
Uma alfinetada a incomodou, a cabeça estava latejando como se houvesse
alguém martelando constantemente em seus ouvidos.
A Estrela da Noite tocou o queixo e procurou a presença de
Mahoutsukai.
A deusa estava distante, nas sombras.
— Mahoutsukai. — dissera em voz alta, sentindo o Fogo de Safira
vivo em seu interior. A presença da deusa se acendeu, um toque quente que
sempre arrepiava a pele humana de Yanaamahka. — Sudoeste.
Não, a entidade sussurrou. Sudeste.
— Você não tinha falado Sudoeste antes?
Eu menti.
As mãos da Estrela da Noite tremeram.
— Por que mentiu...?
Tu deves encontrar o templo sozinha, é um desafio que tu enfrentará;
não com os outros, mas sozinha.
Yanaamahka colocou uma mão no rosto, respirando com dificuldade,
aguentando a paciência que se esvaíra e a dor que a abatia. Tiggrë e Hanzor
não a encontrariam, eles iriam para o lado errado porque dissera a eles a
informação errada — e não porque desejava. Mahoutsukai a havia
enganado. Esperava que o menino percebesse o erro e tomasse o caminho
certo. Ele era inteligente e o draconiano também. Eles a encontrariam,
dariam um jeito de encontrar em breve.
Mas não sabia se deveria ir realmente ao templo.
Se tu hesitas, Estrela da Noite, posso devolver-te o céu.
— O que está querendo dizer?
Tua asa.
O coração de Yanaamahka bateu mais rápido. A asa dela, quebrada,
destruída... poderia a deusa fazê-la se erguer de novo e tocar o céu? A
mulher-dragão observou o céu, as estrelas de sua vida e desejou alcançá-las
— porque estranhamente elas pareciam sussurrar uma mensagem de quem
ela era de verdade.
A fêmea respirou fundo e seguiu em frente.
Árvores amarelas e verdes. Frutos maduros. Flores vibrantes. A
vegetação mudou depressa em cinco dias de caminhada. As montanhas
haviam ficado para trás, Arrius também, mas a esperança da Estrela da
Noite continuava presente. Ela avançou quase sem descanso, ouvindo o
sussurro da entidade no caminho como se o vento fosse a voz dela. Uma
brisa quente. Um céu azulado e sem nuvens. Um sol escaldante.
Mahoutsukai dissera que a região era quente nas proximidades de Grande
Deserto e o clima abafado brotou de um dia para o outro. Yanaamahka
precisara tirar uma das túnicas que vestia e se sentiu aliviada pelo fato de
não ter mais cabelos compridos — ou iria arrancá-los com as próprias
mãos.
A paisagem era seca e nenhuma cidade surgira no horizonte desde o
primeiro dia, tampouco uma sombra humana ou draconiana. O que era bom
por um lado, não haveria perigos; ruim por outro, Tiggrë e Hanzor não
haviam encontrado o caminho certo. Mahoutsukai dissera que eles a
encontrariam eventualmente, só que as palavras não fizeram Yanaamahka
mais tranquila. Ela sentira efeitos em seu corpo durante toda a jornada, as
tonturas e as imagens que iam e vinhas, mas a presença da deusa
impossibilitou que os efeitos fossem maior.
O Fogo de Safira não era tão desnecessário como acreditava.
Yanaamahka andou sem descanso no quinto dia e, enfim, encontrou
uma longa passagem que interligava a área que ela estava à uma seguinte.
Era uma ponte improvisada, suspensa sobre uma fenda extensa e funda. A
Estrela olhou para baixo, imaginado o que poderia estar escondido na
escuridão, mas o repentino som de águas se movimentando a fez entender o
que existia lá embaixo. Cachoeiras. No âmago do mundo. Ela observou as
paredes do abismo, eram íngremes, escorregadias, desafiando os mais
corajosos a se aventurar em uma descida sem volta.
Só que era nessa descida sem volta que precisava avançar.
Yanaamahka se ajoelhou diante do abismo. O sol não batia nas
profundezas, nada além de alguns centímetros na boca da cratera que se
estendia em direção à um horizonte desconhecido. As trevas reinavam lá
embaixo, diziam as brisas que sopravam contra a pele humana dela e a fazia
se arrepiar. A presença de Mahoutsukai permanecia distante, quieta; e por
mais que a Estrela da Noite tentasse perguntar a deusa se aquele era o
caminho, nenhuma resposta era emitida. Ela aspirou o ar, as narinas
dilatadas, os pelos do corpo ouriçados, acreditando que seus instintos lhe
dariam uma pista.
Então um fragmento brilhante subiu na escuridão e se estilhaçou diante
dela.
O Fogo de Safira vivia naquela penumbra.
Yanaamahka olhou ao redor e tentou buscar qualquer declinação ou
passagem que a levasse as profundezas, mas não havia nada — a ponte para
o outro lado da cratera, as escassas árvores e uma planície de cores
queimadas era o que a região oferecia antes do Grande Deserto. A natureza
ou mundo não estavam preocupados em qualquer vida que poderia existir
no breu abaixo.
O templo estava esquecido, dissera Tiggrë; desaparecera durante a
extinção das raças antigas e talvez sequer os humanos acreditassem que
houvesse uma construção naquela escuridão sem fim.
Havia um templo...
Ou não?
Yanaamahka hesitou por um segundo e uma repentina tontura a abateu.
Ela se levantou, cobrindo o rosto, respirando e praguejando. Algo dentro
dela se condensava, um misto de confusão e dor. Você pode estar doente,
dissera o menino... e seria esse o motivo de suas constantes
desestabilizações? Tiggrë mencionou o nome escrito no livro, o Flagelo das
Estrelas, mas talvez, acreditava a fêmea, os sintomas fossem mais antigos.
Ela queria tanto as respostas, o passado, que comeria a carne podre dos
humanos pelo resto de sua vida.
A Estrela da Noite suspirou e observou o abismo mais uma vez.
Então, como se uma mão houvesse lhe tocado, ela deu um passo em
falso e resvalou em direção à escuridão. Ela sentiu as pedras, o cheiro de
sangue quando suas mãos desesperadas tentaram tatear as paredes rochosas,
rasgando a pele das palmas e quebrando um ou dois dedos. Yanaamahka
conseguiu se agarrar em uma falha da cratera e manter um pé equilibrado
sobre outra, prevenindo uma queda sem volta. Dez, quinze, talvez vinte
centímetros abaixo da boca do abismo, com a escuridão em seu encalço e a
luz do sol distante.
Uma linha de suor escorreu o rosto dela, o coração palpitava e o corpo
inteiro formigava em adrenalina. Quase. Mais um pouco e teria sido
engolida, não teria conseguido se agarrar a nada.
— ...Mahoutsukai. — a voz de Yanaamahka saiu entrecortada, mas
sequer a energia do Fogo de Safira se acendeu.
A estrela olhou para cima, o céu, as nuvens. Tudo seria realmente fácil
se tivesse suas asas e soubesse voar. Ela provavelmente mergulharia na
escuridão e lançaria uma baforada quente para iluminar seu caminho. Só
que ela não sabia voar ou soltar fogo e as sombras lhe abraçariam sem
compaixão.
Um medo repentino cresceu no coração dela ao olhar para baixo.
Era como o calabouço dela: trevas e esquecimento.
— Mahoutsukai! — a voz dela saiu trêmula e alta.
Porque além do medo, do trauma de ser esquecida pela luz e pelo
mundo por quase doze anos, o interior da Estrela da Noite urrava como um
dragão enfurecido. Ela precisava retornar a superfície o mais rápido
possível ou vomitaria, perderia o equilíbrio e cairia em direção nas sombras
de uma existência vazia. Yanaamahka levantou a primeira mão, prendeu-a
sobre uma rocha, sangue vertendo de seus dedos, e buscou um apoio para o
pé. A segunda mão fora elevada em seguida, mantendo o equilíbrio da
mulher-dragão. Ela conseguiu subir exatos cinco centímetros quando ouviu
um rugido em seus pensamentos.
O dragão dentro dela queria sair.
— ...Não ouse se transformar seu corpo desgraçado! — disse a si
mesma com os dentes trincados e saliva escorrendo pelo canto dos lábios.
Só que era impossível fugir do que realmente era — e em no mesmo
segundo que uma águia sobrevoou a cratera, a imagem de mulher
desapareceu para dar espaço ao dragão de escamas negras. Yanaamahka
rugiu em desespero, suas garras tentaram se prender as pedras, mas seu
corpo não era mais leve, causando um deslizamento toda vez que tocava nas
rochas.
A escuridão ficara mais próxima.
Mais próxima.
Mais...
Ela teria que cair de qualquer jeito e encontrar o templo.
Por mais que a escuridão lhe assustasse e as sombras lhe lembrassem
como era viver enclausurada, esquecida, a descendente dos primeiros
dragões deixou de tentar prender suas garras e mergulhou em direção ao
abismo. Fechara os olhos — e não rezara a ninguém para se manter viva.
Somente acreditou: sua força de vontade, seu desejo de reunir todos os
fragmentos do passado e reconstruir quem era. Porque se ela conseguira sair
do calabouço... Yanaamahka conseguiria também deixar aquele vazio no
qual se lançara com medo.
Um minuto, dez, uma hora talvez; e o corpo dela submergiu em uma
densidade diferente da qual estava. Yanaamahka abriu os olhos depressa, a
pressão da água sobre suas escamas e uma correnteza que ousava carregá-la
para as profundezas daquela penumbra. Ela moveu as patas, a cauda, seu
focinho se erguendo em busca de qualquer resquício de luz... e ar. Um
borrão azulado cintilou na direção contrária que a correnteza a levava,
distante; e a Estrela da Noite usou tudo o que tinha e não tinha para lutar
contra a força da natureza. Cada movimento brusco, cada nado mais rápido,
extinguia dela o oxigênio restante.
As bolhas de ar fugiam por entre suas pressas.
A visão azulada cada vez mais longe.
Mas a fêmea de dragão não se deixaria morrer naquela escuridão.
Não depois que vira o sol e lua, não depois que encontrara seres que
lhe diziam que havia algo no mundo para se lutar.
Ela tinha um nome e não era mais um pedaço vazio de nada.
Não morreria e não cairia em esquecimento.
Yanaamahka se lançou desesperadamente contra a luz e disse a si
mesma que conseguiria alcançá-la, então seu corpo ficara quente e o borrão
azulado, mais intenso. Num minuto estava lutando contra a correnteza; no
outro, emergindo em uma superfície pincelada de safira. O que vira nas
profundezas não era uma luz, eram formas lapidadas da joia e incrustradas
nas paredes do abismo. A Estrela da Noite olhou para o alto, por onde caíra;
e vira um sutil fragmento do céu.
O ambiente era coberto de breu e a única iluminação provinha das
pedras preciosas — e não eram poucas. Riquezas incontáveis se
concentravam lá embaixo, valiosas e intocadas. Yanaamahka deixou a água
e caminhou sobre uma superfície rochosa além do pequeno rio. Não... ela se
corrigiu ao observá-lo melhor: não era pequeno, a correnteza seguia
distante, na mesma direção que o som de cachoeiras emanava, percorrendo
ambas as paredes do desfiladeiro.
O que havia no final das enormes paredes de pedra?
Qualquer que fosse a resposta, não interessou a Estrela da Noite porque
atrás dela, sobre a mesma superfície, uma enorme estrutura cinzenta era
iluminada pelas safiras, escondida parcialmente pelas trevas: o Templo do
Sono Eterno. A parte frontal do lugar era tudo que podia ver. A construção
estava dentro da parede do desfiladeiro. Uma escadaria se elevava cerca de
trinta centímetros em direção a entrada, portas pesadas e fechadas, cobertas
por lascas de safira, mas o que mais chamava a atenção da Estrela da Noite
eram as estátuas semelhantes — mas em ruínas — de uma mulher. Várias
partes estavam se fragmentando, os braços erguidos já não tinham mais
dedos. A expressão dos rostos foi apagada pelo tempo, a natureza.
Yanaamahka deu um passo em frente, as escamas pingando, a cauda
inquieta; e se perguntou se havia luz no interior. O silêncio naquela
escuridão parcial era quase insano e se não fosse capaz de ouvir as
cachoeiras ao longe, ela provavelmente enlouqueceria. Alcançou, então, as
escadas e observou mais de perto as estátuas que lá haviam. Uma escrita
fora talhada na base das mulheres, letras e números que ela não
reconheceu... sabe se lá quantos mil anos tinha — e nem estava interessada
em entender a mensagem.
Porque as letras, as formas, o que significavam, perdiam-se nos olhos
dela, sem sentido.
Ela estava lá e agora só precisava saber como entrar.
Yanaamahka elevou o olhar na direção das portas novamente e um
vulto negro a fez estremecer por inteira. Uma lasca de safira subia e descia,
subia e descia das mãos do homem; e na terceira vez que ele a lançou para o
alto, deixou com que a pedra preciosa caísse nos degraus e quicasse pelas
escadas. A joia parou somente quando tocou uma das patas da Estrela da
Noite, paralisada, aterrorizada. Ela não o via a tempos, logo, vê-lo sentado
lá era a última coisa que esperava no mundo.
Leto Demétrius estalou o pescoço e aspirou o ar profundamente.
— Uma estrela cadente e tanto. — dissera o draconiano ao se levantar,
a lança em punho e os olhos heterocromáticos refletindo as cores da safira
ao redor.
O ceifador desceu um degrau e depois mais outro. A atmosfera ao
redor dele era pálida e gélida, nenhum sopro de calor, nenhum resquício de
luz. Yanaamahka sentiu a sensação, o formigamento que fizera suas
escamas se ouriçarem — eles estavam no âmago do mundo e não havia sol
que pudesse aquecê-los lá embaixo.
— Como você... encontrou... — as palavras morriam dentro dela.
— Conheço seu cheiro. — Demétrius respondeu cada vez mais perto.
— Seu medo. Seu ódio. Sua escuridão. Ah, sim, conheço cada detalhe e
seria capaz de te encontrar até no outro mundo se fosse preciso.
Um sorriso de desdém se moldou nos lábios dele.
Yanaamahka deu um passo para trás quando percebeu que o homem se
aproximava cada vez mais; e nesse processo, algo, um pequeno detalhe, não
passara despercebido por ela.
Estava um palmo mais alta que o draconiano.
— Hoje a morte a alcançará, Estrela da Noite... e ninguém estará ao
seu lado para lhe proteger. — e o draconiano movimentou a lança com
habilidade.
O dragão mostrou seus dentes pontiagudos.
— Eu posso me proteger sozinha.
Demétrius se lançou contra a Estrela da Noite em um urro de êxtase.
Lâmina encontrou pressas; força, resistência. Yanaamahka grunhiu
com a lâmina entre seu focinho, as patas grudadas no chão enquanto o
adversário, movia os lábios em um sorriso miserável. Ela percebeu tarde
demais que os músculos do draconiano não estavam tensionados, que não
havia uma sombra de esforço na expressão dele, e sentiu quando a pesada
lança partiu metade de seu canino com um movimento habilidoso. A Estrela
da Noite percebeu quando parte de seu dente rolou na escuridão de safiras.
O draconiano manobrou sua lança em uma segunda investida e a fêmea dos
primeiros dragões deslizou suas patas traseiras para trás; e, então, a lâmina
do ceifador mergulhou para a esquerda. Yanaamahka estava a direita.
Demétrius havia errado.
Teria a escuridão sido sua aliada? A oportunidade dera a ela uma
chance de ouro: a Estrela da Noite agarrou o braço exposto do general —
ele estava sem armadura — entre suas linhas de dentes recortados. A pele
fora rasgada em um segundo, sangue brotara das feridas e descera pela
garganta do dragão.
Ferro e fogo.
O gosto e o cheiro de Demétrius.
Ele se movera depressa para escapar. Um murmúrio deixou os lábios
dele; e o erro do draconiano fora sua sentença: porque a Estrela da Noite
moveu o focinho para trás no mesmo instante que o guerreiro impulsionou
o corpo para frente. Então, um estalo... e o braço do ceifador pendeu inerte
e deslocado ao lado de seu corpo. Demétrius caiu no chão num segundo e se
levantara no outro, nenhuma expressão dolorosa contaminando seu rosto.
Yanaamahka tinha quase certeza do motivo: Demétrius não havia errado o
ataque por falta de habilidade.
Algo semelhante acontecera em Arrius dias antes.
O coração dela saltou pela garganta ao se levantar.
Yanaamahka olhou para a direção do draconiano.
Leto Demétrius olhava na direção dela.
Era o fim.
Era o fim?
A expressão do draconiano não mudou, seus músculos não se
contraíram e respiração permaneceu a mesma como se... Ele não estava a
enxergando? Yanaamahka deu um passo, trêmula dos pés à cabeça, e o
general se moveu apenas para ajeitar os longos cabelos negros que caíam
em seus olhos heterocromáticos. Ele inclinou a cabeça na direção dos
homens e das meninas novamente, a cicatriz que cortava sua bochecha, e
metade da orelha, mais grossa que um polegar, ficara eminente entre as
madeixas de nanquim. Leto Demétrius agiu como se... não a visse.
O olho negro do draconiano, diferente do cinzento, não era uma
deformação qualquer ou uma característica de sua perversidade; não, era
uma maldição, uma vergonha. Demétrius estava ficando cego. Ele errou o
ataque e não a vira em Arrius naquele dia porque estava realmente
perdendo a visão — e bastaria um ou dois anos para que ambos os olhos do
guerreiro ficassem negros até a morte. Se ela não fosse capaz de derrotá-lo,
a vida o faria; o ceifador estava finalmente fadado à derrota.
Yanaamahka se afastou dele.
— Então você percebeu, Estrela da Noite. — o draconiano observava o
braço deslocado. Ele caminhou devagar para juntar sua lança. — Eu tinha
certeza que você não era ignorante como as semelhantes que matei... as que
imploraram pela morte. Acredita que isso seja o caminho para sua vitória?
— Não pode lutar com um braço... — Yanaamahka sussurrou com as
pressas a mostra, faltava-lhe, no entanto, confiança nas palavras: porque
uma dor repentina começava a irradiar de sua asa quebrada.
O general gargalhou com sarcasmo.
— Um braço quebrado? Eu posso torturá-la ainda, e fazer se
arrepender por acreditar que era capaz de sair viva dessa escuridão.
Demétrius avançou finalmente: a lâmina em riste, os olhos — o cego e
o parcialmente cego — grudados no semblante do dragão. Ele não iria errar
mais, não depois de ter sido provocado. Yanaamahka, porém, previu o
primeiro golpe; só não esperava se transformar tão repentinamente na
imagem humana para escapar do aço sedento do draconiano. Ela caiu no
chão, a lança adversária passando de raspão por sua cabeça, rolando nos
escombros do desfiladeiro para escapar da segunda e terceira investida.
Então, uma tontura familiar lhe acometeu e a Estrela da Noite perdeu um
segundo de sua concentração; um segundo que lhe resultou em corte
profundo no ombro direito. Ela sequer teve tempo para protestar a dor: a
lança rugiu em sua direção em um quinto ataque consecutivo.
O guerreiro era o vento, o fogo, a terra — sua lâmina se movia tão
depressa que se tornava um mero borrão na escuridão. Demétrius era um
draconiano nascido e ungido caçador, era experiente e passara os quase
cinquenta anos adquirindo uma força que ela não tinha. Mas teria... A
Herdeira de Safira o desafiaria e provaria que era mais que uma simples
caça. Então, quando a lâmina se lançou contra ela, de costas no chão, a
Estrela da Noite bloqueou o ataque com a adaga vermelha escondida em
suas roupas.
O aço de cristal faiscou ao se chocar com o rubi de sangue; os olhos do
draconiano se dilataram, tensos. A arma ficara estranhamente quente no
segundo em que ambas as lâminas se beijaram e no qual se separaram.
Demétrius recuou dois passos, o braço deslocado inerte ao lado de seu
corpo, a lança em riste no outro, enquanto avaliava a arma nas mãos da
mulher-dragão. Era como se a conhecesse ou a temesse — embora fosse
difícil acreditar que o homem fosse capaz de temer qualquer coisa —, mas
os segundos de analise não se prolongaram. Ele lançou sua lâmina no
ambiente, milímetros de distância do corpo dela; e o impacto do aço
provocou um repentino temor que ocasionou o segundo deslize da Estrela
da Noite.
Ela olhou para a escuridão, para o eco que escapava pelas rochas, as
pedrinhas que tremiam em frente ao templo, ignorando o ponto que o
adversário se encontrava; e sua atitude precipitada tivera um preço: a mão
de Demétrius a segurou pelo pescoço e a suspendeu do chão. A pressão dos
dedos dele veio em seguida, a força exercida roubou qualquer entrada de
oxigênio para os pulmões dela. Yanaamahka colocou depressa suas mãos
sobre a dele, os pés se mexendo involuntariamente enquanto todo seu corpo
humano formigava.
Ela não conseguia se transformar para evitar que ele a sufocasse.
— Você irá aprender, Estrela da Noite, o que é morrer aos poucos. —
os olhos dele encontraram os dela; e por um momento Yanaamahka
acreditou ter os visto completamente negros. Ela abriu a boca na
desesperada tentativa de buscar o ar, mas a pressão draconiana lhe privava
mais e mais. As luzes de safira, suas joias, começaram a se desfazer ao
redor dela para dar espaço a escuridão... a morte. — Porque você morrerá e
será esquecida para sempre... Farei questão de despedaçar seu corpo morto
para que ninguém jamais a encontre.
Ela havia sido esquecida — seu pai e irmão a abandonaram e ninguém
nunca viera buscá-la — sem estar morta. Esqueceram-na naquele calabouço
gelado e escuro, onde passara fome e frio; fome de companhia e frio de
solidão. Viver no esquecimento era pior que morrer para a Estrela da Noite,
era como caminhar sobre um mundo cheio de cores e ver somente as cinzas.
Era o que ela via; era o que sentia todas vezes que observava o sol e o céu,
perguntando-se constantemente como aqueles que se diziam importantes no
passado dela foram capazes de abandoná-la. A melhor parte de Yanaamahka
permanecera lá, naquele calabouço, naquele cativeiro sombrio, perdida para
sempre na escuridão que lhe acompanhara por quase doze anos. Ela talvez
nunca mais fosse capaz de recuperar a luz perdida no confinamento... e por
isso não os perdoaria, ninguém, tampouco o mundo que desviara os olhos
dela e a deixara lá, apodrecendo sozinha. Ela os faria lembrar dela — não
por bem, nem por mal — o suficiente para se arrependerem de terem
ousado esquecê-la.
Yanaamahka não se deixaria perecer em mãos adversárias tão
facilmente.
— Vai... se arrepender! — a Estrela da Noite murmurou com os
resquícios de ar que prendiam sua existência no plano dos vivos. Uma
energia se agitou dentro dela, um poder quente e gelado, um poder calmo e
tempestuoso, uma dualidade que dançava uma canção familiar dentro dela.
Mahoutsukai, o nome da deusa fora sussurrado e Yanaamahka ousou focar
seus olhos dourados nos negros do draconiano.
Então, os orbes dele repentinamente ficaram cinzentos.
Tu fizeste um laço, a deusa proferiu.
...e a escuridão viera com um sopro.
Diziam que a Noite Eterna vagava pelas masmorras. O frio propagado
pela entidade era capaz de congelar a alma dos prisioneiros e torná-los
meros fantoches sem sentimentos pelo resto de suas vidas. O menino
acreditava nessa verdade, era uma das tradições mais fortes em sua
cultura: respeitar a Noite Eterna e pedir que as graças dela escurecessem
seu caminho. Demétrius pediu que a entidade o acompanhasse na
escuridão dos corredores enquanto ele avançava pelas partes mais
sombrias do continente-de-homem-nenhum. As paredes das masmorras
eram tão geladas que o pequeno draconiano de cinco anos sentia o sopro
de morte que elas irradiavam, uma canção noturna de um ambiente que
não conhecia a luz do sol — os prisioneiros lá morriam no escuro e sem
voz.
A prisão estava localizava no coração da montanha de Rotheran
Ald’ruhn, guardiã da cidade-forte de Valenevado, lar do poderoso Senhor
de Gelo e de todos os Nothumbrianos dignos de sobreviver a ira de um
continente fadado ao frio eterno. Demétrius fora instruído para não se
aproximar das masmorras, seu pai prometera espancá-lo caso o
desobedecesse, mas a curiosidade de conhecer a figura materna,
aprisionada na escuridão, fez o menino desacatar as ordens recebidas. Ele
não a conhecera, diziam que sua mãe era completamente instável e não era
capaz de criar o filho, mas o pequeno queria vê-la... conhecê-la.
Seus irmãos tinham mães. Davion, o segundo filho do Senhor de Gelo,
era sempre rodeado pelos braços quentes de sua progenitora; Durval, o
terceiro herdeiro, ressonava no colo da mãe o tempo todo, e até mesmo o
pequeno Demóstones, de dois meses, tinha a figura materna para
amamentá-lo. Demétrius não tinha o mesmo, ele sequer fora amamentado
pela mãe — e ninguém lhe contava histórias de dormir durante as noites
mais frias de Nothumbria.
O menino alcançou a parte mais alta das masmorras e ouviu alguém
cantar: o doce som de uma voz feminina. Ele se aproximou da entonação,
das palavras pronunciadas no antigo idioma draconiano que ressaltava os
deuses e o mundo, os seres vivos e a natureza. Nenhum outro prisioneiro
estava naquele espaço da masmorra, a escuridão dos corredores era quase
sufocante, a tempestade de neve no exterior urrava como os fantasmas das
histórias de terror. Demétrius avançou com passos cada vez mais
apressados, suas mãos pequenas, marcadas por cicatrizes recentes e
antigas, estavam unidas em frente ao corpo e os olhos cinzentos vagavam
na penumbra sem fim. Ele parou em frente à última porta do corredor.
...e o canto se silenciou.
A porta estava entreaberta, uma luz tênue escapava do interior e a
sombra trepidante de uma mulher se levantou.
— Mamãe? — o menino murmurou com o coração apertado ao redor
das sombras da masmorra. Demétrius sentia os sopros da Noite Eterna em
seu ouvido, os medos que a entidade fazia florescer em seu peito, mas não
hesitou. A esperança de finalmente ter alguém lhe fez repetir com mais
firmeza. — Mamãe.
O semblante da draconiana se fez presente um segundo depois; e
Demétrius nunca mais esqueceria do que vira e ouvira naquela fatídica
noite de inverno — sua mãe não era nada mais que uma mera sombra de
ossos e escuridão e morte. O rosto era uma mistura de insanidade e
perversão, queimaduras esbranquiçadas cobriam metade da expressão dela
como se o fogo de um dragão houvesse sido lançado em sua direção.
Faltava-lhe o olho direito, os lábios estavam ressecados e os cabelos,
negros e longos, eram meros fiapos carbonizados em sua cabeça. Ela
observou o menino com curiosidade, inclinando suavemente a cabeça para
o lado, os ossos do corpo esquelético dela foram ressaltados nesse
movimento.
— Meu pequeno Demétrius... — a mulher se ajoelhou diante o menino,
um sorriso se moldando em seus lábios queimados. A pele seca na boca
dela se desprendeu e abriu uma ferida, sangue brotando lentamente. —
Venha cá, deixe-me vê-lo depois de todos esses anos, não tenha medo. Sou
eu, Ysanärd, tua mãe.
Ysanärd... então aquele era o nome de sua mãe. Ela era diferente do
que o pequeno imaginara: as mães de seus irmãos tinham corpos
volumosos, rostos belos, atraentes e submissos. O menino não ousou
hesitar ou temer a figura materna em sua frente, as feridas e a aparência
dela não eram o bastante para fazê-lo recuar, não depois de ter implorado
pelo calor materno durante as longas noites de inverno. Demétrius se
aproximou do toque da draconiana, os dedos ásperos dela deslizaram-lhe
pelo rosto... carinho este que ele sempre sonhara.
Um carinho que nunca teria.
A unhas de Ysanärd foram enterradas em suas bochechas.
— Por que tu vieste? — e ela o esbofeteou pesadamente. O pequeno
caiu sentado, a mão no rosto sobre o ferimento causado pelas garras da
mãe. A draconiana o observou com os dentes trincados. — Por que
viestes?! — então berrou.
Demétrius não teve reação para as palavras que vieram em seguida:
— Veio para terminar de me matar? Seu monstro desgraçado! Eu
queria que tu tivestes morrido quando o arranquei prematuro do meu
ventre... mas tu sobreviveste... sobreviveste sozinho! Eu deveria tê-lo
abortado antes ou tê-lo degolado em seu maldito sono... tê-lo dado aos
lobos para ser devorado! Olhe para mim! Olhe para mim, desgraçado!
Olhe o que eu me tornei por tua causa, por causa de todos os draconianos
miseráveis. Eu espero que tu morras, Demétrius, que tu morras sem
conhecer nenhum resquício de afeto porque tu não mereces. Tu não mereces
nada além de ódio e rejeição, como teu pai e todos os draconianos desse
mundo corrompido.
Eles a queimaram viva no dia seguinte.
Eles descobriram que Ysanärd dur-Valeas al Vossler era uma Mulher
Amaldiçoada e a incendiaram na sala do trono. Demétrius assistiu a morte
dela enquanto o Senhor de Gelo dizia querer vê-la gritar e implorar pela
Noite Eterna, sentado em seu trono. Só que a draconiana não morreu
gritando como o grande soberano esperava: Ysanärd se despedira da vida
sorrindo e sussurrando o canto de Mahoutsukai em direção ao seu filho. O
pequeno não expressão nada — nem tristeza, nem felicidade, nem solidão.
Ele somente observou as chamas consumir as entranhas de sua figura
materna; e depois, quando não restava nada além de cinzas, o Senhor de
Gelo o espancou até esquecer o nome e o rosto de sua mãe.
...até que quebrasse o próprio pulso de tanto bater no menino.
Yanaamahka recuperou o ar e a escuridão desapareceu.
Ela fora arremessada contra o concreto, a intensidade do impacto fez
algo se partir em suas costelas; dor, agonia, tontura. A estrela abriu os olhos
e buscou entender a confusão de pensamentos que sua cabeça estava —
palavras iam e vinham, imagens surgiam e desapareciam. Vozes difamadas.
Sussurros entrecortados. Lembranças. Recordações. Ela não vira apenas um
fragmento do passado do inimigo... não, a mulher-dragão estivera na pele
de Demétrius e sentira o que ele havia sentido: o ódio, um desejo
interminável de destruição. Algo semelhante acontecera com as lembranças
de Klud. Ela revivera na pele dele o passado que ambos compartilhavam e
sentiu a dor do companheiro ao falhar. A estrela se sentiu sufocar de
repente.
...porque conhecia o passado dos outros, mas não o dela.
— Desgraçada. — a voz a fez olhar para frente. O draconiano estava
com a mão sobre o rosto e filetes de sangue lhe escorriam por entre os
dedos. — O que você fez? O que você fez?! — o nariz dele sangrava em
abundância.
Demétrius juntou a lança com a mão ensanguentada — e suas feições
demonstravam que ele não mais tardaria em matá-la. Yanaamahka tentou se
levantar, tentou buscar qualquer fragmento de força que lhe restava, mas
seu corpo parecia tão pesado que tudo o que conseguiu fazer fora rolar para
o lado quando a lâmina do draconiano correu contra sua cabeça. Aço e
concreto se encontraram e um tremor repentino se alastrou pelo templo com
o impacto da arma. O segundo golpe viria e a acertaria caso toda a
plataforma em frente à construção não houvesse explodido sob os pés deles:
o chão cedeu e os engoliu em um abismo além do qual estavam.
Ambos foram tragados pela escuridão.
Yanaamahka sentiu as rochas, as pedras e uma lança lhe atingir durante
a queda; primeiro, então, viera a dor, depois a inconsciência e nada mais.
C A P Í T U L O T R I N TA E T R Ê S

V I N G A N Ç A PA R A O S T O L O S

DOZE ANOS — QUATRO MIL TREZENTOS e oitenta dias.


Klud ficara tempo demais preso a Floresta Viva. Ele poderia ter
esquecido muitas das cores ao longo dos anos, sequer era capaz de lembrar
do mar no qual crescera, do homem que lhe adotara e lhe dera um nome, as
cores que se apaixonara, mas a promessa permanecia intacta nos resquícios
de sua mente. Esperar. Ele deveria esperar pelo retorno dela. Só que a
Yanaamahka que retornara não era a mesma que havia sido levada há doze
anos. Ela estava diferente, mudada... como se o mundo houvesse apagado
sua essência e refeito em moldes distintos.
A sua Yanaamahka morrera no passado, diziam.
A pequena estrela que tinha o coração singelo não mais retornaria, ela
não questionaria sobre a água dourada dos córregos, o céu alaranjado
depois dos dias chuvosos ou para onde eles iriam quando a Morte lhes
alcançasse. Eles criaram um pequeno mundo particular na floresta de
Krynhild na infância; e o dragão, convivendo com o ódio de Vlanhonder
Draconis por ele, aproveitou todos os segundos ao lado da fêmea que lhe
aceitara como era — e só a Yanaamahka do passado sabia a verdade
escondida nas escamas azuladas de Klud.
Ele esperava que a Estrela da Noite recuperasse aquela memória um
dia.
Klud suspirou; os raios de sol do amanhecer beijaram seus olhos cegos
e as cicatrizes que os destruíram. Ele voara muito, por longos dias e
incontáveis horas, seguindo os instintos, a estranha canção que ouvia e
sussurrava o caminho, e o cheiro de girassóis que caracterizava
Yanaamahka, um detalhe que felizmente permanecia o mesmo desde os
tempos dourados. O homem se levantou ao sentir o vento mudar de direção
e levar o aroma para o extremo sudeste do continente, próximo ao grande
oceano de Tel Mora. Águas pacíficas, ele lembrava; muitas vezes ouvira seu
pai adotivo — Klud não mais lembrava do rosto dele — contar as histórias
sobre as origens do nome do mar: mora significa harmonia no idioma dos
primeiros homens e tel era divindade, enquanto vozz, do oceano turbulento
de Tel Vozz, significava tempestade. O dragão nunca sentiu tanta falta das
águas como sentia agora.
Só que ele precisava seguir em frente.
Klud fechou os olhos e ouviu o vento, suas palavras sussurradas, ouviu
a natureza, sua canção delicada; e soube que, no chiar de uma águia, ela
estava por perto. Era capaz de senti-la, quase ouvi-la. Naqueles doze anos
passados, porém, a presença da estrela se perdeu dele como se ela houvesse
deixado de existir. Agora, diferente do silêncio da ausência dela, o homem-
dragão sempre ouvia uma canção, uma melodia sutil que sempre o levava
até ela.
Ele respirou fundo e fez a energia azulada fluir pela imagem humana,
dando origem ao dragão que era e que deveria ser. As patas traseiras dele se
flexionaram antes de mergulhar para o alto com as asas coladas ao corpo;
então, as bateu, ganhando o céu sem nuvens e o horizonte montanhoso. O
dragão alcançou um grande abismo, uma cratera que se estendia em direção
a costa de Tannenberia, em seu sétimo dia de voo. Ele pousou
elegantemente sobre a beirada, suas garras fizeram pequenas partículas de
terra caírem na boca do desfiladeiro, e sentiu o cheiro de escuridão
mesclado ao familiar aroma de girassóis, além de uma estranha presença de
ferro e fogo. Ele conhecia aquele odor maldito... draconiano, ele sabia,
tinha certeza; e Yanaamahka estava lá embaixo com o inimigo.
Klud baixou o focinho em direção a penumbra, mas não era capaz de
analisar a extensão da cratera somente com seus instintos, se mergulhasse,
poderia se ferir facilmente e prejudicar o voo. Então, sutilmente irritado, o
dragão buscou a direção do vento enquanto alongava suas asas para o alto, a
cauda inquieta. Ele saltou com um impulso e não precisou bater as
membranas para ganhar altitude: chegara ao outro lado da cratera sem
dificuldades — o significava que o buraco não era extenso o suficiente para
abrigar seu corpo e asas. Klud rugiu irritado e se elevou em direção aos
céus. Ele precisava encontrar outra forma de descer e não desistiria.
Yanaamahka estava lá e era ao lado dele que ele precisava estar.
Para fazê-la lembrar, recordar, reviver.

Tiggrë observou o horizonte com aflição.


Era o final de tarde e as cores do Grande Deserto ficavam cada vez
mais presentes no ambiente; elas vibravam em tons de fogo, de ouro, de sol.
A temperatura ficara elevada com a proximidade, o verde da natureza
lentamente desaparecia para dar espaço a vegetação mais típica da região
oeste, lar dos oásis mencionados nas canções de bardos e da vasta capital de
Tannenberia. O menino teria ficado ansioso pelo que conheceria em
Solnascente, as pessoas que veria e o conhecimento que ganharia, mas tudo
se fragmentava diante sua preocupação: Yanaamahka estava distante e
perdida. Ambos, humano e draconiano, seguiram em direção ao norte nos
primeiros dias para despistar os caçadores; então, mudaram as rédeas dos
cavalos e avançaram à sudoeste, caminho que vagavam há quase cinco dias
sem descanso. Nenhum sinal do templo ou da Estrela da Noite.
Sudoeste parecia tão errado como as nuvens negras que se formavam
no horizonte. As pernas do menino estavam doloridas da cavalgada, as
costas clamavam por um minuto de descanso, mas ele não se deu ao luxo
enquanto não descobrisse pelo menos um traço sobre o templo. Hanzor
também estava inclinado a encontrar a morada da deusa — e pouco se
expressou durante a jornada. Tudo o que ele fazia era sussurrar palavras e
preces em draconemia, idioma dos draconianos nobres de Aumastris,
enquanto sua mão repousava sobre o cabo da espada de aço comum. Tiggrë
não conhecia a linguagem, era antiga e destinada apenas aos superiores da
raça... e esse fato o fez refletir sobre as origens do guerreiro que o
acompanhava: Hanzor rön Vanadis. Vanadis.
Porque o nome lhe causava sempre arrepios?
— Você está bem, pequeno? — Hanzor perguntara em um momento. A
temperatura caíra sutilmente com o avançar dos ventos da tempestade que
caminhava na direção de ambos, farfalhando as madeixas castanhas do
draconiano. — Nós vamos encontrá-la, não se preocupe. Yanaamahka sabe
se cuidar.
— Uh. — Tiggrë segurou firme as rédeas do cavalo enquanto o livro
pesado descansava sobre seu colo. A expressão dele estava estampada por
preocupação, as bochechas sutilmente coradas entre os fios vermelhos que
lhe caíam na testa. — Estou com medo por ela. A na’na não parece ser
muito boa em se cuidar sozinha.
O draconiano moldou um sorriso.
— Você gosta muito dela, não? — Hanzor questionou e desviou a
atenção a diante, brasas em extinção queimavam em seus olhos. — Esse
sentimento seu é o que, pequeno? Não me diga que você sente alguma
atração por ela?
O rosto do menino ficara da cor de seus cabelos.
— Claro que não! — e a resposta apressada de Tiggrë fez o cavaleiro
rir descontraído. — É diferente, o que eu sinto pela na’na é muito diferente
disso, nada relacionado com atração. Desde o primeiro dia que a encontrei
ferida, lutando para sobreviver, eu me lembrei da minha mãe. Na’na
significa alguém que lhe cuida com o coração ou alguém que cuidamos
com o coração em Qatar, o idioma do meu povo. Eu chamo ela desse jeito
porque é como me sinto... como quero protegê-la e ajudá-la a encontrar o
desfiladeiro. — o pequeno fez uma pausa de quase um minuto como se
refletisse algo. — Você mencionou atração... Eu não sei se um dia vou
sentir algo parecido. Roren dizia que eu iria sentir isso por Luce quando a
hora chegasse, mas... É normal não sentir?
Hanzor arqueou uma sobrancelha.
— Não entendi o que está querendo dizer, pequeno tigre.
— Eu sempre quis ser um Eterno... — o menino murmurou com os
olhos esverdeados no horizonte. — Sempre quis. A ideia talvez tenha
contaminado minha cabeça e me feito abominar qualquer resquício de
desejo por mulheres.
Porque os Eternos deviam abdicar de tudo, dizia sua mãe. Era o
caminho se ele quisesse se tornar um e honrar o povo Animano. Jamais
casaria, teria filhos ou conquistaria valores. Era do nada que eles, os sábios,
tiravam seu conhecimento. Mas era difícil... e Tiggrë sempre se lamentava
com a falta de capacidade. Mas um dia conseguiria: pela lembrança de
todos que pereceram nas mãos draconianas, pelas histórias não contadas,
pelo belo mundo que acreditava.
O draconiano sorriu sem jeito.
— Você é pequeno ainda, talvez mude de ideia depois.
— Eu sou muito maduro para minha idade, se quer saber. — Tiggrë
dissera emburrado ao ter suas palavras desacreditadas.
— Não quis zombar de você, só estou dizendo que é difícil não sentir
desejos durante nosso crescimento. Faz parte da vida de um homem. —
Hanzor bagunçou com cabelos sem tirar o sorriso desajeitado do rosto.
— Nem todo homem gosta de mulheres, cavaleiro. — e as bochechas
do menino ficaram da cor de seus fios de fogo.
— Agora entendo porque você e a Yanaamahka se dão bem... — ele
riu.
— Nós só não deixamos que nos digam o que é certo e o que é errado.
Você deveria respeitar mais a opinião dos outros. — as nuvens negras da
tempestade no horizonte se aproximaram deles e trouxeram pequenas
partículas de chuva. Tiggrë colocou o capuz de seu manto e protegeu o livro
entre as roupas.
A natureza farfalhava ao redor deles.
— Sempre respeitei, pequeno. Meu pai me ensinou a respeitar. —
Hanzor também se cobriu e direcionou o olhar rubro para o menino. — Por
esse motivo quero vingar a morte dele, caso contrário, eu não estaria aqui
com vocês nesse continente. Desculpe, aliás, falar sobre isso... mas nunca
pensou em vingar a morte de sua mãe também?
— Não. — o humano respondeu mais rápido que o draconiano
esperava. — Aprendi que vingança gera mais vingança, mais ódio, mais
morte; e por mais que uma parte de mim se lembre dela todas as noites, a
roda do tempo continua girando, indiferente, distante das minhas
lamentações... — e Tiggrë elevou a cabeça para o céu cinzento, as nuvens
pesadas que se derramavam sobre eles. — O mundo continuará girando e
não trará minha mãe ou meus irmãos de volta se eu me vingar do
draconiano que os assassinou naquela noite. Nada vai mudar... você deveria
entender isso.
Hanzor não respondeu as palavras do pequeno tigre, e sequer teria
como respondê-las um dia — a diferença que pairava entre humano e
draconiano naquele momento não era o tamanho de seus corpos, não, era a
de suas mentalidades. Tiggrë poderia estar no florescer de seus doze anos e
o cavaleiro, no auge de seus vinte e tantos anos; mas era mais maduro e
consciente que um homem nascido na nobreza, treinado pelos melhores
educadores.
A chuva se intensificou trinta minutos mais tarde. Só então o
draconiano se manifestou.
— Estamos nos aproximando das montanhas da região leste
novamente... alguma coisa não está certa. — e Hanzor pegou o mapa entre
seus pertences. — Yanaamahka disse que o lado certo era ao sudeste do
Grande Deserto, mas eu tenho certeza que ela se enganou. Já deveríamos ter
encontrado qualquer resquício do templo.
Tiggrë observou ao redor apreensivo.
— A na’na não é boa com nomes e palavras... e sudoeste e sudeste são
termos parecidos. Você acha que ela pode ter dito o nome errado?
— Se eu acho? — o draconiano riu brevemente. — Eu tenho quase
certeza.
— Devemos voltar? Se estivermos enganados e... Ah, eu estou muito
preocupado com ela agora! — o menino se encolheu na capa, o corpo dele
estava encharcado e fios vermelhos grudavam em sua testa.
— Já perdemos tempo demais.
— Então precisamos nos apressar! — Tiggrë precisou elevar o tom de
sua voz para ser ouvido na chuva. — Ela pode estar em perigo! Não quero
nem pensar no que pode acontecer com ela se... se...
— Calma, pequeno. Confie nela um pouco mais. Ela é uma Estrela da
Noite afinal, tem o sangue dos primeiros dragões.
Ela realmente era. Por esse motivo que Tiggrë temia: os caçadores
poderiam encontrá-la e almejá-la por ser o que era.
— Vamos correr! — Hanzor firmou as rédeas e atiçou a montaria.
Ambos correram em meio a chuva, sem descanso, rumo ao sudeste,
direção que deveriam ter escolhido desde o começo.
Tiggrë esperava não ser tarde demais.
Yanaamahka sentiu a dor de estar viva.
Ela abriu os olhos e imagens em preto e branco, sem conexão com a
história de sua vida, correram em seu campo de visão. A ausência de cores
causava-lhe nostalgia e angústia, seu corpo estava gelado e doía; a vida, a
sensação do coração batendo, porém, lhe fez respirar aliviada entre as
vibrações negativas que devoravam suas entranhas. A Estrela da Noite
piscou e a escuridão e a luz se mesclaram: a ausência do sol, o frio, a
poeira. Escombros se espalhavam por toda a parte, um véu cinzento
abraçava o ambiente e ofuscava parte da visão da mulher-dragão. Cheiro de
bolor e umidade, som de água e fogo.
Um fluxo de lembranças passou pela cabeça atormentada dela:
recordara-se da batalha contra o draconiano, o modo como entrara dentro
dos pensamentos dele e como vira o que havia de mais oculto em sua alma.
Mas os motivos, desconhecia. Como também desconhecera ao entrar nas
recordações do pequeno tigre e de Klud. As respostas se escondiam nas
sombras, as mesmas que a rodeavam enfim. Ambos caíram — mas onde
estava o ceifador? A Estrela da Noite buscou força para se levantar, ela
estava de bruços sobre o chão gelado, sangue escorrendo pelos lábios, mas
quando seus braços se apoiaram no concreto, elevando o corpo por
centímetros, uma linha vermelha gotejou de sua barriga.
Sangue manchou o chão e a dor viera como uma lâmina.
Yanaamahka olhou para trás depressa e seu corpo estremeceu: a lança
draconiana estava em suas costas, aglomerada em suas costelas... A lâmina
havia atravessado seu corpo e rasgado a pele na barriga. Então,
repentinamente, o mundo começou a girar: gemeu, praguejou, caiu.
Inconsciente.
Tu estás morrendo, dissera a voz de Mahoutsukai.
C A P Í T U L O T R I N T A E Q U AT R O

N A L U Z , D E S A PA R E C E M O S

O VENTO LHE PROTEGERÁ.


Lunaysis despertou lentamente, os sussurros da deusa da esperança lhe
envolvendo com a música dos bardos e seus alaúdes. Uma brisa quente
soprou sobre seu rosto, a atmosfera do Grande Deserto envolvendo o quarto
e o iluminando com as luzes do sol regente. A draconiana se encolheu na
cama, os olhos contraídos e implorou aos deuses que lhe protegessem —
porque ela lembrava das horas anteriores com todas as cores. A fúria de seu
marido, o modo como ele a ameaçara com a espada, como o guerreiro tocou
em seu ventre com a lâmina gelada.
Ela não queria imaginar o que o homem poderia ter feito.
Eun-seo entrara repentinamente no quarto, a expressão carregada por
uma preocupação crônica. Ele se moveu depressa na direção dela e se
ajoelhou ao lado da cama, uma mão sobre a espada, outra sobre os dedos
gelados de Luna.
— Que a mãe natureza tenha piedade de mim por tê-la deixado
sozinha... — o guerreiro lamentou com os olhos marejados. — Como você
está se sentindo, minha senhora? Eu cheguei quando você estava no chão. O
comandante a juntou... ele pediu que eu chamasse alguém para examinar
você. Eu acho que a viagem tenha prejudicado por causa da gravidez. Está
cada vez mais miúda e pálida.
A draconiana sorriu docemente para seu protetor, a preocupação dele
sempre deixava seu coração em paz. Eun-seo tinha o dom de fazer o medo
dela desaparecer como a luz afasta a escuridão.
— O que o clérigo disse, senhor Eun-seo?
— Sobre sua fraqueza, minha senhora. Ele disse ser uma consequência
de seu confinamento... e confesso que fiquei surpreso quando ele disse isso
perto do comandante. Você precisa respirar o ar do exterior, sentir o sol e o
vento.
Era o que Luna desejava, mas o seu senhor não deixava.
Por mais que se esforçasse e lutasse pela liberdade, sempre haveria um
porém, uma hesitação. A criança em seu ventre era um dos motivos: porque
Luna não queria ser a culpada pelo não-nascimento caso desrespeitasse o
marido e ele a castigasse.
Mas não desistiria: poderia suportar agora, mas não sempre.
— O meu senhor disse algo sobre isso?
Eun-seo sorriu de repente.
— Você irá acompanhá-lo ao castelo de Sopoente na manhã seguinte.
O coração de Luna quase saltou pela garganta.
— O comandante Ahuriel e os demais draconianos serão recebidos
pelo rei Gureryne Lachance, além de presenciaram a chegada dos demais
draconianos que estão no comando do general Demétrius. — e o rosto do
guerreiro se iluminou. — Sabe o que isso significa, minha senhora?
Que ela veria Hyun-seo e Hanzor, seu melhor amigo e seu primo.
Luna se deixou sorrir, as mãos trêmulas de felicidade. Ela não os via
desde que se casara há mais de cinco anos; e sequer tiver oportunidade de
se despedir deles. Todas as notícias que tinha de ambos eram limitadas ao
conhecimento de seu protetor e a moça pedia todos os dias que a deusa os
protegesse.
A noite viera depressa com a notícia.
Luna permaneceu em seu quarto, os livros e as palavras lhe fizeram
companhia ao redor da cama. Eun-seo se despedira dela horas mais cedo,
ele tinha compromissos com o comandante, mas fez questão se certificar do
bem-estar de sua protegida. O cavaleiro pediu que as criadas preparassem
uma refeição reforçada e um banho quente para ela. A draconiana
agradeceu sorrindo — embora no íntimo escondesse um pouco de medo.
Ahuriel poderia se fazer presente a qualquer momento, poderia ameaçá-la
ou desconfiar dos constantes curativos que a moça colocava sobre a marca
de Misairuzame.
A senhora Krimnell respirou fundo e tentou se concentrar na leitura:
era a história de Roxy rön Vanadis, sua antepassada, quem lutara contra as
raças antigas e vencera inúmeras guerras na linha de frente do campo de
batalha. Uma mulher e uma guerreira. Lunaysis gostava da narrativa e
muitas vezes se perguntou se seria capaz de ter a mesma coragem que a
draconiana ou a general Rhenna para desafiar uma tradição milenar. O
sopro da noite a arrepiou no auge da leitura e a herdeira de Misairuzame
colocou o livro de lado ao se levantar do leito. Luna caminhou pelo quarto,
observou os detalhes sofisticados dos móveis e parou diante a penteadeira
com ornamentos de ouro maciço.
Ela realmente estava mais pálida e magra como Eun-seo mencionara:
havia marcas salientes em seu rosto e os ombros pareciam mais finos. Luna
não ganhara nenhuma curva desde o início da gestação, mas o inchaço em
sua barriga crescera sutilmente — e ela sorriu ao vê-lo frente ao espelho.
Ela tocou a pele, sentiu o calor e contou os meses para o nascimento. A
draconiana sabia que não tinha o direito de imaginar se seria um menino ou
uma menina, porque o seu senhor não aceitaria nada além de um herdeiro
de sexo masculino. Eram as tradições — a sorte estaria com os nobres que
tivessem um primogênito homem.
Luna estremeceu com a possibilidade de ter uma menina.
...e sobressaltou com o barulho na porta.
Era ele, o seu senhor. Ahuriel entrara no quarto com o peso da
armadura em seus ombros, o rosto marcado pelas olheiras e a expressão de
cansaço crônico. O comandante sequer a encarou ao se sentar na poltrona
de costume, suspirar e fechar os olhos, seus fios prateados, únicos,
refletindo as luzes dos castiçais. O resto do quarto era sombra e escuridão.
O estado dele a fez se perguntar há quantos dias estava sem dormir. Mas
Ahuriel não pedira para ela ler dessa vez, talvez houvesse desistido ou
estivesse cansado demais, impossibilitado de pronunciar qualquer palavra.
Lunaysis sentiu pena dele por um segundo.
Mas não tinha certeza se devia.
Ele a ameaçou e a machucou: a draconiana não o perdoaria pelos anos
de confinamento ou esquecimento, pela violência e preconceito. Só que ele
era o homem que viveria ao lado até o final de seus dias... e deveria, talvez,
pelo menos ajudá-lo a se tornar melhor.
Mesmo que não o amasse ou nunca fosse capaz de amá-lo.
— Meu senhor. — Luna dissera com um sussurro que soou como o
vento, os lábios dela permaneceram entreabertos. As luzes dos candelabros
farfalharam por um momento e o draconiano abriu os olhos, indiferentes e
azuis, na direção dela. — Receio que precise tirar a armadura para que
consiga descansar com decência.
Ahuriel piscou, as pálpebras pesadas e o olhar quieto.
Luna sentiu um arrepio e precisou desviar a atenção.
Ele a encarava intensamente.
— Recomendo que se deite também, a poltrona o deixará mais
cansado. — as mãos dela deslizaram pelo inchaço na barriga enquanto
sussurrava. O comandante acompanhou o movimento, observou o ventre
que seu futuro herdeiro residia e não proferiu sequer uma palavra. Luna
caminhou devagar em direção ao leito durante o silêncio, o coração
acelerado e as mãos tremendo.
Medo era o que tinha — de ser covardemente atacada por ele. A
draconiana pediu a deusa da esperança que lhe protegesse e quase desmaiou
de nervosismo quando o comandante levantou do assento. Ahuriel moveu
os dedos sobre a fivela de suas ombreiras — ornamentada com a imagem de
um leão negro — e as retirou lentamente; depois, o peitoral e as bainhas
vazias presas em sua cintura.
Luna desviou um olhar cauteloso na direção dele e sentiu um súbito
desejo de ajudá-lo: as placas de aço eram inúmeras e ele levaria o dobro de
tempo sozinho. Disseram-lhe que não deveria sentir medo de seu senhor,
Rhenna afirmara que era preciso coragem para ganhar o respeito de um
draconiano como Ahuriel. Misairuzame ressaltara o mesmo. Eu sou o livre
vento... e o vento me protegerá, e a draconiana fechou os punhos. Ela se
aproximou, tentando não fraquejar, sucumbir, diante o olhar repentino do
guerreiro. As mãos dela alcançaram a cota de malha presa no torso do
marido e deslizaram pelas correntes que a prendiam nos músculos do
mesmo; um segundo e a peça caiu de encontro ao chão em um baque surdo.
A moça conseguia ver, ouvir, o peito do comandante subindo e
descendo em uma respiração pesada — e ela não ousou levantar o olhar no
processo de retirada da armadura, não quando o corpo tensionado de
Ahuriel se revelava a cada segundo.
A pele exageradamente pálida, sólida e coberta de músculos.
Lunaysis deu um passo para trás e elevou os olhos para ele.
Ahuriel a observava.
— Deite comigo. — e ele murmurou com um tom mais afiado que sua
montante.
O coração dela quase parou.
Luna se moveu lentamente e se deitou com uma sutil hesitação; e seus
pensamentos se tornaram uma aglomeração confusa quando sentiu o peso
do corpo do comandante se deitar ao seu lado.
Só que Ahuriel vön Krimnell não fizera nada. Ele a observou no
silêncio e adormeceu em seguida — como uma criança ao se sentir
protegido pela mãe.

Uma linha de suor deslizou no rosto de Ahuriel.


Ele despertou. Os dedos calejados deslizaram sobre lençóis como se
suspeitassem do lugar que estavam, a sensação de conforto e descanso não
lhe eram habituais; e não lembrava da última vez que dormira por mais de
duas horas — e dessa vez haviam sido cinco, seis, talvez sete. O
comandante se manteve parado, o corpo suado com temperatura elevada do
Grande Deserto. Eram sempre dias quentes e noites frias.
Ahuriel elevou o tronco, sentiu os músculos relaxados como há tempos
não ficavam, cada estalo roubando dele um gemido entrecortado. O sono
fora tranquilo e longo, sem os pesadelos ou as vozes que lhe perturbavam
com tanta frequência. O draconiano observou, de repente, a draconiana
adormecida ao seu lado — os fios dourados percorrendo delicadamente o
rosto, os lábios suavemente entreabertos, as feições sutilmente calmas. A
moça era um fragmento pequeno encolhido na cama, inofensiva, mas que se
mostrava com uma estranha coragem.
Lunaysis, ela dissera outrora; e, pela primeira vez, o comandante não
mais esqueceu o nome dela. Lunaysis: parte de luz, parte de lua. A jovem se
movimentou com cautela na cama e o homem continuou com os olhos
concentrados. Casara-se com ela pela linhagem — qualquer superior
desejaria ter herdeiros com o sangue puro dos Vanadis —, mas não
imaginava que se sentiria estranhamente intrigado com o comportamento da
moça. Lembrava-se a expressão dela durante o casamento, a submissão, a
palidez... nenhum desejo de permanecer viva.
Então lá estava ela com todas as cores.
O comandante sentiu um repentino arrepio e um instinto contido,
carnal, novo.
A mão dele se ergueu na direção dela. Mas parou antes mesmo de tocá-
la.
Um sentimento de fraqueza o abateu.
Ele aprisionou seus desejos mais intensos no fundo de sua alma e se
concentrou no que era mais importante no momento: se tornar o melhor
entre os melhores e servir seu império com dedicação como sempre fizera.
Era o reconhecimento que ansiava, alcançaria o topo. Era um comandante e
se tornaria um general; logo, um guardião, e as Montanhas do Luar, seu
território; a mais forte região de todo o continente draconiano.
Ele ignorou o corpo feminino ao seu lado e vestiu sua armadura.
Ele tinha assuntos mais importantes para resolver.

Sunyar era o centro de todo o ambiente.


A sala de recepção no palácio de Sopoente era indubitavelmente
exótica — e diziam que não chegava aos pés da sala do trono do rei-
regente. Janelas colossais circulavam o ambiente inteiro com pilares
decorados por arabescos minuciosamente detalhados com linhas douradas e
ocre, mas o que realmente chamara a atenção da herdeira de vento fora as
imagens desenhadas à mão em cada uma das estruturas: enquanto os
draconianos admiravam contar suas histórias em livros volumosos, os
humanos optavam pelos desenhos. A arte se interligava com pequenas
frases que formavam uma rede de contos e fábulas que brilhavam na luz do
sol do meio-dia.
O Grande Deserto poderia ser escasso de cores e flores, mas o palácio
era quase um arco-íris artificial com tantos detalhes. Tecidos vibrantes e
quase transparentes decoravam a abertura das janelas e acentuavam a
mistura de tons presentes nas pinturas dos pilares. Lunaysis se admirou ao
ver como os tecidos brilhavam em contato com o sol — quase como se
houvessem sido costurados com pó de pedras preciosas. Uma mesa de
formato oval estava centro do astro rei que estampava o chão, um banquete
fora servido aos convidados, e todas as especiarias das tradições de
Tannenberia deleitava os olhos dos estrangeiros: tâmaras-do-deserto, romãs
maduras, pescados típicos da água salgada de Tel Mora, mel das abelhas
gigantes que viviam nos oásis e diversas verduras do deserto.
A draconiana estava como companhia de seu senhor: o comandante era
um bloco, uma estátua ao seu lado. Só que com o aspecto menos cansado. A
pontualidade do marido os fizera serem os primeiros a chegarem no salão
de recepção, escolhendo um espaço próximo as janelas para ficarem.
Lunaysis vestira as cores de sua família para a ocasião — os tecidos
vermelhos e as pérolas acentuavam seus cabelos dourados e todos os
detalhes de sua expressão curiosa. Em nenhum momento, porém, a moça
ousou desviar a atenção para seu senhor.
Convidados se fizeram presente minutos mais tarde.
Grande parte da corte humana de Tannenberia era composta por
humanos com as características do Grande Deserto: peles bronzeadas a
negras, cabelos escuros como obsidiana e traços robustos, os homens
conversavam no idioma comum deles e as mulheres, de olhos marcados por
tintura escura, acomodavam-se em grupos distante de seus maridos, rindo e
sussurrando entre si. A cultura humana era diferente, menos conservadora e
com a presença do título de rainha, inexistente em solo draconiano. Dentre
tantos convidados, Luna percebeu a figura paterna: o general Belpheggör.
Ele sorriu para o comandante em um cumprimento silencioso e ignorou a
presença da filha, o que não era uma novidade. A general Rhenna também
entrou no salão acompanhada do marido, mas ignorou todos e se
aconchegou em um canto esquecido.
— Comandante. — um guerreiro se aproximou de Ahuriel. — Peço
permissão para reportar a chegada dos homens no comando do general
Demétrius.
Ele fez um sinal para que o cavaleiro prosseguisse.
— Eles estão a caminho do palácio. Eu soube que sir Hanzor e o
general não retornaram com os demais, sir Hyun-seo quem os comandou
até a capital; o motivo, contudo, comandante, não me foi passado. Acredito
que o próprio cavaleiro lhe dará informações sobre o ocorrido.
A expressão de Ahuriel não era de satisfação: os olhos dele
observavam o mensageiro com desdém. Luna poderia não conhecer o
bastante sobre o marido, mas o suficiente para ter certeza que qualquer
circunstância inesperada em seu comando abalaria, profundamente, o
humor dele.
— Conversarei com Hyun-seo em breve. Diga a ele que me espere
após o pronunciamento do rei Gureryne. — a voz de Ahuriel não fora mais
alta que um sussurro.
O guerreiro assentiu e se afastou.
Mais convidados chegaram.
O Superior Humano, Kaelus vön Krimnell, entrara desacompanhado
no salão com sua armadura dourada refletindo os raios solares do Grande
Deserto. Lunaysis se perguntou onde estaria a mulher dele, a mãe de
Ahuriel, ou o porquê de não tê-la encontrado desde o dia que chegara em
Tannenberia. A draconiana, desconfortável, suspirou e uniu ambas as mãos
em frente ao peito, seu nervosismo cada vez maior com a aglomeração de
pessoas. Misairuzame sussurrava em seu interior, murmurava canções para
confortar o espírito de sua herdeira.
Apesar da temperatura, Luna usava longas luvas para esconder a marca
da divindade nas costas de sua mão.
Ninguém desconfiara até então.
— Tua mão não melhorou? — mas pergunta repentina do marido a fez
estremecer.
— Como?
— Tua mão. — ele repetiu. — Disseste que havia ferido.
Sim, ela dissera semanas antes no navio.
— Estou bem, meu senhor. — Luna baixou as mãos e as escondeu nas
costas.
— Chamarei um clérigo para ver esse teu ferimento.
— Não! — e a resposta exaltada dela o fez arquear uma sobrancelha.
Luna se desculpou e continuou com um sussurro: — Não há necessidade,
meu senhor, está realmente tudo bem... e...
Se o nervosismo a corrompia naquele instante, a voz que a interrompeu
em seguida quase a fez sucumbir.
— Se não é a draconiana mais linda de todo o império! — teria sido
um doce elogio se as palavras não pertencessem a Leovrumund rön
Vanadis, o irmão gêmeo dela. Luna se encolheu ao ouvi-lo, seu coração
bateu devagar e não ousou dirigir o olhar ao semelhante. Ele caminhou em
direção ao casal com os braços abertos, o sorriso manipulador. — Minha
irmã querida, há quanto tempo não a vejo!
Lunaysis deu um passo para mais perto do marido.
— Comandante. — e o draconiano fez uma sutil para seu superior. Leo
também era um dos Cavaleiros Negros e subordinado de Ahuriel. —
Quando me disseram que estava grávida, minha irmã, fiquei tão contente
porque enfim decidiu abrir as pernas. Espero que tenha lindas meninas! —
o homem se inclinou para acariciar a senhora Krimnell no rosto. Luna
sentira uma imensa repulsa com o toque dele, as intenções escondidas no
olhar cor-de-sangue.
Ela conhecia a podridão do irmão mais do que ninguém.
Como ele tentara lhe tocar a força.
A draconiana conteve as lágrimas que tentaram escorrer seu rosto.
— Espero que aproveite a festa, minha doce irmã. — e ele se afastou
com uma piscadela e uma promessa implícita de ameaça. Lunaysis não
soube se seu marido entendera a ironia contida nas palavras do Vanadis, não
depois de ter se afastado um segundo depois para se juntar ao general e os
demais superiores. A moça ficara lá, sozinha, em meio tantos estranhos.
Luna secou as lágrimas com cuidado e tentou esquecer os desaforos de
seu irmão; mesmo que o lindas meninas que ele dissera lhe causassem certo
temor. O primeiro filho de um nobre deveria ser um menino, diziam os
sábios, meninas eram o prelúdio para a má sorte da família, e por esse
motivo muitos nobres matavam o primogênito caso fosse do sexo feminino.
Mas se acontecesse... Lunaysis colocou a mão no ventre.
Ela nunca deixaria que matassem sua criança.
Um anúncio fora feito de repente e Luna desviou a atenção para o
Superior Humano que se pronunciava para anunciar a chegada do rei-
regente: um humano de feições e rugas pesadas e pele de ébano. Gureryne
Lachance III caminhou acompanhado de dois homens altos, igualmente
negros, seus filhos, enquanto o som das pesadas joias tilintava em seu
pescoço. Os anos poderiam estar abatendo o rei humano de Tannenberia, ele
completaria oitenta anos em breve, mas o olhar afiado permanecia intacto; e
era o soberano era conhecido pela impaciência e fúria contida de um
dragão.
Os draconianos o reverenciaram com sutileza e o rei-regente gesticulou
preguiçosamente com a mão antes de se sentar em um pequeno e
ornamentado trono a poucos metros de distância do baquete. Ele se
pronunciou depois de uma saudação simplória de boas-vindas, as quais
Luna não entendeu a metade: o monarca se comunicava em humanis, o
idioma de seu povo. Gureryne sequer se importara em perguntar se seus
convidados eram capazes de entender. Não era um problema para o
comandante e os demais superiores, eles tinham esse conhecimento; Luna,
contudo, nunca tivera a oportunidade de aprender — não quando tudo era
privado a ela.
Ela nunca se sentiu tão deslocada em toda a sua vida: Eun-seo não
tinha a permissão de estar presente entre os nobres humanos e draconianos,
não havia sequer sinal de Hyun-seo ou Hanzor e a moça sequer poderia
conversar com a general Rhenna com o marido por perto. Então,
inconformada, buscou o ar fresco das grandes janelas do salão. Lunaysis
caminhou sobre a sacada, inclinando-se sobre o parapeito para contemplar
as margens do Grande Deserto: sonhara muitas vezes sobre as formas que o
mundo de Agëa guardava, o quão diferente os continentes poderiam ser em
relação a eterna primavera de Aumastris.
Era o que ela costumava desejar no passado.
Só que não sentia mais essa vontade de ver o mundo; tudo o que a
draconiana pensava era em relação a essência proibida, a Misairuzame, a
criança em seu ventre, o medo de ser descoberta. Lunaysis respirou com
dificuldade ao elevar a mão no peito. Seu marido estava começando a
desconfiar dela, das luvas que usava para esconder a marca. Ahuriel não era
um tolo, e chegaria um momento que ele faria questão de descobrir o que
tanto ela escondia entre os tecidos.
— O vento vai me proteger... — a moça sussurrou com os olhos
fechados.
Uma brisa repentina beijou seu rosto.
— Luna? — e uma voz familiar a preencheu por inteira, afastando todo
e qualquer medo que tinha naquele momento. A draconiana olhou na
direção da voz, as mãos geladas, e encontrou um amigo que há mais de
cinco anos não via. Hyun-seo estava no portal para a sacada, o rosto negro
parcialmente suado, a armadura empoeirada como se houvesse recém-
chegado de viagem.
A senhora Krimnell sorriu abertamente na direção dele.
— Hyun! — os olhos dela se encheram de lágrimas.
Hyun-seo não mudara nada desde a última vez que o vira antes de se
casar: os mesmos cabelos bagunçados, castanhos; o mesmo sorriso tímido,
preocupado. Ambos cresceram juntos na companhia de Hanzor, eram
amigos inseparáveis, mas foram separados pelo acaso, a vida, os
compromissos. O cavaleiro negro se aproximou dela depressa, mas não
como costumava na infância. Eram adultos agora, as regras eram diferentes
das quais tinham quando eram crianças e sequer um abraço seria permitido
entre ambos.
— Você... mudou. — o draconiano murmurou sem jeito. — Você
cresceu bastante desde aquela primavera.
— Talvez eu tenha crescido alguns centímetros... — Luna sorriu na
direção dele, desejando poder abraçá-lo como costumava quando era
pequena. Ele sempre a comparava com um carrapato na infância, grudada
nele ou no primo quando sentia medo, o mesmo medo daquele momento.
— Hanzor veio com você? Eu estou com saudades dele também.
— Ele vai chegar em breve... sabe como ele sempre costumou se
aventurar um pouco mais que nós. — Hyun-seo coçou a cabeça, inquieto,
enquanto a observava. — Soube que está grávida... Espero que esteja feliz.
Eu fiquei surpreso quando meu pai contou que estava no continente, pensei
que o comandante a deixaria em Aumastris por causa da criança.
— Ahuriel está ansioso pelo herdeiro... acredito que ele tenha me
trazido por isso, mas estou feliz sim, Hyun-seo, obrigada. — Luna se
esforçou para sorrir. Um silêncio repentino os abateu, tantos anos, tanto o
que dizer e contar, tão pouca coragem de falar. Cinco anos eram cinco anos
afinal; e apesar das mudanças parecem nulas na expressão do draconiano, a
moça sabia que muito havia se perdido no relacionamento deles, na
amizade que tinham antes.
Ela observou o chão, nostálgica.
Eram como se fossem estranhos, um para o outro.
— Luna. — e Hyun-seo a arrancou daqueles pensamentos. — Você
está linda.
O rosto dela ficara estranhamente quente.
— Eu queria... — ele continuou, mas fora interrompido.
— Lunaysis! — a voz grave do comandante chamou a atenção de
ambos. A draconiana não soube como reagir a nenhuma das manifestações
daquele momento: primeiro as palavras de seu amigo, cheias de um
sentimento que aquecera seu coração; depois seu marido, quem a chamara
pelo nome a primeira vez... em cinco anos de casamento. A senhora
Krimnell observou o rosto de Hyun-seo, despediu-se silenciosamente e
caminhou depressa na direção de Ahuriel.
O coração dela palpitava intensamente.
C A P Í T U L O T R I N TA E C I N C O

NAS ASAS DA LOUCURA

TU ESTÁS MORRENDO.
Só que Yanaamahka não queria morrer — ela não podia morrer; e o
medo da escuridão eterna a fez despertar embriagada pela dor. Seu corpo
permanecia atirado contra o próprio sangue, os escombros do templo
espalhados ao redor sobre uma fina camada de poeira negra. A Estrela da
Noite se encontrava em um estado deplorável, vulnerável, que sequer seria
capaz de se defender se o draconiano a encontrasse... e desejava
profundamente que o ceifador houvesse morrido naquela queda.
A queda era culpa dele, a lança em suas entranhas era culpa dele.
A morte era pouco para o que ele merecia.
Yanaamahka tentou apoiar o frágil corpo humano com os braços,
buscara os resquícios de força que tinha; e não conseguiu — não quando
uma dor monstruosa lhe atingiu por inteira. Vomitou. Caiu, a lâmina
draconiana reverberando no interior de sua carne. Ela observou o ferimento
e quase colocou o estômago para fora diante da imagem: a arma de
Demétrius não apenas atravessara sua barriga como infeccionara a região
com algum veneno potente. A pele estava roxa, morta, quase necrosada... o
mesmo ferimento que provocara a morte do dragão que a salvara dos
draconianos naquela noite. A Estrela da Noite conteve o grito de dor em sua
garganta, mordendo os lábios e pensando em um modo de tirar a lança de
seu corpo.
Tu não irás conseguir sozinha, a voz de Mahoutsukai ecoou.
Yanaamahka sentiu um súbito desejo de mandar a entidade de safiras para
longe, qualquer lugar escuro e desgraçado, por tê-la deixado se ferir tão
gravemente durante a batalha contra o draconiano. A mulher-dragão sequer
era capaz de respirar direito, seu pescoço estava inchado e as marcas da
pressão dos dedos de ceifador a sufocavam aos poucos. O fogo de safira
não poderá curá-la... não com o aço de cristal na tua carne. Ele inibe meu
poder e contém um veneno perigoso para dragões, morrerás em breve se
não o tirar.
A Estrela da Noite arrastou seus dedos humanos pelos escombros,
agarrando parte da lâmina enterrada em suas costas. Somente o toque de
seus dedos fez a dor avassaladora dominar o corpo e fazê-la berrar de raiva,
fúria. Sangue fresco verteu novamente da ferida, e a quantidade de líquido
viscoso ao redor dela demonstrava a situação difícil que estava. Se
continuasse perdendo sangue de tal forma, ela não acordaria, não resistiria.
O draconiano. Ele está vivo.
Yanaamahka engoliu parte da dor.
Ele é tua única alternativa.
Ela nunca o ajudaria — não depois de tudo. A asa quebrada, a
violência, as palavras odiosas. Tudo estava errado desde o dia que
Demétrius a encontrara naquela floresta. Se não fosse por ele, Yanaamahka
poderia estar voando, desbravando o mundo do alto. É arriscado, entendo;
e também entendo que se tua vida perecer, a minha existência terá o mesmo
destino. A voz de Mahoutsukai se tornou mais distante, fraca, influenciada
pelo estado da estrela. Tu não queres morrer aqui, herdeira; e eu, como tu,
tenho o mesmo desejo. Encontre-o antes que o veneno do aço de cristal se
torne irreversível.
— ...Eu não posso... não quero. — Yanaamahka resistiu ao pedido,
inconformada, frustrada por não existir outra alternativa.
Então tu queres morrer nesta escuridão?
Desgraçada, era o que a mulher-dragão gostaria de ter gritado com tudo
que restava de sua voz. Mahoutsukai era tão mau humorada quanto ela,
ambas dividiam semelhanças; e talvez a entidade estivesse com tanto medo
como a estrela de desaparecer, de se fragmentar e se perder na escuridão do
templo. Yanaamahka praguejou mentalmente duas ou três vezes mais, a
lâmina dançando em sua carne, enquanto se esforçava para tirar os
escombros de seu caminho. Ela rastejou então, os fantasmas da
inconsciência indo e vindo, o cheiro de sangue descendo por sua garganta.
Um gemido abafado e familiar ecoou entre os escombros e escuridão.
Era o draconiano — ferido e quebrado em algum lugar do ambiente.
Yanaamahka não imploraria pela ajuda dele, seu orgulho era uma besta
indomável, mas também não morreria naquele templo. Ela escaparia e
depois culparia a deusa de safiras também por tê-la enfiado naquele fim de
mundo.
Yanaamahka seguiu o som, a respiração lenta que se misturava ao
movimento contínuo de água entre as paredes. Ela mordeu os lábios a cada
vibração da lâmina em suas costelas, o veneno do aço de cristal era cruel,
eficaz, uma estratégia inteligente dos draconianos para caçar dragões. A
mulher teria sucumbido perante a dor se os fios negros de Demétrius não
houvessem surgido diante seus olhos dourados: o guerreiro estava
parcialmente desacordado entre os escombros, o braço deslocado torto ao
lado de seu corpo. A perna direita dele estava imobilizada por uma placa de
pedra — tão pesada capaz de triturar os ossos dentro de sua pele. A imagem
causou segundos de satisfação em Yanaamahka: lá estava o maldito
ceifador, enfim, destruído, aos pedaços como merecia. Mas precisava dele,
por isso rastejou, trincando os dentes. A cada movimento dela, a lâmina
rasgava mais sua carne por dentro. A arma era pesada, dolorosa, tão
semelhante ao homem que a empunhava.
Demétrius abriu os olhos então: um negro, um cinzento — cores que
lentamente se tornavam opacas. O draconiano riu com desdém ao vê-la. Ele
observara a lança, o sorriso de satisfação ao perceber que acertara o golpe
final antes de caírem.
— Não existirá vencedores nessa batalha... Estrela da Noite. — o
homem murmurou com dificuldade, banhando de escuridão e poeira, os
dentes manchados de vermelhos, a grossa cicatriz acentuado a corrupção
das palavras dele. Era quase difícil observar Demétrius de perto.
Yanaamahka cuspiu sangue na direção dele. Como se ela fosse se
deixar morrer com ele, era o que queria ter dito e não o disse por que o que
lhe restava de resistência estava por um fio de se acabar, segundos entre a
consciência e a inconsciência. Ela sucumbiu perante a dor e caiu em meio
ao próprio sangue, as dores reverberando por seu âmago.
A Estrela da Noite deslizou os dedos pelo chão.
— Mahoutsukai... — e sussurrou com o que tinha de voz.
A presença da deusa se manteve distante.
— Mahoutsukai! — e gritou com o que não tinha quando seus dedos
encontraram os do draconiano, a expressão dele tão negra quanto a morte.
Só então a energia azulada do Fogo de Safiras de acendeu no peito dela:
dançou na liberdade e iluminou o ambiente com seus fragmentos de luz
incandescente. Yanaamahka sentiu cada pequeno fiapo de sua vida se tornar
um bloco de gelo, perdeu o calor, as cores, o mundo. Era a primeira vez que
via as consequências de seu poder... a crepitação enfurecida e também
suave. A chamas azuladas caminharam sobre a pele humana dela e
saltitaram sobre a draconiana dele. Demétrius sentiu a essência em seu
íntimo, as vibrações e vozes que sussurravam palavras que ele não
conhecia.
Então cada músculo do guerreiro se tencionou.
Um estalo — e o braço dele retornou à posição simétrica, não mais
deslocado.
Um gemido — e a visão dele se iluminou.
Um suspiro — e sua perna imobilizada e fragmentada se moveu
perfeitamente.
O fogo azul se tornou uma pira enorme diante dele, transformando
todos os escombros ao redor em cinzas. Aquela era a maravilha de um
poder esquecido: a benção do fogo safiras, os antigos chamavam, uma
benção proibida e temida por todos os draconianos que viviam em Agëa —
e o general Demétrius jamais fora um deles. A essência era quente, sutil e
acolhedora. A Estrela da Noite usara de seu poder para livrá-lo das vigas do
templo, sussurrando com esforço antes de apagar complemente:
— ...Não me deixe morrer. — e ele não soube a quem a mulher-dragão
se manifestava, se a ele ou a divindade no interior dela.
O draconiano se levantou então: tão facilmente, tão renovado. Era
como se houvesse nascido de novo, como se houvesse sido arrancado mais
uma vez do ventre materno e lançado ao mundo gelado de Nothumbria.
Demétrius observou a escuridão, sombras que cresciam e se aproximavam
dele; depois, para o corpo desacordado, inerte, diante dele.
Lá estava finalmente sua oportunidade de exterminar a penúltima
estrela.
O general sorriu psicótico.
— Você escolhe as pessoas erradas para confiar, Estrela da Noite.

Por favor esteja bem, a voz do pequeno tigre sussurrou e soprou toda a
escuridão... os pequenos fragmentos de vazio que sobrevoavam a mente da
Estrela da Noite pelos segundos, minutos ou horas que lutara contra a
inconsciência. Tiggrë observava o céu, pedindo aos deuses-animais que
acreditava, clamando que eles o ouvissem e a protegessem. Se aquilo era
uma verdade presente na realidade ou se os pensamentos do menino
estavam conectados com os dela, a mulher-dragão não tinha sabia
exatamente. Mas esperava que fossem reais, a voz do humano era como um
calmante para a existência dela. Os monólogos, as histórias e a proteção
desnecessária do humano começavam sutilmente a se tornar parte dela.
Porque ele lhe dera um nome, um sorriso, uma atenção que ninguém,
desde então, oferecera. Tiggrë, a Estrela da Noite se viu murmurando para a
escuridão e, repentinamente, seu corpo se tornou mais leve. Então, numa
súbita dualidade de sensações, Yanaamahka despertou nos escombros do
templo.
No mesmo lugar: a dor estava tão presente quanto nos minutos ou
horas anteriores. A respiração era dificultosa e o simples movimentar de
seus pulmões humanos, enfraquecidos pelo ferimento, causavam uma onda
de sensações negativas, avassaladoras; e ela não suportou o cheiro que
sentiu do próprio corpo. Era um misto de podridão, sangue e urina. A
mancha arroxeada ao redor da lâmina havia crescido consideravelmente,
enrugando a pele com o veneno do aço de cristal. Yanaamahka moveu os
olhos com dificuldade e encontrou os do draconiano, heterocromáticos.
Leto Demétrius estava sentado sobre uma rocha em pedaços, as mãos
inquietas jogando pedras para o alto.
Ele a observava em silêncio antes de se pronunciar:
— Você está finalmente morrendo. — e a voz dele era vazia de
sentimentos.
A Estrela da Noite gemeu em protesto, esperando que o draconiano
fizesse o mesmo por ela: que a libertasse daquela lança antes que fosse
tarde demais, mas a raça era imprevisível. Sem honra. Demétrius
provavelmente a veria morrer e não a ajudaria... e tudo teria sido em vão.
Era o que ele sempre desejara, na verdade, ser o ceifador da penúltima
estrela.
— Eu a analisei de perto enquanto estava inconsciente... — o general
draconiano, indiferente ao modo que ela se contorcia no chão gelado,
levantou-se e arremessou as pedras na escuridão. — Meus pensamentos me
corroeram, meu sangue ferveu e você se fosse capaz de imaginar o que
quero fazer com você, não teria me ajudado. Eu posso fazer o que quiser...
— e ele chegou mais perto. — ...e ninguém virá te proteger.
— ...você fala demais. — ela respondeu dolorosamente.
Demétrius flexionou o joelho para ficar próximo dela, no chão.
Ele não piscou em nenhum momento.
— Só não o fiz ainda porque esse maldito lugar só funciona com a
merda da sua vida. — e a agarrou pelos cabelos curtos. Yanaamahka
mordeu os lábios com a intensidade dos dedos dele, gemendo. — Então não
pense que estou fazendo algo por você porque me ajudou, vadia desgraçada.
— Demétrius largou a cabeça dela e se levantou.
Ele a observava de cima.
— Somente observe o que eu posso fazer com seus ossos. — a mão
dele envolveu o enorme cabo da lança penetrada das costas da mulher-
dragão. Ela sentiu o peso em sua carne, a pressão, o aço. Então o rosto do
homem ficara vermelho com a força que usara para partir haste da lança em
duas: a parte menor continuou na pele dela, a maior, na mão dele.
Yanaamahka sentiu cada vibração do quebrar em seu interior, a vontade de
gritar e implorar que o desgraçado parasse e deixasse sua maldita lança
parada, imóvel nela. Só que a estrela não gritou, resistiu com os dentes
fazendo seus lábios sangrarem, as novas e velhas feridas vertendo tanto
sangue que a deixara tonta.
Demétrius arremessou a parte maior da lança no ambiente.
— Vai sangrar até a morte se eu tirar o resto. — e um sorriso de puro
êxtase estampava a expressão dele, o draconiano sorria ao vê-la sofrer,
quase urrar com o padecimento imposto pelos ferimentos.
— Não... — Yanaamahka sussurrou gemendo. Se a sua essência era a
cura do mundo, se o seu Fogo de Safiras havia fluído pelas veias
draconianas e o renovado, o poder também a ajudaria. Era o que
Mahoutsukai lhe dissera: as safiras lhe protegeriam nos momentos mais
críticas.
Mas há um preço, o coração da Estrela da Noite quase parou ao ouvir a
deusa. Só se pode dar vida em troca de vida... e o Fogo de Safiras
consumirá cada resquício de sua vida até que não reste mais nada.
Yanaamahka estremeceu e ignorou as consequências. Ela não precisava
viver no futuro, era o passado que lhe importava, assustava, cativava; então,
escondendo a presença da divindade na parte mais escura de seus
pensamentos, a Estrela da Noite aspirou, transpirou, murmurou.
Mahoutsukai, e as chamas vibraram dentro de seu peito.
— Depressa! — a mulher-dragão disse entre os dentes para o
draconiano que observava atentamente. Demétrius permaneceu um curto
período de tempo quieto, estudando suas próprias ações. Ele não era, e
nunca seria, nenhum cavalheiro: as mãos dele eram ásperas demais,
descuidadas demais, mãos que não conheciam o mínimo de afeto. O
draconiano se ajoelhou diante a estrela e a mudou de posição para que o
restante da lâmina estivesse em seu alcance. Então, ele apoiou as costas
dela na perna dele; e Yanaamahka fechou os olhos diante o ceifador, a
brutalidade de cada movimento ressonava pelos músculos dela. Era
constrangedor e humilhante precisar da ajuda de quem ansiava por sua
morte.
Yanaamahka abriu os olhos e encontrou os do inimigo. A verdade era
que Demétrius não queria deixá-la morrer tão facilmente: ele mesmo queria
ter o prazer de exterminar a vida dela.
— Reze para seus deuses de merda, Estrela da Noite. — ele disse
enfim.
— Eu não acredito em deuses.
O que ela sentiu no momento em que a lança caminhou em suas
entranhas, não poderia descrever. Era diferente de qualquer ferimento que
tivera ou de uma asa rompida: era a dor de estar viva, era a dor de lutar pela
vida, era a dor de enfrentar o mundo que a desafiava todos os dias para
levá-la a morte. Render-se, porém, descansar num sono eterno e sem
sofrimento, não era uma alternativa. Era um inimigo que ela derrotaria
sempre. A morte não era uma escolha para ela, era um castigo, o
esquecimento. Um purgatório de sonhos despedaçados. Yanaamahka
resistiria. Ela gritou, seus olhos dourados estavam cobertos por lágrimas,
seu rosto estava vermelho e seu corpo inteiro tremia com cada milímetro de
lança que se separava de sua carne. Ela viu o mundo se fragmentar, viu a
luz ir embora, mas se agarrou a todos os resquícios de sanidade e se
manteve consciente até o último minuto.
Porque ela resistiria.
A lâmina saiu junto de uma torrente sangue e a Estrela da Noite urrou
porque permanecia viva, precisava continuar viva. Suas mãos trêmulas
tatearam depressa o buraco em sua barriga. Mahoutsukai, ela sussurrou,
dando vida para gerar vida. As chamas azuladas brotaram de seus dedos e
mergulharam na carne, roubando o calor de seu corpo e, por fim, a sua
consciência.
Demétrius acompanhou as chamas surgirem e desaparecer azuladas
diante seus olhos, cores vibrando e dançando. Ele largou o restante de sua
lança no chão, a lembrança de quem era e de onde viera, o que fora e o que
se tornara. Um pedaço corrompido de destruição que se deleitava com as
novas sensações que corriam por seu corpo: mais fortes, mais intensas
desde o toque de safira. A essência lhe dera uma sensação estranha como se
houvesse sido forjado de novo. Era bom, intensamente bom. Ele estava em
vantagem, seus músculos rugiam e seu sangue fervia, era capaz de matar a
Estrela da Noite com uma mão, arrancar seus membros e cumprir seus
desejos mais cruéis. Ela estava inerte a sua frente, desacordada e banhada
de sangue, vulnerável como uma caça. O draconiano estalou o pescoço e
cruzou os braços. Torturas eram mais deleitosas com vítimas conscientes; e
ele não esperara o descanso da Estrela da Noite, não quando ela era a chave
para que o lugar acordasse. A escuridão do ambiente não o incomodava,
mas, sim, a atmosfera. Era sombria e carregada, ambos estavam numa
câmara fechada entre quatro paredes com um tênue som de água em
movimento. Eram passagens miúdas que circulavam a sala e se ligavam ao
chão e paredes, desaparecendo em caminhos que levavam a áreas além
daquela.
Demétrius não se interessou em descobrir o mistério da água, sua
intenção era encontrar uma saída e não obteve sucesso. Tudo o que seus
olhos viram foram marcas em uma das paredes, formas que se uniam e
formavam dizeres.
Drago’skar: linguagem de dragões.
Provavelmente a Estrela da Noite conhecia.
O ceifador caminhou até ela. O cheiro não o agradou, era pior que o
seu: sangue e suor. Uma mulher que fedia pior que um homem. Ele decidiu
que acordá-la com os pés fosse a melhor opção. Deu-lhe três ou quatro
chutes nas pernas, nem forte ou fraco, mas o suficiente para fazê-la
protestar com um gemido de sofrimento. Yanaamahka abriu os olhos com
relutância, perdida entre o mundo dos sonhos e o da realidade. Ela estava
em pedaços. Seu corpo inteiro parecia mais pálido que o habitual, os lábios
estavam rachados e o dourado, um sol fraco e sem brilho.
— Levanta, porra. — e ele sequer pensou em estender a mão para
ajudá-la. Yanaamahka se moveu devagar, as mãos tremiam, e usou parte dos
escombros para se apoiar e firmar as pernas.
Ela caiu cinco vezes antes de permanecer em pé: parte da barriga dela
estava exposta onde a lança rasgara a carne e as roupas. A pele continuava
horrenda, tons arroxeados e vermelhos se mesclavam sobre o ferimento
cicatrizado superficialmente pelas chamas azuis, sob o sangue coagulado.
Yanaamahka colocou a mão no local antes de observar o ambiente.
— Nos tire daqui. — e ele apontou em direção as escritas. — Agora.
— Não me diga o que fazer. — a mulher-dragão respondeu com
esforço. A reação do draconiano viera um segundo mais tarde: Demétrius
sorriu, um sorriso perturbado, as sombras do ambiente acentuando sua
cicatriz, os olhos heterocromáticos e a expressão doentia. A Estrela da
Noite só teve tempo de sentir o estalo quando, então, o punho draconiano
acertou seu nariz.
Creck, os nós dos dedos dele provocaram.
Yanaamahka instintivamente correu as mãos para o ferimento, sangue
escapando pelos dedos e pingando depressa, manchando seu pescoço, os
resquícios de suas vestes. Ela caiu desengonçada entre os escombros,
imaginando que as ações draconianas terminassem ali, mas não — um nariz
quebrado não contentaria o ceifador de espinhos. Demétrius a chutou três,
quatro vezes, indiferente ao vômito de sangue que a Estrela da Noite,
tremendo, cuspia.
— Para aprender a se colocar no seu lugar. — ele disse após o sexto
pontapé.
— Vai... — as palavras foram entrecortadas pelo líquido rubro, os
olhos se fechando lentamente. — ...para o maldito fim do mundo... seu
desgraçado!
O sétimo golpe na cabeça a apagou por completo.
Leto Demétrius não perderia mais um minuto naquele templo de
merda: ele agarrou o corpo inconsciente da Estrela da Noite e o atirou sobre
o ombro, as mãos negligentes em relação ao estado dela. Ele poderia não
entender um único sinal das escritas nas paredes, mas se aproximou delas
mesmo assim — sentindo o sangue da estrela escorrer quente pelo pescoço,
o coração dela bater lentamente no peito. A proximidade, então, causou
uma súbita mudança nos símbolos como se o corpo da herdeira os fizesse
reagir. Drago’skar se iluminou em tons de safira em um segundo e uma
passagem de pedra se abriu no outro: o draconiano observou com uma
expressão dúbia, o cheiro de bolor escapando pelo portal e a escuridão a
diante. O movimento das águas tornou-se mais intenso.
Eles haviam caído antes; e provavelmente estavam abaixo do nível do
mar.
Que ideia mais desgraçada a de um templo de fogo submerso em água.
O general avançou pela passagem com a estrela nos ombros —
nenhum resquício de luz ambiente os envolvia como se a Noite Eterna de
Nothumbria houvesse se derramado sobre o interior da construção. Era
gelado. Era denso. Tudo o que o draconiano era capaz de identificar eram os
reflexos das cores de safira que brotavam sobrenaturais da penumbra,
formando uma linha linear e fraca ao longo do corredor estreito. Demétrius
deu mais dez passos e parou.
Não porque queria: mas porque diante dele outras dez novas passagens
se revelaram.
Ele cuspiu no chão e praguejou.
— Porra. — os lábios rachados murmuraram.
C A P Í T U L O T R I N TA E S E I S

SOB NENHUM SOL,


NENHUM CÉU

YANAAMAHKA SENTIU O SANGUE CORRER em sua cabeça.


A consciência ia e vinha, o mundo se iluminava e apagava. A presença
de Mahoutsukai estava distante em seu interior, os sussurros dela não mais
a encontravam, tinha quase certeza que era pela quantidade de energia que
usara para fechar sua ferida e recuperar o draconiano. A Estrela da Noite
abriu os olhos e percebeu que seu corpo estava suspenso sobre alguém, as
pernas do estranho se moviam depressa pelo corredor parcialmente
iluminado por estranhas luzes azuis. Demétrius a carregava; e o fato a
incomodou e resultou numa raiva repentina que a fez se debater sobre o
ombro draconiano. As mãos dele a prenderam com mais força, machucando
a pele, mas a soltaram em seguida de encontro ao chão.
A dor da queda lhe provocou um gemido contido.
Yanaamahka observou o redor: o corredor era gelado e estreito, as
paredes úmidas e negras. Símbolos antigos foram desenhados, formando
uma mensagem desconhecida para ambos.
Demétrius estava com o rosto parcialmente oculto nas sombras do
corredor, partículas de suor escorriam sobre as cicatrizes. A expressão dele
era de puro ódio e impaciência como se não estivesse satisfeito com o
resultado da batalha — como se o fato de depender de sua caça o
corrompesse em cólera. Um alívio para Yanaamahka: pelo menos ele não a
mataria enquanto não encontrassem a saída, mas a espancaria o quanto
achasse necessário para se sentir satisfeito. O nariz quebrado dela e os
hematomas arroxeados no rosto eram uma prova do que ele era — e seria
— capaz caso fosse provocado. Ela respirava pela boca com dificuldade,
uma mão sobre o ferimento na barriga.
— Estamos andando em círculos faz horas. — o draconiano murmurou
com desprezo enquanto a observava de cima. — Esse templo é a porra de
um labirinto, então pergunte a sua deusa como sair daqui.
Yanaamahka respirou com dificuldade.
A água corria dentro da parede.
— Levanta logo. — o general gesticulou para os símbolos. — Dá um
jeito de descobrir o que isso significa.
— Mahoutsukai. — a mulher-dragão tentou chamar a deusa ou atiçar o
poder que dormia em seu interior. Só que nada aconteceu, nada além da
expressão de fúria draconiana. Ele não estava contente e demonstrou seu
humor ao forçá-la se levantar grosseiramente. Demétrius a segurou pelos
cabelos, a empurrando na direção dos símbolos. — Eu não sei ler! — ela
grunhiu debilitada.
— Um dragão que não sabe ler o próprio idioma? Você é uma
vergonha para toda sua maldita espécie.
Yanaamahka não respondeu; não depois de um sussurro gelado lhe
ouriçar os pelos da nuca: a escuridão no corredor lhe chamava. Ela olhou
para o caminho sem fim a frente e o draconiano fizera o mesmo.
— Por aqui. — ela disse e seguiu, as mãos apoiadas nas paredes para
aguentar as tonturas que a perturbavam desde o momento que acordara.
Demétrius a seguiu na retaguarda, os passos cautelosos e olhos atentos.
Ambos seguiram na penumbra por incontáveis minutos e o mesmo
murmúrio a acompanhou. Era como se alguém lhe estivesse guiando,
chamando, para onde deveria estar. Yanaamahka confiou naquele sussurro,
no modo que ele fazia sua pele humana se arrepiar. Corredores surgiram,
caminhos se traçaram e as mensagens se repetiram ao longo das paredes
como se os símbolos seguissem uma espécie de padrão.
Yanaamahka parou de repente.
Demétrius também.
Ela observou os símbolos, os formatos, as imagens; a voz em seu
interior continuou sussurrando. A mesma mensagem também — um idioma
que lhe era desconhecido e ao mesmo tempo conhecido.
A Estrela da Noite tocou os símbolos nas paredes e seus dedos
formigaram.
Duas palavras surgiram de repente.
Entonação; e ela fechou os olhos e seus dedos deslizaram pelas
marcas. Formas, e sentiu os símbolos, a estrutura. Então, abriu os olhos e
percebeu que as escritas pareciam em movimento: dançavam em meio a
ilusão que a própria estrela construíra.
Fogo, o primeiro significado viera. Benção e Vento, a entonação era
leve como a brisa da Floresta Viva nas noites de verão. Então, seus dedos
deslizaram por símbolos maiores, mais robustos e grosseiros: devastação e
tempestade. Depois, sussurradas de novo. As mãos seguiram as mensagens
até o momento que a sentiu se repetirem e repetirem. Era como se a pessoa
que houvesse delineado tivesse a intenção de ressaltar o mesmo para que as
palavras reforçassem uma verdade única:
O fogo, à benção; a culminar devastação—
e da harmonia do vento, surge,
tempestade.
O caos, cristal;
A morte, de sangue.
Yanaamahka repetiu as palavras em voz alta.
— Eu não entendo o que significa... — e sussurrou para si mesma.
— Vadia burra da porra. Presta atenção: existem três poderes
amaldiçoados... — o draconiano exclamou irritado enquanto observava os
sinais. — para as três vadias esquecidas: Mahoutsukai, Misairuzame e
Maetsumina, respectivamente, o Fogo de Safira, o Vento de Esmeralda e o
Cristal de Rubi. Estrelas da Noite sempre nascem com a essência;
Draconianas, não, mas há chances de herdarem no nascimento.
Yanaamahka observou o rosto do homem por segundos. A mãe dele era
uma mulher amaldiçoada — queimada como todas as outras eram.
— Dizem que o mais poderoso dos três é o cristal, ele representava a
água em sua forma solidificada. — Demétrius dissera como se houvesse
presenciado a fúria da essência de perto. — O fogo e o vento são elementos
de proteção, um cura as feridas e o outro as protege. Mas eles podem ser
mais que isso, ou você acha que o império mata as mulheres amaldiçoadas
porque gosta? — e o ceifador sorriu com desdém. — Eles as temem.
Ela lembrara de como o seu poder afastara o draconiano no passado,
como as chamas azuis salvaram a vida dela e a de Tiggrë da brutalidade do
ceifador.
— Mas saber disso não vai nos tirar daqui, porra. — o general
esmurrou a parede mais próxima com o punho fechado. — Faça algo,
estrela de merda, estou começando a ficar impaciente e estou com uma
vontade da porra de foder você.
Yanaamahka moveu os lábios para se pronunciar quando percebeu uma
mudança, sutil e lenta, crescer na parede que o draconiano batera: era uma
fissura. A fenda se alongou aos poucos e roubou a atenção de ambos...
porque água começou a esguichar de repente. Não era um vazamento
qualquer, era o que a estrela queria ter murmurando se a rachadura não
houvesse se expandido depressa e cuspido uma quantidade enorme de água
para o corredor. Logo, todo a estrutura começou a tremer e se fragmentar
diante deles.
Demétrius deu um passo para frente.
— Caralho! Corre! — e suas palavras foram seguidas por uma
explosão que lançou a toda a água escondida atrás das paredes. Uma
poderosa onda negra rugiu contra eles, avançando velozmente enquanto
ambos corriam na escuridão. A umidade no corredor não era proposital:
eles estavam abaixo do nível do mar e provavelmente aquele lugar houvesse
sido inundado antes. Um chão enlameado por musgo surgiu, tornando a
corrida perigosa e escorregadia. Yanaamahka quase caiu, os ferimentos
eram a consequência de seu correr desajeitado e doloroso, mas as mãos
draconianas a seguraram antes que ela tombasse. Demétrius a lançou por
sobre o ombro entre os protestos raivosos dela e seguiu em frente sem ter
certeza do caminho do qual se lançavam.
Mas a corrente fora mais rápida que eles: a água negra os engoliu como
um monstro marítimo e os forçou a seguir por onde ela seguia. Yanaamahka
tentava inutilmente se agarrar a qualquer superfície dos corredores, bolhas
de ar escapavam abundantes com seu desespero na correnteza. A visão dela
estava embaçada, o dourado de seus olhos era a única iluminação no breu
sem fim.
Demétrius não estava em lugar nenhum.
Que morresse naquelas profundezas, o maldito. Seria mais fácil vagar
pelo templo sem a presença dele e sem as constantes ameaças.
Yanaamahka acreditou que os corredores não teriam um final quando
uma imensa cratera se abriu diante dela e a correnteza. Então, caiu, mais e
mais, no abismo escuro do templo. A água e seu corpo foram lançadas à um
tanque aquático que fedia: bolor e mofo e podridão. Os pulmões da Estrela
da Noite queimavam.
Precisava encontrar a superfície.
Ela nadou nas trevas, nadou e buscou qualquer indício de luz enquanto
uma familiar dor irrompia de sua barriga: seu maldito ferimento se abriu
para piorar a situação, o estado precário que se encontrava. Yanaamahka
lacrimejou quando os resquícios de ar lhe escaparam e lhe fizeram tentar
respirar instintivamente. Submersa. Ela engoliu o que podia e não podia de
água — e teria se afogado e morrido naquelas profundezas se os braços
draconianos não houvessem a puxado para a superfície que tanto ansiava. A
mulher-dragão vomitou água e sangue, tossiu desesperada e se agarrou em
todas as partículas de oxigênio que a rodeavam.
Depois recebeu um soco.
— Não ouse escapar de mim, seu lixo de dragão!
Como se ela fosse capaz de escapar nas condições atuais, teria dito e
cuspido nele, mas as tonturas lhe privaram de se pronunciar: a mulher-
dragão correu os dedos contra o ferimento e sentiu o sangue verter. Seus
braços se moveram para alcançar a plataforma ao redor do tanque, no
entanto, fora privada pelo toque do inimigo. Ele a segurou pela nunca e a
forçou na água, mergulhando a cabeça dela. Yanaamahka se debateu
furiosa, mas a força do guerreiro era insana. Demétrius a imobilizou
somente com uma mão e a deixou sufocar por quase cinco minutos — e
quando a trouxe para a superfície, repetiu o mesmo processo até que se
sentisse satisfeito.
A Estrela da Noite aguentou, fervendo de raiva, prometendo fazê-lo
pagar em dobro por tudo.
Ela o quebraria primeiro.
Parte por parte, depois o torturaria lentamente.
Até se sentir satisfeita também.
Ele a levou para a plataforma depois e a jogou no chão, partículas de
sangue vertendo a cada movimento. Yanaamahka tentara pronunciar o nome
da deusa, tentara chamar o Fogo de Safira para lhe ajudar, mas nada
aconteceu e nenhum poder lhe escapara. Ela estava sozinha com seu
ceifador, e ele não se importaria de vê-la sangrar até a morte. Então,
ignorando o olhar cortante dele, a mulher-dragão se esforçou para
pressionar o ferimento enquanto cambaleava para se levantar.
As roupas estavam em frangalhos, vermelhas e úmidas; as dele,
somente molhadas como as longas madeixas negras que tinha. O ambiente
era menos escuro que os corredores: uma passagem aberta se localizava no
outro lado do tanque e uma fraca luz azulada irradiava de lá. A cratera no
qual ambos caíram estava a quase cinco metros de altura e uma cachoeira
havia se formado com a água que vazava pelos corredores. Eles não teriam
como voltar por lá; estavam cada vez mais fundo e mais distante de uma
saída.
Yanaamahka piscou para afastar a tontura e percebeu um vulto
atravessar depressa a passagem, depois outro e mais outro; todos se
aglomerando em frente ao tanque. Um arrepio atravessou a espinha da
Estrela da Noite, eram homens — humanos — de pele cinzenta e enrugada,
barbas longas e esbranquiçadas. Eles olhavam na direção de ambos.
Não, corrigiu-se; era na direção dela, enquanto murmuravam dizerem
em um idioma desconhecido. Não eram seres desse mundo, os anciões
estavam mortos e vivos ao mesmo tempo. Um deles circundou o tanque,
caminhando devagar na direção do draconiano e da estrela. Eles avançaram.
A luz tênue da passagem pela qual os seres vieram revelara a verdade sobre
o corpo deles: era uma imagem, não uma massa física. Espíritos antigos
fadados ao vazio eterno do templo. Yanaamahka o observou se
aproximarem, implorando, cegamente, por uma oportunidade de vida — o
Fogo de Safira era a vida, a morte, o começo e o fim. O homem estendeu
uma mão para os velhos e seus dedos atravessaram-nos, sentindo a onda fria
que emanava daquelas existências. Eram inofensivos, não fariam nada a não
ser clamar por uma oportunidade de receber a essência, suas vibrações, a
fonte de vida. A Estrela da Noite se levantou sem tirar seus olhos dos rostos
que a observavam: escuridão, angústia, aflição.
Ela sentia o que eles sentiam, o mesmo desejo de se libertar de uma
maldição, de agarrar a vida e negar a morte. Enquanto muitos lamentavam a
sensação de estar vivo, da dificuldade de sobreviver; outros, porém,
lamentavam por não terem tido a chance de permanecerem vivos por mais
tempo. Era estranho pensar que os mortos desejavam viver... e os vivos
morrer.
Yanaamahka ignorou os espíritos aglomerados ao seu redor e mancou
em direção a passagem. Demétrius a seguiu, a expressão sólida, o
draconiano não se incomodara com os seres, sequer se assustara, o que a
fazia acreditar que ele talvez houvesse visto coisas piores em vida. Uma
câmara retangular estava além do portal, nenhuma outra porta ou corredor a
diante; as paredes, contudo, guardavam inscrições antigas em três partes e
cada uma possuía um pequeno altar detalhado — o primeiro, na parede
mais extensa, maior que os demais, era detalhado por joias brutas de safira,
o segundo, à direita, com rubis, e o terceiro, à esquerda, esmeraldas.
Yanaamahka se aproximou do maior no centro e observou as mensagens
lentamente, ouvindo os murmúrios dos espíritos que a seguiam. Eles eram
insistentes. A iluminação era proporcionada pelos cristais nos altares, eles
queimavam por dentro como se chamas vivas houvessem sido aprisionadas
no interior.
A Estrela da Noite observou os símbolos, mas não os reconheceu. Não
eram os mesmos de antes. Demétrius um passo à frente e os encarou, o
cenho franzido.
— Por que essa merda está escrita em draconemia?
Yanaamahka se manteve calada.
O homem traçou os sinais com os dedos antes de se pronunciar:
Sou o que chamam de benção.
Mas cuidado, maldição;
porque da minha ausência, a vida, vem a morte.
— O que significa? — a mulher-dragão murmurou com o corpo
latejando, sentindo o ferimento cada vez mais insuportável.
Demétrius se aproximou com mau humor.
— Analfabeta. — ele cuspiu no chão. — O que é a porra de benção e
maldição?
— Não sei. — a resposta alfinetou a instabilidade do homem:
Demétrius segurou os cabelos dela e a fez encarar os símbolos.
Yanaamahka se livrou dele, rosnando. — Não me toca!
— Olhe direito para esses símbolos de merda!
— Se tocar de novo... vou matar você. — e rangeu os dentes, se
afastando lentamente. O ferimento na barriga era um empecilho; e se não
fosse por ele, arrancaria a cabeça do ceifador.
— Eu vou foder você.
Yanaamahka não revidou, não olhou para o draconiano.
Não porque temia, não; mas porque simplesmente não sabia o que
significava foder.
— Fogo de Safira. — e ela se afastou lentamente dele. A proximidade
causava nela arrepios porque a instabilidade do draconiano não era de
confiança.
Yanaamahka caminhou cambaleando ao altar seguinte.
Mais uma mensagem que o homem leu.
Sou o que chamam de harmonia.
Minha beleza, admira;
Minha tempestade, teme.
Vento de Esmeralda: o poder de Misairuzame.
Eles caminharam em direção ao terceiro e último altar:
Sou o que chamam de caos,
Da minha cor, vermelha, eu trago
A destruição e a devastação.
Enfim, os Cristais de Rubi de Maetsumina.
— Por que eles estão aqui? — e Yanaamahka se escorou na parede
gelada ao lado do altar para recuperar o fôlego, os espíritos a rodeando
como se fossem animais famintos. A presença deles lhe causava fatiga,
desconforto e agonia. — Eu queria entender... mas tudo parece confuso.
— Veja. — o draconiano gesticulou para a quarta parede: havia marcas
nela como se uma passagem houvesse sido bloqueada no passado. — Seja
lá o que essas mensagens signifiquem, Estrela da Noite, você precisa dar
um jeito de entendê-las, e então abrir essa porra de passagem.
— Eu não sei como. — e estava sendo sincera. Yanaamahka não sabia
como metade das coisas funcionavam, sequer sabia interpretar palavras. Ela
encarou as mensagens mais uma vez. Cristais de Rubi, conhecia a essência.
A mulher-dragão a presenciara no passado, na infância, o homem que
torturara Klud comandava o poder como se fosse parte dele, de seu sangue.
Sim, o draconiano das recordações evocara o elemento a partir das marcas
vermelhas que manchavam a montanha. Então, causara destruição: ele
cegara o menino e devastara o futuro dele, a capacidade de ver e diferenciar
as cores. — Sangue... — a estrela murmurou.
Sangue também significava caos — que havia algo errado e incerto.
Yanaamahka relembrou a mensagem no altar e moveu os dedos para o
ferimento causado pela lança.
A queda e os chutes do draconiano haviam piorado o estado da
cicatrização, o líquido vermelho escorria entre os dedos dela e pingava no
chão, incansável e quente. Ela retirou os dedos da ferida, deslizando a mão
vermelha sobre a placa de concreto que a mensagem havia sido escrita. O
sangue percorreu os símbolos.
Eles brilharam e formaram uma repentina lasca carmesim sobre o altar.
— Os altares... — Yanaamahka arfou. — Eles precisam ser
alimentados.
A Estrela da Noite se moveu depressa na direção do altar maior — o da
sua essência — e analisou a mensagem diversas vezes: da minha ausência,
a vida, vem a morte. A morte do quê ou de quem? Estariam as palavras
falando de vida? Como então demonstrar vida para o altar? Yanaamahka
suspirou e deixou seus joelhos caírem no concreto. Ela estava em seu
limite, Mahoutsukai não a respondia e o que deveria proporcionar conforto,
o Fogo de Safira, sequer era capaz de cicatrizar o ferimento da lança.
Demétrius a observava com os braços cruzados, o rosto oculto pelos
fios negros. A paciência dele também estava no limite, um deslize dela
poderia significar consequências dolorosas. Ele a espancaria se sentisse
necessidade ou se descobrisse como, sem a presença dela, deixar o templo.
Yanaamahka quase rastejou na direção do altar do Vento de Esmeraldas:
beleza e admira, tempestade e teme. Nenhuma palavra fazia sentido mais.
Ela jamais vira o Vento de Esmeraldas de perto.
Sequer conhecia a natureza da essência ou como a mesma se
alimentava.
— O que pode ser temido e admirado ao mesmo tempo? — ela refletiu.
— Tememos e admiramos tudo que não podemos controlar. — a voz
do homem ecoou pelo ambiente entre o chiar dos espíritos. Yanaamahka
direcionou seus olhos dourados e encontrou os dele, parcialmente negros.
O que não se pode controlar e causa harmonia e tempestade?
Os homens podem ter construído cidades de pedra e espadas de aço
para enfrentar seus inimigos — e para vencê-los —, só que existe um
adversário particular que, em qualquer circunstância, nunca poderá ser
vencido: a natureza. Sua harmonia pode, se admirada, trazer a paz; sua
tempestade, se temida, a destruição. Mas como representar a natureza em
uma escuridão de pedras? A mulher-dragão suspirou por descuido diante o
altar e uma brisa suave soprou contra seu rosto: fragmentos de esmeralda
brilharam, formando um véu transparente. O vento representava a natureza,
sua beleza, sua harmonia, sua força, sua tempestade.
Um a menos — faltava mais um. O altar do Fogo de Safira continuava
uma incógnita. Yanaamahka tentara buscar no vazio de suas lembranças
qualquer indício sobre a terceira essência, nada além de escuridão
sussurrava de volta. A respiração dela se condensava com o ar pesado do
ambiente, os pensamentos trabalhavam, o corpo tremia — e cada vez o
templo ficava mais e mais gelado. A recordação do calabouço viera de
repente, noites frias, fome de companhia.
Era o calor que lhe faltava na época: a ausência deste fazia com que a
ceifadora negra espreitasse na sombra para levá-la para sempre, para
exterminar os resquícios de vida que guardava. Mas também fora o calor
que a mantivera viva. A primeira vez que o Fogo de Safira se manifestou —
ela enfrentava o draconiano na Floresta Viva — Yanaamahka sentira todo
seu corpo se encher de calor para, depois, perdê-lo em um ápice de frio
como se todo o poder que usara houvesse se alimentado do calor dela, do
ambiente, da vida.
Porque o calor era vida e sem ele, a morte.
— ...Calor. — ela sibilou e prendeu suas duas mãos nas laterais do
altar.
Calor, repetiu e algo se agitou dentro dela; pouco a pouco, o frio se
tornou intenso ao redor, nela, à medida em que a temperatura lhe escapava e
corria contra a mensagem no altar: ele roubava o calor dela.
Yanaamahka arqueou o corpo para frente, gelado, fraco, enquanto uma
chama bruxuleante se levantava diante dela, uma chama azul como safira.
Um tremor repentino atravessou a sala antes que a mulher-dragão pudesse
suspirar em alívio.
Ambos, draconiano e dragão, observaram uma nova passagem se
revelar lentamente diante deles — uma passagem que esperava ser a saída
daquele pequeno pedaço de fim de mundo Só que não era.
Um animal de pedra se esgueirou na direção deles vindo do caminho
recém-aberto: chifres, músculos solidificados e uma expressão rochosa. Ele
era similar a um touro, bufava como um, só que duas vezes maior; e seus
olhos, da cor da essência do templo, era a única coisa que não parecia ser de
pedra em seu corpo.
A criatura grunhiu e sua pata dianteira bateu no chão, uma, duas, três
vezes.
Então, avançou, cegamente, os chifres inclinados na direção dos dois.
Yanaamahka e Leto Demétrius só tiveram tempo de reagir.
C A P Í T U L O T R I N TA E S E T E

A ENTIDADE DO FOGO E
DA VIDA

MULHER E HOMEM SALTARAM EM direções opostas.


Ambos não tiveram tempo de pensar; somente reagiram por instinto,
engolindo a dor ao se chocarem contra o chão do templo. Então, a estrutura
balançou: o touro de pedra havia se chocado em uma parede. Era um animal
quadrúpede, os olhos de safira, expelindo uma fúria contida em séculos. Ele
se afastou, as patas de concreto batendo pesadas, escolhendo um alvo entre
os dois — e Yanaamahka era a mais vulnerável naquele instante. Ferida,
sequer era capaz de se manter em pé por muito tempo; as cicatrizes na
barriga começavam a sangrar e não havia uma sombra do poder de
Mahoutsukai por perto. Ela praguejou, suando, a atenção colada no inimigo.
Um movimento, somente um, e tudo se resumiria na corrida desenfreada do
desconhecido.
Yanaamahka trincou os dentes em meio a dor. O draconiano também
não se movia — ele tinha noção do que aconteceria caso o fizesse —, mas
tateou os bolsos para agarrar algo familiar: uma adaga de aço vermelho. A
arma que pertencia a mãe dela. Ele a devia ter pego após a queda, enquanto
a mulher-dragão estava apagada entre os escombros. Olhar para o lado, para
o homem, porém, ocasionou no mínimo movimento que o inimigo estava
esperando. Ele bufou em cólera, inclinou os chifres para frente e correu; o
alvo era a estrela. Ela praguejou, congelada, incapaz de levantar ou
esquivar. Acreditou que sobreviveria ao baque, que o Fogo de Safira iria
recuperá-la depois.
Só que essa possibilidade se esvaiu em um segundo.
Yanaamahka sentiu as mãos draconianas envolverem seu corpo: o
draconiano, rápido como uma lebre, ágil como um gato, correu na direção
dela e a agarrou, esquivando, momentos antes, do impacto com a criatura
rochosa — e Demétrius conseguiu também arremessar a adaga contra o
mesmo, um pouco antes de esquivar. Lâmina e pedra se encontraram então;
o guerreiro havia mirado no olho do inimigo, imaginando que sua perícia
com lançamento seria o suficiente. Mas não, não quando estava no escuro e
parcialmente cego.
A arma passou de raspão.
Ambos rolaram na queda — ela gemendo; ele, soltando um palavrão.
— Você não serve de nada dessa batalha, então saía do meu caminho.
— o homem murmurou sem paciência. A mulher-dragão, no chão, mordeu
os lábios e o ignorou; não iria se afastar ou fugir.
O touro bufou de novo, as patas sempre pisando brutamente no chão,
como se tentasse desmoronar o templo todo. Lascas de pedra caía do teto,
um fluxo de água começava a correr dentro das paredes. Yanaamahka se
levantou, observando o animal preparar um novo avanço. Demétrius,
porém, não esperou, só correu na direção do adversário, saltando com
leveza contra o mesmo — as mãos dele encontraram o chifre, depois se
impulsionaram e deram a força necessária para o corpo do homem se elevar
mais e cair sobre o dorso da criatura. Ela era lenta, ambos haviam
percebido; e nada poderia fazer além de correr de um lado ao outro e bater
em paredes. Com a presença draconiana nas costas, o touro sapateou de um
lado ao outro, bufando e impulsionando o corpo nas paredes.
Demétrius manteve o equilíbrio lá encima. Ele buscava um ponto
fraco, qualquer região que não fosse constituída por pedras; e não havia
nenhuma. O gigante era encaixado por várias formas de rocha, sem
qualquer resquício de um corpo menos sólido. Enquanto o draconiano
perdia tempo e parte do fôlego, Yanaamahka cambaleou para alcançar a
adaga de sua mãe no chão, sangue pingando a cada novo passo. Não
sobreviveria se não encontrasse uma forma de curar o ferimento
plenamente, e era impossível sem a presença da deusa.
Yanaamahka perdeu parte da noção do que acontecia ao seu redor
quando agarrou a adaga do chão — e só percebeu sua falta de atenção
quando o draconiano berrou, o touro saltitando na direção dela. Perto
demais. Perigoso demais. A Estrela da Noite sentiu, então, o fluxo de
energia necessário para fazer o corpo humano se fragmentar e dar espaço ao
dragão. Ela se transformou e seu corpo escamado se chocou com o rochoso
do inimigo; e sentiu cada sensação dos chifres dele. O baque fizera os
corpos se embolarem, ambos caíram depois, rolando no concreto.
— Dragão burro! — Demétrius gritou com o rosto vermelho. Ele não
estava mais sobre o inimigo, saltara antes que o impacto também lhe
atingisse. A palavra a incomodou, era como um dedo na ferida dela.
Yanaamahka rugiu furiosa, as presas a mostra, as garras raspando no corpo
de pedra. O touro urrou, mas não de dor, ele estava tão irritado quanto ela
— e a estrela quase pensou na possibilidade de convencê-lo a derrotar o
ceifador de espinhos. — Ele não tem nenhum ponto fraco!
O dragão se afastou depressa do inimigo que se levantava, a dor da asa
reverberando por sua espinha. Yanaamahka engoliu o rancor e rugiu de
novo.
Como eles derrotariam um inimigo de pedra sem uma arma?
Fogo. Yanaamahka precisava de fogo.
Ela não sabia sua idade exata, mas Tiggrë dissera que qualquer dragão
como ela, os primeiros, aprendiam suas chamas no ague dos dez anos, o que
a fazia estar atrasada em vários anos, o abandono era um dos culpados ou a
ausência de quem pudesse ensinar. Ela precisava aprender, tentar. Caso
contrário, se nunca arriscasse, seria uma Estrela da Noite que, além de não
voar, também não conhecia o próprio fogo. Yanaamahka encheu o pulmão
de ar quando ouviu o avançar o adversário, correndo enfurecido em sua
direção. Ela levantou os olhos dourados para ele, para as safiras; e, então,
buscou o calor interior. Fogo. Seu focinho entreabriu, uma luz tênue cresceu
em sua garganta. Mas o mesmo gosto de fumaça e cinza viera. Mais nada.
Ela tossiu guturalmente antes de receber o peso total do inimigo: primeiro o
impacto, cada sensação deslizando por suas escamas negras; depois, o
arremesso, a fêmea, indefesa, rolou pela sala do templo, asas e cauda e
pescoço se enroscando no movimento. Então, batera contra a parede e caiu,
vagando entre a consciência e a inconsciência.
Escuridão. Medo. Impotência.
Ela observou a criatura de longe.
Yanaamahka arrastou o focinho pelo chão. A incapacidade lhe
corrompia sutilmente; teria tudo uma relação com a deusa? Seria ela quem
controlava o fogo? A mulher-dragão não queria acreditar... porque ela era o
dragão, ela deveria controlar o fogo. Demétrius avançou contra o animal de
novo, os cabelos negros dançando nas costas dele em uma sincronia
perfeita; os movimentos, as habilidades e perícia. O draconiano era o que
ela não era: um ser coberto de coragem e com um espírito de caçador — e
perto dele, seria sempre a caça. Yanaamahka o observou, analisou, como o
general se movia, como ele usava suas capacidades mesmo envolto por
escuridão, mesmo parcialmente cego. O guerreiro juntou a adaga em sua
corrida, a manuseou e a arremessou, dessa vez preparado.
A lâmina acertou o centro do olho do touro. A agonia do animal
preencheu as quatro paredes; ele direcionou seus chifres contra todas elas,
acertando o templo e urrando. A arma ficara lá, alojada, enquanto o
draconiano saltava, impulsionado, uma segunda vez para alcançar o dorso,
lugar que se sentou como se estivesse montado em um cavalo. Demétrius
arrancou a adaga do olho ferido e, sorrindo com êxtase, acertou o segundo,
cegando o adversário.
— Tente de novo! — ele berrou da posição que estava, as mãos presas
na carapaça rochosa da criatura para se manter sobre a mesma. — Rápido!
Fogo, ele se referia; e Yanaamahka elevou o focinho, forçando as patas
dianteiras a aguentar o peso de seu corpo. Ela tentaria de novo e de novo,
milhares de vezes se fosse necessário. Porque ela era o dragão, seria sempre
o dragão — e não importava que tipo de imagem estava. Sua essência não
mudaria; e para sobreviver em um mundo corrompido, um dragão precisava
de seu fogo, seu poder; e sem ele, seria somente a caça e não um caçador.
Yanaamahka inclinou o pescoço contra o inimigo, contra Demétrius
também.
...e o calor se acendeu nela.
Era o fogo, o seu fogo — o fogo de uma Estrela da Noite: azul, celeste,
de safira. As chamas deixaram sua boca numa torrente que deslizou por
todo o ambiente, iluminando a escuridão, o mundo. Os espíritos que o
cercavam se desmancharam em cores cinzentas quando as labaredas
avançaram vorazes; tornaram-se, então, um sopro brilhante. Demétrius
saltou e esquivou com um segundo de atraso, recebendo parte do calor em
seu braço direito, ombro e pescoço: a roupa dele queimou sem sequer tocar
no fogo, carbonizando e grudando na pele. A intensidade fez bolhas negras
e avermelhadas crescerem; e se ele tivesse demorado mais um segundo, as
consequências teriam sido avassaladoras.
Ele teria recebido o mesmo fim da criatura.
As pedras que formavam o corpo rochoso do inimigo receberam o
Fogo Azul diretamente, em cheio; e em um palpitar de coração, nada restou,
nada além de uma lembrança borrada na escuridão. As chamas queimaram,
insistentes, o chão ficara negro e a temperatura de todo o ambiente se
elevou.
Yanaamahka respirou com dificuldade — o corpo inteiro gelado —
enquanto observava o ceifador: ele precisara arrancar parte da cota de
malha e túnica que vestia sobre o tronco. O cabelo dele chamuscara no lado
direito, mechas negras pendiam enroladas no ombro queimado, mas o pior
era o braço, no qual o tecido da derretera. Demétrius, no entanto, não
expressou sua indignação; pelo contrário, ficara indiferente ao observar a
estrela, pronunciando xingamentos em outro idioma em meio a dor que
irrompia das queimaduras. Yanaamahka o ignorou, sentindo as
consequências do impacto, cada ferida em seu corpo, reverberar durante a
transformação para a imagem humana.
A passagem estava finalmente livre para avançar.
Um lance de escadas em espiral se revelou no caminho, cada degrau
marcado por um símbolo que representava as chamas. A Estrela da Noite
precisou de paciência, calma e tempo para subir, a cada novo passo era uma
nova dor; e atrás dela, quieto, o ceifador acompanhava com suas novas
queimaduras. Os espíritos de outrora haviam desaparecido com as chamas e
a mulher-dragão se sentiu aliviada pelo fato, era um empecilho a menos em
sua jornada. Eles percorreram as escadas por quase quarenta minutos, uma
luz safira brotando das paredes em pequenos fragmentos. Então, entre
suspiros de cansaço e fadiga, Yanaamahka atingiu o último degrau.
Uma porta dupla jazia lá — decorada por joias azuis e imagens que
representavam o ciclo da vida. A vida do Fogo de Safiras. Ela a empurrou,
entrando, finalmente, na casa da deusa: o altar de Mahoutsukai. Pilastras se
acenderam repentinamente com a presença da herdeira, o fogo cerúleo e
quente; e as estruturas se estendiam em um corredor longo até uma estátua
detalhada da divindade, esculpida e lapidada em safira. Toda a extensão da
sala estava abarrotada com a pedra que representava a essência — a vida, o
fogo, a deusa. Yanaamahka deu um passo, cambaleando em direção ao altar,
enquanto Demétrius a seguia com o olhar atento aos detalhes.
Yanaamahka deu um segundo passo e sentiu uma pontada, um frio.
Ela olhou para trás depressa: o draconiano estava congelado, a marca
da respiração dele também petrificara no ar. Tudo havia parado — as
chamas, os sons, a água, o tempo, a vida. Nada se mexia além dela; e,
então, repentinamente, uma energia azulada emergiu de seu corpo, tomando
forma, libertando-se: era Mahoutsukai. A divindade suspirou e respirou
como se pertencesse àquele mundo, viva. Ela era pálida como a lua, sua
pele era uma pérola que parecia se iluminar com os fios da cabeleira pálida,
a qual se estendia a ponto de tocar o chão.
— Me perdoe. — e essas foram as primeiras palavras da divindade, a
voz semelhante a qual a Estrela da Noite ouvira inúmeras vezes em seus
pensamentos. A deusa, então, piscou, a cor de seus olhos refletindo as
chamas dos pilares. — Yanaamahka. Tu deves ter inúmeros
questionamentos; e aqui estou, na tua frente, para responder todos.
A mulher-dragão trincou os dentes.
— Por quê? — fora tudo o que conseguira dizer em meio a dor.
— A primeira vez que te vi, um fragmento entre a escuridão das
estrelas, esperando para nascer, afeiçoei-me. Tu nascente, a Estrela de Fogo
dos Primeiros Dragões; e a ti, minha essência fora dada. — Mahoutsukai
sussurrou. — Desde então, estive ao teu lado, desde que viste o sol e o céu,
desde que viste o dia e a noite... luz e escuridão. Em teus pesadelos,
Yanaamahka, enviei-te meu calor, sussurrando-te as canções para afastar teu
medo. Lembrar-te-ei, se necessário, do calabouço, daquele semblante que
lhe acompanhava e que lhe dava sanidade. Era eu; e mais ninguém. Então,
peço-te, ouça-me e não culpe-me.
Yanaamahka lembrava: era a única memória que tinha intacta desde
que acordara no calabouço. Sempre que fechava os olhos, um calor
irradiava; sempre que lamentava, um sopro a alcançava; sempre que
sonhava, o semblante negro lhe acompanhava. Ela nunca soube quem era o
ser que lhe sussurrava na escuridão do cativeiro, acreditou que fossem os
próprios fantasmas, seus medos, mas as palavras da divindade trouxeram
luz as recordações.
Era Mahoutsukai — a deusa que vivia dentro dela.
Um súbito mal-estar a abateu e Yanaamahka firmou mais suas mãos
sobre o ferimento. Era a mesma tontura de sempre, o mesmo gosto salgado
na boca e, então, vômito, o líquido negro e peculiar que a acompanhava
desde o dia que Roren dera o medicamento a ela. A Estrela da Noite caiu de
joelhos, cuspindo cada resquício em seus lábios, aguentando a dor que
irrompia de sua barriga. A deusa, porém, indiferente a situação de sua
herdeira, manteve-se imóvel.
— ...por quê? — Yanaamahka repetiu sem se levantar.
Mahoutsukai se aproximou dela; os passos da deusa eram tão leves
como se estivesse flutuando sobre o templo. Ela estendeu uma mão na
direção da herdeira, sussurros vieram em seguida, embalados por um
idioma arcaico.
— Não temas. — e o fogo se transformou em benção, em vida,
dissipando as dores crônicas dos ferimentos da Estrela da Noite. As feridas
se fecharam também, resultando em cicatrizes que sumiriam com os anos.
Yanaamahka fechou os olhos, a essência que lhe percorria o interior, cada
pedaço seu como se fosse um calor familiar, materno. — Tu és minha
última estrela: todo o poder que tenho, minha essência, se esconde no teu
interior; contudo, isso não quer dizer que tu sejas minha última herdeira. Há
mais. Duas draconianas que despertaram o Fogo de Safira. Tu és a fonte
delas, de todas as outras que um dia nascerão, porque a essência, a magia,
vem dos dragões, da tua espécie. Porém, sendo tu a última Estrela da Noite
com o meu poder, de nada adianta ter mais herdeiras. Porque se tu morreres,
eu irei desaparecer... junto com o Fogo de Safira delas.
Yanaamahka ouviu e não entendeu: o Fogo de Safira não era um
desejo, tampouco um aliado — era um empecilho que de nada ajudava além
de uma falsa esperança de poder. Só que a Estrela da Noite quase ouvia a
voz de Tiggrë ao lado, o menino questionando a deusa em busca de
conhecimento.
Mas ela não era ele.
O conhecimento não a atraia.
— Eu não pedi nada disso. — e respondeu depois de se colocar em pé,
a divindade estava ao seu lado, esperando, ouvindo. — Eu nunca pedi nada
disso... quero me lembrar de tudo, me encontrar. Por que essa droga de fogo
não me ajuda nisso? Por que não recupera minha asa?
— Porque tu estás amaldiçoada. — o rosto de Mahoutsukai se elevou
para o draconiano congelado no tempo. Amaldiçoada: o termo viajou pelos
pensamentos da estrela como sopro de morte. — Teu progenitor, o Dragão
dos Dragões, fora quem lhe roubara tudo; tuas lembranças, teu passado, teu
nome, quem tu eras e não és mais.
Tuas lembranças, teu passado, teu nome...
O que tu eras, não serás mais.
O que tu viveste, não viverás mais.
Tu estarás morta; e, morta, renascerás.
Sem lembranças, sem passado, sem nome.
Sem nada.
A lembrança de tais palavras se acendeu nela como a luz afasta toda a
escuridão. Seu pai, Vlanhonder Draconis, lhe jogara naquele calabouço e
colocara as correntes ao redor de seu pescoço. Envolto por um mar sombrio
de indiferença, o dragão proferiu os versos; e no dourado de seus olhos,
Yanaamahka o ouviu dizer silenciosamente: eu quero que tu me odeies pelo
resto da tua miserável vida, e algo se quebrou dentro dela, fragmentando
um coração que nada tinha além de um vazio repentino.
— A minha alma está como a tua: fragmentada, e se não lhe digo tudo
o que conheço, herdeira, se não tens plenamente o Fogo de Safira, é porque
estou tão perdida quanto tu estás.
Yanaamahka ignorou as palavras — ignorou tudo para se concentrar no
nada interior. Roren afirmara que o Dragão dos Dragões, o próprio pai dela,
a amava incondicionalmente. Por que, então, ele havia retirado o que era
mais preciso para ela? Por que ele a amaldiçoara com o esquecimento?
Uma súbita vontade de encontrá-lo percorreu as estranhas dela; não para
saudá-lo, nunca o faria, mas para culpá-lo, dizer tudo o que precisava,
cuspir sua frustração e ódio. Doze anos na escuridão, doze anos vivendo a
morte por causa dele.
— Como eu quebro essa maldição? — a Estrela da Noite murmurou.
— Eu não sei.
— Você não sabe! — e disparou sem paciência. — Como não?! Com
todos esses nomes... esses... você não sabe... quebrar a maldição!
— Eu te falei uma vez e repetirei: estou amaldiçoada e fragmentada
como tu estás. — Mahoutsukai deu um passo em direção à herdeira. — Tu
achas que vivo dentro de ti por espontânea vontade? Não te enganes, Estrela
da Noite; uma maldição fora lançada contra mim há mais de dois mil anos...
dois mil anos em que lentamente meu poder se dissipa para sempre. Minha
alma foi despedaçada e separada dentro de cada Estrela da Noite. Só que
todas foram mortas e, como tu vês, restam apenas duas; e tu, Yanaamahka,
és minha última esperança. Se tu morreres, o mesmo acontecerá a mim:
desaparecerei por toda a eternidade ao lado de minha essência.
— Eu não me importo! — Yanaamahka mordeu o lábio, seu corpo
inteiro tremia com uma raiva contida. Desviara seu caminho da capital,
perdera o draconiano e o menino de vista acreditando que recuperaria sua
asa se encontrasse o templo.
Mas não. Mahoutsukai lhe enganara novamente. A Estrela da Noite
firmou os punhos: não iria mais perder tempo. Seu passado não a esperaria;
ela não o encontraria, não recordaria, se ficasse ouvindo uma deusa
despedaçada.
— Deveria se importar. — a divindade murmurou e gesticulou na
direção do altar, uma energia safira brilhou, mas a mulher-dragão ignorou.
— O Fogo de Safira será teu aliado em tua jornada, e precisará aceitá-lo
como parte de teu ser, caso contrário, ele jamais será ativo, somente
passivo. Tua essência, ativa, causa devastação; passiva, somente benção. Eu
tenho certeza, Estrela da Noite, que tu não estás satisfeita com um poder
que somente cura e não destrói; e é este o motivo que o torna tão fraco, tão
indomável dentro de ti. Tu não aceitaste o que ele é, não o aceitaste como
parte de ti.
— Eu não estou satisfeita com nada, não quero estar. — e a mulher-
dragão colocou a mão sobre a barriga, o ferimento cicatrizava mais rápido
na presença de Mahoutsukai. — Eu só preciso da minha asa de volta.
— Com o tempo.
— Eu não tenho tempo... só me diz onde a saída é.
Mahoutsukai inclinou a cabeça na direção do draconiano imóvel.
— Questione teu guardião. Ele provavelmente encontrará a resposta.
A palavra guardião inibiu a Estrela da Noite de contra argumentar o
pronunciamento da deusa; o termo reverberou pelos pensamentos dela antes
de causar um efeito maior. Guardião. Guardião? Yanaamahka olhou para
trás, para o ceifador de espinhos, o rosto congelado e as feridas expostas.
— Como?
— Não percebeste, herdeira de safira? Como tua essência reagira a ele?
Tu fizeste um laço com ele — inquebrável — ao mergulhar no íntimo, as
memórias. Tu és capaz, por ter o Fogo de Safira, de ver o passado; não o
teu, o dos outros, aqueles que de algum modo estão ligados ao teu poder...
— Nunca que ele é isso! — Yanaamahka quase mordeu à língua ao
exclamar; ela não toleraria tais palavras. — Nunca todas essas as coisas que
você está dizendo! Eu quero que você... que você me deixe em paz.
Mahoutsukai ouviu em silêncio.
— Eu não preciso de você! De ninguém! De guardião nenhum!
— Que assim sejas.
Um piscar e a roda do tempo voltou a girar — as chamas do templo
chiaram, o som do mundo retornou e a presença da entidade se desfez em
uma luz azulada. Yanaamahka tossiu algumas vezes, sem fôlego, como se o
tempo que conversara com a deusa houvesse consumido sua própria energia
vital. Ela quase caiu de novo, sentindo as paredes se moveram a sua volta,
mas manteve o equilíbrio, escorada nos pilares que rodeavam o altar. A
concentração dela, então, fez um movimento incomum ser notado: era o das
ondas se quebrando no horizonte. O vento lhe farfalhou os fios negros, e a
Estrela da Noite desviou o olhar na direção que ele vinha.
Um caminho se fazia presente além das estátuas de Mahoutsukai —
escondido por uma escuridão peculiar presente no templo.
Era a saída.
Yanaamahka ergueu o corpo humano e se inclinou na direção do vento.
Finalmente, estaria livre daquela sensação de confinamento que o ambiente
lhe proporcionava. Só que não esperava ser agarrada de repente: uma mão
prendeu seus cabelos; a outra, firme, empunhando uma adaga, atingiu sua
barriga, sobre o mesmo ferimento de outrora, recém cicatrizado pelo Fogo
de Safira. A Estrela da Noite sentiu um arrepio, um calafrio que percorreu
toda sua pele, acompanhado de dor. Ela havia esquecido do ceifador; e o
draconiano estava em suas costas, o cheiro de ferro e fogo contaminando
seus sentidos.
Demétrius sussurrou ao pé do ouvido dela:
— Eu disse que nada mudaria por ter me ajudado. — e a voz dele era
um aglomerado de êxtase. — Apresentar-te-ei a morte, Estrela da Noite. —
a mão dele pressionou a adaga com mais força, enterrando-a nas entranhas.
A visão dela ficara turva. Não... queria ter sussurrado. A morte não...
Porque temia a morte; tinha medo do escuro, do outro lado, do
esquecimento eterno. Yanaamahka tentou se livrar dele — e de nada
adiantou. Seu estado era tão deplorável que pouco a pouco amolecia perante
a inconsciência nos braços de seu assassino. Ele a torturaria; sabe se lá o
que faria antes e, então, a mataria.
— A vida é repleta de morte... vivemos morrendo, não adianta escapar.
— o homem lançou o corpo dela contra o chão. Ele sorria; vitorioso,
doentio.
Não, ela murmurou uma última vez.
...e um rugido odioso rasgou o templo.

Klud voara contra o tempo em direção à costa.


Ele seguira o abismo e a fissura que se estendia rumo ao horizonte
enfestado pelo cheiro de água salgada. Era o oceano, sabia ele; o gigante
indomável que abraçava o mundo. Durante todo o seu percurso, enquanto
suas asas azuladas batiam no céu, o dragão, parcialmente cansado, viajou
nas lembranças ao lado da sua Estrela da Noite: Yanaamahka. A memória
dele, da promessa que fizeram, era o que o fazia seguir em frente, enfrentar
o mundo que o rejeitara desde a infância — e era ela, a estrela com o calor
do pôr-do-sol, a única que o aceitara.
Ele chegou a costa de Tannenberia antes do esperado e seus instintos o
guiaram: porque o vento trazia o cheiro dela. Ele pousara sobre um
desfiladeiro de frente para a praia, escondendo entre as rochas uma
estrutura irregular. Klud caminhara por sobre ela, buscando entender o
formato e o significado, irritado perante a impossibilidade de visualizar o
lugar com perfeição. Sabia, porém, que algo, alguém, estava no interior,
quase como se uma essência desconhecida lhe chamasse sussurrando. Suas
patas sentiram as rochas, a ouviram cederam sutilmente com peso, bastaria
uma parcela de força dele e a estrutura escondida no início do desfiladeiro
quebraria.
Não... alguém murmurara. Não no ambiente, não lá dentro, na mente
dele. Não, e a palavra se tornou mais fraca. Era ela, a voz da sua estrela.
Klud rugiu furioso e ergueu suas asas: um salto, então, e o peso de seu
corpo escamado partiu a estrutura, levando para a escuridão do interior.
C A P Í T U L O T R I N TA E O I T O

A QUEDA DO OUTONO EM
FLORES

LUCINDA ERGUEU OS BRAÇOS PEQUENOS para alcançar a flor mais alta da


árvore.
O sangue mestiço em suas veias dera a ela um corpo miúdo, não
cresceria como os demais e Roren dissera que a menina chegaria no
máximo à um metro e cinquenta centímetros. Não era, no entanto, um
detalhe que Luce se importava; não quando o gigante ao seu lado
abocanhava todas as frutas que estavam fora do alcance dela. O dragão,
deitado de costas na grama verde da floresta, erguia as patas
preguiçosamente contra as flores da árvore robusta. As cores variavam entre
um tom suave ou vibrante de vermelho, detalhes que a menina escolhia a
dedo para decorar a grinalda.
Mom-mom pegava as flores para ela — quase ronronando como um
gato de escamas. Ele não deixara o lado de Luce desde o dia que a levou em
um voo sobre as nuvens; balbuciando seus grunhidos sem sentido, mas
cheios de cuidado. A mãe da menina aos poucos aceitava o pedido de
desculpas do dragão, mas chorava profundamente sempre que via o rosto de
sua filha. As marcas de Luce cicatrizavam, diminuíam, porém, nada daria a
ela as mesmas feições puras de antes: o olho esquerdo ficara branco por
entre a sequelas do Aço de Cristal. Contudo, por mais que a mestiça
insistisse estar tudo bem, Mare sempre chorava e culpava os draconianos,
sempre os draconianos. A luz quente do sol esgueirou pelas copas das
árvores e iluminou os fios castanhos de Lucinda, as tênues sardas na região
do nariz, o modo que seus lábios finos se curvavam diante as flores que
caiam da árvore.
— Só mais uma, dragão bobinho! — a menina exclamou rindo quando
um punhado de flores caíra em sua cabeça. Ela pegou uma, de tom vibrante,
enquanto o gigante observava murmurando. Lucinda as emendou na
grinalda e as prendeu nas pequenas raízes que usara para fazer a parte
circular. Então, certificando-se da firmeza, colocou a tiara na cabeça, parte
do cabelo ocultando as cicatrizes das garras. — Tá pronto!
Ela rodopiou ao redor do dragão, o vestido encardido farfalhando livre
com os movimentos. Mom-mom ergueu o pescoço escamado e rugiu
docemente direção dela, suave e manhoso.
— Temos que fazer uma para você também. — Luce juntou as demais
flores.
O dragão baixou a cabeça e mordeu algumas.
— Não! Elas não são para comer, seu gigante preguiçoso! — e segurou
as narinas dele, tentando ajeitar as flores remanescentes sobre o focinho. A
ideia pareceu boa nos primeiros segundos, mas o dragão acabou espirrando,
fazendo a mestiça cair sentada. Luce teria rido e brincado mais se um
repentino líquido vermelho não houvesse manchado o seu vestido. A fera
cinzenta percebera também, o cheiro de sangue que irradiava dela,
levantando depressa, grunhindo assustado, como se acreditasse que fosse
culpado pelo ferimento. Luce, no entanto, não sentia nada; nenhuma dor,
somente desconforto. Ela gesticulou depressa para acalmá-lo e o acariciou
sobre as escamas queimadas.
— Eu tô bem, veja! — e emendou um sorriso sincero. — Você não me
machucou! As flores devem ter manchado meu vestido.
Luce observou o tom avermelhado: era um borrão pequeno que sujava
seu vestido próximo as coxas magricelas. Ela não estava ferida, as marcas
em seu rosto estavam secas, logo, não poderiam ter sangrado.
Questionando-se, então, correu em direção a sua casa e o dragão a seguiu
preocupado e grunhindo. Mare terminava de costurar remendas de tecido
quando a menina entrou eufórica, quase sem fôlego.
— Mamãe! — Luce exclamou. — Eu acho que sujei meu vestido!
— Como? — a humana largou a agulha e visualizou a filha dos pés à
cabeça, o gigante rosnava baixinho no exterior da casa. — Vem aqui, meu
amor, deixa eu ver.
A mestiça se aproximou devagar.
— Eu estava brincando com as flores com o Mom-mom e manchou,
desculpe. Era meu vestido novo que o Roren me deu. — e a menina
encolheu os ombros com a expressão melancólica. A mãe dela, porém,
sorriu discretamente. — O que houve?
— É sangue, Luce.
— Sangue? — a mestiça ficara pálida. — Não foi o Mom-mom! Ele
não me machucou! Eu só caí sentada, mamãe! Não culpa ele!
— Eu sei que não, meu amor. — Mare acariciou o rosto da filha,
enquanto sorria. Mom-mom espiava pela porta, o focinho enterrado na casa.
— Lembra quando eu disse que você se tornaria uma mocinha um dia? Que
você ia deixar de ser criança? Então... isso tá acontecendo.
— Mas eu só tenho treze anos.
— Eu tinha doze quando isso aconteceu, meu amor. Não é algo ruim de
se acontecer... Mostra que você tá crescendo e muito em breve se vai ser
uma mulher. Pode se casar... talvez. — mas a hesitação na voz da mãe fez
Luce entender que não casaria por dois motivos: era uma mestiça e tinha o
rosto deformado; e por mais que continuasse a mesma, o mundo não a veria
de tal forma. A beleza interior não prestava; não tinha necessidade.
Mas Tiggrë dissera a ela que o mundo era cruel e também belo.
...e Lucinda sempre acreditaria nele.
A menina deixou sua casa depois de se limpar e trocar o vestido. O
dragão a esperava no lado de fora, cheirando-a em busca de qualquer
ferimento que pudesse ser recente. A menina o tranquilizou e o acariciou
enquanto caminhavam floresta a dentro, nuvens cobrindo o céu no final da
tarde. O outono estava finalmente sobre eles, o que chamavam de estação
da queda: tudo o que estava predestinado a cair, cairia — e tal crença valia
também para os seres vivos. Era uma tradição dos povos de Degail, o
Continente dos Mortos, embora a menina se arrepiasse toda vez que
lembrava dessa história que o pequeno tigre contara.
Ela esperava que ele e a moça-dragão estivessem bem. Que
retornassem em breve. Mom-mom a cutucou com o focinho e Lucinda
quase tropeçou.
— Cuidado! Você me derruba o tempo todo com esse seu nariz
enorme! — e sua risada ecoou na floresta. — Mamãe disse que eu tô bem.
Sou uma mocinha... embora eu não me sinta muito diferente. Ah! Ela disse
também que posso me casar, só que eu não quero me casar.
A fera murmurou com a cabeça inclinada na direção dela.
— Dragões se casam?
Mom-mom-mom, ele balbuciou e a menina saltitou na frente dele.
— Podemos nos casar! Roren e Tiggrë dizem que as pessoas se casam
com quem elas gostam muito, muito... Eu gosto muito de você, Mom-mom!
Você casaria comigo? Aí nós ficamos para sempre juntos! — e o sorriso
dela iluminado pelo crepúsculo do dia se acendeu nos olhos da criatura.
Mom-mom ronronou e desceu seu enorme focinho ao alcance dela. — Será
que eu posso casar com você e o Tiggrë? Também gosto muito dele. Vocês
dois são meus amigos preciosos.
Lucinda tocou o nariz escamado com suas mãos miúdas e quentes.
— Vamos torcer pra que ele consiga encontrar o que deseja.
A pele enrugada do dragão era gelada. Ela o observou nos olhos — as
obsidianas que se assemelhavam a ausência de estrelas no céu noturno.
Eram vazias e, ao mesmo tempo, cheias de sentimento, de palavras
escondidas na alma dele; alma esta antiga e ferida. Sempre que
contemplava aqueles olhos, a menina tinha uma sensação de que o dragão
tentava se comunicar com ela. Ele poderia não ser capaz de proferir uma
sílaba, mas o mundo existente nas fendas negras da fera transmitia
sentenças silenciosas.
Sentenças que Lucinda não ouviu, mas viu pela primeira vez.
As imagens vieram como um sopro de vento no inverno: primeiro um
ponto brilhante; depois, aço — a criatura era coberta por aço. Não um
qualquer, mas o indestrutível material que os draconianos chamavam de
Aço de Cristal. A besta tinha a cor da noite, mas era a morte que carregava
em suas escamas; e o dourado das orbitas, intensos, representavam o ouro
de um inferno visto em terra. Ele estava voando... voando e se aproximando
da Floresta Viva. Então o horizonte enviou a canção do ruflar das asas da
criatura — tão real quanto o sol que os iluminava e aquecia. Lucinda se
afastou de Mom-mom depressa e caiu sentada. A imagem, não, a visão,
pensou a menina, era tão real que ela fora capaz de ouvir as asas da criatura
ruflarem contra o vento.
Luce correu para avisar Roren.

O vento mudara de repente.


Roren estava limpando as sementes recém-plantadas quando sentira: a
brisa quente fizera sua pele se arrepiar. A primeira vez que ele presenciara
algo semelhante, a morte contaminou na floresta e estilhaçou o mundo há
doze anos. A segunda, agora, evocava a mesma sensação do passado — só
que mais pesada, intensa. O humano se levantou e observou o horizonte, as
cores alaranjas do crepúsculo e a noite que se esgueirava lentamente.
Normalidade; e, mesmo assim, estranheza. A mudança dos ventos, o
arrepio, a angústia, tudo era um presságio para a Grande Queda do Outono
como prometiam as tradições dos Animano. Tiggrë sempre as mencionara,
o dia que o mundo presenciaria o prenúncio do céu de fogo do Dragão —
um dos doze Animais Sagrados na cultura de seu povo — sobre as correntes
quentes do vento; e, embora, a lenda fosse antiga e desgastada, o humano
acreditava nela.
Lendas são lendas porque elas foram verdade um dia, dissera o Dragão
dos Dragões a ele, e por mais que os anos houvessem apagado muitas
lembranças, Roren guardava todos os ensinamentos dele. Vlanhonder
sempre fora tudo o que o humano tivera: um mentor, um mestre, uma figura
de admiração e paixão secreta. Talvez esse houvesse sido o motivo de não
ter procurado construir uma família ou ter deixado a floresta — sempre
cultivara a esperança de que o dragão retornaria. Roren continuaria
esperando pelo retorno de Vlanhonder: era essa a sua vida desde que tinha
dez anos e o gigante o salvara. Agora, com quase oitenta, perto do que
chamavam de morte; não havia mais o que fazer a não ser esperar. Era por
isso que o humano não temeria presságios, lendas ou o prenúncio da Grande
Queda. Somente esperaria.
— Senhor Roren! Senhor Roren! — a voz de Lucinda o assustou por
alguns segundos. Ele a observou correr desajeitada e percebeu o
companheiro escamado balbuciar freneticamente enquanto a seguia. O
velho sabia o que o desespero dela significava. Luce também sentira — e
não porque conhecia as mudanças do mundo, mas porque seu dragão era
capaz de pressentir o que eles eram incapazes.
— Eu sei. — ele respondeu ao vê-la tomar fôlego. — O que Mom-
mom te mostrou, pequena flor do outono?
— Eu não sei o que eu vi... e ouvi, mas... — lágrimas escorriam entre
os sussurros estremecidos. — Era como a moça-dragão do Tiggrë. Era
escuro... e tinha a parte dourada, os olhos eram dourados. Uma criatura
enorme! Foi o Mom-mom que mostrou... e por causa disso, ele tá assustado.
— Um primeiro dragão? — era a descrição de um. Mas os únicos
primeiros dragões que conheciam a Floresta Viva era Vlanhonder e
Vandoharen, o irmão de Yanaamahka.
— O corpo dele era diferente... o mesmo aço que o Mom-mom tem. Só
que as escamas eram desse aço... como os cavaleiros de armadura das
histórias do Tiggrë, senhor. Eu ouvi as asas dele... perto.
Roren observou o céu, as nuvens alaranjas que sutilmente se tornavam
vermelhas. Quase a cor do fogo.
— Um dragão de aço... — o homem sussurrou. A façanha só era
possível nas mãos dos draconianos: eles eram os únicos a carregar o
conhecimento necessário de trabalhar o Aço de Cristal. Os humanos não se
atreviam; diziam ser perigoso demais para uma forja comum. Um dragão de
draconianos. A cauda de Mom-mom ficara inquieta quando o vento mudara
novamente.
Lufadas quentes de ar.
— Se for realmente ele... a Floresta Viva não é mais segura.
— O que você está dizendo, senhor Roren?
— Você e sua mãe devem partir a capital. Mare é filha de um
mercador, eu acredito que vocês encontrem um lugar para viver lá. — o que
era incerto. A humana contara a ele que o pai a deserdara por engravidar de
um draconiano, por arruinar o casamento arranjado.
— Mas e o Mom-mom? Ele não pode ir para a capital.
O dragão não prestou atenção, o focinho dele estava erguido para o
céu, o horizonte em chamas, o prelúdio da noite. Então, para a surpresa de
ambos, menina e homem, ele rugiu — e um rugido colossal viera em
resposta.
A vegetação farfalhou.
— Vocês precisam partir... agora! — Roren dissera com a voz
estremecida.
Porque um dragão estava se aproximando.
C A P Í T U L O T R I N TA E N O V E

CHAMAS QUE PERCORREM


OS CÉUS

SANGUE.
Fora a primeira coisa que Kluddihargën sentira ao cair no interior do
templo; depois, viera o calor das chamas que queimavam ao redor e, por
fim, o cheiro dos girassóis. Yanaamahka. O aroma dela estava mesclado ao
odor corrompido de ferro e fogo, provenientes de uma respiração além da
dela, mais pesada, mais forte. Pequenos fragmentos de rocha caíam do
buraco aberto pela fera, a luz forte do sol esgueirava sutilmente pelas fendas
acompanhada pela maresia da praia; detalhes estes que avançavam sobre a
escuridão da sala do altar. O dragão era incapaz de reconhecer o ambiente,
mas seus sentidos aguçados — mais do que qualquer outro de sua espécie
— ajudavam a traçar um mapa mentalmente. Nada lhe escapava: tanto o
maior dos seres vivos quanto os menores.
Ele ouviu o movimento do desconhecido, o modo que ele se inclinava
contra o dragão e erguia a sobrancelha.
— O que temos aqui? — era a voz de alguém, um draconiano; o
mesmo cheiro de todos os outros, mas duas vezes pior. Klud sentiu as
vibrações dele, cada respiração, o modo que o tórax se movia no processo,
as mãos sujas de sangue. Yanaamahka estava no chão, então, ao lado do
inimigo, encolhida e parcialmente consciente. — Não me diga que veio
buscar a estrela? — e ele gargalhou.
Ele não pode ver, mas pode sentir — uma perfeição avassaladora — o
movimento do draconiano ao colocar o pé sobre a cabeça da Estrela da
Noite; e ela proferiu um gemido entrecortado. A situação de Yanaamahka
era crítica, seu corpo inteiro, manchado por sangue, tremia lentamente.
Klud se enfureceu; seu focinho se ergueu revelando sua coleção de pressas
afiadas. Ele se deixara vencer antes, a consequência fora cruel; e não se
perdoaria se cometesse o mesmo erro.
Klud acompanhou o vento, os sussurros da entidade mostrando a
extensão do ambiente. Era grande, mas não resistente o suficiente para
suportar suas chamas — e havia a possibilidade de acertar a Estrela da
Noite. Então, transformou sua imagem: o humano surgiu diante o
draconiano de punhos fechados. Seus fios platinados caíram sutilmente
sobre as cicatrizes nos olhos, a pele pálida como leite era como uma luz
resplandecente na penumbra do altar.
— Lutará comigo, dragão?
Klud não lutaria, embora um desejo perverso de queimar o draconiano
consumisse suas entranhas. Ele moldara uma estratégia simples; e pensando
nela, caminhou na direção do inimigo, desarmado. A respiração de
Yanaamahka revelava a posição dela: perto demais de seu ceifador. Klud só
precisava estar perto, e durante o avanço, a quietude do adversário se
manteve. Ele era um guerreiro inteligente, caso contrário, reagiria contra o
homem-dragão — e era esse detalhe o preocupava. Era no silêncio que o
perigo ressidia; e, definitivamente, o draconiano não era semelhante aos
demais que enfrentara.
Exatos dois metros separavam ambos.
O cheiro de sangue ficou mais forte com a proximidade, a intensidade
era atordoante para ele. Se havia vantagem em ter os sentidos aguçados,
também existiam consequências: como odores pesados ou ruídos agudos
demais. Era por esse motivo que ele odiava as tempestades e os trovões que
a acompanhavam. O homem-dragão engoliu as sensações e levantou o olhar
cego, focando na constante respiração adversária.
— Me devolva a estrela — Klud murmurou. — ...e eu poupo sua vida
dessa vez.
— Poupar a minha vida? Como se ela tivesse algum valor. — o
inimigo respondeu repleto de um entusiasmo sombrio. — Uma pena que
você é incapaz de ver essa vagabunda, eu ficaria contente se pudesse ver
enquanto eu fodo com a vida dela.
Klud engoliu o controle de suas veias e fez menção de atacar o
inimigo, e a reação de defesa dele fora o necessário para pôr sua estratégia
em ação: ele se transformara em dragão durante o avanço e seu corpo
escamado se chocou contra a solidez do draconiano — e por uma questão
de milímetros sua asa não acertara Yanaamahka no chão. Ele teria prensado
o adversário se o mesmo, talvez prevendo a situação, não houvesse usado
da própria agilidade draconiana para se esquivar com perfeição. Demétrius
lançou o corpo contra o chão, rolando para a direita, momentos antes, então,
de ser atingido. Klud o ouvira praguejar durante o ato, porque, embora
estivesse se defendendo, estava ferido em um dos braços.
O dragão rugiu irritado e se lançou na direção da respiração de
Yanaamahka, farejando o sangue no chão. Ele a tiraria de lá e esqueceria do
inimigo, era o que planejava, só que o adversário, grunhindo com a dor das
queimaduras que carregava, privou a realização do plano: ele saltou na
direção da criatura como se tivesse asas e agarrou a cauda com mãos
firmes. Uma fisgada viera primeiro; depois, a reação do dragão perante a
força que o inimigo exercia em seu membro.
Ele estava tentando partir a ponta da cauda.
Klud rosnou e moveu o focinho para trás. Ele usaria seu fogo para
conter o draconiano — talvez matá-lo — mesmo que a sala inteira
sucumbisse. A intensidade poderia prejudicar Yanaamahka, a forma
humana dela não seria capaz de aguentar o aquecimento. Mas a protegeria:
Klud usaria as próprias asas sem temer qualquer consequência.
— Eu lhe avisei... — e o dragão entreabriu o focinho.
O inimigo praguejou.
Porque o mundo se acendeu em Fogo Azul.
As chamas de Klud não eram como as dos dragões de sua espécie: não
eram vermelhas ou alaranjadas: era o próprio Fogo de Safira encarnado,
evocado por uma essência que ele não tinha. As chamas azuis correram e
preencheram quase toda a extensão da sala. Os pilares cederam um a um, o
teto estremeceu e se fragmentou, enquanto as asas do dragão envolviam o
corpo da estrela. Então, antes que não conseguisse escapar do tremor,
agarrou Yanaamahka com patas dianteiras e saltou na direção do teto que
desmoronava, o céu era seu destino.
Altar e draconiano desapareceram em questão de segundos.
Klud a deitou sobre a areia.
As ondas beijam a praia em uma suavidade quase divina — o cheiro de
sal e maresia se misturavam. Aromas estes que, no entanto, não eram
capazes de dissipar o sangue que a Estrela da Noite perdia a cada segundo.
As mãos do homem-dragão tatearam, desesperadas, o corpo dela em busca
do ferimento, estremecendo ao encontrarem a adaga penetrada na carne.
Klud a arrancou e sentiu o corpo de Yanaamahka, inconsciente,
movimentar-se com a dor. O ferimento expelira uma quantidade enorme de
sangue, manchando de vermelho a areia ao redor deles. Ele suportou a
súbita náusea graças ao odor intenso, estancando a ferida com os dedos; e a
impotência, de repente, o acometera. Ele não era capaz de tratá-la
devidamente. A incapacidade era a corrupção dele, o pior dos inimigos, só
que não forte o bastante para fazê-lo desistir. Klud rasgou parte da túnica
desgastada para fazer um curativo: as mãos dele trabalharam depressa para
calcular a exata localização do ferimento; e quando, enfim, terminara,
sentado sobre a beira-mar, colocou a Estrela da Noite em seu colo.
Ele a abraçou fortemente. A visão era perturbadora: sangue e mais
sangue os cobria na luz do sol, destruindo a beleza daquele lugar em frente
ao oceano. Klud amava o mar, crescera diante do gigante, mas naquele
momento, com Yanaamahka desacordada entre seus braços, não conseguia
admirar nada, não conseguia pensar em nada a não ser nela. O homem-
dragão nunca soubera exatamente em qual momento de seu passado o seu
amor por ela surgira. Ambos eram pequenos, ele tinha quase dez anos a
mais que ela, e tinham inúmeras diferenças. Klud gostava da solidão, do
mar; Yanaamahka, de companhia, do céu. Eram dualidades: acreditar e
desacreditar, dia e noite, lua e sol; tempestade e calmaria; e mesmo com tão
pouco em comum, ele a amara. Ela era como os verões na Floresta Viva,
como os dias ensolarados, como os girassóis de um continente esquecido.
Existiam flores em Tannenberia, costumava dizer Roren, que
guardavam uma semelhança, embora sutil, com as quais cresciam em
Degail antes da peste que o devastou. Klud gostava de observá-las na
companhia da estrela: o modo que os raios solares acariciavam a terra e
aqueciam os corações dos quais, corrompidos por uma solidão eterna,
tinham a ousadia de sonhar com a promessa de dias melhores. Ele recebera
a promessa: Yanaamahka, o pequeno pôr-do-sol; não do mundo, não de
Agëa, mas do mundo dele — e talvez houvesse a amado quando ela não o
rejeitou. Ela o aceitou: indiferente ao monstro que ele se dizia ser.
Não me abandone jamais, dissera ela na inocência de sua pouca idade.
Uma promessa que Klud guardou e que cumpriria.
...mas onde estava a Yanaamahka que pronunciara tais palavras?
— Volte... por favor. — e ele a abraçou mais forte.
Só que a esperança dele estava cada vez mais abalada: a sua Estrela da
Noite poderia nunca mais retornar. A febre de Yanaamahka aumentou no
início da noite. O homem caminhou por quase dez quilômetros para se
afastar da praia. Ele mantivera a imagem humana para evitar possíveis
caçadores; principalmente com as estradas abarrotadas de caravanas que
rumavam a capital. As festividades de Sunyar estavam chegando — época
em que os habitantes de Tannenberia se uniam para comemorar a queda e o
nascimento solar: marcada pelo término do ano. Klud evitou qualquer
aproximação, inclusive um senhor que o abordara para perguntar se ele
precisava de ajuda. O caminho dele fora guiado pelo vento e terra; sussurros
que a natureza mostrava a ele.
Klud parou em uma planície longe da estrada: correntes abafadas
sopravam vindas do oeste. Era o Grande Deserto que os aguardava, a
promessa de um horizonte dourado e um mar de calor. Lugar que o homem-
dragão deveria evitar — que Yanaamahka deveria evitar — porque o perigo
residia lá. Ele estivera na capital no passado, desembarcara no porto pouco
depois da morte de seu pai adotivo, um draconiano, rebelde e sem lei, que
dera a ele o próprio nome. Nome este que a Estrela da Noite confessara ser
difícil demais e o substituiu por apenas quatro letras. Klud suspirou em
meio a lembrança e deitou a mulher em um amontoado de folhas secas.
Duas estrelas solitárias brilhavam acima deles.
Ele desceu seus dedos no ferimento e sentiu o corpo de Yanaamahka
vibrar diante o toque. Ela não estava melhorando; não melhoraria se não
fosse devidamente tratada — o que ele era incapaz de fazer. Era um cego e
nunca saberia como ela foi ferida ou qual era a profundidade do corte.
Yanaamahka poderia ter o sangue dos Primeiros Dragões, mas parecia que
sua recuperação estava lenta e prejudicada como se o corte houvesse sido
causado por algo diferente do aço comum. Aço de Cristal: assassino de
dragões. O curativo improvisado estava ensopado de sangue, mas o que o
preocupava era o calor que se dissipava do corpo da estrela. Na primeira
hora da madrugada, Yanaamahka começou a delirar e murmurar,
inconsciente. Klud quis amaldiçoar os deuses e o mundo pela falta de
alternativas, quis retornar ao templo para exterminar os restos do
draconiano culpado, mas, antes que pudesse, antes que se levantasse e
cuspisse fogo por sobre a terra, o vento soprou — o vento soprou e trouxe
uma mensagem. Havia uma alternativa. Embalado as brisas quentes, a
presença do pequeno tigre chegou até o homem-dragão.
Klud se levantou depressa e deu dois passos à leste. Tiggrë — o
menino sábio de doze anos estava próximo. Ele era o que a Estrela da Noite
precisava para se recuperar. Só que junto dele estava o draconiano que
enfrentara; o Cavaleiro Negro que carregava o mesmo nome de um
assassino. Klud, porém, escondeu toda sua fúria contida para dar espaço a
principal prioridade: a recuperação de Yanaamahka. A possibilidade de
abandoná-la brevemente o corrompia, mas era necessário. A vida dela
dependia daquilo; e não poderia se deixar levar por egoísmo. As duas
estrelas solitárias, então, iluminaram as escamas de safira do dragão quando
ele surgiu na noite e se elevou no céu.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA

O VENTO QUE SOPRA DO


LESTE

LUNAYSIS DESPERTOU NO MEIO DA NOITE.


Porque alguém gritava — o silêncio da madrugada era quebrado pela
voz, um tom feminino, desesperado. A moça se enrolou nos lençóis, a cama
vazia e gelada, acreditando, entre suspiros entrecortados, que as suplicas
haviam sido fruto de seus pesadelos. Só que a mesma pessoa gritara noite a
dentro, um pedido; um pedido suplicante. Por favor, pare, dizia a voz como
se sussurrasse no íntimo da draconiana. Luna firmou os dedos na cama,
tremendo; e as palavras de ajuda foram propagadas novamente. Elas não
paravam, não iriam parar. Misairuzame soprou o vento sobre as janelas,
uma brisa invadiu o quarto e farfalhou os fios dourados da moça como se
representassem um aviso.
Levante-se, dizia a deusa.
Luna deslizou na cama e seus pés tocaram o chão, seus olhos
contemplando o espaço solitário no leito. Ahuriel não viera dormir na noite
passada, ou na anterior, desde o banquete de boas-vindas aos draconianos.
A moça não conseguia, porém, esquecer as palavras que seu amigo lhe
dissera no dia — você está linda —, iluminando o sensível coração que
tinha, fornecendo a coragem que ela precisava para se levantar. Luna
suspirou e observou a porta: ninguém mais gritava, mas seu interior, o
vento, dizia que algo estava errado naquela casa. Não havia guardas no
corredor, a residência e os empregados dormiam profundamente sobre uma
escuridão abafada. Ela não seria vista, disso tinha certeza; então, avançou
como um gato noturno por onde as brisas da esperança a guiavam.
Alguém gritara de novo — mais baixo.
A propriedade dos Krimnell era enorme, um palácio construído para
abrigar qualquer imperador ou rei, mas a maioria dos quartos estavam
desabitados; os empregados ou criados eram obrigados a dormir apertados
em uma dispensa sem iluminação ou ventilação. Ordens do Superior
Humano, quem, para a moça, parecia ter um olhar semelhante ao de seu pai:
cruel e persuasivo ao mesmo tempo. Luna percorreu dois corredores antes
de chegar as escadarias para a entrada e um terceiro caminho para, talvez,
os aposentos de Kaelus. A moça teria evitado aquela direção se o grito, o
pedido de compaixão, não viesse de lá.
Só então lembrara de um fato crucial: a mãe de seu marido.
Luna não a vira desde que chegara.
Seriam os pedidos de ajuda dela?
A draconiana decidiu avançar mais naquele corredor escuro,
começando a tremer na medida em que se aproximava de uma porta
entreaberta. Luna se encolheu contra a parede, o coração palpitando,
quando ouviu um baque surdo e uma mulher chorar, desamparada. A
conversa baixa viera em seguida.
Não adianta chorar, era a voz de Kaelus, ou gritar, ninguém se
importa, mas tu estás estragando a minha concentração; as palavras
estavam infestadas de desprezo. Luna sentiu na pele o arrepio, o medo, de
ver que a draconiana que ele se direcionava era realmente a mãe de Ahuriel;
então, inundada por um sentimento de empatia, ela se aproximou o
suficiente da porta para espiar sem ser percebida. A imagem que vira lhe
horrorizou: Aniel vön Krimnell estava amarrada pelos pulsos no dossel da
cama, nua, hematomas espalhados no corpo magricelo e pálido, sangue
escorrendo sobre suas pernas.
Luna deixara um alerta de pavor escapar de seus lábios — e percebeu
que o rosto, parcialmente oculto do superior, virava na sua direção. A
draconiana escapou do campo de visão do homem um segundo antes de ser
vista, correndo depressa com lágrimas em seu rosto. Era por isso que a
matriarca estava sempre ausente: porque o marido a espancava e violava
como se ela fosse um objeto de diversão. Misairuzame tentara acalmar o
coração em pedaços de sua herdeira, mas Luna espantou a presença da
deusa e seguiu em frente, desejando que alguém castigasse Kaelus pelo que
fazia. Mas ninguém castigaria. Aniel era dele, pertencia a ele; e o homem,
nas conservadoras tradições, era o dono de sua mulher. Como Ahuriel
permitia que o pai fizesse tamanha maldade com a mãe?
Luna colidiu com a resposta ao dobrar o corredor de seu quarto.
Um impacto: ela corria tão cegamente que não viu o corpo do
comandante aparecer na escuridão. Ahuriel a segurou, a impossibilitando de
perder o equilíbrio e desabar no chão; então, a observou com um olhar
questionador.
— Por favor, me solte. — a moça pediu com as lágrimas rolando no
rosto, sua voz era baixo, mas firme. — Me solte. — e movimentou o pulso.
Ahuriel soltou.
— Por que tu estavas... — e o grito de Aniel o interrompeu. O
comandante observou o corredor a diante por segundos antes de continuar.
— Por que tu estavas fora do quarto?
Ele havia ignorado a própria mãe?
O fato encheu o coração de Luna de rancor, de raiva, de impotência, de
uma coragem repentina.
— Como você é capaz? — Luna murmurou com a expressão oculta
entre os fios dourados de seu cabelo. — Como é capaz de deixar que ele
faça isso com sua mãe? Alguém que carregou você por tanto tempo?
O draconiano refletiu as palavras dela por um tempo.
— Não é problema meu.
— Ela é sua mãe! — Luna ergueu sutilmente o tom, mordendo os
lábios e ignorando as lágrimas que lhe escapavam. — Ela gerou você, ela
cuidou de você... e...
— Vá para o quarto. — o comandante respondeu quando um segundo
grito, dessa vez de pavor, ecoou pelos corredores. — Tu não tens o direito
de me...
— Desde quando você sabe disso? Desde sempre? — ela engoliu o
choro e encarou o marido com seus olhos cor-de-fogo. — Você acha que ela
merece só porque é casada com ele? Por que nossas tradições nos tratam
como meros objetos ao dizer que pertencemos a vocês, homens?
— Sim. — a resposta dele fora seca e inexpressiva.
Um estalo cortou a escuridão: Luna ficara cega e talvez não houvesse
visto quando sua mão acertou o rosto do marido. Ela dera um tapa,
instintivamente, após a resposta; e o homem, sólido, sequer modificou a
expressão ao ser pego de surpresa. Ahuriel somente a encarou, os olhos
gelados, enquanto a draconiana, sem reação, colocava ambas as mãos em
frente à boca.
Lunaysis não acreditou: havia batido nele, seu marido, seu senhor — e
seria castigada pela desobediência. Sim, eram as tradições e, quando
percebeu o braço do marido, a pesada mão dele, correr na direção dela, teve
certeza que seria espancada. Misairuzame, a moça rezou e o vento dentro
dela respondeu. O braço do comandante, antes em movimento, parou no ar;
e, talvez, houvesse sido o destino ou a sorte que impossibilitara o
draconiano de perceber o poder da essência: no mesmo momento que ele
parou, a voz de Hyun-seo irrompeu no corredor. Ahuriel baixou o braço,
como se nada, nem um suspiro, houvesse o parado e observou por cima dos
ombros.
Hyun-seo estava parado na escuridão.
— Uma mensagem de urgência, comandante. — Luna poderia estar
tremendo, distante de seu amigo, mas teve certeza da expressão dele ao vê-
la em prantos. Horrorizado, porque ele percebera a intenção anterior de
Ahuriel; e se fosse capaz, se fosse forte, talvez ousasse desafiar seu superior
pela atitude. — É da região leste... Enviaram um corvo. Acreditam ser um
deles.
Ahuriel virou na direção do cavaleiro, ignorando a mulher.
— Há quantos dias?
— A mensagem está datada há quase dez dias, comandante. — Hyun-
seo respondeu, e Luna percebeu que ele não tirava os olhos dela, como se
tentasse mandar uma mensagem silenciosa. — Os demais draconianos estão
reunidos no palácio para discutir sobre a situação, sua presença é
indispensável.
— Não saia do quarto. — Ahuriel dissera sem olhar para trás e, sem
dizer mais nada, avançou rumo a saída, a reunião, enquanto Luna e Hyun-
seo permaneciam parados, quietos.
Luna fez menção de seguir para o quarto, respeitar a ordem do marido,
quando um murmúrio repentino de Hyun-seo a encontrou.
Como um sopro de esperança.
— Um dia, Luna, prometo, eu vou livrar você disso tudo. — a voz dele
era nostálgica.
Então ele se despediu com uma reverência.

Ahuriel vön Krimnell se juntaria com os principais comandantes de


Tannenberia.
A recente notícia vinda do Leste era clara: o mais poderoso — e
temido — inimigo das nações poderia ter retornado depois de quase quinze
anos. A mensagem mencionava uma escuridão total; o dia havia se tornado
noite por uma questão de dez segundos quando uma criatura negra
atravessou o céu rumo ao horizonte. Só existia um dragão capaz de trazer a
noite para o mundo com suas asas: o Dragão dos Dragões. Vlanhonder
Draconis. A possibilidade atormentava os humanos. As festividades de
Sunyar se aproximavam e a cidade estaria com multidões de todos os cantos
do continente. Um ataque causaria uma destruição comparada a de Aumas,
a capital draconiana, no passado. Esse era o medo que acometia o rei
Gureryne — e que o fizera clamar ajuda do Império Draconiano.
O comandante dos Cavaleiros Negros enfrentara a fúria do Primeiro
Dragão durante a guerra que ficara conhecida como A Guerra do Colosso
Negro; e tinha conhecimento do que poderia acontecer a Solnascente se não
estivesse preparada. Sucumbiria. Desaparecia. Tornar-se-ia um fragmento
cinzento no meio do Grande Deserto. Era por esse motivo que os superiores
de Tannenberia estavam reunidos no ambiente. A sala de reunião era imensa
e rodeada por janelas extensas formadas por pilastras; e estas se erguiam
para arquitetar abóbodas transparentes. Nenhuma das aberturas possuía
vidro — o material não era comum no continente — e somente eram
decoradas por tecidos de cores vibrantes e contas de ouro. Ahuriel observou
as paredes enquanto esperava os demais chegarem, mas não pode manter o
seu olhar por muito tempo. Os detalhes dos ladrilhos eram tão exuberantes e
gritantes que era impossível encará-los por mais de dez segundos sem ficar
tonto.
Ele não apreciava a decoração humana, não a desmerecia, mas não se
sentia confortável envolto de tanta informação. Admirava, porém, a
arquitetura pura de Aumastris. O comandante, então, deu um passo em
frente quando o representante de Gureryne se fez presente: o príncipe Serge
Lachance. Ele era alto e robusto, a mesma expressão rude do pai, a pele de
ébano. A armadura dele era como as demais de seus guerreiros, aço sobre o
peito e os braços musculosos nus. O primogênito estava acompanhado de
seus cavaleiros, e além deles, o cavaleiro negro Hyun-seo se fazia presente
ao lado de seu superior.
O aviso de urgência havia sido também enviado aos generais Skaargärd
e Vanadis — mas o comandante chegara primeiro que eles, primeiro que
todos.
— Agradeço por ter vindo. — Serge se expressou no idioma comum
dos humanos e Ahuriel o entendeu, como entenderia outras três linguagens
além da sua materna. — Peço perdão pelo momento inoportuno, mas é uma
questão que merece uma atenção maior. — e o príncipe se aproximou do
centro da sala.
Um mapa de quase quatro metros de extensão havia sido moldado
sobre uma mesa. Era uma obra de arte, o comandante não poderia negar,
trabalhada por mãos habilidosas. A capital, as regiões, as principais cidades
e províncias, tudo estava representado na imagem construída por barro
quente. A iluminação do ambiente os auxiliava na observação, os grandes
lustres, com o formato semelhante a um sol, estavam suspensos sob eles,
com velas recém acesas.
— A mensagem veio da região leste. — Serge apontou na imagem. —
É uma região pouco habitada e a maior parte dela está coberta pela Floresta
Viva, contudo, também é a região que foi atacada recentemente por um
dragão.
Mas a questão de importância era que os draconianos não estavam em
Tannenberia somente para defender a capital: outro motivo os guiava,
particular, valioso. A Estrela da Noite. Ahuriel moveu os lábios para se
expressar quando os cavaleiros de Serge anunciaram a entrada da general
Skaargärd. A armadura dela, obsidiana como a noite que os envolvia,
reverberou durante seus movimentos; e ela caminhava tão firmemente que
parecia não estar condenada por uma doença terminal. Ahuriel a observou
no instante silencioso; como o rosto dela estava mais marcado, as feições
mais profundas.
— General. — Serge a cumprimentou educadamente. — Agradeço que
esteja presente também. Convido-os para esperar comigo a chegada do
general Vanadis e o superior Krimnell para darmos início.
— Majestade. — e ela o reverenciou e focou sua atenção, agora
suavizada, no comandante. Só que não disse nada. Ahuriel sempre a via
observá-lo, dos cantos, de soslaio, mas nunca se pronunciara sobre tal.
Serge comentou sobre a história da Estação Leste durante a espera e,
então, depois de quase dez minutos, os outros dois se fizeram presente. O
general Vanadis adentrou a sala vestido elegantemente em sua armadura
negra; e o superior Krimnell, indiferente ao próprio atraso, sequer
cumprimentara os demais. Ahuriel não admirava o pai — sequer o
idealizava — e tudo o que guardava para ele era um sentimento, talvez
mútuo, de rivalidade.
Pensar no patriarca, porém, fizera a bochecha do comandante arder de
repente.
— Comandante? — e Ahuriel retornou a realidade, zonzo. O cansaço
crônico sempre o desconcentrava. Serge repetiu suas palavras. — Devemos
ou enviar reforços para a região leste?
— Há algo de valor em tais terras? — o comandante questionou.
— A Estação Leste era a única cidade da região. — o príncipe analisou
o mapa com uma mão sobre o queixo. — Nada além da Floresta Viva existe
lá, o acesso é complicado e grande parte dos habitantes migraram para
outras regiões com medo de outro ataque.
O general Vanadis deu um passo à frente.
— Vejam só, meus amigos. — e a voz de Belpheggör era como vinho,
repleta de deleite em cada entonação. Ele apontou por sobre o mapa. — A
região leste é a mais próxima do oceano de Tel Vozz e, consequentemente,
do continente dos mortos. Pergunto-lhes, queridos, o que há além de
destruição em Degail? O Desfiladeiro dos Dragões Gigantes. O que
significa que nosso inimigo não está na região leste; e, sim, a atravessando
para... — o dedo dele deslizou pelas demais regiões, o centro, a oeste, o
Grande Deserto. A capital. — chegar aqui.
— Se a mensagem está datada há dez dias... — Serge murmurou. —
Há uma possibilidade do inimigo estar próximo de nós?
Belpheggör sorriu persuasivo.
— Mais do que isso, meu querido príncipe. Vlanhonder Draconis é o
dragão mais rápido em Agëa, o significa que... — e a pausa dele fora
intencional.
— Ele já está aqui. — o superior Kaelus se pronunciou.
— Entre nós. — o Vanadis prosseguiu. — Sabemos que os primeiros
dragões possuem a capacidade de moldar uma forma humana; o que
importa, no entanto, é a incapacidade dele de esconder os próprios olhos.
São dourados com fendas negras. — ele, então, desviou sua atenção para
Rhenna, quem, até o momento, se mantinha em silêncio. Ela permaneceu
quieta. — Precisamos que alguém o reconheça.
— Devemos fortalecer a defesa interna? — o príncipe questionou.
— Não seria o suficiente. — Ahuriel quem respondeu dessa vez. —
Vosso adversário perceberia as mudanças repentinas e encontraria uma
escapatória. Não esqueçamos quem ele é de fato.
— Se me permite dizer, príncipe. — Belpheggör pronunciara. — A
querida general Skaargärd esteve com os primeiros dragões por quase três
anos... como uma prisioneira de guerra. Eu tenho certeza que ela o
reconheceria a forma humana de Vlanhonder Draconis melhor do que
ninguém. — e terminou com os olhos penetrados nela, o mesmo sorriso
perverso no rosto.
Ela deu um passo à frente — ódio e raiva pairavam na expressão dela.
— O segundo general Vanadis está correto, Majestade. Eu fui
prisioneira dos dragões no passado; contudo, o ocorrido não é um sinônimo
de conhecimento. Eu não seria capaz de reconhecê-lo nunca porque nunca o
conheci nas terras inimigas. Então, descartem essa possibilidade. — embora
a voz dela fosse firme, Ahuriel percebera fraqueza acumulada graças a
doença.
— Uma pena! — o Vanadis encenou melancolia.
— Onde está o melhor caçador de dragões de vocês? — o superior
Kaelus questionou. — Ele deveria estar aqui com os cavaleiros que
chegaram de missão.
— Realmente. — Serge concordou. — Seria importante tê-lo para
reconhecer nosso inimigo antes de qualquer ataque surpresa.
— O general Demétrius, de fato, deveria estar conosco. — Belpheggör
respondeu com um sorriso diferente do qual emoldurava sua expressão
antes. Era um vitorioso, quase deleitoso. — Ele e um de nossos cavaleiros
negros, no entanto, estão ocupados com nossa melhor arma contra o Dragão
dos Dragões.
Ahuriel observou o seu superior: ele não esperava que o Vanadis
revelasse os planos tão cedo às forças humanas.
— A Estrela da Noite. — o Vanadis continuou. — Não apenas a
penúltima Estrela da Noite... mas também a filha perdida do inimigo:
Yanaamahka. — e lábios deles estalaram ao pronunciar o ultimo nome.
A expressão da general Skaargärd mudara em um segundo — pálida, a
respiração pausada como se um fantasma estivesse em sua frente. Serge e
Kaelus, no entanto, demonstraram visível interesse na notícia; e para
confirmá-la, o Vanadis apresentou sua coleção de cartas enviadas pelo
cavaleiro Hanzor rön Vanadis, escritas recentemente. Eram mensagens
objetivas e tremidas, quase como se o draconiano estivesse com pressa. O
príncipe e os demais leram o conteúdo escrito, da primeira à última, todas
datadas de acordo com as tradições da raça:
Encontrei a penúltima Estrela da Noite.
É jovem e não tem mais que vinte anos.
Ela não lembra quem é.
(Primavera, trigésimo segundo dia)
O nome da Estrela da Noite é Yanaamahka Draconis.
Ela continua sem lembrar de nada.
O general Demétrius quebrou a asa dela.
Ela não sabe soltar fogo.
(Primavera, trigésimo nono dia)
Estou com a Estrela da Noite.
Nossa posição é a cidade de Arrius e estamos a caminho da capital.
(Primavera, quinquagésimo sexto dia)
Estamos na cidade de Caminhos ao Oeste.
O general Demétrius tentou matá-la.
Ficaremos na cidade até ela se recuperar e iremos para a capital.
(Primavera, septuagésimo terceiro dia)
— Caminhos ao Oeste é a quase duas semanas daqui... Estão próximos.
— Serge disse aliviado com a notícia. — Se a Estrela da Noite estiver
conosco, ameaçada, o inimigo hesitará. Caso contrário, o enfrentaremos.
Vocês terão o acesso ao nosso melhor armamento.
— Precisaremos apenas de um. — o general sorriu. — Suas
Catapultas. Quantas a cidade dispõe para o caso uma batalha ecloda,
querido príncipe?
— Quatro por enquanto. Iremos trabalhar na construção de mais duas
até a chegada da Estrela da Noite. — Serge fez uma leve reverencia antes
de continuar. — Obrigado, draconianos, sua eficácia será retribuída
devidamente em nome de Vossa Majestade.
— Só queremos a Estrela da Noite e mais nada. — Belpheggör fez
uma reverência ao príncipe. — Por hora, esperemos, meus caros; sir Hanzor
nos enviará a mensagem de chegada em breve.
A chegada — estava tudo planejado para tal momento. Ahuriel seria o
encarregado de receber a Estrela da Noite; e ele a quebraria como o general
Vanadis recomendara. Somente para se certificar que a fêmea dos primeiros
dragões tinha a resistência do Fogo de Safira, a leveza do Vento de
Esmeraldas ou a mesma fúria dos Cristais de Rubi como a mãe dela tinha.
A batalha estava próxima.
A batalha não, corrigiu-se.
O massacre.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E U M

O FUTURO É UM PESADELO
D I S TA N T E

LUNAYSIS VÖN KRIMNELL ESPEROU POR um castigo que não viera.


Seu senhor não retornara naquela noite ou na seguinte; e ela
permaneceu no quarto esperando o pior. Felizmente, nada acontecera. Ela
acordou numa manhã ensolarada do terceiro dia com a entrada repentina de
uma criada. A humana trazia o desjejum da draconiana e mencionou que sir
Eun-seo estaria fora nos dias seguintes a pedido do comandante. Um
problema havia surgido no horizonte, e a população estava ocupada demais
com os preparativos do festival para se preocuparem com as ameaças.
Pessoas só temem o que podem ver, e enquanto o inimigo estivesse distante,
nada os abalaria. Principalmente com a força draconiana na capital — o que
provavelmente era o motivo da ausência de Ahuriel depois do que
acontecera. Luna suspirou com o coração apertado: a essência dentro dela
estava mais forte a cada dia, Misairuzame sussurrava durante os sonhos e o
vento soprava por entre as janelas do deserto.
Fora a deusa de esmeraldas que parou Ahuriel naquela noite. Luna
estremeceu. Se ele houvesse suspeitado do poder, da essência, teria a
matado naquele mesmo instante... teria matado junto a criança dentro dela.
A moça conteve as lágrimas enquanto bebericava o suco de tâmara. Ela não
queria chorar enquanto a moça estivesse lá, esperando, observando. Rhenna
não estava lá para aconselhá-la: a general estava distante desde que
chegaram à Tannenberia e Luna suspeitava que a proximidade com o mar
estivesse a afastando, abalando. O filho dela morrera no porto, na
imensidão azul, durante uma viagem. A jovem Krimnell era incapaz de
compreender o sentimento da perda, a morte de uma cria, mas a simples
possibilidade a enchia de terror.
Lunaysis colocou a mão sobre o ventre.
Nada acontecerá contigo, minha criança, dissera em pensamentos.
Resistiria, enfrentaria o mundo para ver seu filho nascer. A imagem de
Aniel a incomodou de repente: torturada, violentada, escondida. Luna
elevou o olhar para a criada e a questionou:
— Lorde Kaelus se encontra na residência?
— Não, minha senhora. — a humana respondeu com um dovaris
enferrujado e forçado. A draconiana se sentiu aliviada: ela não conhecia o
idioma comum de Tannenberia e encontrar alguém que falasse a linguagem
de Aumastris era reconfortante.
— O comandante também não? — a humana negou com um gesto
simplório.
— Obrigada. — Luna sorriu. — Eu vou terminar minha refeição
sozinha.
Eun-seo dissera diversas vezes que a draconiana não poderia deixar o
quarto a pedido de Ahuriel; ele sempre reforçara tais palavras com medo
que a moça fosse descoberta. Ela nunca fora, e pelos anos que corria pelos
corredores da fortaleza do marido, os guerreiros dele nunca a encontraram.
Não seria diferente com humanos: caçadores eles não eram e não tinham a
mesma audição da raça de Aumastris. Luna retirou seus sapatos e escondeu
os restos de seu café da manhã debaixo da cama. Misairuzame me
protegerá, disse a si mesma antes de sair do quarto.
Ela queria encontrar Aniel. Ela queria se certificar que a draconiana
estava bem e viva. Então, acompanhada pelo vento, percorreu os corredores
silenciosos da residência. Guardas conversavam próximos as escadarias
para o primeiro andar, mas sequer a notaram ou ouviram. Luna percorreu as
passagens nas sombras, descalça, cautelosa como um gatuno, chegando a
mesmo corredor que estivera antes — e um cantarolar alcançou seus
ouvidos.
Oh, Vento Divino, leve este sentimento para o resplendor da eterna lua
cheia
Draconemia — o alto draconiano dos nobres de Aumastris. Luna
conhecia a canção: seu nome viera de lá. Falava sobre a mãe-Lua, o vento,
o sofrimento. Era um poema antigo que sua matriarca cantava antes de se
matar e a continuação dele estava presente nas lembranças da moça.
Salve este meu coração que está a vagar pelo interminável ciclo da
morte. Salve minha alma que está a perecer diante da escuridão que a
corrompe a cada dia.
Lunaysis se aproximou da porta e viu Aniel sentada diante a cama, as
mãos entrelaçadas. A mãe de seu marido era diferente dele: os longos
cabelos castanhos escorriam ondulados em suas costas, o corpo era miúdo e
o rosto delicado, nenhum ferimento. As madeixas prateadas de Ahuriel não
vinham da figura materna ou paterna, tampouco os olhos azulados: Aniel
tinha olhos cinza-esverdeados.
Não havia uma semelhança sequer.
A draconiana mais velha desviou a atenção para ela de repente. A
expressão impecável. Só que o corpo inteiramente coberto apesar da
temperatura elevada.
— Você deve ser... Lunaysis? — Aniel perguntou com a voz fraca.
— Sim. — Luna respondeu e observou o quarto rapidamente. Era
delicado e gracioso como a mulher. Sem nenhum resquício que a havia
acontecido ou do que acontecia todas as noites. — ...Você está bem? — e se
sentiu inclinada a questionar.
Aniel sorriu.
— Eu sinto muito por não recebê-la devidamente. Estive indisposta
nesses últimos dias e não pude sair do quarto. — a draconiana se levantou e
se aproximou.
Ela estava evitando a pergunta.
— Eu soube que está grávida do meu filho! Isso é tão maravilhoso! —
Aniel segurou as mãos de Luna; e o gesto causara um sutil gemido na mais
velha como se ela estivesse resistindo, escondendo, a dor. — Eu tenho
certeza que será um menino encantador como o meu.
Ajude-a, a voz de Misairuzame soara distante. Dê o vento e as dores
desaparecerão... e não me refiro as dores físicas. O Vento de Esmeraldas
ameniza o coração daqueles que sofrem. Luna sabia: por mais obscuro que
fossem seus dias, a esperança sempre lhe era soprada pelos ventos da
bondade. Que eles contagiassem o mundo, dissera sua ama no passado.
— Será. — Luna sorriu, proclamando o nome de Misairuzame em seus
pensamentos. — Espero que possa vê-lo comigo.
O rosto jovial de Aniel se iluminou. Ela era tão diferente... a
personalidade quente como de uma mãe atenciosa que a moça jamais tivera.
— Você acha que meu filho permitiria? — Aniel questionou. — Ele
nunca me escreve... Eu acho que ele tem vergonha de mim. — e finalizou
melancólica.
— Você é a mãe dele e...
— Sim, eu sou a mãe dele! — o modo que a draconiana a interrompera
fizera Luna se assustar. — Eles dizem que não... dizem que não! Mas
Ahuriel é meu, eu o amamentei... eu o carreguei... Ele só nasceu diferente!
— Diferente? — a moça tentara afastar as mãos de Aniel das suas, mas
a mulher a segura com tanta firmeza que começava a doer.
— É uma doença... disseram que era uma doença e...
— O que tu estás fazendo aqui?
As palavras dela foram engolidas pelo tom grave do draconiano.
Kaelus entrara no quarto com o peso da armadura sobre seus ombros, a
expressão coberta por sombras. Aniel se aproximara dele depressa para
contê-lo, acalmá-lo, mas o superior a ignorou e a empurrou grosseiramente.
Ele era enorme perante a mulher, e o mínimo de força fora o suficiente para
fazê-la cair; e, nesse meio tempo, Luna o viu tomar proximidade dela —
carregado pelas piores das intenções.
— Eu perguntei o que tu estás fazendo aqui.
— Meu querido... ela...! — Aniel se manifestou.
— Tua próxima palavra será tua sentença, desgraçada! — as palavras
soaram como as de Ahuriel encarnadas. A diferença que o marido tinha da
mãe se fragmentava perante o pai: ambos eram idênticos, mas não na
aparência e, sim, na personalidade odiosa. Lunaysis recusou um passo
quando a distância entre ela e Kaelus se tornou perigosa.
Porque ele era duas vezes pior que Ahuriel.
Ele teria concretizado suas intenções obscuras se um guerreiro não
houvesse pedido permissão para entrar no quarto. Era humano vassalos do
Superior.
— Temos um visitante, Superior Kaelus. — dissera o homem. — Sir
Hyun-seo aguarda a presença da Lady Krimnell a pedido do Comandante
Krimnell.
O coração de Lunaysis quase saíra pela garganta: salvação. Ela não
perdeu a oportunidade: saiu às pressas do quarto sem sequer se desculpar.
Nem pedira licença ou permissão. As consequências de tal ato viriam mais
tarde, seriam dolorosas e não escaparia. Principalmente depois do sussurro
que a alcançara com a saída: terá uma próxima vez. A senhora Krimnell
desejou esquecer as palavras, o quarto, Aniel... a ameaça.
Só por um instante.
Hyun-seo estava lhe esperando, quieto, concentrado no chão ou em
outra realidade. A armadura negra reluzindo os raios de sol que adentravam
as aberturas da recepção. Cinco anos realmente não o mudaram. Era o
mesmo garoto que partilhara os dias dourados: tímido e cuidadoso. Só que
ele não sorriu ao vê-la. Ele se manteve indiferente, o rosto suado e o cabelo
desgrenhado sobre os olhos cinzentos.
Luna desceu as escadarias depressa, quase sem fôlego, o coração
palpitando descontrolado.
— Hyun-seo! Que bom vê-lo! — as palavras saíram forçadas e
entrecortadas. — Por que você está aqui?
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Lorde Krimnell disse que você precisa seguir as recomendações do
Clérigo durante... a gravidez. — e ele desviou o olhar para o chão
novamente. — Meu pai deveria acompanhar você em um passeio, mas está
ocupado com o reforço da guarda na capital. Então, eu vou te... — a moça
percebeu o olhar dele nos pés descalços dela. — acompanhar.
As palavras iluminaram o rosto da draconiana. Eram raras as
oportunidades que Luna tinha de sair do quarto, com permissão, e não pode
esconder sua repentina felicidade — pelo menos por um segundo antes de
recordar o que acontecera no quarto de Aniel e Kaelus.
— Não podemos nos atrasar!
— Seus pés... Luna.
— Não importa! — e a draconiana forçou outro sorriso. — Vamos!
Eles deixaram a residência e rumaram para os jardins logo em seguida.
Luna caminhou à frente encantada pelos detalhes da propriedade da família.
Era um espaço vasto e verde — árvores desérticas e flores típicas do calor
do Grande Deserto completavam o ambiente. A moça observou a
movimentação das fontes, e como elas proporcionavam uma sensação
reconfortante, as águas vinham do mar de Tel Mora por um rio que se
esgueirava em Solnascente. Diziam que a bacia era um presente de Sunyar
aos humanos; e essa era a explicação mais verídica quando se perguntavam
como a água sobrevivia às temperaturas elevadas da região oeste.
Luna contemplou cada pequeno detalhe do jardim: flores
monocromáticas, molduras pálidas, fontes ornamentas e o vento... o livre
vento.
Liberdade.
A palavra sempre causava calafrios na pele dela. Era doce e distante;
mas distante dela. Acreditava, contudo, que a criança em seu ventre
experimentaria a sensação que ela nunca pode. Precisava experimentar —
ou sua resistência não valeria de nada. Ela sentiu quando o sol quente
começou a esquentar o piso e, então, correu para as sombras, rindo para
esquecer de tudo.
O cavaleiro a acompanhou enquanto ela se sentava em uma bancada
entre as flores. Hyun-seo permaneceu quieto, como sempre permanecia,
quase como o mesmo garoto tímido que conheceu há tantos anos.
— Obrigada, Hyun. — e o homem moveu os olhos para ela. — Que
bom que é você que está me acompanhando hoje.
— Só estou seguindo as ordens do comandante.
— Não tente mentir para mim! — Luna sorriu com uma expressão
manhosa. — Sei quando não está falando a verdade. Conheço você desde
pequeno! Não me diga que não estava com saudade minha?
Ele desviou o olhar.
— Você sabe a resposta.
— É claro que sei. — Luna movimentou os pés descalços, a brisa
quente do deserto farfalhava os cabelos dela. — Eu gostaria de saber como
foram as coisas para você nesses anos. Você e Hanzor. Não sei quando terei
a oportunidade de vê-los novamente... — e o sorriso dela se apagou.
— Tudo sempre foi o mesmo para mim, Luna, desde quando éramos
pequenos.
— É claro não é o mesmo! Você se tornou um Cavaleiro Negro. Eu
lembro que sempre dizia que não queria seguir o mesmo caminho de seu
pai... que queria ter uma vida tranquila junto com seu povo em Castora. —
e ela percebeu como o olhar do draconiano mudou. A indiferença forçada
dera lugar a dor... como se as palavras houvessem o atingido no âmago. —
Você se tornou mais forte também.
— Eu não entrei nos Cavaleiros Negros porque eu queria seguir o
caminho do meu pai... — Hyun-seo retirou a mão do cabo da espada e
tocou o peito. Um suspiro escapou de seus lábios. — Meu propósito era
diferente.
— Mas você conseguiu realizar o que queria?
— Não. — ele respondeu mais rápido do que Luna esperava. — Eu o
perdi e não vou poder mais realizar.
A mulher não soube o que responder para confortar o amigo.
— É por isso que vou deixar os Cavaleiros Negros.
— Mas Hyun! — a moça se levantou a ficou frente a ele. — Os
Cavaleiros Negros são os mais privilegiados dentre das elites do Império.
Por que você deixaria uma posição tão difícil de ser alcançada?
— Eu irei juramentar minha espada ao Lorde Krimnell... — as palavras
dele fizeram o coração de Luna palpitar.
— Mas se você fizer isso... não poderá se casar ou...
— Luna. — Hyun-seo a interrompeu. — A razão... — ele travou por
um minuto, seus lábios se entreabriram em sentenças mudas. Respirando
fundo, o draconiano prosseguiu. — Eu nunca quis me casar de qualquer
modo.
Ele queria ter digo algo diferente — a verdade talvez — mas não o fez.
Somente a encarou após o pronunciamento. A expressão dele era
apática e a moça decidiu que era melhor não questionar mais.
— Está na hora de retornar. — o cavaleiro dissera depois de minutos
de silêncio, a voz parcialmente afetada por um sentimento que Luna não
conhecia ou entendia. Hyun-seo deu um passo a frente. — O Lorde
Krimnell mencionou que seu passeio não poderia ter mais que uma hora.
— Eu já esperava. — Luna sorriu e encarou o piso quente. — Poderia
me acompanhar até meu quarto?
— Claro, minha senhora. — minha senhora... a distância que tal título
fazia o coração da draconiana se entristecer. Eram amigos de infância, não
era necessária cordialidade. Para ela pelo menos não era preciso. Luna
suspirou e afastou os pensamentos, preocupada com o que poderia
acontecer se Kaelus ou Ahuriel a interrogassem.
Hyun-seo deu o segundo passo, fazendo menção de prosseguir, quando
o sussurro de Misairuzame soprou na cabeça da draconiana.
Há uma conexão, dissera ela.
Uma luz repentina se materializou diante da herdeira: imagens e sons.
Eram familiares. É uma menina, dissera alguém; e a expressão do Cavaleiro
Negro se aproximou da dela. Hyun-seo segurava um bebê nos braços, uma
criança draconiana recém-nascida. A cria dela. É uma menina, Luna...
Então a luz se tornou escuridão diante os olhos azulados — gelados — e a
voz raivosa do comandante. As mãos dele estavam sujas de sangue. Eu lhe
avisei no começo, dissera ele, Eu mataria qualquer criança que não fosse o
herdeiro que eu desejava. Tu me deste uma menina.
As cores do mundo real retornaram. Luna estava tremendo: seu corpo
congelara e seu coração se fragmentara. Era uma visão. O futuro. Rhenna
dissera que as herdeiras das deusas esquecidas tinham benções específicas e
as de Misairuzame era ver o que os ventos do futuro sopram.
O futuro dela.
Lágrimas rolaram no rosto da draconiana quando olhou em frente e viu
o cavaleiro se aproximar depressa.
Luna o observou por segundos antes de sussurrar:
— Eu preciso fugir.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E D O I S

HÁ UM FIM EM TODA DOR

LUNA SOLUÇOU POR MINUTOS SEM FIM.


Rhenna quem a abraçou e consolou, esperando paciente que a moça se
acalmasse. Era uma situação delicada: Eun-seo quem enviara a mensagem
sigilosa à general, pedindo a presença urgente dela nos domínios do
Superior Krimnell. O draconiano aproveitara os passeios matinais de Luna
para que pudesse reuni-las sem levantar suspeitas entre os demais. Então,
deixando ambas sozinhas nos jardins da residência, Eun-seo prometeu
vigiar a área enquanto as duas conversavam. Só que era difícil para moça
conseguir explicar toda a situação entre as lágrimas insistentes. Mas o
fizera. Cada detalhe. O que a criança em seu ventre estava destinada — uma
menina, a morte.
Ahuriel mataria a criança.
Era verdade. As herdeiras das deusas esquecidas — além das essências
— tinham habilidades específicas: viam o passado, a pior parte dele; viam o
futuro, o que há de mais sangrento nele; e viam a morte, o fim específico de
toda a luz.
— Eu posso ver o passado... — Rhenna murmurou enquanto acariciava
os cabelos da mais jovem. — Você, o futuro. A diferença, Luna, é que você
pode mudá-lo, reescrevê-lo. Ahuriel não matará essa criança, nunca; e é
você quem mudará o pensamento dele.
Luna se afastou da general, a brisa quente abafando suas lágrimas.
Sentia-se injusta por esperar consolo da draconiana mais velha — porque
Rhenna também tinha problemas. Ela estava doente. A expressão dela
estava cada vez mais cansada e deteriorada: olheiras profundas e lábios
ressecados; o olhar de quem só espera o fim e nada mais. Só que lá estava
ela, apesar de tudo, como uma amiga, como uma mãe.
— Ele é como o pai dele... cruel, ele nunca vai mudar, não importa o
que eu faça. — Luna sussurrou com as mãos trêmulas.
— Não. — Rhenna respondeu depressa, depois, refletiu por longos
segundos; madeixas douradas cobriam o olho de safira dela, somente o
prateado visível. — Eu preciso que me escute com atenção; e peço que não
me julgue errado.
A moça assentiu enquanto secava uma lágrima.
— Eu guardo um amor profundo por Ahuriel, um amor de anos, tempo
que antecede o seu nascimento, Luna. Eu o amo e o conheço mais do que
ninguém um dia será capaz de conhecer. — a voz da general era firme, um
bloco de gelo que caíra na cabeça da jovem. — Ele é, sim, como o pai
dele... e por isso pode mudar. — e um movimento repentino dela fez o
cabelo dourado deslizar pelo rosto e revelar o segundo olho.
O coração de Luna parou por um instante.
O mundo ao redor pareceu sutilmente mais gelado.
— Por isso, peço-te, enquanto estou presente, que o salve — Rhenna
segurou as mãos da moça. — Ainda há tempo, encontre um modo.
Eun-seo se aproximou de repente e interrompeu a conversa.
— O comandante está chegando. — ele dissera depressa. — É melhor
você retornar para o quarto, minha senhora. Receio que ele desconfiará se a
vir aqui na companhia da general Skaargärd.
Rhenna a observou em silêncio — e seu olhar guardavam palavras
mudas: lembre-se do meu pedido. Ela se retirou em seguida sem olhar para
trás ou se despedir, desaparecendo no jardim enquanto Luna caminhava
rumo a residência. O cavaleiro a seguiu depressa, alerta; as mãos firmes
sobre o cabo da espada. Ambos pretendiam retornar para os aposentos dela
no segundo andar. Eles fingiriam que a conversa anterior não houvesse
acontecido. Ninguém suspeitaria... se não houvesse alguém os esperando na
recepção.
A draconiana quase perdeu o equilíbrio ao vê-lo.
Ele — Leovrumund. Seu irmão gêmeo. O Cavaleiro Negro sorria:
aquele mesmo, psicótico, sorriso que a moça nunca esqueceria.
Eu sou e serei seu único amor, irmãzinha.
Não me ouse trocar por outro.
Ele era doente, um doente obsessivo que dizia amá-la em um segundo
e odiá-la no outro. Lunaysis lembrava-se com amargura de sua infância ao
lado dele: o modo doentio que o irmão a tratava. Frente a todos, jurava
protegê-la pela eternidade; na ausência de olhares, porém, a espancava,
dizia que a mataria e a estrangularia se ousasse olhar para outro homem.
Leovrumund era sempre imprevisível, e o motivo era a inveja.
Porque ele não era igual ao pai como ela era.
Luna sentira na pele — nos ossos — o quão perverso ele poderia ser.
— Minha querida irmã. A draconiana mais linda do império. — Leov
abriu os braços para cumprimentá-la. Eun-seo, porém, o privou de
aproximar.
Ele conhecia a natureza do Vanadis.
— O que está fazendo aqui, sir?
— Não tenho a permissão de visitar minha querida irmã? — o
cavaleiro sorriu, olhos-de-sangue intensos como os dela. Mas tinham
poucas semelhanças, como ele também tinha em relação ao pai. Luna era a
imagem feminina de Belpheggör, Leov, porém, nada tinha além de um
sorriso perverso e um rancor sem fim. — Venho nas melhores das
intenções; são ordens do comandante. Caso duvide, lobo, pode perguntar a
ele. Aproveite também para contar o porquê da reunião com a general
Skaargärd. Eu gostaria de saber o que as donzelas estavam conversando.
Ele a vira — e quem sabe ouvira? — tudo. Luna quis chorar, quis se
esconder, fugir; poderia fazer qualquer coisa do que ficar um minuto
sozinha na presença de seu irmão. Principalmente grávida. Antes de se
casar, há cinco anos, o irmão a visitou no quarto. Ele a espancou naquele
dia e prometeu matá-la caso carregasse o herdeiro de outro... como ela fazia
agora. Só que não havia como negar o pedido dele, não com as suspeitas
que carregava sobre a conversa de outrora com Rhenna. Caso contrário, o
cavaleiro revelaria tudo para o comandante.
Então a situação ficaria pior do que estava.
— Venha, minha querida irmã. — e ele estendeu o braço para ela. —
Gostaria de conversar. Eu soube que o Superior tem uma biblioteca
impecável.
Luna olhou para Eun-seo de soslaio.
Ele não podia fazer nada também — Leov era um Cavaleiro Negro e
estava acima do guerreiro mais velho.
— Vamos. — Leov repetiu. — Preciso de recomendações de leitura,
querida irmã. Só você pode me recomendar isso.
Ela aceitou o braço dele e o acompanhou.
Tremendo.
O vento vai me proteger, murmurou; e ambos seguiram o caminho
mencionado pelo guerreiro. Ele se manteve em silêncio, o rosto congelado
naquele mesmo sorriso. Luna quase não era capaz de conter as lágrimas que
cresciam em seus olhos. Mas o vento estava com ela... Misairuzame
também — e a protegeriam. Uma criada mestiça os recebeu e abriu
ligeiramente as portas imensas da biblioteca. O ambiente estava silencioso,
vazio, abarrotado por um emaranhado de livros organizados e nunca lidos.
Era comum entre os nobres draconianos: eles gostavam de ter os volumes
mais raros não para lê-los; e, sim, guardá-los como um troféu de aparência.
Porque um homem sábio, diziam, é um homem que tem mais livros que
espadas. A citação não mencionava a prática da leitura.
Leov soltou o braço dela e pediu que a criada se retirasse e fechasse as
portas.
— Uma bela coleção, não acha, querida irmã? — ele contemplou o
ambiente.
— Sim... — e a moça respondeu com um sussurro. — É lindo, irmão.
O cavaleiro caminhou entre a primeira fileira de livros, deslizou os
dedos nas lombadas e cantarolou uma canção antiga.
— O que você leu recentemente, querida irmã?
— Eun-seo me deu alguns livros... eu estava lendo sobre o mundo, a
criação, nossa história. — Luna percebeu que, entre suas palavras, Leov se
aproximava dela. — É o que tenho a permissão de fazer nos...
— Você também tem a permissão para abrir as pernas?
Luna quase parou de respirar.
Aquele era o limite: as perguntas repentinas que separavam o
temperamento contido do irmão para o perverso. Ele se aproximou mais,
acariciando o rosto dela sutilmente.
— Leovrumund... eu não... — palavras erradas: porque o peso do
punho do irmão a acertou no rosto.
Luna caiu no chão com a força do impacto, o gosto de ferro lhe
enchendo a boca. As lágrimas escaparam dela quando o draconiano se
ajoelhou e colocou uma mão sobre os seus cabelos.
— Como você pode ser tão linda e tão... vagabunda? Eu não entendo...
não entendo, querida irmã. — ele acariciava as madeixas dela enquanto
falava. — Se nascemos juntos... por que não podemos ficar juntos também?
O comandante não me deixou vê-la hoje. Eu acho injusto! — e Leov a
forçou a encará-lo. — Você não acha? Injusto?
A draconiana mordeu os lábios ensanguentados para não chorar mais.
— Você não quer me ver?
— Leov... por favor.
— Você não quer me ver? — ele repetiu.
Lunaysis não respondeu: seu corpo inteiro tremia. Era mais que medo.
Era desespero. Misairuzame estava quase incontrolável dentro dela, o vento
queria ser libertado. Bastaria uma quebra de concentração, de contenção,
para que a essência brotasse no ambiente.
Leovrumund a fez se levantar pelos cabelos.
— Você não quer ver o seu próprio irmão! — e a jogou no chão de
novo.
...e ele a chutou na barriga.
Ela não só vomitou sangue como sentiu o liquido viscoso escorrer
entre suas pernas. Uma pontada forte viera em seguida: era a criança. A
possibilidade de um aborto espontâneo a fez gritar em desespero, pedindo
que o irmão parasse. Mas ele não parou — e Luna só teve tempo de
proteger a barriga com as mãos quando o segundo golpe a atingiu.
— Sua vagabunda! Eu disse que ia matar você se...
As portas da biblioteca foram abertas de repente.
O semblante do comandante Krimnell se revelou sob o sol que
adentrava as janelas.
Leovrumund o reverenciou depressa.
— Comandante!
Ele se ajoelhou ao lado dela com a melhor expressão de desespero.
— Por favor! Ajude a minha irmã! — e era impossível desconfiar da
encenação dele, nas palavras sufocadas por preocupação. — Ela está
passando mal! Estávamos conversando e...
Luna começou a se sentir tonta, não ouviu o resto.
Seu rosto sujo de sangue apenas pendeu na direção do marido.
...e o viu correr na direção dela.

Eram problemas demais e o comandante não precisava de mais um.


As chamas reluziam sobre os olhos de safira, estes cansados e
carregados pela insônia frequente. Ahuriel suspirou, os fios prateados
escorrendo em seus ombros. Doloridos e pesados. A armadura parecia
sustentar um mundo em suas costas. Ele precisava segurá-lo ou tudo
pereceria perante o caos. Estivera empenhado demais na guarda da capital
nos últimos dias, organizando os guerreiros para qualquer ataque repentino
do inimigo; sequer tivera o luxo de descansar, de pegar um livro e combater
a fadiga. Ele não conseguia mais ler: as palavras se misturavam e se
embaçavam como vapor. Quando fora a última vez que pregara os olhos?
Parecia uma eternidade; e sempre que tentava, lá estava as sombras dos
compromissos lhe sussurrando.
Não bastavam todos os problemas... e mais um bateu-lhe a porta: sua
mulher estava com a saúde fragilizada. A vida dela estava em risco — a
vida da criança, do herdeiro dele. O sangramento era uma consequência do
estresse dela, a rotina a prejudicava, dissera o clérigo responsável por tratá-
la na capital.
Estresse.
Como uma mulher que passava o dia inteiro no quarto sem fazer nada
poderia sofrer do sintoma? Ahuriel suspirou de novo. Como uma mulher
poderia mudar tanto?
Lunaysis não era mais a criança na qual ele se casara há cinco anos.
Crescera. Amadurecera. Era uma mulher — e mais que isso: era uma
mulher que causava um estranhamento no comandante. Porque ele não a
conhecia. Tudo o que sabia era o nome, a sutil admiração pela escrita e nada
mais. Ela não era como a mãe dele, submissa; deixara, sabe-se lá quando,
de ser. A mudança repentina o incomodava: e a cada dia, o draconiano se
sentia inclinado a desvendá-la, interpretá-la como se fosse um livro.
A lembrança da ousadia dela o encontrou de repente.
Aquelas palavras. Aquele tapa. Aqueles olhos-de-fogo.
Ahuriel suspirou pela terceira vez e se levantou da poltrona. Não
deveria perder tempo com futilidades, instintos. Ele precisava dormir e
combater a insônia que o perturbava com frequência. Dormir... Era uma
palavra complicada para aqueles que sofriam com as noites em claro. Era
sempre o mesmo: desde a infância quando as sombras começaram a se
esgueirar pelas paredes de seu quarto até a fase adulta. O comandante
jamais as compreendeu. Imaginava serem frutos dos pesadelos que
costumavam assombrá-lo.
Mas não. As sombras eram suas companheiras. Estavam sempre lá.
O comandante moveu os dedos às fivelas da armadura: ele as
desprendeu, retirando ombreiras e peitoral. O baque contra o chão propagou
um som abafado pelo quarto, alto o suficiente para provocar um gemido
sonolento da mulher adormecida. Ahuriel a encarou, o modo que a barriga
inchada repousava sobre a seda, suas curvas acentuadas se enroscando nos
lençóis. Então, outra parte da armadura caiu e Luna despertou. Seus olhos
cor-de-fogo se colocaram lentamente nele. A intensidade fez o interior do
draconiano arder. Era uma sensação desconhecida, quase sua fraqueza.
Porque a cada minuto, seus instintos davam um passo em direção a vitória.
Lunaysis se ajeitou na cama.
O rosto sonolento, os lábios inchados. A mão dela descera depressa
contra o ventre para se certificar que a cria estava lá, segura.
— O que aconteceu? — e as palavras dela estavam entrecortadas.
Ahuriel não desviou a atenção dela.
— Tu estás fora de perigo. — ele desceu os dedos no que restava da
armadura. — O clérigo dissera que tu precisas de uma rotina tranquila para
o bem da criança.
Houve um pequeno momento de silêncio.
— Leovrumund mencionou tua queda. — o tronco de Ahuriel estava
finalmente livre da armadura, cada músculo saliente. — É verdade?
A resposta dela havia demorado: Sim, sussurrou ela, mas não era o que
Luna deseja ter dito. Ahuriel reconheceu a mentira no tom dela. Estava
acostumado a interrogar as Amaldiçoadas para ser enganado com
facilidade.
— Ele lhe bateu. — não era uma pergunta; e ele percebera como sua
mulher reagira perante a sentença. Luna quase não respirou. — Essa é a
verdade?
— Por que está perguntando?
— Responda.
— Você acreditaria em mim, meu senhor? — e o tom dela mudou.
Lunaysis se ajeitou com cuidado no leito, uma mecha de cabelo escorreu
sobre o ombro, revelando parte da clavícula nua.
— Se estou perguntando, é porque acreditarei.
O rosto dela corou.
— Sim. — ela respondeu. — Ele disse que você tinha permitido a
visita. Eu acreditei... então meu irmão me ameaçou e me bateu.
Ahuriel retirou a última parte da armadura enquanto a draconiana se
manifestava.
— Eu pensei que fosse perder a criança.
— Ele desrespeitou minhas ordens. — e o comandante caminhou em
direção à cama, o corpo completamente nu. Luna não o encarou em nenhum
momento. — Leovrumund receberá uma punição pelo que fizera.
Os olhos dela se encheram de lágrimas.
Não era medo, não era desespero ou frustração. Era diferente; e,
internamente, ele se irritou por não saber o porquê.
— Preciso dormir. — e ele se deitou ao lado dela. — Fique quieta.
Luna assentiu. Só que o sono não vencera a insônia: o comandante
permaneceu de olhos abertos. Pesados. Cansados. Seu corpo estava
tensionado, os músculos doloridos demais para encontrar qualquer
descanso. Mas havia algo a mais: instintos. O sangue dele desejava, não ele;
algum desejo tolo que a raça herdara dos antepassados. As tradições diziam
que a reprodução era o único objetivo do contato carnal, e se os homens
desejassem, não deveriam desejar sua mulher — mas outras e demonstrar
virilidade. Era o que os superiores faziam: desfrutavam de amantes e
guardavam suas senhoras somente para procriar. Poucos eram o que não
tomavam amantes. Poucos eram os que não tinham esse desejo.
Ele era um deles — acreditava ser — até o momento que a presença de
sua mulher começara a lhe causar confusão. Ahuriel moveu a cabeça para
observar a draconiana ao lado. Os olhos vermelhos dela o observavam.
— Você está bem? Está suando... — o sussurro embriagou a escuridão.
O comandante suspirou diante a pergunta.
— Fique quieta, mulher.
— Eu posso ler se...
— Quieta! — e ele exclamou entre os dentes.
Ele daria a vida para que seu sangue parrasse de ferver.
Porque se sucumbisse ao desejo, seria fraco. Mas a draconiana se
mostrou mais insistente que Ahuriel esperava. Lunaysis deslizou na cama...
mais perto. A respiração dele ficou pesada; o corpo, mais quente;
aglomerado de sensações que se misturaram às palavras que foram
proferidas pela mulher. Um poema — palavras cantadas suavemente e
embaladas por um repentino vento. O comandante fechou os olhos, escutou
com atenção. Eram tênues fragmentos de tranquilidade que dançavam
acima dele.
...e ele adormeceu com a lembrança dos olhos cor-de-fogo.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E T R Ê S

SAFIRA COMO O OCEANO

LUNAYSIS OBSERVOU O ROSTO ADORMECIDO do comandante.


Ele dormia profundamente — uma criança perdida em sonhos
embalados na própria fadiga. Era raro vê-lo tão vulnerável, observá-lo tão
livremente, uma das únicas, se não a única, chance que a moça tinha. Por
isso, com cuidado, elevou a mão sobre o rosto do marido, a pele era quente
— marcas de um guerreiro, de um cansaço quase crônico. Ela nunca o
tocara de tal forma, tão próxima, tão atenta: durante a consumação do
casamento, o comandante não permitiu nenhum contato, pediu que ficasse
quieta e somente fez o que deveria fazer — apesar de ter sido
estranhamente cuidadoso. Possivelmente a falta de experiência fosse o
motivo, era a primeira vez que se deitava com alguém. Muito embora a
lembrança a aquecesse, outras a perturbavam.
Ahuriel era como uma moeda de duas faces.
Só que o lado corrompido transparecia com mais frequência.
Um vento repentino alcançou os lençóis.
Misairuzame, Luna a chamou em pensamentos, temendo que qualquer
sussurro seu despertasse o marido. Você está aqui?
Sempre, sussurrou a entidade, Sempre estou contigo, Lunaysis.
Eu tenho uma dúvida sobre Ahuriel.
O homem que caminha com os mortos, Luna estremeceu com as
palavras repentinas da entidade. Eu não conheço nada sobre ele, minha
criança, nada sobre aqueles te rodeiam. Mas eu posso ver o que ninguém
mais vê.
O que você vê?
Um homem atormentado por sombras. Ele esteve no outro lado, entre
os que se foram... por isso nunca descansa.
Você está se referindo a insônia dele?
Insônia? Misairuzame riu brevemente. Ele não dorme porque está
rodeado pelas sombras, uma consequência do nascimento dele.
A origem de Ahuriel, era o que a draconiana tinha dúvidas. A mãe dele
exclamara que o comandante era seu filho, que ele nasceu doente; e as
palavras dela foram cheias de medo.
O Vento de Esmeraldas é o que faz descansar. Tua essência, Lunaysis,
é a proteção dele, dessas sombras.
É por isso que ele dorme em minha presença?
Na tua presença e do vento, a deusa respondeu, e se tu interromperes
esse fluxo, o draconiano acordará.
— Me mostre. — pediu em voz alta.
A brisa, então, extinguiu-se: o comandante abriu os olhos. Lunaysis
sentiu o coração palpitar, quase sair pela garganta. Ela tentou se afastar
depressa, mas o comandante segurou seu pulso.
Ambos trocaram olhares por um segundo.
— O que tu estavas fazendo?
— Eu... — Luna gaguejou. — Eu estava... você precisava acordar, meu
senhor. Eu estava tentando despertá-lo, mas...
Ahuriel suspirou visivelmente irritado.
— Não precisa terminar. — e ele a soltou.
— Você estava cansado, precisava dormir o suficiente, meu senhor...
— a draconiana sussurrou sem baixar os olhos perante o marido.
— Não o faças mais. — o comandante dissera. — Não me toque
novamente, Lunaysis. — e era sempre estranho ouvir o seu nome na voz
dele. Ele se levantou, caminhando até a armadura. — Agora volte a dormir.
Alguém batera na porta de repente. Eun-seo entrara às pressas no
quarto, desculpando-se em seguida. O rosto dele estava pálido, linhas de
suor escorriam pela testa. Ele fez uma reverência acentuada antes de se
manifestar.
— Uma mensagem, comandante. Sir Hanzor está chegando. — Luna
percebeu o tremor no tom de seu protetor. — Ademais, o general Demétrius
está na cidade, esperando que os superiores se reúnam com o príncipe
Serge. Ele tem informações sobre a Estrela da Noite.
Eun-seo tomou fôlego.
— Me desculpe, mais uma vez, pela entrada...
— Pode se retirar. — Ahuriel não o deixou terminar. O vassalo saiu,
rápido como um lobo. — Você. — e observou a mulher. — Descanse.
Antes que o comandante saísse, porém, Luna jurou ter visto uma
sombra acompanhá-lo.
As sombras do outro mundo, como antes dissera a deusa.

Ele acreditou que morreria.


Finalmente seria morto — depois de quase cinquenta anos de
promessas e escapatórias contra a ceifadora negra. Só que não fora dessa
vez: Demétrius sentiu as chamas adversárias correram, quase lhe engolirem,
enquanto o templo desmoronava sobre sua cabeça. Seu instinto draconiano
agira depressa e o fizera disparar na única direção existente: o altar; e lá,
entre chamas azuladas e sombrias, uma voz o chamara repentinamente em
uma linguagem antiga, proibida. Demétrius estendera as mãos na direção
das estátuas e duas espadas se materializaram sobre os degraus — espadas
não para ele, mas para a herdeira. Elas queimaram entre Chamas de Safira,
as quais se extinguiram no instante que ele as tocou. Praguejando, o
draconiano as agarrou; então, segundos antes da estrutura sucumbir perante
o fogo adversário, o draconiano sentira um toque quente envolver seu
corpo.
As rochas caíram e se desmancharam ao redor dele.
Elas se tornaram cinza e pó.
Demétrius tentava entender o que acontecia ao seu redor: nada lhe
atingia, nenhum maldito escombro ou concreto como se uma barreira
houvesse se formado; barreira esta criada pelas espadas gêmeas em suas
mãos. A lâmina delas eram safiras afiadas e brilhantes, enquanto o punhal,
prateado, imitava escamas ao longo de sua estrutura, formando no início da
lâmina, a imagem perfeita de uma asa de dragão. O draconiano ouvira falar
sobre tais armas — elas eram um presente das entidades amaldiçoadas. Mas
o porquê ou para quem, Demétrius não sabia e não estava interessado em
saber. Pegou-as sem se importar se haveriam consequências ou não. Estava
desarmado; e aquelas lâminas pareciam cantar para ele.
Era por causa delas que estava ileso.
Ileso, na verdade, era uma palavra-paradoxo: as queimaduras causadas
pelas chamas da Estrela da Noite ainda ardiam em sua pele e bordavam um
ferimento irreversível. As cicatrizes ficariam lá para sempre, o que não era
um problema para alguém estampado por elas dos pés à cabeça. A diferença
maior era em seus cabelos negros — também queimados — que precisaria
cortar: nada além de fios disformes restavam caindo no lado desfigurado de
seu rosto. A cicatriz da bochecha estava mais visível agora e ficaria mais
quando as queimaduras que o atingiram secassem. Mas o que o draconiano
realmente se interessava era no outro dragão — o mesmo que salvara a
Estrela da Noite.
Um dragão de chamas azuis.
Demétrius matara mais de cem dragões em todos seus quarenta e cinco
anos, dragões que nunca tiveram um fogo como aquele. A encarnação do
Fogo de Safira. Quem era o maldito ou qual era a relação dele com a Estrela
da Noite; o draconiano não sabia, contudo, ficou interessado em descobrir.
Porque mataria dois coelhos com uma cajadada só.
Só que não agora.
Demétrius observou seus ferimentos: não seria capaz de enfrentar
dragões no estado atual e sua única alternativa era finalmente a capital
humana. Ele levaria as espadas, seriam suas; até porque também sentia
como se elas sussurrassem em seus ouvidos. Magia amaldiçoada e
entidades esquecidas: ele prometeu enterrar uma lâmina no coração do
primeiro draconiano que ousasse questionar sua nova posse. Então,
embainhando ambas, sentindo a brisa quente da praia, o general avançou
sozinho na direção do horizonte em chamas. Ele pararia na primeira cidade
para abastecer seus instintos: foderia um ou dois, encheria a cara com
cerveja para, enfim, enfrentar o Grande Deserto de Tannenberia.
Depois, alimentar-se-ia de Estrela da Noite.

O general não estava acostumado com o maldito calor.


Ele crescera no continente-de-homem-nenhum, cercado pelo Inverno
Eterno, dias e noites tão geladas que congelava a voz dos habitantes em
suas gargantas; ele, no entanto, aprendera a suportar a temperatura negativa
— era isso ou a morte —, e o Senhor de Gelo não se importou em
abandoná-lo aos dez anos para sobreviver em um mundo congelado.
Sozinho. Ele sobreviveu o primeiro, o segundo e muitos outros invernos: o
processo era parte do treinamento dos draconianos que nasciam em
Nothumbria. Somente os que venciam as barreiras da Noite Eterna eram
dignos de viver. Demétrius, porém, fizera questão de mostrar o quão capaz
era, uma tolice sua no passado. Era um jovem que buscava o
reconhecimento da figura paterna, quem, felizmente, era incapaz de
demonstrar amor ou compaixão.
Era diferente agora — embora as últimas palavras do pai martelassem
o inconsciente do general. Tu morrerás Demétrius, então, será como nunca
tivesse existido. Por que tu não és nada.
Ele mostraria ao Senhor de Gelo que nunca seria nada; e, sim, tudo.
— Abram a porra desse portão, seus humanos de merda. — e o
draconiano praguejou sobre o cavalo. Ele cavalgara incontáveis dias no
olho do sol escaldante, resistindo ao clima do Grande Deserto e não estava
com paciência para questionamentos. O cavaleiro assentiu depressa,
horrorizado com a imagem do draconiano. Eram as consequências do astro
rei: as queimaduras haviam infeccionado na bochecha do general e
aumentado a cicatriz. Ele ficaria com metade do rosto irreconhecível, mas
felizmente as chamas não chegaram a atingir seus olhos.
Demétrius não precisava ficar mais cego do que estava ficando.
Ele avançou pela entrada da capital e atravessou as forças que
vigiavam os portões. Alguns draconianos estavam entre os humanos,
armados e preparados para qualquer ataque. Todos, no entanto, baixaram a
cabeça para o general — e aos que ousassem observá-lo com um olhar
torto, restaria o gosto da lâmina do superior. O sangue de Demétrius estava
fervendo por uma confusão, um pouco de sangue e muita morte. Ele se
dirigiu aos distritos menos movimentados, conhecia a capital, estivera
inúmeras vezes por lá, mas a visão deteriorada e a dor dos ferimentos o
fizeram levar mais tempo do que estava acostumado para alcançar um dos
Templos de Sunyar.
Era um ambiente escuro e duas vezes mais abafado que o exterior
como se algum sol queimasse lá dentro. O cheiro de incenso era forte, areia
e fogo, aromas que se misturavam ao suor dos humanos que lá rezavam.
Chamavam-lhes de Elementaristas, outro nome para os homens que diziam
entender a natureza e essência do planeta. Charlatões. Miseráveis. Eles não
eram capazes de controlar a magia que correia pelas veias de Agëa,
ninguém podia, com exceção dos Animanos do extinto continente de
Degail. Eles eram próximos dos dragões — de onde a magia ecoava — e
tinhas suas relações amigáveis, mas foram exterminados assim como as
feras escamadas também estavam sendo.
Magia era somente uma desculpa para os fracos se acharem fortes.
Demétrius se aproximou do altar: duas figuras estavam ajoelhadas,
murmurando uma prece antiga na linguagem comum do continente. A
imagem de Sunyar estava estampada em um tecido pintado à mão, tinta
dourada e prateada, e a divindade maior empunhava a Espada dos Mil Sóis
contra uma parede em chamas — uma metáfora para o inimigo maior: o
deus-dragão. Era a história que os humanos acreditavam: o dia em que o
Astro Divino, o Sol, desceu à terra para enfrentar o Guardião do Céu, a
Serpente Alada, em uma batalha que dera origem ao Grande Deserto.
Lendas de tolos que louvavam uma entidade morta, diferente dos
Nothumbrianos que acreditavam na Noite Eterna: essência viva que estava
sempre presente nos céus do continente gelado.
Sobre todos. Era a escuridão encarnada.
O draconiano cruzou os braços e pigarreou alto o suficiente para alertar
os elementaristas. Ambos viraram com as expressões assustadas. Era
comum para o guerreiro, as pessoas temiam observá-lo por causa da cicatriz
e dos olhos heterocromáticos. As queimaduras recentes, que cobriam parte
do pescoço e canto direito do rosto, um presente da Estrela da Noite,
deixaram-no amedrontador.
— Quero um de vocês me chupando e outro tratando meu ferimento.
— Demétrius murmurou, as dores da queimadura irrompendo a cada
palavra proferida. Eram dois homens, negros como todos os habitantes da
região oeste de Tannenberia, mas magricelos, diferentes dos quais
guardavam a cidade. Só que o guerreiro não se importava com o gênero ou
o porte físico, o que se pareciam ou não, para ele prazer era sempre prazer.
Bastava uma boca e um buraco. — Agora. — ele finalizou.
Os humanos se entreolharam.
— Perdão... milorde. Somente tratamos feridos aqui... e... — e uma
lâmina de safira o silenciou. Era a oportunidade perfeita para experimentar
as novas espadas e ter certeza que eram ótimas; e, definitivamente, eram.
Demétrius não se arrependeu do movimento quando a cabeça rolou em seus
pés, esguichando sangue para todos os lados. O segundo elementaristas fez
menção de gritar, mas o draconiano o agarrou e enfiou a espada na boca
dele. Bastava um movimento, só um, para que a lâmina atravessasse o
pescoço da vítima.
— Pense só. Você prefere chupar a espada ou o meu pau? —
Demétrius disse entre os dentes, quase psicótico. — Eu só não vou arrancar
a porra da sua língua porque você vai precisar dela depois que tratar meus
ferimentos. Dependendo de seu desempenho, seu merda, eu penso em
poupar sua vida.
Demétrius não o poupou: usou-o como podia e depois o matou, irritado
pelo abafamento do templo. Então, saciado e levemente recuperado, o
general limpou a espada suja de sangue nas fontes sagradas e caminhou
rumo ao palácio de Sopoente.
Estava mais do que na hora de exercer a merda de seu cargo.

Que o fogo da Estrela da Noite os fizesse queimar, todos eles, até que
não restasse mais nada, nenhum draconiano ou humano; então o mundo se
curaria de sua doença e os dragões reinariam. Era o que Rhenna vrön
Skaargärd desejava, que o mundo se acabasse em cinzas — e ela
descansaria enfim. Encontrá-lo-ia no plano de Lunyar, seu pequeno menino
com olhos de vidro.
Se não fosse para o plano dos caídos pelas escolhas que fizera em vida.
Mas precisava que tudo acabasse logo. Que os draconianos em sua
frente fossem destruídos pela própria ambição. Estavam todos reunidos na
Sala de Guerra com o príncipe Serge para discutir a captura da Estrela da
Noite e a defesa da cidade real para o inimigo à espreita. O general
Demétrius estava presente, o melhor caçador do império, e traria a vitória
para os guerreiros como antes fizera. Rhenna, no entanto, o odiava, o modo
doentio que o desgraçado se portava. Era um assassino. As tradições eram
assassinas — porque obrigaram uma menina de doze anos a se casar com o
general, como ela também havia sido obrigada na infância, corrompida
pelos quais deviam protegê-la.
A mulher pertence ao seu senhor — e a ele pertencerá para todos os
fins.
O general Belpheggör e o comandante Ahuriel ouviam as palavras de
Demétrius com atenção. Ambos confiavam no ponto de vista dele, era um
bom estrategista. A guerra contra os rebeldes de Duar vyr Duan no passado
fora vencida pelas artimanhas do general. Ele mencionou o poder da Estrela
da Noite, exibiu as armas roubadas e congelou o coração de Rhenna ao
ressaltar que a caça era uma herdeira da entidade de safira. Eram
semelhantes: o poder de Rhenna, sua maldição, vinha da Estrela da Noite.
Sua fonte. Se a matasse, o Fogo de Safira desapareceria e levaria aqueles
que dele dependiam. Belpheggör poderia encontrar uma forma de roubar a
essência dela — o que fizera a Nahemidraal no passado. Os Cristais de
Rubi da Estrela da Noite pertenciam a ele, um draconiano. Mas nenhum
homem ousara enfrentar ou questionar o general. Nem mesmo o Imperador
Darius, alegando que o poder proibido dele seria um presente à nação.
Mas era doentio.
Porque a essência de Nahemidraal era ligada existência dela — e a
alma dela estava presa dentro do draconiano.
— Conte-nos, querido general, como devemos nos preparar? —
Belpheggör questionou com o cálice de vinho entre os dedos.
— É uma vadia imprudente e ingênua, se vocês precisam de um plano
para capturá-la, não passam de uns merdas. — e o general ignorou o olhar
repressivo dos demais. — Basta saberem que a Estrela da Noite não pode
estar na sua verdadeira forma. Acredito que saibam o porquê.
Rhenna notara a diferença no rosto do homem: do lado direito do
pescoço à têmpora, bolhas cicatrizavam. A queimadura o acompanharia
pelo resto de seus dias, marcada como o corte profundo da bochecha e da
orelha ausente. Demétrius raspou as laterais do cabelo como se desejasse
mostrar o ferimento como um troféu, deixando as madeixas restantes cair
picotadas em suas costas.
— As flechas com sangue de Nyr serão suficientes. — Demétrius
concluiu.
— O que são essas flechas? — o príncipe questionou.
— Nyr são dragões praticamente extintos, Majestade, mas que
guardavam um poder devastador. Nós, draconianos, os caçamos por causa
dos ossos deles, ingrediente necessário para o Aço de Cristal; e o sangue,
venenoso ao ponto de congelar as habilidades de um dragão e causar
feridas quase irreversíveis. — e Ahuriel respondeu. Ele colocou um
pequeno recipiente sobre o mapa; dentro, um líquido negro residia. — É
vossa arma contra os Primeiros Dragões... o Sangue de Nyr neutraliza os
poderes deles.
— Uma flecha é o suficiente?
— Não. — Belpheggör quem respondeu dessa vez. — Depende do
dragão, querido príncipe. Precisamos saber o peso ou tamanho.
— Ela é pequena. — Demétrius cruzou os braços. — Como se
houvesse parado de crescer na infância. Não passa de dois metros e dez
centímetros e não deve pesar mais que duzentos quilos.
— Curioso. — comentou o segundo-general. — Suponho que cinco
flechas serão mais que o necessário. O que me incomoda, cavalheiros, é a
possibilidade do outro dragão atacar nesse meio tempo.
— Sir Hanzor chegará em cinco ou seis dias. Teremos tempo para fazer
as buscas na cidade. — Serge se fez ouvir. — Agora que o general
Demétrius está conosco, podemos caçar o inimigo com mais facilidade.
— Está feito. — e o citado estalou um músculo do pescoço. —
Comandante Krimnell, espero que não se queime ao capturá-la. Será
interessante ver a vadia lutar. Ela não desiste fácil.
— Hanzor chegará pelos portões do Sul de acordo com a última
mensagem. Enquanto vocês esperam, meus homens, o general Belpheggör e
a general Rhenna estaremos espalhados pela capital. Qualquer
movimentação suspeita será reportada, nenhum inimigo atacará. — disse o
príncipe com confiança e os demais assentiram.
Quem era o inimigo?, era um questionamento que despertava a
curiosidade dos homens. As mensagens disseram ser um dragão do tamanho
de uma montanha, com asas que traziam a noite. Mas humanos
exageravam. Poderia não ser o Dragão dos Dragões; poderia ser somente
um deles procurando pela estrela perdida.
Que fosse ele. O homem, o dragão, seu guardião.
...e que matasse todos.
— Está feito. — murmurou a general depois um longo silêncio.
C A P Í T U L O Q U A R E N T A E Q U AT R O

A ESPERANÇA DE UM
AMANHÃ

A ESCURIDÃO SEMPRE FORA o maior medo dela.


Lembrava-se das noites frias e úmidas que a ceifadora noturna lhe
fizera companhia, os sussurros gelados que se apoderavam de suas escamas
e roubavam os resquícios de sanidade que tinha. Yanaamahka temia o breu
total porque nele — nas horas eternas — seu coração se fragmentava até
desmanchar em seu peito; e nos anos que passara na solidão do calabouço,
questionou se, de fato, tinha um coração. A liberdade, porém, providenciara
o alívio que a Estrela da Noite precisava: ela o tinha. Um coração tímido
que batia ao ver o sol, o céu e que palpitava com um calor sutil, um afeto
sutil.
Mas que sangrava ao pensar no passado.
Um passado amaldiçoado.
Você está amaldiçoada, dissera a deusa e a Estrela da Noite se recusou
a acreditar. Porque o pai dela era o culpado pela maldição... o Dragão dos
Dragões roubara dela o passado, o nome, a vida. Quem tu era, não serás
mais. Yanaamahka nadou na escuridão, na inconsciência, ansiando pelo
despertar.
Precisava despertar e descobrir que estava viva.
Seus olhos se abriram depressa.
A luz tênue de um lampião fora a primeira coisa que viu — o fogo
dançando diante seus olhos dourados. Depois o quarto; a cama, o nada.
Estava silencioso e vazio, sem nenhum calor humano ou draconiano.
Assustada, ela se moveu e seus músculos gritaram com a corrente de dor
repentina: havia escoriações e ferimentos espalhados por cada centímetro de
seu corpo. Mas estavam limpos e tratados. A ferida causada pela adaga
estava coberta por um curativo recente... mãos cuidadosas o haviam feito,
mãos pequenas. Yanaamahka rolou na cama, contendo um grito de dor e
desespero, e caiu no chão de madeira. Ela sentiu os lábios tremerem, o
coração se afogar, enquanto lembrava da causa de estado atual.
Desgraçado, ela murmurou e, meio cambaleante, apoiou as mãos na cama
para se pôr em pé, sentindo as vibrações do dragão sobre a pele humana.
A mulher mancou até a porta do quarto.
Vozes atravessavam as paredes: humanas, draconianas, mestiças.
Estavam próximas. Yanaamahka colocou as mãos na maçaneta e abriu a
passagem lentamente. Um corredor se revelou a sua frente, iluminação
precária e decoração medíocre. Ela avançou, usando as paredes como apoio,
ouvindo o murmurinho se propagar pela madeira oca da construção — nada
além de palavras confusas que a atordoavam. A figura de um homem surgiu
repentinamente no corredor e o sangue da Estrela da Noite congelou: parou,
gemeu, observou. Ele andava de um lado a outro segurando uma caneca
vazia. Cantava também, alguma melodia antiga. Ele a ignorou e
Yanaamahka seguiu em frente: uma passagem no final do corredor revelou
um salão inundado de pessoas. Todos estranhos, bêbados, bandidos. Muitos
a ignoraram no começo, estavam preocupados demais com as conversas e
as provocações. Bastara, contudo, uma queda desajeitada para que todos os
olhares lhe alcançassem. A mulher caiu, sua expressão assustada e confusa
viajou pelos quais a observavam — suas malditas pernas estavam tão fracas
que caminhar sem cair era um desafio enorme. Ela se levantou depressa
quando um homem se aproximou, questionando algo que não entendeu,
ocasionando uma reação repentina.
Só que a mulher reagiu como um animal selvagem: afastou a mão
humana com um golpe e mostrou os dentes, os caninos não-humanos, como
uma mensagem de ameaça. Ela o teria mordido e causado uma sutil
confusão se um toque quente não houvesse a alcançado na cintura:
Yanaamahka colidiu com uma parede de músculos tensionados de outro
desconhecido. Cheiro de draconiano — e não era mais desconhecido. Mas a
proximidade, os braços sobre sua pele, a fizeram gelar; e não porque era
bom.
Ele a segurou firme enquanto sorria para o humano.
— Ela tem essa mania de mostrar os dentes para todo mundo. — era a
voz de Hanzor; e bastara o homem reconhecer a origem do guerreiro, as
orelhas sutilmente pontiagudas, a pele mais pálida, as garras salientes e os
olhos-de-sangue para que murmurasse um pedido raivoso de desculpas. Ele
se afastara tão rápido quanto se aproximara. — Seu nome deveria ser algo
relacionado a confusão... — ele sussurrou suspirando.
Yanaamahka o repeliu depressa, o coração palpitando em desespero, e
quase tombou de novo.
— Calma, mulher encrenqueira! — Hanzor a segurou pelo braço e foi
repelido novamente. — Só me segue... e não me venha com esses seus
dentes.
Ela grunhiu e o acompanhou cambaleante.
Uma temperatura amena envolvia o povoado de construções
amontoadas em frente a um imenso cânion. A população o chamava de
Caminhos do Deserto: a principal passagem para o Grande Deserto de
Tannenberia. A região era cercada por rochas alaranjadas que cresciam em
direção ao horizonte. Imponentes. Ancestrais. Eram consequências da
queda de Sunyar em mundo, diziam as tradições humanas. Hanzor
murmurou algum aviso que a estrela ignorou enquanto observava os novos
detalhes que a rodeavam. A cidade estava movimentada como todas as
outras que estivera: eram as preparações para as festividades que acendiam
os corações humanos.
Sorrisos. Felicidade. Miséria. Solidão.
A dualidade de sentimentos se misturava no semblante de todos — e a
Estrela da Noite se perguntou qual era a sua expressão. Medo? Desespero?
Confusão? Yanaamahka olhou em frente e encontrou a resposta. Era de
alívio: porque o pequeno tigre estava lá. Diante dela... sorrindo; os fios
avermelhados se acendendo na escuridão que regia o mundo.
Ela quase sorriu ao vê-lo.
Só que a dor a privou de mover os músculos do rosto.

Nós a encontramos numa planície, dissera Tiggrë com eminente


espanto. O pequeno mencionara o estado deplorável dela: banhada em
sangue e sujeira. Yanaamahka não estava ciente desse acontecimento. Ela
não lembrava de mais nada depois de ser agarrada pelo ceifador — somente
o medo que a devorava a cada minuto que permanecera longe da luz, da
realidade. Demétrius não a abandonaria com vida; não depois de ter
prometido que a mataria lentamente.
— Eu estava com muito medo de perder você. — o menino murmurou
enquanto tratava o ferimento na barriga dela. Nos olhos, lágrimas contidas;
no rosto, melancolia. Ambos estavam no quarto da hospedaria e o
draconiano se ausentara anunciando a necessidade de buscar comida. —
Quando a encontramos... pensei que estivesse morta, Na’na. Graças aos
Doze Divinos você está se recuperando.
— Onde estamos? — Yanaamahka perguntou e emitiu um leve
gemido, as correntes de dor corriam intensas nela. O rosto dela estava tão
marcado por escoriações e hematomas que era difícil reconhecê-la como
uma Estrela da Noite. Eram as consequências da violência do ceifador... do
guardião.
Mas não sabia o que significava o termo.
— É uma cidade perto da capital. Nós estamos quase chegando! — o
sorriso iluminado do menino fez o coração dela se acalmar. Estava salva,
segura, capaz de respirar sem temer qualquer violência.
Hanzor adentrou no quarto no momento seguinte.
Ele trazia alimentos frescos e um enorme porco recém assado. Seria
dividido, dissera, mas a Estrela da Noite fez cara feia e recebeu o maior
pedaço — e as maiores porções. Ela abocanhou a carne quente sem
nenhuma cordialidade ou receio. Tiggrë separou pão e queijo para ela
também, mas a fêmea negou alegando que ficaria com o porco inteiro em
troca dos outros itens. Eles não puderam negar: o olhar enfurecido dela para
a comida provavelmente daria dor de barriga neles se recusassem.
Alimentaram-se sentados no chão, quietos, enquanto a estrela se lambuzava
com um pedaço de pernil.
— Podemos descansar hoje e amanhã partir para a capital. — e o
homem se manifestou de repente.
— Ela precisa se recuperar um pouco antes... — Tiggrë murmurou,
separando uma parte de seu alimento para dar a Estrela da Noite. — Eu nem
sei quem fez... isso. — e se referiu ao ferimento na barriga dela.
— Domótrios. — Yanaamahka respondeu com a boca cheia.
— Espera... — Hanzor terminou de engolir o alimento antes de
continuar. — Demétrius? Eu não acredito que você encontrou com ele e
sobreviveu! Você estava sozinha quando a encontramos... e pelo que eu
conheço aquele miserável, ele nunca a deixaria escapar com vida.
Ele realmente não deixaria.
Alguma coisa deveria ter acontecido depois que desmaiara.
— Ele não fez mais nada com você... na’na? — Tiggrë se inclinou na
direção dela e estendeu o queijo, o olhar levemente preocupado. Ela fez
cara de enjoada para o alimento. — Não... forçou você a nada? Não te...
— Nada. — Yanaamahka o interrompeu e engoliu o pedaço de carne,
os lábios estavam brilhosos de gordura. — Mas ele queria foder.
Hanzor cuspiu a bebida um segundo depois.
Tiggrë se engasgou com o pão.
Ambos ficaram pálidos, não pela palavra; e, sim, pela naturalidade e
ingenuidade que a Estrela da Noite se referia ao termo.
— O que é foder? — e a insistência dela quebrou o silêncio.
Hanzor soltou uma gargalhada.
— Eu não deveria rir disso... — o draconiano controlou a risada depois
do olhar de desaprovação do menino. — É trágico! Desculpa!
— Não é nada, na’na! É besteira dele! — Tiggrë disse depressa, tão
vermelho quanto os fios de seu cabelo.
— Se fosse besteira, ele não falaria em foder o tempo todo.
— Chega dessa palavra! — o menino berrou com os braços erguidos.
— O importante é que ele não está mais aqui. Pronto! — e desviou a
atenção para o draconiano. Hanzor segurava a risada. — Você pare de rir
dela! Será que sou o único sensato aqui? Não é engraçado rir disso,
Hanzor... nem um pouco engraçado.
— Fica tranquilo, pequeno. — o cavaleiro sorriu. — O perigo passou.
— Mesmo assim... eu não quero que você ria dela. — Tiggrë suspirou
e encolheu os ombros, depois observou a Estrela da Noite. — Você
encontrou o templo, na’na?
Yanaamahka refletiu a resposta. Por um momento se perguntou se
deveria esconder o que acontecera do menino, mas se arrependeu do
pensamento. Ele era sempre sincero — não havia nenhum segredo,
nenhuma mentira, nenhuma ilusão. O pequeno era verdadeiro como
ninguém havia sido com ela. Por isso, limpando a boca lambuzada na
manga da túnica, revelou tudo: desde o encontro doloroso contra o ceifador
à palavra guardião proferida por Mahoutsukai. A Estrela da Noite também
mencionou a maldição, a parte esquecida dela.
Tiggrë e Hanzor ouviram com atenção.
— Eu não preciso desse poder. — Yanaamahka prosseguiu. — Não
preciso. Vou pra o desfiladeiro sem a ajuda dele.
— Ele é parte de você, na’na... sua vida. Eu tenho certeza que você só
sobreviveu aos ferimentos... todos esses dias por causa do Fogo de Safira.
Ninguém aguentaria. Nem um draconiano. Nem um dragão comum. Só uma
Estrela da Noite herdeira de Mahoutsukai. — Tiggrë mencionou afastando
o resto de sua comida. — Agradeça a ela por continuar viva.
— Eu não entendo das essências, Yanaa, mas tenho que concordar. —
Hanzor disse brincando com uma adaga entre os dedos. — Seu estado era
assustador... Eu nunca vi um homem sobreviver assim.
— Não precisar de essência que escolhe um inimigo como guardião.
Draconiano e humano se entreolharam.
— Você disse guardião? — Tiggrë perguntou.
— Disse... mas o que significa?
— Guardião é uma tradução livre do termo guak’Ka e significa a
proteção que vem da essência. O elemento escolhe aqueles que de algum
modo foram tocados por uma conexão... — Tiggrë agarrou o livro, a
essência do mundo, com força. O volume estava com várias anotações entre
as páginas, demostrando o empenho do humano para descobrir sobre as
deusas esquecidas, os dragões, a essência que regia o mundo de Agëa. —
Eu não terminei a tradução dessa parte, mas... um guardião é alguém que,
no fundo, tem uma ligação com a essência.
O menino suspirou emburrado.
— Eu que queria ser seu guardião...
Uma ligação.
Como Demétrius poderia ter uma ligação com ela?
— Eu vi o passado dele... — a mulher-dragão murmurou com os
pensamentos distantes. — Mas eu também vi o do Klud e... o seu. — e se
referiu ao menino. — A pior parte de cada um.
— O que significaria que Klud e Tiggrë também são seus guardiões?
— Hanzor questionou, embora mostrasse pouco interesse.
— Na verdade não. — o humano interviu. — Pelo menos não diz nada
até onde eu li. Eu acho que ela pode ver o passado de quem quiser... mas é o
Fogo de Safira que escolhe o guardião.
...e ele escolheu o pior deles.
— Agora quanto a parte da sua maldição... na’na, eu não entendo
muito da magia dos dragões. — Tiggrë folheou as páginas. — Eu acredito
que há um jeito de encontrar o seu passado, pegar suas lembranças de volta,
se nós descobrirmos o que é essa maldição.
— Ninguém entende da magia dos dragões, pequeno. — Hanzor
bagunçou o cabelo.
— Porque você não conheceu os Animanos. — e um sorriso enorme se
iluminou nos lábios do menino. — O meu povoado, ao norte do
desfiladeiro, foi atacado, mas há outros clãs. Podemos encontrá-los, na’na!
É no caminho do nosso destino. Eu tenho certeza que os Eternos vão saber
como ajudar.
— Eternos? — ela perguntou.
— Eles são Animanos que devotaram suas vidas ao Doze Divinos.
Existem doze deles, um para cada animal sagrado; e eles são chamados pelo
próprio nome dos animais. — Tiggrë explicava com os olhos brilhando. —
Eu quero me tornar um Eterno quando retornar para Degail e representar o
Tigre... ele e o Dragão são os animais mais complexos. Um representa a luz
e o outro, escuridão.
— É uma ótima história. — Hanzor sorriu.
— Não é uma história! É verdade! Você só fala isso porque é um
draconiano e tem suas próprias crenças.
— Temos culturas diferentes, pequeno. — o cavaleiro disse divertido.
— Não quero desrespeitar a sua, mas...
— Você está usando mas, então quer dizer que não respeita. — Tiggrë
franziu o cenho.
— Eu não quis dizer isso, é que...
— Calem a boca! — Yanaamahka grunhiu e mostrou os dentes. — Eu
não quero diferenças de vocês... quero saber como ajuda isso tudo.
Tiggrë fez uma careta para o draconiano antes de responder.
— Vai te ajudar porque o Eterno de Dragão conhece a magia da raça e
eu acredito que ele vai saber do que sua maldição se trata.
— Ótimo. Agora eu quero mais porco. — e ela fez menção de se
levantar, mas uma pontada de dor a fez gemer e desistir.
O menino se aproximou dela.
— Você tem que repousar, na’na! Seu ferimento está feio ainda.
— Faça ela descansar então, eu vou aproveitar e conversar com um
amigo que está na cidade. — Hanzor se levantou e deixou a adaga sobre a
cama. — Podem dormir se quiser, não precisa esperar por mim.
— Quem disse que íamos te esperar?! — Tiggrë respondeu com a
expressão emburrada. — Pode se divertir com seus amigos, cavaleiro. Boa
noite!
Hanzor piscou e saiu, segurando a risada. Ela e o menino ficaram.
Tiggrë chegou a oferecer o restante dos alimentos, o pão e o queijo, mas
Yanaamahka recusou e pediu carne — e exigiu que fosse fresca e suculenta.
Era um dragão e deveria se alimentar como um.
— Você quer algo a mais, na’na?
— Mingau de aveia.
Tiggrë riu.
— Sabe do que você precisa? Um banho! Se você prometer se lavar, eu
peço pro Hanzor comprar uma ovelha inteira para você.
— Duas. — Yanaamahka chupava o restante de gordura nos dedos.
— Duas. — e o menino sorriu.
...e a Estrela da Noite soube que dias melhores viriam só de olhar para
ele.
A Estrela da Noite estremeceu — dor e calafrios.
A água gelada tocara o ferimento e trouxera um aglomerado de
sensações positivas e negativas. Sangue contaminou a superfície
transparente: sangue dela e do inimigo. Yanaamahka não se importou com o
banho, o corpo parcialmente submerso. Era bom. Um relaxante contra a
manhã abafada que se erguia sobre o povoado. Ela e o menino caminharam
por quase uma hora para encontrar o pequeno oásis entre os cânions dos
Caminhos do Oeste. Era um ambiente desabitado, seguro o suficiente para
banhá-la sem qualquer perigo. Hanzor não os acompanhou, embora
quisesse. Tiggrë quem o proibiu. Você não pode vê-la nua!, dissera com as
bochechas coradas e o draconiano não pode argumentar.
— Vai ajudar a limpar o ferimento. — o humano mencionou enquanto
a esfregava com um tônico perfumado. Yanaamahka detestou o cheiro, fazia
seu nariz coçar e a cabeça latejar. — Seu cabelo também precisava muito
ser lavado... Por onde você andou naquele templo, na’na?
Tiggrë não a esperou responder.
— Eu queria ter estado lá com você... — e suspirou.
— Eu pensei em ti... as perguntas que faria. — a curiosidade que o
menino teria se encontrasse uma deusa. — Eu posso contar o que ela disse.
— Conte tudo! — Tiggrë sorriu. — Mas espera eu estar com meu
caderno e livro. Eu quero anotar tudo! Seja bem detalhista, na’na.
Yanaamahka assentiu e desfrutou os minutos seguintes.
Ela aproveitou a distância da cidade para se libertar, para chamar o
dragão escondido em sua alma. A fera escamada preencheu o oásis, uma
asa arqueada e outra, tocando o chão. Tiggrë mencionou um sutil avanço no
tratamento do ferimento, a infecção havia desaparecido e as escamas
estavam cicatrizando. Você voara novamente, eu prometo, dissera o menino
cheio de esperança. Yanaamahka acreditou: porque se conseguira encontrar
suas chamas perdidas, encontraria uma forma de tocar o céu, as nuvens, de
voar livre. Ambos retornaram à cidade no final da manhã.
Yanaamahka caminhou devagar: as dores ecoavam no ferimento de sua
barriga. Cada passo era uma tortura; cada palavra, um tormento. O menor a
acompanhou, estendendo a mão vez ou outra para ajudá-la. Tiggrë era
paciente e insistente. Era quase como um guardião — e era estranho pensar
que Mahoutsukai escolhera um inimigo e não o menino. Não que ela
precisasse de alguém que a protegesse. Mas ficava aliviada com a sutil
presença dele. Hanzor os esperava nos limites da cidade, brincando
distraído com a espada, sorrindo para aqueles que lhe dirigiam olhares
curiosos.
Ela se perguntou o porquê do draconiano chamar tanta atenção. Se
eram os olhos, o sorriso ou o simples fato de ser o que era. Yanaamahka o
observou com cautela. Era difícil acreditar nele, nas promessas. Era, porém,
impossível esquecer o primeiro dia que o vira naquele calabouço: o
primeiro olhar de compaixão.
— Eu soube que uns mercadores estrangeiros estão na cidade de
passagem, pequeno. — Hanzor anunciou, os dedos bagunçando os cabelos.
— O que acha de aproveitar para conhecer a mercadoria deles? Eu pago.
Pense nisso como um pedido sincero de desculpas por ontem.
Tiggrë baixou o olhar.
— Você não pode comprar um pedido de desculpa.
— Eu sei que não, pequeno. Não posso comprar nem a confiança de
vocês. Estou tentando melhorar nossa situação. O que acha?
— Ele desculpa se você comprar duas ovelhas. — Yanaamahka
respondeu.
— Ovelhas? — e o draconiano arqueou as sobrancelhas.
O menino riu com as bochechas coradas.
— Duas ovelhas e estamos desculpados.
— Grandes. — a Estrela da Noite completou.
— Tudo bem... duas. — Hanzor sorriu. — Aproveitem o dia então. Eu
vou atrás das ovelhas e vocês conheçam os mercadores. Se precisarem
comprar algo, aqui está. — e ele colocou cinco moedas de ouro na mão do
humano. — Façam bom proveito.
— Por que esse coisa brilhante vale tanto? Eu não dou minha comida
por ele.
Tiggrë sorriu para o comentário da estrela e a segurou pela mão.
— Nos vemos depois, Hanz!
— Vou estar esperando. — o draconiano respondeu com entusiasmo.
Então menino e mulher partiram.
Hanzor os observou e seu sorriso se desmanchou.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E C I N C O

QUEBREM SEUS CORAÇÕES

TRÊS DIAS SE SUCEDERAM. Três dias de dores infindáveis. Três dias de


espera.
Yanaamahka estava incomodada com a demora.
Se pudesse, teria partido no primeiro dia que acordara. Rumo a capital,
seu destino. Tiggrë a aconselhou a ficar: pela segurança, pela saúde, pelo
descanso. A Estrela da Noite estivera em condições deploráveis antes de ser
encontrada, não se alimentara e perdera mais peso; os dias de descanso,
porém, foram favoráveis. Ela ganhou os quilos que perdeu — embora seu
corpo humano continuasse magricelo — e um pouco além. O ferimento na
barriga era insistente, mas demonstrou melhoras para fazê-la suportar a dor
sem as misturas pegajosas que o pequeno tigre preparava. A atenção, o
cuidado dele, era um dom: era como se ambos estivessem com os papéis
trocados. Ele era o adulto; ela, a criança. Era bom… ter alguém que lhe
sorria e lhe acalmava.
Alguém que a cuidava como ninguém antes fizera.
O draconiano os acompanhou durante as caminhadas pela cidade e os
arredores. Estava sempre atento, a mão inquieta sobre a espada.
Yanaamahka o observava em segredo, intrigada com a dualidade de
sentimentos que ele causava. O draconiano era a sua confusão. Era amigo
ou inimigo? Caça ou caçador? Ela não confiava nele, mas se perdia sempre
no olhar rubro que encontrava ao ser descoberta durante suas análises
silenciosas. Ela percebeu que Hanzor nunca dormia na hospedagem, saia a
noite e retornava cedo, o sorriso sempre estampando o rosto, sem dizer
aonde ia ou o que fazia. Tiggrë chegara a questioná-lo, mas o draconiano
fora breve e divertido: amor e água salgada. A ausência de uma resposta
mais significativa, no entanto, não alimentou nenhuma desconfiança no
pequeno tigre, não quando o cavaleiro se mostrava tão prestativo. Hanzor
oferecia todo o suporte que ambos — dragão e humano — precisavam.
— Então você conseguiu soltar fogo? — Tiggrë perguntou na tarde
ensolarada do quarto dia. Caminhos ao Oeste era um forno, os ventos do
deserto sopravam por entre as construções de barro endurecido e
transformavam a região em um quase-sol. Ambos estavam em uma praça
abarrotada por tendas pequenas. Comerciantes vendiam ervas, utensílios
antigos encontrados nas areias e pequenas pedras preciosas. Era uma cidade
errante, sem um senhor para comandar, ministrada porcamente pela capital.
A estrutura era tão precária que a miséria era eminente nas ruas, no olhar
das pessoas que temiam atravessar o Grande Deserto para buscar condições
melhores na cidade real. — Eu tinha certeza que você conseguiria, na’na; e
o mais impressionante é o fogo azul. Vem da sua essência, sabia?
Ela não queria saber — por um bom tempo — da maldita essência.
...de Mahoutsukai.
Yanaamahka suspirou e coçou a cabeça. Estava impregnada de areia
mesmo com o banho demorado que o menino lhe dera.
— Só falta sua asa melhorar, na’na!
— Pra mim ser um dragão completo?
Tiggrë sorriu enquanto observava as ervas de um vendedor esquelético.
— Não existe um dragão completo. Você é um dragão, soltando fogo
ou não, voando ou não. — e segurou folhas secas entre os dedos. — Assim
como todos aqui são humanos como eu. Eu posso saber ler, mas isso não
me torna mais humano que os que não sabem.
As palavras a aliviaram.
— Está se sentindo bem? Seu ferimento. Essas ervas são boas para
estancar sangramentos. — Tiggrë as trocou por uma moeda de bronze. O
comerciante agarrou a quantia como se fosse uma raridade, a pele das mãos
dele estava descascando.
— Sim. — e estava bem o suficiente para partir. Os três seguiram
viagem na manhã seguinte. Dez dias rumo a capital. Dez a menos de
distância do desfiladeiro. Era tudo o que a Estrela da Noite precisava. —
Eu queria…
— …Tiggrë? — e a voz de alguém a interrompeu. — É você?
Os olhos do menino se iluminaram.
— Bara’alar! Nor! — Tiggrë se aproximou do homem. Era alto, a pele
clara demais para ter nascido em Tannenberia. — Eu… estou feliz em te
ver! — o tom exalava alegria. — Eu pensei que todos… — e a melancolia o
acometeu.
— Muitos sobreviveram. — o homem sussurrou com cuidado. Ambos
eram refugiados de um continente morto e o preconceito seria frequente se
fossem descobertos. — Depois do ataque draconiano em Urasen, os Eternos
enviaram um aviso para os outros clãs e muitos foram evacuados a tempo.
Os draconianos não os encontraram.
— Onde eles estão agora?
— Os sobreviventes foram acolhidos na Floresta Escamada.
— …a Floresta Escamada? — a surpresa dançou no rosto do pequeno.
— Eles estão no desfiladeiro?!
O coração da Estrela da Noite acelerou de repente.
— Sim… o Eterno de Dragão conseguiu passagem… porque a doença
do continente avançou sobre as terras dos Animanos. Foram os dragões que
nos acolheram. Você precisava ver, Tiggrë… os primeiros dragões. Eles são
como as histórias que os Eternos sempre contavam! — e o homem
observou o horizonte como se estivesse os vendo. — Orgulhosos. Bravos.
Mas somos proibidos de se aproximar deles. Hieronymus, o líder, ameaçou
nos expulsar se ousarmos fazer qualquer contato. Acredito que estejam
zelando pela segurança da Estrela da Noite deles. Sei que é a última entre
eles.
O homem desviou o olhar para a mulher-dragão. Despercebido, sorrira
nos primeiros segundos; depois, ficara pálido ao reconhecer os olhos
dourados, as fendas negras dilatadas.
— Ela… — as palavras lhe escaparam. — Uma estrela?
— Na verdade... a na’na é a última porque é a mais nova. — Tiggrë
disse depressa, cuidando para não ser notado. A fêmea permaneceu quieta,
ouvindo. — Estamos a caminho do desfiladeiro.
— Entendo... — ele murmurou. — Que a luz dos doze a proteja.
Yanaamahka não respondeu.
— Eu realmente estou feliz em saber que você e outros sobreviveram
ao ataque... está todo mundo bem?
— Alguns. — o homem suspirou. — Muitas perdas... Tiggrë. Sua mãe,
seus irmãos. Eu queria esquecer aquela noite, esquecer os gritos de todos
que foram torturados pelos draconianos. Por isso estou em Tannenberia. Se
eu ficasse em Degail, não seria capaz de me perdoar.
— Esqueça, nun’dae; mas lembre-se de todos. Não os esqueça nunca.
— e entre as palavras do menino, maduras para a idade tão precoce,
criaram-se lágrimas. Tiggrë, no entanto, sorria. O mais velho retribuiu o
gesto. — Eu me lembro de minha mãe e irmãos todos os dias, as
lembranças boas que vivemos.
— Antes que eu me esqueça, nun’dae, eu tenho uma notícia para te
dar... sobre seu pai. Ele está vivo. Me disseram que ele apareceu após o
ataque e lamentou a morte de Taigä e seus filhos.
— Meu pai? — os lábios do menino estremeceram.
— Ele está procurando por você.
Tiggrë ficou em silêncio: lágrimas escorriam seu rosto. Segundos.
Minutos. Eternidades. Yanaamahka não soube o tempo exato, mas, de
repente, as mãos dele se ergueram em frente ao rosto. Ele chorou, soluçou,
riu. Não era tristeza que o movia, não, era felicidade.
— Eu pensei que todos estivessem mortos. Eu pensei que estivesse
sozinho. Mas não! Vocês! Meu pai! — os lábios dele se curvaram entre as
lágrimas. — Que os doze sejam louvados.
— Você é filho do tigre, o divino da luz. Toda a felicidade do mundo
está reservada a ti, nun’dae. — o homem sorriu.
— Eu vou atrás dele… do meu pai e...
As palavras se fragmentaram em pequenas partículas de silêncio.
Yanaamahka não mais as ouviu. Ignorou a conversa, os humanos. Ela
não queria ouvi-los, não porque não era importante. Eram, e muito. O
problema, porém, residia no significado: Tiggrë encontraria o pai perdido
no Continente dos Mortos, encontraria seu povo, o que ele era de verdade
— e ambos seguiriam caminhos contrários.
Significava que o pequeno a abandonaria também?
A Estrela da Noite deu um passo para trás e se afastou quieta.
Tiggrë não a viu.

O horizonte estava em chamas.


Cores alaranjadas queimavam sobre o mundo, sobre o coração da
mulher-dragão que as observava. A temperatura, pouco a pouco, caía; um
vento tênue se esforçando para afastar os resquícios de calor que o sol, em
sua ascensão, derramava sobre a região. Era o que eles enfrentariam no
Grande Deserto, como se estivessem presenciando o fogo extinto de
Hatanyar, o deus-dragão, durante seu confronto com Sunyar no início das
Eras, a criação de Agëa.
Que o calor derretesse todos, desejava Yanaamahka. Que os queimasse
e exterminasse para amenizar o vazio em seu peito. Ela estava sentada entre
rochas alaranjadas, a areia se esgueirando pelas estradas do cânion. Aquele
era o limite, a paisagem não era mais verde e o mundo estava tingido de
tons terrosos. A Estrela da Noite se perguntou o que encontraria do outro
lado, como era a capital e, principalmente, o desfiladeiro.
Pensar na questão, no entanto, a fez lembrar da conversa entre Tiggrë e
o companheiro dele. As palavras do pequeno, o desejo dele de encontrar o
pai, incomodavam-na: porque significavam que ele seguiria por um
caminho diferente, distante. Ele não poderia ir para onde ela iria também.
Ambos, humano e dragão, vinham de mundos, culturas, distintos.
Eles se separariam.
...mas Yanaamahka não queria se separar dele.
Não de quem lhe dissera que o mundo era belo apesar de toda sua
corrupção.
— Encontrei você. — e ela sobressaltou com o chamado. Era Hanzor.
Yanaamahka piscou, sem entender. — Você tem essa mania de desaparecer.
Sabe o quanto eu e o pequeno procuramos por você, estrela-fujona?
Eles trocaram olhares e sensações estranhas a envolveram. Confusão.
Calmaria. As luzes da cidade dançante queimavam nos olhos dele, um
vinho intenso, sempre indecifráveis. Eram como um pedaço de fogo e
desordem, sentimentos perdidos na profundeza de um sorriso constante. Ele
sempre sorria, talvez porque fosse da sua personalidade dele, talvez porque
queria se aproximar ou apenas ser gentil. Era intrigante... e irritante.
Ela desviou o olhar, encontrou o céu e moveu uma mão ao peito.
Sempre lembrava das palavras dele.
A admiração que sentiu; mas então, depois, ele a traiu. Seus dedos
tremeram, uma frustração interna por se perder — por sutilmente admirar
— o que não deveria. Draconianos. Inimigos. Caçadores. Hanzor sempre
seria o primeiro a lhe estender uma mão amiga e o primeiro a decepcioná-
la.
Poderia confiar nele depois de tudo?
— Precisa ser mais cautelosa, Yanaa. A cidade pode ser quase
abandonada, mas há perigos, por isso tenho que ficar de olho em você.
— Não precisa. — ela franziu o cenho. — Não preciso.
— Então, posso ter a permissão de me sentar ao seu lado, Estrela da
Noite? — os lábios dele se curvaram simpáticos. Yanaamahka o observou
por instantes, um duelo incansável de olhos dourados e rubros, depois,
assentiu em silêncio. Hanzor se sentou enquanto ela tornava a atenção para
o céu noturno, a escuridão que se estendia pelo mundo. — Está ansiosa,
Yanaa? Amanhã estaremos a caminho da capital.
Ansiedade era pouco: seu corpo e coração clamavam por aquele
momento.
Ela não o respondeu e continuou com os olhos no céu.
Hanzor fez o mesmo: fitou a imensidão e riu brevemente.
— Você é como o céu, sabia? — ele sorria. — Intocável. Eu tento me
aproximar, mas você está sempre escapando. É por isso que gosta de
observá-lo?
Yanaamahka suspirou, o coração inquieto.
— Eu tive presa por tanto tempo... — e sussurrou. — que eu tinha me
esquecido como ele era... o que ele é. — o vento soprou entre eles, forte,
enquanto a música soava distante e as pessoas cantavam. O mundo seguia
seu fluxo, a roda do tempo girava. Indiferente. Não importava o quão
despedaçada a existência estava. Yanaamahka sabia tão bem como o tempo,
o mundo, era cruel; e que não importava quantos anos ficara na escuridão.
A vida continuou sem ela. — Toda vez que olho pro céu, eu pergunto pra
mim se meu pai e irmão tão fazendo o mesmo ou que eles tão fazendo.
A voz dela era mero sussurro entrecortado.
— Talvez meu pai ester... esteja... — corrigiu-se depressa. — olhando
para o céu e se desculpando. Por ter me abandonado. Meu irmão... também,
e onde quer que estejam, eu quero acreditar que eles olham para o céu e
pensam mim, nem que seja por um segundo. Porque eu penso neles... — a
estrela mordeu os lábios. — e toda vez eu sinto raiva. Raiva por eles nunca
me buscarem... raiva por ter sido esquecida... raiva...
— Yanaamahka. — Hanzor a interrompeu gentilmente. — Guarde o
céu para um sentimento bom.
— Você não entende porque sempre teve alguém.
Ela esperava que o draconiano não se manifestasse, esperava um
pedido de desculpas ou o silêncio. Hanzor, porém, sorriu e lhe deu um
sentimento aterrador de esperança.
— Eles pensam.
O draconiano fez menção de tocar o rosto dela. Só que a estrela
recuou, desconfiada, com o cenho franzido.
— Eu tenho certeza que eles pensam em você. — mas Hanzor não
pareceu afetado. As palavras dele sopraram como o vento sobre ela: suave,
calmo, quente. Yanaamahka sentiu cada entonação reverberar por sua pele.
— Encontre um motivo para reencontrá-los que não esteja ligado a raiva.
Os lábios dela tremeram de repente.
— Não diz essas coisas.
No horizonte, pessoas cantavam e dançavam.
Hanzor coçou a cabeça, depois riu, acompanhado da música cada vez
mais alta. Ele a cantarolou por um instante, os dedos tamborilando sobre a
perna. Levantou-se, estendendo a mão para ela.
— Já dançou antes?
Yanaamahka se encolheu.
— Por quê?
— Sinta a música, aproveite ela e se divirta. É nossa última noite na
cidade.
— Eu não gosto de dançar. — a mulher-dragão respondeu com um
murmúrio emburrado.
— Você já tentou pelo menos?
— Não.
— Então dance comigo. — e no rosto sorridente, bem humorado, os
olhos dele pareciam chamas. — Eu vou te ensinar como você pode se
divertir. Então o que acha, Estrela da Noite, de aprender?
Mas ela arqueou uma sobrancelha.
— Por quê? — e ela repetiu, ainda desconfiada, ainda desconfortável.
— Quando um cavaleiro te convida, não pergunte o porquê, donzela,
somente diga sim ou não.
— Eu não sou uma donzela. — a resposta dela fora ríspida.
Hanzor soltou uma risada divertida, depois a segurou e a fez se
levantar.
— Sim. Você definitivamente não é. — e a mão dele se entrelaçou na
dela. Yanaamahka tentou recuar, deu um passo em falso e o draconiano a
segurou, seu braço descendo pela cintura dela. — Cuidado.
— Me solta. — e ela tentou se afastar de novo.
Mas o homem não a deixou.
— Calma, Yanaa, não é difícil. Todos podem se...
— Me solta, Hanzor. — Yanaamahka o interrompeu, a voz trêmula, o
corpo se tornando gelado, pesado, sob o toque do homem.
Ele percebeu a diferença no tom dela, o desespero, a repulsa; um
desejo de distância crescente. Por isso a soltou, afastou-se, sombras
pairando ao redor deles. Yanaamahka quase caiu sentada, ofegante.
— Desculpe. — o draconiano murmurou.
As mãos da mulher-dragão tremiam quando ela levantou o olhar para
encará-lo.
— Nunca mais me toque. — e disse entre os dentes.
O vento que antes os circulava ficara pesado.
— Eu não queria assustar você
— Então não faça mais algo que... pode se arrepender mais tarde. —
Yanaamahka respondeu, e seu corpo congelou quando o olhar draconiano
— o sangue, o fogo, o vinho — caíram em seu semblante. Hanzor a
observou em silêncio, uma expressão indecifrável; depois, sorriu
melancólico e bagunçou os cabelos.
— Eu já fiz.
Mas ela não respondeu.
— Vou procurar o Tiggrë e avisar que você está bem... não faça nada
imprudente. — e o draconiano despareceu na escuridão sem olhar para trás.
...e a estrela permaneceu sozinha, tremendo, recuperando a respiração.
Num último momento, olhou para o alto. Dividir o mesmo céu, ela
sabia, não era o mesmo que dividir os mesmos desejos... os mesmos
sentimentos e os mesmos objetivos. Ela e Hanzor tinham caminhos
diferentes a serem traçados. Vidas diferentes.
Talvez ela nunca pudesse confiar nele.

Eles finalmente haviam partido rumo à cidade real.


A Estrela da Noite não conteve o entusiasmo: saiu na frente,
caminhando depressa como se a capital fosse desaparecer. Tiggrë e Hanzor
tentaram convencê-la quando ao uso de uma montaria. Será menos
cansativo se usar um cavalo, disseram. Ela, porém, negou, afirmando que
era um dragão e se portaria como um. Não era uma humana ou draconiana
para usufruir de montarias. Não importava o quão longa seria a viagem
através do Grande Deserto.
Hanzor lhes dera roupas adequadas para a temperatura: eles usavam
lenços grossos para se proteger do sol e tecidos que facilitavam a jornada
pelas areias. Equiparam-se com cantis de água e carne seca antes de partir
no início da manhã. As primeiras horas de caminhada foram um inferno:
primeiro porque Yanaamahka decidiu que era seguro seguir em sua
verdadeira forma — correndo e rosnando como um animal selvagem;
segundo porque o calor se tornara insuportável; e terceiro porque Tiggrë
achava uma boa ideia contar histórias sobre a região oeste. Eram
monólogos que não tinham fim. Eles seguiram pelas áreas do Sul do
deserto, pouco habitadas por caravanas que seguiam rumo a capital. Era
mais seguro, principalmente com a Estrela da Noite rugindo para reclamar
do calor.
No anoitecer, as temperaturas caíam; e eles descansar somente na
segunda noite. Yanaamahka negava estar cansada, por mais que sua
expressão dissesse ao contrário. Eles comeram carne seca e mingau de
aveia, mas precisariam racionar o alimento — o que era um problema para
quando se tem um dragão no grupo.
— Por que tem que ser tão quente de manhã e frio durante a noite? —
Yanaamahka murmurou na quinta noite, o corpo escamado embolado na
areia. Eles estavam reunidos no meio das dunas, iluminados pela lua cheia.
Tiggrë estava encolhido ao lado dela, as mãos tremendo enquanto
seguravam a caneca de mingau. Hanzor, um pouco mais afastado, afiava a
lâmina de sua espada.
— Talvez por causa da ausência do sol? — o homem respondeu.
— Quase isso. — Tiggrë disse. — A areia não é capaz de manter o
calor, somente reflete. Então, quando o sol está no alto, ela funciona como
um espelho, aumentando a temperatura. A noite, é ao contrário. É como o
poder do Fogo de Safira, na’na. Você sabe como ele funciona, não sabe?
— Calor? — ela respondeu.
— Interessante... Conte mais, pequeno. — Hanzor prestou atenção.
— Calor, exatamente. O Fogo de Safira não pode ser conjurado do
nada, é preciso uma combustão de calor... e estamos no deserto, ou seja, o
seu poder, na’na, pode tomar proporções enormes.
— Quer dizer que o deserto... o calor do deserto a deixa mais forte?
— Não deixa ela mais forte, mas a própria essência. Se a na’na
soubesse como usá-la, poderia transformar o deserto em um vulcão.
— Entendo. — Hanzor desviou o olhar, pensativo.
— Como você sabe tudo isso? — a cauda de Yanaamahka estava
inquieta.
— Ora! Está tudo no livro! Você se recusa a ler! — Tiggrë se encolheu
mais perto dela, apoiando a cabeça sobre as escamas. — Mas não se
preocupe, eu vou descobrir tudo para você. Agora, o que acha de tratarmos
sua asa?
— Não melhorou ainda? — o draconiano perguntou.
— A na’na disse que não sente mais dor... É um começo. Só falta
voltar a sentir os movimentos. — o menino contou com entusiasmo. — Vai
melhorar, tenho esperança!
Hanzor sorriu.
— Que bom. — mas a sinceridade não estava presente nas palavras
dele.
A jornada se estendeu por mais dois dias. No sexto dia, a Estrela da
Noite decidiu cooperar e seguir na forma humana. Estavam próximos da
cidade real, menos de um dia de caminhada, logo, era arriscado avançar na
imagem de dragão. Uma atmosfera silenciosa pairou entre os três, o
draconiano seguia afastado sobre seu cavalo. Tiggrë buscou iniciar uma
conversa simplória, mencionou sobre o formato da capital, mas o guerreiro
pouco participava, sendo monossilábico a maior parte do tempo. As horas,
então, avançaram e mudaram a posição do sol. Eles subiram uma enorme
duna de areia e, no topo dela, finalmente avistaram as muralhas.
O pequeno tigre apontou na direção delas:
— É a capital! — o rosto dele se abriu em um sorriso. — Estamos
chegando, na’na!
Trilhas de caravana cobriam o horizonte dourado, um mar de areia e
pessoas envolvia a cidade. Hanzor mencionara que um festival ocorreria em
Solnascente, trazendo centenas para prestigiar a data da ascensão de Sunyar.
Yanaamahka quase sorriu, aliviada, imaginando-se, enfim, rumo ao
desfiladeiro, ao seu passado, suas respostas.
...mas um grupo de guerreiros estava no caminho.
Yanamaahka parou.
— Será que vamos conseguir passar sem desconfiarem? — Tiggrë
quem perguntou. Ele desceu do cavalo e se pôs ao lado da estrela. — Eles
não podem ver seus olhos, na’na.
— Está tudo bem. — Hanzor disse depressa, linhas de suor fazendo o
cabelo grudar em seu rosto. — Eu cuido deles. Sou um Cavaleiro Negro,
eles vão me deixar passar. Vamos.
Tiggrë segurou a mão da mulher-dragão.
— Vai ficar tudo bem.
Ela assentiu. Seus passos seguintes, porém, tornaram-se pesados
quando, pouco a pouco, as feições dos estranhos foram se revelando. Não
eram humanos que esperavam por eles. Eram draconianos. Armados.
Preparados. A estrela paralisou a menos de sete metros do grupo... porque
entre eles estava o ceifador de espinhos. Esperando. Sedento. Era um total
de quinze guerreiros, dez deles estavam com os arcos preparados. Aquelas
flechas. Yanaamahka as conhecia — foram as mesmas que Demétrius usara
nela no passado, as quais bloqueavam a transformação de humana para
dragão.
Não eram guardas. Eram caçadores. A Estrela da Noite segurou firme a
mão do menino e o obrigou a parar também. Hanzor fora o único a
continuar, o cavalo trotando em direção aos inimigos. Um dos estranhos se
aproximou dele, a espada empunhada, os cabelos prateados dançando com
o forte vento do Grande Deserto.
Hanzor o reverenciou.
— Comandante Krimnell. — dissera o draconiano.
O citado moveu os olhos — azuis como safiras — para a estrela, o
humano, analisando-os. Então, Ahuriel vön Krimnell lançou as palavras
responsáveis por despedaçar o mundo de Yanaamahka.
— Atirem.
Dez flechas foram lançadas.
Contra ela e o menino.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E S E I S

ESTRELA ESTILHAÇADA

A VIDA CONTINUARIA — A RODA do tempo girava e giraria por


incontáveis Eras enquanto o mundo existisse. Era um paradoxo: se havia
tempo, o ciclo sem fim da existência, havia mundo, poderia, então, sem um
mundo, haver tempo? Era o que ela desejava: a destruição do tempo. Sem
ele, aquelas flechas não teriam sido lançadas, aquela promessa não teria
sido uma quebrada, aquele mundo não a teria enganado, abandonado.
Yanaamahka ficara cega, raiva e decepção a cegavam, tornavam-na o
dragão, a besta, o animal, a caça. A reações dela foram sustentadas por
esses sentimentos. Ela se lançou frente ao menino e o abraçou como se seus
braços fossem asas, as dez flechas se deleitando sobre sua carne: o primeiro
disparo a alcançou de raspão no ombro, rasgando a túnica e causando um
corte sobre a pele; a segunda e a terceira, assim que girou o corpo para
proteger o pequeno, a atingiu no braço direito, enquanto, nessa fração de
segundos, outras duas penetraram nas costelas dela. As restantes, cruéis
como as demais, se alojaram nas costas.
Aquele mesmo tempo que Yanaamahka gostaria de ter parado,
destruído, congelou quando seus olhos alcançaram os de Tiggrë. Ele
chorava, lágrimas cresciam em abundância, silenciosas. Dela, somente
sangue: um filete escorreu pelo canto da boca, depois do nariz. As mãos
dela tremeram, seus braços fraquejaram ao redor do menino. Só que a
Estrela da Noite não o soltou, não o soltaria, porque temia não ser capaz de
vê-lo novamente.
Se o soltasse, o perderia.
Yanaamahka buscou o dragão perdido em seu íntimo, a chama que
deveria acender perante a adrenalina de suas veias.
Mas não encontrou nada — só escuridão.
Então alguém a agarrou pela nuca: o comandante Ahuriel a separou do
pequeno, lançando-a na areia dourada. O corpo de Yanaamahka atingiu o
chão num impacto doloroso: as flechas se quebraram e ficaram alojadas em
sua carne, uma erupção que ela conteve com os dentes trincados. Tiggrë
gritou, ele berrou para o mundo o nome dela, correra para salvá-la numa
falsa luz de esperança. Eles, porém, privaram-no. Alguém o agarrara e o
prendera enquanto o menino se debatia incansavelmente.
A visão de Yanaamahka falhou por um instante.
Seus dedos se arrastaram na areia manchada de sangue, ergueram-se
em direção ao humano, longe demais para alcançá-lo. Ela teria dito o nome
dele se as grevas do inimigo não houvessem pisado em sua mão,
bloqueando o semblante do pequeno do campo de visão dela.
— Matem o humano. — dissera o comandante, o peso dele esmagando
cada osso dos dedos dela. — Ela já está sedada.
Não.
Ela não estava sedada — estava com dor e com raiva; e este segundo
sentimento a consumia mais que qualquer outro. Era seu veneno, sua
corrupção. Yanaamahka se agarrara nele, sobrepusera a dor e gritou a
escuridão que se formava dentro dela. Então, a imagem humana se
estilhaçou para o dragão. Segundos, porém, fora o tempo que durou a
transformação: as dez flechas começavam a fazer efeito em seu sangue,
roubando suas escamas, asas, chama. A Estrela da Noite tivera quatro
mudanças abruptas, o que causou uma rápida surpresa nos draconianos que
a observavam.
— Deixem... ele... em paz! — e sua voz se tornava um mero sussurro.
A inconsciência estava perto, o sangue se misturava com a saliva em sua
boca. Yanaamahka elevou os olhos, draconianos a observavam,
indiferentes; Demétrius também, mas o que cortou o coração dela fora o
semblante do guerreiro de olhos vermelhos: Hanzor. Nenhum
arrependimento. Era o que ele queria desde o começo, desde que sorrira e
prometera ajudá-la. — Desgraçado! — ela berrou, os braços trêmulos
contra a areia. Yanaamahka se levantou e caiu de novo com o golpe que
recebera do comandante. Ele a acertara na barriga, o mesmo lugar que o
ferimento causado pelo ceifador cicatrizava. Os pontos se abriram, mais
sangue, enquanto a voz do pequeno tigre chamava por ela.
Depois, a voz dele se silenciou.
Ela não conseguia vê-lo — sua visão se tornava um borrão a cada
golpe que recebia do inimigo. Porque ela se recusava a apagar.
Estava resistindo: Yanaamahka resistiria.
— Você está demorando demais, comandante Krimnell. Não me faça
ter que ajudá-lo. — a provocação do ceifador alimentara a fúria do
draconiano. Ahuriel a agarrou pelo pescoço, a suspendeu do chão e a
obrigou a encará-lo.
Aqueles olhos gelados fizeram-na estremecer.
...e algo se acendeu nela.
Ela os conhecia.
Lembrava deles de algum lugar, de algum dia esquecido.
— Desista. — o comandante murmurou.
Yanaamahka cuspiu nele, sangue e saliva; e ele, irritado, firmou os
dedos sobre ela. Mas ela reagiu, suas mãos, instintivamente, se moveram na
direção do rosto do homem e uma unha o acertou.
Se o ferira ou não, jamais saberia.
Porque ela apagou com o golpe seguinte.

A capital de Tannenberia poderia ser considerada bela em toda sua


extensão.
Mas a verdade estava escondida pelo ofuscar cintilante do sol: a
barbárie e a rebeldia caminhavam nos cantos escuros dos quais o astro rei
não alcançava. A draconiana presenciara a violência presente nos distritos
menos favorecidos e não encontrou a paciência necessária para lidar com os
arruaceiros. Rhenna estava acompanhada pelo marido, o comandante Khan,
e outros cavaleiros para verificar a possibilidade do inimigo estar na cidade.
Ela visitara prostíbulos e casas de mercado negro, os quais estavam
abarrotados de humanos bêbados, mestiços escravizados, mesmo com as
leis contra escravidão, draconianos de nascimento inferior e mulheres nuas
— afogadas na luxúria. Algumas se aproximaram do comandante, ousaram
tocá-lo ou persuadi-lo, mas foram todas ignoradas. Ele sequer desviara o
olhar para elas, não que não fossem atraentes, mas a estranha lealdade de
Khan, seus desejos carnais reservados a general, o privavam de sentimentos
alheios; e tantos anos se passaram desde que trocaram calor.
As buscas pelo suposto inimigo foram encerradas no anoitecer.
Uma mensagem do príncipe Serge chegara aos draconianos com um
pedido breve de descanso. Era necessário: Rhenna estava empenhado na
defesa da cidade há três dias sem descanso e ela sequer era capaz de
distinguir os rostos de seus companheiros devido aos sintomas da doença.
Khan precisou chamar a atenção da general pelo menos duas vezes,
mencionando sua eminente preocupação.
— Acredito que o comandante Ahuriel e os demais já tenham
capturado a Estrela da Noite. — Khan caminhava atrás dela, o rosto negro
suado pelas horas expostas ao sol da cidade real. — Espero que tudo tenha
dado certo para eles.
Rhenna não deu atenção as palavras do comandante, seus olhos
estavam concentrados no semblante de uma humana, os braços dela
segurando uma criança recém-nascida enquanto um menino pequeno
segurava o tecido de sua roupa. A imagem lhe trouxera sensações antigas,
dores passadas; a ilusão de como estaria se ambos seus filhos estivessem ao
lado. O primeiro sequer tivera um nome, morto ao nascer; o segundo,
engolido pelo mar... e nunca mais houveram outros. O nascimento do
último quase a matara, um parto doloroso que roubara dela a possibilidade
carregar outras crianças.
O vento farfalhou os fios dourados da draconiana, seu tapa-olho
exposto vagamente entre as madeixas. Pessoas iam e vinham, o movimento
constante a incomodava, causando rápidas tonturas. Rhenna caminhava
entre eles quase aos tropeços, humanos evitando o contato com ela ou com
o comandante que a acompanhava. Principalmente por causa de Khan:
corpulento, carrancudo e nem um pouco amigável com os olhares alheios.
Mas o coração dele contradizia seu semblante.
Ele era bom demais...
Tolo demais.
— Minha senhora. — as mãos ásperas do comandante a tocaram no
ombro. — Você está seguindo pelo caminho errado... — a voz dele era um
murmúrio carinhoso. Rhenna se afastou do toque, seguindo em frente, entre
as pessoas, entre as sombras de Solnascente que cresciam como entidades
vivas. — Vamos retornar ao palácio e descansar.
Mas o mundo parecia privá-la de um descanso; lembranças que a
atormentavam constantemente. Era saudade, desespero e arrependimento,
sensações perdidas no tempo. Rhenna suspirou e elevou os olhos para as
duas estrelas no céu negro, a lua; depois, baixou-os para as pessoas.
Foi quando viu alguém.
Pálido como a lua que os iluminava — um capuz escondendo os fios
esbranquiçados que caiam em seu pescoço. O coração de Rhenna parou por
um segundo: nenhum homem em Tannenberia era branco, eram humanos
cor-de-ébano, negros. Homens do Deserto, como os chamavam. A minoria,
composta por mestiços, era bronzeada; e mesmo que fosse um estrangeiro,
um draconiano, um refugiado de Degail, não teria a pele tão clara.
— Kzahar? — os lábios dela estremeceram.
O estranho se movimentou depressa entre os humanos e Rhenna o
seguiu, empurrando os que estavam em seu caminho.
— Rhenna! Espere! — Khan gritou nas costas dela.
A draconiana sacou a espada e berrou para todos que a bloqueavam, os
ameaçando. Ela o perseguiu por entre a movimentação, saltando pelos
obstáculos, desviando de objetos, o coração palpitando. Rhenna arfou com
dificuldade durante a corrida, a ânsia de vômito viera e quase a fizera
sucumbir, mas se manteve firme, um passo atrás do outro. Se fosse ele...
poderia morrer, descansar, pedir perdão por ter falhado no passado.
O estranho entrou em um beco, o capuz deslizando pela cabeleira
esbranquiçada. Ele virou uma esquina, depois outra e não parou até o
momento que a general o perdesse de vista. Rhenna seguiu correndo — não
importasse o quanto ouvisse seu corpo gritar ou sentisse suas pernas
tremerem de fadiga. A doença não a privaria de vê-lo, de ter certeza que era
ele. Na última esquina, porém, a esperança escapou por entre os dedos. Sem
saída. O desconhecido a havia enganado de algum modo, talvez encontrado
uma rota de fuga ou talvez fosse uma mera ilusão dela, acorrentada no
passado.
Rhenna suspirou. Ela segurou as lágrimas de impotência, ouvindo a
voz de Khan distante, a procurando desesperado. Ela não queria ser
encontrada por ele, mas, sim, a morte; entidade que sempre lhe escapava,
ameaçava e nunca chegava. Ela esperou o vento noturno varrer suas
mágoas. Contudo, não esperava que a natureza trouxesse um aroma
diferente, embalado por soluços constantes. A draconiana desviou sua
atenção para o cheiro e o som, arqueando uma sobrancelha quando
madeixas vermelhas ganharam sua atenção: uma criança estava escondida e
chorando entre madeiras e caixas destruídas.
Não fora a compaixão que a fizera dar um passo na direção do menino.
Mas a curiosidade.
Porque os cabelos vermelhos eram familiares.

Pare de chorar.
Tiggrë não conseguia. As lágrimas silenciosas rolavam em seu rosto
pálido, os soluços presos entre os dentes. A mão de Hanzor estava no
ombro dele, o guiando na movimentação constante do distrito da poeira. O
draconiano o afastara dos demais, alegando estar protegendo o menino dos
superiores — e não o mataria como o comandante pedira. Era um favor,
dissera o Vanadis, mas sequer mencionara traição durante o percurso. Eles
haviam a levado, arrastaram-na como um cadáver morto nas areias do
deserto. A imagem dela, o sangue, a crueldade draconiana, trouxeram a
lembrança do massacre contra os Animanos no passado. A raça fizera o
mesmo com a mãe do pequeno, a torturaram e a violaram; e ele era jovem
demais para protegê-la. Tiggrë ainda era jovem demais, e talvez não fosse
capaz de proteger Yanaamahka também. Pensar no que poderiam fazer com
ela… O menino arqueou o corpo e vomitou, as lágrimas se misturando em
sua boca.
Ele caiu de joelhos antes que o draconiano pudesse ampará-lo.
Hanzor se aproximou depressa e o levantou, mas Tiggrë o afastou entre
lágrimas incansáveis. Está tudo bem?, ousara perguntar o Vanadis. Era
irônico; estar tudo bem. Yanaamahka estava presa, sabe se lá aonde; e o
homem não demonstrava sequer um fragmento de arrependimento. O
vermelho-avelã dos olhos de Hanzor continha uma indiferença aterradora, o
que fizera o menino questionar como ele conseguiu sorrir tão
frequentemente para eles dias antes.
Como Hanzor sorria sincero sabendo o que estava planejado?
Uma súbita frustração fez o rosto do menino enrubescer.
— O que você vai ganhar com isso? — a indagação viera como a noite,
sussurrada e gelada; o vento soprando entre eles. As pessoas ao redor
seguiam suas rotinas, o fluxo contínuo da vida. Tiggrë as observava, o
modo como o mundo não desacelerava mesmo que muitos estivessem
sofrendo. — Ouro? Fama? Espero que a motivação não sejam essas.
— Por favor... — Hanzor bagunçou os fios castanhos ao suspirar. —
Estou ajudando você.
— Você nunca teve a intenção de levar eu e a na’na para o
desfiladeiro. — lágrimas corriam nas bochechas dele, a voz entorpecida. —
Eu acreditei em você. Acreditamos em você, Hanzor... por um momento eu
pensei que nem todos os draconianos eram iguais. Mas não. Vocês são todos
cruéis. — e secou o rosto com as mãos trêmulas. — Como uma raça que
queima suas próprias mulheres pode ser considerada confiável?
O cavaleiro o observou em silêncio como se estivesse absorvendo as
palavras.
— Por quê? — Tiggrë insistiu.
— Ela merece. — e o tom impregnado em cada sílaba fez a pele do
pequeno tigre se arrepiar. Desprezo. Ódio. Hanzor nunca havia sorrido com
sinceridade para Yanaamahka. Era uma máscara. A verdade sobre o
draconiano jazia naquela tarde na Floresta Viva, quando ele a ameaçou de
morte. Aquele era o verdadeiro Hanzor, o inimigo. — Ela merece morrer
como meu pai morreu. O Dragão dos Dragões o assassinou por causa dela,
ele tirou aquele que era mais importante para mim, para o meu povo; e eu
vou devolver na mesma moeda.
— A vingança é uma doença! — Tiggrë o empurrou com a sutil força
que tinha, mas o draconiano sequer se moveu. — Você vai se arrepender!
Eu espero que você se arrependa e nunca seja perdoado!
— Eu nunca vou me arrepender.
— Eu não o odeio, Hanzor... mas sinto pena de você. — e o menino
deu um passo para trás, o rosto lavado. Algumas pessoas passavam e os
observavam, curiosas; mas se arrependiam ao perceber o draconiano. —
Pena por não entender a verdade. Pena por estar cego por sua vingança.
— Vou deixá-lo aqui. — o homem disse, ignorando as palavras recém
proferidas. — Quantas moedas de ouro você quer? Dez? Vinte? — e o peso
do metal tilintou dentro do saco que ele estendia na direção do menor.
Tiggrë deu um tapa nelas e todas se espalharam pelo chão.
— Eu não preciso de seu ouro! — e deu as costas para o homem,
ignorando todos que se aproximavam do draconiano para juntar as moedas
caídas. Tiggrë não olhou para trás enquanto corria, suas lágrimas se
misturando a brisa fria que se espalhava na noite.
Ele só parou de correr quando suas pernas falharam, cansadas; o corpo
do menino entre a poeira e seus pertences saltaram de suas mãos. Os
tônicos, ervas e medicamentos, materiais que reunira com cuidado para
tratar a asa da estrela. Um soluço doloroso escapou dos lábios do humano, a
dor impregnada em sua expressão. Yanaamahka poderia nunca mais voar se
a ferissem mais. Yanaamahka poderia não sobreviver se ele não a
encontrasse.
Mas Tiggrë não sabia por onde procurar. Ele nunca estivera na cidade
real, somente ouvira histórias sobre a capital, o deserto; e elas não o
ajudariam a salvar a Estrela da Noite. O menino se levantou devagar o
pegou o livro, a essência do mundo, sua bolsa com alguns pertences e os
protegeu entre os braços. Seguiu em frente, ignorando os demais itens no
chão, imaginando uma forma de encontrar sua na’na.
Para onde eles a tinham levado?
Ele olhou ao redor, as construções precárias amontoadas umas às
outras, os muros imponentes que protegiam a cidade — ou prendia seus
habitantes? — mas nenhuma solução surgia. Solnascente era vasta,
inúmeros distritos, inúmeras localizações. Yanaamahka poderia estar do
outro lado da capital, presa em algum calabouço gelado. A cada passo a
diante olhos se dirigiam para o semblante dele, o vermelho intenso de seus
cabelos. Tiggrë segurou o livro com firmeza e aumentou o ritmo de sua
caminhada, preocupado com o cochichar distante, a ganancia que se
formava entre os quais imaginavam que ele, um mero humano das terras
perdidas de Degail, tinha algum valor. Era uma ilusão, embora os fios-de-
sangue pudessem ser vendidos à um bom preço no mercado negro.
Tiggrë se afastou de toda a movimentação ao entrar em um beco
deserto, abandonado e abarrotado de objetos destruídos. A lua o iluminou
por instantes, acompanhada da escuridão de duas estrelas. Então, o menino
se enfiou entre os destroços de uma caixa antiga. Não era o melhor
esconderijo, mas ninguém o incomodaria; e poderia se acalmar, pensar.
Ele encontraria uma forma de salvar Yanaamahka.
Ele a salvaria e a levaria embora — ambos encontrariam o desfiladeiro
e vivenciariam a paz que almejavam.
Sem draconianos. Sem caçadores. Sem inimigos. Sem mentiras.
A paz que o menino vivera ao lado de seu povo, ao lado de Roren e
Lucinda. Tiggrë queria, desejava com todo seu coração, que a Estrela da
Noite experimentasse aquela sensação — que sorrisse e chorasse de
felicidade, que simplesmente vivesse.
Mas ele era apenas uma criança de doze anos.
Como poderia salvá-la e levá-la para o desfiladeiro se nem o caminho
conhecia? Tiggrë não mais conteve as lágrimas e chorou intensamente.
Sozinho. Perdido. Chorou até que sua cabeça doesse; parando, porém,
quando um vulto desconhecido atravessou o beco e desapareceu como
sombra e fumaça. Bastaram segundos para que, então, o semblante de uma
mulher, uma draconiana, surgisse na noite. A armadura dela fez o menino
estremecer: negra, a imagem do Império de Aumastris desenhada no aço.
Tiggrë se encolheu entre os escombros, pedindo aos divinos que não fosse
encontrado.
Só que suas preces não foram o suficiente.
O olhar rude da guerreira o encontrou; e ela se aproximou dele com
uma expressão inquisitiva.
— O que tu estás fazendo escondido, garoto? — a presença dela era
amedrontadora. A draconiana era mais alta e musculosa que Hanzor, o que
não era comum para os padrões da raça.
Tiggrë escondeu o rosto no livro.
— Me deixa em paz. — o menino murmurou no idioma típico da raça,
surpreendendo a estranha. Ele aprendera o Dovaris durante os anos como
escravo, memorizando palavras soltas para se comunicar com seu mestre.
Depois, aprendeu sozinho; e Roren sempre dissera o quão bom o menino
era com cada pronúncia. — Vocês draconianos são todos mentirosos...
vocês a pegaram... enganaram. Ela está sozinha por culpa da ganância de
todos!
— Tu sabes o que estás dizendo?
— Não importa! — Tiggrë se exaltou ao responder e o movimento
abrupto fizera o livro cair de seus braços. A draconiana observou o volume,
cada palavra pintada na capa de couro fervido. A essência do mundo, dizia o
nome, mas não no idioma dela e, sim, a linguagem ancestral dos primeis
dragões.
Mas a expressão dela congelou de repente.
— O que está fazendo com esse livro?
— A na’na me deu! É um presente! Não tente tirar ele de mim!
— ...Nana? — a estranha questionou desconfiada; então, ajoelhou-se
para enxergá-lo melhor. — Tu não és de Tannenberia... És um refugiado de
Degail provavelmente.
— Você vai me prender por isso? — como todos faziam com os
refugiados. Eles não eram livres, somente escravos como se precisassem
pagar uma dívida pela estadia no Continente do Sol.
— Eu quero explicações. Quem é a tua nana...
— Você está falando errado! É na’na. — o humano entonou a
pronuncia corretamente. — Ela é a Estrela da Noite que vocês prenderam!
A minha Estrela da Noite! — mas a coragem que o pequeno segurava
desapareceu ao lembrar de Yanaamahka, do que os draconianos fizeram.
Tiggrë começou a chorar. — Ela está ferida!
— Yanaamahka? — a mulher sussurrou com o olhar distante.
— Vá embora! — ele exclamou.
— Eu sei onde ela está.
— Óbvio que você sabe! Você é um deles! Ela está presa porque vocês
a enganaram... nos enganaram.
— Tu queres salvá-la? — a pergunta repentina fez o menino levantar
seus olhos, atentos no semblante indiferente e, ainda assim, profundo. —
Queres tirá-la dos draconianos?
— Por que está perguntando isso?
— Porque eles não podem tê-la. — e as mãos da guerreira correram à
fivela que prendia o tapa olho em seu rosto. O objeto deslizou sobre a pele
dela, entre as mechas douradas, revelando uma marca que fez Tiggrë
estremecer. — Não podem matá-la.
Ela era uma Mulher Amaldiçoada: herdeira do Fogo de Safira.
O que significava que Yanaamahka era a fonte do poder dela. Tiggrë
não conhecia as consequências se ousassem matar a Estrela da Noite. O
poder desapareceria, era um fato, mas o que aconteceria com as draconianas
ligadas ele?
Morreriam?
Deixariam de ser amaldiçoadas?
— Eu dependo dela.
— Mas se você salvá-la... será morta por traição. Eu conheço as
tradições draconianas. São severas e...
A guerreira o interrompeu.
— Eu estou parcialmente morta há mais de trinta anos.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E S E T E

ESTRELA ENCLAUSURADA

CHAMAVAM-NA.
Era uma voz distante, sombria, impregnada de lembranças roubadas.
Uma faísca se iluminou no escuro, era azul como o céu, espantando a
escuridão crescente. Yanaamahka conhecia aquela luz: o Fogo de Safira, a
essência trancafiada nos abismos de seu âmago. Lançara o poder no lado
negro e o deixara escondido, quase apodrecendo, junto da presença da
deusa. Mahoutsukai tentara se comunicar com ela — dizia ser capaz de
ajudá-la —, mas a Estrela da Noite ignorou todos os chamados; e
continuaria a ignorá-los. Não aceitaria; não depois do que acontecera no
templo, as palavras, as mentiras.
A faísca se apagou.
Yanaamahka se encontrou na escuridão e lá ficou — porque nada
existia nela.
Yanaamahka, mas alguém continuou chamando.
— Desapareça. — ela grunhiu, os dentes rangendo.
Não há nada lá, disse a voz, não há nada no escuro; não tenha medo,
continuou, cada sílaba reverberando por sobre a pele dela. Era uma
entonação do passado, palavras escondidas em uma realidade perdida.
Você está comigo? Dessa vez, contudo, a voz era dela; infantil, um
filhote ingênuo que ousava acreditar que jamais a abandonariam. Eles a
abandonaram, porém; desapareceram e a deixaram na escuridão por tantos
anos. Você estará comigo? Se eu desaparecer... você vai me esperar?
Sempre, disse o outro. Mas não desapareça, por favor.
Nunca, ela disse.
Sempre. Nunca.
Era promessas — e elas não haviam sido cumpridas. Yanaamahka
desaparecera e ninguém esperou por ela. Era justo; se ela não havia
concretizado a promessa, porque o outro, desconhecido, o faria? A
escuridão se tornou mais densa, gelada, os pensamentos dela se mesclando,
os fragmentos do presente buscando o passado. Neles, encontrara uma
passagem recente, um pronunciamento que a trouxe confusão e medo.
Doze anos. Dez meses. Seis dias. Esse foi o tempo que eu esperei por
você.
O corpo da Estrela da Noite estremeceu, afogada em sombras: porque
as palavras trouxeram as dores. Elas vieram como a morte — repentina e
fria —, arrancando dela a resistência que lhe restava. Yanaamahka respirou
lentamente, mas não conseguiu suportar as sensações; e quando sucumbiu
perante elas, destruída, a escuridão se estilhaçou em partículas de luz.
...e ela acordou.
Sua visão demorou a tomar foco. Lembrava-se somente do calor do
deserto, das muralhas da capital e... Atirem. Ela fora atingida pela realidade,
os golpes do inimigo, as recordações sangrentas. Estava claro: Hanzor a
traíra e ela havia sido capturada. Yanaamahka deslizou os dedos sobre o
chão que estava deitada, era gosmento e úmido; o cheiro de suor, urina e
sangue a faria vomitar se seu estômago estivesse cheio. Mas vomitara o
suficiente antes — o peso dos punhos daquele draconiano estavam
presentes no corpo dela. A boca inchada, cortada; ferimentos passados,
porém, haviam sido tratados: a barriga dela estava enfaixada e as flechas
haviam sido retiradas, restando apenas curativos onde a lâmina pontiaguda
fora enterrada. Ela gemeu com o desconforto ao mover o braço, nada via
naquele lugar sombrio. Mas sentia.
Alguém tocara seu rosto e passeara com os dedos ao longo do pescoço.
Yanaamahka gemeu de novo — a mão desconhecida traçando linhas que
iam de seu rosto ao busto. Ela não o via; a escuridão não a ajudava e a visão
turva transformava qualquer semblante em um mero borrão. O corpo dela
se arrepiou quando sentiu a presença roçar em seus lábios, dedos quentes e
suaves. Ela piscou, forçando as pálpebras; e olhos vermelhos se iluminaram
nas sombras. Fios dourados os acompanharam, embalados por um sorriso
traiçoeiro.
O estranho sorriu ao vê-la acordar.
— Sentindo-se bem, Estrela da Noite? Espero que não. — e a mão dele
segurou o queixo dela. — Estava eu aqui, esperando por meu pai; e
enquanto ele demora, pensei que poderia conhecer você.
O corpo da Estrela da Noite estremeceu quando os dedos dedilharam
seus lábios, a expressão corrompida do homem a estudando como se fosse
um animal inofensivo. Ela buscou se afastar do toque, revidar, chamar o
dragão, mas nenhuma força existia nela — era difícil até piscar.
— Meu pai disse que não devemos matá-la, Estrela da Noite.
O coração dela começou a bater depressa.
Yanaamahka quase se engasgou com a própria saliva quando o
draconiano beliscou a boca dela forte o suficiente para sangrar.
— Mas não me privou de aproveitar. — os dedos deslizaram para
dentro da boca dela. — Pensei em... — aquele gosto maldito de draconiano
a deixou enojada, furiosa e sem controle. — Experimentar como é ter...
...e a Estrela da Noite mordeu os dedos do inimigo.
Com força. Com raiva. Com tudo que restava.
Yanaamahka ignorou o sangue que escorria por sua língua ou os berros
dolorosos do homem. Seus dentes, os caninos, rasgaram a pele e sentiram a
carne, o gosto, o cheiro, escorrendo pela garganta. Não o soltou, ossos se
fragmentando e se quebrando. Não o soltou, a outra mão do draconiano a
atingindo com golpes incansáveis. Ela resistiu até o momento que membros
se separaram do corpo: arrancou três dedos dele, mas não os engoliu.
Cuspiu todos na direção dele, sangue — que não era seu — escorrendo
pelos lábios. O guerreiro urrou nas sombras, o braço umedecido em
abundância pelo líquido viscoso, tentando em vão conter o sangramento.
— Sua vagabunda! — ele gritou na direção dela. — Eu vou matar
você!
Ele a teria chutado se uma segunda voz na escuridão não houvesse o
interrompido.
— Leovrumund. — dissera o outro. — Eu avisei. — e o semblante
dele surgiu no corredor iluminado por um lampião. A mesma imagem do
primeiro draconiano, no entanto, mais velho; os cabelos dourados
escorrendo elegantes pelos ombros. Yanaamahka observou os olhos dele
por instante. — Pague o preço por tua ousadia. Suma daqui. — a voz
profunda daquele estranho reverberou pela pele da estrela. Ela não o
enxergava com clareza, as dores haviam piorado com os golpes, mas algo
naquele homem a arrepiava.
— Pai! — ele segurava a mão com força. — Veja o que essa
vagabunda me fez! Ela destruiu minha mão! Como vou enfrentar os meus
inimigos assim?!
— Meu querido Leovrumund. — disse o desconhecido com uma
encenada ternura. — Tu usas desta mão para empunhar tua espada? Não. Tu
enfrentas teus inimigos? Não. Então suma da minha frente antes que eu faça
cada centímetro de teu sangue congelar.
Nenhuma palavra viera como resposta: Leov se desculpou entre uma
reverência forçada e sumiu na escuridão da qual o segundo draconiano
viera. Ele, no entanto, permaneceu parado, o lampião em mão, uma garrafa
de vinho na outra. Um sorriso delineou os lábios vermelhos dele, as chamas
iluminando o rosto destorcido naquele calabouço.
Yanaamahka piscou e quase perdeu a consciência.
— Suponho que não se recorde de mim, minha querida. — e o estranho
colocou a garrafa sobre uma mesa de madeira no canto da cela. Uma taça
dourada repousava sobre a superfície. — Tantos anos. Lembro-me que era
um mero fragmento, um pequeno dragão esperando para crescer e desbravar
o céu. Uma Estrela da Noite peculiar, digamos. Não... — o homem serviu o
cálice com vinho. — Uma Estrela de Fogo. Tu me odiavas, querida; e dizia
tão ingenuamente que eu estava roubando tua mãe. Bons tempos, confesso.
O homem bebericou o vinho.
— Nahemidraal era uma Estrela da Noite como nenhuma outra. — e
ele balançou o liquido entre os dedos. — Sabe por quê, minha querida? Ela
odiava os primeiros dragões, a raça que pertencia. Lembro-me de cada
palavra... essas lembranças. Traiçoeiras. Ela disse que morreria por mim.
Logo, querida estrela, matá-la havia sido um favor, não concorda?
No âmago, a entidade de safiras gritava o nome da estrela.
Mas Yanaamahka não a ouvira — ela não queria ouvir.
Seus olhos piscaram devagar, centrados no homem, no semblante, nos
olhos vermelho-sangue, tão familiar, tão assustador, que o corpo se
contraiu. Porque o conhecia. Porque sabia o nome dele.
Belpheggör rön Vanadis.
O corpo dela começou a tremer.
— Tua mãe, minha querida, me amava, dizia me amar perdidamente...
sempre ingênua em relação ao amor. Mas era inteligente e cheia de vida. —
e o homem se levantou e caminhou em torno da estrela. — Era incrível
como ela acreditava em tudo que eu contava... doce criatura. Infelizmente,
minha querida, o amor não é importante se comparado ao poder: amor é
uma mera distração, um empecilho, na verdade, e eu me tornaria fraco se
me deixasse dominar.
Belpheggör derramou o vinho sobre o rosto dela.
Yanaamahka tossiu e cuspiu o gosto amargo.
— Infelizmente, Yanaamahka Draconis, tu nunca serás um fragmento
do que tua mãe fora, mas morrerá como ela.
A Estrela da Noite queria ter respondido, contra argumentado, mas fora
vencida não pelo cansaço ou pela condição deteriorada.
Mas por um nome.
— Maetsumina. — proclamou o draconiano.
A deusa dos rubis, o poder roubado de Nahemidraal.
...e a escuridão se tornou vermelha.

Hanzor rön Vanadis não estava confiante em encontrar o seu tio. Ele o
esperava na sala de reunião cedida aos draconianos pelo rei de Tannenberia,
acompanhado da própria solidão. Estava com saudade de casa, dos irmãos e
da mãe, mas não poderia retornar enquanto não cumprisse sua vingança.
Temia, porém, pelas condições da matriarca. Elleonora precisava da
companhia dos filhos. Ela poderia aparentar solidez e luto eterno, mas não
resistiria à ausência de suas crias por muito tempo — e ela provavelmente
colocaria o império abaixo se ousassem desafiá-los ou enganá-los.
Ela dizia que a família Vanadis estava amaldiçoada. Três membros
haviam morrido em um período de um ano: primeiro Hiborym, seu marido;
assassinado por dragões; depois, Gorgona, irmã deste, sentenciada a morte
por ser uma Mulher Amaldiçoada. Ela tinha dezessete anos quando fora
descoberta — e havia duas punições: ou seria queimada viva na corte
pública ou decapitada pelo progenitor. Gorgona escolheu morrer pelas mãos
do pai, o Arquiduque de Vanadis, e ele o fez; resultando na morte de Hanna,
sua esposa, quem disse ser incapaz de viver em um mundo em que um pai
assassinava a filha. Ela se enforcou no próprio quarto uma semana depois
da morte de Gorgona e cinco meses após a morte de Hiborym.
O Arquiduque se exilara nas Muralhas Douradas desde então.
Hanzor continuou esperando pelo tio, impaciente pelos minutos que
avançavam sem a presença do general. Eles não tinham um relacionamento
familiar decente. O Cavaleiro Negro nunca aprovou as escolhas de
Belpheggör, o modo indiferente que ele tratava os filhos, principalmente
Lunaysis, pelo fato de ser uma mulher, deixando com que Leovrumund, o
irmão gêmeo dela, a batesse e abusasse na infância. Leavrumund, o terceiro
filho do general, que vivia com o Arquiduque nas muralhas, estava
abandonado por ser psicologicamente instável.
A ambição do general era maior que o amor a sua prole.
Hanzor, porém, gostava dele. Via no homem um alicerce, um mentor.
Ele também precisava da aprovação do tio — a morte de Hiborym, o
herdeiro dos Vanadis, dera a Belpheggör o cargo de superior na família.
Metade das forças estavam no comando dele; a outra, sob o do avô, e se o
Cavaleiro Negro desejava caçar o Dragão dos Dragões, precisaria de auxílio
e autorização.
O general Vanadis chegara atrasado. Quase uma hora além do
combinado, o que o draconiano mais jovem não protestou, apenas esperou.
Belpheggör entrara elegantemente, o cálice de vinho entre os dedos, o
líquido tão espesso que Hanzor se perguntou o teor da bebida. Era parecido
com sangue. Ele estava sem a armadura, vestindo uma túnica vermelha e
dourada, a espada, porém, visível na bainha ornamentada por rubis. O
general sorriu antes de se sentar, seguido de um gesto de convite para que
Hanzor fizesse o mesmo. Era noite; e a luz da lua adentrava pelas vastas
aberturas que rodeavam a sala oval.
— Sinto muitíssimo por meu atraso, querido sobrinho. — Belpheggör
murmurou com uma entonação dolorosa, encenada. — Suponho que esteja
sedento, aceitaria uma taça do meu melhor vinho? — e gesticulou
brevemente para uma empregada. Hanzor não a vira antes, ela era pequena
demais para ser uma humana, bastara, então, as características incomuns
para que o draconiano percebesse que se tratava de uma mestiça.
— Agradeço, mas vou passar.
— Tu és a imagem de teu pai, não? Hiborym, que Lunyar o tenha,
nunca apreciou a bebida. — o general bebericou o vinho. — Enfim.
Devemos nos ater aos assuntos pertinentes? Tu fizeste um trabalho
esplendido, meu querido sobrinho. A captura da Estrela da Noite foi mais
fácil do que esperávamos. Estive com ela recentemente. Uma pena que ela
esteja tão quebrada que se recusou a falar. Precisei experimentar o pouco
do poder dela... e, confesso, um fracasso. Pensei que por ter o sangue de
três dragões poderosos seria forte, mas não; é fraca, uma mera sombra de
estrela.
— O que você pretende fazer com ela? Vai levar ao imperador? —
Hanzor questionou com curiosidade. Ele esperava que sim: se Yanaamahka
fosse levada a Aumastris, as chances de encontrar o Dragão dos Dragões
seriam mais altas. Ela serviria como uma isca.
— As ordens do Imperador Cassius foram brandas. — os fios dourados
de Belpheggör farfalharam com a brisa que invadiu a sala. As chamas
bruxulearam, diminuindo a iluminação ao redor. — Eu a manterei como
prisioneira em meus domínios, meu querido. Colocá-la na cidade imperial
seria um risco; e eu não me importo em abrigá-la.
— Você não pretende caçar o Dragão dos Dragões?
— Vlanhonder Draconis. — os lábios do general estalaram. —
Pergunto-me com frequência o que aconteceu a ele. Suponho que esteja
vagando pelo mundo, arrependido por ter abandonado ambos os filhos.
Gostaria de presenciar, querido sobrinho, a reação dele ao saber que aqueles
que ele mais ama sob o meu poder.
Hanzor se endireitou e esperou.
— Mas respondendo tua pergunta, querido, não.
— Eu tenho. — Hanzor disse depressa, os punhos fechados sobre as
pernas. Belpheggör bebeu o vinho e gesticulou para que a serviçal o
servisse mais. — Eu pretendo caçar o Dragão dos Dragões.
O general sorriu cinicamente.
— Tu e mais quem, meu querido?
— Eu preciso da sua ajuda. — o jovem respondeu com firmeza. — Eu
quero encontrá-lo e fazê-lo pagar pela morte de meu pai, pela destruição de
Aumas no passado; só que preciso de apoio. Eu trouxe a Estrela da Noite,
fiz tudo como o prometido. Espero conseguir a sua aprovação nessa caçada.
— Minha aprovação? — e os olhos vermelhos do general analisaram o
semblante de Hanzor. — Tu lembras, doce Cavaleiro Negro, quantos
draconianos morreram contra o ataque do Dragão dos Dragões à capital?
Milhares, o que inclui, além de vosso amado Hyborim, o Imperador Darius.
— Não estávamos preparados. — Hanzor contra argumentou. — Eu
não preciso de milhares de guerreiros, mas de uma estratégia; e só posso
conseguir isso se tiver apoio do império.
Belpheggör não respondeu de imediato: ele bebeu o último gole da taça
e se levantou, caminhando lentamente pela sala. Só parou em frente as
janelas, diante a sacada, para, então, observar o céu; não, Hanzor se
corrigiu, o general estava observando ambas as estrelas.
— Restam duas estrelas. — o homem disse com melancolia. — Uma
está conosco; outra, com os Primeiros Dragões. Só que esta situação, meu
querido, pode mudar se com tua estimada ajuda. Deixe-me questioná-lo: tu
sabes o nome da penúltima delas? Quem eles guardam com tanto cuidado?
— Rhaelynaar?
— Exato. Rhaelynaar Draconis é a penúltima Estrela da Noite, quem
eles chamam de Estrela da Manhã devido a características peculiares,
suponho. Ela nasceu branca, diferente de todos os outros de sua espécie. Se
um dragão negro, querido, é considerado raro; um branco, raríssimo. Eu não
tenho nenhum interesse nela, no entanto, seria interessante tê-la. —
Belpheggör deslizou pela sala enquanto se pronunciava. — Imagine. Os
Primeiros Dragões estariam em nossas mãos se as tivéssemos.
— Mas por que está mencionando isso?
— Eu darei a ti, doce sobrinho, o auxílio em tua caçada contra o
Dragão dos Dragões com uma condição: traga Rhaelynaar Draconis para
vosso império, para mim.
Era uma proposta absurda.
A penúltima estrela não era como Yanaamahka — ela era irmã de
Nahemidraal, protegida pelos Primeiros Dragões e experiente o suficiente
para não confiar em draconianos.
Como ele a capturaria?
— O que me diz, sobrinho? Darei o apoio necessário para encontrá-la
em Degail, não estará sozinho nessa empreitada.
Seria uma nova provação. Hanzor suspirou e pensou por segundos que
pareciam horas, eternidade. Então, levantou os olhos, encontrou os do
general e concordou lentamente.
— Eu a trarei para o império.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E O I T O

SOB AS ESTRELAS, AS
S O M B R A S D E S A PA R E C E M

A BARRIGA DELA ESTAVA visivelmente inchada.


Quase quatro meses de gestação.
Mais seis e nasceria — seis meses de uma espera angustiante, de uma
sobrevivência árdua. Sobreviveria. Lutaria. Lunaysis vön Krimnell faria o
impossível para fazê-la nascer: a menina de sua visão. Rhenna dissera que o
futuro mudava frequentemente, bastava um segundo de hesitação, um passo
errado ou uma palavra incerta. Era uma verdade que a moça queria
acreditar; caso contrário, seu marido mataria a menina.
Luna preferia morrer ao viver aquela realidade.
Ela a mudaria — e assim mudaria também o seu senhor. Porque
conhecia as duas fraquezas dele: o sono e os instintos. O comandante estava
sendo derrotado por eles. Misairuzame estava certa. O Vento de Esmeraldas
era o que o fazia dormir. A moça testou seu poder na noite retrasada, o
draconiano retornou, depois de quatro dias distante, e buscou o sono. Luna
não conjurou o vento, pediu a deusa que o bloqueasse; e por quase uma
hora, o guerreiro permaneceu com os olhos abertos. Só adormeceu depois
— momento em que a draconiana chamou pela deusa em pensamentos. Mas
fazê-lo dormir não o faria poupar a criança não-nascida. Ela precisava
enfrentá-lo; mas não com sua força, não com sua essência, e, sim, com algo
que o homem parecia incapaz de resistir.
Luna estava com medo.
...mas tinha coragem.
Foi por isso que não sobressaltou quando o comandante entrou no
quarto sorrateiramente. Ela escondeu a surpresa ao vê-lo — o homem
estava com o rosto vermelho, veias salientes no pescoço e a expressão
tomada por cólera. No entanto, a atenção dela se focou no ferimento que ele
tinha sobre o lábio inferior ao queixo, profundo o suficiente para deixar
uma cicatriz.
— Meu senhor? O que houve? — e Luna se aproximou do marido. —
Está ferido! — ele a ignorou enquanto lançava a montante no chão. — Me
diga o que aconteceu, meu senhor.
Mas o draconiano a empurrou e Luna caiu sentada na cama.
Ela queria gritar, chamá-lo de monstro, todas as palavras trancadas em
sua garganta. Mas não o fez. Conteve-se. O vento a protegeria dele; e
precisava ganhar a confiança do marido se quisesse mudar o destino da
criança. Luna se levantou com cuidado e colocou uma mão sobre a barriga.
O draconiano estava de costas, a respiração alterada.
— Eu quero ajudá-lo, meu senhor. — as mãos dela tremiam ao tocá-lo,
Luna tentava inutilmente conter o medo que a corroía por dentro. — Seu
ferimento... Eu posso ver? — e a draconiana caminhou lentamente ao lado
dele, traçando uma linha imaginária com o dedo sobre a armadura. Ahuriel
se manteve parado, quieto, controlando a respiração.
Ambos trocaram olhares quando Luna se pôs frente ao marido.
— Acredito que precisa descansar. — não esperou uma resposta ou
reação dele: a moça correu os dedos para as fivelas da armaduras e as
soltou. O peito do comandante se suavizou enquanto as mãos dela
deslizavam sobre cada emenda da armadura. Luna o ouviu suspirar, o hálito
quente tocando-lhe os cabelos. A súbita cólera, então, se apaziguou e a
jovem deu um passo para trás, afastando-se.
— Continue.
— Quem o feriu, meu senhor? — Luna insistiu na pergunta.
— Uma mulher não deve se meter em assuntos do império.
— Estou perguntando sobre você, não sobre o império, meu senhor. —
a resposta dela o deixou quieto. Ahuriel somente gesticulou para que a
draconiana continuasse a tirar a armadura. Luna o fez, suas mãos não
tremiam mais, a coragem aflorara em seu peito e dera a força necessária
para continuar. Afastou-se somente quando todas as placas de aço foram
retiradas. — Você quer dormir?
— Sim. — era o que ele sempre escolhia. Era quase como uma rotina.
O comandante se despia e se deitava, esperando o sono. Nada estava
mudando, nada mudaria se Luna não intervisse. Ahuriel se deitou, os
cabelos prateados livres da longa trança; ela, porém, manteve-se em pé. —
Deite. — uma ordem.
A primeira vez que Luna ficara nua por vontade própria na frente do
comandante, ele a esbofeteou. Chamou-a de insolente, desgraçada. Eram
tempos passados; e muito havia acontecido... e poderia acontecer.
Mas o que ele faria agora? Despertaria algum instinto escondido?
Ignoraria ou repetiria o que fizera antes?
Era arriscado, um desafio, mas Luna precisava avançar — ousar —
caso desejasse ganhar a confiança dele, caso desejasse mudar um futuro
próximo. Sentimentos e instintos eram as fraquezas de um homem.
Luna desafiaria os instintos dele.
...e sua camisola deslizou pelo seu corpo.
Ahuriel arqueou uma sobrancelha no primeiro segundo, mas não
conteve a curiosidade e desenhou o corpo dela com os olhos.
— O que tu estás fazendo?
O corpo inteiro de Luna formigou.
Poderia não amá-lo — talvez nunca fosse capaz de fazê-lo — mas a
repentina aproximação fez uma chama se acender em seu peito. Ela era
capaz de perceber... o desejo contido do marido ao observá-la na cama, um
desejo que o comandante acreditava ser uma característica de fraqueza, mas
não era. A mulher caminhou lentamente ao redor do leito e se aproximou do
marido, deslizando o corpo entre os lençóis. Ahuriel expressou uma
máscara de indiferença com o gesto dela e esperou paciente o segundo
passo dela. Luna não hesitou em dá-lo: aconchegou-se ao lado dele e
dançou com os dedos, um ritmo lento, sobre o peitoral do homem. Percebeu
como o comandante a encarava, os dentes trincados — resistindo —, um
suspiro delineando a eminente derrota.
— Tu estás a zombar de mim? — ele perguntou.
— Eu sou sua mulher. — ela odiou aquelas palavras.
— Tu estás grávida, qual o sentido disso? — e era difícil acreditar
como um homem tão evoluído no império, um guerreiro nato, fosse capaz
de lançar questionamentos como aquele. Há um sentido para amantes se
tocarem se não o desejo?
— Você vai se sentir menos tenso, dormir melhor. — a resposta dela
fez o draconiano lhe dirigir o olhar, os olhos de vidro queimavam. Então, os
desviou, suspirando. Ela, porém, não esperava que ele sucumbisse tão
rápido aos próprios instintos: ele praguejou, dominado por eles, e se
ajoelhou na cama, agarrando a cintura dela com voracidade. Ahuriel se
colocou sobre ela, o corpo tensionado, um desejo aprisionado por meses,
anos. Era uma batalha que fazia o draconiano afastar a racionalidade. Luna,
no entanto, o privou de iniciar o ato: encolhera as pernas, agarrando as
mãos do comandante e as afastando de sua cintura. — Não, meu senhor,
deixe que eu o guie.
As palavras dela eram um mero sussurro gaguejado.
Ahuriel a encarou, esperando com eminente impaciência, e ela o
empurrou gentilmente na direção da cama. Fora um esforço fazê-lo deitar,
as costas contra os lençóis, talvez porque o draconiano não gostasse do que
não conhecia. Estava acostumado ao comum e ordinário — e ter uma
mulher sobre ele era como esquecer tudo que as tradições ditavam.
Pensamentos errôneos, pensava a moça, nervosa e trêmula enquanto o peito
dele subia e descia.
O comandante não tirou os olhos dela.
...e os fechou quando Luna o fizera entrar nela.
A expressão sólida do guerreiro se suavizou, estremeceu; e com o
primeiro movimento dela, um gemido escapou pelos lábios dele. Com o
segundo, Ahuriel cerrou os dentes; depois, no terceiro, segurou a cintura
dela num toque trêmulo, ofegante, os dedos pressionados sob a pele quente.
O ápice viera ligeiro: o draconiano se desmanchou nas mãos dela. Com
isso, mesmo insatisfeita, Luna soube que, pouco a pouco, o enfrentaria e o
domaria. Sem trocar palavras, sem violência, apenas com um ritmo lento de
corpos e suspiros.
Ahuriel retornou na noite seguinte.

Lunaysis vön Krimnell teve um pesadelo.


Ela nadou ao lado das sombras de seu marido, eram geladas;
arrepiaram seu corpo e a afogaram na escuridão. E alguém lhe tocara; não o
corpo, mas as mãos, deslizando um toque pesado por entre os dedos. A
sensação a fizera se arrepiar e retornar a realidade. A draconiana abriu os
olhos, a visão parcialmente turva, e encontrou o semblante de uma mulher.
Ela segurava sua mão, palavras sussurradas de lamentação deixavam os
lábios dela — e Luna só percebeu a verdade quando o murmúrio de
Misairuzame ecoou em sua cabeça.
A mulher era a mãe de Ahuriel; e ela não estava lá para distribuir um
sorriso. Aniel segurava a mão marcada de Luna.
— Você é uma Mulher Amaldiçoada. — dissera Aniel e o corpo inteiro
de Luna congelou. — Ahuriel pediu para eu ver o seu ferimento no pulso...
e...
As palavras congelaram na garganta da moça.
Lágrimas rolaram em seu rosto.
— Você está escondendo a marca da maldição. — Aniel continuou e se
levantou devagar.
— Por favor! — Luna gaguejou. — Por favor! Eles vão me matar de
descobrirem! Eu estou grávida! Eles não vão esperar nem a criança nascer!
Nem Ahuriel!
Aniel deu um passo para trás.
— Eles vão me culpar por abrigar uma amaldiçoada! — e a mulher
berrou, fugindo do quarto com uma expressão apavorada. Luna tentou
segui-la, mas parou assim que a porta foo fechada.
A draconiana colocou as duas mãos sobre a barriga, sua menina; eles
não a poupariam, não se importariam se era uma Vanadis ou uma Krimnell,
a morte era eminente. Luna correu para o armário e colocou um longo
manto sobre sua camisola, um vestido só a atrapalharia na fuga, e calçou
seus sapatos. Mas uma repentina conclusão a fez parar. Para onde iria? Ela
não tinha para onde correr. Vivera sempre em gaiolas, longe da liberdade,
esperando ser carregada de uma cela para a outra. Nar-ha sempre lhe dissera
sobre Castora, o estado independente de Aumastris, livre das tradições
cruéis do Império, contudo, Luna sequer sabia o caminho.
Quem levaria uma Mulher Amaldiçoada a bordo?
Mas como ela o vira o futuro se morreria?
Como vira a criança nascer?
Luna deveria lutar pelo futuro — pela criança e pela liberdade. E
mesmo que sentisse medo, que chorasse, deveria seguir em frente. Então,
coberta de lágrimas, a draconiana caminhou depressa em direção a porta. O
corredor estava vazio, a casa estava vazia. Ahuriel não retornaria até o
anoitecer e provavelmente Kaelus também estaria ausente. Ela limpou o
rosto no manto, controlou a tremedeira e caminhou cautelosa rumo ao
jardim. Ninguém poderia desconfiar dela, caso contrário, a interrogariam.
Luna se perguntou onde Eun-seo ou Hyun-seo poderiam estar, ela precisava
deles, de alguém que lhe estendesse a mão e dissesse que o futuro a
aguardava.
A moça desceu as escadas com linhas de suor percorrendo seu rosto.
Ninguém no corredor seguinte, nenhum sinal de Aniel ou qualquer
criado.
A respiração de Luna se controlava os poucos, o vento do deserto
farfalhava entre as janelas abertas, sussurrando palavras que a encorajavam.
O vento irá me proteger, ela dizia a cada novo passo. Ela era o vento —
forte e indomável — e sobrevivera ao lado dele por tantos anos. A
draconiana alcançou a entrada e quase sorriu ao ver as portas entreabertas.
Se alcançasse o jardim, encontraria uma forma de convencer os guardas a
guiá-la pelos arredores e fugiria entre as multidões que visitavam a cidade
para as festividades. A cidade real estava quase pronta para comemorar o
início do próximo ano, atraindo humanos de todos os lados do continente.
— Indo para algum lugar, mulher? — e ela parou na metade do
caminho. Kaelus, sentado em um enorme sofá no canto da sala, a encarava.
Aniel estava de joelhos, as mãos sobre o colo do marido, observando a
draconiana com um olhar apavorado.
Ele se levantou. Luna olhou por cima dos ombros. Ela nunca chegaria
até a saída, o homem a pegaria antes.
— Eu preciso apenas... de ar, Lorde Superior. — ela respondeu
depressa, esperando que Aniel não houvesse contado a verdade ao marido.
Mas era tarde. Provavelmente ele sabia.
— Ar? — o homem sorriu com desdém, então, se direcionou a outra
draconiana. — O que acabaste de me dizer, meu amor? — o tom do
Superior não condizia com seu comportamento. Kaelus torturava Aniel, a
violentava; e a violência sequer a fazia odiá-lo.
— Ela está amaldiçoada, querido! — Aniel se apoiou nas pernas dele,
recebendo uma carícia sobre os cabelos. Submissa como um animal. — Ela
precisa morrer.
Kaelus a afastou e ficou de pé.
— Meu filho compartilhou a cama com uma amaldiçoada por tantos
anos? Fraco demais. Tolo demais. — e sacou a longa espada da bainha em
suas costas. Lunaysis estremeceu, sem reação. — Como Superior do Reino
de Tannenberia, a sentencio a morte por carregar a Maldição dos Primeiros
Dragões.
— Eu estou grávida! — Luna disse com os lábios tremendo.
O draconiano riu.
— Como se eu me importasse. — e se aproximou.
Ela correu dele, tentou correr na verdade, mas o homem era rápido.
Kaelus a agarrou pelos cabelos e a empurrou violentamente contra o chão.
Lunaysis caiu desajeitada, torceu o pulso e bateu o queixo. Sequer tivera a
oportunidade para se levantar: o draconiano colocou um pé sobre a barriga
dela, a lâmina da espada no pescoço. Era como um caçador,
experimentando o desespero de sua caça inofensiva.
A bota do guerreiro pressionou a pele dela e roubou um gemido de dor.
— Talvez eu arranque a criança e pendure no quarto do comandante
como um aviso. — a ponta da espada se forçou sobre a garganta dela.
Lunaysis, porém, não conseguia se mexer. Se ousasse, Kaelus afundaria o
peso dele na barriga dela. — Chore. Implore. Talvez eu pense em matá-la
mais rápido.
Ela não sabia como reagir — nunca enfrentará ninguém em sua vida.
Somente obedecera e aceitara; e quando o draconiano retirou o pé dela
e a chutou violentamente nas costelas, fazendo seu corpo rolar pela sala,
acreditou que nunca sentiria uma dor pior. Ela ficou de bruços no chão,
cuspindo sangue, tossindo e sentindo o ar escapar de seu peito. O golpe do
superior provavelmente teria quebrado três ou quatro costelas dela,
tornando o processo de respirar uma tortura.
Luna!, a voz de Misairuzame soou distante.
Só que não conseguiu respondê-la: Kaelus arrancou o manto que a
draconiana vestia sobre a camisola e a deixou vulnerável no chão.
— O problema de Ahuriel é nunca ter ensinado como os Krimnell
tratam suas mulheres. — ele a segurou pelos cabelos de novo, a obrigando a
ficar de quatro. Luna tentou escapar, rastejou pelo chão, mas o draconiano a
arrastou com uma força desumana. A lâmina dele a ameaçou: deslizou pelo
rosto dela, enquanto um sorriso estampava o dele. — O que ele não errou
foi ter escolhido uma puta decente para gerar herdeiros.
O peito dela ardeu.
O irmão tentara fazer aquilo com ela no passado — Eun-seo a salvara.
Mas quem a salvaria agora? Ninguém. Era ela quem deveria se salvar,
sozinha.
Lunaysis tentou escapar de novo, chorando, em vão: o homem a
arrastou pela sala como se fosse uma mera boneca de pano. Sangue
manchava o chão, dela, das feridas, da criança.
Acorde!, gritou Misairuzame dentro dela. Desperte!
O homem se colocou sobre ela.
Lunaysis!
— Misairuzame! — e a draconiana berrou com os olhos fechados.
...e uma lufada de vento invadiu a sala e lançou o corpo de Kaelus a
metros de distância dela. Ele bateu na parede, uma fissura cresceu no
concreto, objetos de decoração, estraçalhados, voaram pelos ares e alguns
atingiram a outra draconiana. Aniel ficara inconsciente no mesmo segundo.
A sala se iluminara com pequenas partículas da joia verde.
— Filha da puta. — Kaelus se levantou, estalando o pescoço.
Enfrente!, dizia a deusa das esmeraldas.
Luna se levantou com dificuldade, cuspindo sangue. As costelas dela
doíam, a respiração estava difícil e suas pernas tremiam.
— Tu vais pagar por isso! — e o draconiano correu na direção dela, a
espada empunhada, o rosto raivoso.
Enfrentá-lo era o que deveria fazer, dissera a deusa; e, por um
momento, aquelas palavras fizeram-na lembrar de sua ama de leite. Nar-ha
dizia o mesmo, enfrentar o mundo e aceitar a essência com a qual nascera.
Luna tinha aceitado — embora sentisse medo a cada segundo. Ela cobriu o
rosto e pronunciou o nome da deusa novamente.
— Misairuzame! — dessa vez, o poder uivou como um lobo, uma
lufada arrebentou as portas da residência e serpenteou contra o draconiano.
A marca na mão dela se iluminou, brilhou em esmeralda, crescendo ao
longo do pulso e o antebraço. Lunaysis sentiu um calafrio, mas o ignorou
enquanto assistia sem reação o vento aprisionar o draconiano em um
ciclone de ar.
Tudo que estava na sala se desprendeu e rodeou, sob a cólera da
tempestade, a mesma que prendera o inimigo. Kaelus gritou, mas sua voz se
afogou no rugido do vento. Então, a Tempestade dos Ventos de Esmeralda
mostrou o porquê era temida: o ciclone se tornou vermelho, manchado pelo
sangue do draconiano aprisionado. Primeiro, gotículas saltaram nas
paredes; depois, uma torrente rubra esguichou e pintou o ambiente. Luna
também fora atingida — não pelo vento, mas por sangue. Ela piscou.
...e o vento despareceu: tudo que rodeava pela sala caiu no chão,
incluindo o corpo despedaçado do Superior de Tannenberia. Morto. A
cabeça de Kaelus estava virada para as costas, os braços quebrados e a pele
chupada: a essência sugara cada fragmento do sangue dele e lançara pelos
ares. Aniel estava no mesmo lugar, coberta por escombros. Luna deu um
passo para trás, chocada.
Misairuzame havia matado o Superior Krimnell.
Guardas chegaram às pressas ao local, horrorizados pela cena que
presenciavam. A draconiana, porém, não esperou que eles a interrogassem;
ela correu e fugiu chorando pelo jardim.
Ela havia matado o Superior Krimnell.
Não a deusa; não.
A essência era de Luna — e fora ela quem a conjurara. Ela estava
correndo às cegas, com dor e desespero, quando seu corpo se chocou com
alguém. Era seu guardião, seu protetor: Eun-seo a juntou depressa, pálido,
questionando o que acontecera.
— Ele descobriu... — as palavras doíam. — Eu o matei... eu...
Mas a cidade sacudiu e a interrompeu.
...e um rugido gutural ecoou no horizonte da capital.
C A P Í T U L O Q U A R E N TA E N O V E

SANGUE DE PRIMEIRO
DRAGÃO

OS DEDOS DO REI DE TANNENBERIA tamborilavam sobre trono,


impacientes. Afirmaram-lhe que a cidade estava segura, livre de qualquer
ameaça do inimigo em comum — o dragão —, mas o homem gordo não
parecia contente com as buscas na capital. Ele era um humano teimoso, o
cérebro provavelmente estava atrofiado com a idade e o excesso de peso.
Oitenta anos com uma disposição de cem. Diziam que o príncipe Serge era
o responsável por tudo; e tudo o que Gureryne fazia enquanto o herdeiro
cuidava do reino era trepar com prostitutas. Demétrius não tinha paciência,
o cargo de terceiro-general só lhe era importante porque podia usar a
autoridade para conseguir o que quisesse, um passe livre para matar em
nome do imperador, mas as reuniões arrancavam o pouco humor que tinha.
Reunidos na Sala do Trono estavam os demais superiores draconianos:
Belpheggör, quieto e paciente para as besteiras do soberano; Leovrumund,
preocupado demais com os dedos decepados, os comandantes Ahuriel e
Khan, e o cavaleiro Hanzor, os três calados, esperando uma permissão para
se pronunciar. Rhenna, no entanto, estava ausente, o que atraiu a
curiosidade do ceifador: porque era ela, como primeira-general, que deveria
estar dialogando com o monarca.
— A cidade está segura, majestade. — o general Belpheggör afirmou
com eloquência, mas as palavras não convenceram o soberano. Gureryne
esperou uma explicação enquanto os demais presentes se mantinham em
silêncio. — Acredito que nenhum Primeiro Dragão, além da própria Estrela
da Noite, encontra-se em teus domínios. Não há o que temer quanto ao
início das festividades.
— Está dizendo que as mensagens de alerta da região leste eram uma
farsa, general? A Floresta Viva foi inteiramente queimada e tu queres que
eu acredite que estamos seguros na cidade real? — o soberano bufou como
um porco.
— Vocês não estão seguros. — a voz de Demétrius reverberou. —
Ninguém estará enquanto a Estrela da Noite estiver aqui. — e um sorriso
afiado se revelou nos lábios cortados dele. — Eu tentei matá-lo, majestade,
vim da região leste até aqui tentando. Uma pena que eu tenha sido
interrompido. — cada palavra dele era carregada por ironia. Chamá-lo de
majestade era tão nauseante quanto chamar o Senhor de Gelo, quem o
corrompera, de pai. Demétrius percebeu o olhar raivoso do segundo-
general, mas ele soube escondê-lo dos demais.
— Por que vocês a mantem viva? — o rei Gureryne questionou.
— Majestade. — Belpheggör o reverenciou. — Eu confesso que
estamos retardando a morte dela, mas o Imperador Cassius...
— O imperador de Aumastris tem poder em Aumastris, não aqui.
Matem a Estrela da Noite antes que um dos Primeiros Dragões surja e
extermine com a minha cidade. — interrompeu Gureryne com rispidez. —
General Demétrius. Como tu foste o interrompido, será o encarregado de
matá-la. Agora.
— Posso me demorar na morte dela?
Gureryne assentiu.
— Faça o que quiser, mas a mate antes do anoitecer.
— Se me permite, majestade, posso interrogá-la primeiro? Tenho
perguntas sobre a outra estrela. — o Vanadis perguntou com uma máscara
de indiferença. O soberano lhe concedeu o pedido e dispensou o resto.
Demétrius saiu junto dos demais, mas acompanhou os passos de
Hanzor, observando como o cavaleiro o evitava. Era um motivo claro —
fora ele que impossibilitara o ceifador de matar a estrela.
— Uma pena, não, Vanadis? — o general se aproximou enquanto
ambos seguiam pelos corredores do palácio. Hanzor não ousou desviar os
olhos para o draconiano. — Tanto esforço para a vagabunda morrer e você
não conseguir sua vingança. Está se sentindo um merda?
— Por que está me seguindo? — o cavaleiro parou, as luzes do deserto
adentravam pelas paredes de tijolo vazado. O ar, porém, era quente; o
interior de Sopoente, no centro da capital, era uma estufa.
— O que acha de observar a puta morrer? Eu gostaria da sua opinião,
Vanadis. Suponho que a tenha colocado de quatro para fazê-la acreditar que
a levaria ao desfiladeiro.
— Eu soube que ela escapou de você. — Hanzor respondeu
firmemente. — Como um ceifador deixa suas presas escapar? Você poderia
tê-la matado se quisesse, general, então, por que não o fez?
Demétrius não prestou muita atenção no que o jovem dizia. Parecia
mais interessante pensar como seria se batesse a cabeça de Hanzor no
concreto até que explodisse.
— Ela é uma Estrela da Noite resistente, não posso negar; cheia de
ódio e confusão. O que importa é que ela morrerá hoje e, enfim, restará
uma. — Demétrius sorriu com desdém. — Suas últimas palavras a ela?
— Vá para o... — e o Vanadis não completou.
Porque parte da estrutura do palácio se desintegrou quando uma
estranha energia, acompanhada de um rugido gutural, elevou-se rumo ao
céu. Sopoente estremeceu. Depois, asas ruflaram, escamas se iluminaram e
uma explosão cortou a capital: a Sala do Trono havia sido atingida.
Belpheggör estava errado; Demétrius, certo.
Ninguém estava seguro, e aquelas palavras se mostraram verdadeiras
quando o dragão fez a Solnascente tremer com sua força. Ambos os
draconianos correram. Gureryne permanecera na Sala do Trono quando
todos saíram; consequentemente, recebera o ataque — e só um milagre de
Sunyar o manteria vivo. Demétrius e Hanzor escancararam as portas do
ambiente segundos depois que o corpo do soberano fora engolido por uma
boca abarrotada de dentes. Era um dragão, um Primeiro Dragão, enorme e
sedento. Ele abrira uma cratera no palácio e estava pendurado na estrutura,
o focinho marcado por cicatrizes grossas. Contudo, o que ganhara a atenção
de ambos, enquanto a criatura despedaçava o monarca, foram os olhos: um
dourado, característico da espécie, outro vermelho, marcado por uma
essência.
Demétrius o conhecia pelas histórias.
Hieronymus Draconis, líder dos Primeiros Dragões.
Os pedaços do corpo de Gureryne se espalharam pela Sala do Trono,
nada pudera ser feito para defendê-lo; e o dragão rugiu enraivecido contra
os dois draconianos. Os Guerreiros do Sol chegaram no instante seguinte,
berrando ordens e xingamentos. Distante, os gritos de pavor dos humanos
ecoaram no deserto — e Demétrius berrou para que os cavaleiros se
afastassem do gigante. Era tarde demais: Hieronymus lançou sua língua de
fogo contra todos os presentes no ambiente, destruição se propagando como
um mar em fúria. Os draconianos foram os únicos a escapar: eles estavam
logo na entrada e saltaram na proteção das paredes enquanto as chamas
consumiam as entranhas dos outros homens.
— Satisfeito, Vanadis? — o ceifador perguntou depressa, o dragão
rugindo dentro da sala. — Tannenberia perdeu seu rei pela ganância de
vocês, Aumastrinos. Enfrentem as consequências. Eu cuidarei da Estrela da
Noite.
— Você está aqui para proteger o reino! — Hanzor disparou enquanto
as chamas aumentavam o calor do palácio. — A Estrela da Noite é do
Império, não sua para matar!
O dragão negro fez a estrutura estremecer com outro rugido.
— Não sigo ordens de crianças. — e o ceifador disparou pelo corredor.
Que Tannenberia queimasse.
Demétrius não enfrentaria o líder dos Primeiros Dragões sem antes
terminar sua caçada à Estrela da Noite.
e Hanzor rön Vanadis o seguiu.

A escuridão sussurrava.
Rhenna estivera em calabouços piores — as celas de Nothumbria, lar
do Senhor de Gelo, eram o purgatório do plano dos vivos. Aumastris,
porém, não possuía celas para prisioneiros, eles executavam todos; e ela
detestava como os superiores sentenciavam os culpados. Injustamente. Era
essa a realidade, o mundo corrompido que as raças criaram, que a general se
despediria em breve. Ela escolhera morrer por um motivo nobre e
caminhava rumo a ele: a cela da Estrela da Noite. Esperou que todos
estivessem ocupados demais para interrompê-la; então, dispensando os
humanos encarregados de vigiar os portões da prisão, seguiu obstinada.
A draconiana conversara com o menino de cabelos vermelhos horas
antes. Tiggrë era o nome dele, corajoso o suficiente para desafiá-la com
palavras. Rhenna se sentiu tocada pela sabedoria do menino e jurou em
nome da deusa de safiras que o ajudaria. Só que antes a general precisava se
certificar do exato local que a estrela estava, assim, planejariam uma forma
de resgatá-la. Bastara uma caminhada pelas celas para que percebesse a
localização: a prisão de Tannenberia ficava no subsolo da cidade, esgotos.
A entrada era pelo castelo de Solnascente, mas a saída não; o que
significava que qualquer túnel de esgoto na cidade poderia levá-los a ela.
Seria fácil. Rhenna respirou fundo e apoiou o corpo nas paredes mofadas.
O cheiro era insuportável, a temperatura abafada.
Mas seguiu em frente, cuspindo o sangue que se acumulava em sua
garganta.
E quando alcançou a cela mais funda, quase vomitou. O cheiro de
sangue e urina fizeram seus olhos lacrimejar: a Estrela da Noite estava
jogada no chão, desacordada, banhada na própria podridão. O corpo dela
estava encolhido, as roupas manchadas de vermelho e a pele com crostas de
sujeira. Rhenna se aproximou com cuidado, ajoelhou-se e apoiou as costas
da mulher-dragão em suas pernas. Por um minuto, somente a observou.
Aquela mesma cena acontecera a ela — trinta anos antes —, mas na época,
a mulher apoiada nela estava morta. Uma estrela, na verdade. A Mãe dos
Primeiros Dragões, Nusheymara, morrera nos braços dela.
Sua única amiga: quem a presenteou com a verdade sobre a raça deles.
Ela era mãe de Nahemidraal e avô de Yanaamahka, e ter esta, no presente, a
fez recordar daqueles anos.
— Eu vou conseguir dessa vez. — Rhenna murmurou e abraçou a
estrela fortemente. — Vou salvar uma estrela. Nem que eu morra tentando.
— e seus dedos correram em direção as feridas no rosto da jovem. —
Mahoutsukai.
O Fogo de Safira em seu peito chiou — duas vezes mais intenso do
que o normal. Yanaamahka era a fonte de todas as herdeiras draconianas da
essência, e tê-la perto era como uma chama perto da faísca. Rhenna
estremeceu sentindo seu calor se esvair e correr em direção à mulher-
dragão. Ela não poderia curá-la, mas daria o poder que tinha para ajudá-la.
Sutilmente, o fogo da estrela se agitou, robusto, e ocasionou um sutil
gemido de sua hospedeira: cortes no rosto dela se fecharam, desapareceram
como os ferimentos no resto do corpo.
A essência de safira era a vida — e para gerar vida, era preciso dar
vida. Rhenna conhecera melhor o poder que julgava amaldiçoado com
Nusheymara. Ela explicara que o Fogo de Safira, como o Vento, é uma
tênue faísca que chamam de passiva. Ele somente cura. No entanto,
evoluído — quando a herdeira o aceita como parte dela —, torna-se uma
chama; e não mais cura, mas destrói. O vento, a proteção passiva, é a
tempestade ativa. Por último, os cristais, o mais temido, passivo é a
devastação, ativo, a morte.
Mahoutsukai é a deusa da vida.
Misairuzame é a deusa da esperança.
Maetsumina é a deusa da morte.
— Mãe? — o sussurro delirante da Estrela da Noite encontrou a
atenção de Rhenna. A essência fizera efeito e recuperara parte da resistência
de Yanaamahka; então, abriu os olhos. — Por que... me... odeia?
A draconiana não conhecera Nahemidraal. Ela tinha pouco mais de dez
anos quando Rhenna escapou do desfiladeiro. A pergunta, porém, a fez
estremecer. Lembrou-se de seus filhos. Como uma mãe poderia odiar uma
cria? Ela daria um mundo para ser chamada de mãe novamente.
— Eu não a odeio. — Rhenna respondeu, mas não sabia se era
verdade. Ela afastou uma mecha negra dos olhos da estrela antes de
prosseguir. — Está tudo bem, Yanaamahka. Tu saíras desse lugar maldito e
encontrará o desfiladeiro; e quando o fizer, diga a ele, diga a Kzaharaeggär,
que eu sinto muito.
A Estrela da Noite piscou com dificuldade.
Ela não estava enxergando a draconiana, talvez uma ilusão, uma
sombra, o passado. Rhenna a tocou no rosto, buscando ver as recordações
dela — o dom de Mahoutsukai —, mas não encontrou nada além de um
vazio interminável.
Yanaamahka estava vazia. Sem passado.
— O que fizeram contigo... — a general murmurou.
— Pergunte ao Dragão dos Dragões, minha querida; o culpado pelo
esquecimento dela. — a voz viera de suas costas. Rhenna o observou pelos
ombros, o draconiano vestido em sua armadura negra. Belpheggör
caminhou lentamente até ambas, observando com um sorriso contido. —
Seria ousadia minha questionar, doce general, o que tu estás a fazer com
minha prisioneira? Suponho que teu estranho comportamento diante dela
não seja recomendado.
— Ela é prisioneira do império. — Rhenna soltou a estrela com
cuidado e se virou para o companheiro. — Não sua. Eu que devo interrogá-
lo, segundo general, quanto as condições dela.
Belpheggör arqueou uma sobrancelha.
— Devemos, por acaso, ser hospitaleiros? A Estrela da Noite merece,
talvez, uma cama e um quarto dourado? — ele continuava sorrindo cínico.
— Confesse, querida, tu estavas tocada pela presença dela. Será que a
estadia com os dragões no passado lhe fez diferente?
Rhenna fraquejou — porque era verdade.
Seu cativeiro com os Primeiros Dragões havia a mudado: ela não fora
prisioneira deles. Não. Mais que isso. Companheira. Guerreira. Amiga.
Amante.
— Não ouse falar sobre isso.
— Por que não? Suponho que não será um problema para ti, afinal,
minha querida, eles são nossos inimigos.
— Porque o que sofri com eles não é de sua conta.
— Sofreste? — o general riu brevemente. — Sofrimento é uma coisa
bela, não? Nos torna mortais. Diga-me, Rhenna vrön Skaargärd, o quão
profundo foi teu sofrimento ao perder aquele mestiço bastardo? Aquele
monstro que você gerou ao acasalar com um dragão?
Mestiço. Bastardo. Monstro.
Rhenna ficou sem voz, sem ar, sem chão.
— Pergunto-me como foi possível, como ninguém nunca percebeu
aquele pequeno monstro que tu chamavas de filho. Teu marido, tolo, nunca
percebera a diferença? Talvez seja esse o motivo que Khan tenha deixado o
menino se afogar. Porque desconfiava de tua infidelidade.
— Tu não sabes o que estás falando! — Rhenna vociferou, mas a
expressão dela denunciava a verdade.
— Seria esse o motivo, doce general, que estás a ajudar nossa inimiga?
Rhenna não conseguiu responder.
Ela estava tremendo.
— Ou porque compartilham a mesma essência das deusas esquecidas?
A draconiana não esperava a atitude seguinte do semelhante:
Belpheggör empunhou a espada e desferiu um golpe ligeiro sobre o rosto
dela, não na pele, mas no tapa-olho — e o tecido rolou de encontro ao chão,
revelando o olho de safira que escondia. Rhenna o cobriu com uma mão.
— Amaldiçoada. — ele dissera com um deleite doentio e empunhou a
espada na direção dela. — Tu serás julgada por teus crimes. Rhenna vrön
Skaargärd, em nome do imperador de Aumastris, eu a sentencio à morte por
adultério e traição, por ser uma Mulher Amaldiçoada e por auxiliar o
inimigo.
Ela deu um passo para trás.
— Morrerás por minha espada e...
— Mahoutsukai! — ela o interrompeu ao invocar a deusa de sua
essência. Rhenna, porém, sentiu o poder faiscar e não se acender. Estava
fraca: dera parte do que tinha a Estrela da Noite.
Belpheggör gargalhou com a espada empunhada.
— Veja o que é poder de verdade...! — e a lâmina dele causou um
corte proposital na própria pele. — Maetsumina! — berrou o draconiano.
A única gota de sangue que pingou do ferimento se tornou uma lâmina
rubra nas mãos do general, depois, para o desespero dela, o sangue da
Estrela da Noite ao redor flutuou como se fossem pequenos fragmentos
brilhantes. Eles foram mudando, tomaram a forma de estacas e correram
contra a guerreira. Se elas a atingissem, perderia: porque os Cristais de
Rubi eram alimentados por sangue; e se um corte fosse ocasionado nela,
Belpheggör tomaria controle dele e faria o corpo de Rhenna simplesmente
congelar.
Ele congelaria o sangue dela e a mataria em um segundo.
Esse era o porquê da essência de Maetsumina ser tão perigosa.
As estacas voaram ferozes contra Rhenna — e ela teve um segundo
para pensar: seu corpo resvalou e caiu de encontro ao chão. Nesse mesmo
instante, seus dedos encontraram a pele gelada da Estrela da Noite. Se
Yanaamahka era a sua fonte, provavelmente daria a draconiana a quantidade
necessária de poder; não para ser a vencedora contra o inimigo, mas pará-lo
por alguns minutos.
— Mahoutsukai! — ela gritou de novo; e a faísca rugiu, tornando-se
uma chama furiosa dentro dela. Rhenna sentira o corpo de Yanaamahka
ficar mais gelado, fraco. Calor se propagou na sala, um calor tão repentino
e intenso que as estacas vaporizaram.
A sensação teria afetado Belpheggör também se o sangue dele não
houvesse o protegido: uma cúpula de rubi transparente o envolveu enquanto
calor causava destruição, sem fogo, sem luz, apenas a sensação térmica que
crescia a cada segundo como se estivessem no inferno.
Rhenna juntou o corpo da Yanaamahka depressa e jogou por cima do
ombro.
O calor aumentou mais: as barras de ferro da cela começaram a
derreter.
Mas a cada aumento de temperatura ambiente, o corpo da Estrela da
Noite ficava gelado — era uma troca. O Fogo de Safira roubava calor para
gerar calor, o mesmo que fazia com a vida. Rhenna correu e deixou o
draconiano aprisionado no próprio poder para trás.
Belpheggör não abandonaria sua proteção até que o calor regularizasse.
E essa seria a oportunidade de Rhenna fugir.
Mas assim que virou o corredor da prisão, a terra tremeu.
...e um rugido gutural chacoalhou o deserto.
C A P Í T U L O C I N Q U E N TA

O DIA EM QUE O SOL


D E S A PA R E C E U

TIGGRË ESTAVA ESPERANDO.


A mulher-amaldiçoada dissera para esperar, mas o menino não tinha
certeza se devia confiar nela. Ele temia que ela retornasse com homens para
prendê-lo por ser refugiado. Mas o que poderia fazer além de rezar aos seus
divinos e pedir proteção. Yanaamahka precisava. Ele precisaria; e os
deuses-animais, o Dragão e o Tigre, estariam ao lado de ambos.
Ele nascera no ano do tigre — o divino da luz — e teria coragem.
A noite avançou fria e viera o dia, quente.
Ninguém o perturbara naquele beco, pessoas murmuravam e
exclamavam distantes, mas o menino se manteve quieto entre as caixas,
acompanhado de seus medos, suas angústias infantis. Ele esperou,
continuou esperando, o astro rei se movimentou, ascendeu no céu e
nenhuma notícia viera. Rhenna dissera que se ela não retornasse até o
anoitecer seguinte, o menino deveria encontrá-las na saída sul de
Solnascente, na parte mais funda do Distrito da Poeira. Tiggrë não sabia a
localização exata, mas sabia estar no distrito correto. Esperaria o sol do
entardecer para avançar, acreditando na esperança que sussurrava o vento.
Mas o vento soprou diferente no minuto seguinte: ele sentiu um
calafrio, depois uma súbita tontura.
Uma mensagem. Um presságio.
As brisas quentes murmuravam a cidade estava para mudar e o mundo
mudaria com ela. Não espere, Tiggrë quase ouviu alguém murmurar, mas
acreditou que seu subconsciente lhe encorajava a seguir e não esperar.
Yanaamahka precisava dele — e ele precisava dela. Ambos precisavam
fugir. Respirando fundo, o menino segurou a bolsa com seus pertences e
deixou o esconderijo. Ele usou o capuz de seu manto, embora o calor fosse
elevado, para cobrir os fios-de-fogo, uma vez que seria mais fácil vagar
pelas ruas da cidade. Ninguém o abordaria ou o seguiria. A tarde estava na
metade, ele tinha tempo para buscar informações sobre o lugar que os
prisioneiros eram levados. A Estrela da Noite provavelmente estaria lá.
Tremendo, Tiggrë se misturou as pessoas e andou de cabeça baixa.
Nenhum guerreiro ou draconiano, nada além de mestiços e humanos
pedintes acumulados nas ruas. Tannenberia abolira a escravidão com a
ascensão de Vicente XIII ao trono, há quase cem anos; mas o tratado não
dera condições para os escravos viverem livres. A miséria se arrastava pelas
sombras e homens morriam de fome nos cantos da cidade. Diferentemente,
Aumastris permanecia com a política de escravos há séculos. O menino, por
quase três anos, fora um escravo — e sabia que mesmo que se tivesse ganho
a liberdade, morreria de fome. Se permanecesse, porém, sendo um escravo
morreria pela violência.
Liberdade e Escravidão eram palavras problemáticas sem um contexto.
Ele esperava que a liberdade que buscava ao lado de Yanaamahka fosse
diferente, boa e não metafórica.
— Com licença... senhor. — Tiggrë tentou se aproximar do homem e
foi ignorado. Ele tentou outros dois, depois uma mulher; e ninguém deu
atenção. Era uma criança afinal, ninguém se aproximaria com medo de ser
roubado ou enganado. Insistente, o menino abordou uma senhora sentada
em frente a uma tenda de madeira despedaçada. Ela era diferente dos
demais, a pele pálida e os cabelos dourados, uma estrangeira, mas os olhos
eram brancos. — Senhora?
Ela piscou sem mover o rosto.
— Venha cá, menino. — disse ela de repente e estendeu as mãos
trêmulas na direção dele. — Deixe-me tocá-lo.
Tiggrë hesitou por um momento. Mas o fez. O que uma anciã poderia
fazer contra ele? Era cega. Velha demais para levantar ou chamar os
guerreiros. O menino, então, ficou frente a ela — as mãos enrugadas o
tocaram no rosto, subindo os dedos através dos fios vermelhos.
— Nascido do Tigre. — ela sussurrou e as bochechas do pequeno
ficaram coradas. A velha não era apenas uma estrangeira, mas uma
refugiada de Degail, uma Animana como ele. — O que tu fazes em terras
tão hostis?
— Eu preciso encontrar... minha mãe. — ele mentiu; e não era uma
mentira ruim. Yanaamahka era como sua mãe, pelo menos era como o
menino a via, alguém para substituir a saudade que tinha de sua figura
materna. — Ela está presa aqui na capital... e eu preciso saber para onde a
levaram.
— A coragem é a característica mais forte daqueles nascidos do tigre.
— e as mãos dela se afastaram. — A prisão da cidade real está aos nossos
pés, pequeno, caminhamos por ela todos os dias.
O esgoto? Tiggrë olhou ao redor. Se fosse verdade, qualquer buraco em
Solnascente o levaria a prisão.
— É um caminho perigoso, tu sabes.
— É o caminho que escolhi... por ela. — Tiggrë respondeu com um
sorriso aberto e deu um passo para trás. — Eu agradeço.
— Não me agradeça. — e a velha não desviou o olhar do céu em
nenhum momento. — Apenas saiba, Nascido do Tigre, que teu tempo está
acabando. Tu estás predestinado a não encontrar aquilo que buscas.
— Você se refere a minha mãe?
— O tempo dará todas as respostas. — e ela fechou os olhos.
Tiggrë a observou antes de se afastar. Esperava que a decana não
estivesse falando de Yanaamahka... porque ele iria encontrá-la. Obstinado, o
menino correu e procurou por qualquer bueiro que o levasse aos esgotos —
e encontrou um no mesmo beco que antes se escondia.
Ele nascera no ano do tigre! Era o Tigre!
...e saltou rumo a escuridão e o fedor.
Segundos depois, a estrutura da cidade estremeceu e um rugido rasgou
os céus do Grande Deserto.

Estou aqui contigo.


Yanaamahka acordou com a voz de uma mulher.
Ela clara e sonora — impregnada de um carinho materno que nunca
experimentara. A estrela abriu os olhos, estava nas sombras, um semblante
borrado aguardava a frente, cautelosa entre os escombros. Lentamente, a
imagem se tornou nítida, revelando parte da expressão da draconiana
desconhecida. Yanaamahka a observou em silêncio, os cabelos dourados;
depois, trincou os dentes, buscando as dores, os ferimentos, dos quais
estava acostumada. Nenhuma. Apenas um desconforto incessante, mas
pequeno. Seus dedos correram sobre as marcas das flechas e encontrou
apenas cicatrizes avermelhadas. Era sua barriga o problema.
Mahoutsukai dissera que o Fogo de Safira se tornava fraco perante o
Aço de Cristal, o que fazia o ferimento, apesar de levemente cicatrizado,
doer e sangrar com facilidade. A cicatrização estava lenta.
— Você finalmente acordou. — e no tom sussurrado da draconiana, a
Estrela da Noite reconheceu a voz anterior. Sombras se esgueiravam ao
redor, um cheiro forte de podre contaminava a atmosfera. Umidade.
Abafamento. Uma gota escorreu o corpo humano da mulher-dragão no
mesmo instante que um rugido cobriu o horizonte, ocasionando um leve
estremecer na terra. Yanaamahka se levantou com pouca dificuldade,
apenas uma leve tontura lhe confundindo; depois, escorou-se na parede
coberta por umidade.
Seu corpo clamava por uma transformação.
A fera estava sedenta — irritada e possessa — por retaliação: estava
livre do encantamento que a mantinha presa na forma humana. Yanaamahka
se perguntou se era mais uma proeza de sua essência e acreditou que sim,
embora a presença da deusa de safiras estivesse tão apagada quanto seu
passado.
— Quem é você? — e ela questionou com a garganta dolorida. A
draconiana, porém, ignorou a pergunta e permaneceu em silêncio,
segurando uma espada. — Eu perguntei quem é você, draconiana.
A mulher a observou sobre os ombros.
— Não é importante agora, Yanaamahka. O importante sair daqui
primeiro.
— É importante agora. — insistiu com os caninos a mostra, resistindo
a tontura. Yanaamahka suspirou irritada antes de continuar e colocou a mão
sobre o ferimento da barriga. Doía a cada movimento. — Quem é você,
draconiana?
— Estou te ajudando. — e mulher respondeu. — Não é o suficiente?
— Draconianos disseram... me ajudar... — Yanaamahka trincou os
dentes. — Mas me traíram... então não, não é o suficiente.
— Tu és mais que isso; e vão te caçar até que tu estejas morta. — a
mulher suspirou e se aproximou, quinze centímetros mais alta. — Mas eu
não tenho interesse em caçá-la, nunca tive.
O rugido do dragão soou distante. A Estrela da Noite ouviu também
homens bradando, lutando, morrendo. A cidade estava sendo atacada — um
dragão — e a curiosidade de vê-lo se acendeu no peito dela. Ela observou o
teto e percebeu que o som vinha de lá.
Ambas estavam sob a batalha.
— Por que eu acreditaria em você? — a estrela sentiu um calafrio
quando encontrou os olhos heterocromáticos da draconiana.
— Eu deveria saber que tu serias como os machos de tua família. — o
tom melancólico estava acompanhado por saudosismo. A draconiana dizia
como se a conhecesse. — É incrível como... vejo ele em teu semblante. — e
antes que Yanaamahka pudesse reagir, a mulher lhe abraçara. Por uma
fração de segundos, minutos, talvez mais, a Estrela da Noite permaneceu
quieta, confusa, inundada pela sensação de conforto que atravessava suas
veias. — Eu sinto muito pelo que está passando.
— Quem é você? — Yanaamahka perguntou pela terceira vez,
sussurrando entre os braços da mais velha. Mentalmente, indagou-se quanto
o gesto repentino. Era caloroso, um toque quase-materno que ela não
conheceu, ou talvez houvesse o esquecido.
— Rhenna. — a mulher respondeu carinhosamente. — Eu posso ser
draconiana, mas não quer dizer que meu coração o seja. Eu vivi com os
dragões por longos anos no desfiladeiro e aprendi a aceitar o que eu era de
fato. Chamavam-me de Mulher Amaldiçoada entre meu povo. Os dragões,
no entanto, deram-me o nome de Herdeira de Vida. — e se afastou. Só
então, a realidade retornou a Yanaamahka, exaltando a destruição que se
alastrava pela cidade real.
— Você é...
— Sim, sou tua receptora. Tu és a última Estrela da Noite com o Fogo
de Safira, assim como tua mãe eras a última com os Cristais de Rubi e
Rhaelynaar é a última com o Vento de Esmeralda. — e Rhenna se afastou e
a estrela sentiu a frieza da distância, o rosto da draconiana estava pálido
como inverno. — Eu passei parte da minha vida para ti e curei tuas feridas.
Provavelmente eu vá morrer um pouco mais cedo por causa disso.
É preciso dar vida em troca de vida.
Yanaamahka finalmente entendera o que Mahoutsukai dizia no
passado: o Fogo de Safira somente curaria se queimasse parte da vida dela.
Era uma espada com dois gumes.
— Está me ajudando... só porque temos a mesma essência?
— Não. — Rhenna respondeu e colocou a mão trêmula sobre os
cabelos de Yanaamahka; e esta não se afastou, apenas se encolheu perante o
toque. — Porque estou cumprindo uma promessa que fiz há quase trinta
anos.
Promessas que eram cumpridas. Promessas que não se perdiam no
vento. Yanaamahka não soube o que responder, não soube como se
expressar, porque era aquilo o que desejava dos quais diziam conhecê-la:
promessas que duravam uma vida inteira e que, ainda assim, eram
cumpridas. Klud não fizera isso; seu pai não fizera também. Ninguém.
Aqueles que diziam amá-la, somente a decepcionaram.
— Precisamos seguir... estamos nos esgotos. — o que explicava o
cheiro horrendo que sentia. Rhenna deu um passo em frente e respirou
fundo. — Ele está ligado a cidade toda e preciso levá-la ao Distrito da
Poeira antes do anoitecer. — e cada palavra se tornava um sussurro fraco.
Rhenna não estava bem, provavelmente a consequência de usar sua essência
mais do que deveria. — Alguém estará te esperando... um menino. Tiggrë.
...e seu coração se aqueceu.
Ele estava bem, estava seguro — e precisava encontrá-lo para que
pudessem escapar da emboscada que Hanzor os colocara.
A estrela se colocou ao lado da general, piscando para afastar a tontura
e o chiar do fogo em seu peito.
— Tu confias em mim agora?
— Não. — e ela estava sendo sincera. Confiança não era medida por
palavras; e, sim, ações. Rhenna poderia lhe passar uma sensação de
tranquilidade, poderia ter a mesma essência, mas era uma estranha.
— Eu esperava. Tu não serias a filha do Dragão dos Dragões se
confiasse facilmente em mim. Ele também não demorou a confiar. — a
draconiana se escorou nos escombros.
— Você conhece o...
— Deixe as perguntas para depois. — Rhenna a interrompeu e
avançou, gesticulando para que a seguisse. Ambas avançaram lentamente, a
estrutura inteira tremia com a batalha que se alastrava na superfície; e a
cada novo passo, um suspiro fatigado escapava a draconiana. A expressão
dela estava distante, embora prestasse atenção pelo caminho que percorria.
A água dos esgotos alcançou o calcanhar delas durante o percurso, dez
ou quinze minutos mais tarde. O cheiro agravou a tontura de Yanaamahka,
mas ela se manteve firme enquanto a draconiana usava as paredes para se
apoiar vez ou outra. A escuridão era iluminada por tênues labaredas de fogo
azul que Rhenna acendia sob seus dedos; e o esforço arrancava dela — e do
ambiente — calor. Lentamente, o abafamento se tornou um sopro gelado.
Yanaamahka observou as chamas com atenção; elas brilhavam como se
pequenos fragmentos de safira se tornassem incandescentes. Era tão azul
como uma lasca de gelo — e a essência tinha essa semelhança. Roubava o
calor ao redor e tornava o mundo mais gelado.
Um estrondo repentino as fez parar: os esgotos chacoalharam e
pedaços de pedra despencaram do teto.
— Devemos estar passando pelo castelo. — informou Rhenna.
Yanaamahka prosseguiu, a respiração cada vez mais alterada. Não pelo
que acontecia na superfície, mas pela adrenalina em seu sangue — o dragão
queria se transformar e se revelar. Ela não conseguia controlar a troca ainda;
e se o fizesse precipitadamente poderia ferir a draconiana. Mas seria mais
rápido: avançar e correr com quatro patas era melhor que duas pernas. Mas
Rhenna caiu de joelhos antes que a estrela pudesse pensar na possibilidade.
A draconiana vomitou sangue, bolas vermelhas semelhantes as negras que a
Yanaamahka costumava vomitar — porque estava supostamente doente,
dissera Tiggrë. As recaídas estavam distantes desde sua visita ao templo,
contudo, ponderou se havia alguma semelhança com o estado da general.
Então, a estrela se colocou ao lado da mulher.
A proximidade, porém, a fez estremecer. Yanaamahka sentia: o Fogo
de Safira de Rhenna estava se apagando lentamente.
— ...o que aconteceu com você?
Rhenna limpou a boca, fios dourados de cabelo estavam manchados de
vermelho.
— Um erro. — e ela se levantou, mas precisou se apoiar na parede
para controlar a ânsia seguinte. — Um erro... — Rhenna repetiu e tentou
seguir em frente, incapaz de dar um passo sem cambalear.
...e ela caiu de novo.
Yanaamahka a amparou.
— Eu quero a verdade.
— Estou pagando o preço pela minha ousadia se desafiar os deuses. —
a draconiana estava gelada. — Yanaamahka. Eu quero que saiba que
embora nossa essência seja a vida, não podemos mudá-la. Não podemos
brincar com os mortos, não podemos... abraçar os mortos.
Rhenna agarrou a mão da estrela e as chamas azuis reagiram em seu
interior. Passado. A Estrela conhecia a sensação: era o passado que veria,
experimentaria. Mas não o dela, nunca o dela, e sim o da mulher a sua
frente.
Yanaamahka respirou fundo e sentiu.
A jovem urrou entre as quatro paredes. A dor era insuportável; estava
quebrando seus ossos, estava rasgando suas entranhas e roubando seus
batimentos. A draconiana gritou entre lágrimas, o rosto vermelho —
sozinha naquele quarto escuro, naquele dia chuvoso. Era uma menina,
treze anos, enfrentando a dor de um parto sem ninguém para lhe amparar;
e ela não chamou por ninguém. Resistiu as sensações, resistiu ao mundo, e
rezou para que a criança deixasse seu corpo, libertando-a do sofrimento.
Ela empurrou, empurrou, ajoelhada sobre a cama manchada de sangue e
suor. O marido estava em viagem, os trovões abafavam sua voz e os criados
não a ouviam.
Rhenna, porém, lutou sozinha; e quando sentiu a criança lhe deixar o
ventre, chorou lágrimas de felicidade. Sua criança. Seu primogênito. O
pedaço dela.
...que não chorou.
A recém-nascido chegou ao mundo em silêncio.
Sem respirar. Morto.
Ela o agarrou entre os braços finos, sangue se misturando entre os
lençóis e as roupas; e chamou por ele, um menino de cabelos negros, sem
nome, sem vida; e a insistência dela em fazê-lo reagir foi em vão. A
criança, porém, não acordou. Seu primeiro filho estava morto — e talvez
estivera morto muito antes de chegar àquele mundo corrompido. Rhenna
gritou, amaldiçoou todos, os deuses, os draconianos, os homens que a
obrigaram casar cedo demais e ter uma criança cedo demais. Homens que
forçavam meninas a um destino cruel... homens que a destruíram.
Ela amaldiçoou também a essência que corria em suas veias.
Se ele era a vida por que dera a morte?
“Traga meu filho de volta!”
Se ele era a vida por que não deu vida?
“Mahoutsukai!” a menina gritou entre lágrimas. “Traga meu filho de
volta! Eu ordeno que o trague de volta!”
Mahoutsukai. Mahoutsukai. Mahoutsukai.
“Pegue meu coração, meu corpo... minha vida, mas o traga de volta!”
...e o Fogo de Safira se materializou após um trovão, a imagem da
deusa se formando entre as chamas
Tu sabes o que estás pedindo, herdeira? A morte não pode ser
alterada.
“Esse é a minha essência e eu ordeno que você dê vida a ele!”
Tua ignorância será tua perdição e o teu preço é a vida que tu achas
comandar. Eu o trarei de volta... mas tu nunca serás a mãe dele e a tua vida
serás minha... um dia.
A conexão se quebrou e a Estrela da Noite buscou normalizar seus
batimentos. Ela nunca se acostumaria com aquela capacidade: ver o passado
de desconhecidos e não o seu. Tiggrë disse ser uma capacidade da essência,
porque o fogo queimava no passado, mas não havia nenhuma relação do
fragmento que Rhenna mostrara. Pelo menos não com a vida dela.
Seria um aviso?
Não se pode brincar com os mortos.
A morte não pode ser alterada.
Eu o trarei de volta.
...e uma flecha passou de raspão pela bochecha de Yanaamahka.
Um filete de sangue escorreu. Longe, semblantes adversários se
revelaram. Ela se perguntou como não sentira o cheiro do inimigo se
aproximar. Estremeceu. O próprio esgoto ocultara a presença adversária, o
odor de ferro e fogo que tanto temia e odiava. Yanaa não seria capaz de
enfrentá-los, não com a draconiana fora de condições; e fugir era sua única
detestável alternativa.
Fugir como?
Rhenna era pesada e grande. Yanaamahka era leve e pequena.
Mas era um dragão.
A Estrela analisou a estrutura do esgoto. Era espaçoso. Seu corpo
verdadeiro não tinha mais que dois metros e poucos centímetros, poderia
não ser capaz de erguer as asas, e não teria como tendo uma quebrada, mas
seria o suficiente para escapar dos inimigos.
— Sabe o caminho? — a Estrela da Noite perguntou.
— No que tu estás pensando?
— Só me guia.
Fora um alívio imediato mudar de forma — as escamas negras
surgiram nas sombras dos esgotos e os olhos dourados iluminaram o
caminho. No entanto, a sensação, o bem-estar de seu corpo verdadeiro...
nada a fizera estremecer como o movimento sutil que a sua asa quebrada
fizera.
A asa quebrada...
Yanaamahka estava sentido!
Ela arqueou o pescoço e tentou movê-las para o alto — embora sequer
soubesse como voar —, a direita se levantou, a esquerda, destruída no
passado pelo ceifador, vibrou. A dor viera em seguida, no mesmo memento
que a membrana se ergueu a centímetros do chão. Yanaamahka sentiu tudo;
cada pequena sensação que corria pelo membro, o sangue, o osso.
A asa estava se recuperando.
Ela voaria de novo como Tiggrë prometera. A vontade de vê-lo
aqueceu o coração dela e a fez flexionar as patas dianteiras, seu corpo
estava maior e mais alto desde a última transformação.
— Sobe. Rápido. — e grunhiu entre os dentes.
Rhenna o fez quando uma segunda flecha foi disparada, revelando,
enfim, o semblante dos adversários: Demétrius, Hanzor e dois outros
homens.
Yanaamahka, porém, ajeitou as patas e disparou em frente, as asas
coladas contra seu corpo. Ah, o gosto da liberdade que sentia em sua
verdadeira forma era estonteante, sentia-se viva mesmo com todo o vazio
de seu peito. A Estrela da Noite correu, atravessou a longa passagem,
destruindo os restos de qualquer lixo jogando naquele lugar. Depois, suas
patas deslizaram, entrando por um caminho mais estreito entre os demais.
Ouviu a draconiana murmurou em suas costas, estava conversando com
alguém, Mahoutsukai provavelmente; e cada palavra proferida fazia o fogo
interior da estrela rugir descontrolado.
A sutil presença de Rhenna estava atiçando o poder dela.
Se unindo ao dela.
Tornando-se um.
Duas flechas foram disparadas na direção dela e a fêmea inclinou a asa
esquerda, ganhando impulso para a direita. As lâminas passaram de raspão
pela membrana, e teriam acertado se Rhenna pesasse um quilo a mais. A
draconiana era pesada, e Yanaamahka nunca carregara ninguém em suas
costas — não era uma montaria —, mas precisou seguir todas as instruções
da guerreira no labirinto de passagens que o esgoto tinha.
Corra!, dizia Yanaamahka a seu corpo, seu fôlego, mas uma velha
inimiga a assombrou: a incapacidade de controlar suas transformações.
Suas escamas estremeceram, desejando mudar, ousando arrancar os
resquícios de resistência que tinha. Não ouse!, grunhiu, mas não foi
atendida. A forma de dragão fora substituída abruptamente: mulher e
mulher-dragão foram lançadas ao chão de forma violenta, chocando-se em
uma parede coberta por musgo. Rhenna gemeu, Yanaamahka praguejou —
e os draconianos a alcançaram logo em seguida, sedentos por sangue.
Demétrius não esperou que elas se levantassem: sacou as espadas gêmeas,
lâminas de safira, e correu contra a Estrela da Noite no chão. Hanzor e os
outros guerreiros, no entanto, mantiveram-se parados, abismados demais ao
verem que a primeira-general estava junto da prisioneira.
Yanaamahka se recuperava da leve tontura quando escapou da
investida draconiana. Ela rolou no chão, defendeu-se do segundo golpe; e se
levantou com dificuldade. Estava indefesa, seu maldito corpo insistia em
mantê-la presa naquela forma fraca; e na fúria do terceiro golpe, enquanto o
desviava, a Estrela da Noite recebeu o peso do punho adversário no rosto.
Ela foi arremessada, o sangue se misturando ao vento, enquanto o ceifador
berrava para os companheiros não se intrometerem. A lâmina azul dele
brilhou então, os olhos heterocromáticos desejando o fim e a espada
atravessando a carne. Não a dela: Rhenna se colocou contra Demétrius e
recebeu o golpe no canto das costelas.
Os guerreiros gritaram.
Hanzor gritou.
Yanaamahka estremeceu.
— Que movimento inútil. — Demétrius disse entre os dentes.
O sangue de Rhenna escorreu; ela, porém, não demonstrou nenhuma
dor, nenhum arrependimento.
Uma estranha se colocara na frente dela.
Uma estranha a defendera.
Por um momento, Yanaamahka se recordou de um sonho que tivera.
Nele, perguntara se sua matriarca a odiava e Nahemidraal respondeu que
não, embora a escuridão estivesse cobrindo suas feições. A verdade, então,
transformou aquilo em ilusão. Não foi sua mãe que respondeu — e, sim,
Rhenna, quem a salvou de Belpheggör, quem a abraçou quando estava
perdida entre a dor e o delírio.
...e Yanaamahka soube como era ter uma mãe.
Mesmo que por uma fração de segundos.
— Tu não... não vais matá-la! — e a draconiana caiu de joelhos quando
o homem arrancou a espada das entranhas dela. Ninguém soube de onde
Rhenna tirara força para se levantar e bloquear o avanço de Demétrius. Ela
grunhiu e manobrou a arma, as lâminas tilintaram no calor do deserto.
Mas cada golpe tinha uma consequência: o chão estava vermelho.
Hanzor não interveio. Nenhum dos homens se moveram.
Quem ousaria se por entre dois generais draconianos?
Rhenna desferiu uma série de golpes pesados, resistindo a dor e a
fadiga, forçando o ceifador a recuar. Ela dançava com a lâmina em mãos, as
investidas eram precisas, ágeis, uma draconiana forjada com aço e sangue;
indiferente a todos os ensinamentos de submissão que a raça obrigava suas
mulheres. Yanaamahka desejou aquela perícia, não com espadas, mas com
garras, escamas e fogo. Demétrius se defendeu de todos os ataques, não
demonstrara dificuldade; e na investida final, o draconiano desarmou a
general com uma manobra de suas espadas duplas. Ela não resistiria se o
inimigo a acertasse de novo.
A espada caiu nos pés da estrela.
Não a deixe morrer!
Mahoutsukai gritava na consciência de Yanaamahka.
Se transforme!, dizia, mas o corpo dela estava instável, a
transformação distante.
Yanaamahka praguejou e se pôs em pé — ela não a deixaria morrer,
prometera não deixar mais ninguém morrer para salvá-la. Shurgakian
morrera, o primeiro dragão que lhe salvou dos draconianos; Tiggrë quase
morreu, o menino que enfrentara a fúria do ceifador; e Rhenna morreria, a
draconiana que lhe transmitia a sensação materna ausente por tantos anos.
Ela se levantou urrando.
...e dois rugidos irromperam pelos esgotos: o de Yanaamahka, ela
saltou e colidiu contra o draconiano inimigo; e o do dragão azul, ele
destruiu a superfície e mergulhou na escuridão que eles se encontraram. A
luz do entardecer iluminou o interior, ressaltando as escamas negras da
Estrela da Noite.
O impacto contra o draconiano fora ligeiro. Demétrius conseguiu
escapar dela com uma pirueta executada depressa, o que acarretou em um
tombo desajeitado. Os outros dois guerreiros, equipados com flechas,
apontaram na direção dela, mas não chegaram a disparar: as chamas azuis
irromperam pela passagem e o corpo de ambos foi queimado.
Demétrius e Hanzor escaparam — o primeiro brandiu sua espada de
safira, bloqueando as chamas com o poder da lâmina; o segundo saltando
em uma direção contrária. O dragão azul, embora precisasse se manter
encolhido dentro da estrutura, não esperou a reação dos inimigos. Ele
arqueou o pescoço longo e bateu os chifres contra as pedras do teto; areia e
poeira caíram, depois, um deslizamento de concreto, separando dragões de
draconianos. A escuridão os cobriu de novo: Yanaamahka percebeu que o
dragão — Klud — não queria escapar pela superfície e, ao se transformar
na imagem humana, gesticulou para o caminho que se seguia além nas
profundezas da cidade.
Rhenna continuou no chão, arfando, pressionando o ferimento. O
sangue dela se misturou a água suja; e o corte provavelmente infeccionaria
com a podridão.
Precisavam escapar.
Klud se aproximou de Yanaamahka, os olhos fechados, a cabeça baixa;
e ela não soube como se pronunciar. O homem-dragão era alguém que não
cumprira uma promessa. Ele era alguém que a esquecera e que ela também
esqueceu; logo, porque haveria de ser importante?
— O que tá fazendo aqui? — foi tudo o que ela conseguiu perguntar.
Ele, porém, desviou a atenção para a draconiana ferida.
— É melhor tratar ela primeiro.
— Eu não...
— Eu posso fazer isso! — e a voz infantil os alcançou. Tiggrë surgiu
na escuridão do esgoto, parte do corpo umedecido, carregando sua pequena
sacola de medicamentos.
Yanaamahka sentiu o coração se acalmar.
Eles podiam finalmente escapar.
As perguntas, como dissera Rhenna antes, ficaram para depois.
C A P Í T U L O C I N Q U E N TA E U M

D O V E N T O À T E M P E S TA D E

ERA DIFÍCIL CONTER AS LÁGRIMAS — a dor, o medo, cada centímetro de


terror que avançava pelas entranhas da draconiana.
Mas a mão de seu guardião estava agarrada a dela.
Eun-seo sempre a protegera, sempre a protegeria. Ele era o pai que
nunca teve e sempre desejara. Alguém para lhe abraçar em noites frias e lhe
contara histórias sobre os deuses, deusas e o mundo. Era esse o motivo que
o fazia seguir em frente, evitando os guerreiros que percorriam as ruas da
cidade para evacuar os habitantes. A área central estava um caos, a torre
leste do palácio, onde a Sala do Trono era localizada, estava despedaçada
com o dragão pendurado nela. Ele era imenso — era a primeira vez que
Luna encontrava uma criatura escamada. Tudo o que sabia deles vinha de
livros e os ensinamentos de sua ama de leite. Vê-lo, rugindo para os céus,
causou calafrios constantes.
Ninguém desconfiara dela ou do guerreiro durante o percurso. Ambos
escaparam da residência dos Krimnell pouco após o ataque do dragão
negro, atravessaram o jardim, cruzaram os portões e percorreram a longa
passagem que os levaria a praça central. Lunaysis tentou ignorar as pessoas
que gritavam, que morreriam, crianças perdidas entre as destruições. Era
também a primeira vez que presenciava tamanha violência e destruição. No
passado, durante a Guerra do Colosso Negro, ela estava trancafiada em uma
cidade distante da capital e não esteve presente quando o Dragão dos
Dragões varreu a cidade. No presente, porém, era possível ter um pequeno
fragmento do que a guerra significava — e porque os draconianos caçavam
os dragões desesperadamente.
Guerra. Morte.
Era o que ela precisava enfrentar para sobreviver.
Para que sua menina nascesse.
Eles alcançaram a praça central — o castelo — e Eun-seo a escondeu
entre escombros. Não por causa do dragão, este parecia ocupado demais
com metade do corpo enfiado na Sala do Trono, mas por causa dos
guerreiros em prontidão em frente ao castelo. Armados. O pior, porém, era
a figura silenciosa do comandante dos Cavaleiros Negros. Ahuriel fez um
sinal com o braço, depois outro e, por último, exclamou atirem àqueles que
seguravam seus arcos. Flechas foram disparadas, eram mais de cem,
acertando as escamas negras do dragão. Cem disparos que sequer foram
capazes de causar ferimentos.
O dragão era grande demais. Ele os esmagaria.
— Eles estão ocupados. — Eun-seo murmurou ao lado dela. —
Passaremos por eles e chegaremos aos portões da saída sul, onde
seguiremos para o porto, tudo bem? Vou levá-la para Castora, minha
senhora.
Luna assentiu — porque era tudo que conseguia fazer.
Ela pensou em Hyun-seo e Hanzor. Pediu ao vento que os protegesse...
e ela também não encontrou Rhenna entre os demais; e rezou que a
draconiana estivesse bem e viva. Todos precisavam estar.
Eun-seo fizera menção de avançar, mas um estrondo repentino o fez
parar: o dragão despencara da estrutura do castelo. Ele caíra de costas, as
patas para o céu, rugindo contra aqueles que o enfrentavam. Ahuriel berrou
para os guerreiros se afastarem, muitos, porém, foram pegos desprevenidos
e foram esmagados pelas incontáveis toneladas do gigante. Sangue, então,
manchara as flores de Sopoente, arrancando parte da beleza do palácio.
Estátuas de Sunyar foram destruídas, obras pintadas nas paredes
sucumbiram e inocentes morreram diante a fúria do colosso.
Os ventos da esperança sussurraram uma entonação entristecida e Luna
lacrimejou: o dragão iria matar todos. Eles não o venceriam, dissera Eun-
seo ao destacar o nome do oponente. Hieronymus Draconis, um líder
sedento atrás de sua estrela. Todos morreriam, Solnascente cairia como
Aumas caiu no passado para o Dragão dos Dragões; e a população
sobreviveu apenas porque, misteriosamente, o inimigo levantara as asas e
desaparecera no horizonte.
A mesma sorte não aconteceria duas vezes.
Ahuriel correu e saltou sobre seu cavalo quando o dragão se recuperou,
as asas dele se ergueram contra o céu; inclinando o pescoço; segundos
depois, labaredas vermelhas foram lançadas contra os guerreiros — quase
vinte foram queimados, incapazes de escapar. Homens gritaram em
sincronia, uma dança selvagem de corpos em fogo de dragão, intenso a
ponto de fazer a temperatura do deserto, sempre efervescente, alcançar
níveis desumanos.
O comandante Krimnell cuspiu ordens — ele se manteve firme no
campo de batalha apesar das inúmeras baixas. Ahuriel não fugiria, ele
levaria todos os guerreiros para a morte se fosse o necessário para defender
a população. Apesar do conservadorismo doentio, das tradições sólidas que
carregava no peito, o draconiano não se afugentou e se colocou diante a
morte, os cabelos prateados, olhos azulados, destacando-se na luz do sol.
Lunaysis observou o marido e o analisou, instantes pequenos, refletindo se,
talvez, Ahuriel pudesse ser um homem diferente caso não estivesse
corrompido pelo império.
— Lunaysis. — Eun-seo a chamou e pediu que ela o seguisse. Ele se
esgueirava contra os escombros, atento para não ser visto pelos guerreiros e
o comandante. Ela, porém, não conseguia dar o passo seguinte. Eun-seo
olhou para trás, para ela; depois, para onde ela observava: Hyun-seo estava
presente no campo de batalha contra o gigante. Lutando ao lado da raça que
queimara sua mãe viva e grávida. O jovem não os perdoaria, mas tinha
consciência de que somente aqueles capazes de seguir em frente,
esquecendo a vingança, mereciam um lugar ao sol.
Ela se viu chorando de repente.
Por aqueles que lutavam. Por aqueles que sobreviviam. Por aqueles
que morriam.
Por todos. Mas por que se importava tanto por aqueles que não
mereciam seu sentimento de compaixão?
Porque sou a esperança, Misairuzame respondeu amorosamente,
Somos a esperança; e os homens ao acreditar nisso, acreditam em mim.
Todos acordamos dia após dia com a esperança de um amanhecer melhor.
O mundo, embora corrompido, vive esse ciclo interminável de esperança.
“Eu entendo.” Luna respondeu mentalmente o observou os guerreiros
que lutavam.
Homens bradaram, os arcos firmes. Seria coragem que os movia? A
nobre intenção de salvar a cidade. Ou o ódio? A inimizade perante a
criatura que eles consideravam uma praga? Quantos ali, empunhando seus
arcos, possuíam família? Alguém que esperasse pelo retorno deles. Luna se
lembrou, entre o calor da batalha, quando seu tio, Hiborym rön Vanadis,
morreu: a família dele se estilhaçou. Elleonora, mulher dele, tentara se
matar duas vezes; Hanzor, filho dele, prendera a alma para a vingança;
Sorin, pai dele, exilou-se. Todos o amaram e sofreram; e um amor
semelhante, uma conexão frágil como a vida, poderia fluir entre os
presentes naquele momento.
Se um pai morresse, um filho buscaria vingança.
Então, um ciclo sem fim de dor e sofrimento se formaria.
Faça tua escolha, herdeira da esperança.
Esperança era o que movia os homens — o mundo.
— Misairuzame... — Luna sussurrou, não para acender os ventos ao
redor, mas para mostrar que entendia e aceitava o que seu poder significava.
Só que o nome também acendeu a localização dela para o dragão.
O gigante inclinou o pescoço para o alto e moveu o olhar dourado.
Para ela.
Luna sabia o que significava.
— Herdeira de Misairuzame. — a voz do dragão era gutural; e termo
dele tamborilou entre pedras, destroços, escombros e draconianos. Um
minuto de uma paz repentina e todos olharam na direção dela.
Incluindo o comandante.

Disparem!
As flecham avançaram como um mar negro de lâminas incandescentes.
Acertaram a carne inimiga e desapareceram entre as escamas como
pequenos fragmentos de derrota. Era inútil, concluiu o comandante. Era um
dragão grande, assustadores vinte metros de altura e incertos de largura; as
asas dele eram membranas longas como a noite e a cada ruflar, a escuridão
cobria o céu. Os draconianos não estavam acostumados a enfrentar uma
criatura daquele tamanho, com aquele poder de destruição. Caçavam
Estrelas da Noite, espécies menores e menos destrutivas. Não um Primeiro
Dragão — não um líder. O gigante, porém, não tinha idade avançada. A cor
das escamas era um preto vivo, brilhante, diferente das cores opacas e
ancestrais do Dragão dos Dragões.
Ahuriel observou com cuidado a fisionomia do inimigo. Cem anos,
talvez mais; ainda assim, perigoso o suficiente para destruir a cidade inteira
se não fosse parado. As flechas não teriam efeito com ele — nenhum
veneno o imobilizaria ou o transformaria em humano. Mas o comandante
precisava tirar o gigante da Sala do Trono. Derrubá-lo-ia: o dragão estava
pendurado na estrutura do castelo e suas garras enormes estavam enfiadas
no concreto. Era o equilíbrio dele.
Se as flechas acertassem aquela estrutura, ele cairia.
O comandante saltou sobre seu cavalo e cavalgou frente a linha de
arqueiros preparados para o próximo comando. Todos estavam reunidos no
jardim do palácio, entre escombros e flores mortas. A população daquela
área fora evacuada pelos Guerreiros do Sol, eles a levaram para os distritos
não afetados pelos terremotos do dragão; outros, protegeram os príncipes,
restando aos draconianos enfrentar o adversário. O rei estava na Sala do
Trono, disseram os combatentes, mas Ahuriel acreditava ser tarde demais
para o soberano. Infelizmente, não puderam salvá-lo. Salvariam, porém, a
cidade.
— Mudem o alvo! — berrou o comandante sobre seu cavalo, as
madeixas trançadas escorriam sobre sua armadura como prata derretida. —
Atirem contra as patas! Derrubem-no!
Cem flechas foram disparadas sob a luz do pôr do sol.
Furiosas. Velozes. Muitas delas acertaram as juntas do dragão, mas a
maioria encontrou as paredes do palácio. O inimigo rugiu, arqueando o
pescoço para trás e levantando as asas; depois, mais um disparo
sincronizado. Parte da estrutura cedeu, outra se despedaçou com o peso
excessivo da criatura.
O dragão caiu, cuspindo fogo para o céu.
Ahuriel bradou para que todos se afastassem e os draconianos se
moveram depressa. O impacto fizera a terra estremecer, escombros se
formaram e estátuas se despedaçaram ao redor do palácio. As ruinas de
Sopoente, construído há quase quinhentos anos, era uma imagem que os
humanos não esqueceriam — a mesma imagem que os draconianos
presenciaram com a queda de Aumas doze anos antes, passado este que se
repetia pelo fogo de um Primeiro Dragão. Enfurecida, a fera se levantou e
arqueou o pescoço para frente, a boca de dentes recortados se entreabriu ao
lançar o calor do sol contra todos.
— Protejam-se! — vociferou o comandante.
Fogo de Primeiro Dragão.
Muitos draconianos foram enganados pelas chamas.
Arderam. Gritaram. Morreram. Outros, no entanto, encontraram
escudos improvisados entre os pedaços destruídos do castelo. Ahuriel se
colocou entre os guerreiros e observou o inimigo. Precisaria de um plano
para vencê-lo, um modo de fazê-lo recuar tempo o suficiente para que os
reforços chegassem.
Ele olhou para o palácio, olhou para o jardim, olhou para os
escombros.
Mas não encontrou nada.
— Comandante! — a voz de Hyun-seo soou entre os demais. —
Precisamos de algo mais pesado que flechas para causar dano nele. Algo
que podemos acertá-lo com pouco esforço.
Ahuriel estudou as possibilidades: o dragão caíra ao lado do castelo e
outros pedaços da estrutura sólida estava pendurada no concreto. Um
pequeno tremor e o resto desmoronaria; contudo, um grande tremor
derrubaria a torre da Sala do Trono contra o inimigo.
Ele só precisava ficar parado.
— Mantenham o dragão imóvel... — o comandante segurou firme as
rédeas de seu cavalo. A besta estava estranhamente parada, esperando. Suas
asas alongadas se equilibravam no vento do deserto. Estava tramando, era
um líder e não se deixaria vencer por draconianos. Ademais, o olho da
maldição. Ahuriel sabia o quão perigoso poderia ser a fera escamada. Mas
ele não poderia esperar mais, era a única ideia que tinha. — Atirem! —
ordenou e esporeou o animal, galopando na direção do castelo em ruínas.
Os guerreiros bradaram e prepararam suas flechas.
As primeiras foram lançadas como uma distração para o gigante, uma
distração para que ele ignorasse o comandante que cavalgava.
Mas ele não ignorou.
O dragão rugiu e chicoteou os escombros com sua cauda: pedaços de
pedra foram lançados contra os arqueiros enquanto o gigante se posicionava
para atacar o homem sobre o cavalo. Draconianos que receberam o peso do
concreto jogado, despedaçaram-se, sangue manchou a areia e outros
guerreiros gritaram para que evacuassem. Hyun-seo quem os manteve
unidos, a coragem restaurada perante o adversário que se preparava para
atacar — e não eles. Mas Ahuriel. O comandante só tivera uma fração de
segundos para agir, sequer pudera praguejar: ele gritou para o cavalo e,
depois, saltou, soltando as rédeas e deixando o animal ser pego pelas
chamas de sangue.
Ahuriel rodopiou no ar e caiu desajeitado sobre parte da estrutura do
palácio; e esta cedeu, derrubando-o entre fragmentos de pedra e estatuas
despedaçadas. Sangue escorreu de um corte em sua bochecha. Sangue que o
inimigo controlaria se visse. Limpou o ferimento depressa e o pressionou
com a luva para conter o sangramento. Suor escoria de suas têmporas, a
trança havia se desfeito e as longas madeixas prateadas dançavam sobre sua
armadura negra.
A estrutura ao redor dele tremeu de repente.
Comandante!
A voz de um dos guerreiros o fizera levantar o olhar: o inimigo estava
diante dele, presas a mostra, o fogo prestes a ser lançado. Ahuriel, porém,
não se deixou morrer nas garras de um dragão. Ele rolou entre os
escombros e se jogou na tênue proteção de um concreto despedaçado da
Sala do Trono — e nessa atitude a risada sombria de uma mulher ecoou na
cabeça dele.
As chamas não foram lançadas pelo gigante.
Ele levantara o focinho para o outro lado da praça.
— Herdeira de Misairuzame. — dissera de repente.
Ahuriel moveu os olhos na mesma direção.
Ele a viu.
Lunaysis?, seus lábios não se moveram.

Eles a descobriram. Eles a matariam.


Eles... Eun-seo a agarrou por um braço e se colocou na frente dela. A
espada empunhada com a coragem que corria por suas veias. A expressão
de todos era uma incógnita; o dragão, porém, ignorando qualquer homem
ou inimigo que o cercava, manteve o focinho inclinado na direção dela.
Surpreso. Maravilhado. Luna nunca imaginaria que um gigante escamado a
reconheceria. Não em um campo de batalha, cercada por draconianos que a
sentenciariam. Vamos!, Eun-seo a puxou depressa, preocupado, mas a moça
parecia estar com os pés grudados no chão.
Era Misairuzame que a prendia.
Não quero machucá-la, Luna o ouviu dentro de sua cabeça.
Eram palavras sussurradas da fera que a encarava. Ela olhou para ele,
para os guerreiros espantados demais para agir. Mas a eles sim, e antes que
ela pudesse respondê-lo, o dragão se lançou contra o céu em chamas. Suas
asas provocaram uma tempestade de vento, o rugido reverberando entre as
nuvens. Depois, girando no ar, como uma mancha de escuridão, encarou a
cidade, a praça central e o palácio, com o enorme focinho entreaberto. Ele
diria algo, era o que o vento dela sussurrava. Talvez uma trégua, uma troca,
a salvação. Luna nunca saberia: porque uma flecha de sangue o acertou
diretamente no olho esquerdo.
Maetsumina!
...e a voz do segundo-general Belpheggör ecoou no campo de batalha.
Ele manipulou todo o sangue dos mortos e criou uma estaca cristalizada:
vermelha como os olhos que queimavam em sua expressão. Uma sinfonia
de dor bestial atravessou a cidade. Junto dela, então, os guerreiros no
comando do Vanadis avançaram. Eram os reforços; e traziam catapultas
enormes desenvolvida pela engenharia humana. Fogo!, bradou o general e
esferas banhadas em um líquido negro foram lançadas. Das três, duas
acertaram a criatura escamadas que despencou e colidiu no chão como um
meteoro incandescente.
O impacto fez o chão tremer.
Poeira se ergueu no deserto e cegou todos, baixando pouco mais que
dez segundos depois; e, para a surpresa dos homens, as escamas negras do
adversário desapareceram. O dragão desaparecera. Guerreiros praguejaram,
outros bradaram encorajados a encontrá-lo: uma marca de sangue no chão,
no lugar que o gigante atingiu, revelavam as condições dele. Estava ferido.
Vulnerável. Parcialmente cego. A ocupação dos draconianos era a
oportunidade de Luna e seu guardião escapar despercebidos. Ela tossiu
diversas vezes, suas mãos tremiam por alguma fadiga que a alcançara de
repente. Luna sabia o que significava: usara a essência que não lhe
pertencia para assassinar um homem e, agora, precisava lidar com as
consequências daquele ato.
Eun-seo a puxou, mas uma flecha passou de raspão pelo rosto dele.
O comandante Ahuriel segurava o arco e o general Belpheggör
observava com uma expressão quase dramática. Os demais guerreiros
haviam seguido pela possível direção que o dragão teria escapado, mais
ninguém permaneceu no campo de batalha.
— Minha adorada filha. — a voz do general entonava de um
sentimento tão encenado que parecia verdadeiro. — Eu nunca imaginaria
que fosse uma mulher amaldiçoada. Confesso que estou surpreso e, ao
mesmo tempo, decepcionado. Foram dezenove anos e eu nunca percebi.
Porque ele nunca se importara em perceber.
Tanto a essência como qualquer outro pequeno detalhe da moça. Eun-
seo se colocou na frente dela. Ahuriel, porém, manteve-se quieto,
empunhando o arco. Um passo em falso e ele lançaria outra flecha.
— Tu compartilhaste a cama com uma Mulher Amaldiçoada por quase
seis anos, querido comandante. Como nunca percebeste? — Belpheggör
arqueou as sobrancelhas ao sorrir. — Não me diga que se apaixonou?
— Se eu soubesse a verdade teria matado essa desgraçada.
As palavras do homem teriam, de fato, a matado se ela não guardasse
uma indiferença forçada por ele. Ahuriel nunca a amaria ou se apaixonaria,
era tola de ter acredito que ele poderia se importar ou mudar se tentasse, se
fosse manipulado. A esperança, porém, a instigava.
Ele poderia não ser capaz de amá-la.
...mas poderia, um dia, enxergar a corrupção do próprio povo.
Um dia.
— Suponho que precisamos matá-la, não? Que pena. Uma draconiana
tão linda. Mas a culpa é minha. — e o draconiano colocou a mão no peito.
— Se eu houvesse lhe matado ao nascer... poupar-te-ia de todos esses anos.
Lágrimas escorreram dos olhos dela.
— Você não é meu pai.
Belpheggör sorriu.
— Tu podes matá-la como quiser, querido comandante. Eu preciso
encontrar meu sobrinho agora. Ah! Não se esqueça de arrancar o braço dela
antes. Estou realmente curioso quando a marca dela.
Ahuriel não disparou a segunda flecha: ele lançou o arco contra o chão
e desembainhou a montante. Ele realmente a mataria como ordenara o pai
dela. O comandante, porém, não os alcançou. Estando a quase um metro de
distância da draconiana, um súbito vento se manifestou e o lançou para trás.
O corpo do homem deslizara no chão, aos pés do general que se afastava.
Belpheggör olhou para trás, surpreso; e uma parede invisível de ar
esmeraldino bloqueou o avanço de ambos os guerreiros.
— O que você fez? — Eun-seo perguntou espantado.
Luna segurou firme a mão de seu guardião, um filete de sangue
escorria pelo nariz dela.
— O vento nos protegerá. — ela respondeu; e, então, correram
enquanto comandante e general esperavam a barreira se dissipar.
— Eu quero a cabeça de ambos. — Belpheggör disse por fim.
Ahuriel assentiu e os seguiu.
C A P Í T U L O C I N Q U E N TA E D O I S

VOCÊ ESPERA POR AMOR,


N Ã O P O R S I M P AT I A

LUNAYSIS CORREU COMO NUNCA.


Sem lágrimas — elas secaram e desapareceram quando o comandante
avançou contra ela. Para matá-la. Ele era como todos os guerreiros cegos
pelas tradições retrógadas da raça: simplesmente não se importava se a
mulher carregava uma criança ou não. Mataria mesmo assim.
Luna deveria ter fugido muito antes.
Eun-seo seguia na frente com a mão sobre a dela. Eles atravessaram as
passagens que interligavam os distritos como se fossem raios solares em
torno do palácio. A destruição era amena naquelas áreas, pessoas espiavam
entre seus esconderijos com olhos arregalados e outras, homens corajosos,
ousavam deixar a segurança de suas casas para se certificar que o dragão
desaparecera. Enquanto corria, Luna observava os humanos. Pais protegiam
suas crias. Mães abraçavam seus pequenos. Humanos eram seres que
tinham o sol no peito, costumavam dizer os escritores apaixonados.
Compaixão, um sentimento tão doce e cheio de luz que a draconiana se
perguntava porque não nascera naquele mundo. As mulheres não eram
obrigadas a se casarem cedo; poderiam não ser livres — porque a liberdade
era uma farsa —, mas tinham mais de uma escolha. Poderiam se tornar
servas de Sunyar nos templos ou se juntar as curandeiras do exército.
Draconianas não. Só podiam casar. Alcançar o império, como Rhenna
fizera, era tarefa árdua e dolorosa. Luna nunca conseguiria.
Esperava que o Estado Independente de Castora fosse diferente. Era a
única região em Aumastris que não se juntara ao império e as leis do
imperador. Era comandada por rebeldes. Duar vyr Duan, na linguagem
nobre, ou Fé Despedaçada na comum. Cultivavam uma entidade chamada
Castor, deus-menor tão sombrio quanto a Noite Eterna dos Nothumbrianos.
Só que todos continuavam sendo draconianos.
Poderiam não ser diferentes. Poderiam ser pior.
Como Solnascente tinha o formato de um sol em sua extensão, ambos
precisaram escolher o caminho com cuidado. Se pegassem uma passagem
errada, estariam presos em um paredão extenso e sem saída. A única era por
um distrito chamado Poeira, no extremo sul. Lá, como mencionara Eun-
seo, encontrariam caravanas rumo ao porto dos estrangeiros que vieram
para as Festividades de Sunyar, canceladas com o ataque repentino. Seria a
única forma de atravessarem o Grande Deserto. Sem isso, pereceriam nas
areias hostis. Eun-seo a fez parar de repente e caminhar devagar, próximos
à um grupo de guerreiros. Não eram draconianos. Estavam na fronteira do
distrito, guardando a passagem para que nenhum dos indigentes, pedintes
ou desabrigados deixassem o lugar; e nisso Luna percebeu que apesar das
culturas diferentes, da compaixão, homens eram iguais em todos os
continentes: impedindo que os mais pobres se juntassem aos mais ricos.
— Não solte minha mão, minha senhora. — Eun-seo sussurrou. Eles
não poderiam se passar como pobres ou mendigos. Só o manto que Luna
usava, ornamentado por rubis nas bordas, era mais caro que todo o
comércio de Poeira. A armadura do cavaleiro também; e ele tinha uma
espada. Ela esperava que as notícias sobre o assassinato de Kaelus e a fuga
da senhora Krimnell, uma amaldiçoada, não houvesse chegado até eles.
Os guerreiros pediram que ambos parassem.
— Identifiquem-se! — bradou um deles.
— Cavaleiros. — Eun-seo colocou a mão sobre o cabo da espada. —
Eu e minha senhora, Lady Krimnell, viemos para buscar serventes. O
ataque do dragão destruiu parte da residência e precisamos de homens para
consertá-la. — a calma de Eun-seo surpreendeu a moça. Ainda assim, as
mãos ásperas dele suavam.
— É verdade que o dragão foi derrotado? — um deles perguntou com
entusiasmo.
— Sim... o general Belpheggör, pai da minha senhora — e ele fez
questão de apresentá-la. Os olhos vermelhos dos Vanadis eram familiares a
todos. — quem o derrotou. Dizem que ele fugiu depois. Então tomem
cuidado, homens, qualquer movimento suspeito, avisem o comandante de
vocês.
— Entendido. Tomem cuidado na Poeira. Os humanos estão
assustados. Os tremores causaram alguns estragos também.
Eun-seo assentiu e os homens deram espaço para que eles passassem.
A entrada era simplória, entre duas estátuas fragmentadas, talvez pelo
terremoto, de Sunyar. O muro ao redor era tão alto que Luna quase se sentiu
sufocada ao não encontrar o horizonte. Eram como se estivessem presos
dentro de um matadouro, condenados a nunca saírem.
— Minha senhora. — o guerreiro sussurrou ao lado dela enquanto
caminhavam. Luna estava tão assustada que não conseguia expressar
reação. Ela respondia aos movimentos de seu guardião de forma
automática. — Está tudo bem. Chegaremos a saída sem que nos encontrem.
— Eles vão parar de nos perseguir um dia, Eun-seo? — a voz dela saiu
estremecida.
O draconiano parou e a observou com um olhar carinhoso.
— Eu não sei, minha senhora. Mas eu vou estar ao seu lado, prometo.
Juramentei minha espada a você quando era uma menina. Então não se
preocupe, Lunaysis. — e ele a acariciou entre os cabelos. Lágrimas
escorreram pelo rosto dela, tocada pelo carinho e dedicação. — Quero levá-
la para a segurança do meu clã em Castora.
— Eu posso colocar a vida de todos em risco se estiver lá.
— Nunca. — Eun-seo sorriu, as rugas acentuadas nos olhos cinzentos.
— Nunca será vista como uma ameaça; e não pense em si mesma como
uma.
— Mas e Hyun-seo? Ele viu o que eu sou... Ele irá...
— Não, minha senhora. Felizmente, meu filho guarda o meu mesmo
pensamento. Ele a ama como eu amo. Eu tenho certeza que Hyun-seo
entenderá a situação.
Luna esperava que sim; esperava que tivesse alguém mais além de
Eun-seo. Ambos prosseguiram então. Poeira não fora muito afetada pelo
ataque e os tremores causados pelo gigante. Algumas estruturas de madeira
estavam no chão e pessoas trabalhavam para reconstruí-las, sem tirar os
olhos do céu. Eram todos humanos beirando a miséria, sobrevivendo com
pouco. As casas e edificações eram todas amontoadas umas sobre as outras;
e os que não tinham privilégio de ter um teto, dormiam na rua. A imagem
causara desconforto em Luna. Ela sempre estivera nas partes mais
privilegiadas e nunca se preocupou em pensar nas demais. Não porque
faltava empatia; não, mas porque sua criação limitada nunca lhe dera
janelas para o outro lado do mundo. A capital do império draconiano,
Aumas, não permitia que nenhum homem sem nobreza vagasse pelas ruas.
Era uma forma de mascarar uma miséria doentia.
Miséria esta que Luna presenciava pela primeira vez.
Seu coração quase parou ao ver uma mãe e uma criança encolhidas em
uma rua. O bebê chorava. Faminto. Olhos da mãe estavam opacos.
Famintos também. Ninguém lhe dava atenção.
Seria mesmo os humanos um povo de compaixão?
Pouco a pouco, o muro do final do distrito foi se aproximando e Luna
pode avistar os enormes portões. Estavam abertos. Lotados. Pessoas se
comunicavam depressa em idiomas distintos e longas caravanas estavam
estacionadas logo a diante, todas esperando pelo momento de partir.
Alguém segurou Luna de repente e ela não conseguiu gritar: uma mão
cobriu sua boca. Eun-seo retirou a espada e empunhou na direção do
estranho. Contudo, não avançou. Respirou aliviado ao reconhecer o homem.
Era Hyun-seo. Ele gesticulou na direção distorcida de um beco: uma
edificação havia se despedaço em frente, bloqueando a visão de qualquer
homem que passasse pela frente. Hyun-seo a saltou e Luna o observou com
os olhos marejados. Seu amigo estava sem fôlego, suor banhando o rosto e
os olhos arregalados. Se o cavaleiro estava ali, se não estava com uma
espada direcionada contra ela, significava que ele não se importava com a
essência ou a herança dela.
Luna o abraçou antes que ele pudesse se pronunciar.
— Estou tão feliz que esteja aqui, Hyun. — murmurou chorosa.
O cavaleiro permaneceu parado por um segundo. Sem reagir.
— Não fique. — e a afastou com cuidado. — O comandante está aqui
na Poeira. — o cavaleiro observou o pai. — Ele pediu que eu o ajudasse a
encontrá-los. Ahuriel sabe que vocês pretendem seguir com as caravanas
em direção ao porto. Não é seguro.
Eun-seo pareceu preocupado.
— Não há outro caminho. A saída principal está protegida e ninguém
passa sem autorização.
— Eu vou ajudá-los a enfrentar o comandante. Então fugimos. — disse
o cavaleiro.
— Você não vai. — Eun-seo respondeu. — Você precisa se manter no
lado deles por enquanto, meu filho.
— Mas não há uma forma de fugir dele!
— Se não podemos passar pelos portões. — Eun-seo se pronunciou. —
Os esgotos é a única alternativa.
Luna os ouviu conversar, preocupada.
Hyun-seo estava certo. Eles não escapariam do comandante.
Precisariam enfrentá-lo — e havia uma chance dos cavaleiros não serem
capazes de vencê-lo também. Eun-seo caminhou enquanto conversava com
o filho. Estava estudando o beco. Toda a cidade era interligada por esgotos
que se conectavam com os distritos e haviam diversas entradas, pelo menos
cinco na Poeira.
Mas a saída era incerta. Era um labirinto.
Como poderiam ter certeza que encontrariam uma saída?
Como impediriam o comandante de segui-los?
Eun-seo chutou algumas caixas quebradas em buscas das passagens.
Não encontrou. Eles precisariam vascular o distrito atrás da entrada do
esgoto.
— Não é seguro. — Hyun-seo insistiu. — Eu soube que a Estrela da
Noite escapou pelos esgotos. Quantos guardas não estão atrás dela? É
arriscado demais. Ahuriel também sabe dessas passagens.
— É tudo o que temos. — Eun-seo respondeu.
Luna não soube como intervir na conversa.
— Ele é o comandante! — o mais jovem vociferou. — Ele não chegou
nessa posição deixando fugitivos escapar.
Eun-seo observou o filho, um olhar ameno e enigmático. Lunaysis não
pode interpretá-lo, tampouco as palavras que o guerreiro proferiu depois.
Era o idioma de Castora, o lar deles. Hyun-seo protestou na linguagem; e a
draconiana percebeu que nunca vira o amigo tão furioso. O rosto dele ficara
vermelho e a expressão, sempre impassível, comprimiu-se numa súbita
agonia. Luna tentou questioná-los. Fora em vão. Eles a ignoraram, a
discussão aumentando. Chegara a um ponto que o mais velho precisou
levantar o próprio tom como se estivesse repreendendo o filho. Hyun-seo
praguejou pela segunda vez e deu as costas.
O mais velho, enfim, encarou-a.
— Minha senhora. — e ele a abraçou de repente. A draconiana não
soube o porquê, mas as lágrimas escaparam dela como se houvesse
escutado uma de suas histórias tristes. — Faremos algo arriscado. Então, eu
preciso que você nos ajude, entendeu?
— Como?
— Sendo a esperança. — a resposta a assustou. — Que os ventos da
esperança movam o mundo. Era o que minha mulher costumava dizer para
você... porque ela, eu, acreditávamos que você, minha doce menina, seria
capaz de algo grandioso.
— Eu... não sou forte, Eun. — as lágrimas cresceram nela.
— Você é. Você sempre será. A força não é algo que pode ser medida
pela espada. Força é o que nos faz resistir e sobreviver, enfrentar e vencer.
Eu te vi sobreviver e ser forte todos esses anos. Você esteve presa em quatro
paredes, esteve distante do mundo... e mesmo assim se permitia sonhar com
um futuro melhor. Isso, Luna, é ser forte. É ter esperança. — e ele limpou
gentilmente as gotículas nos olhos dela. — Castora será um lugar incrível,
eu tenho certeza.
— Você estará lá comigo?
Eun-seo a encarou; segundos, minutos, anos, eras. Palavras não foram
necessárias, apenas gestos. O guerreiro fizera o pior deles: negação. E por
mais que palavras pudessem machucar, era no silêncio que descobrimos as
piores mensagens.
Ele segurou a mão dela e a fez correr. Correram. Tudo se movera em
câmera lenta como se o mundo houvesse parado por um segundo para
observá-la, julgá-la perante o próprio fracasso em ser a esperança. Hyun-
seo os seguira depois, desembainhando a espada. Luna piscou; o sol se
deitava em seu leito. Luna piscou; estrelas ascendiam no céu. Luna piscou;
o comandante dos Cavaleiros Negros os avistou e os perseguiu entre os
obstáculos e barreiras que se colocavam no caminho deles.
Luna piscou e Eun-seo parou em um beco sem saída.
A entrada para os esgotos estava diante deles. A passagem para a
liberdade; atrás, porém, a condenação esperava. Ahuriel estava lá ao lado de
Hyun-seo, este encenando estar servindo o comandante.
Mas antes que ela se perguntasse o que aconteceria, Eun-seo a
empurrou em um sussurro entrecortado de perdão para a escuridão. Luna
caiu — e só percebeu o impacto, acompanhado de um odor pútrido, quando
seu tornozelo emitiu um creck sonoro.
...e da superfície, ouviu as ordens do comandante.
— Vá atrás dela, Hyun-seo!

Ahuriel praguejou mentalmente.


Mulher desgraçada. Mulher amaldiçoada. Desde que descobria a
verdade, perguntava-se como nunca desconfiara. Logo ele, um caçador
delas; alguém que vigiava a capital draconiana em busca de qualquer
resquício das essências proibidas. Ahuriel se casara com uma delas, se
deitara e se deixara confundir. Não mais. Ele segurou a espada com os
dentes trincados após ordenar que seu subordinado seguisse a mulher pelos
esgotos. Eun-seo a empurrara, uma tentativa desesperada de salvá-la
enquanto enfrentaria o comandante. Hyun-seo saltou rumo a escuridão do
subsolo, e sequer olhou para o pai, talvez ciente dos erros dele, talvez
colocando a posição no império frente a família. Era o correto a se fazer —
porque Eun-seo não passaria daquele dia.
Ahuriel faria questão de arrancar a cabeça dele.
Traição era imperdoável.
O vento do deserto soprou ao redor de ambos. Pessoas que passavam
pelas proximidades correram amedrontadas, anunciando que draconianos
batalhavam em solo humano. O comandante percebeu como a espada do
cavaleiro tremia. Eun-seo fraquejava; o resultado, de fato, era eminente. O
homem era velho, incapaz de vencer. A coragem não o salvaria; de nada
adiantava a coragem se faltava força para resistir. Ahuriel avançou; e a
montante dele, uma arma tão pesada que o obrigava a empunhá-la com duas
mãos, chiou ao colidir com a lâmina de Eun-seo. Aços se encontraram entre
faíscas, olhos se encararam em um duelo cinzento e azulado. Suor escorria
a testa de Eun-seo cada vez que tentava parar a arma adversária.
— Espero que se arrependa pelo que fez com ela... — a voz do
cavaleiro vacilava. — Todos vocês... — e o comandante esperou as palavras
seguintes. Não manobrou sua espada; não forçou ou recusou, apenas ouviu.
— Vão pagar. Serão massacrados pelo próprio orgulho. Principalmente
você. Eu quero que você sofra o dobro do que ela sofreu em suas mãos!
Eun-seo recuou a espada dele e investiu em um corte desesperado.
Ahuriel bloqueou sem esforço, deslizando os pés na areia e movendo a
montante em uma investida diagonal. A lâmina passou perto das costelas do
cavaleiro; e, enquanto ele se recuperava, o aço dançou uma sincronia de
morte. Se Eun-seo houvesse se movimentado com um segundo de atraso, a
montante teria desmembrado o braço que empunhava a espada. Apesar da
idade, Eun-seo sabia como escapar de uma lâmina sedenta. Ele fora
comandante no passado; o mesmo cargo que Ahuriel ocupava no presente.
Mas os movimentos dele estavam enferrujados e ultrapassados. Não era o
mesmo: ele desviou de uma quarta investida cambaleando e recebeu um
golpe doloroso nas costelas.
Sangue esguichou e Eun-seo caiu no chão. Ahuriel não cedeu nenhum
segundo. Misericórdia era uma palavra que não conhecia; e não estava
disposto a conhecer tão cedo. Sua lâmina desceu contra o draconiano
desprotegido, brilhando sob o sol do anoitecer. Chocou-se, contudo, com
uma adaga bastarda que o cavaleiro desembainhou nos últimos segundos.
Eun-seo saltou para trás, seu corpo se equilibrou quase cambaleando
enquanto os olhos cinzentos encontravam os do comandante. O homem
ergueu uma mão.
— Deixe-me dizer algo, comandante. — a mão livre de Eun-seo
pressionava o corte nas costelas. — Eu quero que saiba uma coisa antes...
Não existiam pausas em uma batalha.
Não para Ahuriel: ele negou o pedido do cavaleiro e avançou sem
qualquer resquício de arrependimento. Traidores mereciam a morte e Eun-
seo teve a dele. Ele se defendeu do primeiro ataque com dificuldade, a
adaga voou pelos ares; e não pode escapar do segundo.
A lâmina do comandante atravessou o pescoço dele. O homem
engasgou no próprio sangue quando a espada foi retirada, um segundo de
vida que lhe restava. Eun-seo caiu no próprio sangue e suspirou sua última
palavra: Lunaysis. Ahuriel limpou o sangue da espada no corpo inerte e
observou a entrada do esgoto.
Ela não escaparia.

Lunaysis não pode gritar com a dor do tornozelo quebrado. Hyun-seo a


impossibilitara: o cavaleiro cobriu a boca dela com a mão e a puxou para a
escuridão subterrânea, para longe da entrada. Mas ela não queria ir para
longe, não sem seu guardião. Sem correr, a draconiana precisou ser
carregada; e o rapaz o fez, quieto e indiferente ao pai que deixara para trás.
A luz era escassa, nada além de sussurros que cresciam nas sombras. A
água murmurava contra os passos largos do guerreiro, o cheiro da podridão
subia e pairava ao redor deles. Luna precisou respirar lentamente em um
momento. A náusea da gravidez lhe atingia; e, incapaz de aguentar,
suplicou para que Hyun-seo parasse de correr. Ele a colocou no chão
enlameado e a draconiana caiu de joelhos, vomitando tudo o que tinha e não
tinha no estômago, a garganta ardeu, as lágrimas rolaram, os fios dourados
escurecidos pela sujeira.
Ambos haviam parado em uma passagem longa que era dividida por
duas bifurcações. Eun-seo comentara sobre os esgotos da Cidade Real uma
vez, de como eram avançados e cobriam a cidade inteira. O antigo rei o
construíra, primeiramente, para proteger Solnascente dos dragões — logo
após o ataque que destruiu a capital draconiana. Nunca foi usado para essa
finalidade e os engenheiros humanos o modificaram para que servisse de
esgoto, terminando com o mau cheiro que a cidade costumava ter. Era uma
estrutura vasta, quase um labirinto de corredores e passagens estreitas. Usá-
la como saída era arriscado: a escuridão e o podridão confundiria os
desbravadores e eles morreriam lá dentro sem encontrar a luz do sol.
Luna esperava que não acontecesse com ela. Ela se levantou com o
apoio das paredes cobertas por limo e observou o guerreiro silencioso.
Hyun-seo esperava, o olhar baixo; parte da expressão oculta nas trevas.
— Precisamos continuar. — ele murmurou de repente. Seus olhos
estavam iluminados como se fossem prata líquida. Hyun-seo olhou ao
redor, respirou fundo, escondendo qualquer sentimento que pudesse
transparecer em seu rosto. — O comandante irá desconfiar se eu...
— Mas e Eun-seo? Nós precisamos voltar para buscar ele... — Luna
choramingou.
— Não podemos.
— Hyun! Por favor! Ele pode ser morto se nós...
— Ele já está morto! — e nas palavras sufocadas que pularam da boca
do guerreiro, Luna viu lágrimas cintilarem nos olhos acinzentados. — Ele
deu a vida dele para que eu pudesse te salvar! Então pare de chorar como
uma menina medrosa e siga em frente!
Lunaysis não soube o que doeu mais nela. Se a repreensão do amigo ou
a verdade sobre seu guardião.
— Não fale assim comigo... — ela encolheu os ombros e abraçou o
próprio corpo. — ...a culpa não é minha. Eu não queria que nada disso
acontecesse. Eu só queria... fugir e não ser morta. Eu só queria ficar livre.
Eun-seo prometeu que estaria comigo. — e caiu de joelhos, o tornozelo
queimando. — Ele prometeu que veria a minha filha nascer.
— Algumas promessas não podem ser cumpridas. — Hyun-seo se
manteve sólido. — Viva com isso. Agora levante. Eu tenho que levá-la até a
saída ou o comandante virá atrás de nós.
— Você irá comigo?
— Não. Você estará sozinha.
— Mas eu não quero ficar sozinha.
— Eu não queria perder o meu pai, mas o mundo não é feito pelo que
queremos. — e as palavras duras dele eram como adagas na pele dela.
Hyun-seo se recusava a olhar na direção dela. — Você saberá o caminho
quando...
Passos ecoaram próximos. Vários. Hyun-seo sacou a espada e se
colocou diante dela no mesmo segundo que três vultos passaram pela
passagem: uma criança, um homem e uma mulher. A tocha que o menor
segurava os iluminou; e na tênue luminosidade, a draconiana percebeu os
olhos dourados da figura feminina. Era a Estrela da Noite. Ela parou e os
observou, o semblante curioso e parcialmente ferido. Ela ignorou Hyun-seo
e encarou Luna por uma fração de segundos. O homem e o menino que a
acompanhavam também pararam, um deles mencionando que eles
precisavam avançar.
— Você... — a Estrela da Noite murmurou.
— Nós não queremos lutar! — o draconiano bradou com a lâmina
empunhada.
— Na’na! Vamos! É perigoso ficar! — o menino de cabelos cor-de-
fogo implorava. O homem, porém, manteve-se quieto; os cabelos tão
brancos como se houvessem se banhado na lua.
— Ela tem uma essência. — e a mulher anunciou sem tirar os olhos da
draconiana. A criança, então, desviou o olhar para Luna, depois para o
guerreiro que segurava a espada. — É diferente.
— Vão embora. — Hyun-seo insistiu.
— Precisamos ir... na’na. Ele está certo. — disse o pequeno.
A Estrela da Noite observou Luna por mais alguns segundos. Uma
promessa silenciosa de que, talvez, não fossem inimigas — e que talvez
Luna a reencontraria futuramente. Então partiu, correndo. O homem que a
acompanhava moveu o rosto na direção da draconiana, era cego, coberto
por cicatrizes nos olhos, então, sem qualquer mudança na expressão, seguiu
a estrela.
— Ela queria me ajudar? — Luna disse por fim.
— Não importa! — e Hyun-seo a ajudou a se colocar em pé e seguiu
pela direção contraria da qual os três seguiram.
Ele correu por quase trinta minutos, ofegando e suando pelo peso a
mais que precisava carregar. Luna era incapaz de correr com o tornozelo
ferido, sempre que tentava, caía.
Como enfrentaria o Grande Deserto naquelas condições?
Luna sussurrou para o vento e pediu que ele a protegesse.
A cada novo caminho, ela sabia que um desafio maior se aproximaria:
o de conseguir a liberdade para que sua criança pudesse nascer.
Hyun-seo parou então — era um beco sem saída. Nenhuma bifurcação
próxima, nada além do longo e escuro corredor por onde eles vieram.
Acima deles, encontrava-se uma manivela enferrujada pelos anos de solidão
e abandono. Ele a colocou no chão, a água dos esgotos não alcançava
aquela parte, nenhum resquício humano, nada. Era o fim e, também, o
começo. Hyun-seo saltou para alcançar a manivela e o peso dele a fizera se
soltar da grossa placa metálica. Uma passagem se abriu acima deles e uma
luz prateada se esgueirou pela passagem. Como o draconiano conhecia a
direção da saída, Lunaysis jamais descobriria. Mas tinha suas suspeitas.
Eun-seo e Hyun-seo viam de uma tribo de draconianos que era conhecido
por Seo, lobos na linguagem deles. Nar-ha explicara para ela uma vez, a
perícia deles em farejar o que desejavam. Eram descendentes dos
draconianos de Nothumbria, caçadores natos, embora mal vistos por
residirem em uma região comandada pelos rebeldes que não reconheciam o
império.
— Venha. — Hyun-seo estendeu a mão e, depois, a ergueu em direção
a passagem. Luna segurou nas bordas e impulsionou o corpo para cima com
dificuldade. Estava dolorida e cansada. Draconianos tinham ossos leves,
eram capazes de se movimentar com a facilidade dos felinos domésticos; no
entanto, se treinados. Luna nunca fora treinada e era sedentária demais. Um
vento soprou gelado de repente.
Areia. Dunas — a cidade de Solnascente estava no horizonte. Muros se
erguiam imponentes e distantes, a quase cem metros. Hyun-seo saltou com
perícia na passagem e se colocou ao lado dela. Ele observou a cidade por
um momento. Sentiu a brisa, fria e vacilante, e com um suspiro, retirou o
manto que vestia sobre a armadura.
— Não vá para as cidades portuárias. — ele disse enfim e entregou a
peça de roupa. Luna permanecia no chão, a areia gelada soprando no
embalo do vento. — O comandante sabe que a sua chance de escapar será
por lá.
— Mas para onde eu vou? Eu não vou conseguir atravessar o deserto
sozinha.
— Você consegue.
— Pare de ser assim comigo! — Luna não conteve mais as lágrimas.
Chorou novamente. Choraria mais. Até que secasse por dentro. — O que eu
fiz para você? Pensei que fossemos amigos! É por causa da essência que
carrego? Por que para os draconianos dizem eu sou uma Mulher
Amaldiçoada?
Hyun-seo a encarou enfim: os olhos nublados carregavam um
sentimento trancado, sufocado.
— Não começa, por favor...
— Eu só quero entender! Eu amava Eun-seo também!
— Apenas siga para o sul. Encontre um esconderijo e espere o tempo
se acalmar. Depois siga para as cidades portuárias e vá para...
— Eu estou grávida! — a draconiana não esperava elevar o tom. Hyun-
seo ficara parte surpreso, parte envergonhado. — Eu não posso fazer isso
sozinha, eu tenho medo.
Ele se aproximou e se ajoelhou diante dela. Luna percebeu, então, que
a solidez, a indiferença forçada, era uma forma dele resistir. A verdade era
que o guerreiro queria chorar como ela. Lamentar. Fugir. Mas não poderia.
Pelo bem dela, pelo sacrifício do pai dele.
— Me desculpe... Luna. — a voz de Hyun-seo estava entorpecida. —
Me desculpe. Eu não posso fazer mais que isso. Se eu abandonar minha
missão e te acompanhar, posso colocar a sua vida e de todo o meu povo em
risco. Por isso você precisa seguir sozinha.
— Eu tenho medo de não conseguir. — ela choramingou e o
draconiano a abraçou.
— Eu acredito em você como meu pai e minha mãe acreditavam. Eu
preciso que você acredite também.
O Grande Deserto a aguardava. O mundo a aguardava.
Mesmo que precisasse enfrentá-lo, mesmo que ninguém estivesse lá
para segurar sua mão em momentos de fraqueza. Faria sozinha. Encontraria
o caminho sozinha. Ela era a esperança, dissera Eun-seo; a filha da
esperança, dissera Nar-ha. Todos acreditavam nela. Faltava o último passo:
acreditar que era capaz. Hyun-seo a ajudou a se levantar e segurou firme a
mão dela. Nos olhos, melancolia: ele também tinha medo. Todos tinham.
Medo do futuro. Medo do que a esperava do outro lado do horizonte.
— Eu a encontrei em Castora. — ele reforçou.
— Você acha que eu consigo? — e ela apertou a mão dele.
Um tímido sorriso quase brotou nos lábios do cavaleiro.
Mas ele se manteve firme, sutilmente melâncólicol.
— Você sempre conseguiu sobreviver... sempre vai conseguir, Luna.
Lunaysis soltou a mão de seu amigo e sorriu, as lágrimas insistentes
escorrendo.
Cresceria e encararia o mundo. Sozinha, mas aquecida pela lembrança
dos quais lhe eram queridos. Luna assentiu as palavras do cavaleiro e se
despediu silenciosamente, o vento soprando ao redor do mundo. Hyun-seo
poderia não ter retribuído o sorriso, poderia ter escondido seus sentimentos
nos cantos de sua existência, mas acreditou que ele a encontraria. Acreditou
que ela encontraria Castora.
...e acompanhada do vento, deu um passo rumo a imensidão do
deserto.
C A P Í T U L O C I N Q U E N TA E T R Ê S

DANÇANDO COM
DEMÔNIOS

O FERIMENTO DELA É GRAVE.


Tiggrë sussurrou enquanto limpava o curativo na barriga de
Yanaamahka. Estavam a quase trinta minutos do ponto de encontro,
envoltos de uma escuridão nauseante. Era um labirinto fétido; ratos corriam
de um lado ao outro, a água apodrecida, impregnada por todo o lixo
humano, os cercava como um predador insistente. Fora o menino que pedira
por uma parada ao mencionar que se as feridas delas não fossem tratadas a
tempo, infeccionariam. Yanaamahka praguejou com o contato do
medicamento em sua pele. Se não fosse o menino a medicá-la, ela
provavelmente enfiaria a mão na cara do desgraçado que a fizera sentir
tamanho desconforto. Aquele ferimento não melhorava nunca. Culpa do
ceifador: ele que a acertara e a apunhalara. Se tivesse condições, retornaria
e o faria pagar por todas as vezes que se colocou no caminho dela.
Yanaamahka suspirou quando as mãos de Tiggrë se afastaram. Seus
olhos caíram, então, sobre o semblante do homem nas trevas. Klud era
como as paredes ao redor: não falava, não se movia, só ouvia, incapaz de
observar. Ela se perguntava o que ele estaria fazendo lá... depois de tê-lo
mandado embora inúmeras vezes ao alegar decepção para com a
incapacidade dele em encontrá-la no passado. Klud mencionara antes que
estava cumprindo uma promessa: eu prometi que iria te esperar. Esperar,
porém, não adiantava.
Ela grunhiu e moveu os olhos para a mulher inconsciente. Rhenna
estava em condições piores: Tiggrë teve dificuldade para conter o
sangramento, estava sem água para limpar o ferimento e suas misturas não
eram o suficiente para cobrir toda a extensão do corte. Eles precisavam sair
daquela escuridão gelada se quisessem que a draconiana sobrevivesse.
— Na’na... — Tiggrë a chamou de repente. O rosto dele estava suado e
vermelho apesar da temperatura do ambiente. — Como você está se
sentindo? Eu realmente sinto muito por não poder fazer mais nada.
Yanaamahka o encarou por segundos, estudando a expressão do
menino.
— Não sinta. — ela murmurou e se moveu com cuidado para ficar em
pé. Tiggrë a ajudou. — Você já faz o suficiente.
— Eu queria poder ajudar mais. A draconiana... ela...
— Eu quero te contar algo. — Yanaa respirou fundo. — Minha asa. Eu
consegui sentir. Pode ser um sinal que ela tá melhorando?
A expressão dele, antes preocupada e melancólica, se iluminou com
um sorriso.
— Sua asa! Na’na! É verdade? — ele a esperou confirmar. — Isso é
muito bom! Eu sabia que ela iria melhorar! Um pouco mais de cuidado e
você vai poder alcançar o céu como sonhava.
— Então para de se lamentar. Você faz muito... sempre fez. — a estrela
desviou os olhos para o chão, seu peito queimava com um sentimento
estranho, diferente dos quais estava acostumada. — Eu não sei como
agradecer.
— Um obrigado é o suficiente. — e ela tornou a observá-lo.
— Obrigado. — a escuridão poderia ocultar o tímido sorriso que a
Estrela da Noite moldou, mas ela se sentiu mais leve ao fazê-lo, como se o
peso de todos os acontecimentos houvessem desaparecido.
Tiggrë olhou ao redor: Klud se mantinha quieto, afastado; Rhenna,
inconsciente.
— Agora é minha vez de contar algo. — ele sussurrou para que
ninguém ouvisse. — É sobre o Klud.
Yanaamahka suspirou irritada e o menino se encolheu.
— Eu sei que você não gosta dele... mas por que não tenta conversar,
na’na? Klud a conheceu no passado. Ele pode saber algo importante.
— Ele me abandonou como todos os outros.
— Mas não foi culpa dele, na’na. Eu estive morando com Roren por
quase cinco anos e, por mais que eu ficasse irritado com o fato dele se
prender tanto ao passado, eu via como ele sofria com a sua ausência. Você
tem certeza que não está esquecendo nada? Klud sempre disse que esperava
porque era uma promessa. Você deve ter pedido para ele esperar no
passado... então... é injusto culpar ele por ter te abandonado.
Você estará comigo? Se eu desaparecer... você vai me esperar?
Sempre.
Aquelas mesmas palavras bateram incansáveis na cabeça dela.
Yanaamahka suspirou de novo, mais irritada.
— Eu posso ajudar a te levar ao desfiladeiro, na’na, mas ele também
pode ajudar recuperar o seu passado. — Tiggrë insistiu.
Doze anos. Dez meses. Seis dias. Esse foi o tempo que eu esperei por você.
De novo.
Yanaamahka colocou a mão na cabeça, a dor lancinante que corroía sua
sanidade, e grunhiu entre os dentes.
— Eu não quero falar sobre isso.
Porque se falasse... entenderia que estava errada; que estivera errada
em relação a Klud. No fundo, porém, Yanaamahka estava magoada com ele,
por insistir numa Yanaamahka que não existia; e consigo mesma, por se
deixar esquecer do importante.
Um gemido ecoou na escuridão e ambos olharam na direção da
draconiana inconsciente.
— Ela está acordando. — Klud, em pé ao lado de Rhenna, sussurrou.
Yanaamahka caminhou na direção da mulher, uma mão sobre o ferimento
na barriga, outra se apoiando nas paredes.
Rhenna piscou várias vezes antes de abrir os olhos, a respiração lenta e
dificultosa. O golpe de Demétrius não era o único a deteriorar o estado da
guerreira; havia mais. Yanaamahka sentia o calor do Fogo de Safira se
apagar aos poucos na mulher como se estivesse levando consigo a vida
dela. O porquê era um mistério, mas desconfiava do fragmento de memória
que Rhenna compartilhara com ela. O nascimento da criança morta, a
súplica pelo renascer.
Tua ignorância será tua perdição e o teu preço é a vida que tu achas
comandar. Eu o trarei de volta... mas tu nunca serás a mãe dele e a tua vida
será minha... um dia.
Foram as palavras de Mahoutsukai a Rhenna. Se a entidade realmente
trouxera o primeiro filho da guerreira de volta à vida... o preço era a própria
vida dela.
Logo, um dia significava agora.
Yanaamahka se ajoelhou diante a draconiana.
— Você vai morrer... não é? Com ou sem ferimento. Mahoutsukai tá
levando sua vida pelo que você fez no passado.
Rhenna levantou o olhar, o prateado estava normal, o de safira, opaco.
— Sim... mesmo que tenhamos um poder que dê vida, Yanaamahka,
não podemos brincar de deus; não podemos trazer os mortos de volta sem
uma consequência. — Rhenna fez uma pausa dolorosa. — Mas se eu
pudesse... eu teria feito... duas vezes. Mas o corpo dele foi levado pelo mar.
— Ela deve estar delirando. — o pequeno murmurou ao tocar a testa
da draconiana. — Está com febre. — e olhou para Yanaamahka. — Vocês
estão falando sobre o Fogo de Safira?
A Estrela da Noite assentiu em resposta.
Klud se manteve quieto.
— Se eu tivesse mais uma vida... eu daria a ele... — Rhenna sussurrou
entorpecida.
— Eu não posso fazer nada por você... — Yanaamahka respondeu. Era
verdade. Rhenna não resistiria; minutos, talvez, fossem o que restavam para
ela. A draconiana estava tão gelada como um bloco de gelo.
— Na’na, você não pode usar o Fogo de Safira para salvar ela? —
Tiggrë questionou. — Você pode curar ela, não pode?
— Estou além de qualquer salvação... — Rhenna respondeu. — Mas...
Yanaamahka. Tu não podes morrer... por favor, ou aqueles que dependem
dessa essência também irão. Eles vão sofrer... vão morrer...
Rhenna continuou, parte delirando, parte desacordada. Tiggrë segurou
a mão da draconiana e sussurrou para que ela aguentasse.
— Eu nunca pude... ser mãe dele... — os delírios se tornavam meros
sussurros.
— Na’na... ela está piorando!
— Eles vão nos encontrar em breve. — Klud finalmente se manifestou,
oculto nas sombras.
Rhenna olhou na direção do homem, a cabeça dela inclinada sobre o
ombro, a expressão cansada, no limite. Ela piscou com dificuldade, ergueu
a mão por um curto período de tempo, depois, vomitou nas próprias pernas.
Mais sangue. Yanaamahka deu um passo, afastou-se e não soube como
reagir. Horas antes, talvez menos que uma, Rhenna aparentava estar bem.
Dera-lhe esperança e a sensação de como era ter uma mãe. Contudo, agora,
a draconiana estava se despedaçando.
— Me deixem... eu preciso fazer... algo antes de partir.
Yanaamahka assentiu, principalmente porque não sabia como reagir a
destruição da draconiana. Tiggrë largou a mão de Rhenna, chorando; e a
Estrela da Noite o admirou, alguém que se emocionava fácil com aqueles
que não conhecia. Sensibilidade era uma característica que ela não entendia
e que nunca conseguiria aprender.
Klud seguiu em frente sem olhar para trás.
Tiggrë se afastou, acompanhando o homem, e somente Yanaamahka
permaneceu ao lado da guerreira.
— Você tem certeza? — a estrela sussurrou.
— Apenas uma última coisa. Se você for para o desfiladeiro e
encontrar alguém chamado Kzaharaeggär... diga que nada nunca mudou...
que eu morri me culpando pelo que fiz com ele.
Yanaamahka engoliu seco.
O nome era estranho; as palavras, angustiadas; o sentimento, dolorido.
Mas ela assentiu mais uma vez e respirou fundo, dando as costas.
— Adeus.
Rhenna não respondeu.
Rhenna vrön Skaargärd cometera dois grandes erros em sua vida: ter se
recusado a aceitar a morte do primeiro filho e ter se descuidado com o
segundo filho. Perdera ambos. Mas nunca acreditaria que ter se apaixonado
pelo inimigo, um dos primeiros dragões, houvesse sido um erro. De
prisioneira para aliada; de aliada para amiga; de amiga para amante. Diziam
que as raças eram diferentes demais para gerar frutos, mas ela tivera um
menino tão parecido com ela, uma criança feita de escamas e olhos de
vidro. A morte dele talvez houvesse sido o preço pela ousadia daquele
nascimento.
Mestiços de dragão e draconiano não existiam.
Era um tabu.
A draconiana levantou os olhos para a escuridão e ergueu a mão mais
uma vez. Chamava a morte; e esperava que a Senhora da Noite viesse
acompanhada do segundo filho que perdeu. Seu favorito — o mais amado.
Rhenna se levantou então, esforçou-se para se apoiar nas paredes
escorregadias e vagou entre os corredores cobertos pelas trevas. Venha,
dizia. Me leve, repetia; que a morte a resgasse e a carregasse para o plano
dos mortos. Rhenna caminhou devagar e encontrou uma pequena escada,
uma das entradas — ou talvez saída — do esgoto. A draconiana colocou a
mão em uma das barras, o pé em outra, tonta, debilitada, e subiu, sentindo
descargas de dor atravessarem seu corpo.
Ela queria ver o céu antes de morrer.
O céu que voara nas costas de seu amado.
O céu que tinha a mesma cor dos olhos de seu segundo filho.
Ela atravessou o pequeno buraco da saída e se deparou com um beco
destruído. Caminhou entre os escombros, a lembrança dos terremotos do
dragão. Aquele dragão. Rhenna gostaria que fosse o seu dragão. Vê-lo-ia
uma última vez.
Depois, morreria em paz.
— Rhenna! — e a draconiana elevou os olhos ao reconhecer a voz.
Khan correu na direção dela e se ajoelhou para segurá-la. O
comandante estava suado e ofegante, ele largara a espada ao lado e colocou
a mulher sobre seus braços. Rhenna sentiu um aperto no peito, culpa e
arrependimento. Não era coincidência tê-lo encontrado antes do fim... não.
Palavras precisavam ser ditas antes que partisse. Ela o enganara por quase
trinta anos, alegando que o segundo filho era dele; que a criança, apesar de
diferente, tinha o sangue do guerreiro.
— O que aconteceu com você?! Quem a feriu?! — ele colocou a mão
no ferimento dela. — Aguente, minha senhora. Eu vou te levar a um templo
e...
— Não... — Rhenna sussurrou com lágrimas nos olhos. — Escute...
Khan. Escute o que eu vou te dizer.
— Agora não, meu amor. Me conte depois quando você estiver bem.
— Eu não vou ficar bem! Escute! — ela se agarrou a armadura dele. —
Nosso segundo filho... Era uma mentira. Eu não posso morrer sem dizer a
verdade.
Khan ficara imóvel, somente o suor escorrendo sobre a pele negra.
— Kzar? O que você...
— Eu menti... eu... — e ela começou a tossir sangue. Rhenna piscou e
não viu mais o rosto do marido, apenas um mero borrão. Ela segurou a
armadura firmemente como se tentasse se agarrar a vida. — Ele era... um
mestiço de dragão... Kzar era... filho de um dragão.
— Rhenna... — Khan não conseguia se expressar.
— ...e tu o mataste afogado! — a draconiana gritou com a força que
lhe restava. — Porque tu sabias!
— Eu não sabia! — a voz dele saiu tremida.
Ele sabia, ela pensou. Ele sabia, murmurou.
— É mentira!
Khan tentou falar com ela; ele tentou ressaltar que não era culpado
pelo afogamento da criança. Rhenna não ouviu; ela gritou, o esbofeteou e
lutou contra os braços do marido até que os restos de suas forças partissem.
Até que a levassem.
A única coisa que a draconiana ouviu foi Mahoutsukai, a deusa que a
amaldiçoara. Que as Canções às Estrelas da Noite te guiem e te mostrem o
quão errada estava... desde o começo, dissera a entidade.
Rhenna fechou os olhos então e respirou pela última vez.
Ele não a deixaria escapar.
Hanzor alcançou a superfície com o suor acumulado nas têmporas. A
cidade real estava um caos; as redondezas do palácio, e este próprio,
estavam em ruinas, humanos haviam escapado do ataque, alguns morreram.
Ele se perguntou o que o dragão azul — o dragão que tinha fogo azul —
fizera antes de abrir uma fissura enorme nos esgotos da capital. Aquela
criatura... o vira antes na Floresta Viva. Hanzor precisou fugir depois que
sua espada fora despedaçada por ele, apenas com os dentes, quando o Aço
de Cristal era inquebrável por dragões. Ele provavelmente pertencia à
espécie dos Nyn, inferiores aos Primeiros Dragões, mas que possuíam a
mesma semelhança de ter uma imagem humana, por tempo ilimitado.
Mas a espécie não tinha fogo azul.
A espécie não quebrava Aço de Cristal.
...e estava praticamente extinta.
Hanzor suspirou e olhou ao redor de novo; o buraco atrás dele, a
passagem para os esgotos estava parcialmente iluminada com os raios do
entardecer e, nos arredores do palácio, exaltações vitoriosas ressoaram pelo
horizonte. Ele partiu! Ele partiu! O general Belpheggör nos salvou!, diziam
as vozes no idioma humano; e o draconiano sentiu um arrepio ao imaginar a
imensidão do poder do tio, o poder de estrelas. Hanzor olhou para o céu
alaranjado, nenhum ruflar, nenhum rugido, mas lamentações daqueles que
perderam familiares, daqueles que morreram sem uma chance. Pais. Filhos.
Mãe. Filhas. O dragão maior poderia ter escapado, sido afugentado, mas o
Vanadis não deixaria Yanaamahka escapar. Ele precisava dela, precisava da
proteção do tio em sua caçada; e somente a teria se recuperasse a estrela
perdida.
A saída mais próxima dos túneis era pelo distrito da Poeira. Hanzor
poderia encontrá-los, era sua chance. Ele daria um jeito de escapar do
dragão azul, e o perigo de enfrentá-lo sequer passou por sua cabeça — a
vingança falava mais alto; e, talvez, o cego não era aquele desprovido da
visão do mundo, mas, sim, a de mundo. O problema, porém, resplandeceu
com uma lembrança recente: a general Rhenna estava com os dragões,
estava ajudando a estrela. Ele ficara sem reação ao vê-la, sem reação ao ver
Demétrius enfiar a espada nela, uma traidora. Hanzor não queria pensar
como seu mestre, o comandante Khan, reagiria com a notícia.
O Vanadis engoliu a saliva a seco.
Ele não tinha mais tempo a perder. Agarrou uma espada perdida no
chão e fez menção de correr, avançar e caçar.
Alguém exclamou antes que o fizesse.
— O que pensa que vai fazer, Vanadis? — Demétrius estava a dois
metros de distância dele; uma lâmina de safira empunhada, a outra
descansando na bainha da cintura. O que preocupou o jovem, no entanto,
fora a expressão do ceifador: do mais puro ódio. Hanzor deu um passo
cauteloso para trás, porque qualquer palavra errada faria o general avançar.
E não poderia perder mais tempo.
Ou a Estrela da Noite escaparia.
— Estou seguindo as ordens do general Belpheggör.
— Estava seguindo a porra das ordens quando só observou a estrela
escapar, desgraçado? — o homem cuspiu as palavras. Demétrius não era
alguém de boa aparência; em cólera, piorava, ressaltando a queimadura
recente e a grossa cicatriz no rosto. — Vocês, draconianos de Aumastris,
não um bando de fodidos, nunca serão caçadores de verdade.
— A Estrela da Noite está fugindo enquanto estamos aqui. Se você não
vai, general, eu vou; diga o que quiser, mas não espere que eu ouça.
Demétrius inclinou a cabeça. Não piscou. Não se moveu.
Hanzor não conseguiria encarar aqueles olhos doentios por muito
tempo.
Então, deu meia volta, e teria se arrependido amargamente de dar as
costas ao ceifador se não houvesse previsto o ataque seguinte: Demétrius
avançou, silencioso e mortal, um golpe tão traiçoeiro que teria decepado o
membro de um homem não preparado. Hanzor não era esse homem; e
escapou, sua espada recebendo todo o peso daquela que o adversário
empunhava, uma lâmina forjada em safira, uma lâmina de estrelas. Espadas
tilintaram unidas, ambos mediam forças e trocavam olhares — e Hanzor
soube, no curvar dos lábios do general, que não seria poupado se ousasse
fraquejar.
As espadas se separaram e o Vanadis bloqueou uma nova investida,
mais pesada que a anterior. Cada golpe seguinte era mais e mais intenso, a
lâmina estava tremendo nas mãos do mais jovem, os braços começavam a
vacilar e, quando encontrou uma oportunidade para escapar, Demétrius
sacou a segunda espada e defendeu. Ele não era o melhor do império apenas
por rumores e falatórios: a verdade era que o ceifador de espinhos nascera
lutando, tinha experiência e anos de sobrevivência em um continente hostil.
Ele manobrou ambas as lâminas com a habilidade de um dançarino, os pés
sincronizados com as investidas, as espadas iluminadas em um azul-oceano
pelo sol que se deitava em seu leito. Hanzor não conseguiu mais atacar,
bloqueava e desviava, mas sabia que não aguentaria por mais tempo.
Demétrius girou o corpo para um golpe circular e Hanzor defendeu com a
espada e parte da braceira da armadura. Nesse instante, uma segunda
chance de investida surgiu e o Vanadis arriscou: dera uma estocada baixa,
os dedos firmes na arma, a esperança de um movimento bem-sucedido.
Mas não. O ceifador o bloqueou sem precisar desviar a atenção; as
lâminas-gêmeas dele fizeram uma defesa cruzada, arrancando, segundos
depois, a espada das mãos do jovem.
Hanzor estava desarmado — sua arma voou à um metro de distância.
Demétrius não disse nada; os olhos dele estavam fixos, sedentos por
uma morte. Indefeso, arfando, o Cavaleiro Negro analisou a situação. Ele
poderia ser ágil, mas não o suficiente para se esquivar da lâmina de duas
espadas; se fugisse, o adversário o perseguiria; se falasse, o ceifador
arrancaria sua cabeça antes que se pronunciasse. Ele não pararia, não depois
de ter perdido a caça, porque a Estrela da Noite era o verdadeiro alvo do
general e Hanzor o fizera perdê-la. A situação só seria revertida de o
Vanadis morresse.
Ele definitivamente não queria morrer.
A espada no chão era a alternativa mais segura.
Defender-se-ia por um par de minutos e encontraria uma forma de
despistar o ceifador.
Então, ambos se moveram. Hanzor precisava ser rápido; não, mais
rápido do que costumava ser para recuperar a arma e bloquear o golpe do
ceifador. Estava confiante. Era um Vanadis. Era um superior. Venceria.
Vingar-se-ia. Mas a roda do tempo não girou ao seu favor. Ele se atirou no
chão para agarrar o cabo da lâmina e girou o corpo para se defender das
espadas duplas que dançaram vorazes em sua direção, mas o fraquejar nos
dedos, a consequência do peso que suportara minutos antes, a fadiga, a
ansiedade, fez Hanzor amolecer os dedos ao redor da haste. Não houvera
oportunidade para correções.
Era tarde demais. A lâmina de safira atravessou pele, carne e osso.
Quatro dedos foram desmembrados.
Quatro dedos voaram em uma torrente de sangue e dor.
Hanzor gritou e puxou a mão contra o peito, fechou os olhos e mordeu
os lábios para se conter, para não ver o golpe final.
Mas a ausência deste o fez encarar o mundo de novo.
Demétrius baixara as espadas.
Porque o segundo-general Belpheggör rön Vanadis e outros guerreiros
se fizeram presente.
— Suponho que esqueceste nossas leis, terceiro-general Demétrius? —
murmurou o Vanadis com sua expressão solene. Havia uma lei, de fato,
entre os superiores e integrantes de elite. Nenhum draconiano deve ferir
outro draconiano pertencente as forças do império. Resta ao imperador
resolver desavenças entre os guerreiros. — Tu não estás apenas infringindo
nossas tradições como, também, está causando tamanha covardia com um
homem desarmado.
Demétrius guardou ambas as espadas.
— Suas leis. — e respondeu cuspindo no chão. — Eu não me curvo
aquele imperador de merda. Crio minhas próprias leis.
Belpheggör sorriu ousado.
— Ora, querido Leto. — ele deu ênfase no termo. Bastardo. Demétrius
usava aquele nome desde que fora deserdado pelo Senhor de Gelo. — Eu
realmente gostaria de impedi-lo. Seria uma honra. Contudo, receio lembrar-
te que tu vieste a esse continente para caçar a penúltima estrela. Havia um
prazo; e ele não foi cumprido, porque ainda temos duas estrelas no céu.
Mas Demétrius havia cumprido: ele assassinara a penúltima Estrela da
Noite antes que uma nova surgisse e ocupasse o lugar desta. Questão de
minutos, porém. Ninguém percebera que um dos pontos brilhante havia
desaparecido no céu e outro houvesse surgido no lugar.
Ele não tinha como provar que matara a suposta penúltima.
Porque ele queimou o maldito corpo dela.
Yanaamahka surgiu logo depois.
— Pode provar, Leto? — questionou o Vanadis.
Demétrius não respondeu, inexpressivo.
— Ademais. — e estendeu a mão para receber um pergaminho de um
dos guerreiros que o acompanhava. Não era o selo do Império de
Aumastris; e, sim, o emblema do reino de Nothumbria.
O emblema do Senhor de Gelo.
Belpheggör leu a mensagem em voz alta.
Como soberano do continente-de-homem-nenhum, tenho o direito sobre a
vida de minha população e daqueles que gerei. Logo, proclamo a prisão de
meu primogênito Demétrius dur-Valeas al Vossler e sua deportação à
Nothumbria para ser sentenciado e morto por seus crimes contra a família
real.
Hygörn dur-Valeas al Vossler, Senhor das Terras de Homem Nenhum.
Diziam que nada no mundo abalaria o Ceifador de Espinhos. Nem a
morte. Não existia lugar para medo ou compaixão em um coração tão
corrompido. Mas a verdade se fez presente após a mensagem: Demétrius
tremeu. Ele ficara pálido, sem palavras, sem reação. Porque o que ele era, o
que se tornara, o monstro sem apreço a nada ou ninguém, fora cultivado por
aquele homem — e se existia alguém pior que Demétrius, era o Senhor de
Gelo.
Hanzor nunca o vira — apenas histórias de ama de leite ou
comentários distantes de seu pai e mestre. O que vivemos em Aumastris é
um paraíso, diziam os superiores ao comparar o Império Draconiano de
Aumastris com a fortaleza de Valenevado em Nothumbria.
— Eu não irei. — Demétrius rangeu os dentes.
— Tu não tens escolha, meu querido. — e Belpheggör ergueu a mão
direta e murmurou o nome da deusa amaldiçoada. Maetsumina: o sangue de
Hanzor coagulou entre os dedos decepados, mas o que surpreendeu a todos
fora o simplório gesto que fizera o corpo do ceifador congelar.
Demétrius tinha um corte na bochecha, pequeno com um filete de
sangue escorrendo, causado pela batalha anterior com Rhenna, mas aquilo
fora o suficiente para, num segundo, cada milímetro do sangue do ceifador
fosse petrificado como cristais. Ele não se mexeu ou piscou, todos os
presentes entreolharam assustados, temendo o poder de uma deusa
esquecida — de uma Estrela da Noite. Aquele era o porquê dos Cristais de
Rubi ser o mais temido. Sua facilidade de matar. Imobilizar. Congelar.
— Se eu quisesse, querido Leto, arrancaria cada gota de teu sangue
agora. Tu não passarias de um recipiente vazio. Mas eu, felizmente, sigo as
leis do meu povo e pouparei tua vida. — o vermelho nos olhos do Vanadis
cintilaram como rubis.
Sangue começou a escorrer pelo nariz do Ceifador de Espinhos, depois
pelos olhos e pela boca: sangue cristalizado.
— Se não estivesse usando de um poder que não é seu, Vanadis, eu
poderia quebrar a porra do seu pescoço com uma mão só. — Demétrius
murmurou sem mover sequer um músculo.
Belpheggör sorriu com deleite.
— Mas tu não podes, não agora. — e estalou os dedos. — Levem-no
para a prisão. — Depois, o segundo-general se aproximou de seu sobrinho e
o ajudou a se pôr em pé; e este cambaleou com a dor que irrompia de seu
ferimento. Felizmente, a essência de Belpheggör conteve o sangramento.
Hanzor não ousou se manifestar, envergonhado. Ele não só perdera a
caçada como também os dedos da mão que empunhava sua espada. Como
lutaria? Como caçaria o assassino de seu pai? As palavras ficaram trancadas
na garganta dele, o rosto estava baixo, seus dentes tremiam.
Seu coração queimava.
— Não se preocupe, meu querido sobrinho. — e a mão do tio o tocou
no ombro. Hanzor se manteve estático. — Leovrumund e o comandante
Krimnell cuidarão do resto. Iremos recuperá-la; nem que precisemos varrer
esse mundo enorme. Logo, terás tua vingança. O importante, querido, é não
desistir. Apoiar-te-ei.
Hanzor elevou os olhos para o tio — vermelho e vermelho. A marca
dos Vanadis.
Belpheggör não era tão ruim quando ele pensava.
C A P Í T U L O C I N Q U E N T A E Q U AT R O

NENHUM SOL ESTÁ


BRILHANDO NO CÉU

A CIDADE PARECIA DORMIR.


Nenhum som. Nenhum conflito. Nenhuma morte.
Yanaamahka não se perguntou o porquê. Estava preocupada demais
pensando nela mesma: quase duas horas, incontáveis minutos de uma
tensão pior que o ferimento da barriga. Muito acontecera na escuridão dos
esgotos — situações sufocadas pelo silêncio das profundezas. Primeiro,
Rhenna, a draconiana abandonada a própria sorte, o que incomodou a
Estrela da Noite ao longo do percurso. A mulher pertencia a raça que
caçava os dragões, a mesma do draconiano que a enganou, dos draconianos
que a torturaram. Contudo, ela não era como eles. Era uma pequena
exceção, um fragmento deformado de uma tradição lapidada por séculos.
As ações de Rhenna faziam Yanaamahka acreditar que ninguém, seja
humano ou draconiano ou qualquer outro caminhante sobre o mundo,
poderia ser julgado por sua origem. Infelizmente, poucos percebiam essa
verdade.
Era por isso que a julgavam pelo que era. Uma Estrela da Noite.
...como se o nascimento fosse o Senhor do Destino de todos os seres
vivos.
A cabeça de Yanaamahka doeu quando passou pelas grades amassadas.
A saída: areia e brisas amenas se fundiam na atmosfera quase noturna. Klud
encontrara a saída da escuridão depois daquelas longas duas horas. Eles
saíram por uma portinhola bloqueada. Klud usou a própria força para abrir
uma passagem pelas grades que os impossibilitavam de passar. Não fora um
trabalho árduo para ele, era um dragão, embora estivesse suando por entre
os fios brancos. Tiggrë se mantivera o percurso inteiro agarrado a mão de
Yanaamahka. Não por medo, o menino parecia batalhar contra as sombras,
mas por precaução. Você está ferida e eu vou te proteger, ele dissera
insistente. Embora ser protegida não fosse o que ela queria — era algo que
poderia fazer sozinha —, a Estrela não pode afastá-lo.
Tiggrë sorria com tanta sinceridade para ela que era difícil ser dura
com ele.
Apesar da inteligência, era uma criança como todas as outras.
A luz da lua não os alcançou quando eles deixaram o interior dos
esgotos. Uma sombra colossal se estendia a frente deles como se fosse um
paredão; e Yanaamahka soube o porquê: os muros da Cidade Real cresciam
atrás deles como se fossem guardiões furiosos. A saída das profundezas
estava localizada nos pés da muralha; felizmente, distantes dos dois portões.
Klud fez um movimento com a mão, pedindo silêncio e sentiu o vento ao
seu redor. A entidade traria a localização de qualquer ameaça, qualquer
draconiano que estivesse à espreita para caçá-la. Ninguém. Provavelmente o
ataque anterior do dragão desconhecido fizera toda a elite dos humanos se
voltar para o interior da cidade.
Yanaamahka se escorou na muralha e respirou fundo. Seu corpo estava
dolorido; sua cabeça, cansada. Fome e sede. Se o sol estivesse a pino,
ilusões a alimentariam no deserto. Um pedaço suculento de ovelha, um
oásis de águas frescas escondido no horizonte. Mas era o anoitecer — e
com a ausência das luzes, as temperaturas caíam drasticamente.
Seria uma longa viagem.
— Estou com medo... na’na. Está tudo tão quieto. — Tiggrë dissera ao
se agarrar a bolsa de pertences. — Eu acredito que não será seguro ir para a
cidade portuária... O melhor é seguir para o Sul e pegar qualquer
embarcação que vá para Nothumbria nos portos de lá. — e o menino
suspirou entristecido. — Hanzor nos mentiu. Não existem mais
embarcações para o continente de Degail... elas nunca existiram desde o
ataque.
— Você diz o ataque ao seu povo? — Yanaamahka questionou.
— Não... antes. Sempre houve uma rivalidade entre os reinos de Degail
e o Império de Aumastris. Os draconianos massacraram os humanos e
escravizaram os sobreviventes; e os que escaparam, morreram com a
Eternaria. — e a Estrela estremeceu com as palavras. — Nothumbria é o
continente mais próximo. Dizem que é possível enxergar as montanhas de
Degail na costa de Nothumbria, o único problema é a temperatura. Eu não
gosto de inverno... — Tiggrë suspirou com um arrepio encenado.
Klud observava a conversa, quieto. Sempre quieto — e a falta de
atitude do homem incomodava Yanaamahka. Tiggrë mencionara antes que
era injusto culpar o dragão por tê-la abandonado no passado, por nunca ter a
encontrado, quando ele ressaltava estar cumprindo uma promessa de
esperá-la retornar.
Espere mim, eram as palavras que ela ouvira numa lembrança distante.
Mas a estrela era insistente e não acreditava nelas.
Porque se acreditasse que, de fato, o fizera prometer esperar o retorno
dela, precisaria aceitar que estava errada sobre Klud. Sobre o que ele
significava para o passado dela. No presente, porém, ele não significava
mais nada.
Yanaamahka o ignorou e se distanciou do muro.
— Para o Sul então.
— Há um oásis ao Sul, duas horas no máximo. — Klud se pronunciou
após o longo silêncio e colocou o capuz sobre os fios brancos, escondendo
toda a palidez de seus traços. Tiggrë o observou caminhar adiante, depois
tornou a encarar a estrela, inquieto.
— Uma vez o senhor Roren me disse que Klud tinha uma doença que
chamam de brancura. — o menino sussurrou esperando que o homem não
o ouvisse. — É uma doença que atinge qualquer um. Até animais. Não tem
cura.
— O que isso faz? — Yanaamahka caminhou com passos lentos, sua
mão acomodada sobre o ferimento da barriga.
— Eu não sei muito bem, mas ouvi dizer que ela deixa as pessoas
vulneráveis ao sol e com problemas de visão. Acredito que seja por isso que
ele se cubra tanto no deserto, as consequências à exposição podem ser
graves. — e Tiggrë agarrou a mão dela e a acompanhou no mesmo ritmo.
— O Eterno de Dragão do meu povo contou uma história... era sobre a
outra estrela. A penúltima. Os Primeiros Dragões não a chamam como
chamariam você... e, sim, de Estrela da Manhã, porque dizem que ela tem a
brancura.
Yanaamahka o ouvia sem interrupção.
— É engraçado pensar a dualidade entre vocês duas, não? As escamas
dela são brancas; as suas, negras. Vamos conhecê-la juntos, na’na. Logo
estaremos no Desfiladeiro.
A mulher-dragão assentiu sem dizer nada.
Eles encontraram o oásis mencionado por Klud em menos de duas
horas de caminhada. A noite estava no auge, os ventos sopravam sobre a
areia e causavam tremores no menino, enquanto Yanaamahka se mantinha
indiferente a temperatura. O que a preocupava era a incapacidade do
ferimento de se curar mais rápido. A essência de safira estava apagada
dentro dela, afastada na verdade; e a consequência era uma recuperação
lenta. Tiggrë quem cuidava do ferimento. Ele perguntava o tempo todo,
insistia em descansos e pedia que Yanaamahka não escondesse o que sentia.
Os muros de Solnascente estavam no horizonte: a cidade permanecia
adormecida entre escombros de um ataque que ficaria no passado. Um
passado que a estrela faria questão de esquecer. Lembraria, porém, da
draconiana abandonada nos esgotos e da moça que viu de relance na
escuridão, a portadora de uma essência diferente da sua. O resto,
esqueceria. A vingança contra os draconianos era um sentimento que não
nutria. Porque nada mudaria o que aconteceu. Draconianos continuariam a
caçando, indiferente de quantos ela matasse no futuro.
O oásis estava entre duas enormes dunas de areia: o horizonte ficava
escondido, distante da visão deles e dos muros da Cidade Real. Nada além
de um céu negro se via, um céu com duas estrelas e uma lua tão intensa
capaz de cegar como se fosse o sol. Árvores longas circulavam a pequena
lagoa central, a qual se estendia por quase dez metros, rodeada também por
uma vegetação parcialmente seca. Yanaamahka caminhou sobre a grama,
passos lentos enquanto observava o morro de areia solidificada. Tiggrë
também observou enquanto o homem, distante, rodeava a água. Nenhum
movimento. Nenhum som. Ninguém. O oásis estava tão quieto como todo o
Grande Deserto que abraçava a região.
— Você precisa de um banho, na’na. Para limpar o ferimento e a
sujeira daquele esgoto! — e menino expressou repugno.
— Eu realmente não me importo com a sujeira.
— Meu nariz se importa. — Tiggrë levantou o olhar para o homem
distante. Klud estava sentado, as mãos inquietas na água. — Acredito que
ele também... Klud pode sentir mais do que qualquer um.
— Eu já disse que não me importo. — mas Yanaamahka caminhou em
direção a água e tirou a túnica esfiapada que vestia, o corpo humano estava
recém ganhando massa e os ossos salientes haviam desaparecido. O
ferimento na barriga, contudo, permanecia horrendo: uma mancha
arroxeada com fissuras vermelhas e coágulos de sangue. O que tinha na
adaga de Demétrius era um mistério, mas se mostrara letal contra a pele
dela. Yanaamahka tirou as calças e depois o tecido que protegia seu busto,
nua na margem da lagoa. O frio atravessou a sua espinha, a fez encolher os
ombros e prosseguir.
A água chegou até seu tronco.
— O deserto fica gelado a noite... mas a água deve estar ainda quente.
Estava, mas não o suficiente.
Yanaamahka respirou fundo e deixou as correntes dedilharem sua pele,
as pontadas de dor se anestesiando com o choque de temperatura. Tiggrë se
aproximou da água, mas não entrou, somente juntou as roupas dela e as
dobrou sobre a areia.
— Às vezes eu sinto pena dele, na’na.
Yanaamahka molhou os cabelos.
— Quem?
— Klud. — e ele abriu a bolsa de pertences e retirou uma adaga. A
estrela reconheceu o objeto: a lâmina de rubi e os ornamentos prateados.
Era a arma de Nahemidraal, sua mãe; a arma que Roren dera a ela; a arma
que Demétrius usara no templo contra ela. — Ele estava com isso. Lembra
quando encontramos você muito ferida?
Tiggrë não precisou falar mais nada — ela entendia.
Demétrius não a deixou escapar naquele dia: Klud a salvara dele.
Yanaamahka suspirou e mergulhou, emergindo segundos depois.
— Eu realmente acho que você deveria falar com ele, na’na. Eu acho
que... como posso dizer isso? — as bochechas do menino ficaram
vermelhas. — Klud deve amar você.
Era uma palavra indiferente e distante.
Yanaamahka não sentiu nada ao ouvir a verdade.
— Eu não amo ele.
— Eu sei que não. — Tiggrë continuou e fez um gesto para que ela
saísse da água. Yanaamahka mergulhou uma última vez antes de retornar
para a margem e se cobrir com o manto. — Não somos obrigados a amar
ninguém, na’na, o que importa é que ele a conhece melhor que ninguém.
Klud pode te ajudar a te entender melhor.
Tiggrë a ajudou a se vestir e limpou o ferimento com ervas que
carregava na bolsa.
— Dê a ele uma chance de se explicar.
Klud a agarrara pelo pescoço e a derrubara da montanha da última vez.
Yanaamahka não via o porquê dar uma chance a ele — mesmo que o
homem fosse alguém que guardasse um passado ao lado dela. Ela tinha, de
fato, muitas perguntas relacionadas a ele. Sobre a montanha. Sobre o Fogo
Azul. Sobre o dia que aquele draconiano de olhos cor-de-sangue os atacara.
— Eu quero procurar uma erva que o senhor Roren disse que cresce
nos oásis do Grande Deserto. Enquanto isso... — e o menino ajeitou um fio
de cabelo que estava cobrindo o olho dourado dela. Era incrível pensar que
ele, com apenas doze anos, crescera mais que dez centímetros nos últimos
meses. Tiggrë estaria maior que ela quando fosse um adulto. — por que não
conversa com ele?
— Eu prefiro ir com você.
— Por favor, na’na, faça esse esforço!
— Por que você se importa tanto com ele? — e ela suspirou.
— Não é que eu me importe. Klud nunca fez nada para merecer minha
preocupação, as vezes eu me incomodava com o jeito dele, mas eu acho que
entendo o que ele sente. É empatia, na’na, é isso que sinto por ele.
— Empatia?
Tiggrë sorriu.
— Eu explico o que a palavra significa depois. — ele juntou a bolsa.
— Converse um pouco, eu volto logo em seguida, tudo bem?
O vento soprou e causou um arrepio na pele parcialmente úmida dela.
— Não demore. — Yanaa respondeu e o viu se afastar, as mechas
vermelhas iluminadas pela lua. — Tiggrë! — e ela sentiu a necessidade de
chamá-lo novamente.
— Eu não vou demorar! — ele ergueu o braço e acenou. — Espere por
mim!
De repente, o peito de Yanaamahka ardeu como se a distância a
dilacerasse, como se a distância roubasse o sorriso de Tiggrë e o carregasse
para uma escuridão infinita. A estrela respirou fundo e olhou para trás, para
a direção que o homem estava. Não era o que queria fazer, conversar com
ele, mas o fez pelo menino, pelo pedido ingênuo. Caminhou devagar, os
cabelos pingando sobre a roupa, a respiração entrecortada pelo frio.
Mas o vento a incomodou de repente.

Yanaamahka morreu no mesmo dia que sua mãe e o que temos agora é
alguém diferente, uma Yanaamahka diferente, renascida.
As palavras de Roren sempre o incomodaram, o modo que o humano
se manifestava em relação a Yanaamahka. Ele insistia que o passado, o
sentimento entre ambos se fragmentou com o tempo; e o que restava era
somente imagem, uma idealização conservada por Klud durante sua espera.
Ele era cego, e talvez esse fosse o motivo que o fizesse insistir naquela
imagem. No filhote de dragão, na Estrela da Noite, naquele pequeno
fragmento dourado que iluminava o mundo dele.
Yanaamahka era, e continuava a ser, a única que conhecia a verdade.
O homem suspirou e ouviu os passos dela, o vento soprando a presença
dela. Aproximava-se, lenta e cautelosamente; as mãos inquietas, a
respiração perdendo a sincronia. Ele a ouvia, tudo e cada movimento; ele a
sentia, tudo e cada hesitação. Porém não a via — porque o tempo estava o
fazendo esquecer como ela era no passado também; e sequer tinha uma
noção do presente ou teria do futuro. Klud colocou a mão sobre a areia e a
ouviu parar, o vento trouxe a localização dela: a exatos seis metros de
distância dele. Se fosse outro, estaria contente em os seus sentidos
aguçados. Era um caçador nato, mas ele trocaria tudo pela visão, pela
possibilidade de ver o céu e o mar... e ela.
Ele suspirou de novo e agarrou um punhado de areia entre os dedos.
— Eu nunca pensei que eu me sentiria cansado de esperar por você.
Mas o cansaço está cada vez maior... — ele murmurou esperando que ela o
ouvisse. Yanaamahka era um dragão, era mais dragão que ele; logo, ouvir
em meio as lufadas de vento não seria um problema. — Talvez eu tenha
esperado demais e nunca tenha recebido nada.
— Então para de esperar. — as palavras dela eram como o deserto que
os cercava.
— O que me restaria? — e o homem se perguntou. Se deixasse de
esperá-la, se deixasse a promessa com a antiga Yanaamahka desaparecer, o
que restaria a ele? Era vazio, sem nada, sem ninguém, perdido em um
mundo que nunca o aceitaria. Klud apertou a areia até que sua mão doesse.
— Eu vivi todos esses anos somente por isso... eu não sei fazer outra coisa a
não ser esperar.
Klud a ouviu dar um passo em frente.
— Eu apenas quero estar com você como antes. Como éramos antes.
— ele continuou. — Eu quero te ajudar a voltar ao normal.
— Eu sou normal.
— Mas você não é mais a mesma.
— Eu nunca mais vou ser a mesma... depois do que vocês fizeram
comigo.
Não foram as palavras que doeram, ele esperava por elas, mas o modo
que foram proferidas: cobertas por frustração, ódio e raiva. Sentimentos que
a Yanaamahka do passado nunca carregou. Era verdade, Roren estava certo:
a Estrela da Noite estava morta, e lá, diante dele, estava alguém diferente da
qual amara antes, alguém com o cheiro dela, mas sem qualquer semelhança
na personalidade. O homem respirou com dificuldade e se levantou,
decepcionado. Talvez ele também não conseguisse voltar ao normal depois
de doze anos de espera. O que o incomodava, porém, era o porquê.
Por que Yanaamahka não era mais Yanaamahka?
Quem fizera isso com ela?
...e por que ele simplesmente não conseguia a deixá-la ir?
Klud deu um passo na direção dela, buscava palavras, qualquer solução
para o vazio que crescia em seu peito, mas o vento trouxe a ele um cheiro
diferente.
— Draconiano. — ele murmurou e elevou os olhos além dela. O
coração de Yanaamahka disparou: ela se virou e correu depressa.
Klud a seguiu, porque, no fundo, aquele cheiro lhe era familiar.
— O Tiggrë tá do outro lado! — ela disse enquanto corria,
cambaleando, o ferimento se abrindo em sua barriga. Klud sentiu o cheiro
forte de sangue dela e também o cheiro de medo. Uma rajada de vento
atravessou o deserto e o fez estremecer: correu e seguiu a mulher-dragão,
embora cada passo dele estivesse carregado de hesitação.
Porque a presença no vento era alguém que ele precisava evitar.
Yanaamahka parou e ele parou também.
...e ele ouviu a respiração do estranho a frente.

Ele estava com Tiggrë.


Yanaamahka não respirou. Porque aquele homem, o mesmo homem
que ela arrancara três dedos com a boca, estava com Tiggrë. O menino
estava quieto, a respiração acelerada, o olhar nela, contendo qualquer medo
que pudesse fazê-lo sucumbir, qualquer medo que pudesse causar uma
reação inesperada nela. Mas Yanaamahka não conseguiria se conter por
muito tempo: não quando o draconiano estava com a espada deslizando
pelo pescoço dele, lambendo a garganta dele. O guerreiro o segurava pelos
ombros, esperando, ameaçando, provocando.
As mãos dela estavam tremendo.
Seu corpo, porém, era como uma pedra de gelo; imóvel e fria.
Bastava um movimento... um movimento e a vida de Tiggrë
desapareceria. A possibilidade a fez arder em raiva e, principalmente,
medo. O homem a encarou, os olhos vermelhos, quase rubros, brilharam
sob a lua.
— Você deve lembrar de mim, sua vagabunda. — ele exclamou com
desdém, os dedos decepados cobertor por uma luva negra. Entredentes, o
homem segurou Tiggrë com força e cuspiu as palavras. — Pensou que
escaparia?
— Solta ele. — a voz dela era um murmúrio forçado.
Yanaamahka queria gritar e avançar, quebrar o maldito pela ousadia.
— Agora.
— Você tirou algo de mim, querida Estrela da Noite. Vai ser uma troca,
o que acha? Eu vou tirar algo de você também.
Não, ela estremeceu.
Tiggrë não tinha nada a ver com a caçada. Era um menino... um
menino que sonhava encontrar o desfiladeiro com ela. Yanaamahka não
permitira que ele sofresse por ela.
— Sou eu que vocês querem! — e exclamou. — Vocês podem me
levar! Deixa ele!
Eles não a pegariam.
Yanaamahka escaparia deles como sempre fizera.
— Na’na... Está tudo bem. — Tiggrë tentou se pronunciar e o homem
o apertou com força. Uma linha de sangue escorreu no pescoço dele.
O dragão estava rugindo dentro dela. Se ela se transformasse, o
draconiano poderia atacar o menino.
A estrela respirou fundo e controlou a besta em seu peito.
— Então... a querida Estrela da Noite quer trocar a vida com a de um
simples humano? — o draconiano riu doentio.
Yanaamahka deu um passo à frente e o guerreiro sorriu para ela.
Nos olhos cor-de-sangue, o nome de Belpheggör viera a ela.
— Sim... eu vou com vocês. — ela respondeu.
— Veja, humano. Que história linda! — Leovrumund dizia com uma
melancolia forçada. — Nasceu para ver um dragão... não, melhor, uma
Estrela da Noite oferecer a vida pela sua. — e, de repente, o homem o
soltou. O menino se manteve imóvel, com medo. — Vá com a sua estrela,
aproveite, estou de bom humor hoje!
Tiggrë olhou nos olhos de Yanaamahka, temendo. Ela assentiu, uma
mensagem silenciosa de que as coisas estariam bem.
Elas precisavam ficar bem, a promessa de dias melhores.
...e o pequeno tigre deu um passo na direção dela.
O último passo.
A lâmina draconiana o atravessou pelas costelas.
Yanaamahka congelou, o mundo congelou com ela — e seus olhos só
puderam presenciar aqueles segundos inevitáveis: o corpo de Tiggrë se
arqueou para a frente quando a espada se retirou e, depois, entrou pela
segunda vez, rasgando pele e carne. A terceira, então, atingiu a nuca,
atravessou a garganta e o engasgou. O menino vomitou sangue, sussurrou
uma palavra inaudível e seu corpo desmoronou na areia.
Sangue e areia.
Sangue e...
Yanaamahka sufocou o próprio grito. Ela se moveu, cega, em cólera, e
sequer chegou a dar segundo passo. Um dragão rugiu atrás dela e a agarrou
com uma das patas dianteiras, a erguendo no alto, rugindo para o céu
enquanto as asas ruflavam depressa. No horizonte, luzes; e no deserto,
homens.
Um esquadrão inteiro de draconianos se aproximava do oásis.
Um esquadrão inteiro para caçá-la.
O corpo dela se debateu entre as garras que a prendiam, a voz presa, a
pele gelada; e, então, de repente, ela encontrou o escuro.
Mas não encontrou Tiggrë.
C A P Í T U L O C I N Q U E N TA E C I N C O

O AMANHÃ QUE NÃO VEIO

A MENINA OBSERVOU O HORIZONTE.


Incontáveis dias se passaram desde que a necessidade a fez se despedir
da Floresta Viva e embarcar em uma jornada ao Grande Deserto. Roren
dissera ser necessário, seguro; embora houvesse insistido em ficar na
floresta. Esse é o meu lar, Luce, dissera o homem, mas sua mãe e você
merecem uma vida melhor. Ela, porém, estava satisfeita com aquela vida
entre as árvores, na paz que reinava, na companhia de seu dragão e ouvindo
as histórias de Tiggrë. Mas os presságios de um inimigo de aço — um
dragão de aço — a fez acreditar que o mundo poderia não ser seguro como
pensava.
Então abandonou a floresta ao lado da mãe e de seu dragão.
Talvez podemos encontrar Tiggrë e a moça-dragão por lá, foram as
palavras dela ao dragão. Infelizmente, Mom-mom não pode acompanhá-las
de perto. Os caçadores eram muitos, era difícil esconder um dragão de
quase sete metros e os draconianos o encontrariam facilmente se andasse
com elas. Por outro lado, embora distante, o dragão sabia quando deveria
protegê-las. Ocorreram algumas tentativas de roubo na estrada, uma mulher
e uma menina eram alvos fáceis, mas o dragão impossibilitou qualquer
fatalidade. Ele as protegia de longe; era como um guardião silencioso que
espreitava nas sombras.
Se o chamasse, Mom-mom viria.
— Você acha que o senhor Roren tá bem, mamãe? — a menina
perguntou, ambas caminhando contra o pôr do sol. Mare carregava uma
pesada trouxa de pertences, todos amarrados em suas costas. — O dragão
de aço que eu vi... eu tenho certeza que era real.
— Foi um pesadelo, minha menina. — a mãe sorriu, embora uma
tristeza profunda parecesse habitar a expressão dela.
— Mamãe. — Luce a chamou. — Talvez o senhor Klud também tá na
capital.
As feições da humana se suavizaram.
— Dragões não podem ficar na capital, minha menina.
— Mas vamos dar um jeito, não vamos? — Luce insistiu e saltitou a
frente, observando o horizonte como se procurasse seu companheiro. As
feridas do ataque estavam cicatrizado; no rosto, apenas um olho cego, um
detalhe que a menina aprenderia a viver. — Eu não quero abandonar o
Mom-mom. Quem vai proteger a gente do dragão de aço?
— Não existe nenhum dragão de aço, Luce.
— Eu vi, mamãe! Um dragão enorme e feito de aço! Eu espero que ele
não encontre o senhor Roren ou ninguém... — a menina se encolheu e
abraçou o próprio corpo. — Eu espero. — repetiu.
A mãe a ignorou e seguiu em frente, obrigando Lucinda a fazer o
mesmo. Solnascente estava próxima, uma nova vida também... mas, no
fundo, a menina acreditava que aquele recomeço não seria fácil.
Ela olhou para trás e um calafrio atravessou o seu corpo.
Que o mundo salvasse todos do Dragão de Aço.

Primeiro uma brancura intensa.


Depois, escuridão. Sombra. Trevas. Penumbra. Breu. Medo.
Yanaamahka abriu os olhos com um sobressalto, o corpo humano
estremecendo contra as lufadas geladas que sopravam sobre a areia. As
ondas se desmancharam na praia e o cheiro de água salgada a encontrou, as
mãos parcialmente molhadas na umidade do litoral. A estrela se levantou,
tonta, zonza, confusa, os pensamentos se chocando uns aos outros; o
passado, as horas anteriores, tudo perdido na escuridão daquela noite. Ela
olhou para o céu, as duas estrelas, a lua; e se perguntou sobre o que
acontecera antes.
Onde estava o deserto?
Onde estavam todos?
Ela levantou o tronco e sentiu o ferimento arder. Colocou a mão sobre
ele e percebeu uma atadura improvisada, manchada de sangue. Yanaamahka
respirou fundo na tentativa de organizar os acontecimentos. A fuga, os
esgotos, o deserto, o oásis... e depois nada. A cabeça dela doeu e ela
levantou o olhar: o dragão azul estava diante dela. Klud estava parado. Asas
erguidas, focinho inclinado.
— Yanaamahka... — e o nome dela, o maldito nome dela, trouxe as
lembranças do passado.
— Onde tá o Tiggrë? — os lábios tremeram.
— Yanaamahka... — o dragão repetiu, o pescoço se arqueou na direção
dela, movendo o focinho como se tentasse vê-la. — Ele estava...
— Onde ele tá?! — e ela gritou, negando a realidade, negando as
imagens, o sangue, os golpes. Yanaamahka conhecia a resposta: o pequeno
estava morto. Tiggrë estava morto. Por causa da caçada. Por causa deles e
dela; e o corpo do menino ficara para trás, no deserto, abandonado sobre a
areia, sem uma chance de ser enterrado.
O tempo o enterraria.
Yanaamahka ficou gelada: ela podia trazê-lo de volta como Rhenna
fizera no passado ao dar metade da vida pelo filho.
Ela podia trazê-lo de volta se encontrasse o corpo dele e... tudo parou.
Klud não respirava, o vento não soprava e a roda do tempo congelara.
A presença safira, então, escapou do corpo da estrela e se materializou
diante dela: a entidade de vida a encarava. Mahoutsukai deixara o exílio da
alma de Yanaamahka para, carregada de uma expressão de desdém e
desprezo, julgá-la. A forma da deusa estava pela metade, o resto dos traços
eram meras fagulhas de fogo azul que se esforçavam para se manter
acessos.
O fogo era fraco porque a herdeira era fraca.
Tu não podes trazê-lo de volta, e as palavras destruíram o resto da
resistência que a estrela se agarrava. Tu és fraca, prepotente e ignorante; e
não tem poder suficiente para suportar duas vidas, muito menos a tua.
A boca de Yanaamahka se abriu para responder, mas a falta de palavras
a impossibilitou.
Que essa morte sirva de exemplo. Que essa morte mostre que todos
são mortais. Que todos podem morrer... e não podemos fazer nada para...
— Traga ele de volta! — foi o que ela conseguiu gritar, parte da voz
sufocada na garganta. — Deusa desgraçada! Traga... — e caiu de joelhos,
perdendo todo controle no qual se escondia. — Traga Tiggrë de volta... pra
mim.
Não, a resposta era seca.
Não, Yanaamahka observou a deusa e refletiu a negação.
Não, uma palavra. Somente uma palavra fora o suficiente para derrotá-
la, o suficiente para arrancá-la daquela inútil tentativa de controle. A Estrela
da Noite mordeu os lábios.
— Eu espero que você desapareça... junto com suas mentiras e
promessas falsas... — e a voz dela era um sussurro entorpecido. —
Desapareça junto dessa essência que de nada serve... que não... não...
Ela não conseguia terminar; nos olhos, sentiu algo crescer.
Eram lágrimas, depois de tantos anos sem lembrar como se chorava.
Eu nunca vou desaparecer... por mais que eu quisesse me livrar de ti.
Estou conectada a tua alma e vida.
— Eu não quero! Eu disse para você desaparecer! Desapareça!
A expressão de Mahoutsukai ficou severa, irritada. A entidade emitiu o
que deveria ser um suspiro, um murmúrio; depois, antes da energia azulada
se dissipar completamente e normalizar o fluxo temporal, manifestou algo
que mudava tudo, uma verdade que Yanaamahka esperava nunca ouvir.
A maldição que teu progenitor derramou sobre ti é irreversível,
inquebrável. Tu nunca irás recuperar o que perdeu, as lembranças que ele
lhe tirou, nada. Serás sempre essa casca vazia sem passado.
As lágrimas escorreram as bochechas da estrela.
Todo esse tempo, tu procuraste por algo que não existe.
...chegaram ao queixo e caíram sobre a areia.
Todo esse tempo, tu deixaste de viver o presente porque estava vivendo
o passado.
Yanaamahka encarou a deusa, sem reação. A verdade caíra pesada
sobre as costas dela: era maior que o mundo, mais sombria que a morte.
Todo aquele tempo, aqueles meses... insistira em um passado que não mais
existiria, um passado perdido, para, então, perder também o presente?
— Você tá mentindo. — foi tudo o que ela conseguiu dizer. — Você tá
mentindo como sempre... fez.
A imagem de Mahoutsukai começava a desaparecer lentamente.
Tu estás negando porque sabe que é verdade, e a entidade se tornou um
pequeno fragmento de luz, mas tu sabes, no fundo, que a escuridão que lhe
persegue tem um motivo: tu nunca irás lembrar do que era ou foi.
O rosto da deusa se tornou um mero borrão.
Nunca mais.
Mahoutsukai desapareceu e o vento voltou a soprar, o dragão a respirar
e o tempo a fluir. Mas Yanaamahka não: ela se manteve parada, absorta
naquelas últimas palavras. Ela viveu o presente cega, buscando o passado e
perdeu a oportunidade de refazê-lo. Uma súbita dor, mas não física, era seu
coração que doía, fez o dragão despertar e surgir na noite. Ela era como a
noite — nada previsível, indecifrável, uma fúria indomada. Era, antes de ser
uma Estrela da Noite, uma Estrela Caída, perdida e quebrada. Por isso
atacou: Yanaamahka saltou urrando contra o outro dragão que a
acompanhava.
Klud não esperava o ataque, talvez estivesse imerso demais nas
lembranças que guardava, lembranças que ela não tinha; e recebeu o peso
do corpo semelhante. Escamas duelaram sob a luz da lua — safira e
obsidiana. A diferença de tamanho era acentuada, ele era maior; contudo,
não ousava atacar, apenas defender, evitando o embate. E quando a defesa
falhava, o dragão se deixava ferir, amedrontado com a possibilidade de
destruir o que restava de Yanaamahka.
Ele rugiu em um pedido de trégua, calma; a estrela não ouviu: ambos
rolaram, grunhidos se propagando na paisagem, as ondas os alcançando. O
macho se colocou sobre a fêmea, ele temeu machucar a asa ferida dela, mas
a insistência e os golpes corporais que ela desferia usando o peso das
próprias membranas o deixou aliviado: Yanaamahka estava conseguindo
mexer ambas as asas, embora uma delas possuísse um movimento mais
lento.
A Estrela da Noite mordiscou o ar quando o dragão maior saltou para
trás, bateu as asas e pousou sobre a areia — dois metros de distância. Ela
rosnou, o corpo tremendo em cólera.
— Eu não quero machucar você. — ele sussurrou; e o peso das
palavras impulsionou a fúria da fêmea. Ela rugiu, encheu os pulmões de ar e
cuspiu cinzas ao tentar libertar suas chamas. O fogo desaparecera dela,
junto de qualquer resquício de essência. Então, sentindo os tremores se
estenderem pelo corpo, a estrela saltou contra seu adversário. Contudo, não
esperava a mudança abrupta: ela retornou a imagem humana num segundo,
recebendo o peso da pata do semelhante no outro.
Yanaamahka rodopiou no ar e caiu na margem.
Klud a atingiu na cabeça: o sangue escorreu pela testa dela, manchando
o canto direito do rosto inteiro. Mas ela não sentiu dor — talvez sentisse,
mas estava tão fora de si, tão distante, que não expressou nada, somente
indiferença. Yanaamahka cambaleara numa tentativa de se levantar e caiu
de joelhos antes que o dragão, agora na forma de homem, corresse na
direção dela. Klud a abraçou, murmurando inúmeros pedidos de perdão,
desculpas e manifestações de arrependimento.
Yanaamahka ignorou todos.
— Desapareça você também. — ela sussurrou.
Klud se afastou centímetros dela.
— Eu prometi que iria te...
— Foda-se as suas promessas! — ela o empurrou em cólera, os caninos
rangendo para controlar a raiva e a vontade de esmurrá-lo. — Vá embora
daqui! Desapareça! É tudo culpa de vocês, todos vocês... dragões,
draconianos, qualquer desgraçado que fica me perseguindo como se eu
fosse a merda de um prêmio! — as palavras saltaram da boca dela, termos
que sequer conhecia, mas que aprendera na caçada. — Me deixem em paz!
— Você não está pensando com...
— Cala boca! — ela gritou e tentou empurrá-lo de novo, mas o toque
na pele dele fez o mundo escurecer.
...e se iluminar.
Kluddihargën não se encolheu diante o homem à sua frente. Era quase
três metros, um porte monstruoso e um olhar inquisitivo. Se havia algo que
nunca sucumbiria era o olhar dourado do homem-dragão que o julgava.
Vlanhonder era indiferente com todos, mas com ele, havia um problema: o
Dragão dos Dragões não gostava de Klud — e gostar era um eufemismo.
Se pudesse, se não fosse condenado pela filha, Vlanhonder mataria o
menino; e este tinha conhecimento desse ódio profundo, embora não
nutrisse sentimento semelhante. Nenhum, na verdade. A indiferença era a
mesma que Klud partilhava com o restante do mundo: simplesmente não se
importava.
“É meu último aviso, sua aberração.” Vlanhonder murmurou raivoso,
uma expressão sombria que teria amedrontado qualquer um que ousasse
desafiá-lo. “Eu quero você longe dela, longe da minha Yanaamahka.”
“Ameace o quanto quiser, eu não vou...”
“Escute com atenção, sua aberração maldita!” e o homem
interrompeu o garoto. “Você deveria estar morto, deveria ter sido abortado
pela desgraçada que o gerou. É por isso que você foi abandonado: não tem
identidade. É um ninguém, um nada. O que você acha que é? Um dragão
como nós?”
“Eu não sei... mas não muda nada do que sinto por Yanaamahka.” a
resposta fez o mais velho reagir violentamente: Vlanhonder o acertou com
o punho fechado. Klud desmoronou no chão, cuspindo não apenas sangue,
mas cinco dentes quebrados.
“Amor é uma ilusão.” o homem murmurou ao juntá-lo. Vlanhonder
forçou Klud a encará-lo; contudo, surpreendeu-se ao notar que todos os
dentes perdidos haviam nascido novamente na boca do garoto.
Regenerados em segundos. Regenerados na mesma velocidade que o Fogo
de Safira. “Quem era sua mãe? Uma Estrela da Noite?!”
“Eu não sei...”
A conexão se quebrou e o mundo se reconstruiu ao redor de
Yanaamahka.
Ela caiu sobre a areia, uma onda lhe atingiu, enquanto o homem, a mão
no rosto, afastava-se. Sangue escorreu entre os dedos dele — a mesma
reação que Demétrius tivera quando ela entrou no passado que o pertencia.
Era o que lhe restava então: mergulhar nas lembranças dos outros enquanto
as dela estavam despedaçadas, fragmentadas e destruídas. Seria esse o
motivo de ter recebido o Fogo de Safira? Por que o destino desde o começo
planejou esvaziá-la? Não... Yanaamahka balançou a cabeça e se distanciou
daquelas perguntas.
Ela não acreditava em destino.
Acreditava, sim, em traição: o pai a traíra e roubara tudo dela.
— Você precisa ver de novo... mais. — as palavras de Klud a
assustaram. Antes que pudesse se levantar, o homem se aproximou dela e a
tocou. A essência reagiu, urrando dentro dela.
Mas Yanaamahka repeliu o toque.
— Tire as mãos de mim! — ela gritou e o empurrou. — Não ouse tocar
em mim de novo, desgraçado!
— Eu quero que você veja, que você entenda como éramos no passado.
— Nada vai mudar! Nada vai mudar nunca! — e repetiu: do que
adiantava ver um passado que não mais existia para ela? — Eu não posso
mais me lembrar! Eu nunca mais vou lembrar de nada!
Klud se manteve imóvel.
— Vlanhonder. — ele murmurou. — É culpa dele?
— Ele destruiu tudo... — Yanaamahka cobriu o rosto e trincou os
dentes. — Ele me tirou tudo... vocês me tiraram tudo.
— Eu vou encontrá-lo... — Klud anunciou com o vento abafando sua
voz. Aproximou-se dela, porém fora rejeitado. Yanaamahka o afastou sem
palavras, a expressão fora o suficiente, dentes expostos e olhos raivosos; e
por mais que o homem não enxergasse, soube que não deveria continuar. —
Eu vou encontrar Vlanhonder e vou fazer ele pagar pelo que fez com você.
— e, de repente, Klud estendeu a mão na direção dela. — Mas, por favor,
venha comigo. Vamos encontrá-lo juntos.
As palavras encheram os olhos da Estrela da Noite de lágrimas.
Vamos encontrá-los juntos.
Era o que Tiggrë dissera — era o que o fizera acreditar que, de fato,
encontrariam juntos. Mas não, o mundo não deixara: ele a amaldiçoou com
o fracasso.
— Não. — e a mulher-dragão teria dito sim se as circunstâncias fossem
outras. Se fosse o menino a estender a mão e sorrir para ela. — Não.
Klud manteve a mão estendia.
— Por favor... — a voz dele vacilou.
— A sua Yanaamahka está morta.
Yanaamahka se levantou devagar.
— Ela nunca mais vai voltar.
Ele não baixou a mão.
— Desista.
...e o punho de Klud, estendido, se cerrou.
Yanaamahka percebeu, então, a expressão dele: as cicatrizes poderiam
escondê-la, lá estava a decepção, a dor, a impotência.
Mas ela dissera somente a verdade: a Yanaamahka daquele passado, a
Yanaamahka que ele amava, estava morta, assassinada por todos aqueles
que, sem olhar para trás, a abandonaram e esqueceram naquele calabouço
gelado.
— Então encontrarei uma forma de trazer você de volta. Custe ou não
a minha vida. É minha última promessa. — e o homem deu lugar a fera
azulada. O dragão a encarou, incapaz de vê-la; depois, como se a noite o
engolisse, saltou rugindo na direção do céu.

Os olhos do comandante estavam pesados.


Incontáveis horas se passaram para que as baixas na cidade fossem
organizadas, os habitantes realocados e a destruição reconhecida. Os
draconianos se preocuparam em caçar os rastros do dragão que atacara o
palácio e matara o rei Gureryne, mas o inimigo desapareceu sobre as areias
do Grande Deserto. Eles vasculharam a capital inteira: interrogaram
suspeitos, invadiram os esgotos e arrombaram casas nos distritos mais
afastados. Nada além de poeira, sangue e vento. Era uma derrota, os
draconianos consideravam o evento uma derrota para ambas as nações. Eles
perderam a Estrela da Noite, o motivo mais forte para estarem em
Tannenberia; falharam com a defesa da cidade durante as festividades, que
não ocorreriam; deixaram o soberano perecer entre as pressas do inimigo
maior. Não somente, o Superior Kaelus também fora assassinado — e o
comandante Ahuriel não acreditou quando lhe contaram a verdade. Sua
mulher o havia matado. Lunaysis era a assassina; o que fez o draconiano se
perguntar quem ela era. Ele realmente não a conhecia, cinco anos sem
realmente conhecê-la, sem suspeitar que a mulher que carregava seu filho
estava amaldiçoada.
Ahuriel piscou para se manter acordado — e talvez para distanciar sua
irritação. Estava numa reunião em uma das salas que se mantivera intacta
no castelo, embora fissuras crescessem nas paredes. Os móveis estavam
cobertos de poeira, os utensílios de louça, as relíquias de séculos
sucumbiram aos tremores do inimigo. Presentes, estavam os superiores
humanos: o príncipe Serge, seu guardião juramentado e outros homens que
tinham privilégios no território real; e os superiores draconianos: o general
Belpheggör, seu filho Leovrumund, o cavaleiro Hanzor e o próprio
comandante. A general Rhenna, sentenciada por traição, estava foragida,
assunto que deixara Ahuriel surpreso. Ela também era uma Mulher
Amaldiçoada, vivendo dentro do império.
Era vergonhoso para o comandante pensar como nunca percebera.
Ele colocou uma mão sobre o rosto e suspirou, gotas de suor escorriam
pela pele, a armadura negra coberta de poeira e sangue. Essa era a aparência
de todos: ninguém tivera o luxo de descansar ou se limpar antes da reunião.
Ahuriel, porém, demonstrava maior fadiga que os demais: ele estivera na
linha de frente contra o inimigo, enfrentara o gigante e suas chamas mortais
e matara o seu cavaleiro juramentado, Eun-seo, após a traição. Apesar na
morte do pai, o cavaleiro Hyun-seo pareceu pouco afetado — embora
Ahuriel estivesse irritado com o fato de seu subordinado ter falhado em
encontrar Lunaysis.
Eu a perdi pelos esgotos, dissera Hyun-seo.
Ahuriel suspirou pela segunda vez antes de se concentrar na conversa.
— Infelizmente. — ele pegou metade da fala de Belpheggör. O general
estava em pé, frente a mesa retangular de uma madeira pesada. Os demais
estavam sentados em assentos semelhantes, com exceção do príncipe. Era
uma cadeira semelhante a um trono, ornamentada com detalhes que
lembravam o sol. — O importante no momento, querido príncipe, é nos
preocuparmos com a reconstrução da cidade. Apoie teu povo. Eles precisam
de ti agora e não mais como um príncipe, mas um rei.
Serge suspirou, desajeitado na cadeira que o falecido pai ocupava.
— Sopoente está destruído... levará meses para que ele seja
reconstruído. Nesse tempo, estaremos vulneráveis. Muitos guerreiros
morreram durante o ataque... um só dragão fez isso. Um. O que acontecerá
se outros nos atacarem? Estaremos perdidos. — o príncipe dizia com pesar
e preocupação. — Nosso superior também morreu. Kaelus era quem
liderava as forças e todos os assuntos do império. Sem ele, muito se perdeu.
— O império de Aumastris dará todo o apoio que precisa, Majestade.
— Belpheggör se curvou levemente. — Retornaremos a Aumas em breve
para conversamos com o imperador. Ele enviará escravos e guerreiros para
que tu reconstruas a cidade.
— ...e quanto a Estrela da Noite? — Serge perguntou.
— Fugiu. — o general respondeu com desdém, como se a palavra
fosse amaldiçoada. — Mas a encontramos junto com o dragão que atacou a
cidade. Eles não escaparão.
— Eu a quero. Não pelo o que ela vale, mas pelo que me causou: toda
a destruição é culpa dela. — Serge se levantou. — General Belpheggör,
darei todos os privilégios que desejar se me trazer a cabeça dela.
Ahuriel percebeu o sorriso no rosto do general, o modo como a oferta
lhe agradava.
— Será uma honra. — e o homem se curvou. — O que mais posso
fazer por vossa Graça? Suponho que tenha algo a pedir.
— Tenho. — o príncipe olhou para os demais draconianos como se
estivesse os analisando. — Preciso que um de seus homens fique na capital.
Um de seus comandantes, alguém que auxilie os Guerreiros do Sol por um
tempo, que os comande. Kaelus era o único capaz de treinar bons homens.
Serge pedira apenas um dos comandantes — mas Ahuriel era o único
presente na reunião. Só que não deveria. Ele observou os demais,
procurando por Khan, o segundo comandante, quem deveria estar presente,
e não o encontrou. Belpheggör também procurou pelo draconiano,
arqueando as sobrancelhas ao perceber a ausência deste.
— O comandante Khan está na cidade? — questionou o general.
Um humano cochichou no ouvido do príncipe. Serge o ouviu
atentamente, depois pareceu surpreso e decepcionado.
— Há rumores que o comandante Khan fugiu da cidade carregando
uma mulher sobre o cavalo. — Serge comentou. Um silêncio se instalou no
ambiente, carregado pelo respirar pesado do general Vanadis.
— Ahuriel ficará em Tannenberia. — e ele anunciou com uma calma
encenada. Belpheggör escondeu a raiva e frustração no íntimo de seu
sorriso cínico, mantendo a postura. — É o segundo melhor guerreiro que
temos, Majestade. O comandante fará um bom trabalho ao teu lado.
Serge assentiu.
Ahuriel, porém, manteve-se inexpressivo.
Ficar em Tannenberia.
Ele teria a oportunidade para desbravar os quatro cantos do continente
e encontrar a Mulher Amaldiçoada que ousou enganá-lo.
Lunaysis não iria longe.
O comandante, então, levantou-se e se curvou perante o príncipe, agora
rei.

A escuridão tinha cheiro de morte.


Eram corredores pútridos e gelados que nenhuma alma ousaria vagar, e
se ousassem, a insanidade estava à espreita para corromper qualquer mente
sã. Jamais existira um homem que sobrevivesse ao coração da montanha de
Vastamere, na costa leste do continente de Aumastris. Os rumores diziam
que os sussurros dos mortos perambulavam na escuridão, seus olhos opacos
observavam de todos os cantos e os braços agarravam os intrusos para
serem devorados nas sombras. Uma fábula, porém, para aquele homem,
embora fosse verdade que a montanha devorasse os desafortunados. Mas
não eram os mortos que espreitavam os cantos nefastos; e, sim, uma
criatura sedenta.
Até os mortos de Vastamere a temiam.
Belpheggör não.
Porque fora ele quem moldara aquele pedaço vivo de escuridão.
Era por isso que caminhava no coração da montanha como se estivesse
em campos floridos: a penumbra lhe era íntima; o silêncio, uma canção de
ninar. O draconiano avançou pelos corredores acompanhado pelo tilintar da
armadura negra. Sem luz — a única chama bruxuleante na penumbra era a
de seus olhos. Ele não precisava de um mapa para caminhar pelo calabouço.
Encontraria o caminho mesmo se fosse cego. Era um ambiente que
admirava; não pela construção, mas pela criança, sua criança, que lá
residia. Preciosa e selvagem, costurada e criada a partir de seus
experimentos, sua ambição.
Ele deveria estar faminto, furioso. A última refeição decente fora há
tantos anos.
Belpheggör abriu uma passagem com uma alavanca e a atravessou com
elegância, despreocupado com a possível recepção de sua criatura. Um
vasto salão negro se estendeu na frente do draconiano. A iluminação era
escassa, mas ele podia ouvir uma respiração pesada se aproximar com
instinto assassino. Um rosnado impregnado de cólera veio em seguida e,
então, a escuridão se iluminou em chamas vermelhas — e a luz delas se
propagou pelo ambiente. Um dragão negro se revelou, gigante e metálico.
A maior parte do corpo da fera estava coberto por grossas placas
metalizadas: Aço de Cristal. Um olho estava costurado, ele o perdera
durante uma tentativa de rebeldia; o outro, dourado, piscava entre o que
restava das escamas, trocadas pelo aço.
O tamanho dele era assustador. Trinta metros de altura — quase a
metade do tamanho do Dragão dos Dragões.
E cresceria mais: estava recém entrando na fase adulta.
O fogo que ele lançara na direção do general se desfez, desaparecendo
nas sombras do poder que Belpheggör carregava nas veias; e o calor, como
se fossem dois sóis juntos, sequer o afetou. O homem sorriu.
— É assim que me recebes depois de tamanha ausência? Ah, meu
querido. Pensei que houvesse superado. — Belpheggör olhou ao redor, o
fogo se prendeu nas paredes e iluminou cada centímetro cinzento do salão.
A cor não era pela decoração. Muito antes, o chão era marfim, mas o
tempo, e os criados que foram queimados tentando alimentar a criatura, o
tingiu. Correntes de Aço de Cristal estavam acopladas nas quatro patas da
fera, tão apertadas que as escamas foram exprimidas a ponto de sangrarem.
— Tu deverias me agradecer, meu querido. Conceder-te-ei finalmente a
liberdade... condicional.
O dragão de aço se manteve parado, o pescoço inclinado; ele não
poderia erguê-lo, o ambiente não era alto o suficiente.
— Desça. — Belpheggör ordenou com um gesto. O dragão o fez,
embora o general soubesse que não era por obediência e, sim, porque era a
única alternativa. Criatura rebelde a sua, incapaz, porém, de escapar. O
focinho dele quase tocou as cinzas, dentes salientes na boca também eram
de aço; os antigos haviam sido substituídos, o mesmo acontecera com os
chifres e as garras. — Um nome, meu querido, é o que lhe darei; e, então,
quero que a encontre.
A fera ouviu atentamente.
Era incapaz de falar — Belpheggör fizera questão de arrancar a língua
no passado.
Não era preciso que falasse, apenas ouvisse e respeitasse.
— Yanaamahka. — e os lábios escamados, cobertos por cicatrizes
grotescas, tremeram. — Ya-na-amah-ka. — repetiu o general com deleite.
— Tu a conheces, querido, não conheces? Aquela que partilha teu sangue.
Aquela que roubou o teu lugar. Podes encontrá-la para mim?
O dragão abriu a boca e grunhiu.
— Não. — Belpheggör murmurou. — Tu não podes devorá-la. Não
estás satisfeito com a última estrela que comeu? Se devorar todas elas,
criança, não haverá mais estrelas para saciar tua fome.
A besta bateu as patas no chão e as garras de aço faiscaram.
— Encontre-a.
Belpheggör estendeu a mão na direção das narinas dilatas do gigante.
O dragão, rosnando baixo, manteve-se quieto, obediente.
— Se encontrá-la, dar-te-ei o que deseja.
Um rugido coberto por ambição chacoalhou a montanha.
A caçada estava apenas começando.
EPÍLOGOS
O C AVA L E I R O D E C O R A Ç Ã O
QUEBRADO

QUEBRADO.
Hanzor se distanciou da palavra o máximo que pode; no fim, porém,
era inevitável. Estava, de fato, quebrado. Os curativos ao redor da mão
eram recentes, manchados por sangue e derrota. Sozinho, nas sombras do
quarto, o cavaleiro se perguntava como seria o seu futuro — como caçaria o
Dragão dos Dragões, como vingaria o pai assassinado. Incapaz de brandir
uma espada... incapaz de lutar por sua nação. Os questionamentos o
incomodaram e ele, desejando retornar para casa, caminhou pelo cômodo à
sacada. Os draconianos foram deslocados para uma das hospedarias que se
mantiveram intactas na cidade; e das janelas, a destruição central era
eminente do castelo. A força de um único dragão, a mesma força que
despedaçou a capital de Aumastris no passado.
Ele suspirou e observou o anoitecer.
Pensava na mãe, nos irmãos... no seu mentor. O comandante Khan
estava foragido, sentenciado por proteger uma Mulher Amaldiçoada. Como
contaria aos irmãos que o homem que eles consideravam como um pai não
mais retornaria para o continente? Kain e Kaz estavam na barriga da mãe
quando Hiborym morreu, não o conheceram; logo, não compartilhavam a
mesma saudade que o irmão mais velho. Dificilmente entenderiam os
motivos de Hanzor. Ninguém além de Belpheggör entendia.
Os devaneios dele foram interrompidos por batidas na porta. Hanzor
caminhou e ouviu a voz de seu amigo do outro lado. Era Hyun-seo. Ele
abriu e o convidou para entrar.
— Não esperava vê-lo tão tarde! — Hanzor sorriu para esconder toda a
frustração que sentia. Hyun-seo, porém, não sorriu; somente caminhou pelo
quarto, observando os detalhes. — Está tudo bem? — o draconiano insistiu.
— Eu não queria vir tão tarde. — Hyun-seo respondeu indiferente. —
Mas talvez eu não tivesse outra oportunidade.
— Como assim? — Hanzor convidou o amigo a se sentar em uma das
poltronas instaladas no centro do quarto, mas este se recusou e permaneceu
em pé, estático.
— Eu estou deixando os Cavaleiros Negros.
— O quê? Hyun-seo! O que você está dizendo? Nos sempre... sempre
desejamos estar entre os superiores. — Hanzor se sentou, inconformado. —
Por que essa decisão?
— Eu soube o que aconteceu entre você e o general Demétrius. — mas
o companheiro ignorou as perguntas, caminhando despreocupado pelo
cômodo, sem olhar para o amigo.
Hanzor suspirou.
— Ah... — e observou o curativo. — Estou me acostumando...
Belpheggör disse que posso treinar com o braço esquerdo, mas... o assunto
não é esse. Não ignore minhas perguntas. Nós prometemos entrar na elite
juntos, lembra? Luna era a nossa testemunha.
— Sim, ela era... Pensou em visitá-la antes de partir? Eu soube que a
embarcação para Aumastris partirá em breve.
— Ah, eu preciso vê-la! — Hanzor colocou a mão boa sobre os
cabelos e os bagunçou. Ele havia se esquecido completamente da prima. —
Sabe como ela está? Acredito que bem.
— Ela não está bem. — a resposta de Hyun-seo era fria. — Eu não sei
onde Luna está... ninguém sabe. Ela fugiu.
Hanzor piscou com dificuldade.
— Luna foi sentenciada à morte por assassinato e por ser uma Mulher
Amaldiçoada. Ela está sendo caçada, não ficou sabendo? — e a
naturalidade do guerreiro assustou Hanzor, as palavras dele travaram e,
então, Hyun-seo prosseguiu. — Claro que não. Porque você realmente não
se importa com ela ou ninguém além de você mesmo. Você nunca se
importou, nunca se perguntou sobre como ela estava.
Era como um golpe; e doera mais que os ferimentos causados pelo
general draconiano.
— Isso não é verdade. Eu estou caçando a Estrela da Noite para...
— Para sua própria vingança tola. — Hyun-seo o interrompeu com
uma expressão corrosiva. Hanzor se levantou e rangeu os dentes,
consumido por uma repentina cólera.
— Como ousa falar desse jeito comigo? Vingança tola? Você não sabe
como eu me sinto, Hyun-seo! Eu perdi o meu pai por causa dos dragões! —
e vociferou, ignorando as dores no corpo.
— Eu perdi o meu pai por causa dos draconianos! — Hyun-seo
rebateu, lágrimas escondidas nos olhos cinzentos. A notícia surpreendeu o
Vanadis. — Ah, desculpe, Hanzor. Esqueci que você não sabia. Estava tão
preocupado consigo que nunca prestou atenção no que acontecia ao seu
redor... e agora fica se lamentando por essa vingança.
— Mas os dragões... — Hanzor não continuou.
— Eu perdi a minha mãe, meu pai e agora a mulher que eu amo por
causa dos draconianos. Eu perdi muito mais que você; e olhe para mim,
veja se estou me lamentando e prometendo vingá-los? Não. Estou fazendo o
meu melhor por esse império despedaçado!
— Eu não quero ouvir! — Hanzor vociferou; e não porque não se
importava, mas, sim, porque não tinha argumentos.
— Como você nunca quis. — Hyun-seo sorriu com desgosto. — Basta
ver como você capturou aquela estrela. Você a enganou. Imagine o que seu
pai diria... Já pensou?
— Saia daqui!
Hyun-seo se manteve quieto por segundos.
— Saia agora!
— Que seja. — e se manifestou. — Espero que você se afogue no seu
próprio egoísmo, Hanzor.
E o draconiano saiu, batendo a porta.
Hanzor não soube por quanto tempo ficara lá no escuro, refletindo,
pensando, esperando. No fim, no breu de seu quarto, quando nada mais
podia ser feito, ele colou as mãos sobre o rosto e chorou.
...tudo estava tão errado.
O HOMEM QUE CAÇA A LUA

O VENTO O GUIARIA.
O dragão azul pousou exausto sobre montanhas despedaçadas,
estilhaçadas pela força da natureza. Cinzentas. Frias. Uma bruma espessa
rodeava a região, as correntes de vento tinham um cheiro podre como se a
morte velejasse através dele, apodrecendo o mundo. Um continente inteiro:
Degail sucumbira pela força da mãe natureza há esquecidos anos; sofrera
sozinho, os chamados de ajuda ignorados pelas nações vizinhas. Antes, o
território que, diziam os Antigos, guardava a magia dos dragões; agora,
nada além de escuridão e morte. Por ser cego, era incapaz de ver a
destruição, mas a sentia, estava no vento, no cheiro, por todas as partes. O
silêncio enlouqueceria os fracos — o mesmo silêncio que matara os
habitantes nas sombras daquela praga.
Eternaria.
Ele voara sobre as águas tempestuosas do vasto oceano de Tel Vozz e
enfrentara a fadiga, a fome e o frio; dias sem pausas, dias que suas
membranas estremeceram com o esforço contínuo. Mas o motivo era nobre
— não para o mundo, não se importava — para ele, para seu coração, para
Yanaamahka. Ele encontraria o Dragão dos Dragões e a traria de volta, cada
fragmento dela perdido no tempo, arrancados e amaldiçoados por um pai
corrupto.
Kluddihargën lançar-se-ia ao fim do mundo por causa dela.
Só retornaria, então, se encontrasse o que prometera: a Yanaamahka
que, supostamente, estava morta.
Ele não teria medo das sombras do Continente dos Mortos.
Não teria medo de alcançar o Desfiladeiro dos Dragões Gigantes: lugar
que Vlanhonder Draconis estava.
O C E I FA D O R E X I L A D O

SUOR ESCORRIA POR ENTRE AS TÊMPORAS; parte caía ao chão pútrido, parte
se aglomerava nos fios negros. Músculos tensionados. Veias salientes.
Tórax desnudo. Demétrius controlou a respiração, vibrações se espalhando
por seu corpo numa súplica constante por descanso. Ele cerrou os dentes.
Não descansou, alcançou o limite e o quebrou com voracidade. Era o que
gostava de fazer — quebrar limites e anestesiar a existência de qualquer
dor. Por isso, manteve-se na mesma posição: seu corpo estava suspenso no
ar da cela. As pernas dele equilibravam o peso do corpo enlaçadas em uma
barra de ferro presa às paredes de pedra. Fique um dia sem treinar e seus
músculos atrofiarão, costumava dizer o Senhor de Gelo. Mesmo preso.
Mesmo com as mãos acorrentas em grilhões pesados.
Preso.
O melhor caçador do império preso e enganado como um qualquer. Era
engraçado. Ele sorriu e o suor escorreu do pescoço ao canto de sua boca.
Seu cérebro parecia pensar melhor de cabeça para baixo. Sangue correndo
entre os olhos, o corpo formigando. Suspirou, e usou a força nos músculos
superiores para erguer o tronco repetidas vezes para completar os
abdominais. Treinar era uma forma de esfriar seus pensamentos. Colocá-los
no lugar. Porque em pouco tempo, menos do que esperava, estaria nos
domínios do Senhor de Gelo.
Demétrius não esperava vê-lo tão cedo — não depois de ter
assassinado o herdeiro favorito do pai, os netos e a nora. Não por inveja,
que o trono de Nothumbria explodisse, mas como uma provação. Queria
mostrar ao Senhor de Gelo que poderia ser tudo menos nada. Era um
assassino, um louco e um torturador. Ceifador, como o chamavam.
Nothumbrianos acreditavam que o draconiano era forte pelo número de
herdeiros que tinha. Demétrius, por ser estéril, não tinha nenhum; e, logo,
sempre fraquejaria. Por isso perdeu o direito ao trono e o reconhecimento
do pai por ser o primogênito.
...e por isso prometeu caçar todas as Estrelas da Noite.
Para mostrar que poderia ser forte sem filhos.
Mas não mais; não preso, não exilado.
Demétrius ergueu o tronco no último abdominal e segurou a barra com
uma mão. Arfava, o rosto vermelho por cansaço e cólera. A promessa de
retornar a Nothumbria com as Estrelas da Noite extintas não se
concretizaria. Restavam duas. Restaria uma se os desgraçados não
houvessem lhe privado.
Que eles pagassem pelos erros.
Passos ecoaram nos corredores e quatro homens se puseram diante a
cela. Demétrius largou a barra e aterrissou no chão sem cambalear,
observando a expressão dos guerreiros. Eles hesitavam e temiam,
entreolhavam-se numa discussão silenciosa sobre quem abriria a cela. Um
deles deu um passo à frente e berrou sobre o fato do prisioneiro estar com
as mãos pressas. Demétrius quis rir. Se quisesse matá-los, faria somente
com as pernas.
A cela foi aberta enquanto espadas eram empunhadas.
— Você será transferido! — bradou um deles com uma coragem
encenada. Demétrius esperou. — A embarcação para Nothumbria sairá em
dois dias e você será levado para o porto.
— Coopere e não será ferido! — a lâmina do segundo tremeu na
direção do ceifador.
— O que posso fazer? — e o draconiano elevou as mãos acorrentadas.
Eles se aproximaram e o rodearam. Cautelosos. Demétrius cooperou com
um sorriso psicótico, seguindo as instruções dos homens. Era divertido ver
como eles acreditavam que estavam seguros — que as correntes do
prisioneiro o privariam de se libertar. Se desejavam servir o império,
precisavam deixar a ingenuidade de lado e se prender a seriedade.
Demétrius decidiu ensiná-los.
...e no passo seguinte, suas mãos unidas acertaram o rosto de um deles.
A intensidade do soco deslocara a mandíbula do humano, os braços de
Demétrius eram três vezes maiores do que a do guerreiro e ele, desatento,
sequer teve como bloquear; e se tentasse, talvez não conseguisse. O homem
gritou e os outros se posicionaram em vão. Demétrius bloqueou o ataque de
uma lâmina com as correntes, faíscas iluminaram a escuridão, e desviou de
outra em suas costas com um rápido movimento de corpo. Depois, chutou o
terceiro que avançava e agarrou o quarto nas correntes dos grilhões. O
jovem gritou por clemência, mas o draconiano não era familiarizado com o
termo, sequer o entendia: a força de seus músculos fez o aço das algemas
sufocar o guerreiro, os olhos se esbugalharam enquanto as correntes
adentravam a pele que esguichava sangue pelos ares.
O corpo inerte desmoronou nos pés do general.
Os outros dois avançaram gritando. Demétrius se esquivou de uma
espada e segurou a outra com a mão, sangue escorrendo pelos seus dedos. A
dor lhe encheu de prazer. Ele precisava dela — era sua fonte de força. Por
isso sorriu, experimentou a sensação e urrou quando puxou a lâmina,
roubando a espada de seu adversário um segundo antes de enterrá-la no
olho dele.
A cor da morte o deliciou.
Restavam um — e era decepcionante como o infeliz não ousava
brandir a espada. Tremia, incapaz de se mover contra um prisioneiro
acorrentado. Eram fracos, e o draconiano se perguntou como os superiores
esperavam derrotar os Primeiros Dragões, caçar as Estrelas, treinando
guerreiros como aqueles.
— Não confiem em grilhões. — Demétrius anunciou, as tochas ao
redor destacando o rosto parcialmente desfigurado. — Muito menos em
espadas. O inimigo pode foder vocês sem elas.
Ele estendeu as mãos acorrentadas.
— Agora me levem para a porra do navio.
Nothumbria era seu destino.
Mas não esqueceria de seu principal propósito: caçar a Estrela da Noite
que sempre escapava por entre seus dedos.
A DONZELA COM SONHO DE
LIBERDADE

HUMANOS DIZIAM QUE O SOL ERA um deus assim como a lua. Impiedoso,
porém; quem lançava seu poder sobre a terra durante os dias ensolarados.
Enquanto Lunyar, a mãe dos draconianos, iluminava o mundo contra a
escuridão da Noite Eterna, Sunyar propagava luzes incandescentes e
multifacetadas: elas eram benéficas, alimentavam a fauna e aqueciam os
homens; e maléficas, causavam doenças e desidratação com um contato
excessivo. O deserto era o campo de batalha de Sunyar, a região que ele
dominava, lançando baforadas de calor como se fosse o deus-dragão. À
noite, porém, quando partia, os sussurros gelados de Nothumbria varriam a
terra e açoitava os habitantes com temperaturas negativas.
Essa era a situação do Grande Deserto. A situação que Lunaysis
enfrentava sozinha.
As horas eram indiferentes. Não tinha certeza de quanto tempo
caminhara sozinha sobre as areias — vira o dia se fragmentar e a noite se
dissipar, vira o mundo queimar em cores quentes. Tudo estava quente; e na
metade do segundo dia, a draconiana começou a delirar. Luna se perguntou
se seria capaz de resistir se não estivesse protegida pela deusa. A resposta,
porém, perdeu-se no vento; e a cada novo passo, a força dela se dissipava.
Sobre as areias, vira as imagens de sonhos perdidos, contos esquecidos,
canções entristecidas. Depois, o cansaço; caminhou com os olhos naquelas
imagens, desejando que tomassem formas iluminadas: sonhos realizados,
contos lembrados, canções apaixonadas. Era o que esperava — da
esperança, do mundo. Um lugar que pudesse, de fato, viver e não
simplesmente existir; um lugar que não fosse mais acorrentada pelas
tradições.
Luna delirou uma última vez e, incapaz de resistir a fadiga, fome e
tontura, desmaiou sobre o dourado da areia. Uma risada na escuridão;
alguém que sorria e acreditava na esperança. Misairuzame? Seria a deusa
lhe puxando para a realidade? Lunaysis quis acreditar na possibilidade e
estendeu a mão para a luz que se dissipava nas sombras. Então, a esperança
lhe segurou. Ela abriu os olhos e foi recebida por um sorriso esperançoso.
— Que os Doze a protejam! — disse uma senhora com expressões
humildes, enrugadas. Doze eram as entidades dos povos de Degail, dos
refugiados que fugiram dos massacres draconianos. — Você está tão pálida,
minha querida! Mas eu tinha esperança que fosse acordar! Está tudo bem,
moça. Você estará segura conosco, os Doze irão nos proteger.
A draconiana forçou os olhos e a claridade quase a cegou. Uma gaivota
emitiu um canto agudo, mergulhando em um céu azul e limpo.
— Onde? — ela se esforçou para sussurrar.
— Você estava muito fraca... e grávida! Sinto muito que a tenha trazido
conosco, mas eu não poderia deixá-la sozinha no deserto.
— Mas onde estou?
— Em lugar nenhum... por enquanto. — sussurrou a senhora e Luna
sentiu o cheiro de água salgada, do mar. — Mas chegaremos em Castora em
uma semana, querida.
O coração de Luna se encheu de paz e lágrimas cresceram em seus
olhos.
— Obrigada... obrigada. — sussurrou e os fechou.
Ela estava livre do deserto, livre dos draconianos e de um casamento
que a mataria.
Estava livre para ver sua filha nascer.
— Obrigada. — repetiu e a mulher colocou a mão sobre a dela.
Os ventos da esperança estavam do lado dela. Sua liberdade estava um
passo mais próxima.
O D R A G Ã O B A N H A D O D E M O RT E

MORTE.
Ela maculara o mundo com seu abraço escuro e suas promessas
sombrias. Traiçoeira. Senhora da Noite. Ceifadora Noturna. Aquela que traz
o silêncio eterno. Por séculos os homens deram a ela inúmeros nomes e
definições. Muitos diziam não a temer, outros buscavam o elixir da vida
para retardá-la. No fundo, ninguém escapava. Todos estão fadados a
sucumbir perante ela, um toque gelado que nos alcança como um sussurro
solitário. Ela nos pega de surpresa, a morte; rouba-nos a luz quando
pensamos que a segurança nos rodeia.
A morte é inimiga mais cruel dos seres vivos.
Porque ela não pode ser derrotada.
Era essa a Senhora da Noite que abraçara o mundo dela.
A mulher elevou os olhos e estremeceu. O dourado neles, fraco e
vacilante como a luz mundana, apagou-se com o uivo entristecido do vento.
A natureza estava em luto e se lamentava profundamente. A mancha
cinzenta, antes uma extensão infinita de cores vivas, agora uma negritude
sem fim, cobriu a terra e roubou o coração de todos os seres que lá viviam.
Somente a Morte vagava por lá, encapuzada, cautelosa, esperando por
aqueles perdem o sol de vista.
Yanaamahka caiu de joelhos. Sozinha, observou os restos daquela
lembrança se fragmentar: a Floresta Viva de Krynhild era um mero borrão
chamuscado. As árvores estavam secas, as flores murcharam e nenhum
fruto crescera ou cresceria novamente. As chamas de um dragão queimaram
lá, um Primeiro Dragão, um semelhante dela; alguém que se levantara sobre
a imensidão da região e destruíra a paisagem com uma baforada.
As chamas de Kyn queimam a vida toda.
Ela rastejou entre a fuligem.
Roren. Luce. Mare.
Nomes que pertenciam ao presente e, ao mesmo tempo, passado. Se
eles tinham sobrevivido, era incapaz de saber... Porque o mundo era
perverso. A prova estava diante dela Yanaamahka se levantou e caminhou
devagar, as lembranças lhe guiando, a ausência do cheiro de hortelã
causando calafrios.
Eu sou Aru Tiggrë! Você tem um nome?
Galhos secos estalavam sob seus pés, fumaça se erguia ao céu nublado;
era um sinal angustiante de que o fogo — talvez de dias, meses —
continuaria a arder. A Morte caminhava nas sombras do entardecer e a
mulher se encolheu com a brisa que a acompanhava. Era fria, embora
estivesse quente. Então, entre plantações devastadas e árvores secas, Yanaa
viu os sinais de uma casa. Ela correu, os pés cambaleando, seu coração
pulsando.
Tudo vai ficar bem. O mundo pode ser miserável, mas ele também é
belo.
Yanaamahka tropeçou de repente e caiu.
...e vomitou ao ver no que tropeçara: um corpo em decomposição. A
expressão estava chamuscada, os olhos haviam sido devorados por larvas
ou pássaros selvagens. Contudo, o que chamara a atenção dela fora a mão
do homem — estava fechada firmemente sobre uma lembrança. Era uma
carta. Queimada. Chamuscada. Yanaa a arrancou do humano e desdobrou as
partes legíveis... e, então, seu coração se apertou diante as letras.
Ela não sabia ler.
Nós encontraremos o desfiladeiro juntos!
Eu nunca vou abandonar você, na’na. É uma promessa.
A carta estremeceu em seus dedos.
Tudo vai ficar bem.
Era mentira.
Nada mais ficaria bem. Nunca mais. O mundo continuaria, o tempo
avançaria, a vida seguiria e... nada mudaria.
Yanaamahka amassou a carta e colocou nas mãos do homem
queimado. A decomposição poderia tê-lo deixado irreconhecível, o cheiro
pútrido poderia estar a sufocando, mas um dragão não esquece; nunca
esquece, e naqueles traços cobertos de morte, a Estrela da Noite reconheceu
aquele homem. Apesar da morte tê-lo alcançado, talvez cruel demais, ele a
tinha aceitado: estava com os braços abertos. Provavelmente morrera de
frente para o dragão. Sorrindo. Implorando. Lamentando. Nunca saberia.
Não queria saber.
Não queria mais. A garganta dela estava trancada por um sentimento
corrosivo, entorpecido. Yanaamahka cerrou os punhos e olhou ao redor, a
destruição, o sopro de vida que se afastava da Floresta Viva. Por anos na
escuridão, a Estrela da Noite se perguntou se existiria um lugar no qual
poderia sempre voltar. Um lugar que alguém estaria lhe esperando; e, presa
na busca do passado, de quem era, acreditou que o Desfiladeiro dos
Dragões Gigantes fosse o lugar. Mas nunca esteve tão enganada. A verdade
era que ela esperava um lugar como a Floresta Viva, repleto daqueles que
lhe eram queridos, que lhe disseram que o mundo era belo.
Mas aquele lugar não existia mais.
Todos estavam mortos. Todos haviam sido arrancado dela.
Yanaamahka cobriu o rosto com as mãos e chorou.
Ela não conseguia sentir nada além de tristeza. De dor. De
arrependimento. De corrupção. De ódio. Então, socou a terra e gritou para o
céu.
...e desejou não sentir mais nada.
Mas não.
Algo dentro dela negava essa vontade de desistir e sucumbir aos
caçadores. Algo que a fazia se prender a vida — embora estivesse se
afogando na escuridão. Um feixe de luz repentino se esgueirou pelos galhos
secos ao redor, uma incandescência que iluminava o rosto da Estrela Caída.
Yanaamahka olhou para o horizonte, para o sol.
O que estaria a impedindo de desistir?
Porque ela desejava continuar enfrentando seus caçadores?
O vento lhe acariciou o rosto.
Então a luz alcançou os olhos dela, cobertos por lágrimas trancadas.
Alguns segundos, talvez uma eternidade inteira, passou diante dela: a
primeira história, a primeira sensação de conforto, o primeiro abraço e o
primeiro sorriso. Todos foram construídos não no passado que ela perdera
há tantos anos, mas no presente, nos dias afogados pela caçada draconiana.
Dentre tanta corrupção, lá estava a beleza do mundo.
Yanaamahka não precisava buscar o passado para se sentir completa,
bastava se lembrar do que vivera naqueles dias. Aquilo a fizera se sentir
viva.
Uma lágrima escorreu no rosto dela.
...e ela sentiu que não poderia desistir, não poderia morrer.
Porque se morresse, as lembranças de Tiggrë morreriam com ela e...
não seria mais capaz de lembrar dele.
Yanaamahka se levantou e secou as lágrimas.
Ela olhou para o horizonte, para o sonho que o menino tanto contava: e
seus passos a levaram para o Sul. Ela iria para Nothumbria; e de lá, para o
desfiladeiro.
...como Tiggrë sonhava.
CAÇADA ÀS ESTRELAS DA NOITE
C O N T I N U A R Á E M...

CANÇÕES ÀS
ESTRELAS DA NOITE
APÊNDICE

CAÇADA ÀS
ESTRELAS DA NOITE

V O L U ME I
TA MA N H O D O S D R A G Õ E S N O P R I ME I R O L I V R O

Yanaamahka: 2 metros

Shurgakian: 20 metros

Kluddihärgen: 7 metros

Mom-mom: 9 metros

Hieronymus: 20 metros

Vlanhonder: 87 metros

Dragão de Aço: 40 metros.

P R O N Ú N C I A S D O P R I ME I R O L I V R O

Yanaamahka Draconis – IA-na-ma-ka dra-KO-nis

Shurgakian Draconis – Xur-ga-quian dra-KO-nis

Nahemidraal Draconis – Na-re-MI-draal

Vlanhonder Draconis – VLAN-ron-der

Vandoharen Draconis – VAN-do-ra-ren

Klud / Kluddihärgen – KLÃ-di-RAR-gen

Hanzor rön Vanadis – RÃN-zor rôn VA-na-dis

Belpheggör rön Vanadis – BEL-pe-gor rôn VA-na-dis


Leovrumund rön Vanadis – LEO-vru-MUND rôn VA-na-dis

Demétrius dur-Valeas al Vossler – De-MÉ-tri-us dur-VA-LE-as au VOZ-


ler

Aru Tiggrë – Arô TÍ-gre

Lunaysis vön Krimnell – LU-na-Y-sis VO-um KRIM-né-U

Ahuriel vön Krimnell – a-HU-ri-eu VO-um KRIM-né-U

Hyun-seo – ri-UM-se-O

Eun-seo – i-UM-se-O

Rhenna vrön Skaargärd – RE-na v-ROM IS-car-GARD

Khan vrön Skaargärd – CÃ-m v-ROM IS-car-GARD

Mahoutsukai – ma-ROU-t-SU-cai

Misairuzame – mi-SAI-ru-ZA-me

Maetsumina – mae-TSU-mi-na
CONTINENTES

TANNENBERIA, o Continente do Sol


População: humana (maioria), draconiana e mestiça.
Idioma: Humanis (principal e oficial), Dovaris (predominante na
região do Sul e falada por draconianos) e Q’atar (predominante entre
refugiados).
Religião: Sunyarismo, crença em Sunyar, o senhor-sol dos homens.
Capital: Solnascente.
Rei-regente: Gureryne Lachance III.
Cidades Principais: Solaris, Arrius e Crepuscular.
Tannenberia é o único continente a possuir as quatro estações bem
definidas.
O calendário tannenberiano é marcado por doze meses, comemorando
o fim e o começo de um novo ano.

AUMASTRIS, o Império da Aurora de Cristal


População: draconiana (maioria), humana e mestiça.
Idioma: Draconemia (primeiro idioma oficial e principal entre os
nobres), Dovaris (segundo idioma oficial, falado por draconianos de origem
inferior e mestiços) e Humanis (falada pelos humanos e mestiços), Ishi-nari
(idioma menor falado entre os habitantes de Castora).
Religião: Lunyarismo, crença em Lunyar, a deusa-mãe do mundo e da
noite; Castoris, crença em Castor, o deus da Noite e da Morte, filho de
Lunyar e da Noite Eterna.
Capital: Aumas.
Imperador: Cassius rüne-Dagon ar Virtaria.
Cidades Principais: Amaezis, Almae’khat e Kunt’hud.
O continente de Aumastris só possui duas estações: a Primavera Eterna
e o Inverno, o primeiro com 325 dias, o segundo com 40. Não os anos, e
sim, as Eras, a cada cinco primaveras.
Aumastris é dividido entre o Império da Aurora de Cristal, que ocupa
noventa por cento do território, e o Estado Independente de Castora,
ocupando apenas dez por centro. Ambos são separados pelas Muralhas
Douradas, enfrentando inúmeros conflitos civis.

NOTHUMBRIA, o continente-de-homem-nenhum
População: draconiana e mestiça.
Idioma: Draconemia e Dunarena (idioma menor falado pelos povos
afastados da capital e pelos mestiços).
Religião: não há a crença em um deus e, sim, na Noite Eterna como
entidade viva.
Capital: Valenevado.
Imperador: Hygörn dur-Valeas al Vossler.
Cidades Principais: não há.
O continente de Nothumbria só possui duas estações: o Inverno Eterno
e a Primavera, o primeiro com 345 dias, o segundo com 20. Não os anos, e
sim, as Eras, a cada cinco invernos.
Durante todo o Inverno Eterno, é sempre noite em Nothumbria, o que o
torna um dos continentes mais desabitados em Agëa, uma vez que apenas
20% de seu território é habitável, a área restante é tão fria que nenhum
homem sobreviveria.
Nenhum homem jamais chegou ao centro do continente: é tão frio e
escuro que os corajosos enlouquecem e congelam antes mesmo de alcançá-
lo.
Acredita-se que Aumastris e Nothumbria eram um só continente antes
da queda de Hatanyar, o deus-dragão, formando o antigo território de
Aumathumbria.

DEGAIL, as Terras Esquecidas ou o Continente dos Mortos


População: humana e dragônica.
Idioma: Humanis (primeiro idioma oficial, falado pelos seguidores de
Sunyar); Duan-dar-nian (segundo idioma oficial, usado pelos pregadores do
Darmanismo); Q’atar (falado principalmente entre os Animanos) e
Drago’skar (falado somente por dragões).
Religião: 30% da população prega as crenças de Sunyar; 20% seguem
as tradições Animanas, 45% creem em deuses menores como Cygnus,
Cyrus e Canna, o que chamam de Darmanismo; 5% se concentra na criação
pregada por Hatanyar, o deus-dragão, e Lunyar, a deusa-lua.
Capital: Dar-Ma.
Rei: Lucis Gladio di Fienze.
Cidades Principais: Eter-nar, Danar-tan e Hum-nas.
Degail, atualmente, é um continente-fantasma, sem acesso aos demais
continentes devido a pandemia que se espalhou pelo território e exterminou
metade de sua população. Os demais continentes se recusam a falar sobre o
ocorrido.
Degail era o continente com maior diversidade cultural e com maiores
riquezas naturais de Agëa.
Uma pequena parte de Degail, que ainda é habitável, é chamada de
Desfiladeiro de Dragões Gigantes, inacessível a outras raças.
Atualmente, nunca é dia em Degail e um neblina espessa cobre o
continente.
SOBRE A AUTORA

Yasmim Naif Amin Mahmud Kader é formada em Letras – português e


inglês – pela Universidade Franciscana e é quase-mestre em Estudos
Literários pela Universidade Federal de Santa Maria.
Desde pequena, sonhava com dragões e estrelas cadentes, escrevendo
histórias no caderno. Apaixonada por gatos, sonha acordada coberta de
pelos, imaginando mundos além do seu.
Mas apesar de amar histórias fantásticas, ela reserva um amor
compulsivo por clássicos como William Faulkner, seu objeto de estudo, e os
temas sobre o homem em sua face mais cruel. Por isso, mesmo escrevendo
fantasia, busca aproximar sempre a história da realidade, dos problemas que
corrompem a sociedade hoje e sempre.
Atualmente, está escrevendo o segundo livro de Caçada às Estrelas da
Noite e outros dois romances: Sob um Céu Cinzento e Estrelado e Se o
Amanhã Vier, disponíveis parcialmente em seu website e em breve na
Amazon.

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