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ROSA NEGRA
Havia uma última coisa que podia fazer. Talvez a mais difícil e pior
de todas que tinha feito desde que a escuridão do luto eclipsara seu coração.
Voltar para o lugar que suas mãos haviam profanado.
Se tivesse escolhas, não voltaria. Por vergonha. Por medo.
Mas as escolhas já não existiam mais.
A lua estava alta; um manto prata que cobria o mundo. Mas dentro dele
ruía apenas um breu interminável.
A capa oscilava nas costas enquanto ele corria pelos becos. As ruas de
paralelepípedos craquelavam aos seus pés, e as sombras das construções
pareciam se inclinar uma contra a outra, formando um canal que ressonava as
batidas altas do seu coração.
O que foi que eu fiz?
E a pergunta que mais o assombrava: o que ela fizera com ele?
Esfregou o peito, sentindo a saliência da cicatriz recente que tomava
forma na pele, e continuou correndo, descendo pelas vielas estreitas que
formavam um caminho desconhecido para a maior parte das pessoas. Névoa
azulada flutuava no ar.
Não olhou para trás em momento algum; mas a audição captava o
estalar do fogo feroz que insurgia nos cantos mais escuros do caminho.
Parou diante da escadaria de ardósia. Não havia barulho.
Porque, horas atrás, eu calei todos os sons desse lugar.
Teria se afogado na culpa se não estivesse trincando de medo,
questionamentos e terror. O que seus olhos haviam contemplado... Tinha
certeza de que nem as pessoas comuns, nem os homens que conheciam o que
ele conhecia, haviam visto algo como aquilo.
Como aquele fogo.
Com a pulsação latejando na garganta, subiu os degraus sem se
importar se estava profanando o local outra vez.
Ao alcançar o salão de luz bruxuleante, ele olhou em volta. O fiapo da
lua que se esgueirava pela claraboia iluminava os corpos ensanguentados.
Todos tinham lutado. Todos tinham morrido. Em suas mãos.
Ele comprimiu os olhos, abafando o grito que queria rugir.
Foi a respiração baixa que o trouxe de volta. Virou o rosto; um dos
anciões caído no chão ofegou, olhando em sua direção.
Ele poderia ter implorado por perdão, mas não havia tempo. Agachou-
se ao lado do velho, erguendo-o com o máximo de cuidado que conseguiu.
Esperou pela acusação. Ela também não veio. Mesmo assim, sentiu a
recriminação nos olhos do ancião, na névoa que serpenteava do lado de fora,
no frio intrínseco da noite e da alma.
— Onde está a harpa? — o ancião sussurrou.
— Não está comigo.
— Está com ela?
— Também não.
— Então, onde está? — Houve um momento de silêncio. O ancião
inspirou fundo; a dor irradiava em seu semblante. — O que aconteceu esta
noite? O que aconteceu quando você desceu?
Ele baixou o rosto; os fios escuros do cabelo caíam pela testa.
— Ela me enganou. Quando percebi, selei a harpa. — Foi tudo o que
optou por contar. A vergonha e a humilhação queimavam no sangue. — Só
que não consigo mais encontrá-la. Isso nunca aconteceu antes.
O ancião tossiu.
— É porque é o legado apenas do meu sangue proteger a harpa. Desde
que as filhas do Tempo e da Terra abençoaram meus antepassados. — E
ergueu a mão trêmula; os dedos do velho tocaram o peito dele, a cicatriz
exposta, fazendo-o estremecer. — Ela o marcou com o fogo negro.
— O que isso significa?
Uma brisa estranha bufou. Ele olhou de soslaio para os cantos; era
como se a essência ardente dela deslizasse pelas sombras.
Quase podia inalar o cheiro do fogo que não era fogo.
Estava perto. Estava muito perto.
— Posso sentir no ar, na matéria e nas estrelas. Isso se estenderá pelos
tempos. O que foi roubado perturbará as leis do equilíbrio até que volte para
seu lugar de origem. E... — O ancião o fitou; naquele momento, achou que o
velho estava enxergando para além de sua alma marcada. — Somente aquele
que carrega meu sangue será capaz de ajudá-lo um dia.
Ele olhou em volta, olhou para todos os corpos ao seu redor.
— Seu sangue? Mas... Estão mortos.
As nuvens se moveram do lado de fora, encobrindo a lua e a luz nos
olhos do ancião.
Ouviu o rugido do fogo quando o velho morreu em seus braços.
Fogo negro, fogo ardente, um fogo que surgira do nada.
Ele se levantou assustado; a fumaça cresceu mais rápido do que seus
olhos foram capazes de registrar. Sombras rastejavam pelo salão. Escuras,
cinzas, sem rostos.
Podia escutar o eco sussurrante através das labaredas.
“As portas do destino... São uma só...”.
Sem pensar, correu na direção do grande vitral em meio ao ar
fumegante; gritos ecoavam na cabeça, nas chamas que consumiam as
colunas.
A morte era melhor do que qualquer outro destino.
Ele se atirou contra o vitral no mesmo instante em que a casca da
presença sombria o alcançou.
O fogo negro explodiu junto aos cacos, se espalhou e destruiu toda a
construção, ardendo por um dia e uma noite, como o ventre vivo do mais
denso pesadelo.
1
Sonhos distantes
Dias atuais
Mais tarde, depois que sua irmã e sua sobrinha foram embora, Diana
abriu a porta do escritório que sempre trancava quando recebia visitas.
Bateu a mão no interruptor, e o cômodo se encheu de luz, revelando
para seus olhos aquilo que ela mesma nomeara como “parede da loucura”.
4
A metade perdida
Dezessete anos atrás
Atualmente
Diana voltou para a casa com o corpo pesado por causa do cansaço,
embora a mente continuasse correndo a mil por hora, dividida entre as
sensações inebriantes que o homem misterioso na pista de dança lhe causara
e os questionamentos sobre o modus operandi do assassino.
Arrancando as botas, ela se jogou na cama com a roupa da balada.
Fechou os olhos, prometendo a si mesma que apenas recuperaria as
forças e, então, entraria embaixo do chuveiro.
Mas, em algum momento, os sentidos recuaram, e a realidade se
transformou em fios trêmulos tecidos por sombras e sonhos.
◆◆◆
Diana não sabia como não havia agarrado o médico pelo jaleco.
— Como assim, ninguém sabe o que a minha irmã tem?!
Sentada na cama hospital, Duda chorava, olhando para a mãe.
Heloísa, ainda inconsciente, estava mais pálida do que o dia anterior.
Mas não fora aquilo que assustara Diana. Todas as veias de sua irmã se
destacavam na pele, escuras e retorcidas, como se alguém as tivesse tatuado
ali, subindo para o rosto feito teias finas.
— Como ela ficou desse jeito, de uma hora para a outra?! A
enfermeira me disse que ela não estava assim hoje cedo!
— Suspeitamos de algum problema no sangue, e estamos aguardando o
resultado dos exames. Vamos fazer mais testes, tudo o que estiver ao nosso
alcance para descobrir o que sua irmã tem.
Diana ficou debatendo com o médico até seu celular começar a tocar
freneticamente, seguidas vezes. Reconheceu o número de Leon, o cabeçalho
“urgente”, a mensagem “mais um corpo” e o endereço.
Não conseguiu convencer a sobrinha a ir embora do hospital; deixou
dinheiro para que ela comesse e pegasse um Uber, e foi para o carro. A mente
fervia. Ver Heloísa inconsciente naquela cama roubou todo o fôlego que
tinha conseguido preservar da “conversa” com Luthor.
Enquanto dirigia para a cena do crime, forçando os olhos a não
marejarem, as imagens não paravam de assombrá-la.
Mesmo com as diferenças, era inevitável não se recordar das rosas
negras marcadas no cadáver de Diego.
Por isso que eu odeio a semana do meu aniversário.
Nunca eram dias tranquilos, nunca havia um raio de sol.
Inspirou o mais fundo que conseguiu e comprimiu o volante; não era
hora de pensar em Diego. Precisava focar no seu trabalho, em um plano para
capturar o assassino.
Ao descer do carro, Diana já trajava a pele da delegada.
— Me levem até o corpo.
O policial que chefiava o local a guiou por entre os peritos. Nuvens
cinzentas nublavam o céu. Diana avistou Leon ao lado de Tris, e agradeceu
pela psicóloga já estar ali. Um olhar rápido com Leon lhe confirmou que Tris
já tinha usado suas habilidades sensitivas para analisar a cena.
O corpo apresentava o mesmo aspecto dos outros.
Por um momento, pensou no ataque que havia sofrido na noite anterior,
nos homens de olhos obscuros e garras nos dedos. De alguma forma,
poderiam estar envolvidos? Encarou o cadáver outra vez. Não havia traços do
sangue negro, ou da pele perfurada pelas garras. Uma intuição primitiva dizia
que o assassino não era como aqueles que a atacaram.
Ela fez uma careta, atravessada por um arrepio.
— Nenhuma pista do assassino ainda?
— Nenhuma, chefe — Leon respondeu.
Diana arqueou as sobrancelhas, apoiando as mãos na cintura.
— Decidiu começar a me chamar de chefe?
— Sabe como é... — Um sorriso travesso insurgiu no canto da boca
dele. — Amanhã é seu aniversário. Você está ficando velha. Alguns títulos
ajudam a aliviar o peso da idade.
A língua de Diana estalou.
— Tris, controle seu marido ou você vai ficar viúva.
— Vocês parecem duas crianças. Nem Melina se comporta assim. —
Tris balançou a cabeça; uma leve palidez recobria seu rosto, sinal de que
havia utilizado os dons sensitivos. — Vou precisar puxar as orelhas?
— Não, mãe. — Diana se virou para Tris, abaixando a voz: — O que
você conseguiu dessa vez? A mesma coisa? “O assassino sofreu”?
Uma sombra encheu os olhos de Tris.
— Não. Desta vez, o sentimento foi diferente.
— Diferente? Como assim?
— Dessa vez, o assassino gostou. — A palavra saiu com um tom
profano da boca de Tris. — Não tinha nada do sofrimento das outras vezes.
Diana olhou para Leon.
— Dois assassinos?
— Foi o que pensei também. E os alvos são jovens.
— Certo. — Diana girou nos calcanhares. O vento que lambia seu
rosto era úmido e carregava o cheiro da chuva longínqua. — Seja um
assassino ou sejam dois, precisamos dobrar nossos esforços. Não quero mais
tropeçar em nenhum cadáver nesse estado.
◆◆◆
A chuva que precedia seu aniversário chegou à noite, uma chuva forte
com trovões.
— Trouxe pizza, Duda! — Diana anunciou ao entrar no apartamento,
fechando a porta com o pé. — Não vou conseguir cozinhar. Alguma notícia
sobre o estado da sua mãe? Duda?
Escutou o chuveiro ligado no banheiro.
Deixando as pizzas sobre o balcão, Diana caminhou até a sacada e
abriu a porta de correr. Seus cabelos ricochetearam em volta do rosto. A
tempestade ardia e queimava, urrava e estalava, fazendo o vento uivar.
Deu um passo à frente, apenas para deixar a chuva cair no rosto e
resfriar os pensamentos acelerados, como Diego gostava de fazer quando
eram crianças. Seria uma forma de homenageá-lo. Afinal, à meia-noite, o
aniversário seria dele também.
Eu te prometo, meu irmão, meu gêmeo, minha metade. No nosso
próximo aniversário, seu assassino estará atrás das grades. É uma promessa.
Trovões ecoaram pela cidade.
Então, como um puxão invisível, ela ergueu a cabeça e viu que alguém
a observava em um ponto do prédio abandonado defronte ao seu.
Instintivamente, procurou pela arma no coldre.
À luz de um raio, o observador tomou a forma de Luthor, e tudo dentro
de Diana se agitou de um jeito elétrico e enervante.
Misterioso e enigmático, com os cabelos escuros esvoaçando na altura
do queixo e a espada na mão, como se estivesse pronto para a batalha.
Outro raio chiou acima deles, e seus olhares se encontraram.
Diana ficou parada, assim como ele; nenhum dos dois ousou romper o
contato visual.
— Tia! Tia Di!
Os gritos assustados de Duda a despertaram.
Diana se virou com agilidade, correndo para dentro do apartamento no
mesmo instante em que a sobrinha entrou na sala como um furacão, com os
braços esticados e vestindo apenas um roupão felpudo.
— Me ajude, tia! Me ajude!
Em choque, ela viu que as mesmas veias negras que haviam surgido
nos braços e no rosto de Heloísa, agora subiam pela pele de Duda.
— Duda, nós...
Um trovão irrompeu do lado de fora, e elas gritaram quando o vento
estourou as janelas, fazendo uma chuva de cacos brilhantes cair enquanto um
homem que Diana não conhecia saltava para dentro do apartamento.
12
Olhos que não temem
Todos os anos, a semana do seu aniversário era estranha. Muito
chuvosa, solitária por opção e repleta da memória da morte do irmão e do pai.
Mas era a primeira vez que um homem portando um mangual medieval
arrebentava a janela e pulava para dentro do seu apartamento.
Diana reagiu rápido; empurrou Duda para o chão no mesmo instante
em que o homem se ergueu, girando a esfera metálica com espinhos
pontiagudos no ar.
Um raio cortou o céu, e o estrondo seguinte mergulhou o apartamento
em um breu denso.
Ela girou, desviando do ataque; a corrente do mangual rangia no
compasso de sua respiração entrecortada.
A esfera atingiu a parede.
— Você virá comigo, Incantevole! — Outro golpe do mangual atingiu
uma das cadeiras, passando por milímetros do seu corpo. — As ordens foram
para te levar com vida, mas não necessariamente intacta.
Esquivando de outro ataque, Diana sacou a arma, tentando se manter
perto de Duda. Era impossível enxergar naquela escuridão, e ela não queria
perder tempo decifrando que merda estava acontecendo ali.
Um relâmpago iluminou a sala.
Ela encarou os olhos tempestuosos do inimigo.
E aquilo foi suficiente.
Diana atirou contra o homem; a mira precisa acertando os pontos vitais.
Ele caiu no chão com um som seco.
Ofegante, agarrou a sobrinha, apanhou mecanicamente as chaves do
carro e disparou para fora do apartamento.
— Rápido, Duda! Não sabemos se ele está sozinho!
— Quem era ele, tia?!
— Não sei.
Não parecia com os mesmos que me atacaram no rio. Havia algo
perturbador e desconcertante no olhar dele.
Duda apertava freneticamente o botão do elevador.
— Não está funcionando! Estamos sem energia!
— Escadas! Agora!
Diana puxou a sobrinha, pulando os degraus de dois em dois. Não
sabia se ligava para a delegacia ou se dava um jeito de chamar Luthor. A
adolescente ofegava e tremia de frio; Duda estava apenas com o roupão que
colocara ao sair do banho.
No momento, preciso sair daqui e garantir a segurança dela.
Empurrou a porta pesada, indo para o estacionamento subterrâneo do
prédio.
— Para o carro, Duda! Agora!
— Tia, tem alguém aqui!
O grito da sobrinha fez Diana se mover com agilidade, a arma em
punho. Mal conseguia enxergar alguma coisa. Forçou os olhos. Alguém se
movia rápido para perto delas. Podia ouvir a respiração, o chiar do sangue.
Ela deu um tiro de aviso.
— Porra! — a voz masculina urrou.
— Luthor?!
— Meu ombro, esquentadinha! Merda! Isso dói!
Diana não gostou da súbita sensação de alívio que sentiu ao ouvir a voz
dele; aquilo não era algo comum que sentia.
— Onde ele está?! — Luthor indagou, ofegante, aproximando-se de
Diana, o suficiente para que ela enxergasse o ferimento no ombro
cicatrizando. Segurava o cabo da espada com força.
— O filho da mãe com o mangual? Morto no meu tapete.
— Não por muito tempo.
— Ele... Ele é como você?!
Luthor riu; um riso chasco, cansado.
— Não tão bonito e esperto, mas sim. Maximus também não morre.
Diana bateu os dentes; seu coração estava disparado no peito. Tinha
finalmente entendido o que a incomodou ao mirar os olhos daquele homem.
Havia algo neles que ela só havia enfrentado poucas vezes em sua vida.
Compartilhavam com assassinos a frieza que ia muito além da coragem de
viver: a ausência do medo da morte.
— Entre no carro, Duda! — ordenou para a menina, que pulou para o
banco de trás. — Temos que sair daqui agora mesmo!
— Para onde vamos, tia?!
— Só temos que sair daqui.
— Há um lugar — Luthor a cortou, segurando a porta do carro. —
Vocês estarão seguras lá. Pelo menos, até a meia-noite.
Meia-noite. A palavra ecoou junto ao trovão. Meu aniversário.
Diana não questionou; se estivesse sozinha, enfrentaria o desgraçado,
mas não queria expor a sobrinha. Por tudo o que era mais sagrado, não
poderia perder o que restara de sua família. Entrou no carro, girando a chave
na ignição; não questionou quando Luthor se sentou no banco do passageiro e
passou o endereço para ela.
Em segundos, estavam na avenida, açoitados pela chuva violenta.
— Estava me vigiando? — Diana agarrava o volante, o pé pisando
fundo no acelerador. — Eu te vi.
— Tenho feito isso nos últimos dias. Em poucas horas, será seu
aniversário. — Não havia culpa na voz dele. — O trigésimo aniversário.
— E o que tem meu trigésimo aniversário?
— Uma marca na Roda da Fortuna. Assim como o décimo terceiro.
O coração de Diana deu um salto no peito.
Diego havia sido capturado e assassinado na semana em que ambos
fariam treze anos.
— Tia, as marcas na minha pele estão aumentando!
Luthor se virou no banco, segurando os braços de Duda.
— Isso é obra de Letyne.
— Da vadia que te transformou em imortal e que decidiu infernizar
minha vida?
— Imortal? — Duda quase engasgou.
— Essa mesmo, esquentadinha.
— Pare de me chamar assim. — Diana fez uma curva brusca, e os
pneus do carro cantaram embaixo da chuva. — E tire essas marcas dela.
— Não é tão simples assim.
Ela chiou, lançando um olhar para o banco de trás.
— Por que não estou surpresa? E...
Quando Diana fez outra curva, ela viu a enorme figura arqueada no
meio da rua, a alguns metros de distância. Podia sentir a vibração assassina
que aquilo emanava.
— É um servo! Como os que te atacaram no rio!
Diana pisou no acelerador.
Aquilo pulou; uma massa preta, com garras e traços humanos. O carro
tremeu com o impacto, e ela tentou controlá-lo, sentindo o coração indo parar
na garganta. O para-brisa explodiu. Duda gritou, protegendo os olhos.
Novamente, Diana conteve o instinto de frear e girou o veículo com força em
um cavalo de pau.
O servo se dissolveu em cinzas diante dos seus olhos.
— Filho da mãe, filho da mãe — disse repetidamente.
— Você é uma caixinha de surpresas, esquentadinha. — Luthor fechou
uma das mãos dele sobre a dela, que agarrava ao volante. A pele dele era
quente. — Siga em frente. Estamos quase chegando.
— Aquilo... — Duda murmurou. — Não era humano, era...?
— São chamados de “servos” — Luthor explicou, soltando a mão de
Diana enquanto olhava para a menina. — Parecem humanos, mas não são. É
apenas uma alma controlada habitando uma casca ilusória.
— É por isso que eles se desfazem quando são atingidos?
— Exatamente, esquentadinha. — Luthor brandiu a espada; a lâmina
brilhando à luz do relâmpago. — E lá vem outro!
Diana não teve tempo de evitar o ataque. Chuva entrava pelo para-brisa
quebrado. Tentou manobrar e atingi-lo; errou por milímetros. O carro
derrapou no asfalto molhado e girou na direção dos blocos de concreto que
fechavam um lado da rua em obras.
Tudo aconteceu em fração de segundos.
O choque foi violento contra a porta de Luthor. Uma dor forte fez
Diana soltar o volante. O carro perdeu o controle. Ela sentiu Luthor a
envolvendo com o corpo.
O mundo rodou.
Quando ela recobrou os sentidos, estava sendo arrastada para fora do
carro pela janela quebrada. Um som alto e intermitente apunhalava seus
ouvidos. Estilhaços de vidro e fumaça encobriam tudo ao seu redor.
— Duda! — Diana ofegou.
— Ela está bem. — Luthor a segurava, arrastando-a pela rua. Sangue
escorria dos ferimentos quase cicatrizados no rosto dele. — Eu já a tirei do
carro. Ela está ali.
O barulho da buzina ecoava pela noite turbulenta.
Diana arfou quando viu o servo pulando na direção deles. Abriu a boca
para avisar Luthor; algo rasgou o ar velozmente, atingindo a criatura.
O servo se desfez e desapareceu.
Diana virou a cabeça, procurando pela origem do ataque. Um homem
alto e de cabelos claros segurava uma arma, e seus olhos azuis eram tão
ferozes quanto os relâmpagos que estalavam no céu. Levou apenas alguns
segundos para Diana reconhecê-lo.
— Eu posso saber que confusão é essa no portão da minha casa?
Luthor olhou por cima do ombro, acenando para ele. Água escorria dos
seus cabelos encharcados.
— Oi, Lúcio. Quanto tempo. Será que você poderia dar uma ajuda para
um velho amigo?
13
Obscuro
— Para dentro! — Lúcio ordenou; o raio que rasgou o céu clareou
suas íris. — Meu instinto de caçador me diz que aquela coisa que estava atrás
de vocês não está sozinha.
Entre todos os cenários possíveis para as horas que precediam seu
trigésimo aniversário, Diana jamais pensou que estaria sendo conduzida para
dentro da mansão de um dos maiores milionários da cidade. Ela ouvira
histórias sobre Lúcio Svetloba e sua esposa Helen através de Leon e Tris,
contudo, nunca imaginou que o casal estivesse familiarizado com o lado mais
sobrenatural e obscuro do mundo.
— O que era aquilo? — Lúcio perguntou, fechando a porta. — Ele se
desfez quando eu o atingi.
— Um servo. — Água escorria dos cabelos compridos de Luthor. —
Nem tente procurar no acervo da sua memória. Servos não existiam na
mitologia do extinto Santuário.
— E por que ele estava te perseguindo?
Luthor fez um gesto de cabeça na direção de Diana, que mantinha os
braços em volta dos ombros trêmulos de Duda.
— O servo estava atrás dela, por ordens da mestra que o controla. A
Vasilíssa do Rio das Almas.
“Vasilíssa”. Os trovões ecoaram nos ouvidos de Diana. “Rainha”.
— Lúcio, o que está acontecendo?
Diana olhou para o lado; uma mulher alta, de cabelos escuros e pele
negra, vestindo um robe de seda, entrou na sala. Sentiu os olhos dela sobre si
e sobre a sobrinha, e acompanhou a alteração que tomou seu semblante ao
pousar o olhar em Luthor.
— Você.
Luthor esboçou um sorriso que Diana achou perigoso.
— Ainda guarda ressentimentos de mim, Helen?
— Eu não me esqueci daquela história na Ilha do Mel.
— Ora, vocês queriam o artifício místico. Eu abri o selo e permiti que
vocês fizessem a travessia pelo portal. Pelas leis do equilíbrio, eu não podia
falar sobre a criatura que estaria protegendo o artifício.
Helen franziu os lábios, desgostosa, apoiando as mãos na cintura.
Diana começou a achar que talvez tivesse sido uma péssima ideia ir até ali.
Segurou os braços gelados de Duda, arfando baixo ao ver que as marcas
haviam aumentado.
Um silêncio obtuso reinou casarão, acompanhado do ritmo da chuva do
lado de fora.
— Por que quer minha ajuda, Luthor? — Lúcio indagou.
— Porque você é você. — Luthor fez um gesto com a mão, medindo
Lúcio de cima a baixo. — Pode garantir a proteção dela até a meia-noite, não
pode? Os servos não são nosso único problema. Há Maximus também.
Lúcio arqueou as sobrancelhas.
— Vou querer saber quem é Maximus?
— Saiba apenas que ele é meu mais antigo inimigo.
O ar entrava e saía rápido dos pulmões de Diana. Ela girou nos
calcanhares, tentando se acalmar. Amplas janelas ladeavam a sala, brindando-
a com a visão de um céu obscuro e tempestuoso; uma chuva pesada que
despencava e lavava todos os vidros de aspecto cristalino.
— E depois da meia-noite? — Diana se voltou para Luthor; sombras
criavam desenhos no rosto marcante dele. — Assim que eu fizer trinta anos, o
que vai acontecer?
— Poderei abrir o selo, e o que há em seu sangue apontará o caminho
correto. Iremos atrás da harpa, quando e onde quer que ela esteja.
— “Quando e onde”?
— Eu selei a harpa, mas não faço ideia do local ou da época. Somente
uma Incantevole pode apontar a direção correta.
— E por que você quer tanto recuperar essa harpa?
— Porque é meu dever sagrado. Porque fiz uma promessa.
Diana o encarou sem muita boa vontade, mas não deixou de notar a
dança de uma sombra estranha no olhar de Luthor. Ela o conhecia há
pouquíssimo tempo, mas tinha certeza de que ele escondia muitas coisas. Era
uma mistura do seu instinto de delegada com algo ainda mais profundo, que
não sabia nomear.
— E por que eu iria atrás da harpa com você?
— Porque você escutou a ameaça que Letyne fez no sonho.
“Eu vou devorar tudo que você ama”.
Um arrepio regelado beijou a nuca dela; um nome cirandou por sua
mente. Diego. Diego. Diego. Ela amava o nome que seus pais haviam
escolhido para seu irmão gêmeo.
Duda ofegou e gemeu, apoiando os braços no sofá.
— Ela está só com um roupão molhado? Deve estar congelando! —
Helen olhou para a adolescente, o semblante fechado se metamorfoseando
por completo. — Acho que as roupas da Lavínia servem para ela.
— Não consigo respirar! — Duda tossiu, comprimindo a garganta, o
corpo deslizando para o chão.
— Duda!
Diana correu até a sobrinha, amparando-a nos braços. As veias escuras
cresciam sobre a pele dela, tomando o pescoço e o rosto.
— É a mesma coisa que está acontecendo com Heloísa! O que é isso?
Como faço para reverter?!
— Nós precisamos... — Mas Luthor se calou subitamente.
Relâmpagos iluminaram a sala.
Diana podia escutar as próprias batidas do coração, captar o resvalar da
respiração afiada dele.
Engoliu em seco; ele havia abaixado a cabeça, os cabelos molhados
caindo em frente aos olhos. Apertando a sobrinha, Diana olhou para Lúcio e
Helen, esperando que eles soubessem o que estava acontecendo. Nenhum dos
dois parecia ter a resposta.
Luthor abriu os dedos, e a espada caiu de sua mão, tilintando.
Diana entreabriu os lábios; era como se todo o ar da sala houvesse
resfriado subitamente.
— Hã... Luthor...?
Ele ergueu a cabeça sem pressa; seus olhos, antes escuros e intensos,
haviam adquirido uma coloração opalina, que a fez pensar em um predador
pronto para atacar e dilacerar.
Outro trovão explodiu.
— E apenas a essência de uma alma jovem alimentará a imortalidade
da carne.
E então, ele pulou para cima de Diana e Duda.
14
Alimento imortal
Aquilo aconteceu em um piscar de olhos.
Quando Luthor avançou, Diana ergueu os braços para contra-atacar; ele
desviou, e ela percebeu tarde demais que o alvo era sua sobrinha.
Ignorando as dores do corpo e desejando estar em posse de sua arma,
ela se jogou contra ele, bloqueando o ataque, e os dois rolaram pelo chão da
sala, Luthor por cima de Diana, imobilizando-a.
— Me solte! — ordenou. — O que está fazendo?!
Luthor baixou a cabeça, o hálito quente roçando pelo rosto dela.
— Alimento imortal para a alma imortal.
Atônita, Diana olhou para dentro dos olhos dele; não havia vida ali,
apenas uma névoa escarlate, uma ausência petrificada.
Em um espasmo de segundo, Lúcio golpeou Luthor, atirando-o para
longe de Diana e Duda. O homem urrou de dor quando sua cabeça se chocou
contra o pé da mesa. Helen correu até elas.
— Vocês estão bem?!
Diana assentiu para Helen e se arrastou até a sobrinha, esparramada no
chão. As veias negras tomavam quase toda a pele dela.
Como Heloísa. Ela está inconsciente como minha irmã Heloísa.
— Acorde, Duda! Acorde!
A luzes dos relâmpagos piscavam freneticamente sobre todos.
Luthor urrou, como se estivesse se preparando para outro ataque. Diana
virou o rosto, vendo Lúcio atacá-lo mais uma vez. As batidas de seu coração
se aceleravam. Observou Lúcio estender o braço, apoiando a mão na testa de
Luthor. A manga da jaqueta dele escorregou, deixando à mostra a marca de
um triângulo — um delta — tatuado em seu pulso.
Lúcio se concentrou, fechando os olhos. Luthor se agitava ainda mais,
porém agora parecia estar preso ao chão. Diana arregalou os olhos quando
riscos brilhantes percorreram o contorno do delta, e um feixe de luz saiu da
mão dele.
Luthor arfou, se rebateu, grunhiu, até que finalmente foi rendido. Seu
corpo relaxou, e ele escorregou pelo chão, desfalecido.
Diana soltou o ar que não percebeu que prendia. Deixou Duda sob os
cuidados e vigilância de Helen, e caminhou devagar até eles. A chuva
incessante embalava seus passos.
Luthor moveu a cabeça, os olhos se abrindo aos poucos, focando no
rosto dela. Os lábios dele se moveram de forma quase imperceptível.
— Isabelle...?
Diana piscou; quem era Isabelle?
— Sou eu. Diana.
Ele puxou o ar e começou a se sentar no chão. Cada um dos seus
passos era vigiado pelos olhos atentos de Lúcio. O rosto havia voltado ao
normal e o ar predatório desaparecera.
Um véu de silêncio caiu sobre todos.
— Você não veio até aqui para que eu protegesse essas garotas dos
servos — Lúcio finalmente quebrou o silêncio. — Veio até aqui porque sabia
que eu também poderia protegê-las de você, caso algo desse errado. O que
você é, Luthor? Isso é obra do extinto Santuário?
Ele negou com um movimento de cabeça.
— É parte da maldição da minha imortalidade.
Diana engoliu em seco, a mente correndo para os corpos murchos e
acinzentados que havia encontrado nos últimos dias.
Será possível que...?!
Trovões ecoaram do lado de fora.
Luthor buscou pelos olhos dela.
— Sinto muito. Não é algo que consigo controlar. Tento sempre lutar
contra este instinto, mas ele me domina e toma toda minha consciência, até
que... Esteja feito. É o que mantém esta imortalidade que odeio.
“É o sentimento mais forte, que mais vibra no ar”, ela se recordou das
palavras de Tris. “O assassino sofreu enquanto matava sua vítima”.
As peças ganhavam forma em sua cabeça.
— Você matou aqueles adolescentes, mas contra sua vontade.
— Não há uma única vez em que eu não me arrependa de cada morte.
— A voz dele era um sussurro arranhado, derrotado. — Não há um único dia
em que eu não lute para quebrar essa maldição.
— Foi você quem contatou Tamires e nos atraiu até a boate, certo?
— Eu queria te ver pessoalmente, livre das paredes dos sonhos. Queria
ter certeza de que você era a descendente do Incantevole, aquela que poderia
me levar até a harpa e talvez acabar com tudo isso.
O coração de Diana batia nos ouvidos. Ela se recordou do corpo
encontrado pela manhã, e do que Tris dissera — que, daquela vez, o
assassino não tinha sofrido. Tinha gostado. Juntou mais algumas peças.
— Este tal Maximus que veio atrás de mim e que é imortal como você
também sofre da mesma maldição?
— Sim. — Os olhos de Luthor eram sombrios. — Mas, diferente de
mim, ele gosta de sugar a vida e de manter a imortalidade.
Diana fez uma nota mental para elogiar Tris na próxima vez em que a
visse. Os dons sensitivos da psicóloga nunca falhavam.
Ela lançou um olhar para Lúcio e Helen; o casal estava à espreita,
pronto para bloquear qualquer ataque caso Luthor se descontrolasse.
— Se você contatou Tamires, sabe sobre meu irmão gêmeo. O nome
dele era Diego. — Diana continuou, a voz abafada pela chuva. — Você me
disse que o sangue Incantevole se manifesta no décimo terceiro e no
trigésimo aniversário. Ele foi capturado e morreu quando tínhamos treze
anos. A polícia o encontrou com o corpo cheio de tatuagens de rosas negras.
Nunca localizamos o assassino. Isso tem algo a ver... Com a harpa?
Com um movimento que pareceu câmera lenta aos olhos de Diana,
Luthor desabotoou os botões da camisa que usava, revelando o peito despido.
Um raio cortou o céu do lado de fora, iluminando a rosa negra marcada na
pele dele.
— A rosa negra é o símbolo de Letyne.
— Ela matou meu irmão. — Não foi uma pergunta.
— Maximus e os servos o capturaram. Letyne achou que ele era o
descendente Incantevole. Também achei — Luthor confessou. — Nunca
houve uma mulher com sangue Incantevole manifestado antes. Maximus
chegou primeiro e o levou. Não detectou sua presença. Quando cheguei, já
era tarde demais. Seu pai estava morto. Senti sua presença, você estava
trancada no banheiro. Mas achei melhor não me revelar para você, que ainda
era praticamente uma criança. Chamei a polícia antes de partir.
A garganta dela se fechou; de repente, parecia impossível respirar.
— Letyne provavelmente o matou quando percebeu que ele não era o
descendente que ela procurava. — Luthor continuou. — O décimo terceiro
aniversário passou. E ela esperou dezessete anos para tentar de novo. E eu
também. O que está acontecendo com sua irmã e sua sobrinha é obra da
Vasilíssa do Rio das Almas. Ela vai te pressionar até conseguir a harpa.
Diana enterrou os dedos nos cabelos; aquilo era demais para processar,
para entender, e tudo o que ela enxergava era o escarlate do sangue do seu
pai, o desespero pelo desaparecimento do irmão. Tantos anos procurando,
investigando... Como poderia imaginar que as circunstâncias da morte de
Diego eram tão sombrias?
O ponteiro do relógio se moveu.
A primeira badalada soou, vibrando pelo ar.
— Meia-noite, Diana. Feliz aniversário.
— E agora?
— Agora a escolha é sua. O sangue Incantevole que existe em você
tem a chance de apontar o paradeiro da harpa. Só se você quiser. — Outra
badalada. — Mas se não pegarmos a harpa primeiro, Letyne não vai parar.
Um gosto amargo encheu a boca dela.
— É a única chance que tenho de reverter o que está acontecendo com
Duda e Heloísa, não é? E de vingar o que foi feito com meu pai e com Diego
há dezessete anos.
Luthor assentiu.
Outra badalada.
“Diana”, a voz de Diego crepitou dentro dela, familiar a distante. “Já
é tarde demais para mim, mas confio em você. Você precisa acordar. Nunca
se esqueça. As portas do destino são uma só”.
Ela olhou para a sobrinha, ainda inconsciente, com a cabeça repousada
no colo de Helen.
— Não posso deixar Duda assim.
— Nós a levaremos para o hospital — Helen falou. — Cuidaremos
dela e da sua irmã. Não permitiremos que mal algum se aproxime.
— E avisaremos Leon — Lúcio complementou. — Ele entenderá.
Diana puxou o ar; não conhecia Helen e Lúcio, mas a veemência
daquelas palavras a fez acreditar cegamente na promessa.
Mais uma badalada.
Diana se virou para Luthor, os olhos faiscando.
— Faça. Me mostre como ir até a harpa. Aquela vadia e seus servos
vão se arrepender por terem mexido com a minha família.
Apesar da boca de Luthor permanecer uma linha rija, ela captou o
sorriso de aprovação que lampejou no olhar dele.
— É assim que se fala, esquentadinha.
— Se encontrarmos a harpa, sua maldição será quebrada?
— Não sei. Mas, pelo menos, minha dívida estará paga e meus pecados
terão sido lavados.
Outra badalada.
— Dívida? Pecados? Como assim?
— Haverá muito tempo para conversarmos, esquentadinha. Não
podemos perder o tempo das badaladas. Vamos lá para fora. — Ele se virou
para Lúcio. — Muito obrigado por me conter. Novamente, tenho uma dívida
com você. Sinta-se à vontade para cobrá-la.
— Apenas fique longe de problemas. E não morra.
— Não prometo o primeiro pedido, mas o segundo está garantido.
— Protegerei sua sobrinha e sua irmã — Helen reforçou, acariciando
os cabelos de Duda. — Tome cuidado.
Diana meneou a cabeça; a sensação era de que o coração arrebentaria o
peito. Queria ficar com Duda e Heloísa; contudo, se havia uma chance de
acabar com aquilo e salvá-las, mergulharia de cabeça, sem se importar com
os desafios que surgiriam ao longo do caminho.
— Muito obrigada.
Mais uma badalada reverberou pela sala.
Luthor guardou a espada na bainha presa às costas e abriu a porta. O
vento bufou em redemoinhos. Ele e Diana caminharam para o jardim da casa.
A escuridão era um vértice denso, marcado pela chuva impiedosa.
— Precisarei de um pouco do seu sangue para abrir o selo.
Despindo-se de qualquer temor, Diana estendeu a mão para ele.
Por Heloísa. Por Duda. Por Diego. Por meu pai.
Luthor puxou uma pequena adaga que Diana nem sabia que ele
carregava; ela mordeu os lábios quando a lâmina cortou a palma de sua mão.
A mão de Luthor cobriu a sua, lançando um calor incandescente pela pele e
pelo sangue que a atordoou.
Um raio rasgou o céu.
Ele libertou a mão dela e se virou sob a tempestade, erguendo as duas
mãos em frente ao corpo. Murmurou palavras em uma língua que Diana não
reconheceu; o que a fez pensar que aquele era um idioma muito, muito
antigo. Tão antigo quanto ele.
O ar e o espaço se rasgaram em dois, abrindo uma fenda diante deles,
um arco de rosas negras envolto por ondulações vibrantes, como chamas de
velas na noite, dançando em ondas escuras.
— Encontrei! — Luthor bradou. — Há um sinal da harpa aqui!
Os cabelos de Diana ricocheteavam em volta do rosto.
— Sabe para onde iremos?
— Viena. Século dezenove.
Viena. Século dezenove. Céus. Isso está mesmo acontecendo.
Ela teria se desesperado se não estivesse ainda mais assustada com a
ideia de perder Heloísa e Duda; se não estivesse tomada pela vontade de
vingar a morte de Diego e do pai.
— Temos que fazer a travessia a qualquer momento. — Luthor avisou;
a luz e a chuva sombreavam o rosto dele. — Preparada?
Encarou o portal.
Talvez as portas do destino fossem uma só. Talvez toda sua vida
tivesse se moldado para chegar até aquele momento. Ela nunca saberia. Só
sabia que lutaria até o fim para proteger sua família.
— Preparada.
E, juntos, avançaram para dentro do portal.
◆◆◆
Atualmente
Remexendo-se por entre as cobertas, Diana levou alguns instantes para
abrir os olhos.
Certo. Vamos lá. Você consegue.
Ergueu-se devagar na cama, os cabelos caindo pelos ombros e costas.
Assimilou o ambiente. Não estava no seu apartamento. Não mesmo. Era o
quarto com a decoração de Viena do século XIX.
— Caramba.
Ela não tinha sonhado. Havia mesmo viajado no tempo.
Imaginou o que Leon diria quando soubesse; o investigador tinha seus
próprios segredos, mas Diana duvidava que ele já tivesse passado por algo
como aquilo. Deixou um sorriso preguiçoso se erguer em sua boca. Na
competição silenciosa que faziam desde que se conheciam, tinha certeza de
que acabava de marcar muitos pontos.
Empurrou as cobertas para o lado e olhou em torno do aposento. O
fogo da lareira se reduzira às cinzas. Uma luz pálida se infiltrava pela janela.
Não havia sinais de que Luthor estava por perto.
Diana se levantou, foi até o quarto de banho, lavou o rosto e se livrou
da camisola gigante. Sua irmã iria rir se a visse vestida naquilo.
O pensamento em Heloísa lancetou seu peito.
Aguente, minha irmã. Vou fazer tudo o que puder para salvá-la.
Aguente.
Pela irmã e pela sobrinha, ela aceitou o desafio de usar um banheiro
nada moderno. Para vingar a morte do irmão e do pai, retornou com
dignidade para o quarto e encarou o vestido que teria que usar para se
misturar às pessoas da época; um vestido longo, azul, pesado, cheio de saias,
amarras e babados, com um chapéu da mesma cor para combinar.
Depois de três tentativas, não conseguiu se enfiar na roupa.
— Qual é o problema com calças, camiseta e botas? — resmungou,
batalhando contra o vestido. — Muito mais prático e confortável.
Diana julgou que havia feito muito barulho, tropeçando no chão e
batendo nos móveis, pois não demorou muito para que uma das criadas
entrasse no quarto para ajudá-la a se vestir. Mesmo sem falar o idioma, ela
recusou mortalmente o espartilho, o que causou estranhamento na criada.
Satisfeita ao ficar sozinha, Diana trançou os cabelos e se colocou diante
do grande espelho de bronze.
Nada mal.
— Uau. — Luthor entrou no quarto, assoviando. — Se eu não te
conhecesse, até poderia acreditar que você é uma verdadeira dama.
Ela controlou a vontade de mostrar o dedo do meio para ele. Com o
canto dos olhos, o observou; Luthor usava um terno que levava um colete,
golas que deixavam o colarinho alto e um chapéu elegante.
— Onde você estava? — perguntou, desviando o olhar para quebrar a
reação que a visão dele em roupas de época lhe causou.
— Que noiva controladora.
Diana revirou os olhos. Ele levou a mão até um dos bolsos da calça,
puxando um belo colar de esmeralda.
— Procurei um lugar isolado para abrir um selo que fiz há algumas
décadas — Luthor explicou, manuseando a joia. — Cumpri a lei do equilíbrio
e peguei este colar. É para você.
— Não sou do tipo que se seduz por joias.
Luthor abriu um sorriso de canto.
— Vai gostar desta peça, esquentadinha. É um colar babilônico. Quem
o usa consegue se comunicar e entender qualquer língua. Me custou favores e
sangue, mas o peguei de volta. Agora você poderá se virar super bem em
Viena, sem ficar dependendo dos meus serviços de tradutor para reunir pistas
sobre a harpa.
A guarda de Diana baixou; e ela se viu emudecida e surpresa.
— Eu... Isto...
Ninguém nunca fez algo assim por mim.
— Não precisa agradecer, esquentadinha. — Luthor deu uma piscada
para ela. — Vire-se.
Diana assentiu, ficando outra vez de frente para o espelho. Luthor se
aproximou, colocando o colar em seu pescoço, o roçar dos dedos e da
corrente arrepiando sua pele. Os olhos dele, que ela via através do espelho,
escureceram em uma cadência desconcertante.
— Pronto.
Diana se virou e ergueu o rosto, recebendo os olhos de Luthor nos seus,
a mão dele se afastando do calor de sua pele sem que o contato visual fosse
interrompido.
— Obrigada — ela disse, estranhamente desconcertada.
Esperou por uma piadinha, um riso torto, mas Luthor parecia tão
desconcertado quanto ela.
— Trouxe armas para você também. — Ele mostrou uma pequena
adaga e um revólver. — Carrega-as o tempo todo. Não sabemos o que nos
aguardará quando começarmos a busca pela harpa.
Diana anuiu e apanhou o revólver primeiro, prendendo-o no cinto do
vestido, usando uma das camadas dos babados para ocultá-lo. Era estranho
como Luthor parecia saber o que ela mais queria, mesmo que se conhecessem
há poucos dias. Odiava andar desarmada. Odiava depender da ajuda das
pessoas. E ele lhe dera duas armas e um colar mágico tradutor. Ela se viu
inundada por um sentimento obtuso que não era gratidão.
Afastando aquela turbulência da mente sempre racional, buscou um
lugar para a adaga. Prendê-la na coxa com uma cinta improvisada, embaixo
do vestido, seria uma boa forma de fazê-la passar despercebida. Teria que
driblar as camadas de tecido para sacá-la; e não havia nada que gostasse mais
do que um bom desafio.
Diana iniciou outra batalha com as saias; sabia que a luta estava
perdida depois de várias tentativas falhas. Sem dizer nada, Luthor estendeu a
mão, pedindo a adaga de volta. Exalando forte, ela a entregou para ele.
— Sente-se.
Em um movimento lento, Diana se sentou na beirada da cama. O fogo
da lareira estava apagado, mas o ar gravitava abrasador e enérgico. Ele se
abaixou diante dela, erguendo a saia do vestido em um ritmo mais vagaroso
ainda, deixando parte de sua coxa exposta.
Diana travou a respiração ao sentir o toque dele em sua pele outra vez,
calmo, meticuloso; quando percebeu, a adaga já estava presa à perna.
— Hã... Obrigada de novo.
Luthor, ainda com a mão pairando sobre sua coxa, ergueu a cabeça, e
ela contemplou o fascínio místico criptografado que ardia no escuro dos seus
olhos. Um pequeno movimento foi o bastante para deixar o rosto dele a um
palmo de distância do rosto dela.
Os dedos de Diana se fecharam sobre os lençóis; o frágil roçar de suas
peles pulsava uma ardência anormal, como se ambos houvessem sido
beijados pelo fogo e queimassem na mesma temperatura.
Ele se aproximou um pouco mais; os lábios entreabertos.
— Da próxima vez que eu levantar seu vestido — sussurrou —, não
será para te ajudar com a adaga.
O coração de Diana disparou, e ela não conseguiu dizer mais nada
enquanto Luthor se erguia e deixava o quarto.
◆◆◆
A aterrissagem brusca fez Maximus rosnar.
A travessia pelo portal e a viagem no tempo haviam demorado mais do
que imaginara; talvez porque a Vasilíssa do Rio das Almas tivesse usado
apenas uma centelha da energia da Incantevole.
Olhou em volta, reconhecendo as ruas e arquitetura.
Viena. Inspirou fundo, farejando o ar. Século XIX.
— Ei, esta é uma área particular — um guarda uniformizado o advertiu
em alemão. — O senhor não pode ficar aqui.
Com um movimento ágil, Maximus girou o mangual no ar; a corrente
cantou, e a esfera espinhenta acertou em cheio a cabeça do guarda.
O homem ainda respirava quando Maximus o agarrou pelo pescoço e
aproximou suas bocas, sugando toda a vitalidade da alma até que estivesse
segurando apenas uma casca murcha e cinzenta.
Soltou o corpo e não se importou em pisoteá-lo para atravessar a ponte,
o sangue rugindo em excitação; estava pronto para a caçada e para o acerto de
contas.
18
A descida do músico
— E como vamos iniciar a busca pela harpa? Por onde
começaremos? Para onde iremos? O que temos que fazer? — As perguntas
impacientes saíam da boca de Diana. Não conseguia achar uma posição
confortável no banco da carruagem. Maldito vestido.
— Estou pensando, esquentadinha. Tenha calma.
— Calma?! — Ela chiou, incrédula, esfregando a saia do vestido. —
Minha irmã e minha sobrinha estão morrendo. Você sabe quanto tempo elas
têm de vida? Você sabe quanto tempo levará para aquelas marcas consumi-
las por inteiro?
Luthor meneou a cabeça, as feições suavizando. Estava no banco em
frente a ela, as mãos repousando sobre as calças.
Diana inspirou e expirou fundo. Após o desjejum — era estranho
chamar o café da manhã de desjejum — o doutor Arnold Müller, sem fazer
uma pergunta sequer, havia lhes cedido uma carruagem, um cocheiro e um
cavalo, para que pudessem explorar Viena.
Ela ainda estava curiosa, imaginando que tipo de dívida o homem tinha
com Luthor.
— Não sei. Sinto muito. — Luthor suspirou. — Mas vamos encontrar.
Arnold tem muitos contatos na alta sociedade vienense. Ele tentará descobrir
se alguém viu ou ouviu falar algo sobre a harpa.
Diana bufou e tirou o chapéu. Aquilo fazia sua cabeça coçar demais.
— Mas e nós? Não quero ficar parada!
Ele a olhou demoradamente, como se estivesse sondando cada canto de
sua alma, e Diana precisou prender o ar para se manter impassível e racional;
ainda podia sentir o toque dele em sua pele, a calidez das palavras
sussurradas em seu ouvido, o arrepio por todo o corpo.
— Como tudo isso começou? — ela perguntou, buscando um motivo
para aplacar as imagens que invadiam sua mente. — Os Incantevoles? A
harpa? A vadia do Rio das Almas?
— Está disposta a ouvir uma longa história?
— Para saber como cheguei até aqui, preciso conhecer a origem dos
meus... Hã... Antepassados músicos e mágicos. — Céus, pensar naquilo, para
uma delegada do século XXI, era estranho demais.
— Quem me contou essa história foi o mestre Incantevole que me
acolheu, quando eu fugia do Santuário que queria me matar.
“Conta-se uma lenda muito antiga que havia um homem com
habilidade de encantar todas as coisas vivas, e até as pedras com sua música.
Seu nome era Orfeu. Ele possuía uma harpa forjada de ouro e sol. Quando
Orfeu a tocava, os pássaros paravam para escutá-lo, os animais selvagens
perdiam o medo e as árvores se curvavam para pegar os sons que o vento
trazia. Ele foi o primeiro Incantevole que andou sobre a terra, abençoado
pelas musas, e se tornou um protetor da magia da música. Era noivo de
Miríade, uma das mulheres mais lindas de seu povoado.
“Certo dia, enquanto Orfeu tocava, alguns aldeões relataram ouvir o
chão rugir e se abrir, e dele, uma mulher de beleza sombria emergiu.
Ninguém sabe como ela subiu para o mundo dos homens. “Aiónia nýchta”,
alguns gritaram apavorados nas velhas línguas. Noite eterna. A noite eterna
era a Vasilíssa do Rio das Almas e do Mundo dos Mortos, denominada
Letyne por um povo antigo e extinto. Ela andava pela primeira vez embaixo
da luz.
“Era primavera, e a relva esmeralda cobria todas as campinas da
região, e flores das mais diversas cores e espécies decoravam as paisagens.
Por onde Letyne passava, a vegetação escurecia e as plantas morriam. E
enquanto caminhava, trazendo a noite consigo, atraída pela música, Letyne se
deparou com uma jovem colhendo flores brancas. Era Miríade. Letyne
invejou sua beleza, e, desejando-a, matou a jovem, tomou sua alma para si e
regressou ao Submundo.
“Orfeu, atordoado com a dor da morte, decidiu desafiar a Vasilíssa do
Rio das Almas. Com sua harpa encantada, seguiu pela trilha do submundo,
encontrou a passagem para o Mundo dos Mortos e se embrenhou em uma
jornada para resgatar a alma de sua noiva. Lá embaixo, Letyne esperava por
ele. Admirada com a coragem do nosso músico, ela lhe ofereceu uma
proposta tentadora:
“— Você pode ter sua noiva de volta. Basta tocar a harpa até a saída
do Submundo. Ela te seguirá. Mas há uma condição. Você não pode olhar
para trás até sair daqui. Se olhar, a perderá para sempre”.
“Aceitando o desafio, Orfeu partiu pela trilha íngreme que levava para
fora do mundo inferior, tocando músicas de alegria e celebração, a fim de
guiar a sombra de Miríade de volta à vida. Não olhou para trás. Mas a
Vasilíssa do Rio das Almas era traiçoeira, conhecida por muitos como a mãe
das mentiras. Ninguém sabe exatamente o que despertou Orfeu. Alguns
dizem que foi o próprio encantamento da melodia da harpa. Perto da saída,
ele olhou para trás.
“Em choque, viu que quem o seguia era a própria Letyne, e não
Miríade. Ela lhe deu um sorriso perverso. Ele entendeu. A Vasilíssa estava
tentando escapar para sempre do Submundo e do dever de cuidar do Rio das
Almas. Somente a música de Orfeu a libertaria. Se ela fosse livre no mundo
dos homens, traria a noite eterna, engoliria a luz e reinaria nas sombras.
“Cego de ódio, Orfeu mudou a melodia da harpa, criando uma prisão
mágica para Letyne. Há quem diga que o grito dela ecoou por quatro dias e
quatro noites. A Vasilíssa jamais tornaria a ver a luz, condenada a viver para
sempre no Submundo, em volta das rosas negras. Ela o amaldiçoou e girou a
Roda da Fortuna. Disse que um dia colocaria as mãos na harpa e seria livre
de novo, e criaria um mundo para ser temida e adorada”.
Luthor suspirou e se silenciou. Parecia pensativo, imerso em um
mundo particular e fechado. Diana aguardou que ele continuasse a história.
— Orfeu encontrou outros vinte e nove Incantevoles abençoados pelas
musas, e formaram uma seita para proteger a harpa. Assim, o instrumento
passou por todas as gerações de Incantevoles ao longo dos séculos, até chegar
às mãos do meu mentor e de seus discípulos.
A carruagem sacolejava suavemente.
— Entendi a trama da harpa. Mas estou em dúvida... Qual é origem de
Letyne? Como ela surgiu?
— Você faz jus à carreira que escolheu. Imagino que deva estar
montando um quadro investigativo com fios e imagens na sua cabeça. —
Luthor lhe deu um sorriso preguiçoso. — Bom, há várias versões, mas todas
elas fazem alusão ao mesmo início. Tanto Letyne quanto as musas que
abençoaram a harpa e os Incantevoles são filhos do Tempo e da Terra.
Diana arqueou as sobrancelhas.
— Como Cronos e Gaia, na mitologia grega?
— Tempo e Terra. Cronos e Gaia. Kronós e Geia. Não importa a
nomenclatura. A ideia é a mesma. Pense neles como entidades além da
compreensão humana, e chame-os como quiser.
— Então, a Vasilíssa do Rio das Almas e os Incantevoles são
ramificações das mesmas raízes?
Luthor anuiu.
— Pode-se dizer que sim. Mas cada ramo destas raízes desabrochou
para um lado. As musas, e consequentemente os Incantevoles, cresceram para
cima, para a luz, enquanto a Vasilíssa teceu seu caminho para baixo, para a
escuridão.
Um estranho arrepio roçou a nuca de Diana, como se dedos invisíveis
estivessem muito próximos de sua pele, resvalando o ar frio.
— Isso seria a lei do equilíbrio?
— Você está pegando o espírito da história, esquentadinha.
Ramificações da mesma raiz. Diana tocou a cortina de veludo da
carruagem, o olhar se demorando para as trilhas que serpenteavam diante dos
bosques onde passavam. A Vasilíssa e os Incantevoles são ramificações da
mesma raiz, criados pelas entidades do Tempo e da Terra.
Era bom guardar aquela informação.
— Para finalizar este relato, vamos retornar para mim. — Luthor
limpou a garganta, capturando a atenção dela.
— Você disse que a harpa passou por todas as gerações de
Incantevoles, até chegar aos meus antepassados que te acolheram, certo? E o
que aconteceu quando você buscou refúgio entre eles?
— Ganhei a confiança deles, e, mesmo sem ter sangue Incantevole, por
ser um selador treinado pelo Santuário, também me tornei um protetor da
harpa. Mas acabei falhando na minha missão. Letyne quase pegou a harpa.
Eu a impedi no último instante, abri um selo e enviei a harpa por ele, mas não
fui rápido o bastante. Letyne me amaldiçoou com a imortalidade. O resto da
história eu já te contei. E é por isso que estamos aqui. Para consertar o
passado. Para impedir que Letyne tome a harpa e deixe o Mundo dos Mortos,
trazendo a escuridão e o silêncio para o Mundo dos Vivos.
Em um gesto impulsivo, Diana se inclinou e segurou as mãos de
Luthor com as suas. Ele a fitou, ligeiramente surpreso.
— Que se dane a Roda da Fortuna. Vamos encontrar essa harpa.
Vamos devolvê-la para seu lugar de origem e salvar minha família. E vamos
dar um jeito de acabar com sua maldição. Você me salvou, salvou Duda, é o
mínimo que posso fazer para te agradecer. E imagino que você tenha lutado
até o fim para proteger a harpa. Seu mestre Incantevole, meu antepassado que
te deu um lar, não gostaria de te ver sofrendo, não é mesmo?
Achou que suas palavras inspirariam algum conforto nele, mas, para
surpresa de Diana, o rosto de Luthor sombreou, recolhido a uma
profundidade que a fez prender a respiração.
— Você é mesmo uma Incantevole — ele murmurou. — Ao tocá-la,
sinto cada vibração em sua pele, cada melodia do sangue, como...
— Como se cada célula do meu corpo fosse feita de música — ela
murmurou de volta, complementando os pensamentos dele.
Não sabia por que, mas era como se todo o ar em volta deles houvesse
resfriado subitamente, enquanto as batidas do coração aceleravam.
O que você está escondendo de mim?
Abriu a boca para questioná-lo, mas Luthor se moveu primeiro, o
chapéu deslizando para o lado, e recolheu as mãos.
— Esse foi um dos motivos que usei para te atrair com sua amiga até a
boate, naquela noite. No meio de um ambiente musical, seu sangue
Incantevole estaria mais agitado. E eu comprovaria se você era mesmo a
descendente que meu antigo mestre previu que encontraria a harpa.
Diana entrelaçou os dedos, encostando as mãos nos lábios.
— É tão difícil acreditar que isso está mesmo acontecendo. Eu... Eu
sempre fui muito ligada à música. Meus pais pagaram várias aulas, para que
aprendesse a tocar tudo o que quisesse. Sempre gosto de ter um rádio ligado
por perto. É algo intrínseco.
Luthor buscou pelos olhos dela; havia ali, na escuridão de uma vida
imortal, tons de doçura e gentileza que aqueceram o peito de Diana.
— Gostaria de te ouvir tocando algo um dia. Acredito que a melodia
que você produz é única e especial.
— Nunca mais toquei depois que Diego morreu. — Ela levou o olhar
para a janela da carruagem, para as construções clássicas de Viena. — Piano,
flauta, violão. Cada nota me faria pensar nele. Na ausência dele. E eu sabia
que doeria demais.
O silêncio tomou o interior da carruagem; somente a batida ritmada dos
cascos dos cavalos poderia ser ouvida.
— Assim como Orfeu perdeu sua amada, você perdeu seu irmão de
útero, que também possuía sangue Incantevole. Sangue místico não
manifestado, mas que corria pelas veias dele, assim como corre pelas suas. —
Luthor finalmente falou, o dedo roçando pelo próprio peito, e ela se lembrou
da Rosa Negra cravada na pele dele. — Há perdas que nos marcam por toda a
eternidade.
— E você? — Diana o olhou por debaixo dos cílios longos. — Já teve
uma perda que o marcou?
— Um imortal já viu e perdeu muitas coisas.
Diana experimentou uma sensação estranha, um gosto acrimonioso que
salpicou por todo o seu paladar. Tinha algo errado ali. Seu instinto
investigativo soava como uma sirene ardida.
Ofegou e tocou a testa, sentindo gotículas de suor frio sobre a pele.
O que está acontecendo?
— Luthor...
Mas ele já havia agarrado seu braço e a puxado para fora da carruagem.
Ela quase tropeçou na barra do vestido.
— Ei! O que você...
— Letyne farejou nossa presença. Vamos. Precisamos nos camuflar,
apagar nossos rastros. Os servos dela podem aparecer a qualquer momento.
O céu estava carregado e cinzento, e neblina serpenteava por entre o
amanhecer endurecido, formando uma cortina de névoa em torno das
fachadas dos cafés vienenses.
— Por que todas aquelas pessoas estão aglomeradas ali, Luthor?
— Não sei, mas não é problema nosso.
— Tem alguma coisa errada! — Diana apontou na direção da ponte. —
Já testemunhei várias cenas de crimes para reconhecer uma.
Luthor a segurou.
— Você não tem nenhuma jurisdição aqui, esquentadinha.
Ela puxou o braço, segurou a barra do vestido e correu até o
aglomerado de pessoas. Ouvia Luthor praguejando enquanto a seguia. Parou
perto da ponte, e seus olhos treinandos caíram sobre o cadáver de aspecto
murcho e acinzentado. Diana ofegou baixo.
— Foi você? — sussurrou para Luthor.
— Não.
— Então isso significa...
— Maximus. — A voz dele era fria, um eco que arrepiou a pele de
Diana. — Ele também está aqui.
— Como?! E o que vamos fazer?! Ele não pode pegar a harpa!
— Tive uma ideia depois dessa nossa conversa. Venha comigo. — Ele
a puxou para longe da multidão. — Talvez haja uma forma de usarmos seus
dons Incantevole para rastrearmos a harpa. Mas temos que ser rápidos.
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Memórias na melodia
Na escuridão, ela esperava pacientemente.
Apanhou algumas flores para enfeitar os cabelos. As rosas negras eram
suas companheiras há uma eternidade. Quando escapasse do cárcere e
emergisse para a luz, cobriria o mundo com suas pétalas.
Um lamurio deslizante vinha do Rio das Almas.
Em breve, aquele seria o único som que os homens escutariam.
◆◆◆
Atualmente
— Ela está vindo! — Tris se colocou diante das camas de mãe e filha,
o coração ressonando em batidas altas.
O vento uivava, espiralando em giros frios. Tris podia sentir mais uma
presença ali, uma energia sôfrega que andava ao lado da Vasilíssa.
Leon sacou a pistola do coldre; as balas foram disparadas em sequência
a cada passo dado pela Vasilíssa do Rio das Almas. Para o desespero de Tris,
os projéteis a acertavam e viravam pó na mesma hora.
— Merda! — Leon trincou a mandíbula quando as balas acabaram. —
Está faltando uma habilidade mística para mim também!
A Vasilíssa cortou o ar com as mãos; a corrente de vento empurrou
Leon, fazendo-o rolar pelo chão.
As luzes do quarto piscaram freneticamente.
Tris sentiu o formigamento, a velha e conhecida sensação que sempre a
tomava quando uma manifestação estava prestes a acontecer. Deu um passo
diante da Vasilíssa, como se uma barreira para proteger Heloísa e Maria
Eduarda. Alguém tentava contatá-la, usá-la como um canal de comunicação
para falar com a Vasilíssa, mas algum bloqueio impedia que a mensagem
fosse repassada.
Os cabelos da Vasilíssa esvoaçavam como um véu negro.
Ela esticou a mão, cada vez mais próxima de Heloísa e Duda.
— Não! — Tris puxou o ar, as pernas cambaleando diante da Vasilíssa.
— Não faça isso. Ela está aqui. Ela está vendo. Ela não quer isso.
Com um rugido, os vidros da janela explodiram, chovendo em
estilhaços sobre Tris e Leon.
— Você não sabe de nada, mortal.
— Posso não saber. Mas eu sinto. — Todo o corpo de Tris tremia; as
habilidades sensitivas atingiam o pico máximo. — Ela não quer isso. Ela não
quer que você mergulhe nesta escuridão.
A mão da Vasilíssa se fechou ao redor da garganta de Tris.
— A escuridão é meu lar. Mas não é o lar dela. E eu vou tirá-la de lá.
— Terá que passar por mim primeiro!
Ofegando, Tris enxergou Diana surgindo atrás delas, com uma harpa de
ouro nas mãos.
◆◆◆
Fim
Notas da autora & Agradecimentos
Que emoção finalizar mais uma história!
Rosa Negra é meu décimo primeiro livro, e assim como todos os outros,
foi uma aventura maravilhosa de viver e escrever.
Diferente dos meus outros livros, esta história falou muito sobre perdão e
redenção - até mesmo a "vilã", de certa forma, encontrou sua redenção. Foi
uma experiência incrível escrever algo nesta linha.
Lúcio Svetloba é um exímio caçador que ainda paga pelos erros de uma
guardiã foragida. Assim, quando uma nova ordem de execução chega até suas
mãos, ele se vê diante de um impasse. A sentença é clara, e a chance da
vingança se abre junto a um jogo de atrações e mistérios.
Para a maior parte das pessoas, Tris Rasera é somente uma discreta e
inteligente psicóloga que, quando está fora de sua clínica, auxilia a polícia na
elaboração de excelentes perfis criminais. Mas o sucesso do seu trabalho
esconde um segredo perigoso, que apenas o investigador Leon Assis conhece.
Contudo, quando uma inesperada notícia chega até suas mãos, Mahara se
vê diante de um caminho que jamais pensou em trilhar, onde cada passo dado
poderá envolvê-la em uma jornada de perigos, segredos, atrações intensas e
sentimentos proibidos.
PONTO CRUZ (LIVRO ÚNICO)
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Uma falha crítica na missão que a levaria para fora do país obriga a
agente de infiltração Ariadne Dangelo a voltar para a cidade de sua sede de
trabalho, confrontando o furacão que deixou para trás em sua última partida.
Contudo, a difamação dos colegas é apenas uma faísca perto do conflito com
o investigador Henrique Moreto, com quem o acerto de contas do passado
nunca foi feito.
No enlace dos braços da noite, mais uma jovem corre sem olhar para
trás. Em vão.
Esvanecerá entre o suplício e o tormento. Pois o erro foi cometido. Ela
não deveria ter confiado em ninguém.
Contudo, quando misteriosos corpos sem olhos são encontrados por todo
o território, uma onda de insegurança toma a Capital, forçando o Serviço de
Inteligência Octupus a entrar em ação.
O ataque do Inanis à Global Octupus fez com que Lira e Aram, de alguma
forma misteriosa, se conectassem um ao outro pela ligação Kapwa. Agora,
como parte do grupo seleto e secreto, eles precisam viver sob as regras
rígidas da elite enquanto tentam desvendar os enigmas que os cercam. Só que
o forte sentimento entre eles pode colocar tudo a perder.
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