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Copyright © 2020 by Clarissa Coral

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.

ROSA NEGRA

Design e ilustração de capa: Brina Boyle


Revisão ortográfica: Ana Vitti
Diagramação: Clarissa Coral

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, organizações, lugares e


situações são frutos da imaginação deste autor e usados como ficção.
Qualquer semelhança com a realidade ou fatos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Os direitos morais do autor foram assegurados.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.
Índice
PARTE I - Portas do Destino
Prólogo
1 - Sonhos distantes
2 - A sombra no rio
3 - Rostos flutuantes
4 - A metade perdida
5 - Noite de caça
6 - A hora mais sombria
7 - Na escuridão
8 - Roda da fortuna
9 - Notas mortais
10 - Os Encantadores
11 - À luz do raio
12 - Olhos que não temem
13 - Obscuro
14 - Alimento imortal
PARTE II - Roda da Fortuna
15 - Caminhos
16 - Um outro tempo
17 - Abrasador
18 - A descida do músico
19 - Memórias na melodia
20 - Nas portas do destino
21 - Juras de fogo e aço
22 - Sangue e rosas
23 - Raízes de culpa
24 - Correntes da fortuna
25 - Fogo na escuridão
26 - Flores brancas
27 - Queda inevitável
28 - Descida
PARTE III - Correntes de Espinhos
29 - Sonho indistinto
30 - Berço da escuridão
31 - O barqueiro
32 - Dez mil flores
33 - Porque será contado uma última vez
34 - Acorrentados
35 - Mudança de curso
36 - A melodia dos esquecidos
37 - Correntes quebradas
38 - As treze
Epílogo
Notas da autora & Agradecimentos
Conheça “Delta”: a história de Helen e Lúcio
Conheça “Sensorial”, a história de Tris e Leon
OUTRAS OBRAS DA AUTORA
Sobre a autora
“Distantes demais, esperamos um pelo outro
Eu continuo naquela estrada para lugar nenhum
Beije a si mesma por mim no espelho
Coloque uma rosa negra em seus cabelos”
-RASMUS
TEN BLACK ROSES
PARTE I
Portas do Destino

Como chamas de velas na noite, dançando em ondas


escuras
Prólogo
Florença, Itália.
Ano de 1492

Havia uma última coisa que podia fazer. Talvez a mais difícil e pior
de todas que tinha feito desde que a escuridão do luto eclipsara seu coração.
Voltar para o lugar que suas mãos haviam profanado.
Se tivesse escolhas, não voltaria. Por vergonha. Por medo.
Mas as escolhas já não existiam mais.
A lua estava alta; um manto prata que cobria o mundo. Mas dentro dele
ruía apenas um breu interminável.
A capa oscilava nas costas enquanto ele corria pelos becos. As ruas de
paralelepípedos craquelavam aos seus pés, e as sombras das construções
pareciam se inclinar uma contra a outra, formando um canal que ressonava as
batidas altas do seu coração.
O que foi que eu fiz?
E a pergunta que mais o assombrava: o que ela fizera com ele?
Esfregou o peito, sentindo a saliência da cicatriz recente que tomava
forma na pele, e continuou correndo, descendo pelas vielas estreitas que
formavam um caminho desconhecido para a maior parte das pessoas. Névoa
azulada flutuava no ar.
Não olhou para trás em momento algum; mas a audição captava o
estalar do fogo feroz que insurgia nos cantos mais escuros do caminho.
Parou diante da escadaria de ardósia. Não havia barulho.
Porque, horas atrás, eu calei todos os sons desse lugar.
Teria se afogado na culpa se não estivesse trincando de medo,
questionamentos e terror. O que seus olhos haviam contemplado... Tinha
certeza de que nem as pessoas comuns, nem os homens que conheciam o que
ele conhecia, haviam visto algo como aquilo.
Como aquele fogo.
Com a pulsação latejando na garganta, subiu os degraus sem se
importar se estava profanando o local outra vez.
Ao alcançar o salão de luz bruxuleante, ele olhou em volta. O fiapo da
lua que se esgueirava pela claraboia iluminava os corpos ensanguentados.
Todos tinham lutado. Todos tinham morrido. Em suas mãos.
Ele comprimiu os olhos, abafando o grito que queria rugir.
Foi a respiração baixa que o trouxe de volta. Virou o rosto; um dos
anciões caído no chão ofegou, olhando em sua direção.
Ele poderia ter implorado por perdão, mas não havia tempo. Agachou-
se ao lado do velho, erguendo-o com o máximo de cuidado que conseguiu.
Esperou pela acusação. Ela também não veio. Mesmo assim, sentiu a
recriminação nos olhos do ancião, na névoa que serpenteava do lado de fora,
no frio intrínseco da noite e da alma.
— Onde está a harpa? — o ancião sussurrou.
— Não está comigo.
— Está com ela?
— Também não.
— Então, onde está? — Houve um momento de silêncio. O ancião
inspirou fundo; a dor irradiava em seu semblante. — O que aconteceu esta
noite? O que aconteceu quando você desceu?
Ele baixou o rosto; os fios escuros do cabelo caíam pela testa.
— Ela me enganou. Quando percebi, selei a harpa. — Foi tudo o que
optou por contar. A vergonha e a humilhação queimavam no sangue. — Só
que não consigo mais encontrá-la. Isso nunca aconteceu antes.
O ancião tossiu.
— É porque é o legado apenas do meu sangue proteger a harpa. Desde
que as filhas do Tempo e da Terra abençoaram meus antepassados. — E
ergueu a mão trêmula; os dedos do velho tocaram o peito dele, a cicatriz
exposta, fazendo-o estremecer. — Ela o marcou com o fogo negro.
— O que isso significa?
Uma brisa estranha bufou. Ele olhou de soslaio para os cantos; era
como se a essência ardente dela deslizasse pelas sombras.
Quase podia inalar o cheiro do fogo que não era fogo.
Estava perto. Estava muito perto.
— Posso sentir no ar, na matéria e nas estrelas. Isso se estenderá pelos
tempos. O que foi roubado perturbará as leis do equilíbrio até que volte para
seu lugar de origem. E... — O ancião o fitou; naquele momento, achou que o
velho estava enxergando para além de sua alma marcada. — Somente aquele
que carrega meu sangue será capaz de ajudá-lo um dia.
Ele olhou em volta, olhou para todos os corpos ao seu redor.
— Seu sangue? Mas... Estão mortos.
As nuvens se moveram do lado de fora, encobrindo a lua e a luz nos
olhos do ancião.
Ouviu o rugido do fogo quando o velho morreu em seus braços.
Fogo negro, fogo ardente, um fogo que surgira do nada.
Ele se levantou assustado; a fumaça cresceu mais rápido do que seus
olhos foram capazes de registrar. Sombras rastejavam pelo salão. Escuras,
cinzas, sem rostos.
Podia escutar o eco sussurrante através das labaredas.
“As portas do destino... São uma só...”.
Sem pensar, correu na direção do grande vitral em meio ao ar
fumegante; gritos ecoavam na cabeça, nas chamas que consumiam as
colunas.
A morte era melhor do que qualquer outro destino.
Ele se atirou contra o vitral no mesmo instante em que a casca da
presença sombria o alcançou.
O fogo negro explodiu junto aos cacos, se espalhou e destruiu toda a
construção, ardendo por um dia e uma noite, como o ventre vivo do mais
denso pesadelo.
1
Sonhos distantes
Dias atuais

Diana estava parada no meio de uma campina de relva esverdeada.


Um vento frio levantava seus cabelos, jogando os fios alourados para trás.
De alguma forma, sabia que estava sonhando. Já tivera aquele sonho
antes, no mesmo cenário, com as mesmas cores e cheiros.
Não precisava olhar para trás para saber que às suas costas havia uma
clareira rochosa, enquanto, à sua frente, os olhos se perdiam no abismo longo
que desaparecia na comunhão com o horizonte estrelado. Se virasse um
pouco o rosto, poderia contemplar um bosque luxuriante e escuro,
farfalhando com vida. Nunca estivera lá, mas era como se conhecesse o tom
agridoce de cada folha misteriosa.
Diana escutou os passos familiares e ergueu o rosto.
O homem estava do outro lado da campina, próximo à entrada do
bosque, observando-a com olhos tão escuros quanto a noite que os abraçava.
Seus cabelos negros brilhavam ao luar, acentuando a beleza enigmática.
Os dois se entreolharam em silêncio; e Diana sentiu aquilo, aquele
puxão quase magnético que parecia impeli-la até ele.
“As portas do destino... São uma só...”.
Ela deu meio passo na direção dele, mas parou quando pedrinhas
rolaram, caindo no abismo que também sussurrava.
Estremeceu ao olhar para baixo.
Não havia fim na escuridão daquele penhasco.
Sob a penumbra, ela poderia ter jurado ouvir o estalar familiar do fogo,
um lampejo fugaz que atingiu seus olhos.
“As portas do destino... São uma só...”.
De repente, sentiu o coração acelerar de súbito.
Ela se afastou do penhasco e procurou pelo homem misterioso. Mas o
campo que os separava só parecia ficar mais extenso, como a mandíbula de
uma fera monstruosa abrindo-se para devorar o mundo.
Suas pernas falharam inevitavelmente, como das outras vezes; e
enquanto Diana caía no abismo, a lua se apagou, adensando a noite, tragando
o homem para dentro do bosque, afogando o vento e transformando a
campina em um borrão de trevas que ardia em um fogo escuro.
◆◆◆

Diana acordou com a respiração descompassada.


Encarou o teto do quarto, as leves sombras projetadas pela luz do
amanhecer que se infiltrava pela janela.
Não era a primeira vez que tinha aquele sonho vívido, naquele campo,
naquele abismo, com aquele homem. Sempre o mesmo homem.
Enquanto se levantava e ia para baixo do chuveiro, Diana fez uma
anotação mental para conversar com Tris, a psicóloga do seu departamento, e
contar sobre os sonhos. Talvez Tris conseguisse ajudá-la a entender os
símbolos e o que eles significavam.
“As portas do destino... São uma só...”.
Esperou que a ducha quente levasse embora o arrepio estranho que
pairava sobre sua pele. Mas, nem mesmo enquanto tomava café, comia um
pão na chapa e ouvia MPB no rádio, o arrepio se dissipou.
◆◆◆

Diana entrou no Departamento Policial de Curitiba batendo


animadamente nas mesas e falando alto.
— Bom dia, povo de Deus! A delegada de vocês acabou de chegar!
Não quero ver ninguém fazendo corpo mole aqui hoje!
Era daquele jeito que gostava de chegar no ambiente de trabalho que
chefiava; cheia de energia e disposição. Contudo, naquela manhã, sua
vontade era entrar em silêncio e passar despercebida, o que ela não fez.
Acho que o sonho não me deixou dormir direito.
Cumprimentou os policiais e funcionários que surgiram pelo caminho,
e, assim que abriu a porta de sua sala, encarou a pilha de serviços que a
aguardava; era mais um dia para atuar coordenando as atividades policiais,
solicitando medidas protetivas ao juiz, administrando a delegacia e
comandando as investigações criminais.
Já estava há quase três meses ocupando o cargo de delegada, um
trabalho que amava, embora, às vezes, o esgotamento e os horários malucos a
atingissem como um punho fechado na cara. Mas ela jamais se rendia.
Tocou o violão em miniatura que decorava sua mesa quando seu olhar
capturou um envelope fechado, com seu nome grafado em uma caligrafia
elegante. Sem remetente. Franziu o cenho e o abriu. Havia uma imagem ali,
uma espécie de fotografia de uma pintura renascentista.
— “As treze musas”? — murmurou baixo, escutando uma batida na
porta. Olhou para trás e fez um aceno animado para o investigador.
— Queria saber de onde você tira tanta disposição pela manhã — Leon
balbuciou, o rosto ainda amassado de sono. — Não é normal.
— Levantar cedo é bom para a saúde.
— Só se for para a sua, delegada.
Ela revirou os olhos e riu do tom que ele imprimiu à palavra; antes da
sua promoção, ela também era investigadora, e Leon era seu parceiro de
trabalho. Quando subira para o cargo de delegada, Diana havia decretado que
ele teria que chamá-la de “chefe” dali para frente, algo que Leon jamais fazia,
e que sempre virava uma brincadeira entre eles.
— Não seja um bebê chorão, Leon. Você tem uma esposa psicóloga e
uma filha. Aposto que a Melina não reclama tanto quanto você.
— Bebê chorão? — Ele agitou a cabeça, um misto de riso e
incredulidade lampejando nos olhos amigáveis. — O que acha que eu sou
para falar assim comigo, delegada? Seu irmão?
A palavra “irmão” ricocheteou na mente de Diana, puxando-a para trás,
para as sombras do passado que sempre a espreitavam; algo cravado na pele,
que jamais a deixaria.
Leon piscou, o riso apagando do rosto.
— O que foi, Diana? Você ficou estranha.
Ela agitou a mão no ar, camuflando o sentimento com um sorriso.
— Nada, Leon. Só estou pensativa. Você enxerga coisa onde não tem.
Viu — emendou rapidamente, soerguendo a fotografia da pintura —, foi você
que deixou isso aqui na minha mesa?
— Não. Treze musas? — Leon coçou o queixo. — Acho que alguém
deve estar fazendo alguma brincadeirinha com você. Não é sempre que temos
uma delegada com inclinações artísticas por aqui.
— Muito engraçadinho. E já faz uma vida que não toco nada. Tenho
apenas um excelente gosto musical, diferente da maior parte das pessoas
deste departamento.
— E faz um terrorismo quando alguém está escutando uma “música de
qualidade duvidosa”, segundo suas próprias palavras, delegada.
— Não tenho culpa que preciso ensiná-los a pegar criminosos e
apreciar as notas musicais compostas com maestria — ela sibilou, voltando a
fotografia para dentro do envelope. — Há músicas e músicas. E, às vezes,
vocês me assustam com o que deixam tocando nas viaturas.
Leon assoviou “musa das músicas” baixinho e riu.
Diana chiou e fez uma anotação mental para descobrir mais tarde quem
era o autor daquela brincadeira.
— Mas, e aí, o que te traz tão cedo até a minha sala?
— Recebemos um chamado para averiguar uma cena de crime.
— E por que vocês ainda não estão lá?
— Pelo que nos falaram pelo telefone, a coisa é feia. E bizarra. Acho
que é melhor você acompanhar a equipe também.
Prontamente, Diana guardou o envelope estranho na bolsa, apanhou o
distintivo, o coldre e a arma, acompanhando Leon para fora da delegacia. Era
um dia claro, de céu azulado e vento gelado. Outras viaturas já tinham sido
enviadas para o local do crime.
Ela se virou para fazer uma observação para Leon, e então o viu.
Ele estava em pé, parado do outro lado da rua, do mesmo jeito que
aparecia em seus sonhos. Olhando fixamente em sua direção.
A cabeça de Diana girou.
Eram os mesmos olhos, o mesmo tom escuro dos cabelos, a mesma
curva da boca, a mesma postura altiva, a mesma beleza pulsante.
As batidas do coração dela aceleraram, cadenciando o arrepio que
lambia todas as extremidades da sua pele.
Ofegou baixo.
Não é possível!
— Diana? — Leon a cutucou. — Você está bem?
Diana piscou, aturdida. Foi apenas por um segundo; e, quando ela
olhou novamente para o outro lado da rua, ele não estava mais ali.
2
A sombra no rio
Sua música preferida do Engenheiros do Hawaii estava tocando no
rádio do carro de Leon, mas nem mesmo a voz melodiosa de Humberto
Gessinger afastou os chiados que enchiam a mente.
Diana tentou se convencer de que havia sido uma ilusão de óptica. Não
era possível que tivesse visto, em carne e osso, o homem que aparecia em
seus sonhos.
Tinha sido rápido demais para ela fazer qualquer julgamento.
Afastando as teorias absurdas, Diana olhou pelo vidro da janela,
observando a fachada da Paróquia Santa Quitéria, o principal ponto cultural
do bairro que carregava o mesmo nome da igrejinha.
Sentiu o arrepio outra vez, e odiou aquilo.
— Tem certeza de que está tudo bem? — Leon perguntou, conduzindo
o carro para o local apontado no GPS. — Você não falou quase nada durante
o caminho. Cadê aquela super energia matinal?
A língua de Diana estalou.
— Está sendo preservada para analisar a cena do crime e para te fazer
trabalhar feito um condenado depois.
Leon chiou, provocando um riso nela.
— Assim você acaba comigo, Di.
— Fica tranquilo. Eu arranco seu couro de dia... — E deu uma
piscadela travessa para ele. — ...E a Tris alivia seu estresse à noite.
Ele balançou a cabeça com um meio sorriso constrangido.
Para se distrair, fez uma pesquisa rápida no celular, tentando encontrar
quem era o autor que pintara as treze musas que alguém havia enviado para
ela. Hum... Estranho. Não achou nada; apenas informações sobre as musas da
mitologia grega, que eram nove, e não treze.
Diana se ajeitou no banco assim que enxergou as outras viaturas do seu
departamento. O ponto para onde seguiam era um local no bairro Santa
Quitéria, cortado pelo Rio Barigui. Suspirou, observando as ocupações
irregulares nas margens do rio; um sério problema que a cidade enfrentava.
Eles desceram do carro, invadidos pelo cheiro característico do rio, e as
botas de Diana afundaram na terra amolecida pela chuva.
— Onde está o corpo? — ela ergueu a voz, apoiando as mãos na
cintura e fitando a equipe forense.
— Os corpos. — O perito a corrigiu. — Por aqui, delegada.
Corpos. No plural.
Aquele prometia ser um dia longo, e mal havia começado.
— É um casal de adolescentes. — Um policial que os acompanhava
consultou as anotações. — Os pais da menina reportaram que ela não tinha
chegado em casa no horário de sempre. Ela estudava à noite, por causa do
curso técnico. Enfim, a garota não atendia ao celular, e os pais já tinham
falado com todas as amigas dela, até que uma confessou que ela ia se
encontrar com um namoradinho. No fim, minha viatura os encontrou hoje
cedo, depois que um pescador ligou para a polícia.
Diana balançava a cabeça, ouvindo a explicação e o seguindo pelo
declive do rio, ao lado de Leon. Muitas taboas se agrupavam nas margens e
na ribanceira escorregadia, dificultando a descida. Logo avistou as faixas que
delimitavam o perímetro de ação dos agentes, e se sentiu satisfeita por toda a
equipe presente respeitar os limites da cena.
— Meu Deus — Leon sussurrou baixo.
Diana partilhou do mesmo choque do investigador.
Os corpos dos adolescentes estavam com um aspecto bizarro, murchos
e acinzentados, como se fossem se deteriorar a qualquer momento.
— Eles foram vistos com vida ontem à noite, certo? — Ela se virou
para o perito. — Como estão neste estado de decomposição?
— Não faço ideia, delegada. Vamos fazer vários testes e exames.
Gesticulando para que Leon a seguisse, Diana se agachou ao lado dos
corpos. Foi inevitável pensar em sua sobrinha, Maria Eduarda, que era uma
adolescente da mesma idade que os dois mortos à sua frente. Engoliu em seco
e olhou para o investigador.
— Tris virá até aqui? — sussurrou apenas para Leon ouvir.
— Ela não vai conseguir sair do consultório tão cedo. Muitos
pacientes. Mas, depois, eu a trago aqui e ela “olha” a cena do jeito dela.
— Os corpos vão ser retirados daqui a pouco.
— Tris não precisa que os corpos estejam aqui para sentir o local.
Diana anuiu. Tris, a esposa de Leon e psicóloga que oferecia
consultoria para as investigações, possuía uma sensibilidade elevada e
conseguia se conectar com os momentos finais da pessoa que morrera.
Nas palavras de Tris, “Eu não vejo, apenas sinto. Não são imagens
claras, como um filme. É uma combinação das reverberações que ficaram no
espaço. Som, cheiro, gosto, sentimentos. Isso me dá um cenário das
circunstâncias que levou a pessoa à morte. Mas funciona só quando a morte
é recente”.
E era algo muito útil para nortear uma investigação de assassinato.
Entretanto, nem a polícia, tampouco os tribunais, acreditariam em
evidências obtidas daquela forma, mesmo em casos de sucesso. Mas Diana
tinha uma mente mais aberta que a maior parte das pessoas. Então, para os
demais, Tris traçava o perfil psicológico dos assassinos para auxiliar na
investigação, e somente Leon e ela sabiam da verdade.
— Está sentindo esse cheiro? — Diana perguntou para Leon.
— Que cheiro?
— Exatamente. Não tem cheiro. — Suas sobrancelhas se franziram. —
Os corpos não estão exalando aquele cheiro pútrido.
— Verdade. Que estranho.
— Dê uma checada no perímetro, veja se deixaram algo para trás. Vou
olhar a outra margem.
Assim que deu as ordens para os demais membros da equipe, Diana
contornou a margem, questionando o local que o assassino tinha escolhido
para a morte. Uma praia de pedras havia se formado junto ao rio, uma
extensão seca que reluzia à luz do incipiente amanhecer. Poderia virar um
lugar romântico para um casal ao anoitecer.
E o local perfeito para um predador atacar.
A suave brisa proveniente do rio moveu um pouco a franja de Diana,
fazendo-a a pensar na campina que aparecera em seu sonho. Havia algo no ar
que carregava o perfume da relva, do abismo e do homem misterioso.
O homem que havia visto perto da delegacia.
Diana girou nos calcanhares, o olhar treinado percorrendo o
descampado, quase jurando que o veria ali também.
Mas não viu nada.
— Céus...
Agitou a cabeça; ela não era do tipo cética, mas cogitou que ou estava
ficando louca, ou sua irmã estava certa ao afirmar que seus horários de
trabalho eram insanos.
Ela virou o rosto ao notar um lampejo no rio, como uma sombra
refletindo nas águas. Olhou em volta, buscando pelos membros da equipe.
Não havia ninguém perto dela para criar aquela sombra.
Aproximou-se da margem, ajoelhou sobre a terra e forçou os olhos para
o movimento que jurara ver sob as águas turvas. Um peixe? Algum outro
animal?
Todos os pelos da sua nuca arrepiaram subitamente.
O quê...
Atônita, Diana inclinou ainda mais a cabeça.
E, sem que esperasse, algo agarrou seus braços e a puxou para dentro
do rio.
3
Rostos flutuantes
O coração de Diana foi parar na garganta quando a água se fechou
sobre sua cabeça. Tentou voltar para a superfície, mas era como se algo
agarrasse seu tornozelo, impedindo-a de subir.
Ela se debateu, se esquecendo de todas as aulas de natação, o pânico
enchendo seus pulmões. Enquanto chutava o que a segurava e reunia forças
para dar outro impulso para cima, captou um movimento à esquerda.
Aquilo, a coisa com forma de mulher, parecia deslizar na água na
direção dela. Era terrivelmente linda; uma beleza que a fez pensar na morte e
no abismo. Os cabelos, enfeitados com rosas negras, se moviam para trás em
uma dança hipnótica e os olhos eram negros como um céu obscurecido. Nos
lábios, o sorriso de uma serpente traiçoeira.
Quando ela deslizou a mão e roçou os dedos frios em seu rosto, Diana
abriu a boca para gritar e engoliu água.
O ar faltou. A consciência ameaçou falhar.
Outro lampejo rápido, outra sombra embaixo da água.
Os olhos de Diana se arregalaram, incrédulos com a familiaridade do
segundo rosto disforme nas ondas turvas.
Diego?!
Mãos fortes e quentes envolveram seus braços.
O rosto da mulher macabra e de Diego desapareceram.
Ela tossiu ao ser puxada para cima, expelindo a água dos pulmões.
Seu corpo rolou pela margem do rio, trêmulo e ofegante. Tossia sem
parar. Olhou para os lados, pronta para agradecer à pessoa da sua equipe que
a resgatara do afogamento.
Mas não havia ninguém ali além dela.
— Diana! — Escutou a voz de Leon ao longe.
Piscou, acostumando-se com a claridade da manhã, a pele arrepiada de
frio, as roupas molhadas sorvendo o calor do corpo. Viu Leon, um dos
policiais e o perito correndo em sua direção.
— Diana, o que aconteceu?!
— Eu...
O que diabos tinha acontecido?!
Assim que o perito e o policial se afastaram, em busca de algo que
pudesse aquecer a delegada, Leon se agachou ao lado dela.
— Você caiu? — Havia uma interrogação na face dele.
— Não. Algo me puxou para dentro do rio. — Ela bateu os dentes,
tremendo de frio.
— Algo...?
— Olha, não sei explicar, e agora estou com frio e irritada. Só tente
trazer a Tris aqui para ela “ver” o local o mais rápido possível.
Estremeceu ao se lembrar da mulher de beleza sombria.
Diana inclinou a cabeça, encarando as nuvens cheias no céu. Diego.
Tinha certeza de que havia visto o rosto dele. Bom, também poderia ser uma
ilusão por ter quase perdido a consciência. Faria sentido, afinal, aquela data
que tanto odiava estava chegando.
Além disso, quem me tirou de dentro do rio?
— Estou bem — ela decretou para o investigador. — Não precisa ficar
me olhando com essa cara. E, se você falar para alguém na delegacia que eu
dei um mergulho matinal, te farei dobrar o turno.
◆◆◆

O resto do dia passou como um borrão.


Diana tentou se esquecer do acidente, repetindo para si mesma que
havia escorregado e caído dentro do rio. E, por mais que repetisse o mantra, e
no final do seu expediente estivesse quase convencida daquilo, o rosto de
Diego continuou assombrando os cantos quietos de sua mente.
Ela voltou para a casa ao anoitecer, mantendo todo o foco na
investigação, e não no acidente bizarro. Ou no calor das mãos que a tiraram
da água, e que ainda fazia sua pele formigar de uma forma absurda. Roçou os
braços; quase podia jurar que sentia o toque dos dedos que a salvaram.
Reprimindo a sensação, tomou um banho rápido. Sua irmã havia dito
que apareceria para o jantar, junto com sua sobrinha.
Foi para a sala aguardá-las, o olhar se demorando no velho piano que
decorava o ambiente. Fazia anos desde a última vez em que o tocara, que
tirara melodia com os dedos. Sempre fora conectada com a música de uma
forma inexplicável, mas desde que Diego...
A campainha tocou, sugando o som dançante da memória.
Olhou para o relógio. Heloísa e Maria Eduarda haviam chegado às oito
horas em ponto. Ajeitando os cabelos, deu um último olhar para o piano e foi
até o portão para recebê-las.
— Hum, que cheiro maravilhoso! — Sentiu a boca salivar ao mirar o
refratário que a irmã segurava. — O que tem aí?
Diana sempre se assustava com a semelhança que mãe e filha
possuíam. Heloísa engravidara de Duda quando tinha apenas quinze anos, e
lado a lado, as duas pareciam melhores amigas inseparáveis.
— Trouxe aquela lasanha que você ama — Heloísa anunciou,
colocando o refratário sobre a bancada da cozinha.
— Sabia! Assim você me deixa mimada, Helô.
— Minha mãe é a melhor cozinheira do mundo! — Maria Eduarda, que
recentemente completara dezesseis anos, bradou animada.
Diana se virou para a irmã, analisando o semblante dela, enquanto
colocava os pratos sobre a mesa.
— Você está meio pálida, Helô.
— Já falei para minha mãe ir ao médico também.
— Estou bem, gente. — Heloísa bufou. — É só cansaço.
Diana mordeu os lábios, tentando perscrutar o silêncio de Heloísa,
descobrir se ela estava mentindo. Mas não encontrou nada suspeito. Mesmo
assim, uma preocupação estranha abocanhou seu coração.
Ela e Heloísa não eram irmãs de sangue, e tinham quase a mesma
idade; Heloísa era filha do seu padrasto, o segundo marido de sua mãe, mas
elas se davam bem como se partilhassem laços sanguíneos. E Diana fazia de
tudo para protegê-la e para cuidar dela.
Principalmente após aquela tragédia horrorosa que havia acontecido
anos atrás, e que ainda era um espectro que roubava seu fôlego e sua paz.
— Tia Di, o que tem naquele escritório? — Duda perguntou com
curiosidade, tirando-a de seus devaneios enquanto apontava para a porta
fechada no final do corredor.
— Só coisas do trabalho. — Diana riu, balançando a mão no ar.
— E por que está sempre trancada?
— É um hábito meu. Posso servir um pedaço de lasanha para você?
— Claro. — A adolescente estendeu o prato para ela. — Na verdade,
coloque dois pedaços. Minha fome está gigantesca.
— Olha os modos, Duda.
— Deixe a menina, Helô. O metabolismo dela é mil vezes melhor do
que o nosso. Tenho saudades dos meus dezesseis anos.
Assim que as três se serviram, uma conversa animada sobre o dia-a-dia
e as novidades de cada uma se iniciou.
Durante todo o jantar, Diana tentou não pensar em Diego, na data que
se aproximava ou nos estranhos rostos flutuantes que vira no rio.
◆◆◆

Mais tarde, depois que sua irmã e sua sobrinha foram embora, Diana
abriu a porta do escritório que sempre trancava quando recebia visitas.
Bateu a mão no interruptor, e o cômodo se encheu de luz, revelando
para seus olhos aquilo que ela mesma nomeara como “parede da loucura”.
4
A metade perdida
Dezessete anos atrás

Parecia adequado, olhando através da janela, que o céu


despencasse naquele momento, que os ruídos e o tilintar da chuva lavassem o
silêncio deslizante da casa. Era sempre assim na semana do seu aniversário.
Sempre chovia.
Cada gota era como uma nota musical, uma melodia aos ouvidos.
Diana soltou a cortina e foi para perto da cama, onde o embrulho a
esperava. Puxou o laço de seda ao redor da caixa, até que a fita cedesse.
Colocando a tampa de lado, ela encarou, por um bom tempo, o tecido
dobrado no interior. Era um vestido cheio de laços e babados. Torceu o
nariz. Para uma garota que, em breve, completaria treze anos, aquela não
era exatamente a roupa que queria usar em sua festa.
— Você vai ficar parecendo uma menininha de nove anos com isso.
A garota ergueu o rosto, fuzilando o dono da voz zombeteira. Diego,
seu irmão gêmeo, estava recostado no batente do seu quarto, a boca pronta
para fazer outra piadinha sobre o vestido.
— Foi um presente da tia Francisca. O que ela te deu?
— Uma jaqueta que parece ter saído do século dezoito. — E mostrou a
peça. — Ela disse que é para eu usar na sua apresentação de piano.
Desta vez, foi Diana que gargalhou alto. A chuva batia forte contra a
janela. A tia deles morava em outro estado, e sempre enviava alguma coisa
quando a data do aniversário dos gêmeos se aproximava.
— A mãe saiu — Diego informou. — Pediu para você ficar de olho no
forno. Disse que, da última vez que deixou o assado sob os meus cuidados,
comemos carvão.
— É verdade. E o pai?
— No escritório, no andar de cima.
Antes que Diana pudesse falar mais alguma coisa, uma pancada seca
pareceu atingir o telhado da casa. Os gêmeos se entreolharam, confusos.
— Mas que merda...
Um raio cortou o mundo do lado de fora.
O pai deles surgiu com o rosto temeroso na entrada do quarto.
— No banheiro. Vocês dois! Agora mesmo!
— Mas... Pai...
Os olhos de Diana aumentaram; era uma arma na mão do seu pai?!
Ela nem sabia que o pai tinha uma arma!
— Diego, não questione! Cuide da sua irmã! Tranquem a porta. Não
façam barulho. Por tudo o que é mais sagrado, não façam nenhum barulho!
Os gêmeos não entenderam o motivo daquela ordem desesperada.
Mesmo assim, Diana segurou Diego pelo pulso e o puxou para dentro do
banheiro, fechando a porta.
A ferocidade da chuva parecia ter aumentado.
O coração da garota batia nos ouvidos. O que estava acontecendo?
— Merda! Acho que o pai está com problemas! — Diego arquejou,
abrindo a porta do banheiro.
Diana agarrou o braço do irmão.
— O pai pediu para ficarmos aqui!
— Você fica. Eu vou ver o que está acontecendo.
A garota tentou protestar; Diego foi mais rápido. Ele a empurrou para
dentro do banheiro e trancou a porta, impedindo que ela conseguisse ir atrás
dele.
— Diego!
Outro trovão.
Diana ia chamar pelo irmão de novo; sons indescritíveis, fundos,
ecoaram por toda a casa, colocando-se acima da chuva e dos raios.
Os ossos dela trincaram de pavor; nunca escutara nada como aquilo.
Tão... Primitivo e gutural.
— Fique longe do meu filho! — Ouviu o grito abafado do pai.
Ela queria esmurrar a porta, ir para onde o pai e Diego estavam; um
instinto mais forte a tomou, um grito de sobrevivência, e a menina se viu
deslizando para o chão, se encolhendo do lado do cesto de roupa e travando
a respiração.
Sentia que se fizesse um ruído mais alto, quem quer que estivesse
dentro da casa também a encontraria.
Não soube quanto tempo passou.
Diana foi encontrada pela polícia mais tarde, junto dos gritos
pavorosos da mãe, que em momento algum cessaram. Os cabelos claros se
grudavam nas bochechas molhadas, e os olhos estavam inchados e
vermelhos de tanto chorar em silêncio.
Assim que saiu do banheiro, Diana correu procurar pelo irmão gêmeo
e pelo pai. Nenhum policial conseguiu segurá-la quando ela pisou na sala.
Era como se uma névoa carmim cobrisse cada canto do ambiente.
Sangue no chão, sangue no teto, sangue nas paredes.
A cabeça da garota girou, e ela vomitou nos próprios pés sem parar.
Em algum canto da mente, os berros histéricos de sua mãe permaneceram.
Seu pai havia sido esquartejado, e Diego tinha desaparecido.
◆◆◆

Atualmente

A luz que encheu o cômodo revelou enormes murais investigativos,


com recortes e fotos que enchiam a parede. Vários papéis esvoaçavam sobre
a mesa, e Diana notou um vão aberto na janela por onde o vento se infiltrava
sem ser convidado.
Ela se aproximou lentamente do mural; um nó ansioso comprimia sua
garganta, e quanto mais investigava, mais perguntas surgiam.
A foto de seu irmão gêmeo estava centralizada ali, ligada a outras
imagens; fontes, dados e informações que ela reunira ao longo dos anos.
Em breve, a semana do seu aniversário chegaria. Em breve, dezessete
anos se completariam do dia mais assombroso da sua vida.
O dia tempestuoso em que perdera, além do pai, aquele com quem
dividira o útero da mãe. Seu sangue, sua alma, sua metade, sua melodia.
Diego.
O pai fora morto na casa em que viviam e deixado aos pedaços sobre o
tapete. A polícia não localizou uma pista sequer sobre quem poderia ter feito
aquilo. Diego ficou desaparecido por um mês, até ser desovado morto em um
terreno qualquer.
O estômago de Diana se revirava de se recordar das imagens.
Seu irmão... Morto... Abandonado naquele lugar decrépito, com o
corpo coberto de tatuagens de rosas negras, tatuagens que iam dos pés à
cabeça, e que quase não deixavam um rastro da pele à mostra.
Perder Diego tinha sido um golpe terrível, que lhe arrancara até mesmo
a paixão pela música. Nunca mais tocara um instrumento musical.
Ela piscou, levando a mão à boca, o vento açoitando as cortinas e as
janelas. Forçou-se a encarar o mural investigativo. Há anos coletava pistas,
buscava as peças para montar o quebra-cabeça. Era um dos motivos para ter
seguido na carreira investigativa. Para estar mais perto da fonte.
Quem matara seu pai e raptara seu irmão? Por que haviam tatuado toda
a pele de Diego? O que tinham feito com ele naquele mês?
Eram perguntas para as quais ainda não tinha respostas.
Ainda.
Mas ela não descansaria enquanto aquele mistério não fosse
solucionado. Não importava quanto tempo levasse. Os culpados iriam pagar.
O celular vibrou em cima da mesa, cortando seus pensamentos.
Uma mensagem. Reconheceu na hora o número que a enviara, e um
jato de adrenalina correu por suas veias.
“Encontrei mais pistas sobre a morte do seu pai e do seu irmão. Acho
que estamos mais perto agora, Di. Vou te mandar o endereço da boate onde
você pode achar mais respostas. Te dou mais detalhes daqui a pouco”.
Diana olhou para seu reflexo no vidro da janela.
Naquela noite, fazendo jus ao nome da deusa com que fora batizada,
ela sairia para caçar.
5
Noite de caça
Manobrando com cuidado, Diana procurou uma vaga para
estacionar o carro nas proximidades da boate. O relógio digital indicava que
já era quase meia-noite; o horário em que a portaria era liberada.
Ela checou a maquiagem uma última vez, retocou o batom e ajeitou os
cabelos claros que caíam em ondas pelos ombros. Vestia uma calça escura,
uma blusa vermelha e seu par de botas favorito; nada que gritasse “ei, sou
delegada!”. Não poderia correr o risco de levantar suspeitas.
Como uma caçadora farejando a presa, Diana desceu do carro e
caminhou em direção à boate. Um letreiro azul piscava acima da porta de
entrada. Os olhos correram pela fila imensa.
— Diana!
Localizou Tamires na fila. A garota era aspirante à investigadora e
estudante de arte, uma amiga de infância, e uma das poucas pessoas que sabia
sobre Diego. Diana preferia não envolver o pessoal do trabalho. Havia coisas
obscuras demais, particulares demais. E o caso fora encerrado na época.
Sem provas concretas, era ilegal reabri-lo; algo que ela fazia todos os
dias, na calada da noite, nas lacunas imperceptíveis, no instante em que os
olhos dos outros se fechavam e os dela se preparavam para rastrear e caçar.
— Arrasou, Di!
— Você também — elogiou a amiga enquanto se juntava a ela na fila,
sentindo os olhares masculinos que deslizavam por suas curvas. Sem rodeios,
encarou Tamires: — Quem é o informante?
— Não sei. Ele disse que estaria no bar. Procure por um cara careca e
de camisa xadrez.
— Certo. Enquanto esperamos na fila, quero que veja uma coisa. Vou
precisar do seu cérebro de analista de artes. — E tirou a foto da pintura das
treze musas da bolsa, estendendo-a para Tamires. — Sabe me dizer quem é o
pintor? A época da pintura?
— Só olhando assim, posso dar um palpite que foi feita na época do
renascimento. E treze musas? Que estranho. Na mitologia grega, são nove.
Entidades que inspiram a criação artística. A pintura deve estar fazendo
referência a alguma outra mitologia que desconheço.
— Será que você conseguiria descobrir mais coisas para mim?
— Claro. — Tamires apanhou a foto e a guardou na própria bolsa. —
Se eu encontrar alguma coisa, te aviso. É algo urgente?
— Apenas uma coisa que deixaram na minha mesa. Deve ser uma
brincadeira boba por causa do meu gosto musical, mas...
— O faro da delegada Diana Albuquerque nunca falha.
Após a interminável fila acabar, elas passaram pelo segurança e
entraram na boate. Era noite de reggaeton, e a música alta quase estourou os
tímpanos de Diana. A luzes fortes piscavam em volta das pessoas na pista de
dança. O cheiro de entorpecentes, gelo seco e suor era forte no ar; Diana
sabia que encontraria jovens com drogas ali, se procurasse, mas, naquela
noite, optara por se despir da identidade de delegada.
Por Diego. Por respostas.
Elas andaram até o meio da pista de dança, e Diana não desviou os
olhos da multidão, procurando por alguém que se encaixasse na descrição de
Tamires. Careca e de camisa xadrez.
— Como você contatou esse cara, Tamires?
— Pesquisando sobre tatuagens — ela gritou em cima da batida da
música. — Ele disse que sabia algo sobre rosas negras.
— E por que pediu para nos encontrar aqui?
— Não sei. Sabe como são essas pessoas.
Suspeito. Diana já havia pressentido algo mal contado naquela história.
Mas, por qualquer informação que pudesse guiá-la ao assassino de seu pai e
Diego, aceitaria o risco. Não sem se defender; é claro que estava com um
pequeno revólver camuflado nas roupas.
— Vou olhar no bar do piso superior — Tamires gritou, apontando
para cima. — Fique de olho no bar daqui.
Diana fez um sinal positivo para ela e observou Tamires sumir no meio
da multidão.
O sangue bombeava nos ouvidos, forte e intenso. Sua pulsação
acelerara de forma inexplicável desde que pisara dentro da boate. Não sabia
se ainda estava em choque pelo que tinha acontecido no rio, ou se o trauma
de dezessete anos atrás estava voltando com a chegada do seu aniversário.
Diana circulou despretensiosamente pela pista de dança, analisando
cada detalhe, entrecortada pelas luzes pulsantes, pelo ritmo latino que
estourava nas caixas de som. Nenhum sinal do cara com camisa xadrez.
Resmungando, girou nos calcanhares, os saltos da bota clicando no
chão quadricular, quando o viu novamente. Daquela vez, com muito mais
clareza, a certeza de que não era uma mera ilusão.
Foi como se tudo ao seu redor houvesse sido subitamente tragado para
outra dimensão, e somente ele se movesse. O homem que aparecia nos seus
sonhos. Bem ali, diante dela.
A música agitou seu sangue, seus sentidos, sua percepção.
Ele estava dançando, colado ao corpo de uma garota magrinha,
exalando um ar envolvente de beleza e sensualidade que atordoou Diana de
um jeito incompreensível para sua racionalidade. Usava somente uma regata
preta e calça escura, o que acentuava seu corpo musculoso e os braços
torneados, cheios de tatuagens tribais.
Com a boca seca, Diana agitou a cabeça, quase hipnotizada. A
sensação era de que tinha perdido o controle das pernas e dos pensamentos. A
atração magnética que ele emanava era como um ímã em seu sangue.
O ritmo da música intensificou.
De súbito, sem que Diana pudesse prever, o homem se virou e a
encarou, como se a tivesse pressentido. Tinha cabelos pretos, que desciam ao
longo das maçãs do rosto e paravam na altura do queixo. Os olhos, assim
como nos sonhos dela, eram escuros e predatórios.
O coração dela acelerou junto ao ritmo vibrante do reggaeton.
Ele largou a garota no meio da pista de dança, sem nenhuma
explicação, e começou a andar em sua direção, mantendo o olhar cativo ao
seu.
Era mesmo ele.
O misterioso homem dos seus sonhos.
Como aquilo podia ser possível?!
Diana não se moveu quando ele parou diante dela, sequer roçou os
dedos no revólver ou recuou um passo sequer.
Vapor subiu da abertura na pista, cobrindo tudo em volta deles; ondas
se formavam, acompanhando as luzes e os movimentos das pessoas.
Ele inclinou o rosto, e ela foi invadida por seu perfume marcante, o
mesmo cheiro que rodava seus sonhos. Arrepiou-se ao sentir a boca dele
roçando sua orelha, o sussurro acima da música.
— Olá. — A voz rouca, marcada por um sotaque diferente, provocou
um tremor quente na pele dela.
Diana precisou fazer um esforço sobre-humano para recuperar o
controle. Ergueu o queixo, encarando-o da forma que Leon sempre descrevia
como intimidadora.
— Olá.
E, no mesmo compasso em que seus olhares se prenderam e se
sustentaram, em meio a cortina enevoada, gritos encheram todo o espaço.
Diana foi arrancada brutalmente do torpor que o desconhecido exercia
sobre ela, a mão correndo para o revólver; alguém gritava na entrada da
boate, apontando para o lado de fora.
Ela se voltou para o homem misterioso, apenas para vê-lo se afastando
e desaparecendo no meio da pista de dança. Praguejou, travando a vontade
das pernas de correr atrás dele e descobrir sua identidade.
Já não conseguia mais vê-lo em nenhum lugar.
Mas o calor dele ainda vibrava por toda sua pele.
— Ei! — ela chamou pelo barman. — Aquele cara que estava comigo,
com o braço cheio de tatuagens tribais... Você sabe quem ele é?
O rapaz franziu o cenho, pensativo.
— Acho que você está falando do Luthor. Ele sempre está por aqui.
Luthor.
Um nome bem diferente.
Luthor.
Diana moveu os lábios lentamente, repetindo-o enquanto corria para
fora da boate com o revólver em punho, para checar o motivo dos gritos.
— Ali! Ali nos fundos!
Ela contornou o local, o frio da noite atingindo sua pele quente, e
ofegou ao ver um corpo caído no chão, murcho e acinzentado; o mesmo
estado em que havia encontrado os corpos dos adolescentes pela manhã.
6
A hora mais sombria
Não era daquele jeito que Diana imaginava que sua noite terminaria;
parada na entrada da boate, vestida em roupas de balada, com toda sua equipe
investigativa e forense isolando a área.
Irredutível, de queixo erguido, ela encarou os policiais que a fitavam
com curiosidade por mais de seis segundos; um olhar suficiente para obrigar
todos a se concentrarem no trabalho.
Mais um corpo. Murcho. Acinzentado.
Os saltos de suas botas batiam freneticamente na calçada.
Como, diabos, o assassino está fazendo isso?
Ao seu lado, Leon tossiu e deslizou o polegar pelo queixo; havia a dica
de um sorriso provocativo em sua boca.
— Por que você estava em uma boate à meia-noite, delegada?
A resposta veio na forma de um tapa nas costas.
— Ai! Que mão pesada!
— Sem gracinhas, Leon. Não estou com um pingo de paciência.
— Tá bom, tá bom. — Ele ergueu as mãos em um gesto de rendição,
mas algo travesso no olhar do investigador fazia Diana acreditar que sua ida à
boate não seria esquecida por ele. — A Tris já está pronta para analisar a cena
e o corpo.
— Ótimo. Vamos até lá.
O local já havia sido isolado. Era daquela forma que Diana sabia que
Tris gostava de trabalhar. A psicóloga e esposa de Leon preferia que ninguém
tivesse conhecimento de suas habilidades sensitivas.
Assim como tantas outras vezes, Diana observou Tris se aproximar do
corpo e se ajoelhar no chão, murmurando uma prece baixa, as mãos pairando
no ar.
A noite zuniu sobre Diana, inquieta e obscura, um vértice de névoa e
sombras que eclipsou seu coração. Ela fechou os olhos; por alguma razão,
volvendo para a lembrança da pista de dança, para a atração inexplicável que
o tal Luthor exerceu sobre todos os seus sentidos.
Tris ofegou baixo, cortando os pensamentos dela. Diana abriu os olhos,
vendo a psicóloga se levantar.
— Captou alguma coisa?
— Que o assassino sofreu.
Diana arqueou as sobrancelhas.
— Sofreu? Como assim?
— É o sentimento mais forte, que mais vibra no ar. — Tris mordeu o
lábio inferior, as feições levemente pálidas. — O assassino sofreu enquanto
matava sua vítima.
— Que loucura. Guardarei essa informação, e obrigada por ter vindo
aqui tão tarde, Tris. Agora volte para sua casa e para sua família.
Tris agradeceu e se despediu, caminhando ao encontro de Leon, que
passou um braço protetor em volta dos ombros dela, trazendo-a junto ao
corpo. Diana suspirou, empurrando os cabelos para trás da orelha. Era bom
saber que, mesmo em meio ao horror que existia no mundo, algumas pessoas
conseguiam encontrar o amor verdadeiro.
“O assassino sofreu”.
Confiava cegamente nas habilidades sensitivas de Tris; por isso
mesmo, se questionava o que aquela merda significava.
Tamires se aproximou de onde ela estava; as luzes da sirene
iluminavam o rosto cansado de sua amiga.
— Que horror. E, pelo que eu entendi, não é o primeiro corpo que
aparece nesse estado?
— Não. Não sei qual é a desse psicopata, mas vou capturá-lo.
Com um bocejo, Tamires esfregou os olhos.
— E nenhum sinal do nosso informante careca e de xadrez.
— Acho que nunca houve um homem careca e de camisa xadrez
esperando por nós. Alguém queria nos atrair até aqui.
— Quem? E por quê?
— Não faço ideia. — Diana cruzou os braços, o frio da noite
arrepiando sua pele. — Mas essa pessoa deve saber alguma coisa sobre o
meu irmão e sobre as rosas negras que tatuaram nele. A informação que usou
para nos fazer vir até a boate foi muito precisa. Depois, me passe toda
conversa que você teve com essa pessoa. Vou investigar o que eu puder.
◆◆◆

Diana voltou para a casa com o corpo pesado por causa do cansaço,
embora a mente continuasse correndo a mil por hora, dividida entre as
sensações inebriantes que o homem misterioso na pista de dança lhe causara
e os questionamentos sobre o modus operandi do assassino.
Arrancando as botas, ela se jogou na cama com a roupa da balada.
Fechou os olhos, prometendo a si mesma que apenas recuperaria as
forças e, então, entraria embaixo do chuveiro.
Mas, em algum momento, os sentidos recuaram, e a realidade se
transformou em fios trêmulos tecidos por sombras e sonhos.
◆◆◆

No sonho, ela estava outra vez na campina, banhada pelo brilho


prateado da lua cheia.
Diana se afastou do penhasco, consciente de que logo as garras escuras
subiram para puxá-la para as profundezas. Pensou ter ouvido um cântico,
uma nota de um instrumento musical, mas não conseguiu discernir as
palavras nem a origem do som.
Ele esperava por ela no outro lado da campina, frente ao bosque.
Luthor.
Agora ele tinha um nome.
Diana seguiu pela trilha formada na relva, o olhar fixo ao dele. O ar
parecia seda de tão macio, e a névoa se propagava pelo chão em poças
deslizantes e efêmeras. O cântico e o toque instrumental continuaram,
guiando-a na direção dele, no chamado que alastrava ondas por seu sangue.
Luthor permaneceu parado, onde a lua prateava as árvores.
O calor que a levava até ele aumentou; um roçar que aquecia a pele.
Uma ave disforme voou das árvores, agitando o ar e o esfriando até
Diana estremecer. Fitou o céu em busca da sombra. Mesmo sabendo que
aquilo era um sonho, o medo que a envolveu foi real.
“As portas do destino... São uma só...”.
— Ela quer te distrair para te devorar. — A voz rouca de Luthor fez
Diana baixar o olhar. — Quer te fazer cair no abismo outra vez.
Os cabelos dela e os cabelos dele se agitavam com o vento frio.
— Quem som é esse? — Diana murmurou, os lábios entreabertos para
o ar fragrante. Procurou por uma referência em sua memória de musicista. —
Parece um instrumento, um... Uma...
— Harpa.
Diana o observou atentamente. Em um primeiro momento, o teria
julgado frio, uma fortaleza de enigmas profundos como o bosque que
serpenteava às suas costas; entretanto, a mera lembrança de sua proximidade
na pista de dança a fazia acreditar que ali havia calor, muito calor.
Luthor inclinou a cabeça, os olhos escuros nela; um adjetivo simples
demais para definir a intensidade da cor ou o poder que emanava das íris.
Apesar da pulsação forte, ela não acuou, e continuou andando bem
devagar, com passos largos, lentos, parando finalmente diante dele.
— Uma harpa? — Diana indagou, incisiva, com o tom que sempre
usava nos interrogatórios policiais.
Teve impressão de ver o lampejo de um sorriso na boca de Luthor,
cadenciado por um espectro mais denso no olhar.
— Nós temos que encontrá-la.
— Por que “nós”? E por que este sonho está se repetindo?
Subitamente, um cheiro de sangue fresco irradiou pela campina.
Diana ofegou ao olhar para o chão, para as raízes de rosas negras que
cresciam e se retorciam como serpentes, enquanto as árvores desfolhavam,
sobrando nelas apenas galhos e troncos.
— Cuidado!
As mãos de Luthor agarraram seus braços, puxando-a de encontro ao
corpo. Naquela efemeridade, ela teve a sensação de ouvir o coração dele bater
contra o seu.
Houve um clarão repentino, um rugido faminto e gutural.
Como o som que ouvi no dia em que meu pai morreu e Diego sumiu.
Diana tentou se afastar para procurar a origem do rugido, mas as mãos
de Luthor não cederam. Ela conseguiu virar um pouco o rosto; havia fogo
negro ao redor e acima deles, e uma forma feminina nas chamas.
“Eu vou devorar tudo que você ama”.
Gritos irromperam no fogo; eram as vozes de Diego, do seu pai, de sua
mãe, do seu padrasto, de sua irmã Heloísa, de Maria Eduarda.
Diana se debateu, desesperada, tentando se soltar de Luthor; os braços
dele a comprimiram com mais força junto ao seu peito.
— Não! Ela é a mãe das mentiras!
A terra se abriu com um gorjear terrível e, como a boca de uma besta,
os engoliu no abismo de trevas.
◆◆◆

Diana acordou gritando, puxando o revólver sob o travesseiro, as


cobertas enroladas em suas pernas.
Ofegava sem parar, e o coração batia tão forte a ponto de fazê-la
imaginar que as paredes do peito se arrebentariam.
Um sonho, lembrou a si mesma. Apenas um sonho.
Então, por que tudo havia sido tão vívido e palpável? E por que, mais
uma vez, o mesmo sonho com o tal Luthor?
Ela realmente precisava conversar com Tris.
Deixou o revólver de lado, certificando-se de que ele estava travado.
Tinha o costume de dormir com a arma na cama sempre que a semana do seu
aniversário se aproximava. Relanceou os olhos para o visor do despertador,
os números luminosos mostrando que eram três e quinze da manhã.
Três da manhã, engoliu em seco, cutucada pela ausência do seu lado
cético. A pior hora para estar acordada.
Tentou fechar os olhos quando o celular tocou no silêncio do quarto, a
sobressaltando outra vez.
— Mas que merda — ela praguejou baixo; uma onda de ansiedade a
envolveu ao reconhecer o número da sobrinha.
“Eu vou devorar tudo que você ama”, quase escutava a voz nas
chamas.
Pela janela, a madrugada gemia em sua hora mais sombria.
— Duda? Duda, aconteceu alguma coisa?
— É minha mãe, tia Di. — A adolescente chorava do outro lado da
linha, e o pânico cresceu ainda mais dentro de Diana. — Estou no hospital
com ela. Por favor, venha rápido. Por favor.
7
Na escuridão
A madrugada ciciava ao som do vento cortante, e Luthor sabia que
estava sendo seguido conforme saltava de telhado em telhado; um borrão na
escuridão vasta.
A presença das sombras era cada vez mais constante conforme aquela
data se aproximava. Sabia que, assim o que dia esperado chegasse, teria que
agir, ou todas as chances se perderiam para sempre. Ele podia sentir através
dos sonhos compartilhados com a moça de olhos ferinos e lábios tentadores;
as sombras não dariam trégua para nenhum dos dois.
Luthor continuou se movendo, tentando camuflar os rastros. Desceu
por um cano de escoamento na lateral de um prédio em ruínas, aterrissando
em uma poça que esperava ser água acumulada da chuva da estação. Bufou, e
soube que o som havia sido alto demais.
A escuridão adensou no beco com o cerco que eles fizeram à sua volta.
Poderiam ser facilmente confundidos com humanos, se não fosse pelo
aspecto obscuro no olhar.
Luthor contou quatro oponentes enquanto puxava a espada presa às
suas costas, a lâmina retinindo na noite.
Ela estava impaciente, para enviar tantos servos atrás dele.
Sorriu para os oponentes e não lhes deu tempo; avançou contra eles,
cortando, girando e se abaixando.
Os servos caíram mortos aos seus pés, o sangue negro deslizando dos
cortes feitos pela espada. O fedor, feito leite azedo, revirou o estômago dele.
Não importava quanto tempo passasse; nunca se acostumaria com aquele
cheiro horroroso.
Assim que piscou, os quatro corpos se evaporaram, sumindo.
Névoa subia pela rua, formando uma cortina em torno dele.
Luthor não guardou a espada; sentia mais presenças ali. Sua audição
apurada havia detectado os movimentos. Precisava abater todos; não podia
correr o risco de que rastreassem Diana.
Diana.
Então aquele era o nome dela.
E ele sabia que a ameaça que ambos ouviram no sonho era real.
O restante dos servos se aproximou.
A ira atemporal de Luthor se tornou uma canção no sangue conforme
ele os atacava um a um; cada golpe fazendo-os espirrar sangue negro e se
evaporar como se nunca houvessem existido.
Encostou na parede, esperando. Contando.
Mais nenhum apareceu.
Satisfeito, Luthor guardou a espada na bainha das costas, saiu andando
do beco e sumiu nos braços da madrugada.
◆◆◆

Diana encontrou a sobrinha na sala de espera do hospital. A


adolescente ergueu os olhos marejados, e se atirou em seus braços assim que
a viu.
— Tia!
— Estou aqui, meu amor. Estou aqui. Vai ficar tudo bem.
— Os médicos não sabem o que ela tem. — Duda tremia e gaguejava.
— Ela está inconsciente. Ela não acorda.
O coração de Diana se afogou em preocupação, na lembrança do dia
em que perdera o pai e Diego; ela batalhou contra o sentimento. Precisava ser
forte. Precisava ficar em pé por sua sobrinha.
— Eles vão descobrir. Tenho certeza. Vou conversar com eles.
— Eu sabia que ela não estava bem. Falei para ela ir ao médico.
— Não é culpa sua, Duda. — Diana segurou o rosto dela entre suas
mãos, desejando expurgar a dor e o medo que a garota sentia. — Sua mãe é
teimosa como uma mula.
Lágrimas brilharam nos olhos de Maria Eduarda.
— Preciso avisar a vovó e o vovô.
— Já avisei enquanto vinha para cá. — Ela acariciou os braços da
sobrinha; a garota estava gelada. — Eles vão pegar o primeiro voo que
conseguirem. Logo estarão aqui também. E você vai ficar comigo até que sua
mãe melhore, certo?
Duda assentiu, enterrando o rosto em seu ombro.
— Promete que a minha mãe vai melhorar?
Diana a apertou com mais força.
— Prometo. Prometo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.
Em algum canto da sua mente, como o crepitar de um fogo negro, uma
voz provocativa lambia as bordas do riso baixo.
“Eu vou devorar tudo que você ama”.
◆◆◆

Ela usava um vestido preto, e o tecido se arrastava pelo chão pedregoso


conforme andava à margem do rio subterrâneo. Pequenas rosas negras
adornavam seus longos e densos cabelos.
Havia uma fogueira a cada três metros, em ambos os lados do rio, que
ardiam sem lenha e sem turfa; um fogo que comungava com a cor das rosas e
da escuridão.
Cansada, observou as formas que eram levadas pela água, formando
um espelho que refletia o breu dos seus olhos.
Já fazia tempo demais que estava ali embaixo, aprisionada, sem poder
alcançar a glória da superfície e tudo o que era seu por direito.
Logo, tudo mudará. Logo, a roda da fortuna girará ao meu favor.
Retorceu a boca ao sentir uma pincelada no peito.
Seus servos haviam sido derrotados.
Mas aquilo não seria um problema para os seus planos. Se ele queria
guerra, ela lhe daria a guerra.
Lentamente, retirou algumas rosas negras dos cabelos, jogou-as na
água, escutou o rugido e observou com fascínio o despertar dos seus servos.
8
Roda da fortuna
Do local onde sua mesa ficava, ela conseguia enxergar, através da
janela, as construções que se erguiam pela cidade. Os majestosos arranha-
céus haviam se multiplicado nos últimos anos com o aquecimento no
mercado imobiliário, tomando os terrenos de Curitiba, comungando o antigo,
o moderno e as áreas verdes em uma nota harmônica.
Todos os músculos de Diana se contraíram, esgotados; já trabalhava há
anos no Departamento de Investigações Gerais; mesmo assim, toda vez que
um caso brutal emergia, ela sempre era assolada por uma sensação de
irrealidade, uma constatação de que o mundo era açoitado por uma
malignidade atordoante.
Empurrando a cadeira para trás com a força do corpo, Diana se
levantou e foi em direção ao quadro branco usado para fixar fotografias e
anotações das mais recentes investigações.
Conforme se aproximou do quadro, seu olhar se encontrou com os
olhares serenos de duas fotos, as quais exibiam dois adolescentes. Sara
Ferreira e Nico Ribeiro. Abaixo deles, seguiam imagens perturbadoras:
corpos murchos, cinzentos, abandonados à margem do rio. Junto a foto do
casal, havia a imagem do terceiro corpo, ainda não identificado.
— “Strigoi”. — O apelido dado ao assassino pelo departamento
policial saiu baixo e frio de seus lábios, um roço sombrio e desagradável.
Diana não sabia quem começara com aquela história; mas, assim que
chegara ao trabalho depois de passar a noite no hospital com a irmã e a
sobrinha, todos os seus funcionários estavam se referindo ao assassino como
“Strigoi”, criatura que, na mitologia, era um ancestral dos vampiros.
Imaginou que o apelido surgiu após a chegada dos laudos periciais. A
autópsia fora inconclusiva. Nenhuma toxina encontrada. Nada.
A delegada precisava admitir; era um cenário estranho. Ordenara
veemente para que o apelido não saísse dali de dentro; não precisava que a
imprensa começasse a fomentar a história ainda mais.
Não acreditava que as mortes tivessem sido causadas por uma criatura
mítica, embora não fosse cética em relação aos mistérios do mundo;
entretanto, seu trabalho havia lhe mostrado as facetas cruéis dos homens, e
Diana podia sentir a aura emanada por aquele assassino, conseguia
experimentar o pânico que agarrou os dois jovens em seus momentos finais;
ela se enxergava jogada na margem do rio, uma sombra sobre ela.
— Diana? Você está bem?
Tragada de volta, ela olhou por cima do ombro, disfarçando a tensão
que mordia as extremidades do corpo. Leon e Tris a estudavam em silêncio,
com semblantes preocupados.
— Sim — respondeu com a voz a rouca. — Estou apenas tentando
elaborar um plano para pegar esse louco, antes que outra garota apareça
assassinada. Cadê o Alexandre? Ele falou que iria cuidar disso hoje.
— Foi ao IML, buscar o relatório da autópsia do corpo que você
encontrou na boate. — Leon apontou para a terceira fotografia. — Tomara
que novas pistas surjam.
— Como o assassino pode ter sofrido, Tris? — Diana se voltou para a
psicóloga. — Se ele sofre, por que mata?
— Não sei. Era o sentimento que gritava na cena. Assim como no rio,
onde os outros corpos foram encontrados. Leon me levou até lá.
Diana bufou, esgotada por conta da noite mal dormida. Três jovens.
Algo nela lhe dizia que a terceira vítima era bem jovem também. O mesmo
padrão brutal. Estamos lidando com um assassino serial. Ele precisa ser
parado antes que haja outra vítima. Seu peito se comprimiu em preocupação,
todos os pensamentos vagueando para sua sobrinha, Maria Eduarda, que
ficara dormindo em sua casa. Eu preciso deixar a cidade segura de novo
para ela.
— Mais tarde, vou para o local onde encontramos os dois primeiros
corpos — ela decretou. — Analisar a cena de novo.
— Diana, você está precisando de uma folga — Leon interviu. — Olhe
para você. Mal consegue ficar em pé.
— Me deixa em paz, Leon. Sei me cuidar.
— Se você for até lá, não vá sozinha. O assassino pode estar à espreita
dos nossos passos.
— Já disse que sei me cuidar. — Ela bateu os dentes. — Sei atirar, fiz
aulas de artes marciais quando era mais nova e não sou estúpida. Então, não
precisa ficar no meu pé, ok? Vá ver se o Alexandre já voltou.
Leon abriu a boca; se ele ia falar alguma coisa, desistiu no último
instante, e saiu da sala.
Diana puxou a cadeira e se sentou, bufando.
— Ai, Tris... Desculpa gritar com o seu marido. — Ela esfregou o
rosto, enterrando os dedos nos cabelos longos. — Minha noite foi um inferno,
minha sobrinha só chora, e o Leon ficar de marcação como um irmão super
protetor não melhora o meu humor.
Tris lhe deu um sorriso gentil.
— O Leon se preocupa com você. É o jeito dele. Tenho certeza de que,
na cabeça dele, você é mesmo uma irmã que precisa de proteção.
— Não estou acostumada com as pessoas cuidando de mim.
Geralmente, sou eu que cuido e protejo os outros. E, pelo amor de Deus, não
dê uma de psicóloga agora, perguntando se esse é o motivo de eu ter
escolhido a carreira que trabalho ou de ocupar o cargo de delegada.
— Eu não disse nada.
— Mas pensou. Tenho certeza. Esse é meu jeito, sou assim. Já perdi o
hábito de ter alguém zelando por mim, desde que... — Diana engoliu as
palavras, mas a confiança e calmaria que o olhar de Tris exercia a fez baixar a
guarda. — Eu tinha um irmão gêmeo. Ele desapareceu na semana do nosso
décimo terceiro aniversário, no mesmo dia em que meu pai foi assassinado.
Encontramos o corpo dele um mês depois.
— Sinto muito, Diana. Eu não sabia.
— Ninguém sabe. Não gosto de falar sobre isso. Eu ia participar de
uma apresentação de piano uma semana depois do nosso aniversário. Sempre
amei tudo relacionado à música. — Ela tocou o violão em miniatura que
decorava sua mesa. — Uma paixão inexplicável. Uma paixão que morreu
com ele. Nunca mais fiz melodia com minhas mãos.
— Diana...
— Depois que ele e meu pai morreram, minha mãe afundou na
depressão por muito tempo. Meu mundo também tinha desabado, mas decidi
que alguém precisava ser forte. Cuidei dela, até ela se reerguer. Ela casou de
novo, e a filha do meu padrasto, Heloísa, se tornou minha irmã. A vida
seguiu em frente.
Tris colocou a mão dela sobre a de Diana.
— Você era muito nova.
Diana limpou a garganta; não gostava que as pessoas a olhassem
daquela forma, como se ela fosse um cristal frágil, prestes a se quebrar.
Para escapar do olhar de Tris, Diana abriu uma das gavetas de sua
escrivaninha; ao remexer nas folhas soltas, algo capturou sua atenção.
Céus, nem sabia que isso estava aqui ainda.
Diana puxou uma fotografia antiga, trazendo-a para perto dos olhos;
uma nostalgia banhou seu coração, amarrando sua garganta. Era ela, com
doze anos, ao lado de Diego. Ela sorria, toda espalhafatosa, com os braços
abertos no ar, enquanto Diego carregava aquele semblante tão único, uma
quietude que sorria através de olhos enevoados.
Já faz tanto tempo que você se foi...
Os pensamentos de Diana a carregaram para dezessete anos atrás, para
uma semana antes da morte do pai e do rapto de Diego. Os gêmeos estavam
no jardim da casa dos avós, e o vento frio soprava seus cabelos. Diego, com
suas costumeiras feições quietas, um enigma guardado na pele do anoitecer,
segurava nas mãos algumas cartas de tarô, um baralho velho que haviam
achado no baú da avó.
“— O que você está fazendo? — Diana conseguia se escutar
perguntando, a voz afogada pelo vento.
— Segurando o futuro — foi o que Diego respondeu, e então abriu os
dedos, libertando as cartas que voaram nos braços do vendaval.
Uma delas volitou até Diana, percorrendo o caminho de um
mensageiro afortunado, tal como se estivesse predestinada a ela. A garota a
apanhou, observando o delicado e sombrio desenho de uma roda. Franziu o
cenho, encarando o irmão:
— O que significa?
— A Roda da Fortuna. Mudanças estão por vir. A roda vai virar.
— E como você sabe disso, bobão? Nunca pegou o tarô antes.
— É como se o vento tivesse sussurrado isso para mim.
Diana agitou a cabeça, confusa com aquelas palavras.
O céu acima deles adquiria uma coloração crepuscular, uma espiral
transformadora que embalava as profundezas de um vale sagrado.
— Diana. — Ela ergueu os olhos ante ao chamado de seu nome. O
vento rugia sobre ambos, e enquanto ela se sentia quase ser jogada para
longe, tinha a sensação de que Diego estava firme no chão, como se ele, a
terra e o crepúsculo houvessem se fundido em algo duradouro, mas ao
mesmo tempo etéreo. — As portas do destino... São uma só”.
A delegada piscou, regressando para a sala. Tris permanecia em
silêncio, sentada à sua frente. Deixou a fotografia em cima da mesa.
— Sinto muito. Acho que preciso mesmo descansar.
— É seu irmão? — Tris apontou para a foto.
— Sim. — Uma onda de tristeza a envolveu, contudo, Diana aquietou
aqueles sentimentos, não o trazendo à superfície de seu rosto. — Será que a
saudade um dia vai passar?
— Sentir saudades não é algo ruim.
— Às vezes, eu preferia não sentir.
— É o que nos faz humanos.
— Não consigo imaginar como é ser você. — Diana fingiu estremecer.
— Sentir tudo o que os outros sentiram, as reverberações do espaço, a aura.
Você não se sente sufocada?
Tris sorriu para ela, segurando a pedrinha do colar.
— Houve um tempo que sim. Mas hoje não. Hoje, sou grata pelos
meus dons. Amo cada pedacinho deles.
Foi impossível não sorrir de volta; Tris era uma pessoa que exalava
uma luz muito forte. As duas conversaram por mais um tempo antes de Tris
partir, alegando que tinha dois pacientes para atender.
Ao ficar sozinha, o olhar de Diana pousou na fotografia abandonada; as
íris de Diego pareciam rastejar até o cerne de sua alma, enquanto sua voz era
carregada pelo vento que adentrava pela janela.
“As portas do destino... São uma só”.
◆◆◆

Uma garoa fina e gelada brindou o fim daquele dia.


Assim que encerrou seu turno, Diana passou no hospital para saber
sobre o estado da irmã. Nada tinha mudado, e Heloísa permanecia
inconsciente. Questionara os médicos sobre o que havia acontecido com sua
irmã, mas ninguém lhe dera uma resposta conclusiva.
Voltou para seu apartamento, pediu pizza para ela e para Duda, e
quando a sobrinha adormeceu, percebeu que não conseguiria dormir.
Apesar do esgotamento do corpo, a mente estava acelerada demais.
Checou as mensagens. Tamires havia descoberto que as Treze Musas,
chamadas de Filhas do Tempo e da Terra, pertenciam a uma mitologia
diferente da grega, mas com algumas notas similares. E só.
Ainda não era suficiente para sua mente inquieta. Decidida, vestiu um
moletom, enfiou a arma no coldre, apanhou as chaves do carro e dirigiu até as
imediações do Bairro Santa Quitéria, onde o Rio Barigui cortava.
As águas rugiam, e o vento úmido da noite levantava seus cabelos.
Diana olhou em volta, mantendo a guarda em alerta. Atravessou as
faixas amarelas que fechavam o espaço, aproximando-se do local onde os
corpos tinham sido encontrados.
“O assassino sofreu”.
As palavras de Tris a perturbavam, embaralhavam o quebra-cabeça que
tentava montar para solucionar aquela investigação.
— Por que você sofreu ao tirar a vida desses dois adolescentes? Eles te
machucaram? — murmurou para as águas agitadas, levando as mãos para os
bolsos do moletom. — Por que você os matou? O que você quer?
“Strigoi”.
Ainda não sabia o que achava do apelido que o departamento dera para
o assassino. E algo nela não gostava daquilo, como um espinho quente e
dolorido.
— Devo estar cansada demais, para chegar ao ponto de me importar
com a forma como as pessoas chamam um assassino.
Acima de sua cabeça, as árvores que ladeavam o rio farfalhavam como
se estivessem rindo, como se soubessem de um segredo macabro que ela
desconhecia.
“As portas do destino... São uma só”.
— Incantevole.
A voz intrusa a pegou desprevenida; repreendeu a si mesma pela
distração. Diana se virou, ágil, o instinto em alerta.
Três sombras. Três silhuetas masculinas.
— O que vocês querem? Esta área está isolada.
Nenhuma resposta.
— Para trás. — Diana puxou o distintivo policial e a arma. — Este
lugar está isolado.
Nenhum dos três a obedeceu.
A garoa fina murchava os cabelos dela.
Eles continuaram se aproximando, encarando-a firmemente.
— Mas que merda...?!
Diana olhou para dentro dos três pares de olhos quando uma brecha de
luz os atingiu; e enxergou ali uma agitação perturbadora, sombras escuras,
incomuns e disformes. Estariam sob efeito de drogas?
Sua respiração pesou, e ela percebeu que as batidas do coração
aumentavam pouco a pouco.
— Para trás! — Apontou a arma com mais firmeza. — Não estou
brincando! Se vocês se aproximarem mais, vou atirar!
— Nem nós. Nossa Vasilíssa quer vê-la.
E avançaram sobre ela.
Ela pegou impulso, acertando um chute em um deles enquanto
engatilhava a arma; seu padrasto, dono de uma academia de artes marciais,
ficaria orgulhoso do golpe.
O homem cambaleou para trás e, quando ergueu os olhos escuros e
nevoentos, Diana enxergou o nariz que atingira.
A fúria cresceu nos outros.
— O que vocês são?! — Seu peito subia e descia, a arma em punho.
Eles a cercaram velozmente, formando um círculo ao seu redor. Diana
arregalou os olhos. Aqueles movimentos eram quase sobre-humanos.
O rio bufou no descampado.
Diana atirou; a bala atingiu o ombro de um deles, espirrando um
sangue negro e fedorento. Ela arregalou os olhos, em choque. Como aquilo
era possível?! Quase vomitou com o cheiro. Atirou de novo; e a bala
ricocheteou no ar quando um chute veloz arrancou a arma de sua mão.
— Você virá conosco!
— Sua mãe é que vai!
— Não há para onde fugir, Incantevole.
— In... O quê? Do que diabos você me xingou?!
Ele riu; e o som que saiu da boca dele foi quase animalesco.
Ela não se deu tempo de entender que merda toda era aquela; girou,
acertando uma joelhada no oponente da esquerda. Primeiro os derrubaria;
depois faria as perguntas. O homem à sua direita se moveu ainda mais rápido
e desferiu um soco que ela não viu; Diana cambaleou, recebendo outro soco
nas costelas e caindo no chão.
O peito ardeu com o impacto, enchendo a boca de sangue.
Tentou se levantar e revidar; outro golpe mais forte veio. Algo havia
rasgado sua barriga.
Garras...?!
Os sentidos turvaram.
Segundos antes da mente vagar para a escuridão, Diana ouviu o que
parecia ser uma lâmina sendo desembainhada. Sentiu um puxão quente no
sangue, feito um fio que a chamava. Talvez fosse uma ilusão, ou talvez o pior
estivesse vindo.
Seus olhos se fecharam contra sua vontade, e ela soube que era tarde
demais para entender.
9
Notas mortais
Ela ergueu a cabeça, recebendo em suas íris o estonteante brilho da
lua cheia; a luz se derramava por todo o seu corpo, adentrando naquele salão
pela área vazada do teto, que se abria para uma quieta noite estrelada.
“Está tão perto. Falta tão pouco para o seu aniversário”.
A voz gentil dançava por entre as colunas do salão.
“Nosso aniversário”.
Seu vestido vermelho esvoaçava ao seu redor, os cabelos loiros caíam
bagunçados pelas costas; nas mãos, ela segurava uma espécie de papel firme
e pequeno.
Diana arriou o olhar, reconhecendo que carregava uma carta de tarô do
antigo baralho de sua avó. A imagem, iluminada pelo luar austero, exibia
uma roda de seis aros, onde no alto havia uma figura metade anjo, metade
demônio. Circundando a roda, havia a figura de um bebê, de um menino, de
um jovem, de um homem e de um idoso, todos suspensos em um ambiente
ladeado pelos quatro elementos.
A Roda da Fortuna.
“Há o ciclo da vida para uns. Há o tempo congelado para outros”.
A voz novamente. Aquela presença. Girou o corpo, encarando o salão,
o chão límpido que refletia a ela e às colunas.
“Incantevole”.
Um braço de vento furioso atravessou as extremidades de seu corpo,
fazendo a carta de tarô voar de suas mãos e desaparecer.
Ela caminhou pelo salão; havia uma sensação enervante de
reconhecimento, pertencimento. Que lugar era aquele?
Erguendo o vestido para não tropeçar na barra, Diana cruzou o espaço.
Parou diante de uma pequena cripta de cristal. Estava vazia.
“A harpa”, a voz do vento sussurrou em seus ouvidos. “Esta cripta
era o local onde a harpa ficava protegida”.
— E onde está a harpa? — seus lábios murmuraram; todo seu olhar se
deslumbrava no cristal, que refletia o gélido prateado do luar.
Um formigamento cresceu em sua pele, atiçando seus dedos; queria
tocar o cristal, queria sentir cada pedaço de sua superfície.
— Assim que a Roda da Fortuna girar, haverá uma chance de descobrir
o paradeiro da harpa. É para ser você. Sempre foi você, e não eu.
A voz agora pairava atrás dela, balançando seus cabelos.
Diana ergueu o olhar; atrás dela havia um magnífico espelho que
refletia todo o salão. Enxergou a si mesma no vestido vermelho.
De repente, estava com doze anos outra vez.
E vislumbrou a pessoa a quem a voz pertencia; e seu coração quase
saltou pela boca.
— Diego.
Ela se virou, estonteada, admirada e confusa. Lágrimas insurgiram nos
olhos, e toda sua alma tremeu quando ela se atirou nos braços do irmão
gêmeo, abraçando-o, desejando ficar ali para sempre.
— Diego, sinto tanto a sua falta! Meu irmão, minha metade!
Galhos e ramos de rosas negras desabrocharam sobre seus pés,
envolvendo as vestes escuras de Diego.
— Escute-me, Diana. — As mãos dele se apoiaram nos ombros da
irmã, afastando-a enquanto a quietude dos olhos buscava pela agitação
transtornada nas íris de Diana. — A Roda da Fortuna vai girar. Muitos
caminhos vão surgir.
Lágrimas deslizavam pelas bochechas de Diana.
Ele estava ali. Diego. Ele estava mesmo ali.
O salão tremeu, e do chão fendas surgiram; uma onda quente se
alastrou por tudo, e quando Diana percebeu, ela e o irmão estavam cercados
por chamas negras.
O coração acelerou.
— Diego, vamos sair daqui! Vou te salvar dessa vez.
— Deixe-me ir, Diana. Deixe-me ir.
— Não. Não quero te perder outra vez.
— Deixe-me ir. Você precisa me deixar partir.
— Não! — ela protestou. — Vamos sair daqui juntos!
Diego permanecia parado, carregando o enigma que sempre ciciava em
seus olhos tão pitorescos. Sua expressão era serena, criptografada, como se as
chamas que consumiam o salão não o assustassem. Ele parecia muito mais
maduro do que ela se lembrava, muito mais adulto.
— Diana. — Ele tocou o queixo da irmã. Sua voz ecoava cada vez
mais distante enquanto as lágrimas de Diana se misturavam às chamas
negras. — Já é tarde demais para mim, mas confio em você. Você precisa
acordar. Nunca se esqueça. As portas do destino são uma só.
◆◆◆

Foi como um choque de adrenalina nas veias.


Diana ofegou; a barriga queimava, ardia, latejava, muito mais
intensamente do que qualquer outra dor. As garras daqueles homens
estranhos a haviam acertado em cheio.
Rolou sobre a grama, gemendo de dor e abrindo os olhos. Ainda estava
na região do rio Barigui. Tentou se apoiar nos braços.
O uivo do vento arrepiou seus sentidos.
Ela viu Luthor brandindo uma espada, golpeando e acertando os
homens. A lâmina cintilava na escuridão da noite. Sangue negro espirrava
para todos os lados.
O corpo do homem com garras se transformou em cinzas e vapor antes
de atingir o chão.
Diana engasgou de choque.
Que merda está acontecendo aqui?!
Precisava acordar daquele pesadelo.
“Isso não é um pesadelo”, um sussurro lambeu seus ouvidos.
Ela se arrastou pela grama, a garoa da chuva amolecendo a terra,
procurando por sua arma. Relâmpagos distantes iluminavam o céu.
Ouviu um sibilar gutural, e o último homem explodiu em milhares de
partículas quando a espada de Luthor o atingiu.
A dor pulsou outra vez no ferimento, intensa e enérgica, e Diana
precisou se controlar para não gritar.
— Diana!
Com os olhos embaçados, ela enxergou o rosto de Luthor se inclinar
em sua direção; acima da cabeça dele, o céu rugia feroz.
Diana tentou falar, mas a dor afogava sua voz.
— Merda, eles te atingiram! As garras possuem toxinas! Preciso te tirar
daqui!
Luthor a segurou, levantando-a parcialmente; em seus olhos e gestos
existia uma apreensão, um medo, algo completamente diferente da
personalidade que ele exibia nos sonhos. Diana se deixou cair contra ele,
recostando a cabeça contra seu peito. Sentiu os braços dele a envolverem,
apertando-a em uma quentura gentil, envolvente, protetora.
— Venha comigo, Diana. Outros podem chegar.
Ela estremeceu.
— Espera, espera. Como você sabe o meu nome? Foi você que me
tirou do rio ontem de manhã? — indagou entre ofegos de dor. — E o que
eram aquelas coisas... Aqueles homens...?!
— Sim, eu te tirei do rio ontem. Mas não há tempo para explicações, e
você está ferida — ele quase rosnou, olhando para trás e para cima. A espada
estava caída no chão, ao seu lado. — Venha!
— Me solte primeiro! — Ela se debateu, tentando se soltar dele. — Eu
nem te conheço!
— Pare com isso! Não vou te machucar!
Diana gritou, apontando para cima.
Luthor se virou; aquilo veio como uma bala do céu; era outro homem,
igual aos outros, com olhos obscurecidos e garras longas tomando o lugar dos
dedos. Ele pulou em Luthor, cravando dentes e garras antes que a espada
fosse empunhada.
O homem-criatura deu um grito de triunfo quando Luthor caiu inerte, o
sangue vazando de seu peito estraçalhado.
Diana não soube o que se apossou dos seus sentidos; no instante
seguinte, ignorando a dor do seu ferimento, ela apanhou a espada de Luthor e
pulou sobre o homem, acertando-o com um golpe fatal.
Sangue negro e malcheiroso espirrou para todos os lados.
O corpo morto evaporou diante dos olhos dela.
Soltando a espada, Diana se ajoelhou ao lado de Luthor, pressionando
inutilmente os ferimentos no peito dele.
— Merda, merda, merda. Não! Não!
Não havia sinais vitais ou respiração. Não havia nada.
Um choque atordoante passou por ela. Ele estava morto.
Não pode ser.
Diana enterrou as mãos ensanguentadas nos cabelos; o coração batia
desenfreado, um misto de choque, terror e confusão. Luthor havia morrido
diante dos seus olhos, sem que ela pudesse fazer nada.
O rio rugia e bufava, espirrando água para cima.
Houve um movimento, uma ondulação quente. Diana baixou os olhos,
franzindo o cenho e comprimindo o ferimento na barriga. Luthor soltou o ar
longamente. A respiração era áspera. Ele abriu os olhos e tossiu.
— Mas que merda — Luthor ralhou, se sentando e esfregando a nuca.
— Odeio quando isso acontece. E... Uau, você matou o servo?
Os olhos de Diana haviam dobrado de tamanho.
— Você... Você morreu. Eu vi.
— Bom... Há muita coisa para ser explicada — ele disse, enquanto a
ferida profunda em seu peito começava a cicatrizar sozinha.
10
Os Encantadores
Diana ordenou para si mesma que se mantivesse fria, analítica e
racional, como sempre fazia quando estava diante de uma investigação cheia
de meandros e lacunas. Mas ver um homem morrer, voltar à vida e se
regenerar diante dos seus olhos tornava aquela tarefa um pouco mais
complicada.
— Temos que cuidar do seu ferimento. — Luthor baixou os olhos; uma
poça de sangue se acumulava na blusa dela. — As toxinas vão te apagar de
novo a qualquer instante.
A voz dele à trouxe de volta. O vento que vinha do rio soprava entre
eles. Diana pressionou o machucado, e a dor, até então anestesiada pelo
choque, voltou feito um soco feroz.
— Merda — ela chiou, e o encarou com olhos questionadores. — O
que eram aquelas coisas que pareciam homens? E como você está vivo?!
— Ferimento primeiro, perguntas depois. — Luthor esticou a mão para
segurá-la; Diana se desvencilhou com agilidade.
— Você não dá as ordens aqui, parceiro.
Ela tentou ficar em pé. O sangue negro e fedorento que espirrara em
suas roupas a deixava enjoada. Tentou dar um passo. As pernas falharam. As
mãos de Luthor a ampararam.
Foi um reflexo; um flash; algo no toque dele na pele dela a fez ofegar,
pensar em Diego, enxergar as rosas negras tatuadas em seu irmão.
Diana ofegou e tentou empurrá-lo.
— Que criatura teimosa! — Luthor rosnou.
— Quem é você?!
Impaciência transbordava das íris selvagens dele.
— Me escute: as toxinas podem derrubar um elefante! Estou admirado
por você ter recuperado a consciência no meio da briga e, ainda por cima, ter
matado um servo com a minha espada. Algo me diz que você será uma
caixinha de surpresas para mim, Incantevole.
Diana franziu o cenho.
Aquela palavra outra vez.
Viu Luthor mover os lábios, falar alguma coisa que ela não conseguiu
ouvir. O rosto dele foi ficando distante, afastando-se com a correnteza do rio,
escurecendo, até se apagar por completo.
◆◆◆

Quando Diana abriu os olhos, percebeu que estava deitada em uma


cama macia, de dossel, cujas cortinas finas e brancas oscilavam suavemente
com o vento que adentrava da janela aberta. Lá fora, o silêncio da madrugada
ainda fazia morada, e relâmpagos iluminavam o céu. Não garoava mais.
Onde estou? O que aconteceu?
Ela tentou se erguer na cama, mas a dor pungente que se alastrou pelo
corpo a obrigou a ficar deitada, ofegante, irritada. Se Leon soubesse daquilo,
iria repreendê-la por ter ido sozinha à cena do crime.
Esperou um pouco e, mais devagar do que gostaria, se sentou na cama.
O ferimento na barriga havia parado de doer. Diana foi checar o estrago e
tomou um susto. Estava com roupas limpas. Quem a trocara?
Por instinto, procurou pela arma, e a encontrou em uma mesinha ao
lado do dossel.
Ótimo.
Apanhou-a sem fazer questionamentos, checou se ainda estava
carregada e se levantou, varrendo o espaço com o olhar, a mira apontada para
a penumbra dançante do quarto.
Escutou passos no corredor e engatilhou a arma. Mal respirava. A
cabeça girava em uma confusão de cenas desconexas.
Viu a sombra primeiro.
Travou o maxilar e ficou preparada para qualquer ataque.
— Caramba, esquentadinha. — Luthor assoviou, se encostando ao
batente da porta e cruzando os braços. — Você não perde tempo.
Diana piscou; confusa, chocada.
— Do que me chamou?
Ele riu e não respondeu. A fatia de luz que vinha do corredor tingia o
rosto dele, delineando as feições marcantes. As tatuagens tribais nos bíceps
definidos pareciam ainda mais nítidas do que na noite da boate.
— Onde estou?
— Em um local seguro.
Sem baixar a arma ou perder Luthor de vista, Diana se moveu até a
janela. Pela altura, estava em algum apartamento ou loft; a rua escura e
desabitada em nada ajudava a mapear sua localização.
— Ainda estamos em Curitiba — ele falou. — Só que um pouco mais
afastados da parte urbana.
Sentindo o olhar de Luthor em suas costas, Diana se voltou para ele.
Vermelho.
Vermelho quente a açoitando.
Fogo. Fogo negro.
O som melódico de um instrumento musical, distante, longínquo.
Diana piscou algumas vezes. A regata vermelha que Luthor vestia,
justa em seus ombros largos, arrebatava com o tom sóbrio do quarto. Era uma
cor forte e hipnotizante.
Ela percebeu que ainda o encarava quando Luthor franziu a boca.
— Você sente também, não sente? — a pergunta era um sussurro. — O
que significa que é você. Depois de tanto tempo esperando, é você.
Diana estreitou os olhos, a arma ainda em punho.
— Explique-se, ou eu atiro.
— Pode descarregar o pente em mim. Não vai me derrubar.
— Mas acho que posso causar dor e ganhar tempo para fugir. — Em
nenhum momento, os olhos dela se desprenderam dos dele. — Não é?
Quase jurou ver a sombra de um sorriso criptografado nele.
— É esquentadinha mesmo.
— Ora, seu... — Diana agitou a cabeça, como se um choque a tivesse
despertado. — Ei! Que roupas são essas que eu estou usando? Você tirou as
minhas roupas?!
— Calma, esquentadinha. Foi com a melhor das intenções. Alguém
precisava fazer isso. — Luthor deu de ombros. — Além do machucado, você
estava coberta pelo sangue negros dos servos. Ele queima a pele.
Ela queria que aquilo tivesse causado algum alívio, mas estava
sentindo seu rosto ficar verde, roxo, vermelho.
— Quero explicações. Agora. Sem desculpas.
— Tudo bem. Vamos nos sentar. — Luthor apontou para a beirada da
cama e se sentou. — Você também tem os sonhos, não tem? Comigo. Com a
campina. Com o abismo. Com o bosque.
— O que isso significa?
Toda a face dele estava agora mais sombria; completamente oposta ao
temperamento provocativo. Diana deu um passo para frente, parando em pé
em frente a ele, aguardando por uma explicação.
— O que você acha que significa, Diana?
— Eu...
— Fale o que vier na sua cabeça, por mais bizarro que possa ser.
Ela se curvou um pouco na direção de Luthor, e as pontas dos seus
cabelos caíram para frente, roçando no rosto dele.
— Fogo. Melodia — As palavras saíram baixas; os olhos conectados
se sustentavam. — Eu só conseguia pensar no fogo, sentir o fogo, ver o fogo.
Um fogo negro, acompanhado da melodia de um instrumento.
As mãos dele se ergueram, segurando as delas. Sua respiração falhou, e
o coração trepidou dentro do peito. Quentes. As temperaturas eram similares.
Luthor virou as palmas das mãos de Diana para cima.
— E se eu disser que a música é a chave de tudo?
Diana entreabriu os lábios, ainda o fitando. Sentiu um puxão invisível
no peito, e, quando percebeu, havia se sentado ao lado dele.
— Como você está vivo? Eu te vi morrer.
— Não posso morrer. Não mais. Mas saiba que nasci mortal e humano,
com dons místicos.
Diana pensou em Tris; estava acostumada com pessoas com
habilidades únicas e singulares, mas algo lhe dizia que o que Luthor lhe
contaria ia muito além de uma sensibilidade elevada. Mesmo assim, arriscou
perguntar.
— Que tipo de dons?
— Selagem. Posso abrir fendas no espaço e no tempo, e proteger
objetos místicos. Por causa dessa habilidade, fui treinado em um lugar
chamado Santuário e me tornei um selador, até ser substituído pelos
guardiões. Fugi antes de ser executado.
— E quando foi isso?
— 1490, eu acho. Não me lembro mais com tanta clareza.
Diana quase engasgou ao fazer as contas. Se não houvesse visto o
homem voltar à vida diante dos seus olhos, jamais acreditaria naquilo.
— E, se quiser saber mais sobre o Santuário — Luthor continuou —,
converse com Lúcio, aquele homem que está sempre com Leon, seu amigo
investigador. Ele terá mais paciência de te dar detalhes.
— Está me espionando? — Diana agitou a cabeça, os cabelos
balançando. — E está se referindo a Lúcio Svetloba, o investidor milionário?
— Ele mesmo. De tempos em tempos, nos ajudamos. Abro um selo
para ele e a esposa Helen pegarem artifícios místicos, ele me ajuda a fugir do
radar do Santuário... Embora, hoje, o Santuário não exista mais e eu não
precise mais me esconder... Enfim, uma longa relação.
— Lúcio é imortal também?
— Não. Ele e Helen são mortais como você. — Luthor fez um gesto
com o a mão no ar. — Mas, continuando... Depois que deixei de ser útil para
o Santuário e escapei da morte, séculos atrás, procurei um lugar para ficar.
Acabei na Itália, acolhido pelos Incantevoles.
A atenção de Diana se aprumou.
“Não há para onde fugir, Incantevole”.
— O que essa palavra significa?
— “Encantadores”, em italiano. Era um grupo místico ligado à magia
da música, que protegia um objeto sagrado. Segundo as histórias, eles foram
abençoados pelas musas.
A mente de Diana estalou.
— As musas! Foi você que deixou aquele envelope com a foto da
pintura das treze musas na minha sala?!
— Sim. Foi um primeiro contato, um “olá”, para ver se você
reconheceria o significado daquilo. Não reconheceu. O que significa que
ninguém nunca lhe instruiu sobre seus antepassados. — Diana abriu a boca,
mas Luthor continuou: — Voltando ao grupo místico... Como eu ainda tinha
minhas habilidades de selador, me ofereci para ajudar na proteção do objeto,
em troca de um lugar para morar. Eles me aceitaram.
— E que objeto era esse?
— Uma harpa.
— E o que aconteceu com a harpa?
Luthor expeliu um risinho extremamente atípico pelo nariz, desgostoso
e cínico. Diana segurou a arma com mais força.
— As coisas deram errado. — Ele virou o rosto para a janela.
Os instintos investigativos de Diana diziam que havia muita mais
implícito em “as coisas deram errado”.
— Falhei no meu dever de proteger a harpa, e ela quase caiu nas mãos
de uma antiga inimiga dos Incantevole. Todos foram mortos. — Por mais que
ele disfarçasse, seu peito subia e descia rápido. — Para evitar uma catástrofe,
abri um selo e enviei a harpa para algum recorte do tempo, mas nunca mais
consegui encontrá-la, pois somente alguém que possui o sangue manifestado
dos Incantevole pode funcionar como uma bússola até ela.
Diana mordeu o lábio. Ainda estava atordoada com todos os
acontecimentos das últimas horas, e as palavras de Luthor soavam absurdas
demais, um pedaço de um conto de terror perdido em um livro empoeirado.
Então por que, se parecia uma fantasia distorcida aos seus ouvidos, ela
continuava prestando atenção em cada uma daquelas palavras?
— Porque você também está ligada a esta história — Luthor
murmurou, como se tivesse lido seus pensamentos.
— Como assim?
— Você descende de um dos Incantevole. Um deles teve um filho fora
do templo, e a linhagem se espalhou pelo mundo e pelos séculos. Em seu
leito de morte, ele me disse que somente um descendente dele poderia me
ajudar a recuperar a harpa. Por centenas de anos, procurei, vasculhei todas as
ramificações. Até chegar em você.
“Assim que a Roda da Fortuna girar, haverá uma chance de descobrir
o paradeiro da harpa. É para ser você. Sempre foi você, e não eu”.
A voz de Diego ressoou como um eco; as chamas vislumbradas nos
sonhos queimavam em sua vista, chamas negras e antigas.
— Isso é impossível...
— É? — Luthor arqueou as sobrancelhas. — Os Incantevoles, os
Encantadores, eram conectados à magia da música. Guardiões dos mistérios
do som, da melodia e de instrumentos sagrados. Por isso te mandei as treze
musas. Foram elas que abençoaram os primeiros Incantevoles, e, por
descendência, você carrega essa “benção” no sangue. Você nunca sentiu uma
ligação inexplicável com a música?
Diana pensou nas aulas de piano, de flauta, de violão, na perda da
paixão que tinha pela música quando perdeu Diego, mas não disse nada.
Franziu o cenho quando Luthor se levantou, tomou a espada em mãos e se
ajoelhou diante dela.
— Ei, o que está fazendo?!
— O juramento que eu iria fazer para seus antepassados Incantevoles.
Um juramento para proteger a harpa e todos os seus guardiões. Vou fazê-lo
para você agora, e este voto nos unirá em nossa jornada.
— Pare com isso! — Ela agitou as mãos no ar, perplexa. — Ninguém
vai jurar nada aqui. Ainda tenho muitas perguntas.
Arqueando as sobrancelhas, Luthor deu de ombros, deixou a espada de
lado e se sentou na beirada da cama outra vez.
O coração dela batia alucinado no peito.
— Certo. O que mais quer saber?
— Hã... Como você se tornou imortal?
Luthor ergueu o rosto; seus olhos tinham as cores do mistério e da
saudade, o brilho fraco de uma vida não almejada, mas algemada. Ao
contrário de muitos homens, ele parecia não querer carregar aquele fardo. E,
em algum canto escuro e sombrio de sua mente, Diana temeu que seus olhos
um dia se refletissem como os dele.
— Uma maldição daquela que tentou tomar a harpa. Da mesma que
enviou os servos atrás de você essa noite.
— Ela tem um nome?
— Ela tem vários nomes. Os Incantevoles usavam “Letyne”.
Todo o ar era denso e carregado para seus pulmões; na penumbra do
ambiente, na canção da noite derramada, na ardência do corte que queimava...
Ela conseguia enxergar Diego. Diego com seus olhos quietos, com seus
cabelos claros, morto, com rosas negras tatuadas por toda a pele.
Subitamente, pensou na irmã hospitalizada, na sobrinha desprotegida
em seu apartamento. Um instinto agudo gritou por suas veias. Ela pulou da
cama e ficou em pé.
— Preciso ir. Ainda tenho perguntas, mas preciso ir.
Luthor fez menção de segurá-la.
— É perigoso.
Mas ela não conseguia afastar o pânico ao pensar na sobrinha; um
pressentimento gelado, mais forte do que sua vontade. Precisava vê-la,
precisava ficar junto dela. Ao olhar para Luthor, algo no semblante dele
pareceu ler os pensamentos vorazes ela.
— Trouxe seu carro. Está estacionado lá embaixo. — E estendeu as
chaves para ela. — Não sinto mais a presença dos servos, mas volte para sua
sobrinha, se isso te acalma. Só que saiba, Diana... O que te contei hoje não
poderá ser ignorado. A Roda da Fortuna ficou parada por muito tempo, e
agora finalmente vai girar. E nada mais será como antes. Nos encontraremos
de novo, esquentadinha.
Diana apanhou a chave das mãos dele.
— Talvez. E, talvez, se nos encontrarmos de novo, você possa me
contar as partes que deixou de fora da história. Não se esqueça, “parceiro”.
Eu já fui uma investigadora. E sei quando alguém está me ocultando algo.
◆◆◆

Mesmo não sentindo mais a presença dos servos de Letyne, Luthor


acompanhou Diana à distância, saltando pelos telhados das casas, seguindo a
luz dos faróis do veículo.
A mulher tinha um instinto apurado, bem diferente de tudo o que ele já
tinha visto. Era melhor se precaver.
“E, talvez, se nos encontrarmos de novo, você possa me contar as
partes que deixou de fora da história”.
Trincou a mandíbula, tocando a cicatriz do peito.
Ele esperava que aquilo não fosse necessário para cumprir sua missão
de recuperar a harpa perdida e honrar uma promessa. Havia coisas sombrias
demais, desagradáveis demais. E apenas queria que aquela jornada terminasse
de uma vez por todas.
Observou Diana entrar na garagem do prédio. Acomodou-se em um
canto do telhado que fazia frente com o edifício, contando as janelas até
chegar ao andar dela.
Assim que as luzes da sala se acenderam e a silhueta dela se desenhou
atrás das cortinas, sem nenhum sinal de perigo, ele relaxou.
Talvez a mulher apenas estivesse nervosa. Quem não estaria, após ver e
ouvir tudo o que ela vira? Ao mesmo tempo, era corajosa. Não acuara em
momento algum. A maior parte das pessoas teria surtado.
Uma mulher diferente e admirável.
O vento carregou um odor familiar até suas narinas. Luthor retesou os
ombros, movendo-se como presa e predador no alto do telhado.
Um cheiro antigo, semelhante, inimigo.
Não eram os servos de Letyne.
Merda.
— Então, você também está por perto, vecchio amico — ele sussurrou
para a escuridão, como se sentisse os olhos rivais o vigiando de algum ponto
camuflado.
Será que Diana, inconscientemente, tinha captado aquilo também?
Ele descobriria depois.
Desembainhando a espada, Luthor correu para a beirada do telhado e
saltou sob o véu da noite, preparando-se para uma longa noite de caçada.
11
À luz do raio
Foi o barulho das motocicletas acelerando na rua atrás do prédio que
fez Diana acordar em um sobressalto.
Praguejou baixo; havia se esquecido de programar o despertador do
celular. Merda. Sua sobrinha chegaria bem atrasada no colégio.
Ela olhou para cama que dividia com Maria Eduarda. A adolescente
ainda dormia. Diana se levantou devagar; todo o corpo ainda estava dolorido,
e a sensação era de que tinha sido atropelada por um caminhão.
Depois dos acontecimentos bizarros da noite anterior, um
pressentimento gelado a assolara, e ela voltara correndo para seu
apartamento, e não havia saído do lado da sobrinha por um minuto sequer.
Ficara boa parte da madrugada acordada, com a arma em punho, repassando
mentalmente a conversa com Luthor, até ser vencida pela dor e pelo cansaço.
“Você descende de um dos Incantevole. Um deles teve um filho fora
dos votos sagrados da castidade, e a linhagem se espalhou pelo mundo e
pelos séculos”, Luthor lhe revelara. “Em seu leito de morte, ele me disse que
somente um descendente dele poderia me ajudar a recuperar a harpa. Por
centenas de anos, procurei, vasculhei todas as ramificações. Até chegar em
você”.
— Incantevole.
Diana não fazia ideia da profundidade daquilo; apenas sabia que, se
não tivesse que ir para a delegacia, abriria uma garrafa de vinho.
— Tia...? — Duda bocejou, abrindo os olhos. — Que horas são?
— Acho que você já perdeu a primeira aula. E talvez a segunda. —
Diana encolheu os ombros. — Desculpa.
— Tudo bem. Não quero ir para a escola. Quero ficar no hospital com a
minha mãe. Posso?
Depois da noite mais insana da sua vida, tudo o que Diana conseguiu
foi assentir e beijar o topo da cabeça da sobrinha.
— Tome um banho e coma alguma coisa. Eu te deixo no hospital no
caminho do trabalho.
E pedirei para dois policiais ficarem por perto, apenas por precaução,
ela complementou em pensamentos, esperando que aquilo lhe desse algum
alívio para enfrentar o dia que nascia à sua frente.
— Amanhã é seu aniversário, não é, tia? — Duda se lembrou, ficando
de joelhos na cama e encostando o rosto na janela. — Por isso está nublado.
Sempre chove no seu aniversário.
Todo o ano, desde o seu nascimento e do nascimento de Diego, pelo
que Diana se recordava. O mundo despencava do céu em uma torrente de
água infinita.
Duda encolheu os ombros.
— Espero que minha mãe esteja melhor amanhã. Assim, poderemos
comemorar juntas. Talvez a vovó e o vovô também já estejam aqui. Vamos
fazer uma grande festa para o seu aniversário, o que acha?
Diana entreabriu os lábios; há dezessete anos, evitava comemorar seu
aniversário, porque a data a fazia pensar no corpo esquartejado do pai e na
morte do irmão gêmeo.
Mas não precisava jogar mais chumbo nos ombros da sobrinha.
Forçando um sorriso, tocou os cabelos de Duda.
— Sim. Vamos fazer isso. Me ajuda a preparar o café?
— Claro!
◆◆◆

Somente a escuridão reinava ali.


Com a cauda do vestido deslizando pelo chão, ela se sentou entre as
tochas que queimavam em fogo negro e olhou para o Rio das Almas.
Calmamente, tirou uma rosa negra dos cabelos e espetou a ponta do
dedo no espinho.
— Não haverá alternativa para você, Incantevole.
Ela deixou que o sangue pingasse na água, formando fios que se
ramificaram como veias e teias escuras.
— Feliz aniversário adiantado.
◆◆◆

Diana não sabia como não havia agarrado o médico pelo jaleco.
— Como assim, ninguém sabe o que a minha irmã tem?!
Sentada na cama hospital, Duda chorava, olhando para a mãe.
Heloísa, ainda inconsciente, estava mais pálida do que o dia anterior.
Mas não fora aquilo que assustara Diana. Todas as veias de sua irmã se
destacavam na pele, escuras e retorcidas, como se alguém as tivesse tatuado
ali, subindo para o rosto feito teias finas.
— Como ela ficou desse jeito, de uma hora para a outra?! A
enfermeira me disse que ela não estava assim hoje cedo!
— Suspeitamos de algum problema no sangue, e estamos aguardando o
resultado dos exames. Vamos fazer mais testes, tudo o que estiver ao nosso
alcance para descobrir o que sua irmã tem.
Diana ficou debatendo com o médico até seu celular começar a tocar
freneticamente, seguidas vezes. Reconheceu o número de Leon, o cabeçalho
“urgente”, a mensagem “mais um corpo” e o endereço.
Não conseguiu convencer a sobrinha a ir embora do hospital; deixou
dinheiro para que ela comesse e pegasse um Uber, e foi para o carro. A mente
fervia. Ver Heloísa inconsciente naquela cama roubou todo o fôlego que
tinha conseguido preservar da “conversa” com Luthor.
Enquanto dirigia para a cena do crime, forçando os olhos a não
marejarem, as imagens não paravam de assombrá-la.
Mesmo com as diferenças, era inevitável não se recordar das rosas
negras marcadas no cadáver de Diego.
Por isso que eu odeio a semana do meu aniversário.
Nunca eram dias tranquilos, nunca havia um raio de sol.
Inspirou o mais fundo que conseguiu e comprimiu o volante; não era
hora de pensar em Diego. Precisava focar no seu trabalho, em um plano para
capturar o assassino.
Ao descer do carro, Diana já trajava a pele da delegada.
— Me levem até o corpo.
O policial que chefiava o local a guiou por entre os peritos. Nuvens
cinzentas nublavam o céu. Diana avistou Leon ao lado de Tris, e agradeceu
pela psicóloga já estar ali. Um olhar rápido com Leon lhe confirmou que Tris
já tinha usado suas habilidades sensitivas para analisar a cena.
O corpo apresentava o mesmo aspecto dos outros.
Por um momento, pensou no ataque que havia sofrido na noite anterior,
nos homens de olhos obscuros e garras nos dedos. De alguma forma,
poderiam estar envolvidos? Encarou o cadáver outra vez. Não havia traços do
sangue negro, ou da pele perfurada pelas garras. Uma intuição primitiva dizia
que o assassino não era como aqueles que a atacaram.
Ela fez uma careta, atravessada por um arrepio.
— Nenhuma pista do assassino ainda?
— Nenhuma, chefe — Leon respondeu.
Diana arqueou as sobrancelhas, apoiando as mãos na cintura.
— Decidiu começar a me chamar de chefe?
— Sabe como é... — Um sorriso travesso insurgiu no canto da boca
dele. — Amanhã é seu aniversário. Você está ficando velha. Alguns títulos
ajudam a aliviar o peso da idade.
A língua de Diana estalou.
— Tris, controle seu marido ou você vai ficar viúva.
— Vocês parecem duas crianças. Nem Melina se comporta assim. —
Tris balançou a cabeça; uma leve palidez recobria seu rosto, sinal de que
havia utilizado os dons sensitivos. — Vou precisar puxar as orelhas?
— Não, mãe. — Diana se virou para Tris, abaixando a voz: — O que
você conseguiu dessa vez? A mesma coisa? “O assassino sofreu”?
Uma sombra encheu os olhos de Tris.
— Não. Desta vez, o sentimento foi diferente.
— Diferente? Como assim?
— Dessa vez, o assassino gostou. — A palavra saiu com um tom
profano da boca de Tris. — Não tinha nada do sofrimento das outras vezes.
Diana olhou para Leon.
— Dois assassinos?
— Foi o que pensei também. E os alvos são jovens.
— Certo. — Diana girou nos calcanhares. O vento que lambia seu
rosto era úmido e carregava o cheiro da chuva longínqua. — Seja um
assassino ou sejam dois, precisamos dobrar nossos esforços. Não quero mais
tropeçar em nenhum cadáver nesse estado.
◆◆◆

A cortina eterna da escuridão continuava serpenteado como mantos


tecidos pela mais densa e primitiva noite.
Ela deixou que as gotas de sangue pingassem do seu dedo para dentro
do Rio das Almas, contemplando com deleite as teias que se formavam.
Com os olhos fechados, entreabriu os lábios para o ar fragrante.
— Maximus, está na hora. Mesmo estando presa aqui embaixo,
consigo captar. É ela. Você está perto. Encontre a Incantevole. Traga-me a
harpa. E aquilo que você mais deseja finalmente será seu. Para sempre.
◆◆◆

A chuva que precedia seu aniversário chegou à noite, uma chuva forte
com trovões.
— Trouxe pizza, Duda! — Diana anunciou ao entrar no apartamento,
fechando a porta com o pé. — Não vou conseguir cozinhar. Alguma notícia
sobre o estado da sua mãe? Duda?
Escutou o chuveiro ligado no banheiro.
Deixando as pizzas sobre o balcão, Diana caminhou até a sacada e
abriu a porta de correr. Seus cabelos ricochetearam em volta do rosto. A
tempestade ardia e queimava, urrava e estalava, fazendo o vento uivar.
Deu um passo à frente, apenas para deixar a chuva cair no rosto e
resfriar os pensamentos acelerados, como Diego gostava de fazer quando
eram crianças. Seria uma forma de homenageá-lo. Afinal, à meia-noite, o
aniversário seria dele também.
Eu te prometo, meu irmão, meu gêmeo, minha metade. No nosso
próximo aniversário, seu assassino estará atrás das grades. É uma promessa.
Trovões ecoaram pela cidade.
Então, como um puxão invisível, ela ergueu a cabeça e viu que alguém
a observava em um ponto do prédio abandonado defronte ao seu.
Instintivamente, procurou pela arma no coldre.
À luz de um raio, o observador tomou a forma de Luthor, e tudo dentro
de Diana se agitou de um jeito elétrico e enervante.
Misterioso e enigmático, com os cabelos escuros esvoaçando na altura
do queixo e a espada na mão, como se estivesse pronto para a batalha.
Outro raio chiou acima deles, e seus olhares se encontraram.
Diana ficou parada, assim como ele; nenhum dos dois ousou romper o
contato visual.
— Tia! Tia Di!
Os gritos assustados de Duda a despertaram.
Diana se virou com agilidade, correndo para dentro do apartamento no
mesmo instante em que a sobrinha entrou na sala como um furacão, com os
braços esticados e vestindo apenas um roupão felpudo.
— Me ajude, tia! Me ajude!
Em choque, ela viu que as mesmas veias negras que haviam surgido
nos braços e no rosto de Heloísa, agora subiam pela pele de Duda.
— Duda, nós...
Um trovão irrompeu do lado de fora, e elas gritaram quando o vento
estourou as janelas, fazendo uma chuva de cacos brilhantes cair enquanto um
homem que Diana não conhecia saltava para dentro do apartamento.
12
Olhos que não temem
Todos os anos, a semana do seu aniversário era estranha. Muito
chuvosa, solitária por opção e repleta da memória da morte do irmão e do pai.
Mas era a primeira vez que um homem portando um mangual medieval
arrebentava a janela e pulava para dentro do seu apartamento.
Diana reagiu rápido; empurrou Duda para o chão no mesmo instante
em que o homem se ergueu, girando a esfera metálica com espinhos
pontiagudos no ar.
Um raio cortou o céu, e o estrondo seguinte mergulhou o apartamento
em um breu denso.
Ela girou, desviando do ataque; a corrente do mangual rangia no
compasso de sua respiração entrecortada.
A esfera atingiu a parede.
— Você virá comigo, Incantevole! — Outro golpe do mangual atingiu
uma das cadeiras, passando por milímetros do seu corpo. — As ordens foram
para te levar com vida, mas não necessariamente intacta.
Esquivando de outro ataque, Diana sacou a arma, tentando se manter
perto de Duda. Era impossível enxergar naquela escuridão, e ela não queria
perder tempo decifrando que merda estava acontecendo ali.
Um relâmpago iluminou a sala.
Ela encarou os olhos tempestuosos do inimigo.
E aquilo foi suficiente.
Diana atirou contra o homem; a mira precisa acertando os pontos vitais.
Ele caiu no chão com um som seco.
Ofegante, agarrou a sobrinha, apanhou mecanicamente as chaves do
carro e disparou para fora do apartamento.
— Rápido, Duda! Não sabemos se ele está sozinho!
— Quem era ele, tia?!
— Não sei.
Não parecia com os mesmos que me atacaram no rio. Havia algo
perturbador e desconcertante no olhar dele.
Duda apertava freneticamente o botão do elevador.
— Não está funcionando! Estamos sem energia!
— Escadas! Agora!
Diana puxou a sobrinha, pulando os degraus de dois em dois. Não
sabia se ligava para a delegacia ou se dava um jeito de chamar Luthor. A
adolescente ofegava e tremia de frio; Duda estava apenas com o roupão que
colocara ao sair do banho.
No momento, preciso sair daqui e garantir a segurança dela.
Empurrou a porta pesada, indo para o estacionamento subterrâneo do
prédio.
— Para o carro, Duda! Agora!
— Tia, tem alguém aqui!
O grito da sobrinha fez Diana se mover com agilidade, a arma em
punho. Mal conseguia enxergar alguma coisa. Forçou os olhos. Alguém se
movia rápido para perto delas. Podia ouvir a respiração, o chiar do sangue.
Ela deu um tiro de aviso.
— Porra! — a voz masculina urrou.
— Luthor?!
— Meu ombro, esquentadinha! Merda! Isso dói!
Diana não gostou da súbita sensação de alívio que sentiu ao ouvir a voz
dele; aquilo não era algo comum que sentia.
— Onde ele está?! — Luthor indagou, ofegante, aproximando-se de
Diana, o suficiente para que ela enxergasse o ferimento no ombro
cicatrizando. Segurava o cabo da espada com força.
— O filho da mãe com o mangual? Morto no meu tapete.
— Não por muito tempo.
— Ele... Ele é como você?!
Luthor riu; um riso chasco, cansado.
— Não tão bonito e esperto, mas sim. Maximus também não morre.
Diana bateu os dentes; seu coração estava disparado no peito. Tinha
finalmente entendido o que a incomodou ao mirar os olhos daquele homem.
Havia algo neles que ela só havia enfrentado poucas vezes em sua vida.
Compartilhavam com assassinos a frieza que ia muito além da coragem de
viver: a ausência do medo da morte.
— Entre no carro, Duda! — ordenou para a menina, que pulou para o
banco de trás. — Temos que sair daqui agora mesmo!
— Para onde vamos, tia?!
— Só temos que sair daqui.
— Há um lugar — Luthor a cortou, segurando a porta do carro. —
Vocês estarão seguras lá. Pelo menos, até a meia-noite.
Meia-noite. A palavra ecoou junto ao trovão. Meu aniversário.
Diana não questionou; se estivesse sozinha, enfrentaria o desgraçado,
mas não queria expor a sobrinha. Por tudo o que era mais sagrado, não
poderia perder o que restara de sua família. Entrou no carro, girando a chave
na ignição; não questionou quando Luthor se sentou no banco do passageiro e
passou o endereço para ela.
Em segundos, estavam na avenida, açoitados pela chuva violenta.
— Estava me vigiando? — Diana agarrava o volante, o pé pisando
fundo no acelerador. — Eu te vi.
— Tenho feito isso nos últimos dias. Em poucas horas, será seu
aniversário. — Não havia culpa na voz dele. — O trigésimo aniversário.
— E o que tem meu trigésimo aniversário?
— Uma marca na Roda da Fortuna. Assim como o décimo terceiro.
O coração de Diana deu um salto no peito.
Diego havia sido capturado e assassinado na semana em que ambos
fariam treze anos.
— Tia, as marcas na minha pele estão aumentando!
Luthor se virou no banco, segurando os braços de Duda.
— Isso é obra de Letyne.
— Da vadia que te transformou em imortal e que decidiu infernizar
minha vida?
— Imortal? — Duda quase engasgou.
— Essa mesmo, esquentadinha.
— Pare de me chamar assim. — Diana fez uma curva brusca, e os
pneus do carro cantaram embaixo da chuva. — E tire essas marcas dela.
— Não é tão simples assim.
Ela chiou, lançando um olhar para o banco de trás.
— Por que não estou surpresa? E...
Quando Diana fez outra curva, ela viu a enorme figura arqueada no
meio da rua, a alguns metros de distância. Podia sentir a vibração assassina
que aquilo emanava.
— É um servo! Como os que te atacaram no rio!
Diana pisou no acelerador.
Aquilo pulou; uma massa preta, com garras e traços humanos. O carro
tremeu com o impacto, e ela tentou controlá-lo, sentindo o coração indo parar
na garganta. O para-brisa explodiu. Duda gritou, protegendo os olhos.
Novamente, Diana conteve o instinto de frear e girou o veículo com força em
um cavalo de pau.
O servo se dissolveu em cinzas diante dos seus olhos.
— Filho da mãe, filho da mãe — disse repetidamente.
— Você é uma caixinha de surpresas, esquentadinha. — Luthor fechou
uma das mãos dele sobre a dela, que agarrava ao volante. A pele dele era
quente. — Siga em frente. Estamos quase chegando.
— Aquilo... — Duda murmurou. — Não era humano, era...?
— São chamados de “servos” — Luthor explicou, soltando a mão de
Diana enquanto olhava para a menina. — Parecem humanos, mas não são. É
apenas uma alma controlada habitando uma casca ilusória.
— É por isso que eles se desfazem quando são atingidos?
— Exatamente, esquentadinha. — Luthor brandiu a espada; a lâmina
brilhando à luz do relâmpago. — E lá vem outro!
Diana não teve tempo de evitar o ataque. Chuva entrava pelo para-brisa
quebrado. Tentou manobrar e atingi-lo; errou por milímetros. O carro
derrapou no asfalto molhado e girou na direção dos blocos de concreto que
fechavam um lado da rua em obras.
Tudo aconteceu em fração de segundos.
O choque foi violento contra a porta de Luthor. Uma dor forte fez
Diana soltar o volante. O carro perdeu o controle. Ela sentiu Luthor a
envolvendo com o corpo.
O mundo rodou.
Quando ela recobrou os sentidos, estava sendo arrastada para fora do
carro pela janela quebrada. Um som alto e intermitente apunhalava seus
ouvidos. Estilhaços de vidro e fumaça encobriam tudo ao seu redor.
— Duda! — Diana ofegou.
— Ela está bem. — Luthor a segurava, arrastando-a pela rua. Sangue
escorria dos ferimentos quase cicatrizados no rosto dele. — Eu já a tirei do
carro. Ela está ali.
O barulho da buzina ecoava pela noite turbulenta.
Diana arfou quando viu o servo pulando na direção deles. Abriu a boca
para avisar Luthor; algo rasgou o ar velozmente, atingindo a criatura.
O servo se desfez e desapareceu.
Diana virou a cabeça, procurando pela origem do ataque. Um homem
alto e de cabelos claros segurava uma arma, e seus olhos azuis eram tão
ferozes quanto os relâmpagos que estalavam no céu. Levou apenas alguns
segundos para Diana reconhecê-lo.
— Eu posso saber que confusão é essa no portão da minha casa?
Luthor olhou por cima do ombro, acenando para ele. Água escorria dos
seus cabelos encharcados.
— Oi, Lúcio. Quanto tempo. Será que você poderia dar uma ajuda para
um velho amigo?
13
Obscuro
— Para dentro! — Lúcio ordenou; o raio que rasgou o céu clareou
suas íris. — Meu instinto de caçador me diz que aquela coisa que estava atrás
de vocês não está sozinha.
Entre todos os cenários possíveis para as horas que precediam seu
trigésimo aniversário, Diana jamais pensou que estaria sendo conduzida para
dentro da mansão de um dos maiores milionários da cidade. Ela ouvira
histórias sobre Lúcio Svetloba e sua esposa Helen através de Leon e Tris,
contudo, nunca imaginou que o casal estivesse familiarizado com o lado mais
sobrenatural e obscuro do mundo.
— O que era aquilo? — Lúcio perguntou, fechando a porta. — Ele se
desfez quando eu o atingi.
— Um servo. — Água escorria dos cabelos compridos de Luthor. —
Nem tente procurar no acervo da sua memória. Servos não existiam na
mitologia do extinto Santuário.
— E por que ele estava te perseguindo?
Luthor fez um gesto de cabeça na direção de Diana, que mantinha os
braços em volta dos ombros trêmulos de Duda.
— O servo estava atrás dela, por ordens da mestra que o controla. A
Vasilíssa do Rio das Almas.
“Vasilíssa”. Os trovões ecoaram nos ouvidos de Diana. “Rainha”.
— Lúcio, o que está acontecendo?
Diana olhou para o lado; uma mulher alta, de cabelos escuros e pele
negra, vestindo um robe de seda, entrou na sala. Sentiu os olhos dela sobre si
e sobre a sobrinha, e acompanhou a alteração que tomou seu semblante ao
pousar o olhar em Luthor.
— Você.
Luthor esboçou um sorriso que Diana achou perigoso.
— Ainda guarda ressentimentos de mim, Helen?
— Eu não me esqueci daquela história na Ilha do Mel.
— Ora, vocês queriam o artifício místico. Eu abri o selo e permiti que
vocês fizessem a travessia pelo portal. Pelas leis do equilíbrio, eu não podia
falar sobre a criatura que estaria protegendo o artifício.
Helen franziu os lábios, desgostosa, apoiando as mãos na cintura.
Diana começou a achar que talvez tivesse sido uma péssima ideia ir até ali.
Segurou os braços gelados de Duda, arfando baixo ao ver que as marcas
haviam aumentado.
Um silêncio obtuso reinou casarão, acompanhado do ritmo da chuva do
lado de fora.
— Por que quer minha ajuda, Luthor? — Lúcio indagou.
— Porque você é você. — Luthor fez um gesto com a mão, medindo
Lúcio de cima a baixo. — Pode garantir a proteção dela até a meia-noite, não
pode? Os servos não são nosso único problema. Há Maximus também.
Lúcio arqueou as sobrancelhas.
— Vou querer saber quem é Maximus?
— Saiba apenas que ele é meu mais antigo inimigo.
O ar entrava e saía rápido dos pulmões de Diana. Ela girou nos
calcanhares, tentando se acalmar. Amplas janelas ladeavam a sala, brindando-
a com a visão de um céu obscuro e tempestuoso; uma chuva pesada que
despencava e lavava todos os vidros de aspecto cristalino.
— E depois da meia-noite? — Diana se voltou para Luthor; sombras
criavam desenhos no rosto marcante dele. — Assim que eu fizer trinta anos, o
que vai acontecer?
— Poderei abrir o selo, e o que há em seu sangue apontará o caminho
correto. Iremos atrás da harpa, quando e onde quer que ela esteja.
— “Quando e onde”?
— Eu selei a harpa, mas não faço ideia do local ou da época. Somente
uma Incantevole pode apontar a direção correta.
— E por que você quer tanto recuperar essa harpa?
— Porque é meu dever sagrado. Porque fiz uma promessa.
Diana o encarou sem muita boa vontade, mas não deixou de notar a
dança de uma sombra estranha no olhar de Luthor. Ela o conhecia há
pouquíssimo tempo, mas tinha certeza de que ele escondia muitas coisas. Era
uma mistura do seu instinto de delegada com algo ainda mais profundo, que
não sabia nomear.
— E por que eu iria atrás da harpa com você?
— Porque você escutou a ameaça que Letyne fez no sonho.
“Eu vou devorar tudo que você ama”.
Um arrepio regelado beijou a nuca dela; um nome cirandou por sua
mente. Diego. Diego. Diego. Ela amava o nome que seus pais haviam
escolhido para seu irmão gêmeo.
Duda ofegou e gemeu, apoiando os braços no sofá.
— Ela está só com um roupão molhado? Deve estar congelando! —
Helen olhou para a adolescente, o semblante fechado se metamorfoseando
por completo. — Acho que as roupas da Lavínia servem para ela.
— Não consigo respirar! — Duda tossiu, comprimindo a garganta, o
corpo deslizando para o chão.
— Duda!
Diana correu até a sobrinha, amparando-a nos braços. As veias escuras
cresciam sobre a pele dela, tomando o pescoço e o rosto.
— É a mesma coisa que está acontecendo com Heloísa! O que é isso?
Como faço para reverter?!
— Nós precisamos... — Mas Luthor se calou subitamente.
Relâmpagos iluminaram a sala.
Diana podia escutar as próprias batidas do coração, captar o resvalar da
respiração afiada dele.
Engoliu em seco; ele havia abaixado a cabeça, os cabelos molhados
caindo em frente aos olhos. Apertando a sobrinha, Diana olhou para Lúcio e
Helen, esperando que eles soubessem o que estava acontecendo. Nenhum dos
dois parecia ter a resposta.
Luthor abriu os dedos, e a espada caiu de sua mão, tilintando.
Diana entreabriu os lábios; era como se todo o ar da sala houvesse
resfriado subitamente.
— Hã... Luthor...?
Ele ergueu a cabeça sem pressa; seus olhos, antes escuros e intensos,
haviam adquirido uma coloração opalina, que a fez pensar em um predador
pronto para atacar e dilacerar.
Outro trovão explodiu.
— E apenas a essência de uma alma jovem alimentará a imortalidade
da carne.
E então, ele pulou para cima de Diana e Duda.
14
Alimento imortal
Aquilo aconteceu em um piscar de olhos.
Quando Luthor avançou, Diana ergueu os braços para contra-atacar; ele
desviou, e ela percebeu tarde demais que o alvo era sua sobrinha.
Ignorando as dores do corpo e desejando estar em posse de sua arma,
ela se jogou contra ele, bloqueando o ataque, e os dois rolaram pelo chão da
sala, Luthor por cima de Diana, imobilizando-a.
— Me solte! — ordenou. — O que está fazendo?!
Luthor baixou a cabeça, o hálito quente roçando pelo rosto dela.
— Alimento imortal para a alma imortal.
Atônita, Diana olhou para dentro dos olhos dele; não havia vida ali,
apenas uma névoa escarlate, uma ausência petrificada.
Em um espasmo de segundo, Lúcio golpeou Luthor, atirando-o para
longe de Diana e Duda. O homem urrou de dor quando sua cabeça se chocou
contra o pé da mesa. Helen correu até elas.
— Vocês estão bem?!
Diana assentiu para Helen e se arrastou até a sobrinha, esparramada no
chão. As veias negras tomavam quase toda a pele dela.
Como Heloísa. Ela está inconsciente como minha irmã Heloísa.
— Acorde, Duda! Acorde!
A luzes dos relâmpagos piscavam freneticamente sobre todos.
Luthor urrou, como se estivesse se preparando para outro ataque. Diana
virou o rosto, vendo Lúcio atacá-lo mais uma vez. As batidas de seu coração
se aceleravam. Observou Lúcio estender o braço, apoiando a mão na testa de
Luthor. A manga da jaqueta dele escorregou, deixando à mostra a marca de
um triângulo — um delta — tatuado em seu pulso.
Lúcio se concentrou, fechando os olhos. Luthor se agitava ainda mais,
porém agora parecia estar preso ao chão. Diana arregalou os olhos quando
riscos brilhantes percorreram o contorno do delta, e um feixe de luz saiu da
mão dele.
Luthor arfou, se rebateu, grunhiu, até que finalmente foi rendido. Seu
corpo relaxou, e ele escorregou pelo chão, desfalecido.
Diana soltou o ar que não percebeu que prendia. Deixou Duda sob os
cuidados e vigilância de Helen, e caminhou devagar até eles. A chuva
incessante embalava seus passos.
Luthor moveu a cabeça, os olhos se abrindo aos poucos, focando no
rosto dela. Os lábios dele se moveram de forma quase imperceptível.
— Isabelle...?
Diana piscou; quem era Isabelle?
— Sou eu. Diana.
Ele puxou o ar e começou a se sentar no chão. Cada um dos seus
passos era vigiado pelos olhos atentos de Lúcio. O rosto havia voltado ao
normal e o ar predatório desaparecera.
Um véu de silêncio caiu sobre todos.
— Você não veio até aqui para que eu protegesse essas garotas dos
servos — Lúcio finalmente quebrou o silêncio. — Veio até aqui porque sabia
que eu também poderia protegê-las de você, caso algo desse errado. O que
você é, Luthor? Isso é obra do extinto Santuário?
Ele negou com um movimento de cabeça.
— É parte da maldição da minha imortalidade.
Diana engoliu em seco, a mente correndo para os corpos murchos e
acinzentados que havia encontrado nos últimos dias.
Será possível que...?!
Trovões ecoaram do lado de fora.
Luthor buscou pelos olhos dela.
— Sinto muito. Não é algo que consigo controlar. Tento sempre lutar
contra este instinto, mas ele me domina e toma toda minha consciência, até
que... Esteja feito. É o que mantém esta imortalidade que odeio.
“É o sentimento mais forte, que mais vibra no ar”, ela se recordou das
palavras de Tris. “O assassino sofreu enquanto matava sua vítima”.
As peças ganhavam forma em sua cabeça.
— Você matou aqueles adolescentes, mas contra sua vontade.
— Não há uma única vez em que eu não me arrependa de cada morte.
— A voz dele era um sussurro arranhado, derrotado. — Não há um único dia
em que eu não lute para quebrar essa maldição.
— Foi você quem contatou Tamires e nos atraiu até a boate, certo?
— Eu queria te ver pessoalmente, livre das paredes dos sonhos. Queria
ter certeza de que você era a descendente do Incantevole, aquela que poderia
me levar até a harpa e talvez acabar com tudo isso.
O coração de Diana batia nos ouvidos. Ela se recordou do corpo
encontrado pela manhã, e do que Tris dissera — que, daquela vez, o
assassino não tinha sofrido. Tinha gostado. Juntou mais algumas peças.
— Este tal Maximus que veio atrás de mim e que é imortal como você
também sofre da mesma maldição?
— Sim. — Os olhos de Luthor eram sombrios. — Mas, diferente de
mim, ele gosta de sugar a vida e de manter a imortalidade.
Diana fez uma nota mental para elogiar Tris na próxima vez em que a
visse. Os dons sensitivos da psicóloga nunca falhavam.
Ela lançou um olhar para Lúcio e Helen; o casal estava à espreita,
pronto para bloquear qualquer ataque caso Luthor se descontrolasse.
— Se você contatou Tamires, sabe sobre meu irmão gêmeo. O nome
dele era Diego. — Diana continuou, a voz abafada pela chuva. — Você me
disse que o sangue Incantevole se manifesta no décimo terceiro e no
trigésimo aniversário. Ele foi capturado e morreu quando tínhamos treze
anos. A polícia o encontrou com o corpo cheio de tatuagens de rosas negras.
Nunca localizamos o assassino. Isso tem algo a ver... Com a harpa?
Com um movimento que pareceu câmera lenta aos olhos de Diana,
Luthor desabotoou os botões da camisa que usava, revelando o peito despido.
Um raio cortou o céu do lado de fora, iluminando a rosa negra marcada na
pele dele.
— A rosa negra é o símbolo de Letyne.
— Ela matou meu irmão. — Não foi uma pergunta.
— Maximus e os servos o capturaram. Letyne achou que ele era o
descendente Incantevole. Também achei — Luthor confessou. — Nunca
houve uma mulher com sangue Incantevole manifestado antes. Maximus
chegou primeiro e o levou. Não detectou sua presença. Quando cheguei, já
era tarde demais. Seu pai estava morto. Senti sua presença, você estava
trancada no banheiro. Mas achei melhor não me revelar para você, que ainda
era praticamente uma criança. Chamei a polícia antes de partir.
A garganta dela se fechou; de repente, parecia impossível respirar.
— Letyne provavelmente o matou quando percebeu que ele não era o
descendente que ela procurava. — Luthor continuou. — O décimo terceiro
aniversário passou. E ela esperou dezessete anos para tentar de novo. E eu
também. O que está acontecendo com sua irmã e sua sobrinha é obra da
Vasilíssa do Rio das Almas. Ela vai te pressionar até conseguir a harpa.
Diana enterrou os dedos nos cabelos; aquilo era demais para processar,
para entender, e tudo o que ela enxergava era o escarlate do sangue do seu
pai, o desespero pelo desaparecimento do irmão. Tantos anos procurando,
investigando... Como poderia imaginar que as circunstâncias da morte de
Diego eram tão sombrias?
O ponteiro do relógio se moveu.
A primeira badalada soou, vibrando pelo ar.
— Meia-noite, Diana. Feliz aniversário.
— E agora?
— Agora a escolha é sua. O sangue Incantevole que existe em você
tem a chance de apontar o paradeiro da harpa. Só se você quiser. — Outra
badalada. — Mas se não pegarmos a harpa primeiro, Letyne não vai parar.
Um gosto amargo encheu a boca dela.
— É a única chance que tenho de reverter o que está acontecendo com
Duda e Heloísa, não é? E de vingar o que foi feito com meu pai e com Diego
há dezessete anos.
Luthor assentiu.
Outra badalada.
“Diana”, a voz de Diego crepitou dentro dela, familiar a distante. “Já
é tarde demais para mim, mas confio em você. Você precisa acordar. Nunca
se esqueça. As portas do destino são uma só”.
Ela olhou para a sobrinha, ainda inconsciente, com a cabeça repousada
no colo de Helen.
— Não posso deixar Duda assim.
— Nós a levaremos para o hospital — Helen falou. — Cuidaremos
dela e da sua irmã. Não permitiremos que mal algum se aproxime.
— E avisaremos Leon — Lúcio complementou. — Ele entenderá.
Diana puxou o ar; não conhecia Helen e Lúcio, mas a veemência
daquelas palavras a fez acreditar cegamente na promessa.
Mais uma badalada.
Diana se virou para Luthor, os olhos faiscando.
— Faça. Me mostre como ir até a harpa. Aquela vadia e seus servos
vão se arrepender por terem mexido com a minha família.
Apesar da boca de Luthor permanecer uma linha rija, ela captou o
sorriso de aprovação que lampejou no olhar dele.
— É assim que se fala, esquentadinha.
— Se encontrarmos a harpa, sua maldição será quebrada?
— Não sei. Mas, pelo menos, minha dívida estará paga e meus pecados
terão sido lavados.
Outra badalada.
— Dívida? Pecados? Como assim?
— Haverá muito tempo para conversarmos, esquentadinha. Não
podemos perder o tempo das badaladas. Vamos lá para fora. — Ele se virou
para Lúcio. — Muito obrigado por me conter. Novamente, tenho uma dívida
com você. Sinta-se à vontade para cobrá-la.
— Apenas fique longe de problemas. E não morra.
— Não prometo o primeiro pedido, mas o segundo está garantido.
— Protegerei sua sobrinha e sua irmã — Helen reforçou, acariciando
os cabelos de Duda. — Tome cuidado.
Diana meneou a cabeça; a sensação era de que o coração arrebentaria o
peito. Queria ficar com Duda e Heloísa; contudo, se havia uma chance de
acabar com aquilo e salvá-las, mergulharia de cabeça, sem se importar com
os desafios que surgiriam ao longo do caminho.
— Muito obrigada.
Mais uma badalada reverberou pela sala.
Luthor guardou a espada na bainha presa às costas e abriu a porta. O
vento bufou em redemoinhos. Ele e Diana caminharam para o jardim da casa.
A escuridão era um vértice denso, marcado pela chuva impiedosa.
— Precisarei de um pouco do seu sangue para abrir o selo.
Despindo-se de qualquer temor, Diana estendeu a mão para ele.
Por Heloísa. Por Duda. Por Diego. Por meu pai.
Luthor puxou uma pequena adaga que Diana nem sabia que ele
carregava; ela mordeu os lábios quando a lâmina cortou a palma de sua mão.
A mão de Luthor cobriu a sua, lançando um calor incandescente pela pele e
pelo sangue que a atordoou.
Um raio rasgou o céu.
Ele libertou a mão dela e se virou sob a tempestade, erguendo as duas
mãos em frente ao corpo. Murmurou palavras em uma língua que Diana não
reconheceu; o que a fez pensar que aquele era um idioma muito, muito
antigo. Tão antigo quanto ele.
O ar e o espaço se rasgaram em dois, abrindo uma fenda diante deles,
um arco de rosas negras envolto por ondulações vibrantes, como chamas de
velas na noite, dançando em ondas escuras.
— Encontrei! — Luthor bradou. — Há um sinal da harpa aqui!
Os cabelos de Diana ricocheteavam em volta do rosto.
— Sabe para onde iremos?
— Viena. Século dezenove.
Viena. Século dezenove. Céus. Isso está mesmo acontecendo.
Ela teria se desesperado se não estivesse ainda mais assustada com a
ideia de perder Heloísa e Duda; se não estivesse tomada pela vontade de
vingar a morte de Diego e do pai.
— Temos que fazer a travessia a qualquer momento. — Luthor avisou;
a luz e a chuva sombreavam o rosto dele. — Preparada?
Encarou o portal.
Talvez as portas do destino fossem uma só. Talvez toda sua vida
tivesse se moldado para chegar até aquele momento. Ela nunca saberia. Só
sabia que lutaria até o fim para proteger sua família.
— Preparada.
E, juntos, avançaram para dentro do portal.
◆◆◆

Maximus se movia com agilidade, espreitando os movimentos,


caçando pela maldita mulher que atirara nele.
Faria a Incantevole pagar.
Seu passo seguinte foi refreado por um bufar no ar, pelo fogo negro
que crepitou no asfalto, e que a chuva não apagava.
Um portal se abriu diante dele.
Maximus sorriu embaixo da tempestade. Sua Vasilíssa tinha
conseguido. Tinha capturado a energia vibrante da Incantevole antes que ela
se dissipasse por completo e segurando os instantes finais do portal. Não era
como eles tinham planejado, mas aquele agora era o único caminho.
— Não vou falhar — ele prometeu, sabendo que Letyne podia ouvi-lo.
— E quando eu lhe der a harpa, você dará a alma dela para mim.
Isabelle.
O assovio no vento foi a resposta que esperava.
Ele se jogou contra a fenda, preparado para encontrar a harpa para sua
Vasilíssa e destruir um velho oponente.
PARTE II
Roda da Fortuna
É um caminho sem volta; mas há quem acredite em um
caminho que leva e traz
15
Caminhos
Florença, Itália
Ano de 1492

O brasão da flor-de-lis, o símbolo da cidade de Florença, balançava


na bandeira hasteada sobre a torre do palacete.
Nos últimos anos, desde que chegara à cidade governada pela
oligarquia mercante e arranjara um lugar entre os místicos Incantevoles,
Luthor observara que os contatos cada vez mais frequentes com leituras da
antiguidade grega e romana haviam incitado um novo espírito de
pensamento. O homem era agora considerado o centro do mundo, ávido por
conhecimento racional e por afirmar seu domínio sobre o meio natural e a
história. A cultura literária, as ciências, as artes e as atividades humanas
frequentemente eram colocadas em primeiro plano.
Ele gostava de assistir aqueles fenômenos. A vida era curta. O
Santuário que o criara ainda o perseguia. A morte poderia encontrá-lo assim
que virasse à esquina. Então, procurava viver a vida ao máximo, cada dia
como se fosse o último.
Apesar do que passara no Santuário e dos treinamentos cruéis, ele era
alguém que amava a vida e a expectativa que desabrochava a cada nascer do
sol.
Com os Incantevoles, homens que usavam o encantamento da música
para magia, Luthor aprendia um pouco mais sobre seus dons de selagem a
cada dia. Podia proteger objetos místicos de mãos perigosas. Conseguia
criar espécies de escudos protetores também. Se continuasse evoluindo, logo
seria designado para ser um dos principais guardiões da harpa — o
instrumento mais sagrado dos Incantevoles.
Luthor não fazia ideia de qual era o poder do objeto, mas sabia que
forças obscuras deslizavam pelas lacunas, tentando tomar a harpa para si.
Queria se tornar um guardião da harpa e fazer os votos. Quando a
cerimônia estivesse cumprida, ele poderia verdadeiramente dizer que havia
encontrado um lar, algo que jamais tivera, pois fora levado para o Santuário
quando ainda era uma criança. Jamais conhecera sua família.
A boca se amargou; às vezes, tinha a sensação de que o vazio e o não-
pertencimento seriam sua sina constante.
Ao atravessar a viela, um movimento chamou sua atenção. Luthor
recuou, mudando o rumo do caminho, detectando uma garota sentada no
chão, embrulhada em uma capa de veludo. Pelo jeito, deveria ser de família
rica. O que estaria fazendo ali?
— Está tudo bem, senhorita? — perguntou em italiano.
Ela fez um movimento de cabeça, um sinal de que queria ficar sozinha.
Luthor não se deu por vencido. Agachou-se em frente a ela,
examinando-a. Franziu a testa. Ela estava com um olho roxo e com o lábio
partido.
O coração acelerou de uma forma desproporcional.
— Quem fez isso com você?
A garota não respondeu; e apertou ainda mais a capa em volta do
corpo. Algo cintilou na mão dela. Luthor enxergou um anel de noivado em
seu dedo.
— Foi seu noivo? Você está fugindo dele?
— Por favor — ela sussurrou, a voz arranhada de medo e cansaço. —
Não me leve de volta para ele.
— Não farei isso. Pode confiar em mim. — E estendeu a mão,
oferecendo ajuda para ela se levantar. — Meu nome é Luthor. E o seu?
Receosa, a garota segurou sua mão.
— Isabelle. Pode me chamar de Isabelle.
16
Um outro tempo
Um homem que não podia morrer e que já perdera tudo o que mais
lhe fora importante tinha pouco a temer. Um imortal com sede de vingança
não recuaria diante do riso pernicioso da Vasilíssa do Rio das Almas. Um
guerreiro, solitário por natureza e transformado em um monstro, reconhecia
quando um voto de confiança cego era lhe dado.
Luthor sempre soubera que, quando chegasse a hora de reparar os erros
do passado, teria que abandonar a solidão e se alinhar com o descendente do
seu mestre Incantevole. Por séculos, aguardara um homem guerreiro como
ele. E nem mesmo a imortalidade o preparou para se unir a uma mulher que
se equiparava aos soldados com quem lutara em guerras antigas.
E, em meio ao redemoinho do portal, ao brilho das chamas
incandescentes e a uma velocidade de tirar o fôlego, Luthor sentiu Diana em
toda sua intensidade. Leal, corajosa e impetuosa como o fogo.
Uma mulher que sabia sobre o monstro que habitava nele, mas que, por
amor à família, mergulhara ao seu lado naquela jornada obscura.
O solavanco veio, e logo Luthor sentiu a firmeza do solo contra os pés.
Ao seu lado, Diana ofegou. Achou que ela se desequilibraria por conta da
brutalidade da travessia, mas a mulher se manteve firme ao seu lado.
Luthor inspirou o ar frio, as cores nevoadas da noite, o gosto de um
tempo passado em sépia e sonhos.
E contemplou a velha Viena do século XIX.
◆◆◆

Isto não é um sonho, Diana pensou, observando a fina camada de neve


que formava um tapete branco em toda a extensão da rua. Estou mesmo aqui.
Em Viena, na Áustria. Em outro século.
O deslumbramento e o choque da viagem foram bruscamente cortados
com a súbita onda fria que se instalou por todo o seu corpo; as roupas
encharcadas grudavam-se na pele, e a água da tempestade de Curitiba ainda
escorria por entre os longos e claros fios do cabelo.
— Caramba! — Ela estremeceu, cruzando os braços. Percebeu que os
dentes tiritavam. — Um curitibano acha que está acostumado à baixas
temperaturas, até chegar em um lugar gelado como esse.
Luthor se virou para ela; as sombras da noite, em um jogo com as luzes
pitorescas dos lampiões a querosene, contornavam o rosto dele.
— Precisamos achar um lugar para ficar. E roupas secas para você. —
Ele segurou a mão dela, puxando-a pela rua. A quentura dos dedos dele fez
Diana estremecer. — Para nós, na verdade. Roupas que nos misturem às
pessoas deste século.
— Ei, como você está quente?!
Ele abriu um sorriso provocativo.
— Estou sempre quente.
Diana teria arrancado alguns daqueles dentes se não estivesse com a
sensação de que os ossos trincariam a qualquer momento.
Cogitou perguntar qual plano ele tinha em mente, para onde iriam,
como começariam a busca pela harpa e como chutariam o traseiro da tal
rainha do Rio das Almas, mas o vento congelante roubava seu bom humor e
sua disposição para conversar.
Observou Luthor apanhar um jornal abandonado em um banco,
folheando-o com pressa.
— O que está procurando? — ela se obrigou a indagar.
— O ano exato do século em que estamos. — Ele arqueou as
sobrancelhas. — Achei. Maravilha. Já sei para onde podemos ir. Tem alguém
que pode nos dar abrigo aqui.
— Você já esteve em Viena, neste século, neste ano?
— Já vaguei por muitos lugares. E conheci muita gente, pessoas que
ajudei e que me devem favores. Vamos.
Diana fez uma nota mental para explorar melhor aquilo, mas só depois
que estivesse aquecida e alimentada. Seu coração apertou ao se lembrar do
estado da sobrinha e da irmã; tinha que resolver logo aquilo. Perdê-las não
era uma opção.
— O que aconteceu na casa de Lúcio... Você... O ataque... — ela
começou, a voz arranhada. — Pode acontecer de novo?
A respiração de Luthor adensou.
— Não tão cedo. Se acontecer, por favor, me pare como puder.
Ela entendeu as entrelinhas daquele pedido, e assentiu.
Após uma breve e gelada caminhada, encontraram um cocheiro, uma
carruagem e um cavalo. Diana guardou dentro de si a imagem de um conto de
fadas. Luthor pediu que ela o esperasse ali, enquanto barganhava com o
homem e descobria o endereço de seu velho conhecido.
Luthor se aproximou do cocheiro, cumprimentou-o em alemão,
acariciou o cavalo, e entrou em uma conversa rápida com o homem,
mostrando as pedras preciosas da adaga que levava consigo. Diana arqueou
as sobrancelhas, se esforçando para disfarçar a admiração.
Ora, é claro que ele fala alemão. Ele deve conhecer inúmeras línguas,
pelo tempo que já viveu.
Com a adaga sendo usada como pagamento, eles subiram na
carruagem, Diana deixou a curiosidade falar mais alto:
— O que o cocheiro te disse? O último comentário?
— Nossas roupas. Perguntou se é alguma moda nova de Paris.
Paris. Desde garotinha, ela sempre sonhara em conhecer Paris. Mas
acho que prefiro visitar a Paris do século XXI, com tecnologia e conforto.
O pensamento a fez engolir em seco discretamente; como seriam os
próximos dias naquela cidade, onde o estilo de vida, os hábitos, os aparatos e
a cultura eram diferentes de tudo o que ela conhecia?
Foque em recuperar a tal harpa. Salvar Duda e Heloísa. Vingar
Diego.
Com os objetivos marcados a fogo no âmago, uma mulher como ela
poderia lidar com o resto.
— Para onde estamos indo?
— Para a casa do doutor Arnold Müller, um velho camarada. A nossa
sorte é que ele é uma figura excêntrica e muito conhecida neste tempo de
Viena. O cocheiro sabe onde ele mora.
Arnold Müller.
Diana guardou aquele nome em seu arquivo mental. Poderia ser uma
chave, uma segurança, uma pista. Depois disso, precisaria de um mapa.
Queria anotar todos os pontos investigados e vasculhados, traçar uma meta
para encontrar a harpa dos Incantevoles o mais rápido possível. Ergueu o
queixo, captando o olhar curioso de Luthor.
— O que foi?
— Estou apenas observando uma delegada em ação.
— Certo. — Ela não gostou da forma como as bochechas esquentaram.
— E que tipo de favor este doutor Müller te deve, que vai obrigá-lo a nos
receber tarde da noite em sua casa?
Luthor abriu um sorriso enigmático e não respondeu. Diana bufou e
tentou chutar a canela dele. O ataque foi evitado junto do solavanco da
carruagem, que quase a fez cair no colo de Luthor. Ele riu outra vez.
Uma batida na porta anunciou que estavam chegando ao destino.
Desceram da carruagem, e, com um suspiro maravilhado, Diana
contemplou a mansão de pedras, contando três andares, duas torres
arredondadas de cada lado e uma espécie de balaustrada central que oferecia
uma vista magnífica das montanhas.
— Você gosta de cultivar amigos ricos, hein?
Bateram na porta, um criado apareceu, e, em alemão, Luthor solicitou
pela presença do doutor Arnold Müller. Não demorou muito para que um
homem vestido em roupas de dormir aparecesse na soleira, com os olhos
arregalados — Diana quase ousaria dizer “horrorizados”.
Seja lá qual fosse a dívida que o doutor tinha com Luthor, não era um
assunto agradável.
Foram convidados para entrar, e Diana agradeceu às divindades pelo
calor do ambiente, os olhos atentos gravando cada detalhe.
Os dois homens conversaram por mais um tempo, até que Arnold fez
um aceno de cabeça e desapareceu pelo corredor.
— Para onde ele foi?
— Pedir para os criados arrumarem o quarto de hóspedes, esquentarem
a água para o banho e separarem roupas limpas.
Um pouco depois, uma criada os conduziu para um aposento grande e
decorado da forma clássica da época. Diana quase gritou de emoção ao ver
uma lareira acesa. Quando ficaram sozinhos, ela se voltou para Luthor.
— Calma aí... Nós vamos dividir um quarto?
— Falei para Arnold que você era minha noiva — ele respondeu
casualmente, tocando as tapeçarias da parede.
— Noiva?! — Diana quase engasgou.
— Veja, esquentadinha, estamos em outro século. Qual seria outro
motivo para uma mulher viajar ao lado de um homem? — A luz da lamparina
cintilava seu sorriso de canto. — Temos que proteger sua reputação.
Ela precisou se controlar para não atirar algo na cabeça dele.
Pela sua família, Diana. Para salvá-los, você topa qualquer coisa.
Já estava no meio de algo inacreditável. Precisava manter a sanidade.
Andou até a lareira. A calidez do fogo foi um bálsamo para os ossos.
Suspirou, e somente naquele instante percebeu o quão esgotada estava. Os
últimos dias haviam sido insanos e exaustivos.
— Não sei como farei com as investigações — ela murmurou. — Não
sei ler ou falar alemão, ou qualquer outra língua que usem aqui.
— Fique tranquila. Cuidarei de tudo.
Diana bufou, usando o calor da lareira para aquecer as mãos.
— Então, vou ter que te ter ao meu lado o tempo todo durante essa
“caça ao tesouro”, para ser meu tradutor pessoal?
— Isso te incomoda? Precisar de mim ou de qualquer outra pessoa?
— Fui criada para ser independente. — Ela mordeu o lábio,
observando as labaredas que dançavam e crepitavam. — Depois que meu
irmão morreu, as coisas ficaram difíceis em casa por um tempo, e tive que
aprender a me virar, a não depender da atenção dos outros. É o meu jeito.
A forma como Luthor a fitou fez algo revirar dentro dela. Limpando a
garganta, Diana se fechou no quarto de banho preparado pelos criados, tentou
não estranhar a situação, se lavou na água quente da banheira e vestiu as
roupas limpas; uma camisola rosa, de mangas compridas, que mais parecia
um vestido. Voltou para o quarto e se deparou com Luthor sentado no
parapeito da janela, a espada nas mãos.
— Ficarei vigiando esta noite. Não sabemos se os servos de Letyne nos
encontrarão aqui. É melhor prevenir.
Ela concordou e se deitou na cama, ajeitando as cobertas. Olhou-o
demoradamente, examinando as roupas ainda molhadas, os braços fortes
acentuados, os fios escuros colados na nuca e na bochecha.
— Você não sente frio? Ou sono?
— Só tenho uma palidez das sensações humanas. Frio, fome, sono. —
Luthor não a olhou enquanto falava, os olhos fixos no céu noturno, o maxilar
rijo. — Elas ficam um pouco mais fortes quando a maldição entra em ação e
eu ataco alguém. Fora deste contexto, quase não sinto nada.
Diana baixou um pouco olhar, fitando a própria mão se deslizar pelo
colchão, ao mesmo tempo em que uma agitação crescia aquietada embaixo da
sua pele.
— Vou te ajudar também — ela murmurou, tão baixo que não soube se
foi apenas um suspiro do pensamento. — Farei o que puder para reverter isso.
É uma promessa.
Não teve certeza se ele a ouviu.
Virando na cama, Diana fechou os olhos e adormeceu, mergulhando
em sonhos com fogo, rosas e uma mulher de beleza avassaladora e mortal.
17
Abrasador
Florença, Itália
Ano de 1492

Era um dia ensolarado, e o brilho da manhã pulsava pela relva


esverdeada.
Luthor caminhava por entre os pomares, observando os modos
delicados de Isabelle ao colher as frutas alaranjadas. As marcas dos
machucados haviam quase desaparecido por completo da pele dela.
Ao longe, a melodia dos seus mestres Incantevole podia ser ouvida; um
bálsamo para a alma e para o espírito.
Isabelle suspirou, deslumbrada, deixando a cesta de frutas no chão. Os
cabelos escuros esvoaçavam nas costas dela.
— Há algo de reconfortante neste som. Já estive em muitos salões e
teatros, mas nunca ouvi nada como isto. O que há de diferente neles?
— Eles conseguem produzir magia através da música.
— Mas a música em si já não é uma forma de magia?
Luthor sorriu para ela, o sol incidindo em seus olhos.
— De fato, você não está errada. Contudo, quando alguém de sangue
Incantevole toca um instrumento, há quem diga que o céu estremece e o
vento se cala. Que nações se curvam e que prisões seladas se abrem.
— Se eles possuem todo esse poder, por que ainda não são reis? —
Havia confusão e inocência nos olhos de Isabelle.
— Porque eles sabem que para todo poder há um preço. Conhecem a
lei do equilíbrio. E preferem proteger do que dominar. Há forças obscuras e
traiçoeiras que não hesitariam em tomar posse dos objetos místicos que eles
guardam neste local.
— E você não tem vontade de experimentar o poder destes objetos? Da
harpa?
— Eu também fui treinado para proteger e selar coisas que não devem
cair em mãos erradas. Jamais usaria a harpa ao meu favor. Sei que o preço
seria caro demais.
Os lábios de Isabelle se abriram em um sorriso gentil; ela ergueu a
mão, e o toque cálido dos seus dedos fez Luthor suspirar.
— Vivi muito tempo junto à nobreza. Mas você é um dos homens mais
nobres que já conheci, Luthor.
Ele se inclinou; quase podia sentir o gosto da boca dela.
— Tire suas mãos da minha noiva!
Luthor não conseguiu desviar quando o homem avançou sobre ele,
atingindo-o e o derrubando no chão.
— Vou matá-lo!
— Não! Não! — Isabelle gritou, chorosa, se colocando entre eles. —
Por favor, Maximus, não o machuque! A culpa é minha! Fui eu que fugi! Não
o machuque!
◆◆◆

Atualmente
Remexendo-se por entre as cobertas, Diana levou alguns instantes para
abrir os olhos.
Certo. Vamos lá. Você consegue.
Ergueu-se devagar na cama, os cabelos caindo pelos ombros e costas.
Assimilou o ambiente. Não estava no seu apartamento. Não mesmo. Era o
quarto com a decoração de Viena do século XIX.
— Caramba.
Ela não tinha sonhado. Havia mesmo viajado no tempo.
Imaginou o que Leon diria quando soubesse; o investigador tinha seus
próprios segredos, mas Diana duvidava que ele já tivesse passado por algo
como aquilo. Deixou um sorriso preguiçoso se erguer em sua boca. Na
competição silenciosa que faziam desde que se conheciam, tinha certeza de
que acabava de marcar muitos pontos.
Empurrou as cobertas para o lado e olhou em torno do aposento. O
fogo da lareira se reduzira às cinzas. Uma luz pálida se infiltrava pela janela.
Não havia sinais de que Luthor estava por perto.
Diana se levantou, foi até o quarto de banho, lavou o rosto e se livrou
da camisola gigante. Sua irmã iria rir se a visse vestida naquilo.
O pensamento em Heloísa lancetou seu peito.
Aguente, minha irmã. Vou fazer tudo o que puder para salvá-la.
Aguente.
Pela irmã e pela sobrinha, ela aceitou o desafio de usar um banheiro
nada moderno. Para vingar a morte do irmão e do pai, retornou com
dignidade para o quarto e encarou o vestido que teria que usar para se
misturar às pessoas da época; um vestido longo, azul, pesado, cheio de saias,
amarras e babados, com um chapéu da mesma cor para combinar.
Depois de três tentativas, não conseguiu se enfiar na roupa.
— Qual é o problema com calças, camiseta e botas? — resmungou,
batalhando contra o vestido. — Muito mais prático e confortável.
Diana julgou que havia feito muito barulho, tropeçando no chão e
batendo nos móveis, pois não demorou muito para que uma das criadas
entrasse no quarto para ajudá-la a se vestir. Mesmo sem falar o idioma, ela
recusou mortalmente o espartilho, o que causou estranhamento na criada.
Satisfeita ao ficar sozinha, Diana trançou os cabelos e se colocou diante
do grande espelho de bronze.
Nada mal.
— Uau. — Luthor entrou no quarto, assoviando. — Se eu não te
conhecesse, até poderia acreditar que você é uma verdadeira dama.
Ela controlou a vontade de mostrar o dedo do meio para ele. Com o
canto dos olhos, o observou; Luthor usava um terno que levava um colete,
golas que deixavam o colarinho alto e um chapéu elegante.
— Onde você estava? — perguntou, desviando o olhar para quebrar a
reação que a visão dele em roupas de época lhe causou.
— Que noiva controladora.
Diana revirou os olhos. Ele levou a mão até um dos bolsos da calça,
puxando um belo colar de esmeralda.
— Procurei um lugar isolado para abrir um selo que fiz há algumas
décadas — Luthor explicou, manuseando a joia. — Cumpri a lei do equilíbrio
e peguei este colar. É para você.
— Não sou do tipo que se seduz por joias.
Luthor abriu um sorriso de canto.
— Vai gostar desta peça, esquentadinha. É um colar babilônico. Quem
o usa consegue se comunicar e entender qualquer língua. Me custou favores e
sangue, mas o peguei de volta. Agora você poderá se virar super bem em
Viena, sem ficar dependendo dos meus serviços de tradutor para reunir pistas
sobre a harpa.
A guarda de Diana baixou; e ela se viu emudecida e surpresa.
— Eu... Isto...
Ninguém nunca fez algo assim por mim.
— Não precisa agradecer, esquentadinha. — Luthor deu uma piscada
para ela. — Vire-se.
Diana assentiu, ficando outra vez de frente para o espelho. Luthor se
aproximou, colocando o colar em seu pescoço, o roçar dos dedos e da
corrente arrepiando sua pele. Os olhos dele, que ela via através do espelho,
escureceram em uma cadência desconcertante.
— Pronto.
Diana se virou e ergueu o rosto, recebendo os olhos de Luthor nos seus,
a mão dele se afastando do calor de sua pele sem que o contato visual fosse
interrompido.
— Obrigada — ela disse, estranhamente desconcertada.
Esperou por uma piadinha, um riso torto, mas Luthor parecia tão
desconcertado quanto ela.
— Trouxe armas para você também. — Ele mostrou uma pequena
adaga e um revólver. — Carrega-as o tempo todo. Não sabemos o que nos
aguardará quando começarmos a busca pela harpa.
Diana anuiu e apanhou o revólver primeiro, prendendo-o no cinto do
vestido, usando uma das camadas dos babados para ocultá-lo. Era estranho
como Luthor parecia saber o que ela mais queria, mesmo que se conhecessem
há poucos dias. Odiava andar desarmada. Odiava depender da ajuda das
pessoas. E ele lhe dera duas armas e um colar mágico tradutor. Ela se viu
inundada por um sentimento obtuso que não era gratidão.
Afastando aquela turbulência da mente sempre racional, buscou um
lugar para a adaga. Prendê-la na coxa com uma cinta improvisada, embaixo
do vestido, seria uma boa forma de fazê-la passar despercebida. Teria que
driblar as camadas de tecido para sacá-la; e não havia nada que gostasse mais
do que um bom desafio.
Diana iniciou outra batalha com as saias; sabia que a luta estava
perdida depois de várias tentativas falhas. Sem dizer nada, Luthor estendeu a
mão, pedindo a adaga de volta. Exalando forte, ela a entregou para ele.
— Sente-se.
Em um movimento lento, Diana se sentou na beirada da cama. O fogo
da lareira estava apagado, mas o ar gravitava abrasador e enérgico. Ele se
abaixou diante dela, erguendo a saia do vestido em um ritmo mais vagaroso
ainda, deixando parte de sua coxa exposta.
Diana travou a respiração ao sentir o toque dele em sua pele outra vez,
calmo, meticuloso; quando percebeu, a adaga já estava presa à perna.
— Hã... Obrigada de novo.
Luthor, ainda com a mão pairando sobre sua coxa, ergueu a cabeça, e
ela contemplou o fascínio místico criptografado que ardia no escuro dos seus
olhos. Um pequeno movimento foi o bastante para deixar o rosto dele a um
palmo de distância do rosto dela.
Os dedos de Diana se fecharam sobre os lençóis; o frágil roçar de suas
peles pulsava uma ardência anormal, como se ambos houvessem sido
beijados pelo fogo e queimassem na mesma temperatura.
Ele se aproximou um pouco mais; os lábios entreabertos.
— Da próxima vez que eu levantar seu vestido — sussurrou —, não
será para te ajudar com a adaga.
O coração de Diana disparou, e ela não conseguiu dizer mais nada
enquanto Luthor se erguia e deixava o quarto.
◆◆◆
A aterrissagem brusca fez Maximus rosnar.
A travessia pelo portal e a viagem no tempo haviam demorado mais do
que imaginara; talvez porque a Vasilíssa do Rio das Almas tivesse usado
apenas uma centelha da energia da Incantevole.
Olhou em volta, reconhecendo as ruas e arquitetura.
Viena. Inspirou fundo, farejando o ar. Século XIX.
— Ei, esta é uma área particular — um guarda uniformizado o advertiu
em alemão. — O senhor não pode ficar aqui.
Com um movimento ágil, Maximus girou o mangual no ar; a corrente
cantou, e a esfera espinhenta acertou em cheio a cabeça do guarda.
O homem ainda respirava quando Maximus o agarrou pelo pescoço e
aproximou suas bocas, sugando toda a vitalidade da alma até que estivesse
segurando apenas uma casca murcha e cinzenta.
Soltou o corpo e não se importou em pisoteá-lo para atravessar a ponte,
o sangue rugindo em excitação; estava pronto para a caçada e para o acerto de
contas.
18
A descida do músico
— E como vamos iniciar a busca pela harpa? Por onde
começaremos? Para onde iremos? O que temos que fazer? — As perguntas
impacientes saíam da boca de Diana. Não conseguia achar uma posição
confortável no banco da carruagem. Maldito vestido.
— Estou pensando, esquentadinha. Tenha calma.
— Calma?! — Ela chiou, incrédula, esfregando a saia do vestido. —
Minha irmã e minha sobrinha estão morrendo. Você sabe quanto tempo elas
têm de vida? Você sabe quanto tempo levará para aquelas marcas consumi-
las por inteiro?
Luthor meneou a cabeça, as feições suavizando. Estava no banco em
frente a ela, as mãos repousando sobre as calças.
Diana inspirou e expirou fundo. Após o desjejum — era estranho
chamar o café da manhã de desjejum — o doutor Arnold Müller, sem fazer
uma pergunta sequer, havia lhes cedido uma carruagem, um cocheiro e um
cavalo, para que pudessem explorar Viena.
Ela ainda estava curiosa, imaginando que tipo de dívida o homem tinha
com Luthor.
— Não sei. Sinto muito. — Luthor suspirou. — Mas vamos encontrar.
Arnold tem muitos contatos na alta sociedade vienense. Ele tentará descobrir
se alguém viu ou ouviu falar algo sobre a harpa.
Diana bufou e tirou o chapéu. Aquilo fazia sua cabeça coçar demais.
— Mas e nós? Não quero ficar parada!
Ele a olhou demoradamente, como se estivesse sondando cada canto de
sua alma, e Diana precisou prender o ar para se manter impassível e racional;
ainda podia sentir o toque dele em sua pele, a calidez das palavras
sussurradas em seu ouvido, o arrepio por todo o corpo.
— Como tudo isso começou? — ela perguntou, buscando um motivo
para aplacar as imagens que invadiam sua mente. — Os Incantevoles? A
harpa? A vadia do Rio das Almas?
— Está disposta a ouvir uma longa história?
— Para saber como cheguei até aqui, preciso conhecer a origem dos
meus... Hã... Antepassados músicos e mágicos. — Céus, pensar naquilo, para
uma delegada do século XXI, era estranho demais.
— Quem me contou essa história foi o mestre Incantevole que me
acolheu, quando eu fugia do Santuário que queria me matar.
“Conta-se uma lenda muito antiga que havia um homem com
habilidade de encantar todas as coisas vivas, e até as pedras com sua música.
Seu nome era Orfeu. Ele possuía uma harpa forjada de ouro e sol. Quando
Orfeu a tocava, os pássaros paravam para escutá-lo, os animais selvagens
perdiam o medo e as árvores se curvavam para pegar os sons que o vento
trazia. Ele foi o primeiro Incantevole que andou sobre a terra, abençoado
pelas musas, e se tornou um protetor da magia da música. Era noivo de
Miríade, uma das mulheres mais lindas de seu povoado.
“Certo dia, enquanto Orfeu tocava, alguns aldeões relataram ouvir o
chão rugir e se abrir, e dele, uma mulher de beleza sombria emergiu.
Ninguém sabe como ela subiu para o mundo dos homens. “Aiónia nýchta”,
alguns gritaram apavorados nas velhas línguas. Noite eterna. A noite eterna
era a Vasilíssa do Rio das Almas e do Mundo dos Mortos, denominada
Letyne por um povo antigo e extinto. Ela andava pela primeira vez embaixo
da luz.
“Era primavera, e a relva esmeralda cobria todas as campinas da
região, e flores das mais diversas cores e espécies decoravam as paisagens.
Por onde Letyne passava, a vegetação escurecia e as plantas morriam. E
enquanto caminhava, trazendo a noite consigo, atraída pela música, Letyne se
deparou com uma jovem colhendo flores brancas. Era Miríade. Letyne
invejou sua beleza, e, desejando-a, matou a jovem, tomou sua alma para si e
regressou ao Submundo.
“Orfeu, atordoado com a dor da morte, decidiu desafiar a Vasilíssa do
Rio das Almas. Com sua harpa encantada, seguiu pela trilha do submundo,
encontrou a passagem para o Mundo dos Mortos e se embrenhou em uma
jornada para resgatar a alma de sua noiva. Lá embaixo, Letyne esperava por
ele. Admirada com a coragem do nosso músico, ela lhe ofereceu uma
proposta tentadora:
“— Você pode ter sua noiva de volta. Basta tocar a harpa até a saída
do Submundo. Ela te seguirá. Mas há uma condição. Você não pode olhar
para trás até sair daqui. Se olhar, a perderá para sempre”.
“Aceitando o desafio, Orfeu partiu pela trilha íngreme que levava para
fora do mundo inferior, tocando músicas de alegria e celebração, a fim de
guiar a sombra de Miríade de volta à vida. Não olhou para trás. Mas a
Vasilíssa do Rio das Almas era traiçoeira, conhecida por muitos como a mãe
das mentiras. Ninguém sabe exatamente o que despertou Orfeu. Alguns
dizem que foi o próprio encantamento da melodia da harpa. Perto da saída,
ele olhou para trás.
“Em choque, viu que quem o seguia era a própria Letyne, e não
Miríade. Ela lhe deu um sorriso perverso. Ele entendeu. A Vasilíssa estava
tentando escapar para sempre do Submundo e do dever de cuidar do Rio das
Almas. Somente a música de Orfeu a libertaria. Se ela fosse livre no mundo
dos homens, traria a noite eterna, engoliria a luz e reinaria nas sombras.
“Cego de ódio, Orfeu mudou a melodia da harpa, criando uma prisão
mágica para Letyne. Há quem diga que o grito dela ecoou por quatro dias e
quatro noites. A Vasilíssa jamais tornaria a ver a luz, condenada a viver para
sempre no Submundo, em volta das rosas negras. Ela o amaldiçoou e girou a
Roda da Fortuna. Disse que um dia colocaria as mãos na harpa e seria livre
de novo, e criaria um mundo para ser temida e adorada”.
Luthor suspirou e se silenciou. Parecia pensativo, imerso em um
mundo particular e fechado. Diana aguardou que ele continuasse a história.
— Orfeu encontrou outros vinte e nove Incantevoles abençoados pelas
musas, e formaram uma seita para proteger a harpa. Assim, o instrumento
passou por todas as gerações de Incantevoles ao longo dos séculos, até chegar
às mãos do meu mentor e de seus discípulos.
A carruagem sacolejava suavemente.
— Entendi a trama da harpa. Mas estou em dúvida... Qual é origem de
Letyne? Como ela surgiu?
— Você faz jus à carreira que escolheu. Imagino que deva estar
montando um quadro investigativo com fios e imagens na sua cabeça. —
Luthor lhe deu um sorriso preguiçoso. — Bom, há várias versões, mas todas
elas fazem alusão ao mesmo início. Tanto Letyne quanto as musas que
abençoaram a harpa e os Incantevoles são filhos do Tempo e da Terra.
Diana arqueou as sobrancelhas.
— Como Cronos e Gaia, na mitologia grega?
— Tempo e Terra. Cronos e Gaia. Kronós e Geia. Não importa a
nomenclatura. A ideia é a mesma. Pense neles como entidades além da
compreensão humana, e chame-os como quiser.
— Então, a Vasilíssa do Rio das Almas e os Incantevoles são
ramificações das mesmas raízes?
Luthor anuiu.
— Pode-se dizer que sim. Mas cada ramo destas raízes desabrochou
para um lado. As musas, e consequentemente os Incantevoles, cresceram para
cima, para a luz, enquanto a Vasilíssa teceu seu caminho para baixo, para a
escuridão.
Um estranho arrepio roçou a nuca de Diana, como se dedos invisíveis
estivessem muito próximos de sua pele, resvalando o ar frio.
— Isso seria a lei do equilíbrio?
— Você está pegando o espírito da história, esquentadinha.
Ramificações da mesma raiz. Diana tocou a cortina de veludo da
carruagem, o olhar se demorando para as trilhas que serpenteavam diante dos
bosques onde passavam. A Vasilíssa e os Incantevoles são ramificações da
mesma raiz, criados pelas entidades do Tempo e da Terra.
Era bom guardar aquela informação.
— Para finalizar este relato, vamos retornar para mim. — Luthor
limpou a garganta, capturando a atenção dela.
— Você disse que a harpa passou por todas as gerações de
Incantevoles, até chegar aos meus antepassados que te acolheram, certo? E o
que aconteceu quando você buscou refúgio entre eles?
— Ganhei a confiança deles, e, mesmo sem ter sangue Incantevole, por
ser um selador treinado pelo Santuário, também me tornei um protetor da
harpa. Mas acabei falhando na minha missão. Letyne quase pegou a harpa.
Eu a impedi no último instante, abri um selo e enviei a harpa por ele, mas não
fui rápido o bastante. Letyne me amaldiçoou com a imortalidade. O resto da
história eu já te contei. E é por isso que estamos aqui. Para consertar o
passado. Para impedir que Letyne tome a harpa e deixe o Mundo dos Mortos,
trazendo a escuridão e o silêncio para o Mundo dos Vivos.
Em um gesto impulsivo, Diana se inclinou e segurou as mãos de
Luthor com as suas. Ele a fitou, ligeiramente surpreso.
— Que se dane a Roda da Fortuna. Vamos encontrar essa harpa.
Vamos devolvê-la para seu lugar de origem e salvar minha família. E vamos
dar um jeito de acabar com sua maldição. Você me salvou, salvou Duda, é o
mínimo que posso fazer para te agradecer. E imagino que você tenha lutado
até o fim para proteger a harpa. Seu mestre Incantevole, meu antepassado que
te deu um lar, não gostaria de te ver sofrendo, não é mesmo?
Achou que suas palavras inspirariam algum conforto nele, mas, para
surpresa de Diana, o rosto de Luthor sombreou, recolhido a uma
profundidade que a fez prender a respiração.
— Você é mesmo uma Incantevole — ele murmurou. — Ao tocá-la,
sinto cada vibração em sua pele, cada melodia do sangue, como...
— Como se cada célula do meu corpo fosse feita de música — ela
murmurou de volta, complementando os pensamentos dele.
Não sabia por que, mas era como se todo o ar em volta deles houvesse
resfriado subitamente, enquanto as batidas do coração aceleravam.
O que você está escondendo de mim?
Abriu a boca para questioná-lo, mas Luthor se moveu primeiro, o
chapéu deslizando para o lado, e recolheu as mãos.
— Esse foi um dos motivos que usei para te atrair com sua amiga até a
boate, naquela noite. No meio de um ambiente musical, seu sangue
Incantevole estaria mais agitado. E eu comprovaria se você era mesmo a
descendente que meu antigo mestre previu que encontraria a harpa.
Diana entrelaçou os dedos, encostando as mãos nos lábios.
— É tão difícil acreditar que isso está mesmo acontecendo. Eu... Eu
sempre fui muito ligada à música. Meus pais pagaram várias aulas, para que
aprendesse a tocar tudo o que quisesse. Sempre gosto de ter um rádio ligado
por perto. É algo intrínseco.
Luthor buscou pelos olhos dela; havia ali, na escuridão de uma vida
imortal, tons de doçura e gentileza que aqueceram o peito de Diana.
— Gostaria de te ouvir tocando algo um dia. Acredito que a melodia
que você produz é única e especial.
— Nunca mais toquei depois que Diego morreu. — Ela levou o olhar
para a janela da carruagem, para as construções clássicas de Viena. — Piano,
flauta, violão. Cada nota me faria pensar nele. Na ausência dele. E eu sabia
que doeria demais.
O silêncio tomou o interior da carruagem; somente a batida ritmada dos
cascos dos cavalos poderia ser ouvida.
— Assim como Orfeu perdeu sua amada, você perdeu seu irmão de
útero, que também possuía sangue Incantevole. Sangue místico não
manifestado, mas que corria pelas veias dele, assim como corre pelas suas. —
Luthor finalmente falou, o dedo roçando pelo próprio peito, e ela se lembrou
da Rosa Negra cravada na pele dele. — Há perdas que nos marcam por toda a
eternidade.
— E você? — Diana o olhou por debaixo dos cílios longos. — Já teve
uma perda que o marcou?
— Um imortal já viu e perdeu muitas coisas.
Diana experimentou uma sensação estranha, um gosto acrimonioso que
salpicou por todo o seu paladar. Tinha algo errado ali. Seu instinto
investigativo soava como uma sirene ardida.
Ofegou e tocou a testa, sentindo gotículas de suor frio sobre a pele.
O que está acontecendo?
— Luthor...
Mas ele já havia agarrado seu braço e a puxado para fora da carruagem.
Ela quase tropeçou na barra do vestido.
— Ei! O que você...
— Letyne farejou nossa presença. Vamos. Precisamos nos camuflar,
apagar nossos rastros. Os servos dela podem aparecer a qualquer momento.
O céu estava carregado e cinzento, e neblina serpenteava por entre o
amanhecer endurecido, formando uma cortina de névoa em torno das
fachadas dos cafés vienenses.
— Por que todas aquelas pessoas estão aglomeradas ali, Luthor?
— Não sei, mas não é problema nosso.
— Tem alguma coisa errada! — Diana apontou na direção da ponte. —
Já testemunhei várias cenas de crimes para reconhecer uma.
Luthor a segurou.
— Você não tem nenhuma jurisdição aqui, esquentadinha.
Ela puxou o braço, segurou a barra do vestido e correu até o
aglomerado de pessoas. Ouvia Luthor praguejando enquanto a seguia. Parou
perto da ponte, e seus olhos treinandos caíram sobre o cadáver de aspecto
murcho e acinzentado. Diana ofegou baixo.
— Foi você? — sussurrou para Luthor.
— Não.
— Então isso significa...
— Maximus. — A voz dele era fria, um eco que arrepiou a pele de
Diana. — Ele também está aqui.
— Como?! E o que vamos fazer?! Ele não pode pegar a harpa!
— Tive uma ideia depois dessa nossa conversa. Venha comigo. — Ele
a puxou para longe da multidão. — Talvez haja uma forma de usarmos seus
dons Incantevole para rastrearmos a harpa. Mas temos que ser rápidos.
19
Memórias na melodia
Na escuridão, ela esperava pacientemente.
Apanhou algumas flores para enfeitar os cabelos. As rosas negras eram
suas companheiras há uma eternidade. Quando escapasse do cárcere e
emergisse para a luz, cobriria o mundo com suas pétalas.
Um lamurio deslizante vinha do Rio das Almas.
Em breve, aquele seria o único som que os homens escutariam.
◆◆◆

— Para onde estamos indo?


— Você não gosta de um mistério, não é, esquentadinha? Acho que foi
por isso que se tornou investigadora e delegada. Para encontrar uma resposta
para tudo.
Diana revirou os olhos, controlando a vontade de cotovelá-lo.
Caminhava ao lado de Luthor, o braço dela entrelaçado ao dele, como a
maior parte dos casais vienenses. A palavra “casal” subiu por sua pele,
esquentando as bochechas contra sua vontade. Ou talvez a proximidade e o
cheiro inebriante da colônia dele fossem as responsáveis por aquele feito.
Céus, preciso resolver logo isso e voltar para o meu mundo. Estou
muito afetada com tudo. Não sou assim. É apenas estresse acumulado.
Por algum motivo, a resposta racional não a convenceu.
Olhou por cima do ombro, ao seu redor, nos telhados das construções
barrocas; nenhum sinal dos servos de Letyne ou de Maximus até aquele
momento. Se algum deles aparecesse, estaria preparada; tanto com a adaga
quanto com o revólver.
Na rua de paralelepípedos, carruagens andavam lado a lado com
carrinhos de verdureiros ambulantes enquanto mulheres com xales
carregavam cestas repletas de flores, tentando vender os buquês para os
transeuntes. Nuvens cor de chumbo se moviam carregadas no céu, sorvendo
toda a luz natural do dia.
— Um ramo de Edelweiss para sua dama, senhor? — A mulher
apontou para as pequenas flores brancas na cesta. — É o talismã do amor.
Luthor deu algumas moedas para a florista, e com um sorriso e uma
piscada travessa, entregou a flor para Diana.
— Para minha bela noiva.
Aceitando o botão, Diana olhou de soslaio para Luthor; havia algo
estranhamente confortável em andar em silêncio ao lado dele. E ela não era
alguém que apreciava o silêncio. Mas com ele... Mordeu o lábio, agitando a
cabeça, desejando um leque para se abanar.
O que está acontecendo comigo? Magia do sangue Incantevole se
manifestando?
— Aqui — Luthor anunciou, apontando para um estabelecimento. —
Demorei, mas encontrei o que eu queria.
Diana arqueou as sobrancelhas para a vitrine.
— Uma loja de instrumentos musicais clássicos?
— Há pianos aqui. Você pode tocar um. Usar a condução da música e a
linhagem do seu sangue para tentar se conectar com a harpa.
A ideia era excelente, tinha que admitir; mesmo assim, causou uma
contrição em seu estômago. Não encostava em um piano desde a morte de
Diego. Inspirando fundo, visualizou o rosto de Heloísa e Duda.
O tempo era o inimigo mais perigoso. As vidas das pessoas que mais
amava não seriam perdidas por conta de um bloqueio da adolescência.
— Certo. Vamos lá.
Entraram na loja, solicitaram um piano para teste e foram conduzidos
para uma grande sala de estar; um lugar agradável em que as paredes, em vez
de serem feitas de pedras nuas, eram revestidas com papéis e tapeçarias. Fogo
ardia em uma ampla lareira, rodeada por poltronas confortáveis.
Diana parou diante do piano, roçando os dedos pelas teclas.
Lentamente, puxou o banquinho e se sentou, a saia do vestido se abrindo ao
seu redor. Deixou o botão de Edelweiss no colo, como se pudesse extrair da
flor a força que precisava para aquilo.
“Pétalas brancas para encobrir rosas negras”, ouviu o sussurro baixo.
— Disse alguma coisa? — perguntou para Luthor. Ele estava parado
diante da lareira, as chamas sombreando seu rosto.
— Não.
Agitando a cabeça, ela se voltou para o piano, as mãos pairando sobre a
harmonia das teclas.
Pensou em Diego, na irmã, na sobrinha, no pai. Visualizou a harpa, se
imaginou no lugar de Orfeu, descendo para o Submundo para resgatar a
amada, prendendo Letyne, e foi abraçada pelo calor da presença de Luthor.
Você pode fazer isso. Você consegue. É mais forte do que imagina.
As primeiras notas inundaram a sala.
Ela se viu correndo com Diego, sentiu o vento no rosto, as cartas de
tarô esvoaçando, a Roda da Fortuna em suas mãos. Já fazia tanto tempo...
Não deixou que a dor do luto a impedisse de continuar; ela se debruçou
sobre as teclas, tocando as peças da infância, da adolescência, as mais amadas
por Diego, uma melodia profunda que provocava uma completude perdida há
anos.
Então é assim. Sempre foi para ser assim.
Diana entreabriu os olhos por apenas alguns segundos, captando um
vislumbre do rosto de Luthor. Algo tremeluzia na densidade escura das íris
dele; eram lágrimas. Ele estava chorando?
A melodia se intensificou, e ela mergulhou nas notas, na cadência, no
âmago.
Ela se enxergou em um salão antigo, o mesmo que vira em seu sonho.
De alguma forma, sabia que estava em Florença. Luz brilhou pela abóboda
do teto. Protegida em uma cripta de cristal, a harpa reluzia.
A cena se dissolveu antes que Diana pudesse alcançá-la.
Agora se via no meio de pomares coloridos e carregados. Luthor estava
ali, ao lado de uma garota. “Isabelle”; aquele era o nome que saía da boca
dele. Não havia o fardo da imortalidade em seu olhar. Ele sorria de uma
forma que fez as bordas do coração de Diana aquecerem junto à música feita
por seus dedos. Ele era lindo, mais lindo do que qualquer outro homem que já
tinha conhecido.
Outra cena.
Escura, sombria, caótica. Isabelle morta. Assassinada. A dor de Luthor
a atingiu em cheio.
Por que o som do piano a guiava para o passado de Luthor em
Florença, e não para a localização da harpa em Viena?
Outra cena.
Sangue. Os Incantevoles mortos. A harpa roubada. Diana franziu o
cenho. A visão a levou para ruas estreitas e sombrias envoltas em névoa
espessa. Um passo, abafado na neblina. Uma passagem se abrindo. Luthor
com a harpa, descendo pela trilha ladeada de fogo negro.
A cena estilhaçou como vidro.
Ofegando, Diana cessou a música.
— Conseguiu uma pista da localização da harpa? — Havia expectativa
na voz embargada de Luthor.
Diana estreitou os lábios, ainda em choque.
— Você — sussurrou. — Você roubou a harpa dos Incantevoles.
◆◆◆

Na escuridão, ela esperava, penteando seus longos cabelos enfeitados


com rosas negras.
O coração dos homens era algo facilmente tentado. Orfeu, Luthor,
Maximus. Tantos outros. Até mesmo a descendente dos Incantevoles não
seria imune às tentações.
Sorrindo, ela olhou para a alma aprisionada em seu rio.
— A Roda da Fortuna vai girar. Sua hora de brilhar chegará.
E as correntes que a prendiam seriam finalmente quebradas. E os gritos
que a assombravam seriam finalmente calados.
Pois todos eles iriam pagar.
◆◆◆
Os pés de Diana batiam pesados sobre o gramado do parque.
— Diana, espere! — Luthor a seguia, acelerando o passo.
— Por que não me contou? Por que não me falou a verdade assim que
mergulhamos juntos nessa jornada?! Sabia que você estava escondendo algo
de mim! — Em uma das mãos, ela ainda segurava a flor que ele lhe dera. —
Você matou os Incantevoles que te acolheram. Você roubou a harpa e quase a
entregou para Letyne.
Luthor a segurou pelo braço, fazendo-a olhar para ele.
— Acha que é algo do qual me orgulho? Não é. É minha maior
vergonha, a sombra que mancha cada segundo da minha existência.
— Por que não me contou?
— Porque não queria que me olhasse assim. Carrego uma espada, mas
não sou o guerreiro de luz dessa história. Sou apenas o abismo que devorou
tudo o que era bom, uma casca assombrada pelos próprios crimes.
A sensação era de que fumaça quente sairia dos seus ouvidos a
qualquer momento. Diana precisou limpar a garganta para manter a voz dura.
— Eu tinha o direito de saber.
— Saber que, por causa da minha fraqueza, as garras de Letyne
atravessaram os séculos e mataram seu pai e seu irmão? Que, por causa da
minha mais antiga traição, sua irmã e sua sobrinha estão pagando o preço? —
Um misto de escárnio e angústia marcavam a voz dele. — Você já sabe o
monstro que sou por causa da minha maldição. Não precisava saber que,
além de traidor, eu sou a origem das tragédias que assolaram sua família.
As árvores densas farfalhavam no bosque fechado em volta deles.
— Foi por causa da garota que eu vi? Isabelle?
Um lampejo de dor atravessou o rosto dele.
— Ela morreu porque não fui capaz de protegê-la. A dor de perdê-la...
— Luthor ofegou, esfregando o rosto. — Perdi a razão. E cai na tentação de
Letyne. Traí aqueles que me deram um lar. Matei meus amigos, levei a harpa
para ela, na esperança de trazer Isabelle de volta à vida. Ela me pediu para
tocar a harpa. Mas eu não era um Incantevole. Furiosa, Letyne tentou tomar a
harpa de mim. Abri um selo e enviei o instrumento para longe. Não fui capaz
de fugir antes de ser amaldiçoado. E aqui estamos nós.
— E aqui estamos nós — Diana repetiu, a voz rígida. — Então, você
tentou me usar? Queria que eu pegasse a harpa para você trazer Isabelle de
volta à vida, e não para salvar minha irmã e minha sobrinha?
— Não! — ele rebateu, incrédulo. — Eu... Confesso que, por um
momento, quase cai na tentação desta ideia. Mas já aprendi minha lição. Só
quero arrumar essa merda que causei e colocar um fim em tudo.
— E como posso saber que está falando a verdade? Afinal, o que quer
de mim? Quer que eu quebre sua maldição com a harpa?
— Não há o que fazer quanto a isso. Minha maldição é inquebrável até
mesmo pelos meios Incantevoles. Letyne garantiu esse detalhe.
— Você disse que queria o fim da maldição! Mas... — O ar travou na
garganta dela, e Diana sentiu todos os ossos resfriarem. — Você...
Não havia um lampejo sequer de hesitação no semblante dele.
— Se a morte estiver a minha espera, eu a aceitarei de bom grado.
Ela tentou respirar, e percebeu que os lábios tremiam.
— Primeiro, você me esconde a verdade sobre esta história e todos os
riscos em jogo e, depois, me diz que vai morrer no fim de tudo?! — Diana
pestanejou; nunca havia sentido tanta fúria e tantos nós na garganta. — Não!
Não aceito isso! Eu não vou aceitar esse desfecho! Você não merece!
— Por que se importa comigo, Diana?! Não me trate como se eu fosse
um ser humano normal como as pessoas da sua família! Não passo de um
monstro pagando pelos meus erros do passado! — Ele vociferou, e a voz
ecoou pela entrada do bosque, o peito subindo e descendo velozmente
embaixo da roupa. — Você diz que não gosta que as pessoas se preocupem
com você. Também não quero a sua preocupação!
Os olhos de Diana aumentaram, trêmulos e marejados. A flor branca
parecia ter se transformado em espinho em seus dedos.
— Você é um tolo. E eu também. Não passo de uma tola. Não passo de
um flerte e de um meio para você pagar sua dívida.
— Diana...
— Pare de se chamar de monstro. Odeio isso.
E, furiosa, ela se virou, indo para longe dele.
20
Nas portas do destino
Leon entrou correndo no hospital, esperando por notícias do paradeiro
de Diana, por alguma esperança de que a irmã e a sobrinha dela tinham saído
daquele estado aterrorizante em que se encontravam. Tris andava rápido ao
seu lado, sem jamais soltar sua mão.
Os passos do investigador se reduziram ao reconhecer as duas pessoas
paradas diante do quarto onde Heloísa e Duda estavam internadas, o coração
se enchendo de preocupação e questionamentos.
— Lúcio? Helen? O que estão fazendo aqui? Onde está Diana?
— Ela atravessou um portal ontem à noite, com um conhecido nosso
— Lúcio respondeu, pragmático e objetivo como sempre. — Prometemos
que te avisaríamos e que cuidaríamos da família dela.
Leon piscou repetidas vezes; não sabia qual parte daquela explicação
direta deveria absorver primeiro.
— Ela vai ficar bem? — Tris perguntou, empurrando uma mecha ruiva
para trás da orelha.
Helen meneou a cabeça.
— Não sabemos. Mas ela precisou responder ao chamado do destino...
— a voz dela decaiu uma oitava, o olhar se demorando no marido, em Leon,
em Tris — ...Assim como todos nós já tivemos que fazer.
O quarteto foi inundado por um véu cúmplice e silencioso.
Com a mão sobre o coldre, Leon deu um passo à frente.
— O que podemos fazer para ajudar? Para tirar Heloísa e Duda desse
estado inconsciente?
— Só a delegada é capaz de fazer isso — Lúcio respondeu. — Mas
podemos evitar que as forças sombrias, chamadas de servos e que perseguem
Diana, cheguem ainda mais perto de sua família.
— Como?
Antes que Lúcio pudesse respondê-lo, um homem de olhos nevoentos
atravessou o corredor, correndo na direção deles. Um ataque rápido de Helen
neutralizou o servo, e ele se dissolveu diante dos olhos de Leon.
— Ficaremos montando guarda aqui até ela voltar.
Trocando um olhar com Tris, Leon se encostou contra a parede, os
braços cruzados e o semblante determinado.
— Então acho que teremos bastante tempo para colocar o papo em dia.
Tris e eu também não vamos sair daqui até Diana voltar.
◆◆◆

“Pare de se chamar de monstro. Odeio isso”.


As palavras sussurradas de Diana ricochetearam em volta dele.
Luthor grunhiu, esfregando o rosto; ela perguntara o que ele queria
dela, mas agora era ele que se perguntava: o que ela queria dele? De alguém
que vira a morte, a mudança e as sombras por séculos? De alguém que
esperara um destino e encontrara algo completamente diferente?
Irritado, ele se virou e adentrou no bosque, seguindo pela trilha do
perfume de Diana.
— Pode ficar brava comigo e gritar — ele elevou a voz assim que a
viu. — Mas não se enfie nesses lugares sozinha, tendo um alvo nas costas.
— Eu só queria ficar uns minutos sozinha.
— Não é hora de drama.
Diana arqueou as sobrancelhas, e sem que ele esperasse, tentou acertar
alguns socos leves em seu peito. Havia lágrimas pálidas nos olhos dela, uma
visão que atordoou e comprimiu o coração dele.
— Drama?! Foi você que escondeu as coisas de mim e disse que não se
importa em morrer no final, só porque se acha um monstro.
— Olhe para mim? — Os ombros dele caíram, cansados. Já estava
cansado há muito tempo. — Por que eu não seria um monstro?
O vento uivou, agitando a névoa e as árvores densas do bosque.
— Porque — Diana sussurrou, a voz falhando — nenhum monstro
passaria seis séculos lutando para redimir um erro causado por amor. Porque
nenhum monstro sofre quando tira a vida de alguém contra a própria vontade.
Maximus não sofre. Mas você sofre e luta contra isso sempre. Porque
nenhum monstro vai até o amigo e implora para ser contido. E porque
nenhum monstro se emocionaria com a melodia do piano.
O mundo se fechou e silenciou em volta de Luthor.
Jamais havia existido um momento como aquele em todos os anos de
sua imortalidade, apenas a própria vergonha e o fardo que carregava. Porque,
no momento em que voltara para seu mentor e amigo Incantevole, e escutara
a profecia do descendente Incantevole que recuperaria a harpa, Luthor
aguardara pelo instante em que conheceria o escolhido pelo destino e seria
julgado pela traição cometida.
Quando a Roda da Fortuna girou e ele encontrou Diana, e ela colocou
os olhos nele, sempre destemida e incansável, a conexão nasceu. No sonho,
na boate, a cada troca emudecida de olhares; algo que julgou ser causado pela
dívida que tinha com o sangue Incantevole, com o sangue dela.
Assim, Luthor aguardou por uma punição que não veio, caminhou em
direção àquelas portas, caminhou em direção a ela.
E encontrou, sentiu e experimentou um pedaço da humanidade que
achou que havia perdido para sempre.
— Diga alguma coisa! — Diana pestanejou, tentando desferir outros
socos leves em seus ombros.
E com o mundo voltando a se mover ao seu redor, Luthor segurou os
dois pulsos dela, puxou-a para si e a beijou.
◆◆◆

A sensação ardente da boca dele sobre a dela a desnorteou.


Diana teria se desequilibrado se Luthor não tivesse soltado seus pulsos
e enredado um braço em sua cintura, aproximando ainda mais seus corpos, de
modo que não houvesse um milímetro sequer de espaço entre eles.
Foi um choque enervante, atordoante; ela se ouviu murmurando baixo
o nome dele, fechando os olhos, queimando a racionalidade, rendida à
possessividade abrasadora do beijo.
Os dedos de Luthor se enrolaram em sua trança, desmanchando o
penteado, fazendo-a estremecer e enterrar as mãos nos cabelos dele, em uma
disputa feroz e igualmente possessiva. Sentiu-o grunhir satisfeito, e arfou ao
ter as costas prensadas contra o tronco de uma árvore.
A pele de Diana vibrava a cada toque dos beijos dele; ela não o soltou
nem mesmo quando o fôlego faltou, descendo os lábios pelo pescoço de
Luthor, mordiscando, provocando.
— Então é assim que você joga, esquentadinha? — ele rosnou baixo no
ouvido dela, arrepiando-a.
Diana tentou beijá-lo de novo, mas Luthor foi mais rápido; uma das
mãos dele agarrando seus cabelos, a outra puxando — rasgando — uma das
mangas do vestido, deixando parte da pele exposta ao vento frio. Ela ofegou
ao sentir os lábios dele percorrendo a trilha do ombro, da clavícula, do
pescoço, e achou que se dissolveria ali mesmo.
Minha nossa!
Ela não era nem um pouco inexperiente, mas aquela era uma
combustão de sensações completamente nova.
Com um arquejo, Luthor recuou milímetros, apenas para olhá-la; os
olhos dele ardiam no mesmo incêndio que os dela.
— Luthor... — ela murmurou, e então o vento aumentou.
Diana achou que fosse o próprio clima de Viena, mas então ergueu os
olhos, e viu que as nuvens haviam escurecido subitamente, que o vendaval
parecia feito de lâminas afiadas; e não teve tempo para pensar quando ela e
Luthor foram cercados por vários servos.
21
Juras de fogo e aço
A escuridão caiu sobre a luz do dia como um manto tecido por
sombras e abismos.
Escorada na árvore junto a Luthor, Diana contou seis servos.
— Por que escureceu dessa forma?! — ela ofegou, erguendo à voz aos
uivos do vendaval repentino. — A vadia não está presa?!
— Desta vez, nossa Vasilíssa possui uma fonte de poder que nunca
teve em nenhum outro século. — O servo libertou as garras, os olhos ainda
mais escuros. — E ela está se fortalecendo para devorá-los!
Uma fonte de poder?!
Diana não teve tempo de avaliar aquilo. Um dos servos avançou;
Luthor a empurrou, esquivando o corpo para a direita e sacando a espada. O
movimento veloz da lâmina no ar cortou a criatura ao meio.
O servo explodiu e virou cinzas.
— Atrás de você!
Diana só teve tempo de ver outro servo pulando sobre ela.
O vento urrou com mais ferocidade.
Tentou se virar e esquivar, mas suas pernas se enroscaram na saia
pesada do vestido, e ela caiu para trás, com o servo sobre o seu corpo.
Rosnando, Diana puxou o revólver, encostou o cano na têmpora do oponente;
o disparo jorrou sangue negro fedorento sobre suas vestes e o fez esfumaçar
diante dos seus olhos.
— Isso é por ter atrapalhado nosso beijo!
A escuridão adensou sobre o bosque.
Ainda no chão, Diana viu Luthor partindo para cima de outro servo que
corria em sua direção, fazendo uma esquiva giratória e enfincando a espada
nas costas inimigas.
Uau! Ele é bom. Ele é muito bom.
— Mas que merda — ela resmungou, tentando se levantar, o vestido
atrapalhando seus movimentos.
Com o canto dos olhos, captou mais um servo avançando; ele saltou
sobre ela, e Diana só teve tempo de levantar o tronco e acertá-lo com um
golpe de cabeça, disparando dois tiros precisos.
Mais sangue negro e fumaça.
— Luthor! Cuidado!
Ele se virou, brandindo a espada contra o servo; mas não foi rápido o
bastante. As garras do servo rasgaram seu pescoço, no mesmo instante em
que a lâmina o penetrou.
Puxando a espada, Luthor levou a mão ao corte profundo.
— Merda. Outra vez.
E ele caiu para trás, morto.
O grito de Diana foi abafado pela imponência do vendaval. Ela já
estava em pé, o revólver em punho; disparou as últimas três balas no último
servo, o mais ágil de todos. Errou dois e acertou um de raspão; era difícil
enxergar naquela escuridão súbita.
O servo riu. O cheiro do sangue negro a atordoava.
— Seu amante já era, Incantevole. E você virá comigo para servir
minha Vasilíssa. Sua música será a melodia do reinado dela.
Com o coração acelerado, Diana levantou o saiote do vestido, puxou a
adaga presa à coxa e pulou sobre o servo.
— A única música que tocarei para vocês é o som do inferno!
Os dois rolaram pelo chão, lutando para imobilizar um ao outro. Diana
ergueu a adaga; a lâmina cintilou na escuridão.
O servo cuspiu sangue negro.
— Você não estaria fazendo isso se soubesse o presente que a Vasilíssa
do Rio das Almas tem para você. Basta tocar a harpa para ela.
Apesar do solavanco que as palavras causaram em seu peito, Diana não
cedeu; desceu a adaga com tudo contra o pescoço do servo. Ele gritou, um
grito terrivelmente inumano, e esfumaçou diante dela.
O vento amainou, a escuridão esvaiu e a luz voltou a serpentear pelas
copas das árvores centenárias.
Ofegante, Diana se arrastou pela terra e pelas folhas, alcançando o
corpo caído de Luthor.
— Por favor. Por favor. — Ela o sacudiu, a voz trêmula. — Faça sua
mágica. Acorde. Por favor. Por favor.
Ele ia voltar, não ia? Ele tinha que voltar.
Escutou-o inspirar fundo, e um alívio avassalador inundou seu coração
ao vê-lo abrir os olhos, enquanto os cortes na garganta se fechavam.
— Não chore, esquentadinha. Não vai se livrar de mim tão fácil.
Diana agitou a cabeça e esfregou os olhos com as costas da mão.
— Chorar por você? Vai ter que fazer um pouco melhor do isso,
parceiro. Não sou do tipo que chora fácil e...
Ela se calou quando a mão dele se encaixou em seu rosto.
— Está ferida?
— Dolorida, irritada, descabelada, com o vestido rasgado e uns
arranhões, mas nada grave. Não preciso perguntar se você está ferido, não é?
Esperou por alguma piada ou riso, mas Luthor permaneceu sério.
— Não fui rápido o bastante. Eles me atingiram e eu te deixei sozinha.
Poderiam ter te levado. Eu deveria ter te protegido melhor.
— Escute aqui, bonitão. — E cutucou o peito dele. — Sei me cuidar.
— Não se trata disso. Uma promessa é uma promessa. — A voz dele
era um sussurro baixo. Diana tentou se levantar, mas ele a segurou. Ainda no
chão, Luthor ficou de joelhos diante dela. — Mas esta promessa ainda não foi
feita, não foi verbalizada. E será feita agora.
Diana arregalou os olhos.
— Não é porque me beijou que precisa me pedir em casamento. Eu
ainda pertenço ao século XXI.
— Lembra-se da noite em que você foi atacada e ferida pelos servos,
no rio, lá em Curitiba? E eu te levei para o meu loft?
— Não tem como eu me esquecer daquilo.
— Eu te contei sobre os Incantevoles e falei que eles me acolheram
quando mais precisei. Treinei com eles, para também me tornar um protetor
da harpa. Um protetor de cada membro do clã. Mas os traí quando Isabelle
foi assassinada.
— Sim, mas...
— Eu os traí em uma noite fria e nevoenta, cegado pelas tentações de
Letyne — Luthor continuou, o olhar cativo ao dela. — Eu iria me tornar um
protetor da harpa no dia seguinte. Faria o juramento para todo o clã, e os
protegeria até o fim da minha existência. Só que as coisas não aconteceram
desta forma.
A mente de Diana clareou um pouco mais, regressando para a noite em
que ele a levara até o loft e cuidara dela. Ela se lembrava que, entre uma
explicação insana e outra, ele havia tomado a espada e tentado fazer um
juramento, algo que ela não permitiu.
Como se acompanhasse os fios dançantes de sua memória, Luthor
inspirou fundo outra vez.
— Eu ia fazer este mesmo juramento para você naquela noite, mas
apenas por obrigação. Porque você era a extensão da minha dívida. Porque eu
enxergava os amigos que traí em você, uma chance de minimizar meus
pecados e crimes. Mas você me impediu.
Diana engoliu em seco.
— Descobrir que eu descendia de uma linhagem de músicos mágicos, e
te ver morrer e reviver na minha frente, já tinham sido coisas demais para
uma única noite.
— Foi melhor assim. Os liames do destino são curiosos. — Luthor
tomou as mãos dela. — Posso ter perdido a honra, e se me der uma chance,
tentarei restaurá-la. Se me permitir, quero fazer o juramento que eu deveria
ter feito séculos atrás, mas agora para você. Porque é você. Apenas você.
Ela entreabriu os lábios para protestar. Mas o calor das mãos dele sobre
as suas era firme; os olhos mergulhados nos seus não hesitavam. Ali, Diana
viu infinitos pontos do tempo, caleidoscópios de épocas e sentimentos, portas
que a levavam a um único destino.
— Seria uma honra para mim — ela finalmente disse.
Algo maior do que o alívio inundou o semblante dele.
Luthor soltou as mãos dela e tomou a espada, estendendo-a diante de
Diana, a luz do dia incidindo na lâmina.
Todo o bosque silenciou.
— Neste lugar e nesta hora, neste tempo e nesta vontade, entrelaço
minha vida à sua, Diana Albuquerque, descendente de Orfeu, amada pela
música e agraciada pela melodia. Juro que encontrarei a harpa e a devolverei
para a cripta de cristal. Nesta jornada, não sairei do seu lado. Como aço, serei
seu escudo. Como fogo, me espalharei à sua volta. Deste dia, e até o último
da minha existência.
Por um segundo, algo luminoso e atemporal como um relâmpago se
espalhou pelo corpo de Diana; raízes brancas, invisíveis, pareciam fluir do
sangue dela para o dele, e do dele para o dela, atando-os. Ela se controlou
para não ofegar com a intensidade. Então Luthor ergueu a cabeça sem soltar a
espada, os olhos reluzindo como fogo e aço.
O vento soprou sobre os cabelos emaranhados de Diana, e ela escutou
uma música longínqua, antiga, profunda, e ao olhar para os olhos de Luthor,
soube exatamente o que deveria dizer.
— Em nome dos meus antepassados, Luthor, eu aceito o seu juramento
e perdoo sua traição. As portas do destino nos trouxeram até aqui. A partir de
hoje, e de todos os dias de sua existência, seja brindado com uma nova vida
de honras e recomeços.
◆◆◆

Eles retornaram para a casa do doutor Arnold Müller em silêncio.


Não falaram sobre o ataque dos servos, sobre qual seria a fonte de
poder de Letyne, sobre o beijo ou sobre o juramento. O cocheiro também não
perguntou por que eles estavam cobertos de um visco preto e com as roupas
rasgadas. Ao entrarem na casa, a criada deu um gritinho esganiçado ao olhar
o estado de Diana, e insistiu que iria encher a banheira para ela.
Instantes depois, Arnold irrompeu do seu escritório particular. Por
conta do colar babilônico, Diana finalmente conseguia entendê-lo.
— Não quero saber no que você está metido desta vez, Luthor. Sei que
tenho uma dívida de vida e morte com você, contudo, também tenho meus
pacientes e minha reputação. — As mãos do homem tremiam de um jeito
frenético. — O que um paciente dirá quando sair da minha sala e ver algo
assim aqui? Até quando pretende ficar na minha casa?
— Até encontrar a harpa que estou procurando.
— Imaginei. Por isso, me encarreguei de fazer uma pesquisar e
conversar com alguns contatos. — Arnold estendeu um folheto para eles.
Diana notou que gotículas de suor marcavam a testa dele. — Haverá um baile
e um leilão hoje à noite. Um dos objetos do catálogo é uma harpa. Não há
fotos ou detalhes, mas parece que foi um instrumento bem avaliado. Talvez
seja a harpa que você está procurando.
22
Sangue e rosas
Diana se preparou para comemorar o surgimento de uma nova
pista sobre o paradeiro da harpa, mas, ao olhar para Luthor, toda sua
empolgação se dissipou como névoa na chuva.
Luthor encarava Arnold, a expressão sombria e analítica. Arnold o
encarava de volta; o suor em sua testa aumentara, descendo pelo rosto e
manchando o colete.
O vento rodopiou pelas frestas da janela, a arrepiando.
— Vocês... Precisam... Sair daqui... — Arnold falou, quase um
rosnado, erguendo a mão trêmula que amassavam o folheto.
Luthor deu um passo na direção do doutor, soerguendo as mãos.
— Concentre-se, Arnold. Você é mais forte do que isso.
— Não desta vez. — Ele retorceu o pescoço, ofegando. — É mais
poderoso. É mais cruel. Obrigado pelos anos que você ganhou para mim.
Diana piscou, atônita.
— O que está acontecendo?!
Mas sua pergunta foi ignorada pelos dois homens. A mente trabalhou
rápido, alegando que aquilo tinha alguma coisa a ver com a dívida que
pairava entre eles.
— Olhe para mim, velho amigo — Luthor ordenou, um tom calmo,
frio, aproximando-se ainda mais de Arnold. — Eu te ajudei a voltar do véu
entre a vida e a morte uma vez. Posso te ajudar de novo.
Arnold riu, um riso de dor, um riso que gelou os ossos de Diana.
— Já é tarde demais.
— Arnold...
— Fuja daqui, seu idiota.
E então, algo estalou, como geleiras trincando.
Arnold ofegou; ramos espinhentos saíram de dentro de sua boca em
uma velocidade alucinante, tomando todo o corpo. Diana quase cambaleou
para trás com a cena terrificante. Em alguns espinhos, rosas negras
desabrochavam, banhadas em sangue.
— Una-se a mim, Incantevole. — O braço de Arnold se esticou em sua
direção; a voz que saía da boca dele era feminina e hipnótica. — Somente eu
posso dar aquilo que completará a sua melodia.
“Diana”, o chamado de Diego se arrastou por ela como raízes
peçonhentas. “Você me deixou morrer, minha irmã. Eles queriam você. E eu
morri no seu lugar. Você tem uma dívida de vida e sangue comigo. Pague-
a”.
Dor inundou o peito de Diana; ela cobriu os ouvidos, ofegando.
— Pare! Pare com isso!
“Diana. Minha irmã, minha gêmea. A culpa é sua. Nosso pai foi
esquartejado por sua causa. Eu fui torturado por sua causa. Mamãe quase se
matou por culpa sua. Todos os dias, pessoas morrem no seu trabalho porque
você não consegue chegar há tempo. A culpa é sua. E você sabe. É por isso
que fica sozinha. É por isso que não quer ninguém cuidando de você. Porque
sabe que não merece”.
— Não dê ouvidos! Ela é a mãe das mentiras!
Luthor bradou, descendo a espada e decepando o braço; o corte
reverberou um grito que misturou as vozes de Arnold e Letyne.
Fogo emergiu pelo chão e pelas paredes.
Diana arquejou, se segurando nos braços de Luthor. Juntos, eles
avançaram em direção à porta da casa.
— Sua Isabelle ainda está comigo, Selador.
Diana sentiu as mãos de Luthor a apertando com mais força. Aquilo
estava sendo difícil demais para ele. E para ela também.
“Diana. Minha irmã, minha gêmea. A culpa é sua”.
— Isabelle ainda pode ser sua — a voz foi se distanciando.
— Não — Luthor sussurrou para as chamas negras. — Desta vez, não
vou quebrar nenhum juramento.
O fogo se alastrou pela casa e pela mobília.
Enquanto corriam para fora, Diana soltou o ar, tremendo dos pés à
cabeça. A voz de Diego havia sido real. Real demais.
Com o canto dos olhos, viu que os criados tinham se salvado.
Luthor foi até o cavalo preso à carruagem; soltou as amarras, libertando
o animal e saltando sobre a sela.
— Venha. — Ele estendeu a mão para Diana.
— Está brincando, não está?!
— Adoraria, esquentadinha. Mas temos que correr. O cavalo sozinho é
mais rápido do que a carruagem.
Meu Deus! Leon nunca acreditará nessa história!
Aceitando a mão de Luthor, Diana se deixou ser puxada para cima do
cavalo. Enganchou os braços em Luthor, o coração acelerado.
— Como Letyne conseguiu acessar Arnold dessa forma? Que diabos
aconteceu entre vocês, no passado?
— Para resumir, ele fez experimentos para psíquicos e ocultistas,
mexeu com o que não devia, ficou suscetível, abriu um terceiro olho e se
tornou um canal perigoso do véu da morte. — Luthor instigou o cavalo, e
eles dispararam em um galope rápido para fora do terreno. — Eu o ajudei,
selando o olho. Mas Letyne está mais forte, e rompeu o selo.
— Ela pode fazer isso com outras pessoas?
— Arnold era mais suscetível, por ter aberto o véu entre a vida e a
morte. Infelizmente, não fui capaz de salvá-lo hoje.
— Ele mesmo te disse: “Obrigado pelos anos que você ganhou para
mim.”. Se não fosse por você, ele já estaria morto tempos atrás. Tenho
certeza de que ele tinha consciência de tudo. Não se culpe.
Ela pode ver o sorriso pequeno no canto da boca de Luthor.
— Você é uma joia rara, esquentadinha. Você me faz sentir...
— Estressado?
— Humano. Alguém que pode ter uma segunda chance.
O cavalo galopava veloz, conduzindo-os em direção a bosque; Diana
ouvia a correnteza de um riacho serpenteando pela região, o coração
retumbando ainda mais alto pela confissão de Luthor. Ao longe, montanhas
altas enchiam o horizonte.
— Letyne vai atacar de novo?
— Meu palpite é que ela usou energia demais para isso. Agora terá que
se recolher. Mas pode enviar outros atrás de nós. Inclusive Maximus. Isto vai
soar no radar dele. Vamos averiguar esta pista de Arnold. Pode ser a chance
de finalmente acabar com tudo.
— E de salvar Heloísa e Duda.
Diana se segurou com mais força em Luthor, e enquanto galopavam
para dentro do bosque, arriscou olhar para trás uma última vez, atravessada
pelas acusações da voz de Diego, vendo a casa arder em um fogo mais escuro
do que a mais sombria das noites.
23
Raízes de culpa
Ela mergulhou sob a água quente da banheira, deixando o calor
inundar os ossos frios.
Imersa, os pensamentos navegaram, a conduzindo para o último sonho
que tivera com Diego dias atrás; um salão destruído, fogo negro, flores
brancas, as mãos dela agarrando fortemente os braços dele.
“Deixe-me ir, Diana. Deixe-me ir”.
“Não. Não quero te perder outra vez”.
“Deixe-me ir. Você precisa me deixar partir”.
Quando o ar faltou, Diana emergiu, ficando com a água na altura dos
ombros. Sentou-se, alcançou o pedaço de sabão de lavanda na ponta da
banheira e esfregou a pele e o cabelo. Talvez não fosse possível se lavar até o
gosto amargo plantado pela Vasilíssa do Rio das Almas escorrer para longe,
mas não custava tentar.
Após terem deixados as ruínas da casa de Arnold para trás, Luthor e ela
haviam alugado um chalé de uma pequena pousada, usando o dinheiro que
haviam pegado dos pertences do doutor. Também tinham comprado roupas
para o leilão. Era errado roubar os mortos? Ela já não tinha certeza de mais
nada.
“Diana. Você me deixou morrer, minha irmã. Eles queriam você. E eu
morri no seu lugar. Você tem uma dívida de vida e sangue comigo. Pague-
a”.
— Maldita — praguejou, socando a água.
— Está tudo bem? — escutou Luthor perguntar.
Diana olhou para o lado; a banheira oval onde estava ficava atrás de
uma tela japonesa em um canto do quarto. Luthor havia ficado do outro lado
da tela; era o máximo de privacidade que tinha conseguido após os ataques
consecutivos.
— Ela usou a memória do meu irmão para me abalar. — Trincou os
dentes. — Escutei a voz de Diego na minha cabeça. E as acusações que ele
fez na casa de Arnold ficam se misturando com as coisas que ele me disse no
sonho que tive na noite em que fui atacada no rio. Nem sei mais o que é
verdadeiro e o que é invenção.
— Não deixe que as mentiras de Letyne te dominem.
— Mas é uma mentira completa? — Diana pestanejou. — Há dezessete
anos, eu fiquei no banheiro. Diego morreu no meu lugar. E se eu tivesse saído
do banheiro e enfrentado o que apareceu em nossa casa? Será que ele estaria
vivo?
— Todos estariam mortos, e você teria sido capturada.
— Talvez sim. Ou talvez meu sangue Incantevole os tivesse protegido.
— As palavras não eram mais do que meros sussurros. — Escolhi ficar no
banheiro em vez de lutar.
Luthor chiou atrás da tela.
— Agora você está exagerando. Você era uma menina.
Diana ficou em silêncio; ela ainda podia tatear o sangue do seu pai
espalhado pela sala, podia visualizar o corpo sem vida de Diego cheio de
tatuagens de rosas negras. Cerrou os punhos. A vontade de vingá-los e de
fazer justiça era pulsante, atordoante. Há anos, aquele era o desejo que a
guiava. E não abriria mão de um acerto de contas.
“Deixe-me ir, Diana. Deixe-me ir”.
“Diana. Minha irmã, minha gêmea. A culpa é sua”.
Diana agitou a cabeça, calando as duas vozes de Diego. Não importava
qual era verdadeira e qual era falsa. Ela sabia o que tinha que fazer. Qual era
seu propósito de vida.
Ergueu-se da banheira e se enfiou em um robe felpudo; água escorria
dos seus cabelos longos, marcando o chão.
Sei o que eu quero.
O pensamento voraz causou um estalo em seu corpo.
— Ei, o que Letyne quer? — ela perguntou, saindo afobada de trás da
tela. — Por que ela está fazendo tudo isso?
Luthor arqueou as sobrancelhas.
— Ela quer cobrir o mundo de escuridão, segundo as histórias mais
antigas do clã Incantevole.
— Mas por quê?
— Ela é uma criatura das trevas. Precisa de um motivo?
— Tem que ter um motivo. É como investigar um assassinato. —
Diana sentia as engrenagens girando rápido em seu cérebro. — Sempre há
um motivo. Sempre há mais de uma versão.
— O que está dizendo?
— A história que você me contou sobre Orfeu, sobre a origem do clã
Incantevole... Há outras versões? Outras traduções? Partes esquecidas?
Uma sombra cobriu o rosto de Luthor. Na janela atrás dele, o dia se
transmutava, dando lugar à matiz da noite.
— Está dizendo que seus ancestrais mentiram para mim e para todos
aqueles que vieram antes e depois? Você desonra a memória deles,
questionando-os desta forma.
— Não estou desonrando ninguém. Só estou procurando por outros
ângulos para entender melhor e...
— Você não os conheceu. Você não sabe como eles eram.
Diana encrespou o cenho, surpresa com a reação dele.
— Ei, calma, não quero ofender ninguém. Não precisa...
— Eles já tiveram a morte física desgraçada pelas minhas mãos. Não
ouse profanar a memória deles. Troque-se para irmos ao leilão.
E, dizendo aquelas palavras, Luthor saiu do quarto, batendo a porta
com força e deixando Diana sem entender absolutamente nada.
◆◆◆
Ainda surpresa pela reação de Luthor, Diana se limitou a resmungar
“homens” e deu um jeito de se enfiar no vestido que usaria no leilão. Era um
modelo um pouco mais prático para se vestir sozinha.
Sabia que Luthor estava do lado de fora do chalé, em guarda.
Mas não podia negar seus instintos investigativos. Letyne tinha que ter
um motivo para estar fazendo tudo aquilo há séculos. As pessoas, até mesmo
criaturas como a Vasilíssa do Rio das Almas, possuíam um combustível para
seus feitos, não possuíam?
Ou talvez eu esteja procurando pelo em ovo, e Luthor esteja certo.
Bufou, os dedos trabalhando nas últimas tiras do vestido.
Mas, mesmo assim...
“Diana. Minha irmã, minha gêmea. A culpa é sua”.
Raiva incinerou o sangue dela; odiava o fato de que a Vasilíssa havia
penetrado nas profundezas do seu âmago e cutucado a ferida que não
mostrava para ninguém.
A culpa.
A fraqueza que evitava sentir para não perder o foco.
Foi somente ignorando aquele sentimento e se munindo de armas para
fazer justiça que ela conseguira sobreviver ao longo dos anos sem desabar,
sendo o esteio da mãe, a profissional exemplar, a mulher que não se abalava
com nada.
E a vadia mexeu com a minha cabeça. Vai ter troco. Por tudo.
Mesmo assim, por que não conseguia recuperar o foco? Mirar na harpa
e no leilão, na chance de salvar Heloísa e Duda?
Um braço de vento ruiu pelo cômodo, um sibilar baixo e sombrio.
Diana girou nos calcanhares, a saia do vestido se abrindo à sua volta. Viu
sombras nas paredes, que pareciam formar raízes em movimento.
— Dúvidas começaram a desabrochar em seu coração, Incantevole.
A pulsação em sua garganta acelerou.
Diana virou, encarando o espelho central do quarto, onde uma figura
esfumaçada tomava forma.
— Aproxime-se. Sabe que estou enfraquecida e que não posso te ferir.
Agarrando a adaga, Diana deu um passo em direção ao espelho.
O reflexo ganhou os contornos sombrios de uma mulher bela,
assustadora, com cabelos enfeitados com rosas negras.
— Seu coração consegue ouvir o meu, pois desejamos a mesma coisa.
Diana expeliu um riso ácido pelo nariz.
— Eu desejo justiça pelo que aconteceu com meu pai e meu irmão.
Pelo que você causou.
— A origem do desejo é irrelevante. — A voz deslizou pelo quarto,
retorcendo as sombras das raízes nas paredes. — Almas que anseiam por
vingança tornam-se irmãs.
Diana abriu a boca para xingá-la; todas as sombras e o reflexo dela
desaparecem no instante em que Luthor irrompeu pela porta, a espada em
punho, o olhar feroz.
— Ela já se foi — disse para ele.
— Você está bem? O que ela queria?
— Apenas provocar um pouco mais. Não passa de uma vaca. — E
Diana tocou o próprio queixo, pensativa. — Hum... As vacas não deveriam
ser ofendidas dessa forma.
Um vértice silencioso vibrou pelo quarto.
Luthor inspirou fundo, deixando a espada sobre a cama, o olhar se
demorando em Diana; algo que a fez sentir como se sua alma estivesse sendo
desnudada.
— Você está linda.
— Obrigada.
O clima estranho continuou pairando entre eles.
— Olhe, Luthor, eu...
— Eu não deveria ter falado com você daquela forma. Sinto muito.
Eu... — Ele virou, apoiando as mãos no parapeito da janela. — Quando
Isabelle morreu, os Incantevoles me disseram que não havia mais nada para
ser feito, e eu os chamei de mentirosos.
— Luthor...
— Acusei que estavam escondendo os segredos da harpa, que não
queriam compartilhar o poder de Orfeu. E fiz o que fiz, mesmo eles tendo
sido bons demais para mim. Pais e irmãos. Sabia que eu fui tirado da minha
família para ser treinado no Santuário? Nunca tive uma família de verdade,
infância, essas coisas. — Luthor soltou o ar, como se o mundo estivesse
pesando em suas costas. — E, por um tempo, os Incantevoles foram um
pedaço dessa ideia da família que eu poderia ter tido.
No fim, nós dois perdemos nossas famílias. Nós dois nos culpamos por
isso. Não importa o tempo, o século, o período. A dor existe.
Com as mãos fechadas sobre o peito, Diana se aproximou dele.
— Eu não sabia disso.
— Por mais que você tenha me dado o perdão em nome deles, ainda
sinto vergonha. Ainda sinto que não é suficiente.
Diana ergueu a mão e tocou o rosto dele, buscando por seus olhos.
— Um dia, será. E você saberá quando esse dia chegar.
A mão de Luthor pousou sobre a dela.
— Você é mesmo única, esquentadinha. E quero reforçar: não estou
bravo com você, tampouco estou escondendo coisas. — Havia sinceridade
pura nas palavras dele. — Tudo o que sei sobre a lenda de Orfeu foi o que te
contei. Apenas reagi mal porque fiquei com raiva de mim mesmo, de lembrar
como os acusei quando estava cegado pela dor do luto.
— Acredito em você. E peço desculpas também. Minha intenção não
foi desonrá-los ao questionar a origem da história de Orfeu. Foi para procurar
uma falha, uma fraqueza de Letyne. E ela apareceu para mim, mesmo estando
enfraquecida. Há algo mais, Luthor.
— Ela é a mãe das mentiras.
— Talvez sim, talvez não. Mas ela tirou meu irmão de mim. E isso é
algo que jamais será esquecido. — O olhar de Diana se cravou no céu
escurecido, nas primeiras estrelas que despontavam no horizonte. — Agora
vamos para o leilão. O tempo está contra nós.
24
Correntes da fortuna
A noite estava fria, e Diana ficou arrepiada ao atravessar as portas do
chalé. Luthor esperava por ela em frente a carruagem, iluminado pelo luar; o
brilho perseguindo traços de nuvens em um céu negro.
Por um instante, simplesmente ficaram se encarando. Diana sabia que
ele já havia visto o vestido, um tecido marfim de seda, com um decote oval e
saia que se abria em cascata na cintura fina. Mas ele não a vira com o
penteado alto, com pérolas presas por pregadores dourados, ressaltando os
cabelos claros, incendiando a determinação no olhar.
E ela não estava preparada para vê-lo no traje de noite preto e branco, a
harmonia das cores destacando a perfeição angulosa de suas feições. Os
cabelos escuros repuxados para trás, as íris incandescentes como as dela.
“Como aço, serei seu escudo. Como fogo, me espalharei à sua volta.
Deste dia, e até o último da minha existência”.
Diana torceu para que o tremor involuntário que sofreu e que fez seu
coração se contrair fosse atribuído ao ar frio.
Beijá-lo para aliviar o desejo era uma coisa. Mergulhar em um
caleidoscópio de sentimentos desconhecidos, e quase assustadores, era outra.
Luthor lhe estendeu a mão para ajudá-la a subir na carruagem, a pele
quente envolvendo seus dedos. A luz que atingia os olhos dele crepitou. Ele
entrou depois dela e fechou a porta do coche.
Quando começaram a se mover pela rua de paralelepípedos, Diana
desviou do olhar que a aprisionava e tocou a cortina de veludo da carruagem
com a mão enluvada.
— Quando toquei o piano, a melodia não me mostrou nada sobre um
leilão — ela se ouviu dizendo.
— O que a melodia te mostrou sobre Viena?
Os ombros de Diana caíram.
— Nada, na verdade. Só flashes do seu passado. E um sussurro baixo.
“Pétalas brancas para encobrir rosas negras”. Sabe o que pode significar?
— Rosas negras são o símbolo de Letyne.
— Por que rosas negras?
— Não sei. Já vivi muitos séculos, e investiguei a simbologia das rosas
negras, tentando encontrar uma forma de acabar com a maldição. Não achei
nada além da história dos Incantevoles. É por isso que creio que não há outras
versões, como você acredita. O máximo que encontrei de diferença foram
relatos falando que rosas negras sempre foram o símbolo de Letyne, e outros
trechos dizendo que se tornaram sua marca depois que Orfeu a aprisionou
definitivamente no Submundo. Nada mais.
Diana tocou o queixo, pensativa. Luthor olhou pela janela.
— Logo chegaremos. — Havia uma nota de apreensão na voz dele. —
Se eu pudesse, teria averiguado os objetos do leilão antes do baile. Mas hoje
foi um dia insano. Qualquer movimento brusco ou alarde poderia chamar a
atenção de Maximus. Ele está em algum lugar, longe demais do meu radar,
com aquele maldito mangual. Não consigo detectá-lo.
— Se ele aparecer, chutaremos o traseiro dele e enfiaremos o mangual
em um lugar onde o sol não alcança. Por ora, vamos averiguar as peças do
leilão como se estivéssemos disfarçados em uma operação policial — Diana
falou, percebendo o coração acelerado. — Minha carreira me ensinou que, às
vezes, agir com sutileza traz mais resultados do que abrir fogo.
Luthor arqueou as sobrancelhas; havia algo em seu semblante, uma
espécie de sarcástica admiração.
— Não sabia que sutileza existia em seu vocabulário, esquentadinha.
Ela tentou estapeá-lo no ombro; ele desviou com agilidade.
Diana respirou fundo e recolheu as mãos enluvadas, aceitando fazer
uma trégua. Todas as suas forças tinham que se concentrar em encontrar a
harpa, salvar a família e desvendar o enigma que era Letyne.
Repassou a história de Orfeu, o primeiro Incantevole.
Orfeu possuía uma harpa mágica. Era noivo de Miríade. Um dia, a
música de Orfeu permitiu que Letyne andasse pela primeira vez pela luz.
Letyne viu Miríade colhendo flores, invejou a beleza dela, tomou sua alma e
voltou para o Submundo. Orfeu desceu buscar a alma da noiva. Letyne tentou
enganá-lo. Orfeu a aprisionou eternamente no Submundo com a harpa.
Letyne jurou cobrir o mundo de escuridão.
Aquela era a versão que os Incantevoles tinham contado para Luthor.
Diana entrelaçou os dedos; talvez fosse seu trabalho, talvez fosse
instinto, mas farejava partes escondidas na lacuna de uma história esquecida.
“Seu coração consegue ouvir o meu, pois desejamos a mesma coisa. A
origem do desejo é irrelevante. Almas que anseiam por vingança tornam-se
irmãs”.
— O que você anseia vingar? O fato de ter sido aprisionada? Ou outra
coisa? — murmurou o pensamento.
— O que disse? — Luthor perguntou.
Antes que pudesse oferecer qualquer resposta ou teoria para ele, as
rodas começaram a parar. Tinham chegado.
◆◆◆

A entrada do salão era imensa, construída com pilares altos e diversas


escadarias. O brilho da lua perolava a arquitetura.
De braços dados, eles atravessaram o pátio estreito do jardim. As águas
negras de um lago ornamental tremiam ao sopro do vento. Luthor entregou o
convite de Arnold para a recepcionista. Assim que cruzaram a portaria, uma
inundação de barulho, música clássica e luz atingiu Diana como uma onda.
Foi como entrar em um filme de época, mergulhar nas páginas de um
livro de Jane Austen.
Mesas com arranjos florais frescos pipocavam pelo espaço. Casais
elegantes dançavam no centro do salão, de onde um grande lustre de velas e
cristal pendia. À direita, a orquestra tocava. À esquerda, o palco onde o leilão
ocorreria já estava montado.
— Olha, não sei qual experiência sobrenatural Leon já vivenciou com
Helen e Lúcio — Diana falou mais para si mesma do que para Luthor —,
mas duvido que tenha sido algo perto disso. Tenho certeza de que a minha
pontuação será muito maior do que a dele.
Eles circularam pelo salão, aceitando taças de champanhe, atentos aos
sinais e aos próprios instintos; Luthor acreditava que, se a harpa estivesse por
perto, seriam capazes de senti-la.
— E se a harpa de Orfeu for realmente uma das peças do leilão?
— Para não chamarmos atenção, esquentadinha, vamos entrar na
disputa e tentar adquiri-la do jeito tradicional.
— E se alguém cobrir todas as nossas ofertas?
— Daí partiremos para a briga do jeito antigo.
— Adoro sua forma de pensar.
Continuaram se movendo. Em certo momento, soltaram-se um do
outro, para cobrirem uma área maior.
Diana se afastou um pouco de Luthor, estudando os convidados e o
local. Havia uma ala à parte no salão, separada por cortinas de seda, como se
fosse um espaço privativo.
Um leve formigamento subiu pelas pernas dela, uma irritação, uma
vontade de se mover, de atravessar as cortinas esvoaçantes e descobrir o que
havia ali.
Diana virou o rosto, ignorando o puxão invisível.
A sensação não dissipou. Era forte, uma pressão na sua vontade.
Rendida, e se convencendo de que não poderia ignorar os sentidos,
Diana se aproximou com passos cuidadosos e puxou uma das cortinas; não
havia nada ali, apenas uma pequena mesa redonda e uma decoração exótica e
colorida.
— Satisfeita? — resmungou para si mesma.
— Posso ajudar, senhorita?
Se não estivesse tão controlada, teria sacado o revólver. Mantendo a
postura, Diana observou o homem que surgiu do outro lado da cortina. Para
seu alívio, não era Maximus. O sujeito vestia um terno branco e dourado, os
cabelos claríssimos repuxados para trás, os dedos adornados com anéis.
Ela tocou o peito; havia algo na presença dele que reverberava
impressões em seu sangue, como o reconhecimento de uma partitura ensaiada
desde a tenra infância.
— Veio até aqui para ver sua sorte?
— Minha sorte?
Com um movimento elegante, colocou um baralho de tarô sobre a mesa
e abriu as cartas em um formato de meia-lua. Diana encarou o verso das
cartas. Eram incrivelmente parecidas com o velho baralho de tarô de sua avó,
que ela e Diego haviam encontrado quando tinham doze anos.
— Qual é o seu nome?
— Ithuriel, senhorita. Por favor, escolha uma carta.
— Não é necessário. Já estou saída.
— Você não é alguém que acredita em coincidências. Se está aqui, é
porque deveria estar aqui. — A voz dele era mansa como o mar azulado do
olhar. — Por favor, escolha uma carta.
Diana inspirou fundo, fechando os olhos e deixando sua mão pairar
sobre as cartas abertas. Sua avó sempre falava que não era preciso escolher
conscientemente as cartas; elas chamariam por você. Seus dedos começaram
a descer aos poucos, tal como um invisível cordão os puxasse, e ela sentiu
quando tocou a borda de uma carta.
— Essa. — E abriu os olhos.
Sem pressa, Ithuriel virou a carta para cima.
A pele de Diana se arrepiou ao fitar a Roda da Fortuna.
“— O que você está fazendo?”.
“— Segurando o futuro”.
“— O que significa?”.
“— A Roda da Fortuna. Mudanças estão por vir. A roda vai virar”.
Foi inevitável não retornar para o passado, para Diego, para tudo o que
a conduzira até ali, até aquele momento.
— O passado nos molda, abre caminhos que nos conduzem pelos
liames da vida. — Os dedos de Ithuriel roçaram pela Roda da Fortuna. —
Mas, para alguns, o passado se torna uma corrente que precisa ser quebrada.
Uma corrente para a roda girar. Sua roda não gira porque a roda dela não
gira. Há correntes no seu passado, há correntes no passado dela.
Diana encrespou o cenho; o arrepio não dissipou.
— Todos cometemos erros. — A voz dele baixou uma oitava, como se
estivesse em um local muito próprio, um mar antigo de segredos. — Todos
carregamos a sina dos nossos antepassados. Eu, você, aquele que anda ao seu
lado e que jurou te proteger, e todos aqueles que vieram antes de nós. Para
dar o primeiro passo, você precisa questionar. Nós nunca questionamos. E
você já questionou. Para achar o que procura, você precisa olhar para além da
dor. Enxergar o campo atrás das lágrimas. Às vezes, parece que tudo acaba
em um caminho sem volta. Geralmente, é um caminho sem volta; mas há
quem acredite em um caminho que leva e traz.
Como o giro da Roda da Fortuna.
O coração retumbava em seus ouvidos.
Diana se inclinou sobre a mesa, sobre as cartas de tarô; por tudo o que
era mais sagrado, elas eram idênticas às cartas de sua avó.
— Diana? — A voz de Luthor pairou atrás dela. Ela se virou, vendo-o
puxar a cortina, o semblante preocupado. — Não fique longe da minha vista.
Não é seguro.
— Eu estava... — Ela moveu o braço, apontando para o lado, mas, ao
olhar, percebeu que Ithuriel não estava mais ali. Franziu o cenho. — Você o
viu sair daqui?
— Quem? Você estava sozinha aqui.
Um braço de vento soprou sobre seus cabelos, seu corpo, seu coração,
como um abraço místico, invisível. Diana entreabriu os lábios; nenhuma
palavra parecia ser suficiente. As cartas continuavam olhando para ela.
— Vamos. O leilão começará a qualquer instante.
Absorta, atravessou as cortinas ao lado de Luthor.
“Às vezes, parece que tudo acaba em um caminho sem volta.
Geralmente, é um caminho sem volta; mas há quem acredite em um caminho
que leva e traz”.
— Há quem acredite em um caminho que leva e traz — murmurou.
No centro do salão, os casais continuavam embalados pela valsa. Ela os
olhou demoradamente, imersa em um milhão de pensamentos, perdida no
tempo passado e no tempo presente.
Distante, a voz de Luthor a tragou de volta.
— Desculpa, o que disse? Não te ouvi.
— Dance comigo, Diana. — Luthor estendeu a mão; o convite sem
travessuras, sem apelidos, apenas a rouquidão ao pronunciar o seu nome.
Quando os olhos dela encontraram os de Luthor, Diana se esqueceu das
cartas e da fortuna, do leilão e da harpa, de Letyne e de Orfeu. Aceitou a mão
de Luthor; o calor dos dedos dele se infiltrava pelas luvas dela. Luthor
deslizou a outra mão ao redor da cintura de Diana, e ela apoiou uma das mãos
sobre o braço dele.
— Não sei dançar essas coisas.
— Confie no ritmo do seu sangue. Está em você. Permita-se sentir.
Ela ergueu o rosto para ele quando começaram a se mover, primeiro
um passo lento, então outro, e outro; e de repente apenas a música existia. A
música que regia a história dos seus antepassados. A música que ela amava
desde sempre.
Luthor a fitava, nenhum dos dois sorria, envolvidos em uma melodia
que atravessava os tempos. O luar, a decoração e o salão de baile se tornaram
borrões. A valsa se desenvolveu, mais alta, mais rápida, e Luthor guiou
Diana, os passos dela harmonizados aos dele na mais perfeita sintonia.
— Jamais seremos um homem normal e uma mulher normal, como
esses casais à nossa volta, não é? — Diana sussurrou quando ele a virou em
seus braços.
— Não. — Os olhos dele eram ardentes. — Não há como sermos.
A música explodiu pelo salão, e Luthor a levou com o ritmo, girando-a,
o vestido se abrindo ao redor do corpo dela. Quando ela voltou para os braços
dele, Luthor aproximou a boca de sua orelha.
— Há algo que você precisa saber sobre este colar babilônico que te
dei. — Diana ergueu os olhos; ele a virou de novo. — Há um selo em uma
das esmeraldas. Um selo que permitirá que você abra um portal para qualquer
lugar e para qualquer tempo.
— Por que vou precisar abrir um portal, se tenho você?
— Porque não sei se conseguirei fazer isso há tempo.
— Como assim?
— Maximus. Eu o conheço. Ele sabe que, cedo ou tarde,
encontraremos a harpa. E então, atacará. Quando isso acontecer, eu o
segurarei. Sou o único capaz de fazer isso. Você usará a pedra para abrir o
portal e voltar para o seu tempo. Salvará sua irmã e sua sobrinha.
— Mas...
— Não se preocupe. Deixei com Lúcio instruções de onde a harpa deve
ser levada. Ele e Helen te ajudarão com tudo.
— Mas você vai conseguir voltar também, não vai? — As cordas
vocálicas dela tremiam mais do que os acordes da valsa. — Vai abrir um selo
para você também, certo? Dá para fazer isso, não dá?
— Eu... — Luthor agitou a cabeça, comprimindo os olhos. — Merda...
Não agora...
— Luthor?
Ele ofegou e a soltou, levando a mão ao peito, como se estivesse
acometido por uma dor terrível.
— Luthor? O que foi?
— Boa noite, meus caros convidados. Iniciaremos o nosso leilão. Peço
que voltem para suas mesas — uma voz masculina anunciou no palco. — O
primeiro item da noite é esta bela harpa banhada em ouro.
25
Fogo na escuridão
Diana não precisou olhar por mais do que alguns segundos para a
harpa exposta no palanque para saber.
Aquela não era a harpa de Orfeu.
Era uma peça rara, bonita, bem trabalhada, mas não era sua harpa.
Como ela sabia daquilo? Talvez pela forma como a luz das velas
incidiam no material, ou talvez pelo silêncio no seu sangue, ou talvez por
uma percepção intrínseca que não podia palpar.
— Mas que droga.
Viemos até aqui à toa. A harpa de Orfeu continua desaparecida.
— Diana... — Luthor ofegou, fazendo-a voltar o olhar para ele.
Ele estava pálido, e os olhos haviam adquirido o mesmo tom opalino
que ela vira na casa de Helen e Lúcio, momentos antes da maldição assumir o
controle de sua mente.
O coração dela acelerou; o salão continuava lotado, e os primeiros
lances pela harpa inútil começaram a ser feitos.
— Preciso te tirar daqui!
Diana o agarrou pelo braço, as pernas se movendo com velocidade, o ar
noturno atingindo seu rosto quando cruzaram a saída do salão, a outra mão
tateando o próprio corpo em busca do revólver. Tinha que chegar na
carruagem, impedir que ele atacasse alguém.
Luthor arfou de novo, comprimindo a marca da rosa negra no peito.
— E apenas a essência de uma alma jovem alimentará a imortalidade
da carne.
Ela tentou segurá-lo; a força dele pareceu triplicar.
Diana não teve tempo de se esquivar quando Luthor avançou,
derrubando-a no jardim. Sua cabeça bateu no chão, e ela arfou de dor, a
consciência ameaçando falhar. Ele se moveu, ainda mais rápido, e ela virou,
metade do corpo escorregando para dentro do lago.
Dentro do salão, a música da orquestra continuava tocando.
Ela praguejou ao perceber que tinha perdido o revólver na água.
Luthor investiu outra vez; a cabeça dela irradiou com a dor do primeiro
golpe. Diana não conseguiu impedir que ele a prendesse embaixo do próprio
corpo, os braços a imobilizando com força, a boca descendo para perto da
sua.
— Luthor. Me escute. Volte. Você é mais forte do que isso. — Com a
respiração entrecortada, ela buscou pelos olhos dele, forçando-se a encontrá-
lo atrás do véu da maldição. — Faço das palavras do seu juramento as
minhas. “Nesta jornada, não sairei do seu lado. Como aço, serei seu escudo.
Como fogo, me espalharei à sua volta. Deste dia, e até o último da minha
existência”. Vamos acabar com isso juntos, Luthor.
Algo queimou no peito dela, forte, intenso, ardente, como um raio de
fogo que incinerava a densidade da noite.
Luthor arquejou, jogando a cabeça para trás, sem soltá-la.
“Mas há quem acredite em um caminho que leva e traz”.
— Volte — Diana pediu, e o fio invisível que parecia feito de fogo
ardeu ainda mais no peito dela, indo em direção ao peito dele. — Volte. Há
um caminho de volta. Encontre-o.
O aperto de Luthor em seus braços afrouxou lentamente.
Diana contemplou os olhos dele voltando ao normal antes do mundo se
calar e das sombras se fecharem sobre seus sentidos.
◆◆◆

A consciência regressou acompanhada da horrível sensação de ter


levado uma pancada na cabeça.
Diana virou para o lado, nauseada. Percebeu que estava deitada em
uma cama. Olhou em volta. Estava no chalé, e não no salão do leilão. Ainda
era noite, e o luar brilhava pelos vidros límpidos.
— Você acordou.
As palavras baixas a fizeram olhar para o outro lado. Luthor estava
sentado em uma cadeira, os olhos sombrios, o rosto pálido.
— Estou bem — disse para ele.
— Não está. Não sou tolo.
— Estou sim. Só minha cabeça que dói.
— Eu poderia ter te matado, Diana.
O silêncio os comprimiu como um laço apertado. Apenas a luz da lua
iluminava o quarto.
— Jamais me perdoarei por ter te machucado.
— Você não me machucou. Não fez nada. — Ela esfregou a garganta.
— Você parou e assumiu o controle sobre a maldição.
Luthor ficou em pé e andou até ela.
— Pode ter sido apenas um golpe de sorte.
— Não, não foi. Você sabe disso, eu sei disso. Você apenas não
consegue acreditar. — Os olhos dela prendiam-se veemente aos dele. — Foi
como na noite em que nos vimos na boate. Hipnótico, certo, magnetizante.
Como fogo na escuridão. Forte como o juramente que nos ligou em alma,
corpo e sangue. E você conseguiu parar.
A pulsação dele batia na garganta.
— Diana...
— Você sentiu também, não sentiu? — Havia ansiedade na voz dela.
— A única coisa que senti foi que podia ter acabado com a sua vida.
— Está mentindo — ela sussurrou. — Sei que está. Por que não aceita
que pode existir uma chance para você?
— Porque já errei demais. Porque não mereço.
“O passado nos molda, abre caminhos que nos conduzem pelos liames
da vida”, as palavras de Ithuriel deslizaram por ela. “Mas, para alguns, o
passado se torna uma corrente que precisa ser quebrada. Uma corrente para
a roda girar”.
Diana se sentou sobre a cama, a coberta escorregando por seus ombros.
Notou que não estava mais com o vestido molhado e sujo do baile, e sim com
uma camisola de seda fina e suave.
— Você gosta de trocar minhas roupas quando estou inconsciente.
Luthor permaneceu em silêncio, o corpo inclinado de forma sutil contra
a cama, a presença dele pairando como um véu quente nos sentidos dela.
O coração de Diana latejava nos ouvidos. Se Luthor se movesse um
centímetro, estaria sobre ela. Mas ele não se mexeu, e, arriscando um passo,
Diana saiu da cama, recebendo o toque do olhar dele em seus olhos, em sua
boca, na curva dos seios, descendo para as coxas.
— Se me lembro bem, você me disse que da próxima vez que erguesse
meu vestido... — Ela ousou outro passo. Mais um. Mais um. — ....Não seria
para me ajudar com uma adaga ou com qualquer outra coisa.
Luthor congelou quando ela parou diante dele e jogou a cabeça
levemente para trás, os cabelos caindo pelos ombros, um cheiro de fogo
selvagem os envolvendo e os despertando.
— Diana, você merece mais do que isto... Do que alguém condenado
como eu — as palavras saíam com um arquejo duro da boca dele.
Ela sequer hesitou.
— Não diga o que mereço ou não. Posso decidir sozinha. E sei
exatamente o que quero aqui e agora.
Sua última fala pareceu quebrar qualquer controle dele.
As mãos de Luthor apertaram sua cintura, empurrando-a contra a
parede; o choque da pele quente na superfície fria causando um tremor no
corpo dela. A boca dele cobriu a sua, possessiva, feroz. Diana achou que
poderia queimar a qualquer instante.
Ela ficou na ponta dos pés, querendo envolver o pescoço dele, mas
Luthor foi mais rápido; sem parar de beijá-la, com uma mão, ele prendeu os
braços dela para cima, com a outra, deslizou os dedos vagarosamente para
baixo da seda da camisola, em um roçar provocante que fez as pernas dela
amolecerem.
Pela janela, o luar infiltrava e banhava o quarto de prata.
Diana inclinou a cabeça para trás quando as alças da camisola
deslizaram pelos ombros, e o tecido caiu em seus pés. Abriu um pouco os
olhos; tudo o que enxergou foi o desejo latente nas íris escurecidas de Luthor.
— Você é linda.
Então, ele a ergueu do chão, em uma súbita demonstração de força que
a fez ofegar. Diana enterrou os dedos nos cabelos dele, beijando-o, sentindo a
pressão do corpo dele sobre o seu, e quando as mãos dela retesaram, Luthor a
deixou cair na cama.
Com o sangue queimando e bombeando velozmente, ela estendeu os
braços, agindo rápido para livrá-lo das roupas, as mãos descendo pelas costas
de Luthor, sentindo seus músculos.
— Esquentadinha... Você me faz perder completamente a razão. — E
beijou o pescoço dela, arrepiando-a.
Eles caíram um sobre o outro, o corpo musculoso de Luthor se
apertando contra o dela de um modo enervante. Diana enfiou as mãos no
cabelo dele e o puxou para ela, arfando.
— Agora.
— Por que a pressa? — ele sussurrou em um tom provocativo,
mordiscando seus lábios, e desceu a boca para a linha do pescoço dela,
roçando a pele, a curva dos seios, a barriga, demorando-se nas coxas, para
então refazer o caminho para cima.
A tortura lenta fez a pulsação dela acelerar ainda mais.
Diana arfou; e então, a boca dele estava sobre a dela outra vez, um
beijo mais ávido, que transformou a lenta corrente em uma inundação
ardente.
Os braços de Luthor a prenderam de encontro ao peito, pele contra
pele; as pernas de Diana o envolveram, e a faísca seguinte foi como uma
onda elétrica no sangue.
Suas unhas cravaram nas costas dele, e Luthor não parou, indo mais e
mais fundo nela, deixando-a ofegante, até que não houvesse mais nada além
do fogo e da escuridão.
26
Flores brancas
O ar estava fresco, perfumado com a fragrância das flores brancas.
Diana olhou em volta, banhada pela luz do luar.
Estou sonhando.
Era a mesma campina, com o bosque e o abismo. A mesma campina
onde vira Luthor pela primeira vez. Mas ela não se lembrava das flores.
Ao longe, escutava a música que sempre pairava naquele sonho.
Enxergou uma figura se movendo pela entrada do bosque, e esperou
ver Luthor, mas, para sua surpresa, a silhueta tomou a forma do seu irmão
gêmeo.
— Diego!
O abismo rugiu de repente; garras escuras se elevaram.
— Cuidado, Diego! Ela vai nos puxar para dentro do abismo!
Ela correu, correu, correu até ele. Veio o escuro, uma quietude total.
Diana esfregou a mão no rosto, tentou recuperar o fôlego, colocando-se
protetoramente na frente do irmão.
— Não vou permitir que te machuquem, Diego. — A mão dela
apertava o pulso de Diego. Não o soltaria. Não o abandonaria na escuridão,
como fizera dezessete anos atrás.
— Para achar o que procura, você precisa olhar para além da dor, Di.
Enxergar o campo atrás das lágrimas.
Eram as mesmas palavras do cartomante misterioso.
— Olha, Di. Escute — ele sussurrou. — Não é como a melodia que
você tocava no piano?
Conduzida pela voz dele, Diana forçou os olhos na escuridão. O som
era lírico, doce. Ela pensou na infância, nas tardes doces e chuvosas, nas
noites em que tocava piano e Diego ficava encenando uma dança clássica ao
seu lado. Sorriu, embargada pelas lembranças.
Relaxando os ombros, ela afrouxou o aperto em torno do pulso de
Diego, libertando-o pouco a pouco.
— Estou aqui, Di. Sempre estarei aqui.
Ela esfregou os olhos, afastando as lágrimas. E então enxergou de novo
a luz da lua, raios prateados que avançavam como lanças, incidindo sobre as
flores brancas.
Eram as mesmas flores brancas que Luthor comprara da florista e lhe
dera de presente. Seriam as mesmas flores brancas da lenda de Orfeu, que
Miríade estava colhendo no campo, quando Letyne a viu?
O coração de Diana deu um salto no peito.
A música vinha das flores.
— São Edelweiss, Diego! — ela quase gritou de alegria, cobrindo a
boca com as mãos. — Flores brancas para encobrir rosas negras!
◆◆◆

Diana acordou com o nome de Diego nos lábios.


Abriu os olhos, sentando-se sobre a cama, o coração descompassado.
Ainda era noite. Arrepiou-se com o frio do aposento.
— Que bela visão.
Ela olhou para Luthor, depois para si mesma; ainda estava nua, e os
cabelos longos caíam sobre os ombros e seios, contornados pela luz do luar.
E então voltou a fitá-lo; as íris dele crepitavam de desejo, tocando-a com
beijos de fogo. Toda a paixão da última hora reverberava e ardia em ecos por
seus sentidos.
Antes que pudesse dizer alguma coisa, Luthor se moveu, cobrindo a
boca dela, as mãos trilhando suas coxas possessivamente, e toda a pele de
Diana incinerou, ansiando por ele outra vez.
Ela queria contar sobre o sonho, as flores e o irmão, mas tudo se
evaporou com a pressão do corpo dele sobre o dela, dominando-a, tomando-a
de novo, até que restasse apenas sua respiração ofegante.
— Acabou, bonitão? — Ela sorriu, mexendo-se preguiçosamente na
cama, as pernas entrelaçadas as dele e aos lençóis.
— Com você? — Os dedos de Luthor contornaram os lábios dela de
forma lenta e provocante. — Posso fazer isso a noite toda.
Diana não duvidou daquilo. E, embora uma parte gritante dela
desejasse ficar ali para sempre, sabia que as prioridades eram outras.
— Acho que tenho uma nova pista sobre o paradeiro da harpa — ela
contou. — Da harpa verdadeira. Envolve um campo de Edelweiss.
Luthor arqueou as sobrancelhas, e ela contou sobre o sonho.
— Se eu fechar os olhos, consigo escutar a melodia da harpa. Antes, eu
só ouvia o rugido do abismo. A dor que sentia por perder Diego. Agora, a
música está mais alta. Quero procurar pelo campo que nós dois sonhamos.
Tenho certeza que ele está aqui, em algum lugar.
— Há inúmeras campinas em Viena. Será como procurar agulha no
palheiro, esquentadinha.
Diana apoiou a mão no peito dele.
— Não será. Confie em mim. Você confia em mim?
— Sempre.
Nada mais precisou ser dito; em pouco tempo, eles trocaram de roupa,
agasalharam-se com mantos e deixaram o chalé. Descartaram a carruagem e
montaram o cavalo. Sob as brumas, a noite não parecia acolhedora. Luthor
instigou o cavalo, e eles galoparam, guiados pelo caminho que Diana
apontava. Pelo caminho onde a melodia a chamava.
Por favor, Diego. Que eu esteja certa. Não te salvei, meu irmão, mas
posso salvar Heloísa e Duda. Por favor. Me ajude.
A melodia ficou mais alta.
Eles afundaram em silêncio pela escuridão de um bosque fechado,
salpicado da luz pálida da lua.
— Estou ouvindo — ela disse, o manto esvoaçando com os cabelos às
suas costas. — Está cada vez mais nítido.
A trilha se abriu aos poucos, desembocando em uma saída clara,
marcada pela cor prata do luar. Diana ofegou quando o céu brilhou acima
deles outra vez. Estavam em um campo repleto de Edelweiss.
“Flores brancas para encobrir rosas negras”.
Diana desceu do cavalo, girando nos próprios pés, o vestido e o manto
se abrindo como um leque para o vértice da noite.
— É o mesmo lugar...
— Do nosso sonho — Luthor completou, fascinado. — A campina
onde nos vimos pela primeira vez. Era aqui, era esse lugar de Viena. Mas não
me lembro das flores.
— Porque só é possível enxergarmos o campo se olharmos para além
da dor. Você e eu somos pessoas feridas. Mas acho que esta jornada
partilhada lado a lado amenizou o fardo, e agora podemos enxergar.
— Incrível. — Havia admiração no olhar dele, gentileza ao roçar os
dedos pelo tapete florido. — Ali é a entrada do bosque que sempre aparecia
nos sonhos, ali é a trilha que você fez para vir até mim, e ali...
— Ali era para estar o abismo que nos devora. — Diana encarou a
planície coberta de grama e flores. — Mas não há nenhum abismo.
— Melhor para nós. — Ele sacou a espada, o metal retinindo na
bainha. — Consegue sentir a harpa em algum lugar?
Diana fechou os olhos, guiando-se pela melodia carregada pelo vento.
Podia visualizar o sorriso de Diego, e sorriu de volta, como se ele estivesse
ali, junto dela. Ainda de olhos fechados, ela andou pelo campo. Não temeu
em momento algum, sabendo que Luthor estaria por perto.
Aqui. Ela abriu os olhos. Estava diante de uma rocha grande e lisa.
Roçou os dedos pela pedra, procurando por alguma fissura, alguma abertura.
O coração batia alto, a melodia era maravilhosa.
— Estranho. Sinto que está aqui, e ao mesmo tempo não está. É como
se um véu a cobrisse. Como tiro esse véu?
— Da mesma forma como você se fez de bússola quando abri o portal.
Com seu sangue, Diana. O sangue de uma Incantevole.
Ela entendeu o que ele queria dizer.
Com cuidado, sacou a adaga e estendeu a mão, abrindo um pequeno
corte na palma. Gotas vermelhas caíram sobre a superfície da pedra.
— As portas do destino são uma só — sussurrou. — E aqui, nesta noite
e neste tempo, elas se abrem para mim.
O luar brilhou intensamente.
Foi como um tecido feito de luz e estrelas se dissolvendo diante dos
seus olhos. Diana prendeu o ar, emocionada. A harpa de Orfeu cintilou na
escuridão, revelando-se perante ela.
— É maravilhosa.
Seu sangue gritava em harmonia ao instrumento.
— A harpa que roubei há tanto tempo. — A voz de Luthor embargou, e
Diana se surpreendeu quando ele se ajoelhou, como se estivesse perante um
altar, e enterrou a ponta da espada na terra. — Perdoem-me, amigos. Nesta
noite, os erros do passado finalmente serão reparados.
Diana deu a ele um momento de silêncio. Quando Luthor ergueu os
olhos, ela tocou o colar babilônico que carregava o selo do portal.
— E agora?
— Agora temos que levar a harpa para seu local de origem. E tenho
certeza de que a música que suas mãos fizeram dela quebrarão o feitiço da
sua irmã e da sua sobrinha.
Uma emoção forte a envolveu; mas a mente de Diana trabalhava
rápido, ainda insatisfeita com as lacunas daquela história.
— Por que a harpa veio parar em um campo de flores brancas? Um
campo igual ao que Miríade colhia flores? Um campo onde Letyne e ela se
viram pela primeira vez, quando a música permitiu que a Vasilíssa andasse
pela luz pela primeira vez também?
Correntes rangeram no ar antes que ela fizesse a próxima pergunta;
Diana ofegou e sentiu a pressão na garganta tarde demais.
— Boa noite, vecchio amico — Maximus sibilou, comprimindo a
corrente do mangual em volta do pescoço de Diana. — Está na hora do nosso
acerto de contas.
27
Queda inevitável
Florença, Itália
Ano de 1492

Com relâmpagos riscando de azul o céu enegrecido, tão bravios e


ensandecidos quanto os seus olhos, Maximus alcançou a ponta do penhasco.
Sangue manchava suas mãos e suas vestes; sangue de Isabelle, sangue
da traidora que ele mesmo derramara. Se não podia ter Isabelle, mais
nenhum homem a teria. E assim que saltasse do penhasco, no coração dos
rochedos, se uniria a ela para sempre.
— Posso te presentear com uma dádiva maior do que a morte.
O vento sibilou com aquela voz, e Maximus se virou. Aquela que falara
estava em pé, sobre uma elevação. Era de uma beleza extraordinária e fria,
de cabelos escuros adornados com rosas negras, e lábios tentadores como o
inferno.
— Quem é você?
A neblina baixa espalhou-se como um cortinado, se abrindo feito seda
quando ela a atravessou e parou diante dele.
— Há muitos nomes para mim. Em sua língua, me chamam de Letyne,
a Vasilíssa do Rio das Almas, soberana do Mundo dos Mortos, prisioneira do
Submundo.
Maximus esticou a mão, tentando tocá-la; seus dedos cobertos pelo
sangue de Isabelle a atravessaram, e ele arquejou.
— É um demônio!
Ela riu, os olhos iluminados pelos raios.
— Estou aprisionada. Venho até você através de uma ilusão, graças ao
seu inimigo que me alimentou com um pouco de poder.
— Luthor? — o nome saiu como um rosnado da boca de Maximus.
— Ele trilhou uma descida sombria, deixou que minhas mãos tocassem
a harpa capaz de me libertar, mas se arrependeu e a mandou para longe. Só
que eu o amaldiçoei antes que ele deixasse o meu Submundo.
— Por que Luthor faria isso?
— Para ter Isabelle de volta.
O nome de sua amada reverberou em seus ouvidos, e a cólera o
incinerou.
— Ele jamais a terá de novo! Não permitirei!
— Isabelle foi arrancada de você. — Ela tocou o peito, o manto
vermelho esvoaçando para trás. Ele viu a saliência pálida de seus seios
sobressaindo, acima do corpete de rendas apertado de seu vestido. Sentiu
uma excitação aterradora mesmo com o medo ardendo nas veias. —
Conheço o sentimento, pois também tiraram uma parte de mim.
— Quem foi tirado de você?
— Não importa para você, jovem mortal. Quero vingança pela minha
perda, assim como você quer vingança pela sua.
— Já me vinguei. Em breve, me unirei a ela.
— Tolo. — Letyne riu. — Se tirar a própria vida, jamais estará junto
de sua Isabelle outra vez. Mas, se trabalhar para mim, lhe darei a alma dela.
Ela será sua por toda a eternidade. Poderá possuí-la da forma que apenas
um homem pode possuir uma mulher. Luthor jamais a tocará. Ela será sua,
apenas sua.
Maximus sorriu, e o branco dos dentes reluziu em contraste com a
noite.
— O que tenho que fazer?
— Darei a você o mesmo que dei a Luthor. Minha rosa imortal. E
darei um pouco mais também. Você sobreviverá às passagens do tempo,
caçando pela harpa de Orfeu. Quando a trouxer para mim, junto da
Incantevole que poderá tocá-la, eu lhe entregarei a alma de Isabelle.
Trovões rugiram sobre o penhasco.
Maximus caiu de joelhos diante dela, em uma entrega total. O peito
incinerou ao toque de Letyne, como se estivesse sendo rasgado de dentro
para fora.
— Receba minha marca como um símbolo do nosso pacto.
A rosa negra desabrochou na pele dele; o urro proferido ecoou pela
noite, sobrepujou a tempestade, enquanto servo e mestra se entrelaçavam em
raízes sombrias.
◆◆◆

Atualmente

A atmosfera densa serpenteava pelo campo de Edelweiss, palpitando


nos ouvidos de Luthor.
Achou que conhecia o medo, que havia sido anestesiado após perder
Isabelle, trair os amigos e ser amaldiçoado por Letyne. Achou que enfrentaria
os anos imortais com a mente limpa e gelo feroz nas veias.
Até Maximus surgir das sombras, tão rápido que ele sequer sentiu o
cheiro inimigo, e apertar a corrente do mangual contra o pescoço de Diana.
— Se tentar se mexer, Incantevole — Maximus grunhiu no ouvido dela
—, morre. Se abrir a boca, Incantevole, morre. Se tentar tomar a harpa ou
salvá-la, Luthor, ela morre.
As nuvens encobriram o luar. O mundo ficou mais lento ao redor de
Luthor, a espada em punho nas mãos. Diana o encarou. Os dois sabiam que
não importava o quanto ele fosse rápido, o quanto ela fosse rápida, o golpe do
inimigo seria mais veloz, esmagador e mortal. Quase podia ouvir os ossos do
pescoço dela quebrando.
— Solte-a, Maximus.
Maximus sorriu e inclinou a cabeça para ver os olhos de Diana. Os
olhos dela semicerram; sinal de que o ar estava faltando.
— Por quê? Quando eu pedi que devolvesse minha noiva, você não me
obedeceu.
— Isabelle não era sua propriedade. — Ele trincou os dentes.
— Em breve, ela será. Toda minha. — Maximus roçou o nariz contra a
lateral da garganta de Diana, que ficou rígida. Só de vê-lo fazer aquilo,
Luthor foi tomado por uma ira selvagem. — Eu poderia quebrar o pescoço da
Incantevole tão facilmente. Mas a Vasilíssa precisa dela viva e da harpa.
Quando eu as entregar, Isabelle será minha.
— Deixe os mortos em paz. Já atormentamos demais a alma dela.
O campo urrou e bufou. Luthor testemunhou a terra rachando; fumaça
subiu da abertura, fumaça do fogo negro do Submundo.
O abismo que víamos no sonho. Ele está aqui. Está se abrindo.
— Assim que a Vasilíssa abrir a passagem, a Incantevole, a harpa e eu
saltaremos nos braços dela.
Luthor riu, um riso frio, gelado.
— Sabe que saltarei atrás de vocês no instante seguinte.
— Eu sei — sibilou. — Minha Vasilíssa foi clara. Só preciso te matar.
Quando você voltar à vida, já estaremos longe daqui.
Com um movimento veloz até mesmo para os olhos de Luthor,
Maximus moveu o mangual; várias correntes saíram da esfera espinhenta,
entrelaçando-se ao corpo de Diana e a imobilizando.
Mais rápido ainda, Maximus jogou Diana no chão e soltou o mangual
do resto das correntes, girando a arma ao lado do corpo e partindo para cima
de Luthor. Usando a espada, Luthor se esquivou e defendeu os golpes
giratórios, que vinham de cima para baixo.
As pontas das chamas negras começavam a sair da fenda.
A corrente do mangual urrou no ar; Luthor se esquivou para a direita,
saindo da linha de ataque de Maximus, o movimento permitindo que ele
cortasse a pele do braço do oponente.
Maximus praguejou e continuou girando o mangual; o golpe veio de
baixo para cima, acertando a perna de Luthor e o derrubando no chão.
— Luthor! Luthor! — Diana gritou, debatendo-se, tentando se livrar
das correntes que a prendiam.
Maximus partiu para cima dele outra vez; com destreza, e ainda no
chão, Luthor ergueu a espada e enganchou a lâmina na corrente do mangual;
a pressão das armas presas uma a outra era como uma medição de força dos
dois rivais.
Os olhos de Maximus eram assassinos.
O mesmo olhar da noite em que matara Isabelle.
Ignorando a dor na perna, e atingindo pela vibração daquela memória,
Luthor desferiu um chute em Maximus, atirando-o para frente e lançando o
mangual para trás.
A lua saiu de trás das nuvens. Luthor se apoiou na espada,
cambaleando, sentindo a perna regenerar, ao mesmo tempo em que o corte de
Maximus se fechava e ele se movia para perto do mangual.
As labaredas negras cresciam a cada segundo.
Não dando trégua, Luthor partiu para cima de Maximus, com a guarda
da espada pronta para desferir um golpe cortante e frontal na cabeça dele;
Maximus foi rápido, fazendo um movimento de pêndulo com o corpo,
escapando da ira da lâmina.
O instante seguinte foi fugaz; percebendo as intenções do oponente,
Luthor saltou e emendou outro golpe lateral, e simultaneamente, Maximus
agachou e tentou atingi-lo com o mangual.
Encararam-se, um de frente para o outro.
Ao lado deles, onde antes flores brancas formavam um tapete para a
noite enluarada, um abismo profundo havia surgido.
— A Vasilíssa está esperando por mim, pela harpa e pela Incantevole,
vecchio amico. Vamos acabar logo com isso.
Maximus avançou; Luthor se defendeu, travando o mangual na espada
outra vez. A fumaça do abismo formava uma cortina espessa. Ofegando,
Luthor inclinou a espada, penetrando a ponta da lâmina no peito de Maximus.
O rival sorriu, e Luthor só sentiu no último segundo o punhal que foi
enfincado em suas costelas.
O grito de Diana ecoou na noite.
Já havia perdido Isabelle e traído seus amigos. A queda fora inevitável.
Não permitiria que Letyne colocasse as mãos em Diana ou na harpa.
Ele procurou pelos olhos dela; e, naquela imensidão que os atravessou,
murmurou as palavras que saberia que ela ouviria.
“Como aço, serei seu escudo. Como fogo, me espalharei à sua volta.
Deste dia, e até o último da minha existência”.
E, agarrando-se em Maximus, jogou o corpo para trás; os dois caíram
no abismo do Submundo, e Luthor só teve tempo de ver o último brilho da
lua antes que a fenda se fechasse acima deles e a escuridão reinasse.
28
Descida
Um silêncio sepulcral cobriu o campo quando a fenda se fechou,
tragando a fumaça, o fogo negro, Luthor e Maximus para seu interior.
As correntes afrouxaram em volta de seu corpo, libertando-a.
À luz da lua, Diana encarou a terra escurecida, onde as chamas do
abismo haviam queimado. Sobre a rocha, a harpa permanecia intocada.
O choque veio logo em seguida.
Luthor!
Luthor havia caído; havia se jogado com Maximus no abismo.
Em desespero, ela tateou a terra, lutando para segurar as lágrimas;
lágrimas seriam um sinal de derrota, e não aceitaria a derrota. Procurou por
um sinal, um suspiro, alguma coisa.
— Não, não, não, não, não.
Aquele não podia ser o fim.
Depois do que pareceu um século de busca, ela se sentou sobre as
flores brancas e abraçou os joelhos, encarando a harpa de Orfeu.
A mente voltou para dezessete anos atrás; para o dia em que perdera o
pai e Diego. Foi invadida pelo gosto do medo, pela memória de estar
escondida no banheiro, enquanto gritos guturais enchiam sua casa.
Não. Não. Não.
Diferente de seu pai e de Diego, Luthor estava vivo. Seu coração
gritava que ele estava vivo. Porém, eternamente aprisionado no Submundo.
O vento soprou as nuvens frente à lua, e o breu beijou o campo.
Com os olhos marejados, enxergou alguém ao longe. Franziu o cenho,
pronta para apanhar a adaga e proteger a harpa. Não deixaria que o sacrifício
de Luthor fosse em vão.
Esperou, a guarda erguida.
Camuflada nas sombras da noite, viu a pessoa esticar o braço, e soltar
algo que segurava entre os dedos.
O vento soprou um papel fino até os pés de Diana.
Ela piscou; era a carta da Roda da Fortuna.
— Ithuriel? — balbuciou, apanhando a carta, procurando pela pessoa
no outro lado do campo.
Mas assim que as nuvens descobriram o luar, a silhueta esvaneceu.
Diana encarou a Roda da Fortuna, tocou o colar babilônico no pescoço.
Poderia voltar para seu mundo, seu tempo, salvar a irmã e a sobrinha, levar a
harpa para um local seguro.
Contudo...
“O passado nos molda, abre caminhos que nos conduzem pelos liames
da vida. Mas, para alguns, o passado se torna uma corrente que precisa ser
quebrada. Uma corrente para a roda girar. Sua roda não gira porque a roda
dela não gira. Há correntes no seu passado, há correntes no passado dela”.
As palavras de Ithuriel pesaram sobre a consciência, um estalo que a
fez ofegar alto.
— Não vai acabar — ela murmurou, o vento soprando seus cabelos. —
Não vai acabar, porque a Roda da Fortuna não está girando. Estamos parados
no mesmo lugar há séculos.
Era aquilo que Ithuriel e as cartas haviam tentado lhe dizer?
Que as portas do destino não a tinham levado até ali para proteger a
harpa, mas sim para quebrar as correntes?
Proteger a harpa apenas retardaria os planos de Letyne. Não podia se
esquecer de que a Vasilíssa possuía uma “nova fonte” de poder. E se, em
alguns anos, ela tentasse outro mortal, seduzisse com seus jogos outra pessoa,
outro Incantevole, para colocar as mãos na harpa?
Porque a Vasilíssa do Rio das Almas queria vingança.
De quê? De quem?
As histórias não contavam. Mas, se aquelas perguntas não fossem
respondidas, Diana temia que aquela batalha nunca teria um fim.
Além disso, ela já havia perdido demais.
E perder Luthor não era algo que aceitaria de bom grado.
Desta vez, não ficarei escondida no banheiro. Desta vez, encararei as
sombras.
Tomada por um ímpeto fulguroso nas veias, Diana se ergueu, os dedos
envolvendo o colar babilônico que continha o selo para abrir um portal para
onde desejasse.
Heloísa, Duda, me escutem, pensou com força, como se estivesse
materializada ao lado das camas hospitalares. Aguentem. Eu salvarei vocês.
Mas, primeiro, para garantir que nenhum mal volte a alcançá-las, precisarei
quebrar as correntes de uma história antiga. Só assim, a roda voltará a
girar.
Abrindo os olhos, Diana arrancou a esmeralda do colar babilônico.
Lançou a pedra no campo, ordenado que o portal se materializasse.
Estava na hora de caçar pelas pontas soltas.
Houve um rugido, um tremular, uma sensação de que a terra se partiria
aos seus pés. Diana se manteve firme e esperou. O ar e o espaço se rasgaram
em dois, abrindo uma nova fenda no chão, chamas dançantes tomando a
formas de escada de ondas escuras.
A entrada do Submundo de Letyne.
Pegou a harpa, o sangue dançando em contato com o ouro melódico.
Não adiantaria deixá-la para trás; ela era a chave de tudo.
“E se eu te disser que a música é a chave de tudo?”.
Aproximou-se da entrada bufante do Submundo, para o caminho que
estava prestes a trilhar, e do qual não sabia se retornaria. Mas, para acabar
com tudo, precisava voltar para onde tudo começara.
“Às vezes, parece que tudo acaba em um caminho sem volta.
Geralmente, é um caminho sem volta; mas há quem acredite em um caminho
que leva e traz”.
A voz de Ithuriel foi como um abraço invisível; era estranho como se
conectara ao cartomante, às palavras, sendo que o vira apenas uma vez.
Quem era ele? Por que estava sendo seu guia?
Agitou a cabeça; não era hora para questionamentos.
Ela olhou para o abismo, para a escadaria de ouro negro reluzente, até
o último ponto da escuridão. Podia jurar que a escuridão a encarou de volta,
jurar que ouvira milhares de raízes se contorcendo sob a terra.
Não acuou, não temeu.
E, com a harpa em mãos, começou a descer pelo mesmo caminho
trilhado por Orfeu milhares de séculos atrás.
PARTE III
Correntes de Espinhos
Porque será contado uma última vez.
Sobre outrora, sobre o Tempo e a Terra.
Era uma vez...
29
Sonho indistinto
Um tempo muito distante

A escuridão era seu berço. As almas navegantes eram seus pertences,


até que a roda girasse e elas estivessem prontas para voltar para a luz, em
uma nova carne e matéria.
Para que o equilíbrio existisse, ela fora designada para aquela tarefa.
Fora criada na noite pelo próprio enigma de Cronos e Gaia, o tempo e a
terra, e na noite deveria reinar. Seria bela e imortal, uma Vasilíssa do
Submundo, uma guardiã do crepúsculo dos homens. Alguns a chamariam de
morte, alguns lhe batizariam de outros nomes. Inferna, Letyne, Persephassa,
Proserpina. E ela permaneceria, imutável e certeira.
Jamais poderia andar sobre o mundo dos homens; a escuridão que a
vestia engoliria a luminosidade pulsante do sol e das estrelas. Um desejo
sombrio poderia dominá-la, e a necessidade de preservar a imortalidade a
faria se alimentar das almas e da beleza dos mortais que encontrasse pelo
caminho. Se quebrasse as leis do equilíbrio, uma punição sôfrega e terrível
seria infligida sobre ela. Algo pior do que a morte que guardava.
Fora o que o Oráculo do tempo e da terra previra.
Sem escolhas, ela cumpria o dever com a honra suprimida. Às vezes,
na quietude do serpentear das águas correntes, no eco do Tártaro, a solitude
a agarrava feito raízes densas. Jamais vira outro ser, mortal ou imortal, que
ainda respirasse.
A solidão do silêncio era uma eterna companheira no Submundo.
Então, de onde vinha aquela canção melódica, que penetrava as
profundezas da terra e calava o lamurio do Rio das Almas?
Um sonho indistinto?
Mas uma criatura como ela era incapaz de sonhar.
E, pela primeira vez em eras, como reinos se erguendo das cinzas e
dos ossos dos homens, ela deixou o trono de espinhos e se esgueirou pelos
complexos túneis sombrios, a melodia ficando mais e mais alta.
Algum mortal encontrara a entrada do Submundo? Algo daquela
natureza não era impossível, mas praticamente improvável. Qualquer mortal
pereceria pelas descidas labirínticas antes de alcançar o coração da
Vasilíssa e do Rio das Almas.
A cauda negra de seu vestido se arrastava pelo chão pedregoso
conforme ela subia pelas escadas espiraladas, caçando pela origem do som.
Nenhum sinal de alguém vivo em seus domínios. Como a música a estava
alcançando, então? Com a curiosidade despertada, a Vasilíssa subiu mais e
mais e mais e mais.
Viu-se diante da saída do Submundo, o véu entre os vivos e os mortos.
Do outro lado, a luz brilhava, como se bailasse à melodia e à voz
lírica.
Ela não era prisioneira do Reino Inferior, contudo, não deveria sair.
Se saísse, poderia permanecer pouquíssimo tempo na luz. As leis do
equilíbrio regiam o mundo antigo por uma razão. Era melhor não sair.
Mas...
A música.
Ela apenas queria ver de onde vinha aquela cantiga que a chamava.
Erguendo o queixo, a Vasilíssa abriu os braços e afastou o véu
translúcido. Avançou pela terra, os olhos atingidos por uma claridade que
não estava acostumada. Entreabriu os lábios, surpresa; havia algo
agradável no toque do sol.
E, assim, ela deu o primeiro passo sobre a terra, avançando por trilhas
verdes, beijada pelo perfume da brisa, magnetizada por aquela voz delicada.
Por onde passava, as saias esvoaçantes do vestido sopravam mantos
escuros, riscando a luz do dia. Por onde passava, os homens e as mulheres
gritavam e se recolhiam.
“Aiónia nýchta”, aldeões berravam apavorados.
“Noite eterna”.
Mas ela apenas queria descobrir a origem da canção e da melodia.
Não iria devorar ninguém. Não iria queimar a luz de ninguém.
A trilha se abriu em um campina florida; o dourado do sol brilhava
sobre o tapete de flores brancas. Muito ao longe, sob uma árvore, um jovem
tocava uma harpa de ouro. Aquele instrumento ecoava direto em seu
coração.
Uma harpa mágica.
Não era algo feito pelos homens, mas sim pelas musas, crias do tempo
e da terra, suas irmãs da luz. Talvez, por isso, tivesse sido capaz de escutar a
melodia. Ela, as musas e a harpa carregavam em seus âmagos a mesma
essência.
Entretanto, não era ele quem cantava. Não era dele a voz cálida e
magnética.
Distante do jovem, ela enxergou uma moça apanhando flores,
cantando docemente enquanto enchia seu cesto. Ela cantava, embalada pela
melodia da harpa.
Algo se agitou na Vasilíssa; um furor, um desespero, uma coisa
inominável, mesmo para alguém que já existia há muitas eras.
A harpa mágica havia feito a voz da garota penetrar nas fronteiras do
Submundo e chegar até ela. Mas por quê?
Olhou-a; a jovem era bela. Uma beleza que poderia sugar e devorar.
Mas ela não queria devorá-la.
A voz... A canção singela...
A Vasilíssa fechou os olhos, contemplativa. Aceitaria a escuridão
eterna de bom grado, se apenas tivesse essa voz ao seu lado.
O vento ergueu, soprando como lâminas em seus cabelos. A noite
exalada por seus poros brigou com o resplandecer pulsante do sol. A
Vasilíssa chiou, e sem nenhuma dignidade, escorregou e rolou pelo campo,
buscando por um esconderijo. Aquilo ardia. Aquilo queimava. Ela não era
um ser do dia.
A melodia cessou bruscamente.
A Vasilíssa se contorceu, buscando refúgio nas sombras das árvores.
Maldita luz. Maldita quentura. Precisava voltar para seu Submundo. Já
estava ofegante como os porcos criados pelos humanos.
Passos rápidos e afoitos tilintaram pela trilha de cascalhos. A
Vasilíssa comprimiu os olhos. Era a moça da voz lírica e do cesto de flores
brancas. Ela se ajoelhou ao seu lado, oferecendo um cantil de água.
— Por favor, beba. O sol deve estar forte para a senhora.
Por que a mortal não a temia? Por que a mortal a ajudava?
A Vasilíssa não aceitou a água. O sol, que antes a abraçava
gentilmente, agora começava a queimar sua pele com finas agulhadas.
Olhou para longe; o rapaz continuava tocando a harpa, imerso na
própria música feita por seus dedos, e não notara que a garota se afastara. A
Vasilíssa voltou a olhar para ela. Os cabelos encaracolados, brilhantes como
os olhos, estavam enfeitados com flores brancas.
— Não sabe quem sou, garota?
— Sei sim, senhora. Fui ensinada a honrar todas as criações do tempo
e da terra. A senhora é uma delas. — A garota espanou poeiras imaginárias
do vestido lilás, e fez uma mesura respeitosa, que, para a Vasilíssa, apenas
seres da luz eram dignos de receber. — Perdão, senhora. Não me apresentei.
Meu nome é Miríade.
30
Berço da escuridão
A longa descida era marcada por uma escadaria íngreme, talhada
por pedras rústicas e afiadas. Diana tentou não olhar para as colunas que
ladeavam os degraus; fios de sangue vertiam dos seixos.
Comprimiu a harpa nas mãos, tomando cuidado para não tropeçar; uma
penumbra rochosa marcava o ambiente, criando a imagem trêmula de uma
caverna de tempos esquecidos.
Agora tinha certeza absoluta de que Leon jamais havia passado por
algo como aquilo. Quando voltasse para seu mundo e para seu tempo, a
pontuação de experiências sobrenaturais dela ficaria milhares de quilômetros
à frente da dele.
A cada passo no coração da escuridão, um grito feminino reverberava
por entre as paredes. Diana sentia a harpa vibrar em suas mãos cada vez que a
voz torturada se elevava.
Para não se ater aos gritos ou aos infinitos crânios empilhados nas
paredes de pedra, Diana tentou repassar mentalmente tudo o que Luthor lhe
contara sobre a origem de Letyne. Qualquer informação analisada de um
novo ângulo poderia ser um diferencial no encontro para o qual caminhava.
“Tanto Letyne quanto as musas que abençoaram a harpa e os
Incantevoles são filhos do tempo e da terra. Pense neles como entidades além
da compreensão humana, e chame-os como quiser”.
Veios de lava escorriam por entre os crânios.
— Tempo e terra, tempo e terra — sussurrou quase como um mantra,
desviando a vista dos esqueletos pendurados por correntes no teto. — A
Vasilíssa e os Incantevoles são ramificações das mesmas raízes.
“Mas cada ramo destas raízes desabrochou para um lado”, quase
podia sentir os lábios de Luthor roçando no lóbulo de sua orelha. “As musas,
e consequentemente os Incantevoles, cresceram para cima, para a luz,
enquanto a Vasilíssa teceu seu caminho para baixo, para a escuridão”.
A narrativa se cortou antes que relembrasse a lenda de Orfeu, Miríade e
Letyne quando a escadaria se findou na abertura arcada de um corredor. No
teto, candelabros de ossos e velas iluminavam o caminho.
— Se Duda quiser fazer uma festa de Dia das Bruxas esse ano —
murmurou para si mesma, avançando pelo corredor, o coração batendo na
garganta —, já sei de onde vou tirar inspiração para a decoração.
Outra onda de gritos femininos gelou seu sangue.
Sua audição reconheceu que era uma única voz, um único sonar.
— Estranho...
Bom, o que não era estranho naquele lugar?
Diana continuou seguindo em frente, o cheiro de enxofre se
intensificando. Havia um tremular em suas pernas, uma vontade quase
inóspita de se virar, voltar para a escadaria e deixar aquele lugar para sempre.
Mas, para quebrar as correntes daquela história antiga, para permitir
que a Roda da Fortuna girasse, iluminar o que fora ocultado e garantir que
mais nenhuma ameaça caísse sobre sua família e seus futuros descendentes,
sabia que tinha que continuar.
E não estava disposta a perder Luthor de jeito nenhum.
Onde você está? Onde você e Maximus caíram?
Sabia que ele tinha sido gravemente ferido pelo rival; um golpe que
deveria tê-lo matado outra vez.
Será que, àquela hora, ele já havia se regenerado e despertado?
Para onde olhava, nas partes mais escuras, tinha a impressão de que
pequenos olhos a espreitavam.
Os gritos agudos eram intercalados com um silêncio fúnebre.
Seus passos se reduziram ao fixar os olhos em algumas partes das
paredes rochosas, cobertas por tecidos finos, que embrulharam seu estômago
ao fazê-la pensar na pele humana.
Vou me arrepender disso, mas... Droga!
Diana esticou a mão, tocando a borda do tecido; quase gritou quando a
camada de pele se contorceu, como se fosse uma fibra muscular.
Acelerou os passos, indo para o mais longe que conseguiu, os cabelos
claros cintilando no berço da escuridão.
O corredor se alargou, e ela se viu em uma espécie de salão circular
esculpido em rochas. O ar era denso e ácido.
Diana ofegou.
— Luthor!
Ele estava caído sobre uma pedra lisa, iluminado por uma estranha luz
bruxuleante, a espada abandonada próxima de sua mão.
O coração dela bateu alucinadamente.
Diana fez menção de correr até ele; algo grunhiu acima de sua cabeça,
e, com um movimento veloz, saltou diante dela, à frente de Luthor.
Os olhos dela se arregalaram em choque, o reconhecimento
assimilando seus sentidos.
Puta merda!
Era um servo, mas com poucos aspectos humanos. O corpo parecia o
tronco de um homem, mas suas feições eram as sombras das feições de um
javali. As presas saíam para fora da boca, feixes de sangue escorriam dos
olhos absurdamente negros. Na mão, um machado cintilava.
— É assim que vai me receber em seus domínios, Letyne?
O servo partiu para cima dela; num ato impulsivo, desarmada e
sozinha, Diana ergueu a harpa de Orfeu na frente do seu corpo.
Houve um impacto que retiniu por todo o salão.
O machado atingiu a harpa em cheio e trincou nas mãos do servo.
Diana encarou o instrumento de ouro intacto.
O servo grunhiu e rosnou; Diana rolou pelo chão, ganhando tempo para
sair da linha de confronto. Ele exibiu as presas, se preparando para atacá-la
outra vez.
Diana se preparou para contra-atacar outra vez; antes que sequer se
movesse, o servo emitiu um grito de dor.
Sangue negro e malcheiroso espirrou para todos os lados.
Ela arquejou quando a criatura cambaleou e explodiu em milhares de
partículas de fumaça.
O quê...?
Ergueu o rosto para o homem em pé à sua frente.
— Um verdadeiro espírito de porco — Luthor praguejou, sangue negro
escorrendo da lâmina da espada. Ele estreitou os olhos para cima de Diana, e
ela jurou que aquele olhar poderia lacerá-la a qualquer instante. — E o que
diabos você está fazendo aqui embaixo, esquentadinha?!
31
O barqueiro
— O que estou fazendo aqui embaixo? — Diana piscou, incrédula. —
Deixe-me ver... Ah, as passagens para o Submundo estavam em oferta, daí
decidi aproveitar a oportunidade. Sabe, amo fazer um tour por lugares
sombrios, com esse toque de enxofre no ar e paredes que vertem sangue.
Luthor encrespou o cenho; a espada pendendo na mão. Diana ficou
com vontade de estapear a própria cara. Talvez a cara dele.
— Vim atrás de você, seu idiota! Achou mesmo que eu iria voltar para
o meu tempo e meu mundo, e te abandonar?!
Diana não sabia se a expressão dele era de surpresa ou fúria.
— Diana...
— Mas calma lá, bonitão. — Ela ergueu a mão, agitando a harpa de
Orfeu. — Não vá se achando. Também desci até aqui para encerrar essa
história de uma vez por todas.
— Essa história só terá um desfecho quando a harpa estiver a salvo. —
A voz dele era baixa. — E você a trouxe até as mãos do inimigo.
— Não. Nós não nos atentamos aos detalhes. Esta jornada nunca foi
para recuperar a harpa e levá-la para um lugar seguro, e sim para quebrar as
correntes que impedem a Roda da Fortuna de girar. Uma metáfora, é claro.
Está na hora de todos seguirem em frente, e para isso eu preciso resolver as
pendências do passado. Descobrir do que Letyne quer tanto se vingar —
Diana ergueu o dedo, impedindo-o de falar —, e nem adianta me dizer que
ela quer vingança por ter sido aprisionada eternamente no Submundo. Esse
argumento já não cola mais.
O semblante de Luthor permanecia impassível.
— E você chegou a essa conclusão...?
— Com base nos indícios que colhi, na falta de informações da lenda
de Orfeu e nas palavras do cartomante. Juntei todas as peças do quebra-
cabeça, e decidi que não ficaria escondida no banheiro dessa vez. — O
coração dela rugia no peito. — Usei o selo do colar babilônico para vir até
aqui, em vez de ir até minha irmã e minha sobrinha. E eu nunca tomaria uma
decisão dessas impulsivamente, pois elas são tudo para mim. Para garantir
que elas nunca mais serão feridas, não adiantará apenas proteger a harpa, pois
a batalha entre os filhos do Tempo e da Terra continuará. É preciso arrancar
as raízes das rosas negras e das flores brancas. Então, saiba que o que arde
em mim é a razão certeira de que eu deveria estar exatamente aqui.
Um emudecimento surpreso riscou as cores mais escuras dos olhos de
Luthor, e Diana notou como o ritmo da respiração dele arqueou, infligida por
algo que se entremeava às barreiras onde ele se mantinha.
E então, ele a beijou; a boca aberta sobre a dela, a mãos contornando os
ombros, a curva do seu corpo, a puxando para perto. Uma trilha de calor
explodiu dentro dela, e Diana correspondeu ao beijo, agarrando-se a Luthor
como se o véu de escuridão do Submundo pudesse envolvê-los e separá-los
outra vez.
— Aceitei cair nesse abismo conscientemente, aceitei passar minha
imortalidade aqui, se isso significasse pagar a dívida com os Incantevoles. —
Luthor se afastou alguns centímetros, correndo as mãos pelos cabelos dela.
Diana abriu os olhos aos poucos. — Mas só o céu e o inferno sabem o quanto
me doeu pensar que jamais voltaria a vê-la ou tocá-la. Tenho medo que você
seja uma ilusão criada pela Vasilíssa.
— Não sou. — Diana segurou a mão dele, encaixando-a em seu rosto.
— Sou real. Estou aqui. Quebraremos as correntes juntos. Encontraremos o
caminho de volta. E sairemos de mãos dadas desse buraco.
Uma corrente de vento espiralou por eles.
— Diana...
— Nada de discursos emocionados ou declarações agora, bonitão. O
tempo corre contra nós. Sabe como podemos chegar ao salão da Vasilíssa e
ao coração do Rio das Almas? — Diana girou nos calcanhares. — Esse lugar
é um labirinto.
Luthor ficou pensativo por um minuto; os olhos sombreados.
— Nunca acessei tão profundamente os domínios de Letyne. Quando
quase entreguei a harpa para ela, nosso encontro foi nos primeiros degraus do
Submundo. — Luthor silenciou, e Diana imaginou que ele estava revivendo
aquela noite sombria nas memórias. — Mas, pelo que as lendas Incantevoles
contam, há somente uma forma de chegar ao salão da Vasilíssa. Mas não sei
se ele nos deixará passar.
◆◆◆

Tris estremeceu, entreabrindo os olhos. Havia caído no sono. Esfregou


o rosto, procurando por Leon, Helen ou Lúcio.
Devem estar vigiando o corredor e todo o perímetro, caso mais servos
apareçam.
Olhou em volta; estava mal ajeitada na poltrona do quarto de Heloísa e
Duda. Mãe e filha continuavam inconsciente, as peles marcadas por veias
negras, que a faziam pensar em tatuagens espiraladas.
Com cuidado, Tris se levantou, aproximando-se das duas camas
hospitalares. Os médicos não tinham conseguido detectar nada anormal nelas.
Os exames de sangue estavam normais, os órgãos internos funcionavam
corretamente e não havia sinais de infecção. Mas elas não abriam os olhos.
E Tris sabia que não acordariam enquanto Diana não retornasse.
Juntou as mãos, em uma prece silenciosa, pedindo às suas estrelas-
guias que cuidassem das três; que Heloísa e Duda aguentassem mais tempo, e
que Diana voltasse a salvo para elas.
Uma brisa suave agitou seus cabelos avermelhados.
A psicóloga abriu os olhos; pequeninos pontinhos de luz cirandaram
perto da porta, como se quisessem lhe mostrar algo, e então desapareceram.
Passo atrás de passo, Tris seguiu o rastro deixado pela luz, deixando o
quarto, analisando o silêncio passivo do corredor. Concentrou-se, permitindo
que os sentidos se abrissem.
A intuição a guiou até uma parede branca e límpida. O peito de Tris
subia e descia de forma ritmada. Ela ergueu as mãos, tocando a superfície
gélida. Um arrepio subiu por sua espinha; era quase como se pudesse sentir
algo pulsando ali, feito um coração de sombras, luzes e raízes.
— Tris?
Ela olhou por cima do ombro; Leon, seu marido, havia voltado para o
corredor, e trazia um copo de café nas mãos.
— O que foi? — ele indagou, aproximando-se. — Você sentiu algo
diferente, não sentiu? Conheço suas expressões.
Tris assentiu; amava tudo em Leon, principalmente o fato de que não
precisava se explicar para ele em relação aos seus dons sensitivos.
— Onde Helen e Lúcio estão?
— Lá fora.
— Chame-os para mim, por favor. Eles precisam ver isso. — As mãos
dela continuavam pairando sobre a parede, a sensação de um coração
pulsando pelas palmas. — Tem algo aqui. E não sei se é bom ou não.
◆◆◆

Eles andaram por horas incalculáveis, avançando por entre a penumbra


e as rochas. Havia algo ali que fazia Diana se perder nos minutos e nos
segundos; uma sensação de que o tempo corria de uma forma diferente da
qual estava acostumada.
Não encontraram mais nenhum servo ou criatura sinistra pelo caminho,
ou qualquer sinal de Maximus. Diana queria se sentir aliviada, mas a dança
da escuridão incutia um desconforto inquietante e constante.
Ela estremeceu quando os gritos recomeçaram, arrepiando sua pele.
— O que foi? — Luthor sussurrou ao lado dela, a espada empunhada
em modo defensivo, pronto para rasgar as trevas.
— Os gritos... Gritos de uma garota, eu acho. Gelam minha alma. —
Ela volveu o olhar para ele, franzindo os lábios ao analisar seu semblante. —
Você não está escutando, não é?
— Nada além do silêncio e do movimento distante das águas.
Que ótimo, Diana conteve um suspiro trêmulo. Só ela estava sendo
assombrada por aqueles gritos terrificantes.
A mão de Luthor envolveu a sua, e eles continuaram atravessando as
paredes rochosas, o ar adensando a cada passo.
Aos poucos, o caminho se abriu, iluminado por tochas de fogo negro
suspensas no ar. Juntos, eles andaram até a margem do rio que rugia sob a luz
bruxuleante.
— Este é o Rio das Almas?
— Não. Para chegarmos ao Rio das Almas, precisamos atravessá-lo.
— Como?!
Ela encarou a correnteza diante deles; eram ondas de enxofre e fogo,
arrastando no seu curso rochedos retumbantes.
Como um véu de trevas e breu, as águas se abriram.
Diana prendeu a respiração quando o viu; sobre uma onda imóvel, uma
barca de madeira podre deslizava, conduzida por um ser de vestes negras,
cujo capuz ocultava a face.
— O barqueiro dos mortos — Luthor sussurrou para ela.
A criatura conduziu a barca até eles, atracando na margem. Diana só
percebeu naquele instante o quanto apertava a mão de Luthor.
O barqueiro movimentou o rosto encoberto pelo capuz, um menear
lento para a harpa que ela segurava na outra mão.
— Usará a harpa para me enfeitiçar, Incantevole, assim como vosso
antepassado ardilosamente fez?
Diana precisou travar os joelhos para não tremer ou sucumbir diante
daquela voz tão antiga, tão rouca, tão fúnebre.
Então Orfeu chegou ao salão da Vasilíssa e ao coração do Rio das
Almas.
— Não — ela respondeu, encarando os olhos selvagens do barqueiro.
— Estamos aqui para consertar o passado e fazer a roda girar outra vez. E
tudo será feito da forma correta.
Torceu para que sua voz houvesse soado firme e decisiva.
— Para atravessar em meu barco — ele estendeu a mão cadavérica —,
os mortos precisam pagar uma moeda ou vagar por cem anos nos arredores
do meu rio.
— Não temos cem anos. — Diana trincou os dentes. Medo e raiva
borbulhavam dentro dela. — E também não temos moedas.
— Sem moedas, os mortos não atravessam.
— Não estamos mortos, então a lei do pagamento não se aplica a nós.
— Luthor deu um passo à frente, a espada em punho. — E também não
usaremos feitiços para enganá-lo.
O barqueiro oscilou a cabeça.
— O cheiro da rosa negra da Vasilíssa está impregnado em você,
selador imortal. Ela o marcou... Há muito tempo. Assim como ela foi
marcada... Há muito tempo.
— Sua Vasilíssa é filha do Tempo e da Terra, assim como as musas
que abençoaram os Incantevoles e a harpa. Assim, sou uma filha do Tempo e
da Terra também. E exijo passar para acertar as pendências que tenho com
ela.
A harpa vibrou em sua mão, e Diana precisou segurá-la com força.
Um som estranho chiou do barqueiro quando os estranhos gritos
femininos recomeçaram.
Ela piscou.
Ele também consegue ouvir os gritos.
— A rosa negra... Há muito tempo, a Vasilíssa não tinha nenhum
símbolo, porque os mortos são gentis. Os espinhos foram causados pelos
vivos. A dívida pulsa por todos nós. — O barqueiro estendeu o braço, em um
movimento que fez Diana pensar em um pêndulo. — Poderão fazer a
travessia em meu barco, mas, sem o pagamento, não estarão envolvidos pela
proteção que ofereço para as almas que atravesso. Aceitam a condição?
— Aceitamos.
— Subam. E eu os levarei para as profundezes onde somente um
homem vivo conseguiu chegar.
32
Dez mil flores
Fogo ardia por entre as ondas, a fumaça espiralando para o alto,
perdendo-se nas sombras. Diana sentia calor, um estalo tenso contra a pele, e
ao mesmo tempo era assolada por um frio mais gelado que um cemitério
escuro e nevoento.
O barco e o barqueiro compunham uma harmonia sombria, como notas
que faziam os dedos de Diana ansiarem por tocar a harpa. Conforme desciam
pela correnteza, aquela vontade mordia a mão dela.
Queria tocar. Queria música.
A pressão era avassaladora e sufocante.
— Estou aqui, esquentadinha. — A mão de Luthor se fechou sobre a
dela. — São as forças de Letyne agindo. Não toque a harpa aqui embaixo.
Suor manchava o rosto afogueado de Diana.
— Eu sei. Uma nota, e o que a prende aqui embaixo poderia
enfraquecer, mas... — Ela estalou o pescoço, arfando baixo. — Está cada vez
mais difícil. E a harpa é a chave de tudo.
Luthor entrelaçou os dedos aos dela.
— Mas se há alguém forte neste barco, este alguém é você.
Diana tentou sorrir, não conseguiu, e então retribuiu o aperto da mão
dele. Em toda sua vida, nunca havia gostado da ideia de precisar de alguém,
mas ter Luthor ali não a fazia se sentir fraca ou indefesa. E aquele era um
sentimento novo e surpreendente para ela.
— Há flores brancas em seus cabelos — ele murmurou, tocando as
mechas claras que caíam pelos ombros dela. — Devem ser do campo. Quer
que eu as tire?
— Não — murmurou baixo. — Não, deixe-as aí.
Os gritos femininos recomeçaram em algum momento, e Diana fechou
os olhos, lutando para empurrá-los para longe. Havia algo naqueles gritos que
impeliam seus dedos a tirar uma melodia da harpa.
O barco se movia pelas águas de fogo e enxofre; ora parecia ir rápido,
ora parecia ir terrivelmente devagar.
— Por que o tempo parece tão estranho aqui embaixo? — ela
perguntou, forçando a mente a se desviar do eco dos gritos.
— O Submundo é um lugar atemporal. Todos os tempos e épocas estão
conectados aqui. Entramos por uma passagem aberta no século XIX, mas
podemos sair no século XXI, pela passagem certa. É nossa única alternativa.
Meus poderes como selador não vão nos ajudar aqui.
— E como encontramos a passagem certa?
Luthor meneou a cabeça. E então, para surpresa de Diana, ele estalou
os dedos no ar, ao mesmo tempo em que balançava o tronco em um ritmo
desengonçado.
— O que é isto?
— Minha dancinha da sorte. Talvez, com ela, a gente consiga encontrar
a passagem para nosso mundo.
Diana não acreditou que seria possível, não naquele silêncio aterrador,
não naquele rio de fogo, conduzidos por um barqueiro sinistro, que mais
parecia ter saído de um pesadelo; mas ela riu até que as costelas começassem
a doer, fazendo Luthor rir junto.
Um vento denso rodopiou por eles, como se fosse feito de lâminas e
ódio. Diana estremeceu, assolada por um arrepio atordoante.
— Ela não gosta do riso — sussurrou, e voltou a segurar a mão de
Luthor, buscando pela força que só encontrava nele. — Ela não é feliz.
— Quem seria feliz em um lugar sombrio como esse?
— É mais do que isso. Muito mais do que isso.
Eles silenciaram; o barco oscilou quando quase colidiu com rochas
pontudas; as águas de fogo respingaram, e Luthor se colocou em frente de
Diana, protegendo-a. Ela o escutou pigarrear de dor, os respingos queimando
a pele dele.
— Luthor...
— Não se preocupe, esquentadinha. — Ele esticou a mão para ele;
havia várias queimaduras visíveis. — Daqui a pouco cicatrizarão.
As pernas de Diana balançavam, irrequietas. Ela esperou e esperou,
mas as queimaduras continuaram ali. O olhar de Luthor, antes divertido, foi
coberto por sombras inquietas.
Diana encarou o barqueiro.
— Por que as queimaduras não sumiram? Ele se regenera.
— As águas de fogo são a derrota do Tempo e o sufoco da Terra. Não
há cura, imortalidade ou magia que resista ao toque dela. Até mesmo os
mortos que conduzo a temem, por isso pagam uma moeda por proteção. — A
barca tomou uma curva, e Diana sentiu que estavam descendo cada vez mais.
— Atracaremos às margens do Salão da Vasilíssa e do Rio das Almas em
breve.
◆◆◆

— O que vocês acham? — Tris juntou as mãos; um suor frio umedecia


as palmas lisas. Os sentidos pulsavam, e a energia do ambiente chiava, em
uma silenciosa transmutação. Leon se mantinha próximo, como se algo
pudesse atacá-la a qualquer momento.
— Há algo aqui. — Lúcio deu um passo para trás, encarando a parede
branca do hospital. — Não consigo sentir como você, mas há uma vibração
que faz meus sentidos de caçador se agitarem.
Helen anuiu, concordando com o marido.
— Você só começou a sentir isso agora, Tris?
— Sim. — Ela olhou na direção do quarto de Duda e Heloísa; era
como se uma mão invisível comprimisse seu peito, um alerta sufocante. —
De alguma forma, está ligada a elas, às veias negras que se espalham por seus
corpos. Seria bom espalhar algumas ervas de proteção nas camas.
Diana, por favor, volte logo, Tris implorou. Não sei por quanto tempo
ainda conseguiremos segurar essa energia carregada que paira aqui.
◆◆◆

A barca atracou em uma praia de pedras escuras.


Eles desceram de mãos dadas. Tochas flutuantes serpenteavam de luz
trêmula o caminho das sombras. Colunas gigantescas se elevavam para um
teto alto. O ar ali era frio e retorcido.
Se fechasse os olhos, Diana podia ouvir o fluxo do Rio das Almas, uma
correnteza mais melancólica que as águas de fogo.
— E as queimaduras? — perguntou para Luthor.
— Ardem. Fazia tempo que eu não me lembrava da dor.
Tanto os passos dela quanto os passos dele se reduziram ao pararem
diante de um par de portas ônix, de quase quatro metros de altura.
— Sinto muito. Você tentou me proteger, e achou que...
Luthor silenciou-a com um beijo leve nos lábios.
— Sentir dor me faz sentir mais humano. É isso que quero ser quando
estou com você, nem que seja por apenas alguns instantes. Humano.
Algumas lágrimas pinicaram o fundo dos olhos dela; Diana não as
afastou, mesmo sendo alguém que odiava chorar.
— Quando tudo acabar, você ficará ao meu lado?
— Não sei se suportaria viver sabendo que te perderei.
— Entendo. — O coração dela comprimiu no peito. — Você
continuará jovem, e eu envelhecerei. Você não quer me ver velha.
— Eu continuarei na Terra quando você não estiver mais. O Tempo
será meu carrasco. Vagarei sabendo que jamais voltarei para os braços da
mulher que amo, nesta vida e em outra. Seus braços, Diana.
Sem conseguir se conter, Diana jogou os braços em volta do pescoço
dele e o abraçou; o coração rugia alto nos ouvidos.
— Sinto muito — sussurrou. — Sinto muito por não ser capaz de usar
a magia Incantevole para quebrar sua maldição.
— Você já quebrou, Diana. — Luthor a segurou pelo queixo, buscando
seus olhos.
— Mas você ainda é imortal.
— Sou, mas não me sinto mais um monstro. E isso, esquentadinha, é
maior do que qualquer maldição quebrada.
Diana inclinou o rosto para beijá-lo; os gritos horripilantes
recomeçaram, feito punhos de aço sobre sua vontade. Ela arquejou, recuando
alguns passos, o ar entrando em um assovio doloroso por seus pulmões.
A harpa de Orfeu cintilou em suas mãos.
— Diana!
“Flores brancas para encobrir rosas negras”
Ela deslizou os dedos por uma das cordas da harpa; e foi tragada para
uma noite longínqua.
Viu um círculo de flores brancas, uma linha fina sobre a terra brilhante,
contornada por um tracejar prateado. Dentro desse círculo estavam duas
mulheres, uma vestida de preto, uma vestida de branco. Suas vozes fluíam
como música, as mãos entrelaçadas, os rostos próximos.
Próximo a elas, havia um cálice de bronze, com frutas vermelhas.
Sementes de romã.
Letyne, com o vestido preto esvoaçando ao seu redor, ofereceu o cálice
para a mulher de vestido branco. Ela o tomou em suas mãos e levou uma
semente de romã aos lábios, os olhos jamais se desprendendo da Vasilíssa.
Não era medo ou submissão que havia nas íris claras, e sim uma aura dourada
de fogo e felicidade.
“Miríade... Dez mil vidas, dez mil flores... E ainda não seria
suficiente”.
As imagens esvaneceram quando Luthor segurou a mão de Diana,
afastando-a da harpa.
— Acorde! Saia desse transe!
Ela arfava, atordoada, confusa, enlaçada por um choque único.
— A garota, Luthor... Miríade...
Houve um estalo, um rangido, um eco que acompanhou o movimento
das portas de ônix que se abriram diante deles.
Ela estava sentada em um trono de espinhos, sombreada pelas tochas
que queimavam fogo noturno.
Dez mil rosas negras formavam um tapete entre a entrada e o trono.
A Vasilíssa do Rio das Almas era ainda mais bela e aterradora do que
as visões de Diana tinham lhe mostrado. Vestes escuras elegantes, um lindo
rosto pálido sob cabelos longos, lábios vermelhos em um sorriso perverso.
Nenhuma coroa adornava sua cabeça, apenas rosas negras.
Ela era um sonho. Ela era um pesadelo.
E, ajoelhado diante da Vasilíssa, com uma corrente em volta do
pescoço, feito um prisioneiro torturado, Diana encontrou olhos iguais aos
seus.
A alma de Diego, seu irmão gêmeo, estava acorrentada à Letyne.
33
Porque será contado uma última vez
Um tempo muito distante

Miríade atravessou a trilha formada por entre as sombras verdes


das profundezas da floresta. Com o cair da noite, nenhuma lua, nenhuma
estrela, conseguiu romper a escuridão. E mesmo assim, ela não sentia medo.
O manto esvoaçava sobre seu vestido branco, e o capuz encobria os
cachos claros que emolduravam os traços delicados do rosto.
Já andava há horas pela floresta, e embora não houvesse um rumo
certo, sabia que seus pés a levariam para onde seu coração desejava chegar.
Baixinho, ela entoava uma canção para a noite e para todos os mistérios
concebidos pelo Tempo e pela Terra, os deuses cultuados pelo seu povo. De
pouco em pouco, ela se agachava e colhia as flores brancas que surgiam
pelo caminho, formando um pequeno buquê perfumado.
Quando alcançou uma clareira, foi atraída por mais flores, e se
ajoelhou sobre a relva. Cantava baixinho, enviando cada nota da canção
para baixo, feito raízes que alcançariam a terra mais profunda.
Subitamente, as árvores farfalharam acima de sua cabeça.
Houve uma ondulação no ar. Uma pálida sombra na crista do
horizonte.
Do vértice da escuridão, uma mulher de beleza avassaladora emergiu.
O coração de Miríade galopou no peito ao fitar a Vasilíssa do Rio das
Almas. Desajeitadamente, ela se levantou e fez uma reverência respeitosa.
— Minha senhora. Tenho deixado oferendas no templo erguido aos
filhos do Tempo e da Terra. Oferendas para você.
O semblante da Vasilíssa era um manto escuro e impenetrável.
— É sua a música que penetra em meu Submundo?
Miríade assentiu, comprimindo o buquê nas mãos. Todos os homens e
mulheres de seu povoado, inclusive Orfeu, a criticavam por fazer oferenda
para alguém que viva nas sombras. Todos os homens e mulheres de seu
povoado estariam tremendo diante de uma criatura implacável como a
governanta do Rio das Almas.
Mas não ela.
Porque havia um arco de seu coração que entoava a mesma melodia
do arco da noite. Certo, único e verdadeiro.
— Não sabia se você me ouviria, senhora. Daquela vez, no campo, a
harpa de Orfeu carregou a minha voz de magia. Eu podia sentir. Em todas as
noites que se seguiram, era apenas a minha canção no templo, e nada mais.
Ansiei, esperando que viria em meu encontro outra vez.
— Por quê, garota?
— Há muito tempo, o Oráculo previu que, quando a Roda da Fortuna
girasse, um filho do Tempo e da Terra seria meu destino e meu fim. —
Miríade forçou os olhos a se manterem cativos aos olhos da mulher beijada
pela escuridão. — A senhora é uma filha do Tempo e da Terra.
Ansiedade vibrava por cada centímetro de Miríade.
Não houve nenhuma comoção no rosto da Vasilíssa.
— Há um mortal que espera por ti. Um mortal abençoado pelas musas.
Um Incantevole. De certa forma, ele é um ramo do Tempo e da Terra, assim
como eu.
O coração de Miríade latejava nos ouvidos.
— Orfeu faz uma bela música com as mãos, mas não é a minha
melodia.
— Ele é um Incantevole, um ramo crescido na luz.
— Mas é apenas na noite que encontro conforto, senhora.
— Você deve estar sob algum encantamento de um feiticeiro
traiçoeiro, para vir até mim e entoar tais palavras.
Miríade sentiu a pulsação acelerar, um desespero pungente agarrar
seu peito.
— Sei que as pessoas a temem, senhora. Sei que pareço jovem, simples
e ingênua. Sei que sou uma mera camponesa sem grandes fortunas ou
perspectivas de vida, fadada a um casamento que me dará filhos, se os
deuses assim desejarem. Mas garanto que não estou sob a influência de
nenhum feitiço.
— Nenhum mortal me diria isso por livre vontade. — A voz dela era
ríspida.
— Talvez... — Engoliu em seco, deixando que a sinceridade de seu
coração transbordasse pela boca. — Se há algum feitiço sobre mim, ele caiu
no momento em que a vi no campo de flores. A Roda da Fortuna girou para
mim e me mostrou o meu destino. Nunca, em toda a minha vida, senti algo
tão certo como naquele momento.
A Vasilíssa permanecia impassível diante dela; os longos cabelos
escuros esvoaçando nos braços do vento.
— Você sente também, não sente? — sussurrou baixinho.
Nenhuma resposta lhe foi dada. Mas algo no âmago de Miríade
gritava que a Vasilíssa do Rio das Almas também havia sentido o mesmo que
ela, e a solidão de toda uma era na escuridão do Rio das Almas a estava
impedindo de tocar aquilo.
Ou talvez ela fosse mesmo uma tola camponesa, como Orfeu dizia,
perturbando os filhos do Tempo e da Terra, procurando por um significado
que traria paixão e pertencimento em sua vida sem graça.
Comprimiu as mãos, controlando a vontade de tremer e chorar.
— Você veio de tão longe, Miríade.
O sussurro sereno do seu nome na boca dela mitigou o fulgor interno,
e a jovem se ajoelhou perante à soberana da noite, oferecendo a ela o buque
de flores brancas.
— Vaguei até que meus pés, donos da própria vontade, me guiassem
até você — Miríade murmurou. — Assim como sei que minha voz, um dia, a
guiou para mim. Permita-me abraçar as portas do meu destino. Elas são
uma só. Elas são você.
A Vasilíssa aceitou o buquê, e Miríade, pela primeira vez, enxergou
pequenos lampejos de luz na noite fechada de seus olhos.
— Não posso andar pelo sol com você. E são raras às vezes em que
posso andar pela escuridão do mundo humano. Aqui não é o meu lugar.
Miríade ergueu o rosto, estendendo a mão para ela.
— Então leve-me para onde verdadeiramente minha música pertence,
senhora.
— A noite é solitária. — A mão da Vasilíssa pairava no ar, quase
roçando a pele dela. Miríade ansiou por segurá-la; era um desespero que
roubava seu ar, pulsava pelas veias, muito vivo, muito intenso. — No
Submundo, há apenas silêncio e morte. As histórias já traçaram o meu
destino lá embaixo, Miríade.
— As histórias são fadadas a mudar, assim como as estações, Letyne.
O vento soprou sobre elas, perfumado e misterioso.
— Como disse?
— Perdoe-me. Posso chamá-la de Letyne? Foi como ouvi seu nome a
primeira vez, em uma cantiga de roda, quando ainda era uma menina. —
Não sabia de onde estava tirando coragem para falar de tal forma com a
Vasilíssa, contudo, a regência das palavras suprimia o medo e a vontade. —
Eu...
— Sobre as histórias.
— Ah, sim. Não há solidão que dure para sempre, nem mesmo para
uma jovem camponesa como eu, nem mesmo para uma divindade como a
senhora. Acredito em destino, e acredito no livre-arbítrio. Estou aqui, diante
de você, embalada por uma mistura de ambos. As histórias vão mudar, se
desejarmos reescrevê-las. — Miríade sorriu. — As novas histórias contarão:
“Escute-me. Porque será contado uma última vez. Sobre outrora, sobre o
Tempo e a Terra. Era uma vez...”.
Miríade não conseguiu terminar de falar; a mão de Letyne envolveu a
sua, erguendo-a do chão. O buquê caiu sobre a terra; as flores se
espalhando como um tapete branco ao redor das duas. Tudo dentro dela era
fluxo e refluxo, como o rebentar das ondas e das marés. E quando suas bocas
colidiram, Miríade soube que sua mente, sua alma e seu coração haviam
sido forjados pelo Tempo e pela Terra como pares de luz de tudo o que
compunha os toques de escuridão da Vasilíssa do Rio das Almas.
34
Acorrentados
Não foram as dez mil rosas negras de pétalas aveludadas ou a mulher
sombria sentada no trono de espinho que fizeram Diana estremecer e quase
cair de joelhos pela primeira vez em anos.
O mundo inferior se fechou como uma compressa ao redor dela; tudo o
que ela enxergava eram os olhos sofridos de Diego, as correntes que saíam do
corpo dele e o prendiam no trono da Vasilíssa do Rio das Almas. Ele estava
com aparência de um adolescente de treze anos, os mesmos cabelos claros e
os mesmos traços fortes que se eternizaram em seu corpo quando fora
raptado e assassinado.
Maltratado. Machucado.
O Rio das Almas rugia nas extremidades do salão.
Diana só percebeu as lágrimas quando as sentiu escorrer lentamente
por seu rosto atemorizado.
— Eu diria “bem-vindos ao meu mundo” — a Vasilíssa entreabriu um
sorriso de canto —, mas não quero atrapalhar esse reencontro.
— Ele está...
— Morto. Esta é a alma dele, que nunca se deitou em meu Rio. — Ela
soergueu as correntes; o rangido fez Diego estremecer, como se milhares de
lâminas o penetrassem. — Porque estas correntes nunca permitiram.
“Diana”.
“Diego”.
“As portas do destino... São uma só...”.
As pernas de Diana vacilaram, e, feito cordas rebentando no abismo,
ela caiu de joelhos diante da alma machucada de Diego.
Luthor sacou a espada, apontando-a para Letyne.
— Solte-o — vociferou. — Este é mais um dos seus truques.
— Não é um truque. Ele é meu há dezessete anos. Cada grito dele é um
combustível que renova minhas forças.
Entremeada pela fúria e pelo medo, Diana ergueu o rosto para ela,
comprimindo a harpa com força.
“Desta vez, nossa Vasilíssa possui uma fonte de poder que nunca teve
em nenhum outro século”, as palavras do servo que matara no bosque
ecoaram em sua cabeça. “E ela está se fortalecendo para devorá-los!”.
— Ele é sua fonte de poder — sussurrou em um fio de voz.
Letyne anuiu; as rosas negras eram uma composição sombria em seus
longos e escuros cabelos.
— Ele descende da linhagem Incantevole, assim como você, embora
não tenha magia manifestada no sangue. Mas bastou encher o corpo dele com
minhas rosas e sugar sua vitalidade, para transformá-lo na fonte que restaurou
parte da minha força perdida.
Diana ergueu a mão, os dedos trêmulos ansiando tocar o rosto de
Diego. Seu irmão se retraiu, emitindo um ruído agudo e animalesco.
Letyne riu.
— Dezessete anos ajoelhado diante do meu trono, sendo chicoteado e
torturado, roubaram o brilho e a sanidade dele.
Diana mal conseguia respirar. Tinha consciência da proximidade de
Luthor, embora tudo o que enchesse seus olhos fosse Diego.
— Por quê? — vociferou para a Vasilíssa. — Por que está fazendo isso
com ele? Comigo? O que tanto quer para nos machucar assim?
— Seu antepassado a feriu. Estou apenas devolvendo o carinho.
As peças dançaram diante dela, encaixando-se pouco a pouco.
— Miríade. Você está falando de Miríade. É por causa dela que você
busca vingança da linhagem Incantevole, não é? — Diana indagou; não sabia
de onde extraía forças para aquilo. — As histórias contam que você a matou.
Mas isso não é verdade, é?
O Rio das Almas bufava em volta deles, espirrando água para cima. O
lamurio dos mortos que ali se deitavam era aterrorizante.
As feições da Vasilíssa se retorceram, terrivelmente humanas,
terrivelmente antigas.
— Eu jamais faria mal para aquela que desceu até aqui comigo e fez do
Submundo seu lar.
— Você a amava — Diana sussurrou. — Vocês duas se amavam.
A Vasilíssa não respondeu; mas a luz sôfrega nos olhos obscuros dela
foi toda a resposta que Diana precisou para entender.
Uma nova onda de gritos femininos arrebatou pelo salão.
Luthor girou nos calcanhares, a espada em punho, pronto para bloquear
qualquer ataque.
— Estes gritos são dela, não são? — Diana continuou falando, o
coração trepidando no peito. Em uma sala de interrogatório, fazia os
suspeitos cederam após envolvê-los em perguntas e argumentos. Ali, não
sabia ao certo que música tocava. Só uma certeza lhe tomava: tinha que
libertar seu irmão daquelas correntes. — O que aconteceu?
— Orfeu.
O nome ecoou pelas colunas gigantescas, atravessando o Rio das
Almas e as portas de ônix.
As correntes que saíam do trono se agitaram, machucando Diego.
Diana prendeu o ar, enterrando os dedos nas rosas negras que enchiam
o chão, os espinhos ferindo sua pele.
— O que ele fez?
— Seu antepassado fez jus ao egoísmo inerente da alma de um
humano. Não aceitou a derrota. Não aceitou a perda.
— Miríade veio viver aqui com você. Deixou a luz e o mundo humano
para ter a eternidade ao seu lado. — Diana supôs, recordando-se das visões
que tivera instantes antes de entrar no salão. — As histórias contam que
Orfeu desceu até o Submundo buscar a alma dela, achando que você a tinha
matado por inveja. Encantou o barqueiro e chegou até este salão, não foi? E
então, ele descobriu a verdade.
Notou o brilho de raiva — raiva não, algo muito mais profundo — nos
olhos da Vasilíssa e isso a surpreendeu. Imaginava que uma criatura que
descendia do Tempo e da Terra, e que governava o mundo dos mortos, fosse
capaz de controlar melhor as próprias emoções.
Letyne moveu a mão no ar; fios de água do Rio das Almas
serpentearam no ar, formando um espelho translúcido. Luthor mantinha a
espada apontada para ela. No espelho d’água, cenas se projetaram.
Diana viu que uma lua se erguia ao longo de um bosque antigo.
Miríade estava com as mãos entrelaçadas à de Letyne. A Vasilíssa ofereceu a
ela a taça com sementes de romã.
— A romã é um símbolo de união — Luthor sussurrou para ela. — De
casamento para os povos antigos.
A água ficou turva.
As cenas seguintes mostravam Miríade e Letyne no salão do Rio das
Almas. Governavam o Submundo juntas, entremeando luz e escuridão.
Miríade enfeitava os cabelos de Letyne com flores brancas enquanto cantava.
Diana esticou o braço na direção da imagem antes de enxergar apenas o
próprio reflexo e retirar a mão em seguida.
Seu coração batia na garganta.
Elas haviam encontrado felicidade ali.
Com o semblante endurecido, a Vasilíssa mergulhou os longos dedos
no espelho d’água; um redemoinho de imagens rápido encheu os olhos de
Diana e Luthor.
Orfeu trespassando a entrada do Submundo. Orfeu descendo as escadas
e túneis labirínticos. Orfeu usando a harpa para encantar o barqueiro. Orfeu
adentrando furioso no Salão, e descobrindo que Miríade havia descido até ali
por vontade própria.
— Sua mentirosa traiçoeira! — Orfeu praguejou, erguendo a harpa.
As águas do espelho se agitaram; ou eram os suplícios dos mortos no
Rio das Almas que fizeram o âmago de Diana estremecer?
— Esta criatura está te enganando, Miríade! Ela só quer sua pureza!
Ela ficará aprisionada aqui para sempre, e jamais poderá colocar as mãos
em você de novo!
— Não!
Uma energia bruta e pesada explodiu de Orfeu enquanto seus dedos
tocavam uma melodia profunda, lacerada de ódio e inveja.
Na visão, Letyne foi atirada para longe, o sulco de energia marcando
seu peito. Miríade se colocou na frente dela, protegendo a Vasilíssa.
— Se é assim, ambas pagarão por serem víboras traiçoeiras e
pecadoras!
Outra onda de magia Incantevole veio, atingindo Miríade. A garota se
fragmentou, esvanecendo-se diante da Vasilíssa que, ferida e machucada pela
música da harpa, não conseguiu impedir a fuga de Orfeu. As flores brancas
que decoravam o chão escureceram quando Letyne urrou, transformando-se
em rosas negras.
O espelho d’água se derramou e se dissolveu diante de Diana.
— Orfeu assassinou Miríade?
— Fez algo muito pior. Aprisionou a alma dela nos véus do mundo.
Ela não está viva, mas também não está morta — a voz da Vasilíssa era
baixa, um ruído saído de pesadelos tortuosos. — Ela sente dor, e eu não
consigo alcançá-la. Pois estou presa aqui, ferida, marcada e com pouca
energia. Há milhares de anos, ela sente dor. E tudo o que posso fazer é
escutar seus gritos, incapaz de lhe dar um descanso no Rio das Almas.
Diana ofegou; então aqueles gritos terrificantes, que escutara desde que
pisara no primeiro degrau do Submundo, eram mesmo de Miríade. Encarou a
Vasilíssa. Não conseguia imaginar como era para ela ter vivido aqueles
milhares de anos ouvindo a dor da amada o tempo todo.
— E por conta de Orfeu, está machucando Diana e o irmão dela? —
Luthor bradou. — Ele é o culpado de sua dor. Não os gêmeos.
Letyne estendeu a mão, fazendo Diego se arfar de dor.
— Uma dívida de sangue é eterna, e se estende para os descendentes.
Só um Incantevole pode pagá-la. Aquela que seu mentor profetizou.
— Não é justo! — Luthor bateu os dentes.
— Ora, você é aquele que conhece a lei do equilíbrio — ela ronronou,
provocativa. — Sabe como essas coisas funcionam. Neste exato momento,
estou pagando uma dívida com seu rival Maximus.
O nome causou um sobressalto em Diana e Luthor.
A Vasilíssa balançou a cabeça, os cabelos oscilando ao seu redor.
— Atrás de vocês.
Luthor se virou primeiro, a espada cantando no ar. Diana achou que
veria Maximus saltando sobre eles. Arfou ao enxergá-lo na entrada do salão,
aprisionando uma mulher em seus braços.
— Isabelle — Luthor murmurou, em choque.
— Prometi a Maximus a alma de Isabelle, caso ele me trouxesse a
Incantevole e a harpa. De certa forma, ele os trouxe até aqui. Minha dívida
está paga. Pode deixar meus domínios, Maximus. Ela é toda sua. Para
sempre.
Diana assistiu com horror o momento em que Maximus sorriu
perigosamente e deixou o salão, levando Isabelle consigo.
Luthor arfava, a espada na mão, o olhar se alternando entre Diana, a
Vasilíssa e as portas de ônix.
— Assim que Maximus deixar o Submundo, Isabelle pertencerá
completamente a ele. — A língua da Vasilíssa estalou. — Se a alma dela
voltar para o rio, ele não conseguirá tirá-la daqui.
Luthor arfou; um rosnado hesitante, raivoso.
Um desafio. Diana bateu os dentes. A maldita está impondo uma
escolha.
— Vá — pediu, tomando a decisão por ambos.
— Não posso deixá-la aqui com esta mulher.
— Sei me cuidar, Luthor. Pelo nosso juramento, salve Isabelle. Não te
quero carregando esse fardo. Vá. Por mim. Vá.
Relutando, Luthor assentiu e se virou, atravessando as portas e partindo
atrás de Maximus.
— Agora somos apenas nós, Incantevole.
Era isso que nós duas queríamos.
Diana se voltou para Letyne, ficando em pé outra vez. A Vasilíssa
moveu as correntes, causando uma nova onda de dor na alma de Diego. Ver o
suplício nos olhos dele lancetou o ar na garganta dela.
— Não me teme? — a Vasilíssa sibilou, os dedos tamborilando no
trono de espinhos.
— Não mais do que você me teme.
— Acha que eu a temo, mortal?
— Sempre há algo que tememos. Meu antepassado te causou dor e te
separou daquela que te entregou o coração. Você me causou dor e me
arrancou a minha metade, o meu gêmeo. Acho que estamos quites.
Um manto gelado espiralou em torno da Vasilíssa.
— Estamos muito longe de estarmos quites, Incantevole.
Reunindo todas as forças que vibravam em si, e implorando para que
Luthor resgatasse a alma de Isabelle e derrotasse Maximus, Diana avançou
mais um pouco pelo tapete de rosas negras.
— Deixe-me quebrar as correntes que prendem a alma de Miríade.
Estou com a harpa. Posso tocá-la. Em troca, você liberta de uma vez por
todas a alma do meu irmão. E os dois poderão descansar em paz.
O sorriso de Letyne a fez pensar no silêncio dos cemitérios.
— Ah, você quebrará, Incantevole. Mas não com a harpa.
— Eu...
— A harpa me prendeu no Submundo, e só as notas dela podem me
libertar. Foi o amor distorcido de Orfeu que amaldiçoou Miríade. Assim,
aquelas que você ama libertarão Miríade.
Levou apenas um segundo para que o corpo de Diana esfriasse. A pena
e a compaixão pela Vasilíssa se transformaram em um borrão escuro.
— Heloísa e Duda.
— Graças ao poder que tenho extraído por dezessete anos da alma do
seu irmão gêmeo, que possui um eco da sua descendência Incantevole,
consegui enviar minhas sementes para cima, para os corpos delas. Quando eu
me alimentar delas, até o último suspiro de vida, terei as chaves para quebrar
as correntes de Miríade.
Uma fúria fria escalava pelas pernas de Diana, o tremular típico que
antecedia uma batalha. Pisou sobre o tapete formado pelas rosas negras e
encarou a Vasilíssa.
— Liberte-o. E fique longe da minha família. Nós duas resolveremos
isso, aqui e agora. Sem envolver aqueles que amo.
Os gritos de Miríade ecoaram outra vez.
Diana observou a forma como Letyne contraiu os ombros, como se
carregasse ali um pesar amargo que havia sorvido toda sua sanidade, e então
a fitou, ainda mais ameaçadora e mortal.
— Não é assim que funciona. Seus antepassados possuem uma dívida
comigo, Incantevole. E você irá pagá-la. Desde sempre, este foi seu destino.
Ou no seu aniversário de treze anos, ou quando você fizesse trinta anos. Treze
e trinta. Treze musas abençoaram trinta Incantevoles, entre eles, nosso
“querido” Orfeu. Foi assim que a história começou. — Letyne a fitava com
os olhos de serpente. — Seu pai, como um descendente da linhagem de
Orfeu, sabia disso. Ele só não sabia qual dos gêmeos herdaria a magia das
musas. E tentou proteger os dois.
Feito relâmpagos luminosos, as memórias de dezessete anos atrás
lampejaram vorazes atrás dos olhos de Diana.
“No banheiro. Vocês dois! Agora mesmo!”
“Mas... Pai...”
“Diego, não questione! Cuide da sua irmã! Tranquem a porta. Não
façam barulho. Por tudo o que é mais sagrado, não façam nenhum
barulho!”.
— E seu irmãozinho cuidou de você, não é verdade? Se o cheiro do
sangue dele não houvesse confundido Maximus, você teria sido trazida para
mim naquela noite.
As correntes escuras rangeram nas mãos de Letyne; Diego urrou de
dor, rolando no chão como um animal torturado.
Lágrimas desesperadas caíam pelo rosto de Diana.
— Pare! Pare! Sua briga é comigo!
Letyne sorriu.
— Seu irmão tem sido torturado há dezessete anos por sua culpa.
Os gritos de Miríade encheram o Salão da Vasilíssa. Com um gesto dos
dedos sobre as correntes, Diego se contorceu; a dor dele se refletia em Diana,
fazendo-a afogar no próprio desespero.
— Vim aqui em uma tentativa de paz! — Diana arquejou, os olhos
furiosos sob as lágrimas. — Agora só quero esfregar sua cara nas pedras!
Não havia qualquer esboço de emoção na Vasilíssa.
— Todos querem. Esta é a minha sina, como filha da escuridão do
Tempo e da Terra. A única que não me temeu grita há milhares de anos por
minha culpa, e não há nada que eu possa fazer. Até agora. Até que sua
música viesse até mim.
Música.
“E se eu te disser que a música é a chave de tudo?”.
Chave. Chave para correntes.
O coração de Diana acelerou em sombras regeladas, tomado por uma
hipótese perigosa. Diego continuava se contorcendo; a dor da alma dele
alimentando as forças de Letyne.
Ela encarou a harpa, o frio do Submundo espiralando ao seu redor.
Soergueu o instrumento, trazendo-o em frente ao corpo.
— Você irá libertá-lo, por bem ou por mal.
Sombras caíram sobre o rosto de Letyne.
— O que está fazendo?
— Quebrando correntes. Sem meu irmão, você não terá nenhuma fonte
de poder. — A harpa cintilou na escuridão. — Você pode até tentar sair daqui
com esse cheiro fraco de poder que tem agora, mas vou te encher de porrada
antes que você tenha a chance de atravessar a passagem.
Não permitiu que a Vasilíssa se movesse.
Por Diego. Por meu pai. Por Heloísa e Duda. Por Luthor e seus
amigos Incantevoles. Por Isabelle. Por Miríade.
Por todos aqueles que tinham sofrido nos giros infelizes e
amaldiçoados da Roda da Fortuna.
Diana buscou pelos olhos do irmão e tocou as cordas da harpa; nunca
havia manuseado um instrumento como aquele, mas se entregou à melodia
como sempre se entregava às teclas do piano.
A música encheu o Salão do Rio das Almas.
A intensidade do que encheu seu coração era indescritível.
As correntes se soltaram do trono de espinhos, mas continuavam nos
pulsos fracos e magros de Diego. Ela tocou com mais força, visualizando a si
mesma e a Diego, em todas as fases da vida. Juntos. Ela jamais permitiria que
alguém o machucasse de novo. Eles ficariam juntos para sempre.
Então, a Vasilíssa riu.
Diana ofegou quando as correntes se elevaram no ar, envolvendo seus
braços e sua cintura, puxando-a para junto de Diego. A harpa caiu de suas
mãos, tilintando nas pedras.
— O quê?!
Uma onda de gritos de Miríade se misturou ao choque dela.
— A alma do seu irmão não encontrou o descanso no meu Rio das
Almas porque você não permitiu. — O sorriso de Letyne era ensandecido. —
Quem o acorrentou entre os véus do mundo foi você, Incantevole.
“Deixe-me ir, Diana. Deixe-me ir.”
“Não. Não quero te perder outra vez.”
“Deixe-me ir. Você precisa me deixar partir.”
“Não! Vamos sair daqui juntos!”
As imagens dos sonhos recentes com Diego a bombardearam,
regelando ossos e sangue.
— Não... Não...
As correntes comprimiram Diana com força, atando-a a Diego.
— Mas você estava certa em uma coisa. Você o soltou de mim. Estou
sem minha fonte de poder. — E foi então que Diana viu que a mão da
Vasilíssa, pouco a pouco, ficava translúcida.
Eu a atingi. Fui atingida também, mas ela está enfraquecendo de novo.
Diego está livre dela. Foi arriscado o que fiz, mas, em partes, deu certo.
Letyne a fitou, e Diana teve certeza de que aquela forma sombria havia
escutado seus pensamentos.
— A energia que sorvi da dor dele nesses dezessete anos será suficiente
para me levar até sua irmã e sua sobrinha. E a música que suas mãos fizeram
com a harpa para libertá-lo servirão como chave para quebrar a prisão criada
por Orfeu.
“E se eu te disser que a música é a chave de tudo?”.
Um estalo encheu o salão.
Os ramos espinhentos se quebraram e se moveram no trono,
transformando-se em um arco. Em uma passagem. Diana tinha a impressão
de enxergar um corredor hospitalar do outro lado.
— Não!
Letyne entreabriu os lábios.
— Não se preocupe, Incantevole. Em breve, as almas delas se
encontrarão com a sua e a do seu irmão. Bom mergulho.
E, com um movimento das mãos da Vasilíssa, as correntes foram
tragadas para o Rio das Almas, puxando Diana e Diego para o fundo das
águas sombrias.
35
Mudança de curso
Saltando sobre as pedras, Luthor avançou para fora do Salão da
Vasilíssa. Sombras de preocupação com Diana enevoavam seu coração.
Porém, não podia permitir que Maximus levasse Isabelle para fora do
Submundo e escravizasse pela eternidade.
Ele correu, correu e correu. O chão tornou-se pedregoso, abrindo-se
nas margens do rio de ondas escuras e flamejantes. O rio que poderia matá-
lo. Enxergou Maximus em cima do barco, com a alma de Isabelle.
Eram águas que também poderiam matar seu rival.
Brandindo a espada, Luthor acelerou e saltou, girando um mortal no ar,
caindo dentro do barco.
Maximus rosnou; Luthor não lhe deu tempo, e partiu para cima dele,
tentando golpeá-lo na cabeça. Maximus esquivou, girando o corpo e o
mangual, desferindo um golpe na diagonal, na direção de seu ombro.
Ágil, Luthor pulou, desviando da linha de ataque, e caiu com os pés na
borda do barco.
O barqueiro encapuzado permanecia impassível, as mãos cadavéricas
conduzindo-os pelo rio selvagem.
— Parem... — Isabelle sussurrou. — Parem, por favor... Não o
machuque, Maximus...
— Mesmo depois de morta, você ainda o defende, sua vadia?!
Maximus avançou com um rugido, atacando-o com o mangual; Luthor
bloqueou o ataque com a espada, a corrente da arma inimiga enganchando na
arma inimiga.
Encararam-se, medindo força.
— Este rio será seu túmulo, Luthor.
— É o que veremos!
Girando o corpo, Luthor soltou a espada e desferiu um chute no peito
de Maximus, desarmando-o.
Água de fogo negro espirrava dentro do barco, queimando-os.
Com os braços livres, atracaram-se em um corpo a corpo, socando,
chutando, defendendo e bloqueando um ao outro.
Maximus ergueu o punho, tentando desferir um golpe cruzado para
acertar o rosto de Luthor. Com um movimento de esquiva, Luthor escapou
por baixo dele, agarrando o corpo de Maximus; golpeou-o e projetou o corpo
do adversário para a borda do barco.
— Isabelle nunca será sua. Nem na morte, nem em outra vida —
sibilou para Maximus. — Você nunca mais poderá machucá-la.
E, com um golpe final, atirou-o para o rio de fogo.
O grito de Maximus ecoou pelas paredes do Submundo, enquanto seu
corpo se dissolvia e desaparecia por entre as chamas.
Luthor apanhou a espada e correu até Isabelle; no mesmo instante,
ruídos ardidos encheram o espaço acima de sua cabeça.
Servos. Letyne havia mandado mais um presentinho para ele.
Com o barco sacolejando, Luthor atacou os servos, protegendo
Isabelle. A espada era fria e cortante. Garras e dentes o atingiam, mas ele não
sentia nada. Dentro dele havia outro grito, um sonar de guerra ecoando em
seus ouvidos, uma melodia vibrando em seu coração.
A melodia que seus amigos Incantevoles tocavam em todas as noites
estreladas de Florença.
Mil batalhas vieram à mente enquanto a espada golpeava e cortava.
Inimigos sem rostos, ilusões traiçoeiras.
— Atravessaremos o arco do retorno em breve — o barqueiro
sussurrou sombriamente. — Se fizermos a travessia, a alma dela jamais
poderá voltar para o descanso do rio da Vasilíssa. Ficará vagando pela
eternidade.
— Vire o barco!
— Só posso virá-lo depois que alcançarmos nosso destino.
— Então eu conduzirei essa droga!
Soltando a espada, Luthor tomou o remo das mãos do barqueiro.
Imprimiu toda a força que tinha, virando a embarcação, lutando contra a
correnteza obscura. Diana havia dito que a Roda da Fortuna estava
acorrentada e não girava. Pois bem, ele iria fazer aquela merda virar.
Os servos continuavam vindo, tentando atingir suas costas. Luthor se
abaixa, esquivava, sem soltar o remo, forçando a mudança do curso.
As chamas se ergueram, ondas negras, ondas violentas. O fogo que
destruía qualquer alma, magia ou ser imortal. O fogo que poderia liquidá-lo e
impedi-lo de voltar a ver Diana.
“Você é uma joia rara, esquentadinha. Você me faz sentir...”
“Estressado?”
“Humano. Alguém que pode ter uma segunda chance.”
Grunhindo, Luthor forçou o barco para o lado, afastando a dor,
enchendo-se de imagens de seus amigos Incantevoles, da música calma que
produziam, das manhãs nos pomares com Isabelle. Um passado onde errara
demais. Um passado onde havia sido humano e mortal.
Onde havia sido alguém que errava.
“Sinto muito por não ser capaz de quebrar sua maldição”.
“Você já quebrou, Diana”.
Onde ainda era alguém que podia pedir perdão. Onde ainda era alguém
que podia se perdoar.
“Mas você ainda é imortal”.
“Sou, mas não me sinto mais um monstro. E isso, esquentadinha, é
maior do que qualquer maldição quebrada”.
As chamas atingiam seu peito, chamuscando a marca da rosa negra, o
símbolo da maldição de Letyne. A dor era alucinante. Mas ele não recuou.
Por Diana. Por Isabelle. Pelos Incantevoles que haviam sido sua família
em uma brevidade do tempo. Por seu juramento. Ele não iria recuar. Iria
mudar o curso da roda e do destino. Seu próprio curso.
Fechou os olhos, visualizando-se pedindo perdão para seus amigos, a
voz de Diana o abraçando, o fogo lancinante o queimando.
“Em nome dos meus antepassados, Luthor, eu aceito o seu juramento e
perdoo sua traição. As portas do destino nos trouxeram até aqui. A partir de
hoje, e de todos os dias de sua existência, seja brindado com uma nova vida
de honras e recomeços”.
Luthor arfou e forçou o barco outra vez.
A lateral atingiu uma rocha, eles viraram, e o curso se alterou.
Ondas explodiram, incinerando os servos que ainda o perseguiam.
Luthor conduziu o barco até as margens outra vez. Apesar da dor das
queimaduras, outra pulsão, ainda mais forte e inominável, corria por suas
veias. Assim que atracou, devolveu o remo para o barqueiro.
Com cuidado, tirou a alma de Isabelle de dentro do barco, e a colocou
deitada sobre as pedras. Encarou o barqueiro.
— Tenho que levá-la até o Rio de Letyne?
— A alma dela encontrará o caminho sozinha.
Luthor caiu de joelhos ao lado dela; sua alma era um contorno
brilhante, que pouco a pouco esvanecia.
— Sinto muito por... Eu... Eu te amei muito, Isabelle.
— Eu sei. E quero que fique em paz. — A mão translúcida de Isabelle
acariciou o rosto dele. — Quero que saiba que não foi seu amor que me
matou. Você me salvou em vida. Você me salvou na morte. Obrigada.
A alma de Isabelle desvaneceu diante de seus olhos; pequenos pontos
luminosos que beijaram sua bochecha.
Luthor levou a mão ao peito ferido, às queimaduras sobre a rosa negra.
A dor era avassaladora, mortal. Mas ele ainda não havia terminado.
Aguentaria mais um pouco. Restava uma parte do juramento para cumprir.
“Como aço, serei seu escudo. Como fogo, me espalharei à sua volta.
Deste dia, e até o último da minha existência”.
Apanhou a espada, erguendo-se, batalhando contra os tremores, contra
o roço da morte deslizante.
E correu para dentro do Salão da Vasilíssa. Para Diana.
36
A melodia dos esquecidos
Por um momento, Diana ouviu canções e suspiros.
E então, a água a engoliu em um redemoinho, e uma profunda
escuridão recaiu sobre ela e Diego
Afundavam no Rio das Almas, atados um ao outro pelas correntes.
Iria morrer ali. Se ela não conseguisse soltar as correntes, afogaria com
ele. Nenhum dos dois jamais descansaria. E Letyne arrancaria as vidas de
Heloísa e Duda.
Diana tentou gritar, tentou pedir por socorro.
Os suspiros retornaram, mais melódicos. De onde vinham? O coração
dela disparou. Aquele era o último som que escutaria?
Uma luz brilhou, quase a cegando.
E então ela viu. Diversas almas, diversos rostos.
A melodia.
As notas a envolveram, sussurrando aquilo que apenas seu coração
compreendeu. Eram os Incantevoles. Aqueles que existiram antes dela.
Aqueles que um dia esperariam por ela no Rio das Almas.
Entre os inúmeros rostos, um a atingiu em ecos de reconhecimento.
Ithuriel, quis murmurar o nome em choque.
O cartomante do baile.
“Às vezes, parece que tudo acaba em um caminho sem volta.
Geralmente, é um caminho sem volta; mas há quem acredite em um caminho
que leva e traz”.
Um caminho que leva e traz.
Sentiu-se estremecer ao olhar para Diego; seus caminhos haviam se
separado dezessete anos atrás, e mesmo assim, continuavam acorrentados um
ao outro, incapazes de ir ou voltar.
Diego. Diego, meu irmão. Por dezessete anos, você sofreu. Por
dezessete anos, eu sofri. Olhe para mim. Olhe para mim.
Encheu-se de memória, dos anos partilhados ao lado dele, das tardes
tocando piano, enquanto ele ficava deitado no tapete, escutando-a.
Guie-se pela minha música. Diego. Ouça minha música.
Ele meneou a cabeça, tentando se mexer, as correntes imobilizando sua
alma torturada, sombras se alimentando de sua dor.
Ouça a música, Diego. Deixe-se guiar por ela. A melodia que nós dois
esquecemos, e que sempre foi nosso elo. Ninguém mais te fará nenhum mal,
pois eu não permitirei. Há caminho que leva e traz. E eu te guiarei por este
caminho.
As sombras que agarravam Diego recuaram.
Continue escutando. Continue ouvindo.
Os suspiros dos seus antepassados Incantevoles ecoavam ao seu redor,
e agora ela entendia o que a melodia suplicava.
“Perdoe-nos”. “Redima-nos”. “Liberte-nos”.
A escuridão das profundezas não era mais um obstáculo. Um azul
quase sobrenatural os circundava.
Diana buscou pelos olhos da alma do irmão, olhos semelhantes ao seus,
e lançou o suspiro para ele, como se a própria água suspirasse.
Perdoe-me por não ter sido capaz de te salvar. Perdoe-me por ter
ficado escondida no banheiro e te deixado sozinho, Diego.
“Filha do Tempo e da Terra”.
“Abençoada pelas musas”
Ela sentia seus antepassados, o roçar de suas almas, o lamento de suas
canções. O infortúnio deles a afligia, a vergonha pelo que Orfeu havia feito à
Miríade e à Letyne, e Diana desejou que a corrente que prendia a Roda da
Fortuna dos Incantevoles se soltasse também.
“Encontre-nos”. “Aceite-nos”. “Perdoe-nos”.
Um turbilhão de luz rodou em volta dela e do irmão.
O suspiro de Diego voltou para ela, ecoando em seu coração.
Perdoe-me por ter desobedecido nosso pai. Perdoe-me por ter saído do
banheiro e te deixado sozinha, Diana.
Os Incantevoles giravam, cada vez mais rápido, e a água clareava com
a luz que cada um deixava ao esvanecer; um azul suave, e então mais
brilhante, mais intenso, mais azul.
Eu perdoo você.
Eu perdoo você também.
Diana conseguiu erguer os braços lentamente; com carinho, tocou o
rosto de Diego.
Vá em paz, meu irmão. Eu te liberto. Você sempre estará em meu
coração.
Com um suspiro final, as correntes que os prendiam se soltaram.
Flutuando na água, Diana contemplou o sorriso que encheu a boca de
Diego e riu de pura alegria. Ao seu redor, a melodia se encheu de notas e
canções vibrantes.
Seu irmão esvaneceu, junto com os Incantevoles, com Ithuriel, e as
lágrimas dela se misturaram à água do Rio das Almas.
Subitamente, o ar faltou.
Diana impulsionou o corpo para cima, nadando para a superfície, em
busca ar, em busca de terra, cada vez mais alto e mais alto. Enxergou o rosto
de Luthor do outro lado, e nadou ainda mais para cima, para ele.
Braços envolveram sua cintura, e ela respirou livremente quando saiu
de dentro da água. Caiu na margem de pedras, abraçada a Luthor, e colou os
lábios nos dele, os últimos suspiros melódicos ecoando nos ouvidos.
E então ela viu as queimaduras e os ferimentos.
— Luthor! — ofegou.
— Não se preocupe comigo, esquentadinha. — Ele estendeu a mão,
ajudando-a a ficar em pé. Um semblante de dor lampejava em seus olhos. —
Onde está Letyne?
Diana olhou em volta, arfando; o Salão da Vasilíssa estava vazio, a
harpa caída no chão, e, onde antes havia o trono de espinhos, um arco, feito
um túnel, tinha surgido.
O choque correu pelas veias dela.
— Heloísa e Duda!
◆◆◆

Tris sentiu a mudança brusca na energia do ambiente instantes antes


dos ruídos começarem.
— O que é isso?! — Leon bradou, confuso, a mão descendo para o
coldre em busca da arma.
Helen e Lúcio viraram as cabeças, assumindo posturas de quem se
preparava para uma batalha iminente.
As luzes do corredor hospitalar piscaram de forma frenética.
Ao longe, alarmes dispararam
Tris entreabriu os lábios. Um vento súbito se ergueu violentamente,
fustigando seus cabelos. Alguém gritou. Helen se colocou diante dela,
segurando um nunchaku nas mãos.
— Algo está chegando!
Raízes espinhentas rasgaram a parede, repletas de brotos de rosas
negras, formando uma passagem.
E, em meio as rosas e aos espinhos, uma mulher de vestes sombrias e
beleza aterradora insurgiu.
37
Correntes quebradas
— O mundo dos homens — a Vasilíssa sibilou, encarando-os, as
luzes do teto explodindo ao longo do corredor. — Faz alguns séculos que não
piso aqui.
Lúcio não precisou de mais do que trinta segundos para avaliar a
presença inimiga e calcular a extensão do seu poder.
— Tris. Leon — ordenou com a voz áspera. — Fiquem com as garotas.
Helen e eu cuidaremos da visitante.
Sem questionar, Tris e Leon correram para o quarto de Duda e Heloísa.
Com um movimento rápido, Lúcio virou o braço, acionando o alarme de
incêndio. O som estridente ecoou pelo hospital. Esperava que a maior parte
das pessoas conseguisse sair dali. Porque o que estava prestes a acontecer não
seria nada bonito.
— Ora, ora... Vocês dois não são meros humanos — os lábios tingidos
de vermelho se apertaram em uma linha fina, o olhar subindo por Helen e
Lúcio. — Há algo mais na energia de vocês.
Helen girou o nunchaku com maestria, as íris flamejantes.
— Por que você não vem descobrir?
A Vasilíssa sorriu; do chão, uma rosa negra brotou, enrolando-se nas
mãos dela, formando um chicote espinhento. A arma estalou entre Lúcio e
Helen, lançando espinhos na direção de ambos. Ele girou, esquivando rápido,
enquanto ela se defendeu com o nunchaku.
Ativando o delta marcado no pulso, formando uma lâmina de energia,
Lúcio partiu para cima da Vasilíssa. O chicote cantou no ar outra vez,
enganchando no tornozelo do caçador e o derrubando no chão. Sem perder o
equilíbrio, Lúcio girou, partindo o chicote ao meio.
A Vasilíssa riu.
Da ponta cortada, mais duas raízes espinhentas cresceram.
— Tipo hidra? — A língua de Helen estalou, incrédulo. — Corta uma
cabeça, nascem duas no lugar?
Lúcio esfregou o queixo, trocando um olhar rápido com a esposa.
— Isso vai dar trabalho.
◆◆◆

A escuridão do túnel de raízes, espinhos e rosas negras geava a


percepção dos seus sentidos conforme avançavam sem olhar para trás.
Diana sentia os ramos deslizarem lentamente pelo chão, pelos lados,
por cima de sua cabeça; mas em nenhum momento parou de correr, tomando
a dianteira. O coração latejava nos ouvidos, os dedos fechados em torno da
harpa de Orfeu. Precisava cruzar a passagem. Precisava impedir que Letyne
machucasse sua família.
Ergueu a mão quando seus cabelos se enroscaram nos espinhos; ao
soltar as mechas, percebeu que as flores brancas do campo de Viena
continuavam presas entre os fios, mesmo após seu mergulho no Rio das
Almas. Como não tinha tempo a perder, não se questionou como aquilo era
possível e deixou as flores brancas remanescentes nos cabelos.
— Ali! Estamos perto! — Luthor gritou, apontando para o arco que
insurgia na frente deles, atravessado por lampejos de luz fria. — Vamos! Ou
a passagem se fechará!
Diana assentiu e acelerou. Notava a dor que o atravessava; ele se ferira
demais no confronto com Maximus. E as águas negras do rio de fogo não
permitiam que seu corpo se curasse.
Implorou em silêncio para que ele ficasse bem, e, ao seu lado, saltou
pela abertura bufante.
As cores brancas e claras do hospital atingiram seus olhos.
— Olá, século vinte e um.
Não teve tempo para se preparar ou sequer tocar uma nota na harpa;
Letyne estava no centro do corredor, rodeada por ramos de espinhos e rosas,
lutando com Helen e Lúcio.
A Vasilíssa rosnou, e com um movimento circular elegante, tentou
acertar os quatro com o chicote.
Diana ergueu a harpa; a ponta do chicote atingiu as cordas, lançando o
instrumento para longe, ao mesmo tempo em que notas foram tocadas.
Ondas vibraram da harpa antes que ela caísse das mãos de Diana;
ondas que se propagaram visíveis até Letyne, arrancando um gemido de dor
de sua boca.
Diana arregalou os olhos. Como aquilo era possível?!
— A harpa está agindo de forma diferente nas suas mãos! — Luthor
arfava, cortando os ramos com a espada. — Algo mudou em você.
Minhas correntes, pensou em choque, voltando para o momento em
que se soltara de Diego. Minhas correntes me libertaram. E libertaram o que
restava da minha magia Incantevole presa.
Helen, Lúcio, Diana, Luthor e Letyne viraram as cabeças ao mesmo
tempo, na direção onde a harpa tinha caído.
— Peguem a harpa!
Serpentes de espinho se lançaram na direção do instrumento.
Diana saltava pelos ramos, tentando alcançar a harpa de Orfeu,
enquanto Lúcio bloqueava as raízes, que se multiplicavam quando eram
cortadas, e Helen lhe dava cobertura.
Luthor avançou sobre Letyne, brandindo a espada, arfando de dor; com
o canto dos olhos, Diana viu a Vasilíssa erguendo a mão e o bloqueando com
o fogo negro.
Um sorriso perigoso cresceu nos lábios de Letyne.
— Irá morrer, Luthor. As ondas do meu rio estão te destruindo pouco a
pouco. Não restará nada de você aqui.
A mão dela! A mão dela está translúcida!
Sem seu irmão, a Vasilíssa não possuía mais uma fonte para alimentar
sua energia. E estava enfraquecendo.
Um grito dilacerante emergiu do túnel.
— Que merda é essa?! — Helen gritou.
— Servos!
Inúmeros servos saltaram para fora do túnel, atacando-os. Diana rolou
no chão, erguendo os braços para se proteger das garras. O corte na pele a fez
arquejar de dor. A tontura a abateu, mas ela se manteve firme. Estava cada
vez mais perto da harpa.
Em movimentos sincronizados, Helen, Lúcio e Luthor atacavam os
servos. Sangue negro e partículas sombrias choviam sobre eles.
Diana se lançou para frente, os dedos agarrando a harpa.
Consegui!
— Diana! Cuidado!
Ela virou tarde demais; inúmeros ramos espinhentos avançaram em sua
direção, lançando-a contra a parede e a derrubando.
O mundo escureceu por alguns instantes.
E, com um sorriso triunfal, a Vasilíssa caminhou para o quarto onde
Duda e Heloísa estavam.
◆◆◆

— Ela está vindo! — Tris se colocou diante das camas de mãe e filha,
o coração ressonando em batidas altas.
O vento uivava, espiralando em giros frios. Tris podia sentir mais uma
presença ali, uma energia sôfrega que andava ao lado da Vasilíssa.
Leon sacou a pistola do coldre; as balas foram disparadas em sequência
a cada passo dado pela Vasilíssa do Rio das Almas. Para o desespero de Tris,
os projéteis a acertavam e viravam pó na mesma hora.
— Merda! — Leon trincou a mandíbula quando as balas acabaram. —
Está faltando uma habilidade mística para mim também!
A Vasilíssa cortou o ar com as mãos; a corrente de vento empurrou
Leon, fazendo-o rolar pelo chão.
As luzes do quarto piscaram freneticamente.
Tris sentiu o formigamento, a velha e conhecida sensação que sempre a
tomava quando uma manifestação estava prestes a acontecer. Deu um passo
diante da Vasilíssa, como se uma barreira para proteger Heloísa e Maria
Eduarda. Alguém tentava contatá-la, usá-la como um canal de comunicação
para falar com a Vasilíssa, mas algum bloqueio impedia que a mensagem
fosse repassada.
Os cabelos da Vasilíssa esvoaçavam como um véu negro.
Ela esticou a mão, cada vez mais próxima de Heloísa e Duda.
— Não! — Tris puxou o ar, as pernas cambaleando diante da Vasilíssa.
— Não faça isso. Ela está aqui. Ela está vendo. Ela não quer isso.
Com um rugido, os vidros da janela explodiram, chovendo em
estilhaços sobre Tris e Leon.
— Você não sabe de nada, mortal.
— Posso não saber. Mas eu sinto. — Todo o corpo de Tris tremia; as
habilidades sensitivas atingiam o pico máximo. — Ela não quer isso. Ela não
quer que você mergulhe nesta escuridão.
A mão da Vasilíssa se fechou ao redor da garganta de Tris.
— A escuridão é meu lar. Mas não é o lar dela. E eu vou tirá-la de lá.
— Terá que passar por mim primeiro!
Ofegando, Tris enxergou Diana surgindo atrás delas, com uma harpa de
ouro nas mãos.
◆◆◆

Diana tocou as primeiras notas; ondas reverberaram da harpa, atingindo


Letyne. A mão que prendia Tris cedeu, e a psicóloga rolou para perto de
Leon. Diana tocou mais algumas notas. Letyne grunhiu e se contorceu.
Enxergava sua irmã e sua sobrinha nas camas. Ambas inconscientes,
com as peles cobertas de marcas negras. A visão lancetou em seu coração, fez
a raiva escalar por suas pernas.
Diana arrancou mais notas da harpa.
Letyne gritou de dor, caindo de joelhos no chão.
O som parecia ter se amplificado, explodindo na cabeça de Diana, um
milhão de vozes atormentada. Cada dor que as notas causavam em Letyne
refletiam ferroadas em sua pele.
Aquela mulher havia tirado a vida de Diego. Havia tentado machucar
Heloísa e Duda. Sangue seria pago com sangue.
— Diana. — Tris tossiu, esticando a mão para ela. — Diana.
As ondas eram ofuscantes, e o calor e o frio se chocavam no ar,
soltando estilhaços a cada nota musical tocada.
Ouviu uma espécie de sussurro ao lado dela, tão claro, tão urgente, que
se virou, esperando ver algo parado ali.
“Perdoe-nos”. “Redima-nos”. “Liberte-nos”.
E então percebeu que os sons vinham de Tris.
— Acredito em destino, e acredito no livre-arbítrio. — Os lábios de
Tris se moviam lentamente, mas a voz que saía não pertencia a ela. — Estou
aqui, diante de você, embalada por uma mistura de ambos. As histórias vão
mudar, se desejarmos reescrevê-las. As novas histórias contarão: “Escute-me.
Porque será contado uma última vez. Sobre outrora, sobre o Tempo e a Terra.
Era uma vez...”.
Um uivo agudo saiu da garganta de Letyne.
Diana piscou, cessando as notas da harpa.
— Miríade?!
Tris ofegou, engasgou, e tombou a cabeça para trás, os olhos voltando
ao normal.
— Tris! — Leon a segurou nos braços, sacudindo-a.
Os passos de Helen, Lúcio e Luthor ressonaram atrás dela.
Atordoada, Diana encarou a harpa de Orfeu, encarou Letyne, voltou
para o momento em que suas correntes se soltaram de Diego.
O vento uivava, emitindo sibilos penetrantes.
“Mas, para alguns, o passado se torna uma corrente que precisa ser
quebrada. Uma corrente para a roda girar”, a voz de Ithuriel mordiscou as
bordas da mente dela. “Sua roda não gira porque a roda dela não gira. Há
correntes no seu passado, há correntes no passado dela”.
— Droga — Diana pestanejou, envergonhada. — Já entendi.
Ainda havia mais uma corrente para quebrar.
— Diana, acabe com ela. — Luthor arfava, segurando-se em Helen e
Lúcio. — Ou ela acabará conosco.
Erguendo o queixo, Diana caminhou na direção de Letyne e se
ajoelhou, ficando diante dela, os olhos de uma cativos nos olhos da outra.
— O que está fazendo?! — Luthor bradou, mas ela o ignorou.
— Chega dessa caçada. Chega de vingança — Diana falou, fitando
Letyne. — Estes sentimentos têm nos prendido há séculos. Posso te mandar
de volta para o Submundo, mas isso não acabará de verdade, não é?
Os lábios da Vasilíssa tremeram, enfraquecidos.
— Seu sangue pagará pelo que Orfeu fez com ela.
— Sinto muito por todo o mal que ele te causou. — Diana meneou a
cabeça, o olhar correndo por Tris, Leon, Luthor, Helen e Lúcio, até voltar
para Letyne. — Orfeu se foi há séculos, mas ele ainda é um espinho em seu
coração. Uma corrente de espinhos. Uma muralha de espinhos, que te
mantém longe de Miríade.
Rajadas furiosas de vento entraram pela janela, agitando os ramos de
espinhos e rosas que tomavam as paredes do hospital.
— Você não sabe o que está falando!
— Sei sim. — Ela exprimiu um riso dolorido; aquilo vibrava dentro
dela, claro como um farol em meio à tempestade. — Porque as mesmas
correntes me mantinham afastadas de Diego, nos causando sofrimento. Às
vezes, nós somos as correntes daqueles que amamos. Acredite, eu precisei
dar um mergulho no seu Rio das Almas para entender.
Sombras caíram sobre os olhos de Letyne. Luthor, Lúcio e Helen se
moveram, prontos para atacá-la se fosse necessário.
— Está dizendo que eu sou a culpada pela dor de Miríade?
— Não. Não. Você me deu um empurrão literal para que eu quebrasse
as correntes que me prendiam a Diego, e eu tenho o sangue daquele que
aprisionou Miríade e que te acorrentou.
— Então...? — A aura bravia da Vasilíssa a chicoteava, agitando os
ramos e os espinhos.
— Acho que precisamos uma da outra para colocar um ponto final
nesta história. Para começarmos uma nova história sobre o Tempo e a Terra.
Caso contrário, continuaremos presas nesta espiral de “a culpa é sua” para
sempre, nos caçando e nos ferindo. Você machuca minha família, eu
machuco a sua. Isso tem que parar.
As respirações de todos se entremeavam pelo quarto.
— Você e eu somos ramos do Tempo e da Terra — Diana continuou
em um sussurro. — As histórias dizem que as musas e os Incantevoles
cresceram na direção da luz, enquanto você imergiu na escuridão. As portas
do destino são uma só. São aquelas que desejamos abrir. Vamos entremear
os dois ramos. Vamos reescrever e recomeçar.
Com cuidado, Diana deixou a harpa de Orfeu de lado e levou as mãos
aos cabelos, tirando as flores brancas presas nos fios. Os olhos de Letyne
acompanhavam cada um dos seus movimentos, receosos e analíticos.
Engolindo qualquer temor, Diana se inclinou e colocou as flores
brancas no cabelo da Vasilíssa, ao lado das rosas negras.
Foi como se todas as barreiras dela ruíssem diante de Diana.
Escutou-a ofegar baixo.
— Ela... Ela sempre fazia...
— Cometi um erro — Diana admitiu, a voz engrolando na garganta. —
Quando estava no seu salão, te pedi para me deixar quebrar as correntes de
Miríade. Só que a única que pode fazer isso é você, sem machucar minha
família — acrescentou, por precaução. — E meu dever, como a Incantevole
destinada a encontrar a harpa, é te conduzir por esse caminho.
Quase podia escutar o coração da Vasilíssa batendo no peito.
— Orfeu disse que não haveria caminho para trazê-la de volta.
— Só que, diferente desse filho da puta que é meu antepassado, eu
acredito em caminhos que levam e trazem. — Diana tornou a pegar a harpa.
— Pelo que as visões me mostraram, a harpa tocada por Orfeu levou a voz de
Miríade até você na primeira vez em que se encontraram. Agora, vamos fazer
a harpa tocada por mim levar sua voz até ela. Vamos encontrá-la.
Lágrimas escuras tremeluziram nos olhos de Letyne.
— E depois?
Diana fechou os olhos, sorvendo as próprias lágrimas, enxergando ali o
sorriso que Diego lhe deu antes de esvanecer.
— Só você saberá.
Uma eternidade pareceu correr entre elas.
Letyne tocou as flores brancas em seus cabelos, os lábios entreabertos,
as íris iluminadas pelas lágrimas.
— Eu... Eu ainda me lembro da canção.
— E se eu te disser que a música é a chave de tudo? A chave de todas
as correntes? — Diana tocou o rosto dela, vendo-se refletida nos olhos da
Vasilíssa. — Cante-a. Para ela. Apenas para ela. Deixe a magia comigo.
Como pingos de luz na escuridão, a voz fraca da Vasilíssa se
transmutou em uma melodia que arrepiou o âmago de Diana.
Naquela vastidão, suas almas filhas do Tempo e da Terra se sondaram,
trevas e luz entremeando-se, estendendo-se para além das fronteiras de tudo o
que conheciam.
Diana sustentou a harpa, e como se seus dedos tivessem vida própria,
tocou na mesma cadência da canção.
O som brotou da harpa das musas e abraçou a voz da Vasilíssa,
varando e os véus do mundo, abrindo caminhos, como se fosse algo brilhante,
único, que podia atravessar o tempo e a terra, até tocar as estrelas.
Então aquilo era a chave da música. Diana se deixou mergulhar na
beleza selvagem das notas profundas, na essência que sempre estivera
acorrentada dentro de si, e que agora fluía livremente por um jardim de flores
brancas e rosas negras.
Pequenos pontos de luz irradiaram ao redor do quarto.
— Ela está aqui. Ela escutou a música e a melodia da harpa — Tris
sussurrou, a mão apoiada sobre o peito. — Ela está tão feliz.
O pontilhado cintilante aumentou.
Outra voz brotou, pura, baixa e suave.
Diana não parou de tocar por um instante sequer. Era como se a música
pudesse limpar o sangue derramado, na intimidade da nova voz que a
invadia, procurando as regiões mais ternas e secretas da alma.
Uma mescla de minúsculos movimentos e cores indefiníveis
serpenteavam ao redor de todos, como se não tivesse um corpo em absoluto,
mas fosse uma composição de luz e calor.
“Eterna como a luz, ardo em brasas nessas chamas”.
Canção e melodia se tornavam uma só.
“Até meu caminho encontrar você”.
Letyne ofegou, e Diana sentiu dentro de si as últimas correntes se
arrebentando, quebrando a dívida de sangue que ruía entre elas.
Vislumbrava-se criança, com Diego, com os pais, com o piano que
amava tocar, com o baralho de tarô da sua avó, a Roda da Fortuna cintilando,
o aro girando como deveria girar.
As mãos trêmulas e quase translúcidas de Letyne foram até os cabelos,
apanhando uma rosa negra e uma flor branca. Diana a observou oferecer as
duas flores para a presença que enchia o quarto.
— Não há solidão que dure para sempre, nem mesmo para uma jovem
camponesa como você, nem mesmo para uma divindade como eu. Não
sentirá mais dor a partir de hoje. Perdoe-me por não ter sido capaz de
encontrar o caminho antes — a Vasilíssa suplicou. — Perdoe-me por não ter
sido capaz de aliviar seu sofrimento durante todos esses anos.
O tempo e a terra eram ilusões. Os contornos de Miríade formavam
rastros de luz, as mãos estendidas para a Vasilíssa e para as flores.
“Nós duas estávamos acorrentadas. Agora, as correntes se foram. Há
muito tempo, eu te disse que o Oráculo previu que, quando a Roda da
Fortuna girasse, um filho do Tempo e da Terra seria meu destino e meu fim”,
a voz de Miríade chegava até Diana, palpitando nos liames do sentido, da luz
e da escuridão. “E agora, a Roda da Fortuna voltou a girar”.
Quando Diana tocou a última nota, as mãos de Miríade e Letyne se
entrelaçaram, e ao sopro do vento e da canção, elas esvaneceram, feito
partituras que alcançavam os acordes finais.
38
As treze
Ainda com o coração palpitando sob o peito, Diana se ergueu do
chão, onde Letyne e Miríade tinham esvanecido, e andou até a cama da irmã
e da sobrinha. As marcas estavam pouco a pouco desaparecendo da pele
delas.
Acordem logo. Por favor. Quero abraçá-las. Acordem.
— Luthor?! — A nota de preocupação na voz de Lúcio fez Diana se
virar para eles.
Ela viu o momento que Luthor escorregou para o chão, amparado pelos
braços de Helen e Lúcio. Seu sangue bombeou nos ouvidos, e ela correu até
ele, agachando-se ao seu lado, seguida por Tris e Leon.
— Não, não, não — Diana implorou, colocando a mão sobre o peito
queimado dele. Havia ferimentos por todo o corpo. — Aguente, por favor.
Use seu poder de cura.
— Sinto muito, esquentadinha. Acho que dessa vez é para valer. — Ele
respirava baixo, rouco. — As águas de fogo me neutralizaram.
— Querem que eu chame um médico? Deve ter sobrado gente nesse
hospital — Leon perguntou, incerto. — Um médico pode dar um jeito nele,
não pode?
Ninguém respondeu.
A lembrança das palavras da Vasilíssa rodopiou por todos.
“Irá morrer, Luthor. As ondas do meu rio estão te destruindo pouco a
pouco. Não restará nada de você aqui”.
Os olhos de Diana arderam de raiva e medo.
— Não aceito isso! Por favor, fique comigo. Por favor. Eu preciso de
você. Como nunca precisei de alguém antes. Eu te amo.
— Eu te amo também. Só posso te agradecer por ter me permitido ficar
ao seu lado. — A mão dele segurou a dela. — Obrigado por ter me deixado
cumprir o juramento que eu iria fazer para os Incantevoles. Estou em paz com
Isabelle, com eles, com todas as minhas dívidas e pecados.
— Pare com isso! Ou vou encher sua cara de soco!
Tris ergueu o rosto, olhando para os lados.
— Tem algo aqui. Posso sentir. Mais de uma presença. Treze.
Diana entreabriu os lábios para perguntar sobre o que a diabos ela
estava falando; não teve tempo de proferir uma palavra sequer.
Fios de luz serpentearam pelo quarto, como se dançassem uma música
alegre, tomando a forma de treze figuras douradas e radiantes.
Diana não conseguiu conter a exclamação que subiu pela garganta.
Reconheceu as treze mulheres — as treze entidades — da fotografia da
pintura que Luthor havia lhe enviado antes de se conhecerem.
— Minha nossa! — Leon segurou a mão de Tris. — Vocês também
estão vendo isso, não estão?
Eram as treze musas, irmãs da Vasilíssa do Rio das Almas. Aquelas
que haviam abençoado Orfeu e outros vinte e nove Incantevoles, espalhando
a linhagem dos filhos do Tempo e da Terra pelo mundo. Eram lindas.
Diana se viu desprovida de palavras.
— Incantevole — uma delas disse, com a voz mais doce e lírica que já
ouvira em toda a sua vida.
— Nossa filha — outra falou.
— Abençoada pelo sangue dos seus antepassados.
— A harpa é uma criatura viva em suas mãos.
— E sua música nos trouxe até aqui.
— A melodia mais bela que qualquer um dos nossos filhos já tocou.
Diana engoliu em seco, os braços em volta de Luthor, chocada demais
com as treze presenças cintilantes.
— Hã... Obrigada?...
— Nós é que lhe agradecemos por quebrar as correntes que
aprisionaram os ramos de luz e escuridão por séculos. — A mais radiante fez
um gesto de reverência. — Você e seu companheiro têm nossa eterna
gratidão.
Luthor ergueu o tronco, e a dor que irradiou dele fez o coração de
Diana se contrair no peito.
— Ele está ferido — uma das musas proferiu, os cabelos dourados
esvoaçando em volta do rosto. — Ele enfrentou o fogo e o medo para honrar
uma promessa. Sua coragem destruiu a maldição. A rosa negra foi queimada
pelas águas impiedosas. E agora ele está queimando junto.
— Aceito a morte. — Luthor tossiu outra vez. — Depois de seiscentos
anos, é a coisa mais sábia a se fazer.
Os olhares das musas pairavam sobre ele.
— Mas você cumpriu seu juramento.
— O juramento feito aos Incantevoles.
— Nossos filhos.
— Filhos do Tempo e da Terra.
— Podemos curá-lo.
— Podemos abençoá-lo.
— Não com a imortalidade.
— Isto está além do poder das musas.
— Mas podemos te dar anos mortais.
— Uma vida mortal.
Ainda segurando Luthor em seus braços, e rodeada por Helen, Lúcio,
Tris e Leon, Diana encarou as musas.
— Isso é possível?
— Se ele aceitar.
A respiração de Luthor saía com um assovio doloroso do peito. Ele
buscou os olhos de Diana, envolvendo os dedos dela nos seus.
— A escolha é sua — Diana sussurrou.
— Minha escolha é você. Sempre será você. Pois, como aço, serei seu
escudo. Como fogo, me espalharei à sua volta. Deste dia, e até o último da
minha existência. — E olhou para as treze musas douradas. — Eu aceito.
Um ar perfumado rodopiou pelo quarto, enquanto as últimas raízes de
Letyne se recolhiam, fechando as fissuras nas paredes.
Uma a uma, em cadências de luz suave, cada musa se curvou sobre
Luthor, depositando um beijo em sua testa.
— Abençoado seja.
— Abençoado seja.
— Abençoado seja.
E então, como uma brisa ciciante, as musas desapareceram, deixando
pequenas notas melódicas ecoando por todos.
Diana piscou, levando a mão ao peito de Luthor. As queimaduras
haviam sumido, assim com os traços de dor em seu semblante. Ela ofegou,
controlando a vontade de chorar.
— É só isso? Estava esperando algo mais grandioso. — Lúcio deslizou
o polegar pelo queixo, e Helen o cotovelou. — Como se sente, Luthor?
— Normal, eu acho. Pronto para uma vida em que cada dia é único. —
E sorriu para Diana. — Quero ter filhos com você. Quatro. Cinco.
— Quatro? Cinco?! — ela pestanejou, agitando a cabeça e arrancando
risos de Leon e Tris. — É porque não vão sair de você! E fique esperto.
Agora as balas da minha arma podem causar danos nesse rostinho bonito.
Luthor sorriu, unindo os lábios aos dela.
— Espero que sejam esquentadinhos como você.
Mais risos encheram o quarto.
— Diana? — uma voz feminina a chamou. — O que está acontecendo
aqui? O que... Meu Deus, eu estou em um hospital?!
Ela virou o rosto, deparando-se com os olhos abertos de Heloísa. Na
cama ao lado, Duda começava a despertar também.
Diana jogou os braços em volta do pescoço de Luthor e sorriu para o
semblante confuso da irmã.
— É uma longa história.
Epílogo
Florença, Itália.
Algumas semanas depois

Levando mochilas pequenas nas costas, eles desceram do carro


alugado e avançaram a pé pela trilha que subia por uma estradinha estreita.
O clima estava quente. Do alto, Diana via um sol abrasador incidindo
sobre o Rio Arno e sobre casas de arquitetura renascentista, que enchiam a
cidade em tons suaves de branco e ocre.
— Tenho que admitir. É muito mais emocionante visitar a Europa no
século XXI do que no século XIX.
— Que pena. — Luthor riu, os raios luminosos brincando com os tons
escuros das íris. — Adoraria te ver outra vez em um daqueles vestidos
enormes, com um chapéu combinando.
— Só nos seus sonhos, meu caro. Ninguém nunca mais vai me enfiar
em uma roupa daquelas.
Passaram por bosques de oliveiras e limoeiros, cujo perfume marcante
era uma dança melodiosa no ar. Diana se permitiu inspirar fundo e desfrutar
cada detalhe da paisagem.
— É aqui, esquentadinha — Luthor falou, segurando sua mão. O toque
da pele dele na dela sempre a fazia estremecer, e Diana se perguntou se um
dia aquela agitação afogueada passaria. Ela esperava que não. — Estamos
quase chegando.
A estrada se abriu em um campo de relva esverdeada. Algumas colunas
formavam ruínas antigas. Diana olhou em volta, enlaçada por uma sensação
de pertencimento. Não tinha as habilidades sensitivas de Tris, mas o arco de
seu coração palpitava naquelas terras, como se fossem um só.
— Era aqui que os Incantevoles de Florença viviam, antes de... —
Luthor soltou a ar, descansando a mochila na terra. — Antes daquela noite
fatídica. O fogo destruiu tudo.
— Então, vamos honrar a memórias deles e selar a harpa aqui. Para
sempre. Ela ficará fora do alcance das mãos dos homens e de qualquer filho
do Tempo e da Terra.
Luthor anuiu, e os dois procuraram um lugar no centro das ruínas e se
ajoelharam na relva. Talvez fosse o cansaço por causa da subida, mas Diana
tinha a impressão de escutar uma canção delicada no vento.

“Porque será contado uma última vez.


Sobre outrora, sobre o Tempo e a Terra.
Era uma vez...”
— O que você acha que aconteceu com Letyne e Miríade? — a
pergunta de Luthor a trouxe de volta para o campo e para as ruínas.
— Não sei — ela respondeu. — Espero que, de alguma forma, elas
tenham encontrado um pouco de paz.
— Mesmo depois de toda a dor causada?
— Mesmo depois de toda a dor causada. — Diana soltou o ar,
segurando os cabelos fustigados pelo vento. — Mas se eu queria ter dado um
murro na cara dela por tudo o que fez para a minha família? Claro que eu
queria. Só que deixei meu lado virtuoso falar mais alto.
Luthor riu, depositando um beijo na testa dela.
— Esquentadinha... Se voltássemos para o ano de 1492 e você pudesse
conhecer os Incantevoles que me acolheram, tenho certeza de que seria
aprovada por Ithuriel. Ele amava cultivar oliveiras assim como adorava
cultivar o lado virtuoso.
Diana piscou, o nome ecoando em seus ouvidos.
— Ithuriel?
— Era o mestre dos Incantevoles. Meu mentor e amigo mais querido, a
quem eu iria fazer o juramento sagrado. É dele que você descende. Por que
está com essa cara?
— Ele era um sujeito de cabelos claríssimos, que amava usar roupas
brancas e douradas, e anéis nos dedos? Lia cartas de tarô?
A boca de Luthor se entreabriu.
— Está me dizendo que...
— O cartomante do baile. — Diana balançou a cabeça, um sorriso
insurgindo nos lábios. — Acho que meu antepassado me deu um
empurrãozinho nesta história.
— Típico dele.
— Bom, chega de passado. — Ela tirou a harpa de dentro da mochila.
A luz do sol brilhava sobre o ouro que cobria o instrumento. — Consegue
abrir um selo? Suas habilidades de selador continuam, mesmo sem a
maldição da vadia do Rio das Almas, digo, da Vasilíssa, não é?
— Estas habilidades nasceram comigo. — Ele ergueu as mãos,
fechando os olhos. — São partes da minha essência.
O vento mudou o curso.
Luz etérea e gotas de orvalho brilharam como diamantes na grama.
Um pequeno arco giratório se abriu no ar, uma fenda alheia ao mundo
humano e ao mundo sobrenatural.
— Agora, Diana.
Com cuidado, ela depositou a harpa dentro do arco.
— Neste lugar, aqui e neste momento, a harpa volta para o Tempo e
para Terra. Que cada nota encontre seu caminho — pediu, a melodia do vento
aumentando. — Que rosas negras e flores brancas se enlacem em uma única
raiz. Que assim seja, e assim se faça.
O arco brilhou intensamente, e assim que Luthor moveu as mãos, a
fenda se fechou, tragando a harpa e seu poder.
Quando o selamento terminou, eles se entreolharam em silêncio.
— Está feito. Acabou. Luthor...
— Deixe-me falar primeiro. Você conheceu um monstro cheio de
culpa. — Luthor levantou a mão dela, colocando-a sobre seu peito. — Hoje, é
um homem que está aqui na sua frente, Diana. Um homem que se redimiu
dos erros passados e que ganhou uma nova chance de viver cada dia como se
fosse o último.
— Sempre foi um homem. Eu sempre o enxerguei assim.
A luz do sol os banhava de um dourado pulsante.
— É um homem que está aqui na sua frente — ele disse de novo. —
Um homem livre de correntes.
— Assim como é uma mulher livre de correntes, mas passível de erros,
que também está na sua frente. Porque somos humanos.
— E esta é a maior dádiva que eu poderia desejar. Aceita meu coração,
que pode falhar e errar, mas que jamais deixará de te amar?
— Desde o primeiro momento em que as portas do destino me levaram
até você. Esta é a única melodia que desejo.
Ela levantou o rosto para ele mais uma vez, e seus lábios se
encontraram em um beijo cheio de promessas. O som do vento era como o
bater compassado de um coração, vibrando melodias velejantes nas ruínas,
notas sobre o destino, a fortuna e histórias reescritas, ecoando nos caminhos
que sempre os levariam de volta um para o outro.

Fim
Notas da autora & Agradecimentos
Que emoção finalizar mais uma história!

Rosa Negra é meu décimo primeiro livro, e assim como todos os outros,
foi uma aventura maravilhosa de viver e escrever.

Diferente dos meus outros livros, esta história falou muito sobre perdão e
redenção - até mesmo a "vilã", de certa forma, encontrou sua redenção. Foi
uma experiência incrível escrever algo nesta linha.

É muito gratificante compartilhar mais uma história com vocês, e


agradeço a todos aqueles que têm me apoiado nesta jornada: meus pais,
minha irmã, meu marido, meus avós, toda a minha família, meus leitores
maravilhosos do Wattpad e da Amazon.
Deixo um agradecimento especial para minha querida amiga e colega de
trabalho Samanta Galvão, por todo o apoio e parceria nessa jornada da
escrita.

Muito obrigada mesmo pela confiança e pelo carinho depositado em cada


leitura. Vocês são incríveis.

Só tenho a agradecer a todos vocês, que já estão me acompanhando.


Muito obrigada mesmo pela confiança no meu trabalho. Vocês são incríveis!

Um beijão para todos!


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um trabalho de espionagem envolvendo um colega de profissão, Daniel
Moraes, que está despertando suspeitas em seus superiores.

Contudo, conforme ela se embrenha em arriscadas descobertas, um jogo


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Uma arriscada aliança foi feita entre Daniel e Katerine.

Seguindo as últimas pistas deixadas por Maísa, a dupla de investigadores


busca pelas cinco crianças nascidas há dez anos dentro de uma ramificação
do Projeto Ellk, ao mesmo tempo em que perseguem o rastro do Caçador, um
assassino que está aterrorizando as forças policiais. As divergências e
segredos que pairam entre eles, no entanto, podem vir a abalar a parceria
firmada.

Enquanto isso, Nemo, a misteriosa sombra da Corporação, cresce em


poder e aliados. Uma silenciosa guerra aos poucos está tomando forma, e
confiar em alguém pode ser extremamente perigoso.
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Quando homens e monstros se tornam um, resta ao mundo o relâmpago


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Em meio à guerra que assola o Brasil, os caminhos de Katerine a levam


novamente até o Doutor Vitti, resultando em uma aliança com a Resiliência,
enquanto os caminhos escolhidos por Daniel o conduzem por uma trama de
segredos obscuros e jogos de poder.

Ao mesmo tempo em que Eduardo está perto de obter o místico ouro-


líquido, a união da Corporação com a lendária família mafiosa Bartelochi
diminuí quaisquer chances de vitória da Resiliência contra o terror que esta
coligação está espalhando.

Com a contaminação se disseminando a níveis alarmantes, a busca pela


cura se acentua, e cada morte registrada pelos sinos do país revela as sombras
tortuosas que pairam sobre a face da humanidade.
EPIFANIA · LIVRO 4
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A cura para o vahliru foi encontrada e as iminências de uma guerra total


se abrandaram. Mas a paz... É apenas uma ilusão.

Em meio a misteriosas mortes políticas ocorrendo por todo o país,


Katerine se envolve em perturbadoras investigações quando descobre a
verdade sobre seu pai.

Do mergulho ao passado até o berço de segredos familiares antigos, das


cinzas da Corporação até as raízes da Resiliência, do Brasil até a Alemanha;
uma arriscada busca é traçada, levando Katerine, Daniel e Eduardo a uma
jornada que cerca os mistérios de suas linhagens e os véus entre as Três
Dimensões.
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"À margem das grandes cidades, a fumaça esquecida volta a arder. E
logo não haverá mais luzes de neon. Pois ela não te deixará enxergar".

Ao final de uma era de guerras, a ascensão da poderosa rede Global


Octupus instaurou uma fase de controle e opressão em Sycore.

Contudo, quando misteriosos corpos sem olhos são encontrados por todo
o território, uma onda de insegurança toma a Capital, forçando o Serviço de
Inteligência Octupus a entrar em ação.

Neste cenário, a jovem Lira luta pela sobrevivência na Colheita dos


Escravos, enquanto Aram, que vive na elite Héscol, o único e violento distrito
independente de Sycore, planeja junto de sua família um massacre contra a
Capital.

Em meio a fugas e segredos, Lira e Aram acabam envolvidos em uma teia


sinuosa, onde as sombras do passado, as intrigas políticas e as mortes
inexplicáveis se confundem, trazendo o rastro de uma antiga ameaça para
mais perto do que eles imaginam.
NOITES DE COBRAS E SONHOS · LIVRO 2
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E SONHOS
"O espelho está se quebrando. Está aqui. Está muito perto"

O ataque do Inanis à Global Octupus fez com que Lira e Aram, de alguma
forma misteriosa, se conectassem um ao outro pela ligação Kapwa. Agora,
como parte do grupo seleto e secreto, eles precisam viver sob as regras
rígidas da elite enquanto tentam desvendar os enigmas que os cercam. Só que
o forte sentimento entre eles pode colocar tudo a perder.

Conforme as serpentes de fumaça se espalham por Sycore, junto do poder


violento do Exército Héscol, as dúvidas de Aram entre a lealdade à família e
à nova vida na Capital aumentam, e uma visita inesperada pode colocar todas
as suas decisões em risco.

Diante da tensão crescente e de descobertas perigosas, os espectros do


passado aos poucos tomam forma, abrindo um caminho sombrio para um
futuro cada vez mais incerto.
Sobre a autora
Tradutora, revisora e professora de História e Inglês. Apaixonada pela
escrita desde a descoberta das fanfics com onze anos de idade e tentativa de
escrever o primeiro romance aos treze.

Quando não está negociando preços de traduções com os clientes ou


viajando nos livros que lê, busca se aventurar nos mundos fictícios que cria.
Viciada em café, ama um bom mistério e enigmas complexos. Sempre confia
que o troco está certo, pois a única coisa que sabe contar de cabeça são
histórias.

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