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1ª Edição

Belo Horizonte
2022
Copyright ©2022 Thais Lopes

Capa & Diagramação


Thais Lopes

Mapa
C.M.P. Vargas

Ilustrações
Carol Zen

Todos os direitos reservados. É proibido o


armazenamento ou a reprodução de qualquer parte
desta obra – física ou eletrônica – sem a autorização
prévia do autor.
Para todo mundo que nunca "superou" a moda dos
vampiros: é a nossa vez, de novo.
UM

Dani tomou mais um gole da garrafa de cerveja e cruzou os braços


de novo, sem sair de onde estava: encostada em uma
das paredes do bar. O grupo de pessoas reunido ao redor
de uma mesa um pouco para a frente ficou em silêncio
de uma vez. Não que isso quisesse dizer alguma coisa,
com a música alta vindo das caixas de som – alguma
coisa dançante de antes da magia – e o barulho dos
ventiladores no alto das paredes.
Mas ela sabia por que estavam fazendo silêncio.
Dani tinha visto o casal de adolescentes entrar no bar
mais cedo, olhando para os lados daquele jeito nervoso
de alguém que estava onde não deveria. E os dois não
pareciam ter idade o suficiente para estar fora de casa
depois do anoitecer. Pelo menos, não no Setor Seis. Os
vampiros diziam que evitavam tocar nas crianças e
adolescentes, mas a regra não escrita era que os mais
novos só estavam seguros se estivessem em casa.
E era óbvio que sempre tinha alguém para ignorar
essa regra, como os dois na mesa, com as pessoas ao
redor.
— Dizem que ele podia andar no sol — uma mulher
no grupo falou.
Algumas pessoas concordaram.
— Foi por isso que ele conseguiu caçar os outros
vampiros — outra pessoa completou.
Dani revirou os olhos. Era óbvio que estavam
contando aquela história. Não era a primeira vez que ela
estava no bar em um dia que aparecia alguém que era
novo demais. E todas as vezes, era a mesma coisa: um
grupo se formando para contar histórias e assustar os
adolescentes. E aquela história em específico – do
monstro que havia destruído todos os vampiros da região
durante uma das guerras deles – era uma das favoritas.
Com sorte, iam assustar os adolescentes o suficiente
para não jogarem fora o pouco de proteção que tinham.
E Dani conhecia mais histórias sobre o monstro. Ele
era uma lenda do seu setor, não dali.
Ela tomou mais um gole de cerveja e se aproximou
do grupo ao redor da mesa.
— Ele não podia andar no sol — Dani contou. — Isso
foi o que os vampiros inventaram depois pra explicar
como um vampiro tinha destruído todos os outros.
O garoto sentado na mesa apertou a mão da garota
ao seu lado com força. Crianças, os dois. E Dani entendia
bem demais a vontade de fugir e ignorar as regras.
Naquela idade, ela também tinha pensado que parecia
óbvio que tudo o que os mais velhos falavam era exagero
e que não tinha nenhum motivo para tomar tanto
cuidado. E logo depois ela tinha precisado fugir.
Algumas pessoas se viraram para Dani. Ela levantou
a garrafa como se estivesse cumprimentando os outros.
— Setor Dez — ela falou.
Aquilo era explicação o suficiente. O Setor Dez fazia
fronteira com o Seis – onde Dani estava – e era o setor
mais novo. Até pouco mais de vinte anos antes, ele era
uma terra de ninguém que tinha ficado abandonada
desde a última guerra entre as Cortes dos vampiros da
região. A guerra de onde a história do monstro tinha
vindo.
— Vocês só estão tentando expulsar a gente daqui —
a garota falou, com a voz começando a tremer.
Um homem colocou uma mão na mesa.
— Se alguém fosse expulsar vocês daqui, eu já tinha
jogado os dois pra fora. Não vou recusar clientes. Agora,
se não forem pagar...
Os dois adolescentes se entreolharam. Eles
provavelmente já tinham pagado. Aquele não era o tipo
de bar onde alguém anotava seus pedidos e cobrava no
fim da noite. Era do tipo onde cada um pagava sua
bebida no balcão e pronto.
Assustar dois adolescentes que estavam ignorando
as regras era uma coisa. Tentar arrancar dinheiro deles
era outra bem diferente – até porque Dani sabia muito
bem que aquele homem não era o dono do bar.
Alguma coisa se quebrou, longe de onde Dani
estava. Ela ficou nas pontas dos pés, tentando ver por
cima das cabeças das pessoas. Dani não era baixa, mas
tinha gente demais ali para ela conseguir ver perto da
porta, que era de onde o som parecia ter vindo. Do lado
oposto do bar, porque ela estava ao perto da saída dos
fundos.
Mais barulho de coisas se quebrando. Ou então tinha
sido uma das mesas de ferro caindo.
— Briga! — Alguém gritou.
Dani se afastou da mesa. Algumas pessoas foram
direto para a saída dos fundos. Uma briga nunca era bom
sinal, mesmo que não fosse incomum. Mas ela não ia
correr o risco de sair agora. Fazer aquilo era a mesma
coisa que dizer que era culpada de alguma coisa.
Os dois adolescentes se levantaram e
desapareceram no meio das pessoas se afastando ou
tentando ver o que estava acontecendo. Com sorte, iam
conseguir voltar para casa.
E, por mais que soubesse que não era uma boa
ideia, Dani estava ali justamente para ter uma noção de
como as coisas estavam no Setor Seis. Uma briga de bar
provavelmente não ia fazer diferença nenhuma para o
seu setor, mas ia ser bom ter uma ideia do motivo dela,
mesmo assim.
Dani foi na direção do barulho – pessoas gritando e
outros rindo – até que conseguia ao menos ver o que
estava acontecendo. Eram quatro pessoas brigando e um
homem tinha acabado de ser jogado em cima de outra
mesa de ferro, que caiu.
— Estúpidos — alguém perto dela falou.
Sim. Estúpidos. Uma briga daquelas, em um lugar
público, de noite, era só uma forma criativa de suicídio,
porque mais cedo ou mais tarde...
As pessoas gritando pararam de uma vez.
Um dos homens se levantou. Um lado da sua blusa
estava rasgado e aquilo não era nada demais. Mas tinha
um corte fundo no seu braço, com um fio de sangue
escorrendo pela sua pele.
As pessoas abriram um espaço largo ao redor de
onde as pessoas brigando ainda estavam. Não parecia
que o homem tinha notado o sangue, nem os outros, mas
eles não eram o problema.
Dani apertou a garrafa na sua mão com força. A
cerveja já estava quente, o que queria dizer que não
dava nem para pensar em beber ela agora. Essa cerveja
já era ruim enquanto estava gelada, depois de quente...
Não.
Mas ela precisava de uma bebida, porque não podia
sair do bar agora. Não quando alguém tinha derramado
sangue.
Dani se virou para trás. O bar tinha janelas grandes
em todas as paredes, que começavam um metro acima
do chão e iam até o teto – restos do que aquele lugar era
muito antes de virar um bar. Duas das janelas estavam
cobertas por placas de madeira, mas a maioria estava
inteira, por algum milagre, e Dani conseguia ver a rua lá
fora.
A noite não estava escura. A lua crescente ainda não
tinha nascido, mas as tochas espalhadas pela rua eram o
suficiente para Dani conseguir ter uma ideia do que
estava acontecendo. Ninguém gastaria eletricidade para
iluminar uma rua, especialmente em uma parte da
cidade que estava longe de ser das mais ricas.
E, mesmo que a luz das tochas fosse instável, as
sombras que ela estava vendo lá fora não tinham como
ser naturais.
A música parou. O barulho dos ventiladores parecia
forte demais, mas eles não iam ser desligados. E havia
uma pessoa parada na entrada do bar. Uma mulher,
sozinha.
As pessoas se afastaram ainda mais, abrindo um
caminho da porta até onde os quatro ainda estavam
brigando, sem ter a menor noção do que estava
acontecendo ao seu redor.
A mulher entrou no bar e parou, olhando ao redor.
Ela era baixa e magra, com pele clara, cabelo cacheado e
vermelho escuro batendo no meio das suas costas,
vestindo um corset simples e uma saia comprida, tudo
preto, com correntes finas presas pelas pontas no corset
e caindo pela saia. Não era nada muito diferente das
pessoas no bar – a não ser pela força da sua presença,
como se estivesse sugando a atenção de todo mundo ali.
E pelas marcas escuras que começavam nas pontas dos
seus dedos e subiam pelos seus antebraços.
— Soube que houve uma oferenda aqui — a mulher
falou.
Dani pegou a garrafa de bebida na mão da pessoa
ao seu lado e virou um gole. Não era cerveja. O que quer
que fosse, desceu queimando e ardendo, mas era melhor
que a sensação da voz da vampira. Era muito melhor que
sentir seu corpo esquentando e aquela vontade de se
aproximar, só para saber se seria digna de um olhar ou
talvez de mais.
Não.
Aquilo não era ela. Não era Dani. Era só uma reação
ao poder.
Eles não eram dignos. Os vampiros. Eles não
deveriam estar vivos. E não deveriam ter aquele tipo de
poder sobre os humanos.
Alguém tomou a garrafa da sua mão. Dani não
tentou ver quem era.
As pessoas se afastaram ainda mais. Os dois homens
na frente de Dani foram empurrados para trás e alguém
colocou a mão nas suas costas quando ela cambaleou.
A vampira sorriu, sem tentar esconder suas presas.
Uma das pessoas que ainda estava brigando fez um
ruído abafado.
A vampira foi na direção deles, andando devagar. Ela
era bonita, Dani não ia negar. Mas Dani não sabia até
onde a beleza ia e o poder dos vampiros começava. Não
era natural uma pessoa sozinha fazer um bar inteiro se
calar e acompanhar cada movimento seu enquanto
passava entre as mesas empurradas, com sua saia se
abrindo ao seu redor com o movimento, mostrando suas
pernas e as botas de cano baixo e salto alto que ela
estava usando.
Não. Ela não estava vestida como as pessoas no bar.
Ninguém humano sairia à noite de salto. O risco não valia
a pena.
A mulher parou na frente de onde as quatro pessoas
ainda estavam brigando. Um homem piscou e parou,
olhando para a vampira. A única mulher no meio deles
acertou um soco nele antes de parar, também. Os dois
últimos se viraram e congelaram no lugar.
Simples assim. Um olhar e eles não tinham mais
como escapar. Eles tinham derramado sangue em um
lugar público e aquilo era um convite que os vampiros
nunca recusariam.
A vampira assentiu devagar, ainda sorrindo.
— A Corte agradece sua colaboração — ela falou.
Ninguém falou nada enquanto ela se afastava. As
quatro pessoas que estavam brigando foram atrás dela,
andando devagar e com olhares vidrados que deixavam
claro que estavam sendo controlados.
Um arrepio atravessou Dani. Aquele era o motivo
para ela estar ali: garantir que nada daquele tipo
acontecesse no Setor Dez. Eles estavam fora do controle
dos vampiros e iam continuar assim.
O silêncio continuou até a vampira chegar na
entrada e sair com suas vítimas. E por mais alguns
minutos, enquanto as pessoas esperavam para ter
certeza de que mais nenhum vampiro ia entrar.
A música voltou a tocar.
Alguém riu, alto, mas era um som mais nervoso que
qualquer outra coisa. Outra pessoa também riu e alguém
gritou pedindo uma bebida. Aos poucos, as conversas
começaram de novo e o barulho do bar voltou ao normal.
E Dani tinha perdido sua garrafa de cerveja em
algum momento. Não que ela fosse terminar de beber
aquilo, de qualquer forma.
Dani foi na direção do balcão do bar e apoiou um
braço nele.
— Cerveja! — Ela gritou quando um dos baristas
olhou para ela.
Ele pegou a cerveja em um freezer quase na outra
ponta do balcão e voltou. Dani aproximou as costas da
mão do leitor fino que o barista colocou no balcão e a
tela mostrou a mensagem de confirmação de
pagamento. O barista deixou a cerveja perto dela e se
afastou.
Dani respirou fundo e tomou um gole. Pelo menos
aquela cerveja estava gelada. Continuava sendo ruim –
era produzida no Setor Seis, por uma família que fornecia
bebidas para a maioria dos bares nas partes humanas da
cidade e nenhuma das bebidas deles era boa para Dani.
Não depois de ter se acostumado com o que faziam em
casa.
Tinha alguma coisa de diferente ali e não era só
invenção da cabeça de Dani. Outros quatro ou cinco do
seu pessoal tinham tido a mesma impressão nas últimas
vezes que estiveram no Setor Seis e a equipe que havia
ido no mercado, dois dias antes, também tinha
comentado que alguma coisa estava diferente.
Mas, por mais que Dani fosse no Setor Seis e
naquele bar com uma certa frequência, não confiava nas
pessoas que conseguia reconhecer. Não podia confiar,
porque eles eram humanos em um setor governado
pelos vampiros.
Uma pessoa parou ao seu lado no balcão,
empurrando Dani para o lado. Ela pegou a garrafa
depressa e deu um passo para trás. Era melhor procurar
outro lugar para ficar.
A pessoa segurou seu braço e Dani se virou.
A mulher ao seu lado tinha a pele marrom, cabelo
liso preso em um rabo-de-cavalo e estava vestida toda
de preto, como a maioria das pessoas ali. E estava com a
maquiagem impecável, mesmo que estivessem em um
bar em uma das partes duvidosas da cidade.
Mas ela era alguém em quem Dani confiava.
— Lara — ela falou.
A outra mulher levantou as sobrancelhas e olhou
para o outro lado do balcão.
Um dos baristas colocou outra garrafa de cerveja na
frente dela, sem falar nada. E sem cobrar também,
aparentemente. As vantagens de ser conhecida.
Lara soltou o braço de Dani e tomou um gole grande
da cerveja.
— Você precisa tomar cuidado — ela avisou.
Dani revirou os olhos e cruzou os braços.
— Sempre tomo.
A outra mulher balançou a cabeça.
— Soube que tem uma ordem pronta pra descer pros
mercados, controlando com quem podem negociar.
Cuidado.
Dani respirou fundo e assentiu.
Aquilo era bem pior. Se queriam controlar quem
podia comprar nos mercados do Setor Seis, o mais
provável era que fossem bloquear o seu setor. O único
outro motivo que ela conseguia pensar para controlarem
os mercados era estarem se preparando para uma guerra
entre as Cortes. Mas, se fosse alguma coisa assim, ela
teria visto algum sinal.
E se estavam se preparando para isolar o Setor
Dez...
Alguma coisa se moveu fora do bar. Dani se virou
depressa, olhando pelas janelas. Não eram sombras. Pelo
menos, não pareciam. Mas ela tinha certeza que tinha
visto alguma coisa.
Outro borrão de movimento. E mais um.
Motos. Ela não ia ouvir nada com a música do bar e
nem ver alguma coisa além daqueles borrões de
movimento, porque eram os vampiros ali. Vampiros nas
suas motos pretas, usando suas roupas pretas e os
capacetes pretos. E obviamente sem se preocuparem em
acender um farol que fosse, porque eles enxergavam no
escuro. Se algum humano não percebesse que estavam
se aproximando, o problema era do humano.
— A essa hora... — Lara murmurou.
Sim. Estava cedo, para o padrão dos vampiros. Mal
tinha passado de meia noite. Não fazia sentido tantas
motos. A menos que...
Dani deu alguns passos para o lado, tentando ver
melhor pela janela. Ela conhecia as ruas ao redor do bar.
E ela conhecia melhor ainda a rua por onde as motos
estavam subindo.
Eles estavam voltando do Setor Dez.
Enquanto ela estava ali, um grupo de vampiros tinha
ido no Setor Dez.
Dani colocou a cerveja em cima do balcão.
— Preciso ir.
Lara não respondeu.
Dani olhou pela janela de novo antes de ir na direção
da entrada, passando depressa entre as pessoas no bar.
O que quer que tivesse acontecido, não podia ser nada
bom.

Ainda tinha luzes acesas na casa principal quando Dani chegou. Se


ela precisasse de uma confirmação que as motos haviam
vindo dali, já tinha. Ninguém além do pessoal de guarda
ficava acordado até tão tarde normalmente. E a grama
logo antes da entrada tinha sido amassada e arrancada
em alguns lugares, por causa das motos. Claro, porque
os vampiros não podiam parar alguns passos longe da
casa e atravessar o caminho de pedras a pé, como ela
tinha feito. Não. Eles faziam questão de estragar até a
grama.
Dani colocou a mão no painel ao lado da porta. Ele
apitou baixo e as fechaduras se abriram. Ela entrou
depressa e fechou a porta atrás de si antes de tirar os
coturnos e os jogar para um canto. Estava em casa. O
que quer que estivesse acontecendo, pelo menos por
enquanto estavam seguros.
Em algum momento, mais de duzentos anos antes, a
magia havia voltado para o mundo. Ninguém sabia como
ou por quê. Só tinha acontecido – e tudo tinha mudado.
Pessoas descobriram que tinham poderes que não faziam
ideia de como controlar. Florestas viraram desertos do
dia para a noite. Mares e rios secaram, alguns por
completo, outros não. Animais estranhos apareceram do
nada, atacando as pessoas. Foi o caos, até que os
vampiros assumiram o controle. Eles já existiam, antes,
mas eram mais fracos e estavam sempre escondidos.
Depois da magia, eles surgiram colocando ordem onde
os governos tinham caído. Dividiram as regiões em
setores controlados por clãs de vampiros – as Cortes –
responsáveis por proteger a humanidade. E, em troca, a
humanidade os alimentaria.
A humanidade tinha aceitado o acordo. Era a melhor
solução. Uma doação de sangue compulsória de tempos
em tempos era melhor do que o que estava acontecendo
antes. Qualquer coisa era melhor que o caos, a
destruição, a fome e os animais.
Só tinha um problema: ninguém tinha pensado em
como terminar o acordo. Dizer para os vampiros "tudo
bem, obrigada, não precisam mais fazer isso". E os
vampiros não iam abrir mão do que havia se tornado
uma vida fácil. Cada Corte com seu território – seu setor
– e seus humanos. E se um humano estava insatisfeito,
podia tentar a sorte em outro setor. Ou nas terras de
ninguém, enfrentando os animais corrompidos pela
magia. Ou até podiam tentar chegar em uma das cidades
que diziam que só permitiam humanos. Mas também
diziam que elas eram fortalezas muradas que tratavam
qualquer um se aproximando como inimigo.
Ou seja, eles não tinham opções. Não na prática.
— Dani? — Eduardo chamou.
— Eu.
Alguém falou alguma coisa. Parecia ser Alana, mas a
voz estava abafada demais para Dani ter certeza. Outra
pessoa respondeu. E mais alguém.
Ela suspirou e rolou os ombros para trás. O chão frio
quando ela saiu do tapete perto da entrada era um alívio
depois do tempo que tinha passado em pé. Mas a
conversa que continuava na sala de jantar – era sempre
lá que se reuniam – era um péssimo sinal. Ninguém
deveria estar acordado àquela hora.
Dani entrou na sala de jantar. Raquel estava sentada
no seu lugar de sempre, na cabeceira da mesa,
parecendo que tinha acabado de sair de uma reunião.
Seu cabelo castanho estava puxado para trás e ela
estava usando uma camisa social azul clara. Quem visse
ela assim nunca imaginaria que, vinte anos antes, Raquel
tinha feito uma petição para o Setor Um, desafiado os
vampiros, e recebido permissão para criar o único setor
fora do controle deles. Dani já estava ali havia quatro
anos e ainda não tinha certeza de como Raquel tinha
conseguido aquilo.
Eduardo e Adriana estavam sentados perto de
Raquel. Dani nunca tinha entendido se eles eram um
casal ou só amigos há tempo demais, e aquilo não fazia a
menor diferença, no fim das contas. Eles eram os
responsáveis pelo que fazia o Setor Dez ainda existir – as
plantações e as vendas de produtos – e aquilo era o que
importava. Mas eles, junto com Raquel e mais uns
poucos, tinham sido as primeiras pessoas no setor e
ainda eram o coração de tudo.
Yuri estava sentado de frente para a porta, como
sempre. Ele conseguia ser mais paranoico que Dani e
insistia em uma "posição com vantagem de segurança"
mesmo ali dentro. Mas ser paranoico era o trabalho dele,
porque Yuri era o outro responsável pela segurança do
setor, junto com Dani. E ele, pelo menos, parecia que
tinha sido acordado quando os vampiros chegaram. Dani
tinha certeza que o que estava vendo por baixo do colete
reforçado de Yuri era uma blusa de pijama. E ele
normalmente não apareceria para uma reunião sem pelo
menos três facas. Não que ela pudesse falar alguma
coisa sobre aquela parte.
E por último Alana, sua prima, que tinha colocado os
cotovelos na mesa e apoiado o rosto na mão de um jeito
que Dani já sabia que era o começo de mais um discurso
de "é tudo culpa minha".
Não era. Não dela, no caso. A culpa era dos vampiros
que não deixavam ninguém em paz, não só as duas.
— O que foi dessa vez? — Dani perguntou.
— Setor Oito — Raquel contou.
E se ela não tinha falado mais nada, era porque tinha
sido uma oferta de casamento. Mais uma.
Dani puxou uma cadeira e se sentou.
Quatro anos antes, quando Dani e Alana tinham
chegado no Setor Dez, Raquel estava a um fio de
precisar entregar o setor para os vampiros. Não
importava o que fizessem, eles não conseguiam produzir
comida o suficiente para sustentar as pessoas ali. E, sem
comida, não tinham como tentar produzir outras coisas
para negociar – o que os deixava sem ter como comprar
a comida que não conseguiam produzir.
Tinha sido por isso que aquela região havia passado
tanto tempo abandonada. O governo de um setor era
obrigado a garantir um padrão mínimo de qualidade de
vida para as pessoas sob sua responsabilidade e aquela
era uma das poucas leis que os vampiros realmente
seguiam. Como Raquel não estava conseguindo fazer
aquilo, ia ser obrigada a entregar o setor, o que queria
dizer que um clã vampiro assumiria o controle e formaria
uma Corte.
Então Dani e Alana haviam chegado, depois de mais
de dois anos nas terras de ninguém, depois de terem
fugido porque Alana era uma bruxa capaz de fazer
qualquer coisa crescer em qualquer lugar. Aquele poder
era raro e um dos mais valiosos, considerando como
ainda era difícil fazer plantações darem certo.
Por mais de um ano, elas tiveram paz. Alana tinha
cuidado das plantações, até que elas se tornaram o
produto de exportação do Setor Dez. Plantas. Alimentos.
Grãos. Eles as vendiam e traziam tudo mais que
precisavam dos outros setores.
Pouco mais de um ano depois que elas tinham
chegado, os vampiros começaram a tentar entender o
que estava acontecendo no Setor Dez. Como um lugar
que estava à beira do colapso alguns meses antes de
repente estava crescendo. A história oficial que Raquel
tinha contado era que uma colheita havia dado certo e
tinham replicado o que fizeram nela. Mas era óbvio que
os vampiros não iam acreditar.
As primeiras ofertas de casamento haviam chegado
cinco meses antes. O primeiro tinha sido o Setor Cinco.
Depois o Setor Nove. Depois o Seis – e eles haviam
insistido e ameaçado negar acesso aos mercados. E,
agora...
— Setor Oito? — Dani repetiu.
Raquel assentiu. Yuri resmungou alguma coisa em
voz baixa.
O Setor Oito nem fazia fronteira com eles para dizer
que queriam uma aliança que aumentasse seu território
ou algo assim, que era o que os outros setores tinham
dado a entender.
E Dani tinha visto as motos no Setor Seis. Indo na
direção do castelo da Corte de lá. Não na direção do
Setor Oito.
Alana levantou a cabeça.
— Eles falaram que têm um acordo com o Setor
Cinco e estão negociando com o Seis.
Dani bufou. Aquilo explicava o aviso de Lara.
— Meu contato avisou que as ordens pra
restringirem acesso aos mercados do Setor Seis já estão
prontas — ela contou.
O que queria dizer que teriam problemas, sem a
menor sombra de dúvida. A maior parte da tecnologia
deles vinha do Setor Cinco, assim como quase toda a
eletricidade. Tinham começado a instalar um sistema de
energia solar, mas ainda estava longe de ser o suficiente
para o setor. E os produtos de uso geral que compravam,
desde ferramentas até coisas básicas de higiene, vinham
do Setor Seis.
O que queria dizer que, se aquela aliança realmente
acontecesse, eles estariam isolados. O Setor Dez fazia
fronteira com três setores: o Cinco, o Seis e o Três. Em
teoria, poderiam tentar negociar com o Setor Três, mas
nem Dani era louca o suficiente para sugerir algo assim.
Vampiros já eram ruins o suficiente. Necromantes eram
piores.
— Isso é praticamente uma ameaça de ataque —
Adriana falou.
Não era uma ameaça de ataque. Eram só os
preparativos. Depois de isolá-los, o Setor Oito não ia
esperar até ficarem sem recursos nem nada do tipo. Eles
iam atacar. Eram conhecidos por fazer aquele tipo de
coisa – não era à toa que eram o setor com mais
território na região.
Alana balançou a cabeça.
— É mais fácil só me entregarem logo. Eu dou um
jeito de escapar depois, sei lá.
— E depois que você escapar, se escapar, eles vão
nos atacar — Dani avisou.
Ela deu de ombros.
— Posso dar um jeito de terem provas de que não
estou aqui.
Ela teria que pagar com mais que seu sangue para
conseguir algum tipo de prova que fosse convencer os
vampiros. E no fim das contas não faria diferença.
— Eles vão atacar do mesmo jeito, para te punir por
ter desafiado um dos clãs — Dani falou. — Vamos servir
de exemplo para ninguém mais fazer alguma coisa
assim.
Todo mundo olhou para ela.
— Obrigado. Muito obrigado pelo seu otimismo —
Eduardo resmungou.
Dani deu ombros. Era a verdade. Tentar achar o
caminho mais fácil não ia adiantar nada, porque não
existia um caminho fácil.
— Dani não está mentindo — Yuri completou.
— Mas não precisava...
— Talvez se...
Raquel bateu a mão na mesa.
— Ninguém vai se entregar. Nós vamos dar um jeito.
Alana, quando aceitamos vocês aqui, concordamos em
proteger vocês duas em troca da sua ajuda. Isso não
mudou.
Não. Mas a situação tinha mudado. Bastante.
Dani sabia que isso ia acontecer. Era por isso que
tinham passado mais de dois anos na estrada, fugindo.
Ela sabia bem demais do valor do poder de Alana.
Era óbvio que os vampiros iam notar quando o setor
que tinha problemas para cumprir as metas mínimas de
produção de alimentos começasse a vender o excesso
das colheitas. E era óbvio que, mais cedo ou mais tarde,
alguém ia entender o motivo.
Aquele tinha sido o motivo para Dani fazer tanta
questão de se tornar parte do pessoal de segurança do
setor. Ela tinha trabalhado o suficiente para ser notada
pelo responsável pela segurança em menos de seis
meses e ter se tornado parte da sua equipe principal. E,
dois anos depois de ter chegado no Setor Dez, quando
Ezequiel se aposentou, Dani e Yuri passaram a dividir o
posto de responsáveis pela segurança.
— Tem algum problema com isso, Dani? — Raquel
perguntou.
Dani balançou a cabeça. Não ia discutir com ela,
mesmo que manter Alana ali, sabendo dos riscos, não
fosse nem um pouco racional.
Se o Setor Dez existia, era por causa de Raquel. Ela
tinha negociado com os vampiros para assumir um
território abandonado e transformar em um setor
produtivo que não estava sob o controle de nenhum dos
clãs. E tinha conseguido manter o setor, mesmo com
todos os problemas, por muito tempo antes das duas
chegarem ali. Dani não ia subestimar a influência dela ou
o que ela podia fazer. Só conhecia a Raquel que cuidava
das pessoas do Setor Dez, não a Raquel que havia
impressionado os vampiros.
Mas Raquel não tinha visto o que sobrava quando os
vampiros não conseguiam o que queriam. Dani estava lá,
das duas vezes que eles chegaram perto demais de
Alana. Ela sabia.
Raquel suspirou e se levantou.
— Vão dormir, todos vocês — ela falou. — Não vamos
decidir nada no meio da noite. Amanhã começamos a
pensar nas possibilidades e em como aumentar nossas
defesas se eles decidirem atacar.
Não era um "se". Eles iam atacar. A questão era só
como.
Raquel saiu da sala sem falar mais nada. Ninguém
discutiu nem deu sinal de que ia continuar ali, e aquilo
era normal. Era como o setor funcionava. Raquel não era
nenhum tipo de ditadora, mas quando ela falava, eles
obedeciam.

Dani parou no começo do corredor e suspirou. Era óbvio que


Alana ia estar esperando por ela. Dani tinha parado para
contar o que havia notado no Setor Seis para Yuri,
aproveitando que ele já estava ali. Deveria ter imaginado
que Alana ia fazer questão de esperar.
Ela foi depressa na direção da porta. Conhecia a
expressão tensa da prima bem demais.
— Vai acontecer de novo — sua prima murmurou. —
Você sabe.
Dani passou por ela e abriu a porta do quarto. Alana
entrou e parou, esperando enquanto Dani trancava a
porta.
— Dani, a gente não pode...
Dani balançou a cabeça com força e atravessou o
quarto. Ainda estava com as roupas que tinha usado para
ir para o Setor Seis – uma calça jeans escura justa
demais e uma blusa preta de mangas compridas com os
ombros de fora. Tudo ia direto para a lavanderia, porque
estava fedendo a fumaça.
— Eu sei o que provavelmente vai acontecer — ela
começou. — Você também sabe. E aposto que Raquel
também. Não subestime uma bruxa que conseguiu
permissão pra controlar um setor.
Porque, até onde Dani sabia, não havia outro setor
que não fosse controlado por um dos vampiros. Ela
precisava se lembrar disso, porque quase tinha
subestimado Raquel mais cedo, também.
Alana respirou fundo e se sentou na cama.
— Não estou subestimando. Mas eles não viram as
casas queimando.
E, se dependesse de Dani, nunca veriam. Não
importava o que tivesse que fazer.
Os vampiros não podiam entrar na casa de alguém
sem serem convidados. Dani não sabia como aquilo
funcionava, só que era o que acontecia. Algumas
pessoas pensavam que era uma garantia de segurança,
mas ela sabia que aquilo era só uma ilusão. Existiam
vampiros que conseguiam controlar a mente de
humanos. Ou só influenciar – aquilo já seria o suficiente
para conseguirem um convite. E, na pior das hipóteses,
era fácil fazer humanos saírem das suas casas.
Tinha sido isso que acontecera na cidade onde as
duas haviam crescido. Depois que o pai de Alana tinha se
recusado a servir ao novo príncipe dos vampiros, o líder
da Corte que controlava o setor, ele havia sido o primeiro
a ser morto. Dani tinha conseguido correr e avisar Alana
antes dos vampiros irem atrás dela. E, enquanto as duas
fugiam por partes da cidade onde nunca tinha pisado
antes, elas viram as casas ao redor das delas pegando
fogo, uma a uma. Porque os vampiros não deixariam
ninguém esconder alguém que era do interesse deles,
então fariam todos os humanos saírem das suas casas.
Dani tinha prometido para seu tio que ia proteger
Alana e havia feito isso. Elas tinham sobrevivido a mais
de dois anos sem parar em nenhum setor, passando
pelas áreas de terra de ninguém antes de ouvirem sobre
o Setor Dez e decidirem que valia o risco.
Mas, mesmo depois de se tornar uma das
responsáveis pela segurança do setor, Dani havia
relaxado. Tinha pensado que estar ali seria o suficiente,
porque estavam fora do controle dos vampiros. Ela
estava errada.
— Tem que ter um jeito — Alana resmungou.
Dani abriu o guarda-roupas e pegou o pijama que
estava jogado por cima das roupas que ainda tinha que
guardar direito.
— Você não vai fazer nada.
Dani conhecia bem a prima. Alana ia se culpar,
porque os vampiros estavam atrás dela. Ela não se ia se
lembrar que o Setor Dez só estava de pé em grande
parte por causa do seu poder. E, como tinha certeza de
que a culpa era dela, Alana ia se sentir na obrigação de
tentar fazer alguma coisa. Provavelmente alguma
loucura como tinha falado lá embaixo: se entregar ou
aceitar alguma das propostas.
Tinha sido do mesmo jeito na época que elas
fugiram.
— Aham. Vou ficar sentada sem fazer nada
esperando repetirem o que fizeram com os meus pais —
Alana resmungou.
Dani se virou para ela de uma vez. Alana ainda
estava sentada na beirada da cama, de braços cruzados
e com aquela expressão dura que tinha se tornado
familiar demais enquanto estavam na estrada.
— Estou falando sério, Nana — Dani começou. — Se
você aceitar as propostas deles o Setor Dez vai morrer,
de um jeito ou de outro. Se você aceitar uma das
propostas e ficar em outro setor, não vai demorar para
ficarmos sem as plantações de novo. Se aceitar e fugir,
que nem tinha falado, nós vamos ser massacrados.
Aquela não era a resposta.
— E se eu não me entregar, vamos fazer o quê?
Tentar lutar contra eles?
Dani abriu a gaveta de calcinhas e tirou uma sem
nem olhar o que estava fazendo.
— Se for o único jeito, vamos sentar, analisar tudo o
que temos, seja de tecnologia ou de magia e que pode
ser usado como uma força de ataque, e aí vamos decidir
se vamos lutar.
Alana revirou os olhos. Dani conseguia imaginar bem
demais o que ela estava pensando: não tinham como
enfrentar o Setor Oito. O Setor Dez não tinha finanças
para ter armas de última geração. Tinham algumas
pessoas treinadas em combate, mas não eram muitos. A
maior defesa do Setor Dez era o medo, porque os outros
setores não sabiam do que Raquel era capaz. Era a
reputação dela que os protegia.
— Raquel estava certa, sabe — Dani falou — Está
tarde demais pra tentar fazer qualquer tipo de plano. Vai
dormir. E não faça nenhuma loucura.
Alana estreitou os olhos.
— Sério mesmo que você está falando isso pra mim?
Dani deu de ombros e abriu a porta do banheiro.
— Não era eu quem estava pensando na ideia de
aceitar uma proposta deles.
Alana mostrou o dedo do meio para a prima.
Dani entrou no banheiro e fechou a porta. Merecia
um banho quente depois daquela noite.
E, por mais que tivesse falado para Alana esperar,
não era o que Dani ia fazer.
Não importava o que fizessem, sempre seria a
mesma coisa. Elas sempre seriam caçadas, porque o
poder de Alana era valioso demais. A menos que
estivessem dispostas a encarar a ideia de passar o resto
da vida nas terras de ninguém entre os setores, aquilo
era o que aconteceria sempre que parassem em algum
setor.
Então não adiantava tentar fugir. O único jeito de
terem algum tipo de paz era lutando. E, se Raquel estava
disposta a lutar por elas – por Alana, na verdade – Dani
não ia recusar.
Mas aquilo queria dizer que precisavam garantir que
os vampiros respeitassem o Setor Dez de verdade. E os
vampiros só respeitavam força bruta.
Era hora de conseguir a força bruta, então.

Alana conferiu se a porta do seu quarto estava bem trancada antes


de se deitar. Ainda estava com o moletom que tinha
colocado quando os representantes do Setor Oito
chegaram e não tinha a menor disposição para trocar de
roupa – especialmente depois da conversa com Dani.
Dani ia fazer alguma loucura. Ela tinha certeza. Era
sempre assim. Alana era a prima inocente, que não
conhecia o mundo e precisava ser protegida a todo
custo. Claro que era. O poder dela estava ligado a
plantas, não era? Onde já se viu, alguém que fazia
plantas crescerem ser perigosa. Ela ter precisado lutar
tanto quanto Dani, enquanto estavam fugindo, parecia
que não fazia a menor diferença.
Então Dani ia fazer alguma loucura – o que queria
dizer que Alana teria que fazer outra, para compensar.
Ou para tentar corrigir algum plano louco da sua prima
superprotetora.
Alana colocou uma mão debaixo do travesseiro,
sentindo papel dobrado escondido ali, e o puxou. Não
tinha muita luz no quarto, mas ela conseguiria repetir
cada palavra que estava ali sem a menor dificuldade.
Era uma carta. Uma proposta não muito diferente
das primeiras que o Setor Cinco havia feito, meses atrás
– aliança entre os setores, unir territórios, vantagens
para os dois lados por causa da junção de recursos, tudo
em troca de que ela se casasse com um dos vampiros do
setor. Alana não tinha nem se dado ao trabalho de saber
se era um dos nobres ou só um qualquer. No fim das
contas, eles só queriam ela. Ou melhor, o poder dela.
Fazer plantas crescerem.
Mas, antes das propostas do Setor Cinco, Alana já
tinha recebido aquela carta. E ninguém sabia. Nem Dani,
nem Raquel, nem nenhuma pessoa do Setor Dez.
A carta tinha aparecido na sua mesa de cabeceira,
dentro de um envelope grosso e liso. Um vento mais frio,
mesmo que as janelas estivessem fechadas, uma
impressão de poder, e ela estava ali.
E, no pé da página, quatro palavras escritas à mão,
numa caligrafia desenhada que Alana tinha demorado a
entender:
"Estou disposto a negociar.
R."

R, de Rafael. Rafael, que era o príncipe do Setor Um


– o mais forte de todos os vampiros da região. O que
estava acima de todos os outros setores. O mesmo
vampiro que havia dado permissão para Raquel assumir
o Setor Dez.
Ela não havia recebido nenhuma proposta oficial do
Setor Um. Nada como os emissários dos setores Cinco,
Seis e Oito. Só aquela carta.
E o papel estava carregado de poder. Alana não
sabia quase nada sobre a magia dos vampiros, mas não
tinha como não entender o que aquilo era: se ela
aceitasse negociar, a mensagem enviaria sua resposta
para Lorde Rafael. Ou seja lá como ele fosse chamado.
Àquela altura, a proposta não a preocupava mais.
Seis meses de emissários de vampiros faziam aquilo com
uma pessoa. Mas a mensagem e aquela parte escrita à
mão, dizendo que ele estava disposto a negociar... Talvez
fosse uma saída. Nem mesmo o Setor Oito desafiaria
Lorde Rafael. Alana sabia o suficiente da política dos
vampiros para ter certeza daquilo.
E, se fosse ser honesta, ela quase gostava mais dele
só por não ter feito um espetáculo como os outros –
como o Setor Oito com suas motos estragando a grama
que ela tinha suado para fazer crescer de novo. Talvez
isso fosse exatamente o que ele esperava, mais um dos
jogos dos vampiros para manipular suas presas. Mas
quase parecia que podia ser só a escolha dela. Algo
decidido entre eles e mais ninguém.
— Pode ser.
Alana enfiou a carta debaixo do travesseiro de novo
e olhou ao redor. Ainda estava escuro e não parecia que
tinha nada fora do normal no seu quarto, mesmo que ela
jurasse que tinha ouvido uma voz...
Uma silhueta mais escura apareceu na janela e
então a atravessou.
Alana rolou para o lado e bateu a mão nos controles
que acenderiam as luzes do quarto, ao mesmo tempo em
que fechava os olhos.
Alguém chiou.
Ela abriu os olhos de novo, encarando a janela. Ou
melhor, o homem na frente da janela.
Ele era alto, com pele pálida e o cabelo comprido e
escuro puxado para trás. Ele estava vestido todo de
preto, com o que parecia ser um colete, uma calça de
couro com correntes atravessadas na frente e um
sobretudo que também de couro que quase parecia uma
capa.
Não. Não era possível. Um deles não podia estar ali.
Não no Setor Dez, não no seu quarto. Isso ia contra as
próprias regras das Cortes.
— Isso não foi muito cortês — o vampiro falou, sem
sair do lugar.
Alana se levantou devagar. Não tinha nada por perto
que ela pudesse usar como arma. E, mesmo que tivesse,
ela não era rápida o suficiente para enfrentar um deles
numa luta corpo-a-corpo.
Mas havia duas samambaias, uma de cada lado da
janela, atrás do vampiro. E mais um vaso de beladona
para o lado. Suas armas.
— Invadir meu quarto também não foi cortês — ela
respondeu.
O vampiro inclinou a cabeça. Não. Não era bem
aquilo. Em um momento ele estava olhando para ela, no
outro estava com a cabeça inclinada. Sem nenhum
movimento intermediário. Só aquela impressão brusca
dos vampiros mais velhos, que se moviam depressa
demais para os olhos humanos acompanharem.
— Pensei ter recebido um convite.
Convite. Como se ela fosse estúpida o suficiente
para convidar um vampiro para entrar no seu quarto.
Mas tinha convidado, de alguma forma, porque os
vampiros não quebravam as leis das suas Cortes. Se um
deles estava ali, então...
Alana olhou para a cama. A carta estava enfiada
debaixo do travesseiro de novo, mas ela não precisava
ver o papel para entender o que tinha acontecido. Um
convite. Era o poder ali fazia. Um convite. Uma forma de
um vampiro a alcançar onde quer que estivesse.
Não um vampiro qualquer. Lorde Rafael. O pior de
todos.
Era Lorde Rafael no seu quarto.
Alana deu um passo para trás e olhou para o
vampiro de novo. Ele estava encarando sua cama, como
se conseguisse sentir o poder na carta.
Ela ia precisar queimar aquilo. O risco era grande
demais. Se o que estava no papel era o suficiente para
funcionar como um convite...
— Peço perdão pelo mal-entendido — ele falou.
As luzes ainda estavam acesas e fortes, mas ele se
transformou em uma silhueta de sombras antes de
atravessar a janela de novo e desaparecer contra a noite.
Alana continuou parada no lugar, esperando.
Nada. Nenhum sinal de poder ou aquela aura pesada
que os vampiros mais velhos tinham ao seu redor.
Parecia que ele tinha ido embora.
E tinha ido embora sem fazer nada. Sem nenhuma
ameaça, sem insistir em... Ela não sabia nem o que ele
poderia querer ali.
Alana subiu na cama de novo e tirou o travesseiro de
cima da carta. Nada de diferente. As mesmas palavras
impressas, a mesma mensagem curta escrita à mão. A
mesma sensação de poder.
Ela tinha segurado a carta vezes demais desde que
havia aparecido ali e aquilo nunca tinha acontecido
antes. Pelo que Alana sabia sobre a magia dos vampiros
– pouco – tinha pensado que precisaria escrever uma
resposta ou falar em voz alta que queria alguma coisa
antes do poder ser ativado. Não fazia sentido que só
segurar aquele papel fosse enviar um recado...
Mas aquela tinha sido a primeira vez em que ela
pensara seriamente na possibilidade de negociar com o
Setor Um.
DOIS

Dani entrou na cozinha, ainda bocejando, e parou. Raquel, Dante


– que era responsável pelas finanças do setor – e
Eduardo estavam sentados na ilha no centro da cozinha.
Yuri estava encostado no balcão ao lado do fogão,
vigiando alguma coisa no fogo, e Adriana estava
encostada na parede ao lado da porta dos fundos.
— Isso é o quê? Reunião de emergência antes do
café?
Dante se inclinou para trás na cadeira, como se
estivesse fazendo esforço para ver lá fora. Puro drama,
porque as janelas grandes atrás da pia deixavam ver
muito bem que o dia já estava claro.
— Não seria antes do café se você tivesse acordado
em um horário decente — Eduardo falou.
Dani mostrou o dedo do meio para ele antes de
atravessar a cozinha, abrir um dos armários no alto da
parede e pegar sua caneca. Café. Precisava de muito
café.
Eduardo falando sobre ela acordar tarde não era
novidade. O lado do trabalho de segurança que tinha
ficado para Dani incluía justamente a parte de saber o
que estava acontecendo fora do Setor Dez, e isso era o
tipo de coisa que funcionava melhor à noite. As pessoas
estavam muito mais dispostas a falar alguma coisa
interessante depois de umas tantas cervejas. E estar fora
à noite também servia para ela conferir a defesa noturna
do setor.
Se aquilo queria dizer acordar mais tarde que os
outros... Nem fazia diferença, porque era bem possível
que ela continuasse dormindo menos que todo mundo
ali. E ela não mudaria nada naquilo.
— Onde a garrafa de café foi parar? — Raquel
perguntou.
Adriana apontou para a garrafa em cima de do
balcão. Eduardo se levantou para pegar e levar para
Raquel, mas ela balançou a cabeça.
— Não. É para Dani mesmo. Preciso dela
minimamente funcional antes de decidirmos alguma
coisa.
Dani suspirou e se jogou em um dos bancos ao redor
da ilha. Era uma reunião de emergência, então.
Dante empurrou a garrafa de café para ela. Dani
encheu sua caneca e tomou um gole. Café forte, amargo,
puro. Normalmente ela até ia procurar o açúcar primeiro,
mas se iam fazer uma reunião numa hora daquelas,
então ia ser café puro mesmo. Melhor para acordar
depressa.
E se iam discutir o que tinha acontecido de noite – a
proposta/ameaça do Setor Oito – então estava faltando
uma pessoa.
— Cadê Alana?
— No milharal — Eduardo respondeu.
Dani fez uma careta. Alana só ia para o milharal
quando estava irritada e queria distância dos outros. E
todo mundo já sabia que era melhor não cutucar quando
aquilo acontecia, então não ia ser Dani que ia dar a ideia
de alguém chamar sua prima.
Ninguém falou nada enquanto ela tomava o café.
Yuri desligou o fogo e virou a água fervendo em uma
xícara. Chá. Quem em sã consciência tomava chá àquela
hora da manhã, logo depois de acordar? Mas Dani não ia
falar nada, também.
E estava cheirando a bolo. Alguém tinha assado
alguma coisa e era bem possível que não tivesse
acabado. Não era tanta gente assim que tomava café da
manhã na sede do setor. Mas Dani não estava nem um
pouco disposta levantar. Ou a perguntar para alguém.
Não ia comer enquanto tinha problemas para resolver.
— O que é que tem para decidir? — Ela perguntou. —
Nós vamos ter que enfrentar eles, de um jeito ou de
outro.
Raquel colocou uma mão na cabeça. Dani deu de
ombros. Sabia que Raquel se incomodava com como ela
sempre ia direto na pior parte das coisas, mas se iam
fazer uma reunião tão cedo, então ela não ia perder
tempo com as opções mais otimistas que tinha certeza
que não seriam reais.
— Não temos nenhuma garantia de que vai chegar
nesse ponto... — Adriana começou.
— Vai esperar estarmos isolados sem ter como sair
do setor e sem ter acesso a recursos básicos pra
acreditar que eles vão cumprir as ameaças? — Dani
perguntou.
— Sem brigas — Raquel interrompeu. — Todo mundo
aqui conhece as histórias sobre o Setor Oito. Eles vão nos
isolar. E depois vão atacar. Isso não é mais só uma
possibilidade.
E em algum momento no meio disso provavelmente
iam aparecer com alguma proposta de aliança através do
casamento com Alana. Algo que garantiria que os outros
setores não teriam coragem de prejudicá-los, porque
seriam aliados do Setor Oito... Isso caso se dessem ao
trabalho de mais uma proposta de casamento. Era
possível que só aparecessem falando que queriam que
entregassem Alana.
— Então precisamos nos preparar para um cerco —
Dante falou.
Raquel assentiu.
— Exatamente. Quero uma lista de tudo que é vital e
que não produzimos ou que não temos condições de
produzir a longo prazo. E os preços disso.
Dani colocou a caneca em cima da mesa. Lara quase
sempre conseguia repassar suas informações com alguns
dias de antecedência. Mas, se ela já sabia da tal ordem
preparada no Setor Seis, não ia demorar muito para mais
pessoas ficarem sabendo, e isso ainda antes de entrarem
com a proibição.
— Os preços provavelmente vão subir nos próximos
dias — Dani avisou. — Se vamos estocar, tem que ser
logo.
— Hoje — Raquel falou.
Dante se inclinou para a frente.
— Hoje? Mas isso...
Raquel levantou uma sobrancelha.
— Hoje. Quero as primeiras ordens de compra saindo
ainda hoje, o restante amanhã. Não quero saber quantos
do pessoal do financeiro ou de outros departamentos
você vai precisar puxar para te ajudar, só faça o que
precisar.
Dante respirou fundo.
— Vou precisar de mais que o financeiro.
— Só faça.
Dani tomou mais um gole do café. Nos quatro anos
desde que estavam no Setor Dez ela nunca tinha ouvido
Raquel usar aquele tom.
— Não vamos conseguir tudo, mesmo assim —
Adriana falou. — A maior parte da nossa eletricidade
ainda está vindo do Setor Cinco.
— Temos um sistema alternativo. Não vai ser
agradável, mas é possível.
E se Raquel estava dizendo que não seria agradável,
Dani não queria nem saber o que era. Pelo menos
enquanto pudesse não ter que pensar naquela
possibilidade.
— Vai precisar de mim pra mais alguma coisa? —
Dante perguntou.
— Não.
Elu se levantou e saiu pela porta dos fundos.
Era bom que estivessem pensando em estocar.
Teriam um pouco mais de tempo. Mas não seria o
suficiente.
— E o que vamos fazer quando o Setor Oito ver que
nos isolar não está adiantando? — Dani perguntou. — Ou
só decidirem atacar de uma vez?
— Não temos força bruta pra lidar com eles — Yuri
falou. — Nem se pegarmos todo mundo com um mínimo
de treinamento de combate e todo mundo que tem um
pingo de sangue de bruxa.
Dani levantou uma sobrancelha e tomou mais um
gole de café. A melhor parte de ser só metade da
responsável pela segurança era que ela não precisava
dar todas as más notícias sozinhas.
Raquel assentiu.
— E é por isso que Dani está aqui. Tenho certeza que
ela já pensou em umas tantas possibilidades e já deve
ter pelo menos um plano que não seja completamente
insano.
Dani abaixou a caneca devagar.
— Obrigada pelo voto de confiança.
Raquel só olhou para ela.
Dani suspirou. Não era que Raquel estivesse errada.
Ela tinha pensado em várias possibilidades antes de
dormir e logo depois de acordar. E o problema maior era
que nenhuma delas ia ser o suficiente sozinha. Se
quisessem sobreviver a um ataque, ela ia precisar usar
um dos tais "planos insanos". Mas ninguém precisava
saber daquilo antes da hora.
— Mercenários — Dani falou.
— E vamos pagar eles com que dinheiro? — Adriana
perguntou.
— Não com dinheiro — Eduardo falou.
Dani assentiu. Pelo menos ele tinha acompanhado o
raciocínio dela. Ou não só ele, porque Raquel tinha
estreitado os olhos e parecia pensativa.
— Vamos pagar com o que temos de sobra. Comida.
Isso é uma moeda mais valiosa que créditos — Raquel
murmurou.
— Isso só funcionaria se fossem ficar aqui por muito
tempo — Adriana insistiu. — Não só para um ataque.
Dani deu de ombros. Aquele era o papel de Adriana
nas reuniões: achar os possíveis pontos falhos das ideias
deles. Mas ela já havia pensado em detalhes demais
sobre aquilo.
— E por que não ficariam? O Setor Oito não vai
atacar uma vez e dizer "nossa, vocês se defenderam,
vamos deixar vocês em paz". Eles vão continuar
voltando. E se não forem eles, vão ser os outros setores.
Ter uma quantidade de mercenários trabalhando pra
gente, de forma fixa, não vai ser algo ruim.
— Não é impossível achar mercenários que vão
gostar da ideia de ficar em um setor fora do controle dos
vampiros e que está sob ataque — Yuri completou. — Útil
ao agradável.
E ele saberia lidar com mercenários, porque tinha
sido um. Pelo menos, era o que os boatos do setor
diziam. Ele não conversava sobre a sua vida antes de
chegar ali.
Raquel apoiou o cotovelo na mesa e apoiou a cabeça
na mão.
— Mercenários — ela repetiu. — E não só um grupo
pequeno. Vocês estão falando de uma força considerável.
Dani assentiu.
— O máximo que conseguirmos atrair para cá.
— E como você propõe garantir que eles não vão nos
sabotar? Ou que não vão causar problemas? — Raquel
perguntou.
Yuri bufou.
— Se você não quiser deixar claro para eles as
consequências se fizerem isso, tem um setor inteiro de
pessoas leais a você que faria picadinho de qualquer um
que nos sabotasse — Eduardo falou. — Não vai ser difícil
deixar isso claro.
— E mercenários estão nisso pelo pagamento, não
pelo risco — Yuri completou.
Ele saberia. E, se Yuri estava concordando, então a
impressão que Dani sempre tivera sobre os mercenários
estava certa: que era um trabalho como qualquer outro.
Os mercenários recebiam pelo que faziam e voltavam
para casa... Onde quer que aquilo fosse. E Eduardo
estava certo, também. Raquel tinha conseguido
impressionar os vampiros. Dani nunca havia visto o que
ela podia fazer, mas sabia que a outra mulher não era
tão inofensiva quanto parecia. Intimidar alguns
mercenários não deveria ser um problema, se
precisassem de algo do tipo.
— Precisaríamos de mais casas, com todos os custos
a mais que vêm com isso — Raquel falou. — E o custo em
alimentos.
— Se não vamos estar vendendo mais nada para os
outros setores, vamos ter coisas em excesso aqui —
Adriana falou, devagar.
Raquel respirou fundo e assentiu.
— Vou pensar nisso. É a única coisa que posso
prometer.
E Dani não era louca de dizer para Raquel pensar
depressa. Já estava surpresa que a ideia de mercenários
ali não tivesse sido cortada desde o começo. Não que
tivessem muitas opções.
Mas ela ainda podia tentar encontrar outras formas
de parar o Setor Oito.
— Mais alguma coisa? — Adriana perguntou.
Raquel balançou a cabeça.
— Acho que é isso, por enquanto.
Ótimo. Aquilo queria dizer que Dani podia procurar o
resto de bolo.
Adriana se levantou e saiu sem falar mais nada.
Eduardo também saiu. Dani virou o resto de café e parou,
olhando ao redor. Quando faziam bolo normalmente ele
ficava em algum lugar no balcão, mas não tinha nem
sinal...
Yuri abriu o forno e tirou uma forma retangular
grande com meio bolo de cenoura. Dani o encarou. Ele
deu de ombros e colocou a forma na mesa.
Aquilo merecia até mais café.
— Alguém sabe do açúcar? — Dani perguntou.

Dani parou encostada no prédio da escola central. Eles tinham


mais outras duas ou três escolas na cidade que era o
Setor Dez, ela não se lembrava bem, mas aquela era a
maior. E era onde a pessoa que ela estava procurando
trabalhava.
A campainha estridente do sinal tocou e o barulho de
crianças demais correndo pelos corredores começou. Ela
não estava nem dentro da escola, mas conseguia ouvir a
gritaria. Sempre assim. E aquilo quase fazia Dani sentir
saudades de quando era mais nova, vivendo em outra
região. Mas lá eles estavam sob o controle dos vampiros.
Ela ainda tinha as marcas da primeira vez que haviam
cobrado o preço de sangue dela, mesmo que fosse quase
uma criança.
Dani continuou onde estava, perto da porta que dava
para a recepção da escola. Não ia entrar e correr o risco
de ser arrastada pelo meio daquela bagunça. Se
pudesse, nem estaria ali. Mas só havia uma pessoa em
quem ela confiava para lhe dar as informações que
precisava.
A porta se abriu e a pessoa que Dani estava
procurando saiu.
Alex estava usando o que era praticamente seu
uniforme de trabalho: calça jeans larga, uma blusa lisa –
vermelho-escura dessa vez – e tênis que mais pareciam
coturnos. Seu cabelo ainda estava curto, daquele jeito
que se tivesse dois dedos de cabelo era muito. Elu tinha
um brinco de argola pequena em uma orelha e uma
argola bem maior na outra, com dois pingentes em
formato de faca nela. Dani engoliu em seco. Ela tinha
comprado aqueles brincos, quase três anos atrás.
Quase seis meses sem ver Alex e elu não tinha
mudado nada.
Elu cruzou os braços.
— O que você quer, Daniele?
Dani suspirou.
— Estava esperando seu horário de trabalho acabar.
— Se ia esperar, não devia ter parado perto da porta,
da forma mais indiscreta possível. É óbvio que foram me
avisar que você estava aqui.
Dani fez uma careta. Devia ter pensado melhor. Não
queria nem imaginar o que tinham falado para Alex ou os
comentários que isso ia render.
— Em minha defesa, não dormi direito e tem coisas
demais acontecendo — Dani falou.
Alex suspirou e soltou os braços.
— Nisso eu consigo acreditar.
Droga. Dani deveria ter pensado em outro jeito. Ir
atrás de Alex era enfiar o dedo na ferida. O namoro podia
ter terminado, mas não tinha sido por falta de interesse
de nenhum dos lados. Tinha sido porque Alex não
conseguia lidar com os riscos que Dani corria.
— De quê você precisa, Dani? — Alex perguntou.
Aquele era o motivo para Dani ter ido ali: porque
sabia que Alex ajudaria, não importava o quanto
estivesse magoade.
Era um ótimo motivo para não estar ali, também,
mas agora era tarde demais.
— Informações. Histórias — ela falou. — Mas posso
esperar.
Alex balançou a cabeça.
— Tenho pouco mais de uma hora até minha próxima
aula. Vem.
Ótimo. Era melhor assim, com tempo marcado. Muito
melhor.
Dani entrou na recepção da escola atrás de Alex. A
secretária que estava na mesa logo depois da entrada
levantou a cabeça.
— Nem uma palavra — Alex falou.
Tinha sido uma péssima ideia. Teria sido melhor se
Dani tivesse esperado até depois do almoço e ido atrás
de Alex na casa delu... Não. Isso teria sido muito pior.
Alex entrou na sala da coordenação, virou e
começou a subir uma escada. Dani parou, olhando ao
redor, antes de subir atrás delu. A escada acabava na
sala de reuniões, no segundo andar da escola, que
estava vazia.
Elu foi direto para a mesa, puxou uma das cadeiras e
se sentou antes de se virar para Dani de novo.
— Ninguém deve vir aqui tão cedo — elu avisou.
Dani respirou fundo e puxou outra cadeira.
— Você não vai ter problemas porque está em
horário de trabalho ou...
Alex cruzou os braços de novo.
— Imagino que, se você está aqui, tem alguma coisa
a ver com as motos que estavam na mansão de
madrugada. O que quer dizer que está aqui a trabalho.
E, como uma das responsáveis pela segurança do
Setor Dez, Dani tinha autoridade para tirar pessoal do
trabalho normal, se fosse necessário. Ela só nunca havia
precisado usar aquilo antes.
Alex levantou uma sobrancelha.
Dani soltou o ar com força.
— O monstro — ela falou. — Preciso saber quanto
das histórias sobre ele são verdade. Sem perguntas.
Porque a última coisa que ela precisava era de Alex
entendendo exatamente o que ela queria fazer e
contando para alguém. Ou virando uma pilha de
preocupação – que era o que sempre acontecia, antes.
— O monstro — Alex repetiu.
Dani assentiu.
Elu respirou fundo.
— Eu realmente não quero saber.
— Não.
Alex balançou a cabeça e tirou um tablet do bolso.
Elu o colocou em cima da mesa e desdobrou as partes,
até que um monitor fino e do tamanho de um caderno
aberto estava ali.
Elu abriu uma pasta e um mapa do Setor Dez
apareceu, com os prédios principais da cidade marcados,
as plantações, o complexo um pouco mais afastado onde
produziam alguns produtos e a área onde processavam a
colheita. E nos limites do mapa, as marcações das
fronteiras do setor.
— O Setor Dez antes era o Setor Quatro — Alex
começou. — Bem antes de chegarmos aqui. Não vou
entrar nas políticas dos vampiros de décadas atrás, mas
o Setor Oito tentou aumentar seu território.
— Aumentar território? — Dani perguntou.
Não fazia sentido. Era o mesmo motivo para ela não
ter entendido o Setor Oito estar começando a montar um
cerco contra eles: o Oito não fazia fronteira com o Setor
Dez e a única forma de aumentar território, pelas
próprias regras dos vampiros, era anexando um território
ao lado.
Alex apontou para o mapa e uma parte da fronteira
para trás do complexo industrial ficou mais escura. A
fronteira com o Setor Três – mas Dani não ia falar aquilo.
Tinha ido ali atrás de informações, então ia esperar até
Alex explicar.
— O Setor Quatro foi destruído. Mas o Setor Oito não
ganhou a guerra. Não sei se o Setor Três atacou eles
depois, ou se simplesmente não tinham forças, mas... —
Alex deu de ombros. — O Setor Três anexou uma parte do
que era o território do Setor Oito.
Então no passado eles faziam fronteira. E se o Setor
Oito estava querendo atacar, talvez tivessem planos para
recuperar aquela parte do território deles que havia sido
anexada pelo Setor Três.
Não. O Setor Três era um antro de necromantes.
Ninguém era louco de desafiá-los. Nem o Setor Oito.
Mas se tentassem, talvez existisse a possibilidade de
algum tipo de aliança. Mais uma coisa para deixar na
lista de Dani, mas ela nunca seria a pessoa a sugerir uma
aliança para o Setor Três. Ou qualquer outro setor. Fazer
aquilo depois da visita do Setor Oito seria praticamente o
mesmo que admitirem que eram fracos demais e não
podiam demonstrar fraqueza.
— Espera...
Dani se inclinou sobre a mesa, encarando a parte da
fronteira que ainda estava mais escura.
— Isso aqui é perto da cidade velha — ela falou.
Alex fez um círculo com o dedo ao redor de uma área
que quase incluía a fronteira.
— A cidade velha fica aqui — elu contou. — Era uma
das cidades mais importantes do Setor Oito logo antes
da guerra.
— Mas ela fica pra cá da fronteira.
— Agora. A fronteira foi movida quando Raquel
assumiu o setor. E não me pergunte o motivo, eu não sei.
Nem ela.
Se Alex não sabia, mais ninguém ia saber.
— O Setor Quatro era pouca coisa menor que o Setor
Dez é hoje — elu continuou. — A cidade principal ficava
onde hoje é a estrada para o Setor Seis. Aqui, onde a
nossa cidade é, era uma vila.
Interessante. Mas nada do que Alex tinha falado era
o que Dani precisava.
— E o que isso tem a ver com as histórias do
monstro?
Elu encarou Dani.
— O monstro era a arma do Setor Oito quando
destruíram o Setor Quatro.
Dani balançou a cabeça.
— Ele tinha alguma arma ou...
— Ele era a arma. Por isso as histórias são sobre ele.
Vampiros eram perigosos. Qualquer um sabia disso,
até os estúpidos no bar, na noite anterior. Eles eram mais
fortes, mais rápidos, não se cansavam, eram imortais a
menos que alguém conseguisse perfurar seus corações
ou arrancar fora a cabeça – e em alguns casos, se fossem
antigos e poderosos o suficiente, era possível que nem
aquilo fosse o suficiente. E, para piorar, uma boa parte
deles tinha poderes específicos. A capacidade de
controlar as pessoas com um olhar era só um daqueles
poderes e era óbvio que os vampiros não divulgavam
informações sobre o que eram capazes de fazer.
— O que nós sabemos é que, quando precisavam
quebrar a resistência em algum ponto específico, era ele
que mandavam — Alex continuou. — Só ele. E a
resistência era quebrada. Os outros vampiros vinham
depois, sem encontrar nenhum problema.
Um arrepio atravessou o corpo de Dani. Por mais que
tivesse passado anos fugindo dos vampiros, sempre
eram só os mais fracos. Os que na maioria das vezes não
tinham nenhum poder especial. Eles queriam Alana, mas
não o suficiente para mandar os melhores deles. Aquilo
seria admitir que uma humana, mesmo que a humana
em questão fosse uma bruxa, era importante demais.
Mas aquilo queria dizer que Dani sabia o que esperar
de vampiros "comuns". E ela não conseguia imaginar que
tipo de poder poderia fazer algo como o que Alex estava
falando.
Mas precisava imaginar, porque era exatamente o
que ela queria usar.
— O que ele fazia? — Dani perguntou.
Alex balançou a cabeça.
— Não sei. Nunca parei para pesquisar sobre isso,
mas até onde sei sobre a história do setor, o que parece
é que fizeram questão de não registrar nada sobre ele.
Ou então apagaram o que tinham registrado.
Não. Aquilo não fazia sentido.
— Estou ouvindo histórias sobre o monstro desde
que cheguei no setor — Dani insistiu. — Deve ter alguma
informação...
Alex riu.
— Até parece que você não sabe como as pessoas
gostam de inventar histórias. Oficialmente, não tem
nenhuma informação. Talvez alguma das histórias por aí
tenha algum fundo de verdade, mas não temos como
saber qual.
— Você não tentaria esconder isso de mim — Dani
falou, devagar.
Elu soltou o ar com força.
— Não, porque eu te conheço. Você já decidiu o que
vai fazer e não preciso nem fazer esforço para adivinhar
o que é. E se eu tentar esconder as informações de você,
você vai sair por aí indo atrás de fontes bem menos
confiáveis. Então não, não vou tentar esconder nada. Já
aprendi.
Dani respirou fundo e soltou o ar devagar. Aquele
tinha sido o motivo da briga que foi o fim do namoro. Ela
precisava de informações sobre uma família menor de
vampiros do Setor Cinco. Alex era a fonte mais confiável,
mas elu tinha se recusado a passar as informações,
porque seria uma missão arriscada demais. Não valia a
pena. Dani tinha conseguido as informações com um
contato ilegal e ido, mesmo assim. E as informações não
estavam certas. Ela havia escapado por muito pouco.
— O que tem registrado sem a menor sombra de
dúvida é que a base de onde enviavam o monstro era na
cidade velha — Alex continuou, com um tom leve e
forçado. — É por isso que temos tantas histórias aqui.
Dani respirou fundo de novo. Estava ali porque
precisava das informações. Era tarde demais para achar
ruim estar desconfortável.
— Onde na cidade velha? — Dani perguntou.
Alex olhou para ela antes de balançar a cabeça e
encarar o mapa de novo. Elu aumentou a área da cidade
antiga e circulou quatro áreas.
— Você tem sorte que eu precisei estudar isso alguns
anos atrás.
Não era sorte. A cidade velha estava dentro das
fronteiras deles. Alex teria estudado aquilo mais cedo ou
mais tarde, porque era como elu funcionava. Alex dava
aulas de história naquela escola e mais nada, mas era o
mais perto de alguém especializade na história da região
que eles tinham. Elu sempre tinha feito questão de
estudar e ir atrás de informações que qualquer outra
pessoa ia ignorar.
— Você pode... — Dani começou.
— Posso — Alex interrompeu. — Envio o mapa
marcado quando terminarmos, só para ter certeza de
que não vou precisar marcar mais nada.
Elu não ia precisar marcar mais nada. Aquelas
localizações eram exatamente o que Dani queria:
possíveis lugares para encontrar o monstro. Porque se
ele tivesse sido morto em algum momento durante
aquela guerra ou depois, aquilo teria sido registrado.
Alguém teria feito questão de dizer que tinha conseguido
matar a tal arma do Setor Oito. E se ele ainda estivesse
com o Setor Oito, Dani já teria ouvido algo naquele
sentido.
— Você está apostando que as histórias têm um
fundo de verdade — Alex falou. — E que ele ainda está
em algum lugar por aqui.
Dani deu de ombros.
— Eu não fazia ideia de que poderia ser tão perto
assim, mas... Sim.
Elu suspirou.
— A morte dele nunca foi registrada. É possível que
ele ainda exista, mas é improvável que esteja na cidade
velha. Ele teria recuado junto com o Setor Oito, quando o
que quer que tenha acontecido entre eles e o Três
aconteceu.
Dani balançou a cabeça.
— Se ele estivesse com o Setor Oito, nós
saberíamos. E eu sei que é improvável, mas vale a pena
conferir, mesmo assim.
Alex não discordou, o que era a mesma coisa que
dizer que concordava.
Era a melhor chance deles. Se qualquer parte das
histórias sobre o monstro fosse verdade e conseguissem
ter ele lutando ao seu lado, o Setor Dez estaria seguro.
Mas aquilo queria dizer encontrá-lo e garantir a lealdade
dele.
— Não vou te pedir isso de forma oficial — Dani
começou.
Alex cruzou os braços e se inclinou para trás na
cadeira.
— Porque quer poder negar que me pediu depois?
Dani fez uma careta. Só tinha feito aquilo uma vez,
porque havia pensado que era a única opção – e não era.
Ela realmente tinha abusado da confiança de Alex. Mas
não ia fazer nada daquele tipo de novo.
— Porque não vou te obrigar a me ajudar com uma
coisa que sei que você não concorda — Dani falou.
E se ela pedisse oficialmente, seria uma ordem da
responsável pela segurança do setor. Alex teria que
ajudar.
Elu respirou fundo e fechou os olhos.
— Eu te odeio, sabia?
Dani não respondeu. Ela sabia. E também reconhecia
que era culpa dela.
Mas ainda precisava da ajuda de Alex.
Elu encarou Dani. Ela só esperou. Não ia insistir. Não
ia falar mais nada a menos que Alex falasse que podia,
porque não ia colocar aquilo nas costas de mais
ninguém, muito menos delu.
Alex suspirou.
— De que você precisa?
Não era justo. Era desconfortável demais, era mexer
em tudo que tinha feito se afastarem. Mas a verdade era
que Alex era a única fonte confiável que Dani tinha.
— Existe alguma forma de garantir que um vampiro
não vai conseguir me ferir?
Alex puxou o tablet e o dobrou de novo.
— Se você for específica, vai ser mais fácil.
Dani cruzou os braços e apoiou os cotovelos na
mesa.
— Se eu achar esse monstro, tem que ter um jeito de
garantir que ele não vai nos atacar — ela falou. — Os
mercenários são fáceis...
— Mercenários? — Alex perguntou.
Dani balançou a cabeça.
— Nada decidido ainda e definitivamente nada
oficial. Mas a questão é que mercenários nós
conseguimos pagar com comida. O que faria um monstro
dos vampiros lutar ao nosso lado?
Alex encarou Dani.
— Você está falando sério.
Dani assentiu.
Alex fechou os olhos e passou as duas mãos no
rosto.
— A pior parte é que o seu raciocínio sobre ser
possível que ele esteja lá faz sentido — elu resmungou.
— Se não quiser ajudar... — Dani começou.
Alex balançou a cabeça.
— É melhor eu ir atrás disso do que você tentar
convencer um dos seus contatos do submundo. Mas vou
precisar ir atrás disso. Não tenho como saber uma coisa
dessas de cabeça.
Era mais que o suficiente. Alex tinha acesso às redes
de informações humanas. Dani nunca tinha entendido
como elu havia conseguido aquilo, sendo que mais
ninguém do Setor Dez conseguia o mesmo tipo de
acesso, mas o importante era que Alex podia ir atrás das
informações. Além disso, elu saberia o que valia a pena
levar a sério ou não e não ia cobrar um olho pelas
informações. E, mais importante, não ia tentar encontrar
outra pessoa para vender as informações e o fato de que
Dani tinha pedido aquilo.
— Obrigada — Dani falou.
Alex se levantou.
— Não me agradeça. Já encaminhei o mapa para
você e aviso quando tiver alguma informação concreta.
Dani assentiu e se levantou depressa, também. Não
ia abusar da sorte. Já tinha conseguido muito mais do
que esperava – muito mais do que tinha o direito de
pedir de Alex.

Dani se sentou nos fundos do casarão, encarando o jardim de


ervas que Alana tinha começado logo que chegaram no
Setor Dez. Tinha sido a forma de provar que ela
realmente era uma bruxa capaz de fazer as coisas
crescerem, no começo, porque era óbvio que Raquel não
tinha acreditado. Foi depois do jardim que elas
receberam permissão para ficar no setor, mesmo
sabendo que seriam caçadas.
Ela tinha relaxado. Não de forma literal, óbvio. Mas
quando os vampiros não chegaram atrás delas nos
primeiros meses, Dani tinha começado a pensar que
talvez não viriam. Que talvez aquilo não precisasse ser
sua primeira preocupação.
Se não tivesse relaxado, Dani teria falado sobre
mercenários há muito tempo. O Setor Dez estava numa
posição única para manter uma força fixa de mercenários
sem ter problemas por causa disso, porque eles tinham
recursos mais que o suficiente. Teria sido simples juntar
pessoal aos poucos. Aquilo não seria nem visto como
algo hostil, seriam só novos moradores. Mas, com um
convite para mercenários depois de uma visita do Setor
Oito, eles não teriam nem como disfarçar o que estavam
fazendo.
E, considerando as histórias sobre Yuri ter sido um
mercenário, ele sabia disso muito bem. E Ezequiel
também teria pensado em algo desse tipo. Então era
bem possível que nunca tivessem feito aquilo por algum
outro motivo que Dani não sabia. E que não ia procurar
saber, a menos que Raquel se recusasse a autorizar os
mercenários.
Mas, se ela não desse a autorização...
O Setor Dez tinha mais bruxos dos que os vampiros
imaginavam, quase todos com poderes muito específicos
– ou perigosos demais, ou que só eram úteis em
situações muito únicas. E mais vários que eram tão
fracos que na maioria dos outros setores não seriam
considerados bruxos, mas ainda seriam os lanchinhos
favoritos dos vampiros.
Aquilo queria dizer que eles tinham mais poder de
fogo, por assim dizer, do que os outros setores
esperavam. Mas, mesmo que o treinamento básico de
combate fosse obrigatório para todo mundo no Setor
Dez, todas essas pessoas ainda eram civis. E eles não
podiam depender só dos bruxos, nem a curto nem a
longo prazo.
— Dani? — Alana chamou. — O almoço vai acabar.
Dani se virou para trás de uma vez.
— Achei que você não ia dar as caras hoje.
Era o que acontecia sempre que sua prima ia para o
milharal: ela só aparecia em casa de novo logo antes do
anoitecer.
Alana deu de ombros.
— Yuri me avisou que ia cozinhar.
E aquele era um bom motivo para entrar antes de
ter só o resto dos restos do almoço.
Dani se levantou depressa e Alana riu.
Yuri e Raquel ainda estavam na mesa da sala de
jantar quando Dani entrou. Não tinha muita comida nas
panelas e potes em cima da mesa, e provavelmente só
havia alguma coisa porque alguém tinha lembrado que
ela não tinha comido. Conhecendo os outros...
Ela olhou para Raquel, ao mesmo tempo em que
pegava um prato e começava a se servir.
— Obrigada.
Raquel gesticulou como se não fosse nada. E para
ela realmente não era. Era só o normal de como as
coisas funcionavam na casa. Raquel era a pessoa que
cuidava de todos os outros e aquilo incluía guardar
comida.
Dani se sentou e começou a comer sem falar nada.
Alana tinha voltado para a sala de jantar e se sentado na
frente de um prato quase no final – ela tinha parado de
comer para ir chamar Dani.
— Você foi na cidade, Dani — Raquel começou.
Dani assentiu e engoliu depressa.
— Pedi Alex para verificar umas coisas para mim.
Alana grunhiu alguma coisa.
— Precisava mesmo?
— Precisava, porque é ou falar com elu, ou tentar
comprar informações com algum dos meus contatos —
Dani falou. — E a gente sabe que eles não são confiáveis.
E, mesmo se fossem, ela não teria tentado conseguir
nada com eles. Isso era informação perigosa demais. Se
os vampiros imaginassem que ela estava planejando
alguma coisa envolvendo um deles, o Setor Oito teria
todo o apoio que quisesse para atacar.
— Verificar algumas coisas — Yuri repetiu.
Dani fez uma careta. Era por isso que estava
tentando manter tudo em segredo. Raquel já não gostava
da ideia de mercenários, gostaria menos ainda disso. E
Yuri? Ele ia odiar o que ela tinha pensado. Mas era o
único jeito.
— É só uma ideia, por enquanto — Dani explicou. —
Por isso que fui falar com elu. Tem a ver com nos
defendermos do Setor Oito, mas prefiro esperar até ter
mais informações antes de dar detalhes.
— Nós não vamos gostar disso — Raquel falou.
Não era uma pergunta, mas Dani ia responder,
mesmo assim.
— Vocês vão odiar. Mas não consigo ver outro jeito
de lidar com o Setor Oito quando atacarem de forma
direta.
— Nem mesmo se eu autorizar os mercenários? —
Raquel perguntou.
Dani se inclinou para a frente.
— Vai autorizar?
Raquel cruzou os braços, esperando uma resposta.
Dani suspirou.
— Se autorizar os mercenários eu realmente vou
começar a pensar que temos uma chance de aguentar o
ataque, mas mesmo assim só com essa outra ideia.
Raquel e Yuri se encararam.
— Nós vamos odiar isso.
Dani revirou os olhos. Não precisavam repetir.
E, mesmo que fossem odiar, ela sabia que iam
aceitar, porque a prioridade era sobreviver da melhor
forma possível e garantir que o Setor Dez continuaria
fora do controle dos vampiros. Aquele era o motivo para
Ezequiel ter promovido ela junto com Yuri: porque ela
tinha as ideias loucas e ele tinha bom senso o suficiente
para garantir que as ideias fossem viáveis, mesmo que
loucas.
— Eu vou dar a autorização final para o que quer que
esteja planejando — Raquel falou. — Então quando tiver
suas informações, você vem falar comigo. Não vai atrás
de fazer alguma coisa.
Dani assentiu. Não ia ser fácil convencer Raquel,
mas ela provavelmente conseguiria. E era justo. Ela era a
responsável pelo Setor Dez. Uma decisão daquele
tamanho, com tanto potencial para gerar problemas,
precisava vir da liderança do setor.
Raquel suspirou.
— Comece a recrutar mercenários. Imagino que você
tenha contatos para fazer isso.
Dani sorriu.
— Começo a cuidar disso essa noite.
— Claro que começa — Alana resmungou.
Dani olhou para ela. Sua prima ainda estava tensa e
irritada. E não era difícil adivinhar o motivo.
— Vou dar um jeito nisso — Dani falou. — Eles não
vão derrubar o Setor Dez.
Alana olhou para ela e levantou as sobrancelhas
antes de balançar a cabeça e voltar a comer.
— Nós vamos cuidar disso — Yuri falou. — Você não é
a única pessoa responsável.
Não. Mas era Dani quem tinha feito uma promessa
para Alana de que não iam precisar fugir de novo. E ela
não ia quebrar aquela promessa.
TRÊS

Dani empurrou a porta com a ponta do coturno. Estava na segunda


das localizações marcadas no mapa de Alex e aquela
casa parecia que tinha sido uma das maiores da cidade,
antes de se tornar uma ruína. Agora, parecia que metade
da casa tinha sido arrancada. O que sobrava da outra
parte era uma estrutura de três andares que ela não
sabia como ainda estava de pé mas que não confiava
nem um pouco que não fosse desabar a qualquer
momento.
Se um vampiro que era conhecido como um monstro
tivesse ficado para trás naquelas ruínas, não estaria nos
andares de cima. Eles estavam no meio de ataques, na
época. Nada importante estaria num lugar que podia ser
destruído facilmente. Então o mais provável era alguma
construção subterrânea. E aquela casa tinha essa porta,
que parecia que descia para um porão. Dani só precisava
ter coragem de descer por ela.
Dani empurrou a porta de novo. Nada.
Ela puxou a maçaneta. Nada também. Estava
trancada. Dani olhou para cima, para os pedaços de
parede e teto que podia ver. Se aquilo resolvesse
desabar...
Ela não tinha tempo para pensar demais. Dani se
afastou o suficiente para virar e acertar um chute na
porta. A parede ao lado dela tremeu, mas a porta
continuou no lugar. Ela balançou a maçaneta de novo.
Nada.
Considerando a situação do resto da casa, se aquela
porta não tinha aberto, então era porque tinha alguma
coisa reforçada nela. O que queria dizer que era uma
porta que Dani queria abrir. Ela chutou a porta de novo.
Nada. Mas um pedaço de tijolo caiu da parede ao lado
dela.
Dani empurrou a parede com uma mão. Ela não
estava exatamente instável, mas não estava tão sólida
assim.
Era ridículo, mas...
Ela se afastou e chutou a parede. Mais um pedaço de
tijolo caiu. E mais outro.
Mais um chute, e mais pedaços da parede – o
suficiente para abriu um buraco que deixava ela ver a
lateral da porta e o metal que era a base da fechadura.
Ela definitivamente precisava abrir aquela porta.
Mais alguns minutos mexendo dentro do buraco e ela
conseguiu afastar a placa de metal o suficiente para
forçar a porta. Ela não ia se fechar de novo, mas aquilo
era um problema para depois.
Dani desceu a escada devagar. Tinha uma lanterna
enfiada em um dos bolsos do colete, mas ela não queria
usar uma luz. Mesmo que já tivesse feito todo aquele
barulho para abrir a porta, uma lanterna era a mesma
coisa que colocar um alvo no seu peito.
A escada terminava em um corredor largo, com
várias portas fechadas. Provavelmente trancadas e ela
não tinha ferramentas para tentar abrir uma por uma
nem ia ficar chutando a parede ali. Ela estava alguns
metros debaixo da terra e ainda tinha um resto de bom
senso.
E também havia um resto de luz ali, passando pela
fresta de uma das portas. Aquilo explicava como ela
ainda estava conseguindo ver alguma coisa.
Luz. Em um lugar que estava abandonado há
décadas.
Dani puxou a faca que estava em uma bainha na sua
cintura e continuou a andar, mais devagar. Balas não
adiantavam muita coisa contra vampiros e lasers eram
caros demais. Ela não ia pegar um dos poucos lasers do
setor para investigar um palpite. Então, facas. Seriam a
melhor opção contra um vampiro e, se tivesse problemas
com humanos, ela era rápida o suficiente para se virar
mesmo que estivessem com lasers.
A última porta do corredor estava entreaberta e a luz
azulada vinha dela. Mas não havia nenhum ruído de
ninguém ali. Ela não era um vampiro para ouvir uma
respiração, mas era capaz de apostar que não tinha nada
humano ali. Uma pessoa estaria no mínimo preocupada,
depois do barulho que ela tinha feito. Teria feito algum
movimento, alguma coisa que fizesse algum ruído.
Dani empurrou a porta com o coturno. Ela terminou
de se abrir com um rangido. Nada. Nenhum sinal de
movimento.
Era algum tipo de laboratório. Não. Aquela era a
palavra errada, mas era a primeira coisa na mente de
Dani quando ela viu os monitores trincados de um lado e
o armário do outro. A luz vinha de dois tubos no fundo da
sala que pareciam ser só luzes. Um deles tinha manchas
mais escuras e parecia rachado.
E no meio da sala havia um caixão.
Certo, não era exatamente um caixão. Mas era um
retângulo construído no meio da sala, um pouco
inclinado. E parecia ter sido construído em camadas.
Ela se aproximou devagar, tentando entender o que
estava vendo. Sim, camadas. Tijolos de cimento por fora,
depois cerâmica e por último metal. Não. Tinha outra
camada fina entre a cerâmica e o metal, mas ela não
conseguia ver exatamente o que era. A "tampa" era uma
peça de acrílico reforçado que parecia ser mais grossa
que qualquer coisa que ela já tivesse visto, presa por
mecanismos de metal nas quatro pontas do retângulo e
mais duas nas partes mais compridas da lateral.
E era óbvio que havia um vampiro dentro daquilo.
Dani pegou a lanterna e a ligou, iluminando o rosto
dele. A pele estava se esticando sobre os ossos de uma
forma que quase parecia uma múmia dos filmes que Alex
gostava de assistir – uma múmia com cabelo escuro
embolado e barba descuidada, mas ainda assim uma
múmia. Fazia sentido, se era um vampiro esquecido ali
há décadas, pelo menos. Aquele tempo todo sem se
alimentar seria o suficiente para causar isso...
Provavelmente. Dani nunca tinha ouvido falar de um
vampiro passar tanto tempo sem se alimentar.
E ela não tinha como ter certeza de que ele era
quem ela estava procurando. O monstro. Porque ele não
parecia um monstro – quer dizer, não mais do que
qualquer outro vampiro pareceria depois de tanto tempo
sem sangue.
Mas quem mais poderia ser? Ela estava na cidade
velha, no subterrâneo de uma das maiores casas. Quem
mais poderiam ter deixado para trás? Ou melhor, quem
eles pensariam que precisavam colocar em uma caixa
como aquela? Porque as camadas de materiais diferente
com certeza não eram à toa.
Era loucura. Mas ela não tinha muitas opções.
Dani encarou a caixa. A tampa de acrílico era feita
para ser movida como uma peça só e aquilo não era
nada bom. Ela ia precisar soltar completamente quase
todas as travas e deixar só uma mais frouxa. Se fosse
uma armadilha...
Ninguém deixaria uma armadilha daquele jeito por
décadas.
Ela começou a soltar as travas, que estavam presas
no alto, na lateral do "caixão" e no chão. Alguém queria
ter muita certeza de que esse vampiro não ia escapar.
Cinco travas depois, Dani parou e encarou o vampiro
do outro lado do acrílico de novo. Nenhum sinal de
movimento. Não parecia que ele tinha a menor ideia do
que estava acontecendo. Aquilo era bom.
Dani empurrou a placa de acrílico para o lado. Ela
deslizou sem o menor problema. Nada ainda.
Certo. Como acordar um vampiro? Ela só conseguia
pensar em um jeito.
Dani pegou a faca de novo e fez um corte na palma
da sua mão. O sangue escorreu. Ela colocou a mão acima
da cabeça do vampiro e a primeira gota de sangue caiu
perto da sua boca.
Movimento. Não muito, só a certeza de que ele não
estava mais exatamente na mesma posição. E sua boca
estava aberta.
Dani fechou o punho. As gotas de sangue
continuaram a cair, agora na boca do vampiro. E era
estranho, porque ela estava vendo ele deixar de parecer
uma múmia numa velocidade que deveria ser impossível.
Era quase como quando Alana ficava irritada e decidia
fazer alguma coisa crescer depressa. A mesma
impressão de algo mudando em uma velocidade que não
deveria ser possível.
E ela não ia esperar até ele ter forças o suficiente
para sair dali sozinho.
Dani balançou a mão, deixando uma última gota de
sangue cair, e puxou o acrílico de novo. Ela prendeu a
primeira trava. O vampiro abriu os olhos. A faca de Dani
caiu no chão e ela correu para o lado oposto do caixão,
onde a trava estava só frouxa.
O vampiro bateu no acrílico. O material vibrou, mas
não se quebrou. Nem arranhou.
Mais uma trava presa, mas ela não podia se afastar.
O vampiro tinha provado seu sangue. E estava aqui havia
décadas. Não sabia sobre o Setor Dez e provavelmente
não era nem considerado parte de um setor mais. Se
escapasse, ele ia atacar. E ela não ia deixar aquilo
acontecer.
Dani correu ao redor do caixão, prendendo as travas
depressa. O vampiro continuou batendo no acrílico e um
dos lados que ainda não estava preso chegou a se
levantar um pouco. O vampiro enfiou os dedos no
espaço. Dani bateu com força em cima do acrílico e ele
tirou os dedos de lá, mostrando as presas quase como
uma cobra antes do bote.
Ela prendeu as últimas travas e parou, encarando o
vampiro. Ele mostrou as presas para ela de novo antes
de olhar para os dedos que tinham sido quase
amassados entre o acrílico e as paredes do caixão. Os
dedos que ainda eram mais pele e osso que qualquer
outra coisa, com unhas que mais pareciam garras. De
alguma forma, sua expressão parecia quase humana
demais – era a expressão que Dani faria se tivesse
prendido os dedos em uma porta.
A diferença era que ela estaria xingando e com os
dedos marcados. Os dedos dele não tinham mais marca
nenhuma. E o pouco sangue que Dani tinha deixado
pingar na sua boca havia sido o suficiente para ele não
parecer mais pele esticada sobre osso. Seu rosto ainda
estava marcado o suficiente para ser estranho, mas não
estava cadavérico.
Ela quase preferia que estivesse.
— Quem é você? — Dani perguntou.
O vampiro mostrou as presas de novo e ela tinha
certeza que ele estava chiando como uma cobra, mas o
acrílico bloqueava o suficiente do som.
Ela precisava ter certeza antes de fazer qualquer
coisa.
— Se está louco demais para responder, então não é
útil para mim.
O vampiro sorriu – se é que tinha alguma diferença
entre aquilo e a forma como ele estava mostrando suas
presas antes.
— Amon.
E Dani tinha conseguido ouvir claramente o que ele
estava falando. Talvez não estivesse chiando antes,
então.
— Amon — ela repetiu.
Aquilo não ajudava muito. Alex teria falado o nome
do monstro, se soubesse. Mas Dani não podia perguntar
se ele era o monstro. Ele só confirmaria, porque ela era
sua chance de sair dali. E aquilo deixaria claro o tanto
que ela não sabia. Não. O nome ia ter que ser o
suficiente.
— Me liberte, humana — ele falou.
Dani cruzou os braços e levantou uma sobrancelha.
Ela não discutiria se alguém a chamasse de louca – tinha
vindo atrás de um vampiro que diziam que era um
monstro entre eles, não tinha? Mas não era estúpida.
— Me liberte e sua morte será rápida — o vampiro
continuou.
Ela sorriu.
— Não pretendo morrer agora, obrigada.
O vampiro passou uma unha – uma garra – pelo
acrílico. Um som estridente e irritante se espalhou pela
sala. Dani não reagiu.
— E você acha que esse pedaço de nada vai te
manter segura por quanto tempo?
Bastante, porque a garra dele não tinha feito
nenhum arranhão. Dani era capaz de apostar que aquele
acrílico era uma versão aprimorada do que usavam nas
janelas da mansão.
— Tempo o suficiente — ela falou. — Esse caixão te
manteve aqui por mais de cinquenta anos. Não acho que
preciso me preocupar com você escapando.
O vampiro abaixou a mão. Ele tinha disfarçado, mas
não o suficiente. Ele não sabia que tinha sido deixado
para trás. Ela podia usar aquilo.
A questão era só como usar aquilo de um jeito que
não colocasse sua vida ou o setor em risco.
— Você quer alguma coisa, humana — ele falou. —
Ou não estaria aqui.
Dani sorriu.
— Talvez eu só tenha visto uma luz interessante
enquanto estava explorando as ruínas.
A mesma expressão de antes – a surpresa. Ele não
acreditava que ela estava dizendo a verdade, mas não
conseguia ignorar a possibilidade.
Ótimo. Ele ia ter o que pensar até ela voltar.
Ela se virou e saiu da sala. O vampiro não falou
nada.
Teria sido melhor se falasse. Se ameaçasse. Com
aquilo ela saberia lidar. Mas a forma como ele a encarava
deixava claro que ele não ameaçava. Ele fazia.
Dani precisava achar um jeito de garantir que aquele
vampiro nunca atacasse o Setor Dez. Mais cedo ou mais
tarde, ele ia escapar, mesmo que ela não o usasse agora.
Ele era um risco, o que queria dizer que era sua
responsabilidade. E, se não houvesse como garantir que
ele não se viraria contra eles, havia uma forma muito
mais simples de lidar com um vampiro.

Rafael virou o papel grosso na sua mão. A folha estava em branco,


mas ele conseguia sentir o poder da bruxa. Ela era mais
poderosa do que ele havia esperado – poderosa o
suficiente para garantir que o Setor Um mantivesse suas
plantações. Mais que o suficiente, na verdade. Com ela
ali, ele poderia expandir. Talvez até mesmo tomar posse
de parte da terra de ninguém na fronteira.
Ele saiu para a sacada. O céu estava escuro na
direção que estava olhando, mas caso se virasse para
trás veria as linhas de cor do sol se pondo. Ainda estava
cedo para um vampiro, mas estava começando a ficar
tarde para uma humana. O anoitecer era o horário deles.
Dos vampiros. Rafael não imaginava que seria muito
diferente, mesmo em um setor governado por uma
bruxa.
Aquilo queria dizer que sua futura feiticeira, a bruxa
com o poder de fazer as plantas crescerem, estava
tocando na sua mensagem. Bom. Muito bom. E agora
que ele sabia o que esperar, não confundiria um uso não
intencional de poder com um convite. Havia pensado que
perdera sua chance de conseguir a bruxa depois daquela
visita ao Setor Dez, mas se ela já estava com a
mensagem de novo...
Ele havia pensado que ela destruiria a carta. Já
estava pronto para enviar outra, com um pedido de
desculpas por sua invasão. Talvez até mandasse um
presente junto com a segunda mensagem – alguma
planta exótica. A bruxa havia parecido gostar das
plantas, não apenas usá-las por causa do seu poder. Mas
ela ainda estava com a mensagem.
Talvez não tivesse sido tão ruim. Talvez ela tê-lo visto
fosse algo bom. Uma forma de continuar na sua mente.
Sim. Rafael sabia que tinha uma aparência agradável
para uma boa parte dos humanos e não tinha o menor
problema em usar aquilo para conseguir o que queria.
Talvez mais algumas visitas fossem uma boa ideia, mas
apenas depois de alguns dias.
Ele ainda precisava se lembrar de Raquel. Ela era
apenas uma bruxa, sim, mas era uma bruxa que ele não
queria transformar em inimiga. Não de forma direta, pelo
menos. Ela estava cumprindo exatamente o papel que
ele havia esperado, quando concordara com a criação de
um setor que não fosse governado por um dos clãs.
Quanto mais tempo conseguisse manter o Setor Dez ali,
melhor. Mas aquilo não queria dizer que eles estariam
seguros.
— Thales — ele chamou.
Outro vampiro saiu para a sacada, sem fazer ruído, e
parou um pouco para trás e para o lado de Rafael.
— Garanta que o Setor Oito se mantenha no plano —
Rafael falou.
— Devo deixar claro que são ordens suas ou... — o
vampiro começou.
— Não. Não quero nenhuma ligação entre esse
ataque e o Setor Um.
— Entendido.
O outro vampiro se afastou, sem fazer ruído.
O Setor Oito era uma boa arma. Eram fáceis de
apontar em alguma direção, com pressão no lugar certo.
Previsíveis, por serem tão voláteis. Mas Rafael nunca
ligaria seu nome a eles. Eles eram ferramentas e mais
nada.
E, justamente por causa deles, ele teria sua bruxa.
Teria uma garantia de que o Setor Um continuaria
ocupando a posição que ele tanto lutara para alcançar.

Já estava escuro quando Dani chegou na cidade que era a capital


do Setor Seis. Não importava se tivesse tempo, era
arriscado demais sair do Setor Dez antes de escurecer.
Se já estavam prontos para proibir que negociassem no
mercado, seria fácil demais consideraram que ela estar
ali fosse algum tipo de passagem não autorizada. Não.
Era mais seguro esperar anoitecer. Os vampiros não
patrulhavam as fronteiras – aquilo estava abaixo deles,
porque seria o mesmo que admitir que os outros setores,
seus iguais, não cumpririam os acordos. Ou, pior, admitir
que os humanos do Setor Dez podiam ser uma ameaça.
Ela passou depressa pelas primeiras ruas, tomando
cuidado para ficar nas sombras mais escuras. Ninguém
prestava atenção no que acontecia nas sombras – era um
instinto de sobrevivência que qualquer humano
desenvolvia depressa. E os vampiros... Na maior parte do
tempo, eles não se davam ao trabalho de sair da sua
parte da cidade. A não ser quando alguém os convidava,
sangrando em lugares públicos, mas com sorte Dani não
teria que lidar com nada daquilo.
As ruas começaram a ficar um pouco melhores. As
casas não estavam mais caindo aos pedaços, mesmo
que ainda precisassem de reparos. E de pintura. Mas, ali,
não seria estranho uma pessoa andando depressa, indo
para algum lugar. Ninguém teria nenhum motivo para
pensar que ela estava vindo de fora.
Dani virou em uma rua e ouviu o barulho de
conversas altas mais para à frente, junto com o ruído de
copos e pratos. Tudo normal, então. Ela continuou
andando e virou em um beco estreito, que parecia mais
estreito ainda por causa das mesas e cadeiras
encostadas na parede e das pessoas sentadas ali.
Nada diferente de outros lugares parecidos pela
cidade. Dani já tinha visto vários bares assim. "Bares" por
falta de outro nome, porque bebida era o de menos
naqueles lugares. Enquanto ela ainda estava parada no
começo do beco, encostada na parede, uma mulher alta
e musculosa saiu de uma porta, carregando duas
bandejas com um equilíbrio invejável. A mulher foi na
direção de uma das mesas ocupadas e colocou as
bandejas com comida em cima dela. As três pessoas
sentadas lá – todos vestidos de preto dos pés à cabeça –
agradeceram, rindo.
Aquele bar só tinha uma diferença: era um ponto de
encontro de mercenários e outras partes do submundo
dos setores. Em teoria, era um lugar seguro, mas ela
sabia que aquelas pessoas não se davam bem com
estranhos chegando ali, mesmo que ela estivesse vestida
como eles. Jeans escuros, coturnos e coletes eram
praticamente a regra. Dani teria preferido estar com os
protetores nos antebraços, também, mas aquilo
chamaria atenção nas ruas.
A mulher mais alta se virou para a entrada do beco.
Dani sustentou seu olhar e apontou na direção do Setor
Dez. A mulher continuou a encarando por mais alguns
segundos antes de entrar na casa de novo.
Dani se encostou na parede. Dali, conseguia ver
tanto o que estava acontecendo no beco quanto se
alguém se aproximasse. Ela não gostava de ir ali – o risco
de acidentes era grande e Dani preferia evitar confusão,
se pudesse. Mas era o jeito mais fácil de conseguir falar
com Lara.
Não demorou muito para ela ouvir passos e ver Lara
se aproximando, vindo da direção do centro da cidade.
— Não pensei que fosse te ver de novo tão cedo —
Lara falou assim que entrou no beco.
Dani suspirou e cruzou os braços.
— Eu também não pensei que fosse voltar aqui. Mas
tenho propostas.
Lara levantou uma sobrancelha.
Ela não era o único contato de Dani no submundo,
mas era a pessoa mais confiável. Dani conhecia o
suficiente sobre Lara para saber que ela só estava ali
pelo dinheiro, não porque gostava. Aquilo era mais do
que ela podia falar sobre a maioria das pessoas que
negociavam no submundo.
— Mercenários — Dani falou. — Você sabe como
fazer um aviso chegar nas pessoas certas.
Lara inclinou a cabeça e foi mais para o fundo do
beco, passando entre as mesas cheias de pessoas
conversando em voz baixa ou não tão baixa assim. Ela
parou nas sombras e bateu uma mão na parede. Dani
ouviu o ruído abafado de um bloqueador sonoro.
— De quantos mercenários estamos falando e qual a
proposta?
— Nesse momento, não tenho um limite de
quantidade. Estamos falando de criar um contingente
fixo no Setor Dez. Vamos oferecer moradia e
alimentação, além do pagamento, se quiserem colaborar
como moradores do Setor Dez. Se não quiserem, vamos
oferecer apenas pagamento.
— E o pagamento...
— Em alimentos. Grãos e derivados, coisas que vão
durar por tempo o suficiente para serem negociadas.
Lara balançou a cabeça devagar.
— O que você está falando é praticamente uma
oferta de cidadania do Setor Dez para os mercenários.
Dani assentiu. Era exatamente aquilo.
— E estamos dispostos a aceitar dependentes,
dentro de um limite.
— Dani...
— Nós vamos ser atacados e você sabe disso, Lara.
A ideia de nos barrar dos mercados está vindo do Setor
Oito. Você já ouviu o suficiente sobre como eles
trabalham, também.
— Se a notícia dessa proposta se espalhar, vocês vão
ter quase uma invasão de mercenários no Setor Dez.
Porque não era fácil conseguir cidadania do Setor
Dez e Dani sabia disso. Ela e Alana só tinham conseguido
aquilo sem problemas por causa do que Alana podia
fazer. Se Dani estivesse sozinha, tinha certeza de que
não teria sido aceita.
E a ideia de viver em um setor que não era
controlado por vampiros era tentadora para a maioria
das pessoas. Provavelmente mais ainda para
mercenários, ela imaginava. Eram poucas as pessoas que
se tornavam mercenárias porque gostavam do trabalho.
A maioria era por necessidade – e a necessidade existia
por causa dos vampiros.
— Nós temos um limite para quantas pessoas
podemos aceitar sem colocar pressão demais na
produção do setor. Mas, enquanto não atingirmos o
limite... — Dani deu de ombros. — Estamos contando
com isso.
E o que Dani estava fazendo era loucura. Estava
confiando em Lara muito mais do que deveria, mas ela
era sua melhor opção, como sempre. Lara havia crescido
ali, entre os mercenários e o restante do submundo. Ela
conhecia aquela parte do Setor Seis como a palma da
sua mão.
Era mais uma das coisas que diferenciava o Setor
Dez dos outros. Em qualquer setor controlado pelos
vampiros, era possível encontrar lugares como aquele.
Bares e cantinas onde mercenários e comerciantes
ilegais se encontravam. Até mesmo os vampiros sabiam
que eles existiam e não faziam nada para atrapalhar. Os
boatos diziam até que contratavam as pessoas dali, às
vezes. Mas não no Setor Dez.
E aquela era a questão: os contatos de Dani eram
superficiais. Ela era parte de outro setor e só tinha
começado a ir ali havia três anos, talvez um pouco mais.
Sozinha, ela conseguiria convencer alguns mercenários
que estivessem na cidade e só. O aviso não ia se
espalhar e não confiariam na sua palavra. Se Lara se
envolvesse...
Lara respirou fundo e olhou para o beco de novo.
Tudo parecia igual. As pessoas ainda estavam comendo,
bebendo e conversando. Alguém dentro da casa ainda
estava resmungando alto o suficiente para ser ouvida
onde as duas estavam e mais duas luzes no andar de
cima da casa da frente tinham se acendido.
— Eu posso garantir que esse aviso se espalhe entre
os mercenários até além dessa região — Lara falou.
Dani assentiu.
— Estava contando com isso.
E também estava esperando um preço alto, porque
Lara nunca fazia nada de graça.
— Eu não vou entrar nisso — ela falou. — Mas quero
cidadania do Setor Dez pra uma pessoa. Proteção, de
certa forma.
Raquel ia odiar aquilo, mas não era como se Dani
tivesse outra opção. Eles precisavam dos mercenários. E
uma pessoa não seria um problema para o Setor Dez. Já
estavam protegendo Alana, não tinha como essa pessoa
ser um alvo mais importante.
— Fechado.

Dani tinha imaginado muitas coisas quando Lara falou que queria
proteção para uma pessoa, mas nenhuma delas era a
garota se segurando com força na sua cintura enquanto
ela acelerava a moto velha que tinha escondido perto da
cidade, mais cedo. A garota devia ter uns doze anos, no
máximo, mas não parecia. Quer dizer, parecia –
fisicamente. Mas não agia como se tivesse doze anos..
Lara tinha levado Dani para uma casa não muito
longe daquele bar, o que explicava porque era tão fácil
achar ela ali, e a garota já estava esperando quando ela
abriu a porta. Lara só havia avisado que era para ela ir
embora com Dani e que era para obedecê-la, e pronto. A
garota tinha pegado uma mochila que já estava
preparada e seguido Dani na direção da saída da cidade.
A garota não tinha questionado. Não havia falado
nada, só acompanhado Dani. E, o tempo todo, ela tinha
andado como alguém que sabia se esconder. Ela sabia
aproveitar as sombras, sabia como não fazer barulho e o
pior: sabia como fazer aquilo tudo parecer natural.
Talvez Dani devesse ter feito mais perguntas antes
de aceitar aquilo. Não que ela tivesse alguma ilusão de
que Lara fosse dar alguma informação antes de ter uma
garantia de que a garota estaria segura, mas... Ela era
nova demais para agir assim, mesmo para alguém que
tinha crescido em um setor dos vampiros.
Mas a garota nunca tinha andado de moto antes.
Pelo menos era o que parecia, pela forma como estava se
agarrando em Dani. E aquilo levando em conta que
aquela moto era velha, sem nada da velocidade que os
modelos mais recentes tinham. Mas era o que haviam
conseguido comprar para quando precisavam ganhar
tempo indo de um lugar para o outro. Combustível era
raro e caro o suficiente para qualquer tipo de veículo ser
um luxo.
Dani saiu do caminho e entrou no meio das árvores.
Toda a fronteira do Setor Dez, em qualquer direção, era
cercada de árvores. E não só na fronteira, mas uma área
de uns poucos quilômetros que funcionava como uma
medida de segurança adicional. Eles tinham câmeras de
vigilância e depósitos espalhados por toda parte ali,
porque era onde guardavam qualquer coisa que o
pessoal de segurança podia precisar em cima da hora –
como as motos.
Ela parou a moto dentro de um desses depósitos:
uma construção de um cômodo, reforçada, com
prateleiras cheias de caixas em todas as paredes, caixas
maiores no chão, cobertas por um tecido grosso que era
resistente ao fogo, e um espaço aberto bem no meio.
— Pode descer — Dani falou.
A garota a soltou e desceu da moto devagar, como
se não tivesse certeza de que ia conseguir continuar em
pé. Dani esperou antes de descer da moto também e
indicar a saída com um movimento de cabeça. A garota
foi naquela direção sem falar nada. Lara tinha falado
para ela obedecer, e ela estava obedecendo.
Dani puxou o portão de aço que estava enrolado no
alto da entrada e ativou as trancas antes de se virar para
a garota.
— Como você se chama? — Ela perguntou.
— Valissa.
Dani se forçou a não reagir. Aquilo era um nome de
vampiros.
— Sabe por que Lara pediu para você vir comigo? —
Ela insistiu.
A garota assentiu.
Dani bufou.
— E não vai me falar?
Ela balançou a cabeça.
Seria fácil demais se falasse. Dani realmente devia
ter perguntado mais.
— Você é o que de Lara? Irmã ou...
— Irmã.
Era o que Dani tinha imaginado. Lara parecia ser um
pouco mais nova que ela, o que queria dizer que a garota
era velha demais para ser sua filha.
— E você está obedecendo sem questionar nada por
quê?
Porque crianças não agiam daquele jeito.
A garota olhou para Dani.
— Porque não quero que me achem.
Um arrepio atravessou Dani. Ela conhecia aquele
olhar. Era o mesmo que tinha visto no espelho por anos,
enquanto estava fugindo com Alana. Mas Valissa era só
uma criança. Os vampiros podiam não ter quase nada
que se passasse por morais, mas crianças sempre
estavam seguras. Era lógica pura: se vampiros
atacassem crianças, ficariam sem seus lanchinhos depois
de uns anos.
A garota olhou para a frente. Estavam perto o
suficiente da mansão para ela ser visível entre as
árvores.
— É aqui que eu vou ficar? Vocês não têm uma
cidade?
Dani suspirou.
— Por enquanto, você fica aqui. Pelo menos essa
noite. E tem uma cidade, mas ela fica depois da casa.
A garota não falou mais nada.
Dani começou a andar na direção da mansão. A
garota continuou no lugar por alguns segundos,
parecendo concentrada, antes de ir atrás dela.
QUATRO

Dani entrou no escritório de Raquel sem prestar atenção. Ainda


não eram nem oito horas da manhã, ela tinha voltado
para a sede com o dia quase amanhecendo e não tinha
tido tempo nem de ver se tinha café na cozinha depois
que a acordaram.
Raquel estava sentada atrás da sua mesa – antiga,
provavelmente da mesma época em que a casa havia
sido construída, séculos atrás. Aquilo era normal. Raquel
começava a trabalhar cedo. Não era fácil manter um
setor funcionando e, sabendo que seriam atacados, ela
teria muito mais trabalho.
Alguém fez um ruído irritado e o som era familiar
demais. Dani balançou a cabeça e olhou para o lado.
Alex estava sentade em outra cadeira, com as
pernas cruzadas e aquela expressão que tinha rendido
discussões demais.
Dani puxou outra cadeira e se sentou. Alex. Era
óbvio que era Alex ali. Só assim para ela ser acordada
àquela hora, sendo que todo mundo sabia que Dani tinha
chegado de madrugada e...
Não.
Dani encarou Alex e estreitou os olhos.
Elu deu de ombros.
— Imaginei que não tivesse contado seu plano para
Raquel.
Não, não tinha, porque ela estava esperando uma
confirmação de que seria viável antes de falar alguma
coisa. Dani sabia que Raquel não ia gostar nem um
pouco da ideia de usarem um vampiro, mesmo que
tivessem alguma forma de controlá-lo.
Se elu estava aqui, era porque tinha um jeito.
— Eu não ia fazer nada sem autorização — Dani
falou.
Podia ser louca e assumir mais riscos do que deveria
mas, se fosse tão irresponsável quando Alex pensava,
nunca teria sobrevivido a dois anos nas terras de
ninguém. E nunca teria se tornado uma das responsáveis
pela segurança do Setor Dez.
Alex desviou o olhar, parecendo sem jeito. Não que
aquela reação adiantasse muita coisa. Era um absurdo
que, depois de todo o tempo que tinham passado
juntes...
E era por causa de coisas como aquela que não tinha
dado certo.
Dani respirou fundo e olhou para Raquel, que estava
sentada com os braços cruzados, esperando. Sem
escapatória, então.
— As histórias sobre o monstro — Dani começou. —
Você conhece elas melhores que eu.
Raquel assentiu, sem falar nada.
— Ele ainda está vivo, nas ruínas da cidade velha.
— Então nós vamos matá-lo — Raquel falou.
Era exatamente a resposta que Dani tinha imaginado
que teria.
Ela balançou a cabeça.
— Não. Nós vamos usá-lo.
Raquel continuou encarando Dani, sem responder.
— Se Alex está aqui, é porque achou algum jeito de
fazer isso — Dani continuou. — Era por isso que eu
estava esperando. Se existe um jeito de controlar esse
vampiro e usar ele ao nosso favor, precisamos fazer isso.
— Alex? — Raquel chamou.
Dani fechou as mãos com força e se recusou a olhar
para o lado. Não tinha o direito nem de estar com raiva
de Alex por fazer aquilo, depois de como tudo tinha
terminado. Mas ir ali e falar direto com Raquel havia sido
um golpe baixo.
— Existe um jeito de controlar um vampiro — Alex
falou. — Um juramento de sangue.
Não.
— Isso é magia dos vampiros.
Era mais do que Dani estava disposta a fazer.
Alex assentiu.
— É a única coisa capaz de prender um vampiro para
usá-lo como arma. Era o que faziam, na época das
guerras entre as Cortes. É até provável que vampiro nas
ruínas tenha um juramento de sangue de quando lutava
pelo Setor Oito.
Dani balançou a cabeça.
— Eu não vou usar isso.
Alex levantou as sobrancelhas e inclinou a cabeça
daquele jeito que Dani sabia que queria dizer que elu
estava furiose.
— Pesado demais pra você? E o que pensou que ia
ser capaz de prender um vampiro? Um aperto de mãos?
Dani não respondeu. Não tinha pensado tão longe.
Só havia imaginado que, se tivesse um jeito, Alex
acharia. E elu tinha achado. Aquela era a parte que
importava.
— Obrigada.
Alex balançou a cabeça com força.
— Me agradeça não me envolvendo mais nisso. E
não se matando.
Raquel pigarreou e Alex se endireitou.
— Já mandei todas as informações e instruções para
vocês — elu avisou.
Porque era óbvio que Alex faria questão de mandar
tudo para Raquel também. Não que fosse um problema.
Dani teria repassado tudo. Esconder informações era
uma receita para falhas estúpidas, depois.
— Isso era tudo, Alex? — Raquel perguntou.
— Era. Vou deixar vocês se resolverem.
Dani não falou nada enquanto Alex saía da sala e
fechava a porta atrás de si. Não deveria doer. Ela sempre
tinha pensado que o problema maior era que Alex se
preocupava porque estavam juntes. Mas, depois
daquilo...
Alex não confiava nela, simples assim. E aquilo não
deveria doer o tanto que doía.
Raquel suspirou alto.
— Um vampiro — ela começou. — O monstro das
histórias. O responsável por destruir o setor que existia
aqui antes. E você quer prendê-lo por um juramento de
sangue.
Querer, ela não queria. Mas não tinha outra opção,
por mais que odiasse a ideia. Se Alex estava dizendo que
aquele era o único jeito, era porque era a única opção.
— Você sabe tão bem quanto eu que não vai fazer a
menor diferença termos um exército de mercenários —
Dani falou. — E não temos nem recursos pra manter
tanta gente aqui.
— Você está sugerindo trazermos um vampiro para
dentro dessa casa...
Dani bufou.
— Não estou falando nada sobre trazer alguém pra
cá. Sei lá, arruma uma casa segura para ele e pronto.
Mas nós precisamos de mais do que só mercenários.
Somos só humanos contra vampiros, não importa
quantos bruxos lutem conosco. Nós estamos vulneráveis.
Aquela era a verdade. Se mandassem um vampiro
como aquela mulher que Dani tinha visto no bar do Setor
Seis, ele só precisaria se aproximar deles e controlaria
todos os bruxos. Humanos não tinham como se defender
daquele tipo de poder. Nem mesmo bruxos.
— É só por isso que estão se divertindo às custas de
Alana — Dani continuou. — Eles não precisam ter pressa,
porque sabem que a qualquer hora podem invadir o
Setor Dez e conseguir o que querem. Eu nem duvido que
tenha uma roda de aposta rolando entre os príncipes dos
setores, só para saber quem vai conseguir alguma coisa
primeiro. Somos presas fáceis. Brinquedos para...
Dani parou de falar e cruzou os braços. Não tinha
ficado frio, não exatamente, mas algo estava a estava
incomodando. E Raquel ainda estava sentada no mesmo
lugar, encarando Dani.
Raquel, que era uma bruxa. Uma bruxa poderosa o
suficiente para ter convencido os vampiros a lhe darem
um setor.
— Isso não é uma ofensa — Dani falou, depressa.
— Não? — Raquel perguntou. — Porque pareceu.
Dani balançou a cabeça com força.
— Olha, eu sei que você só quer proteger o setor. E
eu sei que o que estou propondo é arriscado demais. Mas
eu não consigo pensar em outro jeito de sobrevivermos.
Não importa o tipo de poder de fogo que conseguir, vai
ser só uma questão de tempo. Mesmo se usarmos as
barreiras elétricas, elas não vão durar.
E Dani tinha a impressão de que o poder de compelir
mortais não era tão incomum assim. Eles seriam alvos
fáceis.
Raquel apoiou os braços na mesa.
— Você pensou sobre isso. Não é uma decisão por
impulso.
O que ela estava pensando que Dani era?
— Eu não colocaria ninguém em risco assim se
tivesse outra opção. Mas é isso ou...
Ou ela e Alana fugirem de novo. E Alana estava
certa. Se fugissem, continuariam fugindo para sempre.
Precisavam encontrar um jeito de ficar seguras.
E, no fim das contas, elas fugirem provavelmente
não faria diferença. O Setor Dez era um alvo só por ser
um setor fora do controle das Cortes.
Raquel respirou fundo e se endireitou.
— Coordene com Yuri. Eu vou autorizar isso, mas
quero o vampiro com você o tempo todo. Ele não vai
colocar os pés dentro da sede. Isso quer dizer que vão
arrumar uma das casas seguras e você vai ficar lá com
ele.
Aquilo não era o que ela havia planejado. Dani tinha
imaginado que poderia deixar o vampiro em uma casa
segura, bloquear tudo para proteger da luz do sol e
pronto, sossego. Quando precisasse dele podia deixar ele
sair. Ou quando ele precisasse se alimentar.
Droga.
Ela não tinha pensado no que fazer para ele se
alimentar.
E nada daquilo mudava o fato de que aquela era a
única chance deles. Ela acharia alguma coisa. Negociaria
com algum hospital... Pronto. Um hospital.
— Obrigada.
Raquel assentiu e tamborilou os dedos na mesa. Não
tinha terminado, então.
— A garota que você trouxe noite passada — a bruxa
começou. — O que sabe sobre ela?
Dani cruzou os braços com força. Sabia que não
tinha informações o suficiente.
— Ela é irmã de um contato do Setor Seis. A pessoa
que me avisou sobre os mercados — ela contou. — E
precisa se esconder de alguma coisa. Meu contato falou
que queria Valissa aqui porque ela estaria segura.
— E você não sabe de que ela está se escondendo —
Raquel falou.
Dani não respondeu. Não sabia. Não tinha nem ideia
do que poderia ser. E não tinha como entrar em contato
com Lara para perguntar. Não que achasse que existia
alguma chance de Lara lhe responder.
Raquel suspirou e balançou a cabeça.
— Vou organizar com o pessoal para alguém sempre
estar por perto dela, até descobrirmos por que ela
precisa se esconder.
Ótimo. Era a única coisa que Dani queria.
— Se eu tivesse opção, não teria trazido ela assim,
sem saber de nada — Dani começou.
Raquel levantou as sobrancelhas.
— Se alguém falasse com você que uma criança
precisava se esconder, você traria ela sem pensar duas
vezes e sem pedir detalhes.
Dani soltou o ar com força e deu de ombros. Não
tinha como negar aquilo. E ela sabia que a bruxa faria a
mesma coisa.
— Obrigada — ela falou.
Raquel assentiu de novo e pegou um tablet em cima
da mesa.
Dani sabia muito bem quando estava sendo
dispensada.
Ela se levantou e saiu da sala depressa. Não ia
conseguir voltar a dormir mas, com sorte, conseguiria
pelo menos cochilar mais uma meia hora. Precisava estar
alerta, se ia organizar aquilo com Yuri.
E pelo menos Raquel não tinha falado que, se
alguma coisa desse errado, a responsabilidade seria de
Dani. Ela já sabia muito bem daquilo.
Amon não forçou a proteção sobre a caixa, mesmo que estivesse
sentindo suas forças desaparecendo. Sabia que não
adiantaria nada. Aquilo tinha sido construído
especificamente para prendê-lo. Ele havia passado
tempo demais tentando escapar. Sempre havia sido sua
única chance: escapar enquanto seus juramentos não o
prendiam de forma ativa. Entre os ataques, quando não
estava preso por nenhuma ordem. Mas não conseguira. E
havia passado décadas ali, sem morrer mas sem
conseguir nem mesmo se mover.
No começo, quando começara a definhar, Amon
havia pensado que era uma punição pelo que tinha feito
da última vez que o usaram. E ainda estaria pensando
aquilo se uma humana não o houvesse encontrado. Uma
humana. Que dizia que haviam se passado décadas
desde a guerra.
Uma humana que queria usá-lo, também. Como todo
mundo, desde que ele havia sido transformado. Era seu
papel e ele aceitara isso. Mas ser usado por uma humana
era baixo demais até mesmo para ele.
E Amon seria usado por ela, porque não estava
disposto a se permitir ser destruído. Ainda tinha contas a
acertar com pessoas demais.
A luz mudou. A humana estava de volta e não estava
se dando ao trabalho de tentar esconder sua
aproximação.
Ela não era tola. Se fosse, não teria sido tão
cuidadosa. Mas ela queria alguma coisa e aquilo queria
dizer que Amon podia negociar. Haviam se passado
décadas. Ele não sabia mais qual era o conhecimento dos
humanos sobre os vampiros. Era possível que ela não
soubesse como prendê-lo, e naquele caso...
A humana apareceu acima da caixa, com o mesmo
meio sorriso da outra vez. Ela pensava que estava no
controle. Eles sempre pensavam, até ser tarde demais.
Ela não era nada demais. Sua pele era clara, com
olhos escuros e cabelos pretos na altura do ombro, uma
tatuagem subindo pelo seu braço e desaparecendo por
baixo do colete que estava usando. O colete e as
proteções nos seus antebraços eram o único sinal de que
a humana sabia que precisava se preocupar. Não que
tivessem alguma utilidade real contra um vampiro.
— Ainda está acordado — ela falou. — Que pena.
Ainda, mas não por muito tempo. O sangue que a
humana havia lhe dado tinha sido pouco. O único motivo
para Amon ainda não ter perdido a consciência era sua
idade. Ele não precisava de tanto sangue, especialmente
se não estivesse fazendo nada além de existir naquela
caixa.
— A humana, de novo. Você quer alguma coisa.
Ela se afastou da caixa e saiu do seu campo de visão
por alguns segundos antes de aparecer de novo, do outro
lado. Estava estudando sua prisão.
— O que você quer? — Ele insistiu.
A humana levantou a mão e girou a faca que estava
segurando. Se ela pensava que isso o intimidaria, estava
muito enganada.
— Nesse momento, quero decidir se você vai ser útil
para mim vivo ou se vai ser mais fácil me livrar de um
risco.
Amon sorriu, mostrando as presas. Previsível. Tão
previsível...
— Você pode tentar se livrar de mim. Mas vai ter que
tirar essa placa do caminho. Acha que vai ser mais rápida
que eu? Ou que, mesmo se conseguir, não vai sofrer
nenhuma repercussão?
A humana se abaixou e apoiou os braços cruzados
na placa de acrílico. Arrogante. Ela estava praticamente
em cima de Amon, mas agia como se não tivesse
nenhum motivo para temer.
E talvez não tivesse. Talvez o mundo houvesse
mudado o suficiente para ela estar segura, mesmo que
estivesse pensando na possibilidade de libertá-lo.
Ele precisava de informações. Precisava entender o
que havia acontecido. Mas não havia como fazer aquilo.
— Eu te dei um pouco de sangue dois dias atrás — a
humana começou. — Você se recuperou um pouco. Mas
aquilo não é o suficiente pra te manter, não é? Seu corpo
já está se consumindo de novo e seus movimentos estão
mais lentos. Isso quer dizer que eu não preciso me
preocupar em ser mais rápida que você. Se eu esperar
uma semana, você vai estar do jeito que te achei antes.
Uma casca, pele e osso e nada dessa imitação de vida
dos vampiros, esperando uma gota de sangue para
conseguir acordar.
Ela morreria. Aquela era a única certeza de Amon.
Ele sairia daquela caixa de alguma forma e faria questão
de caçar a humana que pensava que podia ameaçá-lo.
A humana se inclinou mais para a frente e sorriu.
— E eu não vou sofrer nenhuma repercussão, porque
ninguém sabe que você está aqui. O Setor Quatro não
existe mais. E essa parte do território não pertence mais
ao Setor Oito. Onde estamos são os restos de uma
cidade que ninguém se lembra que já foi grande, num
lugar que é tão sem importância para nós que ninguém
nunca pensou em limpar essas ruínas.
A morte dela seria lenta. Lenta e dolorosa. Talvez ele
lhe daria um pouco do seu sangue. Só o suficiente para
uma transformação parcial – algo que permitiria que seu
corpo suportasse mais tempo, antes de falhar. Assim
seria mais satisfatório se divertir com ela.
— Ninguém tem motivos para vir aqui — ela
continuou. — Muito menos pra forçar uma porta trancada
em uma casa que está caindo aos pedaços. Se eu for
embora e não voltar mais, você vai continuar aqui, semi-
morto, preso, por pelo menos mais algumas décadas.
Séculos, se bobear. Não vai fazer diferença pra mim.
O vampiro sorriu.
— Você quer alguma coisa. Então não vai me deixar
aqui.
Ela bateu a ponta da sua faca no acrílico.
— Ah, eu quero alguma coisa, sim. Mas querer é
diferente de precisar. Se você concordar com a minha
proposta, vai ser mais fácil pra mim. Se não concordar,
paciência. Vou embora e você fica aqui. E aí, daqui a uma
semana eu penso se volto para me livrar de você de vez,
ou se te deixo aí até sabe-se lá quando.
Perfeito.
Se ela não precisasse dele, não estaria ali. Não teria
se dado ao trabalho de acordá-lo depois de décadas.
— O que você quer propor, humana?
Ela sorriu, sem se afastar do acrílico.
— Você está preso aqui há muito tempo, Amon. O
mundo lá fora mudou. O Setor Oito como você conheceu
não existe mais. Mas talvez exista um lugar para você
aqui, no setor onde essas ruínas estão.
Previsível.
— Você quer que eu mate por vocês.
Aquilo não era novo. Nem seu objetivo nem a forma
como ela estava tentando colocar a situação. Oferecendo
um lar. Uma humana deveria saber que aquilo era perda
de tempo. E Amon tinha consciência demais de quem ele
era. As Cortes dos vampiros o temiam. Se eles não eram
capazes de lhe oferecer nada, não seria uma humana
que o faria.
— E qual é a outra opção, humana?
Ela inclinou a cabeça e se endireitou, mesmo que
ainda estivesse apoiada na placa de acrílico.
— A mesma de antes, é óbvio. Continuar aqui até eu
decidir que sua existência é um risco grande demais e
resolver acabar com você.
Amon levantou o tronco, até que seu rosto estava
quase encostado no acrílico.
— E o que vai me impedir de te matar quando eu
sair daqui?
— Um juramento de sangue.
Ele sorriu, devagar.
O que uma humana sabia sobre juramentos de
sangue? Se ela estava oferecendo aquilo, o suficiente
para o prender. Mas não o suficiente para garantir que
Amon estaria preso. E ela era jovem. Inexperiente. Ele
podia usar aquilo ao seu favor.
Ela queria usá-lo, então o usaria. Mas ele também a
usaria – para sair dali e ter sua vingança.

Dani fechou a porta da escada e se encostou na parede meio


quebrada ao seu lado. O vampiro tinha concordado. Ela
tinha conseguido vender aquela ideia toda para ele, de
alguma forma. Agora só precisava fazer tudo funcionar.
Algo estalou, mais à frente. Ela levantou a cabeça
depressa. Já estava escuro o suficiente para ela não
conseguir ver bem o que estava mais longe, mas o som
não tinha sido tão afastado assim.
Um homem mais velho estava vindo na sua direção,
com a pele marrom escura, o rosto marcado pela idade e
a cabeça raspada. Ezequiel. As histórias diziam que ele
era o mais velho das pessoas que tinham vindo para o
Setor Dez com Raquel, no começo, e que tinha sido um
caçador de vampiros antes de tudo, quando ainda
existiam as pessoas que tentavam caçar vampiros. E ele
tinha sido o responsável pela segurança do setor, a
pessoa que havia treinado Dani e Yuri e lhes dado seus
cargos.
Mais cedo, quando Dani tinha sentado com Yuri para
organizar exatamente como fariam isso, ele tinha
insistido em mandar uma pessoa como backup para
Dani, quando ela fosse fazer o juramento. Mas ela não
tinha esperado justamente Ezequiel. Ele tinha se
aposentado, passado o trabalho para eles, e feito
questão de não se envolver em mais nada. E agora
estava ali.
— Eu vou matar Yuri — Dani falou.
Ezequiel riu, sem se preocupar com o barulho.
— E quem mais você pensou que ele fosse mandar?
Dani respirou fundo e balançou a cabeça. Não tinha
chegado a pensar naquilo. Confiava que Yuri ia mandar
alguém que não fosse falar nada para ninguém e que
fosse capaz de ajudar se o pior acontecesse.
O Setor Dez tinha algumas tantas pessoas que eram
treinadas o suficiente para enfrentar um vampiro. Se
fosse um vampiro enfraquecido, eram mais pessoas
ainda. Mas Dani conseguia contar nos dedos de uma mão
em quantas dessas pessoas ela conseguia confiar para
não deixar nada do que estava acontecendo ali escapar.
Pensando melhor, era óbvio que Yuri teria falado com
Ezequiel.
— Você já fez sua proposta para o vampiro? —
Ezequiel perguntou.
Dani assentiu. Agora, com o homem que tinha
treinado tanto ela quanto Yuri ali, seu plano parecia mais
estúpido ainda. Mas continuava sendo a única opção.
— Ele concordou com o juramento de sangue — ela
falou. — Agora só preciso lacrar o laboratório e soltar ele.
A ideia de ter mais alguém aqui é como uma garantia de
segurança.
— Você quer dizer que, se ele te matar, vai ser meu
trabalho não deixar ele sair daqui.
Dani assentiu de novo. Já tinha pensado nisso vezes
demais. Era bem possível que o laboratório tivesse mais
alguma medida de segurança caso Amon escapasse, mas
tudo estava tão velho que ela não conseguia confiar que
alguma coisa funcionaria.
Ezequiel tirou uma pistola pequena do coldre preso
na sua perna. Não. Não era uma pistola comum. Era uma
das armas de laser. E não era uma das que estava
registrada nos inventários do setor. Dani conhecia todas
elas e eram maiores que essa.
Ele levantou as sobrancelhas e indicou a porta com a
cabeça.
Dani respirou fundo e se endireitou antes de puxar a
porta e descer a escada de novo, ouvindo os passos
quase silenciosos de Ezequiel atrás dela. Se ela
sobrevivesse até a idade dele, esperava que conseguisse
se manter tão em forma assim.
Dani parou no corredor cheio de portas e entregou
um tablet para Ezequiel. A sala com a caixa e o vampiro
preso apareceram, de cinco ângulos diferentes.
— Nem tentei acessar o sistema de segurança desse
lugar — ela contou. — Mas não acho que ele viu quando
espalhei as câmeras. Estão fora do campo de visão. A
porta dessa sala é reforçada e tranca por fora.
— As paredes? — Ezequiel perguntou.
Dani balançou a cabeça.
— Reforçadas. Ele não vai conseguir passar por elas.
Ezequiel assentiu.
Dani respirou fundo e entrou na sala. A porta se
fechou atrás dela com um ruído que parecia final.
Era loucura, sim. Mas era o único jeito.
Ela atravessou a sala até conseguir ver o vampiro
dentro da caixa.
Amon. O monstro das histórias do Setor Dez. E ela ia
libertá-lo.
Ele não tinha voltado a parecer pele e osso, mas
estava quase naquele ponto. Pouco sangue o revivia por
algum tempo, mas não durava muito. Seu corpo
precisava de muito mais para se manter. O que queria
dizer que ele ia precisar de muito sangue para se
recuperar completamente.
Yuri tinha prometido cuidar daquilo, também. Dani
deveria estar satisfeita por ninguém ter questionado sua
ideia louca, mas ela quase preferia que tivessem
questionado. Se nem Yuri nem Ezequiel tinham falado
nada, era porque eles também não conseguiam pensar
em outra opção.
Dani se sentou na borda da caixa e começou a
tamborilar os dedos na placa de acrílico, quase na altura
da cabeça do vampiro. Ele acompanhou seu movimento
com os olhos, mas não fez mais nada.
— Sabe, as pessoas que construíram esse lugar
realmente faziam questão de não deixar você escapar —
Dani começou. — Essa caixa, por exemplo. Eu nunca vi
nada assim antes. E é mais interessante ainda pensar
que a sala onde estamos foi construída do mesmo jeito.
As mesmas camadas de materiais.
Ele estreitou os olhos.
Dani sorriu, sem parar de tamborilar.
— Isso quer dizer que, quando eu tirar essa proteção
de acrílico daqui, você não vai fazer nada. A sala está
lacrada e temos câmeras aqui dentro. A menos que as
pessoas que estão comigo aceitem que você prestou o
juramento de sangue, a sala não vai ser aberta. Se você
me atacar, de qualquer forma, vai ficar preso aqui até
perder a consciência de novo e alguém vir enfiar uma
estaca em você.
O vampiro sorriu, mostrando suas presas
— Não sei se isso será possível. Estou preso há tanto
tempo que o instinto de me alimentar...
Ela apoiou a mão no acrílico e se inclinou para a
frente.
— Então controle o instinto — Dani falou. — A menos
que sua escolha seja acabar com sua existência nessa
sala. Só tem um jeito de você sair daqui e já sabe qual é.
O sorriso do vampiro mudou e um arrepio atravessou
o corpo de Dani. Aquilo não era uma ameaça. Ou melhor,
não era uma ameaça de violência. Era um sorriso quase
sedutor e aquilo, vindo de um vampiro, era outro sinal de
perigo.
— Aguardo suas ordens, senhora.
Dani respirou fundo e se levantou.
Era a única opção.
Ela soltou a primeira trava, perto da cabeça do
vampiro. E depois a que estava ao seu lado, antes de ir
para uma das travas na parte mais comprida da caixa. E
as duas perto dos pés dele.
Só faltava uma trava.
Dani parou e encarou Amon. Ela tinha feito questão
de não olhar para ele enquanto estava soltando as
travas. Precisava estar no controle e aquilo queria dizer
que ele não podia nem pensar que ela não tinha certeza
sobre o que estava fazendo. Mas agora aquela era a
última. O caminho sem volta.
O vampiro a encarou de um jeito que quase parecia
um desafio. Mesmo praticamente pele e osso, com o
cabelo e a barba embolados daquele jeito, ainda tinha
algo de imponente na sua expressão.
E aquilo não importava. Nada importava, além de
fazer ele prestar o juramento.
Dani soltou a última trava e empurrou a placa de
acrílico. Ela deslizou sem o menor problema e caiu do
outro lado da caixa.
O vampiro se sentou, se movendo devagar. Ele
provavelmente estava fraco demais, mas Dani não ia lhe
dar nem mais uma gota de sangue antes de ter o
juramento.
Ele respirou fundo. Seus olhos escureceram, quase
como se uma sombra tivesse passado por eles antes de
voltarem ao normal, depressa demais para Dani ter
certeza do que tinha visto.
— O juramento, humana.
Dani se forçou a não reagir. A voz dele era um
impacto quase físico, agora que não tinha o acrílico para
abafar o som. Todos os instintos dela estavam gritando
para fugir, porque não tinha a menor chance contra ele.
Mas ela não podia.
Dani pegou uma das suas facas e a levantou. Amon
deu um sorriso de desdém antes de esticar o braço na
sua direção, com o pulso virado para cima. Ela entendia
o motivo do desdém: aquilo era o que humanos faziam.
Um vampiro não precisaria de uma faca, por motivos
óbvios.
Ela fez um corte no pulso de Amon. O sangue
demorou um pouco a aparecer, grosso demais e mais
escuro do que o normal. Mas era sangue e só aquilo
importava.
Dani encarou o vampiro. Ele ainda estava olhando
para ela e não estava respirando.
Ela tinha passado horas estudando o que precisava
falar e analisando as palavras para não deixar nenhuma
brecha. Era tudo ou nada.
— Sob o testemunho da lua, o sangue foi derramado
— Dani começou, seguindo as informações que Alex
tinha passado.
O vampiro fechou o punho com força. O sangue dele
começou a escorrer de verdade, ao invés de ser só uma
linha na sua pele.
Ela só precisava conseguir ir até o fim.
— Sob o testemunho da lua, pelo poder no sangue e
pelas palavras aqui faladas, um juramento será selado —
ela continuou.
Era estranho falar sobre lua e poder, porque até
onde Dani sabia nada do poder das bruxas tinha a ver
com qualquer coisa desse tipo. Era só algum tipo de
acidente genético. Mas, de acordo com o material de
Alex, aquilo prenderia um vampiro. Então Dani ia falar,
sem questionar.
— Que a lua seja ouvida e o sangue respeitado —
Amon murmurou.
Um arrepio atravessou Dani. Aquilo não eram só
palavras. Era magia dos vampiros. O tipo de magia que
sempre havia sido proibida para os humanos.
Ela continuou, com a lista que havia feito mais cedo.
Os juramentos sobre respeitar as leis do Setor Dez.
Respeitar os moradores do Setor Dez. Não ferir nenhum
deles de qualquer forma. Não usar seus poderes contra
eles. Não compelir nenhum deles. Não se alimentar de
nenhum deles. Não dar informações sobre o Setor Dez
para ninguém. Não contar sobre nada que visse ali para
alguém de fora. Não fazer nada que colocasse o setor em
risco.
Era redundante, sim. E Dani não se importava. Só
queria garantir que não houvesse nenhuma brecha para
ela se arrepender depois. Não podia correr o risco.
E, por fim, os juramentos sobre obedecer as ordens
de Dani se o Setor Dez estivesse sob ameaça. Ou sob
ataque. Ou em risco de qualquer forma. Os juramentos
de lutar por eles, naquelas condições, e garantir que as
pessoas do setor estariam seguras.
— Que a lua seja testemunha. Que o sangue seja
uma corrente prendendo as palavras aqui faladas — Dani
terminou.
Só faltava uma coisa.
O vampiro inclinou a cabeça.
— Vai me dar o seu sangue, humana?
Dani ia, porque precisava de Amon preso a ela.
Ela esticou a mão esquerda e colocou a lâmina da
faca na sua palma antes de encarar o vampiro.
— Se você me matar, não vai sair daqui — ela
repetiu.
Amon sorriu, mostrando as presas.
— Eu acabei de jurar que não vou te ferir.
Sim. Mas o juramento não seria real até ele ter
provado o sangue dela.
Dani fez um corte na palma da sua mão, só o
suficiente para o sangue escorrer.
Sem volta, agora.
Ela ofereceu a mão para o vampiro.
Amon ainda estava sorrindo quando segurou seu
pulso – a mão dele era gelada – e bebeu.

Dani parou na porta da casa segura. O vampiro era uma presença


atrás dela, de um jeito que era mais que incômodo. Ela
não era uma bruxa – seu lado da família nunca tinha tido
poderes – mas às vezes ela conseguia sentir quando
vampiros estavam por perto. E aquele vampiro parecia
uma lixa contra os seus sentidos, incômodo e irritante
mesmo que ele não tivesse falado uma palavra depois
que tinham saído do laboratório.
Amon tinha jurado. Aquilo queria dizer que ela
estava segura. O setor estava seguro. Yuri e ela haviam
tomado cuidado demais escolhendo o que iam colocar
naquele juramento. Dani não precisava se preocupar.
Mas era difícil relaxar quando estava sentindo um
vampiro antigo nas suas costas, mesmo que Ezequiel
estivesse vindo mais atrás e ela tivesse certeza de que
ele teria uma arma apontada para o vampiro o tempo
todo.
Dani abriu a porta da casa segura. A luz da sala
acendeu automaticamente, reconhecendo o movimento.
Ela parou e olhou ao redor. Estava em uma sala não
muito grande, com um sofá que ela sabia que estava
preso no chão e uma mesa de metal – também presa. A
cozinha ficava para a direita, depois de uma parede
baixa. E as duas portas no fundo da sala eram um
banheiro e um quarto.
Um quarto.
Não mesmo. Ela ia dormir no sofá.
As casas seguras eram todas idênticas: pequenas,
funcionais e com todas as medidas de segurança
possíveis. Mas aquela agora tinha cortinas grossas e
pesadas nas janelas – até na janela enorme nos fundos
da cozinha. E ela tinha certeza que, àquela altura, já
teriam um perímetro de segurança mais que organizado
ao redor da área, mesmo que as pessoas nas rotas de
segurança não soubessem exatamente o motivo do
remanejamento.
Dani tinha libertado um vampiro e mais ninguém no
Setor Dez ia saber daquilo. Ele ia se passar por humano
enquanto pudesse.
Ela atravessou a sala depressa e entrou na cozinha.
Uma caixa térmica estava na bancada ao lado da pia. O
sangue que Yuri tinha conseguido. Ótimo.
Ela voltou para a sala e abriu as duas portas. Nada
de diferente no banheiro e não havia nenhum lugar para
alguém se esconder ou esconder alguma coisa. O quarto
era tão simples quanto a sala, com uma cama, uma
cômoda larga com seis gavetas e um espelho grande
apoiado na parede. E a janela também tinha uma cortina
pesada.
Chegava a ser assustador pensar que Yuri tinha
conseguido organizar tudo aquilo em uma questão de
horas. Ele era tão eficiente que às vezes era assustador –
e era justamente por causa daquilo que os dois eram os
responsáveis pela segurança do setor. De acordo com
Ezequiel, para uma pessoa fazer aquele trabalho ela
precisava ser eficiente demais, mas ainda ser louca o
suficiente para fazer o que era necessário. Yuri era a
eficiência e Dani era a loucura, e ela não tinha o menor
problema com aquilo.
— Tudo limpo — ela avisou.
Dani voltou para a sala. O vampiro entrou, andando
devagar. Ele ainda era mais pele e osso que qualquer
outra coisa, mas ela sabia que aquela lentidão era só
fachada. Se não fosse, ele não teria conseguido andar o
caminho todo da cidade velha até a casa segura. E ela
tinha escolhido o caminho mais longo, para passar o
mais longe possível da cidade e não deixar ele ver mais
que o necessário.
Ezequiel entrou atrás dele, sem falar nada. Na
verdade, ele não tinha falado nada desde que Dani
soltara o vampiro, e aquilo era outra fachada. Um jogo de
intimidação que ela já tinha visto Ezequiel fazer vezes
demais. Se ele não falasse nada e fosse só a presença
silenciosa e ameaçadora, ninguém saberia exatamente o
que esperar dele.
Dani apontou para a cozinha.
— Seu sangue. Tem roupas no quarto. Alguma coisa
lá deve te servir.
Porque depois de décadas preso naquele caixão, as
roupas dele estavam praticamente se desfazendo.
E, depois, ela teria que providenciar roupas
melhores, também.
O vampiro parou, encarando o braço esticado de
Dani. Ela abaixou a mão devagar e não desviou o olhar.
Ele tinha jurado não se alimentar de nenhum deles.
Tinha jurado não ferir nenhum deles. Ele não podia fazer
nada. Dani tinha tomado todo o cuidado possível. Ela
estava segura.
Agora, encarando o vampiro, ela não tinha tanta
certeza. Se Dani tivesse feito alguma coisa errada, por
menor que fosse, ele ia matá-la. Sem a menor sombra de
dúvida. E ia matar da forma mais dolorosa que ele
conseguisse pensar.
Ela tinha feito tudo certo. Precisava acreditar
naquilo.
E se acreditar não fosse o suficiente, sempre podia
pedir a pistola de Ezequiel emprestada.
— Seu sangue está na cozinha — Dani repetiu.
O vampiro passou por ela e contornou a meia
parede.
Dani continuou no mesmo lugar, sem falar mais
nada. Ela ouviu quando o vampiro abriu a caixa térmica e
o ruído do plástico grosso dos sacos de sangue.
E ela não queria ouvir enquanto ele estava bebendo
aquilo.
Dani foi na direção da porta. Ezequiel saiu, sem falar
nada, e ela parou na entrada.
— Vão trazer suas coisas de manhã — ele avisou.
Porque ela ia viver naquela casa enquanto tudo não
fosse resolvido e precisassem do vampiro aqui. E ia
precisar medir cada palavra para não dar mais
informações do que deveria para o vampiro – o que
queria dizer nem citar o nome de quem ia trazer suas
coisas.
— Ainda tenho uma verificação de segurança para
fazer — Dani falou. — Posso buscar minhas coisas
quando acabar.
Já estaria quase amanhecendo, provavelmente. Seria
mais fácil ela ir na sede buscar suas coisas. Na verdade,
teria sido mais fácil trazer suas coisas antes de ir para a
cidade velha, mas tudo tinha acontecido depressa
demais.
Ezequiel balançou a cabeça.
— Eu cubro sua rota hoje. Hoje — ele repetiu quando
ela abriu a boca para questionar. — Mas você precisa
descansar. Não pode se dar ao luxo de desperdiçar horas
de sono.
Não, porque se a responsável pela segurança não
estivesse descansada, ela cometeria erros estúpidos.
Ezequiel tinha feito questão de enfiar aquilo na cabeça
de Dani e de Yuri, desde o começo. Nada de passar dias
acordados tentando resolver tudo. Uma cabeça fria e
descansada valia muito mais quando algo dava errado.
Ela só não sabia se ia conseguir descansar quando
estava dividindo a casa com um vampiro.
Um vampiro que estava preso a ela por um
juramento de sangue. Dani estava segura. Ele não podia
fazer nada.
— A área perto de onde o Seis faz fronteira com o
Cinco — Dani avisou. — Tinha sinais de movimentação
demais lá.
Ezequiel assentiu. Ele ia verificar. Ezequiel podia ter
se aposentado, mas não era porque não conseguia mais
fazer aquele trabalho. Era porque tinha passado tempo
demais cuidando daquilo e queria descansar, mais nada.
Ele tirou a pistola do coldre e passou para ela, sem
falar nada e sem fazer ruído. Dani aceitou a arma e a
enfiou em um dos bolsos da sua calça larga. Depois ia
achar um lugar melhor para ela, mas uma arma só seria
vantagem se o vampiro não soubesse que estava ali.
— Descanse — Ezequiel repetiu.
Dani assentiu.
Ele se afastou da casa sem falar mais nada, indo na
direção da sede. Se Dani saísse da casa, ou se abrisse
uma das cortinas da sala, conseguiria ver as luzes da
mansão de um lado e as luzes da cidade do outro. Mas,
ali, estava afastada de tudo.
Ela fechou a porta e a trancou.
O vampiro ainda estava na cozinha, de costas para a
sala, mas Dani estava ouvindo o ruído das bolsas de
plástico. Ele ainda estava bebendo o sangue.
Depois ela teria que descobrir de quanto sangue ele
precisava para acertar tudo com Yuri. Depois.
Dani atravessou a sala e entrou no quarto. As casas
seguras eram mantidas preparadas para o caso de
alguém precisar delas de última hora, então ela acharia
cobertas em uma das gavetas da cômoda, mesmo que
fosse algo fino. E não era como se o vampiro fosse
precisar daquilo.
Ela puxou a última gaveta da cômoda e pegou uma
coberta com estampa de flores. A cama tinha dois
travesseiros e ela pegou um também, antes de voltar
para a sala.
O sofá ficava de lado, de um jeito que deixava quem
estava nele ver tanto a porta da sala quanto a cozinha e
o quarto. Perfeito. Dani jogou o travesseiro em uma
ponta do sofá e se sentou. Não ia ser confortável. Era um
sofá de três lugares e ela não era baixa. Mas era melhor
que dividir a cama com um vampiro.
E Dani precisava dormir. Precisava estar com a
cabeça fria para conseguir lidar com o vampiro, com os
mercenários que estavam chegando no setor e com o
que quer que estivesse para acontecer.
Dani se abaixou e começou a desamarrar os
coturnos. Se o vampiro a atacasse de alguma forma,
estar calçada não faria a menor diferença.
Um ruído fez Dani levantar a cabeça de novo. A
porta da geladeira se fechando, provavelmente, porque
Amon estava se virando e indo na direção da sala.
Ele não parecia mais pele e ossos. Suas roupas ainda
estavam parecendo largas e ainda estavam se
desfazendo. Seu cabelo ainda estava bagunçado e tinha
algumas gotas de sangue na barba descuidada. Mas não
era a mesma pessoa.
Ou melhor, era. O olhar dele era o mesmo. A mesma
sensação visceral de perigo, com todos os instintos de
Dani gritando para fugir. E ele não estava mais do outro
lado de uma placa de acrílico. Não era aquele resto de
alguém que um dia havia sido um monstro.
Não. Agora Dani estava sozinha com o monstro, sem
a proteção das ameaças de manter ele preso.
Ela apontou para o banheiro.
— Dá para tirar esse sangue da barba, sabe.
O vampiro sorriu e aquilo também era a mesma
coisa de quando ele ainda era pele e osso. Era aquele
sorriso que estava em uma linha fina entre uma
promessa de violência e uma sedução lenta.
— Você acha que o juramento quer dizer que tem um
vampiro na coleira? — Ele perguntou.
Dani tirou um coturno e apoiou uma perna na outra
para desamarrar o outro sem precisar desviar o olhar do
dele.
— Não — ela falou. — Mas não achei que você fosse
gostar de andar por aí com o almoço na barba.
O vampiro continuou olhando para ela. Dani
sustentou seu olhar. Ela tinha passado dois anos nas
terras de ninguém, com vampiros a caçando. Aquilo não
era nada. Por mais que fosse loucura, era mais seguro do
que qualquer coisa daquela época.
O vampiro passou por ela e entrou no quarto.
Dani respirou fundo e terminou de tirar o coturno
antes de colocar uma mão por cima de um dos seus
bolsos. Não tinha nenhum lugar melhor para colocar a
pistola agora, mas seria mais fácil para escondê-la
quando tivesse mais roupas ali.
O vampiro estava abrindo as gavetas da cômoda e
olhando as roupas que estavam lá. Eram blusas simples
e calças de moletom – o tipo de coisa que era fácil ter em
tamanhos variados. Mas pelo menos não estavam de
desfazendo, então ele não podia reclamar.
Dani se deitou no sofá, dobrando as pernas, e puxou
a coberta por cima do seu corpo.
Se ela tivesse feito alguma coisa naquele juramento
errado, o vampiro teria matado tanto ela quanto Ezequiel
muito antes de chegarem na casa segura. Ele não ia
fazer nada. E aquilo queria dizer que ela ia descansar.
Amon encarou a humana dormindo no sofá. Sua respiração estava
lenta e regular, de um jeito que era impossível fingir. Os
batimentos do seu coração estavam regulares, no padrão
que ele havia aprendido a reconhecer como aquele sono
que nenhum humano conseguia fingir.
Ela havia dormido. Simples assim. A humana havia
exigido um juramento de sangue, prendido a existência
de Amon à sua vida, e agora estava dormindo como se
aquilo não fosse nada demais. Como se ela estivesse
segura.
Ela não estava. Nunca estaria, enquanto ele
existisse. Mas, por enquanto, Amon não podia fazer
nada. A humana era mais útil viva. Depois ele se livraria
do juramento de sangue. Não seria tão difícil.
Aquele havia sido o motivo para as proteções na
base. As paredes reforçadas e aquele caixão que haviam
construído para prendê-lo. Amon tinha se livrado de um
juramento de sangue antes. Ele só não havia sido rápido
o bastante para escapar. E, depois, sempre estivera sob
vigilância pesada.
A humana não sabia daquilo. Se soubesse, não teria
arriscado.
Ou talvez tivesse arriscado, mesmo sabendo. Uma
humana disposta a prender um vampiro com um
juramento de sangue ou era louca ou estava
desesperada.
Amon parou a alguns passos do sofá. A humana
respirou fundo e soltou o ar. Nenhuma reação. Nenhum
sinal de que conseguia sentir sua presença por perto,
mesmo que os batimentos do coração dela parecesse
chamá-lo.
Ele encarou a forma dura perto do quadril dela. O
outro homem – humano, também, sem nenhum sinal de
poder e com todos os sinais de idade no rosto – havia lhe
dado uma arma. Eles haviam sido silenciosos, mas não o
suficiente. Aquilo queria dizer que ela sabia que existia
um risco, mesmo com o juramento. E estava dormindo.
Humanos. Sempre arrogantes. Se é que podia
chamar aquilo de arrogância. Era quase estupidez.
Mas ele não ia fazer nada. Não ainda. A humana era
útil. Daniele. Aquele o nome que ela havia oferecido. Um
nome comum nessa região, antes da guerra. E ela seria
sua chance de descobrir o que havia mudado enquanto
ele estivera preso.
Amon atravessou a sala sem fazer ruído e foi para a
cozinha. Ainda havia sangue na caixa, que ele tinha
colocado no congelador. Aquilo também era comum,
familiar: a caixa e as bolsas de sangue, a geladeira e o
fogão na cozinha, o estilo do sofá e dos móveis do
quarto. Nada daquilo seria estranho antes de ele ser
deixado na base.
Mas ele tinha caminhado até ali, acompanhando os
dois humanos. Amon havia visto as ruínas da cidade que
antes era a mais importante do setor. Caminhara por
lugares que deveriam ser familiares, mas nada mais era
como antes. As fábricas haviam desaparecido,
substituídas por plantações. Os lugares onde ficavam os
postos de segurança do Setor Quatro, nenhum deles
existia. E ele tinha visto as luzes de uma cidade, não
muito longe. Uma cidade onde antes não havia nada.
A humana havia falado a verdade. A guerra
terminara e ele havia sido deixado para trás. Não tinha
mais importância ou utilidade, se a luta não fosse
continuar. Aquilo não era inesperado, mas também não
era o que ele havia imaginado. Se alguém tivesse
perguntado, naquela época, Amon diria que seria
mandado para outro setor assim que os conflitos naquela
região terminassem. Era o que sempre acontecia. Ele era
passado de Corte em Corte, não como uma pessoa, mas
como uma arma.
Amon encarou a geladeira. Ele não sabia o que ia
acontecer ou o que a humana realmente queria. Mas ela
precisava dele por algum motivo, então não ia deixar que
definhasse. E garantir que estava em plena forma podia
ser considerado como ele apenas cumprindo seu
juramento, porque não teria como fazer o que ela
precisasse sem ter se recuperado de décadas sem se
alimentar.
Décadas.
Ele não ia continuar pensando naquilo. Décadas não
queriam dizer muita coisa para alguém que já havia
vivido tanto quanto ele.
Amon pegou a caixa térmica de novo e abriu o
primeiro saco de sangue. Sangue morto. Refrigerado. E
ele esvaziou o primeiro saco antes de conseguir sentir o
gosto do sangue.
Podia ser sangue animal ali e ele estaria se
alimentando do mesmo jeito. Se havia uma coisa que
Amon aprendera depressa era que não podia se permitir
estar fraco. Se tinha a possibilidade de se alimentar, faria
aquilo. E aproveitaria enquanto suas forças durassem.
As bolsas de sangue foram esvaziadas, uma a uma.
Não era o suficiente. Nada seria o suficiente, por algum
tempo. Nem mesmo um príncipe conseguiria se
recuperar depressa depois de tanto tempo em estase, no
limiar entre a existência e o nada. Mas seria o bastante,
por enquanto.
Amon jogou as bolsas de sangue vazias na lixeira e
saiu da cozinha. Estar andando era bom, pelo menos.
Seria melhor se pudesse correr... E ele mataria a humana
por aquilo, também. Ele estava fora daquele caixão
depois de meio século e tinha recebido ordens para não
sair dessa casa.
Tecnicamente, ele podia ignorar aquilo. O juramento
era para obedecer se o Setor Dez estivesse em risco ou
sob ataque. Era até possível que estivessem em risco,
mas ele não sabia. Não tinha informações o suficiente,
então o juramento não o prenderia.
Mas ele ainda precisava de informações. Precisava
saber o que havia acontecido naqueles cinquenta anos.
Então ia obedecer.
Ele entrou no banheiro e encarou o espelho. Nada. A
última vez que Amon vira seu reflexo tinha sido bem
antes de...
Ele não se lembrava.
E aquilo não importava. Ele não precisava ver seu
reflexo para imaginar como estava. Seu cabelo estava
embolado o suficiente para ser incômodo e Amon nunca
havia gostado de usar barba, nem quando era humano.
Ele abriu o armário debaixo da pia. Não foi difícil
encontrar uma tesoura e Amon começou a cortar a barba
o mais curta que conseguia. O barbeador veio depois,
para limpar o que ele não tinha conseguido cortar. E se a
lâmina havia cortado sua pele várias vezes, aquilo não
importava. Ele bebera sangue o suficiente para saber
que, pelo menos por enquanto, se curaria depressa.
Cinquenta anos. Cinquenta anos preso. Esquecido e
deixado para definhar.
Amon não se esqueceria daquilo. E muito menos
perdoaria. Talvez até deixasse esse novo Setor Dez
continuar a existir por algum tempo, enquanto cuidava
dos que haviam sido seus mestres, antes. Os humanos
podiam esperar.
Ele pegou a tesoura de novo e cortou o cabelo. Era
mais simples assim.
E Amon ainda tinha horas para esperar, preso dentro
de uma casa minúscula, com uma humana arrogante o
suficiente para dormir na sua presença.
Ele voltou para o quarto e se sentou na cama. Dali,
com a porta aberta, conseguiria ver a humana no sofá.
Ele sabia esperar. Sempre soubera, desde antes de se
tornar um vampiro. Daquilo Amon se lembrava. Então ia
esperar. E depois conseguiria as informações que
precisava com a humana.
CINCO

Alana encarou a garota sentada do outro lado da mesa. A garota


a encarou de volta.
Dani tinha chegado com ela de madrugada, duas
noites antes. Valissa. A irmã de uma mulher do Setor Seis
que era a responsável pelos mercenários que estavam
chegando ali. E isso era a única coisa que Alana sabia,
porque não tinha visto a prima desde o almoço dois dias
antes. Não que Raquel ou Yuri soubessem mais alguma
coisa sobre a garota.
Nessas horas ela precisava concordar com quem
dizia que Dani era louca. Alana entendia ela não ficar
sabendo dos detalhes do que estava acontecendo – não
era responsável pela segurança nem parte da
administração mesmo do Setor. Mas nem Raquel sabia, e
aparentemente a garota estava ali porque precisava de
proteção.
— Você não acha estranho uma mercenária ter
mandado a irmã para cá sem se preocupar com nada? —
Yuri perguntou, encarando Adriana.
Alana suspirou e se concentrou no seu sanduíche. Os
dois deveriam ter bom senso o suficiente para não terem
aquela conversa onde a garota podia ouvir.
— Ela não precisa se preocupar — Valissa falou.
Adriana balançou a cabeça.
— Se Lara é um contato de Dani há tanto tempo,
então sabe que uma criança estaria segura aqui.
A criança em questão cruzou os braços e encarou
seu prato.
Alana conhecia aquela expressão. E conhecia o tom
que ela tinha usado. Quando Valissa falou que a irmã não
precisava se preocupar, não era porque Lara confiava em
Dani e no que sabia sobre o Setor Dez. Era porque
Valissa conseguiria se proteger, se alguma coisa
acontecesse. Ela tinha falado exatamente da mesma
forma que Alana costumava falar, antes de perceber que
não ia adiantar nada.
A questão era como Valissa conseguiria se defender.
Alana não tinha esquecido de que ela tinha um nome de
vampiro, mesmo que fosse humana. Ou uma bruxa,
provavelmente. Mas ela não tinha falado nada sobre
nenhum poder e ninguém sabia mais como insistir. Não
iam ameaçar. Pelo menos, Alana esperava que não.
O que queria dizer que ela ia precisar fazer alguma
coisa.
Yuri colocou seu copo na mesa e pegou o tablet.
Problemas. Ou então mais mercenários chegando no
setor e esperando uma entrevista. Dois dias desde que
Dani tinha saído para repassar o aviso e já tinham muito
mais pessoas de fora no Setor Dez do que Alana
imaginava que fosse ser possível.
— Algo urgente? — Raquel perguntou.
Yuri balançou a cabeça e empurrou sua cadeira para
trás, sem desviar os olhos do tablet.
— Só algo inesperado entre os mercenários que
estão esperando pelas entrevistas — ele contou. — É
melhor eu verificar isso logo.
Problemas, então.
O Setor Dez sempre havia sido fechado. Precisava
ser, por segurança. Nos quatro anos desde que tinha
chegado ali, Alana sabia de duas famílias que haviam
sido aceitas como moradores do setor. E não era por falta
de interesse. Dani já tinha lhe contado vezes demais
sobre o que ouvia nos setores vizinhos. Sempre havia os
humanos que queriam escapar dos vampiros. E Raquel
entendia aquilo, mas também sabia que, se aceitasse
todo mundo, os vampiros os veriam como uma ameaça e
dariam um jeito de tomar ou destruir o setor. Sem falar
que, justamente por não serem governados por
vampiros, eles precisavam tomar cuidado para evitar os
espiões deles, também.
Alana colocou a mão no bolso, sentindo a carta
dobrada. A textura grossa do papel já tinha se tornado
familiar, assim como a sensação de poder nele. Ela
deveria ter jogado aquilo fora. Ou melhor, colocado fogo,
por segurança. Mas não conseguia e a pior parte era que
não era uma compulsão. Com tudo o que estava
acontecendo, Alana não tinha coragem de cortar aquela
linha de comunicação. Lorde Rafael era o único dos
vampiros que não tinha se aproximado com ameaças.
Talvez ela estivesse sendo tão louca quanto Dani, por
não ter se livrado da carta. Mas, se o pior acontecesse,
ela queria ter uma opção.
— Algo que eu precise saber? — Raquel insistiu.
Yuri levantou a cabeça.
— Talvez. Mas quero ter certeza primeiro.
Raquel assentiu e se levantou também.
— Adriana, você pode ficar com Valissa hoje?
A garota bufou e empurrou o prato para a frente.
Não. Ela já estava no Setor Dez havia dois dias e
ninguém tinha reconhecido a mesma coisa que Alana.
Era hora de ela fazer alguma coisa.
— Eu ia perguntar se Val não queria ir comigo para
as plantações.
A garota se endireitou e olhou para ela.
— Pode ser.
Raquel encarou Alana. Isso não era o seu normal –
era comum demais Alana reclamar quando alguém
resolvia ficar por perto de onde ela estava, quando
estava trabalhando. Mas Raquel não ia questionar na
frente da garota e Alana estava contando com aquilo.
Yuri se virou para Alana.
— Tem certeza?
Ela suspirou. Raquel não ia insistir, mas um dos
responsáveis pela segurança do setor ia, claro.
— Vocês já estão resolvendo coisas demais aqui —
Alana falou. — Se Val está aqui porque precisa de
proteção, é até melhor estar longe da sede enquanto
vocês estão lidando com os mercenários chegando.
Yuri assentiu e saiu sem falar mais nada.
Val continuou encarando Alana. Era mais que óbvio
que a garota estava desconfiada e ia continuar assim.
Alana entendia. Ela só estava viva porque tinha sido do
mesmo jeito, antes de chegarem no Setor Dez.
Alana pegou sua caneca, virou o resto de café que
estava nela e se levantou.
— Se não vai terminar de comer, então vai trocar de
roupa — ela falou. — A gente vai andar bastante e o dia
vai ser quente.
Valissa se levantou com um pulo e saiu da sala de
jantar quase correndo.
Raquel suspirou.
— Tem certeza?
Alana assentiu e saiu da sala de jantar também.
Ninguém mais tinha notado o que ela tinha visto.
Ninguém. E não notariam, com certeza. Então ela ia fazer
alguma coisa.
E pelo menos assim ela ia ter a impressão de que
estava ajudando de alguma forma. Era melhor que ficar
por perto da sede do setor, ouvindo comentários pela
metade, sem saber exatamente o que estava
acontecendo.
Valissa já estava parada na porta da cozinha quando
Alana desceu de novo. Aquilo não era uma surpresa. Por
mais que ela não agisse assim, Val ainda era uma
criança. Ela provavelmente já estava cansada de ficar
dentro da mansão o dia todo. Ir com Alana para as
plantações seria pelo menos uma mudança de cenário.
Nenhuma delas falou nada enquanto se afastavam
da mansão, pelo caminho que ia quase na direção oposta
da cidade. Era dia de Alana conferir o pomar principal, o
que queria dizer uma boa caminhada e depois um bom
tempo de sossego. Na época em que tinha chegado ali,
Alana não confiava em ninguém perto dela enquanto
estava usando seus poderes. Ela tinha pedido para não
terem ninguém perto de onde ela estivesse trabalhando,
e Raquel tinha aceitado. Era mais seguro, também,
porque garantia que poucas pessoas soubessem
exatamente o que ela podia fazer.
O caminho até o pomar era cercado por árvores,
como a maioria das estradas no setor. A região onde
estavam era quente na maior parte do ano, com poucas
chuvas. Se não tivessem árvores para fazer sombra por
toda parte, seria insuportável. E aquele havia sido o
primeiro trabalho de Alana, logo depois que tinha
chegado no setor: garantir que as árvores plantadas por
Raquel e o pessoal que estava no setor havia mais tempo
estivessem saudáveis. Alana tinha feito algumas das
árvores crescerem mais, também, e espalharem mais os
seus galhos.
Valissa estava olhando ao redor como se o caminho
cercado por árvores fosse novidade. Era possível que
fosse.
A garota parou.
Alana cruzou os braços e se virou para ela.
— Se você está me levando para algum lugar para
ficar me interrogando também... — Valissa começou.
Alana balançou a cabeça depressa e continuou
andando. Não ia falar nada antes de ter certeza de que
estavam sozinhas. Não conhecia Valissa, não sabia do
que ela estava fugindo, mas sabia reconhecer uma
sobrevivente quando via uma, mesmo que Val fosse
muito mais nova do que Alana era quando seus pais
foram mortos. E aquilo queria dizer que ela merecia uma
garantia – não de segurança, porque Alana não podia
prometer nada sobre aquilo, mas de que alguém
entendia.
Elas continuaram andando até as goiabeiras
começarem a aparecer. E continuaram andando, até o
caminho ter desaparecido de vista.
Alana foi na direção de uma cerca baixa. Antes, a
cerca separava as áreas diferentes do pomar. Agora, só
estava ali por causa das trepadeiras que tinham crescido
e que ela achava bonitas.
Ela parou e se virou para Valissa.
— Eu não vou te perguntar o que você consegue
fazer. Já precisei fugir, quando era mais nova.
A garota levantou uma sobrancelha.
— Você. Precisando fugir.
Alana olhou para a cerca. As trepadeiras se
moveram, não crescendo, mas com botões de flores
surgindo e abrindo em uma velocidade que não deveria
ser possível.
Ela se virou para a garota. Valissa estava olhando
para ela com os olhos arregalados.
— Eu — Alana repetiu. — E eu sei como é irritante
ser subestimada porque não entendem o que você pode
fazer.
Valissa cruzou os braços com força.
— Vocês nem sabem o que eu posso fazer.
Um arrepio atravessou Alana. A garota era uma
bruxa. Não era mais uma teoria, era certeza. Ela tinha
sentido o pulso de poder, mesmo que não tivesse visto
nada acontecer.
— Não sabemos e você não quer contar.
Valissa não falou nada.
Alana balançou a cabeça.
— Não estou tentando te convencer a contar. Mas é
mais fácil deixar te subestimarem. Deixe pensarem que
você é indefesa e se preocuparem o tempo todo. Isso não
vai fazer diferença para você e pode ser uma proteção a
mais.
Por mais irritante que fosse e Alana sabia muito bem
como aquilo incomodava. Estava cansada de ser tratada
como a pessoa que precisava ser protegida a todo custo,
porque não podia fazer nada. Mas aquela era uma
discussão que não valia a pena. Dani ainda a via como a
garota assustada dos primeiros dias depois que haviam
fugido.
Valissa encarou as trepadeiras de novo e assentiu.

Dani acordou com o sol forte nos seus pés. Em algum momento
durante a noite – ou começo da manhã – ela tinha
esticado as pernas e agora o sol vindo da janela atrás do
sofá estava batendo forte nos seus pés. Forte o suficiente
para incomodar e para ela ter certeza de que já era por
volta do meio-dia.
Ela colocou uma mão no bolso. A pistola ainda
estava ali. Ótimo. Ela tinha passado tempo o suficiente
fugindo dos vampiros para saber que as histórias sobre
eles dormirem enquanto o sol estava alto eram só
histórias. Vampiros não dormiam. Não descansavam. Eles
sempre estavam alerta.
Dani se virou no sofá e abriu os olhos. Ninguém na
cozinha. A porta da sala ainda estava trancada. E o
vampiro estava no quarto, sentado na cama e a
encarando.
Ela não podia reagir.
Dani terminou de chutar a coberta e se sentou
devagar. Não queria olhar para ele de novo e não
precisava se virar para ter certeza que Amon ainda
estava parado na mesma posição: sentado na beirada da
cama, inclinado para a frente e com os braços apoiados
nas pernas, a encarando com uma expressão que fazia
arrepios atravessarem seu corpo, e não o tipo bom de
arrepios. Havia um motivo para ele ter se tornado
conhecido como o monstro e aquela expressão só fazia
ela se lembrar disso.
Amon não estava encarando Dani como se ela fosse
sua presa. Seria mais simples se fizesse aquilo, porque aí
ela saberia como reagir. Mas não. Ele a estava encarando
como se Dani fosse um quebra-cabeças minimamente
interessante. Um passatempo – algo que ia valer alguns
minutos, talvez menos, e depois ser descartado porque
não importava.
Ele sorriu de forma lenta, mostrando as presas
duplas.
Dani se levantou de uma vez e foi para o banheiro.
Ficar encarando um vampiro era burrice, simples e pura.
E ela tinha acabado de fazer aquilo sem nem notar o que
estava fazendo. Dani não tinha sobrevivido aquele tempo
todo sendo descuidada. Ela não fazia esse tipo de coisa.
Ela trancou a porta do banheiro e parou, apoiando as
mãos na pia e encarando o espelho. Era a surpresa. Só
isso. Quando ela tinha achado Amon nas ruínas, ele
realmente parecia um morto-vivo. Agora, depois de uma
noite livre e do sangue que Yuri tinha trazido para a casa
segura, qualquer coisa de morto-vivo havia
desaparecido.
Aquilo era bom. A ideia era Amon se passar por
humano enquanto estivesse no Setor Dez. Se ele
estivesse com ela, ninguém ia questionar e a maior parte
do trabalho de Dani era feito de noite, de qualquer jeito.
Então ele não podia parecer um morto-vivo.
Mas Dani não estava pronta para dar de cara com
ele daquele jeito. Não para o rosto anguloso, com
bochechas marcadas, sobrancelhas pesadas e olhos
quase brilhantes. Ou para a pele de um tom quente que
não chegava a ser marrom, com o cabelo ondulado
caindo de qualquer jeito até os seus ombros.
Nada daquilo importava. A única coisa que Dani
precisava se lembrar era que ela não podia relaxar e que
ele era a melhor chance do Setor Dez sobreviver ao que
aconteceria. Só isso. A aparência dele não fazia diferença
para ela. Não podia fazer. Ele era um vampiro. Simples
assim. E vampiros sempre eram atraentes para suas
vítimas. Era uma daquelas coisas que não era
exatamente um poder, só uma característica deles.
Dani sabia de tudo aquilo e estava acostumada a
ignorar o magnetismo dos vampiros. Tinha precisado
aprender depressa, quando estava fugindo. O que queria
dizer que aquilo não ia acontecer de novo. Ela só havia
reagido assim porque tinha sido pega de surpresa,
porque não esperava uma mudança tão grande assim em
Amon. Sim. Era só isso.
Amon ainda estava no mesmo lugar e na mesma
posição quando Dani saiu do banheiro. Havia mais uma
mudança, que ela não tinha reparado da primeira vez: as
marcas pretas nas suas mãos, subindo pelos seus
antebraços. Elas até pareceriam tatuagens se a cor não
fosse tão forte. E Dani sabia muito bem o que eram:
marcas de poder. Todos os vampiros tinham marcas
assim e quase sempre elas só apareciam quando eles
estavam usando poderes. Mas ele não estava usando
nada, ela tinha certeza.
Dani foi para a cozinha e colocou a água para ferver.
Precisava de café, não importava se já era mais de meio-
dia.
O vampiro fez um ruído que ela não sabia se era de
irritação ou se era uma risada abafada. E ela não ia
voltar para perto da parede baixa que separava a
cozinha da sala para olhar para ele. Já tinha visto o
suficiente.
— Nem um pouco surpresa? — Amon perguntou.
Bastante surpresa, na verdade. Mas ele não
precisava saber daquilo. E Dani não fazia ideia de sobre o
quê ele estava falando.
Dani começou a abrir os armários da cozinha. Não ia
achar café bom em uma das casas seguras, mas com
certeza tinha ao menos um pote de café solúvel em
algum lugar... Ali. Ela tirou o pote do fundo do armário e
pegou uma caneca.
— Pelo que me lembro, as histórias dos humanos
sempre gostam de falar que não estamos vivos durante o
dia — ele continuou.
Dani respirou fundo e fechou os olhos antes de olhar
para a água no fogo. Óbvio que não tinha nem começado
a esquentar direito.
Era só isso que faltava. Um vampiro que gostava de
falar. Ela tinha pensado que ele ia ser a pessoa que
falava o estritamente necessário e que qualquer coisar
além disso teria que ser praticamente arrancada dele. E
agora estavam ali, com Amon tentando começar uma
conversa. Pelo menos, era o que parecia.
— Já tive que lidar com vampiros o suficiente pra
saber que vocês não dormem — Dani falou.
O fundo do copo já estava coberto de bolhas. Ela
desligou o fogo e virou a água quase fervendo na caneca.
Aquela era a temperatura perfeita: quente, mas não
quente o suficiente para queimar o café. E não importava
quantas vezes Alana falasse que aquilo era só frescura
dela, o café ficava melhor, sim.
Alana. Àquela altura, alguém já teria falado para ela
que Dani ia passar um bom tempo longe da mansão.
Dani deveria ter avisado, mas não tinha tido tempo. E, se
fosse ser honesta, preferia que Alana não soubesse
exatamente o que estava fazendo. Se ficasse sabendo de
tudo sua prima ia se culpar. Era sempre assim, mesmo
que a culpa não fosse de Alana e sim dos vampiros.
Dani terminou de revirar os armários. Nada de
comer. E a geladeira estava vazia.
Por mais que fosse levemente satisfatório ver que
Yuri havia se esquecido de uma coisa – a eficiência dele
chegava a ser assustadora às vezes – ele tinha se
esquecido da pior coisa possível. E isso queria dizer que
Dani ia ter que ir na cidade comprar comida.
Se bem que, considerando que ela precisava ser
babá de um vampiro, ela podia só ligar e pedir alguém
para trazer comida. Seria a mesma coisa que pedir uma
ferramenta de trabalho.
Ela tomou um gole do café e suspirou. Agora sim,
conseguia pensar.
Dani contornou a parede baixa da cozinha e parou,
apoiada nela.
O vampiro tinha se levantado e estava apoiado no
batente da porta do quarto, numa posição que era
parecia demais com a dela. Dani resistiu à vontade de se
endireitar. Aquilo não fazia a menor diferença.
Ele não ia se aproximar. O sol forte estava
atravessando a sala. Pelo que Dani sabia, vampiros não
tinham problema com luz indireta. Estar ali na porta não
era nada demais para Amon. Mas se ele entrasse onde o
sol estava batendo teria um problema. Nos dois anos que
ela tinha passado nas terras de ninguém, fugindo, nunca
tinha visto um vampiro correr o risco de entrar na luz
direta.
— O que você quer? — Dani perguntou.
Amon sorriu.
Um arrepio atravessou Dani. Aquilo não era o
magnetismo dos vampiros. Ou melhor, não só isso. Era
Amon, simples assim. Ele teria sido uma pessoa que
chamava atenção e virava cabeças por onde passava
mesmo antes de ser transformado.
— Essa é uma pergunta complicada — ele começou.
— Querer? Várias coisas. Várias.
Dani levantou as sobrancelhas e tomou mais um
gole de café.
— Se você quer que eu seja útil para você de
qualquer forma, preciso de informações, Daniele.
Ela não devia ter contado seu nome. Não que aquilo
fizesse alguma diferença, mas...
Não fazia diferença. Ela ia fazer o que precisava.
— Você vai ter informações quando forem
necessárias — Dani falou.
O vampiro inclinou a cabeça.
— Se quer desperdiçar os recursos que tem, é sua
escolha.
Dani revirou os olhos e virou o resto do café. Sua
vontade era fazer outra caneca, mas estava de estômago
vazio. Melhor não.
E Amon estava certo. Contexto importava. Ela podia
esperar um ataque e dar ordens específicas o suficiente
para aquilo funcionar. Ou podia dar o grosso das
informações sobre o que estava acontecendo para Amon
e usar a cabeça de um vampiro que havia lutado pelo
Setor Oito mas que estava preso a ela por um juramento
de sangue. Ele podia ser uma vantagem de outras
formas, além de força bruta – até porque Dani ainda não
sabia por que ele tinha se tornado tão temido.
— O Setor Oito está se preparando pra nos atacar —
ela falou.
Amon abaixou a cabeça, sem desviar o olhar do dela,
e seu sorriso virou algo predatório. Ele estava satisfeito
demais com aquilo. Mais satisfeito do que Dani havia
pensado que era possível, porque ele tinha lutado pelo
Setor Oito...
Ele havia lutado pelo Setor Oito preso por um
juramento, também. Não porque era leal a eles. E havia
sido deixado para trás quando eles recuaram. Dani podia
usar aquilo, também.
— Você gostou disso — ela comentou.
O sorriso dele se tornou mais largo e Dani tinha
certeza que as presas de Amon estavam maiores. E as
marcas nas suas mãos estavam se movendo devagar,
girando ao redor de um círculo central mais escuro.
Se ela tivesse passado anos lutando por alguém e
depois fosse deixada para trás, esquecida, como tinham
feito com Amon, Dani iria querer vingança. Ia fazer
questão de se vingar.
— Eu quero detalhes — ele falou.
Dani sorriu e colocou a caneca em cima de um dos
armários baixos da cozinha antes de voltar para a sala.
Amon continuou parado na porta do quarto, a
acompanhando com o olhar. Ele não podia sair dali por
causa do sol na sala. Ótimo, porque Dani não fazia a
menor questão de estar mais perto dele, ainda mais
quando as marcas nas suas mãos estavam daquele jeito.
Ela se sentou no sofá e cruzou as pernas, sentindo a
pistola no seu bolso. Agora Dani tinha quase certeza de
que não precisaria dela, mas não ia relaxar.
— Não vai fechar a cortina? — Amon perguntou.
Dani levantou as sobrancelhas.
— Para quê? Eu gosto do sol.
Ele riu de um jeito grave e pesado que fez os cabelos
da nuca de Dani arrepiarem. Perigo, sim. Ela podia não
saber exatamente o que Amon podia fazer, mas não ia se
esquecer das histórias sobre ele.
E era exatamente por causa daquelas histórias que
ela ia lhe contar o que estava acontecendo, sim, com o
máximo de detalhes que podia arriscar.
Amon queria se vingar por ter sido largado nas
ruínas. Dani tinha certeza daquilo. Então ela ia fazer o
possível para o monstro ter sua vingança.

Amon encarou a humana sentada no sofá, mexendo em um tablet.


Ela tinha ido atrás dele para enfrentar o Setor Oito. Não
poderia ser mais perfeito. Ele já queria vingança antes de
descobrir que havia sido deixado para trás, para definhar
por cinquenta anos. Agora... Nada faria escaparem com
vida.
Daniele fez um ruído irritado, encarando algo no
tablet. Ela deveria ser sua prioridade. A primeira a
morrer. A humana que havia pensado que conseguiria
controlar um vampiro usando um juramento de sangue.
Mas talvez ela fosse viver, pelo menos por algum tempo.
Se a única coisa que ela queria realmente fosse se
defender do Setor Oito, Amon teria prazer em cuidar
daquilo. A questão era apenas o que viria depois –
porque ele ainda estava preso por um juramento de
sangue e aquilo era algo que nunca esqueceria.
Ele teria que se livrar do juramento à força. Ninguém
deixaria um vampiro como ele livre, nem mesmo as
Cortes. Aquele era o motivo para ele sempre ter sido
passado de região em região, onde houvesse qualquer
sinal de um conflito, sempre sendo preso por juramentos
de sangue. Por mais espinhos se prendendo ao redor
dele, tão fortes e tão fundo que Amon não se lembrava
mais de como era não ter aquilo ao seu redor.
E a humana havia feito questão de deixar claro no
juramento que ele não podia matá-la nem facilitar sua
morte e que, caso algo a deixasse incapacitada, a
responsabilidade pelo juramento iria para outra pessoa.
Ela tinha tentado se proteger. Mas não seria o suficiente.
Amon se levantou e puxou a cortina do quarto. Lá
fora já era quase noite. Dali, ele conseguia ver as luzes
fracas da cidade mais para a frente. Quando aquele lugar
era o Setor Quatro só havia algumas casas espalhadas
ali. Nada parecido com o que ele suspeitava que existia
agora.
A humana tinha lhe dado informações, sim. Mas não
era o suficiente. O que ela havia contado era sobre o
motivo para ter ido atrás de Amon e mais nada. Ele não
sabia como o mundo havia mudado. Se as alianças entre
as Cortes ainda eram as mesmas, se algum príncipe
havia ascendido ou se algo maior acontecera. Precisava
saber, se quisesse sobreviver depois. E aquilo queria
dizer sair daquela casa – provavelmente sair até do
setor, porque duvidava que um setor controlado por uma
bruxa teria as informações que ele precisava.
Um setor governado por uma bruxa. Aquilo não
deveria nem ser aceitável. Mas, se já estavam ali havia
vinte anos, era porque havia um motivo para a sua
existência.
Não havia nenhum sinal de movimento na direção da
casa e aquilo não era inesperado. Daniele havia deixado
mais que claro que não confiava nele. Mesmo com o
juramento, ela estava fazendo o possível para garantir
que mais ninguém estivesse em risco por estar perto
demais de um vampiro. Não que aquilo fizesse diferença.
Dois humanos haviam ido até ali mais cedo e
nenhum deles passara da porta. O primeiro trouxera
comida para Daniele e o segundo duas malas de roupas.
As malas estavam encostadas na parede da sala, as
comidas haviam sido guardadas – ele tinha ouvido o
barulho de pacotes e das portas dos armários sendo
abertas e fechadas.
E Amon não havia saído do quarto. Não tinha
motivos para fazer aquilo. A comida humana não lhe
interessava e não havia mais nada na casa. Talvez ele
saísse quando trouxessem mais sangue morto para ele,
porque era óbvio que fariam aquilo. A humana havia sido
cuidadosa sobre aquilo, também, e ele havia jurado que
não se alimentaria dos moradores do Setor Dez.
Não que ele estivesse com sede, mas Amon sabia
que ainda não estava completamente recuperado.
Quanto mais conseguisse se alimentar, melhor. Seria
muito mais simples se tivesse acesso a sangue vivo,
direto da veia, mas aquilo queria dizer encontrar algum
visitante ou ir em algum setor vizinho, duas coisas que
não seriam tão simples.
Daniele se levantou.
Amon se virou. Ela estava segurando o tablet e
encarando o aparelho com uma expressão irritada.
Ótimo. Algo havia acontecido.
A humana foi na direção de onde havia deixado as
malas, fora do campo de visão de Amon.
— Tenho trabalho — ela avisou. — Alguém vai trazer
seu sangue em menos de duas horas.
Interessante.
Amon não tinha a menor intenção de continuar
dentro daquela casa.
— Vou com você.
— Não.
Ele sorriu. A humana realmente era arrogante, mas
pelo menos ia direto ao ponto.
Amon se levantou e encostou no batente da porta do
quarto. Daniele estava sentada no chão, com uma mala
aberta na sua frente e revirando as roupas que estavam
ali.
— Se você tem alguma ilusão de que vai me manter
preso aqui, é melhor acabar com ela depressa — ele
avisou.
Ela olhou para Amon.
— Você fez um juramento dizendo que ia me
obedecer, então vai ficar aqui.
E era por causa daquele tipo de situação que Amon
odiava as pessoas que usavam juramentos de sangue.
Elas pensavam que aquilo lhes dava o direito de tratar os
outros como objetos a serem colocados em um lugar e
ignorados. Esquecidos, como o Setor Oito havia feito com
ele.
Amon se moveu e se abaixou na frente de Daniele,
depressa o suficiente para ela não conseguir acompanhar
o movimento. Ela fez um ruído surpreso e tentou se
afastar, mas ele já estava segurando seu queixo com
força o suficiente para ela não ter a menor chance de
escapar.
— Eu jurei obedecer suas ordens se o Setor Dez
estivesse sendo atacado ou em risco — ele falou, em voz
baixa. — E você sabe muito bem que, nesse momento,
vocês não estão correndo risco. Isso quer dizer que não
preciso obedecer.
A humana estreitou os olhos e encostou uma faca na
parte de dentro do braço de Amon.
— A menos que queira desperdiçar o sangue que
ainda está no seu corpo, é melhor você me soltar.
Não tão arrogante assim, então. Não importava o
que ela falasse, Amon estava perto o suficiente para
sentir o gosto do seu medo. Ela ia enfrentá-lo, se
precisasse, mas tinha consciência de que não tinha um
vampiro na coleira.
Aquilo era bom. Muito bom.
Amon a soltou. A pele clara do rosto dela estava
marcada de vermelho, mas ele não se importava.
Ele se afastou com a mesma velocidade que havia se
aproximado e se encostou no batente da porta, cruzando
os braços como se nada demais tivesse acontecido.
A faca da humana já havia desaparecido. Aquilo era
interessante. Ele estava prestando atenção na pistola
que ela ainda estava escondendo – a única arma ali que
poderia ser um risco para Amon – mas não havia notado
que ela estava carregando uma faca.
— Para onde vamos? — Ele perguntou.

Dani entrou no bar sentindo a presença de Amon atrás de si. Ele


conseguia disfarçar bem aquele magnetismo dos
vampiros, mas ela sabia quem ele era. Não tinha como
não sentir. E ainda achava que isso era uma péssima
ideia, mas ele estava certo: não precisava obedecer. Ela
tinha pensado que havia sido tão cuidadosa, mas uma
coisa tão simples tinha passado batida. Agora a única
coisa que Dani podia fazer era torcer para ele não
estragar tudo.
Ela quase queria que atacassem logo só para poder
fazer Amon obedecer cada palavra dela.
Amon tinha sorte. Dani tinha fechado a mão ao redor
da pistola assim que ele havia se aproximado, mesmo
que tivesse sido rápido demais para ela ver o
movimento. E só não havia atirado por um motivo: ele
era mais útil vivo. Se é que podia dizer que um vampiro
estava vivo. Ele era a melhor chance do Setor Dez. Se ela
atirasse, teria que ser para incapacitar ou destruir. E, se
fizesse aquilo, estariam perdidos.
Um grupo de pessoas gritou, mais no fundo do bar, e
alguém riu alto.
Dani suspirou e começou a passar entre as pessoas.
Não tinha nada que ela pudesse fazer a não ser torcer
para Amon a acompanhar. Aquele bar tinha sido sua
primeira parada justamente porque sempre estava tão
cheio que era quase impossível alguém prestar atenção
em uma pessoa específica. O que queria dizer que
sempre tinha alguém falando mais do que devia,
também. Ela só precisava prestar atenção para descobrir
o que era útil ou não.
Ela foi até o outro lado do bar, perto da porta do
fundo, e se apoiou no balcão. Um dos baristas olhou para
ela e Dani levantou dois dedos.
Quando Amon parou ao seu lado, duas garrafas de
cerveja já estavam no balcão e Dani estava virando as
costas da sua mão na direção do leitor que o barista
estava segurando.
O barista se afastou se falar nada. Dani abriu uma
das garrafas, a empurrou na direção de Amon, e abriu a
outra. O vampiro a encarou e levantou uma sobrancelha.
Ela deu de ombros.
— Foi você que insistiu em vir.
Agora, ele que desse seu jeito de se passar por
humano.
Amon daria um jeito, Dani tinha certeza. Ela tinha
notado a expressão dele quando ela contou que os
problemas deles eram com o Setor Oito. Ele não ia jogar
fora uma chance de se vingar deles. Não ia correr o risco
de chamar atenção.
Amon pegou a garrafa de cerveja e fingiu beber um
gole. Fingiu, porque Dani estava perto o suficiente para
ver a cerveja dentro da garrafa. Ele não tinha bebido
nada.
Ela ia ter que beber depressa se quisesse terminar a
sua cerveja e a dele antes de tudo ficar quente.
Dani se afastou do balcão e encostou na parede ao
lado da porta dos fundos. As mesas todas estavam
ocupadas, mas não tinha nenhum grupo específico perto
delas, como no dia que o casal de adolescentes estava
ali. Amon parou ao seu lado, olhando ao redor com uma
expressão que quase parecia entediada.
— Por que estamos aqui? — Ele perguntou.
Não porque ela achava que fosse uma boa ideia
levar um vampiro para um bar. Ainda mais se o vampiro
em questão tivesse passado cinquenta anos preso e
estivesse se passando por humano.
Ela tinha se esquecido daquele detalhe. Ele estava
agindo como se o sangue que Yuri tinha deixado na casa
segura tivesse sido o suficiente, mas Dani duvidava.
Aquela caixa térmica tinha sangue que em teoria seria o
suficiente para três dias. E Amon havia acabado com
tudo em uma noite. Ele podia estar parecendo normal,
mas ela não tinha nenhuma garantia de que não ia
perder o controle e começar um massacre no bar.
— Tem alguma coisa acontecendo nesse setor —
Dani começou.
Amon bufou.
— A menos que muita coisa tenha mudado, essa é a
descrição padrão do Setor Seis. Sempre tem algo
acontecendo.
Ele não estava mentindo e não tinha falado nada
demais, mas um arrepio atravessou Dani. As pessoas
mais perto de onde eles estavam se viraram e olharam
ao redor, como se estivessem procurando alguma coisa.
— Controle isso — Dani resmungou.
O que quer que aquilo fosse, porque era algo
escapando de Amon. Não era o magnetismo dos
vampiros, ou as pessoas que se viraram ainda estariam
encarando. Não. Era algum tipo de poder. E aquilo era
um problema, porque as mãos dele ainda estavam
normais, sem nenhum sinal das marcas escuras. Não.
Aquilo era bom. Enquanto as marcas não aparecessem,
ele tinha uma chance de se passar por humano. Se elas
ficassem visíveis todo mundo ali ia entender que um
vampiro estava dentro de um dos bares que os humanos
tratavam como sendo quase território seguro.
Amon se virou para ela. De alguma forma, o
movimento não parecia humano. Tinha uma lentidão que
Dani não sabia explicar – como se fosse uma cobra se
preparando para dar o bote.
Ela sustentou o olhar dele.
Aquilo era loucura. Qualquer um sabia que encarar
um vampiro era algo que não se fazia em hipótese
alguma.
Mas Amon não ia usar nenhum tipo de poder ali – e
muito menos contra ela. Ele não podia. Havia jurado pelo
seu sangue.
Ele desviou o olhar e fingiu tomar mais um gole da
cerveja. A tensão desapareceu como se nada houvesse
acontecido.
Era tarde demais para voltar atrás. Dani não podia se
dar ao luxo de pensar que teria sido melhor não acordar
Amon.
— Alguma coisa deixou os vampiros daqui agitados
— ela murmurou. — A movimentação na outra parte da
cidade não está normal.
E aquele era o problema, porque a dupla que tinha
notado aquilo não havia conseguido se aproximar o
suficiente para ter mais detalhes. Podiam ser
preparativos para atacar o Setor Dez, mas também podia
não ser nada demais. Então Dani estava ali, para tentar
descobrir alguma coisa. E, se não conseguisse
informações no bar, tinha outros lugares que podia ir
antes de pensar se valia a pena se aproximar da parte da
cidade onde os vampiros viviam.
— O Setor Seis é oportunista — Amon falou. — Pelo
menos, era.
Fazia sentido com o que Dani sabia sobre eles.
— Ainda são. A ordem pra não venderem mais nada
pra nós foi oficializada hoje mais cedo.
O que era mais um motivo para Dani estar ali, no
bar. Precisava testar os limites daquilo, também. Ela
provavelmente não teria problemas nos lugares que já
frequentava. Era um rosto conhecido e os donos de bares
como aquele não fazia muita questão de seguir as ordens
dos vampiros. Eles obedeciam o suficiente para estarem
seguros, mas não iam recusar alguém que pagava pela
sua bebida.
— Isolamento — Amon comentou.
Dani assentiu. Ela tinha falado sobre isso com ele
mais cedo e ele havia confirmado que era uma tática do
Setor Oito, sim.
Mais um motivo para ela descobrir por que a
movimentação na cidade dos vampiros tinha mudado,
porque se fossem preparativos para um ataque o Setor
Dez precisava entrar em alerta.
Ela ia precisar de muita paciência.
Dani virou o resto da sua cerveja e esticou a mão
para a garrafa de Amon. Ele trocou de garrafa com ela
sem falar nada.
Seu único consolo era que estava lidando com
alguém que tinha tanto interesse em resolver aquilo
quanto ela. Depois daquela discussão antes de saírem do
Setor Dez, Dani estava repassando cada parte do
juramento de sangue na sua cabeça. Ela tinha feito algo
certo, ou com certeza já estaria morta. Mas havia
deixado muito mais brechas do que tinha pensado.
Ela e Yuri não eram bons naquilo. Se alguma coisa
daquele tipo acontecesse de novo, Dani não ia tentar
resolver tudo sozinha com ele.
Se alguma coisa daquele tipo acontecesse de novo,
ela ia pensar em outra loucura que não envolvesse tentar
controlar um vampiro.
Amon colocou uma mão no seu ombro – ela estava
usando a blusa justa de mangas compridas e ombros de
fora que era um dos seus "uniformes" quando precisava
ir em outros setores.
— Por que a maquiagem?
Não no seu rosto – porque Dani usava pouca
maquiagem, normalmente. Ele estava falando da base
profissional que ela usava para esconder a tatuagem de
uma árvore que subia pelo seu braço, ombro e por boa
parte do colo do peito.
— Pra não chamar atenção — ela falou.
Era a resposta mais simples e era verdade.
Tatuagens não eram incomuns, mas eram um jeito fácil
de identificar alguém. Dani não queria de ninguém de
outros setores se lembrando que tinha visto uma mulher
com uma tatuagem de galhos. E, ao mesmo tempo, ela
fazia questão de que todos que se encontrassem com a
responsável pela segurança do Setor Dez vissem a
tatuagem.
Ele assentiu e não falou mais nada. Ótimo, porque
Dani não lhe diria nada além daquilo. Aquela situação já
estava a um fio de escapar do seu controle. Não ia ficar
conversando com um vampiro como se ele fosse uma
pessoa qualquer.
Dani apoiou um pé na parede atrás de si e tomou um
gole de cerveja. A música alta do bar era familiar demais
e alta o suficiente para ela não conseguir ouvir nem as
conversas mais próximas, mas era fácil reconhecer as
pessoas que tinham algum contato com a cidade dos
vampiros. Eles sempre tinham a mesma expressão tensa
e vazia, ao mesmo tempo. Dani não sabia o motivo para
aquilo e não queria saber. Só precisava encontrar
aquelas pessoas no bar e parar em algum lugar perto
deles.
E torcer para ninguém começar uma briga. Se aquilo
acontecesse, ela ia sair dali o mais depressa possível.
Não podia correr o risco de alguém derramar sangue e
um dos vampiros do setor notar Amon ali.
Nada. Ninguém, até onde ela conseguia ver.
Dani tinha mais pessoal espalhado em outros bares
do Setor Seis, mas todos estavam precisando ser
cuidadosos demais. Não podiam dar nenhuma
justificativa para o Setor Seis prestar mais atenção nas
fronteiras. Ou dar algum motivo para atacarem – porque
ainda não sabiam exatamente quais eram os termos da
aliança deles com o Oito. Era possível que não fossem
fazer nada além de ajudar a isolá-los.
Amon suspirou. Pelo visto o bar não era interessante
o suficiente para ele não ficar entediado. Não que Dani
não estivesse entediada, também. Aquela era a pior
parte do seu trabalho: esperar, torcer para ouvir alguma
coisa, ver algo que chamasse atenção e que fosse útil.
— O que você quer?
— Informações.
O vampiro se virou para Dani. Ela continuou como
estava, olhando para o salão e tomando o resto de
cerveja já meio quente. Não ia cair na bobagem de
encarar Amon de novo.
E talvez já fosse hora de comprar mais cervejas.
— E você estava planejando em ficar parada aqui na
esperança de ouvir algo útil por perto?
Ela deu de ombros.
— Não exatamente.
Não era como se ela estivesse fazendo aquilo há
anos e soubesse muito bem como identificar quem podia
ter alguma informação. E não era como se tivesse outra
opção.
Amon bufou.
— Posso fazer melhor que isso. O que você quer?
Dani se virou para ele. Amon estava olhando para o
salão, com o começo de um sorriso no rosto.
Ele não tinha o menor direito de ter aquele rosto e
ser um vampiro. Não era justo.
E se Amon estava se oferecendo para ajudar, ela não
ia recusar.
— O motivo pra movimentação na cidade dos
vampiros — Dani murmurou. — O que eles estão
planejando.
Ele assentiu, sem olhar para ela, e esticou a garrafa
de cerveja vazia na sua direção.
— Quero você longe de mim enquanto faço isso —
Amon avisou.
Um arrepio atravessou Dani. Ela não deveria aceitar.
O que quer que ele fosse fazer, era algum poder. Ela
estaria expondo todas as pessoas ali a um vampiro...
E todas as pessoas no bar eram moradoras do Setor
Seis. Estarem expostos a um vampiro que podia fazer o
que quisesse com eles não era nada novo. Só parecia
errado que ela, uma humana, estivesse sendo a
responsável por aquilo.
Dani pegou a garrafa e foi na direção do balcão do
bar, andando devagar. Amon estava certo, era melhor ela
estar longe dele. Se alguém notasse que ele era um
vampiro e estava usando suas habilidades ali, ela não
seria ligada a ele. Poderia sair do bar como se não
tivesse nada a ver com aquilo.
Ela achou um espaço vazio e se apoiou no balcão. O
segundo barista já estava trabalhando e estava perto
dela, mas já estava pegando outras bebidas. Ela colocou
as garrafas vazias no balcão e esperou, sem falar nada.
Não estava com pressa. E não ia olhar para trás para
saber o que estava acontecendo.
Nada. Ela não estava sentindo nada. Nenhum
vestígio de nenhum tipo de habilidade dos vampiros. Não
que Dani pudesse confiar naquilo. Ela não era uma
bruxa. Só tinha um pouco de sensibilidade.
O barista parou na frente dela com mais duas
cervejas e o leitor. Dani aproximou as costas da mão,
esperou o apito que indicava que o pagamento tinha sido
feito, e pegou as garrafas.
Amon continuava no mesmo lugar, encostado na
parede. Ninguém estava prestando atenção nele. Não
tinham motivo para fazer isso: ele era exatamente como
os frequentadores dali. Calça de couro, coturnos e uma
camiseta preta – as roupas usadas que ele tinha pegado
no armário da casa segura. E ele tinha exatamente a
mesma postura de uns tantos caras pelo bar, também.
Dani engoliu em seco. Se ela não soubesse quem ele
era, nunca suspeitaria que fosse um vampiro. Não
quando ele estava assim. Seria só mais um cara
interessante...
E agora ela estava se perguntando quantas pessoas
não pensavam exatamente aquilo antes de se
descobrirem com vampiros.
Dani foi na direção de Amon. Ele se virou para ela e
sorriu de um jeito que só tinha uma interpretação
possível.
Não. Nunca.
Ela entregou uma garrafa para ele e se encostou na
parede antes de abrir a sua cerveja e tomar um gole.
Nada. Ninguém estava prestando mais atenção neles do
que deveria.
— Alguma coisa? — Dani perguntou.
Amon bateu a sua garrafa de cerveja contra a dela,
antes de fingir tomar um gole.
— Um baile.
Dani suspirou. Tinha vindo para o Setor Seis à toa,
então.
— Uma festa. É claro que vão fazer uma festa — ela
resmungou. — Eles não iam me dar algo útil...
Amon sorriu de novo.
— Muito pelo contrário. Se você quer parar o Setor
Oito, então esse baile é exatamente o que você precisa.
Dani se virou para ele e levantou as sobrancelhas.
Amon segurou seu queixo de um jeito que era
parecido demais com o que tinha feito antes de saírem
do Setor Dez, mas sem a força, dessa vez.
Se ela se afastasse, ia chamar atenção.
— Você precisa enfrentá-los no território deles. Não
esperar um ataque.
Porque a ideia de entrar em um evento cheio de
vampiros para tentar forçá-los a aceitar qualquer coisa
parecia uma excelente ideia – só que não. Ela não era
uma bruxa com nenhum tipo de poder que fosse
intimidar os vampiros do Setor Seis.
— Eu não vou atacar uma festa de vampiros.
Amon balançou a cabeça.
Dani se forçou a desviar o olhar.
— Você não vai atacar — ele falou. — Você vai
comparecer, como uma representante do seu setor,
deixando claro que se aliarem ao Setor Oito é uma
péssima ideia.
Enfrentá-los no território deles. Nos jogos de
palavras e manobras por poder, não necessariamente os
atacar.
Isso era loucura. Mas Dani era a melhor chance de
Amon conseguir sua vingança...
Ela se virou para ele de novo.
— Você quer estar nesse baile.
Amon sorriu de novo e, por mais que ele ainda
estivesse escondendo suas presas, aquilo era uma
ameaça.
— Eu ainda tenho contas a acertar.
Dani respirou fundo, olhou para o salão do bar de
novo e tomou um gole da sua cerveja.
SEIS

Amon cruzou os braços e se apoiou no batente da porta do quarto.


Já era dia – tarde, na verdade. Eles não haviam
demorado muito naquele bar depois do que ele
descobrira, mas Daniele havia insistido em passar em
mais dois bares e depois conferir uma parte da fronteira
antes de voltar para a casa. E a humana só havia
acordado depois do meio-dia, de novo. Pelo visto aquilo
era normal, para ela.
Mas o outro homem na sala – Yuri, que Daniele havia
falado que era o outro responsável pela segurança do
setor – não estava achando nada normal no que estava
acontecendo. A humana tinha lhe mandado uma
mensagem assim que acordara e avisado Amon que
precisavam conversar sobre a ideia de ir ao baile. Agora
o outro humano estava ali, sem nem tentar disfarçar sua
insatisfação, enquanto Daniele lhe contava o que haviam
descoberto durante a noite.
O que ele havia descoberto. Porque ela tinha
aceitado que ele buscasse informações nas mentes dos
humanos e não havia questionado o que Amon dissera,
depois. A sensação do juramento de sangue, como
espinhos prontos para se apertarem ao seu redor, era
forte e familiar demais, mas aquilo era novo. A humana o
havia tratado como alguém que podia ajudar, não
apenas como uma arma.
E ela não havia tentado forçar Amon a obedecer,
quando ele disse que não ficaria na casa. Ela havia
aceitado que errara na hora de cobrar o juramento e
seguido em frente, como se não fosse nada demais. E,
mesmo quando estavam nos bares, ela não havia exigido
nada dele, mesmo que usar suas habilidades fosse
facilitar o trabalho dela.
Talvez Daniele não fosse ser a primeira a morrer.
Amon se livraria do juramento de sangue – aquilo era
apenas uma questão de tempo. Ele esperaria até ter
todas as informações que precisava. A humana pagaria
por ter pensado que poderia controlá-lo, obviamente.
Mas, até lá, se ela continuasse a agir daquele jeito, Amon
faria questão de lhe dar tudo o que ela queria. Iria parar
o Setor Oito quando atacassem e depois, quando
recuassem, ele atacaria. Não deixaria nada do Setor Oito
para trás.
O humano fez um ruído irritado e parou ao lado da
janela fechada. Daniele se virou no sofá, mas não se deu
ao trabalho de se levantar.
— E como acha que vão entrar em um baile do Setor
Seis? — Ele perguntou. — Não é só uma questão de
conseguir chegar lá.
Então as explicações finalmente haviam acabado.
Amon sorriu.
— Você se esquece de quem eu sou.
O humano o encarou dos pés à cabeça. Amon
levantou uma sobrancelha.
— Você é o vampiro que Dani encontrou nas ruínas
da cidade velha — Yuri falou. — Só isso.
Amon se endireitou e deu dois passos na direção do
humano. Daniele olhou para Amon, sem falar nada, e ele
parou. O humano relaxou os braços e parou com a mão
ao lado da arma que ele achava que estava escondida.
Aquilo podia ser divertido. O homem tinha mais
medo dele que Daniele. Interessante.
— Eu sou o vampiro que destruiu o Setor Quatro —
Amon falou. — Eu sou a arma que qualquer Corte nessa
parte do mundo adoraria ter no seu arsenal.
Daniele bufou e balançou uma mão.
— E você está interessado demais na sua vingança
pra só chegar no Setor Seis batendo na porta como se
fosse um convidado. É mais fácil você só falar logo o que
está pensando em fazer.
Amon se virou para ela, devagar. A humana havia
entendido mais sobre ele do que o esperado.
Ela sustentou seu olhar, sem nenhum sinal de medo.
Pelo menos, nenhum sinal visível.
— Não ouse — ela falou.
Amon levantou uma sobrancelha antes de perceber
que Daniele não estava falando com ele.
Ah. O humano havia pegado sua arma.
Amon se virou para ele e sorriu, mostrando as
presas. Yuri podia tentar atirar nele. Talvez até
conseguisse acertar. Mas não sobreviveria para ver os
resultados.
— Chega — Daniele falou.
Ele não precisava obedecer. Era uma ordem, sim,
mas os espinhos do juramento não estavam apertando
mais que o normal. Ela não estava tentando forçá-lo.
Amon riu baixo e se virou para Daniele de novo
antes de assentir e se encostar na parede mais uma vez.
Ela olhou para o humano. Ele balançou a cabeça mas
levantou as mãos vazias.
Interessante. Yuri parecia ser mais velho que
Daniele. Não muito, mas o suficiente para Amon ter
imaginado que ele ignoraria a opinião dela.
Daniele se virou para Amon de novo.
— Você pensou em alguma coisa.
Ele assentiu.
— Tenho um contato que pode conseguir convites
para nós — Amon contou.
A humana inclinou a cabeça.
— Você ficou preso naquela casa por cinquenta anos.
O que te garante que seu contato ainda está no Setor
Seis?
— Eu senti a presença dela ontem à noite. Ela está
lá.
Daniele se endireitou.
— E por que ela faria isso? Qual vai ser o preço?
A menos que muita coisa houvesse mudado, ela não
iria pedir nada em troca. Melissa era como Amon, de
certa forma: presa à Corte do Setor Seis por fatores fora
do seu controle. Seu pagamento seria ver a Corte
tentando encontrar uma forma de lidar com ele.
Mas aqueles eram os segredos de Mel.
Amon balançou a cabeça.
— Ela tem uma posição dentro da Corte que pode
nos garantir os convites e isso é o que importa. Qualquer
tipo de pagamento vai ser entre ela e eu.
Daniele continuou olhando para ele.
Não era arrogância. Agora que tinha falado sobre
Mel, Amon reconhecia aquele olhar. Era a expressão de
alguém que faria o que fosse necessário. E, se o
necessário fosse desafiar um vampiro, faria aquilo,
também.
Ele não tinha esperado ver algo assim em uma
humana.
— Você não vai fazer nada que coloque o Setor Dez
em risco — ela falou. — Se o pagamento que ela exigir
nos afetar, de qualquer forma...
Amon sorriu. Daniele continuou sustentando seu
olhar, sem dar a menor importância para suas presas ou
para sua expressão, mesmo que o humano tivesse
recuado e estivesse com a mão na sua arma escondida,
de novo.
— Eu não vou colocar o setor em risco — Amon
falou.
Ela assentiu e se virou para o humano.
— Então a questão agora é acertar detalhes —
Daniele comentou. — Se é que tem alguma coisa pra ser
acertada.
Amon continuou olhando para ela. Daniele havia
aceitado sua palavra sem questionar.
Não era estupidez ou ingenuidade. Ela tinha um
cargo alto dentro daquele setor, mesmo que fosse um
setor de humanos, o outro humano parecia respeitar a
opinião dela. E, mesmo assim, ela não havia
questionado.
— Se vai insistir em fazer isso, então precisa de uma
equipe... — o humano começou, olhando para Daniele.
Amon se virou para ele e balançou a cabeça.
— Ela e eu. Mais ninguém.
O humano se virou, tomando cuidado para não olhar
nos olhos de Amon.
— Quando meu pessoal vai em alguma missão de
risco, eles vão com todo o suporte que podem ter. Um
baile do Setor Seis...
— A intenção é que isso seja uma mostra de força —
Amon interrompeu. — Mandar uma equipe vai ter o
resultado oposto. Vai dizer que o Setor Dez é tão fraco
que não confia que a responsável pela sua segurança
consegue se defender.
— Dani consegue se defender, sim. Mas não de um
bando de vampiros reunidos que podem avançar nela a
qualquer momento.
Humanos. Os anos passavam, mas eles não
mudavam.
— Os bailes são o que vocês chamariam de eventos
diplomáticos — ele contou. — Enquanto estivermos lá,
como convidados, Daniele vai ser intocável. E, se Daniele
conseguir lidar com a Corte sem medo e com o mesmo
tom de desafio que já vi várias vezes, vai ser mais eficaz
para fazer o Setor Seis repensar sua aliança com o Oito
do que qualquer exército de mercenários que vocês
estejam reunindo.
— Dani não... — o humano insistiu.
— Dani está bem aqui — ela falou. — E eu já decidi o
que vou fazer.
Amon sorriu sem mostrar as presas. Era exatamente
daquilo que ele estava falando. A forma como ela
interrompia um vampiro sem pensar duas vezes e sem
pensar que era algo demais. Aquilo, na Corte, seria o
suficiente para começarem a imaginar se não havia algo
sobre Daniele e o Setor Dez que não soubessem. Algum
motivo para ela agir assim, como se tivesse certeza que
era intocável.
Yuri se virou para a humana.
— E você confia tanto assim no que um vampiro está
falando? — Ele perguntou.
Daniele sorriu.
— Confio que ele quer destruir o Setor Oito e eu
estou dando a oportunidade perfeita pra ele fazer isso. É
o suficiente pra mim.
Ela não estava errada.
— Claro que é — o humano resmungou.
Ela suspirou.
— Vamos precisar de vigilância no caminho —
Daniele falou. — O que Amon falou foi que vamos ser
intocáveis enquanto estivermos no baile. Depois, a coisa
muda.
Era óbvio que ela tinha percebido isso.
— E é melhor não fazermos nada dentro do Setor
Seis — ela continuou. — Mesmo se nos atacarem, a
melhor opção é escapar para a fronteira. Qualquer
conflito tem que acontecer do nosso lado. Quando é esse
baile?
Amon não havia contado aquela parte para Daniele.
— Amanhã à noite.
Ela se virou de uma vez e parou, olhando para ele.
— Amanhã — Daniele repetiu.
Yuri xingou e foi na direção da porta.
— Preciso começar a organizar isso, então — ele
falou. — Me avise se precisar de mais alguma coisa.
Daniele não falou nada enquanto o humano saía da
casa e fechava a porta.
— Amanhã — ela repetiu, de novo.
— Meu contato pode te ajudar a se preparar para o
baile — Amon avisou. — Mas vamos precisar nos
encontrar com ela hoje, primeiro.
Ela deu uma risada seca e sem nenhum humor antes
de se levantar.

Alana cruzou os braços e encarou os mercenários pegando malas e


mochilas na carroceria da caminhonete. Normalmente,
ela não estaria nem perto da cidade em um dia de
semana, mas não tinha muita coisa que precisasse fazer
nas plantações. Ela passava mais tempo nelas do que
precisava e usava aquilo para escapar quando queria
distância dos outros – e se ninguém nunca tinha
suspeitado, melhor para ela.
Mas aquilo queria dizer que agora, com mercenários
chegando no Setor Dez, Dani sem dar sinal de vida nem
responder mensagem já fazia dias e a certeza de que
iam ser atacados mais cedo ou mais tarde, Alana tinha
tempo demais livre. Ela não queria ficar nas plantações,
sozinha com seus pensamentos. Nem levar Valissa com
ela era o suficiente, mesmo que estivesse ensinando a
garota a cuidar das plantas que tinham ali.
As últimas mochilas foram tiradas da carroceria e o
grupo de mercenários continuou parado no lugar. Aquilo
era bom. As ordens deles eram para não saírem dali até
serem levados para seus alojamentos, mas não havia
nada para os impedir. Aquilo ainda era um teste.
Alana tinha convencido Raquel e Yuri que ela era a
pessoa certa para cuidar daquela parte. Ela sabia que
todo mundo a subestimava. Ela era delicada demais, fofa
demais, e com certeza não estava em forma o suficiente
para ser alguém que sabia lutar. E aquilo, junto com a
forma como ela se vestia – um saião comprido e colorido
e um cropped branco – e o cabelo meio pintado de verde
eram o suficiente para ninguém a considerar uma
ameaça. Era a forma perfeita de testar se os mercenários
estavam realmente dispostos a seguir as regras do Setor
Dez. E, se algum deles começasse a dar problemas, ela
conseguiria conter a situação.
Os mercenários olharam ao redor. O grupo era bem
misturado, provavelmente com mais mulheres que
homens. Todos estavam vestidos de preto, mas aquilo já
era quase uma regra. As tatuagens e piercings também.
Alana já tinha ouvido falar que alguns dos piercings dos
mercenários tinham significados específicos. Ela não
fazia ideia de se era ou não verdade. E eles não estavam
armados, pelo menos não com nada que Alana
conseguisse ver. Aquilo era outra regra de Yuri: as armas
não iam entrar na cidade. Estavam em um dos depósitos.
Alana foi na direção da caminhonete. O motorista –
Cláudio – colocou a cabeça para fora da janela.
— Deixaram esse grupo pra você, Lana? — Ele
perguntou.
Ela sorriu. "Lana" era melhor que os apelidos de Dani
para ela.
— Deixaram. Pode ir que eu resolvo daqui pra frente.
Ele riu e ligou a caminhonete de novo. O motor
estalou uma vez antes de pegar de verdade e ele voltou
na direção da mansão.
Alana se virou para o grupo de mercenários.
Quatorze pessoas. E aquele grupo não tinha famílias,
como alguns dos outros.
Eles a encararam de volta.
— Disseram que alguém ia nos encontrar aqui — um
dos mercenários começou.
Ela assentiu e indicou a rua que saía da direita da
praça.
— Por aqui.
Alguns dos mercenários ainda falaram alguma coisa
entre si antes de começarem a andar. Alana ia se
lembrar deles. Assim como ia se lembrar dos que a
estavam medindo dos pés à cabeça, como se estivessem
tentando entender o que alguém como ela estava
fazendo ali.
Era melhor que estar nas plantações. Era melhor que
não estar fazendo nada enquanto o setor inteiro estava
em risco por sua causa. Então Alana ia se lembrar. E
estaria esperando se eles se tornassem um problema.

Dani se encostou na parede de uma das casas, tentando não fazer


nenhum barulho. Não que ela precisasse ser tão
cuidadosa. Estava perto o suficiente da parte da cidade
onde os vampiros viviam para as ruas ainda estarem
movimentadas. Mesmo assim, Amon e ela estavam
andando nas sombras.
Era loucura. Ir para o Setor Seis na noite anterior já
tinha sido um risco, depois de terem oficializado o
bloqueio comercial. E aquilo sendo que tinham ficado só
nas partes mais humanas da cidade. Ir para a parte da
cidade onde as famílias que trabalhavam diretamente
com os vampiros viviam... Dani nunca teria concordado
com aquilo, normalmente.
Amon riu baixo e continuou andando. Ele estava nas
sombras, também, mas era diferente. Não parecia que
ele estava se escondendo. Parecia que estava em casa.
Aquele era o seu lugar: nas sombras. E Dani não se
importava com quão dramático isso parecia.
E, se estar ali era uma loucura, era pior ainda estar
ali com um vampiro. Ela sabia que Amon não ia fazer
nada com ela. Pelo menos naquela parte do juramento
Dani não havia deixado brechas. Mas, mesmo assim...
Ele era um vampiro. Ponto. Confiar em qualquer coisa
que ele falasse era loucura. Dani podia pensar que
entendia seus motivos, mas não tinha como ter certeza.
Nunca teria. E não podia se esquecer do juramento. Ela
conseguia sentir o poder ligando os dois.
Dani continuou parada no lugar, encarando as costas
de Amon. Ela havia relaxado. Dois dias, e ela havia
relaxado. Tinha se esquecido da expressão de Amon
quando ainda estava preso naquele caixão e ela tinha
falado de um juramento de sangue. Ele tinha olhado para
Dani como se estivesse planejando sua morte, ela fosse
ser dolorosa e ele fosse adorar aquilo.
Ele se virou para trás.
— Só mais um pouco — Amon avisou.
Dani respirou fundo e voltou a andar. Aquela era a
pior hora para perceber o que estava fazendo errado,
mas não mudava nada. Ela concordava com o raciocínio
de Amon. Precisavam diminuir a rede de suporte do Setor
Oito de alguma forma e, se possível, não deixar que
isolassem o Setor Dez completamente. A forma mais
simples de fazer aquilo era intimidando e criando dúvidas
e a única forma de fazer aquilo com uma Corte era
entrando no jogo deles.
A pior parte era que Dani deveria ter pensado em
algo daquele tipo antes. Ela sabia. Tinha crescido num
lugar não muito diferente da parte da cidade onde
estavam agora. Sua família sempre havia sido próxima
demais da Corte, porque sua avó era uma das feiticeiras
do príncipe.
Eles atravessaram outra rua. As paredes da cidade
dos vampiros já estavam perto demais.
— Seu contato... — Dani começou.
— Ela está vindo.
Um arrepio atravessou Dani. Ela sabia exatamente
quem era o contato de Amon: a vampira que tinha
levado as pessoas brigando, no bar, alguns dias antes.
Ela tinha usado suas habilidades lá. Fazia sentido que ele
conseguisse sentir a presença dela.
Aquilo queria dizer que Dani ia se encontrar com
uma vampira capaz de compelir humanos. Uma das que
conseguia apagar completamente a vontade de qualquer
um. E sua única defesa contra ela era o juramento de
Amon – um juramento que Dani não tinha certeza de até
onde podia confiar, porque não tinha sido cuidadosa o
suficiente.
O tablet de Dani vibrou. Ela conferiu a tela. Mais uma
mensagem de Alana. Sua prima estava furiosa por ela
não estar dando notícias nem ter falado o que estava
planejando. E Dani ia continuar sem contar nada
enquanto pudesse evitar. Era o seu trabalho. Lidar com
Yuri já era o suficiente.
Amon atravessou mais uma rua. Dani foi atrás dele e
parou. Estavam em uma praça que parecia ser
retangular, com canteiros de árvores e flores e caminhos
bem marcados entre eles. Algumas pessoas estavam
andando por ali, como se fosse normal estar ao ar livre
durante a noite, ainda mais tão perto da parte dos
vampiros da cidade. E uma das entradas no muro que
separava as duas partes da cidade ficava logo depois da
praça. Dani não precisava sair de onde estava para ver
que, do lado de lá, não havia nenhuma luz. Os vampiros
não precisavam daquilo.
Ela estava segura. Dani precisava acreditar naquilo.
Era tarde demais para voltar atrás.
E, se alguma coisa acontecesse, ela ainda tinha uma
pistola e três facas.
Dani atravessou a rua e parou ao lado de Amon, na
praça. Ele se virou para ela e deu um meio sorriso antes
de começar a andar, devagar, como se não tivesse nada
melhor para fazer. Dani o acompanhou.
— O que você sabe sobre os bailes dos vampiros? —
Amon perguntou, em voz baixa.
Dani balançou a cabeça.
— Quase nada.
Ela sabia que eles aconteciam com uma certa
frequência – uma vez a cada três meses, pelo menos
onde ela havia crescido. E eram um evento para toda a
Corte. Todos os vampiros do setor e visitantes
compareciam e Dani não sabia se era porque os bailes
eram obrigatórios ou outro motivo.
Amon assentiu, sem parar de andar. Se alguém visse
os dois assim, ia parecer que estavam só passando o
tempo na praça, como as outras pessoas andando
devagar.
— O que importa para você é que os bailes são onde
os jogos de palavras e influências acontecem — ele
contou. — Nada envolvendo habilidades, porque fazer
isso seria um desrespeito à data. Vão tentar te intimidar.
Você não pode mostrar nenhuma fraqueza, mas ao
mesmo tempo não pode ofender nenhum membro da
Corte.
Ah, a política dos vampiros. Dani se lembrava da sua
avó reclamando daquilo.
— Nenhuma fraqueza além de ser humana, você
quer dizer.
Amon sorriu.
— Os humanos que entram em um baile são
oferendas. Você vai ser uma novidade. Vão querer te
testar.
Dani tinha passado dois anos nas terras de ninguém,
só ela e Alana, sem nenhuma ajuda enquanto estavam
sendo caçadas, e havia saído viva. Vampiros não a
intimidavam. Se tivesse uma garantia de que não
usariam nenhuma habilidade contra ela, Dani sabia que
conseguiria se virar. Ela ainda se lembrava o suficiente
das histórias da sua avó e dos seus tios.
— Eu vou ter alguma garantia de que não vão fazer
nada contra mim? — Dani perguntou. — Porque vocês
são muito bons em só obedecerem as leis que
interessam. É fácil demais alguém me atacar e depois só
falar um "opa, foi mal", sem nenhuma consequência.
O sorriso de Amon mudou. Dani desviou o olhar.
Aquilo era uma ameaça e ela sabia. Era o tipo de sorriso
que alguém via antes de ser destruído por um vampiro.
Não antes de servir de lanchinho – antes de ser
destruído.
Mas ela não estava com medo e aquilo era um
problema.
Talvez Alex tivesse acertado mais do que pensava,
na última discussão que tiveram. Elu tinha falado que
Dani nunca estaria satisfeita se não estivesse no limite,
se não estivesse abraçando algum tipo de risco. Dani
nunca tinha levado aquele comentário a sério – havia
sido algo falado numa hora que Alex queria machucar.
Agora, ela não tinha mais tanta certeza.
— Eles não vão te atacar, porque se alguma coisa
acontecer vão ter que lidar comigo depois — Amon falou.
Dani respirou fundo. Era óbvio que iam ter que lidar
com ele. Amon havia jurado garantir que nada
aconteceria com Dani.
E eles não estavam mais sozinhos. Uma mulher
estava andando do outro lado de Amon e Dani era capaz
de jurar que ela não estava ali alguns segundos antes.
— Eu pensei que você tinha sido destruído — a
mulher falou.
Não. Era uma vampira. A mesma vampira daquele
dia no bar – com o cabelo vermelho-vinho cacheado e
aquela impressão que fazia Dani querer se aproximar
mais, só para ter certeza de que a vampira era tudo o
que parecia ser. Porque ninguém podia ser tão perfeita
assim. E, se aquilo realmente fosse real, então Dani
queria tocar. Queria se provar digna da sua presença.
Queria estar na sua presença, não só por perto.
Dani se virou para passar na frente de Amon e ir
para o lado da vampira.
Amon segurou seu braço com força.
— Mel — ele falou.
A vampira riu.
Dani se soltou com um movimento brusco e se
afastou para o lado, sentindo o gosto da bile no fundo da
garganta. A vampira não parecia ter feito nenhum
esforço e Dani não tinha tido tempo nem de tentar reagir.
Ela só tinha ido, como se fosse um boneco que a vampira
podia controlar.
Dani não podia fazer nada. Estavam no Setor Seis.
Se ela atacasse a vampira, seria o Setor Dez desafiando
a Corte do Seis.
— Não me destruíram — Amon comentou, como se
nada tivesse acontecido. — Mas me deixaram nas ruínas
da cidade quando fugiram. Daniele me encontrou lá.
A vampira inclinou a cabeça para o lado.
Ela ainda era bonita. Mais bonita do que alguém
tinha direito de ser. Mas não estava mais chamando
Dani, pelo menos.
— Esse tempo todo, você estava lá.
— Eu estava dentro da contenção — ele completou.
— Se eu soubesse...
Amon riu, seco.
— Você não teria feito nada, Mel. Você sabe disso.
Um arrepio atravessou Dani. Aquilo não era uma
acusação. Era um fato. Amon tinha certeza de que
aquela vampira ia lhes dar um convite para um baile,
mas também tinha certeza de que ela não o teria
libertado se soubesse que estava preso no Setor Dez.
E os dois estavam agindo quase como se ela não
estivesse ali. Não que Dani achasse aquilo ruim. Era
melhor que a vampira resolver brincar com a compulsão
de novo.
A vampira assentiu, devagar e de um jeito que era
quase solene.
— O que você quer, Amon? — Ela perguntou.
— Convites para o baile.
A vampira parou e encarou Dani de novo antes de
olhar para Amon.
— Levar uma oferenda para a Corte não vai ser o
suficiente para convencê-los...
— Daniele não é uma oferenda — Amon interrompeu.
Ela podia não ser, mas seria vista assim, não
importava o que ele falasse. A questão era como Dani
lidaria com isso.
Ela não tinha outra opção. Era loucura, mas era uma
loucura que podia dar resultados... E ela estava
pensando assim vezes demais nos últimos dias.
A vampira encarou Dani de novo e deu um sorriso
lento. Dani fechou os punhos com força. Ela conseguia
sentir o começo da compulsão, aquela vontade de ir na
direção da vampira e fazer tudo o que ela quisesse só
para ter o direito de estar ali...
Não. Ela não ia ceder.
A vampira riu e se virou para Amon de novo. A
compulsão desapareceu.
— Se você não quer negociar com a Corte, o que
quer? — Ela perguntou.
Amon levantou a cabeça.
— Vingança.
A vampira deu um sorriso lento que parecia mais real
que tudo que ela tinha feito antes.
— Ah. Agora faz sentido.
— Vai me conseguir os convites, Mel? — Ele insistiu.
Ela balançou a cabeça.
— Vou falar com sua humana primeiro.
Sua humana.
Dani preferia quando a vampira estava agindo como
se ela não estivesse ali. Se Dani discordasse daquilo
estaria colocando um alvo no seu peito. Ou no seu
pescoço. Mas a questão era que estaria abrindo mão da
proteção que era estar ali com Amon. Ela não podia
correr o risco.
Amon fez um gesto na direção de Dani. A vampira
balançou a cabeça.
— Não. Em particular.
Não. Dani não ia ficar sozinha com aquela vampira
de forma nenhuma. Ela tinha aprendido desde cedo que
os vampiros que tinham a compulsão eram os piores.
Não havia nenhuma arma que funcionasse contra eles,
porque quando alguém se aproximava o suficiente para
atacar, já estava perdido.
— Não — Amon falou.
Simples assim. Só um "não", sem condições, sem
possibilidades.
O peso no peito de Dani desapareceu e ela voltou a
respirar normalmente.
A vampira inclinou a cabeça para a direita, ainda
encarando Amon.
— Tem minha palavra de que não vou usar nenhum
tipo de habilidade contra ela.
Amon olhou para Dani.
Eles ainda precisavam enfraquecer as alianças do
Setor Oito. Aquele baile era a forma de fazer isso. E, se a
vampira não lhes desse os convites, não teriam como ir.
O risco não valeria a pena.
A vampira só era um risco para Dani se usasse a
compulsão. Sem isso, ela conseguiria se defender. Se
Amon confiava na palavra dela de que não usaria
nenhum tipo de habilidade...
Ela nunca deveria estar confiando em um vampiro,
para começo de conversa.
Dani assentiu.
A vampira sorriu e voltou a andar. Dani a
acompanhou, até que estavam quase do outro lado da
praça, perto do muro que separava as duas partes da
cidade. Amon ainda estava parado no mesmo lugar de
antes, olhando para elas.
— Você tem um juramento de sangue com Amon — a
vampira falou.
Dani assentiu. Negar aquilo era perda de tempo.
A vampira balançou a cabeça, com um sorriso sem
humor nenhum.
— Isso explica... Você pensa que está segura com
ele. Que ele vai garantir sua segurança aqui. Ele não vai.
Dani não respondeu.
A vampira parou e segurou o braço de Dani, o
virando até que ela estava com o pulso para cima. Dani
não reagiu. Aquilo era intimidação e mais nada. Se a
vampira desse qualquer sinal de um ataque, ela teria
tempo o suficiente para atirar.
A vampira fez um ruído e irritado e soltou Dani.
— Ele é o pior de nós. Não tem nada que você possa
fazer para se manter segura perto dele. Não confie nele
para garantir sua segurança.
Só havia um jeito de lidar com aquele tipo de
comentário vindo de um vampiro.
Dani puxou uma das suas facas e a girou na mão.
— Não confio em ninguém para me proteger.
A vampira sorriu, mostrando as presas.
— Então não vai confiar em um vampiro capaz de
desfazer um juramento de sangue.
Dani encarou a vampira por um instante antes de
desviar o olhar depressa.
Ela tinha estudado todo o material de Alex.
Juramentos de sangue não tinham volta. Era só por isso
que tinha levado aquela ideia louca adiante. Eles não
eram desfeitos. Se quebrados, as consequências eram
letais. E era impossível escapar de um juramento feito.
A vampira assentiu devagar.
— Você entende.
Dani entendia muito bem.
Ela estava dizendo que Amon conseguiria fazer o
impossível. Ele podia escapar do juramento, de alguma
forma. E Dani não tinha nem como saber se notaria que o
poder do juramento havia desaparecido.
Se aquilo fosse verdade. Se a vampira não estivesse
só se divertindo com ela.
— Por que você está me contando isso?
A vampira colocou um dedo no ombro de Dani,
acompanhando o desenho da tatuagem que estava
escondida pela maquiagem pesada.
Ela sabia quem Dani era.
— Amon e eu temos muito em comum. Mas já vi
você pelo Setor Seis algumas vezes. Você não começa
confusão. Nem você, nem seu pessoal. Vocês só querem
ter informações o suficiente para evitar confusões.
E era aquilo que ela estava lhe dando. Informações
para evitar problemas, depois.
— Amon não vale o risco — a vampira completou. —
Nem para você, nem para nenhuma das Cortes. Foi por
isso que ele foi deixado para trás.
Havia mais ali. Alguma coisa no que a vampira
estava falando era importante, mas Dani não tinha como
saber o que era.
— A escolha é minha — Dani falou.
Amon podia ser um risco, mas continuava sendo a
melhor chance que eles tinham de parar o Setor Oito.
A vampira assentiu daquela forma quase solene de
novo e esticou uma mão.
— Melissa.
Aquilo era uma armadilha. Não era possível que a
mesma vampira que houvesse usado a compulsão em
Dani estivesse oferecendo a mão e se apresentando
assim.
Eles precisavam dela.
Dani aceitou sua mão.

Amon esperou a humana abrir a porta da casa e gesticular para que


ele entrasse. Não precisava de outro convite depois de
ter estado ali uma vez, mas esperar era um hábito. E um
hábito que era útil para lidar com uma humana tensa
demais.
Mel havia falado algo que não devia. Era a única
explicação. Se ela tivesse tentado usar qualquer
habilidade contra Daniele, ele saberia. A humana teria
reagido assim que houvesse notado o que estava
acontecendo. Ela não teria aceitado uma compulsão sem
lutar. O que deixava Amon com uma possibilidade: Mel
havia avisado a humana sobre o que ele podia fazer.
Como conseguiria se livrar do juramento de sangue.
Aquele era o preço dela por garantir que estivessem
no baile na noite seguinte. Mel lhe daria o que queria,
mas não da forma como ele queria.
O que queria dizer que Amon precisava encontrar
uma forma de fazer a humana relaxar de novo – tanto
quanto havia relaxado antes – ou o baile seria um
pesadelo. Eles não seriam vistos como uma unidade.
Todo o jogo de aparências que ele estava construindo
para começar a minar as forças do Setor Oito seria
desfeito antes de começar.
Amon foi para a cozinha e abriu a geladeira. A caixa
com as bolsas de sangue morto estava cheia de novo, e
ele a tirou de lá. Precisava daquilo depois de uma noite
inteira perto demais de humanos, sem poder se
alimentar, e sabendo que ia passar o dia preso em uma
casa com uma humana tensa.
Daniele entrou na casa e fechou a porta atrás de si,
sem olhar na direção dele. Amon não falou nada
enquanto ela atravessava a sala e se sentava para tirar
seus coturnos e depois conferir o tablet. O caminho todo
de volta para o Setor Dez tinha sido feito daquele jeito:
com ela parando para conferir o tablet. Amon não sabia
detalhes, mas era óbvio que ela e o outro humano, Yuri,
estavam reforçando a segurança das fronteiras do setor.
Ele tinha ouvido comentários o suficiente sobre
mercenários para imaginar o que estavam fazendo.
Não seria o suficiente. Não quando Amon terminasse
com o Setor Oito e voltasse para cuidar do Setor Dez e
da humana que pensava que conseguiria controlá-lo.
Mesmo que ela não houvesse tentado assumir o
controle nenhuma vez naqueles dias.
Não importava. Ela era como os outros. E só havia
uma forma de lidar com quem pensava que um
juramento de sangue era a resposta para seus
problemas.
Mas Amon ainda precisava dela. Seria mais fácil lidar
com o Setor Oito através daquele conflito com o Setor
Dez.
Ele se encostou na parede e abriu a primeira bolsa
de sangue. A humana fez um ruído baixo e Amon ouviu
quando ela entrou no banheiro e fechou a porta.
Daniele era um problema. Era fácil demais lidar com
ela. Pelo menos era, antes de Mel falar o que não
deveria. Mas, desde o começo, a humana simplesmente
aceitara que ele sabia mais sobre como atingir o Setor
Oito e deixado que ele fizesse seus planos. A única coisa
que ela havia feito tinha sido garantir que o Setor Dez
estivesse preparado para lidar com as possíveis
consequências do plano dele. Ela tinha medo de Amon,
mas não agia movida pelo medo. Quase parecia que
Daniele o respeitava e aquilo era novo.
Amon esvaziou a bolsa de sangue e pegou mais
uma.
Seria mais fácil se ela fosse como todos os outros. Se
deixasse claro que o estava usando e mais nada. Mais
limpo – porque Amon tinha certeza de que aquilo tudo
era uma forma de manipulá-lo, da mesma forma como
ele estava tentando manipular a humana para relaxar
perto dele.
Daniele saiu do banheiro. Amon terminou a segunda
bolsa de sangue e se virou para ver o que ela estava
fazendo.
A humana pegou a coberta fina e o travesseiro que
tinha deixado em cima das suas malas, que ainda
estavam encostadas na parede.
Aquilo era estupidez. Manipulação ou não, ele
precisava dela em plena forma.
— Você deveria dormir no quarto — Amon falou.
Daniele olhou de relance para ele e jogou o
travesseiro no sofá.
— Você precisa descansar — ele continuou. — Eu
não. Nada mais justo que você ter a cama.
A humana respirou fundo, de costas para Amon.
— Eu nunca vou me colocar em um cômodo sem
mais saídas com um vampiro por perto.
E, mesmo da cozinha, Amon conseguia sentir os
vestígios do medo dela.
Às vezes lidar com Mel era trabalhoso demais.
Especialmente quando ela criava situações como aquela.
Durante todo o tempo desde que havia prestado o
juramento, Amon estava sendo cuidadoso. Estava
fazendo o possível para Daniele relaxar e pensar nele
como um aliado. Era uma linha tênue. Ele não podia ser
amigável demais, ou ela desconfiaria, mas também não
podia ser uma ameaça. E ele estava conseguindo.
Daniele havia relaxado o suficiente para aceitar ir se
encontrar com Melissa sem mais ninguém do seu pessoal
por perto. E tinha confiado no julgamento dele quando
aceitara ficar a sós com Mel.
— Se eu quisesse te matar, já teria feito isso.
Daniele se virou para ele e levantou as sobrancelhas.
— Quando? Quando mal estava conseguindo se
mover, naquelas ruínas? Ou depois de ter jurado pelo
sangue e pela lua?
Amon fechou a caixa térmica e a empurrou para o
lado.
A humana balançou a cabeça com força e deu a
volta no sofá, como se quisesse colocar o máximo de
distância possível entre eles.
Ele ainda estava sentindo o cheiro do medo dela,
mas havia mais ali e Amon não fazia a menor questão de
identificar o que aquilo era.
E Amon já sabia o suficiente sobre Daniele para ter
certeza de que a melhor forma de controlar aquela
situação era sendo direto.
— Você é mais útil para mim viva.
Ela parou na frente da janela e se virou para ele de
novo. Daniele tinha pegado uma das suas facas e a
estava girando na mão, de um jeito que parecia mais um
gesto nervoso que uma ameaça.
Enquanto ela estivesse só com as facas, a situação
ainda podia ser controlada.
— Sou útil até você ter sua vingança contra o Setor
Oito — Daniele falou.
Amon não respondeu. Se negasse, seria uma
mentira. Ele preferia evitar fazer aquilo, especialmente
se iam se encontrar com Melissa de novo.
A humana abriu a janela e se sentou nela. Ainda era
noite, lá fora, e Amon sabia que o amanhecer estava
longe. Daniele não estava na janela para fugir dele. Era
mais uma daquelas coisas que parecia ser um hábito.
— Quando você desfizer o juramento, é melhor
lembrar que só vai ter uma chance para me matar — ela
falou.
Amon sorriu. Ali estava, de novo. A arrogância que
não era exatamente arrogância.
— Dessa vez não tem uma placa de acrílico entre
nós para te proteger.
— Eu não vou precisar de uma. Se você vier atrás de
mim, só vai ter uma chance — Daniele repetiu.
Amon não ia dizer que uma chance seria o
suficiente. Que ele era o monstro que até os vampiros
temiam e que uma humana nunca seria capaz de
escapar dele ou pará-lo.
Mas, se ela o estava desafiando de novo, era porque
nem tudo estava perdido.
Daniele provavelmente não relaxaria de novo, não
como antes. Mas ela ainda faria o que era necessário
para a segurança do Setor Dez. Aquilo era tudo o que
Amon queria, porque garantia que ele teria sua vingança.
Ela encarou seu tablet, quase como se estivesse
dispensando Amon. Ele quase riu, mas não queria correr
o risco de atrapalhar aquele equilíbrio precário entre os
dois.
Amon esvaziou mais uma bolsa de sangue morto
antes de guardar a caixa térmica no congelador, de novo.
Aquilo era cansativo e insatisfatório. Se tivesse acesso a
sangue vivo já estaria completamente recuperado e não
precisaria beber tanto. Mas aquele era um assunto que
Amon sabia que não adiantaria forçar. Ele tinha notado a
reação de Daniele quando ele estava se alimentando:
nojo, desprezo e fúria. Ela podia estar disposta a usar um
vampiro para ter o que queria, mas não a ponto de lidar
com tudo o que aquilo queria dizer.
Amon saiu da cozinha e voltou para o quarto.
Daniele continuou sentada na janela, mexendo no
seu tablet – ou fingindo, ele não tinha como ter certeza –
até a luz do sol começar a entrar na sala. Só então ela foi
para o sofá e se deitou.
SETE

Yuri encarou os mercenários parados na frente da mansão. Eles


tinham chegado ali pouco depois do amanhecer e se
espalhado no gramado, esperando. Agora, quase uma
hora depois, eles haviam se dividido em alguns grupos e
se acomodado melhor para esperar.
Alana ia ficar furiosa quando visse como estavam
pisoteando a grama que ela fazia tanta questão de
manter bem cuidada.
— Fomos avisados de uma oportunidade de trabalho
aqui — um dos mercenários, com mechas grossas e
vermelhas no cabelo castanho, começou. — Ninguém
falou nada sobre ficarmos parados no sol feito um bando
de palhaços.
— Vocês foram avisados de uma oportunidade de
trabalho e possível cidadania no Setor Dez — Yuri falou,
sem sair do seu lugar na porta. — Se querem ter uma
chance de serem aceitos, então vão nos dar as
informações que precisamos e esperar até terem sua
resposta. Se não quiserem esperar, não estamos
prendendo ninguém aqui.
O mercenário que tinha falado deu um passo para a
frente.
Yuri levantou as sobrancelhas. O outro homem parou
no lugar e bufou.
— Vamos esperar.
Era óbvio que iam.
Yuri indicou os mercenários com a cabeça. Os três
assistentes que estavam parados atrás dele saíram da
sede, cada um com um tablet, e começaram a passar
entre os mercenários, recolhendo os dados deles.
O mercenário de cabelo pintado continuou
encarando Yuri por alguns segundos antes de se virar e ir
para onde uma das suas assistentes tinha parado.
Era por causa daquele tipo de coisa que Yuri nunca
havia sugerido fazerem algo assim. Quase sempre,
mercenários se tornavam mercenários por necessidade,
não porque gostavam. Mas o tempo naquela vida
mudava as pessoas. Não era tão simples saber em quem
podiam confiar ou não. Ele mesmo não era muito
diferente daquele mercenário na época que havia
chegado no Setor Dez.
Yuri continuou parado na porta enquanto seu pessoal
recolhia as informações. Com alguns grupos de
mercenários ele não tinha o menor problema em deixar
seus assistentes sozinhos. Aquele grupo não era um
deles. Todos os mercenários ali eram pessoas de mais
longe, que não sabiam nada sobre o Setor Dez além do
fato de que não eram controlados pelos vampiros.
Nara – uma das assistentes – levantou a cabeça e
olhou para Yuri. O mercenário na frente dela se virou
para olhar para ele, também.
Yuri fechou a porta atrás de si e foi na direção deles.
— Ele viveu aqui até oito anos atrás — Nara falou.
Yuri se virou para o mercenário. Ele tinha o cabelo
claro, um rosto genérico o suficiente para não chamar
atenção, e estava vestido com a mistura de jeans e couro
que era o comum entre os mercenários. Nada de
diferente. E nada de familiar, também. Mas, oito anos
atrás, Yuri não tinha chegado ao Setor Dez.
— E por que saiu? — Yuri perguntou.
O mercenário balançou a cabeça.
— Meus motivos foram pessoais. Mas saí por
vontade própria, sem nenhum tipo de problema no setor.
— Sabe que se estiver mentindo vai ser banido
perpetuamente, não sabe?
O mercenário assentiu.
Yuri assentiu na direção de Nara e se afastou, já
pegando seu tablet. Se um dos mercenários tinha saído
do Setor Dez anos atrás, então ele precisava verificar
com Raquel primeiro.
E o grupo daquele mercenário de cabelo vermelho
estava se afastando. Não indo embora – Yuri não tinha
tanta sorte – mas se afastando da porta. Era melhor
assim. Menos chances de acontecer algum "mal-
entendido" por causa deles.
A porta da sede se abriu e Dante saiu.
— Eu cuido disso aqui — elu falou. — Pode ir dar um
jeito na papelada.
Yuri fez um ruído irritado. Por mais que não gostasse
de lidar com os mercenários, verificar as informações de
todos eles era pior ainda e ele não confiava em ninguém
para fazer aquilo no seu lugar. Yuri sabia como os
mercenários funcionavam. E Dante também, mesmo que
elu nunca tivesse sido um deles.
— Você podia cuidar da papelada também — Yuri
resmungou.
Dante riu e balançou a cabeça antes de bater no
ombro de Yuri.
— Só se você for cuidar da parte financeira de lidar
com esse pessoal todo — Dante falou.
Se tinha uma coisa que Yuri odiava mais que a
papelada normal do seu trabalho era lidar com finanças.
Ele não respondeu, só entrou na mansão, ouvindo a
risada de Dante, e foi para o seu escritório, andando
depressa. Quanto antes acabasse com aquilo, melhor.
Seu escritório não era muita coisa: uma sala
pequena, no térreo da mansão, com uma mesa e uma
cadeira. Mais nada. Ele raramente ficava ali e não
precisava de mais que aquilo.
Yuri se sentou na cadeira e abriu o tablet em cima da
mesa. As informações que seu pessoal estava recolhendo
com os mercenários já estavam sendo sincronizadas em
tempo real. Ele não tinha motivo para esperar antes de
começar a filtrar os mercenários.
Os mercenários não tinham nenhum tipo de banco
de dados com informações sobre eles. Na verdade,
quanto menos informações estivessem guardadas,
melhor e mais seguro. Qualquer coisa sobre reputação ou
eficiência era resolvida na base do boca-a-boca.
Depois de ir para o Setor Dez, Yuri tinha feito
questão de se afastar daquele submundo. Não queria se
envolver com os mercenários. Mas ele sempre tinha feito
questão de ter pessoal por perto dos lugares onde os
mercenários se reuniam, para saber sobre o que estava
acontecendo. E Dani também tinha ensinado seu pessoal
a prestar atenção naquilo. Eles tinham o máximo de
informações que podiam.
O que queria dizer que ele sabia que o mercenário
que quase tinha começado uma confusão na porta da
mansão era um bom acréscimo para o setor. As
informações de Yuri diziam que ele tinha sido o
responsável por duas missões contra os vampiros que
haviam dado certo.
Já não bastava Dani confiando na palavra de um
vampiro. Agora ele ia ter que confiar nas informações de
segunda ou terceira mão sobre os mercenários que não
eram da região.
Alguém bateu na porta.
— Está aberta.
A garota que Dani tinha trazido do Setor Seis entrou
na sua sala e parou, olhando ao redor. Como era o nome
dela... Valissa. Um nome diferente o suficiente para ser
um sinal de problemas.
Não que fizesse diferença. Tudo era sinal de
problemas.
— Está procurando alguém? — Yuri perguntou.
A garota assentiu e olhou para ele.
— Você.
Era só o que ele precisava. Não tinha tempo para
cuidar dela agora.
Yuri balançou a cabeça.
— Eu não...
— O mercenário de cabelo meio vermelho — a
garota falou.
Yuri apoiou os braços na mesa. Só havia um
mercenário que podia ser descrito assim naquele grupo.
— O que tem ele?
A garota balançou a cabeça.
— Não deixa ele aqui.
Era coincidência demais – e Yuri não acreditava em
coincidências.
— Ele fez alguma coisa?
— Ainda não.
E a forma como ela estava falando era como se
tivesse certeza que faria alguma coisa se continuasse ali.
Yuri carregou as imagens dos mercenários no seu
tablet e procurou o mercenário que tinha mechas
vermelhas no cabelo. A garota deu a volta na mesa e
parou ao seu lado.
— Ele? — Yuri perguntou, mostrando a imagem.
Valissa assentiu.
— Não deixa ele aqui — ela repetiu.
Yuri não ia deixar. Não depois daquilo, por mais
estranho que tudo fosse. Ele não sabia por que Valissa
estava no Setor Dez e do que ela precisava se esconder,
mas não ia ignorar um aviso como aquele.
E, se a garota ia fazer aquele tipo de comentário...
Ele carregou outra imagem: o mercenário loiro que
tinha morado no Setor Dez ano antes.
— E ele? — Yuri perguntou.
Valissa olhou para o tablet e sorriu.
Ele não sabia se aquilo era algo bom ou mais um
motivo para se preocupar.

Se Dani pudesse voltar no tempo e mudar o que tinha feito, ela


voltaria. O tempo todo, ela sabia que era loucura usar
um vampiro para garantir a segurança do setor, só não
tinha conseguido pensar em outra opção. E ainda não
conseguia. Mas não sabia se teria corrido aquele risco se
soubesse do que sabia agora. Que Amon podia desfazer
um juramento de sangue. E que ela não era tão imune ao
magnetismo dos vampiros quanto tinha pensado. Era a
única explicação para como ela continuava relaxando
com Amon e agindo como se fosse só mais alguém do
seu pessoal.
Ela não podia fazer aquilo. Não podia relaxar. Amon
podia desfazer o juramento a qualquer momento, e então
Dani não teria nada que a protegesse ou que protegesse
o setor – e aquele era o problema. Se fosse só sua vida
em risco ela não se incomodaria. Mas Dani havia
colocado todo o Setor Dez em risco com aquele plano e
era tarde demais para voltar atrás.
Ela encarou a mesma praça onde haviam se
encontrado com a vampira na noite anterior. O único
motivo para Dani estar ali era que Amon não estava
mentindo quando tinha falado que, se quisesse, já havia
tido oportunidades demais para matá-la. Então ela ia
seguir com o que tinham planejado. Não tinha outra
opção. E aquilo queria dizer estar no Setor Seis, perto da
parte dos vampiros da cidade, logo depois do anoitecer.
E Dani não ia pensar no que o fato de Amon ter
avisado que podiam sair da casa segura quando o sol
ainda estava se pondo queria dizer. Ela já sabia que ele
era uma ameaça. Não era à toa que até os vampiros o
temiam. Era quase esperado que ele fosse ser forte o
bastante para poder sair quando o sol estava baixo mas
ainda não era noite.
Amon continuou andando, contornando a praça e
indo na direção de uma das ruas. Dani o acompanhou,
sem falar nada. Ela nunca ia naquela parte da cidade –
era mais seguro, menos chances de alguém a
reconhecer. Pelo menos quando ela era mais nova, as
famílias dos feiticeiros e dos mercadores que
trabalhavam para os vampiros tinham contato entre si,
mesmo em setores diferentes. Por menor que fosse a
possibilidade de alguém ali a reconhecer, Dani nunca
tinha arriscado. Aquilo queria dizer que não sabia nada
sobre como se localizar ali. E, pelo visto, Amon sabia.
A vampira da noite anterior – Melissa – tinha lhes
dado um endereço e um aviso para chegarem o mais
cedo que conseguissem. Ela garantiria a entrada deles
no baile e providenciaria roupas apropriadas, também. E
era bom que Amon tivesse se lembrado daquele detalhe,
porque Dani só havia pensado que não tinha nada que
pudesse vestir numa situação daquelas quando já
estavam combinando detalhes com a vampira. E aquilo
era só mais um lembrete de como ela estava fora da sua
zona de conforto.
Eles continuaram andando pela rua quase deserta.
As pessoas nas ruas não olhavam para os lados e não
prestavam atenção em quem estava por ali. Aquela era a
única vantagem de estarem perto do muro: mesmo
quem trabalhava para os vampiros evitava chamar a
atenção deles. Ninguém ia prestar atenção ou se
lembraria de um casal andando depressa pelas ruas no
começo da noite.
As casas ali eram maiores do que Dani estava
acostumada a ver, com grades altas separando os jardins
pequenos na frente das casas da rua. Jardins. Eles se
davam ao trabalho de fazer alguma coisa crescer à toa,
só para tentarem parecer mais importantes.
Amon parou na frente de uma das casas e empurrou
o portão antes de gesticular para Dani entrar.
A porta da casa se abriu e Melissa saiu.
— Vamos, entrem. Não temos muito tempo.
Amon colocou uma mão nas costas de Dani. Ela
relaxou contra o toque dele por um segundo antes de se
afastar depressa e entrar na casa.
Ela estava prestes a entrar na parte dos vampiros do
Setor Seis. Estaria em um baile da Corte dos vampiros. E
sua única garantia de segurança era um vampiro que
podia desfazer o juramento de sangue que impedia que a
ferisse e que já tinha admitido que ela só estava viva
porque era útil para ele. Era tarde demais para ele se
fingir de cavalheiro.
E Dani não deveria precisar se lembrar de nada
daquilo.
Ela havia passado o dia todo sem falar nada além do
necessário com Amon – o que queria dizer que não tinha
falado nada. Os planos para o baile já estavam feitos.
Tudo estava planejado. Não havia nada a ser dito. E ele
não tinha insistido. Mesmo assim, ali estava ela de novo,
relaxando.
Dani deveria estar preocupada. A única coisa
garantindo que Amon não viraria contra eles era a
vontade dele de se vingar do Setor Oito. Ele estava
interessado demais naquela vingança para trair Dani.
Aquela era a única certeza que ela tinha e Dani era boa
em lidar com pessoas. Sempre tinha sido.
Mas Amon não era uma pessoa. Era um vampiro.
Dani olhou ao redor. A sala de entrada da casa era
grande, quase do tamanho do saguão de entrada da
sede do Setor Seis. Dois sofás estavam encostados em
uma parede e o restante do espaço era uma coleção de
araras cheias de roupas. Certo. A vampira tinha levado a
sério a questão de "roupas apropriadas".
Dani só queria saber qual seria o preço, porque algo
como aquilo nunca seria de graça.
Amon passou por Dani e se sentou em um dos sofás,
se inclinando para trás e apoiando uma perna sobre a
outra de um jeito que conseguia ser ao mesmo tempo
relaxado e arrogante. Considerando a forma como ele
estava vestido, com uma calça escura larga, coturnos e
uma blusa reforçada que era quase um colete, a pose
dele quase parecia um convite, por algum motivo. Era
por causa dos braços. De como ele tinha apoiado os
braços no encosto do sofá, de um jeito que não tinha
como Dani não notar os músculos dele.
Ela não conseguia imaginar o que Amon tinha sido
antes de se tornar um vampiro, mas era óbvio que, o que
quer que fosse, tinha exigido um nível de esforço físico. E
notar aquilo não deveria deixar Dani curiosa. Não. Ela
não deveria nem estar notando aquilo.
Amon sorriu.
Dani desviou o olhar e parou ao lado das primeiras
roupas. Ela não sabia nem dizer os tipos de tecidos que
estavam ali. Alguns deles, ela se lembrava de antes de
precisar fugir. Mas ela sempre tinha sido a pessoa
evitando qualquer coisa formal, não importava quantas
vezes sua avó tentasse arrastá-la. E Dani tinha certeza
de que nunca acharia nenhum daqueles tecidos em
qualquer lugar do Setor Dez.
Melissa fechou a porta da casa e parou no meio do
salão.
— Bom. Vocês chegaram cedo — ela começou. — A
questão agora é: qual a impressão que querem passar?
Boa pergunta. Dani sabia lidar com vampiros – de
preferência se pudesse estar com uma faca ou uma
pistola na mão. Mas se lembrava bem de como era antes
de fugir com Alana. Das explicações da sua avó e das
reclamações do seu tio, de que não deveriam ter que
aprender a lidar com vampiros. E da sua avó insistindo
que, mesmo se elas escolhessem lutar, depois, saber
sempre seria uma vantagem.
Mas saber lidar com vampiros era diferente de
entender como manipular uma Corte.
Ela se virou para Amon. O plano era dele.
— Você me conhece, Mel — ele falou.
A vampira revirou os olhos de um jeito que parecia
humano demais.
— Você, eu sei. Você vai querer entrar naquele salão
de uma forma que não deixe a menor dúvida sobre quem
e o que você é. Mas preciso saber o que vocês vão fazer,
juntos, para achar uma roupa para sua humana.
Dani respirou fundo e soltou o ar com força.
A vampira se virou para ela e estreitou os olhos
antes de assentir de forma seca. Dani não fazia ideia do
que tinha sido aquilo e não ia perguntar.
Amon olhou para Dani.
Seria sua escolha, então. E ela sabia o que
precisavam conseguir ali.
— Quero que eles questionem o que pensam que
sabem sobre o Setor Dez e sobre o pessoal de lá — ela
começou. — Quero que se lembrem que existe um
motivo para só existir um setor controlado por humanos.
Nós não somos presas.
Melissa riu e apontou para uma porta.
— Bom. Mas isso quer dizer tirar essa maquiagem,
para começar.
Sim, porque Dani teria que ser reconhecida.
Ninguém poderia ter a menor dúvida de que era Daniele
Novaes, a responsável pela segurança do Setor Dez, ali.
Dani abriu a porta que a vampira tinha indicado. Um
banheiro.
Ela abriu os armários e começou a procurar um
removedor de maquiagem.
Quando Dani voltou para a sala, com a tatuagem
visível de novo, a vampira já tinha alguns vestidos
separados. Melissa a encarou, sem sair do meio das
araras de roupas, balançou a cabeça e colocou dois
cabides de volta nos lugares.
— Quero sua tatuagem visível — ela falou. — O
efeito disso... Não vamos desperdiçar o que temos.
O efeito de uma tatuagem de uma árvore sem folhas
não seria grande coisa, mas Dani não ia discutir. Aquilo
só teria algum efeito real se alguém soubesse sobre a
sua família. As tatuagens de árvores e galhos eram
quase uma tradição entre eles.
— Não se esqueça que... — Amon começou.
Melissa se virou para ele e apontou para outra porta.
— Tem roupas para você ali. Vá se arrumar e me
deixe fazer o meu trabalho.
Os dois vampiros se encararam. Dani deu um passo
atrás.
A vampira fez um ruído irritado.
— Você tem minha palavra que não vou usar
nenhuma habilidade contra Daniele — ela falou. — Estou
mais interessada em ver como a Corte vai lidar com
vocês do que em qualquer coisa que poderia conseguir
com ela.
Aquilo não era exatamente um cumprimento, mas
Dani estava satisfeita só por não estar sendo chamada
de "sua humana".
Amon se levantou e saiu da sala sem falar nada.
Melissa se virou para os vestidos de novo, como se
nada tivesse acontecido.
— Você é humana, então precisa ser alguma coisa
mais leve.
Dani foi na direção dos sofás e parou. Estava tensa
demais para ficar sentada.
— Mais leve?
A vampira assentiu, sem olhar para ela.
— Você ainda sente calor e cansaço. Para passar a
impressão certa, nada disso pode ser visível. Algo mais
leve, então.
Porque vampiros não sentiam calor – nem frio. Dani
nunca havia pensado em como aquilo fazia diferença em
como se vestiam, mas pensando assim era mais fácil
entender como eles sempre estavam de preto, com
roupas que pareciam qualquer coisa menos boas
escolhas para o calor dali.
E ela podia não ter quase controle nenhum sobre
aquela situação, mas podia ao menos tentar entender o
que estava acontecendo.
— Por que você está fazendo isso? — Dani
perguntou.
A vampira olhou de relance para ela e sorriu.
— Porque quero ver eles queimarem.
Um arrepio atravessou Dani. Melissa era parte da
Corte do Setor Seis e estava falando aquilo. Dani não
conseguia imaginar alguém do Setor Dez falando assim
sobre eles.
A vampira pegou um vestido – panos pretos e cinza
escuro, e a maior parte do vestido parecia feita de um
tecido leve e meio transparente.
Era tecido demais. Seria fácil para qualquer um usar
tudo aquilo para segurá-la. Dani preferia algo que fosse
justo e de algum tecido que esticasse. Era menos
arriscado. Mas ela tinha a leve impressão de que não
encontraria nada assim entre os vestidos espalhados na
sala.
— Esse — Melissa falou.
Dani suspirou, pegou o vestido e entrou no banheiro
de novo. Era muito tecido, sim. O vestido tinha um
suporte para os seus seios e o torso todo era bem
estruturado, ao mesmo tempo em que dava a ilusão de
não ter nenhum tipo de estrutura ali. A parte da frente do
vestido e as alças eram feitas de um tecido mais
brilhante e cinza escuro que descia até o chão. O
restante todo era feito de um tecido preto fino e meio
transparente que estava preso em camadas o suficiente
para não deixar nada que não deveria aparecer ser
visível. E eram painéis de tecido, não uma saia completa.
Se Dani precisasse correr, não teria problemas. Ou
melhor, não teria problemas se conseguisse se entender
com as mangas do vestido, que pareciam ser mais tecido
solto.
Ela saiu do banheiro segurando a frente do vestido
contra o corpo.
— Não sei amarrar isso — Dani avisou.
A vampira estava ao lado dela na mesma hora,
puxando as cinco faixas finas de tecido brilhante de cada
lado do seu corpo e as prendendo nas suas costas.
Melissa fez um ruído irritado e ajeitou as mangas – mais
tecido transparente solto, sim, indo quase até o chão – e
as alças feitas do tecido brilhante até que elas
estivessem no alto dos seus braços e não nos seus
ombros.
— Antes de você reclamar — a vampira começou. —
As alças do vestido vão ceder e subir para o ombro se
você fizer qualquer movimento brusco. Elas não vão te
travar. A saia em painéis é perfeita para esconder armas
nos seus acessórios e agir como se fossem apenas isso.
— Armas nos meus acessórios — Dani repetiu.
Melissa sorriu, mostrando as presas, mas agora
parecia que não tinha sido algo intencional. Ela se
afastou e pegou alguma coisa em uma das caixas
debaixo das araras. Era outra faixa daquele tecido
brilhante, com várias correntes caindo em arcos saindo
dela.
Dani pegou a faixa de tecido. Ela era elástica e mais
firme do que parecia. E a parte central das correntes na
verdade eram uma bainha disfarçada.
Ela encarou a vampira na sua frente. O sorriso de
Melissa ficou mais largo ainda.
— Na sua perna — Melissa falou.
Dani obedeceu e prendeu a faixa de tecido ao redor
da sua coxa. As correntes chamavam atenção, mas não
eram nada diferente. Vampiros tinham uma fixação com
aquele tipo de coisa, por algum motivo. Correntes e mais
correntes de prata, por toda parte. Todas as suas roupas
sempre tinham mais correntes do que fazia sentido,
então aquilo não seria algo que achariam estranho.
Melissa voltou com mais correntes e gesticulou para
Dani levantar os braços antes de parar e balançar a
cabeça.
— Não. Mais que isso vai chamar atenção, porque as
correntes não significam nada para uma humana.
O que queria dizer que tinham algum significado
para os vampiros. E, se não fosse algo que seria útil para
se livrar dos vampiros depois, Dani não fazia questão de
saber o que era.
— E eu vou conseguir entrar nesse baile com uma
faca? — Dani perguntou.
A vampira sorriu enquanto guardava as outras
correntes e puxava outra caixa de debaixo das araras.
— Ah, vai. Você poderia entrar lá coberta de armas e
ninguém faria nada, porque seria uma admissão de que
uma humana pode ser um risco para um vampiro.
Interessante. Pena que não seria tão simples.
— Mas se eu fizer isso também vou ser vista como
uma pessoa assustada, que está cheia de armas porque
não confia que os vampiros vão seguir as próprias leis e
que acredita que está correndo risco — Dani completou.
Melissa assentiu.
— Equilíbrio.
Dani não podia parecer preocupada. Quando
entrasse na cidade dos vampiros, ela precisaria ser uma
humana que sabia que não seria tocada pelos vampiros e
que, se um deles se aproximasse, saberia se defender.
Ela precisava estar completamente segura no seu papel,
porque assim eles teriam motivos para pensar se atacar
o Setor Dez era uma boa ideia. Uma humana não estaria
tão confiante sem um bom motivo, então talvez eles não
soubessem de tudo.
Ela conseguiria fazer aquilo. Já tinha desafiado o
vampiro que todos chamavam de monstro, o convencido
a aceitar um juramento de sangue e feito isso bem o
suficiente para ainda estar viva. Um baile não tinha como
ser muito pior.
— Você consegue fazer sua maquiagem? — Melissa
perguntou.
— Consigo.
Dani podia não usar maquiagem normalmente, mas
tinha uma vida social quando o setor não estava sob
ameaça de ataque. Ela gostava de se maquiar e tinha
ideias sobre o que fazer para combinar com aquele
vestido.
Talvez aquele baile fosse ser mais divertido do que
ela tinha imaginado. Nem que fosse só pela forma como
estava vestida, porque Dani estava gostando da
sensação de se mover naquele vestido. Ele não
incomodava. E ela nunca havia usado nada assim, nem
antes de fugir com Alana.
Só faltava uma coisa.
— Sapatos? — Dani perguntou.
Melissa apontou para uma pilha de caixas debaixo
de outra arara.
— São do seu número. Tenho alguma coisa sem
salto, se preferir, mas...
Dani balançou a cabeça. Usar qualquer coisa sem
salto com aquele vestido seria um crime.
— Salto. Com certeza, salto.
A vampira sorriu e puxou algumas caixas.
— Maquiagem primeiro — ela avisou.
Sim, porque assim que terminasse e escolhesse um
sapato, iriam para a cidade dos vampiros.
Um arrepio atravessou Dani. Ela ia fazer aquilo.
E havia mais uma coisa.
— Como você sabia minhas medidas? — Ela
perguntou.
Melissa se virou para ela e começou a soltar as
amarras do corset que estava usando, como se não fosse
nada demais.
— Peguei na sua mente, noite passada.
Dani engoliu em seco, sentindo o gosto da bile. A
vampira tinha pegado aquelas informações na sua
mente. Sem o menor esforço. Sem Dani saber.
— Não faça isso de novo — ela falou.
Não que falar aquilo fosse adiantar alguma coisa.
Dani não tinha nenhuma forma de parar Melissa se ela
quisesse fazer qualquer coisa.
A vampira a encarou.
— Não vou. Você é muito mais útil para mim como
uma aliada do que como uma marionete.
E Dani não ia falar nada para corrigir aquilo, mas ela
nunca seria aliada de uma vampira.
Amon entrou na sala e parou, encarando Dani. Os
olhos dele escureceram por um instante antes de
voltarem ao normal.
Dani sorriu. Não deveria ficar tão satisfeita assim
com a reação dele. Amon era um vampiro e um vampiro
que podia desfazer o juramento de sangue a qualquer
momento. Ela deveria estar preocupada. Mas não. Estava
satisfeita.
Era óbvio que estava satisfeita. Se Amon tinha
reagido daquele jeito, ela teria algum efeito nos vampiros
da Corte. Era o que precisava fazer.
E não ia pensar em como ele estava vestido.
Definitivamente não ia.
Mas um sobretudo ou o que quer que aquilo fosse,
sem mangas, era um golpe baixo. Dani não precisava
ficar notando os braços de Amon. E não era como se ela
nunca tivesse visto ele usando regatas e camisetas
antes.
Dani respirou fundo e entrou no banheiro de novo.
Ela ainda ouviu a risada baixa de Melissa quando fechou
a porta e começou a tirar os produtos de maquiagem dos
armários.

Entrar no grande salão havia sido mais satisfatório do Amon


imaginara. Aqueles eventos não tinham nenhum tipo de
anúncio de convidados: toda a ideia ao redor do baile era
de que os vampiros ali eram iguais. Anunciar cada um
que chegava seria ir contra aquilo. Mas, mesmo sem
anúncios, todos os vampiros sabiam quando um poder
estava no salão. E todos haviam se virado para a porta
quando ele e Daniele entraram.
E ainda mais satisfatório havia sido a forma como
Daniele havia olhado ao redor, notado todos os vampiros
os encarando, e apenas sorrido antes de colocar a mão
no braço dobrado de Amon. Ela tinha agido como se
estar ali fosse seu direito e ela não tivesse nenhum
motivo para temer – nem a Corte do Setor Seis, nem
Amon.
Mesmo mais de uma hora depois que haviam
chegado, Daniele continuava agindo daquele jeito. Amon
havia pensado que ela seria o ponto fraco do seu plano,
mas estava enganado. Se ele se concentrasse, ouviria os
comentários em voz baixa – porque a Corte estava
falando da humana no seu braço, que agia como se ele
não fosse um perigo.
— Eles realmente não vão se aproximar de você —
Daniele murmurou.
Amon sorriu e a levou na direção de uma das
paredes do grande salão. Um painel de vidro e metal
formando arabescos ia do chão até quase o teto e
deixava ver uma sacada lá fora, mas ele não ia sair. Fazia
questão de continuar no salão.
As pessoas que estavam conversando perto daquele
painel se afastaram depressa, em grupos pequenos ou
casais. Alguns ainda tentaram disfarçar e foram para o
meio do salão, onde vários casais estavam dançando,
mas a maioria não se deu ao trabalho. Não fazia
diferença.
— Eles sabem quem eu sou — ele respondeu, sem se
preocupar em abaixar a voz. Os outros o ouviriam de
qualquer forma. — Sabem reconhecer um monstro.
— Eles são fracos — Daniele falou.
Amon riu quando ela olhou ao redor com uma
expressão que era pura arrogância gelada. Daniele não
estava errada, mas ouvir aquilo vindo de uma humana
não seria nada agradável para a Corte.
Melissa encontrou seu olhar, do outro lado do salão.
Ela tinha entrado logo antes deles e se afastado
depressa. Não seria nenhum segredo que ela garantira a
presença de Amon ali mas, se mantendo afastada, ela
poderia criar a história que quisesse. Provavelmente diria
que havia sido ameaçada ou chantageada de alguma
forma e Amon não se importava com aquilo.
Mas aquele olhar era um aviso. Daniele e ele
estavam em uma linha fina que Amon precisava de
cuidado demais para navegar.
Ele segurou o pulso de Daniele e levantou seu braço.
Ela se virou para ele, devagar, como se aquilo fosse
esperado. Era estranho ver os braços dela assim, sem as
braçadeiras que ela parecia usar o tempo todo. Não só
aquilo, mas o vestido que Daniele estava usando, feito
de tecidos leves demais e quase transparentes, como se
a escuridão estivesse se movendo ao seu redor... Melissa
tinha escolhido bem. Daniele podia não fazer ideia
daquilo, mas eles combinavam, naquele momento.
E ela, naquele vestido, se movendo com aquela
mistura de delicadeza e força... Os vampiros ali não se
esqueceriam de Daniele. Era exatamente o que Amon
queria, mas agora aquilo o incomodava.
Não deveria ser assim.
O pulso dela estava acelerando e não era de medo.
Amon teria sentido, se fosse.
Ele sorriu.
— Em que você está pensando, Daniele?
Ela sustentou seu olhar e não respondeu, mas seu
pulso ficou mais rápido ainda.
Não. Não era possível. Amon estava entendendo a
reação dela de forma errada – mas era a única coisa que
conseguia pensar. Aquilo não era medo. Era antecipação.
Ou talvez... Não. Ela não estaria atraída por ele. Não a
humana que o desafiara e depois o prendera.
Ele abaixou a cabeça e beijou o pulso de Daniele,
deixando que ela sentisse suas presas contra a pele
sensível. Ela respirou fundo, sem tentar se soltar, e sua
pulsação acelerou ainda mais.
Ela estava.
Amon precisava acabar com aquilo enquanto podia.
Antes de Daniele pensar em qualquer outra coisa, porque
ela ainda o estava prendendo com o juramento de
sangue. Havia linhas que Amon nunca cruzaria e, se ela
tentasse fazer aquilo, estaria garantindo sua morte mais
cedo do que deveria.
— Eu não sou chamado de monstro à toa, Daniele —
ele falou. — Não se engane. É isso que eu sou.
Ela olhou para onde ele ainda estava segurando seu
braço e então o encarou.
— Eu sei. Passei tempo demais ouvindo as histórias
sobre o monstro. E espero que sejam reais.
Ela estava falando a verdade. Amon estava perto o
suficiente para sentir se fosse uma mentira – e não era.
Amon a soltou e respirou fundo. O cheiro da fumaça
era mais forte do que ele se lembrava. Havia ervas
cerimoniais sendo queimadas em todas as tochas
espalhadas pelo salão e elas eram parte do motivo para
as chamas serem prateadas. Parte do motivo, mas não
todo.
E Amon não sabia lidar com alguém que estava
esperando o monstro mas não tinha medo. Não. Não era
exatamente aquilo. Daniele tinha medo, sim. Ele sabia
muito bem. Mas era diferente. Não era o medo
paralisante dos vampiros do Setor Oito ou de todos os
outros, antes, que o haviam controlado.
— Você já esteve em algum baile antes — ele
comentou.
Daniele encarou as pessoas dançando, como se
aquele momento não tivesse acontecido.
Talvez não tivesse. Talvez, para ela, aquilo não
quisesse dizer nada.
— Minha família era próxima da Corte, onde cresci —
ela contou.
Aquilo era resposta o suficiente. Mesmo se nunca
houvesse sido convidada, Daniele teria sido ensinada
sobre como lidar com a Corte. Interessante. Amon nunca
teria imaginado que ela vinha de uma família assim, pela
forma como ela agia normalmente. Mas não tinha como
duvidar.
E era interessante que alguns vampiros estivessem
prestando mais atenção ainda em Daniele.
Especialmente na sua tatuagem – a árvore com galhos
secos subindo pelo seu braço direito, pelo seu ombro e
que cobria uma boa parte do colo do peito. Aquilo tinha
algum significado.
Ele não falou mais nada. Eles ainda eram o maior
foco da atenção das pessoas no salão, até mesmo de
quem estava dançando, mas Amon não precisava falar
nada. Estarem parados, em silêncio e parecendo
completamente confortáveis ali, era outro tipo de
mensagem. Era o mesmo que dizer que não se
importavam. Aquilo, sobre ele, não era novo. Mas uma
humana que parecia não se importar por estar cercada
de vampiros... Aquilo teria exatamente o efeito que ele
esperava, depois.
A música mudou. Agora era algo que tentava parecer
antigo, de antes da magia. Uma mistura do que se
lembravam com o que havia vindo depois.
Amon ofereceu uma mão para Daniele.
— Sabe dançar?
Ela deu um meio sorriso antes de colocar a mão na
dele.
Amon sorriu e inclinou a cabeça antes de ir para o
meio do salão, a levando. Daniele o acompanhou, sem o
menor sinal de medo ou hesitação. Aquilo não deveria
ser uma surpresa, mas ainda era.
Se ele tivesse tentando encontrar uma pessoa
perfeita para aquele plano, não teria conseguido
encontrar alguém melhor que Daniele.
Amon colocou uma mão na cintura dela. A música
era uma mistura de um ritmo antigo, com uma dança
estruturada, e algo mais atual, rápido e marcado. Não
era algo lento – mas era algo para ser dançado próximo
demais. Sempre era assim, nos bailes dos vampiros,
tanto os que eram fechados quanto os abertos aos
humanos. Proximidade, pele contra a pele... Aquele era o
padrão. E Daniele sabia daquilo.
Ela colocou uma mão no seu ombro e Amon os girou.
Havia um espaço ao redor deles, de novo, mas os outros
não parariam de dançar. Fazer aquilo seria uma ofensa
ao príncipe do Setor Seis, mesmo que ele não estivesse
no salão.
Eles se moveram, acompanhando o ritmo da música,
e aquilo era mais simples do que Amon imaginara.
Daniele se movia contra ele, com ele, de uma forma que
parecia quase ensaiada. Eles encaixavam, mesmo que
não tivesse tido tempo de falar nada sobre o que
aconteceria no baile.
Amon girou Daniele. Ela riu, com os tecidos leves do
vestido girando ao seu redor como uma onda de
escuridão.
— Alguém deveria saber — um dos vampiros
comentou, alto, fora da área onde as pessoas estavam
dançando.
Os comentários estavam deixando de ser discretos,
então. Finalmente.
— Para quê? — Outro vampiro perguntou. — Era
melhor deixar ele lá.
Daniele olhou na direção do grupo de vampiros
conversando.
Amon segurou o queixo dela e fez com que olhasse
para ele de novo. Os vampiros estavam falando alto
porque queriam ser ouvidos. Ela não precisava olhar para
eles e lhes dar a atenção que queriam.
— Se alguém soubesse, podia ter ido lá e dado um
jeito nele — uma vampira falou.
— Teria sido melhor que...
Amon girou Daniele de novo, se afastando de onde o
grupo de vampiros estava. Eles não importavam.
Nenhum deles ali importava, a não ser como marionetes
de um conflito que não sabiam que aconteceria.
— ... não iam jogar uma arma fora.
Daniele apertou seu braço com força.
Amon relaxou a mão que estava na cintura dela.
— Eles têm tanto medo que teriam te destruído
enquanto estava nas ruínas — Daniele murmurou.
Amon assentiu. Aquilo não era uma surpresa. Ele
sabia o que havia feito da última vez que estivera livre.
Mas aquilo tinha sido antes. Ou melhor, havia sido
exatamente quando a magia havia voltado. Quando o
poder era algo novo – não o poder em si, para ele,
porque Amon já era um vampiro na época. Mas a
quantidade de poder. Aquilo havia sido o suficiente para
ele enlouquecer.
Amon não tinha certeza de quanto tempo havia se
passado entre o antes e quando ele recuperara a
consciência. Mais tempo do que ele gostaria. Tempo mais
que o suficiente para que ele tivesse sido usado por mais
de uma Corte e para o ciclo de ser repassado com
juramentos de sangue se estabelecer.
Era óbvio que, se soubessem que ele estava em
estase, qualquer outro vampiro teria aproveitado para
destruí-lo. Eles não teriam corrido o risco de que ele
quebraria outro juramento de sangue.
Mas Daniele havia arriscado. Uma humana, que
sabia que não tinha nenhuma chance contra um vampiro,
e ela havia arriscado, mesmo assim, ao invés de só
destruir uma ameaça. E estava ali, com Amon. Uma
humana, sozinha em uma Corte, e ela tinha menos medo
dele do que os estúpidos pelo salão. Aquilo era o
suficiente para fazer qualquer um ali questionar o que
sabiam sobre os humanos do Setor Dez. Pelo menos, era
o que Amon esperava.
— Isso não te incomoda? — Ela perguntou.
Amon riu, seco. Se incomodar não era uma opção
para ele. Aquilo era apenas um fato.
— Eles não são nada, Daniele.
Ela levantou as sobrancelhas e o acompanhou
quando Amon girou, de novo.
As pessoas ao redor estavam prestando atenção
neles, da mesma forma que ele estava prestando
atenção no que falavam.
— Nenhum dos vampiros aqui se lembra de como o
mundo era antes. Eles pensam que isso, aqui e agora, é
tudo. Mas é uma fração do que era — Amon falou. — Eles
não me incomodam, porque eu sei que são apenas
crianças que pensam demais sobre si mesmas.
Daniele sorriu.
— Antes? — Ela perguntou.
Amon mostrou as presas. As pessoas mais perto dos
dois se afastaram depressa, sem nem tentar disfarçar o
que estavam fazendo.
— Antes — Amon repetiu. — Antes da magia e do fim
do mundo. Os vampiros aqui são crianças brincando,
mais nada.
Daniele tremeu e ele resistiu à vontade de deixar um
pouco do monstro escapar. Ele queria saber a reação
dela quando visse quem ele realmente era. Se
conseguiria controlar seu medo como sempre fazia,
ficando naquela linha de um desafio que só existia
porque ela respeitava o que ele era, ou se fugiria,
também.
Mas não ali. Não na Corte do Setor Seis.
— Se você está tentando me assustar, vai ter que
fazer melhor que isso — Daniele falou.
Amon riu. Sua voz ecoou de forma artificial antes do
som morrer. E, se antes eles tinham um espaço vazio ao
seu redor, a risada havia sido o suficiente para
praticamente esvaziar o salão e os deixar em uma ilusão
de privacidade.
Ilusão, porque Amon sabia que a Corte estava
acompanhando cada movimento deles.
Ele segurou a mão da humana e a levou aos lábios.
Daniele o encarou, como se aquilo fosse algo casual
entre eles.
Amon beijou as costas da sua mão.
— Se estivesse tentando te assustar, você não
estaria parada aqui, agora.
Ou talvez estivesse. Talvez Daniele fosse ser a
pessoa que não fugiria, mesmo que fosse apenas uma
humana.
Ou talvez ela ainda estivesse ali apenas por ser uma
humana e não saber do que ele era capaz.
Alguém começou a bater palmas, devagar. A música
parou. Amon se virou na direção do som. O príncipe do
Setor Seis finalmente tinha descido para o salão. Amon
não se lembrava do nome dele e não se importava. Era o
mesmo vampiro da época da guerra contra o Setor
Quatro. O que havia tentado negociar o juramento de
Amon e que desistira ao perceber que Amon poderia ter
sido um príncipe.
— Então as lendas caminham entre nós — o príncipe
falou.
Amon encarou o outro vampiro. O príncipe estava
passando a imagem perfeita: todo de preto, com
correntes atravessadas nas suas roupas e uma capa que
deveria ser ridícula naquela parte do mundo, mas era
parte do esperado de um vampiro.
E as marcas de poder nas mãos do príncipe estavam
visíveis. Amon sorriu. Para ele, esconder as marcas exigia
um esforço consciente. Ele não tinha se dado ao
trabalho, ali. Mas Amon sabia que não era assim para o
príncipe. Se as marcas dele estavam visíveis, era porque
ele queria usar alguma das suas habilidades. Ele temia
Amon, também.
Daniele parou ao seu lado. O príncipe a encarou.
Não. Encarou a tatuagem dela. Amon estava certo: ela
tinha algum significado.
— Não vai apresentar sua convidada? — O príncipe
perguntou.
Amon sorriu de um jeito que era uma ameaça,
estendendo uma mão. Daniele olhou de relance para ele
e deu um meio sorriso antes de colocar a mão na dele.
Ela era perfeita.
— Daniele Novaes, do Setor Dez — Amon falou. —
Tenho a honra de estar trabalhando com ela.
O príncipe encarou Daniele de novo.
— Faz tempo que não temos contato com ninguém
do Setor Dez. Mas, se veio aqui para negociar, esta não é
uma boa noite.
Ela sorriu.
— Não temos interesse em negociar com vampiros.
O príncipe inclinou a cabeça.
— Não? Mas me lembro de relatórios sobre os
negócios do Setor Dez com os nossos mercados. Estava
errado?
Daniele deu uma risada.
— De forma alguma. Mas estávamos negociando
com mercadores humanos. Sempre vamos estar abertos
a negociar com eles.
Mas não com os vampiros. Ela não precisava falar
aquilo em voz alta.
As marcas nas mãos do príncipe ficaram maiores e
mais escuras e ele deu um passo na direção deles.
Amon sorriu. O príncipe parou e o encarou.
— Daniele é minha convidada — Amon murmurou. —
E vai ser tratada como tal.
O que queria dizer que um ataque a ela seria visto
como um ataque a ele e Amon responderia de acordo.
Um sino grave soou, e depois mais outro.
O príncipe continuou encarando Amon por alguns
segundos antes de se virar e se afastar.
Daniele respirou fundo e soltou o ar devagar. Amon
sabia que ela não estava tão calma quanto parecia, mas
mais ninguém ali notaria aquilo. Só saberiam que uma
humana havia desafiado seu príncipe, na linha perfeita
entre um comentário respeitoso e uma ofensa.
O Setor Oito saberia do que tinha acontecido ali
antes do amanhecer. Amon era capaz de apostar
qualquer coisa naquilo.
Os sinos soaram de novo, mais fortes, e os vampiros
se espalharam ao longo das paredes, deixando o centro
do grande salão vazio. Quatro vampiros entraram,
usando túnicas pretas com capuzes escondendo seus
rostos. Eles estavam segurando os sinos e os tocando
naquele ritmo que parecia ressoar por todo o corpo de
Amon.
Uma fila de cinco humanos entrou depois dos
vampiros. Três homens e duas mulheres, todos
completamente nus. Eles não estavam presos de
nenhuma forma visível, mas a compulsão neles não os
deixaria escapar.
Amon tinha se esquecido daquilo. Nem todas as
Cortes exigiam oferendas, mas o Setor Seis ainda fazia
aquilo, especialmente nas luas de caça. Como aquela.
Ele apertou a mão de Daniele. Ela não podia reagir.
Amon tinha uma boa ideia do que fariam com aquelas
pessoas, mas ela não podia fazer nada. Já era tarde
demais para os humanos.
— Nos reunimos nesta noite para celebrar mais uma
lua de caça — o príncipe começou. — Mais um ciclo de
prosperidade para nossa Corte. Que o sangue derramado
nesta noite seja uma promessa do futuro.
Um dos vampiros encapuzados materializou uma
taça cerimonial enorme e parou na frente do primeiro
humano. Outro dos vampiros levantou o braço do
humano e fez dois cortes no seu pulso. O sangue
escorreu e foi recolhido na taça cerimonial.
Daniele apertou a mão de Amon de volta, com mais
força do que ele esperava.
Estava quase acabando. Eles só precisavam esperar
até a cerimônia e depois poderiam desaparecer.
Daniele respirou fundo e soltou o ar devagar de
novo, antes de relaxar o aperto na sua mão. Amon
resistiu à vontade de sorrir. Vários dos vampiros estavam
olhando para ela – a única humana ali que não era uma
oferenda – e eles não veriam nada. Daniele não reagiria.
OITO

Dani respirou fundo e se concentrou em não vomitar.

Cinco pessoas. Cinco humanos. E eles tinham sido


mortos como se não fossem nada, sem resistir. E as taças
haviam passado entre os vampiros de uma forma que ela
não queria se lembrar.
Amon segurou o alto do seu braço. A pele dele
estava mais gelada que o vento da madrugada.
Madrugada. Mal tinha passado da meia noite e o que
ela tinha visto naquele salão...
Amon apertou seu braço e a puxou para andar mais
depressa.
— Quase lá — ele murmurou.
Dani respirou fundo de novo e o acompanhou. Não
podia reagir. Eles ainda estavam sendo observados. Cada
passo deles estava sendo analisado pelos vampiros e o
que eles vissem ia decidir suas reações, depois. Ela não
podia lhes dar nenhuma fraqueza, especialmente depois
de ter parado na frente do príncipe do setor com sua
tatuagem à mostra.
Seu único consolo era que haviam saído do salão
assim que as taças começaram a ser passadas. Ela não
queria saber o que iriam esperar dela se ainda estivesse
lá. E não queria pensar em qual seria sua reação se
Amon tivesse aceitado uma das taças. Dani tinha
pensado que o pior de lidar com um vampiro seria o
risco, mas não. O pior era aquilo. Era imaginar que, se
tivessem continuado lá, Amon teria bebido junto com os
outros. E que depois Dani voltaria para a casa segura
com ele, como se não fosse nada demais.
Não. O pior era ter visto os humanos. Com certeza,
os humanos. Mas ela queria tirar aquilo da sua mente.
Eles desceram uma escada. Ela parecia não ter fim e
Dani não se lembrava de ter subido por ali quando
chegaram. Mas, antes, ela estava mais preocupada em
tentar se lembrar de tudo o que sua avó falava sobre
como agir entre os vampiros da Corte.
O vento frio bateu nas costas de Dani e ela ouviu
algo vindo mais de longe. Pessoas falando juntas, alguma
coisa que parecia um cântico, ela não tinha como ter
certeza. Mas era capaz de apostar que aquilo estava
vindo do salão.
Dani parou e engoliu em seco, sentindo o gosto da
bile. Ela tinha ficado parada, sem fazer nada, enquanto
os vampiros matavam aquelas pessoas. Ela tinha
assistido...
Amon parou na sua frente, perto demais e ainda
segurando seu braço.
— Qual é o problema? — Ele perguntou.
Tudo. O mundo estava errado. O que permitia que os
vampiros fizessem aquilo sem nenhuma punição.
Dani respirou fundo e balançou a cabeça devagar.
— Eles mataram os humanos como se...
Amon segurou o queixo de Dani e a encarou. Ela não
tentou desviar o olhar.
— Aqueles humanos pediram para ser transformados
— ele murmurou. — Todos os sacrifícios da lua de caça
são oferendas. Eles estavam lá porque queriam, sabendo
o que ia acontecer.
Dani não sabia se saber aquilo deixava as coisas
melhores ou piores, mas ela não podia continuar parada
ali.
Ela assentiu. Amon a soltou e ofereceu uma mão.
Dani a aceitou.
Eles continuaram descendo a escada depressa, até
chegarem nos jardins que cercavam o castelo. Tinha
vampiros ali, também, espalhados em grupos como
dentro do salão. Aqueles eram os vampiros que eram
moradores do setor, mas não eram parte da Corte. Dani
quase tinha se esquecido que havia aquela hierarquia.
Um grupo de quatro vampiros parou no caminho que
levava para a saída dos jardins.
Era óbvio que não seria tão simples.
Uma vampira sorriu para Dani, girando uma corrente
entre os dedos. Ela seria um problema. E Dani estava
com aquele vestido que era quase uma armadilha. Não
importava o quanto ela tivesse achado o vestido perfeito
para o salão, ele seria uma desvantagem ali.
— Estão bloqueando o caminho — Amon falou.
A vampira olhou para ele e inclinou a cabeça. Ela se
movia daquele jeito dos vampiros antigos, que não
parecia que havia um entre os movimentos. Primeiro
estava olhando para Amon, e depois sua cabeça estava
inclinada. Dani tinha visto aquilo mais vezes do que
gostaria, quando estava fugindo com Alana, e nunca era
um bom sinal.
— Ainda é cedo — um dos vampiros falou. — Não
pensamos que alguém da Corte iria embora tão
depressa.
— As oferendas mal começaram — a vampira
murmurou.
— Mas o grande Amon trouxe uma oferenda para nós
— outro vampiro comentou.
Era óbvio que sabiam quem Amon era. E era óbvio
que veriam Dani como presa.
Ela soltou a mão de Amon. Se precisassem reagir,
não queria perder nem meio segundo tendo que se
soltar.
— Estão bloqueando o caminho — Amon repetiu.
Só aquilo, sem mudar o tom, sem falar mais alto,
nada.
As marcas de poder nas mãos dos vampiros
escureceram e cresceram de uma vez.
Amon sorriu. Os vampiros se afastaram para os lados
do caminho, depressa.
Aquilo era muito prático. A fama dele tinha suas
vantagens.
Eles continuaram a andar. Dani sentiu o olhar da
vampira, pesado na sua nuca, mas ela estava do outro
lado. Se tentasse alguma coisa, Amon estava entre elas.
Mas havia três vampiros parados bem ao lado de onde
Dani teria que passar.
Eles não iam atacar. As leis dos vampiros proibiam.
Ela ia tentar confiar naquilo.
— Talvez ele seja a oferenda, na verdade — um dos
vampiros falou. — Faz mais sentido com a história dele.
Dani não fazia ideia de o que aquilo queria dizer,
mas era um insulto. E, pela forma como Amon tinha
ficado tenso ao seu lado, era um insulto que tinha
acertado seu alvo.
Ela tinha uma linha fina que precisava andar, sim.
Mas aqueles vampiros não eram parte da Corte. E não
eram jovens.
Dani puxou sua faca e se virou de uma vez,
passando a lâmina pela garganta de um deles. Se os
vampiros não insistissem em sempre subestimar os
humanos, ela nunca conseguiria fazer alguma coisa
como aquilo. Mas eles tinham imaginado que ela não
faria nada e aquilo havia lhe dado tempo o suficiente.
Dani sorriu e virou as costas para o vampiro antes de
continuar a andar junto com Amon, ainda com a faca na
sua mão.
Outro vampiro gritou e o que ela tinha cortado o
pescoço fez um ruído gorgolejante.
— Assim ele pelo menos vai ficar calado até sairmos
daqui — ela comentou.
Amon olhou para trás.
— Vai, e seus amigos vão continuar com ele — ele
falou. — A menos que queiram que esse assunto seja
levado diante da Corte.
Eles não iam querer aquilo, porque teriam que
admitir que uma humana havia conseguido atacar um
deles. Que Dani poderia ter causado muito mais estrago,
se quisesse, antes que conseguissem reagir. Eles
pareceriam fracos.
Mais ninguém se aproximou deles até saírem do
castelo.
Dani respirou fundo e soltou o ar devagar. Amon
esticou uma mão.
— Sua faca.
Ela entregou a faca.
Amon limpou a lâmina suja de sangue na sua calça e
a devolveu para Dani. Ela a colocou de volta na bainha.
— Imaginei que eles estivessem baixo o suficiente na
hierarquia para isso não ser um problema — ela
murmurou.
Amon assentiu e segurou o braço dela antes de
começar a andar depressa, de novo. Um arrepio
atravessou Dani. Eles ainda estavam na parte dos
vampiros da cidade, mesmo que tivessem saído do
castelo. E, mesmo se já estivessem na parte humana:
não estariam seguros até estarem no Setor Dez.
— Eles não vão ser um problema — ele confirmou.
Dani não falou nada enquanto eles continuavam a
andar. Talvez os saltos não tivessem sido sua melhor
ideia, mas pelo menos as ruas daquela parte da cidade
eram bem cuidadas. Ela não ia enfiar o salto em nenhum
buraco. Quando saíssem dali, teria que pensar em
alguma coisa.
Dani deveria ter pegado a moto. Ela tinha desistido
daquilo porque não conseguiriam entrar no Setor Seis
sem serem notados se estivessem nela. Mas talvez o
risco tivesse valido a pena. Teria sido melhor que estar
andando pelas ruas desertas da cidade dos vampiros,
com aquela sensação gelada de que estava sendo
observada. Caçada.
Ela precisava de uma distração.
Não. Ela precisava de mais informações, também.
Unir o útil ao agradável.
— O que aquele vampiro quis dizer? — Ela
perguntou.
Amon se virou para ela de um jeito que era quase
como aqueles vampiros tinham se movido. Tão depressa
que ela não conseguia ver o movimento entre um ponto
e outro.
— E o que isso te interessa?
Outro arrepio atravessou Dani, mas não tinha nada a
ver com o vento ou com a sensação de estar sendo
observada.
Ela não estava errada. Aquele comentário tinha sido
um insulto e havia acertado o alvo.
Dani deu de ombros.
— Interessa saber o que esperar e ter uma ideia de
como eu posso responder quando falarem algo assim de
novo.
Porque falariam. Ela tinha certeza. Os vampiros
tinham medo de Amon, sim, mas aquilo só queria dizer
que não o enfrentariam de forma direta. Palavras
raramente eram diretas.
Alguém riu, atrás deles. Dani parou e olhou ao redor,
depressa. Não era um som natural. Era agudo demais,
com um tom que não estava saindo de nenhuma
garganta humana ou que já havia sido humana. Era algo
quase animal e ao mesmo tempo maníaco. E estava
ecoando de um jeito que também deveria ser impossível.
Amon puxou Dani na direção de outra rua. Ela quase
precisava correr para acompanhá-lo, mas não ia falar
nada. O que quer que aquele som fosse, não era um bom
sinal. E era pior ainda porque Dani não fazia ideia do que
podia ser. Ela pensava que conhecia a maioria dos
poderes dos vampiros, mas aquilo...
A janela de uma casa do outro lado da rua se
estilhaçou. Dani deu um pulo no lugar, mas Amon não
parou. As marcas de poder nas suas mãos estavam mais
escuras e mais largas, mesmo que Dani não fizesse ideia
de o que ele estava fazendo.
Outras janelas se quebraram, bem para a frente de
onde estavam.
A risada soou de novo.
Um portão se abriu e caiu, com o ferro retorcido.
Outro só se abriu e ficou balançando, mesmo que não
estivesse ventando.
Um arrepio atravessou Dani. Amon estava fazendo
aquilo, por algum motivo. Ela não conseguia entender
como destruir as casas assim podia ser uma boa ideia,
mas não ia discutir. Não era o plano dela, não era um
território onde ela sabia o que esperar.
Aquele plano todo tinha sido loucura. Ela deveria ter
prestado mais atenção quando Yuri estava falando de
todas as formas como aquilo podia dar errado.
Se bem que Dani também tinha pensado na
possibilidade de serem caçados ali.
Outro portão se abriu. Amon puxou Dani para dentro,
abriu a porta da casa e entrou.
— É mais fácil esperar passarem — ele avisou. —
Não vão entrar nas casas aqui. Quando estiverem longe,
nós saímos.
Ela parou logo na entrada da sala. Amon fechou a
porta atrás deles, sem fazer ruído.
— Como? — Dani perguntou.
Porque um vampiro não podia entrar em uma casa
sem ser convidado – a menos que aquilo não valesse
para casas de outros vampiros. Mas Amon não tinha
entrado em qualquer casa. Ele havia escolhido.
Ele parou ao lado da janela, olhando para fora.
— Eu disse que tinha meus contatos.
Sim. Dani só não tinha imaginado que "ter contatos"
queria dizer invadir uma casa.
Ela não ia perguntar. Já tinha abusado da sorte vezes
demais naquela noite.
Amon se virou para ela.
— Os vampiros no castelo — ele começou. — Se
você realmente quer saber o que queriam dizer...
— Eu quero — ela respondeu, depressa.
Amon soltou o ar de uma forma que conseguia
parecer quase irônica.
— Eu sou uma arma. Sempre fui uma arma.
Dani levantou as sobrancelhas. Ela não esperava que
ele fosse responder, mas todo mundo sabia daquela
parte.
Amon balançou a cabeça.
— Não como uma pessoa, mas como um objeto a ser
passado de Corte em Corte, mandado para onde é
necessário, sempre preso.
Ele esticou um braço. As marcas de poder na sua
mão desapareceram e outras marcas apareceram,
girando ao redor do seu antebraço e subindo,
emaranhadas, como se fossem uma teia. Não. Como se
fossem espinhos. Galhos de algo cheio de espinhos, se
prendendo na pele dele.
Dani passou as mãos nos braços. Ela tinha tido a
impressão de espinhos contra sua pele naquele dia,
quando Amon tinha feito o juramento de sangue. Mas
tinha sido algo fraco, distante. Ela tinha pensado que
fosse só aquilo: uma sensação. A forma como ela estava
interpretando o poder e mais nada.
Mas, olhando para o braço de Amon... Não era uma
sensação. Era algo literal.
Os espinhos subindo pelo braço dele eram muito
mais do que ela tinha sentido. Algumas marcas estavam
mais escuras, outras tão apagadas que quase pareciam
sombras... Porque eram de juramentos mais antigos.
Todos os juramentos de sangue que Amon havia sido
forçado a fazer, antes, e que tinham sido repassados
sempre que um novo juramento era feito, com mais
galhos de espinheiro se prendendo ao redor dele.
— Todos os juramentos de sangue — Amon falou. —
Um depois do outro, sempre preso, porque as Cortes não
podiam correr o risco de me ter livre.
Dani tinha feito a mesma coisa. Exatamente a
mesma coisa. Havia oferecido o juramento para usar
Amon como uma arma, de um jeito que sabia que ele
não tinha como recusar. Ela não fazia a menor ideia de
nada daquilo, não tinha como saber nada sobre o
passado de Amon, mas aquilo não mudava o que ela
tinha feito.
Os espinhos desapareceram do braço de Amon.
— A última vez que eu estive livre de um juramento
de sangue foi antes da magia voltar para o mundo,
Daniele.
Alana ia matar a prima. Isso se o plano louco dela não a matasse
antes. O que Dani tinha na cabeça para pensar que usar
um vampiro era uma boa ideia? Elas tinham passado dois
anos inteiros fugindo deles. Conheciam os riscos melhor
que ninguém ali. E, mesmo assim, Dani tinha acordado
um vampiro que era perigoso o suficiente para ter sido
abandonado depois da guerra, décadas antes.
Se bem que aquilo era a cara de Dani. Ela era a
pessoa das ideias loucas. E Alana conhecia a prima o
suficiente para ter certeza que, se falasse com ela, Dani
teria resposta para qualquer coisa que ela questionasse.
Ela teria pensado em todas as possibilidades.
Claro que tinha pensado nas possibilidades. Dani
tinha ido atrás de Alex. Depois de tudo o que tinha
acontecido quando estavam juntes... Não importava o
tanto que se gostassem, Dani e Alex não funcionavam
juntes. Simplesmente não funcionavam. Alguém sempre
saía mal. Quando terminaram, Dani havia passado duas
semanas praticamente sem falar com ninguém e todos
ficaram esperando a notícia de que Alex ia preferir ir
embora do setor do que ter que ver Dani de novo. Por
algum milagre não tinha chegado naquele ponto.
E Dani tinha pedido ajuda de Alex para acertar
aquele plano, depois de meses fazendo questão de ficar
o mais longe possível delu.
Na verdade, aquilo era parte do problema: Dani tinha
contado o que estava planejando para Alex, que nunca
aceitava nada das loucuras dela. Mas Alana tinha
precisado discutir com Raquel para descobrir o que
estava acontecendo e por que Dani não aparecia em
casa já fazia dias. E aí, para piorar, Alana tinha recebido
ordens para não se aproximar da casa segura onde Dani
estava.
Ela entendia a lógica. Dani estava correndo um risco.
Alana não precisava se arriscar junto. Não que ela não
fosse ter feito exatamente aquilo sem uma ordem direta
de Raquel, mas ela entendia. E não era louca de ir contra
uma ordem de Raquel.
Alana entrou no seu banheiro e encarou a banheira
quase cheia. Quando tinham chegado no Setor Dez, ela
havia escolhido aquele quarto justamente por causa da
banheira. E ela era um caso de emergência. A forma que
Alana tinha de relaxar quando nem ir para as partes mais
afastadas do setor e ficar sozinha entre as plantas era o
suficiente. Ficar sabendo do plano de Dani
definitivamente merecia ser considerado como um caso
de emergência.
Dani tinha contado o que queria fazer para Alex.
Alex. E não tinha confiado em Alana o suficiente para
falar nada. Claro que não tinha confiado. Dani só
conseguia ver Alana como "Nana". Como a prima mais
nova que ela sempre tinha protegido, desde crianças,
porque Alana não gostava de brigas. Dois anos nas terras
de ninguém não haviam sido o suficiente para mudar a
visão de Dani, mesmo que Alana tivesse feito tanto
quanto ela para conseguirem sobreviver.
Ela não ia ficar pensando naquilo. Tinha voltado para
o quarto para tentar relaxar. Não precisava ficar se
lembrando que Dani tinha acordado um vampiro e o
prendido com um juramento de sangue. Ou que estava
em um baile dos vampiros, no Setor Seis, sozinha.
Alana tirou as roupas e entrou na banheira. Se ela
precisasse dizer uma coisa que sentia falta de antes da
sua avó morrer e os vampiros irem atrás do seu pai, era
aquilo. O racionamento de água que era o normal dos
setores não existia para as famílias que trabalhavam
para os vampiros. Ela havia crescido tendo tudo aquilo
sem saber que era um luxo.
Ela respirou fundo e tentou se concentrar na
sensação de estar na água. Só aquilo e mais nada. Alana
não ia se preocupar. Não ia se irritar, porque não
adiantava nada. Era exatamente o que havia falado para
Valissa: era mais fácil deixar que a subestimassem.
Só seria melhor se Alana conseguisse ignorar aquilo.
Não conseguia e sabia que não adiantava tentar, porque
no fim das contas era tudo culpa sua. Não
necessariamente dela, mas da sua família e do seu
poder. Do seu bisavô que tinha aceitado trabalhar para
um vampiro e envolvido a família toda naquele mundo.
Do seu pai, que tinha pensado que desafiar o príncipe do
setor era uma boa ideia e que aquilo não teria
consequências.
Mas pensar naquilo não ia adiantar nada, também,
porque ela não ia mudar o passado.
— Na minha experiência, não é muito saudável
deixar uma bruxa com esse tipo de humor.
Alana se virou. Um vampiro estava sentado na janela
do outro lado do banheiro. Não. Não era "um vampiro".
Era Lorde Rafael. Sentado na janela do seu banheiro e
olhando para fora.
Ela afundou mais na água. As folhas da samambaia
ao lado da janela aberta farfalharam de leve. As vinhas
de filodendro se espalhando pelos suportes perto do teto
tremeram, se soltando. Alana não ia atacar sem uma
provocação direta. Não podia. Fazer aquilo seria declarar
guerra. Mas, se ele se movesse um centímetro que fosse
para dentro do banheiro...
— E aparecer de surpresa no banheiro de uma bruxa
de mau humor é saudável? — Ela perguntou.
Lorde Rafael riu, baixo, sem olhar para dentro.
Ótimo. Era bom mesmo ele continuar sem olhar, porque
a água não ia esconder muita coisa.
Alana encarou as costas dele. Do sobretudo dele, na
verdade. Quem usava um sobretudo naquele clima? Um
vampiro, óbvio, porque nada podia atrapalhar a imagem
que os humanos tinham dele. Nem algo tão simples
quanto se vestir de acordo com o clima.
Ele não falou mais nada. Só continuou sentado na
janela, olhando para fora, como se aquilo fosse algo
perfeitamente normal.
Alana fechou uma mão com força, debaixo da água.
Era tentador demais aproveitar a chance de gastar a sua
frustração, mas ela não estava lidando com um vampiro
qualquer. Lorde Rafael era um dos príncipes. Um dos
vampiros que governava um setor, e justamente o
príncipe do Setor Um. O vampiro que tinha autoridade
sobre todos os outros da região. Ela precisava medir
qualquer coisa que fizesse.
Mas aquilo só deixava aquela mensagem dele mais
interessante. Ele era o vampiro mais poderoso da região,
e também era o único que não havia tentado forçá-la a
aceitar sua proposta. Ele podia ter feito aquilo e teria
sido o fim. Simples assim. Ao invés disso, ele estava lhe
dando uma escolha.
Era uma armadilha. Alana tinha certeza que era.
Mas, mesmo assim...
— Sem querer me intrometer — Lorde Rafael
começou. — Qual o motivo disso?
Sem querer se intrometer, mas já se intrometendo.
Não era o suficiente ele estar ali sabendo que não era
bem-vindo. Mas Alana não podia nem dizer que ele
estava quebrando as leis dos vampiros, porque havia
dado um convite para ele antes, mesmo que não fosse
intencional.
Alana suspirou. Deveria estar mandando ele embora
dali – do mesmo jeito que deveria ter queimado aquela
mensagem depois da noite em que ele tinha aparecido
no seu quarto.
Talvez a loucura fosse de família.
— Todo mundo insiste em pensar que precisa me
proteger, porque meu poder tem a ver com plantas — ela
falou.
Ele virou o rosto o suficiente para Alana ver seu
perfil. E ele estava sorrindo.
— Não precisam?
Ela soltou o ar com força.
— Você é um príncipe dos vampiros. Já viu muito
mais poderes do que eu. O que acha?
Lorde Rafael riu e inclinou a cabeça para a frente.
— Acho que quem pensa isso ainda vai ter uma
surpresa sobre você.
Alana não deveria ficar tão satisfeita com um
comentário feito por um vampiro. Muito menos com um
feito por Lorde Rafael. Mas estava satisfeita, sim. Estava
cansada de ser vista como a pessoa indefesa, que
precisava ser protegida a qualquer custo.
Um vento fresco entrou pela janela. O sobretudo de
Lorde Rafael balançou, dentro do banheiro, e as plantas
de Alana se moveram de novo.
Não. Ela não podia atacar sem uma provocação
clara, mas também não podia só aceitar ele aparecendo
na sua casa, assim. Se ela tinha lhe dado um convite,
antes, tinha sido sem a intenção – não que aquilo fizesse
diferença para um vampiro. Mas percepção fazia
diferença, sim. E nem mesmo Lorde Rafael ia tratar o
espaço dela como se fosse seu território.
— Se você invadir minha casa de novo, eu vou
garantir que nada vai crescer no seu setor.
Ele riu.
— Eu gosto de você, bruxinha. Deveria pensar na
minha proposta.
Ele desapareceu. Alana continuou olhando para a
janela e para a lua cheia lá fora.
Ela não deveria estar considerando aceitar a
proposta de Lorde Rafael. Definitivamente não deveria.
Mas não conseguia evitar.

Amon não sabia por que tinha contado aquilo para Daniele. Ela era
apenas uma humana, e exatamente a humana que o
havia prendido com um juramento. Ela ia morrer por
aquilo, mais cedo ou mais tarde. Mais tarde, se ele fosse
honesto consigo mesmo. E talvez tivesse sido aquele o
motivo: quando matasse Daniele, ela saberia por quê,
sem a menor sombra de dúvida. Não seria um ataque
qualquer.
Mas ele já havia contado – e ela não havia
respondido enquanto esperavam para poderem sair
daquela casa. O vampiro que vivia ali não ficaria nem um
pouco satisfeito quando descobrisse o que tinha
acontecido, mas Amon não se importava. Era mais
alguém que lhe devia e que, se pudesse, nunca pagaria.
A risada do caçador soou de novo, para a esquerda
de onde eles estavam. Amon puxou Daniele na direção
de outra rua, sem falar nada. Ela o acompanhou. Em
algum momento enquanto estavam na casa, ela tinha
arrancado os tecidos soltos das mangas do seu vestido e
trocado os sapatos de salto por botas que havia roubado
de um dos armários. Sensata.
Eles viraram em outra rua, voltando mais para
dentro da parte dos vampiros da cidade, mesmo que ali
as casas não fossem tão grandes. Era onde os vampiros
que estavam mais baixo na hierarquia moravam,
relativamente longe do castelo.
A risada veio de novo, de um lugar quase à frente
deles. O caçador estava acompanhando o muro. Eles não
iam conseguir sair daquele jeito. Pelo menos, não até o
sol começar a nascer e o caçador precisar recuar. O que
queria dizer que Amon também precisaria se esconder,
se não quisesse ser destruído.
Ele só conseguia pensar em um jeito para saírem
dali.
Amon puxou Daniele para o espaço estreito entre
duas casas. Se ele fosse fazer aquilo, o tempo teria que
ser perfeito, o que queria dizer esperar mais. Precisava
de distância do caçador, porque eles seriam perseguidos.
Por sorte, a cidade não havia mudado quase nada
desde a última vez que ele estivera ali, décadas antes. O
espaço atrás daquelas casas, algum resto de quando a
cidade estava sendo construída, ainda existia.
— Estão vigiando o muro — Daniele murmurou.
Ele assentiu.
Daniele respirou fundo e foi mais para trás no espaço
entre as casas.
— Somos um alvo bom demais para pararem de
procurar antes do amanhecer — ela continuou, em voz
baixa.
— Sim.
Amon já era temido. Alguns vampiros ali lhe deviam,
mas aquilo não queria dizer nada. A única pessoa no
Setor Seis em quem ele confiava – com ressalvas – era
Melissa. Por mais que as Cortes gostassem de usá-lo, se
não pudessem tê-lo como arma garantiriam que ele não
existisse. E, depois daquelas horas no baile, Daniele
também havia se tornado um alvo. Ela era uma humana
que não "respeitava" os vampiros, aqueles que eram
melhores que ela. Uma humana que agia como se fosse
igual a um vampiro. Amon não entendia a reação que
haviam tido vendo sua tatuagem, mas aquilo só serviria
para ela ser um alvo melhor.
Ele estava contando com aquilo, o tempo todo. Era
exatamente o que Amon precisava para forçar o Setor
Oito a agir. Mas não tinha contado com a velocidade em
que o Setor Seis havia colocado um caçador atrás deles.
Amon ouviu a risada de novo. Perto demais, agora
para a direita. Não ia demorar para o caçador voltar,
acompanhando o muro. E, considerando a risada, Amon
tinha certeza de que o caçador não seria a única coisa
que encontrariam caso se aproximassem do muro.
— Se não tiver um plano, é uma boa hora para avisar
— Daniele falou.
Ele não entendia por que ela se preocupava. Para
ela, seria simples de uma forma ou de outra. Ela podia
esperar o amanhecer e sair dali quando os vampiros
estivessem contidos pela luz do sol.
Mas Amon não teria entrado na parte da cidade dos
vampiros se não tivesse uma forma de sair.
— Temos que esperar — ele avisou.
Porque o caçador notaria que eles estavam
esperando. Ele provavelmente imaginaria que iam tentar
sair logo antes do amanhecer, na esperança de que
houvessem relaxado a busca. Então só precisavam
esperar um pouco, até o caçador relaxar e parar de
passar rindo de um lado para o outro. Amon não queria
ver o resultado se precisasse enfrentar aquilo usando
suas habilidades.
Daniele suspirou e cruzou os braços, como se aquilo
fosse algo esperado. Amon sabia que ela não daria
nenhum sinal se estivesse incomodada, irritada ou até
mesmo preocupada. Não, Daniele seria profissional até o
fim.
Eles continuaram ali, em silêncio. Ainda estava cedo,
para os padrões dos vampiros. As pessoas que moravam
naquela região ainda demorariam a voltar. Mesmo que
fossem os vampiros de posição baixa na hierarquia, eles
fariam questão de ficar nos jardins do castelo enquanto
podiam. A questão seria achar o momento certo para
saírem dali sem desfazer a impressão que haviam criado
no baile.
Amon se encostou na parede, vigiando a rua.
A risada soou, para a esquerda deles. O caçador
estava indo na direção oposta de novo.
Daniele respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Nós somos a forma mais fácil para você se vingar
do Setor Oito, certo? — Ela perguntou.
Amon inclinou a cabeça e encarou Daniele. Aquela
era uma pergunta que ele não estava esperando.
— Você sabe que sim.
Ela respirou fundo.
— Mesmo sem o juramento de sangue? Ainda somos
sua melhor opção?
Amon assentiu, devagar. Daniele sabia que ele podia
se livrar do juramento, mas aquilo não queria dizer que
se daria ao trabalho. Fazer algo daquele tipo exigia mais
poder do que ele podia gastar naquele momento. Mal
tinha se recuperado do tempo em estase, não ia usar
tudo o que tinha quando o juramento era tão
conveniente para ele.
Daniele respirou fundo de novo e encarou a parede.
— O que você quer? — Amon perguntou.
Ela se virou para ele.
— Quero que você entenda que o juramento de
sangue foi uma ideia minha, e não do Setor Dez. Raquel
concordou com minha sugestão, só isso. Qualquer
consequência... É minha, não do setor.
Amon segurou o punho de Daniele. Sua pulsação
estava acelerada – mais acelerada do que quando
estavam no baile. Era medo, mas não era apenas medo.
E até o medo era diferente do que Amon estava
acostumado a ver. Era o que ele tinha notado antes: ela
temia, mas ao mesmo tempo respeitava o que ele podia
fazer.
Mesmo que ela não soubesse o que Amon podia
fazer, de verdade. Apenas conhecia as histórias.
— Se está tentando me convencer a não te matar,
está fazendo isso da forma errada — ele avisou.
Daniele balançou a cabeça. Sua pulsação acelerou
ainda mais antes de começar a voltar ao normal, quase
como se ela estivesse se forçando a relaxar.
— Não vou nem tentar — ela falou. — E é isso que
estou falando. Eu tomei uma decisão sem ter todas as
informações. As consequências são minhas e de mais
ninguém.
Amon sorriu, mostrando as presas e se inclinando na
direção dela. Daniele não se afastou, mesmo que não
precisasse manter as aparências, como no baile.
— Então isso é você se preparando para quando eu
me livrar do juramento de sangue — Amon murmurou. —
Ainda tem tempo antes de precisar se preocupar com
isso.
A pulsação de Daniele acelerou de novo, de uma vez,
e ela pegou a faca na sua perna.
— Não — ela falou.
Amon não se moveu quando ela passou a faca pela
palma da mão esquerda, que ele estava segurando. O
sangue subiu e escorreu. Sangue, tão perto dele, sem
nada que o impedisse de tomar o que queria a não ser
um juramento... Ele não podia sentir aquele cheiro se
quisesse manter o controle.
Daniele fechou o punho. Amon a soltou e deu um
passo atrás.
O sangue escorreu da mão fechada dela, até pingar
no chão.
— Pelo sangue derramado sob o testemunho da lua,
que os laços que prendem sejam quebrados — Daniele
falou.
Algo vibrou pelo corpo de Amon, como se o chão sob
seus pés estivesse tremendo. Mas não estava. Era
apenas o poder. A sensação dos espinhos ao seu redor
desaparecendo, deixando uma impressão de leveza
agora que a pressão delas não existia mais.
E os batimentos cardíacos de Daniele – acelerados. A
humana que ainda estava parada no mesmo lugar, o
encarando, mesmo que soubesse que sua vida seria o
preço pelo que havia feito. E que ainda assim não estava
tentando fugir.
A sensação fresca da lua, como um toque mais frio
contra sua pele. Amon não sentia aquilo desde antes, e
antes o poder era diferente. Não era tão forte.
Não era tão forte.
Amon sorriu. Ele havia enlouquecido quando a magia
voltara ao mundo porque era poder demais para um
vampiro que já era mais forte do que deveria ser. E
aquele poder ainda estava ali, nele. Havia passado todos
aqueles anos contido pelos juramentos, sendo sufocado
pouco a pouco. Mas agora não havia mais nenhuma
amarra o prendendo e a loucura havia passado.
— Eu não sou como eles — Daniele falou. — O Setor
Dez não é como eles. Se eu soubesse o que sei agora
sobre um juramento de sangue, não teria feito o que fiz.
E Amon ainda estaria preso na cidade em ruínas,
porque Daniele não teria tido uma forma de soltá-lo sem
que ele a matasse. Nem teria tido algum motivo para
pensar que podia confiar nele.
Ela ainda não tinha nenhum motivo para confiar.
Amon se aproximou de Daniele. Ela recuou e bateu
as costas na parede. Ele riu baixo. Aquele lugar era
seguro para se esconderem, sim, mas ela não teria para
onde fugir.
— Isso não vai me fazer poupar sua vida, humana —
ele falou.
Daniele o encarou.
— Não esperava que fosse.
Ele colocou um dedo debaixo do queixo dela. Seria
tão fácil. Tão simples. Um movimento, e a humana
estaria morta a seus pés. Ou então ela poderia servir de
alimento, primeiro.
Amon sentiu a faca encostada na lateral do seu
corpo. A humana tinha experiência o suficiente para
causar algum dano sério, mas não teria tempo para fazer
aquilo. Ela nunca seria tão rápida quanto ele. Mas, de
certa forma, era satisfatório ver que ela não estava
recuando, se encolhendo e implorando pela sua vida.
Não. Daniele estava sustentando seu olhar e com uma
faca contra seu corpo. Ela lutaria, até o fim.
E, por algum motivo, aquilo era o suficiente para
fazer Amon relaxar.
Ele respirou fundo. O cheiro do sangue ainda estava
forte no ar, da mão que ela havia cortado.
Amon deu alguns passos para trás.
— Dê um jeito nessa mão — ele avisou.
Daniele o encarou por mais alguns segundos antes
de se abaixar, cortar um pedaço dos panos da sua saia e
o amarrar na mão. Melhor. O cheiro de sangue fresco
havia parado, pelo menos.
Ela e o Setor Dez ainda eram a melhor chance para
Amon se vingar do Setor Oito. Ele não precisava ter
pressa para se vingar dela. Daniele não fugiria. Não, ela
o enfrentaria sem pensar duas vezes.
— Consegue correr até o portão? — Ele perguntou.
Ela guardou a faca.
— Mais que isso, se precisar.
Amon balançou a cabeça. Não precisariam.
— Quando eu avisar, você vai correr na direção do
muro — ele falou. — Sem olhar para trás, só correr. Não
importa se alguém te ver ou se alguém estiver indo na
sua direção. Você vai continuar correndo até passar pela
praça. Não vamos ter problemas depois disso.
E nem mesmo um caçador conseguiria seguir uma
trilha no meio do que Amon pretendia fazer.
Daniele se endireitou e assentiu. Amon não falou
nada enquanto ela guardava a faca de novo e começava
a amarrar a saia para cima, para não atrapalhar quando
corresse. Sensata.
— O que você vai fazer? — Ela perguntou.
Amon sorriu. Ela deu um passo atrás.
— Nada — ele falou. — Ainda.
Ele só garantiria que ninguém conseguiria encontrá-
los.
Daniele o encarou por alguns segundos e respirou
fundo antes de assentir de novo. Ela não questionaria, e
aquilo era uma surpresa.
Não. Nada seria uma surpresa maior do que a
sensação de não ter os espinhos do juramento ao seu
redor.
Amon levantou a cabeça e fechou os olhos. Ele não
era como o caçador. Não conseguiria farejar sua presa.
Mas ele sabia onde havia pessoas ou não. E conseguia
calcular a distância entre eles.
Ele saiu do espaço entre as duas casas e voltou para
a rua. Daniele o acompanhou.
O caçador não estava perto. Ele os alcançaria, mas
não a tempo. Era a única coisa que Amon precisava.
— Agora — ele falou.
Daniele começou a correr.
Amon deixou ela se afastar. Daniele não estava
correndo dele. Ela não fugia. Ele não tinha motivos para
persegui-la.
Mas havia aqueles que pensavam ter motivos. E
eles... Eles seriam seus.
Amon sorriu. As marcas de poder nas suas mãos
escureceram e se moveram, girando ao redor do ponto
central, cada vez mais depressa antes de crescerem,
cobrindo suas mãos por inteiro, subirem pelo antebraço e
por parte do braço.
Ele estava livre. Pela primeira vez em mais tempo do
que conseguia se lembrar, Amon estava livre. E não tinha
motivo nenhum para conter o que ele era.
As sombras surgiram, saindo como ondas do seu
corpo e se espalhando ao seu redor. Atrás de si, para os
lados, cobrindo as ruas com uma nuvem de escuridão
que seria impenetrável até mesmo para um vampiro.
Não que algum vampiro fosse entrar naquilo. Eles sabiam
o que aconteceria com qualquer um que estivesse na sua
escuridão.
E Daniele ainda estava correndo, logo à frente da
onda de sombras. Bom. A escuridão não a tocaria.
Ainda sorrindo, Amon começou a andar na direção
da saída.
NOVE

Dani passou pelo muro e continuou correndo, sem olhar para os


lados ou para trás. Aquela sensação da presença de
Amon tinha desaparecido quando ela desfez o juramento,
mas ela ainda sabia exatamente onde ele estava. Era o
mesmo instinto que tinha garantido que ela e Alana
saíssem vivas depois de dois anos nas terras de
ninguém. A sensação de que havia algo ali, se
aproximando. Um predador, e ela era a presa.
Ela ainda estava viva. Não sabia como, mas estava
viva. E a presença atrás de Dani não estava caçando ela.
Pelo menos, ela pensava que não. Se fosse para caçá-la,
Amon não precisaria que ela saísse da parte da cidade
que era dos vampiros. E os gritos abafados que Dani
tinha ouvido com certeza eram de vampiros – os que
estavam atrás deles.
Dani não se arrependia. Tinha feito o que era certo e
até Raquel concordaria com ela, se chegasse a lhe contar
o que tinha acontecido. Mas era melhor assim. O
juramento de sangue tinha sido uma sequência de erros.
Dani nunca deveria ter insistido em um plano como
aquele quando não tinha todas as informações. Agora
era tarde demais. A única coisa que ela podia fazer era
torcer para que a vingança de Amon fosse tão
importante quanto parecia.
Não que ela ter desfeito o juramento fizesse alguma
diferença – não para o Setor Dez. Amon teria se libertado
quando conseguisse o que queria. Ela já tinha pensado
que teria que encontrar uma forma de destruí-lo antes
que aquilo acontecesse, ou ele provavelmente se viraria
contra todo o setor, mesmo quem não tinha nada a ver
com o plano de Dani. Ao menos assim ela tinha uma
chance de que ele só iria atrás dela.
Como estava fazendo.
Ela passou pela praça. Não havia nenhum som vindo
da direção da cidade dos vampiros e aquilo era estranho.
Das outras vezes tudo tinha parecido silencioso, mas não
daquele jeito. O silêncio parecia tenso de uma forma que
ela não entendia.
Um vento gelado e artificial passou por Dani. Ela
começou a diminuir o passo. Precisava saber o que
estava acontecendo. Precisava ver...
— Continue andando — Amon falou.
Ele estava atrás dela. Logo atrás dela.
Um arrepio atravessou o corpo de Dani, mas ela
obedeceu. Não tinha outra opção, se quisesse que aquilo
funcionasse – mesmo que ela não soubesse mais o que
era aquilo.
A mesma risada de antes soou, parecendo estranha
de um jeito que era novo. Descontrolada. O que quer que
aquilo fosse, vinha de quem estava atrás deles. Os
vampiros não tinham desistido. Não iam desistir, mesmo
que Amon fosse temido por eles...
Amon era temido por todos os vampiros. Dani tinha
prestado atenção, no baile. Os vampiros preferiam
destruí-lo do que deixar que ele estivesse livre. Aquele
era o motivo para estarem indo atrás deles: porque se
Amon estava com uma humana, era porque ela tinha seu
juramento. Eles provavelmente tinham pensado que
teriam uma chance de destruir Amon antes que Dani
desse alguma ordem ou algo assim.
Mas ela havia desfeito o juramento. Amon não
estava preso. Ele podia fazer o que bem entendia e Dani
não tinha ideia do que aquilo significava, não de verdade.
Ela havia pensado que tinha uma ideia do que ele podia
fazer, mas depois de ver a reação dos vampiros, no
baile...
O vampiro os caçando riu de novo. Porque era óbvio
que aquilo era um vampiro. Não tinha como ser nada
humano. Na verdade, Dani não se surpreenderia se
aquela risada estivesse vindo de um dos animais que a
magia tinha modificado. Ela havia visto vários deles nas
terras de ninguém – o suficiente para não confiar em
nenhum animal.
As luzes ficaram mais fortes à medida que se
afastavam da parte dos vampiros da cidade. Aquilo era
normal. Os vampiros quase não usavam luzes, nem as
pessoas que viviam perto deles. Mas a parte da cidade
das pessoas comuns tinha o máximo de luzes possíveis –
tochas – como se aquilo fosse uma garantia de proteção.
Não era, mas não estar nas sombras passava uma
impressão de segurança, por mais falsa que fosse.
E a parte humana da cidade não estava deserta.
— Vamos ser vistos — Dani murmurou.
Amon riu, seco.
— Sua época de passar despercebida acabou,
Daniele.
Ela travou os dentes, sem parar de andar. Não queria
pensar naquilo. E estar andando pela cidade daquele
jeito não faria a menor diferença. Dani havia sido notada
pelo príncipe do setor e por todos os vampiros da Corte.
Não importava o que ela fizesse, nunca mais passaria
despercebida ali.
— Eles ainda estão vindo atrás de nós — Amon
avisou.
Dani respirou fundo e assentiu. Ela deveria se virar.
Se iam ser atacados, ela precisava saber a distância que
os vampiros estavam e quantos eram. Não que ela fosse
conseguir fazer muita coisa contra um ataque
organizado. Sua maior vantagem era ser subestimada e
Dani tinha jogado aquilo fora.
Ela deveria olhar, mas não queria. Dani sabia que os
vampiros tinham tentado alcançá-la antes do muro. Tudo
o que ela sabia dizia que deveriam ter conseguido. Mas
ela só tinha ouvido aqueles gritos abafados.
E eles estavam atravessando a cidade a pé, sem
tentar se esconder. Dani estava andando depressa, sim,
mas a velocidade de uma humana não era nada
comparada com a velocidade de um vampiro. Mesmo
assim, eles não haviam atacado. Nem pareciam estar tão
perto assim.
Talvez Dani estivesse sendo covarde, mas ela não
queria ver o motivo para não terem atacado. Já bastava o
baile e o que tinha visto lá. A única coisa que importava
era que estavam atravessando a cidade sem problemas.
Eles só precisavam chegar até a fronteira com o Setor
Dez.
— Você tem alguma forma de entrar em contato com
seu pessoal de segurança? — Amon perguntou.
Dani balançou a cabeça. Yuri estava coordenando o
pessoal esperando na fronteira e eles tinham concordado
que não valia a pena ela levar o celular. Era provável que
não tivesse onde o esconder na roupa – e não tinha,
mesmo – e eles já tinham certeza de que teriam
problemas. Yuri não ia precisar de um aviso.
— Eles já estão esperando problemas — ela falou.
Amon riu de novo, daquele jeito seco.
— Quais as chances do seu pessoal atravessar a
fronteira? — Ele perguntou.
Uma janela foi fechada com força, um pouco para a
frente deles. Dani pulou no lugar e continuou andando.
Alana e o pessoal do setor gostavam de falar que ela
era a pessoa das ideias loucas, e não estavam errados.
Mas ela só tinha aquelas ideias loucas porque as outras
opções não iam dar em nada. E, se pudesse escolher,
Dani com certeza não faria nada daquilo.
Ou talvez faria, se fosse bem honesta. Ela gostava
da sensação de estar no limite.
— Poucas — ela respondeu. — Todo mundo sabe que
qualquer coisa que acontecer desse lado da fronteira vai
ser usado contra nós.
E aquilo queria dizer que Dani e Amon precisavam
tentar evitar qualquer tipo de confronto direto. O que
tinha acontecido no castelo não contava – ela tinha
calculado bem demais o que podia ou não fazer.
Amon fez um ruído irritado.
Ele era um problema. Por culpa de Dani, com
certeza, mas era. Ela não sabia o que podia esperar
vindo dele.
— Eles vão nos alcançar antes da fronteira — Amon
avisou. — Esteja preparada.
Dani já estava preparada. Só não sabia exatamente
para quê.
— Você está fazendo alguma coisa pra não nos
atacarem — ela começou.
Amon não respondeu.
Um casal parou, na esquina de uma rua logo à frente
deles. A mulher olhou na direção de Dani e empalideceu
de uma vez. O homem fez um som estrangulado que era
quase um grito e os dois correram de volta na direção
que tinham vindo.
Dani não queria saber o que estava atrás deles. Se
eram os vampiros ou se era algo que Amon estava
fazendo.
Ela uma faca pequena, se fossem atacados.
— Não pode continuar fazendo isso até a fronteira,
não? — Dani perguntou.
Amon riu.
— Não se você quiser seu pessoal vivo. Agora, se
não for um problema eu aproveitar o sangue deles...
— Não.
Dani tinha se esquecido daquilo. Ela tinha feito Amon
jurar que não ia ferir ninguém do Setor Dez, não
importava se fosse para se alimentar ou qualquer outro
motivo. Aquilo era parte dos juramentos que ele havia
feito. Os que não existiam mais. Não tinha nada que
impedisse que ele começasse a usar as pessoas do setor
como lanchinho.
Problemas para outra hora. Para depois que
estivessem no Setor Dez, em segurança.
A lista de problemas para outra hora estava ficando
grande demais para o gosto de Dani.
Eles continuaram andando. A parte humana da
cidade não era movimentada de noite e depois de meia
noite era quase deserta, a não ser por um ou outro bar.
Mas parecia que alguém tinha dado algum tipo de aviso,
porque não havia nem o movimento normal enquanto
eles seguiam pelas ruas, depressa. Todas as casas
estavam fechadas. Todas as luzes externas estavam
acesas. Todos os bares estavam silenciosos. Não havia
nada.
Aquilo não deveria surpreender Dani. Era assim que
humanos sobreviviam. Eles se escondiam depois do
primeiro sinal de problema e ficavam escondidos até o
perigo passar. Mas, antes, ela sempre tinha sido uma das
pessoas se escondendo ou correndo do perigo.
As últimas casas da cidade ficaram para trás e
aquela risada soou de novo, perto demais. Um arrepio
atravessou Dani e ela pegou sua faca.
— Isso não vai adiantar — Amon avisou.
Como se ela não soubesse.
— E o que vai, então?
Algo gelado tocou o braço de Dani e ela não tinha
certeza se era Amon ou outra coisa. Nem queria saber.
— Você atravessar a fronteira — ele falou.
Fácil falar. Ele era um vampiro. Se metade das
histórias fossem verdadeiras, Amon conseguiria lidar com
tudo que estava atrás deles sem nenhum problema.
Mas, se ele fizesse aquilo, seria uma declaração de
guerra. E não seria Amon declarando guerra ao Setor
Seis. Seriam eles. O Setor Dez. Porque Amon estava
ligado a eles aos olhos da Corte.
Dani começou a andar mais depressa. Sua
respiração estava pesada e ela só queria que aquilo
terminasse.
Eles passaram pelas primeiras árvores. Elas eram
mais baixas, ali, porque eram o resultado do poder de
Alana se espalhando para fora do Setor Dez. Mas não ia
demorar muito. Só mais alguns minutos e o pessoal de
Yuri já estaria perto.
A risada soou de novo.
— Daniele — Amon chamou.
Ela apertou sua faca com força.
— O que foi?
— Corra.
Dani obedeceu. Ela estava cansada, mas aquilo não
importava. Precisava voltar para o Setor Dez antes de a
alcançarem, ou seria um alvo fácil. Ela era uma humana
dentro de um setor do qual não fazia parte. Os vampiros
não precisariam nem justificar qualquer coisa que
fizessem com ela.
As árvores ficaram mais altas. Dani virou no caminho
de terra que levava para o Setor Dez.
Aquela risada soou, perto o suficiente para fazer
Dani tropeçar e quase cair. Quase. Ela continuou
correndo.
Passos. Ela estava ouvindo passos – vindo de trás e
dos lados. E se aproximando depressa demais.
Dani passou por uma das maiores árvores. Yuri tinha
levantado um bloqueio no caminho, acompanhando a
fronteira. Eram só peças de madeira marcando o limite,
mas era uma barreira. Uma forma de deixar claro que do
lado de lá ela estaria segura.
Dani se virou por instinto, com a faca na sua frente.
Ela acertou o pescoço do vampiro que tinha se jogado na
sua direção, com força o suficiente para abrir a lateral do
pescoço. O vampiro caiu para o lado e Dani foi jogada
para trás. Sua faca voou da sua mão, mas ela não podia
parar. Mais vampiros estavam se aproximando, vindo de
todos os lados.
E Amon não estava em lugar nenhum.
Dani se levantou depressa e continuou a correr,
ainda meio abaixada. Sua perna esquerda estava
doendo. Tinha batido de mal jeito quando caiu e não
podia parar para ver se era algo sério. Ela ainda estava
correndo. Aquilo era o que importava.
Algo bateu nas suas costas. Dani cambaleou para a
frente e quase caiu de novo, mas continuou correndo.
Yuri e seu pessoal estavam ali e ela já estava perto o
suficiente para reconhecer cada pessoa. Só precisava
terminar de chegar até a barreira.
Um dos vampiros gritou, atrás dela. Dani não sabia
se aquilo era algo bom ou ruim, mas não ia parar para
olhar.
As pessoas perto da barreira levantaram suas armas.
Ótimo. Todas as pistolas a laser estavam ali,
provavelmente, mais algumas armas de antes dos lasers
serem confiáveis. Eles só não podiam atirar nos vampiros
do outro lado da barreira. Não enquanto estavam fora do
Setor Dez e sem os atacar.
O barulho de passos ficou mais forte. Muito mais
forte.
Ela não ia conseguir.
Alguma coisa gelada a cercou. Dani sentiu o chão
desaparecer debaixo dos seus pés.
— Não lute.
Amon. Era a voz de Amon.
E ela não tinha opção.
A barreira estava se aproximando, depressa demais.
Mais depressa do que se ela estivesse correndo. E as
pessoas do outro lado... Eles estavam recuando. Yuri
gritou alguma coisa e voltaram para as posições, mas
Dani conseguia ver as expressões deles.
E então não conseguia ver nada porque estava
sendo jogada por cima da barreira.
Dani caiu no chão rolando, dentro do Setor Dez.
Os vampiros chiaram do outro lado, e a risada soou
de novo.
Não ia ser tão simples. Era óbvio que não ia.
Dani apoiou um braço no chão e levantou o torso.
Amon estava parado logo atrás da barreira, olhando
para os vampiros se aproximando vindo do Setor Seis.
Yuri e o restante do pessoal estavam pouco atrás dele –
longe o suficiente para não haver a menor dúvida de que
estavam dentro do território do Setor Dez.
Eles iam atacar. Era óbvio que iam. O plano de Amon
sempre havia sido provocar os vampiros, mas algo tinha
dado errado. Ela tinha esperado uma tentativa de
ataque, mas não algo daquele jeito.
— Recuem! — Dani gritou.
Eles recuaram – todo o pessoal do Setor Dez,
andando para trás sem desviar os olhos dos vampiros do
outro lado. Nem Yuri ia questionar uma ordem dela
naquela hora.
Dani se levantou e foi na direção de Amon,
mancando. Yuri olhou para ela e Dani balançou a cabeça.
Era melhor continuarem afastados. Ela não tinha certeza
do que ia acontecer, mas sabia que teriam muitas perdas
se tentassem enfrentar o Setor Seis.
As mãos de Amon estavam quase completamente
pretas. Dani não tinha notado aquilo antes. As marcas de
poder haviam crescido tanto que cobriam toda sua pele.
E parecia que estavam se movendo.
Ela parou ao lado dele, encarando os vampiros do
outro lado da fronteira. O que estava mais perto mostrou
as presas. Aquela risada inumana soou de novo e Dani
não tentou ver de quem estava vindo.
— O Setor Dez não tem nenhum problema com o
Seis — ela falou.
Os vampiros riram. Era um som mais normal, pelo
menos, mesmo que não fosse um bom sinal.
— E se nós tivermos um problema com vocês,
humana? — O vampiro mais perto deles falou.
Dani não sabia se era uma armadilha ou um teste,
mas só tinha uma resposta que ela podia dar.
Dani sorriu e levantou a cabeça.
— Nesse caso, será a sua escolha. Estamos no nosso
território, sem começar nenhuma ação hostil. Qualquer
ataque ou provocação vai ser respondido de acordo.
O vampiro continuou olhando para ela. Dani não
tentou sustentar seu olhar – não sabia que tipo de
habilidades aquele vampiro tinha e não ia correr o risco
de ser alguém com a compulsão.
Amon riu em voz baixa. Um arrepio atravessou Dani.
— E qual vai ser sua resposta, humana? — O vampiro
insistiu.
Dani deu dois passos para trás.
Amon olhou de lado para ela e Dani assentiu. Se os
vampiros do Setor Seis passassem da fronteira...
Ela deu mais um passo para trás e mais outro. Sabia
o que aquilo parecia: que estava recuando. Mas ela não
queria estar no meio do que quer que fosse acontecer.
Amon não tinha falado para ela ir na sua frente aquele
tempo todo, enquanto estavam saindo do Setor Seis, à
toa.
Yuri parou ao seu lado. Dani esticou um braço para o
lado e deu mais um passo para trás, levando Yuri junto.
— Dani... — ele começou.
Ela balançou a cabeça.
Os vampiros avançaram.

Amon sorriu quando os vampiros tentaram parar, já dentro do


Setor Dez.
Tarde demais. A escuridão estava ao seu redor.
Os gritos começaram. Os vampiros tentaram recuar,
mas eles haviam atacado. Haviam invadido. Amon
estaria no seu direito, se os caçasse. E os caçaria.
O vampiro que tinha provocado Daniele caiu, alguns
passos à sua frente. Amon foi na direção dele, andando
devagar. Aquele vampiro era familiar. Amon não se
lembrava de um nome, mas o rosto e a forma de falar,
sim. Era alguém antigo, então. Da época da guerra entre
o Setor Oito e o Setor Quatro.
Amon não tinha nenhum motivo para poupar
alguém.
Ele segurou o vampiro pelo pescoço e o levantou. O
vampiro segurou seu braço, enfiando as garras nele e
tentando se soltar. As marcas de poder de Amon se
moveram de novo, crescendo ainda mais e cobrindo o
pescoço e depois o rosto do vampiro.
Amon o soltou. O vampiro tentou correr.
Amon socou seu peito. Sua mão atravessou o
vampiro.
Os que estavam perto o suficiente para ver o que
tinha acontecido pararam. Ele sorriu. Era simples demais.
Sempre era simples demais, mesmo quando ele ainda
estava preso pelo juramento de sangue.
Amon levantou a mão, deixando o sangue escorrer
devagar.
— O Setor Dez não tem nenhum problema com o
Seis — ele repetiu a mesma coisa que Daniele havia
falado. — Não me deem motivos para ter um problema.
Os vampiros correram. A escuridão desapareceu e as
árvores voltaram a ser visíveis, com a lua brilhando alto
no céu.
E os humanos que deveriam estar logo atrás dele
não estavam lá. Aquilo era bom. Amon não confiava no
seu controle perto de humanos com medo, não depois de
usar suas habilidades. Ele não tinha certeza de quanto
tempo havia se passado – o tempo era algo fluído
quando as sombras se espalhavam – mas havia sido o
suficiente para voltarem para a cidade, provavelmente.
Algo refletiu o luar um pouco para a frente. Amon
avançou e se abaixou. Era a faca de Daniele.
Ele pegou a faca. Amon não devia nada para a
humana. Nada além da morte por ela tê-lo prendido com
um juramento de sangue, mas aquilo ia esperar.
O fato era que ele não precisava voltar. Ele poderia ir
para o Setor Oito. Não seria difícil encontrar o príncipe,
provavelmente, e então sua vingança seria cumprida.
Mas seria simples demais. Rápido demais, para o
setor que o usara e deixara para trás. Não. Amon estava
livre, mas a situação não havia mudado. O Setor Dez
continuava sendo sua melhor opção.
E ele não precisava acompanhar o passo de uma
humana para voltar para a casa.
Amon foi na direção da casa, usando a velocidade
que era um privilégio dos vampiros mais velhos. As luzes
estavam acesas, mas Daniele não estava à vista quando
ele entrou. E o chuveiro estava ligado. Bom. Aquilo era
bom.
Ele contornou a parede baixa que separava a
cozinha da sala e lavou o sangue que estava nos seus
braços. Mesmo que Daniele não tivesse mostrado o
mesmo medo dos outros humanos em nenhum
momento, Amon preferia não arriscar. Ela era útil demais
para ele.
Havia mais sangue na geladeira. Sangue morto.
Aquilo era quase insulto depois de ter estado no Setor
Seis e sentindo o cheiro das oferendas. E agora não havia
o juramento para impedir que Amon bebesse das
pessoas do Setor Dez.
A porta do banheiro se abriu e ele fechou a
geladeira.
Daniele parou na sala, o encarando. Seu cabelo
ainda estava úmido e ela estava usando o que Amon já
aprendera a reconhecer como suas roupas de todo dia:
uma calça confortável com vários bolsos e uma camiseta
justa. Mas ela ainda estava sem as proteções nos braços
e estava descalça.
— Você voltou — ela falou.
Amon sorriu.
— E por que não voltaria? — Ele perguntou.
Daniele respirou fundo e virou as costas para ele.
Então ela tentaria agir como se nada houvesse
acontecido. Não. Aquilo era simples demais, também. E
não era o suficiente.
Amon saiu da cozinha. Daniele estava parada na
frente das suas malas, de braços cruzados.
Ela tinha uma cicatriz de mordida no braço direito,
quase na parte de dentro do braço. Aquele não era o
melhor lugar para alguém morder. E, se tinha a cicatriz,
era porque quem havia se alimentado dela tinha deixado
aquilo de propósito.
Não.
Amon parou atrás de Daniele e segurou seu braço.
— Você deveria me alimentar, depois disso.
Ela respirou fundo e não tentou se soltar, mas Amon
já sabia qual seria a resposta.
— Tem sangue na geladeira — Daniele falou.
Ele estalou a língua.
— Sangue morto. Uma imitação da realidade. —
Amon balançou a cabeça. — Não.
Ela se endireitou.
— Eu nunca vou te dar meu sangue. Não precisa
nem sonhar com isso.
Amon riu e passou um dedo nas cicatrizes dela.
— Por que não? Não seria a primeira vez que
alimenta um vampiro.
Daniele se soltou e o empurrou. Amon bateu as
costas na parede, com força. Ela já tinha tirado uma faca
de algum lugar – ele nunca conseguia saber onde
Daniele as escondia.
— Não ouse — Daniele avisou.
Ele sorriu.
— Eu poderia fazer você ceder. Não seria difícil —
Amon murmurou.
Daniele encostou a faca no pescoço dele.
— E como você faria isso?
Amon inclinou a cabeça, quase como se estivesse
lhe dando um acesso melhor. Não importava. Daniele era
rápida, mas não o suficiente para matá-lo assim.
— Uma escolha — ele falou. — Entre eu beber de
você ou da primeira pessoa que encontrar nas ruas do
Setor Dez.
Ele sentiu a dor aguda da faca cortando sua pele
antes de Daniele se afastar de uma vez. Ela virou as
costas, respirando de forma pesada.
Amon riu, baixo. Daniele tinha princípios. Aquilo era
a primeira coisa que ele aprendia sobre um possível alvo,
antes: em quê eles acreditavam. Por qual motivo
lutavam. Quanto mais soubesse, mais fácil seria quebrá-
los, depois. Mas já fazia tempo demais desde a última
vez que seu alvo havia sido alguém humano. O mundo
era outro, naquela época.
E Amon não queria quebrar Daniele.
Ele sentiu o cheiro de sangue fresco. Sangue vivo,
não o seu – e aquele corte no seu pescoço mal havia sido
o suficiente para fazer sangrar.
Daniele ainda estava ferida. Ela tinha tomado banho
e se trocado, mas não tivera tempo de cuidar dos
resultados daquela perseguição.
Ele parou atrás dela e colocou uma mão na lateral do
pescoço de Daniele. Seu pulso estava acelerado e
ficando ainda mais rápido sob seu toque, mas ela não se
afastou. Era óbvio que não se afastaria. Ela estava
preocupada com a possibilidade de Amon cumprir aquela
ameaça. E ele deveria cumpri-la, sim. Seria o mais
prático.
— Um acordo — ele falou.
Daniele se endireitou e respirou fundo, mas não se
virou.
Amon colocou a outra mão na cintura dela e subiu
devagar. Ele tinha certeza de que encontraria arranhões
fundos por baixo da sua camiseta. Mas não era dali que o
cheiro de sangue estava vindo.
Ele segurou o braço de Daniele, logo abaixo de onde
um corte tinha começado a sangrar de novo.
— Eu não vou te morder — Amon murmurou. — Mas
você vai me deixar cuidar dos seus ferimentos.
A respiração de Daniele falhou e seu pulso acelerou
mais.
Amon resistiu à vontade de comentar qualquer coisa
sobre aquilo. Ela estava a um fio de aceitar ou de fugir –
e Daniele era a pessoa que não fugia. Não. Ele podia
esperar.
— E o que você ganha com isso? — Daniele
perguntou.
Amon passou um dedo pelo pescoço dela, descendo
da base da sua orelha e acompanhando a curva do seu
corpo até estar quase descendo por entre seus seios.
— Eu ganho seu sangue — ele falou. — Sem uma
mordida. E você ganha minha garantia de que não vou
atacar ninguém aqui.
Daniele engoliu em seco. Sua respiração estava
acelerada. Aquilo, junto com a forma como sua pulsação
estava acelerada, não era medo.
Não era medo.
Amon se endireitou devagar, subindo o dedo pelo
mesmo caminho que havia feito antes. Aquilo era quase
tão intoxicante quanto o cheiro do sangue fresco.
— O que me diz? — Amon insistiu.
Daniele respirou fundo e assentiu.
— Sim.

Dani não deveria ter concordado com aquilo. Era loucura. Era um
risco que ela não precisava correr. Teria sido muito mais
simples... Discutir? Negociar? Ela não sabia. Não tinha
pensado tão longe.
Ela simplesmente... Não tinha conseguido resistir.
Não como se Amon estivesse usando algum tipo de
compulsão. Não. Seria mais simples se fosse uma
compulsão.
Amon continuou parado atrás dela, só aquela
impressão da sua presença, sem nem uma respiração.
Dani sabia com o que tinha concordado. Ela tinha
vivido até os vinte anos em um setor governado por
vampiros e sua avó trabalhava para o príncipe. Ela não
era estúpida.
Mesmo assim, sua respiração falhou e ela precisou
fechar os punhos para não se afastar quando Amon
segurou seu braço esquerdo, de novo, e se abaixou
devagar. Dani tinha notado aquele corte. Seu plano era
fazer os curativos depois de tomar banho, mas ela não
tinha imaginado que sairia do banheiro e encontraria
Amon.
Amon, que não estava mais preso por um juramento.
E que queria o seu sangue. Aquilo deveria ser um
motivo para se preocupar. Não para um arrepio que não
tinha nada a ver com medo atravessar o seu corpo.
Algo molhado tocou seu braço. Dani respirou fundo.
Amon estava lambendo o sangue do corte no seu braço.
Mais nada. Não era nada demais. Mas era, porque ela
não conseguia prestar atenção em mais nada além da
sensação da língua de Amon na sua pele. A forma como
ele parecia não ter a menor pressa, como se estivesse
gravando seu gosto. Não. Como se estivesse saboreando
seu sangue – porque era o que ele estava fazendo.
Era algo simples. Uma forma de Amon beber o
sangue dela sem uma mordida. Mais nada.
Mas Dani não conseguia pensar naquilo como "mais
nada". Seu corpo não permitia.
Era o resultado da luta, mais nada. De ser
perseguida até sair do Setor Seis. De ter precisado
discutir com os vampiros na fronteira e depois ver o que
Amon havia feito. O que tinha começado a fazer, na
verdade. Mas aquela era a única explicação. Uma reação
biológica e mais nada. Seu corpo queria uma saída para
a tensão – porque ela tinha se preparado para uma luta,
mas não havia lutado. Tinha ficado naquele limite, ainda
estava nele.
E agora Amon estava oferecendo aquilo. Toque.
Prazer.
Não.
Vampiros não ofereciam prazer, não de verdade.
Qualquer coisa que fizessem era só um preparativo para
o que vinha depois: morte.
Mas aquilo não mudava o fato de que seus mamilos
estavam sensíveis contra o tecido da sua camiseta. Ou
que Dani estava prestando mais atenção que deveria na
sensação da língua de Amon na sua pele, imaginando
como seria se ele estivesse lambendo outro lugar.
Amon moveu a mão que estava no seu braço e um
arrepio atravessou Dani.
Era o frio. A pele dele, mais fria que a dela. Nada
além daquilo.
— Assustada? — Amon perguntou.
Ela deveria estar.
— Não — Dani respondeu.
Ele riu, daquele jeito baixo que podia ser uma
ameaça ou um convite.
Dani respirou fundo de novo quando Amon a soltou.
Ela não deveria estar reagindo daquele jeito. Era
impossível. Mas não conseguia evitar.
Amon começou a levantar sua blusa, devagar. Ela
tinha arranhões nas costas, também.
E eles estavam na sala da casa.
Dani segurou a camiseta no lugar.
— Não — ela falou.
Amon colocou uma mão na sua cintura, sem estar
exatamente a segurando no lugar. Aquilo era um perigo –
a forma como ele estava se movendo devagar, de uma
forma que era quase reverente. Não deveria ser daquele
jeito.
— Não? — Ele repetiu.
Um arrepio atravessou Dani. Amon não tinha
perguntado como uma ameaça, mas ela tinha certeza de
que era uma. Seu sangue pela garantia de que ele não
caçaria ninguém.
Não caçaria ninguém além dela, porque Dani ia
morrer. Quando aquilo tudo acabasse, quanto tivessem
lidado com o Setor Oito, Amon a mataria. E Dani não
tinha a menor ilusão de que conseguiria destruí-lo antes.
Se ela ia morrer, então não tinha motivos para não
correr o risco.
— Não na sala — Dani falou.
Amon se levantou devagar, sem soltar sua cintura.
— Foi você quem disse que não entraria em um
cômodo sem várias saídas com um vampiro — ele
murmurou.
Dani não tinha se esquecido. Mas tinha falado aquilo
quando ainda achava que ia ter uma chance de manter o
controle e antes de estar em um baile dos vampiros do
Setor Seis. Qualquer risco seria menor que aquele.
Ela respirou fundo e foi na direção da porta do
quarto.
— Eu sei.
O quarto não tinha mudado. Continuava sendo o
mesmo cômodo relativamente pequeno, com uma cama,
uma cômoda e um espelho apoiado na parede. Simples.
Padrão. Mas nada parecia simples.
Dani entrou no quarto, sem olhar para trás. Ela ouviu
quando Amon entrou e fechou a porta atrás de si, quase
sem fazer nenhum barulho.
Ela tinha feito sua escolha.
Dani segurou sua blusa e a puxou para cima.
Amon segurou sua mão.
— Não. Me deixe — ele pediu.
Dani relaxou os dedos e ele a soltou.
Amon colocou uma mão na base das suas costas e a
empurrou mais para dentro do quarto, devagar. Ela
obedeceu. Tinha feito um acordo. Aquele era o motivo
para estar obedecendo. Mais nada.
Se ela repetisse aquilo vezes o suficiente, talvez
acreditaria.
— Olhe — Amon falou.
Ela não tinha para onde olhar. Estava de pé, de
costas para a cama, completamente vestida e sentindo
sua pele parecendo sensível, como se estivesse
buscando o toque dele.
— Olhe — Amon repetiu.
Dani respirou fundo e levantou a cabeça.
Ela estava de frente para o espelho comprido que
ficava encostado na parede do quarto. E era só ela ali,
mesmo que Dani soubesse que Amon estava atrás dela.
Alguns vampiros tinham reflexos – os mais jovens, perto
demais da humanidade. Mas não Amon. Não havia
nenhum sinal dele ali. Era só Dani.
Ele levantou sua camiseta, devagar. Dani conseguia
sentir o toque frio de Amon contra sua pele, mas no
espelho era como se a blusa estivesse se movendo
sozinha. Amon estava atrás dela, de pé, tão perto que ela
deveria estar sentindo alguma coisa. Mas não havia
nada. Nem uma imagem no espelho, nem uma
respiração. Só aquela sensação de que ele estava ali.
Um arrepio atravessou Dani quando ela sentiu a
língua de Amon na base das suas costas, com a mesma
lentidão de quanto tinha lambido o corte no seu braço...
O corte que tinha parado de arder. Ela passou a mão no
lugar. Nada. Estava cicatrizado.
E suas costas eram o mais longe possível de uma
zona erógena, mas não parecia. Não quando ela estava
sentindo a língua de Amon e a presença dele ali, mesmo
que não conseguisse ver nada. Na verdade, talvez fosse
justamente por não conseguir ver. Não ter como saber o
que ele ia fazer depois.
Não ter como dizer para si mesma que não deveria
querer aquilo.
Amon colocou as mãos na sua cintura. Um arrepio
atravessou Dani. Nada. Não havia nada no reflexo, mas
ela conseguia sentir exatamente onde as mãos de Amon
estavam e a pressão dos seus dedos na sua pele. E como
ele subiu as mãos devagar, puxando sua camiseta junto,
até que ela estava embolada logo abaixo dos seus seios.
Dani mordeu o lábio, sem conseguir desviar o olhar
do reflexo no espelho. Do seu reflexo. Ela conseguia ver
como seus olhos estavam brilhando de uma forma quase
febril. Ela sabia. Quando tinha concordado com aquilo,
Dani sabia o que aconteceria. E não conseguia se
arrepender.
Amon se levantou, atrás dela, e puxou sua camiseta.
Dani respirou fundo e levantou os braços. Ele tirou sua
blusa.
Nada. Dani não tinha como saber o que ele estava
pensando, qual era sua reação. E ela queria saber. Dani
não era magra. Nunca tinha sido e ela não tinha nenhum
problema com aquilo. Nem costumava se importar com o
que alguém ia pensar, mas era diferente. Não deveria
ser, mas era.
E ela não ia se virar. Não ia quebrar aquele
momento. Se fizesse isso, Dani sabia que acabaria –
porque ela veria um vampiro e o bom senso que estava
ignorando ia voltar.
Um arrepio atravessou Dani quando ela sentiu a
língua de Amon de novo, agora no alto do seu ombro. O
último corte. Ou melhor, o último que estava na parte
superior do seu corpo.
Amon colocou as mãos no cós da sua calça. Dani
fechou os punhos. Ela queria mais que aquilo. Queria as
mãos dele no seu corpo. Nos seus seios. Mas não deveria
querer. Ele era um vampiro. Ela nem deveria estar ali,
com ele.
Amon soltou o botão da sua calça e depois o zíper.
Dani deveria pará-lo enquanto podia. Enquanto nada
demais tinha acontecido.
Ela deveria – mas não ia.
Amon riu, baixo, quase como se soubesse o que ela
estava pensando, antes de puxar sua calça para baixo e
parar. Dani sabia o que ele estava vendo. No espelho era
pior ainda: a lateral da sua coxa esquerda coberta de
arranhões, de quando Dani tinha sido jogada e caído no
chão de mal jeito.
Dani respirou fundo e chutou sua calça para o lado.
Amon se abaixou e subiu uma mão pela sua perna,
devagar, começando pelo seu tornozelo e subindo até
parar no seu joelho.
— Isso foi culpa minha — ele murmurou.
Sim, porque ele tinha jogado Dani por aqueles
metros antes da fronteira. Mas, se ele não tivesse feito
aquilo, ela não teria sobrevivido.
— Não... — ela começou.
Amon apertou sua perna.
— Me deixe.
Dani respirou fundo de novo e assentiu.
Era estranho. Mais estranho, no caso, porque agora
ela estava vendo parte do que estava acontecendo. Dani
estava sentindo a língua de Amon na sua pele, passando
sobre os arranhões na sua coxa – e estava vendo os
arranhões desaparecerem no seu reflexo.
E não havia sangue ali. Não o suficiente para um
vampiro.
Era uma armadilha. Claro que ela. E Dani tinha caído.
O último dos arranhões desapareceu, mas Amon não
a soltou. Dani continuou parada no lugar, encarando seu
reflexo. Seus olhos ainda estavam brilhando e sua
respiração estava mais rápida que o normal. E ela não
conseguia não querer mais do toque de Amon. Muito
mais, na verdade. Sem aquele cuidado que ele estava
tendo. Ela tinha imaginado algo diferente quando ele
havia tirado sua blusa, mas...
Amon beijou sua perna e colocou a mão livre no alto
da sua coxa, passando pelo meio das suas pernas. Um
arrepio atravessou Dani.
— Se eu subir a mão... — Amon começou. — Vou
sentir uma faca contra o meu pescoço?
A respiração de Dani falhou. Ela sabia o que ia
acontecer se falasse que sim. Aquilo ia acabar, o que
quer que aquilo fosse.
— Deveria.
Amon apertou sua coxa.
— Deveria — ele repetiu. — Mas vou?
Dani encarou seu reflexo.
— Não.
Ela sentiu o sorriso dele contra sua pele. Não tinha
mais volta.
Amon a soltou. Dani fez um ruído frustrado e
começou a se virar, mas parou quando Amon passou um
braço pela sua cintura e a puxou para trás, contra o seu
corpo. Porque ela conseguia sentir tudo do corpo dele
atrás de si, cada centímetro de pele contra a dela. Dani
não fazia ideia de quando Amon tinha se livrado das suas
roupas e aquilo não importava, porque conseguia sentir a
ereção dele, também.
E ainda não havia nada no reflexo do espelho.
Amon colocou a outra mão no seu quadril e puxou.
Sua calcinha arrebentou e Dani mordeu o lábio para não
gemer.
— Acho que estou mais impaciente do que pensei —
Amon murmurou.
Ele estava falando quase no seu ouvido, com aquele
tom baixo que era quase um sussurro. Um tom de
promessa e Dani não se importava mais se as promessas
de um vampiro eram mentiras.
— Não parece — ela falou.
Porque Dani ainda estava parada ali, só sentindo ele
nas suas costas, mas Amon não tinha feito nada. Ele
tinha provocado, feito questão de deixar que ela
imaginasse todas as sensações possíveis enquanto a
língua dele estava na sua pele, mas havia tido o cuidado
de não fazer nada.
Amon riu e apertou Dani contra o seu corpo. Não era
como se ela pudesse se aproximar mais.
— Se você não vai fazer nada... — Dani começou.
Ele segurou sua coxa de novo, fazendo pressão. Dani
afastou as pernas.
Amon circulou sua entrada com um dedo, o toque
frio de um jeito que só servia para concentrar as
sensações naquele ponto. Dani fechou os punhos com
força e respirou fundo, se forçando a não reagir. Não ia
gemer. Mesmo que estivesse molhada desde o primeiro
toque da língua de Amon e não fosse nem tentar negar
aquilo. Mas não ia gemer. Não por um toque.
— Quão perto você está? — Ele perguntou.
Dani soltou o ar com força. Não importava o quanto
Amon tinha provocado, se ele pensava que só aquilo
seria o suficiente para fazer ela gozar, então ia ter uma
surpresa.
— Longe.
Ele subiu o dedo por ela de novo e parou no seu
clitóris, apertando. Dani pulou no lugar e mordeu a parte
de dentro da bochecha para não gemer.
— Ótimo — Amon murmurou.
Ótimo, ele dizia. Mas ainda não tinha feito nada.
Amon segurou seu pescoço. A respiração de Dani
falhou. Ele não estava apertando. Não estava colocando
pressão nenhuma, na verdade. Só estava com a mão ali.
Mas ele era um vampiro. Tinha a força de um deles. Um
descuido, uma mudança de ideia, e tudo teria terminado.
Saber daquilo não era o suficiente para fazer Dani
parar. Muito pelo contrário. A sensação de estar presa ali,
sabendo dos riscos, aceitando os riscos, ao mesmo
tempo em que não via nada além de si mesma no
espelho, era algo diferente de qualquer coisa que ela
pudesse ter imaginado. Era mais.
Dani nunca tinha pensado que era a pessoa que se
excitava com o perigo, mas estava descobrindo algo
novo ali.
— Está vendo, Daniele? — Amon perguntou.
A voz dele estava pesada, mesmo que ele ainda
estivesse falando baixo.
E Dani estava vendo, sim. Estava encarando a sua
reação no espelho. A forma como seus olhos estavam
quase vidrados e como ela estava inclinada para trás,
quase jogada. Entregue nas mãos de Amon, sem tentar
resistir.
Ele enfiou um dedo nela, devagar. Dani conseguia
sentir cada milímetro da pele dele contra a sua, o frio
contra o calor, mas não conseguia ver.
Um dedo. Só um dedo, mas ela estava tremendo.
Dani queria mais. Ela não se importava mais se Amon
estivesse usando alguma compulsão ou se aquilo fosse
uma forma criativa de matá-la. Ela só queria mais. Queria
todas as sensações que ele estava prometendo sem
palavras aquele tempo todo.
Ele tirou o dedo de dentro dela e subiu devagar,
antes de contornar seu clitóris. Um arrepio atravessou
Dani. Sim. Aquilo era um começo, pelo menos.
Amon enfiou o dedo nela de novo e o dobrou, a
fodendo devagar, com o dedo dobrado exatamente no
lugar que fazia Dani querer se apertar mais contra ele.
Mas ela não podia. Se mover ia fazer Amon mudar a
posição daquele dedo e ela não queria perder aquela
sensação. Não podia.
Ele tirou o dedo de dentro dela.
Dani fez um ruído irritado e parou quando ouviu algo
molhado, perto demais da sua cabeça. Amon estava
chupando o dedo molhado que tinha enfiado nela. Estava
provando dela.
E ela queria estar vendo aquilo. Queria ver a
expressão dele, porque a sua... Surpresa. E mais alguma
coisa que nem mesmo Dani sabia dar nome. Mas ela
sabia que aquilo ainda estava longe de ser o suficiente.
Amon se afastou. Uma mão ainda estava na sua
cintura, mas ele não estava mais colado nas suas costas.
Dani respirou fundo e soltou o ar devagar. Se ele
parasse... Ela não sabia o que ia fazer. Ameaçar destruí-
lo, provavelmente. Não que aquilo fosse adiantar para
alguma coisa. E não seria o que ela queria, de verdade.
Ele a puxou para trás. Dani não resistiu.
Amon se sentou na beirada da cama, ainda de frente
para o espelho, e colocou Dani na sua frente. Ela tentou
se virar e ele apertou sua cintura.
— Não. Assim.
Ela engoliu em seco e assentiu.
Amon empurrou suas pernas para os lados e a puxou
mais para trás. As pernas dele estavam entre as dela.
Dani conseguia sentir cada centímetro onde estavam se
tocando – não tinha como não sentir, quando a pele dele
era tão mais fria – mas não conseguia ver nada no
espelho. Era só ela, parada na frente da cama.
Amon abriu as pernas. Dani caiu para trás, no seu
colo, e ele passou um braço ao redor da sua cintura.
— Exatamente assim — ele murmurou, perto do seu
ouvido. — Continue olhando.
Para o espelho, não para ele. Para o reflexo que só
mostrava Dani, como se ela estivesse flutuando alguns
centímetros acima da cama, com as pernas abertas e
completamente exposta.
Para a forma como seu peito estava subindo e
descendo com força, por causa da sua respiração
ofegante.
E para a forma como Dani ficava tensa quando
sentia a mão de Amon na sua barriga, mesmo que não
estivesse vendo nada. Como sua respiração acelerava e
ela tentava não se mover, para que ele não parasse o
que estava fazendo.
Amon riu, com um tom baixo e rouco que era novo, e
desceu a mão pelo seu corpo.
Dani gemeu baixo, se forçando a continuar parada.
Amon a segurou pela cintura e a levantou, sem a
menor dificuldade. A força de um vampiro – e aquilo
nunca tinha parecido algo bom, antes. Mas quando ele a
abaixou de novo, Dani conseguia sentir o pau dele na sua
frente. Uma sensação fresca que era quase um toque, de
que havia algo perto demais dela.
Dani estava cansada de esperar.
Amon soltou sua cintura e segurou seus pulsos tão
depressa que Dani mal entendeu o que tinha acontecido.
— Não — ele falou. — Eu vou te dar o que você quer.
Ou você aceita isso...
Ou terminava ali. Amon não precisava completar a
frase.
Era tarde demais para voltar atrás.
Dani relaxou as mãos. Se era o que ele queria – que
ela não o tocasse – ela ia aceitar.
Amon a soltou e falou alguma coisa, baixo demais
para ela entender.
— Se não for fazer... — ela começou.
Amon entrou nela de uma vez.
Dani gritou. Eram sensações demais. Ele era grosso,
não o suficiente para ser desconfortável, mas quase. E
era frio de um jeito que Dani conseguia sentir cada
movimento do pau de Amon dentro de si. Não tinha como
não sentir. Toda sua atenção estava ali, nos movimentos
dele, na sensação de ser preenchida como se não tivesse
escolha, porque Amon ainda estava segurando Dani onde
queria.
— Olhe — Amon falou.
Dani estava olhando. Estava encarando seu reflexo.
E ela sabia o que estava sentindo: o pau de Amon
entrando nela, devagar. Mas não havia nada no reflexo.
Só ela mesma. Os seus movimentos pequenos e quase
desesperados por mais, enquanto Amon a segurava no
lugar. A forma como ela estava abrindo e fechando as
mãos no nada, tentando encontrar algo para se segurar,
sem encontrar. Seu corpo, subindo e descendo quando
Amon a segurou pela cintura com uma mão e começou a
levantá-la sobre seu pau.
Amon empurrou o cabelo de Dani para o lado,
deixando seu pescoço à mostra.
— Não — ela falou. — Eu não...
Ele riu baixo, sem parar de mover Dani e de se
mover contra ela.
— Shhh — Amon murmurou. — Você quer mais, não
quer?
Dani gemeu, sem conseguir resistir. Ela queria. Ela
estava no limite, sem conseguir sentir mais, mas não era
o suficiente. Ele estava dentro dela, mas aquilo nunca
tinha sido o suficiente para Dani antes e agora...
Amon apertou seu clitóris.
O orgasmo explodiu pelo seu corpo. Dani fechou os
olhos com força, sentindo as costas arquearem e Amon a
segurar com força no lugar. E ele não tinha parado. Ainda
estava se movendo, entrando e saindo enquanto ela
gozava. A sensação fria dele contra o seu calor, a forma
como os dedos de Amon ainda estavam contra o seu
clitóris, sem apertar, só ali, de um jeito que ela não
conseguia não prestar atenção ou tentar se mover contra
ele...
Dani sentiu as presas contra o seu pescoço, e de
alguma forma aquilo só fez tudo ser mais. Mais forte. Era
errado. Era o que ela nunca deveria fazer. Mas ela não
tinha como resistir à força do seu orgasmo e como seu
corpo estava tremendo, fora do seu controle e ainda nas
mãos de Amon. Ele podia fazer o que quisesse e ela
aceitaria. Aquele era o perigo de um vampiro. E ela
aceitava o risco.
Amon passou a língua pelo seu pescoço e a levantou
devagar, de novo.
Dani quase gemeu quando sentiu o pau de Amon
saindo. Ele ainda estava duro e ela não sabia se era
porque não tinha sido o suficiente para ele ou se ele
continuaria duro, por ser um vampiro. E não deveria
querer saber, ela só não conseguia evitar.
Ela olhou para o espelho de novo. Nada. Só ela,
ainda parecendo que estava flutuando na cama, ainda
exposta, mas agora com uma expressão que nem
mesmo Dani sabia se era perdida ou satisfeita.
Ela tinha sentido as presas de Amon.
Dani colocou a mão no pescoço. Nada. Nenhum sinal
de mordida. Ela não tinha sentido nenhuma dor, mas não
ia considerar aquilo como uma garantia de nada, depois
de como tinha gozado. E Amon tinha feito todos os seus
cortes cicatrizarem, então...
Ele segurou seu pulso e puxou sua mão.
— Eu não faria isso — Amon falou. — Não assim.
Não quando Dani estava tendo o melhor orgasmo da
sua vida? Era bom saber. Mas aquilo não queria dizer que
ela acreditava.
Não importava o que tivesse acontecido ali. Não
importava quanto Dani tinha gostado – porque ela não ia
negar. Ele ainda era um vampiro. E aquela era a verdade:
vampiros caçavam humanos. Simples assim. E Dani não
podia se esquecer que Amon já havia deixado claro que
ela morreria.
Ela respirou fundo e se levantou. Amon ainda estava
sentado na cama daquele jeito meio jogado de uma
pessoa satisfeita demais. E Dani não ia pensar em por
que ele estava daquele jeito.
— Obrigada — ela falou.
Amon levantou as sobrancelhas.
Dani não esperou por uma resposta antes de sair do
quarto, pegando suas roupas no caminho.
DEZ

Dani parou na cozinha e encarou a faca que estava ao lado da pia.


Sua faca, que tinha caído quando ela havia sido atacada
pelos vampiros, logo antes da fronteira. Se ela tivesse
alguma dúvida sobre qual faca era, a lâmina ainda
estava suja de sangue.
Não era difícil entender o que tinha acontecido.
Amon havia encontrado a faca. O que não fazia sentido
era por que ele tinha feito questão de levar ela de volta.
Mas nada envolvendo Amon fazia sentido. Dani tinha
tido certeza de que ele não ia voltar para a casa segura.
Amon estava livre. Podia ter ido direto para o Setor Oito.
Mas não. Ele tinha voltado e aquilo havia acontecido.
O melhor sexo da sua vida. E Dani não queria pensar
naquilo, porque tinha sido com um vampiro.
Um vampiro que podia ter feito qualquer coisa com
ela, mas não tinha nem lhe mordido. E talvez fosse
estupidez, mas ela estava confiando no que Amon tinha
falado, que não teria mordido Dani sem que ela tivesse
certeza.
Ninguém ia saber. Ninguém podia saber, ponto.
E ela precisava descobrir o que fazer. Amon estar
livre do juramento mudava as coisas. Ela não tinha a
menor dúvida de que havia sido a escolha certa, mas
ainda assim...
Dani desligou o fogão e virou a água quase fervendo
na sua caneca. Ela sentia falta de estar no casarão. Dos
cafés da manhã caóticos, e não só por causa da comida.
Ela tinha passado tempo demais acostumada a estar
cercada pelas pessoas que viviam lá. Aquele tempo na
casa segura já estava começando a incomodar, e não
havia se passado nem uma semana.
Uma semana, para a pessoa que tinha passado dois
anos sem passar três dias no mesmo lugar. Não deveria
fazer tanta diferença, mas fazia. E o que ela mais queria
era poder ir bater na porta do quarto de Alana e começar
qualquer assunto só para tirar tudo aquilo da cabeça.
Ela tinha transado com um vampiro. E não tinha
rolado nenhum tipo de compulsão no meio.
Talvez Alex não estivesse tão longe da verdade
quando falava que Dani sempre ia atrás do que não
devia. Que ela procurava o perigo.
O celular de Dani apitou, em cima do balcão. Ela o
encarou enquanto tomava um gole de café. Com certeza
era Yuri. Já eram quase nove horas da manhã, o que
queria dizer que ele tinha esperado bastante antes de
tentar falar com ela. Eles precisavam decidir como agir
depois da noite anterior.
Dani colocou a caneca de café no balcão, abriu o
pote de rosquinhas de nata e se esticou para pegar o
celular.
Yuri queria uma reunião. Era óbvio que queria. O que
ela não estava esperando era que ele fosse querer que
Amon estivesse presente, o que queria dizer fazer a
reunião na casa segura. Só porque Dani tinha pensado
que teria um motivo para sair dali e colocar um pouco de
distância entre eles...
Não importava. Aquilo tinha sido um lapso. Não ia
acontecer de novo.
Ela respondeu a mensagem e começou a comer uma
rosquinha.
A porta do quarto continuava fechada, do jeito que
ela tinha deixado, de noite. Dani tinha quase certeza de
que Amon ainda estava lá. Se fosse para desaparecer no
meio da noite ele não precisava nem ter voltado...
E ela tinha dormido. Dani havia dormido na sala, com
a porta do quarto fechada – mas Amon não estava mais
preso pelo juramento que o impedia de feri-la. Ele
poderia ter feito qualquer coisa.
A faca ainda estava em cima do balcão. E, de onde
estava, Dani conseguia ver duas das facas que tinha
escondido pela casa. Ela não estava desarmada. Só não
podia ser descuidada.
Pelo menos a janela da sala estava aberta e o sol
estava forte. Aquela era uma proteção que Dani sempre
teria.
Dani pegou mais uma rosquinha e saiu para a sala.
A porta do quarto continuava fechada.
Nada tinha mudado. Se Amon quisesse matá-la, já
teria feito isso. Se quisesse destruir o Setor Dez por
dentro, tinha tido a noite toda. Mas ele não tinha feito
nada daquilo.
Porque ela era útil, mais nada. Dani não ia cair na
armadilha de pensar que Amon tinha princípios ou
qualquer coisa do tipo. Ele já tinha deixado bem claro
que ela morreria e Dani duvidava que aquele orgasmo
tinha mudado alguma coisa.
Ela bateu na porta antes de girar a maçaneta e dar
um passo atrás, para depois da linha de luz do sol. A
porta se abriu devagar.
Amon estava parado de costas para ela, olhando
pela janela do quarto. As cortinas estavam quase
fechadas, mesmo que não entrasse luz direta ali, de
manhã.
— Yuri está vindo pra discutir o que vai acontecer
agora — Dani avisou.
Amon fechou a fresta na cortina e se virou para ela,
devagar.
Dani continuou no mesmo lugar e tomou um gole do
café. Já tinha falado o que precisava. Ainda estar parada
ali era só um mínimo de educação que ela se obrigaria a
ter, porque precisava de Amon.
Ele sorriu daquele jeito lento.
— Arrependida? — Amon perguntou.
Dani resistiu à vontade de pegar uma das suas facas.
Aquilo não tinha chegado nem perto de ser uma ameaça,
mas ela queria alguma coisa além da luz do sol entre
eles. Precisava se lembrar que Amon era um vampiro – e
ainda não entendia como tinha ignorado aquilo, de noite.
Não. Ela não tinha ignorado. Aquela era a pior parte.
Ela sabia, o tempo todo. Ela tinha consciência do que
estava fazendo e tinha escolhido ignorar qualquer resto
de bom senso.
E Dani tinha a impressão de que Amon entendia
aquilo muito bem. Era a única explicação para como ele
tinha insistido para ela não olhar para ele. Se Dani
tivesse visto o que realmente estava fazendo, teria
parado.
— Por que eu me arrependeria? — Ela perguntou de
volta.
Dani tinha uma lista gigante de motivos para se
arrepender. Se realmente estava arrependida, era outra
história.
O sorriso de Amon ficou mais largo.
Seu tio falava que os piores vampiros eram os que
sorriam demais. Dani tinha se esquecido daquilo. Ele
tinha todo um argumento sobre aquilo e discutia o
assunto demais com sua mãe. Era algo no sentido de que
os vampiros que sorriam parecerem humanos. Que eles
pareciam acessíveis, próximos demais da humanidade.
Eles pareciam ser diferentes, mas não eram.
Amon era assim. Ele sorria demais. Ele fazia ela se
esquecer que deveria se preocupar.
— Então não é arrependimento — ele falou. — É
culpa.
Dani virou as costas para a porta e voltou para a
cozinha. O café ainda estava morno, mas ela virou o
resto da sua caneca na pia mesmo assim. Não ia ficar
parada ouvindo um vampiro tentar analisar suas reações.
Nem ela queria analisar suas reações.
Porque Dani deveria estar se sentindo culpada. Mas
não estava.
— Se alguém está vindo, é melhor você trazer o
sangue na geladeira para mim — Amon falou.
Dani apoiou as duas mãos no balcão e respirou
fundo. Não adiantava reclamar. Se ele não tinha ido
pegar sangue durante a noite, era por causa dela. Porque
Dani havia fechado aquela porta e deixado claro que
queria distância. E ele tinha respeitado o aviso silencioso.
Ela abriu a geladeira, pegou a caixa térmica e voltou
para a sala. Amon estava parado um passo para trás da
porta, dentro do quarto, sem nem tentar se aproximar de
onde o sol estava batendo.
E não tinha a menor chance de Dani passar pelo sol
para entregar aquilo para Amon.
Dani colocou a caixa térmica no chão e a empurrou
na direção do quarto.
Amon a encarou antes de esticar uma mão e puxar a
caixa térmica. Que ele não estava nem um pouco
satisfeito era óbvio, mas o que ele esperava?
Dani se encostou na parede baixa que separava a
sala da cozinha e pegou seu celular. Não tinha nada ali,
mas ela precisava de algum tipo de distração. Qualquer
coisa só para não ter que olhar para Amon enquanto ele
bebia das bolsas de sangue.
— Se eu quisesse fazer alguma coisa com você
contra sua vontade, não teria esperado amanhecer —
Amon comentou. — Tive a noite toda, depois que você foi
dormir.
Ele não estava falando nenhuma mentira e Dani
sabia. Mas, ainda assim...
Ela começou a abrir as mensagens de Alana. Deveria
ter feito aquilo antes, pelo menos para ter certeza de que
estava tudo bem. E estava. As mensagens eram só ela
pedindo notícias ou perguntando o que estava
acontecendo.
Dani não ia responder. Nem Amon, nem Alana.
Responder não ia adiantar nada.
Amon fez um ruído irritado.
— Eu já estou tomando sangue morto por sua causa.
O mínimo que poderia fazer seria não me insultar.
Dani levantou a cabeça devagar e olhou para ele.
Amon estava segurando uma das bolsas de sangue, mas
estava encarando Dani.
— Primeiro, como é que estar tomando esse sangue
é culpa minha? — Ela começou. — E segundo, pensei que
vampiros tinham ego o suficiente para não se importar
com a opinião de uma humana.
Amon mostrou as presas e olhou para a bolsa de
sangue na sua mão antes de encarar Dani de novo e ir
na direção da porta. Dani continuou parada no lugar
enquanto Amon saía para a sala e parava logo antes de
onde o sol estava batendo.
— Você precisa de mim — ele falou, seco. — Muito
mais do que eu preciso de você.
Dani sabia. Amon só tinha precisado realmente dela
para uma coisa: tirá-lo das ruínas da cidade velha. A
vingança dele contra o Setor Oito era um incentivo, mas
ele não precisava de Dani e do Setor Dez para fazer
aquilo.
— Eu poderia ter ido direto para o Setor Oito, ontem
— Amon continuou. — Poderia ter ido atrás de alimento
na sua cidade antes de voltar para cá, e você nunca
saberia.
Ela engoliu em seco. Verdade, também. Tudo
verdade e eram coisas que Dani já havia pensado.
— Eu estou respeitando suas regras, porque você
não precisava ter feito o que fez. Mas não vou aceitar
insultos em troca disso.
Amon tinha voltado justamente porque Dani havia
desfeito o juramento. Era a única forma como ela
conseguia entender aquilo. E ele estava dando a
entender que continuaria seguindo o que ela tinha feito
ele jurar sobre não caçar as pessoas do setor por causa
disso.
Vampiros não tinham princípios ou morais. Dani
sabia daquilo muito bem. Não deveria acreditar no que
Amon estava falando – até mesmo porque "dar a
entender" não queria dizer nada, na prática.
Mas ela tinha visto a expressão dele, de noite,
quando ainda estavam no Setor Seis e Amon tinha lhe
mostrado os espinhos do juramento o prendendo. E tinha
visto a expressão dele quando ela o libertara. A forma
como ele tinha relaxado por um instante, como se um
peso enorme estivesse desaparecendo...
E tinha sentido o cuidado dele de noite. Como ele
tinha se preocupado com o que ela queria.
Como Amon tinha encontrado a única forma de fazer
aquilo de um jeito que Dani fosse se esquecer do bom
senso por tempo o suficiente para se entregar.
Ele estava certo. Era tarde demais para ela tentar
agir como se quisesse distância. E o mínimo que podia
fazer era tratar Amon da mesma forma como estava
sendo tratada.
Dani respirou fundo e assentiu, devagar. Se aquilo
fosse burrice, ela já tinha assinado seu atestado de
burrice de noite.

Amon olhou para os dois homens na sala. Yuri ele sabia bem quem
era e imaginara que faria questão de estar ali o mais
cedo possível. Ele estava de pé, encostado na parede
baixa que separava a sala da cozinha. Era uma boa
posição. Ou seria, se Amon tivesse qualquer intenção de
atacar e ele precisasse se defender. O outro homem,
mais velho, estava parado ao lado da porta da casa e era
o mesmo que ele havia visto quando Daniele o libertara.
O que os acompanhara até ali e que havia dado uma
arma para ela – a arma que estava em um dos bolsos de
Daniele, de novo. E, mesmo que Amon soubesse que
Daniele e Yuri eram os responsáveis pela segurança do
setor, eles pareciam respeitar o outro homem como um
superior.
Daniele suspirou.
— Yuri, você não me mandou mensagem a essa hora
à toa — ela resmungou. — Fala logo.
Yuri pegou um tablet, o abriu e entregou para Dani.
Ela se sentou no sofá de novo e cruzou as pernas,
encarando o que quer que estivesse ali.
— O Setor Oito mandou alguma mensagem — Amon
comentou.
Yuri olhou para ele de relance antes de se virar para
Daniele de novo. Chegava a ser divertido como os
humanos tinham medo de olhar diretamente para um
vampiro. Antes de Amon ser deixado naquelas ruínas o
medo estava começando a se espalhar, mas não era
assim. Os humanos sabiam o suficiente para entender
que a compulsão não era uma habilidade comum. Ela
existia e era mais seguro evitar olhar nos olhos de um
deles, sim. Mas aquilo já havia deixado de ser cautela e
se tornado medo puro.
Amon não duvidava que a mudança tivesse sido
proposital e causada pelas Cortes.
— Eles deixaram uma mensagem exatamente na
parte da fronteira por onde vocês chegaram — Yuri
contou. — Logo antes de amanhecer.
— Se foi tão cedo assim, então eles têm algum lugar
para se esconder perto da nossa fronteira — Daniele
comentou.
— Não tão perto — o homem mais velho falou. —
Pela direção que conseguimos notar o movimento é bem
provável que quem deixou a mensagem tenha ido para o
Setor Seis.
Sim. Era perto o suficiente. Amon conseguiria cobrir
aquela distância em poucos minutos, se precisasse. A
maioria dos vampiros conseguiria.
Daniele esticou o tablet na direção dele. Não havia
nada da tensão de antes na forma como ela estava
agindo, mas Amon não tinha a menor ilusão de que
aquilo era porque ela acreditara nele. Não. Daniele sabia
lidar com pessoas, também. Ela escolhia as reações que
deixava as pessoas verem, até os que estavam mais
perto dela. Era a sua forma de manipulação – mesmo que
Daniele nunca fosse usar aquele termo.
Amon pegou o tablet e encarou a imagem ali. Um
corpo humano, jogado no chão, com um punhal
trabalhado fincado no peito. O rosto da pessoa era uma
massa de sangue, destruído demais para ser
reconhecido, mas Amon duvidava que fosse ser alguém
do Setor Dez. Tirar alguém dali daria trabalho e não seria
algo que o Setor Oito conseguiria fazer em uma questão
de horas, que era o tempo que haviam tido para preparar
aquela mensagem.
E era apenas aquilo: a pessoa que parecia ter sido
um homem, com o punhal no peito, vestido de uma
forma tão genérica que não tinham como saber nada
sobre ele através das roupas.
Amon olhou para Yuri.
— Verificaram se havia alguma mensagem na sua
pele?
Porque era assim que os vampiros faziam, quando
queriam deixar uma mensagem clara: eles a escreviam
na pele de alguma vítima que depois seria sacrificada.
Amon vira aquilo ser feito vezes demais e não imaginava
que o costume houvesse desaparecido nos anos que ele
havia passado nas ruínas.
— Sim — o humano falou. — Tivemos tempo para
analisar o corpo. Não tem nada além do punhal. Mas ele
já estava morto quando enfiaram isso nele.
Claro que estava. Teriam aproveitado o sangue de
um sacrifício.
— Estamos trabalhando com a ideia de que o Setor
Oito está se preparando para atacar em breve — Yuri
continuou.
Amon passou o tablet de volta para Daniele,
tomando cuidado para não se aproximar demais de onde
o sol estava batendo. A luz indireta já era desconfortável
o suficiente.
— Hoje — ele falou.
Daniele pegou o tablet e levantou as sobrancelhas.
— Hoje?
Amon assentiu.
— Esse corpo é o mais próximo de uma declaração
formal que vão receber. É um insulto, porque quer dizer
que o Setor Oito não os considera dignos de serem
tratados como iguais. Enviar uma adaga é o mínimo que
o protocolo pede. Eles sempre vão seguir o protocolo...
— Aparências — Daniele murmurou.
Ele assentiu de novo.
— Exatamente. Eles vão fazer o possível para manter
a aparência de que estão fazendo tudo da forma correta,
para evitar o risco de serem questionados quando
conquistarem o território.
O humano mais velho pegou outro tablet e começou
a mover algo nele. Provavelmente estava reajustando
algum tipo de plano.
— Então temos até o anoitecer pra fazer planos —
Yuri falou. — Eles provavelmente vão demorar um pouco
pra se aproximarem...
— Eles podem ter deixado pessoal a postos no Setor
Seis — o outro humano falou, sem levantar a cabeça. —
Dani e o vampiro voltaram cedo. Eles tiveram tempo o
suficiente para ficar sabendo do que aconteceu no baile
e se preparem para agir.
Amon assentiu. O humano mais velho sabia do que
estava falando.
Yuri balançou a cabeça.
— Não é tempo o suficiente para organizarmos os
mercenários. É mais fácil só colocarmos o vampiro na
parte da fronteira que decidirem atacar.
Amon inclinou a cabeça. Aquele humano era
arrogante. E ele aprenderia a não falar sobre Amon como
se ele fosse um objeto.
Daniele fez um ruído irritado e balançou a cabeça
com força.
— O que nós fizemos noite passada foi justamente
para fazer o Setor Seis se questionar sobre o que sabem
sobre nós — ela falou. — Não adianta tentar dar uma
mostra de força por um lado e não fazer nada por outro.
— E colocar seu vampiro para fazer a coisa de tudo
escurecer e os outros vampiros saírem correndo não é
uma mostra de força? — Yuri perguntou.
Amon fechou as mãos. As marcas de poder se
moveram, devagar. Seria simples, tão simples. Nem
mesmo o sol seria o suficiente para bloquear seu poder
em uma distância tão curta assim. E o humano saberia
exatamente o que era sentir tudo escurecer e o que
Amon realmente fazia.
Daniele olhou para Amon e balançou a cabeça
devagar.
Ele não precisava obedecer. Amon estava livre. E
aquilo não era uma ordem, de qualquer forma.
Amon se forçou a relaxar as mãos.
— Deixar Amon resolver isso depois do que
aconteceu essa noite é dizer que somos fracos — Daniele
falou, ainda olhando para ele. — É a mesma coisa que
falar que ele é a única forma que temos de parar os
outros setores e não podemos depender disso.
Precisamos dar um jeito de ganhar respeito.
Ela entendia. Amon não sabia como, mas Daniele
conseguia entender as nuances da política das Cortes de
uma forma que nunca teria esperado de uma humana.
Mas aquilo não deveria ser uma surpresa depois de como
ela havia agido no baile.
Daniele olhou para Yuri.
— Amon é uma garantia — ela continuou. — É para
ser nossa arma final, não a primeira opção. Foi minha
ideia, sim, mas a ideia nunca foi depender de Amon para
ter a nossa segurança. Ou conseguimos isso por nós
mesmos, ou qualquer coisa que fizermos vai ser só perda
de tempo.
Yuri cruzou os braços de novo e se inclinou para trás
contra a parede.
— Os vampiros nunca vão respeitar um setor feito
por humanos. Querer fazer isso é perda de tempo. Eu sei
que você quer proteger sua prima, mas não precisa...
O humano mais velho levantou a cabeça e olhou
para ele. Daniele inclinou a cabeça.
— E o que você sugere, então? — Ela perguntou. —
Entregar o setor? Ou chamar vampiros e criar uma Corte
aqui?
Yuri se endireitou.
— Nunca — ele falou. — O Setor Dez nunca vai ser
deles.
Amon continuou encarando o humano. Se ele se
tornasse um problema, seria fácil se livrar dele. Yuri era o
tipo de humano que seria fácil de quebrar. Ele era rígido
demais naquilo em que acreditava.
— Então é melhor você parar de agir como se a
gente já tivesse perdido — Daniele completou.
Perfeita. Amon sabia que ela nunca chamaria o que
fazia de manipulação, mas era o que aquilo era. Daniele
havia forçado Yuri a aceitar o seu ponto de vista como
sendo a única opção, sem esforço nenhum. Ela não
estava errada, mas Amon tinha certeza de que ela
conseguiria fazer a mesma coisa em qualquer tipo de
situação.
Yuri não respondeu.
Daniele olhou para o outro humano.
— Você está ajustando posicionamento? — Ela
perguntou.
O homem passou o tablet para ela.
— Ajustes provisórios, enquanto vocês discutiam —
ele falou.
Daniele assentiu, encarando o tablet.
Eles tinham mercenários. Amon ouvira quando
estavam falando sobre aquilo, antes. Estavam recrutando
o máximo de mercenários possíveis, oferecendo
cidadania do Setor Dez em troca de que lutassem por
eles. Amon conseguia entender o apelo que um setor
governado por humanos teria para eles, mesmo que
ainda não tivesse certeza de que algo como aquilo
deveria existir. Era possível que já tivessem uma força
considerável reunida.
— O primeiro ataque vai ser fraco — Amon falou. —
Apenas um teste do poder de fogo de vocês.
Daniele se virou para ele, devagar, e não falou nada.
— Se querem ter uma chance de conseguir o
respeito das Cortes, precisam conter esse ataque por
conta própria — ele continuou. — E não podem deixar
claro o que realmente podem fazer. Vocês precisam que
o Setor Oito entenda que vão conter os ataques, mas ao
mesmo tempo eles precisam subestimá-los.
— Você está falando com certeza demais para
alguém que passou cinquenta anos numa cidade em
ruínas — Yuri falou.
Amon sorriu.
— Cinquenta anos não são nada para nós e o
príncipe do Setor Oito continua sendo a mesma pessoa.
Cassius não muda suas estratégias.
E Amon havia lutado a guerra dele, anos antes. Ele
sabia exatamente o que fariam.
— O que mais?
Aquele tom era parecido demais com uma ordem.
Mas, por uma vez, Amon não se importava com aquilo.
Mesmo que fosse uma ordem, ele responderia, porque
fazia questão de entregar tudo o que sabia sobre as
estratégias do Setor Oito.

Dani continuou sentada no sofá depois que Yuri e Ezequiel saíram.


Amon era uma fonte de informações muito maior do que
ela tinha esperado e tinha contado demais sobre as
estratégias mais comuns do Setor Oito. Eles tinham
todas as informações que precisavam – e eram mais
informações do que Dani tinha imaginado que teriam.
Mesmo que os mercenários só estivessem no Setor Dez
havia poucos dias, seria o suficiente para Yuri e Ezequiel
organizarem tudo.
Dani deveria estar lá, também. Deveria estar
testando os mercenários e descobrindo o que podiam
fazer, para ajudar Yuri a organizar a estratégia deles. Não
que fosse ter tempo para fazer aquilo. Não, ela teria
precisado de dias para testar os mercenários como
queria. Estar na casa segura não fazia diferença.
E Amon continuava parado na porta do quarto. O sol
tinha se movido o suficiente para a luz estar perto
demais da porta, mas ele não tinha se afastado.
Dani se levantou e voltou para a cozinha. Não estava
com fome. Na verdade, o que ela queria mesmo era
poder dormir mais algumas horas, mas sabia que não
conseguiria nem se tentasse. Tudo estava acontecendo
depressa demais.
Ela pegou uma das garrafas de água na geladeira e
parou, encarando a parede.
Amon estava certo quando tinha falado que, se
quisesse fazer alguma coisa, já podia ter feito. Ele não
precisava seguir nada do que ela tinha falado antes e
Dani não podia fazer nada para impedi-lo. Aquilo era um
fato. E, mesmo assim, Amon estava ali, ajudando. Dando
uma chance para o Setor Dez.
Podia ser só um plano. Algum tipo de diversão
doentia – lhes dar esperança de que conseguiriam se
manter, só para ele mesmo destruir tudo depois. Ou para
assumir o setor como sendo dele. Dani não tinha
pensado naquela possibilidade antes de falar com Yuri
sobre criar uma Corte ali, mas era algo que ela deveria
ter imaginado. As histórias sobre Amon eram de antes da
guerra que tinha destruído os Setor Quatro. Ele já era
conhecido entre os vampiros muito antes daquilo. Desde
que a magia havia voltado para o mundo, se Dani fosse
acreditar no que ele tinha falado. O que queria dizer que
Amon provavelmente era forte o suficiente para
organizar uma Corte ao seu redor e se tornar um
príncipe.
O que também explicava por que as Cortes tinham
feito questão de manter Amon preso por juramentos. Não
deveria ter sido possível, mas Dani não duvidava. Ela
tinha conseguido um juramento dele. Não teria sido difícil
para as Cortes criarem situações em que ele não tivesse
outra opção. Ele teria continuado preso e as Cortes sem
precisarem se preocupar com o risco de Amon se tornar
um príncipe.
Ou talvez aquilo não fizesse o menor sentido. Amon
não agia como os vampiros que ela já tinha visto antes,
principalmente os mais velhos, mas talvez aquilo fosse
justamente por causa de ter passado tanto tempo preso.
Talvez no começo ele fosse exatamente como os outros.
Seria muito mais fácil para Dani se ele fosse como os
outros.
Dani respirou fundo. Ela estava sendo estúpida.
Estava humanizando algo que não era humano. Estava
simpatizando com alguém que já tinha falado com todas
as letras que ia matá-la. Mas não importava o que
acontecesse ou o que ele falava, ela sempre relaxava de
novo pouco depois. Sempre.
E depois do que Amon tinha feito na noite anterior...
Não. Ela não ia ficar pensando naquilo. Não podia.
Mas Amon estava certo no que tinha falado antes.
Ele podia ter feito qualquer coisa. E estava ali, os
ajudando. O mínimo que Dani podia fazer era tratá-lo
com a mesma educação que trataria um aliado. E só
aquilo. Mais nada.
— Quer que eu pegue mais sangue? — Dani
perguntou.
Ela tinha imaginado que ele responderia na hora,
mas não. E Dani não ia se esticar sobre a parede baixa
para ver se Amon ainda estava na porta do quarto.
— Não — ele falou.
Ótimo. Não era como se Dani quisesse ficar levando
uma caixa térmica cheia de bolsas de sangue de um lado
para o outro. Ela só estava tentando ser minimamente
educada. Era o que ele queria, não era?
Dani suspirou e voltou para a sala com a sua garrafa
de água. Amon ainda estava parado no quarto, a
encarando com uma expressão que era quase surpresa.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar. Não ia falar
nada. Se ele pensava tão pouco dela a ponto de imaginar
que não conseguiria ter um mínimo de educação, não era
problema seu.
Ela se sentou, abriu a garrafa e tomou um gole da
água gelada.
O Setor Dez seria atacado. Naquela noite. Não havia
mais volta.
Tinha coisas demais em aberto para o gosto de Dani.
Ela tinha passado tempo o suficiente fugindo para
aprender que, quanto menos dúvidas, melhor. Eles
teriam uma batalha. As chances de algo dar errado eram
grandes demais. E, considerando o que havia
acontecido...
Dani pegou seu celular. Yuri e Ezequiel iam manter
todas as informações sendo repassadas na rede que era
usada pelo pessoal de segurança do setor. Quando ela
fosse necessária, seria avisada. E não era um "se" fosse
necessária. Dani estaria envolvida nos preparativos
também.
Ela tomou mais um gole de água e colocou o celular
no sofá antes de se virar para a porta do quarto. Amon
não tinha saído do lugar e ele era uma ponta solta.
— Você não falou nada sobre o juramento — Dani
comentou
Amon deu de ombros e se sentou no chão,
encostado no batente da porta, logo ao lado do sol. A
forma como ele estava ali, com uma perna esticada e a
outra dobrada, era tão casual que, se Dani não soubesse
exatamente quem ele era, imaginaria que era só mais
um humano.
— Não vejo nenhuma vantagem em eles saberem
que você desfez o juramento. As desvantagens, por outro
lado...
Porque provavelmente tentariam matar Amon se
soubessem daquilo. Dani não tinha a menor ilusão.
Raquel concordaria com o que ela tinha feito. Se fosse
uma situação hipotética, Yuri e Ezequiel também diriam
que ela tinha feito certo. Mas, se descobrissem aquilo do
nada, com um vampiro na frente deles, Dani sabia muito
bem como reagiriam.
Era a mesma forma que ela reagiria.
De certa forma, aquilo queria dizer que Amon não
falaria que não estava mais preso pelo juramento. Mas,
por quanto tempo? Ou, pior: por quê?
Dani não tinha certeza de que queria ouvir aquelas
respostas.
— O Setor Oito — ela começou, falando devagar. —
Eles sabem que você conseguiria desfazer um
juramento?
Amon sorriu de um jeito que era uma ameaça – mas
não para ela.
— Por que acha que me encontrou naquela sala?
Dani engoliu em seco. Ela não tinha pensado mais
naquilo, mas era estranho. Se Amon estava preso por um
juramento de sangue, por que se dariam ao trabalho de
reforçar as paredes de uma sala e depois construir
aquele caixão, tudo em camadas de mais materiais do
que ela se lembrava...
— Você desfez o juramento — Dani falou.
Amon assentiu, ainda com aquele sorriso estranho
no rosto.
— Eu desfiz o juramento. E destruí alguns deles
antes de conseguirem me prender de novo.
Um arrepio atravessou o corpo de Dani. Ela tinha
pensado que havia ouvido Amon fazendo ameaças antes,
mas aquilo era pior. A forma como ele falava como um
fato simples, quase satisfatório, mas que não tinha sido
grandes coisas... Aquilo era assustador.
— Depois disso, só me tiravam daquela caixa quando
tinham um alvo a ser atacado — Amon completou.
Dani tomou mais um gole de água e olhou para o
celular. Nada de novo.
Ela não queria pensar no que Amon estava contando.
Não queria imaginar aquilo – uma existência daquele
jeito.
E Dani quase havia feito a mesma coisa.
Não. Não teria sido a mesma coisa. Só o fato de
estar ali já era uma certeza daquilo. Dani nunca
conseguiria ver Amon como ele dizia que as Cortes
faziam. Como uma arma, algo e não alguém.
E, pontas soltas ou não, possibilidade de problemas
ou não, ela não se arrependia do que tinha feito.
Quando ela olhou para a porta do quarto de novo,
Amon estava com uma expressão que ela não sabia se
conseguia entender.
Ele apontou para o braço de Dani.
— Essa tatuagem quer dizer alguma coisa. Algumas
das pessoas no baile a reconheceram.
Dani tomou um gole de água. Ela não queria
responder, mas... Ela precisava de Amon. E não tinha
nenhum motivo real para negar uma resposta. Não
depois do que ele já tinha feito – e do que poderia ter
feito, mas escolhera não fazer.
— É uma marca da minha família — ela contou. —
Alguma variação de uma tatuagem de galhos ou
trepadeiras... Nunca foi nada oficial, mas a gente sempre
acabava fazendo algo assim para "manter a tradição".
Ela tinha feito a sua árvore no mesmo dia que Alana
tinha feito a dela. Mas Dani tinha preferido dividir as
sessões. Fazer os galhos primeiro e depois ir
preenchendo com folhas e flores. Alana tinha feito tudo
de uma vez. Mais de oito horas direto de tatuagem, para
fazer sua árvore e as folhas. E Dani nunca tinha tido a
chance de terminar a sua.
— Sua família era próxima da Corte — Amon falou.
Dani respirou fundo e o encarou. Ela não tinha
motivos para tentar esconder aquilo. Já era tarde demais
para qualquer coisa daquele tipo.
— Minha avó era a feiticeira do príncipe.
E aquela era a única diferença entre feiticeiras e
bruxas: para quem trabalhavam. Uma bruxa que
trabalhava para os vampiros sempre seria conhecida
como uma feiticeira. Uma traidora, de certa forma. E
Dani não conseguia dizer que quem pensava assim
estava errado.
Amon estreitou os olhos.
— Quem se recusou a assumir o lugar dela? — Ele
perguntou. — Você? Não. Se você fosse uma bruxa eu
teria notado...
Porque ele havia provado seu sangue, mesmo que
não fosse com uma mordida. Ele teria notado.
Dani balançou a cabeça.
— Meu tio.
Amon continuou olhando para ela, como se estivesse
calculando possibilidades.
— Você é da família de uma feiticeira, não é uma
bruxa, mas não foi transformada... — ele começou.
Dani se endireitou e apertou a garrafa com mais
força do que deveria.
— Eu nunca aceitaria ser transformada — ela falou,
seca.
Ele inclinou a cabeça, sem desviar o olhar.
— Você recebeu uma oferta.
Dani não respondeu. Ela tinha recebido mais de uma,
na verdade. Propostas para ser transformada com a
garantia de uma posição na Corte, já que ela nunca seria
ninguém na sua família, de acordo com os vampiros. Para
eles, ser de uma família de feiticeiras e não ter os
poderes de uma bruxa queria dizer que ela seria tratada
como menos. E talvez fosse daquele jeito em outras
famílias, mas não na dela. Nunca havia sido.
E Dani tinha sido ensinada sobre a Corte desde
muito nova. Da primeira vez que lhe ofereceram a
transformação ela já entendia que aquilo não era para
ela. Se ela aceitasse, seria uma ferramenta para
controlarem sua avó e seu tio, quando ele assumisse o
lugar dela. Porque se a Corte tivesse alguém da família
entre eles, Dani sabia que seu tio nunca teria feito o que
fez.
Ela não queria aquela vida. Aquela existência. Não
seria alguém que se alimentava das pessoas ao seu
redor, que se divertia com a destruição e tinha prazer em
manipular tudo e todos. Aquilo era o que os vampiros
eram.
— O que aconteceu? — Amon perguntou.
Dani respirou fundo.
— Eu consegui escapar com minha prima quando
começaram a queimar a nossa casa.
Era o que tinha acontecido depois que seu tio havia
se recusado a se tornar o feiticeiro do príncipe. Não era o
que Amon estava perguntando e ela sabia, mas Dani já
tinha lhe dado informações demais sobre ela.
Amon assentiu, devagar. E Dani tinha certeza de que
ele havia entendido o que ela não estava falando,
também: sobre fugir pela cidade, vendo as casas
queimarem atrás delas enquanto os vampiros tentavam
garantir que ninguém esconderia duas traidoras da
Corte. Amon estava vivo há tempo o suficiente para ter
visto coisas assim acontecerem vezes demais.
— Isso eu posso te garantir — ele falou. — Quando
for a sua vez, vai ser limpo. Sua nova família não vai ser
envolvida.
Quando fosse a vez de Dani ser caçada, era o que
Amon queria dizer.
Aquilo deveria ser uma ameaça, mas era um alívio,
de certa forma. Ela já sabia que Amon a caçaria, quando
não fosse mais útil. E saber que o Setor Dez não pagaria
pela sua ideia de acordar um vampiro era um alívio. Dani
aceitaria as consequências do que tinha feito, mas seria
só ela. Mais ninguém.
— Um acordo, então — Dani falou.
Amon levantou as sobrancelhas e assentiu daquele
jeito lento que era quase solene.
— Você vai manter os mesmos termos — ela
continuou. — Você não vai se alimentar de pessoas do
setor. Vai seguir nossas regras e não nos prejudicar. E
ninguém vai saber que o juramento não existe mais.
— E em troca? — Amon perguntou.
Dani respirou fundo. Ela precisava parar de tomar
decisões por impulso, porque não tinha pensado em o
quê poderia oferecer. Não havia nada que ela pudesse
oferecer em troca que Amon não fosse conseguir de uma
forma ou de outra...
Não. Havia uma coisa. O que ela tinha jurado para si
mesma que nunca mais faria. Mas, se ela já estava
marcada para morrer... Fazia tanta diferença?
— Você não vai ter que se alimentar de sangue
morto — Dani falou.
Os olhos de Amon escureceram de uma vez e
voltaram ao normal. Ela tinha certeza de que não era um
efeito da luz daquela vez. O branco dos olhos dele havia
escurecido, sim.
— Desde que isso não coloque minha vida em risco
— ela continuou, depressa. — Pelo menos não enquanto
o Setor Dez não estiver estável de novo.
— Você está me oferecendo seu sangue — Amon
murmurou.
Um arrepio atravessou Dani. Aquele tom de voz era
parecido demais com o que ele tinha usado antes, de
noite. E ela não queria pensar naquilo.
— Estou.
Amon inclinou a cabeça de um jeito que não parecia
humano.
— E que tipo de garantia você vai pedir?
Dani respirou fundo. Aquilo era loucura. Não. Era
estupidez. Mas era a melhor opção que ela tinha.
— A sua palavra.
Amon riu.
— E você confiaria na palavra de um vampiro? — Ele
perguntou.
Ela sustentou seu olhar.
— Posso confiar?
A risada de Amon morreu. E a forma como ele estava
encarando Dani... Ela não sabia como descrever aquilo.
Era solene, mas havia mais ali. Não. Ela não queria
entender aquilo.
— Pode confiar na minha palavra — Amon falou.
Ela ia confiar.
Dani se levantou e fechou a cortina da sala.
ONZE

Amon já deveria ter parado de se surpreender com Daniele. Ela


nunca agia como ele esperava e aquilo já havia se
tornado um padrão. Não importava o quanto ele
entendesse o que a motivava – a vontade de proteger
sua família, tanto a prima que havia sido mencionada
quando as pessoas do Setor Dez, que ela considerava
como família – aquilo não era o suficiente.
Mas era o suficiente para que ele honrasse sua
palavra. Daniele era uma humana que havia passado
anos fugindo de vampiros. Amon não precisava de
detalhes para entender que era aquilo que havia
acontecido. E, mesmo assim, ela estava escolhendo
confiar na sua palavra, sem tentar convencê-lo a poupar
sua vida. Ela não havia nem reagido ao seu comentário
sobre "quando chegasse sua hora".
Talvez Amon não fosse matá-la, afinal. Se Daniele
houvesse tentado se esquivar da responsabilidade de
qualquer forma... Mas ela não fizera aquilo. Ela tinha
aceitado. Havia oferecido aquele acordo sem tentar se
proteger.
Amon não se lembrava de quanto tempo fazia desde
que havia visto alguém agir de forma parecida – se
preocupando com as pessoas ao seu redor primeiro.
Daniele voltou para o sofá, pegou sua garrafa de
água quase vazia e foi para a cozinha sem falar nada. Ele
encarou a cortina fechada. Ela havia acabado de tirar a
barreira que fizera questão de manter entre eles desde o
primeiro dia.
Amon colocou a mão no chão, onde o sol estava
batendo até alguns minutos antes. A madeira do piso
ainda estava quente. Ele não sentia falta do sol, não
exatamente. Era um vampiro havia tempo demais,
qualquer coisa daquele tipo desaparecera pelo menos
um século antes. Mas Amon sentia falta do calor do sol.
Aquela sensação específica que não tinha igual.
Daniele encheu a garrafa de novo e ele ouviu
quando ela a colocou na geladeira.
Amon não precisava estar ali.
Ele se levantou e saiu para a sala. Era quase
estranho estar ali tão cedo, depois dos dias com Daniele
fazendo questão de manter as cortinas abertas.
— Qual o problema dos vampiros com o sol? — Ela
perguntou.
Amon se virou. Daniele ainda estava parada na
cozinha, mas tinha se apoiado no balcão do outro lado e
cruzado os braços.
— Você sabe o que acontece com um vampiro no sol
— ele falou.
Daniele assentiu.
— Sei o que acontece, mas não o motivo.
Amon levantou a mão direita. As linhas de poder se
moveram, girando ao redor do círculo nas costas da sua
mão.
— Magia — ele respondeu.
Daniele respirou fundo e soltou o ar com força,
balançando a cabeça.
— Tá, eu sei, magia. Mas tem algum motivo pra
vocês serem queimados pelo sol e não... Sei lá, por água.
Amon sorriu e abaixou a mão. Era uma ideia
interessante. E ele não queria imaginar o que poderia ter
acontecido se aquela fosse a realidade dos vampiros.
— Nossas histórias mais antigas falam de um pacto
— Amon contou. — Uma oferenda feita à lua. Não se
sabe mais por quem ou em busca de quê, mas nós
somos o resultado.
Vampiros, proibidos de sentir a luz direta do sol.
Servos da lua, se as histórias fossem verdade – mas
Amon não acreditava realmente nelas, só não tinha outra
explicação possível para o que eles eram.
Daniele soltou os braços e balançou a cabeça de
novo.
— Isso pelo menos explica a coisa toda de um baile
na lua cheia e do juramento envolver a lua — ela
resmungou. — Não que faça muito sentido, mas pelo
menos é um tipo de explicação.
Amon levantou as sobrancelhas. Daniele vinha de
uma família de bruxas mas, de novo, não agia como ele
esperava.
— Se você queria uma explicação lógica para
vampiros... — ele começou.
Daniele deu de ombros e se virou para um dos
armários na parede.
— Se os vampiros já existiam antes da magia voltar
pro mundo, então não é querer demais que exista uma
explicação que faz sentido — ela falou.
Amon riu e parou ao lado da parede baixa da
cozinha. Daniele continuou revirando os pacotes no
armário, sem a menor preocupação. E ela realmente não
precisava se preocupar.
— A magia já existia, antes.
Daniele parou e olhou para ele por cima do ombro.
— Não é o que as histórias falam — ela comentou.
— Não. Mas as pessoas que contam as histórias não
estavam lá.
Daniele respirou fundo e olhou para o armário de
novo, mas seus movimentos estavam mais lentos. Amon
gostava daquilo – de fazer com que ela reagisse daquele
jeito. Na maior parte do tempo, ele evitava pensar em
antes. Em quando havia sido transformado. Mas não
quando estava com Daniele.
— Então a magia existia antes de tudo isso —
Daniele repetiu.
Amon assentiu.
— Não era como agora. Para a maior parte das
pessoas, eram só histórias.
— Histórias — ela falou, sem se virar.
Amon riu, baixo. Ela era curiosa, mas estava se
contendo para não perguntar.
— O mundo era diferente. Quando falam isso, não é
uma expressão. É a verdade — ele contou. — Os
vampiros existiam escondidos e não tínhamos quase
nada do poder de hoje. As bruxas também. O poder delas
não era nada comparado com o que existe hoje. As
pessoas comuns não tinham motivos para pensar que
qualquer coisa como nós fosse real.
Daniele soltou o ar com força e colocou um pacote
em cima do balcão. Algum tipo de comida, mas fazia
tempo demais desde a última vez que Amon prestara
atenção em comidas humanas.
Por outro lado...
Amon parou atrás de Daniele. Ela apoiou as mãos no
balcão e não se virou.
— Eu deveria aceitar sua oferta — ele falou.
Amon estava perto o suficiente para notar a
pulsação de Daniele acelerando e ele sabia que não era
medo. Nunca era, não com ela.
Ele empurrou o cabelo de Daniele para o lado e
colocou a mão na sua nuca. Ela tremeu, mas não saiu do
lugar.
Se ele a mordesse agora, ela aceitaria. Tinha feito
aquele acordo, afinal. E aquilo não seria o suficiente para
Amon. Se ele ia beber de Daniele, não seria com ilusões
entre eles, como o que havia feito na noite anterior. Não
seria lhe dando uma forma de negar a escolha que
estava fazendo, como o espelho havia sido.
Não. Quando Amon bebesse o sangue dela, seria
sem nenhum tipo de barreira entre eles. Seria porque ela
queria.
E Daniele ainda estava parada no mesmo lugar, sem
tentar se afastar ou tirar a mão dele da sua nuca.
Ele moveu a mão, até que estava segurando seu
pescoço. Daniele engoliu em seco mas continuou no
lugar. E Amon ainda estava sentindo seu pulso rápido
demais, quase como quando estavam no baile do Setor
Seis.
— Quanto de como você estava agindo na Corte era
real? — Amon perguntou.
Daniele inclinou a cabeça para trás, até encostar no
peito dele.
— Qual parte?
A forma como ela agira no baile até podia ter sido
uma encenação. Mas não aquilo. Não ali, não depois
daquele acordo. Ela não tinha motivos para fingir.
— A parte sobre esperar que as histórias sobre o
monstro fossem reais — Amon falou. — A parte em que
você agia como se os outros vampiros fossem fracos por
terem medo.
— Você disse que não se importava — ela murmurou.
— E não me importo. Não com o que eles falam.
A respiração de Daniele parou por um instante e ela
se endireitou. Amon continuou com a mão no seu
pescoço.
Era a verdade. Ele não se importava com o que as
Cortes pensavam. Havia parado de se importar muito
tempo antes, quando conseguira entender o que estava
acontecendo. Amon entendia ter sido preso logo depois
que a magia havia voltado para o mundo. Ele também
tinha ouvido as histórias sobre o que fizera. O primeiro
juramento, forçado quando ele não estava consciente do
que fazia, tinha sido a escolha mais certa, na época.
Mas, depois, quando ele estava no controle de novo
e as Cortes se recusaram a libertá-lo... Qualquer respeito
que Amon tivesse por elas e os vampiros que faziam
parte delas havia desaparecido. Então ele não se
importava. Como Daniele havia falado, eles eram fracos.
Eles prendiam aquilo que não conseguiam controlar.
Daniele, por outro lado... Ela era apenas uma
humana. De uma família de bruxas, mas sem ser uma
bruxa. E ela não tinha medo, não como o que Amon via
dos outros vampiros. Ela entendia os riscos, sabia o
suficiente sobre o que ele podia fazer, e mesmo assim
não esperava que Amon fosse apenas aquilo.
— Não com o que eles falam — ela repetiu.
Amon subiu um dedo pelo pescoço de Daniele,
devagar. A respiração dela não falhou, mas ele sentiu
quando a pulsação dela disparou.
— Quanto era real? — Amon insistiu.
Daniele respirou fundo e começou a se virar devagar.
Amon soltou seu pescoço.
Ela o encarou.
Era parecido demais com quando estavam no baile e
precisavam ser um casal, mas ao mesmo tempo era
completamente diferente. Daniele não precisava estar
tão próxima dele, e ela não havia tentado se afastar. Ela
estava tão perto que Amon conseguia sentir o calor do
seu corpo.
— Tudo — Daniele falou. — Eu fui atrás de você por
causa das histórias sobre o monstro. Então sim, espero
que sejam reais. Cada uma delas.
Ouvir aquilo deveria ser o suficiente para fazer Amon
planejar a morte dela de novo. Ela estava admitindo que
havia feito a mesma coisa que todas as outras Cortes,
antes: tinha procurado por Amon para usá-lo. Mas era
diferente, porque ela aceitava o que viria depois. Ela
queria usar o monstro, sim, mas não tinha medo dele,
mesmo depois de tudo. Mesmo sem nenhuma garantia
de segurança além da palavra de Amon.
Ele colocou a mão na lateral do pescoço de Daniele.
— E até onde você está disposta a ir para ter o
monstro ao seu lado? — Amon perguntou.
Ela sorriu de um jeito que era quase um desafio.
— Não preciso ir longe. O monstro voltou porque
quis.
Um arrepio atravessou Amon. Ele não tinha esperado
aquela resposta. E não era uma mentira. Ele não
precisava ter voltado. Mas ele queria saber até onde
aquilo iria. Não era mais apenas sobre se vingar.
Ele abriu a mão contra o pescoço de Daniele.
— Então quando eu te morder você não vai dizer
para si mesma que não tinha outra opção — Amon
murmurou. — Ou que estava fazendo o que era
necessário.
Daniele olhou para a boca dele antes de levantar a
cabeça, devagar, e o encarar de volta.
— Eu poderia dizer isso. Mas seria uma mentira.
Aquilo era bom o suficiente para Amon.
Ele soltou seu pescoço e deu um passo para trás.
Daniele estreitou os olhos.
— Você vai para uma luta na qual eu não posso me
envolver — Amon falou. — Não vou tomar seu sangue
antes disso e correr o risco de ser o que vai te deixar
uma fração de segundo mais lenta.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Pra que isso agora, então?
Amon sorriu.
— Porque eu vou estar te esperando quando tudo
acabar.
Aquilo tinha sido uma péssima ideia.

Dani respirou fundo e encarou as pessoas reunidas


em uma das áreas abertas nos limites da cidade.
Mercenários, todos eles, recebendo suas ordens de
acordo com o que Yuri e Ezequiel tinham decidido.
E ela não conseguia se concentrar no que estava
sendo falado. Só conseguia se lembrar da sensação de
Amon tão perto dela. Não fazia a menor diferença se o
seu bom senso estivesse gritando que aquilo era o
cúmulo da estupidez, que era errado ter aceitado
aquilo... Ela não se arrependia. E não ia negar... Não ia se
negar.
Talvez ela estivesse sendo estúpida. Talvez aquilo
tudo fosse uma armadilha de Amon. Um jeito mais
elaborado de fazer ela pagar pelo juramento, de alguma
forma. Mas Dani não conseguia acreditar naquilo, não
vindo dele. Amon havia sido direto até demais com ela o
tempo todo.
Dani não ia dizer que era simples. Não tinha como
nada daquilo ser simples. Amon era um vampiro. O
vampiro que todos os outros temiam. Talvez ela ainda
fosse descobrir que estava sendo enganada desde o
começo e que ele era pior que todos os outros, de
alguma forma. Mas, até então, Dani só conseguia pensar
que não era. Que podia confiar nele, sim.
E ela não conseguia deixar de pensar em como seria.
Já tinha imaginado mesmo na noite anterior, quando
estava na frente do espelho e tinha sentido as presas de
Amon no seu pescoço. Então ela iria até o fim. Simples
assim. Ia satisfazer sua curiosidade e depois... Depois ela
se preocuparia com o que quer que acontecesse.
Mas primeiro precisava garantir que o Setor Dez
sobreviveria e que não seriam sempre alvos dos outros
Setores. Aquela precisava ser sua prioridade.
O que queria dizer se forçar a prestar atenção no
que Yuri estava falando.
Dani olhou para o tablet em cima do suporte na
frente de onde ela e Yuri estavam. Um mapa do setor
estava aberto, com marcações coloridas nas áreas de
fronteira onde era mais provável serem atacados. Pelo
que sabiam, o Setor Cinco já tinha um acordo com o Oito.
Era possível que o ataque fosse vir dali, mas era
improvável. O Setor Cinco não tinha dado nenhum sinal
de que ia cortar o comércio nem nada do tipo e não
havia nenhuma cidade deles muito perto da fronteira
com o Setor Dez. Já o Setor Seis...
Se Dani precisasse apostar em um lugar, seria lá. Os
vampiros gostavam demais de protocolos e simbolismos.
Não teriam deixado uma mensagem em uma parte da
fronteira para atacar em outro lugar. Eles não
funcionavam daquele jeito.
Yuri parou de falar. Aquela era a pior parte: estarem
trabalhando com tantos mercenários. De forma geral,
mercenários não trabalhavam em grupo. Pelo menos,
não grupos tão grandes como aquele. Dani queria ter
tipo tempo para fazer ao menos alguns exercícios com
eles primeiro, e sabia que Ezequiel teria falado a mesma
coisa. Mas era impossível.
— Vamos ter bruxas com poderes ofensivos na
fronteira com vocês — Dani falou. — A prioridade é
conter o Setor Oito sem deixar saberem o que podemos
fazer de verdade, então elas vão ser mais uma medida
de segurança do que uma força de ataque.
E ela esperava que fosse o suficiente. Se o primeiro
ataque já fosse mais do que conseguiam lidar... Mesmo
se Dani chamasse Amon, eles teriam perdido, porque a
capacidade de defesa do Setor Dez ficaria ligada a ele. E
Amon não continuaria ali.
— É sério isso? — Um dos mercenários perguntou. —
Vocês estão mesmo querendo nos jogar para enfrentar o
Setor Oito?
Yuri se virou para quem tinha falado e esperou.
— Quando vim para cá, não foi para ir parar numa
missão suicida — o mercenário continuou. — Se fosse
para fazer isso, teria continuado nas terras de ninguém.
Dani reconhecia aquele mercenário. Ele era um dos
que tinha vindo do Setor Seis e ela sempre o via em
algum dos lugares onde as pessoas que trabalhavam
com o que não era exatamente legal se reuniam.
— Se você tivesse vindo das terras de ninguém, não
estaria chamando isso de missão suicida — ela falou.
O mercenário foi na direção dela, empurrando um
homem que não saiu do seu caminho depressa o
suficiente.
— E o que você sabe sobre as terras de ninguém? —
O mercenário insistiu. — Vocês ficam aqui, no único lugar
livre dos vampiros, se recusando a aceitar pessoas de
fora que só querem proteção, e pensam que sabem
alguma coisa?
Dani se endireitou e sorriu. Ela ouviu o som de uma
arma mais para trás – Ezequiel, provavelmente, pronto
para atirar se o mercenário tentasse alguma coisa. Ele
não precisava ter se preocupado.
Mas ela não ia ser a primeira pessoa a puxar uma
faca. Não contra um humano, porque ela só atacaria de
verdade se ele atacasse primeiro.
Dani deu um passo na direção do mercenário. Ele era
forte, o típico armário, e alto o suficiente para ela quase
precisar olhar para cima.
— Eu sobrevivi por dois anos nas terras de ninguém
— Dani falou, alto o suficiente para todos os mercenários
ouvirem, mas sem parecer que estivesse gritando. —
Sem ter tido treinamento antes. Sem ter uma base
segura para voltar depois de uma missão. Só o perigo,
todo dia. Toda noite, enquanto estava sendo caçada por
vampiros. Então não fale comigo sobre missões suicidas.
O mercenário encarou Dani. Ela sustentou seu olhar.
Aquilo não era nada, depois de ter estado em um baile
da Corte do Setor Seis.
Ele deu um passo atrás.
Dani continuou olhando para o mercenário até que
ele abaixou a cabeça e recuou.
— Quando a oferta de aceitarmos mercenários aqui
foi feita, não escondemos que seríamos atacados por
outros setores — Yuri falou. — E isso foi repetido quando
chegaram aqui e se comprometerem conosco. Se
pensavam que era uma possibilidade distante, essa é a
realidade: não é. E se algum de vocês tem algum
problema com isso e não estiver disposto a lutar, é a
hora de serem dispensados, enquanto ainda não
receberam nada.
O mercenário foi na direção de Yuri. Dani se afastou
para o lado, para dar um bom ângulo para Ezequiel.
— Sou um mercenário, não um caçador de vampiros.
Me dispense, então — o mercenário falou.
Yuri olhou para Andreia, uma das pessoas que
trabalhava com ele e que estava parada um pouco para
trás. Ela se aproximou, já com um tablet na mão, e o
mostrou para o mercenário. Ele encarou os documentos
ali e assentiu de forma seca antes de virar as costas da
mão para o leitor na parte de baixo do tablet.
— Você tem até o anoitecer para sair do setor com a
sua família — Yuri falou.
O mercenário se virou para ele de uma vez.
— Minha família...
— A condição para a permanência das famílias dos
mercenários no Setor Dez é que vocês trabalhem para
nós — Dani falou. — Isso também foi deixado claro desde
o início.
O mercenário respirou fundo e se afastou.
Dani quase se sentia mal por fazer aquilo. Quase. Ela
entendia as restrições de Raquel sobre quem aceitava ou
não no setor e concordava com elas. Eles precisavam ser
cuidadosos para continuarem seguros.
— Se mais alguém quiser ser dispensado, a hora é
agora — ela avisou.
— Isso não é uma punição — Yuri continuou. — Mas a
permanência no setor sempre foi um pagamento por
serviços prestados.
Os grupos dos mercenários continuaram
conversando entre si. Dani se virou para Yuri e ele
balançou a cabeça. Não pensava que fossem perder
muitos mercenários, então. E, de qualquer forma, era
melhor assim. A ideia toda de ter mercenários era para
lutarem. Alguém podia até usar o argumento de que
mercenários escolhiam os trabalhos que iriam aceitar.
Mas, para Dani, terem vindo para o Setor Dez queria
dizer que tinham aceitado aquele trabalho. E ele incluía
lutar contra o Setor Oito.
— Queremos o seu vampiro por perto — Yuri
murmurou. — Se alguma coisa sair de controle, podemos
evitar perdas maiores e lidar com as consequências
depois.
Dani assentiu. Não era o ideal. Mas era melhor que
perder pessoal no que deveria ser só um teste.
Mais alguns mercenários se aproximaram. Andreia
separou os documentos e oficializou as dispensas, como
se aquilo não fosse nada demais, e eles se afastaram.
Yuri se virou para trás. Provavelmente estava sinalizando
para alguém do seu pessoal conferir se os mercenários
estavam indo embora mesmo, mas Dani não ia se virar
para ter certeza.
Yuri parou ao lado de Dani de novo.
— Vocês já têm suas ordens — ele falou.
Os mercenários começaram a se afastar devagar,
ainda naqueles grupos pequenos de quando estavam
conversando entre si. Alguns ainda pararam, encarando
onde eles estavam, antes de se afastarem também. Bom,
porque eles eram mercenários. Não precisavam saber da
lógica por trás de todos os planos.
— Isso é mais arriscado do que eu esperava — Dani
murmurou.
Yuri assentiu.
— E seria pior se você não tivesse achado o vampiro.
Por mais que eu continue não gostando da ideia...
Ele parou de falar e deu de ombros.
Dani entendia. Era exatamente o motivo para ela ter
sugerido aquilo para Raquel, no começo de tudo.
— Raquel vai se envolver? — Ela perguntou.
Yuri balançou a cabeça.
— Falei com ela depois que saí da casa segura.
Raquel vai se envolver, mas não no primeiro ataque.
— Não enquanto estão medindo nossas forças —
Dani completou.
Porque Raquel era a única humana que tinha
conseguido permissão para liderar um setor. Aquilo não
podia ter sido à toa e Dani era capaz de apostar que
Raquel tinha algum tipo de poder que faria estrago.
— Vamos deixar Raquel para o final — Yuri falou.
— Bom.
E era bom. Era um plano funcional.
Agora só precisavam esperar anoitecer.

Algo estava errado.

Amon se aproximou mais da fronteira. Ainda estava


claro demais para a maioria dos vampiros saírem – os
mais jovens e mais fracos. Ele havia falado aquilo para os
dois humanos que trabalhavam com Daniele, mais cedo:
o Setor Oito não ia mandar os melhores entre eles para
um primeiro ataque. Eles iriam testar, primeiro. Tentar
descobrir o tipo de força que o Setor Dez tinha, antes de
atacar de verdade.
Mas, se fossem apenas testar, Amon não estaria
sentindo a presença de vampiros se aproximando. A
impressão que ele tinha ainda era distante o suficiente
para Amon ter certeza de que não eram os mais fortes
do Setor Oito, mas também não eram os mais fracos.
Não se já estavam fora de onde quer que estivessem se
escondendo antes de terminar de anoitecer.
Ele tinha calculado algo errado.
Amon não conhecia o Setor Dez. Depois de
cinquenta anos, o que ele se lembrava de quanto havia
passado por ali tinha mudado demais. Mas era fácil ir na
direção de onde ele conseguia sentir vida e mais fácil
ainda garantir que os mercenários espalhados entre as
árvores não o notassem.
O Setor Quatro não tinha árvores como aquelas. No
máximo algumas árvores menores e fracas, lutando para
sobreviver. Ele deveria ter se lembrado daquilo antes.
Aquela região tinha potencial para mineração, não para
plantio. Ele havia passado tempo o suficiente perto do
comando do Setor Oito, ouvindo seus planos, para saber
daquilo. Agora ele estava ali, na área antes da fronteira
com o Setor Seis, e as árvores estavam por toda parte,
perto o suficiente para Amon dizer que aquilo era quase
uma mata. E as árvores não pareciam novas. Seus
troncos eram grossos demais, o suficiente para Amon ter
certeza daquilo, mesmo que não entendesse quase nada
sobre plantas.
Ele não havia perguntado por que o Setor Oito
estava tão interessado no Setor Dez. Imaginara que era
por parecerem um alvo fácil – um setor controlado por
uma bruxa humana. Mas, depois de prestar atenção nas
árvores...
Daniele tinha uma tatuagem de árvore que era uma
marca da sua família. E estava fazendo tudo aquilo para
proteger uma prima. Sua avó havia sido a feiticeira de
um príncipe.
Amon sorriu enquanto passava por um grupo de
mercenários. Agora ele entendia por que Daniele havia
fugido do setor onde tinha crescido. Não era só porque
seu tio havia desafiado o príncipe. Era porque ela estava
protegendo a prima – que era uma bruxa da natureza.
Que deveria ter se tornado a feiticeira depois da recusa
do seu tio.
Aquele era o motivo para o Setor Oito estar
atacando. Bruxas da natureza eram raras e ele nunca
ouvira falar de alguma que não estivesse ligada a uma
das Cortes.
Mas nem aquilo era o suficiente para o Setor Oito
mudar suas táticas.
Amon passou por trás de uma árvore. Uma bruxa se
virou para ele, com os olhos claros brilhando. Ele parou.
Não queria atacar ninguém do Setor Dez e a compulsão
não era algo que ele conseguia usar.
Ela estreitou os olhos e balançou a cabeça devagar
antes de se virar de novo.
Amon continuou andando entre as árvores. Deveria
ter imaginado que teriam bruxas ali, além dos
mercenários. Um setor governado por uma bruxa
humana tinha potencial para atrair todo tipo de bruxas
com poderes incomuns ou perigosos. E eles usariam
aquilo.
Daniele estava parada ao lado de uma construção
retangular que quase desaparecia no meio das árvores:
as paredes eram pintadas de forma irregular e o teto
estava coberto por galhos e folhas. Algum tipo de
depósito de equipamento, provavelmente. Mais pessoas
estavam com ela – quatro homens e duas mulheres –
todos armados, encarando tablets e Amon era capaz de
apostar que tinham fones e algum tipo de microfone para
se comunicar com o restante do pessoal. O Setor Dez
podia não ter o tipo de recursos que os outros setores
tinham, mas eles não fariam algo como aquilo sem ter
comunicação.
E eles não eram ingênuos a ponto de colocar sua
liderança no mesmo lugar. Amon sabia que Raquel, a
bruxa que governava o setor, estava na cidade, longe da
fronteira. Daniele estava ali. Yuri também estava em
algum ponto da fronteira e provavelmente o outro
humano, o mais velho, também. Mas eles não ficariam
juntos. Se o pior acontecesse, o Setor Dez não perderia
todos de uma vez.
Um dos homens levantou sua arma e apontou na
direção de Amon. Era impossível que um humano o
houvesse visto naquela distância, mas não impossível
que ele fosse capaz de sentir a presença de um vampiro.
Amon saiu das sombras. Mais três das pessoas ali
apontaram armas para ele.
Daniele fez um gesto rápido, sem desviar os olhos do
seu tablet. Os humanos abaixaram as armas.
— Aconteceu alguma coisa? — Ela perguntou.
Amon se aproximou, andando depressa. Os humanos
ainda o encaravam com desconfiança, mas não
questionariam Daniele – e aquilo era interessante de se
ver.
Mas ele não tinha tempo para tentar entender a
dinâmica entre Daniele e os outros humanos.
— Estão aqui — Amon avisou.
Daniele levantou a cabeça e olhou para ele.
— Já?
Amon assentiu, mas ela já estava encarando o tablet
de novo e falando depressa, em voz baixa. Estava
usando algum tipo de comunicador, então.
— Os vampiros são mais fortes do que eu esperava
— ele continuou. — Não parece ser o tipo de força que
usariam em um ataque definitivo, mas também não é o
que eu esperaria em um teste.
— Pode não ser um teste — Daniele repetiu, no
comunicador, ao mesmo tempo em que arrastava algo
no tablet.
Ela se endireitou e indicou o espaço ao seu lado com
a cabeça. Amon obedeceu. Os outros humanos estavam
em algum ponto entre nervosos, preocupados e
assustados, mas não Daniele. Os batimentos dela
estavam constantes, quase relaxados, mesmo depois do
que ele havia contado.
Daniele virou o tablet para que ele conseguisse ver a
tela, também. Era um mapa da parte do setor onde
estavam, com a fronteira marcada, o caminho que levava
até a sede do Setor Dez e alguns pontos que Amon
imaginava que fossem outros depósitos como aquele. Ou
algum tipo de base secundária. Alguns pontos azuis
estavam se movendo pelo mapa. O pessoal deles. E
alguns pontos de um tom azul mais escuro também, bem
menos que os azuis... Bruxas, provavelmente.
— Reportaram algo borrado um pouco depois da
fronteira — Daniele falou. — Como se tivesse uma cortina
de ar quente no caminho. Vampiros?
— Vampiros — Amon confirmou.
Daniele apertou algo no tablet.
— São eles. Estejam prontos. Não ataquem primeiro.
Porque se atacassem primeiro o Setor Oito teria uma
desculpa perfeita para invadir o setor sem ser
questionado. Ela estava certa.
— Não conseguem detectar a aproximação do
pessoal deles? — Amon perguntou.
Daniele olhou de relance para ele antes de encarar o
tablet de novo. Algumas mensagens estavam subindo na
lateral do monitor, mas ele não tentou ler.
— Não temos acesso a um satélite — ela contou.
Claro que não tinham. Uma boa parte das Cortes não
tinha, também. Ou então dividiam o uso de algum
satélite com aliados próximos. Mas aquilo queria dizer
que o Setor Dez não saberia de nada acontecendo além
das fronteiras, porque os acordos entre setores proibiam
qualquer equipamento de vigilância fora do seu território.
Não que aquilo fosse uma das regras que sempre era
respeitada, mas era o mesmo motivo para não poderem
atacar primeiro: o Setor Dez não podia ter nenhuma
irregularidade lidando com aquela situação.
Daniele bateu um dedo na borda do tablet e
estreitou os olhos, encarando uma das mensagens.
— Yuri... — ela começou. — Entendido.
Os pontos azuis escuros no mapa começaram a se
mover, se espalhando ainda mais. As bruxas se
posicionando para fazer alguma coisa.
Amon sentiu o poder se reunindo – uma sensação
diferente da presença dos outros vampiros, mais fraca.
Ele havia sentido o poder de algumas feiticeiras, antes,
em várias partes do mundo. Mas nunca daquela forma,
como se fossem várias sensações se juntando para se
tornar uma. Várias bruxas, trabalhando juntas para
amplificar o que uma delas podia fazer.
O poder explodiu, mas não de uma forma que fosse
visível.
Pontos vermelhos apareceram no mapa de Daniele,
já dentro da fronteira e se movendo depressa.
O que quer que as bruxas haviam feito, tinha
destruído o que os vampiros do Setor Oito estavam
usando para não serem notados.
O barulho de tiros começou, com o ritmo rápido de
armas automáticas. Era quase impossível destruir um
vampiro com armas comuns, mas era possível causar
dano o suficiente para fazer pararem. Armas a laser eram
mais eficientes, mas fazia sentido o Setor Dez não ter
acesso a muitas delas, também.
Os avisos no tablet ficaram mais rápidos e mais
curtos. O som de tiros continuava, sem parar, mas os
pontos vermelhos ainda estavam se movendo e alguns
dos pontos azuis pareciam ter desaparecido.
Eles não estavam preparados para aquilo. Humanos
enfrentando vampiros sempre era um conflito desigual,
mas aquilo ali se tornaria um massacre a qualquer
momento.
— Isso não foi o que você falou — Daniele disse.
Não era uma acusação, mas Amon não conseguia
deixar de entender como uma. Ele havia falado que seria
um teste de forças e que não podiam mostrar tudo o que
tinham. Mas não era o que estava acontecendo.
— Não — Amon falou. — Eles não estão testando o
que vocês têm.
Ele só não conseguia entender por que haviam
mudado de tática. Uma bruxa da natureza era um alvo
que seria importante, mas o Setor Oito não iria atrás dela
de forma direta. O risco dos outros setores se virarem
contra eles por causa daquilo era grande demais.
Algumas áreas do mapa começaram a ser marcadas
por amarelo. Amon não sabia o que aquilo queria dizer,
mas tinha certeza de que não era algo bom.
— Merda — Daniele resmungou, ao mesmo tempo
em que colocava uma mão na altura do ouvido.
Algo apitou, tão baixo que Amon precisou de um
segundo para perceber que era o comunicador de
Daniele. Era a primeira vez que fazia aquele som.
— Mas que porra está acontecendo? — Yuri
perguntou, no comunicador.
— Eles querem ter certeza de que Amon está aqui —
Dani respondeu.
Amon se endireitou. Fazia sentido. Era a única coisa
que podia explicar aquilo. E, se queriam ter certeza de
que ele estava ali, era porque tinham alguma ilusão
sobre voltar a usá-lo.
Nunca mais.
— Manter isso é inviável — Yuri falou. — Já estamos
perdendo pessoal...
Daniele se virou para Amon. Ele já tinha visto aquela
expressão antes: era a mesma de quando ela havia
encarado o príncipe do Setor Seis. Ela era humana, mas
estava acostumada a estar no comando.
— Se querem ter certeza de que você está aqui, não
vão parar — ela falou. — Você precisa lutar.
Amon a encarou. Aquilo ia contra tudo o que haviam
decidido e ela sabia que poderia ser pior para o Setor
Dez. Mas preferia correr aquele risco a perder pessoal.
Eles não iam durar muito tempo. Não se pensavam
daquele jeito.
Mas não era Amon quem dava as ordens. Eles
tinham ouvido suas sugestões e suas informações. Não
era culpa deles se o Setor Oito não agira como o
esperado. E talvez Amon devesse ter imaginado que
aquilo aconteceria depois do que tinham feito no Setor
Seis.
— Avise para se afastarem das sombras — ele falou.
Daniele assentiu.
Amon olhou para o mapa de novo, memorizando as
áreas marcadas por amarelo antes de correr na direção
da que estava mais próxima.

Dani encarou as árvores mais para a frente. Já estava escuro o


suficiente para ela não conseguir ver muita coisa, mas
não fazia diferença. O barulho dos gritos estava tão longe
que mesmo se fosse dia ela não ia conseguir ver nada.
Amon tinha cuidado dos vampiros na área mais perto
deles. Tinha sido até rápido. E Dani não ia se esquecer
dos gritos tão cedo.
Depois daquilo, eles haviam reunido todo o pessoal
de apoio ali, perto daquele depósito. Alguns mercenários
ainda estavam perto da fronteira, mas a maior parte
deles, nos lugares por onde Amon já havia passado,
tinham voltado para a cidade. Era melhor assim. Mais
seguro.
— Ele está chegando na outra área — Yuri avisou.
Dani respirou fundo e se virou para e parede do
depósito. Yuri tinha chegado ali depois que Amon havia
terminado com os vampiros da segunda área de ataque,
junto com o pessoal que estava com ele, e tinha passado
a coordenar tudo. E uma das primeiras coisas que havia
feito tinha sido montar quatro tablets um ao lado do
outro para improvisar um monitor maior. Eles não podiam
ter nenhum sistema de vigilância fora do setor, mas ali
dentro, entre as árvores, eles tinham câmeras o
suficiente para ver o que estava acontecendo.
E as câmeras estavam mostrando um grupo de
vampiros avançando, só flashes de movimento rápido
demais para acompanharem, com a iluminação
esverdeada das câmeras de visão noturna. Os
mercenários lá ainda estavam atirando sem parar e as
duas bruxas que tinham sido mandadas para aquela área
mal estavam conseguindo manter os vampiros afastados.
Yuri estava certo quando falou que manter aquele
plano era inviável. Eles teriam perdido pessoal demais.
Teria sido o suficiente para acabar com qualquer chance
de se manterem, depois.
Mas já estava acabando. Aquela era a única parte da
fronteira onde os vampiros ainda estavam atacando...
Porque Amon já tinha lidado com as outras.
As conversas baixas ao redor do monitor
improvisado morreram assim que as sombras mais
escuras apareceram na imagem. Era como uma névoa
baixa, se espalhando pelo chão.
— Recuem — Yuri falou, no seu comunicador. —
Continuem atirando, mas não fiquem perto das sombras.
Dani não tinha esperado para ver o que Amon podia
fazer, antes. Quando estavam saindo do castelo, ele
tinha falado para ela correr e não olhar para trás, e ela
tinha obedecido. Sua prioridade era ficar viva, não matar
a curiosidade. E, depois, quando os caçadores do Setor
Seis os alcançaram na fronteira, ela não queria lidar com
nada, então só tinha dado a ordem para recuarem, sem
ficar ali para tentar entender o que Amon realmente
fazia.
Mas não tinha como não ver o que estava
acontecendo ali. As sombras se espalhando pelo chão e
cercando os vampiros. E os vampiros parando no lugar
por um instante antes de se virarem uns contra os
outros. Era animalesco. Garras e presas e mais nada,
como se qualquer traço de inteligência tivesse sido
apagado. E gritos. Muitos gritos.
Era loucura. A habilidade de Amon, aquelas
sombras... Aquilo não era nenhum tipo de compulsão ou
controle mental. Era simplesmente loucura.
Uma das câmeras foi manchada de sangue antes da
imagem desaparecer. A transmissão mudou de ângulo,
para outra câmera, mas a imagem era a mesma:
vampiros lutando entre si, a névoa escura se espalhando
ao redor dos pés deles e crescendo de uma forma que
não era natural.
Os tiros quase tinham parado. Os mercenários ainda
estavam atirando, às vezes, para afastar os vampiros
que estavam se aproximando demais de onde estavam,
mas era algo pontual. Não era o som constante de antes.
E os vampiros lutando...
Dani já tinha visto muita coisa. Dois anos nas terras
de ninguém eram mais que o suficiente para fazer uma
pessoa não se surpreender mais com violência, mas
aquilo estava quase chegando no seu limite. Os vampiros
estavam lutando com membros faltando e um deles
estava se arrastando no chão, sem uma perna, indo na
direção de onde outros dois estavam. Mais para o lado,
um vampiro quase tinha perdido sua cabeça: ela estava
dependurada pelo que parecia ser só pele e um pouco de
músculo, mas a coluna havia sido partida. E ele tinha se
jogado sobre outro vampiro, que estava gritando e
arranhando o ar, como se estivesse lutando contra algo
que mais ninguém conseguia ver. E o vampiro quase
decapitado estava tentando morder o outro, mesmo que
sua cabeça estivesse caída de um jeito que...
Não. Dani não ia analisar o que estava acontecendo.
Não precisava. Ela já tinha visto a mesma coisa
acontecer nas outras áreas sob ataque.
No monitor, Amon saiu do meio das árvores e parou,
olhando ao redor. Suas mãos estavam completamente
pretas mas, se fizesse esforço, Dani conseguiria ver o
movimento das linhas de poder, mesmo que elas
estivessem tão grandes e largas que pareciam uma só. E
não eram exatamente mãos. Eram garras, como as dos
vampiros lutando. Algo que com certeza não era
humano. E Dani não conseguia olhar para o rosto dele.
Não por falta de tentar: ela simplesmente não conseguia
focar no que estava ali. Era como se seus olhos
estivessem se recusando a ver.
E, se alguém tinha alguma dúvida sobre a origem
daquela névoa escura – porque Dani se recusava a
chamar aquilo de sombras – ver Amon ali acabaria com
elas. A névoa estava saindo dele, se espalhando ao seu
redor, tão grossa que parecia escuridão pura antes de
começar a se afastar na direção dos outros vampiros.
Quando Dani tinha convencido Raquel a autorizar
sua ideia louca, ela estava apostando que pelo menos
uma parte das histórias sobre o monstro fosse real. Ou
pelo menos que elas tivessem nascido de alguma coisa
que fosse ser útil. Mas era impossível que um vampiro,
sozinho, tivesse feito tudo o que as histórias diziam sobre
Amon. Pelo menos, era o que Dani tinha pensado.
Agora, vendo aquilo... Dani não duvidava de nada do
que era falado. Que ele sozinho limpava caminho para o
Setor Oito, sem deixar ninguém para ser um problema
para eles depois.
Era assustador, ela não ia negar. O que Amon estava
fazendo era quase pior que quando os vampiros
atacavam grupos humanos. Pelo menos quando faziam
aquilo era limpo, porque não iam desperdiçar sangue.
Não. Amon não era só "o monstro". Ele era o
pesadelo dos vampiros. O que podia fazer com eles o que
eles faziam com os humanos. Não era à toa que tinham
feito questão de garantir que ele continuasse preso
desde que a magia tinha voltado.
— Eu não quero saber o que é isso — alguém
comentou, para trás de Dani. — Não quero mesmo.
— Só fique feliz que ele está ao nosso lado — outra
pessoa respondeu.
Sim. E, depois de ver aquilo, Dani tinha mais certeza
ainda de que podia confiar na palavra de Amon. Ele
estava livre. Se ele era capaz de fazer aquele tipo de
coisa... Amon podia fazer o que quisesse. Ele podia ter
destruído o Setor Dez logo depois que Dani tinha desfeito
o juramento.
— Recuem — Yuri falou, no comunicador. — Voltem
para a cidade.
Ele estava certo. Era melhor os mercenários já
voltarem para o ponto de encontro na cidade. Yuri tinham
organizado uma rotação de pessoal que ficaria em alerta,
para o caso do Setor Oito voltar, mas Dani duvidava que
aquilo fosse acontecer. Eles já tinham a confirmação que
queriam. Não, o que quer que o Setor Oito fosse fazer,
não seria naquela noite.
— Dani — Yuri chamou.
Ela se virou para ele. Yuri balançou a cabeça. Não ia
falar nada que os outros pudessem ouvir, então, e aquilo
não era um bom sinal.
Dani passou entre as pessoas reunidas e parou ao
lado de Yuri. Ele ainda estava segurando um tablet e
acompanhando a movimentação dos mercenários e das
últimas bruxas que ainda estavam dando cobertura para
eles.
Ele apontou para uma mensagem no tablet. Um dos
mercenários que estava perto de onde Amon, avisando
que não considerava seguro recuarem. De acordo com
ele, as chances de serem caçados era alta.
— Ele tem experiência — Yuri avisou.
O que queria dizer que era um dos mercenários que
sabia como lidar com vampiros e que ele estava vendo
algum sinal de que Amon podia atacar a qualquer
momento.
Alguma das motos do setor ia estar no depósito ou
em algum lugar por perto. Era o protocolo.
Dani olhou ao redor depressa, ao mesmo tempo em
que conferia se suas facas estavam nos seus lugares.
— Vou pegar uma das motos — ela avisou.
Yuri balançou a cabeça e olhou para o monitor.
— O juramento deveria ser o suficiente para
garantir... — ele murmurou.
O juramento que ninguém sabia que não existia
mais.
— É o suficiente — Dani respondeu. — Mas prefiro
trabalhar com boa vontade do que com força bruta.
E aquilo não deixava de ser verdade... De certa
forma.
Yuri assentiu e falou alguma coisa no seu
comunicador, baixo demais para Dani entender. Ela se
afastou, passando depressa entre as pessoas reunidas.
Quando Dani conseguiu se afastar o suficiente da
parede do galpão, Andreia já estava parada ao lado de
uma das motos. A mais nova e mais rápida que eles
tinham – o que era uma garantia de que Yuri não tinha
tanta certeza assim de que Amon era seguro. Ele não
estava errado.
Ela pegou a moto e acelerou na direção de onde os
gritos ainda estavam vindo. Ótimo. Enquanto algum dos
vampiros do Setor Oito ainda estivesse vivo, Dani
duvidava que Amon fosse prestar atenção nos
mercenários. Mas os gritos tinham diminuído bastante,
já. E andar de moto entre as árvores perto da fronteira
não era a melhor coisa a se fazer. Não em um lugar que
não tinha nem uma trilha marcada. Mas era melhor que
ir andando e chegar tarde demais.
Os gritos pararam. Os pelos do braço de Dani
arrepiaram de uma vez e ela parou a moto. Ainda não
estava vendo nada, mas...
Os mercenários estavam logo na sua frente,
espalhados em um semicírculo. E Dani era capaz de jurar
que não havia nada ali um segundo antes.
Ela desceu de moto. Os mercenários estavam
olhando para o espaço entre as [arvores, mais à frente,
onde os últimos vampiros ainda estavam lutando entre
si. Dani não queria ouvir os sons vindo de lá, mas não
tinha como evitar. Não eram mais gritos e de alguma
forma aquilo era pior.
Dani se virou. Amon estava parado, olhando na
direção dos mercenários, com a névoa escura se
agitando ao seu redor.
— Recuem — ela falou.
Dois dos mercenários olharam para ela, mas os
outros continuaram encarando Amon.
— Com todo respeito... — um dos mercenários
começou.
Dani soltou o ar com força e passou por eles.
— Recuem — ela repetiu. — Ele não vai ir atrás de
vocês.
Amon sorriu. Ela não tinha certeza do que estava
vendo, porque ainda era difícil focar no rosto dele, mas
Dani tinha certeza de que ele estava sorrindo e era
aquele sorriso que era quase uma ameaça.
Ela continuou andando na direção dele. Os fios de
névoa escura pelo chão se afastaram, como se
estivessem se recolhendo.
Dani ouviu os mercenários se movendo depressa – o
som de armas sendo guardadas, pessoas se levantando e
andando depressa demais no chão cheio de folhas e
galhos. Era melhor que ouvir os sons dos vampiros...
Tinha parado. Os gritos, os sussurros desesperados,
os sons meio sufocados que ela estava ouvindo antes.
Tudo tinha parado.
Ela não ia olhar para o que estava mais para trás de
Amon só para ter certeza de que os vampiros tinham
sido destruídos. Já tinha visto o suficiente do que sobrava
depois que Amon passava por algum lugar.
O comunicador de Dani apitou. Ela parou e colocou
uma mão logo abaixo da orelha para ativá-lo.
— Situação — Yuri falou.
— Estou aqui — ela respondeu. — Está tudo bem.
Amon ainda estava sorrindo. Ele tinha feito alguma
coisa.
— As câmeras foram desativadas.
Dani levantou as sobrancelhas. Amon não reagiu,
mesmo que ela tivesse certeza que ele estava ouvindo.
— Me dê uma meia hora e aí pode colocar essa área
na rotação de novo — Dani falou. — Me avise se alguma
coisa nova acontecer.
— Entendido.
Ela desativou o comunicador de novo.
Amon estava na sua frente. Não onde estava antes,
alguns passos distante. Na sua frente. Com o corpo
quase colado ao dela. E Dani não tinha visto nenhum
movimento.
— Por que você destruiu as câmeras? — Ela
perguntou.
Amon inclinou a cabeça. E Dani ainda não conseguia
realmente ver o rosto dele. Só ter uma impressão do que
deveria estar ali.
— Por que não? — Ele devolveu.
Dani continuou olhando para ele. Não ia repetir sua
pergunta, mas também não ia ceder.
A névoa se espalhou ao redor deles, sem tocar Dani.
Amon levantou uma mão, ainda completamente preta, e
segurou o queixo dela.
— Talvez eu estivesse planejando me alimentar dos
seus mercenários — ele murmurou. — Seria um
pagamento justo.
— Talvez — Dani falou. — Mas você não estava.
Amon apertou seu queixo e Dani sentiu a ponta das
garras dele contra sua pele.
— Tem tanta certeza assim? Mesmo depois de ver o
monstro que tanto queria?
Um arrepio atravessou Dani, mas não era de medo.
— Tenho. Você me deu sua palavra. Enquanto
tivermos esse acordo, você é o meu monstro.
Amon estreitou os olhos. E Dani conseguia ver o
rosto dele de novo.
— Talvez eu tenha destruído as câmeras para cobrar
a sua parte do acordo — ele falou.
Não. Depois de como Amon tinha agido na outra
noite, Dani tinha certeza de que ele não faria aquilo ali.
Ele era cuidadoso demais. Era mais fácil ele ter destruído
as câmeras porque realmente estava considerando se
alimentar dos mercenários.
Ela inclinou a cabeça e sorriu.
— Se quer o seu pagamento justo, sabe que ele não
vai acontecer aqui.
Amon a soltou e deu um passo atrás. A névoa voltou
para ele de uma vez e desapareceu. As linhas de poder
nas suas mãos se separaram e começaram a diminuir,
até voltarem a ser a tatuagem escura que Dani tinha se
acostumado a ver.
Ele esticou uma mão na direção de Dani.
— Posso te levar para casa, se quiser.
Do mesmo jeito que ele a carregara quando estavam
fugindo dos caçadores do Setor Seis, provavelmente.
E, se ela fosse para a casa segura com ele, não sairia
de novo naquela noite.
Dani ativou seu comunicador de novo.
— Yuri, vai precisar de mim? — Ela perguntou.
— Não e se a situação aí está sob controle, ia dizer
pra você ir descansar. Se acontecer alguma coisa,
Ezequiel e eu conseguimos lidar.
E alguém tinha que estar em condições de coordenar
qualquer tipo de defesa na noite seguinte, o que queria
dizer que um deles precisava estar descansado.
— Estou indo para casa, então — ela avisou e
desativou o comunicador.
Amon ainda estava com uma mão esticada na sua
direção. Dani respirou fundo e a aceitou.
DOZE

Dani respirou fundo e olhou ao redor. Ela só tinha visto o borrão


de movimento enquanto Amon a levava como se não
fosse nada, e já estava na sala da casa segura. Minutos.
Muito mais depressa do que se ela tivesse pegado a
moto.
A porta da sala se fechou com um ruído seco. Dani
se virou em tempo de ver Amon ativar a fechadura
eletrônica, sem falar nada.
Sim. Era melhor tudo estar trancado. Ela não queria
correr o risco de serem interrompidos.
Ela ia fazer aquilo. Ia dar seu sangue para Amon.
Ele parou na frente de Dani. Ainda tinha alguma
coisa no olhar de Amon que era diferente, como um eco
do poder que Dani tinha visto na fronteira. A loucura,
mas havia mais. A fome, também.
Um arrepio a atravessou. Ela tinha crescido em um
setor controlado pelos vampiros. Deveria ter se lembrado
antes. Um vampiro que usava suas habilidades era um
vampiro que estava a um fio de perder o controle – não
que eles fossem usar aquela expressão. Mas eles
precisavam de sangue quando faziam algo daquele tipo.
E o que Amon havia feito...
— Você realmente ia se alimentar dos mercenários —
ela falou.
Amon sorriu.
— Talvez.
Não. Não tinha nenhum "talvez" naquilo. Ele ia, sim.
Tinha sido por isso que havia destruído as câmeras de
segurança.
Saber aquilo deveria ser o suficiente para fazer Dani
se afastar e querer mudar de ideia. Mas não era.
Amon podia ter se alimentado dos mercenários e ela
não teria conseguido fazer nada para impedir. Mas ele
não tinha feito nada. Ele tinha aceitado a presença de
Dani e o que ela queria.
Talvez fosse estupidez pensar que aquilo queria dizer
alguma coisa. Provavelmente era. Mas também era tarde
demais para Dani voltar atrás, e ela não voltaria mesmo
que pudesse. Dani queria Amon. Simples assim. E queria
saber o que aconteceria se cedesse.
— Ainda sem medo — ele murmurou.
Dani não precisava ter medo. Não dele, pelo menos.
— Se você quisesse fazer alguma coisa, teria feito —
ela falou.
Os olhos de Amon escureceram – não as írises, mas
a parte branca. Era a mesma coisa que ela tinha tido a
impressão de ter visto antes, mas agora não tinha nada
de impressão. Os olhos dele estavam completamente
pretos, com as írises daquela cor que era uma mistura de
verde a âmbar.
Amon passou por ela e se sentou no sofá. Dani se
virou, devagar, e ele esticou uma mão na sua direção.
Ela respirou fundo e foi na direção dele. A pele de Amon
era fria contra a sua, mas aquilo era normal. Dani não
tinha motivos para estar notando aquilo de novo. Não
quando estava só segurando a mão dele. Mas não
conseguia não notar.
Ele a puxou. Dani parou na frente de Amon, sem
conseguir desviar o olhar do dele. Não era compulsão.
Era só... ele. Mais nada, e não adiantava Dani tentar
negar.
Dani se ajoelhou no sofá, com uma perna de cada
lado das de Amon. Aquilo era parecido demais com a
outra noite. Era quase a mesma posição, mas agora ela
estava de frente para ele e não encarando um espelho. E
fazia sentido. Ela não estava tentando negar o que
estava fazendo, daquela vez, e Amon já tinha deixado
claro que não deixaria ela tentar negar.
Amon puxou o zíper do colete que Dani estava
usando. Era a proteção básica para todo mundo das
equipes de segurança, mesmo que ela tivesse certeza
que a gola alta e reforçada não fizesse muita diferença
na prática. E era quase simbólico estar ali, sentada no
colo de um vampiro enquanto ele tirava algo que deveria
ser uma proteção exatamente contra o que iam fazer.
O colete se abriu. Amon puxou um lado e depois o
outro e Dani deixou a peça de roupa cair no chão. Ela
estava usando uma das suas camisetas de sempre por
baixo e Amon acompanhou o desenho de um dos galhos
da sua tatuagem com os dedos.
— Isso pode ser rápido e impessoal — ele falou. —
Ou pode ser uma experiência. A escolha é sua.
Dani respirou fundo. Era óbvio que ele ia jogar a
escolha para ela. Mas Dani já tinha tomado sua decisão e
não ia voltar atrás. Ela queria saber. Queria experimentar
e não tinha nada a perder.
Ela virou o braço, mostrando as cicatrizes de quando
tinha sido chamada para pagar o preço de sangue, pouco
mais de um ano antes de precisar fugir do setor onde
vivia.
— Já vi o "rápido e impessoal" antes e jurei pra mim
mesma que nunca mais ia fazer isso — Dani falou. — Não
vou ser usada como um lanchinho.
Amon sorriu e continuou acompanhando o desenho
dos galhos com os dedos, voltando na direção do seu
peito e quase subindo pelo seu pescoço. Um arrepio
atravessou Dani.
— Uma experiência, então — ele murmurou. — Algo
para ser lembrado.
Ela engoliu em seco e passou a língua pelos lábios.
Dani sempre tinha julgado as pessoas que cediam
aos vampiros. Não os que pagavam o preço de sangue,
mas os que ofereciam seu sangue. Estando ali, com
Amon falando daquele jeito e a tocando com aquele
cuidado, Dani estava começando a pensar que talvez
aquelas pessoas soubessem de algo que ela só estava
descobrindo naquele momento.
Amon jogou o cabelo de Dani para trás e puxou a
alça da sua camiseta para o lado. Ela fechou os olhos
quando ele abaixou a cabeça e os abriu de novo quando
Amon beijou seu ombro. Só aquilo. Um beijo, enquanto
ele estava com uma mão na sua cintura e a outra no alto
do seu braço. Não deveria ser nada demais. Mas era, de
alguma forma.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar, tentando se
controlar. Era só um beijo. Não importava se os lábios de
Amon fossem frios contra a sua pele ou se a forma como
se ele a tocava fosse algo diferente de um jeito que ela
não sabia explicar. Ainda era só um beijo. Dani não tinha
motivos para estar sentindo sua respiração pesar e
querendo mais.
Mas ela tinha, de certa forma, porque se lembrava
do que vinha depois daqueles toques. Do que Amon
havia feito na outra noite – como cada toque tinha
parecido uma marca contra sua pele, queimando mesmo
que sua pele fosse fria. De como ele havia feito seu
corpo responder e ela se esquecer de tudo o que sempre
havia pensado sobre vampiros.
De como Amon tinha feito ela querer muito mais.
Amon soltou sua cintura e colocou a mão logo abaixo
da sua orelha, fazendo pressão com um dedo até que
Dani inclinou a cabeça na direção que ele queria. Ela
fechou os olhos e uma respiração trêmula escapou. A
antecipação era quase uma sensação física e ela sabia
que Amon estava fazendo aquilo de propósito. Uma
experiência, como ele tinha falado.
Ele continuou beijando seu ombro, mas agora estava
fazendo uma trilha de beijos lentos, indo na direção do
seu pescoço.
Dani sabia o que ia acontecer. Ela já tinha pagado o
preço de sangue, antes. Mas não ia ser a mesma coisa.
Ela só não sabia o que esperar.
Amon levantou a cabeça e parou.
Ela respirou fundo e abriu os olhos. Ele estava
parado, a encarando, ainda com os olhos daquele jeito,
escuros de uma forma que era um lembrete de que não
havia nada humano ali. Suas presas pareciam maiores e
aquilo deveria ser motivo para Dani se preocupar, não
para mais um arrepio atravessar o seu corpo enquanto
ela imaginava qual seria a sensação. Ela se lembrava da
outra vez. Da dor e de se sentir usada, depois. E tinha
certeza que não seria assim.
— Faça — ela murmurou.
Amon sorriu e abaixou a cabeça devagar. Dani
fechou os olhos de novo, respirando fundo.
Ela tinha pensado que ia doer, mas não. Dani tinha
certeza de que tinha sentido as presas de Amon
entrando na sua pele, mas não havia dor. Era só uma
sensação quase quente e aquela impressão de algo
sendo sugado – e que se espalhava pelo seu corpo, como
se fossem outros lugares sendo chupados.
Dani gemeu baixo e segurou o braço de Amon.
Aquela sensação continuava, como se ele estivesse no
meio das suas pernas, chupando seu clitóris e não só
bebendo do seu pescoço. Mas não era exatamente
aquilo. Era diferente e era mais, de um jeito que ela
nunca havia sentido antes. Era como se todo o seu corpo
estivesse sensível, respondendo ao que Amon estava
fazendo, enquanto ele estava bebendo seu sangue.
Era demais. Eram sensações demais, sem parar, só
crescendo sem o menor sinal de que iam terminar. E Dani
não sabia se queria que aquilo acabasse. Mas era
demais.
Ela soltou o botão da sua calça e enfiou a mão por
baixo da calcinha.
Amon parou de sugar e segurou seu pulso com a
outra mão, a puxando para cima de novo antes de voltar
a beber do seu sangue. Dani tentou se soltar, mas não
adiantava. Ele era um vampiro. Ele podia fazer o que
quisesse e ela não conseguiria impedir.
Saber daquilo e sentir a forma como ele ainda estava
segurando seu pulso não deveria ser o suficiente para
fazer as sensações serem mais fortes. Mas era o que
estava acontecendo. Ela não podia fazer nada, só aceitar.
Só esperar, enquanto ainda estava se sentindo ser
sugada – não só o seu sangue.
Dani se apertou contra Amon. Ou pelo menos tentou,
porque não tinha muito como se mover naquela posição.
E não queria que ele parasse. O que quer que
acontecesse, não queria que aquela sensação acabasse.
Pelo menos não enquanto Dani estava daquele jeito, num
limite que parecia não ter fim, se sentindo como se um
toque fosse ser o suficiente para fazer o orgasmo
explodir pelo seu corpo de um jeito que nunca tinha
acontecido antes, mas se conseguisse aquele toque.
Amon levantou a cabeça e lambeu seu pescoço.
Dani se apertou contra ele, gemendo de uma forma
que era quase desesperada. Quase lá. Ela estava quase
lá e ele estava parando...
Amon segurou seu queixo. Ela abriu os olhos. Ele a
estava encarando e ela ainda conseguia ver a fome no
olhar de Amon.
— Não... — ela começou.
Ele a soltou.
Algo rasgou. Sua calça. Ela tinha sentido o puxão, só
não tinha percebido o que era. E a calça de Amon,
também, porque ele a estava levantando e ela conseguia
sentir o pau dele, mais frio que a sua pele.
Amon entrou nela de uma vez. Dani gritou e enfiou
as unhas no braço dele.
O orgasmo explodiu pelo seu corpo, forte demais,
como se ainda estivesse crescendo, sem parar, enquanto
Amon a fodia. Era a única palavra que Dani conseguia
usar para aquilo. Era algo cru, duro, sem nenhum resto
de delicadeza, só necessidade. Só o som molhado dos
seus corpos se chocando e os gemidos dela. Só a
sensação do pau de Amon, enquanto ela se sentia
contrair ao redor dele, sem saber onde uma sensação
terminava e outra começava.
E ela ainda queria mais.
Amon a beijou. Dani conseguia sentir o gosto
metálico do seu sangue, mas não importava. A única
coisa que importava era o movimento, ele entrando e
saindo dela. A urgência da forma como Amon a segurava,
também. A forma como as sensações continuavam
crescendo de uma forma que não deveria ser possível.
As presas de Amon arranharam sua boca, por dentro,
e o corte se fechou quase na mesma hora quando ele
passou a língua pelo mesmo lugar. Dani se moveu contra
ele, querendo mais, mesmo que não tivesse como se
aproximar mais e que ele já estivesse até o limite dentro
dela. Mesmo que ela não soubesse se conseguia sentir
mais. E Amon ainda a estava beijando como se
precisasse daquilo para existir, o tempo todo sem parar
de se mover, entrando e saindo dela naquele ritmo cru.
Dani gritou quando o orgasmo explodiu pelo seu
corpo, de novo. Uma sensação sobre a outra, de um jeito
que era quase mais que ela conseguia lidar. Amon a
segurou com força, com a boca no seu pescoço de novo
e as presas contra sua pele, e Dani não se importava.
Não conseguia nem queria se importar.
Amon a segurou no lugar enquanto Dani tremia e
ofegava. A sensação do pau dele era o suficiente para
fazer ela tremer toda vez que ele se movia, por menor
que o movimento fosse, mas ela não queria se afastar.
Ela nunca mais ia julgar os humanos que se
ofereciam para os vampiros. Se aquilo era o que
recebiam em troca...
Amon levantou a cabeça, devagar. Dani respirou
fundo e o encarou. Os olhos de Amon tinham voltado ao
normal e as presas realmente não estavam tão grandes
quanto logo antes.
Ela tinha feito aquilo. Tinha oferecido seu sangue
para Amon. E depois...
Dani não sabia nem como descrever o que tinha
acontecido. Os restos da sua calça ainda estavam nas
suas pernas e sua camiseta tinha rasgos onde Amon
tinha segurado. Aquilo tudo deveria ser motivo para se
preocupar, mas ela só conseguia prestar atenção na
sensação de Amon nela. Em como ele ainda estava duro.
E ela queria mais.
Dani se moveu devagar. Amon fechou os olhos e fez
um ruído sibilante antes de segurar sua cintura de novo.
— Não — ele falou.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Eu já ouvi histórias sobre o veneno dos vampiros
— Dani começou. — Só nunca...
Amon apertou sua cintura, sem abrir os olhos, com
uma expressão tensa.
— Não é sempre assim. Isso foi por minha causa.
Dani respirou fundo de novo. Ela precisava pensar.
Tinha algo ali que ele não estava falando e que era
importante.
— Porque você quase perdeu o controle — ela falou.
Amon levantou a cabeça.
— Não. Porque eu passei muito tempo sem sangue.
Um arrepio atravessou Dani. Ele não estava sem
sangue. A caixa térmica na geladeira estava sendo
mantida cheia desde o primeiro dia. Mas ela se lembrava
do que ele tinha falado sobre estar tomando sangue
morto. E talvez aquilo explicasse por que os vampiros
não usavam bancos de doação ou algo do tipo. Eles
precisavam do sangue direto da veia, por algum motivo.
Amon estreitou os olhos.
— Você não pegou uma faca — ele falou.
Dani levantou as sobrancelhas, tentando não se
mover. Ela estava conseguindo pensar. Já era muito.
Mas...
— Por que eu pegaria uma faca? — Ela perguntou.
Amon sorriu.
Dani não teve tempo de reagir quando ele a segurou
pela cintura de novo e se levantou. Ela gemeu, se
sentindo contrair contra o pau de Amon, de novo, sem
conseguir fazer nada a não ser se segurar enquanto ele
atravessava a sala e entrava no quarto.
— Isso quer dizer que eu posso continuar — Amon
murmurou.
Um arrepio atravessou Dani.
Sim, ele podia continuar. Ele mais que podia.

Tempo demais. Amon havia passado tempo demais preso por


juramentos de sangue, com o que ele podia fazer sendo
contido por outras pessoas. Depois daquilo, cinquenta
anos esquecido nas ruínas do que antes era o Setor Oito
não pareciam ter sido muita coisa. Mas a combinação...
Ele entendia como os outros haviam sido destruídos.
Os que tinham habilidades parecidas com a dele, ou que
eram até mesmo mais fortes. A loucura não havia sido só
por causa do excesso de magia. Os que haviam
sobrevivido no começo e sido presos tinham se perdido
depois – não porque ainda estavam loucos, mas porque
estar presos os havia enlouquecido de vez.
Amon tinha sentido o que poderia ter acontecido. A
sede de sangue crescendo, a força nas suas veias
dizendo que ele podia ter o que quisesse.
Daniele nunca ia saber quão perto havia sido. Ele
não destruíra aquelas câmeras porque ia se alimentar
dos mercenários. Ele havia feito aquilo porque tomaria
tudo deles, não só o sangue. E depois faria o mesmo pelo
restante do setor. E por todos os setores em volta.
Era o que ele teria feito se ela não houvesse
chegado. Se ela não houvesse olhado para ele sem dar o
menor sinal de que queria recuar, como se tivesse
certeza de que estava segura e de que ele não a
atacaria.
Ele não tinha atacado. Nem lá, nem quando já
estavam na casa, de novo.
E, pela primeira vez em mais tempo do que
conseguia se lembrar, Amon se sentia no controle.
Daniele respirou fundo e rolou na cama.
Amon não sabia quanto tempo tinha se passado. O
sangue havia sido mais que o suficiente – e ele havia
bebido mais do que o que era seguro – mas a reação de
Daniele ao veneno tinha sido mais que o suficiente para
acordar outro tipo de sede de sangue. Amon tinha
perdido a noção do tempo, de quantas vezes tinha se
perdido no corpo de Daniele e de quantas formas
diferentes. De como havia sentido ela se desfazendo nas
suas mãos, uma vez depois da outra, sem resistir.
Mas a sede de sangue havia passado e Daniele ainda
estava ali, relaxada, quase dormindo.
Não. Ela ainda não podia dormir. Não depois do que
ele havia feito e sabendo que o Setor Oito podia voltar no
dia seguinte.
Amon se levantou. Daniele murmurou alguma coisa
e mas não saiu do lugar.
Ele saiu do quarto, foi para a cozinha e parou,
encarando os armários. Amon não sabia mais o que os
humanos faziam para lidar com perda de sangue. Antes,
quando a magia ainda não tinha voltado para o mundo,
ele havia estudado aquilo. Era uma forma de garantir que
não deixaria traços por onde passava. Mas aquilo havia
sido há tanto tempo que Amon não se lembrava mais.
— O que você está fazendo? — Daniele perguntou.
Amon se virou. Ela tinha parado do outro lado da
parede baixa da cozinha, usando só uma blusa que batia
no meio das suas coxas.
— Procurando alguma coisa para você beber ou
comer — ele falou.
Ela respirou fundo e balançou a cabeça devagar.
— É melhor eu não comer nada pra valer agora, se a
ideia é estar minimamente descansada.
Não. Amon não aceitaria aquilo.
— Eu tomei mais sangue do que deveria — ele
avisou. — Você precisa de algo para se recuperar.
Daniele continuou olhando para ele.
Alguma coisa havia mudado naquela noite. Amon
deveria ter imaginado que aquilo aconteceria,
considerando o que havia feito e como Daniele reagira.
Ou como não havia reagido, no caso. E ele não queria
entender exatamente o que havia mudado. Era mais
simples assim.
Ela apontou para o armário na parede, ao lado da
cabeça de Amon.
— Deve ter algumas barras de cereal — Daniele
falou. — E acho que tem umas laranjas na geladeira. Se
puder espremer uma...
Amon se virou sem falar nada e abriu o armário.
Aquilo também era ele recuperando um pouco de quem
havia sido antes de tudo. Antes da magia, antes dos
juramentos – porque ele sempre havia feito questão de
cuidar dos humanos que o alimentavam.
Daniele não era só uma humana que o alimentava.
Nunca seria.
A porta do banheiro se abriu e se fechou. Bom.
Aquilo era bom.
Amon abriu a geladeira e achou as laranjas.
Quando Daniele voltou para a cozinha, ele já tinha
um copo de suco pronto e as barras de cerais separadas.
Ela pegou o copo, sem falar nada, e abriu uma das
barras.
Amon se encostou na parede e cruzou os braços. Ele
estava esperando perguntas. Qualquer coisa sobre o que
havia acontecido e o que ele havia feito. Daniele já tinha
alimentado um vampiro antes, mas provavelmente havia
sido um preço de sangue e o vampiro havia sido
descuidado. Ela não tinha sentido o veneno correndo
pelas suas veias antes.
Ela terminou uma das barras e olhou para ele.
— Então é isso que você faz — Daniele começou. —
Você faz os vampiros se virarem uns contra os outros.
Você os deixa loucos.
Ele deveria ter imaginado que o foco dela seria no
que poderia ser um risco para a sua família e não no que
havia acontecido ali.
E Daniele não estava tão longe da verdade.
Amon balançou a cabeça.
— Eu lhes dou seus pesadelos.
Aquilo que eles temiam. Os medos de quando era
vivos, quando não tinham nenhuma garantia de que
sobreviveriam a mais um dia. Amon não tinha certeza de
se ele usava os pesadelos de cada um ou criava novos
pesadelos. Não fazia diferença, no final, porque o
resultado era sempre o mesmo e era o que Daniele havia
falado: ele deixava os vampiros loucos.
A respiração dela acelerou. Medo, mas não dele,
especificamente. Ela entendia o que uma habilidade
como aquela queria dizer.
— Eles estavam vendo seus pesadelos — Daniele
murmurou. — Estavam pensando que os outros eram
seus pesadelos.
Amon assentiu e não falou mais nada.
Ela respirou fundo e abriu a segunda barra de cereal.
Ele não fazia ideia de se aquilo era o suficiente, mas
Daniele estava certa. Ela precisava dormir.
Daniele virou o restante do suco e deu a volta na
parede para lavar o copo.
— Tem mais alguém que consegue fazer o que você
faz? — Ela perguntou.
— Não. Até onde eu sei, mais ninguém sobreviveu.
A loucura, os juramentos... Amon sabia de alguns
vampiros mais velhos que ele. Não eram muitos, mas
alguns haviam sobrevivido e todos eram parte de Cortes.
Mas, dos que era capazes de fazer algo parecido com o
que ele fazia... Ninguém.
Ela assentiu devagar. Amon esperou. As perguntas
não parariam com aquilo.
Ou parariam, porque ele estava lidando com Daniele
e nunca sabia como ela ia reagir.
— O Setor Oito vai voltar — ela falou.
Inesperado, de novo.
Amon assentiu.
— Se eles estão atacando porque querem levar sua
prima... — ele começou.
Daniele levantou a cabeça e se virou para ele de
uma vez.
— Eu não falei isso.
Ele sorriu.
— Você não falou. Mas eu me lembro de como essa
região era, cinquenta anos atrás. Só existe uma
explicação para as árvores que vocês têm perto da
fronteira. Uma bruxa da natureza.
Daniele soltou o ar com força.
— Eu não devia ter contado sobre a tatuagem — ela
resmungou.
Amon riu – e ele não se lembrava de quando havia
sido a última vez em que ele tinha rido daquele jeito,
sem ser como uma ameaça ou uma forma de manipular
alguém.
Ela encarou os pacotes rasgados das barras de
cereais antes de olhar para Amon de novo.
— Isso muda as coisas — Daniele murmurou.
Amon se endireitou. Mesmo depois de todas as
formas como ela já o havia surpreendido, ele não tinha
esperado aquele comentário. E ele não sabia como
responder. Mudava, sim. Como, era mais uma coisa que
dependia mais de Daniele do que de qualquer coisa que
ele fizesse.
Daniele embolou os pacotes vazios das barras de
cereais e os jogou no lixo.
— Você realmente vai ficar parado sem falar nada,
como se o que aconteceu não fosse nada demais? — Ela
perguntou, sem olhar para ele.
Era o que Amon queria fazer, porque ele não sabia o
que dizer. E não se lembrava da última vez que aquilo
havia acontecido.
— Isso muda as coisas — ele repetiu. — Ou pode não
mudar. A escolha não é minha.
Daniele se virou para ele.
— Não é? Porque eu deixei claro que não vou ser
usada como lanchinho e descartada depois.
Amon sorriu. Ele quase esperava que ela estivesse
com uma faca na mão, mas Daniele continuava parada
no mesmo lugar, só o encarando.
Ele parou na frente dela e colocou uma mão no seu
pescoço, em cima de onde havia mordido. As marcas
haviam desaparecido, mas Amon sempre reconheceria o
lugar exato.
— Se o que eu quisesse fosse só me alimentar, nada
disso teria acontecido — ele falou.
Não. O que ele queria era Daniele.
Ela sustentou seu olhar.
— Ótimo — Daniele falou.
Daquela vez, era a reação que Amon estava
esperando.
E se ele continuasse tão perto dela quanto estava,
sentindo sua pulsação disparar sob seus dedos, Daniele
não descansaria.
Amon a soltou e deu alguns passos para trás.
— Você precisa dormir — ele falou.
Daniele suspirou e assentiu, se virando para voltar
para a sala.
— Fique na cama — Amon completou.
Ela olhou para trás e assentiu de novo, antes de
entrar no quarto.
Algo em Amon relaxou.

Dani entrou na cozinha da mansão e parou. Ninguém. Ótimo, era


melhor assim. Já eram quase duas horas da tarde, o que
era quase uma garantia de que encontraria alguém ali,
almoçando tarde. Se estava dando sorte, melhor ainda
porque Dani não queria falar com ninguém. Ninguém
além de Raquel, no caso, que já estava avisada de que
ela estava ali.
Seu celular vibrou de novo. Dani suspirou. Não
precisava olhar para saber que era mais uma mensagem
de Alana e ela não ia responder. Não ia correr o risco de
contar tudo o que estava acontecendo e que estava na
sua cabeça para Alana. Não precisava que ela ficasse se
culpando de novo e achando que tudo era por culpa dela
e do seu poder. Não. Dani ia dar um jeito naquilo
primeiro. Quando estivessem livres do Setor Oito, aí ela
ia falar com a prima. Até lá Alana estaria furiosa, ela
sabia, mas era a melhor opção.
Dani saiu da cozinha para o corredor que dava na
sala de jantar e de lá no saguão. A irmã de Lara estava
parada no pé da escada. Valissa. E ela parecia em casa
ali.
Dani forçou um sorriso. Ela quase tinha se esquecido
da garota, com tudo que estava acontecendo. Não
deveria. No fim das contas, ela era responsabilidade sua.
Mesmo que Valissa estivesse na mansão, tinha sido Dani
quem tinha feito um acordo com Lara. Ela devia ter pelo
menos perguntado sobre a garota.
— A bruxa está te esperando — Valissa falou.
Ela só podia estar falando de Raquel.
— Obrigada — Dani respondeu. — E você...
— Se não quiser ver ninguém, é melhor correr — a
garota interrompeu.
Se era certo? Não era. Mas Dani não ia nem tentar
negar que não queria falar com mais ninguém.
— Obrigada — ela repetiu.
A garota não falou nada enquanto Dani subia as
escadas quase correndo e virava na direção do escritório
de Raquel. Depois. Ela ia cuidar daquilo depois, também.
Ia procurar saber como Valissa estava e se alguém tinha
descoberto por que Lara queria que ela ficasse no Setor
Dez. De quê ela estava fugindo.
A porta do escritório de Raquel estava fechada. Dani
bateu e esperou.
— Entre.
Ela entrou e fechou a porta atrás de si. Raquel
estava sentada atrás da sua mesa, com um tablet aberto
na sua frente e mais dois monitores ligados.
Provavelmente estava analisando o que tinha acontecido
de noite.
— Yuri deixou os relatórios para você — Raquel falou.
Dani assentiu. Era o protocolo: se Yuri tinha cuidado
das coisas na noite anterior, então aquela noite seria
responsabilidade de Dani. Ele provavelmente tinha ficado
vigiando a fronteira até amanhecer, talvez até mais.
Conferir se os relatórios já estavam no servidor tinha
sido a primeira coisa que Dani tinha feito depois de
acordar.
— Eu vi.
Raquel cruzou os braços e se inclinou para trás na
cadeira.
— Então isso não tem a ver com a noite passada.
Talvez tenha a ver com como você está ignorando sua
prima?
Dani suspirou e se sentou. Não precisava de Raquel
falando sobre aquilo.
— Você conhece Alana — ela falou. — Se eu tivesse
contado o que estava fazendo, ela ia se preocupar, se
culpar, e aí tentar achar algum jeito de resolver tudo e...
É melhor não. Já tem coisas demais saindo de controle
sem ela tentar fazer alguma coisa porque está se
sentindo culpada.
Raquel levantou as sobrancelhas.
— Espero que você saiba que, dois dias atrás, Alana
estava nessa mesma cadeira que você está sentada,
com uma lista de motivos para não fazer sentido ela não
saber do que estava acontecendo.
Droga. Era tudo o que Dani não queria. Alana não
precisava saber que ela tinha libertado um vampiro e
feito um juramento... Que não existia mais e que tudo já
tinha saído do seu controle.
Ela não podia responder a prima nem sonhar em se
encontrar com ela ali. Alana já teria alguma ideia sobre
como reverter a situação, algum plano louco que só
complicaria tudo.
Raquel balançou a cabeça devagar.
— Vocês são mais parecidas do que você pensa,
Dani.
Ela não respondeu. Dani e Alana não eram parecidas.
Nunca tinham sido. Dani sempre tinha sido a força bruta,
desde que eram crianças. Era um tipo de força bruta
diferente, mas no fundo nada tinha mudado.
Raquel suspirou.
— E imagino que você também não esteja aqui por
causa da garota que você trouxe para o setor.
Dani desviou o olhar. Aquele definitivamente não era
o seu dia.
— Eu sei que só deixei ela aqui sem falar mais nada,
mas... — ela começou.
Raquel levantou uma mão.
— Valissa está ajudando Alana — a bruxa contou. —
Com o quê, só sua prima sabe. Mas ela está segura e
parece satisfeita.
E Raquel não precisava dizer que ela não estava
satisfeita com a situação.
Dani precisava fazer melhor.
Raquel cruzou os braços sobre a mesa.
— Isso é sobre seu vampiro, então — ela falou.
Dani respirou fundo e assentiu.
— Eu sabia que estava bom demais para ser verdade
— a bruxa resmungou. — O que aconteceu? Ele é forte
demais para o juramento ou...
— Pior — Dani falou.
Raquel levantou as sobrancelhas.
Dani respirou fundo de novo e começou a contar
tudo: como Melissa tinha avisado que Amon conseguiria
desfazer o juramento quando quisesse. Como ele tinha
mostrado os espinhos o prendendo para Dani e contado
sobre estar preso desde sempre. Sobre o juramento ser
uma ferramenta para controlar outros vampiros, algo
muito pior do que eles tinham imaginado.
E sobre Dani ter desfeito o juramento quando tinha
entendido o que ele realmente era.
Raquel respirou fundo e soltou o ar devagar, sem
falar nada.
— Nós temos um acordo — Dani completou,
depressa. — Ele não vai atacar o Setor Dez.
— E você confia nele?
— Confio.
Era loucura, mas também era a verdade. Dani
confiava em Amon.
Raquel continuou a encarando, sem falar nada.
Dani suspirou e deu de ombros.
— Você viu o que ele consegue fazer. Ele quer se
vingar do Setor Oito, mas não precisa de nós pra fazer
isso. Eu desfiz o juramento quando a gente ainda estava
no Setor Seis. Ele não precisava ter voltado para cá. Não
precisava ter parado os caçadores que nos seguiram. Até
o que aconteceu ontem... — Ela deu de ombros de novo.
— Ele não precisava ter ajudado.
E, com Dani se lembrando do que podia acontecer
quando Amon usava aquele poder, o risco de que ele
perdesse o controle não ia existir. Ou pelo menos ia estar
num nível aceitável, porque ela faria questão de estar
por perto.
— E você tem certeza de que não está sob nenhuma
compulsão? — Raquel perguntou.
Dani se endireitou. Ela não ia dizer que notaria se
um vampiro estivesse tentando forçá-la a fazer alguma
coisa. Não tinha se esquecido de como Melissa tinha feito
exatamente aquilo sem o menor esforço e sem Dani nem
notar o que estava acontecendo.
Mas ela tinha certeza. Amon nunca tinha usado
compulsões com ela. Tudo o que haviam feito tinha sido
por escolha de Dani.
— Tenho.
Raquel suspirou.
— Então não vai se ofender se eu quiser ter certeza
disso — ela falou.
Dani deu de ombros.
— Se tem algum jeito de ter certeza, à vontade.
Raquel assentiu e levantou a cabeça.
— Pode entrar.
A porta do escritório se abriu e Alex entrou.
Dani fechou os olhos e respirou fundo. De todas as
pessoas que podiam estar ali... Alex. Tinha que ser Alex.
Dani quase preferia se encontrar com Alana do que com
elu, especialmente depois do que tinha feito de noite.
Alex era a pessoa que sempre tinha falado que Dani ia
atrás do perigo. Que ela não corria riscos porque
precisava e sim porque queria a adrenalina. E aquilo
estava perto demais da verdade, depois do que tinha
acontecido.
Mas Dani não tinha oferecido seu sangue porque
queria adrenalina. Ela tinha oferecido porque queria.
Mais nada.
Alex não olhou para Dani.
— Precisa de alguma coisa, Raquel? — Elu
perguntou.
Raquel inclinou a cabeça. Dani se forçou a continuar
sentada, mesmo que quisesse levantar e andar de um
lado para o outro. Não era à toa que ela tinha enrolado
tanto para falar com Raquel. Ir na mansão era uma
garantia de pelo menos uma situação como aquela e...
— Preciso saber se tem alguma chance de Dani estar
sob uma compulsão — Raquel falou.
Alex se virou para Dani.
— O que você fez agora? — Elu resmungou.
Dani se endireitou.
Não. Ela não ia discutir. Não ia adiantar. Alex já tinha
sua opinião formada e ponto.
— Eu não sabia que você... — Dani começou.
Ela não sabia nem o que era que Alex estava
fazendo. Ou tinha feito. Sempre tinha pensado que elu
era como ela: sem nenhum tipo de poder. Tinham sido
mais de dois anos juntes, e Dani nunca havia imaginado
que Alex podia ter algum poder.
Alex olhou de relance para ela. A expressão delu
estava gelada e dura de um jeito que Dani só tinha visto
uma vez antes, no dia em que tinham terminado de vez.
— Foi por isso que comecei a estudar história — elu
contou. — Para entender os vestígios de poder.
Aquilo explicava muito sobre como Alex sempre
sabia demais sobre coisas que era quase impossível
alguém humano saber. E também explicava como elu
havia conseguido o tipo de acesso que tinha aos bancos
de informações dos humanos.
Mais de dois anos, e Dani nunca tinha imaginado
nada como aquilo.
Alex não podia colocar a culpa do término toda nela.
Elu também tinha feito sua parte.
Alex olhou para Raquel.
— Estou sentindo algum vestígio de poder dos
vampiros, mas soa como algo consensual e não como
uma compulsão.
Um arrepio atravessou Dani. Alex sabia. Elu não
tinha falado com todas as letras, mas se tinha sentido
poder então provavelmente tinha entendido exatamente
o que ela estava tentando esconder.
Raquel assentiu.
— Obrigada, Alex.
Alex saiu do escritório sem falar mais nada e sem
nem olhar para Dani.
Era melhor daquele jeito. Muito melhor.
E se repetisse isso para si mesma vezes o suficiente,
talvez Dani até acreditasse. Por mais que soubesse que
Alex e ela nunca dariam certo, Dani ainda sentia falta
delu. Mas Alana estava certa. Era melhor ficarem longe.
Raquel esperou a porta se fechar e encarou Dani de
novo antes de soltar um suspiro cansado.
— O Setor Oito enviou um comunicado oficial — ela
contou. — Eles estão nos acusando de roubar algo que é
propriedade deles.
Um arrepio atravessou Dani. Amon. Era óbvio que
estavam falando de Amon. E era exatamente o que ele
tinha mencionado: que o tratavam como um objeto. Uma
arma a ser usada e mais nada.
— Eles exigem a devolução imediata da propriedade,
vou vão tomá-la à força — Raquel completou.
Dani fechou os olhos e respirou fundo. Era culpa dela
e ela não se arrependia. Ainda acreditava que tinha feito
a melhor escolha que podia, quando acordou Amon. Mas,
ao mesmo tempo, tinha dado um motivo perfeito para o
Setor Oito atacar. Agora não era mais um caso de "ah,
estamos atacando porque podemos".
— Não sei o suficiente sobre a política das Cortes
para saber se vão concordar com o Setor Oito — Raquel
continuou.
Porque se concordassem, o Setor Oito poderia fazer
o que quisesse e ninguém questionaria. Eles não
precisariam se preocupar com aparências, só com força
bruta. E o Setor Dez não teria a menor chance se aquilo
acontecesse.
Dani se levantou.
— Vou descobrir.

Amon encarou Daniele. Ela estava andando de um lado para o


outro na sala, girando uma faca entre os dedos depressa
o suficiente para ele se preocupar. E era fácil entender
por que ela estava agindo daquele jeito.
Eles haviam calculado mal a situação.
Não. Ele tinha se esquecido daquele detalhe. Era a
oportunidade para o Setor Oito poder atacar sem se
preocupar com nada. Era óbvio que não ignorariam algo
como aquilo. Amon deveria ter imaginado.
Daniele atravessou a sala de novo e parou na porta
do quarto.
— Certo. Já deu ruim. Que tanto pode piorar? — Ela
perguntou.
Aquilo era parte do problema: ele não sabia.
— Não é tão simples — Amon começou. — Existem
pelo menos duas possibilidades.
Ela passou a mão no rosto e guardou a faca que
estava girando.
— Tá. Duas possibilidades — Daniele repetiu. — E o
que quer que seja, eu não posso decidir isso sozinha.
Amon não falou nada enquanto ela pegava o celular.
Daniele voltou a andar de um lado para o outro,
enquanto esperava a pessoa que estava ligando atender.
Nada. Ela xingou e balançou a cabeça antes de encarar o
celular e ligar para outra pessoa.
— O que você descobriu? — Uma mulher perguntou,
do outro lado.
— Yuri ainda está dormindo? — Daniele perguntou.
— Provavelmente. Ele ainda estava lidando com os
relatórios às nove.
Nove da manhã. E não eram três horas da tarde. Se
o humano estava seguindo o que Daniele falara que era
o normal para eles, então com certeza estaria dormindo.
Daniele suspirou alto e entrou no quarto.
— A decisão final é sua, então — ela falou e afastou
o celular do ouvido. — Estou colocando no viva-voz.
Amon levantou as sobrancelhas. Ele sabia que os
humanos preferiam chamadas de vídeo quando
precisavam fazer algo como aquilo. Já era assim
cinquenta anos antes. Mas os vampiros nunca tinham
usado vídeo. A mesma força que deixava uma boa parte
deles sem reflexos também impedia que qualquer
câmera os captasse. Ele só não esperava que Daniele
soubesse daquilo.
— Você descobriu alguma coisa — a outra mulher
falou.
Só havia uma pessoa que Daniele teria ligado para
falar sobre aquilo: Raquel, a bruxa que governava o
setor. E que já sabia que ele não estava preso pelo
juramento. Bom. Aquilo deixava tudo mais fácil.
— Não exatamente — Daniele falou. — Amon?
Ele esticou uma mão na direção dela. Ela aceitou e
se sentou ao seu lado na cama.
— As Cortes podem ou não concordar com o
argumento do Setor Oito — Amon começou. — Em teoria,
um juramento de sangue deixa de ser válido quando um
novo juramento é feito, porque os juramentos anteriores
são absorvidos pelo atual. Qualquer reivindicação do
Setor Oito perdeu a validade no momento em que
Daniele teve meu juramento.
— Isso faz parecer que usar esse argumento não
levaria a lugar nenhum — Raquel disse. — Mas não é tão
simples, é?
Daniele apertou a mão de Amon. Ele quase sorriu.
Ela já tinha entendido.
— Daniele é humana — ele falou.
— Eles podem dizer que o juramento para mim não é
válido por causa disso — Daniele murmurou.
Amon assentiu.
— Se o Setor Oito tentar usar isso, não vai ser uma
decisão unânime — ele continuou. — Mas pode ser o
suficiente para decidirem ignorar os protocolos.
— E, se eles fizerem isso, não vamos ter a menor
chance — Raquel comentou. — Eles vão atacar com força
o suficiente para não deixar nada para trás.
Sim. E teriam tudo o que queriam: Amon e a bruxa
da natureza.
Havia outra opção.
Amon sorriu.
— Se devolverem a "propriedade" do Setor Oito, eles
vão ter uma surpresa — ele falou. — E vocês não vão
mais precisar se preocupar com eles.
Porque Amon destruiria tudo do Setor Oito. Não
sobraria nenhum vampiro, nenhum vestígio da Corte.
Talvez ele poupasse os humanos, desde que não
tentassem interferir. Mas qualquer um que estivesse com
a Corte... Não sobraria nada.
— Só teríamos que nos preocupar com os outros
setores, depois — Raquel completou.
Sim. O Setor Dez seria visto como um alvo fácil. O
setor que cedia. Mesmo que Amon destruísse tudo no
Oito, seria o que pensariam: que o Dez havia cedido. E,
se haviam feito aquilo uma vez, fariam de novo. Os
ataques continuariam.
Não era problema dele. O que Amon queria era sua
vingança. O Setor Oito seria apenas um começo. Ele
podia ter se esquecido de muita coisa, mas não daqueles
que haviam tido seu juramento, no passado. Amon faria
questão de caçar um por um. E quando terminasse...
Quando terminasse ele não teria nada. Estaria de
volta no começo. Não, pior, porque antes de tudo,
quando os vampiros ainda eram um segredo, era fácil
para Amon ter sua vida como queria. Mas o mundo havia
mudado.
Talvez fosse hora de repensar sua vingança. O Setor
Oito pagaria, de uma forma ou de outra. Mas ele não
precisava ter pressa. E os outros... Eles estavam longe o
bastante para Amon conseguir ignorá-los.
— Vocês entendem o que vai acontecer se eles
atacarem com força total — Amon falou.
Daniele soltou a mão dele.
— E isso faz diferença? — Ela perguntou. — Eles
querem você. É a sua chance de se vingar. Não tem nada
te prendendo aqui.
Ela estava enganada. Havia algo prendendo Amon
no Setor Dez: uma humana que, mesmo depois de ter
visto o que ele podia fazer, não tinha medo. E que podia
não ter o menor problema em usar as habilidades dele,
mas não o via como uma arma. Ela o via como alguém.
E Amon nunca a mataria, não importava o que havia
falado antes. Ele nunca conseguiria ferir Daniele – e faria
o que precisasse para protegê-la.
Amon balançou a cabeça devagar.
— A decisão não é minha.
Daniele o encarou, sem falar nada.
— Está dizendo que vai lutar por nós, vampiro? —
Raquel perguntou. — Mesmo sem um juramento te
prendendo? Mesmo sabendo que pode ficar sem sua
vingança por isso?
Ele sustentou o olhar de Daniele.
— Estou — Amon falou. — Enquanto o Setor Dez não
estiver estável.
Ela balançou a cabeça devagar, como se não tivesse
certeza do que estava acontecendo.
— Vamos lutar, então — Raquel avisou. — Dani, sabe
o que precisa fazer. Assim que Yuri acordar...
Daniele balançou a cabeça de novo, com mais força.
— Não — ela falou. — Se vamos fazer isso, Yuri só vai
se envolver hoje se houver uma emergência. Me dê uma
hora e os planos iniciais vão estar no servidor.
— Entendido.
Raquel desligou.
Daniele continuou segurando o celular, sem desviar
o olhar de Amon.
Ele pegou o celular e o colocou em cima da cama.
— Por quê? — Ela perguntou.
Amon deu de ombros e sorriu. Daniele perguntar
aquilo era só mais um dos motivos para ele ter certeza
de que estava tomando a decisão certa.
— Depois — ele falou. — Você tem trabalho a fazer.
Ela respirou fundo e se levantou.
— Depois — Daniele repetiu. — Não vou me
esquecer.
Ele sabia que não.
— E quero saber de qualquer detalhe sobre como as
forças do Setor Oito funcionavam que você conseguir se
lembrar — ela completou.
Ela teria. Todas as informações, tudo o que ele se
lembrava. Qualquer coisa que precisasse era dela.
TREZE

Dani encarou os monitores na parede do depósito. Daquela vez seu


pessoal tinha preparado tudo antes e toda a parede
estava coberta por monitores, cada um mostrando as
imagens de uma das câmeras de vigilância, com as
imagens mudando a cada poucos minutos, de acordo
com o que o pessoal na mansão estava identificando.
Todas as câmeras tinham sido ativadas, até as que
ficavam bem no limite do território do Setor Dez, no que
os acordos entre os setores chamavam de zona cinza de
vigilância: tecnicamente, era permitido ter imagens. Mas
um setor não podia usar nada que fosse captado sobre o
outro lado da fronteira.
Não que aquilo preocupasse Dani. O que acontecia
fora da fronteira não fazia tanta diferença. Aquelas
câmeras estavam ali para eles terem algum
monitoramento visual nas paredes elétricas.
Nas horas entre a conversa com Raquel e o
anoitecer, Dani tinha colocado todos em alerta máximo e
mandado buscar os materiais de logo que o setor havia
sido formado. Daquela vez, as barreiras na fronteira não
eram algo improvisado. Eram paredes elétricas, com
força o suficiente para parar vampiros. Pelo que Raquel e
Ezequiel tinham contado, aquelas barreiras eram o que
havia ganhado tempo para Raquel negociar a existência
do setor, vinte anos antes. Mantê-las ativas não era algo
que podiam fazer sempre, por causa do gasto de energia,
mas era uma necessidade agora.
A ideia era garantir que o Setor Oito não os pegaria
de surpresa. Quando atacassem, só teriam um caminho
possível: o mesmo lugar onde haviam começado o
ataque antes, na fronteira com o Setor Seis. Se
tentassem mandar pessoal por qualquer outra direção,
precisariam de recursos demais para derrubar as
barreiras, mas Dani teria tempo para mandar pessoal.
Mais cedo ou mais tarde as paredes elétricas seriam
derrubadas, se atacassem com a força que Dani
imaginava que usariam. Aquele era o motivo para ela ter
dividido os mercenários e o pessoal do setor em grupos
grandes e os colocado em pontos diferentes ao longo da
fronteira. Ela teria pessoal relativamente perto de
qualquer ponto da fronteira que fosse atacada – incluindo
um grupo de mercenários que estava ali, com ela.
Se tudo corresse bem, a abertura nas paredes
elétricas levaria os vampiros do Setor Oito direto para
Amon, que estava esperando. Ele cuidaria daquela área.
Dani e os mercenários eram só o backup. Se tudo
corresse bem, não precisariam fazer nada.
Algo sempre dava errado em uma situação daquele
tipo. Dani não tinha ilusões de que tudo ia correr bem.
Mas ela não tinha imaginado que ficaria parada ali
por horas depois do pôr do sol, sem nada acontecer. Dani
tinha imaginado que seria como na noite anterior: que o
Setor Oito atacaria cedo. Ou assim que fosse seguro para
os vampiros.
Talvez estivessem errados. Talvez eles não fossem
atacar.
— Não caiam nisso — Amon falou, alto.
Um dos mercenários fez um ruído irritado.
— Fique na sua, vampiro — outro falou.
Pelo menos eram só os mercenários. Dani podia
cuidar daquilo depois. O pessoal que já era do Setor Dez
tinha aceitado a palavra deles sobre Amon estar ao seu
lado e ponto. Podiam até não gostar da ideia, mas não
iam questionar uma coisa que sabiam que era do acordo
de todos da liderança do setor.
Dani olhou para Amon e levantou as sobrancelhas.
Ele balançou a cabeça e olhou na direção do Setor
Seis, onde a abertura nas paredes elétricas estava.
— É isso que eles querem — Amon continuou. — Que
vocês fiquem tensos o suficiente para cometerem erros.
É por isso que estão demorando.
Dani respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Eles querem criar a expectativa — ela falou.
Amon assentiu.
Fazia sentido. E esperar queria dizer que podiam
levar pessoal do Setor Oito para lá diretamente, sem
depender de terem deixado suas forças no Setor Seis,
antes.
O Setor Seis. Eles não tinham notícias de nada do
que estava acontecendo lá. Não tinha sido seguro manter
pessoal fora das fronteiras nos dias anteriores, então
Dani não sabia se a ida dela e de Amon no baile tinha
servido para o que queriam. Eles tinham pensado que
teriam mais tempo. E, se tivessem, ela tinha quase
certeza de que teria dado certo. O Setor Seis teria
dúvidas o suficiente para não ajudar o Oito em um
ataque. Era a única coisa que queriam: não ter que lidar
com dois setores atacando ao mesmo tempo.
Os vampiros que tinham atacado na noite anterior
tinham vindo da direção do Setor Seis. Provavelmente só
estavam escondidos lá, mas mesmo assim...
Entre o risco de serem pegos de surpresa e o risco
de terem que lidar com a Corte do Setor Seis falando
sobre terem quebrado os acordos, Dani sabia o que
preferia.
Ela olhou ao redor. Nem Yuri nem Ezequiel estavam
ali. O combinado era que eles ficariam na mansão a
menos que acontecesse uma emergência. Se o ataque
continuasse na noite seguinte, eles precisariam estar
descansados. Alana e Eduardo estavam em um dos
postos entre a mansão e a cidade, prontos para ajudarem
na evacuação e ganhar tempo, se chegasse naquele
ponto. Dante estava na mansão, com o pessoal
analisando as informações das câmeras e dos outros
sistemas de vigilância. Mas Adriana deveria estar ali.
— Cadê Adriana?
Algumas pessoas resmungaram que não sabiam.
Outros olharam para trás e repassaram comentários em
voz baixa.
Pessoas demais, reunidas em um lugar só sem muita
organização. Normalmente ela preferia trabalhar com
grupos menores, mas não era como se tivesse outra
opção. Se o pior acontecesse, ela precisaria de todo
aquele pessoal ali, porque o tempo que teriam para
reagir a qualquer coisa que os vampiros fizessem era
pequeno demais.
Adriana passou entre as pessoas reunidas.
— O que houve? — Ela perguntou.
— Preciso do drone — Dani avisou.
Adriana levantou as sobrancelhas e assentiu. Ela e
Eduardo consertavam aparelhos eletrônicos por
passatempo e Dani sabia que tinham pelo menos um
drone com área de alcance grande que funcionava. Não
era nada oficialmente do setor – de novo para evitar
problemas com manter vigilância fora das fronteiras
deles – e que normalmente Eduardo só usavam para
monitorar as plantações, mas era algo que podia ser útil.
Dani só ia torcer pra o Setor Seis não perceber o que
estavam fazendo.
— O Setor Oito? — Adriana perguntou, em voz baixa.
Dani não sabia se falar baixo ia fazer muita
diferença, mas era melhor do que ter certeza de que
todo mundo ia ouvir.
— Setor Seis — ela falou, no mesmo tom. — Não
quero nenhuma surpresa vindo de lá.
Adriana assentiu.
— Mando mensagem assim que conseguir.
— Obrigada.
Dani encarou os monitores de novo enquanto
Adriana passava pelo meio das pessoas de novo e
voltava na direção da mansão.
O comunicador dela apitou, baixo, e Dani colocou a
mão logo abaixo da orelha.
— Na escuta — ela falou.
— Estou com o grupo entre a mansão e seu ponto de
controle — Raquel avisou. — Se o pior acontecer, você
tem mais uma opção.
Raquel desativou o comunicador antes de Dani
responder. Não que ela tivesse alguma coisa para falar. A
única coisa que Dani sabia era que Raquel tinha lhe
garantido que, se precisasse, ela conseguiria terminar
com aquilo. Mas era algo que ela só ia conseguir fazer
uma vez.
Uma arma de último caso, então. E que pelo visto
não precisava nem estar tão perto de onde o ataque
estivesse acontecendo.
Dani respirou fundo e encarou os monitores.
Quase nove horas da noite.
Não fazia sentido. Era tempo perdido, de certa
forma. O Setor Oito estava lhes dando mais tempo para
se prepararem, em teoria. Se tivessem atacado assim
que tinha começado a escurecer, as paredes elétricas
nem estariam funcionais ainda. Mas, quanto mais
demoravam, mais tempo eles tinham para acertar
detalhes do que estavam fazendo. Mesmo com a tensão,
aquilo era uma vantagem para o Setor Dez.
Dani olhou de relance para Amon antes de encarar
os monitores de novo. Ela ainda não tinha certeza do que
havia acontecido para ele estar ali, ao invés de ter
aproveitado a oportunidade perfeita para destruir o Setor
Oito. Era o que ele queria. Mas então, por quê?
E, mesmo que ela tivesse uma suspeita, não tinha
tempo para perguntar. Não era a hora. Precisava focar
em defender o setor e mais nada. Não que Dani tivesse
ilusões de que sua suspeita fosse real. Não fazia sentido
aquela mudança ser por causa dela. Não depois de todas
as vezes que Amon tinha deixado claro que ela pagaria
pelo juramento.
Ela não ia ver coisas demais onde não tinha nada.
Não ia tentar adivinhar o que estava passando na cabeça
dele. Fazer aquilo era uma garantia de que se
decepcionaria depois.
Mas ela ainda queria saber.
Amon fechou os olhos e inclinou a cabeça.
Dani olhou ao redor. Nada. Ninguém parecia ter
notado nada.
— Motos — Amon falou.
Dani se endireitou e encarou os monitores. As
imagens mudaram depressa, passando por todas as
câmeras que eles tinham. Nada, ainda, mas ela não
duvidava do que ele tinha falado.
O Setor Oito estava se aproximando.
Ela respirou fundo. Amon abriu os olhos e a encarou,
sem falar mais nada.
"A decisão não é minha". Ele tinha falado aquilo para
Raquel, quando falaram sobre ele se entregar para o
Setor Oito ou não. E estava ali, parado, esperando...
Porque quem estava no comando era Dani.
Um arrepio a atravessou e ela não queria nem tentar
entender o motivo.
Dani assentiu.
— Vai.
E, com sorte, a loucura que era a habilidade de
Amon seria o suficiente para fazer o Setor Oito recuar.
Amon se afastou sem falar nada, com os
mercenários ali perto saindo do seu caminho depressa.
Dani virou as costas para os monitores e encarou as
pessoas reunidas.
— Os vampiros estão vindo — ela avisou. — Todo
mundo já sabe os planos. Com sorte, não vamos precisar
fazer nada. Mas não vou contar com a sorte. Estejam
prontos.
Dani não conseguia ver o que estava acontecendo já fazia algum
tempo. As câmeras ainda estavam funcionando. Eles
ainda sabiam que as paredes elétricas estavam de pé.
Alguns grupos pequenos de vampiros tinham tentado
passar por elas e desistido. Mas, fora aquilo... Nada. A
única coisa nos outros monitores era a escuridão.
Dani sabia que ia ser daquele jeito. Ela estava
contando com aquilo, quando tinha feito os planos.
Mesmo assim, ver a escuridão impenetrável nos
monitores e mais para a frente era incômodo. E era pior
ainda ouvir os gritos e os sons dos vampiros lutando
entre si, mesmo que aquilo fosse um bom sinal.
— Não sei por que a gente está plantado aqui — um
dos mercenários resmungou, alto o suficiente para Dani
ouvir.
Ela suspirou. Aquela era a pior parte de ter que lidar
com mercenários: eles não eram como o pessoal do
setor, que confiava nas decisões dela e de Yuri. Eles iam
questionar e cutucar até onde pudessem sem colocar o
pagamento em risco.
— Porque não vai ser só isso — Dani falou. — Eles já
sabiam que Amon está aqui. Vão ter planejado alguma
coisa para passar por ele.
E Adriana ainda não tinha falado nada sobre o Setor
Seis.
Fazia sentido ser alguma coisa vindo de lá. O Setor
Oito já tinha deixado seu pessoal lá na noite anterior. Era
muito possível que a Corte deles decidisse ajudar.
— Nada, é mais fácil só deixar esse vampiro aí cuidar
das coisas — outro mercenário falou. — Ele parece estar
se virando muito bem.
Dani revirou os olhos. Claro que Amon estava se
virando bem. Ele era o monstro das histórias – mas os
mercenários não sabiam daquela parte. E Dani sabia que
aquilo não ia durar.
Era um risco. Amon havia tomado o seu sangue,
então as chances de perder o controle como da outra vez
eram baixas. Pelo menos, era o que ele tinha falado. Mas
eles não sabiam quanto tempo aquilo ia demorar.
Quantos vampiros ele ia precisar destruir.
E não fazia sentido o Setor Oito fazer só aquilo
quando já sabiam que era Amon ali.
— Mais vampiros se aproximando — Bruno, um dos
que trabalhava com ela normalmente, avisou.
Dani se virou para os monitores de novo. Os
sensores mais perto da fronteira estavam mostrando os
pontos vermelhos dos vampiros se aproximando. Eles
não estavam tentando se esconder. E não eram tantos
assim, mas...
O celular de Dani vibrou.
"Nenhum movimento no Seis. Nem luzes."
Nem luzes. Aquilo tinha algum significado para os
vampiros. Dani sabia o suficiente para ter certeza
daquilo, mas não se lembra de qual era o significado. E a
única pessoa que ela podia perguntar era o centro da
escuridão e dos gritos.
Ela esperava que não quisesse dizer que o Setor Seis
estava às escuras porque estavam se preparando para
atacar também.
Algo diferente apareceu em um dos monitores. Dani
se virou.
As luzes e os monitores se apagaram.
O celular dela vibrou de novo, mas Dani já tinha
certeza do que ia ver.
"Cinco. Força de ataque grande."
E, se Adriana não tinha falado mais nada, era porque
não tinha como conseguir informações.
Dani parou e respirou fundo.
Setor Cinco. Ela conhecia a área de fronteira do
Setor Dez como a palma da sua mão. Ela sabia
exatamente todos os pontos por onde eles podiam ter
passado. Não precisava das câmeras. E, se Amon estava
mantendo tudo ali sob controle...
— Comigo, agora! — Dani gritou.
Os mercenários que estavam sentados se
levantaram depressa. Bruno se virou para ela.
— Setor Cinco — Dani avisou. — Avise os grupos
intermediários.
Bruno assentiu, ao mesmo tempo em que ela
começava a correr. Quatro motos. Era isso o que tinham
ali. Não era o suficiente. Não valia a pena ir na frente.
Se os vampiros quisessem, eles chegariam na cidade
muito antes de Dani os alcançar. Eles chegariam na
mansão. Podiam destruir tudo, levar quem quisessem...
Eles não iam fazer aquilo. Eles iam fazer questão de
destruir as defesas do setor, primeiro. Deixar claro que
humanos não tinham a menor chance contra os vampiros
e só depois levar o que queriam. Não era só sobre Amon
e Alana. Era sobre colocar o Setor Dez no seu lugar.
Dani passou por um dos caminhos que levava para a
cidade e continuou correndo, ouvindo os mercenários
atrás dela. Só tinha suas facas e a arma a laser de
Ezequiel, mas aquilo era mais do que o que tinha se
acostumado a ter quando estava nas terras de ninguém.
E os mercenários estavam ali, também. Era o suficiente.
Precisava ser o suficiente.
Yuri já teria ido para o ponto de controle. Ele não ia
esperar ser chamado depois que as luzes se apagaram e
uma das motos tinha ficado no casarão justamente para
o caso de ele precisar ir depressa para algum lugar. Yuri
ia cuidar da fronteira com o Setor Seis. E Amon estava lá.
Ela não precisava se preocupar.
Mas o Setor Cinco...
Ela tinha se esquecido. Simples assim. E não só ela:
todo mundo. Como o Setor Cinco ainda estava
negociando com eles, não pensaram que atacariam. E
agora estavam sem energia e sendo atacados de uma
direção que não haviam esperado.
Um dos mercenários a alcançou.
— O que podemos esperar?
Dani continuou correndo.
— Não temos imagens — ela avisou. — Vampiros do
Cinco, provavelmente vindo na direção de onde
estávamos.
Ela esperava que estivessem indo naquela direção.
Se estivessem indo para a cidade...
Se estivessem indo para a cidade, ela já teria ouvido
gritos. Ou não. Estavam longe o suficiente para não dar
para ouvir.
Dani não conseguia pensar em outra opção. Ou eles
iam ir para a cidade, ou iam atrás do pessoal da defesa
do setor e...
Ela se jogou contra o mercenário ao seu lado e eles
caíram no chão.
Algo passou voando por onde eles estavam e bateu
em uma árvore com um ruído seco.
Não algo. Um vampiro.
— Vampiros! — Um dos mercenários gritou.
Dani puxou uma das suas facas e a arremessou. A
lâmina atravessou o ombro do vampiro e o prendeu na
árvore. Um dos mercenários atirou. O barulho das armas
era alto demais, mas não importava. O que importava
era o corpo do vampiro sendo quase partido ao meio
pelas balas.
— Posições! — Dani gritou.
Os mercenários se espalharam, fazendo um
semicírculo. Mais dois vampiros saíram do meio das
árvores e pularam sobre eles.
Aquilo estava errado. Vampiros não agiam daquele
jeito. Eles estavam atacando quase como animais, não
como o que ela estava acostumada a ver.
Dani tirou a pistola a laser e atirou em outro vampiro
pulando na direção deles. O vampiro caiu, sem uma
parte da cabeça, mas continuou se arrastando na direção
do semicírculo.
O mercenário que estava com Dani se juntou à linha.
Ela parou atrás deles, ainda com a pistola na mão, e
olhou ao redor.
Algo estava errado. Muito errado.
— Fechem o círculo — ela falou.
Um dos mercenários olhou de relance para ela.
— Isso não...
Outro vampiro pulou. Dani atirou e ele caiu perto
demais do semicírculo de mercenários.
— Fechem o círculo — ela repetiu.
Os mercenários obedeceram.
Ela parou entre dois deles, encarando o vampiro no
chão. Se é que podia chamar aquilo de vampiro. Ele era
esquelético, com a pele cinza parecendo esticada sobre
ossos e tendões – porque não havia músculos ali.
Um dos mercenários cuspiu para o lado.
— Carniçais.
— Pensei que era uma história — outro falou.
— Pelo visto, não.
Carniçais. Dani não fazia ideia de que história
estavam falando, mas fazia sentido. A forma como eles
tinham saltado parecia mais com um grupo de animais
das terras de ninguém do que com vampiros. Mas eles
eram vampiros, de certa forma, porque Dani conseguia
ver as presas na boca do que tinha caído perto demais.
— Eles andam em bando — um dos mercenários
falou. — Esses aqui provavelmente estavam um pouco
na frente...
As sombras entre as árvores se moveram.
Não era um bando. Era bem mais que aquilo
daquelas criaturas, todas indo na direção deles de uma
vez.
Os mercenários atiraram. Os primeiros dos pseudo-
vampiros caíram, com os corpos partidos pelas balas. Os
que estavam atrás, nem tanto.
Dani atirou. Não tinha mais nada que pudessem
fazer além de lutar e tentar parar aquelas coisas. Ela
sempre tinha falado que a pior parte das terras de
ninguém era justamente aquilo: os animais. Era a mesma
sensação que Dani tinha agora. Não havia inteligência
ali, só instinto.
Um dos mercenários jogou sua arma no chão. Estava
sem munição. E mais outro.
Os pseudo-vampiros ainda estavam avançando, uma
parede deles, como se os que tinham matado não
fizessem a menor diferença.
A carga da pistola a laser de Dani acabou.
Eles não eram o suficiente. Nem parecia que o
número de pseudo-vampiros estava diminuindo.
Um dos mercenários gritou quando um dos carniçais
pulou em cima dele. A faca de outro mercenário brilhou e
o corpo do pseudo-vampiro caiu, mas a cabeça dele
ainda estava presa no antebraço do mercenário.
Dani colocou a mão em uma das suas facas e parou.
Não adiantava insistirem, não daquele jeito.
Ela pegou o celular. Precisavam de ajuda, reforços,
ou qualquer coisa que ainda tivessem.
Um dos mercenários caiu e foi arrastado, ainda
gritando. Dani não ia pensar no que os carniçais estavam
fazendo com ele.
— Fechem o círculo! — Um mercenário gritou.
Tarde demais.
Os pseudo-vampiros entraram no meio da formação
deles.
Dani apertou enviar e puxou suas facas.
Um dos carniçais pulou na direção dela.

Yuri encarou seu celular.

"Tudo que tiver."


Só aquilo. Sem nenhuma explicação. Dani não
mandaria uma mensagem assim se a situação não fosse
extrema.
Ele ligou para outro número.
— Na espera — Raquel falou.
Yuri respirou fundo. Se usassem Raquel naquela
hora, estariam indefesos. Mas, depois daquela
mensagem de Dani...
Dani, que de alguma forma tinha se apegado ao
vampiro que havia acordado e que ainda estava
controlando os vampiros tentando entrar no setor vindo
daquela direção.
— Vamos precisar de você — Yuri avisou. — Me dê
alguns minutos.
Porque ele nunca tinha visto Raquel em ação, mas
sabia o que o poder dela fazia. E, se alguma coisa
acontecesse com o vampiro só porque Yuri não tinha se
dado ao trabalho de dar um aviso, Dani ia ficar mais que
furiosa.
Yuri pegou um dos tecidos grossos e reforçados que
usavam para cobrir as motos e outras coisas nos
depósitos e correu na direção da escuridão.
— Amon!
As sombras se afastaram. Yuri engoliu em seco e
entrou no caminho que elas estavam abrindo. Ele não ia
olhar para trás e ver se ainda tinha um caminho para
voltar, mas sabia que a luz da tela do seu celular não
estava iluminando nada além do chão na sua frente. A
escuridão continuava impenetrável. E os gritos dos
vampiros estavam cada vez mais altos ao seu redor,
assim como o som de carne se rasgando.
Era melhor a escuridão ser impenetrável. Ele não
queria ver o que estava acontecendo ali.
— Amon! — Yuri chamou de novo.
O vampiro apareceu do meio da escuridão, como se
estivesse se materializando ali, mesmo que Yuri tivesse
quase certeza de que aquilo era impossível.
— Você não deveria estar aqui, humano — ele falou.
Claro que não deveria. Yuri deveria estar deixando
Amon sem aviso nenhum, para ser destruído junto com
os outros. E era o que ele teria feito, se Dani não tivesse
se envolvido com o vampiro.
Yuri levantou o tecido grosso que estava segurando.
Aquilo era à prova de fogo. Com sorte, seria o suficiente
para bloquear a luz, também.
— Se quiser viver...
O vampiro o encarou por um instante e pegou o
tecido.
Yuri esperou Amon estar enrolado no tecido antes de
pegar o celular de novo.
— Agora.
A luz começou em algum lugar para trás deles, clara
demais para ser a eletricidade voltando. E ficando cada
vez mais forte.
Yuri fechou os olhos com força, e mesmo assim ainda
tinha a impressão de uma luz forte passando pelas
pálpebras. Ele tinha imaginado como seria ver aquilo,
mas nunca havia esperado que seria tão forte.
Os vampiros gritaram – e não era como os gritos de
antes. Era algo animalesco, desesperado, com o som se
quebrando de uma vez.
E o cheiro de carne queimada quando os gritos
pararam.
A impressão de luz despareceu.
Yuri abriu os olhos devagar. Ele ainda estava no meio
das árvores, mas não tinha sobrado nada da escuridão
que era o poder de Amon. Estava escuro, mas era a
escuridão da noite, e ele conseguia iluminar ao seu redor.
A luz do seu celular bateu em um crânio.
Yuri girou, iluminando o que conseguia. Ossos e
restos de carne. Só. Nenhum sinal de que algum dos
vampiros ainda estava vivo. Se é que ele podia usar
aquela palavra.
Nenhum sinal de vampiros, com exceção do que
estava abaixado um pouco para a frente e enrolado no
tecido grosso.
— Acabou — Yuri avisou.
Seu celular apitou e ele encarou a tela. Um pedido
de equipes médicas, que já estava sendo respondido.
Bom. Ele duvidava que o Setor Oito fosse tentar mais
alguma coisa depois daquilo. Com sorte não tentariam
nada, porque Raquel não ia poder fazer aquilo tão cedo
de novo.
Amon se levantou e deixou o tecido cair no chão. Ele
tinha queimaduras fundas nas mãos, mas Yuri tinha a
impressão de que já estavam se curando. Provavelmente
suas mãos não estavam escondidas quando Raquel tinha
usado o poder.
O celular de Yuri apitou de novo.
Mais um pedido de ajuda médica, agora da equipe
que já tinha respondido o chamado antes, com um aviso
de urgência máxima.
Yuri correu na direção de onde tinha deixado uma
das motos.

Amon parou quando sentiu o cheiro de sangue. Ele havia notado


quando Daniele se afastara, levando os mercenários,
mas não tinha esperado algo como aquilo. E não era só
sangue humano. Se ele se esforçasse, conseguia sentir
os restos do fedor de sangue de carniçais por baixo de
tudo. Apenas os vestígios do que não tinha sido
queimado quando a bruxa havia usado aquele poder.
A luz que não era só luz. Ninguém entendia por que
a luz do sol destruía os vampiros. Amon se lembrava de
experimentos e estudos, antes, feitos por vampiros que
eram fracos o bastante para serem deixados em paz.
Aquela era a única luz que os feria. Nada criado de forma
artificial fazia era um risco.
Uma bruxa ser capaz de fazer o que Raquel fizera –
porque era óbvio que tinha sido ela – seria algo
assustador para as Cortes. E explicava a existência
daquele setor, de certa forma. Ela era capaz de conter
qualquer vampiro ou setor que se movesse contra eles,
como tinha mostrado.
Mas se fosse tão simples, ela teria feito aquilo desde
o começo. Não teria esperado até ter tantas perdas.
Muitos do seu pessoal estavam feridos, vários de forma
grave, pela quantidade de sangue que Amon havia
sentido. E ele era capaz de apostar que muitos outros já
estavam mortos.
Ele não deveria se aproximar. Os humanos estavam
reunidos mais para a frente, ainda entre as árvores,
provavelmente onde haviam enfrentado os carniçais. E
Amon tinha usado sua escuridão por tempo demais. Ele
conseguia sentir a pressão na sua boca, suas presas
querendo crescer por puro instinto. Se continuasse ali ele
seria um risco.
— ... aquele vampiro? — Alguém perguntou.
Se afastar não ia adiantar, então.
Amon saiu do meio das árvores e foi na direção de
onde os humanos estavam. Era mais rápido descobrir
logo o que alguém que não era Daniele queria com ele e
depois voltar para a fronteira ou para a casa.
Os carniçais haviam feito estrago antes do poder da
bruxa os destruir. Amon passou pelo que ele tinha
certeza que era um pedaço de um braço e mais outra
parte de um corpo que ele não conseguia identificar com
um olhar. Mais para o lado, um dos mercenários estava
caído com o pescoço virado completamente na direção
contrária e mordidas fundas no seu pescoço. Carniçais às
vezes tinham o impulso de ir para o pescoço, como se
tivessem algo do instinto de um vampiro, mas aquilo não
fazia a menor diferença para eles.
E o cheiro de sangue ficava cada vez mais forte à
medida que ele se aproximava. As equipes médicas
estavam espalhadas entre as árvores, em grupos
pequenos. Mais para a frente havia uma pilha de corpos
e partes de corpos, e alguns dos humanos ainda estava
procurando o que os carniçais haviam levado para o meio
das árvores. Amon deveria lhes avisar sobre o braço um
pouco para trás, mas era melhor não. Quanto menos
falasse, menos precisaria respirar e menos sentiria o
cheiro do sangue.
Uma mulher foi na sua direção. A prima de Daniele.
Elas eram parecidas o suficiente, mesmo que aquela
mulher tivesse metade do cabelo pintado de verde, para
Amon ter certeza daquilo.
— Você é o vampiro, não é? — Ela começou. — Então
dá um jeito nisso.
Amon não sabia o nome dela nem estava
preocupado em saber. Mas ela também não tinha
motivos para estar falando com ele.
Yuri estava conversando com uma das equipes
médicas, em um dos maiores grupos de pessoas. O outro
humano que também era parte da segurança, o mais
velho, estava parado perto da mesma equipe.
Não.
— Onde Daniele está? — Amon perguntou.
A mulher estava com os olhos vermelhos. Ela era
uma bruxa, então aquilo podia ser um resultado do uso
de poder, mas ele tinha certeza que não era.
Ela apontou para a mesma equipe médica onde Yuri
estava.
— Dá um jeito nisso — ela repetiu.
Amon foi naquela direção, mal percebendo o que
estava fazendo.
Ele tinha sentido o cheiro do sangue dos carniçais.
Ele tinha visto os resultados de uma luta entre eles e os
humanos ali. Não era à toa que a criação de carniçais
não era bem vista. Não era fácil controlá-los e se um
deles escapasse, podia destruir todos os humanos por
perto. Nenhuma Corte queria perder seu território assim,
então era mais fácil não ter carniçais. Mas um dos
setores ali havia ido contra aquilo.
Amon parou alguns passos para trás da equipe
médica. Dali, ele conseguia ver o rosto de Daniele. Ela
estava arranhada, com manchas de sangue, e sua pele
que já era clara estava pálida, com um tom apagado que
Amon conhecia bem demais. Daniele havia perdido muito
sangue. E ele não precisava ver todo o seu corpo para ter
certeza do que havia acontecido. Estava falando de
Daniele, a mulher que havia encarado o príncipe do Setor
Seis sem hesitar. A mulher que havia libertado o monstro
das histórias da região e saído daquilo ainda viva... Mas
que podia não sobreviver.
Aquele era o motivo para ter tantas pessoas das
equipes médicas perto dela. Estavam fazendo o que
podiam e não queriam correr o risco de movê-la.
Amon continuou parado, sem conseguir reagir. Ele
deveria ter imaginado aquela possibilidade, quando
estavam discutindo sobre como lidar com o ataque.
Daniele era uma das responsáveis pela segurança do
setor. Ela nunca ficaria afastada, se protegendo enquanto
outros lutavam. Ela estaria no meio deles. Era
exatamente o que havia acontecido.
Raquel parou do outro lado do grupo, se apoiando de
forma pesada no braço de um homem que Amon não
conhecia.
— Nada? — Ela perguntou.
Uma das médicas olhou para ela e balançou a
cabeça.
— Fizemos tudo o que conseguimos, mas com o
equipamento que temos no setor...
Não seria o suficiente. A médica não precisava dizer
aquilo. Amon conseguia sentir o suficiente das emoções
deles para entender. Conseguia ouvir a forma como o
coração de Daniele estava ficando mais lento e como a
respiração dela parecia pesada, forçada.
Daniele estava morrendo. A humana que o prendera
por um juramento de sangue – e depois o libertara
porque era o certo a ser feito, sem se preocupar com a
sua segurança.
Raquel assentiu.
— Cuidem dos outros — ela falou.
Não. Ela não podia desistir assim. Não podia dar uma
ordem para deixarem Daniele morrer depois de tudo que
ela havia feito.
Raquel levantou a cabeça e encarou Amon. Ele
sustentou o olhar da bruxa. Ela tinha sorte por ele não
ser um dos vampiros com a compulsão, ou teria perdido
sua mente.
— Ela só tem uma chance — Raquel falou.
Amon estreitou os olhos. A equipe médica estava
desmontando seus equipamentos e os movendo para
onde outras pessoas estavam esticadas no chão. Se
Daniele tinha uma chance, a bruxa tinha acabado de
destruí-la...
Não.
— O Setor Dez é o único setor que não aceita
vampiros — ele falou.
Raquel balançou a cabeça.
— Não vamos virar as costas para alguém que é
família, não importa o que aconteça.
Amon encarou Daniele. Mesmo de longe, ele
conseguia ver o brilho do suor na sua pele e como ela
parecia ainda mais pálida. E ele não ia se concentrar o
suficiente para ouvir seus batimentos ou sua respiração.
Ele queria aquilo. Ah, ele queria. Mais do que havia
se permitido pensar, porque Daniele já havia falado que
nunca aceitaria ser transformada.
— Faça o que precisar — Raquel completou.
Era a família de Daniele falando aquilo. Tanto Raquel
quanto sua prima – a família que ela havia escolhido.
Amon se aproximou mais e se abaixou. O restante da
equipe médica se afastou depressa quando ele passou
um braço por baixo do pescoço de Daniele e o outro por
baixo dos seus joelhos. Ninguém precisava dizer que
aquilo não era o ideal e que ele estava piorando a
situação, mas não fazia diferença.
Ele correu na direção da casa, sem se preocupar em
manter uma velocidade que seria aceitável para uma
humana. Daniele estava inconsciente. Não notaria nada
do que estava acontecendo e era melhor assim, pelo que
ele estava vendo.
A porta da sala se fechou com uma batida seca.
Amon não se deu ao trabalho de ativar as trancas e
só se sentou no chão, com a cabeça de Daniele apoiada
na sua perna.
Ele podia só transformá-la. Ela o odiaria, com toda
certeza, mas estaria viva.
E Amon não conseguia quebrar sua confiança
daquele jeito. Mesmo que aquilo significasse perdê-la, ele
não tiraria sua escolha.
Ele fez um corte no seu pulso e o colocou acima da
boca de Daniele. O sangue escorreu, devagar, e ele
massageou a garganta dela, a forçando a engolir. Não
era muito. Não quando ela não conseguia beber por
vontade própria. Mas era o suficiente para regenerar um
pouco dos seus ferimentos. O suficiente para fazer
Daniele recuperar a consciência.
Ela tossiu, cuspindo parte do sangue, e abriu os
olhos.
Finalmente.
Daniele olhou ao redor, para as suas malas
encostadas na parede e o sofá da sala, antes de encarar
Amon e então olhar para o pulso dele, que ainda estava
sangrando devagar.
— Não — ela murmurou. — Não, eu não...
A voz de Daniele quebrou.
Amon fechou os olhos com força. Não era o
suficiente. Ele sabia que não era.
— Você não... — ela começou de novo.
Ele encarou Daniele.
— Eu não te transformei. Não faria isso sem sua
permissão — Amon falou. — Mas o equipamento médico
que vocês têm aqui não é o suficiente.
Ela engoliu em seco e tentou se levantar.
Amon apoiou as costas de Daniele o suficiente para
ela conseguir se sentar. Ele ainda estava sentindo o
sangue escorrendo das suas costas, mas era quase nada.
Ela só estava consciente por causa do sangue dele. Era o
começo de uma transformação – a troca de sangue – mas
aquele efeito desapareceria logo se ela não aceitasse o
que ele estava oferecendo. E, então, seria tarde demais.
Daniele parou e olhou para o seu corpo. Amon não ia
fazer a mesma coisa de novo. Ele tinha visto todas as
marcas da luta. Os cortes fundos de garras nas suas
costas, fundos o bastante para pelo menos um deles ter
perfurado o pulmão. E ele não tinha como ter certeza
nem havia perguntado para os médicos, mas era capaz
de apostar que pelo menos três costelas estavam
quebradas, talvez mais. O corte na barriga de Dani tinha
sangrado escuro demais e menos do que deveria.
Provavelmente alguma hemorragia interna. Os braços e
as pernas dela estavam cobertos de cortes, além de
marcas de mordidas.
— Eu não posso... — ela começou de novo.
Amon não podia perdê-la. Não assim.
— Foi a escolha da sua família — ele falou. — Da sua
prima e de Raquel. Foram elas que me disseram para
fazer o que precisasse para você sobreviver. Mas eu não
vou te transformar contra a sua vontade.
Ela respirou fundo e Amon ouviu um chiado.
— Você conhece as restrições de um vampiro — ele
continuou, depressa. — E se for transformada por mim,
aqui, vai ser uma pária, sempre. As Cortes nunca vão te
aceitar. Mas não acho que você vai querer se envolver
com as Cortes.
Não Daniele, que desprezava tudo que vinha dos
vampiros. E Amon não conseguia tirar sua razão. Talvez
ele não devesse estar falando nada daquilo. Deveria
estar tentando convencê-la a aceitar ser transformada,
não fazendo uma lista de por que não deveria aceitar.
Mas, do mesmo jeito que ele não a transformaria sem
permissão, não faria aquilo sem que ela soubesse as
consequências.
Daniele segurou seu pulso. A pele dela estava quase
tão fria quanto a de Amon.
— Não vou... — ela começou. — Não vou me
alimentar do setor.
Não. Era óbvio que ela não iria. Não a pessoa que
tinha feito tanta questão de garantir que nem ele se
alimentasse dos moradores do Setor Dez.
E aquilo Amon podia lhe dar. Não era algo conhecido
entre os humanos e definitivamente não era aceito entre
as Cortes, mas um vampiro podia se alimentar de outro.
— Se você for transformada, não vai precisar se
alimentar deles — Amon falou.
Daniele se virou para ele, devagar. Amon passou um
dedo pelo seu queixo, limpando onde o sangue tinha
escorrido.
— Isso eu posso te garantir — ele continuou. — Se
for a sua escolha, enquanto for a sua escolha.
Era um juramento, de certa forma, e Amon não
reclamaria de ficar preso a um juramento como aquele.
Ela respirou fundo e aquele chiado soou de novo.
Amon não queria pensar no que aquilo iria significar, se
ela não aceitasse.
Daniele precisava aceitar.
A mão dela que estava no pulso de Amon caiu.
— Faça — ela murmurou.
Ele inclinou a cabeça de Daniele e mordeu seu
pescoço. O sangue de Amon ainda estava nela. Pouco,
mas estava. Teria que ser o suficiente, porque ele não
sabia se ela conseguiria beber mais.
Amon tomou o sangue dela, sentindo os batimentos
dela cada vez mais fracos sob suas mãos.
Ele parou de beber e deixou seu veneno entrar no
corpo de Daniele.
QUATORZE

Dani olhou ao redor. A sala parecia clara demais, mesmo que a


janela estivesse fechada. Ela provavelmente tinha
acendido as luzes mais fortes... Não. Dani nunca acendia
as luzes mais fortes, nem quando estava de noite. E
ainda era dia. Ela não sabia como, mas tinha certeza
daquilo. E ela estava deitada no chão, com a cabeça
apoiada em alguma coisa que com certeza não era o
sofá.
Ela não se lembrava de ter se deitado ou...
Dani se sentou – ou pelo menos tentou. A sala girou
e tudo ficou escuro por um instante.
— Devagar — Amon falou, com uma mão nas suas
costas.
Dani parou.
Ela não deveria estar na casa segura. Deveria estar
perto da fronteira. O Setor Oito tinha atacado, depois
tudo tinha escurecido e...
Os pseudo-vampiros. Carniçais. Ela se lembrava
deles entrando no meio dos mercenários. De estar
lutando contra eles só com suas facas. Se lembrava de
algo se agarrando no seu braço e um deles enfiando as
garras na sua barriga, mas...
Dani se endireitou. A sala girou de uma vez. O cheiro
do sangue era forte demais e era quase doloroso. Não.
Era uma lembrança de dor. E uma sensação incômoda na
sua boca, por algum motivo.
Dani olhou para os braços. Nada. Nenhum sinal de
ter lutado contra os carniçais. Ela colocou a mão na
barriga e levantou a blusa rasgada. Ela não estava
imaginando coisas. Os carniçais tinham mordido seus
braços e rasgado sua barriga. Pelo menos era o que tinha
parecido, pela dor. E a blusa estava rasgada. Mas não
tinha nenhuma marca na sua pele.
— Os médicos disseram que não tinham como te
salvar — Amon falou, devagar. — Não sei o quanto você
se lembra, mas...
Não muito. Ela se lembrava do caos quando os
pseudo-vampiros os cercaram. Da munição das armas
dos mercenários acabando, também. Dos primeiros deles
sendo arrastados. Da luz forte e quente, como se a noite
tivesse se transformado em dia.
E ela se lembrava de Amon falando que tinha sido a
escolha da família dela, mas que ele não a transformaria
contra sua vontade.
Dani colocou uma mão no pescoço. Nada. Não que
aquilo quisesse dizer alguma coisa. Ela sabia que um
vampiro podia curar as marcas de uma mordida. Amon já
tinha feito aquilo antes.
Ela engoliu em seco.
— Eu falei para você me transformar.
Amon moveu a mão que estava nas costas dela de
um jeito que quase parecia nervoso.
— Falou — ele confirmou.
Dani se lembrava daquilo, pelo menos.
Ela fechou os olhos com força e se inclinou para a
frente.
Amon subiu a mão pelas suas costas, até estar
massageando a parte de trás do seu pescoço.
Ela era uma vampira. Ela tinha concordado em ser
transformada.
O que mais ele tinha falado?
— Você falou algo sobre eu não estar ligada às
Cortes — ela falou.
— Falei — Amon confirmou. — Vampiros são feitos
em cerimônias como a que você quase assistiu, no baile.
Uma oferenda de sangue e uma dádiva de imortalidade.
E são ligados à Corte que os transformou por uma
quantidade de anos, até terem a opção de jurarem sua
lealdade a outra Corte.
Dani respirou fundo e parou. O cheiro do sangue. Ela
quase tinha se esquecido. Aquilo era forte, como se
estivesse dominando todos os sentidos dela. E a
sensação incômoda na sua boca parecia pior ainda. Ela
não queria pensar no que aquilo queria dizer.
— Os vampiros sempre estão ligados a uma Corte,
então — ela falou.
Amon subiu a mão pela sua nuca e desceu até a
base do pescoço de novo. Dani relaxou contra o seu
toque.
— Sempre. Mas eu nunca estive. E isso quer dizer
que você também não está.
Porque as Cortes tinham feito questão de manter
Amon preso por juramentos de sangue, sim.
E não ia ser tão simples.
Dani se virou, devagar. Amon soltou seu pescoço
mas não se afastou.
As roupas dele estavam manchadas de sangue. O
sangue dela. Dani não precisava ver aquilo para saber
que ele estava falando a verdade. Era muito sangue, sim.
Mas ela se lembrava da sensação de presas e garras
contra o seu corpo. Ela sabia que não teria sobrevivido
de outro jeito.
O que queria dizer que não se arrependia, mesmo
que a ideia de ser uma vampira ainda fizesse ela querer
recuar. Mas, se existia a possibilidade de continuar ali e
não estar presa a uma das Cortes...
Dani não precisava se tornar como eles. Ela não era
como eles e nunca seria.
O cheiro do sangue subiu, forte, e Dani fechou os
olhos quando sentiu aquele incômodo na sua boca ficar
pior.
— Não é tão simples, não é? — Ela perguntou. —
Você ter me transformado. Não vai ser só isso...
Amon balançou a cabeça.
— As leis das Cortes controlam quem pode criar
outros vampiros e como estas pessoas vão ser
escolhidas. O que eu fiz aqui vai contra todas elas.
Porque era óbvio que o monstro, o pesadelo deles,
nunca teria permissão para criar outros vampiros. Mas...
— Você não é parte de uma Corte — Dani murmurou.
— Em teoria, as leis deles não se aplicam a você.
Ele sorriu e assentiu.
— E se sua transformação for questionada, eu vou
usar esse argumento.
Bom. Mas ela estaria preparada para problemas por
causa daquilo, também. Dani sabia o suficiente sobre as
cortes para ter certeza de que o que Amon tinha feito
seria visto como um problema.
Ela respirou fundo e parou, fechando as mãos com
força quando o incômodo na sua boca se transformou em
dor. Dani entendia o que era. Era óbvio que aquilo eram
suas presas, mas aquela sensação...
Amon a puxou, ainda sentado no chão, e Dani se
deixou ser levada. O toque dele não parecia mais ser
gelado, mas... Não. Não era o toque dele que tinha
mudado. Era ela. Ela que estava tão fria quanto ele.
E aquela dor não tinha parado. Uma sensação como
se ela estivesse sendo rasgada por dentro, ao mesmo
tempo em que algo na sua boca queimava.
Amon passou os braços ao redor de Dani, a
prendendo contra o corpo dele. A dor começou a diminuir
e ela respirou fundo de novo. Daquela vez o cheiro do
sangue era só aquilo: um cheiro.
— O que você fez? — Ela perguntou.
— Eu te criei — ele falou. — Isso quer dizer que eu
posso tomar a sua fome, por algum tempo.
Tomar a sua fome. Dani não fazia ideia de que aquilo
era possível.
— Isso quer dizer que eu... — ela começou.
Amon segurou o queixo dela e balançou a cabeça.
— Não. A fome ainda está aí. Você ainda precisa se
alimentar. Mas a primeira vez que isso acontecer não vai
ser algo feito às pressas.
Um arrepio a atravessou. Dani se lembrava muito
bem de como tinha sido quando Amon se alimentara
dela. E o que ele estava falando...
Não.
— Eu não vou me alimentar de ninguém daqui.
Do mesmo jeito que ela tinha falado que não seria
alguém que serviria para alimentar Amon e depois ser
descartada, Dani não faria aquilo com outra pessoa. Não
importava o que acontecesse, aquela era uma linha que
ela se recusava a passar.
Amon soltou seu queixo e assentiu.
— Você disse isso, antes de aceitar ser transformada.
Era óbvio que teria falado aquilo, mesmo quase
morrendo.
E agora Dani se lembrava que ele tinha prometido
que ela não precisaria fazer aquilo.
— Vou fazer o quê, então? — Ela perguntou.
Amon a encarou. Eles estavam perto demais, com
ele ainda segurando Dani contra o seu corpo, mas ela
não queria se afastar.
— Você pode se alimentar de mim — ele falou.
Dani engoliu em seco. De repente ela estava se
lembrando exatamente de cada sensação de quando
Amon havia tomado seu sangue. De como todo o seu
corpo tinha respondido de uma forma que ela não sabia
nem que era possível. Amon tinha falado que não seria
sempre daquele jeito, mas mesmo se fosse só um pouco
daquilo e se fosse o mesmo quando ela se alimentasse
dele...
Não. Não podia ser tão simples.
— Você reclamou do sangue morto — ela falou, sem
saber como perguntar o que queria saber.
Amon assentiu e a soltou. Por um instante, Dani
ainda pensou em se segurar nele, em testar como aquilo
seria.
Uma sensação fresca atravessou o seu corpo e
aquela quase compulsão desapareceu.
— Isso foi você — ela murmurou.
Amon assentiu de novo e se levantou.
Dani escondeu o rosto nas mãos e parou assim que
sentiu o cheiro do sangue. Suas mãos estavam sujas.
Claro que estavam. E ela ainda estava sentindo aquilo
que Amon estava fazendo para o cheiro do sangue não
disparar a fome de novo.
Amon ofereceu uma mão para Dani. Ela aceitou e ele
a puxou, até que estava de pé na sua frente.
— Não é o sangue que nos alimenta, de verdade —
ele contou. — É a vida nele. O poder, talvez. Não existe
um nome para isso.
Dani olhou para a cozinha. A luz do sol estava
entrando, vinda da janela escondida pela parede, e
estava claro o suficiente para ela ficar incomodada.
Ela se virou para Amon de novo.
— O sangue nas bolsas tem vestígios desse poder ou
o que quer que seja?
Amon assentiu.
— É o suficiente para manter um vampiro por algum
tempo, se for necessário. Mas está longe de ser o
suficiente para nos alimentar de verdade.
— E o poder está no corpo de um vampiro... — ela
começou e parou, balançando a cabeça.
Não fazia sentido. Os vampiros sempre faziam tanta
questão de manter a população humana dos setores
relativamente satisfeita. Eles não fariam aquilo se não
precisassem dos humanos. E se os vampiros se
alimentarem uns dos outros fosse o suficiente...
Não. Havia uma forma de aquilo fazer sentido.
— O poder é dividido — ela falou. — Quando um
vampiro se alimenta de outro.
Amon sorriu daquele jeito lento.
— Exato. Não é algo instantâneo, mas o poder é
compartilhado, de certa forma.
E os vampiros da Corte nunca aceitariam dividir seus
poderes. Eles não funcionavam assim.
Não funcionavam assim, porque eles não confiavam
uns nos outros. As Cortes eram feitas de jogos políticos,
manipulações e facas pelas costas. Um deles não
confiaria em outro vampiro para lhe oferecer aquilo,
porque estaria em uma situação vulnerável.
Dani se lembrava de Amon dizendo que podia
garantir que ela não precisaria se alimentar de ninguém,
não importava por quanto tempo fosse. Quase como se
ele tivesse a intenção de continuar ali, com ela, enquanto
ela quisesse.
Dani respirou fundo e foi na direção da janela da
sala. Ela estava fechada, com as cortinas puxadas, por
garantia. Era a janela que ela tinha deixado aberta vezes
demais, para garantir que Amon não sairia do quarto de
manhã, por causa de onde o sol batia.
Dias. Aquilo tinha sido dias antes. Mas parecia bem
mais. E Dani não tinha certeza de que entendia o que
havia mudado e quando. Pelo menos, não àquele ponto.
— Por quê? — Ela perguntou.
Amon não respondeu.
Dani se virou para ele. Amon estava parado no
mesmo lugar, a encarando com uma expressão que ela
não tinha certeza se conseguia entender.
— Até outro dia você estava falando sobre me matar
quando tudo isso acabasse — Ela insistiu. — E agora
estamos aqui. Por quê?
Amon sorriu.
— Sempre direta.
Dani levantou as sobrancelhas. Ela era direta, sim.
Preferia mil vezes tentar lidar com as coisas da forma
mais clara possível do que ficar se perguntando se o que
ela estava supondo estava certo ou não.
Amon parou na sua frente, tão perto que se fosse
antes ela provavelmente estaria sentindo o frio da pele
dele.
— Porque você não se esconde — ele murmurou. —
Porque você poderia não ter feito nada, mas escolheu
arriscar tudo para proteger as pessoas que importam
para você. Porque você sempre escolhe confiar na sua
consciência, mesmo que não seja a escolha mais fácil.
Dani engoliu em seco. Ela não estava esperando
aquilo e definitivamente não estava preparada para
aquilo. E, se pudesse, ela estaria se escondendo, sim. O
que ela mais queria era desviar o olhar e encarar
qualquer coisa que não fosse a expressão de Amon. Mas
ela não conseguia. Era como se seu olhar estivesse preso
pelo dele.
Amon colocou uma mão no rosto dela.
Dani respirou fundo. Aquilo não era o que ela estava
esperando. Ela nunca teria imaginado Amon falando
alguma coisa daquele tipo.
Mas não ia se enganar dizendo que não queria
aquilo.
— Não precisa ser assim — Amon falou. — Você pode
se alimentar de mim enquanto quiser, não importa o que
aconteça. Não precisa ser uma troca, se você não quiser.
E aquilo era o que tinha feito tudo mudar para Dani.
O cuidado de Amon. A forma como ele atraía, e nunca só
tomava. Ele tinha sido um ímã para ela, desde o começo,
e tinha deixado sua vingança de lado para estar ali. Dani
não conseguia nem imaginar abrir mão de algo assim.
— A escolha é sua, Daniele — ele falou. — Sempre
vai ser.
Amon tinha passado aquele tempo todo preso, sem
nenhuma escolha que fosse dele, e ainda insistia em
deixar todas as decisões na mão dela.
Não. Não eram todas as decisões. Ele não tinha o
menor problema em se enfiar no meio dos
planejamentos deles e dizer o que estava pensando. Mas
sempre que era algo pessoal... Aí sim. Ele sempre
deixava as decisões para Dani.
Ele não ia fazer aquilo de novo.
— E o que você quer? — Ela perguntou.
Os olhos de Amon escureceram e ele engoliu em
seco. A mão dele que ainda estava no rosto de Dani
tremeu.
O problema dele não era com tomar a decisão. Dani
deveria ter notado aquilo antes. O problema era com
dizer o que queria e ser negado – justamente por causa
do tempo que Amon tinha passado preso.
— Você — Amon falou. — Eu quero você, não importa
como.
Dani sorriu e colocou uma mão no rosto dele.
Ela tinha plena consciência de que aquilo ela
loucura, desde o começo. Mas Dani era conhecida
exatamente por ser a pessoa das ideias loucas.
Ela não ia recusar o que Amon estava oferecendo.
Dani entendia. Não era só o sangue dele. Não era só
aquela chance que ela estava tendo de ainda estar viva,
de alguma forma. Era muito mais. E ela nunca recusaria,
porque...
Porque era Amon dizendo aquilo e ela tinha certeza
de que cada palavra era verdade.
— Você me tem — Dani falou.
A mão de Amon no seu rosto tremeu de novo e ele a
encarou de um jeito que ela só conseguia descrever
como surpreso. Ele não tinha esperado aquela resposta.
Dani não entendia como ele não tinha esperado
aquilo. Amon tinha passado por todas as defesas dela,
tudo o que ela sempre tinha aprendido sobre vampiros e
os motivos para se manter longe, como se não fosse
nada.
Ela deu mais um passo na direção dele, colando seus
corpos.
Uma sensação fresca atravessou Dani e Amon deu
um passo atrás, soltando seu rosto.
— Eu disse que a primeira vez que você se alimentar
de mim não vai ser às pressas — ele murmurou. — E
qualquer coisa que você fizer agora só vai ter um
resultado possível.
Um arrepio atravessou Dani. Aquilo não parecia uma
má ideia.
Não. Ele estava certo. Ela não queria ter pressa – e
sua primeira responsabilidade ainda era com o Setor Dez
e com Alana.
Alana. O que sua prima ia pensar quando
descobrisse...?
Não. Dani não ia pensar naquilo. Uma coisa de cada
vez.
Ela respirou fundo e deu um passo atrás.
Era dia, o que queria dizer que nem o Setor Oito nem
o Setor Cinco tinham voltado depois que Raquel havia
usado seu poder – porque era óbvio que aquela luz tinha
sido Raquel. E Dani entendia muito bem por que ela
sempre tinha feito questão de manter aquilo em segredo.
— O que aconteceu depois? — Dani perguntou.
Amon apontou para alguma coisa no chão. O celular
dela. Não. Um pedaço do celular. Era óbvio que ele não ia
ter sobrevivido. Era pedir demais.
E, se Amon tinha ido para a casa segura com ela
logo depois que tudo tinha terminado, era óbvio que não
ia saber de nada, porque ele não tinha como entrar em
contato com mais ninguém.
Dani entrou no quarto. As casas seguras sempre
tinham pelo menos um tablet extra guardado. Ela abriu
as gavetas do armário até achar o tablet debaixo das
roupas de cama, na última gaveta. Ele não estava
conectado no servidor que usavam para as equipes de
segurança, mas Dani se lembrava de todas as suas
senhas de cabeça.
Amon se encostou no batente da porta e a encarou.
Dani levantou as sobrancelhas mas continuou
configurando seu acesso.
Os relatórios já estavam lá. Os mortos já tinham sido
identificados e os mercenários que haviam sobrevivido
estavam todos sob cuidados médicos. Todos. Ou melhor,
todos que tinham ido com Daniele. E, pelas informações
que as equipes de análise já tinham carregado, se eles
não tivessem interceptado os carniçais naquele lugar,
teriam sido emboscados por trás, no ponto de controle
perto da fronteira.
Um aviso de atualização apareceu. Yuri, dizendo para
todo o pessoal ativo descansar enquanto podiam, porque
teria novos planos em breve.
Dani abriu o aplicativo para mandar uma mensagem
para ele e parou, olhando para Amon.
— É seguro? — Ela perguntou.
— O quê?
— Eu estar perto do pessoal do setor — Dani
especificou. — É seguro ou corre o risco de eu...
Amon inclinou a cabeça.
— Vou garantir que você não perca o controle.
Era meio difícil ela perder um controle que não tinha,
mas Dani entendia o que ele estava dizendo. E confiava
que Amon conseguiria manter a fome sob controle para
ela, não importava como estava fazendo aquilo.
Ela encarou o tablet de novo e o aplicativo que ainda
estava aberto. Amon tinha falado que Dani precisava se
alimentar. E ela também precisava de um banho para se
livrar do sangue e dos restos daquela luta.
"Não posso ir no casarão, mas se me derem meia
hora mais ou menos podemos fazer uma reunião aqui."

Amon nunca ia cansar de se surpreender com Daniele. E pensar em


“nunca”, agora, tinha um peso muito maior.
Eles teriam tempo.
Ele a teria. Sem um limite de tempo. Sem a
consciência de que suas escolhas não eram dele e que
Amon podia perder tudo a qualquer momento, de novo.
Não. O único risco agora era a pressão sobre o Setor
Dez. Aquele lugar era um lar para Daniele. As pessoas
dali – não só sua prima – eram sua família. Aquilo queria
dizer que Amon faria qualquer coisa para garantir que o
setor não caísse. Ele ainda não sabia como, mas se
recusava a perder Daniele. E, se o setor caísse, ele a
perderia.
Amon guardou a caixa térmica com as bolsas de
sangue no congelador, de novo. Ele não ia arriscar
ensinar Daniele a controlar a fome e seus instintos
quando ela estava tensa por causa de um possível
ataque. Seria quase impossível ter algum resultado e as
chances de algo sair do controle eram grandes. Então ele
faria questão de estar tão forte quanto pudesse, para
usar o fato de que ela ainda tinha o seu sangue para
controlar a fome.
Daniele abriu a porta do banheiro. Amon saiu da
cozinha e parou, olhando para ela. Daniele tinha tomado
um banho demorado e limpado todos os sinais da luta.
Alguém que não soubesse o que havia acontecido, se a
visse, não imaginaria como tinha sido por pouco. Ela já
estava parecendo a Daniele de sempre: uma das
responsáveis pela segurança do Setor Dez, pronta para
qualquer coisa que acontecesse.
Daniele se virou para Amon.
— Eu ainda consigo ver meu reflexo — ela falou.
Ele assentiu.
— Você acabou de ser transformada. Vai demorar
para o seu reflexo desaparecer, se isso chegar a
acontecer.
Ela olhou para dentro do banheiro de novo.
— Mais uma coisa ligada ao poder... — Daniele
murmurou.
Não exatamente. Amon nunca tinha visto uma
ligação entre a ausência de reflexo e poder ou idade.
Simplesmente era algo que acontecia ou não com cada
vampiro.
A porta se abriu. Amon tinha se esquecido que não a
trancara, antes.
Yuri parou na entrada, olhando para ele e depois
para Daniele.
Aquela era a hora da verdade. Raquel havia falado
para ele fazer o que precisasse para salvar Daniele, mas
Amon não fazia ideia de qual seria a reação de qualquer
um ali vendo a realidade.
Yuri levantou as sobrancelhas e apontou para a
própria boca, sem falar nada. Daniele soltou o ar de um
jeito que quase parecia irritado e mostrou suas presas.
O humano riu e entrou na sala.
— Só não ouse me fazer de lanchinho sem eu saber
— ele resmungou, com um tom leve o suficiente para
Amon saber que era só uma brincadeira.
— Do jeito que você é, até seu sangue deve ser
azedo — Daniele respondeu. — Não, obrigada.
Amon sorriu. Deveria ter esperado algum comentário
daquele tipo.
Yuri balançou a cabeça e parou perto da janela.
— Dani? — Uma mulher chamou.
Daniele se virou para a porta de novo, tensa. Era sua
prima ali.
A outra humana parou na porta, se balançando para
frente e para trás. Daniele engoliu em seco e as duas se
encararam.
Se a prima virasse as costas para Daniele, Amon não
tinha certeza do que faria, não importava a história delas
com vampiros. Ela tinha sido uma das pessoas a dizer
para ele transformar Daniele. E era mais do que óbvio
que Daniele estava com medo daquela possibilidade.
A mulher praticamente se jogou para dentro da sala,
na direção de Daniele. Elas se abraçaram com força,
falando algo em voz baixa. Amon não tentou ouvir. Ele
fazia questão de garantir que Daniele não ia perder o
controle e ferir as pessoas que importavam para ela, mas
não precisava saber o que estava falando com a prima.
Era o momento delas. Ele só estava satisfeito por pelo
menos parecer que Daniele não teria problemas com a
sua família.
A porta da sala se fechou com o estalo. O humano
mais velho que estivera ali da outra vez também tinha
entrado enquanto Amon estava vigiando as duas
mulheres.
Daniele soltou a prima e olhou para o outro homem.
Ele assentiu devagar e ela relaxou.
Bom. Aquilo era muito bom. Ela não ia perder sua
família.
— E Raquel? — Daniele perguntou.
O humano mais velho balançou a cabeça.
— Na mansão, inconsciente — ele contou. — O que
ela faz não é algo que pode ser usado sempre e tem um
preço alto.
Aquilo não era uma surpresa. Até mesmo entre os
vampiros, a maioria das habilidades com aquele tipo de
força tinha um custo. Era um dos motivos para Amon ser
tão temido: o que ele podia fazer não lhe cobrava nada
além do sangue.
Yuri se virou para Amon.
— O seu poder... — ele começou.
Amon balançou a cabeça.
— Não é como o dela.
E aquilo era tudo que precisavam saber.
O humano assentiu.
— Bom. Não estamos completamente indefesos,
então.
Não. Mas Amon tinha certeza de que o Setor Oito
ainda teria surpresas para eles.

Alana tentou não encarar Dani. Dani, que só não tinha morrido
porque Amon a transformara em uma vampira.
Era culpa dela. Não adiantava tentarem dizer que
não era, não ia mudar os fatos. Podia não ter sido uma
escolha de Alana que tinha começado aquilo tudo, mas
não deixava de ser sua culpa. Sua e daquele poder que
na verdade era uma maldição, e ela não se importava se
estava sendo dramática. Era a verdade. Toda a história
da sua família girava ao redor daquilo. Do que tinham
precisado fazer para não serem mortos, desde o começo.
Elas tinham tentado fazer diferente – Alana e Dani,
quando fugiram. Elas tinham pensado que podiam evitar
que aquilo acontecesse de novo, se fossem longe o
bastante.
Iludidas, as duas. Alana deveria ter imaginado que
não seria tão simples. Não tinha como ser tão simples, a
menos que ela estivesse disposta a ignorar tudo o que
estava ao seu redor e nunca mais usar seu poder.
E então ela enlouqueceria. Seu pai tinha feito
questão de deixar aquilo claro. Ela não era a primeira a
ter pensado assim, e provavelmente não seria a última.
Mas uma bruxa que nunca usava seu poder só tinha um
destino: loucura.
— Nós podemos mover as paredes elétricas — Yuri
falou. — Se bloquearmos a direção do Setor Cinco
também...
— Não temos energia — Dani avisou.
Dani se esticou para pegar o tablet na mão de Yuri.
Ela abriu uma sequência de gráficos e devolveu o tablet.
— Isso que é o que os nossos geradores conseguem
produzir — Dani continuou. — Vamos precisar
redirecionar toda a energia da cidade e das fábricas para
manter as paredes que já estão no lugar.
E não ia ser o suficiente. Aquela era a parte que eles
ainda não tinham entendido e que não seria Alana que ia
explicar. Eles não tinham crescido sendo ensinados sobre
a política dos vampiros. Nenhum deles – nem mesmo
Amon.
Primeiro, o Setor Oito só estava interessado nela. No
poder de Alana. Depois, o vampiro, que tinha sido a arma
do Setor Oito no passado. Alana não fazia ideia de se não
sabiam que ele tinha ficado nas ruínas ou se só queriam
garantir que ninguém pudesse usar o poder dele contra o
Setor Oito. O que ela sabia é que ter ele ali havia feito o
setor passar de um alvo conveniente para se tornar uma
prioridade.
E então, Raquel.
Alana sabia que tinha algum motivo muito bom para
Raquel ter conseguido permissão para controlar um
setor, mas nunca tinha descoberto detalhes. E ela
suspeitava que os vampiros dos outros setores também
não sabiam. Se soubessem, teriam atacado bem antes.
O Setor Dez estava se mostrando como um setor que
tinha força o suficiente para fazer frente a uma Corte.
Alana era a garantia de que teriam alimento, não
importava o que acontecesse. Amon e Raquel eram
defesas que garantiam que o custo de atacá-los seria
alto demais para qualquer setor. E isso falando só do que
os vampiros sabiam, porque havia mais.
Eles não podiam ser deixados livres. Eles eram um
risco para a imagem de superioridade dos vampiros.
Tinha sido por menos que aquilo que haviam ido
atrás do seu pai. Não tinha sido porque ele se recusara a
trabalhar para o príncipe depois que sua avó tinha
morrido, como Dani pensava. Tinha sido porque seu pai
desafiara o príncipe em público, falando que os vampiros
precisavam de humanos como ele.
Vampiros não precisavam de ninguém. Vampiros
eram superiores e fariam qualquer coisa para manter
aquela imagem.
Se uma frase falada em um evento da Corte já tinha
sido o suficiente para queimarem uma boa parte da
cidade para garantir que ninguém da sua família
escapasse...
Alana colocou a mão no bolso. O papel grosso
daquela mensagem ainda estava ali, dobrado e
amassado mais vezes do que ela conseguia contar.
— Não temos pessoal para mover... — Yuri começou
Amon balançou a cabeça.
— Defina a área de maior risco. Podemos cuidar dela.
Podemos. Ele e Dani.
Dani, que agora era um deles... Por sua culpa.
Aquilo já tinha ido longe demais.
Alana se levantou do sofá.
— Nana? — Dani chamou.
Ela não ia nem reclamar do apelido de quando eram
crianças.
Alana balançou a cabeça.
— Não tenho como ajudar em nada aqui.
Yuri e o vampiro olharam para ela. Alana deu de
ombros.
— É a verdade — ela falou. — Vale mais a pena eu
voltar para as plantações. Posso tentar criar uma área
segura para o pessoal da cidade recuar, se chegar nesse
ponto.
— E usar as plantas como armadilha? — Yuri
perguntou.
Alana assentiu. Não era mentira. Ela podia fazer
aquilo. Só não ia.
Ela se virou e saiu da casa segura mais depressa do
que precisava. O papel no seu bolso parecia gelado
contra os seus dedos, mas Alana sabia que era só uma
impressão. O papel não era frio, mesmo com o poder que
conseguia sentir vindo dele.
Aquilo já tinha ido longe demais. Alana tinha passado
tempo demais tentando escapar do inevitável e a história
estava se repetindo. Então ela ia fazer o que deveria ter
feito desde o começo.
Ela respirou fundo e foi na direção da mansão,
andando depressa.

Rafael encarou o horizonte por um instante antes de olhar para o


papel grosso nas suas mãos.
Ele não havia esperado por aquilo. A magia dos
vampiros não era conhecida entre os humanos. Até
mesmo entre os vampiros, eram raros os que a
praticavam.
Não deveria ser possível que uma bruxa humana
entendesse como um dos encantamentos de Rafael
funcionava. Mas era o que havia acontecido.
A mensagem no papel era simples. Uma pergunta.

Qual é a sua proposta real?


A.

Rafael encarou o horizonte de novo e sorriu. O sol


estava quase se pondo. Quando ele desaparecesse do
horizonte, as negociações começariam.
E ele teria exatamente o que queria.
QUINZE

Dani encarou a porta fechada. Era estranho como ela conseguia


quase sentir a luz lá fora, mesmo que não tivesse sol
batendo naquela direção. E era mais estranho ainda
como ela tinha começado a ouvir os batimentos
cardíacos de Yuri e Ezequiel antes deles irem embora.
Enquanto estavam discutindo o que fazer, quase tinha
sido como se nada tivesse mudado, mas, depois...
Ela não precisava que Amon explicasse o que era.
Fome. Ou sede, se fosse pensar no termo certo. Dani não
estava sentindo aquela impressão incômoda e a dor de
antes, mas era a única coisa que podia ser. Nem o que
quer que Amon estava fazendo era o suficiente para Dani
não ouvir os batimentos cardíacos dos outros.
E ela ainda estava ouvindo, enquanto Yuri e Ezequiel
se afastavam na direção da mansão.
Um arrepio a atravessou. Aquilo era estranho
demais. E incômodo. Mas Dani tinha feito sua escolha e
não ia voltar atrás. O que queria dizer aprender a lidar
com aquilo.
Eles tinham feito os planos. Era o que importava.
Não que as possibilidades fossem muito animadoras,
mas eles não estavam despreparados. E Dani tinha
conseguido ficar perto deles sem se transformar em um
monstro que atacaria seus próprios amigos. Eles não
tinham se afastado dela. Nem mesmo Alana. Aquela era
a parte que importava. Todo o resto, Dani conseguiria
lidar.
A porta da geladeira se fechou.
Dani se virou para a cozinha e parou. Era óbvio que
Amon estava lá e ela quase tinha ido na sua direção, mas
a luz do sol que estava entrando pela janela – luz
indireta, não direta – ainda estava forte demais. Mais
forte do que ela se lembrava de ser, naquele horário.
— Você vai se acostumar — Amon falou.
Dani levantou as sobrancelhas. Ele se encostou no
balcão da cozinha e sorriu.
— A luz do sol — ele explicou. — Sempre é pior no
começo. Você vai se acostumar um pouco e aprender a
reconhecer que tipo de luz indireta é segura para você ou
não. Mas nos primeiros dias, qualquer luz um pouco mais
forte é muita luz.
Fazia um pouco de sentido. Dani não tinha ficado
incomodada quando abriram a porta da sala, mas o sol
não estava naquela direção. E a porta não tinha ficado
aberta por muito tempo para ela prestar atenção.
— Está ligado ao poder, também? — Dani perguntou.
Amon balançou a cabeça e abriu uma bolsa de
sangue. O cheiro se espalhou de uma vez e Dani sentiu a
pressão na sua boca. As presas prontas para ficarem
maiores. Mas tinha algo errado com o cheiro. Era como
se...
Sangue morto. Era o que Amon tinha falado, antes.
— Mais ligado à idade do que ao poder — ele contou.
— Mas você provavelmente vai ter mais resistência ao
sol por causa do meu sangue.
Porque Amon era antigo. De antes da magia.
E Dani não estava conseguindo se concentrar mais,
por causa daquele cheiro.
Não. Não era só o cheiro que estava errado. Amon
não deveria estar bebendo o sangue morto.
— O combinado não foi esse — Dani falou.
Amon sorriu antes de esvaziar a bolsa de sangue de
uma vez e limpar a boca com as costas da mão.
— Eu não vou me alimentar de você, Daniele — ele
avisou. — Não agora, no começo. Não até ter certeza de
que você tem o que precisa.
Um arrepio atravessou Dani. O que ela precisava era
dele. Do sangue dele.
E, se Amon não estivesse na cozinha, na luz que
Dani sabia que seria o suficiente para feri-la, ela já
estaria lá, limpando as gotas de sangue que ainda
estavam nos lábios dele.
Dani respirou fundo.
O Setor Dez ia ser atacado, de novo. Mas, o que quer
que fosse acontecer, eles tinham tempo até o anoitecer.
Até lá, estavam seguros. E não tinha mais nada que
pudessem fazer. Os planos já estavam feitos e agora
Dani só podia esperar.
Esperar, ou ter aquele tempo para ela.
— Vem aqui — Dani falou.
Amon a encarou.
Ele não ia negar. Ela sabia que não.
Amon amassou a bolsa vazia de sangue e a jogou no
lixo antes de passar pela parede baixa e ir na direção de
Dani.
E ela tinha chamado Amon, mas não fazia a menor
ideia do que vinha agora.
Amon parou na sua frente. A pressão na boca de
Dani ficou mais forte, como se só ter ele tão perto assim
fosse algum tipo de sinal para o seu corpo se preparar. E
deveria ser, porque Dani não tinha se esquecido da
sensação de quando Amon havia se alimentado dela,
mas... Era diferente.
Dani respirou fundo de novo.
— O que eu faço? — Ela perguntou.
Amon deu um sorriso lento e colocou a mão atrás do
seu pescoço.
— Relaxe — ele murmurou. — Não tente controlar.
Seus instintos sabem o que fazer. Só os escute.
Não era tão simples. Não tinha como ser só aquilo.
E era fácil para Amon falar. Mas Dani não conseguia
deixar de lembrar que tinha presas e que ia morder o
pescoço dele. Se fizesse alguma coisa errada...
Se Dani fizesse alguma coisa errada, não ia
acontecer nada, porque Amon era um vampiro muito
mais forte que ela. Ele conseguiria pará-la. E conseguiria
se recuperar de qualquer coisa que ela fizesse.
Dani relaxou.
A pressão na sua boca ficou mais forte de uma vez e
ela conseguiu sentir quando suas presas cresceram. Era
estranho, uma consciência de que elas estavam ali de
um jeito que não fazia sentido se ela tentasse pensar
para valer. E Dani quase conseguia ver o sangue
correndo pelo corpo de Amon, como se fosse uma
imagem se sobrepondo ao que estava vendo de verdade.
Era diferente do que ela tinha sentido quando Yuri e
Ezequiel estavam ali... E ela não ia pensar naquilo.
Mas Dani conseguia ver exatamente onde a veia
passava, no pescoço de Amon. Conseguia quase sentir o
ritmo do sangue dele... Não. Eram os batimentos do seu
coração, muito mais fracos e lentos que de um coração
humano.
Amon subiu a mão para a nuca de Dani, sem tentar
forçar que ela se movesse. Bom. Aquilo era bom, porque
ela estava tentando entender as sensações, os sentidos
que não eram novos, mas eram diferentes de um jeito
que ela não tinha certeza de que conseguia explicar.
E a sensação mais forte era aquela quase dor no seu
corpo. Fome.
Dani colocou uma mão no pescoço de Amon e se
aproximou mais, até que estava encostada nele. Amon
fechou os olhos. Não era quase nada, mas Dani entendia:
ele estava cedendo o controle para ela. Estava parado
ali, para ela fazer o que quisesse. E saber aquilo era
demais para a fome que ela estava sentindo.
Dani mordeu. A sensação das suas presas furando a
pele era estranha, mas não de um jeito ruim. E o
sangue... A primeira impressão do sangue na sua boca
foi quase elétrica. O poder, não o gosto real... E o gosto
também não era ruim. Não era algo que Dani conseguiria
explicar. Era sangue, aquele mesmo gosto metálico que
ela conhecia, mas ao mesmo tempo não era.
Ela engoliu. A sensação do poder se espalhou pelo
seu corpo, devagar, de um jeito que era quase como um
toque e ao mesmo tempo não era. Era algo quente e
gelado ao mesmo tempo, fazendo aquela tensão que era
o começo da dor relaxar.
Não. Fazendo a tensão mudar e se transformar em
outra sensação se espalhando pelo seu corpo. Era fome,
também. Mas era outra fome.
E fazendo Dani prestar atenção na sensação do
corpo de Amon contra o seu. Na forma como ele estava
tenso, como se estivesse se forçando a continuar parado.
E na forma como ela conseguia sentir a ereção dele entre
seus corpos.
Dani se apertou contra ele, sem parar de beber.
Amon soltou um gemido rouco e apertou sua nuca antes
de relaxar de uma vez. E só aquilo – a sensação do
sangue se espalhando pelo seu corpo, o gemido dele –
era o suficiente para fazer Dani se apertar contra ele,
também. Para querer mais do que só o sangue dele.
Mais. Ela queria mais. Dani queria Amon tão
desesperado quanto ela tinha ficado, da outra vez.
Queria ele sem conseguir se conter.
Ele soltou outro gemido rouco e se apertou contra
ela. Dani continuou bebendo, sem se afastar e sem tirar
a mão que estava no pescoço de Amon, mas desceu a
outra mão pelo corpo dele. Amon estava tenso, sim. Ela
conseguia sentir exatamente como ele estava se
forçando a continuar parado.
Ou não tão parado, porque ele estava se movendo
contra Dani. Se apertando contra ela de um jeito que
parecia quase contra sua vontade, como se Amon não
conseguisse mais controlar o próprio corpo.
Sim.
Ela desceu a mão livre pelo corpo de Amon e apertou
o pau dele. Amon se moveu contra ela, mais depressa
ainda, com uma urgência que só servia para fazer Dani
querer mais. Mais sangue, mais dele. A sensação da pele
dele contra a dela.
Dani segurou a calça de Amon e puxou. O tecido
rasgou fácil – ela era uma vampira, tinha força mais que
o suficiente para aquilo. E a sensação da pele de Amon
contra a sua mão, o peso do seu pau duro quando ela o
apertou... Perfeito. Ou quase perfeito.
Amon puxou o cabelo de Dani.
Ela não queria parar. Queria mais do sangue dele.
Queria terminar aquilo.
— Você vai — Amon murmurou.
Dani levantou a cabeça, devagar. Ela queria mais. O
gosto do sangue, a sensação daquilo se espalhando pelo
seu corpo, a forma como ela ainda estava se sentindo...
Mais, de uma forma que nem mesmo ela conseguiria
explicar. Aquilo tudo era viciante.
Ela ia se controlar. Ela precisava se controlar.
Mas Amon ainda estava se movendo contra a sua
mão.
Dani passou a língua pelos ferimentos no pescoço
dele, que já estavam se fechando, antes de olhar para
Amon.
Ele soltou seu cabelo e segurou sua nuca antes de
passar a língua pelos lábios de Dani – tomando o sangue
que ainda estava ali.
Aquela sensação elétrica atravessou Dani de novo.
Mais. Ela queria mais. Precisava de mais.
Dani empurrou Amon na direção da parede da sala.
Ele foi, sem resistir, terminando de jogar suas roupas
rasgadas para o lado. E Dani também estava se livrando
das suas roupas enquanto continuava andando na
direção dele, como um predador atrás da sua presa –
mas ela sabia que nunca seria aquilo. Não com Amon. Se
ela estava no controle, era porque ele estava lhe dando
aquele momento.
Amon parou, encostado na parede, completamente
nu. As linhas de poder nas suas mãos estavam se
movendo, girando e crescendo pelo seu braço antes de
voltarem ao normal. E Dani agora tinha marcas nas suas
mãos também, mas elas eram mais finas, delicadas,
quase parecidas com as linhas da sua tatuagem.
E não importavam, agora.
Ela parou na frente de Amon, tão perto que seus
corpos estavam quase se tocando, e segurou o pau dele
de novo. Amon fez outro daqueles ruídos graves que não
eram exatamente um gemido e fechou os olhos, se
movendo contra a mão de Dani num ritmo que era lento
por algumas estocadas antes de ficar rápido,
desesperado, e então lento de novo.
Dani se lembrava de como tinha se sentido depois
que ele tinha se alimentado dela. Da sensação de estar
quase gozando, de precisar de só um toque, só um pouco
mais para chegar naquele orgasmo logo ali. E ela queria
aquela sensação de novo – tanto quanto queria ver Amon
perdendo o controle por causa dela. Era fome, sim, mas
era diferente. Mais profunda. Não exatamente calma,
mas sem pressa, porque Dani sabia que ia ter tudo o que
queria. Ela podia esperar. Ela podia fazer aquilo primeiro.
Ela apertou o pau de Amon. Ele a encarou e mostrou
as presas, mas não era uma ameaça. Se fosse, ele não
estaria metendo contra a sua mão com mais força ainda.
Dani se aproximou ainda mais, prendendo o pau dele
contra o seu corpo antes de mover a mão no mesmo
ritmo de Amon, apertando e relaxando enquanto subia e
descia pelo seu pau. E, o tempo todo, ela o estava
mantendo preso ali, apertado contra o seu corpo.
Amon jogou a cabeça para trás, se movendo na mão
de Dani ainda mais depressa, com mais força, antes de
parar de uma vez com um gemido que era mais uma
vibração que um som.
Ele tinha gozado. Dani tinha certeza. Ela quase
conseguia sentir o orgasmo de Amon, de alguma forma.
Mas ele ainda estava duro na sua mão, sem nenhum
sinal de que tinha gozado.
Amon respirou fundo e a encarou de novo, se
movendo devagar, antes de rir de um jeito grave que fez
um arrepio atravessar Dani.
— Nós não estamos vivos, Daniele — ele falou,
rouco. — O corpo de um vampiro não funciona como um
corpo humano.
Fazia sentido. Da mesma forma que ela sabia que
vampiras não podiam ter filhos, era óbvio que vampiros
também não teriam nenhum tipo de ejaculação.
Mas teriam seu orgasmo. E não teriam a “limitação”
de esperar o corpo se recuperar.
Aquilo abria possibilidades...
Amon sorriu e puxou a mão de Dani. Ela o soltou e
levantou as sobrancelhas, mas ele só balançou a cabeça
antes de se abaixar, ainda encostado na parede.
Se abaixar na frente dela.
Dani apoiou as mãos na parede, sentindo a
respiração fria de Amon contra a pele da sua barriga. Ele
subiu as mãos pelas suas pernas, devagar, antes de
levantar uma delas e a apoiar no seu ombro. Dani soltou
o ar com força e fechou os olhos. A sensação elétrica do
sangue ainda estava pelo seu corpo. Junto com o toque
cuidadoso de Amon e com a respiração gelada que agora
estava mais baixa...
— Amon... — ela começou.
Ele riu, baixo, e apertou a outra perna dela.
— Paciência, Daniele. Paciência.
Ela não tinha paciência. Ela tinha fome. Ela queria o
toque dele, a língua dele. Ou então que ele se levantasse
de novo e fizesse como da outra vez: só força e pressa,
enquanto ele a fodia sem o menor controle.
Amon beijou a parte de dentro da sua coxa. Um
arrepio atravessou Dani e ela se apoiou ainda mais na
parede.
— Você gostou, Daniele? — Amon perguntou, ainda
com a boca perto demais da pele dela. — Da sensação
de tomar o meu sangue?
Dani engoliu em seco. Era como se as palavras dele
estivessem fazendo ela sentir tudo de novo. A sensação
fria e quente ao mesmo tempo, se espalhando pelo seu
corpo. Aquela impressão quase elétrica do poder e a
forma como a tensão tinha mudado... Ainda estava
mudando.
— Da sensação de assumir o controle e me fazer
perder o controle nas suas mãos? — Amon continuou.
Sim, ela tinha gostado. E gostado muito mais do que
teria imaginado, se tivesse parado para imaginar algo
assim antes.
Amon riu contra a sua pele.
Dani não teve nenhum aviso. Foi só uma pontada
de... Não era dor. Era só uma sensação forte que parecia
estar direto no seu clitóris, e aquela sensação de ser
sugada por um instante. Amon tinha mordido sua coxa.
Um instante, e o suficiente para o orgasmo explodir
pelo seu corpo de um jeito que não era natural. Dani caiu
contra a parede, sem conseguir reagir. Ela mal conseguia
sentir enquanto Amon lambia as feridas e se levantava
de novo, devagar, a segurando no lugar enquanto ela
tremia e gemia, sem nem tentar se controlar. Nunca
tinha sido assim antes. Não era possível ser assim. Mas
as sensações continuavam crescendo e se espalhando
quase que por vontade própria.
Dani encarou Amon, sentindo sua respiração falhar
quando ela se moveu contra ele e as sensações
explodiram pelo seu corpo de novo.
Ele sorriu e segurou seu queixo.
— Isso foi o veneno — Amon murmurou. — Isso é o
que um vampiro pode fazer com outro.
Um arrepio atravessou Dani. Ela ainda estava
sentindo seu corpo sensível, como se tivessem sido
sensações demais depressa demais.
Mas aquilo, o que Amon estava falando...
Dani desceu uma mão pelo corpo de Amon, sentindo
a tensão dele por onde ela tocava. Era bem possível que
ele também estivesse se sentindo sensível demais. E
aquilo não era ruim.
Amon ainda estava duro.
Dani fechou a mão ao redor do pau dele, devagar.
— Mais — ela murmurou.
Amon fez um ruído grave antes de puxar a mão de
Dani e se mover.
Dani respirou fundo e se arrependeu na mesma hora. Cheiros
demais, que ela não sabia filtrar ou controlar. Se é que
tinha como fazer aquilo. Talvez aquele fosse o motivo
para vampiros não respirarem.
Mas ser distraída pelos cheiros era melhor que
prestar atenção no que estava acontecendo.
Não era um ataque – ainda. O comunicado oficial
havia chegado pouco antes do anoitecer: um aviso de
que as Cortes haviam julgado as ações do Setor Dez e
iriam até lá para discutir as medidas a serem tomadas
sobre suas transgressões.
Transgressões.
O Setor Oito tinha usado o argumento de que Amon
pertencia a eles, o que queria dizer que era tarde demais
para só dizer para Amon ir lá e destruir tudo. Qualquer
coisa daquele tipo que fizessem seria visto como um
desafio aos outros setores. E, se já mal estavam
conseguindo lidar com o Setor Oito sozinho – ou perto de
sozinho – se os outros se juntassem eles não teriam a
menor chance.
E ela seria mais um ponto contra o Setor Dez. Por um
lado, era bom já tirarem aquilo do caminho. Mais cedo ou
mais tarde as Cortes ficariam sabendo que Amon tinha
transformado Daniele e aquilo seria um problema. Mas
Dani só conseguia pensar que aquilo podia ser o último
detalhe que faria as Cortes se juntarem contra o Setor
Dez.
Mesmo assim, ela não ia se esconder. Fazer isso seria
pior, depois. Então Dani estava ali, parada logo abaixo
dos degraus que levavam para a porta da mansão. Yuri
estava parado ao seu lado, com Dante e Adriana ao lado
dele. Amon estava do outro lado de Dani e um passo
para trás – uma forma de deixar claro que ele estava ali,
mas não estava no comando.
Raquel deveria estar ali, também. Mas ela mal havia
acordado, então decidiram que era melhor ela continuar
na mansão e que Ezequiel ficaria com ela, por garantia.
Se os vampiros questionassem, Dani encontraria algum
jeito de justificar a ausência de Raquel.
— Alguém viu Alana? — Dani perguntou.
Dante balançou a cabeça. Yuri deu de ombros.
— A última vez que vi Alana, ela estava voltando
para a mansão — Adriana falou.
Se ela tinha voltado para a mansão, era porque não
tinha conseguido fazer o que havia falado mais cedo.
Pelo menos ela estava segura.
Ninguém falou mais nada. Os sensores do setor já
tinham identificado os vampiros alguns minutos antes, o
que queria dizer que estavam andando até ali, sem a
menor pressa. Claro que não precisavam ter pressa. Era
mais uma jogada de intimidação.
— Podemos aproveitar que estão todos aqui e... —
Dani murmurou.
Amon riu baixo.
— Os príncipes vão mandar enviados — ele falou. —
Nenhum deles correria o risco de vir pessoalmente.
Uma pena.
Os vampiros apareceram, mais para a frente no
caminho. Cinco deles.
— Um de cada setor? — Yuri perguntou.
— É o protocolo — Amon falou.
Cinco setores. Aquilo queria dizer que tinham a
maioria no que quer que houvessem decidido, porque só
havia nove setores naquela região.
Os vampiros se aproximaram e pararam a alguns
passos de distância de onde eles estavam – três homens
e duas mulheres, todos vestidos de preto, com correntes
atravessadas pelas roupas e usando sobretudos que mais
pareciam capas. Um dia, Dani ia se lembrar de perguntar
para Amon sobre as correntes e sobre os sobretudos. Ela
tinha entendido que aquilo tinha algum significado para
os vampiros, só não fazia ideia de qual.
E ela também se lembraria daqueles vampiros,
porque eles eram riscos para o Setor Dez. Qualquer um
que fosse mandado sozinho, assim, era um vampiro que
podia se tornar um problema. Os príncipes não
mandariam alguém fraco.
Mas ela não ia fazer nada. Nem ela, nem ninguém do
Setor Dez. Os enviados queriam um motivo para atacar.
Aquele era o motivo para terem parado tão perto –
porque para um vampiro aquela distância não era nada.
Então ela fazia questão de gravar tudo que acontecesse
ali e de não dar nenhum motivo para fazerem mais que
falar.
— É estranho a líder do seu setor não estar presente
— um dos vampiros começou.
Dani o encarou e o vampiro deu um meio sorriso que
ela só conseguia entender como debochado. Ela
continuou o encarando. Se ele tivesse algum tipo de
poder de compulsão, Amon estava perto o suficiente
para avisá-la.
— Os líderes dos setores de vocês também não estão
presentes — ela falou. — Então imagino que a presença
dela não seja necessária.
Uma das mulheres mostrou as presas. Dani olhou
para a vampira e deu um sorriso discreto. Ela sabia como
lidar com pessoas que agiam daquele jeito.
— Vocês não vieram aqui à toa — Dani continuou. —
Então falem logo o que querem.
O vampiro que tinha falado sobre Raquel inclinou a
cabeça, olhando para Dani.
— Não temos muito a dizer, neófita — ele falou. —
Sua presença é o suficiente para termos certeza de que
todas as acusações colocadas diante dos outros setores
são verdadeiras. O Setor Dez...
Ele parou de falar, encarando algo atrás de Dani.
Um arrepio a atravessou. Ela podia se iludir e pensar
que era Amon, mas Dani conhecia o poder de Amon.
Aquilo não era ele. Ela uma sensação mais densa,
pesada. Não era nenhum tipo de poder que ela já tivesse
sentido antes.
Dani se virou, devagar.
Um vampiro estava parado na porta da mansão,
como se estivesse esperando até ter a atenção de todo
mundo. Ele era alto, talvez uma cabeça mais alto que
Dani, com a pele clara e pálida que só era possível em
um vampiro e cabelo escuro e comprido puxado para
trás. E estava usando um sobretudo que quase parecia
uma capa, óbvio.
Dani sentiu a tensão de Amon, mesmo que não
estivesse olhando para ele. Quem quer que aquele
vampiro fosse, era uma ameaça muito maior que os que
estavam parados do outro lado.
O vampiro encarou os enviados dos outros setores.
— Então vocês pretendem atacar a família da minha
noiva — ele falou.
Não.
Alana saiu da mansão. Ela estava vestida como
sempre, com um saião que ia até o pé e um cropped,
mas a diferença era que agora tudo era preto. E, de
alguma forma, ela não parecia deslocada ao lado do
vampiro.
Os vampiros se inclinaram em reverências tão
rígidas que Dani tinha certeza que não estavam se
movendo por vontade própria. Um arrepio a atravessou.
Quem quer que aquele vampiro fosse...
— Com sua permissão, Lorde Rafael — um dos
enviados começou. — Este setor está indo contra nossas
próprias leis.
Lorde Rafael.
O príncipe do Setor Um. O vampiro responsável por
toda a região e a quem os outros vampiros deviam
obediência.
O mesmo vampiro que havia dado o Setor Dez para
Raquel.
E Alana tinha concordado em se casar com ele.
Dani encarou a prima. Alana sustentou seu olhar por
alguns segundos antes de piscar e olhar para os
vampiros abaixados de novo.
— Este setor está reagindo à pressão feita por seus
setores — Lorde Rafael falou. — E a reação deles foi
justificada.
— Com sua... — outro dos vampiros começou.
Os joelhos dele bateram no chão com um som seco.
O vampiro não tentou continuar.
— Não tentem abusar das nossas leis para
conseguirem o que querem, e eu não farei o mesmo —
Lorde Rafael completou.
Um arrepio atravessou Dani. Ela não duvidava do
que ele estava falando. Lorde Rafael tinha o tipo de
poder que fazia Dani pensar que podia ter literalmente o
que quisesse. E, pela forma como Amon estava tenso ao
lado dela, completamente imóvel mas com as linhas de
poder nas suas mãos se movendo depressa demais, ela
não estava errada.
— A reação do Setor Dez foi justificada — Lorde
Rafael repetiu. — E vocês e seus mestres deveriam
aceitar a derrota enquanto podem.
Os vampiros que ainda estavam de pé se moveram
como se fossem um só, fazendo reverências antes de se
virarem e voltarem na mesma direção de onde tinham
vindo. O que ainda estava de joelhos no chão foi
levantado no ar.
— Avise seu mestre que não vou tolerar esse tipo de
manipulação — Lorde Rafael falou.
O vampiro foi jogado para trás e se afastou, correndo
de uma forma que era mais animal que humana.
Lorde Rafael se virou para Alana e estendeu uma
mão. Ela aceitou.
Amon segurou o braço de Dani. Ela não tinha nem
percebido que tinha começado a se mover na direção da
sua prima.
— Satisfeita? — Lorde Rafael perguntou.
Alana assentiu.
— Sim.
O vampiro sorriu.
— Aguardarei sua mensagem, então.
A noite pareceu mais escura por um instante e então
Lorde Rafael não estava mais ali.
DEZESSEIS

Dani cruzou os braços enquanto Alana descia os degraus da


plataforma que tinha sido montada no espaço aberto
atrás da mansão, segurando a mão de Lorde Rafael.
Já fazia uma semana desde aquela noite na porta da
mansão. Uma semana que tinha sido pura tensão e
preparativos – porque se Alana queria uma cerimônia de
casamento no Setor Dez, então ela teria uma. Ninguém
questionaria aquilo, depois do que ela tinha feito.
E, apesar de Dani ter passado aquele tempo todo
esperando algum tipo de ataque, mesmo com as
garantias de Lorde Rafael, nada tinha acontecido. Tudo
havia voltado ao normal – ou tão normal quanto podia
ser, depois de tudo. O Setor Cinco tinha voltado a
fornecer eletricidade para eles. Os mercados do Setor
Seis estavam abertos, de novo, e a Corte de lá estava
agindo como se nada tivesse acontecido. Os produtos
que eles traziam de outros setores estavam chegando
sem o menor problema.
Tudo estava calmo demais, simples demais e rápido
demais.
O que queria dizer que Dani não deveria estar
incomodada por Alana ter se casado de vermelho. Não
era como se elas fossem religiosas – a maioria das
pessoas não era, desde a volta da magia. O mundo já era
perigoso demais sem correrem o risco de dar forças para
alguma divindade. Mesmo assim, algumas tradições
continuavam e Dani não conseguia não pensar que Alana
tinha perdido alguma coisa por causa daquele
casamento.
A cerimônia tinha sido bonita. Tinha sido exatamente
o que Alana queria. Todo mundo estava ali. Alana e Lorde
Rafael pareciam um par perfeito, no alto daquela
plataforma, ela com um vestido vermelho e ele vestido
de preto, como sempre. E tudo o que tinha sido falado ali
parecia certo. Dani só não conseguia acreditar.
De alguma forma, Alana tinha conseguido negociar
com Lorde Rafael para passar seis meses no Setor Um e
seis meses no Dez. Assim ele ia ter o que queria – Alana
garantindo que as plantações deles crescessem – e o
Setor Dez não corria o risco de voltar para a situação que
estava antes que elas chegassem ali. E Alana jurava que
tinha feito questão de se proteger. O casamento nunca
seria real. Era só pelas aparências, porque o vampiro que
tivesse uma bruxa da natureza na sua Corte teria muito
mais respeito dos outros.
Na opinião de Dani, a palavra certa não era respeito.
Mas o que ela pensava não fazia diferença. Alana tinha
feito sua escolha e, por mais que Dani odiasse admitir,
ela não estava errada. Os outros setores nunca os
respeitariam, porque não eram uma Corte e nunca
seriam. Mesmo se elas tivessem fugido de novo depois
das primeiras "propostas", o Setor Dez teria sido atacado
mais cedo ou mais tarde. E continuaria sendo atacado,
sempre.
Era melhor daquele jeito. Dani conseguia admitir
aquilo, mesmo que ainda odiasse o fato de Alana ter feito
aquele acordo depois do tempo que tinham passado
tentando evitar os vampiros. Pelo menos ela tinha algum
tipo de controle sobre como aquela relação seria.
Amon parou atrás de Dani. Ela sorriu, sem se virar, e
deu um passo atrás, se encostando nele. Amon passou
os braços ao redor da sua cintura, como se fosse a coisa
mais natural do mundo.
E estava se tornando natural. Uma semana, e Dani já
estava mais que acostumada com ter ele ali. Ela queria
ele por perto – e Dani nunca tinha pensado que
realmente falaria aquilo sobre alguém.
— Você ainda está tensa — Amon murmurou.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar. Agora que
ele estava ali, Dani podia relaxar um pouco do seu
controle. Ainda era difícil para ela ignorar o chamado que
eram os batimentos cardíacos das pessoas por perto e
ela definitivamente não conseguia se controlar quando
havia sangue por perto. Pelo que Amon tinha falado,
aquilo era normal, mas Dani não conseguia não se
incomodar, também.
O que queria dizer que Amon tinha passado a
semana toda controlando parte da sua fome e das suas
reações, enquanto Dani ajudava nos preparativos. Mas,
naquela noite, com todo mundo que convivia com Alana
querendo estar ali, Amon tinha se oferecido para vigiar a
fronteira enquanto a cerimônia acontecia. Agora, com a
festa começando, o pessoal de segurança estava dividido
em turnos e ia começar a voltar para os seus postos.
Mesmo com a garantia de Lorde Rafael de que não
seriam atacados, Dani e Yuri não estavam dispostos a
relaxar.
— Tem como não estar? — Ela perguntou.
Amon apoiou o queixo no ombro de Dani e não falou
nada.
Ela soltou o ar devagar e se virou quando Alana riu.
Raquel e Dante estavam perto da sua prima, com Lorde
Rafael parado ao seu lado como uma sombra silenciosa.
Ele não tinha feito nenhum esforço para interagir com
ninguém do setor e era melhor assim. Mas pelo menos
Alana realmente parecia satisfeita.
Uma criança riu, alto. Dani se virou em tempo de ver
outra das crianças gritar alguma coisa um instante antes
de Valissa passar correndo entre as cadeiras, segurando
a saia do seu vestido para não cair enquanto outras
quatro crianças corriam atrás dela. Dani não tinha se
surpreendido quando Alana tinha avisado que queria
Valissa como dama de honra. Pelo menos, não depois de
Raquel ter contado quanto tempo a garota estava
passando com sua prima. E era a primeira vez que Dani
via Valissa agir como uma criança.
Ezequiel estava parado ao lado da plataforma. Ele
encontrou o olhar de Dani e assentiu. Estava prestando
atenção em Lorde Rafael, também.
Naqueles dias de preparativos, Ezequiel tinha
voltado a fazer parte das equipes de segurança
oficialmente. De acordo com ele, a aposentadoria estava
entediante, e já que as coisas estavam ficando mais
interessantes no setor, ele preferia voltar à ativa, desde
que não fosse a pessoa no comando. Nem Dani nem Yuri
achavam aquilo ruim. Muito pelo contrário.
E Yuri também estava em algum lugar entre as
pessoas reunidas, com toda certeza. Ele não ia sair dali
até o amanhecer.
— Yuri avisou que não precisamos ficar aqui — Dani
comentou.
Na verdade, ele tinha falado que não ia fazer Dani
ficar em um lugar cheio e movimentado. Yuri sabia muito
bem que ela não tinha controle o suficiente para fazer
aquilo sozinha. Mas ela não estava sozinha.
Amon assentiu, ainda com a cabeça no seu ombro.
— O protocolo é que um de vocês sempre esteja
descansado, não é? — Ele comentou.
Era, mas...
— Eu não preciso descansar — Dani falou.
E ela não queria sair dali e deixar Alana com Lorde
Rafael, mesmo que eles não estivessem sozinhos.
Mas Dani precisava se acostumar com aquela ideia,
porque em dois dias Alana iria para o Setor Um, para
passar os primeiros seis meses lá.
— Se tem um príncipe que vai manter sua palavra, é
ele — Amon contou. — O príncipe que controla uma
região precisa ter palavra, porque é a única garantia
sobre ele que os outros setores vão ter. Se essa
confiança for quebrada, o risco é grande demais.
Fazia sentido, mas não era o suficiente para fazer
Dani relaxar.
Ela respirou fundo. O cheiro da comida se misturava
com o cheiro das plantas – não necessariamente as
flores, mas todas as plantas espalhadas ali em volta. E o
cheiro de sangue, fraco mas sempre presente.
E ela tinha esquecido de um detalhe.
— No dia que os enviados vieram aqui — Dani
começou. — Você ficou tenso demais quando ele
apareceu. Nunca te vi reagir assim, nem quando a gente
estava falando sobre o Setor Oito...
Amon se endireitou e apertou Dani contra o seu
corpo. Ela conseguia sentir o começo daquela tensão ali,
de novo.
— Eu nunca me encontrei com ele antes, se é isso
que quer saber — Amon falou. — Mas sempre ouvi falar
sobre ele.
Sempre. Amon não usava aquela palavra à toa.
— Ele é antigo — Dani murmurou, mesmo que aquilo
fosse óbvio.
Amon assentiu.
— Mais antigo que eu.
Um arrepio atravessou Dani. Ela se lembrava de
Amon falando que os que eram tão fortes quanto ele
tinham enlouquecido. E se Lorde Rafael estava ali...
— Ele já tem o que queria — Amon murmurou. —
Não é um risco para nós ou para a sua prima.
Não. Amon estava certo. Lorde Rafael não faria nada
com Alana, porque ela tinha concordado em fazer
exatamente o que ele queria. O Setor Um agora tinha
acesso a uma bruxa da natureza – a única na região.
Dani colocou uma mão no braço de Amon. Ela
precisava relaxar.
E talvez Yuri estivesse certo e ficar ali não fosse a
melhor ideia.
Ele provavelmente estava certo.
Amon beijou seu pescoço.
— Você se arrepende? — Ele perguntou.
Não era uma pergunta tão simples.
Se Amon tivesse perguntado o que ela preferia, a
resposta seria fácil: preferia ser humana. Visão noturna,
velocidade e força não eram o suficiente para fazer Dani
querer ser uma vampira.
Mas, se arrepender? Arrepender seria querer voltar
atrás e fazer outra escolha. E Dani não conseguia se
imaginar fazendo outra escolha para nada do que havia
acontecido. Nem sobre acordar Amon, sobre desfazer o
juramento, oferecer seu sangue ou ser transformada.
— Não.
Amon sorriu contra sua pele.
— Ótimo.
Dani levantou o braço e segurou o cabelo de Amon,
puxando de leve até que ele levantou a cabeça.
— Pra casa — ela falou.
Amon riu baixo antes de soltar a cintura de Dani e
oferecer sua mão. Dani aceitou.
Não, ela não se arrependia. O que quer que viesse
depois... Dani nunca se arrependeria.
Para todo mundo que se perguntou o “mas e se ela fosse
uma vampira, e não ele?”
UM

Mel encarou a janela do bar e as pessoas reunidas lá dentro –


mais do que era seguro para os humanos, mas eles
nunca pareciam se importar com aquilo. E ninguém a
veria, mesmo que olhassem para fora. Mel era parte das
sombras mais escuras que as tochas espalhadas pela rua
não conseguiam afastar.
Já fazia duas semanas que ela estava passando as
noites ali, vigiando. Esperando. Mas não havia nenhum
sinal da pessoa que ela queria ver.
As ordens de Mel tinham sido claras: encontrar uma
fonte de informações sobre o Setor Dez. Primeiro, ela
precisava descobrir exatamente do que eram capazes.
Depois, precisava garantir que teria um canal de
informações aberto. Era a mesma coisa que o pessoal do
Dez fazia quando ia para os bares ali. A diferença era que
um vampiro nunca conseguiria entrar no Setor Dez e ter
informações de uma forma que não envolvesse violência
– e aquilo seria o suficiente para ser considerado um
ataque.
Então ela estava esperando. Os espiões humanos,
por falta de outra expressão, continuavam se espalhando
pelos bares toda noite. Mas a mulher que era a
responsável por eles não tinha voltado. Daniele. Ela não
voltaria tão pouco tempo depois de ser transformada.
Nenhum neófito tinha controle o suficiente para estar em
um lugar cheio como aquele bar. E um dos espiões nunca
seria o suficiente para o que Mel precisava.
Mais cedo ou mais tarde, o outro responsável pela
segurança do Setor Dez iria ali. Ele assumiria o que
Daniele não podia fazer. Mel podia esperar.
Pelo menos, podia esperar por mais alguns dias. Não
era como se ela tivesse outra opção. Se Mel tentasse
chamar a atenção dele criando alguma situação na
fronteira, o mais provável era mandarem Amon para lidar
com ela. E Amon... Ele era a última pessoa que Mel
queria encontrar.
Um homem estava indo na direção do bar, sozinho.
Aquilo não chegava a ser estranho naquela parte da
cidade – não era uma das regiões onde os vampiros
cobravam o preço de sangue com mais frequência que
deveriam. Mas era incomum, porque quase sempre as
pessoas chegavam no bar em grupos pequenos. E aquele
homem não era dali. Ele estava alerta demais. A forma
como ele andava tinha o tipo de tensão de alguém
pronto para lidar com um ataque a qualquer instante,
mas não era a tensão de um fugitivo. Era uma prontidão
gelada. Ele não se assustaria se alguém avançasse para
ele, apenas reagiria sem pensar duas vezes.
Mercenários andavam daquele jeito na maior parte
do tempo. Mas os mercenários tinham os lugares que
preferiam frequentar e aquele bar não era um deles.
Além disso, Mel o teria reconhecido se fosse um dos
mercenários que usava o Setor Seis como base.
Alguém de fora, vindo da direção do Setor Dez, e
andando como um mercenário. Era possível que fosse
quem ela queria. Talvez Mel finalmente fosse parar de
passar as noites ali.
O homem não era muito alto, com a pele bronzeada
de quem passava muito tempo no sol, cabelo castanho
raspado dos lados e preso para trás. Ele estava usando
uma calça escura, coturnos e uma blusa de gola alta sem
mangas que deixava Mel ver os músculos definidos dos
seus braços. O corpo de um mercenário, também.
Interessante. Muito interessante. Se aquele fosse Yuri
Freitas, talvez Mel tivesse mais de uma proposta para
ele. E, se não fosse... Talvez ela tivesse algo a fazer para
passar o tempo – porque um humano com aquele corpo,
que andava daquele jeito, seria pelo menos uma
companhia interessante se estivesse disposto a dividir
sua cama.
O humano entrou no bar. Perfeito.
Mel se afastou da parede, deixando de ser sombras
entre um passo e outro. Quando ela se aproximou da
porta dos fundos do bar era só mais uma mulher usando
jeans escuro e uma blusa preta justa. Mais discreto que o
seu normal, mas a intenção era se misturar. Desde que
não deixasse suas presas serem visíveis, ninguém
notaria que ela era uma vampira a menos que quisesse.
Não enquanto a compulsão estivesse se espalhando
como uma onda ao seu redor.
Ninguém a parou quando ela entrou no bar e se
encostou na parede entre duas janelas, de braços
cruzados e encarando a massa de pessoas reunidas. Os
sons ali sempre eram altos demais – a música vindo das
caixas de som, o ruído de pessoas demais conversando e
o som agudo de copos e garrafas vindo do balcão do bar.
Mel se lembrava de gostar de lugares como aqueles,
antes de ser transformada, mas agora preferia manter
distância deles quando podia. Era melhor só ir ali quando
tinha alguma oferenda de sangue para recolher.
E, se ela não tivesse levado Amon para o baile, três
semanas antes, Mel não estaria ali agora. Aquela era sua
punição. Ou conseguia as informações que o príncipe do
Setor Seis queria, sem chamar atenção, ou a pouca
liberdade que Mel tinha estaria em risco.
Como se ela ter levado Amon fizesse alguma
diferença. Ele teria entrado naquele baile com ou sem a
ajuda de Mel. Mas era conveniente para o príncipe jogar
a culpa nela. E era conveniente para Mel aceitar aquela
culpa e aquelas ordens, porque eram uma oportunidade
que ela nunca tinha pensado que teria.
A qualquer custo. O príncipe tinha falado que queria
as informações a qualquer custo. Aquilo lhe dava
margem para fazer muita coisa – e talvez fosse o
suficiente para Mel finalmente conseguir se livrar do
juramento que a prendia ali.
O humano que andava como um mercenário se
apoiou no balcão do bar. Mel o encarou enquanto ele
pegava uma garrafa de bebida e se virava. Ele estava
tentando agir como se aquilo fosse natural, só uma
pessoa se acomodando e olhando ao redor sem prestar
atenção de verdade, mas estava alerta demais. Daniele
era melhor fazendo aquilo. Ela conseguia se misturar
com as pessoas do Setor Seis de um jeito que havia
surpreendido Mel, no começo.
E era melhor que não fosse Daniele ali, de qualquer
forma. Mel tinha prometido que não invadiria sua mente
de novo e não gostava de quebrar promessas. Além
disso, ela gostava de Daniele. Não era qualquer pessoa
que conseguia fazer o que ela tinha feito. Mel ainda
estava se divertindo com os comentários da Corte sobre
a humana que tinha sido levada para o baile.
Mel desviou o olhar e sorriu, como se estivesse se
divertindo enquanto observava um grupo de pessoas
reunidas ao redor de uma mesa, gritando enquanto
faziam apostas. Mas ela ainda estava prestando atenção
no humano que andava como um mercenário. Ela
precisava ter certeza de que ele era quem ela imaginava
– e depois precisava de uma forma de garantir que ele
escutaria sua proposta. A questão era como fazer aquilo.
O humano se afastou do balcão e foi na direção de
uma das mesas perto de Mel.
Não. Era melhor manter distância até ter certeza.
Mel soltou os braços e foi na direção das pessoas
gritando. Eles tinham juntado duas mesas e seis pessoas
estavam sentadas ao redor delas, com cartas de baralho
na mão e vários dados na mesa. Um jogo de apostas,
mesmo que ela não soubesse qual jogo. E aquilo não
fazia diferença. Jogos humanos não importavam para ela.
Uma mulher rolou três dados. Mel não sabia o que os
números queriam dizer, mas dois dos outros homens na
mesa gritaram, junto com as pessoas reunidas. A mulher
riu e colocou duas cartas na mesa. Um dos homens
parou de gritar na mesma hora. Outra mulher colocou as
cartas na mesa, viradas para baixo, e seus dados em
cima delas.
O humano parou ao lado de Mel. Seria coincidência
demais se ele tivesse ficado curioso sobre o jogo e
parado exatamente ali. E Mel havia aprendido cedo que
coincidências não existiam – então ela esperaria para
saber o que ele tinha a dizer.
Um dos homens jogou seus dados na mesa. As
pessoas reunidas gritaram de novo.
— Uma humana não estaria de salto nesse bar — o
homem ao seu lado falou.
Mel sorriu. Talvez ela devesse lhe dar mais crédito.
Ele podia não saber se misturar como Daniele, mas ela
nunca tinha notado Melissa no bar.
E ela não abriria mão dos seus saltos.
— Não? — Mel comentou. — Que pena.
Um dos homens se levantou da mesa depressa e sua
cadeira caiu para trás. Ele ainda estava segurando uma
garrafa de bebida e suas cartas estavam jogadas de
qualquer jeito na mesa.
— Alguém confere os dados dela! — Ele gritou.
Uma pessoa riu, e depois mais outra. O homem
balançou a garrafa de um jeito que era uma ameaça,
mas a mulher sentada na ponta da mesa não reagiu. Três
homens seguraram o que estava em pé e o puxaram
para trás.
Sem brigas, então. Em qualquer outra noite, Mel
ficaria tentada a incentivar uma confusão. Se algum
deles derramasse sangue ela pelo menos teria algo para
fazer. Mas não naquela noite. O humano ao seu lado era
mais importante.
O humano que andava como um mercenário e a
reconhecera como sendo uma vampira – e que Mel não
conseguia sentir nada da sua mente. Nenhum
pensamento, nenhuma impressão. A menos que
realmente se concentrasse, era como se ele não
estivesse ali.
Aquilo deixava tudo mais interessante. Se ele
realmente era Yuri Freitas, então o Setor Dez tinha
alguém com imunidade às habilidades dos vampiros.
Aquilo era raro – não tanto quanto uma bruxa da
natureza, como diziam que o Dez também tinha, mas tão
procurado quanto.
Mais informações úteis. Aquilo era melhor do que Mel
havia esperado, mesmo se complicasse as coisas para
ela. Mel não teria como só ler a mente dele para pegar as
informações que precisava. Mas ele ser imune abria mais
possibilidades para o que ela realmente queria fazer. E,
se precisasse, era algo que podia usar como uma forma
de deixar claro para seu príncipe que estava descobrindo
o que mais o Setor Dez escondia.
— E o que você vai fazer sobre isso? — Mel
perguntou, sem se virar.
O homem deu uma risada baixa.
— Eu? Nada. Você tem tanto direito de estar aqui
quanto eu. Talvez até mais.
Então ele realmente não era do Setor Seis. Aquele
era o único motivo possível para ela ter mais direito de
estar ali do que ele.
Uma das mulheres se levantou da mesa, deixando as
cartas e os dados. Mel se deu um passo para o lado para
abrir caminho quando ela se afastou, resmungando e
indo na direção do balcão do bar. A mulher sentada na
ponta da mesa ainda estava sorrindo e estava com os
dados na mão de novo. Mel não precisava entender
aquele jogo para ter certeza de que ela estava
ganhando. E era mais que óbvio que as apostas na mesa
não tinham sido baixas. Se ganhar ou perder não
importasse, o homem que havia se levantado antes não
teria precisado ser segurado.
— Desde que não esteja fazendo nada contra as
pessoas que estão fora das ruas... — o humano ao seu
lado continuou.
Ah, ela estava fazendo alguma coisa, sim. A
compulsão ainda estava ao seu redor, impedindo que os
humanos suspeitassem dela. E aquilo não tinha feito a
menor diferença para aquele homem.
Aquele era o motivo para o príncipe querer
informações. Nenhuma das Cortes tinha pensado que um
setor feito só de humanos poderia ser algum tipo de
força. Mas eles haviam resistido aos ataques do Setor
Oito, de alguma forma. Eles tinham sobrevivido, antes
disso, e ainda estavam se mantendo de pé. Se tinham
uma bruxa da natureza e alguém com o poder que havia
destruído as forças do Setor Oito, o que mais podiam
estar escondendo?
Mais cartas na mesa. Mais gritos das pessoas ao
redor. Um homem deu dois tapas fortes na mesa,
resmungando alto sobre dados adulterados. A mulher na
ponta da mesa riu, despreocupada, e agora havia um
grupo de pessoas ao redor dela. Eles estavam esperando
algum tipo de confusão.
O comentário do homem ao seu lado era a
confirmação que Mel precisava de que ele era do Setor
Dez. Só alguém de lá questionaria o que uma vampira
fazia. E ela tinha passado tempo demais observando o
pessoal do Dez que ia até o Setor Seis. Eles eram
discretos e faziam de tudo para evitar chamar atenção.
Nem mesmo Daniele, que era uma das responsáveis pela
segurança do Dez, teria se aproximado assim de uma
vampira.
O que queria dizer que ele só podia ser a outra parte
da segurança do Setor Dez. Yuri Freitas. A pessoa que ela
estava esperando.
Bom. Ela tinha seu alvo. Agora só precisava
encontrar uma forma de ter a atenção dele sem a
ameaça de uma briga por perto.
Yuri detestava ir no Setor Seis. Não era à toa que ele aproveitava
qualquer oportunidade para evitar ir ali. Não importava
quanto tempo tinha passado, sempre que ele estava no
setor se lembrava exatamente dos motivos para ter
desistido da vida de mercenário. De ver seu comandante
de joelhos na frente de uma vampira, depois de ter
colocado suas armas no chão sem nem tentar atacar.
Controlado – assim como os outros mercenários do
destacamento, todos mais experientes que Yuri, na
época. E de ver o mesmo comandante pegar uma pistola
e atirar no seu segundo no comando sem pensar duas
vezes, porque ela tinha dado a ordem.
Todo mercenário pensava que era invencível quando
começava a aceitar missões, não importava de onde
vinha. Eles eram melhores. Tinham treinamento que a
maioria das pessoas nem imaginava, porque só assim
iam conseguir sobreviver. E Yuri levava a coisa toda de
ser invencível além. Na época, com vinte e dois anos, ele
tinha certeza de que conseguiria parar qualquer vampiro.
Era um mercenário e era imune aos poderes deles. Nada
o pararia.
A ilusão tinha sido destruída de uma vez. Yuri não
tinha sido controlado pela vampira, mas aquilo não fazia
diferença. Ele tinha entendido que ser imune aos poderes
deles não queria dizer nada. Se a vampira quisesse, ela
poderia ter feito o próprio comandante de Yuri matá-lo.
Ele não tinha orgulho de ter fingido que estava
sendo controlado, também. Tinha pensado anos
imaginando o que poderia ter sido diferente naquela
noite se ele tivesse feito alguma coisa. Yuri poderia ter
atirado na vampira. Talvez tivesse sido o suficiente para
salvar seu comandante.
Mas a verdade era que, se tivesse tentado fazer
alguma coisa, ele provavelmente estaria morto.
Yuri tinha ido embora no dia seguinte, quando o que
tinha sobrado do seu destacamento estava tentando
descobrir o que fariam depois de perder os comandantes.
E agora a mesma vampira estava ali. Melissa. Yuri
não tinha ouvido o nome dela seis anos antes, mas a
reconheceria em qualquer lugar. Ela chamava atenção, e
não era só por causa do cabelo cacheado e vermelho
escuro. Era algo dela. Da forma como ela se movia, como
se sempre estivesse no controle. Ou da forma como ela
sempre estava com uma expressão que quase seria
desprezo, se não parecesse tão divertida, como se ela
soubesse de algo a mais sobre o que estava
acontecendo.
Seis anos, e Yuri não tinha conseguido esquecer
dela, por mais que tentasse. Ele não queria se lembrar. E
queria menos ainda se lembrar de como sua primeira
reação quando havia visto Melissa, antes, não tinha sido
medo. Tinha sido atração.
Aquela parte não tinha mudado. Ela estava ali,
parada ao seu lado e encarando as pessoas na mesa com
a mesma expressão divertida e distante ao mesmo
tempo, e Yuri só conseguia pensar em como queria que a
atenção dela estivesse nele. Em ter Melissa contra a
parede, com as pernas dela ao redor dele.
Aquilo não era uma compulsão – Yuri sabia que era
imune – mas não era uma reação que ele queria ter. Não
sobre uma vampira e muito menos ela.
Melissa não era só uma vampira com o poder da
compulsão. Ela era o braço direito do príncipe do Setor
Seis.
Não. "Braço direito" era algo oficial, às claras.
Melissa era sua mão esquerda. Era quem o príncipe
mandava para lidar com as situações que precisavam ser
resolvidas sem ninguém saber de detalhes. Ou que
ninguém podia se lembrar de detalhes.
Como quando ela havia quebrado seu comandante
sem fazer o menor esforço.
Aquela lembrança deveria ser mais que o suficiente
para fazer ele perder qualquer tipo de interesse, mas não
era.
— Já nos vimos antes — ele falou.
Melissa se virou para ele, devagar, e o encarou como
se estivesse estudando seu rosto.
Yuri tinha imaginado que ela não o reconheceria. Ele
só não tinha imaginado a sensação gelada de perceber
que todas as pessoas naquela noite seis anos atrás não
eram nada para Melissa. A mão esquerda do príncipe não
tinha motivos para prestar atenção nos mercenários
naquela operação. Eles eram nada.
Um dos homens que ainda estava na mesa se
levantou de uma vez e jogou a mesa para o lado.
Estupidez pura. As duas garrafas de cerveja que estavam
em cima dela caíram e se quebraram quase ao mesmo
tempo em que as pessoas mais perto da confusão
começaram a gritar.
A mesa tinha sido jogada para o outro lado e a
confusão estava para lá, também. Yuri não ia se virar
para olhar. Mas ele queria saber o que Melissa estava
fazendo naquele bar. Ninguém estava sangrando. Ela não
tinha motivos para estar ali e muito menos para estar
parada tentando se passar por humana.
Ela levantou as sobrancelhas, ainda com aquela
expressão divertida, e desapareceu.
Não. Melissa tinha se movido depressa demais, só
isso. Ela estava encostada na parede de novo, no mesmo
lugar que ele tinha notado mais cedo. Se afastando da
confusão... O que queria dizer que ela provavelmente
não tinha nada a ver com aquilo.
Os gritos ficaram mais altos e Yuri se virou de volta
para a mesa. O homem que tinha se levantado por
último tinha pegado uma das garrafas quebradas e
estava tentando avançar para a mulher que estava
ganhando. Um grupo de pessoas tinha se reunido ao
redor dele, tentando segurar o homem, mas a mulher
continuava sentada como se aquilo não fosse nada
demais.
Yuri não queria nem pensar no que tinham apostado
para as reações estarem daquele jeito. Se fosse só
dinheiro, o valor tinha sido muito mais alto que o que era
comum.
As pessoas mais perto da mulher que estava
ganhando se fecharam ao redor dela. Não eram
exatamente mercenários, mas tinha alguma coisa na
postura deles que não era tão diferente da de Yuri.
Provavelmente eram seguranças pessoais. E,
considerando as tatuagens nos dedos da mulher na
mesa, era bem possível que ela precisasse de
seguranças. Aqueles símbolos diziam que ela era uma
das pessoas que viviam de apostas. Em algumas
cidades, pessoas como ela organizavam espetáculos e
até casas de jogos. Ali, ela era alguém que tiraria os
créditos ou mais de qualquer um que fosse estúpido o
suficiente para apostar contra ela – como aquelas
pessoas tinham feito.
Yuri deu alguns passos para trás. Ele sabia como
aquilo funcionava. Algum dos seguranças da mulher ia
dar um jeito no homem com a garrafa. Com sorte,
conseguiriam fazer aquilo sem sangue envolvido. Se não
tivessem sorte... Ele não precisava se virar para ter
certeza que Melissa ainda estava encostada na parede,
encarando tudo de longe. E Yuri não ia descartar a
possibilidade de ela estar incentivando aquilo.
O homem com a garrafa chutou a mesa que ainda
estava no lugar. As cartas e dados voaram.
As pessoas ao redor da mesa começaram a gritar,
uns incentivando a confusão, outros falando para parar.
Não ia adiantar. Qualquer sinal de vida inteligente tinha
desaparecido do rosto do homem com a garrafa. Ele só
queria fazer alguém pagar.
E Yuri não podia se afastar. Ele estava perto demais
da mesa e todo mundo estava tentando chegar mais
perto para ver o que estava acontecendo. Se tentasse se
afastar, chamaria atenção e não podia fazer aquilo. Já era
ruim o suficiente ele não ser conhecido ali e estar
tentando fazer o trabalho de Dani.
O homem com a garrafa chutou a mesa de novo.
A mulher com os dedos tatuados colocou suas cartas
na mesa, sem falar nada, e se levantou.
O outro homem que ainda estava na mesa se
levantou de uma vez e foi para cima do outro.
Seis anos antes, Yuri ainda tinha paciência para
aquele tipo de brigas em bares. Até tinha começado
algumas. E, se alguém perguntasse, ele diria que era
estúpido demais naquela época. Agora, ele não tinha a
menor paciência para aquele tipo de coisa. Era como se
algo tivesse desligado no cérebro das pessoas ali e elas
tivessem se esquecido que um arranhão seria o
suficiente para chamar a atenção dos vampiros. Não
importava quantas vezes Raquel dissesse que aquilo
acontecia justamente porque tinham consciência do risco
constante em que viviam, Yuri não conseguia entender.
Era estupidez e mais nada.
E ele estava sendo arrastado para o meio da
estupidez, porque as pessoas atrás dele estavam
tentando se aproximar mais.
Os dois homens brigando caíram em cima da mesa.
As pessoas saíram para o lado um instante antes da
mesa estalar e cair.
Estúpidos. E um deles ainda estava segurando a
garrafa quebrada.
Yuri não queria ver o que ia acontecer quando um
deles se cortasse. Ter dado de cara com Melissa ali já
tinha sido mais que o suficiente.
O homem levantou a garrafa. Yuri avançou e segurou
seu pulso. O homem tentou se soltar, mas não podia se
virar para Yuri por causa do outro homem.
— Deixa! Deixa! — Alguém gritou.
Claro que alguém ia ser burro o suficiente para
querer ver sangue.
Yuri mudou a posição da sua mão e apertou um
ponto específico na mão do homem. Ele soltou a garrafa.
Alguém se abaixou na frente de Yuri. Ele soltou o
homem e esticou a mão para parar a outra pessoa.
Alguém o empurrou por trás.
Se eram estúpidos a ponto de fazer tanta questão de
ver sangue, Yuri não ia ficar no caminho deles –
especialmente porque o empurra e puxa tinha lhe dado a
oportunidade perfeita para sair do meio das pessoas sem
chamar atenção.
Ele se abaixou e acertou o cotovelo na pessoa que
estava empurrando. A pessoa se afastou, mas outra já
estava ali, gritando e pulando enquanto os dois homens
ainda estavam rolando no chão, trocando socos. Yuri se
jogou para o lado, empurrando as pessoas que estavam
no seu caminho. Alguém tentou puxá-lo de volta, mas
não conseguiu.
Ele se afastou da massa de pessoas ao redor dos
homens brigando.
Algo quebrou. As garrafas, provavelmente. E não era
problema de Yuri. Ele tinha tentado ajudar.
Alguém segurou seu braço com força e o puxou. Yuri
se virou, com o punho já fechado. Se queriam confusão...
Ele parou e encarou a vampira. Melissa. Era ela o
segurando, o que queria dizer que não ia adiantar tentar
se soltar.
— O que você quer? — Ele perguntou.
Melissa sorriu, sem mostrar as presas. Os olhos dela
pareciam mais escuros e Yuri não tinha certeza se aquilo
queria dizer que ela estava usando algum tipo de poder.
Mas ela não o soltou.
— Você tem duas opções: vir comigo ou ser levado.
Aquilo não eram opções. E ela não tinha aquele
direito. Ele não era um morador do Setor Seis para fazer
o que os vampiros ali quisessem.
Alguém riu alto, por cima das pessoas gritando.
Melissa começou a puxar Yuri na direção da parede onde
estava encostada antes.
A pistola a laser em um dos bolsos especiais da sua
calça parecia pesar mais que o normal, mas Yuri não ia
arriscar puxar uma arma dentro do bar, especialmente
quando já tinha uma briga acontecendo. Nem a pistola e
nem as facas escondidas na sua roupa. Qualquer coisa
que ele fizesse seria visto como um ataque ao Setor Seis.
Era por causa daquele tipo de coisa que era Dani
quem lidava com as situações nos outros setores. Ela era
diplomática o suficiente para sair de uma situação
daquelas sem piorar tudo.
Melissa empurrou Yuri na direção da parede.
Não. Ele era imune. Ela não tinha como saber o que
ele tinha imaginado mais cedo – Melissa na parede, com
as pernas ao redor de Yuri. E ele não conseguia não
pensar naquilo quando ela parou na frente dele, sem
soltar seu braço.
Yuri tinha mais um motivo para não querer voltar no
Setor Seis. Ele sabia quem Melissa era e o que ela fazia.
Saber deveria ser mais que o suficiente para acabar com
qualquer tipo de tesão. Mas não era.
E se ela tentasse fazer qualquer coisa, Yuri não ia se
importar com onde estavam ou com a possibilidade de
mais problemas com o Setor Seis. Ele ia atirar.
— Não sou um dos moradores do seu setor para você
fazer o que quiser — ele falou.
Os olhos de Melissa ficaram mais escuros ainda. Ela
olhou para onde estava segurando o braço dele e relaxou
a mão.
Yuri olhou para o mesmo lugar.
Os dedos da vampira estavam manchados de
vermelho onde ela o havia segurado.
Sangue. Yuri tinha se cortado no meio daquela
confusão. E, no Setor Seis, qualquer sangue derramado
em lugar público era considerado uma oferenda para a
Corte. Ele não ser um morador dali não fazia diferença.
Na verdade, era pior para ele, porque queria dizer que
Yuri não tinha nem a proteção das regras dos vampiros.
Melissa apertou seu braço de novo.
— Você tem duas opções — ela repetiu. — Vir comigo
por escolha própria ou ser levado.
Ou por ela ou por outros vampiros. Não fazia
diferença.
E qualquer reação de Yuri seria considerado um
ataque ao Setor Seis, porque seria uma quebra das suas
leis.
Não era assim que acontecia normalmente. Os
vampiros – Melissa – faziam questão de chamar atenção
para o fato de que alguém tinha derramado sangue. Mas
ela estava segurando seu braço com tanta força que era
bem possível que mais ninguém tivesse notado o corte
no braço de Yuri, mesmo se algum vampiro estivesse por
perto.
Melissa queria alguma coisa. Era a única explicação.
E aquilo queria dizer que ele ia ter sua chance de
escapar daquilo.
— Eu vou — ele falou.
Ela inclinou a cabeça e olhou na direção da briga de
novo. Os gritos começaram a diminuir.
Yuri se virou. As pessoas ainda estavam brigando,
mas parte da agressividade de antes tinha desaparecido.
Não ia demorar para aquilo terminar.
Melissa tinha feito aquilo. Pelo menos forçado as
pessoas a se acalmarem. Mas Yuri não duvidava que
tivesse forçado o começo da briga, também. Era bem
possível que tudo tivesse sido ela, desde o começo, para
colocar Yuri naquela situação.
Ela começou a ir na direção da porta dos fundos, o
puxando. Ninguém se virou na direção deles. Ninguém
achou nada estranho. Yuri não sabia exatamente o que
Melissa podia fazer e até onde o poder dela ia, mas era
capaz de apostar que ninguém no bar estava vendo os
dois saírem. Ou, se estivessem, estavam vendo algo
diferente.
Eles saíram do bar. Yuri encarou as sombras mais
perto das paredes, onde nada da luz das tochas chegava.
Sombras normais. Se mais algum dos vampiros estivesse
ali, não estava se escondendo na escuridão. E aquilo era
estranho. Quase sempre os vampiros esperavam perto
dos bares, para aproveitarem as pessoas saindo dali
depois.
Melissa se afastou do bar, seguindo a rua até entrar
num beco estreito entre duas casas. A única janela que
dava para lá estava coberta por placas de madeira e não
tinha nenhum sinal de luz vindo delas. E, se a vampira
estava parando ali, as duas casas provavelmente
estavam vazias.
Ótimo, porque aquilo queria dizer que Yuri não
precisaria se preocupar com civis por perto.
Melissa o empurrou contra a parede e soltou seu
braço. Ele esperou. O corte não tinha sido fundo, mas
estava ardendo e a sensação molhada era o suficiente
para ele saber que ainda estava sangrando, mesmo que
pouco.
Yuri não podia só atacar Melissa. Se fizesse aquilo e
ela sobrevivesse, ele seria caçado, depois. Ele teria
quebrado uma das leis do Setor Seis. Se atacasse, ele
precisava destruí-la. E precisaria ter certeza de que não
teria nenhuma testemunha.
Melissa o encarou e lambeu o sangue dele que
estava na sua mão, sem pressa nenhuma.
Um arrepio atravessou Yuri e ele teria preferido que
fosse de medo.
A casa. Seu comandante ajoelhado. O restante do
destacamento, parado no lugar.
As memórias nunca tinham sido o suficiente.
A vampira sorriu de novo e esticou uma mão para o
seu braço. Yuri se afastou para o lado. Não. Ele tinha se
descuidado e se cortado, sim. Mas não ia dar mais do seu
sangue para Melissa.
— Se você quisesse cobrar o preço de sangue não ia
ter me trazido para cá — ele falou. — É mais fácil falar
logo o que quer.
Melissa inclinou a cabeça de um jeito que não era
humano. Não era a forma como ela estava parada, era
como tinha inclinado a cabeça: depressa demais, tão
rápido que ele não tinha visto o movimento.
— A escolha é sua se quiser atravessar o Setor Seis
com um ferimento aberto — ela avisou.
Yuri não ia xingar. Tecnicamente, ele estava em
missão. Precisava ser ao menos um pouco profissional.
E ela estava certa. Ele não podia fazer aquilo. Todos
os vampiros por perto iam notar e iam tentar ir atrás da
"oferenda de sangue". Ele teria que lutar para conseguir
sair do Setor Seis – se conseguisse sair.
Era por causa daquele tipo de coisa que Yuri sempre
tinha deixado o trabalho mais delicado de conseguir
informações para Dani. Ela sabia lidar com aquele tipo de
situação. Agora ele teria que admitir que a vampira
estava certa. Ao invés de ser só Melissa aceitando uma
oferenda de sangue, seria ela lhe poupando de ter mais
problemas no setor. Yuri estaria lhe devendo.
Ela esticou a mão para o seu braço de novo. Ele não
recuou.
Melissa se aproximou e se inclinou, perto demais
dele. Yuri poderia pegar uma faca e enfiar no seu
pescoço. Ele era rápido o suficiente para fazer aquilo
antes que ela reagisse. Mas não tinha como ter certeza
de que conseguiria destruí-la antes que ela desse algum
tipo de sinal para os outros vampiros – porque
provavelmente havia mais deles por perto.
E então ele não queria mais pensar em facas, porque
Melissa estava passando a língua pelo seu braço, mas
não parecia. Parecia que a língua dela estava em outras
partes do seu corpo e Yuri se recusava a analisar aquela
sensação. Era seu braço. Mais nada.
Ele fechou os punhos com força, se forçando a se
lembrar daquela noite, seis anos antes. Do seu
comandante colocando as armas no chão. De todos os
mercenários ao seu redor fazendo a mesma coisa.
Yuri não ia reagir. O que quer que Melissa estivesse
fazendo, não era real.
Ele se lembrava bem demais do seu comandante
pegando uma das armas no chão, atirando no seu
segundo no comando e depois na própria cabeça. Se
lembrava de Melissa parada na frente deles, encarando
tudo com a mesma expressão que ele não sabia se era
desprezo ou diversão.
Mas a sensação da língua dela continuava.
Ele puxou uma das suas facas e a encostou na
cintura da vampira.
— Não — Yuri avisou.
Ela levantou a cabeça, passando a língua pelos
lábios, e soltou o braço dele antes de dar mais um passo
na sua direção. A faca entrou na cintura da vampira e
Yuri sentiu o sangue escorrendo pela sua mão, mas não
se afastou.
Melissa se aproximou ainda mais. A faca entrou mais
fundo. Ela não reagiu.
— Se já nos encontramos antes, então você deveria
saber que isso não vai te ajudar em nada.
Yuri sabia. Algo daquele tipo nunca seria o suficiente
contra uma vampira, muito menos uma forte o suficiente
para ser a mão esquerda do príncipe. Mas aquela faca
não era um ataque, era um aviso. E tinha dado o
resultado que ele queria: Melissa soltando seu braço.
Ele só não tinha esperado que ela não fosse ter
nenhuma reação a ter uma faca enfiada no seu corpo.
— O que você quer? — Yuri repetiu.
Melissa se afastou, sem se importar com a faca. E
Yuri não ia ser estúpido a ponto de desviar o olhar para
ver se ela pelo menos ainda estava sangrando.
— Você não está aqui à toa — ela começou. — O
responsável pela segurança do Setor Dez não viria aqui
sem um motivo, depois de anos fazendo questão de não
entrar no Seis. E a transformação de Daniele não é
motivo o suficiente. O pessoal dela é mais que
competente o suficiente para fazer seu trabalho sem ela.
Yuri não respondeu. Ela não estava mentindo – e não
era bom saber que aquilo era tão óbvio para uma
vampira.
— O que eu acho é que vocês estão preocupados —
ela continuou. — Que querem saber até onde podem
confiar que os outros setores vão honrar a garantia de
segurança de Lorde Rafael. Ou melhor, até onde a
segurança de vocês depende apenas dele. E eu posso te
dar essa resposta.
Yuri estreitou os olhos. Vampiros não ofereciam
informações. Muito menos uma vampira como ela, com
uma posição tão alta na Corte.
— Não vou pagar seu preço — ele falou.
A vampira riu.
— A escolha é sua. Mas meu preço é apenas que
você me escute.
Yuri respirou fundo. Era uma armadilha. Não tinha
como não ser. Mas se a única coisa que ela queria era
aquilo, seria estupidez não ouvir. Ele podia conferir
qualquer coisa que ela falasse depois.
Ele assentiu.

Mel colocou uma mão na cintura, encarando as costas do humano


que estava se afastando. Ele tinha cortado fundo, mas
aquilo era melhor que a alternativa. Não era a primeira
vez que ela usava o veneno para distrair um humano por
tempo o suficiente para evitar algum ferimento pior – e
ela tinha notado quando Yuri havia começado a fazer
planos reais sobre suas chances de destruí-la.
Era melhor o corte. Ela teria feito muito pior – teria
aceitado muito pior – para garantir que ele a ouviria. Mel
não aceitaria ser destruída por um humano depois de
mais de cem anos fazendo o que precisava para
sobreviver nas Cortes. Muito menos aceitaria ser
destruída quando estava tão perto de conseguir sua
liberdade.
E era uma pena que Mel só tivesse se encontrado
com Yuri Freitas agora. Não eram muitos os humanos que
eram capazes de pensar além do efeito do veneno, como
ele tinha feito. Aquilo, junto com a prontidão de um
mercenário e a forma quase fluída como ele se movia,
era mais que o suficiente para fazer Mel se interessar. Se
ela tivesse Yuri na cama, ele não aceitaria tudo o que ela
falasse sem questionar. Ele desafiaria. E Mel gostava do
desafio.
Damien parou ao seu lado. Mel não se virou. Ela
podia não ter sentido a presença dele se aproximando,
mas Damien tinha o péssimo hábito de pensar que podia
monitorar o que Mel fazia, especialmente quando ela
recebia ordens do príncipe.
— Isso era necessário? — Ele perguntou.
O corte, porque Mel poderia ter parado um humano.
— Era.
Damien não respondeu, mas ela conseguia sentir a
atenção dele nela.
Era mais fácil dar uma explicação logo, antes que ele
decidisse começar com mais perguntas ou, pior, espalhar
pela Corte como um humano tinha sido capaz de feri-la.
Mel não estava nem um pouco disposta a lidar com
vampiros querendo disputar sua posição.
— Assim ele vai pensar que tem algum tipo de
controle sobre a situação — ela explicou. — Ele não vai
imaginar que está indefeso, o que quer dizer que as
chances de aceitar minha ajuda vão ser maiores.
— Muito bom.
Ela apertou o corte na sua cintura. A dor não era
quase nada, mas Mel precisava de algum tipo de
distração para não atacar Damien quando ele usava
aquele tom de voz condescendente. A dor seria o
suficiente. Ela sabia o que estava fazendo. Já fazia aquele
tipo de coisa antes de ser transformada. Não da mesma
forma, era óbvio, mas tinha sido assim que Mel havia
chamado a atenção de quem não devia: manipulando as
pessoas.
E o destino tinha se divertido às suas custas e a
forçado a continuar naquele papel por mais de um
século.
— Devo lhe acompanhar para dar seu relatório para
o príncipe ou...? — Damien começou.
— Não — Mel falou. — Vou dar meu relatório quando
tiver algo concreto. Isso foi um primeiro contato que
ainda não tenho como saber se vai ter o resultado que
quero.
Damien segurou o cabelo de Melissa, puxando só o
suficiente para tentar se impor.
— É melhor que dê o seu relatório.
Ela se virou para ele.
— E é melhor que me solte, se ainda quiser ter
algum pensamento próprio pelo resto da sua existência.
Ele sorriu, mostrando as presas. Arrogante.
Mel tinha passado muito tempo seguindo ordens,
sem desafiar nem o príncipe nem os outros vampiros da
Corte. Ela sabia que fazer aquilo não adiantaria nada a
longo prazo. Era melhor que imaginassem que ela estava
satisfeita ali. Mas se Damien estava pensando que podia
desafiá-la daquele jeito, talvez tivesse deixado parecer
que estava acomodada demais.
As marcas nas mãos de Mel apareceram, como
fumaça subindo pelos seus braços.
E a mente de Damien estava ali, tão perto, tão
indefesa... E sob o controle de Melissa. Ele tinha passado
tempo demais pensando que era intocável, mas aquilo
não era verdade.
Damien soltou seu cabelo e deu dois passos para
trás. Mel balançou a cabeça devagar e ajeitou os cachos
antes de sorrir de leve. Ela conseguia sentir a fúria do
outro vampiro, mas não se importava. Ela estava no
controle. E ele deveria se considerar feliz por ela só estar
fazendo ele se afastar dela. Mel poderia fazer muito pior.
Ela soltou a mente dele.
— Vou dar meu relatório quando tiver alguma
informação — ela repetiu.
Damien mostrou as presas de um jeito que era uma
ameaça clara antes de se afastar e desaparecer nas
sombras.
Ela pagaria por aquilo, depois. Mas era melhor ser
punida do que deixar alguém como ele pensando que
estava no controle.
Mel continuou encarando a rua por mais alguns
minutos. Yuri já estava fora de vista. Ela tinha conseguido
o que queria. O que viria depois estava fora do seu
controle – ia depender da reação do Setor Dez às
informações que Mel tinha passado.
Ela precisava esperar.
Não deveria ser complicado, para alguém que estava
esperando há mais de cem anos. Mas era diferente. Pela
primeira vez, Mel realmente conseguia ver uma saída.
E ela não ia deixar nada estragar sua melhor
oportunidade.
DOIS

Alana encarou a cidade lá embaixo. O castelo do Setor Um ficava


um pouco afastado da cidade e um pouco acima de tudo,
também. Dali, no alto de uma das torres, ela não
conseguia ver muita coisa. Mas ela não tinha como
esquecer do que tinha notado quando tinha ido na
cidade, dois dias antes.
Ela encostou o rosto na armação de metal que
protegia o acrílico grosso da janela. Aquilo tinha sido feito
para não ter o menor perigo de ser quebrado e tinha
virado o lugar favorito de Alana. O sol batia naquela sala
na maior parte do dia, o que queria dizer que era um
lugar onde ela podia ficar sem ter algum vampiro
aparecendo para lhe oferecer algum tipo de
entretenimento. Era a única parte do castelo onde ela
tinha conseguido ter sossego.
O Setor Um não era o que Alana tinha esperado e
aquilo não era ruim. Ela sabia que ele era maior – tanto o
território quanto a cidade – do que o Setor Dez ou onde
ela tinha crescido. Aquela era a parte fácil de ver. Mas
Alana nunca tinha visto um setor onde a sensação de
presa e predador estivesse tão escondida.
Não. Aquela não era a palavra. Não tinha nada
escondido. Os humanos ali não se esqueciam do preço
de sangue. Os vampiros não se esqueciam que a cidade
só existia para alimentá-los. Mas a sensação da cidade
era diferente. Não tinha aquela tensão que Alana se
lembrava de antes de chegarem no Setor Dez, a
impressão de que as pessoas ao seu redor estavam
esperando alguma coisa dar errado o tempo todo.
E era uma cidade, sem aquela divisão entre
humanos e vampiros que ela tinha se acostumado a ver.
Quando anoitecia, toda a cidade tinha luzes elétricas.
Não era nada como a maior parte do Setor Seis, que era
iluminada por tochas de noite porque a Corte não
considerava que o custo de providenciar luzes elétricas
pelas ruas valesse a pena.
As motos estavam por toda parte, todas de modelos
bem mais recentes que as que o Setor Dez tinha. E Alana
tinha visto humanos nelas. Não era uma exclusividade
dos vampiros.
Mas o mais estranho era como a cidade era bonita.
Alana ainda não conseguia acreditar que estava usando
aquela palavra para descrever uma cidade de uma das
Cortes, mas era a verdade. Talvez ela não tivesse visto
tudo. Era possível que aquilo estivesse só escondendo o
lado podre do setor. Se fosse, tinham feito um ótimo
trabalho.
Nada era o que ela tinha imaginado.
E até os vampiros ali, no castelo... Alana tinha
pensado que os primeiros meses no Setor Um seriam um
inferno. A Corte não ia aceitar uma humana casada com
Lorde Rafael, mesmo que ela fosse uma bruxa da
natureza. Ela seria desafiada, questionada, isolada... E
Alana estava preparada para lidar com tudo aquilo. Mas
não estava preparada para ser bem recebida. Ou para
como a Corte parecia que estava tentando ter certeza
que ela tivesse tudo o que queria.
Nada daquilo estava no acordo com Lorde Rafael.
Alana tinha feito questão de garantir que estaria segura
no Setor Um: ela não teria que pagar nenhum tipo de
preço de sangue, nem ele nem os vampiros do setor
podiam feri-la e nada ia prendê-la ali depois dos seis
meses combinados. Tinha muito mais que isso, sim, mas
eram detalhes para garantir que ela não seria tratada
como uma prisioneira. Alana sabia como negociar com
vampiros. Sua avó tinha feito questão de lhe ensinar
aquilo desde sempre, porque sabia que mais cedo ou
mais tarde ela se tornaria a feiticeira de alguma Corte.
Mas a questão era que ela não esperava se sentir
bem-vinda ali. Porque era aquilo que os vampiros
estavam fazendo: tentando garantir que ela estivesse
satisfeita. Era além dos termos do acordo.
Seu celular vibrou, no bolso do saião que estava
usando. Alana pegou o aparelho e encarou a tela. Dani,
de novo, perguntando se estava tudo bem.
Alana guardou o celular sem responder. Logo depois
de chegar no Setor Um, ela tinha respondido todas as
mensagens de Dani, mesmo que fossem cinco
mensagens ou mais no dia, só perguntando se estava
tudo bem. Alana entendia. Ela tinha ficado do mesmo
jeito quando havia descoberto que sua prima tinha
acordado um vampiro e estava com ele o tempo todo,
por isso não estava mais aparecendo na mansão nem
nada.
Mas depois de três dias de mensagens o tempo todo,
ela tinha ficado irritada demais. Não parecia mais
preocupação. Parecia que Dani não confiava que Alana
sabia o que estava fazendo. Ainda estava vigiando ela,
como se Alana fosse indefesa. E, além disso, tinha o fato
de que quando Alana tinha ficado preocupada, Dani não
tinha se dado ao trabalho de responder. Nem de contar o
que estava acontecendo. Alana tinha precisado discutir
com Raquel para descobrir o que sua prima estava
fazendo.
Então ela não ia responder, também. Estava lendo
todas as mensagens, só para ter certeza de que não era
nenhum aviso de que alguma coisa estava acontecendo,
mas não ia ficar respondendo toda hora. E Alana não se
importava se estava sendo infantil. Se fosse algo
urgente, ela responderia. Ela estava fazendo questão de
mandar mensagens para Raquel a cada três dias, só para
avisar que tudo estava bem. Mas Alana estava magoada
com Dani, sim. E queria que a prima visse o tanto que
era bom ser ignorada – como ela tinha sido.
Alguém bateu de leve na porta.
Alana se virou. A sala circular no alto da torre era
vazia – algum tipo de sala de observação,
provavelmente, porque só tinha as três janelas enormes
e mais nada. Nenhum tipo de mobília. Ou seja, ela não
tinha nem como fingir que estava fazendo alguma coisa
além de olhar para a cidade lá embaixo.
Não que ela precisasse fingir alguma coisa, mas...
Alana não sabia o que esperar e não estava acostumada
com aquilo.
— Está aberta — ela falou.
A porta se abriu – só uma fresta primeiro, como se a
pessoa do outro lado quisesse ter certeza de onde a luz
do sol estava batendo, antes de terminar de ser aberta.
Alana encarou Lorde Rafael. Ele estava do mesmo
jeito que quando tinha aparecido no seu quarto pela
primeira vez, semanas antes. Se o sobretudo-quase-capa
que ele estava usando não fosse o mesmo, era quase
idêntico. Tudo preto, como sempre, com correntes
atravessadas na frente da sua calça. A mesma expressão
relaxada e quase divertida, o mesmo cabelo comprido
puxado para trás.
Vampiros não mudavam. Aquilo era uma das
primeiras coisas que sua avó tinha feito questão de
ensinar para Alana. Não só em aparência, mas em
atitudes. Eles eram criaturas de hábito, confortáveis nos
padrões que já tinham criado. Mas ela tinha esperado ver
algum tipo de mudança em Lorde Rafael, porque tinha
certeza de que o que havia visto antes não era verdade.
Não o vampiro que tinha saído da sua casa sem
questionar quando ela tinha reclamado, e muito menos o
vampiro que tinha negociado com ela e aceitado um
acordo justo, mesmo sabendo que ela aceitaria qualquer
coisa para salvar o Setor Dez.
E ele era a última pessoa que Alana teria imaginado
que iria atrás dela, por um motivo mais do que simples:
Lorde Rafael tinha desaparecido logo depois da segunda
cerimônia de casamento, no Setor Um. A recepção
depois da cerimônia tinha acabado pouco antes do
amanhecer, Alana havia sido levada para o seu quarto, e
aquela tinha sido a última vez que ela tinha visto Lorde
Rafael. Quase três semanas antes.
Ele a encarou, sem falar nada. Alana sabia
exatamente o que ele estava vendo. Ela estava usando
um dos seus saiões coloridos, com uma camiseta branca,
e estava descalça. Era quase o oposto do que Alana
sempre via os vampiros usando: as cores escuras e as
roupas formais. Mas Lorde Rafael só sorriu e assentiu
devagar.
— Me informaram que você estava passando a maior
parte do tempo aqui — ele falou.
Estava. E era muito mais fácil lidar com Lorde Rafael
quando estava cercada pelas suas plantas. Alana
precisava se lembrar daquilo e... Levar plantas para o
castelo? Talvez. Fazia sentido não terem nada ali. Mas ela
podia conseguir algumas trepadeiras, pelo menos.
Não. Levar plantas para dentro daquele castelo seria
ter uma forma de se defender, sim, mas Alana confiava
no acordo que haviam assinado. Precisava confiar. E sua
relação com as plantas que tinha em casa sempre havia
sido pessoal demais. Alana não queria se imaginar
ficando tão confortável assim no Setor Um.
— Não pensei que isso fosse ser um problema — ela
falou.
Lorde Rafael deu um meio sorriso e olhou ao redor.
Ao redor. Sem se preocupar em desviar o olhar da janela
onde ainda havia luz direta do sol.
Um arrepio atravessou Alana. Lorde Rafael podia
entrar naquela sala a hora que quisesse. A luz do sol que
ainda estava batendo ali – e que não era pouca – não
seria um problema para ele. O tempo todo, ela tinha
pensado que aquilo era uma proteção. Vampiros não
podiam estar no sol. Todo mundo sabia daquilo. E pelo
visto estavam errados.
— Não é — ele respondeu. — Mas se vai passar
tempo aqui não precisa manter a sala vazia, a menos
que prefira assim.
Alana quase respondeu que preferia. Ela não queria
se sentir em casa ali. Sua casa era o Setor Dez e o que
ela preferia era ainda estar lá. Mas ninguém tinha
obrigado Alana a fazer aquele acordo com Lorde Rafael.
Tinha sido sua escolha. Então ela ia lidar com as
consequências.
— Minha preocupação era sobre você estar
pensando que é uma prisioneira no castelo — ele
continuou.
Alana balançou a cabeça e olhou para a janela e a
cidade lá embaixo de novo. Ela estava praticamente
dando as costas para um vampiro poderoso. Se sua avó
estivesse viva, Alana escutaria um esporro gigante por
causa daquilo. Mas não importava. Ele não ia fazer nada.
— Eu fui na cidade — Alana contou.
Com guardas, sim, mas ela entendia a necessidade.
Não tinha sido surpresa descobrir que Lorde Rafael tinha
soldados humanos trabalhando para ele. E, nas vezes
que Alana tinha ido na cidade, sempre havia quatro dos
guardas com ela, mesmo que fosse dia. Ela era uma
humana, vinda de fora, e era a feiticeira de Lorde Rafael.
Não importava o que acontecesse, Alana nunca mais
seria conhecida como uma bruxa. Era uma feiticeira.
Uma traidora – porque era assim que a maioria dos
humanos via as bruxas que trabalhavam para os
vampiros. E aquilo queria dizer que ela não estava
segura nem durante o dia.
— E nas plantações? — Lorde Rafael perguntou.
Alana se virou para ele de novo.
— Thales avisou que preferia que eu só fizesse isso
quando você estivesse aqui.
E aquele aviso tinha sido a única coisa que ela sabia
sobre o tal desaparecimento de Lorde Rafael.
Não era como se ela tivesse esperado alguma coisa
depois da cerimônia de casamento. Alana tinha feito
questão de deixar claro no acordo que o casamento
sempre seria só fachada. Eles não iam ter nenhum tipo
de envolvimento além do profissional. Mas era estranho
que ele tivesse passado tanto tempo fora do setor logo
depois de tudo.
Lorde Rafael assentiu.
— Temos alguns planos que fizemos para as
plantações anos atrás — ele contou. — Eles não deram
muito certo, mas tudo foi planejado com base neles.
Quero passar esses planos por você primeiro, porque se
algo não for viável a longo prazo já podemos fazer as
mudanças necessárias desde o começo.
E ele estava disposto a fazer mudanças nos planos.
Aquilo era mais do que Alana tinha esperado, de novo.
Quando Lorde Rafael tinha falado que queria os
poderes dela, ela tinha imaginado que seria um caso de
se virar com o que quer que tivessem no setor, porque o
que crescia não fazia a menor diferença para um vampiro
e ele não ia se dar ao trabalho de mexer em nada. Se ele
estava disposto a fazer mudanças...
Tinha muitas coisas que Alana sempre tinha tido
vontade de testar, mas não ia fazer no Setor Dez porque
não podiam correr o risco de investir em alguma coisa
que não tivesse resultados garantidos. Ela não era uma
especialista – tinha estudado o máximo que conseguia
depois de chegar no Dez, mas não era nada perto do que
Eduardo sabia. Ele tinha estudado as consequências da
magia no mundo, como aquilo afetava qualquer tipo de
plantação e as melhores formas de contornar os
problemas. Alana só tinha seu poder, o que queria dizer
que não podia arriscar, mesmo que achasse que os
resultados seriam melhores. Mas ali, com os recursos do
Setor Um, ela ia ter muito mais liberdade naquele
sentido.
— Você gostou dessa ideia — Lorde Rafael falou.
Alana levantou as sobrancelhas.
— O que eu estou ouvindo é praticamente uma carta
branca para fazer o que eu achar que vai ser melhor para
as plantações.
Ele inclinou a cabeça.
— É exatamente isso.
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo era tentador.
Ela podia testar tudo o que queria, ver os resultados, e
quando voltasse para o Setor Dez ia ter todas as
informações para repassar para o pessoal lá e estudarem
possíveis aplicações também.
Não era a mesma coisa que estar em casa. Mas era
melhor do que só fazer as coisas crescerem num dos
setores dos vampiros, como se Alana fosse só um
depósito de poder.
Ela se levantou de onde estava sentada na janela.
— E quando começamos?
Lorde Rafael sorriu e fez um gesto na direção do
corredor atrás dele.
— Agora, se quiser.
Alana queria. Era melhor que continuar sentada ali.
Ela foi na direção da porta. Lorde Rafael esperou ela
sair antes de fechar a porta.
Trabalho, então. Era muito melhor do que passar
horas à toa sem saber o que fazer. Mas Alana não ia se
esquecer que aquela situação toda estava parecendo boa
demais para ser verdade. E, quando alguma coisa
começava a dar essa impressão, era porque algo ia dar
errado.
Yuri cruzou os braços e olhou ao redor. A sala da casa segura
definitivamente não era o melhor lugar para fazer
reuniões: pouco espaço, nenhum dos bloqueios de
vigilância que tinham na mansão, e isso sem nem
mencionar que, se alguma coisa acontecesse, só tinham
uma saída dali. As casas seguras eram projetadas para
estarem sempre sob vigilância, não necessariamente
para garantir a segurança de quem estava nelas. Mas
Yuri não era louco a ponto de discutir com Amon – o
vampiro que era o pesadelo das Cortes – quando ele dizia
que não iam ter problemas.
Não que aquilo mudasse o fato de que Yuri ia insistir
em algumas mudanças na casa segura assim que
tivessem tempo para pensar naquilo.
— Então temos uma confirmação de que só não
fomos atacados de novo por causa de Lorde Rafael —
Raquel falou, sentada no sofá no meio da sala.
Yuri assentiu.
— Se é que podemos acreditar no que Melissa falou
— ele completou.
Amon balançou a cabeça.
— Se ela ofereceu informações, então são verdade —
ele avisou. — E não é nada que não estivéssemos
imaginando.
Não era. Tudo o que a vampira tinha falado sobre a
posição do Setor Dez eram confirmações do que eles ali
já tinham comentado antes. As Cortes sabiam que o
Setor Oito tinha esgotado as defesas deles. Raquel ainda
estava parecendo cansada demais e tinha ganhado mais
cabelos brancos depois do que havia feito. Se fossem
atacados de novo, só teriam Amon e nem o pesadelo dos
vampiros conseguiria defender um setor inteiro sozinho.
— E isso quer dizer que qualquer coisa que
acontecer com o Setor Um pode nos afetar — Raquel
continuou. — Somos obrigados a pensar neles como
aliados.
Era pior que aquilo.
— Ou podemos ser atacados como um desafio direto
ao Setor Um — Yuri falou.
Ele não tinha conseguido parar de pensar naquela
possibilidade no tempo todo desde a conversa com
Melissa, enquanto esperava amanhecer. Se as Cortes
estavam deixando o Setor Dez em paz para não desafiar
o Setor Um, aquilo queria dizer que seriam um alvo se a
política dos vampiros virasse para outro lado.
Dante balançou a cabeça, sem sair de onde estava
parade, perto da janela.
— Isso só faria sentido se fôssemos uma região
vassala do Um...
— Merda — Dani interrompeu. — A gente falou disso.
Não exatamente isso, mas... De eles precisarem nos
respeitar por nós. E se nem ter conseguido parar o Setor
Oito foi o suficiente...
“Merda” era a melhor definição possível. Eles tinham
se enfiado no meio de uma coisa muito maior do que
esperavam e a pior parte era que Yuri não conseguia
nem pensar em alguma coisa que podia ter feito eles
evitarem aquela situação.
E aquele era o problema. O Setor Dez tinha
precisado de tudo para segurar os ataques do Oito. Eles
ainda tinham os mercenários que estavam morando ali,
sim, mas não era o suficiente.
— Tem que ter algum jeito — Raquel falou. — As
Cortes passaram vinte anos sem se importar conosco. Se
voltarem a não se importar já vou estar satisfeita.
— Eles nunca se importaram porque tinham certeza
que não íamos durar — Ezequiel falou. — Nós mudamos
a situação quando Alana chegou.
Era a mesma coisa que Yuri pensava.
— Tem que ter algum jeito — Raquel repetiu.
Amon balançou a cabeça.
— Nada que fizerem vai adiantar — ele avisou. — As
Cortes só respeitam outras Cortes. Elas nunca vão
respeitar um setor que não é governado por eles, porque
um setor sem uma Corte nunca vai ter a mesma força.
Não era nem a primeira vez que escutavam aquilo.
Yuri soltou os braços. Ele não tinha imaginado que
Amon falaria outra coisa, mas sempre havia aquele resto
de esperança de que estivesse errado. Seria muito mais
simples se só precisassem se recuperar o suficiente para
fazer alguma coisa que fosse ser uma mostra de força de
algum tipo.
— Foi a mesma coisa que Melissa falou — Yuri
contou. — A tal proposta dela é isso: uma chance de
conseguir o respeito das Cortes de outro jeito.
E Yuri odiava estar repassando aquela proposta. Ele
não queria ter que lidar com vampiros. Já bastava terem
Amon ali. Mas o Setor Dez não tinha outra opção. Era a
mesma coisa de quando Dani havia sugerido ir atrás do
monstro: todos eles sabiam que não era uma boa ideia,
mas era o melhor que tinham.
Se bem que, no fim das contas, Dani ir atrás de
Amon tinha sido muito melhor do que eles imaginaram.
Mas Amon não era como Melissa. Ele tinha feito tudo
o que fizera porque estava preso por juramentos. Yuri
não tinha a menor ilusão de que Amon fosse uma boa
pessoa, mas entendia a questão de ser forçado a seguir
ordens. Melissa não estava na mesma situação. E uma
vampira não se tornaria a mão esquerda do príncipe do
seu setor sem querer aquilo – o que queria dizer que ela
gostava do papel que tinha.
— Espionagem — Raquel falou.
Exatamente. Mesmo que Melissa tivesse falado algo
no sentido de "rede de troca de informações", o que ela
estava sugerindo era espionagem. Fazer contatos entre
os humanos de outros setores e usar aquilo para
descobrir informações o suficiente para manter os outros
setores longe do Dez.
— As Cortes não veriam isso como força — Ezequiel
falou. — Seria preciso de anos para construir algo assim
de um jeito que fosse confiável e com pessoas que
tivessem acesso a informações que teriam o tipo de peso
necessário.
— Mas seria possível — Dani completou. — Nós
temos pessoal com treinamento para se infiltrar em
outros setores e tentar se aproximar de outros humanos.
E já temos algumas pessoas espalhadas que nos vendem
informações.
Amon balançou a cabeça.
— Isso não foi tudo que Mel sugeriu — ele começou.
— E não é uma proposta. O que mais?
Yuri assentiu.
— Ela disse que tem informações com peso o
suficiente pra ganhar tempo pra construirmos essa rede
de informantes.
— Eu ainda acho que, se ela está oferecendo
informações, é porque quer alguma coisa — Dante falou.
— Ou porque é uma armadilha.
Ninguém ia discordar daquilo. E tinha sido a primeira
coisa que Yuri havia questionado.
— Ela disse que quer usar essa situação pra
conseguir falar com Lorde Rafael — ele contou.
Amon riu.
— Se Melissa quer falar com Lorde Rafael, então é
bem possível que o príncipe do Setor Seis esteja com os
dias contados.
— Tem certeza? — Raquel perguntou.
O vampiro balançou a cabeça.
— Certeza, não. Mas Mel não tem nenhuma lealdade
pelo Setor Seis.
Dani deu uma risada seca.
— Ela falou que queria ver o Setor Seis queimar.
Yuri estreitou os olhos. Dani não tinha mencionado
aquilo antes.
— E ficar discutindo os possíveis motivos para o que
uma vampira está fazendo não vai levar a lugar nenhum
— Ezequiel interrompeu. — O que é essa tal informação
ou situação e por que ela está oferecendo isso para nós?
Aquela era a parte fácil.
— Porque ela precisa de provas — Yuri contou. — E a
forma mais fácil de conseguir isso, de acordo com ela, é
com a nossa ajuda.
Ezequiel encarou Yuri com uma expressão que
normalmente só era usada quando Dani aparecia com
uma das suas ideias mais loucas. Yuri não o culpava. Ele
tinha feito a mesma expressão quando Melissa lhe
dissera o que queria.
— O que é essa tal informação? — Ezequiel repetiu.
Yuri suspirou e olhou para onde Dani e Amon
estavam.
— Ela disse que Amon precisaria nos explicar sobre
carniçais primeiro.

Carniçais. As criaturas que tinham invadido o Setor Dez, vindo da


fronteira com o Cinco, e que teriam feito estrago na
cidade se Dani não tivesse conseguido interceptá-los,
junto com um grupo de mercenários.
Alguns dos mercenários que estavam com ela
naquele dia ainda estavam no hospital. Outros tantos não
tinham sobrevivido. O pessoal do Setor Dez tinha
precisado recolher pedaços de corpos, depois que tudo
tinha terminado.
E Dani tinha morrido por causa dos carniçais.
Mesmo que ela estivesse ali, na porta que dava para
o quarto, ela não estava viva. Era uma vampira. E tinha
sido por causa daquilo.
Logo depois do ataque, Yuri e Ezequiel tinham
imaginado que os carniçais eram só mais uma arma dos
vampiros. O tipo de coisa que existia havia muito tempo,
só não era falada por um motivo ou outro –
provavelmente porque nunca sobrava ninguém vivo para
contar o que tinha acontecido. E eles não estavam
errados. Os carniçais tinham sido usados assim pelos
vampiros, no passado, tanto antes da magia quanto logo
depois dela, no caos de tentar encontrar alguma ordem
no mundo.
Mas era pior. Os carniçais tinham sido usados pela
última vez havia mais de cento e cinquenta anos e
depois a criação deles tinha sido proibida. Eles eram
mais animais que humanos ou vampiros e precisavam
ser mantidos presos, sob vigilância constante para
garantir que não escapassem. Eles eram difíceis de
controlar. Um deles, sozinho, era capaz de fazer estrago
demais para valer o risco – e um carniçal fora de controle
era um risco até para os vampiros.
Se o Setor Cinco tinha carniçais e estava disposto a
usá-los como tinham feito, então o Setor Dez tinha um
problema sério. O Cinco não ia estar fazendo aquilo à
toa. Carniçais eram criados só para atacar. Eles não
tinham outra utilidade. E aquilo queria dizer que o Setor
Cinco estava se preparando para algum tipo de ataque
grande.
O que também queria dizer que eles não tinham
como ignorar a tal proposta de Melissa.
— O Setor Três, nós, ou o Um? — Ezequiel perguntou.
Era o que Yuri estava imaginando desde a noite
anterior.
Raquel e Amon balançaram a cabeça.
— Provavelmente fomos um alvo de oportunidade —
Raquel falou. — Não somos uma ameaça real. É até
possível que mandar os carniçais tenha sido a forma do
Setor Cinco ver o que podiam fazer antes de atacar de
verdade.
Amon assentiu. Bom. Por mais que Yuri ainda não
confiasse completamente no vampiro, ele não negava
que era útil ter alguém ali que sabia exatamente como
as políticas entre as Cortes funcionavam. Eles não
estavam só tentando adivinhar. Amon podia confirmar o
que era uma possibilidade ou não.
— Então Um ou Três — Dante falou.
O que não queria dizer que o Setor Dez estava a
salvo. Eles poderiam ser um alvo, porque atacá-los seria
a mesma coisa que atacar o Setor Um. Mas o motivo
seria diferente e era aquilo que precisavam entender.
— Não faz sentido atacarem o Três — Dani falou. —
Seria um risco desnecessário.
Provavelmente. Ninguém tinha contato com o Setor
Três. Era óbvio que eles tinham acordos comerciais para
se manter, mas ninguém sabia quais eram aqueles
acordos. Humanos não entravam lá – nem saíam. E Yuri
não achava que os vampiros sabiam mais sobre o que
acontecia no Setor Três, também.
As histórias falavam que a Corte do Setor Três era
uma Corte de necromantes: vampiros que estudavam a
magia que eles mesmos tinham banido séculos antes.
Ninguém confiava neles. Ninguém os provocava. Era
melhor ficarem lá, isolados.
Se o Cinco estava pensando em um ataque, aquilo
mudaria toda a dinâmica política da região. Eles não
tinham como prever o que aconteceria. Se conseguissem
controlar o Três, o Cinco poderia se tornar o setor mais
forte da região. Ou então poderiam vencer mas ficar
como o Dez: esgotados. E sempre havia a possibilidade
de que eles não conseguiriam dominar o Setor Três.
Naquele caso, o Três provavelmente revidaria e a
situação seria invertida – se o Três ia controlar o Cinco ou
não e o resultado daquilo.
— Eu odeio política — Yuri resmungou.
Raquel deu uma risada seca e olhou para Ezequiel,
que balançou a cabeça. Yuri nunca tinha pensado naquilo
antes, mas os dois provavelmente tinham precisado se
virar numa situação política quase pior que aquela no
começo do Setor Dez.
— O Setor Três é um alvo possível justamente por
causa da fama que tem — Amon avisou. — Se algum
setor conseguir invadir e controlar o Três sem esgotar
suas forças, vai ser uma força na região. Ninguém vai ter
coragem de desafiá-los quando atacarem o Um.
— Porque se alguém atacar o Três, não vai parar só
nisso — Raquel murmurou.
— Mas o Setor Três também é conhecido por não se
envolver em nada — Ezequiel completou. — Então
também pode ser que eles não sejam os alvos, para não
terem motivo para se envolver.
Porque ninguém fazia ideia do que eram capazes.
Yuri quase preferia quando só precisavam se
preocupar com as ameaças do Setor Oito. Pelo menos
eles eram fáceis de lidar: o Oito trabalhava com força
bruta e mais nada. Eles não se davam ao trabalho de se
enfiar em jogos políticos.
E Yuri evitava os jogos políticos, também. Era por
causa daquilo que ele cuidava da parte interna das
defesas e de ser um contraponto quando as ideias de
Dani eram fora demais da caixinha. Mas não adiantava
querer que ela cuidasse daquilo. Dani era competente,
sim, mas tinha sido transformada fazia poucas semanas.
Por mais que na maior parte do tempo não parecesse,
ela ainda estava aprendendo a lidar com a coisa toda de
ser uma vampira.
O que queria dizer que Yuri ia ter que dar um jeito
naquilo.
— Melissa disse que não sabia o que estavam
planejando? — Dani perguntou.
Yuri assentiu. Era óbvio que ele tinha perguntado e
insistido naquilo.
— Ela garantiu que a única coisa que sabia era que
estavam criando carniçais — ele contou. — Não acho que
ela sabia que sobre terem nos atacado.
Amon balançou a cabeça.
— Os planos do Setor Cinco provavelmente são a
informação que ela quer usar para negociar com Lorde
Rafael — ele falou. — Se soubesse, não precisaria de nós.
— Mas isso não muda o fato de que precisamos de
mais detalhes — Raquel completou. — Não temos como
confiar em Melissa para fazer algo desse tipo sem uma
garantia de que não é uma armadilha para nós.
Amon deu uma risada seca e não falou nada. Yuri
concordava com o sentimento – Melissa não parecia o
tipo de vampira que daria algum tipo de garantia. Não.
Ela parecia do tipo que ia se divertir fazendo alguém dar
voltas pensando que sabia no que estava se metendo, só
para depois mostrar que era algo completamente
diferente.
— E se não tivermos como confiar nela, vamos
precisar achar outro jeito de ir atrás dessa informação —
Dante falou. — Alguma coisa já pensando na
possibilidade de ela avisar o Setor Cinco do que estamos
fazendo.
Yuri assentiu.
Pelo menos aquilo era uma certeza: eles não iam
ficar parados sem fazer nada. Era diferente quando
pensavam que os carniçais eram algo trivial para os
vampiros. O Setor Dez não podia se dar ao luxo de
chamar mais atenção, então não iam nem mencionar
aquela parte do ataque. Mas agora, sabendo que não era
tão simples, eles precisavam se envolver.
Aquele era um dos motivos para Yuri não confiar
completamente em Amon. Ele poderia ter avisado todos
eles sobre os carniçais bem antes. Ele sabia o que aquilo
queria dizer. Mas, se Melissa não tivesse falado nada, era
bem provável que Amon também nunca tivesse avisado.
Eles só descobririam o significado daquilo quando um
ataque maior tivesse começado e fosse tarde demais
para fazer qualquer coisa.
E Yuri não ia falar nada. Amon não era como eles. Ele
não se preocupava em garantir que todos estivessem
bem. Na verdade, Yuri tinha certeza de que Amon só
estava ajudando o Setor Dez com informações por causa
de Dani e mais nada. Era mais fácil só deixar as coisas
como estavam e prestar atenção no futuro.
Raquel suspirou e encarou Yuri.
— Você consegue lidar com isso? — Ela perguntou.
Se envolver em uma "missão de reconhecimento"
com a vampira que tinha destruído seu destacamento – e
que Yuri ainda suspeitava que havia feito alguma coisa
com ele, por causa de como nunca tinha conseguido tirá-
la da cabeça.
Ele não queria lidar com aquilo. Mas Raquel não
tinha perguntado o que ele queria.
— Consigo. Se Dani coordenar com meu pessoal para
cuidar das defesas internas...
Dani assentiu.
— Sem problemas.
— Ótimo — Raquel falou. — Amon, quero tudo que
você puder nos contar sobre essa vampira. Yuri, verifique
se tem alguém entre o pessoal treinado com algum tipo
de imunidade. Quero pelo menos mais uma pessoa com
você.
Yuri balançou a cabeça. Seria bom ter mais alguém,
sim. Mas o risco não valia a pena.
— Melissa não é só um contato de Amon — ele
contou. — Ela é quem cuida do trabalho sujo do Setor
Seis.
Raquel olhou para Amon e o vampiro assentiu.
— Das pessoas que temos com algum tipo de
imunidade, todos são mais fracos que eu — Yuri
continuou. — E nenhuma é parte do pessoal de defesa. É
melhor eu correr o risco sozinho do que levar alguém que
é praticamente um civil.
Raquel assentiu.
— Que seja, então.
— E vocês têm mais uma coisa para se preocupar —
Amon falou.
Raquel assentiu de novo e fez um gesto seco.
— O Setor Oito, sim. Não me esqueci e já estou
cuidando disso — ela avisou.
Porque o Oito tinha sido derrotado por um setor de
humanos. A Corte de lá nunca aceitaria aquilo sem tentar
retaliar, mas não iam correr o risco de fazer aquilo de
forma direta, por causa do aviso de Lorde Rafael. O que
queria dizer que o Setor Dez também precisava estar
pronto para lidar com aquilo, não importava qual
surpresa o Setor Oito mandasse.
Na última reunião, Ezequiel tinha mencionado que a
casa onde Amon estava preso, antes, parecia algum tipo
de ponto de pesquisa. Todos tinham concordado que era
uma boa ideia verificar o que mais podia estar lá e
conferir se não tinha mais nada importante esquecido na
cidade velha. Se aquele lugar era importante para o
Setor Oito na época da guerra, então estava passando da
hora de estudá-lo.
Normalmente, Yuri acompanharia tudo sobre aquilo
com Raquel. Mas, se ele ia lidar com Melissa e o Setor
Cinco, então era melhor já se acostumar com o fato de
que ele não estaria envolvido naquilo.
E quanto antes eles resolvessem a situação com
Melissa, melhor.
Yuri se virou para Amon.
— Quais as chances de eu conseguir alguma
informação mais direta se for atrás de Melissa ainda de
dia? Aproveitando toda a questão de ela não estar
esperando...
Porque se surpreender a vampira era a única
vantagem que Yuri podia ter, então ele ia aproveitar o
máximo que pudesse.
Amon levantou as sobrancelhas.
— As mesmas de qualquer outra hora. Ela já vai ter
se planejado para o caso de você fazer isso.
— Mesmo sem nunca ter precisado lidar com Yuri
antes? — Dante perguntou. — Ela não tem motivos para
esperar que ele faça isso.
Amon assentiu.
— Melissa planeja qualquer coisa desse tipo como
um jogo de xadrez. Ela pensa no que vai fazer, no que
pode acontecer em resposta à sua ação, e já se prepara
para todas as possibilidades que consegue calcular. Foi
assim que ela conseguiu sua posição na Corte.
Yuri suspirou.
— Ela manipula pessoas e situações.
Amon assentiu de novo.
Aquele era exatamente o tipo de pessoa com que
Yuri mais odiava lidar.
TRÊS

Mel havia imaginado que o humano iria atrás dela pouco depois do
amanhecer. Primeiro, ele se reuniria com as outras
pessoas do Setor Dez. Assim que terminassem, ele
voltaria para o Setor Seis. Seria fácil conseguir o
endereço de Mel: sua casa era a mesma praticamente
desde que havia chegado ali, quase um século antes. Era
um lugar que tinha boas memórias de como ela havia
destruído os vampiros que pensavam que, por serem
mais velhos no setor, tinham algum direito sobre os
outros. Ela havia deixado claro que não era assim que as
coisas funcionariam e tomado tudo que era deles,
incluindo a casa. E Amon conhecia aquela história muito
bem.
Pelo que ela sabia sobre Yuri Freitas, era quase
certeza que ele faria aquilo. Ele se sentiria na
necessidade de assumir o controle da situação e a forma
mais fácil de fazer aquilo seria colocando Mel em uma
posição em que ela não tivesse o controle. Qualquer
humano imaginaria que chegar de forma inesperada na
casa de um vampiro, durante o dia, seria o suficiente
para conseguir aquele resultado. E Mel estava preparada
para aquela possibilidade.
Mas talvez ela não soubesse tanto sobre ele quanto
imaginava.
Mel olhou pela janela. Não conseguia ver muita coisa
através do filme protetor que havia mandado instalar,
para bloquear a maior parte da luz do sol. E, mesmo que
conseguisse, sua casa tinha dois andares – pequena,
para os padrões do alto escalão da Corte. Todas as casas
ao redor da sua eram maiores e mais altas, o que queria
dizer que não ia conseguir ver quase nada lá fora. Mas o
sol já estava alto no céu, um dia inteiro depois daquela
conversa perto do bar.
Yuri não tinha voltado para o Setor Seis durante o
dia. E nem durante a noite. Mel tinha passado algumas
horas perto do bar, mas não havia tido nenhum sinal
dele, também.
Ela tinha calculado errado e só havia um motivo
possível para aquilo: o comentário de Yuri sobre já terem
se encontrado antes. Quando? Mel não conseguia se
lembrar. Ela nunca tinha precisado lidar com o Setor Dez
antes. Na maior parte do tempo, eles faziam questão de
não chamar atenção das Cortes. Se o Setor Oito não
tivesse começado aquele ataque, provavelmente
ninguém saberia do que o Dez era capaz.
Então não tinha sido por causa de nada envolvendo
o Setor Dez. Era possível que tivessem se encontrado
quando Yuri ainda era um mercenário – Mel tinha
precisado lidar com grupos deles vezes demais, desde os
bandos que mal sabiam o suficiente para ficarem vivos,
até os destacamentos mais organizados. E aquele era o
problema: ela já havia lidado com mercenários demais. A
menos que tivesse um motivo, nunca se lembraria de
uma pessoa em específico.
O que queria dizer que Mel não tinha como saber até
onde Yuri Freitas sabia sobre ela. O que ele tinha visto ou
em que situação haviam se encontrado. E não ia
perguntar, porque fazer aquilo deixaria claro para ele
quanto ela não sabia.
E não importava, ainda. Primeiro ela precisava saber
se o Setor Dez aceitaria sua proposta. Mel teria tempo
para lidar com Yuri, se aceitassem. E, se não... Ela teria
tempo, da mesma forma, porque precisava de
informações sobre o Dez e ele lhe daria aquelas
informações de uma forma ou de outra.
Mel saiu do seu quarto e desceu para a parte social
da sua casa. Todo o primeiro andar tinha sido convertido
em uma área aberta, com sofás, mesas e decoração
sendo usados para separar as áreas diferentes. Mel não
se preocupava com aquele espaço. Ela não passava
muito tempo em casa, só gostava de ter um lugar que
fosse seu, separado da Corte. Quem ficava ali e usava
aquela área eram os humanos que a alimentavam.
Quatro, agora, e todos eles pessoas que Mel havia
encontrado quando estavam tentando fugir de algum
problema envolvendo a Corte.
Agora, eles estavam jogados no chão, no meio de
uma pilha de almofadas na frente da televisão enorme.
Mel reconheceu a música vinda de onde estavam: a
abertura do que estavam assistindo todo dia já fazia
algumas semanas, no mesmo horário. Mel não sabia o
que era e nem queria saber. Tinha aprendido depressa a
se manter distante do seu rebanho. Eles eram humanos.
Se aproximar deles mais que o necessário faria com que
se apegasse e aquele era um erro que Mel não cometeria
mais uma vez. Ela não tinha a menor intenção de se
aproximar e se apegar apenas para ter que lidar com a
morte da pessoa, depois.
Ela atravessou o espaço aberto e foi na direção da
área que funcionava como cozinha. Mel não estava
acostumada a estar tão errada sobre alguém, o que
queria dizer que precisava pensar. E relaxar, também,
para conseguir rever as possibilidades que tinha.
Ela ia dar até o anoitecer. Até lá, teria novos planos
feitos. Se Yuri Freitas não voltasse, ela já estaria pronta
para tomar outra direção.
E, enquanto pensava, ia aproveitar e fazer alguma
coisa para o seu rebanho. Provavelmente pão. Seria bom
ser forçada a pensar no que estava fazendo – porque se
usasse a velocidade ou a força de um vampiro, Mel
estragaria a massa.
Cento e vinte anos. Cento e vinte anos sendo usada
pelas Cortes para conseguirem o que queriam, sabendo
que se tentasse resistir seria pior. Na verdade, ela tinha
resistido, no começo. Logo nos primeiros anos, quando o
vampiro que a havia criado tinha entendido um pouco
sobre qual era a sua habilidade, Mel havia se recusado a
fazer qualquer coisa para ele. Ela não era uma peça em
um tabuleiro, para ser movida como queriam.
Mas era, porque no fim das contas ela não era mais
humana. Mel não tinha escolha sobre fazer o que
queriam ou não. Tentar resistir tinha consequências,
mesmo que as cicatrizes nunca fossem visíveis.
De certa forma, a situação dela não era muito
diferente da de Amon, antes. As pessoas só não sabiam
daquilo.
— Senhora?
Mel se virou para trás. Priscilla estava parada logo na
entrada da cozinha. Ela estava com Mel já fazia quase
seis anos – era a mais nova do seu rebanho – e ainda
tinha um momento de hesitação sempre que falava com
Melissa.
Mas, mesmo sendo a mais hesitante, ela também
era quem menos preocupava Mel. Priscilla tinha perdido
qualquer medo da mordida depressa e, mesmo que
quisesse o veneno, ela reconhecia o perigo naquilo. As
histórias sobre humanos em rebanhos que se tornavam
viciados no veneno do seu vampiro não eram incomuns.
Normalmente Mel precisava passar anos prestando
atenção nos novos membros do seu rebanho, para
garantir que aquilo não acontecesse, mas ela nunca
tinha precisado se preocupar com Priscilla. A humana
entendia com quanto veneno conseguia lidar e
respeitava aquilo.
E fazia quase um mês desde a última vez que Mel
havia se alimentado de Priscilla.
— Não me esqueci de você — Mel falou.
Priscilla balançou a cabeça devagar. O cabelo dela
estava rosa, de novo.
— Mas a senhora tem suas ordens. Isso quer dizer
que vai passar tempo longe daqui.
Sim, Mel ia, se tudo corresse bem. O que queria dizer
cumprir sua parte do acordo com Priscilla – e aproveitar
para se alimentar de alguém que estava se oferecendo
de bom grado. Ela não encontraria a mesma coisa no
Setor Cinco. Porque Priscilla estava certa: ela precisaria
passar tempo longe de casa, não importava com qual
plano seguisse em frente.
Mel saiu da cozinha. Priscilla se afastou para o lado,
sem falar mais nada, e aceitou a mão que Mel ofereceu.
Elas atravessaram uma parte da área aberta e Mel se
sentou em um dos sofás. Às vezes, ela oferecia a cama
para alguém do seu rebanho, mas aquilo era raro. Era
melhor ali, na sala, porque garantia que ainda existiria
uma distância entre ela e seus humanos, não importava
o que acontecesse.
Priscilla se sentou ao seu lado, sem falar nada, mas
Mel conseguia ouvir o coração acelerado da humana. Era
sempre assim e aquilo era delicioso. A antecipação de
Priscilla quase tinha um sabor próprio.
Mel se virou para a humana e colocou uma mão no
pescoço dela. Priscilla inclinou a cabeça e jogou o cabelo
para fora do caminho.
— Algo especial? — Mel perguntou.
A humana balançou a cabeça.
— Só quero o veneno.
Bom. Aquilo era fácil.
Mel se inclinou e mordeu o pescoço de Priscilla. A
humana segurou seu braço com força, sem fazer nenhum
ruído.
A campainha tocou.
Um dos humanos se levantou e foi atender a porta.
Priscilla fez um ruído irritado e Mel bebeu com força
dela de novo, deixando o veneno ir para o seu corpo. Não
importava quem estava ali, ela não ia estragar o
momento de uma das suas.
A humana tremeu e apertou o braço de Mel com
mais força ainda. Mel se concentrou em não sentir o que
ela estava sentindo. Não era real, não era dela. Era só da
humana – mesmo que separar aquilo quando estava
bebendo de alguém fosse difícil.
— Senhora, ele está esperando quando terminar —
Henrique, um dos seus humanos, falou.
Ele.
Mel só conseguia pensar em um "ele" que iria na sua
casa durante o dia.
E ele podia esperar mais um pouco.
Ela continuou bebendo de Priscilla, sentindo a
pressão dos dedos da humana no seu braço. Priscilla
raramente fazia algum ruído naquelas horas, mas era
fácil demais medir o seu prazer e quanto de sangue ela
podia doar de uma vez.
Mel levantou a cabeça devagar e lambeu as marcas
das suas presas com cuidado. Não tinha nenhum motivo
para deixar qualquer tipo de cicatriz nas pessoas que
haviam aceitado alimentá-la. Priscilla tremeu de novo,
com o efeito do veneno.
— Tudo bem? — Mel perguntou.
A outra mulher engoliu em seco e assentiu, de olhos
fechados.
Mel a soltou. Henrique já estava parado ao lado do
sofá e passou um braço ao redor da cintura de Priscilla
antes de a levar de volta para as almofadas na frente da
televisão. O outro casal sentado lá abriu espaço para
Priscilla se sentar entre elas.
Era sempre assim. Os membros do seu rebanho
sempre cuidavam uns dos outros. Era um dos motivos
para Mel fazer questão de ter no mínimo quatro pessoas,
e não só um humano como uns tantos dos vampiros da
Corte faziam.
Ela se levantou devagar e se virou para a porta.
Yuri Freitas estava ali, parado na sua sala com a
porta fechada atrás de si.
Era o que Mel queria, mas não era o que ela
esperava, porque de alguma forma parecia que ele
ocupava mais espaço do que deveria. Yuri era só um
humano, mas tinha algo na sua postura que fazia com
que ele parecesse mais. Era aquela impressão de
prontidão que Mel havia notado antes, talvez.
Ou talvez aquilo fosse só uma reação de Melissa e
mais nada, porque ela não ia negar que queria Yuri – e
não necessariamente o seu sangue. Ele parecia uma
promessa de pelo menos algumas horas memoráveis.
E ele a queria, também. Yuri ser imune e ela não
saber exatamente o que estava na sua mente naquele
momento não importava – nem o fato de que ele estava
se controlando. Mel havia passado a maior parte da sua
existência analisando reações, mesmo sem usar suas
habilidades. Ela conhecia aquele olhar e a forma tensa
como ele estava parado, se forçando a não reagir.
Mas ela ainda tinha trabalho a fazer e ele já a havia
surpreendido uma vez.
Mel sorriu.
— Estava começando a pensar que minha oferta
seria recusada — ela falou.
Yuri olhou na direção da sala, para onde seus
humanos estavam, antes de a encarar de novo.
— Precisamos saber o que mais você tem de
informações sobre os carniçais — ele falou.
Direto ao trabalho, então. Ela gostava daquilo.
Mel foi na direção de Yuri. Talvez ele até aceitasse
um convite para ir para a cozinha, mas ela não ia
cozinhar com alguém que era um estranho na sua casa.
Aquilo era o seu momento de relaxar. Por mais que fosse
simples, não ia fazer nada com um homem que era um
objetivo por perto.
Não. Era melhor continuarem ali. E ele esperaria que
ela indicasse um dos sofás, então ela não faria aquilo.
— Não tenho mais nada — Mel contou. — O que sei é
o que te repassei. O Setor Cinco tem carniçais e isso quer
dizer que estão planejando alguma coisa.
Yuri balançou a cabeça.
— Então você não tem nada que seja útil pra nós.
Ela estreitou os olhos. Aquele era um tipo de jogo
que ela não gostava.
— Tive a informação sobre os carniçais, não? — Ela
falou.
O humano cruzou os braços. Ousado. Braços
cruzados queriam dizer que ele não estava preocupado –
porque seria muito mais difícil pegar alguma arma, se ela
atacasse. Ele estava dizendo que sabia que Mel não faria
nada com ele.
Ele não estava errado, mas não deixava de ser
incômodo ser lida daquela forma.
— Nós já sabíamos que o Setor Cinco tinha carniçais.
Improvável. Aquilo era o tipo de informação que não
podia escapar, justamente por estarem indo contra as
próprias leis das Cortes. A única forma de o Setor Dez
saber daquilo era se tivessem algum informante próximo
da Corte do Cinco. A própria Mel só tinha descoberto
sobre aquilo por acaso, quando estava escaneando as
mentes de alguns mercenários.
Não. Havia outra forma de saberem sobre os
carniçais.
— O Setor Cinco tem acordos com o Oito — Mel
falou.
Yuri assentiu.
E não só tinham acordos, como pelo visto haviam
sido estúpidos o suficiente para mandar carniçais para
atacar o Setor Dez. Talvez mais arrogantes que estúpidos
– porque humanos não eram capazes de enfrentar
carniçais. Mas o Setor Dez tinha algo que havia feito
vencerem. Os vampiros do Setor Oito que estavam
envolvidos no ataque haviam sido destruídos. Fazia
sentido que, se algum carniçal tivesse sido enviado, teria
sido destruído também.
— Daniele — ela falou.
Yuri ficou tenso. Não era uma reação óbvia, mas Mel
estava prestando atenção. Ele tinha mudado a posição
das mãos – provavelmente para ser mais fácil puxar as
facas presas nos seus braços, sem deixar óbvio o que
estava fazendo.
— O que tem ela? — O humano perguntou.
Mel sorriu.
— Foi assim que ela morreu, não foi? Enfrentando os
carniçais.
Aquilo encaixava com o que Melissa sabia sobre
Daniele. Ela estaria envolvida na luta, sim. E, se o Setor
Cinco havia enviado carniçais, teriam feito aquilo da
forma que fosse causar mais estragos. Provavelmente
eles haviam sido mandados na direção da cidade e
Daniele tinha tentado pará-los. Havia conseguido, ou Mel
teria ouvido algo sobre perdas pesadas no Setor Dez.
Mas a única coisa que ela havia notado nas mentes dos
espiões que se espalhavam pelos bares do Seis toda
noite era sobre os mercenários que haviam morrido e a
transformação de Daniele.
Yuri não respondeu.
Não importava. Mel já sabia o que precisava. Se
Daniele havia morrido e sido transformada porque o
Setor Cinco enviara carniçais, então eles fariam questão
de descobrir o que pudessem e tentar dar um fim àquilo.
Era assim que os humanos do Setor Dez funcionavam.
Eles eram honrados de uma forma que Mel não
conseguia entender – o tipo de pessoas que se
colocariam em risco para fazer o que era certo.
E era exatamente com aquilo que ela estava
contando.
— Não adianta tentar negar que vocês vão fazer
alguma coisa sobre o Setor Cinco — Mel avisou. — E
vocês têm mais chances de conseguir algo útil com
minha ajuda do que sozinhos.
E ela tinha mais chances de conseguir informações
importantes o suficiente para negociar com Lorde Rafael
e conseguir sua liberdade.
Yuri balançou a cabeça devagar.
— Não precisamos de você — ele falou. — Temos
Amon.
Aquela resposta era mais que esperada.
— E como Amon conseguiria entrar no Setor Cinco
sem começar uma guerra?
— Você conseguiria? — Yuri perguntou.
Mel sorriu e abriu os braços.
— Eu sou parte do alto escalão da Corte do Setor
Seis. Nós temos nossos acordos com o Cinco, também.
E suas ordens diziam para fazer qualquer coisa que
precisasse para conseguir a confiança de alguém do
Setor Dez. Mel não ia perder a oportunidade de usar
aquilo a seu favor.
Yuri soltou os braços.
— Você fez planos — ele falou.
Claro que ela tinha feito planos. Era a única forma de
sobreviver.
— O Setor Cinco não vai recusar a presença de dois
observadores — Melissa contou.

Yuri encarou a vampira na sua frente. Eles estavam sentados em um


canto da sala que ficava quase fora do campo de visão
dos outros humanos, mas aquilo não fazia diferença. Eles
não ajudariam Yuri se Melissa decidisse atacar. Não que
ele pensasse que tinha alguma chance de aquilo
acontecer. Ela fazia questão demais de trabalhar com
eles, então Yuri ia aproveitar e usar aquilo a seu favor.
E ele ia se lembrar de tudo o que Amon havia
contado sobre Melissa, também. De como ela havia
destruído todos os vampiros no seu caminho até assumir
o cargo que tinha na Corte e de como ela sempre havia
trabalhado manipulando as pessoas para fazerem
exatamente o que queria.
Yuri não seria mais uma pessoa naquela lista. Melissa
queria usá-lo, sim. Mas se ela tinha qualquer intenção de
seguir em frente com aquele plano insano, então ia ter
que aprender a trabalhar com ele, e não só o usar.
O que queria dizer que Yuri também não ia pensar no
que tinha visto assim que tinha entrado na casa: Melissa
no sofá com uma humana, obviamente se alimentando
da outra mulher. Aquilo deveria servir como um lembrete
do que ela era e mais nada. Não deveria deixar Yuri
curioso. E definitivamente não deveria ter testado seu
controle até o limite, para garantir que a vampira não
visse sua reação.
— Você ainda acha que é uma boa ideia entrar de
forma oficial no Setor Cinco — ele falou.
Melissa o encarou. Um arrepio atravessou Yuri. Era o
mesmo olhar que ele tinha visto naquele dia, seis anos
antes.
— A menos que o Setor Dez saiba muito mais do que
imagino, mandar alguém para espionar o Setor Cinco não
é viável — ela começou. — Não se a intenção for
descobrir sobre os carniçais.
Yuri apoiou os braços na mesa.
— E por que não é viável? Nenhum dos vampiros
teria motivos para questionar alguns humanos de fora
nas suas cidades.
— Não teriam, mas seus humanos não conseguiriam
nenhuma informação sobre isso.
Ele levantou as sobrancelhas. O pessoal de Dani era
bom em conseguir informações que ninguém esperava
que conseguiriam. O Setor Dez estava se mantendo
assim já fazia muito tempo.
Melissa sorriu.
— O Setor Cinco está quebrando uma das poucas leis
dos vampiros — ela falou. — A criação de carniçais não é
proibida à toa. E isso quer dizer que, se nada sobre isso
vazou antes, eles foram cuidadosos com como se
organizaram.
Ela estava certa – e era a mesma coisa que Amon
tinha falado, no dia anterior.
— Humanos não teriam acesso o suficiente pra ter
alguma informação sobre isso — Yuri completou.
A vampira assentiu.
— Algo desse tipo vai estar fechado entre um círculo
pequeno da Corte — ela continuou. — O pessoal de vocês
é competente o suficiente para até ser possível que
conseguissem alguma informação, mas demorariam anos
para conseguir o tipo de contatos necessários.
— E não temos tempo para isso.
Porque se o Setor Cinco já tinha arriscado mandar os
carniçais para o Setor Dez, era porque estavam fazendo
testes finais. Eles não tinham muito tempo antes que
eles fizessem o que quer que estivessem planejando.
— Não — Melissa concordou. — Eles não vão
demorar a se mover e então vai ser tarde demais.
A questão era se seria tarde demais por causa do
que o Setor Cinco faria, ou se seria tarde demais porque
a informação não seria mais útil para a vampira.
E uma coisa ainda não fazia sentido.
— Se as informações sobre os carniçais vão estar tão
bem escondidas assim, o que te faz pensar que entrar no
Cinco de forma oficial vai servir pra achar alguma coisa?
O mais provável é esconderem tudo ainda mais assim
que tiverem o primeiro sinal de que alguém suspeita do
que estão fazendo.
Era possível que até já tivessem feito aquilo depois
que o Setor Dez havia sobrevivido ao ataque.
Melissa sorriu. Um arrepio atravessou Yuri, e dessa
vez era puro gelo. Ele tinha visto exatamente o mesmo
sorriso antes de tudo dar errado, seis anos antes.
E aquilo não deveria fazer todo o seu corpo prestar
atenção. Muito pelo contrário. Deveria ser mais do que o
suficiente para matar qualquer tipo de interesse ou de
resto de curiosidade depois de ver a vampira se
alimentando e o orgasmo da humana com ela.
— Eu não preciso que alguém me conte o que quero
saber. Só preciso estar perto o suficiente da informação
— ela falou.
Era o que ele suspeitava e que Amon praticamente
tinha confirmado. Não era nenhum segredo que Melissa
era uma das vampiras capazes de compelir humanos.
Yuri já tinha ouvido histórias demais sobre ela recolhendo
oferendas de sangue no Setor Seis. E ser capaz ler
pensamentos não era uma coisa incomum entre os
vampiros – Amon tinha feito aquilo uma vez, para eles.
Mas Melissa conseguia ler os pensamentos de vampiros,
também. Para ela, roubar informações seria simples, a
menos que seu alvo fosse imune – e Yuri não sabia se os
vampiros tinham alguma coisa parecida com a imunidade
dele.
— Você não precisa de mim ou do Setor Dez pra
fazer isso — ele falou.
Ela era a mão esquerda do príncipe do Setor Seis. Se
quisesse entrar no Cinco, podia só entrar em contato e ir
para lá sem o menor problema. Envolver o Setor Dez
naquilo, na verdade, podia era deixar o plano dela mais
complicado. O Dez nunca tinha sido próximo do Cinco –
tinham alguns acordos comerciais e mais nada. E uma
Corte nunca aceitaria um humano sem lealdade a eles
perto dos círculos mais internos.
Melissa balançou a cabeça.
— Infelizmente, preciso — ela falou. — Sua presença
é o que vai fazer meu príncipe não questionar eu estar
indo para o Setor Cinco. E vai ser uma garantia de que o
Cinco não vai recusar. A ideia de ter alguém do Setor
Dez, o setor que eles atacaram, como testemunha de
que eles não têm nada a ver com os carniçais, vai ser
tentadora demais.
E ela tinha acabado de dar mais informações do que
Yuri tinha imaginado que ia conseguir. Porque se o
príncipe do Setor Seis podia ter motivos para questionar
aquele plano...
— Você não está fazendo isso sob ordens do seu
príncipe — Yuri falou.
O resto do sorriso desapareceu do rosto de Melissa.
— Isso não te interessa.
Amon estava certo – e Yuri estava odiando a
quantidade de vezes que tinha pensado aquilo. Mas
Melissa provavelmente estava traindo o Setor Seis e
arrastando o Dez para o que quer que estivesse
planejando.
Mais política. Mais potencial para problemas.
Yuri balançou a cabeça e bateu uma mão de leve na
mesa.
— Se faz tanta questão de entrar no Setor Cinco
levando alguém do Dez, é mais fácil levar Amon.
A vampira se virou na cadeira.
— Não.
Yuri sorriu. Previsível.
— Por que não? — Ele insistiu. — Porque ele sabe
como você trabalha e não vai se deixar ser manipulado?
Melissa se endireitou.
— Porque se você quer uma marionete para colocar
onde e como quiser, veio atrás da pessoa errada — Yuri
continuou. — Eu não vou ser essa pessoa.
Ele nunca seria aquela pessoa. Yuri não tinha o
menor problema com planos loucos – estava trabalhando
com Dani já fazia tempo o suficiente para ter se
acostumado. Mas ele exigia confiança. Ele podia
trabalhar com planos loucos justamente porque sabia
que não teria surpresas. Ele teria como se preparar.
Saberia o que esperar. Qualquer outra coisa era suicídio.
Melissa inclinou a cabeça e o encarou. Agora não
tinha nada da vampira sedutora ali e, de alguma forma,
aquilo era pior do que antes.
— Se eu quisesse uma marionete, teria ido atrás de
alguém que não tem nenhum tipo de imunidade e usaria
minha habilidade para ter certeza de que a pessoa faria
exatamente o que eu quero — ela falou. — Não vou
perder tempo tentando manipular alguém quando estou
tentando conseguir informações.
Agora estavam chegando em um ponto em que Yuri
podia acreditar.
— E eu não teria nenhum problema em trabalhar
com Amon, se não fosse o fato de que ele é um ponto
final. Quando Amon se envolve em algo, é porque o
diálogo acabou. Ele está ali para encerrar tudo — a
vampira continuou. — Vocês podem não pensar assim,
mas é como as Cortes o veem.
Yuri não tinha pensado naquilo. Ele tinha visto o que
Amon podia fazer e entendia por que os vampiros tinham
tanto medo dele. Ele não queria Amon envolvido em algo
daquele tipo – ainda não confiava por completo no
vampiro – mas precisava de um motivo real para Melissa
não preferir um vampiro com ela para fazer aquela
loucura.
— E a mão esquerda do príncipe do Setor Seis não
vai ser vista como um ponto final? — Yuri perguntou.
Melissa o encarou e respirou fundo.
— Senhora? — Um dos humanos chamou.
Yuri tinha irritado a vampira. Ele não conseguia sentir
nada do poder dela porque era imune, mas os outros
humanos ali tinham sentido.
— Não é nada, Henrique — ela falou, sem desviar o
olhar de Yuri.
O humano não falou mais nada e Yuri não se virou
para ver o que estava acontecendo no restante da sala.
Encarar uma vampira era estupidez – especialmente uma
com o poder que ela tinha – mas era um privilégio que a
imunidade lhe dava e que ele não ia abrir mão.
A sensação de saber que tinha surpreendido Melissa
era boa. Muito boa.
Mas era interessante que Melissa tivesse tido uma
reação tão forte só por Yuri ter deixado claro que sabia
qual era o papel dela no Setor Seis. Ele ia ter que tentar
descobrir mais sobre aquilo depois.
— Eu posso ser a pessoa que lida com várias
situações para o príncipe, mas continuo sendo
desconhecida — ela falou. — As Cortes não sabem o que
posso fazer. Para os outros príncipes, sou só mais uma
das pessoas da Corte do Setor Seis, sem nada que lhes
dê motivo para prestar atenção em mim. Então, não. Eu
não vou ser vista como um ponto final. Vou ser
exatamente o tipo de pessoa que esperariam que fosse
enviada para algo desse tipo.
— E se alguém lá souber qual é seu papel real? —
Yuri insistiu. — Porque se eu sei...
Ela apoiou os dois braços na mesa e se inclinou na
direção dele.
— Você sabe porque conseguiu esconder essa sua
imunidade da outra vez que nos encontramos — Melissa
murmurou. — Se não tivesse escondido, não estaria vivo.
Yuri sabia. Sempre tinha suspeitado, mas depois do
que Amon havia contado sobre Melissa ele já tinha
certeza.
E aquilo era o passado. O presente era que, do
mesmo jeito que Melissa precisava dele, ele precisava
dela. O Setor Dez não ia ficar sem fazer nada e a opção
dela era a menos arriscada, apesar de tudo.
— Ficar a um fio de me ameaçar diretamente é uma
forma interessante de me convencer a ir para o Setor
Cinco com você — Yuri comentou.
A vampira se endireitou e sorriu daquele jeito que
era um convite, de novo.
— Não foi uma ameaça. Foi um fato. Existe um
motivo para não saberem meu papel — ela contou. — E
você não está preocupado com ameaças minhas. Posso
não conseguir ler sua mente, mas seu corpo diz o
suficiente. Você não está preocupado nem com medo.
Preciso dizer o que seu corpo está me contando?
Yuri respirou fundo. Devia ter imaginado que não ia
conseguir esconder sua reação de uma vampira que
estava acostumada a analisar e manipular pessoas.
— Você pode tentar me ler e analisar minhas reações
o quanto quiser — Yuri falou. — Mas existem linhas que
eu nunca vou cruzar.
Ele não era como Dani – não que Yuri a julgasse por
ter se envolvido com Amon.
O sorriso de Melissa ficou mais largo.
— Tem certeza? — Ela perguntou. — Porque eu posso
garantir que você não se arrependeria.
Yuri não ia lhe dar o prazer de saber o efeito do que
estava falando – porque uma parte dele queria aceitar
aquele convite, sim. Ele tinha olhado para Melissa pela
primeira vez e pensado em sexo, anos antes. E ele não
tinha se esquecido da sensação quando ela havia
tomado seu sangue, na noite anterior, mesmo que aquilo
tivesse sido só fechando um corte. Não tinha sido uma
mordida.
Mas não importava a reação do seu corpo. Ele tinha
seus limites.
— Não importa que tipo de atração exista, você
sempre vai ser a vampira que destruiu o destacamento
de mercenários que eu fazia parte — ele falou. — E não
vou me esquecer disso.
Melissa não respondeu.
Ótimo. Yuri duvidava que ela se lembrasse daquela
noite. Provavelmente tinha sido só mais um
destacamento de mercenários de vários que ela tinha
destruído em séculos. Com o poder que Melissa tinha,
não era difícil fazer exatamente o que ela tinha feito
naquela noite: forçar seu comandante a matar o segundo
no comando. Ela não tinha matado todo o destacamento.
E não precisava, depois daquilo. Um destacamento de
mercenários não existia sem seus comandantes.
— Vou te encontrar na fronteira — ele avisou.
A vampira continuou sem falar nada enquanto ele se
levantava, atravessava a sala e saía da casa.
QUATRO

Alex parou ao lado da cerca que marcava o fim das plantações e se


encostou na estaca de madeira. Estar ali não era nada
inesperado. Desde a primeira vez que Dani tinha
aparecido perguntando sobre o monstro e a cidade velha,
elu já imaginava que teria que ir lá, também. Se o Setor
Oito tinha "esquecido" um vampiro preso ali por
cinquenta anos, então eles precisavam ter certeza de
que não havia mais nenhuma surpresa lá. E, se
houvesse, ou neutralizar ou encontrar uma forma de usar
a favor do Setor Dez – como Dani tinha feito com Amon.
E Alex não queria pensar naquilo. Se lembrar da
situação toda com Dani ainda doía, principalmente
porque elu sabia que tinha sido sua culpa. Tinha sido
Alex quem não tinha conseguido lidar com a realidade do
trabalho de Dani. Alex quem tinha atrapalhado o trabalho
dela. Mesmo que tivesse feito aquilo para tentar proteger
Dani, o resultado não mudava.
Mas agora Dani estava feliz. Era o que importava.
Feliz com um vampiro, depois de também ter virado uma
vampira, mas pelo menos estava viva. E quanto antes
Alex conseguisse tirar Dani da cabeça, melhor. Elu não
tinha nenhum futuro ali e era melhor assim.
O que importava era a cidade velha e descobrir se o
Setor Oito não tinha "esquecido" mais nada lá – e Alex,
com sua capacidade de sentir e identificar a presença de
qualquer tipo de poder, era a melhor pessoa para fazer
aquilo, mesmo que elu preferisse mil vezes não se
envolver. Era o mínimo que podia fazer.
Então Alex estava ali, nos limites das plantações,
com sua balestra nas costas e uma aljava de flechas na
perna. Mesmo depois de anos sem praticar para valer,
elu ainda era melhor com a balestra do que com as
pistolas, e o risco maior onde estava indo era de
encontrar animais, não vampiros. Não que alguém fosse
confiar naquilo depois dos ataques do Setor Oito – e era
aquele o motivo para Alex estar parade ali. Raquel tinha
avisado que um dos mercenários ia ser sua escolta. Só
faltava o tal mercenário chegar.
Elu suspirou e se acomodou melhor contra a cerca.
Precisar esperar, Alex não precisava. A menos que a pior
das hipóteses acontecesse e o Setor Oito desse um jeito
de invadir o Dez, elu conseguiria se virar muito bem com
qualquer coisa que pudesse encontrar ali. E até uma
invasão era improvável, porque a fronteira ali era com o
Setor Três.
Alex não gostava de correr riscos à toa. Mas se o tal
mercenário demorasse demais a chegar, elu não ia
esperar – porque estar nas ruínas quando escurecesse
seria um risco muito maior do que entrar lá sozinhe
enquanto ainda era dia claro.
Elu se virou para encarar a cidade velha. O espaço
entre as plantações e as ruínas era mantido limpo, só
com o mato baixo mesmo, e Alex não conseguia contar
quantas vezes tinha ido ali quando era criança. A maioria
do pessoal que tinha crescido no Setor Dez havia
passado tempo demais indo onde não devia, e aquilo
incluía as ruínas.
Mas as brincadeiras de crianças e adolescentes nas
ruínas eram mais uma coisa que Alex não queria pensar,
porque ia se lembrar de quando tudo tinha parado. Não
que tentar não se lembrar tivesse adiantado alguma
coisa naqueles anos.
A nuca de Alex formigou. Poder. Algum tipo de poder
estava se aproximando, mas era uma impressão tão
fraca que quase se misturava com o ambiente. Se fosse
algumas semanas antes, elu até pensaria que eram
restos do poder de Alana nas plantações, mas já fazia
três semanas que ela não estava no setor.
Elu pegou uma das flechas na aljava e se virou
devagar. O que quer que fosse, estava perto o suficiente
para ver exatamente o que Alex estava fazendo se elu
tirasse a balestra das costas. Melhor não arriscar.
— Alexa!
Alex apertou a flecha com força e parou, encarando
o mercenário que estava vindo na sua direção. Ninguém
no Setor Dez lhe chamava assim já fazia uns bons anos,
desde que elu tinha deixado claro que preferia Alex – e
que preferia mais ainda se não usassem nada no
feminino falando sobre elu. E não fazia o menor sentido
um dos mercenários que estava no setor havia poucas
semanas conhecer aquele nome.
Não. Era um dos mercenários, sim. Mas não era
alguém de fora. Era óbvio que ele estava diferente,
depois de oito anos longe...
Não. Era alguém parecido, mais nada. Não fazia
sentido ser Gustavo ali, não depois de oito anos. Elu
estava vendo coisas onde não tinha nada e
provavelmente era só por causa das lembranças. Alex
estava pensando demais no passado, só isso. Não tinha
nenhum motivo para elu achar que o mercenário loiro
fosse Gustavo, porque Gustavo estava morto.
Eles não se moviam do mesmo jeito. O rosto do
mercenário até podia lembrar o do seu amigo de quando
eram mais jovens, mas aquilo não queria dizer nada.
A sensação de poder. Aquela impressão meio
apagada, se misturando com o ambiente. Aquilo
importava – porque Alex se lembrava muito bem de
como aquela sensação era familiar, quando eram
crianças.
— Gustavo — Alex falou.
O mercenário sorriu e acelerou o passo.
Claro que ele tinha sorrido. Gustavo sempre estava
sorrindo. Aquilo tinha sido a primeira coisa que havia
feito Alex prestar atenção nele: como sempre parecia
satisfeito ou feliz, não importava o que estivesse
acontecendo.
E Gustavo tinha parecido feliz e satisfeito até o fim.
Tão feliz e satisfeito que Alex tinha demorado demais a
notar que alguma coisa estava errada e que o sorriso
dele tinha se tornado forçado. Até a noite em que ele e
sua família desapareceram do Setor Dez – e no dia
seguinte a única coisa que encontraram foram as marcas
de sangue na casa deles.
Oito anos. Oito anos desde que ele tinha
desaparecido e que Alex tinha andado pela sua casa,
visto as marcas de sangue e sentido os restos de poder.
Mesmo se ele e a família tivessem saído de lá vivos, de
alguma forma, eles não teriam sobrevivido. Não com o
tipo de ferimento que o sangue indicava.
Mesmo assim, Alex tinha passado mais de dois anos
na esperança de receber alguma mensagem. Se alguém
conseguiria sobreviver ao que quer que tivesse
acontecido, era Gustavo. E, se ele tivesse sobrevivido,
entraria em contato. Ia mandar ao menos uma
mensagem, porque ele não deixaria Alex pensando que
estava morto.
Elu tinha sido mais inocente do que imaginava.
Gustavo parou na sua frente, ainda sorrindo.
— Alexa — ele repetiu.
— É Alex — elu avisou.
O mercenário levantou as sobrancelhas.
— Certo. Sem feminino, então?
E Alex odiava que tivessem sido tão próximos a
ponto de Gustavo entender aquilo sem elu precisar falar
mais nada. Gustavo tinha sido a primeira pessoa com
quem Alex tinha tocado naquele assunto, quando ainda
não tinha certeza de nada e estava tentando se localizar
na sua própria cabeça.
Mas pelo visto não tinham sido próximos o suficiente
para ele se preocupar em dar um sinal de vida que fosse
naqueles oito anos.
— Sim — elu respondeu.
Oito anos pensando que Gustavo estava morto. Para
ele reaparecer como um mercenário, estar no setor já
fazia semanas, e nunca ter falado nada.
Alex tinha errado com Dani, e errado feio. Elu sabia e
admitia. Mas não tinha sido assim com Gustavo. Alex
tinha feito de tudo – teria feito qualquer coisa por ele, na
época. E, no fim das contas, tinha só ficado para trás.
Ter passado oito anos pensando que Gustavo estava
morto tinha doído, sim. Todas as vezes que Alex se
lembrava de alguma coisa que tinham feito, ou de alguns
dos planos que estavam começando a fazer para o
futuro. Até das brincadeiras de crianças – como quando
iam para as ruínas da cidade velha. Oito anos pensando
que tinha perdido uma das pessoas mais importantes da
sua vida, e sem nem saber o motivo.
Mas agora Gustavo estava ali, e quase era pior
pensar que Alex só não era importante o suficiente para
ele ter deixado ao menos algum sinal de que estava vivo.
Ele era um mercenário. Não tinha como dizer que nunca
tinha tido oportunidade para mandar uma mensagem
naquele tempo todo.
Alex apertou a flecha com mais força. Era bom que
não tivesse pegado a balestra quando tinha sentido o
poder.
— Por quê? — Elu perguntou.
Gustavo deu um passo atrás e o sorriso morreu
antes de ele balançar a cabeça.
— Por que você não deu um sinal de vida que fosse
nesse tempo todo? — Alex insistiu.
Ele balançou a cabeça de novo.
— Não importa.
Alex respirou fundo.
Não importava. Ele tinha desaparecido por oito anos,
deixado que Alex pensasse que estava morto, e agora
dizia que não importava. Certo, então. Alex entendia o
recado: elu não importava. Se importasse, Gustavo teria
ao menos falado alguma coisa depois de ter chegado no
setor.
E elu ainda tinha um trabalho a fazer – o que pelo
visto queria dizer que ia ter que lidar com Gustavo.
— Raquel mandou você como minha escolta?
O mercenário assentiu.
— E se ajuda de alguma forma, ela não me
reconheceu — ele completou.
Ajudava, porque Alex não queria imaginar que
Raquel teria mandado Gustavo de propósito. Não que ela
soubesse de tudo que tinha acontecido na época em que
ele e a família desapareceram, mas mesmo assim.
Raquel normalmente tentava não deixar as pessoas em
situações incômodas, se pudesse evitar.
— Eu me ofereci para vir, quando falaram que
precisavam de alguém para ir nas ruínas — Gustavo
contou. — Conheço a cidade velha. Mas não pensei que
fosse ser você.
E quem mais seria? Alex podia ter passado os
últimos anos praticamente só em sala de aula, mas ainda
era a única pessoa capaz de sentir poder daquele jeito
que o Setor Dez tinha, além de ser especialista em
história dos vampiros. Gustavo podia não saber da
segunda parte – Alex tinha se enfiado nos estudos depois
que ele havia desaparecido – mas sabia muito bem do
seu poder. Era óbvio que, se alguém ia analisar as ruínas
da cidade velha, seria elu.
Alex assentiu de forma seca.
— Vamos logo, então — elu falou.
Gustavo continuou parado no lugar, sem falar nada.
Alex balançou a cabeça e começou a andar na
direção da cidade velha. Antes, estava até curiose sobre
o que podia achar lá. Elu se lembrava de sentir a
impressão de poder, quando iam lá anos antes. Era
possível que fosse só Amon, mas também era possível
que houvesse mais coisas ali e Alex queria saber o que
era. Agora, com Gustavo ali, até a curiosidade tinha
desaparecido. Elu só queria terminar tudo o mais
depressa possível.
— Se você preferir posso voltar e pedir para outro
mercenário... — Gustavo começou.
Só se ele estivesse tão incomodado assim. Alex não
tinha tempo para aquilo. Até ele voltar e outro
mercenário chegar, já estaria quase anoitecendo.
— Temos trabalho a fazer — elu falou, sem parar de
andar.
Gustavo não respondeu, só andou depressa até estar
ao lado de Alex. E, se não fosse por como tinha uma
tensão ali que nunca havia existido antes, seria quase
como antes. Quando eram crianças e depois
adolescentes, correndo pelo setor e se enfiando onde
não deveriam. Fazendo apostas e tudo mais que tinham
direito.
Mas aquilo tudo tinha sido antes de Gustavo
desaparecer. Nas semanas antes daquela noite, Alex já
tinha certeza que alguma coisa estava errada. Ele tinha
se afastado, do nada. Só ficado distante, de um jeito que
era mais uma sensação do que algo que elu realmente
conseguisse explicar. E tinha insistido que tudo estava
bem quando Alex havia perguntado se podia ajudar de
algum jeito, só para desaparecer dias depois.
Ninguém nunca tinha descoberto o que aconteceu.
Gustavo, os pais, a irmã – todos tinham só desaparecido.
O sangue na sala da casa fazia parecer que haviam sido
atacados, mesmo que nenhum dos sistemas de defesa
tivesse localizado nada entrando no Setor Dez.
E Alex tinha passado anos se culpando e pensando
que, se tivesse insistido mais, se tivesse feito Gustavo
contar o que estava acontecendo, talvez nada daquilo
tivesse acontecido.
Mas Gustavo estava ali, vivo e bem. Mais que bem,
se tinha se tornado um mercenário. E Alex não sabia se
conseguia lidar com aquilo depois de passar anos
achando que ele estava morto e que nunca ia saber o
que tinha acontecido, porque havia deixado Gustavo se
afastar, naquela época.
Aquilo era o passado, mais nada. E ficar se
prendendo ao passado não levava a lugar nenhum. Alex
estava pensando exatamente naquilo antes de Gustavo
chegar: em como precisava deixar seu passado com Dani
de lado. Pelo visto, não era só o seu passado com Dani.
Era o passado com Gustavo, também. O que quer que
tivessem sido antes, não importava. Agora ele era só um
dos mercenários morando no setor e eles não se
conheciam mais.
Nem iam voltar a se conhecer. Era melhor assim.
O resto do caminho até a cidade velha foi feito em
silêncio.

Mel tinha calculado mal. E ela preferia admitir aquilo a continuar


cometendo o mesmo erro.
Ela havia imaginado que estava preparada para
todas as reações possíveis de Yuri Freitas, mas tinha se
enganado. Aquele detalhe que ela não sabia, sobre
quando haviam se encontrado antes, fazia mais
diferença do que deveria.
Ela tinha destruído o destacamento de mercenários
dele. E dizer aquilo era o mesmo que dizer que estava
ventando à noite: não era exatamente algo que
acontecia todo dia, mas também não era incomum.
Sempre havia algum humano que se tornava um alvo do
príncipe, por um motivo ou outro. E a maior parte deles
pensava que contratar mercenários seria o suficiente
para protegê-los.
Nunca era.
Mel nunca conseguiria se lembrar de quando poderia
ter se encontrado com Yuri antes, ou exatamente o que
ele havia visto ela fazer.
E, por causa daquilo, ela estava desde o anoitecer
parada perto de onde os três setores faziam fronteira: o
Seis, o Dez e o Cinco. Yuri havia saído da casa dela sem
dar um horário, o que queria dizer que Mel precisava
esperar por ele, se quisesse sua ajuda.
No fim das contas, ele tinha assumido o controle da
situação. Mel tinha tentado balançar suas certezas e se
manter no controle, mas ele havia invertido os papéis
deles de uma forma tão simples que não podia ter sido
planejada.
Não importava. Ela havia conseguido o que queria, e
aquilo era o que importava. O humano iria com ela para
o Setor Cinco. Ela teria a justificativa que precisava para
dizer que estava cumprindo as ordens do seu príncipe,
enquanto tentava conseguir as informações que
realmente queria.
Mel podia admirar alguém que era leal aos seus
como Yuri Freitas parecia ser – se não fosse lealdade, ele
não se importaria com o que ela havia feito com o seu
destacamento. Ela podia respeitar alguém disposto a se
arriscar para proteger os outros, mesmo que não
entendesse o que convencia alguém a agir daquele jeito.
Mas nada daquilo a impediria de usar Yuri para conseguir
o que queria.
E talvez agora ela quisesse mais. Mel não estava
acostumada a ser recusada de forma tão definitiva como
ele havia feito. Aquilo era um desafio e agora ela queria
saber até onde as certezas do humano iam –
especialmente porque ele tinha usado aquilo para tentar
assumir o controle da situação.
Mel olhou ao redor de novo. Sua moto estava
encostada em uma das árvores espalhadas perto da
fronteira do Setor Seis. Um pouco para a frente, onde o
Setor Dez começava, as árvores eram muito mais
próximas e maiores – provavelmente culpa da tal bruxa
da natureza, o que queria dizer que as árvores do lado
dela eram só o resultado de resíduos de poder. E a parte
do Setor Cinco perto da fronteira era idêntica ao Seis:
algumas árvores espalhadas e mais nada a vista.
Não havia nada ali. Nenhuma das Cortes colocaria
pessoal vigiando as fronteiras, porque fazer aquilo
significava dizer que os humanos do Setor Dez podiam
ser um risco – ou que uma das Cortes vizinhas não era
confiável. Mel sabia que o Setor Seis tinha uma rede de
câmeras e sensores, mas na maior parte do tempo aquilo
estava desativado, porque "não era necessário". O Cinco
provavelmente tinha algo parecido e, se estavam criando
carniçais, Mel tinha certeza de que estavam mantendo
todos os sistemas de vigilância possíveis ativos. Eles não
podiam correr riscos.
Assim como o Setor Dez. Mel não precisava se
concentrar para notar as equipes de segurança que
estavam patrulhando a fronteira do lado de lá. Os
humanos estavam afastados o suficiente entre as árvores
para não serem visíveis, mas ela havia sentido as mentes
de pelo menos sete pessoas, divididas em dois grupos
diferentes.
Mas o costume das Cortes também era um erro. Os
humanos eram um risco e nenhuma Corte era confiável.
Toda a questão sobre não manter pessoal de vigilância
era uma estupidez que, mais cedo ou mais tarde,
cobraria seu preço. Mel se lembrava de quando a guerra
entre o Setor Oito e o Setor Quatro tinha começado. Os
primeiros ataques só haviam sido tão pesados por causa
daquilo. Mas ela não era ninguém para questionar as
decisões do seu príncipe. E não ter ninguém ali deixava
tudo mais fácil para ela. Queria dizer que o príncipe não
saberia onde ela estava antes de ser tarde demais para
ele poder fazer alguma coisa.
Tecnicamente, Mel não estava desobedecendo
ordens. Ele tinha falado para ela fazer o que precisasse
para conseguir uma fonte de informações confiável
dentro do Setor Dez. Pois então o necessário era criar
toda aquela situação para se aproximar do responsável
pela segurança do Dez. Simples. Pelo menos, era o que
diria quando o príncipe a questionasse.
Um som diferente atravessou a noite e Mel fechou os
olhos, ouvindo. Motos. Motos antigas, para ser específica,
de algum dos modelos que os setores haviam parado de
produzir em parte por causa do barulho que faziam. O
tipo de motos que os humanos usavam, porque não
tinham acesso às últimas tecnologias.
Ela abriu os olhos e parou na frente da sua moto –
um dos modelos que eram vendidos com prioridade para
as Cortes e que praticamente não faziam ruído. Mel não
ia perder tempo tentando fazer parecer que havia
acabado de chegar quando já fazia mais de duas horas
que estava no mesmo lugar. As equipes de vigilância do
Dez provavelmente tinham notado sua presença ali. Mas
ela não precisava deixar claro que tinha ficado irritada
por precisar esperar. O erro havia sido dela. Mel não
daria mais poder para o humano.
As motos saíram do meio das árvores e pararam. Yuri
desceu de uma delas, e Amon e Daniele desceram da
outra. Era o que Mel havia imaginado que aconteceria.
Pelo menos ela não tinha errado aquilo, também.
Mel continuou no lugar, esperando enquanto os três
iam na sua direção, tomando cuidado para não
atravessar a linha invisível que dividia os setores. Ela
sabia muito bem que nenhum deles tinha nenhum
problema em entrar no território de outros setores. Se
estavam parados ali, era porque não tinham certeza de
que se encontrar com ela não era uma armadilha.
Yuri não estava vestido como quando tinha ido na
sua casa. Mais cedo, ele havia tentado se misturar um
pouco com as pessoas do Setor Seis – não que qualquer
coisa daquele tipo fosse dar certo. Agora, ele estava
vestido exatamente como quem era: um dos
responsáveis pela segurança do Setor Dez. A calça larga
e escura com muitos bolsos era quase um padrão para
mercenários e pessoal de segurança em geral, assim
como os coturnos. A blusa que Yuri estava usando era
obviamente reforçada, com gola alta e sem mangas. E
ele não estava tentando esconder as facas presas nos
seus braços ou as armas no seu cinto.
Mas aquilo parecia normal, nele – e em Daniele
também, que estava vestida de um jeito não muito
diferente. O estranho era Amon também estar vestido do
mesmo jeito e não parecer deslocado. Ele realmente
havia se tornado um deles.
Alguns vampiros olhariam para aquilo e pensariam
que queria dizer que Amon estava relaxando, ou que ele
deixaria de ser perigoso justamente por não ser mais
apenas o monstro, o pesadelo das Cortes. Mel sabia que
era exatamente o contrário. Antes, Amon fazia o que o
juramento de sangue lhe obrigava, sem se preocupar
com o resultado. Agora ele tinha um motivo para se
importar. Se alguém se tornasse seu inimigo, ele seria
um adversário muito pior.
E Daniele...
Mel estreitou os olhos e encarou a outra mulher. Ela
não parecia uma recém-transformada. Normalmente
vampiros neófitos demoravam cerca de dois anos para
aprender a lidar com a transformação. Durante aquele
tempo sempre era fácil reconhecê-los, porque tinham
uma energia incerta ao seu redor. Eles passavam a
impressão de que estavam famintos, a um fio de perder
o controle, porque seus corpos ainda não sabiam lidar
com o sangue e o poder.
Daniele não tinha nada daquilo. Não. Se prestasse
atenção, Mel conseguia sentir a impressão de fome vindo
dela, mas não era nada perto do que ela imaginava que
sentiria vindo de uma pessoa transformada havia menos
de um mês.
Aquilo não deveria ser possível.
Amon encarou Mel e balançou a cabeça devagar. Ele
não queria nenhum comentário sobre aquilo, então.
Interessante.
— Você realmente quer que isso funcione, se estava
disposta a ficar parada aqui por horas — Yuri falou.
Mel sorriu. Ele não fazia ideia – e ela teria esperado
bem mais. Não jogaria aquela chance fora.
Mas Yuri também tinha medido suas palavras. Aquilo
era bom, porque mesmo que parecesse não haver nada
ali, era mais seguro não falarem nada que pudesse
comprometê-los depois. O Setor Cinco tinha seus
sistemas de vigilância, eles com certeza estariam ativos
e era possível que algo fosse sensível o bastante para
captar o que estavam falando ali, a poucos metros da
fronteira.
— Eu disse que queria ter certeza de que os boatos
não se espalhariam — ela respondeu.
Os boatos sobre os carniçais – e aquilo era só uma
encenação para o caso de estarem sendo gravados,
fosse pelo Setor Seis ou pelo Cinco. Mel teria passado
aquela parte do seu plano para Yuri mais cedo, mas ele
tinha saído da sua casa antes que ela tivesse uma
chance de fazer aquilo. Agora, só podia torcer para ele
acompanhar a direção dela.
Yuri riu e balançou a cabeça. Até a risada dele era
interessante, com camadas de significado, como se ele
estivesse rindo de algo a mais, que ela não conseguia
entender.
Ela teria tempo. Eles passariam dias juntos, no Setor
Cinco. Antes do fim daquele tempo, Mel teria Yuri na sua
cama. Ou talvez nem na cama, se fosse a preferência
dele. Mas ela o teria – e não fazia nem questão do seu
sangue, só de saber como seria. Ela não conseguia mais
se lembrar da última vez em que tinha estado com
alguém que a queria e que mesmo assim a desafiava.
Talvez aquilo nunca tivesse acontecido, antes.
— Não — Amon falou.
Mel se virou para ele. Amon não tinha nenhuma
habilidade que lhe permitiria saber o que Mel estava
pensando – o pouco de poder que ele tinha naquela
direção não funcionava contra vampiros – mas ele a
conhecia. Pelo visto, era o suficiente.
— A escolha não é sua — ela avisou.
Porque Yuri não precisava ser protegido. A imunidade
dele não chegava a ser uma proteção contra a habilidade
de Mel, mas era o suficiente para ela precisar fazer
esforço para compeli-lo. E, mesmo que não fosse assim,
onde estaria a diversão em estar com alguém só porque
estava controlando a pessoa? Não. Mel queria Yuri, sim,
mas faria ele querer o mesmo antes que qualquer coisa
acontecesse.
Amon assentiu, devagar, e ela não precisava da sua
habilidade para saber que ele estava irritado.
— Espero que isso tudo não seja algum plano para
nos trair depois — ele falou.
Mel sorriu. Se havia uma pessoa que entenderia
exatamente o que ela queria fazer, era Amon. E aquele
era o motivo para ela fazer questão de que ele não
soubesse. Mel nunca daria aquele tipo de poder sobre ela
para alguém.
— Deixei bem claro o que quero com esse acordo,
desde o começo — ela respondeu. — Não tenho a menor
intenção de prejudicar o Setor Dez. Não tenho nenhum
problema com vocês.
Só com as Cortes. Mas ela não podia dizer aquilo em
voz alta em um lugar onde podiam estar sendo gravados.
Daniele deu uma risada seca e balançou a cabeça.
— Até eu sabia que ela ia falar isso — a neófita
comentou.
Bom. Mel não estava tentando surpreender ninguém.
Amon a encarou e Mel estreitou os olhos. Ele a
conhecia o suficiente para ter certeza de que ela estava
planejando alguma coisa a mais com aquela ida ao Setor
Cinco, mas não tinha como saber exatamente o quê. Eles
tinham causado problemas o suficiente juntos, antes do
Setor Oito decidir mantê-lo preso, para Amon ter uma
boa ideia de como Mel agia. E, se ele falasse qualquer
coisa naquele sentido enquanto estavam ali, destruiria
todos os planos dela.
Mel deu alguns passos para trás e colocou uma mão
na sua moto.
— Nós vamos fazer isso, ou vamos continuar parados
aqui discutindo até amanhecer? — Ela perguntou.
Yuri pegou a mochila pesada que tinha deixado na
sua moto e atravessou a fronteira sem falar mais nada.
Ótimo, porque Mel não ia entrar no Setor Cinco com
aquela moto que deveria estar em um museu.
Ela subiu na sua moto e esperou até Yuri estar
sentado atrás dela. Amon e Daniele continuaram parados
do outro lado da fronteira, a encarando enquanto ela
acelerava na direção do Setor Cinco.
CINCO

Estava fácil demais. Yuri tinha esperado questionamentos, algum


tipo de resistência quando chegassem no Setor Cinco. No
mínimo, algum tipo de discussão sobre a presença deles
ali ser necessária. Mas pelo visto Melissa estava certa
quando tinha imaginado como seriam recebidos, porque
dois representantes da Corte já estavam esperando
quando se aproximaram da cidade. E eles já tinham
acomodações preparadas – uma casa que havia sido
desocupada recentemente e estava em uma "parte boa"
da cidade.
A casa era a única coisa que fazia sentido até então.
Ela podia ser maior que a maioria das casas do Setor Dez
e ter um espaço grande na frente, que provavelmente
tinha sido um jardim em algum momento, mas ainda era
na parte humana da cidade. Pelo que Yuri entendia das
políticas dos vampiros, aquilo era o mais longe da Corte
que podiam colocá-los sem ser um insulto descarado.
Ele entrou na casa enquanto Melissa guardava sua
moto na garagem – uma garagem individual, coisa que
ninguém tinha no Setor Dez. Era um desperdício de
espaço e recursos. Mas, ali, parecia comum. E Yuri não ia
pensar na moto de Melissa. E muito menos no caminho
até ali, sentado atrás dela e se forçando a não prestar
atenção na sensação do corpo dela contra o seu. Aquilo
não fazia a menor diferença. Não podia fazer. E os
vampiros não iam começar a vender as motos de
modelos recentes para o Setor Dez.
Yuri deixou sua mochila ao lado da porta e encarou o
lugar onde estava: uma sala grande, muito maior do que
era necessário, com dois sofás formando um L, uma
mesa baixa na frente deles e uma TV do outro lado. Uma
porta dava para um banheiro. Do outro lado, a cozinha
era separada da sala por uma meia parede, num estilo
que era parecido demais com o que usavam no Setor
Dez.
E havia uma escada para a esquerda que levava
para o andar de cima da casa, onde Yuri imaginava que
os quartos estavam. Mais um desperdício de espaço e
recursos: ao invés de fazerem o andar de cima ser
inteiro, ele era metade do espaço da casa, só. Um
parapeito de madeira cercava a parte de cima toda,
deixando claro que a passagem até os quartos era bem
larga. Qual a necessidade de desperdiçar tanto espaço só
para a sala ter um teto mais alto? Não era como se
aquilo fosse fazer alguma diferença para os vampiros. E,
com uma construção daquele jeito, seria muito mais
difícil garantir a segurança do lugar.
Yuri pegou sua pistola e subiu as escadas, devagar.
Talvez a ideia fosse exatamente aquela: fazer a casa não
ser segura. Ou talvez vampiros só não se preocupassem
com coisas tão básicas assim.
Nada no corredor. Não que tivesse como algo se
esconder ali. Yuri abriu a porta do primeiro quarto. Uma
cama de casal, um guarda-roupas meio aberto e cheio de
roupas escuras, uma penteadeira sem espelho. Outra
porta no quarto dava para um banheiro maior do que ele
esperava.
Yuri voltou para o corredor e abriu a última porta. Um
escritório. Ou pelo menos era o que ele imaginava que
aquele quarto deveria ser, por causa da mesa e do
armário a um canto. Dois cabideiros compridos estavam
no meio do cômodo, com mais roupas escuras
dependuradas. Coisas de Melissa, provavelmente. Ele se
lembrava de Dani contando quando a vampira tinha
providenciado roupas para ela ir no baile do Setor Seis.
Fazia sentido ela ter mandado suas coisas para o Cinco
antes, porque nunca que ia conseguir levar aquele tanto
de coisas de moto.
Um quarto. Em teoria, aquilo não era um problema.
Melissa era uma vampira, não precisava dormir.
E, quando ele dormisse, estaria indefeso, com uma
vampira sob o mesmo teto. Yuri respirou fundo e saiu de
volta para o corredor. Ele já tinha pensado naquilo vezes
demais e não fazia a menor diferença. De todo o pessoal
do Setor Dez, ele era quem tinha mais chances de
sobreviver a uma missão daquele tipo, mesmo com todos
os riscos. Então ele não ia pensar em voltar atrás, porque
não podiam deixar o Setor Cinco continuar com o que
quer que estivessem fazendo. E Yuri nunca aceitaria
saber de tudo aquilo e não se vingar – tanto por Dani
quanto por todos os mercenários que tinham morrido
naquele ataque.
A porta da sala se fechou e um apito baixo soou
quando o alarme foi ligado.
Yuri parou no parapeito e olhou para baixo. Melissa
estava parada na sala, com a cabeça inclinada para o
lado e olhos fechados. Ele não fazia ideia do que ela
estava fazendo, mas...
A vampira levantou uma mão. Yuri continuou parado
no mesmo lugar, sem falar nada.
Ela se moveu. Yuri apertou sua pistola, tentando
acompanhar o movimento da vampira enquanto ela
passava de um lado para outro da sala, tão depressa que
era só um borrão de movimento, entrava na cozinha,
saía e então subia a escada e entrava nos quartos atrás
dele. Yuri se virou. O que quer que ela estivesse
fazendo...
Melissa saiu do quarto andando em velocidade
normal e foi na sua direção. Yuri levantou as
sobrancelhas e ela mostrou a mão. Yuri não reconhecia a
maioria dos eletrônicos que estavam ali, mas o que ele
conseguia reconhecer eram escutas tão pequenas que
não deveriam ser possíveis. Não que ele pensar que
aquilo era impossível valesse de alguma coisa. O Setor
Dez raramente tinha informações sobre as últimas
tecnologias de segurança e vigilância.
A vampira fechou a mão. Os eletrônicos fizeram um
som de algo sendo triturado e eram só pedaços quando
ela abriu a mão de novo.
Prático. Yuri já estava se preparando mentalmente
para passar dias tendo que medir o que falava, mas
aquilo era muito melhor – ainda mais porque não tinha
sido ele a tirar todos os aparelhos de vigilância.
— Isso não vai ser um problema? — Ele perguntou.
Melissa sorriu.
— Para ser um problema, eles precisariam admitir
que queriam nos monitorar. Eu deixei claro que não
aceitaria isso.
E, mesmo que para o Setor Cinco a vampira não
fosse ninguém importante, estava ali de forma oficial.
Insistir em qualquer tipo de escuta ou monitoramento
depois que ela tinha avisado e quebrado as coisas deles
seria visto como um insulto ao Setor Seis – e todos os
setores evitavam passar da linha do insulto. Era a mesma
lógica estúpida que fazia os vampiros nunca terem
nenhum tipo de segurança nas fronteiras entre os
setores.
Deveria ser Dani ali, não Yuri. Ele não sabia lidar com
a política dos vampiros. Já não era a pessoa mais
diplomática nem para lidar com humanos.
Talvez eles devessem ter pensado mais antes de
aceitar aquilo. Por mais que o Setor Dez não fosse ficar
parado sabendo sobre os carniçais, o risco era grande
demais, com poucas chances de retorno, mesmo
considerando a "ajuda" de Melissa. O que duas pessoas,
sozinhas, iam conseguir fazer?
Talvez Amon estivesse certo em não ter contado o
que os carniçais significavam. E Yuri não gostava nem um
pouco de pensar que estava entendendo as escolhas de
um vampiro.
Melissa se inclinou sobre o parapeito, com a mão
fechada de novo.
— Em teoria, isso não deve ser complicado — ela
começou. — Eles podem esconder o que fizeram, mas
não vão conseguir esconder todas as pessoas envolvidas,
seja direta ou indiretamente.
O que queria dizer que, mais cedo ou mais tarde ela
estaria perto de alguém que sabia demais e conseguiria
tirar as informações da sua mente. Yuri também não ia
pensar que estava contando e concordando com aquilo.
Ia contra tudo o que ele sempre tinha acreditado, mas
era a única opção viável. Força bruta não levaria a lugar
nenhum. Espionar, usando recursos dos humanos,
também não – e podia dar resultados piores.
Yuri respirou fundo e guardou sua pistola. Era melhor
não ficar com ela na mão, só por garantia.
E, por mais que ele detestasse aquilo, aquela missão
era de Melissa. Ela tinha o necessário para fazer aquilo
funcionar. Yuri tinha seus planos, se tudo desse errado.
Ou se a vampira os traísse. Ele não tinha ido para lá sem
se preparar. Mas, até que alguma coisa acontecesse, ela
estaria no controle.
— O que eu preciso saber? — Yuri perguntou.
Melissa assentiu devagar, sem olhar para ele.
— A Corte vai te ver como parte do meu rebanho —
ela contou. — Alguém que está aqui comigo porque
trazer alguém do Setor Dez é uma manobra política que
faz sentido, mas também como uma garantia de que não
vou precisar caçar no território deles.
Aquilo não tinha sido mencionado antes.
Não importava o que acontecesse, Yuri não ia
alimentar uma vampira.
E ele ia esperar ela terminar de falar, pelo menos.
— Como você tem um cargo relativamente
conhecido no Setor Dez, é bem possível que tentem de
provocar — Melissa continuou. — Tente não insultar
ninguém se isso acontecer.
Yuri deu uma risada seca. Ela claramente não o
conhecia.
A vampira olhou para ele e levantou uma
sobrancelha.
— Ou então só aponte que é absurdo um vampiro se
sentir insultado por um humano — ela falou. — Acho que
isso vai ser mais fácil.
Mais fácil que ele conseguir não insultar algum
vampiro se tentassem provocá-lo, sim. Yuri era honesto o
suficiente para saber que as chances de aceitar qualquer
coisa daquele tipo vindo de um deles era inexistente.
Talvez ele devesse ter autocontrole o bastante para
conseguir ignorar uma provocação vinda dos vampiros,
mas não tinha. Não depois de tudo o que já tinha visto
fazerem e de ter passado anos fazendo questão de
garantir que estaria longe deles.
— O importante é que a Corte não deve se
preocupar com você — Melissa completou. — E, se isso
acontecer por algum motivo, você pode usar o que
esperam contra eles.
Yuri não ia pegar sua pistola de novo.
— Usar o que esperam e te alimentar? — Ele
perguntou, seco. — Agir como um dos viciados na
mordida dos vampiros, incapaz de pensar por mim
mesmo? Isso não vai acontecer.
A vampira abriu a mão e os farelos dos
equipamentos eletrônicos caíram para a sala lá embaixo.
— Prefere agir como um dos viciados que tanto
despreza ou se tornar um deles? — Melissa retrucou. —
Porque as Cortes têm vampiros demais que adorariam
quebrar um humano como você. E um humano quebrado
não tem nenhuma utilidade para mim.
Ela se afastou do parapeito e se virou para descer a
escada antes de Yuri conseguir reagir.
Qualquer reação que ele tivesse ali seria inútil,
porque ela estava certa. Ele havia concordado em se
colocar naquela situação. Não estava lidando com as
Cortes como um igual – não que os vampiros fossem
capazes de ver um humano como um igual.
Melissa parou no pé da escada.
— É melhor você comer alguma coisa. Vamos passar
a noite nos lugares onde os humanos se reúnem nesse
setor — ela avisou.
Porque Melissa queria ter certeza de que nenhum
humano tinha visto algo que não deveria.
O que queria dizer que Yuri seria cúmplice enquanto
uma vampira revirava as mentes de qualquer humano no
caminho.
Ele desceu as escadas e foi na direção da cozinha.
Aquela não era a sua missão. Era dela. Na maior
parte do tempo, Yuri não tinha problemas em seguir
ordens quando estava trabalhando com alguém. Mas
receber ordens de Melissa e saber que não tinha outra
opção a não ser obedecer deixava um gosto amargo na
sua boca.

Os lugares onde humanos se reuniam depois do anoitecer não eram


exatamente o melhor tipo de ambiente para famílias.
Estar fora de casa depois que o sol se punha tinha
começado como um desafio aos vampiros: eram os
humanos dizendo que não iam se esconder, não iam
abrir mão de tudo o que era deles. Mel se lembrava de
ouvir as histórias sobre os primeiros a desafiarem os
toques de recolher dos vampiros, das festas regadas a
álcool e sexo que sempre terminavam em morte, mas
que continuavam acontecendo, de novo e de novo, até
que aquela regra havia desaparecido.
O toque de recolher não existia mais e cada setor
tinha suas tradições entre os humanos. No Setor Seis,
eles se reuniam nos bares, como aquele onde Mel havia
se encontrado com Yuri pela primeira vez. No setor onde
ela havia sido transformada, longe dali, eram as casas de
apostas.
O Setor Cinco tinha um complexo de casas de show –
porque ela não sabia outra forma de chamar aqueles
lugares – e bares. Todo o centro da cidade se
transformava, à noite. Pelo menos, ela imaginava que
durante o dia não seria a mesma coisa. Mas eram salões
e mais salões que quase pareciam interligados entre si,
cada um com uma temática e músicas diferentes
tocando em um volume que ainda era confortável para
os vampiros. E, não importava qual o tema, todas as
casas de show ofereciam a mesma coisa: o prazer
sensual.
Mel olhou ao redor. O salão onde tinham entrado não
era um dos mais lotados, mas estava longe de ser um
dos mais vazios. A música ali era lenta, sem a batida
forte e pesada que ela tinha notado em outros salões,
mas o lugar em si não parecia tão diferente de alguns
que ela tinha visto. Palcos baixos espalhados por um
espaço enorme, com mesas e cadeiras entre eles. Cada
um dos palcos tinha pelo menos um vampiro se movendo
ou dançando no ritmo da música, todos eles usando mais
correntes do que roupas propriamente ditas.
Ela deveria ter imaginado aquilo. Fazia todo sentido.
E, considerando o perfume que estava no ar, não era
surpresa que os humanos não precisassem pagar nada
para estar ali ou para consumir qualquer coisa dos bares
ao redor dos salões. O pagamento era feito com as
reações deles. O perfume que estava no ar, no limite dos
sentidos de Melissa.
Yuri parou ao seu lado. Mel conseguia sentir o
desconforto dele enquanto olhava ao redor, mesmo que
estivesse tentando disfarçar. Aquilo não era uma
surpresa. Ele desprezava os vampiros. Era esperado que
desprezaria qualquer humano que pudesse ter qualquer
tipo de prazer em assistir os vampiros dançando.
— Que tipo de lugar é esse? — Yuri murmurou.
Não. Ele podia estar desconfortável o quanto
quisesse, mas não tinha o direito de falar com a voz
praticamente pingando desprezo, com aquilo se
espalhando ao seu redor como se os humanos não
estivessem ali porque queriam.
Mel segurou o braço de Yuri e o puxou para o lado,
até que o humano estava na sua frente. Ela o soltou e
passou um braço ao redor do seu ombro, o segurando no
lugar antes que Yuri pudesse reagir.
Ah. Ela deveria ter imaginado que havia um motivo
simples para tanto desprezo. Quando estavam tão perto
assim ela não tinha como não ouvir os batimentos do
coração dele. A forma como seu sangue estava correndo
mais rápido e como todo o seu corpo parecia quente.
Yuri estava falando com tanto desprezo porque ele
tinha gostado do que estava vendo e não queria aceitar
aquilo.
— Esse é um dos lugares onde os vampiros vêm para
se alimentar — ela falou.
Ele olhou ao redor de novo, sem tentar se soltar.
Bom. Pelo menos ele sabia que não adiantaria tentar.
— Não estou vendo ninguém se alimentando — Yuri
falou.
Não. Ele só veria os humanos nas mesas,
conversando entre si, bebendo e comendo como se
aquilo fosse algo casual. E, para aquele setor, era.
Mas havia um perfume no ar que apenas um
vampiro reconheceria. Excitação, prazer, satisfação – e
os vampiros dançando estavam se alimentando daquilo.
O Setor Cinco havia transformado a alimentação de
forma indireta em algo que era quase uma arte, porque
não era simples fazer o que faziam. Mel podia sentir o
potencial ali, mas não conseguia se alimentar daquela
forma.
— Está — ela contou. — Mas nem sempre
precisamos de sangue para nos alimentar.
Mel sentiu como ele ficou tenso antes de se forçar a
relaxar. Yuri não entendia exatamente o que estava
acontecendo, então não faria nada – não mostraria
reação nenhuma. Ele não fazia ideia do tanto que aquilo
dizia sobre ele.
— Eu não sabia que vocês podiam fazer isso — Yuri
comentou.
Ele provavelmente estava imaginando todas as
formas como vampiros poderiam estar se alimentando de
humanos sem uma mordida, sem nada que deixasse
nenhum sinal. Era o que normalmente acontecia. E ele
não conseguiria imaginar todas as formas como eles que
podiam se alimentar.
Mas Yuri era um humano imune, chefe da segurança
do Setor Dez. Mel não precisava dele vendo sombras e
possibilidades que eram quase impossíveis. Ela precisava
dele com informações reais, porque aquilo garantiria que
Mel teria o Setor Dez ao seu lado depois, se precisasse
deles.
Ela o puxou para perto, até que Yuri estava com o
corpo colado no seu: as costas dele contra ela. De salto,
Mel era praticamente da mesma altura que ele e aquilo
era conveniente. Mas ela havia imaginado que ele ficaria
tenso quando fosse puxado. No mínimo, tinha esperado
uma pontada de medo, depois do comentário sobre
estarem em um lugar onde os vampiros se alimentavam.
Não havia nada daquilo. Nenhuma tensão, nenhum
medo. Só uma expectativa gelada – como se ele
estivesse esperando o próximo movimento dela para
reagir.
— No passado, cada Corte tinha seu nome — Mel
contou, falando perto demais do ouvido dele. — Um
título, de certa forma. Isso foi antes da divisão em
setores se tornar o padrão.
Mel sentiu o tremor que atravessou o corpo de Yuri e
a forma como ele ficou tenso por um instante, com seu
coração disparando antes que ele se forçasse a relaxar.
Se aquela era a reação dele quando ela falava perto do
seu ouvido, então as coisas poderiam se tornar bem mais
interessantes...
— E que diferença isso faz agora? — Yuri perguntou.
Ela sorriu e inclinou a cabeça, está estar quase
deitada no ombro dele. O humano estava tentando se
controlar, mas nunca conseguiria controlar os batimentos
do seu coração. E Mel sabia reconhecer muito bem a
diferença entre medo e desejo.
Yuri queria mais. Se o mais era só o toque, ou o sexo,
ou o veneno, não importava. Ela sabia que ele ia negar,
se tentasse qualquer coisa. Mas Yuri queria algo dela,
além daquele trabalho.
— O Setor Cinco era conhecido como Corte do
Desejo — ela continuou. — Isso é a essência do que a
Corte é.
Desejo, sim. E aquilo estava mais que visível ali, na
forma como os humanos assistiam os vampiros dançando
devagar. Era a atração pelo perigoso, pelo proibido. Pela
promessa de um tipo de prazer que nunca teriam igual,
mas que poderia cobrar um preço alto demais.
Mas não era apenas aquilo. Nunca era. Os humanos
pensavam em desejo como algo simples, como se fosse
uma palavra que só tinha um significado. Mas desejo era
muito mais.
Entre os vampiros, o desejo que os humanos
imaginavam raramente era o que mais importava. Havia
o desejo por poder. O desejo por vingança. Aquilo era o
que os movia.
E aquela era a parte da Corte do Desejo que um
humano nunca veria. A parte que teria criado carniçais,
mesmo sabendo dos riscos e das proibições, e que
estaria planejando algo que mudaria toda a estrutura de
poder da região.
Mel deveria ter se lembrado daquilo, também. Ela
tinha ouvido histórias demais sobre eles, antes de ir para
a região. Sabia um pouco de como agiam. Mas nem
mesmo seu príncipe parecia se importar com o Setor
Cinco, então ela não havia tido motivos para pensar nas
histórias.
E Yuri continuava parado contra Mel, com aquela
tensão deliciosa no corpo.
Ela respirou fundo. A atração tinha um sabor próprio,
um perfume que não era possível de se confundir.
Mas Mel tinha um trabalho a fazer, em primeiro
lugar.
Ela se concentrou, relaxando o controle que
mantinha na sua habilidade. A sensação de mentes
demais era caótica, mas não era nada com que ela não
soubesse lidar. Mel tinha demorado anos para aprender a
silenciar as vozes e só ouvir o que queria, da mente de
quem queria. Por mais que fosse incômodo, ouvir tantas
mentes assim não tinha o mesmo impacto de quando ela
estava descobrindo sua habilidade. E, com o desejo se
espalhando pelo ar, até aquilo parecia mais simples.
Yuri deu um passo para a frente. Mel relaxou o braço
que estava ao redor dele, sem o soltar.
— Estamos aqui por você — Yuri resmungou. — E não
para se alimentar.
Não para ela o provocar – era o que ele não diria em
voz alta para não correr o risco de estragar o que os
vampiros pensavam sobre a presença deles ali.
Mel passou os lábios pelo pescoço de Yuri e ele ficou
ainda mais tenso, mas sem nenhum sinal de medo. Bom.
Ela sabia de alguns tantos vampiros que gostavam de ter
seus humanos com medo, mas aquilo nunca tinha tido
nenhum interesse para ela. Na verdade, o medo era a
linha que ela se recusava a atravessar, não importava o
que acontecesse.
— Me alimentar não atrapalharia em nada — ela
murmurou.
Um arrepio atravessou o corpo de Yuri e Mel sorriu
contra a pele dele antes de o soltar e se encostar na
parede atrás dela. Não atrapalharia, verdade. E, estando
ali, naquele salão, era possível até que ela conseguisse
fazer Yuri ceder. Mas seria apenas aquilo: ele cedendo,
apesar do que realmente queria. Porque Yuri ainda fazia
questão de manter sua distância. Ele tinha deixado
aquilo mais do que claro, desde o começo.
Não. Yuri era um desafio que ela queria vencer.
Qualquer coisa que acontecesse não seria apenas porque
ele havia cedido. Seria porque ele queria. E Mel faria ele
querer – depois que conseguisse o que precisava.
Yuri olhou ao redor e ela sorriu quando notou que ele
estava tentando não encarar os vampiros dançando. O
humano estava incomodado, mas não ia falar nada – e
Mel não ia perguntar se o incômodo era porque as
performances estavam sendo o suficiente para fazer ele
reagir, também.
E nenhum dos humanos ali tinha visto nada
interessante. Suas memórias eram cotidianas demais,
rotineiras, sem nada que tivesse chamado um mínimo de
atenção. A mesma coisa com os vampiros que estavam
dançando ou trabalhando no bar do outro lado do salão:
nada.
— Acho que vou querer ver os outros salões — Mel
murmurou. — Ver até onde as histórias sobre a Corte do
Desejo são verdade.
Não que ela fosse descobrir aquilo na parte humana
da cidade. Se quisesse saber o que havia de verdade nas
histórias, teria que estar na Corte e ainda precisavam de
um convite para poder fazerem aquilo. Mas ninguém
acharia estranho se eles passassem a noite andando por
aquele complexo de salões e bares.
Yuri se virou para Mel. A expressão do humano
estava gelada e distante de um jeito que deixava claro
demais que ver mais algum salão era a última coisa que
ele queria fazer.
Ela sustentou seu olhar e o humano levantou uma
sobrancelha de um jeito que era um desafio.
— É só mostrar o caminho — ele falou.
Mel sorriu antes de se virar para a saída.
Ah, ela quebraria Yuri da melhor forma possível. Ela
ia aceitar seus desafios. Mais cedo ou mais tarde, Yuri
Freitas estaria pedindo por ela.
Rafael encarou os planos espalhados pela sua mesa. Os novos
planos para as plantações do Setor Um, assim como
sugestões para otimizar o sistema de irrigação. E nem
ele nem seu pessoal nunca teriam pensado em nada
como o que estava ali.
Sua feiticeira era inteligente e esperta – duas coisas
que não chegavam a ser sinônimos, por mais que
algumas pessoas ainda tratassem assim. Aquela parte
não era inesperada. Rafael havia negociado com Alana.
Sabia o que esperar naquele sentido.
Mas ela também era honesta, bem mais honesta do
que ele havia esperado. Alana havia deixado claro desde
o começo que o que estava sugerindo eram experiências.
Coisas que ela pensava que funcionariam, pelo que
entendia, mas que não tinham nenhuma base técnica.
Havia repetido que ela não era uma especialista. Tinha
estudado o que podia e conseguia sobre o assunto, mas
a maior parte do que fazia era pura intuição.
Rafael não ignoraria os avisos dela. Seus
especialistas estudariam aqueles planos, antes de serem
implementados.
E ele garantiria que Alana teria como estudar mais
sobre o assunto enquanto estivesse no Setor Um, se
quisesse. Ele havia notado a satisfação dela em poder
analisar os planos e dar suas sugestões. Alana gostava
de trabalhar com plantas. Para ela, não era só um poder
conveniente. Então Rafael lhe daria aquilo. Seria mais um
fio a ligá-la ao Setor Um. Mais um de vários, na teia que
ele estava construindo.
Algo fez barulho no cômodo ao lado do seu escritório
pessoal. Não era muita coisa, mas era o bastante para
chamar atenção, porque não deveria haver nada vindo
de lá. Aquele cômodo era parte do conjunto de aposentos
de Alana – seu quarto, banheiro e sala de recepção. E ela
já deveria estar dormindo havia horas.
Rafael guardou os planos, saiu do seu escritório e
bateu de leve na porta ao lado.
Silêncio – mais silêncio do que antes.
— Entre — Alana falou.
Ele abriu a porta e a fechou atrás de si.
Alana estava parada na frente de uma das janelas
que iam do teto até o chão – o motivo para ele ter
separado aqueles aposentos para ela – ainda vestindo
uma das suas saias coloridas com uma camiseta lisa.
Aquilo era uma coisa que Rafael tinha certeza: se
precisasse, ela se vestiria como era o padrão dos
vampiros. Mas apenas se precisasse. Até lá, ela seria um
ponto de cor no seu castelo.
— Você deveria estar dormindo — ele comentou.
Alana deu de ombros, sem se virar.
— Estou esperando amanhecer.
Rafael parou ao seu lado, encarando o horizonte.
Aquela parte do castelo não estava exatamente virada
para o leste, mas a direção era o suficiente para ser
possível ver o céu começando a clarear.
O quarto de Alana não tinha janelas como aquelas,
mas tinha janelas grandes, também. E, depois de ficar
sabendo que ela passava a maior parte do tempo na
torre, Rafael tinha certeza de que as janelas do quarto de
Alana nunca eram fechadas enquanto houvesse sol.
— Você não precisa seguir o mesmo horário que nós
— Rafael insistiu.
Ela balançou a cabeça devagar, sem deixar de olhar
para o céu lá fora.
— Sei que não. Só prefiro dormir de manhã.
De manhã, quando o sol estaria batendo
diretamente no seu quarto.
Não era assim, antes. Rafael havia monitorado Alana
o suficiente, antes de fazerem o acordo e se casarem,
para saber que ela seguia os horários mais comuns do
Setor Dez. Ele diria até que ela dormia cedo, para os
padrões humanos, a menos que tivesse alguma
emergência.
Mas, ali, ela preferia dormir de manhã.
Porque o sol forte no seu quarto garantiria que a
maioria dos vampiros não poderia se aproximar.
Rafael sentiu uma tensão nova. Alana era sua
esposa, sim, mas a única coisa entre eles era um acordo
comercial. Aquilo ia mudar – Rafael precisava que
mudasse, para seus planos darem certo. Então era
apenas o acordo. Mais nada.
Mesmo assim, ela era sua. Sua feiticeira, sua esposa
– e sob sua proteção.
— Se alguém deu qualquer motivo, por menor que
seja, para você não se sentir segura... — ele começou.
Alana balançou a cabeça com força.
— Não fizeram nada além de tentar me fazer me
sentir em casa — ela falou. — Mas prefiro assim.
Ela não confiava que os vampiros não fariam nada.
Não confiava que estava segura dentro do castelo de
Rafael. Dentro do seu território.
Aquilo precisava mudar, mas não era algo que Rafael
conseguiria fazer em uma manhã.
Ele continuou parado ao lado de Alana, sem falar
mais nada enquanto o céu lá fora clareava aos poucos.
Alana também não quebrou o silêncio, não enquanto o
sol surgia e nem quando Rafael se afastou e saiu do
quarto já claro.
SEIS

Mel apoiou os braços no parapeito do segundo andar e encarou a


parede da casa. Ela sentia falta da sua casa, no Setor
Seis, com suas janelas altas, mesmo que não
conseguisse ver muita coisa. Parar na frente delas, ou
até se debruçar na varanda pequena do seu quarto, tinha
se tornado um hábito já fazia tempo demais.
Ela não tinha encontrado nada enquanto estavam no
centro da cidade. Nenhum sinal de alguma coisa fora do
normal ou de movimentações em lugares que não eram
comuns. Não que Mel esperasse descobrir algo no
primeiro dia ali. Na verdade, se encontrasse alguma
coisa, ela suspeitaria que era uma armadilha. Seria
conveniente demais. Não. Não seria tão simples assim,
mas ela precisava tentar, até mesmo para saber se
suspeitavam deles.
Mas agora, depois de horas passeando pelas
lembranças de mais humanos do que conseguia contar,
ela tinha duas teorias: ou os carniçais estavam sendo
criados e mantidos em algum lugar afastado da cidade e
de qualquer área que os humanos tivessem acesso –
porque teriam visto alguma coisa, por menor que fosse –
ou então era algo que já estava acontecendo havia
algumas gerações. Tempo o suficiente para qualquer
movimentação se tornar trivial e não chamar atenção.
Humanos se esqueciam das coisas com facilidade.
Com frequência, as histórias e avisos eram ignorados
como lendas. A Corte onde Mel havia sido transformada
tinha usado aquilo a seu favor mais vezes do que ela se
lembrava. Não era impossível que o Setor Cinco – a Corte
dos Desejos – fizesse a mesma coisa.
Algo caiu, dentro de um dos quartos.
Mel se endireitou. Yuri ainda estava acordado. Já
fazia mais de duas horas que eles tinham voltado para a
casa, depois de horas andando pelos salões e bares da
área central da cidade, e ele ainda estava acordado.
E não era difícil deduzir o motivo.
Ela parou ao lado da porta.
— Você não vai conseguir passar o tempo todo que
estivermos aqui sem dormir — Mel avisou. — E não vai
ser nem um pouco útil para mim se estiver caindo de
sono ou com efeito colateral do que quer que humanos
usem para continuar acordados.
Yuri xingou em voz baixa e ela ouviu seus passos
enquanto ele ia na direção da porta, antes de a abrir.
Mel encarou o humano. Seu cabelo estava solto,
caindo de qualquer jeito pelos lados do rosto, e ele tinha
tirado o colete reforçado que usava o tempo todo. E Mel
não ia desviar o olhar do rosto de Yuri, porque não queria
ver o que mais estava diferente. Ela tinha passado horas
cercada de humanos, sentindo o perfume da atração
deles no ar, sem poder se alimentar de verdade. Não ia
se torturar olhando para o que não teria.
Mas Yuri estava cansado e ela não precisava de
nenhuma habilidade vampírica para saber daquilo.
Estava fácil de ver na expressão dele.
Ele ia fazer o possível para não dormir, porque não
queria estar vulnerável com uma vampira por perto. Mel
deveria ter pensado naquilo antes – e Yuri era teimoso o
suficiente para tentar mesmo passar dias sem dormir.
— Minha utilidade para você era dar um motivo
plausível para estar aqui se ser questionada, não era? —
Ele perguntou. — Então estar com sono não vai fazer a
menor diferença.
Mel inclinou a cabeça. Aquilo ali era o motivo para
ela fazer tanta questão de fazer Yuri pedir por ela. Porque
ele tinha passado as horas na cidade tentando ignorar a
sua atração e ainda estava fazendo a mesma coisa – ao
mesmo tempo em que fazia questão de a desafiar.
— Você não quer dormir porque acha que vou fazer
alguma coisa enquanto está vulnerável — ela falou e o
humano se endireitou, tenso. — Mas você se esquece
que provavelmente acordaria assim que eu me
aproximasse. Você não estaria tão vulnerável quanto
pensa. E eu preciso de você em plena forma e alerta. Se
fosse para trazer alguém só para ter um nome, qualquer
um poderia ter vindo no seu lugar.
Yuri sustentou seu olhar. Ele estava irritado, mas ela
deveria ter esperado aquela reação.
Não importava, desde que ele não insistisse naquela
estupidez. E talvez Mel tivesse algo para ele pensar.
— E eu preciso de você alerta quando o sol estiver
alto no céu, porque quando eu dormir, se alguma coisa
acontecer não vou acordar até o sol começar a descer —
ela avisou.
Yuri estreitou os olhos.
— Vampiros não dormem — ele começou. — As
histórias de que o sol rouba a consciência de vocês...
— São verdade — ela interrompeu. — E quanto o sol
nos afeta está ligado ao poder.
Ele deu um passo para trás.
— Amon nunca dorme — Yuri falou.
Mel deu de ombros e se afastou da porta. Sabia o
que tinha feito. A informação que havia dado para Yuri
era valiosa e não demoraria para ele notar aquilo. Mas
não adiantava tentar esconder: ela estaria vulnerável
assim que o sol estivesse chegando no seu ponto mais
forte. Ela dependeria dele, caso alguma coisa
acontecesse. E estava apostando tudo na honra dos
humanos do Setor Dez.
— Amon já era forte demais antes da magia voltar
para o mundo — Mel falou. — Não existem muitos
vampiros vivos que cheguem perto do poder dele.
Se é que existia algum – porque Mel tinha suas
suspeitas sobre quanto do seu poder Amon realmente
havia deixado verem.
Yuri assentiu devagar e deu mais um passo para trás
antes de fechar a porta na sua cara.
Esperado. Incômodo, sim, mas esperado.
E Mel esperava que aquilo quisesse dizer que Yuri ia
dormir.
Ela se afastou da porta e desceu as escadas antes de
atravessar a sala e parar na entrada da cozinha.
Não. Aquela não era a sua casa. A sua cozinha, onde
ela podia relaxar e só pensar no que estava acontecendo.
E ela nem tinha motivos para pensar em cozinhar, ali. Em
casa, o que ela fazia era para o seu rebanho. Ali... Não,
ela não faria nada para Yuri.
Alguém bateu na porta.
Mel se virou e atravessou a sala depressa para
atender. Um mensageiro da Corte estava parado lá fora,
com a insígnia da Corte do Desejo presa de forma visível
perto do seu ombro. Ele inclinou a cabeça e estendeu um
envelope fechado na direção dela. Melissa aceitou a
carta e o mensageiro se afastou sem falar nada.
Ela entrou e fechou a porta atrás de si.
Quando estava negociando sua ida para o Setor
Cinco, Mel havia deixado claro que não estava esperando
ser recebida na Corte. Ela não era um deles, não tinha o
direito de tentar se intrometer no dia a dia deles. O que
queria era uma chance de observar o setor. Ela havia
deixado claro que não acreditava nos tais boatos de que
o Setor Cinco estava criando carniçais, não pensava que
algum vampiro faria algo daquele tipo, então não
tentaria exigir aquele tipo de acesso.
Tudo manipulação, claro. Se ela não queria acesso à
Corte, então não haveria motivo para negarem que ela e
Yuri passassem alguns dias no setor. Mel não precisava
ter pressa. Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, Dama
Cordelia ficaria curiosa sobre sua presença ali e lhe
convidaria para estar no castelo. Ela só não tinha
imaginado que seria tão depressa.
Mel abriu o envelope. Era um convite comum, quase
padrão para as Cortes, mas havia uma mensagem
menor, escrita à mão no pé da folha.

Será uma honra ter sua presença na minha Corte


depois de tantos anos, Serpente.

Mel fechou o convite. Ela sabia que aquilo era uma


possibilidade. Cem anos antes, quando Mel havia
chegado no Setor Seis depois de tentar negociar sua
liberdade e falhar, Dama Cordelia tinha se interessado
por ela. Ou, sendo mais específica, pelas habilidades de
Mel. A princesa dizia que alguém capaz de fazer o que
Mel fazia deveria ser parte do Setor Cinco, não da Corte
para onde estava indo.
Mesmo cem anos depois e com tudo o que ela havia
sido forçada a fazer, Mel ainda era grata ao seu príncipe
por não ter aceitado as propostas de Dama Cordelia.
Ela sabia que as chances daquilo acontecer eram
altas. Dama Cordelia havia insistido demais em ter
Melissa para se esquecer dela com tanta facilidade. E Mel
podia usar aquilo a seu favor, se fosse cuidadosa.

Yuri olhou para o segundo andar e para a porta fechada do único


quarto. Melissa tinha avisado que ia passar cerca de três
ou quatro horas inconsciente e que não acordaria não
importava o que acontecesse. De certa forma, fazia
sentido.
Yuri tinha crescido com as mesmas histórias que
todo mundo sobre os vampiros e como o sol os jogava na
morte de novo – como deveria ser. Tinha sido só depois
de começar a ser treinado por Ezequiel que ele havia
entendido que não era exatamente assim. E depois Dani
havia chegado, com as histórias sobre precisar estar na
luz do sol o tempo todo enquanto ela e Alana estavam
sendo caçadas.
As histórias comuns diziam que os vampiros não
existiam quando o sol estava no céu. As histórias de Dani
e do Setor Dez diziam que os vampiros não podiam estar
na luz do sol, mas que continuavam conscientes. E Yuri
não tinha nenhum motivo para duvidar daquilo. Ele tinha
visto Amon durante o dia vezes demais: dentro de casa,
sim, e evitando qualquer lugar onde houvesse luz direta.
E Dani também, depois de ser transformada. Ela não
perdia a consciência durante o dia e não fazia nem um
mês que tinha sido transformada.
Se não fosse por Dani, Yuri até acreditaria no que
Melissa tinha falado sobre aquilo estar ligado ao poder. O
que ela tinha explicado fazia sentido. Ou faria, se não
fosse por aquele detalhe.
O que queria dizer que era um teste ou uma
armadilha. Melissa tinha se fechado no quarto quando
Yuri ainda estava terminando de fazer sua comida e não
tinha saído de lá. Ele também não tinha ouvido nenhum
som, mas era possível que ela só estivesse em silêncio.
Ele não ia ficar se questionando.
Yuri subiu as escadas sem fazer barulho e parou na
frente da porta fechada. Nada.
Não era segredo que ele não confiava em Melissa. Se
aquilo era algum tipo de teste ou armadilha, tinha sido
burrice e perda de tempo, porque o resultado já era
óbvio.
Ele abriu a porta e parou.
Melissa estava deitada de costas na cama, com a
cabeça meio virada para a porta e olhos fechados. E ela
não estava respirando, mas aquilo não era estranho. Ela
era como Amon: só respirava quando precisava de ar
para falar. Mas a forma como ela estava parada, aquilo
era estranho.
Yuri entrou no quarto, andando devagar, e parou ao
lado da cama.
Ele não deveria estar ali. Para uma vampira, era fácil
demais fingir que não estava consciente. A qualquer
momento, ela podia só abrir os olhos. E, se Melissa
fizesse aquilo, Yuri provavelmente ia pegar sua pistola
por puro reflexo do susto, porque ele iria tomar um susto,
sim.
Mas ele não achava que ela estava fingindo. Ficar
parada daquele jeito e sem respirar eram coisas que
seriam fáceis para qualquer vampiro, fato. Mas não era
só aquilo.
Melissa tinha uma energia ao seu redor que Yuri não
sabia explicar. Era algo dela, mesmo quando a vampira
estava parada. E era justamente o que fazia ele não ter
conseguido tirar ela da cabeça por seis anos. Uma
presença ou o que quer que aquilo fosse. Até quando ela
estava tentando se misturar com os humanos, naquele
bar no Setor Seis, Melissa não conseguia disfarçar aquela
impressão.
Não havia nenhum sinal daquilo. Era realmente como
se Melissa não estivesse ali e era mais do que se
estivesse só dormindo.
Um arrepio atravessou Yuri e ele se afastou da cama.
Ela tinha falado a verdade. Melissa estava
completamente vulnerável ali, confiando que ele não
faria nada. Não, pior: confiando que, se alguma coisa
acontecesse, ele a defenderia.
Yuri saiu do quarto e fechou a porta atrás de si.
Vampiros dormiam durante o dia.
Não, dormir não era a palavra certa. Eles perdiam a
consciência. Era como se realmente estivessem mortos.
As histórias mais comuns tinham um fundo de verdade.
E era melhor que as pessoas do Setor Dez
continuassem pensando que nenhum vampiro dormia,
porque aquilo queria dizer que não seriam pegas de
surpresa caso se encontrassem com algum vampiro que
não se importava com o sol – como Amon. Mas não todos
do setor.
Yuri pegou seu celular e digitou uma mensagem
rápida para Dani: que ela deveria perguntar para Amon
sobre vampiros dormindo. Ele não ia falar nada além
daquilo, porque não sabia o quão segura alguma
comunicação seria. Dani entenderia e Yuri não tinha a
menor dúvida de que Amon lhe contaria tudo. O vampiro
evitava dar informações, sim, mas nunca negava quando
era uma pergunta direta. E, depois, Dani repassaria a
informação para Raquel, Ezequiel e quem mais achassem
que precisava saber daquilo.
Ele desceu de volta para a sala e parou, encarando a
porta. Aquilo não chegava a ser exatamente uma
vulnerabilidade dos vampiros – não quando quase todo
mundo acreditava que todos os vampiros perdiam a
consciência assim que o sol nascia. Mas eram
informações exatas demais sobre os vampiros em geral,
sem pedir nada em troca.
Era uma armadilha. Melissa manipulava pessoas. Ela
sabia muito bem o que estava fazendo e provavelmente
tinha calculado cada palavra. E, em algum momento no
futuro, ela diria que o Setor Dez lhe devia por causa
daquilo. Aquelas informações teriam um preço.
E não havia nada que Yuri pudesse fazer sobre
aquilo. Ele aceitaria as informações, porque não tinha
outra opção. Quando Melissa cobrasse aquilo, o Setor
Dez colocaria limites, sim, mas Yuri conhecia Raquel bem
o suficiente para ter certeza de que ela não ignoraria a
"dívida".
Às vezes ele quase queria que seu pessoal tivesse
um pouco menos de escrúpulos e consciência. Mas, se
fosse assim, ele nunca teria sido aceito no Setor Dez.
Yuri se sentou no sofá e ligou a TV num dos volumes
mais baixos. O que estava passando não importava, ele
só queria um ruído de fundo enquanto esperava. Porque
ele ia esperar. Yuri não sairia da casa enquanto Melissa
estivesse daquele jeito.

Dani não tinha a menor ilusão de que Amon tinha lhe contado tudo
sobre os vampiros, ou até sobre o que esperar depois de
ser transformada. E ela não estava reclamando. Já tinha
coisas demais na cabeça, mais problemas para resolver,
toda a situação do Setor Dez, e isso tudo enquanto tinha
que lidar com não ser mais humana. Ela não se
arrependia de ter sido transformada, mas às vezes era
demais. E ela confiava em Amon. Se ele não tinha
contado alguma coisa, era porque ela não precisava
saber.
Mas, depois daquela mensagem de Yuri, ela estava
curiosa o suficiente para perguntar.
Dani guardou o celular e saiu do quarto. Amon
estava sentado na sala, com um tablet na mão. Por mais
que ele negasse, Amon estava se envolvendo tanto na
segurança do setor quanto Dani. E ela definitivamente
não ia reclamar, também. Se não fosse por Amon
ajudando, Dani tinha certeza de que as coisas não teriam
sido tão tranquilas naquelas semanas. O Setor Oito
estava tentando encontrar alguma brecha para se vingar
e a única coisa que o Dez podia fazer, agora, era tentar
bloqueá-los sem piorar a situação.
— Tem alguma coisa que eu preciso saber sobre
vampiros dormirem? — Dani perguntou.
Amon se virou para ela.
— Isso foi Yuri entrando em contato — ele falou.
Nenhum sinal de surpresa. Definitivamente tinha
alguma coisa que ela precisava saber, então.
— Você já estava esperando isso — ela comentou.
Amon assentiu e esticou uma mão. Dani foi na sua
direção e ele a puxou para perto, até que estava sentada
no sofá ao lado dele. Quase em cima dele, na verdade.
— Estava, porque ele e Mel estão sozinhos em
território hostil. Ela vai depender dele para estar segura
quando o sol estiver alto.
Ela deveria estar irritada. Era mais uma coisa que ele
poderia ter contado bem antes, sem esperar ela
perguntar. Mas... Amon era um vampiro desde antes da
magia voltar para o mundo. Ele sabia mais sobre como o
mundo era e como havia sido do que Dani conseguia
imaginar – e sabia mais ainda sobre os vampiros. Dani
nunca saberia de tudo que ele sabia e já tinha aceitado
isso depois da primeira discussão, pouco depois do
casamento de Alana.
Alana, que não estava respondendo suas mensagens
fazia dias. Pelo menos Raquel tinha confirmado que
estava em contato com ela e que estava tudo bem. E
Dani tinha prometido para si mesma que não ia ficar
pensando naquilo o tempo todo.
Mas Dani e Amon já haviam tido aquela conversa
antes. Não era só que ele não contava o que ela não
precisava saber: era que às vezes ele realmente não
lembrava das informações até alguém perguntar, ou não
conseguia perceber que eram tão importantes assim. E,
considerando que nem mesmo Amon sabia exatamente
quanto tempo fazia que estava vivo, aquilo era fácil de
entender.
Mas não era o caso sobre aquela questão – o que
quer que ela fosse.
Porque não fazia sentido Yuri querer que ela
perguntasse sobre vampiros dormirem, e menos ainda
Amon dizer que Melissa estaria vulnerável por causa do
sol.
— Vampiros não dormem com o sol — Dani falou.
Amon sorriu e um arrepio a atravessou.
— Os vampiros mais fortes não dormem — ele
corrigiu.
Dani balançou a cabeça tentou se levantar, mas ele
a segurou no lugar, a puxando mais para perto, até que
estava com as pernas jogadas por cima das dele.
— Não faz sentido — ela começou. — Nenhum
sentido. O sol nunca me afetou assim e não tenho nem
um mês de transformada, não...
— Não tem nem um mês de transformada, mas tem
o meu sangue.
Dani encarou Amon.
Aquilo fazia sentido. Ela sabia que não era como os
outros vampiros recém-transformados. Dani já tinha
ouvido histórias demais sobre o que eles faziam, e ela
nunca tinha chegado nem perto de perder o controle. E
tinha visto a surpresa de Melissa, quando se encontraram
com a outra vampira na fronteira. Dani só não tinha
parado para juntar as peças antes.
Era óbvio que nem tudo seria o esperado depois de
ter sido transformada por Amon. Ele já era poderoso
demais antes da magia voltar para o mundo. Tão
poderoso que tinha enlouquecido por causa do excesso
de magia. Dani nunca tinha parado para pensar naquilo,
mas... Aquele era o sangue que tinha feito sua
transformação.
Mas então...
— Quando Alana e eu estávamos fugindo — Dani
começou. — Os vampiros que mandaram atrás de nós,
que nos perseguiam mesmo durante o dia...
Amon assentiu.
— Não eram os mais fracos da Corte.
Dani engoliu em seco. Aqueles anos todos fugindo e
ela nunca tinha tido ideia do perigo. A situação delas
tinha sido muito pior do que ela havia imaginado.
Amon segurou o queixo de Dani e virou seu rosto
para ele de novo.
— Não falei nada sobre isso porque era mais seguro
você continuar pensando que nenhum vampiro dormia —
Amon contou. — E é melhor para as pessoas do seu setor
que não comecem a pensar que estão seguras apenas
porque o sol está alto no céu.
Ele estava certo – e a conhecia bem demais.
Se Amon tivesse contado aquilo antes de Dani ser
transformada, ela provavelmente teria tentado organizar
algum ataque direto ao Setor Oito enquanto o sol ainda
estava alto. Qualquer aviso de que não era tão simples
não teria adiantado. Era impossível que todos os
vampiros de um setor fossem fortes o bastante para não
serem afetados pelo sol, então valeria a pena. Mas
agora, sabendo que ela não era afetada pelo sol, mesmo
com menos de um mês de transformada...
Algo daquele tipo não teria dado certo, então não
fazia diferença ela não saber antes.
— Preciso falar com Raquel e Ezequiel sobre isso,
pelo menos — Dani avisou.
Amon soltou seu queixo e assentiu.
— Fale com eles.
E, com Yuri fora do setor, eles provavelmente
também contariam aquilo para Dante, Adriana e
Eduardo.
Dani suspirou.
— Tem mais alguma coisa que eu precise saber? —
Ela perguntou. — Principalmente sobre minha
transformação não ser exatamente normal?
Amon sorriu e colocou uma mão no rosto dela.
Tinha. Era o único motivo para ele ter reagido assim.
— Você confia em mim?
Se não confiasse, não estariam ali. Ela não teria nem
aceitado ser transformada por ele.
— Confio — Dani falou.
Ele assentiu devagar.
— Tem mais, sim — ele contou. — Mas você não
precisa saber agora, com o setor ainda em risco e tanta
coisa acontecendo.
Dani fechou os olhos e respirou fundo. Ela era
curiosa. Se perguntasse, sabia que Amon ia responder.
Mas ela realmente não tinha condições de ter mais
alguma coisa para se preocupar.
Ela abriu os olhos e encarou Amon.
— Se qualquer uma dessas coisas for importante ou
ficar relevante para o que está acontecendo... — ela
começou.
Amon assentiu de novo, sem desviar o olhar.
— Eu vou contar.
Era o suficiente.
SETE

Yuri escutou a porta do quarto se fechando e desligou a TV. Era


pouco mais que duas horas da tarde, então Melissa tinha
falado a verdade sobre quanto tempo ficaria
inconsciente, também. Aquilo era preocupante. Ela
estava dando informações demais e ele ainda não fazia
ideia do que ela realmente queria ali – e de por que havia
feito tanta questão de ter alguém do Setor Dez com ela.
— Matou sua curiosidade? — A vampira perguntou.
Yuri se virou. Ela estava debruçada no parapeito do
segundo andar e era Melissa de novo. Aquela presença
que fazia ela ser tão memorável estava de volta – e ele
nunca teria imaginado que sentiria falta daquilo.
E ela estava irritada.
— Tirou a prova de que eu não estava mentindo? —
Melissa insistiu.
Ela sabia que ele tinha entrado no quarto. Claro que
sabia – Yuri conhecia o suficiente sobre vampiros notando
coisas que deveriam ser impossíveis, por causa de como
seus sentidos funcionavam.
O que queria dizer que ele também não ia se sentir
culpado por não ter confiado. Ele nunca confiaria em um
deles, justamente por causa do que sabia.
Yuri deu de ombros.
— Eu precisava ter certeza.
Melissa estreitou os olhos.
— Não. Não precisava.
Ela não era estúpida.
— E você imaginava que eu fosse confiar na sua
palavra? — Ele perguntou.
Ela continuou olhando para ele, sem falar nada.
Yuri não tinha a menor ilusão de que Melissa tivesse
esperado que ele fizesse outra coisa. Ela sabia que ele ia
entrar no quarto para ter certeza do que ela tinha falado.
Então a raiva, agora, também era manipulação. Ele só
não conseguia entender o motivo.
A vampira soltou o parapeito e desceu a escada
devagar.
— Temos um convite para o castelo essa noite — ela
avisou.
Ótimo. Era melhor mudar de assunto e aquele
convite queria dizer que pelo menos iam ter mais
chances de conseguir alguma informação. Ou melhor,
que ela ia ter alguma chance de conseguir informações.
— E isso quer dizer que é um convite formal —
Melissa continuou. — Trouxe roupas apropriadas para
você, também. É só olhar o que está no guarda-roupas
do quarto.
Não. Ele não ia se vestir com as roupas que uma
vampira tinha escolhido. Suas roupas de trabalho eram
boas o suficiente. E, se não fossem, não era problema
dele. Yuri não tinha a menor intenção de entrar em um
castelo dos vampiros vestindo alguma coisa que com
certeza não tinha as proteções reforçadas que suas
roupas de trabalho tinham. E muito menos se vestiria
como um deles.
Ele se levantou, mas continuou ao lado do sofá.
— Tenho minhas roupas — Yuri falou.
Melissa parou no pé da escada e ele se concentrou e
não desviar o olhar do rosto dela. A vampira tinha
trocado as roupas de antes por outro corset e uma saia
comprida com fendas laterais que deixavam ver até o
alto das suas coxas.
Era de propósito. Não tinha outra explicação. Melissa
sabia exatamente o efeito que tinha nas pessoas – nele.
Era óbvio que a forma como ela se vestia era uma arma,
também. Mais uma manipulação. E ele não ia reagir
àquilo, não importava o que acontecesse.
— Enquanto estivermos no castelo, você não precisa
dizer uma palavra. Pode ignorar completamente qualquer
um que falar com você e deixar tirarem as conclusões
que quiserem — ela avisou, soando gelada. — Mas você
vai estar vestido de acordo. E não vai estar coberto de
armas, a menos que queira destruir o que sua amiga e
Amon fizeram quando estiveram na minha corte.
Yuri respirou fundo e soltou o ar devagar.
A pior parte era que ele sabia que discutir com
Melissa sobre qualquer coisa envolvendo as Cortes era
burrice. Ele não sabia o suficiente sobre a política dos
vampiros para se virar naquela situação. Ela era a
garantia de que aquilo podia dar certo, porque ela
entendia com o que estava lidando. Mas Yuri não
conseguia evitar.
— Você tem tempo para se acostumar com a ideia —
Melissa continuou. — Tem algumas horas até o anoitecer.
E também pode aproveitar o tempo para tirar esse
começo de barba. Vai ficar mais apresentável.
Ele resistiu à vontade de passar a mão no queixo.
Não tinha nem um dia de barba no rosto e ele não
costumava deixar sua barba crescer. Aquilo tinha sido só
para provocar.
Yuri levantou uma sobrancelha.
— E que diferença vai fazer? Já vão me ver como
menos que nada, só por ser humano. Estar sem barba
não vai mudar isso.
Melissa desceu o olhar pelo corpo dele, devagar. Yuri
se forçou a continuar parado, sem mostrar nenhuma
reação. Não ia fechar os punhos. E se ela notasse o
volume na sua calça, era melhor notar só aquilo do que
notar como ele estava tentando controlar seu corpo.
Ela subiu o olhar de novo e encarou Yuri.
— Existe uma diferença entre ser tratado como um
enfeite ou ser tratado como prato principal. A escolha é
sua.
A escolha dele seria não precisar lidar com aquilo. Se
não tinha aquela opção, então qualquer coisa que fizesse
ia ser nos seus termos.
Yuri continuou encarando Melissa até que ela
balançou a cabeça devagar e desviou os olhos, sem falar
mais nada.
E, por mais que ele odiasse aquilo, sabia que havia
um limite de até onde podia forçar. Se ele chegasse no
castelo vestido como estava, sempre tinha a chance de
algum vampiro considerar um insulto.
Ele estava ali para fazer um trabalho. Para vingar
Dani e todos os mercenários que haviam morrido no
ataque dos carniçais. Para vingar os que ainda estavam
sob cuidados médicos também – porque pelo menos dois
deles nunca voltariam à ativa. Estava ali para garantir
que o Setor Cinco não conseguisse seguir em frente com
o que quer que estivessem planejando.
O que queria dizer que Yuri ia fazer o que precisava,
não o que queria.
Yuri passou por Melissa e subiu as escadas sem falar
nada, também.

Mel não sabia por que estava tão irritada com Yuri. Era óbvio que
ele não acreditaria nela. Ele precisaria tirar a prova. Mas
acordar e sentir os restos do cheiro dele dentro do
quarto, saber que ele tinha entrado lá enquanto ela não
tinha a menor chance de reagir, era mais incômodo do
que ela havia imaginado que seria.
Incômodo o suficiente para fazer com que ela agisse
sem medir o que estava fazendo. Ela não deveria ter
provocado Yuri daquele jeito. Mesmo que ele fosse
profissional e entendesse bem o que estava em jogo, era
orgulhoso demais para aceitar o que ela tinha falado sem
desafiá-la de alguma forma. A questão agora era apenas
qual seria o desafio.
Não importava. O que quer que ele fizesse, ela
lidaria. E, com sorte, serviria para desestabilizar os
vampiros da Corte o suficiente para facilitar quando ela
estivesse vendo as memórias deles. Pelo menos Mel
tinha certeza de que ele não faria nada que destruiria a
reputação que Amon e Daniele tinham começado a criar
para o Setor Dez quando estiveram naquele baile e que
havia sido confirmada quando o Dez sobreviveu aos
ataques.
Ela olhou para o alto. Yuri estava no quarto e tinha
fechado a porta, mas aquilo não seria um problema se
ela quisesse ouvir o que ele estava fazendo. Mel só não
ia se dar ao trabalho. Não. Eles tinham um trabalho a
fazer e aquilo precisava estar acima de qualquer outra
coisa.
Ela pegou seu leitor de ebooks e se sentou no sofá,
que ainda tinha restos do calor do corpo de Yuri. Não
fazia muito tempo que as Cortes tinham recebido acesso
aos livros digitais – menos de uma década – mesmo que
Mel já tivesse ouvido alguns dos vampiros mais antigos
dizerem que aquilo era comum antes da chegada da
magia. Ela não fazia ideia de se era alguma das
tecnologias do passado que tinham mantido escondida,
mesmo que não fizesse sentido esconder aquilo, ou se só
não havia sido uma prioridade. Mas a questão era que
ela pelo menos tinha o que fazer enquanto esperava
anoitecer, já que a TV nunca havia sido o suficiente para
prender sua atenção.
Quando a porta do quarto se abriu, Mel não fazia
ideia de quanto tempo tinha se passado. Ela nunca sabia
se estava lendo em uma velocidade perto da humana ou
se estava em velocidade vampírica sem notar – e aquilo
era motivo para brincadeiras entre ela e o seu rebanho já
fazia anos.
Seu rebanho. Ela não podia se preocupar com eles.
Não havia nada que Mel pudesse fazer enquanto
estivesse ali e não tinha motivos para se preocupar.
Todos no Seis sabiam as consequências de tocar no que
era dela – e nenhum dos humanos que a alimentavam
via problema em ser considerado assim em troca da sua
proteção. Mas Mel não conseguia não se preocupar.
Qualquer tempo longe do setor era tempo em que
alguém podia ser arrogante o suficiente para tentar
alguma coisa.
Mel colocou o leitor de ebooks no sofá e se forçou a
se concentrar. Horas. Ela havia passado horas lendo e
agora já estava perto do anoitecer. Provavelmente eram
quase seis horas, pelo que ela conseguia sentir da
influência do sol, o que queria dizer que era hora de se
preparar, também.
Mel se levantou e parou, encarando Yuri no pé da
escada.
Humanos sentiam calor – e frio mas, naquela região,
o frio era raro. Aquilo queria dizer que humanos não se
vestiam como vampiros. Mesmo os mais próximos da
Corte, quando tentavam fazer algo do tipo, eram
adaptações levando em conta o clima e o que era
confortável para eles.
Mel havia se lembrado daquilo tudo quando havia
separado roupas para Yuri. E se aquilo queria dizer que
ele estava usando um sobretudo sem mangas que
deixava ela ver os músculos dos seus braços, não era
porque ela queria ver aquilo. Era porque fazia sentido
para um humano usando algo parecido com a moda das
Cortes.
A calça que Yuri estava usando era uma das dele,
assim como as botas. Nenhuma surpresa. Mas a blusa
cinza escura com detalhes de prata descendo pelo meio
e o sobretudo eram das roupas que Mel havia levado,
sim.
E ele não tinha tirado a barba.
Era aquilo. Pronto. O começo de barba era o motivo
para Mel não conseguir tirar os olhos dele. Ela estava
certa quando havia imaginado que aquilo faria diferença,
mas estava errada sobre como faria diferença. O começo
de barba, junto com o cabelo raspado dos lados e preso
para trás, era mais que o suficiente para fazer Yuri
parecer algo selvagem. Mel não tinha outra palavra para
usar para a impressão que ele passava, vestido daquele
jeito.
Dela. Ele era dela, só não sabia ainda. Mel teria Yuri
pedindo por ela, sim.
— Você não me deixou muitas opções pra colocar
minhas armas — ele falou.
Mel o encarou dos pés à cabeça de novo, sem
responder.
Yuri não seria ignorado. Ninguém na Corte dos
Desejos conseguiria ignorá-lo, não quando ele estava
passando uma impressão tão forte. E era pior ainda
porque ele não estava com nenhuma arma visível. Mel
sabia que Yuri teria armas escondidas na roupa, de
alguma forma, mas não ter nada visível passava uma
mensagem clara: ele não estava preocupado com o que
os vampiros podiam fazer.
Ele tinha sorte por ser imune. Se não fosse, era bem
possível que nem mesmo a presença de Mel fosse o
suficiente para garantir que nenhum dos vampiros
tentasse alguma coisa, principalmente considerando em
qual Corte estariam. A Corte dos Desejos não tinha
recebido aquele nome à toa.
Yuri era imune.
Mel deu dois passos na direção dele e parou.
— Ninguém pode saber que você é imune — ela
avisou.
E ela deveria ter se planejado para aquilo antes, mas
ele ser imune havia sido algo tão inesperado e
improvável que Mel não tinha pensado mais naquilo.
Yuri cruzou os braços.
— Não estava planejando anunciar isso.
Ela balançou a cabeça com força. Não era hora para
uma disputa de egos ou para ele desafiá-la. Em qualquer
outra coisa, sim. Mas não naquilo.
— E o que vai acontecer quando alguém usar algum
tipo de influência e não acontecer nada com você? — Mel
perguntou. — Porque isso vai acontecer.
Ele sustentou seu olhar.
— Então vão deduzir algum motivo para eu não ter
sido afetado. O que vão pensar não faz a menor
diferença para mim.
Humano estúpido. Ele ia destruir a única chance que
Mel tinha de conseguir se libertar por causa do seu
orgulho.
Não, ele não ia.
Mel avançou na direção de Yuri e o segurou pelo
pescoço antes de o empurrar para trás. As costas dele
bateram na parede com força e ela viu a surpresa nos
olhos do humano, junto com um fio de medo que
desapareceu em um segundo.
Ótimo. O medo era melhor que o orgulho.
— A princesa do Setor mandou um convite pessoal —
Mel falou. — Isso quer dizer que ela está curiosa e que
não vai te ignorar. Você vai ser testado, de uma forma ou
de outra, e não vai ser pelos vampiros de posições baixas
com os quais você talvez já tenha precisado lidar.
Yuri se moveu, mas não tentou se soltar.
Provavelmente tinha pegado alguma das suas armas
escondidas, mas Mel não se importava.
— A política de vocês não me interessa — ele falou.
Mel precisava dele vivo. Instantes atrás, ela estava
pensando em como fazer Yuri pedir por ela. Ela precisava
dele para ter um motivo para estar no Setor Cinco, tanto
para sua presença ali ser aceita quanto para seu príncipe
não questioná-la. Então ela não podia matá-lo, mesmo
que fosse simplificar as coisas. Mesmo que fosse tornar
tudo mais fácil quando precisasse lidar com Dama
Cordelia.
— Deveria, porque se você não controlar o efeito da
sua imunidade, eles vão deduzir exatamente o que você
é — Mel avisou. — E você não vai sair do castelo vivo.
E ela perderia aquela oportunidade, também.
Não. Ela não aceitaria aquilo.
Mel sentiu a lâmina de uma faca encostada no seu
braço.
— Eles não vão matar um observador do Setor Dez.
Não foi isso que você disse? — Yuri perguntou. — Ou
estava mentindo desde o começo?
Ela apertou o pescoço dele.
— Eles não vão matar um observador do Setor Dez.
E se você pensa que o pior que podem fazer é matá-lo,
então é mais ingênuo do que imaginei — ela falou. —
Eles não vão te matar. Mas, se descobrirem que é imune,
não tem nada que eu possa fazer para te salvar.
Mentira. Havia uma forma de garantir que não fariam
nada com Yuri se suspeitassem que ele era imune: ela
podia assumir o controle e fazer ele agir como
esperavam. E, por mais que Mel não gostasse de usar
sua habilidade daquela forma, ela não pensaria duas
vezes antes de fazer aquilo.
O cheiro do sangue se espalhou pela sala. O sangue
de Melissa. Yuri tinha cortado seu braço – e ela não se
importava. A dor não era nada e ela se curaria em
questão de minutos.
— Você não vai deixar descobrirem o que você é —
ela repetiu.
Yuri enfiou a faca mais fundo e se moveu devagar.
Não.
Mel segurou a outra mão de Yuri, sem soltar seu
pescoço. A faca não era um problema, mas se ele
pegasse uma arma de laser poderia se tornar um
problema, sim.
— Que diferença isso faz, vampira? — Ele perguntou.
Ela mostrou as presas. Vampira, sim. E uma vampira
que estava sendo bem mais cortês com ele do que
deveria.
Mel não deveria ter deixado Yuri pensar que estava
no controle. Ela deveria ter quebrado o humano na
primeira chance que teve. Não deveria ter respeitado a
mente dele, não quando tinha tanto em jogo.
— Por que você acha que é tão raro encontrar
pessoas imunes às habilidades dos vampiros? — Ela
perguntou.
Yuri não respondeu, mas ela notou quando a
pulsação dele acelerou de novo – porque ele tinha
relaxado depois de perceber que ela só o estava
segurando contra a parede.
A pressão da faca no seu braço desapareceu e Mel
travou os dentes com a pontada de dor um instante
antes do seu corpo começar a se curar.
— Vocês caçaram todos que era imunes — Yuri falou.
Ele era esperto, pelo menos.
Mel o soltou e se afastou.
— Ainda caçamos — ela contou. — É um dos poderes
humanos que as Cortes concordam que não pode existir.
Yuri abriu a boca e a fechou de novo.
E o cheiro de sangue ainda estava forte demais. Mel
estava começando a sentir a pressão nas suas presas, o
primeiro aviso de que precisava se alimentar.
Era cedo demais. Mal fazia um dia desde que havia
se alimentado de Priscilla. Mas ela estava tensa e tinha
passado a noite anterior num lugar que só servira para
despertar sua fome. Era óbvio que sentiria a necessidade
de sangue bem antes do esperado.
Ela se virou e foi para a cozinha, sem falar nada.
Lavar o sangue já ajudaria bastante e com sorte nada
teria pingado na sua saia, porque Mel tinha intenção de
usar aquelas roupas para ir para o castelo.
Quando ela se virou de novo, secando o braço com
as toalhas de papel que estavam perto da pia, Yuri
estava parado na entrada da cozinha.
— E por que eu ainda estou vivo? — Ele perguntou.
Mel embolou as toalhas de papel e as jogou na
lixeira.
— Porque nem sempre eu sigo as regras das Cortes.
E se eu pensar que vão descobrir o que você é, também
não vou seguir as regras da cortesia.
Yuri ficou tenso. Bom. Ele estava começando a
entender.
— Eu sou imune e mais nada. Não é como se fosse
algo que consigo ligar ou desligar quando for
conveniente para você — ele falou. — E não tem nada
que você possa fazer sobre isso.
Esperto, sim. Pena que ele não tinha todas as
informações sobre o que ele era – ou sobre o que ela
podia fazer.
Mel deu um sorriso lento e apoiou o quadril na
bancada da cozinha.
— Mas você pode "ligar ou desligar" a imunidade, ou
pelo menos a intensidade dela — Mel comentou. — É
sempre assim, com vocês. A questão é que raramente se
dão ao trabalho de aprender a controlar o poder que têm,
ao contrário dos outros bruxos.
Era assim que eles eram encontrados, mais cedo ou
mais tarde: porque não sabiam o suficiente para se
esconder. E se a falta de conhecimento tinha sido algo
causado por causa dos vampiros... Aquilo não mudava os
fatos.
— Mas existe algo que eu posso fazer sobre isso, sim
— Mel continuou. — Você é imune até certo ponto, mas a
imunidade completa não existe. Isso quer dizer que, se
eu quiser te controlar, vou precisar me concentrar e
forçar caminho pelo seu poder. Mas não é algo
impossível.
E ela faria exatamente aquilo se ele não lhe desse
outra opção.
Yuri empalideceu.
Mel não ia se arrepender do que tinha falado. Ela
sabia exatamente o que estava fazendo: destruindo a
rede de segurança de Yuri. Ele pensava que sua
imunidade garantia que estaria a salvo. Ele era arrogante
por causa daquilo. E talvez aquela visão até fosse
verdade quando Yuri estava lidando com ataques ao
Setor Dez. Mas não ali. Na Corte dos Desejos, a
imunidade seria um risco. Quanto antes ele entendesse
aquilo, melhor.
E ela precisava terminar de se arrumar.
Mel foi na direção de Yuri. Ele recuou tão depressa
que ela tinha certeza de que havia sido só reflexo.
— Garanta que não vão descobrir o que você é — ela
repetiu.
Yuri não falou nada enquanto ela passava por ele e
subia a escada.
OITO

Yuri se encostou na parede e olhou ao redor de novo. Não eram


só vampiros no salão do castelo – tinha humanos ali
também. Quase mais humanos que vampiros. E Yuri
deveria ter esperado algo assim da Corte dos Desejos,
ainda mais depois do que tinham visto na cidade. Ele
tinha feito o possível para não ficar pensando nos lugares
por onde haviam passado na noite anterior, mas não
conseguia evitar. Não era como se houvesse alguma
coisa errada acontecendo naqueles salões, mas mesmo
assim aquilo o incomodava.
Os humanos ali, no castelo, pareciam estar agindo
exatamente como os que estavam na cidade. Eles
sabiam que só estavam ali, sendo bem tratados daquele
jeito, era porque eram o lanche dos vampiros e mais
nada. E não pareciam ter nenhum problema com aquilo,
se Yuri fosse levar em conta a forma como estavam se
oferecendo para os vampiros.
Era estupidez. O que ele tinha visto na cidade já era
burrice, mas aquilo ali... Os humanos no salão não
estavam só oferecendo seu sangue. Se Yuri prestasse um
mínimo de atenção, ia notar as mãos por baixo das
roupas e as pessoas encostadas nos cantos e
reentrâncias do salão, em grupos de duas ou três
pessoas. Então ele não ia prestar atenção.
Ele nunca tinha se considerado um puritano. Nem
podia, na verdade. E o que o incomodava não era o sexo.
Se as pessoas ali queriam dar um show e transar
encostadas em qualquer canto da sala que estivesse
minimamente escondido, bom para elas. Yuri não teria o
menor problema com aquilo se todos os envolvidos
fossem humanos. Mas não eram. Eram humanos se
oferecendo para os vampiros e os levando para os
cantos.
Yuri se forçou a relaxar as mãos e olhar ao redor de
novo. O salão onde estavam não era muito diferente do
que ele esperava: paredes de pedra cinzenta decorada
com panos pretos e vermelhos, alguns quadros que
pareciam ser antigos e muito metal. Era o padrão dos
vampiros. O que ele não tinha imaginado era a mistura
de luz elétrica forte com candelabros de velas. Mas não
ia reclamar. Era melhor a mistura de iluminação do que
chegar ali e descobrir que os vampiros não tinham se
dado ao trabalho de ter luzes, porque eles podiam ver
muito bem mesmo que estivesse escuro.
E os vampiros. Yuri tinha ouvido histórias demais
sobre as Cortes, tanto quando estava treinando como um
mercenário quanto depois de chegar no Setor Dez.
Raquel tinha negociado com eles. Dani e Alana haviam
crescido sendo praticamente parte de uma Corte. Mesmo
assim, ele tinha pensado que elas estavam exagerando.
Não fazia sentido imaginar os vampiros vestidos como se
ainda estivessem no passado – bem no passado, bem
antes da volta da magia.
Não era exagero. Eles ainda estavam vestidos de
preto e tons escuros de cinza, como sempre, com um ou
outro detalhe em vermelho na roupa de alguns vampiros.
Provavelmente a cor significava alguma coisa que ele
não sabia. As correntes estavam por toda parte também:
atravessadas em corsets, presas em calças, sendo
usadas como braceletes e gargantilhas. Elas tinham
algum significado, com certeza. Mas a parte
interessante, para não falar outra coisa, era como as
roupas de todos os vampiros ali pareciam antigas.
Na época que ele tinha ido para o Setor Dez e
começado a ser treinado por Ezequiel, uma das mulheres
treinando com ele era amiga de alguém que organizava
noites de cinema na cidade. Pelo menos, era assim que
chamavam. O amigo dela era viciado em filmes antigos,
e não dos que pareciam ser antigos ou tentavam imitar
algo de antes da magia. Ele era um colecionador e
restaurador. Por causa disso, Yuri tinha acabado
assistindo uns tantos filmes que já eram velhos quando a
magia havia voltado para o mundo.
Se não fosse por estarem só de preto e pela coleção
de correntes, qualquer vampiro ali poderia ter saído de
um daqueles filmes. Eram saias largas, corsets,
sobretudos, calças e camisas de estilos que Yuri nunca
tinha visto nem nada parecido antes.
Agora as roupas que Melissa tinha levado para ele
faziam sentido – por mais que ele odiasse admitir aquilo.
Se tivesse ido para o castelo como se vestia
normalmente, teria chamado atenção demais.
O que não queria dizer que ele estava satisfeito por
estar ali. Não estava. Já fazia mais de uma hora que Yuri
estava parado praticamente no mesmo lugar, olhando ao
redor e pensando se estava disposto a correr o risco de
tentar achar alguma bebida sem álcool no meio do que
estavam servindo para os humanos.
Melissa riu alto, em algum lugar no meio de um dos
grupos de vampiros e humanos.
Ela não tinha falado mais nada com ele depois
daquele aviso sobre a imunidade. E era melhor assim.
Yuri não tinha nada para falar com ela depois daquela
ameaça. O prender contra a parede era uma coisa – era
uma ameaça que ele sabia como lidar, então não era um
problema. Mas ela tinha ameaçado controlar Yuri. Aquilo
ele não aceitaria.
A pior parte era que ele não duvidava que ela
estivesse certa. Podia ser mais manipulação, sim. Melissa
havia lhe dado informações o suficiente sobre os
vampiros para deixar Yuri disposto a aceitar o que ela
falasse como sendo real. Mas a questão era que ninguém
sabia como a imunidade funcionava. As poucas pessoas
no Setor Dez que também eram imunes não tinham o
mesmo tipo de resistência que ele, mas Yuri sempre tinha
pensado que era só por serem civis. Talvez...
Yuri nunca tinha conhecido sua família. Ele havia sido
criado em uma das casas comunitárias do Setor Seis, os
lugares para onde mandavam as pessoas que não
tinham família, não importava a idade. A única coisa que
sabia era o que uma senhora mais velha que também
morava lá tinha lhe contado: Yuri tinha sido encontrado
em uma casa abandonada, uma semana depois de várias
famílias "desaparecerem" misteriosamente.
Ninguém tinha nenhuma dúvida de que qualquer
desaparecimento daquele tipo era coisa dos vampiros,
mas raramente descobriam o motivo. Agora, sabendo
que os vampiros caçavam quem era imune, Yuri tinha
suas suspeitas.
E aquela parte não era manipulação. Melissa não
tinha como saber de onde ele vinha. Ela nem se
lembrava dele como mercenário, nunca que ia saber que
ele tinha crescido em uma das casas comunitárias. Mas
tudo fazia sentido.
O que queria dizer que, a menos que ele tivesse
algum tipo de garantia de Melissa de que ela nunca
revelaria nada sobre a imunidade dele, Yuri precisaria
destruí-la. Era o único jeito de garantir que ele não seria
caçado, depois. O Setor Dez já tinha problemas o
suficiente, não precisavam de mais um alvo lá dentro.
— Então você é o humano que tirou nossa Melissa da
Corte.
Yuri se virou. Um vampiro estava parado ao seu lado,
vestido exatamente como os outros: como se tivesse
saído de algum filme de muito antes da magia voltar
para o mundo, se naquela época as pessoas se
vestissem só de preto.
E, se ele estava falando sobre Yuri ter tirado Melissa
da Corte, aquilo queria dizer que ele era do Setor Seis.
— Em qualquer outra situação, eu estaria te
agradecendo — o vampiro continuou. — Ter a Serpente
fora da Corte é tudo o que eu queria para poder provar
que ela não é a melhor pessoa para a posição que tem.
Serpente. Aquilo encaixava com Melissa. Yuri não
fazia ideia de se era alguma coisa como o que ela tinha
mencionado sobre os títulos da Corte ou algum tipo de
insulto, mas tinha certeza de que ela sabia que era
chamada assim. Aquilo explicava o colar em formato de
cobra que ele já tinha visto ela usar. E encaixava com o
que Yuri sabia sobre como ela agia: as manipulações e
ameaças. Serpente, sim.
Ele só esperava que ela soubesse que tinha pelo
menos um vampiro na fila para tomar o lugar dela como
mão esquerda do príncipe. Se bem que aquilo
provavelmente era o normal. Yuri conseguia imaginar
muito bem a situação contrária: Melissa se livrando da
competição, até assumir a posição que tinha.
Yuri olhou para o salão de novo. Não ia responder o
vampiro. A única resposta que ele queria dar, não podia –
e era a mesma que Yuri queria dar para qualquer
vampiro que se aproximasse dele.
— Mas você não é o tipo normal dela — o vampiro
falou. — Você não parece ser uma daquelas criaturas
patéticas, fazendo qualquer coisa por proteção.
Yuri tinha visto os humanos que moravam na casa de
Melissa. Se era sobre eles que o vampiro estava falando,
então ele estava completamente errado. Yuri não tinha
passado muito tempo lá, mas tinha sido óbvio que os
humanos se preocupavam com a vampira, também.
— Não está me ouvindo, humano?
Infelizmente, ele estava. E, mais infelizmente ainda,
não podia só pegar uma arma e atirar no vampiro sem
causar um incidente político. Se bem que, se ele não era
do Setor Cinco, talvez não fosse ser um problema tão
grande assim. Yuri só precisava ter certeza.
— Você pode ser o brinquedo atual de Melissa, mas
se acha que isso garante sua segurança...
O vampiro parou, com uma mão levantada na
direção do pescoço de Yuri. Uma mão que tinha garras,
como um dos animais corrompidos pela magia que às
vezes ainda apareciam, vindo das terras de ninguém.
E Yuri não tinha visto ele se mover, só as garras
perto demais do seu pescoço.
Ele pegou sua pistola.
Melissa segurou seu pulso e abaixou sua mão, sem
falar nada. Yuri não resistiu. Ele não fazia ideia de
quando ela tinha se aproximado, só sabia que não tinha
notado nada e aquilo era um problema.
A mão dela tinha marcas escuras, como se fosse
fumaça preta subindo para os seus braços. O sinal de
que ela estava usando seus poderes.
Melissa parou ao seu lado e encarou o outro vampiro,
que continuava parado na mesma posição, com as garras
levantadas.
— Damien — ela falou.
Os olhos do vampiro se moveram de um lado para o
outro e mais nada.
Ele não conseguia se mover.
Yuri já tinha visto algo parecido: três semanas antes,
quando Lorde Rafael tinha avisado os enviados dos
outros setores que Alana era sua noiva. Ele havia
controlado o corpo dos outros vampiros e os forçado a
recuar. Mas aquilo não tinha sido tão inesperado, porque
era Lorde Rafael, o vampiro que era a autoridade
máxima das Cortes naquela região.
Melissa estava fazendo a mesma coisa e parecia
fácil.
O vampiro abaixou a mão e fechou o punho. O
sangue dele pingou. Ele tinha se cortado com as próprias
garras – Melissa tinha feito ele se cortar.
— Não esperava encontrá-lo aqui, Damien — ela
falou. — Pensei que estaria satisfeito tentando provar
que é melhor que eu, enquanto estou fora do Setor.
O vampiro sorriu, mostrando suas presas.
— Eu estava, até o príncipe decidir que queria que
alguém viesse ter certeza de que estava tudo bem com
você.
Mais sangue pingou. Melissa ainda estava
controlando o corpo do outro vampiro, pelo menos
parcialmente.
— A verdade — ela falou.
O vampiro riu, seco.
Yuri não viu o que aconteceu. Num momento,
Melissa estava parada ao seu lado e o outro vampiro
estava travado no lugar. No momento seguinte, Melissa
estava contra a parede, com um corte fundo no rosto e
com as garras do outro vampiro enfiadas no seu ombro.
— Você pensa que é intocável porque pode assumir
o controle por alguns segundos — Damien falou. — Mas
vai precisar de mais alguns truques se não quiser que
sua existência termine. E, considerando a disposição do
príncipe depois que você se recusou a dar um relatório,
não acho que ele vai reclamar se eu terminar com isso.
O sangue pingou no chão – sangue do vampiro. Yuri
não conseguia ver, mas Melissa o havia ferido o
suficiente para o sangue ainda estar escorrendo.
E mesmo assim ela estava presa contra a parede,
sem reagir.
Melissa mostrou as presas de um jeito que não tinha
nada de humano.
— Você fala demais, Damien. É por isso que nunca
vai ter a posição que quer — ela falou. — Você está
interessado em reconhecimento e espetáculos, não em
fazer o que precisa.
A música baixa ainda estava tocando, mas as
pessoas no salão não estavam nem fingindo que não
estava prestando atenção no que estava acontecendo ali.
Yuri conseguia sentir os olhares nas suas costas.
E Melissa continuava parada, sem reagir.
Ele não sabia se ela tinha algum plano ou se
realmente não tinha como fazer nada. Aquilo não estava
nos planos, mas ele deveria ter pensado que existia a
possibilidade de políticas do Setor Seis seguirem Melissa
até ali.
Eles estavam ali juntos. Ela tinha lhe dado
informações – mais informações do que ela imaginava.
Ela tinha lhe dado aquele aviso sobre a imunidade e Yuri
entendia exatamente o peso da escolha que ela havia
feito quando havia contado que humanos como ele eram
caçados. Melissa era a melhor chance que ele tinha de
conseguir o que queria no Setor Cinco. Ele precisava das
informações sobre os carniçais. Todo o Setor Dez
precisava daquilo, para se proteger.
E, se Melissa não tinha como reagir, havia um jeito
que Yuri podia ajudar. Ela não tinha conseguido continuar
controlando o vampiro, mas não era nenhum segredo
que conseguiria controlar um humano sem o menor
problema. Ninguém precisaria saber se ela não o
estivesse controlando de verdade.
Ele deu um passo para o lado, até estar atrás de
Damien. Sua pistola ainda estava na mão direita e ele a
apontou para a nuca do vampiro, ao mesmo tempo em
que puxava uma faca com a mão livre.
— Eu não faria isso — Yuri avisou.
O vampiro riu.
— Você encontrou mais um humano disposto a se
sacrificar por você, Melissa? — Ele falou. — Porque ele
me parece experiente o suficiente para conseguir
reconhecer que não tem a menor chance contra mim.
Os olhos de Melissa escureceram. Yuri não sabia se
ela não podia fazer nada ou se estava se contendo.
Não importava.
— Talvez ele não fosse ter nenhuma chance contra
você — Yuri continuou. — Mas você realmente quer
testar os meus reflexos contra os seus?
Ele não fazia ideia de se aquilo era possível. Pelo que
Yuri sabia, mesmo se um vampiro compelisse ou
controlasse um humano, as ações e reações ainda seriam
do humano. Mas ele só precisava fazer Damien duvidar o
suficiente para recuar.
O vampiro soltou Melissa.
Ela se endireitou e olhou para os cortes fundos feitos
pelas garras de Damien antes de fazer um som de
desprezo.
— Corra de volta para o príncipe, Damien — ela
falou. — Se faz tanta questão de um relatório, diga que
estou cumprindo exatamente as ordens que recebi, e que
sua interferência quase colocou tudo em risco.
O vampiro continuou encarando Melissa e Yuri
continuou com a arma apontada para a nuca dele.
— Você deveria escolher suas estratégias melhor,
Serpente — Damien completou.
Melissa inclinou a cabeça e sorriu de um jeito que
conseguia ser superior e passar um nível de desprezo
que não deveria nem ser possível.
— Eu escolho, Damien — ela falou. — E é por isso
que você sempre será um substituto. Você não é capaz
de ver o que realmente está acontecendo.
O vampiro riu e se afastou, sem nem olhar para Yuri.
Ele podia atirar. O vampiro ia cair morto antes de
entender o que tinha acontecido.
Melissa fez um movimento minúsculo com a cabeça,
mas era o suficiente. Ela sabia as consequências daquilo.
Yuri guardou suas armas e foi na direção dela, ainda
tentando ignorar os vampiros que tinham se aproximado
para assistir a discussão. Se Damien tivesse matado
Melissa ali, ninguém teria interferido. Se ele tivesse
atirado, ninguém teria falado nada. Aquilo era a Corte.
Melissa se virou e foi na direção de uma das portas
do salão. Yuri foi atrás dela, tentando agir como se ainda
estivesse sendo controlado.

Mel seguiu pelo corredor, sem parar ou olhar para os lados. Ela
não tinha certeza se Damien ainda estava por perto ou
não, mas sabia que os outros vampiros estariam
observando enquanto Yuri e ela se afastavam.
Yuri. O humano que havia reagido da forma perfeita
enquanto ela ainda estava tentando encontrar uma
maneira de sair daquela situação sem mostrar
exatamente até onde suas habilidades iam. As Cortes
não sabiam a força real do que ela podia fazer, e Mel
precisava que continuasse assim, se era para ela ter uma
chance de conseguir sua liberdade. E Yuri...
Ele não precisava ter feito aquilo. Ela não teria
pensado naquilo como uma opção, mas havia sido genial.
Não era nenhum segredo que ela conseguia controlar
humanos, se quisesse. Faria sentido usar um humano
treinado como mercenário para atacar, já que ela não
podia fazer nada pessoalmente. Não era algo que Mel
teria feito, a menos que não tivesse outra opção – mas a
Corte não tinha como saber daquilo.
Mas o que ela não entendia era por que Yuri havia se
colocado em risco para protegê-la. Porque fazer o que ele
fizera havia sido um risco, sim. Damien podia ter
atacado. Os vampiros no salão podiam ter decidido
conter Yuri. Aquilo poderia ter dado errado de tantas
formas... Mas havia funcionado.
Ela parou na frente de uma porta fechada no
corredor e testou a fechadura. Trancada.
Não importava. Ela não ia continuar pelo castelo com
o rosto cortado e as marcas das garras de Damien no seu
ombro.
Mel forçou a porta e ela se abriu. Era uma sala de
recepção ou algo parecido: o lugar era pequeno, para os
padrões do castelo, com algumas estantes contra as
paredes e três poltronas em um semicírculo na frente de
uma lareira falsa.
Era bom o bastante.
Ela indicou a sala com a cabeça. Yuri entrou e Mel
fechou a porta atrás deles.
— É permitido estar nessa parte do castelo? — Ele
perguntou.
Mel foi na direção de uma das poltronas.
— Essa é a parte pública do castelo — ela contou. —
Se estivéssemos perto de uma das áreas restritas, você
saberia sem a menor sombra de dúvidas.
— E uma porta fechada não conta como "saber"?
Ela se sentou na cadeira e fechou os olhos. Estava
ignorando a dor, mas ignorar não era o mesmo que dizer
que não estava sentindo aquilo.
Pelo menos ela tinha rasgado o braço esquerdo de
Damien. Mesmo se alimentando bastante, ele precisaria
de pelo menos um dia antes de conseguir usar o braço
normalmente. Comparado com aquilo, os ferimentos de
Mel não eram nada.
— A porta tem uma fechadura comum que qualquer
vampiro conseguiria forçar — ela murmurou. — Se fosse
um lugar restrito, teria algum tipo de proteção diferente.
Ou, no mínimo, uma corrente atravessada na porta.
Mel já tinha visto aquilo ser usado antes, mais como um
sinal de que os anfitriões não queriam ninguém em
certos cômodos do que como uma ameaça real.
Yuri assentiu e olhou ao redor da sala. Mel não se
surpreendeu quando ele foi na direção das estantes. Ele
gostava de ter informações e os livros que alguém lia
diziam bastante sobre a pessoa, na maior parte do
tempo. Mas ela era capaz de apostar que os livros que
estavam naquelas estantes eram apenas decoração.
Ela encarou a porta. Mel duvidava que alguém fosse
atrás dela depois daquele confronto no salão, mas a
presença de Damien no Setor Cinco mudava as coisas.
Ele não estaria ali à toa. E, não importava o que
houvesse falado, não estaria ali só para garantir que Mel
não estivesse traindo o príncipe. Não. Havia mais.
Até duas noites antes, o que Mel sabia sobre os
acordos entre os Setores Seis e Cinco era que não
chegavam a ser aliados reais. Havia vários acordos
comerciais e algumas situações onde se esperava que
um setor apoiasse o outro, mais nada. E, até duas noites
antes, Mel tinha certeza de que Damien não tinha
recebido nenhuma ordem no sentido de ir até o Setor
Cinco.
Ou alguma coisa tinha acontecido naqueles dias, ou
havia algo acontecendo havia mais tempo e que ela não
sabia. Mel podia ter uma posição alta na hierarquia do
setor, mas na prática era só a pessoa que cuidava do
trabalho sujo. Ela tinha acesso às informações porque
saber o que estava acontecendo facilitava o seu trabalho.
Mas Mel não tinha nenhum tipo de garantia de que
realmente soubesse de tudo o que estava sendo
discutido no setor – e provavelmente não sabia.
Então ela ia partir da ideia de que havia algum tipo
de acordo entre os setores que ela não conhecia. Algum
tipo de aliança ou algo nesse sentido – e que Damien
provavelmente não seria o único vampiro do Setor Seis
ali.
Mel teria que usar o interesse de Dama Cordelia a
seu favor – se é que aquele interesse ainda existia. Seria
um jogo mais perigoso do que ela havia imaginado, mas
se já estavam no castelo, era algo que era possível.
— Por que estamos aqui? — Yuri perguntou.
Mel se virou. Ele estava parado na frente de uma das
estantes, olhando para ela.
E Mel não podia falar nada sobre o que ele havia
feito. Nem agradecer, nem dizer que havia sido genial –
duas coisas que ela precisava falar. Mas ela não confiava
que não seriam ouvidos dentro do castelo.
— Porque eu não vou ser um espetáculo pelo castelo
— ela falou. — Estou esperando os ferimentos se
fecharem.
Não demoraria muito. Meia hora, talvez, e seria
como se nada houvesse acontecido.
Yuri a encarou.
— Isso seria mais rápido se você tivesse sangue —
ele comentou.
Ela levantou uma sobrancelha.
— Está se oferecendo?
Yuri cruzou os braços.
— Se vai ser mais fácil assim, estou — ele falou.
Mel sorriu, sentindo a pressão nas suas presas. Ela
tinha falado que ele pediria pela sua mordida, sim. Mas
não daquele jeito. Ele era a pessoa que havia se colocado
em risco para proteger Mel, mesmo sem saber se ela
realmente precisava de ajuda. E agora estava fazendo a
mesma coisa: oferecendo seu sangue, mesmo que fosse
completamente contra humanos se oferecendo para
vampiros, porque era o que pensava que era o certo. Ou
o necessário. Mel não tinha muita certeza de que fazia
diferença, para Yuri.
Mas fazia diferença para ela.
Ela balançou a cabeça.
— Não vou me alimentar de você.
Yuri fez um ruído irritado e soltou os braços.
— E por que não? — Ele perguntou. — Não foi você
quem passou a noite passada toda a um fio de me
morder? O que está te impedindo agora?
Mel sorriu. Ela não havia passado a noite a um fio de
mordê-lo. Havia passado a noite o provocando – era
diferente.
E aquele era o motivo para Mel não querer se
alimentar de Yuri. Ela não queria algo sendo oferecido
porque era necessário. Ela queria que ele quisesse a
mordida, também.
— Não me alimento de alguém que acha que está
me fazendo um favor — ela avisou. — O dia que você
admitir que quer experimentar a minha mordida, vou
estar aqui. Mas não preciso de sangue oferecido por
obrigação.
Yuri estreitou os olhos e deu um passo na sua
direção antes de parar.
— E quando você se alimenta do seu rebanho é
diferente? Eles estão lá por obrigação, também.
O sorriso de Mel ficou quase afiado e ela se inclinou
na cadeira. O corte no seu rosto se repuxou, com uma
pontada de dor que era um lembrete de por que ela
estava ali.
— Meu rebanho está comigo porque quer. Não existe
nenhum tipo de obrigação, não no sentido que você está
querendo colocar. E se foi isso que você pensou quando
foi na minha casa, então tenho pena de você.
Yuri não respondeu.
Mel se virou para a porta de novo.
Meia hora. Não era muito tempo. E era mais que o
suficiente para ela pensar nas possibilidades – porque
Damien estar no Setor Cinco garantia que ela fosse
precisar mudar seus planos.
E se Yuri estava irritado por causa da recusa dela...
Aquilo não era algo ruim. Melissa queria ele pensando na
possibilidade de ser mordido, sim.
NOVE

Yuri não sabia o que pensar do comentário de Melissa sobre não


aceitar sangue por obrigação. Aquilo não fazia sentido.
Sangue era sangue, e mais nada. Para os vampiros, era
só alimento. Ponto. Não tinha motivos para ela colocar
aquele tipo de condição.
Mas eles ainda estavam no castelo, o que
basicamente queria dizer que estavam em território
hostil, então Yuri não ia pensar naquilo. Não tinha tempo
e tinha mais com o que se preocupar.
Como o salão onde estavam entrando.
Enquanto estavam esperando os cortes de Melissa
se fecharem, ela tinha explicado que aquilo ali não era
nenhum evento formal da Corte, como o baile onde Dani
e Amon tinham ido. Era só uma noite normal no castelo.
Se aquilo era o normal do Setor Cinco, Yuri não
queria estar ali quando fosse acontecer algum evento.
Melissa tinha contado que o salão onde estavam
antes, perto da entrada do castelo, era quase uma área
de recepção. Era onde os vampiros se reuniam para
começar a relaxar antes de decidir o que realmente
queriam fazer naquela noite.
O salão onde tinham acabado de entrar era um dos
lugares de depois que se decidiam. E o lugar em si não
era nada demais: um espaço aberto, com janelas que
iam do chão até o teto e deixavam ver a noite lá fora, e
sofás, divãs e almofadas espalhados pelo salão. A
questão era as pessoas ali. Vampiros e humanos, de
novo, espalhados pelos sofás e almofadas em grupos.
Yuri ainda conseguia ver alguns casais, mas eram
poucos. E os grupos podiam até variar bastante de
tamanho, mas não variavam muito no que estavam
fazendo.
Yuri nunca tinha se considerado puritano ou
inocente, mas estava começando a rever aquilo. Nem as
festas mais loucas de quando ele estava começando a
treinar como um mercenário chegavam perto do que ele
estava vendo ali. Ele não sabia se podia dizer que era
uma orgia, exatamente. Ou várias. Mas sabia o que
estava vendo. E, pelo visto, para a Corte do Desejo, o
sexo e o sangue realmente estavam ligados.
— Eu ia perguntar se a cidade foi inspirada na Corte,
mas acho que é óbvio — Yuri comentou.
Mel sorriu e continuou andando, acompanhando a
parede do salão. Era melhor que passar pelo meio de
tudo, mas Yuri não sabia se estar ali era uma boa ideia.
Na sua época em treinamento, uma das coisas que
faziam com os mercenários que estavam entrando em
um destacamento pela primeira vez era colocá-los de
"guarda" em alguma festa. Era um jeito fácil de saber
quem ia cumprir ordens não importava o que estivesse
acontecendo por perto, e quem ia pensar que não fazia
diferença "se distrair por cinco minutinhos".
Yuri nunca tinha tido problema com aquelas ordens.
Valia muito mais cumprir a sua missão sem se distrair e
depois, quando não tivesse mais nenhum risco ou
nenhuma ameaça para se preocupar, ele podia
aproveitar. E quase sempre tinha feito exatamente aquilo
– porque os mercenários de "guarda" sempre eram
liberados antes do fim das festas.
Ali, era diferente e ele sabia exatamente o motivo.
Estava andando na sua frente, de um jeito lento que
parecia uma provocação, mas ele sabia que era apenas
Melissa. Ela sempre andava daquele jeito. E ele não
conseguia parar de imaginar qual seria a sensação de ter
Melissa debaixo de si, do mesmo jeito que um dos casais
estavam, em um divã. Ou com ela em cima dele, como
dois vampiros estavam, em uma das pilhas de
almofadas.
E ele não podia se distrair, não importava o que
acontecesse.
— Todas as cidades humanas são reflexo das Cortes
a que servem — Melissa falou. — Até a sua cidade.
E por que ela estava falando aquilo? Ele não...
Ele tinha mencionado a cidade ser inspirada na
Corte.
Yuri se forçou a se concentrar. Ainda estavam em
território hostil. Melissa já tinha sido atacada uma vez e
ela era sua única garantia de segurança. Não podia
relaxar.
— Minha cidade não serve a nenhuma Corte — ele
corrigiu.
A vampira olhou de relance para ele e levantou uma
sobrancelha.
— Mas é um reflexo do que Raquel e os primeiros
que a seguiram esperavam. Vocês não são uma Corte,
mas a forma como seu setor funciona não é tão
diferente.
Ele não tinha como discutir com aquilo. Ela não
estava errada – e era estranho como Yuri nunca houvesse
pensado naquilo antes. Ou talvez nem tão estranho
assim. Era só o que era normal para ele.
Melissa parou, encarando alguma coisa no meio de
um grupo grande de pessoas.
Uma mulher estava se levantando, devagar. Os
corpos se reorganizaram de uma forma que parecia
quase natural, com um homem assumindo o lugar onde
ela estava antes, bebendo de uma humana.
A mulher se virou para onde eles ainda estavam
parados. Ela era um pouco mais baixa que Mel, com a
pele branca e pálida – morta – que alguns dos vampiros
mais velhos tinham e cabelo escuro caindo até o meio
das suas costas. E ela estava usando um vestido
vermelho escuro justo que marcava todas as suas
curvas.
Considerando onde estavam e o que estava
acontecendo, ela estar vestida era uma surpresa –
especialmente porque era uma vampira.
Ela passou as costas da mão na boca e limpou o
resto de sangue que estava ali.
— Dama Cordelia — Mel murmurou.
A princesa daquele setor.
Yuri se endireitou e tentou se concentrar na sua
imunidade. Não tinha se esquecido do aviso de Melissa e
não achava que ela teria falado aquilo à toa. E, se
alguém fosse testar o que ele podia fazer, seria a
princesa.
A vampira foi na direção deles.
Melissa cruzou os braços na frente do corpo e
inclinou a cabeça. Yuri já tinha visto aquele gesto antes,
mas não fazia ideia do que era – o que queria dizer que
não ia tentar imitar. E se a princesa se ofendesse por
causa daquilo, paciência. Ele não era um diplomata.
— Melissa. Minha serpente — Dama Cordelia falou.
Melissa se endireitou e abaixou as mãos.
E a outra vampira não tinha nem olhado para Yuri.
Melhor assim.
— Fico feliz que tenha aceitado meu convite — a
princesa continuou.
— Foi uma honra, senhora.
Yuri se concentrou em não reagir. Ele não conhecia
Melissa o suficiente para ter certeza de nada, mas o que
Dani tinha contado era mais que o bastante para ele ter
certeza de que ela não estaria considerando uma honra
ser chamada de "minha serpente".
Tanto Amon quanto Dani tinham falado que Melissa
não tinha nenhuma lealdade com as Cortes. Talvez Yuri
devesse ter tentado descobrir o motivo daquilo.
A princesa riu.
— Não foi, mas você é diplomática demais para dar
qualquer outra resposta.
Então Yuri não estava errado.
Dama Cordelia inclinou a cabeça e ofereceu uma
mão para Melissa. A princesa estava agindo como se ele
não estivesse ali e aquilo era quase mais irritante do que
se estivesse prestando atenção nele.
— Você me deixou esperando, Serpente — ela falou.
— Não pensei que teria que enviar aquele cão raivoso do
seu mestre para garantir que viria até mim.
Damien. O vampiro que tinha atacado Melissa no
outro salão havia sido mandado por Dama Cordelia. Não
fazia diferença se ela não tivesse dado as ordens para
ele atacar. Ele estava lá por causa dela.
Melissa aceitou a mão da outra vampira.
Dama Cordelia sorriu, mostrando suas presas.
— Seu humano pode nos acompanhar — ela falou.
Yuri não reagiu. Não era nem difícil – ele ainda
estava se concentrando na sensação da sua imunidade,
por mais que aquilo fosse incômodo. Não. Na verdade
incômodo era aquela sensação de alguma coisa. Era
quase como escutar algum som baixo demais para
entender o que era, mas saber que não adiantava tentar
ouvir melhor. Ele só esperava que aquilo quisesse dizer
que estava controlando o que quer que a imunidade
fosse.
Melissa olhou de relance para ele. Yuri continuou
sem reagir. Ele tinha entendido muito bem qual era seu
papel ali.
O que Melissa tinha falado? Que era melhor ele agir
como um dos viciados em mordida que não tinham
personalidade nenhuma do que se tornar um?
Fazer aquilo era mais fácil do que ele tinha
imaginado.
Dama Cordelia começou a andar na direção do fundo
da sala, passando entre os grupos de pessoas nas
almofadas como se não estivessem lá. Melissa a
acompanhou, com Yuri indo logo atrás.
Mel seguiu Dama Cordelia sem falar nada. Ela conhecia aquele
jogo. Havia precisado aprender a jogá-lo depressa
demais, quando ainda era humana. Por mais que as
Cortes gostassem de agir como se fossem melhores que
os humanos, as piores partes deles vinham justamente
do que haviam aprendido enquanto ainda eram humanos
– ou observando a humanidade.
A princesa parou na frente de uma plataforma um
pouco mais alta, nos fundos do salão. Uma cadeira de
encosto alto, preta e com estofamento vermelho, estava
ali. Um trono, mesmo que as Cortes evitassem usar
aquele termo.
Dama Cordelia soltou a mão de Mel, subiu na
plataforma e se sentou na cadeira.
— E então a serpente se aliou a um humano — a
princesa murmurou.
Mel não ia se virar para ver onde Yuri estava. Quanto
menos motivos desse para Dama Cordelia prestar
atenção nele, melhor. Primeiro, Mel precisava ter certeza
do que estava acontecendo ali.
— Aliar é uma palavra forte demais — ela falou. —
Mas quando me perguntaram se sabia algo sobre os
boatos, não podia fazer diferente. Posso não ser parte do
seu setor, Dama Cordelia, mas não deixaria esse tipo de
comentário continuar correndo.
A princesa sorriu. Mel já tinha visto aquele sorriso
antes, logo antes de ela ameaçar o seu príncipe.
— Ah, minha serpente, seu nome é conhecido, mas
não para lidar com diplomacia. Por que iriam atrás de
você?
Mel inclinou a cabeça e deu um meio sorriso. Aquilo
não era nada diferente dos seus primeiros anos no Setor
Seis. Era um jogo de ameaças sutis e avisos que alguém
podia ouvir ou não, mas que nunca eram falados
abertamente.
— A senhora sabe por quê. Sabe quem está no Setor
Dez — ela falou.
Não era nenhum segredo que Mel e Amon haviam
sido próximos na época da guerra. Não exatamente
amigos, mas pessoas que se divertiam juntas – porque
Amon convidara Melissa para fazer parte de vários dos
ataques, na época. E havia sido divertido, sim, antes do
seu príncipe a proibir de se envolver.
Mas o importante era que, se Dama Cordelia
tentasse verificar aquela história, Amon confirmaria.
A princesa balançou a cabeça devagar.
Yuri se moveu e parou um pouco para a esquerda de
Mel. Bom. Ela conseguia pelo menos saber onde ele
estava sem precisar se virar.
— Você não deveria ser chamada de serpente —
Dama Cordelia falou. — Uma serpente é paciente, caça e
dá seu bote no seu tempo, para ter o resultado que quer.
Mas você não é apenas isso, Melissa. Você cria teias de
influência e contatos.
— Apenas faço meu trabalho, Dama Cordelia.
Dama Cordelia sorriu e balançou a cabeça de novo
antes de se virar para Yuri.
— E é exatamente isso que me preocupa, Serpente
— ela falou, sem olhar para Mel de novo. — Eu deveria
ter me questionado como você havia mantido esse nome
sendo que parecia não estar fazendo nada demais na sua
Corte. Mas eu estava errada, não estava?
Damien. Aquilo tinha sido obra de Damien. Mel havia
tomado cuidado demais para manter o que fazia no Setor
Seis em segredo – até mesmo porque, quanto menos
pessoas soubessem do que ela era capaz, mais eficiente
ela seria.
Mel deveria ter esperado algo daquele tipo. Damien
faria qualquer coisa para roubar sua posição – até
mesmo a prejudicar de forma deliberada, mesmo que
pudesse estar atrapalhando uma missão dada pelo
príncipe.
Mel assentiu devagar e sorriu, como se estivesse
satisfeita.
— Existem motivos para terem continuado me
chamando de Serpente — ela falou.
Dama Cordelia se virou para ela de novo. O olhar da
princesa estava gelado, sem nem um resto daquele algo
amistoso de antes.
— Motivos — a princesa repetiu. — Motivos como
você ser a pessoa que resolve os problemas de Klaus.
E seu príncipe não ficaria nada satisfeito por Dama
Cordelia estar usando seu nome em um salão cheio. Ele
fazia questão demais de manter uma imagem distante
dos outros, quase impessoal.
A princesa se inclinou para a frente.
— Isso não foi mencionado quando você entrou em
contato com meu pessoal.
Mel levantou a cabeça.
— Não foi mencionado porque não é relevante — ela
falou. — Não estou aqui por ordens do meu príncipe.
Estou aqui porque não quero ver o seu setor ter
problemas por causa de algo que obviamente não é
verdade. Se algo como os boatos que ouvi chegassem no
Setor Um, eles agiriam primeiro e só depois tentariam
descobrir a verdade.
Dama Cordelia continuou olhando para Mel por um
instante antes de se virar para Yuri. Ele empalideceu,
mas continuou parado no lugar, sem reagir.
A princesa tinha uma habilidade parecida com a de
Melissa: controlar e compelir. Mel não sabia detalhes, da
mesma forma que ninguém sabia detalhes sobre o que
ela realmente podia fazer. E, se Dama Cordelia estava
encarando Yuri daquele jeito, era porque estava tentando
fazer algo com a mente dele.
Mel só esperava que Yuri tivesse levado seu aviso a
sério. Se Dama Cordelia suspeitasse da imunidade dele,
não teria nada que Mel pudesse fazer. A princesa notaria
se ela controlasse Yuri.
Ele empalideceu mais ainda e fechou os punhos.
Não. Mel não ia ficar parada depois que ele tinha se
arriscado para defendê-la de Damien.
— Dama Cordelia — Mel chamou, em voz baixa.
A princesa riu, sem desviar o olhar de Yuri.
— Você o defenderia de mim, minha serpente? — A
princesa perguntou.
Defenderia. Yuri não deveria estar naquela situação.
Se estava, era por culpa de Melissa. E o mínimo que ela
podia fazer era tratá-lo da mesma forma que ele a
tratara.
Se continuasse assim, não ia demorar muito para ela
estar infectada com aquele senso de lealdade dos
humanos do Setor Dez e ela não podia se permitir aquilo.
— Ele está aqui como um observador, Dama Cordelia
— Mel falou. — Qual a necessidade de fazer o Setor Dez
se virar contra vocês?
A princesa se virou para ela.
— Qual a necessidade de criar histórias e
justificativas para alguém que poderia ser uma aliada? —
Dama Cordelia comentou.
Mel se forçou a não reagir. Ela tinha entendido.
Dama Cordelia sabia que ela não estava ali por causa de
nenhum boato. Ou, pelo menos, pensava que não.
O jogo havia acabado de se tornar bem mais
perigoso.
A princesa se levantou devagar e foi na direção de
Mel. Elas se encararam por um instante antes de Dama
Cordelia segurar o rosto de Mel.
— Seu príncipe me mandou um aviso interessante
logo depois de você e seu observador entrarem no meu
setor — ela começou. — Para o seu bem, espero que ele
esteja errado. Mas, se tiver algo que precisa ser falado...
Melissa segurou o pulso da princesa. A sensação de
perigo era como uma lâmina gelada contra sua pele, mas
também não era nova. Ela sabia como lidar com aquilo. A
diferença era que sempre, antes, a vida de Mel era a
única em jogo.
— Meu príncipe já te impediu de ter o que queria
uma vez antes, Dama Cordelia. Vai deixar ele ficar no seu
caminho de novo? — Mel perguntou.
A princesa soltou o rosto dela mas não se afastou.
— Cuidado com seus jogos, Serpente — Dama
Cordelia falou. — Muito cuidado.
— Eu sempre tomo cuidado, senhora — Mel
murmurou. — E agradeço pela sua hospitalidade.
Ela gesticulou para Yuri. Era hora de irem embora
dali.
— Mais uma coisa, Serpente — a princesa começou.
Mel se virou para ela. Dama Cordelia tinha se
sentado no seu trono de novo.
— Ele está te vigiando — a outra vampira contou.
Mel assentiu e se afastou sem falar mais nada.
Aquilo não tinha sido uma ameaça. Tinha sido um
aviso – porque Dama Cordelia ainda queria alguma coisa
dela.

A cabeça de Yuri ainda estava doendo – tinha começado a doer


quando Dama Cordelia havia se aproximado e não tinha
parado mais – mas pelo menos nenhum vampiro tinha
feito nada enquanto eles saíam do castelo. O vampiro de
mais cedo, Damien, tinha encarado Melissa enquanto
eles atravessavam o salão perto da entrada, e mais
nada.
No Setor Seis, o castelo da Corte ficava um pouco
acima do resto da cidade. Para Yuri, sempre tinha
parecido que era um jeito de lembrarem os humanos que
só estavam vivos porque os vampiros queriam. Não tinha
como alguém olhar para a silhueta do castelo e pensar
outra coisa.
Ali, no Setor Cinco, não era tão diferente. O castelo
também estava mais alto que a cidade e agora Yuri
estava começando a pensar que aquilo era de propósito.
Quando voltasse para o Setor Dez, ia perguntar para
Dani sobre o setor onde ela tinha crescido.
Só precisavam sair dos jardins do castelo. Só isso, e
estariam na moto de Melissa, voltando para a casa – que
podia não ser uma garantia de segurança, mas era um
ambiente que ele tinha como controlar.
E sua cabeça ainda estava doendo. Yuri precisava de
alguma coisa para distrair, mas ainda estavam dentro do
castelo, sem poder falar nada que fosse útil de verdade...
— Se o Setor Cinco é a Corte do Desejo, o que o
Setor Oito é? — Ele perguntou.
Melissa sorriu, sem diminuir o passo. Ótimo.
— Eles gostam de ser chamados de Corte do
Sangue.
— "Gostam de" — Yuri repetiu.
A vampira assentiu.
— A Corte do Setor Oito nunca foi relevante o
suficiente para receber um desses títulos. Mas houve
uma época em que eles chamavam a si mesmos assim...
Não que as outras Cortes tenham levado a sério.
O Setor Oito não era relevante o suficiente para ter
um daqueles títulos. E mesmo assim quase tinha
destruído o Setor Dez.
A visão que ele e o pessoal do Dez tinha da política
dos vampiros estava completamente errada, então. Eles
sempre tinham pensado que o Oito era uma força
considerável, até por causa da história de como o Setor
Quatro tinha sido destruído por eles. Mas se eles nunca
tinham sido relevantes o suficiente para terem um
desses nomes...
Depois. Yuri podia pensar naquilo depois, quando
estivesse mais calmo e sem aquela dor de cabeça
irritante. Ele ia ter tempo para isso depois. E era um bom
assunto.
— Eles resolveram usar a coisa do sangue como uma
demonstração de força? — Ele perguntou.
Melissa balançou a cabeça e riu baixo.
Ela parecia calma demais, quase relaxada. Yuri
nunca tinha visto Melissa daquele jeito – o que queria
dizer que aquela calma provavelmente era só fachada.
— No passado, antes da magia voltar para o mundo,
a Corte do Sangue era a única que existia — Melissa
contou. — Eles eram os mais fortes de nós, os que
ninguém tinha coragem de desafiar. E o príncipe dela era
a autoridade máxima entre os vampiros.
Aquilo fazia sentido, de certa forma.
Três vampiros estavam indo na direção deles. O
caminho onde estavam tinha plantas dos dois lados e
nenhum sinal de que ia se abrir.
— Eles tentaram roubar o nome da Corte do rei dos
vampiros, é isso? — Yuri continuou.
Melissa assentiu.
— Que eu saiba, ninguém nunca usou o termo "rei
dos vampiros". Mas sim. O Setor Oito tentou assumir o
nome de uma Corte que não existe mais e que era muito
mais importante do que eles poderiam sonhar em ser.
— E essa Corte do Sangue...
Ela balançou a cabeça de novo.
— Deixou de existir quando a magia voltou para o
mundo — Melissa falou.
O que queria dizer que os vampiros não tinham mais
uma autoridade acima de todos eles. Mas essa tal Corte
do Sangue explicava como a organização de regiões e
setores tinha começado.
Um dos vampiros indo na direção deles avançou e
desapareceu de vista.
Yuri puxou sua arma, se virou e atirou na direção das
plantas ao lado do caminho.
O vampiro grunhiu e cambaleou para trás, com uma
mancha de sangue no alto do seu braço. Merda. Yuri
tinha demorado demais.
O vampiro pulou na direção de Yuri. Ele atirou de
novo. E de novo. Nada.
Yuri girou para fora do alcance do vampiro. As garras
dele cortaram seu braço, mas Yuri já estava atirando de
novo e puxando uma das suas facas.
O vampirou segurou Yuri. As garras dele eram pontos
de fogo no seu torso e aquilo não importava.
Yuri enfiou a faca na nuca do vampiro, no ponto
entre duas vértebras que todos os mercenários
aprendiam.
O vampiro o soltou e cambaleou para trás.
Yuri atirou de novo, na cabeça dessa vez. O vampiro
caiu no chão e não se moveu mais.
Ele respirou fundo e parou. Eram três vampiros. Ele
deveria ter sido atacado por um dos outros. Não deveria
ter sido tão simples.
Yuri se virou.
Os outros dois vampiros estavam no chão, com um
deles mordendo o pescoço do outro como se fosse um
animal, enquanto Melissa continuava parada no lugar, os
encarando como se nada demais estivesse acontecendo.
E as marcas escuras estavam cobrindo os braços dela
quase completamente.
Melissa estava controlando um dos vampiros. Ela
tinha feito um deles destruir o outro daquele jeito, e não
parecia que tinha feito esforço. Mas, no castelo, ela não
tinha conseguido continuar controlando Damien.
Ou será que realmente não tinha conseguido? E se
ela tivesse feito aquilo exatamente para pensarem que
seu poder tinha um certo limite, quando na verdade
conseguiria fazer muito mais?
Yuri engoliu em seco. Quando as pessoas falavam de
vampiros que podiam controlar as pessoas, estavam
pensando nas coisas simples, como forçar a dar
informações ou a ir para algum lugar. Ninguém
imaginava aquilo.
E, se Yuri tivesse alguma dúvida de que Melissa tinha
poder o suficiente para quebrar até sua imunidade, os
vampiros no chão teriam acabado com elas. Aquilo não
era só manter um vampiro imóvel. Era forçar um deles a
agir contra o que queria.
— Não trouxe nenhuma faca — Melissa falou.
Yuri respirou fundo. Todos os seus instintos gritavam
para ele não entregar uma das suas facas para ela, mas
que diferença ia fazer? Se ela quisesse matar Yuri, não ia
precisar de uma arma. Podia só controlar o corpo dele.
Ele girou a faca na sua mão, a segurando pela
lâmina, e a ofereceu para Melissa. A vampira sorriu e
inclinou a cabeça antes de pegar a faca e se abaixar ao
lado dos vampiros no chão.
E ela podia ter aproveitado que estava controlando o
vampiro e o usado para o que quer que fosse fazer, mas
não.
Melissa segurou o cabelo do vampiro que ainda
estava mordendo o outro e puxou. O vampiro levantou a
cabeça, ainda com a boca aberta, com as presas à
mostra e o rosto sujo de sangue. O vampiro no chão não
estava se movendo e Yuri não tinha certeza se havia
sobrado alguma coisa do pescoço dele.
Melissa cortou o pescoço do outro vampiro de uma
vez e limpou a faca nas roupas dele antes de a devolver
para Yuri. Ele guardou a arma sem falar nada.
A vampira se levantou e olhou para trás. Yuri se
virou. O vampiro do Setor Seis, Damien, estava parado
bem mais atrás no caminho, os encarando. Yuri não fazia
ideia de quanto daquilo ele tinha visto.
Melissa pegou a cabeça do vampiro que tinha
matado e a levantou, segurando pelos cabelos. Damien
não fez nada.
Ela deixou a cabeça cair e se virou para Yuri. Ele
assentiu.
Eles passaram por cima dos corpos e continuaram
descendo o caminho até o fim dos jardins.
DEZ

Mel trancou a garagem e parou. O caminho até ali, mesmo de moto,


havia sido tortura. Yuri havia se ferido e o cheiro do
sangue dele ainda estava no ar, como um lembrete do
que ela não podia ter. Mas era melhor lidar com a fome e
o cheiro do sangue do que fazer o mesmo que aquela
noite, no bar, e usar sua saliva para fechar os ferimentos.
Mel não arriscaria. Ela não tinha certeza de que
conseguiria se controlar se provasse o sangue dele, não
quando suas presas estavam doendo.
E ela também não podia dar nenhum sinal de
fraqueza – como ficar parada na frente da garagem.
Mel fechou os olhos por um instante, se forçando a
achar aquele fio de aço que era o controle que aprendera
a ter nos seus primeiros anos como vampira, e entrou na
casa.
Aquele ataque havia sido por ordem de Dama
Cordelia. Ela tinha lhe dado aquele aviso de que estava
sendo vigiada, sim – e o aviso provavelmente era uma
resposta à insinuação que Mel tinha feito de que queria
negociar com a princesa. O ataque era outro tipo de
aviso: um lembrete de que, não importava quem Mel
fosse ou conhecesse, Dama Cordelia ainda estava no
controle. E estava em contato com o Setor Seis,
provavelmente com seu príncipe. Aquele era o motivo
mais óbvio para ela ter recriado o que havia acontecido
quase um mês antes, quando Amon e Daniele tinham ido
ao baile.
Três vampiros sacrificados para deixar um aviso
claro. Aquilo não surpreendia Mel, especialmente vindo
da Corte dos Desejos. Mas queria dizer que ela teria que
ser muito mais cuidadosa. A princesa tinha tentado
demais ter Mel na sua Corte, um século antes, e o
interesse ainda existia. Se não existisse, eles não teriam
conseguido sair do castelo tão facilmente. Mas Melissa
podia usar aquilo. Não era o ideal, mas era uma forma de
seguir em frente que talvez lhes garantisse um pouco de
segurança.
Ela precisava de informações. Não podia se demorar
ali. Desde o começo, Mel sabia que aquele plano era
loucura, mesmo que fosse sua única opção. Mas tudo
havia começado a desmoronar cedo demais.
E a torneira da pia do banheiro estava aberta já fazia
tempo demais. Com sorte, seria só Yuri limpando os
cortes. Não que aquilo fosse ser um problema. Não era a
primeira vez que o controle de Mel era testado. E ela não
teria o menor problema em passar quantas horas
precisasse sem respirar, apenas para não sentir o cheiro
do sangue.
Ela deveria sair e se alimentar. Era o mais seguro.
Mas não podia. Ou melhor, não queria. Mel não pensava
que teriam mais algum problema naquela noite – o
ataque havia sido só um aviso e um teste. Mesmo assim,
ela precisava no mínimo esperar Yuri cuidar dos seus
ferimentos e sair do banheiro, primeiro. Se Mel estivesse
errada e Dama Cordelia ou Damien tentassem fazer
alguma coisa, Yuri precisava estar alerta. Ela não correria
o risco de que ele fosse pego de surpresa porque estava
no banheiro.
E Mel não deveria se importar com aquilo. Ele era só
um humano. Alguém útil para os seus planos e um
homem que ela queria quebrar e ter na sua cama, sim.
Mas ainda era apenas um humano, mesmo que fosse o
humano que havia enfrentado Damien para defendê-la.
Ela não deveria estar se preocupando com a segurança
dele – mas estava. Estava, porque sabia que, se
acontecesse alguma coisa enquanto ela estivesse
inconsciente, ele a defenderia sem hesitar.
A torneira foi fechada. A porta do banheiro se abriu e
se fechou. Bom.
Mel subiu as escadas devagar. Aquela noite não
tinha sido nada como ela imaginara. Não importava o
que viesse depois, ela teria que se preparar para o pior.
E ainda não tinha terminado. Mel conseguia sentir a
presença de Dama Cordelia na casa. Não. No quarto.
Ela correu pelo restante da escada e abriu a porta
sem bater.
Nada. A princesa não estava ali. Yuri estava sozinho,
do outro lado do quarto, de costas para a porta, com os
dois braços apoiados na parede e respirando de forma
pesada. Ele tinha tirado o sobretudo e havia curativos
nos seus braços, mas não era aquilo que estava
disparando todos os instintos de Mel.
Ele não havia se virado. Yuri não tinha reagido
quando ela havia aberto a porta e ainda não tinha falado
nada.
A impressão de Dama Cordelia estava
desaparecendo e Mel não fazia ideia de onde aquilo tinha
vindo. Mesmo se a princesa tivesse plantado algum tipo
de compulsão em Yuri, não haveria uma sensação tão
forte. E ela não deveria ter sido capaz de plantar alguma
compulsão. Dama Cordelia tinha o poder de compelir
humanos, mas não a uma distância tão grande.
— Yuri? — Ela chamou.
Ele fez um ruído grave e abafado que quase parecia
um gemido e não se virou.
Mel respirou fundo. O cheiro do sangue ainda estava
ali, fazendo todos os seus instintos gritarem que o
humano do outro lado do quarto era sua presa e mais
nada. Mas havia mais ali, por baixo do sangue.
Havia o mesmo perfume que ela havia sentido nos
salões da cidade, na noite anterior. E no castelo, mais
cedo.
Desejo. Excitação. Aquela tensão deliciosa de algo
que já era uma certeza, mas que só viria na hora certa.
Mel tinha sentido a atração de Yuri antes. Aquele era
o motivo para ela ter decidido que o teria: ele queria,
mas estava se negando. Se não houvesse nada ali, ela
não perderia seu tempo.
Mas o que ela estava sentindo ali não era Yuri. Ou,
pelo menos, não totalmente ele.
— Quando isso aconteceu? — Mel perguntou.
Yuri respirou fundo e soltou o ar com um ruído grave
de novo.
— Você não deveria estar aqui — ele falou.
Não, não deveria. O que ela estava sentindo naquele
quarto era o suficiente para forçar todos os seus
instintos. Mas Mel não ia virar as costas e deixar Yuri lidar
com aquilo – especialmente se fosse o que estava
imaginando.
— Quando isso aconteceu? — Ela repetiu.
Ele respirou fundo de novo.
— Depois daqueles vampiros. Quando estávamos na
moto.
Mel fechou uma mão com força. Se olhasse para
baixo, veria as marcas do seu poder subindo pelo seu
braço, mas não havia nada que ela pudesse fazer.
Dama Cordelia tinha sido cuidadosa. Era uma
compulsão, sim, mas não era uma das compulsões
comuns. Ela havia colocado um gatilho, de certa forma –
e o ataque dos vampiros quando estavam saindo do
castelo havia sido o suficiente para ativar a compulsão.
Era possível que qualquer sensação mais forte fosse ter
ativado aquilo.
— Isso foi uma armadilha — ela murmurou.
Yuri riu sem humor nenhum e sem mudar de posição.
— Notei.
Não, ele não tinha notado. A armadilha não havia
sido para ele. Tinha sido para Mel. Ele era só um alvo
conveniente no caminho.
Dama Cordelia esperava que Mel perdesse o
controle. A princesa sabia que ela não havia se
alimentado desde que chegara ali. Sabia que ela tinha
passado uma noite na cidade. Aquele salão, no castelo,
havia sido o golpe final. Qualquer vampiro seria afetado
por estar ali – e Melissa mais ainda, porque conseguia
sentir o que estava no ar.
E ali estava o resultado. O humano que ela tinha
passado os últimos dias pensando em como quebrar, em
como fazer com que ele voltasse atrás em tudo o que
havia falado e escolhesse Mel, sendo oferecido para ela
quase em uma bandeja, enquanto suas presas doíam e a
fome era um fogo começando a queimar nas suas veias.
Mel atravessou o quarto devagar e parou atrás de
Yuri. A blusa que ele estava usando – uma das que ela
havia escolhido – era mais fina do que parecia e não
escondia nada de como os músculos das costas dele
estavam tensos. Todo ele estava tenso, parado no
mesmo lugar, encarando a parede e respirando fundo. E
Mel sabia que, se desse alguns passos para o lado, a
ereção dele estaria mais do que visível. Sua calça não
conseguiria disfarçar aquilo.
— Não — ele falou, ainda com aquela tensão na voz.
— Fique longe.
Porque ele estava tentando se controlar, ou porque
ele achava que ela não ia conseguir se controlar?
Mel balançou a cabeça devagar. A armadilha podia
ter sido para ela, mas Dama Cordelia a havia
subestimado demais se imaginara que aquilo seria o
suficiente para que perdesse o controle. E se Yuri
estivesse tentando se controlar...
— Eu não vou fazer nada — ela avisou.
Yuri deu uma risada seca e tensa.
Tentando se controlar, então – e Mel sabia
exatamente o que tinham feito com ele. O que ele estava
sentindo. O desejo, sim. A necessidade de uma forma
que nunca teria sentido antes, quase como se fosse o
efeito de uma mordida, mas sem o prazer.
— Você não vai fazer nada, também — Mel falou. —
Não se não quiser e se eu não quiser.
E conter um humano, mesmo um ex-mercenário, não
seria difícil para ela. Mel não precisaria nem usar sua
habilidade.
Yuri deu aquela risada seca de novo mas pareceu
relaxar um pouco. Bom.
Mel encarou as linhas do seu corpo. A tensão, a
forma como ele estava inclinado para a frente, na direção
da parede. Suas presas estavam doendo e ela sabia
muito bem o que queria fazer – da mesma forma como
sabia que se alimentar de Yuri naquela hora seria passar
de um limite que Mel sempre havia sido cuidadosa para
evitar. Então ela não faria aquilo.
Mas não precisava ser tudo. Mel teria que se
alimentar, depois, de qualquer forma. E sangue não era a
única coisa que ela queria.
Mel se aproximou mais de Yuri. Ele continuou do
mesmo jeito contra a parede enquanto ela parava nas
suas costas, tão perto que conseguia sentir o calor do
seu corpo. Pelo menos ele não tinha ficado mais tenso.
Mel colocou uma mão na cintura dele e a outra no
seu ombro.
— Você pode tentar resolver isso sozinho — ela falou.
— Mas não sei se sua mão seria o suficiente para quebrar
o que fizeram.
Ela já tinha visto aquele tipo de compulsão ser usada
antes – e nenhuma das vezes por algum vampiro tão
forte ou antigo quanto Dama Cordelia. Aquilo era feito
para forçar um tipo de situação e a compulsão não se
satisfazia até ser atendida.
Dama Cordelia pagaria, depois.
Yuri fez um som abafado.
— E a sua mão seria?
Mel moveu a mão que estava na cintura de Yuri para
sua barriga, sentindo o tecido fino da sua camiseta e os
músculos dele se contraindo sob seu toque. Seria fácil
demais descer a mão e sentir o que ele estava tentando
esconder.
— Provavelmente também não — ela contou.
Ele soltou o ar com força.
Mel apoiou o queixo no ombro dele.
— Você me quer — ela murmurou. — Você já
imaginou o que queria fazer comigo, mais de uma vez, e
desde antes de chegarmos aqui. Mais cedo ou mais
tarde, isso aconteceria.
— Nunca — Yuri falou.
Ela sorriu. Ele ainda negava, mas ela havia sentido
exatamente quanto os batimentos dele haviam acelerado
com o comentário dela – e não era por medo.
Mel não se importava. Ele não tinha medo e ele
ainda tinha uma escolha. Não era o que havia imaginado,
mas ela não reclamaria. E ainda teria tempo para fazer
Yuri pedir pela sua mordida, depois. O jogo não havia
mudado.
— A escolha é sua — ela falou.
Yuri ficou tenso de novo.
— Isso pode ser só você me manipulando, também,
Serpente. Se preparando para dar o bote e conseguir o
que quer.
Mel levantou a cabeça passou uma unha pelo lado
do pescoço de Yuri. Um arrepio o atravessou, mas ele
continuou parado no lugar.
Ela se inclinou, até estar com a cabeça perto demais
do seu ouvido.
— Poderia. Minha habilidade me permitiria fazer isso,
sim — ela murmurou. — Mas você acredita que eu faria
algo assim?
Yuri não respondeu.
Ela não deveria ter perguntado. Mel sabia
exatamente do que era capaz ou não. Se fosse
necessário, ela não pensaria duas vezes antes de fazer
algo pior que o que Dama Cordelia havia feito. Mas Mel
nunca faria aquilo por causa de jogos políticos sem
sentido. Ou só para conseguir algo que lhe estava sendo
negado.
E ela também não deveria se importar com como um
humano a via ou com o que ele pensava dela.
Mel soltou Yuri e se afastou.
Ele segurou seu pulso, sem se virar.
— Não — Yuri murmurou.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Não?
Yuri apertou o pulso dela e puxou a mão de Mel de
volta para onde estava antes, na sua barriga.
— Não acho que você faria algo assim — ele
completou.
Algo em Melissa relaxou. Pelo menos aquilo. Pelo
menos ele sabia que existiam limites.
E ela estava usando cada fio do seu controle para
continuar parada, sentindo o calor do corpo dele e sua
tensão, sem fazer nada.
— A escolha é sua — ela repetiu. — Se for o que
quer, eu vou sair e deixar você lidar com isso como
conseguir. Sua mão provavelmente não vai ser o
bastante, mas o efeito vai passar mais cedo ou mais
tarde.
Mais tarde, se ela precisasse dar uma estimativa.
Dama Cordelia não faria algo daquele tipo sem garantir
que seria quase insuportável.
Yuri respirou fundo. Ele ainda estava tenso, daquele
jeito que quase parecia doloroso, e Mel conseguiu sentir
quando um tremor atravessou o corpo dele.
Ele deixou a cabeça cair para a frente.
Provavelmente não era proposital, mas Mel não
conseguia não encarar a curva do seu pescoço. Era o
lugar onde ela morderia, se ele desse permissão. Não. Se
ele pedisse. Porque ao menos aquilo ela teria, sim.
— Fique — Yuri falou.
Mel passou a língua pelos lábios. Não era o que ela
tinha planejado, mas ela não recusaria.

Yuri sabia que deveria ter recusado. Se tivesse falado para


Melissa sair do quarto, ela teria saído – porque mesmo
sendo uma vampira, ela respeitava quando alguém
colocava seus limites.
Mas ele não tinha feito nada daquilo e a única coisa
que conseguia sentir era o corpo dela atrás do seu. A
mão dela na sua barriga e a forma como a pele de
Melissa era mais fria que a sua. Vampira. A mesma
vampira que tinha destruído seu destacamento.
E aquilo não fazia a menor diferença. Ele ainda
queria Melissa. Nada nunca tinha feito diferença sobre
aquilo.
Ela desceu a mão pela barriga de Yuri. Ele respirou
fundo e soltou o ar devagar. Parecia que toda a sua
atenção estava naquele toque. No que ela ia fazer.
Melissa levantou a blusa de Yuri. O toque dela na sua
pele foi quase um choque – e era um alívio, ao mesmo
tempo, porque a compulsão estava relaxando.
Ele teria Melissa. Ele ia ter o que tinha imaginado
vezes demais. Aquela era a única parte da situação que
importava. A compulsão podia relaxar, porque já tinha
conseguido o que queria.
Ela desceu a mão pelo seu abdome e enfiou os
dedos por baixo do cós da calça. Um arrepio atravessou
Yuri.
Ele se lembrava da sensação de quando ela tinha
tomado seu sangue, algumas noites antes, depois de se
encontrarem no bar. Da língua de Melissa na sua pele e
de como ele tinha sentido como se ela estivesse
passando a língua no seu pau e não no seu braço.
Só se lembrar daquilo era o suficiente para deixar
Yuri mais duro ainda. Ele deveria se virar. Deveria
empurrar Melissa contra a parede e fazer exatamente o
que tinha pensado aquela noite no bar. Ia ser fácil. Ela
não recusaria, não quando já estava com a mão dentro
da sua calça.
Não. Era diferente aceitar o toque dela e tomar a
iniciativa. A partir do momento em que ele fizesse aquilo,
estaria deixando para trás tudo o que sempre tinha
jurado para si mesmo.
Yuri ia esperar. Ia ver o que Melissa faria.
Desconforto não era algo novo para ele. Nem dor, na
verdade.
Melissa o soltou de uma vez e se afastou.
Yuri se virou. Ela estava parada a alguns passos de
distância, olhando para ele, e as marcas nos braços de
Melissa estavam aparecendo de novo. Ela estava usando
seu poder.
Sua pistola estava na mesinha ao lado da cama. Ele
não deveria ter relaxado. Mas ainda estava com suas
facas.
— O que foi? — Ele perguntou.
Os olhos de Melissa escureceram e as marcas nos
seus braços cresceram mais.
— Eu não vou ser uma obrigação — ela falou, com a
voz baixa e gelada de um jeito que ele nunca tinha
ouvido antes. — Não vou ser uma coisa que você vai
fazer porque está dizendo para si mesmo que não tem
opção e que depois vai insistir em dizer que não foi sua
escolha.
Porque não era.
Yuri respirou fundo e travou os dentes. Era como se
ele estivesse sendo puxado para Melissa – como se ela
fosse um ímã para o seu corpo.
Aquilo não era ele. Ele se controlava. Ele nunca teria
nada com uma vampira e muito menos com ela. O que
estava acontecendo era por causa da compulsão.
— E isso faz alguma diferença? — Ele perguntou.
Melissa se endireitou. As mãos dela ficaram
completamente pretas.
— Nunca na minha existência eu aceitei esse papel
— a vampira falou. — Não vou começar agora.
Ele precisava de cada fio do seu controle para não a
puxar e empurrar contra a parede. Yuri queria as mãos
dela nele. Queria sentir o corpo dela contra o seu.
Ele queria Melissa – e aquilo nunca tinha sido a
compulsão. Sempre tinha sido só ela. Mas nada tinha
mudado. Eles ainda estavam de lados opostos.
— O que você esperava? — Yuri começou. — Que eu
fosse agir como um adolescente apaixonado? Que fosse
jogar tudo o que acredito fora por causa da vampira que
destruiu meu destacamento?
Era o que ele queria fazer. Era exatamente o que ele
queria. Mas não podia.
Ela levantou a cabeça.
— Eu esperava honestidade. Se não comigo, consigo
mesmo.
Yuri fechou as mãos com força. Honestidade. Ela
estava cobrando honestidade dele, sendo que aquilo só
estava acontecendo por causa dela e dos seus jogos de
poder. Se ela não tivesse falado nada, aquela compulsão
nunca o afetaria. Se ele não tivesse estúpido o suficiente
para acreditar, nada daquilo estaria acontecendo.
Melissa continuou olhando para ele, sem sair do
lugar.
— Eu não esperava um adolescente apaixonado —
ela falou. — Esperava um homem capaz de fazer suas
escolhas.
Ela se virou para sair.
Não.
Algo em Yuri se soltou – ou se quebrou, ele não tinha
certeza. E não importava se era a compulsão ou ele,
porque o que queria era a mesma coisa: Melissa.
Ele segurou o pulso da vampira e a puxou de uma
vez. Melissa bateu as costas na parede e mostrou as
presas, chiando como uma cobra.
Yuri a beijou.
Ela não reagiu. Por um instante ele teve certeza de
que ela ia empurrá-lo, mas então Melissa estava beijando
de volta. A vampira passou uma perna ao redor da
cintura dele, o prendendo no lugar e o apertando contra
ela. Yuri fez um ruído grave. Ele não ia a lugar nenhum.
Não por um bom tempo.
Honestidade.
Ele não deveria estar fazendo aquilo. Mas era o que
queria fazer.
Yuri levantou a cabeça. Melissa o encarou sem falar
nada. O batom dela estava borrado e não fazia nem
sentido, mas aquilo era mais satisfatório do que deveria
ser. Ela sempre estava impecável. Sempre. Mas não ali.
Não com ele.
Yuri puxou uma das suas facas e cortou as amarras
na frente do corset de Melissa. Os olhos dela
escureceram e o corset se abriu.
Ele enfiou a faca na parede.
Melissa segurou a blusa de Yuri e puxou. O tecido se
rasgou como se fosse papel fino.
Sim. Mais. Aquilo era exatamente o que ele queria e
ele queria mais.
Melissa afastou as costas da parede. O corset caiu no
chão. A saia dela caiu logo depois e Yuri levantou os
olhos devagar. Seu sangue estava queimando. Seu corpo
estava queimando e não era nada que ela estivesse
fazendo.
E ela não estava usando nada por baixo da saia.
Nada. Aquele tempo todo, se Yuri tivesse imaginado
aquilo...
Ele não teria feito nada. Ele teria se controlado. Mas
não tinha como se controlar agora. Não tinha como
recuar – e nem queria.
Yuri terminou de tirar suas roupas depressa, sem
desviar o olhar do de Melissa. Ele sabia o que ia
acontecer assim que a tocasse. E era perigoso não
precisar nem do toque para perder o resto do seu
controle, porque a forma como ela o encarava, como se
estivesse esperando que ele fizesse exatamente aquilo,
tinha um efeito mais forte que qualquer coisa que a
vampira pudesse falar.
Melissa colocou uma mão no peito dele e desceu
devagar, com um sorriso satisfeito no rosto. Yuri respirou
fundo e continuou parado. Era ficar parado ou avançar
para ela de uma vez e ele era melhor que aquilo. Yuri não
perdia o controle. Nunca tinha perdido.
Mas estava perdendo, ali.
O toque de Melissa era frio contra sua pele, de um
jeito que o forçava a prestar atenção no caminho que os
dedos dela estavam fazendo, descendo pelo seu abdome
devagar demais. Ele respirou fundo de novo e fechou as
mãos com força. Não ia fazer nada.
Mesmo que quisesse tirar a mão de Melissa do
caminho, a prender contra a parede e descobrir se a
sensação dela ao redor do seu pau também seria fria.
A mão dela era.
Yuri fez um ruído grave quando ela segurou seu pau
e desceu a mão devagar.
Ela estava ali porque queria. Ela sabia.
— Não — ele falou.
Melissa sorriu e apertou seu pau, subindo a mão
devagar antes de descer de novo.
Yuri travou os dentes. Não ia fazer o que ela queria.
Ela não estava no controle ali. Ele estava. E se controlar
não era uma opção.
Ele segurou o pescoço de Melissa. Ela mostrou as
presas.
— Se não quiser isso, é só me parar — Yuri falou.
Os olhos dela ficaram mais escuros ainda, com o
preto se espalhando para fora da íris.
Melissa soltou Yuri e levantou a mão devagar, até
que ela estava encostada na parede, também.
— E o que você vai fazer? — Ela perguntou.
Ele levantou a perna de Melissa. A vampira sorriu de
novo e dobrou a perna ao redor da sua cintura,
apertando o calcanhar contra as suas costas.
Aquilo era um desafio. Yuri sabia que era. E não tinha
o menor problema em aceitar.
Ele entrou nela de uma vez.
Perfeição.

Yuri sentiu a compulsão ao seu redor relaxar. Ele


estava fazendo o que ela queria. Aquilo deveria
incomodar, mas não fazia diferença, porque também era
o que ele queria. E agora que estava ali, ele fazia
questão de ter tudo.
E a sensação de estar em Melissa não era o que ele
esperava. Não era frio, só era... diferente.
Melissa apertou a perna que estava ao redor de Yuri
e segurou o cabo da faca enfiada na parede.
— Até onde? — Ela perguntou.
Yuri levantou a cabeça. Os olhos dela estavam
completamente pretos, sem nenhum sinal de íris ou da
parte branca.
Quem via um vampiro com os olhos pretos não
sobrevivia – era o que as histórias diziam. Ele deveria
estar preocupado. Deveria estar com medo. No mínimo,
deveria estar se afastando.
Ele inclinou a cabeça na direção de Melissa e mordeu
o lábio dela de leve, puxando um pouco antes de soltar.
Ela fez um ruído que era quase um gemido mas não era
humano.
— Sem sangue — Yuri falou.
Os olhos dela faiscaram, ainda completamente
pretos. Ele estava brincando com o perigo e tinha plena
consciência daquilo.
— Então é melhor você fazer um trabalho bom o
suficiente para eu não sentir falta do sangue — Melissa
murmurou.
Ah, ele ia. Se ela queria um desafio, então Yuri
aceitaria. E ele fazia questão de fazer Melissa gritar antes
de sair dali. Ela ia engolir cada uma daquelas palavras.
Ele se moveu nela, devagar. Melissa fez um ruído
abafado que era quase um gemido. Ela era apertada ao
redor dele e Yuri não sabia por quanto tempo ia
conseguir manter aquele ritmo. O entrar e sair devagar,
com cuidado, sentindo cada centímetro do movimento e
cada reação de Melissa. Se forçando a sentir e não só se
perder na sensação.
Melissa bateu a mão livre na parede e apertou Yuri
contra o seu corpo.
— Isso não é me fazer não sentir falta do sangue —
ela praticamente sibilou. — Isso é me fazer querer beber
de você só para ver se vai perder o controle.
Ele sorriu e colocou uma mão no pescoço dela de
novo.
— Mas você não vai — Yuri falou.
Melissa mostrou as presas e não respondeu. Ele se
moveu nela de novo, saindo e voltando devagar, e ela
deu um gemido baixo.
Yuri estava segurando Melissa, sim. Estava com a
mão no seu pescoço e a prendendo contra a parede. E,
se ela quisesse, poderia ter se soltado em qualquer
momento. Ter consciência daquilo era quase mais
excitante do que qualquer outra coisa até então, porque
queria dizer que ela estava lhe dando o controle. Que ela
queria aquilo, exatamente daquele jeito. Com a
provocação, com a negação, com tudo.
E então Yuri ia ter exatamente o que ele queria,
também.
Ele segurou a perna de Melissa, a inclinando contra a
parede antes de sair e entrar nela de novo, depressa e
com força. Ela gemeu se se moveu contra ele,
acompanhando o ritmo rápido, pesado e quase violento
que Yuri estava mantendo.
Sim. Era aquilo que ele queria. Que ele precisava
depois de tanto tempo tentando não pensar em Melissa,
não imaginar exatamente o que estava acontecendo ali.
E, pela forma como ela estava gemendo e se
movendo contra ele, Melissa também queria exatamente
aquilo. A força e a violência, sim.
Algo fez um ruído metálico.
— Não pare! — Melissa avisou.
Ele não ia parar. Não conseguiria nem se quisesse.
Não quando estava sentindo Melissa se apertando ao seu
redor enquanto ele se movia depressa, com mais força
do que deveria. E quando ela estava gemendo de um
jeito quebrado, ainda com os olhos completamente
pretos, como se não tivesse nenhum fio de controle e
não se importasse com aquilo.
Melissa jogou a cabeça para trás, batendo na
parede. Os gemidos dela não eram altos, mas era como
se ela não conseguisse fazer nenhum som. Aquilo era
quase tão satisfatório quanto se ela tivesse gritado.
E ela estava se contraindo ao redor do seu pau, o
apertando de um jeito que, mesmo se Yuri quisesse, ele
não conseguiria se controlar.
Yuri levantou a perna de Melissa ainda mais, se
movendo com o mesmo ritmo rápido, sem parar – até
que era ele perdendo o controle enquanto gozava. E
ainda continuava se movendo contra ela, num ritmo
quebrado que era uma tentativa de fazer aquilo durar.
Mas não podia durar.
Ele parou e respirou fundo, antes de apoiar a mão na
parede e soltar a perna de Melissa. Se afastar era difícil,
porque ele queria mais – e não podia colocar a culpa na
compulsão. Ele tinha feito o que havia imaginado
naquela noite no bar, sim. Mas não era o suficiente.
Precisava ser, porque nada tinha mudado. Não podia
ter mudado.
Ele deu um passo atrás e se endireitou.
A faca ainda estava enfiada na parede, ao lado de
onde estavam, mas o cabo dela era uma massa sem
forma.
Então aquilo tinha sido o ruído metálico. Melissa
tinha amassado o cabo da faca como se fosse feito de
plástico ou alguma coisa mais fraca ainda.
— Te dou outra faca depois — ela falou.
Yuri se virou para ela. Os olhos de Melissa estavam
voltando ao normal e ela ainda estava encostada na
parede. Mas a melhor parte era a expressão satisfeita
dela. Ele tinha feito aquilo.
E ela não tinha gritado – mas Yuri ia considerar a
faca destruída como uma reação equivalente.
Ela arrancou a faca da parede e a jogou em cima da
cama.
Yuri continuou parado, encarando Melissa. Ele não
tinha esperado nada daquilo. Era contra tudo o que ele
acreditava. Ele deveria estar se arrependendo, agora que
o efeito da compulsão tinha desaparecido
completamente. Mas não estava. Muito pelo contrário:
Yuri queria mais.
Melissa fechou os olhos com força e balançou a
cabeça antes de começar a pegar suas roupas.
Seria o auge da ironia se ela estivesse se
arrependendo.
— O que foi? — Yuri perguntou, sem sair do lugar.
Ela se virou para ele.
— Preciso me alimentar — Melissa contou. — Estava
planejando fazer isso assim que voltamos, mas...
Mas a compulsão tinha ativado e ela tinha ido atrás
de Yuri ao invés de ir se alimentar.
E, por algum motivo, a ideia de Melissa saindo dali
para se alimentar de alguma pessoa qualquer nas ruas,
logo depois do que tinha feito, incomodava Yuri mais do
que deveria. Não fazia sentido, mas incomodava.
Ele esticou um braço na direção dela.
— Então se alimente — Yuri falou.
Melissa parou e se virou para ele. Os olhos dela
começaram a escurecer de novo, mas podia ter sido só
uma impressão, porque no instante seguinte estavam
normais.
Ela balançou a cabeça.
— Eu não vou me alimentar de você — ela avisou.
Porque ela não aceitaria sangue dado como uma
obrigação. Ele tinha se esquecido daquilo.
— E por que não? — Yuri perguntou. — Não é uma
obrigação.
Melissa riu de um jeito que parecia quase afiado.
— Não é uma obrigação, mas está parecendo demais
com pagamento.
Yuri não respondeu. Ela não estava errada. Mas ele
também não pensava que ele estava errado em querer
fazer algo em troca do que ela havia feito – porque Yuri
sabia que Mel não precisava ter feito na sobre a
compulsão.
Ela parou na frente de Yuri, tão perto que, se ela
fosse humana, ele estaria sentindo o calor da sua pele.
— Tudo ou nada, Yuri Freitas — Melissa murmurou. —
O dia que eu tomar mais do seu sangue vai ser porque
você está pedindo pela minha mordida.
Um arrepio atravessou Yuri. Ele não deveria ter nem
um pingo de curiosidade sobre aquilo. Ele sabia o que
acontecia com as pessoas que viravam alimento dos
vampiros. Tinha precisado lidar com viciados demais
quando ainda estava no Setor Seis.
Mas ele estava curioso e aquilo era um problema.
Melissa terminou de pegar suas roupas e saiu do
quarto.
Não demorou muito para ele ouvir a porta da casa se
abrindo e depois sendo fechada de novo. Ela estava indo
se alimentar. Indo caçar.
E ele não deveria estar incomodado com aquilo.
ONZE

Mel encarou o teto do quarto. Não importava o quanto tivesse


tentado arejar o cômodo, ela ainda conseguia sentir os
restos do que haviam feito. Aquilo deveria ser um
incômodo, mas por algum motivo não era. Na verdade,
era algo quase satisfatório.
Desde a primeira vez que Mel tinha visto Yuri, ela
havia pensado que ele seria no mínimo uma companhia
interessante se conseguisse tê-lo na sua cama. No fim
das contas, ela não havia precisado da cama – e aquilo
tinha sido mais que interessante. Mel quase havia
esperado algum comentário no sentido de que ele havia
perdido o controle por causa da compulsão, mas não. Yuri
não tinha tentado negar que havia feito exatamente o
que queria.
O que queria dizer que ela não tinha nem
conseguido ficar irritada por precisar caçar na cidade.
Teria sido melhor se alimentar de Yuri, sim, e Mel havia
ficado mais que tentada. Mas a possibilidade de ter tudo
de Yuri era irresistível. Ela queria ver a reação dele
experimentando sua mordida pela primeira vez,
enquanto estava dentro dela. Então Mel teria paciência.
E aquilo deveria ser a última preocupação de Mel.
Damien estava ali. Dama Cordelia estava em contato
com seu príncipe – mais contato do que o que era normal
para os acordos entre os setores. E aquela compulsão em
Yuri...
Mel sempre fizera questão de se manter informada
sobre os vampiros mais fortes dos setores ao redor do
Seis, especialmente os que poderiam ser um problema
para ela. E Mel sabia mais do que deveria sobre Dama
Cordelia, por causa da insistência da princesa em ter Mel
no seu setor, cem anos antes. Ela só não havia
conseguido porque pensava que precisava convencer
Melissa a querer ir para lá. Nem mesmo Dama Cordelia
sabia que Mel não tinha opção sobre em qual setor
estaria. Ela havia sido oferecida para o príncipe do Setor
Seis e aquilo era parte da sua punição por ter tentado se
libertar.
A princesa ficaria furiosa se soubesse. Ela acharia
um absurdo terem prendido Mel com um juramento
porque tinham medo da sua habilidade. E talvez aquilo
pudesse ser útil, depois – mas primeiro ela precisava
entender o que estava acontecendo.
Pelo que Mel sabia, Dama Cordelia não deveria ter
conseguido criar uma compulsão como aquela em Yuri.
Se estivessem no castelo, sim. Faria todo sentido e era
algo que Mel havia esperado que acontecesse. Mas não
uma compulsão que fosse ser disparada quando já
estavam sozinhos. Aquilo era algo diferente, específico.
Era algo programado e Mel nunca tinha ouvido falar de
ninguém na região que fosse capaz de algo daquele tipo.
Era possível que a habilidade fosse um segredo, mas...
Não fazia sentido. Mesmo que Dama Cordelia fosse
capaz de algo daquele tipo e tivesse escondido a
habilidade, o que ela ganharia se Mel perdesse o controle
enquanto estava a sós com Yuri? Para aquilo ser uma
vantagem para a princesa, Mel teria que perder o
controle em público. Se ela atacasse Yuri, precisaria de
proteção para evitar as consequências. Precisaria de
ajuda para esconder o que havia feito. Não importava
como tudo se resolvesse, ela estaria devendo pelo
menos um favor para Dama Cordelia. Mas, se alguma
coisa acontecesse em particular, Mel conseguiria conter
a situação sozinha.
Não fazia sentido – o que queria dizer que ela não
tinha alguma informação.
Ou talvez ela tivesse ignorado uma informação,
porque Yuri era imune e aquilo já era um risco. Mas havia
mais.
Nem todos os bruxos que eram imunes conseguiam
controlar a imunidade. Yuri conseguia. Ela tinha sentido
aquilo no poder dele e em quando ele havia diminuído
sua resistência, no castelo. E deveria ter se lembrado
antes do que aquilo significava.
Mel se levantou e saiu do quarto. Algo estava
fervendo na cozinha. Bom.
Ela desceu as escadas e atravessou a sala sem fazer
ruído. Yuri estava parado na cozinha, de braços cruzados
e encarando uma chaleira no fogão.
— Você estava tentando controlar sua imunidade
enquanto estávamos no castelo — ela falou.
Yuri se virou para ela, com uma pistola na mão.
Rápido. E talvez se aproximar sem fazer ruído não tivesse
sido sua melhor ideia.
Ele respirou fundo e guardou a arma antes de olhar
para a chaleira de novo.
Uma chaleira. Pela hora, fazia sentido. Seu rebanho
também gostava de fazer um lanche no meio da tarde.
Mas não havia nenhum sinal de que ele havia feito algo
para comer mais cedo e aquilo podia se tornar um
problema.
— Estava — Yuri respondeu, seco.
Mel o encarou. Ela não ia usar nenhum tipo de
compulsão nele. Não precisava. O peso do seu olhar era
o suficiente.
Ele se virou para ela e a encarou com a mesma
expressão dura e distante de quando haviam conversado
pela primeira vez, no Setor Seis.
— E se não tivesse feito isso, Dama Cordelia teria
notado o que você é — Mel falou.
Ele soltou o ar com força e balançou a cabeça.
— E se ela tivesse notado, teria me matado. Já ouvi
isso antes.
Yuri encarou a chaleira de novo. Ele estava irritado.
Seria mais fácil se ela esperasse ele se acalmar – ou até
terminar qualquer tipo de discussão mental que
estivesse tendo consigo mesmo. Mas Mel não tinha
tempo para aquilo.
Ela estreitou os olhos e se encostou na parede.
— Me diga, você sentiu sua cabeça doer?
Ele se virou para ela devagar e levantou as
sobrancelhas.
Yuri tinha sentido a cabeça doer.
Descuidada. Ela tinha sido descuidada, mas... Em
sua defesa, Mel nunca havia precisado imaginar aquela
possibilidade.
— Era como água, a dor? — Ela perguntou. — Como
ondas, batendo contra sua mente e recuando?
Yuri não respondeu, mas Mel conseguia notar sua
tensão. Era resposta o suficiente.
Quanto tempo fazia? Cem anos? Não. Quase cento e
vinte. Havia sido logo depois que ela tinha sido
transformada, quando ainda não sabia tudo o que podia
fazer.
Mel nunca se esqueceria da vampira presa em uma
cela, no castelo de uma Corte que seu mestre estava
visitando. A expressão de desespero da mulher estava
gravada na sua memória e havia sido o combustível para
garantir que Melissa aprenderia a controlar sua
habilidade antes de qualquer um entender o que ela
realmente podia fazer.
— Dama Cordelia não teria te matado — Mel contou.
— Ela teria te prendido. Você nunca sairia do Setor Cinco.
Ele balançou a cabeça devagar.
— Um humano com imunidade não vale isso tudo.
Ela fechou a mão com força. Se pudesse, estaria
empurrando Yuri contra a parede de novo, o segurando
pelo pescoço. Parecia que aquela era a única forma de
fazer com que ele a ouvisse.
— Porque você não sabe o que fazer com essa
imunidade — ela falou, seca. — Mas as Cortes sabem. Os
vampiros mais antigos se lembram. Aqueles com
qualquer habilidade mental são ensinados a reconhecer
pessoas como você.
Como ela tinha sido ensinada – tanto tempo atrás
que havia deixado os sinais passarem. Mas Mel sabia que
outros não seriam tão descuidados.
— Você já falou isso antes — ele comentou.
Ele não estava levando a sério.
— Os mais fracos são mortos. Os que têm a
imunidade mas ela é diluída demais para ser útil — Mel
contou. — Os que são como você, os que conseguem
sentir o poder... Esses devem ser transformados.
A chaleira apitou. Yuri a ignorou.
— Você já falou o suficiente sobre isso. Eu entendi.
Mel bateu a mão na meia parede baixa que separava
a cozinha da sala. O bloco de granito em cima dela
trincou.
Força demais. Aquilo não era Melissa. Ela não perdia
o controle. Ela era calma e controlada, não importava o
que acontecesse. Precisava ser.
Mas um humano a ignorando era o suficiente para se
esquecer de tudo aquilo.
Não. Aquele humano a ignorando – porque Yuri era a
única pessoa que ela avisaria de um risco como aquele.
Mel apoiou os braços na pedra trincada e se inclinou
para a frente.
— Não. Você não entendeu. Você sabe o que fizeram
com Amon. Sabe como ele foi usado como uma arma,
passado de setor em setor. As Cortes fariam a mesma
coisa com você. Você seria uma arma deles e mais nada.
Yuri não respondeu. A chaleira continuou apitando.
— Você ainda pode se tornar uma arma das Cortes,
se for descuidado — ela falou.
— E por que você não falou nada disso antes? Você
teve dias...
— Porque eu não sabia!
Mel tinha gritado.
Ela respirou fundo e se endireitou.
Ela não deveria se importar. Não deveria se
preocupar. Aquele era o motivo para se manter afastada
de todos. Era mais fácil quando ela não se importava. Se
importar levava a se apegar, e se apegar levava a Mel
assistindo enquanto um humano morria.
Mas ela não conseguia ignorar aquilo.
Yuri desligou o fogão e colocou a chaleira para o
lado.
— A única vez que encontrei alguém com esse tipo
de imunidade, foi mais de cem anos atrás — Mel contou.
— Foi antes de eu vir para essa região, quando ainda era
uma neófita.
E quase tinha morrido por causa daquilo.
— A compulsão não deveria ter sido ativada quando
saímos do castelo. Deveria ter sido ativada lá, enquanto
estávamos naquela sala — ela continuou. — Era uma
armadilha, mas era uma armadilha para mim. Dama
Cordelia queria que eu perdesse o controle em público e
o atacasse. Você controlou a imunidade o suficiente para
a compulsão dela deslizar pela sua mente. Mas sua
resistência estava baixa o suficiente para o poder não
desaparecer completamente, então quando parou de
controlar a imunidade...
— A compulsão ficou presa — Yuri murmurou.
Mel assentiu.
— Isso não deveria fazer sentido — ele resmungou.
— Isso não é nada físico para ficar preso em algum lugar.
Nenhum poder das bruxas funciona assim.
Mel deu de ombros. Até onde ela sabia, ele tinha
razão. Nada que as bruxas faziam era parecido com
aquilo. Mas ela já tinha visto algo parecido acontecer
antes.
Yuri respirou fundo, encarou o fogão desligado por
alguns segundos e olhou para Mel de novo.
— Uma arma — ele repetiu.
Ela assentiu.
Ele balançou a cabeça.
— É trabalho demais. Vocês não se dão a tanto
trabalho por uma possibilidade. Não correriam o risco de
me transformar e torcer para ter o resultado que
queriam.
Mel deu uma risada seca. De certa forma, Yuri ainda
era inocente.
— Eles se dariam ao trabalho por alguém com esse
tipo de imunidade, sim. Não pensariam duas vezes antes
de criar e prender uma nova arma.
— Você não tem como ter certeza.
Ah, ela tinha. Infelizmente.
— Foi assim que eu fui transformada. Suspeitavam
que eu pudesse ter alguma habilidade de compulsão e
uma suspeita foi o bastante. No seu caso, já seria uma
certeza.
Yuri a encarou, sem falar nada. Mel não ofereceu
mais informações.
Havia coisas que ela preferia evitar pensar. Aquela
era uma delas. Mel tinha feito o que precisava para
sobreviver, quando ainda era humana. Manipular
pessoas sempre havia sido algo natural para ela e Mel
nunca havia imaginado que pudesse ser algum tipo de
poder. Talvez não fosse, se tivesse continuado sendo
humana. Ela nunca tinha ouvido falar de bruxas com o
poder da compulsão. Mas suas manipulações haviam
chamado a atenção dos vampiros.
Não tinha sido escolha de Melissa. Ela não havia tido
nem a possibilidade de escolher entre a transformação e
a morte – e sabia que seria a mesma coisa se
descobrissem o que Yuri realmente podia fazer.
Ela indicou a chaleira com a cabeça.
— É melhor você fazer alguma coisa para você além
de chá. Temos trabalho a fazer essa noite.
Ele fechou as mãos com força.
— Se eu voltar naquele castelo, vai ser para matar a
vampira.
Dama Cordelia. Era óbvio que ele ia querer matá-la.
Tinha sido a primeira reação de Mel, também, cem anos
antes. Era uma pena que não tivesse sido tão simples.
Mel balançou a cabeça.
— Não vamos voltar no castelo.
Se pudesse evitar, não voltaria lá enquanto ainda
estivessem no Setor Cinco. O risco não valia a pena – não
quando ela não tinha conseguido nem um sinal de
informações. O que quer que estivesse acontecendo no
Setor Cinco, estava bem escondido demais.
Não. Eles iam sair da cidade e da área mais
movimentada do setor. Se não tinha encontrado nada ali,
então era hora de procurar em outro lugar – porque Mel
não ia parar enquanto não tivesse as provas que
precisava para negociar seu juramento.

Yuri queria poder fingir que nada tinha acontecido – tanto o que
tinha feito no quarto quanto depois. Aquilo não era ele.
Yuri nunca tinha sido a pessoa que empurraria alguém
contra a parede e a seguraria como havia feito com
Melissa. Ou melhor, ele nunca tinha pensado que fosse
aquela pessoa, porque nada ali tinha sido culpa da
compulsão. Ele tinha feito exatamente o que queria e
tinha imaginado. E Melissa tinha gostado.
Aquilo nem seria um problema se não fosse pela
forma como ele tinha ficado incomodado com a ideia de
ela beber de outra pessoa. E era pior ainda depois da
forma como ela tinha descido agindo como se estivesse
preocupada com ele. Como se Melissa estivesse furiosa
porque Yuri não estava parecendo se importar com o que
ela estava falando.
Era manipulação. Só podia ser. De alguma forma, ela
tinha conseguido fazer exatamente o que precisava para
ele se importar.
Não fazia diferença. Ele ainda achava que o aviso
dela era um exagero, mas não ia ignorar o que Melissa
tinha falado sobre a sua imunidade. E também não ia
ignorar o que tinha acontecido no castelo – porque
Damien tinha feito um comentário que talvez explicasse
por que ela estava tão interessada em manipular Yuri.
Ele pegou sua xícara de chá e encarou a vampira na
sala. Melissa tinha se sentado no sofá e estava
segurando algo que parecia um tablet.
— O outro vampiro falou alguma coisa sobre você se
recusar a dar um relatório — ele começou.
Melissa abaixou o tablet e se virou para ele devagar.
— Como disse, ele fala demais — ela respondeu.
Yuri se apoiou no balcão da cozinha.
— Exatamente — ele falou. — E isso provavelmente
está ligado ao motivo para você ter feito tanta questão
de ter alguém do Setor Dez com você aqui. O que foi que
você tinha falado? Que eu era a garantia de que o
príncipe do Setor Seis não ia questionar você estar aqui?
Melissa suspirou e colocou o tablet no sofá antes de
encarar Yuri. Ele não falou nada, só esperou. Se ela não
quisesse contar o que estava acontecendo de verdade,
não tinha nada que ele pudesse fazer. Mas aquilo era
importante. Se não fosse, Damien não estaria no Setor
Cinco por causa de Melissa.
— Meu príncipe quer informações sobre o Setor Dez
— ela contou. — E não o tipo de informações que eu
conseguiria na mente dos seus espiões no nosso setor.
Porque Melissa poderia ver o que cada uma das
pessoas que passavam pelo Setor Seis sabia. Todo o
pessoal de Dani, acostumado a passar pelos bares e usar
aquilo para ter uma ideia do que estava acontecendo lá –
nenhum deles estava seguro. Yuri não tinha pensado
naquilo antes.
Mas o Setor Seis sempre havia tido seus negócios
com o Dez. Para o príncipe ter decidido forçar a ideia de
conseguir informações...
— O plano de Dani e Amon funcionou bem demais —
Yuri comentou.
Porque o que eles queriam, quando tinham ido a um
baile do Setor Seis, era fazer o príncipe ter dúvidas o
suficiente para desistir de atacar o Dez. E tinha dado
certo. O ataque tinha sido do Oito e do Cinco, com os
carniçais. Se o Seis tivesse se envolvido, eles não teriam
conseguido vencer. E, sem acesso aos mercados do Setor
Seis, o Dez teria problemas.
Melissa riu.
— Eu nunca vou me esquecer da expressão do
príncipe quando uma humana o desafiou e ele percebeu
que não podia retaliar, porque não tinha certeza de que
seria capaz de sobreviver ao que Amon faria — ela
contou. — E isso piorou quando vocês destruíram todos
os vampiros que atacaram seu setor.
Quando Raquel tinha explodido seu poder, que era
tão destrutivo para os vampiros quanto a luz do sol. E era
uma pena que o preço de fazer aquilo fosse alto demais.
Se o Setor Seis estava curioso sobre eles, não seria o
único. Yuri e Dani deveriam ter imaginado aquilo. Era
óbvio que iam querer saber o que mais o Dez podia estar
escondendo.
— E o tal relatório? — Yuri perguntou.
Melissa deu de ombros.
— Damien é um cão adestrado — ela comentou. —
Ele faz o que é mandado e reporta cada passo que dá,
porque precisa deixar claro para o príncipe o quão
competente ele é. E quando ele não consegue o
resultado que quer, pode dizer que fez exatamente o que
precisava e a situação estava fora do seu controle.
Yuri tomou mais um gole do seu chá. Ele conhecia
aquele tipo de pessoa. Era o tipo que, na teoria, até
parecia ser bom no que fazia. Mas, na prática, nunca era
assim, porque estavam preocupados demais em parecer
bons, não em fazer o que precisavam.
Mas Melissa não tinha respondido.
— O relatório? — Yuri insistiu.
Ela sorriu.
— Ele esperava que eu fosse atualizar o príncipe
depois da primeira vez que falei com você, no bar. Eu me
recusei.
Melissa tinha se recusado a fazer algo simples, que
não ia fazer a menor diferença para o plano dela.
Ele estreitou os olhos.
— Você não queria que o príncipe soubesse dos seus
planos — ele comentou. — Eu sou a sua justificativa...
Porque você pode dizer que estava usando estar aqui
como uma forma de se aproximar e ganhar minha
confiança.
E era exatamente aquilo que ela estava fazendo. Era
aquele o motivo para toda a manipulação.
— O que você ia fazer se não tivéssemos aceitado
sua proposta? Me prender até eu te dar as informações
que queria? — Yuri perguntou. — Ou até fritar minha
mente e me forçar a obedecer? Eu ser imune deve ter
sido uma surpresa desagradável, então.
Melissa levantou uma sobrancelha.
— Parece que estou interessada em conseguir
informações sobre o Setor Dez?
Yuri parou.
Não, não parecia. Ela nunca tinha perguntado nada
sobre o setor. Nenhum comentário, nenhuma tentativa
de fazer Yuri contar alguma coisa cotidiana no meio de
outro assunto, nada.
Então...
A campainha tocou.
Yuri encarou a porta.
— Está esperando alguma coisa? — Ele perguntou.
Melissa balançou a cabeça.
— Não e ainda é dia. A Corte não mandaria um
humano como mensageiro.
Yuri colocou a sua xícara na pia e atravessou a sala.
Melissa se levantou e parou do outro lado da porta, na
direção em que estaria na sombra e fora do campo de
visão de quem estivesse do outro lado.
Yuri abriu a porta. Um rapaz magro demais estava
parado do outro lado.
— Você não é daqui, não é? — O garoto começou.
Não parecia ser uma ameaça. Ele era magro demais
para ser um risco num combate corpo a corpo e Yuri
tinha certeza de que era rápido o suficiente para reagir
se o rapaz tirasse uma arma de algum lugar – por mais
improvável que aquilo fosse.
— Não — Yuri respondeu.
— Falaram que tem um setor que eles não controlam
— o rapaz continuou. — Que a gente não precisa...
Yuri estreitou os olhos.
— O que você quer?
O garoto respirou fundo e olhou para os lados
depressa.
— Me falaram que você e a mulher queriam os
mortos — ele falou.
Os mortos. Tecnicamente, todos os vampiros
estavam mortos, mas pelo tom de voz era óbvio que ele
não estava falando de vampiros. Então... Carniçais.
Yuri não respondeu. Aquilo já estava estranho o
suficiente. Ele não ia confirmar nem negar nada.
O rapaz olhou para os lados de novo.
— Tem uma ponte atrás do castelo, indo pros
reservatórios. Se você for lá assim que anoitecer, a gente
te mostra onde os mortos estão.
Yuri continuou sem falar nada.
O garoto engoliu em seco.
— Eu avisei — ele falou e saiu correndo pela rua.
Yuri ainda esperou um pouco antes de fechar a porta
e olhar para Melissa.
— Armadilha — ela falou.
Yuri assentiu. Nenhum dos dois tinha comentado
nada sobre por que estavam na cidade. Tinham passado
uma noite andando pelos bares e salões, e na outra ido
para o castelo. Não tinham conversado com ninguém da
parte humana da cidade.
Era uma armadilha e era óbvia demais. Mas eles
também tinham sido óbvios.
— Você usou a história sobre os carniçais pra
justificar virmos para cá — Yuri falou. — Faz sentido
usarem isso como isca.
Melissa balançou a cabeça.
— Eles imaginam, mas não têm como saber o que eu
quero.
Yuri levantou as sobrancelhas. Ela sorriu.
— Eles vão pensar que tenho algum interesse nos
carniçais — ela continuou. — Mas então vão tentar
entender os motivos. E nada envolvendo os carniçais
seria útil para mim. Então não é tão simples assim.
Não. Era o que Melissa estava dizendo que não fazia
sentido.
— A primeira coisa que ouvi falar sobre você foi que
você não tem nenhuma lealdade com as Cortes e que
quer ver tudo queimar — Yuri falou. — Eles realmente
vão pensar que alguém que não é leal a eles não vai ter
utilidade para informações sobre os carniçais?
Melissa deu um sorriso lento que fez um arrepio
atravessar Yuri – e daquela vez não era uma sensação
boa. Aquilo era o que ele tinha esperado ver, desde o
começo. A vampira sem consciência, que queria ver
morte e destruição.
— Eles não acreditam que eu realmente queimaria
as Cortes, se pudesse — ela contou.
Continuava não fazendo sentido.
Ela olhou para a porta fechada.
— Eles não esconderiam nada na direção dos
reservatórios — Melissa continuou e aquela impressão
diferente desapareceu. — A área toda entre a cidade e a
hidrelétrica é movimentada demais.
Yuri respirou fundo. Ele podia fingir que não tinha
acontecido nada, se era aquilo que ela ia fazer. Mas não
ia se esquecer daquilo.
— O movimento vai deixar fácil esconder qualquer
coisa que estão fazendo — ele discordou.
— Mas vai tornar impossível esconder quando
precisarem tirar os carniçais de onde estão para os
mandar em algum ataque — ela falou. — E o risco de
algum acidente é muito maior.
Por causa da questão toda dos carniçais serem
máquinas de destruição que não podiam ser controlados
e tudo mais.
Fazia sentido.
— O que você sugere, então? — Ele perguntou.
Melissa se virou para ele.
— Nós vamos na direção oposta — ela avisou. — Na
direção do Setor Sete.
O que deveria ser a parte mais deserta do Setor
Cinco, mas também era a direção mais óbvia para
esconderem alguma coisa.
Ele assentiu.
Melissa subiu as escadas e desceu em um borrão de
movimento. Quando ela parou na sala de novo, estava
usando uma capa pesada e com capuz. O tipo de coisa
que faria sentido uma vampira usar para se proteger da
luz do sol.
— Não podemos esperar anoitecer — ela avisou. —
Você pilota.
Yuri se endireitou. Pilotar a moto de Melissa. Aquilo
era uma ideia maravilhosa.

Lara estava certa. O Setor Cinco estava se preparando para


atacar.
Ela encarou as fileiras e mais fileiras de cubículos,
até onde conseguia ver. Um dos guardas tinha chamado
aquele lugar de curral, e ela até entendia de onde o
nome vinha. Mas um curral de carniçais era uma coisa
que ela nunca tinha imaginado que ia ver. Na verdade,
nunca nem tinha imaginado que fosse possível.
Um dos carniçais se jogou contra as grades do seu
cubículo, fazendo um som que era quase um rosnado
mas que ainda tinha alguma coisa de humano. Os
cabelos da nuca de Lara arrepiaram. A pior parte dos
carniçais era que, quando alguém olhava para um deles,
conseguia notar que tinha sido uma pessoa antes. Ela
não fazia ideia de como os carniçais eram criados, mas
agora todas aquelas pessoas eram só pele esticada sobre
músculos finos.
Uma vez, quando ainda era criança, Lara tinha visto
um dos necromantes desenterrar um vampiro que estava
sendo punido. Ele tinha passado vinte anos enterrado,
sem nenhuma fonte de sangue. Quando ela ouvia
histórias sobre as múmias de antes da magia, Lara
imaginava algo como aquele vampiro. E era a mesma
impressão que ela tinha vendo os carniçais. A diferença
era que eles não pareciam que voltariam a parecer
humanos caso se alimentassem. Seus corpos tinham
mudado, também – eles se moviam de um jeito que
parecia que não conseguiam mais ficar de pé, mas ainda
não eram completamente quadrúpedes. E a pele dos
carniçais tinha um tom cinzento que nenhum dos
vampiros chegava a ter, nem os mais velhos.
Outro carniçal gritou.
Lara se forçou a continuar parada. Os currais tinham
sido bem construídos. A forma como o ar corria ali não
deixava os carniçais sentirem o cheiro de nada que
estava nos corredores. Se não fosse por isso, todos eles
estariam se jogando contra as grades por causa da
presença dela.
Aquilo não era loucura. Era suicídio. Os vampiros
podiam ser loucos, mas normalmente não eram loucos a
ponto de fazer uma merda daquele tamanho. Se
perdessem o controle daqueles carniçais, nem as Cortes
iam sobreviver.
E talvez aquela fosse a intenção. Lara já tinha ouvido
histórias o suficiente sobre o Setor Cinco para não
duvidar que fosse exatamente aquilo que queriam fazer.
Eles já tinham poder demais. Se conseguissem mais,
Valissa nunca estaria segura. Lara não se preocupava
com a sua segurança – ela tinha passado tempo o
suficiente entre os mercenários para saber que
conseguiria se virar, se precisasse. Ela tinha contatos e
era conhecida. Mas Valissa ainda era nova demais. Ela
merecia uma chance de crescer e descobrir o que queria
ser. Não precisava ser jogada naquele mundo, precisar
aprender a lutar, a usar seu poder para atacar, porque
não tinha outra opção.
E, se o Setor Cinco se tornasse mais forte, Lara tinha
suas dúvidas de que até seus contatos iam ajudá-la. Era
bem possível que os mercenários a entregassem na
primeira oportunidade.
Não. Aquilo não ia acontecer. Não podia acontecer.
O que queria dizer que ela ia ter que dar um jeito
naquela merda.
Lara voltou pelo mesmo caminho que tinha usado
antes. Entrar ali tinha sido um risco, mas era o único jeito
de ter certeza do que estava acontecendo. Por fora, os
currais não pareciam nada demais. Só um depósito de
carnes. Os vampiros tinham construído tudo no
subterrâneo – e aquilo era a única coisa inteligente que
tinham feito, porque era mais um jeito de bloquear os
carniçais se eles escapassem dos cubículos.
Ela tinha passado por algum tipo de sala de guarda.
Com sorte, ainda não ia ter ninguém lá. Ou se tivesse ia
ser um ou dois guardas humanos. Talvez um vampiro.
Com um vampiro sozinho ela conseguia lidar.
E, com mais sorte ainda, ia ter algum jeito de lacrar
aquele lugar todo. Os vampiros não eram burros a ponto
de não terem providenciado algum tipo de comporta que
os carniçais não fossem conseguir passar. Não era nem
difícil: só precisava ser alguma coisa que não iam
conseguir quebrar. Carniçais não eram inteligentes o
suficiente para abrir fechaduras.
Então ela ia lacrar o curral e abrir os cubículos. Com
sorte, os carniçais iam se matar. Simples. Prático.
Problema resolvido.
E aquele plano tinha mais furos do que Lara queria
contar, mas era o único que tinha.
Passos.
Ela voltou na direção de onde estava vindo e entrou
em um depósito de produtos de limpeza que estava com
a porta aberta. Descuido, sim, mas não tinha motivo para
se preocuparem com aquilo em um curral de carniçais.
Lara se encostou na parede ao lado da porta, mas
não a fechou. Se fechasse provavelmente ia fazer
barulho. Isso se não fosse normal aquela porta estar
sempre aberta.
Eram duas pessoas descendo pelo corredor. Um par
de guardas, provavelmente. Com sorte, seriam humanos,
mas Lara não ia contar com a sorte.
Ela pegou uma das facas e colocou a outra mão no
cinto. Se fossem vampiros, ela tinha prata em pó. Podia
ser o suficiente para ganhar alguns segundos.
— Tudo limpo — uma mulher falou. — Como
esperado.
Um homem fez um ruído irritado.
— Isso é ridículo — ele falou. — Uma vampira vem
no setor, uma ninguém, e temos que...
— Shh — a mulher cortou. — Você não vai querer
que te escutem reclamando.
— Não tem ninguém aqui para ouvir além de você.
Eles passaram pela porta e continuaram pelo
corredor, sem parar de discutir.
Alguém de fora estava no Setor Cinco. Aquilo não era
nada bom. Quem quer que fosse, estava fodendo com os
planos de Lara sem nem tentar.
Ela não ia conseguir prender os carniçais. Era melhor
esperar.
Esperar. Aquilo deixava um gosto amargo na sua
boca, mas era melhor do que morrer heroicamente para
nada.
Um corredor comprido, sala da esquerda, passagem
no teto, mais um corredor mais curto e então estaria na
saída dos currais. Sua prioridade precisava ser sair dali
viva. Ela ia conseguir.
Lara respirou fundo e saiu do depósito. Os dois
guardas tinham desaparecido – provavelmente estavam
atravessando a área dos cubículos. Aquilo era bom. Se
alguém a notasse, talvez demorassem a soltar os
carniçais porque tinham pessoal de segurança por perto
e os carniçais não iam separar entre inimigos e aliados.
Ela correu pelo corredor, tentando fazer o mínimo de
barulho possível. A sala com a passagem no teto ainda
estava vazia e ela subiu depressa.
Comportas. Lara estava pensando em comportas
para prender os carniçais mais cedo, mas qualquer coisa
daquele tipo também ia servir para ela ganhar tempo. E
aquela passagem podia ser fechada.
Ela puxou o alçapão ou o que quer que aquilo fosse.
Ele bateu no lugar com um som metálico. Merda.
Lara girou a fechadura depressa e se levantou. Nada.
Nenhum sinal de que tinham ouvido alguma coisa. Ela
começou a andar pelo corredor.
As luzes se apagaram e um alarme disparou.
Ela começou a correr.
Algo se moveu com um ruído metálico e pesado. Ela
não queria saber o que era. Aquele corredor era curto.
Ela só precisava chegar no final dele.
A escada que levava para o depósito estava logo na
sua frente: degraus de metal pregados na parede. Lara
subiu depressa. O depósito estava vazio e os portões
largos estavam abertos.
Não fazia sentido. Se tinham disparado o alarme,
deveriam estar fechando tudo, não deveriam?
Ela saiu do depósito. Onde estava era longe da
cidade do Setor Cinco e Lara não tinha certeza de que se
esconder lá seria uma boa ideia, de qualquer jeito. Era
melhor tentar se esconder até relaxarem e...
O sol estava se pondo. Ela tinha se demorado mais
do que o planejado.
O som de um portão de metal se abrindo fez Lara
andar mais depressa. Correr era admitir que era culpada.
Aquele lugar podia ser longe de tudo, mas uma humana
andando pelo setor não era automaticamente culpada de
nada. Ela não estava quebrando nenhuma lei.
Lara continuou andando. Não estava longe da
fronteira. Ela até tinha opções: podia ir para o Setor Dez
ou para o Setor Três. Ok, era mais fácil só pensar que não
tinha opção mesmo, porque ela não estava nem um
pouco disposta a pisar no Três.
Um quase-rosnado cortou o ar. E mais outro.
Ela olhou de relance para trás.
Os carniçais estavam saindo do depósito e indo na
sua direção.
Lara começou a correr.
A fronteira estava logo ali. Só mais um pouco, e ela
entraria no Setor Dez. Eles tinham equipes de patrulha
perto da fronteira o tempo todo, ela teria ajuda.
E todos da equipe de defesa seriam humanos. Eles
não teriam a menor chance contra os carniçais. Mesmo
se pedissem reforços, ninguém teria tempo de chegar.
Sua irmã estava no Setor Dez. Ela não podia levar
carniçais para lá.
Lara virou para a direita, se concentrando no
caminho e tentando calcular a distância que os carniçais
estavam pelo barulho que estavam fazendo. Estavam
perto e se aproximando mais depressa do que ela
gostaria.
Uma cerca de arame farpado apareceu no seu
caminho e ela se abaixou para passar entre o arame,
sem se preocupar se estava cortando suas costas. Um
pouco de sangue não fazia diferença. Os carniçais já
tinham seu cheiro.
Ela continuou correndo. O espaço onde estava era
uma área aberta, com o mato baixo e bem cuidado que
não existia mais para trás. A área de fronteira do Setor
Três, que eles mantinham limpa para ver o que estava
acontecendo ali. Mas ver não queria dizer que iam fazer
alguma coisa.
Se ela morresse dentro do Setor Três, eles teriam
provas de que o Cinco tinha carniçais. Seria uma morte
útil, pelo menos. Talvez até fosse o suficiente para
atrapalhar o que quer que o Cinco estivesse planejando
fazer.
Mas Lara não queria morrer.
O som dos carniçais ficou mais perto. Ela acelerou
ainda mais, sem olhar para trás. Respirar doía. Suas
pernas doíam. Ela tinha se cortado mais e não fazia nem
ideia de quando ou como, mas não podia parar.
Se pelo menos soubesse onde estava no Setor Três,
mas ela nunca tinha tido a chance de estudar aquele
território. Ela podia estar correndo na direção de alguma
cidade. Ou podia estar no meio do nada, em algum lugar
onde seu corpo ia ficar por semanas sem ser encontrado.
Algo estava no seu caminho. Algum tipo de barreira.
Lara ainda estava correndo, mas agora era difícil. Era
quase como se estivesse debaixo d'água, sentindo a
pressão de todos os lados, a forma como precisava se
esforçar para se mover e até para respirar.
Não importava. Ela não podia parar. Ainda estava
ouvindo os carniçais, então aquela barreira não tinha
servido para parar eles.
A resistência desapareceu e Lara quase caiu para a
frente quando seu pé afundou na lama.
Ela não podia parar de correr.
Aquilo não deveria estar ali. Antes, ela estava
correndo em um espaço aberto enorme que quase
parecia um pasto. E de repente ela estava precisando
tomar cuidado com onde pisava, porque o chão estava
molhado demais e as árvores estavam fechadas ao redor
dela. Árvores que não deveriam estar ali, porque quase
nada crescia naquela região.
Mas os carniçais estavam ali, também. E
continuavam atrás dela. Na verdade, parecia que tinham
se espalhado e estavam vindo de duas direções.
Ela continuou correndo. Fazia anos que Lara não
precisava lidar com aquele tipo de terreno – e mesmo na
época, não era tão molhado. Aquele lugar estava quase
parecendo um pântano. Pelo menos, era a única coisa
que ela conseguia se lembrar que parecia com o que
estava ao seu redor: o chão molhado, com poças de água
por toda parte, e as árvores altas e cobertas de musgo.
Não era natural. Não deveria nem ser real. Talvez
não fosse. Lara não sabia de tudo que os necromantes
podiam fazer.
Ela não podia continuar correndo. Não ia aguentar
muito tempo e não sabia onde estava. Precisava se
esconder. Achar algum lugar que os carniçais não fossem
alcançar ou alguma coisa para chamar a atenção deles...
Lara viu as manchas de sangue no tronco de uma
árvore e quase tropeçou.
Sim. Sim, aquilo era perfeito. Sangue. Alguma
criatura morrendo. Ela só precisava achar o que era e
passar pela criatura. Os carniçais iam parar por causa do
sangue. Considerando o barulho atrás dela, eram
carniçais demais. Aquilo não ia ser o suficiente, mas ia
lhe dar alguns minutos.
Outra mancha de sangue. E mais uma. Lara
continuou correndo, seguindo a trilha. O que quer que
fosse, não era um animal pequeno.
O chão cedeu. Lara caiu, rolando para dentro do que
parecia ser um túnel no meio das raízes de uma das
árvores maiores. Dor. Seu pé estava doendo de um jeito
que não era um bom sinal, seu braço estava arranhado e
ela tinha batido o lado do rosto no chão.
Mas ela não podia ficar parada. Os carniçais ainda
estavam vindo.
Pedras. Tinha algumas pedras grandes onde o túnel
ficava mais largo. Talvez...
Ela se levantou e engoliu um grito quando sua perna
cedeu. Não ia pensar no que estava errado com seu pé
ou sua perna. Não importava. Primeiro ela precisava
fechar a passagem.
Lara puxou uma das pedras empilhadas. Por que
alguém tinha empilhado pedras ali? Era óbvio que aquilo
não era natural.
A pedra se soltou e rolou. As outras rolaram atrás
dela.
Lara se arrastou para trás um instante antes das
pedras caírem onde ela estava. O caminho para fora
estava fechado.
Alguém tinha colocado as pedras ali por isso. Para
serem um jeito fácil de fechar aquele túnel. A questão
toda era quem.
Os carniçais gritaram, do outro lado. A terra começou
a cair pelos lados das pedras. Eles estavam cavando.
Lara olhou ao redor. Estava escuro demais. Ainda
tinha um resto de luz entrando pelas frestas entre as
pedras e só. Não era o suficiente para ela ver onde
estava.
O que queria dizer que ela ia ter que se mover.
Lara travou os dentes e se arrastou, sentada, até
encostar na parede. Bom. Aquilo era um lado. Agora ela
só precisava continuar seguindo a parede.
A parede que dava uma volta e a levava de volta
para as pedras.
Não era um túnel. Era só um buraco no chão e ela
tinha se prendido ali, sangrando, com carniçais a
caçando.
Tinha uma silhueta no chão.
O que Lara tinha a perder?
Ela foi na direção da forma mais escura no meio do
espaço. A luz que entrava não era o suficiente para ela
ter certeza, mas parecia que era uma pessoa. Não. Não
parecia. Era uma pessoa. Um homem, vestido de preto,
de bruços no chão.
Ela virou o homem e se afastou de novo, travando os
dentes quando se moveu de mal jeito.
Ela conhecia aquele rosto duro. Conhecia aqueles
olhos fundos, mesmo que estivessem fechados.
Eric. Um dos necromantes do Setor Três. Um dos
piores entre eles, pelo que ela se lembrava e pelo que
tinha ouvido depois.
E ele não estava se movendo.
Lara se aproximou de novo, devagar. A pouca luz
deixava ela ver o sangue nas mãos e nos braços dele e
algo que parecia uma mordida no seu torso. Ou melhor,
seria uma mordida se fosse possível uma criatura grande
o suficiente para fazer aquilo, porque parecia que tinham
arrancado um pedaço dele.
Ela olhou para as pedras de novo e a terra caindo ao
redor dela. Os carniçais não estavam mais gritando e
rosnando. Estavam concentrados em cavar. Eles tinham
sentido o cheiro de sangue e não iam parar até
alcançarem sua presa.
Se ela morresse ali, ninguém ia saber do que estava
acontecendo. O Setor Cinco ia poder fazer o que quer
que estivessem planejando. Ela não tinha nenhuma
garantia de que encontrariam seu corpo naquele lugar.
Mas Eric não estava morto. Ou melhor, tecnicamente
ele estava. Mas aquele ferimento não era o suficiente
para destruí-lo. Ela sabia. Sabia muito bem.
Lara encarou o vampiro no chão.
Entre os dois, só um deles tinha alguma chance de
escapar dali, e não era ela. Mesmo sem estar ferida, Lara
não ia conseguir lutar contra os carniçais. Mas ele podia
conseguir fazer alguma coisa. Ela provavelmente estaria
morta, mas ao menos os carniçais também seriam
destruídos e alguém saberia o que estava acontecendo.
O Setor Três não se envolvia, mas ela duvidava que
ficariam parados com uma ameaça na sua fronteira.
Ela fez um corte na sua mão e se virou para o
vampiro.
DOZE

Por mais que Yuri tivesse gostado da ideia de pilotar a moto de


Melissa, ele deveria ter se lembrado que sair antes do sol
se pôr queria dizer que ela não ia estar só sentada atrás
dele. Não, a vampira estava colada no seu corpo para ter
certeza de que não ia tomar sol – o que queria dizer que
ele não podia nem reclamar que queria distância. E Yuri
tinha quase certeza de que Melissa sabia exatamente o
que estar tão perto assim estava fazendo com ele.
Ia ser muito mais fácil se ele tivesse algum motivo
concreto para querer se afastar, mas não tinha. A
memória de seis anos antes não adiantava de nada. Na
verdade, aquela memória nem era nada se fosse
comparar com a realidade de ter transado com Melissa
daquele jeito.
Aquilo era um problema. E era pior porque Yuri
continuava sem saber o que ela tinha a ganhar o
manipulando. A coisa toda de conseguir uma fonte de
informações sobre o Setor Dez fazia sentido. Ou faria, se
ela tivesse feito qualquer coisa para ele contar o que não
devia.
Ela podia ter falado aquilo sobre a imunidade para
entrar na sua mente sem esforço quando ele estava
tentando diminuir sua resistência, no castelo. Se fosse
aquilo, ela já teria todas as informações que queria sem
precisar dar a menor indicação. Mas Yuri não achava que
era o caso. Melissa tinha deixado claro que conseguiria
passar pela imunidade dele sem muitos problemas e ele
tinha visto o suficiente do que ela fazia para não duvidar.
Nada. Yuri não conseguia pensar em nada que ela
pudesse ganhar fazendo que ele confiasse nela. Mas não
fazia sentido que aquilo fosse real. Ou que não fosse
manipulação.
— Se não quer que eu saiba o que está pensando, é
melhor relaxar — ela avisou. — Você está se
concentrando tanto que se eu me distrair por um
segundo vou ler seus pensamentos sem ter essa
intenção.
Yuri respirou fundo. Ele não queria pensar algo bom
sobre Melissa. Era mais fácil só se lembrar do que ela
tinha feito, sem querer imaginar um motivo. Mas, depois
do que ela tinha falado antes de saírem da casa, ele não
conseguia evitar.
A ponte apareceu – não a que ficava para trás do
castelo, que com certeza seria uma armadilha, mas a
que ia na direção oposta. E era uma ponte por cima de
um rio largo.
Yuri se forçou a não parar. Ele sabia que tinha um rio
atravessando o Setor Cinco, óbvio. Todo mundo sabia que
a hidrelétrica deles fornecia energia para metade ou
mais dos setores da região. Mas saber era diferente de
ver. Yuri tinha crescido no Setor Seis e depois ido para o
Dez. Mesmo no tempo que tinha passado como
mercenário, o máximo que tinha visto eram os riachos e
córregos que tinham sobrevivido depois da magia voltar
para o mundo. Um rio daquele tamanho não era algo que
se via sempre. E, infelizmente, não era uma coisa que ele
podia parar para ver.
Melissa se moveu nas suas costas. Ela não precisava
repetir o aviso que tinha dado assim que saíram da
cidade: era possível que estivessem indo para outra
armadilha. Ele concordava e estava prestando atenção.
E Yuri mal podia esperar para o sol terminar de se
pôr e eles não precisarem estar tão colados assim.
Não havia nada do outro lado da ponte. Era só o
mato baixo mais perto do rio, e depois a terra seca.
Sempre a terra seca, naquela região, sem nada que
pudesse ser um ponto de referência. Se ele soubesse que
ia ficar rodando pelo setor, teria tentado achar algum
mapa ou pelo menos parado para relembrar de como era
o território do Setor Cinco.
E se não havia nada ali, não fazia sentido o mato
estar tão baixo. Qualquer coisa tinha problema para
crescer, naquela região, mas estavam ao lado de um rio.
Era o único motivo para o mato existir. E, mesmo assim,
a forma como ele estava baixo não era porque era o
máximo que conseguia crescer. Era porque alguém tinha
cortado o mato.
Era um desperdício de recursos – tanto não usar
aquela área para nada quanto manter o mato baixo à
toa. A menos que não fosse à toa. Áreas abertas como
aquela, sem nenhum lugar onde alguém podia se
esconder, normalmente eram uma medida defensiva. Era
o que a maioria dos setores usava perto das fronteiras.
Mas não estavam tão perto assim da fronteira do Setor
Cinco com... Ele achava que seria o Sete, na direção em
que estavam.
Ele continuou em frente, seguindo o caminho de
terra batida que a estrada virava depois da ponte.
Melissa estava certa. Tinha alguma coisa escondida
naquela direção. Era a única explicação para uma área
daquele tamanho não estar sendo usada para nada.
E havia outro caminho de terra batida. Não. Aquilo
não era só um “caminho” era uma estrada, quase. Podia
ser de terra batida, mas era mais largo que a estrada que
eles tinham seguido até a ponte.
— Preciso parar — Yuri avisou.
Melissa se moveu contra ele de novo e Yuri travou os
dentes. Foco. Ele tinha um trabalho a fazer e aquele
trabalho não envolvia ficar pensando no que queria fazer
com a vampira agora que tinha uma ideia de como podia
ser.
— O sol já está baixo o suficiente — ela falou.
E Yuri não deveria nem se surpreender por Melissa
ser um dos vampiros que conseguia sobreviver a um
pouco de luz do sol.
Yuri parou a moto. Melissa soltou sua cintura e
desceu, devagar, tomando cuidado para ficar de costas
para a direção do sol.
Ok, então não era exatamente um caso de que ela
conseguia sobreviver a um pouco de sol. Era só um caso
de que a capa ia ser proteção o suficiente.
Yuri desceu da moto, apoiou o descanso e foi na
direção da estrada. Era terra batida, também, mas não
era nem um pouco difícil ver as marcas de pneus
grossos. E, considerando como não tinha nada de mato
crescendo na estrada, nem pedras jogadas nela, parecia
que ela era usada com uma certa frequência.
— Por que alguém passaria com um caminhão por
aqui? — Ele murmurou.
Melissa não respondeu.
Ele se virou devagar. Nada. Não tinha absolutamente
nada, não importava para que direção ele se virasse.
Não. Um pouco para o lado, bem longe, ele
conseguia ver algo escuro no horizonte que tinha quase
certeza que eram árvores. A fronteira com o Setor Dez,
então. E a estrada não parecia que estava indo
exatamente naquela direção, mas também não parecia
que estava longe. Não que ele conseguisse ter certeza do
que estava vendo, considerando que já era quase noite.
— Tem alguma coisa nessa direção? — Yuri
perguntou.
Melissa balançou a cabeça, sem se virar.
— As informações oficiais sobre o Setor Cinco não
falam de nada nessa área — ela contou. — Por isso quis
vir aqui.
— E as não oficiais? — Ele insistiu.
Ela balançou a cabeça de novo.
Mas havia alguma coisa ali, sim. Aquela estrada
tinha que terminar em algum lugar. A única certeza que
Yuri tinha era que ela não chegava perto da fronteira com
o Dez. Se chegasse, eles saberiam.
— Quais são as fronteiras desse lado? — Yuri
perguntou.
Melissa se virou devagar e parou antes de abaixar o
capuz. Estava escuro o suficiente para ela, então. Ótimo,
porque ele já estava achando ruim de ver as coisas.
— A estrada segue quase reta até onde consigo ver
— ela contou. — Na direção que ela está indo, pode ser
tanto a fronteira com o Dez quanto com o Três.
Se o Setor Cinco tivesse uma estrada indo direto até
o Três, aquilo podia ser um problema muito maior do que
esperavam. Até Yuri sabia que, se o Cinco e o Três se
aliassem, as coisas na região iam mudar bastante.
Melissa se virou para o outro lado.
— Quase reta também, até onde consigo ver — ela
falou. — E não faz sentido, porque essa estrada está
correndo quase paralela com a fronteira do Setor Sete.
— Não faz sentido por quê?
Melissa olhou para ele.
— Porque se não tiver nenhuma curva levando ela
para o Sete ou mais para dentro do Cinco, então essa
estrada vai dar nas terras de ninguém.
Yuri a encarou.
Por que alguém teria uma estrada para as terras de
ninguém? O Setor Dez podia não ter aquilo para se
preocupar, mas Yuri sabia qual era o jeito padrão dos
setores lidarem com as áreas fora dos seus territórios:
cercas elétricas, postos avançados com mercenários ou
guardas treinados especificamente para aquela função e
mais armas do que Yuri queria se lembrar. Os animais
modificados pela magia ainda eram um risco, mesmo
séculos depois, e os vampiros faziam questão de garantir
que seus humanos não iam correr perigo. Não fazia
sentido ter uma estrada para lá.
— O Setor Cinco não é tão próximo do Sete,
diplomaticamente — ele falou.
Pelo menos, não abertamente. Era possível que
tivessem acordos secretos – Amon já tinha contado que a
maioria das Cortes tinha coisas assim.
Melissa encarou Yuri e depois olhou para a estrada
de novo.
— Se essa estrada estiver vindo de lá, é de uma área
perto demais das terras de ninguém — ela contou. — Em
não existe nenhum registro público de algo importante
do Setor Sete tão perto da fronteira.
Nem nenhum tipo de informação não-oficial que ela
tivesse tido acesso, pelo visto.
Aquilo era um problema, mas Yuri não estava
disposto a ir até a fronteira com as terras de ninguém
sem ter mais informações.
— Estou mais interessado em saber onde essa
estrada termina — Yuri falou.
Porque não era um caminho passando por pontos
importantes do setor. Se fosse, a estrada não terminaria
do nada em algum lugar antes da fronteira com o Dez.
Melissa assentiu e voltou para a moto, sem falar
nada.
Yuri a seguiu. Até pararem de novo ele já tinha
certeza de que ia estar escuro demais para ele enxergar
alguma coisa sem uma lanterna. E ele tinha tirado sua
maior dúvida sobre as motos dos vampiros: elas não
tinham faróis. Pelo menos, a de Melissa não parecia ter.
Aquilo não deveria nem ser uma surpresa.
E tinha mais uma coisa que ele queria saber antes
de saírem dali.
Ele olhou ao redor. Não parecia que tinha nada nem
ninguém perto deles, mas Yuri sabia que aquilo não era
uma garantia de nada.
— Essa área é segura? — Ele perguntou.
Melissa olhou para ele e levantou uma sobrancelha.
— Tão segura quanto uma área no meio do nada
pode ser — ela falou. — Estamos num espaço tão aberto
que não tem como ter nenhum tipo de vigilância.
— Então é seguro perguntar — ele completou.
A vampira cruzou os braços. Yuri esperou. Ela ia ter
entendido que ele queria falar algo que a Corte não podia
ouvir. E, depois de como Melissa tinha achado e tirado os
equipamentos de vigilância da casa, ele tinha certeza
que ela ia estar conferindo se não tinha nada perto deles.
Melissa assentiu.
— O que você quer saber?
— Por que ainda estamos aqui? — Yuri perguntou.
Ela inclinou a cabeça e soltou os braços.
— Ainda precisamos de provas, esqueceu? Dama
Cordelia ter colocado uma compulsão em você não quer
dizer nada para as Cortes.
Ele sabia que não. Para as Cortes, o que a princesa
tinha feito não era nada.
Yuri balançou a cabeça.
— Você queria alguma informação valiosa o
suficiente pra negociar com Lorde Rafael — ele falou. —
E você já tem isso. Por que ainda estamos aqui?
Melissa o encarou como se nunca tivesse visto Yuri
antes.
— O que você está querendo dizer?
Ele resistiu à vontade de pegar uma das suas facas.
Yuri era capaz de apostar que, se conseguisse sentir o
poder de Melissa, estaria querendo correr dali. Ela estava
furiosa.
Mas ele não estava errado.
— Você mesma disse que os vampiros caçam
pessoas como eu — Yuri insistiu. — Você fez questão de
deixar claro o que fariam se me achassem. Agora não
adianta agir como se isso não fosse exatamente o tipo de
informação com valor o suficiente pro que você precisa.
Melissa estreitou os olhos e as marcas de poder
apareceram nos seus braços, como se fossem fios de
fumaça começando a se espalhar.
— Por que ainda estamos aqui? — Ele repetiu. — Por
que você não está me usando para conseguir o que
quer?
A vampira foi na direção de Yuri e parou, tão perto
que se ele se movesse ia tocá-la.
— Eu posso querer negociar minha liberdade, mas
não vou fazer isso colocando alguém em uma posição
muito pior que a minha. Existem preços que são altos
demais para serem pagos. E ainda temos um trabalho a
fazer.
Melissa virou as costas para ele de uma vez e subiu
na moto, sem falar nada.
Ela não tinha negado. Melissa estava presa por um
juramento de sangue ou algo parecido e era aquilo que
queria negociar com Lorde Rafael. E contar sobre a
imunidade de Yuri seria o suficiente para ela conseguir o
que queria – mas ela não o entregaria.
Yuri não sabia o que era pior: o fato de que ele
acreditava no que ela estava falando e confiava que
Melissa não ia falar nada sobre ele para as Cortes, ou o
fato de que não sabia como reagir depois daquela
resposta dela.
Ele subiu na moto, atrás da vampira. Ela arrancou
quase no mesmo instante, seguindo a estrada.
Mel se concentrou na estrada na sua frente – não que ela
precisasse se preocupar com alguma coisa ali. O
caminho realmente estava limpo. Yuri estava certo:
aquela estrada era usada com frequência demais. Mas
ela não queria pensar no que Yuri tinha falado.
Ele estava certo e não só sobre a estrada. Se ela
entrasse em contato com Lorde Rafael oferecendo um
humano com o tipo de imunidade que Yuri tinha – o tipo
que podia ser usado como uma arma contra os vampiros
– ele aceitaria seus termos sem a menor sombra de
dúvida.
Então por que ela não estava fazendo exatamente
aquilo?
A pior parte era que, até Yuri falar aquilo, Mel não
havia nem pensado naquela possibilidade. Dizer que
oferecer alguém seria um preço alto demais era algo que
soava bem, mas que estava longe da realidade. Mel não
se importava com o que aquilo queria dizer sobre ela.
Depois de cento e vinte anos presa às Cortes, ela não
pensaria duas vezes antes de entregar alguém em troca
da sua liberdade.
Pelo menos era o que ela teria falado até alguns dias
antes. Ela agarraria qualquer oportunidade que
aparecesse, sem se preocupar com custo.
E ali estava Yuri, atrás dela na moto. O humano que
poderia ser a chave para ela ter o que sempre quisera.
Mel não ia fazer nada. Não com Yuri, com seus
desafios constantes, com a sua vontade de proteger o
seu setor e mais nada.
Pelo visto alguma coisa daquele senso de lealdade
dos humanos do Setor Dez realmente havia passado para
ela.
Ou talvez ela só não quisesse ter o Dez como
inimigos. Eles estavam se provando uma força maior do
que qualquer um esperava. Aquilo faria sentido. Mel não
tinha a menor intenção de continuar naquele setor
depois que se libertasse, mas não precisava fechar todas
as portas.
Sim. Aquele era o motivo real. Não era nada
envolvendo Yuri. Não podia ser. Ela já havia aprendido
sua lição sobre aquilo havia muito tempo.
A estrada terminava em um galpão retangular, com
dois portões largos na parede mais comprida – na direção
de onde eles haviam se aproximado. Os portões de metal
estavam fechados. Aquilo seria normal se estivessem na
cidade e fosse um depósito ligado a algum comércio
humano, mas estavam afastados da cidade e do castelo.
Se aquilo estava ali, era algo dos vampiros, o que queria
dizer que deveria estar aberto e quem quer que
trabalhasse ali deveria estar fazendo sua parte.
Mel saiu da estrada e parou a moto um pouco para o
lado. Yuri desceu e pegou seu celular na mesma hora.
Ótimo. Ele teria iluminação o suficiente.
Ela desceu da moto e parou. Tinha algo estranho ali.
Era algo no ar, quase um cheiro mas menos que aquilo.
Yuri estava apontando a lanterna do celular para um
ponto para o lado de um dos portões.
— Não é só a estrada que é bem usada — ele
murmurou.
Não. Mel não era nenhum tipo de caçadora ou
rastreadora, mas até ela sabia o que a terra revirada ao
lado da estrada queria dizer. Pessoas tinham passado por
ali. Muitas pessoas, e provavelmente correndo.
Não. Não eram pessoas. Aquilo era o quase cheiro
que ela tinha notado. Eram carniçais.
A questão era: os carniçais estavam entrando ou
saindo dali?
— Sem segurança? — Yuri perguntou, olhando para
onde as paredes e o teto se encontravam.
Ele estava certo. Ela tinha se aproximado e parado
ali sem nenhuma preocupação porque não havia notado
nenhum tipo de sistema de segurança ou de vigilância.
Mel estava acostumada a prestar atenção naquele tipo
de coisa de uma forma que era quase subconsciente.
Mesmo distraída, não teria se aproximado tanto de
houvesse algo.
Ela olhou ao redor e se concentrou. Confiava nos
seus instintos, mas aquilo não era motivo para ser
descuidada.
Nada. Havia o som fraco de eletricidade dentro do
galpão e mais nada. Qualquer sistema de segurança
tinha coisas pequenas que alguém que soubesse o que
procurar conseguia identificar. Não havia nada ali. E
nenhum sinal de alguém, também. Nenhuma mente.
— Sem segurança — ela confirmou.
O que era uma garantia de que havia algo ali.
— Armadilha? — Yuri perguntou.
Mel deu de ombros. Era uma possibilidade.
— Acidental ou de oportunidade, talvez — ela
murmurou.
Porque o galpão sem nada daquele jeito era suspeito
demais. Se fosse uma armadilha, tentariam disfarçar ou
fazer algo que não fosse tão obviamente fora do padrão.
Yuri tentou levantar um dos portões. Nada. Era óbvio
que tudo estaria trancado. Se aquele depósito tinha algo
que os carniçais queriam, precisavam manter tudo
seguro. E, se os carniçais estavam saindo dali, então
precisavam garantir que só sairiam quando as pessoas
que os controlavam quisessem.
Mel olhou para as marcas no chão de novo. Eram
muitas. O galpão era pequeno demais para aquela
quantidade de carniçais.
E Yuri não sabia com o que estavam lidando.
— Carniçais — ela avisou.
O humano se virou para ela e deu um passo atrás.
Não que aquilo fosse fazer alguma diferença. Eles não
estavam ali dentro.
Mel se abaixou e puxou o portão. A fechadura
resistiu. Ela puxou de novo. A fechadura se soltou com
um som alto de algo se partindo e ela levantou o portão.
Yuri já estava com sua pistola na mão. Bom. Não que
ela imaginasse que ele fosse ter a chance de usar aquilo.
O depósito era exatamente o que parecia, visto de
fora: um espaço aberto e com paredes lisas. Para um dos
lados tinha uma porta, que provavelmente dava para um
escritório. Yuri parou, olhando naquela direção.
— Está vazio — Mel avisou.
Ela tinha imaginado que abrir o portão daquele jeito
já era uma confirmação de que não havia ninguém ali.
Para qualquer vampiro, seria óbvio. Mas ela não estava
trabalhando com um vampiro.
Yuri assentiu e continuou olhando ao redor devagar.
O resto do espaço era uma coleção de freezers e
congeladores organizados em fileiras, de um jeito que
parecia errado em um lugar como aquele.
Yuri parou ao lado de Mel.
— Carniçais? — Ele repetiu.
Ela assentiu.
— As marcas lá fora são deles. Isso aqui...
Ela deu de ombros. Mel não fazia ideia do que era
aquele depósito e tinha a impressão de que não ia gostar
de descobrir o que estava nos freezers.
Yuri parou por ela e foi na direção do freezer mais
próximo. Mel se concentrou. Se fosse uma armadilha,
teria tempo mais que o suficiente para parar qualquer
criatura antes que atacassem Yuri – mesmo que não
estivesse sentindo nenhum tipo de existência ali. Mel
nunca havia encontrado carniçais antes, não tinha como
saber o que esperar.
Ele levantou a tampa do freezer e parou.
— Carne — ele avisou. — Animal.
Pelo menos não era carne humana. Mel tinha ouvido
o suficiente das histórias sobre carniçais e a época logo
depois que a magia havia voltado para saber que aquilo
era uma possibilidade.
Mel foi na direção de onde tinha visto um painel de
controles. Um instante depois, a luz forte se espalhava
pelo depósito.
Ela se aproximou do freezer. A carne estava dividida
em pacotes de plástico transparente e empilhada com
cuidado.
— Por que uma Corte teria um depósito de carne tão
longe da cidade? — Yuri perguntou. — Não faz o menor
sentido.
Fazia sentido até demais.
— Para alimentar os carniçais — ela contou. — A
carne foi armazenada com o máximo de sangue possível.
Yuri encarou as pilhas de carne dentro do freezer de
novo antes de se afastar e fechá-lo.
— Então a questão é de onde isso está vindo — ele
falou.
Sim. Mel sabia que, no passado, havia áreas
enormes onde criavam animais para o abate. Mas aquilo
havia sido antes da volta da magia. Depois, os humanos
haviam priorizado a agricultura: se iam ter o trabalho de
fazer algo crescer na terra marcada pela magia, então
aproveitariam para algo que teria um retorno direto para
eles. Alguns lugares criavam animais maiores e vendiam
a carne, mas não era tão comum.
Ela se afastou e abriu outro freezer. Pilhas de carne
empacotada, também. Ela o fechou e passou para o
seguinte.
— Tentando achar algum freezer que não esteja com
tudo picado? — Yuri perguntou.
— Sim.
Ele assentiu e foi na direção oposta, abrindo os
freezers.
Mel não precisava estar ali, num depósito de carne,
tentando achar provas de algo que se tornaria um
problema. Ela tinha suspeitado, antes, mas a presença
de Damien no castelo e a forma como Dama Cordelia
tinha agido eram confirmação o suficiente. Melissa
estava interferindo em algo maior do que esperava. O
Setor Cinco não estava fazendo nada daquilo sozinho. O
Setor Seis estava envolvido e ela não tinha ouvido falar
nada a respeito de uma aliança. E provavelmente o Setor
Oito também era parte daquilo, mesmo que eles fossem
precisar de algum tempo para se recuperar. Talvez mais.
Provavelmente mais setores, na verdade.
E ela não precisava estar ali. Não precisava se
envolver e se tornar um alvo quando estragasse os
planos deles. Ela podia só entregar Yuri para Lorde
Rafael. Quando tivesse sua liberdade, nada prenderia Mel
ali. Ela poderia só desaparecer. Ir para outra região, ou
até para outra parte do mundo. O que acontecia com os
setores ali não importava para ela. Ninguém ali
importava.
Não. Seu rebanho importava.
Mas ela poderia levá-los com ela. Não seria difícil.
— Aqui — Yuri chamou. — E não faço ideia do que é
isso.
Mel se virou e foi na direção dele.
Se ela entregasse Yuri para Lorde Rafael, todos os
seus problemas seriam resolvidos. Ela teria o que queria.
E se aquilo queria dizer que ela estaria descendo a um
nível pior que o dos vampiros que a haviam
transformado... Não deveria importar. Nada daquilo
deveria importar.
Mas ela não conseguia pensar na ideia de entregar
Yuri como sendo uma possibilidade real. Se fosse outra
pessoa ali, talvez. Mas não ele. E aquilo era um
problema.
Mel parou ao lado dele e olhou para dentro do
freezer. As carcaças ali estavam embaladas com plástico,
também, mas estavam inteiras. E o que quer que
aqueles animais fossem, não tinham um nome. Em
algum momento, ela imaginava que tivessem sido algo
parecido com lobos. Mas o formato da cabeça era
diferente. E lobos com certeza não tinham ossos
pontiagudos saindo da sua coluna, como se fossem um
tipo de crista.
— Das terras de ninguém — ela murmurou.
Yuri assentiu.
Eles haviam suspeitado que a estrada não levava
para o Setor Sete. Aquilo era confirmação o suficiente.
Para ter aquela quantidade de carne ali, o Cinco
precisaria de uma base de algum tipo nas terras de
ninguém, uma forma de caçar todas aquelas criaturas e
as levar para o depósito.
A questão era por que aquele depósito. Não havia
nada por perto.
Mel fechou o freezer e olhou ao redor. Um depósito
de carne, no meio do nada. Não. Havia alguma coisa por
perto, sim. Carniçais não eram como vampiros: eles se
alimentavam de carne e sangue e quanto mais, melhor.
Se aquilo estava ali para alimentar os carniçais que
estavam criando ou mantendo presos, então os carniçais
estariam por perto.
Eles não estariam soltos. Apesar das marcas lá fora,
era arriscado demais não manter os carniçais presos.
Mas não havia mais nada até onde podiam ver...
Porque qualquer estrutura maior ali chamaria
atenção da Cortes e o Setor Cinco não iria querer que
ninguém além dos seus aliados imaginasse que estavam
fazendo alguma coisa.
Yuri se virou para Mel, já com sua pistola na mão e
olhando ao redor depressa. Mas ele não tinha com o que
se preocupar. Ela estava espalhando seu poder, sim, mas
não era porque estavam prestes a ser atacados. Até
onde ela conseguia sentir, estavam sozinhos ali.
Sozinhos – se ela não contasse com os carniçais
metros abaixo deles.
Ela não tinha motivos para testar o espaço abaixo de
onde estavam e aquilo havia sido um erro. Eram pelo
menos vinte carniçais – o poder de Mel passava por eles
de uma forma estranha, então ela não conseguia ter
certeza do número. Mas conseguia contar pelo menos
cinco vampiros e dois humanos.
O que queria dizer que aquele depósito
provavelmente tinha algum tipo de sistema de vigilância
que ela não havia identificado, sim. As pessoas lá
embaixo precisariam saber o que estava acontecendo na
superfície.
Eles não tinham muito tempo antes de dispararem
algum tipo de alarme – e Mel não podia esperar até
conseguir roubar as informações que precisava da mente
de alguém. Aquela era sua chance, então precisava de
provas concretas do que estava acontecendo ali. O tipo
de prova que as Cortes não conseguiriam ignorar,
mesmo que o depósito e a área subterrânea fossem
destruídas.
Ela esticou uma mão para Yuri.
— Me dê seu celular — ela falou.
Yuri a encarou.
Mel sabia o que estava pedindo. O celular era a única
forma que ele tinha de entrar em contato com o Setor
Dez. Era até possível que eles conseguissem rastreá-lo
usando o aparelho. Entregar o celular para ela seria abrir
mão de uma das poucas garantias de segurança que Yuri
tinha.
Ele passou o aparelho para ela, sem falar nada.
Mel não queria pensar no significado daquilo.
— Se os carniçais voltarem, se esconda em um dos
freezers — ela falou. — Não vou demorar.
Não podia demorar, porque o que ia fazer gastaria
quase todas as suas forças.
Mel se concentrou nas mentes dos carniçais mais
abaixo.
Seu corpo se desfez em névoa e ela caiu pelo chão.

Yuri encarou o lugar onde Melissa havia desaparecido no chão.


Ele já tinha visto uma coisa parecida com aquilo antes:
quando Lorde Rafael tinha ido no Setor Dez pela primeira
vez e tinha só desaparecido depois de falar o que queria.
Não era a mesma coisa. Melissa tinha se desfeito em
uma névoa escura que parecia que tinha sido absorvida
pelo chão, como se ela estivesse passando através dele.
Mesmo assim, era o suficiente para Yuri ter certeza de
que aquilo não era uma coisa comum.
Melissa era mais poderosa do que pensavam e aquilo
não devia nem ser uma surpresa. Com o que Yuri tinha
visto sobre as Cortes, era óbvio que ela ia fazer questão
de esconder até onde o seu poder ia. E, sendo assim...
Os vampiros não sabiam que ela conseguia ler as
mentes deles como se fossem humanos. Era a única
explicação para como ninguém parecia se preocupar com
a presença dela no castelo. Se soubessem que ela podia
ver suas mentes, não teria sido tão simples.
Yuri se afastou do freezer e abriu outro. Mais
carcaças. Parecia que tinha algum tipo de padrão em
como a carne tinha sido guardada ali e agora ele tinha
chegado na parte onde as carcaças estavam inteiras. Ele
preferia os pacotes picados, mas ia continuar conferindo
os freezers. Não tinha outra coisa que pudesse fazer
enquanto esperava.
Ele fechou o outro freezer e olhou ao redor de novo.
Nada. Nenhum sinal de vida de lugar nenhum. A porta no
fundo do depósito continuava fechada e escura. Não que
ele estivesse duvidando da palavra de Melissa. Ela
provavelmente conseguia sentir qualquer pessoa por
perto. Mas conferir – e continuar prestando atenção – era
natural para ele.
Se estavam criando e mantendo os carniçais em
algum tipo de subterrâneo, ele não tinha como ter a
menor ideia do tamanho daquele lugar. Melissa tinha
descido sem pensar duas vezes, então provavelmente
não tinha muita coisa lá embaixo além dos carniçais. Ou
tinha, mas não o suficiente para serem um risco para ela
– o que não queria dizer nada para Yuri. Ele não tinha
como imaginar o que esperar se algo desse errado.
Não. Ele sabia o que esperar: os carniçais saindo de
algum lugar e atacando. E, considerando o que tinha
acontecido no Setor Dez, se o atacassem ali, sozinho, ele
não teria a menor chance.
Yuri parou entre dois freezers e olhou ao redor
devagar. Nada de diferente. Nenhum sinal de que haviam
notado a presença deles...
Era aquilo que estava errado. Se tinha algo
subterrâneo ligado ao depósito, então as pessoas lá com
certeza teriam um jeito de controlar o que estava
acontecendo no depósito. Por mais que ele não tivesse
visto nenhuma câmera em lugar nenhum, era impossível
que não tivessem algum tipo de vigilância ali.
Ele deu um passo na direção do portão por onde
tinham entrado. Se nada tinha acontecido ainda era
porque Melissa e ele haviam feito exatamente o que as
pessoas por trás daquele lugar queriam. Então ele fazia
questão de sair e conferir a moto. Iam precisar dela para
ir embora depressa.
Alguma coisa fez barulho. Era um som abafado,
parecendo longe, mas era óbvio que era um alarme.
O portão aberto fez um estalo e começou a descer,
com aquele som contínuo de metal.
Yuri correu na direção dele. Se o portão se fechasse,
ele estaria preso ali. Ir para fora era um risco, porque não
ia ter como se esconder, mas ficar ali seria suicídio. E ele
precisava ter certeza de que a moto ainda estava lá e
que ninguém tinha feito nada com ela. Era o que ele teria
feito, numa situação daquele tipo.
Uma névoa escura começou a se espalhar pelo chão.
Melissa. Ele continuou correndo. Por que tinha ido para
tão longe da saída?
Yuri se jogou por baixo do portão. A névoa escura
saiu atrás dele e se juntou depressa, até que Melissa
estava parada ao seu lado.
— Moto, depressa — ela falou.
Ele não ia perder tempo perguntando o que estava
acontecendo, especialmente porque conseguia ouvir um
som estranho se aproximando – algo que parecia um
rosnado, mas soava errado. E o ruído abafado que
parecia um alarme não tinha parado.
Melissa subiu na moto. Ele subiu atrás dela e se
segurou. Ela acelerou quase na mesma hora.
Eles estavam voltando na direção da cidade, sem
nem tentar disfarçar o que estavam fazendo. Ele teria
tentado ir para outro lado, qualquer coisa para tentar
despistar o que estava atrás deles.
Yuri olhou para trás. Todos os portões do galpão
estavam abertos. Enquanto ele estava olhando, uma
sombra se espalhou pela entrada. A luz se apagou.
Ele se virou para a frente de novo. Aquilo não tinha
sido uma sombra. Tinha sido várias criaturas juntas
demais. Yuri era um ótimo atirador, mas não ia conseguir
fazer muita coisa estando em uma moto em movimento.
Não que ele fosse conseguir fazer alguma coisa. Ele tinha
visto o que havia acontecido com os mercenários que
lutaram contra os carniçais.
Mas não podiam só voltar para a cidade se tinha
carniçais atrás deles.
Yuri se inclinou na direção de Melissa.
— Se a gente for para a cidade... — ele começou.
— A ponte — ela falou, alto o suficiente para ele
conseguir entender.
Se ela achava que aquilo queria dizer alguma coisa,
estava muito enganada.
— O que tem a ponte? — Yuri insistiu.
Ele sentiu a tensão de Melissa enquanto ela
acelerava mais.
Aquilo deveria ser loucura. Era noite e eles estavam
em uma estrada de terra, sem nenhum tipo de
iluminação, mas ela estava indo mais depressa do que
Yuri teria coragem mesmo se estivesse uma estrada boa
e clara. Vampiros.
— Tem uma proteção — ela contou. — Nas duas
pontas da ponte.
Algum tipo de poder, então. Ele sabia de bruxas que
criavam proteções e coisas do tipo, mas não fazia ideia
de que os vampiros tinham algo parecido. Ou talvez não
tivessem. Era quase tradição os vampiros terem bruxas
trabalhando para eles.
Mas se tinha alguma coisa nos dois lados da ponte,
não era nenhuma garantia de segurança.
— Pode ser uma armadilha — ele falou.
Melissa balançou a cabeça e olhou de relance para
trás. Ele se segurou com mais força. Ela era louca por
estar tirando os olhos da estrada quando estava naquela
velocidade.
— Não é. Senti o mesmo poder lá.
Lá. No subterrâneo onde os carniçais estavam. Então
fazia sentido ela ter tanta certeza de que o que estava
na ponte era para não deixar os carniçais passarem.
Yuri olhou para trás de novo. Nada. Estava escuro
demais. Ele sabia que os carniçais estavam vindo atrás
deles, porque conseguia ouvir o barulho deles correndo e
aqueles quase rosnados estranhos. Mas não conseguia
ver. Não tinha a menor chance de calcular o tempo que
tinham, se conseguiriam chegar na ponte antes de serem
alcançados.
Melissa falou alguma coisa que ele não entendeu.
— O quê? — Yuri perguntou.
Ela balançou a cabeça com força e acelerou mais.
Ele não fazia nem ideia de que aquilo era possível.
— Mais — Melissa falou.
Mais? Mais o quê? Não podiam ser mais carniçais.
Eles estariam mais longe ainda...
Ou não. Ele tinha se esquecido das marcas no chão,
fora do galpão. Nem todos os carniçais estavam lá. E se
os outros estavam voltando, era possível que estivessem
perto o suficiente para ser um problema.
Uma luz forte brilhou. Yuri fechou os olhos por um
instante antes de abri-los de novo. Melissa tinha ligado o
farol da moto. Onde ficava aquele farol? Porque ele era
capaz de jurar que a moto não tinha farol.
Não fazia diferença. O importante era que ele
conseguia ver alguma coisa na frente deles, pelo menos.
E parecia que Melissa estava diminuindo a
velocidade. Para quê? Não fazia o menor sentido.
Melissa freou de uma vez. Yuri foi jogado contra as
costas dela, mas a vampira já estava descendo da moto.
— Vá para a ponte — ela falou. — Não atravesse de
volta para esse lado não importa o que acontecer ou o
que você ouvir.
Ele segurou o guidão da moto por puro reflexo e
colocou o pé esquerdo no chão.
— Você... — Yuri começou.
Melissa não estava olhando para ele. Estava olhando
para a escuridão.
— Agora — ela falou.
Ele não ia perder tempo discutindo.
Yuri acelerou a moto. Ela tinha parado praticamente
no lugar onde o caminho malcuidado saindo da ponte se
encontrava com a estrada. Ele só precisava seguir o que
praticamente era um caminho reto e sem nada. Mesmo
se tivesse que fazer aquilo sem luz nenhuma, Yuri
provavelmente conseguiria se virar.
O som dos carniçais estava perto demais. Não fazia
sentido Melissa ter descido da moto daquele jeito. Ia ter
sido bem mais simples só continuar na direção da ponte,
ainda mais se estavam tão perto. Mas uma das primeiras
regras para qualquer missão em terreno hostil era não
questionar a pessoa com quem estava trabalhando.
Então ele não ia questionar, pelo menos até estarem em
uma situação relativamente segura.
O barulho dos carniçais ficou mais alto. Yuri já estava
quase na ponte. De noite, o rio parecia uma linha mais
escura no chão. Um dia ele ia poder só parar e observar
aquilo ali. Um dia.
Yuri atravessou a ponte. Ele continuava não sentindo
nenhum tipo de poder, mas não duvidava que existisse
alguma coisa ali. Sua imunidade queria dizer que ele
raramente notava algo daquele tipo.
Mas ele não ia ficar parado sem saber o que estava
acontecido.
Ele virou a moto na direção da ponte. Yuri ainda não
fazia ideia de onde ficava qualquer coisa envolvendo o
farol da moto, então não sabia se tinha como deixar a luz
mais forte. Ia ser o suficiente. Ele tinha luz o bastante
para ver o que estava acontecendo do outro lado.
E o que estava acontecendo era que Melissa estava
lutando contra os carniçais.
Ela tinha mandado ele na frente para ganhar tempo
porque os carniçais estavam perto demais. Ela estava
lutando contra eles para proteger Yuri.
Yuri pegou sua pistola. Eram carniçais o suficiente
para ele ter certeza de que não erraria, mesmo com a
iluminação ruim. Mas ele não podia só atirar, porque se
fizesse aquilo podia acabar acertando Melissa, também.
Ela arrancou a cabeça de um carniçal e se virou para
Yuri. Outro das criaturas pulou nela. Melissa se moveu no
último instante e o carniçal enfiou os dentes no seu
ombro e não no seu pescoço.
Ele não podia fazer nada. Não com ela no meio de
tudo – e ela não tinha como se afastar.
Melissa caiu, se transformando na névoa escura.
Yuri atirou – depressa, sem mirar demais, sem parar.
A intenção não era matar, era ganhar tempo e espaço
para ela.
A névoa escura parou logo antes da ponte e se
transformou em Melissa de novo. Ela se jogou mais dois
passos para a frente, o suficiente para estar na ponte e
não logo antes dela.
Yuri parou de atirar.
Os carniçais correram na direção da ponte e
pararam, como se estivessem batendo em uma parede
invisível.
Melissa estava indo na sua direção. Ela estava
andando devagar e se apoiando na lateral da ponte, com
o sangue escorrendo do seu ombro e de mais cortes e
rasgos do que Yuri conseguia contar. Ele queria correr até
onde ela estava e a ajudar a terminar de atravessar a
ponte, mas ainda não estavam seguros.
Ele subiu na moto, levantou o descanso e a virou na
direção da cidade de novo. Os carniçais ainda estavam
rosnando, alguns se jogando contra a parede invisível e
outros se espalhando perto da margem do rio. Pelo visto
eles não sabiam nadar ou alguma coisa assim.
Melissa estava certa. Eles não iam atravessar a
ponte ou o rio. Não iam atacar a cidade – quem quer que
estivesse criando os carniçais tinha feito questão de
garantir aquilo.
Melissa subiu atrás dele e até a forma como ela
estava se segurando na sua cintura parecia fraca.
— Vai — ela murmurou.
Yuri acelerou.
TREZE

Yuri trancou a garagem depressa e voltou para a casa. De algum


jeito, Melissa tinha conseguido não pingar sangue em
nada ali por perto. Bom. Ela não precisava avisar para ele
ter certeza de que não podiam dar a menor impressão de
fraqueza ou de que alguma coisa tinha acontecido.
Não que ele tivesse alguma esperança de que a
Corte – ou quem mais estivesse por trás dos carniçais –
soubesse que tinham sido os dois no depósito. Tinha sido
estupidez entrar lá sem nada que escondesse a
identidade deles, só porque parecia que não havia
nenhum sistema de vigilância. Mas pensar no que
poderiam ter feito diferente não mudava nada.
Ele entrou na casa e trancou a porta. Melissa estava
em um dos sofás, mais jogada nele do que sentada e de
olhos fechados. Seus ferimentos tinham parado de
sangrar, mas aquilo não queria dizer muita coisa. A roupa
dela ainda estava coberta de sangue e por um instante
Yuri se lembrou de quando estava no começo do seu
treinamento com Ezequiel e havia passado três dias
acordado. Ele tinha parecido tão destruído quanto
Melissa.
— Não tem nada de novo na casa — ela murmurou.
— Não que eu consiga notar.
Nenhuma escuta ou qualquer coisa para gravar o
que estavam fazendo. Bom. Mas ele não ia se permitir
relaxar.
— Vou conferir também — ele avisou.
Melissa não respondeu nem se moveu.
Ele subiu as escadas, conferindo todas as quinas e
reentrâncias. A Corte tinha tido tempo mais que o
suficiente para identificar Melissa e ele – e ele ainda
tinha suas suspeitas de que os carniçais naquele lugar
haviam sido uma armadilha, sim. E, considerando o
tempo que tinham passado lá, teria sido simples demais
para um vampiro entrar naquela casa e deixar alguma
surpresa. A coisa toda de que vampiros não podiam
entrar em algum lugar sem convite existia, sim, mas Yuri
não tinha certeza de como funcionava – se realmente
existia alguma coisa que impedia que os vampiros
entrassem ou se era só uma regra deles. Mas, de
qualquer forma, a casa não era deles. Yuri e Melissa eram
hóspedes ali. Pelo que ele entendia, aquilo queria dizer
que qualquer a tal regra não se aplicava.
E se vampiros podiam fazer aquilo de se desfazer em
névoa e atravessar paredes, nem a porta trancada ia
fazer alguma diferença.
Nada na escada nem no corredor. Nem no quarto ou
no escritório. Nem parecia que alguém tinha mexido nas
coisas de Melissa que ocupavam o escritório inteiro, mas
ele não tinha como ter certeza e era óbvio que ela não
estava em condições de subir ali para confirmar.
Yuri desceu de novo e foi para a cozinha. Nada. Tudo
estava exatamente como ele tinha deixado, nos mínimos
detalhes – e ele se lembraria se algo estivesse em uma
posição diferente. E nada na sala, também, pelo menos
que ele conseguisse notar.
Ele foi na direção de Melissa e se sentou na outra
ponta do sofá onde ela estava.
Ela jogou o celular de Yuri de volta para ele, sem
abrir os olhos, e Yuri pegou o aparelho no ar. Ele havia se
esquecido que o celular tinha ficado com ela. Aquilo não
era nada bom.
Melissa não falou nada, só continuou apoiada no sofá
daquele jeito esgotado.
Yuri só conseguia pensar em um motivo para ela ter
pedido seu celular, quando estavam no depósito.
Ele abriu a galeria e parou, sem ter certeza do que
estava vendo. Eram cubículos estreitos, um ao lado do
outro e em três fileiras, com grades na frente. A maioria
das grades estava aberta, mas umas tantas estavam
fechada e Yuri não conseguia entender exatamente o que
estava ali. Pareciam mãos segurando as barras das
grades, mas os dedos estavam errados. E outra foto, com
uma criatura que parecia que tinha sido humana um dia
mas que agora era a definição de pele e osso – com
olhos brilhando vermelho, dentes afiados e presas
maiores que as de um vampiro.
— Carniçais? — Yuri perguntou.
Melissa assentiu. Ele continuou passando as fotos,
devagar.
— Estão sendo mantidos no subterrâneo — ela
contou. — Provavelmente é uma medida de segurança,
porque se escaparem dos cubículos não vão ter como
sair.
Bom. Aquilo era muito bom, porque com aqueles
dentes e as garras que Yuri tinha conseguido ver em
outra foto...
Ele não precisava imaginar o que seriam capazes de
fazer. Ele tinha visto o resultado. Os pedaços de corpos
espalhados entre as árvores. Dani, morrendo depois de
ter enfrentado os carniçais.
E Yuri tinha visto exatamente como eles faziam
aquilo. A prova estava na sua frente: todos os ferimentos
de Melissa, que ainda não estavam nem fechados de
verdade, mesmo que ela fosse forte o bastante para
fazer coisas que ele só teria esperado de um príncipe.
— E os que estavam fora do galpão? — Ele
perguntou. — Se o subterrâneo é uma medida de
segurança para não escaparem...
— Eles foram mandados para fora. As grades lá
dentro não tinham nenhum sinal de que haviam sido
forçadas — ela falou. — Os carniçais foram soltos.
O que queria dizer que, em algum lugar, era bem
possível que pessoas estivessem morrendo por causa
daquilo. E não havia nada que Yuri pudesse fazer porque
não tinha como saber porque haviam soltado os
carniçais.
Ele respirou fundo e colocou o celular no sofá. Agora,
vendo as fotos, o que tinha acontecido no Setor Dez
quase um mês antes fazia sentido demais. Os carniçais
tinham inteligência o suficiente para serem muito mais
perigosos que animais, e só. Aquilo, junto com as garras
e presas e o fato de que eles não estavam vivos...
Não. Yuri não ia ficar pensando naquilo. Não ia servir
de nada.
— Como eles conseguiram criar tantos carniçais? —
Ele murmurou.
Melissa deu de ombros e abriu os olhos.
Ela realmente estava esgotada. Não tinha como
disfarçar aquilo no seu olhar.
— Não faltam voluntários querendo ser
transformados.
Yuri a encarou.
— Não faltam voluntários querendo ser
transformados em vampiros — ele corrigiu. — Não nisso.
Pelo menos, ele imaginava que não. Já era estupidez
o suficiente algum humano pedir para ser transformado
em vampiro. As pessoas deveriam ter noção do que
acontecia nas Cortes e de como os vampiros eram. Não
fazia sentido querer se enfiar no festival de merda que
era a política deles. Não era à toa que a maioria dos
vampiros transformados era destruída em menos de
quinze anos.
— O que importa é que são voluntários — Melissa
falou. — Depois que se oferecem já é tarde demais.
Ele balançou a cabeça. Não ia duvidar que a Corte
do Setor Cinco estivesse fazendo exatamente aquilo,
mas ainda não conseguia acreditar na estupidez as
pessoas.
Melissa suspirou.
— Você sabe como um vampiro é transformado —
ela começou.
Yuri assentiu. Ele não tinha perguntado nada, mas
não ia recusar quando ela oferecia informações.
— Troca de sangue — ele falou.
— Sim. É algo simples, até natural, de certa forma.
Ou tão natural quanto algo sobre os vampiros podia
ser considerado.
— Não é assim com os carniçais? — Yuri perguntou.
Melissa balançou a cabeça.
— Os carniçais são quebrados primeiro. Em teoria, a
transformação é a mesma. Mas os humanos a serem
transformados são torturados até não sobrar nada além
dos instintos mais básicos.
Yuri engoliu em seco. O que ela estava dizendo...
— Isso não é possível.
Melissa sorriu de um jeito que não tinha nada de
humano e fechou os olhos de novo.
— É possível, se você estiver disposto a usar sangue
de vampiro para garantir que os humanos não morram
depressa demais. E se tem anos para garantir que vai
conseguir deixar a mente dos humanos tão destruída
quanto for necessário.
Anos. Anos de tortura. Conhecendo os vampiros,
aquilo provavelmente queria dizer décadas. E o tempo
todo sendo mantidos vivos pelo sangue dos vampiros,
sabendo que a tortura não ia terminar e que depois
seriam transformados, mas não da forma como haviam
esperado...
Não ia sobrar nada. Nenhum fio de consciência ou de
inteligência. Tudo ia se desfazer. E, depois de décadas
sendo torturados, as pessoas transformadas em carniçais
veriam qualquer chance de estarem livres como uma
chance de se vingar, mesmo que não tivessem mais a
capacidade de saber por que queriam atacar.
A pior parte era que Yuri não estava nem surpreso
com aquilo. Era óbvio que em algum momento os
vampiros teriam decidido "se divertir" com algum
humano que estava sendo transformado. E, depois de ver
o resultado, era óbvio que teriam continuado. Estranho
era terem proibido a criação de carniçais.
Mas haviam proibido, o que queria dizer que eles
podiam fazer alguma coisa sobre os carniçais do Setor
Cinco. E aquele era o motivo para Yuri estar ali.
A questão era o que fariam depois.
— Isso vai ter consequências — Melissa murmurou.
— Ninguém nos parou, não prepararam nenhuma
armadilha.
Ele estava imaginando algo parecido.
— Se não fizeram nada ainda, sendo que não tem
como não saberem que fomos nós naquele depósito, é
porque estão se preparando — Yuri completou.
O que queria dizer que seria algo muito pior que uma
armadilha rápida. Seria algo para ser um exemplo.
Melissa abriu os olhos de novo e encarou Yuri.
— Preciso de sangue antes de Dama Cordelia
mandar alguém atrás de nós.
Ele não falou nada, só esperou.
Melissa começou a se levantar, parou e se deixou
cair no sofá de novo. Aquilo era pior do que ele tinha
pensado. Ela estava mais que esgotada.
E, por algum motivo, aquilo incomodava Yuri.
Não, não era por qualquer motivo. Era porque ela
estava daquele jeito por ter protegido Yuri. Melissa não
precisava ter parado a moto e mandado Yuri atravessar a
ponte sozinho enquanto ela ganhava tempo. Melissa já
tinha o que precisava. As provas estavam no celular de
Yuri, sim, mas ela estava com o celular, naquela hora. Ela
não precisava de Yuri para nada. Melissa podia só ter
continuado em frente. Ele não ia ter notado que os
carniçais já estavam os alcançando até ser tarde demais.
Se Yuri tivesse sido puxado ou derrubado da moto logo
antes que ela passasse pela ponte, não teria sido culpa
de Melissa. Ela poderia dizer honestamente que tinha
feito o que podia para escaparem.
Mas ela havia se colocado entre Yuri e os carniçais.
Melissa não precisava ter feito aquilo. Ela não ganhava
nada se colocando em risco para proteger Yuri. Ele não
podia nem tentar pensar que era algum tipo de
manipulação.
Melissa o encarou.
— Você vai odiar ouvir isso, mas preciso que vá no
centro da cidade para mim.
Yuri balançou a cabeça. Se ela estava sugerindo o
que ele estava pensando...
— Não tenho condição de sair da casa — ela
continuou. — Você não precisa fazer nada demais. É só
encontrar alguém que consiga convencer a vir aqui. Eu
vou garantir que a pessoa não vai se lembrar de nada.
— Não — ele falou.
A expressão de Melissa ficou gelada daquele jeito
que era raro e que nunca era um bom sinal.
Ela estava entendendo errado. Mas, também, ela não
tinha motivo para pensar outra coisa, vindo dele.
— Se você precisa se alimentar de alguém, vai ser
de mim — Yuri avisou.
A expressão de Melissa desapareceu de uma vez. Só
isso – desapareceu, como se ela não soubesse como
reagir.
Yuri não deveria ficar tão satisfeito por ter
conseguido surpreendê-la.
— Eu já falei que não... — Melissa começou.
Yuri balançou a cabeça.
— Não é uma obrigação — ele interrompeu. — Estou
oferecendo porque é o que eu quero.
Ela o encarou como se estivesse vendo Yuri pela
primeira vez. Um arrepio o atravessou. Melissa não
estava só esgotada. Ela estava faminta e mal estava
conseguindo esconder aquilo.
— Por quê? — Ela perguntou.
Yuri deveria ter imaginado que ela ia ser cabeça dura
demais para só aceitar.
E a resposta não era simples.
— Por que você fez aquilo? — Ele perguntou de volta.
Yuri tinha certeza de que ela sabia exatamente o que
ele queria dizer, mas Melissa não respondeu.
— Você não precisava ter me protegido ali — ele
insistiu. — Por quê?
— Porque era o que eu queria — ela falou.
Uma resposta simples, no fim das contas, por mais
que o que estava por trás dela não fosse simples.
Yuri assentiu.
— Então estou oferecendo meu sangue porque é o
que eu quero.
Melissa abaixou a cabeça, devagar, e parou de
tentar esconder sua fome. Yuri sustentou seu olhar e
sabia que aquilo era um desafio. Era a forma de ele dizer
que aquilo – que ela – não o assustava.
— E o que você está oferecendo? — Melissa
perguntou. — Porque não vou me contentar só com seu
sangue.
Um arrepio atravessou Yuri. Melissa estava cansada,
sim. Esgotada. Mas ainda era Melissa, com aquela
presença que era um ímã e uma tentação. E quando ela
falava daquele jeito...
— Você não usa o veneno toda vez que se alimenta
— ele falou. — Nem transa sempre que se alimenta.
Ela levantou a cabeça e deu um sorriso lento,
mostrando suas presas.
— Não. Mas eu não vou separar os dois com você,
Yuri Freitas. Porque eu não quero separar.
Ele sustentou o olhar de Melissa.
Deveria ser errado. Deveria ser loucura. Ela era uma
vampira e ele já tinha visto o que ela podia fazer. Mas
não era. Yuri também tinha visto o que ela escolhia não
fazer.
Yuri abriu seu colete de uma vez, deixando o
pescoço à mostra.
— Se você precisa se alimentar de alguém, vai ser
de mim — ele repetiu.

Mel havia se forçado a se controlar, o tempo todo enquanto


estavam voltando para a casa e enquanto Yuri verificava
a casa. A pressão nas suas presas era quase
insuportável, a fome parecia queimar, tão desconfortável
quanto a dor dos seus ferimentos, e ela conseguia ouvir
os batimentos cardíacos de Yuri mesmo quando ele
estava na cozinha. Era um som e um perfume que ela
não conseguia ignorar, uma promessa do que poderia
ter, mas que não era seu.
Mas era.
Mel encarou o pescoço de Yuri, onde ela conseguia
ver sua pulsação.
Ela havia tentado controlar. Ela havia se controlado,
até o seu limite. Mas ele estava oferecendo – e ela
precisava daquilo.
Mel avançou na direção de Yuri. Ele fez um ruído
surpreso e se moveu, como se fosse tentar recuar. Não.
Ele era dela.
Ela mordeu a curva do pescoço de Yuri, sem
atravessar a pele, só o segurando no lugar. Ele não ia a
lugar nenhum. Ele não sairia dali nem tentaria escapar.
Ele havia oferecido e agora era tarde demais.
E ela estava fora de controle demais para fazer
aquilo com ele. Se Mel o mordesse de verdade, ela não
sabia o que ia fazer. Não sabia se ia conseguir se
controlar.
Yuri colocou uma mão na nuca de Mel, quase como
se estivesse segurando a cabeça dela contra o seu
pescoço.
— O que você precisar — ele murmurou. — É seu.
Um arrepio atravessou Mel. Ela não tinha a menor
chance de se controlar depois daquilo.
Ela mordeu Yuri. O sangue dele na sua boca foi
quase um choque para Mel e ela sentiu quando ele ficou
tenso por um instante, mas não tentou se afastar. Dela.
Ele era dela. Ele não se afastaria.
Mel bebeu com força, ao mesmo tempo em que
deixava seu veneno correr pelo corpo de Yuri. Ele gemeu
e apertou sua nuca. A outra mão de Yuri foi para a
cintura de Mel e ele a puxou. Ela sentiu uma pontada
forte de dor, mas aquilo não era nada comparado com o
prazer do sangue. Com saber que estava bebendo de Yuri
e era o sangue dele que lhe daria forças.
Ele a puxou pela cintura de novo e a pontada de dor
só servia para deixar tudo mais forte – mais real. A
sensação do sangue na sua boca, o calor da pele de Yuri
onde ela estava tocando, a forma como ele a estava
segurando, como se quisesse mais...
Ela queria mais.
Mel se moveu até estar sentada no colo de Yuri, com
uma perna dobrada de cada lado das dele, o tempo todo
sem parar de beber. Ele gemeu de novo, apertando sua
cintura com força. E, naquela posição, ela conseguia
sentir a ereção dele, presa contra o seu corpo.
Mais.
Ela bebeu com força. Yuri fez um ruído grave que ela
não sabia se podia chamar de gemido, ao mesmo tempo
em que apertava sua ereção contra ela.
E a dor estava desaparecendo. A exaustão também.
A única coisa que estava ficando era a fome...
Não. A fome também estava desaparecendo. O que
ainda existia era o desejo. Mel tinha passado tempo
demais querendo fazer aquilo. Querendo provar o sangue
de Yuri e tê-lo sob ela, perdendo o controle por causa da
sua mordida – como estava acontecendo.
Ela se moveu contra ele, depressa, com força. As
sensações explodiram pelo corpo de Mel, ao mesmo
tempo em que Yuri a apertava ainda mais contra ele. Não
eram só as sensações dela. Era ele, também, porque ela
não conseguia separar as suas sensações. Não quando
estava bebendo de Yuri, daquele jeito. Não quando ele
estava se movendo contra ela, sem ritmo, de um jeito
quase desesperado, sem controle nenhum.
E Mel ainda estava bebendo, mais devagar, mas
ainda usando seu veneno. Yuri a havia desafiado. Ele
havia se negado e negado a ela. E agora ele não teria
como escapar. Ele lhe daria exatamente o que Mel
queria. Ele veria tudo que havia se negado. O que eles
poderiam ter tido desde o começo.
Yuri segurou o cabelo de Mel com força, sem parar
de se mover daquele jeito desesperado contra o seu
corpo. E, naquela posição, Mel não precisava de muito
para ter exatamente o que queria dele, mesmo que
ainda estivessem vestidos. A forma e a força como ele
estava se movendo era mais que o suficiente. O gosto do
seu sangue, a forma como Mel conseguia sentir o prazer
atravessando o corpo de Yuri – tudo aquilo servia para
alimentar o seu prazer, também.
Mel sentiu quando ele gozou. A sensação explodiu
como um reflexo pelo seu próprio corpo de um jeito que
não era um orgasmo – pelo menos não como um humano
pensaria em um orgasmo – mas era prazer, do mesmo
jeito. E ele ainda estava se movendo com força contra
ela, com tanta força que deveria ser desconfortável, mas
não era. Ela só conseguia sentir a ereção dele contra o
seu corpo, separada dela só pelas roupas.
E Mel não queria que aquilo parasse. Não queria que
acabasse.
Ela bebeu mais dele, deixando mais veneno se
espalhar pelo corpo de Yuri. A onda de prazer veio logo
depois, dele para ela. Nem mesmo a imunidade de Yuri
conseguiria esconder tudo da sua mente, enquanto ela
estava bebendo. E provar o prazer dele... Aquilo era
viciante. Aquilo era mais do que ela havia esperado.
E ela estava a um fio de passar do limite.
Mel se forçou a parar de beber. Ela ainda estava
tremendo. Yuri ainda estava se movendo contra ela, mas
agora os movimentos dele eram mais fracos e mais
lentos, quase como se ele não tivesse consciência do que
estava fazendo. Ou então fosse apenas um reflexo do seu
corpo querendo mais.
Ela não recusaria, se fosse o caso.
Mel lambeu as marcas das suas presas no pescoço
de Yuri. Ele fez um ruído abafado e se moveu contra ela,
apertando sua cintura com força.
Bom. Então não era só ela que quase havia perdido o
controle e que não sabia se realmente estava ainda
estava no controle.
Mel levantou a cabeça. Yuri estava de olhos
fechados, com a respiração entrecortada e uma
expressão que ela não sabia descrever, mas que queria
ver mais vezes.
Dela. Ele era dela.
Não. Ele havia oferecido seu sangue, sim, mas havia
sido apenas aquela vez. Yuri não queria dizer mais nada
quando tinha falado aquilo sobre ela se alimentar apenas
dele.
Mas ali, naquele momento... Ele era dela, sim.
E Mel não estava satisfeita.
Mas ele estava coberto de sangue.
Ela se endireitou e terminou de puxar o colete dele
para o lado. Nada. Não havia nenhum ferimento, mesmo
que tivesse sangue no colete e no peito dele. E no braço
de Yuri, também.
Yuri fez uma linha com os dedos no ombro de Mel.
Sua pele ainda estava sensível depois de ter precisado se
curar, mas não demoraria muito para voltar ao normal
agora que tinha se alimentado.
— Não é meu sangue — ele falou.
Nele. Porque ele não tinha sido ferido. Mel sabia
daquilo. Claro que sabia. O que estava ali era o sangue
dela, porque Mel tinha ficado para trás para garantir que
Yuri escaparia dos carniçais. E ela não se arrependia de
nada.
Ele desenhou a mesma linha no seu ombro de novo.
Era onde um dos carniçais a havia mordido, quase como
se Yuri tivesse ficado preocupado.
Não. Mel não ia pensar em nada daquele tipo.
— O plano não era esse — ela falou.
Yuri levantou uma sobrancelha, sem dar a menor
indicação de que queria que ela saísse de cima dele.
— Pensei que você queria que eu pedisse a sua
mordida.
Sim, ela queria. Tinha passado os dias anteriores
pensando mais naquilo do que deveria. Mas não daquele
jeito.
— O plano era só te morder pela primeira vez
quando você estivesse dentro de mim — Mel contou.
Ele ficou tenso de novo, daquele jeito delicioso que
era pura antecipação, e ela conseguia sentir o começo de
uma ereção.
Mel sorriu e passou uma unha pelo pescoço dele,
acompanhando o caminho de uma veia.
— Depois — ela murmurou. — Não vou beber de
você de novo tão cedo.
Não podia, tanto por causa do veneno quanto por
uma questão simples de segurança. O corpo dele
precisava de tempo para se recuperar e ela já havia
bebido mais do que deveria.
E ver ele sujo de sangue era incômodo de um jeito
que não tinha nada a ver com sua fome.
Mel se levantou, devagar. Yuri ainda tentou segurá-la
no lugar, mas a soltou antes que ela falasse alguma
coisa.
Ela poderia se acostumar com aquilo. Seria fácil
demais.
E ela queria mais – mesmo que não pudesse beber
de Yuri.
Mel esticou uma mão. Ele a encarou.
— O que você está pensando? — Yuri perguntou.
Ela sorriu.
— Que quero tirar o resto de sangue e carniçal do
meu corpo, que você está sujo de sangue e que o
banheiro tem espaço mais que o suficiente para duas
pessoas — Mel falou.
Talvez aquilo fosse exagero. O banheiro também não
era grande. Mas era espaço o suficiente – se as duas
pessoas estivessem próximas demais. Exatamente como
ela queria.
Yuri se levantou e aceitou sua mão.
QUATORZE

Alana parou na frente de um canteiro de rosas vermelhas e cruzou


os braços. Ela não conseguia entender aquele lugar.
Nada no Setor Um fazia sentido. Pensando por aquele
lado, um jardim tão cheio de flores quanto qualquer um
dos seus jardins no Setor Dez não era grandes coisas.
Mas não fazia sentido gastarem tantos recursos, tempo e
esforço para manter um jardim com flores que
precisavam de cuidados. Elas precisavam da quantidade
certa de água, do tipo certo de solo – e isso sem levar em
conta que a magia fazia ser difícil plantar qualquer coisa
ali.
Mas a forma como ela estava sendo tratada ali
continuava não fazendo sentido, também. E nem a forma
como parecia que o setor funcionava. Era tudo calmo
demais, normal demais.
E Lorde Rafael. Ele era a pior parte de tudo. Alana
sabia muito bem que ele estava tentando manipulá-la.
Ela era uma bruxa da natureza que só estava ali por
necessidade. Era óbvio que Lorde Rafael ia fazer questão
de tentar prendê-la de outros jeitos. Um contrato não era
o bastante. Ele ia querer que ela se importasse. Que
criasse algum tipo de ligação com o Setor Um, até ter
algum tipo de lealdade com eles.
Lealdade. Lealdade era o que ela tinha com Dani,
não importava quão irritada com a prima ela estivesse.
Lealdade era o que ela tinha com o Setor Dez, que tinha
lhes dado um lugar e ficado ao seu lado mesmo quando
teria sido mais fácil cortar qualquer ligação com Alana.
Mas aquela era a única coisa que fazia sentido para
explicar por que Lorde Rafael fazia tanta questão de ser...
A palavra certa não era gentil, mas Alana não queria
pensar em outra. A questão era que tanto Lorde Rafael
quanto sua Corte faziam Alana se sentir importante.
Como se ela estar ali fosse algo bom, que todos eles
queriam, de uma forma que não era só por causa do seu
poder. Era por causa dela.
Alana não sabia lidar com aquilo. A vida toda, seu
poder tinha definido tudo o que ela era. Primeiro, como a
continuação da tradição da sua família, servindo aos
vampiros da Corte onde havia crescido. Ela tinha sido
treinada desde criança para lidar com aquilo, ao mesmo
tempo em que seus pais tentavam lhe dar uma vida
"normal". Depois, o poder queria dizer que ela precisava
fugir, e ela e Dani haviam fugido. Se tivessem sido
capturadas, ela não teria sido morta – era valiosa
demais. Mas, depois do seu pai desafiar o príncipe e ser
morto por causa daquilo, o único tipo de vida que ela
poderia ter lá seria a vida de uma prisioneira.
E então tinham encontrado o Setor Dez. Lá era
diferente. Seu poder não era um peso ou uma obrigação,
não como seria na Corte, mas ainda era o que definia sua
vida. Ela e Dani tinham sido aceitas lá por causa do que
Alana podia fazer. Ela tinha garantido que o setor tivesse
como se manter e era tão responsável pelas plantações
quanto Eduardo – porque era aquilo que seu poder fazia.
Ali, tudo era diferente. Eles esperavam que ela
cuidasse das plantações, sim, mas não como Alana
estava acostumada a fazer. Seu poder seria um
complemento para o que conseguiam fazer com
tecnologia, não a única coisa que fazia as plantações
serem possíveis. E ela estava sendo tratada como esposa
de Lorde Rafael: Alana ainda não tinha achado nenhum
lugar do castelo que ela não pudesse entrar e nada do
que ela pedia era negado.
Ela poderia se acostumar com uma vida assim, se
tivesse qualquer ilusão de que fosse real.
E tinha alguém encarando Alana. Ela não precisava
se virar para ter certeza: conseguia sentir o peso do
olhar e da presença de Lorde Rafael em algum lugar
atrás dela. Provavelmente na porta lateral que dava para
aquele jardim, e que era protegida da luz do sol.
Alana não sabia até onde Lorde Rafael era imune aos
efeitos do sol. A maioria dos vampiros ficaria incomodada
só de olhar para a luz direta, como ela já tinha visto ele
fazer vezes demais. Ela não duvidava que, se Lorde
Rafael quisesse, poderia sair no sol. Talvez não por muito
tempo, mas ele não seria destruído na mesma hora, que
nem os outros. E ela tinha medo do que aquilo
significava.
Mas Alana também sabia que continuar parada ali
não ia fazer diferença. Lorde Rafael ia ficar no mesmo
lugar, olhando para ela. Aquele jardim era um dos
lugares para onde ela ia. E, naqueles dias desde que
Lorde Rafael tinha voltado, já tinha virado um hábito se
virar e ver ele na porta.
Alana suspirou e se virou. Não era como se estivesse
fazendo alguma coisa. Só estava ali porque queria pensar
e com sorte esfriar a cabeça. Ela não ia conseguir
nenhum dos dois com um vampiro encarando suas
costas.
Lorde Rafael estava exatamente como Alana tinha
imaginado: parado na porta, uns dois passos para dentro
do castelo, e olhando para ela. Pelo menos ele tinha
tirado aquele sobretudo, mas a forma como estava
vestido ainda parecia exagerada demais para Alana.
Todos os vampiros pareciam exagerados, na verdade.
Ela parou logo antes da porta, ainda no sol. Lorde
Rafael não falou nada, só continuou olhando para ela
daquele jeito que ela não conseguia entender.
— Por que você faz isso? — Alana perguntou.
Lorde Rafael inclinou a cabeça.
— Isso o quê?
Ela soltou o ar com força.
— Isso de ficar parado me encarando.
Ele deu um sorriso lento.
— Posso parar, se te incomoda.
Não chegava a incomodar, na maior parte do tempo.
Mas ela tinha certeza de que era mais uma manipulação
dele – só não conseguia entender o que ele achava que
ia conseguir com aquilo.
E ele estava mudando o foco.
Alana sorriu.
— Isso não é uma resposta.
Lorde Rafael assentiu devagar.
— Eu te observo porque gosto. Mais nada.
Mais nada. Eram só duas palavras, mas o tamanho
da mentira que elas estavam contando era
impressionante. Era óbvio que tinha mais ali. Mais
manipulação, provavelmente. Mesmo que Alana tivesse
feito questão de deixar claro no contrato que qualquer
coisa entre eles sempre seria só profissional, era óbvio
que ele ia tentar alguma coisa. Se conseguisse fazer ela
se envolver emocionalmente, teria sua lealdade.
Ela suspirou. Alana sabia muito bem como os
vampiros funcionavam e, quando era mais nova, tinha
imaginado seu lugar na sociedade deles, como uma
feiticeira. Mas, agora, estando numa posição muito
melhor do que havia imaginado que fosse ser possível,
ela não tinha a menor disposição para lidar com aquilo.
— Sem jogos, Lorde Rafael — ela falou. — Você já
tem sua feiticeira e eu prefiro não ter que ficar
analisando cada conversa procurando armadilhas.
Ele sorriu.
— Mesmo que seja só um acordo, você é minha
esposa — Lorde Rafael começou. — Não deveria me
chamar assim.
Não deveria, mas preferia. Assim não tinha a menor
chance de Alana pensar que ele era algo diferente. Não.
Ele era o príncipe do Setor Um – e era como todos os
príncipes dos vampiros.
— E não é uma armadilha — ele continuou. — Eu
gosto de te observar quando está assim, pensativa e na
luz do sol.
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo não era bom.
Ou melhor, era. Se Lorde Rafael estava se dando ao
trabalho de tentar um jogo daqueles com ela, então
queria dizer que ele fazia questão demais de que Alana
estivesse ao seu lado. Aquilo queria dizer que ela estava
segura enquanto ele tivesse alguma esperança de que
fosse ter a lealdade dela. Ela só precisava garantir que
ele imaginasse que estava conseguindo o que queria.
Ela também sabia fazer aquele tipo de jogo.
— Eu não confio em você — Alana falou.
Lorde Rafael levantou uma sobrancelha. Ela
balançou a cabeça.
— Você é o príncipe do Setor Um — ela respondeu. —
Tudo o que você faz, é porque é útil para você de alguma
forma. Isso quer dizer que ficar me olhando assim tem
algum motivo. Não posso confiar.
Ele sorriu e balançou a cabeça devagar.
— Nem tudo, bruxinha. Nem tudo.
Alana não respondeu.
Lorde Rafael esticou uma mão na direção dela,
tomando cuidado para continuar na sombra.
Ela aceitou e ele a puxou para dentro, devagar.
— O acordo entre nós é algo útil — Lorde Rafael
falou, em voz baixa. — Porque eu preciso pensar no meu
setor, da mesma forma como você se preocupa com a
sua família. Mas eu não estava mentindo quando disse
que gostava de você.
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo tinha sido
quando ele havia aparecido no seu banheiro, ainda no
Setor Dez. Ela tinha ameaçado Lorde Rafael e ele tinha
falado que gostava dela e que ela deveria pensar na
proposta dele.
Lorde Rafael a puxou mais para perto, até que Alana
precisava levantar a cabeça para olhar para ele.
— Você é uma pessoa interessante, Alana Novaes —
ele continuou. — Você é uma sobrevivente, você é leal. É
tão difícil assim imaginar que eu te observo porque
gosto?
Não era difícil. Era impossível. Alana tinha sido
criada em uma Corte. Ela tinha visto aquele tipo de jogos
mais de uma vez.
Ele a soltou.
Alana deveria aproveitar para recuar, mas continuou
no lugar. Queria saber até onde aquilo ia.
Lorde Rafael colocou dois dedos debaixo do queixo
de Alana.
— E se isso te ajudar a acreditar... — ele começou,
no mesmo tom baixo e quase íntimo. — Se quer saber
alguma coisa, é só perguntar. Eu vou responder. Não
tenho nada a esconder de você.
Ah, ele tinha. Alana tinha certeza daquilo. Mas ele
tomaria cuidado para ela nunca descobrir.
Não importava. Ela tinha conseguido o que queria.
Ela podia perguntar e ele se sentiria obrigado a dizer o
mais perto da verdade possível. Não era uma garantia de
nada, mas era um começo – e era uma forma de Alana
conseguir informações, mesmo que fosse precisar
conferir cada detalhe do que ele falasse.
Ela não podia perguntar nada pessoal. Alana não
sabia o suficiente sobre Lorde Rafael para pensar em
alguma coisa que poderia ser útil. Nem podia perguntar
sobre o setor em si. Fazer aquilo ia contra a imagem que
ela estava criando. Então...
— Por que você desapareceu depois do casamento?
Porque tinham sido três semanas. Não era como se
Alana tivesse esperado ter a atenção dele ou qualquer
coisa do tipo, mas não fazia sentido Lorde Rafael ter
garantido um contrato com ela e depois ter só
desaparecido.
Ele sorriu de novo.
— Eu precisava garantir que a minha parte do nosso
contrato seria cumprida. Desapareci porque fiz questão
de deixar claro para os outros setores o que aconteceria
caso se aproximassem da sua família.
Era a verdade. Ele não mentiria depois do que tinha
falado. Mas não era toda a verdade.
O que queria dizer que Alana agora tinha algo para
tentar descobrir, pelo menos.
E se uma parte dela queria acreditar no que Lorde
Rafael estava falando... Não. Ela tinha crescido sendo
treinada para lidar com os vampiros. Alana sabia que não
podia confiar.

Mel não deveria se importar. Ela sabia daquilo muito bem. Havia
tido cento e vinte anos para aprender a se manter
afastada de todos – dos vampiros porque não podia
confiar nas Cortes e no que fariam para conseguir o que
queriam, e dos humanos porque eram humanos. Se
importar com um deles era dar uma arma para outros
vampiros usarem contra ela, na melhor das hipóteses. Na
pior, era uma receita para ela quebrar, porque um
humano morreria, não importava o que ela fizesse, e Mel
nunca condenaria ninguém a se tornar um vampiro.
Ela não tinha se esquecido de nada daquilo, mas
mesmo assim estava na cozinha, fazendo comida para
um humano. Para Yuri. E se ele era a única pessoa fora
do seu rebanho para quem ela havia feito aquilo em
décadas... Ele não precisava saber.
Mel desligou a panela de arroz e a tampou.
A noite anterior tinha mudado as coisas entre eles –
e não era apenas porque ele havia oferecido seu sangue
ou por causa do depois. Das horas no quarto. De como
ele havia aceitado que Mel estivesse no controle, até que
estivesse satisfeita, e só depois tinha tomado o controle
para si mesmo.
Não. A mudança havia sido por causa dela. Por causa
do que Mel havia feito. E a pior parte era que, se ela
parasse para pensar, não conseguia se lembrar do que
estava pensando. Ela havia notado que os carniçais
estavam perto demais. Tinha calculado a velocidade
deles – que não era tanta quanto a de um vampiro, mas
era o suficiente para serem mais rápidos que sua moto –
e reagido. Simples. Não havia sido uma decisão
consciente. Sua primeira reação havia sido garantir que
Yuri passaria pelas proteções.
Por quê? Ele havia perguntado aquilo e Mel não
tivera uma resposta. Ainda não tinha. Ela não podia nem
dizer que era o certo a se fazer, porque aquilo nunca a
havia incomodado antes. Ela tinha deixado vampiros
para trás, quando estava em trabalhos de risco, e
ninguém a culpara. Sua prioridade era sobreviver e era o
que qualquer um faria, se estivesse na mesma situação.
Quando aquilo tinha mudado? Ela não fazia ideia, mas
sabia que nunca seria assim com Yuri.
E talvez os motivos não fossem tão importantes
assim, desde que ela tivesse consciência de que algo
tinha mudado. O que realmente importava era se ela
voltaria atrás, se colocaria um fim naquilo enquanto
ainda podia, ou se seguiria em frente.
Mel não queria colocar um fim naquilo, mesmo que
fosse o que deveria fazer.
Então ela estava ali, fazendo comida para Yuri. Ele
não havia comido quase nada no dia anterior, depois de
voltarem do castelo e da compulsão. E também não
havia comido nada de noite, depois de ter oferecido seu
sangue. Então garantir que ele estivesse bem alimentado
era o mínimo que Mel podia fazer.
"O mínimo" era uma boa definição, porque aquela
cozinha não tinha muita coisa. O que ela estava fazendo
era o básico: arroz, peito de frango assado com batatas e
especiarias e uma salada que ela havia tentado deixar
mais elaborada.
A porta do quarto se abriu. Mel ouviu Yuri sair e
parar, provavelmente no parapeito. Ela não ia se virar
para ter certeza.
Ela conferiu o peito de frango que ainda estava no
forno. Ela estava fazendo comida. Aquilo não era nada
demais. Não tinha motivos para agir como se não fosse
algo normal.
Yuri desceu as escadas e parou apoiado na parede
baixa que separava a cozinha da sala.
— Não sabia que vampiros cozinhavam — Yuri
comentou.
Mel deu de ombros. Ainda ia demorar alguns minutos
até o frango ficar pronto.
— A maioria não vê motivos para se dar ao trabalho,
mas não existe nada que nos impeça de fazer isso — ela
falou.
— Imagino que não.
Mel se virou para ele.
— Faz dois dias que você não se alimenta bem — ela
falou. — Fazer isso em território hostil é um risco
desnecessário.
Ele sorriu.
— Eu fiz comida enquanto você estava inconsciente,
ontem.
Ela não tinha notado. Não havia nenhum sinal de
nada na cozinha – mas ele não mentiria sobre algo tão
trivial.
— Mas é bom saber que você se importa — Yuri
completou.
Mel não ia mentir e dizer que não se importava. Ou
dizer que estava fazendo aquilo só para garantir que ele
a alimentaria, depois. Ela queria um depois, sim, e não
negaria. Mas não mentiria para si mesma e para ele
dizendo que aquele era o motivo para estar cozinhando.
— Tem uma coisa que quero saber — Yuri falou.
Ela levantou as sobrancelhas e se apoiou no balcão
da cozinha.
— O meu destacamento — ele começou. — Seis anos
atrás.
Mel encarou Yuri. Muita coisa tinha acontecido anos
antes e se lembrar especificamente de alguma coisa que
acontecera havia seis anos não era tão simples. Mas o
problema não era se lembrar.
— E por que a vontade de saber agora? — Ela
perguntou. — Se arrependeu do que fez e está querendo
um motivo para se lembrar de por que nunca deveria
confiar em uma vampira?
Yuri a encarou e balançou a cabeça devagar.
— Porque eu quero entender e confio que vai me
contar a verdade. É tarde demais para me arrepender.
Mel se inclinou para trás, tentando esconder seu
alívio. Ela tinha que parar de fazer aquilo consigo
mesma. Ela não deveria se importar, mas importava. O
que queria dizer que as respostas de Yuri pesavam mais
do que deveriam e mesmo assim Mel insistia em
perguntar.
Mas era bom ouvir que ele não se arrependia.
Ela assentiu devagar.
— Preciso de alguma coisa mais específica — Mel
avisou. — Já tive que lidar com destacamentos de
mercenários demais.
Ele bateu os dedos no granito trincado que era a
parte de cima da parede baixa.
— Nós tínhamos sido contratados como proteção
para um mercador — Yuri começou. — O que eu sei é que
os vampiros estavam furiosos com ele porque ele não
tinha vendido alguma coisa para eles. Você controlou
todo o destacamento. Fez o comandante atirar no
segundo no comando e depois se matar.
Mel fechou os olhos. Tinham sido apenas seis anos
desde aquilo? Se alguém tivesse perguntado, ela diria
que havia sido pelo menos dez anos antes.
— O mercador tinha um contrato com a Corte — ela
contou. — Ele havia recebido uma oferta melhor e
decidiu não cumprir o contrato. O príncipe tentou
negociar.
Ela não sabia detalhes – podia ser a pessoa que
resolvia os problemas do príncipe, mas aquilo não queria
dizer que tinha todas as informações. Não, Mel recebia
instruções e as cumpria, mais nada. Mas, o que quer que
aquele contrato fosse, era importante o suficiente para o
príncipe tentar negociar, primeiro, mesmo que a resposta
normal a qualquer coisa daquele tipo fosse a morte. E o
mercador sabia que tinha um nível de poder naquele
assunto que não era comum.
— O mercador recusou as negociações — Yuri
murmurou.
Mel abriu os olhos e assentiu. Ele havia recusado. Ela
tinha ouvido os comentários pela Corte e as
especulações, os questionamentos sobre o que aquele
mercador tinha de tão valioso.
— Isso deveria ter sido uma sentença de morte, mas
o príncipe estava disposto a deixar o mercador viver,
com a condição de que não fizesse mais negócios no
Setor Seis — ela continuou.
Yuri ainda estava tamborilando os dedos e o som
baixo era quase hipnótico.
— Ele teria que sair do setor e provavelmente ia
perder todos os seus contatos — ele comentou. — E o
que quer que fosse que fazia ele ser tão importante.
Mel assentiu.
— Eu me lembro da casa do mercador — ele contou.
— Era na parte humana da cidade, mas era tão grande
quanto as casas dos vampiros. Ele não ia abrir mão
daquilo tudo.
— E não abriu — ela falou. — Não duvido que meu
príncipe teria deixado o mercador vivo mesmo depois
disso, mas o mercador fez questão de tornar público que
tinha quebrado um contrato com a Corte.
Yuri balançou a cabeça devagar.
— Estúpido.
Estúpido ainda era um elogio, na opinião de Mel.
— Eu fui mandada para transformar o mercador em
um exemplo — ela continuou. — Os mercenários
contratados não importavam, mas seria bom se fossem
um exemplo, também, para garantir que os outros
escolhessem melhor os trabalhos que aceitariam.
O que queria dizer que ela deveria ter matado todos
os mercenários, também. Controlar o comandante
daquele jeito havia sido escolha de Melissa, o tempo
todo. O forçar a matar o segundo no comando e depois
se matar, também. E ela tinha sentido o que estava na
mente de todos os mercenários que estavam sob o seu
controle, naquela hora. O medo – terror, quase. A
sensação de impotência. A consciência de que não
podiam fazer nada contra ela e contra os vampiros. O
saber que, quando enfrentavam um vampiro e saíam
vivos era porque o vampiro havia sido descuidado, não
porque eles eram melhores.
Yuri não falou nada.
Mel o encarou.
— Um destacamento de mercenários morto não quer
dizer nada. Não passa uma mensagem. Um
destacamento onde todos os subalternos viram seus
comandantes serem controlados e mortos... Esses
mercenários vão pensar antes de aceitar um trabalho
protegendo alguém que sabe que vai ser punido pelos
vampiros. E vão repassar a história.
E ela teria menos situações como aquela para lidar.
Mel nunca havia tido problema em lidar com pessoas
como aquele mercador. Matá-los era tão simples quanto
destruir algum vampiro: eles não fariam falta. Mas ela
nunca havia gostado de precisar matar os que haviam
sido contratados para oferecer proteção e que muitas
vezes não faziam ideia da situação real.
— E o mercador? — Yuri perguntou.
Melissa sorriu.
— O que você acha?
Yuri sustentou seu olhar.
— Morto. Torturado, provavelmente — ele falou. — E
alguma parte disso deve ter sido pública, pra garantir
que mais nenhum mercador pensasse que podia fazer a
mesma coisa.
Ela assentiu. Ele sabia muito bem como as Cortes
funcionavam. Os vampiros não aceitavam nenhum
questionamento à posição e autoridade deles.
— Faz muito tempo que deixei de ser humana — Mel
comentou. — Mas eu me lembro o suficiente. E me
lembro muito bem do que pensava sobre os vampiros.
Não vou dizer que tudo o que fiz foi o certo, ou que tinha
uma justificativa. Eu fiz questão de conquistar o meu
lugar na Corte. Como foi que você me chamou? A mão
esquerda do príncipe? Eu fiz o que precisava para ter
essa posição. Eu sei o que as Cortes fazem. Mas nem
sempre é tão simples quanto os humanos fazem parecer.
Yuri fechou a mão e bateu o punho fechado na
pedra, sem muita força.
— O mercador desafiou a Corte, sabendo que não
tinha a menor chance de enfrentá-los. E quando sua vida
foi ameaçada, ele nos levou para o meio da coisa toda.
Mel assentiu.
— Eu era o mais novo no destacamento — ele
continuou. — Não tinha muitas informações. Só recebia
minhas ordens. Mas os comandantes deveriam saber,
quando aceitaram aquele trabalho. Eles não teriam
aceitado um trabalho de proteção sem ter os detalhes...
— Eles sabiam — Mel contou. — Os dois. E estavam
dispostos a arriscar a vida do destacamento inteiro,
porque se o mercador estivesse exagerando e o risco não
fosse tão grande, o pagamento seria o suficiente para
nunca mais precisarem se preocupar com nada.
Ela tinha feito questão de ter certeza daquilo. Os
dois comandantes teriam morrido mesmo se não
soubessem, mas aquela confirmação havia sido o
suficiente para Mel não ter o menor problema com as
suas ordens.
Era como o mundo funcionava. Não era perfeito –
longe daquilo. Mas nada era tão simples quanto dizer "a
culpa é dos vampiros e se eles fossem destruídos tudo
seria melhor". Se fosse tão simples, Mel teria convencido
Amon a ajudá-la a destruir tudo décadas antes, sem a
menor preocupação com o custo para eles.
Yuri assentiu e se afastou da meia parede. Mel não
falou nada enquanto ele se inclinava para tentar ver o
forno.
— O que você está fazendo? — Ele perguntou. —
Pelo cheiro...
E o assunto sobre os mercenários estava encerrado?
Tão simples assim? Mel imaginara que ele insistiria
naquilo. Que ia tentar discutir ou dizer que ela deveria
ter encontrado outra forma de transformar aquilo em
uma mensagem.
Aquilo era perigoso. A forma como Yuri era
imprevisível, a forma como Mel se importava com as
reações dele – e com ele, se fosse ser honesta consigo
mesma...
Era perigoso. E era tarde demais para voltar atrás.
Ela sorriu e deu um passo para o lado, até estar na
frente do forno, tampando a visão dele.
— Você vai ter que esperar ficar pronto para saber —
Mel falou.

Yuri encarou as costas de Melissa na cozinha. Aquilo era a última


coisa que ele esperava ter encontrado quando tinha
acordado e saído do quarto.
Melissa tinha feito comida para ele. Yuri não se
lembrava da última vez que alguém tinha feito aquilo:
era sempre ele cozinhando e todo mundo aparecendo na
mansão que era a sede do Setor Dez porque gostavam
da comida dele. Mas era mais do que óbvio que Melissa
sabia muito bem o que estava fazendo. Ela não estava
agindo como alguém que não cozinhava fazia tempo. Na
verdade, ela parecia mais relaxada na cozinha do que em
qualquer outro momento.
Não. Quase qualquer outro momento. Ela tinha
ficado tão relaxada assim depois de beber o seu sangue.
E Yuri não deveria ficar tão satisfeito com aquilo.
Nem ia ficar pensando demais naquilo. A decisão havia
sido tomada e ponto.
Ele pegou o celular e encarou a tela. Nada. Não que
ele estivesse esperando alguma mensagem. Mas,
quando voltasse para o Setor Dez, não ia mais poder
fazer nenhum comentário sobre Dani ter sido louca o
bastante para confiar em um vampiro e ter se envolvido
com um deles – porque pelo visto ele era tão louco
quanto ela.
— Enviou as fotos? — Melissa perguntou.
Yuri levantou a cabeça. Ela ainda estava do outro
lado da meia parede, mas tinha se virado para ele.
— Pensei nisso — ele contou. — Mas não confio que
vai ser seguro.
Ele não sabia o suficiente sobre que tipo de
tecnologia as Cortes tinham. Era possível que tivessem
como saber o que estava sendo enviado – os vampiros
controlavam as redes de celular. Então, não. Era melhor
não enviar nada. Ele não tinha se esquecido de que
aquilo provavelmente não envolvia só o Setor Cinco.
Quando Melissa tinha se aproximado de Yuri, naquele
bar, ela havia oferecido uma chance de conseguir
informações que garantiriam que os outros setores iam
respeitar o Dez. Aquilo queria dizer que ela também não
fazia ideia de onde iam se meter, porque Yuri tinha
certeza de que ela tinha falado a verdade. Melissa não
esperava alguma coisa envolvendo o Seis, também. E se
o Cinco e o Seis estavam trabalhando juntos naquilo, era
quase certeza de que não iam ser só eles.
Melissa assentiu devagar.
— É uma possibilidade.
Então os vampiros tinham como fazer aquilo, se
quisessem.
Yuri ia precisar colocar seu pessoal para rever os
protocolos de segurança de comunicação – e ele estava
extremamente satisfeito por ter insistido em um servidor
local para as comunicações internas entre o pessoal
envolvido no funcionamento do setor.
Ele não ia falar que precisavam decidir o que fazer.
Melissa sabia daquilo melhor que ele e era ela quem
tinha alguma chance de pensar em uma solução.
— Está pronto — ela avisou.
Mas ele ia aceitar a comida que uma vampira havia
feito para ele – e aquilo era uma coisa que Yuri nunca
teria imaginado que fosse possível.
Yuri encarou Melissa. Tinha uma coisa que ele queria
saber, antes de começar a comer.
— E agora? — Ele perguntou.
Ela levantou uma sobrancelha.
— E agora? — Ele repetiu. — Vamos só ficar parados,
esperando, ou...
Melissa suspirou e balançou a cabeça.
— Temos duas opções — ela começou. — Sair daqui
e entregar essas informações para Lorde Rafael é uma.
Se fizermos isso, o Setor Um vai invadir o Cinco sem
pensar duas vezes, porque algo como o que estão
fazendo precisa ser parado e não temos provas de que
mais alguém esteja envolvido.
Considerando que era bem possível que o Cinco
estivesse fazendo aquilo para atacar o Um, Yuri não
achava que era uma boa ideia. Só atacar assim seria
estupidez da parte de Lorde Rafael, mas ele não
duvidava de que fizessem exatamente aquilo. A
arrogância dos vampiros às vezes passava do ponto da
burrice.
— E a outra?
Melissa deu dois passos para trás e se encostou na
bancada da cozinha, de braços cruzados.
— A outra é esperar a armadilha que Dama Cordelia
e quem mais está trabalhando com ela estão preparando
— ela falou. — Não nos entregar, mas aproveitar isso
para conseguir mais informações antes de levarmos isso
para o Setor Um.
Yuri levantou as sobrancelhas. Era bom ter
perguntado antes de começar a comer.
— Isso é arriscado — ele comentou.
Porque não tinham como ter nenhuma ideia do que
os vampiros fariam. Eles teriam que reagir ao que quer
que acontecesse e aquilo podia ser literalmente qualquer
coisa.
Melissa assentiu.
Se estivesse lidando com humanos, Yuri sabia muito
bem qual seria sua escolha. O risco maior a curto prazo
valia a pena, porque podia ser a diferença entre terem
um conflito de grandes proporções ou não. Mas, lidando
com vampiros e o que eles poderiam considerar fazer,
ele não tinha tanta certeza.
— O que você acha? — Yuri perguntou.
— Esperar — Melissa falou, sem nem precisar parar
para pensar. — É arriscado, mas...
Ela não precisava terminar. Ele entendia.
O que queria dizer que Yuri tinha mais um motivo
para aproveitar a comida que Melissa havia feito para
ele: ele não sabia se teria a chance de fazer aquilo de
novo.
QUINZE

O risco era grande demais. Mel sabia daquilo melhor que ninguém.
E, mesmo assim, havia sido ela que tinha sugerido
esperar.
Teria sido tão mais fácil se estivessem se preparando
para ir embora, ou se ela tivesse enviado uma
mensagem para o Setor Um. Mas não. Estavam ali, na
sala daquela casa, sentados lado a lado, com a televisão
ligada e sem fazer absolutamente nada.
— Você não faz bem para mim — Mel falou.
Yuri se virou para ela devagar e levantou as
sobrancelhas.
— Não era isso que você estava falando algumas
horas atrás.
Ela sabia muito bem o que estava falando algumas
horas atrás e não queria pensar naquilo. Não quando
podiam ser atacados a qualquer momento. Ela conhecia
Dama Cordelia bem o suficiente para ter certeza de que
a princesa não deixaria nada atrapalhar o que quer que
estivesse planejando.
A melhor chance de Mel continuava ser usar o
interesse de Dama Cordelia nela. Talvez não fosse ser a
sua melhor opção, mas era a única saída que ela via que
garantia a segurança de Yuri. Ele precisava escapar,
primeiro, assim que soubessem com o que estavam
lidando. E, depois, Mel faria o que precisasse para ela
escapar.
Ela balançou a cabeça.
— Eu deveria estar longe daqui, depois de ter dado
as informações para Lorde Rafael — ela murmurou. — O
que quer que acontecesse depois não seria problema
meu. Era isso que eu deveria estar fazendo, não estar
aqui, esperando uma armadilha se fechar, porque essa é
a melhor chance de evitar um conflito que eu nem
deveria me importar.
— E por que não está? — Yuri perguntou.
Se ela soubesse, provavelmente não estaria
pensando naquilo.
Não. Ela sabia, sim. Era por causa dele. Pelo mesmo
motivo que ela tinha descido da moto e lutado contra os
carniçais. Pelo menos motivo que estava pensando em
como garantir que Yuri escaparia, antes de pensar na sua
própria segurança.
Se ela entregasse as informações para Lorde Rafael
da forma como estavam, só havia um resultado possível.
E, não importava quem ganhasse em um confronto entre
o Um e o Cinco, o Dez pagaria. Yuri pagaria – e as
pessoas que importavam para ele também.
— Porque você não faz bem para mim — Mel repetiu.
Yuri estava fazendo ela criar uma consciência, de
novo. Ou talvez apenas acordando o que restava da sua
consciência, depois de tanto tempo fazendo questão de
ignorar qualquer coisa daquele tipo.
Ele riu e olhou para a televisão de novo, mesmo que
Mel tivesse certeza de que não estava prestando
atenção.
— Acho justo, considerando que você me fez ignorar
tudo o que tinha jurado para mim mesmo — ele falou.
Mel sorriu. Sim. Ele tinha um ponto.
E, olhando por aquele lado, estar criando uma
consciência era culpa de Mel. Ela havia decidido quebrar
as certezas de Yuri sobre vampiros e sobre ela. E, em
algum momento enquanto ela estava vendo um desafio
que queria vencer, algo havia mudado.
Mel só não fazia ideia do que viria depois. Eles
sobreviveriam ao que quer que Dama Cordelia decidisse
jogar na sua direção – ela garantiria aquilo, não
importava o preço. Mas, depois... Ela não sabia o que
faria. O plano sempre havia sido ir embora daquela
região, levando seu rebanho, e não olhar para trás. Ela
não tinha mais tanta certeza de que faria aquilo.
Seu rebanho. Se o Setor Cinco e o Seis estavam
trabalhando juntos a possibilidade de usarem a vida das
pessoas do seu rebanho contra Mel era grande demais.
Eles eram humanos sem nenhum tipo de poder. Não
teriam a menor chance se o príncipe decidisse fazer algo
contra eles.
— O que foi? — Yuri perguntou.
Mel respirou fundo e soltou o ar devagar. Respirar
havia deixado de ser um hábito já fazia muito tempo,
mas ainda era útil quando precisava se forçar a relaxar.
— Meu rebanho — ela falou.
Ela não ia olhar para Yuri. Não queria saber qual
seria a reação dele ao ser lembrado que ela tinha um
rebanho e que se preocupava com eles. Não tinha como
não se preocupar. Ela havia prometido sua proteção para
eles, sim, mas era mais que aquilo. Eles eram as pessoas
que estavam ali, o tempo todo. Que a lembravam do que
realmente estava em jogo quando a Corte fazia algo e
que, muitas vezes, haviam garantido que ela não se
tornaria como os outros.
— Eles vão ser alvos — Yuri murmurou. — Quais as
chances disso acontecer?
Direto ao que importava, então. Bom. Ela não queria
saber o que ele pensava sobre aquilo. Pelo menos, não
naquele momento.
— O príncipe vai esperar até ter uma confirmação de
que realmente estou contra seus planos — ela contou. —
Se isso quer dizer uma confirmação de que estava
planejando trair o Setor Seis ou de que vim atrás das
informações sobre os carniçais para usá-las, não sei.
Yuri assentiu.
— Temos tempo, então.
Mel não fazia ideia de que diferença ter tempo faria.
Não importava o que acontecesse, ela não conseguiria
chegar no Setor Seis ou mandar um aviso a tempo.
Ela deveria ter tirado todos de lá enquanto teve a
chance. Deveria ter organizado algo logo depois de fazer
aquele acordo com Yuri e garantido que estariam fora do
caminho se algo desse errado. Mas não. Ela havia sido
arrogante.
Yuri passou dois dedos pelo seu braço, logo acima de
onde ela tinha um bracelete feito de correntes.
— Por que as correntes? — Ele perguntou. — Todos
os vampiros sempre fazem questão de ter alguma coisa
assim.
Era uma mudança de assunto brusca e Mel não ia
reclamar. Ficar pensando em o que ela poderia ter feito
diferente não levaria a lugar algum.
— Poder — ela contou. — Prata é tóxica para nós.
Não conheço todas as histórias e Amon provavelmente
vai saber te contar mais sobre isso.
— Mas se é tóxica, então...
— Está ligado à força de cada vampiro, também —
Mel continuou. — Quanto mais forte, maior a resistência
que temos à prata. É isso que as correntes são: um sinal
visível de poder.
E, se ele perguntasse o motivo de serem correntes e
não outra coisa, ela não saberia dizer. Seu primeiro
mestre havia lhe explicado aquilo e ela nunca tinha se
preocupado em entender o que estava por trás daquele
costume.
Yuri balançou a cabeça e encarou a televisão de
novo.
— Tem alguma coisa que vocês fazem que não seja
por causa de jogos políticos ou coisa assim? — Ele
perguntou.
Mel deu um sorriso seco e não respondeu. Yuri sabia
muito bem que não. Os jogos políticos eram o que
mantinha as Cortes funcionando. A menos que um
vampiro estivesse tão baixo na hierarquia que
praticamente não fosse parte de uma Corte, ele
precisaria se juntar ao jogo, se quisesse sobreviver.
E algo estava fora da casa. Uma mente que Mel não
conseguia ver claramente, como se houvesse uma
cortina de fumaça escondendo seus pensamentos de
Mel. Mas a fumaça não escondia a sensação de poder.
Alguém – alguma pessoa humana – controlada por
um vampiro. Possivelmente controlada por Dama
Cordelia.
Mel se levantou devagar e contornou o sofá, sem
falar nada.
Yuri fez a mesma coisa e parou ao seu lado, já com
sua pistola na mão.
Ainda estava cedo. Quatro e meia da tarde, talvez
menos? Cedo demais para qualquer coisa vinda de Dama
Cordelia. A menos que Mel estivesse muito enganada, a
princesa iria querer tê-la na diante de si antes de dar sua
sentença.
Talvez não fosse Dama Cordelia controlando a
pessoa ali. Talvez a pessoa nem mesmo estivesse sendo
controlada. Mel não tinha como ter certeza, por causa
daquela impressão da cortina de fumaça.
— Esse tipo de construção tem suas desvantagens —
Yuri murmurou.
Sim. Aquela casa estava na parte humana da cidade,
mas havia sido construída para vampiros. O que queria
dizer que não tinha nenhuma janela, apenas os tubos de
ventilação espalhados por todos os cômodos, para
garantir que o lugar não ficasse abafado. Qualquer
pessoa que realmente fosse morar ali teria instalado
câmeras para saber o que estava acontecendo fora da
casa, mas eles eram visitantes. Não teriam tido acesso a
nada daquele tipo mesmo se pedissem.
O que queria dizer que eles não tinham como saber
quem estava lá fora ou o que estava fazendo. A única
forma de conseguir informação que tinham era o poder
de Mel.
E aquilo queria dizer que Yuri não fazia ideia do que
estava acontecendo, só estava reagindo ao que Mel
havia feito.
— Tem alguém com algum tipo de poder lá fora —
ela murmurou. — Não consigo ver nada na sua mente.
— Imune? — Yuri perguntou.
Talvez. Improvável, mas...
Mel balançou a cabeça.
— A sensação é diferente.
Era como se quem quer que estivesse lá fora
soubesse exatamente com quem e com que tipo de
habilidade estava lidando – o que era um problema,
porque os vampiros não sabiam que ela conseguia ler
suas mentes, também. Se aquela pessoa estava
preparada para aquilo...
— Alguma coisa ligada ao garoto de ontem?
Garoto? Ela não envolvia crianças nos problemas dos
vampiros...
Ah. O rapaz que havia ido ali com um convite que
claramente era uma armadilha.
Ela balançou a cabeça de novo, ainda encarando a
porta.
— Se está pensando que podia ser uma mensagem
real ou outro grupo de pessoas interessado nisso,
improvável.
Não havia motivo para mais alguém se envolver,
especialmente alguém que estava disposto a usar
humanos. Não, aquele rapaz havia sido obra de Dama
Cordelia – e, por mais que fosse cedo, era bem possível
que a pessoa lá fora fosse obra dela, também.
A presença começou a se afastar.
— Está indo embora — ela avisou.
A pessoa havia feito alguma coisa com a casa. Se
eles saíssem – quando saíssem – estariam indo direto
para uma armadilha.
Mel precisava descobrir o que era antes de ser tarde
demais.
— Vou abrir a porta — Yuri avisou.
Mel fechou as mãos com força, resistindo à vontade
de negar, e se afastou para o lado.
Yuri se virou para ela.
— Se você achar que não é seguro... — ele começou.
Ela sustentou seu olhar. Era muito mais fácil quando
Mel não se importava.
— Não é seguro — Mel falou. — Mas a porta não vai
explodir, se foi o que imaginou. Se decidir nos matar,
Dama Cordelia vai transformar isso num exemplo. Uma
explosão é algo simples e direto demais.
E era indolor – porque a pessoa pega em uma
explosão provavelmente morreria antes de entender o
que estava acontecendo.
— De qualquer outro tipo de armadilha, eu consigo
te proteger — ela completou.
Ele levantou as sobrancelhas e não falou nada antes
de ir na direção da porta.
Era a verdade. Mel conseguia pensar em várias
possibilidades. E ela se jogaria para fora daquela casa,
no sol, sem se preocupar com nada, se precisasse.
Yuri abriu a porta. Nada aconteceu. Ele olhou para
um lado e depois para o outro e balançou a cabeça antes
de recuar.
Um vento fraco bateu logo antes de Yuri fechar a
porta.
Mel reconhecia aquele cheiro. Era algo discreto, mas
era algo que ela já havia usado. Ela não sabia
exatamente o que aquele líquido era ou como era
produzido, mas era usado como combustível ou
acelerante quando os vampiros precisavam queimar algo
que não deveria queimar e queriam ter certeza de que o
fogo não se espalharia. Ela mesma já havia usado aquilo
antes, quando estava lidando com humanos que
pensavam que se trancar em casa seria uma garantia de
segurança.
Ela tinha falado que Dama Cordelia faria algo público
e não estava errada. Se alguém havia colocado aquele
líquido ao redor da casa onde eles estavam, era porque a
princesa não esperaria até o anoitecer. Não. Ela agiria
durante o dia. Seria público e seria um exemplo – porque
uma casa queimando, com uma vampira dentro dela,
seria uma execução pública que todos entenderiam,
mesmo que não soubessem o motivo.
E não seria apenas uma vampira presa dentro de
uma casa queimando. Não seria apenas Mel. Yuri
também estaria ali. Yuri, que era humano e mais nada.
Se o fogo começasse, ele não teria a menor chance de
escapar ou de sobreviver.
Mel se sentiu gelar. Ela não deveria se importar. Ou
melhor, não deveria ter começado a se importar, porque
se importava. Aquele era o motivo para ela não se
apegar. Humanos morriam. E um humano que estava
envolvido demais nos assuntos das Cortes morria ainda
mais cedo.
Não. Mel não ia ver Yuri morrer. Não ali, não por
causa dela, não enquanto ela pudesse evitar aquilo de
alguma forma.
— Eu preciso que você pegue minha moto — Mel
começou.
Yuri se virou para ela, sem soltar sua arma.
— Você...
Ela fez um gesto seco. Eles não tinham tempo para
explicações.
— Envie as fotos para o seu pessoal agora — ela
continuou. — Não importa se existe a chance de serem
interceptadas. O importante é que elas existam em
algum lugar seguro e fora do controle das Cortes.
Yuri guardou sua pistola, devagar.
— Melissa...
— Agora — ela repetiu.
Ele pegou seu celular sem falar nada.
Mel respirou fundo e soltou o ar devagar. Aquilo
cuidava de parte do problema, mas não de tudo.
Yuri precisava sobreviver. Ela não conseguiria lidar
com ele morrendo ali.
Ela não conseguiria lidar com ele morrendo.
Mel deveria ter pensado naquela parte antes,
também. Se não fosse agora, seria depois, em algum
conflito. Poderia até ser por causa daquele conflito, que
provavelmente começaria em breve... Não. Mel ainda
tinha tempo para tentar impedir aquilo.
Mesmo se ele escapasse, se Mel conseguisse
manipular a situação para não terem uma guerra entre
setores, Yuri ainda assim morreria, porque ele era
humano. Ele era mortal. Ele envelheceria – e ela não.
Mas ele envelheceria. Ele teria uma vida longa. Ela
fazia questão daquilo. E aqueles dias no setor, a noite
anterior, tudo aquilo seriam lembranças que Mel
guardaria com cuidado. Saber que ele estava vivo, que
viveria sua vida até o fim, seria o suficiente. E seria
melhor do que precisar assistir enquanto a vida dele
chegava ao fim.
O que queria dizer que Mel precisava tirá-lo dali.
— Enviado — Yuri avisou. — Agora você vai me
contar o que está acontecendo?
Sim. Ela precisava contar.
E quando ela fizesse aquilo, ele ia se recusar a fazer
o que Mel sabia que era o necessário.
Parceiros. Eles estavam naquilo juntos. Yuri havia
confiado nela e escutado todos os seus avisos. Ela não
jogaria aquilo fora – mesmo que soubesse que era o que
Yuri pensaria.
— Vão queimar a casa com nós dois aqui — ela
contou. — Ainda é dia, o que quer dizer que Dama
Cordelia quer ter certeza de que eu não vou escapar.
Yuri empalideceu.
— Você...
— Eu preciso que você pegue minha moto — ela
continuou, como se ele não tivesse falado nada. — Você
vai voltar para o Setor Dez e garantir que eles saibam o
que está acontecendo. Amon vai entender exatamente o
que isso tudo quer dizer.
Yuri parou na sua frente e segurou seu rosto.
— Eu não vou deixar você aqui para ser queimada
viva — ele avisou.
Mel sustentou seu olhar.
— Não vou ser — ela contou. — Mas preciso de você
fora daqui primeiro. E, se alguma coisa der errado, não
podemos correr o risco das informações se perderem.
Alguém precisa saber o que está acontecendo aqui.
A expressão de Yuri continuou a mesma: dura, sem a
menor indicação de que ele fosse ceder.
— Então eu vou te esperar até você conseguir sair
daqui e vamos dar um jeito nisso do mesmo jeito que
fizemos até agora.
Juntos. Era aquilo que ele queria dizer.
Não. Ele morreria se ficasse e tudo o que haviam
feito teria sido por nada.
Era assustador saber que a ideia de Yuri morto a
preocupava muito mais que a possibilidade de um
conflito entre setores.
Mel segurou os pulsos de Yuri e puxou suas mãos
para baixo.
— Eu preciso de você fora daqui. Seu pessoal precisa
saber o que está acontecendo — ela falou.
— É só mandar outra mensagem...
Ela balançou a cabeça.
Ele não ia ceder. Yuri era teimoso – e naquele ponto
eles eram iguais. E ela estava contando com aquilo. A
resistência dele era exatamente o que ela precisava.
Yuri a odiaria depois. Ele ficaria furioso. Pensaria que
tudo, o tempo todo, havia sido manipulação.
Era melhor daquele jeito. Seria um corte limpo –
porque Mel tinha consciência de que havia se apegado.
Ela não conseguiria se afastar, depois.
E ele estaria vivo. Era o que importava.
Passar pela imunidade de Yuri não era tão simples
quanto Mel havia feito parecer, mas não era um
problema para ela, especialmente depois do tempo que
haviam passado tão perto um do outro. Ele confiava nela.
Ele não estava alerta, o que queria dizer que seu
trabalho era mais fácil.
Yuri relaxou os braços e ela o soltou.
— Você vai pegar minha moto — ela falou. — E vai
voltar para o Setor Dez. Assim que chegar lá, você vai se
reunir com Raquel, Amon, Daniele e quem mais
considerar necessário. Você vai explicar tudo o que
descobrimos. E só depois de repassar todas as
informações você vai poder fazer suas escolhas de novo.
Yuri assentiu, devagar e de forma mecânica.
Ele nunca a perdoaria. Quando a compulsão
acabasse e ele entendesse o que Mel havia feito,
qualquer coisa que existisse entre eles teria
desaparecido. Mel não se surpreenderia se ele fizesse
questão de caçá-la depois, e não o julgaria.
Mas pelo menos ele estaria vivo.
— Vá agora — ela falou.
Yuri se virou. Até a forma como ele se movia era
outra. Não era Yuri ali, era só uma coleção de instruções.
Mel quase queria ficar ali e deixar que tudo
terminasse. Seria mais fácil que ter que olhar para ele de
novo, quando tudo acabasse.
Mas, se ela não fosse até o final, aquilo teria sido por
nada. Haveria um conflito, o Setor Dez seria arrastado
para o meio dele, e Yuri provavelmente não sobreviveria.
O que queria dizer que ela ainda tinha trabalho a
fazer.

Mel encarou a casa queimando. Ela sabia que aquilo ia acontecer,


e mesmo assim...
Dama Cordelia estava brincando com ela. A princesa
poderia ter mandado qualquer pessoa para jogar o
combustível ao redor da casa. Mel não teria notado mais
um humano por perto – a rua onde estavam podia não
ser muito movimentada, mas tinha movimento. Ao invés
disso, ela havia enviado alguém com aquela impressão
de poder que Mel não conseguiria ignorar.
A princesa queria que Melissa soubesse o que estava
para acontecer. Que ela soubesse que a casa seria
queimada – e ela também. E que não havia nada que Mel
pudesse fazer, porque sua única opção para escapar
seria sair da casa para o sol ainda forte.
Mas Dama Cordelia não sabia tudo sobre Melissa.
Ela puxou sua capa mais para junto do corpo. O sol
ainda estava no céu, o que queria dizer que ela precisava
tomar cuidado. A sombra entre duas casas do outro lado
da rua era uma boa proteção, mas não era uma garantia
de que o sol não a tocaria. Mas suas mãos ainda estavam
com as marcas de queimadura de quando havia
atravessado a rua até ali.
Mel não havia sido transformada por um vampiro. Na
época, ela havia tentado enganar a pessoa errada – um
vampiro da Corte. Ela não sabia quem ele era, mas
aquilo não mudava o que fizera. E a Corte havia tentado
se vingar dela. Sua transformação havia sido algo
público, como os bailes da lua no Setor Seis, com a
diferença que vários dos vampiros haviam se revezado
lhe oferecendo seu sangue.
Era para ser uma punição. A fala pública havia sido
de que, se ela estava tão disposta a manipular e enganar
vampiros, então se tornaria um deles e estaria sujeita às
suas regras. Anos depois ela tinha descoberto que aquilo
era apenas parte da verdade. Os vampiros naquela noite
esperavam que o poder da mistura dos sangues a
destruísse.
Mas o resultado tinha sido outro: a mistura de
sangue havia afetado o seu poder. Aquele era o motivo
para suas habilidades funcionarem contra vampiros,
também, sendo que nunca havia existido ninguém capaz
de algo parecido antes. Era o motivo para ela conseguir
sentir quando havia poder por perto dela.
E era o motivo para ela não ser destruída pela luz do
sol. Entre os vampiros que haviam tentado puni-la estava
um dos mais velhos, que era poderoso o bastante para
sobreviver ao sol. Melissa nunca seria forte o suficiente
para andar sob o sol impune, de novo. Ela fazia questão
de não viver tanto tempo. Mas, se tomasse cuidado, o
máximo que aconteceria era que teria algumas
queimaduras. Era um preço que ela estava mais que
disposta a pagar.
Àquela hora, Yuri já estaria chegando no Setor Dez.
Era a parte que importava. Ele estaria seguro.
Agora cabia a Mel ganhar tempo e colocar um ponto
final naquilo de uma vez por todas.
Ela puxou o capuz mais para perto do rosto e pulou o
muro que separava as casas daquela rua das da rua de
trás. Havia pessoas demais se reunindo perto da casa em
chamas. Se ela saísse por ali, chamaria atenção. Então, a
direção oposta – e com sorte ela conseguiria não chamar
atenção até estar perto do castelo.
DEZESSEIS

Yuri olhou ao redor, para as paredes claras e as estantes que


eram familiares demais. Ele estava no escritório de
Raquel, na mansão que era a sede do Setor Dez – e não
tinha nenhuma lembrança de como havia chegado ali. A
última coisa que ele se lembrava...
— Eu avisei — Amon falou.
Yuri se virou.
Amon estava parado de um lado da porta, com Dani
do outro lado, quase como se estivessem de guarda.
— Está de volta conosco? — Raquel perguntou.
Ele olhou para a frente de novo. Raquel estava
sentada do outro lado da sua mesa, como sempre
quando faziam alguma reunião ali.
— Como cheguei aqui? — Yuri perguntou.
Raquel entrelaçou as mãos e o encarou.
— Você chegou quase uma hora atrás, em uma moto
de um modelo que é recente o bastante para ter feito
Adriana parar tudo o que estava fazendo só para poder
testá-la — ela contou. — E você não falou nada a não ser
que precisava falar conosco.
— Não parou de repetir isso, pelo que Andriana
contou — Dani completou.
Não.
Yuri balançou a cabeça. Ele não se lembrava de nada
daquilo. Por que ele voltaria para o Setor Dez sendo
que...
Foi como se uma cortina estivesse sendo aberta – e
de repente ele se lembrava. O aviso de Melissa. Ela
pedindo para ele voltar para o Setor Dez. Ele se
recusando e então... Nada.
Yuri respirou fundo e soltou o ar devagar. Dani fazia
aquilo para se acalmar. Ele não achava que estivesse
fazendo alguma diferença para ele, porque Yuri quase
conseguia sentir a fúria crescendo.
Ele tinha confiado em Melissa. Mais que confiado –
ele tinha relaxado com ela, porque havia pensado que
existia alguma coisa ali. Que ela o respeitava. Mas, no
primeiro problema, ela tinha mostrado a verdade. E
aquilo não deveria ser uma surpresa. Ela era uma
vampira. Era assim que eles agiam. Yuri era humano –
menos que nada para um dele. O erro havia sido dele por
esperar algo diferente.
Melissa tinha feito exatamente o que havia
ameaçado, antes: ela tinha entrado na mente de Yuri e o
controlado. Ela tinha colocado uma compulsão nele para
fazer com que saísse do Setor Cinco e chegasse ali,
sabendo que depois que falasse com Raquel e os outros,
ele não poderia voltar para o Cinco nem se quisesse,
porque teria planos para fazer.
E ele não queria. Ela tinha invadido sua mente.
Depois de tudo... Ele nunca teria esperado aquilo vindo
dela – especialmente quando a única coisa que Yuri
estava tentando fazer era encontrar um jeito de garantir
que Melissa também escaparia da armadilha.
Sem problemas. Ele tinha entendido o recado. Ele
não importava – se importasse ela não teria feito aquilo –
e Melissa preferia ser destruída a pensar em uma
solução.
Então ele ia fazer sua parte. Era a única coisa que
deveria estar fazendo desde o começo: dando um jeito
na situação envolvendo os carniçais. Mais nada. Aquilo
era seu foco e Yuri não deveria ter desviado sua atenção
por nada, muito menos para uma vampira que ele sabia
que não era confiável.
Yuri tinha sido estúpido. Tinha esquecido da primeira
coisa que qualquer mercenário aprendia e que ele já
havia aprendido muito antes de começar a treinar:
vampiros nunca eram confiáveis. Eles sempre queriam
alguma coisa. Para eles, um humano só tinha valor
enquanto tivesse uma utilidade.
Ele tinha pensado que Melissa se importava.
Yuri olhou para a janela do escritório. Já estava
terminando de anoitecer. Se a intenção de Dama Cordelia
era queimar a casa com Melissa lá dentro, ela já teria
feito aquilo. E ele não se importava. Melissa havia feito
sua escolha.
Não. Yuri tinha um trabalho a fazer.
— Se a compulsão acabou, então contei tudo o que
encontramos lá — ele começou.
Raquel assentiu e indicou o monitor na sua mesa.
— E temos as fotos no nosso servidor. A questão é o
que fazer com elas.
— Se entregar isso para o Setor Um, as leis dos
vampiros vão obrigar Lorde Rafael a agir mesmo que ele
saiba que não é uma boa ideia — Amon falou. — O Setor
Dez vai ser envolvido por causa de Alana.
Era praticamente a mesma coisa que Melissa tinha
falado e Yuri odiava ter que pensar nela.
Mas ela também não tinha uma solução para aquele
problema.
Yuri se virou para Dani.
— Você é a pessoa dos planos loucos — ele
começou. — Tem algum pra dar um jeito nisso?
Dani levantou as sobrancelhas.
— Você, pedindo um plano louco? O mundo está
acabando.
Yuri deu de ombros. Ele já tinha feito coisas demais
que havia pensado que nunca faria. Aquilo era só mais
um item para a lista.
Dani olhou para Amon. O vampiro balançou a
cabeça. Então ela tinha pensado em alguma coisa, mas
por algum motivo Amon achava que não era possível dar
certo.
Ela suspirou.
— Estou tentando pensar em alguma coisa desde
que você foi para o Setor Cinco.
Dias, e ela não tinha conseguido nada. Aquilo não
era bom.
Não deveria ser problema deles. Os carniçais e tudo
mais eram problema dos vampiros, não do Setor Dez,
que fazia questão de se manter longe das Cortes. Mas
não. Ali estavam eles, tentando dar um jeito na merda
que os vampiros estavam fazendo porque senão ia
sobrar para eles.
— Só existe uma forma de isso não se tornar algo
pior — Raquel falou.
Yuri se virou para ela. Raquel era a líder do Setor
Dez, sim, mas raramente era a pessoa que dava as
soluções para o que fariam. Ela era quem mantinha
todos juntos e fazia o setor funcionar. O restante, era
problema deles. Ou, pelo menos, era como havia sido
desde que Yuri tinha se tornado responsável pela
segurança.
— Se entregarmos as informações para o Setor Um,
vamos ter uma guerra — ela continuou. — Se não
entregarmos as informações, vamos ter uma guerra.
Porque se o Setor Cinco estava trabalhando junto
com o Seis, então era muito improvável que fosse para
atacar o Setor Três, o que deixava o Um como sendo o
único alvo possível.
Yuri continuava não vendo uma solução.
— Então temos que lidar com os carniçais sem
envolver o Setor Um — Raquel falou. — E lidar com eles
de forma decisiva o suficiente para o Setor Cinco não
retaliar antes do Um ser avisado sobre tudo, depois que a
situação já estiver sob controle.
Yuri encarou Raquel. Aquilo era loucura. Eles mal
tinham conseguido parar o Setor Oito e os poucos
carniçais que o Cinco tinha mandado para o Dez haviam
feito estrago. Eles não tinham a menor chance de fazer
alguma coisa daquele tipo sozinhos.
— Não é por nada não — Dani começou. — Mas não
estou nem um pouco disposta a tentar enfrentar
carniçais de novo. Isso é loucura demais até pra mim.
Exatamente. Uma vez tinha sido o suficiente.
— E, mesmo antes do ataque do Setor Oito, não
teríamos como fazer algo assim sem perdas grandes
demais — Raquel completou. — Não estou falando de nós
invadirmos o Setor Cinco. Fazer isso seria o mesmo que
pedir para as Cortes nos destruírem.
Se a ideia não era eles atacarem, não fazia a menor
diferença. Colocar uma Corte contra a outra ia ser
arriscado demais porque as chances de terminar com
uma guerra, ou com o Setor Dez no meio, ou então de
darem as informações para as pessoas erradas e só
piorarem a situação...
Raquel não pensaria em algo daquele tipo. Era
arriscado demais, com variáveis demais. Para fazer
alguma coisa daquele tipo, ela precisava ter certeza. A
Corte que atacasse o Setor Cinco precisava ser uma que
eles tinham certeza que não queria mais poder na região
nem que fosse se virar contra eles.
Yuri era capaz de apostar que qualquer uma das
Cortes adoraria a chance de destruir o Setor Dez. Mas ele
conseguia pensar em uma Corte que não queria mais
poder.
— Você quer envolver o Setor Três — ele falou.
Raquel assentiu devagar.
Dani fez um ruído abafado. Era bom saber que Yuri
não era o único que tinha sido pego de surpresa com
aquilo.
— E dizem que eu faço planos loucos — Dani
resmungou.
Raquel sorriu de uma forma que Yuri só conseguia
descrever como travessa e que não combinava nem um
pouco com o que ele conhecia sobre ela.
— Você deveria conversar com Ezequiel sobre isso
depois — ela comentou. — Por que você acha que ele
colocou vocês dois como responsáveis pela segurança?
Planos loucos são necessários, se quisermos sobreviver e
nos manter afastados dos vampiros.
Yuri se virou para Dani. Ela deu de ombros. O que
Raquel estava falando fazia sentido até demais e ele
nunca tinha pensado por aquele lado.
Mesmo assim, era difícil imaginar Raquel sendo a
pessoa dos planos loucos.
— Isso poderia funcionar — Amon murmurou. — O
Setor Três nunca quis se envolver com nada.
— E o território do Setor Oito que eles tomaram
depois da guerra? — Dani perguntou. — Isso não é
exatamente "não se envolver" ou "não querer mais
poder".
Amon balançou a cabeça.
— Eu já estava preso quando tudo terminou. O que
sei é que Cassius tinha feito algo para ofender o Setor
Três. Ele se gabava disso e dizia que depois que tomasse
o Setor Quatro iria tomar o Três, porque os necromantes
não eram mais uma ameaça.
Burrice. Não tinha outra coisa que Yuri pudesse
pensar. Estupidez pura. O príncipe do Setor Oito tinha
desafiado o Setor Três. Se fosse qualquer outro setor,
aquilo teria sido o suficiente para começar uma guerra.
Mas aquilo explicava por que o Setor Dez fazia
fronteira com o Três e não com o Oito.
— Punição — Yuri falou. — O Setor Três tomou aquela
parte do território do Oito como punição pelo insulto e
pelo desafio.
Amon e Raquel assentiram.
— Faz sentido — Dani completou. — Porque não era
só o território que eles têm hoje. Era uma área bem
maior. A cidade velha foi do Três antes do Setor Dez ser
criado, e uma área maior ao redor dela... Se isso foi uma
punição, faz todo sentido.
E encaixava com a questão do Setor Três não querer
mais poder na região. Eles não iam deixar um insulto
passar sem resposta, mas não precisavam começar outra
guerra por causa daquilo. O que queria dizer que talvez
fossem a Corte com mais bom senso entre todas.
Considerando que todos sabiam que o Setor Três era
uma Corte de necromantes e até os outros vampiros
tinham medo deles, Yuri não tinha certeza de que pensar
que eles eram quem mais tinha bom senso era um bom
sinal.
— Primeiro, precisamos ter certeza disso — Raquel
falou. — Temos alguém que pode confirmar essa teoria e
se existe mais alguma coisa envolvendo o Setor Três que
precisamos saber.
Yuri olhou de relance para Dani. Ele sabia
exatamente de quem Raquel estava falando: Alex.
Dani não reagiu.
— Se tiver alguma coisa, elu vai saber — ela
confirmou.
Claro que Dani não ia reagir. Por mais que ela fosse
um tanto quanto louca, Dani nunca tinha misturado o
pessoal com o profissional – não era agora que ia
começar. Ela ter namorado com Alex e a coisa toda ter
terminado muito mal não mudava o fato de que elu era
especialista em história dos setores e dos vampiros.
— Então é hora de chamar tanto Alex quanto o
restante do pessoal e organizar isso — Raquel falou. —
Amon, se estivermos certos, você conseguiria entrar em
contato com alguém do Setor Três?
Amon inclinou a cabeça.
— Nunca tive contato com ninguém de lá, mas
provavelmente consigo chamar atenção de alguém da
Corte.
Era melhor que nada.
Raquel assentiu.
— Vai ser o suficiente — ela falou. — Sendo assim,
nos reunimos de novo aqui em uma hora. Vou entrar em
contato com Alex enquanto isso.
Ótimo. Uma hora, e então teriam um plano claro
para lidar com o Setor Cinco.
Melissa teria o que queria, no fim das contas.
E Yuri não sabia se queria que ela tivesse morrido
por causa da sua teimosia, ou se queria que ainda
estivesse viva só para ele poder caçá-la, como
pagamento por ter invadido sua mente daquele jeito.
Não. Ele não se daria àquele trabalho. Se ela
estivesse viva, a única coisa que teria dele seria a
distância e o desprezo – que era o que deveria ter tido
desde o começo. Ele nunca deveria ter imaginado que
podia esperar alguma coisa diferente dela. Era uma
vampira, com um rebanho e tudo mais que tinha direito...
O rebanho de Melissa. Os quatro humanos que ele
tinha visto na casa dela. Eles não tinham conta nenhuma
com o que estava acontecendo, mas provavelmente
pagariam pelo que Melissa havia feito.
Yuri se virou para Raquel de novo.
Ele não deveria se importar. Ele sabia que não e não
queria. Mas ignorar aquilo seria se tornar alguém que ele
não queria ser.
— Precisamos de uma equipe de extração no Setor
Seis — ele falou. — Para quatro humanos.
— O rebanho de Mel? — Amon perguntou.
Yuri assentiu.
— Eles provavelmente vão ser mortos ou pior para
servir de exemplo.
— E não têm nada a ver com isso — Dani completou.
— Vou cuidar disso e avisar os outros. Se precisarem de
mim para mais alguma coisa...
Yuri sorriu. Aquela era a reação que ele tinha
esperado, antes. Dani era profissional demais para evitar
alguma coisa por causa de Alex. Mas, se tinha uma
chance de não precisar estar por perto quando elu
estivesse ali, Dani aproveitaria.
— Eu mando alguém atrás de você se precisar —
Raquel falou.
Dani assentiu e saiu do escritório.

Mel encarou a parede de pedra. Já fazia algumas horas que ela


estava naquela sala – se é que podia chamar aquele
lugar de sala – mas aquilo não era uma surpresa. Ela
tinha certeza de que só havia sido recebida no castelo
porque não era esperada e ninguém sabia como reagir.
Levá-la para aquela sala havia sido uma reação padrão
dos servos de Dama Cordelia e mais nada.
Mel havia esperado algo pior. Ela não teria se
surpreendido se houvesse sido levada para uma das
salas de "diversão" de Dama Cordelia, ou se a
houvessem mantido lá fora, no sol. Estar em uma sala de
espera, por menor e mais vazia que fosse, era um bom
sinal para os seus planos. Aquilo queria dizer que a
princesa podia ter dado a ordem para queimado a casa,
mas não havia deixado uma ordem de destruição no
nome de Melissa. Seu pessoal não sabia como reagir
porque não sabiam que Dama Cordelia havia tentado
matar Mel.
Ela abriu e fechou as mãos devagar. Sua pele ainda
estava sensível por causa das queimaduras. Mel tinha
feito o possível para se manter na sombra, mas "o
possível" era apenas aquilo. Ela precisara passar por
mais áreas no sol do que gostaria, especialmente quando
tinha se aproximado do castelo. Era mais uma medida de
segurança, com certeza, e era eficiente. A capa não era o
suficiente para proteger Mel da luz direta. Seus braços e
mãos tinham sido queimados, assim como um lado do
seu rosto.
As regras da hospitalidade diziam que deveriam ter
lhe oferecido sangue depois de verem as queimaduras.
Aquilo não havia acontecido – o que fazia Mel ter certeza
que, se ainda estava naquela sala, era porque Dama
Cordelia queria. A princesa estava tentando jogar com
ela e aquele era o seu erro. O tempo ali havia sido o
suficiente para Melissa pensar nas suas possibilidades e
em como garantir que a princesa não a destruiria.
A porta se abriu e Dama Cordelia entrou. A princesa
encarou Mel por um instante antes de olhar ao redor. Não
havia nada na sala. Nenhuma decoração, nenhum móvel.
Eram apenas as paredes de pedra e a porta – que ela
fechou logo depois.
— Pelo visto as surpresas não têm fim, minha
serpente — Dama Cordelia falou.
Nunca dela. Nunca de ninguém.
— Você deveria ter fugido quando teve a chance —
ela continuou.
Mel a encarou.
— Não vim aqui para fugir depois de um problema —
ela avisou. — Mas eu também não imaginei que a
princesa da Corte dos Desejos se sentiria tão ameaçada
que tomaria medidas drásticas sem ter todas as
informações.
Dama Cordelia sorriu de um jeito que era puro
veneno.
— Klaus sempre foi um amigo, minha serpente.
Talvez seja você quem está trabalhando sem todas as
informações.
Estúpida. Aquela possibilidade nunca havia passado
pela cabeça de Mel. Os dois haviam discutido tanto na
época em que ela havia ido para o Setor Seis, e depois
ela nunca vira nada que indicasse algum tipo de
proximidade entre os setores, que para ela era óbvio que
as duas Cortes tinham uma relação cordial e mais nada.
Se Dama Cordelia estava chamando o príncipe do
Setor Seis de amigo, então a relação entre eles era muito
mais próxima do que Mel havia imaginado. Era raro um
vampiro em uma posição alta confiar em outro o
suficiente para usar aquele termo.
O que queria dizer que Mel precisava destruir aquela
confiança. Ela precisava criar algum tipo de separação
entre o Setor Cinco e o Seis.
Ela sorriu. Fazer aquilo doía, mas não importava,
desde que Dama Cordelia acreditasse no que ela estava
dizendo.
— Talvez você devesse se perguntar como os boatos
sobre carniçais começaram — Mel falou. — Quem mais
sabia o que estavam fazendo? Quem poderia tornar isso
conhecido?
Dama Cordelia riu.
— Isso está abaixo de você, serpente. Eu sei
exatamente de onde os boatos surgiram.
Porque ela havia atacado o Setor Dez com carniçais,
então imaginara que aquela fosse a origem dos boatos –
e não esperava que Mel soubesse sobre aquilo.
Mas os boatos nunca haviam existido realmente,
então era algo que ela podia usar.
— Sabe mesmo? Porque eu imagino que seja
simples, verdade — Mel começou. — Um descuido, um
ataque que deu errado, e sim, é possível que os boatos
comecem. Mas nós sabemos que humanos não têm a
menor chance contra carniçais. Qualquer humano que
estivesse perto o bastante para ver um carniçal teria sido
morto em uma questão de segundos. Então não acho
provável que essa tenha sido a origem dos boatos.
E Mel deveria ter perguntado mais sobre aquilo para
Yuri. Se ela tivesse detalhes do que havia acontecido no
Setor Dez seria muito mais fácil. Mas ela só tinha o que
havia deduzido. Mesmo que tivesse certeza de que
estava certa, não era o ideal.
Dama Cordelia não falou nada nem reagiu. Ela não
lhe daria nada para usar, então Mel precisava continuar
com o que tinha.
— Mas talvez esses humanos tenham encontrado os
resultados de um ataque de carniçais — ela falou. — Sem
sobreviventes, óbvio. E o ataque não parecia nada feito
por vampiros. Parecia algo feito por animais. É claro que
estes humanos tentariam descobrir o que aconteceu,
porque iriam querer justiça para os mortos.
Dama Cordelia inclinou a cabeça.
— Aonde você quer chegar com essa história,
serpente?
Mel sorriu. Ela estava mordendo sua isca. Por mais
frágil que aquilo fosse, era melhor que nada.
— Os humanos não têm histórias sobre carniçais —
ela contou. — Nós escondemos o passado das Cortes
bem demais. Então como alguém no Setor Dez teria
chegado à conclusão de que foram atacados por
carniçais? A informação veio de algum lugar.
Dama Cordelia balançou a cabeça.
— Você está se esquecendo do seu amigo entre os
humanos.
Amon.
— Não estou. Mas ele está lá por lealdade a uma
humana. O que quer que aconteça, ele não a colocaria
em risco e contar sobre os carniçais seria colocá-la
diretamente na linha do perigo.
Mel não precisava elaborar. Não era segredo que
Daniele havia sido transformada, nem que era uma das
responsáveis pela segurança do Setor Dez. Se Amon
repassasse as informações sobre os carniçais, o Setor
Dez se sentiria obrigado a agir e Daniele estaria
envolvida. Era óbvio que Dama Cordelia sabia o
suficiente para fazer aquela ligação, da mesma forma
que Melissa havia feito.
A princesa a encarou, sem falar nada. Mel sustentou
seu olhar. Aquilo era um desafio. Ela podia ter uma
posição alta no Setor Seis – e aquela posição
provavelmente não existia mais, se ela estava presa ali –
mas ainda estava abaixo de uma princesa. Sustentar o
olhar de Dama Cordelia era um desafio e um insulto. E
ela queria que Dama Cordelia aceitasse aquela isca,
também.
O olhar da outra vampira ficou gelado e Mel sentiu a
habilidade da princesa contra a sua mente. Dama
Cordelia estava tentando forçá-la a desviar o olhar. Não
funcionaria. A habilidade de Mel era mais forte que a da
princesa, pelo menos naquele ponto.
— Você está fazendo um jogo perigoso, Serpente —
Dama Cordelia falou.
Mel não respondeu e não desviou o olhar.
Algo mudou na expressão da princesa.
— Damien! — Ela chamou.
O vampiro entrou na sala. Mel conseguia sentir a
presença dele, mas não ia desviar o olhar. Damien não
era um problema. Ela poderia lidar com ele de olhos
fechados, se não precisasse se preocupar em esconder
até onde sua habilidade ia.
— Avise seu príncipe que tenho algo a discutir com
ele — Dama Cordelia falou, também sem desviar o olhar
do de Mel e ainda tentando controlá-la.
— Se me permite, princesa — Damien começou. — A
Serpente...
— Não permito — Dama Cordelia interrompeu.
Damien saiu da sala e Mel escutou a porta se
fechando de novo.
— Mais segredos, minha serpente? — A princesa
perguntou, em voz baixa. — Alguém como você não
deveria ser capaz de me conter. E, se fosse, isso deveria
ser conhecido.
Porque os príncipes faziam questão de saber se
alguém na sua região podia se tornar um risco. Por
educação, todos os príncipes informavam os outros
quando alguém que podia ser uma ameaça se juntava à
sua Corte. Era uma medida de segurança para evitar
traições futuras, porque todas as outras Cortes já veriam
aquela pessoa como um alvo.
Mel sorriu, mostrando suas presas, e forçou sua
habilidade contra Dama Cordelia.
A princesa deu um passo atrás.
Mel não tentou controlar a outra vampira, só deixou
que ela sentisse um pouco do que realmente podia fazer.
Ninguém sabia de tudo. Se ela pudesse, garantiria que
continuasse assim. E o segredo era útil, ali.
— Mais segredos — Mel repetiu. — Não vim para sua
Corte como uma inimiga, Dama Cordelia. Vim porque
estou insatisfeita onde estava. Mas, se quer me
transformar em uma inimiga, então é bom pensar em por
que você não tem todas as informações que deveria ter
sobre mim. E também deveria pensar em por que seu
amigo Klaus faria tanta questão de ter alguém como eu
presa a ele, sem informar as outras Cortes sobre o que
posso fazer.
Dama Cordelia a encarou.
Mel tinha ido longe demais e sabia muito bem
daquilo. Ela estava forçando a situação. Mas, se não
fizesse aquilo, seria destruída. O Setor Cinco continuaria
com o que quer que estivessem planejando, junto com o
Seis. Eles começariam uma guerra entre setores. Ou,
pior: o Setor Dez decidiria fazer alguma coisa com as
informações que tinham.
Ela não podia deixar aquilo acontecer. Ela precisava
diminuir o risco, pelo menos.
Dama Cordelia estreitou os olhos e assentiu devagar.
A porta se abriu e três vampiros entraram, dois
homens e uma mulher, todos usando calças e jaquetas
reforçadas que por algum motivo faziam Mel se lembrar
de Yuri. Não. Era a forma como eles se moviam: com uma
prontidão que tinha algo de violenta.
Então Dama Cordelia tinha guardas treinados. Aquilo
não deveria ser uma surpresa. Mel havia subestimado a
princesa.
— Levem ela — Dama Cordelia falou.
Três vampiros. Um, ela conseguiria controlar sem o
menor problema, pelo tempo que precisasse. Talvez até
dois. Mas três... Fazer aquilo seria mostrar muito mais do
seu poder real do que Mel estava disposta. Ainda era
cedo demais.
Mel não resistiu quando seguraram seus braços e a
levaram para fora da sala.
DEZESSETE

Yuri encarou o espaço na sua frente. Não que ele conseguisse ver
muita coisa, mesmo com os faróis das três caminhonetes
ligados e apontados naquela direção. Não havia nada lá.
Era só o mato baixo da fronteira com o Setor Três.
Aquilo tudo tinha sido conveniente e rápido demais.
Depois de Alex ter confirmado que, até onde existiam
informações, o Setor Três estava satisfeito com o que
tinha, Amon tinha saído para tentar chamar a atenção de
alguém de lá. E ele tinha conseguido – como, Yuri não
fazia ideia. Mas o vampiro havia voltado com um aviso de
que era para se preparem para se encontrar com alguém
do Setor Três na fronteira e que eles tinham avisado que
era para levarmos as caminhonetes. Estranho, sim, mas
eles não estavam em posição de recusar.
Então Yuri estava ali, com Amon ao seu lado,
esperando, enquanto os outros ainda estavam nas
caminhonetes. Se fosse uma armadilha, ao menos eles
teriam tempo de tentar escapar. Amon havia garantido
que era seguro, mas Yuri não sabia o suficiente sobre o
Setor Três para ter certeza de que podia confiar naquilo.
Na verdade, ninguém sabia o suficiente e aquele era o
problema.
— Eu queria saber o que você fez — Amon
comentou.
Yuri não tinha feito nada – mas era óbvio que Amon
estava falando com ele, porque não tinha mais ninguém
perto o suficiente para ouvir.
— Está falando de quê? — Ele perguntou.
— De Mel.
Yuri não respondeu. Estava muito satisfeito por ter
conseguido passar as últimas horas sem pensar nela e
preferia ter continuado assim. Melissa tinha escolhido
quebrar a confiança entre eles, jogar tudo pela janela e
ficar para trás para morrer, tudo porque não podia ouvir
um humano. Então Yuri não ia pensar em nada daquilo.
Era o que ela merecia. Era o que ele deveria ter feito
desde o começo e não ter sido estúpido o suficiente para
confiar.
E ele com certeza não ia ficar pensando que, se não
tivesse confiado nela, talvez estivesse alerta o suficiente
para ela não conseguir controlá-lo tão facilmente. Talvez
ele tivesse conseguido fazer alguma coisa para garantir
que ela também escaparia.
Era estupidez, também. Ela tinha feito sua escolha
quando havia decidido não pensar em outras
possibilidades.
— Não fiz nada — Yuri falou.
Nada além de ter sido tão burro quanto todos os
humanos que ele sempre tinha chamado de estúpidos.
A pior parte era que ele sabia que não ia conseguir
não pensar em Melissa. Ela tinha passado seis anos na
cabeça dele, e aquilo tudo por causa de uma noite.
Depois daqueles dias no Setor Cinco e de tudo que
tinham feito...
— Fez — Amon insistiu. — Porque Mel não teria te
mandado de volta sem um plano definido. Não. Ela não
teria te mandado de volta, porque Mel faz questão de
esconder sua força. Ela não teria usado uma compulsão
que o prendesse por toda essa distância se não estivesse
desesperada.
Desesperada. Yuri não conseguia concordar com
aquilo. Melissa estava completamente calma quando
tinha feito aquilo. Ele podia não se lembrar do que tinha
acontecido enquanto estava sob o controle da
compulsão, mas se lembrava muito bem da expressão
dela antes de controlar sua mente.
— Ela não teria deixado claro que consegue passar
pela sua imunidade — Amon completou. — Então você
fez alguma coisa, sim.
A imunidade. Ainda tinha aquele detalhe.
Yuri não tinha energia nem para ficar irritado com
Amon por não ter falado que a imunidade não era uma
garantia de nada. Ele podia ter dado o aviso desde a
primeira reunião, depois que Yuri tinha conversado com
Melissa no bar.
— O que você fez? — Amon insistiu.
Yuri encarou o mato baixo que os faróis estavam
iluminando.
— Nada.
Era a verdade. Ele não tinha feito nada. Porque
Melissa não tinha lhe dado a chance de fazer alguma
coisa.
E Yuri não ia falar nada daquilo para Amon. Eles não
eram amigos. Ele era o vampiro que Yuri sabia que não ia
trair o Setor Dez porque fazer aquilo colocaria Dani em
risco – mais nada.
Amon não insistiu mais.
Quanto tempo fazia que estavam ali? Meia hora? Se
o Setor Três realmente ia se encontrar com eles, não
estavam se preocupando com ser rápidos.
— Você sabe que ela está viva, não sabe? — Amon
falou.
Yuri apertou o cabo de uma das suas facas. Por mais
que fosse tentador, ele não podia enfiar uma faca em
Amon para ver se assim ele parava de falar.
— Que eu saiba, fogo mata um de vocês — Yuri
resmungou. — Então ela não tem como ter sobrevivido.
A menos que Melissa tivesse mentido e não
houvesse nenhum preparativo para queimar a casa.
Aquilo era possível. E o fato de que Yuri não tinha
pensado naquela possibilidade hora nenhuma não era
um bom sinal. Melissa era uma vampira. Ele deveria
saber que não podia confiar no que ela falava.
Amon assentiu.
— O fogo nos destrói — ele confirmou. — Mas,
tomando cuidado, Mel conseguiria sair da casa mesmo
durante o dia e Dama Cordelia não sabe disso.
Yuri se virou para Amon devagar. Aquilo era loucura.
— A luz do sol destrói vocês, também.
Amon deu de ombros.
— Sim, mas os mais antigos e mais fortes têm o
hábito de quebrar essas regras.
Como a forma como Amon e Dani não perdiam a
consciência quando o sol estava alto. Mas não era a
mesma coisa.
— Melissa não é uma das antigas.
— Nem Daniele.
Yuri olhou para a frente de novo, mas não estava
vendo a grama. Estava vendo a expressão de Melissa,
antes de ter controlado sua mente. A forma como ela
tinha parecido calma e distante, minutos depois de ter
feito aquele comentário sobre Yuri não fazer bem para
ela.
O que Amon estava querendo dizer era que aquelas
imunidades ao que deveria ser um padrão para todos os
vampiros vinha com o sangue, quando um vampiro era
transformado. Era a única explicação para Dani não
perder a consciência, também – porque tinha sido
transformada por Amon. Então, em teoria, era possível
que Melissa tivesse algum tipo de resistência à luz do
sol...
Não, não era só possível. Ela tinha aquilo, sim,
porque eles tinham saído antes do anoitecer, dois dias
antes. O sol já estava começando a se pôr, mas ainda
estava no céu. E Melissa havia passado o tempo todo
coberta por aquela capa grossa, mas pelo que Yuri sabia
nem aquilo deveria ter sido o suficiente para proteger a
vampira.
Ele não tinha ligado os pontos. Tinha se distraído
porque estava ocupado demais pensando na sensação
do corpo de Melissa contra o dele.
Mas aquilo não mudava nada. Mesmo se ela
estivesse viva – e Yuri odiava admitir para si mesmo que
esperava que estivesse viva – Melissa tinha escolhido
controlar a mente de Yuri. Ela poderia só ter falado
aquilo. Não era difícil. Era só dizer que ela tinha um plano
para sair dali, ao invés de ficar insistindo que ele
precisava ir.
Ela tinha escolhido jogar qualquer confiança no lixo.
Ponto.
Então Yuri esperava que Melissa estivesse viva, sim.
Ele não era tão rancoroso a ponto de torcer pela morte
de alguém. Pelo menos, não sem um motivo muito maior
que aquele. Mas ele não ia se esquecer.
— Estão vindo — Amon avisou.
Ótimo. Estava passando da hora daquele assunto
acabar e de resolverem o motivo para estarem na
fronteira.
Yuri se endireitou, tentando ver alguma coisa para
além de onde a luz dos faróis estava batendo.
Os vampiros do Setor Três apareceram quase como
se estivessem se materializando ali. Seis vampiros,
andando em duas fileiras, e um dos últimos deles estava
carregando uma coisa que Yuri não conseguia identificar.
Os vampiros continuaram indo na direção de onde
eles estavam e pararam a alguns passos da cerca baixa
que marcava a fronteira. Aquilo era o padrão para todas
as fronteiras – levantar paredes comuns ou até elétricas
era um desperdício de recursos que não valia a pena
para nenhum setor.
Yuri tinha sugerido providenciar barreiras para
colocar na fronteira, como uma defesa física e uma forma
de ganhar tempo, se fosse uma armadilha. Era o que ele
fazia sempre que havia uma chance de confronto. Mas
Amon tinha avisado que fazer aquilo seria considerado
um insulto.
Um dos vampiros continuou andando. Ele era pálido,
com o cabelo escuro e olhos fundos – exatamente a
imagem que ele sabia que uma boa parte dos humanos
tinha sobre vampiros. E Yuri não fazia ideia de quem ele
era, mesmo que tivesse passado os últimos anos fazendo
questão de saber quem eram os vampiros mais
importantes da região.
O vampiro parou quase encostado na cerca e olhou
para Amon.
— Você estava dizendo a verdade — ele falou. — Eu
não tinha certeza.
Amon encarou o outro vampiro.
— Não tenho motivos para mentir.
O vampiro fez um som seco que era quase uma
risada.
— Imagino que não.
Tinha algo de diferente naquele vampiro. Era uma
sensação ao redor dele que quase lembrava Yuri de estar
no castelo do Setor Cinco. Não era a mesma coisa. Se
fosse, Yuri já estaria avisando que era uma armadilha.
Mas havia alguma coisa ali.
Amon se virou para trás. Era o sinal para Raquel se
aproximar. Yuri continuou onde estava, com uma mão no
cabo de uma faca e pronto para puxar sua pistola, se
precisasse.
Raquel parou entre Yuri e Amon. O vampiro do outro
lado da cerca inclinou a cabeça de uma forma que
parecia o começo de uma reverência.
— Raquel, este é Eric, um dos príncipes do Setor Três
— Amon falou. — Eric, esta é Raquel, líder do Setor Dez e
a responsável pela destruição dos vampiros do Setor
Oito.
Yuri apertou sua faca com mais força. Ele não
precisava olhar para ter certeza que todo o pessoal que
tinha trazido estava em posição e com armas apontadas
na direção do vampiro. Se ele tentasse alguma coisa, não
ia sobreviver. Mas saber daquilo não mudava o fato de
que era incômodo ouvir Amon falar do poder de Raquel
daquele jeito. Eles tinham um bom motivo para evitar
comentar sobre o que ela podia fazer. Era mais seguro se
os vampiros não soubessem exatamente quem tinha um
poder tão forte contra eles.
E Amon tinha falado que o outro vampiro era um dos
príncipes do Setor Três. Aquilo era impossível. Nenhum
setor tinha mais de um príncipe. Yuri não precisava ser
especialista na política dos vampiros para saber daquilo.
— É uma honra, Raquel — Eric falou.
Raquel inclinou a cabeça do mesmo jeito solene que
o vampiro tinha feito antes. Ela não ia falar que era uma
honra ou um prazer conhecer o outro vampiro, porque
seria uma mentira. Se Yuri não tinha informações sobre
Eric, então ele era capaz de apostar que Raquel também
não sabia nada sobre ele.
O vampiro se virou e fez um gesto rápido.
Yuri segurou sua pistola. Seu pessoal já estaria
pronto para atirar com o menor sinal de que aquilo fosse
algum tipo de ataque, mas ele não esperaria pelos
outros. Se Eric tentasse alguma coisa...
Uma das vampiras paradas mais para trás se
aproximou, carregando algo atravessado nos braços. Yuri
ainda não conseguia imaginar o que aquilo era.
— Antes de qualquer coisa, tenho algo que creio que
pertence a vocês — Eric falou.
A vampira parou logo antes da cerca, também.
Alguém. Aquilo era uma pessoa coberta por tecido.
— O que é isso? — Raquel perguntou.
A vampira puxou o tecido cobrindo o rosto da
pessoa. Era uma mulher, provavelmente humana, e
estava desacordada. Na luz dos faróis, ele conseguia ver
que ela tinha a pele marrom e o cabelo preto, puxado
para trás, deixava ele ver duas cicatrizes cortando o lado
do seu rosto. Yuri já tinha visto aquela mulher antes, ele
só não se lembrava de quando. Mas sabia que ela não
era do Setor Dez.
— Lara — Amon falou. — O que isso quer dizer?
Lara – que era um contato de Dani no Setor Seis.
— Ela está viva — o vampiro falou, depressa. — E
está bem. Nós a encontramos perto da fronteira, sendo
perseguida por carniçais. Era mais seguro mantê-la
desacordada enquanto estava conosco.
Raquel olhou para trás e fez um gesto brusco. Dante
foi na direção deles. Era óbvio que seria elu: de todas as
pessoas reunidas ali, só Dante conseguiria carregar uma
pessoa desacordada sem fazer esforço. Elu podia não ser
parte das forças de defesa oficialmente, mas com
certeza era a pessoa mais forte do setor.
— Leve ela de volta para a casa — Raquel falou. — E
não deixe Valissa ver nada.
Claro. Yuri quase tinha se esquecido daquilo. Valissa,
a garota que Dani tinha levado para o Setor um mês
antes, era a irmã de Lara. Ela era a mercenária que tinha
repassado o aviso de que o Setor Dez estava contratando
mercenários.
A vampira passou Lara para Dante. Elu voltou na
direção das caminhonetes sem falar nada.
Yuri se virou e fez um sinal para dois do seu pessoal.
Por mais que parecesse que estava tudo bem, ele não ia
correr risco. Os dois atiradores saíram das suas posições
e subiram na carroceria da caminhonete onde Dante
estava colocando a mulher desacordada. Pouco depois, a
caminhonete se afastava.
— Vocês não vieram aqui para entregar uma humana
— Raquel falou. — Nem teriam concordado em com
qualquer tipo de encontro cara a cara se não quisessem
alguma coisa.
Eric deu um meio sorriso e inclinou a cabeça de
novo.
— Vocês sabem sobre os carniçais — o vampiro
começou. — E sabem o que eles significam.
Quanto Amon tinha contado para os outros vampiros
quando tinha entrado em contato? Yuri não ia falar nada
naquele sentido enquanto estavam na frente de
desconhecidos, mas Amon podia pelo menos ter dado
detalhes do que tinha feito e do que tinha falado para o
Setor Três, ao invés de só voltar com um "temos que ir
para a fronteira logo".
— Sim — Raquel respondeu.
O vampiro assentiu devagar. A impressão ao redor
dele que fazia Yuri se lembrar do Setor Cinco ficou mais
forte.
— Espero que isso não seja uma tentativa de usar
seus poderes contra nós — Raquel falou.
Eric deu um passo atrás e levantou as mãos, com as
palmas viradas para eles.
— Mil perdões. Foi uma reação involuntária.
Poder. O que Yuri tinha sentido era o poder do
vampiro. E ele não conseguia imaginar quanto poder
aquilo era, porque não tinha sentido nada nem quando
Amon havia usado o seu poder contra os vampiros do
Setor Oito.
Raquel olhou para Amon e ele assentiu. Yuri não
tinha outra opção além de confiar na opinião dele,
também, e pelo visto Amon acreditava que tinha sido
algo involuntário.
— Estou aqui para oferecer uma aliança — Eric falou.
— Conosco ou com o Setor Um através de nós? —
Raquel perguntou.
O vampiro sorriu, mostrando as presas.
— Nós não negociamos com o Setor Um.
Uma aliança com eles, então.
Raquel encarou o vampiro.
— Por que nós?
Eric inclinou a cabeça daquela forma que era quase
solene de novo.
— Porque vocês passaram vinte anos aqui,
escondendo o tipo de poder capaz de destruir uma Corte,
o tempo todo satisfeitos em cuidar das suas vidas e do
seu setor. Acreditamos que, com uma aliança, o foco de
vocês não vai mudar.
Que era o que aconteceria se eles fizessem uma
aliança com qualquer setor. Yuri não precisava que Amon
explicasse aquilo. O Setor Três era temido e isolado.
Quando quebrassem o isolamento, o equilíbrio de poder
na região ia mudar. Qualquer outra Corte, se recebesse
uma oferta como aquela, estaria se preparando para
começar um ataque no dia seguinte.
E até uma aliança com o Setor Dez faria diferença
em toda a política da região. Yuri não queria nem pensar
nas ramificações daquilo.
— Nós sabemos sobre os carniçais no Setor Cinco —
Eric contou. — Já tivemos problemas com eles no nosso
território, mas qualquer tentativa de caçá-los fora das
nossas fronteiras seria vista como um ataque ao Cinco.
Considerando os acontecimentos dos últimos dias,
imagino que vocês tenham provas que os liguem à
criação dos carniçais.
Raquel cruzou os braços e encarou o vampiro. Yuri
conhecia aquele olhar bem demais. Era o que ele usava
quando pensava que alguém não estava lhe dizendo
toda a verdade e era mais que o suficiente para deixar
qualquer um da equipe de defesa incomodado. Eric não
foi diferente: o vampiro se endireitou na mesma hora.
— Se você quer apenas acesso às nossas
informações, não precisa oferecer uma aliança — ela
avisou.
O vampiro balançou a cabeça.
— Não preciso — Eric falou. — Mas os tempos estão
mudando. Ficar isolados é um risco que nenhum dos
nossos setores pode correr.
Problemas.
Claro que eram problemas. Era exatamente o que
Melissa e ele estavam comentando a respeito antes: o
Setor Cinco não estaria fazendo uma coisa daquelas
sozinho. Já era quase certeza que estavam junto com o
Seis e era bem possível que com o Oito também – o que
queria dizer que não tinham nenhuma garantia de que
mais nenhum setor estivesse envolvido.
Raquel se virou para Yuri.
— Quero que seu pessoal providencie uma conexão
segura com eles — ela falou. — Temos menos de um dia
para fazer planos.
Ele assentiu. Não seria tão simples quanto fazer uma
conexão dentro do setor, por causa da distância, mas era
possível, especialmente se pudessem usar o
equipamento que já tinham.
Raquel olhou para Eric de novo.
— Vamos cuidar da situação com os carniçais
primeiro, então — ela avisou. — E depois, quando isso
estiver resolvido, podemos conversar sobre a
possibilidade de uma aliança.
O vampiro assentiu daquele jeito solene.

Gustavo saiu do meio das últimas árvores e parou, encarando os


restos de uma vila. Ele não estava muito longe do pomar,
mas ninguém ia ali, normalmente. Até quando ele era
criança, todo mundo evitava aquelas ruínas, porque
diziam que eram amaldiçoadas. Ele não fazia ideia de
como aquela história havia começado, mas conseguia
imaginar muito bem.
Ele tirou uma lanterna do bolso e a acendeu. As
linhas das ruínas ficaram mais claras. Não que ele
conhecesse aquele lugar. Por segurança, Gustavo
também sempre tinha ficado longe.
E aquele era o motivo para estar ali naquela noite.
Ele não fazia ideia do que estava acontecendo – era só
um mercenário que estava no setor havia algumas
semanas – mas sabia que a maior parte da liderança do
setor estava ocupada com alguma coisa. Ele tinha visto
as caminhonetes saindo da mansão e reconhecido
algumas das pessoas nelas, o que queria dizer que
aquela era sua melhor chance. Gustavo não podia correr
o risco de alguém imaginar que estava ali.
Ele tirou um pedaço de papel do bolso e encarou o
mapa que sua mãe tinha desenhado, anos antes. Eram
só linhas e alguns símbolos no papel amassado, mas era
o suficiente. Ele tinha estudado aquilo e ouvido as
mesmas instruções vezes demais.
Gustavo levantou a cabeça e olhou para as ruínas de
novo, procurando algum dos pontos de referência do
mapa. A luz da lanterna não era o suficiente e ele não
queria correr o risco de chamar atenção, então precisava
dar um jeito de encontrar...
Ali. No chão, antes das primeiras paredes. Gustavo
foi naquela direção e se abaixou. O portão de metal
estava caído, mas o símbolo no alto dele era o mesmo no
mapa.
Ele se levantou de novo e encarou o espaço entre as
paredes caídas por um instante antes de começar a
andar.
Se tudo corresse bem, ele ainda teria tempo. Já fazia
dois dias desde a primeira ida até a cidade velha e Alex
havia encontrado o suficiente para ficar ocupade por
algum tempo – e aquilo sem nem ter terminado de
verificar o que estava na cidade. O Setor Oito havia sido
descuidado e deixado coisas demais para trás, mas
primeiro Alex precisaria entender por que alguns objetos
tinham vestígios de poder. Aquilo duraria alguns dias, no
máximo. Mais cedo ou mais tarde, teriam que voltar lá.
Ou provavelmente Gustavo não voltaria, porque Alex não
ia querer estar perto dele.
Era melhor assim. Aquele era exatamente o motivo
para Gustavo ter ido embora: ele precisava se afastar de
Alex, para a segurança delu. Oito anos haviam se
passado, mas seus motivos ainda eram os mesmos. Ele
precisava estar no Setor Dez, mas não podia se
aproximar de Alex de novo, mesmo se existisse alguma
chance de elu aceitar aquilo. E não existia.
Mas em algum momento Alex terminaria de conferir
todas as construções da cidade velha. E, quando aquilo
acontecesse, aquela vila seria o próximo lugar a ser
analisado – a única ruína real que ainda existia do que
tinha sido o Setor Quatro. Gustavo não precisava de
nenhum tipo de confirmação de Raquel para ter certeza
daquilo. Se estavam analisando a cidade velha por algum
motivo, não iam se esquecer da vila.
O que queria dizer que Gustavo precisava garantir
que Alex não encontrasse nada ali. Qualquer coisa que
pudesse ter um traço de poder, qualquer sinal sobre o
que era feito naquele lugar, tudo precisava ser
desaparecer.
Qualquer coisa que ligasse a família de Gustavo às
ruínas precisava ser destruído. Ninguém podia saber.

Mel ficou na ponta dos pés de novo, aliviando a pressão nos seus
braços. A posição em que ela estava – de pé, com os
pulsos presos no alto de um poste de metal e os
tornozelos presos no chão – era incômoda até mesmo
para ela. E, depois de horas ali, o desconforto já estava
se transformando em dor.
Ela não sabia o que Dama Cordelia estava
planejando. A única coisa que podia fazer era torcer para
ter conseguido plantar uma semente de dúvida. Tudo
tinha saído de controle depressa demais, de uma forma
que ela nunca teria esperado. E Mel não podia nem se
culpar por aquilo. O que quer que estivesse acontecendo,
não era recente e havia sido mantido muito bem
escondido. Mais escondido do que deveria ser possível,
porque ela nunca havia notado nenhum sinal de uma
aliança ou algo do tipo na mente dos vampiros do Setor
Seis.
Um dos guardas saiu de trás de uma coluna, encarou
Mel, e voltou para onde estava. Ela não sabia quantos
deles estavam ali – eram pelo menos cinco, mas ela não
confiava no que conseguia identificar com sua
habilidade. E, com mais de dois vampiros, o máximo que
ela conseguiria fazer seria obriga-los a ficarem parados
ou fazerem algo simples, todos se movendo juntos. Não
era o suficiente para se soltar. Era melhor guardar suas
forças para quando tivesse uma possibilidade real de
fazer alguma coisa.
Se é que ela teria alguma chance. Não era a primeira
vez de Mel em um salão como aquele – circular, com
colunas grossas sustentando uma parte do teto, em uma
altura comum, enquanto a área central tinha o teto muito
mais alto. A parte de teto baixo e as colunas serviam
para proteger os vampiros da luz quando o teto da área
central fosse aberto – porque salões como aquele eram
usados como punição. Eram salas de tortura e de
execução.
Mel tinha sido relaxada. Descuidada, arrogante... Ela
não sabia mais que adjetivos pensar. Era a verdade. Ela
nunca havia imaginado que a criação de carniçais seria
parte de algo maior. Estava tão focada em conseguir algo
para se livrar do juramento que não havia visto o óbvio.
Se ela tivesse notado antes, talvez...
Não. Mel não teria feito nada. Ou melhor, ela teria
feito a mesma coisa: tentado conseguir provas para
negociar seu juramento com as informações. Ela só teria
sido mais cuidadosa. Teria feito planos para o seu
rebanho. Teria tentado cultivar Dama Cordelia desde o
começo. Provavelmente teria feito questão de semear o
caos e deixar a situação pior que já era. Ela não tinha
motivos para se importar. Quando os conflitos
começassem, estaria longe dali.
Mas, de alguma forma, suas prioridades haviam
mudado. Mel ainda queria sua liberdade e faria
praticamente qualquer coisa para conseguir aquilo. E
aquela era a diferença: praticamente qualquer coisa. Ela
não passaria por cima de tudo e todos. Ela não viraria as
costas sem pensar nas consequências, porque as
consequências colocariam Yuri em risco.
Era estupidez. Ele era apenas um humano. E, pior
ainda, um humano que a odiaria depois do que havia
feito. Mel não deveria se importar. Mas se importava. De
alguma forma, Yuri tinha deixado de ser só um desafio e
agora Mel faria o que pudesse para garantir que ele
sobrevivesse – o que queria dizer que ainda precisava
tentar encontrar um jeito de lidar com a aliança entre o
Setor Cinco e o Seis.
Era tarde demais. Ela não conseguiria fazer mais
nada. Se as sementes de dúvida que ela tinha plantado
mais cedo não fossem o suficiente, não havia nada que
Mel pudesse fazer.
Pelo menos Yuri tinha escapado. Ela tinha certeza
que, se ele tivesse sido encontrado no Setor Cinco, Dama
Cordelia já teria feito questão de usá-lo contra Mel, o que
queria dizer que descobriria sobre a imunidade dele. Não.
Assim era melhor. Ele estava vivo e tinha uma chance de
sobreviver ao conflito que viria depois.
Ela precisava acreditar naquilo.
Uma porta se abriu.
Mel relaxou. Não importava quem estivesse entrando
ali, não notaria seu desconforto.
Dama Cordelia contornou uma das colunas e foi na
direção de Melissa. A princesa não estava mais usando
um dos seus vestidos. Não, ela agora usava um conjunto
de calça e blusa justas, de couro, com um corset
reforçado por cima de tudo. Ela ainda era a princesa da
Corte do Desejo, mas aquele era o lado da Corte que
preocupava Mel: o desejo por poder ou por vingança.
— Você está fazendo um jogo perigoso — a princesa
falou.
Mel sorriu.
— Não é a primeira vez que diz isso.
Na verdade, era o que Dama Cordelia falava sempre
que algo que ela não estava esperando acontecia – o que
queria dizer que algo novo havia acontecido.
— Eu entendo querer brincar com minha relação com
Klaus e tentar me fazer questionar o que você pode fazer
— a princesa continuou. — Não espero diferente de
alguém que precisou ser presa por um juramento para
não ser destruída.
Mel se forçou a não reagir. Então era aquilo que
Klaus havia falado. Ele não estava lá, quando ela havia
sido transformada. Ele não sabia o que havia acontecido.
Ela havia sido presa por um juramento para não ser
destruída, sim – mas porque sua transformação havia
sido uma punição, desde o começo. Se os vampiros
envolvidos naquilo não imaginassem que ela podia ter
alguma habilidade útil, ela teria sido destruída na manhã
seguinte.
Mas aquilo queria dizer que ela não tinha acreditado
em nada do que Mel havia falado. Mesmo mostrando
parte da sua habilidade real e que era forte o suficiente
para conter Dama Cordelia, não era o suficiente. Claro
que não era. Para a princesa, seria mais confortável
pensar que aquilo havia sido um truque.
— Agora, envolver o Setor Três? — A princesa falou.
— Você foi longe demais, serpente.
Ela não tinha nenhum tipo de contato com o Setor
Três – e não por falta de tentar. Logo depois de chegar na
região, Mel havia feito o possível para conseguir algum
tipo de abertura para negociar com eles, sem sucesso.
Então, o que quer que estivesse acontecendo, não era
por obra dela.
Yuri.
Era a única explicação que fazia sentido. De alguma
forma, ele havia conseguido envolver o Setor Três. E, se o
Dez trabalhasse junto com o Três...
Mel riu. Ela não conseguia evitar. Era a solução
perfeita. Os vampiros do Setor Três eram necromantes. O
Setor Cinco não teria a menor chance contra eles e Mel
conhecia o príncipe do Setor Seis – que ela nunca mais
chamaria de seu príncipe – bem o suficiente para ter
certeza de que ele não enfrentaria o Três.
Estava acabado. Dama Cordelia só não sabia daquilo
ainda.
A princesa a segurou pelo pescoço, enfiando as
garras na sua pele. A pontada de dor mal registrou – Mel
ainda estava sentindo os restos de dor das queimaduras
e o desconforto constante da posição onde estava. Aquilo
não era nada.
— Eu estava pensando — Dama Cordelia murmurou.
— Quão forte é sua resistência ao sol?
Mel parou de rir e encarou a outra vampira, sem
deixar seu sorriso morrer.
Aquilo era uma ameaça, sim. Mas ela já sabia que,
mais cedo ou mais tarde, era aquilo que aconteceria. Se
não fosse, não teria sido levada para aquela sala.
Horas. Fazia horas que Mel estava naquele salão. Era
bem possível que o sol já estivesse nascendo, lá fora.
— A questão não é a minha resistência — ela falou.
— É se você está preparada para lidar com as
consequências.
Dama Cordelia sorriu, mostrando as presas, e a
soltou sem falar mais nada.
Mel encarou as costas da princesa enquanto ela se
afastava.
— Abram o teto — ela falou.
Algo fez barulho. O mecanismo que abria a área do
teto bem acima de onde Mel estava pressa estava sendo
ativado.
Ela não ia olhar para cima. Não importava. Mel
conhecia seus limites.
Ela não seria destruída. Aquela era a parte que
importava. Ela continuaria viva.
E Mel não tinha tanta certeza de que aquilo era algo
bom.
DEZOITO

Um dia inteiro sem fazer nada. Ou melhor, fazendo planos e mais


planos com o Setor Três – pelo menos, era o que estavam
fazendo antes de Ezequiel mandar Yuri fazer o que
precisasse para conseguir dormir. Ele até tinha pensado
em discutir. Por bem ou por mal, Yuri era o único que
tinha estado no Setor Cinco e podia conferir detalhes do
que estavam planejando. Mas Ezequiel também estava
certo. Yuri não podia correr o risco de ir em uma missão
daquele tipo sem estar no seu melhor. E passar quase
vinte e quatro horas sem dormir não seria estar no seu
melhor.
Então ele tinha tomado alguma coisa para dormir
antes do meio-dia. Enquanto estava apagado, o pessoal
de Dani tinha voltado com o rebanho de Melissa e eles
estavam em uma das casas seguras, sem dar a menor
indicação de que iam tentar sair ou qualquer outra coisa.
Yuri não sabia exatamente o que Dani tinha falado para
eles, mas até Ezequiel tinha concordado que não seriam
um risco.
E agora ele estava ali, encostado em uma
caminhonete, perto das ruínas da cidade velha,
esperando enquanto o pessoal do Setor Dez terminava
de se reunir. Eles ainda tinham algum tempo até
precisarem atravessar a fronteira para o Setor Cinco.
O que queria dizer que Yuri deveria estar repassando
o plano mentalmente enquanto esperava. Não pensando
no que Amon tinha falado.
Melissa não seria destruída por sair no sol – e ele
deveria ter pensado naquilo antes. Melissa não agia
como tinha feito. Ela não usava seu poder à toa. Na
verdade, ela evitava usar aquilo na maior parte do
tempo. Ela sempre tentava conseguir o que queria de
outros jeitos, antes, e Yuri tinha a impressão de que não
era só porque Melissa preferia esconder o que era capaz
de fazer.
Melissa não fazia nada sem ter motivos, no plural.
Yuri podia ter convivido pouco tempo com ela, só alguns
dias, mas aqueles dias tinham sido mais que o suficiente
para ele entender como ela funcionava. E eles
funcionavam juntos. O tempo todo, ele tinha
acompanhado os planos dela sem problema, mesmo
quando Melissa estava só reagindo a alguma coisa que
tinha acontecido, como quando estavam no castelo.
E ele não podia falar que Melissa não confiava nele,
também. Se não confiasse, ela não teria aceitado o que
ele havia feito no castelo, quando fingiu que estava
sendo controlado. Ela não teria saído da moto daquele
jeito e confiado que ele faria o que tinha pedido – e muito
menos teria se enfraquecido tanto perto dele.
Não, pior. Se Melissa não confiasse nele, não teria
ficado sozinha no Setor Cinco com Yuri, porque enquanto
ela estava inconsciente ele poderia ter feito qualquer
coisa.
Então por que ela tinha só assumido o controle,
colocado aquela compulsão em Yuri e mandado ele
embora sem nem tentar achar outra solução? Se ele
soubesse que ela podia sair no sol, teria sido fácil demais
achar um jeito de os dois escaparem.
Andreia parou ao seu lado.
— A mercenária que os vampiros trouxeram acordou
— ela avisou. — E está sendo escoltada até a fronteira
com o Setor Seis.
Yuri se virou para ela e levantou uma sobrancelha.
Andreia deu de ombros.
— Não foi ordem de ninguém — ela completou. — O
que me repassaram foi que ela acordou, perguntou o que
tinha acontecido, e disse que precisava ir embora. Ela
ainda perguntou se a irmã estava bem, mas...
Andreia parou de falar e deu de ombros de novo.
A mercenária – Lara – estava escondendo alguma
coisa. Aquilo não era nem novidade, considerando que
era a irmã de Valissa. Quem mandaria a irmã para outro
setor, mal conhecendo as pessoas de lá, porque ela seria
protegida ali? Lara, claro. E mesmo depois de um mês
que Valissa estava ali, ninguém sabia por que ela
precisava ser protegida e de que estava se escondendo.
No começo, Yuri tinha pensado que Alana ia conseguir
descobrir alguma coisa. Mas ela tinha precisado ir para o
Setor Um e depois daquilo mais ninguém tinha
conseguido fazer Valissa contar alguma coisa.
Ele queria ter tido tempo para perguntar o que ela
estava fazendo no Setor Três e como uma mercenária
que morava no Setor Seis tinha sido perseguida por
carniçais, mas não ia mandar segurarem Lara ali até eles
voltarem. Não importava o tanto que Yuri estava curioso,
ele não ia se esquecer que, se o Setor Dez tinha
mercenários, era porque ela havia espalhado o aviso.
— Dani recuou o pessoal dela? — Yuri perguntou.
Andreia assentiu.
— Estão terminando de voltar para o Setor. Estamos
prontos para fechar as fronteiras assim que a mercenária
sair.
— Ótimo.
Aquilo tudo era mais falar bonito que qualquer outra
coisa. Fechar a fronteira só queria dizer que não
deixariam ninguém entrar e ninguém saía sem uma
ordem direta de Raquel. Mas, na prática, era mais um
sinal de que estavam em alerta.
Precisariam estar em alerta, porque uma boa parte
das forças de defesa do setor estaria fora, atacando o
galpão no Setor Cinco.
Ele encarou os três grupos se reunindo, de novo.
O plano era simples: o pessoal do Setor Dez iria para
o galpão dos carniçais enquanto ainda era dia – o que
queria dizer que estariam relativamente seguros. Contra
qualquer tipo de guardas humanos, eles conseguiriam se
virar muito bem. E, desde que continuassem no sol, em
teoria não precisariam se preocupar com vampiros ou
carniçais. Eles iriam garantir que nada nem ninguém
saísse do galpão e, assim que anoitecesse, os
necromantes do Setor Três estariam ali para terminar o
serviço.
Yuri não fazia ideia de como eles pretendiam
"terminar o serviço", mas Eric tinha garantido que aquilo
não seria um problema. Se podiam confiar no que ele
estava falando ou não, aí era outra história, mas Raquel
tinha decidido confiar.
E agora até pensar naquilo fazia a cabeça de Yuri
voltar para Melissa. Ele tinha pensado que era uma
questão de confiança e respeito, mas não parecia que
era aquilo. O que queria dizer que ele não conseguia nem
tentar entender o que tinha acontecido naquela casa,
quando Melissa havia notado a armadilha.
Mas ele nunca tinha sido muito bom para lidar com
pessoas.
— O que faria alguém agir completamente fora do
seu normal? — Yuri perguntou.
— Pânico — Andreia falou sem nem parar para
pensar. — Não que isso adiante muita coisa com os
vampiros.
Porque os vampiros sabiam que não precisavam se
preocupar com humanos, então não iam entrar em
pânico. E era óbvio que Andreia ia pensar que ele estava
perguntando alguma coisa que tivesse a ver com a
missão. Era como Yuri funcionava, normalmente: se tinha
algo a ser feito, aquilo seria seu foco até estar terminado.
E ali estava ele, dividindo sua atenção porque não
conseguia não pensar em Melissa e em como aquilo tudo
tinha parecido errado.
Não. Melissa não entrava em pânico. Não a vampira
que tinha feito um plano arriscado como aquele e
discutido com Dama Cordelia como se não fosse nada
demais. Não fazia o menor sentido ela ter colocado
aquela compulsão para Yuri ir para o Setor Dez porque
tinha entrado em pânico. Se a casa já estivesse pegando
fogo naquela hora, talvez ele até achasse que a coisa
toda de pânico era possível. Mas não daquele jeito.
A menos que ela tivesse entrado em pânico porque
estava preocupada com ele. Com Yuri.
Não. Ele precisava de limites – e aquilo era passar de
todos eles. Yuri podia ter ignorado tudo o que sabia e
confiado em uma vampira, mas pensar que ela tinha
agido sem pensar porque estava preocupada com ele era
exagero demais.
Mesmo que fosse a única coisa que fazia sentido.
Seu celular vibrou. Yuri encarou a tela. Dez minutos
para saírem do Setor Dez.
— Dez minutos! — Ele gritou.
As pessoas reunidas fizeram silêncio por alguns
segundos antes de começarem a se mover e conversar
em voz baixa de novo, conferindo equipamento e
ajudando os que tinham chegado por último. Olhando
assim, não era muito diferente de quando tinham se
preparado para defender o setor, um mês antes. Mas
agora eram só três grupos, misturando pessoal de defesa
e mercenários. O restante do pessoal ia ficar no Setor
Dez, prontos para ganhar tempo se aquilo tudo fosse
uma armadilha elaborada demais.
Yuri suspirou e pegou o celular de novo. Amon não
iria com eles por motivos óbvios, mas tinha avisado que
daria seu jeito de chegar no Setor Cinco assim que
anoitecesse – o que queria dizer que ele ia correr em
velocidade vampírica até lá, provavelmente.
Ele digitou uma mensagem e enviou. Precisava saber
as chances de Melissa ainda estar viva. Não importava o
que tivesse acontecido, ele não ia deixar a vampira presa
no Setor Cinco. Mesmo se tudo tivesse sido manipulação
– e Yuri não conseguia acreditar naquilo, mesmo que
fosse a resposta mais simples – ele não deixava ninguém
para trás.
Ele não deixava ninguém para trás. E Melissa
provavelmente já sabia ou tinha notado aquilo sobre ele,
por algum motivo. Ela sabia que ele ia insistir quando
contasse sobre a armadilha, sabia que Yuri não aceitaria
sair de lá sem ela. E sabia que ele não ia ficar sem fazer
nada depois do que tinham descoberto. Ele enfrentaria
os vampiros, se precisasse, mas não deixaria Melissa
para trás – e se precisasse deixar ela para trás, faria
questão de voltar.
O tempo todo, Yuri tinha ficado preocupado com a
possibilidade de ser manipulado por Melissa, por causa
do que Amon tinha contado sobre como ela agia. E,
quando ela tinha feito exatamente o que ele esperava,
ele não tinha notado.
Melissa tinha feito aquilo porque sabia qual seria a
reação de Yuri. Ela sabia que ele ia ficar furioso e se
sentir traído e estava contando com aquilo, porque se
estivesse furioso Yuri não ia ir atrás dela, depois.
Aquilo fazia muito mais sentido com o que ele
conhecia de Melissa.
O celular vibrou de novo e Yuri encarou a resposta de
Amon. Ela provavelmente estaria viva, porque Dama
Cordelia ia querer punir Melissa de alguma forma – ou
então a usar para negociar com o príncipe do Setor Seis.
Aquilo era bom.
Melissa estava certa. Yuri não deixava ninguém para
trás. Agora ele só precisava descobrir onde ela estava – e
tinha uma boa ideia sobre aquilo.

O galpão estava exatamente como Yuri se lembrava. Até as marcas


dos carniçais ainda estavam lá. Na luz do dia, o lugar
parecia quase abandonado. Era só um galpão com
paredes manchadas e a tinta dos portões descascando.
Mesmo se Yuri tivesse passado por ali, antes, sem ver a
estrada que ia da terra de ninguém até lá ele não teria
suspeitado de nada.
Chegar ali tinha sido quase anticlimático: eles
tinham achado algumas armadilhas no caminho e
desativado uns tantos sensores de aproximação e
câmeras escondidos no chão, derrubado dois atiradores
no alto do galpão e pronto. Mais nada. Seu pessoal tinha
travado os portões e estavam parados perto das
paredes, por segurança. Da outra vez, Yuri tinha notado
que os portões eram feitos de um material mais
resistente que o normal e era fácil entender o motivo:
garantir que os carniçais não conseguiriam sair. Aquilo
queria dizer que provavelmente o pessoal que ainda
estava no galpão e no subterrâneo não teria nenhum tipo
de arma capaz de atirar através do portão, mas ele não
ia arriscar.
Meia hora para chegar no galpão, alguns minutos
para limpar a área, e agora estavam parados esperando,
de novo. Yuri tinha certeza de que o pessoal no
subterrâneo tinha alguma forma de entrar em contato
com Dama Cordelia. Era até possível que existisse outra
saída daquele lugar – e ficar se preocupando com o que
não sabia, agora, seria perda de tempo.
— Eu ainda acho que a gente devia só explodir
tudo... — um dos mercenários resmungou.
Yuri concordava. Só tinha um não tão pequeno
problema.
— E como é que a gente vai ter certeza de que
explodiu tudo sem saber exatamente o que tem lá pra
baixo? — Ele perguntou.
O mercenário olhou para Yuri e engoliu em seco
antes de assentir.
Pelo menos ele tinha tido uma confirmação do que
havia imaginado antes: o galpão tinha sido uma
armadilha, sim. Todo o equipamento de vigilância que
acharam e desativaram tinha sinais de que havia sido
instalado pouco tempo antes. E agora o galpão também
tinha câmeras discretas bem onde as paredes se
juntavam no teto. Eles tinham cobertos as câmeras,
também, mas não se deram ao trabalho de as arrancar. E
nada daquilo estava ali quando ele e Melissa tinham
achado o depósito.
Até a fechadura dos portões era diferente – bem
mais frágil que a que estava neles agora. A única coisa
que Yuri conseguia pensar era que queriam que os dois
entrassem ali e encontrassem alguma coisa. E fazia
sentido, se Dama Cordelia já suspeitava de Melissa e
queria alguma prova contra ela.
— Vinte minutos para o sol terminar de se pôr —
Andreia avisou.
Yuri assentiu. Já estava escuro o suficiente para ele
estar esperando um ataque. E estava escuro o suficiente
para Amon estar a caminho. Se os vampiros de Dama
Cordelia chegassem ali antes do pessoal do Setor Três, o
que era uma grande possibilidade, eles não estariam
indefesos.
— E o que acontece quando escurecer? — Outro
mercenário resmungou.
Um mês trabalhando com os mercenários tinha
melhorado as coisas, mas ainda não era o suficiente para
eles pararem de resmungar de coisas que deveriam
saber.
— A gente vira lanchinho, óbvio — responderam.
— Guarda o sarcasmo para quando estivermos em
casa — Yuri avisou.
A mulher das forças de defesa que tinha respondido
assentiu e não falou mais nada.
Mais cedo ou mais tarde ele teria que dar um jeito
nos mercenários e teria que filtrar os que não
funcionavam de jeito nenhum com seu pessoal. E aí teria
que descobrir o que fazer com eles, se ia só mandá-los
embora do Setor Dez ou se teriam que negociar alguma
outra coisa.
Pensando melhor, o que fazer com os mercenários
que não se encaixavam ia ser mais um problema de
Raquel do que dele.
— Quando terminar de escurecer, os vampiros que
estão no galpão e no subterrâneo provavelmente vão
tentar alguma coisa — Yuri continuou. — Estejam alerta.
Vamos ter alguns minutos até os reforços deles
chegarem e com sorte vai ser o suficiente para os nossos
reforços estarem aqui, também.
E com sorte aquilo tudo não ia dar errado.
No fim das contas, não importava quantos planos
fizessem. Eles ainda eram só humanos, tentando
enfrentar vampiros. E estarem ali era uma aposta
arriscada demais: um aviso de que o Setor Dez não ia
ficar parado, mesmo que em teoria não tivesse nenhuma
chance de vencer.
Ninguém falou mais nada enquanto esperavam. Yuri
quase conseguia sentir a tensão dos outros. Todo mundo
ali sabia que o que acontecesse depois ia ter
repercussões muito maiores. Se aquilo desse certo, os
vampiros nunca mais veriam o Setor Dez como
inofensivo. Se não desse certo, eles morreriam ali – e o
setor provavelmente seria atacado logo depois.
Era loucura. Aquele plano todo, a possibilidade de
uma aliança com o Setor Três... Era tudo que sempre
tinham evitado. Mas também era o certo.
— Yuri! — Alguém chamou, do outro lado do galpão.
Nada. Nenhum som, nenhum sinal de que iam ser
atacados.
Ele correu na direção de onde tinham chamado.
Algo fez um ruído abafado, alguém fez um ruído
surpreso e Yuri ouviu o som de uma arma caindo.
Se estivessem sendo atacados, ele teria ouvido mais
que só aquilo. Os vampiros não iam se dar ao trabalho de
esconder que estavam ali.
Yuri contornou a parede e parou. Um dos
mercenários estava ajoelhado no chão, com dois do seu
pessoal segurando os braços dele para trás enquanto ele
tentava se soltar. A arma dele estava para o lado, como
se tivesse caído e sido chutada para longe. Era o que
provavelmente tinha acontecido.
— Não me solta não me solta não me solta não me...
— o mercenário no chão murmurou sem parar.
Yuri pegou sua pistola, foi na direção do mercenário
e deu um golpe rápido na cabeça dele com o punho da
arma.
O restante do pessoal ali olhou para ele, sem reagir.
— Vampiros — Yuri avisou.
Melissa tinha mencionado algo no sentido de Dama
Cordelia a querer no setor porque aquele era o lugar
certo para ela. Yuri deveria ter prestado mais atenção
naquilo. Não era incomum vampiros com habilidades
parecidas se reunirem na mesma Corte.
Alguém gritou, do outro lado.
Um dos homens que estava segurando o mercenário
pegou sua arma e apontou para Yuri. Yuri se jogou para o
lado e chutou o braço do homem, ao mesmo tempo em
que outro mercenário prendia o homem pelo pescoço.
Bom. Eles tinham entendido.
Algum vampiro por perto conseguia controlar
humanos e era forte o suficiente para fazer aquilo sem
precisar estar olhando para eles. Ele podia continuar
onde quer que estivesse, controlando um por um e
forçando seu pessoal a lutar entre si, até que sobrasse só
Yuri, na melhor das hipóteses.
Não.
Yuri encarou uma das câmeras tampadas. O mais
provável era quem estava fazendo aquilo estar ali dentro.
Tentar entrar e atacar seria suicídio.
Mais alguém gritou, do outro lado do galpão.
— Apaguem quem tentar atacar — ele gritou. — Não
deixem eles assumirem o controle!
Seu pessoal ia entender exatamente o que Yuri
queria dizer. Ele tinha feito questão de treinar as forças
de defesa para aquela possibilidade.
Ele era imune, mas era o único ali, o que queria dizer
que não adiantava nada...
Não. Se a imunidade de Yuri era como os poderes
dos bruxos, então ele deveria conseguir fazer mais com
aquilo. Tinha que ter um motivo para os vampiros
caçarem as pessoas como ele, especialmente se era um
caso tão sério quanto Melissa tinha falado. Não podia ser
só aquilo.
Yuri se concentrou. Antes, no castelo, ele tinha
conseguido diminuir sua resistência. Mas e se
conseguisse aumentá-la? Ou melhor, espalhar. Sim. Se
ele conseguisse espalhar aquilo, aí sim ia fazer sentido
os vampiros fazerem questão de não deixar ninguém
com aquele poder vivo. Aí o que Melissa tinha falado
sobre ele ser transformado para ser usado como uma
arma ia fazer sentido.
Ele sentiu uma pontada de dor na cabeça. Quando
alguém falava sobre sentir a cabeça martelando, era
exatamente aquilo que queriam dizer. Yuri travou os
dentes. Ele podia não ter certeza do que estava fazendo,
mas sabia que estava fazendo alguma coisa. A dor era
resposta mais que suficiente. Era melhor que nada.
Um dos mercenários soltou sua arma e se deixou cair
contra a parede, respirando fundo.
As pontadas de dor na cabeça de Yuri ficaram piores.
Agora era parecido com quando ele estava no castelo, ao
mesmo tempo em que tinha algo naquela sensação que
era diferente.
Andreia contornou a parede e parou de uma vez,
olhando para Yuri.
— O que quer que você esteja fazendo, está
funcionando — ela avisou.
Ótimo. Ainda bem que estava funcionando. Ao
menos a cabeça dele não estava parecendo que ia
explodir à toa.
E ele conseguia sentir mais alguma coisa. Uma
sensação tensa se aproximando, vindo da direção do
Setor Dez.
Já estava na hora.
— Destravem o portão! — Yuri gritou.
Ninguém discutiu.
O portão começou a subir na mesma hora, com o
mesmo som metálico que Yuri se lembrava. Algo riu lá
dentro, com um som que não era humano.
Amon apareceu na frente do portão e as sombras da
loucura dele se espalharam, cobrindo todas as saídas.

Yuri cruzou os braços e encarou os vampiros arrastando os


corpos para um alçapão no chão do galpão.
Os vampiros do Setor Três tinham chegado menos de
dez minutos depois de Amon e tinha sido interessante
ver como eles haviam parado e esperado até a nuvem de
sombras desaparecer, antes de se aproximarem. Eles
podiam ser necromantes, mas parecia que tinham tanto
medo de Amon quanto os outros vampiros.
Quando as sombras desapareceram, os vampiros
que estavam no galpão já tinham sido destruídos. Pelo
que Yuri tinha visto, eram pelo menos seis, mas podiam
ser mais. As partes dos corpos deles estavam confusas
demais para ele ter certeza.
Mas o problema real nunca tinha sido os vampiros.
Eles não passariam por Amon. O problema eram os
carniçais, que provavelmente não seriam afetados pelo
poder dele, mas seriam afetados pelos necromantes.
Yuri não tinha questionado quando Amon foi o único
a descer para o subterrâneo, junto com o pessoal de Eric.
O risco era grande demais e ele tinha certeza de que
Amon garantiria que aquilo tudo não fosse um plano do
Setor Três para assumir o controle dos carniçais.
E agora estavam de volta, e estavam jogando os
pedaços de corpos dentro da passagem.
Amon parou ao lado de Yuri.
— Eles vão queimar tudo — ele avisou. — É a melhor
forma de garantir que nenhum dos carniçais vai se
levantar de novo.
Era a mesma coisa que um mercenário tinha falado
para fazerem. A diferença era que tudo o que estava
naquele subterrâneo já tinha sido morto – ou o mais
perto disso que era possível. O fogo ia ser uma medida
de segurança e mais nada.
Aquilo queria dizer que o principal já estava feito.
Tanto o pessoal do Setor Dez quanto os vampiros do Três
iam ficar ali até tudo terminar de queimar, mas era só
uma questão de esperar. Se Dama Cordelia não tinha
mandado ninguém para atacá-los, provavelmente não
mandaria mais. O melhor que ela podia fazer era agir
como se não tivesse ideia de que aquilo estava
acontecendo no seu setor. Assim, ia ter uma chance de
escapar de qualquer punição.
Não que fosse adiantar alguma coisa.
— Preciso ir no castelo — Yuri avisou.
Amon levantou um pacote. Parecia ser algo de
plástico, mas a luz vinda do galpão não era o suficiente
para Yuri ter certeza do que estava vendo. Era algo meio
sem forma... Sangue. Era um dos sacos de sangue que
estava nos congeladores do galpão.
Se Melissa estivesse viva, ela precisaria se alimentar.
E existia uma chance grande de ela ter sido torturada de
alguma forma. Não seria seguro Yuri oferecer o seu
sangue.
Ele assentiu e esticou a mão para o pacote.
Amon balançou a cabeça.
— E como você acha que vai conseguir entrar no
castelo sozinho? — O vampiro perguntou.
Yuri parou. Era uma ótima pergunta. Ele estava tão
preocupado e só chegar lá que não tinha pensado em
como faria para passar pelas defesas de Dama Cordelia e
muito menos como ia conseguir tirar Melissa de lá. Se ela
estivesse lá.
Mas ele não podia levar Amon.
— Não vou deixar nosso pessoal sozinho — Yuri
avisou.
Amon se virou e foi na direção de onde Eric estava
parado, um pouco afastado do galpão.
O outro vampiro se virou assim que Amon se
aproximou. De todos do Setor Três, Eric era o único que
não fazia questão de se afastar quando Amon se
aproximava. Yuri não sabia se aquilo era bom ou ruim.
— Nós temos mais uma coisa para resolver aqui —
Amon falou. — Se algo acontecer com nosso pessoal
enquanto estivermos longe, farei questão de te caçar.
Ameaças. Claro que Amon ia ir direto para ameaças.
E Yuri não podia nem dizer que discordava. Era o jeito
mais rápido de saírem dali.
Eric encarou Amon.
— Ameaças?
Amon não falou nada, só continuou parado
encarando o outro vampiro.
— Seu pessoal está seguro — Eric falou.
Amon assentiu.
Yuri foi na direção da moto de Melissa – porque ele
tinha feito questão de voltar para o Setor Cinco naquela
moto. Não ia poder usar uma das caminhonetes para
fazer o que queria.
Amon apareceu ao lado dele e passou o pacote de
sangue ainda frio.
— Te encontro no perímetro do castelo — ele avisou.
Yuri assentiu e subiu na moto. Quando olhou para o
lado, Amon já tinha desaparecido.
Bom. Era muito melhor assim. E Yuri deveria ter
pensado em chamar Amon antes de qualquer outra
coisa, porque a presença dele ia garantir que nenhuma
defesa de Dama Cordelia fosse ficar no seu caminho.
DEZENOVE

Yuri entrou no castelo sem ninguém tentar pará-lo. Os vampiros


estavam mais preocupados em fugir antes do poder de
Amon os alcançar. Yuri não os julgava, considerando o
que tinha acontecido com os vampiros no caminho até
ali. Quem estava no castelo provavelmente tinha visto o
que estava acontecendo nos jardins, como todos os
vampiros ali estavam lutando entre si, alguns depois de
terem arrancado seus olhos – mas o que quer que eles
estivessem vendo, estava nas suas mentes. Nada que
fizessem ia adiantar.
Não era como se Dama Cordelia não tivesse nem
tentado pará-los. Yuri tinha visto vampiros demais nas
ruas, correndo para longe do caminho que levava para o
castelo – obra de Amon, também. E uma boa parte dos
vampiros nos jardins e no espaço antes da entrada do
castelo não estava vestida como os que Yuri tinha visto
ali, antes. Estavam vestidos como soldados ou guardas.
Eles não tinham tido nenhuma chance contra Amon,
também.
As sombras se espalharam pelo chão, parecendo
mais fortes por causa da mistura de velas e luz elétrica.
Elas passaram por Yuri e subiram pelas paredes. Um
vampiro gritou e caiu de algum lugar bem para cima.
Damien.
Yuri foi na direção dele, puxou sua maior faca e a
enfiou através do ombro do vampiro, com força o
suficiente para prendê-lo no chão. Aquilo não ia ser o
suficiente...
Ia, porque ele tinha caído de muito mais alto do que
Yuri tinha imaginado. Ou então não tinha conseguido
controlar a queda – e aquilo era mais provável. Uma das
pernas dele estava virada em um ângulo que não era
possível e a outra estava parecia que estava dobrada
onde não havia articulação. Yuri não ia olhar mais de
perto.
As sombras mal tinham tido tempo de chegar onde
ele estava, e o resultado tinha sido aquele. Não que Yuri
estivesse reclamando.
Ele pegou sua pistola e parou. Não. Yuri tinha uma
arma melhor. E Damien ainda estava com o olhar
vidrado, como se não estivesse vendo o que estava na
sua frente.
— Solte ele — Yuri falou.
O vampiro se jogou para a frente de uma vez e
parou, preso pela faca. Não que aquilo fosse manter ele
preso por muito tempo.
— Se fizer qualquer coisa, Amon vai terminar o que
começou — Yuri avisou.
Damien se deixou cair no chão de novo.
Prático. Muito prático.
O vampiro virou a cabeça devagar e encarou Yuri
antes de rir.
— Então o brinquedo voltou e está procurando sua
dona — ele falou.
Yuri não reagir. Não ia perder tempo dando o tipo de
reação que o vampiro queria.
E ele não estava completamente errado.
— Onde ela está? — Yuri perguntou.
Damien riu de novo e cuspiu sangue para o lado
antes de olhar para Yuri de novo.
— Tarde demais, humano. Se você não tivesse
fugido, talvez ela até tivesse ganhado algum tempo.
Yuri sabia muito bem que já era tarde. Ele não tinha
tanta certeza sobre ser tarde demais.
Amon entrou no salão, andando devagar, como se
nada demais estivesse acontecendo, com a sua nuvem
de sombras se espalhando ao seu redor.
Um mês atrás, ele tinha falado que Dani era louca
por ter acordado Amon. Agora, ele só conseguia
agradecer por ela ter sido louca o suficiente para fazer
aquilo, porque Yuri não queria imaginar o que teria
acontecido se uma das Cortes tivesse descoberto que
Amon estava lá e o levado. Eles estavam preocupados
com os carniçais? Amon poderia ter sido um problema
muito pior que eles.
— Onde ela está? — Yuri repetiu.
O vampiro no chão só riu e olhou para o teto.
Ele não tinha tempo para aquilo.
— Eu posso te matar depressa, ou posso deixar
Amon continuar o que estava fazendo — Yuri avisou.
O vampiro parou, com uma mão ao redor do cabo da
faca o prendendo no chão. Yuri não tinha visto ele se
mover, mas não importava. Amon tinha visto e um fio
daquelas sombras estava quase encostando em Damien.
Ele soltou a faca devagar e arrastou o outro braço
pelo chão. Parecia que ele também estava quebrado,
mas não fazia diferença. Damien ia morrer, de um jeito
ou de outro.
O vampiro apontou para uma porta no fundo do
salão. Yuri não se lembrava dela, da outra vez.
Ele atirou na cabeça de Damien, puxou sua faca de
volta, e foi na direção da porta.

Yuri entrou em uma área que parecia ser um corredor circular.


Parecia, porque não tinha nenhuma iluminação ali. A
única luz era o que vinha da porta atrás dele. Bem na
frente da porta tinha uma coluna larga que não deixava
ele o que mais estava ali, mas ele só conseguia pensar
em um motivo para alguma coisa ser construída daquele
jeito: para proteger um vampiro da luz do sol.
Ele queria muito estar errado sobre o que era aquele
lugar. E esperava que Amon estivesse certo quando tinha
falado que Melissa não seria destruída pela luz do sol.
Ele seguiu pelo corredor, já com sua pistola na mão.
Não que ele achasse que aquilo fosse servir de alguma
coisa. Se tivesse algum guarda ali, já teria atacado.
— Reforços chegando — Amon avisou.
O que queria dizer que Yuri estava sozinho ali,
porque Amon ia ficar para lidar com os outros vampiros.
— Entendido.
Yuri contornou a coluna e parou. Era uma área
circular, sim. E o centro de tudo era um espaço aberto,
com teto altíssimo e aberto para o céu escuro lá fora. A
luz das estrelas era muito fraca, mas era o suficiente
para ele ver uma estrutura no meio daquele espaço.
Quase parecia uma estátua...
Não. Aquilo estava bem debaixo de onde o teto era
aberto. Não era uma estátua.
Yuri abaixou sua pistola e se aproximou devagar.
Ele não tinha luz o suficiente para entender o que
estava vendo.
Yuri pegou seu celular e ligou a lanterna. E precisou
se forçar a não recuar.
Era Melissa ali, sim. Ele reconhecia os restos da
roupa dela – o mesmo corset e saia que ela estava
usando antes de controlar Yuri e fazer ele voltar para o
Setor Dez. As mesmas correntes no braço. E o pouco de
cabelo que ele conseguia ver e que parecia estar preso
contra um poste de metal. Mas ela... Era impossível
reconhecer qualquer coisa do rosto dela. Ou do seu
corpo. Melissa estava completamente queimada. Tudo
que ele conseguia ver dela era uma crosta escura. A
impressão de Yuri era que, se ele se aproximasse, se
tentasse tocar em Melissa, ela ia se desfazer.
Agora ele entendia o que Damien tinha falado com
aquele "era tarde demais". Melissa não era destruída
pela luz do sol, mas até resistência dela tinha um limite,
porque tudo daquele tipo tinha limites. E ser deixada ali,
sendo que a luz do sol ia bater direto onde ela estava
presa...
Não tinha como ela ainda estar viva.
Yuri se aproximou mais do centro da sala. O poste de
metal onde Melissa estava presa ficava em cima de uma
área redonda e um pouco mais alta que o resto.
Ele não ia pensar no que podia ter feito diferente.
Aquele tipo de pensamento não cabia quando estava em
território hostil. Mas Yuri não ia deixar o que tinha
sobrado de Melissa ali.
Ele subiu na área mais alta.
Melissa abriu os olhos.
Não era ela ali. Não. Era Melissa. Mas ela não estava
consciente. Os olhos dela estavam quase completamente
pretos, com um círculo vermelho ao redor de onde as
írises deveriam estar.
Ele também não ia pensar no que ela provavelmente
estava sentindo, se ainda estava viva naquela situação.
Yuri se moveu devagar, guardando sua faca e tirando
o pacote de sangue que ainda estava com ele. Ela era
como um animal selvagem: se ele fizesse algum
movimento brusco, atacaria. E ele não queria ver o que
ia acontecer se Melissa se soltasse.
Ela continuou parada, encarando Yuri e sem dar a
menor atenção para o pacote de sangue. Melissa deveria
estar faminta. Ele tinha esperado que ela fosse avançar
no pacote...
Ela estava faminta – mas não estava consciente o
suficiente para reconhecer o que ele estava segurando.
Yuri guardou seu celular. A luz vindo das estrelas lá
no alto era muito fraca, mas era o suficiente.
Ele pegou uma faca e fez um corte no pacote de
sangue. Melissa se jogou na direção dele, forçando o
metal que estava prendendo suas mãos. Flocos de algo
escuro caíram dela e Yuri estava muito satisfeito com a
pouca luz, porque não queria ver exatamente o que
estava acontecendo.
Yuri deu mais um passo para a frente. Ele ia precisar
dar um jeito de fazer Melissa beber do pacote enquanto
ele estava segurando aquilo, porque se ela não tinha
conseguido se soltar...
Uma mão que mal parecia humana se fechou no
pacote. Yuri o soltou e deu um passo atrás enquanto
Melissa bebia como se mais nada existisse. Uma das
suas mãos ainda estava presa para cima e a mão que
estava segurando o pacote parecia ter um dedo a menos.
Tinha sido por isso que ela tinha conseguido se soltar. Ela
estava tão queimada que forçar o metal tinha sido o
suficiente para praticamente arrancar um pedaço da sua
mão e...
Yuri não ia ficar pensando naquilo. Vampiros sendo
torturados não era novidade. Todos sabiam que as Cortes
faziam aquilo. Ele não precisava ver detalhes. O que
importava era que Melissa estava viva.
Não. O importante era se ela ainda ia estar sã depois
daquilo.
Ela continuou bebendo. Yuri não tinha certeza, mas
tinha a impressão de que os flocos que estavam caindo
dela agora eram porque Melissa estava começando a se
regenerar e a pele nova estava fazendo os queimados se
soltarem. Mas, se fosse aquilo, estava sendo depressa
demais. Ele nunca tinha visto um vampiro se regenerar
tão rápido.
Alguém entrou na sala. Alguém que estava usando
saltos e não estava nem tentando disfarçar o som dos
seus passos.
— Eu esperava você horas atrás — Dama Cordelia
falou.
Yuri se virou devagar. Pegar sua arma não ia
adiantar. Ele só teria uma chance de atirar, e só se a
vampira pensasse que ele não ia reagir.
— Esperava que um humano sozinho fosse tentar
invadir o seu castelo? — Ele perguntou. — Isso que eu
chamo de subestimar alguém.
A princesa saiu de trás de uma das colunas e foi na
sua direção. O som dos saltos dela ecoava na sala de um
jeito que quase não parecia natural.
— Humanos têm o costume de agir sem pensar —
ela falou. — Mas não você, não é?
Yuri não respondeu.
Dama Cordelia parou a alguns passos de distância
dele, sem nem olhar para onde Melissa estava.
— Um mercenário que abandonou tudo para ir para o
Setor Dez — ela falou. — E que foi aceito por eles,
mesmo que seja raro aceitarem forasteiros. Alguém
capaz de passar despercebido pelo meu setor e por mim.
E alguém que tem algo de valor o suficiente para fazer o
Setor Três sair do isolamento.
A princesa tinha subestimado Yuri sim. Mas ele e
Melissa também tinham subestimado Dama Cordelia.
Eles pensaram que ela não tinha notado sobre a
imunidade de Yuri. Mas tinha notado. Era a única
explicação para aquele comentário, mesmo que ela
estivesse errada sobre o Setor Três.
Se Dama Cordelia estava ali, era porque Amon ainda
estava ocupado lá fora. Yuri não ia ter ajuda.
Ela deu mais um passo na sua direção.
— Eu deveria ter notado, mas faz séculos desde a
última vez que provei um humano imune.
Yuri sabia o que aquilo queria dizer. E, depois do que
tinha feito no depósito, nem ia sonhar em duvidar do que
Melissa tinha contado. Ele seria transformado e seria
usado como arma.
Nunca.
Yuri atirou.
Dama Cordelia riu, mas já estava longe de onde ele
tinha mirado – mesmo que ele tivesse tentado calcular o
movimento dela. Ela era rápida demais.
— Acha mesmo que um humano teria chance contra
mim? — A princesa perguntou.
Yuri se virou depressa, mas não conseguia ver onde
ela estava. Aquilo era um jogo, ele estava sendo caçado,
e não tinha a menor chance de escapar.
E Melissa não estava mais no centro da sala.
Yuri bateu as costas na parede e encarou Dama
Cordelia. Sua visão estava meio escura e querendo rodar
– ele tinha batido a cabeça, também, mas tudo tinha sido
tão rápido que ele mal havia entendido o que estava
acontecendo.
Dama Cordelia sorriu, mostrando as presas.
Yuri levantou sua pistola. A princesa a arrancou da
sua mão e jogou no chão, sem fazer o menor esforço.
Ele puxou uma das suas facas.
A vampira foi puxada para trás de uma vez. Yuri
ouviu um ruído abafado e depois mais outro, e depois o
som característico de um vampiro se alimentando.
Ele pegou sua pistola e se moveu devagar.
Dama Cordelia estava contra a parede, com uma
mão de Melissa enfiada no seu peito e a mantendo no
lugar. Yuri já tinha visto pessoas serem presas na parede
por armas antes – mas nunca por uma mão. E Melissa
estava se alimentando da outra vampira, que ainda
estava de olhos abertos, encarando o nada com uma
expressão de choque.
Yuri apontou sua arma para a princesa e esperou.

Rafael encarou a cidade, muito abaixo do seu castelo. Ele tinha


orgulho do que havia construído ali. Por muito tempo, ele
assistira ao caos e às tentativas falhas, tanto dos
vampiros quanto dos humanos, de colocar ordem
naquele mundo novo. Ele não se arrependia da sua
decisão inicial de não se envolver, logo depois da volta
da magia. Se não tivesse feito aquilo, ele teria cometido
os mesmos erros que todos os outros.
E ali ele estava, com todas as suas peças em
posição. Em breve, ele não precisaria mais esconder o
que estava fazendo.
Não. Ainda faltava uma peça. Alana Novaes. Quando
ele tivesse a lealdade dela... Aí sim, tudo estaria
terminado.
— Lorde Rafael? — Thales chamou.
Ele gesticulou para o outro vampiro se aproximar de
onde Rafael estava, parado na sacada.
— O que houve?
— Os sensores no Setor Dez foram ativados.
Rafael se virou de uma vez. Thales estava parado
um pouco para trás e para o lado, como sempre, e com a
mesma postura rígida que era o normal. Mas ele estava
tenso. Rafael conhecia as pessoas que estavam com ele
havia muito tempo e Thales era um dos que se lembrava
de antes.
— Quais sensores? — Rafael perguntou.
— O sistema de aviso sobre a Corte da Sombra —
Thales falou.
Rafael olhou para a cidade de novo.
Então algum deles ainda estava vivo. Não deveria
ser possível, mas ele havia se acostumado a esperar o
impossível, especialmente quando era algo envolvendo o
que havia se tornado o Setor Dez.
Não importava. O tempo deles estava quase
acabando. Talvez aquilo se tornaria uma vantagem para
ele e cuidaria do problema que os humanos haviam se
tornado. Se aquilo acontecesse, ninguém poderia nem
mesmo suspeitar que Rafael tinha algum envolvimento
na destruição do setor.
Sim. Ele esperaria. Era melhor.
— Esconda as informações — Rafael avisou.

Mel soltou Dama Cordelia e deu um passo atrás. A princesa caiu


no chão, desacordada. Aquilo não seria o suficiente para
destruí-la. E não era o que Mel queria fazer, de qualquer
forma. A morte dela teria consequências complicadas
demais.
Ela levantou a cabeça devagar, sentindo algo se
descolar das suas costas e cair. Provavelmente pele e
carne queimadas. Mel ainda estava sentindo sua pele
frágil, mas já era uma surpresa que tivesse pele, depois
de ter passado o dia todo na luz do sol.
E era uma surpresa maior ainda que Yuri tivesse
voltado por ela.
Mel se virou devagar. Yuri ainda estava parado mais
para trás, apontando a pistola para Dama Cordelia.
— Ela não está em condições de fazer nada — Mel
avisou. — Você deveria estar apontando isso para mim.
Porque não tinha como ele ter certeza de que ela
estaria sã. Nem mesmo Mel tinha certeza de como não
tinha enlouquecido ali.
Yuri balançou a cabeça.
— Você não fez tudo isso só para me atacar depois.
Mel fechou uma mão. Seu dedo ainda não tinha se
regenerado, mas não ia demorar muito, também.
Yuri tinha entendido. Aquilo era a última coisa que
Mel queria. Não era para ele entender. Era para ele
continuar furioso, pensar que o tempo todo ela estava
apenas o usando e não se importar. Era para ter sido um
jeito simples de facilitar tudo para os dois.
— Ela está morta? — Yuri perguntou.
Mel balançou a cabeça.
— Não.
— Hora de resolver isso, então.
Ela balançou a cabeça de novo. Yuri levantou as
sobrancelhas.
— Destruir Dama Cordelia vai deixar um vácuo de
poder — ela explicou. — Por mais que seja um problema,
ela é alguém que é conhecida. Qualquer vampiro que
assumir sua posição seria algo novo e imprevisível.
Yuri continuou encarando Mel por alguns segundos
antes de assentir e guardar sua pistola.
Louco. Ele era completamente louco por estar
confiando no controle dela, depois do que tinha
acontecido. Um pacote de sangue e o que ela havia
bebido de Dama Cordelia não eram o suficiente. Ela
precisava de mais.
Mas ele estava certo em dizer que Mel não o
atacaria.
Ela balançou a cabeça e sentiu mais alguma coisa
cair pelas suas costas. Mel não queria saber o que era.
Não. O que ela queria era sair dali e poder se enfiar em
um banho gelado.
E depois tentar descobrir o que ela faria, já que
todos os seus planos tinham dado errado. Não demoraria
para Klaus exigir sua presença no Setor Seis. Quando
aquilo acontecesse, ela seria forçada a obedecer, por
causa do juramento. E então seria outra sala como
aquela – ou pior.
— Você não deveria ter voltado — Mel murmurou.
Porque agora ela teria que encontrar outra forma de
garantir que ele iria manter sua distância. Se ela
conseguisse fazer alguma coisa daquele tipo de novo.
Yuri balançou a cabeça e começou a andar na
direção da porta.
— É óbvio que eu ia voltar — ele começou. — Não sei
o que você estava pensando que ia conseguir, mas...
Ela teria que falar com todas as letras.
— Yuri — Mel chamou.
Ele se virou para ela.
— O que você acha que vai acontecer? — Ela
perguntou. — Daqui a quinze, vinte anos, o que você
acha que vai acontecer?
Yuri balançou a cabeça devagar. Ele não estava
entendendo onde ela queria chegar. Claro que não
estava, ele não tinha motivos para ter pensado naquilo.
Ele nunca tinha visto aquilo acontecer. Não havia vivido
aquilo.
— Daqui a vinte anos, você vai estar envelhecendo
— Mel falou. — Não duvido nada que continue fazendo o
que faz agora, mas não vai ser a mesma coisa. E quando
você estiver chegando nos seus oitenta anos? O que
você acha que vai acontecer? E depois?
Porque ele era humano. Ele ia envelhecer. Em algum
momento, ele ia morrer.
E ela era uma vampira.
Mel viu exatamente quando Yuri entendeu o que ela
estava querendo dizer. A forma como sua expressão ficou
vazia e ele empalideceu.
— Você não deveria ter voltado — ela repetiu.
Yuri não respondeu.
Mel passou por ele e foi na direção da porta. Não
tinha mais ninguém ali e a única presença que ela
conseguia sentir estava depois do salão. Ela não
precisava preocupar. E Yuri não estaria ali se não tivesse
limpado o caminho de alguma forma.
Eles saíram da sala sem falar mais nada. A luz do
salão parecia forte demais, depois de tanto tempo
naquele lugar. E parecia mais forte ainda por causa da
parede de sombra bloqueando a porta. Amon. Aquilo
explicava como Yuri tinha conseguido entrar no castelo e
a achar. Aquilo e o corpo de Damien, no chão. Pelo
menos, parecia ser Damien. O rosto tinha sido destruído
por um tiro.
As sombras na porta se afastaram. Mel passou no
caminho entre elas, ouvindo os passos de Yuri atrás de si.
Lá fora, uma boa parte dos vampiros de Dama
Cordelia ainda estava lutando entre si ou contra
adversários invisíveis.
Amon saiu do meio da escuridão e foi na direção
deles.
Mel o encarou. Yuri não tinha como saber que ela
não seria destruída pelo sol. E só havia uma pessoa viva
que sabia daquilo.
— Você não deveria ter contado — ela falou.
Amon inclinou a cabeça e não respondeu, antes de
olhar na direção dos vampiros reunidos.
— Posso mantê-los assim até se destruírem — ele
avisou.
Mel suspirou. Era óbvio que ele ignorar o comentário
dela.
E, por mais que deixar os vampiros ali se destruírem
fosse o mais prudente, não era o melhor a ser feito. A
melhor opção era saírem logo dali.
Era tarde demais para ela, de qualquer forma.
Esconder o que podia fazer não ia adiantar de nada mais.
Mel já estava marcada como uma traidora.
— Solte os vampiros — ela pediu.
As sombras recuaram e desapareceram.
Mel espalhou seu poder no mesmo instante.
Os vampiros pararam e se afastaram, abrindo um
caminho até o portão.
E se ela estava sentindo sua cabeça pulsar de dor e
tinha certeza de que estava sentindo o gosto de sangue
na boca, não importava. Qualquer preocupação podia
ficar para depois que saíssem dali.
Sem falar nada, ela desceu os degraus que levavam
para os jardins e de lá para os muros do castelo.
VINTE

Eles se reuniram perto da fronteira, de novo. Raquel, Ezequiel e


Dante já estavam esperando quando Yuri atravessou de
volta para o Setor Dez, com Melissa na garupa da moto e
se segurando nele de um jeito que deixava claro que ela
estava exausta. Não era o que tinha parecido, quando ela
havia feito todos os vampiros pararem e se afastarem do
caminho deles.
Amon tinha escoltado o príncipe do Setor Três até ali
– porque não deixariam um vampiro que não conheciam
andar pelo território do Setor Dez sem algum jeito de
saber o que ele estava fazendo. Mas o fato de Eric ter ido
sozinho fazia Yuri pensar que era bem possível que a tal
oferta de uma aliança fosse real. E, se iam trabalhar
juntos dali para a frente, nada mais justo que
compartilhar as informações que tinham.
Não era como se saber aquilo fosse fazer alguma
diferença, no fim das contas. A primeira coisa que Yuri
havia feito tinha sido enviar um resumo de tudo para
Dani. Aquilo, junto com as imagens que Melissa tinha
feito antes e o que Amon havia gravado quando estava
no subterrâneo, tinha sido enviado para Lorde Rafael.
O Setor Um era o responsável pela região, sim. Então
precisavam saber do que estava acontecendo. Fazendo
daquele jeito, eles garantiam que os Setores Cinco e Seis
seriam vigiados, mas Lorde Rafael não seria obrigado a
atacar. Eles já tinham cuidado do problema.
E nada daquilo parecia importar para Yuri. Eram
coisas que ele sabia, que tinha organizado, mas não
eram o seu foco.
Melissa estava parada, acrescentando informações
quando precisava, mas não tinha falado nada além do
necessário. E Yuri não conseguia não pensar no que ela
tinha lembrado antes de saírem do castelo.
Ela era uma vampira, ele era humano. Ele nunca
aceitaria ser transformado. Mesmo se não precisasse ser
parte de nenhuma Corte, só a ideia de viver tanto
tempo... Não. Aquilo não era para Yuri. Ele preferia
envelhecer, seguir o ritmo natural das coisas. E não teria
visto nenhum problema em fazer aquilo com Melissa. Ela
ser uma vampira... No fim das contas, ela não envelhecer
era uma das poucas coisas sobre ser uma vampira que
nunca tinha sido um problema para ele.
Mas Yuri não tinha imaginado o que aquilo seria para
ela. Porque ela passaria aquele tempo sabendo que ele ia
morrer, ela ia assistir e ia continuar ali.
Vendo por aquele lado, ele entendia mais ainda o
que Melissa tinha feito. Teria sido mais fácil se ele tivesse
continuado com raiva e não tivesse nem pensado mais
no assunto. Ia ter sido um corte claro e eles nunca mais
se veriam. Mas era tarde demais para fazer aquilo, de
qualquer forma.
— Eu não vou ficar aqui — ela avisou.
Yuri se forçou a prestar atenção no que estava sendo
falado.
— Você sabe o que vai acontecer se voltar para o
Setor Seis — Amon falou.
Melissa se virou para ele com uma calma que Yuri
tinha certeza que era só fachada.
— E que diferença vai fazer se eu não voltar? — Ela
perguntou. — Você sabe muito bem que, assim que ele
ordenar minha presença, não vou ter como escapar.
Porque Amon tinha passado mais de um século preso
por juramentos. Se tinha alguém que ia entender
exatamente o que Melissa estava dizendo, era ele.
Yuri não tinha nem se lembrado do juramento.
Melissa não tinha como negociar, agora. Ela estava presa
ao príncipe do Setor Seis e não tinha nada que eles
pudessem fazer sobre aquilo.
— Pelo menos voltando vou poder descobrir o que
aconteceu com o meu rebanho — Melissa continuou. —
Não vou abandoná-los no meio disso.
— Seu rebanho está aqui — Yuri contou.
Melissa se virou para ele, com aquela expressão
vazia de quando ela não sabia como reagir.
— Aqui — ela repetiu.
Yuri assentiu.
— Nosso pessoal tirou eles do Setor Seis noite
passada.
Melissa continuou encarando Yuri por alguns
segundos antes de se endireitar e balançar a cabeça
devagar.
— Isso não muda o fato de que não posso ficar aqui.
Vou ser um risco para vocês.
Ninguém falou nada. Era a verdade. Yuri não sabia
exatamente como os juramentos de sangue dos
vampiros funcionavam, mas sabia que não podiam ser
quebrados. Pelo que ele tinha entendido, normalmente
Melissa tinha liberdade para agir como queria dentro das
ordens que recebia – como quando tinha usado a
presença de Yuri para justificar ir para o Setor Cinco. Mas,
se recebesse uma ordem direta para dar informações ou
fazer alguma coisa contra eles, ela provavelmente não
teria como recusar.
Nem teria como recusar se o príncipe quisesse que
ela estivesse de volta no Setor Seis. E, depois do que ela
tinha feito...
— Se você voltar... — Yuri começou.
— Espere — Eric interrompeu.
Yuri parou de falar. O vampiro estava encarando
Melissa, mas se virou para Amon e depois para Raquel,
antes de encarar Melissa de novo.
— O que você está dizendo é que esse tempo todo
Klaus teve a vampira com a habilidade de compulsão
mais forte que se sabe presa por um juramento, sem que
nenhum dos outros príncipes soubesse — ele falou.
Melissa se virou para ele.
— Exatamente.
O vampiro assentiu devagar e olhou para Raquel.
— Eu disse que temos interesse em uma aliança com
o setor de vocês — ele começou. — Entendo não
confiarem em nenhuma das Cortes, mas estamos
dispostos a oferecer algo como uma mostra de confiança
para vocês.
Aquilo fazia sentido. Yuri só não entendia o que tinha
a ver com o juramento de Melissa.
— Estou ouvindo — Raquel falou.
Eric sorriu e se endireitou.
Um arrepio atravessou Yuri. Aquilo, agora, era um
príncipe dos vampiros. Antes, era só mais alguém no
meio da missão. Mas algo na postura dele tinha mudado
e era o suficiente para passar uma impressão
completamente diferente.
— O Setor Dez se colocou como uma força que não
vai ser ignorada, tanto quando se recusaram a ceder e
contiveram os ataques do Setor Oito, quanto agora — ele
falou. — O que vocês fizeram vai ter consequências,
tanto a destruição do depósito quanto o fato de terem
enfrentado Dama Cordelia no coração do seu território e
terem saído vivos. Vocês não podem perder aliados e
Melissa é uma aliada.
Yuri olhou para Melissa. Ela se importava com ele,
sim. Ela tinha feito de tudo para protegê-lo, o tempo
todo. Mas ele não sabia se Melissa se consideraria uma
aliada do Setor Dez. Ela poderia ser, sim. Yuri sabia que
Raquel não recusaria ter ela ali, tanto por causa dele
quanto por causa do valor que ela teria para o Setor. Mas
não fazia ideia de se Melissa iria querer algo daquele
tipo.
— Existem histórias sobre o que podemos fazer —
Eric continuou. — Tenho certeza de que já ouviram
algumas. E não importa o que tenham ouvido, nosso
poder tem um preço.
— Vida — Amon falou.
Eric assentiu.
— O poder gerado pelo fim de uma vida — ele
especificou. — E nós armazenamos o poder gerado pela
morte dos carniçais. Esse poder é de vocês, como uma
prova de confiança e um agradecimento por terem
dividido as informações conosco.
Necromantes. Era óbvio que o preço da magia deles
seria vida. Sacrifícios, se Yuri tinha entendido certo. Ele
só não fazia ideia de o que aquilo tinha a ver com o que
estavam falando.
— E o que faríamos com esse poder? — Raquel
perguntou.
Eric sorriu.
— Vocês poderiam pedir para que uma vampira
fosse transformada de volta em humana. Isso seria o
suficiente para quebrar qualquer tipo de magia de
sangue.

Mel encarou a porta da casa, sem ter coragem de entrar. Ela


ainda não tinha certeza do que estava acontecendo. Tudo
era um borrão desde que o príncipe do Setor Três havia
falado sobre a possibilidade de quebrar seu juramento –
a transformando de volta em humana.
Ela não sabia que aquilo era possível. Não deveria
ser. Mas ninguém sabia muito sobre o que os
necromantes realmente podiam fazer.
E, mesmo que fosse possível, o Setor Dez poderia
usar aquele poder para várias outras coisas. Ela não
conseguia nem mesmo pensar em algum uso em
específico, mas tinha certeza de que havia mais alguma
coisa. Algo que não envolvesse uma vampira que nem
mesmo era parte do setor.
Mas Raquel estava considerando aquela
possibilidade. Mel tinha visto no olhar que a bruxa havia
lhe dado. Se Mel falasse qualquer coisa naquele sentido,
Raquel autorizaria o poder ser usado para ela. E a
aceitaria no setor, depois – mesmo que fosse ser apenas
mais uma humana, sem suas habilidades, sem a força e
a velocidade de uma vampira, sem nada do que fazia a
presença dela ser uma vantagem.
Mel não conseguia entender aquilo. Não era como as
coisas funcionavam. Não era como o mundo funcionava.
Ninguém fazia uma oferta aberta como aquela sem
esperar algo de valor equivalente em troca, e ela não
teria nada para oferecer.
A porta se abriu e ela encarou Yuri.
— Estava destrancada — ele falou.
— Eu sei.
Ela só não havia conseguido se convencer a abrir a
porta da casa segura e entrar. Fazer aquilo soava quase
como uma resposta que Mel não tinha certeza se podia
dar.
Yuri se afastou da porta, sem falar mais nada.
Mel respirou fundo e entrou. Ela já sabia o que
esperar: uma sala com sofás e uma mesa baixa,
separada da cozinha por uma parede baixa que era
parecida demais com a da casa onde haviam ficado no
Setor Cinco, um quarto e um banheiro. Era a mesma
coisa que a casa onde seu rebanho estava. Daniele tinha
lhe avisado que havia oferecido colocá-los em duas
casas, mas eles haviam preferido continuar em uma só,
mesmo com o pouco espaço.
Ela havia conversado com eles. Tinha garantido que
estavam bem e estavam satisfeitos ali – e recebido a
promessa de que seria avisada se algo se tornasse um
problema. Tinha contado sobre a oferta do Setor Três,
porque era o mínimo que podia fazer. Se ela voltasse a
ser humana, a vida deles seria afetada, também.
Se Mel havia tido alguma esperança de que as
reações deles fossem ajudá-la a se decidir, tinha se
enganado. A única coisa que haviam falado era que a
decisão era dela.
Pelo menos a ida até lá havia lhe rendido roupas
limpas e o banho gelado que Mel tanto queria, para tirar
os restos do dia anterior do seu corpo.
E Mel ainda estava parada no lugar, dois passos para
dentro da casa, sem saber o que fazer. Ela nunca tinha se
sentido tão incerta antes.
Ela fechou a porta atrás de si e continuou parada no
lugar. Mel não sabia nem por que estava ali.
Considerando o risco, Yuri deveria ter sido a primeira
pessoa a dizer que era melhor ela não estar no Setor Dez
até lidar com o juramento. Mas não. Ele havia falado de
levá-la para uma casa segura até se decidir, o que daria
tempo para ela falar com seu rebanho, também, e
ninguém havia questionado.
— Seu rebanho? — Yuri perguntou.
Ele tinha ido para a cozinha. Ela deveria ter esperado
algo daquele tipo.
— Estão bem — ela contou. — Ainda tensos, mas
bem. O príncipe já havia feito ameaças.
E, se Yuri não houvesse pensado em tirar seu
rebanho do Setor Seis logo depois de chegar no Dez,
quando tudo que Mel sabia sobre ele dizia que deveria
estar furioso com ela, nenhum deles estaria vivo. Os
quatro humanos que haviam confiado nela para sua
proteção teriam sido mortos como uma punição para
Mel.
Ela não sabia nem como agradecer.
Mel atravessou a sala e parou na entrada da cozinha.
Yuri estava fazendo chá. Quantas vezes ela tinha visto
ele fazer a mesma coisa no Setor Cinco? Não eram
tantas, se ela parasse para pensar, mas eram o
suficiente para aquilo parecer comum. Rotineiro.
Aquilo poderia ser normal. Se ela aceitasse a
proposta de Eric, seria humana de novo. Não teria mais
nenhum motivo para fazer questão de se manter longe e
não se envolver – mesmo que já fosse tarde demais para
qualquer tentativa de não se envolver.
Yuri parou na frente dela.
— A escolha é sua — ele falou. — Você sabe disso.
Mel balançou a cabeça. Não era tão simples.
— O que eu não sei é o que vocês ganham com isso.
Ele deu de ombros.
— Ganhamos uma aliança com o Setor Três. Ou pelo
menos uma confirmação de que eles estão falando sério.
Ela balançou a cabeça de novo e olhou ao redor. Não
tinha para onde ir. Não tinha como fugir.
E Mel não deveria estar querendo fugir.
— Não é tão simples e você sabe — ela falou. — Eu
não sou uma peça tão importante nesse jogo. Não existe
um motivo para estarem pensando em gastar esse poder
comigo.
— Nós não somos uma Corte — Yuri murmurou.
Ela piscou. Era óbvio que não eram uma Corte. Amon
e Daniele eram os únicos vampiros no Setor Dez. E,
mesmo que Amon tivesse poder mais que o suficiente
para ser um príncipe – talvez até mesmo para controlar
uma região inteira – ele nunca tivera nenhum interesse
em estar no comando. Não, o Setor Dez não funcionava
como os outros justamente por causa daquilo. E não era
nada que Mel não soubesse.
Eles não eram uma Corte – e não agiam como uma.
Mel sabia daquilo, mas não tinha pensado em como
aquilo afetaria qualquer decisão tomada pela liderança
do setor. As prioridades das pessoas ali eram diferentes.
Eles faziam o que era certo. Eles eram loucos o suficiente
para organizar um ataque ao Setor Cinco porque era o
certo a se fazer, mesmo que os colocasse em risco. E Mel
estava tentando entender suas ações usando a mesma
base que tinha para as ações de uma Corte.
Yuri passou por ela e voltou para a sala.
Mel balançou a cabeça de novo.
Talvez aquilo não fosse uma armadilha. Talvez não
tivesse um motivo escondido ou algo que ela se
arrependeria depois e fosse exatamente o que havia sido
oferecido: uma chance de quebrar o juramento, da única
forma que era possível.
— Você está disfarçando bem, mas eu sei que ainda
está precisando de sangue — Yuri falou.
Ela se virou. Yuri tinha tirado sua blusa e sua jaqueta
e estava parado olhando para ela.
Ele estava certo. Mel estava disfarçando e estava se
controlando – se forçando a não reconhecer a fome. E ela
não conseguia fazer nada daquilo com ele se oferecendo
daquele jeito para ela.
— Yuri... — Mel começou.
— É a minha escolha — ele falou.
Então ela não ia se negar algo que queria, também.
E havia uma coisa que ela havia falado desde o começo
que faria, mas não tinha conseguido. Talvez...
Talvez aquela fosse ser sua última oportunidade.
— Não assim — ela avisou.
Ele levantou as sobrancelhas e se sentou,
começando a tirar seus coturnos.
Um arrepio atravessou Mel e ela sorriu. Yuri sabia
muito bem o que estava fazendo. Ele entendia que a
estava desafiando e estava fazendo aquilo de propósito.
E não era nenhum segredo que ela gostava de desafios.
Mel cruzou os braços e se encostou na meia parede
que separava a cozinha da sala, encarando Yuri. Ela
conseguia ouvir seus batimentos acelerados e ver como
o ritmo da respiração dele havia mudado. Yuri sabia
muito bem o que estava fazendo. Era um jogo para ele,
também.
Ele terminou de tirar os coturnos e se levantou, só de
calça. Da outra vez, ela não havia tido tempo de apreciar
o corpo de Yuri. Ela queria demais para conseguir pensar
em qualquer coisa a não ser necessidade de ter Yuri nela,
já que não ia poder beber mais do sangue dele. Ali,
agora...
Mel podia apreciar o que estava vendo, sim. Desde a
primeira vez que o vira, ela tinha notado o corpo de Yuri.
Os braços definidos eram apenas o começo, porque ele
todo era definido. O peitoral, subindo e descendo com
sua respiração pesada. O abdome com os músculos
marcados e a trilha fina de fios escuros descendo para o
cós da sua calça.
A calça que ele estava desabotoando.
Mel levantou a cabeça e encarou Yuri. Ele sustentou
seu olhar, com o desafio mais do que claro na sua
expressão.
A calça caiu no chão com um ruído suave.
Um arrepio atravessou Mel. Ele estava desarmado.
Ela nunca tinha visto Yuri estar sem uma das suas armas
por perto. Ele sempre tinha alguma coisa escondida nas
roupas, de alguma forma. Mas estava desarmado, ali,
com ela.
Mel havia passado tempo demais analisando pessoas
para não entender o que aquilo queria dizer.
Ela desceu o olhar devagar e parou, encarando a
ereção de Yuri. Era sempre assim. A forma como ele
reagia a ela era só mais uma prova de que tentar negar
qualquer coisa sempre havia sido perda de tempo.
— Não? — Ele perguntou.
Mel não respondeu. Ela não conseguia mais ignorar a
pressão nas suas presas, nem a forma como Yuri parecia
ser um ímã para ela. Ela não conseguiria negar nada
para ele, mesmo se quisesse.
Mas ela ainda queria o desafio, sim.
Yuri segurou sua ereção e apertou. Mel passou a
língua pelos lábios. Talvez ela fosse mordê-lo ali,
também. Não para se alimentar – não seria nem um
pouco eficiente. Mas pelo prazer, tanto dela quanto dele.
Ele subiu a mão devagar e desceu, ainda apertando.
Yuri não gostava de gentileza. O que funcionava para ele
era força, mesmo quando era ele mesmo se tocando.
E só ver Yuri fazendo aquilo não deveria ser nada
demais, mas era. Mel conseguia sentir o fogo por todo o
seu corpo, e não era fome. Era algo além daquilo.
Yuri subiu e desceu a mão de novo.
Mel se moveu e segurou o pulso dele. Yuri soltou o ar
com força – o único sinal de que não tinha nem visto o
movimento dela.
Ela se inclinou na direção dele, até que estava perto
demais do seu pescoço.
— Não assim — Mel repetiu.
Yuri tentou mover a mão. Ela sorriu, sem o soltar, e
passou a língua pela curva do seu pescoço. Tão perto
assim, Mel conseguia sentir o calor da pele de Yuri e
como sua pulsação estava ficando mais rápida. Ela não
precisava de uma confirmação de como aquilo o afetava,
mas era bom ter, mesmo assim.
E ela queria seus jogos, sim. Ela queria o desafio.
Queria tempo para provar cada centímetro de Yuri.
Mas, acima de tudo, ela o queria. Tão simples... E ao
mesmo tempo tão complexo.
— Eu avisei como seria, não avisei? — Ela murmurou,
perto do ouvido de Yuri.
Ele tremeu e relaxou a mão. Mel o soltou e segurou
sua ereção. Sim. Era melhor daquele jeito. Ele, na mão
dela – porque ele era dela. E não adiantava ela tentar
lutar contra aquilo. Era tarde demais.
Ela subiu a mão, devagar mas com força, e desceu
de novo. Yuri fez um som rouco e segurou o braço dela.
— Eu disse que quando me alimentasse de você de
novo, seria com você dentro de mim — Mel completou.
O pau dele ficou ainda mais duro na sua mão. Yuri
gostava daquela ideia.
— E o que você está esperando? — Ele perguntou.
Ela sorriu e beijou o ombro dele, deixando que
sentisse suas presas. Um arrepio atravessou Yuri e Mel
precisou se controlar para não mordê-lo ali, naquele
momento.
— Estou pensando, não esperando — ela falou.
Pensando no que faria com ele. Em como faria Yuri
perder o controle – porque aquilo era o que ela sempre ia
querer, naquelas horas. Quebrar o controle dele, tudo o
que ele pensava que deveria ou não fazer. Ela queria o
instinto. A reação sem filtros.
Mel sentiu algo ser puxado nas suas costas e então
seu corset ficar mais relaxado ao redor do seu corpo.
Ela levantou a cabeça e estreitou os olhos. Yuri tinha
conseguido soltar seu corset usando uma mão e
enquanto ela ainda estava segurando seu pau.
Ela o apertou e subiu a mão de novo. Yuri fez aquele
mesmo ruído grave e fechou os olhos, sem parar de
puxar as amarras nas suas costas.
— Pode continuar pensando — ele murmurou.
Um arrepio atravessou Melissa.
Não. Ele não ia assumir o controle ali. Não importava
se o que ele estava fazendo era justamente para
provocá-la. Ela podia aceitar aquela armadilha, desde
que o resultado final fosse o que ela queria.
E o que Mel queria era Yuri dentro dela, perdendo o
controle enquanto ela o mordia.
Ela se moveu de uma vez e empurrou Yuri contra a
parede. Ele piscou, olhando ao redor depressa – ela havia
se movido rápido o suficiente para ele não perceber o
que estava acontecendo.
Ele sorriu e puxou as amarras do corset de novo. A
peça de roupa caiu.
Mel queria o jogo. Queria a antecipação, a tensão de
saber como aquilo acabaria, enquanto eles se
provocavam até o limite.
Mas ela não conseguiria se conter.
Ela puxou o fecho lateral da sua saia e soltou o pau
de Yuri.
Ele inverteu a posição deles, empurrando Mel contra
a parede e a prendendo ali com o corpo.
— Depois — ele murmurou.
Mel assentiu.
— Depois.
Depois eles fariam tudo o que queriam. Iriam tão
devagar quanto conseguissem. Mas só depois.
Yuri levantou uma perna de Mel e entrou nela de
uma vez. Mel bateu as mãos na parede, com força.
Aquilo era melhor do que deveria ser – o calor da pele
dele contra a sua, a forma como ele era grande o
suficiente para ela ser quase forçada a se concentrar na
sensação do seu pau saindo dela devagar, só para voltar,
com força. E de novo.
E não era o suficiente, não daquela vez.
Mel mordeu Yuri. O sangue tocou sua boca como um
raio.
As sensações explodiram pelo seu corpo – dela, de
Yuri, Mel não sabia dizer. Não conseguia separar. A única
coisa que existia era o sangue e o prazer, se espalhando
pelo seu corpo de uma forma que era quase demais. E a
forma como Yuri estava se movendo contra ela, sem
ritmo, tremendo, cada vez com mais força até parar.
E ela ainda estava bebendo dele, sentindo o pau de
Yuri dentro dela enquanto ele se segurava nela com
força, sem dar o menor sinal de que queria se afastar.
Rápido demais. Forte demais.
Ela estava exagerando – eles estavam exagerando. E
Mel não se importava. Não depois de tudo o que tinha
acontecido. Não depois de ter esperado o pior.
Yuri segurou seu braço com força, um instante antes
de Mel sentir o prazer se espalhando pelo corpo dele de
novo, e depois pelo dela.
Não era o suficiente. Nunca seria.
E não era o que ela tinha planejado, também – mas
alguns planos eram feitos para serem ignorados.

Mel se acomodou melhor contra o corpo de Yuri. Era estranho


estar em uma cama com ele. Não. Estranho era estarem
deitados daquele jeito, como se não tivesse nenhuma
preocupação. Ou como se fossem um casal humano.
Podia ser daquele jeito. Mel podia ter aquilo e, se
fosse honesta consigo mesma, era o que ela queria. Mel
havia sido transformada contra sua vontade. Por muitos
anos, havia pensado que daria qualquer coisa para voltar
atrás e mudar o passado, porque assim teria uma chance
de continuar sendo humana. E depois não havia nem
pensado naquilo mais, porque era inútil. Nada mudaria o
passado. Nada faria com que ela deixasse de ser uma
vampira.
E ali estava aquela oportunidade. Cento e vinte anos
depois, quando ela já havia desistido de tudo.
— Você está pensando demais — Yuri falou.
Mel não respondeu.
Ele colocou uma mão na cintura dela e apertou de
leve.
E ele merecia uma explicação, mesmo que houvesse
deduzido seus motivos.
— O que eu fiz com você — Mel começou. — Eu
passei de todos os limites e sei disso. Mas era a única
forma de garantir que você voltaria para o Setor Dez
depressa o suficiente para Dama Cordelia não ter tempo
de montar outra armadilha. E foi a única forma que
consegui pensar de ter certeza de que você ficaria longe
de mim.
Yuri se virou, até que estava olhando para ela.
Seria muito mais fácil não falar nada e deixar aquilo
como estava, mas Yuri merecia mais. Mel se forçou a
continuar.
— Não vou falar que me arrependo. Fiz o que pensei
que era a melhor escolha para a situação e não consigo
me arrepender, porque você está vivo e está aqui. Mas
eu não faria a mesma coisa de novo.
Porque ela não conseguiria quebrar a confiança de
Yuri daquele jeito, mesmo que fosse para protegê-lo.
Ele assentiu.
— Eu entendo.
Ela assentiu, também. Mel não sabia o que dizer e
aquilo não era normal, para ela. Surpresas demais.
Situações inesperadas demais. Era a única explicação
possível para ela estar tão perdida.
— O que você vai fazer? — Yuri perguntou.
Era óbvio que ele perguntaria.
— Não sei.
E não era só por não entender o que o Setor Dez
ganharia com aquilo.
Cento e vinte anos antes, ela teria dado qualquer
coisa para voltar a ser humana. Agora, Mel estava
confortável demais sendo quem era, com suas
habilidades e os poderes que ser uma vampira lhe
davam. Ela queria sua liberdade, mas também
reconhecia que, se não fosse por Yuri, ela provavelmente
não estaria considerando voltar a ser humana para
quebrar o juramento.
— Não estou nem aí se isso vai soar arrogante, mas
— Yuri começou. — Se você estiver indecisa por minha
causa, não fique. É a sua vida. Eu entendi o que você
falou no castelo, também. Se sua escolha for continuar
sendo uma vampira e se afastar, eu não vou discutir.
Não tinha como ele soar arrogante quando estava
falando a verdade. Mel estava indecisa por causa de Yuri,
sim. Mas...
Mel respirou fundo e soltou o ar devagar. Não era tão
simples.
— Nós somos uma possibilidade — ela murmurou. —
E uma possibilidade muito real. Mas tudo aconteceu
depressa demais.
Tinham sido alguns poucos dias e mais nada.
Algumas conversas, e depois três dias no Setor Cinco.
Aquilo não era nada. Mel tinha sido uma vampira por
tempo o suficiente para ver pessoas – tanto humanos
quanto vampiros – se aproximarem depressa e se
afastarem com a mesma velocidade, mesmo que não
pensassem que aquilo fosse acontecer.
— Agora, eu faria qualquer coisa para te proteger —
ela continuou. — Eu não consigo imaginar deixar que
alguma coisa aconteça com você. E o que isso é... Eu não
sei. Não sei se posso dizer que é amor. Fui uma vampira
por tempo demais para isso e tudo foi rápido demais.
Mas...
Não era tão simples. Nunca era tão simples.
Yuri se virou na cama até que estava acima de Mel,
com um braço apoiado de cada lado do rosto dela.
— Eu não vou discordar de nada do que você falou —
ele começou. — Foi rápido demais. Mas você mesma
falou... É uma possibilidade. Não quer saber até onde
essa possibilidade vai?
Mel o encarou. Talvez fosse tão simples assim, afinal.
Eles eram uma possibilidade – e aquela possibilidade só
existiria dependendo da escolha dela.
Ela não estava disposta a abrir mão de Yuri.
Ela havia passado o último século tentando
encontrar uma forma de se livrar daquele juramento, e
agora tinha uma oportunidade que não apareceria
novamente.
Simples. Talvez fosse mais simples do que Mel havia
imaginado – se ela estivesse disposta a arriscar.
— Avise Raquel — ela falou.
VINTE E UM

Ainda era estranho sentir o calor do sol na sua pele. Mel fechou
os olhos e levantou a cabeça, aproveitando a sensação.
Aquilo não deveria ser uma surpresa. Ela havia sido uma
vampira por mais tempo do que vivera como humana –
era natural que aquilo fosse ser estranho. Mas a forma
como era satisfatório... Mel nunca teria esperado aquilo.
Yuri parou ao seu lado, sem falar nada.
— Sua imunidade está mais forte — ela comentou.
— Mais forte?
Mel assentiu e abriu os olhos. Yuri estava com aquela
expressão de quando estava se concentrando, quase
como se estivesse tentando sentir a força do seu poder.
— Não consigo nem sentir sua presença — Mel
contou. — Se me concentrar ainda vou conseguir passar
pela imunidade, mas está ficando mais difícil.
Yuri sorriu.
— Isso é bom.
Era, porque queria dizer que era mais uma vantagem
para o Setor Dez, quando alguma coisa acontecesse –
porque aconteceria.
Já fazia duas semanas desde a destruição dos
carniçais no Setor Cinco. Alguns dias depois daquilo, Mel
havia aceitado a oferta do Setor Três, com a autorização
de Raquel.
Ela não se lembrava de muita coisa sobre aquilo. Os
necromantes haviam se encontrado com ela perto da
fronteira, mas daquela vez do lado deles da fronteira,
onde haviam limpado o mato de uma área pequena. E,
depois de se encontrar com eles e aceitar a oferta
formalmente... Dor. Apenas a dor, como se Mel estivesse
revivendo tudo o que havia sido feito a ela enquanto era
uma vampira. Cada ferimento, cada punição. E então a
névoa... E escuridão.
Mel havia acordado na mansão que era a sede do
Setor Dez, quase um dia inteiro depois, e só as décadas
de controle impediram que acordasse gritando, porque
estava ouvindo vozes demais.
Ela tinha imaginado que, ao ser transformada em
humana, perderia todas as suas habilidades. E ela tinha
perdido tudo o que ser uma vampira lhe garantia, sim. A
força, a velocidade, a regeneração. Mel teria que
aprender a viver sem aquilo, mas já era algo que ela
esperava que fosse acontecer.
Mas suas habilidades ligadas à compulsão
continuavam ali. Se ela quisesse, conseguiria controlar
alguém com um olhar. Conseguiria ver na mente de
qualquer um – e até mesmo na mente de um vampiro.
Eles haviam testado com Amon e Daniele.
Aquilo tinha sido inesperado. A única explicação
possível era que a compulsão era algo dela. Era um
poder potencial que já existia antes que fosse
transformada, como os poderes das bruxas. E talvez
aquilo fosse como a imunidade de Yuri: um potencial que
os vampiros faziam questão de caçar e garantir que não
existisse entre os humanos.
— Quando você vai ter algum evento de treinamento
das forças de defesa? — Mel perguntou.
Yuri começou a andar, passando entre os canteiros
que ficavam na parte de trás do casarão. Mel tinha se
acostumado com os jardins do castelo, no Setor Seis,
então ver tantas plantas assim não era estranho. Mas ela
sabia o trabalho que tinham para manter os jardins da
Corte. Ali, no Setor Dez, aquilo parecia simples. As
plantas simplesmente cresciam, como se a terra nunca
houvesse sido afetada pela magia e pelo que quer que
fazia ser difícil manter qualquer coisa viva.
— Daqui a dois dias — ele contou.
Mel assentiu e foi atrás dele. Sua moto estava na
garagem que ficava logo atrás da mansão, que era usada
por todos que passavam mais tempo ali. Dali, o plano era
ir para a cidade. Seu rebanho – porque Mel não
conseguia pensar neles de outro jeito, depois de tanto
tempo – estava em dúvida entre duas casas na cidade e
ela tinha prometido que se encontraria com eles para ver
as duas e tentar ajudar.
— Podemos aproveitar o treinamento para testar o
que você fez quando estava no depósito — ela falou.
Porque se Yuri conseguisse espalhar sua imunidade
como tinha feito e aquilo não tivesse um custo alto para
ele, então o Setor Dez teria a defesa mais forte que era
possível humanos terem. Aquilo, junto com o poder de
Mel...
Não. Não seria tão simples. Se ele conseguisse fazer
aquilo, ninguém poderia saber. Não podiam correr o
menor risco das informações escaparem. Era o mesmo
motivo para estarem tentando esconder a presença de
Melissa ali. O Setor Dez estava se provando forte demais
para um grupo fora do controle das Cortes. Eles tinham
Amon, com sua habilidade que era o pesadelo dos
vampiros. Tinham Raquel, com o poder que ninguém
havia explicado bem, mas que era o motivo para terem
conseguido conter o Setor Oito. Tinham Alana, que
realmente era uma bruxa da natureza e que, mesmo
casada com Lorde Rafael, não ia abandonar o setor.
Se acrescentassem Yuri e Mel naquela lista, seria
uma garantia de que seriam atacados. As Cortes não
aceitariam deixar que se tornassem mais fortes.
Yuri parou ao lado do portão da garagem.
— O que você está pensando? — Ele perguntou.
Ela encarou Yuri. Se analisasse friamente, ele era
apenas mais um humano. A prontidão gelada na forma
como ele se movia chamava atenção, sim, mas ele não
era o único a se mover daquele jeito. Também não era o
único a ter o corpo definido daquele jeito. E o rosto dele
era duro demais para a maioria das pessoas considerar
bonito.
E, por mais que Mel conseguisse se forçar a fazer
uma análise como aquela, ela não conseguia ver Yuri
daquele jeito. Ele era mais. Pelo menos para ela, ele era
tudo. E se aquilo era uma ideia assustadora... Ela
precisava aprender a lidar com aquilo. E a garantir que
ele sempre estaria ali.
— Estou pensando que não é mais uma questão de
fazer as Cortes começarem a respeitar o Setor Dez — ela
falou. — É tarde demais para isso. Vocês já estão fortes
demais.
Ele cruzou os braços.
— É questão de fazer o quê, então?
Mel parou na frente dele e sorriu.
— De fazer as Cortes temerem o Setor Dez. De fazer
imaginarem o preço de um ataque e desistirem porque o
custo não vai valer a pena.
Yuri deu um meio sorriso e soltou os braços.
— E você já tem um plano para isso, também?
Um arrepio atravessou Mel. Quando ele falava
daquele jeito, quase como um desafio, ela sempre tinha
planos – mas não para o que ele estava perguntando.
Ela deu mais um passo na direção dele. Yuri recuou e
parou, com as costas na parede e aquele meio sorriso
ainda no rosto.
— Para isso, ainda não — ela falou. — Mas vou ter.
Porque ela tinha ganhado sua segunda chance. Sua
liberdade, sua humanidade de volta – algo que deveria
ser impossível. E tinha Yuri ali. Então Mel faria o que
precisasse para garantir que não perderia nada daquilo.
Ela tinha Yuri ali, tão perto que ela sentia o calor do
seu corpo, e a sensação do sol nas suas costas.
E só havia uma coisa que Mel queria fazer.
Ela inclinou a cabeça e passou uma unha pelo
pescoço de Yuri. Não importava se ela não tinha mais o
veneno. Mel já sabia que não precisava daquilo. Não
precisava nem dos sentidos de uma vampira para saber
a reação de Yuri ao seu toque. Ela só precisava se
aproximar mais, colar os seus corpos até sentir a ereção
dele.
— Ninguém vai achar estranho se demorarmos a
chegar — ela murmurou. — Não falamos nenhum horário
específico.
Yuri segurou seu pulso quando ela começou a
levantar a blusa dele.
— Não aqui — ele avisou. — Qualquer um indo para
a mansão ou saindo de lá vai ver.
Mel sorriu.
— E você acha mesmo que alguém vai ver alguma
coisa?
Não veriam. Não com Mel espalhando a compulsão
ao redor deles.
Ele sustentou o olhar dela e deu um sorriso lento que
era um convite.
— Nesse caso... — Yuri murmurou e soltou seu pulso.
Para todo mundo que pediu lobos junto com os vampiros:
eu resolvi ser diferentona mas vocês que plantaram a
semente.
UM

Alex encarou a bruxa do outro lado da mesa. Era interessante


como o poder de Raquel influenciava tanto na sua
presença, mesmo que mais ninguém notasse aquilo para
valer. Era só uma daquelas coisas que era e mais nada –
como acontecia vezes demais com tudo ligado ao poder.
Mas não era difícil de notar que, mesmo que já fizesse
bastante tempo que Raquel não parecia esgotada por
causa do que tinha feito, quase seis meses antes, ela
ainda não tinha se recuperado completamente. Mesmo
que ela estivesse impecável, como sempre, com o cabelo
grisalho puxado para trás e usando uma blusa de um
tom dourado apagado, Alex ainda conseguia sentir que
havia algo que não estava ali.
— Você não pediu uma reunião para ficar me
encarando — Raquel falou.
Não. E, por mais que Alex tivesse certeza de que
precisava fazer aquilo, ainda tinha suas dúvidas sobre
onde estava se metendo.
— Não — elu respondeu. — Pedi uma reunião porque
tem coisas demais sem resposta desde antes de eu ter
começado a estudar as coisas da cidade velha e quero
ficar por conta disso.
Porque já fazia cinco meses desde a primeira vez
que Alex tinha ido até a cidade velha oficialmente – com
Gustavo como escolta – e, mesmo que elu não tivesse
encontrado nada que pudesse ser usado como arma, não
tentar entender o que estava ali era burrice. Mexer no
que tinha ficado para trás quando Setor Oito havia
perdido aquela parte do território, cinquenta anos antes,
tinha feito elu perceber coisas demais que não faziam
sentido no que sabia sobre a história da região.
E aquilo sem nem mencionar o fato de que Alex
havia notado Gustavo tentando desviar sua atenção de
uma coisa ou outra várias vezes, tanto naquele primeiro
dia quanto nas outras vezes que ele tinha sido sua
escolta, até Raquel notar quem ele era e decidir mandar
outra pessoa. Elu tinha voltado lá de novo, depois, com
mercenários diferentes, só para ver se mais algum deles
ia tentar desviar sua atenção também. E, obviamente,
tinha feito questão de estudar cada uma das salas que
Gustavo havia tentado evitar.
— Já resolvi tudo na escola para ficar fora por algum
tempo — Alex avisou. — Vou ser mais útil indo atrás de
informações, porque você sabe muito bem que isso não
terminou.
Não tinha como ter terminado. O Setor Dez – o único
setor governado por uma bruxa e controlado por
humanos – havia destruído uma boa parte das forças do
Setor Oito, se aliado ao Setor Três e atrapalhado os
planos de décadas do Cinco e do Seis. Só o fato de não
ter acontecido nada nos meses desde a situação toda
com os carniçais já era o suficiente para Alex ter certeza
de que algo pior estava vindo. Os vampiros não se
esqueciam e não perdoavam humanos que estavam no
seu caminho.
Raquel se inclinou para trás na cadeira e cruzou os
braços.
— Quatro anos atrás você foi bem insistente em
dizer que não queria ser parte do círculo central do Setor
de nenhuma forma — ela falou. — Que não se recusaria a
ajudar quando precisássemos das suas habilidades, mas
que não se envolveria mais que isso.
Alex não respondeu.
Quatro anos antes elu tinha recebido uma proposta
oficial para trabalhar diretamente com Raquel, fazendo
mais ou menos a mesma coisa que estava se propondo a
fazer: verificar qualquer vestígio de poder na região e
estudar sua origem. Considerando que o Setor Dez tinha
sido construído nas ruínas de outro setor e que tinha
acontecido uma guerra ali, aquilo era necessário.
Mas elu tinha recusado – da mesma forma como
tinha recusado a ser parte da força de defesa, bem antes
daquilo. Alex tinha aprendido muito bem que o tipo de
risco envolvido naquelas funções não era para elu. Alex
não sabia lidar com a pressão, com a necessidade de
segredos e, principalmente, com a ideia de que alguém
podia não voltar. Era só se lembrar da merda toda que
tinha feito com Dani para ter certeza de que aquela vida
não era para elu.
Não. Alex não queria nada daquilo. Elu queria a
certeza de que ia chegar em casa, sem precisar se
preocupar com a sua segurança ou com a de qualquer
pessoa com quem estivesse. Queria poder confiar nas
pessoas com quem convivia, sem se preocupar com
quanto podiam saber do que elu estava fazendo. Nada
daquilo era uma opção para alguém envolvido com a
organização do setor.
Mas Alex era a única pessoa ali que conseguia sentir
a presença de poder, tanto em objetos quanto em
pessoas. O que queria dizer que elu era a única pessoa
que notaria o que estava acontecendo. Mesmo que desse
todos os detalhes para Raquel, não seria o suficiente,
porque mais ninguém conseguiria sentir o poder como
elu sentia. Não teriam como identificar o que elu estava
suspeitando.
— O que mudou? — Raquel insistiu.
— Gustavo — Alex contou.
A mesma pessoa que tinha feito elu perceber que
não queria aquela vida.
Raquel levantou uma sobrancelha e esperou.
Alex respirou fundo. Só estava ali porque fazia meses
que estava vigiando Gustavo e não conseguia ignorar
suas suspeitas. Era uma acusação séria, sim, mas não
era uma coisa que elu estava falando sem pensar ou
medir as consequências.
— O que você se lembra sobre a família dele? — Elu
perguntou.
Raquel entrelaçou os dedos e apoiou as mãos na
mesa antes de inclinar a cabeça.
— São sobreviventes do que era o Setor Quatro,
antes — ela falou. — A família dele e mais algumas já
estavam aqui quando chegamos.
Alex assentiu.
— E de todas as outras famílias de sobreviventes do
Setor Quatro, ninguém se envolvia com a família dele —
elu contou.
Raquel se endireitou e fechou os olhos.
Alex cruzou os braços e esperou. Elu tinha precisado
de mais de um mês para se lembrar daquilo e perceber
que havia alguma coisa ali. Quando eram crianças,
sempre que Gustavo e a irmã estavam em algum lugar,
algumas das outras crianças iam embora – eram
chamadas pelos pais, pelo que Alex se lembrava. E na
época, com várias crianças na mesma faixa de idade
correndo pelo setor, de todas as famílias que tinham
vindo com Raquel ou chegado logo no começo do Setor
Dez, aquilo nunca tinha chamado atenção. Mas, se
parasse para se lembrar de quem eram as crianças que
iam embora...
Raquel abriu os olhos e encarou Alex.
— Eu nunca notei isso — ela falou.
Alex assentiu de novo.
— Ninguém tinha motivos para notar.
A menos que estivessem pensando mais do que
deveriam em quem não deveriam e tentando achar
qualquer coisa que explicasse uma mentira como a que
Gustavo tinha contado. Alguma coisa que explicasse ele
ter desaparecido por oito anos e deixado Alex pensar que
estava morto.
Era melhor pensar demais do que ir atrás de
Gustavo. Da primeira vez que tinha sido mandado como
escolta de Alex, ele havia deixado claro que os motivos
para ter desaparecido não importavam. Mesmo que
aquilo tivesse destruído Alex. Não importavam. Então elu
não ia insistir em perguntar e definitivamente não ia ir
atrás de alguém que estava fazendo o possível para lhe
evitar.
Mas pensar demais e ir atrás de respostas tinha
levado a uma coisa pior, porque agora Alex só conseguia
pensar que talvez tudo tivesse sido uma mentira, desde
aquela época. Que na verdade Gustavo nunca tinha sido
um amigo e só estivesse usando elu para se misturar
com os outros e não chamar atenção. E que, no fundo,
Gustavo fosse um risco para o setor.
— O que mais você achou? — Raquel perguntou.
Alex cruzou os braços com força.
— Gustavo sempre teve uma impressão fraca de
poder ao redor dele — elu contou. — Desde quando
éramos crianças. Eu perguntei sobre isso na época e ele
disse que provavelmente era por causa da família dele
ser daqui.
Raquel assentiu devagar, mas não parecia que sabia
o que aquilo queria dizer, também. Bom, porque mesmo
que fosse uma criança na época, Alex estava se culpando
por não ter perguntado mais sobre aquilo.
Mas aquela resposta, de muitos anos antes, era o
que tinha feito Alex ir atrás de entender mais sobre o
Setor Quatro.
— As ruínas perto do Setor Seis — elu começou. —
Por que ninguém foi estudar e analisar o que está lá até
hoje?
Raquel estreitou os olhos.
— Porque aquela vila era do Setor Quatro. Nossa
prioridade sempre foi nos defender dos setores que
existem, então era óbvio que as ruínas do Setor Oito
seriam mais valiosas.
Alex assentiu. Tinha pensado a mesma coisa, no
começo.
Elu atravessou a sala, parou na frente de uma das
estantes e puxou um tubo fino de metal. Raquel não
falou nada enquanto Alex voltava, abria o tubo e
desenrolava um mapa em cima da mesa. As fronteiras
dos setores eram mais que familiares, mas aquele mapa
tinha outras linhas sobrepostas: as fronteiras originais do
Setor Quatro, as fronteiras de depois da guerra e a da
época da criação do Setor Dez.
— O Setor Quatro ficava no centro dessa região —
Alex começou. — E mesmo assim, depois da guerra a
maior parte do território dele ficou sem dono, sendo que
quatro setores poderiam ter tomado a área.
O Oito, o Três, o Cinco e o Seis. Todos faziam
fronteira com o Setor Quatro, na época.
— De acordo com Lorde Rafael, essa área estava
vazia porque nenhum setor queria lidar com o trabalho
que seria fazer isso ser um território produtivo — Raquel
contou. — E o terreno aqui é pior que os outros setores.
Você sabe disso. Até Alana chegar, era quase impossível
manter alguma planta viva.
Alex se lembrava e aquilo só servia para elu pensar
que não fazia sentido ter alguém ali antes. E fazia menos
sentido ainda todos os setores da região estarem ao
redor de uma área que era praticamente improdutível.
Então a única explicação era que aquele território
não era tão improdutível antes.
Alex apontou para a marcação indicando as ruínas
da cidade velha, no mapa – numa parte do território que
tinha sido do Setor Oito, no começo, que depois havia
sido tomada pelo Três e por fim se tornado parte do Dez.
Raquel não falou nada e elu apontou para a marcação da
capital do Setor Seis, perto da fronteira com o Dez.
— São duas cidades importantes, perto demais da
fronteira — elu começou. — E, pelo que sei, essa região e
esses setores foram formados pouco depois das guerras
da magia, quando os vampiros ainda estavam lutando
entre si para ganhar influência. Tivemos alguns conflitos
e temos histórias sobre mais setores que tentaram se
formar nessa região e foram engolidos por outros mas,
de forma geral, estamos em uma das regiões mais
estáveis do mundo.
Porque todos aqueles conflitos – até mesmo os
"desentendimentos" entre os Setores Cinco e Sete, por
causa do rio – não eram nada comparados com o que
acontecia no restante do mundo. Alex tinha ouvido
histórias demais sobre setores inteiros desaparecendo no
meio de um conflito entre Cortes. Mas o mais comum
eram as mudanças dentro das Cortes, e elas sempre
tinham consequências para a população humana, mesmo
que os vampiros tentassem controlar o pior de tudo para
não perderem sua fonte de alimento.
— Onde você está querendo chegar? — Raquel
perguntou.
Alex colocou uma mão em cima do mapa.
— Ninguém sabe o que começou a guerra entre o
Setor Oito e o Setor Quatro. Nós sempre partimos do
princípio de que, por ser o Setor Oito, provavelmente só
queriam aumentar o território. E quando eu falo "nós",
estou falando do pessoal que estuda a história das
Cortes, também. Mas se eles tivessem atacado sem
nenhuma justificativa, só por território, não acha que os
outros setores teriam feito alguma coisa?
Raquel levantou as sobrancelhas e não falou nada.
A pior parte era que fazia sentido pensar aquilo. Alex
conhecia todas as histórias possíveis sobre a guerra e
como o Setor Oito havia usado Amon – o mesmo vampiro
que Dani tinha acordado e que faria qualquer coisa por
ela – para destruir tudo que estivesse no seu caminho.
Era óbvio que os outros setores não interfeririam, para
não se prejudicarem.
Mas aquilo tinha sido antes de Alex perceber que
estava se esquecendo do fato que existia uma hierarquia
entre as Cortes dos vampiros e que sempre havia uma
delas que se colocava como responsável para manter
sua região sob controle. Ali, era o Setor Um. E eles não
tinham feito nada, também.
— E se o Setor Oito teve um bom motivo para atacar
o Quatro do jeito que atacou? — Alex perguntou. —
Porque se eles não queriam território...
Raquel assentiu devagar.
— Então queriam alguma coisa que estava aqui,
como quando nos atacaram por causa de Alana — ela
falou.
— Ou alguma coisa que estava sendo feita aqui —
Alex completou.
— E o que isso tem a ver com Gustavo? — Raquel
perguntou.
Alex respirou fundo. Elu tinha conferido aquilo várias
vezes. Tinha certeza absoluta do que estava falando. Não
tinha motivos para nervosismo.
— O mesmo vestígio de poder que sempre senti ao
redor dele está nessa vila — elu contou. — E Gustavo foi
lá escondido pelo menos duas vezes nos últimos meses.
Provavelmente mais, mas só tenho provas dessas vezes.
Raquel encarou Alex e de repente a impressão de
poder ao seu redor era praticamente a mesma de antes
de Raquel ter destruído os vampiros do Setor Oito.
— Quanto de certeza você tem sobre isso? — Ela
perguntou.
— Certeza absoluta.
Gustavo encarou seu tablet – o que tinha recebido logo depois de
se tornar oficialmente parte do Setor Dez, de novo, e que
era parte do equipamento de todos os mercenários. Mais
cedo, o registro de trabalho estava marcando que ele iria
acompanhar duas pessoas das forças de defesa que iam
passar a noite no Setor Seis. Não era nada demais e era
o tipo de trabalho simples que qualquer mercenário faria.
Além disso, não era como se alguém das forças de
defesa precisasse de escolta ou coisa assim. O pessoal
que passava as noites nos bares do Setor Seis,
recolhendo informações, sabia muito bem o que estava
fazendo. Não precisavam de mais ninguém ali.
Mas ser colocado num dos grupos saindo do setor
era um sinal de confiança. Queria dizer que estavam
começando a pensar em Gustavo como um deles, por
mais que fosse um trabalho simples. Era exatamente o
que ele precisava – por mais que não conseguisse evitar
a sensação incômoda de saber que não deveriam confiar
nele. Gustavo só estava ali porque precisava e faria o
que fosse necessário para ganhar tempo sem precisar ir
embora.
O registro de trabalhos tinha sido atualizado em
algum momento na hora anterior. Gustavo não
reconhecia o nome da mercenária que estava no lugar
que deveria ser dele, mas o importante era que ele não
estava mais com o grupo indo para o Setor Seis.
Era bem possível que não fosse nada demais. Só
uma mudança de rotina, por um motivo ou outro. Talvez
a mulher não fosse uma mercenária e sim das forças de
defesa do setor – o que faria mais sentido ainda. Gustavo
não conhecia todos os mercenários e tinha feito questão
de se manter afastado deles, mas se lembrava do nome
da maioria.
Ele conferiu os registros de novo. Estava escalado
para uma sessão de treinamento com Daniele – uma das
responsáveis pela defesa do setor. E uma vampira. E, se
era uma sessão de treinamento com ela, Gustavo era
capaz de apostar que o outro vampiro do setor estaria lá
também. Amon.
Nos quase seis meses desde que tinha chegado no
Setor Dez, Gustavo estava fazendo o possível para ficar
longe de Amon. Não importava que ele fosse um aliado
deles ou como quer que estivessem chamando a coisa
toda, ele ainda era Amon e Gustavo tinha crescido
ouvindo as histórias sobre o que ele era capaz de fazer.
Ele era a arma que o Setor Oito havia usado para destruir
o Setor Quatro. O monstro que caçava os outros
monstros.
Quanto mais longe ele ficasse, melhor. E um
treinamento não era a melhor forma de fazer aquilo.
Gustavo podia achar alguma justificativa para perder
o treinamento. Não seria estranho se ele não tivesse
visto a mudança nos horários. Mas, se fizesse aquilo,
corria o risco de perder a confiança que tinha
conseguido.
E estar em um treinamento com Amon por perto
seria outro risco. Não era só o que Gustavo sabia que o
vampiro podia fazer. Era o fato de que Amon tinha visto o
que o Setor Quatro fazia, no passado. Ele tinha caçado
aqueles que eram como Gustavo.
Ele encarou o tablet de novo. Cinco e meia da tarde.
Se ia estar no treinamento – e não tinha outra opção
além daquela – era melhor começar a andar.
Não. Ele tinha outra opção, na verdade: ir embora. E
talvez até fosse melhor que ir para aquele treinamento,
porque aí ele teria certeza de que ninguém ia descobrir a
verdade. Gustavo já havia feito o que precisava no Setor
Dez meses antes. Pelo "acordo" que tinha com o
destacamento de mercenários de Silas, já deveria ter ido
embora. Mas ele tinha ganhado tempo dizendo que podia
conseguir informações sobre o setor, coisas que podiam
ser úteis depois.
Tempo, porque Gustavo tinha esperança de
conseguir achar alguma coisa sobre os antídotos que o
Setor Quatro produzia, no passado. Pelas histórias que
haviam sido passadas na sua família, ele tinha certeza de
que ainda existia alguma coisa nas ruínas de antes da
guerra. Sem os antídotos, Gustavo e sua família
continuavam presos aos mercenários, a menos que ele
estivesse disposto a pagar um preço alto demais – e a
colocar o peso daquilo nas costas da sua mãe.
Não. Aquela era sua última opção.
Ele se afastou da praça no centro da cidade e voltou
na direção da área de treinamento, que ficava em uma
parte um pouco menos movimentada da cidade mas não
exatamente afastada. Aquilo era uma das coisas sobre o
Setor Dez que ele achava interessante. Quando tinha ido
embora, oito anos antes, Gustavo ainda era novo o
suficiente para não prestar atenção naquele tipo de
detalhe, mas agora...
A maioria dos setores fazia questão de treinar seu
pessoal o mais afastado possível dos civis. Não
importava se chamavam de forças de defesa, guardas ou
soldados, eles sempre tinham complexos de treinamento
fechados, de acesso restrito. Ninguém via o que estava
sendo feito ali e sempre diziam que aquilo era uma
medida de segurança. Quanto menos alguém de fora
visse o que podiam fazer, melhor – mesmo que o alguém
"de fora" fosse só algum civil.
O Setor Dez não se preocupava com aquilo. Eles
tinham áreas específicas de treinamento e galpões
fechados para treino com armas de tiro, por medida de
segurança, e nada tinha acesso restrito. Gustavo já tinha
visto civis demais assistindo enquanto estava
acontecendo alguma sessão de treinamento, tanto com
as forças de defesa quanto com os mercenários. Menos
de um mês antes, quando Yuri tinha organizado um
treinamento intensivo de resistência que incluía um bom
pedaço de corrida, Gustavo tinha notado a plateia
acompanhando o trajeto. E não tinha sido difícil de
entender o motivo para ter tanta gente ali: no final da
corrida, quase todos que tinham participado estavam
sem blusa.
Para qualquer outro setor por onde ele já tinha
passado, algo daquele tipo nunca seria aceitável. Era um
nível de familiaridade que atrapalharia a disciplina do
pessoal ou algo assim. Mas era um nível de familiaridade
que era o normal do Setor Dez, pelo que Gustavo se
lembrava, e que tinha deixado de parecer normal para
ele, depois de tantos anos.
A área de treinamento – um espaço aberto, com o
chão de cimento e nenhum tipo de cobertura – já estava
começando a encher quando Gustavo chegou. Ele
reconhecia as pessoas das forças de defesa do setor pela
forma como sempre tinham faixas escuras nos braços,
que usavam para prender bainhas de facas. Alguns dos
mercenários tinham começado a usar a mesma coisa,
mas os mercenários se vestiam de forma diferente.
Sempre havia mais couro e metal, porque quando
alguém trabalhava como mercenário a sua imagem
importava, também. Seus clientes precisavam acreditar
que eles eram capazes de fazer o que estavam
prometendo. E, mesmo vivendo no Setor Dez por meio
ano, nenhum dos mercenários tinha perdido aquele
costume.
Gustavo colocou sua mochila no chão. Não ia
precisar dela, já que não ia para o Setor Seis, mas não ia
se dar ao trabalho de voltar para a casa comunitária
onde vivia para guardar suas coisas.
A maioria das pessoas na área de treinamento tinha
se dividido em grupos pequenos, conversando em voz
baixa enquanto faziam seus alongamentos. Se fosse em
qualquer outra situação, Gustavo estaria indo para um
dos grupos. Mas ele não conseguia fazer aquilo sabendo
que qualquer coisa que ouvisse poderia ser útil para os
outros mercenários – e Gustavo entregaria qualquer
informação que tivesse para proteger sua família.
Seis meses. Gustavo mal tinha acreditado quando
ficou sabendo sobre o Setor Dez estar abrindo a fronteira
para mercenários dispostos a trabalhar com eles. Ele
tinha passado quase um ano antes daquilo tentando
encontrar um jeito de voltar para o setor sem chamar
atenção e o convite para mercenários era a oportunidade
perfeita. Mas, quando tinha se oferecido como espião
para Silas, Gustavo não havia pensado que precisaria de
mais que algumas semanas.
Se ele não achasse o antídoto logo, teria que voltar
para o Setor Nove. E não seria só porque ele não teria
motivos para ficar ali sem Silas questionar. Seria porque
não era seguro. Gustavo sabia que seu controle não ia
durar para sempre. Estar ali só estava piorando aquela
sensação dentro dele, como se fosse outra criatura
querendo escapar. Os mercenários pelo menos já sabiam
como fazer para garantir que ele não mataria ninguém se
aquilo acontecesse.
Gustavo sentiu a pele formigar. Aquilo era
exatamente o motivo para ele saber que não podia ficar
ali: a sensação do monstro se agitando dentro dele,
quase como se estivesse sendo chamado. Ele tinha
passado anos aprendendo a se controlar para que aquilo
não acontecesse – e as cicatrizes nos seus braços eram
um lembrete visível daquilo – mas estar ali desfazia tudo,
por causa de uma pessoa.
Gustavo se virou e encarou um ponto do outro lado
da área de treinamento, a direção que alguém tomaria se
estivesse indo na direção da mansão que era a sede do
setor. Uma mulher de cabelo escuro e cacheado tinha
parado uma moto lá e estava conversando com alguém.
Com Alex. Gustavo não precisava ver quem mais
estava lá para ter certeza. Alex era a única pessoa que
fazia ele reagir daquele jeito. Sempre tinha sido. Era
como se tudo de Gustavo fosse atraído para elu, e aquilo
incluía o poder que não deveria existir.
Gustavo engoliu em seco e se forçou a continuar
com o alongamento que estava fazendo. A última pessoa
que ele queria ver era Alex. Elu era o motivo para
Gustavo sempre ter feito questão de passar longe do
Setor Dez. Não queria ter que explicar por que tinha
desaparecido – não podia explicar, sem colocar sua
família em risco. E, mesmo que pudesse, falar qualquer
coisa colocaria Alex em risco.
Não. Ele tinha feito certo quando havia dado as
respostas que garantiriam que Alex não faria a menor
questão de estar perto de Gustavo. Ele quase tinha a
impressão de que elu o evitava, também, e aquilo era
perfeito. Não importava se parecia errado – porque Alex
deveria estar com ele. Era melhor daquele jeito, porque
queria dizer que elu estaria em segurança.
A mulher de cabelo cacheado deu um passo para o
lado. Alex estava rindo de alguma coisa que ela tinha
falado. E Gustavo não tinha o menor direito de se
incomodar com aquilo. Ele não tinha nem motivos para
se incomodar, na verdade, porque aquela mulher era a
parceira de Yuri, pelo que se lembrava.
Mas Alex parecia bem. Mais do que bem, na verdade.
Elu estava usando uma calça jeans escura e reta, com
um cinto um pouco largo, uma camiseta vermelho escura
enfiada para dentro da calça e um colete aberto que
parecia demais com algo que alguém das forças de
defesa usaria, mas nelu não parecia um tipo de
armadura. Era a mesma coisa antes de Gustavo ir
embora: Alex sempre se vestia de um jeito que parecia
casual, mas que era pensado até demais. E era bom ver
que aquilo não tinha mudado.
As maiores diferenças nelu eram o cabelo curto e
uma tatuagem no braço. Oito anos antes, o cabelo de
Alex batia na altura do ombro. Agora, estava quase
raspado, só grande o suficiente para ter um pouco de
textura... E Gustavo odiava que quase conseguia ouvir a
voz de Alex explicando aquilo, mesmo que nunca
tivessem falado nada sobre aquele corte de cabelo.
As três vezes que Gustavo havia ido com Alex para a
cidade velha tinham sido tortura, mas ele nunca diria
aquilo em voz alta. Ficar sem dar nenhum sinal de vida
por oito anos tinha sido uma das coisas mais difíceis que
ele já tinha feito, mas era necessário. Gustavo tinha
ignorado os sinais por tempo demais e quase colocado a
vida de Alex em risco por pura arrogância. Ele sabia
muito bem o que acontecia com as pessoas como ele:
quando perdiam o controle, eram aqueles que mais
importavam para eles que pagavam. Gustavo já tinha
visto isso acontecer uma vez antes, com seu pai, e se
recusava a se tornar aquilo.
Alex olhou na direção de Gustavo e seu sorriso
morreu.
Gustavo se virou e começou a mexer na sua mochila.
Distância. Ele precisava de distância. Não de ficar
encarando Alex. Ele conhecia o preço. Se estivesse em
qualquer outro lugar, já estaria se levantando e indo
embora. Não podia ficar por perto de Alex. Não com sua
pele formigando daquele jeito e uma pressão que ele não
sentia já fazia pelo menos cinco anos começando a
crescer.
Daniele e Amon tinham chegado. Gustavo não
precisava se virar para ter certeza que eles estavam do
outro lado da área de treinamento. Perto de onde Alex
estava. Ele conseguia sentir a presença dos vampiros,
como uma presença quase ácida nos seus sentidos. E por
mais que seus instintos gritassem para fugir dali – para
pegar Alex e fugir – Gustavo sabia que não era um risco.
Era só instinto. A coisa dentro dele, reconhecendo a
presença dos vampiros.
Ele fechou sua mochila com força e a empurrou para
o lado antes de se levantar. Não tinha feito nem metade
do alongamento que gostava, mas não ia conseguir se
concentrar.
A mulher de cabelo cacheado estava falando com
Daniele e Amon, e Alex continuava no mesmo lugar, ao
lado da moto e de braços cruzados. E, agora que Gustavo
estava prestando atenção na moto, ela não era um dos
modelos que normalmente eram liberados para
humanos. Era escura demais e tinha algo que parecia
quase novo nela. Mas Gustavo não ia ficar olhando para
ter certeza.
Se Alex fosse continuar ali o tempo todo durante a
sessão de treinamento, ele ia precisar ir embora. Não
tinha a menor chance de Gustavo conseguir treinar com
dois vampiros e Alex ali. Ele conhecia seu controle e seus
limites. Era melhor correr o risco de desconfiarem dele
do que perder o controle. Na pior das hipóteses, ele daria
um jeito de se justificar para Yuri depois.
O barulho da moto era baixo, mas Gustavo não
conseguia não prestar atenção, sabendo que Alex estava
ali.
Ele se virou. A mulher de cabelo cacheado tinha se
afastado dos vampiros e estava na moto, de novo. E Alex
estava atrás dela.
Bom. Aquilo era bom. Elu não ia ficar ali. Perfeito.
E ainda assim a sensação de estar perdendo algo era
forte demais.
Gustavo fechou as mãos com força e se concentrou
em não ir atrás de Alex quando a moto acelerou e se
afastou.
DOIS

Alex parou no começo das ruínas da vila e esperou. Estava escuro


o suficiente para não dar para ver muita coisa, mas elu
não queria pegar a lanterna antes de saber as primeiras
impressões de Melissa.
A mulher parou ao seu lado com passos quase
silenciosos e não falou nada.
Alex se lembrava muito bem da primeira vez que
tinha visto Melissa, alguns anos antes, no Setor Seis. Não
tinha como não notar Melissa, com seu cabelo cacheado
vermelho-vinho e as combinações de saia e corset que
ela sempre usava. Depois de ter sido transformada em
humana de novo ela tinha pintado o cabelo de preto e
estava sendo mais discreta em como se vestia, para
tentar evitar que alguma das Cortes notasse que ela
ainda estava viva. Para os vampiros, Melissa tinha só
desaparecido depois de tudo aquilo no Setor Cinco. E, por
mais que o "disfarce" dela fosse superficial, Alex sabia o
suficiente sobre os vampiros para não duvidar que fosse
o suficiente, desde que Melissa tomasse cuidado e não
saísse do Setor Dez.
— Eu vim aqui algumas vezes, antes da guerra
estourar — ela contou. — Mas na época não estava
prestando atenção em nada além do que precisava fazer.
Interessante. E aquele era o motivo para Alex ter
chamado Melissa para ir ali. Se fosse só para ter alguma
escolta, elu poderia ter escolhido qualquer pessoa das
forças de defesa. Mas Melissa estava por ali na época da
guerra e Alex tinha a impressão de que a memória dela
seria mais confiável que a de Amon.
— Então essa vila era importante o suficiente para
chamar a atenção do Setor Seis — Alex falou. — Mesmo
que não tenha nada sobre ela no que sobrou da história
do Setor Quatro.
Melissa suspirou e se abaixou. Alex não falou nada
enquanto ela pegava algumas folhas secas no chão e as
deixava cair de novo.
— Por que você quis vir aqui de noite? — Melissa
perguntou.
Alex deu de ombros.
— Já vim aqui durante o dia e não vi nada demais.
Mas o Setor Quatro tinha uma Corte, então talvez...
Ela assentiu.
— É uma possibilidade.
E chegava a ser até irônico que Alex tivesse sido a
pessoa a sugerir ir ali de noite. Elu sempre tinha sido a
pessoa que evitava riscos. Normalmente, estaria falando
que não valia a pena estar ali naquele horário. Qualquer
coisa que estivesse nas ruínas ainda estaria ali durante o
dia, só teriam que procurar com mais cuidado. Mas elu
precisava de respostas. Alex precisava ter certeza sobre
Gustavo e se tudo havia sido mentira, desde que eram
crianças. Elu precisava entender e se o único jeito de
conseguir aquilo era fazer o que sempre tinha evitado...
Não era nem um risco tão grande assim. Podia estar
de noite, mas aquele lugar era perto o suficiente de
várias rotas de segurança. Se tivesse alguma coisa ali
que realmente fosse um risco, alguém teria notado muito
tempo antes.
Ou talvez não. Afinal, Amon tinha passado décadas
preso na cidade velha, dentro do setor, sem ninguém
notar.
Não. Sem ninguém querer notar. Porque Alex tinha
sentido o poder, lá, quando ainda era adolescente. Só
não tinha ido investigar. Não era à toa que havia
apontado aquele lugar para Dani, quando ela tinha
pedido uma possível localização do monstro.
— Já fiz o jogo das perguntas com Amon — Alex
começou. — Por favor não me faça ter que fazer isso de
novo.
Melissa riu, sem se levantar.
— Na época, todas as Cortes vigiavam o Setor
Quatro — ela contou. — Não sei qual era a posição oficial
de Lorde Rafael, mas ninguém confiava no que estava
sendo feito aqui.
— A Corte da Sombra — Alex falou.
Melissa assentiu.
— Da Sombra, porque eles não faziam nada às claras
— ela continuou. — Tudo era às escondidas, mais que o
normal para as Cortes. Eles não tinham alianças. Diziam
que não precisavam de nada daquele tipo e que
nenhuma Corte deveria precisar de alianças. Algo assim
era uma fraqueza e mais nada.
Aquilo era novo. De tudo o que Alex sabia sobre as
Cortes e como os setores haviam sido formados, parecia
que os vampiros sempre haviam tido alianças e
desentendimentos. Era como a política deles funcionava
o tempo todo. Até o Setor Oito, com a fama que tinha de
resolver as coisas na base da força bruta, tinha seus
acordos.
— E ninguém se aproveitou disso para atacar o Setor
Quatro? — Elu perguntou.
Melissa soltou o ar com força e se levantou.
— O Seis tentou, uma vez. Klaus nunca perdoou o
Setor Quatro por terem destruído o pessoal dele e
tomado parte do território do Seis em retaliação.
Alex balançou a cabeça devagar e abriu seu tablet,
deixando a tela com o dobro de tamanho. Elu já tinha
vários mapas da região ali e não demorou a carregar um
que tinha as mesmas marcações das fronteiras mais
velhas que o mapa da sala de Raquel.
Melissa apontou para uma parte do mapa que tinha
sido o Setor Quatro, antes da guerra: uma parte mais
comprida, dividindo o território do Setor Seis.
— Isso foi a vingança do Setor Quatro — ela contou.
— O Seis perdeu essa área e a outra parte do território,
porque o Oito aproveitou a oportunidade de crescer, já
que o Seis não teria como fazer nada.
E tinha devolvido aquela parte do território para o
Seis, depois da guerra? Não parecia algo que o Setor Oito
faria.
Não. Alex não ia ficar se preocupando com detalhes
sobre fronteiras. Aquele não era o motivo para estarem
ali.
— E o que o Setor Quatro fazia? — Elu perguntou.
Melissa apontou para um portão de metal caído. Ele
parecia comum o suficiente: o tipo de portão com grades,
ao invés de uma peça inteira de metal. E no alto dele
tinha um símbolo que Alex não reconhecia.
— A Corte da Sombra fazia experimentos.
Um arrepio atravessou Alex. Aquela palavra nunca
era um bom sinal quando era alguma coisa envolvendo
os vampiros.
E elu se lembrava muito bem daquele vestígio de
poder que sempre sentia vindo de Gustavo, desde
quando eram crianças. E de como ele tinha falado que
era por ser dali. Talvez não fosse só um jeito de desviar
do assunto. Talvez fosse a verdade – e Alex só não sabia
o suficiente antes para entender.
— Que tipo de experimentos?
Melissa se virou para Alex.
— O tipo que criaria armas vivas — ela contou. —
Algo como os carniçais, mas diferente o suficiente para
não correrem o risco de serem punidos.
Porque a criação de carniçais havia sido proibida no
mundo todo. Alex não tinha certeza de como era possível
que os vampiros tivessem algum tipo de lei daquele jeito,
mas tinham. E elu tinha visto os vampiros de fora que
haviam ido para o Setor Cinco, por causa dos carniçais
que tinham sido destruídos. Ainda havia vampiros de
fora, lá – como um voto de não confiança pelo que
haviam feito.
Armas vivas. Ali. Algo como os carniçais – e Alex
tinha visto o resultado dos carniçais enviados para o
Setor Dez. Elu estava longe na hora do ataque, mas tinha
feito questão de ver todas as informações depois. A
criação de carniçais tinha sido proibida porque eles eram
perigosos demais. Eram algo que os vampiros não
conseguiam controlar depois que soltavam. E para os
vampiros pensarem que algo era perigoso demais...
— Por que Amon nunca falou nada? — Elu perguntou.
Melissa deu de ombros.
— Provavelmente porque ele não sabe o que faziam
aqui. Eu só sei porque Klaus me mandou aqui algumas
vezes para conseguir informações, antes da guerra.
Amon não viveu nessa região. Ele chegou aqui com a
guerra começando e só recebia ordens.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar. A pior
parte era que aquilo fazia sentido. Elu tinha se
acostumado a pensar em Amon como uma fonte mais do
que útil de informações sobre os vampiros e as Cortes,
mas talvez devesse ter prestado mais atenção em
Melissa, porque ela estava falando a verdade. Amon
podia ser antigo, mas ele não era dali. O tempo que ele
tinha passado na região, na época da guerra, tinha sido
enquanto estava preso por um juramento de sangue. Ele
não tinha nem tentado entender o que acontecia ali. Só
seguia suas ordens ao pé da letra e mais nada – e às
vezes chamava Melissa para ajudar no caos, pelo que
Alex tinha entendido.
Mas Melissa tinha passado décadas em uma posição
alta dentro da hierarquia do Setor Seis. Se alguém ia ter
informações específicas sobre a região, seria ela. Alex
deveria ter se lembrado daquilo bem antes. Teria sido
muito mais fácil e teria lhe poupado da situação
incômoda de ficar pedindo para repassarem perguntas
para Amon. Alex nunca tinha visto problemas em ter um
vampiro ali, leal a eles – na verdade, achava bem útil –
mas tinha problemas em ficar se encontrando com Dani
se quisesse falar com Amon. Algumas coisas eram
masoquismo demais, e não de um jeito bom.
— Eles conseguiram alguma coisa com as
experiências? — Alex perguntou.
Melissa deu de ombros.
— Nunca vi nenhuma confirmação e quando eu vinha
atrás de informações, tinha algo específico que precisava
descobrir — ela contou. — Nunca era algo completo e eu
não era a única. As informações eram repassadas para
Klaus e ele e seu pessoal de estratégia tiravam o que
queriam delas.
Alex revirou os olhos. Melissa tinha passado tempo
demais entre as Cortes, se não conseguia responder uma
coisa tão simples sem dar voltas ou tentar desconversar.
— E você quer mesmo que eu acredite que você não
tentou juntar essas informações por sua conta ou que viu
alguma coisa depois, na época de todas as histórias
envolvendo você e Amon? — Elu insistiu.
Melissa sorriu.
— Não consegui nada concreto. Mas o Setor Oito não
teria negociado o juramento de Amon se não pensassem
que era vital que tivessem algo como ele aqui.
Era um bom ponto. Todas as histórias envolvendo
Amon concordavam sobre aquilo: o juramento dele era
negociado pelas Cortes que precisavam de uma arma e
ele sempre era mandado de uma parte do mundo para
outra. E não era fácil convencer uma Corte que estivesse
com ele a abrir mão do juramento. O Setor Oito não teria
se dado àquele trabalho todo só para ter uma garantia,
alguma coisa num estilo "por via das dúvidas".
— Quando começaram a levar Amon em eventos em
outros setores, que foi quando nos conhecemos, o
resultado da guerra já era certo — Melissa continuou. —
Ele já tinha praticamente destruído tudo, era só uma
questão de tempo até acabarem com os restos de
resistência. Foi nesse final que estive no Setor Quatro
com ele. E quando vim aqui por ordem de Klaus, foi bem
antes da guerra. Se quiser alguma coisa mais concreta
sobre como as coisas eram no começo, você vai ter que
falar com Amon.
Alex suspirou. Pelo menos elu tinha tentado. E elu ia
ir atrás de Amon para perguntar sobre aquela época,
sim, daquela vez sem nada de mandar perguntas por
alguém. Aquilo era importante demais.
Elu pegou sua lanterna e a acendeu. Os vestígios de
poder ali não eram recentes, mas eram mais fortes do
que deveria ser possível para um lugar que estava
abandonado desde aquela época. Não ia ter ninguém ali,
mas elu não ia ser descuidade.
Alex passou a luz da lanterna pelo portão no chão e
pelas paredes dos lados. Aquela vila não era como a
cidade velha, onde era fácil reconhecer o que cada
construção tinha sido. As coisas estavam caindo aos
pedaços, sim, mas ainda parecia mais uma cidade
abandonada do que uma ruína. Ali não era a mesma
coisa. Se Alex não soubesse de quando as ruínas eram,
diria que eram de séculos atrás, talvez até de antes da
volta da magia, porque era quase impossível reconhecer
alguma estrutura.
Mas aquilo era o normal para o que tinha sobrado do
Setor Quatro. Duas vilas e uma cidade – e aquelas ruínas
eram as mais bem preservadas. O lugar onde era a
capital do setor, antes, agora só parecia uma área de
terreno mais irregular perto da fronteira com o Setor
Seis. E a outra vila já tinha terminado de desaparecer no
meio das plantações. O Setor Oito tinha feito questão de
destruir tudo.
Melissa passou por Alex e foi na direção do portão
caído que tinha apontado antes. Alex foi atrás dela, sem
falar nada. Aquele era exatamente o motivo para ter
chamado Melissa para ir ali.
Ela parou na frente do portão e olhou para os lados
antes de se abaixar.
— Você está vendo? — Melissa perguntou.
Alex balançou a cabeça e apontou a lanterna para
perto de onde a mão da mulher estava. Não tinha nada
ali, a menos que...
Melissa apontou para um lugar um pouco mais na
frente e depois para outro entre as grades do portão. O
chão estava seco, mas não completamente seco. Se Alex
não estava vendo coisas, então o que Melissa estava
apontando eram pegadas.
Nada de novo. Elu já sabia que Gustavo estava indo
ali.
— Você já sabia disso — ela falou.
Alex assentiu.
— Tem uma pessoa vindo aqui e Raquel sabe quem
é.
— Mas você não vai me dizer quem — Melissa
completou.
Elu balançou a cabeça.
— Não vou fazer nenhum tipo de acusação para
ninguém até ter certeza do que está acontecendo.
Era diferente contar para Raquel. Ela precisava
saber, porque era a responsável pelo setor. Mesmo que
Melissa estivesse ali porque tinha informações e podia
ajudar, ela não precisava saber.
— E essa pessoa não é um risco se nos encontrar
aqui? — Melissa perguntou.
Alex respirou fundo. Elu queria dizer que não, que
Gustavo nunca faria nada. Mas isso era o que elu
pensava que sabia sobre Gustavo. Era a memória de
anos antes, o que não queria dizer que era a realidade.
— Acho que não, mas não tenho nenhuma garantia.
Melissa se levantou de novo e bateu a mão na calça,
como se estivesse limpando a poeira.
— Que bom que eu consigo controlar qualquer um
que se aproximar, então — ela falou. — A entrada é por
aqui.
Alex precisou de alguns segundos para processar o
que tinha ouvido. Elu tinha esperado alguma reclamação,
não um "ok, vamos". E com certeza não tinha esperado
que Melissa fosse passar do portão caído, parar ao lado
de uma das paredes e puxar um alçapão.
Elu não tinha visto nem sinal daquilo ali antes.
— Como... — Alex começou.
Melissa olhou para elu e sorriu de um jeito que quase
fazia parecer que ela ainda tinha presas.
— Eu disse que precisei buscar informações aqui.
Não conheço toda a estrutura subterrânea que tinham no
setor, mas conheço a entrada.
Alex encarou o alçapão e o espaço mais escuro no
chão. Tinha uma escada – se é que elu podia chamar os
degraus de metal presos no cimento assim – descendo
até onde elu conseguia ver. E mais nada. Só escuridão.
Elu deu mais um passo na direção do alçapão. Os
cabelos da sua nuca arrepiaram na mesma hora. Poder.
Muito poder. Não era nada novo, mas também não era só
um vestígio. Era aquilo que Alex estava sentindo sempre
que ia ali.
— Vamos? — Melissa chamou.
Descer em uma estrutura subterrânea que ninguém
conhecia, construída por vampiros que faziam
experimentos com humanos, de noite. Era uma péssima
ideia. Era o tipo de coisa que Dani faria, não algo que
Alex ia se arriscar.
Mas elu precisava saber o que estava ali.
E, pensando bem, era exatamente o tipo de coisa
que Alex teria feito, oito anos antes. Quando Gustavo
ainda não tinha desaparecido.
— Vamos.

Alex olhou ao redor. As paredes do corredor onde estava eram


claras, com algumas poucas manchas por causa do
tempo, mas nem parecia que aquele lugar estava fora de
uso havia décadas. Se elu não tivesse tanta certeza de
que ninguém além de Gustavo tinha ido ali em anos,
estaria começando a criar teorias sobre ter pessoas
cuidando daquele lugar.
Elu parou na frente de uma das portas do corredor.
Melissa balançou a cabeça e continuou andando. Era a
mesma coisa que estava acontecendo desde que tinham
descido: ela andando como se soubesse exatamente
para onde estava indo, sem nem esperar Alex com a
lanterna – mas não tão depressa a ponto de se
separarem.
Alex suspirou.
— Onde você está indo?
Melissa parou, alguns passos mais à frente. Alex a
alcançou e girou a lanterna. Estavam em mais uma
divisão de corredores. Elu pegou o tablet e marcou aquilo
no mapa que estava fazendo. Aquele lugar não era só um
corredor com algumas portas e laboratórios, como o
lugar onde Amon tinha ficado preso. Era todo um
complexo, com mais corredores que Alex conseguia se
lembrar e definitivamente mais portas e salas do que
queria contar.
E Melissa tinha atravessado o caminho todo até ali
com a mesma segurança que andaria na cidade do Setor
Dez.
— Tem algo nessa direção — ela contou. — Algum
tipo de consciência.
Alex guardou o tablet, devagar, e puxou uma faca.
Elu estava com sua balestra, mas se tinha alguma coisa
naqueles corredores, elu dificilmente ia ter a chance de
atirar de longe.
E elu deveria ter se lembrado que Melissa podia ter
se tornado humana de novo, mas ela não pensava como
uma humana. Para ela, ter algo consciente ali não era
nada demais, mesmo que pudesse ser uma armadilha.
Melissa olhou de relance para a faca e balançou a
cabeça.
— Não é nada vivo. Se fosse, eu teria avisado. É só...
— Ela falou. — É algo. Tem um começo de consciência ali,
mas não o suficiente para ser senciente.
Alex não guardou a faca de novo. Elu não era bom
em nenhum tipo de combate corpo-a-corpo – nunca tinha
sido. Em teoria, sabia o básico para se virar com uma
faca, mesmo que estivesse muito sem prática. Mas era
melhor estar armade, se Melissa tinha sentido alguma
coisa ali.
Melissa inclinou a cabeça de um jeito que era
parecido demais com como os vampiros se moviam
antes de voltar a andar. Alex a acompanhou.
Uma porta dupla – feita do mesmo tipo de acrílico
que usavam nas janelas da mansão que era a sede do
Setor Dez. E outro corredor, do outro lado. Alex guardou
sua faca e marcou tudo no mapa. Mas o acrílico estava
ajudando a fazer tudo ali encaixar, de alguma forma. Se
a porta tinha sido feita daquele jeito, então era bem
possível que todo o complexo tivesse sido construído
usando materiais de antes da magia. Não que o lugar em
si fosse tão antigo, mas alguém tinha feito questão de ir
atrás de materiais de qualidade muito superior ao
normal, para garantir que o complexo durasse.
Melissa parou na frente de uma das portas no novo
corredor e a empurrou. A porta se abriu sem resistência –
não que aquilo quisesse dizer muita coisa. Pelo que Alex
estava notando sobre a força de Melissa, ela
provavelmente conseguiria abrir aquilo mesmo se a porta
estivesse trancada, e sem nem fazer esforço.
A sala era um aquário.
Alex parou na porta, sem ter certeza do que estava
vendo, mas era exatamente aquilo. Um aquário. As três
paredes da sala eram de acrílico, também, mostrando a
água que chegava quase até o teto.
Não. Um reservatório – porque era só água ali, sem
nenhum sinal de alguma coisa viva.
Se Melissa estava sentindo algum tipo de
consciência, não vinha dali.
— Está na água — ela murmurou.
— O quê?
— A consciência que estou sentindo — Melissa
explicou. — Está na água.
Alex balançou a cabeça devagar e se aproximou de
uma das paredes. Nada. Não importava para onde elu
apontasse a lanterna, não tinha nem nada que parecesse
ser espaço para algum ser vivo se esconder.
— Alex — Melissa chamou.
Elu foi na direção dela, que estava do outro lado da
sala.
Melissa apontou para o alto.
Tinha três canos transparentes saindo do alto do
reservatório. Os três pareciam estar tampados, mas dois
estavam amarelados, como se estivessem sujos de
poeira por dentro. O terceiro não estava exatamente
limpo, mas não estava tão sujo quanto os outros.
— Alguém mexeu nisso aqui — Alex falou.
Melissa assentiu.
A questão era para quê. Se estavam enchendo ou
esvaziando o reservatório... E por que o Setor Quatro
teria construído um reservatório subterrâneo como
aquele. Não tinha nem como dizer que era para guardar
o excesso de água das chuvas ou algo assim, porque
desde a volta da magia chovia muito pouco na região.
Não havia excesso de água das chuvas.
E não adiantava tentar pesquisar. Alex tinha certeza
de que, se existisse qualquer menção ao Setor Quatro
construindo reservatórios, elu se lembraria.
Elu apontou a lanterna para baixo de novo e girou no
lugar devagar, tentando iluminar toda a sala. Nada. Não
tinha nenhum tipo de controle ou terminal, nada que
fosse lhe dar uma pista do que aquilo era.
Gustavo tinha ido ali. Provavelmente tinha sido ele a
controlar o que quer que fosse que tinha acontecido para
limpar o terceiro tubo. Seria coincidência demais se mais
alguém estivesse indo ali na mesma época.
Coincidência ou planos. Alex tinha que pensar no
pior, também. Aquelas ruínas e o complexo subterrâneo
seriam um bom ponto de encontro. E seriam um ótimo
lugar para alguém que queria estar no Setor Dez, mas
não podia ser notado.
De repente, elu não queria mais continuar ali.
— Imagino que você não sabe o que isso é, não é? —
Alex comentou.
Melissa balançou a cabeça.
— Sei que existe algo na água que tem um tipo de
consciência primitiva. E uma forma disso já existia
quando vim aqui, antes da guerra — ela completou. —
Mas nunca tive a oportunidade de tentar descobrir o que
era.
Ela não tinha tido – mas agora o Setor Dez precisava
saber. O que quer que aquilo fosse, era um resto de uma
instalação do Quatro. Não podiam nem destruir aquilo
sem entender o que era, primeiro.
— Você disse que as outras Cortes vigiavam o Setor
Quatro — Alex começou.
Melissa se virou para elu e assentiu, devagar.
— Vigiavam e espionavam — ela respondeu. — E é
bem possível que alguém saiba exatamente o que isso é,
mas as Cortes não vão dar informações para você ou
qualquer outra pessoa do Dez.
Ah, eles dariam, sim. Melissa podia estar se
esquecendo de Alana, que ainda estava no Setor Um,
mas Alex não se esqueceria.
— É melhor a gente ir embora antes de quem estava
mexendo nisso aqui resolver voltar — Alex falou.
Melissa levantou uma sobrancelha mas não discutiu.
Bom. Alex ia voltar ali, com toda certeza. E
provavelmente chamaria Melissa. Mas não queria fazer
aquilo de noite e sem ninguém saber onde estavam.
Primeiro, Raquel e a força de defesa do Setor Dez
precisavam saber sobre aquele complexo subterrâneo.
Depois, elu teria tempo para explorar – porque todo
aquele lugar estava impregnado de poder.
Mas o principal motivo para Alex querer sair dali
depressa era bem mais simples: enquanto estavam no
subterrâneo, elu não tinha sinal para mandar uma
mensagem para Raquel e pedir para ela repassar as
perguntas sobre o reservatório para Alana.

Alana passou os dedos pelas pétalas de uma das rosas, deixando


um pouco do seu poder escapar para ela e para as outras
roseiras em volta. Não dava para ver nada de diferente,
mas Alana conseguia sentir as roseiras mais vivas.
Já fazia tempo que ela ia para aquela parte do jardim
sempre que podia, não importava se era dia ou se era
noite. Era um lugar para esfriar a cabeça, mas também
era um lugar que fazia Alana se lembrar dos pomares do
Setor Dez. Era a mesma sensação de cuidado e atenção
com as plantas, mesmo que não fizesse sentido alguém
ter se preocupado tanto com um jardim. Não quando
fazer algo crescer naquela região era tão complicado.
Então ela estava fazendo sua parte, também. Tinha
quase dois meses que, sempre que ia ali, Alana dava um
pouco do seu poder para as roseiras. Não importava o
que acontecesse quando ela voltasse para o Setor Dez,
elas não iam morrer.
— Você não precisa gastar seu poder com elas —
Lorde Rafael falou.
Alana não se virou. Ela não tinha ouvido ele se
aproximar, o que queria dizer que Lorde Rafael
provavelmente tinha se materializado ali. Ela ainda não
entendia como aquela coisa de se transformar em névoa
funcionava, mas já fazia alguns meses que ele estava
usando aquilo com frequência perto dela. Não tinha sido
assim, no começo. Ele e os outros vampiros da Corte
tinham passado um bom tempo tomando cuidado com o
que faziam onde Alana podia ver. Ela não sabia o que
tinha mudado nos últimos dois meses, mas preferia mil
vezes que continuassem do jeito que estavam agora,
sem aquele cuidado todo do começo.
— Eu sei que não — ela respondeu.
Alana estava fazendo aquilo para ela ter certeza de
que teria as rosas ali, quando voltasse. Não porque
achava que precisava. Aquilo era uma coisa que tinha
ficado clara demais, desde o começo: Lorde Rafael
esperava que ela ajudasse a manter as plantações, mas
não ia depender por completo do poder dela. Ela era um
complemento, uma medida de segurança. Não era algo a
ser usado até que sua energia acabasse, como ela tinha
imaginado que seria quando ele tinha oferecido um
acordo.
Ele colocou uma mão no ombro de Alana e esticou a
outra mão na direção das rosas, também.
E aquilo era outra coisa que tinha mudado nos
últimos meses: a forma como ela estava confortável
perto de Lorde Rafael.
Não tinha como ser outra coisa além de uma
armadilha. Era impossível que ele tivesse ido atrás dela
por um interesse real. Alana tinha aprendido muito bem o
que esperar dos vampiros. Sua avó tinha sido até mais
detalhada do que deveria. E aquilo era um problema,
porque mesmo sabendo que não era real – não tinha
como ser – Alana queria que fosse.
Talvez aquilo só estivesse acontecendo porque ela
tinha passado tempo demais sozinha. Era natural se
apegar a alguém que parecia se importar. Mas Alana não
estava sozinha e suas decisões não afetariam só a ela.
Ela não podia relaxar.
— Por que as rosas? — Ela perguntou.
Lorde Rafael apertou o ombro dela. Alana entendia
que ele queria que ela se virasse, mas ela não ia fazer
aquilo. Não. Se ela não podia se manter distante, pelo
menos não ia dar aquele tipo de proximidade para ele.
O vampiro suspirou, de um jeito que parecia quase
humano demais.
— Pensei que você fosse fazer essa pergunta meses
atrás — ele falou.
Alana deu de ombros. Estava pensando naquilo
desde que tinha visto o jardim pela primeira vez e
percebido como ele era bem cuidado. Algo daquele tipo
exigia tempo e recursos demais. A maioria das pessoas
não se daria ao trabalho para um jardim. E as roseiras,
especificamente, estavam em uma parte dos jardins que
não era pública. Os vampiros da Corte raramente viam
aquilo. Se estivessem nas partes mais visitadas e tudo
mais, até faria sentido como uma demonstração de
poder: Lorde Rafael tinha dinheiro e pessoal o suficiente
para poder "desperdiçar" seus recursos com aquilo sem
se preocupar. Mas, um jardim quase escondido...
— Elas são para me lembrar do que está em jogo
aqui — Lorde Rafael contou. — Como uma forma de não
me esquecer de como era antes, do que aconteceu e do
trabalho que temos para sobreviver.
Alana se virou de uma vez e encarou o vampiro.
Lorde Rafael estava vestido como sempre: de preto, com
as correntes atravessadas na sua roupa e um sobretudo
que parecia uma capa. E ele estava encarando as
roseiras com uma expressão distante que era uma
surpresa. Até parecia que ele estava dizendo a verdade e
aquela não era uma resposta que Alana nunca teria
imaginado.
Ele abaixou a cabeça devagar, até que estava
encarando Alana.
Lorde Rafael nunca tinha parecido tão humano
quanto naquele momento e aquilo era um risco.
Era mentira. Óbvio que era mentira. Era mais uma
das várias formas que ele estava usando para ter mais
de Alana do que o que haviam negociado, só isso.
Alana colocou a mão por cima do seu bolso, sentindo
o celular ali. Ela não tinha se esquecido da mensagem de
Raquel, logo antes de ter descido para os jardins. Não era
muita coisa, só um pedido para tentar conseguir uma
informação específica, mas aquilo queria dizer que
alguém no Setor Dez tinha encontrado algo novo.
— Tenho direito a mais uma pergunta? — Alana
começou.
Porque aquilo tinha se tornado quase uma regra não
falada entre eles: Alana tinha direito a uma pergunta,
todo dia, e Lorde Rafael lhe daria a verdade. Quanto da
verdade, ela não tinha certeza. Mas era o suficiente para
ela juntar migalhas de informações, coisas que podia
levar para o Setor Dez e verificar depois.
O que queria dizer que Alana podia tentar achar
alguma informação perdida no Setor Um... Ou podia ir
direto na fonte e depois tentar descobrir o que realmente
era verdade.
Ele deu um meio sorriso e olhou para Alana.
— Tem direito a quantas quiser.
Era óbvio que a resposta ia ser aquela. E Alana não
confiava – mas ia aproveitar.
— Por que nenhuma das Cortes anexou o território
do Setor Quatro depois da guerra? — Ela perguntou.
Lorde Rafael levantou uma sobrancelha.
Alana deu de ombros. Sabia que ele não estava
esperando aquela pergunta.
— O que sempre ouvi falar foi que ignoraram o
território porque ia ser difícil demais transformar em um
lugar produtivo — ela continuou. — Mas não faz sentido.
Se fosse assim, nenhum dos setores existiria.
Ele balançou a cabeça e olhou para as rosas de novo.
— Nenhuma Corte quis o território do Setor Quatro
porque ninguém queria lidar com a possibilidade de
terem deixado alguma surpresa para trás — Lorde Rafael
contou. — Ninguém sabia exatamente o que a Corte da
Sombra estava fazendo lá, não importava quantos
espiões tivéssemos. Era mais seguro ficarem longe e
esperar.
E aquilo fazia muito mais sentido que qualquer coisa
sobre ser um território improdutivo, além de explicar por
que nunca tinham tido problemas com os outros setores
tentando tomar a área. Não era só porque estavam
esperando o Setor Dez se desfazer sozinho ou falhar. Era
porque não queriam se arriscar.
Lorde Rafael olhou para Alana de novo.
— E por que isso, agora?
Ela deu de ombros de novo.
— Estava pensando nas rosas e no que elas precisam
e me lembrei de ter ouvido isso sobre o território do Dez.
Era uma mentira, mas era perto o suficiente da
verdade. Se lembrar de algo assim por estar pensando
nas rosas era algo fácil demais de acontecer.
— Mas se os vampiros não queriam correr o risco de
ir para o território — Alana falou, devagar. — Então
entregar a área toda para um grupo de humanos era um
jeito fácil de testar isso, não é? Porque nós somos
descartáveis.
Lorde Rafael soltou o ombro de Alana e colocou a
mão no rosto dela – sem segurar, só ali.
— Sim — ele respondeu. — Mas eu não faria a
mesma coisa agora.
TRÊS

Alex olhou ao redor da sala. Se fosse escolha sua, teria pedido


aquela reunião ainda de madrugada, logo que Melissa e
elu tinham voltado para a cidade. Mas as regras eram
claras: a menos que fosse um caso de vida ou morte,
ninguém ia ser acordado. Na época em que namorava
com Dani, Alex amava aquela regra, porque garantia que
ao menos quando Dani estava de folga, ela estava de
folga e não ia ser interrompida por qualquer coisinha que
acontecesse. Agora... Nem tanto.
Se tivesse pedido a reunião de madrugada, estariam
em uma das salas da mansão que eram usadas
exatamente para aquilo. Teriam uma mesa grande,
espaço para todo mundo e garantia de que não tinha
como o assunto sair dali. Agora, de manhã, a reunião
precisava ser na casa de Dani. A casa que Dani dividia
com Amon.
E Alex não estava com ciúmes. Não de verdade. Elu
estava feliz por Dani, sim. Ela tinha encontrado alguém
que encaixava com ela perfeitamente.
Mas não estar com ciúmes não queria dizer que
estar ali fosse confortável. Ou que Alex não estivesse
sentindo uma certa inveja da ex, sim.
A sala estava lotada, óbvio. Dani e Amon estavam
parados encostados na porta que dava para o único
quarto. Raquel, Eduardo e Adriana estavam sentados no
sofá maior, na frente de uma mesa não muito diferente
das que tinham na mansão. Ezequiel estava ao lado da
porta da sala, com aquela postura de quem estava
pronto para atacar qualquer um que tentasse entrar.
Dante estava parade perto de uma das janelas, com Yuri
e Melissa perto da outra. E Alex estava se encostando na
meia parede que separava a sala e a cozinha.
Gente demais, espaço de menos. Se iam fazer
reuniões na sua casa, Dani e Amon deveriam ter se
mudado para um lugar ao menos um pouco maior. Mas
Alex conhecia Dani bem o bastante para ter imaginado
exatamente a reação dela ouvindo qualquer sugestão
daquele tipo. Algo no sentido de que a casa era dela, as
medidas de segurança eram mais que o suficiente – e
Alex não duvidava que fossem – e que se alguém
estivesse achando ruim era só esperar para fazer
qualquer reunião depois que o sol se pusesse.
— Alana confirmou que os vampiros imaginavam que
o Setor Quatro podia ter feito alguma coisa que
prejudicaria o território — Raquel avisou.
Melissa balançou a cabeça com força.
— Isso faz tanto sentido que chega a ser óbvio. É
algo que a Corte da Sombra teria feito — ela falou. — Se
eles tivessem notado que seriam destruídos, fariam de
tudo para levar mais alguém com eles.
— Algo desse tamanho teria que ser feito muito
antes do Setor Oito começar a negociar meu juramento
— Amon completou. — Não seria uma medida
desesperada feita de última hora.
— E não acho que alguma coisa envolvendo
consciência seria feita de última hora, não é? — Alex
interrompeu. — Porque se ninguém nunca ouviu falar de
nada parecido com o que Melissa descreveu até hoje...
Os outros assentiram.
Dani suspirou.
— Acho que o mais fácil vai ser pedir para Alana
tentar descobrir mais alguma coisa — ela falou.
Pelo que Alex conhecia de Alana, ela estaria
procurando mais coisas sobre isso. Alana era curiosa
demais para só pegar uma parte da informação e deixar
para lá. Mas se Dani queria se iludir achando que
precisavam pedir...
— Ela ainda não está te respondendo? — Yuri
perguntou.
Dani mostrou o dedo do meio para ele, que riu. O
que quer que fosse aquilo, Alex não sabia detalhes e pelo
visto não ficaria sabendo.
— Alana vai tentar descobrir mais — Raquel
interrompeu. — E até lá vamos agir como se o
reservatório fosse um risco. Agora, sobre o restante do
complexo subterrâneo...
— Alguma ligação com o Setor Cinco? — Amon
perguntou.
Porque eles tinham achado um complexo
subterrâneo lá, também. Alex não sabia de todos os
detalhes – a coisa toda tinha acontecido enquanto elu
estava analisando as assinaturas de poder na cidade
velha – mas sabia daquela parte. Os carniçais eram
criados e mantidos em um complexo subterrâneo que
Melissa e Yuri tinham encontrado e depois ajudado a
destruir.
— Visualmente, não — Melissa falou. — Os
laboratórios aqui são diferentes do que vi no Setor Cinco.
O que não chegava a ser uma garantia de nada.
— E se aquilo tudo foi construído pelo Setor Quatro,
então é improvável que exista alguma ligação — Melissa
continuou. — Eles não tinham aliados.
Raquel se virou para a outra mulher.
— Como o Setor Quatro sobreviveu por mais de um
século sem ter aliados?
Melissa deu de ombros.
— Sendo mais assustador que o Setor Três é para os
outros setores, hoje — ela falou. — Amon, o que você se
lembra de quando chegou aqui?
Ele balançou a cabeça devagar.
— Nada que seja útil. No começo minhas ordens
eram para não me aproximar dos alvos, só usar meu
poder.
Alex se endireitou. Aquilo era útil.
— O que quer que o Setor Quatro tivesse conseguido
fazer, era perigoso o bastante para não correrem o risco
de deixar Amon se aproximar — elu falou.
Melissa assentiu.
— E também garantia que Amon não veria nada
demais — ela completou. — Se ele fosse levado para
outra Corte depois, não teria nenhum detalhe para
contar.
Amon assentiu, como se aquilo fosse normal.
Alex nunca ia cansar de se sentir agradecide por seu
pai ter encontrado Raquel, antes da criação do Setor Dez,
e ter sido uma das pessoas que a acompanharam desde
o começo. Se não fosse assim, se vivessem em um dos
setores controlados pelos vampiros, era bem possível
que Alex tivesse sido forçade a aceitar a transformação.
O que elu podia fazer não era muita coisa – não como
Alana, ou como o que Melissa fazia. Mas teria sido o
suficiente para chamar a atenção dos vampiros.
Raquel se virou para Alex.
— Você tem certeza sobre Gustavo? — Ela
perguntou.
Elu suspirou.
— Em parte. Tenho provas de que ele esteve nas
ruínas da vila e no complexo subterrâneo. — Alex contou.
— A assinatura de poder que está impregnada nas
paredes do complexo é a mesma que sempre senti vinda
de Gustavo. A única diferença é que nele é só um
vestígio. Mas não tenho como saber que foi ele a usar o
reservatório, nem quando foi que ativaram aquilo.
— Tem sinais da passagem de uma pessoa pelo
complexo subterrâneo — Melissa completou. — Mas não
achei nada que pudesse indicar mais de uma pessoa ali
nos últimos meses. Pelo menos, não perto da entrada.
O que basicamente era a mesma coisa que dizer que
só podia ser Gustavo.
Raquel fechou os olhos e respirou fundo.
Se tinha uma pessoa que Alex não invejava, era ela.
Ter que lidar com tudo o que envolvia o Setor Dez não
era algo simples, não importava quantas pessoas ela
tivesse ao seu redor. E ser a pessoa que precisava tomar
as decisões quando algo como aquilo acontecia... Não.
Aquele era o tipo de papel que Alex definitivamente
nunca iria querer.
— Eu verifiquei as informações quando Gustavo se
apresentou com os outros mercenários — Yuri falou. —
Apesar de ele e a família terem desaparecido do setor,
não tinha nenhuma acusação nem nada que justificasse
negar a entrada dele.
Raquel abriu os olhos e assentiu.
— Eles nunca foram um problema. A família dele e
mais algumas já estavam aqui quando chegamos e
aceitaram ficar sob a minha liderança.
— Eles teriam aceitado qualquer coisa para não
precisar lidar com os vampiros — Ezequiel completou.
Alex se virou para ele depressa. Elu tinha crescido
vendo Ezequiel trabalhar, como o responsável pela
segurança do setor. E, desde sempre, se ele podia não
falar, era o que ia fazer. Ouvir ele oferecendo
informações assim chegava a ser estranho.
Ou, talvez aquilo fosse o normal quando a liderança
do setor estava se reunindo. Era bem possível.
— Vocês chegaram a descobrir do que a garota está
se escondendo? — Yuri perguntou. — Valissa?
Raquel olhou para Dani, que balançou a cabeça.
Valissa... Val. Alex sabia de quem estavam falando: a
garota que Dani tinha levado para o Setor Dez seis
meses antes. Elu só nunca tinha ouvido nada sobre ela
estar se escondendo.
— A única pessoa que conseguiu ganhar um pouco
da confiança de Valissa foi Alana — Dani contou. — Ela
não chegou nem perto de pensar em confiar em nenhum
de nós.
— E Alana vai estar de volta em menos de duas
semanas. Com sorte, ainda vai ter a confiança da garota
— Raquel falou. — Mas o que isso tem a ver com
Gustavo?
Yuri balançou a cabeça devagar.
— Valissa entrou no meu escritório enquanto eu
estava analisando os dados dos mercenários que tinham
se apresentado, antes daquilo tudo. Ela me pediu para
não deixar um mercenário ficar no setor, porque ele ia
fazer alguma coisa.
Alex estreitou os olhos.
— Previsão? — Elu perguntou.
Yuri balançou a cabeça de novo.
— Não pareceu. A impressão que tive foi de que ela
já tinha visto ele antes.
— De novo — Raquel interrompeu. — O que isso tem
a ver com Gustavo?
Yuri se virou para ela.
— Eu mostrei uma foto de Gustavo para Valissa,
depois disso, e perguntei a opinião dela. Ela só sorriu.
Aquilo não queria dizer nada. Talvez até pudesse ser
alguma coisa útil, se soubessem qual era o poder de
Valissa e por que ela estava se escondendo. Mas, sem
mais informações, não valia muita coisa.
— Era para estarmos tendo problemas nas
plantações — Eduardo falou. — Nos preparamos para
lidar com seis meses sem Alana e todas as nossas
estimativas eram de que teríamos começado a ter
dificuldades dois meses atrás. Mas não tem quase
diferença nenhuma.
Raquel olhou para ele.
— Valissa?
Eduardo assentiu.
— Ela passa muito tempo no pomar — ele contou. —
Como o pessoal acostumou a ver ela lá, com Alana,
ninguém nunca questionou.
Ele se virou para Alex, que deu de ombros.
— Não tive motivos para ir no pomar — elu falou.
O que queria dizer que não tinha como saber se
tinha alguma impressão de poder diferente lá. E, mesmo
se tivesse, Alex duvidava que contaria. Ou melhor,
confirmaria o que todo mundo tinha certeza: que Valissa
tinha algum tipo de poder. Mas, se conseguisse
identificar o que ela fazia, não ia falar a menos que fosse
uma questão de vida ou morte. Elu não tinha o direito de
sair entregando os segredos dos outros.
— Então vamos imaginar que Valissa já se encontrou
com Gustavo e o outro mercenário antes — Raquel falou.
— Isso pode ter alguma coisa a ver com o motivo para
ela estar se escondendo ou não. Mas, se ela falou que o
outro mercenário ia fazer alguma coisa, tem grandes
chances de ser algo envolvendo o Setor Dez. Dani, quero
que você tente falar com ela sobre isso.
— Especificamente sobre os mercenários? — Dani
perguntou.
Raquel assentiu.
— Não vou correr o risco de fazer ela se fechar mais
ainda. Nesse ponto Lara estava certa: se elas estão se
escondendo de alguma coisa, o Setor Dez é o lugar mais
seguro. Por mais que eu prefira saber exatamente o que
está acontecendo, não vou colocar uma criança em risco.
E aquele era o motivo para tantas pessoas terem
seguido Raquel desde o começo. Ela não exigia nada que
alguém não estava disposto a dar. Alex conhecia várias
histórias sobre pessoas que haviam tentado organizar
grupos de humanos, exatamente como Raquel tinha
feito. Mas pessoas que estavam dispostas a desafiar os
vampiros para tentar montar um governo próprio tinham
seus motivos para fazer aquilo, o que quase sempre
queria dizer segredos. E, sempre, os grupos se desfaziam
por causa de lideranças que não respeitavam os
segredos e motivos dos outros.
A família de Alex tinha sido assim. Sua mãe tinha o
mesmo poder que elu – de sentir e identificar impressões
de poder. Quando Alex ainda era um bebê, ela tinha sido
chamada para testemunhar em um julgamento. Seu pai
nunca tinha lhe contado se ela sabia que, se
inocentassem a mulher que estava sendo acusada, a
culpa automaticamente seria de um vampiro. Alex
suspeitava que ela soubesse. Tudo o que elu sabia sobre
a mãe era que ela era uma pessoa que não fugia de
escolhas difíceis.
Mas aquela escolha difícil tinha terminado com sua
mãe morta, depois que a outra humana havia sido
inocentada. E seu pai havia preferido fugir com Alex a
correr o risco de que os vampiros começariam a prestar
atenção demais na família.
— E o que vamos fazer sobre Gustavo? — Dante
perguntou. — Porque eu posso não estar ligade
diretamente na força de defesa, mas não acho uma boa
ideia deixar ele como está.
Dani balançou a cabeça.
— Não temos provas de nada para acusar Gustavo e
mandar ele embora — ela começou. — E...
— Ele fica — Raquel e Ezequiel falaram ao mesmo
tempo.
Alex cruzou os braços e sorriu. Fazia anos que não
via eles falando juntos daquele jeito.
— Mandar Gustavo embora sem entender o que está
acontecendo é um risco maior que manter ele aqui —
Ezequiel completou.
— E eu estava tentando ser sensata... — Dani
murmurou.
Alex revirou os olhos e soltou o ar com força. Dani,
tentando ser sensata. Aquilo era pedir o impossível.
Dani começou a falar alguma coisa, mas Amon
colocou a mão no braço dela e ela parou.
Melhor. Alex não sabia se ia ter sido uma resposta
por causa da reação delu – e era bem possível que fosse
– mas aquilo não tinha sido ironia nem provocação. Pelo
menos, não tinha sido a intenção.
— Podemos deixar Gustavo sob vigilância e garantir
que ele não vai ter nenhuma missão afastada — Yuri
falou. — A maioria dos mercenários passa mais tempo na
cidade mesmo, então com sorte isso não vai nem
parecer estranho.
— E quem a gente pode colocar para vigiar ele? —
Dani perguntou. — Nosso pessoal já está espalhado
vigiando as fronteiras. Não temos como tirar alguém...
— Eu posso fazer isso — Melissa falou.
Fazia sentido. Melissa tinha sido uma vampira por
mais de cem anos, mesmo que agora fosse humana. Ela
sabia lutar e ainda tinha o poder de controlar as mentes
das pessoas, mesmo que Alex não tivesse certeza de
quanto daquele poder ainda funcionava. O que elu tinha
certeza era que Melissa não conseguia mais ler a mente
das pessoas com a mesma facilidade que antes. Aquele
poder tinha uma impressão muito específica que estava
bem mais fraca perto da mulher, mesmo que ainda
existisse.
Melissa era uma boa escolha. Alex não ia discutir
com aquilo. Mas não era o suficiente. Não quando
Gustavo tinha sido seu melhor amigo por anos, a pessoa
em quem Alex mais confiava, e agora parecia que tudo
tinha sido uma mentira.
— Nós podemos fazer isso — elu corrigiu.
Raquel se virou para Alex e depois para Melissa,
antes de encarar Alex de novo.
— Não — ela avisou. — Eu quero vocês tentando
descobrir mais sobre esse complexo subterrâneo.

Gustavo encarou seu tablet e os horários nele. Nada. Não tinha


absolutamente nada com o seu nome nos próximos dias.
Algumas sessões de treinamento obrigatórias, porque
Yuri e Daniele ainda estavam tentando fazer os
mercenários funcionarem como uma equipe junto com as
forças de defesa do setor – boa sorte para eles – e mais
nada. Nenhuma das patrulhas de segurança que ele
tinha feito nos últimos dois meses. Nenhum dos
treinamentos específicos que às vezes eram feitos com
os mercenários.
Não. Ele precisava daquilo. As patrulhas e as outras
missões menores eram a única forma que ele tinha de
sair da cidade sem chamar atenção. Gustavo não era
louco de desaparecer no meio de alguma missão, mas
elas queriam dizer que ele podia desaparecer da casa
comunitária em algumas noites e ninguém ia achar
estranho. E, além disso, ele precisava daquilo.
Gustavo tinha pensado que havia controlado o
monstro. Seis anos sem perder o controle, cinco anos
sem nem sentir a pressão do poder, e ele tinha
começado a imaginar que talvez sua mãe estivesse
errada. Ele era da segunda geração, ninguém tinha como
saber como aquilo funcionaria nele, então talvez se
afastar de Alex tivesse sido o suficiente. Talvez ter ido
embora naquela época e o tempo que havia passado
preso, até conseguir ter consciência de novo, tivessem
sido o bastante e nada daquele tipo fosse acontecer de
novo.
Ele estava errado. O monstro não estava sob
controle. Ele só estava dormindo. E estar no Setor Dez,
sentindo a presença de Alex por perto, tinha sido mais
que o suficiente para fazer aquilo acordar.
Gustavo não ia reclamar. Era melhor saber. Ele
sempre tinha considerado aquela possibilidade, por mais
que não quisesse que fosse real, porque nunca tinha
conseguido só esquecer Alex. Era impossível. Seria
impossível mesmo que a coisa dentro dele não existisse.
E agora...
Agora aquilo queria dizer que Gustavo ainda era um
risco. Que seu plano inicial – de achar o antídoto antes de
voltar para o Setor Nove, para poder enfrentar os
mercenários sem correr o risco de perder o controle – era
necessário. Qualquer ilusão que ele tivesse de que não
seria como seu pai havia desaparecido.
O que também significava que ele precisava de um
jeito de gastar sua energia. Era a única forma que
Gustavo conseguia pensar para manter aquilo sob
controle até encontrar o antídoto. E, se ele estava sendo
tirado de qualquer atividade ou missão...
Dez e quinze da manhã. Naquele horário, Yuri
normalmente ia estar no seu escritório na mansão. Bom.
Gustavo começou a andar, sem nem se preocupar
em tentar pegar uma moto. A mansão não ficava longe
da cidade e ele precisava de tempo para esfriar a
cabeça. Mas ele ia conversar com Yuri sobre não ter mais
nada no nome dele. Se ele tinha feito alguma coisa
errada, preferia saber. E se não tivesse feito nada... Os
boatos que Gustavo tinha ouvido diziam que Yuri havia
sido um mercenário. Se aquilo fosse verdade, então ele
entenderia que ficar sem fazer nada era tortura.
Ninguém parou Gustavo quando ele entrou pela
porta lateral da mansão, que ia direto para onde ficava o
escritório de Yuri e mais alguns escritórios que eram de
acesso público. Se ninguém tinha falado nada sobre ele
estar ali, então terem tirado seu nome de tudo não era
porque desconfiavam dele. Não que tivessem algum
motivo para desconfiar, mas...
Não.
Ele respirou fundo, se forçando a relaxar. Ele não ia
nem pensar que estava escondendo alguma coisa. Nada.
Estava ali porque queria trabalho, só.
A porta do escritório estava aberta e Yuri estava
encarando alguma coisa em um monitor com a
expressão irritada que era comum em mercenários que
precisavam lidar com burocracia de qualquer tipo.
— O que foi? — Ele perguntou, sem se virar.
E com a paciência de um mercenário, também. O
que queria dizer que era melhor Gustavo ir direto ao
ponto.
— Vim perguntar sobre a distribuição de missões —
ele começou. — Não tem nada no meu nome pelas
próximas três semanas.
Yuri se virou para ele, com a mesma expressão
irritada.
— Deixei claro desde o começo que não ia dar
garantia nenhuma de que vocês teriam alguma
colocação. Todas as missões são dadas de acordo com o
que pensamos que é viável para os mercenários.
E ser viável era o mesmo que dizer que era de
acordo com quanto confiavam neles. Podiam mudar as
palavras o tanto que quisessem, mas no fim das contas
sempre era aquilo. Era o motivo para Gustavo ter sido
tão cuidadoso desde o começo.
— Pensei que já tinha provado que podiam confiar
em mim — ele falou. — Não foi por isso que me
mandaram como escolta quando Alex estava analisando
as coisas da cidade velha?
Yuri se inclinou para trás na sua cadeira.
Ele tinha sido um mercenário, sim. Só eles tinham
aquele tipo de olhar duro e gelado, de alguém que já
tinha visto mais do que deveria e continuado vivo.
— Te enviamos como escolta porque você já
conhecia a cidade velha — Yuri falou. — E você sabe
disso.
Gustavo sustentou o olhar de Yuri. Ele sabia como
aquilo funcionava. Se ele agisse de forma agressiva,
estaria provando que não merecia a confiança deles.
Poderia até perder seu lugar no Setor Dez. Mas, se não
fizesse nada, ia continuar do mesmo jeito. Sem nada no
seu nome. Nenhuma chance de fazer o que precisava, e
o tempo estava correndo.
— E depois disso vocês me colocaram em equipes de
patrulha — Gustavo insistiu. — Passei meses entre uma
equipe e outra. Mas agora isso desapareceu.
Yuri assentiu.
— Fizemos uma reavaliação do pessoal que temos
disponível.
E ele havia falhado na reavaliação, de alguma forma.
Ou então suspeitavam dele por algum motivo,
mesmo que ele tivesse certeza de que havia sido
cuidadoso.
Sua pele começou a formigar.
Não importava se suspeitavam de alguma coisa. Não
tinham certeza e aquela era a parte importante. Ele só
precisava de um pouco mais de tempo. Só precisava
achar o antídoto e aí o Setor Dez nunca mais o veria.
Talvez vissem sua mãe e sua irmã – porque ele
tentaria convencê-las a voltarem para lá. Era o lugar
mais seguro. Mas não Gustavo. Ele precisaria
desaparecer, pelo menos até chegar a época de verificar
o reservatório, de novo.
Mas se tentassem manter ele na cidade...
O formigamento ficou mais forte e Gustavo se forçou
a respirar fundo. Aquilo era parecido demais com como
ele tinha se sentido mais de oito anos antes, quando
tudo tinha dado errado. Ele precisava se controlar, senão
quem pagaria seria Alex – e depois uma boa parte do
setor, até Amon conseguir alcançá-lo. E então Gustavo
estaria morto e seria sua mãe e Brenda que pagariam,
porque os mercenários as matariam.
— Se fiz alguma coisa para questionarem minha
presença nas equipes de vigilância, prefiro saber — ele
falou. — Assim posso tentar corrigir o que quer que tenha
feito.
Yuri o encarou e Gustavo esperou. Ou ele ia dizer
alguma coisa, ou não. Não tinha mais nada que ele
pudesse fazer.
O responsável pela segurança assentiu devagar.
— Não foi por causa do que você fez nas equipes de
vigilância — Yuri falou. — Foi por causa do que fez na
cidade velha.
Não. Não, depois de meses, não tinha como...
Yuri levantou uma mão.
— Pense bem antes de falar qualquer coisa, Gustavo.
Erros, nós aceitamos. Uma mentira deliberada, não.
Já fazia meses. Por que iam estar questionando
alguma coisa que ele tinha feito na cidade velha?
Na cidade velha – com Alex.
Alex, que conhecia Gustavo bem o suficiente para
notar qualquer coisa diferente.
Alex, que podia sentir impressões de poder.
Gustavo assentiu devagar e saiu do escritório. A
menos que estivesse muito errado, aquilo era o jeito de
Yuri lhe dar uma chance de resolver a situação sem
precisar admitir ou mentir sobre nada. Então ele ia
aproveitar aquela chance, na medida do possível.
Ele não tinha outra opção.
QUATRO

Alex abaixou sua balestra e encarou a flecha no alvo. Não estava


nem perto do centro, mas estava no alvo, e aquilo era o
que importava. Elu nunca tinha sido a melhor pessoa
para atirar. E, considerando que tinha passado anos sem
praticar – seis anos, depois que Gustavo tinha
desaparecido – e só havia voltado nos últimos dois anos,
aquilo nem estava tão ruim.
E elu não ia ficar pensando em por que tinha parado
de praticar e tentado jogar fora tudo que fosse
relacionado a atirar.
Alex respirou fundo e pegou outra flecha.
— Isso é por causa de Gustavo? — Seu pai
perguntou.
Elu suspirou e se virou para trás. Deveria ter notado
que o barulho do martelo no metal tinha parado.
Seu pai estava parado na entrada da parte fechada
do galpão, que tinham convertido em uma área de tiro
quando Alex ainda era adolescente. O resto do galpão
era ocupado pelo equipamento do seu pai – a forja,
restos de metais de vários tipos, uma coleção de
martelos e lixas elétricas, além de coisas de solda e mais
umas tantas coisas que Alex nunca tinha entendido o que
eram ou para que serviam e preferia continuar sem
entender.
— Não — Alex falou.
Era porque elu não conseguia não pensar na
situação toda. Estupidez pura e mais nada. Gustavo tinha
deixado claro de formas demais que qualquer coisa do
passado era só passado. Alex não importava para ele. Se
importasse, Gustavo teria ao menos falado alguma coisa
sobre o que tinha acontecido antes. E não teria feito
questão de evitar Alex desde o começo – porque elu
tinha certeza de que, se não fosse por Gustavo ter se
oferecido como escolta meses atrás, sem saber que era
Alex quem estava indo estudar a cidade velha, elu ia ter
continuado sem saber que seu ex melhor amigo estava
ali.
"Ex melhor amigo". Aquilo soava ridículo até na sua
cabeça – até porque, quando Gustavo tinha
desaparecido, o que tinham já era muito mais que
amizade.
E mais ridículo ainda era continuar pensando
naquilo, mas Alex precisava de um ponto final para
conseguir deixar aquilo tudo de lado de uma vez por
todas. Elu fazia questão de saber exatamente por que
Gustavo tinha desaparecido. E se a verdade fosse pior do
que qualquer coisa que elu tivesse pensado antes... Seria
bom, porque Alex teria mais um motivo para nunca mais
querer nem ouvir o nome de Gustavo.
— Tem certeza? — Seu pai insistiu. — Porque a
última vez que você segurou uma balestra desse jeito foi
quando ele desapareceu.
Alex olhou para baixo. Elu estava apertando a
madeira da balestra com força demais e nem tinha
notado.
E seu pai não estava errado. Tinha sido assim logo
depois de Gustavo desaparecer. Elu tinha ido na casa
dele quando as forças de defesa liberaram, na esperança
de achar alguma coisa que eles não tinham visto. E...
Nada. Só as manchas de sangue no chão e na parede.
Aquilo, depois dos meses com Gustavo distante,
agindo de uma forma que não era normal, como se
estivesse escondendo alguma coisa...
Alex tinha voltado para o galpão do pai, ido para a
área de treinamento, atirado até seu braço estar doendo
tanto que mal conseguia segurar a balestra, e depois
arremessado a arma contra o alvo.
Aquela era a parte sobre elu que a maioria das
pessoas nunca via. Alex podia parecer uma das pessoas
mais calmas do setor, na maior parte do tempo.
Precisava ser, considerando que trabalhava lidando com
adolescentes, na maior parte do tempo. Mas Alex não era
uma pessoa calma. Nunca tinha sido. Só sabia fingir que
era e deixar para explodir ali, onde não teria problemas.
— Ou eu fico aqui atirando, ou vou enfiar um soco na
cara dele — elu admitiu.
Seu pai levantou as sobrancelhas.
— Tem certeza que não prefere fazer isso?
Alex sabia muito bem de quem tinha puxado a forma
como ficava com raiva e não largava aquilo de jeito
nenhum. Tinha sido seu pai quem lhe ensinara sobre usar
alguma coisa para gastar a raiva ao invés de ficar
entrando em confusões, como fazia quando era criança.
Elu balançou a cabeça.
— Ele é um mercenário contratado pelo setor. E eu
sou a pessoa que está investigando as ruínas.
E a pessoa que tinha descoberto o suficiente para
pensar que, o tempo todo, Gustavo era um traidor. Alex
não tinha como pensar outra coisa depois de ter visto
aquele complexo subterrâneo.
— Não vou deixar ele ter o prazer de ver que estou
furiose por causa dele — Alex completou. — E faço
questão de ser o mais profissional possível, porque isso é
um assunto do setor. Não é pessoal.
Até poderia ser, mas Gustavo tinha deixado claro
que não pensava daquele jeito, seis meses antes. Para
ele, tudo o que tinha acontecido no passado era uma
página virada, pelo visto. Não importava mais. Então
Alex seria profissional, sim. Elu trataria Gustavo como se
fosse qualquer outra pessoa. Seria impecavelmente
profissional... Mesmo que precisasse passar muito mais
tempo ali, na sua área de tiro, onde ninguém ia ver nada.
Seu pai cruzou os braços e encarou o alvo antes de
olhar para Alex de novo.
— Ele não falou nada...
Elu balançou a cabeça.
— Nada. Nem sobre antes, nem sobre por que
desapareceu. Na verdade, ele está fazendo questão de
ficar longe desde que chegou no setor.
O que queria dizer que Gustavo só tinha continuado
a ir com Alex para a cidade velha porque era útil para
ele. Da segunda vez que ele tinha aparecido, Alex havia
se iludido pensando que ele estava ali por causa delu. E
tinha sido naquele dia que elu havia notado como
Gustavo estava tomando cuidado para passar direto por
uma construção. E depois como ele tinha tentado
começar uma conversa exatamente quando Alex estava
indo entrar em outra casa.
Ele não tinha sido sua escolta porque queria. O mais
provável era que só tivesse aproveitado aquilo como uma
forma de provar para Yuri e Dani que era confiável e
ganhar mais missões, o que ia querer dizer mais chances
de desaparecer para revirar aquele complexo
subterrâneo.
Seu pai assentiu.
— E ele estar te evitando não é nada novo — ele
falou. — Você comentou disso meses atrás. Então por
que está atirando assim agora?
Porque parecia que Gustavo estava mentindo para
Alex desde muito antes de desaparecer. Que tudo, desde
sempre, tinha sido uma mentira.
Porque parecia que Gustavo era um risco para o
Setor Dez e que ele tinha usado Alex, no passado, para
tentar se misturar e não chamar atenção.
Porque Alex não queria pensar que a pessoa em
quem elu mais tinha confiado na sua vida fosse um
traidor.
Mas elu não podia contar nada daquilo. Por bem ou
por mal, eram assuntos internos da organização do setor.
Alex balançou a cabeça e seu pai suspirou. Pelo
menos ele não ia insistir e era melhor assim. Alex não
queria falar sobre nada daquilo.
Alguém bateu no metal do portão do galpão.
— Seu Joel?
Alex fechou os olhos e respirou fundo. Gustavo. Elu
devia ter imaginado aquela possibilidade depois que a
reunião de mais cedo tinha terminado com a decisão de
tirar Gustavo de qualquer trabalho e mantê-lo sob
vigilância.
— Se você não quiser... — seu pai murmurou.
Elu balançou a cabeça.
— Deixa ele vir.
Porque se Gustavo estava indo atrás de Alex depois
de meses fazendo de tudo para ficar longe, aquilo ia ser
interessante.
Seu pai assentiu e se afastou na direção da entrada
do galpão. Ele ia ficar por perto, com certeza.
Alex guardou a flecha que ainda estava segurando.
Seu pai e Gustavo trocaram algumas palavras rápidas,
baixo demais para elu ouvir, e logo depois a sensação
daquele poder ao redor de Gustavo ficou mais forte, indo
na sua direção.
Interessante. Elu não tinha notado antes, mas a
sensação estava mais forte do que se lembrava. Se antes
era só um vestígio de poder, algo que Alex não notaria se
não prestasse atenção, agora tinha se tornado algo firme
e constante.
— Alex — Gustavo chamou.
Elu se virou para a porta, ainda segurando a
balestra. E aquele era o motivo para ter guardado a
última flecha. Diminuir a tentação e tudo mais, porque
Alex não queria desperdiçar uma flecha com Gustavo.
Gustavo estava parado na entrada da área de tiro e
até aquilo doía. Elu não conseguia não se lembrar de
quando iam ali, anos antes – porque tinha sido Gustavo
quem havia insistido para Alex aprender a atirar.
— O que eu fiz? — Ele começou.
O que ele tinha feito. Muito bom.
Alex conseguia pensar em uma lista.
Elu se afastou e colocou a balestra no suporte na
parede. Tinha pagado caro pela arma, logo depois que
havia voltado a praticar, e seu pai tinha precisado fazer
milagres com os seus contatos para conseguir uma
balestra daquele modelo. Não ia correr o risco de ficar
com ela na mão. Ia ser tentador demais jogar na cabeça
de Gustavo.
Alex se virou. Gustavo ainda estava parado na porta,
sem dar mais nem um passo para dentro da área de tiro,
então elu ia continuar exatamente onde estava. Se
tentasse sair, ia ter que passar perto demais dele.
— Vai ter que ser mais específico que isso — Alex
avisou.
Gustavo passou uma mão pelo cabelo e aquilo era
tão familiar que doía. Era o mesmo gesto de antes,
quando ele não tinha certeza do que fazer.
Mas o que não era como antes era a forma como o
poder ao redor dele tinha ficado mais forte – quase tão
forte quanto o que Alex sentia quando uma bruxa estava
usando seus poderes. Aquilo era novo.
— Você falou alguma coisa — ele começou,
abaixando a mão. — Sobre quando a gente estava na
cidade velha. Depois de meses, você falou alguma coisa
e agora estão me tirando do serviço ativo e nem vão
dizer qual foi o problema!
Alex cruzou os braços. Gustavo conhecia elu bem o
suficiente para entender que aquilo queria dizer que
estava se controlando, também, mas não importava. O
que Alex mais queria era poder falar que se estavam
tirando ele do serviço ativo ou coisa assim era culpa dele
e de mais ninguém. Porque era. Gustavo tinha feito a
merda – mesmo que elu não soubesse exatamente qual a
merda, ainda. Ele que aguentasse.
Na verdade, o que Alex mais queria era enfiar um
soco na cara dele. Mas não ia. Elu se recusava. Aquele
tempo todo, e Gustavo só tinha ido atrás delu porque
tinha sido tirado do serviço ativo. Era só mais um
lembrete de que o passado não importava para ele. E, se
o passado não importava, então ele não ia ver nada de
como Alex estava se sentindo, também.
E aquilo tinha sido rápido demais. Alex sabia que
tinham tirado Gustavo de qualquer trabalho mais
importante desde que elu tinha conversado com Raquel.
A decisão de tirar ele de todo trabalho ativo tinha sido
tomada poucas horas antes, mas tinha sido o suficiente
para Gustavo notar, ir atrás de Yuri perguntar o motivo e
agora estar ali.
Ele não era assim, antes. Quem agia de cabeça
quente era Alex, não Gustavo. Mas era exatamente o que
ele estava fazendo agora: indo atrás delu de cabeça
quente, sem pensar no que estava fazendo ou nas
consequências.
— Você fez questão de tentar desviar minha atenção
de alguns lugares específicos — Alex comentou. — Achou
que eu não ia notar? Ou que não ia voltar lá depois para
saber o que você estava tentando esconder?
Gustavo se endireitou. A impressão de poder ao
redor dele desapareceu de uma vez. Não. Ela ainda
estava ali, só tinha ficado mais fraca. Mais parecida com
como o vestígio que era o que Alex sempre tinha sentido,
antes.
— Se você não entrou em algum lugar enquanto eu
estava como sua escolta... — ele começou.
Alex balançou a cabeça.
— Eu entrei — elu interrompeu. — Só não enquanto
você estava lá. E eu sei que aquelas salas têm a mesma
assinatura de poder que está ao seu redor.
Gustavo não falou nada, mas estava respirando tão
fundo que Alex conseguia ver o movimento do peito dele
subindo e descendo.
E elu definitivamente não ia pensar que Gustavo
agora tinha o corpo de um mercenário. Ele sempre tinha
sido mais atlético que musculoso e aquilo não tinha
mudado completamente. Mas os músculos definidos de
um mercenário estavam ali, visíveis mesmo com a blusa
de mangas compridas que ele estava usando, e aquilo
era novo de um jeito que Alex precisava se forçar a
ignorar. Não importava. Qualquer coisa daquele tipo
tinha desaparecido oito anos antes. Precisava ter
desaparecido.
— A questão agora é se a assinatura de poder está lá
porque você mexeu em alguma coisa naquelas salas, ou
se já estava lá antes — Alex continuou. — E, nesse caso,
vai ser interessante tentar entender que ligação você
tem com a cidade velha.
E com as outras ruínas e o complexo subterrâneo –
mas elu não ia mencionar aquela parte ainda. Se
Gustavo não sabia que tinham entrado lá, então Alex não
ia contar. Pelo menos, não por enquanto.
Gustavo continuou parado no lugar. A impressão de
poder estava ficando mais forte e mais fraca, como
ondas, e Alex nunca tinha sentido nada parecido com
aquilo. Nenhuma das bruxas nunca tinha feito nada
daquele tipo.
Se elu ainda tivesse alguma ilusão de que Gustavo
tinha escondido algo importante antes de desaparecer,
elas teriam sido destruídas.
Ele respirou fundo e soltou o ar devagar antes de
balançar a cabeça.
— Eu sei que você me odeia — ele falou. — Mas
precisa mesmo destruir a minha vida por causa disso?
Alex apertou os próprios braços. Elu não ia responder
o que estava pensando. Não ia se virar, pegar qualquer
coisa pesada que encontrasse e jogar em Gustavo. E
definitivamente não ia avançar e acertar aquele soco
merecido na cara de Gustavo. Ele não ia ter o gosto de
fazer elu perder o controle.
Seria mais fácil se Alex odiasse Gustavo. Se fosse
assim, elu não ia se importar. E não ia doer tanto ouvir
aquilo. Não ia doer pensar que todos os anos antes de
Gustavo desaparecer, a amizade e mais, tudo tinha sido
uma mentira.
— Para começo de conversa, eu não te odeio — Alex
falou. — Odiar é uma palavra forte demais. Não quero
uma coisa desse tipo me prendendo a você.
Não. O que elu queria era só poder se esquecer. Ou
não se importar.
— E sim, eu contei sobre você ter tentado desviar
minha atenção daqueles lugares — elu continuou. — E
contei sobre o que encontrei lá. Só isso.
E sua consciência não ia pesar por estar mentido,
porque não tinha sido só aquilo. Mas Alex não ia dar nada
para Gustavo. Não depois de tudo... Depois de ele ir atrás
delu para acusar Alex.
— Não vai falar nada? — Elu insistiu.
Por um instante, pareceu que Gustavo não ia nem
reagir. Mas ele respirou fundo de novo e balançou a
cabeça devagar.
Covarde.
Oito anos desaparecido – sem poder dar um aviso de
que estava vivo. E agora aquilo, como se tudo fosse
culpa delu.
Não era. Nunca tinha sido. Alex tinha feito o que
podia para tentar ajudar Gustavo. E ainda estava fazendo
o que podia, mas agora era só para proteger o setor.
Gustavo havia feito questão de jogar qualquer resto de
lealdade que Alex sentisse no lixo.
— Então não adianta vir dizer que eu estou
destruindo a sua vida — Alex falou. — Você fez isso
sozinho guardando seus segredos.
Elu passou por Gustavo e saiu do galpão, andando
depressa.
Seu pai estava parado perto da porta, mas Alex só
balançou a cabeça. Não tinha a menor condição de
conversar.

Gustavo continuou encarando o alvo no fim do espaço estreito da


área de tiro. Alex sempre tinha reclamado que não tinha
a melhor mira, mas aquilo era discutível. Acertar o centro
de um alvo estático podia parecer impressionante, mas
na prática não queria dizer muita coisa. Na prática, o
alvo não ia estar parado, em condições ideais, esperando
alguém alinhar um tiro. E, na prática, Alex acertava o que
precisava. Aquilo era o que importava.
Mas aquilo tinha sido quase dez anos atrás. Gustavo
não tinha como saber se Alex estava melhor ou pior – e
era sua culpa.
E, pela expressão de Alex quando tinha saído dali,
era perigoso ele ser usado como alvo.
Gustavo respirou fundo. Não deveria ter ido ali de
cabeça quente. Não que achasse que fazia muita
diferença no que tinha ouvido – Alex falando que não
queria estar prese a ele. Sua pele formigava só por estar
pensando naquilo, porque desde sempre, para Gustavo
sempre tinha sido Alex. Era a pessoa que ele sabia que ia
estar ao seu lado para sempre. Até que não podia estar,
por culpa dele – porque estar perto de Gustavo seria uma
sentença de morte, mesmo que Alex não soubesse.
Era mais que justo que Alex não quisesse nada
daquilo, agora.
Seu Joel entrou no galpão de novo. Gustavo não
queria nem olhar para ele. O pai de Alex sempre o tinha
tratado como parte da família. E, na época, aquilo era
normal e até esperado. Gustavo e Alex podiam nunca ter
tido nenhum tipo de relacionamento "oficial", mas era só
porque não fazia diferença. Não precisavam daquilo. E
tinham tempo. Ou, pelo menos, ele havia pensado que
tinham.
— Gustavo — Seu Joel chamou.
Ele se virou. Gustavo podia ter feito mais merdas do
que queria contar, mas não ia descer ao ponto de ignorar
o pai de Alex – e a pessoa que tinha sido quase um pai
para ele, também.
— Se eu tiver que juntar os pedaços por sua causa
de novo, é bom torcer para eu nunca mais te ver — Seu
Joel avisou.
Juntar os pedaços – porque o desaparecimento de
Gustavo oito anos antes tinha quebrado Alex. E ele sabia
que aquilo ia acontecer. Por mais que tivesse tentado se
iludir, ele sabia. Conhecia Alex e se conhecia. Se a
situação fosse invertida, Gustavo sabia muito bem como
ele teria reagido.
Mas não tinha uma opção melhor. Se não
desaparecesse, teria perdido o controle. Gustavo sabia
daquilo, também. Na verdade, ele tinha perdido o
controle – a diferença era que sua mãe estava esperando
que aquilo acontecesse. Não que aquilo mudasse a culpa
que sentia quando via as cicatrizes da sua irmã.
Se tivesse sido Alex...
Aquele era o motivo para ele ter desaparecido. E
para precisar continuar longe.
— Não vai — Gustavo respondeu.
Ele só não sabia se queria dizer que Seu Joel não ia
precisar juntar os pedaços de novo – ou se não ia ver
Gustavo de novo se precisasse.
Não. Não ia ter pedaços para serem juntados. Alex
tinha deixado aquilo claro: elu não queria nada que lhe
prendesse a Gustavo. E era melhor daquele jeito, por
mais que Gustavo sentisse como se um pedaço dele
estivesse sendo arrancado.
Ele saiu do galpão sem olhar para trás.
Seus planos precisavam mudar. O monstro estava
forte demais, quase forçando sua pele depois daquela
conversa. Mas não fazia diferença. Mesmo se Gustavo
não tivesse ido atrás de Alex, não era mais seguro para
ele. Alex tinha notado uma ligação entre ele e a cidade
velha. O que queria dizer que não ia demorar muito para
notar que o mesmo poder também estava nas outras
ruínas e então...
Mais cedo ou mais tarde, alguém ia descobrir a
verdade. Provavelmente Alex.
Uma parte de Gustavo ainda queria ir atrás de Alex.
Ele conseguia sentir a presença delu, sabia exatamente
em que direção tinha ido. Se contasse tudo para elu, Alex
pensaria em alguma coisa, porque era assim que elu
funcionava. Mas Alex não sabia o que ele era. Não sabia
que havia uma sentença de morte para qualquer um
como ele.
E, se Gustavo fizesse aquilo, estaria colocando a vida
de Alex em risco e provavelmente condenando sua mãe
e sua irmã.
Não. Era hora de ir embora enquanto ele ainda podia
– antes que o custo ficasse alto demais.
Mas ele ainda precisava dos antídotos, então...
Se Gustavo se fechasse no complexo subterrâneo,
depois de ser visto indo na direção da fronteira do setor,
ninguém teria motivos para procurar por ele. Se levasse
comida o suficiente, poderia ter alguns dias tentando
achar o antídoto antes de precisar sair dali de vez.
Não era o melhor planos, mas era o melhor que ele
tinha.
CINCO

Alex encarou o alçapão fechado. Agora que sabia onde ele ficava,
era fácil achá-lo.
— Ainda acho que você devia ter ficado na cidade —
elu falou.
O que quer que estivesse acontecendo, elu achava
melhor ter alguém entre o pessoal o vigiando que não ia
ser o que Gustavo esperava. Melissa, com seus poderes e
aquele resto de força de quando era uma vampira, era a
melhor escolha, já que ainda estava cedo demais para
Dani estar por perto e Amon tinha outras coisas para
resolver.
Melissa deu de ombros, sem sair de onde estava
parada, ao seu lado.
— Dante e Andreia sabem o que estão fazendo — ela
comentou. — E Dante estava precisando de alguma coisa
para tirar elu da pilha de papelada que vocês arrumam.
Talvez. Alex não estava questionando conseguirem
vigiar Gustavo. Aquela era a parte fácil. O que
incomodava era que Gustavo não estava agindo de
acordo com o normal dele. Se estivesse, nunca teria ido
atrás de Alex de cabeça quente. Mas talvez aquilo fosse
o normal de Gustavo, sim. Elu precisava se lembrar que
não conhecia mais a pessoa que tinha sido seu amigo.
Qualquer pessoa de confiança podia vigiar Gustavo.
Alex era a única pessoa que podia identificar poder,
então fazia sentido elu estar ali. E Melissa era a melhor
pessoa para ir com Alex, tanto por ser quem mais sabia
sobre o Setor Quatro e quanto por ser quem teria a
melhor chance de se defender se caíssem em uma
armadilha.
Alex suspirou e foi na direção do alçapão. Da outra
vez, vendo Melissa puxar a tampa de metal, ele tinha
parecido leve. Só impressão, porque Alex precisou fazer
esforço para conseguir abrir.
Elu se virou para Melissa. A mulher sorriu e deu de
ombros.
— Privilégios da idade.
Da idade. Certo. Alex não ia nem responder aquilo.
Elu desceu as escadas. Era pura sorte que não
tivesse achado aquilo quando eram crianças e Alex não
queria nem imaginar o que poderia ter acontecido com
um bando de crianças e adolescentes descendo ali. Na
verdade, eles precisavam de um jeito de garantir que
aquilo não fosse acontecer. Alex não tinha a menor ideia
do que as crianças do setor faziam quando não estavam
na escola – lidar com elas lá já era o suficiente para a sua
paciência – mas era bem provável que sair se enfiando
onde não deveriam ainda fosse uma coisa comum.
Elu chegou no fim da escada e se afastou alguns
passos antes de acender a lanterna. As paredes claras do
corredor não tinham nada de diferente da outra vez que
tinham ido ali e as únicas folhas no chão eram as que
tinham caído quando abriram o alçapão. Nada que
fizesse parecer que mais alguém tinha ido ali.
Não que Alex estivesse duvidando do que Melissa
tinha falado sobre não ter notado sinais de mais
ninguém. E Gustavo não tinha tido tempo de voltar ali.
Mas elu não ia se descuidar.
Melissa pulou de uma vez e parou ao lado de Alex.
— Exibida — elu resmungou.
A mulher deu de ombros.
— Não é tão alto assim.
Não. Só alto o suficiente para ser arriscado para
alguém humano só pular. E agora Alex entendia por que
tinha visto tantos comentários sobre Melissa na
enfermaria, logo depois que ela tinha ido para o Setor
Dez. Ela provavelmente tinha tido alguns problemas até
cair a ficha de que não tinha mais a mesma força de
quando era uma vampira, mesmo que fosse mais forte
que uma humana.
— E o que você está pensando em fazer? — Ela
perguntou. — Porque esse lugar é maior do que parece.
Alex assentiu. Tinham notado aquilo na noite
anterior. Elu ainda estava com o começo daquele mapa
desenhado no seu tablet, com todos os corredores e
passagens por onde tinham ido. Em algum momento, elu
ia precisar mapear o complexo todo. Mas precisaria de
dias para fazer aquilo – e provavelmente de mais
pessoas, também.
Mas tinha outra coisa que podiam fazer.
— Esse lugar está impregnado de poder — Alex
contou. — Quero achar a origem disso ou então o ponto
onde é mais forte.
Melissa se virou devagar e encarou Alex por alguns
segundos antes de assentir. Se Yuri não tinha contado
para ela o que elu podia fazer – e era bem provável que
não tivesse contado, porque era o segredo delu – agora
ela sabia. E Alex não se importava. Melissa podia ter sido
uma vampira por mais de um século e só estar no setor
havia alguns meses, mas ela tinha assumido um risco
gigante ao se tornar humana de novo, por causa de Yuri.
O Setor Dez era o mais perto de uma garantia de
segurança que ela tinha. Melissa não ia contar sobre Alex
para ninguém.
— Você segue o poder, então — Melissa falou. — Eu
garanto que vamos achar o caminho de volta.
Porque aquele lugar era um labirinto e se Alex
ficasse o tempo todo se dividindo entre prestar atenção
no poder e fazer um mapa, nunca sairiam do lugar.
Elu assentiu e se concentrou.
Era estranho estar ali. Normalmente as impressões
de poder eram distantes e raras. Quando era muito
poder em algum lugar, era por algum motivo específico –
como quando Alana trabalhava nas plantações. Alex
sempre sentia aquele poder por dias, depois. Mas até
aquilo era diferente e elu não sabia se era porque
estavam em um lugar fechado, subterrâneo, ou só
porque o poder era diferente.
E aquilo era outra coisa inesperada. Elu tinha
passado anos estudando para conseguir identificar o que
sentia, mas o que estava ali era outro. Era um poder,
sim. Mas não era nada que parecesse vindo dos vampiros
e definitivamente não era nada feito por alguma bruxa.
Antes de Gustavo desaparecer, Alex nunca tinha
prestado atenção naquilo. O vestígio de poder era só
parte dele e ponto. Elu não precisava entender aquilo.
Mas, agora...
— É na direção do reservatório — Alex avisou.
Melissa assentiu e começou a andar. Não precisavam
marcar nada dos corredores naquela parte, o mapa já
estava feito. E, até o reservatório, Melissa sabia muito
bem para onde estava indo. Alex não precisava se
preocupar.
As portas de acrílico se abriram sem a menor
dificuldade e Alex parou, encarando a parede. Elu não
tinha reparado antes, mas as paredes ali eram grossas.
Fazia sentido, para algo subterrâneo. Mas, ao mesmo
tempo....
Elu se aproximou de onde as portas se prendiam na
parede. Parecia que eram camadas de materiais
diferentes ali, como se as paredes tivessem sido
revestidas algumas vezes antes de serem pintadas.
— O que foi? — Melissa perguntou.
Alex balançou a cabeça e fechou as portas de
acrílico. Se aquilo era o que estava pensando, era melhor
prevenir.
— Já vi paredes assim antes, em camadas — elu
contou.
Melissa franziu a testa e se virou para a parede antes
de encarar Alex de novo.
— Isso não é à toa — ela falou.
Alex balançou a cabeça de novo e voltou a andar.
— O lugar onde Amon estava preso foi construído do
mesmo jeito. As camadas e o acrílico.
Elu tinha certeza. Tinha passado tempo demais
pensando em por que usar as camadas na caixa de
cimento onde tinham prendido Amon e depois nas
paredes também, e nunca havia conseguido chegar a
nenhuma conclusão.
Mas a cidade velha tinha sido do Setor Oito, não do
Setor Quatro, como aquele complexo. Então por que
teriam sido construídos do mesmo jeito?
Porque precisavam de uma estrutura forte o
suficiente para conter Amon, óbvio.
Não. Amon tinha sido levado para lá quando a guerra
já estava estourando. Eles não teriam construído aquilo
tão depressa, só por causa de um vampiro. Então aquela
estrutura já existia antes.
E, se o Setor Quatro fazia experiências em humanos,
o mais provável era que o laboratório da cidade velha
tivesse sido onde o Oito mantinha prisioneiros, na época.
Eles precisariam de algo que fosse capaz de conter o que
quer que fossem as criações da Corte da Sombra. O que
era mais uma confirmação de que o complexo
subterrâneo estava ligado aos experimentos do Setor
Quatro, mas aquilo não era nada que não soubessem.
Alex continuou pelo corredor. A sala do reservatório
chegou, mas elu não parou. Tinha uma concentração de
poder ali, sim, mas era pouco se comparada com o que
mais estava no complexo. E, agora que elu estava se
concentrando, conseguia sentir a diferença no poder.
Eram vários fios, misturados e entrelaçados de um jeito
que não deveria ser possível para algo real. Com tudo
emaranhado daquele jeito, o poder deveria ter se
desfeito, porque não tinha como ser funcional. Mas, de
alguma forma, era.
Elu virou em outro corredor e parou na frente de
outra porta de acrílico por um segundo, antes de olhar
para Melissa. A mulher deu de ombros. Nada por perto,
então.
Alex abriu a porta e parou. De alguma forma, aquilo
estava contendo parte do poder, e agora que a porta
tinha sido aberta elu estava sentindo tudo. O que quer
que aquilo fosse, estava perto. Bem perto.
Mas não naquele corredor, por mais que o poder
estivesse tão denso que parecia pesar sua respiração.
Tudo era muito igual, sem um foco que mostrasse onde
tudo tinha começado. Não importava quanto Alex se
concentrasse, era como se estivesse no meio de um mar
de poder. Algo sem fim, vindo de baixo e cercando tudo...
Vindo de baixo.
Elu parou e respirou fundo. Não tinham passado por
nenhum caminho descendo. Na verdade, Alex tinha a
impressão de que o complexo todo estava no mesmo
nível. Pelo menos era o que parecia.
— Você se lembra desse lugar ter andares? — Elu
perguntou.
Melissa balançou a cabeça.
— Nunca consegui ir longe dentro do complexo — ela
contou. — Ele era movimentado e vigiado demais.
Alex suspirou. Seria fácil demais se Melissa tivesse
todas as respostas.
O que queria dizer que elu ia ter que dar um jeito de
sentir alguma coisa através daquele mar de poder
antigo.
— Tem uma passagem aqui em algum lugar — elu
avisou. — Alguma coisa descendo, porque o poder vem
de baixo.
Melissa parou ao seu lado e olhou ao redor. Não que
aquilo fosse adiantar de alguma coisa.
— Onde o poder é mais forte? — Ela perguntou.
Se Alex soubesse, não estaria parade ali.
Elu respirou fundo de novo e se concentrou, sem
responder. Precisava tentar separar os fios de poder que
conseguia sentir para só depois tentar achar de onde
estavam vindo. A pior parte era que Alex não tinha nem
como saber se aquilo era normal ou se havia algo
parecido em algum lugar. Elu não conhecia mais ninguém
com a mesma habilidade de sentir poder.
Elu seguiu pelo corredor – que se abria em outros
dois pouco depois da porta. Alex parou por um instante
antes de virar para a direita e parar de uma vez.
Melissa parou atrás delu.
— Tem alguma coisa aqui — ela murmurou.
Alex assentiu. E se o poder era forte o suficiente
para até Melissa sentir...
Depois. Elu podia pensar naquilo depois.
— O poder vem de algum lugar aqui para baixo —
Alex falou. — Se tiver uma passagem, vai ser aqui.
Melissa assentiu e passou uma mão pela parede,
devagar, antes de se abaixar e fazer a mesma coisa no
chão.
— Às vezes eu sinto falta de poder me transformar
em névoa — ela murmurou.
Alex levantou as sobrancelhas. Elu não fazia ideia de
que Melissa tinha sido capaz de fazer aquilo, antes. Não
chegava a ser um poder incomum entre os vampiros,
mas também não era algo que todos tinham.
E seria útil se ela pudesse só se transformar em
névoa e passar por qualquer espaço minúsculo que
existisse ali.
Melissa enfiou as unhas no chão e puxou. Alex deu
um passo atrás com o som incômodo de metal – parecido
demais com o som de unhas em um quadro. Quando elu
prestou atenção de novo, tinha um alçapão aberto no
chão. E, daquela vez, não tinha nenhuma parede com
degraus.
— Eles tentaram esconder essa parte do complexo —
Melissa falou, sem se levantar. — Se você reparar nas
bordas do alçapão...
Alex se aproximou. Ela estava certa. Tinha algo
colado ali. Se estivesse na cidade, elu ia dizer que era
algum tipo de lacre de silicone, por mais incomuns que
eles fossem. Mas não era exatamente aquilo. A textura
estava errada. E o som do alçapão se abrindo tinha sido
incômodo demais. Se bem que aquilo podia ser só o
barulho da fechadura ou coisa assim.
Elu apontou a lanterna para baixo. O chão não
estava longe.
— Três metros, talvez um pouco menos — Melissa
confirmou.
Um andar. Era bem provável que tivesse algum tipo
de escada para descer ali e só tivessem tirado ela
quando fecharam tudo.
Melissa pulou para baixo. Alex continuou apontando
a lanterna naquela direção enquanto ela se levantava e
olhava para os lados, devagar.
— É melhor você descer — ela murmurou.
Aquilo não era bom.
— Tem como subir depois? — Alex perguntou.
Melissa olhou ao redor devagar de novo e parou.
— Tem uma escada encostada mais para a frente. É
o suficiente para você subir.
Ótimo.
Alex jogou a lanterna para baixo. Melissa a pegou e
se afastou para o lado, sem parar de olhar ao redor. Elu
se sentou na beirada do alçapão e pulou.
Era um laboratório. Não como aquele na cidade
velha, que chamavam assim por falta de um nome
melhor. Ali, onde estavam, era um corredor, também,
mas as paredes eram de vidro. Não. Considerando a
idade, provavelmente eram de acrílico ou algum outro
material mais resistente que vidro. E o que conseguiam
ver...
Salas e mais salas, com equipamentos diferentes. O
chão e o teto eram brancos, assim como as poucas
paredes e colunas no meio do acrílico e o que
provavelmente era o fim daquele espaço. Os
equipamentos nas salas também tinham mais branco do
que deveriam, misturado com metal.
Macas. Várias macas, todas elas com correias que
era óbvio que eram usadas para prender quem fosse
colocado nelas. Tubos altos, alguns abertos e vazios,
outros fechados e com um resto de algum líquido dentro
deles, todos largos o suficiente para caber uma pessoa.
— Experimentos em humanos — Alex murmurou.
Melissa continuava parada no lugar, segurando a
lanterna, e parecia que até ela estava surpresa.
— Não era assim no Setor Cinco? — Elu perguntou.
Porque era a única coisa que Alex tinha conseguido
imaginar quando ela tinha falado de experimentos em
humanos. Elu tinha visto os relatórios sobre o que tinham
achado no Setor Cinco e os carniçais. Faria sentido se
fosse alguma coisa parecida.
Melissa balançou a cabeça.
— Isso é muito pior — ela contou. — Muito mais
organizado e... Profissional.
Porque os vampiros ali queriam fazer algo pior que
os carniçais. E, considerando o poder que Alex conseguia
sentir ali, não duvidava que tivessem conseguido.
— Computadores — elu falou. — Com sorte deve ter
alguma coisa aqui, se tudo foi preservado. E se
conseguirmos alguma amostra de alguma coisa daqui...
Melissa assentiu e passou a lanterna de volta para
Alex antes de começar a andar.

Voltar para a casa comunitária era um risco, mas ninguém tinha


motivos para desconfiar de Gustavo. Ou melhor, não
para imaginar que ele iria desaparecer. Vários
mercenários estavam naquela situação, sem receber
missões ou fazer parte de alguma coisa além dos
treinamentos, e não achavam aquilo ruim. Tinham teto e
comida, do mesmo jeito, por causa do acordo que
haviam feito quando tinham chegado ali.
A pior parte era que Gustavo não podia culpar
ninguém além de si mesmo. Ele tinha tentado desviar a
atenção de Alex quando estavam na cidade velha. Tinha
sido uma reação automática: ele havia reconhecido o
poder naqueles lugares e sabia que Alex não podia entrar
ali. Não podia ligar a guerra que havia destruído o Setor
Quatro com nada relacionado a Gustavo.
E aquele tinha sido o problema. Ele estava lidando
com Alex. Gustavo sabia melhor que ninguém como elu
prestava atenção nas coisas. Alex tinha notado assim
que os primeiros sinais de que ele estava perdendo o
controle apareceram, anos antes, muito antes de
Gustavo notar aquilo – elu só não sabia o suficiente para
entender o que estava acontecendo. Então era mais que
óbvio que elu teria notado suas tentativas de desviar
atenção.
O que queria dizer que, se Gustavo continuasse ali,
Alex ia descobrir mais. Em algum momento, alguém ia
comentar sobre os experimentos, sobre os alterados e
como nenhum deles tinha sobrevivido – nenhum além do
seu pai. E por que nenhum deles podia sobreviver.
Ele não ia dizer que estavam errados. Ter visto seu
pai atacar sua mãe, anos antes, tinha sido mais que o
suficiente para convencê-lo de que eles não deveriam
existir. E a forma como Gustavo havia perdido o controle
e atacado sua irmã só tinha confirmado aquilo, depois.
Se fosse só o reservatório, ele não se importaria em
ser morto. Seriam mais vinte anos ou algo perto disso até
os níveis do poder ficarem perigosos, de novo, e o
reservatório precisar ser parcialmente esvaziado. Com
sorte, até lá alguém descobriria como destruir aquilo de
uma forma segura.
Mas não era só aquilo. Era a vida da sua mãe e de
Brenda – porque a única forma que sua mãe tinha
achado de negociar a segurança de Gustavo tinha sido
se oferecendo como uma garantia de que ele não se
viraria contra os mercenários. Brenda não era nem parte
do acordo, oficialmente, o que só deixava tudo muito
pior.
Gustavo não podia deixar ninguém saber o que ele
era até ter certeza de que sua família estava segura.
Aquela era sua prioridade. O que queria dizer que ele
precisava ir embora antes de ser tarde demais. O risco
de ficar não valia a pena.
E ele não ia ver Alex de novo. Aquilo era uma
certeza, por mais que doesse. Mas Gustavo não podia
correr aquele risco, também.
Sua pele formigou, como se só o pensamento fosse o
suficiente para fazer o monstro se agitar.
Gustavo conferiu sua mochila – um dos modelos
grandes, feitos para viagens e para distribuírem bem o
peso. A maioria dos mercenários ali tinha parado de
manter suas coisas sempre arrumadas, como se fossem
precisar sair a qualquer momento, mas ele não era o
único que ainda fazia aquilo. Era mais seguro.
Mas tinha uma coisa que ele precisava fazer antes
de ir.
Gustavo abriu um dos bolsos escondidos da mochila
e tirou um tablet pequeno de lá. Aquele era o seu tablet,
o que usava para trabalhos e para informações
confidenciais – como os dados que tinha sobre a sua
família. Sua mãe precisava saber que era possível que
seus planos dessem errado. Ela teria que se preparar,
também – porque Gustavo ia tirar ela e Brenda do Setor
Nove, não importava o custo.
Era o pior cenário. O que eles tinham pensado que
conseguiriam evitar, depois daqueles primeiros anos no
Setor Nove.
Não. Ainda não era o pior. Ele tinha comida e água
para alguns dias. Era o tempo que teria para revirar o
complexo subterrâneo e tentar encontrar o antídoto.
Quatro dias, no máximo, antes de precisar voltar para o
Nove. Teria que ser o suficiente.
Ele pegou sua mochila e saiu do quarto. Uma
mercenária tinha acabado de se jogar em um dos sofás
da área comum e levantou uma sobrancelha quando
Gustavo foi na direção da porta, mas não falou nada. Ele
não era amigo de ninguém ali. Não podia se permitir ser.
E agora aquilo era útil, porque ninguém daria falta dele
ou se preocuparia com onde estava indo.
Sem falar nada com ninguém, ele se afastou pelas
ruas da cidade. Ainda tinha uma coisa a fazer antes de
poder desaparecer nas ruínas.
SEIS

Alex encarou as mensagens no seu tablet. Enquanto estavam na


parte de baixo do complexo subterrâneo, não tinham
sinal. Mas, assim que tinham subido de novo – depois de
copiar o máximo que tinham conseguido do único
computador que conseguiram fazer funcionar e de
pegarem alguns frascos cheios de um líquido azul que
estavam em um dos laboratórios – as mensagens tinham
começado a chegar.
Gustavo tinha pegado suas coisas e saído da cidade.
E era óbvio que estava indo na direção das ruínas. Alex
era capaz de apostar que ele estava tentando achar
exatamente o laboratório que Melissa e elu haviam
encontrado. Mas, mesmo se ele descesse, não ia
conseguir achar aquela passagem. Melissa tinha feito
questão de lacrar o alçapão de novo. E agora...
— Consegue travar esse alçapão também? — Alex
perguntou. — Qualquer coisa só para garantir que ele
não vai conseguir entrar no complexo subterrâneo.
Melissa encarou o alçapão por onde tinham subido e
olhou ao redor. Não tinha nada ali que pudessem usar, só
as ruínas da vila.
Ela colocou a mão na parede atrás do alçapão e
empurrou. A parede balançou.
— Se não for um problema precisar pedir ajuda para
tirar isso daqui depois... — Melissa comentou.
Alex assentiu. Era melhor que nada e não tinha nada
que fosse questão de vida ou morte no laboratório.
Podiam "perder" um dia até alguém tirar o entulho de
cima do alçapão.
Melissa contornou a parede, até sumir de vista. Alex
continuou onde estava.
A parede desabou, mostrando Melissa do outro lado.
Como ela tinha feito aquilo não importava – porque agora
havia uma pilha de tijolos e cimento em cima do alçapão.
Melissa saiu de onde estava depressa e voltou para
junto de Alex, na sombra entre duas paredes e fora do
campo de visão de alguém que estivesse vindo da
direção da cidade.
Alex encarou as árvores. Ninguém tinha pedido para
elu lidar com Gustavo. Na verdade, as mensagens só
tinham pedido para elu vigiar o mercenário, porque Yuri
já estava mobilizando pessoal das forças de defesa. Mas
o que tinham pedido não importava. Alex queria um
motivo para tirar as respostas que queria de Gustavo. E,
se ele estava fugindo do setor, elu não precisava se
preocupar tanto em ser profissional.
— O que você quer fazer? — Melissa perguntou, em
voz baixa.
— Ter respostas, por bem ou por mal.
— Alex...
Elu balançou a cabeça. Conhecia Gustavo. Ou
melhor, conhecia quem ele tinha sido. Mas não achava
que ele tinha mudado tanto assim. Alex sabia como lidar
com ele e não estava desarmade. Sua balestra ainda
estava nas suas costas, assim como uma aljava de
flechas presa na sua perna.
Melissa encarou Alex por mais um instante antes de
assentir.
Elu se afastou mais entre as ruínas e parou, antes de
esticar a mão na direção de Melissa.
— Me dê um dos frascos.
Porque Alex estava com a balestra, então a mochila
tinha ficado com a mulher.
Ela tirou um dos frascos cheios de líquido azul e
passou para Alex.
— Espero que você saiba o que está fazendo —
Melissa falou.
Alex assentiu.
— Sei.
E, se Melissa ainda conseguia ler pensamentos, elu
esperava que não estivesse lendo os seus, porque Alex
não tinha como ter certeza de nada. Oito anos antes, elu
teria falado com toda certeza que sabia como Gustavo ia
reagir. Mas aquilo tinha sido antes que ele desaparecesse
e antes de começar a imaginar que tudo, desde sempre,
tinha sido uma mentira.
Mas pelo menos elu tinha certeza de que o que
estava naquele frasco tinha sido feito para interagir de
alguma forma com o poder que sempre estava ao redor
de Gustavo. Não tinha como ignorar a semelhança sutil
que conseguia sentir ali.
Melissa se afastou para o lado, ainda escondida
entre as ruínas. Alex avançou de novo, até conseguir ver
claramente onde estava o alçapão. Ou melhor, a pilha de
entulho em cima dele.
Não demorou muito para Gustavo sair do meio das
árvores mais à frente, andando depressa e com uma das
mochilas enormes que Alex já tinha visto os mercenários
usarem. Andreia estava certa. Ele tinha se preparado
para desaparecer – porque não estava indo embora do
setor. Tinha caminhos mais rápidos para sair do Dez do
que por ali. Não, Gustavo ia descer para o complexo
subterrâneo. E Alex só conseguia pensar que, se ele
estava indo ali aquele tempo todo, era porque estava
procurando alguma coisa.
Gustavo parou, encarando a pilha de rocha, tijolos e
cimento velho em cima de onde o alçapão ficava.
Por um instante, ele não fez nada, só ficou parado no
lugar. E então ele avançou de uma vez, começando a
empurrar os pedaços da parede para o lado. Nenhum
comentário, nenhum xingamento. Gustavo não tinha
nem olhado para os lados para ter certeza de que estava
sozinho. Era como se aquilo ali – o complexo subterrâneo
– fosse a única coisa que importava. E a pior parte era
como Alex não precisava nem se concentrar para sentir
como aquela impressão de poder ao redor de Gustavo
estava forte. Não era normal. Aquilo nunca tinha
acontecido antes. Nem nas vezes que elu tinha notado
algo de diferente, não tinha sido tão forte e tão caótico.
Alex colocou o frasco em cima de um resto de
parede antes de pegar sua balestra e colocar uma flecha
no lugar. Era até interessante que elu tivesse escolhido
aquelas flechas – as que Gustavo tinha ajudado a forjar,
depois de levar algumas lanças que tinha achado em
alguma ruína como uma surpresa para Alex. Era o tipo de
coisa que faziam com mais frequência do que deveriam,
na época, mas agora, depois de ter estado naquelas
ruínas...
E era mais interessante ainda que elu só precisava
de uma mão para atirar com a balestra. Sua mira não ia
ser das melhores, mas podia atirar e era o suficiente.
Elu pegou o frasco de novo e saiu da sombra das
paredes, com a balestra em uma mão e o frasco na
outra.
— Procurando por isso? — Elu perguntou.
Gustavo se virou de uma vez e parou tão depressa
que quase parecia que tinha batido em uma parede
invisível.
— Alex.
Até a voz dele estava diferente, mesmo que Alex não
soubesse descrever a diferença. Era como se houvesse
algo mais ali, uma profundidade que não era natural.
Elu levantou o frasco com o líquido azul. O que quer
que aquilo fosse, tinha uma impressão de poder parecida
demais com a de Gustavo. Não era a mesma coisa, mas
encaixava. Aquilo era a única coisa que elu tinha certeza.
O que quer que estivesse no líquido, tinha sido feito para
interagir com Gustavo. E, considerando como a
impressão de poder ao redor dele estava forte e caótica,
Alex tinha suas suspeitas.
Gustavo encarou o frasco antes de olhar para Alex
de novo. E de volta para o frasco. E para o rosto de Alex.
Era como se a balestra nem estivesse ali ou não fizesse a
menor diferença.
Seu plano tinha sido usar aquilo em troca de
respostas. Se era o que Gustavo estava procurando,
então ia ser uma negociação simples. Mas, com ele
daquele jeito, encarando frasco como se fosse algo
vital...
— Foi você quem bloqueou a entrada — Gustavo
falou.
Alex assentiu.
— Por quê? — Ele perguntou.
Elu podia dar várias respostas. Podia dizer que era
para impedir que Gustavo entrasse. Podia dizer que tinha
sido uma medida de segurança, para o caso de alguma
das crianças achar aquele lugar. Podia dizer que tinha
sido um acidente.
Mas Alex não tinha motivos para responder.
— O que isso é? — Elu perguntou.
Gustavo se endireitou e fechou as mãos com força. O
poder ao redor dele saltou por um instante.
Alex não se lembrava de ter visto ele tão tenso.
Muito pelo contrário: Gustavo sempre tinha sido a pessoa
mais relaxada e sorridente entre todo mundo com quem
conviviam. Se aquilo também tinha sido uma mentira, o
tempo todo, então nada do que Alex se lembrava era
verdade.
— Você não precisa saber — Gustavo falou.
Elu balançou a cabeça. Resposta errada. Por mais
que Alex quisesse respostas porque era Gustavo ali, a
pessoa que tinha sido mais próxima delu, não era só algo
pessoal. Era algo que envolvia todo o setor.
— Ele desabilitou parte do sistema de vigilância
antes de sair da cidade — Melissa falou. — Estão
fechando o perímetro.
O que queria dizer que Yuri ou Dani tinham dado
ordens para conter Gustavo. Não era mais só uma
questão de saber para onde ele estava indo. Pelo
contrato que os mercenários tinham com o Setor Dez,
eles não estavam presos ali. Podiam ir embora quando
quisessem. Mas, se Gustavo tinha desabilitado parte do
sistema de segurança, as coisas tinham mudado. Não era
mais só um mercenário indo embora. Era um mercenário
que tinha colocado o setor em risco. Um traidor e uma
ameaça
Alex sabia muito bem qual era o protocolo para lidar
com uma ameaça ao setor. Gustavo não ia sair dali,
ponto. Não havia outra opção. Ou ia ser levado como
prisioneiro até descobrirem o que ele queria fazer, ou ia
ser executado ali.
Gustavo ainda estava parado, mas agora estava
encarando o lugar de onde a voz de Melissa tinha vindo.
E ele ainda estava tenso daquele jeito estranho, quase
parecendo um vampiro se preparando para atacar e com
o poder saltando ao seu redor de um jeito que estava
dando arrepios em Alex.
— Ele sabe onde você está — elu avisou.
Melissa saiu do meio das ruínas e encarou Gustavo.
Ele sustentou o olhar dela e mais um arrepio atravessou
Alex. O que quer que estivesse acontecendo, não era
simples e não era natural. Mas não importava se elu não
conseguia entender o que estava sentindo: era óbvio que
Gustavo estava calculando suas chances de escapar.
— Você não vai querer tentar passar por mim —
Melissa falou, com uma voz gelada que ainda era
parecida demais com a voz de uma vampira.
Gustavo sorriu e não tinha nada de humano na sua
expressão.
Não. As coisas não iam terminar daquele jeito. Alex
tinha ido ali porque queria respostas e teria suas
respostas.
— Acho que posso deixar isso quebrar, então — elu
falou, balançando o frasco na sua mão.
Gustavo se virou, ainda com aquela expressão que
não era humana. Melissa continuou parada no lugar.
Ótimo. Ao menos Alex podia confiar que ela não ia atacar
sem motivo.
Um arrepio atravessou Alex. Gustavo não era
humano. Não tinha como ser e ainda ter aquele poder. Se
ele fosse um bruxo, elu teria notado muito tempo antes.
Não. Aquilo era algo muito diferente.
Elu se lembrou do lugar onde Amon tinha ficado
preso – a caixa de concreto, com camadas de outros
materiais revestindo tudo. Exatamente como as paredes
do complexo. As mesmas paredes que estavam
impregnadas com um poder parecido demais com o de
Gustavo.
Gustavo, que Alex estava começando a pensar que
era um sobrevivente dos experimentos. Não. Ele tinha
crescido junto com elu. Então... Descendente dos
experimentos, talvez.
— Nós vamos descobrir o que está acontecendo de
um jeito ou de outro — Alex avisou e balançou o frasco
de novo. — Eu estive no laboratório. Você tentar
esconder qualquer coisa agora não vai adiantar nada.
— E muito menos tentar escapar — Melissa
completou.
Ele se virou na direção da mulher e o poder ao seu
redor pulsou de um jeito tão forte que Alex quase recuou.
Gustavo ia tentar escapar.
Alex levantou sua balestra e apontou para ele de
novo. Se realmente precisasse atirar, ia deixar o frasco
cair sem nem parar para pensar, para poder usar as duas
mãos. Mas por enquanto aquilo era o suficiente como
uma ameaça.
— Se tentar escapar, vai ter que passar por mim,
também — elu avisou.
Era uma aposta. O Gustavo de antes nunca faria
nada que colocaria Alex em risco. Podiam ter tido
quantas ideias estúpidas que fossem, enquanto eram
adolescentes, mas sempre estavam juntes. E ele era a
voz do bom senso, naquela época. A pessoa que garantia
que não passassem dos limites e que lhe parava quando
alguma coisa era arriscada demais.
Alex queria acreditar que aquele Gustavo ainda
existia e que ele não atacaria. Que os anos de amizade
tinham significado ao menos o suficiente para fazer ele
hesitar, agora.
Gustavo fechou as mãos com força e virou as costas
para Alex.
E o poder ainda estava pulsando, com força demais,
como se estivesse crescendo. Não fazia sentido. Não era
assim que poder funcionava, nem para as bruxas que
precisavam reunir forças antes de fazer alguma coisa.
Alex olhou para o frasco que estava segurando. Elu
quase conseguia sentir a resposta do poder ali. Talvez...
— Você conhece o protocolo para lidar com traidores
— Alex falou. — E estar fugindo depois de desativar parte
do sistema de segurança te coloca como um traidor.
— O que quer dizer que não tem muita diferença
entre esperar e tentar escapar — ele respondeu. — Ao
menos se tentar escapar vou ter uma chance de
sobreviver.
Talvez. Mas Gustavo não tinha saído do lugar e
aquilo era uma resposta, também.
— Não precisa ser a execução — Alex avisou. — Mas
preciso saber o que está acontecendo, se for pra eu
tentar fazer alguma coisa. Por que você está aqui e o que
estava tentando esconder.
Gustavo abaixou a cabeça e respirou fundo, daquele
jeito que mesmo de costas Alex conseguia ver o
movimento dos ombros dele subindo e descendo.
Elu esperou, sem falar mais nada. A decisão era de
Gustavo. Alex tinha feito o que podia. Agora, ia reagir de
acordo com o que ele escolhesse.
Gustavo se virou devagar. Ele ainda parecia tenso
demais, de um jeito que parecia errado para a pessoa
que sempre tinha sido leve e sorridente. E o poder ainda
estava daquele jeito caótico, como se estivesse a um fio
de escapar do controle dele.
Ele assentiu.
Alex respirou fundo e soltou o ar de uma vez. Era o
suficiente. Elu não ia ter que atirar em Gustavo. Nem
assistir enquanto a força de defesa do setor ia atrás dele.
Não ia ter que ver Gustavo ser morto.
E elu não ia forçar o que tinha conseguido. Gustavo
tinha concordado em dar respostas, mas Alex sabia que
tinha muito mais chances de conseguir alguma coisa se
não tivesse uma plateia.
Elu olhou de relance para Melissa, que ainda estava
encarando Gustavo.
— Avise que é para manterem o perímetro afastado
o suficiente para não nos ouvirem — Alex falou. — E você
também precisa se afastar.
— Alex... — Melissa começou.
Alex balançou a cabeça, encarando Gustavo. Ele
estava fazendo aquilo de olhar delu para o frasco e de
volta para elu de novo.
— Ele não vai me atacar — elu falou. — Ou vai?
Gustavo balançou a cabeça com força.
— Não.
E se aquela resposta tinha soado mais como algo
que ele esperava que não fosse acontecer do que como
uma garantia, Alex não ia falar nada. Elu queria suas
respostas e não estava indefese. Gustavo tinha garantido
que nunca estaria.

A mulher de cabelo cacheado se afastou.

Gustavo não fazia ideia do que ela era, mas não era
humana. O que não fazia sentido, porque ela não era
uma vampira e não era como ele. Mas ela era uma
ameaça.
E se ele estava pensando daquele jeito, era porque o
monstro estava perto demais de assumir o controle.
Alex. De todo mundo que podia ter descoberto
alguma coisa, tinha que ser Alex. Justamente a pessoa
que não podia saber de nada, porque não era seguro.
Alex sempre tinha sido seu ponto fraco.
Ele deveria ter ido embora de uma vez, sem tentar
voltar para as ruínas. Sem o antídoto, aquilo seria uma
garantia de que, quando fosse atrás da sua mãe e da sua
irmã e as tirasse do Setor Nove, Gustavo perderia o
controle. Sua mãe teria que matar, de novo. Mas elas
estariam seguras. Seria um preço justo.
Mas agora era tarde demais. Se tentasse forçar o
perímetro que sabia que tinha se fechado ao redor das
ruínas, Gustavo perderia o controle. Na verdade, ele não
sabia como não tinha perdido o controle, ainda, depois
de ser surpreendido por Alex e perceber que tudo que
tinha planejado estava dando errado. E, quando aquilo
acontecesse, ele seria morto.
Gustavo não tinha coragem de fazer aquilo, sabendo
que Alex teria que assistir. Já era ruim o bastante ter
precisado fugir e deixado elu pensando que estava
morto. Não faria Alex ver aquilo acontecer na sua frente.
Não. Respostas, então. A verdade.
Gustavo podia fazer aquilo. Podia dizer o que
precisava para sair dali vivo, de alguma forma. E ele não
atacaria Alex. Não importava o quanto a coisa dentro
dele estava se forçando contra sua pele, como se
estivesse sendo chamada por Alex.
Alex encarou a direção onde a mulher tinha
desaparecido antes de olhar para ele de novo e suspirar.
— Não faça eu me arrepender — elu falou.
Gustavo balançou a cabeça devagar. Não ia
prometer nada que não podia cumprir, mas...
Elu esticou a mão com o frasco na direção de
Gustavo.
Ele mal teve consciência de avançar e pegar o
frasco, antes de se afastar de novo e o abrir. Gustavo
conhecia aquela cor. Conhecia aquela sensação. Era a
mesma coisa que se lembrava, de quando era criança e
seu pai estava guardando os últimos frascos do antídoto,
se forçando a passar mais e mais tempo sem nada
porque o que tinham estava acabando e não havia como
conseguir mais.
Gustavo abriu o frasco e bebeu tudo de uma vez. A
pressão daquilo dentro dele diminuiu quase na mesma
hora e a sensação de formigamento na sua pele
desapareceu. Ele respirou fundo. Na época, a reação do
seu pai não tinha feito muito sentido. Mas, agora... Ele
entendia.
— Não vai ser o suficiente — Alex falou.
Gustavo se virou para elu de novo e era a primeira
vez desde que havia voltado para o Setor Dez em que
conseguia olhar para Alex sem estar lutando contra a
coisa dentro dele.
— O que não vai ser? — Ele perguntou.
Elu deu de ombros.
— O que quer que isso que você tomou seja, não vai
ser o suficiente — Alex repetiu. — O poder ao seu redor
estabilizou um pouco, mas isso não quer dizer que esteja
estável. O que quer que esteja acontecendo, esse frasco
não vai ser o suficiente.
Gustavo sabia que não seria. Nunca era. O antídoto
só servia para acalmar o monstro por algum tempo.
— Eu sei.
Alex continuou no lugar, olhando para ele. Gustavo
se forçou a continuar parado. Aquela situação... Nada
estava saindo como o esperado. Nada. E ter Alex ali, tão
perto...
— Respostas, Gustavo — elu falou. — Você sabe o
que quero saber. Não me obrigue a ter que fazer uma
lista de perguntas.
Ele sabia. Alex queria explicações. A verdade sobre
ele – sobre por que estava indo no complexo
subterrâneo, por que tinha desaparecido, oito anos
antes, e por que tinha voltado para o Setor Dez.
Gustavo suspirou.
— O que você sabe?
Alex balançou a cabeça.
— Parta do princípio de que não sei de nada.
Porque assim elu ia poder comparar o que ele
contasse com o que já sabia. Era uma das técnicas mais
simples que qualquer mercenário aprendia para o caso
de precisar conseguir informações – mas Gustavo não
tinha imaginado que Alex ia saber daquilo.
Estupidez. Alex sempre tinha sido inteligente. Mesmo
que não fosse oficialmente parte das forças de defesa – e
Gustavo sabia que elu não era – Alex sempre tinha
estudado coisas aleatórias demais, só porque podiam ser
úteis uma hora ou outra.
O que queria dizer que ele não tinha como escapar.
— Quanto de detalhes você quer? — Ele perguntou.
— O suficiente para convencer Yuri e Dani que você
não precisa morrer — Alex falou.
Gustavo deu uma risada seca. Ele não sabia se
aquilo era possível. Na verdade, não sabia nem se
deveria estar vivo.
Mas aquilo queria dizer que ele não precisava entrar
em detalhes, pelo menos.
— O Setor Quatro fazia experiências em humanos —
ele começou. — Queriam criar armas vivas contra as
outras Cortes. E conseguiram, de certa forma, na
geração do meu avô.
Alex assentiu, como se aquilo não fosse nada
demais. Elu provavelmente já tinha descoberto sobre os
experimentos, então.
E Gustavo não ia conseguir contar tudo parado
daquele jeito.
Ele tirou a mochila e a colocou no chão, apoiada na
pilha de entulho em cima do alçapão.
— O Setor Oito começou a atacar o Quatro quando
descobriram que os monstros daqui podiam se reproduzir
e passar pra frente o que tinha sido feito com eles —
Gustavo contou. — Não iam correr o risco de deixar os
monstros da Corte da Sombra saírem de controle. Meu
pai era uma criança na época e ninguém sabia se ele
tinha herdado a alteração ou não, então ele continuou
com a família. E as famílias dos que tinham sido
alterados... Elas fizeram o possível para se preparar para
o que ia vir depois.
Ele encarou Alex. Nada. Nenhum sinal de reação.
Gustavo balançou a cabeça e encarou as paredes da
vila em ruínas antes de se forçar a continuar.
— Quando o monstro assume o controle, não existe
mais nada — ele murmurou. — Só o sangue. E o Setor
Quatro soltou os monstros, quando perceberam que não
iam vencer. Eles não iam deixar nada da sua pesquisa
para o Setor Oito ou as outras Cortes. Quando Amon
atacou o Quatro, ele estava destruindo os monstros. Os
que não tinham lutado entre si e morrido. E, depois, ele
estava terminando com os últimos sobreviventes leais à
Corte.
E aquele era o motivo para sua família sempre ter
sido isolada pelos outros sobreviventes do Setor Quatro:
porque as famílias que sobreviveram – a maioria que
havia fugido e depois voltado para onde viviam antes –
se lembravam do massacre. Dos monstros soltos na
cidade e nas vilas. Eles sabiam o que ele podia se tornar.
— Isso não explica o complexo subterrâneo ou o que
você está fazendo aqui — Alex falou.
Nada. Nenhuma reação. Gustavo só queria ter
alguma indicação de o que Alex estava pensando, se elu
também o veria só como o monstro.
— Existe um tanque no laboratório — ele contou. —
Uma das medidas de segurança do Setor Quatro, para o
caso de serem invadidos. Ele é carregado de poder e se
esse poder não for mantido em um nível específico, vai
explodir pelo setor. Eu não tenho certeza de qual o efeito
disso, mas na época só não mataram meu pai porque
precisavam de uma pessoa capaz de cuidar do tanque.
— Por que seu pai?
Gustavo respirou fundo.
— Porque as alterações que ele herdou e que eu
herdei são o suficiente para fazer o sistema nos
reconhecer — ele explicou. — Pelo menos, foi o que
minha mãe disse. E o poder nos tanques se regenera,
então alguém tem que drenar de tempos em tempos. Foi
por isso que voltei para o Dez.
Era o motivo para ter voltado, mas não para ter
ficado. Aquele...
Alex apontou para o frasco vazio no chão.
— E isso?
Gustavo fechou os olhos.
— Isso é o motivo para eu ter continuado aqui depois
de drenar o tanque. Isso foi feito para permitir que os
alterados continuassem humanos por algum tempo,
desde que continuassem aqui para receber as doses
seguintes. Porque os monstros não seriam úteis se não
pudessem manter o controle de alguma forma.
Alex assentiu e não falou mais nada.
— Foi assim que meu pai conseguiu se manter no
controle por tanto tempo — Gustavo continuou. — Meu
avô tinha roubado ou escondido uma caixa de antídotos,
eu nunca entendi exatamente como. Meu pai tentou
controlar ao máximo quanto do antídoto usava, mas a
caixa acabou quando eu ainda era criança.
Seu pai tinha feito o possível para se manter no
controle. Gustavo se lembrava de ver a tensão dele, de
como ele se afastava e desaparecia no setor por horas
antes de voltar, parecendo um pouco mais calmo. Agora,
ele entendia que seu pai provavelmente tinha matado
algo sempre que saía daquele jeito.
Mas não tinha sido o suficiente. Gustavo tinha visto
exatamente o que acontecia quando o monstro assumia
o controle.
E tinha visto sua mãe matar seu pai – porque se não
fosse assim, toda a família estaria morta e um monstro
estaria caçando no Setor Dez.
Ele não sabia o que sua mãe tinha feito para
esconder o que havia acontecido. Até onde as pessoas do
Setor Dez sabiam, seu pai tinha desaparecido. Era o que
ele tinha falado, na época, porque ninguém podia
suspeitar. E não tinham suspeitado – nem mesmo Alex.
— Seu pai... — Alex começou.
— Morto.
Ele não precisava falar mais que aquilo.
— Foi por isso que fiquei — Gustavo falou, depressa.
— Minha mãe se lembra do que meu avô contou, na
época, e tínhamos algumas coisas anotadas, também. Se
ainda existisse alguma coisa sobre o antídoto, ia estar
aqui. Ou mais dele ou informações sobre como produzir.
E eu preciso dele.
Alex assentiu.
— E quando você e sua família desapareceram...? —
Elu perguntou.
Gustavo encarou a parede caída.
— Eu perdi o controle. Ataquei Brenda.
E, se a lembrança de ter atacado sua irmã era o
suficiente para ele ainda ter pesadelos, não queria
imaginar como tinha sido para sua mãe.
— Achamos melhor ir embora, depois — ele
continuou. — Antes que alguém questionasse como ela
tinha se ferido. E antes que eu perdesse o controle de
vez.
— Que diferença ia fazer estar aqui ou em outro
lugar? Ainda mais considerando que o antídoto estaria
aqui, sair do setor não faz sentido.
Gustavo respirou fundo e fechou os olhos. Não tinha
outro jeito de responder aquela pergunta, e a verdade...
Ele encarou Alex.
— Você — ele falou. — Estar perto de você destrói o
meu controle.
Alex assentiu, completamente impassível. Era como
se ele não tivesse falado nada demais e aquilo doía mais
do que deveria.
Não era para ser assim. Todas as vezes que Gustavo
tinha se imaginado contando a verdade para Alex, nunca
tinha sido nada parecido com aquela situação. Ou com a
distância delu.
Alex olhou para o lado.
— Melissa? — Elu chamou, alto.
A mulher de cabelos cacheados saiu do meio das
árvores. Era óbvio que ela tinha ficado por perto.
— Dê os frascos para ele — Alex falou. — Deixe dois
para o nosso pessoal, só.
A mulher soltou um suspiro alto.
— Yuri está por perto — ela avisou.
Alex assentiu de novo.
— É melhor colocarem Gustavo em uma casa segura
— elu avisou. — Ele não vai tentar escapar, não é?
Gustavo não respondeu.
Alex se virou para ele.
— Ou vai?
Elu estava lhe dando mais do antídoto, sem pedir
nada em troca. Gustavo tinha certeza de que Alex tinha
entendido exatamente o quanto aquilo era valioso para
ele. E, mesmo assim...
— Não vou.
Na verdade, ele não fazia ideia do que ia fazer. Não
quando parecia que tinha conseguido tudo o que queria
quando tinha voltado para o Setor Dez.
Mas, ao mesmo tempo, parecia que ele tinha perdido
muito mais.
Alex começou a andar na direção de onde a mulher –
Melissa – tinha vindo.
— Pronto, então — elu falou. — Vou repassar as
informações para Yuri hoje ainda, mas quero conferir
umas coisas primeiro.
Elu estava indo embora. Simples assim. Alex tinha
encontrado o que Gustavo havia passado meses
tentando achar, lhe dado tudo, e agora estava indo
embora como se não fosse nada demais.
— Alex... — Gustavo chamou.
Elu balançou a cabeça, sem olhar para trás, e
desapareceu entre as árvores ao redor das ruínas ao
mesmo tempo em que Yuri e mais cinco do pessoal de
defesa do setor se aproximavam.
SETE

Alex encarou Raquel. Elu tinha pensado que enviar as informações


para Dani, depois de ter voltado para a cidade, ia ser o
suficiente. Yuri ainda estava cuidando da logística de
manter Gustavo ali – toda a questão de vigilância e de
garantir que ele não ia sair de onde o colocassem. O
Setor Dez não tinha nenhum tipo de lugar necessário
para manter alguém preso daquele jeito. Não era como
funcionavam. E, considerando que Gustavo tinha
admitido que era descendente de um dos
experimentos... Alex não invejava o trabalho de Yuri.
Mas nada daquilo explicava por que Raquel tinha
feito questão de chamar Alex poucas horas depois do
anoitecer.
Elu continuou no lugar enquanto Raquel mexia em
algo no monitor na sua frente. Sua vontade era estar na
área de tiro no galpão do seu pai. Ao menos lá Alex ia
poder gastar sua raiva atirando. Ao invés disso estava ali,
se forçando a se controlar e não mostrar nenhuma
reação sobre aquilo tudo. Profissionalismo. Só isso. Alex
não precisava deixar ninguém ver o tanto que o que
Gustavo havia falado tinha lhe machucado.
Raquel bateu a mão na mesa de leve e suspirou
antes de levantar a cabeça.
— Primeiro, preciso saber até onde você vai se
envolver, Alex — ela começou. — Você já descobriu o que
precisava sobre Gustavo. Pode voltar para a escola e
para sua vida normal.
Alex cruzou os braços. Vida normal. A vida delu
nunca tinha voltado a ser normal depois do
desaparecimento de Gustavo. Elu tinha passado tempo
demais se culpando por um motivo ou por outro e
pensando que, se tivesse feito alguma coisa diferente,
talvez Gustavo estivesse vivo. Talvez ele teria confiado
nelu o suficiente para contar o que estava acontecendo.
Alex tinha se forçado a mudar, a ser outra pessoa,
porque tinha certeza que a culpa era sua.
Mas ele estava vivo. E nada nunca tinha sido culpa
de Alex. Tinha sido culpa de Gustavo, que não tinha
confiado nelu o suficiente para contar o que realmente
estava acontecendo.
E Alex nunca tinha se sentido tão normal quanto
enquanto estava revirando o complexo subterrâneo com
Melissa, por mais que aquele lugar lhe desse calafrios.
— Vou até o fim — Alex avisou. — Até isso ser
resolvido.
— E depois? — Raquel perguntou.
Alex soltou os braços. Depois... Elu não tinha
pensado naquilo.
Raquel continuou olhando para elu, esperando.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar. Elu tinha
desistido de ser parte da força de defesa do setor oito
anos antes – logo depois de Gustavo desaparecer. E tinha
falado com todas as letras que não ia se envolver para
valer em nada do setor, quando Raquel tinha lhe
oferecido um cargo mais de quatro anos antes. E, depois
de toda a confusão com Dani, elu só tinha conseguido
pensar que tinha feito a escolha certa.
A confusão com Dani – porque Alex não conseguia
lidar com a ideia de que ela estava guardando segredos
ligados ao trabalho e indo em missões de risco. Agora,
com Gustavo de volta e sendo obrigade a pensar em
tudo que tinha acontecido, era fácil demais para Alex
perceber por que tinha agido daquele jeito, na época. E
elu devia uma explicação e um pedido de desculpas para
Dani, então.
Mas o fato era que Alex tinha lidado com tudo que
havia acontecido se escondendo e mais nada. Elu
gostava do seu trabalho na escola, sim, porque amava
ter uma chance de falar por horas sobre a história dos
setores, das Cortes e daquela região. Mas não tinha
como negar que tinha gostado muito mais de estar na
cidade velha, procurando vestígios de poder. Ou até de
estar naquele complexo subterrâneo.
— Depois, é bem possível que eu volte atrás no que
falei para você sobre não querer ser parte do círculo
central do Setor — Alex avisou. — Se isso ainda for uma
possibilidade.
Raquel assentiu devagar e Alex sabia que aquilo não
era uma resposta. Era bem possível que elu nunca mais
tivesse aquela oportunidade – nem de trabalhar tão
dentro assim das coisas do Setor Dez nem de ser parte
das forças de defesa. Mas elu não ia continuar se
escondendo.
— Nesse caso, vai ser um problema para você se
tiver que lidar com Gustavo? — Ela perguntou.
— Não.
Raquel levantou as sobrancelhas.
— Tem certeza?
Alex tinha toda certeza do mundo.
— Agradável, provavelmente não vai ser — elu falou.
— Mas não vai ser um problema.
Gustavo era o seu passado e Alex já tinha deixado
que o que ele havia feito controlasse tempo demais da
sua vida. Aquilo não ia continuar.
Raquel assentiu devagar.
— Então eu quero usar o que vocês tinham antes
que Gustavo e sua família desaparecessem — ela avisou.
— Precisamos de detalhes sobre tudo o que ele falou.
Tanto sobre o reservatório quanto sobre os experimentos.
O que as alterações fizeram, exatamente, o que ele pode
fazer, se existe mais alguém. Tudo relacionado a isso que
você conseguir.
Alex inclinou a cabeça. Era óbvio que iam querer
detalhes. O que não era óbvio era Raquel querer que elu
fosse atrás das informações. Aquilo deveria ser
responsabilidade de Dani ou de alguém do pessoal dela.
— Por que eu?
Raquel sorriu e se inclinou para trás na cadeira.
— Porque você era a pessoa mais próxima de
Gustavo, antes que ele e a família desaparecessem. As
informações que precisamos vão estar misturadas a
muitas coisas que são pessoais e me lembro da família
dele ser bastante reservada, desde a época em que
criamos o setor.
Alex assentiu devagar.
— Em teoria, ele teria menos resistência a falar
qualquer coisa pessoal para mim do que para Dani ou
outra pessoa — elu comentou.
Em teoria, porque Gustavo nunca tinha falado nada
sobre aquilo nem na época em que Alex era capaz de
jurar que sabia tudo sobre ele.
— E eu confio em você para separar o que o setor
precisa saber do que não precisa se tornar público —
Raquel completou.
Alex quase sorriu. Aquilo era o tipo de coisa que fazia
Raquel ser tão respeitada. Mesmo que estivesse preso,
Gustavo não ia conseguir ignorar o fato de que Raquel
ainda estava fazendo o possível para proteger a
privacidade dele.
E, por mais que soubesse que fazer aquilo ia doer,
Alex ainda queria respostas. O que sabia não era o
suficiente – não para elu entender por que Gustavo tinha
virado as costas tão completamente para tudo o que
tinham.
— Quando quer que eu comece? — Elu perguntou.
— Agora. Não gosto nem um pouco da ideia de que
não sabemos o que esses alterados podem fazer e que
pode ter mais deles por aí.
Nada de ir gastar sua raiva na área de tiro primeiro,
então.
Aquilo não ia ser um problema. Alex já tinha se
tornado especialista em esconder suas reações.

Gustavo atravessou a sala da casa segura, parou logo antes da


parede que separava a sala da cozinha, virou e
atravessou a sala de volta na direção das janelas
fechadas. Aquilo era exatamente o que ele não queria:
estar preso em algum lugar. Mesmo com o antídoto, a
sensação de desconforto não era humana. Era algo que
era outro. Era da coisa dentro dele, se sentindo presa.
Ele tinha passado tempo o suficiente no Setor Dez
para saber que as "casas seguras" eram a versão deles
de prisões – ou o mais perto daquilo que existia ali. Elas
não eram feitas para serem seguras para quem estava lá
dentro. Eram feitas para estarem sob vigilância e para
garantir que quem estava ali não fosse desaparecer.
Gustavo parou e encarou a janela fechada. Ele podia
escapar. Não ia ser difícil. E ele tinha alguns frascos do
antídoto. Seria o suficiente para tirar sua mãe e sua irmã
do Setor Nove sem perder o controle. E depois...
Em algum momento depois o antídoto acabaria. Eles
estariam na mesma situação que se Gustavo tivesse
saído do Setor Dez sem nada: sabendo que sua mãe teria
que matá-lo quando perdesse o controle.
Ele atravessou a sala e foi na direção da cozinha de
novo. Os frascos que a mulher de cabelo cacheado –
Melissa – tinha lhe entregado estavam dentro da sua
mochila. Eles durariam alguns meses, no máximo. Talvez
mais, porque longe de Alex seria mais fácil se controlar...
Em teoria.
Ou talvez não. Gustavo tinha perdido o controle
completamente logo depois de sair do Setor Dez, antes.
Ele nunca tinha pensado que uma coisa estava
relacionada a outra, mas deveria ter pensado naquilo,
também. Ele não tinha como ter certeza de que, pelo
menos no começo, a distância não seria muito pior.
Então não podia pensar que os antídotos durariam,
mesmo se escapasse. E aquilo era um "se" maior do que
ele gostaria de admitir.
Quando o pessoal da força de defesa tinha saído do
meio das árvores, ninguém parecia surpreso. Não era
como se Gustavo fosse próximo de alguém para se
preocupar com o que pensavam sobre ele, mas olhar
para Yuri e perceber que o outro homem tinha imaginado
que ele faria alguma coisa daquele tipo não havia sido
uma sensação agradável. E, se já esperavam que ele
tentasse desaparecer do setor, então estariam
preparados para o caso de ele tentar escapar, também.
Ele não tinha opção. Ou melhor, tinha, mas sabia
reconhecer quando uma ideia era ruim demais para valer
a pena. E, talvez...
Gustavo se lembrava de como o Setor Dez era, antes
que ele e sua família fugissem. Não parecia que muita
coisa tinha mudado, não sobre como o setor em si
funcionava. O que queria dizer que Gustavo
provavelmente podia confiar na palavra das pessoas que
estavam no comando – mesmo que Yuri e Daniele ainda
nem estivessem no setor na época em que ele morava
ali. Se Ezequiel tinha escolhido eles, era porque sabiam o
que estavam fazendo.
Ele precisava confiar nas pessoas do Setor Dez.
Quem quer que mandassem para falar com ele, Gustavo
precisava contar o suficiente para fazer entenderem o
seu lado. Se não fizesse aquilo, era bem possível que sua
família ficasse manchada por causa das suas escolhas – o
que deixaria sua mãe e sua irmã sem um lugar seguro
quando saíssem do Nove.
Alguém bateu na porta. Não que adiantasse alguma
coisa, ele não tinha como abrir nada a menos que
estivesse disposto a deixar o monstro mais perto da
superfície do que deveria. Todas as saídas estavam
trancadas por fora. Alguém falou alguma coisa em voz
baixa, do outro lado da porta. Outra pessoa respondeu e
deu uma risada rápida antes da porta se abrir.
Alex. Claro que seria Alex. Se tinha uma forma de
deixar a situação toda pior, era aquilo. Alex ali, enquanto
Gustavo estava preso dentro da casa segura.
Gustavo respirou fundo. Ele tinha acabado de pensar
que mandariam alguém para conversar com ele e era
exatamente o que tinham feito. Alguém. Só não era
quem ele esperava. Alex não era parte das forças de
defesa. Gustavo tinha feito questão de verificar aquilo
logo depois de chegar no Setor Dez. O tempo todo
enquanto estava ali, ele estava pensando que pelo
menos Alex não ia ficar sabendo de nada do que ele
contasse, porque não tinha uma posição alta o suficiente
na hierarquia. E era assim que ele preferia.
Era melhor ter Alex o odiando por ter desaparecido
sem explicar do que o odiando por ser o que era. Um
monstro, uma criatura a ser ignorada e isolada.
— Já sabe, se tiver algum problema... — a outra
pessoa lá fora falou.
Daniele. Gustavo reconhecia a voz dela. Era óbvio
que iam ter colocado um dos vampiros para vigiar a casa
onde ele estava. Ele não se surpreenderia se Amon
também estivesse por perto.
Alex encarou Gustavo e por um instante foi como se
estivessem na porta da casa dele, mais de oito anos
antes. Aquele olhar era o mesmo de quando Alex tinha
ido atrás dele para insistir que sabia que alguma coisa
estava errada e que Gustavo podia confiar nelu.
Alex tirou uma flecha da sua aljava. Estranho, porque
elu não estava com a balestra.
Ou não tão estranho, porque Gustavo reconhecia a
cor da ponta de metal. Ele não fazia ideia do que aquilo
era, só que era algo que afetava os alterados. Ele se
lembrava muito bem de estar na forja do pai de Alex
enquanto derretiam as pontas das lanças que ele tinha
achado nas ruínas e transformavam tudo em pontas de
flechas. Não tinha sido a primeira vez que haviam feito
algo do tipo – fazer as flechas era mais barato que
comprá-las – mas tinha sido a única vez que ele havia
levado aquele metal. Gustavo nunca tinha contado para
Alex por que aquele metal ou o que ele fazia, mas pelo
visto elu tinha entendido.
— Não vou ter problemas — Alex falou. — Não é?
Gustavo balançou a cabeça devagar. De todo mundo
que podiam ter mandado, Alex era a melhor e pior
pessoa ao mesmo tempo. Porque, ao mesmo tempo em
que elu parecia chamar o poder, mesmo depois que
Gustavo tinha tomado o antídoto, também era a única
pessoa que ele fazia questão de tentar não ferir de forma
alguma. Ele já tinha feito o suficiente.
Daniele assentiu e esperou até Alex entrar e fechar a
porta.
— Então te mandaram para me interrogar — Gustavo
começou.
Alex atravessou a sala, sem guardar a flecha, e
entrou na cozinha.
Gustavo continuou parado perto das janelas
enquanto elu abria a geladeira, tirava uma garrafa de
água, voltava para a sala e se sentava como se estar ali
não fosse nada demais.
Alex estava tratando Gustavo como um trabalho e
mais nada. E ele deveria estar satisfeito com aquilo. Mas,
quando Gustavo tinha pensado que queria distância, era
distância física. Não ser tratado como um estranho. E
muito menos encarar algo que ele tinha certeza que era
uma máscara – porque Alex nunca tinha sido controlade
daquele jeito.
— Me mandaram para conversar com você e separar
as informações relevantes do que é pessoal e mais
ninguém precisa saber — Alex falou. — Mas se preferir
que mandem outra pessoa...
Gustavo se virou para a parede de uma vez e bateu
a mão com força nela. Ele se recusava a se tornar o tipo
de pessoa que socava uma parede, mas entendia a
vontade. Ou melhor, a frustração.
Quem tinha pensado naquilo estava certo. Dar
detalhes para Alex seria tortura, mas falar com qualquer
outra pessoa seria muito pior. Gustavo já tinha perdido
Alex anos atrás, mesmo que a coisa dentro dele não
concordasse com aquilo. Não faria diferença se elu
descobrisse o que Gustavo realmente era. Não deveria
fazer. E ele já tinha chegado na conclusão de que sua
melhor chance era dar as informações que quisessem.
Qualquer outra coisa só serviria para aumentar os riscos
para sua família.
— O que você quer saber? — Ele perguntou, com a
voz saindo abafada.
Alex não respondeu na hora.
Gustavo se virou. Elu tinha pegado um tablet e
estava encarando alguma coisa na tela.
— Para começar, o reservatório — elu falou. — O que
você sabe sobre o que está nele e possíveis efeitos.
Como é o processo de drenar, que você mencionou. E
qual o intervalo de tempo até que ele se torne um risco
de novo.
Ele balançou a cabeça devagar.
— Você fez uma lista de perguntas e tópicos?
Alex levantou a cabeça e encarou Gustavo.
— Óbvio que fiz. E estou esperando respostas.
Ele fechou as mãos com força. Alex podia ter
mudado naquele tempo, sim. Era óbvio que tinha
mudado, na verdade. Mas não tanto. Antes, quando
estavam nas ruínas, Gustavo tinha pensado que era
porque o pessoal das forças de defesa estava por perto e
Alex estava só sendo o mais profissional possível. Era
uma explicação que fazia todo sentido do mundo. Ou
faria, se Alex não estivesse agindo do mesmo jeito ali,
sendo que não tinha mais ninguém para ouvir.
— Posso saber de uma coisa primeiro? — Gustavo
pediu.
— Se isso for fazer você me responder mais
depressa...
Ele não sabia se alguma coisa era capaz de fazer
com que respondesse depressa, não quando o assunto
era o seu passado e as alterações.
— Por que você não faz nada? — Ele perguntou.
Alex levantou uma sobrancelha.
Gustavo soltou o ar com força.
— Se fosse antes de eu ir embora, você no mínimo
estaria gritando comigo. O mais provável era já ter me
dado uns dois socos, se bobear até mais.
Alex colocou o tablet ao seu lado no sofá e pegou a
flecha de novo. Se fosse qualquer outra pessoa, Gustavo
ia entender aquilo como uma ameaça. Mas ele conhecia
Alex. Ele se lembrava que elu sempre estava girando
alguma coisa entre os dedos.
— Antes de você desaparecer, eu me importava —
Alex falou. — Eu brigava porque me importava e porque
sabia que podia. Tinha liberdade e intimidade para reagir
daquele jeito, sem precisar medir o que estava fazendo.
Ou, pelo menos, pensava que tinha. Mas a pessoa que eu
tinha liberdade para agir desse jeito morreu oito anos
atrás.
Gustavo devia só ter respondido as perguntas delu.
Ia doer menos.

Alex não devia ter dado aquela resposta. Ela deixava coisas demais
visíveis, mas elu não ia agir como se Gustavo ter
desaparecido não tivesse feito nenhuma diferença,
porque tinha. Quando Gustavo havia escolhido não
contar nada, só desaparecer e deixar Alex pensando que
ele estava morto, ele tinha deixado claro que qualquer
coisa entre eles não existia mais. Nem a amizade, nem
os primeiros passos na direção de mais que amizade.
Era mais fácil pensar que o Gustavo que Alex tinha
conhecido havia morrido oito anos atrás. Não era ele ali,
então era fácil controlar a raiva. Quem estava ali era uma
pessoa que Alex não conhecia, ponto.
E se Gustavo ainda estava parado no lugar,
encarando Alex com uma expressão que parecia chocada
e perdida ao mesmo tempo... Não importava.
— O reservatório — Alex repetiu.
Gustavo respirou fundo uma, duas vezes, antes de
assentir.
— Não sei muita coisa. O que eu sei foi o que meu
avô contou para minha avó, que repetiu tudo pros meus
pais depois que a guerra acabou.
— E seus pais repassaram para você — Alex
murmurou.
— Minha mãe repassou, depois que meu pai morreu.
Alex assentiu. Fazia mais sentido, considerando que
Gustavo tinha treze anos quando seu pai tinha
desaparecido. Morrido.
Mais uma mentira, então, porque elu se lembrava
muito bem de tentar consolar Gustavo depois que seu
pai tinha ido verificar alguma coisa na fronteira do setor
e nunca tinha voltado. Era o que ele havia contado. Era o
que todos do setor acreditavam. E, pelo visto, Gustavo
sempre soubera que não era a verdade.
— O que tem na água é uma mistura das formas
iniciais do que usaram para fazer as alterações —
Gustavo contou. — Junto com alguma coisa vindo das
terras de ninguém. E eles colocaram na água porque é
um jeito fácil de espalhar algo pelo máximo do setor de
um jeito que seria impossível de ser parado.
Infelizmente, aquilo fazia sentido. Não era algo que
Alex entendia de verdade, mas elu conseguia ver a
lógica. A água se espalharia naturalmente – e elu era
capaz de apostar que havia mais alguma coisa para
forçar que se espalhasse – e contaminaria o solo, a
vegetação e as pessoas. Aquilo encaixava demais com o
que sabia sobre o Setor Quatro.
— A drenagem? — Elu perguntou.
Gustavo balançou a cabeça.
— Não faço ideia. Nem de como funciona e nem de
como a água se espalharia. Minha mãe me explicou
sobre os controles para drenar o tanque e mais nada.
Acho que nem meu pai sabia como isso funcionava.
O que também fazia sentido. Os alterados eram só
músculo. Algo para ser usado, não parte da hierarquia do
setor. Não tinham motivos para saber como algo
funcionava. Na verdade, era pura sorte que o avô de
Gustavo soubesse o suficiente para avisar para drenarem
o reservatório.
Elu teria que mandar pessoal para o laboratório,
depois. Precisariam entender como aquilo funcionava e
como fazer para desativar o processo todo, além de
entender o que aquilo era.
Alex anotou os pontos principais no seu tablet e
levantou a cabeça. Gustavo ainda estava parado do
outro lado da sala, que era o mais longe delu que
conseguiria ficar, e ainda parecia tenso demais.
Não fazia diferença. Elu não se importava. Não podia
se importar.
— E sobre os alterados — Alex começou. — Sua
família...
Ele balançou a cabeça com força.
— Minha mãe e minha irmã não são alteradas —
Gustavo falou. — Não são um risco e só saíram do setor
para me proteger.
— Se isso é genético...
Gustavo balançou a cabeça de novo e encarou o
chão.
— Se Brenda tivesse herdado isso ela teria dado
algum sinal quando a ataquei. Ela escapou.
Alex assentiu. Elu não conseguia nem imaginar
aquilo – Gustavo sempre tinha adorado a irmã mais nova
e feito de tudo para ela. Alex não se lembrava de
quantas vezes tinham mudado seus planos para incluir
Brenda, por um motivo ou outro. Se Gustavo tinha
chegado ao ponto de atacar a irmã...
— Mais alguém além de você, então? — Alex se
forçou a perguntar.
Gustavo levantou a cabeça e cruzou os braços.
— Não que eu saiba, mas acho improvável. As
famílias que tinham algum alterado e fugiram do Setor
Quatro na época da guerra foram mortas pelos outros
setores. Na época, qualquer sinal disso era uma sentença
de morte para a família toda.
Alex levantou as sobrancelhas. Aquilo era
inesperado.
— Nenhum setor tentou recrutar alguma família com
alterados ou coisa assim?
Porque o normal dos vampiros era quererem
aproveitar qualquer coisa que pudesse ser útil para eles.
Se aquelas pessoas tinham sido alteradas para serem
uma arma melhor que os carniçais, não fazia sentido
terem só destruído todo mundo.
— Monstros, Alex — Gustavo falou, seco. —
Monstros, não armas. Não como o vampiro de vocês.
E elu não ia cair naquela tentativa de mudança de
assunto.
— Como seu pai não foi morto, então, se sabiam o
que ele era? Porque sabiam, não é?
Aquele era o motivo para as famílias de
sobreviventes do Setor Quatro sempre terem se mantido
o mais longe possível de Gustavo e sua família. Eles
sabiam o que eles eram.
— Eu falei — Gustavo resmungou. — Eles também
sabem sobre o tanque. Não em detalhes, mas o
suficiente para saberem que precisavam de pelo menos
um de nós vivo.
Alex ia fazer questão de conferir aquilo depois. Seria
simples ir atrás do pessoal mais velho ali e perguntar o
que sabiam. Se fosse óbvio que estava indo atrás daquilo
por ordem de Raquel, ninguém ia negar respostas. Não
iam correr aquele risco.
Elu anotou aquilo, também, antes de encarar o
próximo tópico na sua lista.
— E quanto você é um risco para nós, então?
Gustavo não respondeu.
Alex suspirou. Sua vontade era pegar a flecha que
ainda estava ao seu lado e ver qual ia ser o resultado
daquele metal diferente sendo enfiado em Gustavo. Ele
mais do que estava merecendo, depois de tudo. Mas elu
se recusava a perder o controle daquele jeito.
— Você insiste em falar que os alterados são um
risco, mas parece que se deu muito bem nesses anos
desde que fugiu — elu comentou. — Com o histórico de
trabalhos que você tem, é óbvio que estava com um dos
grupos mais profissionais de mercenários desde o
começo...
Gustavo deu dois passos na direção de Alex e parou,
respirando fundo e com o poder ao seu redor se agitando
de um jeito que era parecido com quando estavam nas
ruínas.
Alex continuou no sofá. Sabia que estava provocando
e não se arrependia nem um pouco.
— Você... — Gustavo começou.
Alex levantou uma sobrancelha antes de encarar o
mercenário dos pés à cabeça. Porque era exatamente
aquilo que ele era: um mercenário, e obviamente um dos
que havia sido bem treinado. Elu era capaz de apostar
que, se olhasse os arquivos de Yuri, Gustavo teria sido
marcado como um dos mercenários com mais potencial
que tinham chegado ali, seis meses antes. Ele não era
um dos que tinha aprendido qualquer coisa por conta
própria e começado a tentar pegar trabalhos em
qualquer lugar. Gustavo havia sido treinado e sido aceito
por um dos grupos mais profissionais.
Ele se sentou na mesa baixa na frente do sofá e se
inclinou para a frente, de um jeito que se fosse outra
pessoa Alex consideraria uma ameaça. Mas não era.
Aquilo ali, a forma como ele estava sentado, o jeito como
tinha se inclinado – aquilo tudo era exatamente como
antes.
E era estranho como agora Alex conseguia ver que
aquilo não era normal. Nunca tinha sido. Gustavo sempre
havia tido uma tensão, algo a mais na forma que se
movia, que não era natural. Ou melhor, não era humano.
Mas nunca tinha parecido nada demais.
Ainda não era nada demais, na verdade. Só um
lembrete de como elu nunca tinha notado o que estava
na sua frente o tempo todo. E aquilo era um problema.
— Eu passei praticamente dois anos inteiros depois
que saí do Setor Dez preso — Gustavo falou, com a voz
baixa e controlada demais.
Alex não respondeu.
Gustavo levantou a manga de um dos braços e a
puxou até o meio do bíceps. Tinha uma marca mais clara
ao redor do seu antebraço, que mais parecia uma cicatriz
de queimadura do que uma cicatriz comum. E mais outra
logo acima do cotovelo, com uma marca muito mais
grossa bem acima. E todas as marcas eram indefinidas
de um jeito que fazia Alex ter certeza de que não tinha
sido um ferimento. Tinha sido algo constante, muito pior.
— Dois anos preso e amarrado como um animal,
porque era isso que eu era — Gustavo continuou. — Eu
consegui manter o controle por tempo o suficiente pra
sairmos daqui, e foi por pouco.
Alex engoliu em seco e levantou a cabeça para
encarar Gustavo. Elu não queria imaginar aquilo. Dois
anos preso. Amarrado – e lutando contra as amarras, se
as cicatrizes tinham ficado daquele jeito. O atrito tinha
queimado a pele, ao mesmo tempo em que cortava. E
aquilo, por tanto tempo...
Gustavo estava olhando para elu de um jeito que era
familiar demais. Era o mesmo olhar que tinha feito Alex
decidir arriscar ir além da amizade, porque deixava claro
demais que Gustavo queria mais. Que elu significava
mais.
E, mesmo assim, ele tinha escolhido as mentiras.
— Quanto mais longe do Setor Dez, pior ficava —
Gustavo contou. — Até que o monstro assumiu o
controle.
Não importava. Não fazia a menor diferença quanto
aquele olhar fosse familiar, como Gustavo estar sentado
daquele jeito era a mesma coisa de antes. Aquele
Gustavo não era o seu amigo – porque se as mentiras
eram tão velhas assim, então seu amigo nunca tinha
existido. Não como elu pensava.
Alex se inclinou para trás no sofá, só para se afastar
o máximo que conseguia dele sem parecer que estava se
afastando.
— Mas sim, eu me dei bem — ele continuou. —
Porque minha mãe achou um grupo de mercenários
interessado justamente no que você falou. Em ter um dos
alterados sob o seu controle.
Alex não ia se arrepender do que tinha falado antes.
Elu não estava errade.
— Não era como se não tivesse outra opção — elu
comentou.
Gustavo segurou o tampo da mesa. Alex ouviu um
estalo que parecia demais com algo se quebrando, mas
não desviou o olhar do dele.
Aquela era a pior parte, no fim das contas. Gustavo
tinha escolhido esconder tudo. Escolhido ir embora e
deixar Alex pensando que ele estava morto. Não
precisava ter sido daquele jeito. Não precisavam estar
naquela situação.
— Qual parte de preso como um animal você não
entendeu? — Gustavo perguntou. — Eu ataquei Brenda, o
que você acha...
Alex balançou a cabeça.
— Eu acho que você escolheu a pior forma de lidar
com a situação, só isso.
Era loucura. Elu não deveria estar provocando, não
quando conseguia sentir o poder ao redor de Gustavo se
agitando de um jeito que todos os instintos de Alex
gritavam que não deveria ser possível. Depois da
diferença que o antídoto tinha feito, quando ainda
estavam nas ruínas, o poder ainda deveria ser só um
vestígio, não tudo aquilo.
E algo na expressão de Gustavo... Alex não sabia se
era algo novo ou se elu só nunca tinha notado algo
antes. Talvez nunca tivesse visto ele tão tenso assim, na
verdade. Mas realmente havia algo ali que não era
humano.
Gustavo se inclinou ainda mais para a frente, de um
jeito que quase parecia que algo o estava prendendo no
lugar ao mesmo tempo em que ele queria avançar. Algo
caiu no chão – provavelmente um pedaço do tampo da
mesa se quebrando.
— Eu escolhi a única forma de lidar com a situação
que ia te proteger!
Alex engoliu em seco. Elu não conseguia duvidar que
Gustavo acreditasse naquilo. Não quando ele estava
agindo daquele jeito e praticamente gritando.
Mas elu também não conseguia não pensar que
poderia ter sido diferente. Muito diferente.
Elu balançou a cabeça devagar.
— Você fez isso por algum motivo, mas não foi para
me proteger. Foi porque não confiava em mim.
— Você não entendeu? Eu não podia te contar — ele
falou. — Se contasse, você ia tentar ajudar, porque é
quem você é. É o que sempre faz. E se tentasse ajudar
eu poderia ter atacado você ao invés de Brenda. Só não
foi pior porque minha mãe sabia o que esperar. Se eu
tivesse perdido o controle sozinho com você, nada ia ter
salvado sua vida.
Não ia. Nem as flechas do metal diferente – porque
Alex não saberia que ia precisar delas para ter uma
chance. Elu não ia nem entender o que estava
acontecendo, porque nunca passaria pela sua cabeça
que poderia ser atacade por Gustavo.
Elu entendia. Queria não entender, mas entendia.
E entender não mudava os fatos.
— Se você tivesse me contado a verdade desde o
começo, eu teria tentado ajudar — Alex murmurou. — E
teria achado o antídoto oito anos atrás.
Gustavo olhou para elu com uma expressão vazia.
— Os vestígios de poder... — ele falou.
Alex assentiu.
— Você passou seis meses procurando o antídoto. Eu
achei em algumas horas.
E poderia ter feito a mesma coisa, naquela época, se
soubesse que precisava procurar alguma coisa.
Se Gustavo tivesse confiado nelu.
Era demais. Alex não queria ficar ali.
Elu se levantou e foi na direção da porta. Gustavo
não falou nada, mas Alex sentiu quando o poder ao redor
dele se ergueu de uma vez, quase como se não quisesse
que elu saísse. Mas não importava. Nunca mais ia
importar.
Alex saiu da casa segura e trancou a porta atrás de
si.
OITO

Dani encarou as janelas fechadas da casa segura. Ela conseguia


sentir o mercenário lá dentro. Aquilo, sozinho, não era
uma surpresa. Ela já tinha desistido de tentar controlar a
forma como sentia a presença de qualquer coisa viva por
perto – de acordo com Amon, mais cedo ou mais tarde
ela se acostumaria e não prestaria tanta atenção.
Mas a sensação que ela tinha ali era diferente.
Gustavo tinha alguma coisa a mais e não de uma forma
boa. Era como se algum instinto novo estivesse avisando
Dani de que ele era uma ameaça, mas não fazia o menor
sentido.
Amon parou ao seu lado.
— Os alterados — ele comentou, em voz baixa. — No
passado, o setor todo estava cheio da mesma sensação.
Eu não sabia o que era e não me importava, mas agora...
Fazia sentido. E pelo menos aquilo queria dizer que a
sensação de Dani era algo normal e não alguma coisa
nova para se preocupar.
Não que o mercenário ali não fosse motivo para se
preocupar.
— Como foi no Três? — Ela perguntou.
Amon balançou a cabeça antes de esticar uma mão
para Dani. Ela aceitou e ele a puxou até que estava com
as costas contra o peito dele.
— Você sabia que existe algo muito parecido com um
pântano lá?
Dani estreitou os olhos, ainda encarando a casa mas
sem prestar atenção nela. Pântano... Ela deveria se
lembrar do que aquilo era, mas não era uma palavra que
ela ouvia com frequência.
— Uma área alagada?
— Sim.
Ela balançou a cabeça e se virou para olhar para
Amon. Não era à toa que tinha precisado parar para
tentar se lembrar de o que era um pântano. Eles não
tinham água sobrando na região e, pelo que Dani sabia,
aquilo era desde a volta da magia. A área toda era mais
seca do que deveria, só com um rio correndo pelos
setores Três, Sete e Cinco antes de sair nas terras de
ninguém.
— E é perto da fronteira com o Setor Cinco, quase na
fronteira conosco — Amon continuou.
O que queria dizer que não era perto do rio.
Não. Um pântano não era só uma área alagada. Era
uma área alagada com muita vegetação. E Dani nunca
tinha visto nada sobre o Setor Três ter uma área de
vegetação que fosse incomum para a região. Algo assim
teria seria notado pelos sistemas de vigilância. Adriana
tinha sobrevoado a fronteira com seus drones mais de
uma vez nos últimos meses.
— Isso não é visível — ela falou. — E deveria ser
impossível.
— Estão usando magia para esconder o pântano —
Amon contou. — Mas quando o Cinco estava mandando
carniçais para lá, eles estavam indo pelo pântano.
— Uma bruxa da natureza... — Dani começou e
parou.
Era a única coisa que fazia sentido. Se o Setor Três
tinha escondido o pântano, ninguém ia notar que tinha
algo ali que não deveria existir. Não iam suspeitar que
tinham uma bruxa da natureza.
Mas aquilo não explicava a água, se o pântano não
era perto do rio.
Amon subiu uma mão pelo braço de Dani e desceu
de novo.
— Não acho que eles estão se preparando para nos
trair — ele falou. — Mas confiar plenamente no Setor Três
é um erro.
Dani não ia discutir com aquilo de forma alguma e
sabia que Raquel também não.
E aquilo era um problema para depois.
— Você realmente não lembra de nada sobre os
alterados? — Ela perguntou.
Amon ficou imóvel atrás dela por um instante,
daquele jeito que Dani ainda achava estranho, mesmo
depois de meses.
— Se as primeiras informações estão certas, então
os alterados só estavam aqui no começo — ele
murmurou. — Logo que eu cheguei na região. Eram os
que eu destruí quando minhas ordens eram para não me
aproximar.
Dani assentiu. Não tinha se esquecido daquilo. Mas
ela conhecia Amon e estava começando a entender um
pouco de como o poder dele funcionava – ou suas
habilidades, como os vampiros preferiam falar, para
separarem o que faziam do poder das bruxas. Ele não
precisava ver algo para saber o que estava nas suas
sombras.
Ele suspirou.
— Se eu tivesse prestado atenção, provavelmente
me lembraria — Amon falou. — Mas não prestei. Só
estava cumprindo minhas ordens o mais depressa
possível, sem querer saber o que estava acontecendo.
Saber não faria a menor diferença.
Dani fechou os olhos e respirou fundo. Às vezes,
quando ele fazia aquele tipo de comentário, ela quase
preferia que Amon nunca tivesse se importado com ela o
suficiente para abrir mão da sua vingança. O príncipe do
Setor Oito merecia pagar por ter usado Amon, mas não
era só ele. Eram todos os outros que tinham vindo antes,
também. Ela ainda tinha esperança de que aquela
vingança viria, algum dia. E ela estaria lá para ajudar a
fazer todos pagarem.
— Mas o que quer que tenham feito com os
experimentos, realmente é algo novo — Amon contou. —
A sensação deles era nova, eu só não sabia que eram os
alterados, nem me importava. Mas me lembraria se
tivesse existido qualquer coisa desse tipo antes, durante
o caos da volta da magia ou antes.
E, por mais que brincassem com como a memória de
Amon não era confiável, Dani não duvidava daquilo. Mas
não era nada que não imaginassem.
Ela encarou as janelas fechadas de novo. Se fizesse
um pouco de esforço, conseguiria ver o mercenário
dentro da casa, mesmo através das paredes. Ou melhor,
conseguiria ver seu sangue, sua força vital.
E Dani não queria beber dele.
Ela se endireitou e se concentrou no que conseguia
sentir. Gustavo ainda estava na sala, sentado em um dos
sofás, provavelmente. E, mesmo que Dani conseguisse
sentir o sangue dele, a fome não estava ali. Muito pelo
contrário – era como se algo estivesse dizendo para ela
não pensar em beber dele. Não que tivesse alguma
chance daquilo acontecer, mas...
— Quero você vigiando ele o máximo de tempo
possível — ela murmurou. — Se não tiver mais nada para
resolver, quero você aqui. Não vou correr riscos com
Gustavo.
E Dani sabia muito bem que não precisava nem
confirmar com Yuri antes de falar aquilo. Ele não ia
discordar.
Amon assentiu.
— Deveria ter mais alguém por perto? — Ele
perguntou.
Dani balançou a cabeça.
— Temos pessoal da força de defesa no perímetro,
mas é um perímetro largo — ela contou. — Não quero
ninguém perto demais se Gustavo resolver tentar
escapar ou perder o controle, seja lá o que isso quer
dizer.
Não, o pessoal que estava no perímetro era só para
disparar o alarme. Se Gustavo escapasse, seriam ela e
Amon indo atrás dele e mais ninguém.
— Tem alguém dentro do seu perímetro, então —
Amon avisou. — Não muito longe dentro das árvores, na
direção da mansão.
Que era a direção para onde Alex tinha ido depois de
sair da casa segura.
Dani estava fazendo tanto esforço para não prestar
atenção no que estava acontecendo – porque era óbvio
que Alex e Gustavo tinham uma história – que não tinha
percebido que era estranho elu não ter ido na direção da
cidade.
E, se Alex ainda estava ali...
Dani suspirou e se soltou. As coisas podiam ter
terminado muito mal, quando namoraram, mas ela
respeitava Alex demais para só deixar elu lá sem nem ao
menos conferir se estava tudo bem.
— Se alguma coisa acontecer... — Dani começou.
Amon assentiu.
— Avisarei.

Alex girou a flecha que estava na sua mão. Alguém estava se


aproximando entre as árvores e, considerando que elu
estava dentro do perímetro de segurança e que os
passos estavam vindo da direção da casa segura, não
era difícil adivinhar quem era.
— Você está dentro do meu perímetro — Dani falou.
Alex suspirou. Na mosca. Não que tivesse muitas
chances de outra pessoa achar elu ali.
— Eu sei.
Elu só não tinha pensado muito antes de parar ali. As
pedras no meio das árvores haviam sido o primeiro lugar
que elu tinha se lembrado para se sentar e só pensar por
algum tempo, porque não queria ir para casa. Mas talvez
fosse melhor ter ido embora. Não era como se alguém
fosse ir atrás delu, de qualquer forma.
E Dani estar ali só fazia Alex pensar mais no que
tinha percebido depois daquela conversa com Gustavo:
como o desaparecimento dele tinha ferrado com sua
cabeça. Elu nunca tinha tentado entender exatamente
por que tinha se afastado de tudo ou por que havia
reagido daquele jeito com Dani, quando as coisas
começaram a dar errado. Agora, Alex entendia.
Dani suspirou e se sentou na pedra ao lado de Alex.
— Não é da minha conta, mas... — ela começou. —
Vocês têm uma história, não têm?
Era uma forma de descrever aquilo. Uma história.
Alex não queria falar sobre aquilo mas, se tinha uma
pessoa que merecia entender o que estava acontecendo,
era Dani.
Elu assentiu, ainda girando a flecha nos dedos, sem
se virar.
— Você ouviu alguma coisa? — Alex perguntou.
Dani balançou a cabeça de um lado para o outro. Elu
quase preferia que a resposta fosse outra. Ia ser mais
fácil.
— Se fosse para eu ouvir, ou teria sido eu
conversando com ele, ou você teria me dado alguma
indicação de que era para ficar por perto — ela falou.
Alex fechou os olhos. Aquilo era Dani. Ela podia ser
uma das responsáveis pela segurança do setor, mas ela
confiava que cada um faria sua parte. Ela não precisava
controlar cada detalhe de tudo o que estava acontecendo
– mesmo quando fazer aquilo seria fácil.
Era o oposto do que Alex tinha passado os últimos
anos fazendo.
— Gustavo e eu crescemos juntos — elu começou. —
Ele é de uma das famílias de sobreviventes da guerra,
que ainda moravam aqui na época que o Setor Dez foi
criado.
E, mesmo que Dani tivesse o direito de saber de
tudo, para entender, Alex não sabia como contar como a
forma como Gustavo estava sempre sorrindo tinha sido
um ímã para elu. Como tinham se tornado inseparáveis
desde que elu tinha seis ou sete anos.
— Ele era seu amigo — Dani murmurou.
Ela não ia forçar. Aquilo era óbvio, mas também era
um alívio.
Alex riu.
— Era meu amigo — elu repetiu. — E nós éramos o
pesadelo de Ezequiel.
Dani riu também antes de parar e encarar Alex.
— Pesadelo de Ezequiel — ela falou. — Você. A
pessoa que nem gosta de sair de casa depois que
escurece.
Alex deu de ombros. Aquele era o único lado delu
que Dani tinha visto, no fim das contas.
— Eu. E não posso nem falar que era Gustavo me
arrastando pras nossas piores ideias, porque não era. Eu
fui responsável por uma boa parte delas.
E Dani ainda estava olhando para elu com aquela
expressão incrédula.
Alex encarou o chão e resistiu à vontade de cutucar
a terra seca com a ponta da flecha. Não ia nem correr o
risco de estragar nada.
— Você — Dani repetiu, em voz baixa.
Elu assentiu.
Era estranho pensar naquilo – o tanto que elu tinha
mudado por causa do que tinha acontecido. Não era só
os planos que tinham sido deixados para trás e tudo
mais. Era elu. A forma como tinha se negado. E, no fim
das contas, quem tinha pagado mais caro por causa
daquilo tinha sido Dani, o que queria dizer que Alex não
podia só deixar o assunto acabar ali.
— Antes de Gustavo desaparecer, eu já sabia que
alguma coisa estava errada — elu contou. — Ele estava
escondendo alguma coisa e eu já tinha até insistido para
ele me contar o que era. E um belo dia eu só acordei com
a notícia de que ele e a família tinham desaparecido e
que a casa estava suja de sangue.
Alex deu de ombros e bateu a mão fechada na pedra
onde estava sentade. Aquilo tudo podia ter sido evitado,
desde o começo. Mas não, Gustavo tinha que ser cabeça
dura.
Dani não falou nada, só esperou.
Elu suspirou.
— Eu mudei, depois disso. Porque ele era meu
melhor amigo, mas não tinha me contado o que estava
acontecendo e estava morto por causa disso. E... E talvez
se eu fosse mais responsável, não fosse a pessoa que
quase sempre nos enfiava em problemas, talvez ele
tivesse me contado o que estava acontecendo.
E Alex não queria nada daquele tipo acontecendo de
novo. Nunca mais. Elu não ia perder alguém tão
importante para elu de novo sem fazer nada. Então ia ser
a pessoa mais sensata e responsável possível, porque
assim ninguém teria motivos para esconder nada delu.
Não que nada daquilo tivesse sido uma decisão
consciente. Tinha sido só o que parecia certo e Alex
nunca havia parado para pensar nos motivos.
Dani cruzou os braços e desviou o olhar.
— E quando eu só desaparecia em alguma missão,
sem falar o que estava acontecendo... — ela começou e
parou.
Alex assentiu. Elu sabia que não era a mesma coisa.
Dani era uma das responsáveis pela segurança do setor
e Alex estava completamente fora daquela hierarquia por
escolha própria. Era óbvio que Dani não ia poder contar
tudo o que estava fazendo. E, mesmo quando contava,
não podia dar detalhes.
— Você acabou pagando pela minha cabeça ferrada
— Alex completou. — E eu só notei isso agora. Me
desculpe.
Dani não respondeu.
Elu respirou fundo. Querer continuar, elu não queria.
Mas precisava.
— Isso não justifica nada — Alex falou. — O que eu
fiz interferindo daquele jeito foi estupidez demais, mas
na minha cabeça... Parecia certo.
— Você tinha certeza que ele estava morto — Dani
comentou.
Elu assentiu.
— Era a mesma coisa. Era a mesma sensação de
saber que algo estava errado mas não saber o que e não
poder fazer nada. E... Acho que eu tinha certeza que ia
acabar do mesmo jeito. Eu só ia receber um aviso de que
alguém que importava pra mim estava morta.
— Ao menos você tem a cabeça no lugar o suficiente
pra reconhecer isso — Dani falou. — Não sei se eu teria.
Alex soltou o ar com força, ainda encarando o chão.
A resposta de Dani não era nada falando que estava
tudo bem ou coisa do tipo, e elu preferia assim. Não
estava bem. Aquilo era impossível, considerando a
história que tinham e o que Alex tinha feito. Mas elu
conhecia Dani o suficiente para entender que o que tinha
contado fazia diferença, sim.
— O que eu não entendo é como você está esse
tempo todo só dando aula — ela começou, falando
devagar. — Eu fiquei pensando nisso depois do dia que
Raquel te chamou para ver se Amon não estava me
influenciando. Com um poder desses, você deveria estar
ou na força tarefa ou trabalhando diretamente com ela.
Alex deu de ombros.
— Não foi por falta de convite. Na época que você
chegou no setor eu já tinha recusado ser parte de
qualquer coisa oficial. Era mais fácil.
Porque não se envolver queria dizer que não ia
precisar conviver com ninguém que sempre estaria
escondendo alguma coisa delu.
E, na primeira oportunidade, Alex tinha se envolvido
justamente com Dani, pouco tempo depois de ela
assumir como responsável pela segurança. Elu devia ter
começado a notar ali que alguma coisa não estava
encaixando. Não precisava ter esperado tudo dar ruim.
— E agora? — Dani perguntou. — Vai se esconder de
novo?
Alex levantou a cabeça e se virou. Não podia nem
discutir que não tinha se escondido, porque tinha. Tudo o
que tinha feito naqueles oito anos havia sido se
esconder.
— Não.
Agora, o que elu ia fazer, aquilo era outra questão
que Alex não fazia ideia de como responder.
Elu suspirou e se levantou, antes de bater a mão na
bunda e na parte de trás das calças, para tirar o pior da
sujeira.
— E acho que já passei tempo demais no seu
perímetro — Alex falou. — É melhor eu ir pra casa.
Dani assentiu e se levantou também.
— E eu vou voltar a vigiar seu ex.
Alex fez uma careta e não respondeu, só começou a
andar na direção da cidade. Dani não estava errada em
descrever daquele jeito.

Gustavo encarou a porta fechada. Já fazia tempo que Alex tinha


ido embora e uma parte dele tinha esperado que elu
voltasse. Para quê, ele não fazia ideia, porque não sabia
nem o que dizer depois do que Alex tinha falado antes de
sair.
Era a verdade. Aquela era a pior parte. O que Alex
tinha falado era a mais pura verdade.
Gustavo não tinha confiado que Alex não se viraria
contra ele, também. No fundo, ele tinha certeza que elu
seria como todos que sabiam sobre as alterações e a sua
família: Gustavo seria ignorado, na melhor das hipóteses.
Ou então seria caçado – porque um deles não podia
viver. Aquela era a verdade.
Ele podia ter contado tudo para elu muito antes da
tensão começar, quando não tinha a menor chance de
Gustavo perder o controle e atacar. Mas ele não tinha
tido coragem. Não podia perder a pessoa que, com
exceção da sua família, era a mais importante da sua
vida. Se Alex passasse a agir como as outras pessoas
que sabiam o que ele era, Gustavo não fazia ideia de
como reagiria. E aquilo era outro motivo para nunca ter
falado nada.
Gustavo atravessou a sala e pegou sua mochila,
antes de olhar para a porta de novo.
Alex não ia voltar. Era óbvio que não ia. E, mesmo
que voltasse, Gustavo não sabia como consertar o que
havia quebrado – porque tinha sido ele, sim.
Ele entrou no quarto e se sentou na cama. Sua
melhor opção ainda era fazer o que queriam e tentar sair
dali sem um conflito. Se possível, até conseguir mais do
antídoto. E aquilo queria dizer ficar ali. Naquela casa.
Esperar até analisarem as informações que tinham e
decidirem o que fariam com ele e então pensar em um
plano.
Dormir era melhor do que ficar andando de um lado
para o outro.
Gustavo tirou seu tablet do bolso da mochila e parou,
encarando o aparelho. Ele tinha mandado uma
mensagem para sua mãe e não ia se surpreender se
tivesse recebido uma resposta dela. Mas a mensagem ali
era de Silas, o líder dos mercenários que o haviam
"treinado".
"Não saia daí se não tiver algo sobre o setor que eu
possa usar. E se não tiver, você tem duas semanas."
Gustavo continuou encarando a tela. Ele quase tinha
se esquecido daquela parte de por que estava ali.
Espionar. Era o que ele tinha sugerido para ganhar
tempo.
A pior parte era que ele tinha exatamente o tipo de
informação que Silas queria. O líder dos mercenários não
sabia sobre o tanque. A única coisa que sua mãe tinha
falado quando fizera o acordo com ele tinha sido que
Gustavo teria que voltar lá, no futuro. Qualquer outra
coisa... Gustavo não sabia se era possível ter uma
informação que fosse capaz de prejudicar o Setor Dez
como Silas queria. Eles eram organizados demais.
E ele não queria trair o Setor Dez. Ou melhor, não
queria trair Alex e lhe colocar em risco... De novo.
Duas semanas.
Ele respirou fundo e desligou o tablet. Silas não tinha
acrescentado nenhuma ameaça, mas não precisava.
Aquele jogo não era novo: quando Gustavo falhava,
quem pagava era sua família.
NOVE

Alex encarou a porta fechada da casa segura. Se pudesse


escolher, definitivamente não ia estar ali. A conversa da
noite anterior com Gustavo ainda estava se repetindo na
sua cabeça, com alguns detalhes da conversa com Dani,
depois.
Mas ordens eram ordens e Raquel queria saber mais
sobre o reservatório nas ruínas. A mensagem estava
esperando por Alex assim que elu acordou: o reservatório
era um risco muito maior que o que quer que Gustavo
fosse, porque ninguém sabia como aquilo funcionava ou
o que podia fazer e era algo com o potencial para
destruir o setor. Então aquela ia ser a prioridade de Alex.
Elu teria acesso a uma equipe de cientistas e pessoal da
equipe de defesa e deveria organizar a coisa toda como
achasse melhor.
Não. "Como achasse melhor" era uma ilusão. "Como
fosse mais eficiente" era uma descrição mais certa.
O mais eficiente – o melhor uso de recursos – era
levar Gustavo para mostrar o que sabia do reservatório,
mesmo que ficar perto dele fosse a pior ideia possível.
Alex até poderia dizer que não queria fazer aquilo por
causa do que Gustavo tinha falado sobre elu fazer com
que perdesse o controle, coisa que elu ainda tinha que
entender o que queria dizer. Mas a verdade era que Alex
não queria se lembrar de como tudo poderia ter sido
diferente, nem ficar vendo aqueles detalhes que ainda
eram tão iguais ao Gustavo de antes.
Elu bateu na porta por pura educação e esperou um
pouco antes de destravar a fechadura eletrônica. A porta
se abriu com um ruído seco e Alex entrou na casa
segura.
A sala estava exatamente como na noite anterior,
sem nada fora do lugar. O que elu conseguia ver da
cozinha também não parecia ter nada fora do lugar.
Aquilo não era uma surpresa, não se tratando de
Gustavo. Ele sempre tinha sido mais organizado do que
deveria. E o que Alex conseguia ver do quarto era a
mesma organização, também: a mochila no chão,
apoiada no pé da cama, e a cama feita de forma
impecável.
Elu fechou a porta atrás de si e cruzou os braços,
esperando. Tinha batido alto o suficiente para Gustavo
ouvir mesmo se estivesse no banheiro – e pelo visto
estava. Por mais desconfortável que aquilo fosse, Alex
não ia sair para esperar.
A porta do banheiro se abriu. Alex encarou Gustavo,
que tinha ficado parado no lugar. Ele estava sem camisa
e aquilo não era nada bom. Era a mesma sensação de
dez anos antes, quando Alex tinha chegado na casa de
Gustavo cedo, um dia, visto ele sem camisa e percebido
que o que queria não era só amizade. Mas aquilo tinha
sido muito tempo antes. Não importava mais. Não podia
importar.
E Gustavo não parecia ter dormido nada. Estúpido.
Ninguém do Setor Dez ia perder tempo atacando alguém
que estava numa das casas seguras. Se quisessem matá-
lo, ele teria sido morto antes de chegar ali.
— Mais perguntas da sua lista? — Ele perguntou,
seco.
— Não exatamente da minha lista — Alex falou.
Gustavo assentiu e entrou no quarto. Alex não falou
nada enquanto ele abria a mochila, de costas para elu,
pegava uma regata e a vestia. Sim. Era muito melhor
assim. Não que elu fosse esquecer do que tinha visto.
Gustavo parou na porta do quarto.
— O quê, então?
Foco. Alex não ia ser estúpide a ponto de ficar
pensando no que poderia ter sido. Estarem ali era o
maior exemplo de por que nada nunca teria dado certo.
— Ontem, você até estava respondendo minhas
perguntas — elu começou. — Mas se eu te levar nas
ruínas, vai continuar respondendo? Vai me dar as
informações que preciso?
Gustavo fechou uma mão com força e encarou a
parede atrás de Alex.
— Também tenho uma pergunta — ele falou.
Alex esperou.
— Quanto tempo vocês vão tentar me manter preso
aqui? — Gustavo perguntou.
Alex também queria saber. Raquel tinha dado a
entender que estavam discutindo aquilo – porque nada
naquela situação com Gustavo era simples. Ele tinha
desativado o sistema de vigilância e Alex sabia muito
bem qual era a sentença normal para aquilo. Mas, ao
mesmo tempo, o pessoal de defesa já estava esperando
que ele fizesse alguma coisa então tinham voltado com
tudo em uma questão de minutos. Não tinha sido um
risco real. Mas também não podiam só ignorar aquilo e
deixar ele ir embora como se não fosse nada, porque
seria um péssimo precedente, sem mencionar que
Gustavo era a primeira pessoa admitir que ele era um
risco. Se o Setor Dez só o deixasse ir, sabendo disso, e
alguma coisa acontecesse depois, eles seriam
considerados culpados.
E aquilo tudo sem nem mencionar o problema que
era o reservatório. Precisavam entender o que aquilo era
e Gustavo era a única pessoa que sabia alguma coisa
sobre como ele funcionava.
Elu deu de ombros.
— Se fosse você envolvido na segurança do setor,
por quanto tempo deixaria alguém assim preso?
Ele não respondeu.
Ótimo. Se Gustavo tinha passado aqueles anos com
um destacamento de mercenários, então ele sabia o
suficiente sobre medidas de segurança para entender
exatamente o que Alex queria dizer. Ele era um risco,
então fariam questão de mantê-lo onde tinha menos
chances de causar estrago. Por quanto tempo aquilo
seria... Alex não fazia a menor ideia. E não invejava
Raquel e o pessoal responsável pela segurança por terem
que tomar aquela decisão.
O que, na verdade, levava a outra pergunta.
— Se eu te levar para o complexo subterrâneo, vai
tentar escapar?
Gustavo cruzou os braços.
— Tenho alguma chance?
Provavelmente. E Alex não queria ser a pessoa que
ia tomar uma decisão que podia custar a vida de
qualquer pessoa das forças de defesa que estivesse no
caminho de Gustavo se ele decidisse fugir.
— Se acha que consegue escapar de Amon... — elu
começou e deu de ombros.
Gustavo olhou na direção da janela fechada.
— Ainda é dia.
Alex sorriu.
— E os vampiros mais antigos não são destruídos
pela luz do sol.
Mentira. Pelo que Amon tinha contado, alguns
vampiros chegavam a desenvolver uma resistência à luz
do sol, sim. Tinha a ver com a idade, mas não era uma
coisa garantida. E, mesmo que não fossem destruídos, a
luz do sol ainda era desconfortável. Amon podia sair no
sol sem se queimar, durante uma boa parte do dia – não
quando o sol estava mais forte. Mas fazer aquilo não era
nem um pouco agradável, então ele evitava.
Gustavo respirou fundo e balançou a cabeça devagar
antes de encarar o chão.
— Não vou tentar escapar. Nem vou atacar ninguém
do Setor Dez.
Alex levantou as sobrancelhas. Elu tinha esperado
que ele Gustavo fosse falar que não ia tentar nada, mas
não com aquele tom resignado, quase derrotado.
E elu não deveria se importar – do mesmo jeito que
Gustavo não tinha se importado com elu, anos antes.
— E vai me dar as informações que preciso? — Alex
completou.
Gustavo assentiu.
Era loucura. Alex sabia de todas as formas como
aquilo podia dar errado. Mas, sem Gustavo, não tinham
nada sobre o reservatório. Podiam descobrir por conta
própria, sim, mas os riscos seriam maiores e com certeza
levaria mais tempo. Com ele lá, saberiam como ele fazia
para esvaziar o reservatório, qual era o nível máximo – e
Alex ainda podia analisar qualquer semelhança entre o
que estava na água e o poder ao redor de Gustavo.
Elu pegou seu tablet e mandou um aviso de que
Gustavo estava indo para as ruínas, também. Ia ser o
suficiente para Yuri preparar seu pessoal.
Alex abriu a porta da casa segura. Gustavo
continuou parado no mesmo lugar.
— Vamos — elu avisou.
Porque não ia ficar parade ali mais tempo do que
precisava.

Gustavo encarou os corredores do complexo subterrâneo, sem


prestar muita atenção no que estava vendo. Sabia para
onde estava indo e aquilo era o suficiente, mesmo que
fosse estranho andar por ali com tudo iluminado. Alguém
tinha prendido um fio com lâmpadas no alto da parede
do corredor principal, seguindo até onde ele conseguia
ver. Considerando a eficiência que ele já tinha visto do
pessoal do Setor Dez, aquilo nem deveria ser uma
surpresa, mas era. E era diferente.
Gustavo tinha ido ali vezes o bastante com seu pai,
quando ainda era criança – mesmo que não precisassem
estar lá. Agora ele entendia: seu pai estava tentando
encontrar o antídoto, aquele tempo todo. Naquela época,
eles evitavam até lanternas, para não chamar atenção,
até estarem bem mais para dentro do complexo.
E ele conseguia entender o desespero, também. A
sensação de que a qualquer instante não seria ele ali.
Seria algo fora de controle, atacando tudo o que
estivesse na sua frente, começando por aqueles que
eram mais importantes. Quanto menos ligações, quanto
menos pesos para prendê-lo, melhor. Gustavo se
lembrava muito bem dos pensamentos do monstro, nos
anos que tinha passado preso. E faria qualquer coisa
para evitar que aquilo acontecesse de novo.
Qualquer coisa menos arriscar sua mãe e sua irmã.
O que queria dizer que ele só tinha duas semanas.
Menos que aquilo, na verdade. Conhecendo Silas, as
ameaças mais diretas começariam bem antes e Gustavo
não queria pensar no que o mercenário faria com sua
mãe e Brenda. Antes das ameaças se tornarem sérias
demais, ele precisava ter um plano decente, porque a
única coisa que tinha pensado...
O tanque e o poder ali eram exatamente o tipo de
informação que Silas queria. Mas o mercenário não
negociaria, mesmo se Gustavo entregasse a informação.
Ele continuaria na mesma situação: preso aos
mercenários, com sua família como refém. E, se falasse
sobre o tanque, estaria condenando Alex.
Não importava se tinham se passado oito anos. Ele
nunca conseguiria ferir Alex. Não enquanto ainda tivesse
consciência.
Às vezes ele quase preferiria que sua mãe tivesse
deixado que ele fosse morto, oito anos antes. Teria sido
melhor do que elas continuarem pagando por aquele
acordo. Mas, se ela tivesse feito aquilo, o Setor Dez não
estaria ali, porque o tanque teria chegado na capacidade
máxima.
E pensar em "e se" não levaria a lugar nenhum.
Alex abriu as portas de acrílico na sua frente e
continuou pelo corredor.
Gustavo parou por um instante. Eles tinham mais
pessoal ali embaixo, pela quantidade de vozes que
estava ouvindo. Aquilo não deveria ser uma surpresa. Era
óbvio que o Setor Dez ia mandar pessoal para estudar o
que estava ali. Ele não tinha motivo para se sentir
decepcionado – porque por alguns minutos tinha pensado
que Alex ainda confiava nele o suficiente para não ter
mais ninguém ali. Estupidez.
E Alex tinha parado de andar, também.
— De onde você controla o reservatório? — Elu
perguntou.
Gustavo respirou fundo e voltou a andar, passando
por Alex e por mais algumas pessoas paradas no
corredor. Uma mulher inclinada na direção da parede,
que parecia estar recolhendo amostras, com outra
mulher parada atrás dela e segurando o que parecia ser
uma pistola de laser. Um homem mais para a frente, que
também parecia estar pegando amostras da parede, mas
perto de uma das portas. Um grupo de pessoas
conversando em voz baixa na frente de uma sala
fechada – a sala que funcionava como um observatório
do tanque.
Ele continuou, ignorando as outras portas e os
olhares nele. Algumas pessoas, ele até reconhecia de
antes de ir embora. Pessoas que tinham estudado ou
treinado com ele. E uma das mulheres era descendente
dos sobreviventes do Setor Quatro, também. Ela fez
questão de parar e encarar Gustavo. Ele sustentou seu
olhar por um instante antes de continuar, até virar o
corredor e parar na frente de outra porta.
Alex parou a alguns passos de distância, sem falar
nada.
Gustavo suspirou e abriu a porta. Não tinha luz ali,
mas não fazia diferença. As telas embutidas nas paredes
eram iluminação mais do que o suficiente. E a sala
estava exatamente como ele tinha deixado, quase seis
meses antes. Não tinha nenhum sinal de que alguém
tivesse entrado ali naquele tempo – não que alguém
tivesse motivos para ir atrás daquela sala.
Ele encarou as telas com o gráfico de crescimento do
poder e o ritmo em que o tanque estava enchendo. Tudo
dentro do esperado. E ele não fazia ideia do que os
gráficos e números nos outros monitores queriam dizer.
— Como isso está ligado? — Alex perguntou.
Gustavo deu de ombros.
— Nunca parei pra pensar nisso, mas nunca vi isso
ser desligado.
Alex balançou a cabeça devagar e entrou na sala,
olhando ao redor. Elu parou, encarando um dos gráficos,
antes de pegar seu tablet e apertar alguma coisa.
— Quantas vezes você veio aqui antes? — Elu
perguntou. — Antes de desaparecer.
— Muitas. Meu pai sempre vinha aqui.
Alex assentiu, sem olhar para ele.
Gustavo não sabia o que era pior: o não olhar, ou a
forma como Alex o encarara quando estavam na casa
segura. Aquele olhar, quando ele tinha saído do banheiro,
tinha jogado Gustavo de volta no passado. Dez anos
antes, na cozinha da sua casa, quando ele tinha
percebido que não precisava ficar se sentindo mal por
querer mais que só amizade, porque Alex queria a
mesma coisa.
E, menos de dois anos depois, ele tinha destruído
tudo.
Sua pele formigou e ele se forçou a respirar fundo.
Não fazia dois dias desde que tinha tomado o antídoto. O
monstro não ia nem chegar perto da superfície.
O que ele fizera tinha sido necessário, sim. Mais do
que necessário. Mas uma parte de Gustavo sempre ia se
arrepender, por causa do que tinha perdido.
Uma mulher de cabelo castanho claro cacheado com
mechas azuis entrou na sala, passando por Gustavo
como se ele não estivesse lá. Andreia. Ele tinha visto ela
vezes demais com Yuri. E, se o responsável pela
segurança não estava ali embaixo, fazia sentido que ela
estivesse.
Andreia parou e olhou ao redor.
— Como isso está ligado? — Ela perguntou.
— É o que eu quero saber — Alex falou. — E quero
saber exatamente o que está em cada uma dessas telas.
Gustavo?
Ele já estava esperando quando elu se virou.
Com um suspiro, Gustavo apontou uma das telas e
depois outra.
— Nível do tanque. Crescimento do poder. A linha
azul é o nível ideal — ele contou. — Verde está dentro da
margem de segurança. Qualquer coisa acima do amarelo
já é área de risco.
Alex encarou a tela com o crescimento do poder por
alguns instantes antes de olhar para Andreia.
— Isso é sua área.
Andreia assentiu.
— Vou trazer meu pessoal para conferir isso.
"Seu pessoal"? Então Gustavo tinha entendido
errado quando tinha pensado que Andreia era parte do
pessoal da força de defesa. Ou talvez só fosse alguma
subdivisão ali dentro.
Alex se virou para Gustavo.
— E, enquanto isso, quero saber como você faz para
drenar o poder — elu avisou. — Por onde esse poder
escapa e exatamente o que aconteceria se não fosse
drenado.
— E o que é esse poder — Andreia completou.
Alex fez um som entre irritado e impaciente.
— Isso eu estudo enquanto estiver vendo o resto —
elu falou.
O resto. O escoamento de poder – que só podia ser
acessado por um alterado.
O que queria dizer que Gustavo ainda passaria mais
tempo ali embaixo, perto demais de Alex.
Sua pele formigou, de novo, e ele sentiu a coisa
dentro dele se agitando.
Ele entendia seu pai sobre aquilo, também: o que
Gustavo tinha do antídoto não ia durar.

Eric encarou o vampiro sentado na poltrona na sua frente. Amon.


O mesmo Amon que, por séculos, havia sido mencionado
em sussurros, como o monstro insano que poderia causar
a destruição de todos eles. E ali estava ele, indo para o
Setor Três na segunda noite seguida porque precisavam
negociar.
Não. Aquilo tinha sido a fala dos outros príncipes – os
dois que ainda sobreviviam e pensavam que tinham
alguma autoridade. Eles queriam tratar aquilo tudo como
um prelúdio para uma negociação. Seis meses haviam
sido o suficiente para ver um pouco mais do Setor Dez e
agora estavam dispostos a acreditar na palavra deles,
mas ainda precisavam sondar para ter certeza de que
teriam o que queriam.
Perda de tempo. Eric tinha concordado com aquilo e
com mostrar o pântano para Amon porque, no fim, não
fazia diferença. Mas ele não tinha as mesmas
preocupações que os dois príncipes iludidos. E não
demoraria para eles não importarem mais, também.
Eric sabia exatamente do que precisava. E também
sabia exatamente o que estava em risco.
— Você está se escondendo — ele falou.
Amon sorriu, mostrando as presas, e virou a mão que
estava no encosto da poltrona, até que estava com a
palma para cima. As marcas no seu antebraço já
estavam escuras, então não foi surpresa quando
sombras apareceram na sua mão antes de se
espalharem ao redor da poltrona e pararem.
Eric continuou onde estava, também sentado. Ele
conhecia muito bem as histórias sobre o que aquelas
sombras faziam – a loucura que era capaz de destruir até
os mais fortes entre os vampiros. Mas também sabia que
Amon estava ali como um aliado.
— Não estou me escondendo — Amon falou. — Mas
não tenho motivos para fazer mais do que estou fazendo.
Talvez. Ou talvez ele só estivesse esperando a hora
certa.
— Você poderia...
Amon balançou a cabeça.
— Eu poderia várias coisas. Mas não me interessa. O
Setor Dez me libertou e me aceitou sem nenhuma
condição. Eles ganharam minha lealdade. As Cortes não
podem dizer a mesma coisa. Nem mesmo a Corte da
Névoa.
Eric assentiu devagar. Lealdade. Ele entendia aquilo,
mesmo que fosse algo raro entre os vampiros. O poder
sempre falava mais alto.
A última vez que ele tinha visto alguém no Setor Três
recusar poder por causa de lealdade havia sido logo
antes do pântano se formar. Aquele havia sido o estopim
para o príncipe antes dele mostrar do que realmente era
capaz e para Eric parar de se esconder.
Mas tudo o que ele fizera tinha sido pouco demais,
tarde demais, porque a lealdade de duas pessoas havia
cobrado seu preço. E Eric tinha jurado que não deixaria
aquilo acontecer de novo.
Não que o que ele suspeitava que estivesse
acontecendo tivesse algo a ver com lealdade. Não. Tinha
a ver com ambição, mais nada, não importava de que
lado ele olhasse para a situação. O que queria dizer que
Eric precisava que Amon percebesse aquele risco,
também.
— Nem sempre você foi Amon — ele falou.
O outro vampiro inclinou a cabeça.
— Quem eu fui antes não importa. Aquela pessoa
morreu muito antes da volta da magia.
Sim. Eric não discutiria com aquilo. Ele não era tão
antigo a ponto de ter precisado deixar sua vida antiga
para trás, mas sabia que não era algo incomum.
Vampiros mudavam de nome, se afastavam do seu
passado e agiam como se nada daquilo houvesse
acontecido quando precisavam começar de novo.
Sempre havia sido assim, desde muito antes da volta da
magia.
Mas nem sempre deixar um nome para trás era
realmente um recomeço. Às vezes era apenas uma
chance de fazer a mesma coisa de outra forma, depois
de ter garantido que não cairia junto com os outros.
— Ele nem sempre foi Rafael — Eric falou. — Você
deve se lembrar. E você sabe o que ele fez, no passado.
Amon não respondeu, mas as sombras ao redor dele
pareciam mais escuras.
Eric pegou a taça que estava na mesa ao seu lado e
girou o líquido nela devagar. O cheiro do vinho misturado
com sangue se espalhou pela sala.
Ele não questionava a decisão de Amon de não se
envolver com as Cortes. Ele não estava errado. Se o que
ele tinha no Setor Dez era real, então estava mais que
certo em proteger aquilo e mais nada. Mas, se o que Eric
suspeitasse se tornasse real, o Setor Dez não
sobreviveria a menos que Amon tomasse uma posição.
— Você sabe que querem derrubar o Setor Um — ele
continuou. — Ao contrário deles, você conhece o
suficiente sobre o passado para saber o que vai
acontecer quando ele perceber que não está no controle.
— Ele não vai me enfrentar diretamente — Amon
falou.
Claro que não ia. Os vampiros mais antigos sempre
se evitavam, e com razão. Mas Lorde Rafael não
precisava enfrentar Amon diretamente.
— Isso não vai importar quando não existir mais
nada ao redor do Setor Dez — Eric lembrou. — E vocês
não vão conseguir sobreviver sozinhos.
Amon abaixou a cabeça, encarando Eric de um jeito
que era um aviso claro.
— Foi por isso que quis uma aliança com o Setor
Dez? Para eu ser uma arma nesse seu conflito
imaginário?
Eric deu uma risada seca.
— Eu quase preferia que fosse, mesmo que saiba
muito bem quais seriam as consequências para alguém
que tentasse te usar como arma. — Ele balançou a
cabeça e encarou a taça na sua mão. — Isso, agora, é só
um aviso, porque não é segredo que o Setor Três não
sobreviveria em uma situação assim, também.
O outro vampiro levantou as sobrancelhas. Eric
balançou a cabeça de novo. Ele sabia o que Amon estava
questionando: o Setor Três era o único que ainda
praticava o tipo de magia que havia quase desaparecido
séculos antes. Eles eram necromantes, tinham poder
sobre a morte – e consequentemente sobre os vampiros.
Mas nem todos ali eram necromantes e o poder que
podiam reunir nunca seria o suficiente para um conflito
aberto.
As sombras ao redor de Amon desapareceram de
uma vez e ele se inclinou para a frente.
— O que você realmente quer, Eric? — Amon
perguntou. — Porque se ontem serviu para alguma coisa,
foi para eu ter certeza de que essa aliança não existe
porque o Setor Três quis. Ela existe por sua causa. E você
não pediu essa reunião para me dar avisos vagos.
Não. Aquilo era apenas parte do problema – e não
era a parte mais imediata.
Os outros príncipes eram contra dizer a verdade. De
acordo com eles, aquilo colocaria o Setor Três em uma
posição vulnerável demais. Eric havia aceitado o que
falavam no dia anterior para evitar um conflito
desnecessário, mas aquilo já havia se estendido por
tempo demais e ele estava cansado de ver os outros
darem voltas no seu próprio orgulho enquanto colocavam
a sobrevivência do setor em risco.
— Você viu o pântano — Eric começou.
Amon assentiu, sem falar nada.
— Ele nem sempre existiu — Eric contou. — Foi
criado por um acidente, de certa forma. E, desde que
isso aconteceu, ele continua crescendo cada vez mais.
Nossa estimativa é de que temos no máximo dois anos
antes do pântano ocupar áreas vitais do setor e não
termos mais como nos manter aqui.
O outro vampiro continuou sem falar nada.
— Entrei em contato com o Setor Dez porque se
existe alguém capaz de controlar isso, vai estar entre
vocês — ele completou. — E, se isso for impossível,
então espero que exista um lugar para onde os humanos
do setor possam ir e estar em segurança.
DEZ

Alex encarou as linhas desenhadas no seu tablet antes de levantar


a cabeça e olhar para o teto. Elu não conseguia entender
o que estava sentido ali em cima e aquilo não era bom.
— Nada? — Melissa perguntou.
Elu balançou a cabeça.
— Os canos ou o que quer que sejam estão perto
demais. O poder está junto demais pra eu conseguir
sentir uma direção.
O que queria dizer muito, considerando que aquele
complexo todo era um emaranhado de fios de poder.
Mas, depois de uma semana inteira ali, Alex já estava
mais que acostumade a separar o poder que saía do
reservatório do resto que estava impregnado pelo lugar.
Ele era diferente – com algo a mais ali que Alex sentia
que deveria saber o que era, mas não conseguia
identificar.
E elu estava já havia uma semana tentando mapear
para onde aquele poder escoava quando o reservatório
era drenado. Naqueles dias, o pessoal que Yuri tinha
redirecionado para o complexo já tinha mapeado uma
boa parte dos túneis subterrâneos e Alex estava usando
o mapeamento deles como base para marcar o trajeto do
poder e, até então, aquilo tinha funcionado
perfeitamente.
Mas agora elu estava ali, sentindo o poder reunido
em algum lugar acima do teto e sem ter a menor ideia de
para onde estava indo.
— E se tentar achar isso da superfície? — Melissa
insistiu.
Alex tamborilou com os dedos na parte de trás do
seu tablet. Era uma possibilidade, sim, mas elu não
achava que fosse adiantar nada. Logo no começo,
quando elu e Yuri tinham terminado de organizar o
pessoal ali, Alex tinha tentado sentir alguma coisa da
superfície e não havia conseguido notar nada. Tinha um
vestígio de poder na vila em ruínas, mas só ali. Mesmo
que os corredores do complexo subterrâneo estivessem
impregnados de poder, elu não conseguia sentir mesmo
nas direções que sabia que deveria estar sentindo
alguma coisa.
E não tinha sido por falta de tentar. Se tivesse que
escolher entre estar na superfície e estar ali nos túneis,
Alex não precisava nem pensar no que preferia. E o fato
de que estar ali queria dizer estar em um espaço
relativamente pequeno com Gustavo não ajudava nem
um pouco. Se estivesse na superfície seria mais fácil
tentar fingir que ele estar por perto não fazia diferença.
— Eu tentei, antes — Alex contou. — Não estava
sentindo nada.
— Mas não testou com Gustavo abrindo o sistema de
drenagem — Melissa completou.
Não. Era aquilo que estavam fazendo: ele abria o
sistema o mínimo possível, só o suficiente para um filete
da água e um vestígio daquele poder e consciência
passarem, e Alex e Melissa rastreavam o caminho que
aquilo estava fazendo. Tinha sido uma boa ideia e estava
funcionando, pelo menos até chegarem naquele salão.
A pior parte era que Alex não podia nem ignorar
aquilo e deixar para depois. Precisavam saber para onde
o poder drenado ia, porque aquilo provavelmente tinha
algo a ver com como a água do reservatório poderia se
espalhar por todo o setor. Não que fosse difícil aquilo
acontecer, mas elu tinha certeza de que o Setor Quatro
não teria deixado uma coisa daquelas dependendo da
sorte. Eles teriam um sistema para garantir que tudo se
espalhasse.
Gustavo entrou no salão e parou, olhando para cima.
Interessante.
— O que você consegue notar? — Alex perguntou.
Gustavo balançou a cabeça devagar.
— Não sei explicar — ele murmurou, ainda olhando
para o alto. — Mas tem alguma coisa aqui em cima.
Até onde Alex sabia, Gustavo não conseguia sentir
nenhum tipo de poder. Mesmo que ele tivesse escondido
aquilo delu por anos, Alex teria notado alguma reação
antes. Então não era só o poder ali em cima. Tinha mais
alguma coisa.
Ou talvez fosse só a semelhança com o poder ao
redor dele.
Elu encarou Gustavo. Ele estava com as mãos
fechadas e respirando devagar, de um jeito que era
controlado demais para ser natural. Estava tentando se
acalmar, por algum motivo.
Alex se virou para Melissa.
— E você?
Ela também balançou a cabeça.
— É a mesma sensação desde o começo. Um
protótipo de consciência, de certa forma. Como se fosse
uma coleção de instintos em uma direção.
Já era mais do que Melissa tinha falado antes.
— E você está certe — ela completou. — Eu consigo
sentir essa consciência no caminho até aqui, também,
mas nada saindo daqui.
Interessante, também, as duas partes. Se Melissa
ainda estava sentindo aquela consciência, então era
porque tinha um vestígio dela no caminho. Nos canos? O
que queria dizer que podia ser restos da água, o que
confirmaria como o poder estava sendo carregado. Ele e
a água estavam interligados, de alguma forma.
Agora, a parte sobre não ter nada saindo dali...
Melissa foi na direção do corredor de onde tinham
vindo, olhando para cima, e parou.
Alex suspirou e encarou seu tablet de novo. O
pessoal de Yuri não tinha mapeado muito além de onde
estavam, o que queria dizer que, se tentasse achar
alguma coisa além dali, iam depender das lanternas e elu
não estava nem um pouco disposte a fazer aquilo. Era
fácil demais não ver alguma coisa importante ou
arriscada quando estava num lugar como aquele só com
lanternas.
E, além daquilo, havia o fato de que Alex tinha
certeza de que alguma coisa estava para acontecer. Não
era nem algo ligado ao poder, diretamente: era sobre
Gustavo. Ele estava cada dia mais tenso, como se
estivesse esperando algo dar errado. E aquilo era
diferente da tensão que todos que estavam trabalhando
no complexo subterrâneo sentiam. Não era algo vago. Ele
sabia que alguma coisa ia acontecer.
Já fazia dois dias que Alex tinha notado aquilo, mas
elu não ia perguntar nada. Não importava se era o certo,
o profissional a se fazer. Elu tinha visto Gustavo daquele
jeito, antes. Tinha perguntado – insistido, até – sobre o
que estava acontecendo, e ele tinha negado que
houvesse alguma coisa. Tinha mentido para elu.
Então Alex não ia perguntar, porque não queria outra
mentira como aquela. Não importava se fosse oito anos
depois e que elu não confiava mais em Gustavo. Na
verdade, suas suspeitas eram exatamente de que ele
estava traindo o Setor Dez de alguma forma. Era o mais
provável e o mais fácil de estar acontecendo, a questão
era só como.
Alex olhou para cima. A sensação do poder ainda
estava ali. Aquilo também era diferente, porque em tudo
que tinham mapeado até então a sensação desaparecia
depressa. Era como se o poder estivesse escoando em
uma direção e mais nada. O que sobrava era um vestígio
minúsculo que não demorava a desaparecer – mesmo
que, pelo visto, ainda sobrasse um pouco da tal
"consciência" que Melissa tinha sentido.
Não fazia sentido. Se é que Alex podia dizer que
alguma coisa ali fazia sentido.
— Alex... — Gustavo começou.
Elu abaixou a cabeça. Gustavo ainda estava
encarando o teto. Melissa tinha ido mais para perto da
entrada.
— O que foi?
Ele balançou a cabeça e deu um passou na direção
de Alex, sem desviar o olhar do teto.
Alex olhou para cima de novo. Não tinha nada de
diferente. Era a mesma sensação do poder reunido, sem
nenhum sinal de que estava saindo dali.
Algo fez um som abafado. Elu olhou para a porta.
Melissa estava olhando ao redor, como se estivesse
tentando achar de onde aquele som tinha vindo.
E de novo, mas dessa vez tinha mais alguma coisa
naquele som.
Alex olhou para cima em tempo de ver uma
rachadura grande se abrir no teto.
— Sai! — Elu gritou.
Gustavo se jogou sobre Alex um instante antes do
teto desabar e tudo escurecer.

Yuri encarou o buraco que tinha se aberto do nada perto de um


dos pomares. Já fazia quase vinte minutos desde que
aquilo tinha desabado e continuavam sem ter a menor
ideia do que tinha acontecido. Por sorte, não tinha
ninguém naquela área quando tudo havia caído e ele
havia colocado pessoal para marcar um perímetro de
segurança assim que tinha recebido o primeiro aviso.
Mas o buraco ali não era o maior problema – tirando um
ou outro adolescente curioso, ninguém do Setor Dez ia se
aproximar de um perímetro marcado como sendo de
risco. O problema era Alex e Gustavo, que ainda estavam
lá embaixo presos por trás de tudo que tinha desabado.
Pelo menos, ele esperava que estivessem lá. A única
confirmação daquilo que ele tinha era Melissa, que havia
avisado que conseguia sentir a consciência tanto de
Gustavo quanto de Alex, mesmo que não tivesse
conseguido nenhuma resposta naqueles vinte minutos.
Yuri ia confiar na palavra dela. Precisava confiar, porque
tinha sido ele quem havia autorizado os trabalhos no
complexo subterrâneo, depois das análises iniciais. Se
acontecesse alguma coisa com Alex, seria sua culpa.
E Yuri não ia pensar que podia ter sido Melissa presa
lá, também. Podia ter sido, mas ela estava bem, mesmo
que tivesse sido só por sorte. Então primeiro ele ia lidar
com aquela situação. Depois...
Eduardo parou ao seu lado.
— As últimas leituras daqui são de três meses atrás
— ele contou. — O solo estava estável. Nenhum sinal de
nada que indicasse o complexo subterrâneo ou alguma
falha desse tipo.
Yuri assentiu. Era a resposta que ele sabia que era
mais provável, mas mesmo assim ele tinha tido
esperança de que houvesse alguma coisa lá. As leituras
do solo eram algo padrão que o setor fazia a cada quatro
meses e ele não entendia nada sobre aquela parte das
coisas. Mas elas eram necessárias por causa da guerra
entre o Setor Quatro e o Setor Oito, no passado. Eram um
jeito de tentar identificar qualquer tipo de dano no
território...
Porque já suspeitavam que o Setor Quatro pudesse
ter deixado alguma surpresa para trás. Yuri nunca tinha
pensado naquilo antes. A questão era se Lorde Rafael
tinha falado para fazerem aquelas análises ou se tinha
sido uma suspeita de Raquel e Ezequiel.
E entender aquilo não ia mudar o fato de que ele
tinha duas pessoas presas por trás de um desabamento,
sem ter informações o suficiente para saber se podia
arriscar uma escavação ou se algo do tipo só ia
desestabilizar o resto do complexo.
— O pessoal responsável pelas análises? — Yuri
perguntou.
— Indo se encontrar com Andreia.
Perfeito. Ela era parte da força de defesa e muitas
vezes a tratavam como uma das assistentes de Yuri – e
Andreia já tinha falado que preferia só pensassem nela
daquele jeito. Mas, quando o assunto era informações e a
parte técnica de uma operação daquele tipo, era ela
quem assumia. Yuri não ia ser burro de tentar controlar
um lado da situação que ele sabia que não era seu ponto
forte.
Seu tablet vibrou. Yuri pegou o aparelho, ao mesmo
tempo em que Eduardo fazia a mesma coisa.
Era uma mensagem de Melissa, no servidor interno
que a organização do setor usava. E, de acordo com ela,
não tinha nenhum sinal de mais alguma coisa se
quebrando. O desabamento estava estável, sem
nenhuma rachadura nova no teto. Até o que tinha caído
parecia estável demais – mas não o suficiente para
conseguirem abrir uma passagem na altura do chão.
Yuri fechou a mão livre com força. Ele não ia falar
nada até os especialistas de Eduardo verificarem tudo lá
embaixo, mas era capaz de apostar que teriam que
escavar por cima de onde tinha desabado. Talvez até
tentando descer dali da superfície. E ele não fazia ideia
de quanto tempo aquilo demoraria.
Ele digitou uma mensagem rápida, perguntando o
que Melissa conseguia sentir. A resposta veio na hora: ela
ainda estava sentindo Alex e Gustavo do outro lado e
suas consciências estavam fortes.
Era o suficiente, por enquanto.
— Yuri — Eduardo chamou.
Ele olhou para o outro homem e depois para onde
ele estava apontando.
Não tinha nada de diferente no buraco – cratera,
quase – do desabamento. A terra só havia afundado no
lugar, com a grama baixa e tudo mais. Em alguns
lugares, ela tinha se revirado o suficiente para jogar
pedras e terra solta por cima da grama, mas ainda
parecia só que tudo tinha afundado.
Era a mesma coisa que Yuri tinha visto desde que
havia chegado ali.
Não. A grama mais no centro de tudo parecia
molhada.
Enquanto ele estava olhando, uma bolha estourou.
Tinha água ali. Não era só impressão. E a água não
estava ali antes. Ela estava vazando aos poucos de
algum lugar.
— O que mais descobriram sobre o reservatório? —
Eduardo perguntou.
Que era um problema. E, se aquela água estava
vindo do reservatório, Yuri não queria nem pensar nas
consequências, ainda mais tão perto dos pomares.

Alex respirou fundo e olhou ao redor de novo. Não que elu


conseguisse ver alguma coisa. Quando o teto tinha
desabado, tinha cortado completamente a luz vinda do
corredor. Provavelmente tinha arrancado o fio com
lâmpadas na parede, também, o que queria dizer que
existia o risco de ter vidro quebrado ali em algum lugar. E
Alex não conseguia ouvir nada, também, mesmo que
tivesse certeza que àquela altura alguém teria chamado
por elu do outro lado. O que queria dizer que, ou o
desabamento era enorme, a ponto de bloquear
completamente o som, ou então tinha algo bloqueando
tudo.
Considerando que o complexo subterrâneo estava ali
há décadas e ninguém no Setor Dez nunca tinha notado
nada, elu apostava na segunda opção.
Não. Alex estava ouvindo alguma coisa sim: a
respiração pesada e lenta de Gustavo. Ele tinha se
jogado sobre Alex assim que tudo tinha começado a
desabar, sem falar nada. Elu tinha sentido as costas de
Gustavo baterem na parede e então ele havia soltado
Alex e se afastado. Pelo menos, era o que tinha parecido.
Se ele não tivesse se jogado em Alex, elu estaria
debaixo do desabamento, sem a menor chance de ter
sobrevivido. Mas estava ali, sentade meio contra a
parede, só com alguns arranhões por causa das pedras e
pedaços de concreto ricocheteando. Se não fosse por
Gustavo...
Não. Alex não ia começar a pensar naquilo. Ir
naquela direção ia fazer elu se importar e Alex não ia
fazer aquela burrice duas vezes. Gustavo tinha feito
aquilo por reflexo e mais nada. Teria feito a mesma coisa
não importava quem estivesse ali.
E aquilo não mudava o fato de que era Gustavo
quem estava preso ali com Alex, até acharem um jeito de
sair. Ou até o pessoal do setor conseguir abrir uma
passagem.
— Você está bem? — Elu perguntou.
Gustavo grunhiu alguma coisa. Não era uma
resposta, o que nunca era boa coisa, mas também não
tinha parecido um grunhido de dor.
Bom. Aquilo era bom. Se Gustavo também não tinha
nenhum ferimento grave, então tinham mais chances de
conseguir sair dali sem nenhum problema. E pelo menos
tinha ar fresco entrando ali. Ou melhor, Alex achava que
tinha, porque não estava sentindo o que diziam sobre o
ar ficar mais pesado por causa da falta de oxigênio. Ou
talvez só não tivesse passado tempo o suficiente para elu
notar aquilo.
Mas ainda tinha poeira no ar. Elu não estava
respirando fundo justamente por causa daquilo. Se ainda
tinha poeira no ar era porque alguma coisa continuava
mantendo ela ali e provavelmente era o ar circulando.
E se Alex estava focando em coisas aleatórias para
não entrar em pânico... Pelo menos não estava entrando
em pânico.
Elu se virou e sentiu algo duro contra seu corpo. O
tablet no bolso do seu colete. Sim. O tablet ia ter luz.
Alex puxou o aparelho e apertou o botão lateral para
ligar a tela. Ela acendeu. A tela principal do tablet estava
trincada e Alex tinha certeza que, se tentasse abrir para
as três telas que eram o tamanho maior dele, a coisa
toda ia só se desfazer. Elu ia ter que ter cuidado, então,
porque aquilo era a única fonte de luz que tinha.
E não tinha sinal. Era esperado, porque o sinal
desaparecia alguns corredores antes de chegarem
naquele salão, mas Alex tinha chegado a imaginar que
talvez o teto ter desabado fosse o suficiente mudar
aquilo. Ia ser mais fácil se tivessem como falar qualquer
coisa com quem estava lá fora.
Um arrepio atravessou Alex. Elu não ia pensar em
quão debaixo da terra estavam e em quanta coisa tinha
ao redor para não ter nem sinal ali. E para não
conseguirem ouvir nada. E definitivamente não ia entrar
em pânico.
Elu virou o tablet devagar, tentando usar a luz da
tela para ver alguma coisa ao redor. A parede feita pelo
desabamento estava um pouco para o seu lado e não
parecia ser só concreto. Claro que não era. Alex tinha se
esquecido que as paredes ali eram construídas em
camadas, como a caixa que havia sido usada para
prender Amon. Aquilo tinha sido repassado para o
pessoal analisando o complexo subterrâneo, mas Alex
não sabia se tinham descoberto mais alguma coisa. Elu
tinha se concentrado em descobrir mais sobre o poder no
reservatório.
Gustavo estava encostado na parede, não muito
longe de Alex, com a cabeça jogada para trás e os olhos
fechados. Na luz do tablet, elu não conseguia ver
detalhes mas não parecia que ele estava machucado.
Ótimo. Não que aquilo fosse uma garantia de alguma
coisa. Alex não se surpreenderia se ele estivesse ferido e
só não tivesse falado nada. Seria bem típico de Gustavo.
Tão típico quanto ele só esconder uma coisa daquele
tamanho – sobre as alterações – de Alex. Elu nunca tinha
pensado por aquele lado, mas era algo que fazia sentido
demais com Gustavo. Quantas vezes elu tinha visto
Gustavo omitir alguma coisa ou esconder problemas para
resolver tudo por conta própria antes da sua mãe
descobrir o que estava acontecendo?
A saída para o outro corredor, na parte do complexo
que não tinha sido mapeada, estava do outro lado de
Gustavo. Bom. Se parecesse que mais do teto ia desabar
pelo menos tinham para onde tentar ir.
Alex levantou o tablet. Não dava para ver muita
coisa do teto, mas as poucas rachaduras lá pareciam
superficiais.
Elu encarou as pilhas de entulho no meio do salão,
de novo. Parecia tudo estável, também. Não tinha nem
uma pedra rolando. Aquilo queria dizer que não ia
desabar mais nada, não era?
Alex se levantou devagar e foi na direção do
desabamento. Talvez pudessem começar a abrir caminho
por ali...
— Não — Gustavo falou.
Elu se virou. Ele ainda estava apoiado na parede,
com a cabeça meio jogada para trás, mas agora estava
olhando para Alex.
— Não tenta cavar nem abrir caminho — ele avisou.
— A gente tem ar fresco. Se você mexer em alguma
coisa e desestabilizar isso, além do risco de desabar mais
do teto, tem o risco de bloquear a passagem de ar.
Gustavo tinha um bom ponto.
Alex assentiu e voltou a se sentar encostade na
parede. Esperar, então. Esperar, sem fazer nada.
Enquanto estavam presos num complexo
subterrâneo, elu não sabia nem quantos metros abaixo
da superfície. E sem ter a menor ideia de se tinha
alguma chance de mais coisa desabar.
Não. Elu precisava de alguma distração. Qualquer
coisa para não ficar pensando naquilo.
Alex encarou a parede de entulho de novo e virou a
luz do tablet para lá.
— Pra que a parede em camadas? — Elu perguntou.
— O quê?
Alex respirou fundo e gesticulou na direção da coisa
toda no meio do salão. Mesmo com a luz fraca, era fácil
ver que não era uma parede comum ali. Tinha concreto,
cerâmica, um metal que elu achava que era cobre mas
podia ser alguma mistura específica – quem entendia
disso era seu pai – e mais alguma coisa que Alex não
tinha reconhecido, tudo misturado com a terra que tinha
caído.
— Pra conter o poder — Gustavo respondeu.
Um arrepio atravessou Alex. Ele não tinha nem
precisado pensar para responder.
— Como assim?
Gustavo suspirou alto.
— Você já juntou os pontos, Alex — ele murmurou. —
Do jeito que você é, aposto que não demorou nada pra
reconhecer que era a mesma coisa de onde o vampiro
estava preso.
Ele não estava errado. Alex tinha reconhecido aquilo
desde o começo.
E não ia perguntar se, em todas as vezes que tinham
ido na cidade velha, quando eram crianças, Gustavo
sabia que Amon estava preso nas ruínas. Não precisava
perguntar, na verdade. E se ele sabia que Amon estava
lá aquele tempo todo...
Não, uma coisa de cada vez.
— Eu entendi que é para conter o poder — Alex
falou. — Mas não entendi como. E antes de você falar
que não dá para entender poder e como essas coisas
funcionam, dá. Tanto dá que eu entendi o que aquele
antídoto era sem você precisar falar nada.
Gustavo fechou os olhos de novo e Alex teve a
impressão de que ele estava fechando as mãos também.
Ele não tinha saído daquele lugar. Nem mudado de
posição.
— Se você estiver tentando esconder que está com
alguma coisa quebrada ou coisa assim... — Alex
começou.
Gustavo balançou a cabeça devagar.
— Sinta — ele falou.
Sentir o quê? A única coisa que Alex estava sentindo
era aquela tensão que elu tinha certeza que era só o
começo do pânico.
Não. Não era. Elu ainda estava sentindo o poder.
Aquele era o motivo para terem ido ali: os vestígios de
poder que elu estava seguindo quando Gustavo ativava o
sistema de drenagem do reservatório, só o suficiente
para terem uma indicação de para onde irem.
Era óbvio que o poder não ia ter desaparecido. E
aquele poder estava em algum lugar acima do teto, de
um jeito que elu não tinha conseguido entender para
onde estava indo...
E agora o poder estava ali e não era nenhum
"vestígio". Aquele era o motivo para os arrepios de Alex.
A única vez que elu tinha sentido tanto poder assim tinha
sido quando Raquel havia explodido o seu poder para
destruir os vampiros do Setor Oito. Não. Era menos que
daquela vez, óbvio. Mas parecia tão concentrado quanto
tinha sido aquela noite.
Elu encarou o entulho e depois olhou para o teto de
novo.
— Por que a parede em camadas? — Alex repetiu.
Porque o teto também tinha sido construído em
camadas e elu tinha certeza de que não tinha sido por
acaso. Toda aquela estrutura tinha sido construída
daquele jeito. Elu entendia a questão de conter os
alterados, mas não parecia que nenhum deles tinha
passado algum tempo ali em cima. Se fosse na parte de
baixo do complexo, a que elu e Melissa tinham achado
antes, com as macas e correntes, até faria sentido. Mas
não ali.
— Pra conter o poder — Gustavo falou de novo. — O
poder, não necessariamente os alterados. Eles não
ficavam aqui.
— Não. Ficavam mais pra baixo — Alex murmurou.
Era o que elu tinha começado a pensar. Aquelas
camadas não eram para prender ninguém ali. Ou talvez
não só para prender. Eram elas que camuflavam a
impressão do poder – o que explicava Alex nunca ter
sentido o que estava escondido ali. E, na cidade velha,
provavelmente tinha sido um misto dos dois: algo para
manter Amon preso sem que a presença dele fosse fácil
de identificar.
Ou talvez um lugar que já existia antes, de quanto o
Setor Oito estava tentando estudar algum dos alterados –
porque era muito provável que tivessem conseguido
capturar um deles antes de entenderem o risco real.
— Mais pra baixo? — Gustavo perguntou.
Alex assentiu.
— Onde achamos o antídoto.
Talvez contar aquilo não tivesse sido sua melhor
ideia, porque elu ainda não tinha certeza de que Gustavo
não estava se preparando para trair o Setor Dez de
alguma forma. Mas não fazia diferença. Se ele não havia
achado a entrada naquele tempo todo que tinha passado
indo no complexo sozinho, antes, não ia descobrir só
porque Alex tinha falado a respeito.
Gustavo fez um som irritado e bateu a mão fechada
no chão. Ele provavelmente não tinha nem pensado que
existia outro andar, então.
E ele continuava sentado no mesmo lugar. E havia
desconversado quando Alex tinha falado sobre Gustavo
estar escondendo algum ferimento.
— O que o poder tem a ver com como você está
parado aí como se não pudesse se mexer? — Elu
perguntou.
Gustavo bateu o punho fechado no chão de novo e
se virou para Alex. Por um instante, elu teve a impressão
de ver um brilho avermelhado nos olhos de Gustavo.
— O poder está alimentando o monstro — ele
contou. — Estou parado aqui para tentar não te atacar.
Alex não respondeu. Elu tinha visto Gustavo usar o
antídoto dois dias antes. Não era para precisar de mais
tão depressa, era? Mas não ia questionar, não enquanto
estavam presos ali e ele já estava dizendo aquilo.
Gustavo desviou o olhar e inclinou a cabeça para
trás de novo antes de fechar os olhos.
ONZE

Rafael encarou o relatório na sua frente. Ele não havia esperado


que a situação fosse se estender por tanto tempo, mas o
sobrevivente do Setor Quatro ainda estava se
controlando, de alguma forma. Ele não tivera esperanças
reais de que as medidas de segurança do Quatro fossem
ser ativadas, mas aquele controle... Aquilo precisava ser
quebrado.
Ele levantou a cabeça e olhou para Thales, que
estava de pé do outro lado da mesa.
— Os mercenários não estão seguindo ordens —
Rafael falou.
Thales balançou a cabeça.
— Eles me garantiram que as ameaças foram feitas.
Ele deveria ter quebrado.
Rafael olhou para o relatório de novo. Cinquenta
anos não eram nada para alguém que vivera tanto
quanto ele. Com certeza não seriam o suficiente para
que ele se esquecesse das leituras daqueles sensores. O
que ele tinha ali era um sinal claro de um dos alterados,
mas um que ainda era humano. Pelas informações que
ele havia recebido, aquele sobrevivente deveria ser uma
bomba prestes a explodir. Ele já havia passado anos
sendo mais animal do que humano, quando escapara do
setor. Rafael ainda tinha as informações daqueles anos.
E, de alguma forma, ele estava se controlando.
— Quero ele quebrado nos próximos três dias —
Rafael avisou. — Diga para os mercenários aumentarem
a pressão. Têm minha autorização se precisarem tomar
medidas permanentes.
Thales assentiu e deu um passo atrás antes de parar
de novo.
— E Alana? — Ele perguntou.
Rafael levantou a cabeça devagar.
— O que tem ela?
— Ela pediu uma escolta para ir na cidade hoje de
novo.
Rafael juntou os dedos e encarou Thales. Era natural
que seus vampiros se interessassem por Alana. Ela era
uma bruxa da natureza, o que já era raro por si só. Mas,
além daquilo, muitos dos que tinham contato fora da
região – Thales incluso – sabiam o que a tatuagem de
Alana significava: que era ela da família que desafiara
um dos príncipes mais fortes do país. E havia
sobrevivido, de alguma forma. Era natural que ficassem
curiosos sobre ela.
Ninguém do Setor Um seria louco de tocar em Alana,
não importava se eram vampiros ou humanos. Eles
sabiam quais seriam as consequências. Mesmo assim,
Rafael não conseguia não se incomodar com o interesse
deles.
— Você tem algum motivo para suspeitar do que ela
está fazendo na cidade? — Ele perguntou.
Thales balançou a cabeça.
— Apenas pensei que gostaria de saber, já que está
perto do fim dos seis meses. Ela pode estar fazendo
planos para escapar daqui.
Não.
— Alana não tem motivos para pensar que não vai
voltar para o Setor Dez — Rafael falou. — Não tem
motivos para fazer planos para escapar. Mas continue
alerta, então.
O outro vampiro assentiu e saiu do escritório,
fechando a porta atrás de si.
Aquilo era um problema, de certa forma. Rafael não
havia imaginado que o Setor Dez ainda existiria quando
os seis primeiros meses do seu contrato com Alana
terminassem. O Setor Um deveria ser o único lugar
possível para ela, quando aquele tempo acabasse. E, se
os mercenários não entregassem o que haviam
prometido, então ele precisaria deixar que ela partisse.
Se tentasse manter Alana ali à força, ele nunca teria
nada do que queria dela.
Não. Se o sobrevivente do Setor Quatro não
quebrasse logo, Rafael teria que mudar seus planos.
Talvez fosse uma boa ideia criar mais um motivo
para Alana se apegar ao Setor Um.

Gustavo respirou fundo e soltou o ar devagar, de novo. Ele não


sabia se Alex tinha notado os cortes pequenos nelu.
Provavelmente eram só arranhões – se fossem algo mais
sério elu teria falado alguma coisa. Mas tinham sido o
suficiente para o cheiro do sangue de Alex se espalhar
naquele espaço. E, junto com o poder se espalhando ao
redor deles, aquilo era mais que o suficiente para ter
acordado o monstro.
A pele de Gustavo não estava formigando. Estava
quase vibrando. Era a mesma coisa que ele tinha sentido
oito anos antes, quando tinha perdido o controle e
atacado Brenda. Ele se recusava a deixar que aquilo
acontecesse de novo – especialmente quando estava
preso ali com Alex.
Alex, que estava com a respiração ficando cada vez
mais rápida, por mais que fosse óbvio que estava
tentando se controlar.
Gustavo não ia entrar em pânico – não por estar
preso ali, pelo menos. Aquilo não era nada comparado
com os primeiros anos depois de sair do Setor Dez. E ele
sabia o suficiente sobre como as coisas funcionavam ali
para ter certeza de que o pessoal do setor daria um jeito
de abrir uma passagem. Não. Suas preocupações eram
outras... Começando por não perder o controle e atacar
Alex.
Alex, que sempre arrumava qualquer assunto
aleatório para se distrair quando estava preocupade ou
com medo, quando eram adolescentes – e que tinha feito
a mesma coisa mais cedo, quando tinha começado a
perguntar sobre as paredes em camadas.
Gustavo abriu os olhos e se virou para elu. Alex
estava encarando a parte do teto que tinha desabado,
mas ele tinha quase certeza de que não estava
prestando atenção em nada ali. A respiração delu estava
acelerada demais e o cheiro de sangue ainda estava no
ar, junto com a sensação do poder.
A coisa dentro dele pareceu ficar mais forte e
Gustavo desviou o olhar. Não deveria ser assim. Ele sabia
o que aquilo era – o monstro tinha escolhido Alex. Sua
mãe tinha lhe explicado o máximo que conseguia sobre
aquilo e como era algo que sempre acontecia com os
alterados, mais cedo ou mais tarde. Mas ela não sabia
detalhes. Ela não conseguia explicar o motivo, ou o que
ele podia esperar. A única pessoa que ele poderia ter
perguntado era seu pai... Mas ele já estava morto quando
a coisa havia começado a acordar.
Mas ele não queria ver Alex entrando em pânico ali –
e aquilo não tinha nada a ver com se controlar.
— Por que essa tatuagem? — Gustavo perguntou.
Algo fez um ruído suave. Provavelmente Alex tinha
se virado, mas ele não ia abrir os olhos para ter certeza.
— O quê?
Gustavo deu de ombros.
— A tatuagem no seu braço — ele explicou. — As
penas. Tem algum motivo?
Ele tinha notado aquilo no segundo dia que tinham
ido na cidade velha – a primeira vez que tinha visto Alex
de ter voltado para o Setor Dez. Eram três penas no alto
do seu braço esquerdo, de cores vivas e que pareciam
estar pegando fogo nas pontas. Não era algo exatamente
incomum, mas ele nunca tinha visto alguma coisa
parecida com aquele desenho.
Alex não respondeu.
Gustavo suspirou e continuou onde estava. Não ia
insistir – mesmo que pudesse dizer que estava
perguntando só porque ia servir para distrair Alex e elu
não entrar em pânico. A verdade era que ele queria
saber, porque era uma parte de Alex que ele não
conhecia.
E, se não conhecia, era por sua própria culpa. Porque
ele tinha escolhido esconder a verdade.
Alex estava certe. Não precisava ter sido daquele
jeito.
— Eu li uma história uma vez — Alex começou, em
voz baixa. — De antes da magia. Era uma lenda, óbvio,
mas... Falava sobre um pássaro de penas vermelhas que
morria queimado, mas renascia das próprias chamas.
Gustavo nunca tinha ouvido nada daquele tipo e não
era uma surpresa. As histórias que ele conhecia sobre
animais com qualquer coisa ligada a magia eram sobre
as criaturas das terras de ninguém. Os animais que
tinham sido corrompidos pela magia e que haviam
caçado os humanos no começo de tudo, até que a
humanidade tinha feito um acordo com os vampiros em
troca de proteção.
— Quando eu comecei a trabalhar na escola, queria
fazer alguma coisa meio que pra marcar que o que tinha
conseguido — Alex continuou. — Lembrei dessa história e
fazia sentido com tudo.
Gustavo assentiu, sem abrir os olhos. Ele conseguia
entender como faria sentido – a ideia de morrer e
renascer do próprio fogo. Porque Gustavo tinha colocado
fogo em tudo ao redor de Alex. A relação que tinham, os
planos para o futuro, o que ele sabia que eram os planos
de Alex... Tudo tinha sido destruído quando ele tinha
desaparecido. E Alex tinha recomeçado, de certa forma.
— Mas eu não ia fazer um pássaro pegando fogo,
então... As penas — elu completou. — Não é como se
essa lenda fosse conhecida o suficiente para alguém
entender, então não faz diferença. Eu entendo.
— Combina com você — Gustavo murmurou.
Ele continuou de olhos fechados, mas tinha certeza
de que Alex tinha se virado para ele. A sensação do olhar
delu era quase física, de um jeito que não deveria ser
possível.
E Gustavo nunca ia tirar aquela imagem da mente.
Na época, ele só tinha pensado que estava fazendo o que
era melhor. Mas ele não tinha pensado nas
consequências – no preço que Alex pagaria por ele ter
desaparecido. Alex, que desde sempre havia treinado
para ser parte da força de defesa, também, junto com
ele, e que no fim das contas tinha se afastado de
qualquer coisa minimamente oficial no setor.
Ele suspirou. Nunca deveria ter sido daquele jeito. E
Alex merecia mais do que só uma explicação de qualquer
jeito sobre por que ele tinha feito aquilo.
Gustavo abriu os olhos. Alex o estava encarando,
sim, mas desviou o olhar na mesma hora.
Ele não podia nem achar aquilo ruim.
— Me desculpe — Gustavo falou.
Alex olhou para ele de novo, como se não tivesse
certeza do que estava ouvindo.
Era um absurdo que elu tivesse chegado no ponto de
duvidar que Gustavo podia estar falando aquilo. E era
sua culpa, também.
— Me desculpe — ele repetiu. — Você tem razão no
que falou aquela noite na casa segura. Eu fiz uma
escolha que não era a melhor, só... Parecia mais simples.
Alex continuou encarando Gustavo, sem falar nada.
Ele não tinha esperado ouvir um "tudo bem, deixa
para lá" ou coisa do tipo. Mas era a primeira vez que ele
realmente estava vendo as consequências do que tinha
feito. Estava ali, na tensão de Alex e na forma como elu
estava deixando claro que não acreditava em Gustavo,
mesmo sem falar nada.
Não era como se ele não soubesse o que tinha feito.
Mas, em todas as vezes que ele tinha se encontrado com
Alex, elu tinha feito questão de manter uma distância
gelada. Uma parede, que não deixava Gustavo ver as
reações de verdade delu, só o que Alex queria que ele
visse.
Gustavo engoliu em seco. Alex merecia toda a
verdade, não importava o quanto doesse para ele.
— Eu estava com medo — ele murmurou. — O tempo
todo, eu sabia o que eu era. O que eu podia me tornar.
Eu via os outros indo embora sempre que eu chegava em
algum lugar... Porque eles sabiam, também. Mesmo que
ninguém tivesse certeza de que eu tinha herdado as
alterações, quem sabia sobre nós sempre ficava o mais
longe possível.
Porque ele e Brenda eram os filhos de um monstro
que só estava vivo porque precisavam dele. Se
pudessem, as famílias dos sobreviventes do Setor Quatro
teriam se livrado de todos eles muito tempo antes.
E então ele tinha conhecido Alex, logo que o grupo
de Raquel tinha chegado ali, bem no começo, quando ele
ainda era criança demais para entender que aquele lugar
ia se tornar outro setor. E tudo tinha mudado. Aquelas
pessoas não fugiam da família dele, porque não sabiam
de nada. E então Alex...
— Eu não queria correr o risco de você se afastar —
Gustavo continuou. — E não fazia diferença, no fim das
contas, porque era bem possível que eu não tivesse
herdado nada. Ninguém nem sabia se ainda era possível
as alterações passarem para mais uma geração. Então
era melhor não falar nada mesmo.
Porque se ele acabasse não sendo um alterado, ia
poder fingir que sua família era normal. Que não via seu
pai encarando a caixa de antídotos de tempos em
tempos. E que não via quando ele ficava agressivo de
repente e só desaparecia por horas, antes de voltar mais
calmo e parecendo culpado.
E, depois, ia poder fingir que não tinha visto sua mãe
matar seu pai – porque era o único jeito de ela sobreviver
depois que ele havia perdido o controle.
Alex continuava sentade do mesmo jeito, olhando
para Gustavo com aquela expressão que ainda era
distante mas era mais verdadeira do que tudo que tinha
visto delu naqueles dias.
Ele suspirou. De que adiantava não querer admitir a
verdade? Gustavo já havia perdido tudo o que tinha com
Alex no passado. Era mais do que tarde demais para ficar
hesitando ou pensando em qual seria a reação delu.
— Depois, eu não queria arriscar — ele falou. — Você
era importante demais para mim. Se eu contasse tudo e
você fizesse a mesma coisa que as pessoas que sabiam
sobre a minha família... Para eles, eu sempre fui só um
monstro que mais cedo ou mais tarde ia perder o
controle. Se você começasse a pensar a mesma coisa...
Gustavo parou de falar e deu de ombros. Aquela era
a verdade. A possibilidade de só contar tudo para Alex
nunca tinha passado pela sua cabeça, porque ele não
podia correr aquele risco.
Alex balançou a cabeça devagar.
Gustavo encarou a parede de entulho no meio da
sala. Talvez tudo pudesse ter sido diferente. Se ele
tivesse contado toda a verdade para Alex anos antes, em
algum momento teriam ido ali, naquele complexo
subterrâneo. Elu teria encontrado os antídotos, do
mesmo jeito que tinha feito dias antes. E Gustavo nunca
teria perdido o controle. Sua irmã não teria cicatrizes
pelo resto da vida. Sua mãe nao teria precisado fazer um
acordo com mercenários...
E Alex não teria precisado renascer do fogo e
repensar toda sua vida, por causa do que ele tinha feito.
Mesmo sabendo daquilo tudo, ele não conseguia
dizer que teria feito outra escolha. Não era sobre confiar
em Alex ou não. Era sobre os seus medos. Sobre não
conseguir lidar com a possibilidade de que a reação delu
seria o medo.
— Eu nunca teria feito isso — Alex murmurou.
Gustavo engoliu em seco e continuou encarando os
pedaços de concreto, mesmo que não estivesse
prestando atenção no que estava ali. Ele quase
conseguia ver Alex na sua casa, oito anos antes,
insistindo que sabia que tinha alguma coisa errada e só
queria ajudar.
— Eu sei. Mas não podia arriscar.
Aquela era a verdade. Ele nunca tinha pensado
realmente que Alex faria a mesma coisa que os outros.
Que o veria só como um monstro e mais nada. Elu não
funcionava daquele jeito. Mas ele não tinha como ter
certeza daquilo a menos que contasse tudo e não
conseguia lidar com a possibilidade de estar errado.
Gustavo balançou a cabeça e olhou para Alex de
novo.
— Eu preferia ter você do meu lado, com todos os
segredos, mesmo que tivesse que esconder parte de
mim pelo resto da minha vida, do que não te ter ali.
Alex respirou fundo e continuou encarando Gustavo
por alguns segundos antes de balançar a cabeça e virar
as costas para ele.

Alex não sabia o que pensar sobre o que Gustavo tinha falado. Ou
melhor, sabia: nada daquilo mudava ou justificava o que
ele tinha feito. Pelo menos, era o que elu queria
acreditar. Tinha sido um pedido de desculpas, sim, mas
tinha sido tarde demais. Oito anos tarde demais, porque
elu não tinha como só passar por cima de todo aquele
tempo achando que Gustavo estava morto e se culpando
por não ter tentado mais.
Mas não era tão simples, porque Alex não conseguia
ignorar que ainda se importava. Se não se importasse,
elu não continuaria se sentindo mal por causa da
situação toda. Nem teria se sentido tão aliviade com
Gustavo falando aquilo. Se desculpando e explicando. E...
Alex não conseguia deixar de pensar que elu
importava tanto para Gustavo a ponto de ele não ter
coragem de fazer outra coisa. Era fácil se apegar à
mágoa e à dor daqueles anos, do tempo pensando que
ele estava morto. Mas, se fosse para dizer a verdade,
Alex não sabia se teria feito uma escolha diferente, se
estivesse na posição de Gustavo. Se elu tivesse algum
segredo que pudesse fazer ele se afastar, na época, Alex
não conseguia dizer que teria falado a verdade.
Por que tudo tinha que ser só complicado? Porque
elu não podia só dar de ombros e deixar a coisa toda
para lá? No passado, que era onde deveria estar.
E agora Alex não sabia o que fazer ou como reagir.
Algo fez barulho, quase como se fosse uma pedra
rolando na pilha de teto desabado no meio do salão. Alex
virou a tela do tablet naquela direção, mas não parecia
que tinha nada. O jeito era torcer para, se tinha alguma
coisa rolando ou coisa do tipo, que não tampasse a
passagem de ar.
Elu se virou para Gustavo, que estava encarando o
concreto e tudo mais na sala também. Tinha outra coisa
que ele tinha falado e Alex quase tinha se esquecido,
mas...
Era melhor não perguntar. Quanto mais distância,
melhor, e perguntar era criar uma aproximação que Alex
não deveria querer.
Não era como se aquilo fosse fazer alguma
diferença, no fim das contas.
— Você falou que estar perto de mim destrói seu
controle — Alex começou, devagar.
Gustavo se virou para elu depressa e engoliu em
seco.
O que quer que fosse, ele não queria falar.
— Por quê? — Elu insistiu.
Gustavo desviou o olhar e apoiou a cabeça na
parede de novo.
Alex esperou. Não ia insistir. Tinha feito isso vezes
demais, no passado, e quando mais importava não tinha
adiantado nada. Se Gustavo não falasse nada, elu ia se
forçar a ignorar aquilo, porque não ia repetir.
— O que eu sei é só o que minha mãe tentou me
explicar — Gustavo falou, em voz baixa. — Quando
descobrimos que eu herdei a alteração, meu pai já tinha
morrido, então... Não tinha mais ninguém para explicar
nada.
Ele respirou fundo e bateu uma mão fechada no
chão, o tempo todo sem olhar para Alex. Na verdade, elu
tinha a impressão de que ele tinha fechado os olhos de
novo.
— O monstro escolhe alguém — Gustavo contou. —
Não tem outro jeito de descrever. E sempre que ele está
perto dessa pessoa, ele fica mais forte. Não. Não é bem
isso. Perto dessa pessoa ele sempre quer escapar.
Assumir o controle.
E o monstro tinha escolhido Alex. Gustavo não
precisava falar aquilo em voz alta para elu entender.
Aquilo não fazia o menor sentido.
— E por que você não foi embora quando notou isso?
— Elu perguntou. — Ou tentou se afastar desde o
começo? Ou até recusou vir para cá comigo?
Gustavo balançou a cabeça, sem se virar, e pegou
um dos pedaços de concreto no chão. Por um instante,
Alex imaginou que ele fosse quebrar aquilo – e era uma
coisa que nem devia ser possível para um humano. Mas
ele só continuou segurando o pedaço de concreto com
força e batendo o punho fechado no chão.
— Porque não é tão simples. Afastar é... — Gustavo
parou e balançou a cabeça de novo. — É errado. É algo
que não deveria acontecer.
E falar aquilo e nada tinha sido a mesma coisa,
porque Alex continuava sem entender por que ele não
tinha só se afastado se elu fazia com que perdesse o
controle.
— Eu devia ter recusado quando você falou para vir
para o subterrâneo — ele continuou, devagar. — Ou
então devia ter vindo uma vez só e depois falado que era
melhor não. Mas...
— “Mas” o quê?
Ele bateu a mão fechada no chão com força o
suficiente para machucar.
— Mas saber que você está perto e estar longe de
você é pior. Sempre é pior.
Alex engoliu em seco. Elu entendia o sentimento, de
certa forma. Saber que Gustavo estava no setor e fazer
questão de não procurar por ele naqueles meses tinha
sido tortura.
Gustavo soltou o pedaço de concreto e Alex estreitou
os olhos. Elu tinha quase certeza de que o que estava
vendo na mão dele eram manchas de sangue. Ele tinha
apertado com força o suficiente para se cortar.
— Isso parece uma ótima ideia — elu resmungou.
— O quê?
— Se machucar de propósito assim, aqui. Ótima
forma de conseguir uma infecção, especialmente quando
não temos nem ideia de quanto tempo até conseguirem
tirar a gente daqui.
Gustavo se virou de uma vez.
— E que diferença isso faz pra você?
Alex não respondeu.
Ele estava certo. Não fazia diferença. Elu não podia
se importar.
Mas não conseguia não se importar, mesmo depois
de tudo, porque era Gustavo ali e Alex sempre ia se
importar.
Algo fez barulho e elu virou o tablet na direção da
parede, de novo. Um pedaço de alguma coisa estava
caindo devagar...
Não. Alguma coisa tinha caído, sim, mas não era
aquilo que Alex estava vendo.
Elu respirou fundo e se concentrou. A sensação do
poder ali estava mais forte ainda, tão concentrada que
era quase sufocante. E estava vindo da parede de
entulhos.
— Gustavo... — Alex começou.
Ele não respondeu, mas também estava olhando
para o mesmo lugar. Para o filete de água escorrendo no
meio do concreto.
O filete de água... Porque quando Gustavo abria o
sistema de escoamento do reservatório, era para ali que
a água carregada de poder ia. Para o que Alex tinha
sentido no teto – provavelmente algum tipo de
reservatório secundário. Por isso elu não tinha
conseguido notar para onde o poder ia. Porque não ia
para lugar nenhum. Ele ficava ali, parado até se dissipar.
Ou até ser absorvido pelas paredes. Aquilo faria
sentido, também.
Mas se seu raciocínio estava certo, então...
— É minha culpa — Alex murmurou.
— Você não... — Gustavo começou.
Elu balançou a cabeça com força.
— O desabamento. Nós sobrecarregamos o lugar
onde a água e o poder estavam sendo armazenados.
E Alex só estava falando no plural porque tinha sido
Gustavo a abrir o sistema de escoamento, mas o tempo
todo tinha sido a pedido delu. O que queria dizer que era
responsabilidade delu, também.
E se aquele poder estava escapando, misturado com
a água, o risco de contaminação do setor era alto
demais. Alex precisava entender o que era aquilo e como
funcionava – e quais as possíveis consequências para
alguém que tivesse contado com aquilo.
Elu se levantou devagar e foi na direção do filete de
água. Ele estava caindo de forma constante e não
parecia que estava engrossando. Nem parecia que ia
escorrer para perto de onde estavam, na verdade,
porque a água desaparecia no meio do entulho. Pelo
menos, era o que parecia.
Aquele poder já era familiar antes mesmo de Alex
entrar no complexo subterrâneo. Ele era parecido demais
com os vestígios que sempre tinha sentido ao redor de
Gustavo, mas de uma forma mais incompleta. Mesmo se
ele não tivesse falado aquilo, Alex teria chutado que o
que estava ali era uma versão inicial do que depois havia
se tornado a base para os experimentos. Mas tinha algo
mais ali, que fazia elu pensar nas terras de ninguém, por
algum motivo.
Era uma péssima ideia. Alex tinha plena consciência
daquilo. Mas não era como se elu tivesse uma opção
melhor. E precisava fazer alguma coisa.
Elu esticou a mão na direção do filete de água.
Gustavo se jogou em Alex. O tablet caiu no chão – e
por algum milagre continuou funcionando – e elu bateu
as costas na parede, com força. Gustavo estava parado
na sua frente, segurando seu braço com força o
suficiente para Alex saber que não tinha como se soltar,
mas com cuidado o suficiente para não machucar. E
agora não tinha como elu pensar que era uma impressão
ou ilusão de ótica: os olhos de Gustavo estavam
vermelhos. Vermelho escuro, quase vinho. E ele estava
respirando depressa e com força, como se tivesse
acabado de correr uma distância enorme.
— Não — ele falou.
A voz dele tinha mudado, também. Estava mais
parecida com o que Alex tinha ouvido dias antes, nas
ruínas, quando Gustavo estava a um fio de perder o
controle.
Elu deveria estar com medo. No mínimo, deveria
estar preocupade. Gustavo tinha jogado elu contra a
parede e agora estava ali, praticamente lhe prendendo
no lugar. E com os olhos vermelhos – algo que não
deveria ser possível, porque ninguém tinha olhos daquele
jeito. Nem humanos, nem vampiros.
Mas Alex não conseguia ter medo.
— Não o quê? — Elu perguntou.
Gustavo balançou a cabeça e apertou o braço delu.
— Você não vai fazer isso — ele avisou.
Alex puxou o braço para trás de uma vez. Gustavo
lhe soltou, mas não se afastou e ainda estava respirando
daquele jeito acelerado e pesado.
Elu não deveria ter parado de levar sua balestra. Se
Gustavo perdesse o controle, Alex não teria como fazer
nada. Elu tinha uma faca enfiada na bota, mas duvidava
que fosse adiantar alguma coisa, mesmo que a
alcançasse a tempo. Combate corpo-a-corpo nunca tinha
sido seu forte e elu ainda não tinha certeza de o que
Gustavo era. Alterado, sim, mas aquilo não queria dizer
nada.
Não que a balestra fosse fazer alguma diferença num
espaço tão apertado e quando ele já estava
praticamente prendendo Alex contra a parede.
E elu não estava com medo. Aquela era a pior parte.
Mesmo que estivesse pensando no que poderia
acontecer, Alex não conseguia nem imaginar uma
situação em que Gustavo lhe atacaria e aquilo era um
problema.
Mas não estar com medo não queria dizer que elu
aceitaria Gustavo agindo daquele jeito, como se tivesse
algum direito de dar ordens para elu.
— Eu vou fazer o que preciso — Alex avisou. —
Porque eu sou responsável pela pesquisa aqui. E você
precisa se lembrar de qual é a sua situação no setor,
também.
Gustavo respirou fundo e deixou a cabeça cair para a
frente, quase encostando na de Alex antes de fechar os
olhos.
Elu esperou. Aquilo não fazia sentido – Gustavo tinha
acabado de falar que estar perto de Alex fazia o
"monstro" ficar mais forte ou algo do tipo, mas estava ali,
parado e respirando fundo como se estar perto fosse ter
o efeito contrário e acalmar o poder.
Gustavo abriu os olhos – que estavam castanhos de
novo – e deu um passo atrás. Alex teve a impressão de
que uma das mãos dele tinha algo de diferente, mas não
havia como ter certeza com a luz fraca da tela do tablet
e a forma como ele estava se movendo.
— Eu nunca vou falar o que você pode ou não fazer
— Gustavo falou, devagar, como se estivesse medindo as
palavras. — Mas você não vai correr um risco à toa
enquanto eu estou aqui.
Alex cruzou os braços. Aquilo era parecido demais
com antes, também. Com todas as vezes que Gustavo
concordava com alguma das suas ideias loucas, mas
fazia questão de ser o primeiro a correr os riscos.
Lembrar daquilo doía mais ainda depois do que ele
tinha falado sobre os seus motivos.
— E que diferença isso faz? — Elu perguntou.
— Você pode me odiar, pode me querer o mais longe
possível da sua vida, mas isso não muda o fato de que eu
escolhi e a coisa dentro de mim escolheu, também. Eu
sempre vou te proteger.
Alex não respondeu. Não sabia como responder.
Gustavo virou as costas para elu e colocou a mão no
filete de água escorrendo do meio do desabamento.
DOZE

Alex se abaixou depressa para pegar o tablet. Não sabia como ele
não tinha se quebrado de vez e parado de funcionar
quando Gustavo havia lhe empurrado contra a parede,
mas não ia reclamar. Se não fosse pelo tablet, elu não
teria conseguido ver nada além do brilho avermelhado
nos olhos de Gustavo...
O brilho que estava lá de novo.
Elu se endireitou devagar e encarou Gustavo. Ele
estava tenso de um jeito que era diferente. Agora parecia
que era dor.
E ele ainda estava com a mão na água.
Alex virou a luz do tablet naquela direção.
— Tira a mão daí!
Porque tinha algo acontecendo com a mão dele. Era
quase como se estivesse sendo queimado...
Não. Se fosse ácido na água, teriam detectado bem
antes. O pessoal de Andreia tinha testes que
identificariam algo assim sem a menor dificuldade,
mesmo sem precisarem de contato com a água. Alex
sabia daquilo muito bem.
E Gustavo ainda estava com a mão lá.
— Gustavo!
Ele tirou a mão da água, com cuidado para não
deixar nada pingar fora do concreto, e se virou para Alex.
Não. O que elu estava vendo não era algo tão
simples quanto uma queimadura, porque não era algo
físico. Elu estava vendo o efeito do poder na pele de
Gustavo, como se a estrutura da sua mão estivesse
sendo corroída, de alguma forma. Os dois poderes – o
que estava ao redor de Gustavo e o que estava na água –
eram parecidos, mas não eram idênticos. E não se
encaixavam, como o antídoto encaixava com o poder de
Gustavo. E...
Ele ainda estava parado no mesmo lugar, com a mão
afastada do corpo.
Porque tinha feito questão de fazer aquilo no lugar
de Alex.
Elu não sabia o que pensar sobre aquilo. Não queria
pensar no que Gustavo tinha falado e no que aquilo
significava. Mas...
— Me deixa ver essa mão — Alex pediu.
Gustavo inclinou a cabeça de um jeito que quase não
parecia humano. E, considerando como o poder ao redor
dele estava saltando, era bem possível que não fosse
totalmente ele ali... Se é que Alex podia confiar em como
ele tinha explicado aquilo sobre o "monstro" dentro dele,
como se fossem duas pessoas diferentes. Criaturas? Alex
não tinha certeza e não tinha como saber.
— Você se cortou e depois enfiou a mão ali — elu
insistiu. — Deixa eu ver isso, porque se você arrumar
alguma infecção enquanto não temos como sair daqui...
Ele balançou a cabeça.
— Não vai infeccionar.
Alex só o encarou.
Gustavo suspirou e esticou a mão na direção delu.
Os cortes e arranhões estavam fechados. Alex sabia
exatamente o que tinha visto antes, quando ele tinha
ficado com aquele pedaço de concreto na mão. Elu tinha
visto os cortes e arranhões, o sangue manchando a mão
de Gustavo. E agora não tinha mais nada ali. Era só a
pele lisa e a sensação ácida do poder da água, que ainda
estava se prendendo nele.
— Não vai infeccionar — Gustavo repetiu.
Não ia, porque tudo já tinha cicatrizado como se os
cortes nunca tivessem existido.
Alex esticou a mão na direção da de Gustavo,
devagar. Elu não tinha certeza sobre como o poder ia
reagir, agora que já tinha certeza de que ele interagia
com o corpo humano. Era possível que pudesse passar
de uma pessoa para outra, como um vírus. Improvável,
sim. Muito improvável. Mas o poder diferente continuou
contido sob a pele de Gustavo, de alguma forma, sem
nenhum sinal de que pudesse passar de um lugar para
outro.
Elu virou a mão dele. Nada. Nenhuma marca de
arranhão, nem nenhum sinal de efeito do que estava na
água...
O poder pulsou.
Alex soltou a mão de Gustavo e deu um passo atrás,
depressa. Não era como se aquilo estivesse tentando
passar para elu, mas mesmo assim era algo estranho o
suficiente para ser desconfortável de sentir. E ele...
Podia ser só ilusão de ótica. Claro que podia. Mas
Alex jurava que tinha visto a pele de Gustavo escurecer
de um jeito que não deveria ser possível. Não era como
se uma sombra tivesse passado por cima da mão dele.
Era como se a pele dele tivesse mudado de cor por
alguns segundos.
E se aquilo era o efeito do que estava na água...
— Você não deveria ter feito isso — Alex falou. —
Não deveria ter colocado a mão lá, ainda mais se sabia
que podia acontecer alguma coisa.
Gustavo deu uma risada seca e abaixou a mão.
— E devia ter deixado você enfiar a mão lá?
Talvez. Era diferente, porque aquilo era
responsabilidade de Alex. Se alguém ia correr riscos,
deveria ser elu – especialmente porque tudo indicava
que o desabamento tinha sido sua culpa. E elu
provavelmente teria sentido algum movimento do poder
antes de colocar a mão na água.
Gustavo balançou a cabeça.
— O que está na água incomoda, mas não vai me
afetar — ele contou. — Já sou um alterado.
Fazia sentido.
E ele podia só ter falado aquilo antes de enfiar a mão
na água. Ou então explicado assim que Alex tinha visto o
que estava acontecendo e falado para ele tirar a mão de
lá.
Alex suspirou e voltou para onde estava, encostade
na parede.
O poder pulsou, de novo. Daquela vez Alex tinha
certeza do que estava vendo: a pele de Gustavo
escurecendo, ficando de um tom vermelho escuro e com
algo que parecia ser uma textura diferente. E elu quase
podia apostar que tinha visto garras, também.
O que quer que fosse a tal alteração, não era só uma
coisa que dava poder para ele, como acontecia com os
vampiros. Elu não tinha nem imaginado que pudesse ser
diferente, porque era o único parâmetro de comparação
que tinha.
— O monstro, como você diz, não é só você
perdendo o controle, não é? — Alex começou, em voz
baixa. — Não é só algo a mais, como com os vampiros...
— Não.
A resposta tinha sido seca e Gustavo estava se
afastando, de novo. Voltando para perto da parede, o
mais longe que conseguia estar de Alex. Aquilo tudo não
fazia o menor sentido. Nem a alteração nem a forma
como ele estava agindo – num instante perto demais, no
outro indo o mais longe possível. Alex não conseguia
parar de pensar em como ele tinha parado na sua frente,
lhe prendendo contra a parede, tão perto que estavam
quase se tocando, e como Gustavo tinha parecido
relaxado ali, por alguns instantes, quase como ele era
antes.
Se ele tinha alguma ilusão de que se afastar ia ser o
suficiente para Alex parar de perguntar, ainda mais
depois do que ele tinha falado, estava muito enganado.
— É o que, então? — Elu insistiu. — Eu já vi os olhos.
E acho que acabei de ver as garras...
Gustavo fechou as mãos com força. Aquilo era uma
confirmação, sim. Alex tinha visto garras, o que queria
dizer que tinha um aspecto físico na tal alteração, e não
era um aspecto pequeno.
Ou talvez fosse como as marcas dos vampiros,
quando estavam usando poder. Alex tinha estudado
sobre elas, uma época: as quase tatuagens que
apareciam nas mãos e antebraços dos vampiros quando
usavam seus poderes, e que eram únicas. Elu tinha
pensado que talvez existisse algum tipo de identificador
que pudesse usar para saber qual tipo de poder um
vampiro tinha, só através das marcas. Mas, além de não
ter conseguido achar nada naquele sentido, esperar um
vampiro usar poderes para descobrir o que ele fazia era
uma péssima ideia.
— É só a mão e o antebraço, como as marcas dos
vampiros, ou é mais? — Alex perguntou.
Gustavo fez um ruído baixo que quase parecia um
rosnado e se encostou na parede do outro lado do
espaço que tinham.
— Não importa — ele resmungou.
Importava. E Alex não ia nem mentir para si mesme
dizendo que só queria saber para entender algo que
podia ser uma ameaça para o setor. Elu queria entender
porque era Gustavo ali e tudo que era sobre ele lhe
interessava, ponto.
— Que diferença vai fazer me contar ou não? — Elu
insistiu.
Ele bateu o punho fechado na parede e encarou
Alex. Os olhos de Gustavo ainda estavam castanhos, mas
tinha um começo daquele brilho avermelhado
aparecendo.
— Eu estou tentando me controlar, Alex — Gustavo
falou, devagar. — Se quer algum assunto para se distrair,
arruma outra coisa.
Um arrepio atravessou Alex. Elu deveria parar, sim.
Mas aquilo era parecido demais com antes de tudo, com
como sempre se provocavam e insistiam. Elu não
conseguia só ignorar aquilo. Nem queria, se fosse para
ser honeste.
Alex se abaixou e colocou o tablet no chão, apoiado
na parede ao seu lado, antes de se levantar de novo e
encarar Gustavo.
— Você está falando desde o começo que está
afastado para não me atacar e que está a um fio de
perder o controle. E eu ainda não vi um motivo para me
preocupar.
Principalmente depois do que Gustavo tinha falado
sobre ter lhe escolhido e como sempre iria lhe proteger.
Alex não conseguia pensar que estava em risco. Já não
estava com medo antes, depois daquilo, então, não
conseguia nem imaginar uma situação em que fosse
realmente se preocupar.
— Alex... — Gustavo começou.
Elu balançou a cabeça.
— O que eu estou vendo são desculpas — Alex falou.
— É você inventando qualquer coisa para não falar de
um assunto que não quer. Seria mais honesto só dizer
que não quer falar mais nada sobre isso, ao invés de ficar
martelando nisso de que "está tentando não perder o
controle".
Alex não viu o movimento – só sentiu a mão de
Gustavo ao redor do seu pescoço e as pontas das suas
garras contra a sua pele. Ele estava parado na sua
frente, de novo, do mesmo jeito que logo antes de enfiar
a mão na água. Perto demais, com a cabeça inclinada
para a frente, na sua direção.
Elu encarou Gustavo, sem falar nada. Continuava
não sentindo medo – justamente porque entendia o
cuidado que ele tinha precisado para lhe segurar daquele
jeito sem causar nenhum arranhão. Não fazia sentido ele
ter tanto cuidado assim em um instante e só atacar no
outro.
Gustavo engoliu em seco e encarou Alex. Agora não
era um brilho avermelhado nos olhos dele. Era
completamente outra cor ali, um vermelho vivo e
profundo que era impossível que existisse naturalmente.
— Eu escolhi e sempre vou te proteger, enquanto
tiver consciência — ele falou, com uma voz grave que
mal parecia ser ele. — Mas o monstro... Quando ele
escolhe alguém, não importa o que aconteça, se ele
assumir o controle essa pessoa sempre vai ser seu
primeiro alvo.
Um arrepio atravessou Alex.
Gustavo lhe soltou e no instante seguinte estava do
outro lado do espaço, de novo, de costas para elu e
respirando de forma pesada.
Alex se sentou, devagar. Elu não sabia o que estava
esperando quando tinha provocado, mas não era aquilo.
Definitivamente não era nada parecido com aquilo.

Mel encarou a cratera que tinha se aberto perto do pomar. Já fazia


horas que aquilo tinha desabado e não tinham nenhum
sinal de que mais alguma coisa fosse desabar. As leituras
que tanto o pessoal técnico quanto as bruxas tinham
feitos haviam voltado normais – e aquilo não queria dizer
nada, porque pelo que Mel tinha entendido as leituras
estavam normais antes, também. Mesmo assim, todo o
pessoal que estava no complexo subterrâneo tinha sido
evacuado já fazia tempo, por garantia.
Yuri estava certo: cratera era a única palavra para
descrever como parecia que o chão simplesmente havia
cedido. E o centro de tudo era pura lama borbulhando de
leve. Ela não estava sentindo nenhum calor vindo de
lugar nenhum ali perto, então o mais provável era que as
bolhas fossem só do ar escapando de algum lugar e
empurrando mais da água para a superfície. Não que
fizesse algum sentido a água estar borbulhando por
causa do calor, mas... Pelo visto Mel tinha assistido filmes
antigos demais com Alex – e aquilo incluía alguns tantos
sobre "desastres naturais".
— Nenhuma diferença — ela avisou.
Yuri, parado um pouco mais atrás, soltou um suspiro
pesado. Ele tinha pedido para ela conferir qual era a
sensação da consciência de Alex e Gustavo dali de cima,
para o caso de parecer que estavam mais próximos da
superfície. Ela não havia nem se dado ao trabalho de
dizer que aquilo não fazia sentido: era melhor testar até
o que parecia ser estúpido, por garantia.
Uma mulher abaixada mais para o lado falou alguma
coisa. Eduardo parou ao lado dela e apontou para algo na
cratera. A mulher balançou a cabeça.
Mel não sabia quem ela era, mas se estava ali era
porque podia ajudar de alguma forma. Considerando que
ela não tinha nenhum equipamento como o do pessoal
que estava mais para a frente, provavelmente era uma
bruxa. E ela não era a única. Mel tinha passado por um
casal que sabia que trabalhava nas plantações, fazendo
algum tipo de alteração no solo.
— Se esse pessoal todo está aqui porque você está
pensando em abrir um caminho escavando por cima, é
melhor pensar em outra coisa — Mel murmurou.
Yuri deu alguns passos para a frente e parou ao seu
lado, encarando a cratera, também.
— Por quê? — Ele perguntou.
Ela balançou a cabeça devagar e indicou a lama.
— A semi-consciência na água está em algum lugar
entre onde nós estamos e o complexo subterrâneo. Não
tenho como dar uma ideia do espaço que ela está
ocupando, mas a impressão dela está muito mais forte
aqui em cima do que estava lá embaixo. Se isso está na
água...
— Se escavarmos por cima vamos derrubar a água
exatamente onde estão — Yuri falou. — E correr o risco
de espalhar ainda mais uma possível contaminação.
Mel assentiu. Ela não tinha certeza de nada sobre
aquela água, só que tinha alguma coisa ali que era quase
uma consciência e que a deixava com uma sensação
incômoda demais para ser algo bom. Mas, considerando
onde aquilo estava, quem tinha construído aquele
complexo e o que sabiam sobre os planos do Setor
Quatro, não era difícil imaginar que deixar aquela água
se espalhar era uma péssima ideia.
Yuri olhou para cima. Mel balançou a cabeça e
continuou encarando a lama, enquanto uma bolha maior
estourava. Ela deveria ter prestado mais atenção no que
estava acontecendo, no passado. Aquilo tinha sido uma
das primeiras coisas que ela havia notado quando
chegara no Setor Seis: como toda a região parecia estar
prestando atenção no que o Setor Quatro fazia. Na
verdade, por muito tempo ela tinha pensado que eles
eram o Setor Um. Fazia sentido, considerando como
todos os outros estavam ao seu redor.
Mas aquilo tinha sido logo depois que Mel havia
tentado negociar pela sua liberdade e falhara. A ida para
o Setor Seis havia sido uma punição e quase se tornara
algo muito pior quando Dama Cordelia, a princesa do
Cinco, tinha se interessado por ela. Naquela época e por
muito tempo depois, Mel não queria prestar atenção em
nada do que estava acontecendo. Seu único objetivo era
construir seu nome e sua reputação de uma forma que
garantisse a sua segurança, tanto quanto era possível. E,
mesmo que a situação fosse diferente, ela
provavelmente não teria prestado tanta atenção quanto
deveria no Setor Quatro. Ou melhor, não nos detalhes do
que estavam fazendo.
— Já está começando a anoitecer — Yuri falou. —
Você realmente acha que escavar por dentro vai ser mais
seguro?
Mel balançou a cabeça.
— Se o problema fosse só a água, eu diria que sim.
Mas escavar por dentro...
— Sempre tem a possibilidade de mais coisa desabar
logo depois de abrirmos um caminho — ele completou.
Ela suspirou. Era exatamente aquele o problema.
Yuri assentiu e pegou seu tablet. Mel não viu o que
ele digitou antes de ir na direção bruxa que estava
abaixada no limite da cratera.
Eles deveriam ter se preparado melhor antes de
começarem a estudar o complexo subterrâneo. Era óbvio
que algo ia desabar. Mas tudo havia parecido tão estável
em todas as leituras que ninguém tinha se preocupado
em dar a autorização para levarem pessoal para lá.
Uma das pessoas no perímetro gritou. Mel se virou
em tempo de ver algo passar correndo e ir na direção da
cratera. Não algo. Alguém. Uma garota de pele marrom
clara e cabelo escuro preso em tranças.
Mel gesticulou para o guarda no perímetro voltar
para o seu lugar e parou no caminho que a garota estava
fazendo, com os braços cruzados. A garota parou de
correr a alguns passos de distância e olhou para ela com
a expressão característica de uma criança que sabia que
estava fazendo algo que não deveria mas não se
arrependia. A última vez que Mel tinha visto aquilo, tinha
sido antes de ser transformada. Eram outras crianças,
mas a expressão era a mesma. Sempre era.
E aquela garota morava na mansão que era a sede
do Setor Dez. Qual era o nome dela? Valéria, Vanessa...
Valissa. A mesma Valissa que tinha algum poder que
ninguém sabia qual era e que sabia alguma coisa sobre o
mercenário que estava preso lá embaixo.
— Você sabe que quando fecham o perímetro, não é
à toa — Mel falou, em voz baixa.
A garota cruzou os braços e deu um passo para o
lado, quase como se estivesse pensando em voltar a
correr.
— Valissa...
A garota olhou para ela de novo.
— Eu só queria veeeeeeer — ela resmungou.
Mel suspirou. Conhecia aquele tom de voz. Mesmo se
levasse Valissa de volta para fora do perímetro, ela ia
continuar querendo voltar. Na melhor das hipóteses, ia
dar trabalho para o pessoal de guarda até alguém –
provavelmente Yuri – perder a paciência. Na pior,
conseguiria entrar ali sem ninguém notar e Mel não
queria nem imaginar o que poderia acontecer.
— Só ver? — Ela perguntou.
Valissa assentiu depressa.
Ela não deveria fazer aqui, mas...
— Você não vai sair do meu lado — Mel avisou. — E
não vai dar um passo além das marcações de segurança.
A garota assentiu de novo.
Mel soltou os braços.
— Estou falando sério. Se você não cumprir isso, vou
fazer questão de falar com Raquel que você estava
aprontando aqui.
Ela balançou a cabeça.
— Não vou sair do seu lado — Valissa repetiu.
Era melhor que nada.
Mel deu um passo para o lado e esticou uma mão na
direção da garota, que resmungou baixo mas a segurou.
Bom. Ela não conseguiria se soltar, mesmo se estivesse
planejando pular dentro da cratera – Mel não duvidava de
nada vindo de alguém naquela idade.
Ela voltou na direção da cratera, com a garota ao
seu lado. Valissa estava tão calma que nem parecia que
era a mesma pessoa que tinha furado o perímetro de
segurança e corrido até ali.
Elas pararam no mesmo lugar que Mel estava, antes,
olhando para a lama mais abaixo. Valissa apertou sua
mão mas não tentou se aproximar mais, apenas ficou
parada encarando a cratera e a lama borbulhando
devagar.
Mel olhou ao redor. Eduardo não estava em nenhum
lugar por perto. Os técnicos do outro lado da cratera
estavam desmontando seu equipamento. E Yuri estava
parado mais para trás, conversando com a bruxa que ela
tinha visto mais cedo e Amon.
Claro. Era por isso que Yuri falara sobre estar
anoitecendo. Ele estava planejando usar Amon para abrir
caminho, provavelmente com a ajuda da bruxa.
Considerando a idade de Amon e a força dele, aquilo não
seria um problema.
Era uma boa ideia. Seria mais rápido do que
qualquer coisa que pudessem fazer com equipamento
pesado, se conseguissem descer com equipamento
pesado. E seria mais preciso, também, porque Amon
reagiria a qualquer coisa que acontecesse de uma forma
que máquinas nunca fariam, não importava quantos
técnicos tivessem ali.
— Isso é errado — Valissa falou.
Um arrepio atravessou Mel. Era errado, sim – o que
estava na água, a sensação que ela passava. Mas,
naquele tempo todo, ninguém além dela tinha
conseguido sentir nada vindo dali. Nem as bruxas, nem
os técnicos.
E ninguém sabia qual era o poder de Valissa, porque
ela estava se escondendo e não confiava em ninguém do
Setor Dez.
— É — Mel concordou. — Você sabe o que isso é?
A garota balançou a cabeça e se virou de lado,
devagar, até parar encarando um ponto bem mais para a
frente.
— Tem mais. Você sabe que tem mais, não sabe?
Tinha mais... Mais água. Ela estava olhando na
direção do reservatório.
Como ela estava sentindo aquilo numa distância tão
grande?
— Sei — Mel murmurou.
Valissa assentiu e deu alguns passos para trás.
— Eu prometi que não ia fazer nada — ela falou e
puxou sua mão. — Não vou furar o perímetro de novo.
Prometo.
Mel soltou a mão de Valissa. A garota se virou e
correu na direção de onde tinha vindo – na direção da
cidade.
Mel continuou parada no lugar, encarando enquanto
ela se afastava. Eles precisavam entender mais sobre o
que estava na água, sim. E, talvez...
Não. Ela não ia chegar a nenhuma conclusão
precipitada por causa de um comentário de uma garota.
Precisava saber mais, primeiro.
TREZE

Gustavo encarou o filete de água escorrendo e desaparecendo na


parede de entulho. Ele conseguia sentir algo ali – não
exatamente o poder, pelo que sabia, mas alguma coisa
que era parecida demais com o monstro dentro dele. E se
ele estava sentindo aquilo, então com certeza Alex sabia
que havia algo ali. O que queria dizer que elu tinha
pensado em colocar a mão lá sabendo que estaria
correndo um risco.
Aquilo era tão típico de Alex que Gustavo não
conseguia nem se irritar. Tinha se conformado com
coisas daquele tipo quando ainda eram crianças. Se
precisavam testar alguma coisa, Alex sempre ia fazer
questão de ser a pessoa assumindo os riscos. No
começo, Gustavo não tinha entendido aquilo. Depois, ele
só havia se acostumado a assumir os riscos no lugar de
Alex – porque ele tinha a vantagem das alterações e
sabia que estaria seguro.
E aquilo sobre Alex não tinha mudado. Ele deveria
ter notado desde antes, quando elu tinha parado nas
ruínas, com a balestra e um vidro do antídoto na mão, e
falado que não queria que mais ninguém se aproximasse.
O antídoto. Gustavo tinha tomado outro dos vidros
dois dias antes, e mesmo assim estava sentindo a coisa
forçando sua pele, querendo assumir o controle e só
avançar. Ele tinha pensado que estava conseguindo se
controlar o suficiente, mas se Alex tinha visto seus olhos
mudarem de cor, então com certeza não era o bastante.
E a forma como ele tinha reagido quando elu tinha falado
que tudo eram só desculpas...
Por um instante, tinha sido o monstro ali, avançando
na direção de Alex. Gustavo ainda estava gelado só de
pensar na sensação de não estar ali por um instante, e
dar por si com as garras ao redor do pescoço de Alex.
Teria sido fácil demais. Simples, quase. E medo não era o
suficiente para descrever o que Gustavo tinha sentido
naquela hora.
O que ainda estava sentindo, porque ele não
conseguia não prestar atenção em cada som minúsculo
que vinha da direção onde Alex estava. Ou no cheiro do
sangue delu – mais fraco, depois daquele tempo, mas
não o suficiente para ele conseguir ignorar. Gustavo tinha
se cortado na esperança de que o cheiro do seu sangue
fosse disfarçar o que ainda estava sentindo vindo dos
arranhões de Alex, mas aquilo não tinha durado muito. E
ele não podia continuar se cortando o tempo todo,
porque mais cedo ou mais tarde Alex ia querer ver se ele
realmente ainda estava se curando.
Gustavo pegou seu tablet. Por algum milagre, o
aparelho ainda estava inteiro e aquilo era importante,
porque Gustavo não podia correr o risco de não ver uma
mensagem de Silas. Não que ele tivesse como se
preocupar com aquilo enquanto estavam ali: o sinal tinha
desaparecido muito antes de chegar naquele salão, antes
de tudo desabar. Mas ao menos podia ter uma noção de
quanto tempo fazia que estavam ali.
Seis e quarenta da tarde. Lá fora, já seria
praticamente noite. E o desabamento tinha sido logo
depois de voltarem do almoço.
Não era tão pouco tempo assim. Mas também não
era muito tempo. Gustavo não tinha como ter a menor
ideia de quando conseguiria sair dali, então precisava dar
um jeito de fazer o monstro voltar para o lugar dele.
Alex fez um ruído abafado. Gustavo se virou por puro
hábito e parou. Elu estava se levantando, devagar, e
encarando o bloqueio no meio do salão.
E agora que ele estava prestando atenção, também,
tinha alguma coisa ali. A pele de Gustavo formigou, de
novo, e ele tinha certeza de que seus olhos estavam
vermelhos. A coisa nele estava prestando atenção,
porque o que quer que estava ali era uma ameaça.
Alex não estava com sua balestra. Gustavo era
capaz de apostar que elu tinha uma faca em algum lugar
na roupa, mas sabia que elu nunca tinha se dado bem
com lutas corpo-a-corpo. E qualquer coisa que estivesse
se aproximando dali não seria algo que uma faca ia ser
muito útil contra.
Gustavo respirou fundo. Nada. Havia uma ameaça
ali, sim, mas ele não sabia o que era.
Não importava. Ele atacaria – e defenderia Alex. Não
importava o que acontecesse.
E perderia o controle logo depois.
Não. Ele ia ter que dar um jeito de se controlar e de
prender o monstro de novo. Precisava ter algum jeito.
— Vampiro — Alex avisou.
E não era um aviso para esperar. Aquilo fazia
sentido, também. Gustavo tinha procurado saber sobre
Amon, naquele tempo ali, e nada dizia que ele era capaz
de se transformar em névoa – que era a única explicação
para como um vampiro podia estar se aproximando. E
Daniele tinha sido transformada fazia pouco tempo
demais para ter aquele tipo de poder.
A névoa escura apareceu na frente da parede de
entulho, como se estivesse saindo do meio dos pedaços
de concreto. Gustavo nunca tinha visto um vampiro fazer
aquilo, só conhecia as histórias, mas era o suficiente para
ele ter certeza de que tinham problemas.
Gustavo se afastou da parede onde estava
encostado e parou no meio do espaço que tinham, mais
perto de Alex do que gostaria. Ele não sabia como aquele
poder da névoa funcionava, então não ia só parar na
frente de Alex e pensar que seu corpo seria algum tipo
de barreira. Não que Alex fosse aceitar alguma coisa
daquele tipo.
— Se por algum acaso isso for você, Dani, é melhor
virar gente depressa — Alex falou.
Ele esperou. Se o comentário delu não gerasse
nenhuma reação, então Gustavo ia atacar a névoa – e
descobrir se o monstro tinha algo que pudesse ser útil
contra aquilo, antes do vampiro tomar forma de novo.
O cheiro fraco de sangue misturado com poder se
espalhou um instante antes de Daniele aparecer na
frente do entulho, com as roupas rasgadas e arranhões
pelo corpo.
— Merda, isso dói — ela resmungou. — Precisava
mesmo me apressar?
Daniele. Daniele, que tinha sido transformada seis
meses antes. E que era uma das responsáveis pela
segurança do setor. Gustavo não podia atacar.
Ele fechou as mãos com força e deu alguns passos
para o lado. Não ia respirar fundo. Fazer aquilo só ia
servir para sentir o cheiro do sangue da vampira e a
coisa dentro dele só entendia aquilo como uma ameaça.
— Precisava — Alex falou.
Precisava apressar a vampira, sim, senão Gustavo
teria atacado. Ele ainda estava a um fio de fazer aquilo.
Ao menos o cheiro do sangue estava desaparecendo,
porque os arranhões da vampira estavam se fechando
enquanto Gustavo olhava para ela.
E ela estava olhando para ele, também.
— Desde quando você vira névoa? — Alex
perguntou.
A vampira deu de ombros.
— Vim avisar que Amon vai quebrar essa parede.
Vocês precisam ficar fora do caminho.
E tinham mandado uma vampira dar o aviso porque
não conseguiam entrar em contato de outro jeito.
Fazia sentido. Claro que fazia. Mas não era o
suficiente para o monstro de Gustavo relaxar.
Alex foi na direção de Gustavo. Não. Na direção da
entrada do corredor, perto de onde ele estava. Sim. Era
mais seguro. E aquilo o colocaria entre Alex e a vampira.
Elu passou por ele e parou na entrada do corredor.
— Dani pode ser uma vampira, mas nunca me
atacaria — Alex murmurou.
Gustavo fechou as mãos com força. Ele odiava ser
lido tão facilmente, mas não ia negar que elu tinha
acertado exatamente por que estava parado daquele
jeito. E não podia nem reclamar de ser lido tão
facilmente quando tinha falado que ia proteger Alex.
Daniele riu baixo e se afastou na outra direção,
levantando as mãos.
— Só bebo o sangue de uma pessoa, obrigada — ela
falou. — E entendo como instintos assim funcionam.
Ele deu um passo para trás, na direção do corredor,
também. De alguma forma, aquilo era quase pior do que
quando os mercenários riam e diziam que ele era meio
animal, por causa dos instintos da coisa dentro dele.
Gustavo não queria entendimento – nem da vampira,
nem de Alex. Entendimento era o primeiro caminho para
proximidade e ele sabia o resultado daquilo.
A vampira olhou para o entulho de novo.
— Cuidado.
O ruído de coisas caindo começou logo depois.
Gustavo não conseguia sentir a presença do outro
vampiro ali e aquilo era mais uma prova de que aquelas
paredes realmente tinham sido feitas para conter poder –
não que ele imaginasse outra coisa.
O filete de água parou de escorrer. Ele só esperava
que tivessem levado aquilo em conta quando decidiram
abrir um caminho pelo entulho, porque se aquela água se
espalhasse...
— A água — Alex falou. — Se ela...
Era assustador como o raciocínio delu ainda seguia a
mesma direção que o de Gustavo. Ou talvez fosse o
contrário.
— Sabemos — a vampira interrompeu. — Melissa
disse que a maior parte da água ainda está na direção do
teto. Amon está tomando o máximo de cuidado possível
e tem algumas bruxas ajudando, também.
Bom. Gustavo não fazia ideia de que poderes as
bruxas ali tinham, mas era melhor que nada. Eles
estavam tomando cuidado.
A poeira se espalhou pelo ar e alguma coisa desabou
do outro lado da parede de entulhos. Gustavo estreitou
os olhos. A vampira continuava parada no mesmo lugar,
aparentemente na direção de onde o som estava vindo...
Quase como se o outro vampiro estivesse usando ela
como uma direção para arrancar as coisas que estavam
no caminho.
Mais alguma coisa caiu e mais poeira se espalhou.
Alex tossiu, atrás dele.
— Vocês vão ter que correr para fora — Daniele
avisou.
Sem problemas. Ele podia pegar Alex e correr.
— Não ouse — elu resmungou.
Gustavo se virou para olhar para Alex, que balançou
a cabeça como se soubesse exatamente o que ele estava
pensando.
Sem carregar Alex para fora, então.
O barulho de coisas caindo ficou mais alto ainda e
uma nuvem maior de poeira se espalhou pelo espaço
que tinham ali.
— Vai! — Daniele falou.
Alex passou por Gustavo e correu na direção da
vampira. Ele se forçou a esperar antes de fazer a mesma
coisa.
Tinha um espaço na parede de entulho, não o
suficiente para ele passar de pé, mas era uma passagem.
E Alex já estava quase do outro lado.
E não fazia o menor sentido aquilo estar daquele
jeito. Aquela passagem deveria ter desabado logo depois
de ser aberta.
Gustavo saiu do outro lado. Alex estava se afastando
na direção do corredor por onde tinham chegado ali,
horas antes, e ele fez a mesma coisa por puro instinto
antes de notar o vampiro parado para um lado e uma
bruxa do outro. O vampiro estava sujo de poeira – era
óbvio que tinha aberto aquele caminho com as mãos – e
a mulher estava de olhos fechados, murmurando alguma
coisa em voz baixa demais para Gustavo entender.
Mantendo o caminho aberto, talvez? Era possível.
A vampira saiu da passagem no meio do entulho,
também.
— Pronto — ela avisou.
— Então sai de perto — a bruxa falou.
Alex continuava parade na porta. Estavam num
espaço pequeno, subterrâneo, com dois vampiros.
Enquanto elu não saísse, Gustavo não ia se afastar.
Mesmo se quisesse, a coisa dentro dele não deixaria. Ele
não confiava o suficiente nas pessoas ali para fazer
aquilo.
Alex se virou e começou a andar depressa na direção
da saída do complexo. Gustavo foi atrás delu.
— Vocês também — a bruxa completou, obviamente
para os dois vampiros.
Um instante depois, o barulho de algo desabando
deixava claro que tudo tinha se fechado de novo. E pela
forma como o chão estava tremendo de leve, a bruxa
estava fazendo mais alguma coisa que Gustavo não
entendia. Ele só esperava que tivesse algo a ver com a
água escorrendo. Gustavo podia não saber detalhes do
que aquilo fazia, mas não era à toa que o tanque sempre
tinha sido visto como uma arma do Setor Quatro. Não
podiam deixar aquilo se espalhar.
Alex continuou pelos corredores, andando depressa,
e Gustavo continuou atrás delu. As luzes presas nas
paredes ainda estavam lá, mas não tinha mais nenhum
sinal do movimento de mais cedo. Era óbvio que tinham
evacuado. Se fosse em qualquer outro setor, ele não se
surpreenderia se visse pessoal ali, ainda, mas era o Setor
Dez e eles levavam segurança a sério demais.
A primeira porta de acrílico já estava aberta. Alex
passou por ela sem olhar para trás, acelerando o passo
como se quisesse correr para fora dali. Gustavo não ia
julgar. Quanto mais rápido estivessem na superfície,
melhor. Mais chances de conseguir respirar e tentar
prender a coisa dentro dele de novo.
Ele ia precisar de mais antídoto. Por mais que
Gustavo quisesse economizar o que tinha...
Seu tablet vibrou. Um arrepio atravessou Gustavo e
ele pegou o aparelho. As barras que mostravam que ele
tinha sinal de novo estavam brilhando na tela, junto com
uma mensagem de Silas.
— Sério que você estava com um tablet inteiro esse
tempo todo? — Alex resmungou.
Gustavo não respondeu. Não queria abrir aquela
mensagem, mas não tinha opção, mesmo que tivesse
uma boa ideia do que encontraria.
Ele abriu a mensagem.
Você tem oito dias.
Gustavo sabia. Não tinha se esquecido do aviso de
duas semanas.
Mas a mensagem também tinha uma foto.
Ele abriu o arquivo.
Um dedo mindinho, cortado e ainda com um resto de
sangue que tinha pingado na mesa escura. E uma cicatriz
fina descendo pelo lado do dedo que estava mais visível
na foto, como se Silas tivesse feito questão de que ele
não pudesse nem se iludir – porque Gustavo se lembrava
muito bem do dia que sua mãe tinha ganhado aquela
cicatriz.
Ele soltou o tablet. O barulho do aparelho batendo
no chão foi distante, como se estivesse passando por um
filtro, e Gustavo não viu mais nada.

Alana encarou o horizonte. Ainda ia demorar muito até amanhecer


e ela não tinha mais nada para fazer.
Era estranho... Os primeiros seis meses no Setor Um
estavam quase acabando e ela não tinha odiado estar ali.
Alana havia esperado algo completamente diferente e no
fim das contas tinha gostado. Estar ali tinha sido a
primeira vez em cinco anos em que ela podia só ser ela
mesma, sem se preocupar com o que esperavam. Não
tinha ninguém para questionar o que ela estava fazendo,
nem para dizer que deveria estar se preocupando mais
com seu trabalho...
Se bem que ela não tinha ninguém que fizesse aquilo
no Setor Dez, se parasse para pensar. Não era alguém
lhe cobrando nada. Era ela mesma. E era ela quem tinha
aceitado ser sempre a sombra de Dani – a prima que
precisava ser protegida. Tinha sido mais fácil não
questionar, até que aquilo havia se tornado um hábito
tanto para ela quanto para Dani.
Aquilo ia mudar, assim que ela voltasse para o Setor
Dez. Porque ia voltar. Não importava quais fossem os
planos de Lorde Rafael para ela, quebrar o acordo que
haviam feito não fazia o menor sentido. Aquele era o
truque com vampiros: por mais que estivessem dispostos
a tudo pelos seus jogos de poder, eles também estavam
presos a eles. Um vampiro não podia só sair quebrando
acordos, ou ia acabar marcado como alguém com quem
não podiam negociar.
E a primeira coisa que Alana faria quando voltasse
para casa seria perguntar para Raquel exatamente qual
tinha sido o acordo dela com Lorde Rafael, quando havia
conseguido permissão para criar o Setor Dez. Ela deveria
ter feito aquilo antes do casamento, por garantia, mas
não tinha nem pensado em perguntar. Agora, sabendo
que tinham descoberto alguma coisa lá e que Lorde
Rafael sempre tinha imaginado que o Setor Quatro havia
deixado uma bomba relógio ou coisa do tipo... Ela queria
detalhes de até onde ele podia ir nos jogos de poder
envolvendo o Dez.
Alguém bateu na porta da sala onde ela estava.
Alana não precisava fazer esforço para tentar adivinhar
quem seria.
— Entre.
Aquilo também era outra coisa que ela nunca teria
esperado: como Lorde Rafael continuava agindo daquela
forma quase formal com ela. Alana tinha imaginado que
não ia demorar para ele só estar entrando nos
"aposentos" dela quando bem entendesse, mas não. Era
sempre a mesma coisa de bater na porta e esperar uma
resposta. E Alana tinha quase certeza de que, se ela não
respondesse ou dissesse que não queria ver ninguém,
ele aceitaria sem questionar.
Se ela não tivesse aprendido desde criança sobre
como os vampiros agiam, já teria caído em todas as
armadilhas dele. Seria fácil demais acreditar que a forma
como ele agia e parecia se importar era real. Era quase
como se ela gostar de estar ali, no mundo dele,
importasse. Mas não era real. Não tinha como ser, por
mais que ela quisesse.
— Quer ver algo? — Lorde Rafael perguntou.
Normalmente ele parava ao lado dela nas janelas.
Interessante.
Alana se virou e levantou uma sobrancelha.
— Difícil responder sem saber o que é esse "algo".
Ele sorriu e estendeu uma mão na sua direção.
— Uma surpresa.
Um arrepio atravessou Alana. Ela tinha uma relação
complicada com surpresas. Queria gostar delas, mas em
toda sua vida "surpresa" nunca tinha sido um sinal de
alguma coisa boa. Ali, era bem possível que fosse ser
algo bom, sim. Mas também ia ser uma armadilha.
Ela foi na direção de Lorde Rafael e aceitou sua mão.
Ele a puxou para perto com aquele sorriso que era um
convite, se ela fosse louca ou estúpida o suficiente para
aceitar.
Ele saiu para o corredor do castelo e fechou a porta
da sala de Alana. Ela não falou nada quando ele começou
a andar, não na direção que os levaria para as partes
mais "centrais" do castelo – as salas de uso comum onde
a Corte sempre se reunia – mas na direção que Alana
normalmente seguia para ir para o jardim de roseiras.
Ou talvez não para o jardim de roseiras, porque ele
não estava descendo as escadas que levariam para lá.
Estava subindo.
Uma surpresa. Aquilo queria dizer que ela não ia
perguntar nada, mesmo que quisesse.
Eles continuaram subindo as escadas e atravessando
os corredores de uma parte do castelo por onde Alana só
tinha passado duas vezes antes, no máximo, logo nas
suas primeiras semanas ali, quando estava explorando o
lugar. E, mesmo que não estivesse perto das áreas
centrais, não estavam nas áreas particulares do castelo.
Eles passaram por mais vampiros do que Alana teria
imaginado encontrar... Se bem que talvez deveria ter
imaginado algo assim. Aquele horário era quase o
equivalente ao meio-dia para os vampiros. Era óbvio que
eles estariam para todo lado.
Lorde Rafael abriu uma porta por onde ela nunca
tinha passado antes e gesticulou para Alana entrar. Ela
passou por ele e encarou uma escada em espiral,
subindo até onde conseguia ver. Estavam em uma das
torres do castelo, então. A escada ali era idêntica à que
Alana estava acostumada a subir, na torre para onde
sempre ia – a que tinha aquela sala com as janelas
enormes, sem nenhum móvel, e que tinha se tornado seu
refúgio desde os primeiros dias ali.
— Eu ainda acho que vocês gostam demais de
escadas — ela murmurou.
Na verdade, Alana sabia que não era um caso de
"gostar". Escadas só não faziam diferença para um
vampiro. Nenhum deles ia se cansar por ficar subindo e
descendo o tempo todo. Ela que era humana e precisava
lidar com aquilo.
Lorde Rafael deu uma risada baixa e parou no
começo da escada.
— Se preferir, posso te carregar.
Um arrepio atravessou Alana e ela balançou a
cabeça depressa, antes de começar a subir. Aquela era
uma ideia que ela não queria nem pensar a respeito. Não
mesmo. Por mais que ela tivesse se protegido o máximo
que conseguia quando tinha feito aquele contrato com
Lorde Rafael, algumas linhas não podiam ser
atravessadas – nem mentalmente.
Eles subiram em silêncio e não demorou muito para
Alana saber exatamente em qual torre estavam: a que
ficava mais no fundo do castelo e que era a mais alta.
Era a única explicação para como a escada parecia não
ter fim. E ela não conseguia nem imaginar o que Lorde
Rafael podia ter para lhe mostrar lá no alto.
A escada terminou em um espaço vazio, sem
janelas, e com uma porta.
Alana parou e se virou para Lorde Rafael. Ele sorriu e
gesticulou para que ela abrisse a porta.
Estranho. Normalmente ele fazia questão de ter o
momento cavalheiro abrindo todas as portas e esperando
ela passar.
Mas Alana estava curiosa.
Ela abriu a porta, devagar, e parou.
Era uma estufa. Era a única explicação possível.
Algumas mesas compridas tinham plantas em fileiras
cuidadosas, e mais para a frente havia canteiros. E
vasos, muitos vasos. E outras plantas presas em treliças
vindo da direção do teto. Trepadeiras, mas não as que ela
estava acostumada a ver.
Na verdade, Alana não estava acostumada a ver
nenhuma planta ali. Ela não sabia nem sei conseguia
reconhecer a maioria delas, e as que pensava que
conseguia... Elas não cresciam naquela região. Tinha
flores que ela só tinha visto em registros, quando estava
estudando, porque era quase impossível fazer com que
crescessem depois da volta da magia. E aquilo tudo
estava ali.
Alana encarou o teto – ou onde o teto deveria estar,
porque ela estava vendo as estrelas. Não. O teto era de
acrílico, provavelmente. E uma parte dele estava
tampada... O que queria dizer que todo o teto podia ser
coberto, se fosse necessário? E, para a sua direita, tinha
um espaço com o que ela tinha certeza que eram
orquídeas e que estava separado do restante da estufa
por uma cortina de um material que ela não reconhecia.
Agora que estava prestando atenção, havia mais espaços
como aquele, mas com as cortinas recolhidas. Áreas que
podiam ser climatizadas de forma específica, talvez?
Ela deu um passo para a frente e parou. Aquilo era
bom demais para ser verdade. Tinha que ser algum tipo
de armadilha. A questão toda era qual. Não era como se
Alana fosse ingênua o suficiente para pensar que Lorde
Rafael estava fazendo tudo aquilo porque realmente
estava interessado nela, mas...
Seria bom se fosse real. Seria muito bom.
Lorde Rafael parou ao seu lado.
— Meus planos eram para ter a estufa pronta há
alguns meses, mas tive dificuldade em conseguir
algumas mudas e preparar a climatização como disseram
que era necessário — ele contou. — Espero que seja do
seu agrado.
Alana engoliu em seco e se virou para ele. Lorde
Rafael estava olhando para ela, óbvio, e ela quase queria
acreditar no que estava vendo na sua expressão.
— O que é isso? — Ela perguntou.
Ele sorriu, sem mostrar as presas.
— Um presente para você.
QUATORZE

Alex sabia que existia um bom motivo para ter deixado uma das suas
balestras na entrada do complexo subterrâneo, mesmo
que não fosse ficar andando com ela o tempo todo. Não
que elu achasse que uma balestra fosse ajudar muito em
um espaço fechado, mas era uma arma que elu estava
confortável. E as flechas estavam ali, também – as que
elu tinha forjado com Gustavo, anos antes. Elas estavam
longe de ser suas melhores flechas, mas Alex tinha visto
a reação de Gustavo naquele dia, na casa segura. Aquele
metal era diferente, sim. E elu estava apostando naquilo
enquanto acelerava a moto de Melissa na direção da
fronteira.
O headset que tinham obrigado Alex a usar
continuava em silêncio e aquilo era um bom sinal. Queria
dizer que nada tinha mudado e Gustavo ainda estava
perto da fronteira com o Setor Seis. Se ele mudasse de
direção, Dani avisaria.
Quando ele tinha só saído correndo do complexo,
sem falar nada, se movendo com a mesma velocidade de
quando tinha colocado Alex contra a parede, elu tinha
entendido que algo estava errado. O que quer que ele
tivesse visto no tablet – que tinha travado a tela antes de
Alex conseguir ver o que era – não havia sido nada bom.
E Alex tinha precisado discutir com Dani, Amon e Yuri
sobre não caçarem Gustavo sem nem entender o que
tinha acontecido. Não que discutir fosse uma boa
descrição. Alex só tinha avisado que, se Gustavo não
estava fazendo nenhum movimento hostil, então elu ia
atrás dele e ninguém tinha motivo para pensar em tomar
alguma medida mais drástica.
Era loucura e Alex sabia. E só tinha dado certo
porque Dani havia avisado para os outros que elu e
Gustavo tinham um passado, então Alex provavelmente
sabia o que estava fazendo. Não era exatamente a
verdade, mas tinha funcionado, e aquilo era o que
importava.
Teria sido mais fácil só deixar eles resolverem tudo.
Gustavo era um problema da força de defesa, não de
Alex. Mas elu sabia quais eram os protocolos da força de
defesa. Ninguém conhecia Gustavo como elu e não se
preocupariam em tentar entender o que tinha acontecido
antes de tomarem medidas drásticas. Se Amon fosse
atrás dele, seria para caçar, no sentido literal mesmo. Ele
traria de volta o corpo de Gustavo e mais nada e Alex
não ia deixar aquilo acontecer.
Porque não fazia sentido. Ele não sairia daquele jeito
depois de ter dado sua palavra de que não tentaria fugir
nem atacaria ninguém. E, se fosse fugir, Gustavo não era
burro o suficiente para pensar que aquilo, daquele jeito,
era uma boa ideia. Ele teria sido cuidadoso, escaparia de
um jeito que fossem demorar para notar.
Então não. Não ia acabar daquele jeito. Alex tinha
começado a ter suas respostas, começado a entender o
que tinha dado errado oito anos antes. Gustavo tinha se
desculpado, mesmo que Alex não soubesse se conseguia
desculpá-lo por algo como aquilo. Mas... Ele tinha se
desculpado, sem elu estar insistindo no assunto nem
nada. Porque ele queria. E aquilo pesava para Alex. Elu
não aceitava só perder aquilo – perder Gustavo – agora.
Ainda tinha coisas demais para elu entender sobre o que
quer que aquilo fosse.
— Ele parou nas paredes elétricas — a voz de Dani
soou no ouvido de Alex.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Continue na mesma direção — ela completou. —
Ele ainda está parado no lugar.
Provavelmente estava tentando descobrir como
passar pelas paredes elétricas. O que quer que o monstro
fosse, não era estúpido. Não se jogaria nas paredes. E
era pura sorte que o Setor Dez tivesse instalado paredes
elétricas ao longo da maior parte da fronteira, mesmo
que elas não ficassem ligadas o tempo todo.
Elas estavam ligadas, agora. Tinha sido a primeira
ordem de Dani, até antes de Alex entender o que tinha
acontecido.
— Certo — elu respondeu.
— E, Alex... — Dani começou, devagar.
— O quê?
— Não acho que ele vai sair de onde está — ela
contou. — Não ir para outras áreas da fronteira. Gustavo
destruiu todas as câmeras e sensores mais perto.
Alex encarou a linha das árvores mais para a frente.
Elu não tinha demorado para sair do complexo
subterrâneo, mas o tempo que tinha gastado para
convencer Dani e Yuri havia sido o suficiente para
Gustavo já estar na fronteira, mesmo que aquilo não
fosse possível. Ninguém se movia tão depressa. Ou
melhor, ninguém humano.
— Vocês não vão ter como saber o que está
acontecendo, entendi — Alex respondeu. — É até melhor.
Porque elu não ia se aproximar de Gustavo tendo
uma plateia. Burrice, talvez, mas só pensar naquilo já
deixava Alex desconfortável.
Dani fez um ruído exasperado no headset. Alex
sorriu. Pelo visto a situação tinha se invertido – antes, era
sempre elu fazendo algum ruído irritado por causa das
loucuras de Dani.
— Só mais uma coisa — ela falou. — Eu não consegui
uma visão clara antes de ele destruir as câmeras mas, o
que quer que ele seja, não parece ser humano.
Alex respirou fundo. Elu sabia. Elu tinha imaginado
desde o começo que era o monstro no controle e não
Gustavo. Depois de ter visto as garras e os olhos
vermelhos, depois da forma como Gustavo tinha evitado
o assunto, Alex já tinha certeza de que a transformação
era muito mais do que só aquilo.
— Certo.
Dani fechou o microfone com um ruído seco e Alex
se concentrou no caminho, de novo. O Setor Dez era todo
atravessado por trilhas limpas o bastante para as motos
passarem. Elu não tinha muito com o que se preocupar,
principalmente porque estava na moto de Melissa – que
era um modelo muito mais recente que os outros do
setor – mas não ia se distrair. Já estava correndo riscos
demais.
Alex passou pelas primeiras árvores. Elas
começavam espalhadas antes de ficarem fechadas mais
perto da fronteira. Era uma medida de segurança que só
o Setor Dez tinha como usar: as árvores como uma forma
de esconder qualquer movimentação ali dentro.
Elu parou e desligou a moto. Não estava longe das
paredes elétricas.
— Dani?
— Na escuta.
Era loucura. Alex sabia que era loucura. Mas não ia
fazer aquilo sabendo que teria uma equipe ouvindo tudo
o que estava acontecendo. De certa forma, era a mesma
coisa que Raquel tinha falado, no começo, quando tinha
mandado elu falar com Gustavo: era pessoal demais.
— O headset vai ficar aqui — Alex avisou. — Se eu
não der sinal de vida em duas horas ou se ele sair daqui
e eu não estiver por perto, faça como preferir.
O que queria dizer mandar Amon.
— O risco... — Dani começou.
Alex desligou o headset e o colocou em cima da
moto. Elu tinha plena consciência do risco – porque
ninguém sabia o que esperar de Gustavo. Mas estava
disposte a arriscar, sim. Era a única forma que conseguia
pensar de resolver aquilo sem um resultado inaceitável.
Elu pegou a balestra, acendeu a tela do celular que
Dani tinha lhe dado, e começou a ir na direção da
fronteira. A aljava estava presa na sua perna, de novo, e
Alex esperava muito que não precisasse usar nenhuma
daquelas fechas. Elu não tinha certeza de qual seria o
resultado de usar aquele metal contra Gustavo, mas não
ia cometer a burrice de ir atrás dele sem nenhuma arma.
Alex não tinha se esquecido do que Gustavo tinha
falado sobre a pessoa que o monstro escolhia sempre ser
a primeira vítima. Elu não estava duvidando – não tinha
como duvidar, depois de como ele tinha falado e como as
coisas que elu sabia tinham se encaixado. E Gustavo
podia ter omitido e escondido coisas demais... Mas nunca
tinha mentido, quando começava a falar sobre alguma
coisa.
Então elu não duvidava daquilo – e tinha sérias
suspeitas de que era o que tinha acontecido com o pai de
Gustavo. Que ele tinha perdido o controle e atacado sua
mãe, porque na época ela tinha passado dias sem ver
ninguém. Podia ter sido só o luto, sim. Mas também
podia ter sido um jeito de esconder qualquer ferimento
mais visível.
Mas não fazia sentido. Por que aquele outro lado
escolheria alguém, alimentaria aquele instinto de
proteção que elu tinha visto em Gustavo, e depois só
atacaria? Não. Alguma peça estava faltando. Tinha algo a
mais ali que era bem possível que Gustavo não
soubesse. Talvez nem seu pai soubesse, antes.
Ou talvez Alex só estivesse se iludindo e tentando
imaginar uma situação onde Gustavo não seria morto
como os outros alterados.
Elu deveria ter buscado mais antídoto. Até havia
pensado em fazer aquilo, mas não tinha tido tempo. Não
com Gustavo correndo na direção da fronteira e Amon
falando sobre caçá-lo.
As árvores se fecharam ao seu redor e Alex
continuou andando. A luz da tela do celular não ajudava
muito, mas era melhor que nada e elu com certeza não
ia ligar a lanterna. Estava no meio das árvores, de noite,
sozinhe. Por mais que a ideia de luz forte parecesse boa,
também era uma forma fácil de chamar atenção muito
de longe.
Elu ouviu um ruído grave mais para a frente e parou.
Nada. Só o barulho do vento nas folhas das árvores.
Não. Tinha um som mais grave, sim. Algo que era
quase um rosnado mas era baixo e contínuo demais para
ser exatamente aquilo.
Alex ligou a lanterna do celular e o colocou no bolso.
Não passava quase nada de luz pelo tecido da sua calça,
mas era melhor que nada, porque senão elu ia estar na
escuridão completa ali.
— Gustavo? — Elu chamou.
O quase-rosnado ficou mais forte por um instante e
parou.

Eles pagariam.

Ele tinha se controlado por tempo demais, se


permitido continuar preso. Mas aquilo tinha acabado.
Eles pagariam por terem ferido sua família. Ele
cobraria cada gota de sangue, cada segundo de dor.
Eles pagariam por terem colocado seu sangue
prometido em risco. Por terem lhe ameaçado, mesmo
que indiretamente.
O monstro quase conseguia sentir o cheiro do
sangue, mesmo que estivesse longe dos seus alvos. Mas
ele conhecia cada um deles. Tinha visto cada um deles
sangrar, enquanto estavam treinando perto demais dele,
pensando que estavam no controle. Ele os encontraria,
não importava onde estivessem. E cada um deles
pagaria pelo seu papel. Um dedo não seria nada
comparado com o que ele faria.
O único problema era aquela parede no seu
caminho. A eletricidade correndo por ela tinha um cheiro
característico e o monstro sabia que não passaria por ali.
Ele precisava desativar aquilo. Ou esperar até ser
desativado. Sim. Ele podia se esconder nas árvores e
esperar, porque a eletricidade não ia continuar por muito
tempo. A parte dele que ainda se lembrava de onde
estava tinha certeza daquilo.
O monstro levantou a cabeça e parou, escutando.
Alguém estava se aproximando. Alguém tinha pensado
que o caçaria.
Talvez alguém fosse se tornar a sua caça.
Ele saiu de perto da parede e começou a andar
devagar na direção do som de passos. Havia um cheiro
se espalhando...
O monstro parou e farejou o ar. Ele conhecia aquele
cheiro. Aquilo era seu. O sangue que tinha sido
prometido para ele.
E ele conhecia o cheiro metálico por baixo do cheiro
do sangue.
Não. Ele não ia ser preso de novo.
Ele encarou o ponto fraco de luz entre as árvores. Elu
não estava tentando se esconder.
— Gustavo?
O monstro sorriu, mesmo que estivesse escondido
demais no meio das árvores para ter sido visto. Ele
reconhecia aquele nome. Era o nome humano, o nome
de quando estava preso.
— Gustavo, se é você...
Não era.
O monstro avançou.

Alex se jogou para o lado um instante antes de uma sombra mais


escura passar ao seu lado.
Era Gustavo ali, sim. O monstro, como ele dizia, mas
era Gustavo do mesmo jeito.
Elu se virou, devagar, sem levantar a balestra. Era
Gustavo ali e sua primeira reação nunca seria atirar.
Fazer aquilo era diferente demais da vontade de enfiar a
mão na cara dele – e até aquilo tinha terminado de
desaparecer depois do que ele tinha falado enquanto
estavam no complexo. Alex não ia ignorar o que ele tinha
feito. Mas... Elu entendia.
— Gustavo — elu chamou.
Uma sombra mais escura se moveu em algum lugar
para o lado. Alex se virou, mas não conseguia ver nada.
Os troncos das árvores eram silhuetas mais escuras
contra a escuridão, quando eram visíveis. Se Gustavo
quisesse, poderia ficar parado quase ao lado delu, e Alex
não conseguiria notar a menos que fizesse algum
barulho.
— Eu sei que é você e eu sei que você está me
ouvindo — elu murmurou.
A sombra mais escura se moveu de novo, indo na
sua direção, sem tentar se esconder – não que
precisasse. Alex não conseguia ver detalhes. A luz da tela
do celular, através do tecido do bolso da sua calça, era
fraca demais. Mas elu estava vendo o suficiente para
entender o que Dani tinha falado sobre Gustavo não ser
humano. Havia algo de diferente no que elu conseguia
ver – como se as proporções do corpo dele estivessem
erradas. E ele parecia maior, mais largo de algum jeito.
Aquela silhueta não era a mesma que Alex veria se fosse
Gustavo ali, como elu o conhecia.
Os olhos dele brilharam, vermelhos. Um arrepio
atravessou Alex. Não era só a cor mudando, como elu
tinha visto no complexo. Era um brilho, sim. Como se
estivesse refletindo a luz, mas não havia luz para ser
refletida.
Ele rosnou de novo, e era o mesmo som que Alex
tinha ouvido quando estava se aproximando. Aquele som
não estava saindo de uma garganta humana. Não tinha
como estar. Era grave e agressivo demais, pesado de um
jeito que elu nunca tinha ouvido antes.
— Você disse que não queria perder o controle —
Alex falou. — Que não queria se tornar o que esperavam.
O rosnado ficou mais pesado ainda, mas Gustavo – o
monstro – não saiu do lugar.
O que elu podia falar para fazer Gustavo ouvir e
voltar, de alguma forma?
— Se você insistir em fugir assim, vai ser caçado —
elu continuou. — Tem certeza que quer isso? Passar sei lá
quanto tempo tentando escapar de Amon e depois das
Cortes, quando descobrirem sobre você? Acha que é a
melhor ideia?
O monstro avançou.
Alex deu um passo atrás. Não era medo, não
exatamente. Era cautela. Elu confiava que Gustavo não
faria nada que pudesse lhe ferir, mas confiar não queria
dizer que ia brincar com a sorte. Ou melhor, brincar mais
do que já estava.
— Quanto tempo acha que vai sobreviver? — Elu
insistiu.
— E quanto tempo eu sobreviveria aqui?
A respiração de Alex falhou. Elu não tinha esperado
uma resposta, e muito menos uma resposta em uma voz
que parecia ser Gustavo, mas não era. Aquele tom de
rosnado ainda estava ali, contínuo, e a forma como ele
estava falando era diferente, também, mesmo que ainda
existisse alguma semelhança.
— Quanto tempo até eu estar preso para ser
estudado? — O monstro continuou.
Não. Não era o monstro, como quer que Gustavo
chamasse. Era ele ali, sim. Alex quase conseguia ouvir a
mesma coisa de quando ele tinha explicado por que
nunca havia contado nada: a certeza de que era menos e
que qualquer um que soubesse da verdade o trataria
daquele jeito. Que, na melhor das hipóteses, ele estaria
sozinho e isolado. E, na pior...
— Eu não deixaria — Alex murmurou.
Gustavo continuou parado no mesmo lugar.
— Eu nunca aceitaria isso — Alex falou. — Por que
você acha que sou eu quem veio atrás de você?
E o que elu mais queria era conseguir ver alguma
coisa além do brilho vermelho dos olhos dele. Qualquer
coisa, só para tentar entender. Não importava o que
Gustavo pensava, não conseguir ver o que ele estava
escondendo, o que era o tal monstro, era muito pior.
Ele avançou de uma vez, mais depressa do que era
humanamente possível, mas não tão depressa que Alex
não conseguisse ver o movimento.
Elu recuou. Seu pé bateu em alguma coisa e Alex
esticou a mão para trás para não cair. Uma mão grande
se fechou ao redor do seu torso um instante antes de
Alex bater as costas com força no tronco de uma árvore.
E elu tinha batido a mão também. Provavelmente tinha
se cortado, pela pontada de dor, mas aquilo não fazia
diferença.
Gustavo lhe soltou e se afastou depressa – mas não
tão depressa que Alex não conseguisse ver a mão maior
do que elu estava acostumada, com as garras e a pele
vermelho-sangue que parecia que escurecia mais.
Elu continuou no lugar, encarando a silhueta mais
escura que era Gustavo. O monstro. Ele estava
respirando fundo e tenso de um jeito que não estava
antes – e Alex não ia pensar em como conseguia ter
tanta certeza daquilo quando mal conseguia ver o que
estava acontecendo.
O sangue. Alex tinha cortado a mão, quando havia
batido na árvore. E Gustavo tinha sido alterado por uma
das Cortes. Era de se esperar que tivesse algum tipo de
sensibilidade a sangue...
Um arrepio atravessou seu corpo. Aquilo era um
problema. Alex tinha acertado sobre Gustavo não atacar,
mesmo que o monstro estivesse no controle, mas o
sangue mudava as coisas. Elu não tinha como ter certeza
de mais nada, muito menos sobre as reações dele.
Gustavo se aproximou devagar, só uma sombra mais
escura e o brilho dos olhos vermelhos, fixos nelu.
Alex não ia fugir. Não ia tentar correr. Mesmo ali,
daquele jeito, elu não chegava a ter medo... Mas sabia
que tudo podia dar muito errado a qualquer instante.
E não ter medo não queria dizer que não ia fazer
nada.
Elu puxou uma das flechas que estava na sua aljava.
A ponta de metal era fria contra a sua pele, com aquele
formato triangular que tinha sido quase uma brincadeira
quando haviam forjado tudo. Não era o melhor para uma
flecha – não para o tipo de balestra que ela usava ou
para algum uso prático e atual. Na época, tinha sido
quase só diversão. Agora, Alex se perguntava se Gustavo
tinha sugerido aquilo especificamente para lhe dar uma
arma.
O monstro parou na sua frente, ainda respirando
fundo daquele jeito que mais parecia que estava
farejando o ar. Sentindo o cheiro do seu sangue.
Alex colocou a ponta da flecha na parte de baixo do
queixo dele. Não importava como aquela transformação
funcionava, aquele ainda era um lugar vulnerável.
E o rosto olhando para elu era o rosto de Gustavo, ao
mesmo tempo em que não era. Não tinha nada daquela
expressão leve que era o normal dele, só uma dureza
que era quase artificial. E tinha algo de diferente no
formato do rosto dele, sim, além dos restos do vermelho-
sangue e preto que era sua pele.
— Sem isso de tentar me assustar — Alex falou.
E sua voz não estava tremendo. Bom.
O monstro sorriu, mostrando presas que eram
parecidas com as de um vampiro. Parecidas, não iguais.
— Você me escolheu — elu falou. — Você. As duas
partes de você. Então eu não vou fugir.
Ele não falou nada nem se afastou.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar. Elu deveria
estar com medo. Estava segurando uma flecha
encostada no queixo dele, sabendo que só precisava
fazer um pouco de força para causar muito estrago. Só
aquilo devia ser o suficiente para elu estar pensando em
como escapar dali. Mas ao invés disso Alex só conseguia
continuar olhando para o monstro – para Gustavo – e
notando as semelhanças e diferenças.
A pele dele estava voltando ao normal, com o
vermelho escuro e preto se afastando do seu rosto e
descendo pelo seu pescoço aos poucos. Alex queria
pensar que era porque Gustavo estava recuperando o
controle, mas ainda estava encarando os olhos
vermelhos do monstro.
— O que você quer? — Elu perguntou.
— Sangue — ele falou, com aquele rosnado na voz
que definitivamente não era humano. — O sangue que
foi prometido.
Em outro tom, aquilo seria uma ameaça. Mas não do
jeito que ele estava falando. E não considerando como
ele ainda estava parado no lugar, sem tentar avançar
mais, quase tocando Alex, mas se dar aquele último
passo para a frente.
Alex não fazia ideia do que estava acontecendo, mas
aquilo fazia mais sentido do que a ideia de que o monstro
lhe atacaria se assumisse o controle.
— Meu sangue — elu falou.
O monstro não respondeu, só farejou o ar.
Alex moveu a mão livre – a que tinha batido na
árvore e cortado. Ele se virou na mesma hora,
acompanhando o movimento.
Ele queria seu sangue. Não qualquer sangue, mas o
de Alex, especificamente.
Era loucura. Elu sabia que era.
Mas Alex tinha passado tempo demais se
controlando para não fazer loucuras, e tinha
desperdiçado demais da sua vida daquele jeito.
Elu levantou a mão e virou a palma na direção do
monstro.
Gustavo respirou fundo de novo, encarando a mão
de Alex, mas não saiu do lugar. Elu quase conseguia
sentir a tensão dele, como estava se forçando a
continuar parado.
Alex estava certe, sim. Ele não ia atacar. O que quer
que acontecesse quando o monstro estava no controle,
não era tão "simples" como Gustavo tinha feito parecer.
Elu respirou fundo e abaixou a flecha que ainda
estava segurando. O monstro se virou para Alex, com os
olhos arregalados e algo que quase parecia medo na sua
expressão que era completamente Gustavo ali, ao
mesmo tempo em que não era.
Era loucura, sim. Mas pelo menos era uma loucura
consciente.
Elu inclinou a cabeça para o lado, deixando o
pescoço à mostra.
O monstro avançou. Alex sentiu a mão forte no seu
torso, mais quente que uma mão humana deveria ser, e
as pontas das garras através do seu colete. Ele podia lhe
rasgar sem fazer o menor esforço. Alex tinha visto a
velocidade de Gustavo, quando estavam no complexo
subterrâneo.
E aquilo era mais um motivo para não ter medo. Se
ele quisesse atacar, Alex não estaria ali. Simples.
A outra mão dele foi para o seu pescoço. Alex sentiu
a pele quente contra sua nuca, a textura um pouco
diferente da mão de Gustavo, e então as pontas das
garras encostando na sua pele. Um descuido, e elu seria
cortade.
O monstro abaixou a cabeça e Alex fechou os olhos.
Aquele era o seu limite. Se fosse morrer por causa
daquilo, então não queria ver.
A sensação das presas dele no seu pescoço era
estranha. E a respiração quente contra a sua pele era
algo que Alex tinha passado oito anos pensando que
nunca mais ia sentir – e que com certeza nunca teria
imaginado que sentiria naquela situação. E...
Dor. Estava sendo cortade e aquilo não parecia nada
com o que já tinha visto falarem sobre a mordida de um
vampiro. A dor estava ali e não era pouca. Alex estava se
sentindo rasgar, e não como se fosse uma faca na sua
pele. Não era algo limpo.
Elu bateu a mão fechada nas costas de Gustavo. Se
tentasse se soltar, ia ser pior. Ia terminar de rasgar o
próprio pescoço. E não importava quanto batesse ou
puxasse o braço do monstro, era como se Alex não
estivesse fazendo nada. A dor continuava ali.
Até que não estava mais.
Alex relaxou as mãos, tentando entender o que
estava sentindo. Ainda era a respiração quente dele no
seu pescoço, ainda era a sensação estranha das presas e
da boca dele, aquela impressão de que ainda deveria
estar sentindo dor, mas...
O monstro sugou seu sangue, mas a sensação de
Alex era como se ele estivesse chupando o meio das
suas pernas, não seu pescoço. Era uma pressão forte,
contínua – e só aquilo. Só a pressão. A sensação de estar
sendo sugade, mas sem nenhum toque. Não onde elu
estava sentindo. E definitivamente não como elu estava
sentindo.
E a pressão continuava, forte, constante. Alex gemeu
e bateu nas costas de Gustavo de novo, mas agora não
era porque queria que ele parasse. Era porque elu
precisava de mais. Aquilo não era o suficiente. Não
daquele jeito, só uma sensação sem nenhum contato.
Mas era o bastante para Alex sentir todo o seu corpo
reagindo, sua respiração falhando enquanto queria mais.
Alex bateu nas costas de Gustavo de novo, com mais
força do que deveria. Ele rosnou contra o seu pescoço,
sem lhe soltar e sem parar de beber. E a sensação do
rosnado também não parecia estar no seu pescoço.
Parecia uma vibração junto com a sucção, só mais uma
coisa para fazer elu se mover contra Gustavo, tentando
achar alguma coisa, qualquer ponto de contato para
terminar aquilo.
O monstro soltou o torso de Alex e desceu a mão até
o meio das suas pernas. Elu deveria se preocupar. Tinha
sentido as garras, mesmo através do tecido do colete.
Mas não conseguia, porque a mão de Gustavo estava ali.
Só ali, na posição certa, no ângulo exato que elu
precisava.
Alex se moveu contra a mão dele, sem se preocupar
com o que estava fazendo. Precisava do toque. Precisava
do contato, qualquer coisa que fosse mais, que servisse
para fazer seu corpo explodir, porque as sensações eram
demais. Era como se cada vez que Gustavo sugava seu
sangue, ele sugasse em todos os lugares perfeitos.
O orgasmo explodiu pelo seu corpo, fazendo Alex
tremer e se segurar em Gustavo – no monstro. Que ainda
estava tomando seu sangue. Que ainda estava mantendo
aquela pressão, a sensação de estar sendo chupade que
elu não conseguia ignorar.
Mas agora Alex conseguia pensar o suficiente para
notar que estava sentindo sua cabeça leve demais e que
a noite estava começando a parecer fria. Quanto de
sangue Gustavo tinha tomado? Elu não sabia, mas tinha
certeza que tinha sido sangue demais. Se ele
continuasse bebendo, Alex ia desmaiar.
Elu empurrou o ombro do monstro. Ele levantou a
cabeça devagar e parou, encarando Alex.
Os olhos ainda eram vermelhos, mas agora havia
algo ali que fazia elu ter certeza de que não era só o
monstro. Era Gustavo. Seu rosto era o mesmo de sempre,
sem aquele algo de diferente que Alex não tinha
conseguido identificar. A pele dele estava voltando ao
tom bronzeado que era o seu normal, com o vermelho e
preto do monstro descendo pelo pescoço dele e
desaparecendo. E sem nada daquela impressão de
tamanho.
Ele abaixou a cabeça de novo. Alex se preparou para
a dor, para empurrar Gustavo para longe assim que
sentisse as presas se aproximando do seu corpo de novo.
Ele lambeu as feridas no seu pescoço. Alex tremeu e
fechou as pernas com força. Não. Elu não podia continuar
daquele jeito.
Não fazia sentido. Aquilo não tinha como ser normal
e elu não tinha nem como ter certeza sobre aquilo.
Nunca ia perguntar Dani se tinha sido assim com Amon,
antes que ela fosse transformada. E elu tinha menos
intimidade ainda com Yuri ou Melissa.
Gustavo se endireitou e deu um passo atrás antes de
parar, encarando Alex.
— Sinto muito — ele murmurou.
Se ele se arrependia do que tinha feito, aquilo ia ser
um problema, porque Alex não se arrependia nem um
pouco.
Elu colocou a mão no pescoço. Ainda tinha um resto
de sangue ali e elu ainda estava sentindo um pouco de
dor, mas não tinha nenhum sinal dos cortes da mordida.
Nada, mesmo que Alex tivesse tido a impressão de que
estava sendo rasgade.
Gustavo caiu no chão.
Alex se endireitou depressa. Ainda estava sensível,
com aquela sensação de que, caso se movesse do jeito
certo, ia gozar de novo. E, por mais que não fosse uma
má ideia... Era uma má ideia, porque elu não estava ali à
toa. E porque não fazia ideia do que tinha acontecido
com Gustavo.
Elu correu até onde ele tinha caído e se abaixou,
tirando o celular do bolso. A lanterna ainda estava ligada
e era luz mais que o suficiente para Alex ver que Gustavo
parecia normal. A respiração dele estava forte e regular,
sem nenhum sinal de risco. O rosto dele estava
manchado de sangue – o sangue delu – mas não parecia
que tinha nenhum ferimento ou coisa do tipo.
E Alex não tinha a menor condição de tentar
entender o que tinha acontecido. Pelo menos ele parecia
ser Gustavo de novo. Totalmente ele, sem nenhum sinal
do que quer que fossem que havia se transformado.
Elu se levantou e colocou a mão no pescoço. Aquilo
tinha sido loucura. Alex não tinha nem certeza do que
estava pensando para ter oferecido o pescoço daquele
jeito, mas... Tinha dado certo, não tinha? Elu não tinha
precisado esperar enquanto caçavam Gustavo. Alex tinha
conseguido trazer ele de volta.
E era aquilo que importava, não a lembrança da
sensação enquanto ele estava bebendo seu sangue.
Alex virou a lanterna do celular na direção de onde
tinha vindo. Ainda tinha marcas o suficiente para elu
reconhecer o caminho que havia feito. Ótimo, porque ia
precisar voltar para onde tinha deixado a moto e o
headset. Não ia correr o risco de tentar acordar Gustavo
sem saber por que ele tinha apagado, o que queria dizer
que ia precisar de ajuda para tirá-lo dali.
E, depois, precisaria entender o que tinha
acontecido.
QUINZE

Gustavo abriu os olhos devagar e parou, sentindo o colchão


debaixo do seu corpo. Ele estava na casa segura, mas
não sabia como tinha chegado lá. Ele se lembrava de
estar preso com Alex, depois que o teto de parte do
complexo subterrâneo tinha desabado, e depois...
Havia algo sobre uma mensagem. E algo sobre as
paredes elétricas na fronteira do setor. Mas por que ele
estaria pensando nelas?
Não. Ele não estava pensando nas paredes elétricas.
Estava se lembrando. Aquela sensação de não saber,
misturada com uma impressão de algo que era quase
uma memória, mas não dele... Aquilo era a mesma coisa
de quando ele tentava se lembrar dos anos logo depois
de ter saído do Setor Dez, quando tinha perdido o
controle e passado anos preso.
E Alex. Alex estava lá, de alguma forma. Aquela
parte era clara: Alex na sua frente, segurando uma flecha
do metal que o Setor Quatro tinha desenvolvido
especificamente como arma contra os alterados. E elu
estava sangrando. Gustavo se lembrava daquilo,
também. Do gosto do sangue de Alex. Da sensação de
querer mais e do corpo delu debaixo do seu.
Não. Não, aquilo não podia ser real. Não depois de
tudo, não Alex.
O que ele tinha feito?
Gustavo se sentou de uma vez e olhou ao redor. Não
tinha nada de diferente ali. Era o mesmo quarto de
antes, com as suas coisas no mesmo lugar... Mas não era
possível. Ele tinha perdido o controle. Tinha atacado Alex.
Mesmo que ele não se lembrasse, mesmo que a
sensação maior que ele tinha fosse do calor do corpo
delu, ele conseguia se lembrar do gosto do sangue.
Não tinha como ter sido uma ilusão. Nem um sonho.
Não tinha como Alex ter sobrevivido. Ele se lembrava
bem demais de como tinha sido quando seu pai havia
perdido o controle. Sua mãe sabia o que esperar, e
mesmo assim tinha sido por pouco. Gustavo se lembrava
bem demais do sangue, dos rosnados e dos gritos dela
antes do seu pai cair. Se ele tinha perdido o controle e
Alex tinha ido atrás dele...
O seu tablet estava na mesa de cabeceira, com um
trincado novo na lateral. Ele não se lembrava de como
aquilo tinha acontecido, também, mas não importava.
E não era aquele tablet que ele queria. Era o que
tinha sido dado para ele quando foi aceito no Setor Dez,
e que praticamente não tinha olhado mais desde que
Alex o encontrara nas ruínas.
Ele se levantou depressa e saiu do quarto. O outro
tablet estava em cima da mesa da sala – e tudo ali
estava como antes, também. Como se nada tivesse
acontecido.
Não era possível. Gustavo conhecia aquela sensação
bem demais. Ele tinha perdido o controle, sim. E Alex
estava lá, de alguma forma.
Gustavo abriu o sistema onde ficavam os avisos para
os mercenários. Mesmo que tecnicamente ele estivesse
preso, ainda tinha acesso. E não tinha nada lá sobre ter
acontecido um ataque na noite anterior. Ele saiu do
sistema fechado e abriu o canal de notícias do setor.
Nada. Um aviso de que tinham duas áreas de acesso
restrito: as ruínas e uma área perto do pomar, que ele
era capaz de apostar que era onde o teto do complexo
subterrâneo tinha desabado. E só.
Não fazia sentido. Deveria ter alguma coisa ali. Teria,
se ele tivesse matado Alex. Elu era uma parte importante
do setor, mesmo que não fosse da força de defesa.
Gustavo sabia que Alex tinha passado anos trabalhando
na maior escola do setor. Se qualquer coisa acontecesse
com elu, teria algum tipo de anúncio. Pelo menos era o
que fazia sentido na cabeça dele.
E... Nada.
Como?
Gustavo voltou para o sistema fechado dos
mercenários, procurando o banco de dados de contatos
úteis ou que podiam ser importantes em missão. Alex
estava lá, óbvio, como especialista em história. Elu ainda
preferia esconder a forma como sentia poder, então. Mas
ele tinha como mandar uma mensagem.
Mensagem. Gustavo se lembrava de ver uma
mensagem, só não fazia ideia de o que tinha sido.
Ele voltou para o quarto e pegou o tablet em cima da
mesa de cabeceira. Além do trincado na lateral, ele tinha
um amassado em um dos cantos que também era novo.
Gustavo tinha deixado o tablet cair em algum momento,
então. Provavelmente dentro do complexo subterrâneo,
se tinha amassado daquele jeito.
Ele abriu as mensagens e parou. A última mensagem
recebida tinha sido de Silas, com uma foto...
Uma foto do dedo decepado da sua mãe.
Gustavo respirou fundo, sentindo a pele formigar,
mas o monstro não estava tentando escapar e assumir o
controle. Só estava ali, observando. Esperando, quase.
Ele não ia se iludir e pensar que aquilo queria dizer
que estava seguro. O monstro nunca tinha ficado tão...
Calmo não era a palavra. Mas nunca tinha parecido tão
disposto a só esperar, muito menos depois de ver
alguma coisa daquele tipo. Todas as vezes que Gustavo
quase tinha perdido o controle depois de ir embora do
Setor Dez haviam sido porque sua mãe ou sua irmã
tinham sido ameaçadas.
E, se ele tinha aberto aquela mensagem antes, era
fácil entender por que tinha perdido o controle. Gustavo
tinha passado uma semana pensando naquele prazo,
sabendo que mais cedo ou mais tarde Silas começaria
com as ameaças e sabendo que não tinha uma solução.
Qualquer informação que ele passasse, ou não seria o
suficiente ou colocaria Alex e todo o setor em risco. Ele
não conseguia fazer aquilo. E, depois, tinha passado
horas preso com Alex, sentindo o cheiro do sangue delu,
com o monstro querendo escapar o tempo todo... Aquilo
tinha sido a gota d'água. Ele tinha visto a mensagem e o
monstro havia assumido o controle.
O que queria dizer que Gustavo deveria estar morto.
Não fazia sentido ele estar ali, na casa segura, se tinha
perdido o controle e ido para a fronteira. Eles teriam
mandado Amon atrás dele – o mesmo Amon que tinha
caçado tantos como ele.
Mas Gustavo só se lembrava de Alex. Não havia mais
ninguém nas impressões das suas memórias.
Ele pegou o tablet de "trabalho" de novo, ainda com
as informações de Alex abertas. Gustavo não queria fazer
aquilo. Não queria admitir que não se lembrava – que
estava tão fora de controle àquele ponto. E, se fosse
honesto consigo mesmo, não queria correr o risco de
mandar uma mensagem e nunca ter resposta, porque ele
ainda não sabia se podia acreditar que Alex tinha
escapado depois de se encontrar com o monstro.
Mas só tinha um jeito de saber.
Gustavo digitou a mensagem depressa e apertou
"enviar".

Alex encarou a mensagem no seu tablet. "O que eu fiz?" Simples.


Direta. Não deveria ser tão difícil pensar em como
responder aquilo.
O que Gustavo tinha feito? Ele tinha mordido Alex,
como se fosse um vampiro. Tinha tomado seu sangue.
E depois tinha lhe dado um dos melhores orgasmos
da sua vida.
A pior parte era que elu não duvidava que aquela
pergunta fosse real e ele não se lembrasse de nada. Alex
tinha notado a diferença, sim. Mesmo quando ele tinha
voltado a parecer humano, ainda não era totalmente ele
ali. Tinha algo diferente nos seus movimentos, em como
ele agia.
E Alex não podia não responder.
"Nada que eu não quisesse."
Era o suficiente, por enquanto. Mesmo que elu ainda
estivesse sentindo uma pontada de dor no pescoço, onde
ele tinha mordido e curado depois... Era a verdade.
Gustavo não tinha feito nada que Alex não quisesse. Elu
poderia ter recusado e resistido, mas não tinha feito
nada. Ou melhor, tinha oferecido seu pescoço quando
havia notado que ele estava prestando atenção no cheiro
do seu sangue. E agora não tinha certeza do que aquilo
significava.
— Alex? — Raquel chamou.
Elu levantou a cabeça. Estava no escritório da bruxa,
de novo. Tinha ido para lá logo depois de acordar, para
ter tempo de falar com ela antes da reunião que teriam
pouco depois, na casa de Dani e Amon. Ninguém tinha
perguntado nada sobre o que havia acontecido perto da
fronteira e Alex sabia que era por ordens de Raquel. O
mínimo que podia fazer era explicar o que podia.
— Gustavo acordou — elu avisou.
Raquel assentiu.
— E o que você tem a dizer tem a ver com ele.
Alex respirou fundo e assentiu.
— Primeiro, tenho quase certeza de que a alteração
não foi feita usando a mesma base que os carniçais —
elu começou. — Não é uma variação da transformação
de vampiro. Tem um elemento de sangue envolvido, sim,
mas não é a mesma coisa.
Raquel se inclinou para trás na cadeira.
— Por que não?
Era pessoal. Alex sabia que, se dependesse de
Gustavo, ninguém nunca saberia de nada. Mas elu nunca
esconderia algo que podia acabar se tornando
importante de Raquel. Era assim que setores caíam: com
pessoas escondendo informações necessárias.
— Existe um elemento de transformação física.
Estava escuro demais para eu ver detalhes, mas ele
tinha garras, olhos vermelhos, e tenho quase certeza de
que mais alguma coisa muda.
Raquel assentiu de novo, com a mesma calma de
sempre.
— E o elemento de sangue?
Alex colocou a mão no pescoço de novo. Não
adiantava esconder aquilo. Raquel precisava saber. Mas
elu não ia contar tudo.
— Ele voltou a ser humano depois que me mordeu —
elu contou. — E estava sendo atraído pelo meu sangue.
Não é muita informação e eu vou precisar falar com ele
para tentar entender exatamente o que aconteceu,
mas...
— Mas é mais do que tínhamos — Raquel concordou.
— E é bom saber que ele pode voltar depois de perder o
controle.
Sim. Ter certeza daquilo queria dizer que o monstro
não seria uma sentença de morte, desde que ele não
atacasse ninguém do setor.
Alex tinha suas teorias sobre o que estava
acontecendo, mas eram só teorias. Coisas que faziam
sentido na sua cabeça, mas que elu não tinha como
explicar por que faziam sentido. E não sabia nem se teria
como explicar, em algum momento, porque para fazer
aquilo teria que entender exatamente o que ainda existia
entre elu em Gustavo.
Se fosse alguns dias antes, Alex teria falado que não
havia mais nada. Ele era o passado e o passado estava
tão morto quanto Gustavo tinha fingido estar. Mas dizer
aquilo seria mentir. Se realmente não tivesse mais nada,
Alex teria enfiado a mão na cara de Gustavo e deixado
para lá. Elu não teria se importado ou se preocupado. E
tudo só tinha ficado mais confuso depois de como
Gustavo tinha só contado tudo o que Alex queria saber,
quando estavam no complexo.
— É isso que eu tenho — elu completou. — Se
descobrir mais alguma coisa, vou repassar. Mas, por
enquanto, não acho que ele é uma ameaça tão grande
quanto parecia.
— E as chances de você estar sendo influenciade? —
Raquel perguntou.
Alex deu de ombros.
— Falei com Melissa assim que voltei, de noite. Ela
disse que a mordida não tinha deixado nenhum tipo de
efeito ou compulsão.
E aquilo era exatamente o tipo de coisa que era a
especialidade de Melissa. Ela teria reconhecido se
houvesse alguma coisa.
Raquel assentiu, mas continuou encarando Alex.
— Você tem teorias — a bruxa falou.
— Tenho, mas não sei nem por que estou
considerando elas — Alex avisou. — Preciso de tempo
para entender o que estou pensando e por que acho que
as coisas encaixam assim. E talvez eu precise que o
pessoal estudando o antídoto faça mais alguns testes.
Raquel levantou as sobrancelhas. Se ela pedisse
uma explicação, Alex não sabia o que ia fazer. Elu não
sugeriria nada como o que estava pensando sem falar
com Gustavo antes – e não teria feito aquilo mesmo
antes de encontrar o monstro, na noite anterior, e ele
perguntar quanto tempo até ser preso e estudado. Mas
Alex queria acesso ao laboratório, para o caso de
Gustavo concordar.
— Ninguém sabe quase nada sobre as alterações —
elu continuou, depressa. — A Corte da Sombra não
passou todas as informações para os alterados, por
motivos óbvios. E até o que a primeira geração deles
sabia já não é uma certeza para valer depois desse
tempo todo. Se Gustavo concordar, não podemos perder
a chance de estudar isso, tanto porque pode ter alguma
coisa que seja útil para o Setor Dez, quanto porque
nunca se sabe se realmente não existe mais nenhum
alterado por aí.
E, se existisse, estaria preso a alguma das Cortes. O
que queria dizer que a chance de serem atacados por um
alterado existia.
Não que Alex estivesse duvidando do que Gustavo
tinha falado. O mais provável era que realmente não
tivesse mais ninguém, mas elu precisava de argumentos.
— Não precisa me convencer — Raquel falou. — O
pessoal do laboratório que está estudando o antídoto já
tem instruções para aceitar pedidos seus, se for
necessário.
Bom. Aquilo era muito bom.
— E eu acho que você precisa pensar melhor se está
tentando me convencer de alguma coisa, ou se
convencer — ela completou.
Alex deu um passo atrás e balançou a cabeça. Elu
não estava tentando se convencer de nada. Só estava
usando os argumentos que tinha.
Raquel balançou a cabeça devagar e bateu as unhas
na mesa antes de se levantar.
— A reunião de agora é porque vamos precisar fazer
alguma coisa sobre a água que está escapando de onde
o teto desabou, no complexo subterrâneo — a bruxa
contou. — O reservatório ainda está intacto, mas aquilo
ainda está escapando, devagar. Nosso pessoal conseguiu
garantir que a água vai ficar do outro lado do
desabamento e isso deve conter qualquer contaminação
por enquanto, mas não é uma solução.
Não era, porque havia algo ali.
— O poder na água interagiu com Gustavo — Alex
contou. — Quase esqueci disso. Eu tive a impressão de
que ele estava tentando mudar Gustavo, mas como ele
já é um alterado...
E tinha sido exatamente aquilo que ele havia falado:
que a água não ia lhe afetar por ser como era.
Raquel inclinou a cabeça.
— Interessante. E quero isso em detalhes, para
repassar para o pessoal.
Sim. Alex já deveria ter feito aquilo, mas a questão
toda da água tinha desaparecido da sua cabeça depois
que Gustavo havia perdido o controle.
E aquilo era perigoso. Elu estava se preocupando
demais, de novo. Estava se envolvendo sem nem
perceber.
— Posso repassar tudo na reunião — elu falou.
A bruxa balançou a cabeça.
— Não. Quero por escrito, porque você não precisa
estar nessa reunião. E isso não é uma punição nem nada
do tipo — ela completou, depressa. — Mas você já tem
coisas demais para fazer. Não precisa passar uma hora
no meio de uma discussão que provavelmente não vai
levar a lugar nenhum.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar. Não era
mentira. Elu precisava falar com Gustavo e só aquilo já
era o suficiente para um dia inteiro de trabalho, porque
tinha coisa demais que só ele podia explicar. Se ele
soubesse explicar. E ainda tinha os testes que Alex
queria fazer, as teorias que tinha começado a criar. Se
acrescentasse a questão da água – que elu realmente
deveria ter se lembrando antes – aquilo tudo só
aumentava.
— E, se você vai tentar descobrir mais sobre a
alteração, quero que tente descobrir qual a relação entre
isso e a água — Raquel continuou. — Sei que já temos
pessoal estudando o que está no reservatório, mas não
tem mais ninguém que conseguiria analisar isso
comparando com o que Gustavo é.
Alex assentiu. Ela não estava errada.
— Entendido.
Raquel passou por elu e foi na direção da porta do
escritório. Alex se virou para sair atrás dela.
Provavelmente ia parar em uma das salas da mansão
para anotar o que tinha notado quando Gustavo havia
enfiado a mão na água, no complexo subterrâneo, e
depois... Elu não podia ir para a área de tiro, não
importava quanto quisesse fazer exatamente aquilo.
Tinha coisas demais para resolver.
A bruxa parou na porta e se virou para Alex de novo.
— Mais uma coisa — ela começou. — Existe uma
possibilidade bem grande de precisarmos que você fale
com Valissa.
Alex precisou de alguns segundos para se lembrar de
quem estavam falando, de novo. A garota que Dani tinha
levado para o setor, seis meses antes.
— Por que eu? Nunca falei com ela antes.
Raquel deu de ombros e sorriu.
— De todo mundo envolvido nesse assunto, você é
quem tem mais experiência lidando com crianças.
Alex suspirou. Não tinha como discutir com aquilo.
Elu não queria nem imaginar nenhuma das pessoas que
via nas reuniões tentando lidar com uma criança – ou
uma pré-adolescente, pelo que se lembrava da garota.
DEZESSEIS

Gustavo encarou o vidro de antídoto na mesa da sala. Já fazia


quase uma hora que ele estava sentado ali, sem ter
certeza do que fazer. A resposta de Alex não tinha
adiantado muita coisa, porque ele continuava sem saber
exatamente o que tinha feito ou como estava vivo. E
como não tinha matado Alex.
Mas ele tinha certeza sobre uma parte do que tinha
feito, pelo menos. Uma ida no banheiro tinha mostrado
seu rosto sujo de sangue seco. Gustavo tinha atacado
Alex – o que fazia ele estar ali e aquela resposta fazerem
menos sentido ainda. E não explicava a sensação da
coisa dentro dele, também, porque o monstro estava
calmo, de um jeito que Gustavo nunca tinha sentido
antes. Não era como quando tinha tomado o antídoto a
primeira vez. Era só como se o monstro estivesse
satisfeito demais para fazer qualquer coisa além de
assistir, mesmo quando Gustavo tinha visto a mensagem
de Silas de novo.
E aquela mensagem...
Oito dias. Sete, agora.
Sete dias para achar um jeito de salvar sua família
sem colocar Alex em risco, mesmo que de forma indireta.
Gustavo ainda podia falar sobre o tanque. Era
exatamente o tipo de informação que Silas queria. Se
alguém fizesse o tanque vazar, ele não fazia ideia de
quais seriam as consequências para o setor, mas não ia
ser boa coisa. Se fosse, impedir que o tanque se
enchesse não seria uma preocupação tão boa.
Mas ele não ia falar nada. Talvez, se não tivesse
passado aquele tempo todo no Setor Dez, ele até
conseguisse se convencer a entregar as informações.
Talvez. Mas, depois de seis meses ali, vendo como o
setor funcionava... Não. Era a vida da sua mãe e da sua
irmã em jogo. Ele não pensaria duas vezes antes de
contar sobre o tanque para protegê-las. O problema tinha
sido rever Alex. Simples assim.
Sempre Alex. Sempre, desde que Gustavo era
adolescente. Mas aquela era a verdade: mesmo que
fosse a vida da sua família em jogo, ele não conseguia
repassar aquelas informações. Não conseguia trair Alex...
De novo. Porque seria exatamente aquilo: uma traição,
da mesma forma que ele tinha traído a confiança delu
oito anos antes. E, por mais que Gustavo entendesse
seus próprios motivos para ter agido daquele jeito, ele
também reconhecia que não precisava ter sido assim.
Era tarde demais para consertar o passado,
especialmente se Alex tinha ido atrás de Gustavo depois
que ele havia perdido o controle. Ele não queria nem
imaginar o que tinha feito, se tinha acordado com o rosto
sujo de sangue. Se Alex fizesse questão de nunca mais
chegar perto dele, Gustavo não lhe julgaria.
E então tinha aquela mensagem, que ele
simplesmente não conseguia entender.
Mas não importava. Ele sabia o que precisava fazer,
pelo menos. Precisava arriscar. Confiar.
Alguém bateu na porta e Gustavo se virou um
instante antes dela ser aberta. Alex o encarou.
Ele soltou o ar com força e precisou se forçar a não
levantar e correr na direção de Alex. Gustavo não tinha
como saber se elu ao menos aceitaria se ele tentasse
fazer qualquer coisa do tipo. Não.
Gustavo se deixou cair contra o encosto do sofá. Alex
estava ali. E estava bem. Era o suficiente, mesmo que a
vontade de tocar, de ter certeza que aquilo era real,
fosse forte demais. Mas ele não ia fazer nada, porque se
tentasse se aproximar e Alex se afastasse... Não, ele não
queria nem pensar naquela possibilidade.
Mas Gustavo não conseguia não encarar enquanto
elu entrava e fechava a porta atrás de si. Nada. Não
tinha nenhum sinal de que ele tivesse atacado Alex. Elu
não estava se movendo como se estivesse machucade
ou com dor.
E o olhar de Gustavo estava sendo praticamente
arrastado para o pescoço de Alex. Ele tinha quase
certeza que se lembrava de Alex se inclinando, como se
estivesse oferecendo o pescoço...
Sua pele formigou, mas o monstro não estava
tentando assumir o controle. Só estava ali.
Alex se virou e encarou Gustavo.
— O que eu fiz? — Ele repetiu.
Elu balançou a cabeça e encarou o vidro de antídoto
na mesa, antes de olhar para Gustavo de novo. Ele
queria saber o que elu estava vendo, se tinha algo de
diferente no poder que era a coisa, mas não sabia nem
se podia perguntar antes de saber o que tinha
acontecido de noite.
— Você não tomou o antídoto de novo — Alex falou.
Não era uma pergunta, mas era alguma coisa.
Gustavo balançou a cabeça.
— Não precisei.
Ainda não precisava. E Alex não estava com sua
balestra. Nem segurando uma das flechas, como tinha
feito da outra vez. Estava desarmade, ali.
Como? Ou melhor: por quê? Se Gustavo tinha
atacado Alex, não fazia sentido elu estar ali sem nenhum
sinal de preocupação.
A menos que aquela mensagem realmente fosse a
verdade. Que Gustavo não tinha feito nada que Alex não
quisesse – o que explicaria a impressão de se lembrar
delu oferecendo o pescoço.
Alex suspirou e parou atrás da poltrona que estava
do outro lado da mesa, de frente para Gustavo.
Ele tinha acertado em ficar no lugar, então, porque
Alex estava fazendo questão de ficar longe.
— Precisamos conversar — elu avisou.
Precisavam. Gustavo não ia discordar. Mas ele nunca
tinha sido bom em conversar – nem Alex.
Ele não falou nada. Alex segurou o encosto da
poltrona com uma mão, enquanto batia nele com o outro
punho fechado.
Gustavo conhecia aquilo. Alex não sabia como
começar o assunto. E por mais que ele preferisse fugir de
qualquer tipo de conversa...
— Você já tem uma lista de perguntas, não tem? —
Ele perguntou.
Alex suspirou e deu de ombros.
— Óbvio que tenho. Mas não sei se isso vai ser o
suficiente.
Não, porque o que precisavam conversar não era só
trabalho. Era pessoal, de uma forma ou de outra.
Alex balançou a cabeça e bateu com a mão fechada
no encosto da poltrona mais algumas vezes antes de
encarar Gustavo.
— Por que você falou aquilo comigo quando a gente
estava no complexo? — Elu começou.
Ele respirou fundo. De tudo que Alex podia ter
perguntado, aquilo era uma coisa que Gustavo não
estava esperando.
— Aquilo o quê?
Alex abaixou a cabeça e estreitou os olhos.
— Eu não estou com a menor paciência pra jogos —
elu avisou. — Então se não quiser responder, é melhor só
falar que não quer de uma vez.
Gustavo se inclinou para a frente e apoiou os
cotovelos nas pernas. Querer responder, ele não queria.
Já era ruim o suficiente ter precisado admitir tudo.
Explicar por que tinha feito aquilo...
Se alguém tinha o direito de fazer qualquer pergunta
daquele tipo, era Alex.
— Porque era o mínimo que eu podia fazer — ele
falou. — Porque eu sabia que ia te machucar demais
quando desaparecesse, e mesmo assim escolhi fazer as
coisas do jeito que fiz.
— E que diferença isso faz? Isso tudo foi oito anos
atrás, pra que voltar nisso?
Alex ia fazer ele admitir. Claro que ia. Elu era a
pessoa mais teimosa e insistente que Gustavo conhecia.
E ele lhe devia a verdade, não devia?
— Porque eu não queria você sempre pensando o
pior de mim, ou pensando que não tinha me importado
com nada quando desapareci — Gustavo contou. —
Porque eu queria... Sei lá, ter uma chance de tentar
consertar tudo, mesmo sabendo que é tarde demais.
Quando falei que te escolhi, estava falando sério.
Porque não fazia diferença o que acontecesse,
ninguém nunca ocuparia o mesmo lugar que Alex na sua
vida. Ninguém nunca importaria tanto.
Alex desviou o olhar. Gustavo não fazia ideia do que
aquilo significava e não tinha certeza de que queria
saber.
— Por que você está insistindo nisso? — Ele
perguntou.
Porque era só enfiar o dedo na ferida e mais nada.
Alex não precisava esfregar o que Gustavo tinha perdido
na sua cara.
Elu respirou fundo e encarou Gustavo de novo.
— Eu fui atrás de você, quando perdeu o controle e
fugiu do complexo subterrâneo — Alex contou.
Um arrepio atravessou Gustavo. Ele era capaz de
apostar que não tinha sido só aquilo. Não deveria ter sido
Alex. Deveria ter sido Amon e uma sentença de morte.
Se ele ainda estava ali, vivo, era porque elu não tinha
deixado irem atrás dele.
— De quanto você se lembra?
Gustavo soltou o ar com força. A coleção de coisas
que ele odiava admitir só estava aumentando.
— Quase nada — ele falou. — Só impressões que não
sei nem se são reais. A parede elétrica na fronteira. Seu
sangue. Você oferecendo seu pescoço.
E ele esperava muito que a última parte não fosse
verdade...
Mas, se a forma como Alex tinha colocado a mão no
pescoço servia de indicação, era. Elu tinha se oferecido
para o monstro.
— Por quê? — Ele perguntou.
Alex balançou a cabeça devagar e apertou o encosto
da poltrona com as duas mãos antes de olhar para ele.
— Você falou que queria o sangue que foi prometido
— elu contou. — E estava farejando o meu sangue.
Loucura. Gustavo não queria acreditar que estava
escutando aquilo. O que Alex tinha feito...
Ele se levantou de uma vez e foi na direção delu.
— Você podia ter morrido! Você não sabe...
Alex sustentou seu olhar.
— Primeiro, você podia ter me atacado antes de eu
te ver — elu começou. — Segundo, eu estava com uma
daquelas flechas pronta para ser enfiada através do seu
queixo. Se eu tivesse pensado que não estava em
segurança, a gente não ia estar tendo essa conversa
agora.
Gustavo contornou a mesa e parou na frente da
poltrona onde Alex estava se apoiando.
— Você podia ter morrido — ele repetiu. — Não sei
como o monstro não te atacou na hora, mas você ainda
ofereceu...
Elu levantou a cabeça.
— Meu pescoço. Sim. E quer saber o que você fez?
Gustavo respirou fundo e assentiu, devagar. Estava
perto demais de Alex, sentindo sua pele formigar e preso
por aquele cheiro que parecia uma armadilha feita para
ele. O sangue. Gustavo não queria entender tão bem o
que elu tinha falado sobre o monstro querer o sangue
delu. Era aquilo que sempre o havia atraído, ele só tinha
se forçado a não notar.
Alex colocou a mão no pescoço de novo. Tão de
perto assim, Gustavo conseguia ver onde a pele delu
parecia avermelhada, quase como uma cicatriz
terminando de desaparecer. Era onde o monstro tinha
mordido – e saber daquilo deveria fazer Gustavo querer
se afastar. Não querer enfiar o rosto no pescoço de Alex
de novo, para sentir o cheiro delu. Não querer se
aproximar mais.
— Você me mordeu — elu falou. — Você me fez ter
um dos melhores orgasmos da minha vida, se afastou
quando te empurrei... E voltou ao normal antes de
desmaiar.
Gustavo deu um passo atrás, até bater as pernas na
mesa. O que Alex estava falando...
Ele se lembrava. A sensação do corpo de Alex
debaixo do seu, do sangue na sua boca. De como elu só
havia aceitado e como tinha gemido, se segurando nele
sem o menor sinal de medo, mesmo que fosse o monstro
ali.
De como Alex tinha se movido contra sua mão até
gozar. De como ele tinha sentido elu tremer, ainda sem
nem tentar se afastar.
E de como ele não queria ter parado de beber. De
como tinha se sentido completo enquanto estava
tomando o sangue de Alex.
Se Gustavo tivesse vacilado por um instante. Se o
monstro não tivesse aceitado se afastar e tivesse
continuado a beber...
Ele não queria nem imaginar a possibilidade de ter
recuperado o controle só para descobrir que tinha
matado Alex.
— Se isso tivesse dado errado... — ele começou.
— Mas não deu! Eu sabia...
Gustavo avançou de novo e segurou o pulso de Alex.
— Você não sabia. Você estava contando com a
sorte!
Elu se soltou de uma vez e se afastou da poltrona,
recuando na direção das janelas fechadas.
— E por que eu não sabia, hein? Talvez porque você
não quis me contar tudo desde o começo?
Não. Ele não ia voltar naquilo.
Gustavo contornou a poltrona e foi na direção de
Alex de novo.
— Eu podia ter te matado! — Ele estava
praticamente gritando e não se importava. — Eu! Porque
você não...
Alex parou no lugar e encarou Gustavo. E era sorte
que elu não estava com sua balestra nem nenhum tipo
de arma, porque sua expressão deixava claro demais o
que queria fazer. Gustavo conhecia aquele olhar.
— Que diferença ia fazer? — Alex perguntou, quase
gritando também. — Você pelo menos ia ter uma chance
de ir pra longe o suficiente pra Amon não te achar.
Gustavo parou.
Alex estava falando que teria morrido para lhe dar
tempo de escapar. Para ele sobreviver.
Que era melhor correr o risco para garantir que ele
escaparia, se o pior acontecesse.
Se o pior acontecesse, Gustavo não ia querer
escapar. Se ele tivesse recuperado a consciência e
descoberto que tinha matado Alex, teria esperado por
Amon. Teria ido ao encontro do vampiro, provavelmente,
só para acabar com tudo mais depressa.
E Alex...
Ele avançou de uma vez e segurou o rosto de Alex
com as duas mãos. Elu sustentou o olhar de Gustavo por
um instante e aquilo era o suficiente.
Ele beijou Alex, sem conseguir nem tentar ter um
pouco de delicadeza. Oito anos longe, os anos com medo
de perder a pessoa que mais importava, o medo do que
podia ter acontecido. De que ele podia ter perdido Alex
para sempre. Estava tudo ali, na forma como Gustavo
não conseguia lhe soltar, não conseguia se afastar. A
única coisa que importava era a sensação dos lábios de
Alex ali, de como elu estava lhe beijando de volta com o
mesmo desespero, sem nem tentar se afastar.
Alex mordeu o lábio de Gustavo com força o
suficiente para sangrar. Ele soltou o rosto delu e levantou
a cabeça.
Alex acertou um soco no ombro de Gustavo. Com
força, sim, mas aquilo Gustavo conhecia. Aquele tipo de
reação era o que sempre tinha esperado de Alex e que
tinha doído tanto não ter quando haviam se encontrado
de novo.
Gustavo levantou as mãos devagar e encarou Alex.
— Eu não posso te perder — ele murmurou.
Elu respirou fundo e balançou a cabeça com força.
— Eu não ia deixar você ser morto — Alex respondeu
no mesmo tom, sem sair do lugar. — Não podia.
Gustavo engoliu em seco. Depois do que ele tinha
feito, depois de oito anos... E Alex ainda dizia aquilo.
Ele tinha sido mais que estúpido e não ia cometer o
mesmo erro de novo.
— Tem uma coisa que você precisa saber — ele
avisou.

Alex deu dois passos para trás e cruzou os braços. Aquele tom de
voz e aquela frase nunca eram algo bom e era pior ainda
depois do que tinha acabado de acontecer. Ter visto
aquela reação de Gustavo, o medo dele só de pensar no
que podia ter acontecido, tinha quebrado alguma coisa
dentro de Alex. O pouco de distância que elu ainda
estava conseguindo manter tinha desaparecido
completamente e elu não conseguia achar aquilo ruim.
Mas talvez fosse ruim, porque agora não tinha nada
que fosse ser uma defesa contra o que quer que Gustavo
tivesse escondido.
— O que mais? — Alex perguntou.
Gustavo passou uma mão pelo cabelo e não tentou
se aproximar de novo.
Alex conhecia aquela expressão e aquele gesto,
também. Era a mesma coisa que Gustavo tinha feito
todas as vezes que elu tinha perguntado se algo estava
errado, oito anos antes.
— Eu estou no Setor Dez porque queriam um espião
aqui — ele falou.
Alex respirou fundo e engoliu em seco. Deveria ter
imaginado algo do tipo. Estava tudo bom demais para ser
verdade – conveniente demais. Era demais esperar que
Gustavo tivesse falado a verdade aquele tempo todo,
depois do que tinha feito.
— Então a história toda sobre estar atrás do
antídoto... — elu começou.
Gustavo balançou a cabeça com força.
— Não. Não era mentira. Só não era toda a verdade.
Eu...
Ele parou de falar e passou a mão pelo cabelo de
novo antes de se virar e atravessar a sala, até estar
encostado na meia parede que separava a sala da
cozinha. Distância, sim. Era melhor daquele jeito.
— Eu precisava voltar aqui para drenar o tanque —
Gustavo falou, devagar. — Os mercenários não sabem
disso. O acordo que minha mãe fez com eles só dizia que
eu ia precisar voltar em algum momento e ponto. Eles
aceitaram. Eu voltei, seis meses atrás, aproveitando
quando estavam aceitando mercenários. Mas não era
para eu ter ficado aqui. Era para ter feito o que precisava
e desaparecido logo depois. Eu realmente fiquei porque
precisava do antídoto. Mas tinha que achar um jeito de
convencer os mercenários.
Um arrepio atravessou Alex e aquilo não tinha nada
a ver com poder. Gustavo tinha contado um pouco sobre
o que havia acontecido com ele, sim. Sobre ter perdido o
controle e passado dois anos preso – e Alex se lembrava
daquilo sempre que via as cicatrizes mais claras nos
braços dele.
Ele tinha contado que sua mãe havia achado um
grupo de mercenários disposto a esconder um alterado e
que tinha feito um acordo com eles, mas não tinha falado
mais nada sobre o assunto. Nem sobre sua mãe e sua
irmã.
— Qual foi o acordo que sua mãe fez? — Alex
perguntou. — Com os mercenários. O que ela ofereceu
para te esconderem?
— O que você acha?
Alex não respondeu. Não queria dizer o que estava
pensando, porque não queria acreditar naquilo. Que
aquele tempo todo...
Gustavo respirou fundo.
— Minha mãe se ofereceu como refém — ele contou.
— Como uma garantia de que eles teriam minha lealdade
se me escondessem. É o que você falou, aquela vez. Eles
acharam uma ótima ideia ter um alterado sob seu
controle.
Alex engoliu em seco. Elu conhecia a mãe de
Gustavo, tinha passado tempo demais na casa dele. Para
ela ter chegado no ponto de aceitar alguma coisa
daquele tipo... Era uma medida extrema demais,
desesperada – de uma mulher que sempre tinha planos
para resolver qualquer coisa. Que tinha ensinado Alex a
sempre se planejar.
— Eu precisava ficar aqui, pra achar os antídotos —
Gustavo continuou. — Porque elas não podem continuar
lá. Minha mãe e Brenda...
Ele parou de falar e balançou a cabeça com força.
— Quando eu não faço o que querem, são elas que
pagam — ele contou, numa voz tão dura que quase
parecia outra pessoa. — Eu não posso recusar as ordens
de Silas sem colocar a vida delas em risco. Vir para cá
era uma chance de tentar achar o antídoto...
— Pra enfrentar os mercenários e tirar elas de lá sem
perder o controle — Alex completou, em voz baixa.
Gustavo assentiu.
— De uma forma ou de outra, elas precisam sair do
Setor Nove e do controle dos mercenários. No começo
não era tão ruim, mas nos últimos anos... Eles estão indo
em uma direção que não consigo concordar. E sou
obrigado a ajudar, se não elas vão estar em risco.
Ele cruzou os braços e respirou fundo antes de
encarar Alex.
— Eu já tinha decidido que ia tirar elas de lá depois
de drenar o tanque, de um jeito ou de outro. Quando
você me achou nas ruínas, eu estava pronto para passar
alguns dias no complexo subterrâneo tentando achar o
antídoto. E, se não achasse, ia voltar para o Setor Nove
mesmo assim. Ia tirar minha mãe e Brenda de lá, mesmo
sabendo das consequências.
Alex engoliu em seco. Elu não precisava fazer
esforço para entender o que Gustavo queria dizer com
"consequências". Ele tiraria a mãe e a irmã de lá – e
morreria logo depois, porque ia perder o controle e
alguém teria que dar um jeito nele.
Não. Não, precisava ter outro jeito.
Tinha outro jeito, porque Alex tinha encontrado o
antídoto e o andar de baixo do complexo subterrâneo.
Podiam ir lá e tentar achar mais vidros. E mais
informações também, se o pessoal do laboratório não
tivesse nada útil.
Mas não era só aquilo. Gustavo tinha comprado seu
tempo no Setor Dez sendo um espião. Elu não podia se
esquecer daquela parte, mesmo que não conseguisse
nem ficar com raiva ou qualquer coisa assim. Alex sabia
que não teria feito muito diferente se fosse a vida do seu
pai em jogo.
— O que você repassou para eles? — Elu perguntou.
Gustavo soltou os braços de uma vez e os olhos dele
brilharam, avermelhados.
— Nada!
Alex levantou as sobrancelhas. Gustavo estava ali já
fazia seis meses. Era improvável demais que não tivesse
repassado nada naquele tempo todo.
— Eles querem alguma informação que seja
importante o suficiente para garantir que não aconteça
uma repetição do Setor Oito — Gustavo falou. — Não foi
difícil fazer acreditarem que eu não tinha nada.
Porque o Setor Dez não tinha nenhuma
vulnerabilidade tão óbvia. Aquela era a genialidade de
tudo o que Raquel havia feito e como ela e seu pessoal
tinham organizado tudo do setor: eles não dependiam de
uma coisa. O setor existia porque funcionava como um
conjunto. As maiores fraquezas deles eram o que todos
os setores já sabiam: o fato de não terem uma Corte e os
recursos limitados.
— E no começo eles não faziam questão de nada —
Gustavo continuou, depressa. — Eu sugeri que seria bom
terem alguém aqui, porque é muito provável acontecer
mais alguma coisa envolvendo o Setor Dez. Ter
informações em primeira mão seria útil. Foi quando eu já
estava indo embora que as coisas mudaram. Vi a
mensagem exigindo alguma coisa útil logo depois
daquela conversa com você, quando me prenderam aqui.
Os mercenários tinham mandado uma mensagem
exigindo informações.
Alex deu dois passos na direção dele e parou de
novo. Não fazia sentido terem esperado seis meses para
pedirem algo daquele tipo, mas elu não conseguia
pensar que Gustavo estava mentindo. Não quando ele
estava parado daquele jeito, falando depressa e lhe
encarando como se estivesse disposto a qualquer coisa
para fazer Alex acreditar.
Mas se eles tinham exigido informações...
— Ontem, quando você perdeu o controle... — elu
começou.
Gustavo soltou o ar com força e entrou no quarto,
sem falar nada.
Alex continuou parade no lugar, esperando.
Ele saiu do quarto com um tablet na mão – o mesmo
que ele tinha pegado no complexo subterrâneo, antes de
tudo – e o ofereceu para Alex com a tela destravada.
Elu pegou o tablet e encarou a mensagem na tela.
Oito dias. E aquilo tinha sido no dia anterior. Pelo que
Alex conhecia de Gustavo, nunca teria sido o suficiente
para fazer ele perder o controle, então...
Tinha uma foto na mensagem.
Alex abriu a foto e parou, sem querer acreditar no
que estava vendo. A imagem do dedo cortado, com uma
cicatriz na lateral...
Elu contornou a poltrona e se sentou, sem soltar o
tablet. Aquilo fazia sentido. Depois das horas no
complexo subterrâneo, sem saberem o que ia acontecer,
ter saído e dado de cara com aquela mensagem...
Qualquer um perderia o controle.
— Sua mãe... — elu começou.
Gustavo cruzou os braços de novo e Alex tinha a
impressão de que estava vendo as mãos dele começando
a escurecer.
— Ela está bem. Eles não são loucos de fazerem
alguma coisa pior.
Alex não sabia se ele tinha certeza daquilo ou se só
queria acreditar, mas parecia que era a segunda opção.
— Eu não sei o que estava pensando quando o
monstro assumiu o controle — Gustavo falou. — Acho
que nem estava pensando. Só queria dar um jeito nisso
logo. Fazer eles pagarem, tirar minha mãe e Brenda de
lá.
Elu não duvidava que fosse exatamente aquilo.
Gustavo poderia ter feito estrago no Setor Dez, mas tinha
ido direto para a fronteira. Se as paredes elétricas não
tivessem sido ligadas, ele teria atravessado o Setor Seis
e ido direto para o Nove e...
E provavelmente teria morrido, também, porque
qualquer grupo de mercenários que fizesse algo daquele
tipo teria tomado providências para garantir que
estariam prontos caso Gustavo se virasse contra eles.
Mas aquilo era o que já tinha acontecido. A
mensagem no tablet era uma contagem regressiva. Sete
dias para Gustavo dar alguma informação como os
mercenários queriam, e então...
— O que vai acontecer se você der o que eles
querem? — Alex perguntou.
Gustavo parou na sua frente, tão depressa que elu
não viu o movimento.
— Eu não vou entregar nada do Setor Dez. Não vou
te colocar em risco.
Alex não tinha pensado que ia – e aquilo era um
problema. Elu não podia só confiar incondicionalmente
em Gustavo depois de tanto tempo, depois de tudo...
Mas era fácil demais cair nos hábitos de antes.
— Se der o que querem — elu repetiu.
Gustavo suspirou e se sentou na mesa, de frente
para Alex. Perto demais – mais perto do que tinham
ficado naqueles dias todos trabalhando no complexo
subterrâneo. Mas não importava mais. Não depois do que
ele tinha falado, antes. Não depois de como tinha
reagido.
— Se eu der o que querem, nada muda — ele falou.
— Minha mãe e Brenda continuam lá, eu continuo tendo
que fazer o que quiserem... E o Setor Dez provavelmente
vai pagar.
Porque usariam qualquer informação daquele tipo
que Gustavo tivesse.
E ele tinha algo exatamente como os mercenários
queriam. O reservatório. Raquel já estava preocupada só
com o pouco que estava vazando depois do
desabamento, e aquilo não tinha nem chegado perto de
atingir o reservatório principal. Se ele vazasse, ou caso
se enchesse e o que quer que o Setor Quatro tivesse
preparado para a água se espalhar fosse usado...
E ainda precisavam descobrir o que aquilo era e o
que fazia.
Não. O que fazia já era óbvio, depois do que Alex
tinha visto no complexo subterrâneo. Elu só tinha
demorado para ligar os pontos e fazer tudo se encaixar
na sua cabeça. A água não ia alterar qualquer ser vivo
com que tivesse contato, mas não como Gustavo era
alterado. Ele mesmo tinha falado que o que estava lá era
uma das formas iniciais do que tinham usado para criar
os alterados.
A água criaria monstros. Monstros reais. Algo como
os carniçais, ou como os animais alterados por magia das
terras de ninguém. Algo que não teria como ser
controlado, que se espalharia pelo setor e... E que
provavelmente seria levado para os setores em volta,
também.
Uma coisa de cada vez. Tinha coisas demais
acontecendo.
— Alex — Gustavo chamou.
Elu balançou a cabeça devagar. Tinha mais uma
coisa que elu estava esquecendo. Raquel tinha falado
que talvez fosse querer que Alex falasse com Valissa. E
fazia sentido, porque elu tinha experiência com crianças,
sim. Mas não era um motivo para precisarem falar com a
garota.
Alex pegou o tablet e digitou uma mensagem
depressa antes de se virar para Gustavo.
— Quero uma amostra do seu sangue. Para o
laboratório.
DEZESSETE

Gustavo encarou a entrada lateral da mansão. Ele não tinha a


menor ideia do que estava fazendo ali, mas já fazia pelo
menos uma hora desde que ele tinha desistido de tentar
entender. Era mais fácil só seguir o fluxo – ou melhor,
seguir o furacão que era Alex em ação.
Ele tinha pensado em contar sobre o acordo que sua
mãe tinha feito e como ela e Brenda ainda estavam
presas no Setor Nove, com Silas e os outros mercenários,
e então pedir a ajuda de Alex para resolver aquilo,
porque ele não conseguia mais pensar em uma solução
que não terminasse com o monstro no controle. Mas
Gustavo não tinha precisado pedir. Ele tinha visto a fúria
na expressão de Alex, quando elu tinha visto a foto no
seu tablet. E tinha notado quando elu havia começado a
fazer planos, também, mesmo que não soubesse quais
eram aqueles planos.
A primeira coisa tinha sido ir no laboratório onde
estavam estudando tanto o antídoto quanto a água e o
que mais tinham tirado do complexo subterrâneo.
Gustavo tinha ouvido as explicações de Alex para o
pessoal lá: elu queria um comparativo entre o sangue
dele e as amostras da água tirada do tanque, com
algumas análises que ele não fazia a menor ideia do que
eram. Gustavo era um mercenário, não um estudioso de
qualquer tipo.
O que Gustavo não tinha certeza era sobre ele estar
ali, andando pelo setor com Alex, como se nada tivesse
acontecido. Enquanto estavam na cidade, ele não tinha
dado tanta atenção para aquilo porque sempre tinha
pessoal da força de defesa por ali. Não era como se ele
fosse ter uma chance de tentar fugir.
Mas sair da cidade e ir para a mansão sem nem um
pingo de preocupação era inesperado. E era mais
estranho ainda a forma como Alex estava quase
distraíde, digitando sem parar no seu tablet, como se não
tivesse a menor dúvida de que Gustavo lhe
acompanharia. Não que elu estivesse errade: Gustavo
não ia tentar fugir. Já não faria aquilo antes. Depois da
conversa na casa segura, depois daquele beijo... Não. Ele
não podia só abrir mão do que quer que aquilo fosse.
— Acha mesmo que é uma boa ideia eu estar aqui?
— Gustavo perguntou.
Alex olhou de relance para ele e continuou a andar
na direção da mansão que era a sede do Setor Dez.
— E por que não seria?
Ele deu de ombros. Parecia simples demais, depois
de tudo que tinha acontecido. Até a noite anterior, ele
estava praticamente preso, sob vigilância o tempo todo.
Se tivesse pensado que sobreviveria depois de perder o
controle, nunca teria imaginado que estaria andando
pelo setor sem nenhum tipo de guardas por perto.
— Eu deveria estar preso, não deveria?
Eles entraram na mansão sem nenhum tipo de
alarme disparar. Não que Gustavo tivesse alguma ideia
de como eram os sistemas de segurança ali, mas fazia
sentido imaginar que teriam algum tipo de alarme se
alguém que não deveria estar ali entrasse.
— Deveria — Alex confirmou. — Mas tenho
autoridade o suficiente nesse assunto pra fazer as coisas
do meu jeito. E eu quero que você veja uma pessoa.
Gustavo não queria ver ninguém. Só queria entender
o que Alex estava planejando. Ou queria poder parar e só
perguntar se ter passado aquele tempo no Setor Dez
como um espião tinha destruído o que a conversa de
antes havia consertado – ou que ele tinha pensado que
havia consertado.
E ele odiava se sentir tão incerto assim.
Alex saiu do corredor de entrada e parou no saguão
de entrada do casarão. Uma mulher que Gustavo já tinha
visto no setor antes, mas que não conhecia, estava
descendo a escadaria que levava para o segundo andar.
— Ela está na biblioteca — a mulher avisou. — Boa
sorte.
— Obrigade — Alex falou.
A mulher encarou Gustavo dos pés à cabeça antes
de passar por ele e virar em outro corredor, indo para
uma parte da mansão onde ele nunca tinha entrado.
— Vamos — Alex chamou.
Gustavo foi.
A escadaria terminava em outro corredor largo e
Alex seguiu por ele com a familiaridade de alguém que já
tinha passado tempo demais ali. Gustavo não se
surpreendeu quando elu parou na frente de uma porta
dupla e entrou, sem falar nada. A biblioteca era o que ele
tinha imaginado: uma sala maior, com computadores
espalhados em várias mesas com uma proteção de
acrílico ao seu redor e o som baixo e constante de vários
servidores ligados. Ele se lembrava de ver filmes antigos
com Alex e de como a ideia deles de "biblioteca" era
completamente diferente, com estantes cheias de livros
de papel. Desde a volta da magia, produzir livros daquele
jeito era caro demais.
Alex fechou a porta com um estalo e Gustavo olhou
ao redor. Parecia que não tinha ninguém ali e não era
como se alguém fosse conseguir se esconder no meio
das divisórias transparentes.
Não. Tinha alguém em uma das mesas mais para a
frente, mas Gustavo tinha quase certeza de que não era
quem Alex estava procurando, porque parecia ser só uma
adolescente.
Alex foi na direção da garota.
Aquilo era inesperado. O que uma garota daquela
idade podia ter a ver com o que quer que fosse que Alex
estava tentando fazer?
A garota se virou na cadeira e parou, olhando para
Alex.
Gustavo parou, também. Ele não sabia o nome da
garota de pele marrom clara e cabelo preso em tranças,
mas se lembrava dela. Ela não parecia ter mais que treze
anos e aquilo encaixava com quando tudo tinha
acontecido. Gustavo nunca se esqueceria de quando ela
e a irmã tinham sido encontradas no Setor Oito, fugindo
e com um prêmio pelas cabeças delas, vivas.
— Você escapou — ele falou.
A garota se virou para ele e arregalou os olhos. Por
um instante quase pareceu que ela fosse se levantar sair
correndo da sala, antes de sorrir.
— É você!
Ele assentiu devagar.
A garota riu e correu na direção dele. Gustavo não se
surpreendeu quando ela pulou e o abraçou. Era a mesma
coisa que ela tinha feito, cinco anos antes.
Era bom ver ela ali. Aquela missão tinha sido o
começo do fim, para ele. Tinha sido quando Gustavo
havia notado o que estar preso aos mercenários de Silas
queria dizer e a primeira vez que ele havia recusado uma
ordem direta... Mesmo que a recusa tivesse sido tarde
demais.
Alex olhou para ele e depois para a garota, que ainda
estava se segurando nele. Gustavo balançou a cabeça
devagar. Como explicar que tinha recebido ordens para
caçar duas garotas – uma delas que na época devia ter
sete anos, ou coisa assim – e não tinha recusado?
Mas tinha escondido aquela garota e a irmã, no final.
Aquilo era o que importava.
— Valissa — Alex chamou. — Você me conhece, não
conhece?
A garota soltou Gustavo e deu um passo para trás,
sem sair de perto dele.
— Já te vi na escola — Valissa falou. — Mas você
sumiu.
Alex sorriu e puxou uma cadeira de outra mesa. Não
era como se fosse outra pessoa ali, mas alguma coisa na
forma como elu estava agindo tinha mudado. Era o lado
de Alex que Gustavo nunca tinha visto, o que elu usava
em sala de aula.
— Estava trabalhando com Gustavo — elu contou. —
Para dar um jeito naquela água que você viu.
Valissa ficou tensa de uma vez e se aproximou de
Gustavo de novo.
Como Alex sabia daquilo? Como tinha imaginado que
ele já havia visto aquela garota antes e que ela o veria
como uma garantia de segurança? Nem ele tinha certeza
de que entendia a reação dela.
— Melissa me contou que você falou que a água é
errada — Alex continuou, falando de forma suave.
— Mas é — Valissa murmurou.
Elu assentiu.
— Eu sei. A gente viu.
A garota se segurou no braço de Gustavo.
— Eu não fiz nada. Eu prometi que não ia fazer nada.
Gustavo encarou a garota. Ele não fazia ideia do que
tinha acontecido para ela e a irmã terem fugido. Não
sabia nem de onde tinha vindo. Mas a irmã mais velha
dela já se movia como uma mercenária, mesmo naquela
época. Quando a ordem de capturar as duas tinha vindo,
ele havia pensado que a mais velha tinha feito alguma
coisa. Provavelmente tinha atacado alguém poderoso o
suficiente para mobilizar mercenários para caçá-la, e a
irmã mais nova era só dano colateral.
Mas ele se lembrava de ouvir a irmã mais velha
fazendo a garota prometer que não ia fazer nada. Que ia
tomar cuidado e se esconder.
Se o motivo para fugirem tinha sido Valissa, e não a
irmã mais velha...
— Eu sei — ele falou. — Eu estava lá, lembra?
Alex suspirou e se inclinou para a frente na cadeira.
— Valissa, eu sei que você está se escondendo e não
quer contar nada pra ninguém — elu falou. — Eu também
tenho coisas que sempre escondi, porque ninguém
precisa saber o que consigo fazer. E Gustavo também
tem seus segredos.
A garota olhou para ele e fez uma garra com a mão.
Gustavo sorriu e assentiu. Valissa conhecia parte dos
segredos dele – e não tinha fugido, também.
Alex estreitou os olhos e se virou para Gustavo.
— Sério? Até ela viu o monstro e eu não?
Ele se endireitou antes de entender o que elu estava
fazendo. Aquilo não era um comentário sério. Era só uma
coisa para quebrar o gelo e fazer Valissa relaxar.
— Foi só as mãos — a garota falou.
— Sei — Alex resmungou.
Gustavo riu. Podia até ser só um jeito de fazer a
garota ficar menos tensa, mas era parecido demais com
antes, com como sempre se provocavam.
— Mas a gente não veio aqui pra te assustar nem
nada assim — elu continuou, olhando para Valissa. — Se
você entendeu o que aquela água faz, então se bobear
você pode ajudar a gente a dar um jeito nela.
A garota soltou o braço de Gustavo e encarou as
mãos. Ele se virou para Alex. O que quer que elu
estivesse tentando fazer...
Alex balançou a cabeça.
— Da última vez que eu fiz alguma coisa, a gente
teve que fugir — Valissa murmurou.
Tinha sido ela. Ela tinha algum tipo de poder capaz
de fazer alguém mobilizar vários destacamentos de
mercenários para caçá-la.
— Você sabe o que Alana faz aqui, não sabe? — Alex
perguntou.
Valissa assentiu depressa.
— Ela controla as plantas.
Gustavo não falou nada. Ele sabia dos boatos, mas
ninguém nunca tinha tido uma confirmação de que o
Setor Dez realmente tinha uma bruxa da natureza. Aquilo
explicava por que o Setor Oito tinha feito tanta questão
de atacar: Gustavo também tinha ouvido os boatos sobre
como os recursos deles estavam acabando e como não
demoraria muito para chegarem em um ponto crítico. O
Oito tinha uns poucos anos antes da população humana
começar a ficar sem o mínimo que as regras dos
vampiros diziam que uma Corte precisava oferecer.
— E ninguém soube disso por anos — Alex começou.
— Você está morando aqui tem seis meses. Você
conhece a gente. Acha que se fizesse alguma coisa, a
gente ia te fazer fugir?
Ela cruzou os braços e levantou a cabeça.
— Não vocês. Mas vão me achar e... Eu não quero
fugir.
O que ela podia fazer? Se não era uma bruxa da
natureza... Gustavo não conseguia pensar em nada e, na
época que ela e a irmã tinham sido caçadas, ele não se
lembrava de ninguém ter comentado sobre motivos
específicos.
— Se Raquel te prometer que vai te proteger, você
vai ajudar? — Alex perguntou.
Valissa franziu a testa.
— Quero um contrato. Escrito.
Gustavo conteve um sorriso. Ela ainda era jovem e
ingênua o suficiente para pensar que aquilo fazia alguma
diferença.
E Alex não era parte da força de defesa do setor.
Nem era parte da hierarquia interna, até onde ele tinha
procurado saber quando tinha chegado ali. Elu não
deveria ter autoridade para fazer nada daquilo... A
menos que estivesse voltando a se envolver com a
organização do setor.
Notar aquilo não deveria fazer diferença, mas
Gustavo não conseguia deixar de ficar satisfeito. Aquele
era o lugar de Alex.
Elu assentiu.
— Se Raquel me garantir que vai fazer o contrato
com você, posso contar o que você faz?
Valissa arregalou os olhos.
Alex sorriu.
— E agora você sabe o meu segredo, também — elu
completou. — Eu consigo sentir o seu poder.
— E o dele?
Elu assentiu.
— E o de todo mundo.
— E você não falou nada sobre ele também —
Valissa murmurou.
Alex não respondeu.
Era a verdade. Gustavo se lembrava de quando elu
tinha perguntado sobre a sensação do poder ao seu
redor, quando eram crianças. Ele tinha respondido com
uma meia verdade e Alex nunca havia insistido. Só tinha
aceitado a resposta e deixado de lado, sem nunca falar
nada com ninguém.
A garota respirou fundo e assentiu.
— Pode contar.
Alex sorriu e se levantou.
— Obrigade. E tem um lugar melhor para fazer essa
pesquisa — elu completou.
Valissa estreitou os olhos e encarou o monitor do
computador e as páginas que ainda estavam abertas lá.
— Onde?
Alex riu e se inclinou na direção do teclado.
Gustavo engoliu em seco.
Oito anos. Oito anos que ele podia ter tido aquilo – a
risada de Alex, a presença delu. Que podia ter visto
enquanto elu se tornava aquela pessoa que era um
furacão em ação, de um jeito que ele ainda não
conseguia entender, mas que ainda era a pessoa que
organizava tudo para fazer uma garota que estava se
escondendo confiar nelu.
Não importava o que acontecesse, Gustavo não ia
perder Alex de novo.

Alex parou perto das mesmas pedras onde tinha se sentado depois
da primeira conversa com Gustavo, na casa segura, uma
semana antes. Só uma semana. Parecia muito mais, mas
era só porque tinha coisas demais acontecendo.
Se elu estivesse certe...
Não. Alex não ia começar a pensar para aquele lado
ainda. Quando tivesse os resultados do laboratório ia ter
uma base para dizer se suas teorias estavam certas ou
não. Ficar pensando demais naquilo antes dos resultados
só ia servir para elu dar voltas desnecessárias.
Primeiro, a questão da água. Depois, o antídoto e a
forma como Gustavo tinha voltado a ser humano depois
de beber seu sangue. Depois, como fariam para tirar a
família dele do controle dos mercenários. E depois,
descobrir quem tinha pagado os mercenários para
conseguirem informações sobre o Setor Dez.
E, em algum momento no meio daquilo tudo, tentar
entender o que elu ia fazer com Gustavo e com como
não adiantava tentar mentir para si mesme sobre ter
deixado qualquer coisa que sentia no passado. Alex sabia
que aquele beijo na casa segura queria dizer alguma
coisa, sim. Só não tinha certeza sobre até onde aquilo ia.
Gustavo parou na sua frente e olhou ao redor. Não
tinha nada ali, só as árvores espalhadas e aquele espaço
maior só com algumas pedras.
— O que foi aquilo? — Ele perguntou.
Alex sorriu. Elu tinha imaginado que Gustavo já ia
sair da mansão perguntando o que realmente tinha
acontecido na biblioteca, mas ele tinha esperado.
— Aquilo foi uma suspeita de Melissa — elu falou. —
E eu juntando peças, porque alguém comentou sobre
Valissa ter reconhecido uma foto sua, quando chegou no
setor.
Tinha sido um palpite louco, mas Alex tinha
acertado. Eles terem se encontrado antes era a única
explicação para a garota ter reconhecido a foto de
Gustavo, como Yuri tinha contado.
E, sobre o poder de Valissa... Elu não ia falar mais
nada sobre aquilo. Tinha sido pura sorte que a garota
tivesse ido atrás de Melissa, perto da cratera de onde o
complexo subterrâneo tinha desabado. Raquel tinha lhe
contado aquilo mais cedo, enquanto Alex estava
esperando o pessoal do laboratório recolher as amostras
de sangue de Gustavo. Aquilo, junto com o comentário
de Eduardo mais de uma semana atrás sobre como
Valissa passava tempo demais no pomar e que a
ausência de Alana não tinha feito tanta diferença nas
plantações... Era fácil demais de ligar as pontas, pelo
menos para Alex.
— E falando em Melissa, o que ela é? — Gustavo
resmungou.
Alex riu e começou a andar na direção da casa
segura. Ainda tinha mais que elu queria saber.
— Nada que vai ser útil você contar para os seus
mercenários.
Mentira. Seria útil, porque teriam uma informação
valiosa para vender para as Cortes. Mas não fazia
diferença.
Gustavo se endireitou.
— Eu nunca falaria nada!
— Eu sei.
A pior parte era que realmente sabia. Gustavo era
leal demais. Se entregar informações fosse garantir a
liberdade da sua família, Alex não tinha a menor dúvida
de que ele contaria qualquer coisa. Mas não ia. Dar
informações só serviria para aquela situação se estender
e não mudaria nada. O que queria dizer que não valia a
traição que ele teria que cometer.
E Gustavo tinha parado.
Alex se virou. Ele estava alguns passos para trás, lhe
encarando com uma expressão incrédula.
— O que foi?
Ele balançou a cabeça devagar.
— Você. Você brincando com isso como se não fosse
nada demais. Como se não tivesse a menor preocupação
mesmo depois de eu ter contado por que fiquei aqui.
— E é para me preocupar?
Gustavo engoliu em seco e balançou a cabeça.
Alex respirou fundo e voltou a andar. Era óbvio que
elu não estava se preocupando. Depois de como Gustavo
tinha reagido a saber o que elu tinha feito na fronteira,
como havia ficado desesperado só com a possibilidade
de Alex ter se ferido... Não. Ele não faria nada que lhe
colocaria em risco. Se Alex fosse duvidar de alguma
coisa, não seria daquilo.
Elu abriu a porta da casa segura. Aquilo ia ter que
mudar, também. Não fazia sentido manter Gustavo ali
como alguém que deveria estar preso – não com tudo o
que tinham descoberto. Ele tinha sido estúpido, sim. Se
tivesse só contado o que estava acontecendo desde o
começo, teria sido muito mais simples.
Mas ele tinha contado. Aquela era a parte que
importava. Gustavo tinha contado tudo sem Alex precisar
perguntar ou insistir, mesmo sabendo que podia ser o
suficiente para fazer elu se afastar de novo.
Gustavo entrou e parou atrás da mesma poltrona
onde Alex tinha se apoiado, antes.
Elu fechou a porta atrás de si.
— Você vai me deixar ver? — Alex perguntou.
Gustavo respirou fundo e se virou.
— Por quê?
Elu deu de ombros. Não tinha nenhum motivo
específico além da curiosidade.
— Porque eu quero. Porque é você.
Gustavo se inclinou para a frente e apoiou os braços
no encosto da poltrona. Daquele jeito, Alex não
conseguia não reparar nas marcas mais claras nos seus
braços. Dois anos preso. Amarrado, se forçando contra o
que quer que estivessem usando para prendê-lo. Elu não
gostava nem de imaginar aquilo e odiava mais ainda
pensar que tudo poderia ter sido evitado.
— Eu não quero que você olhe para mim e pense no
monstro — ele falou, em voz baixa. — Já basta tudo que
eu fiz até agora.
Alex suspirou e se apoiou na parede, cruzando os
braços. Deveria ter esperado aquela resposta. E fazia
sentido demais com tudo o que Gustavo tinha falado
sobre a alteração, o que tinha acontecido com sua
família e o que ele sabia sobre aquilo tudo.
— Já pensou que talvez não seja um monstro? — Elu
perguntou.
Gustavo respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Você viu...
Elu balançou a cabeça.
— Não vi quase nada. E não estou falando de
aparência. Estou falando de como você age como se
fosse uma criatura diferente presa dentro de você ou
coisa assim.
Gustavo se endireitou e se afastou da poltrona.
— Porque é — ele falou, seco. — Porque é uma coisa
dentro de mim, sim, sempre foi.
Não. Aquilo não fazia sentido. E, mesmo que
qualquer coisa envolvendo magia não seguisse
exatamente a mesma lógica que que o restante do
mundo, havia uma lógica e Alex tinha passado sua vida
toda estudando exatamente aquilo.
— E se não for? E se for só você e mais nada?
Gustavo parou no lugar e encarou Alex, sem falar
nada.
Ele estava mais do que irritado com aquilo e Alex
entendia até demais. Talvez fosse melhor elu só deixar
para lá e não insistir... Mas elu já tinha feito aquilo antes
e se arrependido.
— Me deixa falar primeiro, ok? — Alex começou. —
Antes de você começar a falar todos os motivos para não
ser assim.
Gustavo respirou fundo e assentiu devagar.
Alex soltou os braços e foi na direção da cozinha.
Não precisava de nada lá, mas não queria ficar parade.
Elu se apoiou na parede baixa que separava a sala da
cozinha e começou a bater os dedos de leve na pedra ali
em cima.
— Você diz que é como se fosse outra criatura dentro
de você — elu falou, devagar. — E existem histórias
sobre isso, mas é tudo de antes da magia. Acho que você
chegou a assistir alguns filmes com coisa assim comigo,
não assistiu? E você deve lembrar do tanto que eu
reclamava deles, porque não fazem sentido.
Gustavo soltou o ar com força, como se estivesse
segurando uma risada, e assentiu.
Bom. Aquilo era a mais pura verdade. Alex tinha
visto uns tantos filmes sobre o que chamavam de
"lobisomens" e não conseguia levar nada daquilo a sério.
A magia não funcionava daquele jeito.
— Existem estudos sobre isso — elu continuou. —
Não é muita coisa porque não interessa para os vampiros
e tem pouca gente que consegue sentir ou ver o poder
de um jeito que dê para fazer uma análise, mas existem
estudos. E a questão é que a ideia de duas criaturas
separadas é impossível.
— Talvez naturalmente, mas isso foi a Corte...
Alex revirou os olhos.
— A Corte da Sombra fazendo experimentos, não
esqueci. Me deixa terminar.
Gustavo levantou as mãos antes de cruzar os braços
de novo. Não que Alex tivesse a menor ilusão de que ia
conseguir terminar de falar sem ser interrompide de
novo.
— A questão é que mesmo experimentos desse tipo
não tem como ir completamente contra como a natureza
e a magia funcionam. Qualquer alteração feita por
magia, é por completo. Não tem como existir uma
separação. Se existisse, seria a forma mais fácil de criar
uma arma para destruir vampiros. Seria só separar o lado
humano do lado vampiro. E mesmo que a Corte da
Sombra tivesse achado um jeito de fazer exatamente
isso que todos os estudos até agora dizem que é
impossível... A sensação do poder seria diferente.
E aquilo era o que fazia Alex não ter dúvidas do que
estava falando, mesmo que fosse uma teoria.
— E é diferente — Gustavo falou. — Eu consigo sentir
o poder dentro de mim, como uma coisa separada.
Alex sorriu. Já estava esperando aquele comentário.
— É o mesmo poder — elu contou. — Tanto quando
você está assim, praticamente calmo, como agora,
quanto quando estava perto da fronteira, com o monstro
no controle.
Gustavo abriu a boca e parou, sem falar nada.
— Tem uma diferença no poder ao seu redor, mas
essa diferença não tem nada a ver com ser você ou ser o
monstro — Alex continuou. — Nas vezes que eu vi a
diferença, foi quando você estava tenso por algum
motivo. Quando estava nervoso. Foram picos de emoção
que não têm nada a ver com “quem” estava no controle.
Ele balançou a cabeça.
— Tudo o que meus pais me ensinaram...
— Não estou duvidando do que eles te ensinaram.
Mas você acha mesmo que a Corte da Sombra ia deixar
seus experimentos entenderem exatamente o que eram?
Era muito mais conveniente para eles ter um antídoto
para suprimir o poder e criar uma falta de controle
artificial, porque vocês nunca teriam a chance de
aprender a lidar com esse poder e essa parte de vocês.
Porque se os alterados tivessem descoberto isso,
entendido o que realmente eram, teriam destruído a
Corte da Sombra muito antes de serem usados por eles.
Gustavo virou de costas para Alex e parou com uma
mão aberta apoiada na parede. E ali estava, o poder
quase pulsando ao redor dele, mesmo que não tivesse o
menor sinal de que Gustavo estivesse perdendo o
controle.
— O monstro não tentou assumir o controle, não é?
— Alex perguntou.
Ele respirou fundo e balançou a cabeça.
— Eu quase não consigo sentir o monstro.
— E o poder ao seu redor acabou de pulsar como se
fosse explodir — elu contou.
Gustavo se virou e balançou a cabeça de novo.
— Se tivesse alguma coisa assim eu teria notado.
Meu pai teria notado.
Aquela era a pior parte, na opinião de Alex: imaginar
que o pai de Gustavo tinha morrido à toa.
— Teria? Se vocês aprenderam a vida toda a ter
medo disso, a tratar como algo separado... Iam mesmo
ter notado?
Gustavo não respondeu.
Alex já tinha falado o suficiente. Não ia insistir. Não
era daquele jeito que as coisas funcionavam com
Gustavo. Mas elu sabia que ele não ia ignorar nada
daquilo. Ele ia pensar no assunto, mesmo que não
falasse nada.
Mas elu ainda queria ver.
— Você consegue se transformar quando quer, sem
ser porque está perdendo o controle, não consegue? —
Alex perguntou. — É por isso que os mercenários fazem
tanta questão de te manter lá.
Para o usarem como uma arma.
Gustavo suspirou.
— Se eu tentar negar, vai adiantar alguma coisa?
Não.
Mas Alex tinha seus limites, também.
— Se você realmente não quer que eu veja, então é
só falar isso — elu avisou. — Não vou insistir de novo.
E era a mais pura verdade. Se mesmo depois do que
Alex tinha falado, Gustavo não quisesse que elu o visse
do outro jeito, então elu ia respeitar.
Gustavo respirou fundo e se endireitou.
Não teve nenhuma mudança no poder ao redor dele,
nenhum sinal de que alguma coisa estava diferente. Mas
os olhos de Gustavo ficaram vermelhos e suas mãos
começaram a mudar.
Alex encarou as mãos dele. Era a única parte do
"monstro" que elu tinha visto antes, e mesmo assim não
havia conseguido prestar atenção. A pele era vermelho
sangue, escurecendo à medida que se afastava das
mãos, até chegar na altura dos cotovelos e se tornar um
preto gelado que parecia que sugava a luz ao seu redor.
E as garras eram vermelhas, também, grandes e
curvadas o suficiente para serem uma arma. Mais que
uma arma.
Elu levantou a cabeça. Ainda era o rosto de Gustavo
ali, mas ao mesmo tempo não era. Alex tinha tido a
mesma impressão na noite anterior, na fronteira: havia
algo de diferente no rosto dele, elu só não conseguia
entender o que. Mesmo se sua pele não tivesse se
tornado o mesmo preto impossível, com um pouco mais
de vermelho aparecendo ao redor dos olhos e na linha do
cabelo, aquele Gustavo nunca pareceria ser alguém
divertido e quase inofensivo – que era a impressão que
ele sempre passava. Era o rosto de um predador.
Mas aquilo não era tudo.
Alex engoliu em seco quando as asas vermelho-
sangue se abriram. Aquela era a parte que a lógica não
explicava: como asas tinham aparecido nas costas dele.
Se bem que... Era a mesma coisa com as garras. Com
tudo ali, na verdade. Mas as asas eram o mais chocante.
Elas eram grandes, feitas de uma membrana fina o
suficiente para deixar um pouco da luz passar por elas,
mas ao mesmo tempo com uma impressão que fazia elu
se lembrar de couro. Algo que não seria cortado
facilmente.
— Era isso que queria? — Gustavo perguntou.
Um arrepio atravessou Alex. A voz dele tinha
mudado também, do mesmo jeito que quando estavam
na fronteira ou quando estavam no complexo. Tinha algo
ali que era mais grave, quase um rosnado, e elu não
conseguia não gostar daquele som.
Alex foi na direção de Gustavo. Ele continuou parado,
com as asas meio abertas. Bom. Pelo menos não estava
se afastando. Pelo menos ele conhecia Alex o suficiente
para não fazer aquilo.
Elu parou na frente de Gustavo.
— Era — Alex falou. — Era exatamente isso.
DEZOITO

Alex encarou Gustavo. Elu entendia por que ele sempre dizia que
era “o monstro” ou “a coisa dentro dele”. Quando ele se
transformava daquele jeito, era diferente demais. Era
algo que ninguém nunca tinha visto e que não deveria
existir.
Mas existia e estava ali, na sua frente.
Elu levantou uma mão, devagar, e colocou no braço
de Gustavo. Sua pele era mais grossa, sim, mas a textura
não era tão diferente quanto parecia. E, mesmo com a
sua pele daquela mistura de cor que deveria ser
impossível – o preto que parecia ser feito de escuridão e
o vermelho-sangue – as marcas mais claras nos seus
braços ainda estavam lá, quase como um lembrete do
passado.
Gustavo não falou nada, só continuou parado
enquanto Alex subia a mão devagar pelo braço dele e
parava, no alto do ombro. A respiração dele estava lenta
e pesada e ele não tinha desviado o olhar em nenhum
momento. Era quase como se ele fizesse questão de ver
cada reação de Alex.
Então Alex iria lhe dar suas reações.
Elu levantou a mão que estava no ombro dele.
— Posso?
Gustavo engoliu em seco e assentiu.
— O que quiser.
Aquilo não era inesperado. Aquela resposta era tão
Gustavo que doía de tão familiar. Mas ouvir aquilo,
depois de tanto tempo...
Alex respirou fundo e esticou a mão. Uma das asas
levantou, devagar, como se Gustavo não tivesse certeza
de que era aquilo que elu ia fazer.
A membrana das asas parecia delicada, sim. Era
uma textura quase suave contra os seus dedos, mas ao
mesmo tempo Alex tinha certeza que, se forçasse, a
membrana não se moveria. Ela podia parecer delicada,
mas era muito mais resistente do que qualquer coisa que
elu imaginasse.
E fazia sentido ser resistente, porque aquelas asas
não eram um enfeite. Eram ferramentas de alguém que
tinha sido criado para ser uma arma – porque aquela era
a verdade sobre as alterações.
Alex deu mais um passo para frente, até que seu
corpo estava praticamente colado ao de Gustavo, e
continuou subindo a mão que estava na sua asa. A
membrana era translúcida o suficiente para elu conseguir
ver a sombra das veias se espalhando e as partes onde a
estrutura da asa estava – Alex não tinha certeza de se
aquilo era osso, cartilagem ou outra coisa...
Um arrepio atravessou o corpo de Gustavo quando
elu passou os dedos pelo alto da asa e ele fechou os
braços ao seu redor. Alex parou, sem ter certeza de que
podia continuar, mas Gustavo não fez mais nada a não
ser lhe segurar ali.
Elu passou a mão pelo mesmo lugar de novo antes
de se virar para Gustavo.
— Você deveria ter me contado antes — Alex
murmurou. — Deveria ter me mostrado.
Gustavo engoliu em seco apertou os braços ao redor
de Alex.
— Sim — ele respondeu.
E a forma como Gustavo estava olhando para elu,
aquela expressão era familiar, mesmo que o rosto dele
estivesse diferente – transformado. Era o mesmo olhar
que Alex tinha visto vezes demais logo antes de tudo dar
errado, aquela mistura de vontade com algo que quase
parecia desespero.
Oito anos. Oito anos já tinha sido tempo demais. E
Alex nunca se perdoaria se não aproveitasse o tempo
que tinha, agora.
Elu passou os dedos pelo pescoço de Gustavo,
acompanhando uma parte da pele onde o vermelho
ainda era visível. Ele sempre tinha tido uma coisa com o
pescoço – tanto com ter o seu pescoço tocado e beijado
quanto com fazer a mesma coisa com Alex. E agora elu
estava pensando que talvez aquilo tivesse muito mais a
ver com o que Gustavo era do que podia ter imaginado.
— Alex... — ele murmurou.
Elu enfiou a outra mão por baixo da regata de
Gustavo. A pele ali também tinha aquela textura que era
um pouco diferente e Alex tinha certeza que, se olhasse,
seria o mesmo preto impossível, como se estivesse
sugando a luz ao redor. Alguém que desapareceria nas
sombras, sem a menor chance de ser notado.
Mas a forma como os músculos se contraíam sob o
seu toque era a mesma de antes. A forma como Gustavo
estava prendendo a respiração também, como se não
quisesse fazer nada que pudesse distrair Alex.
Seu. Gustavo ainda era seu, apesar de tudo. Sempre
seria. Era exatamente o que ele tinha falado quando o
complexo subterrâneo tinha desabado: Gustavo tinha
escolhido.
E Alex também, se fosse ser honeste.
Gustavo soltou uma respiração pesada e encarou
Alex.
— Não comece nada que não esteja disposte a
terminar — ele falou.
Alex sustentou seu olhar.
— Eu fiz isso alguma vez?
Ele respirou fundo.
— Se isso for só curiosidade...
Alex se afastou de uma vez.
— Você acha mesmo que eu faria isso? — Elu
perguntou. — E que faria isso com você?
Gustavo engoliu em seco.
— Não.
Bom. Pelo menos aquilo, porque Alex não sabia como
teria reagido se ele tivesse precisado pensar antes de
responder.
Asas de Gustavo se fecharam ao seu redor e
empurraram Alex contra o corpo dele de novo. Elu
colocou as mãos no peito dele, sem ter certeza do que
esperar, e no instante seguinte Gustavo tinha abaixado a
cabeça e estava lhe beijando.
Era a mesma coisa – e não era. Era a mesma mistura
de força e cuidado de sempre, e agora o cuidado que
Alex sempre tinha sentido vindo de Gustavo fazia
sentido. Mas a sensação dos lábios dele era diferente,
fria contra os de Alex. E elu sentia a ponta das presas
cada vez que Gustavo mordia seu lábio de leve, como um
lembrete da outra noite. Da dor, sim – mas
principalmente do prazer que tinha vindo depois.
Um arrepio atravessou Alex e elu segurou a nuca de
Gustavo, ao mesmo tempo em que enfiava a mão por
baixo da sua regata de novo. Gustavo fez um ruído grave
contra seus lábios antes levantar a camiseta de Alex e
segurar sua cintura, lhe puxando mais para perto.
A mesma coisa, sim. Mas diferente, porque elu
estava dentro do círculo das asas de Gustavo. Ali, estava
quase escuro, como se estivessem em um mundo
próprio.
Mas Alex não queria a mesma coisa. Não queria a
paciência de sempre, as brincadeiras e as formas como
se provocavam por tempo demais enquanto tiravam suas
roupas. Os beijos e os toques – porque era como sempre
tinha sido. O cuidado e o desejo, juntos. A exploração,
sem pressa, porque sabiam que não precisavam ter
pressa.
Ou talvez porque Gustavo estivesse usando aquilo
para se controlar.
O motivo não importava. A questão era que Alex
queria mais e não queria o cuidado.
Elu passou as unhas pelo abdome de Gustavo. Ele
apertou sua cintura com força e Alex sentiu as pontas
das garras dele contra sua pele – aquele começo de dor
que era um aviso de perigo mas só servia para fazer todo
o seu corpo arrepiar e esquentar.
— Alex... — Gustavo começou, com a voz tão grave
que era quase difícil entender o que estava falando.
Alex se apertou contra ele, sentindo a ereção de
Gustavo. Aquilo não era uma surpresa, mas a forma
como ele parecia maior era.
Elu desceu a mão pela calça dele e apertou.
Gustavo fez um ruído que definitivamente não era
humano e soltou sua cintura.
Alex riu e mordeu o lábio dele. Gustavo grunhiu
alguma coisa e elu sentiu algo frio contra sua pele. Não,
não era algo frio. Era só que ele tinha rasgado sua
camiseta.
Sim, era aquilo que elu queria.
Alex levantou a cabeça e encarou Gustavo. Ele
estava respirando fundo, com força, como se estivesse
tentando se controlar. Mas elu não queria controle. Não
daquela vez.
— Oito anos — Alex falou. — Oito anos. Ir devagar
não vai rolar. E é melhor você tirar essa regata antes de
eu fazer a mesma coisa que você fez.
Não que elu fosse conseguir rasgar as roupas dele
com tanta facilidade, mas daria um jeito, se precisasse.
Gustavo colocou uma mão no pescoço de Alex. Elu
sentiu as garras contra a sua pele, as pontas afiadas que
poderiam fazer estrago fazendo um arrepio atravessar
seu corpo. Podiam, mas nunca fariam. Daquilo elu tinha
certeza.
Ele desceu a mão devagar. A respiração de Alex
falhou quando sentiu as garras entre seus peitos e
descendo, devagar, como se Gustavo estivesse só
testando a sua reação. Era como um arranhão leve, mais
uma impressão que uma sensação real, e era mais forte
justamente por ser só uma impressão. Era como se seu
corpo estivesse tentando criar mais sensações, indo
atrás de algo que estava próximo demais mas que não
teria.
E não era o suficiente.
Alex apertou o pau de Gustavo de novo. Mesmo com
o tecido da calça no caminho, elu conseguia sentir como
ele tinha ficado ainda mais duro.
— Roupas — elu falou.
Gustavo agarrou a bainha da sua regata e puxou de
uma vez. O tecido se rasgou de uma vez.
Aquilo não deveria ser sexy, principalmente porque
Alex sabia que nada que um mercenário usava seria feito
dos tecidos mais fracos que existiam no mercado. Mas
era sexy justamente por causa daquilo. Da força – da
mesma forma que as garras na sua pele tinham sido uma
provocação.
E agora Alex só conseguia pensar em qual seria a
sensação de ter aquelas garras bem mais baixo, entre
suas pernas. Da sensação delas no seu clitóris – e de se
Gustavo tinha controle o suficiente para fazer aquilo sem
lhe cortar.
Era loucura e elu não se importava. E talvez nunca
arriscassem a fazer nada daquele tipo para valer – mas
só a ideia daquilo...
Gustavo respirou fundo e mordeu o lábio de Alex
com força o suficiente para elu sentir uma pontada de
dor.
— O que quer que você tenha pensado — ele
praticamente rosnou. — Eu quero saber.
Alex sorriu. Ah, elu contaria. Mas depois. Bem
depois. E por enquanto...
— Eu gosto das suas garras na minha pele.
Gustavo levantou a cabeça de uma vez, como se não
tivesse certeza do que tinha ouvido – ou não tivesse
certeza de que tinha entendido certo.
Alex deu uma risada meio sem ar antes de começar
a abrir a calça de Gustavo. Ele fez um ruído impaciente e
deu um passo para trás antes de colocar as mãos no cós
da calça.
— Roupas — ele repetiu.
Gustavo estava dando espaço para terminarem de
tirar as roupas, porque se continuassem daquele jeito
seria uma bagunça – como sempre. E Alex tinha falado
que não queria devagar.
Elu chutou seus tênis para trás, tentando não tirar o
olhar de Gustavo enquanto ele abria a calça e se
abaixava para tirar os coturnos. Suas asas se abriram por
um instante e a sensação do ar contra as costas de Alex
era outro motivo para um arrepio lhe atravessar. Todo o
seu corpo estava sensível, e não tinham feito
praticamente nada.
Alex tirou a calça e os shorts que preferia usar e
jogou tudo para o lado. Gustavo estava chutando os
coturnos para o lado e se endireitando de novo e elu
queria ver. Oito anos era tempo demais.
Gustavo encarou Alex e abaixou a calça e a cueca de
uma vez. Elu passou a língua pelos lábios. O pau dele
estava maior que elu se lembrava, sim. E era da mesma
cor preta impossível do resto do seu corpo, com
impressões de vermelho subindo até a cabeça.
Ele jogou as roupas para o lado e encarou Alex. As
asas se fecharam ao redor delu de novo, lhe puxando
para perto, e Gustavo colocou a mão no seu pescoço de
novo.
— Eu não vou te morder — ele avisou.
Alex abriu a boca para discordar. Por mais que aquilo
tivesse começado com dor, a forma como havia acabado
era mais que o suficiente para fazer elu querer mais e de
novo.
Gustavo colocou um dedo na frente dos seus lábios e
Alex parou.
— Pelo menos dessa vez, eu preciso que seja só eu
— ele murmurou. — Sem mais nada que seja o monstro.
E Alex nunca ia discutir com aquilo.
Elu assentiu. Sem mordidas, então – daquela vez.
E não era como se Gustavo tivesse precisado de uma
mordida para deixar Alex mais que satisfeite, antes.
Elu se apertou contra Gustavo, sentindo o pau dele
preso entre seus corpos. Se estivessem na cama – ou até
no sofá – Alex estaria se esfregando nele, simples assim.
Elu precisava se forçar a não tentar fazer exatamente
aquilo, porque Gustavo era alto o suficiente para aquilo
não dar certo.
Mas, se ele queria que fosse só ele, sem nada do
monstro...
Alex colocou as mãos nos ombros de Gustavo.
— Me levante — elu falou.
Ele obedeceu – segurando Alex pela cintura. Não
importava. Ele ia entender depressa o que elu queria
fazer. E não era como se a pessoa que rasgava roupas de
mercenário como se não fosse nada fosse ter algum
problema para carregar Alex.
Elu passou as pernas ao redor da cintura de Gustavo,
se apertando ainda mais contra ele, até que estava
sentindo o pau dele preso exatamente onde queria.
Gustavo fez um som abafado que era uma vibração
no seu peito e Alex sentiu as pontas das garras na sua
pele de novo. Um arrepio lhe atravessou e Alex moveu o
quadril devagar, subindo um pouco até achar o ângulo
perfeito – com a ereção de Gustavo contra o seu clitóris.
— Você...
— Eu disse que não queria devagar.
Não. O que Alex queria era aquilo. Sentir a pele de
Gustavo contra a sua. Sentir o pau dele contra o seu
corpo, saber que era ele ali, de novo.
Elu se moveu mais, subindo e depois descendo,
sentindo aquela fricção que era perfeita. Aquilo era o que
Alex queria ter feito aquela noite na floresta, quando
Gustavo tinha lhe mordido e elu havia terminado se
esfregando contra a mão dele. Era aquilo que tinha
imaginado.
Gustavo soltou um gemido grave antes de apertar a
cintura de Alex com uma mão e mover a outra. Agora ele
estava segurando seu quadril, lhe apoiando quase como
se Alex estivesse sentade. E aquilo era melhor ainda.
Alex fechou os olhos e continuou a se mover. A
sensação fria e molhada dos lábios de Gustavo no seu
pescoço não era uma surpresa, nem o som grave que ele
continuava fazendo – mais uma vibração que um som
real. E muito menos a forma como elu não conseguia não
gemer, enquanto continuava subindo e descendo
devagar, só usando o corpo de Gustavo para conseguir o
seu prazer enquanto ele lhe segurava ali e beijava seu
pescoço.
As costas de Alex bateram na parede. Elu soltou um
gemido alto quando Gustavo lhe prendeu com força ali,
com seu pau ainda contra o clitóris delu. E de alguma
forma aquilo era pior – a pressão sem movimento, só ali,
sem nada que Alex pudesse fazer.
Gustavo apertou ainda mais. Alex gemeu de novo,
tentando se mover mas sem conseguir.
— Eu espero... — Gustavo começou, com a voz grave
daquele jeito que era inumano. — Espero que não faça
questão da cama.
Alex enfiou uma mão entre seus corpos e apertou a
cabeça do pau de Gustavo. Ele fez um som que era mais
um rosnado que um gemido antes de se afastar.
E aquilo era exatamente o que Alex queria, também,
porque era o suficiente para elu colocar a ereção dele na
sua entrada e se mover para frente.
Alex gemeu alto, sentindo Gustavo entrar nelu de
uma vez. Sim. Aquilo era o que elu queria. O cuidado
podia ficar para depois, porque agora a única coisa que
importava era aquela sensação. Era estar sendo
preenchide por Gustavo e ter ele se movendo contra o
seu corpo de um jeito que mal parecia racional. Era só
instinto, só desejo e mais nada.
Era a forma como elu ainda estava sentindo as
garras de Gustavo contra sua pele e a forma como as
asas dele ainda estavam ao seu redor, criando um
espaço que quase parecia fora do mundo real.
A forma como todo o seu corpo parecia estar
reagindo, mesmo que não tivesse mais nada além das
mãos de Gustavo no seu quadril e da forma como ele
estava lhe encarando.
E a forma como ele sabia exatamente o que fazer.
Exatamente que ângulo usar, como inclinar seu quadril
para fazer Alex gemer. Para fazer as sensações ficarem
mais fortes.
E para fazer Alex gritar quando o orgasmo
atravessou seu corpo de uma vez e mesmo assim
Gustavo não tinha parado.

Alana entrou no escritório de Lorde Rafael e parou, olhando ao


redor. Por que ela nunca tinha ido ali antes? Não fazia
nem sentido a forma como ela tinha feito tanta questão
de evitar aquela sala, mesmo que fosse perto demais de
um dos lugares onde ela passava a maior parte do
tempo.
O escritório era mais simples do que ela tinha
esperado, mas era a cara de Lorde Rafael. Uma mesa de
madeira escura com detalhes de metal, uma cadeira alta
atrás dela que pareceria errada em um escritório, se não
fosse de um príncipe vampiro, as estantes atrás da
cadeira e de um lado da sala, cheias de livros
encadernados em couro ou algo parecido. Era o escritório
de um vampiro, sim, e de alguma forma aquilo
funcionava.
E ele tinha uma janela. Aquilo era o mais
surpreendente. As salas que eram usadas pelos vampiros
quase sempre não tinham janelas, por segurança. Alana
tinha imaginado que o escritório dele ia ser do mesmo
jeito, já que ele era o príncipe do setor, mas não. Era
uma das janelas que ia do teto até o chão, como na sala
onde Alana quase sempre esperava amanhecer.
Ela foi na direção da janela. Dali, ela conseguia ver
os jardins... Não. Ela conseguia ver especificamente o
jardim onde as roseiras ficavam. Aquilo explicava as
vezes que ela tinha sentido o olhar de Lorde Rafael, mas
não tinha visto ele em lugar nenhum.
A forma como ele sempre ia atrás dela no jardim era
um dos motivos para Alana estar ali. Os seis meses
estavam acabando e... Ela não tinha mais certeza de em
quê acreditar. Aquela estufa, com todo o esforço
envolvido em preparar a estrutura, encontrar as plantas
e tudo o que precisavam, mais pessoal capaz de cuidar
delas quando Alana não estivesse ali... Aquilo tinha lhe
deixado incerta demais.
Alana conseguia ouvir a voz da sua avó claramente.
Era loucura. Ela estava sendo estúpida. Vampiros só se
envolviam com humanos por um motivo e o motivo era
se aproveitar de alguma coisa que o humano tivesse
para oferecer. Não importava se era sangue ou algum
tipo de poder, no caso das bruxas. Era sempre a mesma
coisa.
E ela tinha crescido ouvindo todas as formas como
aquilo acontecia. Todas as formas que os vampiros
usavam para enganar humanos e fazer acreditarem que
eles eram diferentes. Ela sabia.
Mas mesmo assim não conseguia deixar de imaginar
que talvez existisse algo mais ali. Lorde Rafael estava
fazendo de tudo para ganhar a lealdade dela, sim. Mas
não era como se precisasse fazer qualquer coisa daquele
tipo, então talvez...
Talvez existisse alguma coisa real ali.
Alana foi até a mesa e se sentou na cadeira de Lorde
Rafael. Ela era mais confortável que as que ela estava
acostumada a usar e definitivamente era a cara dele. O
encosto da cadeira era alto e até os braços eram
confortáveis. Não era o tipo de coisa que Alana usaria em
um escritório, porque não tinha como se aproximar mais
da mesa, mas combinava com ele.
Era loucura, era estupidez... Mas ela precisava ter
certeza. Então ia perguntar. Ia colocar todas as cartas na
mesa, mesmo que quase conseguisse ouvir a voz da sua
avó gritando.
Alana colocou a mão em uma das gavetas da mesa e
parou. Ela não deveria mexer ali. Nem deveria ter
entrado no escritório daquele jeito, como se estivesse em
casa – mesmo que Lorde Rafael tivesse falado mais de
uma vez que era para ela considerar o castelo como sua
casa. Mas, se fosse alguma coisa particular ou
importante, Lorde Rafael teria trancado, não teria?
Ela abriu a gaveta e pegou uma pasta que estava
por cima de uma pilha de papeis. O que um príncipe
vampiro fazia na maior parte do tempo? Alana não fazia
ideia e aquilo era um problema, também. Ela tinha
passado tempo demais estudando sobre plantações,
analisando o que conseguia sobre o setor e como a Corte
ali funcionava, mas nunca tinha parado para pensar no
que ele fazia.
Eram ordens de pagamento. Várias ordens de
pagamento, todas para negócios no Setor Oito.
Alana passou as páginas, devagar. Ela não
reconhecia os nomes ali, obviamente, mas a lista de o
que tinha sido comprado era bem clara. Armas.
Suplementos humanos para aumentar a produção de
sangue, como os que os vampiros mais ricos e que
mantinham estábulos compravam – mas numa
quantidade muito maior. O tipo de quantidade de alguém
que estava querendo manter vampiros mais alimentados
que o normal, talvez?
Não.
Ela pegou outra pasta e a abriu. Eram mais ordens
de pagamento, mas aquelas eram para produtos que
tinham sido enviados para o Setor Um. Vários
carregamentos de tecido. Produtos de limpeza, também.
Não fazia sentido. O Setor Um produzia tudo aquilo em
quantidade mais que o suficiente para não precisar
trazer nada de fora.
Fertilizantes. O Setor Um tinha comprado
fertilizantes do Setor Oito. Mas Alana sabia que não
estavam usando nada daquilo nas plantações... A menos
que existissem outras plantações seguindo um plano
completamente diferente do que tinham organizado. Ou
a menos que aquilo tudo fosse mais velho, de bem antes
de Alana chegar ali.
Não. As compras eram recentes, de menos de dois
meses atrás. Então o que estava sendo feito com tudo
aquilo?
Ela arrumou as pastas e as colocou de volta no lugar
antes de abrir outra gaveta. Mais documentos de
recursos do setor, compras e vendas, e nada que
chamasse tanta atenção quanto as ordens de
pagamento.
Por que Lorde Rafael estava negociando daquele
jeito com o Setor Oito? Não fazia sentido. Alana não
achava que eram inimigos, mas nunca tinham parecido
ser aliados. Mesmo que o Um fosse o setor responsável
por manter as coisas em ordem na região, não fazia
sentido estarem comprando aquelas coisas do Oito, e
muito menos naquela quantidade – e nem naquela
época.
Alana continuou abrindo as gavetas. Tinha um
computador ali, obviamente, mas ela não ia tentar mexer
em nada nele. Computadores envolviam senhas, era fácil
demais saber quando alguém tinha acessado algo que
não deveria... Não. Era mais fácil confiar nos papéis, já
que os vampiros faziam tanta questão de ter tudo o que
faziam documentado "como antigamente".
Ela abriu a última gaveta e parou. Eram cartas ali.
Correspondência, não só documentos.
O certo seria fechar aquela gaveta e não mexer em
nada. Mas Alana não ia parar depois do que tinha visto.
Se Lorde Rafael estava negociando com o Setor Oito de
um jeito que não fazia sentido nem pelo lado de negócios
nem pelo lado de política, então talvez alguma coisa ali
explicasse o que estava acontecendo.
Eram mais envelopes do que Alana já tinha visto em
toda sua vida, a maioria com nomes de lugares que ela
não tinha nem ideia de onde ficavam. Não eram no país,
daquilo ela tinha certeza. Dois envelopes tinham o nome
de Dama Cordelia. Depois do que tinha acontecido no
Setor Cinco, Alana ficava até tentada a ver o que eram,
mas eles eram de mais de quatro anos antes.
Quatro anos, e Lorde Rafael ainda estava guardando
a correspondência. Na verdade, mais que aquilo.
E tinha um envelope com o nome de Cassius – o
príncipe do Setor Oito.
Ela pegou o envelope e colocou no bolso mais fundo
da sua saia antes de arrumar tudo exatamente como
tinha encontrado e se levantar.
E pensar que ela tinha ido ali porque estava
começando a acreditar que talvez alguma coisa fosse
real... Estupidez. Pura estupidez. Ela sabia, desde o
começo. E quase tinha caído na armadilha.
As ordens de pagamento para o Setor Oito eram
confirmação mais que o suficiente de algum tipo de
aliança que existia desde antes do casamento dela com
Lorde Rafael. E se fosse só uma aliança comercial, aquilo
nem seria um problema. Não havia nada no acordo entre
Alana e Lorde Rafael que ligava a política do Setor Um
diretamente à política do Dez. Mas aquelas compras de
armas e de suplementos... Só tinha um jeito de
interpretar aquilo.
Alana parou na frente da janela de novo e encarou o
jardim lá embaixo. Ela só precisava de mais alguns dias.
Quatro dias agindo como se não soubesse de nada, e
então estaria de volta em casa.
Em casa. Ela precisava avisar o Setor Dez. Mas não
confiava que uma mensagem seria segura.
A porta do escritório se abriu.
Alana se virou e encarou Lorde Rafael.
— Não esperava encontrá-la aqui — ele falou.
Ela sorriu. Mesmo que às vezes ignorasse o que sua
avó tinha lhe ensinado, Alana havia sido bem treinada.
Ela sabia como controlar suas reações para um vampiro
não notar que estava mentindo.
— E eu esperava te encontrar aqui — Alana
respondeu. — Não sei por que nunca vim aqui antes.
E ela merecia um prêmio pela sua atuação.
— Você estava me procurando? — Lorde Rafael
perguntou.
Alana assentiu.
— Pela hora, achei que fosse ser mais fácil te achar
no escritório, mas...
O vampiro sorriu, sem mostrar as presas, e ofereceu
uma mão para ela.
— Estava cuidando de um problema na cozinha —
ele contou.
Alana foi na direção dele e segurou sua mão. Ela não
ia perguntar desde quando o príncipe do setor resolvia
problemas da cozinha. Era mais fácil só deixar aquilo
passar. E ela não fazia questão de saber onde ele estava.
— De que você precisa? — Lorde Rafael perguntou.
Da verdade. De saber exatamente o que estava
acontecendo ali.
Mas, na falta daquilo... Alana precisava garantir que
ele não imaginaria que ela estava saindo do escritório
com uma das suas cartas no bolso.
— Vim perguntar se estava livre para passar algum
tempo no jardim — ela falou.
Lorde Rafael inclinou a cabeça para a frente,
devagar, daquele jeito quase solene que quase parecia
uma reverência.
— Para você, sempre tenho tempo.
DEZENOVE

O laboratório tinha demorado dois dias para mandar os


resultados. Aquilo era muito menos do que Gustavo tinha
esperado, considerando a quantidade de testes que Alex
tinha falado que queria, mas ainda assim...
Dois dias queria dizer que só faltavam cinco dias
antes do fim do prazo de Silas. E ele tinha mandado mais
mensagens sim, sem nem tentar disfarçar as ameaças. A
última tinha sido uma foto de Brenda com o cabelo sendo
puxado para trás com força e deixando seu pescoço à
mostra – o que era preocupante justamente por ter sido
algo simples, sem sangue envolvido. Não era como Silas
fazia as coisas, normalmente.
Gustavo tinha respondido, dizendo que estava
fazendo o possível para conseguir informações e dando a
entender que estava perto de conseguir alguma coisa.
Era o único jeito que ele conseguia pensar para proteger
sua mãe e sua irmã. Não que aquilo fosse adiantar por
muito tempo.
A porta da casa segura se abriu e Alex entrou. Elu
estava passando mais tempo ali que em qualquer outro
lugar e aquilo ainda era surreal. Se tinha uma coisa que
Gustavo nunca teria imaginado era que Alex só
entenderia, ponto, e que não teria nenhum problema
com o que ele se tornava. Mas deveria ter entendido,
porque era Alex – a pessoa que sempre pensava em mais
cenários e possibilidades e tentava entender todos os
lados sempre. E, principalmente, a pessoa que não
conseguia virar as costas quando se importava com
alguém.
Não. Na verdade, Gustavo nunca tinha imaginado
que Alex ainda se importaria, depois de tudo, mesmo que
ele nunca tivesse conseguido deixar de se importar.
Alex atravessou a sala e se jogou no sofá, como se
estivesse em casa.
— Você viu os resultados? — Elu perguntou.
Gustavo olhou para o seu tablet de novo antes de
levantar a cabeça.
— Vi. Só não tenho certeza de o que querem dizer.
— Os testes confirmaram o que você tinha falado
sobre o que está na água ser a mesma base que usaram
para fazer as alterações — elu começou. — Mas essa
base não tem nada em comum com o sangue dos
vampiros.
Gustavo levantou as sobrancelhas e se inclinou para
trás na cadeira. Tentar testar qualquer coisa usando
sangue de vampiros como base era burrice, porque o que
quer que os mantinha vivo era magia. Não era alguma
coisa diferente no DNA ou algo do tipo, que iam notar
num laboratório.
Alex riu e balançou a cabeça.
— Nós temos pessoal capaz de testar diferenças
entre poder, sim. Não é a mesma coisa que eu faço, mas
é mais que o suficiente para o laboratório na maior parte
do tempo.
— E quando não é, te chamam? — Gustavo
perguntou.
Alex assentiu.
— A questão é que o que está na água não tem
nenhuma semelhança com os vampiros, mas a sua
alteração tem — elu falou. — Minha teoria é de que isso é
porque não queriam que nada que entrasse em contato
com a água tivesse um mínimo de consciência.
— E o que quer que tenham usado dos vampiros seja
o que faz os alterados ainda serem humanos?
Alex assentiu de novo.
Gustavo não tinha certeza de que concordava. Ele já
tinha visto vampiros novos vezes demais e já tinha
caçado alguns deles. Um vampiro fora de controle não
era humano – da mesma forma que os alterados não
eram.
— A semelhança maior entre o que está na água e as
alterações foi mais complicada de descobrir — Alex
continuou. — Lembra que você falou de alguma coisa
que vinha das terras de ninguém?
Gustavo assentiu. Era o que seu pai tinha
comentado, uma vez: que as alterações haviam sido
feitas usando os vampiros e algo das terras de ninguém.
Ele só nunca tinha entendia como aquilo era possível
porque não tinha nada nas terras de ninguém.
— Tiveram que puxar alguns contatos para conseguir
uma amostra para comparação — Alex contou. — As
leituras não são idênticas, mas são parecidas o suficiente
pra ser praticamente certeza.
— Certeza de quê?
Elu fez uma careta antes de encarar Gustavo de
novo.
— De que usaram os animais modificados por magia
para criar as alterações. O "alguma coisa da terra de
ninguém" é isso. Eles estudaram como a magia causou
as mutações e tentaram replicar isso de forma controlada
nos alterados, e sem controle nenhum no que está na
água.
A pior parte de ouvir aquilo era não ficar surpreso.
Gustavo levantou uma mão e deixou que ela se
transformasse na garra, com a pele vermelho sangue se
tornando um preto que não era natural antes de se
mesclar na sua pele "normal". Fazia sentido demais
aquilo ter sido algo criado usando as mutações nas terras
de ninguém. Não era à toa que a humanidade tinha feito
seus acordos com os vampiros, no passado, justamente
para se proteger daquilo. Se a ideia era criar uma arma...
Sim, fazia sentido demais.
— Isso explica como o monstro age, mas não explica
como a Corte da Sombra pensou que dar alguma coisa
dos vampiros para os alterados ia servir para nos
controlar — ele falou.
Alex soltou o ar com força e encarou a tela do seu
tablet, passando pelas informações depressa demais
para estar lendo antes de virar o aparelho para Gustavo.
Ele encarou os dados ali, sem ter certeza do que queriam
dizer. Gustavo era um mercenário, não alguém treinado
para lidar com informações de laboratório. O papel dele
sempre tinha sido só força bruta.
— Era para eu entender alguma coisa?
Alex revirou os olhos.
— Isso é confirmando que eu estava certe. A
alteração é parte de você. Não é um monstro preso
dentro de você. É você tentando se separar de algo que
é seu.
Gustavo suspirou. Ele até conseguia entender a
lógica no que Alex estava falando e não duvidava que elu
estivesse certe. Mas ele nunca ia conseguir ver o
monstro de outro jeito. Não depois de ter visto seu pai
perder o controle e atacar sua mãe – e como sua mãe
tinha precisado matá-lo para se defender.
— Você não vai nem tentar pensar por outro lado,
não é? — Alex perguntou.
Ele deu de ombros. Não adiantava tentar. Gustavo
sabia o que tinha visto. A única coisa que ainda não
entendia era como Alex tinha sobrevivido, porque aquilo
não fazia sentido com nada do que ele sabia sobre como
o monstro agia.
E, se não fosse um monstro, se fosse ele ali o tempo
todo, Gustavo se lembraria do que tinha feito.
— Não vou insistir, então — Alex completou.
Ele não respondeu. Queria conseguir acreditar do
mesmo jeito que elu. Porque Gustavo não tinha se
esquecido de como Alex tinha olhado para ele duas
noites antes, mesmo que fosse o corpo do monstro ali,
com tudo que fazia ele não ser humano. A forma como
elu tinha lhe encarado como se fosse a mesma pessoa,
como se nada daquilo fizesse diferença.
Mas não conseguia. Gustavo tinha aprendido a usar
o que era do monstro mas ele conseguia controlar –
como quando se transformava de propósito. Aquilo era o
suficiente.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Cinco dias, não é? — Elu perguntou.
Gustavo assentiu. Era óbvio que Alex estava
contando, também. Era assim que elu funcionava.
— Eu tenho uma ideia — elu começou. — E tenho
quase certeza de que Raquel vai concordar.
— "Quase" — ele repetiu.
Alex deu de ombros.
— Não faz diferença. Se ela autorizar, vai ser mais
fácil. Mas, mesmo se não autorizar, não vou ficar parade
aqui sem fazer nada enquanto fazem sabe-se lá o que
com sua mãe e Brenda.
E aquilo também não deveria surpreender Gustavo.
Era óbvio que Alex não ia aceitar não fazer nada.
— Eles vão esperar aum ataque de algum tipo
quando você voltar — Alex continuou. — É o mínimo
depois das ameaças e tudo mais. Então não dá pra tentar
fazer nada assim, não de cara, pelo menos. O que eu
pensei foi que você pode dizer que tem informações, sim.
Ir lá, falar sobre o reservatório e dizer que precisam
atacar depressa se quiserem usar isso. Quando os
mercenários saírem para atacar, damos um jeito de tirar
elas de lá.
Gustavo colocou seu tablet em cima da mesa e
tentou não rir. Alex era a pessoa das ideias loucas,
quando eram adolescentes, mas aquilo era ruim demais
até para elu.
— Eu espero que isso seja só a versão resumida —
ele falou.
Alex bufou.
— Óbvio que é. Eu posso até estar disposte a fazer
isso sem autorização de Raquel, mas deixaria Dani e Yuri
avisados, para reforçarem nossas fronteiras. E, de
qualquer forma, a água no reservatório já vai ter sido
neutralizada, então não importa se tentarem fazer
alguma coisa com ela. E teria que ver quem eu
conseguiria levar para uma coisa assim, para ter o
máximo de poder de fogo com o mínimo de pessoas
possível sem prejudicar a defesa do setor.
Certo. Então Alex ainda era a pessoa das ideias
loucas, mas agora elas eram mais bem planejadas. Muito
mais bem planejadas.
Elu só tinha esquecido de um detalhe.
— A gente não sabe se Silas tem ordens para usar
qualquer informação que eu conseguir — Gustavo falou.
— E ele não vai fazer nada por conta própria, só se
estiver sendo pago.
Alex passou uma mão no rosto e colocou o tablet no
sofá.
— Merda. Vou ter que repensar isso.
Gustavo riu. Não tinha como não rir, mesmo que a
situação fosse complicada demais.
— Eu não quero colocar o setor em risco — ele
avisou. — Se for o caso de não ter outra opção, eu vou
voltar e fazer o que conseguir.
Que era se transformar e passar pelos mercenários
de Silas à força – e lidar com as consequências depois.

Alex não precisava perguntar o que Gustavo queria dizer com


"fazer o que conseguisse". Se não tivessem algum plano,
ele ia voltar para o Setor Nove e o destacamento de
mercenários sozinho e tentar tirar a família de lá.
Simples.
Ou seria simples, se não fosse pelo fato de que os
mercenários estariam esperando aquilo, estariam
prontos para Gustavo e... Não. Alex não queria nem
pensar em como aquilo podia dar errado.
A pior parte era que elu não conseguia pensar em
outra opção. Se não tinham como tirar uma parte dos
mercenários de onde quer que estivessem, o único jeito
era um ataque direto. Raquel não autorizaria alguma
coisa daquele tipo, porque seria basicamente o Setor Dez
atacando o Nove – e tendo que atravessar o Seis para
chegar lá. Alex não sabia de todos os detalhes, mas sabia
que Dani tinha até reduzido a quantidade de pessoal que
ia para o Setor Seis, por segurança, porque a relação
entre os setores não era mais a mesma.
Elu ia dar um jeito, nem que tivesse que obrigar
Gustavo a sentar e dar todos os detalhes sobre os
mercenários, mas iam achar uma opção melhor do que
aquele plano suicida dele. E, depois...
Depois provavelmente Alex ia obrigar Gustavo a
sentar e conversarem, sim. Porque, por mais que cair nos
padrões de antes fosse uma coisa boa, como se fosse
uma indicação de que o que existia entre eles não tinha
se quebrado mesmo depois daquele tempo todo,
também era um problema. Se não se forçasse a fazer
aquilo, nunca conversariam. Seria exatamente como
antes, só imaginando que estava tudo bem e deixando
os problemas passarem batido. Não. Se iam fazer aquilo,
Alex não ia repetir os mesmos erros.
E, se precisava de um plano louco para uma situação
impossível, Alex sabia muito bem com quem falar.
Elu se levantou e olhou para a cozinha. Gustavo
estava cortando o frango que tinha descongelado,
parecendo distraído demais. Por mais que Alex tivesse
falado que podia pedir comida, ele preferia cozinhar e elu
não ia reclamar – Gustavo sempre tinha sido bom na
cozinha. Mas ele ainda ia demorar ali e aquilo queria
dizer que elu tinha tempo para o que precisava, também.
— Já volto — Alex avisou.
Gustavo levantou a cabeça e assentiu com um
sorriso distraído. Alex revirou os olhos e saiu da casa
segura, fechando a porta atrás de si. Aquilo tinha virado
costume, também: elu saindo da casa quando precisava
fazer alguma ligação ou falar com alguém sobre coisas
de trabalho que Gustavo não podia ouvir.
Elu se afastou, na direção das árvores, e pegou seu
tablet. Ainda era dia. Alex podia ir atrás de Dani
pessoalmente, porque era óbvio que ela ia estar em
casa. Mas...
O tablet vibrou. Alex encarou a tela, vendo o nome
de Dani ali antes de balançar a cabeça e aceitar a
ligação. O rosto de Dani apareceu na tela e elu continuou
andando na direção das pedras. Não ia ter aquela
conversa de pé.
— Eu estava pensando se ia na sua casa ou ligava —
elu comentou.
Dani riu.
— Foi uma boa hora, então. O que você precisa?
Simples assim, sem nada da tensão de antes sempre
que precisavam conversar – e aquilo era bom.
Alex se sentou em uma das pedras e suspirou.
— Duas coisas. Primeiro, se tem alguma chance de
agilizar uma reunião para decidir o que fazer. E
segundo... Preciso de um plano louco.
Dani deu uma gargalhada. A pior parte era que Alex
não podia nem reclamar daquilo, porque elu pedir um
plano louco, depois de tudo, merecia uma gargalhada
sim.
— Tá, e imagino que isso tudo tenha a ver com
Gustavo, não é? — Ela perguntou. — Porque tem alguma
coisa entre vocês, não tem?
Alex suspirou. Mesmo se quisesse, não ia adiantar
negar. Dani lhe conhecia bem o suficiente para
reconhecer aquilo de longe.
— Tem. E sim, tem a ver com ele. O que você chegou
a ver dos relatórios?
Dani olhou para o lado e balançou a cabeça antes de
olhar para a frente de novo. Provavelmente Amon estava
ouvindo a conversa, mas Alex não se importava. Era bem
possível que elu precisaria da ajuda dele também, se
fosse para alguma coisa dar certo.
— Tudo. Eu assumi essa parte do que está
acontecendo porque vampira.
Fazia sentido, mesmo que tecnicamente Yuri fosse
responsável por qualquer coisa interna do setor.
— A família dele está sendo usada como uma
garantia de que Gustavo vai fazer o que os mercenários
querem. A mãe dele e a irmã mais nova — Alex contou.
— Eu vi as mensagens com ameaças que ele recebeu e
pedi para dizer que está quase conseguindo alguma
coisa, só pra ganhar tempo, mas... Cinco dias.
— E você quer achar um jeito de tirar a família dele
de lá sem ser uma missão suicida — Dani completou.
Alex assentiu.
— No Setor Nove — Dani falou.
Alex assentiu de novo.
— Eu sei as ramificações políticas que isso pode ter.
A única coisa que tinha pensado tinha sido em desviar a
atenção deles, fazer tentarem nos atacar achando que
têm informações, mas Gustavo me lembrou que são
mercenários. A menos que sejam pagos pra atacar, não
vão fazer nada, não importa que informações tenham.
— Então um plano louco pra dar um jeito nisso e
uma reunião pra definir o que vamos fazer e tentar
autorizar esse plano louco? Não que eu ache que você
faz muita questão de autorização...
Alex respirou fundo.
— Não vou colocar o setor em risco. Mas não vou
ficar sem fazer nada.
O que queria dizer que, mesmo se Raquel não
autorizasse algum tipo de ação, elu ia fazer alguma
coisa, sim.
Dani revirou os olhos. Amon falou alguma coisa,
baixo demais para Alex entender, e ela assentiu.
— Tá, mas antes disso... — Dani começou. — Eu
queria falar com você primeiro justamente porque tem
alguma coisa entre vocês. E ele já bebeu seu sangue. Se
você não deu detalhes no relatório, imagino que seja
pessoal, mas...
— Pergunta logo, Dani. Você nunca foi de ficar dando
voltas.
Ela soltou o ar com força e deu de ombros.
— Por que ele bebeu seu sangue? Porque não acho
que você ia só oferecer do nada no melhor estilo "oi, vem
cá, vê o que acha disso e se vai servir pra te acalmar".
A pior parte era que Dani não estava tão longe assim
da verdade. Alex tinha feito praticamente aquilo, sim –
mas fazia sentido ela não imaginar aquela possibilidade.
Dani nunca tinha visto o lado mais impulsivo de Alex, no
tempo todo em que haviam convivido.
E ela não ia perguntar aquilo à toa.
— Ele estava transformado — Alex começou. — Isso
eu coloquei no relatório. A aparência diferente, sim. Mas
as ações também. Tinha algo de Gustavo ali ainda, na
forma como ele estava se movendo e falando, mas
também tinha alguma coisa que era outro. Foi quase
como...
Elu não sabia descrever. Não era como se não fosse
Gustavo ali. Mas, ao mesmo tempo, era tão diferente
que...
Não.
— É como você — elu falou. — Como a diferença
entre antes de ser transformada e agora. Ainda é você,
mas às vezes tem alguma coisa que é familiar e ao
mesmo tempo tão diferente que é um choque. Era essa a
impressão. Era ele ali, mas tinha algo diferente também.
Dani assentiu devagar.
— Isso faz sentido.
Ainda bem que fazia, porque era a melhor explicação
que Alex conseguia pensar.
E, sim, era pessoal. Mas Alex conhecia Dani bem o
suficiente para ter certeza de que ela não ia ter
perguntado daquele jeito se não tivesse um motivo.
— Ele estava sentindo o cheiro do meu sangue e
falando de algum sangue que tinha sido prometido — elu
contou. — Oferecer meu sangue era a única coisa que
fazia sentido.
Dani olhou para alguma coisa um pouco para baixo,
como se estivesse conferindo anotações, antes de
levantar a cabeça de novo.
— Imaginei alguma coisa assim — ela falou.
— Por quê?
— Melissa voltou pro complexo subterrâneo com
uma equipe pequena — Dani contou. — O suficiente pra
não terem problemas pra evacuar no primeiro sinal de
um desabamento. Eles estavam na parte de baixo do
laboratório, tentando recuperar os servidores e
computadores que estão lá.
— Pensei que Yuri e Eduardo tinham proibido o
pessoal de voltar lá.
E também tinha pensado que seria avisade... Mas
fazia sentido não terem falado nada, também.
Tecnicamente aquilo não era a parte de Alex do trabalho.
Elu tinha ido para lá para analisar o poder, não para
tentar recuperar dados. E, se depois fosse seguro voltar
lá, os vestígios de poder não teriam desaparecido, de
qualquer forma.
Dani deu de ombros.
— Proibiram, mas Melissa convenceu Yuri de que era
uma perda de tempo não tentar conseguir mais
informações, ainda mais com tudo o que está
acontecendo e o que você tinha pedido para o
laboratório.
— E obviamente acharam alguma coisa importante,
se você estava ligando para falar comigo.
Dani assentiu.
— Sua teoria de que o que usaram dos vampiros nas
alterações era para garantir que conseguiriam controlar
os alterados estava certa — ela contou. — Amon ainda
está conferindo as informações que tiraram de lá, mas a
Corte da Sombra estava estudando como os juramentos
de sangue funcionam.
Um arrepio atravessou Alex. Elu sabia mais do que
gostaria sobre juramentos de sangue, porque tinha
precisado pesquisar sobre aquilo por causa de Dani,
quando ela tinha enfiado na cabeça de acordar Amon.
Ninguém tinha lhe obrigado a nada, mas elu gostava de
estar preparade, então... Tinha estudado o que
conseguia, sim. Não que existissem muitas informações
sobre como os juramentos funcionavam. Tudo o que Alex
havia encontrado dizia que era magia e ponto, aquela
era a explicação. Por algum motivo o juramento de
sangue não podia ser quebrado. E os casos conhecidos
em que isso tinha acontecido eram o suficiente para elu
acreditar que havia alguma coisa ali, sim.
— Eles acharam algum jeito de explicar isso? — Alex
perguntou.
— Eu vou te mandar os documentos. A maioria tem
mais termos técnicos do que português, mas você
provavelmente vai entender isso até melhor que Amon —
Dani falou.
Era bem provável. Mas, por mais que Alex quisesse
ver todos os detalhes do que tinham encontrado, não
tinha tempo para fazer aquilo.
— Um resumo?
— Eles embutiram algo como um juramento de
sangue nas alterações — Dani contou. — Mas não é uma
coisa que depende de instruções nem nada assim.
— O quê?
Elu tinha entendido errado. Não era possível.
Dani assentiu.
— É exatamente o que parece. A ideia era que os
alterados beberiam o sangue dos vampiros da Corte da
Sombra e esses vampiros seriam seus controladores,
quando precisassem que atacassem. E a coisa toda de
controlar não funciona quando estão na forma humana e
conscientes, mas mesmo assim...
Alex engoliu em seco.
— Quanto de controle?
— Completo. Um alterado seria forçado a obedecer
qualquer ordem ou instrução.
Elu não respondeu. Aquilo era quase pior que os
experimentos em si. Era como apagar completamente as
pessoas ali e as transformar e algo a ser usado... E era
exatamente aquilo que o Setor Quatro pensava dos
alterados, na época. Eram armas e mais nada.
— Me mande os documentos — Alex pediu.
— Já estou mandando. E... Duas mordidas, Alex —
Dani completou. — É o que parece que precisavam pra
esse controle funcionar. Duas ou três, no máximo.
Alex assentiu.
— Entendi. Obrigade.
Elu encerrou a ligação e parou, encarando o tablet
que estava tremendo. Não. Sua mão estava tremendo.
Uma notificação apareceu na tela. Os arquivos de
Dani e mais uma mensagem, falando que ela ia tentar
garantir uma reunião no máximo para o dia seguinte e
que se tivesse alguma ideia de como lidar com a
situação da família de Gustavo, ia avisar.
Bom. Aquilo era bom, mesmo que elu não
conseguisse nem pensar em mais nada. Alex só
conseguia se lembrar da sensação da mordida de
Gustavo e de como ele tinha relaxado e desmaiado,
depois.
Ele tinha falado sobre o sangue que tinha sido
prometido. E, bem antes, já tinha comentado que o
"monstro" tinha escolhido Alex. Agora a coisa toda de
"escolher alguém" fazia sentido, mesmo que não fosse o
plano inicial da Corte da Sombra. Mas eles tinham criado
os alterados para terem aquela ligação com alguém. Não
era opcional.
O tablet vibrou de novo. Alex respirou fundo e
encarou a mensagem de Raquel, avisando que estava
indo com Valissa para onde o complexo subterrâneo
tinha desabado e a água estava vazando.
O que elu mais queria era poder parar e só ler os
documentos que Dani tinha mandado, mas não podia.
Alex precisava ir com Raquel, para ter certeza de que
não tinha sobrado nenhum resíduo de poder na água.
Aquele tipo de coisa era o motivo para elu ter feito
tanta de não se envolver em nada por anos. Era muito
mais fácil quando Alex não precisava se preocupar com
tanto ao mesmo tempo – e melhor ainda quando não
precisava ficar imaginando o que aconteceria se não
achasse um jeito de resolver os problemas.
A pior parte era que elu não se arrependia de ter
voltado a se envolver.
Alex se levantou e voltou na direção da casa segura.
Precisava pelo menos avisar que não sabia se ia voltar
para o almoço.
VINTE

Lara acelerou o passo e entrou no espaço entre duas casas.


Estava cedo demais para ela conseguir achar um lugar
onde fosse se esconder, mas uma pessoa vestida como
mercenária se enfiando naqueles becos não era algo
estranho, em teoria. E, com sorte, ninguém ia prestar
atenção nela.
A sensação pesada no seu peito veio de novo e ela
se apoiou na parede. Tinha gente naquela casa. Seis
pessoas, sendo que cinco eram crianças. Estavam rindo
de alguma coisa e ela tinha quase certeza que conseguia
ouvir o barulho de talheres. Mas Lara não deveria estar
ouvindo nada.
Ela se encostou na outra parede e fechou os olhos. O
sol batendo no seu rosto era forte e quente – sol do
meio-dia, sim. E aquilo era bom. Era um lembrete de que
Lara estava no Setor Seis. E Valissa estava no Setor Dez,
que era o lugar mais seguro para ela. Mas a sensação
pesada no seu peito continuava, crescendo e diminuindo
em ondas.
As crianças na casa da frente ainda estavam rindo. A
pessoa adulta estava falando para pararem de brincar e
começarem a comer, mas não estava levando aquilo
muito a sério, também.
Lara não deveria estar ouvindo nada daquilo. Pelo
menos a outra casa estava vazia. Ou então, se alguém
estava lá, não estava fazendo barulho e era melhor
assim. Ela não precisava notar mais nada que não
deveria.
Pelo menos ela não estava sentindo aquela dor na
boca do estômago. Aquilo seria um problema.
Não que a pressão no seu peito não fosse um
problema.
A sensação cresceu de novo e Lara bateu a mão
fechada na parede. A pontada de dor – ela tinha
arranhado a mão – era o suficiente para ela conseguir
focar. Aquilo não era ela. Aquilo era Valissa. Era a medida
de segurança que Lara tinha criado anos atrás. Sua irmã
estava usando seu poder, e não de forma discreta.
A última vez que Valissa tinha usado poder daquele
jeito, elas quase haviam sido mortas. E agora, se o pior
acontecesse, não seria tão fácil fugir. O rosto de Lara era
conhecido. Ela não tinha tido como se esconder depois
de ir definitivamente para o Setor Seis, porque precisava
trabalhar todos os seus contatos para garantir a
segurança de Valissa e garantir que ela mesma não seria
notada por quem não deveria. Uma mercenária que
sempre tinha estado ali não chamava atenção.
Mas, se descobrissem sobre Valissa...
Não. Ela não ia passar por tudo aquilo de novo.
Lara respirou fundo e se endireitou. A sensação
pesada ainda estava ali, mas estava diminuindo. Valissa
estava parando o que quer que estivesse fazendo.
O mais seguro era esperar. Lara sabia daquilo muito
bem. O Setor Dez protegeria Valissa, sim. Ela confiava
demais na palavra de Dani para duvidar daquilo. Ir para
lá, estarem no mesmo lugar, era dar um alvo fácil para o
Setor Três... Especialmente se os boatos sobre uma
aliança entre o Dez e o Três fossem reais.
Mas Lara não podia só esperar depois de sentir sua
irmã usar poder daquele jeito.
Ela não estava ouvindo as crianças mais. Bom. As
chances de perder o controle eram pequenas, então.
Lara balançou a cabeça devagar e saiu do beco sem
olhar para os lados. A vantagem de ser uma mercenária
conhecida era que ninguém se surpreenderia por ela só
desaparecer por alguns dias. Não seria a primeira vez
que aquilo acontecia.
O sol ainda estava forte. Era quase o oposto do Setor
Três e de quando tinham precisado fugir. E Lara não ia
abrir mão daquilo de novo.

Alex encarou a cratera de onde o complexo subterrâneo tinha


desabado – por sua culpa. A água ainda estava
escorrendo, mas elu não conseguia sentir mais nenhum
vestígio de poder ali. Valissa realmente tinha conseguido
limpar tudo ali – de acordo com ela, só fazendo a água
"voltar ao normal". Alex não queria nem pensar na
complexidade envolvida em fazer alguma coisa daquele
tipo.
— Nada — Melissa falou. — Não consigo ter certeza
sobre o reservatório, mas não existe mais nenhum sinal
da semi consciência que eu senti antes.
Valissa fez um ruído irritado e cruzou os braços antes
de olhar para Alex.
Elu balançou a cabeça e deu um sorriso.
— Também não estou sentindo nada.
Alex ainda ia fazer questão de voltar no complexo
subterrâneo e ir até a sala do reservatório, só para ter
certeza, mas não tinha nenhum motivo para pensar que
algum resto do poder ainda estivesse ali.
— Eu falei, é fácil — Valissa comentou. — Posso ir
agora?
Elu assentiu.
— Obrigade, Val.
A garota deu um sorriso enorme antes de se virar e
sair correndo na direção da cidade.
Raquel ainda se virou, provavelmente para chamar
Valissa de novo, mas Melissa balançou a cabeça.
— Yuri tem pessoal por perto — ela avisou. — Vão
acompanhar Valissa até ela chegar na cidade ou na
mansão.
Ótimo. O que a garota tinha feito havia parecido
simples, mas ninguém sabia como o poder dela
funcionava. Não parecia que teria algum preço como o
poder de Raquel, ou Valissa já estaria dado algum sinal
de esgotamento logo depois de terminar, mas era melhor
não arriscar. E era melhor que ela não soubesse que
estava sendo acompanhada, também. Pelo que Alex
tinha entendido, aquele poder sempre tinha sido algo
natural para a garota, mesmo quando ela estava se
escondendo. Ela não tinha medo do que podia fazer –
então ninguém ali ia agir de nenhum jeito que fizesse ela
começar a se questionar sobre aquilo.
Raquel olhou para Alex.
— Ela controla a água — a bruxa falou.
Alex assentiu devagar. Elu sabia exatamente por que
Raquel ainda estava incrédula com aquilo: fazia gerações
que não se ouvia falar de alguém com aquele tipo de
poder. As histórias da época da magia contavam sobre
pessoas que controlavam a água, sim – e que
controlavam outros elementos, também. Uma parte
daquilo ainda existia, como nas bruxas que trabalhavam
com Eduardo e que tinham afinidade com a terra. Mas
era diferente do que Valissa tinha feito. Até a forma como
elu sentia os poderes era diferente – e não tinha
comparação com o que Valissa fazia.
Raquel suspirou e balançou a cabeça devagar.
— Você sabe o que isso quer dizer — Melissa
comentou.
Não, Alex não sabia. Mas aquilo tinha sido para
Raquel, que deu de ombros e começou a andar na
direção da entrada do complexo subterrâneo.
— Sei. E quero que vocês confiram o reservatório
antes de dizermos que qualquer coisa está segura — ela
avisou.
O estômago de Alex roncou, mas elu não ia falar
nada. Precisavam conferir o reservatório primeiro.
E elu podia muito bem aproveitar a oportunidade, já
que estava ali com Raquel e Melissa.
— Tem alguma ideia sobre o que vamos fazer? —
Alex começou. — Porque...
Raquel assentiu, sem parar de andar.
— Tem toda a situação com Gustavo e a família dele.
Não me esqueci. Mas não existe uma solução simples.
Não. Se existisse, Alex já teria forçado uma reunião
dias antes.
— Eu pensei em uma armadilha — elu comentou. —
Atrair os mercenários para cá e aproveitar enquanto a
maior parte deles estivesse longe...
— Para invadir o Setor Nove — Raquel interrompeu.
Alex deu de ombros. Com sorte – com planejamento
o suficiente – não teriam como provar o que havia
acontecido, então uma "invasão" em outro setor não
seria um problema. Não era como se fosse proibido que
alguém passasse pelas fronteiras. Só era arriscado,
dependendo das relações entre os setores.
A bruxa suspirou e balançou a cabeça.
— A questão é que, não importa o que decidirmos
fazer, vai afetar todo o setor — Raquel falou. — Se não
fizermos nada, ninguém vai pensar nada demais, porque
Cláudia saiu daqui há anos. Ela não é mais parte do Setor
Dez, tecnicamente, e Gustavo só está aqui como um
mercenário.
Sim. Eles tinham aberto mão da cidadania do setor
quando haviam desaparecido, oito anos antes. Aquilo
queria dizer que o Setor Dez não tinha motivos para
interferir em nada envolvendo eles e que, se tentasse,
poderiam ser acusados de estar sequestrando alguém
que era parte de outro setor.
— E se não fizerem nada, assim que alguém soltar
um comentário sobre isso, os outros setores vão
entender como um aviso de que vocês não vão lutar
pelos seus, se estiverem fora daqui, porque as
ramificações políticas são complicadas demais — Melissa
completou. — O pessoal que vai em outros setores
buscar informações ou até fazer compras estará em
risco, porque o Setor Dez vai ficar conhecido como o que
sacrifica pessoas para evitar começar conflitos.
Alex parou e olhou para Melissa. Ela balançou a
cabeça e continuou andando.
— Isso não faz sentido — elu falou, antes de voltar a
andar, também.
— Claro que faz — Raquel respondeu. — Gustavo
está trabalhando para nós de novo, mesmo que só como
um mercenário. Ele tem uma ligação com o setor. É o
suficiente para interpretarem como quiserem.
E as Cortes queriam um motivo para atacar o Setor
Dez. Aquilo não era novidade.
Alex ainda achava que era improvável, mas não ia
discutir política com Raquel e Melissa. Aquilo era a área
delas, não delu.
— E o que isso quer dizer, então? — Alex perguntou.
Raquel balançou a cabeça devagar e continuou
andando, sem responder. As árvores ficaram mais
fechadas, dos dois lados do caminho, enquanto iam na
direção das ruínas e da entrada do complexo. Alex não ia
insistir. Podia não ter trabalhado para valer com Raquel
antes, mas sabia que ela não ignoraria uma pergunta.
Era mais fácil só esperar, por mais que quisesse insistir e
perguntar o que podiam fazer.
E, se Raquel decidisse não fazer nada... Não. Alex
não acreditava que ela ia só deixar aquilo de lado,
mesmo que a família de Gustavo tivesse só desaparecido
do setor. Raquel não funcionava daquele jeito. Mas, se o
pior acontecesse, Alex ainda tinha tempo para tentar
fazer alguma coisa por conta própria.
— Você que esteve lá nos últimos dias — Raquel
começou. — Riscos?
— Nenhum — Melissa falou. — Pelo menos, não
enquanto estávamos na parte de baixo. A área do
desabamento é longe o suficiente do reservatório.
Sim. Era o limite de onde a água ia quando
começava a escoar.
E chegava a ser irônico que tivessem passado tanto
tempo tentando entender o que aquilo era, para onde ia
e como o poder se dispersava, quando a solução estava
ali o tempo todo. Só precisavam ter prestado mais
atenção em Valissa antes – e conseguido a confiança
dela. Aquele trabalho todo, para nada.
Não. Não tinha sido para nada. Tinha servido para
dar mais informações para Gustavo sobre o que ele era,
mesmo que não fosse muita coisa. E ainda havia mais no
complexo, sobre outros estudos: armas e proteções e
formas de otimizar os recursos do setor. Com tempo o
suficiente, o Setor Dez tiraria algo útil dali, sim.
As árvores começaram a ficar mais afastadas de
novo e então se abriram na clareira onde estavam as
ruínas da vila. O pessoal da força de defesa que ainda
estava espalhado por ali, mantendo um perímetro de
segurança, só gesticulou para passarem e um deles
marcou alguma coisa num tablet. Bom. Precisavam de
um registro de todo mundo que estivesse ali, mesmo que
fosse só pessoal autorizado.
Raquel parou ao lado do alçapão que dava para o
complexo e se virou para Alex.
— Nós temos duas opções — ela começou. — A
primeira é a mais segura: não fazer nada. Cláudia e
Brenda não são mais parte do Setor Dez. Não cabe a nós
interferir nisso. Gustavo pode ser liberado do seu
contrato conosco e fazer como preferir, mas o setor não
vai se envolver.
Alex abriu a boca e parou quando Raquel levantou
uma mão.
— Fazer isso quer dizer que vamos ser vistos como
alvos fáceis, sim — a bruxa continuou. — Tudo que
aconteceu até agora serviu para construir uma reputação
para o Setor Dez e os outros setores não querem testar
isso. Se esse destacamento de mercenários está ativo há
tanto tempo, eles vão entender como a informação pode
ser usada para destruir o que construímos e vão achar
um comprador interessado.
Alex não duvidava daquela parte. Os vampiros
usavam qualquer coisa que podiam para destruir uns aos
outros e o peso de uma reputação tinha sido a primeira
coisa que tanto Amon quando Melissa haviam falado a
respeito e insistido para manterem.
— E qual é a segunda opção, então? — Elu
perguntou.
Raquel respirou fundo e olhou na direção das árvores
antes de encarar Alex de novo.
— Você sempre fez questão de ser até mais honeste
do que deveria, esse tempo todo — ela começou. —
Posso confiar que vai continuar agindo assim? Que não
vai mentir porque tem um envolvimento pessoal com a
situação?
Alex se endireitou. Aquilo era quase uma ofensa,
considerando como Raquel lhe conhecia.
— Pode. Não vou mentir se resolver dar um jeito nas
coisas por minha conta.
A bruxa riu.
— Sobre essa parte eu não tenho a menor dúvida.
Se não tinha dúvidas, então por que estava se dando
ao trabalho de perguntar? Mas Alex não ia falar aquilo.
Ainda queria resolver aquela situação do melhor jeito
possível e o melhor jeito era com apoio do setor.
— Quanto podemos confiar em Gustavo? — Raquel
perguntou. — De verdade. Gustavo, o mercenário. Não
Gustavo, seu amigo de infância e o que mais tenham se
tornado.
Alex queria responder que podiam confiar nele e
ponto, sem nenhuma sombra de dúvida. Mas... Não. Elu
sabia que podia confiar em Gustavo sem pensar duas
vezes se o assunto lhe envolvesse de qualquer forma,
porque ele não faria nada que fosse lhe ferir de novo.
Talvez fosse até burrice depois do que ele já tinha feito,
mas era a verdade. Alex confiava e ponto.
Mas, se sua resposta podia afetar o que aconteceria
com o setor, elu não ia responder sem ter todos os
detalhes.
— Preciso de mais informações que isso. Que
diferença faz podermos confiar nele ou não?
Raquel encarou Alex.
— A outra opção é agirmos como se não eles ainda
fossem parte do Setor Dez — ela começou. — Gustavo
teria que agir como se estarem fora do Setor Dez não
fosse uma escolha deles. Nesse caso, eu poderia entrar
em contato com o príncipe do Nove oficialmente,
exigindo que Cláudia e Brenda fossem mandadas de
volta para cá. E, se ele se recusasse, poderia autorizar
uma incursão.
Alex engoliu em seco. Não precisava olhar para
Melissa para ter certeza de que aquilo era um plano
arriscado demais – e não só porque seria a palavra de
Raquel contra a palavra dos mercenários. Aquilo seria um
movimento agressivo da parte do Setor Dez, exatamente
o que tinham evitado fazer aquele tempo todo.
Seria uma provocação. Mesmo que não fosse
proposital, alguma Corte entenderia daquele jeito. E, se
fizessem aquilo e depois vazasse que tinha sido uma
mentira desde o começo...
— Se fizermos isso, Gustavo e sua família vão
precisar ficar aqui — Raquel continuou. — Sem a menor
possibilidade de desaparecerem de novo para onde quer
que seja. Eles vão precisar ser parte do setor.
Aquela era a parte fácil. Desde o começo, o plano de
Gustavo era levar a família de volta para lá. E Alex não
achava que seria um problema – eles só tinham ido
embora por causa de Gustavo, não porque não queriam
estar ali.
Era loucura. Era mais loucura do que qualquer coisa
que Alex tinha imaginado quando estava falando com
Dani sobre arrumar algum plano maluco. Mas...
— Você sabe o que Gustavo é — Alex falou. — Sabe o
que ele pode fazer e os riscos. Se isso não vai ser um
problema...
Raquel levantou as sobrancelhas.
— Um alterado é um risco menor que desafiar todas
as Cortes e criar um setor controlador por humanos. E eu
já fiz isso.
Ela tinha um bom ponto.
Alex assentiu.
— Pode confiar nele. Gustavo está disposto a
qualquer coisa para proteger a família.
E Alex já sabia desde o começo que o único jeito de
resolverem aquilo seria fazendo alguma loucura.

Gustavo parou na porta da outra casa segura sem ter certeza do


que esperar. Os dois dias com Alex tinham sido tão
perfeitos que chegavam a ser surreais, sim. Era parecido
demais com o que ele sempre havia imaginado que
teriam. Mas não era real. Era só um intervalo enquanto
ele não recebia uma sentença pelo que tinha feito –
porque Gustavo tinha certeza que a forma como havia
perdido o controle teria consequências.
O que queria dizer que ser chamado para uma
reunião no fim da tarde, horas depois de Alex sair da
casa segura avisando que era coisa de trabalho, e sem
fazer ideia do motivo, não era um bom sinal. Ou talvez
fosse, porque queria dizer que ele ia saber de uma vez
por todas o que o Setor Dez ia fazer sobre ele – e aquilo
definiria o que ele podia fazer depois, sobre sua família.
Aquela era a pior parte: saber que qualquer sentença
que dessem seria justa, mas que ele não cumpriria. Não
se fosse qualquer coisa que o impedisse de tentar tirar
sua mãe e sua irmã do Setor Nove.
E Gustavo não tinha esperado que a tal “reunião”
fosse ser feita em uma casa segura exatamente igual à
que ele estava usando.
A porta se abriu e Gustavo encarou Ezequiel. Desde
que tinha voltado para o Setor Dez, ele não tinha visto o
outro homem, que era o responsável pela segurança do
setor na época em que ele ainda vivia ali. Gustavo não
tinha se surpreendido por ele ter se aposentado –
Ezequiel já devia estar na casa dos sessenta anos – e
também não se surpreendia por ele ainda estar envolvido
nas coisas do setor, mesmo que sem o mesmo cargo.
Ezequiel assentiu e se afastou para o lado. Gustavo
entrou na sala e parou. Por mais que tivesse imaginado o
pior, não tinha pensado que a sala ia estar cheia daquele
jeito. Raquel, Adriana e um homem que ele só conhecia
de vista estavam no sofá. Os dois vampiros estavam na
porta do que obviamente era o quarto. Yuri e Melissa
estavam parados do outro lado da sala, perto de uma das
janelas fechadas, ao lado de uma das pessoas que ele se
lembrava de ver treinando, antes de ir embora. Dante – e
Gustavo só se lembrava do nome porque elu tinha o
físico de "vou atravessar uma parede só na força bruta"
que muitos mercenários tentavam ter e nunca
conseguiam – estava ao lado da outra janela.
E para completar, Alex estava encostade na parede
que dava para a cozinha, com um tablet na mão.
Bom. Pelo menos elu estava ali.
A porta se fechou com um estalo atrás de Gustavo e
ele deu dois passos para a frente por puro reflexo.
— Todo mundo aqui — Yuri falou.
E Gustavo não ia perguntar por que estavam
reunidos ali e não em algum lugar da mansão ou coisa do
tipo.
Raquel assentiu e se virou para Gustavo.
— Temos algumas opções sobre o que fazer com
você e toda essa situação — ela falou. — Mas, primeiro,
precisamos de mais informações. É por isso que você
está aqui.
Informações. A mesma coisa que Silas queria.
Mas era diferente. Mesmo que tivesse passado oito
anos longe do Setor Dez, aqueles meses ali tinham sido
mais que o suficiente para Gustavo saber que nada tinha
mudado sobre como funcionavam. Qualquer informação
que ele desse seria usada para proteger o setor, não
para lucrar.
— Que tipo de informações? — Ele perguntou.
— Começando por quem está financiando isso tudo
— Daniele falou. — Porque se fazem tanta questão de
você levar informações, é porque tem alguém pronto
para usar isso. Então se tiver alguma informação sobre
quem pode ser, algum comentário que ouviu...
Gustavo deu de ombros. Aquela era a parte fácil.
— O Setor Um — ele contou. — Eles são os maiores
contratantes do destacamento de Silas, pelo menos
desde que estou lá.
Alex se virou para a vampira, que tinha ficado pálida.
— Tem certeza? — Amon perguntou.
Não era uma ameaça e não era um desafio. Gustavo
precisava se lembrar daquilo, mesmo que sua pele
estivesse formigando só de ouvir a voz do vampiro. Ele
não era um inimigo. Ele não podia ser um inimigo se
Gustavo tivesse qualquer intenção de tirar sua família do
Setor Nove.
— Eles financiam a maior parte das operações dos
mercenários de Silas. O Setor Um gosta de usar os
mercenários para passar ordens e instruções para outros
grupos sem deixar uma ligação direta com a Corte.
Ninguém falou nada, mas ainda estavam trocando
olhares preocupados e Alex ainda estava encarando a
vampira, que tinha pegado um celular.
Gustavo balançou a cabeça. Aquilo não fazia sentido.
— Eu tinha certeza que vocês sabiam — ele falou. —
Todos os outros mercenários que trabalham com Silas ou
com os destacamentos que têm alguma coisa com o
Setor Um foram mandados embora, quando vocês
ofereceram aqueles contratos.
E ele só tinha sido aceito por causa do seu passado
com o Setor Dez. Pelo menos, era o que tinha pensado
na época.
— Eles foram recusados porque tenho um pessoal
excelente no que faz — Raquel falou e indicou Yuri com a
cabeça.
O outro homem só balançou a cabeça devagar.
Eles não sabiam. Então...
— Cuidado com o que você vai falar para Alana —
Alex falou.
Daniele levantou a cabeça e olhou para elu.
— Não vou só deixar ela sem nenhum aviso!
— Alana sabe o que está fazendo — Alex insistiu.
— Alex tem razão — Raquel completou.
Daniele apertou o celular com força. Algo estalou e
Amon segurou a mão dela, sem falar nada. A vampira
soltou o aparelho e ele o guardou. Gustavo não tinha
certeza, mas parecia que a tela estava trincada.
Alana... Gustavo se lembrava de ouvir aquele nome
por alto, logo que tinha chegado no setor, e depois mais
nada.
Não. Era o mesmo nome que Alex tinha falado
quando estavam conversando com Valissa – a bruxa da
natureza.
E, se ele não estava confundindo nomes, era ela
quem tinha se casado com Lorde Rafael. Na época, ele
tinha pensado que havia sido algum tipo de acordo, um
pagamento para o Setor Um não atacar ou coisa do tipo.
Se não sabiam que era o Um por trás de tudo, então o
casamento provavelmente tinha sido parte do objetivo
de Lorde Rafael – por causa dos boatos de que o Setor
Dez tinha uma bruxa da natureza.
Aquilo fazia sentido demais e não de um jeito bom.
— Vocês não sabiam — ele repetiu, devagar.
Daniele deu um passo na direção de Gustavo e
parou.
— Quero tudo que você sabe sobre isso — ela falou,
seca.
Ele sustentou o olhar da vampira. Pelo menos
naquele ponto o destacamento de Silas tinha sido útil:
como eles faziam trabalhos demais para os vampiros,
sabiam mais do que a maioria dos humanos sobre o que
era mito e o que era realidade. Gustavo sabia que os
vampiros capazes de controlar alguém com o olhar não
eram tão comuns quanto pareciam. E, mesmo que o
Setor Dez já tivesse algumas pessoas com poderes que
não eram comuns, uma vampira recém transformada
nunca seria capaz de fazer aquilo.
— Ela, não — Melissa falou. — Mas eu, sim.
Gustavo se virou para a mulher. Ela tinha lido sua
mente. E era humana. Aquilo era impossível. Mas
ninguém ali estava surpreso com o comentário dela,
mesmo que tivesse sido algo vindo do nada.
— Sério mesmo? — Alex começou, num tom que
conseguia ser irritado e entediado ao mesmo tempo. —
Vocês realmente vão começar com isso?
Melissa olhou para elu e sorriu antes de dar de
ombros.
O que ela era? Não fazia sentido que uma humana
tivesse um poder que só existia entre os vampiros. Mas
Gustavo não ia perguntar. Nem ia fazer nada, na
verdade, porque precisava das pessoas que estavam ali.
Ele não podia se dar ao luxo de começar uma discussão
ou pior.
Alex se virou para Daniele. A vampira levantou as
mãos e deu alguns passos para trás, até estar encostada
em Amon de novo.
E Gustavo tinha a leve impressão de que as duas
tinham sido tratadas exatamente do mesmo jeito que
Alex tratava os adolescentes que eram alunos delu.
— O que você sabe de quando o Setor Oito estava
nos ameaçando? — Alex perguntou.
Gustavo respirou fundo e balançou a cabeça. Ainda
era surreal pensar que eles não sabiam.
— Lorde Rafael financiou boa parte do equipamento
do Setor Oito — ele contou. — E usou Silas para passar
as ordens dele, pelo menos enquanto eu ainda estava lá.
Tenho quase certeza que ele deixou uma oferta aberta
pra qualquer tipo de informação útil, desde antes do que
aconteceu com o Setor Oito, porque Silas fez questão de
mandar um bom tanto de mercenários pra cá. Até ele
tentou ser aceito quando os contratos estavam abertos.
— Silas é o comandante desses mercenários? — Yuri
perguntou.
Gustavo assentiu.
— Isso.
— Você reconhece o nome? — Daniele perguntou.
Yuri balançou a cabeça de um jeito irritado que não
era uma negação.
— Se ele tem parte do cabelo pintado de vermelho,
então reconheço mais que o nome — Yuri contou. — Ele
foi o mercenário que Valissa falou para eu não deixar no
setor.
— E por que Valissa ia reconhecer um mercenário do
Setor Nove? — Ezequiel perguntou.
— Porque nós fomos pagos para capturar Valissa e a
irmã mais velha dela, alguns anos atrás — Gustavo falou.
— Não sei de onde elas estavam vindo nem o que
fizeram, mas tenho quase certeza que o pagamento
estava vindo do Setor Um, também.
— Valissa reconheceu vocês dois — Yuri contou.
Gustavo assentiu.
— Porque eu achei as duas. E deixei elas fugirem.
— O pântano — Amon falou.
Gustavo balançou a cabeça devagar antes de
perceber que o vampiro não estava falando com ele.
Raquel inclinou a cabeça para um lado antes de
assentir lentamente.
— Isso encaixa com o que você contou, sim. E
explica a situação, de certa forma — ela comentou.
— Explica o quê? — Alex perguntou.
A bruxa balançou a cabeça.
— Isso é assunto para depois.
O que queria dizer que não iam falar nada sobre
aquilo com Gustavo ali – mas não era difícil deduzir.
Valissa tinha criado um pântano em algum lugar, de
algum jeito. Ele ainda não sabia o que era o poder dela,
então por mais que fosse improvável, era o que fazia
mais sentido com o que estavam falando. E, depois, tinha
sido caçada por causa daquilo. Ou então por causa do
próprio poder.
— A questão agora é o que vamos fazer com
Gustavo — Raquel continuou.
Ele se endireitou. O que quer que decidissem...
Raquel olhou ao redor da sala, encarando uma por
uma das pessoas ali. Todo mundo assentiu, devagar, e
ela se virou para Gustavo de novo.
— Se tirarmos sua família do Setor Nove, nem elas
nem você vão poder desaparecer de novo — ela falou. —
Vocês vão precisar ser parte do Setor Dez, não importa o
que aconteça. E, no seu caso, isso inclui lutar, também.
Era claro que incluía.
E, se sua família estivesse ali, no mesmo lugar que
Alex, Gustavo não teria a menor dúvida sobre o que
fazer. Se acontecesse alguma coisa – e era óbvio que
aconteceria – ele defenderia o Setor Dez mesmo sem
nenhum acordo ou contrato.
— Isso não vai ser um problema — ele falou.
Raquel assentiu e se levantou, olhando para Amon.
— Então temos trabalho a fazer. — Ela se virou para
Gustavo. — Você vai continuar na outra casa segura, por
garantia. Se receber mais mensagens, fale o que precisar
para ganhar tempo. Vamos entrar em contato para pedir
detalhes sobre o Setor Nove e onde os mercenários vão
estar.
— Entendido.
VINTE E UM

Dani encarou a mercenária na sua frente. A última vez que tinha


visto Lara havia sido quase cinco meses antes, quando
um dos príncipes do Setor Três tinha levado ela para o
Dez, inconsciente. E ela tinha feito questão de ir embora
assim que havia acordado, sem falar nada com ninguém
e sem nem pedir notícias sobre a irmã mais nova – que
ela mesma tinha mandado para o Setor Dez.
— Ela fez alguma coisa para vocês — Lara falou. —
Não adianta tentar negar. Se vocês colocaram ela em
risco, eu...
— Valissa está segura — Dani avisou.
E não fazia o menor sentido Lara saber o que Val
tinha feito, mas àquela altura Dani não duvidava de mais
nada.
A mercenária soltou o ar com força e deixou os
ombros caírem. Até o coração dela tinha diminuído o
ritmo – e Dani ainda achava estranho conseguir notar
aquilo, mas era útil.
Dani se sentou no sofá em um canto do seu
escritório. Não era como se ela usasse aquela sala com
frequência mesmo antes de ser transformada. Agora,
então, era uma raridade. E tinha sido por pura sorte que
ela estava na mansão quando Lara tinha se aproximado
da fronteira, exigindo falar com alguém do setor.
Lara respirou fundo de novo e balançou a cabeça
antes de se virar para Dani.
— Ela não pode...
Não. Lara não tinha o menor direito de aparecer ali,
seis meses depois, e querer colocar regras nas coisas.
— Você mandou Valissa comigo, sem falar que ela
precisava se esconder, sem dizer de quê ou por quê —
Dani interrompeu. — Se quisesse dizer alguma coisa
sobre o que ela pode ou não fazer, era melhor ter falado
muito antes disso.
A mercenária fechou as mãos com força e seu
coração acelerou de novo.
— Eu só ia falar que ela não pode ser encontrada. E
o motivo é mais que óbvio.
O motivo era. Na verdade, considerando as pessoas
que viviam no Setor Dez, tinha ficado óbvio muito antes
de entenderem o que era o poder de Val.
— Da outra vez, você fez questão de praticamente
fugir daqui, sem nem procurar saber sobre Val — Dani
falou. — Por que está aqui agora?
Lara balançou a cabeça e se sentou de forma pesada
na cadeira que ficava na frente da mesa.
— É melhor não ficarmos juntas. E era melhor Val
nem saber que eu estava aqui.
Dani levantou uma sobrancelha.
A mercenária suspirou.
— Se ela pedisse para voltar comigo, eu não ia
conseguir recusar. Mas não é seguro para ela.
— Porque ela tem o tipo de poder que os vampiros
matam para conseguir — Dani completou.
Lara assentiu.
A pior parte era ter certeza de que aquilo não era
exagero. Depois de entender o que Valissa tinha feito
com o reservatório e o que estava fazendo aqueles
meses todos sem Alana ali, sem ninguém nem notar... Se
as Cortes descobrissem sobre ela, Valissa seria
exatamente o tipo de bruxa que os vampiros caçavam.
Ou fariam com que concordasse a trabalhar para eles, ou
a transformariam contra sua vontade e a obrigariam a
trabalhar para eles, se ainda tivesse seus poderes.
Melissa tinha contado casos demais de coisas daquele
tipo acontecendo.
— E alguém já sabe sobre ela — Dani falou. — Se
não soubesse, você não teria feito questão de me pedir
para trazer Val pra cá.
Tinha sido fácil demais juntar os pontos. Eric tinha
contado para Amon sobre o pântano e como ele tinha
sido criado. Gustavo tinha falado sobre como os
mercenários haviam sido pagos para caçar Valissa e
Lara. Era fácil demais entender que, de alguma forma,
Val era a responsável pelo pântano do Setor Três. A
questão era entender o que tinha acontecido para ela
fazer aquilo e porque tinham sido caçadas.
Não, a questão era se Lara estava disposta a contar
alguma coisa para eles. Se ela não contasse, mais cedo
ou mais tarde Valissa confiaria o suficiente para contar.
— O Setor Três sabe — a mercenária falou. — Nós
viemos de lá.
— Sempre pensei que você tinha crescido entre os
mercenários do Setor Seis.
Lara deu de ombros.
— Também. Meus pais eram mercenários e
passavam mais tempo lá do que no Três. Ninguém sabia
de onde éramos pra valer.
Aquilo fazia mais sentido do que qualquer outra
coisa que Dani tivesse imaginado sobre como Lara
sempre tinha parecido estar em casa no Setor Seis.
E, por mais que tudo aquilo fosse interessante, nada
explicava por que Lara realmente estava ali. Ela não
precisava ter feito questão de ir até a mansão. Podia ter
esperado na fronteira e alguém ia lhe dizer que sua irmã
estava bem. Se não queria que Valissa nem soubesse
que estava ali, entrar no Setor Dez era a pior escolha
possível.
Lara não agia sem pensar. Dani tinha trabalhado
com ela – mesmo que mais com trocas de informações
do que qualquer outra coisa – por tempo mais que o
suficiente para ter certeza daquilo. O que queria dizer
que tinha outro motivo para ela estar ali.
— O que você realmente quer, Lara? — Ela
perguntou.
A mercenária respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Quero uma forma de ficar aqui. No Setor Dez.
Interessante Lara dizer aquilo logo depois de ter
falado que era melhor não ficar perto da irmã.
Dani esperou, sem falar nada.
Lara fechou uma mão e bateu de leve na própria
perna, mas seus batimentos cardíacos estavam voltando
ao ritmo normal. Provavelmente tinha se decidido, então,
mesmo que não estivesse completamente calma.
— É mais seguro Valissa e eu não estarmos juntas,
porque viramos um alvo mais interessante. Duas, ao
invés de uma.
Era a verdade, mas não toda a verdade. Mas Dani
conhecia Lara o suficiente para saber que ela nunca dava
informações além do necessário. E aquilo era informação:
elas seriam um alvo mais interessante juntas porque
Lara também tinha alguma coisa que os vampiros
queriam.
O celular de Dani vibrou. Ela pegou o aparelho e
encarou o nome de Melissa na tela. Melissa, que nunca
mandava mensagem para ninguém, até onde Dani sabia.
Ela abriu a mensagem e parou.
"Ofereça logo esse contrato. Estou na sala do lado."
E Melissa ainda conseguia ler a mente das pessoas
quando queria.
Dani guardou o celular e encarou Lara de novo.
— Você sabe que temos uma aliança com o Setor
Três.
Os batimentos da mercenária aceleraram de novo.
Ela não sabia, então. Ou não tinha certeza, porque era
bem provável que tivesse ouvido os boatos.
— Se têm uma aliança, então eles não vão ser loucos
de encostar um dedo em alguém que seja do seu setor —
Lara falou.
— E se você for parte do Setor Dez, também não vai
poder encostar um dedo em alguém de lá — Dani
completou.
Lara respirou fundo e assentiu.
— Eu sei. E não tenho nenhum problema com isso.
Nós nunca quisemos problemas com o Setor Três. Se
atacarem, vamos nos defender, mas se eles não fizerem
nada...
Dani assentiu, devagar.
— Talvez seja possível te oferecer o mesmo contrato
que oferecemos para os mercenários, seis meses atrás —
ela contou.
— É o suficiente.
Ótimo.

Se tinha uma coisa que Gustavo nunca nem tinha chegado a


imaginar era que poderia ter ajuda para tirar sua família
do Setor Nove e do controle de Silas. Nem sua mãe teria
esperado alguma coisa do tipo, e ela era a otimista. E
com certeza nunca ia nem ter passado pela cabeça dele
que Raquel fosse assumir o risco que era aquele plano.
Alex se apoiou na parede baixa entre a sala e a
cozinha.
— O Setor Três concordou com a ideia de Raquel —
elu contou. — Na verdade, parece que eles gostaram da
ideia de ter o Setor Dez desafiando o Nove.
E aquele era o maior problema do plano, pelo que
Gustavo tinha entendido. Eles precisavam que o Setor
Três concordasse com aquilo, porque se a coisa toda
acabasse virando um conflito entre setores, eles
estariam envolvidos. Ou deveriam estar, por causa da
aliança com o Dez.
Gustavo balançou a cabeça devagar antes de olhar
para as amêndoas de cacau no forno. Ainda ia demorar
um bom tempo até elas ficarem prontas, mas não era
como se ele tivesse mais alguma coisa para fazer depois
de ter dado todas as informações possíveis sobre os
mercenários para Daniele. Ir para a cozinha era melhor
que ficar vigiando seu tablet e esperando até ter alguma
novidade.
— Não estou reclamando — Gustavo falou. — Mas
você sabe que isso tudo é loucura, não é?
Alex suspirou.
— As opções eram te mandar embora deixando claro
que não tem nenhuma ligação com o Setor Dez, ou então
fazer alguma coisa sobre isso.
Ele sabia. Alex já tinha explicado sobre como ele
estar trabalhando para o setor podia mudar como as
Cortes veriam a situação, mesmo que fizesse oito anos
que nem ele nem a família moravam mais ali.
— Ia ter sido mais fácil só me mandar embora — ele
falou.
Alex assentiu.
— Ia.
Uma palavra. Simples assim. Ia ter sido mais fácil,
mas eles tinham preferido a outra opção.
E a pior parte era que ele não podia nem pensar que
tinham escolhido a opção mais complicada porque ele
tinha algo útil a oferecer. Mesmo com todas as pesquisas
e estudos que o Setor Dez estava fazendo, ninguém
tinha lhe perguntado o quanto do monstro ele podia usar
sem perder o controle. Ninguém tinha questionado se
aquilo fazia alguma diferença ou lhe dava a alguma
vantagem.
Não. O Setor Dez tinha escolhido aquilo porque era o
certo. Era o melhor para todo o setor. Depois de anos
entre os mercenários de Silas, saber que alguém ainda
agia daquele jeito era quase demais para Gustavo.
Mas aquilo tudo era preocupação para depois.
— Quais as chances? — Ele perguntou.
Alex riu e deu de ombros.
— Melhores do que você imagina, provavelmente.
Seis meses atrás, nós não tínhamos a menor chance de
parar o Setor Oito. Dani conseguiu dar um jeito.
— E o jeito dela envolveu acordar um vampiro que
tinha passado cinquenta anos preso — Gustavo
completou.
Não só aquilo. Terem os mercenários no setor tinha
feito a diferença, também. Gustavo tinha sido parte dos
grupos que estavam espalhados ao longo da fronteira
com o Setor Seis e por pouco não tinha sido uma das
pessoas nos grupos que enfrentaram os carniçais.
— Funcionou, não funcionou?
Tinha funcionado, mesmo que fosse um plano louco.
E tinha funcionado tão bem que os outros setores
estavam hesitando antes de atacar o Dez, mesmo que
em teoria eles fossem um alvo fácil.
Gustavo se encostou na bancada da cozinha. Ali ele
ainda estava de frente para Alex e só precisava olhar
para baixo para ter certeza de que suas amêndoas não
estavam queimando.
E elu ter mencionado como Daniele tinha achado um
jeito de salvar o Setor Dez levava para outra pergunta.
— Foi por isso que você se aproximou dela? — Ele
perguntou. — Porque ela é a pessoa das ideias loucas,
que nem você?
Alex deu um suspiro pesado e balançou a cabeça.
— Que nem eu era — elu falou. — Porque eu passei
anos fazendo questão de não ser essa pessoa. Se você
falar com Dani, ela ainda não acredita que eu era um dos
pesadelos de Ezequiel.
Gustavo inclinou a cabeça para a frente. Aquilo não
fazia nem sentido para ele. Alex sempre tinha sido a
pessoa dos riscos. E se tinha deixado de ser, era por sua
causa.
— Me desculpe — ele murmurou.
Alex soltou o ar com força de um jeito que era quase
uma risada.
— Mas é até possível que tenha sido por isso, sim —
elu continuou. — Nunca parei pra pensar nisso de
verdade. E meus planos loucos normalmente não
chegam nos pés das ideias de Dani. É mais fácil deixar
ela se virar com essa parte das coisas e me deixar com a
pesquisa.
E Gustavo não ia insistir naquele assunto. Não
importava o tamanho da sua curiosidade, ouvir Alex falar
sobre estar com outra pessoa incomodava mais do que
deveria – especialmente porque ele não tinha o menor
direito de se sentir incomodado.
E se ele não virasse suas amêndoas, elas iam
queimar.
Gustavo pegou uma colher de madeira e se abaixou
para abrir o forno. Talvez ele deveria ter pensado em
outra coisa para fazer, mas tinha achado as amêndoas
de cacau quase esquecidas em um dos armários e tinha
sido tentador demais começar a torrar tudo.
— O que você está fazendo? — Alex perguntou.
— Chocolate.
Ele fechou o forno e colocou a colher de lado de
novo. Com sorte, aquela ia ter sido a última vez que
virava as amêndoas. Mesmo que ele se curasse
depressa, o calor do forno na sua mão era desconfortável
demais.
Gustavo se levantou e parou. Alex estava lhe
encarando.
— Você está fazendo chocolate?
Ele assentiu, devagar. Não era nada demais, era?
Alex olhou para baixo de novo. Não que elu fosse ver
alguma coisa além das bocas do fogão.
Elu balançou a cabeça e olhou para Gustavo de
novo.
— Tem mais coisas que você precisa saber antes de
terminarem de definir qualquer plano.
Se Alex estava começando daquele jeito, não era
boa coisa.
Gustavo cruzou os braços e esperou.
Alex respirou fundo e balançou a cabeça de novo.
— Mais cedo, antes de Raquel me avisar que
estavam indo dar um jeito no reservatório, Dani me
passou o que mais encontraram de informações no
complexo subterrâneo — elu contou.
— E é óbvio que são mais problemas.
Alex deu de ombros e colocou o tablet em cima da
bancada, virado na direção de Gustavo.
— Eles conseguiram recuperar mais informações dos
computadores. As pesquisas que o Setor Quatro estava
fazendo, alguns objetivos do que fizeram...
Gustavo encarou o tablet. Eram vários documentos
abertos nas três telas interligadas e ele não ia nem ser
louco de tentar ler aquilo quando tinha Alex ali. Ele ia
precisar de tempo demais para tentar entender tudo e
chegar perto do que quer que fosse que Alex tinha a
dizer.
Ele virou o tablet de volta para Alex.
— Resumo?
Alex soltou o ar com força e sorriu. Sim, aquilo era
exatamente a mesma coisa que faziam antes de Gustavo
desaparecer e ele sabia muito bem.
— Eles usaram algo dos vampiros como uma forma
de controlar os alterados, sim. Mas não é porque os
vampiros são mais "humanos" nem nada assim. É porque
a magia que está no que faz os vampiros serem o que
são também os prende.
— Prende como?
— Como acha que os vampiros passaram tanto
tempo usando Amon como uma arma?
Fazia sentido. Ele nunca tinha pensado naquilo, mas
até nas histórias que sua família tinha passado era mais
que óbvio que Amon nunca tinha sido um equivalente
dos vampiros de um mercenário.
Alex respirou fundo e balançou a cabeça.
— De acordo com o que encontraram, quando um
alterado era criado existia uma cerimônia para prender
cada um deles ao vampiro que lhes controlaria — elu
continuou. — Era a garantia da Corte que teriam suas
armas e que os alterados não se virariam contra eles.
Um arrepio atravessou Gustavo.
— Presos como?
E era mais a voz do monstro ali do que a voz dele,
mas Alex não parecia se importar.
— Eles chamavam de laço de sangue — Alex contou.
— O alterado bebia o sangue desse vampiro algumas
vezes, até o laço se firmar. E depois disso, quando o
vampiro quisesse obediência, teria. Qualquer ordem que
o vampiro que tinha seu laço desse, o alterado não
conseguiria ignorar.
Gustavo soltou os braços e segurou a borda da
bancada. Ele queria sair dali. Queria espaço para andar,
para correr, qualquer coisa, porque se ele estava
entendendo certo...
— O antídoto era uma forma simples de manter os
alterados humanos, sem precisarem aprender a lidar com
as alterações e os instintos que vinham junto com elas —
Alex continuou. — Porque era mais fácil se os alterados
não soubessem aproveitar conscientemente do que
eram.
Não importava. Não fazia mais a menor diferença,
porque Gustavo só conseguia se lembrar de entrar no
banheiro e ver seu rosto sujo de sangue – o sangue de
Alex.
— E as consequências para quem carregasse esse
laço ou seja lá qual for o termo? — Ele perguntou. — Os
que iam controlar os alterados. O que acontecia com
eles?
Porque se Alex fosse ter mais problemas por causa
daquela mordida...
Elu balançou a cabeça com força.
— Nada. Nada. Pelo menos não em nada do que
encontraram.
Gustavo fechou os olhos e soltou um suspiro
aliviado. Pelo menos isso. Pelo menos ele não tinha dado
mais problemas para Alex por causa do que era.
— Minha teoria é que isso é parte da construção das
alterações — Alex continuou. — Um alterado precisa de
um laço de sangue. E a partir da segunda geração, como
não tinha mais a Corte forçando os laços...
Gustavo encarou Alex de novo. Aquilo fazia mais
sentido do que deveria.
— Sem a Corte da Sombra forçando os laços, o
monstro vai escolher alguém — ele falou.
E era mais que natural que o monstro escolhesse a
mesma pessoa que sempre tinha sido a mais importante
para Gustavo. Era esperado que, se teria alguém com
aquele tipo de poder sobre ele, seria Alex.
Elu assentiu.
— E isso explica o que você estava falando de
“sangue que foi prometido” quando estava perto da
fronteira — Alex completou.
Gustavo se lembrava daquilo – de um jeito distante e
meio apagado, mas se lembrava da sensação de algo
que deveria ser seu mas estava fora de alcance. De estar
esperando permissão, um convite, de certa forma..
— Eu não posso te controlar — Alex avisou, falando
depressa demais. — Uma mordida não é o suficiente.
Seria preciso duas ou três, então é só não...
Ele balançou a cabeça.
— Eu não me incomodaria.
Alex parou, de boca aberta.
— Você não...
Gustavo deu de ombros e desviou o olhar antes de
encarar Alex de novo. Não. Se ia falar aquilo, ia falar
olhando nos olhos delu.
— Eu não me incomodaria — ele repetiu. — Se tem
uma pessoa que eu confiaria pra alguma coisa desse
tamanho, é você. Eu te conheço. Eu sei que nunca
abusaria de alguma coisa assim.
Alex engoliu em seco.
— Você esqueceu que vivia falando que eu era a
pessoa mais cabeça quente que conhecia, não é?
Ele balançou a cabeça.
— A pessoa mais cabeça quente, sim. Mas a pessoa
que mais pensa antes de fazer as coisas, justamente por
causa disso.
E uma parte dele gostava da ideia de ser de Alex
daquela forma. Elu tinha sido um dos maiores motivos
para Gustavo se manter no controle por tanto tempo,
quando ainda eram adolescentes. Era certo que aquilo
não fosse mudar.
Alex abriu a boca para responder e parou quando
seu tablet vibrou.
Elu encarou a tela antes de olhar para Gustavo de
novo.
— Dani tem um plano — elu avisou. — Querem a
gente na mansão o mais depressa possível.
Gustavo se endireitou. Aquilo era muito mais rápido
do que ele esperava.
Alex sorriu.
— Eu disse que Dani é a pessoa das ideias loucas.
Loucas e rápidas, pelo jeito.
Ele desligou o forno e tirou a bandeja com as
amêndoas de lá. Podia ter deixado um pouco mais, mas
era o suficiente. E quando tudo acabasse elas ainda
estariam ali, também.
— Vamos — Gustavo falou.
VINTE E DOIS

Alana fechou a porta do seu quarto e a trancou. Não que aquilo


fosse fazer diferença se um dos vampiros – ou se Lorde
Rafael – quisesse entrar.
Mas o sol vindo das janelas abertas faria, pelo menos
se fosse algum dos vampiros mais fracos.
Ela se sentou na cama e respirou fundo. De manhã o
sol batia exatamente ali e se estivesse em qualquer
outro lugar Alana fecharia a cortina só para conseguir
dormir em paz. Mas, no castelo do Setor Um... Não. O sol
enquanto dormia era exatamente o que ela queria.
Alana tirou o envelope dobrado do seu bolso. Os dois
dias anteriores tinham sido caóticos. Se preparar para
voltar para o Setor Dez queria dizer organizar tudo para
que o que tinha feito ali não desaparecesse
completamente nos seis meses seguintes. Não importava
o que estivesse acontecendo, quem precisava das
plantações do Setor Um eram os humanos que viviam ali,
então Alana ia fazer o possível para garantir que tudo
continuasse como estava. E ainda tinha a estufa...
A estufa que tinha feito Alana questionar todas as
suas certezas sobre Lorde Rafael e ter chegado a pensar
que talvez pudesse confiar nele e que talvez existisse
algo real no interesse dele – só para descobrir aquelas
ordens de pagamento no seu escritório.
E então a mensagem de Dani.
Alana pegou o celular e o colocou em cima da cama,
também. Não ia abrir a mensagem de novo. Era só um
aviso genérico para tomar cuidado e mais nada, mas não
era o normal de Dani. Podia até ser só paranoia da sua
prima por causa da questão de que Alana estava quase
voltando para o Setor Dez. Seria bem a cara de Dani
imaginar todos os problemas que podiam aparecer no
caminho. E talvez fosse exatamente aquilo e Alana só
estivesse pensando que era outra coisa por causa do que
tinha visto no escritório de Lorde Rafael.
Não fazia diferença. Ela ia tomar cuidado. E se Dani e
o pessoal do Dez já tivessem descoberto sobre a ligação
de Lorde Rafael com os ataques do Setor Oito, melhor
ainda.
Mas aquilo tudo queria dizer que Alana ainda não
tinha conseguido um lugar em paz para ler aquela carta
sem chance de ser interrompida. Ela tinha pensado em ir
para o alto da torre, na estufa. Não tinha nenhum lugar
do castelo onde entrava mais sol do que lá. Mas a estufa
tinha alguns humanos que trabalhavam nela – a equipe
que Lorde Rafael tinha conseguido em algum lugar e que
era especializada em cuidar de plantas raras. Alana não
queria correr o risco de ninguém nem ver o que ela
estava fazendo... Não que tivesse algum jeito de
reconhecerem exatamente o que era aquela carta.
Alana encarou a porta de novo e desdobrou o papel
da carta. Ela já sabia que o Setor Dez era mencionado.
Tinha passado o olho no começo do que estava ali,
quando estava sozinha no alto da outra torre, a que era
seu lugar desde que havia chegado no castelo. Tinha
visto o começo dos argumentos de Cassius – o príncipe
do Setor Oito – contra a criação de um setor controlado
por humanos.
Mas ela não tinha imaginado o que mais ia encontrar
ali.
Ela sempre tinha se perguntado por que Lorde Rafael
havia dado permissão para Raquel criar o Setor Dez. O
que ela já tinha ouvido antes fazia sentido, sobre ser
uma forma de recuperar uma parte da região sem os
vampiros precisarem se esforçar, mas era algo que soava
quase "bom" demais para vir dos vampiros. O que Alana
tinha descoberto semanas antes, sobre os vampiros
suspeitarem que a Corte da Sombra tinha deixado
alguma surpresa para trás e não quererem lidar com
aquilo, era uma explicação muito mais plausível. Mas
ainda não era o suficiente.
E aquela carta deixava mais do que claro qual tinha
sido o plano o tempo todo.
Raquel era um risco para os vampiros, por causa do
seu poder. Mas ela já tinha influência demais quando os
vampiros perceberam o que ela podia fazer – aquele
poder que destruía os vampiros. Se tentassem se livrar
dela, iam criar uma mártir e provavelmente criar uma
situação que daria muito mais trabalho que só tentar
controlar o estrago que ela podia fazer.
E que forma melhor de controlar o estrago do que
deixar ela responsável pelo setor que todos imaginavam
que tinha alguma armadilha? E, melhor ainda... Com um
setor sob controle de uma bruxa, aquilo provavelmente
reuniria todos os outros que eram uma ameaça para a
Corte, porque seria o lugar perfeito para se
esconderem... Exatamente como Alana e Dani tinham
feito.
Elas não eram as únicas. Nem todas as bruxas que
tinham ido para o Setor Dez tinham poderes como o de
Raquel ou o de Alana. Mas havia muito mais bruxas ali do
que era normal. E, mesmo que não fosse um caso de
terem força bruta para desafiar as Cortes, tinha pessoas
demais ali que não queriam lidar com os vampiros. Que
eram contra a forma como controlavam o mundo e o
sistema das Cortes e setores.
Lorde Rafael tinha autorizado a criação do Setor Dez
porque seria uma forma simples de reunir um grupo
grande de inimigos em potencial num lugar só. E, quando
tivesse uma quantidade suficiente deles reunidos, seria
muito mais fácil matar todos de uma vez, do que tentar
encontrar cada uma daquelas pessoas espalhadas em
outros setores.
O Setor Dez tinha sido criado para ser destruído e
mais nada.

Alex encarou as paredes do complexo de Silas, mais para a frente.


O sol estava começando a se pôr e não havia mais nada
ao redor de onde estavam além da terra batida da
estrada e o mato baixo e amarronzado que ainda tentava
crescer em alguns lugares do Setor Nove, com uma ou
outra árvore baixa e de tronco retorcido aparecendo de
vez em quando. Alex sabia que aquilo era o normal para
a maioria dos setores, mas ainda era estranho olhar ao
redor e não ver as árvores grandes e o verde das plantas.
E aquilo não importava. Já estavam quase chegando
no complexo dos mercenários, e iam chegar dentro da
janela de tempo que precisavam. Agora, só precisavam
torcer para o restante do plano dar tão certo assim.
O plano era típico de Dani: louco. Mas Alex
concordava que era a melhor opção, por mais arriscado
que fosse, porque qualquer coisa que tentassem fazer
seria arriscado. E, mesmo que os mercenários
estivessem preparados para lidar com Gustavo, não
teriam como lidar com vampiros.
Na noite anterior, logo depois da reunião na mansão,
Gustavo tinha entrado em contato com Silas e avisado
que tinha a localização de duas “surpresas” que o Setor
Quatro tinha deixado para trás depois de ser destruído.
Era perto o suficiente da verdade e Gustavo tinha dado
detalhes o suficiente para ter ao menos chamar a
atenção de Silas e ganhar um pouco de tempo.
E Gustavo também tinha avisado que não estava
voltando para o Setor Nove sozinho. Se ele ia entregar as
informações, então tinha uma pessoa que ele fazia
questão de tirar do Setor Dez antes que aquilo fosse
usado.
Era óbvio que o comandante dos mercenários tinha
amado a ideia de ter mais uma pessoa que poderia usar
para controlar Gustavo, do mesmo jeito que já usava sua
mãe e sua irmã. Alex tinha feito questão de ver aquelas
mensagens, não por desconfiança, mas só para se
lembrar exatamente de com que tipo de lixo humano
estava lidando. E “lixo humano” ainda era pouco para
descrever Silas.
O que estavam fazendo era arriscado. Gustavo e
Alex iriam direto para o complexo, porque elu precisaria
garantir que não havia nenhuma armadilha ou magia
prendendo a família de Gustavo. E mais ninguém iria
junto, porque levar mais uma pessoa seria o suficiente
para os mercenários terem certeza de que era uma
armadilha. Os reforços só chegariam depois que
escurecesse – Amon e Eric, que tinha se oferecido para
ajudar, e que usariam velocidade vampírica para chegar
lá.
Assim que anoitecesse, Raquel entraria em contato
com o príncipe do Setor Nove, para pedir que a família de
Gustavo fosse mandada de volta para o Dez. Aquilo era
só formalidade e política, porque ninguém tinha a menor
dúvida de que ele fosse só rir de um pedido daquele tipo.
Mas seria o suficiente para dizerem que o Setor Dez tinha
tentado resolver tudo da forma mais civilizada possível.
E, antes que o príncipe tivesse uma chance de avisar
Silas sobre a ligação de Raquel – porque Gustavo tinha
confirmado que o príncipe teria o contato do comandante
dos mercenários – o grupo no complexo daria um jeito de
tirar a família de Gustavo dali e escapar.
Alex respirou fundo e encarou as paredes mais para
a frente de novo. Gustavo tinha desenhado como era o
complexo por dentro e elu tinha certeza de que se
lembrava de tudo que era importante. E o plano era
simples, em teoria. Só era arriscado demais... Não que
Alex conseguisse pensar em alguma opção melhor.
— Tudo bem? — Gustavo perguntou.
Alex assentiu, sem parar de andar. Elu era o ponto
mais fraco daquele plano, porque era praticamente civil.
Se o pior acontecesse, Gustavo ainda teria que se
preocupar com elu além de tudo. Mas Alex não podia não
ir e havia sido Melissa quem tinha dado aquele aviso.
Não era incomum que mercenários usassem bruxas para
prender pessoas e, na maioria das vezes, era impossível
notar algo do tipo até que fosse tarde demais.
Gustavo não perguntou de novo e era melhor assim,
porque não estava nada bem. E, se Alex falasse qualquer
coisa daquele tipo, era bem possível que ele só desistisse
de tudo para lhe proteger. Não.
O portão do complexo estava aberto. Pelo que
Gustavo tinha contado, era a única entrada pública do
lugar. Existia outra saída, com certeza, mas os
mercenários comuns não tinham acesso a ela. Então era
com o portão que precisavam se preocupar – e com as
paredes, depois que os vampiros chegassem, porque
provavelmente teriam que pular os muros para sair.
E não tinha ninguém vigiando o portão. Pelo menos,
ninguém que elu conseguisse ver. Alex e Gustavo
entraram sem o menor problema e ele continuou
andando, ignorando os mercenários espalhados pelo
espaço aberto. Aquele lugar só fazia Alex pensar na
praça que a força de defesa usava para treinar, no Setor
Dez. Era só um espaço cimentado, com algumas marcas
no chão que elu não sabia o que queria dizer, cercado
pelos muros.
A parte principal do complexo ficava bem na direção
da entrada, depois da “praça”: três galpões grandes, um
ao lado do outro. Um deles funcionava como dormitório e
os outros como áreas comuns – e ainda tinha uma boa
quantidade de salas subterrâneas, também. Tinha sido
numa delas que Gustavo havia passado dois anos preso.
Um homem saiu do galpão central e parou,
esperando. Ele era alto, quase da altura de Gustavo, com
o cabelo castanho puxado para trás e uma mecha
vermelha bem no meio da cabeça. Silas. Yuri tinha feito
questão de lhe mostrar as imagens que tinha dele, de
quando o mercenário tinha tentado ser aceito no Setor
Dez. E ele era totalmente o estereótipo de um
mercenário: vestindo couro preto com correntes e
detalhes em metal, uma tatuagem descendo pelo
pescoço e uma expressão pesada e vazia ao mesmo
tempo.
— Se eu soubesse que só precisava de algumas
ameaças para fazer você ir atrás de informações, não
teria esperado esse tempo todo — Silas falou assim que
se aproximaram.
— E ia ter ficado sem nada, porque precisei de
tempo pra conseguir a confiança deles — Gustavo
respondeu. — Onde elas estão?
O comandante dos mercenários balançou a cabeça
devagar.
— Não é assim que funciona e você sabe. Não vai
me apresentar a pessoa que fez tanta questão de tirar do
Setor Dez?
Um arrepio atravessou Alex. Elu estava certo quando
tinha pensado que Silas era lixo humano. A forma como
ele tinha lhe encarado chegava a ser incômoda de um
jeito que elu nunca tinha sentido antes – como se Alex
fosse só um objeto e mais nada.
Gustavo deu um meio sorriso gelado que Alex nunca
tinha visto antes e que fazia elu pensar no monstro.
— Não — Gustavo respondeu. — Elu não vai se juntar
aos mercenários de jeito nenhum, então você não precisa
de mais nada. E eu quero saber onde minha família está.
Se não tenho nem uma garantia de que elas estão bem,
então prefiro procurar outra pessoa pra vender essas
informações diretamente.
Silas riu e se virou de costas, indo para dentro do
galpão.
— Seis meses fora e você já está pensando que pode
dar ordens. Mas não seja por isso. Sua família está bem,
por enquanto...
Gustavo colocou uma mão nas costas de Alex antes
de começar a andar na mesma direção que Silas. A ideia
era tentarem ficar em espaço aberto o máximo de tempo
possível, mas pelo visto não tinha como. Se insistissem
em ficar lá fora seria estranho demais.
Alex respirou fundo antes de passar pela porta larga
do galpão e parar. Era uma área de treinamento. As luzes
fortes no teto já estavam acesas – provavelmente
sempre estavam acesas, porque aquele galpão não tinha
janelas. Para a direita tinha vários bonecos e sacos de
areia, e mais para o fundo da sala um espaço estava
cercado por cordas grossas. Um ringue de luta. Duas
pessoas estavam dentro do ringue, com mais outras
tantas nos sacos e bonecos. O lado esquerdo do galpão
tinha equipamentos e pesos, e mais outras tantas
pessoas treinando.
Gente demais. Quando aquilo saísse de controle –
porque ia sair – Alex não fazia ideia de como iam
conseguir sair do galpão de novo. E muito menos sair do
complexo.
— Eu estou falando sério, Silas — Gustavo avisou,
com o começo de um rosnado na voz. — Você fez
ameaças o suficiente. Não vai ter nada até eu ter certeza
de que elas estão bem.
Outro arrepio atravessou Alex. O monstro estava
perto demais de assumir o controle e elu não sabia como
tinha tanta certeza.
O comandante dos mercenários balançou a cabeça,
como se não tivesse nenhum motivo para se preocupar,
antes de começar a andar na direção de onde os pesos e
equipamentos estavam. Não. Ele estava andando na
direção de outra porta, na lateral do galpão.
Ninguém parou o que estava fazendo. Alguns
mercenários se viraram para olhar enquanto estavam
passando, mas ninguém falou nada. Ninguém gritou ou
cumprimentou Gustavo – e aquilo era diferente demais
de tudo o que Alex já tinha visto sobre como mercenários
agiam para ser um problema, também.
A porta lateral dava para o galpão do lado – um dos
que tinha janelas. As luzes fortes também estavam
acesas do lado de fora estava escurecendo depressa.
Pelo que Alex conseguia ver, a área lá fora já estava
praticamente vazia e havia uma névoa fraca cobrindo o
chão. Estranho.
O poder ao redor de Gustavo pulsou e Alex parou,
prestando atenção no galpão. Era um depósito de armas
misturado com área de treinamento, também. Havia
prateleiras espalhadas com mais tipos de facas do que
elu conseguia reconhecer, algumas armas de tiro,
também – incluindo umas tantas balestras. Nenhuma
arma a laser, pelo menos... Não que aquilo fizesse tanta
diferença.
Silas continuou andando. Gustavo o acompanhou,
ainda com a mão nas costas de Alex lhe forçando a ir
junto. Não que elu fosse ficar para trás. O outro lado do
galpão parecia ser uma área de tiro, com os alvos que
Alex estava acostumade a usar e bonecos, também.
E havia uma estrutura de metal no meio de tudo que
elu não tinha certeza de para que servia. Era quase como
se fosse um obstáculo, algo para quem estava treinando
esconder atrás... Mas não fazia sentido porque não
parecia ser uma peça inteira de metal. Eram grades ali,
com uma pilha de algo no chão.
Não. Não era uma pilha de algo. Era alguém. Eram
Cláudia e Brenda deitadas no chão, tentando ocupar o
mínimo de espaço possível e sem se mover.
Gustavo parou, mas continuou com a mão nas costas
de Alex. Elu conseguia sentir exatamente quanto o poder
dele estava pulsando.
Eles tinham colocado a mãe e a irmã dele em uma
jaula e as deixado no meio de uma área de treino de tiro,
como um obstáculo para os mercenários treinando.
Silas ia morrer e seus mercenários também. Não
importava o que Alex precisasse fazer.
O comandante dos mercenários parou ao lado da
jaula e bateu na placa de metal que era o teto.
— Como disse, elas estão bem. Talvez não na melhor
das acomodações, mas bem, por enquanto. Por quanto
tempo vão continuar seguras vai depender de até onde
você está disposto a ir com essa ideia de quebrar nosso
acordo.
A porta do galpão se fechou com uma batida.
Alex respirou fundo, se forçando a se controlar. Não
ia entrar em pânico. Não podia. A possibilidade de que
Silas os prenderia em algum lugar tinha sido
mencionada. Elu sabia que aquilo ia acontecer. Sabia que
teriam ameaças e tudo mais.
E Alex daria qualquer coisa para estar com sua
balestra.
Silas se afastou da jaula e foi na direção de uma das
prateleiras com armas de tiro.
— Você ao menos tem alguma informação útil para
mim, ou foi tudo uma mentira? — Ele perguntou.
Gustavo não respondeu.
O mercenário pegou uma balestra minúscula – um
dos modelos feitos para serem usados presos no braço,
provavelmente. Alex nunca tinha prestado atenção neles
porque não gostava da ideia de como elas eram
posicionadas.
Silas atirou. A flecha fez um ruído metálico quando
bateu na parte de cima da jaula e Brenda soltou um grito
abafado antes de cobrir a cabeça com as mãos.
Alex segurou o braço de Gustavo quando ele tirou a
mão das suas costas e deu um passo na direção do
mercenário. Não ia adiantar nada. Atacar agora só seria
um risco maior porque elu tinha quase certeza de que
tinha mais mercenários no galpão. Elu só não ia se virar
para ter certeza.
— Minhas informações? — Silas repetiu.
Gustavo respirou fundo. Alex sentiu algo se mover
sob a pele dele, como se ele estivesse se forçando a não
transformar.
— Não vou errar a próxima flecha — ele avisou.
Alex enfiou as unhas no braço de Gustavo. Ele
precisava fazer alguma coisa. Dar algum tipo de
resposta, qualquer coisa. Mas parecia que estava travado
no lugar.
Então elu ia falar.
— Os vampiros deixaram o Setor Dez existir porque
não queriam se dar ao trabalho de descobrir se o Setor
Quatro tinha deixado alguma surpresa pra trás — Alex
começou. — Porque fazia sentido eles deixarem alguma
coisa pra destruir quem tentasse pegar o território que
era deles. E eles deixaram.
Silas sorriu de um jeito que quase parecia relaxado,
mas a balestra ainda estava apontada para a jaula.
— Isso não é nada que eu não sei.
Não era. E Alex não sabia até onde podia ir sem
estragar as chances que tinham.
— Mas não sabe o que são essas “surpresas” — elu
falou. — E nem onde estão. Nós sabemos.
— Sabem, ou estão inventando alguma coisa para
conseguir o que querem?
Não tinha como ele saber que tinham se livrado do
poder no reservatório. Pouca gente sabia sobre aquela
água e menos gente ainda sabia sobre o que Valissa
tinha feito.
E tinha uma névoa fina se espalhando pelo chão do
galpão, também. Aquilo não era bom. Qualquer coisa
inesperada era um problema em potencial,
especialmente porque Alex ainda estava sentindo o
poder de Gustavo pulsando. Ele estava quieto daquele
jeito porque estava tentando se forçar a se controlar. A
qualquer instante, o controle ia desaparecer.
— Eu trabalho com provas, Gustavo — Silas falou. —
E você sabe disso. Se não tem provas para mim...
As luzes se apagaram ao mesmo tempo em que
alguém gritou.
VINTE E TRÊS

Gustavo sentiu o aperto dos dedos de Alex no seu braço, mas a


sensação era distante. Ele estava ouvindo a respiração
ofegante de alguém, como se fosse alguém tentando não
fazer barulho – e tinha quase certeza que era Brenda, do
mesmo jeito que tinha certeza que tinha sido ela quem
tinha gritado.
Mas ele não conseguia ver, mesmo que sua visão
noturna fosse quase tão boa quanto a de um vampiro.
Aquela escuridão não era natural.
— Faz o que você precisa fazer — Alex murmurou.
Ele respirou fundo. O que precisava fazer era deixar
o monstro assumir o controle e destruir tudo daquele
complexo até que não sobrasse mais ninguém. Pintar as
paredes com o sangue dos que tinham pensado que
poderiam prendê-lo e ferir as pessoas que eram dele.
Mas se ele fizesse aquilo, não teria volta. Ele
entendia agora – se deixasse o monstro assumir o
controle quando estava daquele jeito, não teria nenhum
resto de consciência para depois e Gustavo queria um
depois. Queria ter uma chance do que nunca tinha
pensado que teria.
Silas riu e alguém fez um som baixo que parecia um
gemido de dor.
— Se esconder não vai adiantar — o mercenário
falou.
Ele não estava se escondendo. Se Silas pensava que
apagar as luzes faria alguma diferença...
Alex apertou seu braço de novo antes de o soltar.
Gustavo ouviu o som fraco de uma faca sendo
puxada e o cheiro do sangue o cercou.
Não. Ele estava se mantendo no controle por um fio,
se aquilo...
— Faz o que precisar — Alex repetiu, ainda em voz
baixa. — Eu vou te trazer de volta, não importa o que
aconteça. E você não vai me ferir.
Não ia, porque um alterado nunca feriria a pessoa
que tinha seu laço de sangue.
E o cheiro do sangue era um ímã, um convite.
Não era um risco.
Era elu para Gustavo, desde sempre. E se alguém
fosse ter controle sobre ele... Sempre seria Alex.
Gustavo esticou uma mão e segurou o braço de Alex.
O cheiro era mais que o suficiente para ele se localizar,
mesmo que não conseguisse ver nada na escuridão
artificial.
Alguém gritou, do lado de fora do galpão. Alguém
atirou – mais de uma pessoa, provavelmente, e dentro do
galpão. Mas estava escuro demais para qualquer um
conseguir ver.
E o braço de Alex estava sangrando. Estava
sangrando o sangue que deveria ser seu.
Gustavo abaixou a cabeça e bebeu.

Alex fechou a mão com força quando Gustavo soltou seu braço.
Elu não precisava ver para saber que o corte tinha se
fechado do mesmo jeito que a mordida no seu pescoço,
dias antes. Mas um resto da dor ainda estava ali e aquilo
era melhor que o medo.
Elu não conseguia ver nada. Gustavo ainda estava
perto e a respiração dele estava pesada de um jeito que
fazia arrepios atravessarem Alex. Era o monstro ali, sim.
E, por mais que elu ainda acreditasse que não era uma
criatura diferente ali, elu entendia por que Gustavo fazia
tanta questão de insistir naquela diferença. Alex estava
sentindo o suficiente do poder ao redor dele para
entender o que ia acontecer ali.
A escuridão artificial pareceu se mover. Não. Era só
Gustavo se afastando, se movendo sem fazer nenhum
ruído enquanto procurava sua presa.
Algo bateu na porta do galpão com um ruído
metálico. Alguém gritou – várias pessoas gritaram.
E Alex continuava sem conseguir ver nada ao seu
redor. O que quer que estivesse acontecendo...
Um som agudo passou perto demais de Alex e elu se
abaixou. Aquilo tinha sido uma flecha. Silas,
provavelmente. O mercenário ainda estava ali, óbvio. Só
tinha parado de falar, também, porque a situação tinha
mudado. Falar seria entregar sua posição.
Alex precisava sair dali. Não. Precisava achar a jaula
com a mãe e a irmã de Gustavo e tirar elas dali. Aquele
era o motivo para estar ali. Era a única razão para ter
ido, também.
Uma mão gelada segurou o pulso de Alex e abaixou
sua mão com tanta força que elu tinha certeza que não
ia conseguir se soltar. A ponta da faca que elu ainda
estava segurando encostou no chão.
— É melhor sair do caminho — Amon murmurou.
Amon. Amon e escuridão.
As luzes se apagando não tinham sido Silas, então.
Tinha sido ele, mesmo que não fosse o plano.
Alex assentiu.
Amon começou a lhe puxar devagar, sem se
levantar. Alex o seguiu. Se aquela escuridão era dele,
então ele provavelmente conseguia ver onde estavam e
para onde estavam indo.
A porta do galpão se abriu e bateu contra a parede.
Alex se abaixou ainda mais, mas Amon não parou de se
mover. O barulho de passos se espalhou, enquanto mais
mercenários entravam ali. O som de armas sendo
carregadas e instruções murmuradas – não que fossem
adiantar muita coisa naquela escuridão.
E Amon ainda estava andando. Mesmo que
estivessem indo devagar, não estavam tão longe da jaula
onde Cláudia e Brenda estavam presas. Mas Alex não ia
falar nada com tanta gente entrando ali e elu sendo a
única pessoa que não tinha experiência em missões.
A escuridão desapareceu e estavam de volta no
galpão com as luzes fortes.
Alex apertou a faca com força e olhou ao redor.
Estavam bem mais para a frente no galpão, perto da
parede dos fundos. A jaula estava bem na sua frente –
um dos vampiros devia ter a levado para lá – com
Cláudia meio jogada por cima de Brenda. E Brenda
estava fazendo um som baixo que era quase um gemido
de dor sempre que respirava.
Eric estava parado ao lado da jaula, segurando uma
das grades. Aquilo não tinha sido feito para prender
vampiros, então era óbvio que não teria prata. E se
fossem colocar prata o suficiente em grades para ferir os
vampiros mais velhos, o metal ia ficar fraco demais.
Alex ouviu um som molhado um instante de alguém
gritar. E logo depois um som metálico, como se alguém
tivesse jogado algo em uma das prateleiras de armas
que elu não conseguia ver.
Nada. Não havia nada ali. Era só Eric ao lado da jaula
e Amon um pouco na sua frente, nas luzes fortes de
quando Alex tinha entrado no galpão. Mas, se elu olhasse
para trás...
Era uma nuvem de escuridão se espalhando por toda
parte, mais fina no alto, mas tão densa na altura em que
estavam que quase parecia sólida.
— Não conheço Gustavo o suficiente para separá-lo
dos outros mercenários — Amon falou. — O máximo que
posso fazer é manter a escuridão.
Alex engoliu em seco e se levantou devagar. Elu
sabia o que Amon podia fazer, como as sombras eram
capazes de enlouquecer qualquer um dentro delas.
Ele não ia fazer nada. E Gustavo não precisava de
ajuda, se os sons molhados que Alex ainda estava
ouvindo serviam de indicação. Aquilo era Gustavo. O
monstro estava caçando na escuridão, porque ele não
precisava de luz.
— Alexa.
Elu se virou depressa. Cláudia tinha levantado a
cabeça e estava lhe encarando.
— É Alex agora — elu falou por puro hábito antes de
ir para perto da jaula. — O que...
— Uma flecha acertou Brenda — a mãe de Gustavo
contou. — Ainda está no lugar, mas...
— Deixe onde está. Temos que tirar vocês daqui
primeiro.
— Tem algo reforçando as grades — Eric avisou.
Alex se virou para ele e estreitou os olhos. Agora a
forma como ele estava segurando uma das grades fazia
sentido. Um vampiro deveria ter força o suficiente para
abrir aquilo.
Aquele era o motivo para elu estar ali. Exatamente
aquilo.
Alex respirou fundo e se concentrou. Havia poder ao
redor da jaula, sim, construído de uma forma que elu já
tinha visto antes. Era exatamente o que Eric tinha falado:
algo reforçando o metal.
Mais gritos – e depois um rosnado que Alex já
conhecia.
Elu não podia prestar atenção naquilo.
— Eu não consigo desfazer magia — Alex avisou.
— Eu consigo, se você disser onde — Eric falou.
Agora fazia mais sentido Dani ter ficado tão satisfeita
quando ele tinha se oferecido para ajudar.
Uma mulher saiu do meio da escuridão. Uma
mercenária, pela forma como estava vestida e
carregando uma balestra.
Alex levantou sua faca depressa e Amon segurou seu
pulso de novo.
— Lara está conosco.
Lara... A mercenária que era um dos contatos de
Dani no Setor Seis. E que, até onde Alex sabia, era
humana. Então como ela tinha ido para o Setor Nove
acompanhando dois vampiros que tinham usado a
velocidade deles para correr do Dez até ali?
A mercenária tirou a balestra das costas e a ofereceu
para Alex.
— Dani falou que ia ser melhor trazer isso — ela
contou.
Porque era uma das suas balestras ali.
Alex pegou a balestra. Lara tirou a aljava presa na
sua perna e passou para elu, também, antes de se virar
para Amon.
— Vai fazer sua parte — ela falou. — Eu dou
cobertura aqui.
Amon sorriu, mostrando as presas, e desapareceu na
escuridão.
Alguém gritou, não muito longe de onde estavam.
Algo riu, com um som que não tinha nada de humano.
Gustavo.
O barulho de tiros, mais gritos, e depois nada por
alguns segundos.
— Alex? — Eric chamou.
Elu respirou fundo e se concentrou de novo. Aquele
reforço era feito de pontos de poder que precisavam ser
desativados um a um.
Um mercenário saiu cambaleando da escuridão, indo
na direção deles.
Lara se moveu antes de Alex entender o que estava
acontecendo. O mercenário gritou um instante antes da
mulher passar uma faca pelo seu pescoço e o jogar para
dentro das sombras de novo.
Certo. Ela ia dar cobertura. Alex e Eric precisavam
abrir a jaula. Nada demais.
Elu apontou um ponto no alto da jaula. Eric fez um
corte na própria mão e deixou seu sangue pingar no
lugar, murmurando alguma coisa baixo demais para Alex
conseguir ouvir.
Mais gritos, vindos do lado de fora. Aquilo
provavelmente tinha sido Amon.
O primeiro ponto de poder desapareceu. Alex indicou
o próximo e levantou sua balestra. Se mais algum
mercenário saísse ali, elu não ia depender só de Lara
para se defender.

O monstro levantou a cabeça e respirou fundo. Sangue, sim.


Muito sangue e sangue que era seu por direito – mas não
para ser consumido. Aquele sangue era um pagamento.
Um dos mercenários ainda estava tentando fugir. Ele
estava se arrastando devagar, depois de sair de debaixo
de um dos armários de armas que tinham caído. Não
importava. O monstro sabia exatamente onde cada uma
das suas presas estavam. Na escuridão, não tinha nada
que pudessem fazer para escapar.
Ele foi na direção do mercenário, sem fazer barulho.
Alguns deles ainda estavam vivos – não por muito tempo,
mas estavam. E os ruídos que eles faziam eram mais que
o suficiente para esconder os movimentos do monstro.
Os gemidos baixos e as respirações entrecortadas
enquanto ainda conseguiam fazer algum som.
O monstro se abaixou e segurou o tornozelo do
mercenário tentando se arrastar para longe. O homem
chutou antes de se virar. O monstro sentiu uma pontada
de dor no peito. Uma flecha. Pena que era uma flecha de
ponta comum.
Ele arrancou a flecha e a jogou para o lado. Não era
a primeira vez que o acertavam e nem seria a última.
Mas aquelas armas nunca o feririam – não quando era
ele ali, com a sua pele real. Ele tinha sido feito para
sobreviver a qualquer coisa que usassem.
As luzes se acenderam de uma vez.
Não. A escuridão tinha desaparecido. Era diferente.
O monstro fechou os olhos com força e puxou o
mercenário na sua direção. O homem tinha pegado uma
faca de algum lugar e estava tentando lhe cortar, mas
não ia fazer diferença, também. Não quando era o
monstro ali, e não seu lado humano.
Ele abriu os olhos de novo. Agora conseguia ver
normalmente. Bom, porque ele queria ver a dor no rosto
daquele mercenário.
O monstro enfiou as garras no torso do mercenário.
O homem gritou, ao mesmo tempo em que ainda tentava
acertá-lo com a faca.
Aquilo era cansativo.
Ele segurou o pulso do mercenário e o esmagou. O
homem gritou, de novo.
Melhor, muito melhor.
— Ninguém toca no que é meu — o monstro falou. —
Ninguém fere quem está sob a minha proteção.
E, se ferissem, pagariam.
Ele enfiou as garras mais fundo no corpo do
mercenário, sentindo os tecidos delicados dentro do seu
corpo se rasgando um a um.
Alguém se aproximou.
Não “alguém”. Alex.
O monstro se virou, devagar.
Alex tinha parado a alguns passos de distância, só
olhando enquanto ele ainda tinha suas garras no corpo
do mercenário. O braço delu estava sujo de sangue, mas
aquilo era certo. Era de onde o monstro tinha bebido,
antes. E elu não tinha nenhum ferimento.
— Acabou — Alex falou. — É hora de voltar.
Sim. Ele tinha feito seu trabalho. Tinha cobrado seu
preço. Ele podia voltar a dormir.
O monstro se levantou devagar, enquanto o
mercenário no chão ainda estava gritando.
Alguém atirou e o mercenário se calou.

Gustavo piscou e encarou Alex. O braço delu estava sujo de


sangue, mas...
Ele estava sujo de sangue. Coberto de sangue, na
verdade, e quase nada era dele. A última coisa que
Gustavo se lembrava era das luzes se apagando, mas
estava tudo claro de novo, como sempre nos galpões de
treinamento...
O que não estava como sempre era como tudo
estava coberto de sangue e pedaços dos mercenários. A
prateleiras de armas, a maioria derrubadas e com coisas
que ele não queria prestar atenção no que eram por toda
parte. Ele sabia do que o monstro era capaz. Sempre
soubera. Tinha sido por isso que sempre havia feito tanta
questão de se controlar.
Mas Alex estava bem. E sua mãe estava de pé ao
lado do outro vampiro – Eric – que estava carregando sua
mãe.
— Se você desmaiar a gente vai ter um problema,
porque Brenda já não está em condição de sair andando
— Alex avisou.
Nada. Nenhum sinal de que o que tinha acontecido
ali tinha sido um problema. Nenhum sinal de que elu
tinha se assustado com o que o monstro podia fazer. Só
um comentário até casual.
— Não vou — ele falou.
Alex deu alguns passos na sua direção.
— Ótimo.
VINTE E QUATRO

Alana respirou fundo e olhou ao redor de novo. A estufa era


perfeita. Era tudo que ela podia ter sonhado em ter, mas
que nunca teria imaginado que era possível. E ela não
conseguia imaginar os custos necessários para manter
aquilo. O solo que havia sido importado de regiões
diferentes do mundo, os nutrientes sintetizados para
complementarem o que a magia havia destruído, os
sistemas de irrigação, ventilação e temperatura
calibrados com um nível de cuidado que era quase
irreal...
Porque era. Aquilo tudo era uma mentira.
E ela sabia, desde o começo. Alana sempre tinha tido
certeza de que tudo que Lorde Rafael estava fazendo era
a mais pura manipulação. Não importava o quanto
parecia bom ou como ela sabia que podia ter tudo que
sempre tinha sonhado. Nada era real. Aquilo só existia
porque ela era uma peça nos planos dele.
Os planos que, desde o começo, incluíam destruir o
Setor Dez.
E Lorde Rafael estava atrás dela.
Alana se virou, devagar, e o encarou. Não tinha nada
de diferente. Era o mesmo estilo de roupas desde a
primeira vez que ele tinha aparecido no seu quarto. O
mesmo cabelo para trás. A mesma postura. E, o tempo
todo...
— A verdade — ela começou.
Ele assentiu, devagar.
— Onde você estava naquelas três semanas depois
do casamento? — Alana perguntou.
Nenhuma reação. Mas ele era um vampiro. Ela não
podia esperar que ele reagisse como um humano. E
Lorde Rafael provavelmente tinha se preparado para
quando ela descobrisse a verdade, porque seria
impossível esconder aquilo.
— Tem certeza de que quer essa resposta?
— Tenho.
Ele inclinou a cabeça daquele jeito dos vampiros –
tão depressa que ela não tinha conseguido ver o
movimento entre o movimento.
— Eu estava no Setor Oito, negociando novos
acordos — Lorde Rafael falou.
— Novos acordos, porque eles não conseguiram
fazer o que te prometeram — Alana falou. — Eles não
conseguiram destruir o Setor Dez.
Ele assentiu devagar.
— Sim.
Alana respirou fundo. Ela tinha esperado ser
enganada. Desde o começo, tinha certeza que tudo era
manipulação. Mas não tinha esperado por aquilo. Que era
o Setor Um por trás do ataque no Dez.
— Qual a diferença entre você e todos os outros que
fizeram alguma oferta para me ter nos seus setores? —
Ela perguntou.
Lorde Rafael sorriu. Alana já tinha visto aquele
sorriso vezes demais, mas agora ele tinha um tom
macabro que ela nunca havia notado antes.
— A diferença é que eu consegui o que queria.
Um arrepio atravessou Alana e ela fechou a mão
com força. Sim. Aquela era a única diferença. Ele tinha
conseguido enganá-la bem o suficiente para que
estivessem ali. E ela não era louca a ponto de quebrar
um acordo feito com um vampiro. Se tentasse fazer
aquilo, era bem possível que o resultado fosse pior.
— Espero que não esteja contando com nada além
do que está no nosso acordo — ela avisou. — Porque não
vai ter uma linha além do que está lá.
Lorde Rafael inclinou a cabeça e colocou uma mão
no rosto dela. O toque dele era delicado, sedutor até. E,
infelizmente, já era familiar o suficiente para Alana ter
começado a pensar que pudesse ser real. Pura estupidez.
— Eu poderia te dar o mundo, Alana — ele
murmurou.
"Alana". Não "bruxinha", como era mais comum ele
usar.
Bom. Ele estava entendendo o recado.
— E acha que eu ia querer o mundo que você tem
para me oferecer?
Ele não respondeu.
Ela passou por ele e saiu da estufa sem falar nada.
Era hora de voltar para casa.
VINTE E CINCO

Alex encarou o relógio na parede da sua sala pela sexta vez em


quatro minutos. Aquilo já estava ficando ridículo – sua
ansiedade, no caso. Elu tinha chegado a pensar que,
depois do caos que tinha sido aquela ida no Setor Nove,
elu ficaria mais relaxade sobre coisas cotidianas. E não
podia ter se enganado mais, porque não tinha feito a
menor diferença.
Mas a questão era que Alex tinha feito parte de uma
incursão em outro setor, e uma incursão que tinha dado
certo, apesar de tudo. Elu tinha visto Gustavo abrir a
barriga de Silas com as próprias mãos – garras, na
verdade – e não tinha nem se surpreendido. E também
não tinha se assustado ou se surpreendido com o sangue
e o que havia sobrado dos outros mercenários,
espalhados pelo galpão.
O tempo todo enquanto estavam saindo de lá, Alex
estava esperando o choque, o pânico, qualquer coisa,
porque não fazia sentido elu só ver aquilo e não se
importar. Mas não tinha acontecido nada. E não era um
caso de “não se importar”. Era mais aceitar. Alex tinha
estudado o passado por tempo demais para ter alguma
ilusão sobre como o mundo era – e que às vezes aquele
tipo de violência era exatamente o que era necessário.
Tanto era que o Setor Nove não tinha retaliado. Já
fazia duas semanas desde aquilo e não tinham visto
nenhum sinal de movimentação. Até onde Alex tinha
ficado sabendo, o príncipe do Nove tinha falado algo
sobre ser uma pena os mercenários terem raptado
alguém de outro setor, e deixado naquilo mesmo. Era
exatamente a reação que Raquel havia esperado, porque
qualquer outra coisa seria uma declaração de guerra.
O que não queria dizer que aquilo não traria
problemas a longo prazo, ainda mais considerando como
os outros setores já tinham mudado a forma como
lidavam como o Dez. E aquilo era a parte que mais
importava para Alex.
Elu olhou para o relógio na parede de novo. Era um
modelo analógico, de antes da volta da magia, e que
tinha sido presente do seu pai logo que elu tinha se
mudado para aquela casa, que ficava mais perto do seu
trabalho. Seis e vinte e dois. Quanto tempo alguém
demorava da mansão até a cidade? Com certeza não era
mais de meia hora – e elu sabia que a reunião de
Gustavo ia terminar no máximo quinze para as seis.
Alex se jogou em um dos sofás e pegou seu tablet.
Elu não precisava nem ligar a tela para ver o texto da
última mensagem que tinha recebido. Era a oportunidade
que elu tinha pensado tinha jogado fora de vez: um
convite para trabalhar oficialmente como especialista
para o setor.
O termo era vago, sim, mas era como Alex preferia.
Quanto menos pessoas soubessem que elu podia sentir
poder, melhor – porque queria dizer que lhe
subestimariam. Era melhor deixar quem não sabia
pensar que elu era só especialista em história da região e
mais nada.
Alex ia aceitar, sem a menor sombra de dúvida. Não
adiantava nada tentar negar que elu tinha gostado de
estar na ativa junto com os outros. Estar nas ruínas e na
cidade velha, os estudos sobre o complexo subterrâneo e
até o caos no Setor Nove... Era como se elu tivesse
descoberto uma parte de si que estava faltando.
Mas elu não queria fazer aquilo sozinhe. O plano
nunca tinha sido aquele.
O sensor na entrada da sua casa deu um apito baixo
e o monitor na parede ao lado da porta da sala acendeu,
mostrando Gustavo parado no portão. Alex podia ter se
afastado da força de defesa, mas um dos motivos para
ter escolhido aquela casa tinha sido justamente o
sistema de segurança.
Elu se levantou e saiu para abrir o portão que dava
para a rua.
— Desculpa a demora, mas minha mãe pediu para
eu passar na casa dela.
Alex devia ter imaginado alguma coisa do tipo. A
mãe de Gustavo sempre tinha sido das que pedia para
ele passar em casa sempre que podia e era óbvio que
aquilo não ia mudar. Na verdade, Alex não se
surpreenderia se Cláudia fizesse mais questão daquilo do
que antes, considerando tudo o que tinha acontecido
naqueles anos.
Elu se afastou para o lado e Gustavo passou pelo
portão.
Por sorte, a casa que tinha sido da família de
Gustavo ainda estava vazia. Ou talvez não fosse tanta
sorte assim, mas não importava. Cláudia e Brenda
estavam lá, de novo – depois de Brenda passar alguns
dias na enfermaria por causa da flecha de balestra que
tinha lhe acertado e por pouco não havia causado
estrago.
E Gustavo tinha parado na porta da sala, olhando ao
redor. Era a primeira vez que ele ia ali, certo, mas Alex
tinha até deixado a casa apresentável, depois de semana
praticamente indo ali só para dormir. Não tinha motivo
para ele estar parado daquele jeito.
— O que foi? — Elu perguntou.
Gustavo balançou a cabeça devagar e deu alguns
passos para dentro.
— Não tem como esse lugar ser mais a sua cara —
ele falou.
Alex entrou atrás dele e olhou ao redor também. Não
tinha nada demais na sua sala. As paredes tinham uns
tantos quadros – imagens que elu tinha mandado
imprimir e emoldurar – e o sofá de uma imitação de
couro preto. Não. Também dava para ver uma das
mesinhas com presentes que seus alunes tinham lhe
dado.
E elu ainda não entendia por que ele tinha parado
olhando daquele jeito.
Alex empurrou as costas de Gustavo.
— Vai ficar parado aí?
Gustavo riu e deu mais alguns passos para dentro da
sala, sem falar nada.
Alex cruzou os braços e olhou ao redor de novo. Sua
casa era maior que as casas seguras, mas aquilo não
queria dizer muita coisa. Mas sua sala era espaçosa, com
uma TV grande na frente do sofá e almofadas jogadas
pelo chão – porque quase sempre que elu começava a
assistir algum filme, terminava no chão e não no sofá. A
mesa baixa entre o sofá e a TV estava vazia, como
sempre. E só. Mais nada.
Mas Gustavo estava andando devagar ao redor da
sala, parando para olhar cada detalhe como se fosse algo
importante. Não era como se tivesse alguma coisa
interessante ali. As paredes estavam cheias de quadros,
sim, mas aquilo era só porque Alex não gostava da cor
das paredes – um cinza morto – e tinha preguiça demais
para pintar. Os móveis eram coisas que elu tinha
comprado aos poucos, sem nem pensar se iam combinar
entre si, só porque tinha gostado. E as outras coisinhas
de decoração ou tinham sido presentes ou eram coisas
que Alex tinha achado por acaso e pensado “por que
não”. Nada muito planejado ou organizado.
E ele tinha colocado uma sacola em cima da mesa.
Alex ia colocar a culpa na ansiedade por nem ter
percebido aquilo antes.
— O que você trouxe? — Elu perguntou.
Gustavo se virou para Alex.
— Minha mãe mandou comida porque falei que
estava vindo para sua casa.
Alex fez um ruído irritado e pegou a sacola. A pior
parte era que elu não podia nem reclamar. Cláudia sabia
muito bem quanto elu não se dava bem na cozinha.
— Ela se lembrou que eu podia te colocar pra
cozinhar?
Gustavo deu uma gargalhada.
Alex parou na porta da cozinha e se virou. Fazia
tempo demais desde que elu tinha ouvido aquela
gargalhada. E, não importava quantas coisas ainda
tivessem que conversar e resolver, Alex sabia que aquilo
era o que elu queria. Sempre tinha sido.
Gustavo encontrou o olhar de Alex e parou de rir.
Ele respirou fundo e atravessou a sala devagar, de
um jeito que era quase solene, antes de parar na frente
de Alex e colocar uma mão no rosto delu.
— Eu quero isso — ele murmurou. — Isso aqui,
exatamente desse jeito.
Alex engoliu em seco e não respondeu. Era
exatamente a mesma coisa que estava pensando.
— Recuperar o tempo perdido — ele continuou. — E
aprender as coisas sobre você que eu perdi. O que eu
deixei passar porque não estava aqui.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar. Gustavo
tinha um dom para deixar elu sem saber como reagir.
Porque fazia diferença, sim. Não era só agir como se
nada tivesse acontecido, como se aqueles oito anos não
existissem. E uma parte de Alex ainda tinha pensado que
talvez ele fosse tentar fazer exatamente aquilo.
Mas, o tempo todo, Gustavo nunca tinha negado o
que tinha feito. Nunca tinha se esquecido daquele tempo.
Alex não tinha motivos para ter medo daquilo...
E tinha menos motivos ainda para ter medo de
qualquer coisa, considerando como ele tinha confiado
nelu – porque Alex ainda conseguia sentir o poder do laço
de sangue que prendia Gustavo a elu.
Elu colocou uma mão na nuca de Gustavo e sorriu.
— Eu quero o futuro que você me prometeu nove
anos atrás — Alex falou. — Eu quero tudo.
Alex sentiu o movimento antes de perceber as asas
vermelhas se fechando ao seu redor, lhe empurrando
mais para perto de Gustavo.
— Tem certeza? — Ele perguntou. — Porque o
monstro... Eu não vou conseguir me afastar depois.
Elu soltou o ar com força. E de que adiantava tentar
se afastar.
— Você já tentou isso uma vez. Não adiantou nada.
Eu ainda estou aqui. E quero que você fique.
As asas terminaram de se fechar ao redor de Alex
um instante antes de Gustavo lhe beijar.
Para o pessoal que sempre teve uma queda não tão leve
por necromantes – vocês sabem muito bem do que estou
falando.
UM

Lara se abaixou e passou entre os arames da cerca que marcava a


fronteira entre o Setor Dez e o Setor Três. A vigilância ali
era mínima e ela sabia exatamente quanto tempo tinha
antes de ser notada: muito mais tempo do que precisava.
O Setor Dez confiava nos seus aliados – e ela não
conseguia dizer que estavam errados. Mas nem todos no
Três eram confiáveis e ela sabia daquilo melhor que
ninguém.
O que queria dizer que Lara ia quebrar o contrato
que tinha feito com o Setor Dez quatro meses antes,
quando havia pedido para ficar ali. E, por mais que ela
odiasse não cumprir com a sua palavra, era necessário.
Ela correu pelo espaço aberto de grama baixa e
murcha que era a fronteira, tentando não fazer barulho.
O Setor Dez não tinha câmeras ali – não por confiança,
mas porque antes da aliança não queriam correr o risco
de ofender o Setor Três. E Lara sabia muito bem como
fazer para não ser notada pelos sensores. Aquilo tinha
sido a primeira coisa que seu pai lhe ensinara, quando
ainda era criança, e que tinha sido uma daquelas
decisões que ele não tinha demorado muito para se
arrepender.
A pressão da magia começou logo depois e Lara
continuou correndo. Não era a primeira vez que ela
atravessava a barreira ao redor do Setor Três, mas a
sensação não deixava de ser incômoda. Aquela barreira
não era exatamente uma parede. Ela estava ali mais
para manter a ilusão de que o restante do Setor Três, até
onde ela podia ver, era a mesma grama baixa e murcha
da fronteira, do que para impedir alguém de passar. Mas,
mesmo assim, era incômodo.
Lara quase caiu para a frente quando a pressão
desapareceu de uma vez. Seus pés afundaram na terra
molhada e a temperatura caiu ao mesmo tempo em que
tudo ficava mais escuro. Agora não havia mais grama.
Ela estava em um pântano, com árvores grandes e de
troncos grossos ao seu redor, tampando o resto da luz do
sol. Não que aquilo fizesse muita diferença. Já estava
quase anoitecendo.
Ela se endireitou e olhou ao redor. O pântano não
chegava a ser familiar – ela tinha entrado nele algumas
vezes, por necessidade, mas de forma geral havia
passado os últimos anos evitando chegar perto do Setor
Três. E, a última vez que ela estivera ali, tinha sido quase
um ano antes, quando estava sendo caçada pelos
carniçais. Não tinha sido naquela parte do pântano que
Lara havia achado Eric e dado seu sangue para ele, mas
tinha sido no pântano e só se lembrar daquilo era o
suficiente para ela não querer estar ali.
Lara se afastou mais da fronteira, andando devagar
para tentar não fazer muito barulho. Mesmo depois de
anos longe do Setor Três, ela ainda tinha contatos. Seu
pai tinha treinado pessoas demais e alguns deles ainda
eram mercenários, o que queria dizer que tinham como
falar com ela através da rede que usavam para
trabalhos. E uns tantos ainda consideravam que deviam
algo a ela, por causa de uma coisa ou outra que seu pai
tinha feito antes de tudo começar a dar errado.
Tinha sido assim que ela havia recebido o aviso de
que um dos príncipes do Setor Três tinha descoberto
onde Valissa estava. Só Valissa, não ela mesma, e era
melhor assim. Queria dizer que Lara ainda tinha a
surpresa a seu favor. Mas nenhum dos príncipes do Setor
Três nunca mais se aproximaria da sua irmã.
Ela parou ao lado de uma das árvores e respirou
fundo. Calma. Muita calma. Lara não podia correr o risco
de perder o controle. O que ela estava fazendo era
loucura, mas era necessário. Enfrentar um dos príncipes
era praticamente suicídio, mas não era como se ela
tivesse opção. Era isso ou ver Valissa ser caçada, de novo
– porque ela seria caçada, mesmo se o Setor Dez a
protegesse.
Lara fechou os olhos. Os sons do pântano eram
diferentes. Não era o mesmo silêncio de quase todos os
lugares por onde já havia passado. Ali, havia insetos
zumbindo baixo. Sapos. Mais ruídos que ela não sabia
identificar.
Aquilo deveria ter sido algo feito porque queriam.
Deveria ser algo para Valissa se orgulhar – porque o que
ela tinha feito ali era praticamente impossível. Mas não.
E havia algo ali que não pertencia ao pântano. Os
sons tinham mudado – diminuído mais ainda.
Lara respirou fundo e se concentrou. Algo dentro
dela queimou, com linhas de dor se espalhando pelo seu
corpo, como se fosse seu próprio sangue queimando por
um instante. Ela travou os dentes com força, engolindo
qualquer ruído. Não podia dar nenhum sinal de que
estava ali.
A dor desapareceu. Lara abriu os olhos, ignorando a
sensação desconfortável que havia ficado para trás.
Aquilo não importava e ela não tinha muito tempo.
Alguém estava vindo na direção da fronteira, se
movendo com a velocidade que só os vampiros tinham.
Se ela não estivesse esperando por aquilo – se ela não
tivesse o sangue do seu pai – a única coisa que veria
seria um borrão, se visse aquilo. Mas Lara conseguia ver
o homem correndo, tão depressa que seus pés mal
tocavam o chão, fazendo as plantas ao redor balançarem
com o vento da sua passagem.
Ele ainda estava longe, mas Lara não tinha a menor
dúvida de quem era: Nicolai. Um dos príncipes do Setor
Três. Um dos que tinha dado a ordem para fazerem
Valissa usar seu poder não importava como.
Ele estava se movendo com a velocidade dos
vampiros, mas ele não era o único que podia fazer aquilo.
Lara recuou para trás da árvore, puxou uma das suas
facas e esperou. Ela não ia correr de encontro ao
príncipe. Fazer aquilo seria suicídio. Mas ele não estaria
esperando um ataque pelas costas quando estava
correndo naquela velocidade e naquela região. Ninguém
deveria estar ali.
O príncipe passou por onde ela estava. Lara teve um
segundo para ver o perfil dele – um homem mais velho,
transformado quando já estava chegando nos cinquenta
anos, e que tinha tratado Valissa como uma filha antes
de tudo. Interesse. O tempo todo, tinha sido interesse,
porque ele suspeitava do que ela podia fazer. E Lara
deveria ter notado.
Ela saiu de onde estava e correu. O príncipe era mais
rápido que ela, óbvio. Mas ele não estava preocupado em
correr na velocidade máxima que conseguia. E estava
perto.
Lara pulou no vampiro, enfiando a faca nas suas
costas. Tentando – porque ele se virou no último instante.
O vampiro segurou seu braço. Lara sentiu as garras
entrando na sua pele e girou o corpo por puro instinto. A
outra mão de Nicolai passou bem onde ela estava.
Garras. Ela jurava que aquilo eram só histórias, mas ele
realmente tinha garras. E ela não tinha mais o elemento
surpresa.
Lara se soltou de uma vez. As garras do vampiro
rasgaram seu braço. Ela se sentiu queimar por um
instante antes de começar a se curar – mais depressa
que um vampiro deveria ser capaz. Mas não ia adiantar
nada se curar se não conseguisse matar o príncipe.
O vampiro parou e olhou para ela por um instante
antes de sorrir, mostrando as presas.
— Você — ele praticamente rosnou. — Pensei que
estava morta.
Lara se endireitou e pegou uma faca com a mão
esquerda. Ia demorar alguns minutos até poder confiar
na sua mão direita, depois de como tinha se cortado.
Mas aquilo explicava por que nunca tinham ido atrás
dela, então. Os príncipes pensavam que ela estava
morta, por algum motivo.
Não. Ela sabia o motivo. Tinha as cicatrizes dele.
O vampiro se moveu, tão depressa que era quase
um borrão – mesmo que Lara ainda estivesse vendo as
coisas em velocidade vampírica.
Ela se jogou para o lado, rolando no chão molhado
ao mesmo tempo em que arremessava a faca na direção
do vampiro. A lâmina passou por ele e se cravou em uma
árvore mais para trás. Nicolai se virou por um instante,
rindo.
Era o que Lara estava torcendo para que ele fizesse.
Ela pulou nele, enfiando uma faca no seu peito. A
lâmina bateu no osso com uma sensação incômoda e
Lara puxou a faca depressa, inclinando a arma para
tentar passar entre as costelas.
O vampiro enfiou as garras nas costas dela. Ao invés
de tentar afastá-la, ele a estava segurando no lugar, com
força, enfiando as garras nas suas costas e a rasgando.
Lara travou os dentes. Não ia gritar. Não podia.
E uma faca no coração não ia ser o suficiente. Se
fosse, ele não estaria reagindo daquele jeito.
Ela ia morrer ali. O tempo todo, Lara sabia que aquilo
era suicídio.
Mas, se ela ia morrer ali, então ia levar Nicolai junto.
O vampiro sorriu, enquanto enfiava as garras mais
fundo nas suas costas.
Lara fez um ruído abafado. Dor. Mas ela não podia
parar.
Ela puxou uma das facas presas na sua perna com a
outra mão e a enfiou nas costas do príncipe. Ele não
reagiu. Ela puxou a faca de volta e a enfiou no pescoço
dele, com a lâmina virada para fora, antes de tentar
fazer força. Dano. Ela precisava causar muito dano, o
suficiente para ele não conseguir se curar. Arrancar
metade do pescoço dele seria o suficiente... Se ela
tivesse forças.
Nicolai mordeu o pescoço de Lara. Ela gritou, ao
mesmo tempo em que forçava a faca. Não importava. Ela
já estava morta quando tinha decidido parar o príncipe.
Mas ele não ia entrar no Setor Dez para ir atrás da sua
irmã.
Ela puxou a faca. A lâmina se soltou do pescoço dele,
fazendo um rasgo. O sangue do vampiro esguichou por
um instante antes de começar a correr de forma lenta e
viscosa.
Ele a soltou. Lara caiu no chão com um ruído
molhado e se forçou a se virar para o vampiro. Sua visão
estava escurecendo e tudo doía. Não só os cortes fundos
demais nas suas costas e no seu pescoço. Era como seu
corpo estivesse queimando de dentro para fora e ela
sabia exatamente o que aquilo queria dizer.
Mas Nicolai estava cambaleando para trás, com uma
mão no pescoço como se fosse conseguir parar o
sangramento. Não ia. Ele precisaria beber de alguém
para conseguir curar aquilo e o sangue de Lara não ia ser
o suficiente. Não quando ela já estava quase morrendo e
seu sangue não era mais humano.
O vampiro caiu no chão.
Bom. Aquilo era tudo que ela queria.
Lara se deixou cair, também.

Eric correu pelo pântano. Suas mãos ainda estavam sujas de sangue
e aquilo definitivamente não estava nos seus planos,
mas ele não podia deixar Nicolai chegar no Setor Dez. Se
aquilo acontecesse, tudo o que ele tinha passado os
últimos anos preparando seria desfeito e Eric não
aceitaria aquilo.
E não aceitaria chegar tarde demais de novo.
Alguém gritou, mais para a frente – na direção do
Setor Dez.
Ele acelerou ainda mais, até que mal conseguia ver
as árvores de cada lado dele e não sentia o chão
molhado sob os seus pés. Ele se recusava a deixar a
mesma coisa acontecer de novo.
E mais nada. Nenhum som. Nenhum ruído de alguém
lutando – não que alguém fosse ter alguma chance
contra Nicolai e só havia uma pessoa que tentaria. Mas
aquele grito havia lhe dado esperança.
Eric parou e respirou fundo. O cheiro do sangue
chegou até ele, forte demais. E doce, com uma presença
que era um ímã.
Ele conhecia aquele cheiro.
Eric voltou a correr. Não podia ser tarde demais. Ele
se recusava. Não podia...
Ele viu o corpo de Nicolai primeiro, caído de lado no
chão, com o pescoço rasgado e uma faca ainda enfiada
no seu peito. Ele não havia sido destruído. Nicolai era um
dos príncipes do Setor Três, um dos mais antigos e mais
poderosos ali. Só havia um jeito de destruí-lo.
Eric arrancou a faca que estava no peito do outro
vampiro e terminou de arrancar a cabeça dele. Agora
Nicolai não teria nenhuma chance de ser trazido de volta.
E o cheiro forte de sangue continuava, mas não era o
sangue do vampiro a seus pés que ele estava sentindo.
Não que Eric tivesse alguma dúvida sobre de quem era
aquilo.
Ele continuou andando, mais devagar agora. Já sabia
muito bem o que ia encontrar e mal conseguia ter
alguma esperança de que ela ainda estaria viva.
Lara estava uns poucos metros para a frente, caída
no chão. Suas roupas estavam rasgadas e os cortes
fundos nas suas costas eram mais do que visíveis. Nicolai
tinha usado suas garras. E o pescoço dela era uma
massa de carne e sangue. O outro vampiro não havia
tentado se alimentar dela. Aquilo eram as marcas de
alguém que queria matar e mais nada.
Ele tinha chegado tarde demais.
Não. Não era tarde demais, porque o cheiro do
sangue dela ainda estava doce. Vivo.
Eric se abaixou ao lado de Lara. Ela estava
tremendo, mas era um movimento tão sutil que ele mal
conseguia notar. Só o fato de ela ainda estar viva depois
de tudo aquilo era quase impossível, mas ela estava. E
ele sabia o suficiente sobre ela – tinha visto o suficiente,
alguns meses antes – para ter certeza de como salvá-la.
Ele se sentou na terra molhada, ao lado de Lara. Ela
fez um ruído baixo, como se estivesse notando a
presença dele ali de alguma forma. Bom. Aquilo era bom.
Ele virou a cabeça dela com cuidado, até que ela
estava apoiada na sua perna, antes de fazer um corte
fundo no pulso e colocar a ferida sobre a boca de Lara. O
sangue pingou, manchando os lábios dela.
— Beba — ele falou.
Nenhuma reação, mesmo que o sangue dele ainda
estivesse pingando.
Eric segurou o queixo de Lara com a outra mão. Ele
tivera esperança de que ela fosse reagir como um
vampiro – como ele havia reagido quando ela o
encontrara, meses antes. Mas, se não ia, então ele
precisava fazer com que bebesse.
Ele forçou o queixo dela para baixo, talvez com mais
cuidado do que deveria ter. A boca de Lara se abriu e o
sangue escorreu.
Lara fez um ruído que era quase um gemido e as
costas dela se curvaram, quase como se ela estivesse
tentando levantar o corpo e se aproximar de onde o
sangue estava vindo, mas não tivesse forças. Bom.
Aquela reação era um bom sinal.
Eric abaixou a mão, até que seu pulso estava
encostado na boca de Lara e o sangue continuava
escorrendo. Ela não estava consciente, não de verdade,
mas estava bebendo e era aquilo que importava.
Era justo, de certa forma. Eric quase havia sido
destruído, um ano antes, e Lara lhe dera seu sangue. Ela
quase havia morrido, depois, porque ele estava fora de
controle. Não havia nada mais certo do que ele ser a
pessoa a salvar a vida dela, agora.
Lara segurou o braço dele. Seu pescoço não parecia
mais uma massa de carne e Eric não estava sentindo
cheiro de sangue novo. Os cortes nas costas dela
provavelmente já tinham se fechado, também.
Ela abriu os olhos e o encarou por um instante antes
de puxar seu braço. Eric balançou a cabeça e continuou
com o pulso cortado onde estava.
— Não — Lara murmurou. — Eu não...
Ele balançou a cabeça com força.
— Você não vai ser transformada e sabe disso.
Lara o encarou por mais alguns segundos antes de
voltar a beber. Eric tinha certeza de que, se ela não
estivesse tão fraca, estaria lutando contra ele para se
afastar. Ela tinha passado tempo demais tentando
esconder o que era, mesmo no Setor Três. Ele mesmo só
sabia por causa daquela incursão no Setor Nove, quatro
meses antes. Quando Dani avisara que Lara
acompanharia Eric e Amon, ele havia ficado sem
entender. Uma humana, mesmo que uma mercenária,
nunca seria capaz de correr com dois vampiros enquanto
eles atravessavam um setor inteiro – a menos que fosse
mais.
Ela puxou o braço dele de novo. Eric encarou o
pescoço de Lara. A pele ali ainda era frágil, nova, mas
era pele. E ele não estava sentindo cheiro de nenhum
sangue fresco.
Ele soltou a mulher.
Lara o empurrou de novo e se afastou o máximo que
conseguia no chão molhado, antes de se sentar devagar.
Eric não falou nada enquanto ela colocava uma mão no
pescoço, com uma expressão irritada, antes de se
inclinar para um lado e para o outro. Testando os cortes
nas suas costas, provavelmente.
Ele se levantou devagar, ignorando a forma como a
lama estava grudada nas suas roupas. Nos anos desde o
surgimento do pântano, Eric tinha se acostumado com
aquilo.
Lara moveu o pescoço devagar antes de soltar um
suspiro. O cheiro doce ainda estava ali, como um convite
para ele, mas agora não era o sangue. Era ela.
A mulher se levantou devagar. Bom. Ela era louca o
suficiente – ou desesperada o bastante – para ter
enfrentado Nicolai, mas não estava correndo riscos à toa.
Lara estava se movendo com cuidado, como alguém
sentindo seu corpo e seus ferimentos para ter certeza de
o que podia fazer sem piorar sua situação.
Depois de ter bebido o sangue dele, ela estaria
quase completamente curada. Se tivesse bebido um
pouco mais, até mesmo seu pescoço já estaria quase
curado.
— Era mais fácil ter me deixado morrer — Lara falou.
Porque ela era humana, de outro setor e havia
destruído um dos príncipes do Setor Três. A obrigação
dele, como um dos príncipes, era matá-la.
Mas Eric não seguia as regras já fazia muito tempo.
Ele balançou a cabeça e se levantou. Tinha uma faca
enfiada em uma árvore perto de onde estavam e ele foi
na direção dela.
— Não tenho motivos para te deixar morrer — Eric
falou.
Ele puxou a faca e se virou para encarar Lara de
novo. Ela estava parada no mesmo lugar, sem dar a
menor indicação de que ia tentar lutar, mas ele não era
estúpido. Ela havia enfrentado Nicolai e sobrevivido. Por
pouco, sim, mas havia sobrevivido. Eric não sabia de
muitos vampiros que podiam dizer a mesma coisa.
Lara levantou as sobrancelhas e olhou de relance
para o corpo do outro vampiro, bem mais para o lado.
Ela nunca acreditaria se ele contasse que destruir
Nicolai já estava nos seus planos.
— Você não o destruiu — Eric falou. — Eu fiz isso.
Lara deu uma risada seca e foi na direção do corpo.
Na direção da sua faca, que Eric tinha deixado lá depois
de terminar de cortar o pescoço de Nicolai. Ela se
abaixou para pegar a arma e a colocou em uma das
bainhas presas na sua calça.
Ela se virou para Eric de novo.
— Por quê?
Porque Nicolai deveria ter sido destruído muito
tempo atrás, mas Eric nunca tivera uma boa
oportunidade para fazer aquilo. Porque o Setor Três havia
passado tempo demais preso no passado. E Lara não
acreditaria em nada daquilo.
— Considere isso como um pagamento, se preferir —
Eric falou.
Lara não respondeu.
Ele foi na direção dela e virou a faca que estava na
sua mão, até que a estava segurando pela lâmina, antes
de oferecer a arma para Lara.
— Pagamento — ela repetiu.
Eric assentiu. Ele estava tão perto dela que não
precisava fazer esforço para ouvir os batimentos do seu
coração. Ela estava calma. Perfeitamente calma, sem
nenhum sinal de que estivesse se sentindo ameaçada de
alguma forma.
Bom, porque Eric nunca seria uma ameaça para ela.
— Você me deu seu sangue, uma vez — ele lembrou.
Nenhuma reação. Nenhum sinal de que ela se
lembrava de como ele havia sido um animal fora de
controle e de como quase a matara naquela noite, em
outra parte do pântano, depois da emboscada dos
carniçais. Mas não era possível que tivesse esquecido.
— E o que você vai fazer com o que sabe? — Lara
perguntou.
Então aquele era o problema – o fato de que Eric
sabia que ela não era completamente humana.
Ele inclinou a cabeça devagar.
— Nada. Você é parte do Setor Dez e eles são nossos
aliados. Não pretendo fazer nada para colocar essa
aliança em risco.
Lara ainda não acreditava. Era mais do que óbvio na
expressão dela e agora ele entendia aquela calma quase
artificial. Alguns dos vampiros das forças de combate do
Setor Três eram do mesmo jeito. E todos haviam sido
treinados pela mesma pessoa: o pai de Lara.
Ela acreditar ou não na palavra dele não deveria
importar.
Lara pegou a faca que estava na mão de Eric e a
enfiou em outra bainha. Ele esperou.
Sem falar nada, ela se virou e começou a andar na
direção da fronteira com o Setor Dez.
DOIS

Eric entrou na cidade segurando a cabeça de Nicolai pelos cabelos


e com o corpo dele jogado por cima do seu ombro. Ainda
havia pessoas demais nas ruas, mas aquilo não era uma
surpresa. Ele tivera esperança de que tanto os vampiros
quanto os humanos teriam começado a voltar para suas
rotinas, mas aquilo era esperar demais – especialmente
quando o corpo de Arman ainda estava jogado na frente
da casa dele e todos que estavam por perto no fim
daquela luta sabiam que Eric tinha ido atrás de Nicolai.
Lara podia não acreditar em uma palavra do que ele
havia falado, mas era a verdade: Nicolai seria destruído,
de qualquer forma, porque ele e Arman tinham planos
para o Setor Três que iam contra o que Eric queria. E ele
estava cansado de deixar que os outros dois príncipes
destruíssem as chances do setor.
Os humanos e vampiros nas ruas se afastaram para
Eric passar, sem que ele precisasse falar nada. E ele
também não precisava se virar para saber que a maioria
deles o estava acompanhando, indo na direção da parte
mais antiga da cidade – não a parte central, mas o lugar
onde os mais velhos ali haviam construído suas casas
mais de um século antes. Era de onde o som de
conversas altas ainda estava vindo e onde Eric podia
sentir a presença de boa parte da cidade – boa parte do
setor, na verdade.
E, perto da casa de Arman, havia uma verdadeira
parede de corpos. Pessoas tentando ver o que havia
acontecido, se os boatos eram verdade, porque dali só
conseguiriam ver as janelas quebradas do terceiro andar.
Eric deixou seu poder ser sentido. Os vampiros mais
perto de onde ele estava se viraram para trás depressa e
puxaram os humanos para o lado. Em instantes, havia
um caminho até a área vazia na frente da casa.
Ele avançou, andando devagar e sem esconder seu
poder de novo. Aquele era o tipo de momento em que
conflitos internos começavam nos setores e ele se
recusava a permitir que o Setor Três se desestabilizasse
mais. Arman e Nicolai já haviam feito o suficiente
naquele sentido.
O corpo de Arman ainda estava exatamente onde
Eric havia deixado: na grama bem cuidada na frente da
casa do outro príncipe. Era onde a luta deles tinha
terminado, depois que Eric havia jogado o outro vampiro
através da janela. Alguns vampiros estavam parados
mais perto: os servos de Arman. Não importava que
nome usassem, era aquilo que eram.
Eric foi até o corpo no chão e jogou a cabeça de
Nicolai ali, também, antes de se endireitar e olhar ao
redor. Uns poucos vampiros e humanos sustentaram seu
olhar. A maioria olhou para qualquer outro lugar e uns
tantos recuaram mais. Excelente.
— Alguém tem algo a dizer? — Eric perguntou.
Mais pessoas recuaram.
Ele continuou onde estava, olhando ao redor
devagar. Agora, Eric era o único príncipe ali.
Tradicionalmente, a Corte da Névoa sempre havia tido
mais de uma pessoa no comando, então era possível que
alguém decidisse tomar o lugar de Arman ou Nicolai.
Mas, se quisessem fazer aquilo, teriam que enfrentá-lo –
porque não tinham mais como tomar o lugar de um dos
príncipes existentes, como o próprio Eric havia feito, sete
anos antes.
— Meu senhor.
Eric se virou na direção de quem tinha falado: um
dos vampiros que tinha sustentado seu olhar da primeira
vez e que ainda não havia recuado, mesmo que o espaço
ao seu redor estivesse quase vazio agora.
— O setor já está em uma situação complicada — o
vampiro continuou, falando em voz baixa. — A Corte da
Névoa sempre teve suas próprias regras, mas com tudo o
que tem acontecido...
Com tudo o que estava acontecendo, não podiam ter
mais surpresas – como um dos príncipes se virando
contra os outros dois. Mas, se Eric não tivesse feito nada,
os planos de Arman e Nicolai teriam marcado o fim da
Corte da Névoa e eles eram estúpidos demais para
reconhecer aquilo.
Eric indicou os corpos no chão.
— Se quer culpar alguém pela nossa situação, culpe
a eles — ele falou. — Foi a ganância dos príncipes que
colocou a Corte da Névoa nessa situação. Eu não vou
perder meu tempo tentando discutir o que deveria ou
não ter feito. Ainda tenho muito o que fazer para tentar
desfazer o que eles começaram.
Se ainda fosse possível fazer aquilo.
Eric jogou o corpo de Nicolai no chão. A cabeça, meio
em cima do corpo de Aman, rolou até cair contra o torso
manchado de sangue.
Ninguém falou mais nada.
Ele se virou. As pessoas abriram caminho no mesmo
instante e Eric foi na direção da sua casa. Pelo menos seu
pessoal sabia o que estava para acontecer. Eles não
teriam se surpreendido com a notícia da morte de Arman
e os comentários sobre Eric indo atrás de Nicolai. E
também não estariam por perto, porque sabiam que ele
não teria a menor disposição para lidar com ninguém.
Fechar a porta atrás de si era um alívio. Era uma
barreira entre Eric e o restante do setor – as pessoas que
agora estariam olhando para ele o tempo todo. Se tornar
um dos príncipes da Corte da Névoa e depois o único
príncipe havia sido uma escolha consciente, mas não
queria dizer que ele gostava do que aquilo significava.
Não era à toa que Eric havia passado mais de um século
ali sem ninguém suspeitar do seu poder real.
Ele atravessou o hall de entrada e subiu as escadas
sem pressa.
Eric não havia sido transformado ali. Ele havia sido
levado para a região quando seu mentor decidira ver o
que estava acontecendo naquela parte do mundo –
porque eram poucas as Cortes formadas por
necromantes. E, depois, quando seu mentor havia ido
embora, Eric tinha ficado. O motivo, ele nunca havia
entendido realmente. Mas ficar ali parecia certo, então
ele havia ficado – porque nenhum necromante ignorava
uma sensação como aquela.
Mas, desde o começo, ele havia feito questão de não
chamar atenção. O fato de ter chegado como um
aprendiz de um necromante era o suficiente para os mais
velhos ali o ignorarem – porque era óbvio que um
aprendiz não estaria no mesmo nível que eles, nem de
conhecimento nem de poder. Eles só haviam se
esquecido que o mentor de Eric já era um necromante
muito antes da magia voltar para o mundo. Ele não
aceitaria qualquer um como um aprendiz.
E, mesmo que Eric nunca houvesse entendido por
que tivera o impulso de ficar ali, ele sabia muito bem por
que nunca tinha ido embora: porque aquela era uma
corte de necromantes que era respeitada. Temida, sim,
mas o respeito ainda era mais forte. Se não fosse, a
insistência dos príncipes em se isolarem teria sido o
suficiente para garantir que seriam atacados décadas
antes. E respeito era algo raro para os necromantes.
Então Eric havia continuado ali, vendo tudo o que
havia chamado sua atenção ser destruído pouco a pouco,
por causa da ganância e da arrogância dos príncipes. E
aquilo não era uma surpresa. Era o que quase sempre
acontecia.
Ele entrou no seu banheiro e parou, olhando ao
redor.
Aquilo também teria que mudar. Sua casa era sua,
construída exatamente como ele queria, nas primeiras
décadas ali. Mas era pequena para um príncipe, mesmo
quando eram três príncipes ali. Agora que ele havia
assumido o controle do setor, também precisaria de um
lugar maior. O mais fácil seria tomar a casa de um dos
príncipes destruídos, por mais que Eric odiasse a ideia.
Mas, por enquanto, ele ainda podia aproveitar sua
privacidade.
A água era quente contra o seu corpo enquanto Eric
limpava o sangue – de Arman, de Nicolai... e de Lara.
Lara, que não sabia mas era o motivo para Eric ter
parado de esconder seu poder, sete anos antes.
Ele sabia sobre Lara desde que ela era criança,
óbvio. Oscar, o pai dela, tinha sido um guerreiro
conhecido muito antes de ir para aquela região –
conhecido o suficiente para o mentor de Eric ter lhe
contado a respeito dele. Mesmo depois de ser
transformado em humano de novo, eram poucos os
vampiros que conseguiam enfrentar Oscar. Então Eric
sempre soubera sobre a filha que ele havia tido, poucos
anos depois de voltar a ser humano.
Mas saber sobre ela e sua irmã não havia sido o
suficiente para diminuir o choque quando Eric havia visto
as duas pela primeira vez, logo antes do pântano surgir.
E nada teria sido capaz de prepará-lo para como havia
algo em Lara que era um ímã para ele – e não era
apenas o seu sangue, ou ele nunca teria conseguido se
controlar.
Não importava quem estivesse ali, Eric teria
desafiado os príncipes – especialmente o príncipe que
havia dado a ordem para caçar as duas, depois, e cujo
lugar ele havia tomado. Mas, se não fosse pela sua
reação quase feral ao ver Lara, talvez ele tivesse sido
mais cuidadoso.
Não que ele se arrependesse. Não. Seu maior
arrependimento era ter passado décadas vendo o que
estava acontecendo, notando como a sede de poder dos
príncipes estava se tornando maior, e não ter feito nada.
Se Eric tivesse tomado uma atitude antes, era bem
possível que as irmãs nunca tivessem sido confrontadas
daquele jeito. O pântano não existiria, o setor não teria
que lidar com aquele risco... E Lara e a irmã nunca teria
precisado fugir.
Quando ele tinha visto Lara, um ano antes, havia
sido uma surpresa. Um choque, na verdade, porque ele
não esperava vê-la de novo. Mesmo que não acreditasse
no que os outros príncipes diziam sobre ela e a irmã
estarem mortas, Eric tinha certeza que elas teriam ido
para longe dali. Lara tinha contatos o suficiente para
conseguir passagem pelas terras de ninguém e ir para
outra região. Mas não. Ela tinha continuado ali, aquele
tempo todo, perto demais dos príncipes que faziam tanta
questão do poder da sua irmã, sem nunca ser notada.
E fazia sentido. Da outra vez, quando ele havia
recuperado a sanidade o suficiente para parar de beber
dela e reconhecer quem estava ali, Eric tinha notado que
ela se vestia como uma mercenária. Mas não era seguro
mantê-la no Setor Três, não quando ele ainda não estava
no controle. Então ele a levara para o Dez, depois que
seu pessoal havia feito o que podia para cuidar dos
ferimentos e da perda de sangue dela. E agora, ali...
Se ela havia lutado contra Nicolai e sobrevivido,
então era fácil ter certeza de que Lara havia passado os
últimos sete anos como uma mercenária. E ela não havia
relaxado. Ela tinha passado aquele tempo treinando, sim,
ou nunca teria sido capaz de fazer aquilo.
Se ela tivesse saído da região e ido para outro lugar,
teria que recomeçar do zero. Não teria contatos, não
saberia como as unidades de mercenários na área
funcionavam, teria que construir seu nome... Não. Era
mais fácil continuar ali e garantir que nunca seria
encontrada.
Mas ela tinha precisado se deixar ser visível para
conseguir proteger a irmã. Havia sido assim que Nicolai
descobrira sobre a garota: quando seus espiões haviam
conseguido imagens do que acontecera no Setor Nove.
De terem ajudado um alterado do Setor Dez a destruir
um complexo de mercenários – e Lara estava com eles, o
que queria dizer que sua irmã provavelmente estava
naquele setor, também.
Eric desligou o chuveiro e saiu, pingando água pelo
chão do banheiro e depois do quarto.
Os príncipes haviam sido destruídos, o que queria
dizer que o maior risco para Lara e a irmã não existia
mais. Mas ainda existia um risco – principalmente
enquanto ele ainda não tinha a Corte completamente sob
seu controle.
Eric pegou seu celular e abriu a lista de contatos
depressa, antes de mandar uma mensagem. Pelo menos
pelos próximos dias, ele fazia questão de saber de
qualquer risco mínimo dentro do setor.

Lara entrou na sua casa, fechou a porta e se apoiou na parede.


Sua vontade era continuar ali mesmo. Ou melhor, se
deixar escorregar para o chão e ficar por ali até se
recuperar. Mas não era tão simples e fazer aquilo só
deixaria tudo pior.
Ela respirou fundo, se endireitou e foi na direção do
banheiro. Suas roupas estavam pesadas de lama e
sangue e ela não ia nem tentar tirar aquilo fora do
chuveiro. Não queria limpar a bagunça depois. E, se
algum dos cortes se abrisse, seria melhor que já
estivesse no banheiro, também. Não que fosse provável
que aquilo acontecesse.
Pelo menos Nicolai estava morto. Ou melhor, tinha
sido destruído. Morto ele já estava havia muito tempo.
Mas ele não era mais uma ameaça e aquela era a
parte que importava.
Lara empurrou a porta de plástico grosso do box e
entrou na área do chuveiro. A água desceu, gelada, mas
ela não se importava.
Tinha sido por pouco. Ela podia ter morrido.
Lara respirou fundo e apoiou a testa na parede de
azulejos claros. A água estava escorrendo escura com a
mistura de lama e sangue e ela não ia se dar ao trabalho
de tentar tirar a roupa enquanto o pior daquela sujeira
não tivesse saído.
Tinha sido por muito pouco. Se Eric não tivesse lhe
encontrado e dado seu sangue, ela estaria morta. Não
importava quantas vantagens Lara tivesse, ela não era
uma vampira – e nunca seria, mesmo se quisesse. Mas
seu pai havia sido um vampiro, antes de ser
transformado em humano de novo, de um jeito que só os
necromantes do Setor Três conseguiam fazer.
Quando Lara era criança, ela tinha ouvido falarem
vezes demais que seu pai tinha sido punido por alguma
coisa. Ele era uma história de aviso entre os vampiros:
que era melhor agirem como os príncipes queriam, ou
podiam acabar voltando a ser mortais. Se nem mesmo
um dos melhores guerreiros entre eles tinha escapado da
punição, nenhum deles escaparia. Mas Lara sabia a
verdade: ser transformado em humano não havia sido
uma punição. Tinha sido uma recompensa. Seu pai havia
pedido para voltar a ser humano em pagamento por algo
que havia feito pelo setor – e os príncipes haviam
atendido.
Pena que o respeito que os príncipes tinham pelo seu
pai havia morrido em algum ponto entre ele ser
transformado de volta e a adolescência de Lara.
Mas aquilo queria dizer que ela podia usar os
poderes dos vampiros, se quisesse. Na maior parte do
tempo, Lara fazia questão de evitar qualquer coisa do
tipo. O preço não valia a pena. Usar aquilo queria dizer
dor, muita dor, porque era como se seu sangue estivesse
queimando suas veias, como se seu corpo estivesse
sendo cortado de dentro para fora, a menos que ela
bebesse sangue – como se fosse uma vampira.
E, mesmo que aquilo não fosse um problema, usar
os poderes dos vampiros era o tipo de coisa que, com um
descuido, ia chamar atenção demais. Lara nunca correria
aquele risco, porque não era só a sua vida em jogo. Se a
encontrassem, saberiam que Valissa estava por perto.
Mas aquilo não fazia mais diferença. Eric sabia que
ela estava no Setor Dez. Já fazia meses que ele sabia
daquilo e nada tinha acontecido... Mesmo que agora ele
fosse um dos príncipes do Setor Três.
Então talvez ela pudesse acreditar nele. Talvez ela e
Val ainda estivessem seguras ali.
E talvez fosse estupidez acreditar naquilo só porque
Lara não queria ter que recomeçar. Ela estava cansada
de se esconder, de estar sempre prestando atenção em
cada sombra, em qualquer sinal de que estavam atrás
delas, de novo. Ir para o Setor Dez tinha parecido uma
chance de escapar daquilo de vez, mas talvez fosse só
sua vontade de não precisar fugir falando mais alto.
O barulho da campainha fez Lara se endireitar.
— Vai demorar! — Ela gritou.
Ela passou as mãos pelo cabelo preso, tentando tirar
o pior da lama antes de soltá-lo. Não que fosse fazer
muita diferença.
Já era mais de meia-noite. Quem ia aparecer na casa
dela àquela hora? Lara não conseguia pensar em
ninguém... A menos que fosse alguma emergência
envolvendo Valissa.
Ela colocou uma mão no box antes de respirar fundo,
soltar o cabelo e pegar o xampu. Se fosse alguma coisa
envolvendo Val, ela saberia. Não tinha como não saber.
Elas estavam ligadas – Lara havia feito questão daquilo,
justamente para não poder ser enganada.
Então ela ia pelo menos estar minimamente
apresentável quando fosse ver quem estava na porta.
A campainha tocou de novo.
— Eu avisei que vai demorar! — Lara gritou.
E, se fosse uma emergência real, ela tinha quase
certeza de que alguém no alto da hierarquia do setor
tinha como entrar nas casas dos mercenários. Eles não
seriam loucos de colocar tantas pessoas de fora ali só
confiando que todos iam cumprir as regras e tudo mais.
Dani não confiaria em pessoas de fora naquele ponto, e
Lara conhecia Dani muito bem.
Quem quer que fosse, podia esperar.
A campainha tocou mais duas vezes enquanto Lara
terminava de tomar banho. E, se não fosse pela
insistência, ela provavelmente teria se demorado muito
mais no chuveiro. Seu corpo ainda estava doendo.
Mesmo que a sensação de queimar tivesse desaparecido,
o desconforto ainda estava ali – aquela impressão de que
havia algo errado e que sempre vinha nas poucas vezes
que ela havia precisado beber sangue.
Ela se enrolou em uma toalha e saiu do banheiro.
Sua casa era pequena – só um espaço maior, que era
dividido entre sala e cozinha pelos móveis. O quarto era
uma plataforma logo acima da sala, com uma escada
quase encostada na parede. A única parte da casa que
realmente era fechada era o banheiro. E, na opinião de
Lara, as casas como aquela eram perfeitas para os
mercenários que estavam ali sem família. Era pequena e
fácil de manter, ao mesmo tempo em que tinha tudo o
que ela precisava.
A campainha tocou de novo. Se continuasse assim,
não ia demorar para algum dos vizinhos reclamar –
porque, se fosse para reclamar de uma coisa sobre
aquelas casas, era que as paredes eram finais demais. E
eram várias casas como aquela, coladas umas nas
outras.
Lara abriu uma fresta na porta e parou. Dani estava
do outro lado.
Claro que ia ser Dani.
A outra mulher a encarou dos pés até a cabeça – ou
pelo menos foi o que pareceu, mesmo que a porta mal
estivesse aberta.
Lara se afastou depressa. Não adiantava tentar só
dispensar a responsável pela segurança do Setor Dez.
Dani entrou e fechou a porta antes de olhar ao redor.
Lara fez a mesma coisa, mas não tinha nada demais.
Nenhum sinal do que ela havia feito. A lama estava tão
seca na sua roupa que nada tinha caído enquanto ela
estava indo para o banheiro e sua roupa suja ainda
estava lá dentro. Mas a parede ao lado da porta estava
um pouco manchada onde ela tinha se apoiado.
Dani se virou para ela de novo.
— Soube que você voltou pra casa mancando — ela
falou. — E até ontem você não tinha essa cicatriz no
pescoço. As do rosto até podem ser velhas, você usa
maquiagem o suficiente pra esconder isso, mas a do
pescoço não.
E ela tinha acertado sem nem fazer esforço, porque
as duas cicatrizes no lado direito do seu rosto eram o
motivo para Lara ser tão cuidadosa com sua maquiagem
o tempo todo. Quanto menos coisas específicas dela
alguém tivesse para se lembrar, melhor. E, quanto menos
pessoas vissem as cicatrizes, menos chance de
suspeitarem que ela não era completamente humana –
porque a cor delas deixava claro que os cortes tinham
sido envenenados. Ela não deveria ter sobrevivido.
Provavelmente era por causa disso que Nicolai tinha
pensado que ela estava morta. O caçador de
recompensas que tinha soltado um dos animais das
terras de ninguém nela e em Val provavelmente tinha
contado que ela tinha sido cortada.
Mas Lara não ia falar nada – nem sobre as cicatrizes
no rosto, nem sobre o pescoço. Por muitos anos, ela tinha
negociado com Dani em pé de igualdade – ou até com
vantagem. Agora, a situação era diferente: Dani tinha o
controle. Tinha sido ela quem havia lhe dado permissão
para ficar no Setor Dez, mesmo que eles não estivessem
aceitando mais ninguém ali. E também seria Dani quem
expulsaria Lara, se descobrissem que ela havia quebrado
o seu contrato.
Dani olhou na direção do banheiro de novo.
Lara se recusava a ficar nervosa. Dani podia encarar
o banheiro fechado o quanto quisesse, mas ela não ia ver
através das paredes. A outra mulher podia até ser uma
vampira, mas nem eles podiam fazer aquele tipo de
coisa. Então ela não ia saber que suas roupas estavam
lá, sujas de lama e sangue – o que seria mais que o
suficiente para provar que ela havia feito algo que não
deveria.
— Eu não estou com a menor disposição pra lidar
com mais surpresas — Dani falou. — Então se você fez
merda, é melhor falar logo. Se isso estourar na minha
cara do nada...
Lara respirou fundo. Se Dani ia levar as coisas para
aquele lado, então ela não tinha com o que se preocupar.
— Nada vai estourar — Lara contou. — Eu estava
fora, sim, mas era coisa pessoal. Não vai ter
consequências pro setor.
Dani se virou para ela.
A respiração de Lara falhou. Ela sabia que Dani não
era uma das vampiras com a habilidade de invadir a
mente dos outros – ela tinha sido transformada fazia
pouco tempo demais e, mesmo sem levar aquilo em
conta, vampiros que podiam fazer aquilo não eram tão
comuns. Mas havia um poder ali, sim. E Lara não queria
saber exatamente o que aquilo era.
— Tem certeza? — Dani insistiu.
— Tenho.
Se fosse para ter alguma consequência, Lara não
estaria ali. Estaria morta, como pagamento por ter
atacado um príncipe de um setor. Mas Eric não havia
feito nada. Não. Ele tinha feito, sim. Tinha falado que ela
não havia sido responsável por destruir Nicolai, de um
jeito que deixava claro que ele assumiria a culpa.
Era melhor daquele jeito, até porque Lara não fazia a
menor questão de chamar mais atenção.
Dani foi na direção da saída e parou, olhando para
Lara de novo.
— Se alguma coisa acontecer por causa do que quer
que você tenha feito, espero que eu seja a primeira a
saber — ela avisou.
Lara assentiu.
— Vai ser.
Dani saiu da casa e fechou a porta atrás de si. Lara
correu para trancar a porta e então voltou para o
banheiro.
Ela parou na frente do espelho, encarando seu
pescoço. Dani tinha comentado sobre uma cicatriz e fazia
sentido. Nicolai tinha destruído seu pescoço. Era óbvio
que as marcas não teriam desaparecido. Lara
provavelmente teria que passar alguns dias usando
blusas de gola alta até aquilo sumir. Ou então teria que
inventar alguma história para quando alguém
perguntasse o que tinha acontecido.
Ou talvez não – porque a única coisa no seu pescoço
era uma área com a pele um pouco mais clara. Era uma
cicatriz, sim. Mas, se estava daquele jeito, em algumas
horas já teria desaparecido.
Lara se apoiou na pia e respirou fundo. Aquilo era
bom. Mesmo que a ideia de que ela estava se curando
tão depressa por causa do sangue de Eric fosse
incômoda, de certa forma, ela não podia reclamar. Era
melhor assim.
TRÊS

Lara atirou. O buraco no centro do alvo ficou mais largo – ela


não sabia quantos tiros tinha acertado. Já fazia um bom
tempo que ela estava no galpão de tiro, provavelmente
mais de uma hora, e ainda não era o suficiente.
Não que ela precisasse melhorar sua mira. Lara já
era uma atiradora excelente antes de ir para o Setor Seis
e fazer um nome como mercenária. Os anos e a
necessidade tinham feito ela ficar melhor ainda. Mas,
antes, atirar era o suficiente para ela relaxar. Era algo
que exigia foco, o que queria dizer que ela não podia
ficar pensando demais em outras coisas.
Ou atirar tinha se tornado mecânico o suficiente para
ela não precisar mais de tanta concentração, ou ela
estava tão preocupada que não conseguia focar o
suficiente.
Um dos príncipes do Setor Três sabia exatamente
onde ela e Val estavam. Um deles tinha encontrado Lara
depois que ela havia destruído outro príncipe. Ou quase
destruído, nas palavras dele.
Ela queria acreditar no que Eric tinha falado e no que
havia dado a entender. Que ele não faria nada e que não
iria atrás de Val – ou da própria Lara, porque ele sabia
sobre ela, também. Ela tinha falado para Dani que nada
ia acontecer, mas...
Até onde Lara podia confiar na palavra de um
vampiro?
Até o momento em que fosse útil para o vampiro.
Nem um segundo além. Ela sabia, também. Ela não tinha
se esquecido de Vicente – o príncipe que tinha tratado
Lara e Valissa quase como parte da sua família, depois
da morte do pai delas. E o mesmo príncipe que tinha
torturado Lara como uma forma de forçar Val a fazer o
que ele queria.
Ela abaixou sua pistola e respirou fundo.
Atirar não ia adiantar nada.
Ela se virou para trás.
Valissa estava parada perto da entrada do galpão,
encarando o alvo onde Lara estava atirando.
Lara não queria nem saber quanto tempo fazia que
sua irmã estava ali.
— Você deveria estar dormindo — Lara falou.
Val deu de ombros.
— E você não devia estar aqui.
Verdade, também. Lara tinha perdido a noção das
horas, mas lá fora ainda estava escuro, sem nenhum
sinal de que estava amanhecendo.
— Você fez alguma coisa — Val falou.
Lara respirou fundo e guardou sua pistola.
Seis anos antes, quando o pai delas tinha sido
executado pelos príncipes, ligar o poder das duas tinha
parecido uma boa ideia. Era uma medida de segurança,
porque sempre que usassem o poder que era delas, a
outra saberia – e teria tempo para fugir ou para tentar
fazer alguma coisa. Era como Lara tinha ficado sabendo
que Val estava fazendo alguma coisa com o seu poder
para o Setor Dez.
Mas ela nunca tinha parado para pensar em como
era para Val, saber que Lara estava usando o que tinha
herdado do pai, saber que provavelmente era algum tipo
de luta, e não poder fazer nada.
A pior parte era que Lara não conseguia nem pensar
em desfazer a ligação, principalmente depois de ter ido
atrás de Nicolai.
E, seis anos antes, elas tinham prometido que não
iam guardar segredos uma da outra.
Lara se virou para Valissa de novo.
— Você lembra de Nicolai? — Ela perguntou.
Val se endireitou e assentiu.
— Ele descobriu que você está aqui — Lara contou.
— Eu fui atrás dele.
— Ele...
— Destruído — Lara completou, depressa. — Eu
consegui destruir ele.
Ou tão perto que não fazia diferença real.
Val assentiu, sem mostrar nenhuma reação. Nem
medo, nem preocupação, nada – e aquilo era um soco na
boca do estômago de Lara. Pior, talvez. Por seis anos,
desde que tinham fugido do Setor Três, Val tinha sido
daquele jeito: impassível, atenta, sem nunca reagir e
nunca chamar atenção.
A primeira vez que Lara tinha se encontrado com
Val, no dia em que Dani tinha aceitado ela no Setor Dez,
havia sido um choque. Val estava correndo com as outras
crianças, brincando como se nada daqueles anos tivesse
acontecido.
Por mais que a infância de Lara não tivesse sido das
mais convencionais – não viajando entre setores,
passeando entre mercenários e bruxas sem nem saber
que era isso que estava fazendo – tinha sido uma
infância. Val não tinha tido nem aquilo. Aqueles meses no
Setor Dez tinham sido a primeira vez que Lara havia
visto sua irmã agir com a falta de preocupação que uma
garota da sua idade deveria ter.
Ver aquela expressão vazia, de novo...
Lara atravessou o espaço da estrada do galpão
depressa e se abaixou na frente de Valissa.
— Eles não achar a gente de novo — ela falou.
Val engoliu em seco.
— Você destruiu ele — a garota murmurou. — Mas
ele não é o único.
Não. Ainda havia Arman e o próprio Eric, que Lara
não conseguia deixar de pensar que era o mais perigoso
de todos.
A máscara de controle de Valissa se quebrou de uma
vez e de repente ela era só uma garota de dozes anos,
assustada e tentando não chorar.
— Eu não quero fugir de novo — ela falou.
Lara puxou Val e a abraçou com força.
Fugir de novo era seu primeiro instinto, mas fazer
aquilo ia ser estupidez. Nenhum lugar seria mais seguro
para elas do que o Setor Dez. E Lara já tinha visto como
o pessoal importante dali tratava Val quase como uma
irmã mais nova, também. Eles não iam deixar nada
acontecer com ela.
Mas aquilo não queria dizer que Lara não fosse fazer
nada. Ela só não sabia o quê, ainda.
— Não vamos fugir — ela avisou.

Eric parou no alto da escada e olhou para baixo. O tamanho


daquela casa chegava a ser ridículo. Não havia a menor
necessidade para um saguão de entrada daquele
tamanho – da mesma forma que não havia motivo para
os três andares da casa e a opulência que Arman tinha
feito questão de exibir por toda parte. Estátuas, pinturas,
peças decorativas que eram antiguidades... E os crânios,
por toda parte. Seria diferente se tudo aquilo estivesse
ali porque era algo que ele gostava. Mas não. Eric tinha
visto Arman falar vezes demais que tudo aquilo era
apenas para criar a impressão que ele queria. Para
intimidar.
Existiam formas melhores e mais eficientes de fazer
aquilo – e várias delas não envolviam ter um verdadeiro
museu em casa, peças que deveriam estar sendo
preservadas em algum lugar. Mas Arman sempre havia
sido arrogante e sempre havia pensado que uma
exibição de riqueza seria o suficiente para comprar o
respeito das pessoas do setor.
E, apesar de tudo, a casa dele ainda era melhor que
a de Nicolai. Era mais fácil lidar com as antiguidades do
que com a quantidade de ossos e armadilhas que Eric
tinha notado ao entrar na outra casa.
Ele desceu a escada depressa e virou, voltando
através do saguão para entrar na sala que dois do seu
pessoal estavam usando.
Os dois vampiros estavam inclinados sobre um tablet
aberto. Ícaro estava falando alguma coisa em voz baixa
enquanto apontava para o tablet, mas não parecia que
estava falando para a mulher ao seu lado. E Tamara
estava de braços cruzados, só encarando o que o outro
vampiro estava fazendo sem dizer nada, o que nunca era
um bom sinal.
— O que descobriram? — Eric perguntou.
— Quer as más notícias daqui ou as más notícias de
fora primeiro? — Tamara perguntou.
— Daqui.
Ela apontou alguma coisa no tablet antes de se
endireitar e olhar para Eric. Ícaro assentiu, sem levantar
a cabeça.
— Exatamente o que você esperava — Tamara falou.
— Uma boa parte dos mais velhos já começou a falar que
você é a pessoa errada para estar no controle do setor.
— Idiotas — Ícaro resmungou, enquanto fazia uma
linha com o dedo no tablet.
Eric não ia discutir com aquilo. O outro vampiro não
estava errado.
— O mesmo de sempre? — Ele perguntou.
Tamara assentiu.
— A mesma fala de que se você realmente fosse
forte o suficiente para ser um príncipe, teria assumido
essa posição muito antes, ao invés de passar décadas
sendo "só um necromante".
Eric deu um sorriso rápido quando ela fez aspas com
os dedos, mas a situação era complicada demais para o
sorriso durar.
Ele nunca havia sido "só um necromante". Menos de
dez anos depois que seu mentor havia ido embora da
região, Eric já era o líder dos necromantes do Setor Três –
ou tão perto de um líder quanto eles tinham. Mas era Eric
quem coordenava qualquer coisa que precisasse de um
grupo de necromantes trabalhando junto e nenhum deles
disputaria seu direito de fazer aquilo. Nenhum dos
necromantes do setor era tão forte quanto ele.
Mas os necromantes eram a minoria, mesmo que
fossem eles que houvessem feito o setor se tornar
respeitado e temido. Mesmo que nenhum deles fosse
questionar a posição de Eric, ele precisava de mais –
precisava dos vampiros que antes haviam seguido Nicolai
e Arman – e Vicente, o príncipe que Eric destruíra sete
anos antes.
A maioria dos vampiros não entendia que os
necromantes não viam a menor necessidade de exibir
sua força. Eles sabiam o que podiam fazer e entendiam
que a grande maioria dos outros vampiros estaria
indefesa contra eles. E, no passado, os necromantes
haviam sido caçados – porque os vampiros no poder não
podiam correr o risco de que alguém fosse capaz de
pará-los.
Eric foi na direção da mesa. Tamara se afastou para
o lado, deixando ele ver o tablet aberto sobre a mesa e o
mapa onde Ícaro estava desenhando linhas e ligando
pontos. O outro vampiro ainda estava terminando o que
quer que estivesse fazendo, então Eric não o
interromperia.
— Uma demonstração de poder daria um jeito nisso
depressa — Tamara murmurou.
Sim, mas teria que ser algo grande. Não seria uma
demonstração de força, mas sim de brutalidade.
— Eles viram quando destruí Vicente — Eric falou. —
E uma boa parte da cidade assistiu ao fim da minha luta
contra Arman. Se isso não foi o suficiente, qualquer coisa
que seja o bastante para convencê-los também vai ser o
suficiente para afastar o restante do setor.
Ele precisava encontrar outra forma de ganhar os
vampiros mais antigos. E aquilo sempre havia sido um
problema, porque vampiros raramente davam sua
lealdade. Eric não entendia por que o Setor Três passara
séculos sendo governado por três príncipes – dividindo a
lealdade das pessoas – mas aquilo só serviria para deixar
seu trabalho mais difícil. Os vampiros ali nunca haviam
estado unidos. Naquele tempo todo, Eric só conseguia
pensar em um vampiro que tivera a lealdade de quase
todos e que poderia ter assumido o controle do setor, se
quisesse. Mas aquele vampiro não existia mais...
Mas sua filha estava no setor aliado a eles. Lara.
Uma humana com sangue de vampiro – com sangue do
único vampiro que havia sido mais que respeitado por
todos os grupos dentro do Setor Três.
Ela tinha encontrado Nicolai antes da fronteira com o
Setor Dez, como se estivesse esperando por ele. Eric não
dera importância para aquilo, mas deveria ter dado. Lara
sabia que Nicolai iria para o Dez naquela noite e havia se
preparado para atacá-lo no caminho. Alguém havia lhe
dado informações – alguém que era próximo de Nicolai.
Se um vampiro que deveria ser leal a Nicolai estava
disposto a dar informações para Lara, então talvez Eric
tivesse outra opção. Ele só precisaria fazer ela aceitar
aquilo.
— E as más notícias de fora? — Ele perguntou.
— Algo disparou um dos sensores perto da fronteira
com o Cinco — Tamara contou. — Não consegui descobrir
o que é.
— E os batedores da fronteira norte estão vendo
trilhas demais — Ícaro falou, ainda sem levantar a
cabeça. — Eles não têm certeza se é uma migração dos
animais das terras de ninguém ou se tem alguma coisa
acontecendo lá, mas não vão arriscar a sair da área
segura sem uma ordem direta.
E ele estava debruçado naquele mapa porque estava
reunindo as informações dos batedores.
— Me avise quando tiver alguma coisa — Eric pediu.
Ícaro olhou para ele com uma expressão que era
uma resposta clara: Eric não precisava pedir, era mais
que óbvio que ele avisaria. O outro vampiro encarou o
mapa de novo, resmungando em voz baixa e
aparentemente sem dar mais atenção para Eric e
Tamara.
Aquilo não era nada fora do normal e era um dos
motivos para Eric ter conseguido Ícaro para o seu pessoal
décadas antes. Não importava o quanto Ícaro fosse seco
ou como ignorava tudo e todos quando estava lidando
com informações, ele era o melhor no que fazia. Eric não
ia ser estúpido e insistir para que ele respondesse como
os outros vampiros normalmente exigiriam.
Ele se virou para Tamara de novo.
— Isso quer dizer que temos um limite de tempo —
ele falou.
Porque as chances das tais trilhas nas terras de
ninguém serem algo natural eram mínimas. Era até
possível que estivessem sendo feitas por animais, mas
Eric era capaz de apostar que algum dos outros setores
estava por trás daquela movimentação. O que queria
dizer que ele precisava ter o Setor Três completamente
sob o seu controle antes de um possível ataque.
— Tem tanta certeza assim de que isso quer dizer
que vamos ser atacados? — Tamara perguntou. — Os
outros setores parecem estar concentrados demais no
Dez.
Eric atravessou a sala e parou na frente de uma
estante vazia.
— O Dez é o alvo visível — ele começou. — O óbvio,
por não serem uma Corte. Mas nunca foram os únicos.
E ele tinha notado aquilo logo depois de se tornar um
príncipe, mesmo que Nicolai e Arman parecessem pensar
que tudo que acontecia fosse coincidência ou azar. Mas o
Setor Três estava sendo testado havia muito tempo.
Aquele tinha sido um dos motivos para Eric fazer tanta
questão de uma aliança com o Dez. Eles eram os únicos
que ele tinha certeza que não os trairiam, porque as
Cortes dos vampiros...
Havia um grupo que queria destruir Lorde Rafael.
Eric não tinha certeza se eles não sabiam quem o outro
príncipe realmente era ou se apenas não se importavam,
mas aquilo não fazia diferença. Eles queriam
desestabilizar o Setor Um e assumir o controle da região
– porque, apesar de tudo, Lorde Rafael garantia que a
região funcionasse sem grandes conflitos.
Outro grupo queria destruir o Setor Dez – em parte
porque não era natural um setor ser governado por uma
bruxa, em parte porque queriam o que eles tinham. Se o
interesse era na bruxa da natureza que se casara com
Lorde Rafael, em outra das bruxas ali, em Amon, ou até
mesmo no que diziam que a Corte da Sombra havia
deixado para trás antes de ser diferença, aquilo também
não fazia diferença.
E ainda havia aqueles que queriam destruir o Setor
Três e a Corte da Névoa. Não era difícil entender os
motivos deles ou o que queriam fazer. O Setor Três era
temido e respeitado por causa dos necromantes. E,
graças ao desperdício de espaço que eram os príncipes
dali, antes, eles haviam se isolado. Ninguém sabia o que
faziam ou do que eram capazes, o que só transformava o
setor em um alvo melhor.
Se alguém tomasse o Setor Três, tomaria toda a
região – porque nenhum dos outros setores teria
coragem de desafiá-los. Eles teriam o caminho livre para
enfrentar Lorde Rafael.
E Eric tinha uma ótima ideia de qual seria o resultado
de um ataque direto ao Setor Um. Não importava quem
saísse vitorioso, o resultado seria uma região destruída.
Não. Aquele era o motivo para ele ter destruído
Arman e ter ido atrás de Nicolai. Se eles se recusavam a
ver o que estava na sua frente, então Eric faria o que era
necessário, porque ele não tinha a menor intenção de ser
uma peça no jogo alheio.
— Os carniçais — Tamara murmurou. — Eu tinha me
esquecido deles.
Eric assentiu devagar. Ninguém mais tinha dado
importância para aquilo, mas o Setor Cinco havia
mandado seus carniçais para dentro do território do Três
várias vezes. Ele mesmo quase havia sido destruído
depois de cair em uma armadilha.
— Eles já estavam nos testando — ele falou.
E o Setor Três havia falhado no teste – porque
ninguém investigara as fronteiras, nem mesmo depois de
terem provas sobre os carniçais.
Eric se virou.
Tamara ainda estava parada no lugar, o encarando, e
Ícaro continuava inclinado sobre o mapa, traçando
padrões com base nas informações dos batedores.
— Qual é o plano? — A vampira perguntou.
Ele balançou a cabeça.
— Continue vigiando. Quero saber de qualquer sinal
de problemas, mas talvez eu tenha algo que vai ser o
suficiente para conseguir a lealdade dos mais velhos.
Tamara assentiu, sem insistir.
Ótimo, porque Eric não tinha tanta certeza sobre seu
plano – mas era sua melhor opção. Agora ele só
precisava torcer para ter algo capaz de convencer Lara a
aceitar aquilo,

Dani olhou para as pessoas reunidas na sala da sua casa e tentou


não fazer um ruído irritado. Por mais que ela odiasse
admitir, talvez todo mundo estivesse certo e ela e Amon
precisassem de outra casa. Algum lugar maior, onde pelo
menos tivessem como fazer reuniões sem precisar estar
cada um escorado para um lado da sala, aproveitando
cada espaço possível – que era o que sempre acontecia
ali.
Raquel e Adriana já estavam no sofá – e pelo menos
Raquel estava parecendo descansada de novo, depois de
quase um ano em que era óbvio que ter destruído os
vampiros do Setor Oito havia cobrado um preço alto.
Adriana estava encarando algo em um tablet,
provavelmente algum relatório dos sistemas de vigilância
secundários, que tinham virado responsabilidade dela em
algum momento dos últimos meses. Yuri e Melissa
estavam parados perto de uma das janelas, conversando
em voz baixa, e Dani não ia tentar ouvir. Conhecendo os
dois, podia tanto ser alguma coisa importante quanto
planos para o que iam fazer um com o outro quando
estivessem sozinhos e Dani não fazia a menor questão
de ouvir aquilo.
Do outro lado da sala, Amon e Ezequiel estavam
conversando em voz baixa, também. E aquela conversa
Dani já sabia sobre o que era: Ezequiel tinha começado a
estudar os restos das defesas do Setor Quatro que ainda
estavam no território, o que queria dizer que sempre que
podia ele ia atrás de Amon e Melissa para ver o que
sabiam sobre algo que tinha encontrado.
A porta se abriu. Dante, Alex e Eduardo entraram.
Alex foi direto para o seu lugar de sempre: encostade na
parede baixa que separava a sala da cozinha. Ainda era
estranho ver elu ali, depois de anos sabendo que Alex
queria distância de tudo envolvendo o lado político e
tudo mais do setor, mas de certa forma aquilo fazia todo
sentido. Elu não teria passado tanto tempo evitando tudo
se realmente não se importasse.
E agora a sala estava mesmo parecendo cheia
demais.
Eduardo fechou a porta trás de si antes de ir para o
sofá, enquanto Dante parava perto de outra janela
fechada. Ezequiel parou a conversa com Amon para
conferir a porta e o sistema de segurança – como se
alguém tivesse a menor chance de se aproximar da casa
sem ser notado por Dani ou por Amon.
— Todo mundo aqui — ela falou.
Adriana abaixou o tablet, Melissa e Yuri se
endireitaram e Amon atravessou a sala para parar ao
lado de Dani, na porta do quarto.
Eles realmente precisavam começar a pensar em
olhar outra casa – e Dani nunca falaria aquilo perto de
ninguém além de Amon.
Raquel se endireitou e olhou para Amon.
— Você pediu a reunião — ela começou. — O que
aconteceu?
— Eric entrou em contato — Amon contou. — Ele
destruiu os outros dois príncipes do Setor Três.
O que queria dizer que agora Eric controlava o setor.
E aquilo não seria nada demais, se não estivessem
falando do Três, que sempre tinha tido mais de um
príncipe, por mais que Dani nunca tivesse entendido
como aquilo funcionava.
— Isso vai afetar a aliança com o Três de alguma
forma? — Raquel perguntou.
Amon balançou a cabeça.
— Não de forma negativa. Eu diria que agora a
aliança é mais confiável que nunca, porque é algo que
Eric quis, desde o começo. Os outros príncipes não
tinham tanta certeza sobre isso.
— Tá, mas o que isso quer dizer pra nós? — Alex
perguntou. — Porque eu aposto qualquer coisa que ele
não veio atrás dessa aliança à toa.
Melissa assentiu.
— E Eric não é um vampiro jovem — ela falou. — Se
ele destruiu os outros príncipes, não foi de surpresa. Isso
foi planejado e planejado por muito tempo. O que quer
dizer que a aliança com o Setor Dez fazia parte desses
planos, de alguma forma.
Dani cruzou os braços. Era óbvio que tanto Alex
quando Melissa iam focar naquilo. Alex tinha passado
tempo demais estudando a história dos vampiros e
Melissa havia passado mais de cem anos em jogos de
manipulação nas Cortes antes de ser transformada em
humana de novo – por Eric.
Dani tinha se esquecido daquele detalhe.
— E ele fez questão de oferecer pra te transformar
em humana — ela comentou.
Melissa se virou para ela e a encarou de um jeito que
era parecido demais com quando ela ainda era uma
vampira.
— Seria um bom jeito de garantir que ninguém ia
descobrir os planos dele — Yuri completou.
Porque Melissa, quando era uma vampira, conseguia
invadir as mentes de qualquer um, vampiro ou humano.
Mas Dani contava nos dedos das mãos quantas pessoas
sabiam daquilo. Ela mesma só tinha ficado sabendo
depois de tudo o que havia acontecido no Setor Cinco.
— Improvável — Melissa falou. — Eu não tinha
nenhum motivo para ter contato com Eric. A forma mais
fácil de garantir que eu não descobrisse nada seria
continuar não tendo contato comigo.
— E mais improvável ainda porque não creio que ele
está preocupado com isso — Amon interrompeu.
— Você mesmo falou que não achava que ele estava
contando por que queria uma aliança — Dante falou.
Amon respirou fundo e soltou o ar devagar. Dani
tentou não sorrir. Ela tinha avisado que alguém ia se
lembrar daquilo e ele não havia acreditado.
Raquel levantou uma mão e mais ninguém falou
nada.
— Da outra vez, ele disse que queria uma solução
para o pântano — ela começou. — Que se algum setor na
região fosse ter alguém capaz de fazer o pântano parar
de crescer, seríamos nós. E que, na pior das hipóteses,
poderíamos ser um lugar seguro para os humanos do
Setor Três, se perdessem o território por causa do
pântano.
E Eric estava mais certo do que imaginava, porque a
pessoa que havia criado aquele pântano estava no Setor
Dez. Dani ainda não tinha superado a surpresa de
descobrir que Valissa tinha feito aquilo, mas a surpresa
não mudava o fato de que ninguém ia falar nada sobre
aquilo para Eric. O que sabiam era que Valissa e Lara
haviam fugido do Setor Três quase sete anos antes e
feito questão de continuar escondidas.
— O que mudou? — Raquel completou.
Amon inclinou a cabeça de leve antes de passar um
braço ao redor da cintura de Dani e a puxar para mais
perto. Ela foi, sem resistir. Eles já tinham tido aquela
mesma conversa antes do pessoal começar a chegar ali.
— Desde o começo, Eric falou que não podíamos
continuar isolados se quisermos sobreviver — Amon
contou. — Nem nós, nem eles. E isso não é uma mentira.
O que não sabíamos era que o Setor Três já é um alvo,
também — ele continuou. — Antes de destruirmos os
carniçais, Eric foi pego em uma armadilha dentro do Três
e quase foi destruído.
— E os outros príncipes...? — Melissa começou.
Dani balançou a cabeça. Aquela era a pior parte.
— Não fizeram nada — ela falou. — Ainda acho que
isso pode ser porque estavam trabalhando com o Cinco
pra se livrar de Eric, mas...
— Mas isso é improvável demais — Amon completou.
— E só porque estamos falando do Setor Três. Se
quisessem se livrar de Eric, teriam garantido que alguém
leal a eles o desafiasse e tomasse seu lugar. Então o
mais provável é que realmente não se importaram, mas
isso não faz diferença para nós.
— O que importa é que fizeram uma armadilha para
Eric perto da fronteira — Dani contou. — E não tem como
não pensar que não foi o Setor Cinco, o que quer dizer
que o Três é um alvo, sim.
— E que diferença isso faz para nós? — Eduardo
perguntou. — Não sei os detalhes do que negociaram
nessa aliança, mas se nós formos arrastados para um
problema deles...
— Vai ser problema nosso de qualquer jeito — Alex
falou. — E não por causa de uma aliança.
— Se alguém enfrentar o Três e vencer, não vão
parar só nisso — Yuri completou. — Foi a mesma coisa
que discutimos antes de eu ir para o Cinco.
Dani assentiu e não falou nada. Desde que Amon
tinha lhe contado aquilo, ela não parava de pensar na
mesma reunião que Yuri tinha mencionado.
— E imagino que o Setor Três não tenha forças para
conter um ataque sozinho, mesmo com toda a fama que
têm — Raquel falou.
— Eric diz que têm forças, dependendo do tamanho
do ataque — Amon contou. — Mas que ele precisaria ter
o setor completamente sob o seu controle para fazer isso
funcionar.
E, em um setor que até horas antes tinha três
príncipes, ia ser um pouco complicado fazer todo mundo
seguir uma pessoa só. Aquele era um dos motivos para
Dani não entender como o Setor Três tinha funcionado
por tanto tempo com mais de um príncipe. Se bem que,
talvez falar que tinha "funcionado" fosse um exagero.
Não parecia que as coisas estavam muito bem por lá.
— E o que nós temos a ver com isso? — Ezequiel
perguntou.
Amon apertou a cintura de Dani. Ela sabia que ele
não tinha gostado nem um pouco do pedido de Eric, mas
a decisão não era dele.
— Eric quer Lara — ele falou. — Ele acha que ela tem
alguma coisa que seria o suficiente para fazer os
vampiros que eram leais aos outros príncipes o seguirem.
— Eu espero muito que esse "querer" dele seja uma
proposta de trabalho — Raquel falou.
Amon assentiu.
— E ele me garantiu que não vai forçar Lara a nada,
se ela não aceitar a oferta dele.
Aquela era a parte que preocupava Dani. Eles não
tinham nenhuma garantia além da palavra de Eric. Por
algum motivo, Amon acreditava nele e aquilo era uma
coisa que ela ia levar em conta, mas mesmo assim...
— O que Lara tem de diferente? — Dante perguntou.
— Sei que ela foi com vocês para o Setor Nove, mas
ninguém explicou nada.
— Foi uma decisão minha e foi de última hora —
Dani contou. — Não dei detalhes para quem não estava
lá, nem vou dar, porque o segredo não é meu.
Dante olhou para Raquel, que assentiu. Era óbvio
que ela sabia – Dani nunca esconderia alguma coisa da
mulher que era a líder do setor – e Raquel tinha
concordado que era melhor manter o que Lara podia
fazer em segredo.
Mas Eric sabia. Ele tinha ido para o Setor Nove,
também.
— Alana deveria estar aqui — Alex murmurou. — Ela
que é boa para lidar com esse tipo de coisa.
Raquel assentiu.
— Deveria, mas ela já estava no pomar quando o
aviso de Amon chegou.
E ninguém era louco de ir atrás de Alana quando ela
desaparecia no pomar. Muita coisa podia ter mudado no
último ano, mas aquilo ainda era igual. Ou melhor, não
tão igual assim, porque antes ela desaparecia no
milharal. Mas a ideia era a mesma: quando Alana ia para
o pomar, era porque não queria lidar com ninguém e era
melhor para todo mundo se não fossem atrás dela.
Raquel olhou para Amon de novo.
— Você acredita que Eric estava falando a verdade?
— Ela perguntou. — Que ele vai respeitar a decisão de
Lara?
Amon apertou a cintura de Dani de novo.
— Acredito — ele falou. — A escolha vai ser dela.
E, um dia, Dani ia convencer Amon a lhe contar por
que tinha tanta certeza sobre Eric.
— Então avisem Lara e vejam se ela está disposta a
ouvir a proposta dele — Raquel continuou. — E se tiver
mais informações...
Amon assentiu.
— Vou repassar.
QUATRO

Lara entrou no pomar e parou, respirando fundo. Aquele não era


o seu lugar, mas era o único lugar onde ela achava que
ia conseguir ficar sozinha.
As horas no galpão de tiro, de madrugada, não
tinham adiantado de nada. E o que Val tinha falado...
Ela precisava pensar em alguma coisa. Não era justo
com Valissa que precisassem fugir de novo, justamente
quando ela estava começando a relaxar, pela primeira
vez. E, se precisassem fugir, não seria o suficiente ir para
outro setor. Elas teriam que atravessar as terras de
ninguém.
Lara ainda tinha as cicatrizes da última vez que
tinham precisado passar pelas terras de ninguém. As
linhas no seu rosto não deixavam ela se esquecer do que
podia acontecer lá, se ela se distraísse por um instante
que fosse.
Quando Lara tinha falado com Dani que não teria
consequências para o setor, ela não estava mentindo. Se
alguma coisa fosse acontecer, teria acontecido na hora.
Ela teria sido morta, o Setor Dez teria sido notificado de
uma quebra na aliança ou algo do tipo. Se ela estava
viva, então nada ia acontecer. Simples assim.
Mas saber daquilo não queria dizer que ela não
estava ansiosa. Lara sabia o que tinha feito. Nicolai era
um príncipe. Mesmo que aquilo não fosse ter
consequências para o setor, em algum momento teria
consequências para ela – e para Val.
Normalmente, Lara iria gastar a ansiedade em uma
das áreas de treinamentos. Não era difícil achar algum
mercenário querendo praticar até os dois estarem
esgotados. Mas ela não podia fazer aquilo. Lara não fazia
ideia de quanto do sangue de Eric ainda estava nela e de
como aquilo a afetaria. Ela não ia correr o risco de
chamar alguém para lutar e acabar usando mais força ou
velocidade do que era possível para uma humana.
Ela colocou a mão no pescoço e respirou fundo de
novo, antes de começar a andar mais para dentro do
pomar – para a parte onde raramente alguém além de
Val e Alana iam.
Quando Lara tinha olhado no espelho antes de sair
de casa de novo, de manhã, não havia mais nenhuma
marca no seu pescoço. Ela ainda se lembrava muito bem
da sensação das presas de Nicolai, de como ele tinha
tentado rasgá-la. A sensação da mordida, que não era
nada parecida com quando um vampiro queria se
alimentar – mesmo que estivesse fora de controle.
E aquele era o motivo real para Lara estar ali. Ela
não conseguia parar de pensar no que havia acontecido.
Não. Ela não conseguia parar de pensar em Eric.
Lara saiu do meio das árvores – ela não entendia o
suficiente de plantas para saber árvores de que elas
eram sem ver alguma fruta – e parou. Não era a primeira
vez que ela ia ali, muito pelo contrário, mas Lara sempre
se surpreendia quando chegava ali e via o lago pequeno
que Valissa tinha feito. Não que ela duvidasse do poder
da irmã, mas... Ainda era estranho ver aquilo ali. Lagos,
mesmo que pequenos daquele jeito, não eram comuns
em nenhum dos setores naquela região – a menos que
ela considerasse o pântano no Setor Três.
Mas aquele era o lugar para onde Val sempre ia,
então fazia sentido ela ter criado algo que fosse fazer ela
se sentir melhor.
Lara se afastou para o lado e contornou o lago até
achar uma árvore um pouco afastada da água e com
tronco grosso o suficiente para ela se apoiar. Ela se
sentou no chão, de frente para a água, e inclinou a
cabeça para trás.
Depois de ter destruído Nicolai, Eric deveria ser a
última pessoa na sua cabeça. Mas Lara só conseguia se
lembrar da impressão de cuidado quando havia
recuperado a consciência. E de como ele quase tinha
parecido ofendido quando ela havia falado sobre ser
punida.
Lara sabia quem ele era desde antes de precisar
fugir do Setor Três. Seus pais tinham feito questão de
que ela soubesse quem eram as pessoas importantes do
setor, porque assim seria mais fácil garantir que nenhum
deles notaria que ela não era completamente humana. E,
desde o começo, seu pai havia mencionado Eric como
um dos necromantes mais fortes, mesmo que ele
passasse despercebido pelos vampiros, na maior parte
do tempo.
Quase um ano antes, quando ela tinha encontrado
Eric inconsciente no pântano, a única coisa que Lara
havia pensado era que ele era forte o suficiente para
escapar dos carniçais e importante o suficiente para
ninguém duvidar da sua palavra. Se ela ia morrer, era
melhor que fosse de um jeito que faria as informações
chegarem em algum lugar. Então ela tinha dado seu
sangue para Eric.
Lara colocou a mão no pescoço, de novo. Antes de
Nicolai, ela tinha pensado que sabia o que era um
vampiro querendo destroçar sua presa – porque havia
passado quase um ano pensando que havia sido isso que
Eric tinha feito.
Ela não se lembrava de muito depois de ter cortado
a mão e oferecido o sangue para o vampiro. A dor do seu
pulso sendo quebrado quando ele havia recuperado um
pouco de consciência e a segurado com força demais. A
dor da mordida... No seu braço? No pescoço? Ela não
tinha certeza, porque a única sensação era a dor. As
garras se enfiando nela quando Lara havia tentado se
afastar por puro reflexo. E então a dor de outra mordida
antes de tudo ficar escuro.
E então ela tinha acordado no Setor Dez, dias depois
daquilo, com restos de curativos no corpo que nunca
seriam o suficiente para lidar com o pouco que ela se
lembrava. De acordo com o que haviam lhe contado, Eric
a havia levado para lá. Eric, que era um dos príncipes do
Setor Três.
Um arrepio atravessou Lara. Aquela era a parte que
não fazia sentido. Em algum momento entre quando ela
havia fugido do Setor Três e quando ela o encontrara no
pântano, Eric tinha deixado de ser o necromante que
passava despercebido e se tornado um dos príncipes do
setor. Era uma mudança drástica demais, principalmente
para os vampiros, porque eles raramente se davam ao
trabalho de mudar alguma coisa.
Algo fez barulho para o lado. Lara puxou uma das
suas facas ao mesmo tempo em que se virava. Aquele
lugar deveria ser seguro, mas "deveria" não era uma
garantia de nada.
Alana saiu do meio das árvores e olhou direto para
onde Lara estava.
— Eu devia ter imaginado — a bruxa resmungou.
E aquele lugar não era só um dos refúgios de Valissa.
Lara sabia muito bem quanto tempo sua irmã passava
com Alana. Mesmo que nunca tivesse encontrado a outra
mulher ali, elas estavam no pomar e Alana era uma
bruxa da natureza. Era óbvio que aquele lugar seria dela,
também.
Lara guardou sua faca e se levantou.
— Posso ir embora, sem problemas.
Porque ela entendia bem demais como às vezes
alguém precisava de um lugar para sumir por algumas
horas. Se aquele era o lugar de Alana, ela não ia se
intrometer.
A bruxa deu de ombros.
— Você não veio parar aqui à toa. E Valissa não se
escondeu sozinha, então acho que não vou ter problemas
com você.
Se tinha alguma lógica naquilo, Lara não fazia ideia
de qual era. Mas ela não ia discutir, até porque não fazia
a menor ideia de outro lugar para ir onde não fosse dar
de cara com ninguém.
Ela se sentou de novo, inclinou a cabeça para trás e
fechou os olhos.
— Nessas horas eu entendo por que Dani gostava de
negociar com você — Alana murmurou. — Vocês têm o
mesmo tipo de reação.
Puxar uma faca? Era a reação natural de qualquer
mercenário. E, mesmo que Dani não fosse uma deles, ela
tinha passado anos nas terras de ninguém. Era óbvio que
agiria do mesmo jeito.
Dani tinha passado anos nas terras de ninguém com
Alana – que não parecia nada com um dos mercenários.
Mas Lara não ia ser estúpida a ponto de pensar que ela
era inofensiva ou algo assim. Alana tinha passado seis
meses no Setor Um e voltado sem nenhuma marca. Não
importava qual acordo ela tivesse feito com Lorde Rafael,
havia algo mais ali, sim.
E Lara estava sozinha com alguém que tinha muito
mais informações sobre os vampiros que ela.
Ela abriu os olhos. Alana estava sentada bem para o
lado, em uma pedra maior que Lara não tinha notado
antes. Ela parecia certa ali, com o saião com estampa
verde e azul, regata clara e o cabelo preto com mechas
verdes. Até a tatuagem no braço dela, de galhos cheios
de folhas, parecia perfeita demais para uma bruxa da
natureza.
Alana não tinha precisado esconder quem era pela
maior parte da sua vida. Se tivesse precisado, não teria
aquela tatuagem. Mas Lara não ia perguntar. Pelo menos,
não aquilo.
— Você sabe quando Eric virou um dos príncipes? —
Ela perguntou.
A outra mulher se virou para ela, devagar, e
balançou a cabeça.
— Eu não estava aqui quando fizeram a aliança com
o Três. Ainda estava no Um.
E o Setor Dez só tinha começado a ter informações
sobre o Três depois da aliança.
Lara suspirou alto.
— Eu pensei que, se estava no Um, eles iam ter esse
tipo de informação.
Alana deu de ombros e jogou uma pedrinha na água.
— Provavelmente têm — ela falou. — Ou talvez não,
porque o Um não faz negócios com o Três, então não tem
nenhum motivo para serem notificados de uma troca de
poder ou coisa assim.
Lara não tinha pensado por aquele lado. O
isolamento do Setor Três tinha sido uma defesa, no
começo – pelo menos era o que seu pai tinha contado.
Que os príncipes achavam melhor evitar contato com as
outras Cortes, porque isso queria dizer que não
precisariam dar nenhuma informação sobre o que estava
acontecendo lá. E, de acordo com seu pai, na época
aquilo fazia sentido.
Mas "na época" tinha sido quase duzentos anos
antes, logo depois da volta da magia.
— E Lorde Rafael soube exatamente o que fazer para
me manter longe desse tipo de informações — Alana
resmungou.
Lara olhou para a bruxa de novo. Ela estava
encarando a água com uma expressão irritada, mas ao
mesmo tempo parecia cansada.
— Como assim?
Alana jogou mais uma pedra na água antes de se
virar para Lara.
— Ele soube me distrair — ela contou. — Com
materiais de estudo e acesso a especialistas, o tipo de
coisa que eu nunca vou ter aqui, mas... Não deixou de
ser uma distração.
— Isso tem alguma coisa a ver com a movimentação
toda nas plantações? — Lara perguntou. — Porque eu
posso não entender quase nada disso, mas acho que não
estamos numa época que deveria ser movimentada...
A outra mulher deu de ombros.
— Não estou falando que não teve nada útil no que
eu estava estudando. Mas eu podia ter ido atrás de mais
informações. Muito mais.
Lara assentiu devagar antes de fechar os olhos de
novo. Ela não conseguia nem imaginar fazer o que Alana
tinha feito – se oferecer em casamento para um vampiro
em troca da segurança do setor, sabendo que teria que
passar meses com ele, sem poder fazer nada. Então não
ia nem pensar em julgar a bruxa por ter ou não ter
conseguido informações.
E, pelo visto, se ela quisesse descobrir o que tinha
acontecido no Setor Três para Eric parar de se esconder,
ia ter que procurar informações em outro lugar.
Seria mais fácil só deixar aquilo para lá e tirar Eric da
cabeça.
— Posso perguntar uma coisa? — Alana começou.
Lara abriu os olhos. A bruxa tinha se inclinado para a
frente, com uma perna dobrada e um braço ao redor
dela.
— O quê?
— Val — ela falou. — O poder dela... Eu nunca nem
ouvi falar de uma bruxa com tanto poder assim e acho
que nem ela tem ideia disso.
Lara fechou as mãos com força. Ela estava no Setor
Dez. Tinha ido para lá – tinha mandado Valissa para lá,
antes – porque era o único lugar onde tinham uma
chance de estar seguras. Ela não precisava pegar uma
faca e se preparar para um ataque. Não era assim que
eles funcionavam.
Mas era isso que ela tinha acostumado a fazer,
porque o que Alana tinha falado era verdade. Val era
mais forte que qualquer bruxa que ela já tivesse ouvido
falar – e Lara tinha feito questão de pesquisar sobre o
assunto, quando ainda estavam no Setor Seis.
Alana continuou parada na mesma posição e deu de
ombros quando Lara não falou nada.
— Ela comentou comigo sobre a mãe de vocês, que
ela tinha o mesmo poder. E... Eu posso não ter crescido
nessa região, mas sou de uma família de bruxas — ela
contou. — De feiticeiras, na verdade, mas não faz
diferença. A questão é que se a mãe de vocês fosse uma
bruxa da água tão forte quanto Val, eu teria ouvido falar.
Lara se forçou a respirar fundo. Ela tinha se
esquecido daquilo – de como sua mãe parecia conhecer
gente demais, mesmo que nem trabalhasse tanto com os
mercenários. E ela conhecia pessoas que não fazia nem
sentido terem contato com ela, mas tinham, de alguma
forma. Aquilo tinha sido a infância de Lara: a risada da
sua mãe enquanto estava no celular, conversando com
alguém de outro setor ou outra região, os casos sobre o
que uma ou outra pessoa tinha feito e os debates sobre
até onde era certo usarem seus poderes.
E era algo que Val não ia ter – pelo menos não até
ser mais velha e ter condições de se defender, se o pior
acontecesse. Porque Alana estava certa.
Que diferença fazia admitir? Dani e Amon sabiam – o
que queria dizer que Raquel também sabia, com certeza,
e talvez mais alguém do alto da hierarquia do setor. Não
que aquilo fizesse diferença, também, porque elas
sempre tinham se escondido era do Setor Três. E Eric
sabia.
Lara suspirou.
— Você conhece Melissa, não é? — Ela perguntou.
Alana se endireitou e de repente não parecia nem
um pouco inofensiva. Lara sorriu. Não era difícil entender
o motivo da reação: ela apostava que quase ninguém
sabia o que Melissa era. Ou melhor, o que havia sido.
— Meu pai era como ela — Lara contou. — Eu teria
reconhecido o que Melissa é assim que vi ela pela
primeira vez, mesmo se não me lembrasse dela no Seis.
Se alguém ainda acreditava que Alana era
inofensiva, era porque eram estúpidos. Não era possível
que alguém convivesse com ela e não notasse o poder
da bruxa.
Ou talvez Lara só estivesse acostumada demais a
notar aquilo por causa de Val.
Ela sustentou o olhar de Alana, sem falar mais nada,
até que a outra mulher respirou fundo e relaxou.
— Seu pai ou...? — Ela perguntou.
Lara assentiu.
— Nosso pai. E a teoria sempre foi de que alguma
coisa dele se misturou com o poder da minha mãe e é
por isso que Val é tão forte.
Alana balançou a cabeça devagar e se inclinou para
a frente de novo.
— E você não herdou nada do poder da sua mãe —
ela murmurou.
Não e era melhor assim. Lara preferiria mil vezes ser
só uma humana comum – não era à toa que fazia tanta
questão de não usar o que tinha herdado do pai. Poder,
não importava de que tipo, só trazia problemas. Ela
sabia. Não importava o que tivessem falado no Setor
Três, depois que seus pais haviam sido mortos, Lara
havia entendido.
O celular de Lara vibrou no seu bolso. Ela o pegou e
encarou a mensagem na tela.
Tudo girou ao seu redor por um instante e ela estava
segurando uma faca, mesmo que não se lembrasse de
ter pegado a arma.
Mas as palavras na tela do celular ainda eram as
mesmas: Eric queria se encontrar com ela naquela noite.
O príncipe do Setor Três – que tinha encontrado Lara
depois que ela praticamente havia destruído um dos
outros príncipes.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar. Se ele
quisesse matá-la, já teria feito isso. O que quer que
aquilo fosse, não era uma ameaça.
— Problemas? — Alana perguntou.
Lara balançou a cabeça devagar.
— Não para vocês.
Pelo menos, ela esperava que não fosse.
E Alana ainda estava olhando para ela.
Lara não tinha motivos para não dizer o que era.
— Eric quer se encontrar comigo — ela contou. —
Dani falou que é uma proposta de trabalho.
Ela só não conseguia imaginar que tipo de proposta
de trabalho viria de Eric – ainda mais depois do que ela
tinha feito.
— E o que você vai fazer?
Lara guardou a faca e se levantou. Não era como se
ela tivesse muitas opções.
— Aceitar. Se recusar isso sem um motivo vai ser
uma ofensa e tudo mais.
Aquilo era uma das primeiras coisas que qualquer
um trabalhando como mercenário aprendia: vampiros
tinham egos e seus egos se doíam por qualquer coisa.
Ela não conhecia Eric o suficiente para saber se podia
recusar sem correr o risco de uma retaliação de algum
tipo... E Lara não estava em posição de poder lidar com
uma retaliação.
— Boa sorte — Alana falou.
Lara assentiu e se virou para o caminho entre as
árvores.
Sorte. Ela ia precisar de muito mais que só sorte.

Eric parou logo antes da fronteira com o Setor Dez e esperou.


Teria sido mais simples se ele tivesse pedido para Lara ir
até o Setor Três, mas ele tinha certeza de que ela nunca
concordaria com aquilo. Já era quase uma surpresa que
ela houvesse concordado em se encontrar com ele na
fronteira.
Do lado do Setor Três, dois carros estavam parados
um pouco mais para a frente, com os faróis apagados.
Interessante.
Mas não importava se tudo estivesse escuro e os
carros estivessem exatamente longe o bastante para ele
não conseguir ver quem estava dentro deles. Eric
conseguia sentir o cheiro de Lara – e agora tinha certeza
de que aquilo não era por causa do seu sangue. Era ela e
mais nada.
Não fazia diferença. Ele precisava dela para controlar
o setor. Talvez tivesse tempo para descobrir por que o
cheiro dela o chamava daquele jeito, mas aquilo nunca
seria a parte importante.
Amon saiu de um dos carros e encarou Eric por um
instante antes de assentir. Ele continuou parado no lugar.
Eric havia falado que iria sozinho e tinha mantido sua
promessa. Mas não era surpresa que Amon estivesse ali –
seria estupidez mandarem uma humana se encontrar
com um vampiro sem alguém que pudesse ajudá-la, na
pior das hipóteses.
Lara saiu do outro carro e parou, olhando
diretamente para ele. Yuri saiu do mesmo carro e parou
um pouco para trás dela, falando alguma coisa em voz
baixa com Amon. Lara se virou para eles e se endireitou.
Eric sorriu. Ele não tentaria ouvir o que estavam falando,
mas não precisava ouvir. O mais provável era que
tivessem falado algo no sentido de que ela não precisava
negociar com ele, se não quisesse – e ela era teimosa e
orgulhosa demais para recusar.
Amon e Yuri assentiram. Lara fez um gesto brusco e
começou a andar na direção da cerca que separava os
dois setores.
— O que você quer? — Ela perguntou, assim que
estava perto o suficiente para ser ouvida.
Eric não respondeu. Não ia gritar uma proposta. Se
ela não estava disposta a conversar com ele, então
aquilo não tinha nenhuma chance de funcionar, de
qualquer forma.
Ela continuou andando, até que estava a alguns
passos de distância da cerca.
Melhor.
— Se isso for uma armadilha ou algum tipo de
punição, é mais fácil ser direto — Lara continuou. — Não
desperdice meu tempo nem o seu.
Ele inclinou a cabeça para a frente devagar.
— Não é uma armadilha ou uma forma de punição.
Eu realmente tenho uma oferta de trabalho para você.
Lara o encarou. Ele teria preferido que ela não
fizesse aquilo, mesmo que ele não fosse um dos
vampiros com o poder de compelir humanos. Mas aquele
olhar direto era um desafio e Eric tinha certeza de que
Lara não estava preparada para qual era a sua reação a
um desafio como aquele – especialmente quando o
cheiro dela ainda parecia estar lhe chamando.
Ela cruzou os braços e levantou as sobrancelhas.
— E o que eu poderia fazer pelo Setor Três?
Eric sorriu.
— Você poderia fingir ser minha consorte.
O silêncio era exatamente a reação que ele estava
esperando. Lara o encarou, de boca aberta e piscando
depressa.
— Não — ela começou, falando devagar. — Você não
está falando sério.
Ele assentiu.
— Estou. Quero que finja ser minha consorte.
Podemos negociar termos e valores como preferir.
E Eric não se importava em deixar claro que ela
tinha o poder ali. Ele estava disposto a concordar com
praticamente qualquer coisa que ela quisesse, porque
Lara era a única forma que ele tinha de garantir a
lealdade dos mais velhos do setor sem precisar se tornar
algo pior que Nicolai e Arman haviam sido.
Lara deu uma gargalhada e balançou a cabeça. Eric
esperou. Aquela tinha sido exatamente a mesma reação
de Tamara e ele não julgava nenhuma das duas por
aquilo. Mas, entre levar Lara de volta para o Setor Três e
dar alguma mostra de poder que os mais velhos no setor
entenderiam, ele não tinha a menor dúvida sobre o que
preferia.
Ela parou e respirou fundo antes de olhar para ele de
novo.
— Você não está brincando.
— Não.
Lara balançou a cabeça devagar e passou uma mão
no rosto.
— Por que eu? — Ela perguntou. — É por ter...?
Eric balançou a cabeça.
— Não tem nada a ver com Nicolai. Até onde sabem,
eu o destruí. É mais seguro assim.
— Então...
— É por causa do seu pai.
Lara parou de um jeito que ele não tinha certeza de
que ela sabia que não era humano. Eric esperou, de
novo. Não adiantava insistir e fazer aquilo só aumentaria
o risco de que ela não aceitaria sua proposta. Ele não
podia correr o risco.
— Eu preciso de detalhes — ela falou.
Ele assentiu e gesticulou na direção da cerca. Não
era como se aquilo fosse algum tipo de defesa – postes
de madeira e arame grosso nunca parariam um vampiro.
Mas a cerca não estava ali por proteção ou defesa,
porque o Setor Dez sempre havia pensado que não teria
como se defender se o Três atacasse, então haviam
gastado seus recursos nas outras fronteiras.
Lara sustentou seu olhar por alguns segundos antes
de respirar fundo e se aproximar mais da cerca.
Bom. Eric não achava que Amon estaria tentando
ouvir a conversa, mas ele queria a ilusão de privacidade.
Ele começou a andar, devagar, no seu lado da
fronteira. Lara hesitou por um instante antes de fazer a
mesma coisa.
— Quanto você sabe sobre seu pai antes de ele ser
transformado em humano? — Eric perguntou.
Lara deu de ombros, sem parar de andar.
— O suficiente.
Eric assentiu.
— Então você deve saber que ele não era um
vampiro jovem. E que era respeitado no Setor Três.
— E que continuou sendo respeitado, mesmo quando
era humano de novo — ela respondeu, depressa.
Não era uma mentira, mas não era a mesma coisa.
— Sim. Mas quando Oscar ainda era um vampiro, se
ele quisesse poderia ter se tornado um príncipe. Ele tinha
poder para isso e tinha a lealdade da maior parte do
setor.
Lara parou de andar e se virou para ele.
— A lealdade que você não tem, mesmo que seja o
único príncipe — ela falou.
Ele queria negar. Era praticamente instinto. Mas se
pudesse se dar ao luxo de negar aquilo não estaria ali.
Eric parou e assentiu.
— Tenho a lealdade da Corte da Névoa, de parte dos
humanos e da maioria dos vampiros mais novos. Mas os
que estão há mais tempo no setor...
Lara levantou uma mão.
— Você acabou de dizer que tem a lealdade da
Corte. E aí está falando que não tem...?
Ela era humana. Criada no Setor Três, sim, mas
humana. Não importava quem Oscar havia sido, antes,
ele era humano, com uma esposa humana. E ele tinha
feito questão de criar suas filhas como humanas, longe
das políticas dos vampiros. Eric precisava se lembrar
daquilo.
— A Corte da Névoa são os necromantes. Os outros
vampiros são parte do Setor Três, mas não são parte da
Corte.
Ela o encarou por um instante antes de balançar a
cabeça.
— Então você tem os necromantes, os humanos e os
vampiros mais novos — Lara falou. — E o que te faz
pensar que eu conseguiria ajudar em qualquer coisa
nesse sentido?
Eric sorriu.
E os batimentos do coração de Lara tinham
acelerado por algum motivo.
— Você sabia os planos de Nicolai — ele falou. —
Você estava esperando por ele. Isso quer dizer que
alguém que deveria ser leal a ele, na verdade foi mais
leal a você. Ou à memória do seu pai.
Lara se virou para o lado de novo e encarou o
horizonte.
Ele estava certo.
— Mesmo que alguns vampiros ainda sejam leais à
memória do meu pai, isso não quer dizer que eu vou
servir de alguma coisa — ela falou.
— E por que não?
Ela se virou para ele de novo.
— Porque eu sou humana. Meu pai pode ter sido um
vampiro, antes, mas eu sou só humana.
Ela era humana, sim. Mas nunca seria só humana.
Lara era muito mais que aquilo.
— Você é humana. Mas não é apenas humana e não
adianta tentar dizer isso — ele falou. — Você é o
resultado do melhor que o Setor Três já teve a oferecer. E
ter você de volta, ao meu lado, vai ser um lembrete do
que poderíamos ter tido, de como poderíamos ser muito
maiores hoje, se não fosse pela ganância dos príncipes.
Lara respirou fundo, sustentando o olhar de Eric.
Não era o suficiente. Lara não tinha motivos para se
importar com o Setor Três.
— E eu vou ter alguém de fora em quem eu posso
confiar — Eric continuou. — Alguém com uma visão nova
do que está acontecendo no setor, que pode notar coisas
que eu nunca veria. Eu conheci Oscar. Ele tinha honra,
mais do que deveria, para um vampiro da sua idade. E
acredito que você tenha o mesmo tipo de honra.
Que, uma vez que tivessem um contrato e Lara
tivesse dado sua palavra, ela não o trairia de nenhuma
forma. Se Eric não acreditasse naquilo, não estaria ali.
Lara desviou o olhar.
Ele esperou. Eric sabia que podia insistir. Ainda havia
argumentos que podia usar e que garantiriam que ela
aceitaria. Mas ele não queria que Lara aceitasse porque
não via outra opção. Ele precisaria dela, sem nenhum
tipo de coerção, se quisesse que aquilo funcionasse.
— Eu quero uma garantia de segurança para Valissa
— ela falou.
Eric se forçou a não sorrir. Ela ia aceitar. Não
importava o que Lara fosse pedir, o importante era que
ela ia aceitar.
— Não precisa me dizer o que quer agora, às pressas
— ele interrompeu.
Ela se virou para ele e levantou uma sobrancelha.
— Por algum motivo tive a impressão de que você
estava com pressa.
Ele assentiu.
— Estou. O ideal seria que você viesse para o Três na
próxima noite — Eric falou. — Mas uma garantia de que
vai aceitar é o suficiente, por enquanto. Você pode definir
o que quer como pagamento e como garantia durante o
dia, com calma, e me enviar.
Lara cruzou os braços e balançou a cabeça.
— E você vai aceitar qualquer coisa que eu colocar
nesse contrato sem discutir?
Eric sorriu. Ela não fazia ideia – nem de quanto ele
estava disposto a ceder para ter a presença dela no Três,
nem de quanto aquele desafio fazia suas presas doerem.
E nunca teria ideia.
— Não qualquer coisa.
Ela continuou parada de braços cruzados, o
encarando. Mas Eric não iria elaborar. Lara não era o tipo
de pessoa que abusaria de um contrato. Não. Ela
provavelmente pediria várias garantias de segurança,
mais para a irmã do que para si mesma, e talvez algo
para proteger o Setor Dez, também. E cobraria caro –
daquilo ele não tinha dúvida – mas seria um preço justo
para o que ele queria que ela fizesse.
Lara respirou fundo e soltou o ar com força.
— Tem minha garantia de que vou aceitar, então —
ela falou. — E é bom você não dar pra trás quando eu
mandar o que quero.
Ele assentiu.
— Não vou.
CINCO

Era bom demais para ser verdade.

Lara parou alguns passos antes da fronteira com o


Setor Três e respirou fundo. Ela tinha dado sua palavra,
não ia voltar atrás agora. E, pior que ter dado sua
palavra: Eric havia concordado com tudo que ela tinha
colocado no contrato. Os valores, ela já esperava que ele
fosse aceitar pagar sem questionar, mesmo que ela
estivesse cobrando quase o dobro da taxa normal de
uma mercenária. Mas normalmente uma mercenária não
precisava fingir ser a consorte de um príncipe vampiro,
com tudo o que aquilo incluía, então Lara considerava o
preço mais do que justo. E Eric tinha concordado – depois
de fazer questão de lembrar Lara que ela teria que
convencer os outros vampiros de que estaria no Setor
Três por causa dele.
Não, a parte que Lara tinha esperado que ele fosse
questionar era a coleção de garantias de segurança que
ela tinha enfiado no meio de tudo, com a ajuda de Alana.
A bruxa tinha aparecido no apartamento de Lara
completamente do nada durante a tarde e lhe lembrado
que ela tinha crescido sendo treinada para lidar com
vampiros. Se havia alguém no Setor Dez que saberia
como fazer um contrato que não daria nenhuma margem
para interpretações alternativas – nas palavras de Alana
– era ela.
E aquele era o único motivo para Lara estar fazendo
aquilo. Era exatamente a oportunidade que ela estava
procurando, depois de ter atacado Nicolai. Uma forma de
garantir que Valissa estaria segura e que não precisariam
fugir de novo. Eric não usaria o que sabia contra ela de
nenhuma forma. E, enquanto estivesse no Setor Três,
Lara teria uma chance de descobrir que tipo de pessoas
sabiam sobre ela e a irmã – e quais delas seriam uma
ameaça.
— Mudando de ideia? — Eric perguntou.
Ela se virou devagar. Os anos de treinamento –
primeiro com seu pai e depois com os mercenários do
Setor Seis – eram o suficiente para ela não pular de
susto. Mas não era nada agradável saber que ele tinha se
aproximado sem ela notar.
Eric estava parado do outro lado da cerca, na direção
que ela sabia que era o caminho mais rápido até a
cidade principal do Setor Três. E, mesmo sabendo
exatamente o que esperar, Lara não conseguia ignorar o
impacto de encarar Eric. Ele estava vestido como
sempre: calça de couro, correntes e uma blusa feita de
um tecido fino que ela conseguiria rasgar com as unhas.
O tipo de roupa que só um vampiro usaria, porque não
precisava se preocupar em usar roupas como se fossem
um tipo de armadura leve. Era a mesma coisa que ele
estava usando todas as vezes em que Lara o vira.
Mas as roupas nunca tinham sido o problema –
mesmo que a forma como a blusa fina não escondia nada
do corpo de Eric fosse uma distração. O problema era
ele. A combinação dos olhos azuis e fundos com algo da
sua expressão e o cabelo escuro e comprido, batendo
abaixo do ombro. Por algum motivo, ela não conseguia
não prestar atenção em Eric, e tinha sido a mesma coisa
meses antes, quando eles haviam ido para o Setor Nove.
E Eric estava sozinho, sem nenhum carro ou moto
por perto.
Lara suspirou. Ela tinha se acostumado a ver
vampiros usando motos o tempo todo – tanto no Setor
Seis, antes, quanto quando ela estava em trabalhos. E
até ali, no Dez, porque Dani e Amon sempre usavam
motos para ir de um lugar para outro. Mas não Eric. Ele
tinha corrido até ali, usando a velocidade dos vampiros.
E, pelo visto, esperava que ela fizesse a mesma coisa.
— Eu dei minha palavra, não dei? — Lara respondeu.
E, não importava o que acontecesse, ela não voltava
atrás quando dava sua palavra.
— Então por que está parada aqui parecendo que
preferia estar em qualquer outro lugar?
Porque ela preferia.
— Só pensando em quando a armadilha nesse
contrato vai aparecer — ela resmungou. — Está bom
demais para ser verdade.
Mesmo que ela estivesse se colocando em risco,
porque seria um risco deixar claro o que ela havia
herdado do seu pai. No Setor Três, os vampiros
entenderiam exatamente o que ela era. Aquilo era uma
garantia de que, em algum momento, a informação ia se
espalhar. As pessoas – os vampiros – de fora ficariam
sabendo e Lara não fazia ideia de qual seria a reação das
outras Cortes quando descobrissem que um vampiro
havia voltado a ser humano e tido uma filha.
E Eric estava sério de um jeito que ela não tinha
visto antes.
— Eu também dei minha palavra, Lara.
Ela levantou uma sobrancelha. Vampiros e seus egos
– e o azar dela por estar lidando justamente com um
vampiro que ia se ofender se ela duvidasse dele. A
maioria dos outros só iria rir de um comentário daqueles,
porque era a verdade.
Eric se aproximou mais da cerca e parou. Chegava a
ser quase divertido como ele fazia questão de não passar
um dedo da linha da fronteira, mesmo que os dois
setores fossem aliados e que Lara tivesse certeza de que
ele podia entrar no Dez sem ser notado sem muita
dificuldade.
— Se você não consegue confiar que vou manter
minha palavra, então é mais simples desistir disso agora
— ele continuou.
Porque ela teria que ser a consorte de Eric. E aquilo
era um papel diferente do que só alguém com quem ele
estivesse transando ou de quem estivesse bebendo.
Consortes eram parceiros – amantes, sim, mas muito
mais do que só aquilo. Não era à toa que Alana tinha se
casado com Lorde Rafael e mesmo assim não era
chamada de consorte.
Lara respirou fundo. Ela não precisava do dinheiro
que Eric estava oferecendo para ela fazer aquilo. Mas
precisava das garantias de segurança para a sua irmã,
porque não queria precisar fugir de novo, não quando Val
estava tão feliz no Setor Dez.
— Não — ela falou. — O contrato foi assinado.
Eric a encarou. Lara sustentou o olhar dele, sem
hesitar. Nenhum deles falou nada por alguns segundos,
até que Eric assentiu, de um jeito que parecia quase
solene.
Ele gesticulou na direção do caminho que levava
para a cidade, ainda sem falar nada.
— Você realmente quer ir até a cidade correndo? —
Lara perguntou.
Eric sorriu.
— Eu quero que ninguém tenha a menor dúvida de
quem está comigo e do que ela pode fazer — ele falou. —
Então sim, quero voltar para a cidade correndo. Com
você ao meu lado.
Ao lado dele – não sendo levada por ele.
Fazia sentido demais. Seria uma mostra de poder, de
certa forma, porque ninguém esperaria que uma humana
fosse capaz de acompanhar um vampiro. Aquilo nunca ia
ser tudo, mas era um bom começo.
E ela se recusava a pensar em por que Eric ter falado
aquilo, daquele jeito, tinha feito todo o seu corpo
arrepiar.
Lara assentiu e ajeitou a mochila antes de pular a
cerca sem a menor dificuldade.
— Vamos, então — ela falou.
Eric inclinou a cabeça antes de começar a correr na
direção da cidade, desaparecendo em um borrão de
movimento.
Lara se concentrou, sentindo seu sangue queimar
por um instante antes de começar a correr, também.

Nada tinha mudado.


Lara ainda estava correndo, mas Eric não estava
indo tão depressa que ela não conseguisse olhar ao
redor. E era como ter voltado no tempo, porque a cidade
continuava a mesma coisa que ela se lembrava de antes
dos príncipes começarem a prestar atenção demais nela
e principalmente em Val. Eram as mesmas ruas de
calçamento bem cuidado, as mesmas casas que quase
pareciam erradas naquela região, como se tivessem sido
tiradas de outro lugar e levadas para lá, as mesmas
pessoas vestidas como o que ela tinha começado a
chamar de "mercenários na época errada": uma mistura
do couro e correntes que os mercenários usavam com
roupas que eram de décadas ou séculos antes.
E eles estavam sendo encarados por todos os
vampiros no caminho – os únicos que conseguiam ver
alguma coisa na velocidade que estavam.
Lara odiava admitir aquilo, mas Eric tinha tomado a
decisão certa em vir correndo. Não importava o que ela
fizesse depois, os vampiros no caminho iam se lembrar
de ver Lara correndo junto com Eric. Mesmo que ele
estivesse indo numa velocidade que praticamente
qualquer vampiro conseguiria manter, aquilo ia causar
um impacto grande demais porque não esperariam
aquilo dela.
Seu pai ficaria furioso se soubesse que ela estava
fazendo aquilo. Mas ele nunca ia ficar sabendo, porque
os príncipes tinham feito questão de matar alguém que
viam como um rival.
Eric começou a diminuir a velocidade. Lara fez a
mesma coisa, até que eles estavam andando na direção
da parte da cidade onde ficavam as casas dos vampiros.
Não era exatamente o centro da cidade, mas era onde
tudo o que era importante acontecia. E, se a parte mais
afastada da cidade não tinha mudado nada, Lara tinha
certeza de que o coração da cidade também estaria
igual.
— Familiar? — Eric perguntou.
Ela se forçou a sorrir antes de balançar a cabeça.
Não importava o que ela se lembrava. Lara tinha
aceitado um contrato que dizia que ia agir como a
consorte de Eric, então ia fazer exatamente aquilo.
— Nada mudou — ela contou. — É quase como se
não tivesse passado tempo nenhum.
E, mesmo que o comentário tivesse soado leve, não
era. Lara quase estava esperando ver Nicolai virando
uma esquina e indo na direção deles. Ou então Vicente,
com aquele sorriso de um pai orgulhoso das suas
crianças – o mesmo sorriso de quando ele tinha
ameaçado Lara e Valissa até o poder da sua irmã
explodir e criar o pântano.
Ela nunca tinha parado para pensar naquilo, mas se
Eric era um príncipe e Nicolai e Arman só haviam sido
destruído dias antes, então ele tinha tomado o lugar de
Vicente. Lara só não fazia ideia de quando ou por que – e
aquilo voltava na questão de um vampiro que tinha
passado décadas sem chamar atenção para o seu poder
e que tinha mudado completamente e se tornado um
príncipe. Não fazia sentido.
— O que aconteceu com Vicente? — Ela perguntou.
Eric se virou para ela, sem parar de andar.
— O que você realmente quer saber?
Um arrepio atravessou Lara. Ela tinha esperado uma
resposta direta, não aquela pergunta que só ia servir
para mostrar mais dela para o vampiro.
Mas ela queria saber.
— Se ele sofreu. Se foi humilhado.
Porque era assim que as disputas por posição entre
os vampiros eram, nos outros setores: quem estava
subindo na hierarquia precisava se impor para deixar
claro que merecia seu novo lugar. Era meio óbvio que
alguém assumindo o lugar de um príncipe faria a mesma
coisa, mas Lara queria ter certeza. Ela queria saber que
ele tinha pagado, mesmo que de forma indireta.
Eric sorriu e Lara precisou se forçar a continuar
andando. Eles tinham um contrato. Ele precisava dela. O
que queria dizer que Eric não ia fazer nada com ela.
Mas aquilo era o Eric de verdade, sem nada daquela
calma que ele tinha mostrado o tempo todo quando
estava perto do Setor Dez. Era o que ela tinha visto por
alguns minutos no Setor Nove, meses antes. E aquele
Eric era alguém que não aceitaria nada no seu caminho.
— Ele foi mais que humilhado — Eric contou. — Ele
foi apagado. Você não vai encontrar muitas pessoas aqui
dispostas a falar o nome dele.
— Bom.
Ele tinha tido o que merecia, então.
E, se nem mesmo o nome dele era falado, ela não ia
manter a memória dele viva. Vicente ia cair no
esquecimento.
Lara não falou mais nada – e nem Eric. Eles
continuaram a andar, saindo da parte mais afastada da
cidade e entrando na área central. Agora tinha humanos
os encarando, também. E pessoas o suficiente ali se
lembravam de Lara, mesmo que fizesse seis anos desde
que ela e Valissa tinham fugido. Não ia demorar para os
comentários começarem, porque se Lara se lembrava de
uns tantos vendedores e de algumas pessoas pela rua,
era óbvio que também iam se lembrar dela.
Eric não parou no centro. Ele continuou, na direção
da área onde os príncipes e os vampiros mais
importantes viviam.
Aquilo era outra coisa que era diferente, ali. Nos
outros setores onde Lara já tinha ido, havia uma
separação mais do que óbvia entre a parte da cidade que
era dos vampiros e a parte que era dos humanos. O
Setor Seis tinha sua parede e não era o único. Mas não o
Três. Ali não havia nenhuma separação real. A área onde
os mais fortes tinham suas casas era quase totalmente
dos vampiros só porque era a região mais antiga da
cidade, de quando os humanos estavam começando a
voltar para lá. O restante da cidade sempre tinha sido
mista. E Lara só tinha descoberto como aquilo era
diferente depois de fugir.
O movimento nas ruas não diminuiu, mesmo que
agora fossem menos humanos ali. Ainda era o começo da
noite e o Setor Três não tinha as mesmas regras que o
Seis, em que um humano fora de casa de noite estava se
oferecendo para os vampiros e não tinha nenhuma
garantia de segurança. A noite era dos vampiros, mas
não era proibida.
E seria dela também, agora.
Eric parou na frente de um portão baixo e de ferro. O
portão e a grade pareciam novos, mas não era nada
diferente do que várias casas ali tinham: o metal era
escuro, quase preto, e trabalhado para formar padrões
que Lara não sabia se tinham algum significado ou se
eram só mais uma forma não tão sutil de ostentação.
Mas a casa depois do portão não tinha nada de sutil. Ela
era uma monstruosidade de três andares, com as
paredes cinza escuro e o teto mais escuro ainda.
Eric abriu o portão e gesticulou para Lara entrar. Ela
levantou uma sobrancelha. Aquela casa não se parecia
nem um pouco com ele. Aquilo ali era de um vampiro
que gostava de exibir seu poder. Não do vampiro que
tinha passado tantas décadas escondendo seu poder que
as pessoas do setor ainda duvidavam do que ele era
capaz.
Ela passou pelo portão e atravessou o espaço de
grama bem cuidada antes da porta. Mais para o lado,
uma parte da grama estava amassada, pisoteada, quase.
Alguma coisa tinha acontecido ali e ainda não tinham
tido tempo de arrumar.
Lara parou na frente da porta de entrada – preta e
com esculturas de monstros no batente. Sério, qual a
necessidade daquilo? Tinha formas melhores de se impor
e Lara tinha certeza de que Eric sabia daquilo.
A porta se abriu sem ela nem colocar a mão na
maçaneta. Ou Eric tinha mais truques, ou alguém já
estava esperando chegarem.
Lara entrou e parou, olhando ao redor. O saguão de
entrada tinha paredes de alguma imitação de madeira
cinzenta, chão escuro, luminárias altas no teto e mais
crânios do que ela queria contar a encarando das
paredes. Um arrepio atravessou Lara. A casa de um
necromante, sim. Ou de alguém que queria se passar por
um – porque continuava não encaixando com o pouco
que ela sabia sobre Eric.
E ela teria que dar um jeito de descobrir mais sobre
ele, também. O único problema era que Lara duvidava
que seus contatos no Três soubessem muito mais do que
ela já tinha ouvido.
Eric entrou e fechou a porta atrás de si.
— Bem-vinda à minha casa.
Ela olhou ao redor de novo e não respondeu. Não
encaixava – mas quem era ela para dizer o que
encaixava com ele ou não. Pelo menos os crânios nas
paredes eram de animais. E, pensando bem, era bem
possível que nem fossem reais. Vampiros tinham mania
de juntar coisas de antes da magia, ou coisas que
produziam só para eles. Lara não duvidaria de que
alguém fosse começar a fazer réplicas de crânios de
animais para serem usados como decoração. Ela já tinha
visto coisas mais estranhas vindo dos vampiros.
E...
Lara se endireitou. Nada estava doendo. Ela tinha
corrido a maior parte do caminho até ali e seu sangue
não estava queimando. Ela tinha imaginado que teria
que dar um jeito de esconder a dor quando chegassem
na cidade, porque usar a velocidade de uma vampira
tinha seu preço, mas Lara não tinha sentido nada.
Pelo menos era fácil entender o motivo: o sangue de
Eric que ela tinha bebido duas noites antes, depois de
enfrentar Nicolai. Lara sabia que ele tinha feito ela beber
muito mais do que era necessário. O que queria dizer
que ela também estava certa em não ter ido para os
campos de treinamento do Setor Dez. Ainda tinha sangue
de vampiro demais no seu corpo.
Eric passou por ela e foi na direção da escadaria em
um canto, sem falar nada.
Lara encarou os crânios na parede por mais alguns
segundos. Não tinha como não prestar atenção neles,
porque eram a única decoração. De alguma forma, aquilo
parecia errado. Era quase como se a casa estivesse vazia
demais, mas aquilo não fazia sentido.
Ela foi na direção da escadaria e parou com uma
mão no corrimão. Tinha outra coisa estranha ali e ela
tinha acabado de notar aquilo.
— Nenhum servo? — Lara perguntou.
Porque ela não sabia de nenhum príncipe que não
vivesse cercado de servos. Mas a casa toda estava
silenciosa e não tinha sinal de ninguém até onde Lara
tinha visto.
Eric se virou para ela, sem parar de subir a escada.
— É mais seguro assim.
Mais seguro – porque ele tinha matado os outros dois
príncipes do setor e ainda não tinha o controle por
completo. Ter mais pessoas na sua casa seria um
problema de segurança, porque ele não tinha como ter
certeza de que seriam leais a ele.
— Nada de diferente, então — Lara murmurou antes
de continuar subindo a escada atrás dele.
Ela se lembrava daquele tipo de coisa acontecendo,
antes de sair dali. Duas vezes, ela tinha sido levada para
assistir enquanto vampiros eram punidos publicamente
por terem atacado um príncipe. E o problema nunca
tinha sido atacar um príncipe, mas sim fazer aquilo pelas
costas e falhar.
Era óbvio que Eric não ia correr aquele risco – mas
era uma coisa que Lara não tinha levado em conta antes
de aceitar o contrato. Ela seria um alvo, também.
— Eu prefiro acreditar que muita coisa está diferente
— ele falou.
Um arrepio atravessou Lara e ela não queria nem
tentar entender o motivo.
Mas, já que estavam ali e estavam sozinhos...
Para fazer o que Eric queria, ela teria que usar
poderes de vampiro. Aquilo queria dizer que Lara teria
que se alimentar de sangue, de alguma forma. O sangue
dele que ainda estava no seu corpo não ia durar muito
tempo.
Ela parou no alto da escadaria. Ela terminava em um
corredor e as paredes ali em cima eram a mesma coisa:
escuras e com crânios.
— Essa casa tem uma cozinha? — Lara perguntou.
— Pequena, mas sim.
E uma cozinha teria uma geladeira. Perfeito.
— Se você tiver algum contato para conseguir
pacotes de sangue, facilitaria as coisas — ela começou.
— Se não, eu posso falar com o pessoal do Dez.
Ela se lembrava vagamente de ver Dani e Amon
comentando alguma coisa sobre ele ter bebido dos
pacotes de sangue – provavelmente logo que tinha
chegado no setor. Então era de se imaginar que não seria
nada demais negociar por uns pacotes de sangue, por
mais nojento que aquilo fosse.
E Eric estava parado na sua frente, mas Lara não
tinha visto ele se mover.
Ela sustentou o olhar do vampiro. O plano louco era
dele. Ela só estava pedindo o que precisava para fazer
sua parte.
— Você está aqui como minha consorte — Eric falou,
em voz baixa. — O único sangue que vai beber é o meu.
— Não é... — ela começou.
— Isso não está aberto a negociação.
Um arrepio atravessou Lara e ela desviou o olhar.
Aquilo não estava no contrato. Mas também não
tinha nada falando que não seria assim – porque Lara e
Alana tinham preferido não abusar da sorte e focar na
segurança de Val. Lara tinha escolhido fazer aquilo.
Tarde demais para reclamar, então. E não era como
se o sangue dele fosse ser diferente de qualquer coisa
vinda de um pacote de hospital.
Eric se virou e continuou a andar pelo corredor.
Lara o seguiu sem falar mais nada.

Rafael olhou pela janela do seu escritório. Ainda era estranho


parar ali e não ver Alana entre as roseiras – e aquilo era
algo que ele nunca havia esperado que fosse acontecer.
Ela era uma ferramenta. Se ele quisesse se manter
naquele novo mundo, se fosse seguir em frente com seus
planos, ele precisava ter uma bruxa da natureza ao seu
lado. E uma que era inteligente o bastante para usar seu
poder em conjunto com estudos e tecnologia era melhor
ainda – mesmo que Alana fosse forte o suficiente para
não precisar se poupar daquela forma.
Ele sentia falta dela.
O primeiro passo para controlar algo era encarar de
frente, então Rafael admitiria aquilo: ele sentia falta de
Alana, sim. De como ela gostava de estar ali, entre as
roseiras. Das suas perguntas, sempre aparentemente
inocentes, mas sempre fazendo com que ele lhe desse
mais informações do que percebia – e sempre deixando
Rafael ver um pouco mais sobre o que importava para
ela. Ele sentia falta de como ela havia ficado confortável
perto dele, com o seu toque.
Nada daquilo era parte do seu plano. Na verdade, se
apegar à bruxa ia contra tudo o que ele queria.
Então Rafael deixaria as memórias se tornarem
apenas aquilo: memórias. Sensações que haviam estado
ali, mas que seriam deixadas para trás. Para alguém que
estava no mundo havia tanto tempo quanto ele, fazer
aquilo não era difícil.
Ele encarou as roseiras por mais alguns segundos
antes de virar as costas para a janela e voltar para a sua
mesa. Não seria uma bruxa que mudaria seus planos.
Rafael não tinha passado dois séculos esperando a hora
certa de agir para se deixar ser levado por momentos.
E ele ainda tinha planos para o Setor Dez – mas
aqueles planos teriam que esperar até Alana estar longe
de lá e não ter como ligá-lo a nada do que aconteceria.
SEIS

Lara parou em um cruzamento, olhando para as casas de cada lado


das ruas que davam ali. Mesmo que tudo estivesse igual,
fazia seis anos desde a última vez que ela tinha ido ali.
Achar que se lembrava de para onde queria ir não era
uma garantia de que se lembrava mesmo, ainda mais
considerando como ela tinha feito questão de até evitar
pensar no Setor Três.
E agora ela ia ter que fazer mais que pensar.
Ela virou em uma das ruas e continuou andando
depressa. A menos que estivesse muito enganada, a
arena onde seu pai treinava o pessoal do Três, antes de
tudo, ficava naquela direção. Seis anos era muito tempo,
mas se não tinham desistido da arena nos anos depois
que os príncipes tinham dado a ordem para matarem seu
pai, então ela ainda estaria lá.
Naquela hora, com o sol forte do fim da manhã no
céu, só tinha humanos nas ruas. Algumas crianças,
correndo de um lugar para outro, mas a maioria eram
adultos. E a forma como estavam encarando Lara
deixava mais do que claro que se lembravam dela. Bom,
porque ela podia usar aquilo a seu favor.
Na noite anterior, logo depois de levar Lara para um
dos quartos daquela casa enorme, Eric tinha se oferecido
para lhe levar pela cidade assim que anoitecesse de
novo. Era uma boa ideia, especialmente depois de ela
perceber que tinha se tornado um alvo para qualquer um
que estivesse contra Eric, mas ao mesmo tempo era uma
péssima ideia. Se a intenção era usar o que ela era e
quem seu pai tinha sido para aumentar a influência de
Eric, então Lara não podia ser vista como fraca – o que
queria dizer que não podia ter um guarda-costas o tempo
todo.
Era por isso que ela estava ali. Lara ainda tinha
contato com algumas pessoas do Setor Três, sim, mas
eram pessoas que ela via ou falava por causa de
trabalho, porque todos eram mercenários. Ela não tinha
feito a menor questão de manter contato com mais
ninguém. E agora ela precisava mudar aquilo.
A arena apareceu, no final da rua, separada das
casas mais próximas por uns bons vinte metros de
terreno vazio. E arena não era exatamente o nome certo
– porque aquele lugar parecia mais um galpão não muito
diferente dos que ela tinha visto no Setor Nove, alguns
meses antes. Mas sempre tinha sido chamado de arena,
desde que ela era criança.
Lara atravessou o espaço entre as casas e a entrada
da arena e empurrou o portão de metal. Até aquele
barulho era familiar demais, mas pelo menos ela podia
se enganar dizendo que era por causa de todos os
galpões de treinamento onde ela já tinha ido parar.
Ninguém se virou para ver quem tinha entrado e
aquilo era o normal, também. Mas a arena estava
movimentada. Na área central, que era um ringue
quadrado cercado por cordas, duas duplas estavam
lutando enquanto mais umas tantas pessoas assistiam.
Uma mulher parecia ser uma mercenária, mas o resto do
pessoal ali parecia ser só humanos que gostavam de
lutar ou de alguma atividade física que podiam praticar
na arena.
Naquele ponto o Setor Três era igual a todos os
outros setores controlados por vampiros: humanos
podiam até aprender a lutar, mas o setor não tinha
nenhuma força de combate ou defesa que incluísse
humanos. Para os vampiros, qualquer coisa daquele tipo
seria uma perda de tempo.
Um dos lados do galpão era fechado com acrílico
claro que parecia que não era trocado desde que Lara
era criança, pela quantidade de marcas e arranhões – e
aquele material era difícil de arranhar. E aquela área do
galpão era o motivo para seu pai ter feito questão de
sempre ir naquela arena. Ela era a única que tinha uma
área de tiro junto com as outras áreas de treinamento e
seu pai gostava de atirar.
O outro lado era uma coleção de sacos de areia e
bonecos de treinamento, além de alguns espaços um
pouco abertos para aquecimento e alongamento. E Lara
não conseguia nem se lembrar de quantas tardes tinha
passado exatamente ali.
E, não importava quanto tempo se passasse, aquela
arena sempre seria cheia demais de memórias.
Lara foi na direção dos bonecos de treinamento. Seu
cabelo estava preso em um rabo-de-cavalo de novo e ela
estava vestida como uma mercenária, então não parecia
fora do lugar ali. Mas ela não conseguia pensar em como
era estranho estar de volta.
Ela parou em um dos espaços abertos e começou
uma sequência rápida de alongamento. Mesmo que
ainda tivesse sangue de Eric no seu corpo, ela não ia ser
descuidada.
Alguns minutos depois, quando Lara começou a
testar alguns golpes em um dos bonecos de treinamento,
ela já estava sentindo os olhares nas suas costas. Típico.
E ela estava contando com aquilo.
Ela chutou o boneco de treinamento, o mais alto que
conseguia. Aquilo era o tipo de golpe que Lara nunca
usaria na prática, mas era bom para manter um pouco
de flexibilidade. E ela gostava de medir o que ainda
conseguia fazer, mesmo que não fosse algo útil para
valer.
— Então a filha de Oscar está de volta.
Lara se endireitou e se virou. Um homem com cabelo
curto começando a ficar grisalho estava parado de
braços cruzados, a encarando. Ela se lembrava dele. Ou
melhor, se lembrava da tatuagem de uma cobra se
enrolando pelo seu braço. E, quando ela era mais nova,
ele evitava aquela arena porque não gostava do seu pai.
E, quando aparecia ali, era para começar confusão.
— Sim — ela falou.
O homem continuou encarando Lara, sem falar nada.
Ela revirou os olhos e se virou para o boneco de
treinamento de novo. Não estava ali para ver quem
passava mais tempo encarando o outro.
Uma faca acertou o boneco.
— Não é uma boa ideia agir como se você estivesse
em casa aqui — o homem continuou. — Seu tipo não é
bem-vindo aqui.
Lara se virou para ele de novo e nem se surpreendeu
ao ver que ele já estava com outra faca na mão – e que
agora tinham plateia, porque uma boa parte das pessoas
ali tinha parado o que estava fazendo e se virado na
direção deles.
Exatamente o que ela queria.
— Meu tipo? — Ela repetiu.
A mulher que parecia uma mercenária começou a ir
na direção do homem. Lara balançou a cabeça de leve.
Ela preferia lidar com ele de uma vez.
— O tipo que acha que, porque um vampiro te deu
atenção, é melhor que os outros — ele falou. — Não é
porque voltou para o Três carregada por um vampiro que
vai agir como se tivesse algum direito de estar aqui.
Lara sorriu. Ele estava lhe dando o que ela precisava
e não fazia ideia.
E se ele tinha ouvido que ela havia chegado no setor
junto com Eric e escolhido entender que tinha sido
carregada...
Seu sangue queimou. Ela avançou na direção dele,
tão depressa que sabia que mais ninguém ali teria visto o
movimento – porque ela tinha usado a velocidade que só
os vampiros tinham.
Lara segurou o pulso do homem e o dobrou para
trás, ao mesmo tempo em que apertava um ponto
específico. Ele soltou a faca e ela a pegou no ar, antes de
derrubar o homem e se afastar.
Alguém gritou. O homem fez um ruído abafado e se
virou depressa, mas ela já estava fora do seu alcance.
— Eu não fui carregada por nenhum vampiro — ela
falou, jogando a faca para o alto e a pegando de novo. —
Eu voltei para o Setor Três correndo junto com Eric. E é
melhor você se lembrar disso.
O homem deu um passo na direção dela. Outro
homem que ela não reconhecia segurou o braço dele e
falou alguma coisa em voz baixa. Ele se soltou e se
afastou, com passos pesados.
Ótimo. Lara não queria nenhuma briga séria e aquele
tipo de homem só sabia resolver as coisas de um jeito.
Ele provavelmente seria um problema, porque ia
considerar o que ela tinha feito um insulto, mas ela ia ter
tempo para lidar com aquilo.
Ela olhou ao redor. Ainda tinha pessoas demais
paradas a encarando.
— Mais alguém pra falar que eu não posso estar aqui
ou qualquer merda desse tipo? — Lara perguntou.
Alguém riu. Outros tantos deram de ombros e
voltaram para o que estavam fazendo. Mas não todos.
— Se você está tão em casa assim, pode ter uma
rodada no ringue — outra pessoa falou.
Era um desafio e uma forma de medirem o que ela
era capaz de fazer. Nada inesperado, também. O único
lugar onde Lara não tinha visto alguma coisa daquele
tipo acontecer era no Setor Dez. Os mercenários e
pessoal treinado sempre testavam qualquer um que
aparecesse no que consideravam como seu território.
Lara se virou de uma vez e jogou a faca no boneco
de treinamento. Ela não ia correr o risco de ser acusada
de ter roubado uma faca depois.
— Se estão oferecendo, até mais que uma rodada —
ela respondeu.
Um homem mais velho que estava debruçado nas
cordas marcando a área central riu. Saulo. Ela se
lembrava dele, também, de quando seu pai ainda estava
vivo.
— Isso nós vamos ver — ele falou.
Sim.
E Lara realmente estava começando a se sentir em
casa.

Eric levantou uma mão devagar, sentindo o poder acompanhar o


movimento.
Os dois corpos nas mesas de metal secaram de uma
vez, até que pareciam ter tido anos para decompor,
sobrando apenas algo que era mais próximo das múmias
dos antigos do que de um cadáver comum. Mas o poder
ainda estava ali, no ar, respondendo a Eric – esperando
para ser usado.
Os vidros em cima de outra mesa tremeram e a
lâmpada fraca que estava acesa apagou de uma vez.
Não que Eric precisasse dela para ver o que estava
acontecendo, mas era uma boa medida da estabilidade
do poder. E aquele poder estava instável, agitado demais
para ser armazenado.
Eric abriu os braços e levantou a cabeça, respirando
fundo. Mas não era ar o que ele estava puxando para
dentro de si. Era o poder que ainda estava no ar. A força,
magia ou o que quer que fosse, que havia mantido os
outros dois príncipes na quase-vida de um vampiro por
tanto tempo. O ar brilhou com o mesmo tom prateado do
fogo nas cerimônias dos vampiros por um instante – a cor
que fazia Eric pensar que talvez existisse algum fio de
verdade nas histórias que falavam que o primeiro
vampiro havia feito um pacto com a deusa da lua.
E então o poder estava nele e a lâmpada acendia de
novo, como se nada houvesse acontecido.
Nenhum dos outros necromantes questionaria seu
direito ao poder dos dois príncipes. Era o direito da força:
ele os destruíra, então tudo que era deles agora era seu.
Aquilo incluía o poder, também. E os outros vampiros...
Eles provavelmente questionariam Eric absorver o poder
daquele jeito. Mas, para questionar, eles precisavam
saber que ele fizera aquilo. Não era à toa que os
necromantes haviam passado séculos fazendo questão
de esconder o que realmente faziam. Quanto menos os
outros soubessem, melhor.
Seu celular vibrou uma vez e parou. Eric pegou o
aparelho e encarou a notificação com o nome de Tamara.
Ela não era uma necromante, mas trabalhava com ele
havia tempo o suficiente para saber que era melhor não
interromper quando ele estava no laboratório. Se tinha
uma notificação, era porque ela sabia de algo que podia
ser urgente.
Ele saiu do laboratório e fechou a porta de metal
atrás de si antes de ativar as proteções e armadilhas
feitas com poder. Mesmo que ninguém que não fosse um
necromante fosse achar algo útil no seu laboratório, Eric
preferia ser cuidadoso. E era pior ainda considerando que
ele estava morando na casa que havia sido de Arman.
Sua própria casa – aquela casa, onde o laboratório ficava
– estava ficando vazia na maior parte do tempo, porque
seria estranho demais manter pessoal ali.
Tamara estava no saguão quando Eric saiu do
corredor que levava para o laboratório.
— A casa toda tremeu — ela falou. — Só para o caso
de ser algo que seja bom você saber.
Ele balançou a cabeça com um sorriso fraco. Era
bom saber, mas não fazia a menor diferença.
— O que você encontrou? — Eric perguntou.
Tamara olhou para a porta antes de se encostar na
parede.
— Acho que eu não devia ter duvidado do seu plano.
Eric levantou uma sobrancelha. Ele ainda não tinha
se esquecido da gargalhada dela quando ele havia
contado sobre a ideia de negociar com Lara.
— É mesmo?
A vampira revirou os olhos.
— Ela foi para uma das arenas de treinamento ainda
de manhã — Tamara contou.
Eric assentiu. Lara tinha avisado que provavelmente
faria aquilo, para começar a ver o que tinha mudado no
setor e deixar as pessoas verem que ela estava ali.
Mas agora já era noite. E Tamara deveria estar por
perto de Lara, para garantir que um dos vampiros não a
atacaria. Não que ele pensasse que teriam muitas
chances contra a mulher que quase destruíra Nicolai.
— Eles a desafiaram — a vampira continuou. — E ela
ainda está lá.
Eric encarou Tamara por mais alguns segundos antes
de sair, correndo na direção da arena que ele tinha
certeza que era para onde Lara teria ido.

O portão da arena estava aberto, coisa que até Eric sabia que não
era normal. Mas os gritos e comentários lá dentro não
pareciam nenhum tipo de confusão. Na verdade, se
pareciam mais com o que ele estava acostumado a ouvir:
mercenários e lutadores – por falta de outra palavra – se
divertindo.
Bom. Lara estar ali à noite, sozinha, era um risco,
mas pelo visto havia sido um risco calculado – e aquele
era um dos motivos para ele ter pensado que aquilo
podia dar certo. Se ela não fosse uma boa estrategista,
não teria conseguido passar quase seis anos trabalhando
como mercenária sem ser reconhecida e garantindo que
a irmã estivesse segura. Lara sabia o que estava
fazendo.
Mas ele tinha prometido proteção, também,
enquanto ela estivesse ali.
Eric entrou na arena. O cheiro doce de Lara o cercou
quase no mesmo instante e, se ele não tivesse certeza
de que ela nem sabia sobre aquilo, até pensaria que ela
estava fazendo de propósito. Mas não. Pelos gritos
ritmados e pela forma como as pessoas estavam batendo
os pés no chão, Lara estava dentro do ringue. Lutando,
provavelmente.
Tamara parou ao seu lado.
— Preocupado? — Ela perguntou.
Ele não se virou. Era óbvio que a vampira teria vindo
atrás dele – porque ela deveria estar ali. Mas ele não ia
questionar ela ter ido lhe avisar do que estava
acontecendo. Não que parecesse que Lara precisava de
algum tipo de ajuda.
Tamara deu uma risada baixa.
— Não, acho que "interessado" é uma palavra
melhor — ela completou. — E Ícaro tem mais
informações.
E Eric não ia responder. Ele não estava interessado,
não no sentido que ela estava falando. Mas precisava
parecer estar, porque para todos os outros Lara seria sua
consorte.
Ele foi na direção das pessoas reunidas. Um dos
homens mais no fundo olhou para ele de relance e parou,
puxando a pessoa que estava do lado dele. Uma
vampira, um pouco mais na frente, puxou outros
humanos para o lado. E ela não era a única ali. Havia
vampiros e humanos assistindo. Aquilo também não era
comum.
As pessoas reunidas gritaram, alto, e voltaram a
bater os pés no chão.
Eric passou pelo espaço que tinha se aberto, até
conseguir ver o que estava acontecendo.
Lara estava abaixada no chão, em cima de um
vampiro caído. Uma mão dela estava segurando o braço
do vampiro para trás, com força o suficiente para
levantar o torso do homem do chão, e a outra mão tinha
uma faca contra a garganta dele. Perfeito. A forma como
ela tinha se posicionado, o ângulo em que estava
segurando o vampiro – se ele fizesse qualquer
movimento brusco, teria a garganta cortada.
— E é assim que não preciso de nenhum truque para
me livrar de um vampiro arrogante — Lara falou.
As pessoas gritaram de novo quando ela soltou o
vampiro e se afastou.
O vampiro se levantou depressa demais e se virou
para Lara, mostrando as presas. Ela sorriu.
Lara podia cuidar dele. Eric não tinha a menor
dúvida daquilo. Mas ela estava ali já havia horas. Mesmo
que ela ainda tivesse um pouco do sangue dele no seu
corpo, já estaria cansada. E, se precisasse usar as
habilidades dos vampiros para parar aquele homem, ela
teria que lidar com a dor, também.
— É melhor aceitar a derrota de forma graciosa —
Eric falou.
O vampiro se virou para ele e deu um passo atrás.
Bom.
Lara levantou uma sobrancelha, sem sair do lugar. O
vampiro olhou para ela, balançou a cabeça de novo e
saiu do ringue.
Ela se virou para Eric.
— Já que atrapalhou minha diversão, quer uma
rodada, também? — Lara perguntou.
Daquela vez não tinha como ele pensar que ela não
sabia que o estava desafiando. Lara sabia exatamente o
que estava fazendo. E Eric queria aceitar. Ele queria ver
do que ela era capaz, aquela humana que havia
emboscado Nicolai e sobrevivido.
Mas, se ele aceitasse, não teriam apenas uma luta.
Não importava o que acontecesse, aquilo terminaria com
Lara no chão e Eric bebendo dela – porque a atração do
seu sangue era forte demais. Não. A atração dela. E ele
tinha certeza de que Lara nunca aceitaria aquilo.
Talvez em particular. Talvez. Talvez ele tivesse tempo
para lhe convencer a aceitar aquilo, já que ela teria que
beber do sangue dele, também. Mas nunca em público.
Não para Lara.
Eric inclinou a cabeça para um lado.
— Não hoje. Ainda temos trabalho.
Lara balançou a cabeça devagar e guardou a faca
que ainda estava na sua mão, antes de se abaixar para
passar entre as cordas do ringue e ir na sua direção.
— Que tipo de trabalho?
Mais desafios. E Eric não ia reagir.
Ele sorriu e gesticulou na direção da saída.
— Só tem um jeito de saber.
Um dos humanos assobiou. Outro gritou um
comentário sobre não precisar chamar aquilo de
trabalho. Mais alguém fez outro comentário.
Lara puxou uma faca e se virou para trás, sem falar
nada.
Os comentários pararam na mesma hora, mas os
humanos estavam rindo. Aquilo não tinha sido uma
ameaça real da parte de Lara e eles sabiam.
Um dia. Algumas horas, e Lara já estava em casa
entre os humanos – e parte dos vampiros.
Bom. Aquele era exatamente o motivo para ele ter
negociado com ela.
Lara começou a andar na direção da saída e Eric foi
atrás dela.
SETE

Lara parou no meio do quarto e respirou fundo. Nada ali estava


sendo como ela esperava e aquilo não era uma
reclamação. Não o quarto em si, mas a forma como Eric
estava agindo. Sim, eles tinham feito um acordo para ela
se passar por consorte dele. Mas Lara tinha passado
tempo demais observando os vampiros. Ela sabia como
eles funcionavam. Desde o começo, ser tratada como
uma consorte nem tinha passado pela sua cabeça –
porque algo desse tipo ia exigir um nível de confiança
que um vampiro poderoso nunca teria com uma humana,
mesmo que precisasse dela.
Mas não era o que estava acontecendo. Eles tinham
voltado para a monstruosidade que era a casa de Eric e
ele tinha apresentado Lara para os dois vampiros que
trabalhavam com ele desde bem antes de Eric se tornar
um dos príncipes, Tamara e Ícaro. Lara se lembrava de
ter visto a vampira algumas vezes, antes de fugir do
Setor Três, o que fazia sentido já que ela era a pessoa
que juntava informações dentro do setor para Eric. Ícaro,
ela tinha certeza que nunca tinha visto antes, o que não
era exatamente uma surpresa. Lara tinha crescido
ouvindo que precisava evitar os vampiros.
E apresentar Lara para os dois não tinha sido tudo.
Eles tinham repassado para ela tudo o que estava
acontecendo: desde os carniçais testando a fronteira
entre o Cinco e o Três, o que explicava Lara ter
encontrado Eric lá, um ano antes, até os rastros de
animais das terras de ninguém perto demais da fronteira
norte. Aquele era o motivo para Eric ter feito tanta
questão de ir atrás dela e para ter aceitado tudo o que
Lara tinha pedido. O Setor Três era um alvo e já estava
sendo testado fazia algum tempo – e os outros príncipes
não tinham feito nada.
Não tinha nada a ver com o pântano. Nada a ver com
o poder de Valissa. E ter uma confirmação daquilo tirava
um peso das costas de Lara.
Ela entendia por que Eric queria assumir o controle.
Não tinha como duvidar da irritação dele quando Lara
tinha perguntado por que ninguém tinha feito nada e ele
havia contado que os outros príncipes pensavam que
aquilo não era nada demais. Vampiros antigos
acomodados – aquilo não era nem um pouco incomum.
Se fosse o caso de só terem sido acomodados. Se
não tivesse ignorado tudo porque era mais conveniente –
ou pior.
Mas Lara não estava sendo paga o suficiente para se
enfiar daquele jeito em políticas de vampiros, então não
ia fazer aquilo de jeito nenhum.
Alguém bateu na porta.
Lara se endireitou e se virou devagar. Ela não tinha
visto mais ninguém naquela casa além de Eric e os dois
vampiros que trabalhavam com ele, então as opções
sobre quem podia ser eram poucas.
— O que foi? — Ela perguntou.
— Soube que passou o dia todo na arena — Eric
falou.
Claro que ia ser ele.
Lara abriu a porta e parou. Mesmo que fosse óbvio
que só Eric iria atrás dela, era um tanto quanto
inesperado. Quando ela tinha subido, depois de mais de
uma hora encarando mapas e ouvindo tudo o que tinham
para contar, ela tinha imaginado que ele ia fazer o que
quer que precisasse fazer para lidar com o setor. Mas
não. Eric estava ali.
— Isso é um problema?
Porque se fosse, ela ia fazer deixar de ser bem
depressa. Se ele queria que Lara conseguisse a lealdade
dos vampiros que se lembravam do seu pai, estar na
arena era o jeito mais fácil.
Eric balançou a cabeça.
— De forma alguma. Mas eu queria ter certeza de
que você não passou o dia todo lá sem se alimentar —
ele completou.
Lara levantou as sobrancelhas. A possibilidade de
que ele fosse se preocupar com aquilo nunca ia ter nem
passado pela sua cabeça.
— Eu comi com o pessoal da arena mais cedo — ela
contou. — Tem uma cantina ali perto que gostam de ir.
— Não pareceu que você estava próxima deles o
suficiente para isso.
Eric ia insistir e ela não sabia o que pensar sobre
aquilo.
Mas sabia que, se usasse a audição de uma vampira,
conseguiria ouvir Tamara e Ícaro no andar de baixo – o
que queria dizer que eles também conseguiriam ouvir a
conversa deles, se quisessem.
Lara deu alguns passos para trás e indicou o quarto
com a cabeça. Eric entrou, sem falar mais nada, e fechou
a porta atrás de si. Pelo menos ele tinha entendido
exatamente por que ela tinha falado para ele entrar.
Mesmo que os dois vampiros lá embaixo fossem de
confiança, eram de confiança dele, não dela. E Lara tinha
passado tempo demais tomando cuidado com sua
privacidade para começar a relaxar agora.
— O pessoal que treina nas arenas ou qualquer tipo
de galpão assim sempre funciona de um jeito parecido —
Lara falou. — O clima de cada lugar é diferente, mas todo
mundo entende que quem está ali de um jeito ou de
outro está no mesmo barco. Sempre vai ter um ou outro
que é um problema, mas no geral, depois que eles veem
que alguém é um deles, essa pessoa é parte do grupo e
pronto.
E era a mesma coisa com os mercenários – só era
mais difícil conseguir a confiança deles. Mas no fim das
contas, conhecidos de galpões de treinamento sempre
tinham seu lugar.
— O que você viu foi o resultado de alguns vampiros
que resolveram ir ver quem era a tal humana que tinha
corrido pela cidade. Eles chegaram lá logo depois que
anoiteceu e era mais ou menos o que eu esperava.
Eric a encarou por alguns segundos sem falar nada,
antes de assentir.
— Você quer chamar a atenção dos que são leais à
memória do seu pai usando as arenas, porque esse
sempre foi o território dele — ele falou.
— É o jeito mais fácil.
Ele assentiu de novo, o tempo todo sem desviar o
olhar dela. Aquilo chegava a ser até estranho, porque
não era humano. Ninguém conversava daquele jeito, sem
olhar para os lados nenhuma vez, só olhando para a
outra pessoa daquele jeito que não chegava a ser
encarar.
— Se continuar fazendo isso, mais cedo ou mais
tarde um dos vampiros mais velhos vai te desafiar — Eric
falou.
— É a intenção.
E, se ela tinha sobrevivido a Nicolai, tinha quase
certeza de que conseguiria lidar com qualquer vampiro
que fosse atrás dela.
Eric levantou um braço.
— Nesse caso, é melhor você estar preparada,
também — ele falou.
Lara encarou o vampiro por um instante antes de
entender o que ele estava falando. Ou melhor, o que
estava querendo fazer: cortar o braço ali para ela beber.
— Não.
Uma coisa era ela ter bebido o sangue de Eric
quando estava inconsciente depois de ter enfrentado
Nicolai. Outra bem diferente era beber direto da veia ali,
sem que fosse necessário – até porque aquilo era
nojento. Ela não era mais uma criança descobrindo o que
podia fazer e querendo experimentar sangue para saber
como era. Lara podia conseguir usar poderes de vampiro,
mas era humana. Beber sangue, para ela, não era nada
como parecia ser para os vampiros.
Ele abaixou o braço.
— Eu vi o que acontece quando você usa as
habilidades dos vampiros — Eric falou. — Você vai
conseguir lidar com qualquer um que te desafiar, não
tenho a menor dúvida. Mas qual vai ser o preço? Está
disposta a correr o risco de que vai ter mais alguém
esperando para te ver vulnerável?
Lara respirou fundo e soltou o ar devagar. Ela odiava
admitir que ele estava certo. Aquilo era um risco.
Dependendo do que fizesse, ela sabia que a dor podia
ser o suficiente para ela não conseguir reagir, depois.
Mas, ainda assim...
— Eu não vou beber seu sangue assim.
Porque era nojento. Simples assim. Lara não fazia
ideia de qual era a sensação quando um vampiro estava
bebendo de alguém, mas ela tinha certeza que não era a
mesma coisa que ela sentia. Porque não tinha como
ignorar o gosto e a textura diferente do sangue. Ou
talvez fosse só psicológico. A questão era que Lara tinha
certeza que, mesmo se tentasse, não ia conseguir beber.
Eric assentiu e saiu do quarto sem falar mais nada.
Lara encarou a porta fechada. Ela não entendia ele.
Depois de anos analisando os vampiros para poder se
esconder e evitar chamar atenção, ela estava
acostumada a conseguir entender fácil demais como eles
agiam. Mas não Eric. Nada sobre ele fazia sentido.
E ela não ia reclamar daquilo, porque o "não fazer
sentido" de Eric era melhor para ela, no fim das contas.
Ela se virou para a mesa baixa ao lado da cama e
começou a soltar as bainhas presas na sua roupa. A
melhor parte daquele quarto era ser uma suíte, e os
planos de Lara eram tomar um banho, relaxar um pouco,
e provavelmente voltar para a rua. Os vampiros também
tinham seus bares e casas de show, os lugares que iam
para passar o tempo no dia a dia, e ela queria dar uma
olhada naquilo.
O Setor Três era relativamente seguro para
humanos, se a pessoa soubesse até onde podia ir.
Algumas partes da cidade eram seguras mesmo de noite.
Outras, se um humano fosse lá depois de escurecer era o
mesmo que dizer que queria ser mordido – a menos que
seu sangue já tivesse sido reivindicado por alguém. Os
humanos que eram parte do rebanho de algum vampiro
sempre estavam seguros, porque os príncipes nunca
tinham aceitado que as disputas entre os vampiros
envolvessem humanos. Era uma forma simples de
garantir que sua fonte de comida ia querer continuar ali.
Lara não tinha sido marcada como parte de nenhum
rebanho, mas os comentários sobre como ela tinha
chegado com Eric e que estava na casa dele já haviam se
espalhado. E ela era capaz de apostar que a forma como
ele tinha chegado na arena, mais cedo, também ia estar
se espalhando. Mesmo sem ele ter falado sobre ela ser
sua consorte de forma oficial, aquilo seria mais que o
suficiente para garantir a segurança de Lara.
Ela colocou a última faca em cima da mesinha.
Alguém bateu na porta de novo.
"Alguém".
Lara se virou.
— O quê? — Ela perguntou.
Eric abriu a porta, mas não entrou no quarto.
Ela suspirou e foi na direção dele. O que quer que
fosse...
Ele mostrou uma taça cheia de algo escuro e a
ofereceu para Lara, sem falar nada.
Ela tinha falado que não ia beber dele. Se Eric tinha
entendido que aquilo queria dizer só que ela não ia beber
o sangue direto de um corte, ela não ia nem poder
reclamar. Mas ela não ia ser grosseira a ponto de nem
olhar o que era, só porque tinha quase certeza de que
era sangue.
Lara pegou a taça e parou. Não era sangue. Era
vinho. Ou alguma coisa parecida demais, porque o cheiro
era o mesmo.
— Experimente — Eric falou.
Lara levantou as sobrancelhas antes de provar um
pouco do vinho – menos que um gole. A sensação quase
elétrica se espalhou pelo seu corpo e ela encarou Eric de
novo. Tinha sangue ali, sim. E ela não fazia ideia se era a
quantidade ou se era o vinho em si, mas Lara não estava
sentindo nada daquele gosto que fazia seu estômago se
revirar.
Aquilo ela conseguia beber sem nenhum problema.
E, misturando o vinho com sangue, era bem possível que
nem o álcool fosse ser um problema, mesmo se ela
bebesse muito.
— Obrigada.
Eric assentiu e saiu do quarto, fechando a porta
atrás de si de novo.
Lara continuou parada no lugar, encarando a porta
fechada por alguns instantes antes de terminar de beber
o vinho com sangue.
Ele tinha entendido exatamente qual era o problema
dela e achado um jeito de resolver aquilo sem falar nada.
E aquele vinho...
Aquilo era bom – e não só por causa do álcool. Era
quase o que a Lara criança tinha imaginado antes de
experimentar sangue a primeira vez, quando ficava
pensando em como seria.
Como Eric tinha entendido aquilo?
Lara virou o resto do álcool e colocou a taça na
mesinha, ao lado das suas facas.
Não importava. Ela não ia ficar pensando em Eric.
Não ia ficar tentando entender por que ele agia como
agia – daquele jeito que não encaixava com nada que ela
sabia sobre os vampiros. Não. Lara estava ali para fazer
um trabalho. E ia fazer questão de focar naquilo.

Tamara não estava mais na sala quando Eric voltou para lá. Aquilo
não chegava a ser uma surpresa: era o normal de como
ela trabalhava, sempre. Àquela hora, ela provavelmente
estaria em algum lugar da cidade, conversando e agindo
como se não tivesse nenhuma preocupação – e o tempo
todo prestando atenção em tudo o que estava sendo
falado ao seu redor. Eric ainda tinha suas suspeitas de
que Tamara conseguia ler pelo menos os pensamentos
mais superficiais de outros vampiros, mas não tinha
provas. E, mesmo que estivesse certo, ele confiava nela.
Mas Ícaro estava parado na frente de uma das
paredes da sala – onde ele havia pregado um mapa e
marcado vários pontos.
— O ponto com mais movimentação não é a fronteira
norte — o outro vampiro falou.
Eric parou ao lado dele e encarou o mapa, também.
O Setor Três fazia fronteira com o Dez e o Seis, no sul,
com o Cinco e o Sete, no leste, e com o Oito a oeste. De
todos os setores que tinham fronteira, já haviam tido
conflitos diretos com o Oito e o Seis, antes. O Cinco
sempre havia evitado ter qualquer tipo de relação com
eles – o que era interessante, considerando os carniçais
de um ano antes. E o Sete era o mais perto de amigos
que o Três tinha. Não eram aliados, não realmente, mas
negociavam entre si, sempre fazendo questão de que
mais ninguém soubesse daquilo.
O norte era todo de fronteiras com as terras de
ninguém – e o motivo para terem se tornado próximos do
Sete. Muitos anos antes, os dois setores haviam se
ajudado para manter a fronteira sob controle. Na época,
Eric havia enfrentado os animais corrompidos, também,
assim como quase todo os necromantes. E ele se
lembrava do que haviam falado: que os animais estavam
se aproximando demais das fronteiras porque era onde já
sabiam que teriam alimento, porque era quase
impossível encontrarem alguma coisa nas terras de
ninguém.
E agora, décadas depois, ele não conseguia deixar
de se lembrar daquilo e pensar que talvez já houvesse
algo mais acontecendo desde aquela época. Por que os
animais haviam atacado de uma vez exatamente
naquela época e apenas nela? Se fosse realmente um
caso de escassez de recursos, eles teriam voltado. Eric
sabia muito bem que os animais corrompidos não
precisavam de muito tempo para recuperar seus
números. Se aquele fosse o problema, todas as regiões
viveriam sob ataque constante. Ao invés daquilo, o que
tinham era ataques esporádicos e animais que eram
inteligentes o suficiente para entender que não valia a
pena forçar as fronteiras.
Então talvez aquilo já houvesse sido um ataque.
Uma forma de medir as forças que o Três tinha – e não só
o três. A questão era quem estava por trás daquilo e,
principalmente, como haviam conseguido usar os
animais.
O comentário de Ícaro sobre a pior movimentação
não ser na fronteira norte não deveria nem ser uma
surpresa, depois de tudo.
— Onde? — Eric perguntou.
O outro vampiro apontou. Era mais ao norte, mas
não era exatamente a fronteira norte. Era a parte um
pouco para oeste, perto da fronteira com o Setor Oito.
Oito. Tudo sempre voltava para eles. No começo,
quando eles avançaram contra o Setor Quatro, Eric havia
pensado que talvez tivessem razão. As pesquisas que a
Corte da Sombra estava fazendo eram perigosas demais
– não era à toa que todos os setores haviam se
organizado ao redor deles, para monitorar e controlar o
que saísse de lá. Mas não havia demorado muito para ele
notar que tudo que o Oito fazia era movido por ambição
e sede de poder. Aquilo era o padrão das Cortes, sim,
mas sempre era preocupante quando uma delas tomava
ações tão diretas.
— O que você achou?
Ícaro se virou de volta para a mesa e pegou um
tablet.
— Sua humana comentou que, quando fugiu do
Setor Três, ela foi por essa parte da fronteira, que era a
menos vigiada — ele começou. — Mas não deveria ser.
Não. Eric havia deixado aquele detalhe passar, mas
Ícaro estava certo. Nenhuma parte da fronteira com as
terras de ninguém deveria ser menos vigiada. E a forma
como Lara havia comentado aquilo, mais cedo, tinha sido
casual demais, quase como se fosse algo de
conhecimento comum.
— Ela está certa — Ícaro continuou. — Temos menos
dados sobre essa parte da fronteira, tanto relatórios do
pessoal responsável quanto leituras de sensores e
vídeos. Mas extrapolando o que temos, mesmo
considerando as variações de movimento...
O vampiro virou o tablet para Eric antes de balançar
a cabeça e abaixar o aparelho. Bom, porque Eric sempre
demorava a entender as anotações dele.
— Se a movimentação real tiver seguido a mesma
proporção, essa área tem pelo menos o dobro de
presença dos animais do que qualquer outra parte da
fronteira — Ícaro falou.
O que queria dizer que não era algo a ser ignorado.
Eric assentiu.
— Vou verificar isso.
Porque apenas garantir que a vigilância passasse a
estar de acordo com o que esperavam não era o
suficiente. Eric teria que descobrir por que haviam
relaxado e o que estava acontecendo naquela parte do
setor. E a melhor forma de fazer aquilo era indo lá antes
de qualquer um saber que eles haviam notado algo de
estranho.
— Espere Tamara voltar — Ícaro falou.
Eric encarou o outro vampiro.
Ícaro balançou a cabeça depressa.
— Não estou dizendo que você não consegue lidar
com o que quer que esteja acontecendo lá. Mas ir
sozinho é um risco desnecessário, até mesmo porque...
— Pode ser outra armadilha — Eric completou.
Ícaro não estava errado – e Eric não seria arrogante
depois de quase ter sido destruído por carniçais, apenas
porque tivera certeza de que não encontraria nada com
que não conseguisse lidar.
Mas ele também não queria levar Tamara. Ele
precisava das informações sobre o que estava
acontecendo e aquela era a melhor hora para ela
conseguir qualquer coisa do tipo. E, das poucas pessoas
em quem ele confiava...
Lara. Ela era mais que capaz de enfrentar qualquer
coisa que encontrassem, além de ter sido quem havia
falado sobre aquela parte da fronteira. Talvez ela
soubesse de mais alguma coisa.
E levar Lara com ele em algo que era oficial só
serviria para fortalecer a posição dela como alguém em
quem ele confiava – o que ajudaria ainda mais na
questão de conseguir a lealdade dos mais velhos.
— Vou levar Lara, se ela concordar — Eric avisou. —
Se não, esperarei Tamara.
Mas ele tinha certeza de que Lara ia concordar.
— Uma humana? — Ícaro insistiu. — Mesmo que ela
tenha parte das nossas habilidades...
— Ela enfrentou Nicolai e sobreviveu.
Que era algo que nem Ícaro nem Tamara podiam
dizer. Na verdade, Eric se lembrava de Tamara dizendo
que sabia que não sobreviveria se enfrentasse Nicolai ou
Arman.
O outro vampiro não falou nada, só voltou a encarar
seu mapa.
Eric balançou a cabeça e saiu da sala devagar. Com
sorte, Lara não estaria se preparando para dormir.
OITO

Alana se encostou na parede e cruzou os braços, encarando o


jardim de ervas nos fundos da mansão que era a sede do
Setor Dez. Ela já deveria ter ido dormir, mas não, estava
sentada nos degraus do fundo da casa, sem conseguir
parar de pensar na situação toda com Lara e o Setor
Três.
O contrato que elas tinham feito não era perfeito,
mas Alana tinha plena consciência daquilo. Elas haviam
escolhido o que priorizar – e Lara tinha sido mais do que
clara quando falou que a prioridade era a segurança de
Valissa. Naquele ponto, Alana sabia que não tinha nada
que Eric pudesse usar, nenhum jogo de palavras para
dizer que tecnicamente estava cumprindo o contrato,
quando não estava. Mas sobre a segurança de Lara...
Alana sabia que algumas pontas soltas tinham passado,
porque elas não queriam exigir demais e acabar com Eric
negando algo ligado a Valissa.
E era interessante como Lara, que mal a conhecia,
tinha confiado em Alana para ajudar naquilo. E mais
interessante ainda como Alex tinha feito questão de
avisar Alana que a mercenária ia fazer um contrato com
um vampiro. Elu sempre tinha tido bom senso até
demais. Alana era capaz de apostar que Alex teria lhe
contado sobre os planos de Dani um ano atrás, se
pudesse.
Aquele era o problema, no fim das contas. Até Lara,
que mal lhe conhecia, tinha respeitado a opinião de
Alana. Mas sua prima, que tinha crescido com ela, sabia
exatamente como ela tinha sido treinada e o que ela
podia fazer, tinha lhe ignorado completamente. E, pior
ainda, não achava que tinha feito nada demais.
A porta da cozinha se abriu. A luz forte iluminou as
plantas, mas Alana não estava prestando atenção nelas
para valer.
Ela definitivamente devia ter ido dormir. Ou, pelo
menos, ir ficar pensando no que não devia no seu quarto.
— Você ainda está com raiva de mim? — Dani
perguntou.
"Estar com raiva" era um pouco demais. Se fosse
para Alana dizer alguma coisa, ela diria que estava sem
paciência. E um tanto quanto decepcionada. Mas com
raiva... Não. Ela já tinha passado daquele ponto.
— Não.
Dani suspirou e fechou a porta.
Alana definitivamente deveria ter ido para o seu
quarto enquanto ainda tinha chance.
Sua prima se sentou na outra ponta dos degraus.
— Nana, você está sendo infantil — Dani resmungou.
Ah, não. Não "Nana".
Que fosse, então. Se ela queria ter aquela conversa,
então teria.
Alana se virou para a prima.
— Você me tratou como uma criança — ela falou. —
Achei que fazia mais sentido agir de acordo.
Ok, talvez Alana estivesse com mais raiva do que
tinha se permitido pensar. Mas doía que a pessoa mais
próxima dela a conhecesse tão pouco – confiasse tão
pouco nela – a ponto de ter feito o que Dani havia feito.
Dani fechou uma mão com força.
— Eu não te tratei como criança. Mas a questão toda
com Amon era um assunto de segurança do setor. Eu não
ia te contar só porque você é minha prima, não é assim
que as coisas funcionam.
Não. Não era. E Dani continuava não entendendo.
A pior parte era que Alana sabia que ela não estava
se fazendo de burra de propósito.
— Você contou para Alex, não contou? — Ela
perguntou.
— É diferente — Dani respondeu depressa. — Fui
falar com Alex porque elu era a única pessoa que ia
conseguir alguma informação sobre onde Amon podia
estar preso.
Alana assentiu.
— Você foi atrás de uma opinião de especialista.
— Exatamente. Se foi por isso que...
Ela balançou a cabeça com força.
— E quem é a única pessoa nesse setor que foi
ensinada para negociar com vampiros?
Dani abriu a boca e parou, a encarando.
E parecia que ela tinha entendido, finalmente.
— Eu comecei a estudar sobre negociações com
vampiros antes de aprender a escrever — Alana
continuou. — Eu passei a vida inteira estudando
justamente para o caso de precisar lidar com uma
situação como a que você arrumou. E ao invés de ir atrás
de uma opinião de especialista, você fez o quê?
— Eu esqueci — Dani murmurou. — Nem passou pela
minha cabeça...
Alana se levantou.
— Exatamente. Nem passou pela sua cabeça se
lembrar do que eu fiz a maior parte da vida. Do mesmo
jeito que nunca passa pela sua cabeça que você não
teria sobrevivido sozinha nas terras de ninguém.
E Alana também não teria sobrevivido sozinha e
tinha plena consciência daquilo – mas não vinha ao caso.
— Você se acostumou a me tratar como uma civil
indefesa, na melhor das hipóteses. Mas todos os casos
que ouvi sobre os furos no seu acordo com Amon? Eu
podia ter evitado tudo. E, se as coisas tivessem
acontecido de outra forma, se você não tivesse se
envolvido com Amon, você estaria completamente
fodida. E eu só ia ter ficado sabendo depois da merda
toda acontecer, porque você esqueceu.
Porque para Dani, Alana era só Nana. A prima mais
nova que precisava ser protegida – como se os anos
enquanto elas estavam fugindo não tivessem servido de
nada e era ainda fosse só uma criança que evitava
confrontos de todas as formas possíveis.
O que Dani nunca tinha entendido era que Alana
evitava confrontos justamente porque sabia o que podia
fazer. O que seu poder podia fazer. E porque ela tinha
aprendido cedo demais que teria que lidar com vampiros.
Gastar sua energia em brigas com outros humanos
parecia só burrice. Valia mais se poupar para quando
fosse uma questão de vida ou morte – quando os
vampiros estivessem envolvidos.
Alana abriu a porta da cozinha e entrou na mansão.
Era melhor ir para o seu quarto. Se ela ia dormir, era
outra história – mas ao menos ela ia poder fingir que
estava dormindo e não falar com ninguém.

Lara tinha planejado ser notada pelos vampiros, mas não daquele
jeito.
Não que ela estivesse reclamando, exatamente. Ir
para a fronteira era uma boa ideia. Não só pela questão
de estarem indo lá, mas porque Eric tinha feito questão
de lhe chamar para ir com ele. De novo. Os vampiros
notariam aquilo. Eles entenderiam o que significava.
E, se tinham identificado animais das terras de
ninguém perto da fronteira, eles precisavam verificar a
situação, sim. Nenhum sistema de vigilância substituía o
bom e velho ir lá ver o que estava acontecendo. O que
queria dizer que eles estavam correndo pelo Setor Três
de novo, menos de vinte e quatro horas depois de Lara
ter chegado ali.
Pelo menos agora estavam na parte do Três que não
tinha sido tomada pelo pântano. Ela não precisava se
preocupar com o chão molhado ou com as árvores mais
perto uma da outra do que o esperado. Eles já haviam
atravessado as plantações – que não era muito
diferentes das que Lara tinha visto no Setor Dez, mesmo
que não chegassem nem perto de serem tão grandes ou
tão cheias quanto as de lá. E agora a única coisa na
direção para onde estavam indo era a terra avermelhada
e rachada, com uns poucos lugares de mato baixo e
seco.
Se ela estava se lembrando bem, não ia demorar
muito para as torres de observação aparecerem. O que
queria dizer que...
Lara diminuiu a velocidade que estava correndo. Eric
olhou de relance para ela e fez a mesma coisa, até parar.
A forma como ele só entendia o que ela queria ia
deixar Lara mal-acostumada, mas ela não ia reclamar.
Ela parou, sem desviar o olhar da direção da
fronteira.
— O que você está planejando? — Lara perguntou.
Eric se virou para ela.
— Você tem alguma ideia.
Ela assentiu.
— Se você tem motivos pra achar que alguma coisa
não está normal com o pessoal de vigilância, me deixe ir
na frente. Se você chegar, vão tentar esconder qualquer
coisa que não esteja regular. Mas eu...
— Existe uma chance de o pessoal aqui não ter
ouvido sobre você ainda — ele completou. — Não vão ter
motivos para esconder nada.
Lara sorriu.
— Exatamente. Eu não sei como tudo deveria estar,
mas é mais fácil dar detalhes do que achei depois.
Eric encarou o horizonte. Considerando o que Lara
achava que sabia sobre o poder dele, era bem possível
que ele já estivesse vendo alguma coisa das torres.
— Se eles não tiverem ouvido sobre você, também
não vão ter o menor motivo para te deixar passar — ele
lembrou.
Lara deu de ombros. Ela já tinha passado por ali uma
vez. Na época, ela tinha chegado na fronteira
completamente exausta depois de passar horas andando
com Valissa e tentando garantir que ninguém ia alcançar
as duas. Não importava o que tivesse mudado naqueles
anos, Lara tinha certeza de que, se havia dado seu jeito
seis anos antes, ia dar um jeito de novo.
Mas ela não tinha todas as informações,
simplesmente porque Eric não tinha tido tempo de
passar todos os detalhes para ela. E se ele achava que
tinha motivo o suficiente para se preocupar, Lara que
não ia ser arrogante a ponto de ignorar.
— Então é só não me dar muito tempo — ela falou.
— Dez minutos vai ser mais que o suficiente para ver o
que está acontecendo por lá, antes de verem você se
aproximando.
Eric se virou para Lara e assentiu.
— Dez minutos, no máximo. E se qualquer coisa
parecer fora do seu controle...
— Você vai saber — ela completou.
Como, Lara não tinha como garantir. Mas ela daria
um jeito de dar algum sinal.
Ele assentiu de novo.
Lara respirou fundo e voltou a correr. Era estranho.
Seu sangue não queimava – e a única explicação que ela
tinha para aquilo era o vinho com sangue que havia
bebido pouco antes de saírem da cidade. Mas,
independente do motivo, era bom. Os detalhes ela podia
tentar entender depois.
As torres de vigilância apareceram no horizonte. Nas
fronteiras internas, entre um setor e outro, Lara não
sabia de nenhum lugar que tivesse pontos de vigilância
fixos. Sempre eram só sensores e câmeras e, no caso do
Setor Dez, patrulhas que passavam por toda a fronteira.
Mas, onde a divisa era com as terras de ninguém, as
torres eram obrigatórias. Aquilo era parte do acordo feito
dois séculos antes entre os vampiros e a humanidade,
quando eles tinham oferecido proteção contra os animais
corrompidos em troca de serem alimentados pelo sangue
humano. E, justamente por isso, os vampiros sempre
levavam as fronteiras com as terras de ninguém mais do
que à sério.
A muralha ficou visível logo depois: uma parede
grossa que tinha em torno de dez metros de altura,
construída com materiais de antes da magia voltar para
o mundo. A torres de vigilância estavam espalhadas ao
longo dela, não necessariamente em espaços regulares,
mas sempre com uma torre no campo de visão da mais
próxima. E, mesmo que Lara não conseguisse ver
detalhes naquela distância, ela sabia que havia mais
uma parede elétrica ali, logo depois da muralha – e outra
logo antes, também.
Lara continuou correndo na direção de uma das
torres. Alguém já teria notado que ela estava se
aproximando, com certeza. A questão era que tipo de
aviso dariam – se dariam algum aviso.
Algo brilhou no alto da torre bem mais à sua direita.
Alguma arma, talvez.
Lara levantou o braço com a mão aberta e dobrou os
dedos num dos sinais de identificação que os
mercenários usavam. Não era nada demais, só um aviso
de que era alguém a trabalho – o que não deixava de ser
verdade. E as forças de defesas de todos os setores
conheciam aquele sinal.
Com sorte, quem quer que estivesse nas torres não
ia ligar os pontos de que mercenários sempre eram
humanos e que a pessoa se aproximando estava
correndo como uma vampira.
O brilho desapareceu. Lara ia torcer para aquilo
querer dizer que ela ia poder passar.
A parede elétrica ficava a alguns metros de distância
da muralha propriamente dita, como uma última medida
de defesa. Se os animais passassem pela outra parede e
pela muralha, aquilo ali seria uma linha para os vampiros
tentarem ganhar tempo. E, mesmo que Lara entendesse
a lógica de como as fronteiras eram mantidas, ela não
conseguia imaginar uma época em que os animais
tivessem sido um risco tão grande a ponto de os
vampiros terem um sistema para ganhar tempo.
E a parede elétrica estava desligada, como sempre.
Lara se inclinou para passar entre os fios grossos e
continuou na direção da muralha. Ela não tinha visto
ninguém na torre na sua frente, mas aquilo não queria
dizer nada. Não que ela estivesse muito preocupada. Se
fosse alguém se aproximando da direção das terras de
ninguém, com certeza teriam uma arma apontada para
ela. Mas Lara estava vindo de dentro do setor e os
setores não eram prisões.
Mas alguém deveria estar na entrada da torre, ou
para mandar ela atravessar a fronteira em outro lugar,
ou para deixar ela passar... Ou qualquer coisa entre
essas opções. E não tinha nenhum sinal de movimento.
Lara parou logo antes da porta de metal, ouvindo.
Nada. Nenhum som de passos ou de movimento. Se
tivesse alguém ali, mesmo um vampiro, estaria fazendo
algum tipo de ruído. A menos que a pessoa estivesse
parada ignorando completamente o fato de que Lara
tinha ido até a torre. E, naquele caso...
Ela deu dois passos para trás e olhou para cima. A
parede da torre – e da muralha – era lisa o suficiente para
não ser fácil para os animais corrompidos as escalarem,
se passassem pela parede elétrica do outro lado. Mas
não eram lisas o suficiente para parar alguém.
Especialmente se aquele alguém estivesse usando a
velocidade e a força dos vampiros.
Lara encarou as linhas na parede. O espaço entre
elas era mínimo, mas era o suficiente.
Ela pulou, se segurando em uma das reentrâncias na
parede e tomando impulso para pular para a seguinte. E
depois – até estar no alto da torre.
Nada. Nenhum grito, ninguém mandando ela parar.
Eric estava certo em vir na fronteira.
Lara se jogou para dentro de uma das janelas
estreitas no alto da torre e se abaixou. Ela não fazia ideia
do que deveria ser normal ali, mas onde ela estava era
uma sala circular praticamente vazia. Do outro lado da
torre, três metralhadoras que pareciam modernas
demais, comparadas com as que ela já tinha visto,
estavam montadas em suportes perto das outras janelas.
Do lado onde ela estava, não tinha nada.
E tinha um alçapão fechado no chão. Pelo menos
estava fechado, mesmo que Lara achasse o auge da
irresponsabilidade deixar aquelas armas ali em cima,
sem ninguém sabendo o que estava acontecendo. Se ela
quisesse, poderia só roubar tudo e ir embora e era
possível que ninguém nem soubesse quem tinha ido ali,
considerando como os sensores naquela região eram
ruins.
Aliás, pensando bem, não fazia muito sentido os
sensores serem ruins ali. Mais uma coisa para conversar
com Eric depois.
Lara abriu o alçapão e parou, esperando. Nenhum
ruído.
Ela pulou de uma vez e caiu já com uma faca na
mão, olhando ao redor. Nada. Ninguém. Só mais uma
sala circular, não tão vazia quanto lá em cima – uma
mesa pequena encostada em uma parede, dois armários
que ela apostava que estavam cheio de armas, quatro
sinalizadores presos na parede, dois monitores lado a
lado logo abaixo dos sinalizadores, com mais dois
monitores do outro lado e o que parecia ser um sistema
de comunicação.
E outro alçapão, óbvio – porque Lara ainda não
estava no nível do chão.
Ela abriu a passagem e pulou, de novo. Aquela sala
estava vazia, também, mas pelo menos fazia sentido. Se
alguma coisa forçasse as portas, a sala podia funcionar
como uma armadilha para conter o que quer que fosse.
Lara se lembrava muito bem de um vampiro falando
aquilo para ela quando estava passando por ali. Não por
ali, exatamente. Ela tinha atravessado a fronteira em
outra torre. Mas a ideia era a mesma.
E não tinha nenhum sinal de que as portas tinham
sido forçadas. Mesmo assim, um arrepio atravessou Lara.
Alguma coisa estava errada, ali.
Mais um alçapão. Aquilo não devia ser uma surpresa:
os vampiros amavam construções subterrâneas. Mas
agora Lara já estava preocupada. Não fazia o menor
sentido não ter ninguém ali. Os vampiros levavam a
questão toda das terras de ninguém à sério demais para
só deixarem uma torre vazia.
Ela abriu o alçapão e parou logo antes de pular. Não.
Aquilo era um subterrâneo. Ela não era tão louca assim.
Lara olhou para baixo e piscou depressa, se forçando
a ver como um vampiro, porque mal tinha luz o suficiente
para ela ver silhuetas, ali.
Caixas. Armários. Provavelmente mais armas.
Alguma coisa que parecia uma cama num canto. E ela
com certeza não ia descer para ter certeza de que
alguém não estava caído no meio das caixas ou coisa
assim.
Lara fechou o alçapão de novo e se levantou. O que
estava acontecendo ali?
Ela encarou a porta reforçada que dava para as
terras de ninguém. Nada. Nenhum sinal de que tinha sido
forçada ou...
Não tinha sido forçada, verdade. Mas as fechaduras
principais não estavam ativadas.
Um arrepio atravessou Lara. Ela tinha enfrentado os
animais das terras de ninguém uma vez, e uma vez tinha
sido mais que o suficiente. Ela ainda tinha as cicatrizes
para provar.
Ela pulou e se segurou na beirada do alçapão que
dava para a sala de cima. O que quer que estivesse
acontecendo, ela não ia investigar sozinha. Não mesmo.
Lara fechou o alçapão, puxou a mesa para cima dele,
e subiu para o alto da torre de novo. Ao menos ali ela
tinha as metralhadoras. E não ia demorar muito para Eric
chegar.

Eric passou pela parede elétrica desligada e parou. Três torres


estavam no seu campo de visão, mas só uma havia
sinalizado reconhecendo sua aproximação – a que ficava
na direção da parte norte da fronteira, à direita de onde
ele estava agora. Não havia nenhum sinal de que haviam
notado que ele estava ali vindo das outras duas torres, e
aquilo incluía a que Lara tinha escolhido.
Pelo menos não era difícil deduzir o que ela havia
feito quando ninguém abrira a porta. Escalar aquela
parede não seria difícil. Mas era interessante que Lara
não estivesse esperando por ele na porta.
Eric pulou e subiu pela parede. As janelas no alto da
torre estavam abertas, então alguém deveria estar ali...
Mas o único "alguém" quando ele entrou pela janela
era Lara, parada ao lado de uma das metralhadoras.
Ele a encarou dos pés à cabeça, tão depressa que
com sorte ela nem mesmo notaria. Mas não havia
nenhum sinal de ferimento, apenas uma tensão que ele
Eric não conseguia ignorar.
— O que você achou? — Ele perguntou.
Lara olhou para fora de novo, na direção das terras
de ninguém, antes de balançar a cabeça.
— Nada. A torre está vazia — ela contou. — Não
conferi o subterrâneo, mas não acho que tem muita
chance de ter alguém lá. E a porta para as terras de
ninguém não está trancada.
Não ter ninguém na torre já era ruim o bastante. E,
considerando que a torre a sudoeste também não havia
sinalizado quando Eric se aproximara, era bem possível
que ela também estivesse vazia, então.
Mas a porta não estar trancada... Aquilo era um
problema muito maior.
Ele abriu o alçapão e pulou para baixo.
Nada parecia fora do normal, se Eric não
considerasse a mesa em cima do alçapão para o andar
de baixo. Mas ele não precisava perguntar para ter
certeza de que aquilo havia sido Lara. Ela podia ser uma
mercenária – e eles tinham fama de loucos, sim – mas
Lara não corria riscos desnecessários.
Ele empurrou a mesa, abriu o alçapão e desceu.
Nada, também. Apenas a área vazia que era a sala do
térreo, com as duas portas trancadas.
Não. Lara estava certa. A porta que dava para as
terras de ninguém estava fechada, mas sem nenhuma
das travas de segurança. A única fechadura realmente
trancada era simples e não serviria de nada se algo
tentasse forçar a porta. E havia algo na sala subterrânea.
Eric não sabia exatamente o quê e não parecia ser um
vampiro, mas ele conseguia sentir a presença de alguma
coisa viva ali.
E passos. Ele também conseguia ouvir passos, mas
eles estavam vindo de fora.
Algo fez um som abafado logo acima de Eric. Lara,
descendo para o segundo andar.
E os passos continuavam se aproximando da torre.
— Lara — ele chamou, em voz baixa.
Ela pulou para o lado dele.
— Fechei as janelas da torre — ela avisou.
Porque se alguma coisa estava acontecendo, era
melhor não darem uma forma de alguém os pegar de
surpresa. Sim.
E aquele provavelmente era o motivo para quem
estava lá fora estar se aproximando. Haviam notado as
janelas sendo fechadas.
Eric indicou a porta com um movimento de cabeça.
Lara se endireitou e assentiu, seca. Ela tinha ouvido,
também.
Ele não falou nada enquanto ela se movia até estar
encostada na parede, perto da porta. Não era uma
posição ideal, mas era o melhor que podiam fazer, numa
sala como aquela.
Eric parou no meio da sala e cruzou os braços.
Os passos já estavam na porta.
Ela se abriu de uma vez. Algo correu para dentro –
um dos animais corrompidos. Eric se afastou para o lado
e a criatura passou por ele, fazendo um ruído que quase
parecia um rosnado, mas era sibilante demais para ser
chamado assim. Mas o som era familiar e o suficiente
para ele ter certeza de que aquele animal era venenoso.
Eric segurou a cabeça do animal – com um focinho
comprido demais para ser um felino, mas um formato
diferente demais para ser algo como um lobo – e a
torceu. A criatura ainda fez um som baixo, quase um
ganido de dor, antes de desabar.
Algo correu na sua direção. Eric desviou de novo
antes mesmo de perceber que era um vampiro – vestido
com o uniforme dos vigilantes da fronteira. Um vampiro
do Setor Três.
A porta da torre se fechou com um som pesado e
Lara parou na frente dela.
O vampiro encarou Eric e parou. Bom. Pelo menos
ele o reconhecia – mesmo que estivesse deixando claro
que não o reconhecia como um príncipe.
— O que você estava fazendo fora do seu posto? —
Eric perguntou.
O vampiro se endireitou e levantou a cabeça.
— Estou seguindo minhas ordens — o vampiro falou.
Lara avançou com velocidade vampírica e segurou o
cabelo do homem, puxando sua cabeça para trás ao
mesmo tempo em que colocava uma faca contra o seu
pescoço.
— Você vai respeitar o seu príncipe — ela falou.
Eric conteve um sorriso. Ela podia ter passado anos
fora do Setor Três e ter feito questão de ficar longe dos
vampiros, antes, mas sabia muito bem como as Cortes
funcionavam. E sabia que a forma como aquele vampiro
estava parado, encarando Eric como se fosse um igual,
era um insulto não tão sutil.
O vampirou mostrou as presas.
Ele havia feito sua escolha, então.
Eric encontrou o olhar de Lara e assentiu.
Ela puxou a faca na sua direção, cortando o pescoço
do vampiro quase por inteiro. O sangue esguichou e Lara
deixou o corpo cair no chão.
— Imagino que isso não vai ser o suficiente para ele
ser destruído — ela falou.
Eric balançou a cabeça.
— Todos os vampiros que recebem posições na
fronteira são fortes o suficiente para sobreviver a um
pescoço cortado.
Porque precisavam de vampiros fortes, ali, para o
caso do pior acontecer. Se ela tivesse decepado o
vampiro, ele não se recuperaria. Um corte como aquele
não era nada.
Mas aquele vampiro estava passeando do lado de
fora – nas terras de ninguém. E parecia que havia
começado a tratar as criaturas corrompidas como
animais de estimação.
Eric pegou o celular e mandou uma mensagem para
Tamara. Alguém precisava verificar toda a torre e ele não
podia continuar ali. Além disso...
Ele se virou para Lara, que estava encarando o
animal morto no chão como se estivesse esperando que
ele fosse se levantar a qualquer momento.
— A outra torre também parecia estar vazia — ele
contou.
Ela olhou para ele antes de assentir de forma seca.
— Se jogar o vampiro no subterrâneo, eu pego a
mesa para bloquear o alçapão.
Eric sorriu. Ele podia se acostumar com como ela
pensava. E a ideia dela era melhor, sim. Se prendessem
o vampiro ali embaixo e travassem todas as fechaduras,
as chances de ele se recuperar e escapar seriam
inexistentes. Eles poderiam ir até a outra torre sem
precisar se separarem – porque nem mesmo Eric seria
arrogante a ponto de insistir em ir sozinho, depois do que
tinha visto ali.

Lara não conseguia parar de olhar para o corpo do animal no chão


da sala. Não porque estivesse chocada ou qualquer coisa
do tipo. Mas ela não confiava que uma daquelas
abominações não fosse voltar a vida como se fosse um
vampiro. E ela não era louca de relaxar com uma
daquelas criaturas por perto. Uma vez tinha sido o
suficiente – não que ela tivesse relaxado.
E, se alguém tivesse mencionado que aceitar a
proposta de Eric envolveria qualquer coisa sobre as
terras de ninguém, Lara teria pensado muito mais antes
de aceitar.
Pelo menos trabalhar com ele era fácil e aquilo era
uma coisa que ainda surpreendia Lara. Mas era fácil –
mais fácil que alguns mercenários com quem ela já tinha
trabalhado.
Eles tinham ido na outra torre, também, e ela
também estava vazia e com a porta que dava para as
terras de ninguém sem as trancas principais.
Infelizmente, não tinham como fechar tudo, mas também
haviam deixado só uma das janelas do alto da torre
aberta, depois de trancarem todas as armas.
E agora estavam ali de novo, na torre onde Lara
tinha entrado primeiro, enquanto o pessoal de Eric
verificava tudo. Ela tinha ouvido os sons quando os
vampiros no subterrâneo mataram mais dois animais
corrompidos que estavam presos ali – e que tinham
começado a se alimentar do vampiro que Eric tinha
jogado lá, mais cedo. E ela não ia nem se sentir mal por
causa daquilo. O vampiro tinha feito sua escolha.
Mas aquilo tudo tinha feito Lara realmente entender
o que estava acontecendo no Setor Três. Quando Eric
tinha falado sobre conseguir a lealdade dos outros
vampiros, de alguma forma, ela tinha pensado que era
algo mais simples. Ou melhor, talvez não simples. Mas
mais pontual. Algo sobre grupos específicos de vampiros,
mais político do que algo que teria uma consequência
real. Agora ela entendia. O problema era real, porque não
importava se Eric fosse um príncipe e tinha destruído os
outros. Aquele vampiro na fronteira havia pensado que
podia desafiá-lo sem consequências.
Eric parou ao lado dela.
Lara respirou fundo e se arrependeu na mesma hora.
Ele tinha descido para lidar com os animais corrompidos
e ainda tinha um resto do cheiro ácido do sangue deles
em Eric. Ou talvez fosse só a criatura morta na sala.
E ela ainda estava usando os poderes dos vampiros
sem nem perceber, se estava sentindo o cheiro do
sangue com aquela intensidade.
— Você já tinha enfrentado uma das criaturas antes
— ele falou.
Lara assentiu, ainda olhando para o animal no chão.
— Quando Val e eu saímos por essa parte da
fronteira. Os príncipes já tinham colocado caçadores de
recompensa atrás de nós.
Ele ficou tenso de um jeito que Lara conseguia
sentir, mesmo sem se virar.
— Não soube dos caçadores de recompensa. Só dos
mercenários.
Os mercenários tinham sido problema o suficiente:
um grupo do Setor Nove, do tipo que até os outros
mercenários evitavam, se podiam. Mas Lara
provavelmente teria conseguido evitá-los até chegar no
Setor Seis, se não estivesse esgotada depois de dias
tentando despistar os caçadores de recompensa e
tentando escapar quando eles as encontravam.
— Eles vieram antes — ela contou. — E alguns
usavam os animais corrompidos para caçar seus alvos.
E, se Eric não tivesse garantido que o vampiro que
os atacara era um dos que tinham cargos na vigilância
da fronteira, Lara teria falado que ele era um caçador de
recompensas também, por causa de como parecia que
aquele animal no chão respondia a ele.
Tamara saiu da sala subterrânea e se virou na
direção deles, passando por cima da criatura corrompida
morta como se aquilo não fosse nada. Lara invejava a
tranquilidade dela, mas aquele era um ponto no qual ela
não conseguia relaxar.
— Ainda estamos conferindo as últimas caixas, mas
não acho que vai ter mais nada útil aqui — ela falou. —
Quais as suas ordens?
Boa pergunta. Lara também estava curiosa para
saber o que Eric ia fazer com aquela sala, depois de
terem achado animais presos lá embaixo.
— Verifique a estrutura da torre. Se for possível,
queimem tudo. Quero uma sala vazia ali, sem nenhum
resto do que quer que estivessem fazendo.
— E o vampiro...? — Tamara insistiu.
Eric se virou para a vampira.
— Queimado, também. Traidores não têm direito a
nenhum tipo de monumento.
E ele tinha falado alto o suficiente para as câmeras
captarem. Perfeito.
— Tem pessoal o suficiente para lidar com essa
situação? — Eric perguntou.
Tamara assentiu.
E Lara suspeitava que "lidar com a situação" não
seria só colocar fogo na sala. Seria cuidar das outras
torres, também. E de verificar a rotação de vigilantes
para tentar evitar mais lugares onde aquilo estivesse
acontecendo.
Ela fechou os olhos e se forçou a não respirar fundo.
Política. Muita política. E Lara tinha assinado um
contrato dizendo que ajudaria Eric a lidar com aquilo. Ela
tinha pensado que sabia o suficiente, mas pelo visto
estava enganada. Então a primeira coisa a fazer era
conseguir todas as informações.
Lara abriu os olhos de novo e guardou sua faca.
— De volta para a cidade? — Ela perguntou.
Eric assentiu.
NOVE

Eric passou entre as mesas do clube devagar, o tempo todo com


uma mão nas costas de Lara. Tinha sido insistência dela
irem para algum lugar público e não de volta para a casa,
mesmo que fosse óbvio que ela já estava cansada. Seu
corpo não estava acostumado com o horário dos
vampiros e ela tinha passado a maior parte do dia na
arena, lutando. E era exatamente por causa daquilo que
Eric havia concordado: Lara não estaria insistindo se não
tivesse um bom motivo.
Em outro setor, talvez aquele lugar fosse chamado
de um restaurante – e, tecnicamente, era aquilo que ele
era: um lugar onde as pessoas iam para se alimentar,
tanto vampiros quanto humanos. Mas era um lugar
criado para os vampiros e, por algum motivo, havia se
tornado conhecido com um de três ou quatro clubes no
Setor Três. Eram lugares onde sempre havia música ao
vivo, mesmo que baixa, e onde os vampiros iam para
serem vistos e fazerem boa parte dos seus jogos
políticos. Mas também era o lugar para onde levavam
membros dos seus rebanhos, às vezes. Comida humana
era servida, mas não era a regra. E a maioria das
pessoas ali estava mais interessada em ser vista, de
qualquer forma.
E eles estavam sendo vistos, sim. Eric estar ali já era
algo que chamava atenção, porque era incomum. Mas
Lara, ela não encaixava ali. Mesmo que as roupas dela
não fossem tão diferentes do que alguns dos vampiros
das forças de defesa usavam, havia algo na sua postura
que era quase um desafio, um ímã para os vampiros ali.
Ímã ou não, ninguém se aproximaria.
Ele levou Lara para uma das mesas numa plataforma
um pouco mais alta que o restante da sala, com paredes
curvas ao seu redor. Aquela parte do clube estava quase
vazia e aquilo não era uma surpresa: as mesas ali tinham
seus donos. Tecnicamente, nada impedia um vampiro de
aproveitar enquanto ninguém estava ali. Mas nenhum
deles arriscaria, porque era o território dos príncipes e
daqueles que estavam no setor praticamente desde a
sua criação.
Lara se sentou na cadeira que Eric puxou como se
aquilo fosse o esperado, antes de olhar ao redor devagar
e se virar para ele de novo.
Eric se sentou na frente dela. Se ele não soubesse,
nunca imaginaria que Lara tinha passado a maior parte
da vida evitando vampiros. Ela agia como alguém que
estava mais que familiarizada com lugares como aquele.
Se aquilo era encenação, ela era uma atriz melhor do
que havia imaginado.
— Quanta privacidade temos aqui? — Lara
perguntou.
Eric olhou ao redor, também. Alguns vampiros
encarando a mesa deles desviaram o olhar depressa,
mas ele sabia que estariam olhando de novo em questão
de instantes.
Olhar não queria dizer ouvir – e Eric notaria se
alguém estivesse se aproximando o suficiente para os
escutar.
— O suficiente — ele falou. — É justamente a
privacidade que faz essa parte do clube ser especial.
Ela assentiu e se inclinou para trás na cadeira.
— Perfeito.
Eric balançou a cabeça.
— Se queria fazer perguntas, era mais fácil ter
voltado para a casa.
— E aí você estaria escondido, de novo — Lara falou.
— Quando na verdade precisa ser visto.
— Um príncipe não precisa fazer nada — ele
respondeu.
Ele não deveria provocar. Eric já sabia que Lara não
teria o menor problema em desafiá-lo. E, mesmo assim,
ele não conseguia evitar. A reação dela era deliciosa
demais, justamente porque Lara não percebia que o
estava desafiando. Mas era exatamente o que ela estava
fazendo quando o encarava daquele jeito, como se fosse
convencê-lo apenas com o olhar.
— Um príncipe em um setor estável faz o que quer —
ela concordou. — Mas se esse setor estivesse estável,
você não teria ido atrás de mim.
Eric não podia nem dizer que seu interesse era
porque ninguém tinha coragem de falar com ele da
forma como ela estava fazendo. Ele tinha pessoal
próximo que não teria o menor problema em fazer algum
comentário do mesmo tipo, no mesmo tom, até. Mas não
seria a mesma coisa.
Ele inclinou a cabeça para a frente, devagar, sem
tentar esconder um sorriso. Lara o encarou por alguns
instantes antes de balançar a cabeça de um lado para o
outro e soltar o ar com força.
— O que você quer saber? — Eric perguntou.
Ela continuou olhando para ele por alguns segundos
antes de suspirar.
— Eu sei que foi você no controle, quando meu pai
foi transformado em humano — Lara começou. — E
conheci Melissa. Aposto que foi você, também. Se você
tem esse tipo de poder, por que ainda tem gente aqui
agindo como se não fosse forte o suficiente para ser um
príncipe?
Porque ele não queria uma repetição do passado.
Mas Lara era humana, apesar de tudo. Ela não conhecia
as histórias. Mesmo se fosse uma vampira, era provável
que não conhecesse as histórias, porque os necromantes
haviam feito questão de esconder tudo o que podiam.
— O que você sabe sobre os necromantes? — Ele
perguntou.
Lara balançou a cabeça.
— Que, se tiverem poder o suficiente, vocês podem
desfazer a transformação de um vampiro. E só.
Eric assentiu devagar. Era o que havia esperado.
Ninguém sabia mais que aquilo, se os necromantes
pudessem evitar. E até mesmo aquilo – Lara só sabia por
causa de quem ela era.
Ele parou, encarando Lara. Contar era uma escolha,
sim, e uma escolha que podia ter consequências pesadas
demais. Mas Eric não acreditava que ela fosse o tipo de
pessoa que usaria aquela informação contra eles. Não a
mulher que tinha passado a vida toda escondendo o que
era e o que podia fazer – e ajudando sua irmã a fazer o
mesmo. Não. Ela venderia aquelas informações, sim, se a
vida da sua irmã estivesse em jogo. Mas Eric tinha
certeza que nada além daquilo faria Lara quebrar sua
palavra.
— Os necromantes têm poder sobre a morte — ele
falou. — É simples e complexo assim.
Lara o encarou, com a testa franzida e os olhos
marcados pelo cansaço.
Não. Se ela insistiria em estar em algum lugar
visível, ele insistiria para que ela não forçasse seus
limites.
Eric levantou a mão. Um atendente apareceu ao seu
lado quase no mesmo instante.
— Senhor?
— Vinho — ele pediu. — O de sempre e deixe a
garrafa.
O atendente se inclinou em uma quase-reverência
antes de desaparecer de novo, se movendo em
velocidade vampírica.
Ele se virou para Lara de novo e ela levantou uma
sobrancelha numa pergunta silenciosa.
— Você está exausta — Eric falou.
Lara não discordou e ele sabia que aquilo era mais
um sinal de como estava certo. Ela não aceitaria aquele
comentário sem questionar se realmente não estivesse
esgotada.
— Atravessar meio setor correndo, duas vezes, não
estava nos meus planos para a noite — ela murmurou.
Não, não estava. Mesmo que ela tivesse feito planos
para a noite, Eric tinha certeza de que haviam sido algo
muito mais simples do que verificar a fronteira.
O atendente apareceu ao lado deles, de novo, com
uma garrafa de vinho e duas taças que deixou em cima
da mesa antes de se afastar, de novo.
Eric abriu a garrafa e serviu as duas taças. Lara não
falou nada quando ele fez um corte fundo na palma da
sua mão e deixou o sangue escorrer para dentro de uma
das taças.
Ele entendia por que Lara queria estar em público.
Era uma questão de lembrar às pessoas que eles
estavam ali. E, agora, seria uma forma de mostrar que
Lara não era o que pensavam também.
O corte na mão de Eric se fechou. Ele pegou a taça e
a ofereceu para Lara, que aceitou com um sorriso.
Encenação. Tudo era encenação – porque ele
precisava ser visto.
Ela tomou um gole do vinho misturado com sangue e
encarou Eric de novo.
— Necromantes — Lara repetiu.
Eric sorriu.
— Necromantes. Com poder sobre a morte — ele
repetiu, também. — O que quer dizer que temos poder
sobre os vampiros.
Ela balançou a cabeça devagar.
Não. Lara não ia deduzir aquilo automaticamente.
Eric reabriu o corte na sua mão. O sangue começou
a escorrer e então a pingar... E era simples demais fazer
até mesmo aquilo parar.
Lara encarou as gotas de sangue no ar, sobre o
tecido claro que cobria a mesa, e a forma como a mão
dele simplesmente havia parado de sangrar.
Ele não estava controlando o sangue. Estava
controlando o poder no sangue. O que permitia que os
vampiros ainda existissem, mesmo que não estivessem
vivos. Eric podia não saber a origem daquilo ou como o
primeiro vampiro havia surgido. Mas ele sabia que, o que
quer que fosse, aquele poder não estava vivo.
Lara respirou fundo, soltou o ar devagar e se
endireitou na cadeira.
Eric puxou o poder no sangue e ele se esfarelou
antes de cair na mesa. Sem falar nada, ele empurrou a
poeira fina para o lado.
— Qualquer vampiro aqui... — Lara começou.
Ele balançou a cabeça.
— Não é tão simples. Não é só uma questão de usar
o poder, sem nenhum custo. É um ciclo. Um necromante
precisa ter poder o suficiente para alcançar o poder em
outro vampiro. A transformação do seu pai foi uma
recompensa, porque ele havia parado uma traição dentro
do setor. O poder dos traidores foi o que alimentou a
transformação dele.
— E os carniçais foram a transformação de Melissa —
ela murmurou.
Eric assentiu.
— Era uma forma simples de mostrar para o Setor
Dez que eu estava falando sério quando sugeri uma
aliança. E era justo, também, porque ela e Yuri foram os
responsáveis por nos dar as informações sobre os
carniçais e nos dar uma chance de atacar.
Lara fez um ruído irritado antes de tomar mais um
gole do vinho.
— Só porque você fez estrago o suficiente pra eu
ficar desacordada por dias — ela resmungou. — Senão ia
ter sido eu dando as informações.
Eric precisou de um instante para entender que ela
estava falando de quando Lara o encontrara no pântano,
depois de cair em uma armadilha.
— Eu nunca descobri o que você estava fazendo lá.
Lara inclinou a cabeça.
— Claro que não. Eu ia vender as mesmas
informações que Melissa e Yuri conseguiram, depois. —
Ela deu de ombros. — Negociar a segurança de Val em
troca delas.
Vender as informações para o Setor Três, então. Mas
ela havia sido seguida pelos carniçais, também, e
encontrara Eric.
— Quando acordei, no Dez, vocês já estavam
planejando o tal ataque. Era mais fácil só desaparecer. E,
pelo que você falou, vender essas informações para os
dois inúteis não ia ter adiantado nada.
Eric sorriu. "Dois inúteis" era uma boa descrição para
Nicolai e Arman. Não que eles nunca tivessem feito nada
– se fosse assim, não teriam se tornado príncipes. Mas,
nos últimos anos... Inúteis.
— E você estava falando sobre os necromantes e por
que não te levam a sério — Lara completou.
Ele assentiu. Não estava tentando evitar o assunto.
— Os necromantes são banidos da maior parte das
Cortes — Eric contou. — Não só nessa região, mas em
todo o mundo. E isso vem de antes da volta da magia. Os
príncipes não querem uma ameaça dentro das suas
Cortes.
— Faz sentido.
Fazia. Aquele era o problema.
— Todo necromante aprende a esconder seu poder,
porque não fazer isso é uma garantia de que será caçado
— ele continuou. — Você passou tempo no Setor Dez.
Você conheceu Amon. Deve ter ouvido algumas das
histórias sobre ele.
Lara assentiu e tomou mais um gole do vinho.
— Amon era uma das histórias que meu mentor
contava, pouco depois que fui transformado — Eric falou.
— Um aviso que todos os necromantes entenderam,
mesmo que não fosse um aviso para nós. Um vampiro
forte demais, com uma habilidade que podia ser um risco
para os outros vampiros, então eles haviam aproveitado
o primeiro momento vulnerável dele para o prender. E o
mantiveram preso. Aquilo era o que fariam com os
necromantes, se descobrissem algum de nós.
E aquele era o motivo para Amon confiar em Eric. O
outro vampiro o entendia e sabia que havia limites que
Eric nunca ignoraria.
— Isso explica bastante sobre os comentários que
ouvi sobre o Setor Três — Lara murmurou. — Nunca
entendi por que os outros têm tanto medo do que
acontece aqui, mas...
— Você não entendia porque veio daqui. Você sabe o
que fazemos ou não.
E, comparado com o que Eric sabia sobre os outros
setores, o Três era um dos mais seguros para os
humanos – e talvez um dos mais estáveis para os
vampiros, também. Saberem que a Corte a Névoa estava
ali, que havia necromantes entre eles, era mais que o
suficiente para fazer os vampiros seguirem as regras, na
maior parte do tempo.
Mas não era o suficiente para ter a lealdade deles.
Não de verdade.
Lara estava certa. Ele precisava ser visto – e
precisava deixar claro o que era o poder de um
necromante. A reputação do Setor Três tinha sido
construída em torno deles. Então era hora de honrarem o
que era falado.

Lara encarou Eric e tomou mais um gole do vinho misturado com


sangue para disfarçar sua reação. Ele tinha entendido.
Deveria ter sido óbvio, desde o começo, mas ela até
entendia como ele não tinha pensado por aquele lado.
Lara tinha passado anos se escondendo e sempre tinha
sido difícil quebrar os limites que ela mesma havia se
imposto, quando precisava. Ela não queria imaginar o
tanto que seria mais difícil se fossem décadas se
escondendo – mais de um século, até.
E, no fim das contas, aquilo só queria dizer que Eric e
ela eram mais parecidos do que Lara havia imaginado.
— Quando você parou de se esconder? — Ele
perguntou.
Ela balançou a cabeça devagar.
— Eu nunca parei. Mas aprendi a deixar verem o
suficiente.
Eric levantou uma sobrancelha e não falou nada.
E aquilo era outra coisa sobre ele que era perigosa:
Eric não insistia, mas ele também não deixava um
assunto de lado. Ele esperaria até ela elaborar – ou até
Lara mudar de assunto.
Mudar de assunto parecia correr e... Ele tinha
contado sobre os necromantes para ela. Não tinha sido
nem um pouco difícil deduzir que era raro um
necromante falar sobre o que faziam como Eric tinha
feito.
— Eu fiz meu nome entre os mercenários deixando
verem o que era conveniente — ela contou. — Alguns me
viram sendo rápida demais. Outros, fazendo alguma
coisa que não deveria ter força para fazer. Esse tipo de
coisa, sempre detalhes, sempre pouco.
— O suficiente para te respeitarem, mas longe de ser
o bastante para suspeitarem de algo mais — Eric falou.
Lara assentiu.
Tinha sido complicado. Era uma linha fina demais
para se andar, especialmente no Setor Seis, onde os
vampiros viam os humanos como menos que
descartáveis. Lanche e mais nada. Mas ela tinha
conseguido o respeito que precisava, no começo, e
depois havia tido aqueles anos e várias missões para
provar que merecia aquele respeito, sim.
Eric bateu as pontas dos dedos na mesa antes de
encarar Lara de novo.
— Mostrar nosso poder fez os necromantes serem
caçados, antes.
Ela assentiu. Não ia discutir com aquilo nem dizer
que não era um risco.
— Vocês foram caçados no passado e em outros
lugares. Não no seu setor.
Porque aquela era a maior diferença. Eric era o
príncipe, ali. Ele era a autoridade máxima. Se alguém
tivesse algum problema com necromantes, teria que lidar
com ele – e Lara não tinha a menor dúvida de qual seria
o resultado de um desafio.
— E não faz diferença para os outros setores — ela
continuou. — Eles já imaginam o pior do Três.
Eric não respondeu.
Lara desviou o olhar e bebeu mais do vinho com
sangue. Por mais que ela odiasse admitir aquilo, ele
estava certo demais sobre o seu cansaço e sobre o efeito
que o sangue teria. Lara sabia que deveria estar exausta,
depois de tudo o que tinha feito, mas não. A maior parte
do dia lutando na arena, depois a ida até a fronteira, e
ela estava bem. Se tivesse imaginado que beber sangue
teria aquele efeito...
Ela ainda não teria bebido sangue, mesmo que
aquilo fosse melhor que qualquer energético. Mas ali,
misturado com o vinho... De alguma forma, aquilo
parecia certo para ela.
Lara olhou ao redor de novo. Não era nenhuma
surpresa ver a quantidade de vampiros que estava
encarando a mesa deles, mas ninguém tinha se
aproximado. Alguns desviaram o olhar quando viram que
ela tinha se virado, mas a maioria sustentou seu olhar.
Um desafio, sim. Uma forma quase educada de dizer
que não a consideravam importante o suficiente para
desviarem o olhar, mesmo que ela estivesse com seu
príncipe.
Não era o suficiente. Mesmo se Eric mostrasse o que
um necromante podia fazer – e Lara ainda não tinha
certeza de que entendia aquilo – não seria o bastante
para alguns dos vampiros. E ela tinha suas dúvidas de
que só o nome do seu pai seria o suficiente para
convencer alguém, simplesmente porque ela era
humana.
Mas ela também tinha um motivo para ter passado a
vida toda escondendo o que era.
E faltava mais uma coisa para completarem o motivo
de estarem naquele clube.
Lara se virou para Eric de novo.
— Eles estão esperando — ela falou.
Eric a encarou.
— Eles sempre estão esperando algo.
Ela suspirou. Nem parecia que ele era o mesmo
vampiro que tinha feito aquele comentário sobre ela só
tomar o sangue dele, porque estava ali como sua
consorte. Mas aquilo tinha dois lados e ela não havia se
esquecido daquele detalhe quando estava organizando o
contrato.
— E você sabe melhor que eu que os vampiros vêm
aqui para se alimentar, também.
Ele a encarou. Um arrepio atravessou Lara e aquilo
não tinha nada de ruim.
Era o contrato. Mais nada. Ela estava oferecendo
aquilo porque era o que precisava fazer para cumprir a
sua parte. Os vampiros ali precisavam ver Eric bebendo
dela, depois de Lara ter bebido o sangue dele, sem que
aquilo tivesse nenhuma consequência.
E aquele era o único motivo. Não alguma curiosidade
sobre qual seria a sensação da mordida de Eric.
— Você está me oferecendo seu sangue.
Ela sustentou o olhar de Eric.
— Eu sei o que consortes fazem. E, se você não se
alimentar de mim, só vai deixar todo mundo que está
assistindo isso se perguntando o que está acontecendo.
Ele inclinou a cabeça.
— Eles podem continuar se perguntando. Não vou te
forçar a me dar seu sangue apenas para dar um
espetáculo para eles.
Quando ele falava assim, até parecia que Eric estava
preocupado com ela. Com o fato de ela estar oferecendo
aquilo só por obrigação.
Seria mais fácil se fosse.
— Menos princípios, Eric — Lara falou. — Mais um
príncipe vampiro tomando o que é seu.
Os olhos dele escureceram e ela engoliu em seco.
Aquilo tinha sido uma provocação, sim. Ela só não tinha
esperado uma reação tão direta vinda de um vampiro
que sempre parecia tão controlado.
Eric estendeu uma mão, sem falar nada.
Era o que ela queria. O que ela tinha insistido.
Lara colocou sua mão na dele. Outro arrepio a
atravessou quando ele virou sua mão, até que seu pulso
estava para cima.
Ela tinha pensado que seria simples. Algo rápido,
quase impessoal – a não ser pela sensação da mordida.
Mas era Eric. Nada com ele era simples e muito menos
impessoal. Ele sempre estava envolvido demais, mesmo
que não parecesse. E, ali, a forma como ele estava
encarando seu pulso, o cuidado com que a estava
segurando... Aquilo era uma sedução por si só.
Um show. Era um show para os vampiros no clube,
mais nada.
— Você já foi mordida antes? — Ele perguntou.
Um ruído que era quase uma risada escapou.
— Você realmente está me perguntando isso?
Porque ele mesmo já tinha mordido Lara antes – e a
lembrança de que ela tinha passado dias desacordada
deveria ser o suficiente para ela ter medo do que ia
acontecer. Mas não era. Aquilo, um ano antes, não era
Eric. Não como o que ele ia fazer ali, naquela mesa.
Ele passou um dedo pelo seu pulso e era a primeira
vez que a diferença de temperatura entre eles era um
choque. Lara respirou fundo, sentindo cada milímetro de
contato enquanto Eric movia o dedo, subindo pelo seu
braço devagar. E o frio da pele dele não deveria ser bom.
— Não estou falando de qualquer mordida — ele
murmurou. — Não de algo no meio de combate, ou algo
por necessidade e fora de controle.
Lara sabia que não. Mas a risada de antes era mais
fácil. Era um jeito de quebrar a tensão que ela não tinha
esperado.
Ela balançou a cabeça devagar.
Eric a encarou e sorriu de um jeito lento que era
completamente diferente do que ela já tinha visto antes.
Era sedução, sim, e ele não estava tentando disfarçar.
Ele passou a língua pelo seu pulso e soprou. A
sensação gelada fez Lara arrepiar, de novo, mas ela não
desviou o olhar. Era um jogo, um desafio, e ela era boa
com desafios.
Mesmo que ela precisasse se forçar a manter sua
respiração regular. Mesmo que ela estivesse fechando as
pernas com força. Eric não precisava ver – não precisava
saber quanto aquilo realmente estava lhe afetando.
Ele abaixou a cabeça devagar. O cabelo de Eric caiu
ao redor do seu rosto e Lara fechou a mão livre com força
para não segurar o cabelo dele para fora do caminho. Ela
queria ver. Aquilo, daquele jeito, parecia íntimo demais.
Algo que não cabia naquele lugar, com os outros
vampiros assistindo.
Ou talvez estivesse parecendo tão mais justamente
porque ela sabia que estava sendo observada.
A dor da mordida foi rápida – uma pontada que
desapareceu no instante seguinte, quando Eric sugou seu
sangue.
Lara tinha pensado que ia ser parecido com quando
ela bebia sangue: algo elétrico se espalhando pelo seu
corpo, mas concentrado no lugar da mordida.
Ela estava completamente errada.
Eric sugou seu sangue de novo e sua respiração
falhou. Não era algo elétrico, não exatamente. Era
prazer. Simples assim. Era como se ele tivesse levado
seu corpo ao limite em um instante.
Era um show, sim. Um espetáculo para os que
estavam assistindo. E ela se recusava a lhes dar o que
queriam.
Não. Ela se recusava a dar aquilo para Eric – não
porque não queria, mas porque parecia simples demais.
Lara abaixou a mão e apertou sua coxa com força.
Péssima ideia, porque a dor só fazia a sensação da
mordida ser mais forte. Quase mais concentrada, como
se Eric estivesse bebendo do meio das suas pernas e não
do seu pulso.
Mas ela continuou apertando a perna, porque era
fazer aquilo ou enfiar a mão por dentro da sua calça e
aquele era um espetáculo que Lara não daria para
ninguém.
Ela queria mais. Mais que só a sensação dos lábios
frios de Eric no seu pulso. Mais que a forma firme mas
cuidadosa como ele estava segurando sua mão. Mais que
aquela falsa intimidade que era ver e sentir o cabelo dele
escondendo o que Eric estava fazendo.
Eric levantou a cabeça e lambeu seu pulso.
Lara soltou um gemido baixo e ela não sabia se era
porque queria que ele bebesse mais ou por causa da
sensação da língua dele pela pele sensível.
Não era justo.
Ela se moveu na cadeira, sem conseguir ficar
parada. A impressão que Lara tinha era que um toque,
por menor que fosse, ia ser o suficiente para fazer ela
gozar. Aquilo não deveria nem ser possível, mas ela
nunca tinha se sentido daquele jeito antes. Não naquele
ponto.
Eric a encarou. Os olhos dele ainda estavam escuros
e havia algo ali que era diferente demais daquela calma
gelada que ela tinha se acostumado a ver.
— Eu não vou te levar até o fim — ele murmurou e
até sua voz estava pesada. — Não aqui, com todos
assistindo.
Um arrepio atravessou Lara.
Se estivessem em qualquer outro lugar, se ela não
tivesse que se preocupar com política, ela estaria se
levantando e indo se sentar no colo dele, sem pensar
duas vezes. Continuaria sendo tortura, sim, mas seria
melhor do que aquela sensação de estar no limite e não
poder se jogar.
Eric passou um dedo pelo pulso de Lara, exatamente
onde tinha mordido. A velocidade com que Lara se
curava, junto com a saliva dele, era o suficiente para não
ter mais nenhuma marca ali. Mesmo assim, ela não
conseguia ignorar a lembrança da sensação da mordida.
— E não vou te levar até o fim em um lugar onde eu
vou ser obrigado a ser apenas um espectador, também.
Lara precisou de alguns segundos para entender o
que ele estava falando.
Eric não ia fazer mais nada, não ia dar aquele último
empurrão que ela precisava para gozar – porque a única
coisa que ele ia poder fazer ia ser assistir.
Aquilo queria dizer que ele queria mais, também.
— Então me leve para outro lugar — ela falou.
Os olhos de Eric ficaram mais escuros ainda e agora
era o branco dos olhos mudando de cor.
Um arrepio atravessou Lara. Ela já tinha ouvido falar
daquilo, mas nunca tinha visto acontecer.
Ele virou a mão dela que ainda estava segurando.
— É melhor ter muita certeza do que está falando —
ele murmurou.
Lara sustentou seu olhar. Era loucura e ela sabia.
Todos os mercenários conheciam as histórias do que
acontecia com humanos que se iludiam sobre vampiros.
Mas ela não estava se iludindo – e ela não era
apenas humana.
— Eu tenho certeza.
DEZ

Mesmo que Lara tivesse certeza, Eric deveria ter imaginado que
nunca seria tão simples.
Ele a colocou no chão e encarou as torres da
fronteira. O cheiro doce dela parecia estar preso ao seu
redor, como uma provocação constante depois de ter
provado do sangue de Lara. Um erro, talvez. Ele tinha
tentado manter sua distância, mesmo que tudo em Lara
fosse um ímã para ele, e ela quebrara a distância com
umas poucas palavras.
Eles estavam saindo do clube quando a mensagem
de Tamara havia chegado, dizendo que ele precisava
voltar para a torre. Apenas um aviso e mais nada, o que
era o mesmo que dizer que era uma emergência. Então
Eric havia ignorado a pressão nos seus caninos, o cheiro
de Lara – mais doce que o normal – e a ereção que tinha
desistido de controlar. Em vez de fazer o que queria, ele
tinha carregado Lara enquanto atravessavam o setor, de
novo, porque ele era mais rápido.
Lara encarou as torres. Ela não havia questionado a
mudança de planos e aquilo não chegava a ser uma
surpresa, vindo de uma mercenária. Ainda assim, Eric
não conseguiu evitar uma pontada de satisfação quando
ela o encarou com a frustração clara no olhar antes de se
virar para as torres, de novo.
Eles estavam quase no mesmo lugar onde haviam
parado horas antes, quando ela se oferecera para ir
sozinha na frente, e tudo parecia exatamente igual.
— Tudo parece normal — Lara murmurou.
Sim.
— Normal demais.
Eric encarou o celular de novo e o ponto que era a
localização de Tamara. Ela não estava na mesma torre
onde haviam entrado, mais cedo. Estava na outra que ele
suspeitava que estivesse vazia, também.
Ele indicou a torre com um movimento da cabeça e
começou a correr, agora numa velocidade que sabia que
Lara conseguiria acompanhar. O que mais o preocupava
era que Tamara não tinha dado detalhes na mensagem, o
que era quase uma garantia de que ela não tinha certeza
sobre a segurança das comunicações internas. Aquilo era
um problema tão grande quanto qualquer coisa
acontecendo na fronteira.
A porta de metal da torre se abriu assim que eles se
aproximaram. Eric reconhecia o vampiro ali – um dos que
trabalhava diretamente com Tamara. Em teoria, de
confiança.
O vampiro se afastou para o lado e apontou para
cima, sem falar nada. Eric entrou na sala e teve um
instante para notar mais três vampiros parados ali, todos
encarando a porta reforçada que dava para as terras de
ninguém.
Lara passou por ele e saltou para o alçapão. Ele
subiu logo em seguida. Um vampiro estava ali, vigiando
os monitores.
Ele subiu para a parte superior da torre logo atrás de
Lara. Cinco vampiros estavam ali, também, incluindo
Tamara. E todos estavam nas janelas que davam para as
terras de ninguém, com as armas em posição.
Eric parou ao lado de Tamara e olhou pela janela. Lá
embaixo, do outro lado, um bando de animais estava se
movendo perto demais da parede elétrica. Eles pareciam
ser como a criatura que ele havia destruído na outra
torre, mas estavam longe demais para Eric ter certeza.
E a parede elétrica não estava ligada.
Ele se virou para Tamara.
— Sabotagem — ela murmurou. — Perdemos a
ligação com o fornecimento principal de energia. E
nenhum dos geradores dessa área está funcionando.
Nem os reserva.
E aquele era o motivo para estarem evitando fazer
barulho, também. Não queriam chamar a atenção dos
animais. Depois de tanto tempo, era instinto de tudo das
terras de ninguém ficar longe das paredes elétricas. Mas
ele não tinha a menor dúvida do que aconteceria se um
deles forçasse a parede e descobrisse que nada ia
acontecer. Havia um termo para aquilo, vindo de antes
da volta da magia: efeito manada.
Eric se virou para o outro lado. Lara tinha parado na
frente de outra das janelas, de braços cruzados.
— Lara — ele chamou, em voz baixa. — Você disse
que as defesas aqui sempre foram mais fracas.
E ele deveria ter se lembrado de pedir detalhes
sobre aquilo bem antes.
Ela foi na direção dele, se desviando dos suportes
das metralhadoras com cuidado.
— Antes de eu ir embora, isso era conhecimento
comum, pelo menos entre os humanos — ela murmurou.
— Que a fronteira com as terras de ninguém perto do
Setor Oito não tinha o mesmo tipo de vigilância que mais
no norte. Mas a parede externa estava ligada, quando eu
passei por aqui antes. Foi algumas torres para cima,
mas...
Mas estava ligada, o que queria dizer que a situação
dos geradores era recente, pelo menos. Talvez alguma
coisa das últimas horas... Porque Eric não tinha pensado
em ver se a parede elétrica estava ligada, mais cedo. A
possibilidade de que tivesse sido desligada não passara
pela sua cabeça, mesmo depois do que haviam
encontrado – porque a parede elétrica externa nunca era
desligada.
Eric encarou os animais perto da parede de novo. O
risco de algo daquele tipo era grande demais. Eles
precisavam saber mais e ele precisava lidar de uma vez
por todas com os vampiros que não eram leais a ele. Ele
tinha pensado que teria algum tempo, algumas semanas,
pelo menos, mas parecia que estava enganado.
— Ícaro? — Ele perguntou.
Tamara assentiu.
— Já repassei o que temos e o pouco que o vigilante
da outra torre sabia. Ele está tentando descobrir quando
as paredes elétricas aqui pararam de ser ligadas.
Bom. Ter uma data, mesmo que aproximada, já seria
um começo. A partir dali, poderiam tentar encontrar
alguma coisa no sistema de segurança – não que Eric
tivesse muita esperança daquilo.
Ele deveria ter agido muito antes. E deveria ter
forçado Arman a contar tudo o que sabia, antes de
destruí-lo. Mas aquilo havia sido feito no calor do
momento e Eric não tinha como voltar atrás. Nem
mesmo um necromante conseguia trazer um vampiro de
volta: o que já estava morto podia voltar a ser vivo, mas
nunca ressurgir de uma segunda morte.
— Por que eles estão ali? — Lara perguntou.
— Foi onde o vampiro que deveria estar nessa torre
foi destruído — Tamara falou. — Ou emboscado. Se
prestar atenção você vai ver restos de roupas.
Sim. E Eric não havia notado aquilo antes, mas os
animais estavam cercando algo. Disputando espaço
entre eles para chegarem mais perto e se alimentarem.
Ele encarou Tamara e indicou a direção da outra
torre com um movimento da cabeça. Ela assentiu, sem
falar nada em voz alta. Era melhor assim. Os outros
vampiros não precisavam saber que um deles havia
traído um colega de vigilância. Mas, depois do que ele
tinha visto na outra torre, não era difícil deduzir que o
vampiro que o atacara havia feito aquilo.
Mas aquilo queria dizer que tudo tinha sido
planejado. Um vampiro ferido, sangrando, perto da
parede desligada, atrairia todos os animais por perto. E,
quando eles perdessem o interesse no corpo...
Não era uma questão de se forçariam a parede
elétrica. Era uma questão de quanto tempo tinham – e
aquele era o motivo para Tamara ter mandado aquela
mensagem. Parar os animais corrompidos não era tão
simples.
E seria pior ainda porque Eric sabia que havia
vampiros dispostos a trair o setor, o que queria dizer que
ele não confiaria em ninguém com uma metralhadora
nas suas costas. Mesmo que tiros nunca fossem ser o
suficiente para destruí-lo, poderiam ser o bastante para
que ele não conseguisse lidar com os animais.
— Quero as metralhadoras travadas — ele falou. — E
sem munição. Nenhuma exceção. Agora.
Os vampiros nas janelas se viraram para ele,
hesitando.
Talvez Lara tivesse um ponto sobre ele ter passado
tempo demais escondendo o que um necromante podia
fazer.
Seu poder alcançou os quatro vampiros nas janelas e
travou. Eric sentiu a resistência, os vampiros tentando se
mover, mas eles estavam presos enquanto ele quisesse.
— Metralhadoras travadas e sem munição — ele
repetiu. — Agora.
Eric recolheu seu poder.
Os vampiros se moveram depressa, tomando
cuidado para não olhar para ele.
Tamara revirou os olhos e puxou uma das caixas
reforçadas onde guardavam a munição. Nela Eric
confiava, sem a menor sombra de dúvida. Mas ele não
podia ter Tamara com ele lá embaixo, porque precisava
de alguém na torre. Seria fácil demais algum traidor
tomar o controle ali.
E Lara estava conferindo suas facas, como se não
tivesse a menor dúvida de que ia descer.
Ele podia confiar nela, também. Mas Lara era
humana, apesar de tudo.
— É mais seguro você ficar aqui — ele falou.
Ela levantou a cabeça e o encarou.
— Quantos vampiros aqui podem falar que já
sobreviveram a uma matilha de animais corrompidos? —
Lara perguntou.
Eric podia. Ele havia lutado, no passado, quando as
fronteiras foram atacadas. E, como a maioria dos
necromantes, tinha estado nas linhas de frente. Mas
nenhum dos vampiros ali se lembrava daquela época.
Lara olhou ao redor, encarando os vampiros.
Nenhum deles sustentou seu olhar.
Tamara fez um ruído abafado e Eric sabia que ela
estava se segurando para não fazer algum comentário.
Não era o momento.
— Então eu diria que sei muito bem o que estou
fazendo — completou.
Porque ela já havia enfrentado os animais
corrompidos antes, quando estava fugindo com a irmã.
E aquilo havia sido anos antes, quando Lara ainda
não passara tempo trabalhando como mercenária e nem
havia bebido do seu sangue.
Eric queria negar. O lugar de Lara era ali, onde seria
seguro, não ao lado dele enfrentando as criaturas das
terras de ninguém.
Mas ela ter oferecido seu sangue e seu corpo uma
vez não lhe dava o direito de dar aquela ordem.
Ele assentiu de forma brusca.
— Mais ninguém sai — Eric avisou.
— E eu vou querer ver as filmagens disso depois —
Lara completou.
Tamara assentiu. Ela garantiria que as câmeras
estivessem ativas e gravando – porque Lara estava certa,
de novo. Eles precisariam daquelas filmagens.
Ele se virou para ela.
— Porta ou janela?
Eric sabia o que ele preferia. Mas se não ia fazer
aquilo sozinho, então garantiria que estavam juntos.
Lara olhou para o alçapão por um instante antes de
balançar a cabeça.
— Abrir a porta vai fazer barulho demais — ela falou.
— Janela e você vai na frente.
Perfeito.
Eric subiu em uma das janelas e encarou os animais
lá embaixo. Onze metros até o chão, e ele não se
lembrava da distância até a parede elétrica. Talvez a
mesma coisa. Simples, para um vampiro.
Ele pulou.

Foram os anos de prática que fizeram Lara pular atrás de Eric,


porque a primeira reação dela tinha sido só parar e
assistir. A forma como ele se movia não deveria ser
possível, nem mesmo para um vampiro. Eric era rápido
demais, mas sem passar a impressão de descuido que a
maioria dos vampiros passava. Cada movimento, por
mais rápido que fosse, era calculado, com uma elegância
que simplesmente não era humana.
Um arrepio a atravessou enquanto Lara se abaixava
ainda perto da torre – longe o suficiente dos animais
corrompidos para ter uma chance de escalar a parede de
novo, se o pior acontecesse, mas com alcance mais que
o bastante para dar cobertura para Eric.
Ela pegou sua pistola quase ao mesmo tempo em
que Eric parava, a alguns passos de distância de onde os
animais estavam. Um deles se virou para o vampiro, mas
Eric quebrou o pescoço da criatura sem a menor
dificuldade. Era a mesma coisa que ele tinha feito dentro
da torre e Lara ainda não tinha certeza de que acreditava
que aquilo era possível.
Ou talvez ela só estivesse encarando daquele jeito
porque ainda estava com aquele momento no clube na
cabeça.
E Eric ainda estava parado a poucos passos dos
animais, sem fazer nada. Ou melhor, alguma coisa ele
com certeza estava fazendo, porque não fazia sentido ele
estar tão perto e não ter sido atacado pela matilha toda.
Outro animal se virou. Lara esperou. A criatura
mostrou os dentes e rosnou, com um som que parecia
errado, antes de pular na direção de Eric.
Lara atirou. A criatura caiu para trás.
Eric continuou no mesmo lugar, sem dar nenhum
sinal nem de que tinha visto o que estava acontecendo.
Ou ele confiava demais em Lara, ou era
completamente louco – e ela não tinha nem como saber
qual das duas opções.
Não. Era a mais pura loucura, sim, porque Eric tinha
pensado em descer ali sozinho. Se ela não tivesse
insistido, não teria mais ninguém ali, porque ele não
confiaria em outro dos vampiros nas suas costas.
Outro animal levantou a cabeça e farejou o ar. Lara
esperou. A criatura se virou na direção dela e mostrou os
dentes – mesmo que Eric estivesse muito mais perto.
E Lara estava para trás da parede elétrica. Depois
que o primeiro dos animais passasse por aquela linha, os
outros iam ir atrás, sim.
Outra criatura levantou a cabeça. Ainda tinha restos
de alguma coisa presos no seu focinho e Lara preferia
acreditar que era só a roupa do vampiro que tinha sido
destruído ali.
Ela atirou depressa, dois tiros em sequência. O
primeiro animal caiu e o segundo começou a correr na
sua direção. Lara atirou de novo. E de novo.
A criatura caiu, mas outra já estava se virando para
Eric.
Ela atirou de novo e começou a andar devagar, para
o lado. Precisava de um ângulo melhor. Pelo que tinha
visto do alto, Lara sabia que eram muitos animais, sim, e
ela não fazia ideia do que tinha esperado que fosse
acontecer, mas não era aquilo. Não Eric parado...
Ele parado, e mais animais sendo atraídos pelo som
dos tiros. Ela tinha se esquecido daquele detalhe. Ou
melhor, não tinha pensado que ia ser um problema
porque as criaturas naquela área já pareciam que
estavam todas no mesmo lugar. Lara estava enganada.
Muito enganada.
Ela respirou fundo e se endireitou. Backup. Ela
estava ali para ser backup e mais nada. Garantir que Eric
fizesse o que quer que estivesse planejando, porque era
ele quem tinha mais chances contra os animais. Lara
tinha sobrevivido a uma matilha de animais corrompidos,
sim. E justamente por causa daquilo ela sabia muito bem
que não teria a menor chance se os animais atacassem
de uma vez. Era bem provável que nem Eric tivesse
alguma chance se aquilo acontecesse.
Ele estava confiando nela. Então ela ia confiar que
ele sabia o que estava fazendo, também.
Confiar. Não era tão fácil assim quando Lara estava
vendo a quantidade de animais que estavam correndo na
direção deles.
Era bem mais que uma matilha. Ela nem sabia que
era possível ter tantos dos animais corrompidos na
mesma área sem eles se matarem. E era pior ainda
pensar que parecia que eles tinham ficado esperando até
mais algum som, como se quisessem ter certeza de que
teriam alvos novos antes de saírem de onde estavam.
Ou como se tivessem sido chamados.
Um dos animais se aproximando não tinha um
pedaço da cabeça. Outro era mais ossos que qualquer
outra coisa, de um jeito que Lara tinha certeza que era
impossível que estivesse vivo. Os animais corrompidos
tinham sido mudados pela magia, sim. Mas eles não
eram imortais. Nem eram como os vampiros. Eles ainda
eram animais.
Eric afastou as mãos abertas do corpo. Um arrepio
atravessou Lara. As marcas de poder de um vampiro
tinham aparecido nas mãos dele e estavam subindo
pelos seus antebraços, tão escuras que não tinha como
pensar que eram algo natural, mas não era aquilo que
tinha surpreendido Lara. Ela era filha de uma bruxa. Era
óbvio que ela conhecia aquela postura: alguém usando
poder. Muito poder.
Os animais correram ainda mais – como, Lara não
sabia, porque alguns deles não deveriam nem estar de
pé – e se jogaram sobre a matilha que já estava ali antes.
Era Eric. Ele estava fazendo aquilo. Ele tinha trazido
os animais – porque eles estavam mortos e Eric os
estava controlando.
Aquilo era o que um necromante podia fazer.
Lara engoliu em seco e respirou fundo. Foco. Ela
precisava de foco, porque ainda era uma matilha de
animais corrompidos, ali. Mesmo que os animais mortos
estivessem atacando, ela não podia relaxar. Qualquer
coisa envolvendo aquelas criaturas era uma situação de
risco até a última delas estar morta.
Mas ela estava feliz por ter falado para Tamara salvar
as filmagens do que estava acontecendo ali. Se Eric
precisava lembrar ao Setor Três que eles tinham feito seu
nome às custas dos necromantes, aquilo era um ótimo
começo. Não tinha como ninguém ter dúvida do que
estava acontecendo quando Eric estava no meio de tudo,
naquela posição.
Os animais continuaram se atacando. Lara mal
conseguia entender o que estava acontecendo no meio
da massa de corpos, mas sabia que todos os seus
instintos estavam gritando para ela fugir dali. Escalar a
parede da torre de novo e continuar lá no alto, onde ela
estaria segura, longe da carnificina. Se antes, quando
estavam na torre, ela não estava ouvindo quase nenhum
som vindo das criaturas, agora era o oposto. Rosnados,
ganidos, sons que Lara não sabia nem como descrever.
Ela perdeu a noção do tempo. A única coisa que
existia era o som dos animais se atacando e a presença
de Eric logo antes da parede elétrica. A sensação de falta
de ar que Lara tinha aprendido que era sua reação
quando havia poder demais por perto. Seus tiros, quando
algum dos animais saltava do meio daquela confusão,
como se fossem inteligentes o suficiente para entender
quem estava causando aquilo tudo.
Não deveria ser possível. Eram animais demais –
tanto os que já estavam ali antes quanto os que Eric
havia trazido de volta. Não deveria ser possível alguém
fazer aquilo. Lara estava começando a realmente
entender por que os necromantes eram tão temidos. Não
deveria ser possível lidar com os animais corrompidos de
um jeito tão simples. Uma pessoa, sozinha, para acabar
com uma matilha grande.
O som começou a diminuir. Eram menos rosnados,
menos sons de carne sendo rasgada. E alguns dos
animais que estavam mortos agora estavam continuando
mortos. Lara estava vendo os corpos no chão, sem
nenhum sinal de que iam se levantar.
Um arrepio a atravessou. Eram animais, ali. Mas Eric
não tinha falado nada sobre o poder dele funcionar
apenas em animais. Bem pelo contrário.
Ela respirou fundo. Lara não queria imaginar aquela
mesma cena acontecendo, mas com pessoas ao invés de
animais. Vampiros, se é que era possível trazer um deles
de volta, e humanos. E ela não tinha a menor dúvida de
que aquilo já havia acontecido antes. Nem de que Eric
tivesse feito aquilo.
Os últimos animais corrompidos caíram. Lara se
endireitou. Os únicos que ainda estava de pé eram os
que já estavam mortos. Os que Eric estava controlando.
E Eric continuava parado no lugar, exatamente na
mesma posição.
Ela não sabia como aquilo funcionava. Se precisaria
matar os últimos, de novo, ou se era só uma questão de
ele parar de usar o poder ou algo assim.
As criaturas desabaram no chão.
Lara engoliu em seco. A pilha de cadáveres ali era
muito maior do que ela tinha esperado e continuaria ali.
Se fosse em qualquer outro lugar, dariam a ordem para
queimar tudo, mas não ali. Não no Setor Três, que tinha
necromantes. Se mais alguma coisa acontecesse,
aqueles cadáveres seriam armas.
Eric se virou para ela. Os olhos dele estavam
completamente negros e seu cabelo estava voando
suavemente, mesmo que não houvesse vento. Poder.
Depois de tudo, ele ainda tinha poder o suficiente ao seu
redor para causar aquele vento fantasmagórico ao seu
redor.
Aquilo era o que um necromante fazia. Aquilo era a
Corte da Névoa.
E aquilo era para quem Lara tinha oferecido seu
sangue e mais.
Ela não se arrependia de nada.
ONZE

Eric parou no alto da escadaria e se concentrou. As defesas ao


redor da sua casa estavam todas ativas. Ninguém
entraria ali até que ele as desativasse.
Bom, porque ele não sabia se estava em condições
de lidar com ninguém, naquele momento. Ele ainda
conseguia sentir os vestígios do poder, a tentação de
tomar cada vez mais para si. O que ele tinha feito na
torre havia sido um risco grande demais, mesmo que
fosse necessário.
Embriagado de poder. Seu mentor usava aquela
expressão com frequência demais. Mas era uma
descrição muito próxima da realidade, porque Eric mal se
lembrava do que acontecera depois de ter lidado com os
animais corrompidos.
Ele se lembrava de Lara, parada perto da torre, o
encarando com uma arma na mão – e de quando ela
havia abaixado a arma. Ele se lembrava de dar ordens
para Tamara espalhar o aviso pelo setor de que qualquer
traição ao setor e às leis dos vampiros seria respondida
com a destruição. Ele deveria ter falado que traidores
serviriam para alimentar o seu poder, e talvez ainda
falasse aquilo. Mas, na prática, seria o que aconteceria. O
sangue dos traidores era dele.
E Eric se lembrava de voltar para a cidade, levando
Lara – porque ela havia lhe oferecido seu sangue. Ela era
dele para proteger.
O que, na verdade, queria dizer que ele estava perto
demais do seu limite. Aquilo era o resultado de poder
demais – a sensação de que o mundo era seu, para fazer
o que quisesse, como quisesse. Eric ainda tinha
consciência o suficiente para entender o risco.
Necromantes sempre aprendiam a se controlar, porque
pesadelos nasciam quando o controle era quebrado. Ele
sabia. Ele se lembrava. Agora, se faria alguma coisa
sobre aquilo...
Ele se virou e seguiu pelo corredor, na direção do
quarto onde havia deixado Lara. Ela não estava com
medo e aquilo era mais que o suficiente para ele. E ela
estava segura ali, no seu território, não importava o que
acontecesse.
Eric parou na porta do quarto. Lara estava de costas
para ele, tirando suas armas e as colocando na mesa de
cabeceira. Ele a encarou, sem tentar disfarçar o que
estava fazendo. Não tinha motivos para se negar. Não
depois do que ela havia oferecido e não quando ela
confiava nele a ponto de estar se desarmando daquela
forma.
— Tem tanto poder nas suas defesas que até eu
consigo sentir — ela falou.
Interessante. Normalmente humanos não sentiam
poder – a menos que tivessem alguma habilidade
especial naquela direção. Mas Lara quebrava todas as
regras, por causa de quem seus pais haviam sido. Ela
conseguir sentir o poder não era tão surpreendente
assim.
Ela se virou. Seu cabelo ainda estava preso em um
rabo de cavalo alto e duas cicatrizes compridas estavam
perfeitamente visíveis descendo pelo lado do seu rosto.
Duas cicatrizes que ele nunca havia visto antes.
Ele atravessou o quarto depressa e segurou o
pescoço dela. Lara ficou tensa por um instante antes de
relaxar de um jeito que Eric sabia que era uma ilusão. Ela
não estava relaxada. Estava pronta para atacar.
E ele não se importava.
Eric passou um dedo por uma das marcas. As
cicatrizes eram tão escuras contra a pele marrom de Lara
que quase pareciam uma tatuagem. Aquilo não era
natural. Não tinha como ser. A menos que...
Alguns dos animais corrompidos eram venenosos.
Eric se lembrava de ver vampiros definhando depois de
serem feridos, não importava quanto sangue tomassem.
E, até onde ele sabia, humanos reagiam de forma pior
ainda. Eles tinham horas, talvez menos, antes de
morrerem quando eram feridos.
Mas ali estava Lara, com cicatrizes que só podiam
ter uma explicação.
— Quem fez isso com você? — Ele perguntou.
Ela levantou a cabeça e sorriu de um jeito que era
um desafio e uma provocação.
— Ninguém que seja um problema.
Não. Aquela decisão não era dela.
— Quem? — Ele repetiu.
Eric sentiu o toque gelado do metal de uma lâmina
contra o seu pescoço.
— Que diferença isso faz? — Lara perguntou.
Não deveria fazer.
— Diferença? Nenhuma — ele falou. — Mas alguém
te feriu. Essa pessoa vai pagar.
Lara não tentou se afastar, mesmo que ele ainda
estivesse sentindo a faca contra o seu pescoço. Aquilo
era um aviso e mais nada. Se ela fosse atacar, teria
agido sem dar nenhum sinal.
— Eu sou uma mercenária. Já fui ferida vezes
demais. Que diferença isso faz? — Ela insistiu.
Nenhuma. Nenhuma, a não ser o fato de que ele não
tinha visto. Que antes ela não estava ali e não era dele.
— Você está aqui. Você é minha consorte.
Palavras que ele nunca deveria dizer, porque o que
estava entre eles era apenas um contrato. Eric sabia.
Mas não conseguia evitar. E não sabia se queria evitar,
também.
Eric passou um dedo pela marca escura da cicatriz
antes de segurar o pescoço de Lara de novo.
Ele não tinha o menor direito de agir daquela forma
ou de sentir como se Lara fosse sua responsabilidade.
Mas Eric não conseguia evitar.
— Quem fez isso? — Ele repetiu.
— Ninguém que esteja vivo — ela falou. — Ninguém
que valha a pena você trazer de volta.
E ali estava o perigo. Lara mal havia tido tempo de
processar o que ele contara sobre os necromantes, mas
já entendia como ele pensava, o que queria fazer.
Aquilo era rápido demais. Fora de controle demais.
Eric não funcionava daquele jeito. Mas Lara sempre havia
sido a pessoa que quebrava tudo o que ele pensava,
desde o começo. Desde o dia em que ela havia
enfrentado um príncipe, mesmo que não tivesse a menor
chance de vencer.
— Isso foi seis anos atrás — Lara falou. — Quem
tinha que pagar, já pagou. Todos os envolvidos nisso.
Porque ela teria se livrado do caçador de
recompensas – talvez não no dia do ataque, mas depois,
com certeza. Quando Lara já tinha sua estabilidade no
Setor Seis e podia se dar ao luxo de desaparecer por
alguns dias. E os que haviam enviado caçadores de
recompensa atrás dela... Os príncipes. Todos destruídos,
um a um – pela mão de Eric e da própria Lara.
Era justo.
Mas ainda não era o bastante para fazer ele se
afastar.
Eric segurou o pulso dela com a outra mão, sem
soltar o pescoço de Lara.
O que quer que estivesse acontecendo, só tinha um
final possível. E Eric tinha consciência o suficiente para
saber que ele não ia recuar, mesmo que talvez fosse a
melhor opção.
— Me mande ir embora — ele falou.
Lara flexionou a mão. Eric sentiu o toque da lâmina
no seu pescoço e a pontada de dor quando Lara o cortou.
Deveria ser o suficiente para ele se afastar ou para
matar qualquer desejo. Mas era um desafio. Mais uma
das provocações de Lara, mesmo que ela estivesse
praticamente sob o controle dele.
O cheiro do sangue se espalhou ao redor deles,
fraco, se misturando com a fragrância doce que era Lara.
Ela sustentou seu olhar.
— Se eu quisesse que fosse embora, já teria feito
você ir.
Um aviso – e permissão. Era tudo o que Eric
precisava.

Lara estava quebrando todas as regras de tudo que sempre tinha


aprendido sobre como lidar com vampiros e não se
arrependia de nada. Mas ela não conseguia desviar o
olhar de Eric. O poder ainda estava ali, menos do que
quando estavam na torre, mas mesmo assim, poder.
Aquele aviso de perigo que sempre tinha atraído Lara,
mas que era seguro justamente por ser Eric – porque eles
tinham um contrato, apesar de tudo. Não importava o
que estivesse acontecendo, ela estaria segura.
Mesmo que aquela segurança, agora, fosse Eric
segurando seu pescoço e seu pulso e a encarando uma
intensidade que era quase assustadora.
Um arrepio atravessou Lara quando ele puxou a mão
dela, afastando a faca que estava encostada no seu
pescoço. Ela não resistiu. Eric apertou seu pulso e ela
soltou a faca. O barulho do metal caindo no chão ecoou
de um jeito que não parecia natural, ou talvez fosse só
Lara prestando atenção demais em tudo o que estava
acontecendo.
Eric a beijou. Em um instante ele estava encarando
Lara, e no instante seguinte ela estava sentindo a boca
dele na sua, exigente, sem nenhum sinal do cuidado de
antes.
Ótimo, porque Lara não queria aquele cuidado. Não
depois de ser deixada no limite no clube e ainda ter que
lidar com a tensão na fronteira. Ela queria exatamente
aquilo. Com força, sem hesitação, só a certeza de que ela
daria o que Eric queria – porque ela o mesmo que ela
queria.
Ele apertou o seu pescoço, não o suficiente para
cortar o ar, só o bastante para Lara não conseguir
ignorar a pressão, o tempo todo sem se afastar. Ela fez
um som baixo que não sabia se era um gemido ou um
pedido de mais, ao mesmo tempo em que tentava soltar
a mão que Eric ainda estava segurando. Nada. Não
importava quanto ela tentasse se soltar, não fazia
diferença.
E Lara não deveria gostar daquilo tanto quanto
estava gostando.
Ela segurou o braço de Eric com a mão livre. A blusa
de tela que ele estava usando – que parecia que sempre
estava usando algo do tipo – era fina o suficiente para
Lara sentir o frio da pele dele. E fina o suficiente para ela
enfiar as unhas no braço dele.
Ele apertou seu pescoço de novo antes de levantar a
cabeça.
A respiração de Lara falou. Os olhos de Eric estavam
completamente negros, como logo depois de ele ter
lidado com aquela matilha de animais corrompidos. O
branco dos olhos havia desaparecido, deixando só as
írises azuis claras se destacando de um jeito que não
deveria ser possível.
E ela queria mais.
— Me arranhe, se quiser — Eric falou e a voz dele
ainda tinha um eco de poder misturado com alguma
coisa mais grave. — Tente se soltar, se quiser. Não vai
adiantar.
Não ia. Lara tinha plena consciência daquilo. E saber
deveria ser o suficiente para deixá-la com medo, não
para fazer todo o seu corpo quase vibrar com tensão,
antecipação.
Era como se sua fala sobre fazer ele sair tivesse
quebrado os últimos fios do controle de Eric. Porque se
tinha uma coisa que Lara tinha certeza, era que aquilo
não era normal, para ele. Era a mesma intensidade que
ela tinha visto no clube, sim. A mesma forma como seus
olhos tinham ficado escuros. Mas era muito mais.
Antes, ele ainda estava pensando demais. Estava
colocando limites. Agora, aquilo havia desaparecido.
Eric soltou seu pescoço e passou uma unha pela pele
sensível, devagar.
Lara não falou nada – não sabia se conseguia, não
com ele olhando para ela daquele jeito e com sua
respiração pesada e falhando ao mesmo tempo, de
alguma forma.
Ele continuou descendo a unha pela sua pele, mas
agora a sensação era diferente. Era afiada. Garras. A
última vez que ela tinha visto as garras de um vampiro
tinha sido quando havia enfrentado Nicolai. Deveria ser o
suficiente para ela ter medo. Para pensar no tamanho do
risco que ela estava correndo, ali. Mas não.
Um arrepio atravessou o corpo de Lara. Tinha algo
em saber que o risco existia que só servia para deixar
todas as sensações mais fortes, mais vivas. Era algo que
ela nunca teria imaginado – que sentir uma garra contra
a sua pele, daquele jeito, ou que fosse gostar.
A garra de Eric continuou descendo, com ele a
encarando o tempo todo. Lara não conseguia desviar o
olhar. Não conseguia fazer nada, a não ser prestar
atenção naquela sensação. Porque se aquilo era o
começo...
Ele parou. Lara sentiu uma pressão rápida e então o
ar fresco da noite contra a sua pele, seguido pela fricção
suave do tecido contra os seus mamilos quando Eric
continuou descendo aquela garra pela sua pele. Ele tinha
rasgado sua regata. Estava rasgando sua regata
enquanto descia a mão, com cuidado o suficiente para
não deixar nenhum arranhão nela.
Um arrepio a atravessou. Eric não estava no
controle, não da forma como ela estava acostumada a
ver. Mas, ainda assim, o controle dele era algo
assustador. O que quer que viesse depois... Ela não
conseguia nem imaginar o que esperar.
Eric abaixou a cabeça de novo, devagar. Dando
tempo para ela reagir, mesmo que tivesse falado que ela
não conseguiria escapar.
Lara enfiou as unhas no seu braço de novo. Eric fez
um ruído grave que era quase uma risada antes de beijar
seu pescoço. Ela tremeu. Era demais – porque não tinha
nada que ela podia fazer. Nenhum lugar onde ela podia
se segurar, além do braço de Eric. E, mesmo que fosse só
um beijo, era mais, porque todo seu corpo respondia ao
toque de Eric de uma forma que nunca tinha acontecido
antes.
Ela sentiu as presas dele no seu pescoço e prendeu a
respiração. Lara não ia recusar. Na verdade, ela queria a
mordida. Queria a sensação de mais cedo, quando
estavam no clube: todo o seu corpo queimando, ela perto
demais de um orgasmo e tudo só por causa de uma
mordida, da sensação de Eric bebendo seu sangue.
Eric subiu a mão pelo seu torso, por baixo da regata
rasgada, e parou com a mão logo abaixo dos seus seios,
tão perto que ela quase conseguia sentir o toque dele.
— Tão receptiva — ele murmurou contra o pescoço
dela. — Tão pronta para mim.
Lara não ia negar.
Ela inclinou o pescoço para o lado.
Eric apertou sua cintura e subiu a língua pelo seu
pescoço antes de levantar a cabeça.
— Tão perfeita que parece uma armadilha — ele
completou.
— Só se você for uma armadilha pra mim — ela
respondeu.
Eric riu antes de soltar a mão dela, que ele ainda
estava segurando, e a empurrou contra a parede de
novo. Lara não resistiu. Ela tinha a impressão de que ia
precisar do apoio da parede.
Sem falar mais nada, Eric puxou os restos da sua
regata para os lados. Lara rolou os ombros para trás e o
tecido caiu no chão. Ele a encarou, ainda com os olhos
daquele jeito impossível e com a intensidade que era
quase um toque, antes de soltar sua cintura para passar
a mão pela sua barriga... Não, pela cicatriz ali.
Lara continuou parada. Ela tinha passado os últimos
cinco, quase seis anos trabalhando como mercenária. E,
mesmo antes de precisar fugir do Setor Três, ela já
pegava alguns trabalhos, às vezes. Aquilo queria dizer
que ela tinha cicatrizes, como qualquer outra pessoa
naquela área. Conseguir se curar depressa não queria
dizer que os ferimentos não deixavam suas marcas.
Ela soltou o braço de Eric. Ele levantou a cabeça de
novo, com um meio sorriso que era mais um aviso que
qualquer outra coisa.
— Até onde você me deixaria ir? — Ele perguntou.
Lara inclinou a cabeça para trás.
— Descubra.
A risada grave de Eric era quase um toque, também:
grave demais, mas ainda suave de um jeito que era mais
perigoso para Lara que qualquer coisa que ele pudesse
falar.
Ele segurou o alto do seu rabo de cavalo e puxou a
cabeça de Lara mais para trás.
Ela fechou as mãos com força e não reagiu. Não
queria reagir – não que fosse adiantar. O que ela queria
era que aquela intensidade nos olhos e na fala de Eric se
tornasse realidade. Mais nada.
Eric passou as presas pelo seu pescoço. Um arrepio
atravessou Lara.
— Eu poderia te morder aqui e você iria gostar — ele
murmurou. — Você iria pedir por mais, como quase fez
no clube.
A respiração de Lara falhou e era como se as
palavras dele estivessem fazendo ela sentir tudo de
novo. A sensação do seu sangue sendo sugado, a tensão
de saber que estavam em público e ela não podia
mostrar nenhuma reação, nenhum sinal de
vulnerabilidade. A forma como ela havia precisado se
forçar a não enfiar a mão dentro da calça para se dar o
orgasmo que estava tão perto.
— Mas eu não deixaria você gozar — Eric continuou,
soltando seu cabelo e descendo pelo seu corpo. — Eu
teria que te segurar no lugar, para garantir que não ia se
tocar. Teria que controlar cada gole do seu sangue, para
dar tempo do veneno se espalhar pelo seu corpo e o
prazer diminuir, antes de eu poder beber mais.
Um gemido baixo escapou. Tortura. Aquilo seria
tortura, sim.
E Lara queria saber como seria.
Eric deixou ela sentir suas presas no alto do seio.
Lara segurou os braços dele com força, sem se preocupar
se estava enfiando as unhas na pele dele ou se estava
apertando demais.
— Ou eu poderia beber daqui — ele falou.
Ele chupou seu mamilo com força. Lara arqueou as
costas, sem tentar segurar seu gemido. Os lábios dele
eram frios, mas sua boca era quente, e o contraste
daquilo enquanto ele a chupava...
— Não é o mais eficiente, mas imagine.
Ele subiu uma mão pelo seu corpo e beliscou o outro
mamilo.
— Uma mordida, bem aqui — Eric continuou. — Eu,
bebendo seu sangue enquanto chupo esse mamilo.
Lara tremeu. Nem ela sabia que som estava fazendo,
só sabia que queria. Que conseguia imaginar bem
demais. E que nunca mais ia conseguir não pensar
naquilo.
— Faça — ela falou.
Eric riu de novo e mordeu seu mamilo de leve, sem
furar a pele, antes de levantar a cabeça.
— Eu acho que não. Ainda não.
"Ainda" era um sinal de que viria depois. "Ainda" não
era uma negação. Mas Lara queria mais.
— Você...
O ar fresco da noite estava batendo nas suas pernas.
Ela estava sentindo o couro da calça de Eric contra sua
pele, mais uma sensação no meio de tudo...
Porque ele tinha rasgado sua calça, também. E Lara
não conseguia nem reclamar – só arrepiar com o nível de
controle e cuidado para ele ter feito aquilo sem que ela
sentisse nem um toque das suas garras.
E imaginar o que viria depois.
Eric se abaixou na sua frente. Lara fechou os punhos
com força e prendeu a respiração. Ela não tinha esperado
aquilo. Ela não sabia se sobreviveria àquilo, porque só
ver Eric abaixado na sua frente daquele jeito já era
demais.
Ele empurrou as pernas dela para os lados antes de
beijar a parte de dentro da sua coxa. Um arrepio
atravessou Lara. Se ela tivesse alguma ilusão de que
fosse adiantar, ela estaria segurando a cabeça de Eric e
o colocando exatamente onde queria: no meio das suas
pernas, chupando seu clitóris. Ele já tinha provocado
mais que o suficiente. Mas não ia fazer diferença. E ela
não ia lhe dar mais um motivo para uma daquelas
risadas satisfeitas.
Era provocação, de novo. Era como se Eric quisesse
que ela já estivesse no limite antes de fazer qualquer
coisa. E ela não sabia como ele não entendia que ela
estava no limite desde aquela hora, no clube.
Mas não tinha nada que ela pudesse fazer além de
sentir enquanto os toques dele continuavam pelas suas
pernas. Acariciando, testando, aprendendo seu corpo e o
que fazia Lara reagir. Ela fechou os olhos quando ele fez
uma trilha de beijos indo do seu joelho e subindo,
subindo, até parar logo antes da sua calcinha.
E então o ar fresco estava batendo nela, porque Eric
tinha rasgado sua calcinha, também.
Lara abriu os olhos em tempo de ver ele dar um
sorriso satisfeito e voltar a descer uma trilha de beijos
pela sua perna, puxando os restos da sua calça mais
para baixo. Ele sabia exatamente o que estava fazendo.
Sabia que estava enlouquecendo Lara.
Ela sentiu as presas de Eric contra sua pele, de novo.
Na sua coxa, subindo devagar pela parte de dentro das
suas pernas.
— Até onde você me deixaria ir? — Ele perguntou de
novo.
A respiração de Lara falhou. Ela segurou a cabeça de
Eric, mas não adiantava tentar forçar ele a fazer algo que
ainda não queria. Não importava quanta força ela fizesse,
ele não se movia.
— Até onde você para de provocar e faz alguma
coisa — ela resmungou.
A dor foi inesperada o suficiente para fazer Lara
gritar. Eric tinha lhe mordido – na perna. Na parte de
dentro da sua coxa. E não era a mesma coisa que
quando ele tinha mordido seu pulso, porque da outra vez
ela não tinha sentido a dor com tanta clareza. Tinha sido
algo rápido...
Ele sugou.
Lara gemeu e deixou a cabeça cair para trás, até
bater na parede. Se antes a sensação da mordida tinha
feito seu corpo arder, agora era mil vezes pior – melhor,
mais forte – porque ela estava sentindo o toque frio de
Eric nas suas pernas. A sensação do cabelo dele contra
sua pele, os lábios gelados na sua pele, tão perto que ela
conseguia imaginar exatamente como seria quando ele
colocasse a boca na sua boceta.
E eles não estavam em público. Lara não precisava
se forçar a se controlar. Ela podia só sentir. Não que a
forma como a sensação da mordida – do veneno – se
espalhava pelo seu corpo lhe permitisse fazer alguma
coisa além de sentir.
Ela segurou o ombro de Eric, precisando de alguma
coisa, qualquer tipo de apoio para se manter ali
enquanto as ondas de prazer se espalhavam pelo seu
corpo. O que ela tinha sentido no clube não chegava
perto daquilo. Eram sensações demais, depressa demais.
Lara segurou o cabelo de Eric de novo. Não ia fazer
diferença. Ele não ia se mover. Mas ela precisava se
segurar, senão ia fazer exatamente o que tinha pensado
no clube. Um toque. Ela só precisava de um toque e
sabia que o orgasmo ia explodir pelo seu corpo. E seria
fácil demais fazer isso, porque Eric não estava segurando
suas mãos.
E talvez ela fosse mais louca do que pensava, porque
queria o limite. Queria saber até onde Eric a levaria, até
onde ela iria antes de quebrar – porque era exatamente
aquilo que parecia que ia acontecer. Ela ia quebrar, da
melhor forma possível.
Eric continuou bebendo. Cada vez que ele sugava
era como... Lara não sabia descrever. Era uma onda de
sensações, mas não era como se ele a estivesse tocando.
Ou como se estivesse chupando seu clitóris. Não era a
mesma coisa. Não tinha como comparar.
Ela fechou os olhos. Era demais – a sensação do ar
fresco da noite contra sua pele, a boca gelada de Eric, os
sons... Seus gemidos se misturando com o som molhado
enquanto Eric bebia. E a própria sensação da mordida e
do veneno. Era demais.
O orgasmo explodiu pelo seu corpo. Lara não sabia
se estava gritando ou não, mas sabia que só estava de
pé por causa de como Eric a estava segurando. E ele
ainda estava bebendo, fazendo mais ondas de prazer
atravessarem seu corpo, uma atrás das outras até ser
quase uma sensação contínua.
O cheiro de sangue se espalhou por um instante. Do
sangue dela, porque Eric tinha parado de beber. E até a
sensação da língua dele na sua pele, fechando as
mordidas, era o suficiente para Lara tremer de novo.
Ele se levantou. Ela ainda estava apoiada na parede,
mas Eric não a soltou – e aquilo era ótimo, porque ela
não sabia se suas pernas a sustentariam.
— Eu ainda não terminei — Eric falou.
Lara abriu os olhos. Ele estava parado na sua frente,
a encarando, e parecia que seus olhos tinham ficado
mais escuros ainda.
Ele não tinha terminado e ela não sabia se conseguia
sentir mais.
Mas Lara sabia que não ia recuar.
— Faça — ela murmurou.
Eric apertou sua cintura e entrou nela de uma vez.
Lara bateu a cabeça na parede, gemendo alto. Quando
ele tinha se livrado das suas roupas, ela não fazia a
menor ideia e não se importava. A única coisa que
importava era a sensação da pele dele contra a sua e de
como ela estava cheia.
E o pau dele era frio, também. Não gelado, só frio o
suficiente para ela não conseguir ignorar a diferença na
temperatura. O suficiente para fazer a sensação dele
dentro dela ser mais, porque Lara não conseguia não
sentir cada centímetro. Cada movimento, por menor que
fosse.
Eric segurou seu queixo, a obrigando a encará-lo.
— Era nisso que você estava pensando, aquela hora
no clube? — Ele perguntou. — Era isso que estava
imaginando?
Quase.
Mas Lara não conseguia responder, porque Eric
estava se movendo, saindo dela e entrando de novo num
ritmo forte, quase agressivo. E aquilo era melhor do que
ela tinha imaginado, sim. Porque a imaginação dela tinha
sido ela tomando o que queria, tentando fazer Eric
perder o controle.
Ela não precisava tentar. Ela tinha exatamente o que
queria, sim.
Lara o beijou. Não tinha nenhum cuidado ou
delicadeza ali, de novo, e era o que ela queria. Ela
conseguia sentir um resto do gosto de sangue na boca
de Eric, mas nem aquilo era o suficiente para diminuir
seu frenesi – aquela era a palavra. Frenesi. Porque ela
queria mais e mais depressa, mais forte. Só mais.
Ela sentiu as presas de Eric nos seus lábios, a
pontada de dor quando ela se cortou, mas não
importava.
Lara passou uma perna ao redor da cintura de Eric.
Ele fez um som que era quase um grunhido quando a
posição deixou ela ainda mais aberta, mas à mercê dele.
E por mais que ela achasse que não tinha como
sentir mais nada, Lara estava errada, porque tinha. Cada
movimento de Eric era tortura, sensações sobre
sensações demais, mas o tipo de tortura que ela não
queria que parasse. Lara ainda estava tremendo, só
estava de pé porque estava presa entre Eric e a parede,
e ainda assim queria mais. Queria tudo.
Eric segurou sua bunda. Ela teria marcas depois, mas
não se importava.
E se importava menos ainda quando ele saiu e
entrou nela de uma vez, num ângulo novo. Sim. Sim, era
aquilo que ela queria.
Eric continuou se movendo, depressa e com força.
Lara se segurou nos braços dele e sabia que estava
deixando arranhões por toda parte, mas não se
importava. A única coisa que ela queria era mais, era
aquela sensação logo além do seu alcance.
Ele entrou nela de novo, com força.
Lara gritou, sentindo seu corpo todo tremer
enquanto Eric ainda estava se movendo e ela estava se
apertando ao redor dele. E não era o suficiente – não um
orgasmo.
Eric mordeu seu pescoço.
Lara sentiu o prazer se espalhando antes de tudo
escurecer.

Mel se deixou cair em uma das cadeiras da sala de reunião. Estar


ali era bom. Estavam numa sala de reuniões, com
espaço, com todo mundo sentado ao redor da mesa ao
invés de espalhados em cada canto de uma sala
pequena demais para a quantidade de pessoas. O lado
ruim daquilo era que eram três e meia da manhã.
Yuri parou atrás dela e apertou seus ombros uma vez
antes de resmungar alguma coisa em voz baixa e
começar a fazer uma massagem. Ela nem estava tão
tensa assim para ele estar reclamando. Mas, sendo bem
honesta...
— Achei uma desvantagem em ter voltado a ser
humana — ela murmurou.
Porque acordar de madrugada para uma reunião não
era nem um pouco agradável. Como Yuri parecia estar
tão disposto, mesmo tendo saído da cama menos de
quinze minutos antes, depois de ter resmungado mais
que ela sobre o que preferia estar fazendo, era uma coisa
que Mel não conseguia entender.
— Você se acostuma — ele falou. — Até porque
reuniões assim são raras.
Sim. Mel já estava no Setor Dez havia tempo o
suficiente para saber que sempre davam preferência
para deixar todo mundo dormir em paz.
Ela tentou se forçar a relaxar no toque de Yuri,
enquanto os outros entravam na sala e iam se sentando
ao redor da mesa. Raquel já estava ali quando ela e Yuri
haviam chegado e ainda estava conversando em voz
baixa com Ezequiel. Eduardo e Adriana estavam
sentados na outra ponta da mesa e o homem parecia
mais dormindo que acordado, também. Dante estava ao
lado dele, com a mesma expressão quase entediada de
sempre. E Amon e Daniele, que eram o motivo para
terem saído da cama naquela hora impossível, nem
estavam ali ainda.
Eles entraram alguns minutos depois, junto com
Alex, que praticamente se jogou em uma das cadeiras.
Alguém que concordava com Mel sobre a ideia de
reuniões de madrugada, então.
— Alana deveria estar aqui — Daniele avisou assim
que se sentou.
Raquel se virou para ela.
— Tem certeza? Não estou dizendo que não confio
em Alana, mas envolvê-la nessa reunião pode acabar
criando uma situação desagradável para ela depois.
Porque iam discutir o Setor Um e o que podia
acontecer – e Alana, mesmo que sempre fosse ser leal ao
Setor Dez, tinha se casado com Lorde Rafael. Mel
entendia os dois lados. Alana fizera o que precisava. Mas
Raquel tinha um bom ponto, porque enquanto a outra
bruxa não soubesse o que o Dez estava planejando, não
precisaria mentir para Lorde Rafael. Ela estaria mais
segura.
Daniele respirou fundo e assentiu.
— Alana foi treinada desde criança para ser uma
feiticeira — ela contou. — Para manipular e negociar com
vampiros.
Mel se endireitou na cadeira. Ela não sabia daquilo.
— Ela precisa estar aqui.
Porque, até então, Mel era a única pessoa ali que
realmente entendia as políticas dos vampiros e os jogos
que eles faziam. Ela não tinha o menor problema em
continuar naquele papel, mas ter outra pessoa que
entendia aquele tipo de detalhe seria mais que bom.
— Alex, pode acordar ela? — Raquel pediu.
Alex se levantou e saiu da sala sem falar nada. A
bruxa se virou para Daniele de novo.
— Por que não sabia disso?
— Porque eu fui burra — Daniele respondeu. — Não
tem outra coisa pra falar. Eu só esqueci disso e...
Ela deu de ombros, sem nem tentar se justificar
mais. Ótimo, porque realmente tinha sido burrice não
lembrar daquilo.
E talvez não só burrice de Daniele.
Mel encarou a tatuagem que subia pelo braço da
outra mulher: silhuetas de galhos de uma árvore, sem
folhas. Alana tinha uma tatuagem parecida demais, com
a diferença que a dela era colorida e a árvore tinha suas
folhas. Ela sempre tinha pensado que era uma coisa
delas e mais nada, mas deveria ter se lembrado de como
Klaus, o príncipe do Setor Seis, havia encarado a
tatuagem de Daniele, daquela vez em que ela havia ido
em um baile com Amon.
Não era só algo delas. Era uma marca de família. O
tipo de coisa que as famílias de feiticeiras usavam desde
antes da volta da magia, não exatamente para se
identificar, mas... Quase como um brasão de família.
Uma mostra de orgulho de serem quem eram.
Ela deveria ter notado, também. Mel poderia ter
procurado Alana em qualquer momento nos últimos
meses para perguntar sobre aquilo, especialmente
porque ela se lembrava dos comentários sobre as
famílias de feiticeiras mais poderosas no continente.
Sempre havia uma família de bruxas da natureza sendo
mencionada, quando os vampiros falavam sobre aquilo.
Se aquela era a origem de Alana...
Alex e Alana entraram na sala. A bruxa ainda parecia
mais dormindo que acordada, mas se endireitou assim
que notou quantas pessoas estavam ali.
— O que aconteceu agora? — Ela perguntou.
Raquel balançou a cabeça.
— Nada de novo. Mas temos assuntos a discutir e
Dani avisou que estávamos desperdiçando recursos por
não te chamar.
Alana assentiu e foi na direção de uma das cadeiras
vazias, ao mesmo tempo em que Alex voltava para onde
estava sentade antes.
— Os planos do Setor Um — Raquel continuou. —
Nós estamos nos preparando para lidar com o que pode
vir depois. E, se você foi treinada para lidar com a
política dos vampiros, você é necessária aqui. Mas se
preferir não saber do que estamos planejando por algum
motivo...
Alana estreitou os olhos. Alex fez um ruído irritado
que Mel sabia que queria dizer que elu estava
incomodade com a quantidade de poder que estava
sentindo – o que queria dizer que Alana estava furiosa.
— Minha lealdade é do Setor Dez — ela falou. —
Posso ter me casado com Lorde Rafael mas, se alguém
aqui se esqueceu, fiz isso só para evitar que o Oito nos
destruísse.
Raquel balançou a cabeça devagar.
— Não estou questionando sua lealdade. Mas você
vai ter que voltar para o Setor Um em alguns meses.
Saber demais pode ser um risco tanto para você quanto
para nós.
Normalmente Mel não discutiria. Raquel havia tocado
em um ponto importante, sim. Mas... Saber que Alana
era de uma família de feiticeiras – as bruxas que
trabalhavam para os vampiros – e tinha sido treinada
como uma desde criança explicava muita coisa.
— Não é um risco — Alana falou e se virou. —
Melissa?
Mel sorriu. Alana tinha sido treinada, sim. E, melhor
ainda: tinha consciência do que fazia. Muitas pessoas
aprendiam a se proteger sem ter consciência daquilo.
— A mente dela é protegida — Mel contou. — Como,
não sei, mas não é o mesmo tipo de proteção que Yuri
tem.
E ela havia passado semanas pensando que estava
perdendo o que ainda tinha das suas habilidades antes
de perceber que a única mente que não conseguia nem
mesmo sentir era a de Alana.
A bruxa sorriu.
— Minha família sempre soube se proteger — Alana
continuou. — Se não fosse assim, meu pai nunca teria
conseguido recusar assumir o cargo quando minha avó
morreu. Ele teria sido controlado.
Fazia sentido demais. Um humano comum, mesmo
um bruxo, não tinha o tipo de defesas para resistir à
compulsão. O príncipe do setor de onde Alana vinha não
teria precisado nem mesmo de alguém como Mel para
conseguir o que queria. Qualquer um com uma das
habilidades mentais mais fracas seria capaz de controlar
um humano.
— Então vamos ao que interessa — Raquel falou. —
O Setor Um e como Lorde Rafael permitiu que o Dez
existisse justamente para reunir aqueles que poderiam
ser uma ameaça para os vampiros aqui, e então se livrar
de todos nós. Já faz quatro meses que sabemos disso e
mesmo assim ele não fez nada.
— Nem vai — Alana interrompeu. — Não enquanto
eu estiver aqui.
Todos se viraram para ela, de novo. A bruxa deu de
ombros.
— Eu não faço ideia de qual é o plano dele, não
precisam olhar pra mim assim. Mas eu sei que ele precisa
de mim por algum motivo. — Ela deu de ombros de novo.
— De uma bruxa da natureza forte, na verdade. E ele não
vai achar mais ninguém assim na região.
Não só na região, pelo que Mel sabia.
— Ele não vai fazer nada que vai me colocar em
risco — Alana continuou. — E ainda tem a questão do
contrato. Ele não pode atacar o Setor Dez diretamente e
precisa nos ajudar se formos atacados.
Ele não podia atacar o Setor Dez diretamente. Mas
nada o impedia de ajudar alguém a organizar um ataque.
Não, porque naquele caso ele teria que ajudar na
defesa do Dez, de qualquer forma. Mas...
Melissa segurou a mão de Yuri por baixo de mesa.
Ela queria estar errada e aquela teoria era nova demais
para ela comentar qualquer coisa em voz alta, o que
queria dizer que não podia mostrar a sua reação.
Yuri apertou sua mão de volta, sem falar nada. Mel
não sabia se o raciocínio dele tinha ido para a mesma
direção ou se ele só estava deduzindo que havia algo
mais ali, e não importava.
Mas era conveniente demais. O contrato que Eric
havia oferecido para Lara, o aviso de que o Setor Três era
um alvo e que ele precisava se preparar... Era muito
conveniente, mas não como se o Três fosse traí-los.
Como se o Três houvesse se tornado uma prioridade
porque o Dez não podia ser atacado.
— Há mais que precisam saber, se vão se planejar
para resistir ao que quer que Lorde Rafael esteja
planejando — Amon falou.
— Finalmente — Ezequiel resmungou.
Amon inclinou a cabeça na direção dele.
— Algumas informações têm potencial para fazer
mais mal que bem. Era melhor não falar nada até ter
certeza de que precisaríamos ir contra ele diretamente —
ele falou.
— Eu odeio quando ele faz sentido — Yuri murmurou.
Mel sorriu e não respondeu. Ela não discordava de
Yuri. E era pior ainda porque Mel conhecia Amon havia
tempo o suficiente para ter certeza que, se ele havia
escondido alguma informação, era algo sério.
— Eu concordei quando você disse que nos daria as
informações que tinha quando fosse necessário e quando
elas não fossem ser um risco — Raquel falou. — Isso não
vai ser discutido aqui.
Ela olhou ao redor devagar. Ninguém falou mais
nada.
Raquel se virou para Amon de novo e assentiu.
— Lorde Rafael nem sempre usou esse nome. Antes
da volta da magia, ele já era um dos vampiros mais
fortes e já era conhecido — ele começou.
— Nada inesperado — Alex comentou.
Não. Mas se aquilo era o começo do que ele tinha
para contar, era pior do que Mel havia esperado.
Amon assentiu.
— Mas ele não era apenas um dos vampiros mais
fortes. Ele era o rei da Corte do Sangue.
Mel apertou a mão de Yuri de novo, com muito mais
força do que deveria. Ela não podia reagir. Amon estava
certo em ter escondido aquilo, porque era o tipo de
informação que podia começar o pânico. Pânico – que era
exatamente o que ela estava sentindo, mas que não
podia mostrar. Eles precisavam da frieza, agora. Mel não
podia mostrar outra coisa.
Eles não entendiam. Pela forma como pareciam
preocupados, eles haviam percebido que aquilo era
importante, mas não quanto.
— No passado, a Corte do Sangue estava acima de
todos os vampiros, de todas as Cortes, de tudo — ela
contou. — O rei da Corte do Sangue era o rei dos
vampiros. O mais forte de todos. O que ninguém tinha
coragem de desafiar, porque quem o desafiava não
sobrevivia nem mesmo na memória.
Alex empalideceu. Elu entendia, pelo menos.
Não só elu. Alana também, pela forma como ela
estava rígida na cadeira e segurando o tampo da mesa.
— Nós não estamos lidando com um vampiro antigo
e poderoso — Mel continuou. — Estamos lidando com o
vampiro que é forte o suficiente para ter mantido todos
os vampiros sob controle na época em que eles ainda
precisavam se esconder.
E, de alguma forma, o Setor Dez precisava achar um
jeito de sobreviver aos planos dele.
DOZE

Lara se apoiou no parapeito da sacada, olhando para as luzes da


cidade – o pouco que dava para ver antes de outras
casas tamparem sua visão. Ela não tinha percebido
antes, mas não estavam na casa de Eric. Ou melhor, não
estavam na mesma casa para onde ele tinha levado Lara
antes. Aquela tinha três andares. Onde ela estava eram
só dois e a decoração não era toda feita de caveiras. E,
se ela precisasse adivinhar, Lara diria que a casa onde
estava agora era realmente a casa de Eric – tanto por se
parecer mais com ele quanto pela força das proteções
feitas com magia ao redor dela.
E pensar naquilo era só mais uma forma de tentar
desviar o pensamento do que ela realmente havia feito.
Mesmo que Lara estivesse curiosa sobre Eric já fazia
muito tempo, ele ainda era um vampiro. Um príncipe dos
vampiros e o necromante mais forte da região. Ela tinha
imaginado que ia precisar deixar que ele bebesse dela,
sim. Mas não havia imaginado levar tudo até o fim –
totalmente por escolha dela. Nem nunca teria imaginado
que ia ser tão bom a ponto de ela praticamente apagar
por causa dos orgasmos, mesmo que só por alguns
segundos.
A pior parte era que ela não se arrependia, mesmo
que soubesse muito bem que misturar prazer e trabalho
nunca dava bons resultados. E a situação deles era mais
complicada ainda, por causa de toda a questão de ela
estar se passando por consorte. Aquilo já era o suficiente
para misturar as coisas sem Lara fazer mais nada.
Eric parou ao lado dela e ofereceu uma taça de
vinho. Lara pegou a taça e a girou devagar.
— Vai ser assim? — Ela perguntou. — Toda vez que
eu fizer alguma coisa ou você beber de mim, vai ter uma
taça?
Ele se virou para encarar a cidade.
— Isso vai depender mais de você.
Lara revirou os olhos e tomou um gole do vinho. A
sensação elétrica se espalhou pelo seu corpo. Não tinha
nem como comparar, aquilo era melhor que qualquer
tipo de energético que ela já tivesse tomado. Ela estava
acordada já fazia quase vinte e quatro horas, sendo que
havia passado uma boa parte do dia treinando, e não
estava sentindo nenhum sinal de cansaço. Ou de sono,
na verdade.
— Depender do que eu fizer? — Ela repetiu. — É o
que eu falei.
Eric balançou a cabeça.
— Depender de se você vai recusar.
Lara se virou de volta para a cidade.
Ela não sabia como lidar com Eric, simples assim.
Não quando ele estava daquele jeito – o normal dele.
Deveria existir um limite, uma linha clara de o que era
encenação, o que era necessidade e o que era só ele
mas, se existia, Lara não fazia ideia de onde estava. E
aquilo era perigoso.
Lara não estava se iludindo quando tinha oferecido
seu sangue para Eric, no clube, nem em nenhum
momento enquanto ele estava bebendo dela e fazendo
ela ter alguns dos melhores orgasmos da sua vida. Mas
eles estavam próximos demais, por causa do contrato.
Aquilo, junto com o cuidado de Eric... Seria fácil demais
começar a se iludir, sim. Ela não podia se permitir aquilo.
Ela tomou mais um gole do vinho. Quando era mais
nova, Lara nunca tinha visto a cidade do alto, daquele
jeito. A casa da sua família era comum, pequena para os
padrões dos vampiros, no meio de várias casas do
mesmo jeito. Não tinha nenhum lugar por perto para ela
subir e ficar vendo as luzes. Ou então ela só nunca tinha
pensado em tentar escalar algum lugar.
Mas era bonito ver as luzes da cidade dali. O Setor
Três não era como o Seis, onde não havia luzes na parte
dos vampiros da cidade, porque eles não precisavam
daquilo, e o lado humano se virava como podia com
tochas. Eles tinham luzes elétricas por toda a cidade,
também, e elas estavam acesas – mesmo que Lara se
lembrasse de noites iluminadas por tochas, também.
E se Eric ia continuar parado ao lado dela sem falar
nada e sem dar a menor indicação de que ia sair, então
ela ia aproveitar para matar sua curiosidade, também.
Lara se virou para ele.
— Por que você virou um príncipe?
Eric olhou para ela e levantou uma sobrancelha.
Ela deu de ombros.
— Meu pai falava de você e eu lembro de você, antes
de tudo. Ninguém ia suspeitar que era forte o suficiente
pra tomar o lugar de um dos príncipes. E com certeza
nunca imaginariam que era forte o suficiente pra
controlar o setor. Você passou décadas passando
despercebido, e aí do nada resolveu virar um príncipe?
Não, deve ter acontecido alguma coisa.
— Você — ele falou. — Você e sua irmã, na verdade.
De todas as respostas que ele podia ter dado, aquela
era uma que nunca nem teria passado pela cabeça de
Lara.
— Nós?
Ele assentiu, devagar.
— Já fazia tempo que eu estava vendo a direção em
que os príncipes estavam levando o setor. O quanto não
estava sendo feito e como eles estavam se deixando
levar pela ganância. Eu podia ter feito alguma coisa bem
antes, mas o risco não valia a pena. As chances de eu
conseguir mudar alguma coisa eram pequenas, além de
que estaria me transformando em um alvo e
possivelmente chamando atenção para os necromantes.
Era melhor não fazer nada.
Nunca era melhor não fazer nada. Mas Lara entendia
o que ele queria dizer. Ela tinha prestado atenção quando
Eric havia contado sobre os necromantes e como eram
caçados. Com um histórico daqueles, era fácil demais se
acomodar e acostumar a só assistir ao que estava
acontecendo.
Mas aquilo não explicava nada.
— E o que isso tem a ver comigo e com Val? — Lara
insistiu.
Eric sorriu.
— Eu estava lá, no dia em que Valissa criou o
pântano.
Um arrepio atravessou Lara. Era óbvio que ele era
um dos vampiros que tinha assistido aquilo tudo. Eric era
o mais forte dos necromantes. O líder da Corte da Névoa,
ou como quer que ele fosse chamado. Quando os
príncipes decidiram que iam obrigar Val a fazer o que
queriam, eles tinham chamado todos os vampiros mais
importantes, porque tinham certeza do resultado.
E ela não ia perguntar por que ele não tinha feito
nada. Eric já tinha dado a resposta antes: ele não
acreditava que valia a pena interferir.
— Os príncipes estavam ameaçando duas garotas
humanas, uma delas uma criança, e mesmo assim elas
não estavam cedendo — ele continuou. — Vocês não
cederam. Nem quando Vicente te prendeu. Você não faz
ideia do choque que isso foi para a maioria de nós.
Lara soltou o ar com força. Ela não queria pensar
naquilo, mas ela tinha perguntado.
— Porque humanos deveriam saber seu lugar e não
desafiar os vampiros, certo — ela resmungou. — Ouvi
isso vezes demais.
Eric balançou a cabeça.
— Não. Porque vocês estavam indefesas e mesmo
assim se recusavam a abrir mão do que acreditavam que
era certo.
— Não tão indefesas assim — ela murmurou.
E era a única coisa que Lara conseguia falar. Ela não
tinha nem pensado antes de recusar as exigências de
Vicente. Tinha sido só necessidade. Ela sabia o que
aconteceria se Val fizesse o que ele queria. Primeiro,
seria só uma fonte que ele queria usar para irrigação de
alguma coisa. Depois, seria algo maior. Sempre algo
maior. Valissa seria tratada como uma ferramenta – bem
cuidada, dentro do possível, mas usada até se quebrar e
ser descartada. E Lara... Ela não fazia ideia do que os
príncipes teriam feito se houvessem descoberto sobre
ela. Pelo que ela sabia, não existia mais ninguém que
pudesse ser chamado de algo próximo de meio-vampiro.
Não como ela.
Ela se lembrava bem demais daquela noite. Das
ameaças de Vicente. Dos vampiros assistindo. Do poder
lhe prendendo. Os cortes se abrindo na sua pele, mesmo
que Vicente não estivesse encostando nela. Não
fisicamente. De não conseguir respirar. E então de Val
gritando para pararem, que ela ia fazer, que ela ia dar
algo muito maior do que queriam...
Lara não fazia ideia de se a intenção de Valissa tinha
sido criar o pântano, ou se só tinha sido um resultado do
poder explodindo e fazendo o que queria. E no fim das
contas não fazia diferença, porque tinha sido o choque
dos vampiros com a explosão de poder que havia lhes
dado tempo o suficiente para fugir.
— Não tão indefesas — Eric concordou. — Mas ainda
humanas. Se duas garotas humanas estavam dispostas a
enfrentar Vicente, que motivo eu tinha para continuar
nas sombras enquanto a situação no setor ficava cada
vez pior?
Lara não respondeu. O tempo todo, ela tinha ficado
pensando em o que faria um vampiro que tinha
escondido seu poder por mais de um século decidir
tomar a posição de um príncipe. Agora Lara sabia. Tinha
sido ela. Ela e Valissa.
— Eu destruí Vicente uma semana depois que vocês
fugiram, quando soube que ele havia contratado
mercenários para irem atrás de vocês.
Lara engoliu em seco e assentiu.
— Isso explica por que os anúncios sumiram.
Na época, ela tinha achado estranho as ofertas de
recompensa só desaparecerem. Mas Lara estava
preocupada demais em se esconder e fazer um nome o
mais depressa possível, para se proteger e proteger
Valissa. Ela não tinha tido a menor condição de tentar
descobrir o motivo para não estarem mais sendo
caçadas.
Tinha sido Eric.
Ela se virou para a cidade de novo e apoiou os dois
braços no parapeito da sacada. Não ia demorar muito
para amanhecer.
Um dia. Só fazia um dia que ela estava ali.
Eric se aproximou mais e colocou o cabelo dela atrás
da orelha antes de passar um dedo pela cicatriz no seu
rosto. O resultado do seu encontro com os caçadores de
recompensa que estavam usando os animais
corrompidos para caçar por eles.
— Por que você faz tanta questão de esconder isso?
Era óbvio.
— Porque ninguém sobrevive ao veneno dos animais
corrompidos — Lara falou. — E qualquer um que ver essa
cicatriz e pensar um pouco vai entender que só existe
uma explicação pra ela.
Mais uma coisa que ela não podia deixar ninguém
saber, a menos que quisesse acabar sendo usada para
experimentos enquanto tentavam entender como ela
tinha sobrevivido. Não. Era melhor não deixar ninguém
ver. Lara sempre tinha gostado de se maquiar. Passar a
usar aquilo para esconder a cicatriz era o caminho óbvio
e ela já estava tão acostumada que na maior parte do
tempo nem pensava nos motivos.
E, na maior parte do tempo, ela era cuidadosa o
suficiente para não deixar ninguém ver a cicatriz. Até
mesmo o pessoal do Setor Dez – a única pessoa que
tinha visto a aquilo era Dani, e ela não tinha falado nada.
Mas Lara tinha relaxado perto de Eric.
Porque ele precisava dela. Porque ele tinha lhe
contado coisas sobre os necromantes que mais ninguém
sabia. Só por causa daquilo.
Não. Lara estava mentindo para si mesma desde o
começo. Ela estava se iludindo, pensando que podia
confiar em Eric.
— O problema na parede elétrica — ele contou. —
Tamara mandou o aviso algum tempo atrás. Tanto a
ligação principal quanto os geradores.
Ela precisou de alguns segundos para acompanhar a
mudança de assunto. Os geradores que mantinham as
paredes elétricas ligadas. Sim. Era naquilo que Lara
deveria estar pensando.
Foco.
— Descobriram quando foi a sabotagem? — Ela
perguntou.
Eric balançou a cabeça.
— As paredes estavam ligadas no sistema elétrico
principal. Os geradores podem ter sido desativados em
qualquer momento nos últimos dois anos e ninguém teria
notado.
Lara se virou para ele e bebeu o resto do vinho de
uma vez.
— Dois anos — ela repetiu.
— O tempo desde a última verificação — Eric
confirmou.
O que queria dizer que os cálculos de tempo dele
provavelmente estavam errados, se já estavam mexendo
nas paredes elétricas fazia tanto tempo. E, se estavam
dispostos a correr o risco de enfraquecer as fronteiras...
— Isso está parecendo um pouco maior do que você
deu a entender — Lara comentou.
Porque os vampiros levavam as fronteiras com as
terras de ninguém à sério demais. Se alguém – algum
grupo, provavelmente – estava disposto a colocar aquilo
em risco, não ia ser por pouca coisa. Seria algo grande e
algo que estava sendo planejado já fazia anos.
Eric respirou fundo e soltou o ar devagar.
Lara parou, o encarando. Aquilo tinha sido tão
humano que chegava a ser surpreendente, vindo dele.
— As paredes elétricas estavam desligadas porque
alguém cortou a ligação delas com a rede principal — ele
contou. — E isso foi no mesmo dia em que destruí
Arman. Pelo que Ícaro encontrou, é bem possível que
tenha sido exatamente enquanto eu estava indo atrás de
Nicolai.
— Coincidência demais — ela murmurou.
Ou seja, não tinha sido coincidência. Alguém estava
esperando – ou já imaginavam que Eric ia assumir o
controle do setor e estavam esperando aquilo, ou
queriam uma distração de algum tipo. De qualquer
forma, tinha funcionado.
— Você está certa — Eric falou. — Isso é muito maior
que um conflito normal entre setores. Não é o que eu
esperava quando te ofereci um contrato. Se preferir
anular nosso acordo e voltar para o Setor Dez, está no
seu direito. De qualquer forma, sua irmã está segura.
Se alguém tivesse contado para Lara que ela
encontraria um vampiro com princípios, ela nunca
acreditaria. Mas era o que tinha acontecido.
Mas ela acreditava no que ele estava falando. Depois
do que Eric tinha contado sobre seus motivos para
assumir o controle, não era nem surpresa que ele nunca
tivesse feito nada com o que sabia sobre ela – e sobre
Val. Ele não faria nada contra Valissa agora, também.
Não que alguma coisa fosse mudar.
— Você vai precisar notificar seus aliados — Lara
falou. — Isso inclui o Dez.
Ele assentiu.
Provavelmente o Sete, também. Lara se lembrava de
comentários sobre coisas compradas com eles. E Eric
teria que avisar seus aliados que era possível que
estivessem em risco, também.
E, quando o Setor Três fosse atacado, o Dez
mandaria ajuda – e Lara seria parte daquela ajuda, de
um jeito ou de outro.
Não. Ela encarou Eric de novo. Podia até ser um
pouco de arrogância da sua parte, mas Lara tinha a
impressão de que seria muito mais útil se continuasse
ali.
— Eu fico até não ter outra opção — ela avisou.
Eric assentiu e pegou a taça que ainda estava na sua
mão.
— Nesse caso, é melhor você dormir enquanto pode
— ele falou.
Porque, quando o que quer que estivesse para
acontecer acontecesse, ela dificilmente ia ter tempo para
isso.
Lara assentiu e continuou parada na sacada,
encarando as costas de Eric enquanto ele atravessava o
quarto, saía e fechava a porta atrás de si.

Eric encarou os monitores na sua frente, com todas as


informações que Ícaro tinha conseguido e o que Tamara
havia repassado. Ela não conseguira tirar muita coisa do
vampiro que haviam encontrado na torre, na noite
anterior, mas o que estava ali era o suficiente: aquele
vampiro tinha ordens para emboscar os outros vigilantes.
Não todos, mas ele tinha quatro alvos em específico. Um
deles era a vampira que estava na outra torre, a que
havia notado Eric se aproximando. Dos outros dois
vampiros, ninguém tinha notícias. Eric suspeitava que
tivessem sido destruídos nas terras de ninguém,
também.
Ícaro parou ao seu lado, com aquela impressão
elétrica e agitada de quando ele passava tempo demais
lidando com dados.
— Está vendo? — O outro vampiro perguntou.
Eric balançou a cabeça devagar.
— Não consigo achar nenhuma ligação entre as
informações.
— Exatamente!
Ele se virou para Ícaro devagar. Aquela resposta
queria dizer que ele tinha encontrado alguma coisa no
meio daquele caos, pelo menos.
— Isso tão bem planejado que alguém se lembrou de
espalhar as informações — Ícaro falou. — Exatamente
para garantir que ninguém entenderia o que está
acontecendo. Mas, se você prestar atenção em como
tudo não encaixa, você consegue encontrar os pontos de
ligação.
Eric não duvidava do que ele estava falando. Mas
existia um motivo para Ícaro ser parte do seu pessoal.
Eric não ia passar horas encarando os monitores e
tentando achar uma lógica naquelas informações quando
tinha alguém que já havia feito aquilo.
— E a ligação é...? — Ele perguntou.
Ícaro balançou a cabeça.
— Ainda estou rastreando a origem de tudo. Mas
com certeza temos envolvimento de mais de uma Corte.
Eric se endireitou. Ele não falaria aquilo por acaso.
Envolvimento de uma Corte era diferente do
envolvimento de um setor. Era uma garantia de que
eram vampiros por trás daquilo e com certeza
trabalhando juntos.
Loucos. Ainda havia dois observadores de outras
regiões no Setor Cinco, por causa da situação com os
carniçais. E mais de uma Corte estava pensando em
quebrar outra das leis dos vampiros. Pior ainda: na região
controlada por Lorde Rafael...
Que não se envolveria até ser tarde demais. Eric
tinha passado tempo o suficiente observando como ele
agia. Talvez no passado não fosse assim e ele tivesse
conquistado o respeito dos outros, naquela época, de
forma honesta. Mas agora ele sempre esperava. Ele
sempre observava e fazia o mínimo necessário para
lembrar às outras Cortes que ele estava ali. Não era à toa
que a maioria dos outros nem suspeitava de quem Lorde
Rafael realmente era.
E fazia sentido. Amon havia lhe contado sobre o
acordo entre Lorde Rafael e a bruxa com quem tinha se
casado. Ele não podia atacar o Setor Dez diretamente.
Na verdade, tinha a obrigação de protegê-los. Então ele
não atacaria. E, com toda certeza, não faria outra Corte
atacar – porque quando os vampiros descobrissem
aquilo, qualquer respeito que tinham por Lorde Rafael
desapareceria. Ele não podia quebrar o acordo de
nenhuma forma.
Mas direcionar um ataque para o Setor Três não seria
quebrar o acordo. E, se o Dez se envolvesse, por causa
da aliança que tinham, não seria culpa de Lorde Rafael.
Também não seria culpa dele se os animais corrompidos
invadissem o Três e fossem na direção das outras
fronteiras. Seria uma pena se o Dez não tivesse como se
defender das criaturas, mas já seria tarde demais quando
ele ficasse sabendo.
— Quando estiver rastreando a origem disso, veja se
não existe algum sinal do Setor Um — Eric avisou.
Ícaro assentiu e não respondeu. Provavelmente ele já
havia pensado naquela possibilidade, também.
E não era a única possibilidade. Eric não podia se
esquecer que o Setor Três era conhecido por ser uma
Corte de necromantes. Sempre era possível que aquele
fosse o motivo por trás do que quer que estivesse
acontecendo, também.
Lara estava certa. A Corte da Névoa tinha passado
tempo demais escondendo o que podiam fazer. Se
alguém quisesse atacar o Setor Três por serem
necromantes, então eles saberiam exatamente o que
lhes esperava.
Lara. Ele estava tentando não pensar nela e no que
havia acontecido, mas não podia evitar. Não queria, na
verdade, depois daquela madrugada e de como ela havia
aceitado tudo dele, mesmo que Eric estivesse a um fio de
perder o controle por completo. Não. Ela não havia
aceitado nada. Ela havia respondido da mesma forma, o
havia desafiado, mesmo sabendo o que ele podia fazer. E
tinha gostado. Mais do que gostado, na verdade, de uma
forma que ele nunca teria esperado.
E agora ele queria mais.
Eric não ia negar que estava satisfeito demais por
ela ter escolhido ficar no Setor Três, mesmo que fosse um
risco maior do que previsto. Ele queria ela ali – e fazia
tempo demais desde a última vez em que Eric fizera
tanta questão de ter algo.
Mas ele ainda tinha trabalho a fazer.
— O traidor? — Eric perguntou.
— Na porta do seu laboratório — Ícaro contou.
Bom. Ele não havia precisado falar para Tamara
entender que o sangue do traidor – o poder dele – era
seu, mesmo que as ordens iniciais houvessem sido para
que ele fosse queimado.
Eric assentiu e saiu da sala que Ícaro havia tomado
como sua. Primeiro, ele precisava enviar avisos tanto
para o Setor Dez quanto para o Sete – e precisava rever
os termos dos acordos que o Três tinha com o Sete,
também. Depois, ele lidaria com os restos do vampiro
traidor.

Amon encarou a mulher na sua frente. Fisicamente, Alana não era


tão parecida com Daniele. Mas ele não havia demorado
muito para perceber que a personalidade das duas não
era tão diferente. As duas eram leais demais. As duas
eram teimosas. E as duas não tinham limites quando
estavam em uma situação complicada.
— Você não sabia — ele murmurou.
Alana balançou a cabeça devagar.
— Eu sabia que tinha mais alguma coisa, mas ele ter
sido o rei dos vampiros nunca ia nem passar pela minha
cabeça.
Claro que não. A maioria dos humanos não sabia que
havia uma hierarquia, antes da volta da magia. E nunca
saberiam sobre a Corte do Sangue e como ninguém a
desafiava. Até mesmo os que eram fortes o suficiente
para pensarem em fazer aquilo, como o próprio Amon,
preferiam manter sua distância. Era mais simples não
chamar a atenção da Corte do Sangue do que lidar com
ela – com Rafael.
— E se você está aqui logo depois do amanhecer, é
porque quer alguma coisa — Amon falou.
Não apenas logo depois do amanhecer. Alana havia
passado um bom tempo perto da casa que ele dividia
com Daniele, esperando. Eles haviam notado e Dani
falara para esperar. Então tinham esperado – até Daniele
ir tomar banho. Só então Alana havia batido na porta.
Amon não sabia se Alana estava se iludindo
pensando que aquilo lhes dava privacidade, mas ele não
ia contar que Daniele com certeza estava ouvindo cada
palavra. Mas ele também tinha certeza de que Dani não
sairia do banheiro enquanto sua prima não falasse tudo o
que precisava.
Alana respirou fundo e encarou uma das janelas
fechadas.
— Ele foi o rei uma vez — ela falou. — Acha mesmo
que ele vai se contentar com menos?
Amon não respondeu. Alana não estava errada.
Rafael havia sido ambicioso, antes de volta da magia. E
não era à toa que o conhecimento comum dizia que
vampiros eram criaturas de hábito. Eles não mudavam, a
menos que algo grande demais acontecesse.
A volta da magia havia sido algo grande – e Rafael
mudara, sim. Ele havia se tornado mais cuidadoso. Era a
única explicação para como ele estava naquela região
havia tanto tempo sem que todos soubessem quem ele
era.
Da primeira vez que o vira, Amon havia tido
esperanças de que estivesse se confundindo e não fosse
quem ele pensava que fosse. Depois, havia se iludido
dizendo que Rafael parecia satisfeito demais com seu
setor e mantendo a região sob controle. Mas aquilo
nunca seria o suficiente.
Se tornar mais cuidadoso não queria dizer que ele
não estava se preparando para recuperar o que tinha,
antes.
— Eu preciso saber — Alana insistiu. — Preciso de
qualquer informação que você tenha, qualquer coisa que
saiba sobre ele.
Se alguém tinha alguma chance de lidar com Lorde
Rafael, era ela. Exatamente pelo motivo que Alana havia
falado, na reunião: ele precisava dela. Aquilo lhe dava
uma vantagem.
Mas Alana era a prima de Daniele e elas eram
parecidas demais.
— O que você está planejando? — Ele perguntou.
A bruxa balançou a cabeça.
— Nada, por enquanto. Não tenho informações o
suficiente para planejar nada.
Amon a encarou por mais alguns segundos antes de
assentir. Ele tinha plena consciência de que lhe contar
tudo o que sabia não era a melhor opção. Mas era Alana.
Se ele não contasse, ela encontraria alguma forma de
conseguir informações, o que provavelmente iria
significar fontes nem um pouco confiáveis.
— É melhor você se sentar, então — ele avisou. —
Isso vai demorar.
TREZE

Lara se desviou do soco da mercenária sem a menor dificuldade e


parou de novo, com os punhos fechados e os braços
dobrados numa postura que era mais que clássica.
— Você está roubando! — A outra mulher
resmungou.
Lara riu e balançou a cabeça, ignorando os gritos
vindo das pessoas ao redor do ringue.
— Não estou roubando. Você só é lenta mesmo.
A mercenária – Yohana – praticamente rosnou antes
de avançar de novo.
Lara ainda estava rindo quando girou por baixo do
golpe da outra mulher, a segurou pela lateral e a
derrubou. Simples, rápido e limpo. Ela tinha perdido as
contas de quantas vezes Yuri e Amon tinham feito ela
praticar aquilo. Enquanto estava lá, nos treinamentos
intensivos quando juntavam as forças de defesa e os
mercenários que estavam morando no Setor Dez, aquilo
parecia quase perda de tempo. Quase, porque Lara sabia
bem que melhorar sua técnica sempre era uma
vantagem, mesmo que não parecesse que estava
fazendo diferença.
Yohana bateu o punho fechado no chão.
— Filha da puta, eu juro que se você estiver
roubando eu vou de quebrar em tantos pedacinhos que
não vai sobrar nada nem para...
Lara riu de novo e esticou uma mão na direção da
outra mulher.
— Se eu estivesse roubando, você com certeza não
ia ter a menor chance de me quebrar em sei lá quantos
pedacinhos.
Yohana aceitou a mão dela e se levantou.
— Eeeeee nada de novo — alguém resmungou.
Lara olhou de relance para o homem que tinha
falado – praticamente um adolescente, na verdade. Ela
tinha visto ele ali no dia anterior, mas não ia se lembrar
do nome dele, se é que tinha ouvido um nome.
E não era nada de novo, mesmo. Aquele tinha sido o
motivo para Yohana chamar Lara para o ringue: a outra
mercenária queria ver se ela se sairia melhor do que o
pessoal que não fazia trabalhos fora do setor. E ela era
melhor, sim. Mas não o suficiente para derrubar Lara – e
ela estava fazendo questão de não usar nada dos
poderes de vampiro.
Ela passou entre as cordas ao redor do ringue e
parou enquanto mais duas pessoas entravam lá. Dois
homens mais velhos, que Lara se lembrava de ver ali
quando ela ainda era criança.
Yohana parou ao seu lado.
— Sério, se isso não é a coisa lá que você faz, então
o que é?
Lara deu de ombros.
— O resultado de quatro meses fazendo exercícios
de treinamento com dois vampiros e com um ex-
mercenário levemente megalomaníaco e exagerado
demais.
Porque Dani, Yuri e Amon cobravam demais do
pessoal sob o comando deles e aquilo não era ruim. Lara
sabia que tinha ficado muito mais rápida por causa de
como eles organizavam os treinamentos. E não só ela:
todos os mercenários que haviam ficado no Setor Dez e
treinavam junto com as forças de defesa falavam a
mesma coisa. Estavam mais rápidos, com reflexos
melhores e com técnica melhor. Não era incomum Amon
enfrentar algum deles, só para forçá-los a serem mais
rápidos, mais eficazes.
— O vampiro... — Yohana começou, falando devagar.
— Ele realmente treina vocês?
Lara assentiu. E ela não ia falar que, entre Amon e
Dani, ele era o mais de boa nos treinamentos.
Os dois homens no ringue começaram a lutar, mas
aquilo não era uma luta mesmo. Era mais um exercício,
com os dois seguindo uma sequência comum de golpes.
E nenhum dos dois eram mercenários, também. Só duas
pessoas que gostavam da luta como atividade física ou
algo assim.
Era uma coisa que Lara nunca tinha parado para
pensar antes de fugir do Setor Três. Mas seu pai treinava
pessoas, sim – tanto humanos quanto vampiros, quando
algum deles queria. A parte interessante era justamente
ele treinar humanos. Não só ensinar ou praticar um
pouco. Ele treinava humanos, da mesma forma que
treinava os vampiros que eram parte das forças de
defesa do setor. E que, pelo que ela tinha ouvido falar,
era o mesmo jeito que ele treinava os vampiros antes de
voltar a ser humano.
Por quê? Ele não estava treinando mercenários,
mesmo que ele tivesse se tornado um. E o Setor Três não
tinha nenhum tipo de força de defesa feita por humanos.
Um dos homens no ringue derrubou o outro com um
golpe rápido que era uma das formas mais eficientes de
derrubar um vampiro, porque não dava espaço para a
outra pessoa reagir. O mesmo golpe que seu pai tinha lhe
ensinado, da primeira vez que Lara tinha comentado que
queria ser uma mercenária, também.
Lara conseguia pensar em algumas explicações para
aquilo. Ou melhor, conseguia pensar em uma explicação.
Seu pai tinha tentado colocar os humanos do setor
em pé de igualdade com os vampiros, de alguma forma.
E aquilo não tinha dado certo.
Lara nunca tinha descoberto o motivo para seu pai
ter sido executado. Não era difícil imaginar que os
príncipes haviam considerado que ele fosse uma
ameaça, de alguma forma, só porque seu pai tinha o
respeito de vampiros demais. Mas ela nunca tinha
procurado saber detalhes, porque não queria chamar
atenção.
Talvez fosse hora de procurar saber mais.
Ela olhou para a porta do galpão. Três pessoas
estavam paradas lá perto, conversando, mas eram todos
humanos. Óbvio que eram humanos: ainda não eram
nem quatro horas da tarde e o sol estava forte. Nenhum
vampiro ia estar fora da sua casa a menos que tivesse
alguma emergência para lidar.
O que queria dizer que Lara não tinha nada que
estar olhando para a porta e pensando se veria Eric ali.
Nem mesmo depois que anoitecesse – se ela continuasse
ali até tão tarde. Depois do que tinha acontecido na
fronteira, ele teria coisas demais para resolver que com
certeza não envolviam ir atrás de uma mercenária
humana do outro lado da cidade.
Lara não tinha visto Eric depois de acordar. Ela tinha
dormido pouco – quatro horas – mas parecia que era
mais do que suficiente, considerando a quantidade de
vinho com sangue que havia bebido. Mas ela não tinha
visto ele em lugar nenhum da casa. O outro vampiro,
Ícaro, tinha avisado que ele estava no laboratório, onde
quer que aquilo fosse, e ela não tinha perguntado mais.
Eles ainda tinham trabalho a fazer e ela precisava voltar
para a arena, se quisesse aproveitar o que tinha
começado no dia anterior.
E ali estava ela, terminando o segundo dia quase
inteiro na arena. Se Val estivesse ali, seria como se
nunca tivessem nem ido embora.
— É verdade? — Alguém perguntou.
Lara balançou a cabeça devagar e se virou. Um
grupo de pessoas tinha se juntado ao redor dela e de
Yohana, mas Lara não tinha prestado atenção em nada
até ouvir a pergunta.
— O que é verdade?
— Que os vampiros estão ignorando a fronteira com
as terras de ninguém.
Lara estreitou os olhos e encarou quem tinha falado.
Era o mesmo rapaz de antes, o que era praticamente um
adolescente.
— Onde você ouviu isso? — Ela perguntou.
O rapaz levantou as mãos depressa.
— É o que estão falando por aí.
E aquele era o motivo para Lara ter feito tanta
questão de ir para a arena.
Ela balançou a cabeça.
— Sem essa de "por aí". Eu quero saber de onde veio
esse comentário.
— E quem você pensa que é pra chegar aqui dando
ordens? — Um homem praticamente gritou, um pouco
afastado deles.
Lara continuou encarando o rapaz. Dar atenção para
aquele tipo de comentário era só perda de tempo, então
ela ia fingir que não tinha ouvido. Era mais fácil assim.
— Ei! — O homem insistiu.
— Shh, não ficou sabendo de ontem, não? — Outra
pessoa falou e era óbvio que aquilo era para o homem.
Pronto. Alguém ia comentar sobre terem visto Lara e
Eric no clube – e como ele havia lhe oferecido sangue, e
depois a mordido. Aquilo era mais que o suficiente para
colocar a palavra "consorte" na cabeça de todo mundo
que ouvisse a história, sem Eric precisar falar nada
oficialmente.
E ele não podia falar. Aquilo era outro fator que Lara
tinha levado em conta desde o começo: ela ia se passar
por consorte de Eric. Ou seja, precisava fazer as pessoas
imaginarem aquilo sem dar nenhuma confirmação,
porque consortes não eram algo para ser tratado de
forma leviana. Quando um vampiro escolhia alguém
como consorte, era para sempre. Então Eric não ia falar
nada oficialmente. Se ele falasse, quando ela fosse
embora ele perderia o respeito dos outros vampiros. E
era melhor daquele jeito.
— Estou esperando — Lara falou.
O rapaz na sua frente desviou o olhar e resmungou
alguma coisa.
— Eu não ouvi — ela avisou.
— Estavam falando isso na rua, só isso — ele repetiu,
agressivo. — Tá bom pra você?
Lara sustentou o olhar dele.
— Não.
Mas ela não ia insistir mais, pelo menos não com ele.
Já sabia que fazer aquilo não ia levar a lugar nenhum.
Lara se virou para Yohana. A outra mercenária era do
Setor Três, treinava sempre naquela arena e conhecia
todo mundo ali. Ela provavelmente tinha ouvido o que
estavam falando, também.
A outra mulher suspirou.
— Eu falei que era um festival de merda, porque isso
não faz sentido nenhum — ela contou. — Mas estão
falando que os vampiros estão ignorando a fronteira de
propósito e que mais cedo ou mais tarde vão deixar os
animais corrompidos passarem.
Podia ser só coincidência. Não era impossível que
alguém tivesse ouvido algum comentário sobre as
paredes elétricas desligadas e começado a inventar
histórias a partir dali. Lara já tinha visto coisas daquele
tipo acontecerem vezes demais. Mas ela não conseguia
acreditar que era coincidência, porque também era muito
conveniente.
Enfraquecer a fronteira, virar a população contra os
vampiros...
— Esse príncipe novo — outro homem falou. — Ele é
um necromante. A gente é mais útil pra ele morto. Eu
não ia duvidar nem um pouco se ele estivesse
planejando deixar os animais corrompidos fazerem o
serviço sujo para ele.
Virar a população contra quem estava no controle,
especificamente.
As pessoas ao redor deles assentiram e concordaram
em voz baixa. Lara não tentou entender o que estavam
falando.
Não tinha como nada daquilo ser coincidência.
Alguém tinha feito questão de começar aqueles boatos e
agora ela precisava lidar com aquilo.
— Se é pra olhar por esse lado, os animais
corrompidos são mais úteis depois de mortos do que a
gente. Sei lá, assim, só por terem garras e presas, sabe?
São armas um pouco melhores — Lara falou. — E eu
estava na fronteira noite passada. Eric não está
ignorando nada.
— Fala isso pra minha cunhada — outra pessoa
resmungou, atrás de Lara.
Ela se virou. Uma mulher a encarou e balançou a
cabeça com força.
— Antes de você perguntar onde eu ouvi isso — a
mulher falou. — Minha cunhada foi arrastada pra resolver
uma bagunça lá da parte elétrica no meio da madrugada.
Ela falou que as paredes elétricas da fronteira estavam
desligadas. Se isso não é ignorar... Ou você vai falar que
as paredes estavam ligadas?
Lara balançou a cabeça.
E as pessoas ao redor estavam discutindo em voz
baixa – alguns nem tão baixa assim, na verdade. Nem
todo mundo tinha ouvido sobre a fronteira e Lara sabia
como aquilo soava. Era a mesma coisa que ela estaria
pensando, se estivesse no lugar deles.
— Sabotagem — ela contou.
— Fácil falar.
Lara revirou os olhos e nem tentou achar quem tinha
falado.
— E se a intenção fosse ignorar a fronteira, ia ter
sido muito mais fácil não ter mandado ninguém arrumar
a parte elétrica — ela retrucou. — Por que acham que
foram mandar alguém mexer nisso de madrugada? Foi
sabotagem. Tiraram as paredes elétricas do fornecimento
normal de eletricidade e mexeram nos geradores.
Os comentários ao redor dela pararam. Ótimo, aquilo
queria dizer que pelo menos ainda estavam dispostos a
ouvir.
— Eu estava na fronteira, ontem — Lara repetiu. —
Nós fomos chamados pra lá, quando notaram que a
parede elétrica estava desligada e que tinha uma matilha
de animais corrompidos perto demais da fronteira.
E ela não ia falar sobre um vampiro traidor. Pelo
menos, não enquanto estavam daquele jeito.
— Alguém aqui com certeza tem contatos pra
conseguir as filmagens de segurança do que aconteceu
lá — ela continuou. — Vão atrás disso, se não acreditam.
Tamara ia entender. Ela daria um jeito das filmagens
estarem em algum lugar que teriam acesso. Não
adiantava Lara tentar convencer ninguém do que tinha
acontecido, porque ela não era dali – não mais. Mesmo
que algumas pessoas se lembrassem dela, mesmo que
ela tivesse sido aceita na arena, ela não era um deles.
— E deixa eu perguntar uma coisa. Se a fronteira
cair, quem sai ganhando?
Ninguém respondeu na hora.
Lara cruzou os braços e esperou enquanto os
comentários agitados começavam de novo.
— Os vampiros saem ganhando, porque a gente vai
morrer — alguém falou, mais alto que os outros. — A
gente não vai estar mais aqui pra gastar os recursos
deles.
Interessante. Lara queria saber onde aquele assunto
tinha começado, a coisa de humanos estarem gastando
recursos dos vampiros.
Ela assentiu devagar.
— Tá. Mas e aí, quem vai alimentar os vampiros?
Quem tinha falado antes não respondeu e os
comentários ficaram mais baixos, também. Bom. Porque
não importava o quanto os vampiros gostassem de agir
como se fossem superiores, a verdade era que eles não
sobreviveriam sem os humanos. A humanidade
sobreviveria sem eles, sim – não seria fácil lidar com os
animais corrompidos, mas não seria impossível. Mas os
vampiros não tinham como existir sem os humanos.
— Esse acordo sobre as fronteiras com as terras de
ninguém começou porque os vampiros precisam de nós
— Lara lembrou. — Se a fronteira cair, vai ser a gente
que vai pagar, sim. Os vampiros têm muito mais chance
de sobreviver. Mas nenhum vampiro é burro de fazer isso
com o próprio setor. Então se temos problemas, eles
estão vindo de fora.
— De fora, como você que apareceu na hora mais
conveniente possível — um homem falou.
Lara revirou os olhos. Ela sabia quem ele era,
infelizmente. E conhecia aquele tipo.
— Agora você só está inventando história porque
uma mulher bem menor que você te deu uma surra. Para
de show.
O homem se endireitou.
Yohana esticou um braço na frente dele.
— Você ouviu, para de show. Se ela estivesse metida
nisso ia ser muito mais fácil nem ter vindo para o setor.
Verdade, também.
E depois daquilo tudo, se Lara continuasse na arena
ia ser uma perda de tempo – tanto porque ela não ia
ouvir mais nada útil, quanto porque ela estar ali ia ser o
suficiente para quererem continuar discutindo.
Ela se endireitou.
— Acreditem no que quiserem. Só tentem não ser
burros o suficiente pra virarem peças nos jogos dos
vampiros — Lara falou.
Ninguém respondeu quando ela se afastou e foi na
direção da saída.

Eric encarou as informações no seu tablet. Uma lista dos humanos


que haviam morrido nos últimos dez anos – o que era
uma quantidade maior do que ele havia esperado, na
verdade, mas aquilo provavelmente era porque já fazia
muito tempo desde que Eric havia precisado pensar em
taxas de mortalidade.
E a maioria das mortes não envolvia nenhum tipo de
suspeita. Doenças, idade, alguma condição que não
havia sido tratada ou não tinha como ser tratada. Alguns
acidentes – tanto de trabalho quanto envolvendo
vampiros. E aquela era a parte que interessava Eric.
Ele era um vampiro havia tempo o suficiente para
saber exatamente o que a maioria deles pensava sobre
humanos: descartáveis, inferiores, algo que eles
precisavam manter ali por pura necessidade, mas que se
pudessem destruiriam. Aquela não era uma visão tão
comum no Setor Três, mas ainda havia vampiros o
suficiente que pensavam aquilo, em níveis diferentes.
Os últimos príncipes eram assim. Não que deixassem
aquilo claro, mas eles não estavam preocupados com o
que acontecia com os humanos. Eles garantiriam o que
precisavam para sobreviver e a forma como o Setor Três
havia sido criado era o suficiente para que a situação ali
não fosse igual em outros setores, onde um humano
estar fora de casa depois do anoitecer era o mesmo que
se oferecer para um vampiro. Mas nenhum deles faria
nada se algo acontecesse com um humano.
Era muito provável que qualquer vampiro que
estivesse envolvido com a situação da fronteira pensasse
a mesma coisa. E aqueles vampiros sempre eram
descuidados com seu rebanho – Eric tinha visto aquilo
vezes demais.
Não era a forma mais eficiente de lidar com a
situação. Seria mais simples se Eric pedisse ajuda para o
Setor Dez – porque ele tinha certeza de que Melissa, a
vampira que ele havia transformado em humana, ainda
conseguia ler a mente de vampiros, também. Mas fazer
aquilo envolveria garantir que Melissa estaria perto de
todos os vampiros do setor, para tentar encontrar
alguma coisa, e colocaria um alvo gigante na mulher.
Considerando que dois príncipes – do Seis e do Cinco –
ainda queriam matá-la, ele não ia fazer aquilo.
Não. Sua ideia era melhor, até mesmo pelo fator
lembrar ao Setor Três o que era um necromante.
Ele marcou os nomes dos humanos mortos em
"acidentes" com vampiros e puxou as informações sobre
onde seus corpos haviam sido enterrados. Seria um
espetáculo macabro e ele não tinha o menor problema
com aquilo.
E Lara estava de volta na casa – na sua casa.
Eric levantou a cabeça e encarou a porta fechada do
seu laboratório. Ele tinha preferido não falar com Lara
mais cedo, quando ela havia acordado e ido para a
cidade. Coisas demais haviam acontecido num espaço
pequeno de tempo. Era melhor lhe dar espaço para lidar
com tudo, se precisasse – porque Eric queria ter certeza
de que ela não se arrependeria das suas escolhas.
Então ele havia se concentrado no poder, tudo o que
havia armazenado por décadas no seu laboratório. Eric
sabia que não era o único: por todo o setor, os outros
necromantes estariam consumindo a maior parte das
suas reservas, também. Aquilo era mais uma das coisas
que todos eles aprendiam por causa do passado e de
como haviam precisado se esconder. Nunca absorver
poder demais. Tomar apenas o que seria usado e
armazenar o restante, porque não podiam correr o risco
de ser notados ou de perder o controle.
Como ele quase havia perdido o controle, na
fronteira, mas de alguma forma havia canalizado aquilo
para Lara.
Não deveria ter sido uma surpresa, não
considerando como até mesmo o cheiro dela era um ímã
para Eric.
Mas agora Lara estava de volta, mais cedo do que
ele esperava. Seu laboratório não tinha janelas, mas ele
não precisava ver o céu lá fora para saber que ainda era
dia. Eric tinha imaginado que Lara ficaria na cidade até
mais perto do anoitecer.
E ela estava no corredor que terminava na porta
fechada do laboratório.
Eric colocou o tablet em cima da mesa na sua frente
e encarou a porta. As defesas mágicas se desativaram e
a porta de metal se abriu.
Lara entrou no laboratório devagar. Não era medo,
não exatamente. Era cautela. Ela não fazia ideia de o que
estava acontecendo. Ter uma porta se abrindo sozinha
não era algo comum para a maioria dos humanos,
mesmo os que conviviam com bruxas.
Ela olhou para Eric e deu mais alguns passos para
dentro antes de parar, encarando uma das mesas de
metal. Os restos de Arman e Nicolai ainda estavam lá –
ossos cobertos por pele ressecada, com as roupas ainda
jogadas sobre eles. Em algum momento Eric descartaria
aquilo, mas por enquanto ainda queria os ossos ali.
Talvez eles pudessem ser úteis, mesmo que os vestígios
de poder que ele podia aproveitar dos ossos não fossem
muita coisa.
E Lara não tinha saído correndo.
— Isso é só um pouco macabro — ela murmurou.
Eric inclinou a cabeça para o lado e abriu os braços,
indicando o restante do cômodo. Os restos em cima da
outra mesa não eram o mais macabro no seu laboratório.
Ele tinha armários de peças – pedaços de cadáveres,
preservados por um motivo ou outro em potes de vidro.
Reservatórios de poder, a maioria, mas não todos. E
ainda havia o outro armário, com as prateleiras cheias de
ossos não muito diferentes dos que estavam em cima da
outra mesa.
Lara respirou fundo e balançou a cabeça antes de ir
na direção dele.
— Uma casa é decorada com caveiras. A outra tem
esqueletos no porão — ela falou. — Isso não deveria nem
ser uma surpresa.
Eric sorriu.
— Não estamos no porão.
Não. Ele havia pensado em construir seu laboratório
abaixo do nível da terra, quando decidira ficar no Setor
Três. Mas fazer aquilo tinha parecido demais com se
esconder – admitir que, mesmo em um setor com tantos
necromantes, tudo seria igual.
No fim das contas, ele havia permitido que fosse
igual.
Lara revirou os olhos.
— O sentimento é o mesmo. A outra casa era de
quem? Arman?
Eric assentiu devagar.
— Faz sentido — ela falou.
E ele tinha a impressão de que havia perdido uma
parte do assunto, mas não importava. Lara ainda estava
ali e estava olhando para os lados ainda com aquela
tensão cautelosa, mas não estava com medo. Aquilo era
mais que a maioria dos vampiros que não eram
necromantes conseguiam fazer.
Eric deixou a porta se fechar, de novo. Ele até podia
aceitar alguém no seu laboratório, mas não deixaria
aquela porta aberta.
Lara olhou para trás de relance antes de encarar a
mesa na frente de Eric e se apoiar nela.
— Estão tentando virar a população humana contra
os vampiros — ela avisou. — E contra os necromantes,
especificamente.
Esperado.
— É assim que começa.
Lara assentiu.
— O que quer dizer que é hora de vocês cortarem
isso antes de se espalhar mais.
Tão direta, tão decidida... Como se fosse tão simples.
Mas a humanidade sempre havia tido medo da morte e
era aquilo que os necromantes faziam. Eles lidavam com
a morte.
Mas em um ponto ela estava certa: o Setor Três
havia construído sua reputação ao redor da Corte da
Névoa. Nada mais justo que a Corte tomar o controle,
agora. Se alguém queria começar uma nova caça aos
necromantes, podia fazer aquilo – desde que não fosse
no território do Setor Três. Qualquer um contra eles, ali,
seria destruído.
— Você queria que os necromantes fossem visíveis
— ele falou. — Mas não sei se falou isso pensando no que
realmente somos.
Lara revirou os olhos.
— Eu vi você no auge do momento bêbado de poder,
esqueceu?
Não. Ele não havia se esquecido.
— Dessa vez não vão ser os animais se levantando
— Eric avisou.
Lara sorriu.
— Ótimo.
Ótimo, ela dizia, mesmo que ele estivesse avisando
que traria humanos de volta.
Mas aquilo era Lara. Eric não deveria se surpreender
mais – nem deveria se surpreender por querer mais.
Ele colocou uma mão no rosto dela. As cicatrizes
estavam escondidas de novo. Ele havia reparado em
como Lara sempre estava tão cuidadosamente maquiada
e agora entendia.
— Nem pense nisso — ela falou. — Eu cuidei dos
caçadores de recompensa anos atrás.
Eric sorriu. Daquela vez ele não estava pensando em
trazer alguém de volta para torturar, como pagamento
por terem ferido Lara.
E os batimentos cardíacos de Lara haviam acelerado.
Eric desceu a mão pelo seu pescoço, devagar, até
parar segurando sua garganta. As pupilas dela dilataram
e seus batimentos ficaram mais rápidos ainda.
Bom. Muito bom.
— E se eu não estivesse pensando no que fazer com
eles? — Eric murmurou. — E se estivesse pensando no
que fazer com você?
A respiração de Lara falhou.
De alguma forma, aquilo era quase melhor que a
madrugada, porque agora Eric tinha plena consciência do
que estava fazendo. Não era o efeito do poder ditando
suas ações – ou a adrenalina fazendo Lara reagir.
— Faça — ela falou.
Havia muitas coisas que ele queria fazer, mas a
maioria delas não cabia ali, no laboratório. E eles ainda
tinham muito com o que se preocupar.
Mas também tinham horas até o anoitecer e ele
poder começar a ir atrás das informações que precisava.
Eric segurou o rabo de cavalo de Lara, forçando a
cabeça dela para trás antes de se inclinar e a beijar.
QUATORZE

Rafael encarou o papel grosso dobrado sobre sua mesa. Ele não
havia deixado aquilo ali e ninguém entrava no seu
escritório sem um convite. O que só lhe deixava com
uma opção, por mais improvável que fosse.
Ele desdobrou o papel e encarou a caligrafia firme de
Alana.
Alana, que ele não conseguia deixar de sentir falta,
por algum motivo.

Então eu deveria ser chamada de rainha?

Rafael passou um dedo pelas palavras. Não era


surpresa que ela soubesse. Aquele era um dos motivos
para ele ter feito todos os seus planos para destruir o
Setor Dez antes que Alana precisasse voltar para lá:
Amon era antigo o bastante para reconhecê-lo. E, mesmo
que os vampiros mais antigos tivessem o costume de
guardar seus segredos, mais cedo ou mais tarde Amon
contaria quem Rafael era. Quem ele havia sido.
Rainha. Ele teria gostado de ter alguém ao seu lado
que pudesse chamar de rainha. Ele havia até mesmo
tentado encontrar alguém, no passado, e aquilo havia
terminado em traição. Não. Rafael já aprendera sua lição.
Quem estivesse ao seu lado talvez até fosse ser
chamada de rainha – mas nunca seria uma rainha, não
de verdade.
Sua feiticeira não teria mandado aquela mensagem
à toa, mesmo que tivesse acabado de descobrir sobre
ele. Alana queria alguma coisa.
Rafael se sentou. O papel ainda estava impregnado
com o poder de Alana e aquilo não era uma surpresa – da
mesma forma que o fato de que ela havia mandado uma
mensagem daquele jeito não era uma surpresa.
E o poder dela ali era o suficiente para ele não
precisar fazer nenhum esforço para enviar a resposta.

Uma rainha deveria estar ao meu lado. Mas você


recusou quando lhe ofereci o mundo.

Ele esticou a mão. Suas garras apareceram e ele se


cortou o suficiente para que uma gota de sangue caísse
no papel. O sangue continuou ali, uma mancha circular
por um instante, antes de desaparecer. O papel grosso
desapareceu logo depois.
Rafael se inclinou para trás na sua cadeira. Seria
mais simples fazer uma visita para Alana. Desde que ele
não fizesse nenhum gesto hostil, o pior que poderia
acontecer seria Alana mandá-lo de volta, como fizera nas
vezes em que ele havia aparecido no Setor Dez antes de
se casarem.
Mas a vontade de fazer aquilo era motivo mais que
suficiente para Rafael continuar no seu escritório. Alana
era uma ferramenta e mais nada. Ele não permitiria que
fosse mais nada.
A folha apareceu na sua mesa de novo, exatamente
no mesmo lugar de antes. Ele a desdobrou.

E vou continuar recusando, mesmo se não tiver


nenhum lugar para onde voltar. O que quer dizer que é
bom você repensar o que quer que esteja planejando
para o Setor Três.

Rafael encarou o papel. Ele tinha planos, sim. Vários


deles. Mas nenhum envolvia o Setor Três. Ele sabia sobre
a aliança entre o Três e o Dez e aquilo não chegava a ser
exatamente uma surpresa. Necromantes nunca faziam o
que era esperado. E, por mais que ter um covil deles por
perto fosse um risco, era pior ainda se tornar um inimigo
declarado. Não. O passado também havia ensinado
Rafael a não provocar necromantes.
Mas aquilo explicava o motivo para Alana ter
mandado aquela mensagem. Ela queria saber se ele
estava envolvido.

Não sei do que está falando.

E não era uma mentira, mesmo que Rafael soubesse


que a feiticeira não acreditaria.
Ele não sabia o que estava acontecendo no Setor
Três e aquilo podia se tornar um problema.
Rafael puxou um tablet e mandou uma mensagem
para Thales.
O papel reapareceu na sua mesa.

Vou lembrar disso da próxima vez que ficar sabendo


sobre sabotagem na fronteira com as terras de ninguém.

Rafael se endireitou devagar. Um ataque ao Setor


Três era algo que ele podia ignorar – e que
provavelmente ignoraria, sim. Mas sabotagem na
fronteira mudava a situação. Não era mais apenas um
conflito entre setores ou Cortes.
Sabotagem na fronteira era ignorar uma das poucas
leis dos vampiros. Era ir contra os acordos que
mantinham o mundo como era, com os vampiros na sua
posição confortável ao redor dos humanos. Se aquele
acordo fosse quebrado em um local que fosse, não
demoraria para a história se espalhar. A confiança seria
abalada e aquilo seria o começo do fim para os vampiros,
porque a verdade era que eles precisavam dos humanos
muito mais que a humanidade precisava deles.
Ele nem mesmo se importava com o que Alana havia
feito com aquelas mensagens, o jogo de palavras para
deixar claro a posição dela, não apenas com relação a
ele, mas com relação ao Setor Dez. O que quer que
acontecesse com eles ou com seus aliados, Alana estaria
envolvida – e estaria em risco. Ao mesmo tempo, ela
estava lhe dando informação, porque ele era a pessoa
que mantinha a estabilidade daquela região. Qualquer
coisa que acontecesse refletiria em Rafael.
Ele deveria ter sido notificado. Mas, se aquilo estava
acontecendo no Setor Três, era óbvio que ele não ficaria
sabendo de nada a menos que escolhesse se envolver. O
Três se isolava, sempre.
E aquilo não era problema seu, uma vez que não
havia sido notificado, mesmo que o Setor Um fosse o
responsável pelos outros, naquela região. Rafael podia
não ter planos envolvendo o Setor Três, mas aquilo não
queria dizer que, se alguém tivesse planos, ele não se
beneficiaria.
Rafael só precisava saber quais eram aqueles
planos, primeiro.
Thales entrou no seu escritório e parou a alguns
passos de distância da mesa.
— Quero saber exatamente o que está acontecendo
no Setor Três — Rafael avisou. — Sem que meu interesse
seja notado.
O outro vampiro assentiu.
— Entendido.
Thales saiu do escritório sem fazer ruído.
Rafael cruzou os braços e encarou a folha sobre a
sua mesa.
Se o que Alana havia falado era verdade – e ela não
teria motivos para mentir – então alguém estava
começando jogos de poder no seu território. A questão
era quem. E por quê. Quando ele tivesse suas
respostas... Aí sim Rafael decidiria se valia a pena se
envolver ou não.

Lara apertou sua pistola enquanto encarava Eric. Talvez


acompanhar um necromante indo para o cemitério não
tivesse sua melhor ideia, mas ela fazia questão de ver,
não importava o quanto aquilo fosse ser macabro. E a
ideia dele fazia sentido até demais. Era uma forma de
assustar qualquer vampiro traidor e de deixar claro o que
os necromantes podiam fazer, ao mesmo tempo em que
existia a possibilidade de encontrarem alguma
informação útil.
Então ela tinha saído com Eric logo depois do
anoitecer. O cemitério do Setor Três era simples e ela
quase diria que elegante: uma área um pouco afastada
da cidade, cercada por uma grade baixa e preta que era
trabalhada o suficiente para parecer algo rico. E, lá
dentro, as lápides também eram simples. Blocos de
rocha sobre o chão e mais nada, com os nomes gravados
nela.
Lara só tinha ido ali uma vez, antes: quando tinham
enterrado sua mãe. Depois, quando os príncipes haviam
condenado e executado seu pai, não tinha sobrado nada
para enterrar.
Eric assentiu, sem falar nada. O círculo de
necromantes ao redor dele se espalhou pelo cemitério,
andando entre as lápides devagar. Eles não eram tantos
quanto Lara havia imaginado, mas era possível que não
fossem todos os necromantes ali. Existia uma variação
de poder. Talvez alguns deles não conseguissem fazer o
que Eric estava planejando. E talvez alguns só tivessem
preferido continuar sem chamar atenção, porque não ia
demorar muito para os outros vampiros e os humanos do
setor notarem que alguma coisa estava acontecendo e
irem ver o que era.
Eric olhou para Lara por um instante antes de
encarar o túmulo na sua frente. Ela não conseguia sentir
nenhum sinal de poder e aquilo era mais assustador
ainda – porque queria dizer que o que ele estava fazendo
era simples. E não só ele: os vários necromantes
espalhados pelo cemitério também. Ela não estava
sentindo nada de nenhum deles.
A lápide tremeu. Lara apertou a pistola com mais
força. Ela não tinha perguntado o que ia acontecer, pelo
simples fato de que não queria pensar naquilo. Ela tinha
visto os cadáveres dos animais na fronteira, quando Eric
os controlara. Fazer a mesma coisa com humanos...
Algo brilhou na frente de Eric. Lara estreitou os
olhos, mas o que quer que fosse era incerto demais. Mas
havia algo ali, sim. Quando Lara inclinava a cabeça, ela
quase conseguia ver um brilho prateado, uma forma ou
vulto...
Um arrepio atravessou Lara. Espíritos. Eric estava
falando com espíritos. Ela nunca tinha acreditado em
nada daquele tipo – almas, vida depois da morte e tudo
mais. E não queria acreditar que havia alguma coisa a
mais e que aquela coisa estava presa aos corpos mesmo
depois de mortos. Mas não tinha outra explicação para o
que ela estava vendo.
Ou talvez houvesse, mas ela ia ter que esperar para
saber.
— Como você morreu? — Eric perguntou.
Era a mesma pergunta que Lara estava ouvindo
vindo de todos os lados. Todos os necromantes que
tinham se espalhado pelo cemitério estavam repetindo a
mesma coisa, todos com o mesmo tom, como se fosse
uma pergunta comum para qualquer pessoa. Quase tão
casual quanto se estivessem falando sobre o tempo.
De alguma forma, aquilo era mais assustador que
ver os cadáveres dos animais na fronteira. A forma como
aquilo era natural para os necromantes...
Da mesma forma que para sua irmã era natural criar
um lago numa região seca só porque queria se sentir
bem. Lara entendia – então não ia julgar um tipo de
poder enquanto aceitava outro. Mas não deixava de ser
arrepiante ouvir aquelas vozes perguntando sobre morte.
Pelo menos ela não conseguia ouvir as respostas dos
mortos.
Aquele vulto na frente de Eric desapareceu. Ele
pegou um tablet e marcou algo na tela antes de ir na
direção de outra lápide. E aquilo conseguia ser o mais
estranho de tudo: ele usando tecnologia depois de
chamar um espírito. De alguma forma, parecia que eram
coisas que não deveriam se misturar.
Eric chamou outro espírito, em outra lápide. Lara
esperou enquanto ele perguntava sobre a morte da
pessoa e então assentia, devagar.
A lápide na frente dele tremeu de novo, com mais
força.
Lara se forçou a não levantar sua pistola. Ela estava
armada por causa dos outros vampiros e dos humanos.
Eric tinha feito questão de deixar aquilo claro. Os mortos
não eram um risco, não importava o que parecesse.
A lápide tremeu de novo e caiu para o lado. Lara
engoliu em seco quando viu uma mão – mais ossos que
uma mão na verdade – e então o restante de um corpo
de arrastando para fora.
Não era alguém que tinha morrido recentemente.
Não era nem como os ossos que ela tinha visto no
laboratório de Eric e que pareciam mais restos
mumificados de alguma coisa. Aquilo era quase só ossos,
de um jeito que não deveria nem ser possível que aquilo
estivesse se movendo, porque não tinha nada segurando
os ossos.
Não. Tinha algo, sim, porque Lara estava vendo a
carne se espalhar pelos ossos, como se a pessoa
estivesse sendo reconstruída de alguma forma.
Eric estava certo. Quando ela tinha falado que os
necromantes deveriam ser mais visíveis, Lara não tinha a
menor ideia do que eles realmente podiam fazer. Ela
nunca teria imaginado algo daquele tipo. Mas não ia
retirar o que tinha falado. Aquilo era mais motivo para
lembrar os vampiros do que eles podiam fazer.
Lara respirou fundo e encarou a pessoa na frente de
Eric. Uma mulher, pelo que ela conseguia ver, e ela não
tinha voltado completamente. Ainda era óbvio que era
um cadáver ali, porque os músculos e pele que haviam
surgido não cobriam tudo. Lara ainda conseguia ver
ossos.
Eric se virou para outra lápide. A mulher morta o
acompanhou.
Ela sabia alguma coisa. Era a única explicação para
ela ter saído do túmulo daquele jeito e vulto de antes
não. O que queria dizer que Lara provavelmente veria
muitos mais como ela.
Lara respirou fundo e apertou a pistola de novo.
Aquilo seria interessante – de mais formas que uma. E
ela mal podia esperar para ver a reação dos outros
quando vissem o que estava acontecendo ali.

Eric olhou ao redor. Uma névoa baixa havia se espalhado pelo


chão: o sinal mais claro do poder dos necromantes,
sempre, mesmo quando não estavam fazendo nada tão
visível. Mas, ali, não havia como alguém ter alguma
dúvida do que estava acontecendo.
Os mortos estavam entre as lápides, reunidos perto
de onde ele estava parado, com os outros necromantes
espalhados em um círculo largo ao redor de tudo. Ele
conseguia sentir o poder sendo usado para manter os
mortos ali, com uma aparência que permitiria que
fossem reconhecidos e que falassem, quando ele fizesse
suas perguntas de novo. Não eram tantos quanto ele
temia, mas eram mais do que ele esperava.
Era hora de terminar aquilo.
Eric se virou. Vampiros e humanos haviam se reunido
do outro lado da grade do cemitério, como se fosse uma
parede que eles não podiam atravessar. E a forma como
eles estavam encarando tanto Eric quanto os outros
necromantes era familiar demais. Era o medo que ele
havia visto várias vezes antes de ir para aquela parte do
mundo.
Mas não importava. Aquele setor era seu.
E Lara estava parada de frente para as pessoas
reunidas, segurando sua pistola com uma segurança que
deixava claro que não ia hesitar antes de atirar. Eric
sorriu. Talvez aquele fosse o motivo para ninguém ter
entrado ali. Os humanos não arriscariam um tiro. E os
vampiros já teriam ouvido o suficiente sobre ela para não
ter certeza de o que estavam arriscando.
— Então temos plateia — Eric falou.
Uma parte dos humanos se afastou mais da grade,
mas não foram embora. E os vampiros...
Um deles balançou a cabeça com força. Ramires.
Não era alguém em quem Eric havia precisado prestar
atenção antes, mas era um dos vampiros que havia sido
leal aos príncipes antes dele – um dos que gostava um
pouco demais da sua posição acima dos outros.
— Você não tem direito de chamar nossos rebanhos
de volta — Ramires falou. — Eles deveriam ter paz depois
da morte.
Eric deu um sorriso gelado. Perfeito. Ele não
precisava nem mesmo procurar seu primeiro alvo.
— Os humanos em um rebanho também deveriam
estar seguros — ele falou.
Alguns dos humanos perto das grades se
endireitaram. Bom. Eric queria que ouvissem aquilo sim.
O preço para os humanos viverem no Setor Três era o
mesmo que em todos os setores, com exceção do Dez:
alimentar os vampiros dali. Mas alimentar não era o
mesmo que abrir mão de qualquer respeito ou
segurança.
— Acidentes acontecem. Qualquer vampiro sabe
disso — Ramires insistiu. — O que você está fazendo é
profano.
Eric balançou a cabeça.
— Acidentes acontecem. Mas, se terminam em
morte, é por descuido. Ou por má-fé.
Porque não existia motivo real para um vampiro
matar um humano do seu rebanho. Aquilo era o prazer
de ter poder de vida ou morte sobre os outros e mais
nada. A única justificativa que Eric aceitaria para algo
daquele tipo, e ainda assim dependia do contexto, seria
se um vampiro estivesse perto de ser destruído, porque
ele se lembrava de quando passara por aquilo. Como
havia perdido o controle quando Lara o encontrara, um
ano antes – e como ela só havia sobrevivido porque não
era completamente humana.
— Você pode ser o único príncipe agora, mas não...
Eric não se deu ao trabalho de procurar quem havia
falado. Não importava. Se eles tivessem algum segredo,
ele descobriria.
Ele levantou uma mão. As marcas de poder
apareceram no seu braço, grossas e escuras demais.
Correntes prateadas caíram no chão, na sua frente,
afastando a névoa. Elas não eram reais, não como um
objeto. Eram apenas uma forma visível do seu poder – e
aquilo era o suficiente. Eric queria que todos assistindo
não tivessem a menor dúvida do que estava
acontecendo. Quando ele prendesse algum dos
vampiros, seria com as correntes.
Nenhum vampiro falou mais nada. Alguns
começaram a se afastar e Eric balançou a cabeça
devagar.
— Talvez ir embora agora não seja a melhor ideia —
ele falou.
Os vampiros que tinham começado a se afastar
pararam. Excelente.
Eric se virou para os mortos parados entre as
lápides. A Corte da Névoa havia se espalhado pelo
cemitério, quase desaparecendo entre as sombras mais
escuras, como todos os necromantes aprendiam a fazer.
Mas eles estavam ali, sustentando os mortos e prontos
para o que quer que acontecesse.
— Quais de vocês eram parte do rebanho de
Ramires? — Ele perguntou.
Dois dos mortos avançaram. Um deles era Eric quem
estava sustentando e ele conseguia sentir a hesitação do
homem. Não era um sentimento real, porque o que
estava ali não tinha nenhum tipo de vida. Era apenas um
reflexo da existência do homem. E aquele reflexo ainda
tinha medo do vampiro que deveria ter cuidado dele.
Eric se virou para as pessoas reunidas, de novo. Um
espaço havia se aberto ao redor de Ramires. Os próprios
vampiros estavam se afastando dele, como se aquilo
fosse lhes poupar do que viria depois. Não. Ramires não
seria o único a encarar os humanos que havia matado.
— Você reconhece esses humanos? — Eric
perguntou.
O vampiro assentiu.
— Eles foram parte do meu rebanho.
E Eric não perguntaria como haviam morrido. A
resposta de Ramires não lhe interessava.
Ele encarou o morto que seu poder estava
sustentando.
— Por que você morreu?
— Porque eu sabia demais.
A voz do morto era monótona, quase robótica. Um
lembrete de que o que os fazia vivos não estava mais ali.
Mas Eric não questionaria o eco de memórias do homem.
— Você pode estar forçando eles a dizerem o que
quer — Ramires falou. — Ninguém é estúpido a ponto de
confiar no testemunho dos mortos.
Não. Ninguém era estúpido a ponto de não confiar
no testemunho dos mortos, porque eles não tinham
motivos para mentir – não que fossem capazes de fazer
aquilo. Quem mentia era quem tinha algo em jogo. Não
os ecos de alguém.
Eric continuou olhando para o humano morto.
— O que você ouviu? — Ele insistiu.
— O Setor Cinco. Queriam mais animais.
Eric inclinou a cabeça para o lado e olhou para
Ramires. As correntes grossas apareceram ao seu redor,
o prendendo mesmo que o vampiro estivesse tentando
fugir. Não. Ele não sairia dali.
— Você negociou com o Setor Cinco sem o
conhecimento dos príncipes — Eric falou.
Os outros vampiros se afastaram ainda mais.
Ramires tentou reagir, mas não eram realmente
correntes ao redor dele. Era o poder de Eric, controlando
aquilo que lhe permitia existir. E Eric não o soltaria.
Ele se virou para o outro morto que havia sido do
rebanho de Ramires.
— Por que você morreu?
— Porque interrompi quando meu senhor estava
ferindo uma mulher.
Aquilo não chegava a surpreender Eric, mas nunca
era agradável quando ficava sabendo de algum vampiro
agindo daquele jeito. E ele não tinha como saber se a
mulher ainda estava viva – talvez até entre os que
estavam assistindo aquilo – ou se havia morrido... Não.
Ele tinha como saber se ela havia morrido, sim, porque
sua morte teria sido registrada como causada por um
vampiro. Um acidente, com certeza. Mas, se tivesse
morrido, ela estaria entre os mortos.
E perguntar sobre os rebanhos não seria o suficiente.
Aqueles humanos eram os que teriam mais chance de
saber algo que seria útil, mas Eric não estava ali apenas
pela utilidade. Se ele pensasse assim, não demoraria a
se tornar uma versão de Nicolai.
Ele se virou para os mortos de novo.
— Quais de vocês foram mortos por Ramires?
Mais três mortos avançaram. Mulheres. Três
mulheres.
— Então além de trair seus príncipes e negociar
pelas costas deles, Ramires também estava matando
humanos — Eric falou.
— Se vai nos punir por qualquer acidente... — um
vampiro começou.
— É realmente um acidente, se Ramires matou o
humano que tentou impedir que ele ferisse a mulher?
Ninguém respondeu.
Bom. Eric não estava disposto a lidar com aquilo. A
forma como existia um mínimo de respeito no Setor Três
havia sido um dos motivos para ele continuar ali,
décadas antes. Ele não ia aceitar que aquilo mudasse
para pior.
As correntes ao redor de Ramires ficaram mais
grossas por um instante. O poder vibrou, sob o seu
controle, ao mesmo tempo em que o vampiro parecia se
encolher.
Eric sorriu quando alguém gritou e deixou as
correntes desaparecerem. Ele queria que todos vissem
enquanto Ramires era consumido. O vampiro
envelheceu, naquele ritmo que era a destruição de um
vampiro, com todos os anos que ele havia enganado a
morte cobrando seu preço. E, mesmo assim, ele não
conseguia gritar – porque o poder de Eric estava
impedindo qualquer tipo de reação.
O medo era um sabor doce no ar. Todos os vampiros
conseguiam sentir aquilo e sentir era o suficiente para
alimentar o medo dos outros.
Sim. Aquilo era o certo. Eles deveriam temer os
necromantes.
Ramires caiu de uma vez. O poder saiu do seu corpo,
brilhando naquele tom prateado que era tão familiar para
Eric – e para a Corte da Névoa. Era parte do motivo para
serem conhecidos como eram.
Eric levantou uma mão. O poder seguiu seu
movimento, pairando acima de onde estavam com um
brilho fantasmagórico.
Todos os vampiros ali entenderiam o que aquilo era,
mesmo que não fossem necromantes. Todos já haviam
visto o fogo prateado nas cerimônias de transformação e
sabiam o que aquilo significava.
E os necromantes... Eles dividiriam aquilo, mas não
ainda. Primeiro, teriam seu espetáculo.
Eric fez um gesto brusco. Os mortos que haviam
avançado depois das suas perguntas sobre Ramires
recuaram, de novo. Os dois que tinham sido parte do
rebanho do outro vampiro desapareceram entre os
outros cadáveres – voltando para os seus túmulos. Os
outros ainda tinham respostas a dar.
Um som seco cortou o ar. Eric se virou em tempo de
ver um vampiro cair do outro lado da grade, com uma
mão no ombro. E Lara estava apontando sua pistola para
ele.
— Facas pelas costas não são a melhor ideia agora —
ela falou.
Eric sorriu, ao mesmo tempo em que uma sensação
que ele não sabia descrever o atravessava.
Mas ele sabia exatamente o que fazer com o
vampiro que havia pensado em atacar.
As correntes voaram pelo ar. O vampiro gritou
quando elas o cercaram, o forçando a soltar o ombro,
que ainda estava sangrando.
Eric se virou para Lara e levantou uma sobrancelha.
Ela deu de ombros.
— Balas não são úteis contra vocês. Achei melhor
pegar a pistola a laser — ela contou. — E não vou
destruir nenhum deles. Eles são seus.
Porque Lara era boa e rápida o suficiente para
acertar o coração ou a cabeça de um vampiro. E, com
uma pistola de laser, aquilo seria o suficiente para
destruir a maior parte dos que estavam ali. Mas ela lhe
daria a destruição deles, não importava o que fizessem.
Ela entendia.
Eric arrastou o vampiro para dentro do cemitério,
ainda com as correntes o prendendo. Ele não sabia o
nome daquele ali, mas se lembrava de vê-lo por perto de
Arman vezes demais.
Ele jogou o vampiro no chão e se virou para os que
ainda estavam parados do outro lado da grade.
— Alguém removeu as paredes elétricas da fronteira
da rede de energia — Eric falou, alto o suficiente para até
os humanos ouvirem. — E alguém sabotou os geradores.
Alguém deu ordens para destruírem os vampiros
responsáveis pela vigilância da fronteira com as terras de
ninguém.
Ele parou de falar e foi na direção da grade. A faca
que o vampiro preso havia pensado em usar ainda
estava no chão e Eric a pegou.
— Isso quer dizer que temos traidores entre nós —
ele continuou. — Traidores que estão dispostos a colocar
todo o setor em risco. E isso não vai ser tolerado.
Uma vampira se afastou das pessoas reunidas,
voltando na direção da cidade.
Lara se virou e atirou, tão depressa que a maioria
dos vampiros não acompanhou o que estava
acontecendo.
Eric conteve a vontade de sorrir. Lara entendia – e
aquilo era mais raro do que ela imaginava.
As correntes se enrolaram na vampira caída e a
arrastaram de volta, por cima das grades, até jogá-la ao
lado do vampiro que tinha tentado usar a faca.
— É tarde demais para fugirem — Eric avisou. — Eu
vou interrogar os mortos, um por um. Eu vou descobrir os
segredos que vocês mataram para proteger. A questão é
apenas quanto eu vou ter que procurar para encontrar o
que quero.
QUINZE

Lara respirou fundo e se concentrou nos vampiros do outro lado


da grade. Era surreal estar ali, com o brilho prateado do
poder brilhando acima deles, de um jeito que quase
parecia a luz do luar, mas que todos os instintos de Lara
gritavam que não era. Aquilo era o que fazia os
vampiros. Era a única explicação para como o primeiro
vampiro tinha só mumificado na sua frente... E ela estava
se lembrando de todos os ossos que tinha visto no
laboratório de Eric.
Mas aquele primeiro vampiro não tinha sido o único.
Lara já tinha perdido as contas de quantos vampiros Eric
havia destruído do mesmo jeito. Todos os que haviam
tentado negar o que tinham feito. Os que tinham
colocado a culpa em humanos ou em vampiros mais
fracos.
Lara tinha precisado atirar em mais quatro vampiros.
Daquele número ela se lembrava muito bem, porque era
a quantidade de vezes que seu sangue havia queimado
com a adrenalina e o poder. Eles ainda achavam que
conseguiriam ser mais rápidos que ela – ou que
escapariam do poder de Eric, depois.
E provar que estavam errados não deveria ser tão
satisfatório.
Pelo menos ela não precisava se preocupar com os
humanos. Lara tinha reconhecido algumas das pessoas
da arena entre os que estavam ali e tinha notado a
reação deles – tanto no começo, quando haviam visto os
mortos andando entre as lápides, quanto depois de
ouvirem o que Eric estava falando e entenderem o que
ele estava fazendo. Ela não era estúpida de pensar que
iam confiar em Eric, mas a fala dele havia tido efeito,
sim.
Mais um vampiro caiu, virando uma pilha de ossos
no meio dos outros que já estavam na frente de Eric. A
nuvem prateada acima deles ficou mais forte, mais clara.
Ela deveria estar com medo. No mínimo deveria
estar preocupada depois de ver os corpos saindo dos
túmulos e parando, esperando suas ordens. Mas Lara não
conseguia ter medo.
E a forma como Eric havia lidado com aquilo tudo...
Para alguém que tinha feito tanta questão de não
chamar atenção e não fazer nada demais por tanto
tempo, Lara estava mais que surpresa com como Eric
parecia mais do que preparado para lidar com a situação.
Ele tinha dado uma chance para os vampiros admitirem o
que haviam feito – não só os responsáveis pela
sabotagem na fronteira, mas os que tinham feito acordos
e alianças pelas costas dos príncipes, os que haviam
vendido informações e os que simplesmente haviam
transformado humanos e vampiros mais fracos em
brinquedos.
Aquilo era o que Lara esperava quando um vampiro
dizia que estava assumindo o controle do setor. Ele
estava fazendo uma limpa. Ela não tinha nenhuma ilusão
de que ninguém escaparia, mas entre os vampiros sendo
destruídos, os mortos contando todos os segredos e o
poder prateado brilhando acima deles, qualquer vampiro
que escapasse pensaria muito bem antes de fazer
qualquer coisa contra Eric de novo.
As correntes ao redor de uma vampira pareceram
encolher. Lara não desviou o olhar enquanto a vampira
envelhecia daquele jeito dos vampiros sendo consumidos
e então caía no chão também. Mais ossos para a coleção
de Eric.
E os últimos dos mortos tinham desaparecido. Ela
esperava que tivessem voltado para os túmulos e que
alguém fosse ajeitar as lápides depois, mas não ia
perguntar nada sobre aquilo. Podia parecer que não, mas
Lara tinha seus limites e ela não queria saber.
Ou melhor, ela não queria saber sobre como iam
organizar aquilo. Mas queria saber mais sobre os mortos,
sim. Sobre quanto era eles ali e quanto era os
necromantes os controlando. Porque se fossem as
pessoas ali, de verdade...
Era até errado pensar aquilo e Lara sabia. Mesmo
assim, ela não conseguia deixar de imaginar que, talvez,
ela pudesse ver sua mãe de novo. Talvez Val pudesse ter
aquilo, também – porque sua irmã ainda era um bebê
quando a mãe delas tinha morrido. Mas, primeiro, ela
precisava saber.
Algo se moveu, no limite da visão de Lara. Ela se
virou depressa e parou. Era um dos necromantes. Todos
eles estavam usando túnicas pretas com capuzes
puxados bem para a frente, para não dar a menor
chance de ninguém ver o rosto deles. Não era difícil
entender o motivo: menos chances de serem
reconhecidos e caçados pelos outros, depois. E ela
também não podia ignorar o efeito que era ver os
vampiros encapuzados saindo da escuridão. Aquilo era
mais uma ferramenta de intimidação, sim.
Eric se virou para dentro do cemitério de novo. Um
arrepio atravessou Lara quando ela viu os olhos pretos
de Eric, com as írises azuis parecendo brilhar de uma
forma que não era natural. Ela nunca ia se acostumar a
ver aquilo, mas não estava reclamando.
As chances de algum dos vampiros ser estúpido o
suficiente para atacar eram baixas, mas ela não ia
esperar inteligência deles.
Lara recuou, indo mais para o meio das lápides.
Assim ela conseguia ver o que Eric estava fazendo –
porque não ia negar sua curiosidade – mas ainda estava
vendo os vampiros do outro lado da grade do cemitério,
também.
Os necromantes afastaram os braços do corpo, com
as mãos abertas. Um arrepio atravessou Lara. A postura
que ela sempre tinha aprendido a relacionar com as
bruxas. E, considerando como ela tinha visto Eric abrindo
e fechando portas sem nem se aproximar delas, era bem
possível que o poder dos necromantes fosse mais
próximo do das bruxas do que da maioria das habilidades
dos vampiros.
A névoa prateada acima deles tremeluziu. A luz fraca
dela fez sombras estranhas no chão e na névoa "comum"
que ainda estava por ali.
Um dos vampiros do outro lado da grade recuou, e
depois mais outro. Lara respirou fundo e não fez nada.
Não importava mais. Eles podiam ir, se quisessem. De
qualquer jeito, eles não iam se esquecer do que tinham
visto.
A névoa prateada começou a escorrer na direção das
mãos dos necromantes.
Mais vampiros se afastaram, depressa. Estúpidos,
mesmo. Até Lara sabia que aquilo não era um risco. A
névoa era o poder dos vampiros que tinham sido
destruídos, sim. Mas aquela era a questão: eles já tinham
sido destruídos. Não era como se aquilo fosse virar e
consumir quem estava por perto. Até ela sabia o
suficiente sobre magia para entender.
Os humanos continuaram no mesmo lugar,
encarando a névoa prateada. Era quase irônico que eles
não fossem quem estava fugindo. E Lara sabia que tudo
o que tinha acontecido ali ia ser repetido pela cidade
antes do amanhecer. Era até bem possível que alguém
tivesse feito vídeos daquilo tudo – ela não estava
prestando atenção o suficiente para ter certeza.
A névoa brilhou de uma vez e desapareceu. Lara se
forçou a continuar parada, mesmo que quase tivesse
dado um pulo no lugar. Tudo parecia escuro demais
depois de tanto tempo com aquela luz ali em cima e era
estranho pensar aquilo, sabendo o que o poder era.
Eric abaixou as mãos e assentiu devagar.
Os outros necromantes desapareceram.
Lara se virou depressa, olhando ao redor. Não era
como se eles tivessem usado os lugares onde a luz não
chegava para desaparecerem de vista. Eles haviam
desaparecido. Quase do mesmo jeito que o poder – num
instante estavam ali e no outro não estavam.
Ela engoliu em seco. Todos os humanos conheciam
histórias demais sobre os vampiros. Seu próprio pai tinha
contado várias delas, mas ele havia morrido antes de
Lara pensar em perguntar para valer o que era real e o
que não era. Mas ela tinha ouvido o suficiente sobre
vampiros se transformando em névoa e sabia que aquilo
era comum. Também tinha ouvido sobre vampiros que
podiam se transformar em animais – mas aquilo ela
sempre havia suspeitado que era só um jeito de ligar os
vampiros aos animais corrompidos.
Vampiros desaparecendo era algo novo. Perigoso. E
ela ia precisar entender o que tinha sido aquilo, depois.
Eric se virou para onde as pessoas ainda estavam
reunidas, tanto humanos quanto vampiros.
Lara nunca ia entender como ele tinha conseguido
passar despercebido por tanto tempo. Tinha algo em
Eric, na forma como ele se movia e até na sua postura,
que prendia o olhar. Era como se o próprio poder dele
chamasse a atenção e exigisse respeito. E, pela forma
como os outros estavam olhando para ele, ela não era a
única a sentir aquilo.
— Não me interessa se vocês gostam disso ou não —
Eric falou. — Mas eu sou o príncipe do Setor Três agora. E
a traição tem um preço justo. Se não estão dispostos a
seguir as minhas regras, então podem procurar lugar em
outro setor.
Um arrepio atravessou Lara. Aquilo era o que ela
queria dizer, quando tinha falado que ele precisava
lembrar aos outros vampiros de por que a reputação do
setor tinha sido construída em cima dos necromantes.
Aquilo era o que ela queria dizer quando falava para ele
agir mais como um príncipe.
Um príncipe que estava se virando para ela, ainda
com os olhos completamente pretos.
Lara tinha sérios problemas, porque só conseguia se
lembrar da outra noite e de como ele a havia segurado
contra a parede.
Eric estendeu uma mão na sua direção. Ela respirou
fundo e guardou sua arma antes de aceitar. Eric sorriu,
segurando a mão dela, e a colocou no seu braço
dobrado, o tempo todo ainda com aquela aura de
autoridade ao seu redor. E a forma como ele estava
encarando Lara...
Um arrepio a atravessou, de novo. Parecia que ela
não era a única que estava se lembrando da noite
anterior.
Eric se virou para a saída do cemitério. O portão se
abriu e tanto os vampiros quanto os humanos se
afastaram para os lados depressa.
Sem falar nada, Eric a levou através do corredor de
pessoas.
Ele não ia fazer um anúncio dizendo que ela era sua
consorte. Lara sabia e entendia. Era parte do contrato.
Ele não podia fazer aquilo, ou ia ser pior.
Mas ela não tinha certeza de que fazia alguma
diferença ele dizer aquilo com todas as letras ou não.
Não depois do que tinha acabado de fazer.

Eric entrou na sua casa e levantou as defesas mágicas de novo


com um pensamento. Ele não queria ser interrompido e
já havia dado o espetáculo que o Setor Três precisava.
Nada faria ele voltar para a casa que havia sido de
Arman. Ele não precisava daquilo – de se impor usando
uma casa grande demais – depois do que fizera.
E, principalmente, ele queria poder se concentrar em
Lara, que ainda estava com a mão no seu braço dobrado,
como se aquilo fosse algo esperado e natural. Lara, que
havia assistido enquanto eles levantavam os mortos e os
interrogavam, e que havia parado mais de um vampiro
antes que entendessem o que estava acontecendo.
Ele não havia sido o único a dar um espetáculo para
o Setor Três. Lara estaria sendo comentada, também.
Eric segurou a mão dela. Lara o encarou com uma
expressão que era uma mistura de antecipação e desejo.
E ele queria mais.
— Corra — Eric falou.
Ela o encarou por um instante e ele viu o brilho no
olhar dela um instante antes de Lara correr, subindo a
escada.
Eric estava atrás dela no instante seguinte. Suas
presas quase doíam com a pressão, a necessidade de
morder alguém... Não alguém. Lara. Apenas ela. Ele não
mentiria para si mesmo. E aquilo ali, a corrida pela casa,
não era nada. Lara não tinha para onde ir, não que ela
estivesse tentando fugir – e aquela era a melhor parte. O
que fazia Eric não ter nenhum problema com a sua fome,
com a forma como sua ereção era impossível de ser
ignorada. Ele teria Lara, sim.
Ele entrou no quarto de Lara. A porta de vidro que
dava para a sacada estava aberta. Em um instante ele
estava lá, olhando para baixo. Nenhum sinal de Lara.
Mas aquilo era o óbvio e ela nunca fazia o óbvio.
Eric olhou para cima e sorriu. Lara estava escalando
a parede da sua casa. Se ele tivesse demorado um pouco
mais a olhar para cima, ela já estaria no teto e fora do
seu campo de visão.
Não. Ela era sua.
Eric saltou e caiu no alto do telhado, um pouco
acima de onde Lara estava. Ela levantou a cabeça, olhou
para ele e sorriu antes de soltar a parede, cair de volta
na sacada e correr para dentro da casa.
Ela estava provocando – não só correndo, não só
entendendo o que ele queria. Mas provocando, também.
Ele pulou de volta para a sacada e atravessou o
quarto depressa – tão depressa que Lara não conseguiria
acompanhar o movimento, se estivesse vendo.
E a porta do seu quarto estava aberta.
Lara estava fazendo mais do que provocar.
Eric entrou no quarto. Lara estava abrindo a porta
para a sacada e começou a se virar, mas ele já estava
sobre ela, a virando contra a parede e a prendendo no
lugar. Prensando seu corpo contra o dela, sua ereção
contra Lara, e sorrindo com o gemido baixo que ela
tentou conter.
— Uma chance — ele avisou.
Até sua voz estava diferente e Eric não se importava.
Não. Ele queria aquilo também, a forma como Lara fazia
com que ele perdesse o controle e deixasse para trás
tudo o que sempre usava para se conter.
Um arrepio atravessou o corpo de Lara e ela colocou
as mãos na cintura dele antes de inclinar a cabeça para o
lado.
Uma oferta e um convite que nenhum vampiro
conseguiria evitar, não depois da caçada – por menor
que tivesse sido.
Ele mordeu seu pescoço. O gosto do sangue era um
choque pelo seu corpo, fazendo todos os seus sentidos
serem mais.
Lara gemeu e apertou a cintura de Eric. Ele
conseguia sentir as unhas dela na sua pele e aquilo era
um incentivo para beber mais. Para deixar seu veneno se
espalhar pelo corpo dela, até que Lara estava se
apertando contra ele, sem tentar segurar seus gemidos.
Eric podia arrancar as roupas dela e Lara não faria
nada. Ela ia gostar. Mas aquilo seria rápido demais. Ele
não queria só foder Lara contra a parede. Não, a noite
ainda não tinha acabado. Ele ainda tinha tempo e sabia
muito bem o que queria fazer até o amanhecer.
Ele abriu a calça dela e enfiou uma mão por dentro
do tecido. Lara fez um ruído grave antes de se apertar
ainda mais contra ele e rebolar contra a sua mão. Sim.
Ele estava sentindo o calor dela, a forma como Lara já
estava molhada para ele, enquanto Eric bebia dela.
E aquilo era a única coisa que ele faria: sua mão
dentro da calça dela. Se ela quisesse mais, ela teria que
se mover.
Lara soltou sua cintura e enfiou a mão por baixo da
sua blusa fina, só para arranhar suas costas. Um aviso,
uma ameaça... E ele não faria nada além de continuar
bebendo dela.
Ela se moveu contra a sua mão e parou, com um
gemido quebrado. Sensações demais – e ela estava perto
de gozar.
Eric se apertou contra ela. A pressão era longe de
ser o suficiente para lhe fazer gozar. Ele queria a mão de
Lara ao redor do seu pau, queria saber como ela o
provocaria, também, porque seria uma provocação,
como sempre. Mas não agora. Não ainda.
Lara se moveu contra a mão dele de novo, mas não
parou. Eric bebeu mais dela, devagar, imitando o ritmo
em que ela estava se movendo contra ele. Mas ele não
podia continuar fazendo aquilo. Lara era humana, por
mais que o desafiasse como um igual. Ela não podia
perder sangue demais.
Ele levantou a cabeça e passou a língua pelas feridas
no pescoço dela. Lara enfiou as unhas na sua cintura
com força o suficiente para cortar.
— Não... — ela começou.
Não. Ele não podia continuar bebendo.
Mas ele podia lhe dar o que ela precisava.
Eric a beijou com força. Lara mordeu o lábio dele,
ainda se movendo contra a sua mão, perto demais de um
orgasmo.
Ele apertou o clitóris dela entre dois dedos. Lara
enrijeceu contra Eric e então estava gozando, se
segurando nele enquanto tremia, sem conseguir nem
gemer.
Eric continuou com os dedos no mesmo lugar,
sentindo os tremores aumentarem e diminuírem, a forma
como Lara se segurava nele e o arranhava, como se não
tivesse o menor controle do que estava fazendo.
Ele só tirou a mão da calça dela quando Lara apoiou
a cabeça no ombro dele, ainda com o coração disparado
e a respiração falhando.
Eric gostava daquilo, mais do que havia imaginado
que gostaria. E não era difícil entender o motivo. Lara era
a pessoa que tinha ficado parada, sem dar o menor sinal
de reação, enquanto eles estavam no cemitério. Ele
sabia que ela tinha se surpreendido, por um motivo ou
outro. Mas ela não deixava ninguém ver o que ela não
queria que visse. E ali estava ela, completamente
desfeita nos seus braços.
Lara levantou a cabeça devagar, com um sorriso
satisfeito no rosto.
— Vai ser assim, então? — Ela perguntou.
Ele colocou uma mecha de cabelo que tinha de
soltado do rabo de cavalo para trás da orelha dela.
— O quê?
Ela respirou fundo e soltou a cintura dele.
— Eu vou ser a sua forma de gastar a adrenalina do
poder — ela completou.
Adrenalina não era a palavra certa, mas Lara não
estava completamente errada. Era uma forma de lidar
com o limite do poder – uma de várias que ele podia
usar. Mas Eric ja conhecia Lara o suficiente para saber
que aquilo não havia sido uma reclamação.
Ele passou um dedo pela lateral do pescoço dela.
Lara tremeu e sua respiração falhou de novo.
— Você pode ser — ele murmurou. — Especialmente
porque ainda vou ter muito o que fazer.
E pensar em tudo o que seria necessário para
colocar o setor em ordem não era ruim, visto daquela
forma. Não se cada vez que Eric fosse lidar com algum
problema terminasse com Lara nas suas mãos.
Um arrepio atravessou Lara e ela sorriu daquele jeito
satisfeito demais de novo.
— Eu quero isso — Lara comentou. — Mesmo que
você vá ter mais trabalho quando eu for embora.
Quando ela fosse embora.
Eric se forçou a não reagir, a continuar com os dedos
no pescoço de Lara como se aquele comentário não
tivesse sido um soco na boca do estômago. Ele não havia
se lembrado daquilo. De alguma forma, o fato de que
terminariam aquilo e Lara iria embora havia sido deixado
de lado, porque parecia certo demais que ela estivesse
ali.
Mas não era. Mesmo que aquilo fosse real – a forma
como ela reagia ao seu toque, à sua mordida – ela não
ficaria. Eles tinham um contrato e mais nada. Quando a
situação se estabilizasse, Lara voltaria para o Setor Dez.
Eric não podia se esquecer daquilo.
— Então você vai ter o que quer — ele falou.
E ele não se esqueceria daquilo de novo. Havia sido
sua ideia, sim. Mas ele não podia se dar ao luxo de
começar a pensar que teria Lara ali. Não. Ela sempre
havia deixado claro demais que aquele não era o lugar
dela.
Lara sorriu e colocou uma mão no ombro de Eric.
O celular dela vibrou, no bolso da sua calça.
Eric a soltou e deu um passo atrás. Lara era uma
mercenária com anos de experiência. Não importava o
que estivessem fazendo, ela nunca ignoraria algo que
poderia ser importante no meio de uma missão. Porque
tudo ali era uma missão e mais nada.
E aquilo era bom, porque ele precisava de distância,
também.
Lara pegou o celular e encarou a tela por um
instante antes de respirar fundo e soltar o ar com força.
— Problemas? — Eric perguntou.
Ela balançou a cabeça e começou a digitar uma
resposta.
— Val avisou Alana que o que estou fazendo é
perigoso. Alana resolveu conferir se estava tudo bem
mesmo.
Que Valissa havia se tornado próxima de uma bruxa
da natureza não era uma surpresa: bruxas sempre se
juntavam. E o poder das duas se complementava, de
certa forma. Mas não era só aquilo.
— O que você está fazendo...? — Eric começou.
Lara balançou a cabeça de novo e guardou o celular
antes de olhar para ele.
— O tempo que estou passando usando os poderes
de um vampiro. O tempo todo no cemitério, eu precisava
conseguir ver se algum dos vampiros resolvesse atacar.
Ele deveria ter pensado naquilo, porque ela havia
reagido com velocidade vampírica, sempre. O que queria
dizer que estava usando suas habilidades o tempo todo.
— Valissa consegue sentir — ele falou.
Lara assentiu.
— Da mesma forma que eu sei quando ela está
usando seus poderes.
Eric não ia perguntar. Era fácil deduzir que aquilo era
algo que haviam feito para se proteger e ele não
precisava de mais detalhes – mesmo que soubesse que
Lara responderia, se perguntasse.
E aquela não era a parte mais importante. Lara tinha
passado aquele tempo todo usando as habilidades dos
vampiros e depois ele ainda havia bebido dela.
Não, Eric não faria mais nada aquela noite. Era
melhor assim. Era a distância que ele precisava e um
bom motivo para aquilo, porque Lara precisava se
recuperar.
— Venha — ele chamou.
Ela cruzou os braços e levantou as sobrancelhas.
Eric balançou a cabeça em negativa.
— Você precisa de comida humana e de sangue. Não
adianta negar. Então venha.
Ela soltou o ar com força antes de arrumar sua calça
e o seguir para fora do quarto.
Lara se sentou e pegou a taça de vinho misturado com sangue. Não
adiantava tentar negar que Eric estava certo, mesmo que
o que ela mais quisesse fosse voltar para o quarto dele,
alguns minutos antes. Aquilo tudo – ela correndo pela
casa, fingindo que estava tentando escapar dele, e
depois sendo pega – tinha sido melhor do que ela havia
imaginado. E a forma como Eric tinha bebido dela depois
e a masturbado...
Não. Ela não ia ficar pensando naquilo, porque o
momento tinha acabado. E tudo por causa de uma
mensagem no seu celular.
A pior parte era que Lara não conseguia ficar
irritada, nem com Val nem com Alana, por terem se
preocupado. No lugar delas, ela teria feito a mesma
coisa. Mas saber daquilo não fazia Lara gostar da
situação toda.
O barulho de um micro-ondas fez Lara levantar a
cabeça. A única vez que ela tinha visto um micro-ondas
de perto, antes, tinha sido em uma das cantinas do Setor
Seis. A dona tinha feito alguma coisa para uma pessoa
que era parte do rebanho de um vampiro, e o vampiro
tinha lhe dado o forno de presente.
E Eric tinha um. Aquilo até fazia sentido – ele era um
vampiro, um príncipe, e vampiros sempre tinham
prioridade em qualquer coisa de tecnologia. Mas, ao
mesmo tempo, não fazia sentido, justamente porque ele
era um vampiro e não tinha nenhum motivo para
precisar de um micro-ondas. Não era nem como se ele
tivesse um rebanho que fosse usar aquilo...
Ou talvez fosse. Lara não tinha a menor ideia de
como Eric se alimentava normalmente. Era mais do que
possível que ele tivesse um rebanho em algum lugar e
que eles só não estivessem indo ali por causa de toda a
situação de Lara se passar por consorte.
Lara tomou mais um gole do vinho com sangue. Com
a quantidade de sangue de Eric que ela estava bebendo,
mesmo considerando as vezes que ele tinha lhe mordido,
Val não precisava se preocupar com a possibilidade de
Lara estar usando os poderes além do que deveria. De
uma coisa ela tinha certeza: quando aquilo acabasse, ela
ia estar muito mal-acostumada.
O micro-ondas apitou e Eric o abriu.
Ela podia só perguntar se ele tinha um rebanho em
algum lugar. Por algum motivo, Lara tinha certeza de que
Eric ia responder. Mas não importava. Não podia
importar, então ela não ia perguntar.
Eric colocou um prato com um sanduíche na frente
dela.
— Já me disseram que esses sanduíches não são
bons — ele avisou. — Mas são a única comida humana
que tenho aqui e que pode ser preparada depressa.
Porque um vampiro não tinha nenhum motivo para
ter comida normal em casa. Era bem possível que ele só
tivesse uma geladeira para guardar sangue quando
precisasse.
E agora Lara estava curiosa para abrir a geladeira.
— Obrigada — ela falou.
Lara pegou o sanduíche e deu uma mordida. Não,
não era bom. Aquilo era seco demais e tudo tinha um
gosto um pouco estranho. Não era como se estivesse
ruim ou coisa do tipo. Só era um gosto estranho mesmo.
Não que fosse fazer alguma diferença para ela. Era
comida, não estava estragada, e ela precisava se
alimentar. Simples assim.
Eric se sentou do outro lado da mesa.
Lara tomou mais um gole do vinho e parou. Já que
estavam ali, ela podia muito bem se lembrar que tinha
um trabalho a fazer.
— O que você falou lá no cemitério — ela começou,
devagar.
Eric a encarou e esperou, sem falar nada.
Ela estava ali porque ele queria estabilizar o setor e
achava que ela era um jeito fácil de fazer isso. Ele tinha
falado com todas as letras que queria a opinião dela – a
visão de alguém de fora – quando tinha oferecido aquele
contrato. Então Lara não tinha motivos para não se
meter.
— O que você quer fazer com o setor? No sentido da
relação entre humanos e vampiros, no caso.
Porque o que ele tinha falado no cemitério sobre não
aceitar o que os vampiros estavam fazendo tinha feito
Lara notar que não fazia ideia de o que ele queria, depois
que estabilizasse tudo e tivesse o controle, sem
problemas.
Eric deu uma risada fraca e balançou a cabeça.
— É mais fácil falar o que eu não quero que o setor
se torne do que saber o que eu quero.
Lara levantou a cabeça e o encarou. Aquela era uma
resposta que ela não tinha esperado. Era honesta
demais.
— Eu fui transformado pouco depois da volta da
magia — Eric contou. — Eu vi o caos do começo dos
acordos, dos vampiros assumindo o controle. E ser um
necromante nunca me deixou esquecer de como tudo
era, quando eu ainda era humano.
Um arrepio atravessou Lara. Uma coisa era saber
que ele não era um vampiro novo. Outra bem diferente
era ouvir que ele se lembrava da época logo depois da
volta da magia.
— Eu viajei uma boa parte do mundo com o meu
mentor, antes de chegar nessa região — ele continuou.
— Não importa se isso foi quase duzentos anos atrás, não
acho que muita coisa está diferente.
— Porque vampiros não mudam — Lara murmurou.
Eric assentiu.
— Vampiros não mudam e todos por onde passamos
estavam confortáveis demais com como tudo havia se
resolvido. Eles estavam no controle, eles tinham o poder
sobre os outros, tanto humanos quanto os vampiros mais
fracos. Você sabe do que estou falando.
Lara revirou os olhos e deu mais uma mordida no
sanduíche. Infelizmente, ela sabia bem demais. Sair do
Setor Três tinha sido um choque, na época. Ela sempre
tinha ido nos outros setores, quando acompanhava seu
pai, mas nunca tinha precisado notar como as coisas
realmente eram para os humanos. O Setor Três nunca
tinha sido daquele jeito. Na verdade, o que ela se
lembrava de quando era mais nova era mais parecido
com o Setor Dez do que com qualquer coisa que ela
tivesse visto nos outros setores.
— É isso que você quer, então? — Ela perguntou. —
Não ficar como os outros?
— Seria um bom começo.
Sim. Seria.
E Lara não duvidava que ele fosse capaz de manter
aquilo. Era só uma questão de estar disposto a fazer os
outros vampiros obedecerem, não importava como – e
aquela noite tinha sido um ótimo começo naquele
sentido.
Mas, a longo prazo, não era tão simples.
— Se você quer que os humanos sejam parte do
setor, de verdade, então precisa dar valor para eles
como mais do que só lanche de vampiros — ela
começou.
Eric balançou a cabeça.
— Os humanos aqui nunca foram apenas isso.
Ela levantou as sobrancelhas e tomou um gole de
vinho.
— Por que meu pai foi executado? — Lara perguntou.
Eric a encarou por alguns segundos, sem falar nada.
Ele não tinha esperado aquela pergunta, óbvio, porque
parecia uma mudança de assunto. Mas não era.
— Ele foi condenado como um traidor — Eric falou,
devagar. — Mesmo que isso não fizesse sentido com
nada do passado dele. Tanto que a maioria dos vampiros
nunca acreditou na condenação.
Não acreditaram, mas também não havia feito nada
– e aquilo era um padrão que Lara já estava cansada de
ver.
Eric continuou olhando para Lara, como se estivesse
esperando uma explicação, mas ela não tinha nada a
dizer. Ele precisava juntar as peças sozinho, até porque
ela não tinha provas de nada, só aquela suspeita que era
o resultado de passar anos analisando os vampiros.
— Oscar treinava os humanos — ele murmurou. —
Foi ele quem insistiu em abrir as arenas para os
humanos. Antes dele, apenas as forças de defesa do
setor tinham acesso a elas.
Lara não sabia daquilo. E era interessante que a
situação tivesse se invertido, então, porque agora as
arenas eram muito mais território dos humanos do que
dos vampiros.
— Ele treinava os humanos — Eric repetiu. — Da
mesma forma que havia treinado os vampiros das forças
de defesa.
Lara sorriu. Era óbvio que ele não ia demorar para
notar aquilo.
Eric assentiu devagar.
— Compreendo.
Ela não duvidava que ele tivesse entendido. O Setor
Três podia tratar os humanos ali melhor que os outros
setores, mas aquilo não queria dizer que eles eram parte
do setor. Não. Eles eram lanche. E quando alguém tinha
tentado fazer os humanos serem mais que só aquilo...
Condenado por traição.
Eric a assentiu de novo, devagar.
Ele estava pensando. Não, melhor ainda, ele estava
realmente ouvindo o que Lara tinha falado – e não era
nem a primeira vez. Eric havia lhe escutado o tempo
todo, mesmo que ela fosse só uma mercenária e que seu
maior valor ali fosse ser filha de um vampiro
transformado em humano.
Lara poderia se acostumar com aquilo. Seria fácil
demais, na verdade. E aquilo era um problema.
DEZESSEIS

Lara sabia muito bem que, quando alguma coisa parecia boa demais,
era porque era. Mesmo assim, ela não tinha esperado
acordar com o barulho de um alarme.
Ela se levantou de uma vez e puxou as roupas que
tinha deixado do lado da cama. Paranoia de mercenária,
sim, e uma paranoia que estava valendo a pena. Lara
não fazia nem ideia de que o Setor Três tivesse algum
alarme daquele tipo, mas a sirene estava vindo de fora
da casa – o que deixa mais do que óbvio que era algum
problema grande.
Provavelmente era mais alguma coisa na fronteira.
Era a única coisa que fazia sentido.
Ela prendeu as bainhas das suas facas na roupa,
guardou as armas e conferiu suas pistolas – tanto a que
era a laser quanto a mais comum. Balas e bateria,
também. Ela não sabia o que estava acontecendo, então
era melhor já estar preparada.
Lara pegou seu celular e parou. Tinha uma
notificação de algumas horas atrás. Uma mensagem de
Eric, de logo depois do amanhecer – o que queria dizer
que já fazia tempo que os problemas haviam começado.
Ela encarou a mensagem. Problemas na fronteira,
sim. E Eric queria que ela verificasse se Ícaro tinha
alguma informação nova antes de ir para lá, também.
Não era nada demais. Era algo normal, porque eles
não tinham como ter certeza sobre as redes de
comunicação. Era mais seguro ela falar com Ícaro e
repassar qualquer coisa pessoalmente para Eric. Mas
Lara não conseguia deixar de pensar que alguma coisa
estava errada.
Ela já estava na porta da sala de Ícaro quando se
lembrou que estava na casa de um vampiro – o que
queria dizer que as janelas sempre estavam fechadas
durante o dia. E aquele era o motivo para Lara não ter
nem pensado que estava acabando de acordar.
Ainda era dia. A fronteira estava sendo atacada
durante o dia e Lara sabia muito bem que o Setor Três
não tinha nenhum tipo de força de defesa humana. Ela
estava falando justamente sobre aquilo com Eric na noite
anterior. Nenhuma das Cortes pensava que os humanos
podiam ser úteis, então não os usariam para atacar, o
que queria dizer que ninguém precisava deles para se
defender.
O que queria dizer que o Setor Três estava
praticamente indefeso.
Ícaro levantou a cabeça assim que Lara entrou na
sala dele.
— As paredes elétricas foram desativadas de novo —
ele avisou. — Não parece ter nada errado na conexão
com o fornecimento principal e não temos como saber o
que aconteceu na fronteira.
Porque os vampiros lá, mesmo os que aguentavam
um pouco de luz do sol, não podiam só sair e ir ver o que
tinha acontecido. Fazer aquilo era uma garantia de que
seriam destruídos.
— Eric falou para ver se você tinha alguma
informação nova — ela contou. — E eu preciso saber o
que está acontecendo.
Ícaro apontou para o monitor maior, na parede. Lara
se virou um instante antes das linhas de dados
desaparecerem e uma imagem da fronteira aparecer. Era
a visão da mesma torre onde Lara e Eric tinham ido, da
outra vez. E a quantidade de animais corrompidos perto
da parede elétrica desativada...
Lara fechou as mãos com força. Não adiantava só
sair correndo. Ela, sozinha, não ia fazer muita diferença,
até porque dava para ver os animais caindo. Os vampiros
nas torres estavam atirando. Por enquanto, tudo estava
sob controle.
Mas "por enquanto" não era o suficiente. Se fosse,
ela não ia ter sido acordada pelo alarme.
E a sirene do alarme tinha parado de tocar. Ela não
sabia se aquilo era bom ou ruim.
— Nenhuma informação útil — Ícaro falou. — Ainda
estou tentando rastrear a origem disso, mas não tenho
informações o suficiente.
Porque o que ele precisava estava nas terras de
ninguém.
Ela respirou fundo e continuou encarando o monitor.
Estava cedo demais. Quem quer que estivesse por trás
daquilo tinha feito questão de mandar os animais
corrompidos num horário que seria o pior possível para
os vampiros. Não era nem meio-dia, o que queria dizer
que até os que estavam lá, atirando, provavelmente iam
apagar a qualquer momento. Não era uma questão de
quererem estar acordados. Os vampiros ficavam
inconscientes com a luz do sol, simples assim, e não
fazia diferença se gostavam daquilo ou não.
— Carros — Lara falou. — Motos ou outros meios de
transporte. Vocês têm alguma coisa, não têm?
Ícaro não respondeu.
Ela se virou para ele.
— Transporte? — Ela insistiu. — Ou acha uma boa
ideia esperar para ver se os animais corrompidos não vão
passar pela muralha quando o sol começar a apagar os
vampiros que estão nas torres?
Ícaro balançou a cabeça.
— Se você está pensando em pedir ajuda para os
humanos, não vai adiantar. Eles não vão ajudar.
Ah, eles iam, sim.
— Isso é problema meu — Lara avisou. — Você
consegue me dar acesso a alguma coisa de transporte?
Ele abaixou a cabeça e moveu os dedos depressa
sobre um tablet. O celular de Lara vibrou e ela o pegou.
Uma mensagem rápida de um contato desconhecido.
— Me avise de quanto vai precisar — ele falou. — E
boa sorte.
Bom. Aquilo era melhor do que só ter acesso a
alguma coisa genérica.
Lara assentiu e saiu da sala.
Um instante depois, ela estava fora da casa de Eric e
correndo na direção da arena.
Lara abriu a porta da arena com um puxão. As ruas da cidade até
ali estavam desertas – provavelmente por causa do
alarme de mais cedo – mas era óbvio que tinha gente até
demais na arena. Era sempre assim com o pessoal que
lutava. Eles não iam ficar em casa por causa de um
alarme. Iam voltar para o seu lugar de sempre.
A diferença era que, se fossem mercenários, eles
estariam conferindo suas armas e se preparando para a
possibilidade de aparecer algum trabalho. Depois de um
alarme de qualquer tipo sempre tinha alguma
oportunidade e quem já estava pronto tinha vantagem.
Ali, as pessoas estavam agindo como se nada estivesse
acontecendo. Era a mesma rotina que Lara tinha visto
nos dias anteriores.
Ela colocou dois dedos na boca e assobiou. O som
cortou o barulho das conversas e do treinamento e as
pessoas começaram a se virar para a porta. Um dos
homens no ringue se virou e Yohana acertou um soco no
rosto dele antes de passar entre as cordas.
Normal. Casual. Era como se nada estivesse
acontecendo.
— Se isso for sobre o alarme, não tem muita gente
aqui que pega trabalhos — Yohana falou.
Lara não se importava.
— Os animais corrompidos estão avançando na
fronteira com as terras de ninguém — ela avisou.
Yohana se afastou no meio das pessoas e gesticulou
para mais dois homens. Os mercenários que trabalhavam
com ela. Ótimo, pelo menos eles entendiam exatamente
o que aquilo queria dizer.
— Não é problema nosso — alguém resmungou.
Mais alguém concordou. Lara nem tentou entender
os resmungos enquanto as pessoas começavam a voltar
ao que estavam fazendo antes.
Ele não estava errado. Não deveria ser problema
deles. Aquele era o motivo para os humanos terem
aceitado alimentar os vampiros: para não ser problema
deles. Mas a situação tinha deixado de ser tão simples.
— Acho bom você repetir isso quando os animais
invadirem o setor porque os poucos vampiros que podem
sair no sol não conseguiram conter eles — Lara falou,
alto o suficiente para todo mundo ouvir.
Ninguém falou nada por um instante.
— Merda!
Merda era uma boa definição, sim, e ela não fazia a
menor questão de ver quem tinha falado.
A arena explodiu em movimento quando a maior
parte do pessoal ali começou a ir para os lados,
procurando qualquer coisa que pudessem usar como
armas. Não que tivessem muita coisa ali, ou fossem ter
alguma coisa em casa. Normalmente só os mercenários
tinham armas, porque era difícil achar com quem
comprar uma pistola e mais difícil ainda conseguir pagar
– e fazer aquilo tudo sem os vampiros saberem.
— Ô desgraça, vai pegar as facas logo!
Saulo. Ele era um dos mais velhos ali, da época do
seu pai. E, se ele já estava gritando ordens, então ela
não ia precisar ficar discutindo para convencer as
pessoas a ajudarem.
Mas não era o suficiente. Considerando o que ela
tinha visto antes de sair da casa de Eric, eles precisariam
de mais pessoal.
Saulo parou na frente de Lara.
— O que você sabe? — Ele perguntou.
Ela balançou a cabeça.
— Não muita coisa. É um ataque deliberado, não um
acidente — ela contou. — Os vampiros que já estavam
nas torres ainda estão lá e estão fazendo o que
conseguem, mas a maioria deles não aguenta a luz do
sol.
— A parede elétrica?
Lara balançou a cabeça de novo.
— Desligada e ainda não sabem o motivo.
Provavelmente não iam descobrir antes de tudo
acabar.
Saulo se virou para trás.
— Fábio!
Outro dos homens olhou para onde eles estavam.
— Acha a Naomi, peguem a cunhada dela e vão lá
ver se tem alguma coisa na elétrica — Saulo falou.
O outro homem – Fábio – saiu correndo sem discutir.
Lara começou a balançar a cabeça antes de se
lembrar. No dia anterior alguém tinha comentado sobre a
cunhada que tinha sido levada para arrumar a ligação
das paredes elétricas na rede principal. Ela nunca teria
se lembrado daquilo, mas Saulo conhecia o pessoal da
arena. Era óbvio que ele ia se lembrar.
O que queria dizer que ela não precisava fazer aquilo
sozinha.
— Eu vi a quantidade de animais — ela contou. — E
nunca vi esse tanto deles junto.
— Mais que uma matilha? — Saulo perguntou, sem
se virar.
— Bem mais.
Ela não queria pensar em quantidade daquele jeito.
Mas, se precisasse, era algo mais perto de três matilhas
grandes, talvez mais.
— Cadu! — Saulo gritou, de novo. — Liga pra Helena!
Lara quase sorriu. Ela se lembrava de Helena – a
mulher que tinha sido uma mercenária, se aposentado, e
praticamente tomado posse de outra arena da cidade.
Seu pai gostava dela. E Lara não tinha imaginado que ela
ainda estava por lá.
Mas ela não precisava estar ali.
— Me dá seu celular — ela pediu.
Saulo passou o aparelho para ela sem nem olhar o
que estava fazendo. Ótimo, porque Lara preferia mil
vezes quando ele estava gritando com o pessoal da
arena e fazendo irem atrás de coisas que podiam ser
úteis...
As armas nas torres. Quando chegassem lá, eles não
iam precisar usar armas improvisadas. Mas ela teria que
avisar Tamara e Eric antes, ou cuidar daquilo ela mesma,
dependendo da reação dos dois vampiros ao sol.
— Se não vai ajudar pelo menos sai do caminho! —
Saulo gritou.
Lara não se virou para ver para quem aquilo tinha
sido. Não importava. Ela não ia nem julgar quem não
queria ir para a fronteira de jeito nenhum, porque
enfrentar os animais corrompidos era arriscado demais.
Mas Saulo estava mais que certo. Se não iam ajudar, que
não atrapalhassem.
Ela salvou o contato de Ícaro no celular de Saulo.
— Transporte — ela falou.
Saulo se virou para ela de novo.
— Os vampiros têm motos e sei lá mais o que para
transporte — ela continuou. — Ícaro pode liberar o
acesso para você.
Ele estreitou os olhos, a encarando.
— O mesmo Ícaro espião do necromante.
Lara sustentou o olhar dele.
— Prefere ir para a fronteira correndo?
Ele assentiu de forma brusca mas não pegou o
celular. Aquilo não tinha sido ele dizendo que preferia ir
correndo, mas sim uma forma de dizer que ela estava
certa e tinham coisas mais importantes para se
preocupar.
— Salve o seu contato também — ele pediu. —
Preciso de alguém para me dar as informações. A menos
que você vá junto com a gente.
Lara balançou a cabeça com força enquanto salvava
o seu contato no celular de Saulo. Ela não ia esperar. Não
podia.
— Eu vou correr — ela falou.

Eric fechou os olhos e se concentrou nos animais que estava


controlando – os mortos, do outro lado da fronteira. Ele
não conseguia ver pelos olhos deles, mas as impressões
que tinha através do poder eram o suficiente. Havia
inimigos por perto, os animais corrompidos que estavam
rondando a parede elétrica. E havia outros como ele, os
outros animais sendo controlados por necromantes,
porque Tamara havia colocado um necromante em cada
uma das outras torres.
Mas não por muito tempo. Ele também conseguia
sentir o sol cada vez mais alto no céu, mesmo que
estivesse na torre, no mesmo andar onde estavam os
sistemas de vigilância e de comunicação. Não ia demorar
muito para o sol estar alto o suficiente para que nenhum
dos necromantes ali fosse capaz de resistir. E era bem
possível que nem mesmo ele resistisse.
— Ícaro confirmou que o alarme soou na cidade —
Tamara avisou.
Bom. Mesmo que fizesse décadas desde a última vez
que o alarme havia soado, tanto vampiros quanto
humanos sabiam o que ele queria dizer. Os humanos
estariam nas suas casas e não sairiam até segunda
ordem. E os vampiros, com sorte, estariam prontos para
correr para a fronteira assim que anoitecesse.
Até o anoitecer, eles não precisariam ir para a
fronteira. Os animais corrompidos já estariam na cidade.
— E Lara? — Eric perguntou.
— Deve demorar um pouco, mas está vindo para a
fronteira.
Ele se forçou a se concentrar no poder e na sensação
dos animais – em como eles estavam lutando entre si, de
novo.
Enquanto estivessem lutando, não estariam
tentando escalar a muralha ou quebrar as portas.
Eric havia deixado uma mensagem para Lara falar
com Ícaro antes de ir para a fronteira justamente porque
não fazia ideia de qual seria a situação quando ela
acordasse. Ele tivera a esperança de que Ícaro dissesse
para ela continuar na cidade, ou que achasse algo por lá
onde ela seria útil. Mas ele estava falando de Ícaro, que
lidava com dados e mais nada, e de Lara, que nunca
fugia de um problema que pensava que tivesse uma
solução.
Ele não tinha o menor direito de tentar manter Lara
longe do perigo. E ela não o ouviria, mesmo que ele
tentasse. Mas Eric podia garantir que Lara visse que não
havia uma solução – e que recuasse para ajudar a
defender os humanos na cidade quando o pior
acontecesse.
Os animais corrompidos avançaram de novo. Eric
fechou as mãos com força, obrigando os seus animais a
avançarem, também. As sensações eram fracas e
fragmentadas, mas ele ainda sentia o resultado da luta.
As mordidas, a carne se rasgando, os ossos sendo
separados do restante do corpo.
Não importava. Eram apenas sensações que não
eram dele.
— Solte os mortos — Tamara falou.
Se ele os soltasse, as criaturas corrompidas estariam
na muralha em uma questão de segundos.
— Eric — ela insistiu.
E Tamara já trabalhava com ele havia tempo o
suficiente para Eric conhecer aquele tom de voz.
Ele soltou o poder.
O barulho das metralhadoras começou no mesmo
instante – muito mais baixo do que as metralhadoras da
época em que ele havia sido transformado, mas ainda
assim inconfundível.
Eric encarou Tamara.
— Eles não deveriam estar atirando de novo.
Porque quando Eric havia chegado ali, logo depois do
amanhecer, os dois vampiros no alto da torre quase
haviam se destruído – e eram o único motivo para os
animais não terem se aproximado mais.
Pelo que Eric havia entendido, a parede elétrica
havia se desligado de repente. Tamara descera para a
sala de comunicação, para entrar em contato com as
outras torres, ao mesmo tempo em que avisava Ícaro e
ele do que havia acontecido. Instantes depois, os animais
haviam avançado. Tamara tinha ouvido o grito de um dos
vampiros no alto da torre um instante antes dos tiros
começarem.
Os vampiros de plantão no alto da torre – os dois
únicos ali, além de Tamara, que não haviam adormecido
ao amanhecer – tinham percebido a aproximação dos
animais de alguma forma e corrido para as armas. Mas já
era dia e eles não tiveram tempo para fechar as
proteções que bloqueariam o pior do sol. E eles haviam
continuado atirando, mesmo depois que Tamara tinha
subido e tentado tomar o lugar deles.
Quando Eric havia chegado ali, os dois vampiros
estavam tão queimados que sua primeira reação havia
sido dar seu sangue para eles. Era bem possível que, se
ele houvesse se demorado mais um pouco, os dois
tivessem se destruído para garantir que os animais
corrompidos não chegassem na torre.
E, mesmo depois de beber o sangue de Eric, eles não
deveriam estar atirando de novo. As proteções – que
Tamara havia puxado antes mesmo de Eric chegar –
bloqueavam o pior da luz do sol, mas não tudo.
— De todos nós, você é o único que tem alguma
chance de continuar acordado mesmo quando o sol
estiver alto — Tamara falou, em voz baixa. — Mas só não
se gastar todas as suas reservas mantendo os animais
afastados agora. Então eu vou continuar dando meu
sangue para eles e os dois vão continuar atirando
enquanto conseguirem. E quando eles não conseguirem
mais, eu vou continuar atirando.
A pior parte era saber que o que ela estava falando
fazia sentido.
— É a forma mais eficiente de usar nossos recursos
— ele murmurou.
Era a única forma de terem uma chance, mesmo que
fazer aquilo fosse quase uma garantia de que ele
sacrificaria dois do seu pessoal – talvez três, porque Eric
não fazia ideia de quanto sangue Tamara já havia dado
para os outros dois vampiros.
— É a única forma — ela falou.
Algo bateu com força na porta da torre. Eric se
concentrou no poder de novo antes de perceber que o
som não estava vindo da porta que dava para as terras
de ninguém. Era a porta que dava para o setor.
Ele se virou para os monitores das câmeras de
vigilância. Lara estava parada na porta, olhando para
cima com uma expressão tensa.
E, mesmo com a câmera, ele não confiava que não
fosse algum tipo de armadilha.
— Fique aqui — Eric falou.
Tamara não respondeu, mas também não se
aproximou do alçapão que dava para o andar de baixo.
Eric pulou e foi na direção da porta. O alçapão se
fechou com um som seco.
Ele abriu a porta, tomando cuidado para continuar
atrás dela. Armadilha ou não, ele precisava poupar suas
forças e aquilo envolvia evitar a luz do dia enquanto
pudesse.
Lara entrou. O cheiro doce se espalhou ao redor de
Eric. Ninguém conseguiria imitar aquilo, porque ninguém
sabia que ela o chamava daquele jeito.
Ele fechou a porta.
— Eu vi as proteções — Lara falou. — Qual a
situação?
Eric balançou a cabeça.
— Ruim o suficiente para ser melhor você voltar para
a cidade. Os humanos vão precisar de ajuda quando os
animais corrompidos passarem por nós.
Lara estreitou os olhos e o encarou.
— Não é assim que as coisas funcionam. Me dê as
informações.
Tamara abriu o alçapão, mas não desceu.
— Somos quatro nessa torre — ela contou. — Os dois
atiradores vão ser forçados a adormecer em menos de
uma hora. Eu não vou durar muito mais. As outras duas
torres têm pelo menos dois vampiros que ainda estão
acordados, também, mas não vai demorar muito para
adormecerem.
Lara continuou encarando Eric.
A situação era exatamente o que Tamara havia
falado, mas parecia que não fazia diferença para ela.
— E você vai continuar acordado? — Lara perguntou.
Eric não respondeu. Em outra situação, ele tinha
certeza que sim. Ali, depois de atravessar meio setor
debaixo do sol, de dar o suficiente do seu sangue para
curar a pior parte das queimaduras dos dois vampiros e
de ter contido os animais corrompidos por tanto tempo,
Eric tinha quase certeza de que não conseguiria ficar
acordado. Não teria reservas de poder para resistir ao
sol.
— Provavelmente não — Tamara falou.
Eric encarou o alçapão. Era a verdade, mas não era
uma resposta que cabia a ela.
— Obrigada — Lara falou.
O alçapão se fechou – a forma de Tamara dizer que
era bom ele resolver aquilo logo.
Lara balançou a cabeça e puxou a manga da sua
blusa para cima
— Eu não vou beber de você agora — Eric avisou.
Ela levantou uma sobrancelha e esticou o braço na
sua direção.
— Aparências — Lara falou. — Vocês vampiros que
são especialistas nisso, não é? Pois então. Aconteça o
que acontecer, você tem que estar aqui e tem que estar
de pé. Então bebe logo.
Não. Ele não podia beber dela, não ali, não depois de
gastar tanto poder. Eric sabia o que o gosto do sangue de
Lara faria com o seu controle. Aquilo não seria um
problema se ela realmente fosse sua consorte, mas ele
não podia se prender àquilo. Eric não correria o risco de
colocar Lara em uma situação muito além da que ela
havia aceitado quando fizeram aquele contrato.
— Eu não vou adormecer — ele falou.
Lara sustentou seu olhar daquele jeito que era um
desafio. Ele continuou parado, sem falar nada, até que
ela puxou a manga de volta para o lugar e deu um passo
atrás.
Sim. Era melhor daquele jeito.
Eles precisavam conversar. Eric não havia pensado
antes de deixar que limites importantes demais fossem
quebrados e o comentário de Lara na noite anterior
fizera com que ele se lembrasse de todas as formas
como aquilo podia dar errado. Mas não era a hora. Nem o
lugar, por mais que ele odiasse como o olhar de Lara
tinha mudado. Agora era o mesmo de antes – de quando
ela estava do outro lado da cerca, no Setor Dez, antes de
fazer um acordo com ele.
— Depois — ele murmurou.
Lara assentiu de forma seca.
— Seu pessoal consegue continuar acordado por
mais uma hora, mais ou menos? — Ela perguntou.
Eric olhou para o alçapão e ele se abriu. Não que
aquilo impedisse Tamara de ouvir o que estavam falando,
mas ele a conhecia. Ela evitaria dar mais palpites na
conversa deles, a menos que fosse convidada.
— Você conhece seu pessoal melhor que eu, Tamara
— ele falou.
A outra vampira se sentou ao lado do alçapão,
olhando para baixo.
— Uma hora é uma projeção otimista — ela falou. —
Eu ainda vou estar acordada... Eu acho. Mas o pessoal
das outras torres, não.
Lara se virou para encarar a porta.
— Você tem um plano — Eric falou.
Claro que tinha um plano, porque era Lara. Ela
sempre via soluções onde parecia que não havia
nenhuma.
Ela olhou para ele e balançou a cabeça.
— "Um plano" é exagero. Mas eu tenho o pessoal das
arenas vindo para cá.
Humanos. Humanos treinados em combate.
Não seria o suficiente. Se fosse, os humanos não
teriam feito os acordos com os vampiros, dois séculos
antes. Mas ter os humanos na fronteira era uma forma de
reduzir os riscos para a cidade, pelo menos.
Eric assentiu.
— Eu posso ganhar tempo até os humanos
chegarem.
E Lara estava certa em dizer que ele precisava
continuar de pé, não importava o que acontecesse. Ter
humanos ali resolveria aquilo, também.
DEZESSETE

Eric encarou as imagens das câmeras. Ele preferia estar no alto da


torre, vendo o que realmente estava acontecendo, mas
não podia. Por mais que não gostasse da ideia de deixar
os dois vampiros já feridos atirando, ele precisava
guardar suas forças. Eric teria que ser uma arma de
último caso e mais nada.
E o que ele estava vendo pelas câmeras...
De um lado, os animais continuavam a atacar e
continuavam a vir. Aquele era o maior problema. Ainda
havia animais atravessando as terras de ninguém e indo
para a fronteira. Se alguém ainda tivesse dúvidas de que
o que estava acontecendo era um ataque deliberado,
aquilo seria mais que prova o suficiente. A única
explicação era alguém estar mandando os animais para
lá – depois de tê-los mantido presos, provavelmente.
— O Setor Cinco estava usando os animais das terras
de ninguém pra alimentar os carniçais — Lara murmurou.
Eric assentiu.
— Eu me lembro. Mas é improvável isso ser obra
deles.
Por uma questão simples de distância. A fronteira do
Cinco com as terras de ninguém estava longe demais do
Três. Se fosse alguém de lá, teriam que contornar todo o
território do Sete sem serem vistos – porque o Sete teria
avisado Eric se houvesse notado alguma coisa
acontecendo – e depois a maior parte da fronteira do
próprio Três até chegar naquela região.
Não. Se aquilo era um ataque de outro setor, o mais
provável era que fosse do Oito. Era a única logística que
fazia sentido. Eles estavam logo ao lado daquela parte da
fronteira e a Corte de lá era arrogante o suficiente para
pensar que conseguiria fazer algo daquele tipo e sair
impune.
Eles sairiam impunes se o Três caísse, porque não
haveria ninguém para contar que aquilo havia sido um
ataque.
O som das metralhadoras parou. Tamara subiu para
o alto da torre, sem falar nada, e o som recomeçou.
Os dois vampiros haviam adormecido.
Eric se concentrou no poder. Os animais mortos
estavam logo ali, perto demais dele e se espalhando ao
longo da fronteira. Anos de animais mortos, sob o seu
controle.
Porque se os vampiros que estavam com eles
haviam adormecido, então os que estavam nas outras
torres também estariam desacordados. Ele precisava
garantir que os animais corrompidos continuassem longe
até os humanos chegarem.
Lara se levantou e atravessou a sala, com o celular
na mão. Eric não falou nada. Ele não se arrependia de ter
negado o sangue dela, mas poderia ter feito aquilo de
outra forma. Lara era profissional demais para deixar
qualquer coisa daquele tipo atrapalhar uma missão, mas
ele conseguia ver a diferença em como ela estava
agindo.
E aquilo era mais um motivo para ele ter certeza de
que havia feito o certo. Lara estava ali fazia três dias. Ele
não deveria ter tanta certeza sobre as reações dela e a
negativa dele não deveria ter importado para ela.
— Tem duas pessoas entre os humanos que são
vistas como líderes — Lara falou, de repente. — Saulo e
Helena.
A sensação das mordidas, aquela dor distante que
não tinha como ser ignorada, estava por todo o seu
corpo. Mas os animais sob o seu controle estavam
afastando os outros, de novo.
Eric se virou para Lara, devagar. O que ela estava
falando sobre os humanos...
— Você quer um em cada torre.
Lara assentiu.
— Eles vão conseguir manter os outros sob controle
e garantir que ninguém faça nenhuma merda.
A impressão da dor desapareceu.
Eric fechou as mãos com força, se forçando a se
concentrar no poder. Ele não podia relaxar. Não podia
deixar os animais mortos caírem, porque eles eram a
única coisa lhes defendendo.
Da mesma forma que os humanos seriam a única
coisa defendendo todos eles, se Eric concordasse com o
que Lara estava falando. Os humanos estariam nas
torres, com acesso às armas que estavam lá, enquanto
todos os vampiros estavam adormecidos. Indefesos.
E Lara sabia. Era por isso que estava falando aquilo.
— Você confia neles? — Eric perguntou.
Porque seria simples demais destruir um vampiro
inconsciente. Não era sem motivo que todos eles tinham
proteções demais ao redor de onde adormeciam.
Ela respirou fundo.
— Confio que eles não querem morrer — Lara falou.
— E acho que todo mundo está se lembrando muito bem
de ver os mortos se levantando e respondendo a um
interrogatório. A maioria vai estar preocupada demais
com a ideia do que um necromante poderia fazer com
eles para fazer alguma loucura.
O poder estava escapando por entre seus dedos.
Eric fechou os olhos e se concentrou.
Ele não estava mais ouvindo o som da metralhadora.
Tamara também havia adormecido. E ele estava sentindo
o peso que era a sensação do sol alto no céu.
Eric ia adormecer, também. Ele não tinha reservas
de poder o suficiente para se forçar ir contra as forças
que controlavam os vampiros.
Mas ele precisava resistir, de alguma forma, pelo
menos até os humanos chegarem ali.
— Faça — ele falou.
Lara não respondeu e ele não ia abrir os olhos para
ver o que ela estava fazendo. Não podia se distrair do
poder e da impressão do que estava acontecendo fora da
torre. Eric estava se forçando a cobrir uma área grande
demais – grande o suficiente para já ser difícil mesmo
que ele estivesse descansado. E ele não estava.
O cheiro do sangue se espalhou, doce demais,
praticamente o chamando.
Lara.
— Não — Eric falou.
Ela parou na frente dele, tão perto que Eric
conseguia sentir o calor do corpo dela. E o cheiro do
sangue estava perto demais. Ela tinha se cortado, e de
propósito.
— Ou você vai beber agora, ou vai beber enquanto
estiver inconsciente — ela avisou.
Ele queria acreditar que ela não teria coragem de
fazer aquilo. Lara não ofereceria seu sangue para um
vampiro no limite do controle enquanto ele estava
inconsciente. Mas ela faria. Ela já havia feito aquilo antes
e Eric se lembrava muito bem do resultado.
Ele segurou o braço dela, se guiando apenas pelo
cheiro do sangue, e bebeu.

Lara se sentou na janela da torre e encarou os animais


corrompidos mais lá embaixo. Eles estavam perto
demais, mesmo que ninguém tivesse parado de atirar.
— Eles vão escalar a muralha — Yohana falou.
Iam, porque eram animais demais e não paravam de
aparecer mais.
Ao menos iam ter bastante corpos se Eric precisasse
usar seu poder de novo.
Eric, que tinha preferido apagar do que beber o
sangue dela. Ele estava acordado, sim, no segundo andar
da torre. Mas Lara não tinha a menor dúvida de que, se
ela não tivesse ameaçado lhe dar seu sangue enquanto
estava inconsciente, ele não teria aguentado sem
adormecer. E ele sabia.
Não importava. Ela sabia que tudo estava perfeito
demais para durar. Lara só deveria estar irritada porque
a teimosia de Eric havia colocado todos eles em risco,
não porque ela não sabia o que estava acontecendo
entre ela e Eric.
Nada. Aquilo era o que estava acontecendo, porque
não havia nada além de um contrato.
— É melhor você voltar pra linha — Lara avisou.
Yohana parou ao lado dela e olhou para baixo,
também. Os dois homens nas metralhadoras não deram
o menor sinal de que estavam prestando atenção na
conversa das duas, mas ela tinha certeza de que
estavam ouvindo cada palavra.
— Alguém tem que ficar aqui para dar cobertura
para os atiradores — a outra mercenária falou. — Quando
eles escalarem a muralha, provavelmente vão entrar na
torre.
Sim. Lara não tinha se esquecido daquilo. Ela mesma
tinha sugerido mandarem mais pessoal junto com os
atiradores nas outras torres, justamente por causa
daquilo. Eles teriam que lutar, também. E os atiradores
não iam poder só parar para se defender. Eles teriam que
continuar atirando, não importava o que estivesse
acontecendo.
— Eu fico — ela avisou.
Yohana balançou a cabeça.
— Você sozinha...
Lara apontou para as cicatrizes no seu rosto. Ela
nunca teria pensado que sair correndo da casa de Eric,
sem tempo para se maquiar, ia ter alguma utilidade.
— Não vai ser a primeira vez. Mas alguém precisa
colocar ordem na linha interna.
Yohana sustentou o olhar de Lara por mais alguns
segundos antes de assentir e descer pelo alçapão. Eric
murmurou alguma coisa, baixo demais para Lara
entender sem usar poderes, e pouco depois ela ouviu a
porta da torre ser aberta e depois trancada de novo.
Bom. Lara podia não conhecer Yohana muito bem,
mas ela conhecia aquele tipo. A outra mulher era uma
mercenária, sim, mas era uma das que estava naquele
trabalho para conseguir fazer alguma coisa. A primeira
reação dela, depois do aviso de Lara, na arena, tinha sido
se preparar para ir para a fronteira, mesmo sem
nenhuma garantia de pagamento. Então Lara ia confiar
nela, sim.
Ela foi para uma das janelas que dava para o setor.
Uns tantos metros para a frente, depois da parede
elétrica interna, que também estava desativada, os
carros estavam parados formando uma linha. Lara não
sabia quem tinha dado a ordem para aquilo –
provavelmente Helena, porque era o tipo de tática que os
mercenários usavam, às vezes – mas era a melhor opção.
Os animais iam passar pela muralha. Aquilo era um fato.
A linha de carros serviria como uma proteção para os que
estavam lá atirarem, mesmo que aquilo não fosse
adiantar por muito tempo.
Mas Helena estava em outra das torres, Lara não
fazia ideia de quem estava na linha de carros, então ela
queria Yohana lá, sim. Ela tinha experiência o suficiente
para ler a situação, não importava o que acontecesse.
— Mais animais — um dos atiradores avisou.
Lara voltou para a janela onde estava antes.
De onde tantos animais corrompidos estavam vindo?
Não fazia o menor sentido. Era quase como se alguém
tivesse capturado o máximo possível deles e os soltado
ali. Ou então tivesse passado anos criando animais. Mas
ninguém seria louco a ponto de fazer aquilo. Pelo menos,
era o que Lara preferia acreditar.
Eles iam subir a muralha. Não tinha a menor chance
de umas poucas metralhadoras serem o suficiente para
parar as criaturas. E não adiantava Eric tentar fazer
alguma coisa, também. Ele ia se esgotar para ganhar um
pouco de tempo e no fim das contas não ia dar em nada.
E Eric era um vampiro – o que queria dizer que ele
provavelmente não ia pensar no que era óbvio para Lara,
do mesmo jeito que não tinha pensado em chamar os
humanos que treinavam nas arenas.
Ela saiu da janela e desceu pelo alçapão depressa.
Os vampiros inconscientes por causa do sol estavam no
chão, perto de uma das paredes, de um jeito que não
tinha como ser confortável. Mas, de acordo com Eric, não
fazia diferença porque eles não iam sentir nada e
qualquer desconforto ia passar depressa quando
acordassem. Então era melhor ficarem ali, onde era mais
seguro. estava fora do caminho dos atiradores e não
tinha nenhum perigo de bater sol.
E Eric estava de pé na frente dos monitores de
vigilância, encarando a aproximação dos animais
corrompidos com uma tensão que era fácil demais de
entender. Ele odiava não poder fazer nada.
— Você avisou o Setor Dez? — Lara perguntou.
Ele se virou de lado e olhou para ela.
— Eles sabem que o Três é um alvo.
O que queria dizer que ele não tinha avisado o Dez
de que estavam sob ataque.
Lara balançou a cabeça. Vampiros. Não importava o
que acontecesse, eles nunca pensavam que humanos
pudessem ajudar de alguma forma – porque humanos
eram inferiores.
Talvez aquilo explicasse como Eric estava agindo
com ela, também. Ele tinha sido lembrado de que ela era
humana.
E nada daquilo importava agora.
— Avise o Dez — Lara falou. — Agora. Entre em
contato e avise o que está acontecendo aqui.
— Eles não... — Eric começou.
Ela balançou a cabeça de novo, com força.
— Eles têm uma força de defesa treinada que não
vai ter o menor problema com o sol. E têm mais que isso.
Você sabe que têm.
Eric sustentou seu olhar por alguns segundos antes
de assentir.
Ótimo.
Lara subiu pelo alçapão de novo sem falar mais
nada. Ela deveria ter se lembrado daquilo antes,
também. Era óbvio que pedir ajuda nunca ia passar pela
cabeça de um príncipe vampiro. Eles não pensavam
daquele jeito. E, pedir ajuda para um setor humano,
então...
Estupidez. De Eric, no caso. Tinha sido ele quem
havia ido atrás do Dez para uma aliança e mesmo assim
ele não tinha feito o mínimo, que era mandar um aviso.
E ela tinha mais o que fazer além de ficar pensando
no que podia ter sido feito antes.
Os dois atiradores não tinham parado enquanto ela
estava no andar de baixo e Lara não sabia nem dizer se
achava aquilo um bom sinal – porque queria dizer que
ainda tinham um ângulo para atirar – ou se achava ruim,
porque queria dizer que ainda tinham em quê atirar.
— Lara! — Um dos atiradores chamou.
Ela correu para a janela onde estava antes e olhou
para baixo.
Os animais corrompidos estavam escalando a
muralha e as paredes da torre.
Não deveria nem ser possível. Eram animais. Uma
parede daquele jeito deveria ser o suficiente para fazer
eles se reunirem lá embaixo e só. Mas qualquer noção do
que deveria ser possível ou não tinha desaparecido com
a volta da magia e aquilo era o que havia sobrado.
Animais que eram muito piores do que qualquer criatura
selvagem. Predadores que não deveriam existir e que
eram inteligentes o suficiente – e mudados o suficiente –
para conseguir subir pelas paredes.
Lara olhou para as metralhadoras e para as janelas,
de novo. Não ia adiantar. Eles até podiam tentar atirar
nos animais escalando e nos que chegassem no alto da
muralha, mas o ângulo seria horrível. E fazer aquilo
queria dizer parar de atirar nos que estavam se
aproximando e não podiam fazer aquilo de jeito nenhum.
Ela puxou uma das outras metralhadoras em um
suporte para a janela da lateral. Enquanto pudesse, ela ia
usar a arma para tentar ganhar tempo. Não que fosse
adiantar muito.

Eric fechou as mãos com força quando ouviu um som abafado vindo
do andar de cima. O som das metralhadoras havia
mudado já fazia algum tempo – o som dos tiros, na
verdade. Agora eles estavam perto demais. Os humanos
estavam atirando nos animais quase na torre, ou perto
demais da muralha. E às vezes havia o som de uma
terceira metralhadora.
Ele queria estar lá em cima. Ou melhor, queria estar
usando seu poder para garantir que os animais não
subiriam a muralha. Eric se lembrava muito bem da
última vez que aquilo havia acontecido, do caos e da
destruição até conseguirem acabar com os animais.
Mas não. Seu papel era ficar ali, encarando as
imagens das câmeras de vigilância das três torres, e agir
apenas se parecesse que alguma delas não estava
conseguindo conter as criaturas corrompidas. Esperar.
Assistir e mais nada.
Não. Não nada. Seu papel era pedir ajuda para outro
setor.
Eric fizera aquilo, sim. Ele havia enviado uma
mensagem para Amon, no Setor Dez, avisando que a
fronteira estava sendo atacada. E não recebera nenhum
tipo de resposta. Era o esperado. Aliados se ajudavam,
sim. Mas não se arriscavam uns pelos outros, por mais
que Lara preferisse acreditar em outra coisa. O mais
provável era que o Setor Dez estivesse preparando as
suas defesas nas fronteiras deles, para conter os animais
corrompidos caso passassem pela muralha e seguissem
naquela direção.
E enquanto aquilo não acontecesse, ele continuava
ali, esperando. Assistindo.
A pior parte era que, por mais que Eric odiasse
aquela situação, ele não conseguia discordar de Lara, da
mesma forma que não havia conseguido discordar de
Tamara, mais cedo. Elas estavam certas em querer o
poder dele como backup. O sol ainda estava alto o
suficiente no céu para ele sentir a pressão contra a sua
consciência e a exaustão que vinha de resistir ao que
deveria ser natural para ele. Em qualquer outra situação,
aquilo não seria um problema, principalmente depois da
quantidade de poder que Eric havia absorvido durante a
noite, quando estavam no cemitério. O suficiente para
repor tudo o que ele – e os outros necromantes – haviam
gastado para levantar os mortos.
Mas não o suficiente para prepará-lo para um ataque
durante o dia.
Lara gritou. Não era um pedido de ajuda, mas ele
queria subir, mesmo assim. E fazer aquilo seria mais
estupidez do que pensar que ele tinha algum direito de
proteger Lara. O que ele queria não fazia diferença.
Nos monitores, dois animais caíram do outro lado da
muralha, na direção dos humanos. Eles haviam feito uma
linha com os carros, bem para trás da parede elétrica
que ficava dentro do setor – e que também estava
desativada. Além disso, estavam terminando de montar
uma barricada feita do que pareciam ser placas de
madeira, bem mais próximo da muralha.
Estupidez, sim. Ele deveria ter pensado em chamar
os humanos assim que percebera que a situação não
estava sob controle. Mas Eric nunca havia imaginado que
eles poderiam ajudar, mesmo que aceitassem.
Arrogância – e ele quase conseguia ouvir Lara dizendo
aquilo. Arrogância, porque vampiros pensavam que
humanos eram uma fonte de alimento e mais nada. Eric
sempre havia pensado que era melhor que os outros
naquele ponto, mas talvez estivesse errado.
Mais animais corrompidos caíram do outro lado da
muralha. Alguém fez um ruído de dor, no alto da torre.
Um dos atiradores. Uma das metralhadoras parou.
Eric foi na direção do alçapão.
A metralhadora voltou a atirar. Algo bateu no chão
com um som abafado e então Eric estava ouvindo o som
molhado de uma faca rasgando carne.
— Eric, pegue ele — Lara falou.
Era óbvio que ela sabia que ele estaria prestando
atenção.
Eric se concentrou no poder, sentindo o animal
morto logo acima de onde estava. Um dos grandes, os
que faziam Eric se lembrar dos grandes felinos que
diziam que existiam antes da volta da magia. E Lara o
havia matado sem muita dificuldade, pelo que parecia.
Pelo menos a respiração dela estava normal – ao
contrário da de um dos humanos atirando. Ele havia sido
ferido.
— Mande o atirador descer — ele falou.
Lara não respondeu na mesma hora. Eric se
concentrou nas impressões do poder e no que conseguia
ouvir. Os dois humanos ainda estavam atirando e havia
mais alguns animais subindo, perto demais das janelas
do alto da torre. Mas Lara não estava mais na sala. Ela
tinha saltado para fora, para o alto da muralha, e estava
atirando com a pistola.
— Veneno — ela falou, baixo o suficiente para não
ter a menor chance dos humanos ouvirem.
Mas Eric ouviria e ela sabia daquilo, também.
Ele podia usar sua saliva para curar o atirador que
havia sido ferido. Mas não tinha sido um ferimento
comum. E o veneno dos animais corrompidos também
afetava os vampiros.
O atirador estava morto. Não imediatamente, porque
ele ainda estava atirando. Mas não importava qual fosse
o tamanho do seu ferimento, ele não sobreviveria.
Nenhum humano sobrevivia ao veneno, não importava o
que tentassem.
Nos monitores, os animais corrompidos continuavam
a cair do outro lado da muralha. Os humanos estavam
atirando e alguns dos animais estavam caindo, mas não
era o suficiente. Não seria, depois que eles haviam
descoberto que podiam escalar a muralha. Eles não iam
parar.
Outra das criaturas entrou na torre. O animal que
Eric estava controlando saltou sobre ela e mordeu seu
pescoço. Eric sentiu as garras do outro animal no que ele
estava controlando, mas não soltou.
Os primeiros animais alcançaram a barricada dos
humanos.
A criatura que tinha entrado na torre caiu, morta.
Eric fez com que ela se levantasse de novo, também.
O som das metralhadoras continuava, junto com o
ruído mais abafado de tiros vindo de fora. Lara, na
muralha, sozinha.
E Eric não podia fazer nada.
Mais um animal pulou para dentro da torre. Um dos
atiradores gritou, mas o som dos tiros não parou. E as
criaturas sob o controle de Eric já estavam saltando
sobre a outra e...
Força demais, depressa demais. Aquele animal ele
não conseguiria usar, porque ele não estava inteiro o
suficiente para ser útil.
Algo apitou no sistema de comunicação. Eric se virou
depressa. Não era nenhum alarme vindo das outras
torres, pelo menos. Eles ainda estavam se mantendo,
dentro do possível. Mas algo estava chamando e Eric não
sabia de onde.
— Tem alguém na escuta? — Uma mulher perguntou.
— Eric na escuta — ele falou.
E com sorte o sistema de comunicação teria se
ativado automaticamente, porque Eric não se lembrava
dos controles daquele tipo de sistema.
Alguém falou alguma coisa do outro lado, baixo
demais para ele entender – ao mesmo tempo em que
mais um animal corrompido entrava na sala do alto da
torre.
Daquela vez não houve nenhum grito, nenhum sinal
de que algo havia surpreendido os atiradores. Bom. E
Eric tinha mais uma criatura para usar.
— Eu pedi para me colocarem em contato com
alguém na fronteira, mas... — a mulher no sistema de
comunicação falou.
Mas ela provavelmente não esperava que quem
fosse responder era Eric. Ele entendia.
— Estou na fronteira. Por que queria falar com
alguém aqui?
Lara gritou alguma coisa. De novo, não era um
pedido de ajuda.
O som dos tiros mudou. Haviam mudado a direção
em que estavam atirando.
— Estamos na elétrica. As paredes, alguém queimou
as coisas aqui — a mulher contou. — Pelo menos foi o
que eu entendi.
Outra pessoa falou no fundo, de novo, depressa
demais para Eric entender, mas ele conhecia o tom.
Quem estava falando tinha feito um resumo muito
malfeito do que quer que a outra pessoa houvesse
explicado, mas não importava. Ele havia entendido a
parte que importava.
E humanos tinham ido verificar a parte elétrica do
setor, mesmo sem ordens.
Ele precisava parar de subestimar o que eles fariam.
— Lia falou que consegue ligar as paredes elétricas
de novo — a mulher continuou. — Alguém vai ter que
conferir isso aqui com calma depois, mas dá pra dar um
jeito.
Ligar as paredes elétricas não resolveria o problema,
não mais. Mas serviria para conter tudo ali.
— Esperem — Eric falou.
Ele foi na direção do alçapão e parou. Lara ainda
estava na muralha – loucura, mas ela era uma
mercenária. Loucura era um pré-requisito para o
trabalho, sempre. Mas era ela quem entendia como os
humanos ali funcionavam e Eric não tinha o menor
problema em admitir aquilo.
— Lara! — Ele chamou, alto o suficiente para ter
certeza que ela ouviria.
Alguém resmungou no sistema de comunicação.
O som de mais tiros, rápidos e próximos demais, e
então Lara estava pulando a janela e entrando na sala no
alto da torre de novo. Os animais de Eric se afastaram
quando ela foi na direção do alçapão também e pulou
para baixo.
— O que foi? — Lara perguntou.
Eric indicou o sistema de comunicação com a
cabeça.
— Eles podem ligar as paredes elétricas.
— A barricada do pessoal está dentro da parede
interna — ela falou, na mesma hora.
Sim. E aquele era o motivo para Eric ter chamado
Lara.
Ela pegou seu celular e começou a digitar alguma
coisa.
— Tem algum tipo de alarme aqui? — Ela perguntou.
— Alguma coisa que vai fazer barulho?
— Sim.
E aquela parte do sistema Eric se lembrava de como
funcionava, porque era o mesmo tipo de controle que
usavam para o alarme na cidade, também.
Lara guardou o celular de novo e se dependurou no
alçapão.
— Me dê cinco minutos — Lara avisou.
Eric não respondeu enquanto ela subia de novo.
Algo se moveu, nas sombras da sala. Eric se virou.
Tamara estava saindo do meio dos outros vampiros
desacordados. Bom. Aquilo queria dizer que não
demoraria tanto para os outros acordarem. Duas horas,
talvez um pouco mais.
— Ela é mais eficiente do que eu esperava — a
vampira murmurou.
Lara. Sim. E, em qualquer outro momento, Eric
estaria aproveitando a oportunidade para dizer um "eu
avisei", porque Tamara havia sido contra sua ideia de
fazer um acordo com Lara. Mas não ali. Não com tudo o
que estava acontecendo.
— E aí? — A mulher no sistema de comunicação
chamou.
— Alguns minutos — Eric avisou. — Os humanos que
estão aqui precisam recuar.
A pessoa no fundo – as pessoas, porque agora ele
estava ouvindo uma voz masculina, também – falaram
alguma coisa e pararam.
— Eric — Lara chamou, de algum lugar nas janelas
da torre. — Ligue o alarme.
Ele obedeceu.
A sirene do alarme disparou. No monitor, Eric viu os
humanos recuando – ele não sabia se porque haviam
entendido o aviso, se Lara havia conseguido mandar
instruções de alguma forma ou se era puro instinto, mas
aquilo não fazia diferença.
Os animais corrompidos continuaram avançando,
acompanhando os humanos enquanto eles recuavam na
direção da parede elétrica dentro do setor.
E então os humanos estavam passando pela parede.
Eric se virou para os controles do sistema de
comunicação.
— Agora — ele falou.
Alguém resmungou alguma coisa em voz baixa do
outro lado. Outra pessoa respondeu.
— Foi!
A parede elétrica brilhou de uma vez. Os humanos
recuaram mais depressa ainda. Alguns animais haviam
passado pela parede junto com eles e uns tantos
humanos caíram antes dos outros avançarem, usando
pedaços de madeira para acertar os animais que
estavam perto demais.
E as criaturas corrompidas que estava entre a
muralha e a parede elétrica estavam presas ali. Eric
encarou enquanto elas se jogavam contra a parede e
eram jogadas para trás, convulsionando por alguns
instantes antes de pararem.
— Não deixem a eletricidade cair de novo — Eric
falou.
Alguém deu uma risada seca, do outro lado.
— Não vamos — a mulher respondeu. — Mas
considerando que acho que vi restos de um vampiro
queimado no meio de tudo, não acho que isso vai ser um
problema.
Ela falara que algo havia sido queimado. Pelo visto, o
comentário tinha sido literal. E o vampiro que havia sido
responsável por aquela parte de desativar as paredes
elétricas já havia sido destruído.
Não fazia diferença. Ele teria sido destruído, mais
cedo ou mais tarde. E Eric ainda podia usar os restos dele
para conseguir informações, depois.
Ainda era dia. Mais nenhum vampiro estaria na
estação elétrica. Mesmo assim, ele não seria descuidado.
— Quero os restos desse vampiro — Eric avisou.
— Entendido.
Um dos ícones no monitor do sistema de
comunicação desapareceu. Tinham encerrado a ligação.
Eric se virou para os monitores mostrando as
imagens das câmeras, de novo.
Os animais ainda estavam vindo das terras de
ninguém na direção da muralha, mas agora estavam
parando na parede elétrica lá fora. E os que já estavam
depois da parede...
— As janelas! — Lara gritou.
Uma das metralhadoras parou.
Eric mudou sua atenção para os animais que tinha
levantado um instante antes de quatro das criaturas
corrompidas pularem para dentro da torre. Era óbvio que
fariam aquilo, agora que não tinham para onde ir.
Algo metálico bateu com força. As proteções de uma
das janelas sendo fechadas. E depois mais outra.
— Tamara, avise as outras torres — ele falou.
A outra vampira não respondeu, mas estava na
frente do sistema de comunicação. Bom.
Os animais controlados por Eric despedaçaram as
outras criaturas que haviam entrado ali.
A outra metralhadora parou de atirar e eles ouviram
o som da última proteção sendo fechada.
Lara. Ela estava...
Ela estava ali. Ela não tinha pulado para a muralha
de novo. Bom. Eric conseguia ouvir a respiração pesada
dela e a forma como seus batimentos cardíacos estavam
acelerados, mas ela estava ali e estava bem.
— É melhor descer — ela murmurou.
Um dos atiradores respondeu alguma coisa, mas Eric
não estava prestando atenção. Ele estava ouvindo o
barulho dos animais se jogando contra as proteções nas
janelas, escalando a torre até teto e parando lá.
Lara pulou para a sala onde ele estava e parou
debaixo do alçapão. Eric se virou e foi na direção dela no
mesmo instante, assim que percebeu que estavam
ajudando o atirador ferido a descer.
Eric segurou o outro homem sem a menor
dificuldade e o colocou em uma cadeira. O humano não
falou nada. Ele estava de olhos fechados, pálido e com a
expressão tensa de alguém tentando controlar o que
estava sentindo. A dor. A criatura de mais cedo tinha
mordido a perna do homem. Eles haviam improvisado um
curativo, um pedaço de camisa amarrado ao redor da
coxa dele, mas não fazia diferença. Ele não estava
perdendo quase sangue nenhum. O problema era o
veneno.
— Tamara — Eric chamou.
Lara se virou para ele e balançou a cabeça, ao
mesmo tempo em que o outro atirador pulava para baixo
também.
— Ela vai deixá-lo inconsciente e mais nada — Eric
explicou. — Qualquer decisão pode esperar isso terminar.
Ela assentiu.
Tamara parou na frente do homem ferido. Ele a
encarou. Um instante depois, ele estava caindo para o
lado, inconsciente. Lara puxou a cadeira onde ele estava
para um dos cantos da sala e apoiou o corpo do homem
contra a parede.
Ninguém falou mais nada. Os animais continuavam a
correr, escalando a muralha e indo de uma parede
elétrica para a outra. Alguns ainda estavam se jogando
contra elas, mas eram poucos – as criaturas corrompidas
eram inteligentes demais. E os humanos...
— A munição já deve estar acabando — o outro
atirador falou. — A gente não conseguiu pegar muita
coisa.
Não, porque humanos raramente tinham armas. A
única explicação – tanto para os carros quanto para as
armas que os humanos lá fora estavam usando – era
Ícaro. Ele teria como dar acesso para eles.
E Ícaro não teria feito aquilo por conta própria, o que
queria dizer que aquilo tudo só havia sido possível por
causa de Lara.
— Não importa — Tamara falou. — Eles conseguiram
matar os animais que passaram pela parede elétrica com
eles. Agora é só uma questão de tempo.
O humano olhou para Lara.
— Tempo até anoitecer — ela explicou.
Sim. Porque quando aquilo acontecesse todos os
vampiros com o mínimo de treinamento em combate do
setor estariam ali.
DEZOITO

Rafael encarou o vampiro na sua frente. Thales não repassava


informações sem ter certeza do que estava dizendo, mas
aquilo...
— Tem certeza? — Ele perguntou.
Thales inclinou a cabeça para a frente, devagar.
— Fiz questão de rastrear as assinaturas de poder eu
mesmo.
O que queria dizer que, a menos que Rafael
estivesse disposto a pensar que Thales era um traidor,
ele estava dizendo a verdade.
Se tinha uma pessoa na sua Corte em quem Rafael
confiava incondicionalmente, era Thales.
— Compreendo.
Thales inclinou a cabeça de novo e saiu do escritório,
fechando a porta atrás de si.
Rafael se levantou e abriu a janela. Àquela hora, o
sol não batia diretamente ali e, mesmo que batesse, não
seria um problema para ele. Mas as roseiras mais abaixo
ainda estavam sob a luz do sol.
As roseiras que, não importava o quanto ele tentasse
evitar, sempre faziam com que se lembrasse de Alana.
Ele parou, encarando as flores.
O Setor Oito estava se movendo contra o Três. Aquilo
era e não era uma surpresa, ao mesmo tempo. Cassius e
sua Corte no Oito sempre estavam dispostos a começar
conflitos e provar que eles eram superiores. Força bruta
era a linguagem mais usada naquela Corte – e era
exatamente o motivo para eles nunca terem sido levados
a sério. Eles não tinham a sutileza necessária para os
jogos políticos que eram a dinâmica entre as Cortes.
E aquilo fazia deles boas armas. O próprio Rafael
havia usado o Setor Oito para os seus planos mais de
uma vez. Então não era uma surpresa que mais alguém
estivesse fazendo a mesma coisa – porque Rafael
conhecia Cassius e seus métodos. Ele não pensaria em
um plano a longo prazo como aquele.
Era arriscado. Mas era o tipo de arriscado que tinha
chances demais de dar certo, simplesmente por causa da
quantidade de dano que aquilo causaria.
O Setor Três havia se aliado ao Dez. Rafael sabia
daquilo, porque havia calculado as chances do Três se
envolver quando ele terminasse com seus planos para o
Dez. Ele nunca teria imaginado que o Três precisaria da
ajuda do Dez. E seria um massacre.
Rafael encarou as roseiras de novo. Ele não havia
sido informado pelo Três ou pelo Dez sobre o que estava
acontecendo. Aquilo queria dizer que não tinha nenhuma
obrigação de se envolver. O Setor Um mantinha o
controle da região, sim, mas aquilo não queria dizer que
ele interferiria em cada conflito.
A questão era o que ele estava disposto a arriscar.

Eles não tinham precisado esperar até o anoitecer. O Setor Dez


tinha mandado ajuda.
Lara encarou um dos monitores. Todos os animais
corrompidos que tinham ficado presos entre as paredes
elétricas estavam mortos – até os que haviam escalado a
torre e parado no telhado. E vários deles tinham feito
isso, depois, para tentar escapar do monstro que havia
caçado cada um deles.
Quatro meses antes, Lara tinha visto Gustavo em
ação, quando tinha ido ajudar a resgatar a família dele
no Setor Nove. Aquilo já tinha sido uma coisa absurda. O
que tinha acontecido ali? Pior ainda. E ele não tinha feito
a menor questão de esconder nada. As câmeras de
vigilância tinham gravado tudo enquanto ele estava
passando pelos animais como uma força de destruição.
— O que foi isso? — O atirador que estava parado ao
lado dela perguntou.
Lara sorriu.
— Isso foi o Setor Dez — ela falou.
O homem balançou a cabeça.
— Mas as histórias sobre o monstro falam de um
vampiro, não...
— Quem vocês chamam de monstro é um vampiro —
Eric falou. — E não é ele ali.
Não. Gustavo era o que Amon tinha caçado, quando
tinha sido levado para aquela região.
— Eu não sabia que o Setor Dez ainda tinha algum
deles — Tamara comentou.
O sorriso de Lara morreu. Ninguém sabia e por um
bom motivo. As pessoas como Gustavo haviam sido
caçadas até não sobrar ninguém. Ele mesmo só tinha
escapado porque era criança demais, na época, para
saberem se tinha herdado as modificações que o Setor
Quatro fizera em alguns humanos da região.
E Lara só sabia daquilo porque tinha ido naquela
missão de resgate e juntado as peças depois. Quando a
informação se espalhasse – porque aquilo ia se espalhar
depressa – ela não queria imaginar o que aconteceria.
— Existe um bom motivo para ninguém saber — Eric
falou, seco.
— Entendido — Tamara respondeu.
O humano olhou para Lara. Ela balançou a cabeça.
Não era nada que ele precisasse se preocupar – nem
Gustavo, nem o comentário de Eric, que era um aviso
claro para Tamara manter o segredo.
Se Gustavo tinha chegado daquele jeito, ele não
estava preocupado em continuar se escondendo.
No monitor, uma mulher de cabelo escuro e
cacheado passou pela linha de pessoas na frente dos
carros e parou pouco antes da parede elétrica, olhando
diretamente para uma das câmeras. Melissa. Ainda era
estranho ver ela com o cabelo daquela cor e não com o
vermelho escuro que era o natural. E, se ela estava
parada ali, olhando para a câmera com aquela expressão
impaciente, era porque não tinha mais motivos para a
parede interna estar ligada.
— Tem como desativar a parede elétrica daqui, não
tem? — Lara perguntou.
— Sim — Tamara respondeu. — Mas se algum animal
corrompido ainda estiver vivo...
Lara deu de ombros de novo.
— Gustavo ainda está lá.
Se algum animal corrompido ainda estivesse vivo e
tentasse correr na direção das pessoas, Gustavo ia matá-
lo antes de alguém ter tempo de reagir. Simples assim.
Eric assentiu. Tamara se afastou e Lara não tentou
ver o que ela estava fazendo. Não importava e ela não
queria saber detalhes de como as defesas da fronteira
funcionavam.
O celular de Lara vibrou e ela o pegou. Yohana,
querendo saber o que estava acontecendo. E aquilo era
um bom lembrete de que ela precisava avisar Saulo e
Helena, também.
Ela digitou a mensagem depressa, só avisando que
provavelmente estavam seguros e que a parede interna
ia ser desligada. Qualquer coisa além daquilo podia
esperar.
Saulo respondeu na mesma hora, perguntando se
podiam tirar o pessoal das torres e mover os feridos.
Os feridos.
Lara engoliu em seco antes de dizer que sim. Os
feridos, como o atirador que ainda estava inconsciente
contra a parede, com a respiração cada vez mais fraca.
Era óbvio que os animais corrompidos tinham alcançado
mais pessoas. Num ataque daquele tamanho, era
impossível imaginar que aquele atirador fosse ser o único
ferido.
E nenhum deles teria a menor chance de sobrevier,
por causa do veneno.
Depois.
Lara olhou para o monitor. A parede elétrica interna
tinha sido desligada e Melissa estava indo na direção da
torre, com Yuri logo atrás dela. Não ia demorar muito
para Yohana aparecer e provavelmente Saulo ia ir para
lá, também.
Ela guardou o celular e se virou para o homem que
ainda estava encarando os monitores.
— Você conhece ele, não é?
O homem olhou para ela e depois para o outro
atirador.
— Diego? Conheço.
Lara quase preferia não ter um nome para o atirador
ferido.
— Nós vamos movê-lo para o térreo — Eric avisou. —
Se tiver alguém para ajudar a levá-lo para os carros...
O homem assentiu depressa.
— Deve ter alguém lá para dar um jeito nessa
mordida.
Não tinha. Mas Lara não ia falar nada.
Ele desceu pelo alçapão. Lara se virou para fazer a
mesma coisa e Eric segurou seu braço.
— Obrigado — ele murmurou. — Os animais iam ter
passado, se não fosse por você.
Talvez. Ou talvez os vampiros fossem ter dado um
jeito. Mas ela tinha escolhido assumir a responsabilidade.
— É pra isso que estou aqui, não é? — Ela
respondeu.
Eric a soltou.
Lara pulou para o andar de baixo. O homem estava
parado ao lado da porta, encarando as travas de
segurança como se não tivesse certeza de que podia
abrir aquilo.
Ela destrancou a porta e a abriu de uma vez. Melissa
e Yuri estavam parados um pouco para a frente, tomando
cuidado para não pisar nos restos dos animais no chão. E
Lara não ia prestar mais atenção no que estava ali do
que precisava.
Gustavo e Alex estavam bem mais para a frente, no
meio da zona de carnificina – e Gustavo ainda estava na
sua outra forma. O monstro, com as asas vermelho-
sangue fechadas atrás dele e a pele de um tom de preto
que parecia sugar a luz ao seu redor. Os humanos perto
dos carros ainda estavam encarando Gustavo, mas
ninguém tinha pensado em atirar. Ou tinham bom senso
o suficiente para terem pensado que ele tinha destruído
todos os animais e só ficado parado ali, ou então a
balestra que Alex estava segurando tinha sido o
suficiente para fazerem criar bom senso.
E Lara não precisava perguntar se iam entrar na
torre. Pela forma como Gustavo estava parado, olhando
ao redor, era óbvio que ia continuar ali, justamente para
ter tempo de reagir não importava o que acontecesse.
O atirador passou por Lara e parou, olhando para os
lados como se não tivesse certeza do que estava vendo.
— Pode ir — ela falou.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro antes
de correr na direção dos carros. Gustavo se virou na
mesma hora e parou.
Eles definitivamente não precisavam se preocupar
com algum ataque surpresa ali.
Yuri balançou a cabeça e se virou para ver o homem
se afastando.
— Quando Eric falou que tinha uma proposta pra
você, ninguém imaginou que ia virar uma coisa desse
tamanho.
Lara deu de ombros. Ninguém tinha imaginado
aquilo, verdade. Nem ela. E Eric tinha lhe dado a opção
de voltar atrás. Ela havia recusado.
O celular de Lara vibrou, de novo. Ela pegou o
aparelho e encarou a tela por um instante antes de se
virar para Yuri e Melissa, de novo.
— Se vocês querem falar com Eric primeiro, é melhor
irem logo. Tem dois do pessoal que ajudou vindo para a
torre — ela avisou.
Os dois passaram por ela depressa e subiram pelo
alçapão.

Lara cruzou os braços e encarou a poeira levantada pelos carros


que estavam voltando para a cidade. Três carros, mas
eram demais, porque estavam levando os feridos. Os que
iam aproveitar o tempo para se despedir da família e das
pessoas próximas, porque tinham tido contato com o
veneno dos animais corrompidos.
Lá embaixo, a linha de carros tinha se quebrado e o
pessoal das arenas estava tentando guardar suas coisas
e se organizar nos carros e motos. Era quase divertido
como tudo parecia complicado, agora, mas tinha sido
rápido e simples no caos de correr e tentar fazer alguma
coisa.
Dentro da torre, Eric, Tamara, Yuri, Melissa, Saulo e
Helena estavam discutindo o que tinha acontecido ali. De
onde os animais podiam ter aparecido, como tinham sido
tantos deles, o que haviam feito ou deixado de fazer – e
como era interessante que tivessem parado de ir na
direção da fronteira assim que a parede elétrica tinha
sido ligada. Mas Lara definitivamente não queria ouvir
nada daquilo. Ela sabia o que tinha acontecido e o que
tinha feito.
Então ela tinha ido para o alto da muralha. A parede
era larga o suficiente para ela se sentar ali sem o menor
problema e era um lugar onde Lara ia ter privacidade.
Lara sempre tinha sido uma mercenária – e só uma
mercenária. Ela pegava trabalhos que podia fazer
sozinha ou com mais duas pessoas, no máximo. Grupos,
destacamentos? Não para ela, nunca, e ali estava o
motivo. Os carros se afastando.
Alguém se sentou ao seu lado no alto da muralha.
Lara não se virou. Se quisesse falar com alguém, não
estaria ali.
— Você fez o melhor que conseguia — Yuri falou.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar. Claro que ia
ser ele. Yuri era um dos responsáveis pela segurança do
Setor Dez. Quando as merdas aconteciam, era
responsabilidade dele – e de Dani – lidar com a coisa
toda.
E aquilo era motivo mais que o suficiente para ela
não querer falar com Yuri.
Não tinha sido o melhor. Tinha sido pânico e mais
nada. Sorte. Lara havia reagido, só. Se ela tivesse
conseguido pensar melhor no que estava fazendo e
organizar aquilo tudo direito, menos pessoas teriam sido
feridas. Menos pessoas estariam mortas – porque os
feridos nos carros não tinham nenhuma chance de
sobreviver.
Ela não precisava nem ter feito planos ou estratégias
mirabolantes. Só estar acordada antes, ter imaginado
que poderiam ser atacados durante o dia, porque os
vampiros eram arrogantes e nunca esperariam algo do
tipo...
— Nunca parece ser o suficiente — Yuri continuou. —
Eu sei muito bem. Mas eles me contaram o que
aconteceu. Eu não teria feito melhor.
Lara balançou a cabeça. Ela duvidava e muito
daquilo. Yuri não teria sido tão descuidado quanto ela.
— Eu deveria ter pensado nisso — ela falou.
Yuri suspirou. Ele podia falar o que quisesse, nada
mudava os fatos.
— A primeira vez assumindo o comando sempre é
complicada. Quando Dani e eu começamos a cuidar das
coisas no Dez, Ezequiel ainda estava acompanhando de
perto tudo o que a gente fazia e mesmo assim sempre
parecia que não tinha sido o suficiente — ele contou. —
Mas tem uma coisa que você precisa se lembrar.
Lara se virou para ele, sem falar nada.
Yuri sustentou seu olhar.
— Você pediu ajuda. Ninguém que veio para a
fronteira foi obrigado. Eles fizeram uma escolha, sabendo
o que iam enfrentar. Não caia na besteira de esquecer
disso.
Fácil falar. E ele não estava errado. Mas aquilo não
mudava o fato de que, se Lara não tivesse pedido ajuda,
nenhum deles teria sido ferido pelos animais
corrompidos. Nenhum deles estaria morrendo.
E, se ela não tivesse pedido ajuda do pessoal da
arena, os animais teriam invadido o setor.
Nenhuma resposta fácil.
Lá embaixo, as asas vermelho-sangue de Gustavo
desapareceram. Alex falou alguma coisa e Gustavo riu
antes de passar um braço ao redor da cintura delu e
começarem a andar na direção dos carros parados,
passando entre os corpos dos animais.
Lara se levantou e passou por Yuri. O que quer que
ela estivesse pensando, não importava. Sua prioridade
era a missão e aquilo ainda estava longe de terminar. Ela
ainda tinha trabalho a fazer.
DEZENOVE

Alana encostou na parede baixa que separava a sala da cozinha de


Dani – o lugar onde normalmente Alex ficava, quando
tinham alguma reunião ali. Mas Alex estava no Setor
Três, junto com Gustavo, Mel e Yuri.
Raquel entrou na sala sem bater, com Ezequiel atrás
dela. Dante e Adriana, que estavam conversando em voz
baixa perto da janela fechada, se endireitaram. Adriana
foi para o sofá e Dante continuou onde estava. Hábito.
Tudo o que faziam ali era puro hábito, a mesma coisa de
sempre que tinham algum problema. Não que ela tivesse
visto aquilo. Aquela era só a terceira reunião que Alana
era chamada. Mas Dani tinha comentado sobre como
cada um já tinha o seu lugar no espaço apertado da sala.
Ezequiel parou ao lado da porta e Raquel foi para o
sofá. Dani se endireitou.
— Todos já viram os relatórios de Yuri e Alex, não
viram? — Raquel perguntou.
Alana assentiu e não foi a única. Todo mundo ali
tinha ficado esperando as atualizações vindo do Setor
Três, depois de um pedido de ajuda quase sem
informações.
Eles sabiam que os animais corrompidos estavam
avançando para a fronteira durante o dia e mais nada – e
aquilo não deveria ter sido um problema. Alana tinha
passado por fronteiras o suficiente para saber que os
vampiros abusavam das paredes elétricas nas fronteiras
com as terras de ninguém. Mas ela nunca tinha parado
para pensar no que podia acontecer se alguém
desligasse as paredes elétricas durante o dia, porque era
óbvio que os vampiros não iam poder fazer nada contra
os animais corrompidos enquanto o sol estava alto no
céu. E a ideia de sabotagem nunca passaria pela cabeça
de ninguém, porque proteger as fronteiras com as terras
de ninguém era a base de como o mundo funcionava.
Ver os relatórios depois e perceber que tinha sido um
ataque e não só um acidente...
Alana colocou a mão no bolso, sentindo a folha
grossa e carregada de magia que estava ali.
Os relatórios sobre o que tinha acontecido no Setor
Três já eram ruins o suficiente. A última mensagem de
Lorde Rafael, de algumas horas antes, era pior.
— É possível que o que quer que esteja acontecendo
lá tenha acabado — Raquel falou. — Eles mataram
animais corrompidos demais e Eric...
Ela tinha lido aquela parte também. O que Yuri tinha
avisado sobre Eric ter garantido que estava lidando com
os traidores no setor. Não ia fazer diferença.
— Não vai acabar — Alana avisou.
Raquel se virou para ela. E não só Raquel – todo
mundo na sala.
— O que você soube? — Dani perguntou.
Alana apertou o papel no seu bolso. Ela não sabia
por que não tinha só jogado aquilo no lixo, mas não
importava.
— Lorde Rafael sabe que o Três está sendo atacado
— ela contou. — E ele me avisou para não me envolver. É
confirmação mais do que o suficiente de que, seja lá
quem esteja por trás disso, não vão parar.
E Lorde Rafael não ia fazer nada para impedir,
porque seria vantajoso para ele se o Três caísse. O Dez
ficaria sem seus únicos aliados e seriam atacados, com
certeza, porque seria o caminho natural que os animais
corrompidos fariam.
— O que você respondeu? — Amon perguntou.
Alana olhou para ele e sorriu. O vampiro era a única
pessoa ali que entenderia exatamente o que ela tinha
feito.
— Eu disse que ele não precisava se preocupar. Que
mais cedo ou mais tarde ele ia achar outra bruxa da
natureza.
Uma confirmação de que ela ia se envolver, sim, se o
Dez se envolvesse. Um aviso de que Alana não ia recuar
e ficar em segurança porque seria o mais confortável
para ele.
— Isso é coisa dele? — Dante perguntou.
Alana deu de ombros.
— Não tenho como saber. Mas não duvido que seja.
— Os necromantes são a maior ameaça para ele —
Amon contou. — Se a intenção de Lorde Rafael é
reconstruir o que tinha antes da volta da magia, então
ele precisa se livrar deles.
E Alana não queria pensar naquilo – que ela quase
tinha sido estúpida a ponto de acreditar em Lorde Rafael
e em como ele agia com ela. O cuidado, a atenção, a
forma como ele ouvia e entendia exatamente o que
chamava a atenção dela. O tempo todo, tinha sido um
jogo. Por muito pouco, ela não tinha sacrificado o Setor
Dez só porque queria acreditar.
Raquel suspirou.
— Eu deveria ter imaginado que alguma coisa desse
tipo ia acontecer — ela começou. — Mas isso não muda o
fato de que nós vamos ajudar o Três, sim.
Claro que não mudava. Aquilo já tinha sido decidido
em outra reunião, logo depois do aviso de Eric. E Alana
tinha ficado surpresa com a velocidade que tudo tinha
sido resolvido.
Ou talvez ela não devesse nem ter surpreendido.
Todo mundo ali sabia muito bem quem seria o próximo
alvo se o Três caísse de alguma forma.
— Mas nós não podemos ficar indefesos — Ezequiel
completou.
— Tragam Gustavo e Alex de volta — Amon falou. —
Dani e eu podemos ir para lá durante a noite, para o caso
de os necromantes não serem o suficiente.
Raquel balançou a cabeça.
— Faz mais sentido manter vocês aqui e deixar
Gustavo lá. Se algo acontecer e eles não forem o
suficiente, vocês ainda conseguem chegar lá a tempo.
Conseguiriam? Alana não fazia ideia de como,
porque a fronteira que estava sendo atacada não era
perto da fronteira entre o Três e o Dez. Mas Alana tinha
plena consciência de que havia coisas acontecendo que
ela não sabia.
— As forças de defesa e os mercenários ficam aqui,
de qualquer forma — Dani falou. — E Yuri concorda
comigo nisso. Se vamos mover pessoal, tem que ser só
entre nós.
Porque se dessem qualquer sinal de que o setor
estava mais fraco, ou só sem todas as suas forças ali,
alguém ia ver aquilo como uma oportunidade. O Oito, o
Cinco, talvez até o Seis. E, mesmo que Alana tivesse feito
um acordo com Lorde Rafael, aquilo não ia adiantar de
nada se conseguissem atacar o setor tão depressa a
ponto de não terem tempo de pedir ajuda.
Mas Alana não era parte das defesas do Dez.
— Eu posso ir para o Três, também — ela falou.
Dani a encarou e estreitou os olhos.
— Você é uma civil — Ezequiel falou.
Ela se virou para ele. Ezequiel estava parado ao lado
da porta, com a mesma expressão de sem paciência que
ela tinha visto vezes demais quando ele estava treinando
Dani.
— Eu nunca fui uma civil — Alana respondeu.
Não. Ela tinha sido treinada para ser uma feiticeira.
— Ninguém sobrevive nas terras de ninguém sozinho
— Dani falou.
Ezequiel olhou para ela e assentiu.
Alana se virou de volta para a prima.
— Se os animais atravessarem a fronteira, sendo o
Setor Três, é bem possível que eu consiga conter eles.
Porque uma boa parte do Setor Três era coberta por
um pântano – o que queria dizer plantas demais. E a
maior parte do que não era o pântano era plantações. Ela
tinha material demais para usar ali, se precisasse.
Dani assentiu.
— Eu sei. E faz sentido você ir.
Simples assim.
Alana sorriu e tirou a mão do bolso.
Fazia tempo demais que ela não usava seus poderes
de forma ofensiva. Desde que haviam chegado no Setor
Dez, na verdade. E aquilo tinha sido um erro.
As bruxas da natureza eram procuradas por causa do
que elas podiam fazer em um mundo onde era difícil
fazer qualquer planta crescer, sim. Mas, no começo, elas
haviam sido muito mais que só aquilo. E a tatuagem no
braço de Alana vinha justamente daquele passado.

Lara entrou na rua da arena e quase parou quando notou o


movimento perto da entrada. Pessoas demais, entrando
e saindo. Paradas do lado de fora, conversando em
grupos pequenos. Perto dos três carros que ainda
estavam parados ali, os que tinham levado os feridos.
A última coisa que Lara queria era estar ali, mas ela
precisava. Ela havia aceitado aquela responsabilidade
quando tinha concordado com a ideia de Eric – se passar
por consorte. E, se a tal consorte era humana e podia
andar no sol, então ela precisava estar ali, como um sinal
de respeito.
Ela passou entre os grupos de pessoas, sentindo os
olhares nas suas costas, e entrou na arena. O ringue
estava vazio, pela primeira vez. E a área de tiro, que era
separada do galpão por uma parede de acrílico marcado
pela idade, estava cheia. Os feridos tinham sido levados
para lá, como uma forma de dar uma ilusão de
privacidade.
Eles poderiam ter ido para casa. Era o que Lara tinha
imaginado, quando os carros haviam se afastado da
fronteira. Mas fazia sentido estarem ali, também. Para
aquelas pessoas, as arenas eram como suas casas.
Yohana estava lá, do outro lado da parede, com um
dos mercenários que fazia trabalhos junto com ela.
Helena também – e não tinha como Lara não ver a ex-
mercenária no meio dos outros. Mas Helena não estava
perto de alguém em específico. Era mais como se
estivesse ali como um sinal de respeito, também.
E Saulo estava parado do outro lado do galpão, perto
dos bonecos de treinamento.
Lara foi na direção dele. Ela não conhecia as pessoas
ali. Não fazia sentido se intrometer entre os que estavam
se despedindo. Mas fazia sentido estar ali. E seria melhor
se ela não estivesse parada sozinha em um canto.
Saulo assentiu quando Lara parou ao seu lado, sem
desviar o olhar das pessoas do outro lado do galpão.
— Menos perdas que o esperado — ele murmurou.
Só se fosse para ele. Para Lara, ainda era demais.
— Não precisávamos ter perdido ninguém — ela
falou. — Era só termos planos feitos desde o começo.
Ao invés do caos de correr e tentar se virar como
dava, com o que tinham e com quem tinha aparecido na
hora.
Saulo se virou para ela. Lara conseguia sentir o peso
do olhar dele, mesmo que ela estivesse encarando o
movimento de pessoas do outro lado.
Era a verdade. Ela deveria ter feito aqueles planos
desde o começo. Talvez Lara não pudesse reclamar tanto
de como Eric não tinha nem pensado em pedir a ajuda do
pessoal das arenas. Ela sabia que aquilo provavelmente
ia ser necessário, mas não tinha se planejado antes,
também.
E ninguém tinha pensado que alguém seria louco de
tentar derrubar uma parte da fronteira com as terras de
ninguém.
— Você está falando sério — Saulo comentou.
Lara assentiu devagar antes de olhar para ele.
— Ninguém ia ter feito planos pensando na muralha,
mas... — Ela deu de ombros. — Dava para ter organizado
alguma coisa.
Saulo balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não dava.
Ela levantou as sobrancelhas e esperou.
— Não dava — ele repetiu. — Porque ninguém ia
levar nada desse tipo a sério. Nem eu.
Lara começou a balançar a cabeça e parou. Ele tinha
um bom ponto.
— Acho que passei tempo demais no Dez — ela
murmurou.
Mas era verdade. Se ela tivesse tentado organizar
alguma coisa, iam ter rido na cara dela e mais nada,
porque eram humanos. E os vampiros nunca pediriam
ajuda para humanos. Todo mundo sabia daquilo, porque
era como tinha sido desde a volta da magia.
Saulo não respondeu.
Eles continuaram em silêncio, encarando o
movimento. As pessoas entrando e saindo. As conversas
em voz baixa. O choro alto – e o choro contido, que
conseguia ser pior ainda. Algumas pessoas entraram com
uma maca e saíam logo depois, com alguém nela.
Alguém ou um corpo – Lara não sabia e nem queria ter
certeza.
— Ele chamou o pessoal do Setor Dez — Saulo falou.
— Do setor humano. O que não tem uma Corte e mesmo
assim ainda existe.
Lara deu de ombros.
— O Setor Dez tem dois vampiros — ela falou. — Só.
A líder do setor realmente é uma bruxa.
— E Eric chamou o pessoal de lá — ele repetiu.
Lara começou a assentir e parou. Ela estava cansada
demais. Era a única explicação para como tinha
demorado para entender o que ele estava dizendo.
Eric tinha pedido ajuda para o Setor Dez. Para um
setor feito de humanos. Não para outros vampiros.
Saulo não teria acreditado em Lara se ela tivesse
tentado organizar alguma coisa feita pelos humanos,
antes. Mas, agora, estava começando a pensar que podia
acreditar.
Ela sorriu.
— Eric provavelmente está resmungando sobre a
própria burrice por não ter pensado em pedir ajuda do
pessoal das arenas assim que ficou sabendo que alguma
coisa estava acontecendo.
Saulo deu uma risada seca.
— Exagero. Ele até pode...
Lara balançou a cabeça com força.
— Ele falou sobre isso comigo ontem — ela contou.
— Depois da coisa toda no cemitério. Não exatamente
sobre uma força de defesa humana, mas sobre levar o
setor numa direção em que os humanos não sejam só
lanche.
Saulo a encarou.
Lara sustentou o olhar dele. Aquilo era o motivo para
ela estar ali. A lealdade das pessoas que haviam
conhecido seu pai, sim. Mas não só os vampiros. Eles
seriam convencidos com poder bruto. Com serem
lembrados de o que os necromantes eram. Mas um setor
não existia sem sua população humana.
— Vocês têm uma oportunidade — Lara falou. — Eric
é um necromante, mas não é como os príncipes de
antes. Agora, se essa oportunidade vai virar realidade, aí
depende muito mais de vocês do que de mim.
— Você acredita que ele está falando a verdade.
Lara assentiu.
Saulo continuou a encarando por alguns segundos
antes de assentir também, devagar, e olhar para o outro
lado da arena de novo.
Ótimo. Ele ia pensar no que ela tinha falado. E
provavelmente ia repetir aquilo para mais pessoas. Era o
que importava. Com sorte, eles mesmos aproveitariam
aquela oportunidade até antes de Eric pensar em alguma
coisa mais concreta.
Lara cruzou os braços e encostou na parede, sem
falar mais nada.
Mais uma maca saiu da arena.
Ela não queria continuar. Mas ela devia aquilo para
todos que tinham se arriscado.

Eric encarou a mulher na sua frente. Alana Novaes. A feiticeira


de Lorde Rafael – mas, acima de tudo, uma bruxa da
natureza que era leal ao Setor Dez.
Melissa e Yuri tinham lhe avisado que o Setor Dez
mandaria mais alguém, já que eles iam voltar. Gustavo e
Alex ficariam ali, porque Gustavo, sozinho, conseguiria
conter a pior parte de outro ataque, se fosse necessário.
E Eric não duvidava, depois do que tinha visto.
Mas ele não tinha esperado chegar na porta da sua
casa e encontrar Alana Novaes ali, como se estivesse
esperando por ele. E mais interessante ainda era como
ela estava sozinha, sem o menor sinal de como havia
chegado ali.
A bruxa sorriu.
— Se você não estava esperando me encontrar aqui,
aposto que quem está por trás disso também não vai
esperar.
Não, não iam, pelo simples fato de que ela sempre
havia evitado chamar atenção. Alana passara anos no
Setor Dez antes de alguém começar a suspeitar da
presença de uma bruxa ali.
Ele assentiu.
— Ninguém vai esperar uma bruxa da natureza,
principalmente considerando seu casamento.
Alana revirou os olhos.
Um ruído suave fez Eric se virar. Gustavo – a criatura
com as asas cor de sangue – pousou um pouco para trás
e soltou Alex. Elu continuou parade no lugar, com os
olhos fechados, e não era difícil adivinhar o motivo: voar
era desorientador, para quem não tinha o costume.
Eric tinha oferecido um dos carros para o casal voltar
para a cidade, mas haviam recusado. Ele deveria ter
entendido antes. Voar era mais fácil – e mais rápido,
também, se haviam chegado pouco depois dele.
— Então ele não é um dos que resmunga sobre isso
não ser lugar para uma bruxa da natureza? — Alex
perguntou.
Alana riu.
— Pelo menos, não até agora.
Eric balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Já vi o que bruxas da natureza podem fazer — ele
contou. — E sei o suficiente para entender o que uma
bruxa tatuada significa.
Alana sorriu.
Aquilo tinha sido a primeira coisa que Eric havia
notado: a tatuagem de galhos de árvore subindo pelo
braço direito da bruxa. Era uma versão da mesma
tatuagem que Daniele tinha mas, enquanto a da vampira
era galhos sem mais nada, a de Alana era galhos com
folhas. Muitas folhas e tudo em cores vivas.
Podia ser uma tatuagem comum, sim. Mas, em uma
bruxa, aquele tipo de coisa sempre tinha significado. E
bruxas não tatuavam nada relacionado ao seu poder a
menos que tivessem sido treinadas – e consideradas
prontas para o que quer que viesse depois.
Eric olhou para a porta da sua casa. Ela se abriu. Por
sorte, ele havia dado instruções para prepararem dois
quartos, mais cedo, antes de Melissa e Yuri avisarem que
iam voltar para o Dez. Alana podia ficar com um dos
quartos.
— Meu pessoal preparou quartos... — ele começou.
O cheiro doce o cercou e Eric se virou.
Lara estava indo na direção da casa, andando
devagar. Ele não precisava nem que ela chegasse perto
para saber que Lara estava exausta. Aquilo era mais que
visível na forma como ela estava andando. Não. Exausta
não era a palavra certa, porque era algo físico demais.
Ela estava esgotada, depois de tudo.
— Lara — ele chamou.
Ela levantou a cabeça e encarou Eric por um instante
antes de olhar para onde Gustavo e Alex estavam e
depois para Alana.
Eric não falou mais nada enquanto Lara acelerava o
passo.
— Já acabou, para os humanos — ela murmurou.
Os feridos. Os que haviam morrido porque Eric nunca
pensara na possibilidade de serem atacados na fronteira
durante o dia. Porque ele havia confiado na honra dos
outros vampiros, mesmo que soubesse bem demais
como a honra desaparecia depressa, quando algo que
lhes interessava surgia.
Mas havia sido Lara quem estivera lá para as
despedidas dos humanos, porque eram humanos. Era ela
quem estava carregando aquele peso.
Eric indicou a porta com um movimento de cabeça.
Lara passou por ele e entrou, sem falar nada. Os
outros humanos a seguiram.
A porta se fechou atrás de Eric.
— Vocês vão ficar com a fronteira de dia, então? —
Lara perguntou.
Alana deu de ombros.
— Vocês que sabem como a situação está...
— Vamos — Alex falou. — Gustavo e eu podemos
ficar na muralha.
A pior parte era que Eric não duvidava que seriam o
suficiente. Ou melhor, que Gustavo seria o suficiente.
— Eu ainda acho que precisamos de alguém vigiando
os geradores — Gustavo avisou. — Eu vi um filme uma
vez. Que o pessoal explodia uma hidrelétrica pra
derrubar a energia e passar pelas defesas de um lugar.
Alex deu uma risada e balançou a cabeça.
— Vou ter que pensar melhor nos filmes que te
coloco para assistir.
— Eles não precisam explodir nada — Alana falou. —
É só desligar o sistema e dizer que foi uma falha. Foi o
que fizeram quando o Oito atacou o Dez. Eles nos
deixaram sem energia.
Eric encarou a bruxa. Ele não fazia ideia daquilo, mas
agora tudo fazia muito mais sentido. O Setor Dez tinha
paredes elétricas móveis, que podiam instalar onde fosse
necessário. Era óbvio que teriam usado algo do tipo para
conter o Oito.
— E é exatamente por isso que Alana é a pessoa
perfeita para ficar nos geradores — Alex completou.
Porque eles estavam perto o suficiente das
plantações para ela ter muito o que usar.
— Se vocês estão falando isso porque tem plantas
por perto, perfeito — Alana falou.
— E eu posso ajudar, também — Lara avisou.
Não. Ela não deveria ajudar em nada. A única coisa
que Lara deveria fazer era descansar, porque haviam
sido três dias sem tempo para respirar...
E Eric não tinha o menor direito de dizer nada
daquilo.
Oferecer aquela proposta para alguém que sempre
parecera o chamar do jeito que Lara chamava tinha sido
um erro. E ele precisava consertar aquilo, também.
— Você provavelmente ainda vai ter que lidar com o
pessoal da cidade — Gustavo falou.
Lara soltou o ar com força.
— Ficar de vigia é mais fácil.
Ela não estava errada.
— Mas então vai ser isso? — Lara perguntou. —
Tamara e o pessoal dela de noite e vocês de dia?
Alex assentiu.
— E se alguma coisa acontecer, você vai ser a
primeira a ficar sabendo.
Eric limpou a garganta. Ele ainda era o príncipe.
Alex olhou para ele e levantou uma sobrancelha
antes de encarar Lara de novo.
— Se alguma coisa acontecer, você vai ser a
primeira a ficar sabendo — elu repetiu. — Porque é você
que vai conseguir fazer alguma coisa.
Eric não podia nem dizer que aquilo havia sido um
desafio, porque Alex só o dispensara com um olhar. E a
pior parte era não poder discutir porque, tecnicamente
falando, elu não estava errade.
— Certo — Lara respondeu. — Nesse caso eu...
— Eu vou levar vocês para os quartos que já foram
preparados — Eric interrompeu.
Lara assentiu e foi na direção da escadaria.
— Se você vai levar eles, então eu vou dormir.
Ele se virou para ela. Não era difícil entender que
Lara estava tentando fugir – ou melhor, colocar distância
entre eles. E aquilo era totalmente sua culpa, por causa
de como havia agido na torre.
Lara podia ir, por enquanto. Mas Eric iria atrás dela
depois – e esperava que ela tivesse consciência daquilo.
VINTE

Lara jogou sua última faca em cima da mesa sem muito cuidado.
Outra das facas caiu no chão, mas ela não se deu ao
trabalho de pegar. Ela estava fisicamente cansada,
depois de tudo o que tinha acontecido na fronteira, e
emocionalmente exausta depois das horas na arena,
assistindo enquanto os humanos feridos eram levados
um por um.
Três dias. Só três dias.
Ela deveria ter imaginado que, o que quer que
estivesse acontecendo, não ia ser tão simples quanto
Eric tinha feito parecer quando havia feito aquela
proposta. Nada que fizesse um vampiro pedir ajuda de
uma humana podia ser tão simples, não importava o que
ele tivesse pensado.
E Lara tinha imaginado muita coisa quando estava
pensando no tal do "se passar por consorte", mas não
que ficaria de testemunha enquanto outros humanos se
despediam das suas famílias.
A pior parte era saber que não tinha acabado. O que
quer que estivesse acontecendo, aquilo provavelmente
tinha sido só o começo. O primeiro ataque. Lara não
sabia nem se podia pensar em dormir, sabendo que a
qualquer hora podiam atacar a fronteira de novo, mas ela
precisava de descanso. Se alguma coisa acontecesse de
noite, os vampiros precisavam conseguir se virar. Era a
hora deles.
Alguém bateu na porta.
"Alguém". Como se ela tivesse a menor dúvida de
quem seria.
Lara atravessou o quarto e abriu a porta. Eric a
encarou por um instante antes de oferecer uma taça de
vinho. Vinho com sangue, com certeza, e de repente Lara
não queria aquilo. Não quando tinha se acostumado com
as taças sendo aquele jeito de Eric ser cuidadoso, mas
não porque ela era humana. Frágil.
— Não — ela falou.
Eric balançou a cabeça.
— Você está exausta.
Ela sabia muito bem.
— Nada que umas horas de sono não resolvam —
Lara respondeu.
Como sempre tinham resolvido.
Ela se virou e puxou a porta.
— Lara — Eric chamou.
Ela respirou fundo e olhou para ele.
Eric ofereceu a taça de vinho de novo.
— Por favor — ele falou.
Se ele tivesse pedido de qualquer outro jeito, Lara
teria recusado. E não era pirraça. Ela não precisava do
sangue dele. Uma noite de sono ia ser mais que o
suficiente para ela conseguir fazer o que precisasse no
outro dia. O sangue facilitava, sim, mas não era uma
necessidade. Ela não colocaria uma missão em risco
daquele jeito.
Ela pegou a taça e tomou um gole. A sensação
elétrica se espalhou pelo seu corpo e Lara quase
conseguia sentir o cansaço desaparecendo. Aquilo era
cômodo, sim.
Mas não mudava o fato de que ela preferia não ter
aceitado aquela taça.
E Eric ainda estava parado na porta.
O que ele faria se ela só batesse a porta na cara
dele?
Infelizmente, Lara era profissional demais para fazer
aquilo. E, no fim das contas, ela estava irritada por causa
de uma coisa que tinha sido erro seu. Ela tinha se iludido
e mais nada.
Lara virou o vinho de uma vez. Um desperdício,
porque aquele vinho era bom e merecia ser ao menos
apreciado, mas ela não estava com disposição nenhuma.
Eric estreitou os olhos. Ela entregou a taça para ele e
deu um passo para trás, mais para dentro do quarto, se
preparando para fechar a porta.
Ele entrou e colocou a taça em cima da cômoda
perto da porta.
— Nós precisamos conversar.
Lara balançou a cabeça.
— Não tem nada para conversar. Você finalmente
lembrou que eu sou humana e não uma vampira que
pode sair no sol. — Ela deu de ombros. — Não é difícil de
entender.
Eric fechou a porta com mais força do que Lara tinha
esperado e se virou para ela. Os olhos dele estavam
escuros – não como quando ele usava podee demais,
mas como tinha acontecido aquela noite no clube.
— Eu nunca esqueci que você é humana — ele falou.
Um arrepio atravessou Lara. Tinha algo na voz dele
que era novo e que era um aviso de perigo. Não que Lara
se importasse com aquilo.
Ela voltou para perto da cama – e para perto de onde
suas facas estavam.
— Eu notei — Lara avisou. — Noite passada, quando
Alana mandou aquela mensagem, que Val tinha falado
com ela... Foi aí, não foi? Não foi só o clima que acabou.
Foi tudo, porque nem me avisar que tinha alguma coisa
acontecendo na fronteira você avisou, depois.
E na fronteira ainda tinha tido aquilo tudo sobre
recusar o sangue dela e só beber por causa de uma
ameaça. Não era difícil de juntar os pontos.
Uma humana estava abaixo de um príncipe de
formas demais. Ela tinha se iludido, sim, e ele
provavelmente só havia se distraído. Ou agido por causa
do poder e mais nada.
Eric se moveu. Num instante ele estava perto da
porta, no outro ele estava na frente de Lara e ela estava
contra a parede, sem nenhuma chance de alcançar suas
facas.
— Não foi a mensagem — ele falou, com o mesmo
tom de perigo na voz. — Foi você.
Ela apoiou os punhos fechados no peito dele. Não
adiantava tentar empurrar Eric e ela estava desarmada.
Mas ela podia esperar ele relaxar – e manter um mínimo
de distância entre eles até lá.
— Eu — Lara repetiu.
Ele assentiu.
— Você. O seu comentário sobre ir embora.
Lara balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar. Não fazia sentido. Ela mal se lembrava de ter
falado alguma coisa...
Quando ela tinha perguntado se sempre ia ser a
forma de Eric gastar a adrenalina do poder. Lara tinha
falado algo sobre ele ter mais trabalho quando ela fosse
embora. Pelo menos, ela achava que tinha falado, porque
não estava nem em condições de pensar naquela hora.
Mas, se ele tinha reagido daquele jeito por causa de
um comentário sobre ela ir embora...
Lara abaixou as mãos.
Ela estava entendendo errado. Estava entendendo o
que queria, não o que realmente estava acontecendo.
Era a única explicação.
Eric segurou os pulsos dela por um instante antes de
a soltar e dar dois passos para trás. Os olhos dele ainda
estavam escuros e não tinham nada da calma que era o
normal de Eric, mas o que quer que aquilo fosse, Lara
não tinha certeza de que estava interpretando certo.
Ou melhor, não tinha certeza de que estava vendo o
que queria, e não a realidade.
— Eu te ofereci um acordo — Eric falou. — Um
contrato. Não tenho que ir além disso.
Não, não tinha, e os motivos eram exatamente a
mesma coisa que Lara tinha falado antes: ela era
humana. Eric só estava dando voltas para dizer a mesma
coisa.
E se ele queria insistir naquilo, Lara conseguia
pensar em um jeito fácil de fazer Eric sair do quarto e
deixá-la em paz.
— Eu preciso dormir — ela falou.
Eric deu mais dois passos para trás e parou, sem
desviar o olhar do dela.
Era só ele ir embora. Não era assim que funcionava?
Não era ele a pessoa que tinha tanto cuidado o tempo
todo, que insistia para Lara comer, que tinha levado a
taça de vinho com sangue? Então ele deveria estar
saindo depois daquilo.
Eric deu uma risada seca.
— É mais fácil fazer ameaças para os vampiros do
setor do que achar as palavras certas agora.
Lara cruzou os braços.
— É só falar — ela murmurou.
Injusto, talvez. Ela sabia muito bem como não era
tão simples assim. Mas a última coisa que Lara queria
era fazer aquela situação durar mais. Eric ali, no quarto,
com aquela expressão que ela queria que fosse algo que
provavelmente não era. Quanto mais depressa aquilo
acabasse, melhor.
Eric balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar. Lara nunca tinha visto ele parecer tão incerto e
aquilo era mais um motivo para ela querer acabar com
aquilo. Aquele lado de Eric era humano demais, mesmo
que os olhos dele estivessem escuros de um jeito que só
era possível com vampiros.
— Eu quero que você fique — Eric falou. — E não é
justo te colocar em uma posição impossível, porque eu
quero algo além do que tenho direito.
Lara parou e engoliu em seco.
Ela não estava vendo só o que queria. Eric realmente
tinha falado aquilo.
Ele queria que ela ficasse, não por causa do
contrato, mas por ela.
E agora tudo o que ele tinha feito no último dia
parecia diferente. A forma como o clima tinha
simplesmente acabado, de noite, e eles tinham ido para
a cozinha. A forma como ele não tinha chamado Lara
quando tinha recebido o aviso sobre a fronteira. A recusa
em beber o sangue dela.
Não era porque ela era humana e inferior. Era
porque ele estava se afastando para não ser pior, depois,
porque Eric queria mais.
Da mesma forma que Lara queria mais. A questão
era...
Era fácil querer mais quando ela tinha aquela rede
de segurança que era pensar que qualquer coisa daquele
tipo era impossível. Pensar que ela estava se iludindo era
uma garantia de que nada ia acontecer para valer.
Qualquer coisa que rolasse era só um momento e mais
nada.
Depois de ouvir aquilo...
Eric xingou em alguma língua que Lara não conhecia
e pegou o celular.
— Os vampiros estão se reunindo — ele falou. —
Preciso ir e organizar as forças do setor, mas...
Porque quem quer que estivesse por trás daquilo não
ia parar.
Lara assentiu e se virou para a mesinha com a suas
facas e armas. Ainda tinha coisas demais acontecendo.
E, depois daquela taça de vinho com sangue, não era
como se ela ainda estivesse completamente esgotada.
Cansada? Sim. Mas ela não precisava ficar ali.
Ela começou a prender as bainhas das facas na sua
roupa, de novo.
— Você não precisa ir — Eric falou.
Porque eles tinham um contrato e ela já estava
fazendo sua parte. Lara não precisava fazer nada além
daquilo.
Mas, se Eric não queria que ela fosse embora...
Ela se virou. Ele estava parado no mesmo lugar,
ainda com o celular na mão, e olhando para ela.
— Eu quero — Lara respondeu.
Eric sustentou seu olhar e por um instante Lara teve
a impressão de que ele estava entendendo muito mais
do que ela tinha falado.
Ele assentiu.

Eric encarou os vampiros se afastando, andando devagar pelas


ruas da cidade. Aquilo era quase cotidiano – vampiros
cuidando dos seus negócios, não importava se era algo
real ou só mais alguma busca por prazer. Mas ao mesmo
tempo não era, porque ele havia passado a última hora
repassando instruções para o combate que aconteceria,
mais cedo ou mais tarde. Então os vampiros cuidariam
dos seus negócios, sim. E depois se preparariam, porque
quando chegasse a hora, quem não estivesse em sua
posição seria destruído.
E, daquela vez, Lara não havia precisado dizer que a
ameaça era necessária. Ele sabia. Eric conhecia bem
demais os vampiros do seu setor e aquele era parte do
motivo para ele ter passado tanto tempo sem tentar
fazer nada, mesmo que estivesse vendo o setor
desmoronar. Muitos ali não fariam nada se pensassem
que poderiam apenas esperar enquanto os outros
defendiam o setor.
Outros tantos haviam reconhecido Lara – os mais
velhos, principalmente. Os que haviam convivido com o
pai dela, antes que Oscar voltasse a ser humano. Os que
Eric pensara que nunca seguiriam suas ordens, a menos
que tivessem um motivo externo para confiar nelas.
Tinha sido a presença de Lara ali que lhe dera a
obediência deles, mesmo que não da forma como Eric
havia imaginado. Ainda era cedo para falar sobre
lealdade, mas eles o seguiriam, porque tinham medo das
consequências. Aquela noite no cemitério havia deixado
sua marca – e ela era culpa de Lara, porque Eric
provavelmente não teria feito algo daquele tipo por conta
própria.
Lara, que havia ido com ele para a praça porque
queria, mesmo depois de Eric dizer que queria mais do
que tinha direito.
Eric se virou para o outro lado da praça. Terem se
reunido ali era algo incomum, por ser um lugar público,
mas era o único espaço grande o suficiente onde ele
podia exigir a presença de todos. E não era como se algo
do que havia sido discutido fosse segredo. Muito pelo
contrário: ele queria que os humanos soubessem o que
os vampiros estavam planejando.
E os humanos haviam ouvido, sim. Eles haviam
parado mais afastados, perto das paredes das casas,
mas estavam lá o tempo todo enquanto ele estava
falando. Eric reconhecera alguns deles, os que tinham ido
para a fronteira, mais cedo. Dois deles eram os que
haviam liderado os humanos, lá: Saulo e Helena. E era
com eles que Lara estava conversando.
Aquilo era o que ele queria. Ela ali, fazendo Eric ver o
que estava deixando passar. Fazendo o papel que ela
mesma havia dito que era necessário – ser um ponto de
contato para os humanos, a pessoa em quem eles
confiariam para ouvi-los. Por muito tempo, Eric não havia
conseguido nem mesmo imaginar ter alguém ao seu
lado, daquele jeito. E não era apenas sobre o setor. Eric
não queria imaginar como seria quando Lara fosse
embora.
Se ela fosse embora – porque Lara não havia
recuado depois do que ele tinha falado, mas aquela era
uma conversa que teriam que terminar depois.
Seu celular vibrou. Eric encarou o aparelho. Ícaro
tinha informações, o que queria dizer que Tamara ou
algum dos contatos do próprio Ícaro haviam conseguido
mais dados para ele.
Eric foi na direção de onde Lara e os humanos
estavam. A mulher que estava falando, Helena, se calou
assim que viu que ele estava se aproximando.
Lara se virou para ele.
— Precisamos de alguma coisa já organizada se o
pessoal das arenas precisar ir pra fronteira — ela avisou.
— Não dá pra depender de entrarem em contato com
Ícaro pra conseguir carros, não.
Um dos humanos perto deles, que Eric se lembrava
de ver na fronteira mas não sabia o nome, se endireitou
quase como se estivesse se preparando para fugir.
Provavelmente por causa de como Lara tinha falado.
Eric assentiu.
— Vamos providenciar transporte e deixar tudo
preparado — ele falou. — E armas também, se você não
achar que for um risco.
Um risco de terem humanos que aproveitariam a
chance de ter acesso a armas para se virar contra os
vampiros. Em qualquer outra época e situação, Eric não
se importaria muito com aquilo. Vampiros sabiam se
defender e, quando eram atacados por humanos, não era
sem motivo. Mas ele não aceitaria nada daquele tipo
quando o setor estava em risco.
Lara assentiu.
— É uma boa ideia. E sabe o que mais seria uma boa
ideia? — Ela perguntou.
Eric levantou as sobrancelhas e esperou.
— Patrulhas humanas — Lara falou. — Como o Setor
Dez faz ao longo da fronteira toda.
— Porque não temos nenhuma garantia de que vão
continuar atacando apenas naquela região — ele
completou.
Lara sorriu.
O humano mais velho – Saulo – limpou a garganta.
— Estávamos falando sobre isso — ele contou. —
Não temos ninguém que tenha sido treinado
especificamente para isso, mas podemos dividir alguns
grupos.
Eficiência. Aquilo era Lara.
Eric assentiu.
— Alguém do meu pessoal vai entrar em contato
com você durante o dia — ele falou. — Deve ser tempo o
suficiente para se organizarem.
Saulo olhou para Lara e depois para a outra mulher
com eles antes de assentir.
E a outra mulher – Helena, que se ele não estava
enganado havia trabalhado como mercenária por muitos
anos – estava olhando para algo mais atrás deles.
— O que é isso? — Ela perguntou.
Eric se virou, procurando o que a mulher estava
encarando. Mas a única coisa diferente na praça era a
névoa fina se espalhando pelo chão...
Ele sorriu e olhou para os humanos de novo.
— Isso é a Corte da Névoa espalhando seu poder —
Eric avisou. — Os necromantes estão prontos para
levantar o que for necessário para defender o setor.
Aquelas ordens ele havia dado antes. Todos os
necromantes estariam de prontidão a noite toda – e
preparados para agir durante o dia também, se fosse
necessário.
O humano mais velho encarou a névoa e engoliu em
seco antes de olhar para Eric de novo, tomando cuidado
para não encontrar os olhos dele.
— A maior parte do pessoal já deve estar na arena
por volta das nove — ele avisou.
— Cedo assim? — Lara perguntou.
Saulo e Helena assentiram.
— Uma boa parte do pessoal falou que ia aparecer
mais cedo só para o caso de ter mais merda acontecendo
— Helena falou.
Lara assentiu como se aquilo fizesse sentido. E
talvez fizesse. Eric nunca havia prestado muita atenção
nos humanos e muito menos no pessoal das arenas em
específico.
— Meu pessoal vai entrar em contato com vocês,
então — ele repetiu. — E temos informações novas, Lara.
Ela assentiu de novo e encarou os dois humanos.
— Qualquer coisa, vocês sabem como me achar —
ela avisou.
Saulo revirou os olhos. Helena bateu uma mão no
bolso – provavelmente onde ela estava guardando um
celular.
Eric inclinou a cabeça na direção dos humanos antes
de oferecer uma mão para Lara. Ela aceitou.
VINTE E UM

Lara encarou o mapa na parede da sala de Ícaro. Ela conseguia


sentir um quase escudo ao redor da sala, além da
coleção de defesas ao redor da casa, mas aquilo era
diferente. Não era o mesmo tipo de sensação. Se ela
precisasse adivinhar, diria que era alguma coisa para
bloquear som ou mais – alguma coisa para garantir que
ninguém teria acesso às informações ali. Pelo menos era
a única coisa que fazia sentido na cabeça dela.
O que não fazia sentido era o mapa. Lara tinha
parado para olhar ele antes, no dia que tinha chegado no
setor, e as marcas nele haviam mudado demais.
— Ícaro? — Eric chamou.
O outro vampiro levantou a cabeça e olhou na
direção deles antes de encarar o mapa, também.
— Tamara conseguiu mais informações — Ícaro
começou, indo até onde eles estavam e apontando para
algumas marcas no mapa. — Ela mandou alguns grupos
nas terras de ninguém...
— O risco... — Eric começou.
Ícaro balançou uma mão, sem nem olhar para Eric,
como se aquilo não tivesse importância nenhuma.
Lara conteve a vontade de sorrir. Era bom ver que
ela não era a única que tratava Eric com aquele tipo de
casualidade. Mas, daquela vez, ela concordava com Eric.
Enviar qualquer um para as terras de ninguém depois do
que tinha acontecido – depois de terem descoberto que
um dos vampiros entre o pessoal de vigilância tinha
recebido ordens para destruir os outros – era um risco
grande demais. Não terem informações também era um
risco, mas...
Ela respirou fundo. Se Lara estivesse pensando na
possibilidade de não voltar para o Setor Dez e continuar
ali, então ela precisava começar a enfiar na cabeça que,
nos conflitos dos vampiros, perdas eram inevitáveis,
muito mais do que na maioria das missões que os
mercenários aceitavam.
— Os grupos estavam no campo de visão uns dos
outros — Ícaro falou, depressa. — E todos tinham
necromantes. Tamara mandou falar que ela pode estar
correndo riscos, mas não mais que o necessário.
Eric fez um ruído irritado e não falou mais nada.
Ícaro apontou para uma das marcações no mapa de
novo. Era uma das que não estava ali antes, uma linha
nas terras de ninguém, indo na direção do Setor Oito.
Oito. Claro que o Oito ia estar no meio, e não só por
aquela parte da fronteira ser a mais perto deles. Lara
tinha feito alguns trabalhos dentro do Oito e não tinha
gostado do que havia visto lá. De alguma forma, eles
conseguiam ser piores que o Seis. E, além disso, ela
conhecia as histórias sobre o que eles já tinham feito.
Décadas antes, o Oito tinha atacado o Quatro, até não
sobrar nada do setor. E, por mais que parecia que eles
tinham motivos para atacar, na época, tudo o que Lara já
tinha ouvido a respeito só fazia ela ter certeza de que
qualquer motivo não era um bom motivo.
E, depois, a forma como tinham atacado o Dez. Lara
tinha assistido aquilo, sim, sem poder fazer nada porque
não podia chamar atenção. Aqueles ataques haviam
começado logo depois de ela descobrir que Arman
suspeitava que Val estava no Seis, então Lara tinha feito
o que precisava.
Mas, além disso, havia histórias. Lara tinha ouvido
boatos de que mais setores haviam tentado se formar
naquela região, só para serem absorvidos pelo Oito.
Considerando o que ela tinha visto nas suas missões lá,
ela não duvidava nem um pouco.
— O Setor Oito está envolvido — Ícaro continuou. —
Não quero dizer que eles são responsáveis, porque uma
coisa desse tipo e desse tamanho não é o estilo deles.
Cassius não faz planos a longo prazo. Isso aqui é a
direção que a maioria dos rastros dos animais
corrompidos fez. Os rastros vão na direção da fronteira e
parece que eles têm um curral ou algo do tipo.
Lara se endireitou. Se tinha uma palavra que ela
tinha esperado não ouvir tão cedo, era aquela. Ela não
tinha se esquecido de quando havia achado os currais de
carniçais, no Setor Cinco.
E o Cinco tinha usado animais corrompidos para
alimentar os carniçais.
— Quais as chances de isso ter alguma ligação? —
Ela murmurou.
— Isso o quê? — Ícaro perguntou.
— O Cinco usava animais corrompidos pra alimentar
os carniçais. E o Oito está criando animais corrompidos,
aparentemente. — Lara deu de ombros. — Seria trabalho
demais fornecerem os animais para o Cinco, mas no
sentido de terem aproveitado a ideia, de alguma forma...
Ícaro levantou uma mão e se afastou do mapa
depressa. Lara nem se surpreendeu quando ele voltou
para a mesa e para os tablets e monitores espalhados
por lá.
E Eric estava olhando para ela, com aquela
intensidade que fazia Lara praticamente sentir o peso do
seu olhar.
Ela se virou para ele.
— Depois — Eric murmurou. — Temos um assunto
inacabado.
Sim. Eles com certeza tinham e iam resolver aquilo.
Porque se Eric realmente tinha falado que não queria que
Lara fosse embora, então era hora de ela começar a
levar o que pensava que fossem só ilusões mais a sério.
Lara assentiu antes de olhar para o mapa de novo.
Tinha outra coisa que ela quase havia se esquecido...
— Se o Oito está planejando isso faz tanto tempo...
— "Planejando" é uma palavra forte demais — Ícaro
interrompeu, sem levantar a cabeça.
Lara deu de ombros.
— Fazendo o que quer que seja isso, então — ela
continuou. — Mas se não é algo recente, será que não
tem alguma coisa a ver com como eles estavam ficando
sem recursos?
Ninguém respondeu.
Ela se virou para Eric e nem se surpreendeu ao ver
ele trocando um olhar com Ícaro.
— Quando você ouviu isso? — Eric perguntou.
Lara respirou fundo e soltou o ar com força. Era só o
que faltava – mais uma coisa que ela tinha certeza que
era de conhecimento comum, mas que no fim das contas
não era.
— Isso estava rodando entre os mercenários já faz
tempo — ela contou. — Que os recursos deles estavam
acabando e que não ia demorar muito pra chegarem
num ponto crítico. Cheguei a ver gente falando que
tinham só uns anos antes da situação ficar insustentável.
Eric balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Nós nunca ouvimos nada desse tipo. Ícaro?
O outro vampiro balançou a cabeça também, sem
parar o que estava fazendo nos tablets.
Lara deveria ter imaginado aquilo, porque era uma
informação que tinha se espalhado entre os mercenários.
O que queria dizer que era algo sendo repassado entre
os humanos. Os vampiros não ouviriam nada, do mesmo
jeito que os vampiros do Setor Três não sabiam que um
ponto da fronteira historicamente tinha a vigilância bem
pior que os outros, mas todos os humanos ali sabiam.
— Então das duas uma — ela começou. — Ou os
vampiros estão escondendo isso das outras Cortes, ou
então alguém apareceu pra financiar alguma coisa e
resolver a situação. Mas é bem possível que tenham
ficado sem recursos por causa de um plano a longo
prazo.
Ícaro resmungou alguma coisa que Lara não
conseguiu entender e se levantou, segurando um dos
tablets.
— Eu devia ter lembrado disso antes — ele falou.
Lara cruzou os braços e esperou.
O vampiro virou o tablet na direção dela e de Eric,
mas Lara não fazia a menor ideia do que estava vendo.
Era um gráfico, com linhas de cores diferentes subindo e
descendo de um jeito que era mais que óbvio que
significava alguma coisa.
— Ícaro... — Eric começou.
— São leituras passadas — Ícaro explicou. — Bem
passadas. E elas encaixam com o padrão de poder do
curral de carniçais no Cinco. Não são a mesma coisa,
mas...
Não.
— Você está falando que o Oito tem carniçais? —
Lara perguntou.
Ícaro balançou a cabeça.
— Não. Isso faz tempo demais e esses padrões e
específico desapareceram faz décadas. Mas eles
existiram, o que quer dizer que as tentativas de recriar
carniçais começaram no Oito.
— E o Cinco só aproveitou o que eles já tinham
começado — Lara murmurou.
— Ou Cordelia roubou a informação deles — Eric
completou.
Cordelia... Dama Cordelia, a princesa do Setor Cinco.
Então era verdade que ela conseguia ler mentes ou
alguma coisa assim. Lara sempre tinha feito questão de
ficar o mais longe possível dos vampiros de lá por causa
daquilo, mesmo que achasse que fosse só um boato. Ela
tinha segredos demais para arriscar e agora estava mais
do que feliz por ter sido paranoica.
— Quero que tente achar mais sobre isso — Eric
falou. — Uma ligação entre o Oito e o Cinco. Mas vamos
trabalhar partindo do princípio de que eles estão
trabalhando juntos.
— O que quer dizer que o Nove e o Seis
provavelmente também estão envolvidos — Lara
comentou.
Porque o Nove quase sempre se aliava com o Oito e
o Seis tinha mais acordos com o Cinco do que a maioria
das pessoas suspeitava.
Talvez Melissa soubesse mais alguma coisa naquele
sentido.
— Melissa tinha uma posição alta na Corte do Seis —
ela falou.
Eric assentiu.
— Vou entrar em contato com o Dez. Preciso
repassar tudo isso para eles, também.
E, com sorte, eles teriam mais alguma informação
também.
Lara encarou o mapa de novo. O Setor Três tinha
uma área enorme de fronteira com o Oito, outra área
enorme de fronteira com as terras de ninguém e um
espaço menor de fronteira com o Cinco e o Seis. O Dez e
o Sete não eram problemas, mas...
— Vamos precisar das patrulhas em todas as
fronteiras, sim — ela falou. — E isso inclui as fronteiras
internas.
Eric assentiu.
— Já tenho pessoal reorganizando as forças de
defesa do setor — ele contou. — E estava falando sério
quando disse que um dos meus vai entrar em contato
com o pessoal das arenas.
Ótimo. Lara não tinha pensado que ele tinha falado
aquilo à toa, mas era bom ter uma confirmação de que
Eric não ia ignorar os humanos. Depois do que tinha
acontecido durante o dia, fazer aquilo seria suicídio.
E, depois do que tinha acontecido durante o dia,
sangue não seria o suficiente para fazer Lara se
recuperar, ainda mais considerando que aquilo não tinha
terminado. Ela precisava dormir, porque provavelmente
estaria cedo na arena, também. Ou então estaria ali, na
sala de Ícaro, refazendo planos.
— Preciso dormir — ela avisou. — Mas se alguma
coisa acontecer...
Eric olhou para ela e assentiu.
— Se alguma coisa acontecer, você vai ser a
primeira a saber.
— Obrigada.
Porque ela não queria acordar com a sirene do
alarme de novo, sem ter a menor ideia do que estava
acontecendo.
Lara saiu da sala de Ícaro e fechou a porta atrás de
si.
Eric não ia ir atrás dela de novo naquela noite, não
depois de como tinham sido interrompidos mais cedo. E,
mesmo que uma parte dela ainda quisesse aquilo, Lara
entendia bem demais. Eles tinham assuntos inacabados,
sim. Mas precisavam que aquela situação toda se
resolvesse primeiro antes de resolverem aquele assunto,
porque precisavam saber o que viria depois.
Então Lara ia fazer a sua parte para garantir que
haveria um depois.
Amon desligou o celular e se virou. Daniele já estava parada na
porta do quarto e aquilo não era uma surpresa. Ela teria
notado a reação dele antes que Amon falasse qualquer
coisa. E provavelmente teria ouvido o final da conversa
com Eric.
— O que foi? — Ela perguntou.
Ele apertou o celular e parou quando o material
estalou. Ele estava no Setor Dez. Um celular não era algo
tão fácil de comprar, especialmente um com o tipo de
segurança que ele precisava, por estar lidando com as
questões internas do setor.
Daniele entrou no quarto, tirou o celular da mão dele
e jogou o aparelho na cama.
— Eu ouvi a voz de Eric, mas não deu tempo de
entender nada — ela falou. — O que foi?
Amon balançou a cabeça de um lado para o outro.
— O Setor Oito — ele contou.
Daniele se endireitou e ele conhecia muito bem o
tipo de tensão no corpo dela. Aquilo era Daniele se
preparando para lutar, mesmo que não houvesse nada
ali, agora.
Amon queria se vingar da Corte do Oito pelo que
haviam feito com ele, sim. Primeiro por terem comprado
o juramento que o prendia, por terem o usado como um
objeto e depois o descartado. O deixado em uma ruína
no que se tornara o Setor Dez, preso, por quase
cinquenta anos. Mas ele havia aberto mão da vingança
para proteger Daniele e o Setor Dez. Agora ela queria se
vingar do Oito por ele.
Era o suficiente para afastar o pior da fúria. Qualquer
coisa que ele fizesse, não seria sem pensar. Qualquer
risco seria muito bem calculado, porque não seria apenas
a existência dele em risco. Seria a de Daniele também,
porque ela estaria ao seu lado o tempo todo.
— Eric está enviando as informações que tem —
Amon continuou. — Mas o Setor Oito está envolvido nos
ataques na fronteira do Três. E parece que o Cinco
também.
O Cinco não importava para ele, não de verdade.
Mas o Oito...
Daniele segurou o pulso de Amon.
— As coisas mudaram desde que o Oito nos atacou
— ela falou.
Ele olhou para baixo. As marcas escuras estavam
subindo pelos braços de Daniele. Um lembrete, porque
ela não faria nada sem mais informações.
Sim, as coisas haviam mudado. O Setor Dez não
estava na mesma posição que antes. Eles não estavam
na mesma posição que antes. E ninguém sabia daquilo.
— Vai conferir as informações que ele mandou —
Daniele pediu. — Eu vou chamar Yuri e Melissa. Vamos
ter que refazer os planos de defesa do setor.
Porque eles iriam para o Setor Três na noite seguinte
– ou ao primeiro sinal de problemas naquela noite.
Amon assentiu.

Rafael encarou o papel amassado em cima da sua mesa. Ele não


precisava ver o que estava escrito ali. As palavras
estavam mais que marcadas na sua mente.
Mais cedo ou mais tarde você vai achar outra bruxa
da natureza para encaixar nos seus planos.
Outra, porque Alana entendia muito bem os riscos.
Ela havia entendido o seu aviso, mas aquilo não era o
suficiente para que recuasse.
Rafael abriu uma das gavetas na sua mesa e tirou
um isqueiro. Ele era antigo, um presente que ele havia
recebido antes de volta da magia e do qual nunca
conseguira se desfazer. O metal do corpo fino do isqueiro
estava escuro e já fazia tempo demais que era
impossível ler o que estava escrito ali. Mas Rafael se
lembrava, também. Sempre se lembraria.
Ele acendeu o isqueiro e encarou a chama azulada
por alguns segundos antes de pegar o papel amassado
na sua mesa. Colocar fogo na mensagem era uma
resposta, também.
Ele fechou o isqueiro com uma mão e o colocou de
volta na mesa. O papel embolado estava na palma da
sua mão, pegando fogo, e Rafael tinha certeza de que
Alana saberia exatamente o que ele estava fazendo. O
poder dela estava ali.
Rafael continuou parado, encarando as chamas
mesmo quando o fogo tocou sua pele. Uma queimadura
não era nada para um vampiro da sua idade, ele se
curaria em questão de instantes. E era justo que ele
sentisse aquilo, também.
Porque o fogo também era uma lembrança. Era o seu
passado. Ele não se esqueceria – nem dos riscos, nem
das recompensas.
Mas sua decisão estava tomada.
VINTE E DOIS

Lara cruzou os braços e encarou o monitor na parede da torre.


Os animais corrompidos ainda estavam se aproximando e
se reunindo e eram muitos – o que queria dizer que o
outro lado da muralha era um caos de animais lutando
entre si, alguns sendo jogados na parede elétrica, e não
tinha a menor indicação de que aquilo fosse parar.
Não ia ser um ataque de surpresa, daquela vez.
Quem quer que estivesse por trás de tudo – porque ela
concordava que aquilo era elaborado demais para ser
uma ideia do Setor Oito – estava fazendo o oposto. Ao
invés da surpresa, aquela tensão de horas, porque não
era nem o meio da tarde quando os animais tinham
começado a ir na direção da fronteira e agora o sol já
estava baixo no horizonte.
— Quanto de munição nós temos? — Lara perguntou.
— Bastante — Tamara respondeu.
Que era bastante, Lara sabia.
— O suficiente para eu colocar os atiradores para
trabalhar desde agora sem perigo de acabar?
A vampira não respondeu na hora. Ótimo, porque
Lara preferia ter certeza.
— Temos depósitos perto o suficiente se o que temos
armazenado nas torres acabar, mas acho improvável que
seja necessário — Tamara falou.
Agora sim.
Lara encarou os monitores de novo. Os animais
continuavam indo na direção da fronteira e se reunindo
ali. E, se estavam parados ali, era porque alguém tinha
certeza de que a parede elétrica ia cair, de novo. Então
ela ia começar a se livrar dos animais antes que aquilo
acontecesse.
Ela mandou um aviso de alerta para as equipes
externas: o pessoal nas outras partes da fronteira, os que
estavam de guarda na estação elétrica e os que estavam
nos geradores. Eles estariam preparados se mais alguma
coisa acontecesse, porque era bem provável que
começar a atirar teria consequências.
Lara ativou o sistema de comunicação.
— Equipes de atiradores, para as posições — ela
falou. — Vão limpando essa bagunça do outro lado da
parede elétrica.
O barulho das metralhadoras começou quase na
mesma hora. No monitor, os animais começaram a cair.
Alguns se jogaram na direção da parede elétrica e foram
arremessados para trás, mortos.
A porta no andar de baixo da torre se abriu e se
fechou. Alguém bateu no alçapão e Lara não se virou
enquanto Tamara o abria. Tinha sido sua ideia ter mais
pessoas nas equipes de atiradores, ao invés de só duas
ou três pessoas em cada torre. Era mais seguro para os
atiradores, justamente por não precisarem ficar tanto
tempo direto fazendo a mesma coisa. Da outra vez, ela
não tinha tido a menor chance de fazer alguma coisa
daquele tipo.
O alçapão que dava para o alto da torre foi aberto e
o som dos tiros ficou mais alto.
— Alguma coisa específica que temos que prestar
atenção, Lara? — Alguém perguntou.
Ela olhou de relance para trás, em tempo de ver
alguém terminar de subir para o andar de cima. O
homem que tinha perguntado era um dos que ela tinha
visto na arena. Um dos mercenários que quase sempre
estava junto com Yohana, na verdade.
Lara balançou a cabeça.
— Só diminuam o número dos animais corrompidos.
E avisem se aparecer alguma coisa diferente.
O homem assentiu e subiu, também. O alçapão se
fechou atrás dele.
Lara se virou para o monitor de novo. Os animais
tinham se afastado da parede elétrica – tentando sair do
alcance dos tiros, parecia. Se fosse, era mais inteligência
do que animais deveriam ter, também. Não que Lara
fosse uma especialista ou qualquer coisa do tipo, mas
não parecia certo.
Não. Os animais corrompidos ainda estavam perto o
suficiente. Enquanto ela estava olhando, uns tantos
caíram. Mas eles continuavam ali, parados no mesmo
lugar, ainda lutando entre si, às vezes, mas mais
observando a muralha.
Um arrepio a atravessou e Lara pegou seu celular.
Ela provavelmente estava imaginando coisas, mas queria
que Ícaro desse uma olhada naquilo, também.
— Por que não mandar o modificado? — Tamara
perguntou.
Gustavo. Uma hora Lara ia se acostumar a ouvir ele
ser chamado daquele jeito – ou talvez não. Mas ter um
nome para o que ele era explicava algumas coisas, pelo
menos. Principalmente o motivo para ele ser o parceiro
de treinamento fixo de Dani. Ele tinha sido criado para
destruir vampiros. Era óbvio que seria tão forte ou rápido
quanto um deles.
Mas, assim como Lara, ele estava num meio de
caminho entre os humanos e vampiros.
E ela tinha pensado na possibilidade de chamar
Gustavo para começar a dar um jeito naquilo ali, sim.
— Nas palavras dele, "eletricidade é desagradável e
demora a cicatrizar" — Lara contou.
O que não queria dizer que seria algo debilitante,
pelo menos de acordo com Gustavo, mas não seria o
mais eficiente. Sem falar que seria um risco grande
demais, porque ele teria que ir para o lado de lá da
parede elétrica sozinho. Se alguma coisa acontecesse, se
fosse uma armadilha, ninguém teria como ajudar.
Tamara não falou mais nada.
Lara continuou encarando o monitor. Em teoria,
aquilo era melhor do que estar no alto da torre, porque
as câmeras cobriam uma área muito maior do que ela
conseguiria ver lá de cima. Mas a sensação de estar
parada sem fazer nada ainda era forte demais.
E estava começando a escurecer. Ainda ia demorar
algum tempo para ser noite mesmo, mas o sol já estava
se pondo.
Se alguma coisa estivesse para acontecer, não ia
demorar muito.
As luzes se acenderam – um tipo de luz forte que
Lara nem sabia que existia, porque nunca tinha visto
nada do tipo nas cidades. As lâmpadas ou o que quer
que fossem estavam embutidas na própria muralha e
iluminavam o lado de lá da fronteira quase como se fosse
dia. Quase, porque a luz do sol não era tão branca e
aquela diferença era mais estranha do que Lara tinha
imaginado que seria.
— Normalmente nós não usamos isso — Tamara
comentou. — Mas dessa vez...
A vampira parou de falar.
Lara não respondeu. Ela estava certa. Mesmo que
assim que terminasse de anoitecer os vampiros fossem
substituir as equipes de atiradores humanos e eles
conseguissem ver muito bem no escuro, os humanos
ainda estariam por perto. Podia acontecer de precisarem
ajudar. Então era melhor iluminar tudo, sim.
A porta do andar de baixo se abriu e se fechou. Eric.
Lara não sabia como tinha tanta certeza, mas era ele
chegando ali, mesmo que ainda estivesse cedo.
O alçapão se abriu e ele subiu.
— Algo de novo.
— Não — Tamara falou.
Lara só balançou a cabeça. Aquela sempre era a pior
parte: esperar, sabendo que alguma coisa ia acontecer.
Eric se sentou ao lado dela, encarando os monitores,
também.
— O Setor Dez confirmou que houve movimentações
incomuns no Seis recentemente — ele contou. — Isso foi
antes dos meus avisos e eles foram discretos o suficiente
para não parecer que era nada importante.
Aquilo, depois de Melissa ter confirmado com toda
certeza que o Seis estava trabalhando junto com o Cinco,
era a pior coisa possível. Não que fizesse tanta diferença,
no fim das contas. Lara já estava esperando aquilo. Mas
uma parte dela ainda tinha tido esperança de que a
situação toda não fosse ser tão complicada.
Quatro setores – quatro Cortes – trabalhando juntos.
E eles estavam quase sozinhos, porque o Dez não podia
mandar mais ninguém. Se o Seis estava se movendo,
eles precisavam tomar cuidado com as suas fronteiras.
— Se eles estão fazendo algo desse tamanho... —
Tamara começou e parou.
Lara se virou para trás. A vampira estava balançando
a cabeça de um lado para o outro, encarando os
monitores do outro lado.
— Tamara? — Eric chamou.
A vampira deu de ombros, sem se virar.
— Eles não iam nos deixar notar uma aliança desse
tamanho se não tivessem certeza de que conseguiriam o
que querem — ela falou.
Exatamente. E aquele era o motivo para Lara estar
ali, esperando para ver o que mais iam jogar contra a
fronteira.

Alana fechou os olhos e respirou fundo. As histórias que rolavam


pelos setores diziam que bruxas da natureza eram
calmas, centradas, até pacientes, justamente por lidarem
com plantas. Quem falava aquilo não fazia ideia do tanto
que estavam errados.
Ela odiava esperar. E odiava mais ainda a sensação
de esperar para ver o que ia acontecer depois. Já tinha
tido um ano daquilo, quando os setores tinham
começado com os pedidos de casamento. Quanto antes
aquilo tudo envolvendo o Setor Três terminasse, melhor.
Seu único consolo era que pelo menos Lorde Rafael não
parecia estar envolvido. Era uma preocupação – um
inimigo – a menos.
E tinha alguma coisa se aproximando. Era uma
sensação que ela não sabia explicar, mas era algo que
Alana conhecia bem demais do seu tempo nas terras de
ninguém.
— Tem alguma coisa vindo — ela avisou.
Os dois vampiros que estavam com ela no galpão
dos geradores se levantaram sem falar nada e foram na
direção da porta. Na verdade, eles não tinham falado
nada desde que tinham se apresentado, quando ela tinha
chegado ali, de manhã. Os dois eram necromantes. Os
dois eram leais a Eric. Eles tinham adormecido ali e nem
dado o menor sinal de que iam sair em algum momento,
depois que acordaram de novo.
Não que Alana estivesse reclamando. Um pouco de
conversa até seria bom, mas o importante era saber que
tinha duas pessoas ali prontas para o que quer que
acontecesse.
Alana encarou o único monitor do sistema de
segurança dali. Aquilo era uma falha. Os geradores eram
importantes o suficiente para merecerem um sistema de
segurança decente, não só uma câmera na porta...
Mesmo que a porta fosse de metal e reforçada com
magia.
O que quer que estivesse se aproximando, ainda não
era visível. Não fazia sentido, porque aquela impressão
de Alana não funcionava com nada em distâncias muito
grandes. Ela deveria estar vendo...
Ela estava vendo as folhas secas de capim-gordura
que cobriam o chão serem amassadas. Era discreto,
porque o mato ali nunca tinha sido alto, o que queria
dizer que a camada de folhas secas era fina demais. Mas
alguém estava andando ali. Mais de um "alguém". E
Alana não conseguia ver quem estava fazendo aquilo.
— Estão invisíveis — Alana avisou. — Não tenho
como ter certeza do que são.
Pela hora, ela queria poder dizer que eram humanos.
E não era impossível que vampiros tivessem humanos
trabalhando para eles. Alana sabia que mercenários
demais aceitavam trabalhos para os vampiros e havia
humanos que faziam coisas para eles na esperança de
serem escolhidos para a transformação, depois. Mas ela
não achava que fosse o caso. Aquilo tudo tinha sido bem
planejado demais. Quem estava por trás daquilo não ia
deixar os geradores sob a responsabilidade de humanos.
Qualquer vampiro que estivesse lá fora, não seria um
dos mais fracos. O sol ainda estava no céu, mesmo que
já estivesse escurecendo. Só os mais fortes dos vampiros
estariam andando sob a luz do sol, sem nenhuma sombra
por perto.
— Uma bruxa — um dos necromantes falou.
Aquilo explicava estarem invisíveis.
E a pior parte daquilo era não ter como saber
quantas pessoas estavam se aproximando. Depois que o
mato era amassado, ele continuava amassado. Alana não
conseguia ver detalhes o suficiente para tentar adivinhar
quantas pessoas estavam andando ali e não queria usar
seus poderes sem um bom motivo. Quando ela atacasse,
seria uma surpresa.
E ela não tinha como saber quantas pessoas
estavam se aproximando, mas os vampiros
provavelmente tinham.
— Quantos? — Alana perguntou.
Um dos vampiros deu um passo atrás.
A porta explodiu.
Alana se jogou para o lado bem a tempo de sair do
caminho da placa de metal que voou direto no monitor.
Mais alguma coisa explodiu, mas ela não tinha
certeza nem de onde o som tinha vindo, porque seu
ouvido estava zumbindo. A fumaça pesada perto da
porta não deixava Alana ver nada – e os dois
necromantes tinham desaparecido no meio da fumaça,
também.
Alana bateu a mão no botão do alarme ao mesmo
tempo em se concentrava nas plantas lá fora.
O capim-gordura lá fora não era muita coisa. Ele só
estava vivo porque aquela planta era mais resistente do
que deveria, a ponto de ter sido considerada uma praga
em alguns lugares, no passado. Mas era perfeito para o
que Alana queria.
A cabeça de um dos necromantes caiu perto de onde
Alana estava, deixando um rastro de sangue na direção
da porta. Alana abafou um grito e se arrastou para trás,
enquanto os olhos dele ficavam mais claros, depressa
demais, até ficarem completamente brancos. Ele tinha
sido destruído.
E Alana ainda não estava vendo nada perto da porta.
Nem ouvindo nada além de um zumbido irritante, mas
aquilo provavelmente era por causa da explosão e de
como vampiros não faziam barulho quando lutavam ou
caçavam, se pudessem evitar.
Alana se levantou. Ela não precisava ver para atacar.
O capim-gordura explodiu para fora do chão,
crescendo depressa demais. E onde ele encontrava algo,
ele se enrolava, como uma trepadeira mas pior, porque
ele estava carregado com o poder de Alana, e ela queria
que as folhas compridas fossem mais rígidas que o
natural e com bordas cortantes.
Ela respirou fundo e se endireitou. Não era a
primeira vez que Alana fazia aquilo.
O capim continuou crescendo e se enrolando. Em
alguns lugares ele estava sendo arrancado, mas não
fazia diferença. Ela podia fazer mais crescer. Aquilo era o
lado mais simples do seu poder.
Alana fechou as mãos com força. O capim enrolado
se fechou de uma vez.
Uma mulher gritou. Alana sorriu e o capim apertou
onde estava enrolado ainda mais. Em alguns lugares ele
se partiu, mas a mulher ainda estava gritando. A bruxa,
porque ela era a única que gritaria por causa de algo tão
simples quanto dor.
Quatro silhuetas apareceram na fumaça perto da
porta.
Suas plantas se enrolaram neles, subindo pelas
pernas dos vampiros e os puxando para trás ao mesmo
tempo em que cortavam fundo enquanto continuavam
subindo pelos seus corpos.
Confiança. Eles não iam se aproximar de Alana. Ela
precisava confiar naquilo. Confiar no seu poder e no seu
controle.
Os quatro vampiros – porque era óbvio que eram
vampiros – caíram. E suas plantas ainda estavam se
enrolando neles, crescendo depressa demais, mais
depressa que lá fora, cobrindo o corpo deles e cortando
como facas de lâminas flexíveis.
Alana avançou na direção da porta. O sangue dos
vampiros estava se espalhando pelo chão, mas eles não
estavam se movendo mais.
Ela empurrou um dos corpos com o pé e continuou,
através do resto da fumaça.
A cabeça do outro necromante caiu na sua frente.
Alana encarou os vampiros ali. Seis... Não, oito,
porque dois deles estavam mais para trás, perto da
bruxa caída. E todos eles estavam sangrando, com
capim-gordura ao seu redor. Eles estavam presos o
suficiente para não conseguirem avançar para ela sem
perderem partes do corpo, mas não era o suficiente. Ela
tinha alguns segundos, no máximo, antes de algum deles
arriscar – porque eles tinham uma missão a cumprir,
também.
Se queriam destruir os geradores, deveriam ter
mandado mais vampiros.
O capim-gordura enrolado nos vampiros continuou a
crescer, depressa, mas agora Alana queria flores. As
flores de um tom entre o roxo e o rosa, que espalhavam
quase uma penugem no ar.
Ela fechou a mão com mais força, sentindo as unhas
na palma da mão, até arrancar sangue.
As flores ficaram vermelho-vinho.
Outra silhueta apareceu, para trás dos vampiros. Os
dois que estavam perto da bruxa caíram no mesmo
instante. E a bruxa tinha parado de ofegar, também.
Morta.
Lorde Rafael levantou a cabeça e encarou Alana.
Ela fechou os punhos com mais força, sentindo as
pontadas de dor e o peso do sangue no seu poder, mas
não ia atacar. Não sem ter certeza do que estava
acontecendo ali. De por que Lorde Rafael estava ali.
Ele levantou uma mão. Os outros vampiros
enrijeceram de um jeito que não era natural – como se o
corpo deles estivesse sendo controlado. Era a mesma
coisa que Alana tinha visto Lorde Rafael fazer no dia em
que haviam assinado o contrato. Mas, agora, não ele não
estava só forçando um vampiro a se ajoelhar. Ele estava
fazendo o pescoço dos vampiros ali virar em um ângulo
que não era natural.
Os vampiros caíram no chão.
Alana abriu as mãos. As flores se desfizeram – não
secando, mas se recolhendo como se não tivessem se
formado.
E ela não ia perder aquela oportunidade. As folhas
das suas plantas eram como facas, sim, e o capim se
enrolou no pescoço dos vampiros caídos, os cortando um
a um.
O tempo todo, ela ainda estava encarando o vampiro
mais à frente.
Lorde Rafael estava vestido como sempre, com suas
roupas escuras, correntes e um sobretudo que era quase
uma capa. Era como se ela estivesse no jardim do
castelo dele, no Setor Um, de tão normal que aquilo
parecia.
Manipulação, com certeza. Alana já sabia o suficiente
para não esperar outra coisa dele.
— O que você está fazendo aqui? — Ela perguntou.
Ele deu um passo para a frente. O capim-gordura
cresceu depressa no espaço entre ele e Alana e o
vampiro parou de novo.
— Você realmente pensou que eu ficaria sem fazer
nada enquanto você está se envolvendo em algo que
seria sua destruição?
Não era uma resposta. Era uma forma de fazer com
que ela tirasse suas conclusões e mais nada – porque ela
imaginaria o que queria. Não era a verdade.
Mas Alana tinha caído no jogo de Lorde Rafael uma
vez. Ela não cairia de novo, ainda mais sabendo o que
sabia, agora.
— Pensei — ela falou. — Imagino que seus planos
sejam maiores que só uma bruxa da natureza.
Ele fechou os punhos e Alana se forçou a não reagir.
Aquilo não era real, porque era reação demais vindo
dele.
— Nós fizemos um acordo, Alana.
Sim. Haviam feito e ela não se arrependia. Mas ela
não confiava.
Uma forma mais escura caiu para o lado de Alana.
Lorde Rafael se virou de uma vez.
— Não — ela falou.
Ele parou – e Gustavo também.
Alana se virou devagar. Ela tinha reconhecido a
sensação quase instintiva de perigo que vinha da outra
forma de Gustavo, mas ainda não tinha se acostumado a
ver ele daquele jeito, com a pele tão escura que parecia
sugar a luz ao redor, os olhos vermelhos e as asas cor de
sangue. Mas Alex estar ao lado dele, com a balestra
apontada para Lorde Rafael, não era a menor surpresa.
Alana tinha entendido o suficiente para saber que,
quando Gustavo se transformava, ele não era
completamente racional. Alex sempre conseguiria fazer
ele voltar. Os detalhes de como não importavam.
— Ele não atacou — Alana contou.
Alex olhou para ela e assentiu, mas não abaixou a
balestra. Claro que não.
— O fornecimento de energia principal acabou — elu
avisou. — Tanto aqui quanto no Dez.
Era exatamente o que tinham imaginado que ia
acontecer. Não fazia sentido atacar o galpão dos
geradores se não fossem desligar o fornecimento de
energia.
E agora os geradores eram a única coisa mantendo
as paredes elétricas da fronteira ativas.
— E sua prima está aqui — Alex completou.
Alana se virou para elu de uma vez.
— Dani? Aqui?
Alex assentiu.
— Na fronteira. É melhor você ir para lá.
Sim. Era, porque ela não ia deixar Lorde Rafael perto
dos geradores do Setor Três. E Alana precisava saber o
que Dani estava aprontando daquela vez, porque
nenhum dos planos envolvia ela indo para lá.
— Vocês... — Alana começou.
— A gente fica aqui — Alex falou.
Perfeito, porque Alana duvidava muito que alguma
coisa fosse conseguir passar por Gustavo.
Lorde Rafael se aproximou devagar, passando com
cuidado entre o capim-gordura. Alana deixou as folhas
caírem no chão. Aquilo era mais algum dos jogos dele,
com toda certeza. Mas, se ele quisesse atacar de alguma
forma, já teria feito aquilo.
Ele estendeu uma mão na direção de Alana.
— Me permite te levar?
Ela encarou a mão dele por um instante antes de
levantar a cabeça.
— Se você fizer qualquer coisa além de me levar
para a fronteira, para onde os outros estão, vai ser a
última coisa que vai ter feito nessa existência — ela
avisou.
Lorde Rafael inclinou a cabeça de forma quase
solene.
Alana respirou fundo e segurou a mão dele.
VINTE E TRÊS

A névoa baixa cobria todo o chão além da fronteira, mas os


animais corrompidos continuavam ali, muito mais deles
do que deveria ser possível. Eric conseguia sentir o poder
dos necromantes espalhados entre as torres claramente.
Eles estavam fazendo a mesma coisa de antes: usando
as criaturas mortas como armas. Mas não era o
suficiente – nem aquilo, nem os atiradores.
— Eu achei que a eletricidade cair queria dizer que
iam avançar — Lara resmungou.
Eric balançou a cabeça, sem desviar o olhar dos
monitores.
— Eles provavelmente estão esperando a parede
elétrica cair — Amon falou, antes que Eric conseguisse
responder.
O outro vampiro não estava errado. E Eric não diria
que estava exatamente irritado com a forma como ele e
Daniele haviam chegado ali, sem nenhum aviso. Mas era
algo inesperado no meio de um ataque. O tempo todo,
antes, eles haviam dito que ficariam no Dez, para
reforçar as defesas do setor caso algo acontecesse por
lá. E, com tudo o que estava acontecendo, a última coisa
que Eric queria era ter alguma surpresa.
— O Oito não tem vampiros o suficiente pra atacar
de forma direta — Daniele contou. — Eu estou
monitorando as forças deles desde que nos atacaram.
— O que quer dizer que vai ser alguma coisa pior —
Lara resmungou.
Provavelmente. E não havia nada que pudessem
fazer além de esperar.
O celular de Eric vibrou. Lara e Daniele se viraram
para ele e aquilo também não era uma surpresa, depois
de como o alarme ligado ao galpão dos geradores havia
disparado. Ninguém tinha conseguido contato com Alana
ou com os necromantes que estavam lá ainda, mas a
parede elétrica estava ligada. Eric ia usar aquilo para
imaginar que a situação lá estava sob controle.
E era uma mensagem de Alex, que Lara tinha
mandado com Gustavo para o galpão.
— Alana está bem — ele avisou. — E...
Eric encarou o celular de novo. Ele queria estar lendo
errado.
— E? — Lara insistiu.
— Lorde Rafael está aqui. E está vindo com Alana.
— Filho da puta — Daniele resmungou. — É óbvio
que ele ia se enfiar nisso de algum jeito, se é que isso
tudo não é coisa dele desde o começo.
E Lara estava encarando Eric. Ela havia entendido o
problema. Se Lorde Rafael estava ali, não era à toa. Eles
não tinham como confiar nele, mas também não podiam
exigir que fosse embora.
— Os animais — Tamara falou.
Eric se virou para os monitores de novo e Lara parou
ao seu lado.
— Estão tentando sobrecarregar a parede elétrica —
ela murmurou.
Porque os animais estavam avançando como se a
parede não estivesse ali. Batendo nela, sendo
eletrocutados e arremessados para trás. Mas eram
criaturas corrompidas demais. Para cada uma das que se
matava daquele jeito, sempre havia várias outras para
tomarem o seu lugar.
— Eles estão sendo controlados de alguma forma —
Eric falou.
Era a única explicação para estarem avançando de
uma forma que ia contra os instintos de sobrevivência de
todos os animais corrompidos. E, o que quer que fosse
aquilo, não era como o poder dos necromantes. Era algo
que Eric não conseguia nem mesmo sentir.
— Não controlados — Lara falou.
Eric se virou. Ela estava encarando o próprio celular.
— Eu falei com Ícaro mais cedo — Lara continuou. —
Estava estranho demais os animais corrompidos quase
saindo da linha de tiro e só parando no lugar. Ele
confirmou. Tem alguma coisa de diferente no que os
sensores estão captando.
Amon e Daniele trocaram um olhar antes de se
virarem para eles de novo.
— O Setor Oito usou os modificados como
justificativa para atacar o Quatro, no passado — Daniele
começou.
Eric assentiu. Ele tinha a impressão de que sabia a
direção que o raciocínio dela estava seguindo.
— Oficialmente sim. Na prática, nenhuma das Cortes
acreditou.
— Na prática, eles queriam as pesquisas do Quatro
— Daniele completou.
Lara respirou fundo e soltou o ar com força.
— E ninguém sabe quanto disso eles conseguiram —
ela murmurou. — Óbvio. Porque não tem como complicar
mais, não é?
— Tem — Tamara respondeu. — Eles chegaram.
A porta na sala de baixo se abriu e se fechou. Eric
ouviu os vampiros que estavam lá se movendo depressa
demais, quase como se estivessem nervosos, mesmo
que fossem alguns dos mais fortes no setor.
O alçapão se abriu. Alana subiu primeiro, com Lorde
Rafael logo atrás dela. A bruxa se virou para a prima e
balançou a cabeça com força. Eric ia entender aquilo
como um aviso de que não precisavam se preocupar com
algum ataque imediato do príncipe do Setor Um, mas
aquilo era o máximo que ele estava disposto a acreditar.
Lorde Rafael parou ao lado do alçapão e olhou ao
redor.
Se dependesse de Eric, ele não estaria ali. Mas não
havia nenhum jeito de fazer o outro vampiro sair do seu
setor que não envolvesse um confronto direto. Eric não
podia se dar ao luxo de correr aquele risco quando ainda
não faziam ideia de o que mais o Oito estava se
preparando para fazer.
— O que ele está fazendo aqui? — Daniele
perguntou.
Alana deu de ombros.
— Ele resolveu aparecer para me "salvar".
Eric quase sorriu quando a bruxa fez as aspas com
as mãos.
— Eu pensei que ela fosse precisar de reforços, mas
pelo visto estava enganado — Lorde Rafael falou.
— Óbvio que estava — Daniele respondeu. — Alana
não estaria lá se não conseguisse se virar.
Mas Alana não estava sozinha.
A bruxa se virou para Eric na mesma hora.
— Os necromantes que estavam lá — ela começou.
— Sinto muito.
Eles haviam sido destruídos, então.
Eric assentiu, sem falar nada. Eles haviam entendido
o risco, antes de se oferecerem. Ele havia entendido o
risco, também. Todos sabiam que os geradores
provavelmente seriam atacados. Mesmo assim, ele não
tinha esperado que eles seriam os primeiros a serem
destruídos.
Lara segurou sua mão e apertou. Ele apertou de
volta, ainda em silêncio. Não que precisasse falar alguma
coisa. Lara entendia.
Por alguns segundos, o único som foi o barulho das
metralhadoras, no andar de cima. Nos monitores, os
animais corrompidos continuavam avançado para a
parede elétrica. Elas tinham sido feitas para resistir
àquele tipo de coisa, mas não por tanto tempo. Se aquilo
continuasse, a parede elétrica ia ser sobrecarregada,
sim.
E não havia mais animais se aproximando.
Eric se virou para Tamara, que assentiu sem falar
nada. Não devia fazer muito tempo que aquilo havia
mudado, mas não era só uma impressão dele.
— Então nós temos animais corrompidos que são
mais inteligentes ainda do que deveriam e ou estão
sendo controlados ou foram muito bem treinados —
Daniele começou. — E um vampiro que pode muito bem
estar aqui só para se divertir assistindo enquanto a gente
tenta fazer alguma coisa.
E era interessante como todos haviam se movido de
forma sutil, até que a sala estivesse praticamente
dividida, com Lorde Rafael de um lado, Alana um pouco
afastada, e todos os outros na outra direção. Força em
números, sim. E, com Amon ali, Eric tinha certeza de que
Lorde Rafael no mínimo hesitaria antes de fazer qualquer
coisa.
O príncipe do Um olhou para Alana. A bruxa cruzou
os braços e virou as costas para ele, indo para perto de
um dos monitores. Interessante.
Mas mais interessante ainda era o que Daniele havia
falado. Ela tinha um lado louco, sim, mas aquilo era
calculado demais para que Eric chamasse só de loucura.
Ela estava provocando justamente para tentar entender
por que o outro vampiro estava ali.
Lorde Rafael se virou para Daniele, devagar.
— Você poderia ser destruída por um insulto como
esse.
Ela deu de ombros.
— Poderia, mas não vou ser. Até porque não é um
insulto. É a verdade.
Lorde Rafael inclinou a cabeça para o lado. Eric não
sabia o que esperar. Se fosse qualquer outro vampiro, ele
estaria vendo marcas de poder aparecendo nas suas
mãos depois daquilo, mesmo que um ataque não viesse.
Mas não Lorde Rafael. Se alguém o visse daquele jeito
pensaria que ele era inofensivo e aquilo era mais
preocupante que qualquer tipo de ameaça direta.
— Eu tenho um contrato com sua prima, Daniele. Eu
prometi proteção para ela.
Alana deu uma risada seca e não se virou.
Lorde Rafael fechou os punhos.
Então aquilo fazia ele ter uma reação visível mais
forte que os insultos de Daniele. Interessante.
— Você usou o Setor Oito pra nos atacar, antes —
Daniele insistiu. — Vai me dizer que não está usando eles
agora?
Lorde Rafael balançou a cabeça e abriu as mãos
devagar, as afastando do corpo.
— O Setor Oito é uma arma útil, mas não uma arma
confiável. A Corte ali é ambiciosa demais para ser leal.
Verdade.
— O que quer dizer que seriam comprados por
qualquer um com uma boa proposta — Eric falou.
E, se Lorde Rafael quisesse se livrar do Setor Três,
ele não precisaria manipular quatro setores para fazer o
trabalho para ele, justamente por ser quem era. Ele
poderia ter feito aquilo ele mesmo e usado como um
exemplo para garantir que nenhum setor se viraria
contra ele.
Não. Lorde Rafael não estava por trás daquilo. Não
fazia sentido, não importava como Eric olhasse para a
situação.
— É mais fácil só deixarem ele pensar que acreditam
no jogo dele do que discutir — Alana avisou.
Lorde Rafael se virou para ela.
— Carniçais — Tamara avisou.
— Merda — Lara e Daniele resmungaram quase ao
mesmo tempo.
A parede elétrica pararia carniçais, também. E os
necromantes tinham corpos demais de animais para
usar... O que era um problema, na verdade, porque se
Eric pudesse reunir seus necromantes mais fortes e focar
apenas nos carniçais, eles conseguiriam se livrar de
todos eles sem muitos problemas. Mas não podia, porque
os necromantes estavam lidando com os animais. Se
parassem...
Amon assentiu.
Eric tinha perdido alguma coisa.
Daniele se virou para Lorde Rafael de novo.
— Eu preciso de uma imagem do Setor Oito. De
algum lugar onde Cassius pode estar — Daniele falou. —
O castelo dele, provavelmente.
Eric encarou as mãos da vampira. Nada. E ela era
jovem – recém-transformada, na verdade. Pouco mais
que uma neófita, mesmo que não agisse como uma. Era
cedo demais para que ela tivesse desenvolvido qualquer
tipo de habilidade.
Ele parou, encarando a tatuagem que subia pelo
braço dela. Os galhos de uma árvore, mas sem nenhuma
folha.
Ou talvez ela tivesse desenvolvido algo, sim, porque
era de uma família de feiticeiras, mesmo que não fosse
uma bruxa, e havia sido transformada por Amon.
Lorde Rafael balançou a cabeça de um lado para o
outro.
— O que quer que esteja pensando, desista. Em
qualquer lugar onde ele estiver, as medidas de
segurança serão mais que o suficiente para conter vocês
antes de se aproximarem. Cassius se preparou para a
possibilidade de uma vingança.
Porque ele havia prendido Amon com um juramento.
Sim. Seria estupidez não pensar naquela possibilidade e
Cassius era ambicioso e descuidado, mas não estúpido.
Daniele levantou as sobrancelhas.
— Eu pedi uma imagem, não o que você acha que dá
para fazer ou não.
Alana fez um som abafado que parecia demais com
uma tentativa e disfarçar uma risada.
Loucas, todas elas.
Lorde Rafael encarou Daniele como se ela fosse um
inseto que ele queria esmagar. Mas Amon ainda estava
ali – e Alana. Eric era capaz de apostar a existência de
todos eles no fato de que Lorde Rafael não ia atacar.
— Não tenho imagens físicas — ele falou. — Mas se
faz tanta questão, posso te dar uma imagem mental.
Daniele assentiu.
Amon colocou uma mão no ombro dela.
— Se você fizer qualquer coisa além de dar uma
imagem... — ele começou.
Lorde Rafael olhou para o Amon
— Não estou aqui para fazer inimigos.
E Eric acreditava naquilo. A menos que estivesse
muito errado, era do interesse de Lorde Rafael garantir
que o Três não caísse. Porque, se quatro Cortes haviam
se aliado daquele jeito, só havia um motivo: se livrar do
Um e do controle que ele tinha sobre a região.
Daniele assentiu de novo. Lorde Rafael inclinou a
cabeça e fechou os olhos.
O que quer que ela estivesse planejando, Eric
esperava que fosse bom. Ela não lhe parecia o tipo de
pessoa que agia sem pensar mas, quando algo envolvia
vingança, aquilo não era uma garantia de nada.
Lorde Rafael abriu os olhos e deu um passo para
trás.
Dani fechou os olhos.
— É o suficiente? — Amon perguntou.
Ela inclinou a cabeça para o lado e deu um sorriso
lento.
— Sim.
— Ótimo.
Amon parou atrás dela e segurou o outro ombro de
Daniele. A tatuagem dela pareceu crescer... Não. Eram as
marcas de uma vampira usando poder, aparecendo na
mão dela e subindo pelo braço, parecendo galhos secos –
como a tatuagem.
As marcas ficaram mais escuras e se espalharam
ainda mais por um instante.
Amon e Daniele desapareceram.

Era uma tentativa de sala do trono ou algo assim.

Dani se abaixou, ao mesmo tempo em que puxava


uma faca e a arremessava no vampiro que estava se
virando na direção deles. Ele caiu. Os outros dois
vampiros perto dele se viraram, mas as sombras de
Amon já estavam ao redor deles. Um dos vampiros ainda
gritou, mas não importava.
Ela se endireitou. Nada. Só aquele trono exagerado
no alto de uma plataforma um pouco mais alta no salão.
Algumas tochas ainda estavam queimando, nas paredes,
mas não tinha nenhum sinal de que aquela sala tinha
sido usada nos últimos dias.
— Nada mudou — Amon murmurou.
O que queria dizer que era uma pena que passar
imagens através de outra pessoa não adiantasse, ou eles
provavelmente teriam aparecido ali bem antes. Mas,
mesmo com Melissa olhando as memórias de Amon e
repassando as imagens para Dani, ela nunca tinha
conseguido sentir nenhum lugar do Oito. As imagens não
eram nítidas o suficiente para ela conseguir travar seu
poder – porque ela se recusava a chamar aquilo de
"habilidade", como os vampiros faziam para tentarem
parecer diferentes das bruxas.
E, se nada tinha mudado, o trabalho deles tinha
ficado mais fácil ainda.
— Para onde, então? — Dani perguntou.
Amon se endireitou e deu um sorriso lento. Um
arrepio atravessou Dani. Ela nunca ia se acostumar com
a sensação de perigo quando ele fazia aquilo. E não era
uma reclamação.
Ele parou na frente de Dani e segurou o queixo dela.
— Até onde eu posso ir? — Ele perguntou.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Quando encontrarmos Cassius. Até onde posso ir
antes de ser longe demais para você?
Outro arrepio atravessou Dani.
Amon não ia só destruir Cassius. Ele ia fazer questão
de torturar o outro vampiro – e ela não o julgava.
— Ele é seu — ela falou. — Faça o que precisar.
Ele deu aquele sorriso lento de novo antes de soltá-
la.
— Por aqui — Amon chamou.
Ele foi na direção de uma porta para a direita do
trono.
Dani puxou outra faca e o seguiu.

Lara não ia pensar demais no fato de que Dani e Amon tinham só


desaparecido. Não. Ela tinha mais com o que se
preocupar, mesmo que pelo visto o que quer que ela
tivesse feito fosse algo importante. Teleporte, talvez,
mesmo que Lara nunca tivesse ouvido falar de ninguém
capaz de fazer aquilo. Mas, considerando o que ela já
tinha ouvido sobre as habilidades dos vampiros, ela não
duvidava que fosse possível.
E o fato de que Lara estava vendo a parede elétrica
tremer era muito mais importante.
— Movimento na fronteira com o Cinco — Tamara
avisou. — Temos alguns vampiros lá perto, mas...
Mas se o Setor Oito tinha carniçais, então Lara era
capaz de apostar que o Cinco tinha conseguido mais
deles, também. Ou talvez eles tivessem mais do que só
um curral de carniçais, desde o começo. Era possível,
também. Qualquer coisa era possível.
"Alguns vampiros" não iam ser o suficiente para
conter carniçais.
— Eu vou para lá — Alana falou.
— Você... — Lorde Rafael começou.
— Não sirvo para nada aqui — ela continuou, como
se ele não tivesse falado nada. — Mas se algum vampiro
puder me levar para a outra fronteira, ela é no pântano.
E eu sei exatamente o que posso fazer com o pântano.
— O risco não vale a pena — Lorde Rafael falou, com
um tom que era quase uma ordem.
Aquilo ia ser interessante.
Alana se virou para ele.
— Se não vale a pena para você, não é problema
meu — ela falou. — E eu não estou dizendo para você
fazer nada.
Definitivamente interessante até demais. Lara podia
estar muito enganada, mas parecia que Lorde Rafael
realmente queria garantir a segurança da bruxa. Lucro
para eles, então, porque Alana podia se virar muito bem
e tinha um contrato que a protegia do outro vampiro.
— Carniçais não são a mesma coisa que os vampiros
que atacaram o galpão — Lorde Rafael insistiu.
Alana sorriu e levantou uma mão com o punho
fechado. Ninguém falou nada enquanto ela abria a mão
devagar e mostrava uma penugem vermelho-sangue.
Aquilo até parecia um pouco com a penugem das flores
do mato que crescia na fronteira entre o Dez e o Três,
mas a cor estava errada... E Alana era uma bruxa da
natureza. Se a cor estava diferente, provavelmente era
por causa de alguma coisa que ela tinha feito.
E, quando algo feito com magia tinha cor de sangue,
o resultado quase sempre era o mesmo: morte.
— Eu poderia ter te derrubado antes de você
entender o que estava acontecendo — Alana contou. — E
você não notou isso. Não me subestime.
Ela fechou a mão de novo.
Lorde Rafael a encarou.
— Eu levo você.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro
com força.
— Não. Se está aqui para me proteger, pode voltar
para o seu castelo de uma vez. Eric?
Ele assentiu.
— Já chamei um dos meus para te levar.
— Obrigada.
Alana abriu o alçapão e desceu sem falar mais nada.
Lorde Rafael continuou parado no mesmo lugar, do
outro lado da sala.
Lara conteve um sorriso. Era maravilhoso quando
alguém que nunca ouvia "não" tomava uma daquele tipo
na cara. Não que ela tivesse alguma ilusão de que ele
fosse ouvir Alana. Não. Ou ele ia ir para a outra fronteira
ou ia continuar ali só por pirraça.
— Vamos ter que desligar a parede — Eric
murmurou.
Ela olhou para os monitores de novo. A parede
elétrica realmente estava tremendo. E aquele não era o
único problema.
Os carniçais eram mais inteligentes que os animais
corrompidos. Eles estavam se jogando alto na parede e
se segurando nela. Aquilo garantia que uma boa parte
dos corpos eletrocutados continuava preso na parede,
criando espaços para os outros carniçais se jogarem e
subirem mais alto.
Eles estavam se sacrificando para abrir espaços
onde a parede elétrica não mataria o que tocasse nela.
Não. Aquilo não era inteligência. Aquilo era alguém
controlando o que estava acontecendo.
Se desligassem a parede elétrica, seria a mesma
coisa que o outro dia, porque os animais corrompidos e
os carniçais iam correr para a muralha. Os necromantes
e os atiradores não eram o suficiente para pará-los. Seria
a mesma coisa e Lara tinha certeza de que os carniçais
não eram a última surpresa que veriam.
Se desligassem a parede, eles tinham uma chance
de religá-la, depois. Se não desligassem, ela ia ser
sobrecarregada mais cedo ou mais tarde. Era bem
possível que desse curto ou o que quer que eletricidade
fazia quando alguém exagerava demais ou fazia merda.
Eric segurou o pulso de Lara, de leve. Ela se virou.
Ele só a encarou, sem falar nada. Não que Eric
precisasse falar. Era o mesmo olhar de sempre quando
ele estava esperando uma resposta.
Era o setor de Eric. Ele era o príncipe ali. E, mesmo
assim, ele estava encarando Lara daquele jeito.
Esperando a opinião dela – não porque ele precisava de
uma confirmação do que era o melhor a se fazer, mas
porque a opinião dela importava. Porque ele queria saber
o que ela pensava, também.
Quando ele fazia aquilo, era fácil demais pensar em
um futuro ali.
Lara olhou para o monitor de novo e para a mancha
escura crescendo na parede elétrica. Os corpos presos
nela.
Se desligassem a parede elétrica, não precisariam de
alguém vigiando os geradores. Era contar com a sorte,
sim, mas Lara duvidava que alguém fosse pensar que
tinham desligado a parede de propósito. Quem quer que
estivesse por trás daquilo pensaria que seu pessoal tinha
conseguido estragar os geradores. O que queria dizer
que podiam ter Gustavo ali, para ajudar a lidar com os
animais corrompidos e os carniçais e aquilo mudava as
coisas.
— Chame Alex e Gustavo de volta — ela murmurou.
Eric apertou sua mão e assentiu.
VINTE E QUATRO

Eles deveriam ter pensado que a parede elétrica ser desligada


seria um sinal para quem quer que estivesse controlando
aquilo tudo, principalmente porque as luzes na muralha
seriam desligadas juntas. Mas, por algum motivo, aquilo
não tinha nem passado pela cabeça de Lara.
Os animais corrompidos e os carniçais estavam
avançando com mais força ainda. Os necromantes ainda
estavam fazendo o que podiam com as criaturas que
estavam controlando. Gustavo estava passando de uma
ponta até a outra da parte da fronteira sendo atacada e
destruindo muitos dos animais e dos carniçais, mas não
era o suficiente. E os vampiros que antes estavam nas
metralhadoras, agora estavam no alto da muralha, fora
das torres – porque não podiam continuar atirando com
Gustavo indo de um lado para o outro.
Do outro lado da muralha, os humanos tinham feito
mais uma linha de defesa. Lara não fazia ideia de quem
tinha tido a ideia de fazer uma linha de lanternas, mas
elas eram a única luz, além do luar fraco. E elas
deixavam ver as barricadas que tinham sido levantadas
lá, também: duas linhas feitas de madeira, metal e o que
mais tinham conseguido levar para lá. Não era muita
coisa, mas era melhor que nada e ia servir para ganhar
tempo, se os animais corrompidos passassem pela
muralha.
Mas o maior problema não eram os animais. Eram os
carniçais.
Um deles se segurou na beirada de uma das janelas
da torre. Lara avançou depressa e acertou um chute na
cabeça do carniçal assim que ele começou a se levantar.
Mas ele não caiu.
Ela atirou – na cabeça e no peito do carniçal, mais
depressa do que conseguia pensar. Ele fez um ruído que
era mais um guincho do que um grito e caiu para trás.
Não ia demorar para ter mais algum deles na janela,
de novo. Os carniçais escalavam a muralha bem mais
depressa que os animais corrompidos e eles não
paravam, não importava quantos fossem jogados de
volta para o chão.
Lara e Eric tinham subido para o alto da muralha
logo depois de Alex e Gustavo chegarem. Quando as
luzes e a parede elétrica foram desligadas, eles já
estavam ali – porque Eric precisava estar ali. Estar no
alto aumentava o alcance do poder dele. Normalmente
não era uma coisa que fizesse muita diferença, mas
como ele era o único necromante que não estava usando
os animais corrompidos mortos, ele era o único que
podia fazer alguma coisa sobre os carniçais.
Era melhor que estar na sala de baixo encarando os
monitores sem poder fazer nada. Muito melhor. Lara não
podia reclamar.
Mas ela podia querer que as coisas fossem simples.
— Parece que tem mais dois subindo — Alex avisou.
Lara não respondeu. Elu estava na sala de baixo,
junto com Tamara e Lorde Rafael – que estava
acomodado demais para o gosto de Lara. O que queria
dizer que não tinha a menor chance de Alex ouvir uma
resposta. Lara só estava ouvindo os avisos delu porque
estava usando poderes de vampiro.
E já fazia mais de meia hora que estavam ali, sem
nenhum sinal de que a quantidade de carniçais estava
diminuindo, pelo que Lara conseguia ver pelas janelas.
Os vampiros em cima da muralha estavam se livrando
deles o mais depressa que podiam, mas a prioridade de
todos era garantir que nem os carniçais nem os animais
corrompidos passassem pela muralha. O que queria dizer
derrubar eles, se não tivessem como matá-los com um
golpe só.
Lara recuou, até conseguir ver Eric e as janelas que
estava vigiando. Ele estava parado no meio da sala no
alto da torre, com os braços um pouco afastados do
corpo e as marcas de poder subindo, escuras, pelas suas
mãos. E ele estava de olhos fechados.
Aquilo era diferente das outras vezes que ela tinha
visto ele usar poder.
— Eric? — Lara chamou.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
Um carniçal pulou na janela e parou por um instante.
Lara atirou. O carniçal caiu, mas um dos animais
corrompidos já estava subindo por outra janela e tiros
raramente eram o suficiente para jogá-los de volta.
Ela correu na direção da janela e pegou a tampa de
uma das caixas de armas no caminho. A placa de
madeira era mais que o suficiente para acertar na
criatura corrompida sem nenhum risco de que Lara
ficaria no alcance das garras dela.
— Tem algo controlando os carniçais — Eric falou,
sem abrir os olhos. — Eu tenho que tirar o controle de
quem quer que seja antes de conseguir destruí-los.
E até a voz de Eric estava soando tensa, como se ele
estivesse fazendo esforço demais.
Claro que ele estava fazendo esforço. Quem quer
que estivesse por trás daquilo, estava se preparando
fazia anos. Décadas, talvez. Era óbvio que iam ter
pensado em jeitos de contornar o poder de um
necromante.
Lara apertou a sua pistola com força. Não tinha nada
que ela pudesse fazer a não ser continuar ali e garantir
que nada alcançasse Eric. Então era isso que ela ia fazer.
Um dos vampiros na muralha gritou. Lara olhou pela
janela, mas não tinha nada...
Não tinha nada onde o vampiro deveria estar. E ela
era capaz de apostar que, se chegasse mais perto da
janela, ela ia conseguir ver um carniçal se içando para
cima da muralha. Ou um dos animais corrompidos
aproveitando a brecha. E os outros vampiros não podiam
se espalhar mais para cobrir aquele espaço, ou seria pior.
Do mesmo jeito que ela não podia sair dali.
Lara atirou em outro carniçal que começou a subir
pela janela e parou ao lado de Eric de novo.
Era óbvio que, mais cedo ou mais tarde, as defesas
deles iam começar a falhar. Aquele era o motivo para
terem feito a linha dos humanos depois da fronteira. Era
o último recurso, mas também era necessário. Era
impossível conseguirem manter a fronteira daquele jeito.
Algo gritou e Lara não sabia se tinha sido alguém ou
algo. Nem queria saber, na verdade. Ela tinha feito o que
podia quando estavam planejando. Agora, ela precisava
se concentrar.
— Vampiros se aproximando — Alex avisou.
Reforços. O que queria dizer que a situação em
alguma das outras fronteiras tinha sido resolvida.
Não. Aquilo era fácil demais.
— Onde? — Lara perguntou.
— Na terra de ninguém — Tamara falou.
Vampiros. Vindo da terra de ninguém.
Lara não fazia ideia de se Eric estava ouvindo ou
não. Do jeito que ele estava concentrado, era bem
provável que não. E, mesmo que ele estivesse prestando
atenção, ele também já estava fazendo o que podia.
Eles não tinham de onde tirar mais pessoal ou
qualquer tipo de arma. A única opção...
Amon. Amon conseguiria lidar com os vampiros. Mas
ele tinha desaparecido e Lara não tinha nenhum jeito de
entrar em contato com ele. E a outra opção...
Lorde Rafael – que estava na sala logo abaixo de
onde Lara estava. Que tinha ouvido Alex e Tamara darem
aquele aviso. Ele provavelmente tinha alguma coisa que
fosse ser útil. Mas Lara tinha a impressão de que pedir
ajuda para ele seria outro tipo de destruição e aquilo sem
nem levar em conta que era quase impossível que ele
concordasse em ajudar. Fazer aquilo seria se colocar
como um aliado do Três, contra os outros quatro
setores... Que sempre haviam trabalhado junto com
Lorde Rafael.
Não. Eles estavam sozinhos.
Lara encarou a caixa de armas sem tampa. Ela
estava quase vazia, depois de tudo que tinham
repassado para os humanos. E não fazia diferença.
Aquelas armas estavam ali para lidar com animais
corrompidos. Contra vampiros, não iam adiantar quase
nada.
Alguém lá fora gritou, de novo. Lara fez questão de
não olhar pela janela. O som tinha sido perto demais, o
que queria dizer que, se ela olhasse, veria mais um
espaço vazio onde um dos vampiros deveria estar, na
muralha. Mais um que tinha caído. E os que caíam não
tinham a menor chance de sobreviver.
O som dos animais mudou.
Eric abriu os olhos – que estavam pretos, só com as
írises azuis brilhando com o poder.
A névoa surgiu ao redor dele, espiralando ao redor
de Eric e se tornando mais grossa.
Lara deu um passo atrás.
Algo passou por ela, como uma onda de som fazendo
seus ossos vibrarem.
Eric levantou a cabeça devagar, com um sorriso
gelado no rosto. Um arrepio atravessou Lara.
A onda voltou, levantando a névoa ao redor de Eric e
fazendo ela brilhar com um tom prateado e fraco. Poder.
Poder que ele estava absorvendo, o que queria dizer...
Lara estava ouvindo os grunhidos e quase-rosnados
dos animais corrompidos. Mas não estava ouvindo
nenhum dos sons dos carniçais.
Os olhos de Eric voltaram ao normal e ele
cambaleou.
Lara passou um braço ao redor da cintura dele,
depressa, o tempo todo sem soltar sua pistola ou parar
de vigiar as janelas.
— Quem estava controlando — ele murmurou. —
Provavelmente estava no Setor Oito.
E Dani e Amon estavam lá, fazendo a limpa no
castelo.
Um problema a menos, então. Sem os carniçais e
com Gustavo ali, trabalhando junto com os necromantes,
os animais corrompidos não iam ser uma preocupação
tão grande. O problema agora eram os vampiros se
aproximando.

Os vampiros tinham parado. Eric não fazia ideia do que estavam


esperando, mas era óbvio que estavam esperando
alguma coisa. Algum sinal ou mais alguém – ele não
descartaria nenhuma possibilidade. E eles sabiam onde
ele estava, também. Era a única explicação para estarem
parados ali, quando a área atacada da fronteira se
estendia para os dois lados.
Era uma armadilha. Ou melhor, algo pensado
levando em conta o que o Setor Três podia fazer. Os
animais corrompidos e os carniçais haviam sido o
suficiente para cansar seu pessoal, sim. Nenhum dos
necromantes estava em condições de fazer alguma
coisa. Gustavo estava em outra das torres, mas ele era
humano, mesmo que modificado. Depois das horas
tentando não deixar nada passar pela muralha, ele
estaria cansado, também.
Havia sido um plano simples, então: esgotar os
recursos do Setor Três e depois atacar.
Lara parou ao lado de Eric e encarou os vampiros lá
fora, que ainda estavam no mesmo lugar, parados em
um grupo organizado demais.
— Você deveria ir embora enquanto pode — Eric
murmurou.
Porque ele não sabia se sobreviveriam ao que quer
que estivesse para acontecer.
Ela não respondeu.
Eric não queria ver Lara morrer ali.
— Sua irmã... — ele começou.
— Se o Três cair, quanto tempo você acha que vai
demorar para acabarem com o Dez? — Ela perguntou.
Ele não sabia. Se o Dez recuasse, era possível que
conseguissem sobreviver. O poder de Amon não era algo
que podia ser descartado tão facilmente.
Mas Eric entendia o que Lara estava dizendo. Estar
fora dali não seria uma garantia de segurança.
— O vampiro com a blusa meio vermelha e correntes
atravessadas no peito — Lara falou. — Ele é do Setor
Seis. Tem uma mulher que eu acho que é do Nove, mas
não tenho certeza. E tem um grupo para a esquerda...
— Que está vestido como vampiros da Corte do
Desejo — ele completou.
Lara assentiu.
Eric tivera suas suspeitas sobre aquilo e Lara
reconhecer dois vampiros era o suficiente para ele
considerar mais uma possibilidade. As Cortes não
trabalhavam juntas, normalmente. E, mais importante,
era impossível ter tantos vampiros de Cortes diferentes
reunidos sem algum problema começar.
Mas eles estavam ali, vampiros de pelo menos três
setores, provavelmente dos quatro envolvidos naquilo.
Ou eles estavam ali como testemunhas, para
repassar o que estava para acontecer, ou o que viria
depois seria usado para solidificar aquela aliança ainda
mais.
Eric podia usar o poder que tinha consumido dos
carniçais. Mas, se fizesse aquilo, ele não tinha a menor
garantia de que manteria o controle. Não importava se
seu corpo estivesse descansado, por causa do que tinha
absorvido. Sua magia estava esgotada. Fazer qualquer
coisa era um risco grande demais.
Ele não tinha outra opção. As histórias do seu mentor
sobre necromantes que haviam perdido o controle e
cedido às vontades do poder ainda estavam na sua
mente, mas era a única chance que tinham.
Algo apareceu no limite dos seus sentidos. Era um
poder, sim, como a força que mantinha os vampiros
caminhando, mas era diferente. E estava se
aproximando.
— Lara... — ele começou, de novo.
— Não tente — ela falou. — Eu não vou sair daqui.
Algumas coisas, seria melhor se ela nunca visse. Mas
Eric sabia que não adiantava insistir. Era Lara, ali.
O poder continuou se aproximando. Os vampiros
reunidos lá embaixo se endireitaram, como se também
estivessem sentindo aquilo.
O alçapão se abriu e Lorde Rafael subiu. Eric não
falou nada enquanto o outro vampiro parava perto de
uma das janelas e olhava para fora.
Os vampiros ainda estavam parados e a sensação do
poder agora era uma pressão contra os seus ossos, uma
vibração incômoda que Eric não conseguia ignorar.
— É minha vez, então — Lorde Rafael falou.
Ninguém disse nada quando ele saiu pela janela e
parou, em cima da muralha. O outro vampiro não era um
aliado para ser uma preocupação para Eric e ele se
recusava a dizer qualquer coisa que pudesse ser
interpretada como um pedido de ajuda ou qualquer coisa
do tipo, depois. O preço de dever algo para Lorde Rafael
era alto demais.
Lorde Rafael abriu os braços. O pulso de poder vindo
dele foi o suficiente para fazer Eric cambalear e Lara se
segurar na beirada da janela com força antes de se virar
para o vampiro.
Eric segurou o braço dela quando Lara tentou
levantar uma arma. Nem mesmo uma pistola a laser ia
adiantar contra Lorde Rafael. Não se ele conseguia
espalhar aquela quantidade de poder sem fazer o menor
esforço ou precisar se concentrar, antes.
— Os vampiros — Tamara falou.
Eric se virou para fora, de novo.
Os vampiros mais à frente do grupo estavam rígidos,
com uma postura que era óbvio que não era natural.
Sendo controlados por Lorde Rafael, então. Eric já tinha
visto aquilo antes e ouvido histórias. Não era nada
inesperado, nem para ele, nem para o poder incômodo
que ainda estava se aproximando.
Não. Os vampiros não estavam só sendo
controlados. Eles estavam olhando para o alto, com as
bocas abertas em um grito silencioso, e parecia que Eric
estava vendo algo escuro saindo dos vampiros...
— Aquilo é sangue? — Lara perguntou.
Era. O sangue dos vampiros estava saindo do corpo
deles – provavelmente não pela boca, mesmo que fosse
o que parecia. E estava subindo como uma coluna de
água em uma fonte, até estar na mesma altura que a
muralha. As colunas de sangue se juntaram, no alto, se
movendo como se fossem algum tipo de tapeçaria.
Linhas sendo trançadas, mas se as linhas fossem grossas
e feitas de sangue.
Eric nunca havia visto nada daquele tipo antes.
E o outro poder tinha parado de se aproximar.
O sangue continuou girando no ar por alguns
minutos e ninguém falou nada. Lá fora, os vampiros
continuavam parados no lugar – tanto os que estavam
perdendo o sangue quanto os outros, os que estavam
para trás do grupo. Eric não sabia se estavam sendo
controlados, também, ou se simplesmente não tinham
coragem de se mover.
Os vampiros controlados caíram no chão de uma
vez. Destruídos – porque nenhum vampiro sobrevivia
sem todo o seu sangue.
O sangue caiu logo depois, como uma chuva
macabra, sujando os outros vampiros. E eles
continuavam parados no lugar.
Controlados, então.
A sensação incômoda do outro poder começou a se
afastar, de novo. Eric se concentrou. Aquilo era o que
estava por trás de tudo, então ele precisava saber o que
era e de onde vinha. Mas a única coisa que conseguia ter
certeza era de que o poder estava se afastando pelas
terras de ninguém, sem ir na direção de nenhum setor. E
continuava não sendo nada que ele entendia.
— É bom se lembrarem de com quem estão lidando
— Lorde Rafael falou.
Os vampiros parados se moveram ao mesmo tempo.
Alguns caíram e foram pisoteados antes de conseguirem
se levantar de novo, mas todos estavam correndo, indo
mais fundo na direção das terras de ninguém.
Eles seriam testemunhas, então. Só não do jeito que
haviam pensado que seriam.
Eric se virou, devagar. Lorde Rafael continuava
parado no alto da muralha, olhando na direção de onde o
outro poder havia desaparecido.
Se o príncipe do Setor Um quisesse se livrar da Corte
da Névoa, era o momento perfeito. E Eric não tinha
certeza de que conseguiria pará-lo.
Lorde Rafael se virou e inclinou a cabeça na direção
de Eric antes de pular da muralha e desaparecer na
noite.
VINTE E CINCO

Lara parou no meio do quarto e respirou fundo.

Já fazia horas desde que tinham saído da fronteira e


voltado para a cidade. Ela tinha certeza de que ainda
havia gente demais trabalhando, lá, tanto para limpar a
bagunça quanto para reorganizar tudo depois, mas para
ela, pelo menos, tinha acabado. E a primeira coisa que
Lara tinha feito depois de chegar ali havia sido se enfiar
debaixo do chuveiro gelado. Mesmo que ela não tivesse
conseguido fazer muita coisa, a tensão de estar
esperando, assistindo ao que estava acontecendo e
tentando garantir que nada pior acontecesse era o
suficiente para ela estar exausta.
Tinha acabado. De alguma forma aquele caos tinha
acabado. E eles continuavam sem saber quem tinha sido
o responsável por tudo, a pessoa que havia organizado
aquela aliança de setores, feito aqueles planos,
providenciado recursos e direcionado tudo até o fim.
Lorde Rafael sabia. Era a única explicação para o que
tinha acontecido no fim de tudo, na fronteira. Ele sabia
exatamente o que estava acontecendo e Lara não era
louca a ponto de ir atrás dele cobrando uma resposta. Na
verdade, ela era capaz de apostar que nem Eric faria
aquilo, porque pedir explicações podia ser interpretado
como pedir ajuda. Até ela entendia o suficiente da
política dos vampiros para saber o tanto que aquilo era
uma má ideia, de qualquer jeito que olhasse para a
situação.
E a política dos vampiros seria interessante pelos
próximos tempos sem precisarem de mais complicações.
Cassius, príncipe do Setor Oito, havia sido destruído.
Pelo que Lara tinha ouvido, Dani e Amon não tinham nem
tentado disfarçar o que estavam fazendo. Os últimos
vampiros que tinham ido procurar Cassius tinham
chegado na sala dele e encontrado Dani sentada em
cima da mesa, com Amon e suas sombras atrás dela. O
recado tinha sido dado e Lara não achava que alguém
tivesse se surpreendido com aquilo.
Dama Cordelia, princesa do Setor Cinco, tinha
desaparecido. Lara não fazia ideia de se ela tinha
conseguido fugir ou se alguém tinha aproveitado aquilo
tudo para destruí-la, mas não fazia diferença. Se ela
tinha desaparecido no meio daquilo tudo, era porque não
voltaria mesmo se ainda estivesse viva.
E Lara não queria saber o que estava acontecendo
no Seis e no Nove. Mais cedo ou mais tarde ela ia
precisar saber, sim, mas até lá... Não. Ela merecia um
descanso – o tipo de descanso que nenhuma quantidade
de sangue conseguia substituir.
Alguém bateu na porta.
Ela se virou, devagar.
— Está aberta — Lara avisou.
Estava, porque ela tinha imaginado que ele ia ir
atrás dela, quando terminasse o que precisava fazer.
A porta se abriu. Era óbvio que era Eric ali, mesmo
que ela estivesse tão cansada que não conseguia sentir
mais nada da presença dele. Ou talvez ele também
estivesse tão esgotado que não havia nada para ser
sentido. Era fácil demais ver as marcas da tensão no
rosto dele – não exatamente cansaço, só o saber que
tudo podia ter dado muito errado, ali.
E Lara nunca ia se esquecer da expressão dele
quando tinha pedido para ela sair da torre e fugir.
— Eu não... — Eric começou e parou.
Ele não sabia quanto de controle ainda tinha. Ou até
onde podia confiar no que ia fazer ou não.
E Lara não se importava.
Ela assentiu, devagar.
A porta se fechou atrás de Eric e Lara ouviu o ruído
da chave girando.
Eric avançou de uma vez, se movendo com
velocidade vampírica. Em um instante ele estava parado
na porta, no outro ele estava na frente de Lara, com uma
mão na nuca dela e a beijando.
Ela se segurou na cintura dele, sentindo o
movimento dos músculos por baixo da blusa fina de
sempre. Aquilo era diferente. Sempre era intenso, com
Eric – e aquilo estava longe de ser uma reclamação –
mas tinha algo mais ali, agora. A forma como ele estava
segurando Lara, a forma como ele a beijava, só tomando
o que queria e fazendo ela ofegar, sem nem ter certeza
do que estava acontecendo...
Não era a mesma coisa. Não tinha como ser.
Lara se apertou contra Eric, gemendo baixo. Não
deveria ser possível que só um beijo arrancasse aquela
reação dela, mas era o que estava acontecendo. E ela
não queria que parasse.
Ele levantou a cabeça, sem soltar a nuca de Lara. Ela
respirou fundo e o encarou. Os olhos de Eric estavam
escuros, mas não o escuro de poder. Agora era uma
reação humana demais: as pupilas dilatadas, as írises
azuis-claras parecendo de um tom mais escuro de azul,
também.
Lara enfiou a mão por baixo da blusa dele e passou
as unhas nas costas de Eric, com força o suficiente para
marcar.
Ele fechou os olhos e fez um ruído grave que era
quase um gemido.
Mais. Lara queria mais.
Ela o beijou, de novo. Eric colocou a mão livre na
cintura dela e a regata que Lara estava usando era fina o
suficiente para ela conseguir sentir o frio da pele de Eric.
Ou talvez fosse só uma ilusão, porque a sensação
quando ele começou a puxar a regata, devagar, até tocar
a pele dela, era algo forte demais.
Tudo era demais. O beijo, os toques. Era intenso
demais, forte demais, de um jeito que parecia que Lara ia
ser consumida pela tensão do momento.
E ela precisava respirar.
Lara afastou a cabeça, ofegante.
Eric ainda estava olhando para ela com aquela
expressão faminta que era diferente demais de um
vampiro querendo sangue.
Um arrepio atravessou seu corpo. Ela tinha deixado
Eric daquele jeito.
Lara passou uma perna ao redor do quadril de Eric,
colando seus corpos. Ela conseguia sentir a ereção dele e
aquilo era o suficiente para ela querer mais, também.
— Lara... — Eric começou.
Ela inclinou a cabeça para o lado, oferecendo o
pescoço.
O olhar de Eric ficou mais escuro ainda. Ele abaixou
a cabeça, devagar, deixando uma trilha de beijos pelo
seu pescoço e pelo seu ombro. Um arrepio atravessou o
corpo de Lara e ela se apertou ainda mais contra ele.
Eric desceu a mão pela sua cintura, até o cós da sua
calça.
— Não ouse rasgar minha roupa — ela murmurou.
Ele riu baixo contra o pescoço de Lara antes de subir
a mão de novo, traçando um caminho frio pela sua pele
antes de parar.
— Então é melhor se livrar dessa calça logo — ele
falou.
Lara se apertou contra Eric de novo. Era tentador
demais, mas ao mesmo tempo ela não queria se mover
para tirar a calça, porque se mover queria dizer se
afastar dele – da sensação da ereção dele contra ela. E
Lara não queria perder aquilo por um segundo que fosse.
Eric começou a descer a mão na sua cintura de novo.
Ela abaixou a perna que estava ao redor dele e
puxou sua calça para baixo com uma mão – e era só
sorte que ela estivesse usando uma calça larga o
suficiente para fazer aquilo sem problemas.
Eric beijou seu pescoço, devagar, ao mesmo tempo
em que acompanhava a linha da sua calcinha com os
dedos. Aquilo ela não se incomodava se ele rasgasse. Na
verdade, até queria e não ia negar.
Ela sentiu as presas de Eric contra sua pele e um
gemido baixo escapou.
Ele riu, de novo, e levantou a cabeça.
— Eu não vou te morder — Eric murmurou. — Não
agora. Não assim.
Não com os dois esgotados depois de tudo.
Não importava. Eric nunca tinha precisado da
mordida para deixar Lara louca.
Ela colocou uma mão na frente da calça dele e
apertou. Eric fez outro daqueles ruídos graves, aquele
gemido que parecia mais que só aquilo, antes de puxar a
mão dela com força.
— Eu estou tentando me controlar — ele avisou.
Um arrepio atravessou Lara. Ela sabia. Ela tinha
notado desde a hora que ele tinha entrado no quarto.
Eric estava no limite, também. E aquilo nunca ia ser um
problema.
Ela deu um passo para trás. Eric a soltou e a encarou
como se não tivesse certeza do que esperar.
Lara tirou sua regata e a jogou para o lado. Ela não
estava usando nada por baixo e não foi nem uma
surpresa quando o olhar de Eric escureceu ainda mais.
— Não se controle — ela falou.
Ele sorriu daquele jeito que era quase predatório
antes de ir na direção dela e colocar uma mão no seu
ombro. Só aquilo: uma mão no seu ombro e mais nada.
Eric a empurrou para trás, devagar. Lara obedeceu.
Ela não fazia ideia do que estava nas suas costas e não
se importava. Só queria saber o que ele ia fazer.
Ela bateu as pernas contra a cama.
Eric ainda estava sorrindo quando a empurrou de
novo.
Lara caiu sobre o colchão. Sua respiração estava
acelerada de um jeito que era quase inesperado. Tinha
algo sobre estar deitada daquele jeito, quase nua, com
Eric de pé na sua frente, que era o suficiente para fazer
todo o seu corpo arrepiar da melhor forma possível. Era
algo no olhar dele, em como ele a encarava como se
estivesse pensando em tudo o que ia fazer...
Como se ela fosse dele.
Ela era. Não importava o que acontecesse, o que
viesse depois. Ela era dele, sim.
Eric se inclinou na sua direção. Lara sentiu uma
pontada de algo que não chegava a ser dor – a sensação
do tecido da sua calcinha sendo rasgado de uma vez.
E então Eric tinha se livrado das roupas dele,
também. Lara mordeu o lábio enquanto o encarava.
Dela. Ele era dela, não importava o que pensasse. Tanto
o cuidado quanto a força, tudo era dela. E Lara não ia
abrir mão daquilo.
— Para cima — Eric falou.
Perigo. Aquela voz era um aviso. Mas já era tarde
demais para Lara pensar em prestar atenção em
qualquer aviso.
Ela se arrastou mais para cima no colchão, até sentir
os travesseiros no alto da cama.
E Eric ainda estava parado no mesmo lugar, a
encarando com aquela expressão faminta. Tentando se
controlar, mesmo depois de ela ter falado que não
precisava.
Falar não ia ser o suficiente.
Lara levantou os braços devagar e colocou as mãos
contra a cabeceira da cama.
Ele avançou de uma vez. Lara sentiu os dedos ao
redor do seu pescoço antes de entender o que mais
estava vendo e sentindo. Eric, em cima dela, a
prendendo no lugar com o peso do seu corpo.
E, mesmo daquele jeito, ele ainda era cuidadoso. Ela
não tinha a menor chance de sair dali, mesmo se
quisesse – e Lara não queria – mas não era
desconfortável. Cada ponto de pressão parecia ter sido
calculado, como se Eric soubesse exatamente o que
precisava fazer.
Lara inclinou a cabeça para trás. Ele já tinha falado
que não ia beber do sangue dela e ela não ia insistir
naquilo. Mas oferecer o pescoço podia ter mais de um
significado.
Eric fez outro daqueles ruídos graves e entrou nela
de uma vez. Lara gritou e bateu uma mão contra a
cabeceira da cama, com força. Eric ainda estava com
uma mão ao redor do seu pescoço, mas tinha parado, só
a encarando.
— Não ouse — ela avisou.
Porque se ele parasse, ela não sabia o que ia fazer e
não sabia se queria descobrir.
Eric se moveu, saindo e entrando nela de novo. E de
novo. Não era rápido demais, mas era um ritmo que mal
deixava Lara processar o que estava acontecendo. Era
forte demais, intenso demais, de um jeito que a obrigava
a só sentir. Eric era a única coisa que existia. A sensação
do corpo dele acima do seu, do pau dele, mais frio,
entrando e saindo com força, sem parar, sem relaxar...
Ela segurou as costas de Eric com força.
Não, aquilo não era só tensão e desejo. Aquilo era
desespero, sim. Era o resultado de verem o que quase
podia ter acontecido, tudo o que podiam ter perdido, mas
de alguma forma estavam ali.
Eric grunhiu. O cheiro de sangue se espalhou um
instante antes de ele segurar seu quadril.
Lara tinha arranhado as costas dele com força o
suficiente para sangrar. E aquilo não era um problema,
também.
Ela gritou quando Eric entrou nela de novo, com
força, num ângulo um pouco diferente, só o suficiente
para fazer todo o seu corpo tremer.
E então Lara nem sabia mais o que estava
acontecendo. Seu corpo estava tremendo com um
orgasmo tão forte que ela não conseguia fazer nenhum
som. E Eric não estava parando. Ele ainda estava se
movendo no mesmo ritmo, com a mesma força, a mesma
intensidade quase desesperada.
Lara gritou de novo com a segunda onda do orgasmo
– deveria ser impossível, mas ainda havia mais. Mais
sensação, mais tudo.
Ela arranhou as costas de Eric, sem saber se queria
se afastar porque era demais ou se queria mais. Ele
apertou seu quadril, mudando o ângulo de novo, e agora
cada vez que ele entrava nela de novo ele também
encostava no seu clitóris.
Não era muita coisa. Não deveria fazer tanta
diferença. Mas Lara estava arqueando as costas, se
segurando nele com mais força ainda enquanto sentia
todo o seu corpo enrijecer. E ela estava gemendo de um
jeito quebrado, quase desesperado, porque era demais,
eram sensações demais e ela não sabia se conseguia
aguentar mais.
Eric afundou o rosto na curva do pescoço dela. Lara
sentiu a presas dele um instante antes de todo o corpo
de Eric tremer contra ela, também.
Lentamente, Eric soltou o quadril de Lara. Ela se
forçou a soltar as costas dele e se esticou na cama, sem
ter certeza de que estava sentindo o próprio corpo. O
que quer que tivesse acontecido ali, não tinha sido nada
que ela imaginasse que fosse possível. E, se fosse levar
em conta que Eric nem tinha chegado a lhe morder...
Eric deixou o corpo cair sobre o dela por um instante.
Lara respirou fundo, sentindo os restos dos tremores pelo
seu corpo, junto com a sensação da pele fria de dele.
Ela não queria se mover – e não queria que ele se
movesse. Aquilo ali, os dois daquele jeito... Aquilo era
perfeito. Era um daqueles momentos que ela queria que
durassem para sempre.
Lara gemeu baixo quando Eric se moveu, saindo de
dentro dela. Ela estava tão sensível que só aquilo era o
suficiente para ela tremer, de novo. E, se ela não
estivesse tão cansada, ia ser mais que o suficiente para
convencer Lara a subir em cima de Eric e providenciar
mais um orgasmo. Mas não. Ela não tinha forças nem
para pensar naquilo.
Eric os virou na cama, até que estavam de lado.
Lara abriu os olhos. Era óbvio que ele a estava
encarando, mas ela não tinha certeza do que estava
vendo na expressão de Eric.
— Eu não quero que você vá embora — ele
murmurou. — Eu preciso de você aqui, para ser quem vai
ver o que eu nunca enxergo. Mas, principalmente, porque
não quero imaginar a ideia de alguma coisa acontecer
com você e eu não poder fazer nada.
Lara engoliu em seco. Ela não estava imaginando
coisas quando se lembrava da expressão dele na torre,
então – a de quando Eric tinha pedido para ela ir embora.
Ele se importava, sim. Mais do que se importava.
— Eu quero você aqui — ele continuou. — De
qualquer forma que quiser ficar... Se quiser ficar.
Como consorte – ou não. E aquilo era uma coisa que
nunca tinha nem passado pela cabeça de Lara, porque
Eric era a pessoa que nunca ia impor algo daquele tipo a
alguém. A possibilidade estaria ali, se ela quisesse. Mas
nunca seria uma obrigação.
Não que aquilo fizesse diferença. Se a única forma
de ficar fosse como a consorte de Eric, Lara ficaria,
mesmo assim.
E ela não era uma vampira – nem nunca poderia ser
transformada, por causa do que havia herdado do seu
pai. Mas ela também não era apenas humana e aquele
era outro motivo para Lara sempre ter evitado beber
sangue: suas experiências tinham sido o suficiente para
ela saber que, se bebesse sangue demais, ela não ia
envelhecer, também.
Aquilo nunca tinha sido importante para Lara. Ela era
humana, e ponto. Mas agora, aquilo queria dizer que ela
podia agarrar aquela oportunidade sem se preocupar. E a
fala de Eric valia mais ainda porque ele tinha feito aquela
oferta sem saber que Lara poderia ser imortal, também.
Ela rolou os dois na cama, até estar deitada em cima
de Eric.
— Eu quero ficar — ela falou. — Os detalhes não
fazem a menor diferença.
Os detalhes eles teriam tempo para resolver.
Eric sorriu e colocou uma mão no rosto de Lara,
passando um dedo pelos lábios dela.
E aquilo era outra coisa que ela nunca tinha visto:
Eric parecendo tão completamente satisfeito. Se bem
que a expressão dela não devia estar muito diferente,
também.
— Você precisa dormir — Eric murmurou.
Sim, precisava. E, se Eric não estava dando o menor
sinal de que ia sair dali, Lara também não ia sair de onde
estava.
Ela apoiou a cabeça no ombro dele e fechou os
olhos.

Alana encarou o teto do seu quarto. Tudo estava exatamente como


antes. E não só como antes do ataque no Setor Três –
como antes do seu acordo com Lorde Rafael. E chegava a
ser estranho estar ali, olhar para os lados e ver a mesma
coisa, quando ela só conseguia pensar em tudo que
havia mudado.
Mas havia uma coisa que não mudava: vampiros.
Eles eram criaturas de hábitos e padrões, sim. Alana
tinha crescido em uma Corte. Ela sabia daquilo.
O que queria dizer que ela tinha certeza de que tudo
que Lorde Rafael tinha feito na noite anterior havia sido
mais um dos seus jogos. Uma forma de tentar fazer com
que ela e o Setor Dez abaixassem a guarda, para depois
traí-los. Ou então uma forma de garantir que o Dez e o
Três se aliariam a ele, agora que seus aliados de sempre
haviam deixado claro que nunca tinham sido aliados, na
verdade.
Ou até mesmo uma forma de ganhar a confiança
dela. Quando eles tinham feito aquele contrato, Alana
tinha feito questão de deixar bem claro o que Lorde
Rafael podia pedir que ela fizesse com seus poderes. Ela
tinha usado o estereótipo da bruxa da natureza
interessada em cuidar e fazer coisas crescerem e ele não
tinha questionado. Mesmo que ele fosse antigo, Lorde
Rafael era um dos vampiros que não prestava atenção
nos vampiros. Não era uma surpresa que ele não
soubesse sobre o outro lado das bruxas da natureza.
Agora ele sabia. Ele não tinha chegado a ver Alana
em ação, mas tinha visto os resultados do que ela havia
feito, tanto no galpão dos geradores quanto no pântano,
depois. Era óbvio que Lorde Rafael ia fazer o que
pudesse para ter Alana completamente sob seu controle
– além dos termos do contrato.
O que queria dizer que Alana não ia acreditar em
nada que ele falasse ou fizesse. Não importava o que
tinha acontecido na fronteira, ela não tinha como saber
quanto era real e quanto era só manipulação. Se alguma
parte daquilo tivesse sido real.
— Eu quase consigo entender por que você gosta
tanto desse lugar.
Alana se virou na cama de uma vez, já se
concentrando nas plantas mais próximas – as duas
samambaias, uma de cada lado da janela, e o vaso de
beladona.
Lorde Rafael parou onde estava, bem na frente da
janela, sem dar mais nenhum passo na direção de Alana.
Então ele tinha um resto de instinto de
sobrevivência.
Ela se levantou devagar e parou do outro lado da
cama. Não era porque não estava indefesa que ela ia
relaxar.
— O que você quer? — Alana perguntou.
Lorde Rafael tirou algo de um dos bolsos. A luz do
quarto refletiu no metal, mas Alana não tinha como ter
certeza de o que aquilo era. Parecia um anel, mas não
fazia nem sentido.
Ele equilibrou a peça de metal na borda do vaso de
beladona, com cuidado, e se afastou de novo.
— Seus amigos estão seguros, Alana — Lorde Rafael
falou.
Ela não respondeu.
Ele inclinou a cabeça e saiu do mesmo jeito que
havia entrado – atravessando a janela antes de
desaparecer.
Alana nunca tinha descoberto como ele fazia aquilo.
Não era o mesmo tipo de poder que Dani tinha. Na
verdade, ela não sabia nem se era algum poder ou só
alguma ilusão enquanto ele fazia uma coisa
completamente diferente.
E ele ter ido ali, daquele jeito, não fazia o menor
sentido, também. Ainda faltava um mês e meio para ela
precisar voltar para o Setor Um.
A menos que fosse algum tipo de armadilha.
Ela encarou o metal no vaso de beladona por alguns
segundos antes de se levantar e ir naquela direção.
Era um anel, sim. Prateado – talvez até de prata
mesmo – largo e com alguma coisa gravada que ela não
tinha certeza se era um desenho, símbolos ou algo
escrito. E Alana não ia chegar mais perto antes de Alex
ver se não tinha algum tipo de armadilha mágica naquilo.
Ela parou na frente da janela e olhou para fora. O
céu ainda estava escuro, mas o horizonte já estava
clareando.
Seu quarto era no terceiro andar da mansão que era
a sede do Setor Dez, então era óbvio que não ia ter nada
ali. E Alana não esperava ver nada, de verdade.
Mas...
Um mês e meio até ela precisar voltar para o Setor
Um.
Um mês e meio para fazer planos sobre como lidar
com alguém que já tinha sido o rei dos vampiros e que
provavelmente queria recuperar aquele poder.
VINTE E SEIS

Lara olhou para a cerca que separava o Setor Dez do Setor Três
e depois para sua irmã. Valissa estava apertando o cabo
de uma faca com força, mas quem olhasse só para o seu
rosto não ia pensar que tinha nada errado. Ela era boa
demais em esconder o que estava sentindo,
normalmente. Mas estar ali, com o sol terminando de se
pôr...
— Você não precisa fazer isso, Val — ela começou. —
De verdade.
Era surreal pensar que ela podia dizer aquilo sem se
preocupar com as consequências. Ou melhor, que elas
pudessem estar ali, praticamente na fronteira, e Lara
tinha certeza de que nada aconteceria. Não teria
ninguém indo atrás delas. Ninguém tentando rastrear o
poder de Val.
Já fazia duas semanas desde os ataques na fronteira
do Setor Três com as terras de ninguém. Eles ainda não
tinham mais nenhuma informação sobre o que tinha sido
aquilo tudo, mas pelo menos mais nada havia
acontecido.
E Lara realmente tinha se decidido. Eric não ia fazer
nenhum anúncio oficial sobre ela ser sua consorte – tudo
tinha acontecido depressa demais e ela não queria correr
o risco de fazerem aquilo e ele perder o respeito dos
vampiros depois, se algo desse errado. Mas ela
continuaria agindo como consorte, sim, da mesma forma
como tinha feito por causa do contrato, antes.
A pior parte daquilo tinha sido contar para Val. Seis
anos antes, quando tinham fugido dali, Lara tinha sido
torturada na frente da sua irmã. Mas, das duas, era Val
quem sempre tinha tido mais medo de qualquer coisa
envolvendo o Setor Três.
Valissa não tinha gostado nem um pouco de saber
que Lara ia morar no Setor Três – pelo menos até Lara
mencionar que ela não precisava ir, também. Aquilo era
uma coisa que ela tinha pensado vezes demais: da
mesma forma que não era justo com Val continuarem
fugindo, não era justo obrigá-la a voltar para o Três. E os
dois setores faziam fronteira. Não era como se Lara
estivesse indo para um lugar longe ou de acesso difícil.
Então Val ia continuar morando no Setor Dez. Elas
não iam estar separadas de verdade e, com toda a
questão dos vampiros atrás delas resolvida, era bem
possível que fossem se ver mais do que quando ainda
estavam no Setor Seis.
Eric apareceu, do outro lado da fronteira, onde Lara
sabia que as ilusões que escondiam o pântano
começavam, e continuou no mesmo lugar.
Val se virou na direção dele e parou, apertando sua
faca de novo.
— Ele não vai vir se você não quiser — Lara avisou.
Sua irmã respirou fundo e assentiu, mesmo que
ainda estivesse apertando o cabo da faca.
— Fala pra ele vir.
Lara olhou para Eric. Ele começou a andar na direção
delas, devagar.
Valissa o encarou enquanto ele se aproximava. Lara
sorriu. Era quase um espelho de quando eles tinham se
encontrado, quando Eric tinha falado que tinha um
trabalho para ela. Val estava encarando o vampiro com
uma desconfiança que Lara conhecia bem demais.
Eric parou, do outro lado da fronteira, e não falou
nada.
Val continuou o encarando por alguns segundos
antes de assentir.
— Você não é um deles — ela falou, de um jeito
quase solene.
Eric olhou para Lara e ela balançou a cabeça. Não
fazia ideia do que Val queria dizer e já tinha aprendido a
não insistir quando ela falava algo daquele tipo.
— Val... — Lara começou.
Sua irmã segurou seu braço e a puxou na direção da
fronteira.
— Se você demorar demais vai escurecer — Val
resmungou.
Lara deu uma risada e a acompanhou.
Valissa passou entre os fios da cerca sem o menor
problema e Lara fez a mesma coisa depois dela.
— A gente vai ter que andar muito? — Val perguntou.
— Estamos quase lá — Eric falou.
A garota olhou para ele e levantou as sobrancelhas
de um jeito que era o auge da ironia.
Eric sorriu, sem mostrar as presas, e gesticulou na
direção da área na frente deles.
— Nós escondemos o pântano.
— Escondem, tá — Val repetiu.
Lara sorriu. Aquele era o motivo para ela não ter
nenhum problema em deixar Val continuar no Setor Dez.
Ela não se parecia em nada com a garota assustada que
tinha saído do Setor Seis e Lara estava satisfeita demais
com aquilo.
Lara sentiu a resistência da magia um instante da
paisagem na sua frente mudar completamente. Ao invés
do mato baixo e seco que estava para trás deles, o chão
ali era molhado, com plantas demais crescendo e árvores
altas mais para a frente.
— Isso é esquisito — Val murmurou. — Pra quê
esconder?
Lara sorriu.
— Para surpreender quem entra aqui sem ser
convidado — Eric respondeu. — O pântano não foi algo
ruim, para nós.
Não, não tinha sido. Se não fosse pelo pântano, os
carniçais do Setor Cinco teriam feito estrago muito
tempo antes, na época que Lara tinha descoberto sobre
eles. E ela duvidava que aquela tivesse sido a única vez
em que o pântano tinha servido como defesa do Setor
Três.
O único problema era como ele continuava
crescendo depressa demais, a ponto de ser uma ameaça
para o próprio setor.
Val sorriu e olhou para Lara.
— Ele foi útil, então? Gostei. Mas se você vai morar
aqui, então ele tem que parar de crescer.
Lara olhou de relance para Eric antes de encarar a
irmã de novo. A forma como ela tinha falado aquilo...
Valissa se endireitou e fechou os olhos. Lara
conseguia sentir o poder ao redor dela, quase lhe
chamando – familiar demais, mas ao mesmo tempo fora
do seu alcance.
Lara nunca tinha tido certeza se o pântano crescia
daquele jeito porque Val tinha feito aquilo numa explosão
de poder, ou se tinha sido de propósito. Se alguém lhe
perguntasse, ela diria que provavelmente tinha sido um
acidente, por causa da situação toda, na época. Mas,
agora, depois daquele comentário...
Val tinha feito o pântano daquele jeito de propósito.
Era a sua vingança do Setor Três, mesmo que ela fosse
só uma criança, na época.
— Ela vai dar trabalho quando crescer — Eric
murmurou.
Lara sorriu.
— Tem certeza que vai ser só quando crescer?
Eric deu uma risada baixa.
Não, não seria só quando ela crescesse. Valissa daria
trabalho, sim, porque ela era esperta demais e poderosa
demais. E era exatamente aquilo que Lara queria que
acontecesse: que sua irmã estivesse segura o suficiente
para dar trabalho.
Ela tinha conseguido o que queria.
Lara olhou para Eric de novo. Não. Ela tinha
conseguido muito mais do que queria.
Para todo mundo que acreditou nessa história desde o
começo.

Quatro livros de espera é o suficiente, não é?


UM

Alana parou na frente do portão principal do castelo de Lorde


Rafael. Os muros pareciam mais decorativos que
qualquer outra coisa – baixos o suficiente para ser fácil
até para um humano os pular – mas eles não estavam ali
por proteção. Eram só mais uma coisa completando a
imagem certa que o castelo precisava passar. A defesa
real provavelmente envolvia magia, se Alana levasse em
conta como todo o castelo parecia coberto por um poder
tão forte que até ela conseguia sentir.
O guardas humanos nas guaritas ao lado do portão
se endireitaram. Duas mulheres e um homem de um
lado, dois homens do outro, todos com tatuagens
grandes e escuras na parte da frente do pescoço. Alana
tinha aprendido bem depressa o que aquelas tatuagens
queriam dizer, da outra vez que tinha passado tempo no
Setor Um: aquelas pessoas podiam até ser humanas,
mas tinham jurado lealdade a Lorde Rafael e à Corte da
Noite. A Corte do Setor Um.
Naquele ponto Lorde Rafael tinha sido esperto. Um
dos motivos para o Setor Um ter tanta força era a forma
como usavam os humanos. Os vampiros nunca estavam
indefesos durante o dia e nem tinham as falhas de
defesa que eram comuns nos outros setores, por causa
da arrogância.
Uma das mulheres saiu da guarita e parou a alguns
passos de distância de Alana. E ela não ia ignorar o fato
de que ninguém parecia interessado em abrir o portão.
— Senhora, se quer ir para a cidade, pedimos alguns
minutos para providenciar uma escolta — a mulher falou.
Alana levantou as sobrancelhas. Não era a primeira
vez que aquilo acontecia. Da outra vez que ela ficado no
Setor um, tinha sido mais fácil só aceitar uma escolta
sempre que ia para a cidade, até porque ela só estava
querendo conhecer o lugar onde estava e ter uma ideia
do que esperar das pessoas dali. Não era a mesma coisa,
agora.
— Não estou pedindo uma escolta. Só estou
esperando abrirem o portão — Alana falou. — A menos
que tenham decidido que eu sou uma prisioneira no
castelo.
A mulher engoliu em seco e olhou de relance para a
direita. A consciência de Alana quase pesou, porque ela
sabia exatamente para o que a mulher estava olhando.
Mais para a direita, dois postes de metal haviam sido
levantados logo para trás do muro, em cima de uma
plataforma que Alana nunca teria imaginado que servia
para aquilo. Quando ela tinha chegado no Setor Um,
duas semanas antes, os vampiros empalados ali ainda
estavam gritando. Agora, só tinha um resto de carne e
ossos que ninguém tinha se dado ao trabalho de tirar de
lá... Ou que Lorde Rafael não tinha autorizado que
fossem tirados.
Aquilo era outra das coisas que haviam mudado.
Aquele Lorde Rafael era diferente demais do vampiro que
tinha aparecido no quarto de Alana, no Setor Dez, mais
de um ano antes. E ela tinha certeza que agora estava
vendo o verdadeiro Lorde Rafael. O que havia sido o rei
dos vampiros antes da volta da magia.
Então a consciência de Alana quase pesava por
forçar uma das guardas a ignorar o que provavelmente
eram ordens de Lorde Rafael. Mas não chegava a pesar
de verdade, porque a mulher tinha feito uma escolha. A
tatuagem subindo pelo pescoço dela era um lembrete
constante daquilo. Ela tinha escolhido dar sua lealdade
para um vampiro e provado aquela lealdade de alguma
forma. Qualquer um que estivesse ao lado de um
vampiro daquele jeito, e principalmente ao lado de Lorde
Rafael, não podia ser sua prioridade.
— Não é uma prisioneira, senhora — a mulher falou.
— Mas a cidade não é segura para uma feiticeira.
Talvez. Era a mais pura verdade que a maioria das
pessoas via uma feiticeira como uma traidora – uma
bruxa que tinha escolhido ser leal a um vampiro. Mas
Alana era uma feiticeira só em nome e estava em um
setor onde humanos leais à Corte eram algo comum. Os
guardas ali eram a maior prova daquilo. O risco não era
tão grande.
Alana olhou para o lado. Uma boa parte do espaço
na frente do castelo era um gramado – e ela tinha
entendido o motivo para aquilo quando tinha visto os
postes levantados. Mas os jardins laterais iam até o
caminho onde ela estava, cercados por vasos altos com
folhagens, e até os muros, com trepadeiras unha-de-gato
cobrindo uma boa parte deles.
Perfeito.
A trepadeira começou a crescer e se esticar na
direção do portão, subindo por cima dos ornamentos de
metal e se enrolando neles.
— Não preciso de uma escolta para garantir minha
segurança — Alana avisou. — E vocês com certeza
sabem disso.
Porque qualquer humano que tivesse aquela
tatuagem com certeza tinha recebido as informações
sobre o que acontecera no Setor Três. Todos os guardas
ali saberiam o que Alana tinha feito e que ela não era tão
inofensiva quanto haviam pensado que fosse.
— Minhas ordens... — a mulher começou.
Alana inclinou a cabeça para o lado. A trepadeira se
enrolou no portão e puxou. Alana conseguia sentir a
pressão, a forma como a planta só não estava soltando
ou arrebentando por causa de como seu poder a estava
deixando mais forte. E seria o suficiente.
Um som pesado e incômodo cortou o ar: o portão
começando a se abrir por pura força bruta.
A mulher na sua frente se virou depressa, ao mesmo
tempo em que os outros guardas pegavam suas armas,
mas nada daquilo ia adiantar.
Alana começou a andar na direção do portão.
— Como disse, não preciso de uma escolta — ela
repetiu.
Um dos guardas ativou os controles depressa. O som
de metal raspando em alguma coisa parou e o portão
terminou de se abrir de forma automática.
Alana soltou a trepadeira. A planta se encolheu até
voltar ao que era antes, mesmo que ainda estivesse mais
forte do que o normal.
Ela passou pelo portão. Nenhum dos guardas falou
mais nada e era exatamente o que Alana esperava.
O portão continuou aberto por algum tempo depois
que ela saiu. Alana revirou os olhos e começou a seguir
pelo caminho – quase uma estrada – que levava para a
cidade. Se os guardas estavam pensando que ela ia
mudar de ideia e voltar, estavam muito enganados.
Ela só relaxou quando ouviu o ruído do portão se
fechando, de novo, e foi para a beirada do caminho. Era
raro alguém ir da cidade para o castelo e mais raro ainda
alguém subir por aquele caminho de moto, mas Alana
preferia nao arriscar.
Talvez ela devesse ter pegado uma moto. Era o que
esperariam dela, ainda mais considerando que o castelo
ficava um pouco acima do nível da cidade propriamente
dita e a alguns minutos de caminhada. Mas Alana queria
aquele tempo fora do castelo, também. E ela sentia falta
de só andar de um lugar para o outro. Aquilo, junto com
os seus lugares onde sabia que ninguém ia ir atrás dela,
no Setor Dez, eram as melhores horas para só pensar e
tentar relaxar.
Quando Alana tinha feito seus planos, mais de um
mês antes, ela tinha contado com o "interesse" de Lorde
Rafael. Fazia todo sentido imaginar que ele ia continuar
com aquela ideia de sedução, ainda mais depois de como
ele tinha tentado protegê-la e depois de ter aparecido no
Setor Dez para deixar um anel – que ninguém sabia o
que era, a não ser que tinha alguma coisa estranha com
ele.
Ela tinha sido ingênua, de novo. Ela deveria ter
levado as notícias que o Setor Dez havia recebido mais a
sério.
Um mês e meio antes, quando o Setor Três havia
sido atacado, Dani e Amon haviam destruído Cassius, o
príncipe do Setor Oito. Ele era um dos responsáveis pelo
ataque, junto com Cordelia, a princesa do Setor Cinco – e
ela tinha desaparecido depois de tudo. Ninguém sabia se
tinha sido destruída ou se só tinha fugido, mas Alana
acreditava que era a segunda opção.
Quatro dias depois de deixar aquele anel no quarto
de Alana, Rafael havia assumido o controle dos dois
setores. Os vampiros que tinham questionado aquilo
tinham tido o mesmo destino que os dois corpos perto do
muro do castelo.
Alana tinha visto as fotos e vídeos dos vampiros
destruídos nos setores Oito e Cinco. Empalados, todos
eles, e deixados no sol por dias, até não sobrar nada
além de cinzas. Depois do que Amon havia lhe contado
sobre o passado de Lorde Rafael, ela deveria ter
esperado algo daquele tipo, mas ainda assim havia sido
um choque.
Aquilo queria dizer que ele estava com três setores
sob o seu controle – falando da forma mais literal
possível. Se fosse contar os setores que o obedeceriam...
Nada havia mudado. Só o Dez e o Três se recusariam a
seguir alguma ordem dele, e talvez o Sete, o que queria
dizer que Lorde Rafael já controlava a região.
Alana encarou as primeiras casas da cidade, não
muito longe. Tudo parecia normal demais. Casual.
Diferente demais da tensão constante que estava no
castelo.
Se alguém tivesse alguma dúvida sobre Lorde Rafael
estar planejando expandir sua "influência", o que ele
tinha feito no Oito e no Cinco era mais que o suficiente
para acabar com elas. O antigo rei dos vampiros queria
ser rei, de novo. E estava começando a agir.
O que queria dizer que Alana precisava fazer alguma
coisa, também, ainda mais considerando como estava
sendo ignorada. Ela tinha passado duas semanas no
castelo e mal havia visto Lorde Rafael naquele tempo, o
que queria dizer que o plano original dela não servia de
nada. E Alana não tinha certeza de que estava disposta a
tentar seduzir alguém capaz do que Lorde Rafael tinha
feito. Mas ela precisava de informações e precisava de
contatos, porque não tinha a menor chance de conseguir
fazer alguma coisa sozinha.
E aquele era o motivo para estar indo na cidade. A
mãe de Lara e Val havia sido uma bruxa com contatos
espalhados por toda a região – porque as bruxas faziam
questão de conhecer umas às outras, onde quer que
estivessem. Alana nunca tinha conseguido recriar uma
rede de contatos na região, justamente porque estava
tentando esconder seu poder. Mas Lara se lembrava o
suficiente das pessoas que sua mãe conhecia e tinha
falado sobre uma bruxa que vivia no Setor Um.
Alana parou no lugar, olhando para a frente. Ela
ainda estava alto o suficiente para ver os tetos das casas
pequenas nos limites da cidade. Não ia demorar muito
para conseguir ver o movimento das pessoas nas ruas e
para estar no meio daquele movimento.
Não importava quais fossem os planos de Lorde
Rafael, Alana sabia quem ia pagar: a cidade. Ou melhor,
os humanos que viviam no Setor Um. Então ela ia cuidar
daquilo, primeiro. E, com sorte, seria o suficiente para
chamar a atenção de Lorde Rafael, também.

Rafael encarou o humano que havia entrado no seu escritório. Um


dos guardas que faziam a segurança do castelo durante
o dia. Ele não se lembrava do nome dele,
especificamente, mas o humano tinha sua tatuagem no
pescoço. Era leal e aquilo era a única coisa que
importava.
— Diga.
O guarda se endireitou ainda mais. Rafael estava
ouvindo o coração disparado dele, o sinal mais óbvio do
seu medo. Então aquela era a primeira vez do humano
no seu escritório, porque qualquer um dos que estava
com ele havia mais tempo sabia que, enquanto fossem
leais, estariam sob a proteção de Rafael. Nada lhes
aconteceria enquanto estavam ali.
Ou talvez aquele fosse o problema. Com tudo que
estava acontecendo, Rafael não tinha mais tanta certeza
de que podia confiar nos humanos.
— A feiticeira saiu do castelo, meu senhor — o
humano contou.
Esperado, mesmo que não fosse o ideal. Rafael sabia
que, mais cedo ou mais tarde, a forma como ela estava
ignorando Alana faria com que ela agisse. E agora estava
acontecendo.
A última coisa que ele queria era ignorar Alana, mas
era necessário. Rafael tomara sua decisão sobre ela
meses antes, quando havia abandonado seus planos
originais e ido até o Setor Três para proteger a bruxa de
um ataque que ele tinha certeza que seria fatal. Mas não
havia sido. Alana não precisava da proteção dele.
E o ataque ao Setor Três não havia sido algo
planejado pelos outros príncipes da região.
Aquela era a informação que mudara todos os seus
planos, nos dias depois daquele ataque.
Então Rafael havia ignorado Alana, sim, porque sabia
que ela tinha planos, também. E ele precisava saber
quais eram aqueles planos, para acabar com eles antes
que pudessem ser um risco para o que ele precisava
fazer.
Rafael assentiu, ainda encarando o guarda humano
na sua frente.
— Agradeço pelo aviso.
— Ela recusou uma escolta, meu senhor — o humano
completou.
Rafael sorriu. Era óbvio que ela teria recusado uma
escolta. Ela não queria que ninguém soubesse o que
estava fazendo. E ele mal podia esperar para saber qual
seria o plano dela – porque sua única certeza era de que
não seria algo que ele havia imaginado. Nunca era, com
sua feiticeira.
E pensar em Alana como "sua" era um caminho
perigoso demais.
— Caso deseje, podemos providenciar... — o guarda
começou.
Rafael balançou a cabeça. Se Alana tinha recusado
uma escolta, mandar alguém seria perda de tempo. Ela
conseguiria se livrar de qualquer um.
— Não há necessidade.
Ela não estava correndo risco, não importava o que
acontecesse, por mais que Rafael odiasse admitir aquilo.
Tudo seria mais simples se ela precisasse dele.
O humano se inclinou de uma forma que era quase
uma reverência antes de se virar e sair do escritório.
Rafael encarou a porta fechada por um instante
antes de se levantar e parar à frente da janela,
encarando as roseiras no jardim logo abaixo.
Desde o começo, ele havia subestimado Alana, sim.
Rafael se esquecera de como ela havia chegado no Setor
Dez – de que havia passado anos nas terras de ninguém,
com a prima, enquanto as duas eram caçadas. Alguém
que sobrevivia àquilo não era indefesa. Mas havia sido
mais fácil não se lembrar daquele detalhe, mesmo que
uma das primeiras interações entre eles houvesse sido
com Alana reclamando de como pensavam que ela era
inofensiva.
Ele deveria ter repensado seus planos desde o
começo. Rafael havia tido uma oportunidade muito
melhor de ganhar a confiança de Alana e deixara passar.
Ele poderia ter lhe dado informações o suficiente sobre
seus motivos, sobre os riscos. A tratado como uma igual,
desde o começo. O que ele fizera tinha sido útil, sim.
Rafael sabia que quase havia conseguido o que queria,
seis meses antes. Mas quase não era o bastante.
E ele não conseguia olhar para as roseiras sem se
lembrar de Alana, mas também não conseguia se
esquecer do motivo para ter aquele jardim plantado ali.
Ele era um lembrete, sim. Uma forma de não se esquecer
do passado e do que estava em jogo, como tantos dos
vampiros mais antigos haviam esquecido.
Porque, duzentos anos antes, não havia sido a volta
da magia que quase destruíra o mundo.
Rafael deu as costas para a janela e voltou para sua
mesa. Os últimos relatórios de Thales – que estava
cuidando dos setores sob seu controle – eram
exatamente o que ele havia esperado: o caos nos setores
Cinco e Oito finalmente estava diminuindo. Talvez fosse
hora de pensar em dar o título de príncipe – ou princesa –
para pessoas que fossem da sua confiança, mas ele não
conseguia fazer aquilo. As pessoas nas quais Rafael
confiava estavam espalhadas pelo mundo. Muitos
estavam em outras Cortes, alguns haviam assumido o
controle de regiões, outros estavam satisfeitos em
continuar nas sombras.
E nenhum deles sabia que Rafael ainda existia.
Ele não se arrependia da sua decisão. Se esconder e
deixar os vampiros pensarem que ele havia sido
destruído com a volta da magia havia sido a escolha
certa. Rafael tinha visto a direção que tudo estava
tomando, como os vampiros mais fracos estavam se
juntando contra os mais fortes – não totalmente sem
motivo – e se aproveitando das mudanças no mundo, da
magia mais forte do que jamais havia sido antes.
Se ele não houvesse se escondido, teria sido pior. Ele
teria sido confrontado da mesma forma que vários dos
vampiros tão antigos quanto ele. E, por mais que Rafael
tivesse certeza de que não teria sido destruído, as
consequências de um confronto não teriam valido a
pena.
Mas ele se arrependia de não ter agido mais
depressa. Duzentos anos não eram nada para ele,
principalmente quando não havia quase nada para lhe
preocupar. Mas ele deveria ter se preocupado. Um século
antes, o mundo já estava estável o suficiente para Rafael
entrar em contato com sua antiga Corte. Ele poderia ter
começado a fazer seus planos naquela época.
Um século não era nada. Duzentos anos era menos
que o tempo que ele havia demorado para estabelecer a
Corte do Sangue, no passado.
E duzentos anos não deveriam ter sido nada para
algo que havia passado tanto tempo afastado do mundo.
Era em momentos como aquele que Rafael não
conseguia discordar dos humanos que diziam que
vampiros nunca mudavam. Tanto tempo, e ele havia
cometido o mesmo erro de antes.
Rafael abriu uma das gavetas da sua mesa e tirou
um pedaço pequeno de tecido verde.
Alana podia ir para a cidade, se quisesse. Ela podia
dispensar uma escolta. Mas aquilo não queria dizer que
ela não estaria sendo observada.
O pedaço de tecido estava coberto por traços
prateados: palavras e símbolos, condensados num
espaço tão pequeno que era impossível ler ou decifrar
qualquer coisa ali, mas Rafael se lembrava de cada linha.
Aquilo era a garantia que ele tinha providenciado para si
mesmo seis meses antes, nas primeiras vezes que sua
feiticeira havia insistido em ir na cidade. Ele sabia que,
mais cedo ou mais tarde, precisaria de uma forma de
saber onde ela estava.
Rafael fez um corte na sua mão, usando suas garras,
e deixou uma gota de sangue cair no tecido. As linhas
prateadas ondularam e brilharam por um instante e
então ele estava vendo uma imagem sobreposta ao seu
escritório: as ruas da cidade, em um dos bairros
residenciais humanos.
Ele estivera certo em se prevenir, então, porque sua
feiticeira estava indo se encontrar com alguém. E Rafael
conseguia imaginar apenas um motivo para Alana estar
fazendo aquilo: traição. Não algo direto, porque ela era
honrada demais para quebrar o contrato entre eles. Ou
talvez o mais certo fosse dizer que Alana se importava
demais com as pessoas no Setor Dez para arriscar
quebrar o contrato.
Não importava. Traição direta ou indireta, se ela
estivesse planejando algo que colocaria os planos de
Rafael em risco, ele não teria o menor problema em tirá-
la do seu caminho.
Dois meses antes, ele havia pensado em protegê-la.
Dois meses antes, ele estava disposto a conquistar a
confiança dela, não por algum plano, mas porque ele
queria. Porque Rafael já havia existido por tempo o
suficiente para saber que alguém chamar sua atenção
como ela chamava não era algo comum e que ele se
arrependeria se deixasse Alana escapar por causa do seu
orgulho e da sua ambição.
Mas dois meses antes ele não sabia com o que
estaria lidando.
Suas prioridades haviam mudado – precisavam
mudar, se ele quisesse continuar existindo.
E Rafael esperava que Alana não ficasse no caminho
daquilo.

Alana não estava com pressa. Ela sabia que alguém avisaria Lorde
Rafael de que ela tinha saído do castelo sem uma
escolta. Era bem provável que mandassem alguém atrás
dela e mais provável ainda que, quem quer que fosse, só
a observaria de longe. Então ela ia dar tempo para tudo
aquilo acontecer, porque assim seria mais seguro. Ela
teria como notar quem estava atrás dela e então
despistar aquela pessoa antes de fazer o que queria.
E ela estava sendo cuidadosa. Alana tinha feito
questão de usar uma blusa de mangas compridas, para
esconder a tatuagem no seu braço. E estava usando uma
calça larga o suficiente para ter bolsos espaçosos,
mesmo que não fosse o que preferia. Mas seus saiões
chamavam atenção e ela tinha plena consciência
daquilo. Já bastava o cabelo com mechas verdes – que
não era exatamente incomum, mas não chegava a ser
discreto, e ela não tinha como disfarçar.
Pelo menos tinha pessoas demais a pé pelas ruas da
cidade. Mesmo que muitos humanos no Setor Um
tivessem motos, eles ainda eram uma minoria da
população. Então estar andando por mais de uma hora
não chegava a ser estranho.
Estranho era Alana não ter notado ninguém atrás
dela. As chances de Lorde Rafael só deixar ela fazer o
que bem entendesse na cidade eram baixas demais para
ele não ter mandado ninguém, mas parecia que era
exatamente o que tinha acontecido. O tempo nas terras
de ninguém tinha feito Alana ser ótima em notar quando
estava sendo seguida, de alguma forma. Ela teria notado
se alguém estivesse fazendo o mesmo caminho que ela.
Se Lorde Rafael não tinha mandado ninguém, aquilo
queria dizer que estava usando magia para rastrear onde
ela estava, de alguma forma. Era um risco que ela
precisaria correr, então.
Alana se virou em uma rua mais estreita, saindo do
centro comercial da cidade. Ela não precisava conhecer
detalhes dali para reconhecer poder e havia poder
demais vindo daquela direção. Uma bruxa – Silvana, a
bruxa que ela estava procurando – mesmo que não
tivesse como saber que tipo de bruxa ela era. Sentir as
diferenças no poder era um tipo de habilidade específica
demais.
As ruas ficaram mais estreitas e mais vazias. Ela
estava andando em uma área residencial, com alguns
poucos comércios pequenos – mercearias, padarias,
coisas do tipo. E, mesmo assim, até aquela parte da
cidade era muito mais bem cuidada do que qualquer
área residencial comum que ela já tinha visto, fora do
Setor Dez. Alana quase conseguia imaginar que as
cidades de antes da volta da magia eram assim, quando
o mundo era dos humanos e os vampiros não
controlavam tudo.
Ela virou em outra rua e parou, encarando o portão
de metal de uma casa. A bruxa vivia ali.
O portão se abriu e um homem mais velho saiu,
mancando de leve e falando alguma coisa que Alana não
conseguia entender. Uma mulher riu e saiu atrás dele,
mas continuou parada logo na frente do portão. Ela
também era mais velha – na casa dos cinquenta anos ou
mais, pelo que Alana conseguia sentir do seu poder e
pela forma como seu cabelo crespo estava quase todo
branco, mesmo que sua pele marrom escura não
parecesse ter quase nenhuma ruga. O homem assentiu e
se afastou, andando depressa mas sem nenhum sinal de
medo ou tensão.
A mulher se virou na direção de Alana.
Provavelmente tinha sentido seu poder, também – e ela
tinha contado com aquilo para se poupar de explicações
complicadas demais.
Alana foi na direção da mulher, que ainda estava
parada na frente do portão aberto.
— Seu tipo não é bem-vindo aqui — a bruxa falou. —
Você já escolheu os vampiros, não deveria estar se
misturando com a escória humana.
Ela deveria ter esperado essa reação. Era o que a
maioria dos humanos pensava sobre as feiticeiras. Alana
tinha crescido ouvindo aquele tipo de comentário. Mas,
ainda assim, não deixava de ser incômodo.
— Bem-vinda ou não, não acho que você quer
continuar parada na rua, onde qualquer um pode nos
ouvir — Alana comentou.
E ela não iria embora antes de falar o que precisava.
A bruxa a encarou por alguns segundos, quase como
se estivesse tentando entender o poder de Alana, antes
de indicar o portão com um movimento brusco da cabeça
e entrar.
Alana foi atrás dela e parou. Por trás do muro da
casa havia um jardim. Aquilo não deveria ser uma
surpresa, vindo de uma bruxa, mesmo que aquela
mulher não fosse uma bruxa da natureza. Mas eram as
bruxas que haviam guardado o conhecimento de antes
da volta da magia sobre plantas e seus efeitos no corpo
humano. E, considerando como produzir medicamentos
ou qualquer coisa do tipo não era uma prioridade para os
vampiros, aquele conhecimento era mais que necessário.
Alana reconhecia as plantas que estavam ali –
arnica, carqueja, velame branco, babosa, erva-cidreira,
arruda e muito mais. Mas as plantas estavam fracas, com
uma cor apagada e as folhas menores que o normal.
Aquilo também não era uma surpresa, considerando
como era difícil fazer qualquer coisa crescer ali.
A bruxa fechou o portão, o trancou, e atravessou um
caminho de cimento rachado entre as plantas, que
levava para a porta da casa.
Elas entraram em uma sala que era óbvio que
funcionava mais como loja do que como algo pessoal. As
paredes estavam cobertas de prateleiras com frascos,
alguns com folhas em infusão, outros com líquidos de
cores apagadas e outros, menores ainda, com folhas ou
flores secas.
Alana tinha ido no lugar certo.
A bruxa parou no meio da sala e se virou para Alana.
— O que você quer?
Se Lorde Rafael estava usando magia para rastrear
Alana, existia a possibilidade de que ele conseguisse
ouvir o que ela estava falando. Então ela não podia dizer
que Lara tinha falado sobre a bruxa para ela. E muito
menos dizer o nome da outra mulher em voz alta,
mesmo que estar ali já fosse um risco.
— Eu quero garantir que não vão ser os humanos do
Setor Um pagando pelo que quer que Lorde Rafael esteja
planejando — Alana falou. — Só isso.
Porque mais ninguém se importava.
Não. As pessoas se importavam, sim. Silvana se
importava, ou não teria todo o trabalho de manter o
jardim lá fora. Mas não era o suficiente.
A bruxa deu uma risada seca.
— Como se uma feiticeira fosse se preocupar com
qualquer um de nós.
Alana puxou a manga do braço direito para cima,
deixando parte da tatuagem ali visível. Os galhos
subindo pelo seu braço, com as folhas coloridas e cheias.
Ela se lembrava bem demais do dia em que tinha
começado aquela tatuagem, da sua avó dizendo que
estava pronta e da sensação de orgulho. Mas ela não
estava pronta, na época. Não de verdade e não para o
que ia acontecer com sua família.
A bruxa encarou a tatuagem sem falar nada.
— Você com certeza ouviu sobre a minha família
antes — Alana falou. — Você sabe quem fomos e o que
fizemos.
Como seu pai tinha sido morto depois de desafiar
publicamente o príncipe do setor, porque se recusava a
trabalhar para ele se os vampiros continuassem agindo
como estavam. Ela se lembrava muito bem daquele dia,
do seu pai dizendo que, a menos que o setor tivesse leis
protegendo os humanos ali, a Corte não teria seus
feiticeiros. E ela já sabia o que ia acontecer.
Alana não tinha visto seu pai ser morto. Ela tinha
voltado para casa depois daquela primeira fala, porque
sabia que o príncipe daria outra chance para o seu pai.
Uma chance de voltar atrás no que tinha falado e jurar
lealdade. Mas seu pai não voltaria atrás – o que queria
dizer que toda família pagaria. Então ela tinha ido para
casa, juntado o máximo de suprimentos que podia, e já
estava se preparando para desaparecer quando Dani
havia chegado.
— Histórias — a bruxa respondeu. — Boatos e mais
nada.
Alana sorriu.
— E você acha mesmo que algum vampiro ia aceitar
esse tipo de boato ser espalhado? O único motivo para a
história ter chegado em outras regiões é justamente por
ter acontecido.
A outra mulher deu de ombros.
— Então você é parente do suicida idealista que
desafiou um príncipe e está aqui fazendo a mesma coisa
que ele tentou evitar. Não muda nada. Ou melhor, é pior
ainda porque você provavelmente apontou minha casa
para os vampiros só por ter vindo aqui.
Alana riu.
— Se eu consegui te achar só seguindo a direção de
onde o poder vem, então pode ter certeza que Lorde
Rafael sabe sobre você.
A outra mulher se endireitou.
— Vampiros não usam magia — ela falou.
— Conte isso para os necromantes do Setor Três.
Porque, no pouco tempo que Alana tinha passado lá,
ela tinha notado que o que eles faziam era muito mais
parecido com o poder das bruxas do que qualquer um
teria imaginado.
A bruxa não respondeu.
— Eu já vi Lorde Rafael usando magia — Alana
continuou. — E, no passado, dizem que os vampiros
tinham a forma deles de usar magia, também. Você
provavelmente já ouviu alguma coisa sobre isso e é a
verdade. A magia deles foi banida, mas alguns vampiros
ainda se lembram. Ele ainda se lembra.
E, por mais que Alana odiasse a ideia de que ir ali só
estava servindo para piorar a situação, porque ela quase
conseguia ver o medo e a preocupação da outra mulher,
ela não podia voltar atrás. Antes dos seus seis meses no
Setor Um terminarem alguma coisa ia acontecer, com
toda certeza. E, como sempre, quem pagaria seriam os
humanos no setor.
— Se ele usa magia, só faz parecer pior ainda você
ter vindo aqui, porque ele pode estar ouvindo cada
palavra sua — a bruxa falou.
Alana sabia. Existiam encantamentos que permitiam
que uma pessoa ouvisse tudo o que estava ao redor do
seu alvo. Ela já tinha ouvido boatos sobre outros que
podiam ver o que estava ao redor do seu alvo. Mas nada
era capaz de estar na mente de outra pessoa e ver cada
movimento dela. Ela tinha feito questão de sentar com
Mel para discutir todas as formas como aquilo poderia
ser tentado.
— Talvez, mas mesmo assim eu precisava vir —
Alana respondeu. — Alguma coisa vai acontecer. Você é
uma das pessoas com quem os humanos da cidade
contam, então precisa estar preparada.
A bruxa estreitou os olhos e não respondeu.
Alana deu de ombros.
— Só vim dar esse aviso.
Porque era a única coisa que ela podia dizer em voz
alta.
Alana virou as costas para a bruxa e foi na direção
da porta. Tinha uma estante baixa ali que era perfeita
para o que ela precisava.
Ela tirou um tablet do bolso da calça e o colocou na
prateleira enquanto passava, tomando cuidado para não
olhar para o que estava fazendo, ao mesmo tempo em
que não tentava esconder aquilo da bruxa. Alana
precisava que a outra mulher notasse o aparelho ali.
Alana saiu da casa e parou no jardim. As plantas
tinham sido bem cuidadas, sim. Haviam sido amadas, na
verdade, porque era a única explicação para alguém que
não tinha um poder como o dela ter todo o trabalho
necessário para manter o que estava ali vivo. E Alana
podia ajudar com aquilo.
Seu poder escorreu para o chão. As plantas
pareceram se mover por um instante, ficando mais altas,
mais firmes e com cores mais vivas. E aquilo ela não
tinha nenhum problema com deixar Lorde Rafael ver, se
ele a estivesse rastreando. Era o esperado, vindo de uma
bruxa da natureza.
Ela abriu o portão de metal e saiu de volta para a rua
sem falar mais nada.
DOIS

Rafael bateu na porta da sala de Alana e esperou. Ela voltara para


o castelo mais de uma hora antes e havia desaparecido
dentro dos seus aposentos, sem falar nada com
ninguém, mas aquilo não era uma surpresa. Desde que
chegara no Setor Um, duas semanas antes, ela não havia
se dado ao trabalho de tentar se aproximar de nenhum
dos seus vampiros. Rafael tinha pensado que talvez
Alana fosse fazer aquilo para tentar conseguir alguma
informação, mas não. E até mesmo os humanos que
trabalhavam para ele – ela havia mantido sua distância
deles, também.
Ele só esperava que ela não pensasse que teria a
opção de escapar dele. Se pensasse, teria uma surpresa
desagradável.
— Entre — ela falou.
Bom. Então Rafael não teria que começar aquela
conversa já de forma agressiva.
Ele entrou na sala. Alana estava parada de costas
para ele, olhando por uma das janelas que ia do teto até
o chão. Ela ainda confiava que o contrato entre eles seria
o suficiente para garantir sua segurança, então. Aquilo
era bom, porque queria dizer que, se ela se tornasse uma
ameaça real, não estaria esperando um ataque vindo
dele.
— Não vai nem mesmo visitar a sua estufa? — Rafael
perguntou.
Alana se virou para ele devagar. Ela estava vestida
como sempre, com uma das suas combinações de regata
e saião, e seu cabelo estava mais curto do que quando
ele a encontrara no Setor Três, mesmo que ainda tivesse
várias mechas verdes. Nada havia mudado, nem na sua
postura, na forma como se movia ou até mesmo na sua
expressão. Tudo aquilo era familiar – e ao mesmo tempo
não era, porque Rafael não conseguia olhar para Alana
sem se lembrar do Setor Três. De chegar, pensando que
precisaria protegê-la, e a encontrar cercada pelos corpos
dos vampiros que ela havia derrubado.
— A estufa não é minha — Alana falou. — Ela é algo
que você fez pela manipulação e mais nada. Não tem
motivo para eu ir lá.
E aquilo era uma mudança. Antes, ela teria
desconversado ou dado alguma desculpa, mas não teria
desafiado Rafael daquela forma – porque aquilo era um
desafio.
Era o mesmo lado de Alana que ele havia visto antes
do contrato, nas vezes em que estivera no Setor Dez sem
que mais ninguém soubesse. Era exatamente a versão
dela que havia feito Rafael pensar que seus planos
poderiam dar certo. E então ele havia se esquecido.
Ele fechou a porta atrás de si e atravessou a sala até
estar na frente da janela por onde Alana estava olhando,
antes. Lá fora, o céu ainda estava claro. Já havia passado
do meio do dia, mas ainda demoraria até o anoitecer. Os
postes com os restos dos dois vampiros que haviam
desafiado suas ordens algumas semanas antes ainda
estavam de pé. E, bem mais à frente, estava a sua
cidade. A que Alana visitara com a intenção de impedir
seus planos.
Rafael olhou para a feiticeira de novo. Não. Ela não
era uma feiticeira. Elas eram leais aos vampiros aos
quais estavam ligadas. Ele não tinha a lealdade de Alana.
— Não vou negar que a estufa foi feita com
segundas intenções — ele falou. — Mas ela continua
sendo sua.
Alana balançou a cabeça.
— Então ela é um presente que vou recusar.
Da mesma forma que ela havia recusado tudo ligado
a Rafael naquelas semanas ali.
Dois meses antes, ele estivera decidido a conquistar
a confiança de Alana, porque queria a bruxa para si.
Queria Alana ao seu lado. No começo, ele pensara que
aquilo desapareceria com o tempo. Era o que acontecia,
quando alguém chamava sua atenção. Mas não com
Alana. Ela havia ido para o Setor Um e, naqueles
primeiros seis meses, a fascinação de Rafael por ela só
aumentara.
E então ela havia descoberto os planos dele para o
Setor Dez e recusado tudo o que ele estava lhe
oferecendo sem deixar nenhuma margem para dúvida.
Havia sido por muito pouco. Na época, Alana estava
a um fio de confiar nele e Rafael sabia. Ele estava
contando com aquilo – com ter a confiança dela antes
que os primeiros seis meses do contrato terminassem. E
então todos os seus planos haviam desabado de uma
vez, por causa de uma bruxa que sabia mais que deveria.
Aquilo deveria ter sido o suficiente para acabar com
qualquer interesse dele em Alana. Ela havia se tornado
um risco.
E o interesse de Rafael não havia diminuído, mesmo
que ele não pudesse se dar ao luxo de se preocupar com
o que uma bruxa humana pensava dele. Mas os meses
sem conseguir tirá-la da cabeça haviam sido o suficiente
para ele entender que a fascinação não desapareceria –
e para reconhecer que ele não fazia ideia da última vez
que alguém tivera sua atenção como Alana tinha.
Quando os problemas no Setor Três haviam
começado, Rafael já fizera sua escolha. Ele faria o que
precisava para conquistar a confiança de Alana e garantir
que ela estaria segura. Não importava se aquilo queria
dizer mudar seus planos, valeria a pena. Ele poderia ir
atrás de mais poder em qualquer época, fosse naquele
momento ou no século seguinte. Mas Alana não estaria
ali para sempre, então ela era a possibilidade que ele
não aceitava perder por causa do seu orgulho e da sua
ambição. Ele havia deixado aquele anel com ela, no Setor
Dez, como uma promessa de que seria diferente, mesmo
que soubesse que ela não entenderia.
Mas, dois meses antes, Rafael não tinha todas as
informações. Ele conhecia o risco, obviamente, e havia
reconhecido o poder que se aproximara do Setor Três.
Mas ele ainda havia pensado que tinha tempo.
— Você esteve na cidade, hoje — ele falou.
Ela sorriu.
— Demorou quanto tempo para os guardas correrem
para te avisar?
Tempo nenhum. O guarda humano havia voltado
para o castelo logo depois de Alana atravessar o portão.
E Alana sair do castelo nunca havia sido um
problema – mas suas intenções eram. Rafael também
não podia ser dar ao luxo de ter alguém dentro do seu
setor atrapalhando seus planos. Os problemas externos
já eram o suficiente.
— Isso importa menos que saber o que você queria
na cidade, se fazia tanta questão de se colocar em risco
ao recusar uma escolta.
Ela riu e deu dois passos na direção de Rafael antes
de parar de novo.
— E eu não sou estúpida a ponto de pensar que está
preocupado com minha segurança.
Não. Ele não estava. Rafael sabia o que sua bruxa
podia fazer. Nada na cidade seria um risco para ela. Mas
dizer aquilo era uma forma fácil de deixá-la irritada, o
que queria dizer que ele teria mais chances de conseguir
fazer Alana contar algo que não queria.
Ele levantou a mão direita, com a palma virada para
cima. Uma imagem do portão da casa onde ela havia
entrado apareceu ali, tremeluzindo no ar por alguns
segundos antes de desaparecer quando ele fechou o
punho.
— O que vou encontrar se for até lá? — Rafael
perguntou.
Alana não respondeu, mas ele notou quando ela
fechou as mãos com força. Bom. Ela não precisava saber
que ele tinha visto sua conversa com a outra bruxa. E
Rafael tinha plena consciência de que havia mais do que
apenas aquela conversa, mas ele não se importava. As
bruxas na sua cidade eram inofensivas – ele tinha feito
questão de garantir aquilo muito tempo antes. Não, o
que ele queria era que Alana se preocupasse o suficiente
para não tentar mais nada envolvendo os humanos da
sua cidade.
Rafael sorriu.
— Não acredito que vai ser difícil descobrir estas
informações. A mente humana é tão frágil, afinal, e
buscar uma bruxa tentando passar despercebida na
cidade é algo simples.
Alana o encarou, sem nenhum sinal de medo ou
incerteza.
— Se você tocar em qualquer um dos humanos da
cidade por minha causa, direta ou indiretamente, pode
ter certeza de que nenhuma planta vai crescer em
nenhum lugar do Setor Um por pelo menos uma década.
Rafael talvez tivesse acreditado naquela ameaça
meses antes, quando não sabia quase nada sobre Alana.
Agora, era tarde demais.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— Se vai fazer ameaças, que seja algo que eu pelo
menos consiga acreditar — ele falou. — Você não
deixaria os humanos do Setor Um sem sua maior fonte
de alimentos apenas para me atingir.
Alana deu um sorriso gelado.
— Eu não deixaria os humanos do Setor Um
morrerem por causa de algo assim. Mas algum tempo de
racionamento? O suficiente para as outras Cortes terem
prova de que você não consegue prover pelos humanos
do seu setor? Isso não seria um problema.
Rafael a encarou. Naquilo ele conseguia acreditar –
não por ser mais provável, mas por causa do aço no
olhar da sua bruxa. Alana faria aquilo. Ela enfraqueceria
seu controle sobre o setor e sua posição entre as outras
Cortes sem pensar duas vezes.
E aquilo era algo que ele nunca aceitaria. Nem
normalmente e muito menos com a ameaça que estava
próxima demais.
Ele foi na direção de Alana. Ela continuou o
encarando, ainda com aquele aço no olhar, tão diferente
da sua expressão normal. Todos a subestimavam, sim.
Rafael gostava de pensar que não havia feito a mesma
coisa, mas estava errado. Ele a subestimara, também.
Ele parou na frente de Alana e segurou seu queixo.
Não era um toque delicado – e ele não queria delicadeza.
— Prejudique meu setor de qualquer forma e terá
assinado sua sentença de morte — Rafael falou de forma
suave. — E o Setor Dez será destruído junto com você,
porque nenhum contrato vai me prender após sua morte.
Alana se afastou com um gesto brusco. Rafael deixou
ela se afastar, mesmo que a tentação de segurá-la no
lugar fosse grande.
Ela apontou para a porta da sala, sem falar nada.
Rafael inclinou a cabeça e saiu.

Alana respirou fundo e encarou a porta fechada. Ela sabia que


alguma coisa tinha acontecido naquele mês e meio entre
os problemas no Setor Três e quando ela tinha voltado
para o Setor Um. O tempo todo, ela tinha esperado ver
alguma diferença em Lorde Rafael, sim, porque ele não ia
estar mais fingindo ser só um príncipe. Ela já sabia quem
ele era – o vampiro que tinha sido considerado o rei de
todos eles, o que havia controlado a Corte do Sangue, a
única Corte, antes da magia voltar para o mundo. Mas
aquilo...
Ela tinha aprendido sua lição sobre não se iludir com
vampiros. Então, quando Lorde Rafael havia aparecido no
seu quarto no Setor Dez, logo depois de tudo, Alana não
tinha pensado que era um sinal de que ele estava
mudando. O anel que ele tinha deixado lá e o que ele
tinha falado, sobre os amigos de Alana estarem seguros,
não era nada além de mais manipulação.
Sim, seus amigos estavam seguros. Era exatamente
para estarem seguros que Alana tinha feito um contrato
com Lorde Rafael e se casado com ele.
Mas ela não tinha todas as informações quando
havia feito o contrato.
E Lorde Rafael tinha acabado de ameaçar quebrar
aquele contrato, como se fazer aquilo não fosse ter
consequência nenhuma.
Seria mais fácil lidar com ele se o vampiro ainda
estivesse tentando seduzi-la. Seria até simples, agora
que Alana estava preparada para aquilo. Mas não.
E aquilo era a parte que ela não entendia: como
Lorde Rafael tinha passado de tentar protegê-la, como
tinha feito no Setor Três, para ameaças. Como tinham ido
daquela noite e de um anel deixado no seu quarto para
aquela cena ali, na sua sala.
Alana voltou para o seu quarto – o cômodo ao lado
da sala – e fechou a porta atrás de si. Ainda era estranho
entrar ali e pensar que era seu quarto, porque não tinha
como ali ser mais diferente do seu quarto no Setor Dez.
As paredes eram revestidas com papel de parede ou
tecido, ela não tinha certeza, de um tom vermelho claro,
quase rosa, com padrões mais escuros. A cama era
enorme, com a cabeceira e os pés esculpidos e
obviamente feita de madeira maciça, não uma das
imitações que eram mais baratas. E a mesma coisa valia
para o guarda-roupas enorme, as mesas de cabeceira, de
cada lado da cama, e a penteadeira com um espelho
muito maior do que Alana havia esperado.
Nada ali parecia real. Era como se ela tivesse
entrado em algum dos filmes antigos e tinha assistido
com o pessoal do Dez uma vez, que se passava em
alguma época bem antes da volta da magia.
As janelas ali eram menores que as do seu quarto,
no Setor Dez, mas pareciam maiores, de algum jeito. Ou,
pelo menos, mais imponentes. Eram três janelas, uma do
lado da outra, altas e terminando meio curvas, com um
espaço estreito entre elas. E elas sempre estavam
abertas, mesmo quando o sol não estava batendo
diretamente no seu quarto.
E o anel que Lorde Rafael tinha deixado para Alana
quase dois meses antes estava em cima da mesa de
cabeceira, exatamente onde ela tinha deixado.
Alex havia analisado o anel vezes demais. De acordo
com elu, não tinha nenhum vestígio de poder ali – não no
sentido de que não havia magia nele, mas como se algo
tivesse apagado tudo do anel, sem deixar nenhum traço
de nada. Alana não tinha se esquecido da expressão
preocupada de Alex quando tinha lhe contado aquilo e
não era nem difícil entender o motivo. Metal absorvia
poder. Prata, mais ainda. Qualquer coisa feita de prata
carregava algum traço das pessoas com quem havia tido
contato por algum tempo.
Lorde Rafael exalava poder, de acordo com Alex.
Qualquer coisa de metal que ele tocasse teria algum
traço do poder dele, sim. Mesmo se aquele anel tivesse
sido comprado logo antes – o que não era provável,
considerando como ele parecia antigo – ou tivesse
passado séculos guardado, só ter segurado o anel por
alguns segundos no quarto de Alana teria sido o
suficiente para deixar um vestígio de poder. Mas não
havia nada ali. E Alex não tinha nenhuma explicação
para como aquilo era possível.
Alana tinha pensado que o anel seria uma boa forma
de começar a sua parte em seduzir Lorde Rafael de volta.
Era um jeito fácil de entrar naquele assunto –
perguntando o que o anel queria dizer e qual tinha sido a
intenção do vampiro naquela noite. Simples, sim. E,
considerando como ele havia agido, tinha tudo para
funcionar. Ela teria algum tipo de resposta.
Mas não. Lorde Rafael tinha lhe dado as boas-vindas
quando Alana havia chegado no Setor Um e só. Ela mal
tinha visto ele de novo depois daquilo e sempre tinham
sido só cumprimentos rápidos quando passavam um pelo
outro pelo castelo, mais nada.
Alana tinha tido a impressão de que alguma coisa
estava diferente demais, antes, e agora tinha certeza. Os
relatórios sobre o que ele tinha feito nos setores Cinco e
Oito haviam sido a primeira indicação. Mesmo que nada
daquilo fosse algo que deveria ser surpreendente, pelo
que Amon tinha contado da história de Lorde Rafael, não
encaixava. Ele tinha passado dois séculos controlando a
região sem nunca ter feito nada daquele tipo. Por que
começar tão de repente?
E, além daquilo, tinha a forma como Lorde Rafael
estava agindo com ela. O ignorar e depois aquilo. A
forma como ele tinha segurado o queixo de Alana com
força o suficiente para ela saber que só tinha se soltado
porque ele queria. Ou como ele tinha falado que a
mataria, sem nenhum sinal de pesar ou de que precisaria
pensar antes de fazer aquilo.
Vampiros não quebravam contratos. Vampiros
antigos, então, consideravam aquilo como algo quase
sagrado.
E Lorde Rafael tinha falado sobre quebrar o contrato
entre eles como se não fosse nada.
Alguma coisa tinha mudado, sim. Ele tinha mudado.
Alana colocou a mão no queixo. Tinha outra
possibilidade, que talvez fosse pior ainda.
Talvez o que tivesse mudado fosse que Lorde Rafael
não estava mais se escondendo. Talvez aquilo fosse
quem ele realmente era.
TRÊS

Alana respirou fundo, sentindo o perfume das rosas. Não tinha


sido sua intenção voltar para o jardim, mas ela tinha ido
parar lá quase antes de perceber o que estava fazendo.
Aquele tinha sido o lugar onde ela ia para relaxar e
pensar, antes de perceber que estava bem debaixo do
escritório de Lorde Rafael.
A última coisa que ela queria ela lidar com ele. Nos
dois dias desde aquela conversa eles não tinham nem se
visto e Alana quase preferia que continuasse daquele
jeito.
Lorde Rafael estava disposto a quebrar o contrato.
Aquilo mudava tudo. A melhor ameaça de Alana, a que
ela tinha tido cuidado de deixar uma brecha no contrato
para poder usar, não adiantava de nada.
Alana tinha que refazer todos os seus planos. Ela não
estava mais lidando com um vampiro previsível. Estava
lidando com um vampiro desesperado, por algum motivo.
Não. Aquilo não fazia sentido. Lorde Rafael era tudo,
menos desesperado. Não tinha motivo para ela ter
pensado aquilo.
Mas ele era ambicioso e Alana sabia muito bem a
que ponto a ambição podia levar alguém. Como alguém
podia se esquecer completamente de tudo o que estava
ao seu redor e se deixar levar pelo desejo de mais,
sempre. Era o que tinha acontecido no setor onde sua
família vivia, antes de tudo. Pelo que seu pai e sua avó
contavam, uma geração antes tudo era diferente. Não
era nada nem perto de como o Setor Dez era, ali, mas os
humanos não eram menos que nada. E aquilo tinha
desaparecido porque um príncipe queria mais.
— As rosas não vão morrer apenas por você as
encarar — Lorde Rafael falou.
Alana tentou se forçar a não reagir, mas era tarde
demais. Ela sabia que tinha ficado tensa assim que ele
tinha começado a falar e o vampiro provavelmente havia
notado.
Antes de descobrir por que Lorde Rafael tinha
autorizado a criação do Setor Dez sem uma Corte de
vampiros, Alana estava confortável o suficiente perto
dele para não se preocupar quando ele aparecia daquele
jeito. Ou melhor, ela estava confortável o suficiente para
querer ele aparecendo daquele jeito e a forma como
parava perto dela, como se só estivesse esperando um
sinal de Alana para puxá-la contra seu corpo.
E então ela tinha descoberto que o Setor Dez só
existia porque Lorde Rafael queria reunir todas as bruxas
e pessoas que podiam ser uma ameaça para ele em um
lugar, para ser mais fácil destruí-los de uma vez.
Qualquer tipo de conforto tinha desaparecido, mesmo
que um resto de atração ainda existisse e ela não
conseguisse evitar aquilo. E perceber que Lorde Rafael
estivera envolvido em todos os problemas do setor nos
últimos anos tinha destruído qualquer chance de estar
relaxada perto dele.
Mas ela não ia se virar para encarar Lorde Rafael.
Não importava que ele estivesse nas suas costas. Eles
estavam em um jardim, sob a luz do sol. Era onde ela
estava mais forte, porque mesmo que o sol não o ferisse,
os poderes dele estariam enfraquecidos ali.
E, se ela quisesse que as rosas morressem, elas
estariam mortas.
Talvez aquilo fosse uma ameaça interessante,
considerando onde o jardim estava.
Não. Uma ameaça não. Uma punição. Ia ser
interessante ver a reação de Lorde Rafael quando
olhasse pela janela e visse as rosas murchas. Só as rosas,
óbvio, porque Alana não ia prejudicar as roseiras. Mas ele
não tinha como ter certeza daquilo... Ou ela esperava
que não tivesse.
— O que você quer? — Alana perguntou.
Lorde Rafael se aproximou ainda mais e colocou uma
mão no ombro dela. Alana se forçou a não se afastar.
Ficarem parados daquele jeito tinha sido normal, antes.
Ela tinha gostado daquela sensação de proximidade e
ainda estava se sentindo a pessoa mais estúpida e
ingênua do mundo por ter caído naquilo.
Depois daquela cena na sua sala, de como ele tinha
segurado seu rosto e das ameaças, Alana havia
imaginado que qualquer resto do "gostar" do toque de
Lorde Rafael teria desaparecido. Ela sabia exatamente o
que ele era e o que ele estava disposto a fazer. A única
coisa que ela deveria querer era distância, mas ali
estava, parada com a mão dele no seu ombro e odiando
admitir para si mesma que tinha sentido falta daquilo.
— Preciso querer alguma coisa para vir ver como
minha esposa está? — Lorde Rafael retrucou.
Precisava, porque aquele era o motivo para terem se
casado. Se ele não precisasse de Alana, nunca teria feito
aquele contrato.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro e
não respondeu. Ela já tinha gastado mais que sua cota
de estupidez. Não ia entrar em um jogo verbal com um
vampiro da idade de Lorde Rafael.
— Sem uma resposta, bruxinha?
Ela deu de ombros.
— Que diferença faz? Qualquer coisa que eu
responder, você vai tentar usar para me manipular.
Qualquer coisa que você disser, eu não vou acreditar,
porque tudo o que você faz é uma manipulação. Cada
ação, cada fala, nada é real. Então para que responder?
Na verdade, ela não deveria nem mesmo ter
perguntado o que ele queria. Teria sido mais fácil só se
virar e voltar para dentro do castelo. Se Lorde Rafael
queria ficar no jardim, sob a luz do sol, ele podia ficar lá,
só não com ela por perto.
Mas fazer o que era mais fácil não ia lhe dar
respostas e Alana precisava saber o que estava
acontecendo. Lorde Rafael tinha mudado de tática de
forma brusca demais, entre a noite em que tinha deixado
o anel no seu quarto e a forma como estava agindo
desde que Alana chegara no Setor Um. Não que ela
pudesse dizer que ele estava usando alguma tática
naquelas semanas. A única vez em que ele tinha falado
mais de uma frase para ela tinha sido dois dias antes,
com aquelas ameaças.
— Por que perguntar o que eu quero, então? — Lorde
Rafael falou.
Alana balançou a cabeça devagar, sem desviar o
olhar das rosas.
— Porque nunca se sabe. Talvez o mundo esteja
acabando e você me dê uma resposta direta.
O vampiro apertou seu ombro antes de soltá-la e se
afastar.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Ela
precisava de informações. Naquelas semanas no Setor
Um, ela tinha ouvido comentários o suficiente sobre
Rafael estar em contato com outras regiões e não tinha
como pensar que aquilo era algo bom.
Se ele não estava disposto a lhe dar respostas, então
Alana ia ter que ser criativa.
Ou talvez só louca. Era mais fácil ela conseguir
informações invadindo o escritório dele de novo do que
fazendo ele dar uma resposta direta ou, pior ainda,
fazendo alguém do castelo – ou um dos vampiros da
Corte ou um dos humanos que trabalhavam ali – relaxar
o suficiente perto dela para falar alguma coisa. Lorde
Rafael provavelmente tinha colocado proteções nas suas
gavetas depois...
Não. Não tinha nenhum "provavelmente". Ele não
sabia que Alana tinha roubado uma carta do seu
escritório. Ela nunca tinha falado nada naquele sentido e
havia questionado Lorde Rafael na mesma época que o
Setor Dez tinha descoberto que ele estava por trás dos
ataques do Setor Oito, por causa das informações que
Gustavo havia repassado. O vampiro não tinha motivos
para pensar em colocar proteções no seu escritório nem
nada do tipo.
— Teremos um baile em uma semana — Lorde Rafael
avisou.
E ali estava, uma resposta direta.
O mundo realmente estava acabando, e não só
porque ela tinha tido sua resposta.
Bailes nas Cortes dos vampiros eram comuns. Eles
nunca eram só festas, eram cerimônias – a forma que os
vampiros tinham de celebrar seus poderes e aquilo que
eram, como sua avó costumava dizer. Era nos bailes que
alianças eram feitas, que política era discutida e que os
humanos que haviam se provado "merecedores" eram
transformados.
Ela se virou devagar. Lorde Rafael estava parado a
alguns passos de distância, mas não estava olhando para
Alana. Estava encarando as roseiras.
Interessante.
— Que tipo de baile? — Ela perguntou.
Ele olhou para ela e Alana teve a mesma impressão
de dois dias antes, quando estava nos seus aposentos.
Tinha um vazio nos olhos de Lorde Rafael que era quase
assustador – e que era o motivo para ela ter acreditado
nas ameaças dele.
— Um baile para os príncipes, não apenas desta
região.
Não uma das cerimônias de transformação, então.
Um baile para definir política e mais do que a política da
região, se ele estava convidando príncipes de fora.
O que queria dizer que o mundo estava acabando
sim, porque seria a oportunidade perfeita para Lorde
Rafael fazer o que queria e se colocar como uma
autoridade entre os vampiros de novo. Não seria sobre
todos os vampiros do mundo, mas...
Alana riu de forma seca.
— Seu plano é esse, então? Fazer um baile e
anunciar para todos os vampiros que vierem que agora
você é quem manda? Talvez arrancar umas cabeças,
quando te questionarem? Ah, não, você não vai arrancar
cabeças. Você só vai tirar o sangue deles dos corpos, não
é?
A expressão de Lorde Rafael não mudou, mas ele
inclinou a cabeça daquele jeito que não parecia humano.
— Se me desafiarem, sim — ele falou. — Alguns bons
exemplos para garantirem que não serei desafiado
depois sempre são úteis.
Como ele havia feito nos setores Cinco e Oito, com
os vampiros que tinha deixado empalados no sol.
Exemplos.
Como os vampiros que ainda não tinham terminado
de virar cinzas e que estavam empalados ali, no Setor
Um.
E ele não tinha confirmado nada – mas o próprio fato
de não ter negado que era aquilo que estava planejando
era um tipo de confirmação.
Não seria um baile para forjar alianças. Seria um
baile para impor seu poder sobre os outros vampiros.
Sobre os príncipes da região deles e de outras regiões.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Eu não vou ser parte disso.
E ela faria o que pudesse para garantir que os planos
dele dessem errado, sim.
Ele encarou a tatuagem no braço dela e sorriu,
mostrando as presas.
Um arrepio atravessou Alana.
— Você vai ser parte disso, Alana Novaes — Lorde
Rafael falou. — Porque me acompanhar em funções
oficiais é parte do contrato que fizemos. A menos que
você queira ser a primeira a quebrá-lo...
Merda.
Ele estava certo. Aquilo era parte do contrato, sim.
Uma das partes que ele havia acrescentado e ela não
havia questionado, porque estava mais preocupada em
garantir a segurança do Setor Dez. E acompanhar um
príncipe em funções oficiais era o esperado de uma
esposa, então Alana não teria argumentos para
questionar o acréscimo, mesmo se tivesse pensado
naquilo.
— Uma semana — ele repetiu. — Alguém do meu
pessoal vai lhe dar os detalhes em breve.
Alana não respondeu.
Lorde Rafael se virou e entrou no castelo de novo, a
deixando sozinha no jardim.

Rafael parou na frente da sua mesa e encarou o ícone da


notificação no seu tablet. Aquilo nunca era um sinal de
boas notícias.
E Alana ainda estava no jardim, encarando as
roseiras. Ele não precisava se aproximar mais da janela
para ver aquilo.
Ele não fazia ideia do que ela via ali, mas sabia que
não era a mesma coisa que ele. Não, Rafael conseguia
contar nos dedos de uma mão quantas pessoas veriam a
mesma coisa.
Alana não fazia ideia de quão perto da verdade
estava quando falava sobre o mundo estar acabando.
Ela se afastou das roseiras e voltou para dentro do
castelo.
E ele não deveria estar prestando atenção nela.
Rafael se sentou e puxou o tablet para a sua frente.
Parte dele não queria ver o que sabia que encontraria ali,
mas a ignorância era perigosa demais.
Ele destravou a tela e abriu os novos relatórios. Uma
coleção de gráficos apareceu na tela, com marcações
indicando de qual parte do mundo eram. Europa, a
maioria – ou o que havia sido a Europa, antes da volta da
magia. Agora, Rafael não tinha certeza de quanto
restava.
Dois séculos antes, a pior parte dos efeitos da volta
da magia havia acontecido lá. Os vampiros tinham um
ótimo motivo para terem fugido para as Américas, para a
Ásia e a África. E, na época, os países da Oceania haviam
se unido e fechado suas fronteiras, porque não queriam
ninguém de fora levando "a praga" para lá – como se o
que estava acontecendo pudesse ser levado por alguém.
Aquele havia sido o problema... Eles haviam
abandonado aquilo que deveriam proteger.
Não. O que deveriam guardar. E Rafael era tão
culpado quanto qualquer outro dos antigos que havia
fugido. Talvez mais culpado, porque ele era quem havia
assumido a maior responsabilidade, desde o começo.
Ele passou os gráficos devagar. As variações de
temperatura eram extremas demais, piores que na época
em que se falava sobre aquecimento global, pelo que ele
se lembrava. Mas era fácil entender o motivo daquilo,
também. Qualquer tipo de controle natural de
temperatura havia desaparecido quando a maior parte
do continente se tornara algo pior que um deserto.
Nada crescia, lá. Mas era pior, porque nada que
passava tempo demais lá sobrevivia.
Rafael havia pensado que aquele efeito teria
diminuído nos meses mais recentes. Seus contatos
estavam monitorando partes diferentes do continente já
fazia décadas, usando drones, sensores e o que mais
considerassem necessário. Aquilo queria dizer que ele
tinha um período de tempo decente para usar de
comparação, mas... Nada. Era a mesma progressão de
todos os últimos relatórios.
Aquilo, junto com o que estava acontecendo ali, na
sua região, era um problema grande demais.
Rafael abriu uma gaveta e pegou uma pasta de
papel escuro, quase preto. Ele já sabia exatamente o que
estava ali e aquilo era o que havia feito ele mudar seus
planos, depois do ataque no Setor Três.
Ele havia pensado que aquele ataque era um
primeiro passo. Algo grande, sim, mas também recente.
E ele estava errado. Os relatórios naquela pasta
deixavam aquilo claro: a produção de todos os setores da
região, com exceção do Dez, havia caído em um ritmo
quase fixo nos anos anteriores. Não era algo drástico,
que os humanos notariam. Ou, se notassem, colocariam
a culpa em como era difícil fazer qualquer coisa crescer.
Era a mesma coisa que acontecera no passado e
Rafael havia demorado demais a notar.
O ataque no Setor Três não havia sido um primeiro
passo. Ele havia sido parte de um plano que já estava em
andamento fazia tempo. E, ainda assim, mesmo com
provas da presença daquilo ali, os relatórios sobre a
Europa não haviam mudado.
Os efeitos deveriam ter diminuído. Se estavam
iguais, então a situação era muito pior do que Rafael
imaginara.
A porta do seu escritório se abriu silenciosamente e
Thales entrou.
— Todos os convites foram entregues — ele avisou.
Bom. Aquilo era uma preocupação a menos. Com os
convites sendo entregues, nenhum dos príncipes poderia
questionar o que acontecesse ali se escolhessem não
comparecer. E Rafael havia dado informações o suficiente
neles para garantir que a maioria dos príncipes viria – ou
por orgulho ou para enfrentar quem pensavam que era
um vampiro jovem tentando tomar mais do que podia
controlar.
— O Cinco e o Oito? — Rafael perguntou.
— Sem nenhum sinal de problemas — Thales contou.
— As punições foram mais que o suficiente.
Sempre eram. Aquele era o motivo para Rafael
sempre ter gostado de usar empalamento. Não havia
como ignorar as possíveis consequências das suas
escolhas quando os exemplos delas estavam tão visíveis.
— E a população?
— Agindo como se nada houvesse mudado. Os
humanos não vão fazer nada que chame atenção para
eles. E os vampiros já aprenderam que não ter um
príncipe presente ali não quer dizer que podem fazer o
que bem entenderem.
O que queria dizer que Rafael não teria que lidar
com nenhum tipo de massacre.
No começo, logo depois da volta da magia, quando
os vampiros estavam se acostumando com um nível de
poder que antes era raro, aquilo havia acontecido vezes
demais. Vampiros que cercavam cidades menores e
então as atravessavam, bebendo de todos no caminho e
não deixando nenhum sobrevivente. Eles diziam que era
o seu direito, por serem mais fortes. E, usando a mesma
lógica, Rafael destruíra vários deles – porque ele era mais
forte.
Não que o próprio Rafael não tivesse causado
massacres o suficiente. Não era à toa que os humanos
tinham histórias sobre ele, antes da volta da magia. Mas
ele preferia pensar que fazia apenas o necessário, a
longo prazo. Ao contrário daqueles vampiros na volta da
magia, Rafael nunca havia causado massacres apenas
porque podia.
— E Klaus me parou quando estava voltando para cá
— Thales contou. — Para perguntar se o baile seria uma
punição pública.
Rafael soltou uma risada abafada e o outro vampiro
sorriu.
— Seria mais simples se eu pudesse punir um
príncipe por ser covarde — Rafael falou.
Porque aquela era a única descrição possível para
Klaus: covarde. E talvez aproveitador e interesseiro. Ele
havia se aliado a Cordelia enquanto era interessante,
mas nunca tivera coragem de deixar aquela aliança
pública. E, depois que a princesa havia desaparecido, a
única coisa que ele fizera havia sido fingir
arrependimento e subserviência.
Rafael conhecia bem demais o tipo dele.
— Mas ele seria um bom exemplo — ele murmurou.
Klaus era conhecido. Ele não era tão antigo quanto
Rafael – ou tão antigo quanto Amon, no Setor Dez – mas
também já era um vampiro antes da volta da magia.
Destruí-lo no baile seria uma ótima forma de deixar claro
até onde Rafael estava disposto a ir. E seria bastante
satisfatório, também.
E Thales não havia respondido, mas Rafael conhecia
o outro vampiro. A expressão cuidadosamente neutra
dele era um sinal claro de que ele não concordava com o
comentário de Rafael, mas que não diria nada sem
permissão.
— Diga — Rafael pediu.
Thales balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— A Corte do Setor Seis é a mais fraca da região,
justamente por causa de Klaus — ele começou. — Ele
afasta os vampiros mais fortes e inteligentes, porque os
vê como ameaça. Se ele for removido, não imagino que a
situação lá vá se manter tão estável quanto no Cinco ou
até mesmo no Oito.
Porque Cornelia podia ser muitas coisas, mas
insegura e covarde nunca haviam sido parte daquela
lista. Ela atraía os fortes para junto de si e era
justamente aquilo que havia fortalecido o Setor Cinco por
décadas. Atrair o interesse dela era considerado uma
honra.
E, no Oito, apesar de como Cassius sempre havia
sido facilmente influenciável, sua Corte estava
acostumada a seguir ordens. Aquele era o único motivo
para terem o tipo de força bruta pela qual eram
conhecidos: seus vampiros obedeciam ordens e
trabalhavam juntos.
Thales estava certo. Se Rafael destruísse Klaus, o
Setor Seis cairia em desordem depressa demais e era
possível que nem mesmo as punições de Rafael fossem
ser o suficiente para evitar o pior do caos. E,
considerando como a Corte de lá era fraca, eles não
teriam alguém que pudesse assumir o lugar de um
príncipe destruído.
Mas precisavam ter, pelos mesmos motivos que
Thales havia listado. Se algo acontecesse eles
precisariam ter alguém pronto para assumir aquela
posição.
Rafael assentiu.
— Aquela vampira, a que era a mão esquerda de
Klaus... — ele falou. — Não me lembro o nome dela.
— Melissa — Thales falou. — Ela desapareceu logo
depois que descobriram os carniçais no Setor Cinco.
— Ela estava envolvida ou...?
Thales balançou a cabeça de novo.
— Não tenho informações o suficiente. Mas havia
boatos de que a relação entre ela e Klaus não era das
melhores.
Uma pena ela ter desaparecido, então. Pelo que
Rafael se lembrava da vampira, ela teria dado uma boa
princesa. Não seria alguém com quem ele gostaria de
lidar, porque não seria facilmente manipulável, mas ela
manteria o setor funcionando.
— Tente descobrir mais sobre o que aconteceu com
ela — Rafael falou.
Thales assentiu.
— A bruxa? — O outro vampiro perguntou.
Rafael resistiu à vontade de olhar na direção da
janela. Alana não estava mais lá.
E fazia sentido Thales perguntar sobre ela, porque
ele também entendia o que seria necessário.
— Avisada sobre o baile. Não vai ser um problema.
Porque não importava o que Alana dissesse, ela não
faria nada que fosse colocar o Setor Dez em risco. O que
queria dizer que ela estaria ao seu lado no baile, sim,
agindo como sua esposa.
"Problema" poderia ser o que ela faria nos dias antes
do baile – então Rafael faria questão de saber
exatamente o que ela estava fazendo naquele tempo.
E aquele era o único motivo para ele querer saber o
que Alana estava fazendo.
Thales assentiu e saiu do seu escritório sem falar
mais nada, fechando a porta atrás de si.
Rafael olhou para os gráficos no seu tablet de novo,
mas não estava prestando atenção nas informações ali.
A reação da bruxa quando ele falara sobre o baile
havia sido exatamente o que ele tinha esperado:
negação. E Rafael havia visto exatamente quando Alana
havia notado que não tinha escapatória. A menos que
quebrasse o contrato entre eles, ela estaria ao lado dele,
sim. E ele não precisava de mais nada.
Ele sabia o que Alana havia pensado desde o
começo, antes de se casarem. Depois de todas as ofertas
de casamento vindas de outros setores, ela com certeza
imaginara que ele queria a mesma coisa: uma bruxa
para garantir a segurança das plantações do Setor Um.
Mas não. Desde o começo, Rafael estava se preparando
para aquela possibilidade. Ele precisava de uma bruxa
com o tipo de poder que Alana tinha, sim, mas não por
causa das suas plantações.
E ela não ia gostar nem um pouco quando
entendesse aquilo – ou quando percebesse que não
podia se recusar a fazer o que Rafael precisava.
QUATRO

Alana se encostou na parede ao lado da porta da sua sala,


tentando ouvir o que estava acontecendo lá fora. Desde
que ela tinha voltado para o Setor Um e notado como
Lorde Rafael estava fazendo questão de ignorá-la, ela
estava monitorando os sons que conseguia ouvir vindo
do escritório e do corredor. Não era muita coisa, mas era
melhor que nada. E ela tinha notado um padrão: na
semana anterior, todo dia antes do sol começar a ser
pôr, ou um dos vampiros ia para o escritório de Lorde
Rafael, ou ele saía. E, quando saía, sempre passava pelo
menos meia hora fora.
Já fazia dois dias desde aquele encontro no jardim e
o aviso de que teriam um baile. O tempo de Alana estava
acabando. Fazer alguma coisa em cinco dias era
praticamente impossível, mas ela precisava tentar.
O que queria dizer que, se Lorde Rafael saísse, Alana
ia tentar entrar no escritório sem ser notada. Não era
como se ela fosse ter muito tempo para procurar alguma
coisa. E era esperar demais que fosse achar outra coisa
como a carta que tinha feito ela entender o que Lorde
Rafael estava fazendo. Mas ela não podia só ficar parada
e aceitar o que estava acontecendo, porque se fizesse
isso ele ia assumir o controle dos outros vampiros, sim. E
Alana não queria imaginar um mundo onde Lorde Rafael
estivesse no controle. Ela já odiava aquele conceito
sozinho. Agora, depois de ver aquele outro lado de Lorde
Rafael... Não. Ele não podia se tornar o rei dos vampiros
de novo.
A outra porta se fechou com um som abafado. Alana
fechou os olhos, tentando ouvir melhor. Lorde Rafael
falou alguma coisa, mas as paredes abafavam o som
demais para ela conseguir entender o que era. Outra
pessoa respondeu. Um vampiro, provavelmente. Lorde
Rafael falou mais alguma coisa, mas agora ela mal
conseguia ouvir. As vozes estavam ficando mais
distantes.
Ele tinha saído do escritório.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.
Ela já tinha feito aquilo antes. Não tinha motivos
para ficar com medo.
Mas, da outra vez, ela ainda pensava que Lorde
Rafael era só mais um príncipe e não fazia ideia de que
ele tinha autorizado a criação do Setor Dez só para
destruir os "potenciais inimigos" que se reuniriam lá – as
bruxas. E ela não tinha visto aquela expressão gelada e
vazia no olhar dele quando tinha falado que, se Alana o
traísse, ele ia matá-la e destruir o Dez depois.
Alana saiu da sua sala e fechou a porta sem fazer
barulho. Não tinha ninguém no corredor, até onde ela
conseguia ver, mas aquilo não era nenhuma garantia de
nada. Sempre era possível que algum vampiro estivesse
fora do seu campo de visão.
Ela parou na porta do escritório de Lorde Rafael e
bateu na porta, por garantia. Se alguém visse ela ali, não
pareceria estranho.
Nada. Nenhum sinal de movimento lá dentro, óbvio,
mas nenhum sinal de ninguém no corredor, também.
Alana entrou no escritório e fechou a porta atrás de
si.
Tudo estava como da outra vez que ela tinha entrado
ali. A mesma mesa de madeira escura com detalhes de
metal, com a cadeira alta atrás dela e as estantes cheias
de livros encadernados em couro. Ela contornou a mesa
e parou, encarando um tablet em cima dela. A tela
estava travada e Alana não ia correr o risco de mexer ali.
Ia ser simples demais ter alguma coisa gravando
tentativas de acesso. Mas ela se inclinou para encarar
todas as folhas soltas em cima da mesa, sem mexer em
nada. A menos que tivesse alguma coisa útil ali, ela ia
evitar até encostar no que estava na mesa. Se ela tirasse
alguma coisa do lugar ali, seria óbvio demais quando
Lorde Rafael voltasse e ele podia desconfiar do que ela
estava fazendo.
Nada relacionado ao baile. O que estava ali parecia
ser dados sobre o clima – o que queria dizer que agora
Alana estava curiosa sobre aquilo, também, porque fazia
mais sentido ela estar pesquisando sobre o clima do que
Lorde Rafael. Mas sua curiosidade não era justificativa
para mexer ali, não quando tinha mais coisas
acontecendo.
Ela se abaixou e parou com uma mão na frente das
gavetas. O que Alana conseguia sentir de poder não era
nada perto do que Alex fazia mas, se tivesse algum tipo
de proteção mágica ali, ela notaria.
Nada.
Alana abriu as gavetas, uma de cada vez. Pastas de
relatórios, dados sobre compra e venda de produtos, mas
nada que chamasse sua atenção. Naquele tempo no
Setor Dez, ela tinha feito questão de estudar tudo o que
conseguia sobre como o Um funcionava, quais eram as
alianças comerciais conhecidas deles e tudo mais. Ela
tinha uma ideia do que esperar dos relatórios ali, mesmo
que soubesse que as informações que tinha conseguido
não fossem tudo que o Um fazia.
Não demorou para ela ver os mesmos relatórios da
outra vez. As compras de armas e de fertilizante. Perda
de tempo continuar, então.
E a gaveta com as cartas também não tinha nada
novo. Nem parecia que Lorde Rafael tinha aberto ela
naqueles seis meses. E até era possível que ele quase
não mexesse ali, porque a maioria das cartas era de anos
atrás, mas...
Ela pegou as cartas de novo, por garantia,
conferindo ao menos os nomes mencionados nelas.
Talvez tivesse alguma coisa de algum dos príncipes de
outra região. Qualquer nome que não fosse dali valia a
pena prestar atenção, porque podia ser de alguém que
viria para o baile.
Mas não tinha nada, também. Nada que fosse lhe dar
informações sobre os príncipes. Nada que desse uma
pista sobre por que Lorde Rafael estava fazendo aquilo
tudo daquele jeito e naquele momento.
Da outra vez, Lorde Rafael tinha voltado para o
escritório e encontrado ela lá – e depois saído com ela
para passar um tempo no jardim, como se fossem um
casal comum.
Alana engoliu em seco. Ela tinha sido iludida demais
por pensar que podia ter alguma coisa real em como
Lorde Rafael tinha agido com ela, antes. Mas aquela
ilusão tinha seu lado positivo, porque agora ela nunca
mais cairia em alguma coisa do tipo.
E ela não podia correr o risco de ele voltar e achá-la
ali, de novo. Mas não tinha como negar que ela tinha
entrado ali, porque um vampiro provavelmente ia
conseguir sentir alguma coisa do seu cheiro ou algo do
tipo.
Alana pegou o anel que estava no seu bolso – o anel
que nem ela nem Alex tinham entendido o que era, mas
que Alex chamava de "anel vazio", porque não absorvia
nenhum vestígio de poder.
Qualquer que fosse a intenção de Lorde Rafael
quando tinha deixado o anel no seu quarto, dois meses
antes, aquilo tinha mudado. E ela não queria estar com
nada que fosse dele.
Alana colocou o anel ao lado do tablet e saiu do
escritório.

Rafael encarou o vampiro na sua frente. Victor estava com ele já


fazia mais de um século e era um dos membros da sua
Corte que Rafael considerava como de confiança. Mas o
outro vampiro ainda o estava encarando com o mesmo
medo nos olhos de quando era humano – o medo de um
mensageiro com más notícias.
— Tem certeza? — Ele perguntou.
O outro vampiro assentiu depressa e apontou para
um ponto da parede. Rafael se aproximou devagar,
tentando enxergar o que Victor estava vendo ali.
— Os vestígios são fracos — ele contou. — O que
quer dizer que estavam tentando esconder sua
passagem por aqui. Mas um humano usou essa saída.
E não havia nenhum motivo para um humano estar
ali, nos depósitos sob o castelo. Ali era onde Rafael
armazenava tudo o que era de uso exclusivo dos
vampiros da sua Corte. Era sua garantia de que, não
importava o que acontecesse, seu pessoal sobreviveria.
O acesso aos depósitos era controlado, mesmo que eles
não fossem exatamente vigiados, porque um humano
não teria nem como entrar ali sem ser notado.
Mas um deles havia entrado.
Rafael levantou a cabeça e olhou para a frente. O
corredor ali já era estreito – o que provavelmente era o
motivo para Victor ter notado aquele vestígio de poder.
Fora dali, seria fácil evitar tocar nas paredes. E, naquela
direção...
— A saída lateral? — Rafael perguntou.
Victor assentiu depressa.
— As grades foram removidas e reinstaladas.
Rafael balançou a cabeça devagar. Ninguém usava
aquela saída. Ele mesmo havia discordado da construção
dela, no começo, e a única coisa que o convencera havia
sido a lembrança de estar preso em um depósito não
muito diferente daquele, enquanto a propriedade mais
acima queimava, sem ter como sair. Se pudesse evitar,
ele nunca construiria um lugar que não tivesse mais de
uma saída – e não estaria em um lugar como aquele,
também.
A entrada dos depósitos dava em uma das partes
movimentadas do castelo. Ninguém conseguiria entrar
por ali sem ser notado. A saída lateral era escondida,
porque não adiantava de nada ter uma escapatória do
lugar que poderia se tornar uma armadilha se aquilo
fosse óbvio. Mas, ainda assim, era dentro dos muros do
castelo. Dentro da propriedade que sempre era vigiada e
tinha acesso controlado. Ninguém passeava pela área do
castelo sem ser observado o tempo todo.
Um humano não entraria ali para roubar. Todos eles
sabiam que era um risco sem retorno. Roubar do príncipe
era assinar uma sentença de morte não apenas para si
próprio, mas para toda sua família. Mesmo assim,
alguém havia entrado. E, por coincidência, justo quando
Rafael estava convidando príncipes de outras regiões
para um baile. E justo quando ele ainda conseguia sentir
a presença daquele poder em algum lugar por perto –
não no setor, mas não longe, também, como se estivesse
apenas esperando o momento de agir.
Aquele era o motivo para o medo de Victor: de novo,
ele era a pessoa a lhe dar más notícias. Havia sido Victor
quem descobrira sobre os dois vampiros que ainda
estavam virando cinzas na frente do castelo, que haviam
vendido informações sobre o Setor Um para Cordelia,
antes que ela fugisse.
Mas Rafael não puniria alguém por fazer bem o
trabalho que lhe havia sido dado. Meses antes, ele dera
uma oportunidade para Victor trabalhar com a segurança
do castelo e do setor e aquela decisão estava se
provando acertada demais. O outro vampiro sabia como
ganhar as pessoas ao seu redor e fazer lhe darem as
respostas que queria sem nem mesmo notarem – de uma
forma tão eficiente que fazia Rafael imaginar que talvez
fosse alguma habilidade sutil.
Aquilo ali, os sinais da passagem de alguém por
aquele caminho, deixava mais que claro que ele tinha
mais traidores dentro do castelo. Vender informações não
havia sido o suficiente.
E um traidor que não estava fazendo aquilo apenas
pela oportunidade. Entrar nos depósitos havia sido algo
bem planejado, se as grades da saída haviam sido
removidas e reinstaladas.
— Encontre quem foi — Rafael falou. — Os humanos
que estiveram dentro dos muros do castelo nos últimos
meses...
Victor balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Dias, não meses.
Rafael se virou para encarar o outro vampiro. Ele deu
um passo atrás antes de parar e balançar a cabeça de
novo.
— O vestígio é recente, tanto aqui quanto nas grades
— Victor contou. — Isso aconteceu recentemente. Alguns
dias atrás.
Então aquilo era algo relacionado ao baile, com toda
certeza.
Ele precisava descobrir quem era o traidor – os
traidores, provavelmente – e lidar com aquilo depressa.
Não era como se existisse algum vampiro que realmente
fosse uma ameaça para Rafael, mas ter algum ataque ou
algo do tipo durante o baile onde ele tinha a intenção de
recuperar a sua posição entre os vampiros seria um
péssimo sinal.
Não.
Um ataque seria algo óbvio demais para alguém que
havia tomado tanto cuidado para não deixar sinais da
sua passagem pelo depósito.
Rafael olhou ao redor devagar. O que alguém poderia
querer ali...
Ele voltou pelo corredor, andando depressa. Victor o
acompanhou, sem falar nada. Rafael não precisava
perguntar se o outro vampiro tinha verificado as portas.
Victor era excelente no que fazia, ou não estaria
trabalhando para Rafael depois de tanto tempo. Mas ele
não descartaria a possibilidade de terem conseguido
fazer algo sem deixar nenhum vestígio e havia uma sala
ali onde aquilo poderia ser um risco.
Rafael parou na frente da porta de metal e começou
a soltar as fechaduras e travas de segurança. As
proteções feitas com magia não precisavam ser desfeitas
– ele as fizera, o que queria dizer que sempre se abririam
para ele.
A sala era iluminada por luzes fortes, que quase
refletiam nas paredes claras. Os refrigeradores que eram
os seus reservatórios de sangue estavam espalhados em
linhas pela sala, todos fechados. Rafael havia
encomendado os primeiros deles mais de um século
antes, mandando suas próprias especificações para os
fabricantes. E cada um deles era reforçado com sua
magia, também – tanto para proteção quanto para
garantir a preservação do sangue dentro deles.
Os refrigeradores eram mantidos o tempo todo na
mesma temperatura, com um sistema de alertas caso
qualquer coisa fugisse do padrão ali. E nada havia
disparado nos dias anteriores. Na verdade, a última vez
que um dos alarmes disparara havia sido décadas antes,
quando tiveram um problema na rede de energia.
Rafael abriu um dos reservatórios de sangue. Nada.
O líquido vermelho e quase viscoso estava como sempre,
sem nenhum sinal de qualquer coisa diferente. Mas havia
possibilidades demais que não podiam ser vistas.
Ele colocou dois dedos no sangue. Nenhuma reação,
também, mas aquilo não era uma garantia.
Rafael levantou a mão e lambeu o sangue.
Ali estava – o formigar característico que era a
presença de prata em algo. Quem quer que houvesse
entrado ali, tinha contaminado os reservatórios com
prata. Ele não precisava saber detalhes, se havia sido pó
ou algo diferente, como diziam que os caçadores de
vampiros de antes da magia usavam. A questão era que,
se Rafael estava sentindo o formigar da prata na sua
boca, era porque a quantidade ali era o bastante para
incapacitar a grande maioria dos vampiros da região.
Talvez até fazer pior que incapacitar. Aquilo seria veneno,
sim.
E era mais interessante ainda, porque ninguém do
Setor Um tocava naqueles reservatórios. Eles existiam
exatamente por causa da possibilidade de Rafael ter que
hospedar vários vampiros de fora e preferir evitar que
eles se alimentassem dos seus humanos.
Rafael fechou o reservatório. Ele não precisava testar
os outros. Era óbvio que estariam contaminados,
também. E agora ele precisava pensar em uma forma de
descartar todo aquele sangue sem chamar atenção.
Ele olhou ao redor. Era sangue demais. Seria mais
fácil criar as proteções ao redor de outra sala. Ele ainda
tinha reservatórios vazios – e que estavam armazenados
em outro lugar.
Sim. Aquilo era melhor. Rafael faria outra sala de
reservatórios, temporária. E, depois que encontrasse os
traidores e os visitantes já não estivessem mais ali, ele
se livraria do sangue contaminado.
Mas, primeiro, ele precisaria cobrar o preço de
sangue de todo o setor. Os vampiros vindo para o baile
precisavam ser alimentados de alguma forma.

De onde Alana estava sentada, na sala vazia no alto da torre,


dava para ver a cidade, mas não detalhes dela. Não que
ela estivesse prestando atenção no que estava vendo.
Antes de ir para o Setor Um, tudo tinha parecido
simples. Alana tinha muito mais informações. Amon tinha
lhe contado tudo o que se lembrava sobre Lorde Rafael
antes da volta da magia – como ele tinha mantido uma
Corte mesmo quando aquilo não era o padrão e como
sua Corte era poderosa o suficiente para todos os outros
vampiros o obedecerem, quando ele dava alguma ordem.
Como ele havia se envolvido em guerras dos humanos
mais de uma vez, o tempo todo sem deixar terem
certeza sobre o que ele era.
Mas Amon também tinha feito o possível para ficar
longe de Lorde Rafael, antes. O que ele tinha falado era
que os vampiros antigos sempre se evitavam, a menos
que fossem aliados, e aquilo fazia sentido. Então ele não
sabia tanto sobre o vampiro por si só. O que Amon sabia
eram as histórias, os boatos e informações que
chegavam nele, na época, e que ele prestava atenção
mais para ter certeza de que Lorde Rafael ainda estava
satisfeito no seu canto do que qualquer outra coisa.
E Alana tinha pensado que, talvez, Lorde Rafael se
importasse pelo menos um pouco. A forma como ele
tinha agido dois meses antes, quando tudo estava
acontecendo no Setor Três, não tinha sido nada perto do
que ela havia imaginado. Ele tinha aparecido no Três
pronto para proteger Alana. Ela era uma bruxa da
natureza, ok. O poder dela não era comum, ok também.
Mas isso não era motivo para um príncipe praticamente
invadir outro território como Lorde Rafael tinha feito. E
depois, o anel...
Estupidez da parte dela, de novo. Mas, pelo menos,
daquela vez a estupidez tinha sido só pensar que ela ia
ter um caminho fácil para manipulá-lo de volta.
Alana pegou seu celular e encarou a última
mensagem de Dani, que tinha vindo depois do seu aviso
sobre o baile. Tudo no Setor Dez estava estável. Ninguém
tinha nada novo para ela – o que queria dizer que Alex
continuava sem ter encontrado nada sobre aquele anel.
Mas a mensagem era um bom sinal. Pelo menos, deveria
ser. O Setor Dez tinha passado tempo demais lidando
com uma ameaça atrás da outra. Agora, Alana não
conseguia deixar de pensar que parecia ser só a calmaria
antes da tempestade.
Uma notificação apareceu. Alana abriu a mensagem
sem prestar atenção e parou quando viu que o contato
salvo era a identificação do tablet reserva que ela tinha
deixado com Silvana, a bruxa na cidade. A bruxa que ela
tinha evitado entrar em contato, porque não ia colocar
alguém em risco sem um bom motivo depois daquela
ameaça de Lorde Rafael,

Reserva: Vou imaginar que isso aqui é seguro.

E, se Silvana estava entrando em contato primeiro,


depois de dias que o tablet estava com ela, era porque
alguma coisa tinha acontecido.

Alana: É seguro.

Tão seguro quanto o pessoal de Yuri conseguia


garantir e aquilo era bom o suficiente para Alana.
Ela continuou encarando o celular, esperando.
A nova mensagem não demorou para aparecer.

Reserva: Está mesmo disposta a ajudar os humanos


daqui?
Alana: Sim. Não só daqui.
Reserva: Então pode começar me dizendo por que
recebemos uma intimação para doar sangue no castelo
amanhã.

Alana encarou o celular. Não. Ela tinha deixado bem


claro que não ia aceitar Lorde Rafael indo atrás da bruxa
só porque elas haviam tido contado.

Alana: "Recebemos" quem? Sua família?


Reserva: Todo mundo do setor. Todos acima de
dezoito anos têm que aparecer nos próximos dois dias.

Não era por causa dela, então, mas Alana não tinha
muita certeza de que aquilo era melhor. Lorde Rafael
estava cobrando o preço de sangue, a "taxa" que todos
os humanos que moravam nos setores precisavam pagar
anualmente, em troca da proteção dos vampiros. E
estava cobrando de todos os humanos do setor de uma
vez. Aquilo não era normal. Alana não se lembrava de
alguma coisa daquele tipo acontecendo antes, nem em
nenhum setor daquela região nem na região de onde ela
e Dani haviam saído.
E ela só conseguia pensar em um motivo: o baile. Ele
estava pedindo aquele sangue porque ia usá-lo para se
fortalecer. E, se Lorde Rafael ficasse mais forte...
O risco valia a pena – podia valer a pena, se fosse
algo consciente.

Alana: Está disposta a correr o risco?

Ela não precisava falar mais. A outra bruxa estava no


Setor Um já fazia pelo menos vinte anos, pelo que Lara
tinha lhe contado – isso se não tivesse nascido e crescido
ali. Ela entenderia.

Reserva: Estou.
CINCO

Rafael encarou o anel em cima da sua mesa. Ter entrado no


escritório no dia anterior e encontrado ele ali havia sido
uma surpresa desagradável – mas não deveria ter sido
uma surpresa. Com tudo o que havia acontecido depois
que ele havia deixado o anel no quarto de Alana, era
mais que óbvio que ela faria questão de devolvê-lo, da
mesma forma como estava fazendo questão de nem
mesmo se aproximar da estufa.
Ele não deveria se importar. Se tivesse tempo, se
tudo não estivesse acontecendo depressa demais, Alana
seria sua prioridade, com toda certeza. Rafael não se
lembrava de ter encontrado alguém que o chamasse
tanto quanto ela. Ele nunca havia conseguido evitar
apreciá-la, da mesma forma que sempre havia apreciado
alguém que considerava atraente. Mas era mais que
apenas aquilo, desde o começo. Era sobre tudo mais. A
personalidade de Alana, a forma como ela podia parecer
tão comum quando queria, enquanto escondia o tipo de
poder que poderia lhe dar tudo o que queria. A forma
como ela o desafiava, como o havia encarado sem medo
mesmo depois das suas ameaças.
Ele não queria deixar aquilo escapar. Mas ele
precisava, porque priorizar Alana seria condenar tudo –
incluindo ela.
Então ele se contentaria em ver aquele desprezo
gelado no olhar dela – porque queria dizer que ela ainda
estava ali e ainda estava viva. E, por bem ou por mal,
estava presa a ele. Sua esposa, até onde os outros
vampiros sabiam.
Mas ele não tinha tirado o anel do lugar onde estava,
na sua mesa. E nem o tiraria dali. Seria mais um
lembrete.
Rafael se levantou e parou na janela do seu
escritório. Alana não estava no jardim mais abaixo, mas...
Alana não estava no jardim. E as rosas que um dia
antes estavam abertas, com pétalas cheias e cores vivas,
agora estavam murchas, amarronzadas e se desfazendo
no ar.
Ela matara suas roseiras. Alana havia feito aquilo.
Era a única explicação para as plantas com as quais ele
sempre tivera tanto cuidado estarem daquele jeito. As
roseiras sempre tinham do bom e do melhor e Rafael
fazia questão de ele mesmo garantir que estivessem
bem, não importava o que acontecesse. E ele havia
mantido aquele jardim desde que chegara naquela
região, quase duzentos anos antes.
Para uma bruxa destruir todo seu esforço em alguns
dias. Em um dia, talvez.
Ela pagaria por aquilo. E como pagaria.
Mas Alana não tinha ideia do que havia feito.
Desde o começo, as roseiras eram um lembrete do
que Rafael precisava fazer. Do que ele precisava ser.
Ver as rosas murchas, morrendo, era um lembrete
ainda mais forte de por que ele não podia deixar Alana
atrapalhar seus planos de forma alguma.
Porque ele já tinha visto a mesma coisa antes, em
outro lugar. E Rafael nunca se esqueceria do desespero
de ver todas as plantas morrendo e saber que nada
adiantaria, porque não era a falta de algo fazendo com
que morressem. Era a força se alimentando delas e de
tudo mais ao seu redor. E ele nunca se esqueceria da
sensação gelada ao perceber que aquela força não se
contentaria apenas com as plantas.
Não. Alana ainda tinha alguma ilusão de que estava
no controle. Ou melhor, de que era necessária demais
para ser morta.
Mas a verdade era que Rafael não precisava de
Alana. Ele precisava do poder dela e mais nada. E
mentes humanas eram tão frágeis, mesmo aquelas com
escudos e proteções. Elas quebravam de formas tão
simples, com um pouco de dor ou pressão na fratura
correta.
Ele não queria fazer aquilo – não com Alana, a
primeira pessoa que havia chamado e mantido sua
atenção em séculos. Rafael sabia melhor que a maioria
dos vampiros como algo do tipo era raro e odiava a ideia
de jogar aquilo fora. Mas o que ele queria não fazia
diferença quando o necessário pesava muito mais.

Alana se sentou no chão, debaixo da janela da torre, e pegou seu


celular. Era bem possível que Lorde Rafael já tivesse visto
as roseiras e aquela era uma reação que, por mais que
ela quisesse ver, ela sabia que era melhor ficar longe.
Mais seguro, no caso. E, pela primeira vez, ela estava
muito feliz por não conseguir sentir poder como Alex
sentia, porque tinha certeza que conseguiria sentir a
fúria de Lorde Rafael mesmo dali.
As roseiras estavam bem – óbvio que estavam. Alana
nunca ia fazer uma planta pagar pelo que Lorde Rafael
estava fazendo. Mas ela sabia muito bem qual seria a
primeira impressão quando ele visse as rosas murchas e
secas.
E ela precisava parar de pensar em plantas, porque
estava na torre, o que queria dizer que estava perto
demais da estufa. Alana não conseguia não sentir a
presença de todas as plantas lá e continuar ignorando
aquilo era quase uma dor física, porque ela não
conseguia se esquecer do que tinha visto lá, antes. As
plantas raras, quase impossíveis de conseguir naquele
continente. As orquídeas, tão delicadas que precisavam
de uma área separada para elas. Era o que Alana sempre
tinha sonhado em ter, mas era melhor porque era real –
e ao mesmo tempo não era. Era só mais uma ferramenta
para deixar ela satisfeita e agindo como Lorde Rafael
queria.
Não mesmo. Alana se recusava a voltar lá.
Ela encarou seu celular e abriu as últimas
mensagens de Silvana.

Silvana: Isso não é novidade.


Silvana: É assim que ele faz. Todo ano, quem não
pagou o preço de sangue tem que se apresentar no
castelo.
Silvana: E quem se apresenta, é isso que acontece.
Não é pra alimentar alguém.
Silvana: É pra ser armazenado.
Mais de duzentos anos desde a volta da magia. O
que queria dizer quase duzentos anos desde a criação
das regiões e dos setores. Quase duzentos anos – se
Silvana não estivesse exagerando – em que Lorde Rafael
estava armazenando sangue.
Ou armazenando, ou usando para si mesmo. Pelo
que Alana sabia, sangue humano não fazia tanta
diferença assim para os vampiros. Os alimentava, sim,
mas era só isso. E a maioria das pessoas pensava que o
sangue era só aquilo: alimento. Mas podia ser mais. Sua
avó tinha feito questão de martelar aquilo na cabeça de
Alana.
Sangue carregava poder, magia. Era por isso que o
sangue humano alimentava os vampiros: o potencial de
magia que existia em cada pessoa sustentava o que quer
que fosse a força por trás da existência dos vampiros.
Era alimento, realmente.
Se um vampiro bebia de outro, talvez conseguisse
um vestígio dos poderes do outro vampiro. Ou, se um
vampiro se alimentasse de outro por muito tempo, ele se
tornaria mais forte, porque estaria absorvendo o poder
do outro.
Alana tinha visto aquilo acontecer com Dani e Amon.
Dani era muito mais forte do que uma vampira recém-
transformada deveria ser e, desde o começo, sempre
tinha tido mais controle do que o esperado. Aquilo sem
nem mencionar o fato de que ela já tinha um poder
específico: a capacidade de se transportar de um lugar
para outro em um piscar de olhos e levar outras pessoas
com ela. Nem mesmo o fato de ela ter sido transformada
por Amon – que era um vampiro antigo e poderoso
demais, também – era o suficiente para explicar aquilo.
Então provavelmente era porque estavam bebendo o
sangue um do outro.
E, quando Alana ainda era adolescente, sua avó
tinha lhe contado de algumas teorias que rodavam entre
as bruxas, de que o sangue de uma delas teria um efeito
parecido quando era bebido. Que o poder de uma bruxa,
por ser mais que só o potencial que todos tinham,
fortalecia os vampiros que bebiam delas. Era mais do
que só alimento. E, de acordo com sua avó, aquilo fazia
sentido demais, até mesmo para explicar por que os
príncipes que tinham feiticeiras trabalhando para eles
eram tão possessivos quando o assunto era elas. Não era
apenas o que elas podiam fazer. Era o poder no sangue
delas, também.
Em duzentos anos, quantas bruxas tinham vivido no
Setor Um? Várias. Alana não chegaria a pensar que eram
muitas, mas teria sido um número significativo. E, aquele
tempo todo, Lorde Rafael podia estar usando o sangue
delas para se fortalecer, sem que elas soubessem,
justamente por causa daquela regra sobre o preço de
sangue.
Ele não estaria organizando aquele baile se não
tivesse certeza do resultado. Lorde Rafael era arrogante,
mas ele também era cuidadoso. Tentar assumir o
controle dos vampiros e falhar seria uma garantia de que
ele não ia conseguir fazer aquilo de novo. Se fosse antes
do que tinha sido feito nos setores Oito e Cinco, Alana
até diria que ele perderia sua posição na região,
também. Mas, depois do que tinha acontecido nos
setores sem príncipes, ela não achava que alguém dali
fosse tentar desafiar Lorde Rafael.
E, justamente por causa daquilo, Alana não podia
destruir Lorde Rafael – e ela não tinha certeza de que
conseguiria, mesmo se pudesse. Por bem ou por mal, ele
estava mantendo a região estável.
Então aquela era a melhor opção, no fim das contas:
destruir a credibilidade de Lorde Rafael de alguma forma
pública o suficiente para ele não ter como se recuperar
depois.
Só tinha um problema. Se fizesse aquilo, seria uma
quebra do contrato entre eles. Alana não tinha a menor
ilusão de que conseguiria fazer alguma coisa tão bem
que não fossem pensar que era culpa dela. Se tivesse
pessoas no castelo em quem ela pudesse confiar, talvez.
Mas não tinha. Todo mundo ali era leal a Lorde Rafael.
Tanto os humanos quanto os vampiros – e até os
humanos que estavam ali mas não tinham aquelas
tatuagens no pescoço. Alana não fazia ideia do que Lorde
Rafael tinha feito para merecer aquela lealdade, mas
tentar ganhar a confiança de alguém ali a ponto de
estarem dispostos a trair o vampiro seria perda de
tempo.
Ela estava sozinha. E, mesmo sabendo que Lara e
Eric com certeza teriam que ir no baile, ela ainda estaria
sozinha, porque eles não poderiam fazer nada que
colocaria o Setor Três em risco, também.
Mas as coisas tinham mudado. Na época em que
tinha feito o contrato de casamento com Lorde Rafael, o
Setor Dez precisava de proteção. A influência dele, o
vampiro mais poderoso da região, era necessária para
não serem atacados, porque estavam sozinhos e não
tinham como se defender. Agora, o Dez era aliado do Três
e Alana sabia que Eric pensava que lhes devia algo por
terem ajudado o seu setor, dois meses antes. O Setor
Oito não era mais uma ameaça, nem o Cinco. E ela não
acreditava que o Seis pudesse se tornar um risco, porque
o príncipe de lá estava muito ocupado em não chamar
atenção.
Aquilo deixava o Nove e o Dois – porque o Sete tinha
acordos com o Três, então não atacaria o Dez, também.
Era um risco, mas era um risco calculado.
A questão então era como destruir a credibilidade de
Lorde Rafael. Boatos ou qualquer coisa do tipo não
adiantariam. Não tinha nada que ela pudesse inventar
que um vampiro não fosse achar um jeito de usar a seu
favor.
Mas se Lorde Rafael estivesse visivelmente
instável...
Se ele estivesse intoxicado. Sim. Aquela era a
resposta.
Álcool ou drogas não faziam efeito em vampiros. Pelo
menos, não diretamente. Mas, se um vampiro bebesse o
sangue de alguém que estivesse bêbado ou drogado
aquilo faria efeito, sim. E um efeito considerável, pelo
que ela se lembrava.
Não era uma prática incomum, mas não era algo
bem visto – pelo menos, não quando era mais que só
recreação. Quando um vampiro era visto bêbado e
instável como um humano, era motivo de vergonha,
porque eles deveriam ser melhores que aquilo. Eles não
se rebaixavam àquele tipo de prazer, porque podiam ter
tudo o que queriam.
Alana tinha rido da hipocrisia, quando ainda ia nos
eventos da Corte com sua avó, anos antes. E aquilo
podia ser útil agora. Ela só precisava descobrir um jeito
de deixar Lorde Rafael parecendo bêbado.
Ela encarou o celular de novo. Alana podia ser uma
bruxa da natureza, mas nunca tinha precisado estudar a
relação dos vampiros com as plantas. Mesmo assim, ela
tinha certeza de que era possível que existisse alguma
coisa que fizesse efeito nos vampiros, do mesmo jeito
que existiam várias plantas com efeitos alucinógenos ou
algo parecido para humanos.
E se alguém fosse saber quais plantas, seria uma
bruxa que tinha passado a vida toda em um setor
controlado por vampiros, se escondendo, ao mesmo
tempo em que tinha um jardim de plantas medicinais.

Alana: Tem alguma planta que seja alucinógena


para vampiros?
Alana: Não precisa ser forte o suficiente pra dar
resultado imediato.
Alana: Na verdade é até melhor se não for forte o
suficiente, porque aí não vão suspeitar.

Alana não precisava de algo que já fosse forte o


suficiente. Ela só precisava de algo que tivesse algum
efeito. Seu poder cuidaria do resto. E, mesmo se depois
de tudo Lorde Rafael suspeitasse ou até mesmo tivesse
certeza de que tinha sido Alana por trás do alucinógeno,
ele não teria como provar. Ninguém teria como provar.
Não demorou muito para o seu celular vibrar.

Silvana: Você é louca.


Silvana: Talvez tenha uma combinação que dê esse
efeito.
Silvana: Preciso testar.

Ótimo.
E era interessante como, dentro do castelo, a
lealdade de vampiros e humanos era inquestionável.
Mas, na cidade, ela não tinha precisado nem fazer
esforço para ver que a lealdade não existia. Não
importava como a capital do Setor Um parecia uma
cidade bem cuidada, até próspera, a verdade era que os
humanos ainda se sentiam como lanche e mais nada. E a
cobrança do preço de sangue só tinha feito eles se
lembrarem daquilo.
Seu celular vibrou de novo.

Silvana: E preciso de alguma garantia de que não


vou morrer por causa disso.

A bruxa não estava errada e aquilo era fácil de


resolver. Alana só precisava avisar Dani sobre o que
estava fazendo e garantir que a outra mulher estaria no
Setor Dez no dia do baile.

Dani se sentou na cadeira ao redor da mesa de reuniões da


mansão. Todo mundo estava ali, de novo: Raquel,
Ezequiel, Yuri, Melissa, Adriana, Eduardo, Alex, e agora
ela e Amon.
E, se fosse para ser bem honesta, ela estava mais do
que cansada daquelas reuniões. No começo, não era
daquele jeito. De raro em raro ela e Yuri precisavam
coordenar alguma coisa com Raquel, ou com Eduardo,
mas nunca eram aquelas reuniões com gente demais e
frequência demais. Se continuasse assim, ia ser mais
fácil já marcar uma reunião toda semana, porque com
certeza ia acontecer alguma coisa para precisarem
daquilo.
E às vezes ia acontecer mais de uma coisa – como
naquela noite. Porque a reunião tinha sido chamada
minutos antes de Dani mandar mensagem para Raquel
avisando que precisavam de uma reunião.
Raquel olhou ao redor e assentiu.
— Todos aqui, então vamos direto ao assunto — ela
começou. — Lorde Rafael enviou um convite para um
baile no Setor Um, daqui a três dias. Nas palavras dele,
"um baile especial, para os príncipes de regiões
diferentes se encontrarem pela primeira vez em séculos".
Alex de uma risada abafada.
— E ele mandou um convite faltando três dias — elu
comentou. — Até parece que só lembrou do Dez agora.
O que elu estava falando fazia sentido, mas Dani não
achava que era a verdade. Lorde Rafael tinha deixado
para mandar o convite de última hora, certo. Mas
provavelmente tinha sido para evitar que tivessem
tempo para se preparar e fazer planos.
— Vocês não podem recusar — Melissa avisou. —
Recusar vai ser a mesma coisa que dizer que o Setor Dez
não se considera à altura dos outros.
Eduardo revirou os olhos.
— Existe alguma coisa que os vampiros façam que
não tenha nenhum tipo de interpretação desse tipo?
Melissa balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não.
E ela não precisava nem ter respondido. Todo mundo
ali sabia daquilo muito bem. Tudo dos vampiros envolvia
jogos de poder.
— Raquel não pode ir — Dani falou, depressa. — Se
alguém juntou os pontos e entendeu o que você pode
fazer, não tem a menor chance de você ir no baile e sair
de lá viva.
Porque Raquel tinha um dos poderes raros – e que
eram raros justamente por serem tão letais contra os
vampiros. Ela conseguia criar luz de uma forma que era o
suficiente para destruí-los.
Raquel apoiou os cotovelos na mesa e entrelaçou os
dedos.
— E acabamos de chegar à conclusão de que não
podemos recusar — ela falou. — Não estou dizendo que
faço questão de estar nesse baile, mas não ir está me
parecendo pior.
Ela sabia. E era uma das coisas que Dani e Amon já
estavam falando quando tinham recebido o aviso sobre a
reunião.
— Você pode mandar representantes — Amon
contou.
Todos se viraram para ele.
— Isso era comum, no passado — ele continuou. —
Quando alguém não confiava nas intenções de quem
havia feito o convite mas não podia recusar, enviavam
um representante.
— E isso não seria visto como um insulto? — Raquel
perguntou.
Amon deu de ombros.
— Talvez sim, talvez não. No passado, às vezes
alguns representantes eram destruídos, porque a
presença deles já era o suficiente para ser lida como um
insulto. Mas às vezes era reconhecido que era a única
forma de alguém ter uma presença na Corte.
— O que quer dizer que pode ser uma armadilha — a
bruxa falou.
Ninguém respondeu.
Não fazia diferença. Tudo lidando com os vampiros
sempre podia ser uma armadilha e provavelmente era.
E eles já tinham uma solução fácil para aquilo.
— Daniele e eu podemos ir — Amon avisou.
— É o mais seguro — Dani completou. — Na pior das
hipóteses, consigo tirar a gente de lá.
Se Amon não decidisse fazer alguma coisa antes de
ela tirá-los de lá. E Dani não ia achar aquilo nem um
pouco ruim.
— Lorde Rafael não é estúpido — Melissa falou. —
Ele sabe que Raquel não iria, então já está esperando
vocês. Se isso for uma armadilha, é especificamente para
vocês.
Não. Se realmente fosse uma armadilha, seria para
Amon. Lorde Rafael não sabia sobre Dani...
Ele sabia. Ela tinha usado seu poder na frente dele,
quando estavam no Setor Três. Então era possível que
fosse uma armadilha para eles. E, mesmo que Dani
nunca tivesse achado nada que bloqueasse aquele seu
poder, ela não duvidava que algo do tipo existisse.
— Se for uma armadilha, ele vai se arrepender —
Amon avisou.
Dani sorriu. Aquilo seria interessante de se ver. Se os
vampiros pensassem que conseguiriam prender Amon de
novo, teriam uma surpresa enorme.
Antes, ele sempre tinha evitado chamar atenção.
Amon não era como Rafael, exibindo poder para
conseguir respeito. Ele só usava o que precisava, quando
precisava. Os vampiros não sabiam até onde o poder
dele realmente ia.
E aquela não ia ser a única surpresa.
— Alana está planejando alguma coisa — ela contou.
— Ela disse que não vai me dar detalhes, mas que existe
a possibilidade de considerarem o contrato dela como
Lorde Rafael quebrado. E ela pediu para darmos proteção
para uma bruxa do Setor Um no dia do baile e talvez nos
dias depois.
Raquel encarou Dani e não falou nada.
Dani deu de ombros. Ela realmente não sabia de
nada e uma parte dela ainda queria esganar Alana por
ter só mandado um aviso, deixando mais do que claro
que não ia responder nada sobre aquele assunto. Mas
Dani também precisava lembrar que Alana sabia o que
estava fazendo. Qualquer ilusão de que sua prima
estivesse indefesa tinha desaparecido depois que ela
tinha visto os relatórios sobre o que tinha acontecido no
Setor Três: como Alana tinha defendido os geradores e
depois uma das fronteiras, sozinha.
Raquel deu um suspiro pesado e passou uma mão no
rosto.
— Vamos dar proteção para essa bruxa, então — ela
falou. — E espero que todos vocês saibam o que estão
fazendo. Tanto vocês dois, indo para o baile, quanto
Alana.
SEIS

Alana parou na frente do portão principal. Daquela vez só tinha


um guarda nas guaritas, pelo menos. Menos gente para
insistir em Alana ter uma escolta. Ela cruzou os braços e
encarou o homem com o pescoço tatuado que estava lá
dentro, sem falar nada.
O portão se abriu.
Aquilo era quase satisfatório.
Alana saiu e soltou um suspiro aliviado assim que
ouviu o portão se fechando atrás dela. O baile ia ser na
noite seguinte, o que queria dizer que o clima no castelo
estava insuportável. Ela não precisava conversar com os
vampiros ou humanos para notar como todo mundo
estava tenso. Até o ar do castelo parecia pesado, de
alguma forma.
E não era difícil entender o motivo: preparativos e
tudo mais, porque os primeiros convidados iam começar
a chegar naquela noite. Os vampiros de fora da região.
Eles eram a parte mais importante para o plano de
Rafael e eram o maior risco, justamente por não serem
dali, então até fazia sentido a tensão toda. O que não
queria dizer que era agradável estar no castelo.
Mas os convidados estarem chegando queria dizer
que aquela era a última chance de Alana ir na cidade, se
ela quisesse ir lá antes do baile. Depois que os primeiros
convidados chegassem, ela provavelmente estaria
ocupada demais fazendo o papel de esposa de um
príncipe. E Alana não conseguia evitar o gosto amargo
que aquilo deixava na sua boca.
Ela respirou fundo de novo e começou a descer o
caminho que levava para a cidade.
Na verdade, não tinha nada de "provavelmente" no
que ela estaria fazendo. Lorde Rafael podia ter passado
os dois dias anteriores a ignorando por completo – desde
que Alana tinha secado as rosas – mas ele se importava
demais com passar a imagem certa. Enquanto os
convidados estivessem ali, ele não ignoraria Alana.
Alana passou pelas primeiras casas e continuou
andando, acompanhando o passo rápido das pessoas nas
ruas da cidade. Naquele horário, meio da tarde, não tinha
tanta gente nas ruas. A maioria dos humanos ali estava
trabalhando e, pelo que Alana tinha notado, era raro
alguém estar fora de casa sem motivo. Não era como no
Dez, onde as pessoas saíam de casa só para dar uma
volta na rua.
E Silvana tinha se lembrado que Alana não conhecia
bem a cidade. Na verdade, ela não conhecia quase nada.
Alana só tinha achado a casa da bruxa porque estava
seguindo a sensação do poder. Mas não tinha como se
perder quando as instruções eram para seguir a rua
principal, logo que entrasse na cidade, e continuar até
uma praça triangular.
A tal praça era o primeiro lugar onde Alana estava
vendo pessoas à toa, em grande parte por causa de uma
cafeteria com mesas espalhadas pela calçada e pela rua,
também. Ela se sentou em uma das mesas mais
afastadas e encarou o cardápio plastificado e preso na
mesa. Ela nunca tinha pensado que café podia ser
tomado de tantas formas diferentes e pelo visto estava
perdendo muita coisa.
Então ela ia experimentar um dos cafés que a
descrição mais parecia uma sobremesa. Alana sempre
podia dizer que era uma necessidade – se ela estava ali,
precisava pedir alguma coisa para não chamar atenção.
Mas a verdade era que estava curiosa.
Um rapaz usando uma blusa com o nome da
cafeteria se aproximou da mesa dela, devagar.
— Vai pedir alguma coisa? — Ele perguntou.
Alana resistiu à vontade de revirar os olhos. Se não
fosse pedir, não ia estar com o cardápio na mão.
— O café gelado com canela, baunilha e creme — ela
falou.
O rapaz assentiu depressa.
— Certo, eu vou...
— O de sempre para mim — Silvana interrompeu, se
aproximando.
O rapaz se virou para ela, arregalou os olhos e voltou
na direção da entrada da loja.
A bruxa balançou a cabeça e se sentou na frente de
Alana.
— Um amigo dele tentou pular o muro da minha
casa, uma vez — ela contou. — Depois disso todos eles
tomam cuidado perto de mim.
Alana riu e assentiu. Ela conseguia imaginar
possibilidades demais para o que a bruxa tinha feito, mas
não ia pedir detalhes. Era bem possível que Lorde Rafael
estivesse rastreando ela de novo e Alana ainda não tinha
certeza de como ele fazia aquilo. Se só sabia onde ela
estava ou se conseguia ouvir e ver alguma coisa do que
estava ao seu redor.
Silvana olhou ao redor devagar e suspirou, quase
como se estivesse só relaxando depois de horas de
trabalho ou algo assim.
E aquilo tudo era o que tinham combinado, antes.
Duas bruxas conversando não era algo incomum. Bruxas
sempre mantinham contato entre si, independente de
fronteiras de setores e regiões. Alana tinha aprendido
isso muito cedo, mesmo que tivesse perdido todos os
seus contatos depois de fugir. Mesmo que uma bruxa e
uma feiticeira estarem juntas fosse bem mais incomum,
não chegava a ser uma coisa impossível.
— Eu falei com o pessoal — Alana comentou,
fazendo questão de soar casual. — O meu jardim ainda
tem ora-pro-nóbis, se você ainda estiver precisando.
— E vão me deixar passar pela fronteira do Dez? — A
bruxa perguntou.
Alana riu.
— Vão. Eu já avisei que se você for, é porque eu falei
que podia. E é raro alguém além de mim mexer naquela
parte do jardim.
Tudo verdade, se Lorde Rafael tivesse alguma forma
de verificar – o que já era bem improvável.
— Então acho que vou aceitar a oferta — Silvana
falou.
Alana sorriu, sem nem tentar esconder sua
satisfação.
O mesmo rapaz voltou com dois copos grandes. Ele
colocou cada um na frente de uma delas e se afastou
depressa, sem falar nada.
Alana encarou o copo. Aquilo definitivamente parecia
mais uma sobremesa do que um café. E era gelado.
E ela não estava ali para ficar criticando nada – até
porque, pelo visto, tinha gente demais no Setor Um que
gostava daquilo.
Ela tomou um gole. Sobremesa, sim, com um
restinho de gosto de café lá no fundo e mais nada.
— E como estão os preparativos no castelo? —
Silvana perguntou.
Alana revirou os olhos.
— Sendo bem honesta? Não sei e não quero saber.
Isso é o tipo de estresse que não quero para mim.
Mentira. Ela queria e muito saber exatamente o que
estava acontecendo e como tudo estava sendo
preparado. Mas, depois de como ela tinha se recusado a
ir no baile primeiro, só para ter que ceder por causa do
contrato, se mostrasse algum interesse a mais ia parecer
estranho. Não que Alana achasse que alguém fosse
contar alguma coisa para ela se perguntasse, de
qualquer forma.
A outra bruxa deu uma risada e se moveu na
cadeira. Alana sentiu algo batendo na sua perna, por
baixo da mesa, e abaixou uma mão. Silvana lhe passou
uma sacola de pano e Alana a guardou na sua bolsa, o
tempo todo sem olhar para baixo. Era a mesma coisa que
tinha feito antes, no dia que tinha ido na casa da bruxa,
para deixar o tablet lá. Se Lorde Rafael estivesse
rastreando seus movimentos de novo ou até vendo ao
redor dela, ele não conseguiria ver o que ela não via.
Elas continuaram tomando o café-sobremesa sem
pressa nenhuma. Alana não precisava correr de volta
para o castelo e não ia recusar uma chance de ficar
longe da tensão de lá. E não parecia que Silvana estava
com pressa também.
As bebidas já estavam quase terminando quando a
outra bruxa deu um suspiro pesado.
— Posso te perguntar uma coisa? — Ela começou,
devagar.
Alana levantou as sobrancelhas e assentiu.
— Com o seu poder, você poderia ter destruído ele
faz muito tempo. Por que não faz nada?
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo tinha sido
arriscado. No limite do que podiam falar, sabendo do
risco de ela estar sendo monitorada, mas ainda assim
sem nada que pudesse incriminar uma delas.
E Alana conseguia responder sem se incriminar,
também, e sem nem precisar mentir.
— Primeiro, eu estava tentando não chamar atenção,
justamente por causa do meu poder — ela contou. —
Depois... Ele foi o único jeito que achei de garantir que o
Setor Dez ia estar a salvo. Temos um contrato.
Um contrato que Alana ia quebrar – mas aquela
parte ela não precisava mencionar.

Rafael olhou para os dados no seu tablet de novo, comparando


mentalmente os horários. Não havia como negar o que
Victor estava apontando. Era um padrão que um humano
dificilmente notaria, porque se estendia por anos e havia
sido bem disfarçado, mas era um padrão. E encaixava
perfeitamente com todas as datas e horários das falhas
de segurança no castelo – as que eles já estavam
investigando desde que Rafael havia voltado do Setor
Três.
Um humano. Um dos guardas que carregavam as
tatuagens de lealdade.
A primeira suspeita de Rafael – mesmo que fosse
genérica – havia sido correta, então.
E a pior parte era notar as mudanças de rotação nos
portões. As ordens de Rafael eram para sempre ter pelo
menos quatro guardas em cada portão. Era o suficiente
para uma primeira resposta e para disparar o alarme,
caso fossem atacados de alguma forma. E ele sempre
deixara claro que sua preferência era ter mais pessoal
nos portões, se possível. Mas humanos precisavam
descansar e Rafael respeitaria aquilo, porque ter guardas
humanos seria inútil se eles não estivessem em plena
forma e alertas.
Lucas, o humano com aquele padrão preocupante de
não estar onde deveria, havia recebido a tatuagem fazia
mais de trinta anos. Pouco tempo, para um vampiro. Mas
tempo o suficiente para subir na hierarquia dos guardas
e ter uma posição de autoridade. E ele havia usado
aquela autoridade para diminuir os guardas nos portões
em momentos específicos – os horários em que algo que
não deveria havia acontecido no castelo.
Era o suficiente. Rafael não precisava de mais para
ter certeza de que haviam encontrado pelo menos um
traidor.
Ele se levantou e saiu do seu escritório. Victor foi
atrás dele, sem dizer mais nada. O outro vampiro já sabia
o que aconteceria.
Rafael desceu as escadas e parou no saguão de
entrada. Ele não precisava de uma janela para saber que
o sol ainda estava alto no céu, mas fazia tempo demais
desde que aquilo deixara de ser um problema para ele. A
noite era mais confortável, sim, e seu poder era maior na
escuridão. Mas a luz do dia não era o suficiente para
impedi-lo de fazer o que precisava.
— Quero todas as entradas laterais fechadas — ele
avisou. — E pessoal de guarda nelas. Nosso pessoal.
Não os guardas humanos – porque a lealdade deles
sempre tinha um limite. Se fosse oferecido o preço certo,
todos eles poderiam ser comprados, como qualquer
humano. Não que aquilo quisesse dizer que a lealdade
dos vampiros era maior ou que eles nunca trairiam
alguém. Mas, quando um vampiro traía, ele tinha
motivos. Humanos, quando traíam, era por dinheiro. Por
uma ganância passageira, que não daria nenhum
resultado futuro.
Rafael olhou para o seu tablet de novo e ativou o
sinal que faria todos os seus guardas humanos – os que
haviam jurado lealdade à sua Corte – se reunirem no
gramado na entrada do castelo. Eles seriam testemunhas
e, se mais algum deles o estivesse traindo, teria um
ótimo motivo para repensar suas escolhas.
— Está feito — Victor falou.
Bom. Ninguém usaria uma punição como distração
para entrar no seu castelo.
E, depois do seu sinal, todos os portões da
propriedade estariam sendo lacrados, também, com os
guardas responsáveis por eles indo para o ponto de
encontro.
Rafael atravessou o saguão e saiu para o gramado.
Seus guardas humanos estavam terminando de se reunir,
parados não muito longe da entrada do castelo. Alguns
deles se viraram na direção do castelo e recuaram
quando viram que ele estava indo naquela direção, sob a
luz do sol, sem o menor sinal de que aquilo fosse um
problema. Rafael tinha se esquecido – fazia tempo desde
que os humanos o haviam visto daquele jeito.
Bom. Era mais uma coisa para qualquer um que o
estivesse traindo se lembrar. A luz do sol não os
protegeria.
Os guardas eram um grupo variado de pessoas,
porque Rafael nunca tinha se preocupado com gênero ou
aparência. A única coisa esperada deles era que
provassem sua lealdade e passassem pelos testes para
se tornar parte da guarda. A única coisa que todos
tinham em comum eram as tatuagens nos seus
pescoços, que os marcavam como humanos leais à Corte
da Noite.
Ou não tão leais assim.
Rafael olhou para o seu tablet de novo antes de
encarar o grupo de humanos mais uma vez.
— Lucas Ferreira — ele chamou.
Os humanos se moveram e os que estavam mais na
frente abriram caminho para quem ele estava
procurando sair.
Era um homem como vários outros ali. A pele clara
mas não branca de quem passava muito tempo no sol,
olhos e cabelo escuros, vestido com as roupas práticas
que seus guardas usavam. Não um uniforme, porque ele
não acreditava naquilo.
O homem avançou e parou a alguns passos de
distância de Rafael, abaixando a cabeça de uma forma
que era quase uma reverência.
— À sua disposição, senhor.
Rafael o encarou sem falar nada por alguns
segundos. O humano continuou com o olhar baixo –
porque humanos não olhavam nos olhos de um vampiro.
Aquilo era uma tentativa de se proteger que humanos
sempre haviam usado, mas que raramente valia de
alguma coisa.
— Faz quanto tempo que prestou o juramento de
lealdade, guarda? — Rafael perguntou.
— Trinta e quatro anos, senhor.
O que queria dizer que ele era jovem, na época, mas
aquilo não era diferente da maioria dos guardas ali.
Quase todos haviam prestado seus juramentos quando
não tinham muito mais que vinte anos.
— E já era um traidor quando prestou o juramento?
Ou isso veio depois?
O humano se endireitou e encarou Rafael, sem falar
nada.
Os guardas, reunidos mais para trás, começaram a
falar entre si em voz baixa. Mas eles não importavam –
ainda.
A habilidade de Rafael não funcionava no sangue
humano – sua teoria era de que eles não tinham magia o
suficiente no sangue para aquilo. Mas ele não precisava
da sua habilidade para lidar com um deles.
Ele segurou o alto do braço do homem na sua frente.
Mesmo que ele se debatesse, não conseguiria se soltar.
Mas o humano estava parado no lugar, sem mostrar
nenhuma indicação de que imaginava o que estava por
vir.
Séculos atrás, no começo da sua primeira Corte,
Rafael teria visto aquilo como um motivo para se
questionar se realmente tinha as informações corretas.
Os anos haviam lhe mostrado que a falta de reação não
queria dizer nada. E, na maioria das vezes, era apenas
um sinal de alguém que havia se preparado bem para
cumprir seu papel.
Suas garras surgiram e ele fez dois cortes longos no
pescoço do humano – longos, mas superficiais, e
depressa o suficiente para o homem não ter tempo de
nenhuma reação, como se afastar. E os cortes, mesmo
que superficiais, eram o suficiente para Rafael arrancar a
maior parte da pele tatuada.
O humano gritou.
Ótimo. Ele queria gritos, sim. E aquilo era apenas o
começo.
Rafael soltou o homem, que caiu de joelhos na sua
frente e colocou uma mão no pescoço. O humano gritou
de novo e afastou a mão. O cheiro de sangue deveria ser
um convite para Rafael, mas ele estava furioso demais
para pensar em algo tão trivial quanto se alimentar – e
não usaria o sangue de um traidor, de qualquer forma.
Um traidor que havia envenenado os reservatórios
de sangue. Que, apesar daquela tatuagem, estava
disposto a destruir a maior parte dos vampiros ali,
porque seria aquilo que aconteceria se bebessem o
sangue contaminado.
— Com quem você estava trabalhando? — Rafael
perguntou.
O homem fez um som baixo e patético, quase um
gemido, mas não respondeu. Ao invés disso, ele começou
a cair para o lado.
Não. Ele não ia perder a consciência.
Rafael não era um dos vampiros com o poder
específico de controlar mentes humanas, mas ele tinha
força bruta o suficiente para manter o humano
consciente, e era exatamente aquilo que faria. Não
importava o choque, a dor ou a perda de sangue. Ele não
escaparia enquanto Rafael não quisesse.
Ele soltou o pedaço de pele que ainda estava
segurando, com as linhas escuras da tatuagem. O
humano encarou a sua pele caindo e engoliu em seco. O
movimento foi o suficiente para ele sangrar mais e para
mais um gemido escapar.
— Com quem você estava trabalhando? — Rafael
repetiu.
O humano continuou encarando a pele no chão.
Que assim fosse, então. Aquele com certeza não era
o único – porque traidores nunca estavam sozinhos. Se
ele não lhe daria respostas, então seria um exemplo.
Rafael se virou para os humanos reunidos, de novo,
e apontou para um grupo deles.
— Vocês — ele falou. — Levantem um dos postes.
Os humanos que ele havia indicado se afastaram
depressa, quase correndo na direção do muro. Os outros
continuaram no mesmo lugar, tão silenciosos que quase
parecia que não estavam nem mesmo respirando. O
único som eram os gemidos de dor do traidor, ajoelhado
no chão na sua frente.
Ajoelhado, sim, mas não respondendo às suas
perguntas. O que queria dizer que o humano era leal,
mas não a Rafael e à sua Corte, como havia jurado.
Rafael olhou para o grupo de humanos de novo. Seus
guardas. Os que protegiam seu castelo e sua Corte no
horário em que os vampiros estavam mais vulneráveis –
e que justamente por causa daquilo precisavam ser de
confiança. Ele havia relaxado. Era óbvio que, mais cedo
ou mais tarde, alguém conseguiria colocar um traidor
entre aqueles humanos.
— Um de vocês escolheu trair seu juramento — ele
começou. — Um de vocês abusou da minha confiança
para tentar destruir meus vampiros. E sei que ele não
está trabalhando sozinho. Se escondam de mim e,
quando os encontrar, suas mortes serão lentas e
dolorosas, como cabe a traidores. Admitam a verdade e
terão a uma chance de sobreviver.
Aquilo era o máximo que ele estava disposto a
oferecer: uma chance, não uma garantia de que
viveriam.
Ninguém falou nada nem se moveu. Não que ele
tivesse alguma ilusão de que iriam.
E o humano ajoelhado continuava encarando o
pedaço de pele no chão e gemendo de dor.
Rafael segurou o queixo do homem com força o
suficiente para suas garras o cortarem. Ele levantou a
cabeça e o encarou.
— Quem se envolve nas tramas dos vampiros é
destruído como um — Rafael falou.
SETE

Alana parou pouco antes do portão e encarou o poste sendo


levantado. Se é que aquilo podia ser chamado de poste:
um tubo de metal maciço, pelo que ela tinha visto nos
relatórios do que tinha acontecido nos setores Oito e
Cinco, com uns vinte centímetros de diâmetro e a ponta
afiada.
Os outros dois postes tinham sido abaixados alguns
dias antes, quando os corpos dos vampiros neles tinha
terminado de se tornar cinzas. Alana quase havia se
acostumado a olhar para fora e não ver aquilo lá.
E agora estavam levantando mais um poste.
Não era uma surpresa. Não tinha como ser, depois
dos relatórios e depois de ter chegado no Um semanas
antes e ter ouvido os gritos dos vampiros empalados.
Mas Alana não tinha imaginado que ia ver alguém sendo
punido daquele jeito.
Mas a parte importante era outra: para quem ia ser
aquele poste.
O portão não se abriu quando ela se aproximou e
Alana não viu ninguém na guarita. Aquilo definitivamente
não era normal, mas ela não precisava que alguém
abrisse o portão. As trepadeiras ainda estavam ali.
Uma das trepadeiras se enrolou no portão e puxou. O
som do metal fez um arrepio atravessar Alana, mas o
que importava era que ele estava se abrindo.
Ela entrou depressa assim que o espaço era o
suficiente e fez a trepadeira puxar o portão de novo, até
o fechar.
Quando ela se virou, um grupo de guardas estava
parado a alguns metros de distância, a encarando.
Provavelmente tinham corrido assim que ouviram o
barulho do portão sendo forçado, mas já era tarde
demais.
Ela os encarou por um instante, levantando as
sobrancelhas. Ninguém falou nada.
Ótimo, porque Alana não estava com a menor
paciência para discutir com guardas.
Ela passou por eles depressa, indo na direção de
onde o pedaço de metal estava terminando de ser
colocado de pé. Era óbvio que ia demorar, porque aquilo
era pesado e precisava ser bem fixado na plataforma que
servia de suporte para os postes. E Alana preferia mil
vezes nunca nem ter visto aquilo ou entendido o motivo
da plataforma.
Um grupo relativamente grande de humanos estava
reunido ali, todos com os pescoços tatuados. Os guardas
humanos de Lorde Rafael. Então aquele era o motivo
para não ter ninguém no portão: estavam todos ali. Os
que estavam um pouco para trás dela realmente só
tinham ido para lá por causa do barulho.
Um arrepio atravessou Alana. Lorde Rafael estava
parado um pouco para a frente do grupo de humanos,
com mais alguém ao seu lado. E o sol estava alto no céu.
Não eram nem quatro horas da tarde e ele estava ali,
como se o sol não fizesse a menor diferença, e isso
sendo que ele não estava nem usando seu sobretudo de
sempre.
Alana engoliu em seco. Era a primeira vez que ela
via Lorde Rafael sem um daqueles sobretudos. Ele ainda
estava usando um colete, parecido com coisas que ela já
tinha visto ele usar vezes demais, mas ter um vampiro
parado no sol do meio da tarde, sem nenhum tipo de
proteção, com os braços definidos e brancos demais sem
nenhum sinal de que nem estavam começando a
queimar...
A resistência ao sol não estava necessariamente
ligada ao poder. Alana sabia daquilo. Poder e idade
influenciavam, mas não era tudo. Mesmo assim, tinha
algo de preocupante em ver como Lorde Rafael parecia
completamente à vontade ali.
E a pessoa ao lado de Lorde Rafael...
Alana parou, sem ter certeza do que estava vendo. O
homem estava ajoelhado no chão, o que queria dizer que
estava vivo. Mas seu pescoço era só sangue.
Ela engoliu em seco. Não. Não era só sangue. E ela
quase preferia ter continuado pensando aquilo do que
entender o que era a parte amarelada que ela estava
vendo.
A pele do pescoço do guarda tinha sido arrancada. A
tatuagem. Agora ele estava ajoelhado ali, com o pescoço
em carne viva...
O poste de metal estava no lugar e os outros
humanos estavam se afastando depressa, voltando para
o grupo maior de pessoas sem ninguém nem olhar na
direção do homem ajoelhado.
Não era difícil entender para quem o poste era.
Alana voltou a andar, mais depressa ainda. Para
todos os efeitos, ela era a esposa de Lorde Rafael. Ele
queria ela ao seu lado no baile, o que queria dizer que
ele não podia simplesmente ignorá-la, porque aquilo ia
passar uma mensagem que ia contra a ilusão que ele
queria manter.
— O que está acontecendo aqui? — Ela perguntou,
alto o suficiente para os guardas ouvirem.
Alguns dos humanos olharam na direção dela. A
maioria continuou olhando fixamente para a frente.
Outro arrepio atravessou Alana. Eles estavam com
medo da reação de Lorde Rafael – o que queria dizer que
provavelmente tinham recebido ordens para encarar o
poste.
Ela não conseguia imaginar o que se passava pela
cabeça de alguém que prestava um juramento de
lealdade para uma pessoa capaz de fazer aquilo. Se
sentiam tanto medo assim, por quê? Não fazia sentido.
Lorde Rafael se virou para ela com a mesma
expressão que ela tinha visto dias antes, quando ele
tinha lhe ameaçado. Era o mesmo olhar gelado que fazia
ela ter certeza de que a ameaça não tinha sido um blefe.
— Nada demais — ele falou. — Apenas lidando com
um traidor.
Um traidor humano. Que seria empalado, como
Lorde Rafael tinha mandado fazer com os vampiros do
Setor Oito e do Setor Cinco. Como tinha feito com os dois
vampiros que estavam nos postes ali, antes.
Alana continuou andando na direção deles.
— E precisa mesmo de tudo isso? Ele é só humano.
Pensei que você fosse guardar esse tipo de coisa para os
vampiros.
Porque um humano morreria depressa demais,
comparado com um vampiro.
E ainda bem que morreria depressa, porque queria
dizer que Alana não ia passar dias ouvindo os gritos dele,
como tinha acontecido com os vampiros.
Lorde Rafael sorriu e indicou o humano ajoelhado.
— Ele escolheu se envolver na política dos vampiros
— ele falou. — E escolheu trair seu juramento.
Então seria punido como um vampiro. Não era difícil
entender a lógica do que ele estava falando. E, mesmo
assim...
Alana olhou para o homem ajoelhado de novo. Ela
não queria pensar em como Lorde Rafael tinha arrancado
a pele do pescoço dele daquele jeito. O nível de controle
para fazer aquilo sem matar o homem...
E ela reconhecia o homem. Era o mesmo guarda que
estava na guarita quando ela tinha ido para a cidade. O
mesmo que tinha aberto o portão para ela sem
questionar – sendo que da outra vez ela tinha precisado
de ameaças para sair sem uma escolta.
— Ele não precisa ser morto só porque me deixou
sair — Alana falou, baixo o suficiente para mais ninguém
ouvir.
Lorde Rafael deu uma risada seca.
— E você acha que esse é o motivo? Não.
Menos mal, pelo menos. Mas não queria dizer que
ele merecia ser empalado.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Não é você quem diz que a mente humana é frágil
demais? — Ela insistiu. — Que é fácil conseguir qualquer
coisa que quiser e tudo mais? E agora vai agir como se
um humano merecesse ser punido do mesmo jeito que
um vampiro?
Lorde Rafael a encarou, sem falar nada.
Ela reconhecia aquele olhar.
Alana fechou os punhos devagar, sentindo seu poder
junto com o movimento. Se ele tentasse fazer alguma
coisa...
Lorde Rafael se virou para o grupo de humanos
reunidos – os guardas. Os que tinham jurado lealdade
para ele e para a Corte e que Alana tinha imaginado que
seriam tratados melhor que os outros humanos, por
causa daquilo. Ela tinha sido ingênua, de novo.
— Vocês têm dez minutos para dizer qualquer coisa
que precisem para seu companheiro — ele avisou. —
Depois desse tempo, espero ver o corpo dele no alto do
poste. Vocês sabem o que fazer.
O humano não ia só morrer lentamente. As pessoas
que tinham treinado e passado anos ao lado dele seriam
as responsáveis por garantir que ele morreria.
Não. Aquilo estava passando dos limites.
A grama sob seus pés vibrou com o poder.
Lorde Rafael se virou de uma vez e no instante
seguinte Alana não estava mais no gramado.

Rafael colocou Alana no chão, no seu escritório. Ela não se


afastou imediatamente e ele conteve a vontade de sorrir.
A bruxa pensava que sabia com o que estava lidando,
mas ele havia sido cuidadoso demais com ela, aquele
tempo todo. Aquilo tinha acabado. Se ela queria fazer
seus planos na cidade e depois o questionar
publicamente e desafiar sua autoridade na frente dos
guardas, então ela seria tratada como suas ações
pediam.
Alana engoliu em seco e deu um passo atrás. Rafael
a soltou.
Ela olhou na direção da janela, parecendo confusa
por um instante antes de o encarar de novo. A
velocidade que ele usara era o bastante para garantir
que Alana não teria visto o movimento e era o motivo
para sua desorientação.
— Você não tem esse direito — ela falou.
A bruxa estava furiosa. Rafael conseguia sentir a
tensão no ar que sabia que era um sinal do poder dela –
e, se ele estava sentindo aquilo, queria dizer que era
poder demais.
Ele queria poder apenas sentir aquilo e tentar
entender mais um lado da sua bruxa. Mas não podia. Os
reservatórios de sangue envenenado eram um lembrete
mais do que o suficiente de que Alana não podia
importar.
— E você não tem o direito de questionar minha
autoridade — Rafael avisou. — Especialmente em
público.
Porque ele não se importaria com nada que ela
dissesse onde mais ninguém podia ouvir. Mas não podia
ser dar ao luxo de permitir que sua esposa questionasse
suas decisões na frente daqueles que estavam sendo
punidos.
Alana deu um sorriso gelado que era parecido
demais com o que Rafael havia visto no Setor Três.
— Eu vou questionar, sim, sempre que eu ver
alguma coisa que não faz sentido, não importa quando
ou onde — ela respondeu. — Se queria uma boneca que
não falaria nada, deveria ter acrescentado no contrato. E
o que você fez ali foi usar força excessiva. Você está
quebrando as pessoas que mais deveria proteger, os
poucos que são estúpidos o suficiente para jurarem
lealdade a você.
Rafael foi na direção da janela do seu escritório. Dali
ele conseguiria ver quando o humano fosse colocado no
alto do poste – porque ele não tinha a menor dúvida de
que os outros cumpririam suas ordens. Aquele era o erro
de Alana: eles podiam ter jurado lealdade a ele, sim. E,
enquanto cumprissem aquele juramento, sempre seriam
protegidos. Mas, a partir do momento em que Rafael não
podia mais contar com a lealdade ou a obediência deles,
eles se tornavam descartáveis.
— Não estou "quebrando" os humanos — ele falou.
— Estou lhes dando um lembrete do que acontece
quando um deles ignora seu juramento.
E continuaria fazendo aquilo, porque traidores
precisavam ser punidos da forma mais dura possível.
Nenhum dos humanos se esqueceria daquilo.
Rafael ouviu um grito – provavelmente os humanos
matando o traidor antes de o colocarem no poste. Ele
havia imaginado aquela possibilidade, mas tirar Alana de
lá era mais importante do que garantir que o traidor
estaria vivo quando fosse empalado. O efeito final seria o
mesmo. Os guardas se lembrariam. E não veriam aquela
discussão.
Alana deu uma risada seca.
— Força excessiva — ela repetiu. — O que quer que
ele tenha feito, nada justifica uma punição como essa,
porque não foi só uma execução. Não foi só "ter um
exemplo". Você foi muito além e sabe disso.
Ah, mas o crime justificava a punição, sim.
Rafael parou na frente da bruxa – de novo se
movendo tão depressa que ela não teria visto o
movimento em si. Ela sustentou seu olhar, sem recuar e
sem nenhum sinal de surpresa, ainda com a tensão que
era o poder dela no ar ao seu redor.
— Você não tem ideia do que está acontecendo aqui
— ele falou. — Então não tente julgar se uma punição é
apropriada ou não, ou pode acabar fazendo companhia
para os punidos.
Ela levantou a cabeça, ainda com o olhar como aço.
Não havia nada ali da bruxa da natureza que ele
conhecera da outra vez que Alana havia estado no Setor
Um. Aquela Alana hesitante, contida, até, havia sido
apenas uma máscara.
— E por que será que não faço ideia do que está
acontecendo? Mas não, não acho que vou fazer
companhia para os punidos. Como falei, se quisesse uma
marionete, deveria ter deixado isso claro no contrato.
Rafael sentiu suas garras surgindo quase contra sua
vontade. Ela não estava apenas questionando sua
autoridade. Ela o estava desafiando. E sabia daquilo.
Alana virou as costas para ele e foi na direção da
porta.
O baile seria na noite seguinte. Os príncipes de fora
da região começariam a chegar em poucas horas. E
Rafael não podia ser dar ao luxo de falhar – o que queria
dizer que a bruxa havia acabado de se tornar um risco.
O ar ainda estava carregado com a tensão do poder
dela – poder o suficiente para que sua habilidade fosse
útil contra Alana.
Rafael fechou uma mão. Ele não precisava daquilo,
normalmente, mas às vezes era bom ter uma âncora
física para controlar seu poder. E ele estava furioso o
suficiente para não confiar no seu controle.
Alana parou no lugar, de uma forma rígida que não
era nada parecida com como ela se movia. E manter ela
presa não era tão simples quanto Rafael havia imaginado
que seria. O poder da bruxa era mais que o suficiente
para sua habilidade funcionar, sim, mas ao mesmo
tempo existia uma proteção ali, como os escudos ao
redor da mente dela.
Não importava.
Ele fez Alana se virar, devagar, tomando cuidado
para garantir que ela ainda conseguiria se mover o
suficiente para respirar e mais nada. A última coisa que
ele queria era matá-la, afinal.
— Meus convidados começarão a chegar em
algumas horas — ele falou. — Você vai agir como minha
esposa. E isso quer dizer que não vai questionar minhas
decisões em público, não importa o que pense delas. Do
contrário...
O vidro da janela se quebrou. Rafael se virou em
tempo de ver as trepadeiras entrando no seu escritório e
indo na sua direção.
Não eram trepadeiras. Eram galhos de roseira, mas
mais compridos e maleáveis do que o natural para as
suas roseiras. E se enrolando ao seu redor, com os
espinhos se enfiando na sua pele.
Rafael não sentia dor. Aquilo tinha desaparecido
séculos antes, tempo o suficiente para ele até mesmo se
esquecer de como era a sensação. Mas aquilo não queria
dizer que ele não estivesse sentindo cada espinho que o
cortava e como os galhos de roseira estavam se
enrolando e apertando.
E ele se lembrava muito bem de chegar no Setor
Três, pensando em proteger Alana, apenas para
encontrar os vampiros que a atacaram presos, enrolados
pelo que deveria ser capim seco, mas que nas mãos dela
se tornara uma arma letal.
O cheiro do sangue se espalhou. O sangue dele,
escorrendo de mais ferimentos que Rafael conseguia
contar, enquanto os espinhos se enfiavam mais fundo no
seu corpo.
Alana o encarou. Ela ainda estava presa no lugar,
sem conseguir se mover – mas ainda tinha controle o
suficiente sobre o corpo para sorrir, mesmo que não
conseguisse falar.
Ele entendia o recado.
Rafael a soltou. A bruxa se endireitou e passou uma
mão pelo próprio braço, como se estivesse limpando algo
ali – mesmo que seu poder não deixasse nenhum sinal.
— Você pode controlar meu sangue — Alana falou. —
Mas nunca vai controlar meu poder.
E, caso se enfrentassem de verdade, seria uma
corrida: ele tentando quebrar as defesas de Alana o
suficiente para fazer mais que apenas prendê-la no lugar,
enquanto ela destruía o corpo dele.
Ela foi na direção da porta, de novo, e Rafael não a
parou.
Os galhos de roseira relaxaram, o soltando e
desaparecendo pela janela um instante depois.
Rafael se virou para a janela quebrada. O cheiro do
seu sangue ainda estava se espalhando e ele ainda
conseguia sentir os vestígios da fúria e do poder de
Alana.
Aquilo deveria alimentar a sua fúria. Ela havia mais
do que provado que era um risco. Ao invés disso, ele
estava sentindo a pressão nas suas presas, não como um
sinal de que ele precisava se alimentar. Ele queria o
sangue de Alana, também. Ele queria a fúria dela.
Rafael não conseguia se lembrar da última vez em
que alguém o havia desafiado como Alana. Nem da
última vez em que alguém que sabia do que ele era
capaz o encarara sem nenhum sinal de medo.
Ele levantou um braço e encarou os vários cortes
fundos onde os espinhos haviam se enfiado. Eles
estavam começando a se fechar, mas ainda assim...
Alana era um risco. Mas era um risco que ele queria
para si.
OITO

Alana olhou para o seu reflexo no espelho. O vestido que ela


estava usando era o tipo de coisa que não passaria nem
perto do seu guarda-roupas, normalmente, mas que Mel
tinha insistido que era uma necessidade – porque mais
cedo ou mais tarde ela teria que estar em algum lugar
como a esposa de Lorde Rafael, por mais improvável que
aquilo fosse. E Alana se lembrava dos bailes dos
vampiros, antes de precisar fugir. Aparência importava
até demais. Então ela tinha deixado a outra mulher
escolher alguns vestidos e acessórios, sim, porque Mel
entendia muito mais daquele tipo de coisa do que ela.
E o vestido que ela estava usando...
Ele era preto, óbvio. E a parte superior era mais
renda que qualquer outra coisa, cobrindo seus seios e
subindo para as pontas dos seus ombros em um V. Logo
abaixo disso eram duas faixas de um tecido leve, caindo
de um jeito que quase completavam a forma de um X,
junto com a renda. E a saia era só o tecido extra das
faixas, se abrindo dos lados, junto com mais duas peças
de tecido, uma na frente e outra atrás, deixando fendas
enormes para suas pernas. O vestido todo tinha uma
base feita de um tecido que era quase da cor exata da
pele de Alana – e que ela e Mel tinham demorado dias
para encontrar, quando ela ainda estava no Setor Dez –
com mais detalhes de renda sobre ela. E braceletes feitos
de renda, também, mas Alana não usaria aquilo. Ou
melhor, não usaria os dois braceletes. Seu braço direito
não teria nada de acessórios, porque ela fazia questão de
deixar sua tatuagem bem visível.
O vestido ia até o chão e era formal o suficiente para
encaixar em um baile dos vampiros, não importava qual
a estética mais usada pela Corte onde estivesse. Alana
tinha completado tudo com um salto que ela não teria o
menor problema em tirar depressa se precisasse correr,
uma gargantilha com correntes de prata finas e mais
algumas correntes discretas por cima do vestido.
Não parecia ser ela no reflexo. A mulher ali era
alguém que seria lembrada e que definitivamente não
passaria despercebida. Alguém que entraria em um baile
dos vampiros e estaria no controle.
Fazia anos que Alana não via aquele lado de si
mesma.
Ela sorriu. Lorde Rafael queria uma esposa que fosse
um enfeite. Que encaixasse com sua ideia de ser o rei
dos vampiros. Então ele teria – e ele que se virasse para
lidar com aquilo, depois.
Um arrepio atravessou Alana e ela passou as mãos
pelos braços, de novo. Um dia depois, e ela ainda
conseguia sentir o poder de Lorde Rafael se fechando ao
seu redor. Se bem que "ao seu redor" era a expressão
errada. Aquilo tinha sido a parte mais assustadora: sentir
seu corpo travando, não porque estava sendo presa. Não
era algo vindo de fora. Era só como se ela não estivesse
mais no controle.
Alana nunca tinha sentido tanto medo antes. Ela
tinha visto os relatórios sobre o que havia acontecido no
Setor Três e visto as gravações. E sentir seu corpo
parando daquele jeito tinha sido muito pior do que ver o
sangue saindo dos corpos dos vampiros e subindo no ar.
Mas aquilo também tinha servido para Alana saber
que, mesmo se Lorde Rafael usasse aquele poder contra
ela, ela não estaria indefesa. Ela sempre teria uma forma
de atacá-lo de volta.
O que queria dizer que ele tinha perdido sua maior
vantagem – a surpresa. Agora ela estaria preparada para
o que quer que ele fizesse.
Ela atravessou o quarto e puxou o saquinho de pano
que tinha colocado na janela. No sol, para garantir que
nenhum vampiro prestaria atenção naquilo. Não era a
mesma bolsa de pano que Silvana havia lhe entregado,
na cidade. Alana já tinha jogado aquilo fora, junto com a
maior parte das flores e folhas desidratadas. A única
coisa que ela tinha guardado era o que estava naquele
saquinho e que ela daria um jeito de usar naquela noite.
De acordo com a outra bruxa, aquela combinação de
plantas ia ter um efeito calmante e levemente
alucinógeno nos vampiros e era uma coisa que eles
mesmos usavam, às vezes. Era exatamente o que Alana
precisava – porque com o seu poder, aquilo ali não teria
nenhum efeito leve.
Ela guardou o pacote de ervas no bolso que havia
improvisado, entre as faixas de tecido que faziam sua
saia, e se virou para o espelho de novo. Nenhum volume
ou sinal de que tinha alguma coisa que não deveria estar
ali. Perfeito.
Para completar, Silvana tinha entrado em contato
ainda de manhã, dizendo que estava no Setor Dez,
renovando estoque no jardim de Alana. Dani tinha
confirmado que a outra bruxa estava lá e que poderia
continuar lá enquanto fosse necessário. Lorde Rafael não
teria como ir atrás da bruxa depois do baile, a menos que
quisesse começar um conflito com o Setor Dez.
E Dani também tinha avisado que ela e Amon seriam
representantes do Dez no baile.
O que queria dizer que Alana não estaria
completamente sozinha, porque eles poderiam ajudar.
Como, ela ainda não tinha certeza. No mínimo, ter Amon
ali seria uma distração maravilhosa, porque ela era capaz
de apostar que os vampiros estariam concentrados
demais nele. Mesmo que Alana fosse ser uma novidade,
quase uma curiosidade, ela teria um pouco mais de
espaço para se mover por causa dele.
Alguém bateu na porta do quarto.
Alana respirou fundo e colocou uma mão na saia, por
cima de onde o pacote de ervas estava escondido, antes
de se endireitar.
Ela tinha sido treinada para fazer exatamente aquilo.
Mesmo se não tivesse se casado com Lorde Rafael, estar
ao lado do seu príncipe em funções oficiais seria o
esperado de uma feiticeira, também. Alana sabia o que
precisava fazer. Ela sabia como agir e como manipular o
que podia acontecer ali a seu favor.
Alana foi na direção da porta e a abriu.
Lorde Rafael a encarou, sem falar nada.
Ele estava vestido como sempre: colete preto, calça
de couro, uma coleção de corretes e um sobretudo que
também parecia ser couro por cima. A principal diferença
era que a parte de dentro do sobretudo era vermelha,
sendo que na maior parte do tempo era tudo preto. Mas
tinha uma diferença sutil ali, alguma coisa que fazia
aquela roupa parecer mais que só o casual de Rafael e
Alana não sabia dizer o que era.
Não era justo. E Alana sabia muito bem que era
estúpido que aquilo fosse a primeira coisa na sua cabeça,
mas ela não conseguia evitar pensar que queria ter tido
a mesma sorte que Dani e Lara. Elas tinham arrumado
vampiros que estavam dispostos a tudo para protegê-las.
Até Yuri tinha encontrado uma vampira disposta a voltar
a ser humana para ficar com ele. Mas não. Alana tinha
que lidar com o vampiro megalomaníaco que queria
controlar o mundo.
E que, quando ele se vestia para a Corte, era o
suficiente para Alana não conseguir ignorar como ele
era... Não. Bonito não era a palavra certa, porque
"bonito" era uma coisa contida demais.
Ou talvez fosse a palavra certa, sim, se Alana
pensasse que ele era como uma arma bem feita,
aprimorada com os anos. Porque ela tinha certeza que a
aparência de Lorde Rafael era uma arma que ele não
tinha o menor problema em usar.
E ele ainda estava olhando para ela sem falar nada.
— Quando me avisaram que eu seria escoltada para
o salão, estava esperando um dos seus vampiros — ela
comentou.
Lorde Rafael sorriu.
Um arrepio atravessou Alana. Definitivamente não
era justo.
— Sua indisposição noite passada foi uma
justificativa conveniente para eu não receber meus
convidados, também — ele contou.
Porque era óbvio que ela não ia nem tentar lidar com
vampiros de fora – ou com Lorde Rafael – depois daquela
cena no escritório dele. Então, quando ele tinha
mandado o aviso de que era para ela se preparar para
receber os primeiros vampiros que estavam chegando,
Alana havia falado que estava indisposta. Ela tinha
imaginado que ganharia algum tempo, no máximo, mas
ninguém tinha voltado insistindo para ela aparecer.
Agora fazia sentido. Lorde Rafael tinha usado aquilo.
— Os que podem te reconhecer ainda não fazem
ideia de quem você é — ela murmurou.
Lorde Rafael assentiu, devagar.
— Nenhum dos vampiros de fora da região me viu. E,
quando me reconhecerem, faço questão de que vejam a
minha esposa, também.
O que queria dizer que Alana estaria ligada a Lorde
Rafael para sempre, na cabeça daqueles vampiros.
Não fazia diferença. Ela não ia se importar com
aquilo, porque Lorde Rafael não seria uma ameaça por
muito tempo. Ela faria questão de garantir aquilo.
— Então vamos dar essa primeira impressão
inesquecível logo — Alana falou.
Lorde Rafael deu um sorriso lento e estendeu a mão
direita na direção dela.
Alana respirou fundo e colocou a mão esquerda
sobre a dele.

Rafael parou no alto da escadaria, olhando para os vampiros mais


abaixo. Era quase como se nada houvesse mudado.
Quando ele dera as ordens para a construção
daquele castelo, não estava tentando fazer uma réplica
do passado. Pelo contrário: Rafael havia tomado cuidado
para se distanciar dos detalhes que sempre haviam sido
característicos das suas propriedades. Não serviria de
nada se começassem a suspeitar de quem ele era antes
que estivesse pronto. Ainda assim, a atmosfera era
exatamente a mesma.
Ou talvez aquilo fosse culpa de como um baile com a
formalidade que ele havia indicado nos convites exigia as
tochas de fogo prateado, mesmo que a maior parte da
iluminação fosse feita pelas luzes elétricas. O fogo
prateado era tão antigo que nem mesmo ele sabia sua
origem, apenas as histórias. E Rafael nunca acreditara
em nada sobre um poder maior responsável pela criação
dos vampiros, que pedia para ser honrado daquela
forma. Não. O que quer que houvesse acontecido para
que o primeiro dos vampiros surgisse, tinha sido algo
mais próximo – mais humano – do que a maioria das
pessoas pensava.
Mas o que realmente não havia mudado eram os
vampiros reunidos. Alguns rostos podiam ser novos –
tanto por serem vampiros mais jovens quanto por serem
vampiros que nunca estariam na sua Corte, no passado.
Eles estavam reunidos em grupos pequenos pelo salão,
conversando entre si, e a maioria dos vampiros havia
deixado as marcas nos seus braços visíveis. Aquilo não
era por sua causa. Ninguém usaria as marcas como uma
mostra visível de poder para tentar intimidar alguém que
pensavam que era inferior – e quase nenhum dos
vampiros ali sabia quem ele era.
Rafael olhou na direção da porta principal. Nada de
diferente, ali. Mas ele reconhecia o casal parado perto da
porta que dava para a sacada. Aquilo explicava as
marcas de poder visíveis.
— Sua prima está aqui — ele murmurou.
Alana, ainda com uma mão na sua, não deu o menor
sinal de surpresa. Ela já sabia que o Setor Dez mandaria
Amon e Daniele como representantes, então. Não que
Rafael houvesse esperado outra coisa. Eles nunca
correriam o risco de enviar Raquel. E a própria bruxa não
era mais tão impulsiva quanto quando ele a conhecera.
Ela não insistiria em estar ali.
Muitos dos vampiros ali reconheceriam Amon. Alguns
até mesmo haviam sido parte da armadilha que o
prendera, na volta da magia. Eles teriam motivos para
estar preocupados.
— Você vai mesmo ficar parado aqui só olhando o
que estão fazendo? — Alana resmungou.
Rafael sorriu. Talvez aquilo até parecesse estranho
para uma humana, mesmo que aquela bruxa humana
soubesse demais sobre os vampiros.
— Mais alguns minutos, sim — ele falou.
Ela suspirou e se afastou dele.
Rafael soltou a mão de Alana e se forçou a continuar
olhando para o salão mais abaixo. Ele queria ouvir um
pouco do que estavam falando e ter uma ideia melhor do
que esperar – não que imaginasse que teria alguma
surpresa. E, mesmo que não precisasse estar olhando
para os vampiros para ouvir o que estava sendo falado,
ele não queria olhar para Alana.
O tempo todo, ele se lembrava que ela havia sido
treinada desde criança para ser uma feiticeira. Por mais
que houvesse subestimado Alana de várias formas,
Rafael não se esquecera daquilo. Não tinha como
esquecer, depois de ter negociado um contrato com ela.
Mas, depois de tanto tempo vendo Alana vestindo seus
saiões e regatas coloridos – até mesmo quando fora atrás
dela no Setor Três – ele não estava preparado para o que
encontrara ao abrir a porta do quarto dela.
Alana estava vestida como uma feiticeira. Não. Mais
que aquilo: estava vestida como uma consorte – porque
feiticeiras sempre chamavam atenção, sim, mas não
exigiam a atenção de todos ao seu redor. E Alana, com
aquele vestido de renda, as correntes delicadas ao redor
do seu pescoço e a tatuagem no seu braço perfeitamente
visível exigia a atenção de qualquer um que estivesse
por perto.
E ela exigia a sua atenção, também – não que
tivesse perdido aquilo, em algum momento. Mas, antes,
não tinha sido tão difícil se lembrar que Alana era uma
ameaça em potencial. E antes ela não havia feito com
que ele se lembrasse de uma época, muito tempo no
passado, em que Rafael quisera ter uma rainha ao seu
lado.
Então ele evitaria olhar para ela, porque Alana fazia
Rafael imaginar possibilidades impossíveis.
— Você acha mesmo que vai ouvir alguma coisa útil
parado aqui? — Ela perguntou.
Rafael conteve a vontade de sorrir. As reclamações
eram o único sinal que ele tinha de que Alana não estava
tão confortável quanto parecia. Ele a conhecia. Aquele
não era o tom que ela usava para uma pergunta genuína.
Era apenas uma forma de se distrair.
E talvez fosse estupidez da sua parte, mas Rafael
daria a distração que Alana precisava.
— Útil, sim, mas não no sentido que está pensando
— ele falou. — É bom saber o que estão pensando, para
já estar pronto para usar isto ao meu favor.
Alana o encarou e levantou uma sobrancelha.
Por algum motivo, Rafael imaginara que ela teria
medo depois do que tinha acontecido no dia anterior, no
seu escritório. Mas não havia nenhum sinal de medo na
sua expressão ou no seu olhar. A única coisa ali era
aquele aço que estava se tornando familiar demais.
— Estão falando sobre o insulto que é serem
convocados para fora das suas regiões, apenas para não
serem nem mesmo servidos de sangue — Rafael contou.
— Que qualquer vampiro de respeito fazendo algo assim
teria providenciado humanos para seus convidados.
— E teria sido mais simples mandar humanos
estarem aqui do que cobrar o preço de sangue de uma
vez — Alana falou.
Rafael inclinou a cabeça devagar e deu um meio
sorriso. Era óbvio que ela sabia. Ele tinha suas suspeitas
de que ela ainda estava em contato com uma das bruxas
da sua cidade, mas Alana estava sendo cuidadosa sobre
aquilo e ele não havia interceptado nada.
— Seria mais simples — ele concordou. — E eu
provavelmente precisaria de duas gerações humanas
para que o resultado disso fosse esquecido. Vampiros
visitantes raramente são cuidadosos com os humanos
que os alimentam. E vampiros visitando outra Corte
agem de formas que não fariam nas suas próprias
Cortes.
E ele havia aprendido aquilo depressa, depois da
criação da Corte do Sangue, no passado. Visitantes
nunca podiam ter acesso aos humanos sob sua proteção.
Alana continuou olhando para ele por alguns
segundos antes de assentir, como se estivesse aceitando
sua resposta.
Rafael não deveria se importar se ela aceitava a
resposta ou não. Alana era uma ferramenta para o que
ele precisava fazer e mais nada.
— E eles também estão preocupados com a
presença de Amon aqui — Rafael continuou. — Ninguém
está dizendo nada em voz alta para não serem ouvidos,
mas a forma como as marcas de poder da maioria dos
vampiros estão visíveis é um aviso de que estão prontos
para enfrentá-lo.
Ela sustentou seu olhar por alguns segundos antes
de olhar para baixo e balançar a cabeça de um lado para
o outro.
— Então eles não estão falando isso em voz alta para
não serem ouvidos, mas você não está preocupado com
isso.
Rafael assentiu.
— Eu não preciso me preocupar. Nem você,
enquanto estamos aqui.
Alana se virou para ele de novo, estreitando os
olhos.
— Uma barreira sonora — ela murmurou. — É isso
que está no começo da escada, então.
Ele não respondeu. Rafael não sabia que ela podia
sentir poder, mas Alana havia falado exatamente o lugar
onde a barreira estava.
E ele já havia se demorado demais.
Rafael estendeu a mão na direção de Alana, de novo.
— Pronta?
Ela levantou as sobrancelhas e soltou o ar de um
jeito que era quase uma risada irônica antes de colocar a
mão sobre a dele.
A surpresa no rosto dos vampiros mais próximos da escadaria era
exatamente o que Rafael havia esperado.
Ele continuou descendo devagar, com uma mão de
Alana na sua e a bruxa o acompanhando sem a menor
dificuldade. Ele notou os olhares passando por ela, a
reconhecendo como uma feiticeira e então parando na
tatuagem no seu braço. Em instantes, Rafael sabia
exatamente quem sabia o que Alana podia fazer e quais
vampiros estavam planejando roubá-la de alguém que
ainda pensavam que era um vampiro com mais ambição
do que poder.
E, então, os olhares paravam nele.
Alguns nunca o reconheceriam, mesmo que
houvessem sido transformados antes da volta da magia,
como Klaus e alguns dos príncipes de fora. Mas muitos ali
haviam sido parte da primeira Corte do Sangue. Mesmo
depois de duzentos anos e mesmo que Rafael houvesse
mudado seu nome e sua aparência, eles o
reconheceriam.
Os sussurros se espalharam entre os grupos de
vampiros. Os que estavam mais afastados se
aproximaram devagar, como se não tivessem certeza do
que estava acontecendo.
Thales, parado perto da porta, assentiu sem olhar
para Rafael. Era a confirmação que ele precisava: as
pessoas que importavam estavam ali. Perfeito.
Ele parou no pé da escada e olhou ao redor devagar,
encarando os vampiros que haviam se aproximado,
deixando um espaço considerável ao redor dele e de
Alana. Algumas das velhas alianças ainda se mantinham,
pelo que parecia pela forma como alguns vampiros
estavam mais próximos entre si. Outras haviam se
quebrado ou até mesmo se tornado inimizade. Mas nada
daquilo importava para Rafael. Aquela sempre havia sido
sua regra: os vampiros que tivessem suas alianças e
intriga, ele não interferiria. Mas, quando Rafael desse
alguma ordem, ele seria obedecido.
— Sejam bem-vindos à Corte da Noite — ele falou.
Os vampiros mais próximos se abaixaram, colocando
um joelho no chão. Alguns continuaram de pé, o
encarando sem esconder expressões de desafio. Mas eles
também não importavam. Não demoraria para Rafael ter
a demonstração de poder que eles queriam.
O que importava eram os vampiros se ajoelhando.
Não eram todos, obviamente. Mas eram a maioria e
aquilo era o suficiente.
NOVE

Aquilo ia ser mais difícil do que Alana tinha imaginado.

Ela se forçou a fingir que estava prestando atenção


na conversa de Dani e Amon, mas estava mais
concentrada nos vampiros espalhados pelo salão.
Descer a escadaria e ter uma boa parte dos
vampiros ali se ajoelhando para Lorde Rafael era uma
coisa que ela nunca tinha nem imaginado que
aconteceria. O tempo todo, ela tinha pensado que ele
precisaria fazer alguma coisa para provar o seu poder ou
coisa do tipo para convencer os vampiros de que não era
uma boa ideia desafiá-lo.
Mas não. Os vampiros tinham olhado para ele e se
ajoelhado. E a pior parte era que nem Amon nem Eric –
que estava parado com Lara um pouco para o lado –
pareciam surpresos.
Alana tinha subestimado o passado de Lorde Rafael.
Era mais do que óbvio que os vampiros que tinham se
ajoelhado o conheciam. Ela tinha notado a surpresa deles
e os sussurros quando eles tinham descido a escadaria. E
tinha visto a forma quase reverente como tinham falado
com ele, quando ela ainda estava acompanhando Lorde
Rafael pelo salão.
Dani colocou uma mão no seu ombro. Alana se virou
para a prima.
— Você também não tinha esperado isso, não é? —
Dani murmurou.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro. No
fim das contas, aquela era a pior parte. Alana precisava
medir o que falava, porque os vampiros iam conseguir
ouvir tudo, se prestassem atenção. O que queria dizer
que ela não podia sair do seu papel como esposa e
feiticeira de Lorde Rafael.
— Não pensei que ia ser tão simples — ela
respondeu.
Porque, só com aquelas primeiras palavras, Lorde
Rafael já tinha colocado a sua Corte como uma
autoridade acima de todos os vampiros. E a pior parte
era pensar que aquilo só tinha acontecido porque a
maioria dos vampiros ali tinha entregado aquela
autoridade para ele, quando se ajoelharam.
Eric e Lara se aproximaram deles – e a mercenária
estava encarando o outro lado do salão, onde Lorde
Rafael estava conversando com dois vampiros.
— Não é tão simples assim — Eric falou. — Mesmo
aqui, ainda temos Cortes demais que não vão se curvar à
autoridade dele.
Alana assentiu. Ela sabia. Mas, depois do que tinha
acontecido no dia anterior – o guarda com a pele do
pescoço arrancada e depois empalado – ela não tinha a
menor dúvida de que aquilo mudaria antes do fim da
noite. A menos que ela fizesse algo drástico, quando o
baile acabasse era bem possível que só a Corte da Névoa
e o Setor Dez não estivessem sob a autoridade de Lorde
Rafael.
O que queria dizer que ela precisava parar de ficar
pensando na pior possibilidade e achar um jeito de usar
as ervas logo.
— Ele não vai ter o menor problema em dar alguma
mostra de poder — Alana murmurou. — Não duvido nada
que já tenha feito uma lista dos vampiros que podem ser
estúpidos a ponto de desafiá-lo e que já tenha se
preparado para qualquer coisa que possam fazer.
Um casal de vampiros parado perto de outra janela
olhou na direção de Alana. Ela conteve um suspiro
irritado e os encarou. Eles desviaram o olhar no mesmo
instante. Se iam escutar a conversa dos outros, podiam
pelo menos disfarçar.
Dani apertou o braço de Alana. Ela se virou para a
prima e então para onde ela estava olhando.
Um vampiro estava indo na direção de onde
estavam. E não qualquer vampiro. Jord. O príncipe que
tinha tido a lealdade da família delas, antes de matar o
pai de Alana e ela e Dani fugirem da região.
— Eu devia ter imaginado isso — Alana resmungou.
Dani falou alguma coisa baixo demais para ela
entender, mas que Alana tinha certeza que era algum
palavrão. Sua prima sempre tinha evitado lidar com os
vampiros e principalmente com o príncipe, antes de
precisarem fugir.
Jord parou na frente de Alana, ignorando os outros
de um jeito que era um insulto mais do que óbvio.
Alana moveu os dedos de uma mão devagar. A
última coisa que ela queria era usar as ervas que tinha
escondido sem ser em Lorde Rafael, porque fazer aquilo
ia deixar óbvio que tinha sido ela, depois. Mas ela
preferia correr o risco a não ter nada que pudesse usar
para se defender quando estava perto de Jord.
Não que ela precisasse se defender, sendo que Dani
e Amon estavam logo atrás dela. E Lara e Eric, também.
Eles não desafiaram Lorde Rafael diretamente, mas
defenderiam Alana, porque ela era uma aliada.
— Alana Novaes — Jord murmurou. — Minha
feiticeira fugitiva.
Não dele. Sua família podia ter sido leal ao vampiro
por gerações, mas ela nunca tinha prestado o juramento.
Quando sua avó tinha morrido, Alana ainda era jovem
demais para ser considerada para a posição. Ela não
tinha prestado nem o juramento genérico que todos da
sua família com o poder prestavam, quando se tornavam
adultos – o mesmo que seu pai tinha quebrado quando
desafiara o príncipe.
— Imaginei que não teria interesse nos meus
serviços, já que estava mais disposto a destruir toda
minha família do que a ouvir qualquer coisa — ela falou.
O vampiro sorriu, mostrando suas presas.
— Um erro. Um erro que não terei o menor problema
em corrigir.
As sombras se espalharam ao redor de Alana ao
mesmo tempo em que ela levantou uma mão. Era óbvio
que Amon não ia ficar sem fazer nada e era quase um
milagre que Dani não tivesse só enfiado uma faca no
vampiro. Mas eles sabiam que tinha muito mais em jogo
ali.
— Tarde demais, Jord — Alana falou.
E aquilo era um insulto. Uma humana não tratava
um príncipe pelo nome, sem nenhum tipo de honorífico.
E definitivamente não falava com o tom que ela estava
usando, seco e quase como se ele não importasse.
O vampiro segurou o braço de Alana, logo abaixo de
onde sua tatuagem começava.
Lorde Rafael apareceu ao lado do outro vampiro,
segurando o pulso dele. Um arrepio atravessou Alana. Ela
não tinha visto ele se movendo naquela direção e
deveria ter visto.
Jord soltou o braço de Alana. Ele ainda estava
sorrindo, mas de uma forma dura que era uma ameaça
mais do que clara.
Lorde Rafael soltou o pulso do outro vampiro e parou
ao lado de Alana.
— Você tinha algo precioso, Jord — ele falou. — E
deixou escapar por entre seus dedos. Agora é tarde
demais.
O príncipe encarou Lorde Rafael. Por um instante,
Alana teve a impressão de que ele estava se forçando a
não reagir.
Jord era antigo, também. Ela tinha se esquecido, mas
ele era de antes da magia. Sua avó tinha comentado
sobre aquilo vezes demais, porque os vampiros de antes
não agiam como os mais novos – e o que eles podiam
fazer também era diferente.
E ele ser antigo queria dizer que ele reconhecia
Lorde Rafael.
— Você deveria ter continuado no seu trono
abandonado — o vampiro falou.
Lorde Rafael deu uma risada que fez mais um arrepio
atravessar Alana. Aquilo ali já era mais que uma ameaça.
Era um aviso bem claro de que o outro vampiro estava a
um fio de ser destruído.
— E você deveria ter sido mais cuidadoso. Sugiro
que comece a fazer isso agora e não incomode minha
esposa.
Jord mostrou as mãos abertas, num gesto de
rendição, mas ele ainda estava sorrindo e com as presas
à mostra.
Em algum momento, ele ainda ia ser um problema.
Lorde Rafael olhou para Alana. Ela assentiu, só
porque não sabia se tinha outra coisa que pudesse fazer
e que fosse encaixar naquele contexto. Ele deu um
sorriso rápido, sem mostrar as presas, antes de
gesticular na direção do outro lado do salão.
Jord se afastou sem falar mais nada para o outro
vampiro. Lorde Rafael encarou as costas dele por alguns
segundos antes de olhar para Alana de novo, assentir, e
ir na direção dos mesmos vampiros com que estava
conversando antes.
E um olhar rápido era o suficiente para Alana ter
certeza de que aquela conversa não tinha passado
despercebida. Alguns dos grupos de vampiros estavam
mais perto do que antes e era fácil notar como as
conversas entre eles pareciam agitadas. Se alguém ainda
tinha alguma dúvida sobre quem ela era ou de onde
tinha vindo, Jord tinha feito questão de acabar com elas.
— O que foi isso? — Lara perguntou.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro e
virou as costas para a sala. Em algum momento, as
sombras que tinham se espalhado ao seu redor haviam
desaparecido, mas Dani ainda estava com a mão no cabo
de uma das suas facas, que ela não estava nem tentando
esconder. E Eric estava com uma mão no braço de Lara,
de um jeito que fazia Alana ter certeza de que era para
garantir que a mercenária não faria nada.
Ela não estava sozinha. Não importava o que
estivesse acontecendo ali, Alana tinha pessoal do seu
lado e nenhum deles agiria sem pensar.
Da mesma forma que ela não podia agir sem pensar
e responder aquela pergunta. Os vampiros ainda
estavam prestando atenção. Alana não podia sair do
personagem.
— Ele é possessivo — ela respondeu.
Lara olhou para ela com uma expressão que deixava
claro que estava achando que Alana era louca.
Alana deu de ombros – e aquilo era a resposta mais
verdadeira que ela podia dar. Ela não fazia ideia do que
tinha passado pela cabeça de Lorde Rafael para aparecer
daquele jeito, ameaçando Jord. Teria sido muito mais
simples deixar o outro vampiro ameaçar Alana, porque
assim ele teria sua justificativa para uma exibição de
poder. Lorde Rafael poderia ter usado Jord como um
exemplo do que aconteceria com quem ficasse contra
ele.
— Eu só quero saber o que ele está esperando —
Lara resmungou. — Já tivemos o momento todo de
vampiros se ajoelhando ou se recusando a fazer isso.
Achei que ele ia fazer alguma coisa para convencer os
que não se ajoelharam de que é melhor darem sua
lealdade, também.
Aquele era exatamente o plano de Lorde Rafael.
Alana era capaz de apostar que, nas contas dele, quando
aquilo tudo acabasse só o Dez e o Três não teriam dado
sua lealdade para ele. E não era nem surpresa ele pensar
aquilo. Os vampiros tinham se ajoelhado, sem Lorde
Rafael precisar falar nada. O trabalho dele já estava
praticamente feito.
— Ele está esperando o meio da noite — Amon falou.
Alana respirou fundo e olhou ao redor. O que ele
estava falando fazia sentido. O meio da noite – não a
meia-noite. A hora mais distante da luz do sol. A hora em
que os vampiros estariam mais fortes... E a hora que os
vampiros faziam suas cerimônias.
— Era para isso fazer sentido? — Lara perguntou.
Eric deu uma risada baixa.
— É uma hora sagrada para os vampiros — ele
contou.
Era uma forma de ver as coisas. Na opinião de Alana,
não tinha nada de sagrado, só de praticidade mesmo. Se
era quando estariam mais fortes, então os vampiros iam
usar aquilo.
Mas Amon provavelmente estava certo. Se Lorde
Rafael ainda não tinha feito nada, era porque estava
esperando o meio da noite para agir. E, considerando que
uma taça cerimonial grande e extremamente decorada
estava em um lugar de destaque perto da escadaria, ele
ia fazer questão de uma cerimônia.
Ela encarou a taça por um instante antes de se virar
para Dani e Lara, de novo.
Nas noites em que os aspirantes a se tornarem
vampiros eram levados para o castelo, aquela taça seria
usada para coletar o sangue deles e depois passada
entre os vampiros reunidos. Dani tinha visto aquela
cerimônia, na vez que tinha ido em um baile do Setor
Seis. Mas aquela era só uma cerimônia. Por mais que os
vampiros fossem práticos e sanguinários, movidos por
ambição e poder, eles tinham cerimônias para
praticamente tudo. Alana tinha visto várias delas, a
grande maioria envolvendo uma daquelas taças.
E, sempre que uma taça cerimonial aparecia, o que
quer que viria depois envolvia alguma coisa sobre
lealdade.
Lorde Rafael ia usar uma cerimônia para formalizar a
posição que os vampiros haviam lhe dado. O que queria
dizer que ele ia beber daquela taça – e depois ia passá-la
para os outros vampiros.
Alana não tinha a menor chance de conseguir se
aproximar do pedestal sem ser notada. Mas ela não
estava sozinha.
Ela se aproximou mais de Dani e puxou Lara.
— Acho que minha saia está saindo do lugar.
E, se fosse verdade, aquilo seria levemente
preocupante, porque não era como se tivesse muito
tecido sobrando.
As duas mulheres pararam ao lado dela, escondendo
Alana do restante do salão.
Ela tirou o pacote com as ervas em pó e o entregou
para Dani antes de olhar na direção da taça, de novo.
Lara levantou as sobrancelhas e Alana balançou a
cabeça. Não podia explicar nada. Estava confiando que
sua prima fosse entender o suficiente para achar um jeito
de colocar aquilo na taça. Ela e Amon eram as únicas
pessoas que tinham alguma chance de fazer aquilo.
Dani deu um suspiro alto e revirou os olhos antes de
se virar para Amon.
— Você se lembra do outro baile, no Setor Seis? —
Ela perguntou.
Amon a encarou daquele jeito que estava
começando a fazer Alana sentir inveja – não porque ela
quisesse alguma coisa com Amon, especificamente, mas
porque ela queria alguém que olhasse para ela daquele
jeito.
— De qual parte?
Dani sorriu.
— Da parte em que a gente estava andando pelo
salão e os outros vampiros estavam praticamente
correndo para longe.
Amon deu um sorriso rápido.
— E agora eles vão tentar não se afastar, só porque
você fez esse comentário.
O sorriso da sua prima ficou ainda mais largo.
Amon balançou a cabeça devagar antes de oferecer
o braço para Dani. Ela olhou para Alana e levantou as
sobrancelhas antes de se afastarem.
— Isso é algo que eu gostaria de ter visto — Eric
comentou.
— O quê?
— Amon e Daniele em um baile do Setor Seis — ele
contou. — Os comentários depois foram... Criativos, para
não dizer outra coisa.
Alana não duvidava nada daquilo.
E esperava que Dani tivesse entendido o que ela
queria.

Rafael deveria ter usado Jord como um exemplo. Teria sido muito
mais simples do que esperar os vampiros que não
haviam se curvado fazerem alguma coisa – porque eles
fariam alguma coisa. A recusa em se ajoelhar poderia ser
aceita, em outro contexto. Ali, com a quantidade de
vampiros cedendo poder a ele, qualquer um que se
negasse precisaria deixar claro os seus motivos.
Mas não. Ele havia interferido antes que Jord fizesse
qualquer coisa que pudesse ser considerada uma
ameaça ou insulto real. Estupidez. Agora ele precisava
esperar, de novo.
A maior parte dos vampiros ao redor dele havia sido
parte da Corte do Sangue, no passado. Domenico, Isaac,
Ciarra, Alaric, Warin, Livia, Amaris, Dorian, Fergus...
Alguns ainda usando o mesmo nome que usavam antes
da volta da magia, mas outros com novos nomes,
também. Rafael havia feito questão de saber onde sua
antiga Corte estava e o que estavam fazendo.
Não era uma surpresa que eles houvessem aceitado
seu convite. Aqueles que haviam sido parte da Corte do
Sangue nunca deixariam uma imitação se erguer no
lugar. Mas a forma como haviam oferecido sua lealdade
de novo havia sido uma surpresa. Rafael imaginara que,
depois de dois séculos sem nenhuma autoridade acima
deles, a maioria daqueles vampiros faria de tudo para
evitar a volta da Corte do Sangue.
Talvez eles soubessem sobre o que estava
acontecendo na Europa. A maioria dos vampiros ali tinha
recursos o suficiente para ter as mesmas informações
que ele. Mas Rafael duvidava. Os vampiros ali pareciam
relaxados demais, mesmo que alguns deles fossem
antigos o suficiente para se lembrarem de antes, de ver
o mundo morrendo pouco a pouco. Dois daqueles
estavam um pouco para o lado – Ciarra e Fergus –
conversando como se nada demais estivesse
acontecendo. Como se os sinais não estivessem por toda
parte.
Eles haviam escolhido esquecer. Ou talvez haviam
escolhido não ver o que estava ao seu redor e
acreditassem que o que acontecera naquele tempo era
culpa da volta da magia e mais nada. Rafael entendia.
Ele mesmo quase fizera a mesma coisa. E, desde que
estivessem dispostos a seguir suas ordens, ele não teria
nada a questionar.
O problema maior eram os outros. Os que ainda
estavam espalhados em grupos menores, conversando
entre si e tomando cuidado para não olhar para Rafael.
Os que haviam sido seus inimigos, no passado, ou
apenas vampiros que evitavam passar pelo seu caminho,
como era comum entre os mais antigos. Não que
houvesse algum vampiro realmente antigo ali, além dele
e de Amon.
Talvez aquela fosse a resposta: Amon, andando pelo
salão com sua vampira recém-transformada que era mais
forte do que deveria ser. Os vampiros não estavam
saindo do seu caminho, mas Rafael conseguia ver que
queriam fazer aquilo. E ele tinha a impressão de que
Daniele estava se divertindo com a situação.
Ele olhou para o outro lado do salão. Alana
continuava lá, junto com o príncipe necromante e sua
consorte. Não era o ideal, mas eles eram aliados do Setor
Dez. Ela estaria segura.
Era possível que os vampiros que não se sujeitariam
a ele estivessem esperando Amon fazer alguma coisa.
Sem a menor dúvida, ele era um dos mais fortes ali –
talvez tão forte quanto Rafael. Mas ele sabia que o outro
vampiro não faria nada. O único interesse de Amon era
proteger sua companheira, o que queria dizer proteger o
Setor Dez, também. O mais perto que Rafael chegaria da
lealdade dele e do Dez era o contrato que tinha com
Alana e aquilo era o suficiente.
Se os que queriam ir contra Rafael estavam
esperando algo vindo de Amon, não teriam nada. O que
queria dizer que Rafael precisava lhes dar um motivo
para agir, e logo.
Ele olhou na direção da escadaria. Victor estava
parado nas sombras mais escuras ao lado dela, quase
escondido dos outros vampiros. Rafael fez um gesto seco
com a mão e o outro vampiro assentiu antes de
desaparecer. Ele daria a ordem para os servos humanos
que estavam atravessando o salão oferecendo taças de
sangue não voltarem e depois garantiria que o castelo
estava seguro.
Rafael foi na direção do pedestal onde a taça
cerimonial estava. Ainda não era exatamente o meio da
noite, mas aquilo não importava, para ele. A diferença na
sua força seria mínima e já fazia muito tempo desde que
ele deixara de acreditar no "sagrado" que tantos
vampiros ainda usavam.
Aquele era o jeito fácil de fazer os outros agirem.
Amon e Eric recusariam a taça, sem dar nenhum tipo de
explicação ou justificativa. O representante do Setor Sete
– porque aquele príncipe havia preferido não ir
pessoalmente, por motivos óbvios – provavelmente
recusaria a taça mencionando lealdades anteriores. Eles
não quebrariam seus laços com o Três. Seria um desafio,
sim. Mas não seria um ataque. O que viria depois...
Aquilo era o que Rafael queria saber.
Os vampiros mais perto daquela parte do salão
pararam de conversar entre si e se viraram para encarar
Rafael. Pouco a pouco, o silêncio se espalhou pelo salão,
até que todos estavam acompanhando seus
movimentos.
E Amon e sua companheira estavam voltando para
onde Alana estava. Bom. Ela era sua esposa e sua
feiticeira, aos olhos dos outros vampiros, mas Rafael não
queria a bruxa ao seu lado naquele momento. Ele estava
se colocando como um alvo. Se ela continuasse onde
estava, ele tinha certeza de que nada a atingiria.
Rafael pegou a taça cerimonial. O silêncio era
completo enquanto ele cortava sua própria mão e
deixava seu sangue escorrer para dentro da taça. Uma
oferenda e uma promessa, que poderia ser aceita ou
rejeitada.
Ele se virou para os vampiros reunidos e levantou a
taça. A luz do fogo prateado nas tochas contra as
paredes refletia no metal de uma forma que não era
natural. Magia, sim, muito mais antiga que a maioria dos
vampiros ali. E, mesmo que aquilo não importasse para
ele, Rafael sabia que muitos dos vampiros ainda
respeitavam demais as histórias e as tradições que
haviam sido passadas desde os primeiros vampiros.
— Dois séculos atrás, o mundo mudou — Rafael
começou. — Ele deixou de ser o mundo dos humanos e
se tornou o nosso mundo. Um mundo onde não
precisamos nos esconder. Onde não precisamos nos
preocupar com as caçadas, porque nós somos os
caçadores. Mas nós podemos nos tornar mais.
A sensação do poder se espalhou de uma vez: uma
pressão que era o oposto do que ele sentia quando Alana
estava furiosa. Era algo pesado e seco de uma forma que
era quase gelada, uma sensação que Rafael não sabia
descrever, mas que uma parte de si havia tido
esperanças de que nunca mais fosse sentir.
Um dos lados do salão escureceu de uma vez. Amon,
usando seu poder. Rafael olhou na direção dele, mas o
outro vampiro não estava lhe encarando. Então ele havia
reconhecido que aquele poder não era nada vindo de
Rafael. Bom.
Um vampiro avançou, vindo da direção da porta.
Thales deveria ter lhe avisado de alguém se
aproximando. Mas o outro vampiro não estava mais ali.
Não. Rafael não ia suspeitar de traição da pessoa
que estava com ele havia mais tempo. O que queria dizer
que, se Thales não estava ali, algo havia acontecido.
E o vampiro que estava avançando – Rafael o
conhecia, também. Antonidas, um dos vampiros que não
havia sido exatamente seu aliado, no passado, mas que
também não havia sido um inimigo. Eles haviam se
evitado como cortesia, garantindo que não estariam no
território um do outro.
Mas, antes, Antonidas não era capaz de nada como o
poder que Rafael estava sentindo. Aquilo era algo
carregado demais, de uma forma que Rafael sabia que
não era natural, mas não era apenas aquilo. A aparência
do outro vampiro também havia mudado. Seu rosto
estava seco de uma forma que era mais comum em
vampiros que haviam passado tempo demais sem se
alimentar, mas não havia nenhum sinal da loucura que
acompanhava a fome.
Rafael deveria ter imaginado aquilo, também. Se
duzentos anos haviam sido o suficiente para a situação
sair completamente do seu controle, então havia sido
tempo o bastante para vampiros terem se aliado àquilo
que deveriam conter. E a aparência de Antonidas contava
a história daquela aliança.
Era o que Rafael sabia que poderia ter acontecido
consigo mesmo, o preço que ele teria pagado pela sua
ambição. E a única coisa que o impedira de aceitar a
oferta da criatura, no passado, havia sido o seu contato
com os humanos e o conhecimento do que estava
acontecendo na região.
— Sob o seu controle, nós nos tornaríamos menos —
Antonidas falou.
Rafael sorriu e abriu os braços, mesmo que sua
vontade fosse destruir o vampiro. E seria simples, porque
o poder se espalhando pelo salão não era de Antonidas.
Era algo emprestado, como quando um vampiro dava um
vestígio do seu poder para um servo humano que falaria
em seu nome, no passado. Mas ele precisava deixar o
vampiro falar, primeiro. Precisava deixar os
questionamentos serem feitos para só depois destruí-lo.
— Sob o meu controle, os vampiros sobreviveram e
se fortaleceram, no mundo que tínhamos antes.
Antonidas parou no meio do salão. Os vampiros que
estavam mais perto se afastaram depressa – até mesmo
os que não haviam se ajoelhado para Rafael, antes.
O outro vampiro balançou a cabeça de um lado para
o outro.
— Uma vez não foi o suficiente, Rafael? — Antonidas
perguntou. — Você passou séculos nos impedindo de ter
o que era nosso por direito, no passado. Mal tivemos dois
séculos desse mundo novo e você já está se preparando
para nos prender novamente, bem quando nosso poder
está crescendo?
As sombras do outro lado do salão se tornaram mais
escuras. Os vampiros espalhados começaram a se
afastar de lá, também.
Amon não faria nada. Atacar o vampiro que estava
questionando Rafael seria lido como um sinal de aliança.
— Nosso poder sempre está crescendo — Rafael
falou. — É parte daquilo que somos.
Antonidas riu e aquele som também não era natural.
Havia algo na voz do outro vampiro que era outro,
inumano o suficiente para todos no salão notarem.
E nem todos pareciam incomodados com aquilo.
Mesmo que mais ninguém estivesse se aproximando, era
possível que mais vampiros estivessem aliados àquele
poder. Não. Era provável que mais vampiros ali fossem
aliados da criatura. Rafael já havia visto um exemplo
daquilo ali mesmo, na sua região, com a aliança entre os
setores Cinco, Seis e Oito, quando haviam atacado o
Três.
Antonidas teria que ser um exemplo inesquecível.
O outro vampiro sorriu, mostrando as presas, e se
virou na direção da porta.
Ainda não havia nenhum sinal de Thales lá. E Alana
continuava mais afastada, quase desaparecendo nas
sombras ao redor de Amon. Ótimo.
A porta se abriu de uma vez. Uma vampira entrou,
carregando um dos vasos enormes que ficavam perto do
portão. As folhas verdes da planta ali estavam mais vivas
do que em qualquer momento antes, por causa de Alana,
e eram altas o suficiente para quase esconderem o rosto
da vampira.
Rafael não falou nada enquanto a vampira
atravessava o salão e colocava o vaso na frente de
Antonidas. Ele sabia o que ia acontecer. Havia passado
tempo demais monitorando o restante do mundo para
não saber o que viria depois.
A vampira se afastou para o lado. Os vampiros
naquela direção recuaram, indo mais para perto das
sombras de Amon.
Antonidas olhou ao redor devagar, dando as costas
para Rafael como se ele não fosse uma ameaça.
— Nosso poder sempre está crescendo — ele repetiu.
— E teria crescido muito mais se ele não houvesse
passado séculos fazendo questão de nos conter. De nos
enfraquecer e esconder o que poderíamos ter, se ele não
estivesse no caminho.
Ele havia se preparado para aquilo. Não era difícil
ver como a atenção dos vampiros estava presa em
Antonidas – incluindo muitos dos que haviam se
ajoelhado para Rafael. Não todos. Não os que haviam
sido parte da Corte do Sangue. Do outro lado do salão, o
príncipe necromante estava com os braços cruzados e a
mesma expressão gelada que Rafael havia visto no Setor
Três, antes de lidar com os vampiros reunidos, lá. Ele era
jovem, mas entendia. E, perto da sacada, Jord estava
encarando Antonidas com uma expressão de desdém
que Rafael conhecia bem, também. Então ele não havia
se esquecido de tudo.
Rafael colocou a taça de volta no seu pedestal. Os
vampiros no salão acompanharam seu movimento, sem
sair do lugar. E Antonidas continuava parado na frente do
vaso de folhagem, esperando.
— Faça o que precisa fazer, Antonidas — Rafael
falou.
E aquilo era um comentário calculado, também: o
que ele precisava fazer. Não o que queria, porque
Antonidas havia aberto mão da sua vontade muito antes
de entrar naquele salão.
O outro vampiro olhou para Rafael e mostrou as
presas antes de estender uma mão na direção das folhas
da planta decorativa. Sua primeira impressão foi de que
a planta estava encolhendo, mas não. Ela estava
secando. As folhas longas, lisas e estreitas estavam se
enrugando e perdendo sua cor, se tornando marrons
antes de começarem a se desfazer.
Em uma questão de instantes, a única coisa no vaso
era um galho fino e seco caído sobre a terra.
Antonidas olhou ao redor devagar, ainda com uma
mão estendida na direção do vaso.
— Nós podemos ser mais, se tiverem coragem de
abraçar o poder que nos foi negado.
Aquela versão de "poder" destruiria o mundo.
Antonidas se virou e estendeu a mão na direção da
vampira que tinha carregado o vaso. Ela seria o sacrifício,
então.
A vampira foi puxada para o alto, de uma forma
brusca que era completamente diferente dos vampiros
que conseguiam levitar ou de quando estavam sendo
controlados. A cabeça dela foi jogada para trás em um
grito silencioso e então o sangue começou a escorrer,
caindo da boca dela.
Teatral. Rafael não podia dizer que Antonidas não
sabia como chamar atenção.
O sangue escorrendo da boca da vampira começou a
subir no ar, devagar.
Não era apenas uma demonstração do que o poder
da criatura podia dar para os vampiros. Era uma
tentativa de repetir o que Rafael fizera no Setor Três. De
dizer para os vampiros ali que podiam ter o mesmo
poder que ele ou até mesmo enfrentá-lo.
Rafael sorriu, olhando para a demonstração. A mão
de Antonidas estava começando a tremer e era óbvio
que fazer o sangue da vampira subir daquele jeito exigia
esforço demais.
O outro vampiro fechou a mão. A mulher caiu no
chão, sobre o próprio sangue, e tossiu de forma fraca.
Rafael estendeu uma mão na direção dela.
— Acredito que isto era o que você estava tentando
fazer — ele falou.
A mulher subiu no ar de forma quase elegante, sem
nada da brusquidão do controle de Antonidas, e o sangue
subiu junto com ela, como se estivesse acompanhando o
mesmo movimento. E ainda subindo, saindo não só da
sua boca, mas de todos os poros, até que era como se
vários fios estivessem se esticando para o alto e se
juntando.
Um vampiro saiu de perto da parede e correu na
direção da mulher. Era um dos que não havia dado sua
lealdade para Rafael e que não parecera nem um pouco
surpreso com a chegada de Antonidas.
Rafael inclinou a cabeça. O vampiro parou antes de
alcançar a mulher e o sangue dele subiu de uma vez,
quase explodindo para fora do seu corpo.
Eles estavam tentando demonstrar o que a criatura
podia oferecer. Mas eles haviam se esquecido que tudo o
que vinha dela era fraco, temporário, porque ela não
dividia. Não. Ela consumia e mais nada.
Rafael se virou para Antonidas. O outro vampiro
engoliu em seco e sustentou o seu olhar.
— Faça o que precisa fazer — ele falou. — Minha
mensagem foi dada.
Sim. Havia sido. E agora Antonidas seria a
mensagem.
Rafael levantou a mão aberta, com a palma virada
para cima. Ele não precisava de gestos para usar seu
poder, mas não queria que ninguém tivesse a menor
dúvida do que estava acontecendo ali.
Ele fechou a mão.
O sangue de Antonidas explodiu para fora do seu
corpo, como espinhos que se desfizeram no instante
seguinte.
O sangue dos outros dois vampiros caiu de uma vez,
rígido como lâminas, cortante o suficiente para deixar os
dois corpos em pedaços antes de se desfazer.
Os três vampiros – o que restava deles – caíram no
chão e continuaram ali por alguns segundos antes de se
tornarem cinzas.
Não era o suficiente. Destruir os dois não era o
bastante para mudar a balança de poder – porque a
demonstração de Antonidas não havia sido apenas sobre
poder sobre os vampiros. Ela havia sido sobre um poder
além, a capacidade de moldar o mundo à sua vontade. E,
por mais que Rafael fosse o mais forte dos vampiros,
nenhuma das suas habilidades ia naquela direção,
porque não era o tipo de poder que um vampiro deveria
ter... Mas que havia sido oferecido para eles.
Rafael conhecia o suficiente sobre os vampiros para
ver os sinais da ambição.
Ele havia feito uma aposta ao convidar tantos
vampiros para aquele baile – e estava prestes a perdê-la.
Rafael pegou a taça que estava no pedestal. Seu
sangue ainda estava ali dentro. O risco havia se tornado
maior ainda, mas ele precisava exigir um juramento de
lealdade dos vampiros ali. Terem se ajoelhado não era o
suficiente.
Um ruído do outro lado do salão fez Rafael se virar.
As sombras de Amon estavam se movendo, forçando os
vampiros reunidos a se afastarem para os lados... E
abrirem um caminho para Alana passar.
E Thales estava parado um pouco para o lado, perto
do grupo dos Setores Dez e Três.
Alana avançou. Alguns vampiros no caminho
mostraram as presas na sua direção, mas ela os ignorou
completamente. A sensação do poder dela estava se
espalhando pela sala, parecida com a pressão de antes
mas ao mesmo tempo diferente, leve enquanto o outro
poder pesava.
Ela havia sido treinada para ser uma feiticeira. Ela
entendia a política e os jogos de poder dos vampiros, o
que queria dizer que entendia exatamente o que estava
acontecendo ali.
Alana passou pelo vaso com a planta morta e
continuou, até parar na frente de Rafael. Eles se
encararam por um instante. O aço ainda estava ali, no
olhar dela – uma bruxa humana encarando o homem que
havia sido o rei dos vampiros como se fossem iguais.
Ela bateu a mão na taça que Rafael ainda estava
segurando. A taça cerimonial caiu no chão com um som
que parecia alto demais no silêncio do salão e seu
sangue escorreu para fora dela, manchando o chão de
uma forma que parecia quase poética, considerando
como tudo havia escapado do seu controle.
— Uma cerimônia feita com o medo e a desconfiança
no ar não vale de nada — Alana falou.
E aquela era sua jogada, então. Alana terminaria o
que Antonidas havia começado e destruiria qualquer
chance que tivessem.
Ou não, porque ela virou as costas para Rafael como
se não precisasse se preocupar com ele.
Alana parou na frente do vaso com a planta morta.
Rafael encarou as costas dela, sem falar nada, mesmo
que aquilo fosse um risco, também. Mais uma aposta,
para quem já estava perdendo seu jogo.
Alana colocou uma mão acima da planta morta. O
poder dela se espalhou como uma onda, uma pressão
levando embora os últimos vestígios do poder que
Antonidas havia exalado pelo seu salão. E aquilo era
proposital, porque Rafael nunca havia sentido o poder de
Alana daquele jeito antes.
O caule da planta – o galho seco que ainda estava
dentro do vaso – se ergueu. Não. Ele estava crescendo de
novo, não se levantando. Sua cor estava mudando,
deixando de ser o marrom morto e se tornando mais
vivo, esverdeado, antes de desaparecer no meio das
folhas que estavam crescendo em uma velocidade que
deveria ser impossível. E ainda crescendo, verdes e
fortes, ficando maiores do que eram antes, até que a
folhagem estava mais alta que a própria Alana.
Ela se endireitou e olhou ao redor com uma
expressão que não era exatamente arrogante, mas que
era um desafio. Os vampiros reunidos a encararam, sem
falar nada.
Alana se virou e voltou para perto de Rafael,
tomando cuidado para não olhar nos olhos dele.
Ele tinha apostado – mas não havia realmente
esperado aquele resultado.
Com uma demonstração de poder, Alana havia
fortalecido a posição de Rafael de uma forma que os
vampiros ali não esqueceriam. Ela, uma humana, havia
desfeito a oferta de poder de um deles como se não
fosse nada – e com isso havia devolvido o controle da
situação para Rafael.
Ele deu um sorriso gelado.
— A opção de não se envolver deixou de existir —
Rafael avisou. — As Cortes que não estiverem ao lado da
Corte da Noite para enfrentar o poder que está se
erguendo são nossas inimigas. E serão tratadas como tal.
DEZ

Rafael parou na porta da cozinha e cruzou os braços. O sol ainda


não havia nascido, mas todos os seus convidados já
haviam ido embora – a maioria depois de um juramento
formal de lealdade. Aquilo era bom, mesmo que não
fosse o que ele planejara, inicialmente. Rafael havia
imaginado que teria pelo menos mais um dia para
conversar com alguns dos outros vampiros, dar seus
avisos, repassar informações e colocar planos em
movimento. Depois do que havia acontecido – Antonidas
usando aquele poder, sendo destruído e Alana
desfazendo o que o outro vampiro havia feito – não havia
mais nada a ser falado.
Irem embora logo era melhor. Depois daquela
demonstração de poder, Rafael preferia que os outros
vampiros estivessem longe – principalmente os que
haviam sido parte da sua Corte, no passado. O que
Rafael precisava era que eles estivessem atentos e que
as Cortes deles não cedessem à criatura.
E ainda havia os vampiros aliados a ela. Ele deveria
ter dado mais atenção para aquele detalhe desde o
começo. Desde o Setor Três, na verdade, e aquele grupo
de vampiros de três setores diferentes, reunidos para
testemunhar o que pensavam que seria a destruição da
Corte da Névoa. Não importava que planos fizessem, eles
precisavam se preparar para lidar com traidores dentro
das Cortes, porque haveria mais vampiros como
Antonidas, a vampira que o acompanhara e o príncipe
que tentara defendê-la.
Ao lado de uma das bancadas da cozinha, Thales se
endireitou e soltou o humano de quem estava se
alimentando – um dos servos que haviam passado parte
da noite oferecendo o sangue do reservatório para seus
convidados.
Victor já havia lhe dado seu relatório – como haviam
tentado entrar no depósito na noite anterior, de novo, e
como as novas medidas de segurança haviam matado
quatro humanos durante o baile. Como dois dos vampiros
acompanhando seus convidados haviam sido detidos por
tentarem entrar no castelo carregando armas, algo que
Rafael fizera questão de proibir. E como os mesmos
vampiros haviam sido encontrados depois da
demonstração de Antonidas, presos pelas armadilhas
perto dos portões.
O próprio Thales havia pagado pela distração de
Rafael. Ele, que estivera perto da porta como um
observador e mais nada, quase havia sido destruído.
O humano se endireitou e saiu da cozinha depressa,
sem olhar na direção de Rafael. O medo era algo
inevitável, especialmente depois de punir um dos
humanos que trabalhava ali, mas aquele humano não
tinha motivos para temer Rafael depois de ter
alimentado Thales. Muito pelo contrário.
— Tenho uma dívida para com o Setor Dez — o
vampiro falou. — Foram eles quem viram o que estava
acontecendo. Se não fosse pelo sangue da neófita, eu
não teria sobrevivido.
A neófita – Daniele. A prima de Alana, que havia sido
transformada depois de um ataque de carniçais que teria
sido fatal. E ela havia dado sangue para um dos seus
vampiros, mesmo sabendo exatamente quem Rafael era
e qual havia sido seu plano para o Setor Dez, desde o
começo.
Se fosse qualquer outra pessoa, Rafael pensaria que
aquilo era uma jogada para ganhar sua boa vontade,
porque não era nenhum segredo que Thales era seu
braço direito. Mas aquele tipo de atitude era esperado do
Setor Dez e até mesmo de uma vampira, pelo simples
fato de ela ser de lá. Eles ainda se prendiam a valores
que raramente tinham um lugar no mundo.
— Quem foi o responsável? — Rafael perguntou.
Um ruído baixo veio de outra parte da cozinha quase
deserta. Ele se virou. Alguém estava parado nas
sombras, entre dois armários, mas não era alguém se
escondendo para atacar. Aquele som baixo, quase um
gemido, tinha sido de medo.
Se alguém estava tentando não chamar a atenção
de Rafael, não estava tendo muito sucesso. Mas ele não
precisava deixar claro que havia visto a pessoa ali.
Ele se virou para Thales de novo.
— Antonidas — o vampiro contou. — Ele precisava de
combustível para fazer o que fez.
E havia usado a força por trás da existência de
Thales para alimentar o poder.
Não era algo muito diferente do que os necromantes
podiam fazer, se quisessem, mas Rafael não pensava
que a Corte da Névoa estivesse envolvida naquilo.
— Antes eu do que algum dos convidados — Thales
completou.
Rafael não ia discutir com aquilo. Thales entendia o
que estava em jogo bem demais.
O que levava a outra questão.
— A forma como Alana interferiu — Rafael começou.
— Ela não faria aquilo por conta própria.
O outro vampiro assentiu.
— Eu avisei que o que Antonidas fez precisava ser
apagado. Peço perdão se isso foi contra seus planos,
mas...
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Era o necessário.
Ele teria preferido que Alana continuasse sem saber
por que ele precisava de uma bruxa da natureza ali, mas
havia sido necessário. E, de qualquer forma, o baile
sempre havia sido um risco de que ela veria ou ouviria
algo que não deveria, mesmo que Rafael tivesse
imaginado que conseguiria controlar o que estava
acontecendo.
Não. Aquilo havia sido a melhor possibilidade depois
do que Antonidas fizera.
— Sobre a bruxa — Thales falou. — Há mais.
Rafael assentiu, sem falar nada. Era óbvio que havia.
Ele podia não saber o que, mas tinha certeza de que
Alana fizera planos envolvendo o baile, também. Ele
havia passado aquele tempo todo esperando por algum
tipo de ataque – mesmo que indireto – da parte dela.
Thales indicou uma das bancadas um pouco além de
onde ele estava. A taça cerimonial estava sobre ela,
ainda com algumas manchas de sangue, mesmo que o
metal não tivesse nenhuma marca de quando havia
caído no chão. Aquilo não era uma surpresa. Rafael tinha
aquela mesma taça já fazia tempo demais e ela nunca
havia mostrado nenhuma marca da passagem do tempo.
— Encontrei traços de uma combinação de ervas
tanto na taça quanto no sangue que ainda estava no
chão — o vampiro contou.
Ervas. Alana. Então ele estava certo. Ela havia
planejado alguma coisa para aquela noite.
— Que ervas?
Thales o encarou.
— Uma combinação que rotineiramente é usada
como um alucinógeno fraco e uma forma de controlar os
neófitos mais agressivos. Mas o que encontramos aqui...
Ele gesticulou na direção da pessoa escondida nas
sombras. Um vampiro, agora que Rafael estava
prestando atenção. Ele estava encostado na parede,
falando depressa em voz baixa, e o que Rafael conseguia
ouvir não fazia o menor sentido. Enquanto ele estava
olhando, o vampiro deu uma gargalhada alta e se jogou
contra a parede, tentando subir por ela antes de cair
sentado no chão e ficar em silêncio de novo.
— O que encontraram é muito mais forte do que as
plantas normalmente são — Rafael falou.
Thales assentiu.
Alana. Aquilo tinha sido obra dela.
E, encarando o vampiro no canto da cozinha, Rafael
sabia exatamente qual havia sido o seu plano: ela teria
destruído a credibilidade dele. Rafael não teria sido
afetado como o outro homem, mas teria sido o suficiente
para parecer que ele estava inebriado, de uma forma que
iria contra todos os protocolos e tradições dos vampiros.
E cada vampiro que bebesse da taça seria afetado,
também. Todos haviam visto quando ele cortara sua mão
e deixara seu sangue cair na taça. Seria como se Rafael
estivesse tentando embriagar seus convidados para
forçá-los a dar sua lealdade.
Se ela tivesse ido em frente com aquilo, ele nunca
teria se recuperado. A reputação de Rafael estaria
manchada por séculos, enquanto ainda existisse alguém
que se lembrasse daquele baile.
Mesmo que, no final, ela houvesse jogado a taça no
chão e revertido a situação ao usar seus poderes, aquilo
não mudava os fatos. Alana havia traído Rafael. Ela havia
quebrado o contrato e por muito pouco não havia
destruído tudo que Rafael tinha.
E ela ia pagar.

A porta da sua sala se abriu de uma vez. Alana se virou devagar,


mesmo que seu poder já estivesse reunido ao seu redor.
Lorde Rafael fechou a porta atrás de si e foi na
direção dela, andando de um jeito que fazia ela se sentir
caçada. Não era a forma quase elegante que ele tinha de
andar, na maior parte do tempo. Era algo intenso
demais, como se cada passo fosse calculado e nada
fosse ficar no seu caminho.
Ele parou na frente de Alana.
— Me dê um motivo para não te destruir agora.
Ela levantou a cabeça e encarou Lorde Rafael. Então
tinham encontrado as ervas na taça. Era melhor assim.
— Você precisa de mim — ela falou. — E não por
causa das plantações ou qualquer coisa do tipo. Você
precisa de mim para lidar com o que quer que seja isso
por trás do que aconteceu no Setor Três e por trás do
vampiro no seu baile.
Ele não respondeu.
Alana conteve um sorriso. Ela sabia que estava certa
e aquilo era uma garantia de segurança muito maior que
qualquer contrato, porque queria dizer que Lorde Rafael
precisava ter limites lidando com ela. Depois daquele
tempo todo, ele já sabia que ameaçar as pessoas que
eram importantes para ela não adiantaria nada, porque
se ele cumprisse as ameaças Alana não teria motivos
para fazer nada. Era simples – desde que ela tivesse o
sangue frio para não recuar.
Lorde Rafael inclinou a cabeça daquele jeito que
parecia completamente inumano, porque ela não via o
movimento. Num instante ele estava em uma posição, no
segundo seguinte em outra, sem nada do movimento
que deveria existir no caminho.
— Sempre posso encontrar outra bruxa — ele
murmurou.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro, sem
tentar esconder seu sorriso.
— Se houvesse outra, ela já estaria aqui. Se você
tivesse ouvido qualquer boato de uma bruxa com o tipo
de poder que precisa, já teria dado um jeito de trazer ela
para cá, do mesmo jeito que fez comigo.
Lorde Rafael não respondeu.
— Eu sou sua única opção — Alana continuou. — E,
se quiser mais um motivo... Você não pode correr o risco
de me destruir depois do que aconteceu no salão. Eu sou
o motivo para os vampiros terem jurado lealdade a você
E Alana também poderia dizer que tinha sido ela
quem havia visto Thales jogado em um canto do salão,
nas sombras mais escuras. Se não fosse por ela, o braço
direito de Lorde Rafael teria sido destruído. Mas ela não
ia usar a existência de alguém como uma moeda em
negociação.
O vampiro na sua frente continuou sem falar nada.
Alana nunca tinha visto ele parado daquele jeito, tão
completamente imóvel que quase parecia uma estátua.
Uma estátua. Era uma boa descrição. Uma escultura,
quase. Algo para ser apreciado, sim. Mas apreciado de
longe.
Ela se afastou dele e foi na direção da janela. Dali,
ela conseguia ver o sol baixo no horizonte. Alana se
lembrava das madrugadas que tinha passado ali, só
olhando pela janela e esperando o nascer do sol, com
Lorde Rafael ao seu lado. Mas aquilo tinha sido quando
ela ainda tinha um resto de ingenuidade. Quando ela
achava que ele podia se importar com ela.
— Eu reconheci o poder no salão — ela contou. — O
que ele é.
Lorde Rafael parou ao lado dela.
Antes, da outra vez que ela tinha estado no Setor
Um, ele ainda tentava disfarçar como a luz do sol não
fazia diferença para ele. Desde que ela havia voltado, ele
não se preocupava mais com aquilo. Primeiro tinha sido
aquele dia, no jardim. E agora aquilo, ali, encarando a luz
do sol nascendo como se não fosse nada.
— Thales me contou um pouco, no baile — ela falou.
— O suficiente para eu entender que não podia deixar a
situação terminar com todo mundo pensando no que
aquele vampiro fez. Mas se é para eu fazer alguma coisa,
preciso de informações.
Lorde Rafael se virou e a encarou. Por um instante,
Alana imaginou se não estava indo longe demais.
— Você tentou me envenenar e realmente vai agir
como se não tivesse feito nada? — Ele perguntou. —
Como se eu não tivesse o direito de tomar sua vida em
pagamento pela traição?
Ela levantou as sobrancelhas.
— E você planejou matar todo mundo que é
importante para mim — ela falou. — Minha família, meus
amigos, o lugar que é meu lar. Acho que isso me dá o
direito de não confiar nos seus planos.
Ele segurou seu pescoço, tão depressa que Alana
não teve tempo de pensar em reagir.
Ela segurou o pulso de Lorde Rafael por puro reflexo,
mas não tentou fazer força. Não ia adiantar. E ela não
precisava se preocupar, porque ele não ia matá-la. Não
importava o que acontecesse, Alana tinha certeza
daquilo. Lorde Rafael precisava dela e do seu poder – e
uma bruxa quebrada não seria o suficiente. Ela estava
segura.
— Você não tem ideia do que quase causou — ele
falou, baixo e de um jeito sibilante que não era humano.
Sangue frio. Alana tinha sobrevivido a dois anos nas
terras de ninguém, sendo caçada pelos vampiros de Jord.
Ela tinha sangue frio mais que o suficiente para lidar com
Lorde Rafael.
— Se eu não sei, é porque você fez questão de me
deixar sem informações. Já falamos sobre isso antes, não
falamos?
No dia em que ele tinha usado o poder para prender
o corpo de Alana e ela havia usado as roseiras para
atacar Lorde Rafael.
Não seria difícil fazer a mesma coisa de novo. As
roseiras estavam longe, mas havia trepadeiras subindo
pelas paredes do castelo. Unha de gato, também, e Alana
já sabia que conseguia deixar aquela planta forte o
suficiente para puxar um portão de metal.
Mas ela não queria um confronto. Ela queria
informações.
O que tinha acontecido no baile era a peça que tinha
ficado faltando aquele tempo todo, quando Alana
pensava que a forma como Lorde Rafael tinha mudado
com ela não fazia sentido. Aquele vampiro e o poder por
trás dele – aquilo era a resposta.
Lorde Rafael apertou seu pescoço.
Alana soltou o pulso dele.
— Se for me matar, faz isso de uma vez — ela falou.
— Se não, é mais fácil parar com as ameaças inúteis e
me dar as informações que eu preciso.

Rafael encarou a bruxa sentada em um sofá, como se não tivesse a


menor preocupação no mundo. O pescoço dela ainda
tinha as marcas vermelhas de onde ele a havia segurado
e Rafael quase conseguia sentir um eco da pulsação
dela. Ele poderia ter matado Alana. Uma parte de si
ainda pensava que deveria ter matado a bruxa, sim, por
ela ter pensado em traí-lo daquela forma. Teria sido
simples demais, de uma forma que Rafael nunca teria
previsto. Se a própria Alana não tivesse jogado a taça
para longe, ele teria perdido tudo.
Mas Alana estava certa, também. Ela não tinha como
saber as consequências do seu plano, porque ele havia
feito questão de mantê-la sem nenhum tipo de
informação sobre o que estava acontecendo. Rafael
precisava dela, verdade. E aquilo era o suficiente para
poupar sua vida. Mas ele precisava do poder e mais
nada. Rafael precisava da obediência de alguém preso a
ele, não de uma bruxa humana interessada demais em
assuntos que não eram dela.
Ele nunca teria a obediência de Alana. Aquilo era
uma falha nos seus planos. Ela não era como as outras
bruxas com quem Rafael já havia lidado. Se Rafael
quisesse que o poder de Alana fosse usado para o seu
plano, ele precisaria dela. Da bruxa, como uma aliada – e
não apenas presa a ele por um contrato, mesmo que ela
concordasse em fazer outro tipo de contrato.
— O poder — Alana começou. — De onde ele vem?
Rafael a encarou. Ela sustentou seu olhar, sem falar
mais nada.
Ele não queria lhe dizer nada. Humanos não podiam
saber sobre o poder e os riscos, porque saber levava ao
pânico e quem pagaria seriam os vampiros. Não. Rafael
estava confortável demais naquele mundo.
E, se ele não convencesse Alana de que se aliar a ele
era a melhor opção, ele perderia aquilo, também.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— É uma criatura. Alguém que me recuso a chamar
de algo que possa ser entendido como humana. E se
você reconheceu o poder, você sabe o que ela faz.
— Ela consome a vida. Se alimenta dela, como os
vampiros?
Não. Nunca como eles.
— Ela se fortalece com a vida que consome — Rafael
falou.
Alana levantou as sobrancelhas.
— Como os vampiros.
Ele fechou as mãos com força. Não havia insulto pior
que ser comparado com aquilo.
— Nunca. Nós podemos nos fortalecer quando
bebemos o sangue de alguém, mas o sangue é alimento
em primeiro lugar. É o que nos mantém nessa existência
e você sabe disso.
Era óbvio que sabia, considerando que a prima de
Alana havia encontrado Amon, depois do outro vampiro
ser deixado preso por décadas. Se alguém deveria
entender exatamente a diferença, era ela.
Alana não falou nada.
— Essa criatura não é como os vampiros — Rafael
repetiu. — Ela consome vida para se fortalecer e mais
nada.
— E eu vou ter que te insultar para conseguir cada
pedaço dessa explicação, ou você vai me dar as
informações que preciso?
O pescoço de Alana ainda tinha as marcas de onde
Rafael a havia segurado. Ele não ia fazer a mesma coisa
de novo, porque aquilo só provaria que a manipulação
dela estava funcionando. Uma humana não deveria ser
capaz de fazer com que ele perdesse o controle, mas
Alana conseguia chegar perto daquilo sem muita
dificuldade.
E Rafael entendia o motivo: por mais que quisesse
negar, ele não conseguia deixar de admirar a bruxa,
desde o começo. Era aquela forma como ela havia
atraído sua curiosidade e mantido seu interesse, mas era
mais. Apesar de tudo, ele não conseguia deixar de
apreciar cada escolha dela – até mesmo a tentativa de
envenená-lo. Aquilo era algo que Rafael nunca teria
imaginado e que teria funcionado, sem a menor sombra
de dúvida. E até mesmo a forma como ela estava agindo
ali. Como Alana havia encarado um vampiro furioso sem
hesitar, com plena confiança no que ela sabia e podia
fazer. Como ela estava lhe forçando a dar as respostas
que queria, agora.
Mas ela não deveria precisar forçar Rafael a dar
respostas e ele reconhecia aquilo, também. Sem o poder
dela, ele não conseguiria fazer nada contra aquela
criatura. Não daquela vez.
Ele foi na direção da janela e parou, encarando o
horizonte. O céu já estava claro o suficiente para todos
os outros vampiros estarem se afastando de qualquer
lugar onde havia luz direta. E, lá fora, os prédios mais
altos da sua cidade refletiam a luz do sol nascente.
— Quando notei o poder pela primeira vez, eu não
era um príncipe — Rafael contou. — Era mais um dos
vampiros contentes em ter seu território e mantê-lo. Os
outros vampiros não me importavam, desde que não
interferissem na região que era minha ou caçassem
meus humanos.
Alana fez um ruído baixo que ele não precisava se
virar para entender. Era a resposta dela ao seu
comentário sobre os humanos serem sua propriedade. E,
na época, eram. A vida daqueles que tiravam seu
sustento das suas terras lhe pertencia.
— Foram os humanos que notaram que alguma coisa
estava errada — ele continuou. — Eu recebi os avisos de
que as colheitas seriam menores. Mesmo que nada
diferente tivesse acontecido, nenhum tipo de praga,
nenhuma chuva ou seca em época errada, eles não
conseguiriam me oferecer o mesmo que haviam
oferecido nos anos anteriores. E toda a região ao redor
das minhas terras estava com o mesmo problema
inexplicável. Nós nos juntamos, os lordes humanos e eu,
para tentar entender o que estava acontecendo, se
estávamos sendo roubados de alguma forma, e não
descobrimos nada.
Rafael não se lembrava mais dos detalhes ou de
quanto tempo se passara. A época em que ele não tinha
uma Corte era um borrão na sua memória – tempo
demais no passado. Mas anos haviam se passado, com
as colheitas ficando cada vez menores sem nenhuma
explicação.
Na época, ele ouvira teorias demais sobre bruxas
estarem amaldiçoando a região. Não bruxas como as que
existiam agora, porque a magia ainda era fraca demais e
as chamadas bruxas quase sempre eram apenas
mulheres que haviam estudado mais que os outros sobre
o mundo ao seu redor. Mas elas eram as únicas pessoas
que os humanos podiam culpar – pelo menos até
descobrirem que Rafael não era humano. E então a culpa
havia passado a ser dele.
Aquela parte era clara nas suas lembranças,
também: o fogo consumindo tudo o que havia sido dele.
E o próprio Rafael mal havia conseguido escapar.
Mas ele havia escapado e a traição dos humanos que
ele protegera por tanto tempo não havia sido ignorada.
Eles haviam pagado o preço para que ele se recuperasse.
E Rafael havia criado o começo do que se tornaria a
Corte do Sangue como uma forma de deixar claro para
aqueles humanos que haviam cometido seu maior erro.
Ele havia cobrado seu preço em sangue. Rafael e
seus vampiros leais haviam espalhado o terror na região
– apenas para parar quando ele notara que havia algo
acontecendo ali, sim. Porque não eram apenas as
plantações que estavam fracas. As roseiras perto do seu
castelo, que haviam sido plantadas pela mesma mulher
que o traíra e entregara para os humanos, também
estavam morrendo. As roseiras que ela havia plantado
justamente porque sabia que não precisariam de muito
cuidado, ali.
E então Rafael havia estudado e pesquisado. Ele
sabia que tinha o potencial para magia que separava
alguns dos vampiros mais poderosos dos demais, mas
nunca tivera interesse em explorar aquilo. Até que
aprender se tornara uma necessidade, porque ele não
confiaria em nenhum dos vampiros praticantes de magia
para lhe dizer a verdade sobre o que estava acontecendo
na região.
— Era a criatura se alimentando da vida na região —
Alana falou.
A voz da bruxa foi o suficiente para arrastar Rafael
de volta para o presente e ele assentiu, sem se virar para
ela.
— E se não era alguma coisa visível assim, então
provavelmente ela ainda estava fraca — ela continuou,
em voz baixa. — Talvez estivesse começando...
Rafael sorriu, ainda encarando o horizonte. Aquele
era um dos maiores motivos para ele não conseguir
escapar da sua fixação em Alana. A forma como ela
simplesmente entendia as coisas depressa. E não era
apenas entender. Era aceitar algo que até então era
diferente e desconhecido, também. Ela não perdia tempo
pensando em como aquilo podia ser possível. Alana
aceitava e olhava em frente, mais nada.
O que queria dizer que ela não ia demorar a
entender a pior parte de tudo aquilo – provavelmente
antes de ele chegar naquela parte da história.
— Ela veio até mim pouco depois que entendi o que
estava acontecendo e comecei a reunir mais vampiros ao
meu redor — Rafael contou. — Seria simples demais não
fazer nada, mas eu pelo menos sempre tive consciência
de que nós precisamos dos humanos para existir. Já vi a
loucura dos vampiros que tentaram se alimentar de
sangue animal vezes demais. Então, se algo os estava
prejudicando, nada mais justo que nós caçarmos aquele
outro predador.
— Quase como uma versão do acordo entre
vampiros e humanos de agora — Alana murmurou.
Rafael nunca havia pensado daquela forma, mas
sim. Era a mesma lógica. Os vampiros se alimentariam
dos humanos e os protegeriam dos outros predadores.
E Alana precisava de informações, não de toda a sua
história.
— A Corte do Sangue foi criada para conter esta
criatura — ele falou.
— Conter porque não conseguiam destruir o que
quer que ela fosse, ou porque não queriam? — Sua bruxa
perguntou.
Perspicaz.
— Não conseguimos — Rafael contou. — Por mais
que a ideia de roubar aquele poder para nós fosse
tentadora, aprender como a criatura estava fazendo o
que fazia, o risco era grande demais. Todos os vampiros
envolvidos nisso na época concordaram.
— E foi por isso que os vampiros aceitaram ter uma
pessoa os governando — Alana falou, devagar. — Por
causa da ameaça dessa criatura e porque alguém tinha
que ser responsável por ela. Você.
Ele assentiu, sem se virar. Ela já estava juntando
todas as peças.
— E quando a magia voltou, a Corte do Sangue
desapareceu — ela continuou. — Os vampiros mais
antigos foram destruídos ou enlouqueceram. Ou se
esconderam. E a criatura que tinha passado esse tempo
todo presa...
Exatamente.
Rafael havia pensado que teria tempo para se
esconder e evitar o mesmo destino dos antigos que não
haviam enlouquecido. Ele imaginara que o que estava
vendo – a seca, a forma como tudo estava morrendo –
fosse apenas o resultado da força da criatura sendo
aumentada pela volta da magia. Mas ela ainda estava
presa e ninguém além do próprio Rafael conseguiria
libertá-la.
— Ela escapou — Alana murmurou. — Talvez até
tenha enlouquecido por causa dos anos... Séculos? Do
tempo que passou presa. E a volta da magia se juntou
com isso e... Esse é o motivo para o mundo ter mudado.
Não foi a magia. Foi essa criatura. Foi o poder dela,
depois de séculos presa.
Ele não respondeu. Não precisava responder, ela
sabia que estava certa.
— E se você fez tanta questão de me prender em um
contrato, é porque os vampiros sozinhos não vão
conseguir conter a criatura de novo — ela completou.
Exatamente. E agora o contrato havia sido quebrado.
Rafael se virou para Alana. Ela continuava sentada
no mesmo lugar, mas não parecia mais tão relaxada
quanto antes. Ela entendia o risco.
— No passado, havia vampiros demais que
praticavam magia — ele contou. — A nossa magia, sim,
que sempre foi diferente do que as bruxas faziam, tanto
na época quanto agora.
— Porque vocês carregam magia em vocês — Alana
falou. — A existência de vocês depende de magia, então
faz sentido que conseguiam fazer alguma coisa mesmo
antes da volta da magia.
Rafael assentiu.
— E, com o passar do tempo e com a forma como
mais vampiros estavam sendo transformados, nossa
magia foi banida, para garantir que nenhum neófito se
interessaria pela presença daquele poder. Não tínhamos
como confiar naqueles que não haviam visto tudo
morrendo ao nosso redor.
— Você não prendeu a criatura sozinho, da outra vez
— Alana completou. — Você precisou da ajuda desses
outros vampiros que sabiam magia. E agora está
achando que o meu poder vai ser o suficiente para
substituir eles, porque sou o oposto da criatura.
Ele se permitiu um sorriso fraco antes de assentir, de
novo.
— Eu pensei que teria mais tempo — Rafael admitiu.
— Mas estava errado e ela está aqui, em algum lugar
perto demais da região. A aliança de setores que atacou
o Três alguns meses atrás foi obra dela e o poder que
estava perto da fronteira, naquela noite, era a criatura.
E ele não precisava dizer que aquilo, junto com a
cena no baile, era uma garantia de que a criatura não iria
se afastar. Ele podia não saber quais eram seus planos,
mas tinha certeza de que ela estava planejando outro
ataque, sim.
Alana assentiu devagar e se levantou.
Rafael esperou. Ela estava olhando para ele com a
mesma postura que ele havia visto no salão, horas antes:
uma rainha, segura demais no seu poder e cercada de
uma confiança que era outro ímã por si só.
— Eu vou te ajudar a parar essa criatura — Alana
falou. — Mas tenho minhas condições.
Ele inclinou a cabeça.
— Diga.
— Primeiro, eu não vou ser deixada no escuro. Se
tiver alguma informação nova, eu vou ficar sabendo. E
você não vai fazer planos pelas minhas costas e esperar
que eu seja só uma peça para você apontar e dizer o que
fazer.
Rafael encarou Alana. Mesmo na época em que ele
havia criado sua primeira Corte, quando a única coisa
que os outros vampiros sabiam sobre ele era que Rafael
havia mantido o controle sobre aquela região por
séculos, ele nunca havia dividido seus planos com
ninguém. Nem mesmo Thales, que era seu braço direito,
sabia de tudo o que ele estava planejando ou entendia as
motivações por trás do que sabia.
Mas ele não deveria ter esperado outra coisa de
Alana. Não depois de ter visto a reação dela a ser
deixada de fora dos planos da sua prima. E não
considerando que ele precisava dela.
— Justo — Rafael falou.
Ela sustentou o olhar dele por alguns segundos antes
de assentir.
— E sobre o que eu fiz — ela continuou. — Não vai
ter nenhuma repercussão. Nem para mim, nem para
ninguém ao meu redor.
A outra bruxa. A que morava na sua cidade. Alana
não admitiria aquilo com todas as palavras, mas aquele
pedido era mais que uma confirmação de que as ervas
haviam vindo da outra mulher.
Não importava. Já fazia tempo demais que Rafael se
acostumara com humanos tentando destruí-lo de uma
forma ou de outra. E o fato de que ninguém além de
Thales sabia o que Alana havia tentado lhe permitia
ignorar aquilo sem nenhum tipo de retaliação.
— Justo, também — ele concordou.
Alana respirou fundo e balançou a cabeça de um
lado para o outro, devagar. Rafael sorriu. Pelo visto, ela
havia esperado uma discussão. E, em qualquer outra
situação, eram bem provável que ele tivesse discordado,
sim.
— Sendo assim, espero ser avisada quando tiver
alguma informação — ela falou.
Era óbvio que seria.
Alana se virou e foi na direção da porta que dava
para o seu quarto.
— O que você vai fazer? — Ele perguntou.
Ela se virou para Rafael com uma expressão que
deixava claro que a resposta deveria ser óbvia.
— Voltar para casa.
Porque o contrato havia sido quebrado. E ela havia
concordado em trabalhar com Rafael para conter a
criatura – mas trabalhar com ele não queria dizer estar
no Setor Um.
Rafael fechou as mãos com força. Aquilo deveria ser
um ponto positivo. Era a distância que ele precisava ter
da bruxa, especialmente depois da traição. Falar sobre o
passado deveria ter sido o suficiente para deixar aquilo
claro, porque ele ainda se lembrava do fogo. Dos
resultados de deixar seu interesse em alguém falar mais
alto.
Ele sabia daquilo. Mas não conseguia deixar de
pensar que estava perdendo algo com a partida de
Alana.
ONZE

Alana fechou os olhos e respirou fundo. A mistura de cheiros no


ar – o perfume das flores com o cheiro mais marcante de
hortelã e alecrim – era familiar demais. Ela podia não ter
passado seis meses fora do Setor Dez, daquela vez, mas
ainda assim era um alívio estar ali, sentindo os cheiros
que ela tinha acostumado a reconhecer como da sua
casa.
— Alana? — Mel chamou. — Já está todo mundo aqui.
Ela abriu os olhos devagar e encarou o jardim nos
fundos da mansão que era a sede do Setor Dez. Sua
casa, sim. E os problemas agora eram muito piores do
que quando as ofertas e pedidos de casamento tinham
começado, alguns anos antes.
Aquilo tudo provavelmente tinha sido obra de Lorde
Rafael, também. Parte do plano dele para garantir que
ela aceitaria o contrato que ele ofereceria, depois. E...
Não. Não tinha nada de "Lorde Rafael". Ela tinha
usado aquilo como um lembrete para si mesma, para
manter sua distância. Mas Alana não precisava de mais
lembretes. E ela se recusava a dar qualquer coisa para
ele que pudesse ser entendido como um reconhecimento
de autoridade ou de poder. Então o "lorde" ia
desaparecer até dos pensamentos dela.
Rafael era um vampiro como os outros: ambicioso,
arrogante e manipulador. E, mesmo que tivesse
concordado em trabalhar com ele, Alana não ia se
esquecer daquilo.
Ela voltou para dentro da cozinha e fechou a porta.
Mel estava encostada no batente da porta que dava mais
para dentro da casa, de braços cruzados.
— Conseguiram conexão...? — Alana começou.
A outra mulher assentiu e se endireitou.
— Duas conexões estáveis e seguras — Mel contou.
— Com Amon e Dani e outra com o Setor Três.
Porque Eric e Lara precisavam saber do que Alana
tinha descoberto.
Ela assentiu e saiu da cozinha. Mel foi atrás dela,
sem falar mais nada, e Alana quase conseguia sentir a
tensão da outra mulher. Todo mundo ali estava tenso
desde que ela tinha voltado para o Dez, e com direito.
Alana entrou na sala de reuniões. Todo mundo ali,
sim. Raquel, sentada na cabeceira da mesa, com
Ezequiel sentado à sua direita e Adriana à esquerda. Mel
foi se sentar ao lado de Yuri na mesa. Alex estava do
outro lado, encarando alguma coisa em um tablet, e
Dante estava sentade entre Adriana e Yuri.
No meio da mesa, alguém tinha colocado três
monitores fazendo um triângulo, o que queria dizer que
todo mundo ali conseguia ver ao menos uma das telas
divididas. De um lado dos monitores, dava para ver Dani
e Amon – e era fácil notar como Dani estava irritada por
estar em uma reunião à distância. Mas Alana não ia
esperar até anoitecer para repassar aquelas informações.
Na outra metade dos monitores, estavam Lara e Eric.
Alana se sentou e olhou ao redor de novo, depressa.
Ela tinha pedido aquela reunião. E ela não ia esperar
alguém decidir como as coisas iam ser.
— Deixa eu já começar deixando isso claro — ela
falou. — Mas não tenho mais um contrato com Rafael ou
com o Setor Um.
— O que você fez no baile quebrou o contrato —
Dani comentou. — Imaginamos isso quando pediu para
alguém te encontrar no Dois.
E Alana ainda estava surpresa por Dani não ter
insistido e pedido explicações antes de ir embora, na
noite anterior. Sua prima só tinha concordado em mandar
alguém para esperar por Alana – e havia mandado
Gustavo.
— Alguma chance de retaliação? — Yuri perguntou.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro.
— O contrato foi quebrado, mas Rafael e eu temos
um acordo. Ele ainda precisa de mim e sabe que se
atacar o Dez não vai ter nenhuma chance de ter minha
ajuda.
— E, por mais que seja importante eu conhecer os
riscos que nossos aliados estão correndo, isso não
explica você ter feito questão de nos ter nessa reunião —
Eric interrompeu.
Alana encarou o príncipe do Setor Três em um dos
monitores. Ela não fazia ideia de onde estavam as
câmeras transmitindo para eles e para Dani e Amon, e
não se importava de verdade.
— Porque a quebra do contrato não é a parte
importante dessa reunião — ela falou. — A parte
importante é o que está acontecendo, no sentido de
ameaças. Vocês até hoje não descobriram mais nada
sobre o que foi o poder se aproximando no dia que o Três
foi atacado, não é?
No monitor, Lara balançou a cabeça e Eric não
respondeu. Ao redor da mesa, Yuri se endireitou,
encarando Alana. Alex se virou, estreitando os olhos para
encarar Alana, também.
— Rafael sabe exatamente o que era o poder que se
aproximou aquele dia — Alana contou. — É um problema
velho dos vampiros, é o que fez o mundo mudar quando
a magia voltou, e agora nossa região é o alvo dessa
criatura.
Ninguém falou nada por alguns segundos. Alana
esperou.
Dani xingou. Yuri resmungou alguma coisa, mas
Adriana já estava falando e Raquel estava perguntando
alguma coisa que Alana não conseguia ouvir. Ezequiel
também falou alguma coisa, Mel estava falando depressa
demais...
E Alana não ia perder seu tempo tentando colocar
ordem naquilo. A falação ao mesmo tempo não era
normal para ninguém ali, então não ia demorar para
pararem. E aquilo dava tempo para ela tentar organizar
como contar o que tinha descoberto.
Quando Rafael estava contando toda aquela história
sobre o passado e como ele havia organizado os
vampiros para prenderem a criatura, ele havia dado a
entender que ela havia sido algum tipo de vampiro antes
de se tornar aquilo – o que quer que aquilo fosse. Mas
Alana tinha suas dúvidas. A forma como ele havia
descrito o crescimento do poder não encaixava com o
que ela sabia sobre os vampiros. A criatura havia se
fortalecido de forma gradual. Tinha sido algo discreto, no
começo, tanto que tinha demorado para entender o que
era. Vampiros não eram discretos. Eles não tinham
aquele tipo de calma. Quando se alimentavam e se
fortaleciam, era de uma vez só. O que deixava uma
possibilidade um pouco desagradável demais.
— Você disse que ele precisa de você — Eric falou,
alto o suficiente para cortar por cima das vozes dos
outros.
Alana assentiu.
— Sim.
— Por quê? — O necromante insistiu. — Não estou
duvidando dos seus poderes. Eu vi o que pode fazer. Mas
por que uma bruxa da natureza?
Os outros pararam de falar tão alto. Adriana e Yuri
ainda estavam discutindo, mas pelo menos agora era em
voz baixa.
Ela deu de ombros.
— Você estava lá, de noite — Alana falou. — Você viu
o enviado da criatura e o que ele fez. É isso que ela faz.
Ela se alimenta de vida. Rafael precisa de mim porque o
meu poder é o oposto do dela.
— Se alimenta de vida — Alex murmurou.
Alana se virou para elu.
— E se você puder deixar o anel para lá e tentar
achar alguma coisa sobre isso...
Alex assentiu.
— Só vou precisar de mais detalhes.
— Todes nós vamos — Raquel interrompeu. —
Deixem ela contar tudo o que sabe antes de começarem
a falar de novo.
Alana respirou fundo. Era estranho ter todo mundo
ali olhando para ela daquele jeito, como se ela tivesse as
respostas. Mas era infinitamente melhor do que ser
ignorada ou subestimada.
— O que Rafael me contou é que notou os primeiros
sinais da criatura antes de criar a primeira Corte do
Sangue, bem antes da volta da magia — Alana começou.
— E que ele começou a estudar a magia dos vampiros
justamente para tentar descobrir o que estava
acontecendo...

Rafael parou no alto da torre vazia e olhou para fora, sem


realmente ver nada. Ele entendia por que Alana gostava
tanto daquele lugar. Era uma área do castelo onde
nenhum vampiro ia, se pudesse evitar, por causa de
como a luz do sol entrava pelas janelas durante a maior
parte do dia. Na época em que construíra o castelo,
Rafael havia pensado em usar aquela sala para tortura,
mas aquilo nunca havia sido necessário. E, agora, aquele
era o lugar perfeito para ele conseguir pensar, também,
porque não seria interrompido.
E ele estava sendo interrompido o tempo todo,
enquanto ainda estava no seu escritório. As mensagens
vindas dos vampiros de outras regiões não paravam de
chegar – tanto dos que haviam estado no baile e
entendiam o risco que estavam correndo, quanto dos que
não haviam estado ali e não queriam ser deixados para
trás.
Aquilo era um bom sinal. Era exatamente o que
Rafael queria: não uma cópia da Corte do Sangue, antes
da volta da magia. Não. O mundo havia mudado e a
situação atual, a forma como estavam espalhados e no
controle, não lhe permitiria fazer a mesma coisa. E,
mesmo que permitisse, Rafael não queria. Ele seria a
autoridade maior acima de todos os vampiros, sim.
Aquele era o seu lugar. Mas ele não seria o único
responsável por tudo e não seria a pessoa controlando
cada Corte.
Não. O que ele queria era o mesmo sistema que
existia nas regiões, onde cada Corte tinha controle sobre
o seu setor, mas sempre havia uma delas com
autoridade sobre as outras. Ele seria aquilo – não para
uma região ou um grupo de Cortes, mas para todo o
mundo.
E assumir aquele papel queria dizer que ele
precisava negociar com as outras Cortes espalhadas pelo
que restava do mundo. Ele não teria todos os vampiros
sob a sua influência, longe daquilo, mas teria a maioria e
aquilo era a parte que importava. Rafael precisava que
as histórias se espalhassem, tanto sobre o passado
quanto sobre o que acontecera no baile. Ele precisava
que os vampiros ficassem curiosos ou preocupados o
suficiente para procurarem saber mais – e então verem o
que havia sobrado da Europa. Ele não ofereceria seus
contatos, mas sabia que outras Cortes teriam suas
formas de buscar informações sobre o continente
abandonado.
E aquela era a parte mais simples do que estava na
sua mente. Não havia mais nada que ele pudesse fazer
pelos vampiros além de esperar. A parte complexa era o
fato de que a criatura estava ali, em algum lugar perto
demais. Ele não fazia ideia de como ou por que, mas a
criatura o havia encontrado, mesmo duzentos anos
depois, mesmo com todo o cuidado que ele havia tido
para não ligar a Corte da Noite à antiga Corte do Sangue.
Rafael enfiou a mão no bolso e tirou um isqueiro.
Aquela era uma das únicas relíquias do seu passado que
ele fizera questão de guardar e era um lembrete. Na
primeira vez em que ele havia pensado que encontrara
alguém que poderia estar ao seu lado pela eternidade, o
fogo havia consumido sua propriedade – porque ela o
havia traído. Séculos depois, Rafael havia se sentido
tentado a confiar em alguém, de novo. Ela já era uma
vampira, o que queria dizer que não teria motivos para
trair Rafael como a mulher do seu passado havia feito.
Mas ela também era uma necromante e estava mais
interessada no poder de Rafael do que nele mesmo. Mais
especificamente, em consumir o poder dele para se
fortalecer.
Como a criatura fazia. Não era a primeira vez que
Rafael notava aquela semelhança. E ele conhecia as
histórias sobre necromantes que haviam se tornado
monstros muito piores que os de qualquer história que
sobrevivia entre a humana.
O isqueiro havia sido um presente dela por... Rafael
não lembrava mais o motivo. Na verdade, ele não se
lembrava nem mesmo dos nomes de nenhuma das duas.
Mas ele se lembrava de como havia sido, quando
elas estavam lá. E aquele era o problema, porque
nenhuma delas nunca havia tido coragem de desafiá-lo
como Alana fizera. Nenhuma delas nunca teria tido a
coragem e o pensamento rápido para fazer o que sua
bruxa fizera, no baile.
Nenhuma delas nunca havia trazido todos os
instintos de Rafael à tona ou o deixado com aquela
necessidade de mais.
E Rafael sabia que, mesmo que sua existência se
estendesse por mais mil anos, ele não se esqueceria do
nome de Alana.
O que queria dizer que ele tinha uma decisão para
tomar. Ou talvez aquela decisão já houvesse sido
tomada, se ele fosse honesto consigo mesmo.
Seu tablet apitou. Rafael pegou o aparelho e encarou
a tela por um instante antes de se virar e sair da torre.
Por mais que ele quisesse continuar ali, ainda havia
muito a ser feito.

Rafael encontrou Victor parado na frente do seu escritório.


Àquela hora, Thales já estaria de volta no Setor Cinco –
que era onde ele precisava tomar mais cuidado com a
antiga Corte. E, se pudesse, Rafael teria enviado mais
alguém para o Setor Oito, mas não havia mais ninguém
em quem ele confiasse naquele ponto. Ou melhor, havia.
Mas ele precisava de Victor ali, no castelo.
O outro vampiro inclinou a cabeça e se afastou para
o lado, enquanto ele abria a porta e entrava.
Rafael parou na frente da sua mesa e esperou Victor
entrar e fechar a porta atrás de si. Se estavam ali, era
porque havia surgido mais alguma informação que era
melhor manter em segredo. Se não fosse assim, o outro
vampiro teria lhe enviado os dados ou até mesmo ido
atrás dele na torre.
— As investigações sobre o humano traidor — Victor
começou. — Tudo indica que sua lealdade foi convertida
recentemente.
— Quão recentemente?
— Em algum momento nos últimos cinco anos.
Cinco anos.
Rafael contornou a mesa e se sentou na sua cadeira.
O que quer que estivesse acontecido, aquela janela de
tempo era uma pista. Mas ele não conseguia pensar em
nada que houvesse acontecido na região cinco anos
antes. Ele sempre havia feito questão de manter tudo ali
o mais estável possível. Naquela época, não estavam
lidando com nenhum tipo de conflito. E, por mais que um
conflito pudesse atrair outros poderes para perto, aquilo
não encaixava com o que ele sabia sobre a criatura. Ela
não seguia para onde morte e destruição já estavam. Ela
procurava vida.
Vida.
Aproximadamente cinco anos antes, Alana e Daniele
haviam chegado no Setor Dez e sido aceitas lá.
Rafael precisava conferir os relatórios sobre a região
– os dados sobre as plantações e quando tudo havia
começado a ficar mais difícil. Cinco anos. Ele não se
lembrava de números exatos, mas tinha a impressão de
que a data encaixaria, também.
Rafael havia pensado que ele era o motivo para a
região ter se tornado um alvo. Agora, sabendo de quando
a criatura havia ido para lá, ele estava começando a
pensar que não fosse – ou que talvez houvesse mais de
um motivo ali. Ele seria apenas um bônus, mas o
verdadeiro prêmio era Alana e seu poder.
Era possível. O poder da bruxa parecia ser a chave
para Rafael conseguir conter a criatura de novo, agora
que era raro encontrar algum vampiro que ainda
soubesse algo sobre magia. Mas, mesmo sem aquele
detalhe, ela seria um alvo, porque podia desfazer o que a
criatura fazia, o que transformava Alana em uma
ameaça.
E ela havia ido embora. Ela havia escolhido voltar
para o Setor Dez, para fora da influência de Rafael. Se
alguma coisa acontecesse, não haveria nada que ele
pudesse fazer.
— Alguma indicação de quem mais teve a lealdade
convertida? — Ele se forçou a perguntar.
Victor balançou a cabeça de um lado para o outro.
Aquilo era preocupante. Rafael tinha certeza de que
a criatura não gastaria seu tempo comprando a lealdade
de apenas uma pessoa que tivesse acesso ao castelo.
Haveria mais guardas, porque eles eram os alvos mais
simples, ou até mesmo vampiros da sua Corte. E ele
precisava saber quem eram.
— Estou trabalhando em algumas armadilhas —
Victor contou. — Se tudo correr bem, terei nomes em
alguns dias.
"Alguns dias" era tempo demais, mas Rafael sabia
que, se fosse possível conseguir aquilo em menos tempo,
Victor teria falado.
— Me avise assim que tiver alguma informação —
ele falou.
O outro vampiro assentiu de forma seca.
— E há mais — Victor avisou.
Rafael esperou, sem falar nada.
Victor tirou um tablet do bolso e o desdobrou, até
deixar a tela aberta no tamanho máximo. Mais alguns
toques na tela, e ele ofereceu o aparelho para Rafael.
Era uma gravação do baile. De Antonidas sugando a
vida daquela planta e depois de Alana a revivendo.
Aquilo, por si só, não seria um problema. Ele queria
que a história se espalhasse e que todos os vampiros
soubessem o que tinha acontecido ali. Mas Victor não
estaria lhe mostrando a gravação se fosse apenas aquilo.
Uma vampira apareceu na imagem, com o céu da
noite atrás dela e uma paisagem que Rafael não
reconhecia.
— É isso que somos, agora? Criaturas que dão vida?
— A vampira perguntou.
A gravação mudou. A mesma cena apareceu de novo
– Antonidas, e depois Alana. E depois outro vampiro – um
dos que havia sido inimigo de Rafael, desde a época da
Corte do Sangue. O vampiro encarou a câmera por um
instante antes de mostrar as presas e então cuspir para o
lado. Aquilo não era mais o insulto que havia sido, no
passado, mas ainda era uma forma simples de deixar
claro o que ele pensava sobre o assunto.
Mais uma repetição da gravação. Mais um vampiro
dizendo quase a mesma coisa que a vampira de antes –
que eles eram seres que levavam a morte, não a vida.
Que quem se preocupava com vida eram os humanos.
Que eles eram mais que aquilo.
Rafael pausou o vídeo e encarou Victor de novo.
— Aliados da criatura ou incapazes de ver além da
sua arrogância? — Ele perguntou.
O outro vampiro balançou a cabeça de um lado para
o outro.
— Não tenho como ter certeza.
Mas a aliança era uma possibilidade grande demais.
Rafael encarou o tablet de novo. Ele sabia sobre a
maioria dos vampiros mais antigos, simplesmente por
causa da sua idade. Mas saber sobre não queria dizer
que ele se lembraria do nome de cada um deles ou do
que haviam feito no passado.
Agora, aquela vampira... Rafael se lembrava dela,
pouco depois da volta da magia, se vangloriando de
como havia sido capaz de prender um vampiro muito
mais forte que ela com um juramento. Na época, ele não
havia dado atenção àquilo. Rafael já sabia do que estava
acontecendo, de como os vampiros mais fracos estavam
se unindo para prender ou destruir os mais antigos, e era
melhor continuar se escondendo, fingindo que não era
ninguém e evitando chamar atenção.
Ele havia assistido as filmagens do que acontecera
no Setor Oito, enquanto o Três estava sob ataque. Rafael
havia visto como Amon fizera questão de dar uma morte
lenta e dolorosa para Cassius. Aquilo tinha sido o que
alguém querendo vingança fazia, não uma execução
limpa.
Vingança por ter deixado Amon preso, esquecido no
que se tornara o Setor Dez por décadas, ou por ter sido
um dos vampiros que havia usado um juramente para
controlar Amon?
Rafael não sabia muito sobre o outro vampiro, mas
sabia o que ele faria na mesma posição. Então talvez
Amon estivesse interessado em se vingar de mais que
apenas Cassius. Ele havia passado dois séculos preso por
juramentos, afinal. E seria uma forma útil de lembrar aos
vampiros se aliando àquela criatura de que havia mais
poderes caminhando pelo mundo.
E talvez...
Não. Rafael havia feito um acordo com Alana. Ele
não faria planos ou tomaria decisões pelas costas dela.
O que queria dizer que, para cumprir o que havia
prometido, Rafael teria que ir atrás da bruxa.
Ele sorriu. Alana não estava indefesa e ele tinha
plena consciência daquilo. Mesmo assim, saber que tinha
um motivo para ir até ela e garantir que estava segura
era mais que satisfatório.
Rafael assentiu e olhou para Victor de novo.
— Me mantenha informado de qualquer atualização.
O outro vampiro assentiu e saiu do escritório sem
falar mais nada.
DOZE

Alana encarou o teto do seu quarto. Uma aranha havia feito sua
teia em um canto da parede, quase atrás de uma das
suas samambaias. E ela estava entediada demais se
tinha chegado no ponto de reparar naquilo.
Ou melhor, ela não estava entediada. Estava sem
sono, mesmo que estivesse esgotada, então só não
queria pensar mais. Encarar o teto e as paredes era
melhor que levantar e tentar fazer alguma coisa.
A reunião tinha durado horas. Ela havia contado tudo
o que sabia, o que tinha notado e o que suspeitava.
Amon havia acrescentado alguns boatos que ele se
lembrava de ter ouvido – ele sempre tinha feito questão
de ficar longe do território de Rafael e da Corte do
Sangue, então era óbvio que não ia conhecer as histórias
sobre aquilo. E até mesmo os boatos que ele se
lembrava, não era muita coisa. Mas Amon se lembrava o
bastante para dar uma ideia da época em que haviam
prendido a criatura.
Alana preferia não pensar em quanto tempo atrás
aquilo tudo acontecido. E definitivamente não queria
pensar que tanto Amon quanto Rafael estavam pelo
mundo já fazia bem mais que mil anos. Não. Aquilo era
tempo demais. Ela não conseguia imaginar existir por
tanto tempo. Ver todas as formas como o mundo havia
mudado e precisar se adaptar a cada uma delas...
Ela definitivamente entendia quando Amon dizia que
preferia não se lembrar do passado. Não era nem tanto
sobre ser algo pesado que ele preferia esquecer. Era só...
Demais.
Mas Rafael não ignorava o passado. Ele tinha lhe
contado aquilo sobre a criatura com o tom de alguém
resumindo uma história que conhecia bem demais. Alana
era capaz de apostar que ele se lembrava muito bem de
tudo que tinha acontecido naquela época.
Como alguém conseguia existir por tanto tempo e se
lembrar daquilo sem enlouquecer era uma coisa que ela
não conseguia entender, também.
Talvez aquilo tivesse algo a ver com a criatura, com
o que ela estava fazendo. Depois de tanto tempo presa,
que garantia eles tinham de que ela ao menos sabia o
que estava acontecendo? Podia muito bem ser só loucura
e instinto.
Mesmo que fosse, Alana não era ingênua o suficiente
para pensar que a criatura teria outro destino. Ela
precisava ser parada. Se ela não parasse de consumir
vida, então teria que ser destruída... Se aquilo fosse
possível.
E algo estava se aproximando da mansão.
Alana se sentou na cama e respirou fundo, tentando
entender o que estava sentindo. Era uma impressão de
poder e era familiar, mas ela não tinha certeza...
Uma silhueta mais escura apareceu contra a sua
janela.
Ela se levantou depressa e bateu a mão no
interruptor, acendendo as luzes do quarto ao mesmo
tempo em que Rafael atravessava a janela fechada.
— Você não é bem-vindo aqui — Alana falou. — E
não adianta tentar inventar alguma coisa para dizer que
foi convidado.
E ela não podia só usar suas samambaias para jogar
Rafael para fora, por mais tentador que fosse. Ou então
criar alguma coisa que fosse capaz de deixá-lo
inconsciente – e aquilo era mais tentador ainda.
Rafael a encarou.
Um dia ela ia entender como ele conseguia chegar
no Setor Dez daquele jeito e atravessar a janela. Não era
nada parecido com o que Alana sabia sobre os poderes
dos vampiros. Ele não estava correndo até ali, porque
quando um vampiro corria dava para ver os sinais mais
óbvios – cabelo e roupas desarrumados por causa do
vento. E Rafael sempre estava impecável quando entrava
ali. A única coisa que ela conseguia pensar era que
talvez fosse alguma coisa parecida com o poder de Dani,
mas Alex já tinha falado que a impressão do poder de
Rafael era diferente.
— Se é para não agir pelas suas costas e você faz
questão de estar aqui, no Setor Dez, então a única forma
de fazer planos é eu vir até você — ele falou.
E como ele chegava ali não importava,
especialmente se ele já chegava mentindo.
Uma das samambaias perto da janela balançou
devagar. As folhas estavam crescendo depressa e Alana
sabia que as sementes escuras estavam aparecendo
nelas. Ela só precisaria de um segundo para transformar
as sementes em uma arma e de menos que aquilo para
prender Rafael entre as folhas.
— Quando é do seu interesse, você sabe mandar
mensagens — ela lembrou.
Tanto usando as redes de comunicação abertas
quanto usando magia e não adiantava ele tentar negar.
Ele tinha se comunicado com Alana usando magia, antes.
E ela tinha visto seu tablet e seu computador vezes o
suficiente para saber que Rafael estava recebendo
informações por eles.
Rafael sorriu.
A vida definitivamente não era justa. Ele não valia
nada. Ele tinha planejado criar o Setor Dez como uma
armadilha desde o começo e depois matar todo mundo
ali. Ele era a pessoa que estava por trás dos anos de
tensão quando os vampiros estavam mandando
propostas para Alana e era a pessoa que tinha financiado
o ataque do Setor Oito – o ataque no fim das contas tinha
sido o motivo para Dani morrer e ser transformada.
Todos os problemas do Setor Dez eram culpa de
Rafael. E provavelmente mais alguns que Alana nem se
lembrava. Não era justo ele estar parado ali, com aquele
sorriso que fazia ele deixar de ser uma estátua que
merecia ser apreciada de longe e transformava tudo o
que ele fazia em um convite.
— Mas as mensagens demoram, mesmo que pouco,
e dão margem para erros de interpretação — ele falou,
sem sair do lugar. — Se estou aqui, é justamente para
cumprir o espírito do nosso acordo, porque teria sido
muito mais fácil mandar uma mensagem, sim.
Ele estava mentindo. Alana não sabia como tinha
tanta certeza, mas aquilo não importava.
Rafael queria alguma coisa no Setor Dez. Na
mansão, possivelmente.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro.
— O que você quer? — Alana perguntou.
Rafael deu um passo na sua direção. As folhas da
samambaia se desenrolaram e ele parou, levantando as
duas mãos com as palmas viradas para fora.
— Planos, Alana — ele repetiu. — E mais nada.
Era o que ele dizia e ela continuava não conseguindo
acreditar.
— Eu não confio em você — ela murmurou.
E aquilo não era nem novidade. Ela nunca tinha
confiado em Rafael. Não, ela quase tinha confiado nele,
meses antes. E então tinha descoberto que a criação do
Setor Dez havia sido uma armadilha desde o começo. E
tudo o que havia descoberto depois só tinha piorado a
situação.
Rafael abaixou as mãos, devagar.
— E eu não tenho como te forçar a confiar. Mas, a
menos que esteja disposta a deixar a criatura destruir
essa região, vamos ter que trabalhar juntos.
Ela sabia. Aquela era a pior parte – e estava disposta
a trabalhar com ele, sim, dentro dos seus limites. Que
com certeza não incluíam ele aparecendo no seu quarto.
— Pergunte, Alana — Rafael falou. — Se tem algo
que vai fazer tudo isso ser mais fácil, pergunte.
Fácil falar. Se alguém visse ele falando até ia pensar
que era uma coisa simples, mas não era.
Ele era o vampiro que estava disposto a usar alguém
que havia jurado lealdade para ele como exemplo.
Confiar em alguém capaz daquilo...
Alana não sabia o que tinha acontecido para aquele
guarda ser empalado. A única coisa que Rafael tinha
falado era que não tinha sido por causa dela.
— Antes do baile — ela começou. — Aquele guarda.
Rafael inclinou a cabeça e não falou nada.
— O que ele fez?
Ele continuou sem falar nada.
Alana sorriu. Era óbvio que ele ia continuar sem falar
nada. Rafael queria usar Alana e mais nada. Ele não
conseguia vê-la como uma igual, nunca conseguiria.
E aquele era o lembrete que ela precisava de por
que era uma péssima ideia esperar qualquer coisa de
Rafael. E de por que era suicídio criar qualquer tipo de
ilusão. Tudo para ele era um jogo e ela era apenas uma
peça. Até quando ele dizia que queria sua confiança, ele
estava calculando como responder, porque Rafael não
confiava nela.
Tentar trabalhar juntos havia sido um erro, desde o
começo. Mas não era como se tivessem outra opção.
— Eu tenho depósitos sob o castelo — Rafael
começou. — É uma área que poucos têm permissão para
entrar e, desses poucos, todos são vampiros que estão
comigo há séculos.
Alana levantou as sobrancelhas. Ia ter uma resposta,
então. A questão era quanto da verdade ia estar ali.
Porque sim, Rafael nunca tinha mentido para ela. Mas o
que ele não dizia muitas vezes era mais importante do
que o que ele falava.
— Armas — ela murmurou.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro
devagar.
— É onde guardo as poucas coisas que salvei do
caos quando a magia voltou ao mundo — ele contou. —
Não diria que são armas, mas o conhecimento em alguns
dos livros mais antigos pode ser usado como arma. É
onde guardo tudo o que pode ser necessário para meus
vampiros sobreviverem, se formos caçados de novo. E
também é onde armazeno o sangue em excesso depois
do pagamento anual dos humanos.
O que explicava o que Silvana tinha contado sobre
ser normal os humanos doarem sangue ao invés de
alimentarem algum vampiro. Alana não sabia de nenhum
outro setor que fizesse aquilo, mas até que tinha uma
certa lógica.
— Já faz tempo demais que desenvolvi um método
para armazenar o sangue de uma forma que ele não
perca aquilo que o faz ser um alimento para nós — Rafael
continuou. — É uma combinação de tecnologia e magia,
da mesma forma que os sistemas de segurança.
Tecnologia e magia... E o fato de que quase ninguém
sabe sobre o sangue armazenado.
Rafael se virou e encarou Alana.
— O guarda que você diz que puni com força
excessiva invadiu o depósito e o lugar onde armazeno o
sangue. De alguma forma, ele passou pelas proteções
mágicas e pelo sistema de segurança sem disparar
nenhum alarme e contaminou todo o sangue.
Anos de sangue armazenado... Não para se
fortalecer, mas para ser usado em caso de necessidade.
E todas aquelas reservas...
— Você planejou me embriagar, no baile — ele falou.
— E embriagar meus convidados, também. Mas, antes
disso, alguém já havia tentado destruir todos nós.
Um arrepio atravessou Alana. Ela não gostava de
vampiros e tinha motivos mais que o suficiente para
querer ver alguns deles destruídos – começando pelo
vampiro que era o príncipe que sua família servia, antes
de tudo. Jord. Mas a ideia de destruir todos os vampiros
naquele baile, possivelmente mais, de uma vez só...
Não. Alana era humana demais para aquilo. Ela
podia não gostar de vampiros, mas ela sabia que agir
como se todos eles fossem iguais era burrice. Eles
sempre tinham coisas em comum, verdade. Mas nem
todos mereciam ser destruídos apenas por existirem.
E, sabendo daquilo, ela era obrigada a concordar
com a punição que Rafael tinha dado para o humano. Era
justo, mesmo que ele nunca fosse deixar o que o guarda
tinha feito ser de conhecimento público. Quem importava
ia entender o recado: quem quer que tivesse dado a
ordem para o traidor fazer aquilo ou qualquer pessoa que
soubesse sobre a tentativa de envenenamento.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Ela
continuava sem confiar em Rafael – com o histórico dele,
confiar seria o auge da burrice – mas aquela resposta era
o suficiente para ela ao menos aceitar algumas das
escolhas dele.
Ela se sentou na beirada da sua cama de novo.
— Planos — Alana falou. — Se você veio aqui, é
porque teve alguma ideia.

Planos. Aquele era o motivo para Rafael estar ali. Pelo menos,
deveria ser. Mas ele não ia mentir para si mesmo: ele
estava ali porque queria Alana. O poder dela para
enfrentar a criatura, sim, mas aquilo não era o suficiente.
Ele queria provar o sangue de Alana e saber se o seu
sabor seria o mesmo de quando ela estava furiosa o
suficiente para ele sentir seu poder. E ele queria Alana ao
seu lado. Queria a confiança dela – porque só assim ele
teria como saber se a proximidade dela seria tudo o que
parecia.
E eles haviam planejado, se é que Rafael podia
chamar as quase duas horas de discussão de
planejamento. Mas ele tinha uma confirmação de que
Amon estaria interessado nos nomes e localidade dos
vampiros que haviam tido seu juramento, no passado.
Alana conversaria com ele depois, explicando a ideia de
lembrar aos outros vampiros de que ainda existiam
outros poderes caminhando pelo mundo, e avisaria
Rafael se o outro vampiro pensasse que era algo viável
de se fazer.
— Não é o suficiente — Alana falou.
Não era. Eles não tinham informações o suficiente
para pensar em atacar. E aquilo havia sido uma surpresa
para Rafael: que Alana estava pensando em atacar, não
apenas em reagir e se defender. Mas eles não sabiam
onde a criatura estava ou que forma havia tomado. Não
faziam ideia de quem eram seus aliados. Se atacassem
sem ter certeza, estariam gastando recursos à toa e
arriscando a reputação que tinham – que, até então, era
o que estava mantendo as outras Cortes ao lado de
Rafael.
O que queria dizer que ele teria que voltar ali, no
Setor Dez. Ou que tinha uma oportunidade perfeita para
convencer Alana a voltar para o Setor Um.
Rafael olhou para a samambaia ao lado da janela
antes de se virar para a bruxa de novo. Agora, as folhas
da planta estavam de volta ao seu tamanho normal,
caindo contra a parede, mas ele havia visto quando elas
haviam se movido, se preparando para contê-lo.
Alana estava livre. Eles tinham um acordo verbal que
Rafael tinha plena consciência de que só tinha valor para
ela porque sua família estava em risco, também. Se não
fosse assim, era possível que ele não tivesse nada que a
convencesse a ajudar... E nada que a mantivesse por
perto.
— Se você não quer me ver aqui de novo, seria mais
seguro negociar outro contrato — Rafael falou.
Alana estreitou os olhos, ainda do outro lado da
cama. O tempo todo, mesmo quando ela havia se
levantado e começado a andar de um lado para o outro,
ela fizera questão de ficar longe dele e aquilo era mais
incômodo do que Rafael gostaria de admitir.
Ele esperou. O que tinha falado era verdade. O
acordo que haviam feito era aberto demais, como a
própria presença dele ali deixava claro. Se ela queria
condições e limites, precisaria de um contrato.
E um contrato daria a Rafael a garantia que ele
precisava de que Alana estaria por perto. Não porque ele
pensava que ela fosse desaparecer ou se recusar a
enfrentar a criatura, mas apenas porque... Ele queria ela
por perto e aquela era a única forma de conseguir o que
queria.
A bruxa balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Sem contratos. Não quero nada me ligando a você
quando isso acabar.
E ela era perspicaz o suficiente para entender que
Rafael não ofereceria um contrato com data de validade.
Mas Alana ainda estaria ligada a ele, com um novo
contrato ou não.
— Ainda estamos casados, esposa — ele falou.
Alana deu um sorriso tão afiado que poderia ser de
uma vampira.
— Nosso casamento foi de acordo com as condições
do contrato quebrado — ela lembrou. — O que quer dizer
que, tecnicamente, não vale de nada mais. Eu posso
esperar até isso tudo acabar para anular o casamento
oficialmente e tudo mais, porque aparências importam,
como vocês vampiros fazem tanta questão de lembrar
sempre. Mas não, o casamento não vale mais nada.
Rafael a encarou. Ela... Estava certa. A quebra do
contrato havia sido a quebra do casamento, também.
Alana poderia ter exigido uma anulação formal até
mesmo antes de sair do seu castelo.
E então ele teria menos do que o pouco que ainda
tinha.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— O que eu te fiz para você fazer tanta questão de
ficar longe?
Porque, o tempo todo, ele havia tomado o cuidado
para oferecer o melhor para Alana. Desde as primeiras
vezes em que haviam se falado, quando ele estivera ali,
na mansão. E depois, no seu castelo, ele havia oferecido
tudo o que ele sabia que Alana queria e o Setor Dez
nunca teria condições de lhe dar. Ele havia até mesmo
feito questão de lhe dar a verdade, responder todas as
perguntas dela, mesmo sabendo que a bruxa estava
usando aquilo para conseguir informações para o Setor
Dez.
E, em troca, ele ouvia aquilo. Que ela não queria
nada que a ligasse a Rafael.
Alana deu uma risada seca e parou no pé da cama, o
mais perto dele que ela havia chegado aquele tempo
todo. Um ruído suave foi o suficiente para Rafael saber
que as folhas da samambaia estavam se movendo de
novo.
— Você realmente está perguntando isso?
— Estou.
E ele teria uma resposta.
Alana fez um ruído irritado e foi na direção dele.
— Você jogou as informações sobre mim para os
outros setores, para eles colocarem pressão e me
fazerem aceitar um contrato seu. Ou vai negar?
Rafael balançou a cabeça.
— Não vou negar a manipulação. Mas eu te ofereci
um contrato justo.
Ela o encarou, de boca aberta, antes de balançar a
cabeça de um lado para o outro.
— Eu não acredito... Você fez o mínimo. Você não
ganha pontos por não ter sido um bosta ainda maior,
ainda mais considerando que você fez esse "contrato
justo" porque pensou que ia conseguir me manipular
depois. Ou vai falar que não?
— Eu...
— Vai negar? A forma como você sempre estava me
observando, me levando para os lugares, me seduzindo
aos poucos? Você realmente vai negar?
Rafael segurou o queixo de Alana. Ele tinha tentado
seduzi-la, sim. E havia gostado de fazer aquilo – tanto
quanto sabia que a própria Alana havia gostado.
— E você não pode negar que estava gostando — ele
falou. — Eu posso ouvir seus batimentos cardíacos. Eu
sei cada vez que eles aceleraram por causa do meu
toque.
As folhas da samambaia se enrolaram ao redor do
braço de Rafael de uma vez e o puxaram para trás.
Ele soltou Alana, mas não se afastou. Nem ela.
— Se eu estava gostando ou não, não vem ao caso
— ela falou, com um tom gelado que Rafael nunca tinha
ouvido antes. — Mas você perguntou por que quero ficar
longe. Está aí sua resposta. Eu quero ficar longe porque
você é exatamente como os outros vampiros. Você vê
humanos como brinquedos para usar e descartar. Ou
como experimentos, para assistir e depois destruir. Eu
não vou ser mais um jogo para você.
Ela estava falando do Setor Dez. De como os planos
dele haviam sido deixar as bruxas se reunirem ali, para
depois destruir todas de uma vez.
— Meus planos para o setor não tinham nenhuma
relação com você.
Alana fez aquele ruído irritado de novo e Rafael
sentiu a samambaia se apertando ainda mais ao redor do
seu braço, com tanta força que estaria cortando a
circulação se ele fosse humano.
— Claro que não tinham. Eu viver aqui é só um
inconveniente, não é? Não era isso que ia fazer?
Aproveitar enquanto eu estava no Um para destruir tudo?
E você realmente esperava que eu fosse aceitar e
continuar lá como se isso fosse normal?
Rafael puxou sua mão. A folha de samambaia
arrebentou de uma vez e o vaso dependurado bateu com
força contra a parede.
Ele se inclinou na direção de Alana, mas não tentou
segurá-la de novo.
— Tudo o que eu fiz, foi porque precisava — Rafael
falou. — Nenhuma decisão foi tomada sem motivo. Todos
os meus planos foram feitos sabendo que isso ia
acontecer e que eu precisaria garantir que as outras
Cortes pelo mundo não se aliariam a essa criatura.
Incluindo os planos para o seu setor.
Não que aquela parte dos planos houvesse dado
resultado. Na época, Rafael havia imaginado se algo das
pesquisas do Setor Quatro não poderia ser útil contra a
criatura. Mas ele havia pensado que tinha tempo para
descobrir aquilo e que seria mais prático deixar os
humanos lidarem com qualquer possível armadilha que
ainda estivesse no setor.
Alana soltou outra risada seca e deu dois passos
para trás, se afastando dele.
— Então agora vai dizer que é um herói? — Ela
perguntou.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Nunca vou dizer que sou um herói. Mas existem
coisas muito piores que eu neste mundo.
E ele estava fazendo o que podia para garantir que
uma daquelas coisas piores não destruísse o mundo
como ainda existia.
— E ter coisas piores não é o suficiente para
justificar as suas merdas — Alana falou.
Rafael não estava tentando se justificar. Ele só havia
dado um fato.
— Você já teve sua resposta — ela continuou. — E, a
menos que tenha mais alguma informação relevante
para o problema atual, não tem nenhum motivo para
estar aqui.
Não. Ela não ia mandá-lo embora daquela forma.
— Eu não sou seu inimigo, Alana.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Não. Você é só mais um vampiro. Exatamente
como qualquer outro. E um vampiro que está indo
embora agora.
Rafael inclinou a cabeça. Seu instinto era insistir,
atacar, talvez. Mas fazer aquilo seria dar a Alana
exatamente a reação que ela estava esperando.
Ele ainda precisava dela – e ainda a queria ao seu
lado. E ele sabia ser paciente.
Sem dizer nada, Rafael atravessou a janela e saiu do
quarto.
TREZE

Alana pegou uma pedrinha no chão e a jogou no lago na sua


frente. As ondas se espalharam.
Óbvio que se espalharam. Leis da física ou alguma
coisa assim. Mas, depois de tudo que tinha acontecido,
ela não ia se surpreender se alguma coisa inesperada
acontecesse, ao invés das ondas.
Alana colocou a mão no chão. Ela conseguia sentir
todas as plantas ao seu redor. Ali, perto do lago, não
havia nenhuma das árvores frutíferas, mesmo que
tecnicamente estivesse no pomar. Aquilo tinha sido um
acordo dela com Val: a garota ia fazer o lago e Alana ia
garantir que ninguém teria motivo para ir naquela
direção. Era o espaço delas. E Alana precisava daquele
espaço, sim, porque não queria ter que lidar com
ninguém perguntando coisas para ela.
Rafael aparecendo no seu quarto de noite não era
novidade. Na verdade, tinha sido besteira sua não
imaginar que ele ia fazer exatamente aquilo. O acordo
verbal entre eles era uma coisa fraca demais, sem
nenhum tipo de limite. Ela mesma podia ir e voltar do
Setor Um, se quisesse, e ele não poderia reclamar.
Não que parecesse que ele fosse reclamar.
E Alana não ia ser estúpida a ponto de cair no jogo
dele de novo. Uma vez tinha sido o suficiente e por sorte
ela tinha percebido a merda que estava fazendo a
tempo. Mesmo assim...
Rafael quase tinha parecido ofendido com o fato de
que Alana não confiava nele. Se fosse qualquer outra
pessoa, ela diria que ele tinha ficado sentido quando ela
havia falado que não queria nada que a ligasse a ele.
Era um jogo. Só isso. Todas as reações dele eram
mentira e manipulação, justamente para fazer Alana
hesitar. Não que ele precisasse se dar ao trabalho.
Lara saiu do meio das árvores, um pouco para a
frente.
Alana fez um ruído irritado e se deixou cair deitada
no chão. Era óbvio que ela não ia ter muito tempo de
sossego, também.
— Quem foi? — Ela perguntou.
Porque se Lara estava ali, era porque alguém tinha
avisado a mercenária de que Alana tinha ido para o
pomar. E Lara era a única pessoa além de Val que tinha
ido ali sem ouvir horas de reclamações e ameaças de
Alana.
— Uma chance — Lara falou.
Alana suspirou e se sentou de novo.
Dani. Ela não deveria nem ter se dado ao trabalho de
perguntar quem podia ter falado com Lara. Mesmo que
Dani tivesse parado de tratar Alana como uma civil
indefesa, ela ainda era sua prima mais velha e protetora
demais.
— Se não quiser companhia... — a mercenária
começou.
Alana respirou fundo e deu de ombros.
Talvez Dani estivesse mais certa do que ela queria
admitir. Alana queria falar com alguém. E, depois de anos
fazendo questão de não chamar atenção e tudo mais, ela
sabia que se contasse para alguém do Setor Dez que
Rafael tinha aparecido no seu quarto, a primeira reação
deles seria começar a pensar em proteções, armas e
qualquer coisa desse tipo.
Ela não queria nenhum tipo de ajuda ou proteção
para lidar com ele. Ela só queria alguém que fosse ouvir,
se quisesse falar alguma coisa, sem precisar ficar
discutindo o tempo todo.
Lara continuou encarando Alana por mais alguns
segundos antes de se afastar e sentar no chão,
encostada em uma árvore mais para o lado. Era o lugar
dela ali, tanto quanto onde Alana estava era o seu lugar.
Nos meses desde que Lara tinha ido para ali pela
primeira vez e principalmente depois de tudo o que tinha
acontecido no Setor Três, as duas haviam se tornado
amigas, de certa forma – mesmo que a mercenária não
morasse mais no Dez. Lara ia visitar o setor com
frequência, por causa da sua irmã, e gostava de usar a
privacidade do lago para esfriar a cabeça.
De todo mundo envolvido naquela situação, Lara
provavelmente era quem tinha mais chances de
entender Alana. Ela tinha crescido evitando os vampiros
por causa do que era e tinha precisado fugir do seu setor,
também. E tinha trabalhado como mercenária por anos,
o tempo todo tentando não deixar ninguém descobrir o
que podia fazer – só para acabar se tornando a consorte
de um príncipe vampiro.
O passado das duas era parecido demais. A
diferença era que Lara tinha se tornado consorte de um
vampiro que pelo menos tinha um pingo moral, mesmo
que fosse um necromante.
— Ele veio aqui essa noite — Alana contou.
Lara abriu os olhos e a encarou, sem falar nada.
E aquele era o motivo para Alana poder falar aquelas
coisas com Lara: a mercenária não ia começar com as
perguntas e os avisos de que ela estava correndo risco e
tudo mais até Alana terminar de falar. Se falasse alguma
coisa sobre ela estar correndo o risco. Conhecendo Lara,
era bem possível que aquilo nem passasse pela cabeça
dela.
— E eu juro para você que não sei se ele veio porque
precisava ou só para mostrar que podia — ela continuou.
— Porque... Ele falou que veio porque precisava fazer
planos e nosso acordo é que ele não vai fazer isso pelas
minhas costas. Mas ele não tinha nem informação o
suficiente para fazer um plano. Só alguns vídeos que ia
ter sido muito mais fácil me mandar por mensagem.
— Dani comentou que você passou umas
informações interessantes para Amon — Lara falou.
Alana deu de ombros. Tinha passado, sim. E ela não
fazia ideia de qual seria a decisão de Amon: se ele ia
caçar os vampiros que o haviam prendido ou se ia
continuar ali. Se fosse alguns meses antes, ela teria
certeza de que ele não ia fazer nada, porque não ia
arriscar colocar Dani em risco. Mas, depois do que
tinham feito no Oito e considerando como Dani tinha
como escapar de praticamente qualquer coisa... Alana
não tinha mais certeza.
— E Amon pode até resolver fazer alguma coisa
sobre elas, mas... Não sei.
Lara assentiu devagar e não falou nada.
Alana suspirou e jogou mais uma pedrinha no lago.
De certa forma, a época em que ela e Dani estavam nas
terras de ninguém era mais simples. Mesmo que
estivessem sendo caçadas e ela sempre tivesse aquela
consciência dos vampiros por perto, era algo mais limpo
do que os jogos políticos.
Ela tinha sido treinada para os jogos políticos dos
vampiros. Ela deveria estar em casa numa situação
daquele tipo. Mas Alana tinha mudado demais desde que
havia fugido do setor onde sua família vivia.
— Sem querer ser essa pessoa, mas já sendo... —
Lara começou. — Isso que você falou está me lembrando
de como Eric estava agindo com a coisa toda de eu ser a
consorte só por contrato.
Alana olhou para ela.
— Como assim?
A mercenária deu de ombros.
— Usando o acordo de vocês como desculpa para
fazer alguma coisa que ele quer. E no caso, parece que o
que ele quer é você. Sua atenção, no mínimo.
Alana se inclinou para a frente, encarando Lara. A
outra mulher ainda estava encostada em uma árvore. E
não parecia que tinha batido a cabeça nem nada do tipo
– que seria a única explicação para ela estar sugerindo
alguma coisa daquele tipo.
— Você realmente está falando que Rafael está
interessado em mim? — Ela perguntou. — Porque se
estiver...
Lara riu.
— Não, eu não estou ficando louca. Só é parecido
demais. E eu não esqueci de como ele apareceu no Setor
Três pronto pra te proteger.
— Ele apareceu no Setor Três porque precisava
afastar aquela coisa — Alana resmungou.
A mercenária assentiu.
— Sim — Lara falou. — E se fosse só isso, ele podia
ter aparecido na muralha quando o poder já estava se
aproximando. Ele não precisava ter ido para os
geradores, de dia, debaixo da luz do sol, pra te proteger.
— Ele só fez isso porque precisa de mim e não sabia
que eu ia conseguir me defender.
A outra mulher só levantou as sobrancelhas.
Alana soltou um suspiro irritado.
— Olha, não é porque você e Dani... E Yuri também
— ela começou. — Não é porque vocês deram sorte com
vampiros que a mesma coisa vai acontecer com todo
mundo. Não é a mesma coisa.
Lara deu uma risada seca e balançou a cabeça.
— É óbvio que não é a mesma coisa — ela falou. —
Porque eu confiava em Eric desde o começo.
E Alana sabia que não podia confiar em Rafael.
Mesmo que ficasse tentada – e não estava – a conversa
da noite anterior era mais que o suficiente para ela ter
certeza de que nunca poderia confiar nele. Para Rafael, o
mundo girava ao seu redor. Ele não conseguia nem
entender por que Alana não queria estar ligada a ele. O
que queria dizer que qualquer coisa que ele fizesse seria
só mais manipulação. Uma forma de fazer Alana ver as
coisas como ele queria, sem nunca tentar ver nada por
qualquer ponto de vista que não fosse o dele.
Não. Rafael ter aparecido ali de noite tinha sido
extremamente útil, sim. Ele só não fazia ideia de para
quê.
Alana se inclinou para trás de novo.
— Ele foi caçado em algum momento no passado.
— Lorde Rafael? — Lara perguntou.
Ela assentiu.
— Ele me contou algumas coisas, de noite. Sobre o
castelo, coisas que ele fez questão de construir aqui. E a
única explicação para isso é ele ter sido caçado.
E não importava que ela não confiasse em Rafael,
Alana tinha quase certeza de que o que ele tinha contado
sobre o depósito, o sangue e a tentativa de
envenenamento eram segredos. O que queria dizer que
ela não ia dar nenhum detalhe para Lara, mesmo que
fossem os segredos de uma pessoa que não valia nada.
Em algum momento no passado, Rafael tinha sido
caçado. Alana tinha visto aquilo no olhar dele, quando
ele tinha falado sobre ter equipamentos para garantir
que sobreviveriam. Ela era capaz de apostar que ele
mesmo havia escapado por pouco. E considerando o que
ela já tinha ouvido sobre existirem caçadores de
vampiros no passado, antes da volta da magia... Não era
difícil deduzir o que tinha acontecido.
— Faz sentido — Lara falou. — Um vampiro com o
tipo de poder que ele tinha, na época antes da volta da
magia, quando os humanos ainda tinham alguma chance
de enfrentar vampiros...
Alana assentiu. Era exatamente o que ela tinha
pensado.
— Mas se ele está te contando coisas o suficiente
para você deduzir isso, então só posso repetir o que falei
antes — a mercenária completou.
Alana pegou uma pedrinha no chão e a jogou na
direção da outra mulher.
Lara riu.
— Ei! Não estou falando para você dar a louca e
confiar nele — ela falou. — Muito pelo contrário. Isso
pode ser útil para você.
Sim, podia.
E Alana não ia dar a menor atenção para a voz lá no
fundo da sua consciência que queria que aquilo tudo
fosse mais do que só alguma coisa que podia ser útil. Ela
estava passando tempo demais perto de casais – e de
casais com vampiros, para piorar. Aquele era o único
motivo para ela estar pensando tanto naquilo tudo.

Rafael acendeu o isqueiro na sua mão e encarou a chama antes de


deixar que ela morresse. Lembretes e mais lembretes –
de como insistir em Alana era um erro, porque no futuro
aquilo poderia ser usado contra ele. Se ela não usasse
aquilo contra ele mais cedo do que Rafael imaginava. De
por que tentar ganhar a confiança dela quando ele não
conseguia tirar a bruxa da cabeça era uma faca de dois
gumes.
Ela o enfraqueceria. Ela o faria humano – não no
sentido literal, mas o faria humano. Aquilo era o que ela
havia dado a entender, por trás de toda aquela
discussão. Alana esperava alguém que pensaria como
um humano.
Qualquer resto de humanidade que Rafael tivesse
havia queimado junto com sua propriedade, antes
mesmo da criação da Corte do Sangue. Nem mesmo
Alana seria capaz de trazer aquilo de volta.
E, mesmo que houvesse alguma chance de ele se
lembrar o suficiente de como era ser humano, Rafael não
faria aquilo. Havia motivos demais para ele ter se
tornado quem era e o maior deles estava ali, nos limites
do que ele conseguia sentir, como uma pressão que não
podia ser ignorada. No passado, ele havia conseguido
conter a criatura justamente por não ser mais humano e
por ter deixado as amarras da humanidade para trás.
Aquilo o fortalecera e nem mesmo uma bruxa que fazia
ele imaginar o impossível faria com que ele jogasse fora
o que havia conquistado.
Era uma pena que tanto os humanos quanto os
vampiros que haviam tentado invadir o depósito na noite
do baile houvessem sido destruídos. Teria sido bom ter
um deles para interrogar. Ele não sabia quem havia dado
a ordem para envenenarem o seu reservatório de
sangue. O mais provável era que fosse a criatura, sim.
Mas poderia ter sido obra de qualquer um dos vampiros,
tentando se aproveitar da situação. Ou até mesmo de um
grupo humano, como Alana havia provado ao tentar
fazer algo parecido, por mais improvável que aquilo
fosse.
Rafael se levantou e parou na frente da janela do seu
escritório, que ele havia mandado substituir dias antes.
Mais abaixo, no jardim, as roseiras estavam vivas, com
as rosas de um vermelho forte desabrochando mais
depressa do que era natural. Obra de Alana, também.
Alana, que havia usado a ilusão de que havia matado as
roseiras como uma forma de punir Rafael.
Era fácil demais entender por que ele não conseguia
parar de pensar nela. Alana era uma contradição, de
certa forma: alguém com poder de vida e morte, com
uma moral tão forte que ela escolhia não matar nem
mesmo aquelas roseiras, mas que não havia tido nenhum
problema para destruir os vampiros que haviam atacado
o Setor Três.
Mas, por mais que aquela contradição o fascinasse,
ele não se tornaria humano por ela. Nem por ela, nem
por ninguém.
QUATORZE

Alana encontrou Alex perto de uma das áreas de treinamento das


forças de defesa do Setor Dez. Não era nem difícil
entender o que elu estava fazendo ali: ela já estava
ouvindo os xingamentos de Dani, o que queria dizer que
sua prima estava treinando com Gustavo. E ele ainda
estava paranoico o suficiente sobre seus poderes para
fazer questão de ter Alex por perto quando tinha a menor
chance de perder o controle.
Ela contornou os bonecos de treinamento – a maioria
com pedaços faltando e o couro que os revestia
desgastado depois de tempo demais debaixo do sol. Pelo
menos Dani tinha ligado as luzes da área de treinamento.
Se Alana tivesse que passar por ali no escuro,
provavelmente já teria batido em mais coisas do que
queria pensar.
Alex estava logo depois dos bonecos de treinamento,
de pé e encarando a área aberta mais à frente. Alana
parou ao lado delu e tentou acompanhar os movimentos
de Dani e Gustavo por alguns segundos antes de desistir.
Eles se moviam depressa demais. Não era à toa que
estavam passando tanto tempo treinando juntos, se
aquilo era a velocidade deles quando não estavam se
contendo.
E aquilo não era problema de Alana.
— O que você descobriu? — Ela perguntou.
Porque se Alex tinha falado para ela ir ali de noite, ao
invés de esperar o dia seguinte, era porque tinha achado
alguma coisa interessante.
Elu balançou a cabeça devagar.
— Descobrir, nada — Alex contou. — Se existia
alguma informação escrita sobre a Corte do Sangue, sua
criação e tudo mais, isso tudo foi apagado depois da
volta da magia. E eu não duvido que os vampiros tenham
feito isso de propósito.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Ela não
sabia nem por que tinha tido esperanças de que Alex ia
ter achado alguma coisa. Elu tinha passado meses
pesquisando sobre o tal anel e nada. Era óbvio que tentar
achar alguma coisa sobre a criatura ia ser pior ainda.
— No máximo, achei umas referências antigas,
coisas de cerca de quinhentos anos antes da volta da
magia ou mais, mas não tenho certeza se são registros
reais ou literatura — elu continuou. — E não tem a menor
chance de eu saber se alguma coisa disso tem a ver com
Lorde Rafael ou não.
— Era óbvio que não ia ser tão simples — Alana
resmungou.
Alex riu. Bom que ao menos alguém ali ainda
conseguia rir daquilo, porque ela já estava frustrada
demais.
— Então por quê...? — Ela começou.
— O poder — Alex interrompeu. — Não descobri
nada nos registros, mas estou monitorando a sensação
do poder em todo o setor. Depois do que aconteceu no
Setor Três e do que contaram sobre o baile no Um, fazia
sentido imaginar que a criatura, seja lá o que for, ia
continuar por perto.
Claro. E Alana devia ter se lembrado daquilo bem
antes. Alex conseguia sentir poder e identificar o que
estava sentindo de uma forma que era um poder por si
só, porque era completamente diferente do que a
maioria das bruxas conseguia fazer.
— E o que você identificou? — Ela perguntou.
Alex balançou a cabeça de novo e parou quando um
som mais alto veio da área de treinamento.
Alana se virou na direção do som. Dani estava se
levantando, depois de ter caído... Não, depois de ter sido
jogada contra a parede do outro lado.
— A parede não! — Sua prima resmungou.
Gustavo passou uma mão pelo cabelo antes de
ajudar Dani a se levantar.
— Foi mal.
Alana revirou os olhos e se virou para Alex de novo.
Elu ainda continuou encarando os dois por mais alguns
segundos antes de se virar, também.
— O poder dessa criatura está se espalhando — elu
contou. — Ele só não está se espalhando pelo Setor Dez
porque o seu poder está impregnado por toda parte onde
tem alguma planta.
E todas as fronteiras tinham plantas até demais, ou
as árvores altas que funcionavam como um bloqueio
visual para os vampiros ou o gramado na fronteira com o
Setor Três.
— Eu não fui nos outros setores ainda — elu
continuou. — Estava esperando até ter certeza do que
estou sentindo. Mas é bem possível que esse poder
esteja cobrindo a maior parte dos outros setores. Pelo
menos os que estão nessa direção. O Nove, o Seis, o
Oito, talvez até um pouco do Três. Vou verificar isso
amanhã.
Fazia sentido. Poderes que se espalhavam daquele
jeito não eram comuns. Quase tudo que as bruxas
podiam fazer era algo mais concentrado – um momento,
um lugar, e só. Mas, quando um poder podia se espalhar,
ele seguia as mesmas regras que uma onda na água. Ele
tinha uma origem e seguia em uma direção. E, se havia
alguma barreira no caminho, ele seria contido. No caso
de poder, a única barreira que podia existir era outro
poder, e ela estava fazendo exatamente aquilo com o
Dez.
Mas nada daquilo respondia a parte mais importante
daquilo tudo.
— Tá, mas o que é essa criatura? — Alana perguntou.
Alex respirou fundo e soltou o ar devagar, antes de
dar de ombros.
— Não sei.
Alana tinha começado a se virar para onde Dani e
Gustavo ainda estavam treinando, mas parou na mesma
hora, encarando Alex.
— Como assim, você não sabe?
Porque o poder delu era justamente a capacidade de
reconhecer o que cada poder era. A única vez que elu
não tinha identificado alguma coisa, tinha sido Gustavo –
e ele não era nada natural. Ele era descendente de um
dos experimentos que o Setor Quatro fazia, antes de ser
destruído, então até fazia sentido Alex não ter
conseguido entender o que estava sentindo. Mas, a
criatura...
Alex deu de ombros de novo.
— No começo, eu pensei que fosse alguma coisa
vindo do Setor Três — elu começou. — Tem alguma coisa
nesse poder que me lembra dos necromantes, do que
senti quando estava lá e eles estavam lutando. Mas aí eu
percebi que a direção estava errada. Não está vindo do
Três, está vindo de algum lugar mais para o oeste.
Alana inclinou a cabeça. Ela era péssima com
direções e aquilo não era segredo.
Alex suspirou.
— Está vindo do lado. Bem mais para o lado.
E aquilo Alana conseguia entender.
— Mas continua parecendo com alguma coisa dos
necromantes? — Ela perguntou.
Alex assentiu.
— É estranho. Tem alguma coisa ali que é parecida,
mas não é só isso. Depois que eu percebi que o poder
não estava vindo do Três eu comecei a analisar a
sensação com mais cuidado e... Parece o poder dos
necromantes. Mas não parece ser o poder de um
vampiro.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar. Aquilo não fazia sentido. Os únicos necromantes
eram os vampiros, justamente porque aquele tipo de
poder estava ligado ao que fazia eles serem vampiros, de
alguma forma. Eles tinham poder sobre o que estava
morto porque eles também não estavam vivos.
— Fica pior — Alex continuou. — Se eu ignorar a
impressão de que parece algo vindo dos necromantes, o
que sobra é o tipo de impressão que normalmente eu
diria que é o poder de uma bruxa.
Alana só parou encarando Alex sem falar nada. Ela
não tinha o que falar, porque aquilo era impossível. Era a
continuação do que estava pensando, de como o poder
funcionava porque estava ligado ao que os vampiros
eram. E as bruxas...
Não fazia sentido. Não tinha como uma bruxa ser
uma necromante. Não era assim que as coisas
funcionavam.
— Tem certeza? — Ela perguntou. — Não tem nada
misturado, nada que seja...?
— Se eu tiro a impressão de necromantes, o que
sobra é algo que poderia seu ou de qualquer uma das
bruxas no setor — Alex interrompeu. — É exatamente a
mesma identificação, por assim dizer.
— Só que também é necromante — Alana repetiu.
Alex assentiu.
Não fazia sentido. Não tinha como aquilo ser
possível. Tudo o que ela sempre tinha aprendido sobre o
poder das bruxas dizia que era impossível. E os
necromantes...
Ela não sabia quase nada sobre eles. Ninguém sabia
detalhes sobre eles, porque os vampiros evitavam falar
sobre o assunto, o que queria dizer que quase não havia
nenhum registro sobre necromantes, e a Corte da Névoa
tinha feito questão de passar aquele tempo todo ali se
isolando.
Mas eles não estavam se isolando mais e Alana era
amiga da consorte do príncipe da Corte da Névoa.
Ela pegou o celular e se virou quando Dani riu alto.
Ela e Gustavo tinham pegado facas e Alana só esperava
que fossem facas de treinamento. Se bem que,
conhecendo a prima, talvez aquilo fosse esperar demais.
— Nada de novo — Alex murmurou. — E até hoje
nenhum dos dois teve algum ferimento grave.
Não eram facas de treinamento, então. Típico.
Alana ligou para Lara e continuou encarando os dois
lutando, mesmo que não conseguisse nem acompanhar
os movimentos deles, enquanto o celular chamava.
Era a única coisa que ela conseguia pensar. Talvez
tivesse alguma coisa específica sobre os necromantes
que fosse explicar aquilo, porque pelo lado das bruxas...
Impossível.
— Alana? — Lara atendeu. — Aconteceu mais
alguma coisa?
Alana virou de costas para a área de treinamento e
deu alguns passos para a frente por puro hábito. Não era
como se ela fosse achar ruim se alguém ali ouvisse a
conversa.
E sim, tinha acontecido alguma coisa, mas não como
Lara estava pensando.
— Sim e não — ela falou. — Eric está podendo falar?
Porque preciso de informações sobre os necromantes.
— Então eu prefiro que você entre em contato de
algum lugar que não seja público — o vampiro falou.
Alana suspirou. Era óbvio que ele ia ouvir, se
estivesse no mesmo cômodo que Lara. E ia ouvir o
suficiente para saber que ela estava ao ar livre e com
mais pessoas por perto.
— Terminamos aqui — Dani avisou. — E se não me
engano a casa de Alex está com a segurança em dia.
Alana se virou para trás de uma vez. Normalmente
Dani e Gustavo continuavam ali por horas. Não deveriam
estar terminando tão depressa.
Mas Alex não ia sair dali enquanto Gustavo estivesse
lutando e a pessoa que tinha mais chances de entender
aquela confusão toda era elu – e Dani era uma vampira.
Era óbvio que ia ter ouvido a resposta de Eric.
— Ligo de novo em alguns minutos, então — Alana
avisou.
— Vamos estar esperando — Lara falou antes de
desligar.
E ela esperava muito que não tivesse interrompido
nada.
Alana guardou o celular. Dani e Gustavo estavam
falando alguma coisa, baixo demais para ela ou Alex
entenderem, mas realmente tinham parado de lutar.
— Obrigada — ela falou assim que eles olharam na
direção dela.
Dani balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Prioridades. A gente pode aproveitar qualquer
hora para treinar, mas você tem que resolver isso o mais
depressa possível.
Verdade. E, daquela vez, não tinha nada que sua
prima pudesse fazer para ajudar além daquilo.
— Para casa, então — Alex falou.
Alana assentiu.

Rafael olhou para os humanos reunidos no salão de entrada do


castelo. Nenhum deles tinha as tatuagens que os
marcavam como parte da sua guarda, mas todos eles
haviam se provado tão confiáveis quando os que haviam
recebido as tatuagens. Eram o pessoal que trabalhava
dentro do seu castelo. Os poucos humanos que ele
precisava para que tudo funcionasse normalmente.
Tudo indicava que ele tivesse traidores entre eles,
também.
Ele atravessou o salão devagar, andando em
paralelo à linha de humanos reunidos.
— A maioria de vocês está aqui faz mais de vinte
anos — ele começou, falando devagar. — Alguns estão
comigo faz meio século. E, ainda assim, há traidores
entre vocês.
Os humanos se moveram de forma inquieta, sem
nada da disciplina que os guardas haviam mostrado
quando ele fizera a mesma acusação.
— Algum de vocês tentou entrar em áreas proibidas
do meu castelo — Rafael continuou. — O que não
entendo é por que a pessoa desistiu. Por que não foi até
o fim e arrombou a porta quando percebeu que não
estava sendo observado.
Alguém fez um ruído abafado, mas ele não tentou
ver quem. Sua intenção não era escolher alguém para
ser um exemplo, como aquele guarda havia sido. Todos
ali haviam visto aquilo. Não, sua intenção era apenas
assustar e tentar usar o medo para descobrir a origem da
traição, não apenas as pontas mais fracas de tudo aquilo.
— Eu sei de cada passo que vocês dão fora das áreas
permitidas — ele contou. — Sempre soube. E nunca
pensei que precisaria punir um daqueles que trabalham
aqui por isso, porque sempre que estiveram nas áreas
restritas foi por curiosidade honesta. Isso eu não vou
punir. Mas uma traição deliberada? Não. Isso não vai ser
aceito.
Rafael atravessou o salão na direção oposta. Ele não
estava mostrando nada das suas habilidades. Não havia
sangue ao seu redor e nem mesmo algum sinal da magia
que ele usava para proteger as áreas restritas do castelo
e garantir que sempre saberia quando alguém passasse
por elas. Mas o efeito da sua presença era o suficiente.
Ele conseguia sentir o medo dos humanos no ar, mais
saboroso do que deveria ser. Aquele era o motivo para
tantos vampiros, tanto no passado quanto no caos da
volta da magia, terem tomado vilas humanas para si. O
medo era doce. Viciante.
E ele havia superado aquela tentação antes mesmo
de criar a primeira Corte do Sangue.
— Não se enganem. A humanidade já me provou
muitos séculos atrás que não é confiável. Não tenho
motivos para dar o benefício da dúvida para vocês. Se eu
tiver motivo para suspeitar de alguma coisa
acontecendo, todos vocês serão mortos. Culpados e
inocentes, juntos... Não que eu acredite que ainda exista
algum inocente.
E humanos eram previsíveis. Eles não tinham
lealdade uns aos outros. Se alguém tivesse informações,
tentaria se aproximar para repassá-las como uma prova
da sua inocência, para escapar de uma sentença
coletiva. Eles trairiam sua própria espécie para tentar
sobreviver – e aquele era o motivo para Rafael não ter o
menor problema em usar o medo deles.
Seu tablet vibrou. Rafael continuou encarando a
linha de humanos enquanto tirava o aparelho do bolso e
só então olhou para a notificação de mensagem.
Alana. Ela estava mandando uma mensagem digital
ao invés das mensagens via magia que haviam trocado
antes – porque Alana não queria nada que a ligasse a
Rafael. Nem mesmo o uso de magia... Um tipo de magia
que não era como o poder das bruxas. Era algo dos
vampiros que ela, como descendente de uma família de
feiticeiras, havia sido ensinada.

Alana: Vou estar no Setor Um amanhã.

Rafael não precisava colocar a mão no bolso para


sentir o peso do isqueiro ali. Um lembrete, sim, de como
tudo podia dar errado. De como o preço de confiar e se
aproximar podia ser alto demais. Mas também era um
lembrete de como, com Alana, nada era como no
passado.

Rafael: É mais seguro que você passe a noite no


castelo.
Alana: Não.
Alana: Isso foi um aviso por cortesia e mais nada.

Ele sorriu.

Rafael: Se ficar aqui, pode pedir sua prima para te


trazer para o meu setor. Ela ainda é jovem demais para
usar essa habilidade durante o dia e você sabe disso.

A resposta não foi imediata e ele tinha certeza de


que era porque Alana não queria admitir que ele estava
certo.
Os humanos estavam se movendo de forma inquieta
de novo, falando em voz baixa entre si. Rafael não deu o
menor sinal de que estava prestando atenção. A espera
era útil para ele, também.

Alana: E se eu estiver na cidade sem ser vista no


castelo, isso vai gerar perguntas, não é?
Alana: Seria mais honesto dizer logo que esse é o
seu motivo.
Sua feiticeira ser vista na cidade sem ter saído do
castelo geraria questionamentos, sim. E aparências
importavam, ainda mais com a situação com que
estavam lidando.
Mas Rafael estaria mentindo para si mesmo se
dissesse que aquele era o principal motivo para estar
insistindo que ela fosse para o castelo.

Rafael: Sempre existe mais de um motivo. E estar


aqui vai ser mais fácil para você. Mais seguro do que
atravessar dois setores inteiros.

Ele conseguia imaginar muito bem a expressão de


Alana. A forma como ela estaria respirando fundo, se
controlando para não dizer algo que não seria a melhor
opção. Contendo o fogo que ele sabia que estava por
baixo da forma como ela sempre parecia tão calma e
controlada.

Alana: Vou chegar pouco antes do amanhecer.

Perfeito.
E Rafael não ia analisar sua satisfação ao saber que
Alana estaria ali, de novo, no seu território. Onde ele
podia garantir que ela estaria segura.
Ele guardou o tablet e levantou a cabeça. Os
humanos ainda estavam parados na mesma linha,
mesmo que agora ela estivesse um pouco irregular.
— Já disse o que precisava para vocês — Rafael
avisou. — Estão dispensados.
Alguns dos humanos inclinaram as cabeças daquele
jeito que era quase uma reverência – os mais velhos
entre eles. Outros, só se afastaram andando depressa,
indo na direção de uma das portas laterais.
E, se Alana ia voltar para o castelo...
— Você — ele chamou.
Vários dos humanos pararam e olharam para ele,
mas Rafael estava encarando uma das mulheres que já
estava ali fazia tempo. Uma das que trabalhava nos
jardins públicos do castelo.
— Você fica — ele repetiu.
A mulher inclinou a cabeça, tremendo, e continuou
parada no lugar enquanto os outros saíam.
Rafael havia convencido Alana a voltar para o seu
castelo. Era um começo. Mas ele queria convencê-la a
ficar.
QUINZE

Rafael parou no pé da escadaria que terminava no salão. Ele não


precisava de um aviso de Alana para saber que ela
escolheria chegar ali. Ele sabia o suficiente sobre sua
feiticeira para ter certeza de que ela só cogitaria usar
dois lugares para ser transportada pela prima: o salão,
que Daniele já havia visto, e os aposentos de Alana,
justamente por serem dela. E ele tinha certeza que a
escolha seria o salão, por ser algo mais próximo de uma
área pública.
Se ele estivesse errado e ela escolhesse chegar nos
seus aposentos, Rafael saberia. E, caso aquela fosse sua
escolha, ele não poderia estar esperando por ela, de
qualquer forma. Rafael estava em um jogo delicado
demais para correr o risco de irritar Alana assim que ela
chegasse.
Não. Ele tomaria cuidado. Rafael havia subestimado
Alana antes. Ele não faria aquilo de novo – porque
subestimá-la era uma garantia de que iria perdê-la. E
Rafael não perdia aquilo que desejava ter.
Ele olhou ao redor de novo. O salão agora tinha
plantas decorativas espalhadas, a maioria presa nas
paredes, mas alguns vasos altos no chão, também.
Rafael nunca saberia dizer quais plantas eram aquelas,
mas não importava. A jardineira cumprira suas ordens:
acrescentar plantas na decoração do castelo, por todo o
castelo.
Não importava o que acontecesse, Alana não estaria
indefesa enquanto estava ali. Ela não precisava da
proteção dele, mas ele podia lhe dar armas.
Rafael sentiu a pressão do poder um instante antes
de Alana e sua prima aparecerem perto da porta. As
marcas subindo pelos braços da neófita estavam fortes,
de um tom preto tão escuro que chegava a parecer
artificial contra sua pele.
Daniele. Aquele era o nome dela. Uma das
responsáveis pela segurança do Setor Dez, a pessoa que
cuidava dos assuntos externos. Ela sempre havia sido um
dos pontos de atenção de Rafael, desde que notara o
poder que Alana tinha. Daniele podia se tornar uma
ameaça – não para ele, mas para seus planos.
Alana encarou Rafael e levantou as sobrancelhas. Ele
continuou parado no lugar.
— Eu te aviso quando terminar — Alana murmurou.
— É melhor mesmo — sua prima respondeu.
Daniele encarou Rafael por alguns segundos, com
uma ameaça clara no olhar, e desapareceu.
Ele podia respeitar aquela ameaça silenciosa. Rafael
sabia o que ela e Amon haviam feito, no Setor Oito.
Como haviam destruído todos os vampiros que estavam
na fortaleza de Cassius – e como nem tudo havia sido
obra de Amon, como alguns escolhiam acreditar. Se ela
sobrevivesse, Daniele seria uma força entre os vampiros.
Talvez fosse melhor para os seus planos se Rafael se
livrasse dela enquanto ainda era uma neófita e estava
vulnerável. Quando ela tivesse mais tempo de
transformada e realmente compreendesse suas
habilidades, ela não seria um alvo fácil.
Mas aquilo era algo que ele podia evitar, por Alana.
Porque não importava o que estivesse em risco, sua
bruxa deixaria o mundo queimar antes de ajudar alguém
que havia destruído sua prima.
— Não achei que fosse ter alguém me esperando —
Alana falou.
Rafael deu um sorriso lento.
— É óbvio que eu estaria esperando.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro e foi
na direção da escadaria.
Rafael se afastou para o lado para deixá-la passar e
então começou a subir ao seu lado. Alana estava vestida
como sempre – com um dos seus saiões coloridos e
regatas, e estava com uma mochila não muito cheia
jogada em um ombro. Ela não pretendia ficar. Aquilo não
era uma surpresa, mas não seria o suficiente para fazer
Rafael desistir.
— Você não disse o que precisava fazer aqui — ele
falou.
Alana olhou para ele e levantou as sobrancelhas,
sem parar de andar.
— Não aqui — ela avisou.
Rafael inclinou a cabeça e deu um meio sorriso. Não
onde podiam ser ouvidos por algum vampiro – o que
queria dizer que Alana iria lhe contar o motivo para estar
ali.
Ele não falou mais nada enquanto passavam pelos
corredores e escadas que levavam para os aposentos de
Alana. Ela abriu a porta da sua sala, ao lado do escritório
de Rafael, e parou. Ele entrou, sem falar nada, e se virou
para encarar a bruxa enquanto ela fechava a porta e a
trancava.
Alana atravessou a sala e deixou sua mochila em
cima de um dos sofás antes de olhar para Rafael.
— Amon disse que aceita os nomes e informações
que tiver sobre os vampiros que o prenderam — ela
contou. — Mas que vai usá-los quando e como for do
interesse dele.
Em outras palavras, ele não seria uma peça no
tabuleiro de Rafael.
Justo. E esperado, se ele estivesse sendo honesto
consigo mesmo. O Setor Dez importava demais para
Daniele. Amon não se afastaria dali enquanto ainda
existisse algum risco.
Rafael assentiu, sem falar nada.
Alana respirou fundo e parou atrás de um dos sofás,
com as mãos no encosto.
— Você disse que não sabia o que a criatura é — ela
começou.
— E não sei — Rafael confirmou. — Ninguém entre
nós conseguiu identificar o que ela é, nem mesmo na
época em que a prendemos.
Ela assentiu devagar.
— E você a viu pessoalmente — Alana falou.
Rafael inclinou a cabeça.
— Sim.
Ele mais do que a havia visto pessoalmente. A
criatura tentara se juntar à Corte do Sangue. Tentara
seduzi-lo.
— E, ainda assim, você não sabe o que ela é — Alana
insistiu. — Não tem nenhuma ideia do que isso pode ser.
Rafael fez um ruído irritado. Ela já sabia de tudo
aquilo. Ele havia feito questão de lhe contar, antes que
ela fosse embora do Setor Um.
— Quantas vezes vou precisar me repetir?
Alana deu de ombros.
— Conseguimos identificar com o que o poder se
parece — ela contou. — E é uma mistura entre o poder
de um necromante e o poder de uma bruxa.
Rafael se endireitou e encarou a bruxa. Eles haviam
identificado o poder. Eles – o Setor Dez – haviam feito o
que ele passara séculos tentando fazer antes de aceitar
que era algo diferente de tudo que já existia, o que
queria dizer que ele nunca conseguiria uma comparação
com outro tipo de poder. E agora Alana estava ali,
dizendo que havia feito exatamente aquilo.
— Como? — Ele perguntou.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Não o poder — ele especificou. — Mas como
conseguiram identificar o poder?
Alana deu de ombros.
— Temos alguém capaz de sentir e identificar poder
— ela contou. — E essa pessoa estava analisando tudo
nos últimos dias.
Alguém capaz de identificar poder.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro
devagar, antes de se sentar em um dos sofás, o tempo
todo sem desviar o olhar de Alana. Ele não estava
surpreso pelo fato de o Setor Dez ter alguém capaz
daquilo. Era exatamente o que ele havia esperado,
quando permitira a criação de um setor liderado por uma
bruxa e não por uma Corte: que as pessoas com poderes
incomuns, que podiam se tornar uma ameaça e que
seriam caçadas, normalmente, se reuniriam lá. E aquilo
havia dado certo.
Não, sua surpresa era por terem alguém com aquele
poder em específico. Fazia tempo demais desde a última
vez que Rafael soubera de alguém capaz de fazer algo do
tipo e aquela mulher havia sido morta depois de interferir
nos negócios dos vampiros.
E aquilo queria dizer que Alana tinha mais
informações do que seu próprio pessoal havia
conseguido.
— O que vocês descobriram? — Ele perguntou.
Ela respirou fundo.
— O poder está vindo das terras de ninguém, óbvio
— Alana começou. — Mais para o oeste, na direção do
Setor Oito, mais ou menos. Não temos uma direção mais
exata ainda.
Ainda – o que queria dizer que estavam procurando
mais informações. Bom.
— Você disse que o poder está vindo de uma direção
— Rafael comentou.
Alana assentiu.
— Vindo no sentido de se espalhando. Não é nada
muito forte. Mais como os vestígios do meu poder que
ficam no Setor Dez mesmo quando passo meses aqui, do
que como alguma coisa sendo feita de forma ativa.
Mas era algo ativo. Daquilo Rafael tinha certeza. Ele
se lembrava mais que o suficiente do passado. Dos anos
vendo as plantações darem cada vez menos retorno. Dos
anos em que, mesmo que as chuvas continuassem vindo,
a floresta parecia estar passando por tempos de seca.
A mudança na região, naqueles cinco anos, havia
sido mais sutil. A criatura aprendera com o passado e
aquele era o motivo para Rafael não ter notado que algo
estava errado.
— E essa pessoa capaz de identificar poder... — ele
começou.
— Pensou que era algo vindo do Setor Três, no
começo — Alana contou. — Algo da Corte da Névoa,
porque era parecido demais com o poder dos
necromantes. Mas está vindo do lado errado e eu tenho
confirmação de Eric de que eles não têm nada nem
ninguém naquela direção.
— E de onde vem a semelhança com o poder das
bruxas?
Alana deu de ombros e soltou um suspiro pesado.
— Não faço ideia. Quando a nossa pessoa tentou
ignorar a impressão do poder dos necromantes, o que
sobrou foi o poder das bruxas. Algo que é tão parecido
que poderia ser qualquer uma das bruxas no Setor Dez,
mas que está misturado com essa impressão do poder
dos necromantes... Mesmo que sejam praticamente
poderes opostos. Não dá pra só falar um "ah, é uma
bruxa necromante". Não funciona assim.
Rafael assentiu devagar. Não funcionava e ele sabia.
— E os necromantes? — Ele perguntou. — Eles têm
alguma ideia sobre o que isso pode ser?
A bruxa revirou os olhos.
— Eric falou que você provavelmente conhece todas
as histórias que ele me contou, porque faz tempo demais
que existem poucos necromantes — ela falou.
Talvez. Mas aquilo queria dizer que o príncipe do
Setor Três havia pensado em alguma coisa.
— Ele contou sobre os necromantes que perdem o
controle — Alana continuou. — Perdiam, eu acho? Mas
que eles consumiam tanto poder que se tornavam só
instinto e fome, consumindo mais poder por onde
passavam. Isso é até parecido com o que você falou
sobre a criatura, mas...
Rafael assentiu, de novo.
— Mas ela não era instinto — ele falou. — Ela estava
perfeitamente consciente e coerente o tempo todo.
E aquele havia sido o motivo para ele fazer tanta
questão de prendê-la.
Alana suspirou de novo e deu de ombros.
— É isso. Não é muita coisa, mas é o que tenho. E,
considerando que isso não respondeu nada, estou aqui
porque quero conversar com uma das bruxas que mora
no Setor Um. Se os vampiros não têm nenhuma
explicação para o que a criatura é, então preciso
procurar em outro lugar.
Aquilo... Fazia sentido. Fazia todo o sentido do
mundo, e mesmo assim nunca havia passado pela
cabeça de Rafael. Se a criatura não era um vampiro,
então a maior possibilidade era ser uma bruxa. Ou talvez
ter começado sendo uma bruxa – mesmo que não
existissem bruxas que também fossem vampiras –
porque eram as únicas duas opções possíveis.
Não era à toa que ele não conseguia tirar Alana da
cabeça – e cada dia que passava deixava aquilo mais
claro.
— Nós podemos ser uma parceria imbatível, Alana
Novaes — ele falou. — Seus recursos e os meus... Nós
poderíamos reforjar o mundo. Você só precisa confiar em
mim.
Ela deu uma risada seca.
— Você teve minha confiança e a jogou fora, Rafael.
E agora Alana usava seu nome, sem nenhum título,
como ela havia falado que preferia... Porque era uma
forma de manter sua distância. Ele não ia pensar no que
aquilo significava.
Rafael se levantou e foi na direção dela. Alana
acompanhou o movimento dele, mas não saiu de onde
estava. Bom.
Ele colocou uma mão no rosto dela. A pele de Alana
era quente, viva, e não era apenas pelo fato de ela ser
humana. Uma parte do que ele sentia era por causa do
poder dela, também. Sua conexão com tudo o que era
vivo ao seu redor.
E ela não havia recuado. Aquilo era um bom sinal.
Rafael desceu os dedos devagar, acompanhando os
contornos do rosto de Alana.
— Eu deveria ter tentado ganhar sua confiança de
outro jeito — ele falou, em voz baixa. — Não usando a
estufa e as plantações, mas usando a verdade.
Alana deu um passo atrás e balançou a cabeça de
um lado para o outro.
— Você deveria ter confiado em mim. Se você queria
uma parceira, deveria ter me tratado como uma igual,
não como uma peça a ser colocada no seu lugar.
Rafael sorriu. Talvez. Havia uma certa verdade nas
palavras dela, sim. Mas seus planos estavam feitos
muitos antes que ele realmente conhecesse Alana e a
entendesse.
E planos mudavam.
— Eu não queria uma parceira, até te conhecer.
Ela levantou as sobrancelhas.
— E agora é tarde demais para querer. E, se me dá
licença, eu ainda quero dormir algumas horas antes de ir
falar com Silvana.
Rafael continuou parado no lugar, a encarando. Ele
estava sendo dispensado. Não com as mesmas palavras,
mas aquilo era uma dispensa, sim – como se ele fosse
tão insignificante quanto os humanos que ele havia
dispensado, horas antes.
Alana apontou para a porta, sem falar mais nada.
Ele se virou e saiu.

Parceria.

Alana respirou fundo e continuou andando pela rua


principal da cidade, sem nem olhar para os lados. Ele
tinha coragem de falar que queria uma parceria. Depois
de tudo. Depois de como tinha tentado lhe manipular de
todas as formas possíveis. Aí ele via que ela tinha
informações que ele precisava, e agora era aquilo.
Parceria. Aquilo era o auge da...
Ela não podia pensar que era o auge da cara de pau,
porque não era tão simples. Cara de pau era outra coisa.
Aquilo ali, a forma como Rafael agia, era a mais pura
arrogância. Simples assim.
Aquilo não deveria nem ter sido uma surpresa, na
verdade, porque vampiros agiam daquele jeito. E
vampiros antigos eram piores ainda. Alana sabia daquilo.
Tinha sido treinada para lidar com a arrogância e a usar
ao seu favor. Mesmo assim, Rafael tinha ido bem além de
qualquer coisa que ela estivesse esperando e Alana não
se importava se ele tinha ficado ofendido com a sua
resposta. Era a verdade.
Se ele queria uma parceira, nunca deveria ter
tratado Alana como havia tratado. Não deveria ter feito
questão de manter ela sem informações desde o
começo. E com certeza não deveria ter tentado
manipular Alana.
Mas aquele comentário provavelmente tinha sido só
mais uma mentira ou tentativa de manipulação. Ela não
deveria estar perdendo tempo nem pensando naquilo.
Deveria estar focada no que Eric havia contado e no que
tinha esperanças de que Silvana soubesse.
A rua se abriu na praça. A cafeteria estava cheia,
como da outra vez, com as mesas espalhadas na calçada
e na própria praça. Alana se sentou em uma delas e
encarou o cardápio plastificado, sem prestar atenção no
que estava ali. Mesmo que talvez fosse até uma boa
ideia experimentar alguma coisa diferente, ela não
estava com cabeça nem para pensar em o que ali podia
parecer interessante.
Pelo menos ali, com as pessoas conversando entre si
como se fosse um dia qualquer, as risadas altas e os
gritos de pedidos vindo de dentro da loja, parecia que
nada demais estava acontecendo. Provavelmente aquilo
era só porque as pessoas não faziam ideia do poder e do
que podia acontecer, de como os vampiros estavam
unidos e aquilo era um risco, mas mesmo assim era um
alívio estar ali. Ou talvez fosse só porque Alana preferia
mil vezes estar em um lugar onde não tinha a menor
chance de ela se encontrar com Rafael.
E Silvana estava se aproximando.
Alana levantou a cabeça assim que sentiu o primeiro
vestígio do poder da outra bruxa, mais forte que o
normal. Ela estava fazendo alguma coisa logo antes de
sair de casa, pelo visto.
A outra mulher se sentou na frente dela e levantou
um braço, sem falar nada. Não demorou muito para um
rapaz se aproximar, andando depressa e usando uma
blusa com o nome da cafeteria.
— O de sempre — Silvana falou. — Para nós duas.
O rapaz se afastou depressa sem nem responder.
Alana levantou as sobrancelhas.
— Mais alguém que tem medo de você? — Ela
perguntou.
Silvana balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Ele só é calado mesmo — a outra bruxa contou. —
E sobre o que você pediu... Sabendo o que sei sobre a
sua família, você deve ter mais informações que eu.
Porque as famílias de bruxas sempre haviam
protegido suas histórias – tanto a parte que era real
quanto as lendas. Tudo era passado de geração em
geração, tomando cuidado para garantir que o passado
não seria esquecido. Na época em que a magia havia
voltado, aquilo era feito só na base da memória, com uns
poucos registros escritos sobrevivendo ao caos. Depois, à
medida em que o mundo foi estabilizando e as famílias
de bruxas começaram a criar raízes, de novo, elas
voltaram a fazer registros escritos.
Aquilo queria dizer que cada família tinha acesso a
coisas diferentes. E, no começo, tinha sido um dos
motivos para as bruxas sempre manterem contato entre
si: era uma forma de garantir que o conhecimento seria
dividido, porque aquela era a única forma das bruxas
sobreviverem.
A família de Alana era antiga, conhecida. Uma das
mais antigas no continente, talvez.
Mas tudo o que tinham guardado havia sido
destruído na época em que ela e Dani haviam fugido.
Nada sobreviveria ao fogo. Jord não deixaria sobrar nada
da família do bruxo que o desafiara.
— Quando eu fugi, minha prioridade era sobreviver
— Alana falou. — Não tinha como salvar os registros da
minha família. E depois de seis anos fugindo e fazendo
questão de não chamar atenção, não tenho nem como ir
atrás dos contatos que minha avó tinha, antes de tudo.
Silvana assentiu e olhou para o lado. O rapaz estava
voltando com dois copos altos que definitivamente não
eram de café. Aquilo ali era algum tipo de sobremesa,
sim. E era alguma coisa gelada, pela forma como a água
estava se condensando por fora do copo.
Ele colocou os copos na frente delas e se afastou, de
novo sem falar nada.
— Se não quiser, deixa para mim e eu pago depois,
óbvio — a bruxa avisou. — Mas era mais fácil já pedir
alguma coisa e ficar livre de gente vindo na mesa.
Alana deu de ombros e tomou um gole da bebida.
Tinha um gosto de café lá no fundo, mas lembrava mais
quando sua avó encomendava sorvetes em ocasiões
especiais do que qualquer outra coisa. E aquilo não era
algo ruim.
— Sobre as histórias, então — ela falou. — Eu não
lembro de nada que explique como um poder pode
parecer ser de uma bruxa e de um necromante ao
mesmo tempo. Tudo o que eu me lembro diz que é
impossível, na verdade.
Silvana tomou um gole da sua bebida e soltou um
suspiro pesado.
— Você ainda era adolescente quando fugiu, não é?
— Dezoito anos — Alana contou. — Idade o suficiente
para o príncipe tentar me forçar a se a feiticeira dele,
depois do que meu pai fez.
E ela tinha desaparecido antes de Jord ter a chance
de pensar naquilo, porque no fundo ela concordava com
o pai. As coisas no setor não estavam indo bem e Alana
não queria ser uma das pessoas responsáveis por fazer
aquilo continuar.
— E jovem o suficiente para não ter tido tempo de
aprender nada além do que ia ser vital para sobreviver
como uma feiticeira — a outra bruxa falou.
Alana assentiu. Sempre tinha tido coisas demais que
sua avó não tinha contado. Coisas que ela via algo a
respeito, perguntava, e sua avó dizia que era algo para
depois. Primeiro, ela precisava saber lidar com os
vampiros. Depois ela podia se preocupar com o passado.
— Mas eu me lembro muito bem de que o poder das
bruxas e dos vampiros não se mistura — ela falou. —
Vida e morte. Dois pontos opostos que nunca vão se
misturar. E a maior prova disso é o fato de os vampiros
não estarem vivos. Eles não respiram, seus corações não
batem. Eles estão mortos, mesmo que exista alguma
força que os mantém nessa imitação de vida.
Silvana sorriu.
— O poder das bruxas lida com o que está vivo,
sempre. O poder dos vampiros lida com a morte. Isso
vale tanto para os necromantes quanto para a magia
banida que eles usavam no passado.
Sim. Alana tinha aprendido um pouco sobre a magia
dos vampiros quando sua avó ainda estava viva. Todas as
feiticeiras aprendiam. E ela tinha notado aquela limitação
desde o começo: a magia dos vampiros só afetava aquilo
que não estava vivo – como quando ela e Rafael haviam
trocado mensagens usando magia.
Um arrepio atravessou Alana e ela tentou disfarçar
sua reação tomando mais um gole da bebida gelada.
A magia banida dos vampiros era algo que todas as
bruxas de famílias de feiticeiras aprendiam pelo menos
um pouco, porque era algo que seria útil numa Corte.
Alana já havia usado aquilo mais de uma vez.
Então não era tão simples. Não era uma divisão tão
clara. De alguma forma, os dois tipos de poderes podiam
se misturar, sim.
— É por isso que os vampiros têm leis proibido de
transformarem bruxas — Silvana continuou.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Eu não sei se têm leis proibindo isso — ela
comentou. — Conheço pessoas que precisaram fugir
porque teriam sido caçadas pelos vampiros e
transformadas por causa dos seus poderes.
Yuri e Alex – que não tinha exatamente precisado
fugir, mas que faziam questão de se esconder. E Mel
havia sido transformada por causa do seu poder de
manipulação, mesmo que não fosse nada perceptível
quando ela ainda era humana.
A outra bruxa a encarou por um instante antes de se
inclinar sobre a mesa.
— Existe uma diferença. E talvez você nunca tenha
ouvido falar sobre isso porque sua família era de
feiticeiras. Vocês estavam dentro da cultura dos
vampiros.
Alana não falou nada. Aquilo era uma possibilidade,
sim.
— Alguns poderes são... — Silvana continuou. — A
maioria dos nossos poderes são ativos. O que você pode
fazer. O que a mãe de Lara fazia. O que Raquel faz... E
você conhece o pessoal do seu setor. Nós somos as
bruxas, porque o que nós fazemos é além do que deveria
ser humanamente possível. Com o tempo, começamos a
notar mais poderes, como a capacidade de identificar os
detalhes de vestígios de poder. Normalmente, essas
pessoas são chamadas de bruxas, também, mas não são.
— Se é um poder... — Alana começou.
Silvana balançou a cabeça de um lado para o outro.
— É aí que está a diferença. Podemos até considerar
essas coisas como poderes, sim. Mas os poderes passivos
são coisas que são humanas. São uma evolução, de certa
forma. Você já ouviu falar das pessoas que têm defesas
mentais naturais, não já? Que nenhum vampiro consegue
afetar? É um poder, mas ao mesmo tempo... Não é.
Fazia sentido. Aquilo era a pior parte.
— Tanto que a maioria dessas pessoas não sabe nem
que precisam se esconder dos vampiros — a outra bruxa
continuou. — Porque o que fazem é uma coisa tão
natural que ou não notam, ou só acham que têm
facilidade demais em alguma coisa.
— É mais como o potencial de um poder do que um
poder pra valer — Alana murmurou.
Silvana assentiu.
E aquilo fazia sentido, ainda mais quando ela se
lembrava do que Mel tinha lhe contado sobre o seu
passado. A outra mulher não era uma bruxa. Ela só tinha
uma facilidade em manipular as pessoas e usava aquilo
com frequência demais, até que havia chamado a
atenção de um vampiro.
Mas não explicava o poder da criatura.
— E como isso pode ter a ver com um poder que
parece ser das bruxas e dos necromantes ao mesmo
tempo? — Alana perguntou.
A outra bruxa balançou a cabeça de novo.
— Não explica. Mas pense comigo... Por que os
vampiros se recusam a transformar bruxas, mesmo que
façam questão de ir atrás das pessoas que têm esse
potencial mas não chegam a ser um de nós?
Alana respirou fundo e tomou mais um gole da
bebida de café gelada.
Os vampiros gostavam de ter o controle e de mostrar
que eram melhores que os outros. A existência toda
deles girava ao redor de conseguir mais poder. Eles
deveriam fazer questão de transformar bruxas, porque
ter alguém com aqueles poderes entre eles seria uma
vantagem.
Ela só conseguia pensar em um motivo para não
fazerem aquilo.

Alana apoiou a mão na janela da torre, olhando para a cidade lá


embaixo. Não que ela conseguisse ver muita coisa. O que
importava era que o dia ainda estava claro. Ela tinha
saído para se encontrar com Silvana antes do almoço e
passado o máximo de tempo que podia na cidade, antes
de voltar para o castelo, mas era óbvio que não tinha
sido o suficiente. Então ela tinha subido para a torre para
esperar anoitecer e ela poder falar com Dani para lhe
buscar. O que queria dizer que ainda tinha pelo menos
mais três horas ali.
Alguém bateu na porta.
Ela fechou os olhos e respirou fundo.
Tinha sido fácil, da primeira vez – os primeiros seis
meses que ela havia passado ali. Alana tinha se divertido
fazendo Rafael pensar que ela estava caindo na conversa
dele. Até depois de descobrir qual tinha sido o plano dele
para o Dez, desde o começo, tinha sido fácil. Agora? Ela
só estava cansada e sem a menor paciência.
Mas não era como se ignorar um príncipe vampiro no
próprio castelo fosse adiantar alguma coisa.
— Entre.
O ruído da porta abrindo e fechando, mais a
sensação da presença de Rafael, era mais que o
suficiente para Alana. Ela não precisava se virar.
Rafael parou ao seu lado, de frente para a janela. De
novo, ele não estava nem tentando disfarçar como a luz
do sol não fazia diferença para ele. E aquilo era
assustador, sim, porque Amon era quase tão antigo
quanto Rafael e não conseguia ignorar a luz direta
daquele jeito.
E ela não queria pensar naquilo.
— Era assim que o mundo todo era, antes? — Alana
perguntou. — As cidades que as histórias sempre falam...
Rafael se virou e ela sentiu o peso do olhar dele, mas
continuou encarando a cidade bem mais para a frente.
— Não exatamente — ele falou. — Havia cidades
como aqui, sim. E elas eram a maioria. Cidades
pequenas, espalhadas por toda parte.
Alana se virou para ele, sem ter certeza do que tinha
ouvido. Cidades pequenas? Sendo que a capital do Setor
Um era a maior cidade na região?
Rafael deu uma risada baixa e se sentou na beirada
da janela – o mesmo lugar onde Alana passava tanto
tempo sentada.
— As pessoas falam que a volta da magia destruiu o
mundo como era e que a humanidade quase foi
destruída pelos animais corrompidos — ele começou. —
Não acredito que a humanidade teria sido destruída,
mesmo sem um acordo com os vampiros. Mas a
população diminuiu bastante em poucos anos. Nenhuma
das cidades que temos hoje chega perto do tamanho das
cidades de antes.
Fazia um certo sentido, considerando o que ela sabia
sobre o caos daqueles primeiros anos.
— Então as grandes cidades...
Rafael gesticulou na direção da cidade lá embaixo.
— Os Setores Um, Dois, Nove e Seis eram parte da
mesma cidade, assim como uma boa parte das terras de
ninguém ao nosso redor — ele contou. — A capital de um
estado.
Metade da região. E aquilo não era nem o tamanho
de uma das cidades do passado.
— E essa não era a maior cidade do país — Rafael
continuou. — As maiores ficavam no litoral. E estou
contando só as cidades em si, não a região mais próxima
ao redor delas, que era quase parte da cidade, também.
Alana olhou pela janela de novo.
Ela não conseguia imaginar aquilo. O que Rafael
estava descrevendo era grande demais. Impossível,
quase.
Era outro mundo, uma realidade completamente
diferente da que ela estava vivendo.
— A iluminação elétrica era o padrão. Era difícil
achar lugares que não tinham acesso a eletricidade, e
estes lugares quase sempre eram de acesso difícil ou
pobres demais. As cidades, principalmente as maiores,
sempre estavam movimentadas. A noite também era dos
humanos.
Alana tinha passado anos no Setor Dez, com suas
festas, bares e boates que ficavam abertos noite afora,
então aquilo não era tão estranho. Mas ela havia crescido
num setor que era mais parecido com como o Seis
funcionava: humanos que estivessem nas ruas depois do
anoitecer estavam se oferecendo para os vampiros.
Pensar que as pessoas podiam estar nas ruas de noite,
em cidades tão grandes quanto Rafael estava
descrevendo...
— Não parece real — ela murmurou.
Rafael sorriu e balançou a cabeça de um lado para o
outro.
— Eu sei. Antes da volta da magia, quando eu me
lembrava de como era no passado, na época em que eu
criei a Corte do Sangue, também não parecia real.
E Alana não ia perguntar como era naquela época,
se era tão diferente assim. O sorriso de Rafael deixava
claro que aquilo era uma armadilha. Ela não precisava
lhe dar mais nenhuma forma de se aproximar.
Era hora de voltar ao que importava.
— Por que os vampiros não transformam bruxas? —
Ela perguntou.
Rafael se inclinou para trás, de uma forma que era
tão casual que parecia errada, sendo ele ali.
— E quem disse que não transformamos?
Claro que ele ia falar aquilo. Claro.
— Você quer dar um jeito na criatura ou quer
continuar com seus joguinhos?
Ele a encarou. Alana sustentou o olhar do vampiro.
Aquilo não era inesperado. Vampiros faziam questão de
guardar seus segredos, do mesmo jeito que as bruxas.
Mas, se a ideia era trabalharem juntos para resolver
aquilo...
— E o que isso tem a ver com a criatura? — Rafael
insistiu.
Alana podia só responder mandando ele pensar,
porque era uma coisa óbvia. Ou, pelo menos, tinha ficado
óbvio para ela depois da conversa com Silvana. Mas ela
queria respostas, não uma discussão que ia render por
puro ego e ela ia continuar sem saber de nada. Então
não ia falar nada.
Rafael desviou o olhar. Ela conteve a vontade de
sorrir.
— Essa regra já existia quando fui transformado —
ele contou. — É antiga... Talvez a regra mais antiga dos
vampiros.
Era um começo.
— Isso ainda não é uma explicação do motivo para
não transformarem bruxas — Alana falou.
Rafael fez um ruído irritado que era quase um
rosnado e se virou para ela de novo.
— Não é uma explicação porque eu não sei.
Ela levantou as sobrancelhas. Ok, então ele estava
tentando desviar o assunto para disfarçar que não sabia
– porque se Rafael estava irritado daquele jeito, era
porque era verdade.
Mas, sendo bem honesta, ela não precisava de uma
resposta. Só havia um motivo para os vampiros proibirem
alguma coisa: a destruição era maior que o poder. Tinha
sido assim com os carniçais. Eles eram proibidos, porque
era quase impossível mantê-los sob controle. E, quando
escapavam, eles destruíam tudo no caminho – até
mesmo os vampiros.
Então, se os vampiros não transformavam bruxas,
era óbvio que o motivo ia ser algo parecido: a
transformação criava algo que os vampiros não
conseguiam controlar. Ou algo que era uma ameaça para
eles... Porque era óbvio que uma bruxa transformada em
vampira seria um risco para os vampiros. Mas, em teoria,
uma bruxa não seria um risco para os outros humanos...
E ela não tinha informações o suficiente para ter
certeza de mais nada.
Alana assentiu devagar e se virou para sair da torre.
Ela já tinha conseguido o que precisava no Setor Um, já
tinha perguntado o que precisava para Rafael. Então ela
ia se trancar no seu quarto até poder chamar Dani.
— Alana — Rafael chamou.
Ela parou e respirou fundo antes de se virar. Ele
tinha se levantado e estava indo na direção dela. Típico.
Rafael parou na frente de Alana e levantou uma mão
fechada. Ela continuou sem falar nada.
Ele abriu a mão devagar, mostrando o mesmo anel
que tinha deixado no quarto dela dois meses antes,
depois de tudo que tinha acontecido no Setor Três.
— Não — ela falou. — O que quer que esse anel seja,
não quero ele.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Eu ouvi os seus motivos para não querer nenhuma
ligação comigo, na outra noite — ele começou. — Mas eu
sou um vampiro há tempo demais para me lembrar de
como ser humano. E, mesmo que lembrasse, não poderia
deixar de ser quem sou. Não se quisesse manter os
vampiros sob controle.
Alana levantou as sobrancelhas e se forçou a não
passar a mão no rosto. Ele estava dizendo que tinha
ouvido, mas ao mesmo tempo tudo o que tinha falado
era o mesmo que dizer que não tinha ouvido nada.
— E você acha que eu falei aquilo tudo porque eu
quero que você aja como humano — ela falou.
Rafael inclinou a cabeça daquele jeito que não era
humano.
— E não é?
Não. Ela não estava nem um pouco disposta a lidar
com aquilo.
Alana deu uma risada seca e saiu da torre, sem falar
mais nada. Rafael não foi atrás dela.
Ela já estava quase na porta do seu quarto quando
colocou a mão no bolso da saia que sentiu que o anel
estava lá.
DEZESSEIS

Rafael encarou as roseiras no jardim mais abaixo. Agora não havia


mais nenhum sinal de que todas as folhas e rosas haviam
murchado por alguns dias, a ponto de ele ter pensado
que as roseiras estavam mortas. E ele nunca mais
conseguiria olhar para suas roseiras sem se lembrar de
como Alana havia encontrado a forma perfeita de puni-lo
pelo que fizera.
Ela estava certa em ter perguntado sobre por que
vampiros não transformavam bruxas. Aquilo era uma
regra tão antiga que ele mesmo nunca havia parado para
pensar nos motivos para existir. Era quase como a ideia
de transformar crianças – ninguém precisava de uma
explicação sobre por que aquilo era uma má ideia.
Mas não havia uma explicação sobre aquela
proibição. Pelo menos, não uma que ele conseguisse se
lembrar. E Rafael não sabia de muitos vampiros mais
antigos que ele para poder perguntar.
Considerando o que Alana havia falado sobre o poder
da criatura, aquilo fazia tanto sentido que ele mesmo
deveria ter imaginado a possibilidade.
Cada uma das regras que os vampiros tinham existia
por um motivo. Apenas um risco ou um preço alto
demais podia convencer os vampiros a aceitarem uma
proibição. No caso daquela regra, era pior ainda, porque
ninguém a testava. Não era como os carniçais, que havia
vampiros demais que se lembravam do risco e das
consequências quando eles escapavam do controle, e
mesmo assim insistiam em criar mais deles.
Ninguém sabia por que não transformavam bruxas.
Mas ninguém tentava descobrir o motivo. Ou, se tentava
descobrir, não sobrevivia para os outros ficarem sabendo
da história. Era como se aquilo estivesse gravado nas
memórias dos vampiros, de alguma forma, como um
aviso importante demais para ser ignorado.
E havia sido Alana a descobrir aquilo.
Um vampiro parou do lado de fora do seu escritório.
Rafael se virou e parou ao lado da sua mesa.
— Entre.
Victor entrou e fechou a porta atrás de si.
— Os humanos estão inquietos depois do seu
ultimato — ele contou. — Identifiquei algumas
transmissões suspeitas.
Era exatamente o que Rafael havia esperado.
— Algo específico?
O outro vampiro balançou a cabeça de um lado para
o outro.
— Eles estão evitando conversar entre si. As únicas
conversas que consegui captar estavam ligadas a
trabalho, sem nenhuma chance de ser um código.
Interessante. Aquilo queria dizer que os humanos
suspeitavam que podiam ser ouvidos. Aqueles humanos
trabalhavam para sua Corte havia tempo o suficiente
para saberem que nem todos os vampiros conseguiam
ler pensamentos sem esforço, mas pelo visto eles
imaginavam que Rafael teria escutas de algum tipo pelo
castelo. E ele tinha, por insistência de Thales e Victor.
— As outras Cortes? — Rafael perguntou.
Victor balançou a cabeça de novo.
— Sem atualizações por enquanto.
O que queria dizer que as Cortes que haviam jurado
sua lealdade estavam dando a impressão de estar
cumprindo seus juramentos e que as outras ainda não
estavam prontas para pensar em desafiar Rafael.
— Compreendo.
Era diferente demais do passado. Na época da Corte
do Sangue, Rafael tinha vampiros demais perto de si –
tanto os que realmente eram leais quanto os que fingiam
ser, por medo ou interesse. Mas a sua Corte era a única.
Nenhum dos outros vampiros pelo mundo tinha uma
base de seguidores sólida o suficiente para ser uma
ameaça. Os que haviam chegado perto daquilo ao longo
do tempo haviam recebido o aviso de que deveriam
mandar alguém como uma garantia da sua lealdade.
Reféns, sim. E reféns que o próprio Rafael fazia questão
de escolher, para ter certeza de que seriam pessoas que
os outros vampiros não estariam dispostos a sacrificar.
Ele não teria como fazer a mesma coisa. E, mesmo
que tivesse, Rafael não queria. Escolher reféns e lidar
com a presença deles na sua Corte era desgastante
demais. Sempre era um jogo de manter o medo vivo, ao
mesmo tempo em que conquistava a lealdade deles,
pouco a pouco, como outra garantia de segurança.
Não. O mundo havia mudado demais depois da volta
da magia. E Rafael não queria que o futuro fosse como o
passado.
Só havia uma coisa que vampiros respeitavam:
poder. Aquilo queria dizer que, se Rafael quisesse manter
todos os outros sobre controle, sua Corte teria que ser
sinônimo de medo. Todos os vampiros precisavam temê-
lo. E, mesmo que o baile houvesse sido um começo,
apenas aquilo nunca seria o bastante.
— O que deseja que eu faça sobre os humanos? —
Victor perguntou. — Os responsáveis pelas transmissões
suspeitas.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Os mantenha sob observação, por enquanto — ele
falou. — E tente identificar estas transmissões. Eu quero
saber exatamente quem está por trás das traições.
O que queria dizer usar os humanos como isca, se
fosse necessário.
Victor assentiu e saiu do escritório.
Rafael deu uma risada baixa e se virou para a janela
e as roseiras de novo.
Com tudo o que estava acontecendo, Alana ainda
esperava que ele agisse como um humano. Como se
alguém que fizesse aquilo tivesse a menor chance de
sobreviver ou de fazer o que era necessário.
Ele não mentiria para si mesmo dizendo que só havia
se tornado quem era porque era necessário. A
necessidade havia existido, sim, no começo. Mas Rafael
gostava do poder. Aquilo era uma verdade sobre os
vampiros e sobre si mesmo que ele nunca negaria. Ele
gostava de ter o respeito e o medo dos outros e de saber
que estava no comando. Sempre havia gostado, mesmo
antes de ser transformado – pelo pouco que conseguia se
lembrar de quando ainda era humano.
E Alana...
Alana dissera que Rafael havia tido a confiança dela
e então a havia jogado fora. Aquilo era... Inesperado,
para dizer o mínimo.
Ele sabia que havia calculado bem seus movimentos,
desde o começo. A forma como se aproximara de Alana,
com aquela mensagem sem nenhuma ameaça,
exatamente quando o Setor Oito estava fazendo pressão
para que a entregassem, havia sido pensada para ganhar
a confiança dela, sim. Rafael havia se colocado como a
melhor opção em um momento em que ela não tinha
escolha – e como a opção que a ouviria e que daria o que
ela mais queria: proteção para sua família.
Ele havia cumprido a sua parte do acordo. Se o Setor
Dez havia sido atacado, não tinha sido por influência
direta dele. E, como eles não haviam pedido ajuda, Alana
nao podia questionar Rafael não ter defendido o Dez.
E o tempo todo enquanto Alana estava no Setor Um,
naqueles primeiros seis meses, ele havia tomado cuidado
demais para não a assustar. Ele tinha se aproximado aos
poucos, só a observando e depois deixando que ela
notasse aquilo... E então começando com aquele jogo de
perguntas que era um risco, sim. A forma como ele havia
deixado claro que, se ela perguntasse, ele não mentiria.
Alana havia aceitado sua aproximação. Ela havia se
acostumado a ter Rafael por perto, até que ele se
lembrava de vezes demais em que tinha parado com ela
nos seus braços e só o contrato e as cláusulas que ela
fizera questão de acrescentar o impediram de terminar a
sedução que havia começado.
Aquilo havia desaparecido. Ela não estava mais
tranquila na presença dele, como antes. Agora, sempre
havia uma tensão ali, quando ele se aproximava, como
se Alana estivesse pronta para atacar a qualquer
momento... Como ela havia feito no dia em que quebrara
a janela do escritório e o prendera com as roseiras.
Ele queria a familiaridade de novo. A tranquilidade
com a qual ela havia aceitado sua presença e seu toque,
antes.
E, se Rafael havia conquistado a confiança de Alana
uma vez, então era possível fazer aquilo de novo, não
importava o que ela dissesse sobre ser "tarde demais".
Ele era um vampiro. O que mais tinha era tempo.
Ele encarou as rosas e sorriu. Sim. Aquilo seria uma
distração mais que bem-vinda enquanto ele lidava com
as Cortes e eles lidavam com a criatura. E, se tudo
corresse bem, poderia ser mais que uma distração.

O anel ainda estava em cima da sua mesa de cabeceira. E não tinha


nada estranho acontecendo ao redor dele.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro e
parou na frente da janela do seu quarto. Ela não deveria
nem estar pensando naquilo. O anel não importava. Na
lista de coisas envolvendo Rafael, aquilo era sua menor
preocupação, porque um anel não queria dizer nada.
A forma como tinha plantas espalhadas por todo o
castelo, agora, era mais preocupante. Não tinha motivo
para Rafael ter resolvido mudar a decoração do nada, o
que queria dizer que tinha feito aquilo para ela. Só... Não
fazia sentido. Nenhum sentido.
E, se o anel não fosse nada, Rafael não ia ter feito
tanta questão de fazer Alana levá-lo. Se Alex não tivesse
garantido que não havia nenhum sinal de magia nele,
Alana teria certeza que Rafael estava usando aquilo para
lhe rastrear. Ela não fazia ideia do que aquilo ela ou do
motivo para a insistência dele... E não queria perguntar.
Perguntar era o que tinha começado tudo. Era o que
tinha feito Alana se acostumar com a presença de Rafael.
A forma como ele sempre lhe respondia tinha sido o
primeiro passo para ela pensar que talvez pudesse
confiar nele. Então ela não ia deixar sua curiosidade dar
nenhum sinal de vida. Qualquer interação com Rafael
seria só trabalho. Só o que precisavam fazer para lidar
com aquela criatura e mais nada.
Mas tinha sido bom estar na torre, com ele contando
sobre o passado. Tinha sido confortável, até. E Alana era
capaz de apostar que tinha sido só manipulação.
Alguém se aproximou da mansão, correndo, vindo de
um dos caminhos que levava para a fronteira.
Alana se apoiou na janela. Ela conhecia aquele
cabelo cacheado. Era Val ali e a garota não tinha nada
que estar nem perto de nenhuma fronteira. Até onde eles
sabiam, ninguém fora do setor fazia ideia do poder da
garota – com exceção de Eric. Mesmo assim, Val tinha
ordens para não sair das partes mais centrais do setor e
não desaparecer sem alguém saber onde ela estava
indo.
A garota olhou para cima e parou de correr.
— Alana! Alex mandou te chamar!
Aquilo fazia mais sentido. Val não era do tipo que iria
para perto da fronteira sozinha só para provar que podia.
— Já vou! — Alana gritou de volta.
Ela saiu do casarão depressa. Val ainda estava
parada no meio do caminho e começou a andar de
costas assim que Alana se aproximou.
— Você já voou com Gustavo te carregando? — A
garota perguntou.
Alana levantou as sobrancelhas e só continuou
andando. Comentar sobre como Val estava andando de
costas num caminho que era praticamente uma trilha
não ia adiantar nada e ela já sabia.
— Por que a pergunta?
A garota deu de ombros.
— Porque ele sempre diz que não pode voar comigo,
mas eu já vi ele voando com Alex.
Crianças. Não tão crianças assim, porque Val já tinha
quase quatorze anos, mas o sentimento era o mesmo.
— Já voei — Alana contou. — Ele me trouxe de volta
para o setor uns dias atrás.
Porque era o jeito mais fácil de voltar para o Setor
Dez depois do baile. Se Alana tivesse ido embora
depressa, sem esperar para ter aquela conversa com
Rafael, ela poderia ter aproveitado que Dani estava lá.
Mas ela sabia que precisava falar com o vampiro
primeiro, de um jeito ou de outro, então tinha ficado. E
depois daquela conversa já era dia, então não tinha a
menor chance de Dani conseguir transportar Alana de
volta para o Dez. O melhor jeito era se encontrar com
Gustavo na fronteira entre o Um e o Dois – e Alana havia
feito exatamente aquilo.
Val cruzou os braços e se virou logo antes de
entrarem no meio das árvores que cercavam a maior
parte do setor. Bom, aquilo queria dizer que tinha menos
chances de ela tropeçar em alguma coisa.
— É só comigo, então — a garota resmungou.
Alana resistiu à vontade de revirar os olhos. Na
maior parte do tempo, Val era quieta e concentrada
demais. Não tinha como não ser, considerando como ela
e Lara tinham precisado passar anos se escondendo,
também. Mas ela era só uma garota no começo da
adolescência e às vezes aquilo ficava muito visível.
— Não é só com você — Alana falou. — Mas Gustavo
não leva ninguém para dar uma voltinha voando à toa.
Sempre que ele faz isso, é porque precisa.
Val fez um ruído irritado e não falou mais nada. Com
sorte, aquilo queria dizer que ela tinha entendido.
E elas estavam indo na direção da fronteira com o
Setor Seis, não na direção do mercado de lá, mas na
direção que ficava o Setor Oito.
Um arrepio atravessou Alana, mas ela continuou
andando. Cassius – o príncipe do Setor Oito – havia sido
destruído dois meses antes por Amon. Ela tinha visto o
relatório de Dani, depois. Alana não tinha motivos para
se preocupar por estar indo naquela direção, até porque
eles saberiam bem antes se tivesse alguma coisa se
aproximando através do Seis.
Alex apareceu entre as árvores um pouco mais para
a frente, indo na direção delas.
— Alana, vê se está notando alguma coisa diferente
— elu falou.
Ela balançou a cabeça. Se Alex queria dizer algo nas
árvores daquela região, então não tinha nada diferença.
Os Setores Dez e Três eram os únicos que tinham
fronteiras com tanta vegetação. No Dez, aquilo tinha sido
feito de propósito, para deixar mais difícil para os
vampiros conseguirem ver o que estava acontecendo no
setor e para ser um obstáculo em caso de ataque. Se os
vampiros atacassem um setor humano – como tinha
acontecido um ano antes – ter um espaço aberto para
visibilidade não faria a menor diferença, porque os
vampiros eram rápidos demais. E, no Três, a vegetação
fechada do pântano tinha sido um acidente.
Mas, ali, aquilo queria dizer que as árvores só eram
tão altas e fortes por causa do poder de Alana se
espalhando pelo setor. E o poder ainda estava ali, indo
até a fronteira, logo à frente.
Alana parou no lugar e estreitou os olhos. A fronteira
não estava "logo à frente". A fronteira estava longe o
suficiente para ela não conseguir ver as paredes elétricas
entre as árvores. Mas seu poder acabava alguns passos
para a frente, antes de onde Alex tinha parado, também.
— Você... — ela começou.
Alex assentiu, sem falar nada.
Alana avançou, andando devagar. Seu poder não
tinha desaparecido ou acabado de algum jeito. E
definitivamente não tinha sido consumido – o que era um
alívio, na verdade. Mas ele tinha sido empurrado. E o
outro poder estava bem ali, se alimentando das suas
árvores.
Ela fechou as mãos com força. Ia ser simples
empurrar o poder de volta. Alana conseguia sentir o que
estava ali. Aquilo era mais que só um vestígio, mas não
chegava a ser nada que seria um problema para ela.
Mas, se ela empurrasse o poder, era bem possível que a
criatura notasse.
Alana não queria forçar um confronto sem ter mais
informações.
— Precisamos de uma reunião — ela falou.
Alex assentiu.
— Já mandei mensagem para Raquel — elu avisou.
— Assim que anoitecer, na mansão.
Porque precisavam de todo mundo ali e a casa de
Dani era apertada demais para fazer uma coisa
daquelas.
Bom. Era melhor, mesmo que Alana não quisesse
esperar. Ela tinha que contar sobre a questão do poder,
também, o que queria dizer entrar em contato com o
Setor Três e ter alguém de lá ouvindo, pelo menos.
Ela deu alguns passos para trás, devagar. Aquele
poder era só um poder. Não era nada que tivesse uma
consciência e fosse sentir sua proximidade. Mesmo
assim... Alana entendia o que Alex tinha falado sobre
parecer o poder de uma bruxa e aquilo era incômodo
demais – a sensação de algo que poderia ser dela, mas
estava errado de alguma forma.
Então ela ia ficar longe daquilo. E, até o anoitecer,
ainda tinha tempo para tentar conseguir algo mais
concreto para repassar na reunião.
DEZESSETE

Rafael encarou a mensagem no seu tablet. Aquilo era mais irritante


do que ele gostaria de admitir e era tentador usar magia
para responder Alana. Mas ele tinha certeza que, se
tentasse, ela simplesmente o ignoraria. A bruxa havia
deixado claro o que aceitaria ou não, vindo dele. Era
melhor lidar com as mensagens irritantes do que aceitar
o silêncio.
E ele quase conseguia ouvir a voz de Alana, lendo
aquela mensagem.

Alana: Você realmente não tem plano nenhum para


lidar com a criatura? Está só parado esperando pra ver o
que ela vai fazer?

Um desafio e uma provocação. Tão diferente do lado


de Alana que ela havia mostrado nos primeiros seis
meses ali, e ao mesmo tempo tão completamente ela.

Rafael: Você gosta de brincar com a sorte, não é?


Alana: Isso não é uma resposta.
Não era, porque ele não tinha uma resposta. Ele não
sabia o suficiente sobre a criatura, mesmo depois de
tantos séculos, para fazer um plano.
Mas ele sabia que Alana gostava de lhe provocar.
Não havia outra explicação para aquelas mensagens – e
para todas as outras vezes em que ela o desafiara, sendo
que poderia ter conseguido o que queria de outra forma.
E a pior parte era que ele mesmo não podia dizer
que não gostava daquilo. Muito pelo contrário: ele
sempre estava esperando para saber qual seria a
próxima forma que ela encontraria de desafiá-lo.

Rafael: Meu plano sempre foi esperar até ter mais


informações. Saber onde a criatura está, o que está ao
seu redor, quais defesas precisaremos quebrar. Não
temos como saber de nada disso até ela agir.
Alana: Não é o suficiente.

E ela esperava o quê? Que tudo fosse mudar porque


ela dizia que não era suficiente? Que a criatura iria sair
de onde estava se escondendo e agir?

Alana: Eu preciso de informações.


Alana: E nada da enrolação que você fala
normalmente. Detalhes.
Alana: O que aconteceu no passado. O que vocês
fizeram pra conter a criatura.
Alana: Esses detalhes.

Outra notificação de mensagem apareceu, ao


mesmo tempo em que o celular de Rafael tocava. Ele
fechou a conversa com Alana e pegou o celular. O nome
na tela não era uma surpresa: Thales.
— O que houve? — Rafael perguntou assim que
atendeu.
— Algum tipo de ataque no Oito — Thales avisou. —
Estou a caminho.
Algum dos traidores estava se movendo, então.
— Que tipo de ataque?
— Não tenho certeza. Me confirmaram a morte de
quatro humanos e alguns animais, perto da fronteira com
o Setor Nove mas na direção da fronteira com as terras
de ninguém.
Na direção da fronteira com as terras de ninguém...
A mesma direção de onde Alana havia falado que o poder
da criatura estava vindo.
— Me informe assim que souber mais — ele falou.
— Entendido.
A ligação foi encerrada.
Ainda era dia. Thales tinha suas formas de
atravessar os setores até voltar para o Oito, mas não
teria como averiguar o que havia acontecido
pessoalmente. E, se ele só havia falado da morte de
humanos e animais, sem nenhuma menção a vampiros
ou a alguma parte da infraestrutura do Setor Oito, talvez
não fosse algo feito por traidores – os vampiros aliados à
criatura. Qualquer coisa vindo deles causaria mais
estragos do que aquilo.
Rafael pegou seu tablet de novo. A outra notificação
de mensagem ainda estava na tela, com um nome que
ele não estava esperando ver. Hugo, o príncipe do Setor
Nove.
Ele abriu a mensagem.

Precisamos de ajuda.
Três palavras, sem nenhum detalhe... Mas com duas
fogos anexadas.
Rafael abriu as imagens. Uma delas parecia ser um
gramado seco. Ele aumentou a imagem. Não era um
gramado. Era uma das plantações do setor, mas tudo
estava tão seco que ele não conseguia identificar
detalhes.
A segunda imagem era mais preocupante: outra
parte das plantações, completamente seca, mas havia
dois corpos no chão. Rafael aumentou aquela imagem
também, focando nos corpos. Não havia nenhum sinal de
ferimento que ele pudesse ver. Era como se o casal
humano simplesmente houvesse caído no lugar onde
estava.
Sua suspeita sobre o que havia acontecido no Setor
Oito havia se tornado quase uma certeza, então.
Rafael enviou uma resposta rápida para Hugo,
dizendo que estaria no setor depois do anoitecer. Ele
precisava ver aquilo pessoalmente, não que houvesse
algo que ele pudesse fazer a respeito. Aquela era a pior
parte: não importava o quanto ele quisesse, Rafael não
tinha como proteger as pessoas sob sua responsabilidade
e muito menos vingar um ataque. A única coisa que ele
podia fazer era estar lá para deixar claro que estava
ciente e tentando fazer alguma coisa.
Victor parou do outro lado da porta e bateu uma vez.
— Entre — Rafael chamou.
O outro vampiro entrou e fechou a porta atrás de si,
já com um tablet na mão.
Rafael não estava disposto a ouvir o que os outros
vampiros estavam falando daquela vez.
— Me dê o resumo — ele pediu.
Victor assentiu de forma seca.
— Estão questionando seu poder — o vampiro
contou. — Dizendo que passou dois séculos escondido
para recuperar suas forças depois da volta da magia,
porque sabia que não ia ser capaz de conter o novo
poder dos vampiros. Que o que aconteceu no baile foi
uma intimidação vazia, porque não tem poder para
repetir algo do tipo.
Rafael mostrou as presas de uma forma que não
podia ser chamada de sorriso. Ele deveria ter esperado
algo naquele tom. Era coincidência demais aqueles
comentários estarem ficando fortes justamente quando
dois setores da sua região estavam sendo atacados.
Aquela seria a parte seguinte: os detalhes sobre como
ele não era forte o suficiente nem mesmo para proteger
a sua região. Como alguém tão incapaz não deveria ter
nenhum tipo de poder sobre os outros vampiros.
— Vou lidar com isso — ele avisou.
Victor assentiu de novo e saiu do escritório sem falar
mais nada.
Aquilo era uma boa notícia, na verdade. Queria dizer
que tudo estava interligado. Mesmo que fosse possível
que parte dos traidores ou dos vampiros estivesse
apenas se aproveitando da situação com a criatura, o
fato era que ele só precisava lidar com um problema e os
outros se tornariam inofensivos.
A questão era como lidar com aquele problema.
Rafael pegou seu tablet de novo e se virou para a
janela. O céu ainda estava claro. Ele precisaria esperar
mais algumas horas antes de ir para o Setor Nove – e
provavelmente para o Oito, também. E, naquele tempo...
Alana não tinha mandado mais nenhuma mensagem
depois de pedir os detalhes sobre o passado. Ela não ia
insistir, mesmo que ele tivesse demorado demais a
responder. E Rafael não ia admitir para si mesmo que
queria que ela insistisse. Ele queria aquele jogo entre
eles, as provocações e desafios.
Mas ela estava certa em não insistir, também,
porque aquilo era importante demais para jogos. E era
importante demais para aquele tipo de mensagens.

Rafael: Se quer todos os detalhes, posso lhe dar.


Mas não via mensagens. Pessoalmente.
Alana: Você teve oportunidades mais que o
suficiente pra me contar isso pessoalmente e não fez a
menor questão.
Alana: E se você não tem um plano, o mínimo que
pode fazer é me dar o que eu preciso para tentar pensar
em um.

Rafael sorriu. A ideia de aparecer no Setor Dez, no


quarto de Alana, de novo, era tentadora. Ele poderia
dizer que ela havia insistido em ter suas informações
naquele momento. Ela ficaria furiosa, mas aceitaria... E a
reação de Alana seria mais que o suficiente para
compensar o trabalho que ele teria e o incômodo de se
lembrar.
Mas ainda era dia – o que queria dizer que o custo de
ir até o Setor Dez seria alto – e Rafael tinha mais dois
setores para se preocupar, também.

Rafael: O Setor Nove enviou um pedido de ajuda e


recebi um aviso de problemas no Oito, também. Não
tenho confirmação de que é algo envolvendo a criatura,
mas o acordo foi não fazer nada pelas suas costas. Se
você quiser me acompanhar, posso te dar todos os
detalhes pessoalmente depois que descobrirmos o que
está acontecendo.
Ela demorou a responder. Rafael continuou
encarando seu tablet. Ele queria que Alana aceitasse –
não só porque ela tinha mais chances de fazer algo
contra o que havia acontecido no Setor Nove, mas
porque queria a bruxa por perto. Ele queria saber como
ela interpretaria tudo aquilo, tanto o que estava
acontecendo quanto o passado.

Alana: Eu vou.
Alana: Mas ainda quero saber o que você fez pra
conter a criatura antes.
Alana: E preciso de um tempo depois que anoitecer
antes de ir para o Nove.

Rafael não tinha certeza de por que ela precisaria de


tempo do anoitecer. Se fosse por causa do poder da sua
prima, ela não precisaria esperar tanto tempo. Mas ele
conhecia sua bruxa o suficiente para ter certeza de que
ela não pediria aquilo à toa.

Rafael: Me avise quando estiver pronta. Estarei


esperando.

Alana cruzou os braços e fechou os olhos. As conversas em voz


baixa ao redor da mesa eram familiares demais, mas não
tinha nada que ela quisesse prestar atenção. Na verdade,
o que ela queria era dormir, mas aquilo não era uma
opção.
Ela e Alex tinham contado o que haviam visto na
fronteira – como o poder da criatura estava avançando
para dentro do Setor Dez e como Alana possivelmente
podia afastar aquilo de novo. Mas não era certeza. E era
uma confirmação de que iam ser atacados, de uma
forma ou de outra.
E tinham contado sobre o poder da criatura ser uma
mistura entre o poder das bruxas e dos necromantes.
Sobre como nem mesmo Rafael sabia a origem da
proibição de transformar bruxas. Tanto Amon quanto Eric
– que tinha aceitado a conexão para participar daquela
reunião – tinham concordado que aquilo fazia sentido.
Mas eles também não sabiam de mais nenhum detalhe
sobre a proibição.
As coisas tinham desandado a partir dali. Se bem
que talvez "desandado" fosse uma palavra forte demais.
Mas as discussões paralelas tinham começado, com cada
um tentando achar uma explicação para como aquilo do
poder era possível, qual o motivo provável para a
proibição e mais um monte de coisas a partir dali. Alana
nunca tinha visto aquilo acontecer em uma das reuniões
antes, mas pelo visto todo mundo já estava no limite
demais para conseguir manter o foco.
Eles iam ficar falando por horas e não iam chegar em
lugar nenhum. E ela ia ficar ali, perdendo tempo. Não que
Alana quisesse se encontrar com Rafael, mas ela
precisava saber o que estava acontecendo no Setor
Nove, porque era bem provável que tivesse alguma coisa
a ver com o poder vindo do Oito e passando pela
fronteira.
Ela respirou fundo e abriu os olhos. Do outro lado da
mesa, Mel se virou para encará-la e deu de ombros.
Nenhum sinal de que iam parar de falar, então. E até
Raquel estava discutindo possibilidades com Ezequiel e
Yuri.
— Chega — Alana falou, alto o suficiente para todo
mundo se virar. — A menos que alguém tenha alguma
coisa concreta, chega.
Eles pararam de falar.
— Pensei que a ideia era jogarmos ideias — Dante
falou.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Se quiserem fazer isso, fiquem à vontade, mas
depois que isso acabar porque eu ainda tenho o que
fazer essa noite.
— Tem? — Mel perguntou.
Alana se virou para ela de novo. Se Mel tinha notado
como ela estava irritada, então provavelmente tinha
visto o suficiente nos seus pensamentos para saber
muito bem que ela tinha o que fazer, sim.
Mas mais ninguém ali sabia.
— Assim que essa reunião acabar, eu vou me
encontrar com Rafael e nós vamos para o Setor Nove —
Alana contou. — Eles mandaram um pedido de ajuda e
parece que tem a ver com a criatura. Então, se alguém
tiver mais alguma coisa importante para acrescentar...
Ninguém falou nada, mesmo que ela pudesse ver
como uns tantos ali estavam irritados ou incomodados.
Yuri, Adriana, Dante, Ezequiel e Dani – era mais que
óbvio que nenhum deles queria que ela fosse sozinha
com Rafael. Mas não estavam falando nada e aquilo já
era um progresso, pelo menos.
— Eu lembrei de uma coisa — Dani começou. — Pode
não ser nada demais, mas...
Ela deu de ombros. Alana assentiu. Se ao menos
parecia que era uma coisa que podia ser útil, ok. O que
ela não estava com disposição nenhuma para lidar era
com as especulações sem sentido.
— Você se lembra de quando a vó Alzira contava as
histórias de terror para tentar me assustar? — Sua prima
perguntou. — A gente era da idade de Val, mais ou
menos, eu acho.
Alana sorriu. Ela se lembrava. A avó delas de tempos
em tempos arrumava alguma história assustadora
envolvendo vampiros para contar para elas –
especificamente para tentar assustar Dani. Ou, como ela
dizia: para tentar enfiar bom senso na cabeça da sua
neta encrenqueira, porque ela precisava aprender que às
vezes não valia a pena comprar a briga.
— Eu nunca prestei muita atenção nas histórias —
Alana falou. — E elas eram mais pra você do que pra
mim. Isso sem nem falar que a vó admitiu para mim que
tinha inventado quase tudo.
Dani revirou os olhos.
— Pois devia ter prestado atenção, porque você sabe
que eu nunca fui boa em lembrar das histórias que ela
contava. E essa é específica demais. Pode até ter sido
inventada, mas... — Sua prima deu de ombros. —
Encaixa demais com o que você falou. Era uma história
sobre uma bruxa da nossa família. Uma antepassada que
foi transformada.
Um arrepio atravessou Alana. Agora que Dani tinha
mencionado aquilo...
— A que escolheu ser transformada.
Sua prima assentiu.
Alana raramente parava para se lembrar das
histórias da sua avó. Na época, elas não eram a parte
mais importante. O que ela queria saber era a parte real,
não alguma coisa que era bem possível que tivesse sido
inventada.
Talvez ela realmente devesse ter prestado mais
atenção.
Sua avó tinha contado sobre vampiros
transformando bruxas. Como aquela bruxa em
específico, a antepassada da família delas, não tinha sido
a primeira. Os vampiros faziam aquilo com frequência,
porque achavam que era assim que as habilidades deles
nasciam, do sangue de bruxas. Então nada melhor que
transformar uma delas e a prender para passar séculos
as usando como lanche. Mas os poderes de uma bruxa
desapareciam quando elas eram transformadas – e a
origem dos poderes dos vampiros era outra.
Aquele era o motivo para Alana ter tanta certeza de
que o poder das bruxas e dos vampiros não se
misturava. Quando uma delas era transformada, elas
deixavam de ser bruxas. Eram como qualquer outro
vampiro.
E, no passado, aquela havia sido a origem das
feiticeiras. Elas eram as bruxas que tinham escapado
daquele destino jurando servir aos vampiros que queriam
transformá-las. Elas dariam seu sangue e colocariam
seus poderes à disposição dos vampiros, e em troca elas
e suas famílias estariam seguras.
Nenhuma bruxa queria ser transformada. Aquilo
queria dizer abrir mão de quem eram, das pessoas ao
seu redor, das suas crenças, dos seus poderes... Tudo.
Mas uma bruxa tinha escolhido ser transformada.
Uma bruxa que havia se apaixonado por um vampiro.
Então ela tinha cumprido o que considerava sua
obrigação, tido os filhos que passariam o poder em frente
e criado aqueles filhos até terem idade o suficiente. E
depois ela havia ido ao encontro do seu vampiro e nunca
mais tinha sido vista – porque quem a via não sobrevivia.
— As histórias da vó Alzira nunca falaram o que
aconteceu com ela — Alana murmurou. — Só deram a
entender que ela tinha sido transformada e que não tinha
sido a mesma coisa que as outras bruxas.
Dani assentiu, devagar.
— Mas faz sentido, não faz? — Ela perguntou. — A
forma como a criatura está se alimentando de poder... De
vida. Se você pensar nessa história...
Um arrepio atravessou Alana. Ela se lembrava muito
bem de Rafael falando que o poder dela era oposto ao da
criatura. E de como ele não tinha negado quando ela
tinha falado que, se houvesse outra pessoa com aquele
mesmo poder, ele já teria dado seu jeito de ter a pessoa
ali, também.
— Alex... — Alana começou.
— Não — Raquel interrompeu. — Acho que todos
aqui querem saber de que história vocês estão falando.
Sim. Sim, ela precisava explicar para os outros,
também.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Minha avó tinha uma história sobre uma
antepassada da família que escolheu ser transformada. E
é uma história antiga, de antes da volta da magia. Pelo
jeito que ela contava, quase parecia...
Quase parecia outro mundo – como o que Rafael
tinha falado sobre o mundo quando ele havia sido
transformado e o mundo logo antes da volta da magia.
E ele tinha lhe contado por alto como havia prendido
a criatura no passado. Como tinha reunido os vampiros
jurados à Corte do Sangue, todos os que tinham prática
na magia de sangue dos vampiros – porque a única
forma de conter a criatura havia sido drenar o poder que
ela havia absorvido e usar aquilo para criar uma parede
ao seu redor.
Fazia sentido – e Alana tinha passado algumas horas
pensando naquilo, até a hora da reunião. A ideia de usar
o próprio poder que a criatura havia absorvido para criar
um bloqueio chegava a ser até elegante, mesmo que ela
não entendesse exatamente como aquilo tinha sido feito.
E teria sido necessário, com certeza, porque se a criatura
continuasse absorvendo poder, ia quebrar qualquer coisa
que tivessem usado para prendê-la.
Mas agora, depois de ser lembrada da história da
sua avó...
Uma bruxa da natureza dava poder para as plantas
ao seu redor. Ela usava o seu poder para moldar as
plantas como queria e fazer com que obedecessem aos
seus comandos. Mas não precisava ser assim. A própria
Alana já havia ameaçado Rafael com algo do tipo –
quando ela tinha falado que, se ele aparecesse no quarto
dela sem ser convidado de novo, ela garantiria que nada
cresceria no Um. E até mesmo quando havia feito as
roseiras dele secarem.
E todo mundo ainda estava olhando para ela.
Alana respirou fundo e se virou para Alex.
— Eu preciso que você volte na fronteira assim que
puder — ela falou. — E tente identificar se o poder da
criatura tem alguma semelhança específica com o meu
poder.
Nos monitores em cima da mesa, Lara e Eric
trocaram um olhar pesado. Eles tinham entendido. Do
outro lado da mesa, Mel ficou pálida.
— O que você está sugerindo... — a outra mulher
começou e parou.
Alana respirou fundo de novo.
— Uma bruxa da natureza transformada em vampira
— ela falou. — Porque nós podemos consumir o poder do
jeito que falam que a criatura faz.
DEZOITO

Rafael não havia esperado encontrar Alana fora da mansão.


Quando ela mandara a mensagem dizendo que estava
pronta, menos de uma hora depois do anoitecer, ele
tinha imaginado que a encontraria no seu quarto – o
único lugar do Setor Dez onde ela sabia que ele já havia
estado.
Mas Alana estava parada, sozinha, em um dos
caminhos que levava para a fronteira com o Setor Seis,
mais ou menos na direção em que teriam que ir, e com o
celular na mão.
Rafael se materializou atrás dela, perto o suficiente
para sentir o calor do corpo da bruxa.
— Não sabia que é perigoso estar sozinha nas ruas
depois do anoitecer? — Ele perguntou.
Um arrepio atravessou Alana e Rafael estava perto o
suficiente para notar aquilo. Delicioso – porque, apesar
da tensão dela, não havia medo ali.
E ele estava preso no lugar, com plantas mais fortes
que aço se enrolando ao seu redor e garantindo que ele
não se moveria. A grama. Alana havia usado a grama do
caminho para prendê-lo, quase como havia feito com os
vampiros no Setor Três, meses antes.
Ela continuou digitando alguma coisa no celular, sem
se virar, e ele estava preso em um ângulo que não
conseguia ver exatamente o que ela estava fazendo.
Rafael sorriu. Ele deveria ter imaginado que a reação
dela a ter alguém aparecendo nas suas costas seria
aquela. E... Era estranhamente satisfatório saber que
Alana era capaz daquilo.
Ela guardou o celular e se virou para ele. As cordas
feitas de grama o apertaram com mais força.
— Não sabia que é perigoso surpreender uma bruxa?
— Alana perguntou.
O sorriso de Rafael ficou mais largo.
— É realmente um perigo quando as consequências
são essas?
Ela deu um passo para trás e estreitou os olhos. A
grama o apertou por mais um instante antes de o soltar
e cair no chão, encolhendo depressa e voltando a
parecer grama comum.
— Não tenho tempo para os seus jogos — Alana
avisou. — Vamos logo.
E ela estava parada ali, sem nenhum meio de
transporte por perto – o que queria dizer que ele teria
que levá-la até o Setor Nove.
Rafael estendeu uma mão na direção dela. Alana
respirou fundo e aceitou. Ele a puxou para junto de si e a
levantou sem esforço antes de passar um braço por
baixo das pernas dela, enquanto o outro continuava nas
suas costas. Era a mesma coisa que ele havia feito dois
meses antes, no Setor Três, quando ele ainda pensava
que tudo que estava acontecendo seria algo simples de
ser resolvido.
Alana fez um ruído abafado quando ele começou a
correr, depressa demais para os sentidos humanos
acompanharem. Não era como ele preferia ir de um lugar
ao outro, mas era a única forma que ele tinha de levar
Alana consigo. E não era uma opção ruim, considerando
como ela havia virado a cabeça contra o pescoço dele.
Rafael conseguia sentir a respiração dela contra sua pele,
calma e controlada demais para ser algo natural.
Ele passou pela fronteira entre os Setores Dez e Seis
e continuou em frente, evitando os lugares onde havia
grupos de humanos morando, mais perto das fábricas do
Seis, que ficavam naquela direção. E então estava
passando pela fronteira entre o Seis e o Nove e indo na
direção que Thales havia lhe passado horas antes –
porque o outro vampiro tinha ido verificar o Setor Nove
também, depois de ver o que havia acontecido no Oito.
Rafael parou de correr bem antes de chegar onde o
outro vampiro o esperava. Thales havia mandado fotos
de uma região específica, mais para a frente, mas ele
queria saber o que acontecera ali, também.
A bruxa nos seus braços levantou a cabeça devagar
e olhou ao redor, mas não tentou se afastar. Ótimo,
porque ainda tinham algum caminho pela frente.
— Isso... — Alana começou.
Ele não falou nada quando ela parou e respirou
fundo, se movendo com cuidado – como se estivesse
preocupada com a possibilidade de Rafael a soltar e
quisesse ter certeza de que ela não pisaria nas plantas
mortas. Porque era exatamente aquilo que estava ao
redor deles: plantas mortas, mesmo que aquele lugar
não fosse nenhuma das plantações, pelo que Rafael
sabia.
Alana engoliu em seco.
— Tem um grupo de estudiosos aqui, no Nove,
fazendo pesquisas sobre o solo e toda a questão de
sustentar plantas — ela contou. — O príncipe nunca
levou eles muito a sério, mas como era um jeito fácil de
poder dizer que ele está preocupado com os humanos e
fazendo o melhor pra população humana do setor, ele
deu autorização para fazerem experimentos em algumas
áreas do setor.
Rafael não precisava perguntar como ela sabia
daquilo. Alana era uma bruxa da natureza. Se ela tivesse
ouvido sobre alguém fazendo um estudo daquele tipo,
teria entrado em contato e no mínimo acompanhando
cada passo deles.
— Estamos em uma dessas áreas? — Ele perguntou.
A bruxa respirou fundo e assentiu devagar.
— Tem uma diferença aqui. Não sei explicar, mas é
uma das coisas que estavam testando. E que deu
resultados, pela quantidade de plantas mortas. Mas...
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro e não
falou mais nada.
Rafael deveria ter pensado naquilo e ao menos
avisado Alana sobre as imagens que Thales lhe enviara.
Era óbvio que estar ali não era nem um pouco agradável
para ela.
— É possível que o lugar para onde estamos indo
esteja pior — ele murmurou.
Ela respirou fundo e virou a cabeça contra o pescoço
dele, de novo.
— Imaginei — ela falou.
E se ela estava tão desconfortável quanto parecia,
Rafael não se demoraria mais do que precisava. Ele não
precisava ver detalhes para saber o que havia acontecido
ali.
Ele voltou a correr. A área ao redor deles continuou
morta por algum tempo antes de mudar e voltar a ser o
chão seco e rachado que era normal naquele setor, com
a grama nascendo, fraca e amarelada, em uns poucos
lugares. Alana suspirou, mas não tentou levantar a
cabeça. Bom, porque humanos não lidavam bem com a
velocidade em que ele estava.
Rafael sentiu a tensão de Alana segundos antes de
entrarem em outra área coberta por plantas mortas. Uma
das plantações de algodão do Setor Nove – ou o que
restava dela. E era interessante que Alana houvesse
ficado tensa antes de entrarem onde as plantas estavam
mortas.
Ele parou de correr e começou a andar. Thales não
estava muito longe – o outro vampiro havia ido para o
Setor Nove assim que Rafael lhe avisara sobre a
mensagem de Hugo e não havia se afastado dos corpos
dos humanos desde que chegara ali – e era facilmente
visível contra a noite. Rafael poderia ter continuado
correndo até lá, mas preferia dar tempo para Alana lidar
com o que estava ao redor deles.
A bruxa respirou fundo e levantou a cabeça. Rafael
sentiu a tensão dela, olhando ao redor, e então aquilo
havia desaparecido. Ela estava controlando suas reações.
— É aqui, não é? — Ela perguntou.
— Sim.
Alana respirou fundo de novo e se moveu nos seus
braços.
Rafael a colocou no chão, sem falar mais nada. A
bruxa olhou ao redor uma vez antes de assentir de forma
seca. Ele sabia que ela não conseguiria ver muita coisa –
a lua ainda não havia nascido e não havia nenhuma
iluminação artificial naquela plantação – mas Alana
provavelmente conseguia sentir mais longe do que ele
conseguia ver.
Um arrepio a atravessou e ela olhou na direção de
Thales antes de começar a andar. Rafael a acompanhou.
Dois corpos estavam caídos no meio das plantas
secas, não exatamente por cima delas. Havia galhos
sobre eles, também, o que provavelmente queria dizer
que tudo havia acontecido ao mesmo tempo. As plantas
e os humanos haviam sido consumidos e continuado
onde e como haviam caído.
— Nenhum sinal de ferimentos — Thales falou. —
Não movi os humanos.
E Hugo havia garantido para Rafael que ninguém se
aproximara dos corpos depois que eles haviam sido
encontrados.
Rafael avançou na direção do corpo mais próximo –
um homem de bruços, de uma forma que parecia que
simplesmente havia caído no lugar. Ele se abaixou e
segurou o ombro do homem. Frio e rígido. O que quer
que houvesse acontecido ali, tinha sido naquele dia. O
humano estava morto fazia horas, mas ainda não havia
se passado tempo o suficiente para o corpo abandonar
aquela rigidez.
A mulher, um pouco mais para a frente, parecia ter
tentado reagir de alguma forma. Ela estava caída meio
de lado, como se tivesse tentado se virar para o homem.
E não havia nenhuma marca no que Rafael conseguia ver
do corpo e do rosto dela. Nenhum sinal do que poderia
ter causado aquilo.
— O Oito? — Rafael perguntou, sem se virar.
— A mesma coisa — Thales contou. — Nenhuma
marca de nada em nenhuma das pessoas que foram
encontradas mortas. E nem nos animais. É como se só
houvessem deixado de viver, sem uma explicação.
— Não — Alana falou. — É como se a vida deles
tivesse sido sugada.
Rafael se levantou devagar e olhou para Alana. A
bruxa continuou parada no lugar, encarando os dois
corpos.
— Isso aqui foi coisa dela, sem a menor dúvida — ela
continuou. — E não foi um acidente ou algo passivo.
Não. Não havia sido. Mas Rafael queria saber mais
das conclusões de Alana, então apenas esperou.
A bruxa respirou fundo e balançou a cabeça de um
lado para o outro, devagar.
— Quando você me contou sobre o passado, quase
pareceu que o que ela fazia não era proposital. Era como
se ela consumisse o poder naturalmente por onde
passava.
Rafael assentiu.
— Em parte, sim. Nunca pareceu ser algo
inconsciente, mas era como se houvesse uma parte
daquilo que ela não controlava.
Ou talvez apenas não quisesse controlar.
Alana olhou para trás, na direção de onde haviam
vindo.
— Não é algo passivo. Não é algo que só acontece ao
redor dela. É uma escolha. Se fosse algo passivo, não
teríamos passado por lugares sem nenhuma marca de
terem sido consumidos. O poder teria se espalhado de
forma uniforme.
Sim. E aquilo era confirmação do que Rafael sempre
havia suspeitado: a criatura consumia tanto quanto
consumia porque queria. Pela sua ambição, como
qualquer outro vampiro. Como o próprio Rafael.
A diferença era que ele não destruiria o mundo para
ter o que queria.
— Quando o que aconteceu aqui se tornar
conhecido... — Thales começou.
Quando, não se. E Rafael concordava com aquilo.
Tudo estava acontecendo ao mesmo tempo, o que era o
suficiente para ele ter certeza de que havia sido
planejado para ser assim. Os vampiros questionando o
poder dele e então aquilo... O mais provável era que já
existissem imagens daquelas áreas sendo espalhadas e
repassadas.
Ele precisava fazer alguma coisa, mas a situação não
havia mudado. Rafael não sabia o suficiente para revidar.
A criatura estava nas terras de ninguém, mas onde? Ele
não podia simplesmente ir caçá-la. Se fizesse aquilo, era
até possível que a encontrasse. Mas ele não conseguiria
fazer nada contra ela sozinho. E, quando voltasse, seria
para encontrar seus setores sob ataque – porque os
vampiros o estavam observando. Eles não perderiam
uma oportunidade.
Alana respirou fundo e olhou ao redor de novo antes
de parar, encarando Rafael. Ele sustentou seu olhar.
— Eu posso desfazer isso — ela falou. — Não os
humanos que ela matou, mas as plantas, a marca que
ela deixa na terra com o seu poder... Eu posso desfazer o
que ela fez e afastar o poder, pelo menos por algum
tempo.
Da mesma forma que ela havia feito no baile – e
aquilo terminaria de ligar Alana e Rafael na mente dos
vampiros. Ela estaria fazendo exatamente o que não
queria: se prendendo a ele.
Mas, se fosse apenas aquilo, ela não estaria tão
hesitante. Alana não se importava em sacrificar o seu
conforto para proteger os outros, quando era necessário.
— Mas? — Rafael perguntou.
— Mas qualquer coisa que eu fizer vai ser visto como
um desafio — Alana contou. — Ela vai revidar e é
possível que venha atrás de mim.
Rafael inclinou a cabeça. Ele não conseguia pensar
em nada que desse aquela certeza para Alana – o que
queria dizer que ela havia descoberto mais alguma coisa
que ainda não lhe contara.
— E eu vou estar indefesa — ela completou. — Fazer
uma coisa desse tamanho vai me esgotar.
E aquela era o verdadeiro motivo para Alana estar
hesitante. Ela estaria colocando sua segurança nas mãos
de Rafael, depois de ter deixado mais que claro que não
confiava nele.
Ele segurou o queixo dela, não com força, mas firme
o suficiente para ser um lembrete de com quem Alana
estava falando.
— Você não vai estar indefesa — Rafael falou.
Alana sustentou seu olhar por alguns segundos antes
de dar um passo atrás. Ele a soltou. Era seu poder, sua
escolha.
Ela se abaixou e colocou as mãos no chão.
Alana enfiou os dedos na terra seca. Não era natural. Não
parecia natural. Tinha algo ali que era completamente
diferente do que ela sentia quando fazia a mesma coisa
no Setor Dez, para fortalecer as plantações de lá. Era
uma sensação quase pegajosa ao redor dos seus dedos,
como se estivesse impregnada na própria terra.
Mas aquilo não era a pior parte. O pior era
reconhecer algo de si mesma naquela sensação.
Não fazia diferença. Alana nunca seria aquilo.
Ela respirou fundo e se concentrou. As vozes da sua
avó e do seu pai estavam na sua mente, repetindo os
mesmos exercícios de quando ela ainda estava
aprendendo o que podia fazer.
Alana soltou o ar devagar, deixando qualquer
preocupação ir com ele. Para fazer o que queria, ela não
podia se permitir ter nenhum tipo de dúvida. Ela
precisava ter a mais completa certeza do que estava
fazendo.
O poder estava ao seu redor. Todas as bruxas
aprendiam aquilo, desde muito antes da volta da magia:
tudo ao seu redor era poder, porque o mundo era poder.
O mundo era magia. Tudo o que existia, vivo ou não,
como parte de um ciclo.
Uma bruxa sabia o que usar, como usar. Uma bruxa
reconhecia a necessidade de um equilíbrio e que o poder
sempre tinha um preço. Não parecia, não para as
pessoas como ela, como a maioria das bruxas que ela já
havia conhecido antes. Mas o preço do poder estava
sempre ali, uma parte de si mesma, sendo dada em
pagamento pelo que era recebido.
Na maior parte do tempo, era algo simples: sua
vontade e sua energia – algo comum, que um lanche
resolveria, depois. Às vezes, era algumas gotas de
sangue, como quando Alana fazia as plantas sob seu
controle se tornarem letais. E talvez até mais que
algumas gotas de sangue, dependendo do que ela
precisasse.
O que ela ia fazer ali era muito maior que qualquer
coisa que já houvesse tentado fazer antes. Mas poder era
poder, não importava a escala com que estava
trabalhando. E Alana tinha toda uma linhagem de bruxas
por trás de si. Todas as suas antepassadas, desde antes
da volta da magia, quando o poder delas mais parecia
uma afinidade por tudo aquilo que crescia.
Ela respirou fundo de novo, sentindo o poder ao seu
redor, no próprio ar, mesmo que o solo estivesse coberto
por aquela sensação pegajosa.
O que Alana ia fazer não era criar algo novo. Ela não
precisava do seu sangue. A única coisa que ela queria
era desfazer o que havia sido feito. Era devolver o poder
que deveria ser do solo e das plantas. Era usar o seu
próprio corpo como uma conexão entre o poder que
estava por toda parte para devolver o que deveria estar
ali – e usar sua própria força para garantir que aquilo
continuaria ali.
Algo brilhou, mas ela continuou com os olhos
fechados. O que quer que estivesse acontecendo ao seu
redor, nada importava. Nada, além da sensação do poder
a atravessando, voltando para a terra... E afastando
aquela sensação pegajosa.
Ela respirou fundo de novo, sentindo o cheiro da
terra revirada – o cheiro de terra recém plantada. A
sensação pegajosa se afastou mais e Alana a
acompanhou, forçando o poder até onde conseguia.
Procurando cada vestígio daquilo e o apagando.
E ela queria fazer mais. Queria afastar todo o poder
que havia se espalhado sobre a região, até sentir seu
próprio poder de novo.
Mas uma bruxa também conhecia seus limites. Uma
bruxa não se sacrificava por acidente. Se algo daquele
tipo se tornasse necessário – como havia acontecido no
passado – seria uma escolha. Não uma falha em
reconhecer que seu corpo tinha um limite e seus
recursos eram finitos.
Alana soltou o ar devagar, se afastando da sensação
do poder, do tudo que era a magia. Agora ela entendia –
sua avó sempre havia falado que fazer aquilo era um
risco. Que ela nunca deveria ir tão fundo no seu poder
sem ser um motivo grave. E fazer aquilo... Ela poderia se
viciar naquela sensação com facilidade demais.
E talvez fosse exatamente aquilo que houvesse
acontecido com a criatura. Com a sua antepassada.
O pensamento foi o suficiente para jogar Alana de
volta na realidade. Ela se apoiou nas mãos, respirando
depressa demais. Na hora, não parecia que ela estava
fazendo nenhum esforço, mas ela estava exausta.
Suas mãos não estavam mais no meio dos restos dos
algodoeiros. Suas mãos estavam no meio das plantas
novas, crescendo devagar. Ou não tão devagar, porque
ela conseguia ver aquilo acontecendo. Não era como
quando ela forçava uma planta a crescer – mas ainda era
muito mais rápido que o natural.
Alana respirou fundo e se levantou, devagar. Ou
tentou – porque até aquilo parecia esforço demais.
Rafael a segurou e a levantou contra o seu corpo,
sem o menor esforço. Aquilo estava ficando familiar
demais e Alana não queria se acostumar com aquela
sensação... Mas não ia negar que estar ali era bom.
— Vou cuidar dos corpos — Thales avisou.
Alana sentiu Rafael assentir, e depois mais nada.
DEZENOVE

Rafael colocou Alana na cama e parou.Aquilo parecia certo – ter


ela ali, no seu quarto. E aquela sensação era
preocupante. Perigosa, até.
Ele se forçou a se afastar, mesmo que ainda
estivesse encarando a bruxa desacordada. Não era
surpresa que Alana houvesse desmaiado. Ele ainda
conseguia sentir o poder ao redor dela, um vestígio de
uma força que havia sido quase palpável enquanto ela
desfazia o que a criatura fizera. Era uma mistura de
sabores e impressões que Rafael não conseguia
descrever, mas que era mais que o suficiente para fazer
com que ele sentisse a pressão nas suas presas e a
necessidade de provar do sangue de Alana.
Mas ele não faria aquilo. Não sem permissão e nunca
com ela desacordada. E ele não precisava do sangue
dela para se alimentar. Rafael era antigo o suficiente
para a necessidade de sangue ser algo infrequente.
Rafael se sentou na poltrona que sempre havia
mantido no quarto porque parecia certa ali, mesmo que
raramente a usasse. Dali, ele conseguiria continuar
observando Alana.
Ela não confiava nele. A bruxa havia deixado aquilo
claro demais, nos dias anteriores. E, ainda assim, Alana
havia lhe confiado sua segurança. Então Rafael não sairia
dali enquanto sua feiticeira estava indefesa e
desacordada.
Seu tablet vibrou com uma notificação.

Victor: Imagino que esteja indisponível até a


feiticeira se recuperar.
Rafael: A menos que seja algo indispensável, sim.
Me envie qualquer informação nova.

A notificação seguinte não foi uma mensagem. Foi


um arquivo enviado dentro do sistema de segurança do
setor. Uma gravação de um vampiro usando um
carregamento de alimentos para entrar na área do
castelo e depois sendo pego em uma das armadilhas.
Aquilo não era uma surpresa. Rafael já sabia que
tinha traidores no castelo. Era esperado que alguém
fosse notificar quem estava por trás daquilo de que ele
não estava no setor. O tempo enquanto ele estivera no
Nove era a hora perfeita para tentarem entrar no castelo.
A questão era qual havia sido a missão do vampiro
capturado. O que haviam planejado fazer.
Rafael abriu a conversa com Victor de novo.

Rafael: Tire o que conseguir dele.


Victor: Entendido.

Ele colocou o tablet na mesa baixa ao lado da


poltrona. Normalmente Rafael faria questão de estar
presente em qualquer interrogatório. Era mais eficiente,
na maior parte das vezes. Mas Victor sabia o que
precisava fazer e Rafael tinha outra prioridade.
O que Alana havia feito... Rafael não fazia ideia de
que algo daquele tipo fosse possível. Ele assistira
enquanto as plantas mortas ao redor dele reviviam e
aquilo, por si só, já era um tipo de poder que chegava a
ser assustador. Ver Alana reviver uma plantação inteira
era muito diferente de ver o poder dela afetando um
vaso ou até mesmo os galhos das suas roseiras.
Mas não havia sido apenas uma plantação. Enquanto
voltava para o Setor Um, Rafael notara aquela outra
área, a que Alana dissera que havia sido um experimento
– e as plantas ali estavam crescendo, também. E o aviso
de Thales havia chegado logo depois: as plantações no
Setor Oito também estavam vivas, de novo.
Alana havia espalhado seu poder por dois setores.
Ela havia feito o que precisava e se colocado,
vulnerável, nos braços de Rafael.
Ele não se esqueceria daquilo.
E era justamente o fato de ela ter feito tudo aquilo
que fazia Rafael se recusar a sair de perto de Alana. Ele
não tinha certeza de que ela era um alvo, antes.
Suspeitas, sim, mas não certeza. Depois de ter feito
aquilo, Alana com certeza seria uma das prioridades da
criatura. O que queria dizer que ele não correria nenhum
risco.
Seu tablet vibrou, de novo. Rafael o pegou. Era um
aviso de Thales, que tinha ficado responsável por cuidar
dos corpos, tanto no Setor Oito quanto no Nove. A forma
como a criatura havia matado humanos à distância, sem
deixar nenhuma marca visível, não podia se tornar
conhecida. E o outro vampiro já havia descartado os
corpos – de humanos e animais – de forma que não
seriam encontrados.
Bom. Aquilo seria uma preocupação a menos, pelo
menos por algum tempo.
Alana estava certa quando havia falado que não
podiam esperar a criatura agir. Ele não podia ficar parado
e apenas reagir. Fazer aquilo seria construir sua própria
destruição, porque seria visto como um sinal de
fraqueza.
No passado, a criatura havia ido até ele. Ela tentara
se tornar parte da sua Corte e depois fizera propostas e
ofertas que Rafael era capaz de apostar que eram as
mesmas que haviam sido feitas para Antonidas. Poder.
Controle. A liberdade para fazer o que quisesse. Mas
Rafael já tinha tudo aquilo – em parte por culpa da
própria criatura. De como ela havia afetado a região
onde ele tinha suas propriedades e o forçara a criar a
Corte do Sangue e estudar a magia dos vampiros.
Não era a mesma coisa. Agora, a criatura nunca iria
ao seu encontro. O que queria dizer que Rafael precisava
encontrar uma forma de forçá-la a fazer aquilo.
Ele encarou Alana, deitada na sua cama. Agora
parecia que ela estava apenas dormindo.
Seria fácil forçar a criatura a encontrá-lo, na
verdade. Depois do que havia feito, Alana era a isca
perfeita. Mas ele nunca seria capaz de sugerir aquilo. Se
fosse qualquer outra pessoa, sim. O risco valeria a pena.
Mas não ela.
Então ele precisava pensar em outra opção. E
depressa, antes de Alana acordar, chegar à mesma
conclusão e decidir ela mesma fazer planos que a
colocassem como isca.
Alana encarou o teto. Ela não sabia o nome dos detalhes em
relevo que iam até o lustre no meio de tudo, mas sabia
que aquilo não era só pintura. O teto em si era mais
escuro, com os detalhes – arabescos? – num tom de
cinza claro.
E ela não fazia a menor ideia de que teto era aquele.
Se bem que não era difícil imaginar.
Ela se virou na cama, puxando o lençol fino, feito de
algum tecido suave que ela nunca tinha visto antes, e
parou. Rafael estava sentado em uma poltrona perto da
parede, um pouco afastado da cama, mas não tinha nem
como fingir que ele não estava encarando Alana.
Ela não ia pensar em como aquilo era estranho –
porque Alana tinha desmaiado. Ela não se lembrava de
nada depois de ter usado seu poder. O que queria dizer
que Rafael estava sentado ali a encarando enquanto ela
estava inconsciente.
Alana se sentou na beirada da cama, se movendo
devagar. Ela não estava dolorida, exatamente, mas tinha
um cansaço ali que era mais que só físico.
As janelas do quarto estavam fechadas, o que era
até esperado, se ela estava no quarto de Rafael – que
continuava sentado na poltrona, na mesma posição, sem
falar nada. A surpresa ali era exatamente onde ela
estava: a cama com lençóis vermelhos e uma pilha de
travesseiros. E travesseiros de verdade, mais suaves que
qualquer coisa que ela já tivesse visto – até mais do que
os travesseiros do quarto de Alana, no castelo.
E o quarto em si era escuro. Não num sentido de
faltar luz, porque o lustre iluminava tudo muito bem. Mas
as paredes eram escuras, com um padrão mais escuro
pintado nelas que parecia ser alguma coisa antiga. E os
móveis também eram de madeira escura, com alguns
detalhes em prata.
Alana se virou para Rafael de novo.
— Quanto tempo eu fiquei apagada? — Ela
perguntou.
— Quase um dia inteiro — ele contou. — O sol já está
se pondo.
Um dia...
Alana bateu a mão nos bolsos da saia, depressa. Se
ela tinha desaparecido por um dia inteiro...
— Seu celular está na mesa de cabeceira — Rafael
falou. — E eu mandei uma mensagem para o Setor Dez,
avisando que você estava segura. Eles provavelmente
vão preferir ouvir isso de você, mas não estão sem
notícias.
Sim, iam, sem a menor sombra de dúvida. E, se já
estava quase anoitecendo, não ia demorar muito para
Alana poder pedir para Dani lhe buscar.
— Já pedi para subirem com comida para você —
Rafael continuou. — Depois do que você fez, seu corpo
precisa de alimento.
Sim, também.
E era estranho demais ter Rafael ali, parado daquele
jeito, fazendo uma lista de tudo o que ela precisava. Era
quase como se ele tivesse ficado preocupado e estivesse
tentando disfarçar. Mas aquilo era impossível. Ou melhor,
se ele estivesse preocupado, era porque precisava do
poder de Alana para lidar com a criatura. Ele não podia
se dar ao luxo de perdê-la. E ela não podia se dar ao luxo
de se iludir e ver mais onde não havia nada.
— Quanto eu consegui desfazer? — Ela perguntou.
Porque, mesmo que Alana tivesse sentido seu poder
se espalhando e como ela tinha se forçado a ir além
daquele lugar no Setor Nove, ela não tinha como saber
quanto havia afetado. Era possível que seu poder tivesse
se espalhado fraco demais, sem força o suficiente para
desfazer o que a criatura tinha feito ou afastar o poder
dela.
— Todas as áreas afetadas do Setor Nove — Rafael
contou.
Bom. O cansaço tinha valido a pena, então.
— E do Setor Oito — ele completou. — E me pediram
para dizer que a fronteira do Dez estava normal, então
imagino que seja algo relacionado a isso também.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. O Setor
Nove, sim, ela tinha esperado aquilo. O Setor Oito... Ela
sabia que a criatura tinha feito a mesma coisa lá, mas
não fazia ideia de onde ou do tamanho. Não era como no
Nove, que ela tinha passado por uma das áreas primeiro.
E a fronteira do Dez... O lugar onde Alex tinha
mostrado o poder da criatura avançando.
Alana tinha conseguido afetar tudo aquilo.
Não era nem surpresa que estivesse se sentindo tão
exausta, então. Aquilo...
Ela respirou fundo. Nada estava doendo e ela sabia
que não ia ter problemas para se levantar de novo. Mas
ela não sabia se queria levantar.
— Não vou conseguir ajudar em nada pelos próximos
dias — Alana avisou.
Rafael se endireitou na poltrona. Se bem que ela não
tinha certeza de que endireitar era a palavra certa. Mas
ele tinha se movido. Aquela era a parte que importava.
Ele não estava mais completamente parado daquele jeito
que chegava a ser incômodo de ver.
— Eu entendo como o poder das bruxas como você
funciona — ele falou. — Vai estar segura aqui até se
recuperar.
Não. Ela ia estar segura no Setor Dez, na sua casa,
assim que anoitecesse. Ficar no Setor Um...
Era o mais seguro, depois do que ela tinha feito.
Alana precisava se lembrar daquilo. Usar seu poder havia
sido um desafio. E, se sua teoria estava certa e a criatura
fosse uma das suas antepassadas...
Se aquilo estivesse certo, então Alana era o motivo
para a criatura estar na região. Ela era o alvo principal,
não Rafael ou um dos setores. E não por ela ser uma
bruxa da natureza. Ela era um alvo por vir da mesma
família e ter exatamente o mesmo tipo de poder que sua
antepassada... O tipo de poder que ainda podia fazer
alguma coisa contra ela.
Se Alana voltasse para o Setor Dez, ia transformar
todo mundo lá em alvos e ela não estava nem um pouco
interessada em fazer aquilo.
Então ela não ia discutir. Era melhor continuar no
Um.
— E pode ajudar contando o que descobriu sobre a
criatura — Rafael completou.
Alana desviou o olhar. Era óbvio que ele ia notar que
ela sabia mais do que havia falado, antes. E, por mais
que ela não quisesse contar aquele detalhe para Rafael...
Eles tinham feito um acordo de não agir pelas costas um
do outro.
— Ela é minha antepassada — Alana contou. — Pelo
menos é o que parece.
Ela continuou encarando Rafael e viu a hora exata
em que ele entendeu o que aquilo queria dizer. A
expressão dele ficou dura de uma vez, como no dia em
que ela tinha interrompido quando ele estava punindo
um dos guardas humanos.
— Sua antepassada — ele repetiu.
Alana assentiu.
— Não foi à toa que você não achou mais ninguém
com um poder como o meu.
Alguém bateu na porta. Rafael se virou, se movendo
daquele jeito que era uma lembrança de que ele não
tinha nada de humano: tão depressa que Alana não
conseguia ver o processo do movimento. Em um instante
ele estava olhando para ela, no outro estava encarando a
porta.
— Entre — ele falou.
A porta se abriu e duas pessoas entraram, cada um
com uma bandeja.
Quando Rafael tinha falado que já havia pedido
comida, Alana não tinha nem imaginado alguma coisa
daquele tipo. Mas, pensando bem, deveria ter imaginado.
As bandejas foram colocadas em uma mesa do outro
lado do quarto. O cheiro da comida se espalhou – Alana
não fazia ideia do que era, mas se o gosto fosse metade
de quanto estava cheirando, aquilo ia estar muito bom.
As duas pessoas saíram sem falar nada e fecharam a
porta.
Rafael se levantou.
— É melhor você se alimentar — ele falou. — E o
banheiro é por aquela porta, caso precise.
Agora que ele tinha mencionado, ela precisava, sim.
— E, a menos que precise de ajuda...
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro
com força. Não precisava. Não mesmo. E era bem
provável que, mesmo que precisasse, daria um jeito de
negar.
Rafael assentiu e saiu do quarto sem falar mais
nada.

Uma antepassada.

Rafael encarou as roseiras no jardim logo abaixo do


seu escritório. Aquilo era o mais longe que ele aceitaria
ficar de Alana: um cômodo de distância. E ele não fazia
ideia de se ela havia pensado que os aposentos dele
eram parecidos com os dela, com o escritório ao lado do
seu quarto.
Então ele havia dado privacidade para Alana, sim.
Mas ainda estava perto.
Ter levado Alana para o Um e para os seus
aposentos, ao invés dos dela, havia sido instinto, depois
que ela desmaiara. Era onde ela estaria mais segura. Era
o centro do seu território. Mas Rafael não havia levado
em conta sua reação ao vê-la acordando na sua cama e
parecendo confortável ali, sem se surpreender ao ver
que ele a estava observando.
Ele queria Alana. E não só sua proximidade. Ele
queria seu corpo e sim, seu sangue. Não adiantava
mentir para si mesmo depois de como ele havia
precisado de todo o seu controle para não avançar
quando ela havia se sentado, com os lençóis da sua
cama cobrindo seu corpo. Ele ainda estava precisando de
todo o seu controle para não voltar lá.
Era fácil demais se imaginar empurrando Alana
contra sua cama, de novo. Fácil demais imaginar como
ela o desafiaria ali, também, porque era Alana. Ou talvez
ela o surpreenderia e não lhe daria desafios. Talvez ela
simplesmente aceitaria seu toque, sua mordida – porque
Rafael sabia que a atração estava ali, desde o começo.
Alana o queria, também, mas não se permitia aquilo.
Quanto tempo fazia desde a última vez que alguém
o afetara daquela forma? Ele não se lembrava. Havia sido
antes da volta da magia, com toda certeza. Quando
alguém vivia por tanto tempo, corpos se tornavam
apenas corpos. Prazer era apenas prazer – momentâneo
e facilmente esquecido. Facilmente substituído. Em
algum momento, sedução se tornara apenas um jogo e
mais nada... Até Alana.
E agora Rafael queria de novo.
Ele não podia deixar que aquilo se tornasse uma
distração. Mas seria um novo incentivo para conseguir
Alana para si.
Para ter alguma esperança de ter Alana para si, ele
precisava lidar com a criatura. O que levava Rafael de
volta para o que ela havia contado. O fato de que a
criatura era uma antepassada de Alana.
Ele sempre havia se perguntado como a criatura o
encontrara ali, depois de tanto tempo, sendo que Rafael
havia tomado todas as precauções possíveis para se
esconder, logo depois da volta da magia. Até aquele
baile, nem mesmo os vampiros que haviam sido parte da
sua Corte sabiam que ele ainda existia. Ninguém nunca
encontrara nada sobre ele – e não por falta de tentar.
Rafael tinha ouvido vezes demais sobre como um ou
outro grupo de vampiros estavam procurando
informações sobre ele, alguma confirmação de que havia
sido destruído ou sobre onde estava. E não era difícil
entender os motivos: eles pensavam que tinham alguma
chance de fazer com ele o que haviam feito com tantos
dos vampiros mais antigos, como Amon.
Então não era possível que a criatura o houvesse
encontrado. Se aquilo fosse uma possibilidade, um dos
outros vampiros o teria achado antes.
Mas se a criatura houvesse procurado seu próprio
sangue, seu próprio poder, ela teria chegado em Alana
sem muita dificuldade.
Victor havia descoberto o suficiente para dizer que o
guarda humano que o havia traído tinha sido convertido
cinco anos antes. Era a mesma época em que as
plantações do setor começaram a ser mais problemáticas
que o normal. A mesma época em que Alana havia
chegado no Setor Dez, depois de passar dois anos nas
terras de ninguém, fugindo dos vampiros de Jord... E
usando seus poderes para garantir que ela e a prima
estariam seguras.
Cinco anos. A criatura estava ali aquele tempo todo,
sem que ele soubesse. Por quê? Não era como se ela
precisasse de tempo para que seu poder agisse.
A criatura havia chegado na região, seguindo o
poder de Alana, e encontrara Rafael.
Sim. Aquilo fazia sentido. Não era a primeira vez que
ele pensava que Alana podia ser o alvo principal e ele
apenas um bônus, mas era o que parecia. Ele se
lembrava das propostas da criatura, séculos antes, e das
suas ameaças quando ele recusara. Ela não deixaria uma
chance de se vingar escapar. E não se contentaria com
uma vingança rápida.
Então ela havia esperado. Havia planejado uma
aliança entre setores, como uma forma de atacar Rafael.
De destruir o que ele havia construído pouco a pouco. Ela
destruiria sua Corte, sua posição na região, tudo o que
era dele. E só depois terminaria tudo – destruindo o
próprio Rafael antes de caçar Alana.
Ele não tinha como ter certeza de nada. Eram
apenas teorias, mesmo que aquilo fizesse sentido com o
que ele se lembrava. Mas eram teorias encaixavam com
o que estava acontecendo.
Rafael era apenas vingança. Alana era o alvo real.
Sempre havia sido.
E, se não fosse pela necessidade de vingança da
criatura, ele poderia ter perdido sua feiticeira antes
mesmo de conhecê-la.
Rafael fechou os punhos com força. Ele não
conseguia nem mesmo pensar nela sem se lembrar da
sensação do seu poder se espalhando, quando estavam
no Nove. Não era a primeira vez que ele a via usar o
poder, longe daquilo. Mas havia sido a primeira vez em
que ele sentira tanto de Alana, de uma forma que não
conseguia explicar. E aquilo...
Ele queria mais. Ele queria provar o sangue dela
para saber se seria a mesma sensação ou se seria algo
diferente.
Mas ele não faria aquilo. Não enquanto Alana estava
indefesa, se recuperando de ter usado tanto poder. Ela
havia falado que passaria dias sem conseguir fazer nada
e Rafael sabia que não era exagero. Ele se lembrava do
passado, da época em que o acordo entre vampiros e
humanos havia sido feito.
Naquela época, as bruxas humanas ainda estavam
descobrindo seu poder, mas já estavam protegendo os
grupos ao seu redor. Rafael havia aprendido depressa a
reconhecer os padrões no poder delas – como sempre
precisavam de tempo depois de forçar os vampiros ou os
animais corrompidos a recuarem. Vezes demais, ele
usara aquilo para passar despercebido por algum lugar,
aproveitando enquanto as bruxas precisavam descansar
e não conseguiriam sentir sua presença.
E então as bruxas haviam descoberto como
recuperar seu poder mais depressa.
Rafael sorriu e se afastou da janela. Ele havia se
esquecido daquilo. E era exatamente sua chance de ter
tudo o que queria.
Ele pegou seu tablet. Thales não havia enviado mais
nada, o que era um sinal de que a situação no Setor Oito
estava sob controle. Eles ainda estavam evitando o
pânico que poderia ter se espalhado por causa das
mortes.
Aquilo não duraria. Mais cedo ou mais tarde, a
criatura faria alguma coisa que não teriam como
esconder. E Rafael não podia permitir que ela
continuasse lhe desafiando.
Nenhuma mensagem de Victor, também, o que
queria dizer que ele ainda não havia conseguido arrancar
informações do vampiro capturado. Seria mais simples se
Rafael pudesse cuidar daquilo pessoalmente, mas ele
não correria o risco de se afastar de Alana. Não quando
ele não podia confiar no pessoal que estava no seu
castelo – nem vampiros nem humanos.
Mas aquilo era uma questão de tempo. O vampiro
diria de onde suas ordens estavam vindo e quais eram
seus planos. Ou então Thales conseguiria a confiança do
grupo que havia se aproximado dele, antes.
Sua prioridade agora era garantir que Alana se
recuperaria. E Rafael não mentiria para si mesmo
dizendo que aquilo era apenas porque ele precisava do
poder dela quando a criatura retaliasse – porque a
retaliação viria, em breve.
VINTE

Alana se sentou na beirada da cama de novo e passou a mão no


rosto antes de pegar o celular, em cima da mesa de
cabeceira. Ela nem deveria estar ali. Teria sido melhor
continuar em uma das cadeiras do outro lado do quarto,
onde ela tinha comido. Mas Alana não conseguia evitar
cama, com aquele colchão confortável demais e os
lençóis que ela sabia que eram mais caros que qualquer
coisa que já havia visto. Era quase um desperdício estar
naquele quarto e não aproveitar ao menos para se sentar
ali, porque era óbvio que um vampiro como Rafael não ia
ter a menor utilidade para uma cama.
Não tinha nada de novo no celular. A última
mensagem ainda era Dani perguntando se ela tinha
certeza mesmo de que não queria voltar para o Dez. E
Alana tinha certeza. Tanto tinha que ainda estava no
quarto de Rafael, quase uma hora depois que ele havia
saído e a deixado sozinha, para comer e fazer o que mais
precisasse.
A comida estava ótima, como sempre. Era o padrão
de qualidade da cozinha do castelo, mesmo que não
houvesse muitos humanos ali. Ela tinha comido, tomado
um banho rápido, e agora estava parada ali, sem saber o
que fazer.
A última vez em que Alana tinha se sentido tão
cansada havia sido logo depois que ela e Dani foram
aceitas no Setor Dez. Ela tinha feito questão de espalhar
seu poder por todo o setor, para fortalecer as plantações
que estavam quase morrendo. E, mesmo assim, não
tinha sido o mesmo tipo de cansaço. Da outra vez, ela
tinha demorado menos de uma semana para voltar ao
normal. Agora...
Agora Alana entendia exatamente como Raquel tinha
se sentido depois de usar o seu poder para destruir os
vampiros do Setor Oito, quando haviam atacado. Era um
cansaço que não era físico, mas que ela não conseguia
ignorar. E que ela não fazia ideia de quanto tempo ia
demorar para passar. "Alguns dias" estava começando a
parecer uma ideia otimista demais.
Alguém bateu na porta do quarto.
E Alana estava tão cansada que não conseguia nem
sentir um vestígio da presença de quem era.
Provavelmente era só Rafael, mas... Era estranho não
conseguir sentir nada.
— Entre.
Rafael abriu a porta e a fechou atrás de si. Alana
esperou, mas ele não falou nada – só a encarou com a
mesma expressão intensa de quando ela tinha acordado.
Alana não queria lidar com a tensão e o silêncio.
— Qual o sentido em um vampiro que não dorme
com a luz do sol ter uma cama cara com roupa de cama
mais cara ainda? — Ela perguntou.
Rafael sorriu.
Péssima ideia. De tudo que Alana podia ter falado,
precisava ter sido aquilo. E o sorriso de Rafael...
Se ele respondesse o que aquele sorriso estava
dando a entender, ela não fazia ideia de qual seria sua
reação. Provavelmente jogar o celular na cara dele. O
que também seria uma péssima ideia.
— E o que me impede de ter uma cama?
— O problema não é ter uma cama. O problema é
como tudo é caro. É um desperdício.
E ela deveria só calar a boca logo ao invés de piorar
a situação. Alana sabia muito bem o tipo de abertura que
estava dando para Rafael e era quase um milagre ele
não ter respondido nada sexual da primeira vez.
Aquilo era brincar com a sorte. Não as vezes que ela
tinha desafiado o vampiro.
Rafael deu de ombros e o movimento era tão casual,
tão humano, que um arrepio atravessou Alana. Aquilo era
muito mais estranho do que quando ele se movia com a
velocidade dos vampiros.
— Eu gosto dos meus confortos.
Naquilo ela acreditava. Até a forma como Rafael
sempre se vestia deixava aquilo claro.
E era estranho demais ele não ter provocado Alana
nenhuma vez.
— O que você quer? — Ela perguntou.
Rafael sorriu de novo.
Alana estava certa. Ele não tinha respondido os
comentários sobre a cama com nada sexual porque ele
queria alguma coisa dela.
— Você disse que não conseguiria ajudar em nada
pelos próximos dias — ele falou. — Agora que teve a
chance de pelo menos se alimentar, consegue ter uma
ideia de quantos dias isso quer dizer?
Ela suspirou e por pouco não se deixou cair para trás
na cama. Não estava no seu quarto para fazer aquilo
sem precisar pensar em como Rafael entenderia.
— Mais de uma semana, com toda certeza. Além
disso...
Alana parou de falar e deu de ombros. Ela não fazia
ideia de quanto tempo mais.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não temos esse tempo.
Ela revirou os olhos e se levantou.
— Nossa, agora que você falou estou até começando
a recuperar meu poder mais depressa, quem diria.
O vampiro a encarou. Um arrepio atravessou Alana.
Rafael ainda estava sorrindo e ela sabia que não estava
imaginando coisas quando entendia aquele sorriso como
um convite. Rafael gostava quando ela o desafiava e
Alana não tinha o menor problema em usar aquilo a seu
favor.
— Existem histórias sobre métodos que as bruxas
usavam no passado para se recuperar quando usavam
poder demais — Rafael murmurou. — Na época em que a
magia voltou e vocês eram a defesa dos grupos de
humanos que estavam tentando sobreviver.
Claro que existiam. Alana conhecia as histórias.
Naquela época, as bruxas eram a única chance de
sobrevivência de vários grupos. Elas não podiam esperar
até se recuperarem naturalmente, então usavam o sexo.
Se tudo que existia era magia, de alguma forma, então
era óbvio que aquilo podia ter algum tipo de poder, se as
pessoas envolvidas escolhessem que fosse assim.
E sempre eram as pessoas envolvidas. O poder vinha
do orgasmo, mas ele também vinha de algo. Alguém – da
mesma forma que Alana havia usado o poder no próprio
ar e em tudo ao seu redor para desfazer o que a criatura
havia feito.
— Infelizmente, um vibrador não resolve nesse caso
— ela falou. — Se fosse, eu já tinha pedido para Dani
trazer um. Eu precisaria de alguém.
E, se Alana achasse que valia o risco de voltar para o
Setor Dez, ela provavelmente faria exatamente aquilo.
Ela tinha algumas pessoas em quem confiava – não
exatamente amigos, mas pessoas que ela sabia que não
recusariam algumas horas para ela recuperar seu poder.
Não seria a primeira vez que ela precisava de algo
daquele tipo.
Rafael inclinou a cabeça.
— Você tem alguém, se quiser.
Era óbvio que ele ia se oferecer.
Alana riu. Não tinha outra reação possível além
daquilo. Ah, ela achava Rafael visualmente interessante,
sim. Ok, mais que interessante. Ele era gostoso, de um
jeito meio "aproveite a paisagem, mas se chegar perto
demais vai ser perigoso para você". E aquilo não fazia
diferença, porque ela não confiava nele.
Rafael foi na direção dela, andando devagar até
parar na sua frente.
— Você acha que não notei como você olha para
mim? Ou que não percebi todas as vezes que seus
batimentos cardíacos aceleraram, enquanto estava
olhando?
Era óbvio que ele tinha notado. Um vampiro não
deixaria algo daquele tipo passar. Mas, antes, ela tinha o
contrato como uma proteção, porque ela tinha feito
questão de deixar claro que eles não teriam nenhum tipo
de envolvimento.
— A atração existe — ele continuou. — Então por que
negar?
Alana encarou Rafael. Ela duvidava que ele fosse
entender, mas já que estava perguntando...
— Porque para mim, atração sem confiança não
adianta de nada.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar, quase como se estivesse tentando não assustar
Alana.
Como se ela fosse se assustar com qualquer coisa
vindo dele, depois de tudo o que já tinha acontecido –
depois de ele ter usado poder para prender Alana.
Sim. Aquele era um ótimo motivo para ela nem
pensar na possibilidade que Rafael estava oferecendo.
Mas Alana não conseguia controlar sua imaginação agora
que ele tinha se oferecido daquele jeito e ela quase o
odiava por ter colocado aquela possibilidade na sua
cabeça.
Da outra vez, quando ela ainda tinha um resto de
ingenuidade e quase tinha acreditado nele, Alana havia
começado a imaginar, sim. Ela tinha pensado em como
ele seria na cama. Se teria o mesmo toque cuidadoso de
quando a puxava para junto de si ou se seria o perigo
que estava no fundo do olhar dele, o tempo todo. E ela
tinha imaginado vezes demais como seria ser mordida.
Se seria tudo o que ela já tinha ouvido falar ou se iria se
decepcionar.
Rafael segurou seu queixo, sem colocar força
nenhuma. Na verdade, o toque parecia quase delicado.
O que queria dizer que parecia errado, vindo dele.
— Você não precisa confiar em mim — ele falou. —
Você sabe que preciso do seu poder. Se estou
oferecendo, é porque é do meu interesse garantir que
você esteja segura.
Da mesma forma que era do interesse dele garantir
a segurança de Alana enquanto ela estava se
recuperando – o motivo para ela estar ali.
Alana o encarou. Ele tinha um bom ponto. Ela era a
única forma que Rafael tinha de enfrentar a criatura,
então ele não faria nada que a colocaria em risco.
Era uma chance de se recuperar mais depressa –
dias, ao invés de mais de uma semana – e de matar sua
curiosidade de uma vez. Ou, pelo menos, começar a
matar a curiosidade, porque tinha um limite de até onde
ela estava disposta a se arriscar.
— E você consegue me dar uma garantia de que
seguiria minhas condições? — Alana perguntou.
Ela poderia ter completado a pergunta – se ele
garantia que não ia perder o controle. Mas perguntar
aquilo ia passar da linha da provocação direto para um
insulto que os vampiros levavam a sério demais.
— Seu tempo, seus limites, suas escolhas — Rafael
falou. — Não tenho o menor interesse em fazer algo que
você não queira. O cheiro do medo nunca foi algo que
me atraiu.
Um arrepio atravessou Alana.
Ela podia recusar. Ninguém ia julgá-la por isso.
Qualquer um no Setor Dez ia concordar se ela falasse
que não confiava em Rafael e que preferia correr o risco
de mais de uma semana sem poder usar seus poderes.
Ela podia recusar, mas era óbvio que não ia fazer
aquilo.
E, por mais que o pessoal do Dez gostasse de falar
que Dani era a pessoa dos planos loucos e tudo mais, a
verdade era que sua prima não era a única. A loucura era
de família.
Alana respirou fundo e se sentou na cama de novo,
devagar.
Rafael se aproximou mais e se abaixou na sua frente.
Ter ele ali, abaixado entre suas pernas, era mais
interessante do que deveria ser. Era quase uma inversão
de como as coisas sempre haviam sido entre eles, com
Rafael no controle, apesar de como ela se recusava a
ceder.
Ele apoiou as mãos no colchão, uma de cada lado de
Alana, e se inclinou para a frente.
— E o que eu posso fazer? — Rafael perguntou.
Alana resistiu à vontade de sorrir. Ele não fazia ideia
do que estava fazendo – de como ele estava mostrando
muito mais do que queria. Porque um vampiro da idade
de Rafael não ofereceria o controle para uma humana
daquele jeito. Aquilo ali era o primeiro sinal que Alana
tinha de que os comentários dele sobre querer uma
parceira talvez fossem verdade. Não que serem verdade
mudasse alguma coisa do que ela pensava sobre o
vampiro.
E ela queria saber até onde aquilo ia – e o que um
vampiro da idade dele sabia fazer.
— Você pode me fazer gozar. Você pode usar suas
mãos e sua boca e só. E nada de mordidas.
Ele sorriu, mostrando suas presas.
— Mas o veneno poderia deixar tudo muito mais
intenso para você.
Sim. Mas Alana conhecia histórias demais sobre
vampiros usando o veneno para controlar humanos. Ela
não fazia ideia de se eram verdade ou não – e precisava
se lembrar de perguntar se Mel sabia alguma coisa sobre
aquilo, depois – mas não ia arriscar, não importava quão
tentador fosse.
Alana sorriu.
— Se você não se garante sem o veneno, aí não é
problema meu.
Algo quase feral passou pelo olhar de Rafael. Bom,
porque se ela ia aceitar aquilo, então no mínimo não
queria ter que lidar com o ego dele. Ou melhor, se ia
fazer aquilo, então ia usar o ego de Rafael ao seu favor.
Ele se inclinou na direção dela.
— Você está vestida demais.
Alana levantou uma sobrancelha e tirou sua regata
de uma vez. Ela não estava usando nada por baixo e a
forma como Rafael só parou, completamente imóvel
daquele jeito que não era humano, era satisfatória
demais.
Ele respirou fundo e soltou o ar devagar – e era a
primeira vez que Alana via ele respirar sem ser porque
precisava de ar para falar.
O sorriso de Alana ficou mais largo. Ela tinha
conseguido surpreender um vampiro antigo da melhor
forma possível. E não tinha terminado.
Ela se levantou. Rafael continuou no mesmo lugar,
tão perto que se ele fosse humano ela estaria sentindo a
respiração dele.
Alana puxou sua saia para baixo e deixou ela cair no
chão.
Rafael ficou ainda mais imóvel. Tenso, até.
Ela se sentou de novo, ainda sorrindo.
— Eu não tinha roupas aqui quando fui tomar banho
— ela murmurou.
E entre vestir a mesma calcinha de antes e nada,
Alana tinha preferido nada. Tinha sido uma ótima
escolha.
Rafael fez um ruído abafado que ela não tentou
entender o que era. A expressão dele era o suficiente – a
forma como ele estava tenso, como se estivesse se
obrigando a continuar parado onde estava.
Ela estava nua, ele estava vestido, mas ela não se
sentia vulnerável. Era estranho pensar aquilo, mas era a
verdade. De alguma forma, aquele momento ali era dela.
Totalmente dela.
Alana se inclinou para trás e apoiou os cotovelos no
colchão.
Rafael ainda estava no mesmo lugar, ajoelhado na
frente da cama e encarando Alana como se ela fosse
uma obra de arte a ser apreciada.
Por mais que aquilo estivesse fazendo muito bem
para a sua autoestima, ela estava ali por um motivo
específico.
— Estou esperando — Alana falou.
Rafael fez um som baixo que era quase um rosnado.
— Não se acostume com isso, bruxinha.
Com estar no controle. Não, ela não era ingênua a
ponto de pensar que aquilo mudava alguma coisa. Mas ia
aproveitar enquanto podia.
— Se você está mudando de ideia... — ela começou.
Rafael fez aquele mesmo som de novo.
Pelo visto vampiros rosnavam.
Alana sorriu e levantou as sobrancelhas.
Ele colocou as mãos nos joelhos de Alana, abrindo
suas pernas ainda mais antes de chegar mais perto da
beirada da cama. Rafael a encarou por mais alguns
segundos antes de descer os olhos devagar, tão intenso
que quase parecia uma força física.
Alana engoliu em seco e mordeu o lábio. Aquilo era
diferente demais de tudo que havia imaginado. A ideia
de Rafael ali, daquele jeito, sob seu controle era uma
coisa completamente irreal. Absurda, quase. Mas estava
acontecendo.
Ele parou, encarando o meio das pernas dela, e
respirou fundo.
Rafael era um vampiro. Vampiros tinham sentidos
mais aguçados. O que queria dizer que ele
provavelmente estava sentindo o cheiro dela. De como
Alana estava ficando molhada, excitada só por causa
daquilo ali.
Ele subiu uma mão pela coxa de Alana, devagar,
com um toque firma que exigia a atenção dela. Alana se
forçou a não reagir quando ele parou, com os dedos na
sua virilha, tão perto de onde ela queria que ele tocasse,
mas sem fazer nada.
— Eu estava fazendo planos, bruxinha — ele
murmurou.
— Planos — ela repetiu.
Rafael levantou a cabeça e a encarou de novo antes
de mover a mão devagar, descendo pela sua coxa, ao
mesmo tempo em que a outra subia pela sua outra
perna.
Aquilo não deveria ser nada. Um toque na coxa
nunca tinha feito diferença para Alana, antes. Mas estava
fazendo, ali. A forma como a sensação era quase um
contraste para a forma como ela sabia que estava à
mostra, ali. Para como cada movimento de Rafael parecia
calculado, um passo para o que ele sabia que teria.
— Planos sobre o que eu faria com você — ele
continuou, em voz baixa.
Ele tinha feito planos.
Aquilo não deveria fazer diferença, mas fazia.
— E quais eram esses planos?
Ele sorriu, sem esconder suas presas, de um jeito
que não tinha nada de humano e que ainda assim não
era o suficiente para assustar Alana.
— Meus planos eram levar meu tempo. Deixar as
sensações fortes demais antes de você tirar uma peça de
roupa, porque cada uma delas seria um alívio depois de
como elas serviriam para levar seu corpo ao limite — ele
falou.
E ele continuava com aquele movimento lento,
subindo e descendo as mãos pelas suas coxas, parando
na sua virilha e apertando o suficiente para ela não ter
como ignorar a sensação fresca das mãos dele contra
sua pele.
— Meus planos eram fazer você implorar por um
orgasmo antes que terminasse de te despir.
Um arrepio atravessou Alana e sua respiração falou.
Não era a primeira vez que alguém falava que ia
fazer ela implorar um orgasmo. Mas era a primeira vez
em que ela achava que a pessoa falando isso tinha
alguma chance de conseguir.
Rafael desceu a mão pela perna direita de Alana,
segurou seu tornozelo e a levantou. Alana não falou nada
quando ele colocou o calcanhar dela no colchão e parou,
a encarando.
Ela estava exposta. Completamente exposta, com
uma perna no chão e a outra na cama, sentindo o ar
fresco do quarto contra sua pele sensível.
Rafael respirou fundo de novo, fechando os olhos por
um instante antes de encarar Alana – e agora os olhos
dele estavam completamente pretos.
Aquilo deveria ser o suficiente para acabar com o
que quer que estivesse acontecendo ali. Os pretos eram
o sinal mais óbvio de que um vampiro estava perdendo o
controle. Era um sinal de que alguém estava prestes a
morrer.
Mas Rafael continuava ali, ajoelhado entre as pernas
de Alana, a tocando com aquele cuidado que ela sabia
que podia se tornar o melhor tipo de tortura.
— Devagar ou rápido? — Ele perguntou.
Alana respirou fundo. Tentou, porque sua respiração
estava acelerada demais. E ela queria demais para lidar
com o que seria o “devagar” de um vampiro.
— Rápido — ela falou. — E depois devagar.
Rafael sorriu e passou as garras pela parte interna
das suas coxas. Um arrepio atravessou Alana – e não era
um arrepio de medo.
— Rápido, então — ele repetiu.
E, de alguma forma, Alana não tinha mais tanta
certeza de que estava pronta para o que ele estava
planejando fazer. O que não queria dizer que ela voltaria
atrás.
Rafael sustentou seu olhar por mais um instante,
ainda com aquele sorriso mostrando suas presas. Alana
não falou nada. Não era justo que só ter o vampiro ali, na
sua frente, a encarando daquele jeito, fosse o suficiente
para fazer sua respiração estar mais que acelerada. Mas
era o que estava acontecendo. E cada toque das suas
garras subindo e descendo pela parte de dentro das suas
coxas – ela precisava se forçar a continuar parada no
lugar, porque seu corpo queria mais.
Ele abaixou a cabeça devagar. Alana prendeu a
respiração. Rafael não fazia nada que não fosse
calculado e era mais do que óbvio que estar se movendo
tão devagar era de propósito. Ele queria a antecipação.
Ele queria ela pedindo por mais.
Ele teria muito trabalho se quisesse fazer ela
implorar por mais.
Rafael apertou suas coxas um instante antes de
passar a língua por ela, da sua entrada até o clitóris.
Alana deixou um gemido baixo escapar – e então ele
estava chupando.
Ela tinha falado que queria algo rápido. Era
exatamente o que Alana tinha pedido. E era o que Rafael
estava lhe dando. Ele estava chupando seu clitóris com
força, parando um pouco para passar a língua por ela e
então voltando a chupar. Só aquilo, sem nada aos
poucos, só direto ao ponto.
E Alana não conseguia parar de olhar para onde ele
estava com a cabeça no meio das suas pernas. Não
conseguia controlar os gemidos baixos que estavam
escapando, por mais que ela quisesse ficar em silêncio,
fazer ele trabalhar por cada som dela.
Mas nada teria preparado Alana para aquilo. Para a
sensação fresca dos lábios de Rafael e aquela pressão. A
forma como ele sabia exatamente o que fazer. Aquilo não
deveria ser possível – como ele conseguia manter aquela
mesma pressão por tanto tempo, sem parar, sem mudar
o ritmo. Só...
Rápido. Era o que ela queria. Mas ela não tinha
imaginado que ia ser tão rápido. Que Rafael conseguiria
fazer seu corpo responder daquele jeito, tão depressa.
Que em menos de um minuto ela não ia estar
conseguindo conter seus gemidos e que só ia estar na
mesma posição porque Rafael a estava segurando no
lugar.
Rafael chupou com mais força. Um gemido alto
escapou e Alana caiu para trás na cama. Não tinha a
menor chance de ela conseguir continuar apoiada nos
braços.
Rafael riu contra sua pele, sem parar de chupar, e
ela bateu os punhos fechados com força na cama.
Mais. Ela queria mais e o orgasmo já estava tão
perto.
E ela quase se arrependia dos limites que tinha
colocado, porque Alana conseguia imaginar como seria
ter Rafael com aquele foco todo e sem limites. Podendo
fazer o que quisesse.
Ele chupou com força de novo e Alana sentiu as
presas dele contra sua pele.
O orgasmo explodiu pelo seu corpo de uma vez.
Alana levantou o quadril, mas Rafael a segurou o lugar,
sem parar de chupar, mesmo que agora mais leve,
enquanto ela tremia. Enquanto ela deixava a perna cair
de volta para o chão e colocava um braço na frente da
boca para abafar seus gemidos.
E Rafael continuou chupando seu clitóris, diminuindo
seu ritmo mas ainda deixando que Alana sentisse suas
presas, às vezes. Aquilo era viciante – a sensação de
perigo, de proibido. De estar no limite de fazer algo que
seria uma péssima ideia.
Aquilo já tinha sido uma péssima ideia, porque um
orgasmo já era o suficiente para Alana saber que nunca
mais ia ficar satisfeita com menos do que o que Rafael
tinha feito.
E, em algum momento, ele tinha parado de chupar.
Alana tirou o braço que estava na frente da sua boca
e respirou fundo. Ela ainda estava sensível e tinha a
impressão de que qualquer movimento, qualquer toque
no seu clitóris ia ser o suficiente para fazer ela gozar de
novo. Aquilo não era normal. Não devia nem ser possível.
— Agora a cama deixou de ser um desperdício? —
Rafael perguntou.
Talvez. Mas ela nunca ia admitir aquilo.
Ela apoiou os cotovelos na cama e se levantou o
suficiente para encarar Rafael. Ela não podia nem
reclamar da expressão arrogante dele, depois do que
tinha feito.
— Ainda é a cama de um vampiro, não é? — Ela
falou.
Rafael deu um sorriso ainda mais arrogante – e Alana
não sabia nem que aquilo era possível.
— Então preciso mudar essa ideia, primeiro.
VINTE E UM

Oferecer aquilo para Alana tinha sido um erro. Agora Rafael não
conseguia tirar o gosto dela da sua boca – e nem queria,
na verdade. Não era a mesma coisa que se ele houvesse
provado seu sangue, mas ainda assim... O sabor de
Alana era inesquecível. E era viciante, porque ele só
conseguia pensar em como convencê-la de que podia
confiar nele o suficiente para mais.
Ele tinha precisado se forçar a sair, porque era o
único jeito de manter sua palavra. Alana havia colocado
seus limites e ele os respeitaria. Mas aquilo não queria
dizer que seria fácil. Uma parte dele ainda queria voltar
para o quarto, empurrar Alana contra os lençóis da sua
cama e apreciar tudo que era ela. Seu corpo, seu
sangue... Suas reações.
Desde o começo, Rafael pensara que Alana poderia
se tornar uma distração. Mas ele não havia imaginado
algo como aquilo. Não era apenas uma distração: era
uma necessidade.
Se ele insistisse da forma errada, perderia Alana.
Aquilo era uma certeza. Então ele havia saído do quarto.
Ele a deixara sozinha, contra todos os instintos que
gritavam para ele continuar lá, para não sair do lado dela
até ela estar completamente recuperada.
Não. Rafael precisava se forçar a focar no que era
sua prioridade. Na criatura, na situação com que
estavam lidando. Alana era uma parte daquilo e não
podia se tornar tudo até que aquilo estivesse resolvido.
Ele seguiu pelos corredores do castelo, descendo na
direção das salas que Victor havia chamado de "sua
masmorra", da primeira vez que as vira. O castelo estava
quase deserto, sem nenhum sinal de todos os vampiros
da sua Corte que normalmente passavam mais tempo ali
do que em suas próprias casas. Em todos os setores,
aquilo era o normal: os vampiros tentando se manter
próximos do príncipe, para garantir que seriam
lembrados quando surgisse alguma chance de terem
mais poder. A Corte da Noite havia funcionado da mesma
forma até...
Até o baile. Na véspera do baile, Rafael ainda havia
precisado lidar com vampiros demais no castelo, o
interrompendo enquanto ele estava tentando garantir a
segurança dos seus planos. Mas, depois do baile, os
únicos vampiros no castelo eram os que tinham algum
trabalho ali ou os que precisavam de algo que não podia
ser ignorado.
Eles estavam com medo. Com raras exceções, os
vampiros que haviam se tornado a Corte da Noite não
sabiam quem Rafael era até o baile. E então eles haviam
visto tudo aquilo – a forma como ele destruíra Antonidas
e os outros dois vampiros. A forma como os outros
príncipes haviam reagido quando o reconheceram e dado
sua lealdade sem questionar.
Rafael sorriu. Aquilo era diferente, então. Queria
dizer que as histórias sobre ele eram o suficiente para
exigir respeito. No passado, ele precisara conquistar o
respeito de cada vampiro que havia se tornado parte da
sua Corte com sangue e ameaças. Agora, ele não teria o
mesmo problema.
Ele abriu a porta de madeira pesada que dava para
as masmorras e entrou. Ali não havia luz – a escuridão
constante era mais uma das coisas que usavam para
quebrar os vampiros que precisavam ser levados para
aquela parte do castelo. Os vampiros conseguiam ver no
escuro, sim, mas não na escuridão completa. Eles
precisavam de alguma fonte de luz, por menor que fosse.
Na maior parte do tempo, aquilo não fazia diferença.
Lá fora, um vampiro na escuridão completa poderia usar
o sangue de alguém para se localizar. Era como eles
faziam, no passado. A escuridão nunca era uma garantia
de segurança quando alguém estava sendo caçado por
um vampiro e aquele era o motivo. Mas, ali, não havia
nada vivo. Um vampiro podia beber do sangue de outro
vampiro, mas não conseguia senti-lo ou vê-lo da mesma
forma como via o sangue de um humano.
Rafael seguiu pelo corredor largo, sem precisar ver
para se localizar. Ele conhecia aquele lugar bem demais
para se incomodar com a falta de iluminação. E ele
conseguia sentir a direção onde Victor estava, como um
dos seus vampiros jurados.
Ele entrou em uma das salas e parou ao lado da
porta. Victor estava um pouco para o lado e Rafael
conseguia sentir a presença do vampiro preso, também.
Era algo fraco, mais parecido com um vestígio de poder
do que com uma impressão real.
— Ele ainda está se recusando a falar? — Rafael
perguntou.
O vampiro preso fez um ruído baixo e patético
demais para ser chamado de gemido.
Uma lamparina foi acesa – uma das que ainda usava
fogo e não algum tipo lanterna com baterias. Aquilo
havia sido sugestão de Victor e Rafael concordava: a luz
bruxuleante do fogo, as sombras que ela jogava pela
sala, aquilo tudo tinha um efeito muito mais forte do que
se ele estivesse usando uma lanterna.
— Ele insiste que não sabe de nada — Victor falou.
— Eu não... — o vampiro murmurou, falando
depressa e com a voz quebrada. — Eu não.. Foi um
engano, eu juro que foi um engano.
Rafael foi na direção do vampiro. Ele estava preso na
parede, com as mãos e pernas separados. As correntes
estavam firmes, sem nenhum sinal de que haviam sido
forçadas – não que fosse fácil forçar uma corrente
naquela posição. O vampiro realmente estava
dependurado, inclinado para a frente sem encostar na
parede.
— Foi um engano — ele continuou, ainda naquela
voz quebrada. — Eu juro, eu juro, não fiz nada. Era só
uma brincadeira, era só...
O vampiro tinha a pele um pouco mais escura que a
de Rafael – o que não queria dizer muita coisa – e o
cabelo claro e puxado para trás de um jeito que havia
sido popular logo depois da volta da magia. Ele estava
tentando fazer parecer que era um vampiro jovem, mas
havia se esquecido dos detalhes.
Não que aquilo fizesse diferença. Se fosse um
humano dizendo que havia entrado no castelo por
brincadeira, Rafael poderia até acreditar, dependendo da
idade do humano. Mesmo que não fosse comum, ele
sabia que apostas aconteciam e os humanos mais jovens
pensavam que eram invencíveis, às vezes.
Mas um vampiro nunca entraria no território de outro
vampiro por brincadeira. Fazer aquilo era um desafio. E
era pior ainda porque aquele vampiro não era parte da
sua Corte ou do seu setor. Ele era alguém de fora.
E Rafael ainda estava sentindo aquele vestígio de
poder ao redor do outro vampiro, mesmo que ele não
parecesse estar fazendo nada.
— Uma chance — ele falou.
— Eu não fiz nada eu não fiz nada eu não fiz nada...
Aquele vestígio de poder não estava ali à toa.
Rafael encarou o vampiro. Ele parou de falar e a
cabeça dele caiu para a frente. Um filete de sangue
escorreu da sua boca, devagar. Rafael o havia destruído
usando sua habilidade de controlar o sangue.
— Senhor? — Victor perguntou.
— Quero o corpo no muro o mais rápido possível —
ele avisou. — E quero uma identificação. Quem ele era,
de onde veio, e qual eram suas habilidades.
Porque Rafael só conseguia pensar em um motivo
para um vampiro de fora da região estar ali.
E ele havia deixado Alana sozinha.
— Entendido — o outro vampiro falou.
Não. Victor não havia entendido.
Rafael se virou para ele.
— Havia um vestígio de poder ao redor do vampiro
— ele contou. — Não era a mesma impressão do poder
da criatura, mas ou ele estava fazendo alguma coisa, ou
estava sendo controlado de alguma forma.
O que queria dizer que precisava ser destruído,
porque o manterem ali era um risco grande demais,
quando não sabiam o que estava fazendo.
Victor assentiu e apagou a lamparina. O cheiro da
fumaça se espalhou por um instante antes de ficar mais
forte.
Rafael se virou depressa e saiu da sala. O cheiro da
fumaça estava cada vez mais forte, com algo quase
ácido nele que não parecia natural.
E havia luz vindo da direção da entrada das
masmorras. Luz avermelhada, forte demais para ser
qualquer coisa do seu castelo.

Alana abriu a janela do seu quarto e parou, olhando para fora.

Aceitar a ideia de Rafael tinha sido burrice. Não


importava se ele tivesse lhe dado alguns dos melhores
orgasmos da sua vida, aquilo tinha sido um erro. Ao invés
de matar a sua curiosidade, agora ela só conseguia
imaginar mais. Imaginar como teria sido se ela não
tivesse colocado limites. Se tivesse ido até o fim com
Rafael e descoberto como era transar com um vampiro e
qual a sensação de ser mordida.
E talvez se ela não tivesse colocado limites, tudo
tivesse sido sem graça, porque Rafael não ia ter nada a
provar. Ok, ela ia se lembrar daquele detalhe, também.
Ou talvez fosse melhor nem se lembrar, porque
Alana não podia repetir aquilo. De jeito nenhum.
Pelo menos tinha sido bom o suficiente para ela não
estar completamente indefesa. Se alguma coisa
acontecesse nos próximos dias, Alana não ia conseguir
resolver por conta própria. Mas conseguiria ganhar
tempo e aquilo precisava ser o suficiente.
Ela se virou, pegou a regata e o saião que estavam
jogados no chão do quarto, levou tudo para o banheiro e
jogou lá dentro. Alana não ia usar aquilo ali de novo tão
cedo. As roupas iam voltar para o Setor Dez e ela fazia
questão de mandar para uma das lavanderias que faziam
descontaminações mágicas, não importava o preço. Era
fazer aquilo ou jogar tudo fora, porque de alguma forma
a presença de Rafael estava impregnada nas suas
roupas.
Alana voltou para o quarto, respirou fundo e soltou o
ar devagar. Eles precisavam resolver aquilo logo. Quanto
mais rápido tudo acabasse, mais rápido ela ia poder
voltar para casa e nunca mais pensar em Rafael. E ela
nem importava se estava sendo otimista demais em
achar que ia ficar livre dele.
Eles não tinham como ir atrás da criatura, onde quer
que ela estivesse. Então o jeito era convencer ela a ir ao
encontro deles.
Uma isca. E Alana era a isca perfeita. A questão era
só como fazer aquilo para minimizar os riscos. De cara,
ela já sabia que precisavam esperar. Ela precisava
terminar de se recuperar. Era o tempo que teriam para
montar um plano.
E ela queria ver a cara de Rafael quando ela falasse
que ia ser uma isca. Aquilo ia ser divertido.
Alana se endireitou.
Ela estava sentindo cheiro de fumaça.
Se fosse em qualquer outro lugar da região, ela não
ia achar aquilo estranho. O clima ali era seco o suficiente
para queimadas não serem algo incomum na maioria dos
setores. Mas não no Um. Rafael tinha mandado instalar
um sistema de irrigação que cobria muito mais do que as
plantações e ela nunca tinham ouvido falar de uma
queimada ali.
E, considerando o que Alana tinha entendido sobre o
passado de Rafael, aquilo até fazia sentido. Ele tinha sido
caçado, no passado. Na época que usavam fogo para
enfrentar os vampiros.
Alana voltou para perto da janela e olhou para fora.
Os jardins estavam normais. Não tinha nenhum sinal de
fumaça na direção da cidade também. Não que ela
conseguisse ver muita coisa mais longe, considerando
que estava de noite, mas Alana imaginava que a fumaça
seria visível por causa das luzes da cidade bem mais na
frente.
Ela olhou para baixo e para o lado, tentando ver o
próprio castelo.
Tinha fumaça mais para a sua esquerda, vindo de
baixo. E estava perto demais do castelo.
Podia não ser nada demais. Provavelmente não era
nada demais. Mas era fumaça em um castelo de
vampiros, um dia depois de ela ter desafiado a criatura.
Alana pegou seu celular e saiu do quarto correndo.

A outra porta saindo das masmorras estava emperrada.

Rafael se forçou a continuar calmo, mesmo que a


fumaça já estivesse ocupando todo o corredor. O passado
podia até estar se repetindo, mas aquilo queria dizer que
ele sobreviveria. Já haviam tentado destruí-lo usando
fogo, antes, e não haviam conseguido. Se aquilo não
havia sido o bastante séculos antes, agora não seria o
suficiente para destruí-lo, também.
Mas ele não queria sentir o fogo de novo. E não
podia se dar ao luxo de esperar até o fogo ser apagado e
o encontrarem, se alguém procurasse por ele. Rafael não
podia ser visto como vulnerável, não quando precisava
da confiança dos outros vampiros.
E Alana estava no castelo. Ela era humana, mesmo
que fosse uma bruxa, o que queria dizer que não teria a
menor chance se o fogo a alcançasse.
Ele precisava sair dali.
— Aqui — Victor falou.
Rafael pegou a peça de metal que o outro vampiro
havia trazido e a enfiou por baixo da porta. Na época que
o castelo havia sido construído, ele ficara furioso com
aquilo. Rafael não queria uma fenda entre a porta e o
chão, por menor que fosse. Ele preferia as portas se
arrastando, desde que estivessem completamente
fechadas – principalmente as portas daquela área, que
não podia ter luz. Por fim, havia sido mais simples
instalar reforços por trás das portas, ao invés de mandar
refazer todas elas. E agora aquilo era o que estava lhe
dando uma chance de tentar abrir a porta.
A placa de metal bateu em alguma coisa do outro
lado. Algo pesado e largo.
— Bloquearam a porta — Rafael contou.
Não que ele precisasse contar aquilo. Era óbvio que
a porta estava bloqueada, ou sua força já teria sido o
suficiente para abri-la.
E o fogo estava perto o suficiente para o calor estar
ficando insuportável – mesmo que normalmente
vampiros não sentissem calor.
Rafael empurrou a placa de metal. Ele não podia agir
sem pensar. O metal estava aquecendo, também, o que
queria dizer que estava mais fraco. Se ele se dobrasse,
não teriam nada para usar. E se Rafael se demorasse
demais, o próprio calor garantiria que o metal não seria
útil.
Algo fez um som irritante e o metal se moveu. O que
quer que estivesse do outro lado, estava sendo
empurrado. Bom. Rafael estava certo quando havia
pensado que era uma questão de ângulo.
Ele empurrou de novo. Mais um pouco daquele ruído
irritante, ao mesmo tempo em que Victor se encostava
na parede ao lado da porta. O fogo estava logo atrás
deles.
Rafael soltou a placa de metal e tentou abrir a porta
de novo. Ela se moveu alguns centímetros e parou.
Era o suficiente.
Ele passou um braço pela abertura e empurrou o que
estava do outro lado. Deveria ser simples, mas não era.
O que estava bloqueando a porta era algo pesado
demais e para piorar estava em um ângulo que parecia
calculado para garantir que não seria empurrado.
A fumaça estava tão densa ao redor deles que Rafael
mal conseguia ver a parede.
Ele não ia ficar preso ali. Ele não seria queimado de
novo.
Rafael forçou seu ombro pela abertura. A porta se
abriu um pouco mais, mas não era o suficiente.
Ele empurrou. A madeira da porta cortou sua pele,
mas não importava. O calor do fogo estava perto demais.
E continuou empurrando.
Quase mil anos. Ele não seria queimado de novo.
Rafael empurrou de novo, com toda a força que
conseguia reunir.
O que estava bloqueando a porta caiu. Ele ouviu um
som abafado familiar demais e depois o ruído
característico de vidro se quebrando. Mas nada daquilo
importava.
Ele terminou de abrir a porta.
Era um armário de algum tipo, uma das antiguidades
que ele tinha pelo castelo, e que havia sido colocado ali.
E apenas o armário não teria sido o suficiente para
manter a porta fechada. Aquilo tinha sido o primeiro som
que ele ouvira: alguém ficando preso debaixo do armário.
Sendo esmagado pelo peso do móvel. Alguém que
estivera ali para garantir que aquela porta não seria
aberta até que fosse tarde demais.
Quem quer que fosse, ia queimar.
Rafael pulou por cima do armário e ouviu Victor fazer
a mesma coisa. Os dois vampiros correram na direção de
uma das portas laterais do castelo.
A fumaça estava se espalhando por ali, também,
vindo de mais direções do que só da masmorra.
Alana. Alana estava no castelo.
Rafael não podia só fugir, mas não tinha como voltar
por ali, não com o fogo se espalhando depressa. Ele
precisava sair, primeiro. Provavelmente seria mais fácil
escapar uma das paredes do castelo até as janelas dos
aposentos dela – se ela ainda estivesse lá.
Passar pela porta e sentir o ar da noite, sem o cheiro
ácido do fogo, era um alívio. Victor continuou correndo,
se afastando do castelo, mas Rafael parou. Ele ainda
precisava encontrar Alana.
E o fogo estava subindo pelas paredes do castelo,
consumindo as plantas que ele havia deixado crescer por
elas e mais.
Se a cor escura das chamas não fosse indicação o
suficiente, aquilo seria a confirmação de que o fogo não
era natural. Ele continuava subindo, como se a própria
rocha do castelo fosse combustível.
Não era como no passado, quando haviam queimado
suas propriedades. Era pior. E não havia nada que ele
pudesse fazer para impedir aquilo.
Rafael se virou e começou a correr acompanhando a
parede do castelo. Ele precisava encontrar Alana.
VINTE E DOIS

Alana não conseguia desviar os olhos do fogo. Ela nunca tinha


ouvido falar de nada daquele tipo, mas as chamas
tinham uma cor vermelha escura que não parecia natural
e estavam subindo pela parede. E não era só por causa
da trepadeira unha-de-gato que cobria parte do castelo.
Aquilo já tinha queimado. Era só... A rocha. Mais nada.
Ela não fazia ideia de quanto tempo fazia que ela
estava sentada ali, em um dos caminhos do jardim ao
redor do castelo. Depois de sair do castelo e ver a
fumaça grossa demais vindo de uma das janelas não
muito longe da ala onde seu quarto ficava, Alana tinha se
afastado pelo jardim e ficado ali, sozinha, esperando. Ela
não conhecia nem confiava o suficiente nas pessoas que
trabalhavam no castelo para ir para perto de onde os
outros humanos haviam se reunido.
Mas ela estava perto o suficiente e estava claro o
bastante – por causa do fogo – para ver onde eles
estavam, um grupo relativamente grande, parado no
caminho que levava para um dos portões laterais. E o
grupo de vampiros não estava muito longe deles, no
gramado na frente do castelo.
E ninguém estava fazendo nada. Os humanos que
trabalhavam no castelo, os guardas com as tatuagens no
pescoço, os vampiros que eram parte da Corte – tanto os
que estavam dentro do castelo quando o fogo havia
começado quanto os que haviam vindo da cidade para
ver o que estava acontecendo... Ninguém estava fazendo
nada.
Ela entendia os humanos estarem parados daquele
jeito. Que chance eles tinham contra um fogo que era
óbvio que não era natural?
Mas os vampiros... Eles poderiam estar fazendo
alguma coisa. Não importava se o fogo era alimentado
por magia, ele ainda era fogo. Ele ainda podia ser
apagado com água – porque algumas leis da natureza
exigiam poder demais para serem alteradas. Então eles
podiam estar usando os reservatórios de água do castelo
para apagar o fogo, mas ninguém estava fazendo nada.
E Alana achava que sabia o motivo: fogo feria os
vampiros – e a maioria deles não lidava bem com dor.
Eles preferiam deixar o castelo queimar a lidar com
um pouco de dor.
O castelo era um símbolo, também. Se ele fosse
destruído, seria uma marca contra Rafael. Um sinal de
fraqueza que ela não tinha a menor dúvida que os outros
vampiros iam usar a seu favor. E eles estavam
dependendo de símbolos demais para deixar algo assim
acontecer.
Alana respirou fundo. O cheiro da fumaça era ácido e
estava se espalhando depressa demais. Se continuasse
naquele ritmo, não ia demorar muito para ela nem
conseguir respirar direito.
E ela não fazia ideia de onde Rafael estava. Quando
ele tinha saído do quarto, mais cedo, tinha falado que
precisava lidar com um prisioneiro. Ela não fazia ideia de
onde ele tinha ido ou quanto tempo aquilo ia demorar... E
muito menos se ele tinha conseguido sair do castelo a
tempo.
Ela respirou fundo de novo. Ao contrário dos
vampiros, Alana não tinha problemas para lidar com a
dor. Mas ela também sabia que correr de volta para o
castelo sem saber de nada era suicídio. Ela era humana e
mais nada.
O Setor Um não podia cair. Todos eles precisavam de
Rafael, porque ele era a melhor chance de pararem a
criatura. Ele era a única pessoa que conseguiria manter
os vampiros relativamente unidos e sem jurar lealdade
para a criatura.
E aquele era o motivo para ela estar pegando o
celular e ligando para Dani. Só isso.
— Alana? O quê...?
— Incêndio — ela falou, depressa. — Traz Val para cá,
agora. Os jardins estão seguros, o castelo não.
Dani desligou o celular na cara de Alana.
Ela continuou parada, encarando o fogo subindo
pelas paredes do castelo – as paredes cobertas por
trepadeiras unha-de-gato. Alana não podia nem sonhar
em usar seus poderes ali. Ela tinha feito aquilo uma vez –
tentado controlar uma planta pegando fogo – e se
lembrava muito bem da dor.
O que queria dizer que ela não podia fazer nada para
ajudar. Não poderia mesmo se estivesse completamente
recuperada.
A única coisa que Alana conseguia fazer era manter
sua atenção ao redor do castelo, no que conseguia sentir
das plantas do jardim. Não era muito e ela sabia que não
podia abusar. Sua percepção tinha que ser superficial,
senão o pouco que tinha se recuperado depois do Setor
Nove ia se desfazer. Mas ela podia ao menos saber onde
tinha movimento, se alguém ainda estava saindo do
castelo...
E se alguém estava correndo acompanhando a
parede do castelo. Um vampiro, pela velocidade.
Alana se levantou e respirou fundo. Quem quer que
fosse, estar correndo daquele jeito não era um bom sinal.
E, sendo um vampiro, ela tinha segundos antes que a
pessoa estivesse perto demais.
Algo segurou Alana. Seu poder estalou de uma vez e
a grama ao redor do caminho se tornou cordas, se
enrolando ao redor da outra pessoa...
Rafael. Era Rafael ali, segurando Alana. O rosto dele
estava sujo de cinzas e sua roupa também, como se ele
tivesse ficado perto demais do fogo.
Ela deixou o poder escapar. A grama encolheu de
novo, sem deixar nenhum sinal do que ela tinha feito.
Rafael continuava segurando seus ombros e a
encarando de uma forma que era intensa demais.
— Você já estava aqui fora — ele murmurou.
Óbvio que estava.
E, se Alana fosse um pouco mais ingênua, ela ia até
acreditar que Rafael estava preocupado com ela.
— E o que você ia fazer correndo daquele jeito? —
Ela perguntou.
Rafael fez um ruído irritado e a soltou antes de se
virar para o castelo.
— Procurar por você.
Alana encarou o perfil dele. Ela realmente tinha
ouvido aquilo. Ele realmente tinha falado que estava
correndo daquele jeito para ir atrás dela. E ele ia fazer o
quê? Pular uma das janelas? Porque a ala residencial do
castelo tinha sido completamente isolada do resto pelo
fogo.
Não importava.
Ou melhor, até importava, sim. Era óbvio que Rafael
ia ir atrás dela. Ela era a chance dele parar a criatura.
Aquilo era explicação o suficiente.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— Não temos como controlar esse fogo.
Eles, não. Mas Alana tinha a impressão de que tinha
menos fumaça subindo do outro lado. Ela não ia tentar
ligar para Dani de novo para saber se sua prima tinha
conseguido achar Val. Se elas estivessem ali, era melhor
Alana não ser uma distração. Mas ela também não ia dar
falsas esperanças para Rafael.
E tinha mais movimento ao redor do castelo.
Alana se endireitou e se virou devagar. Ela não tinha
ido para aquele lado do jardim, justamente porque não
tinha nenhuma porta naquela direção. Mas tinha alguém
ali. Um vampiro.
— Tem algum motivo para um vampiro estar naquela
direção? — Ela perguntou.
Rafael se virou para ela. Alana indicou o lado do
castelo com um movimento de cabeça.
Ele estreitou os olhos.
Nenhum motivo, então.
O poder de Alana se espalhou naquela direção.
— Ele está preso, mas não consigo manter isso por
muito tempo — ela avisou.
Rafael assentiu e desapareceu.
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo tinha sido ele
correndo. Ela tinha visto a velocidade de Dani e Gustavo,
quando estavam treinando, e não era nada comparado
com o que ela tinha acabado de vez. Pelo menos agora
ela entendia por que ser levada para o Setor Nove havia
sido tão desconfortável. O corpo humano não era feito
para lidar com aquele tipo de velocidade.
Alana sentiu quando Rafael encontrou o vampiro e
deixou seu poder relaxar.
Não demorou muito para Rafael contornar a parede
do castelo, de novo, mas agora ele estava andando
normalmente. O outro vampiro estava no chão atrás
dele, sendo arrastado.
Símbolos. Ele queria que os outros vissem aquilo, o
que queria dizer que o vampiro provavelmente era um
traidor.
Alana deveria questionar. Rafael não tinha como ter
certeza de nada sobre o outro vampiro. Era bem possível
que aquilo realmente fosse um caso de força excessiva,
sim, porque era mais fácil achar alguém para culpar e
tentar usar aquilo para amenizar o estrago na reputação
de Rafael.
Mas, vendo o fogo subindo contra a noite, Alana
sabia que não ia questionar.

Dani teve um segundo para sentir o calor do fogo e segurar Val


com força. Ela tinha se transportado para perto do muro
que cercava a área do castelo de Lorde Rafael, o mais
longe do castelo propriamente dito que ela conseguia, e
mesmo assim o cheiro da fumaça já estava pesado e o
calor era incômodo.
O que ela estava vendo não deveria ser possível.
Parecia que as paredes do castelo estavam pegando fogo
– e as chamas estavam altas demais. De alguma forma,
os jardins ainda não estavam queimando, mas não ia
demorar muito. Assim que batesse o primeiro vento e
jogasse as chamas na direção das plantas...
As chamas estavam vermelhas demais para serem
naturais. Não que Dani nunca tivesse visto fogo ficar
vermelho antes, mas não com aquele tom de vermelho
em específico. Era quase vinho em alguns pontos.
Magia. Aquele fogo tinha sido feito ou estava sendo
alimentado por algum tipo de poder.
Se começasse a ventar, aquilo ia se espalhar
depressa demais e não ia ter nada que pudessem fazer.
Ou o fogo ia descer na direção das plantações, ou na
direção da cidade, e qualquer opção ia ser pesada
demais para os humanos do Setor Um.
Val fez um ruído abafado, sem nem tentar sair do
lugar. Dani respirou fundo. Medo. Val sabia que estavam
dentro da propriedade de um dos príncipes e ela
entendia o risco.
Mas Alana também entendia os riscos. Ela não teria
falado para Dani levar Val, sabendo do perigo que seria
se descobrissem o que a garota podia fazer, se não
tivesse um ótimo motivo.
— Você está segura — Dani falou. — E ninguém vai
nem saber que foi você que apagou o fogo.
Não se Val fosse rápida e elas desaparecessem dali
logo.
E Dani ia precisar se alimentar assim que voltassem
para o Setor Dez – transportar outra pessoa duas vezes
assim, tão depressa, não era tão fácil.
Val respirou fundo e se endireitou, encarando o
castelo.
O ar ficou mais fresco por um instante, com um
cheiro que não era exatamente um cheiro e que fazia
Dani pensar no lago escondido no pomar do Setor Dez.
A água caiu de uma vez. Não era chuva nem nada do
tipo. Era só a água surgindo do nada e caindo nas
paredes do castelo, onde estava queimando.
— Tem fogo lá dentro também — Val avisou.
Dani apertou os ombros da garota.
— Se você precisar entrar lá...
Não ia ser nem um pouco agradável, mas estava
perto o suficiente para Dani achar que não teria
problemas para transportar as duas.
Val balançou a cabeça de um lado para o outro, com
força.
— Eu consigo. É só seguir o fogo.
Se ela estava dizendo...
Dani não falou mais nada. Ela conseguia ver a
fumaça ficando mais grossa em vários lugares antes de
diminuir – o fogo sendo apagado. E não precisava se
concentrar para saber que tinha pessoas demais ali fora,
tanto humanos quanto vampiros. O cheiro do medo dos
humanos tinha se espalhado também, de um jeito que
era mais incômodo que o calor do fogo. Pela primeira
vez, ela estava entendendo o que Amon tinha falado
sobre o medo destruir o controle dos vampiros.
Val cambaleou para trás. Dani a segurou no lugar.
Aquilo ela conhecia bem: poder demais, sendo usado
depressa demais. Ela se lembrava de quando a mesma
coisa tinha acontecido com Alana, quando ainda estavam
nas terras de ninguém e logo depois de chegarem no
Dez.
— Cuidado — ela murmurou. — Se for ser demais,
nem tente apagar tudo.
Val fez um ruído de descaso.
— Só é difícil não estar vendo.
E a garota era filha de uma bruxa e um vampiro que
havia sido transformado em humano. Dani não fazia ideia
do que ela realmente era capaz de fazer.
Ela continuou em silêncio.
Aos poucos, o cheiro do medo dos humanos
começou a diminuir também.
— Eles vão me dever por isso — Val falou.
Dani olhou para a garota e levantou as sobrancelhas
antes de olhar ao redor de novo. Ela não estava sentindo
ninguém se aproximando, mas não ia correr risco à toa.
— Algum dia, eu vou cobrar — a garota completou.
E Val ia estar mais que no direito de cobrar.
Dani assentiu.
— Então vou ter que deixar isso claro para Lorde
Rafael, depois.
A garota se virou para encarar Dani, com os olhos
arregalados.
Ah, ela não sabia onde estavam, só que era um
castelo de um dos príncipes.
— Ótimo.
E Dani devia parar de se surpreender com Val,
também.
Ela ofereceu uma mão para a garota.
— Hora de irmos embora antes de alguém notar
quem está aqui.

Rafael não fazia ideia de o que havia apagado o fogo, mas ele tinha
certeza de que estava relacionado a Alana. Ela parecia
satisfeita demais olhando para a fumaça diminuindo e
ele havia visto quando ela conferira algo no seu celular.
Mas o como não importava, agora.
Não tinha como negar os estragos no castelo. O fogo
havia se espalhado depressa demais, de uma forma que
não era natural, e não apenas por dentro do castelo. As
chamas haviam subido pelas paredes, vermelhas demais
contra o céu da noite, e Rafael tinha certeza que haviam
sido visíveis de longe. Não era à toa que tantos vampiros
que viviam na cidade tinham subido para o castelo para
ver o que estava acontecendo.
O que queria dizer que as imagens estariam se
espalhando, também.
Ele havia esperado algum tipo de retaliação da
criatura, mas nunca imaginara que sua resposta seria
aquela.
E teria sido mais que o suficiente. Mesmo se Rafael
sobrevivesse ao fogo, sua reputação não sobreviveria e
aquilo seria um golpe pesado demais para o que ele
queria fazer. Os outros vampiros se afastariam dele e
desfariam qualquer aliança sem pensar duas vezes –
porque se aliar a alguém fraco demais para proteger seu
setor era admitir fraqueza.
Mas ele podia usar aquilo ao seu favor. Era óbvio que
o fogo havia sido algo feito por magia, o que queria dizer
que ele não deveria ter sido capaz de lidar com as
chamas. E, ainda assim, o fogo havia sido apagado. Nada
de importante havia sido destruído. Nenhum dos seus
vampiros ou humanos havia sido ferido.
E se aquilo era real apenas por causa de Alana... As
outras Cortes não precisavam saber.
Rafael olhou ao redor. O salão principal tinha sido
queimado, mas os danos haviam sido mínimos
comparados com outras partes do castelo. Os vampiros
da sua Corte estavam verificando a propriedade
enquanto ele esperava, mas tudo indicava que a
integridade física do castelo não havia sido prejudicada,
apesar de tudo. A questão agora era qual havia sido o
prejuízo material.
Alana – parada um pouco para o lado – fez um ruído
satisfeito e guardou o celular. Ela tinha passado tempo
demais com o aparelho na mão depois que haviam
entrado no castelo, mas ele ainda não conseguira
perguntar o que ela tinha feito e estava fazendo. Pelo
menos Alana havia concordado quando Rafael dissera
que era melhor que ela ficasse por perto.
O tablet de Rafael vibrou. Ele o pegou e encarou a
mensagem de Thales. Então as notícias sobre o fogo já
estavam se espalhando. Ele teria que fazer alguma coisa
sobre aquilo depressa.
Victor se aproximou, vindo dos níveis mais baixos do
castelo, e balançou a cabeça de um lado para o outro.
Não havia sobrado nada do corpo do vampiro que
Rafael havia destruído logo antes do fogo, então.
Aquele tinha sido seu erro: o tempo que o vampiro
permanecera vivo, antes. Rafael havia sentido a
impressão de poder ao redor dele, sem conseguir
identificar um uso para aquilo. A questão era que o poder
era a única intenção. Aquele vampiro havia sido um
sacrifício, desde sempre. Alguém enviado para garantir
que Rafael estaria nas masmorras, porque era um espaço
pequeno e fechado por onde o fogo se espalharia
depressa demais.
E agora ele tinha outro vampiro preso, mesmo que
preso fosse uma descrição um pouco errada. O vampiro
que Alana havia encontrado saindo dos depósitos ainda
estava no chão, sem conseguir se mover porque Rafael
estava usando sua habilidade para mantê-lo ali.
— Quero as imagens do fogo sendo apagado se
espalhando, também — Rafael avisou.
— Entendido — Victor falou. — E as informações
sobre como isso aconteceu...
Rafael fez questão de não olhar na direção de Alana.
Ele ainda queria saber o que tinha acontecido.
— Não importam. Ninguém precisa saber como
lidamos com o fogo, apenas que ele não é uma ameaça
real.
Victor assentiu e se afastou de novo.
Alana se aproximou, encarando o vampiro jogado no
chão.
— O que é o lugar onde ele estava? — Ela perguntou.
Quanto ele podia contar, considerando que estavam
em uma área pública?
— A saída dos depósitos que mencionei para você,
antes.
Ele esperava que ela se lembrasse, porque ele não ia
falar sobre o que estava nos depósitos e o que havia sido
feito, na véspera do baile. Não havia mais ninguém perto
deles, mas Rafael não tinha certeza de que podia confiar
que ninguém estaria tentando conseguir informações.
E ele também esperava que ela entendesse o que o
vampiro ter sido encontrado naquele lugar queria dizer.
Aquela saída não era algo que alguém encontraria por
acidente. Se ele estava ali, era porque era um dos
traidores – e aquele vampiro era um dos que era parte do
Setor Um.
— Vai usar ele para conseguir informações? — Alana
perguntou.
— Talvez, se ele falar depressa o suficiente. Mas não
vou deixar um traidor continuar existindo por muito
tempo.
Na verdade, ele não podia correr o risco – não depois
do outro prisioneiro. Se fosse mais uma armadilha e a
criatura tivesse mais alguma coisa tão perigosa quanto
aquele fogo... Rafael não podia se dar ao luxo de arriscar.
Mas também não podia se dar ao luxo de continuar
sem informações.
— E você acha que ele é o único traidor?
Rafael se virou para Alana, devagar. A expressão da
bruxa não era o que ele esperava depois daquela
pergunta. Ela parecia pensativa, como se estivesse
fazendo planos, não como se estivesse perguntando algo
que podia ser visto como um insulto.
— Ele não é o único.
Alana olhou ao redor de novo. Ele esperou. Ela tinha
alguma ideia ou estava tomando alguma decisão. E ele
não era estúpido a ponto de continuar subestimando a
bruxa.
Ela se aproximou mais de Rafael, até que ele
conseguia sentir o calor do seu corpo. E aquilo era o
suficiente para Rafael se lembrar de horas – apenas
horas – antes, quando Alana estivera na cama dele, se
desfazendo sob o seu toque a sua boca.
— E se eu disser que tem um jeito de saber
exatamente quem são os traidores no castelo e o que
eles sabem? — Alana perguntou, em voz baixa.
Rafael colocou dois dedos sob o queixo dela. Ele
queria mais, mas ainda tinham trabalho pela frente. Um
toque seria o suficiente.
— Eu diria que você está se iludindo. A única forma
de conseguir tudo isso seria se tivéssemos alguém...
Alguém capaz de ver nas mentes de humanos e
vampiros. E não havia ninguém com aquele poder na
região – mas havia boatos de anos antes envolvendo
uma vampira que havia desaparecido. A mesma vampira
que Rafael havia comentado que poderia assumir o
controle do Setor Seis, se ele decidisse destruir Klaus.
Que havia desaparecido depois de se envolver com o
Setor Dez.
Alana deu um sorriso lento.
— Eu posso conseguir isso — ela falou. — Mas
preciso de garantias de segurança e de segredo.
— Tem minha palavra.
E Rafael não precisava parar para pensar antes de
dizer aquilo. Se tinha alguém com aquela habilidade por
perto, ele faria o necessário para conseguir sua ajuda.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— Sua palavra não é o suficiente. E isso não é um
insulto — ela completou, depressa. — Mas não estou
falando da minha segurança. Estou falando de outra
pessoa.
Típico. Se fosse ela, Alana aceitaria só sua palavra e
estaria disposta a se virar caso ele a quebrasse. Mas,
quando o assunto era outra pessoa, ela queria garantias
maiores.
Um contrato não seria o suficiente, então, porque ele
havia ameaçado quebrar o contrato entre eles – mesmo
que no fim houvesse sido Alana quem o quebrara.
Rafael fez um corte no pulso, usando suas garras. O
sangue subiu, mais grosso que o sangue humano, mas
tão vermelho quanto.
Alana arregalou os olhos, mas não falou nada antes
de colocar a mão abaixo do pulso dele. Rafael fechou o
punho. As gotas de sangue no seu pulso escorreram
devagar e caíram na mão aberta de Alana.
— Eu te dou minha palavra — ele falou. — Quem
ajudar o Setor Um por um pedido seu será sempre
considerado um aliado.
A sensação do poder era como espinhos na sua pele
e Rafael sabia que Alana estava sentindo aquilo também.
O que ele havia feito não era um juramento de sangue,
mas era algo próximo demais dele. E aquilo era um tipo
de magia que nem mesmo ele conseguiria quebrar, se
quisesse.
Ela levantou as sobrancelhas e o encarou, sem
tentar esconder sua surpresa. Rafael sustentou seu olhar.
Ele sabia o que havia prometido. Havia sido algo aberto,
sim, e aquilo havia sido proposital. Se Alana tivesse mais
alguém que pudesse ajudar, ele não queria perder tempo
tendo que fazer aquilo de novo. Ele confiava nas
escolhas da bruxa.
E perceber aquilo era uma surpresa.
Rafael confiava em Alana – na mesma bruxa que
havia tentado envenená-lo, também.
Alana respirou fundo e assentiu.
— Vou ter que pensar melhor em como fazer isso —
ela murmurou. — Provavelmente você vai ter que fazer
as pessoas estarem em algum lugar... E não, a pessoa
que estou pensando não vai querer estar nem no mesmo
cômodo que eles. Se possível, é melhor ninguém nem
saber nada sobre ela.
Ele assentiu. Seria como ela preferisse.
Alana olhou para o vampiro no chão, o que estava
preso dentro da habilidade de Rafael. Não importava o
que ele ouvisse. Seu tempo estava contado –
especialmente se não era necessário para que Rafael
conseguisse as informações que precisava.
Ele podia organizar um empalamento ali, sem
esperar por mais nada. Seria o melhor a se fazer.
Mas...
Rafael encarou Alana. Quantas vezes ele tinha
subestimado sua feiticeira? Ele não fazia ideia. E, sempre
que aquilo acontecia, ela o surpreendia de formas que
eram perigosas demais.
Ele não queria mais subestimá-la. Ele queria ver suas
escolhas, quais decisões seriam tomadas e o que aquilo
lhe diria sobre ela.
Rafael empurrou o vampiro com o pé.
— Agora que ele não é mais necessário, o que você
sugere?
Alana se virou para ele com um sorriso gelado.
— O que você fez com o sangue envenenado? — Ela
perguntou.
Ele inclinou a cabeça e não respondeu. Não
precisava responder – porque era óbvio que não teria
descartado sangue envenenado enquanto estavam sob
ameaça. Fazer aquilo seria colocar uma arma em
potencial nas mãos dos seus inimigos.
O sorriso dela ficou ainda mais largo.
— Deixe isso ser público — Alana falou. — Estão
usando vídeos pra tentar atacar sua reputação, não é?
Então faz a mesma coisa. Grave a execução. Conte o que
fizeram com o reservatório de sangue e faça esse aí
beber o sangue envenenado antes de terminar do seu
jeito.
Do jeito dele – com um empalamento. Mas apenas
depois de um espetáculo.
— Deixe claro o que acontece com traidores — ela
continuou. — E com aqueles que te atacam. Não é só
deixar os corpos lá, sem ninguém saber o que fizeram ou
o motivo. Deixe bem claro o que tentaram fazer e quais
são as consequências.
Rafael encarou Alana. Aquilo era cruel – dar o sangue
envenenado para o vampiro primeiro, antes de o
empalar. Seria tortura do pior tipo, porque a dor da prata
estaria atravessando o corpo dele, por dentro dele,
inescapável. Aquele era o tipo de dor que fazia vampiros
enlouquecerem.
Era o tipo de punição e execução que Rafael
pensaria, com o detalhe extra de deixar tudo público.
Não era algo que ele esperaria de alguem que, dias
antes, fizera questão de deixar claro que queria
humanidade dele.
— E onde você vai estar, enquanto o traidor é punido
e executado? — Ele perguntou.
Alana levantou uma sobrancelha.
— Ao seu lado, assistindo.
VINTE E TRÊS

Alana parou na frente da porta fechada da sala no alto da torre.


Rafael não estava no seu escritório nem no jardim com
as roseiras. Não que ela tivesse imaginado que o
encontraria lá, porque aquele lado do castelo tinha sido o
primeiro a pegar fogo, pelo lado de fora – e só por fora.
Quem tinha feito aquilo sabia muito bem onde acertar.
Os dois dias anteriores tinham sido de trabalho e
mais trabalho, enquanto limpavam o castelo,
descartavam o que não podia ser consertado e tudo
mais. E, naquele tempo, tudo estava tão calmo que era
assustador.
Não deveria ser. O vampiro que Alana havia achado
tinha sido empalado ainda na noite do fogo, assim que os
vampiros de Rafael conseguiram consertar a fiação que
tinha sido atingida pelo fogo e eles tinham luz no
gramado. Aquilo havia sido uma boa ideia também,
porque garantia que os humanos não teriam a menor
dúvida do que estava acontecendo. E tinha deixado tudo
muito mais nítido nas filmagens que estavam sendo
espalhadas – tão nítidas que Lara tinha entrado em
contato para saber se estava tudo bem ou se Alana
precisava de ajuda.
— Eu sei que você está aí — Rafael falou.
Claro que sabia.
Alana abriu a porta e entrou. A sala continuava como
antes, sem nem um sinal do fogo. Ela tinha achado que
as chamas tinham ficado altas o suficiente para chegar
nas torres, mas pelo visto havia sido só impressão.
E Rafael estava parado na frente de uma das janelas,
olhando para fora.
— Desde quando você fica parada do outro lado das
portas? — Ele perguntou.
— Desde que achei um vampiro na minha sala.
Ele riu de forma suave e se virou.
— Sua ideia funcionou — Rafael contou. — Várias
Cortes entraram em contato para pedir detalhes sobre o
sangue envenenado. Alguns dos príncipes que eu não
tinha certeza sobre sua lealdade agora são meus, porque
não vão se aliar a alguém que estava disposto a destruí-
los de forma pública para atingir uma pessoa.
Ótimo.
Alana assentiu e parou na frente de outra janela.
Dali, nem parecia que alguma coisa tinha acontecido. As
marcas do fogo não eram visíveis e tanto a cidade
quanto as plantações estavam como sempre.
Não. Tinha uma coisa diferente, sim: o poste com o
vampiro empalado.
Ela respirou fundo, encarando a mancha mais escura
que sabia que era o vampiro. Alana não fazia ideia de se
ele ainda estava vivo. Os gritos tinham parado na noite
anterior.
Mas aquilo era o de menos. Alguma coisa havia
mudado entre ela e Rafael e Alana não tinha certeza de
que entendia o que era. O que quer que fosse, ela não
tinha como duvidar.
A primeira coisa que ela tinha feito depois do
empalamento havia sido mandar mensagem para Amon
e Mel, perguntando sobre juramentos de sangue, suas
variações, e especificamente a forma como Rafael havia
feito aquela promessa. Os dois tinham passado anos
presos por juramentos de sangue. Os dois entendiam
como eles funcionavam.
Os dois haviam confirmado que o que Rafael fizera
era real. Ele não conseguiria quebrar aquela promessa
nem se tentasse, porque o poder da magia de sangue o
impediria.
E ele tinha feito aquilo sem pensar duas vezes. Tinha
parecido quase simples. Casual, até.
Seria fácil abusar daquilo. Ela poderia se preparar
para derrubar Rafael assim que a criatura fosse destruída
e Alana não precisasse mais dele. Ela só precisava trazer
algumas peças chave para ajudar no Setor Um. Amon e
Dani, e talvez Gustavo. Aquilo garantiria que Rafael
nunca os atacaria. E, depois, eles poderiam destruir o
outro vampiro sem a menor dificuldade.
Alana poderia se planejar e fazer exatamente aquilo.
Ela já tinha entrado em contato com Mel, explicado sobre
o que precisava, e a outra mulher tinha concordado em ir
para o Um achar os traidores. Seria simples demais
chamar mais alguém.
Mas Alana não faria nada daquilo. Talvez fosse até
ingenuidade sua, mas ela não ia abusar da confiança de
Rafael daquele jeito. Se precisasse se livrar dele, depois,
ela daria um jeito. E não precisava nem ser um jeito
honesto, até porque era impossível uma bruxa humana
enfrentar um vampiro de forma honesta. Mas ela daria
um jeito sem precisar descer tão baixo assim.
E o silêncio ali estava pesado. Não, não era bem
aquilo. Estava desconfortável. Incerto.
Alana quase preferia quando qualquer interação com
Rafael era só uma troca de ameaças.
— A maioria das plantas pelo castelo ainda estão
vivas — ela comentou. — Achei que fosse querer saber,
se fez questão de espalhar elas por toda parte.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Elas sempre foram para você, não para mim.
Alana respirou fundo e se concentrou no que
conseguia ver da cidade lá fora.
Para ela. Ele tinha espalhado as plantas pelo castelo
por sua causa, não porque ele queria ou algo assim.
— Por quê? — Ela perguntou.
Rafael deu de ombros, daquele jeito cuidadoso que
era humano demais e parecia errado vindo dele.
— Para você não precisar quebrar mais janelas.
Um arrepio atravessou Alana. Ela só tinha feito
aquilo uma vez, quando as roseiras haviam quebrado o
vidro das janelas de Rafael, no dia que ele tinha usado
poder para prendê-la.
Ele tinha espalhado as plantas porque assim ela não
estaria indefesa no castelo. Era a única explicação. E não
podia ser verdade, porque era Rafael ali. Ele não faria
algo daquele tipo.
Mas Alana também nunca teria imaginado que ele
faria uma promessa como a que tinha feito.
— Eu não te entendo — Rafael falou.
Alana se virou para ele, devagar. O vampiro a estava
encarando de um jeito que era parecido demais com a
forma como ele tinha olhado para ela dois dias antes,
quando estavam no quarto dele.
E ela preferia nem pensar no que tinham feito. Ela
não podia querer mais do que aquilo.
— Não entende o quê?
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Em um dia, você está dizendo que quer que eu aja
como um humano. Dias depois, está sugerindo uma
punição e execução mais cruéis do que eu tinha em
mente e assistindo enquanto isso é feito sem dar
nenhum sinal de que isso te incomoda.
E realmente não incomodava. Alana não tinha o
menor problema com crueldade, quando ela era
necessária. E, no mundo em que viviam, ela tinha plena
consciência de que às vezes era necessário, sim.
Mas crueldade era diferente do que Rafael fazia. Das
camadas de manipulação e como ele tinha certeza de
que estava certo em todos os seus planos. De como ele
não via nada errado em tudo que tinha feito acontecer
para ter Alana ali.
— Eu nunca disse que queria que agisse como um
humano — Alana falou.
Rafael a encarou, sem falar nada.
Ela suspirou e balançou a cabeça de um lado para o
outro. Ele não ia entender. Falar qualquer coisa era perda
de tempo e aquilo era motivo mais que o suficiente para
ela ficar longe e nem sonhar com mais alguma coisa.
Rafael não conseguia ver além de si mesmo. Não eram
só os humanos que eram nada para ele. Os outros
vampiros também eram só peças em um jogo maior.
Alana se virou e foi na direção da porta. Com certeza
tinha alguma coisa para fazer no castelo. E, se não
tivesse, ela ia se enfiar no seu quarto e começar outra
lista de tudo o que sabiam.
— Alana — Rafael chamou.
Ela se virou devagar. Ele ainda estava parado no
mesmo lugar, na frente de uma das janelas.
— Fique — ele pediu.
Ela não deveria. Ele tinha acabado de dar todos os
motivos possíveis para ela não ficar.
Mas Alana não conseguia se esquecer daquela
promessa e de como ele não tinha precisado nem pensar
antes de se prender a ela por magia.
Ela assentiu, devagar, e Rafael sorriu antes de se
virar para uma das janelas de novo.

Rafael não sabia por que tinha pedido para Alana ficar. E
definitivamente não entendia por que ela havia ficado.
Mas eles continuavam ali, na sala no alto da torre, em
um silêncio que não deveria ser tão confortável, mas era.
Alana havia se sentado em uma das janelas, na
mesma posição em que ele a encontrara vezes demais.
Desde as primeiras vezes que ela passara o dia ali, ele
havia oferecido para levar mobília para a sala. Alana
sempre recusara e agora ele começava a entender o
motivo. A forma como ela parecia confortável ali era
diferente de qualquer outro lugar do seu castelo.
Ela queria a sala da torre sem mobília exatamente
porque assim o cômodo não parecia parte do castelo. Ela
podia se quase fingir que não estava no Setor Um por
algum tempo.
Alana estava fazendo o possível para manter
distância dele aquele tempo todo – desde a primeira vez
que estivera ali, quando ele ainda a estava seduzindo. E,
se Rafael fosse acreditar no que ela havia falado antes,
quando ele conseguira a confiança dela e então a
perdera. O tempo todo, ela queria acreditar que não
estava ali.
Aquilo era incômodo. Desde o começo, ele havia
entendido que Alana o chamava de "lorde" como uma
forma de manter sua distância. Ele havia notado a
resistência. Mas nunca imaginara algo daquele tipo,
ainda mais considerando a quantidade de tempo que
Alana passava naquela sala.
Ela não queria estar ali. Mesmo com tudo o que ele
havia feito e oferecido, nunca fora o suficiente.
Rafael não conseguia entender sua feiticeira. E
pensar nela como sua, ali, parecia um erro maior ainda.
Ela realmente não era dele. Nunca havia sido, nem
mesmo antes que ela descobrisse a verdade sobre ele e
seus planos.
E ele estava sentindo o peso do olhar dela nele.
Rafael se virou. Alana tinha levantado a cabeça
depois de tempo demais no celular.
— O fogo — ela começou. — Isso foi eficiente em
vários sentidos, mas também foi pessoal, não foi?
Ela via demais. Alana não deveria saber o suficiente
para notar aquilo.
Mas ela não estava errada e aquela era uma das
raras vezes em que a bruxa lhe perguntava algo que
podia ser entendido como pessoal.
Nada do que ele havia oferecido antes havia sido o
suficiente.
— Foi pessoal — Rafael falou.
Alana não disse mais nada. Nenhuma pergunta sobre
como era pessoal, o que havia acontecido com ele no
passado.
E ela não ia insistir. Se Rafael quisesse saber se
oferecer seu passado seria o suficiente, ele teria que
fazer exatamente aquilo: oferecer.
— Era outro mundo — ele começou, falando devagar.
— Outra época, completamente diferente do mundo que
temos hoje ou até de como o mundo era antes da volta
da magia. Eu não diria que era mais simples, mas...
Diferente. Muito diferente. Os vampiros ainda eram um
segredo, mas era o tipo de segredo que todos sabiam e
fingiam que não. Os humanos preferiam dizer que nossa
existência era impossível, ao mesmo tempo em que
penduravam alho nas suas portas e cercavam suas casas
com grãos.
Alana levantou as sobrancelhas.
— Grãos — ela repetiu.
Rafael sorriu.
— Nunca entendi a lógica por trás disso.
— E existe lógica por trás do alho, então?
Sim.
E aquilo era o que ele queria. Alana focada nele,
interessada – mesmo que fosse no seu passado e no
mundo de antes, não nele. Rafael era paciente.
— Coveiros usavam alho para abafar o cheiro dos
cadáveres — ele contou. — Por algum motivo isso foi
"importado" como uma forma de proteção.
Alana revirou os olhos e soltou uma risada abafada.
Rafael sorriu em resposta. Sim, aquilo era ridículo. Mas
muitas coisas que pareciam perfeitamente normais
naquela época agora pareciam ridículas.
— Foi naquela época que os caçadores de vampiros
começaram — ele continuou. — Eram famílias, grupos
que se reuniam e treinavam desde crianças para terem
uma chance contra nós. E, na época, nós éramos mais
fracos. Um humano bem treinado tinha alguma chance
de nos destruir. Um dos clãs de caçadores ouviu falar
sobre mim e minha propriedade. Isso foi antes da criação
da Corte do Sangue, quando estávamos notando os
primeiros sinais da criatura e ninguém conseguia achar
uma explicação para por que tudo o que plantavam
estava morrendo.
Alana fez um ruído irritado. Rafael levantou uma
sobrancelha e esperou.
Ela deu de ombros.
— Eu sou de uma família de bruxas que vem desde
bem antes da volta da magia. Ouvi histórias o suficiente
sobre como gostavam de nos culpar por qualquer coisa
inexplicável que acontecesse, mesmo que fosse... Sei lá,
uma mudança no clima que ninguém teria como afetar,
naquela época. Só estou surpresa por terem culpado um
vampiro, para variar.
Sim, a família de Alana teria feito questão de se
lembrar das caçadas – especialmente se eram
descendentes da criatura, de alguma forma. Aqueles
séculos, no passado, não haviam sido gentis com as
bruxas ou com qualquer pessoa que não se encaixasse
no que os que estavam no poder esperavam.
— Tentaram culpar as bruxas, primeiro. Algumas
mulheres nas vilas mais próximas do meu castelo foram
mortas, mas nada mudou.
— Óbvio que não — Alana resmungou.
Rafael assentiu.
— Eu salvei uma das mulheres — ele contou. — Uma
das acusadas de bruxaria. Ela era humana, sem nenhum
traço de poder, mas estava no lugar errado e na hora
errada.
E ele entendia facilmente por que ela havia sido
acusada de bruxaria. Aquela mulher... Ela chamava
atenção. Não. Ela exigia atenção de uma forma que não
era apenas por causa da sua aparência. Ela tinha o tipo
de carisma que, séculos depois, Rafael vira pessoas
passarem anos treinando para emular.
Mas aquilo era tudo. Lugar errado, hora errada – e
sendo um ímã de atenção.
Ele mesmo havia sido uma das pessoas que não
conseguia ignorá-la. Rafael podia não se lembrar do
nome da mulher, mas se lembrava de como ficara
fascinado por ela.
Ele não precisava dar detalhes. Mas, se fosse para
pensar daquela forma, ele não precisava estar contando
nada.
— Foi a primeira vez que imaginei como seria ter
alguém ao meu lado — Rafael contou. — Uma rainha,
mesmo que não fosse essa a palavra que usávamos.
Alana se endireitou.
Rafael deu um sorriso seco. Não era difícil imaginar o
que ela estava pensando: ele havia falado que, antes de
Alana, a ideia de ter alguém ao seu lado nunca havia
passado pela sua cabeça. E não era mentira. Ele havia
aprendido sua lição.
— Ela era formidável — ele continuou. — Mas
também era uma traidora. Era alguém vinda de uma das
famílias de caçadores de vampiros.
Alana engoliu em seco.
— Ela...
Rafael assentiu.
— Nunca descobri se quase ser queimada como
bruxa havia sido parte do plano ou não — ele falou. —
Mas, o tempo todo em que estava no meu castelo, ela
estava esperando uma oportunidade de agir. E, quando a
oportunidade chegou... Foi então que usaram o fogo.
Alana o encarou, sem falar nada.
— Ela fez questão de me prender, primeiro — Rafael
contou. — A adega. Havíamos descido para procurar uma
garrafa específica. Ela se afastou. E depois disso... Fogo.
Eu ainda tenho as cicatrizes daquela noite.
Porque nem mesmo a regeneração dos vampiros
havia sido o suficiente para apagar tudo.
Ele só havia sobrevivido porque os caçadores e
moradores da redondeza que passaram pelas ruínas
depois do fogo pensaram que ele era apenas parte dos
restos espalhados por lá. Algo queimado demais para ser
reconhecido, mas que era óbvio que não podia estar
vivo.
Alana levantou as sobrancelhas.
— Isso explica um pouco de porque você sempre
espera o pior da humanidade.
Rafael deu uma risada sem humor.
— Não. Isso veio depois.
E havia pensado em não contar aquela parte da
história, mas...
— Depois de tudo, depois que eu havia me
recuperado, eu fui atrás dela — ele contou. — A que
havia me traído.
— Com direito — Alana resmungou.
Ele parou por um instante. Ela realmente estava
concordando? Mas Rafael não podia tentar entender
aquilo naquele momento.
— Ela já havia sido morta — Rafael falou. — Os
mesmos caçadores que colocaram fogo na minha
propriedade. O clã de onde ela havia vindo. Eles a
mataram, porque ela estava manchada pelo seu
envolvimento com um vampiro, mesmo que tivesse feito
tudo aquilo para dar uma oportunidade para eles.
Alana empalideceu.
— Esse é o motivo para eu saber que humanos não
são confiáveis — ele completou.
A bruxa não falou nada.
E o assunto havia tomado uma direção
completamente diferente de quando ele havia começado
a contar sobre aquilo.
— Então, sim, o fogo foi algo pessoal — ele falou. —
Principalmente porque tentaram me prender, também,
da mesma forma como ela fez no passado.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar, e Rafael quase conseguia ver o esforço que ela
estava fazendo para se controlar.
Aquilo era interessante – se ela precisava se
controlar, era porque havia algo ali que Alana não queria
que ele visse.
— É conveniente demais, não acha, não? — Ela
perguntou. — A pessoa que te traiu no passado e usou
fogo foi morta, e agora tem outra pessoa fazendo a
mesma coisa...
Rafael sorriu. Ele sabia o suficiente sobre como Alana
pensava para ter certeza de que ela não acreditava
naquilo. Não porque fosse impossível – se ele não tivesse
certeza sobre a morte da mulher, ele mesmo teria
pensado aquilo. Mas Alana não teria mencionado a
possibilidade da criatura ser sua antepassada se não
tivesse o mais perto de certeza possível.
— Eu suspeitei que talvez fosse a forma que ela
havia encontrado de tentar escapar de mim, caso eu
sobrevivesse — ele contou. — E fiz questão de verificar
tudo ligado à sua morte. Não é ela.
Alana respirou fundo e deixou a cabeça cair para
trás, contra a lateral da janela.
— Então como a criatura ia saber de todos os
detalhes sobre isso?
Rafael balançou a cabeça.
— Essa é a parte mais simples. Ela já existia. Ela foi o
motivo para as suspeitas começarem. Mesmo se não
estivesse por perto o suficiente para acompanhar o que
estava acontecendo, e não acho que estivesse, ela pode
ter ouvido histórias depois. Até mesmo os humanos
tinham histórias sobre o que aconteceu e as repassaram
por muito tempo, mesmo que os detalhes tenham
desaparecido depressa demais.
Alana suspirou e assentiu antes de se virar para
olhar para fora, de novo.
Cada conversa com a bruxa deixava Rafael mais
perdido. Cada vez que ele pensava que estava
começando a entender Alana, ela dizia ou fazia algo que
destruía todas as certezas dele.
A sugestão sobre o que fazer com o vampiro traidor
havia sido uma daquelas coisas. E, agora, o comentário
sobre ele ter direito de caçar a mulher que o traíra.
Havia sido fácil imaginar que Alana sugerira aquela
execução para o traidor porque ele era um vampiro. Ela
não tinha a melhor opinião sobre os vampiros, seria fácil
descartar um deles.
Mas então ela havia feito aquele comentário sobre
um vampiro caçando uma mulher humana. Uma mulher
que não era nem mesmo uma bruxa.
Não fazia sentido. E era pior ainda por causa do
comentário dela antes, ali na torre, sobre não ter falado
que queria que ele agisse como humano. Se não era
aquilo que ela tentara dizer naquela noite no Setor Dez,
então o que era?
Rafael havia visto Amon e Daniele juntos. Ele
recebera relatórios sobre o baile no Setor Seis onde os
dois estiveram, antes que ele fechasse seu contrato com
Alana. Então Rafael sabia que Daniele havia ido atrás de
Amon esperando que as histórias sobre o monstro
fossem reais.
Ele também havia recebido as gravações de
segurança do Setor Oito. Amon e Daniele não haviam se
preocupado em se livrar delas e muito menos em
esconder o que estavam fazendo. Rafael vira exatamente
o que eles haviam feito, a carnificina dentro da base de
Cassius. Amon ainda era o monstro que as histórias
sempre haviam falado e Daniele estava ao lado dele o
tempo todo, sem parecer nem um pouco surpresa com
nada do que ele fazia. E ajudando, também.
Sua bruxa não parecia ter nenhum problema com
Amon e era estranho notar aquilo depois de ter tanta
certeza de que entendera por que Alana sempre havia
sido um alvo tão difícil.
Não. Ela havia deixado de ser um alvo fazia tempo
demais, mas Rafael não tinha outra palavra para usar.
E ela não tinha nenhum problema com crueldade ou
com violência por si só. Mas tinha algum problema para
lidar com Rafael.
Alana pegou seu celular de novo e encarou o
aparelho por alguns segundos antes de olhar para Rafael.
— A pessoa que eu disse que consegue achar os
traidores pode vir pra cá essa noite — ela avisou.
Ótimo.
— De que vocês precisam? — Rafael perguntou.
— Salas próximas. Meu contato consegue ver nas
mentes de humanos e vampiros sem precisar estar no
mesmo lugar ou vendo eles e nós preferimos manter o
máximo de distância possível. Então uma sala pequena
para mim e para o meu contato, ao lado de uma sala
maior ou... Qualquer lugar que você consiga fazer todo
mundo passar. Pode até ser um corredor, se for o caso. A
questão é só fazer todo mundo estar ali por algum
tempo. E não todo mundo de uma vez.
Rafael tinha suas suspeitas – quase certeza, na
verdade – que que o tal "contato" de Alana capaz de ver
nas mentes dos outros era a vampira desaparecida do
Setor Seis. Melissa. A que era a mão esquerda de Klaus.
Mas ele não conseguia acreditar que Klaus tivera alguém
com aquele tipo de habilidade sob seu controle. Se
aquela pessoa não precisava nem estar no mesmo
cômodo que quem ia ler, então ela era mais forte que a
maioria das pessoas que Rafael já encontrara com aquela
habilidade. Era mais forte que os vampiros de Cordelia...
Cordelia também havia desaparecido e os boatos
diziam que a vampira também tinha um poder
envolvendo mentes. Nada nunca havia sido provado,
mas os comentários existiam. A questão era que ela não
encaixava. Ela havia sido parte da aliança que atacara o
Setor Dez, antes, quando Rafael ainda pensava que
estava no controle, e também havia sido parte do ataque
ao Setor Três, meses antes. Ela nunca seria um contato
de Alana.
— Você vai continuar falando "seu contato" mesmo
que essa pessoa vá estar aqui em algumas horas? —
Rafael perguntou.
Alana o encarou e respirou fundo.
— Eu prefiro que você não saiba quem é — ela falou.
Aquilo não era exatamente uma surpresa. E não
deveria ser tão incômodo.
— Eu fiz uma promessa — Rafael lembrou.
Alana assentiu, devagar.
— Você precisa saber quem é para cumprir a
promessa? — Ela perguntou.
Ele fechou os punhos com força.
Ele podia mentir. Seria simples demais.
Mas Rafael queria a confiança de Alana. Não uma
informação específica, porque aquilo não fazia diferença.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não.
Ela assentiu de novo.
— Então eu prefiro que você não saiba quem é —
Alana repetiu. — Dani vai trazer a pessoa direto para o
meu quarto. E a pessoa vai estar usando algo para se
esconder o tempo todo enquanto estiver aqui.
Rafael assentiu, de forma solene.
— Como preferir.
Por mais que dizer aquilo fosse mais que
desconfortável.
Ele tinha plena consciência do que havia feito com
aquela promessa. Rafael não agia sem pensar. Ele
entendia o risco. Mas ele também conhecia Alana e
entendia ao menos um pouco sobre os limites dela. A
bruxa não usaria algo dado de boa vontade contra ele.
Alana encarou seu celular de novo e digitou alguma
coisa no aparelho.
Rafael não conseguia entender sua feiticeira. E,
quanto mais tempo passava, mais ele tinha certeza de
que não conseguiria entender sozinho.
— O que eu fiz para você não confiar em mim nem
mesmo depois daquela promessa?
Alana riu e se levantou.
— Quer a lista?
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não adianta mencionar meus planos para o Setor
Dez.
— Por que não? — Ela perguntou. — Porque você ter
feito eles antes de me conhecer muda o fato de que
estava planejando um massacre? De que tinha decidido
que todo mundo ali merecia morrer só porque eram uma
ameaça hipotética?
Porque era o necessário para garantir que ele
manteria o controle da região. Uma bruxa com o tipo de
poder que Raquel tinha – e que havia demonstrado para
ele, décadas antes, quando ele dera a autorização para a
criação do setor – era um risco grande demais para os
vampiros. Ela era humana, sim. Mas ainda era um risco,
como o Setor Oito havia descoberto da pior forma
possível. E, quando uma bruxa tinha um poder como o
dela, capaz de fazer frente aos vampiros, ela reunia mais
bruxas com o mesmo tipo de poder ao seu redor.
Alana o encarou por alguns segundos antes de
balançar a cabeça de um lado para o outro.
— Se eu preciso explicar, então você nunca vai
entender — ela murmurou.
Rafael não a chamou quando ela saiu da sala.
VINTE E QUATRO

Alana respirou fundo e encarou seu celular. Ela não sabia por
que ainda tentava falar com Rafael. Ele era uma porta.
Ou melhor, um vampiro. Aquele era o problema. Não era
que ela tivesse se esquecido, era só... Ela queria outro
tipo de reação dele. Não era racional, de forma alguma,
mas ela não conseguia evitar. Alana queria outro tipo de
reação vindo de Rafael, porque ela queria uma
justificativa para se importar.
Não. "Justificativa" era a palavra errada. Ela queria
algo que lhe dissesse que ele era diferente. Que ele
entendia o que havia feito e que não usaria aquilo de
novo. Se ela tivesse aquilo, então não ia ficar de
consciência pesada sobre como não conseguia deixar de
observar Rafael. Ou de como era impossível não pensar
no que tinha acontecido antes do fogo, como ele havia
lhe deixado assumir o controle e dado exatamente o que
Alana queria – e aqueles orgasmos eram inesquecíveis,
sim.
Não tinha nada mais antigo do que um vampiro
tentando seduzir sua feiticeira. Sua avó tinha lhe avisado
sobre aquilo desde criança. Alana sabia o que esperar. E
mesmo assim não conseguia evitar. Nunca tinha
conseguido, desde o começo.
Mas ela nunca se envolveria com alguém que não
conseguia pensar além de si mesmo.
A promessa, dois dias antes, e a sensação do poder
quando a magia de sangue havia prendido Rafael, quase
tinha feito Alana acreditar que ele tinha entendido.
Ela estava errada. Ele achava que ela queria que ele
agisse como humano. Ele não conseguia entender que
tinha feito praticamente a mesma coisa que aquela
mulher, no passado, havia feito com ele.
Seu celular vibrou. Dani, avisando que ia chegar com
Mel em alguns minutos.
Ótimo. Trabalho. Quanto mais depressa ela
conseguisse resolver tudo aquilo, mais depressa ia
conseguir se afastar de Rafael.
Ela se levantou e olhou ao redor por puro hábito. Seu
quarto não tinha nada muito pessoal, a não ser algumas
plantas nos vasos perto da porta. Se é que ela podia
chamar aquilo de "pessoal" quando haviam sido
colocados ali por algum dos humanos que trabalhava no
castelo, por ordem de Rafael. Porque ele não queria que
ela estivesse indefesa no castelo.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.
Dani e Mel apareceram ao lado da sua cama. Mel
ainda estava com o cabelo pintado de castanho escuro e
preso para trás em um penteado que ela nunca teria
usado antes – parte do seu "disfarce" para não chamar a
atenção dos vampiros. E ela estava usando uma capa
volumosa que ia até o chão e fechava na frente de um
jeito que era quase impossível ver alguma coisa do seu
corpo.
— Isso tem um capuz, não tem? — Alana perguntou.
Mel sorriu e puxou um capuz. Ele cobria seu rosto
todo, sem deixar nada visível. E não parecia que ela
fosse conseguir ver alguma coisa, mas aquilo não fazia
diferença.
— Você tem certeza disso? — Dani perguntou.
Alana deu de ombros.
— Tanta quanto posso ter. A gente tem que pelo
menos limpar o castelo. Se acontecer mais alguma coisa
que nem o fogo...
Sua prima assentiu. Eles não podiam lidar com mais
alguma coisa daquele tamanho por motivos demais.
— Me avisem quando acabar, então — Dani falou. —
Ou se acontecer alguma coisa.
— Pode deixar.
Dani desapareceu.
Alana continuou encarando o lugar onde sua prima
tinha estado por mais alguns segundos.
— Eu nunca vou entender isso — ela murmurou.
Nem esse poder de Dani, nem o de Amon ou várias
coisas que ela já tinha ouvido sobre vampiros. Alana
conseguia ver um certo sentido no que as bruxas faziam.
Era algo mais que humano, sim, mas era fácil de
entender, de certa forma. A coisa toda de desaparecer
em um lugar e aparecer em outro? Não. Aquilo não fazia
sentido nenhum.
— E você nunca me contou como fez Lorde Rafael te
dar uma promessa — Mel falou.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro,
enquanto digitava uma mensagem no celular.
— Eu não fiz nada. Só falei que a palavra dele não
era o suficiente e... Quando vi ele já estava se cortando.
Mel não respondeu.
Alana levantou a cabeça. A outra mulher tinha tirado
o capuz e estava olhando para ela com uma expressão
incrédula.
Ela deu de ombros. Era a verdade. Rafael tinha só
oferecido aquilo.
— Você... — Mel começou. — Ele só prometeu? Sem
você exigir algo assim?
Alana assentiu.
A outra mulher respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Alana... Não me leve a mal, mas tome cuidado.
Tome muito cuidado, porque se ele fez isso é porque quer
alguma coisa.
Ah, ele queria. Aquilo não era nenhuma surpresa.
— Ele quer uma parceira — Alana contou.
Mel a encarou, sem falar nada. Alana deu de ombros
de novo.
A outra mulher fechou os olhos e respirou fundo.
— Eu não posso rir — ela murmurou. — Se eu rir, vai
ser alto e não quero correr o risco de algum vampiro
perto desse quarto ouvir.
Era uma boa preocupação. E Alana não ia questionar
a vontade de rir. Tinha sido a primeira reação dela,
também.
Seu celular vibrou. Rafael tinha terminado os
preparativos e estava mandando alguém para levar
Alana e seu contato para a sala.
— Tudo pronto — ela avisou.
Mel assentiu, começou a puxar o capuz de novo e
parou.
— Você sabe que isso é sério, não sabe? — Ela
perguntou.
Alana assentiu.
A coisa toda sobre Rafael querer uma parceira? Uma
rainha – como ele tinha falado que queria, no passado?
Ela sabia. Se não soubesse, aquela promessa feita com
sangue teria acabado com qualquer dúvida.

Alana se sentou e puxou o prato de amendoins para mais perto.


Amendoins. Aquilo era tão casual que chegava a ser
estranho, considerando o que estava acontecendo.
Victor tinha levado ela e Mel para uma sala na parte
"pública" do castelo. Pelo que ela tinha percebido,
parecia que estavam logo acima do salão principal. E o
tempo todo ele não tinha nem tentado ver quem era a
pessoa escondida pela capa. Ótimo, porque Alana não
queria ter que lidar com mais complicações. Klaus ainda
estava no Setor Seis e elas tinham certeza que, se ele
tivesse meio sinal de que Mel estava por ali, ia fazer de
tudo para ir atrás dela. Era mais fácil só evitar.
E aquilo queria dizer que Alana estava confiando em
Rafael, até certo ponto.
Ele tinha providenciado exatamente o que ela
queria: uma sala pequena, com uma mesa e algumas
cadeiras e mais nada. Alana não fazia ideia de qual era a
função daquele lugar, normalmente. A mobília e a
decoração eram simples demais para ser algo usado
pelos vampiros. A menos que fosse algum tipo de sala
para guardas – e aquilo era o mais provável. Um lugar
para os vampiros que trabalhavam para Rafael
"descansarem". Ou seja, se alimentarem com
privacidade.
Já fazia mais de uma hora que estavam ali. Depois
de algum tempo, Alana tinha parado de olhar seu celular.
E estava dividindo os pratos cheios de amendoins com
Mel, enquanto a outra mulher se concentrava e às vezes
parava para anotar algum nome. Elas tinham decidido
que era melhor só anotar quem eram os traidores e
qualquer informação importante que ela encontrasse,
mas que não iam separar eles dos outros. Se fizessem
aquilo, ia ficar óbvio o que estava acontecendo e o
trabalho de Mel ia ficar mais difícil.
Mel se endireitou e segurou o braço de Alana.
— Avise Daniele — ela murmurou. — A cidade
precisa ser evacuada.
Alana pegou o celular na mesma hora.
Mel a soltou e se inclinou para a frente, se
concentrando.
— Algumas horas... — ela continuou, em voz baixa.
— Assim que amanhecer. A cidade precisa estar vazia
quando amanhecer. Não tenho certeza sobre o que vão
fazer.
Alana mandou a mensagem.
O amanhecer era uma boa hora para um ataque.
Dani e Amon não poderiam fazer nada e quase todo
mundo ainda estaria na cidade. Não. Amon poderia. Ele
não gostava de estar no sol, mas podia estar na luz do
dia, se precisasse. Ainda assim... No amanhecer teria
gente demais nas ruas, cada um indo para seu trabalho,
crianças indo para a escola e tudo mais.
Mel respirou fundo, rasgou uma folha e anotou
alguns nomes depressa demais.
— O mesmo aviso aqui.
Ela empurrou a folha na direção de Alana. Ela não
reconhecia nenhum dos nomes ali – e alguns não eram
nem nomes de pessoas – mas ela não precisava
reconhecer para entender o que estava acontecendo.
E ela não ia correr o risco de mandar uma
mensagem para Rafael e esperar ele ver uma
notificação.
Alana pegou uma caneta e acrescentou o mesmo
aviso sobre evacuação na folha.
— Faca? — Ela perguntou.
Mel puxou uma faca de algum lugar e a colocou em
cima da mesa. Ótimo. Alana a pegou e fez um corte na
mão, só o suficiente para algumas gotas de sangue
pingarem no papel. Ela se concentrou. O sangue ficou
visível por alguns segundos, uma mancha escura na
folha branca, antes de desaparecer. A folha desapareceu
um instante depois.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar.
O papel apareceu em cima da mesa de novo, com
uma linha a mais depois do seu aviso.

Entendido.

Ótimo. Era o suficiente.

Rafael podia descobrir quem estava ali. Seria simples entrar na


sala, usar sua habilidade para controlar a pessoa
encapuzada, e então ver quem era. Mas, se ele fizesse
aquilo, mesmo que não estivesse quebrando nenhuma
das suas promessas, Alana nunca o perdoaria.
E seria uma péssima forma de pagar a pessoa que
lhe dera o aviso que provavelmente seria o suficiente
para consolidar seu poder.
Ele tinha copiado a lista enviada por Alana. Entre
nomes de vampiros, títulos de Cortes e marcadores de
regiões, Rafael havia repassado o aviso de evacuação
para onze Cortes. O que queria dizer onze ataques
simultâneos – porque a criatura não estava mais
trabalhando sozinha.
Aquilo era um problema maior do que ele havia
esperado. Algo daquele tipo era motivo mais que o
suficiente para começar uma guerra entre os vampiros.
E, se aquilo acontecesse, Rafael não tinha certeza de que
o mundo sobreviveria.
Provavelmente, aquela era a intenção da criatura. E
os vampiros que a seguiam estavam bêbados demais de
poder e ambição para perceber que eles também não
sobreviveriam.
Seu tablet apitou. Rafael encarou a notificação na
tela. Jord. Ele havia sido um dos príncipes que ele
avisara, porque a lista mencionava uma das formas como
o seu setor era conhecido entre os vampiros, mesmo que
não mencionasse seu nome.
Jord ainda seria um problema, por causa de Alana.
Mas seria um problema maior se Rafael não aceitasse a
chamada.
Ele apoiou o tablet no suporte em cima da sua mesa
e aceitou a chamada. O rosto do outro vampiro apareceu
na tela do aparelho, com uma parede de pedra por trás.
— Eu posso ter jurado lealdade, mas isso não te dá o
direito de dar ordens sobre o que faço no meu setor.
No passado, na época da Corte do Sangue, daria. E,
mesmo que Rafael não quisesse aquele nível de controle
de novo, ele precisava responder de acordo com o
esperado, porque aquilo era apenas Jord testando até
onde podia ir.
Rafael se inclinou para trás na cadeira e juntou as
mãos.
— Longe de mim tentar dar ordens em outras
regiões — ele falou. — Estou apenas repassando um
aviso.
E, se Jord deixasse o orgulho falar mais alto, seria
um exemplo do que acontecia com quem o ignorava.
A criatura provavelmente não estava esperando por
aquilo – que, de alguma forma, seu ataque seria útil para
Rafael consolidar seu poder.
— Um aviso vazio. Sem nenhum tipo de informação.
Você espera um tipo de confiança que...
— Que não me importa se você tem ou não — Rafael
interrompeu. — Não tenho tempo para lidar com seu ego.
Ele encerrou a ligação e colocou o tablet de volta
sobre a mesa. Era a mais pura verdade: ele não se
importava se Jord ouviria o aviso ou não. Qualquer
decisão seria útil – e o outro vampiro sabia daquilo.
Mas era interessante que apenas ele houvesse
entrado em contato. O aviso que Rafael repassara era
vago demais – um alerta para evacuarem a capital de
alguns setores e mais nada. Ele não fazia ideia de que
tipo de ataque esperar ou o que podia acontecer. Alana
lhe enviara uma lista e ele apenas repassara, sem
questionar. Se ela tivesse mais informações, teria dado.
E a existência daquela lista já era informação o
suficiente: havia traidores no castelo, sim. E traidores
próximos o suficiente da criatura para saberem de parte
dos seus planos.
Mais uma notificação apareceu no seu tablet.

Thales: Algo está acontecendo no Setor Dez.


Captamos uma movimentação anormal para a hora.

Porque estava de noite e, de forma geral, o Setor


Dez não tinha movimento à noite. Alguns bares e outras
casas noturnas, pelo que Rafael havia visto, e nada além
daquilo. Não era como no Um, onde a cidade à noite era
tão movimentada quanto de dia.

Rafael: Alguma direção para a movimentação?


Thales: Não. Não temos sensores perto o suficiente.
Posso mandar alguém verificar.
Rafael: Não é necessário.

Thales não respondeu, mas Rafael sabia que não


mandaria ninguém. Aquilo era o tipo de coisa que ele não
faria sem autorização, justamente porque enviar alguém
para outro setor daquele jeito seria considerado um
movimento agressivo. Entre os vampiros, poderia até
mesmo ser visto como uma declaração de guerra.
Não. Rafael tinha uma forma muito mais simples de
saber o que estava acontecendo no Setor Dez. Ela estava
sentada em uma sala não muito longe de onde ele
estava.
E, considerando o aviso que ele repassara para onze
setores, não era difícil deduzir por que o Dez estava se
movimentando.
Mesmo assim, ele enviou uma mensagem para Alana
– digital, porque ele respeitaria sua vontade de não usar
magia e entendia que a bruxa só enviara a lista daquele
jeito para ter certeza de que ele veria na mesma hora.
A resposta não demorou.
Alana: Foi o mesmo aviso.

De que precisavam evacuar a cidade antes do


amanhecer.
Rafael não sabia detalhes sobre os recursos do Setor
Dez – porque sempre havia evitado procurar saber. Ele
não precisava testar as defesas deles. Precisava que eles
estivessem relaxados o suficiente para não se preocupar
com ele. Ou, pelo menos, aquele era seu plano anos.
Agora...

Rafael: O Setor Dez precisa de ajuda?

A resposta demorou. Rafael queria pensar que havia


surpreendido sua bruxa

Alana: Não.
Alana: Você precisa de ajuda para lidar com os
traidores quando acabarmos aqui?

Rafael levantou as sobrancelhas. Ele tinha feito


questão de ficar longe enquanto estavam fazendo aquilo,
por segurança. Se o contato de Alana conseguia ver nas
mentes de vampiros, também, ele não tinha nenhuma
garantia de que sua mente estaria a salvo. E ele preferia
que ninguém soubesse o que estava nos seus
pensamentos.
Aquilo queria dizer que Victor estava responsável por
lidar com os grupos sendo levados para a sala ao lado de
onde Alana estava. Rafael estava por perto, pronto para
agir se algum dos traidores tentasse alguma coisa, mas
não interferiria. E, pelo tempo que havia se passado, era
possível que estivessem terminando.

Rafael: Você está esperando problemas?


Alana: Não. Mas posso pedir meu contato para
esperar, se achar que vai ser melhor.

Ele não deveria ficar tão irritado toda vez que ouvia
Alana falar sobre "seu contato", mas Rafael não
conseguia evitar.

Rafael: Os traidores não vão ser um problema.

Ele não tinha a menor intenção de perder tempo com


eles, se o contato de Alana já estava tirando todas as
informações que conseguia. Ele não queria ouvir
justificativas ou qualquer coisa do tipo. Para os traidores,
ele daria a morte e mais nada.
VINTE E CINCO

Rafael subiu para a ala particular do castelo e para os seus


aposentos sem hesitar. A lista de traidores que Alana
havia lhe dado não era exatamente pequena – oito
nomes, no total – e incluía informações o suficiente para
ele não ter a menor dúvida de que nenhuma das pessoas
ali teria alguma utilidade além do que o contado de
Alana havia tirado das suas mentes. Eles não serviriam
nem mesmo como exemplos, porque empalar tantos de
uma vez não seria bom.
Fazia muito tempo que ele havia aprendido a andar
na linha fina entre o medo e o respeito. Se Rafael
empalasse os oito traidores, poucos dias depois do que
fizera com um dos vampiros responsáveis pelo fogo, a
balança penderia para o medo.
Ele parou na porta do seu escritório e olhou para o
lado. Alana estava na sala ao lado – a sala dela. Ele não
conseguia ouvir nada vindo de lá, mas conseguia ver
como o coração dela estava acelerado, usando aquele
outro sentido dos vampiros. Sua feiticeira estava em
alerta. Preocupada, provavelmente, por causa do que
estava acontecendo no Setor Dez.
E Rafael ainda tinha assuntos inacabados com ela.
As horas de espera enquanto ela estava com a outra
pessoa, analisando toda sua Corte e os humanos que
trabalhavam no castelo, haviam servido para Rafael
pensar demais no que Alana falara – sobre não ter dito
que queria que ele agisse como humano e sobre como
ela podia ser tão cruel quanto ele, quando precisava.
Ele bateu na porta da sala e esperou.
— Entre.
Ele entrou e fechou a porta atrás de si.
Alana estava parada na frente de uma das janelas,
como quase sempre quando ele a encontrava ali. Quando
ela passara seis meses ali, antes, ele havia se
acostumado a passar parte das madrugadas ali, com ela,
esperando o sol nascer.
E nunca havia percebido que aquela janela ficava na
direção do Setor Dez. Alana não ficava ali porque era a
janela mais próxima da direção que o sol nasceria. Ela
ficava ali porque estava pensando no setor que
considerava como sua casa.
Rafael parou ao seu lado sem falar nada.
— Eu não ouvi gritos — ela comentou.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Não houve gritos.
Alana se virou para ele e levantou uma sobrancelha.
— Uma execução pública de oito traidores é força
excessiva — ele falou. — Da última vez que fiz algo do
tipo, começaram histórias sobre eu estar louco.
E talvez Rafael tivesse gostado daquilo e do medo
que havia seguido os boatos. Mas, naquela época, havia
vampiros demais tentando agir por suas costas, por
pensarem que ele não estava são. De certa forma, havia
sido divertido lidar com as tentativas deles de contê-los,
antes de perceberem seu erro. Agora, ele não podia
correr o risco de algo parecido acontecer.
— E estava? — Alana perguntou.
Ele sorriu.
— Não.
Rafael sabia exatamente o que estava fazendo, na
época. As consequências haviam sido uma surpresa,
verdade, mas ele estava completamente são.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro e
desviou o olhar.
— Não há nada te impedindo de ir ajudar — ele
murmurou.
E, se Alana fosse, ele a acompanharia.
Ela balançou a cabeça.
— Eles não precisam da minha ajuda. E pelo que... —
Ela se interrompeu e fez um ruído irritado antes de
continuar. — Pelo que descobrimos, a criatura está
contando com isso. Ela quer me tirar daqui.
Rafael sabia. Ele havia feito questão de conferir cada
detalhe das informações que Alana havia lhe repassado.
E ele tinha certeza de que ela não teria escondido nada.
O que ele recebera era todas as informações que o
contado de Alana havia conseguido. Aquilo incluía o fato
de que dois dos oito traidores tinham certeza de que o
Setor Dez não existiria em alguns dias. E outros três
deles estavam esperando Alana sair do Um para agir.
O que queria dizer que ela não podia fazer nada
além de esperar. A presença de Alana ali atrapalhava os
planos da criatura, então ela não sairia.
— Existe alguma coisa que eu possa fazer que te
deixaria mais tranquila sobre as chances deles? — Rafael
perguntou.
Alana soltou o ar com força.
— A menos que você tenha um jeito de voltar no
tempo e destruir essa criatura antes disso tudo, não.
Ele não respondeu.
Se pudesse, Rafael teria destruído a criatura, no
passado. Teria sido muito mais simples que mantê-la
presa por tanto tempo. E mais seguro, também. Mas
nada do que haviam tentado funcionara. A criatura não
era imortal, não no sentido real da palavra. Ela era como
uma vampira, sim, e podia ser destruída. Eles só não
haviam conseguido destruí-la – fisicamente, Rafael não
conseguira se aproximar.
— A pior parte é que eu sei que não tem motivos pra
eu me preocupar — Alana murmurou. — Eu conheço as
medidas de segurança. Eu sei que Amon e Gustavo estão
lá, sem nem mencionar Raquel e algumas das outras
bruxas. A gente tem mais defesas contra isso do que a
maioria dos setores.
Aquilo era verdade. E não havia nada que Rafael
pudesse dizer, então ele continuou em silêncio.
— E a essa altura eu já deveria estar mais do que
acostumada a só esperar e não fazer nada — ela
continuou. — Mas eu nunca fui boa nessa parte e...
E ter sido parte do que havia acontecido no Setor
Três havia destruído todos os anos em que Alana havia
passado fingindo ser indefesa. Aquilo Rafael entendia
muito bem.
— E você parado aqui oferecendo ajuda como se
tivesse alguma ilusão de que vai conseguir me comprar
com isso não está ajudando — ela completou.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— Não tenho a menor intenção de te comprar. Foi
uma oferta honesta.
Alana riu de um jeito seco que não era agradável de
ouvir, vindo dela, e não respondeu.
Não ia responder, porque ela não acreditava nele e
pensava que não tinha mais o que falar.
Então Rafael faria questão de dizer o que precisava.
— Eu tive tempo para pensar, analisar e comparar —
ele começou. — Mais de um milênio de experiências para
usar como base. E, desde o começo, você prendeu minha
atenção de uma forma que mais ninguém fez.
Alana se virou para ele e cruzou os braços. Estava
mais do que claro na sua expressão que ela não confiava
em uma palavra do que Rafael estava dizendo. Aquilo era
mais incômodo do que ele gostaria de admitir, mas
exatamente o fato de ser incômodo era um motivo para
continuar.
A verdade era que ele tinha duas opções: aceitar que
Alana nunca confiaria nele por algum motivo que ele não
conseguia entender por completo e se conformar que
nunca a teria... Ou fazer o que era necessário para ter
Alana, mesmo que aquilo o deixasse mais vulnerável que
em qualquer outro momento da sua existência.
Tudo o que acontecera no ano anterior já havia mais
que provado que Rafael não conseguia abrir mão de
Alana, o que o deixava com apenas uma opção.
Ele segurou o queixo de Alana. A pulsação dela
acelerou, mesmo que ela ainda parecesse impassível.
— Eu quero você como minha rainha, Alana Novaes
— Rafael falou. — Te comprar não me interessa. O que
me interessa é o que você está disposta a me dar.
Ela ainda estava impassível, mas sua pulsação tinha
acelerado mais. Bom. Rafael sabia que Alana não era tão
imune a ele quanto fazia parecer. Ela nunca havia sido. A
atração sempre estivera ali.
E ele não diria que estava usando aquilo a seu favor,
porque cada palavra era verdade. Mas, se ele quisesse
passar pelas paredes de Alana, então primeiro precisava
que ela lhe desse uma brecha. Uma chance de falar e ser
ouvido, pelo menos.
Rafael sabia exatamente como fazer Alana lhe dar
aquela brecha.
— E se não tem nada que eu possa fazer para te
deixar mais tranquila sobre o que vai acontecer, a única
coisa que posso oferecer é distração — ele continuou. —
Uma forma de ocupar sua mente enquanto precisa
esperar.
O coração de Alana estava disparado. Não importava
se ela cedesse ou negasse, Rafael sabia que ela estava
pensando nas palavras dele. Ela estava imaginando. E,
mesmo que ele quisesse mais, saber que estaria na
mente da sua feiticeira era extremamente satisfatório.
Ela se afastou de uma vez. Rafael não tentou segurá-
la no lugar.
— O que você quer? — Alana perguntou.
Ele sorriu.
— Então não posso mais oferecer algo que sei que
vai ser apreciado?
— Poder, pode. Mas suas ofertas sempre vêm com
coisas demais por trás.
Rafael inclinou a cabeça.
— Eu sou um vampiro que existe desde muito antes
da volta da magia. Isso quer dizer que tive tempo para
reconhecer que nada é tão simples. Tudo tem camadas,
conscientes ou não. A diferença entre nós é que eu
reconheço o que está por trás das minhas ações.
Alana estreitou os olhos.
Ela gostava de provocar e desafiar. Rafael havia
notado aquilo depressa demais. Mas ele não fazia ideia
da reação de Alana quando ela era desafiada... E ele
queria saber.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro e
se virou para fora, de novo. Ela não estava exatamente
lhe dando as costas, mas era perto demais daquilo.
Ela estava escondendo sua reação. Ela não queria
que Rafael visse sua expressão.
O sorriso dele ficou ainda mais largo, mas ele
continuou onde estava.
— As únicas camadas em eu não confiar em você o
suficiente para aceitar qualquer coisa são as camadas
que você criou — Alana falou.
Verdade, sim, mas não toda a verdade.
Rafael parou atrás de Alana, tão perto que conseguia
sentir o calor do corpo dela.
Sua feiticeira ficou tensa daquele jeito que ele
reconhecia bem demais. Não era a tensão de estar
preocupada por causa da proximidade dele. Era a tensão
de estar se negando algo que queria.
— Só isso? — Ele perguntou.
— E preciso de mais?
Rafael desceu uma mão pelo braço dela e parou,
segurando seu pulso e sentindo como seu sangue estava
correndo depressa demais.
— Você não confia em mim, mas não é só por isso
que está recusando — ele murmurou, perto do ouvido
dela. — Você está recusando por medo. Porque você quer
o que estou oferecendo, mas tem medo de não conseguir
recuar de novo depois de aceitar. E você pensa que a
recusa, de certa forma, é um meio para me controlar.
Alana puxou o braço com força e se afastou para o
lado antes de se virar para Rafael.
— Você é um idiota — ela falou.
Ele tinha passado perto demais da verdade, então –
ou talvez até mesmo houvesse acertado.
— O que você ainda não entendeu é que não precisa
de um meio para me controlar — Rafael continuou.
Alana o encarou, sem dizer nada.
Que assim fosse, então. Ele não queria aquele vai e
vem, as discussões que não chegavam a lugar nenhum.
E se a única forma de ter o que queria era colocar o
poder nas mãos de Alana... Então era aquilo que Rafael
faria.
— Uma vez, eu disse que poderia lhe dar o mundo —
ele falou. — E posso dizer isso de novo, agora. Eu posso
te oferecer o mundo, bruxinha. E, se o meu mundo não
for o suficiente para você, então vou fazer ele ser o que
você desejar.
Alana não respondeu, mas ele não esperava uma
resposta.
Rafael se aproximou de Alana de novo, devagar, e
colocou uma mão no rosto dela. Ele não conseguia evitar
– porque sempre queria ver a reação dela quando ele a
tocava. A forma como suas emoções passavam pelos
seus olhos, depressa demais mas não tão depressa que
ele não conseguisse ver.
— Não precisa repetir que não confia em mim — ele
falou. — Mas me deixe tentar provar que estou dizendo a
verdade.

Alana não queria admitir que Rafael tinha acertado exatamente os


motivos para ela não querer nem pensar em aceitar nada
vindo dele. E queria menos ainda pensar no que ele tinha
falado – porque pensar queria dizer considerar que talvez
ele estivesse sendo sincero.
Era bem possível que tudo fosse mentira. Mais
manipulação. Mas o que ele ganhava com aquilo? Porque
Rafael já tinha acesso ao poder de Alana. Ele não
precisava de nenhum tipo de sedução para ter aquilo. Ele
sabia que, se fosse necessário, Alana agiria, e que o
único pagamento que ela esperava era a segurança do
Setor Dez.
Então, se ele estava falando aquilo, ou estava
dizendo a verdade, ou...
Ela não conseguia pensar em nenhuma opção. Não
depois de como Rafael tinha falado.
Talvez Alana estivesse sendo ingênua de novo. A
situação toda com Rafael tinha ficado complicada demais
em algum momento, porque uma parte dela queria
confiar, queria algum tipo de indicação de que... Ela não
sabia nem uma indicação de quê. Não de que ele fosse
humano. Mas talvez só... Que fosse um pouco mais que
só ambição e poder a qualquer custo. Que ele visse as
pessoas ao seu redor. Que ele visse Alana e não só uma
ferramenta.
E ela não ia ter uma indicação maior do que aquilo.
Rafael ainda estava com uma mão no seu rosto, a
encarando como se a resposta de Alana importasse.
Era esforço demais só para transar – então ela ia se
permitir acreditar. E se aquilo fosse mais uma
manipulação, Alana lidaria com as consequências depois.
Mas ela ainda tinha perguntas.
Ela deu um passo atrás, se afastando do toque de
Rafael. Ele abaixou a mão, sem se aproximar mais.
Alana definitivamente tinha problemas, porque ela
queria mais do toque dele.
— Quando você diz que eu não preciso de alguma
coisa para te controlar — ela começou. — O que você
quer dizer?
Rafael inclinou a cabeça daquela forma que não era
humana.
— Exatamente o que eu disse. Eu sou um vampiro há
tempo demais para entender o que você quer. Então...
Não era tão difícil assim. E aquele era o motivo para
ela ter insistido.
— Eu só queria ao menos um pouco de consciência
— Alana interrompeu. — De pensar que alguma coisa
além de você e da sua ambição importam.
Rafael fez um ruído irritado e avançou. Quando Alana
conseguiu ver o que estava acontecendo, ela estava
contra a parede e o vampiro estava segurando seu braço.
Ele tinha se movido tão depressa que ela não havia
visto o movimento.
E mesmo assim ela não tinha sentido nada, mesmo
que estivesse encostada na parede.
E Rafael estava perto demais.
Alana respirou fundo e levantou a cabeça. Ela só
precisava de segundos para fazer uma das plantas perto
da porta crescer. Seu poder estava ali, pronto. E, mesmo
assim, ela não estava fazendo nada.
— Eu não tenho uma consciência. Não no sentido em
que você quer dizer — Rafael falou.
Alana respirou fundo e se forçou a não reagir. Aquilo
era a resposta que ela estava esperando, no fim das
contas. Uma coisa definitiva. Um ponto final, na verdade,
porque Alana tinha sido treinada para ser uma feiticeira,
mas ainda era humana. Ainda esperava um mínimo de
consciência mesmo dos vampiros. E, se Rafael estava
falando que não tinha aquilo...
Ela puxou seu braço para baixo, mas não conseguiu
se mover. Rafael ainda a estava segurando no lugar.
— Mas eu posso ouvir a sua consciência — ele
completou.
Alana parou de tentar se soltar.
Ela só queria uma certeza. Algo simples.
— Fácil falar — ela murmurou.
Rafael abaixou a cabeça, até que sua testa estava
encostada na dela.
— Sim. Fácil falar — ele repetiu. — Por isso quero
uma chance de provar que estou dizendo a verdade.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar.
No fim das contas, era simples. Alana podia só dizer
que nunca ia acreditar nele e aquilo – o que quer que
aquilo fosse – ia acabar ali. Ou ela podia arriscar e, na
pior das hipóteses, o único risco seria para o seu orgulho.
Se ela não arriscasse, nunca ia conseguir tirar o "e
se" da cabeça.
— Eu não vou prometer nada — Alana falou.
— Não estou pedindo promessas.
Não, ele não estava. Rafael só estava pedindo
confiança. "Só".
E ainda faltavam horas até o amanhecer.
Alana respirou fundo de novo.
— Então me distraia.
Rafael deu um sorriso lento, sem esconder suas
presas, e um arrepio atravessou Alana. Ela estava
brincando com fogo e sabia. E a pior parte era que não ia
fazer nada para se proteger. Ela queria ver até onde
aquilo ia. Até onde podia acreditar.
— Algum limite? — Ele perguntou.
Não. Ela só queria saber.
Não. Tinha um limite sim.
— Sem mordidas — Alana falou.
E se ela não conseguia se lembrar de por que aquilo
era uma má ideia, não fazia diferença. Se aquilo tudo não
fosse um erro, ela teria tempo mais que o suficiente para
as mordidas de Rafael, depois. Para saber se a sensação
era tudo o que diziam que era.
Ele abaixou a cabeça, ainda segurando Alana contra
a parede, e passou as presas pelo seu pescoço.
Um arrepio atravessou Alana. Ela queria aquilo e não
adiantava nem negar. Mas não ainda. Não quando não
tinha certeza.
— Tem certeza? — Rafael perguntou, contra sua
pele.
Não.
E ela precisou se forçar a respirar fundo para
conseguir falar, porque ter Rafael ali, tão perto que seus
corpos estavam quase encostados, com ele a prendendo
contra a parede e com as presas tão perto do seu
pescoço era demais – e não de uma forma ruim.
— Tenho. Se você me morder, não vai ter motivo
para fazer o menor esforço, depois.
Ele riu contra a pele de Alana e deixou que ela
sentisse suas presas de novo, antes de levantar a cabeça
devagar.
— Então você quer que eu faça esforço — ele
murmurou.
Alana engoliu em seco. Os olhos de Rafael estavam
escurecendo de novo. Ela não tinha se esquecido
daquilo, mas tinha evitado pensar no assunto, sim.
Aquilo ali, a forma como os olhos dele estavam
ficando completamente pretos, do mesmo jeito que antes
do fogo, e como ele não parecia nem perto de ser uma
ameaça para ela... Alana não sabia como entender
aquilo, mas sabia que gostava mais do que deveria. Bem
mais.
— Você disse que ia me fazer implorar por um
orgasmo — Alana falou.
E, por mais que aquelas horas, antes, tivessem sido
inesquecíveis, ela não tinha implorado. Ela não duvidava
que ele fosse capaz de fazer aquilo, mas não achava que
ele fosse ter o controle necessário.
Não. Os olhos de Rafael eram um sinal mais do que
claro de que ele não tinha controle, ali.
Ele a encarou, enquanto seus olhos terminavam de
escurecer, até que não havia nenhum sinal de nada além
do preto nos seus olhos. Era estranho e ainda fazia
algum instinto de Alana gritar perigo mas, ao mesmo
tempo...
Ela devia ser louca, porque queria justamente o
perigo.
Rafael soltou o braço de Alana e segurou seu queixo.
Não era um toque delicado, mas também não era a força
das vezes em que tinham discutido. Era só... Rafael
sendo Rafael.
E ele ainda estava encarando Alana daquele jeito,
como se quisesse ter certeza de alguma coisa.
Ela levantou as sobrancelhas, sem tentar sair do
lugar.
Rafael a beijou.
Alana fez um som abafado, sentindo os lábios mais
frios dele nos seus, a forma como ele ainda estava
segurando seu queixo e então a sensação da língua dele
contra os seus lábios.
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo não era o que
ela esperava. Depois de tudo, depois daquela vez, antes
do fogo, ela tinha imaginado que Rafael ia ser cuidadoso.
Que ele ia fazer questão de provocar, de ir devagar.
Aquele beijo não era nada parecido com o que ela
tinha pensado.
Rafael apertou seu corpo contra o dela, a prendendo
contra a parede. Alana conseguia sentir a ereção dele e
aquilo era o suficiente para fazer um gemido baixo
escapar.
E o suficiente para a língua de Rafael invadir sua
boca. Porque sim, era uma invasão. Aquele beijo não
tinha nada de lento ou cuidadoso. Era só desejo. Era algo
quase duro, como se Rafael estivesse perdendo o
controle, ao mesmo tempo em que se forçava a não
passar de algum limite, porque todo o corpo dele estava
rígido, seus músculos travados como se ele não tivesse
coragem de se mover mais.
E ele ainda a estava beijando daquele jeito, como se
sua existência dependesse daquilo.
E Alana estava respondendo do mesmo jeito. Óbvio
que estava, porque não tinha como não reagir sentindo
aquilo. Rafael podia ser um manipulador de marca maior,
mas aquilo ali não era mentira. A forma como o corpo
dele a estava prendendo, como se ele não conseguisse
imaginar se afastar. A tensão e os tremores quase
imperceptíveis quando ela passou a língua pelas presas
dele.
Rafael era dela. Pelo menos ali, naquele momento,
Alana não tinha a menor dúvida.
Ele colocou a outra mão na sua cintura e Alana
sentiu as pontas das garras dele mesmo através do
tecido. Um arrepio a atravessou, e não era de medo.
Alana já tinha visto as garras de Rafael vezes demais e
sabia que elas nunca apareciam à toa.
Ele mordeu o lábio de Alana antes de levantar a
cabeça, só o suficiente para afastar suas bocas, ao
mesmo tempo em que encostava a testa na dela.
— Faz questão dessa blusa? — Rafael perguntou,
com a voz mais grave que o normal.
Alana engoliu em seco e balançou a cabeça de um
lado para o outro. Ela não fazia questão de nada desde
que Rafael não parasse.
Ele soltou a cintura dela, mas ainda estava
segurando seu queixo com a outra mão.
— Se for demais, você vai me falar — ele murmurou.
Um arrepio atravessou Alana. Ela tinha sérias
dúvidas de que ele fosse conseguir fazer alguma coisa
que ela consideraria “demais”. Ela era louca o suficiente
para querer mais de tudo que era um sinal de perigo.
Ela assentiu.
— Vou falar.
Rafael sorriu, mostrando as presas, e aquilo era
diferente de alguma forma.
Ele deu um passo para trás, levantando a cabeça, e
Alana fez um ruído baixo, segurando a cintura dele. Não.
Ela não queria a distância. Ela queria continuar sentindo
o corpo dele contra o seu, a prendendo no lugar.
Mas ela também queria saber o que ele pretendia
fazer.
Um arrepio atravessou Alana quando ela sentiu a
garra contra sua pele, pouco abaixo do seu pescoço.
Rafael sustentou seu olhar por mais alguns segundos
antes de olhar para baixo – e Alana não sabia como tinha
tanta certeza da direção do olhar dele quando não tinha
nenhum sinal de pupilas.
A garra contra seu corpo se moveu. Alana sentiu o ar
do quarto contra sua pele antes de entender o que tinha
acontecido, e então Rafael já tinha soltado seu queixo e
estava puxando os restos da sua blusa e do seu sutiã
para os lados.
Ele tinha cortado suas roupas com as garras. Simples
assim.
Rafael abaixou a cabeça devagar, antes de colocar
as duas mãos na cintura de Alana, a segurando no lugar.
Não que tivesse a menor chance de ela sair dali. Não
quando ele a estava encarando daquele jeito, como se
ela fosse um banquete na sua frente, prestes a ser
devorada.
Sim, por favor, era exatamente o que ela queria.
Ele subiu uma mão pela cintura dela, devagar, e
parou logo abaixo da curva dos seus seios, sem
realmente tocar neles. Era só aquela sugestão de um
toque, a sensação de que os dedos dele estavam logo ali.
Uma provocação – e o suficiente para Alana não
conseguir prestar atenção em outra coisa que não fosse
naquele quase toque.
Rafael abaixou a cabeça ainda mais e passou a
língua por um mamilo e depois o outro. Mais uma
provocação que um toque, de novo. Especialmente
considerando como ele parou, sorrindo, e soprou sobre
um mamilo.
Um arrepio atravessou Alana e ela se segurou nos
ombros de Rafael. Podia ser madrugada, mas o quarto
não estava exatamente fresco. Não naquela época do
ano. Até o ar da noite era quente. E quando Rafael tinha
soprado sobre o seu mamilo... Aquele ar era fresco. Mais
frio que o que estava ao seu redor, do mesmo jeito que
sua língua tinha sido. E mais que o suficiente para fazer
seus mamilos virarem pontas duras.
Rafael moveu a mão que estava logo abaixo do seu
seio, fazendo uma linha ali, naquele limite que estava
deixando ela cada vez mais tensa.
— Sem mordidas? — Ele perguntou.
Alana assentiu. Não importavam as promessas. Não
importava se ela achasse que Rafael não ia se aproveitar
daquilo. A ideia de ter ele fazendo questão de provar que
não precisava do veneno era satisfatória demais e não
era nem sobre ela estar colocando limites.
Rafael grunhiu alguma coisa antes de chupar um
mamilo, o soltar e deixar Alana sentir as presas dele
contra a pele sensível do seu peito.
Um arrepio atravessou Alana e ela sentiu suas
pernas vacilando. Aquilo era bom, de um jeito que ela
nunca teria nem imaginado. E o contraste entre a forma
como ele a chupava e os lábios mais frios de Rafael... Ela
não tinha como descrever a sensação. Só sabia que
queria mais. E não só nos seus seios ou a forma como ele
estava chupando seu mamilo.
Rafael passou as presas pela pele de Alana de novo
e segurou sua cintura com força quando ela tremeu.
— Tem certeza? — Ele insistiu.
De que queria continuar? Mais do que certeza.
De que não queria mordidas? Também.
— Tenho — Alana falou.
E se sua voz estava falhando, não tinha nada que ela
pudesse fazer. Não que ela quisesse fazer alguma coisa.
— Nesse caso... — Rafael murmurou.
Ele desceu a mão, devagar, até que estava
segurando sua cintura de novo. E então estava descendo
mais, ao mesmo tempo em que chupava um mamilo e
brincava com ele usando a língua.
Alana fechou os olhos. Eram sensações demais – o
quase calor úmido da boca de Rafael, junto com a forma
como sua língua era mais fria e então um quase nada da
sensação das presas na sua pele, de um jeito que parecia
mais um acidente que proposital...
Era demais. Era exatamente o que ela queria.
E nem importava se Rafael estava puxando sua saia
e sua calcinha para baixo enquanto continuava chupando
seu mamilo daquele jeito. Ele que fizesse o que bem
entendesse, desde que não parasse. E ela ia se
concentrar em continuar encostada na parede, sem
descer a mão pelo próprio corpo. Aquele não tinha sido o
acordo. A ideia era Rafael a distrair. Então ela não ia
ajudar se masturbando, não importava o tanto que aquilo
fosse tentador.
Ele levantou a cabeça.
Alana enfiou as unhas onde estava segurando os
ombros de Rafael. Ele que não ousasse...
Ele deu um meio sorriso, como se soubesse
exatamente o que estava se passando na cabeça dela.
— Ah, mas isso é só o começo, bruxinha — Rafael
murmurou.
Alana não respondeu. Era melhor não responder.
Ele deu uma risada baixa e desceu mais as mãos
pelo quadril de Alana, até que o resto das suas roupas – a
saia e a calcinha – só caíram pelas suas pernas. Ela não
falou nada, só levantou um pé e depois o outro para
chutar as roupas para o lado.
Rafael continuou olhando para ela, sem dar o menor
sinal de que ia descer o olhar pelo seu corpo, mesmo que
ainda estivesse com as mãos nas coxas dela, com os
dedos logo abaixo da sua bunda. Ele gostava de
provocar. Alana deveria ter imaginado aquilo.
E ela ainda não conseguia entender como tinha tanta
certeza de para onde ele estava olhando, quando os
olhos dele estavam completamente pretos.
— Já cansou? — Ela perguntou.
Rafael estreitou os olhos e a soltou. Alana não falou
nada, só soltou o ombro dele, também, e colocou as
mãos contra a parede. Ele podia provocar, se quisesse.
Ela não ia ajudar.
Ele sorriu de um jeito que fez um arrepio atravessar
Alana. Ela estava brincando com fogo. Ela estava
procurando o perigo. E era exatamente aquilo que
queria.
Rafael se ajoelhou no chão. Alana engoliu em seco.
Não era como se ela estivesse no controle, ali, e ele
estivesse fazendo aquilo porque ela queria. Era a mesma
impressão que ela havia tido antes, de que Rafael a
estava encarando como se ela fosse um banquete a ser
devorado. E ele ia fazer exatamente aquilo.
Ele empurrou sua saia no chão mais para o lado
antes de segurar as coxas de Alana e a puxar para a
frente, até que ela estava só com as costas apoiadas na
parede, numa posição que não era das mais confortáveis
e definitivamente não era estável.
— Eu não... — ela começou.
Rafael subiu as mãos pela parte de trás das suas
coxas, deixando Alana sentir suas garras.
— Seu limite foi sem mordidas — ele falou.
O que queria dizer que Alana ia confiar nele para
fazer o que estava planejando – a menos que fosse
demais para ela. E aquilo ali não era demais. Só era...
Inesperado. E com potencial para não terminar tão bem.
Ou potencial para terminar bem demais, porque
Rafael estava levantando uma das pernas dela e a
apoiando a coxa dela no seu ombro.
Ele sorriu, mostrando as presas.
— Se eu pudesse te morder, agora seria a hora —
Rafael murmurou, subindo a mão pela sua coxa de novo
e a apertando. — Eu iria beber daqui. E você ia ter um
orgasmo inesquecível em questão de segundos.
Alana se forçou a não gemer. Não que aquilo fizesse
alguma diferença. Pela forma como Rafael estava
respirando fundo, ele sabia exatamente o efeito que
aquelas palavras estavam tendo nela. E não era como se
ele precisasse farejar. Naquela posição, ele conseguia ver
muito bem como ela estava molhada.
— E é por isso que não vai morder — ela falou.
Rafael levantou uma sobrancelha. Um arrepio
atravessou Alana. Aquilo era mais perigoso que qualquer
coisa que ele tinha feito até então, porque quase parecia
que Rafael estava brincando com ela. Não no sentido de
aquilo ser um jogo, mas só... Como se ele estivesse
confortável o suficiente para não se preocupar com a
imagem que precisava passar o tempo todo.
Alana engoliu em seco.
— É para garantir que você vai fazer direito — ela
completou, com a voz falhando, de novo.
Rafael deu uma risada baixa e se inclinou na direção
dela, tão perto que Alana conseguia sentir o ar mais
fresco contra sua pele.
— Direito, é?
Ela assentiu, mesmo que ele não estivesse olhando
para cima. A atenção de Rafael estava completamente
no meio das pernas dela.
E, mesmo assim, Alana não estava esperando
quando sentiu a língua dele, subindo pela sua boceta de
uma vez, provocando seu clitóris e então descendo de
novo.
— O que eu estou provando aqui está me dizendo
que estou fazendo direito — Rafael murmurou.
Alana não teve tempo de responder antes de Rafael
passar a língua pelo mesmo caminho de novo e parar na
sua entrada, se movendo devagar. Era quase como se
ele estivesse provando ela. O que as provocações dele
até ali tinham feito.
Um gemido escapou quando ele enfiou a ponta da
língua nela, devagar. Devagar demais e pouco demais,
mas ainda assim..
Alana apertou o ombro dele com força e deixou a
cabeça cair para trás, contra a parede. Provocar um
vampiro nunca era uma boa ideia. Provocar Rafael,
então... Era o tipo de loucura que dava os melhores
resultados possíveis.
Ele tirou a língua de dentro dela e subiu até o clitóris
de novo, antes de fazer círculos ao redor daquele ponto.
Alana enfiou os as unhas no ombro dele, tentando
continuar parada, mas sem conseguir. Ela queria mais.
Mais contato, mais do que só a provocação. Seu corpo
queria mais e parecia que estava tentando se aproximar
mais da boca de Rafael.
— Você...
Alana perdeu o raciocínio quando ele chupou seu
clitóris. Só... Do nada, sem aviso. E de repente ele estava
ali, a chupando com força, do jeito que Rafael já sabia
que fazia ela ficar louca. Naquele ritmo que não
precisava de mais que minutos para Alana estar
gozando.
E era pior ainda – melhor ainda – porque ela estava
sentindo as garras dele na sua bunda, a segurando no
lugar. E ela estava completamente sob o controle de
Rafael, naquela posição, com o alto das costas apoiado
na parede e uma perna jogada por cima do ombro dele.
Era ele a segurando no lugar e a mantendo ali enquanto
chupava, sem parar. Sem nenhum tipo de pausa o tempo
para ela tentar se controlar.
Não que Alana quisesse se controlar. Rafael estava
lhe dando exatamente o que ela precisava: uma
distração. Tantas sensações que ela não conseguia
pensar em mais nada além da sensação da boca dele a
chupando, aquele aviso de perigo que eram as garras
dele na sua bunda.
Ela tinha pensado que ele ia ir devagar. Que ia
provocar e fazer Alana implorar, mas não estava achando
ruim aquilo ali. Muito pelo contrário.
Ela apertou o ombro dele de novo, sentindo a
pressão crescer. Ele ia fazer ela gozar em menos de dois
minutos de novo e ela ainda queria mais. Muito mais.
Alana bateu a cabeça contra a parede, gemendo
alto. Só mais um pouco. Só...
Ela sentiu as presas de Rafael contra a sua pele,
mais uma impressão de que um toque, e um arrepio a
atravessou. Perigo. Muito perigo. E ela não se importava.
O lembrete de que estava brincando com fogo só servia
para fazer todas as sensações serem mais e...
Rafael parou de chupar.
Alana praticamente gritou, ao mesmo tempo em que
batia o calcanhar com força nas costas dele e enfiava as
unhas no ombro de Rafael. Ela estava quase e ele...
— Não ouse!
Rafael riu contra a sua perna. Sua perna. A cabeça
dele estava longe demais de onde deveria estar.
Ela segurou o cabelo de Rafael de qualquer jeito. Não
era como Alana tinha imaginado que ia mexer no cabelo
dele pela primeira vez, longe daquilo. Mas não
importava.
Ela puxou a cabeça dele para cima. Ou melhor,
tentou, porque Rafael não saiu do lugar.
Ele passou a outra mão pela coxa de Alana, onde
estava apoiada no ombro dele.
— Shhh — ele murmurou.
Alana tinha quase certeza de que ele estava sorrindo
contra a pele dela e, naquele momento, era muito bom
que ela não tivesse certeza absoluta. Se tivesse, ela não
sabia o que ia fazer.
— Calma — Rafael falou. — Temos tempo. Temos
muito tempo.
E Alana podia passar o resto da madrugada puxando
o cabelo dele que não ia fazer a menor diferença. Ele ia
fazer o que bem entendesse e era mais do que óbvio que
ela não tinha força para obrigar um vampiro a fazer
alguma coisa.
Ela soltou o cabelo dele e bateu o punho fechado na
parede.
— Eu estou devendo te fazer implorar, não estou? —
Ele perguntou.
Alana fez um ruído que nem ela sabia se era um
gemido ou não.
Brincando com o perigo, sim. Ela só não tinha
entendido exatamente que tipo de perigo.
— Vai ter volta — ela avisou.
Rafael riu de novo e afastou a cabeça o suficiente
para olhar para ela. Os olhos dele ainda estavam
completamente pretos e aquilo tinha deixado de ser um
sinal de perigo para ser só satisfatório. Ele estava
daquele jeito por causa dela. Era simples demais.
— Eu estou contando com isso.
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo era um desafio.
Ela ia responder à altura, então. Quando, ela não
fazia ideia. Mas em algum momento, ela ia ter Rafael tão
frustrado quanto ela estava. Ou pior. Sim. De preferência
bem pior.
Rafael subiu a mão pela sua coxa de novo, ao
mesmo tempo em que apertava sua bunda. Um arrepio
atravessou Alana. Ela não deveria gostar tanto da
sensação das garras contra a sua pele, mas não
conseguia evitar. E não era nem surpresa que Rafael
tivesse notado aquilo.
Ele beijou a parte de dentro da sua coxa. Alana
prendeu a respiração, mas Rafael não fez mais nada.
Provocando, sim.
Ele ainda ia se arrepender demais daquilo. E ela ia
adorar organizar aquilo.
E a boca de Rafael estava na sua boceta, de novo.
Alana gemeu alto quando ele fez aquele mesmo
caminho com a língua, desde a sua entrada até o clitóris,
como se quisesse provar cada centímetro dela.
Era tortura. Era exatamente o que ele tinha falado
que ia fazer, porque ela estava realmente pensando se
não valia a pena implorar por um orgasmo. Alana queria
se perder nas sensações mas, ao mesmo tempo... Não
era aquele o acordo. Ela não ia implorar só porque
queria.
Se Rafael quisesse ela implorando, teria que fazer
ser insuportável. E Alana tinha suas dúvidas de que ele
tinha controle o suficiente para fazer aquilo, porque ele
gostava demais de chupá-la. E gostava mais ainda de ver
ela gozar. A outra noite, no quarto dele, não tinha
deixado a menor dúvida sobre aquilo.
E ele estava sendo cuidadoso. Alana não estava mais
a um fio de gozar, mas se ele chupasse do mesmo jeito
que antes ela sabia que não ia durar nada. Então ele não
estava fazendo a mesma coisa. Não era mais aquela
pressão constante. Era a sensação da língua dele,
circulando seu clitóris antes de passar por ele, brincar
com ele, e então voltar a circular. Sem a menor pressa,
como se ele pudesse passar horas ali.
Rafael era um vampiro. Ele podia passar horas ali.
Ela estava completamente ferrada.
Não. Ela estava fodida. E muito bem fodida.
E não importava o tanto que Rafael estivesse sendo
cuidadoso, não ia demorar para ela gozar.
Alana fechou os olhos e deixou a cabeça cair para
trás, de novo. Ela estava completamente estragada,
porque nada ia ser tão bom quanto a sensação da língua
de Rafael nela – a forma como era um toque mais frio do
que o esperado, o suficiente para não ter como ela
ignorar nada. Cada movimento, cada vez que ele
circulava seu clitóris ou passava por ele. Era tudo muito
mais intenso por causa da diferença de temperatura.
Ela estava gemendo e não se importava. Nada
importava, a não ser a sensação da língua de Rafael
nela. De como cada movimento parecia calculado para
tirar o máximo que podia. E se Alana já estava tremendo,
era porque ele sabia bem demais o que estava fazendo.
Ela inclinou o quadril na direção da boca dele,
querendo mais. Mais força, mais contato, qualquer coisa.
Alana estava a um fio de novo e daquela vez...
Rafael segurou seu quadril e afastou a cabeça.
— Não! — Ela gritou. — Não ouse, você...
Não adiantava tentar se mover. Ele era forte demais.
E ainda estava com o rosto tão perto dela que Alana
tinha certeza que conseguia sentir alguma coisa um
pouco mais fria que o ar da sala contra a sua pele.
— Não, não — Rafael murmurou.
Alana segurou o cabelo dele e puxou, de novo. Ela já
sabia que não adiantava, mas não fazia diferença. Ela só
queria fazer alguma coisa, qualquer coisa, porque duas
vezes era demais.
Ele levantou a cabeça, sorrindo, com os lábios
molhados dela.
— Você disse que era para fazer direito — Rafael
falou.
Ele passou um dedo pela boceta dela, da sua
entrada até o seu clitóris, com o toque tão leve que era
só o suficiente para saber que estava ali mas não o
suficiente para ela gozar.
Alana ia matar ele.
— Você... — ela começou.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— O meu direito é ter você gozando enquanto eu
entro em você — ele murmurou. — É sentir sua boceta
me apertando enquanto goza a primeira vez. E continuar
me apertando nos orgasmos que vierem depois.
Não era justo.
Alana respirou fundo e engoliu em seco. Ele falando
daquele jeito deveria ter sido o suficiente para ela gozar.
Se o mundo fosse minimamente justo, teria sido. Mas
não. Ela ainda estava tensa, sentindo como se qualquer
movimento fosse ser o suficiente para fazer ela gozar,
mas não tinha como fazer nada por causa da posição em
que estava.
Ela bateu o calcanhar com força nas costas de
Rafael.
— Agora — Alana falou e nem parecia sua voz. —
Antes de eu...
Rafael apertou a perna de Alana e ela sentiu as
garras contra sua pele.
— Esse não foi o acordo — ele falou. — A menos que
seja demais para você.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.
Ela queria matar Rafael, sem a menor sombra de
dúvida.
Mas ela também queria ir até o fim. Queria saber o
que ele tinha pensado e exatamente o que faria.
Ele sorriu e levantou a perna dela devagar, a tirando
de cima do seu ombro. Finalmente. Não que Alana não
tivesse gostado daquilo, mas se ele não ia deixar ela
gozar daquele jeito...
Rafael desceu a mão pela perna de Alana, até o seu
tornozelo, antes de a soltar. Ela respirou fundo e se
endireitou, sem conseguir desviar o olhar dele. Alana
queria saber o que ia vir depois. Não que fosse ser uma
surpresa, mas ouvir era diferente de fazer.
Rafael se levantou de uma vez e segurou o queixo de
Alana.
— Você não está pensando em colocar a mão na sua
boceta e terminar o que eu comecei, não é? Porque se
tentar fazer isso, vai ser pior.
Ela sorriu. A pior parte era que Alana não tinha
ficado nem um pouco tentada a fazer aquilo. Ela queria
matar Rafael por causa das pausas, com certeza. Mas ela
também podia parar aquilo a hora que quisesse e não
estava parando. Ela não ia estragar os planos dele. Pelo
menos, não daquela vez.
Mas não ter pensado naquilo não a impedia de
provocar.
— E como vai ser pior, se eu já vou ter gozado? —
Ela perguntou.
Rafael não respondeu, só continuou encarando Alana
com os olhos completamente pretos, até que ela engoliu
em seco e assentiu.
Ela não tinha esperado aquilo. Nada do que ela tinha
visto de Rafael antes teria feito ela imaginar algo
daquele tipo e... Não era uma reclamação.
Ele deu um passo atrás e começou a soltar os botões
do seu colete, sem a menor pressa.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar – tentou,
pelo menos, porque sua respiração estava falhando.
Então aquilo ia ser a segunda parte da tortura. Ela ia ter
que assistir enquanto ele tirava as roupas devagar,
daquele jeito cuidadoso e meticuloso, o tempo todo
olhando para ela.
O colete dele caiu no chão com um ruído suave.
Alana desceu o olhar devagar, ao mesmo tempo em que
ele tirava a camisa.
Ela já tinha visto o suficiente de Rafael para saber
que podia esperar músculos. Não os músculos de um
guerreiro, mas definição, sim. E Alana estava certa. O
peitoral de Rafael era marcado, assim como os músculos
do seu abdome, só o suficiente para Alana ter certeza de
que ele podia ter sido algum tipo de nobre, antes de ser
transformado, mas não havia sido o tipo de pessoa que
não fazia nada.
E ele tinha cicatrizes. Alana encarou uma das áreas
em que a pele dele tinha aquela textura que deixava
óbvio que havia sido uma queimadura, logo abaixo do
peito dele. Não era muita coisa, mas considerando que
ele era um vampiro e nada deveria conseguir deixar
cicatrizes nele...
Rafael não havia exagerado quando tinha contado
sobre o fogo no seu passado.
E o passado não importava, porque ele estava ali, na
frente dela, soltando os botões da sua calça e a puxando
para baixo, devagar.
Devagar demais, ainda mais considerando que Alana
conseguia ver o volume da ereção dele.
— Se você quer dar um show, então tinha que ter
música — ela murmurou. — E talvez um pouco mais de
movimento.
E uma cadeira. Alana se lembrava de alguma coisa
daquele tipo em um dos filmes que tinha assistido na
casa de um dos amigos de Alex.
A ideia não era ruim. Ela ia precisar se lembrar
daquilo depois.
— Mas se fosse só um show, então eu não ia poder
fazer o que quero — Rafael falou.
Alana engoliu em seco. Ela não tinha certeza de que
tinha entendido o que ele queria dizer e não se
importava. Ela não estava esperando por aquilo – pelo
Rafael sedutor que Alana havia visto seis meses antes.
Não. Não era a mesma coisa.
Antes, tudo o que ele fazia tinha parecido calculado
demais. Era como se ele tivesse estudado Alana e
escolhido como agir de acordo com como imaginava que
teria a reação que queria dela. Agora, ali... Aquilo não era
calculado. Era a mesma coisa de quando ele tinha só
levantado aquela sobrancelha para ela, mais cedo. Era
algo quase travesso, da melhor forma possível.
Alana não estava preparada para lidar com aquele
lado de Rafael. Ela não sabia se algum dia estaria
preparada – e aquilo não parecia algo ruim.
Ele empurrou a calça para baixo de uma vez e Alana
não fazia ideia de se ele tinha tirado a cueca junto ou se
só não estava usando nada. E ela não ia procurar as
roupas dele no chão para saber, porque estava ocupada
demais encarando a ereção de Rafael.
Ele era grande. Não aquele grande gigantesco que
podia até parecer interessante mas na prática quase
sempre era desconfortável. Não. Era o grande decente.
Confortável. Perfeito para sentar.
E Alana ia pensar várias vezes antes de sentar nele,
depois daquela tortura. Ele não estava merecendo.
Mas que aquele pau fazia ela querer fazer coisas,
com certeza fazia. E a primeira delas era finalmente
poder gozar.
— Se ficar tempo demais aí parado, vai perder todo o
trabalho que já teve — ela falou.
Aquilo teria funcionado melhor se a voz de Alana não
estivesse meio rouca. Mas não importava, porque ela
conhecia a expressão no rosto de Rafael. Ela sabia
exatamente o que era aquele meio sorriso.
Rafael parou na frente de Alana de uma vez – tão
depressa que ela não viu o movimento antes de ele estar
segurando seu queixo, de novo.
— Você acha que é só você que está no limite? — Ele
perguntou. — Acha que é só você que está a um fio de
gozar já faz tempo demais?
Alana engoliu em seco e mordeu o lábio. Ela não
tinha nem pensado naquilo. Rafael sempre parecia tão
controlado que nem tinha passado pela cabeça dela que
aquela ereção já estava ali fazia muito tempo. E que, do
mesmo jeito que tinha sido tortura para ela,
provavelmente tinha sido para ele, também...
Porque ele queria.
Alana ia precisar de planos muito bem feitos quando
fosse se vingar, porque Rafael gostava daquela tortura.
— E quanto tempo você vai querer continuar nesse
limite? — Ela perguntou. — Assim, só pra saber, porque...
Rafael soltou seu queixo e a apertou contra a parede
com força, antes de descer uma mão entre os seus
corpos.
Alana fechou os olhos e gemeu alto quando sentiu os
dedos de Rafael no seu clitóris. Sim, sim e sim e mais
sim. Não tinha nenhuma delicadeza no toque dele, só
aquela segurança de quem sabia exatamente o que
estava fazendo e que não tinha o menor problema em
fazer o corpo de Alana responder.
E ela não precisava de muita coisa. Alana ainda
conseguia sentir a tensão por todo o seu corpo, a forma
como parecia que ela estava a ponto de explodir só com
mais um toque, mais um movimento dos dedos de
Rafael, logo ali...
Rafael entrou nela de uma vez. Alana gritou e não
era de dor. Era a sensação do orgasmo mais forte da sua
vida explodindo pelo seu corpo, fazendo as pernas dela
tremerem.
Rafael a levantou, a apoiando mais alto contra a
parede e a segurando no lugar com uma mão na sua
bunda. Alana passou as pernas ao redor da cintura dele
por puro reflexo, mas ela não sabia nem se estava
entendendo o que estava acontecendo. Era demais. E ter
Rafael nela, daquele jeito, se movendo depressa, com
força, enquanto ela ainda estava tremendo com o
orgasmo, enquanto estava apertando o pau dele...
Exatamente como Rafael queria.
E ele ainda estava com os dedos no clitóris dela, se
movendo sem parar. No mesmo ritmo intenso demais de
antes, enquanto continuava entrando e saindo dela,
depressa, com força.
Alana não sabia o que estava sentindo. Se era um
orgasmo durando mais do que deveria ser possível. Se
eram vários, um atrás do outro. Ela só sabia que não
conseguia fazer nada além de gemer e se segurar em
Rafael enquanto ele usava seu corpo para ter o seu
prazer.
Se o resultado sempre fosse ser aquele, talvez ela
nem fosse reclamar das torturas dele.
Rafael mudou o ângulo do quadril. Alana gemeu alto
quando ele entrou nela de novo, acertando o ponto
perfeito. Ela se segurou nas costas dele enquanto Rafael
continuava, depressa e com força, agora acertando
sempre naquele lugar, e não fazia a menor diferença se
Alana estava sentindo cheiro de sangue. Ela estava
arranhando Rafael e não se importava. Não conseguia se
importar, porque era demais. E ao mesmo tempo não era
suficiente.
Nunca ia ser o suficiente.
Alana se sentiu explodir de novo e não deveria ser
possível. Ela estava tremendo, arranhando Rafael como
se não tivesse um fio de controle – e realmente não
tinha.
E ele estava tremendo contra ela também, se
apertando contra Alana com força, depressa e sem ritmo,
como se o próprio Rafael não tivesse mais nenhum
controle.
Ele tirou a mão que estava no clitóris dela e a apoiou
na parede.
Mais. Alana queria mais. Não deveria querer. Mas só
a sensação de Rafael ali, se apertando contra ela
daquele jeito enquanto ele gozava, também...
Ela estava completamente estragada. Nada nunca
mais ia ser tão bom quanto aquilo.
Rafael saiu de dentro dela devagar e aqui era o
suficiente para fazer Alana tremer, de novo.
E não importava o que ela deveria querer ou não – só
o que ela realmente queria.
— Você não vai parar agora depois de tudo que fez
— ela resmungou.
Depois de ter feito Alana quase gozar e parado duas
vezes.
Rafael riu e a apertou contra a parede. A respiração
de Alana falhou quando ela sentiu a ereção dele presa
entre os seus corpos. Ela jurava que ele tinha gozado,
também. Não. Ele tinha gozado, sim. E, mesmo assim...
— Eu não sou humano, bruxinha — Rafael falou.
Não. Definitivamente não era. E se o fato de ele ser
um vampiro queria dizer que ele não ia só transar uma
vez e se dar por terminado, então ela estava no lucro.
Ele moveu o quadril, ainda apertando o corpo de
Alana. A ereção dele passou pelo clitóris dela e Alana
soltou um gemido que ela não sabia se era prazer ou dor.
Ela estava sensível. Ela não deveria nem querer que ele
pensasse em encostar ali. Mas ela queria mais.
— Ainda temos horas — ele falou. — Pelo menos
mais três horas até o amanhecer.
Bom. Muito bom. E, naquele caso...
— Eu acho que a minha cama vai ser mais
confortável que a parede — Alana falou.
VINTE E SEIS

Dani encarou os monitores na sala de controle que haviam


improvisado nos túneis. Meses antes, Raquel tinha dado
as ordens para estabilizarem o complexo subterrâneo
onde o Setor Quatro fazia experiências, no passado, e
depois tirarem tudo que podia ser importante ou
perigoso de lá. Se a estrutura toda tinha sido feita para
não ser detectada nem por vampiros e para resistir a
ataques – tanto que tinha escapado sem danos depois
que o Quatro tinha sido destruído – então era um bunker
pronto, em caso de necessidade.
Eles tinham evacuado a maior parte da cidade para
os túneis. O restante tinha ido para o pomar, para perto
do lago de Val, e a garota estava lá, junto com Alex e
Gustavo. Era mais que o suficiente para conter um
ataque ou ganhar tempo para pedir ajuda, se
precisassem.
E Dani estava ali, presa no subterrâneo, porque a luz
do sol era uma garantia de que ela não ia poder ajudar.
Ela podia não dormir com a luz do sol, como uma boa
parte dos vampiros, mas aquilo não queria dizer que
podia sair no sol.
O que queria dizer que ela estava presa ali enquanto
Amon estava na cidade – porque ele podia sair no sol,
mesmo que preferisse evitar fazer aquilo.
— O sol já está começando a nascer — Dante avisou.
Dani respirou fundo e soltou o ar devagar. Ela odiava
esperar. E esperar sem poder fazer nada era pior ainda.
— Quantas pessoas se recusaram a evacuar? —
Raquel perguntou.
Cinquenta e oito. Eles já tinham voltado naquele
número vezes demais. E a maioria eram pessoas das
forças de defesa que achavam que era melhor ficarem na
cidade para tentar fazer alguma coisa – incluindo Yuri e
Melissa.
A pior parte era que Dani não podia nem reclamar
deles porque, se pudesse, ia estar lá também.
— Cinquenta e oito — Andreia falou.
Nos monitores, o céu estava começando a clarear.
Nada. Nenhum sinal de movimento. Nada nos
sensores ou nas câmeras de segurança. Mas Dani não
duvidava de que seriam atacados. Melissa tinha voltado
para o Setor Dez preocupada demais e resmungando
sobre o que tinha visto na mente dos traidores. Ela não
tinha conseguido detalhes, mas não tinha a menor
dúvida sobre o que tinha visto.
E a última coisa que Dani queria era ficar presa em
uma sala pequena, com todo mundo tenso enquanto
esperavam por um ataque que não sabiam o que ia ser.
Ela podia ter muito mais controle do que era normal para
uma vampira transformada fazia tão pouco tempo, mas
ainda assim ela precisava se forçar a ignorar o medo e a
preocupação dos outros.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar de novo.
Dani não precisava respirar, mas fazer aquilo a ajudava a
se controlar.
Nos monitores, um grupo de pessoas saiu correndo.
Os que estavam perto de uma das escolas – e Dani não
fazia ideia de por que tinham escolhido ficar lá. Do
mesmo jeito que ela não entendia por que estavam
correndo, sendo que não tinha nada em lugar nenhum.
Se alguma coisa estava atacando, era invisível.
— O que está acontecendo ali? — Raquel perguntou.
Dani fechou as mãos com força. Ela bem que queria
saber.
Ela pegou seu celular e mandou uma mensagem
rápida para Alex. A resposta chegou em segundos.

Alex: Nenhum sinal de nada aqui.


Alex: Nem eu nem Gustavo estamos sentindo nada.

E se Alex não estava sentindo nada, então não tinha


nada indo na direção do pomar, pelo menos. Se tivesse,
elu sentiria o poder.
— O pomar ainda está seguro — Dani falou.
Raquel fez um ruído irritado. Não era a resposta que
a bruxa queria e Dani tinha plena consciência daquilo.
Mas ela não ia entrar em contato com Amon ou com Yuri.
Não podia arriscar.
Mais um grupo saiu correndo, nos monitores, perto
da área de treinamento. E mais outro, em uma das áreas
mais residenciais. E o último...
O último grupo – onde tanto Amon quanto Yuri e
Melissa estavam – começou a correr, atravessando uma
praça, e então parou. Eles olharam ao redor depressa e
voltaram na direção de onde tinham saído, sem correr e
o tempo todo analisando o que estava acontecendo ao
redor.
Mas não tinha nada na cidade. Só os outros grupos
correndo e...
Dani viu uma mulher sozinha, andando pelas ruas da
cidade depressa. As câmeras não eram o suficiente para
ela ver um rosto, mas não importava. Ela estava
andando, sozinha, sendo que as pessoas que tinham
ficado ali estavam todas em grupos. E, com exceção de
um grupo, todos estavam correndo pelas ruas.
— Dani — Andreia chamou.
Dani olhou para a outra mulher e então para o
monitor que ela estava apontando.
Ela não conseguia ver nada. Tudo estava escuro
demais, mesmo que os outros monitores mostrassem o
dia já clareando.
E a escuridão estava se espalhando para os outros
monitores, também.
— Amon — ela falou. — Ele notou alguma coisa.
Porque Amon não usava seu poder por instinto, não
importava o que acontecesse.
Ninguém falou mais nada, mas Dani não precisava
se virar para ter certeza de que todo mundo estava
encarando os monitores sem nem piscar. Não que
alguém fosse conseguir ver alguma coisa.
— Os que estão correndo... — Andreia começou.
— Ele sabe exatamente quem ele está caçando —
Dani falou.
Aquela sempre tinha sido a parte mais assustadora
do poder de Amon, na opinião de Dani. Ele tinha controle
sobre quem suas sombras afetavam. Se alguém
enlouquecesse dentro delas, não era um acidente.
Os minutos se passaram. A maioria dos monitores
ainda estava escura – as sombras de Amon tinham
coberto a maior parte da cidade.
Dani odiava aquilo. A espera, o não saber, a tensão.
O não poder nem perguntar o que estava acontecendo,
porque ela não sabia se mandar uma mensagem para
Yuri poderia colocar eles em risco. E, se Yuri tivesse algo
para dizer, já teria entrado em contato.
Alguém bateu na porta e ela não queria nem saber
quem era. Raquel falou alguma coisa em voz baixa e
saiu. Provavelmente precisava resolver alguma coisa
envolvendo o pessoal que tinha sido evacuado para os
túneis propriamente ditos – a parte ainda mais para
baixo do complexo, onde o Setor Quatro tinha feito suas
experiências com humanos e que era muito mais
protegida que o restante do lugar. Dani tinha ouvido as
crianças chorando e as discussões, mais cedo, e não
queria chegar nem perto daquilo.
— Dani — Dante chamou.
Ela olhou para o monitor que elu indicou. Era um dos
que estava escuro, mas agora ela estava começando a
conseguir ver o céu. As sombras estavam diminuindo.
E todo mundo ali continuava sem ter nenhuma
informação.
O celular dela vibrou. Dani pegou o aparelho
depressa.

Yuri: Três vampiros. Mel e Amon estão com eles.

O que queria dizer que não ia demorar para saberem


tudo o que os vampiros sabiam.
Dani: Me avise assim que for seguro para os civis
voltarem para a cidade.

Yuri não respondeu e nem precisava. Era óbvio que


ele ia avisar.
Dani respirou fundo e encarou o último monitor que
ainda estava mostrando as sombras. Não demorou muito
para elas desaparecerem, e então ela conseguia ver
Amon parado para o lado, em uma das ruas, na sombra
de uma das casas, encarando três vampiros no chão.
Dani não tinha como saber se eles estavam ajoelhados
ou se tinham sido jogados lá, mas aquilo não importava.
E Melissa estava mais para o lado, visível através de
outra câmera, parada ao lado da parede de uma das
casas, fora do campo de visão dos vampiros.
Estava acabando. Se era um ataque, já tinha
acontecido e dado errado. E se ela estava achando que
tudo parecia fácil demais, era só porque ela estava sendo
paranoica. Não era para ter sido fácil. Só estava
parecendo porque eles tinham sido avisados antes –
porque Melissa tinha ido para o castelo de Lorde Rafael
para tentar achar traidores. Eles nunca deveriam ter
imaginado que o setor seria atacado daquele jeito.
Não era a primeira vez que os planos da criatura
davam errado. Era a terceira... Não. Era a quarta ou
quinta vez que eles conseguiam parar os planos da
criatura ou reverter a situação.
Dani deveria ter pensado naquilo antes. Levando em
conta tudo o que ela sabia, a criatura provavelmente já
estava furiosa. E, quanto mais furiosa ela estivesse...
Dani não tinha certeza de que queria ver o que podia
acontecer.
Alana estava de pé na frente da janela do seu quarto, olhando
para o céu claro. Já fazia pelo menos uma hora desde
que havia amanhecido. Ou ela achava que fazia, porque
Alana estava sem seu celular. Depois da segunda vez
que ela tinha batido ele de leve na beirada da janela,
Rafael tinha pegado o aparelho e o colocado de volta na
mesa de cabeceira sem falar nada. E Alana não tinha
discutido. Era melhor. Quando chegasse alguma
mensagem, o celular ia vibrar e ela ia ouvir.
Ela não conseguia nem pensar em como era
estranho ter Rafael ali, no seu quarto. Mesmo que fosse o
castelo dele, ele havia respeitado a distância que Alana
tinha colocado desde o começo e não tinha ido ali. Agora,
Rafael estava sentado na poltrona do outro lado do
quarto, a que ela só tinha usado para empilhar roupas,
antes. Ele havia feito questão de ficar ao lado de Alana
assim que ela tinha ido para a janela, logo antes do sol
começar a nascer, e não tinha saído dali até o pior da
tensão dela passar.
Se o ataque tivesse dado certo e a cidade do Setor
Dez tivesse sido atingida, eles já teriam ficado sabendo.
Notícias ruins viajavam depressa demais e os vampiros
fariam questão de repassar aquilo para Rafael. Então
Alana pelo menos tinha certeza de que o plano da
criatura não tinha dado certo por completo. A questão
era saber exatamente o que tinha acontecido. Se alguém
tinha sido ferido e o que tinha sido o ataque, porque Mel
não tinha conseguido detalhes.
Então Alana tinha relaxado ao menos um pouco,
mesmo que não tivesse saído da janela. E Rafael tinha
ido para a poltrona, para verificar as informações que
estavam chegando – provavelmente sobre os ataques em
outras regiões. Alana sabia que aquilo era importante,
também, mas ela só ia se preocupar com outros lugares
depois que soubesse o que tinha acontecido no Dez.
O barulho do celular vibrando em cima da mesa de
madeira era alto demais.
Alana quase se jogou na direção da cama e pegou o
aparelho.
— O que aconteceu? — Ela perguntou.
— Sem danos, sem perda de pessoal — Dani falou,
depressa. — Tivemos uns poucos ferimentos do pessoal
que ficou na cidade, mas foi tudo coisa menor. O aviso de
vocês foi o suficiente.
Alana fechou os olhos e soltou o ar devagar. Ótimo.
Ainda bem que não tinha acontecido nada.
E ela não queria ter que passar por aquilo nunca
mais – estar no Setor Um, longe de todo mundo,
enquanto o Dez era atacado e ela não podia fazer nada
para ajudar.
Quando Alana abriu os olhos de novo, Rafael estava
parado na sua frente. E a pior parte era que aquilo nem a
assustava. Depois do que ele tinha falado, de noite,
Alana já tinha certeza que ele estaria ali assim que ela
tivesse alguma notícia.
Começar a confiar em Rafael era uma garantia de
problemas, depois. Mas Alana tinha falado que ia tentar,
então...
— O que foi que tentaram? — Ela perguntou.
— Foi algo mental — Dani contou. — Três vampiros
com poderes mentais projetando medo pela cidade. O
pessoal que ainda estava lá só entrou em pânico e saiu
correndo. Se a gente não tivesse evacuado...
Um arrepio atravessou Alana. Ela não queria nem
imaginar qual ia ter sido o resultado se todo mundo
estivesse na cidade. A população toda, em pânico, saindo
das casas e correndo sem direção...
Eles teriam tido mortes. Pessoas teriam sido
pisoteadas. Pessoas teriam sido feridas e era possível até
que tivessem armas envolvidas. E, no meio do caos, os
vampiros iam poder fazer o que quisessem.
Alana não duvidava que aquele fosse exatamente o
plano. Enquanto os humanos estivessem fugindo e
presos no pânico que estava sendo projetado, os
vampiros iam fazer um massacre e o Setor Dez nunca
teria como provar o que tinha acontecido.
— Os vampiros que atacaram? — Rafael perguntou.
Dani não respondeu na hora e Alana não queria
saber se era porque estava prestando atenção em outra
pessoa, lá, ou se era porque Rafael tinha feito a
pergunta.
— Amon já cuidou deles — sua prima avisou.
— Conseguiram alguma informação nova? — Alana
perguntou depressa.
Dani soltou um suspiro.
— Melissa ainda está organizando as coisas.
E ela tinha acabado de falar o nome de Mel, depois
de todo o trabalho que Alana tinha tido para não
entregar a identidade dela para Rafael.
Ele encarou Alana. Ela balançou a cabeça de um lado
para o outro.
— Quando tiverem alguma coisa... — Alana
começou.
— Eu mando na mesma hora — Dani completou.
— Obrigada.
Dani desligou sem falar mais nada.
Alana guardou o celular no bolso e respirou fundo de
novo. Tinha dado tudo certo, pelo menos no Setor Dez.
Eles estavam seguros.
O problema era que agora ela ia ficar imaginando
que, a qualquer momento, podiam ser atacados de novo.
Até porque não fazia tanto sentido a criatura ter ido atrás
do Setor Dez. Se a intenção era se livrar de Alana, aquilo
tinha sido um desperdício, porque ela apostava que a
criatura sabia que ela não estava lá.
E ela não fazia ideia do que Rafael ia fazer agora que
sabia quem era a pessoa que conseguia ver na mente de
humanos e vampiros. Mel tinha lhe contado vezes
demais sobre como tinha escondido aquele poder por
mais de um século, porque se soubessem o que ela fazia,
ela nunca seria livre. E agora, sendo uma humana que
ainda tinha o poder de quando era vampira, Mel estava
ainda mais vulnerável.
Alana o encarou, sem falar nada, e esperou.
— Eu já suspeitava que seu contato fosse Melissa —
Rafael murmurou. — Meu pessoal ouviu boatos sobre as
habilidades dela, mesmo que ninguém saiba que ela
consegue ver na mente de vampiros, também.
Uma suspeita não era uma certeza. Ter ouvido o
nome dela naquela conversa mudava as coisas.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro.
— E ainda tem vampiros atrás dela. Klaus ainda tem
uma recompensa com o nome dela.
Rafael segurou o queixo de Alana.
— Ninguém precisa saber de onde as informações
vieram — ele falou. — A identidade dela está segura.
Não era como se ela tivesse alguma opção além de
confiar. E, pelo menos, ele não sabia que Mel não era
mais uma vampira. Aquilo era o tipo de coisa que, se
vazasse, Alana não tinha medo das consequências.
— Ela importa para você — Rafael completou. —
Então ela está segura.
Alana assentiu. Ela esperava que aquilo fosse
verdade, senão ela seria responsável por qualquer coisa
que acontecesse com Mel.
Rafael sustentou seu olhar por mais alguns segundos
e, se fosse qualquer outra pessoa, Alana ia dizer que ele
parecia até incomodado.
Ele a soltou e deu um passo atrás.
— Duas Cortes reportaram ataques — o vampiro
contou.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar antes de
assentir, de novo.
— E você precisa lidar com isso — ela falou. — Eu
sei.
E aquilo era bom, porque queria dizer que ela teria
ao menos alguns minutos para tentar colocar a cabeça
no lugar. Poderia até ser mais tempo, mas... Rafael tinha
falado que queria uma parceria. Que queria ela como sua
rainha. Então ela queria saber até onde aquilo ia – se ele
realmente estava disposto a tratar como uma parceira e
não só como um enfeite ou como alguém que só era útil
por causa do seu poder.
Rafael ainda estava olhando para ela com aquela
expressão que Alana não tinha certeza de que conseguia
entender.
— Vou estar no meu escritório — ele avisou.
A algumas salas de distância.
Alana não respondeu. Rafael inclinou a cabeça e saiu
do seu quarto sem falar mais nada.
Ela se deixou cair sentada na cama.
Era loucura – aquilo tudo, a ideia de pensar que
talvez Rafael estivesse falando a verdade, de que ele
realmente queria Alana e não só seu poder, de que ela
podia confiar nele... Aquilo era loucura. Não tinha outro
jeito de descrever. E era pior ainda porque ela queria que
aquilo tudo fosse real.
Não. Na verdade, aquela parte era o mais normal de
tudo. O problema era que Alana estava numa posição em
que uma decisão errada podia ter consequências
pesadas demais. Aquela era a maior diferença entre ela e
Dani: enquanto sua prima sempre tinha sido conhecida
como louca e encrenqueira, Alana tinha precisado
aprender depressa demais a medir o que fazia e a
calcular consequências. Ela não podia se dar ao luxo de
só fazer alguma coisa e depois lidar com o que
acontecesse. Seu poder nunca permitiria que ela fizesse
aquilo.
Seu celular vibrou. Alana pegou o aparelho, já
imaginando muito bem o que ia ver. E ela não estava
errada.

Dani: O que Lorde Rafael estava fazendo com você?

Era óbvio que sua prima não ia deixar aquilo passar.


E, por mais que Dani tivesse suas tendências a ser
protetora demais, ela ainda era sua prima e a pessoa de
quem Alana era mais próxima. Tentar esconder alguma
coisa era perda de tempo e só ia servir para render
alguma discussão depois.

Alana: Talvez eu tenha feito merda.


Dani: Te conhecendo, acho difícil.

Alana soltou uma risada abafada. Sua prima ainda


tinha algumas ilusões sobre ela.

Alana: Rafael me quer como sua rainha.


Alana: Ele fez toda uma cena sobre eu dar uma
chance de ele provar que posso confiar nele e tudo mais.
Alana: E isso depois de praticamente falar que
mudaria o mundo se eu quisesse.

Não tinha nada de "praticamente" naquilo. Era


exatamente o que Rafael tinha falado e Alana ainda
arrepiava só de lembrar da forma como ele tinha olhado
para ela enquanto falava aquilo.

Dani: Rafael, é?

Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Era óbvio


que Dani ia notar como ela não estava mais usando
títulos.

Dani: Uma pessoa me falou que, de nós duas, você


é quem foi treinada pra lidar com vampiros.
Dani: Se você acha que vale a pena arriscar, eu que
não vou discutir.
Dani: Até porque não esqueci do tanto que foi
irritante Raquel ter feito questão de ver se Amon não
estava me controlando, quando a gente começou a se
envolver.

Alana sorriu. Ela não sabia daquela parte, mas fazia


sentido. Raquel teria feito questão de ter certeza de que
Dani não estava sendo influenciada.

Dani: Então?
Dani: Por que ele estava aí?

Alana revirou os olhos.

Alana: Porque ele estava me distraindo até o


amanhecer, já que não dava pra eu fazer nada.
Dani: Distraindo, muito bom.
Dani: Quero detalhes.

E aquilo era familiar demais – o tipo de conversa que


seria normal entre elas antes de precisarem fugir.

Alana: Só se você também for me dar detalhes.


Dani: Eu te odeio.

Alana riu. Apesar de tudo, fazia muito tempo que ela


não se sentia tão leve, tão normal.

Dani: Mas eu vou falar uma coisa só.


Dani: Se tiver um espelho de corpo inteiro aí,
recomendo.
Dani: Bastante.

Um espelho de corpo inteiro? Mas vampiros não


tinham reflexos. Ou melhor, a maioria dos mais antigos
não tinham e Alana sabia que Amon era um deles. Pelo
que ela tinha notado, Rafael também. Então para quê
sua prima estava falando de um espelho naquele
contexto? Qualquer coisa que fizessem...
Um arrepio atravessou Alana quando ela entendeu o
que Dani queria dizer. Aquilo... Ok, ela nunca ia ter
pensado em alguma coisa daquele tipo, mas agora
estava mais curiosa do que deveria. E, considerando
como Rafael era na cama...
Alana: Vou lembrar disso.
Dani: Aproveite.
Dani: E se alguma coisa der errado, já sabe.
Alana: Sei.

Se alguma coisa desse errado – não no sentido


sexual – Dani ia ser a primeira pessoa a saber.
Alana encarou a janela, de novo. Ela estava
arriscando, mas era um risco controlado. E, se no fim das
contas Rafael estivesse falando a verdade... Então o risco
ia ter valido a pena.
VINTE E SETE

Rafael leu a mensagem no seu tablet pela segunda vez – uma


confirmação de que o setor de Jord havia sido atacado,
mas o dano não havia sido tão grande por causa do aviso
de evacuação. Os vampiros responsáveis haviam sido
destruídos no processo, mas Jord estava tentando
conseguir mais informações sobre o que acontecera.
Provavelmente ele queria uma forma de ligar o
ataque a Rafael. Ele podia tentar, não faria diferença
nem mesmo se conseguisse.
No tempo desde que havia saído do quarto de Alana,
Rafael havia recebido notícias de todos os setores para
os quais enviara avisos. Todos haviam sido atacados mais
ou menos ao mesmo tempo, o que era uma confirmação
de que a criatura estava naquela região, de certa forma,
porque estava seguindo o horário dali.
E, de todos os setores atacados, apenas um havia
ignorado o aviso de Rafael. Aquele Corte era de um dos
vampiros que havia sido parte da Corte do Sangue, sim,
mas que mesmo antes da volta da magia já havia se
afastado. Na época, Rafael tivera suas suspeitas de que
ele poderia se tornar um traidor. E, mesmo que aquilo
não houvesse acontecido, o fato de que um dos vampiros
que estivera lá quando eles prenderam a criatura havia
escolhido ignorar os avisos queria dizer coisas demais.
Suas fontes haviam dito que os humanos ainda
estavam tentando lidar com o fogo na cidade atacada.
Pelo que haviam contado sobre o dano, lá, era bem
possível que aquela Corte fosse ter um novo príncipe em
breve, ou então deixar de existir.
Nos outros setores, os ataques haviam sido variados.
Fogo havia sido usado mais de uma vez, assim como o
pânico, como acontecera no Setor Dez. Em outros, os
ataques haviam sido mais diretos: bombas de gás
espalhadas pela cidade.
Recursos demais espalhados demais, e na maioria
das vezes com envolvimento de vampiros. Aquilo era
preocupante.
A pior parte era o que ele não havia notado antes:
quase todos os setores atacados tinham príncipes que
haviam sido parte da Corte do Sangue, no passado.
Thales fizera aquela ligação assim que as informações
começaram a chegar. A única exceção era Jord, e o
ataque ao setor dele podia ser explicado pelo fato de que
era onde a família de Alana havia vivido por gerações.
A criatura estava tentando atingir aqueles que
haviam sido responsáveis por seu aprisionamento.
A porta do escritório de Rafael se abriu, sem
ninguém bater antes. Ele levantou a cabeça.
Alana entrou sem falar nada e atravessou o
escritório até parar de frente para a janela que dava para
o jardim queimado, para o lado e para trás da mesa de
Rafael.
— Eu nunca entendi as roseiras — ela comentou.
Rafael sorriu. Ela estava testando seus limites – o
que podia perguntar e o que ele lhe daria.
Ele notara a tensão dela quando Daniele havia
mencionado o nome da outra vampira. Era o esperado,
na verdade. Alana podia ter concordado em deixar ele
tentar provar que estava falando a verdade, mas ela
ainda não confiava. Aquilo ali, ela indo atrás dele e
fazendo aquela pergunta, era um sinal de que Alana
queria acreditar nele.
Então Rafael faria sua parte.
Ele se virou na cadeira.
— Elas eram comuns na região onde minha
propriedade ficava, no começo de tudo — ele contou. —
Por muito tempo, as roseiras foram a minha medida de
quão ruim a situação estava ficando, naquela época.
— Ter elas aqui era um lembrete — Alana falou.
Rafael assentiu.
— E eram um lembrete de como os humanos não
eram confiáveis, também — ele completou. — A mulher
que mencionei, a responsável pelo fogo, ela gostava das
rosas. Ela havia feito questão de plantar várias roseiras
pela minha propriedade.
Alana se virou para encará-lo.
Ele não precisava ter contado aquela parte. Talvez
fosse até melhor que não houvesse falado nada, porque
ele não fazia ideia de o que sua feiticeira seria capaz de
entender a partir dali. Mas ele sabia que tentar manipular
como Alana o via não levaria a lugar nenhum. Ela já
havia visto o suficiente e tirado suas conclusões.
E havia uma pergunta que precisava ser feita, agora
que ela não estava mais com a segurança do Setor Dez
ocupando sua mente.
— Se arrependeu?
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro
antes de suspirar.
— Não me arrependi — ela falou. — Posso não ter
certeza de que estou fazendo a coisa certa, mas não me
arrependi.
E aquilo era a única coisa que Rafael queria: a
chance de provar que estava dizendo a verdade quando
o assunto era Alana. Ele mudaria o mundo, se fosse o
que precisasse fazer para tê-la ao seu lado.
— Bom. Recebeu mais alguma informação da sua
prima?
Ela estreitou os olhos, daquele jeito que fazia quando
estava desconfiada. Ele sustentou seu olhar. Rafael não
ia tentar manipular Alana. Mas ele faria o que podia para
garantir que ela não se convenceria de estava
cometendo um erro – porque não estava. E se aquilo
queria dizer não insistir em nada pessoal demais por
muito tempo, que assim fosse.
— Nada ainda — Alana falou. — Mas provavelmente
precisam de algumas horas de descanso antes de revirar
a mente dos vampiros que prenderam.
A vampira precisava – Melissa. Ele deveria ter
imaginado aquilo.
Sua feiticeira olhou para fora de novo, para o jardim
queimado. Rafael queria perguntar o que ela estava
pensando, porque ela havia passado tempo demais ali,
também. Ele havia notado mais de uma vez quando
Alana usara seu poder para fortalecer as roseiras. E
agora tudo aquilo havia sido destruído.
Ele precisava mandar os jardineiros arrancarem o
que havia sobrado das roseiras mortas. Em algum
momento, Rafael com certeza faria aquilo. Mas não
ainda. Ele precisava de alguma resolução primeiro.
— Você não contou o que fez com os traidores —
Alana comentou.
Rafael sorriu. Ele deveria ter imaginado que ela não
se esqueceria daquilo, agora que não estava mais
preocupada com seu setor.
— Eles estão nos reservatórios de sangue
envenenados.
Alana se virou para ele e levantou as sobrancelhas.
Rafael deu de ombros.
— Pareceu justo usar algo feito pela criatura para
destruir aqueles que deram sua lealdade a ela — ele
completou.
Ela não respondeu, mas ele não achava que ela
estivesse chocada ou algo parecido. Não. Alana já havia
se mostrado pragmática o suficiente para entender
exatamente como aquele tipo de coisa funcionava.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Rafael
esperou.
Ela deu a volta na mesa de novo e se sentou na
cadeira do outro lado, o encarando.
— O que aconteceu nos outros setores? — Ela
perguntou.
Rafael deu um sorriso lento antes de inclinar a
cabeça de forma solene e abrir seu tablet até o tamanho
máximo da tela. Se ela queria as informações sobre os
ataques, ela as teria.
Alana não tinha imaginado que fosse ser tão simples. Que ela ia se
sentar, perguntar o que tinha acontecido, e Rafael abriria
um mapa no seu tablet, apontando cada uma das regiões
atacadas e o que havia acontecido nelas. Ela tinha
pensado que teria que insistir e já tinha uma lista de
argumentos prontos: como ela saber os detalhes seria
útil, porque ajudaria a entender como a criatura pensava
e a imaginar o que ela poderia fazer ali e tudo mais.
Mas não. Ela não tinha precisado de nada. Ele só
tinha lhe dado tudo.
Rafael a estava tratando como se ela fosse uma
igual. Depois de tudo que ele tinha contado e dos
detalhes que havia lhe dado, Alana tinha a impressão de
que nem seu pessoal mais próximo – Thales e Victor –
sabiam de tudo.
E aqueles ataques, a forma como tinham sido tão
espalhados... Aquilo não era bom. Se a criatura tinha
começado a agir mais ou menos na mesma época em
que Alana e Dani haviam chegado no Setor Dez e
ninguém tinha notado nada de diferente naquele tempo,
a quantidade de ataques agora queria dizer que ela
estava pronta para o que quer que estivesse planejando.
— Se fosse um vampiro, eu ia estar esperando um
ataque a qualquer hora — Alana comentou.
E eles tinham sido atacados de forma direta, com o
fogo. Mas aquilo tinha sido simples demais, comparado
com o que um vampiro faria numa situação daquelas.
Seria um ataque claro. Não algo que podia ser explicado
como um acidente, porque um vampiro faria questão de
deixar óbvio o que estava fazendo, como uma forma de
conseguir o respeito dos outros.
Rafael assentiu.
— A criatura é uma vampira, mas não age como uma
de nós.
Não agia, porque ela tinha sido uma bruxa antes de
tudo.
Ou talvez só não agia como um dos vampiros porque
ela tinha aprendido que não valia a pena.
Alana respirou fundo e se deixou cair para trás,
contra o encosto da cadeira. Ela só queria alguma coisa
direta. Alguma indicação do que a criatura ia fazer, uma
ideia que tivessem certeza de como ela ia reagir...
Qualquer coisa.
— Ela não vai parar — Alana falou. — Se ela
começou a agir assim depois de cinco anos na região,
sem ser notada, é porque ela sabe que não vai precisar
recuar. Ela não vai parar.
E se aquilo queria dizer um ataque grande para
destruir Rafael e Alana, ou se queria dizer que os ataques
"menores" continuariam, ela não tinha como saber. Não
tinha nem como tentar adivinhar. Mas, considerando
quantas vezes já tinham atrapalhado os planos da
criatura ou a desaviado, Alana sabia que não ia gostar do
que viria depois.
— Você estava certa quando insistiu que deveríamos
fazer alguma coisa e não só esperar ela agir — Rafael
falou.
Ela estava começando a ter suas dúvidas de que
aquilo faria alguma diferença. Mas não era como se
tivessem escolha.
Rafael encarou o mapa aberto no seu tablet de novo
e aumentou o zoom, focando na região onde estavam.
— O Dez, o Três e o Sete eu sei que estão estáveis —
ele falou. — O Dois também. O Seis...
O Seis era o setor que ninguém sabia o que esperar.
Klaus, o príncipe de lá, tinha negado que tinha uma
aliança com Dama Cordelia e o Setor Cinco. Como
Cordelia tinha desaparecido, eles não tinham a menor
chance de provar nada, mas Alana tinha ouvido
discussões demais sobre ele no Setor Dez. As opiniões
estavam divididas entre pensar que ele ia ser o covarde
que se aliaria a quem saísse por cima ou pensar que ele
era um traidor escondido e esperando a hora de agir.
De qualquer forma, ninguém confiava nele.
— Por que você não fez nada com Klaus? — Alana
perguntou.
Rafael olhou para ela.
— Porque, infelizmente, Thales me lembrou que o
Setor Seis não tem o mesmo tipo de estrutura que o
Cinco ou o Oito. Se Klaus for destruído, alguém vai
precisar estar lá para manter ordem nos vampiros.
E era óbvio que Rafael não ia "desperdiçar" algum
dos vampiros que ele confiava para colocar ordem em
um setor enquanto estavam lidando com a criatura. Fazia
sentido.
— Eu tinha pensado que Melissa... — ele continuou.
— Não — Alana interrompeu.
Rafael levantou as sobrancelhas e esperou.
— Se o que você começou a falar foi qualquer coisa
no sentido de Mel assumir o setor... — Alana falou. —
Não. Sem a menor chance.
— Tem certeza?
— Tenho.
Óbvio que tinha, porque Mel não era mais uma
vampira. E Alana ia continuar escondendo aquilo
enquanto pudesse.
E, mesmo que Mel não tivesse se tornado humana,
Alana duvidava que a outra mulher estaria interessada
em se tornar uma princesa. Não era nem uma questão
de ter ou não poder para fazer aquilo. Era só uma
questão de não querer lidar com aquela dor de cabeça
em específico.
Rafael assentiu, sem insistir. Alana continuou
olhando para ele, mesmo que o vampiro estivesse
encarando o mapa de novo. Ela não tinha esperado
aquilo. Ele só tinha aceitado, sem insistir, sem questionar
mais nada.
— O Seis é o ponto fraco, junto com Cinco e o Oito —
ele falou. — Thales tentou se livrar dos traidores nos dois
setores, mas...
Não. A criatura não ia usar os outros setores. Fazer
qualquer coisa daquele tipo ia deixar parecendo que ela
precisava de força de fora para atacar. Era diferente de
usar vampiros que haviam jurado lealdade a ela.
— O que eu queria saber é por que ela atacou o Dez
— Alana comentou. — A criatura sabe que estou aqui.
Para quê gastar recursos com o Dez e não fazer nada
aqui?
Rafael levantou a cabeça de uma vez – tão depressa
que ela não viu o movimento. No instante seguinte, ele
estava mandando mensagens no tablet, com os dedos se
movendo tão depressa que Alana não tinha a menor
chance de entender nada, mesmo que ele não estivesse
tentando esconder as mensagens.
— Ela não fez nada aqui porque queria nos separar
— Rafael falou, ainda digitando suas mensagens. —
Porque ela queria você no Setor Dez, ajudando a lidar
com as consequências do ataque. E então...
Um arrepio atravessou Alana.
— E então ela atacaria aqui — ela completou.
Rafael assentiu e se inclinou para trás na cadeira.
— Duas opções — ele avisou. — Podemos deixar
claro que você está aqui e esperar para ver o que a
criatura vai fazer agora que o plano dela falhou, ou então
podemos fazer parecer que você foi para o Dez.
Alana não precisava nem pensar.
Ela pegou seu celular.
— Tenho alguém que pode ao menos tentar se
passar por mim — ela avisou. — Mas vou precisar de
algumas garantias.
Rafael sorriu.
— Qual é o poder da sua amiga bruxa da minha
cidade?
Alana levantou uma sobrancelha e não respondeu.
Não cabia a ela contar que Silvana lidava com ilusões de
poder – com camuflar a própria existência do poder de
alguém. Nem Alana sabia exatamente como aquilo
funcionava e não importava. A questão era que talvez
fosse o suficiente para enganar a criatura por algum
tempo.
Rafael balançou a cabeça devagar quando ela não
respondeu.
— Eu fiz um juramento de que quem nos ajudar
agora vai estar seguro — ele falou. — Isso vai valer para
sua amiga, também. E, se precisar de mais alguma
coisa... Pode prometer o que for necessário. Eu vou
cumprir.
Um arrepio atravessou Alana. Aquilo era o tipo de
coisa que ela nunca tinha esperado.
— Você sabe para quem está falando isso — ela
avisou.
Rafael inclinou a cabeça para a frente, de forma
solene.
— É exatamente por saber que estou oferecendo
isso.
Ela respirou fundo. Aquilo era... Assustador não era a
palavra certa, mas era a única que ela conseguia pensar.
Mas Alana não desperdiçaria aquilo.
Ela pegou o celular e começou a digitar uma
explicação da situação.
VINTE E OITO

Nenhum ataque tinha acontecido.

Alana colocou a mão na janela da torre e apoiou a


testa no acrílico grosso. Já fazia dois dias desde os
ataques nos setores. Dois dias desde que Silvana estava
no Setor Dez, usando os vestígios do poder de Alana para
se passar por ela, enquanto a própria Alana fazia questão
de não ser vista no castelo de Rafael. E nada.
E o pior de tudo era não saber. Eles não tinham como
ter certeza de que a ideia era separá-los, mas também
não tinham como saber se não era. Não podiam relaxar
os alertas, porque era possível que a criatura fosse
atacar a qualquer instante.
Mel tinha trabalhado com Amon para conseguir tudo
o que os três vampiros capturados sabiam, e não havia
sido muita coisa. A criatura havia sido inteligente demais
naquele ponto: os vampiros sabiam qual era o seu papel
ali e sabiam que havia mais vampiros responsáveis por
outros ataques. Mas não tinham detalhes de nada.
Por algum tempo, depois de ter ficado sabendo
daquilo, Alana tinha pensado que talvez os traidores no
castelo tivessem sido plantados. Talvez a criatura
quisesse que os ataques fossem parados. Mas Alana não
conseguia pensar em nenhum motivo para aquilo, então
tinha deixado a ideia de lado, porque provavelmente era
só paranoia.
O que não era paranoia era a certeza de que
precisavam fazer alguma coisa antes da criatura agir,
porque mais cedo ou mais tarde eles não conseguiriam
conter os ataques.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar, olhando
para baixo. O que ela conseguia ver do jardim, perto dos
muros, estava normal. Não tinha nenhum dos postes com
vampiros empalados. E era estranho pensar que ela não
teria se surpreendido se um dos postes ainda estivesse
lá.
Rafael colocou uma mão no seu ombro – e o fato de
que ela não precisava se virar para ter certeza que era
ele, junto com como não tinha nem se assustado, dizia
muito. Talvez confiar fosse a maior burrice que Alana já
tinha feito, mas ela não conseguia evitar. Ela tinha feito
de tudo para manter sua distância, para lembrar a si
mesma de por que aquilo era uma má ideia, e não havia
sido o suficiente.
Ela queria acreditar que aquilo era real. Que as
promessas de Rafael não eram só manipulação, que a
forma como ele sempre a tocava como se fosse algo
precioso não fosse só um jeito de ganhar sua lealdade. E
Alana se recusava a pensar em como tinha sido aquelas
vezes, primeiro quando Rafael havia feito ela gozar para
recuperar seu poder, e depois aquela madrugada no seu
quarto. Ela não sabia se achava bom ou ruim ele ter
passado os dias anteriores lidando com os vampiros das
outras regiões e garantindo que eles estariam prontos se
a criatura mandasse mais alguma coisa, ou então
cuidando dos problemas de sempre do Setor Um.
Tinham sido dois dias em que, quando ela via Rafael,
era em momentos como aquele, quando ele tinha um
pouco de tempo entre uma coisa ou outra e ia atrás dela
na torre. O problema era como Alana sempre ficava
satisfeita demais quando ele aparecia por perto de onde
estava.
Se no fim das contas aquilo tudo fosse manipulação,
Alana não tinha certeza do que ia fazer. Mas ela sabia
que ia arrancar sangue de Rafael, de uma forma ou de
outra, porque descobrir que tudo tinha sido mentira ia
quebrar algo dela, sim.
Ele colocou a outra mão no seu ombro e apertou.
Alana respirou fundo e fechou os olhos.
Rafael riu baixo e começou a massagear seus
ombros. Não era nenhum segredo que ela estava tensa
demais – Alana não se lembrava de quando não tinha
estado tensa – e a sensação dos dedos dele no alto das
suas costas e depois atrás do seu pescoço era boa
demais.
— Não vai demorar muito para isso acabar — ele
falou.
Alana soltou o ar com força.
— Isso não é tão animador assim, sabe.
Porque "acabar" queria dizer que teriam enfrentado
a criatura. Era o único jeito.
— E você nunca me contou exatamente o que vocês
fizeram para prender ela no passado — ela completou.
Rafael parou o que estava fazendo por um instante.
Alana fez um ruído irritado e ele continuou com a
massagem.
— Eu te dei a base do que fizemos. Vários vampiros
reunidos, usando nossa magia para conter e consumir o
poder dela e então criar uma teia que seria alimentada
por qualquer coisa que ela fizesse — ele falou. — Um
loop, de certa forma. A base do poder a aprisionando era
fixa e era o que a Corte do Sangue guardava. Mas, se ela
tentasse absorver mais poder, aquilo alimentaria a
barreira até que ela não conseguiria mais sentir nada ao
seu redor.
Alana olhou para baixo, de novo. Dali não dava para
ver a parte do jardim mais perto das paredes. E, mesmo
que desse, era a direção errada para ver os restos das
roseiras.
— Você usava as roseiras para medir a força da
barreira — ela falou. — Não era só antes de prenderem a
criatura.
Rafael apertou um ponto no alto das costas dela que
fez Alana fechar os olhos de novo. Aquilo era melhor do
que deveria ser.
— Sim — ele confirmou. — As roseiras eram a minha
medida do que a criatura estava fazendo.
— E isso ainda não explica como vocês fizeram isso.
Ele deu uma risada baixa que fez um arrepio
atravessar Alana. A última vez que ela tinha ouvido
aquela risada, eles estavam no quarto dela, esperando o
amanhecer.
— Você aprendeu sobre a magia de sangue — Rafael
falou.
Não era uma pergunta, mas Alana assentiu, ainda
olhando pela janela.
— Havia o suficiente de nós para criar uma
armadilha — ele continuou. — A criatura ainda estava
tentando me convencer a me aliar a ela, na época. Os
outros amplificaram a minha habilidade e foi assim que a
prendemos fisicamente.
Um arrepio atravessou Alana. Ela não tinha se
esquecido da sensação do poder de Rafael a prendendo.
Ele parou a massagem.
— Quando eu te prendi, foi porque pensei que era
uma ameaça — Rafael murmurou. — Tudo indicava que
você colocaria meus planos em risco e acabaria com as
chances de conter a criatura, de novo. Eu não faria a
mesma coisa de novo, agora.
Alana respirou fundo e se virou. Já que ele estava
tocando naquele assunto...
— Nem mesmo se eu me tornasse uma ameaça? —
Ela perguntou.
Rafael inclinou a cabeça e segurou seu queixo. Um
dia ela ia entender por que ele gostava tanto de fazer
aquilo.
— Nem mesmo se você se tornasse uma ameaça —
ele respondeu. — Eu sei o que quero, bruxinha.
Alana se forçou a não desviar o olhar do dele.
Quando ele falava alguma coisa daquele jeito, com tanta
certeza e a encarando com aquela expressão, não tinha
como ela duvidar.
E ela não deveria ter levado a conversa para aquele
lado.
— A criatura?
Rafael deu um meio sorriso, quase como se
entendesse o que ela estava tentando fazer, e a soltou.
— Nós drenamos o seu poder — ele contou. — Se
quiser os detalhes de como isso foi feito, vou lhe dar. Mas
você não precisa saber. O importante é que, em teoria,
isso pode ser repetido. Alguns dos vampiros que estavam
comigo naquela noite ainda existem e você os conheceu,
no baile. Eles estão avisados de que posso precisar deles.
Se Rafael estava falando que ela não precisava
saber, Alana não queria nem imaginar o que tinha sido
necessário.
Ou melhor, ela conseguia imaginar e realmente não
queria detalhes.
Mas ao menos aquilo queria dizer que tinham uma
chance.
O celular de Alana vibrou. Ela o pegou e se sentou na
beirada da janela. Rafael ainda estava perto demais, e de
alguma forma aquilo tinha deixado de ser um incômodo.
Ela queria ele perto demais.
Alana estava ferrada e sabia.
Era uma mensagem de Silvana – o que queria dizer
que a bruxa provavelmente já estava de volta no Setor
Um, depois que tinham decidido que não valia a pena
manter ela no Dez.
Ela abriu a notificação.

Silvana: A cidade está tensa.

Alana encarou a mensagem e respirou fundo. Silvana


sabia que ela estava trabalhando com Rafael, pelo
menos naquele assunto. E sabia que Alana não podia lhe
dar mais informações do que havia dado dois dias antes.
Mas a outra bruxa tinha entendido o risco e, se estava
fazendo questão de avisar que a cidade estava tensa, era
porque a situação estava passando do normal.

Alana: Não só a cidade.


Silvana: Então os boatos sobre Lorde Rafael ter uma
rainha são verdade?

Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.


Silvana não estava perguntando sobre Alana ser
considerada a rainha de Rafael ou não. Ela estava
perguntando se Alana estava virando as costas para os
humanos e se aliando aos vampiros.

Alana: Talvez. Mas uma bruxa sempre é uma bruxa


em primeiro lugar.

E, desde a volta da magia, elas haviam sido a maior


defesa da humanidade – porque eram as únicas pessoas
que podiam fazer alguma coisa e sobreviver. Era
exatamente aquilo que seu pai tinha tentado fazer e era
o que ela faria, também.
Silvana não mandou mais nada.
Alana levantou a cabeça para encarar Rafael. Ele
ainda estava parado no mesmo lugar, olhando para ela.
— Os humanos do seu setor estão tensos — ela
avisou. — Eles sabem que alguma coisa vai acontecer.
Rafael olhou para o celular na mão de Alana antes de
encará-la de novo.
— A bruxa?
Ela assentiu.
— Se a população humana do setor decidir ajudar a
criatura, teremos problemas — o vampiro falou.
Alana não tinha nem pensado naquela possibilidade,
mas ele estava certo. Com os argumentos certos, a
criatura não ia ter nenhuma dificuldade em convencer os
humanos a ajudarem. Era só prometer mudanças.
— Eu posso pedir Silvana para me avisar se ela ficar
sabendo de alguma coisa nessa direção — Alana
começou. — Mas se isso acontecer, vou precisar de
autoridade para dar alguma garantia ou fazer alguma
proposta que seja melhor que as da criatura.
Rafael fez um ruído irritado e parou ao lado de Alana,
olhando para fora.
— Eles não deveriam precisar de garantias.
Típico. Mas aquilo não era uma recusa.
— Claro que não, porque os vampiros sempre
cumprem sua palavra, não é? — Alana falou.
Rafael se virou para ela. Alana deu de ombros. Ela
não estava errada em falar aquilo, porque os vampiros
faziam de tudo para não cumprir suas palavras, quando
humanos estavam envolvidos. Era a mesma coisa que
Rafael tinha feito: ele tinha seguido exatamente o que
estava no contrato entre eles, enquanto já tinha planos
anteriores que colocavam o Setor Dez em risco.
— Dê as garantias que precisar.
Um arrepio atravessou Alana. Ele realmente tinha
falado aquilo.
E não era a primeira vez. Ele tinha falado para ela
dar as garantias que precisasse para Silvana. Mas era
muito diferente dar garantias para uma pessoa e para
uma cidade inteira. Um setor inteiro.
— Você sabe para quem está falando isso — ela
avisou. — E se eu der alguma garantia, vou passar até
por cima de você para manter minha palavra.
Rafael inclinou a cabeça para a frente, com o
começo de um sorriso nos lábios.
— Você não vai precisar passar por cima de mim.
Alana continuou olhando para ele, sem nem saber
como responder.
O vampiro se endireitou de uma vez e se afastou.
— O que houve? — Ela perguntou.
Rafael levantou uma mão, pedindo para ela esperar,
e pegou seu tablet.
Alguma mensagem, então.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar enquanto
a expressão de Rafael ficava dura.
— Thales tem informações — ele contou.
E, se Rafael tinha ficado tenso daquele jeito, não era
nada à toa. Eram informações que podiam fazer a
diferença.
— O que... — ela começou.
O celular de Alana tocou.
Ela pegou o aparelho e encarou a tela. Dani. Sua
prima não ia ligar sem um ótimo motivo.
Rafael assentiu.
— Se for algo que preciso ouvir, vou estar no meu
escritório — ele avisou.
E, se não fosse, Alana iria atrás dele quando aquela
conversa terminasse.
Ela assentiu.

Rafael pegou outro tablet, o sincronizou com o que estava usando


e abriu em cima da mesa. Um mapa da região apareceu
nele, com as marcações dos pontos mais importantes ali
e o que sabiam das movimentações e ataques da
criatura. O outro tablet foi para o suporte em cima da
mesa. Segundos depois, a tela brilhava com a ligação de
Thales.
Na maior parte do tempo, Rafael não tinha muita
paciência para aquele lado da tecnologia. Mas ele não
negaria que, às vezes, aquilo tudo era útil. Era mais fácil
ver uma área grande no tablet do que no computador –
até mesmo porque a tecnologia dos tablets havia
evoluído muito mais nos anos antes da volta da magia e
depois, porque era o que os vampiros preferiam. E era
muito mais rápido falar com Thales em tempo real do
que trocar mensagens enquanto tentavam organizar o
que tinham e definir um plano funcional.
O rosto de Thales apareceu no tablet no suporte.
— Ainda estou recebendo as informações — ele
começou. — Mas parece que realmente houve uma
movimentação recente pelas terras de ninguém, vindo
na direção do Setor Oito, mas ninguém viu nada.
Rafael encarou as mensagens que Thales havia
enviado logo antes, e que agora estavam aparecendo em
um dos cantos da tela do tablet aberto sobre a mesa. O
que estava ali eram os detalhes do que o pessoal do
outro vampiro havia encontrado: marcas da passagem de
um grupo grande, se movendo numa linha quase
paralela à fronteira com o Setor Nove e depois com o
Oito, longe o suficiente para as patrulhas normais não a
notarem.
Mas, mesmo que tivessem passado a maior parte do
tempo longe, não fazia sentido um grupo tão grande
simplesmente não ser visto. Aquilo já seria um problema
mesmo que eles não tivessem virado na direção do Oito,
deixando aquela trilha pelo caminho e sem serem vistos.
— Dois dos meus vampiros foram estudar a trilha
que eles deixaram — Thales continuou. — Encontraram
sinais de carniçais, também.
Porque a forma como carniçais se movia deixava
rastros diferentes de pessoas andando, ou até mesmo de
animais...
A criatura havia usado tanto carniçais quanto
animais corrompidos, antes.
— Algum sinal de animais corrompidos? — Rafael
perguntou.
Na tela do tablet, Thales balançou a cabeça de um
lado para o outro.
— Não, mas isso não é uma garantia. As terras de
ninguém sempre têm rastros de animais corrompidos.
O que queria dizer que era possível que eles
estivessem sendo levados junto com aquele grupo,
também.
E era um detalhe que Rafael havia deixado passar.
Ele havia pensado que a criatura havia passado algum
tempo ali esperando, absorvendo poder e se preparando.
Construir as alianças que ela havia feito, de forma que
três setores estivessem dispostos a trabalhar juntos para
atacar o Setor Três, não havia sido algo simples.
Mas ele havia se esquecido dos detalhes que nunca
haviam sido explicados. Os carniçais no Setor Cinco, que
haviam sido destruídos pelo pessoal do Dez e do Três.
Ninguém nunca descobrira quando eles haviam
começado a ser feitos e tinham apenas uma suposição
sobre o que seria feito com eles: usados para atacar o
Três. Mas era possível que fosse mais.
E, depois, os animais corrompidos na fronteira entre
o Setor Três e as terras de ninguém. A forma como
Cassius os controlava.
Em teoria, não era possível criar carniçais em cinco
anos. Mas, em teoria, animais corrompidos também não
podiam ser controlados e haviam sido, sem a menor
sombra de dúvida. Então Rafael não podia descartar a
possibilidade de que tudo aquilo, desde o começo,
tivesse o toque da criatura.
Era bem possível que o aumento na quantidade de
animais corrompidos também houvesse sido culpa dela,
pensando bem.
E aquilo tudo queria dizer que a criatura não havia
passado os anos ali apenas se preocupando em
convencer vampiros e humanos a lhe darem sua
lealdade, construindo uma base de poder para depois
agir. Não. Ela havia chegado ali já com algum tipo de
base de poder e usado aquilo para conseguir a lealdade
de pessoas demais da região. Ou talvez não a lealdade.
Algumas pessoas, como Cassius, com certeza haviam
sido apenas compradas.
Rafael deveria ter notado aquilo. Ele tinha certeza
que, se parasse para analisar tudo o que acontecera nos
cinco anos anteriores, ele encontraria sinais do que a
criatura estava fazendo. Ele havia relaxado – e agora era
tarde demais para voltar atrás.
— O que mais? — Rafael perguntou.
— Continuamos sem ter o menor sinal do grupo que
criou os rastros — Thales falou. — Tenho alguns vampiros
tentando seguir a trilha depois que entraram no Setor
Oito, mas eles estão sendo cuidadosos demais para
darem alguma resposta rápida. Até o momento, não
encontraram nada.
E, quando encontrassem, demoraria mais ainda para
saberem, porque o mais provável era que os vampiros
apenas desapareceriam. Mas Rafael não diria como
Thales precisava fazer seu trabalho. O outro vampiro
sabia o que estava fazendo.
— Mas encontrei uma possível localização para onde
a criatura está — Thales continuou.
Aquele era o maior motivo para a ligação, então.
— No Oito existem alguns registros de comércio com
um enclave humano nas terras de ninguém, no passado.
Os registros pararam cerca de seis anos atrás, sem
explicação.
O tablet de Rafael apitou com mais uma mensagem
chegando e ele abriu a localização ali.
Aquilo poderia ser a resposta. Grupos humanos
vivendo nas terras de ninguém sempre haviam existido –
os que se recusavam a aceitar os termos para viver em
um dos setores e dar seu sangue para os vampiros. A
maioria dos grupos desaparecia depois de alguns anos,
destruída pelos animais corrompidos ou por algum
vampiro se aproveitando do fato que eles não tinham
proteção. Mas, às vezes, um grupo se tornava grande o
suficiente para se manter por gerações. Eles eram raros
mas existiam.
No passado, Rafael dera autorização para a criação
do Setor Dez porque sabia que Raquel seria capaz de
criar um daqueles enclaves. Era mais fácil tê-la onde ele
poderia acompanhar o que estava acontecendo do que
nas terras de ninguém, com todo o potencial que ela
tinha para atrair bruxas fortes demais.
Rafael encarou o mapa na sua mesa e a localização
que Thales havia indicado. Não havia nada no seu mapa,
mas aquilo não era uma surpresa. Os vampiros
raramente se davam ao trabalho de mapear enclaves
humanos.
— Não tenho nada exato — Thales contou. — Isso é o
mais próximo que consegui calcular de onde o enclave
era, mas não tenho como mandar pessoal para as terras
de ninguém.
Não. O risco era grande demais. Eles não
desperdiçariam pessoal só para ter uma confirmação da
posição de um lugar que provavelmente não existia mais.
Rafael reduziu o tamanho do mapa, até conseguir
ver o lugar indicado na mensagem de Thales. Era na
direção do Setor Oito, sim, mas era afastado o suficiente
da região para não estar nem perto das áreas onde os
vampiros ainda patrulhavam, às vezes.
E era na direção do setor de onde Alana havia vindo.
Ele reduziu o mapa ainda mais, até conseguir ver a
maior parte do país – do que antes havia sido um país.
Agora, não havia nenhum tipo de governo ou
organização que estivesse acima da autoridade das
Cortes.
Em uma linha reta, saindo da região onde Alana
havia crescido e indo na direção de onde estavam,
ninguém passaria por aquele enclave. Mas ela e a prima
haviam fugido. Jord mandara vampiros atrás delas por
anos, antes de desistir. Elas não teriam seguido em uma
linha reta. E, mesmo que não tivessem passado por
aquele enclave, o fato de estar naquela direção era uma
confirmação de que a criatura estava rastreando Alana,
desde o começo.
— Podemos presumir que o enclave foi destruído,
então, se o comércio foi interrompido sem nenhum
motivo — Rafael falou.
No tablet, Thales assentiu.
O outro vampiro não precisava dizer por que aquilo
era relevante. Um enclave grande o suficiente para
negociar com o setor teria uma população considerável,
para as terras de ninguém. E eles já sabiam que a
criatura conseguia consumir o poder de humanos. Os
mortos nos setores Oito e Nove eram prova daquilo.
A criatura provavelmente havia usado o poder
consumido dos humanos daquele enclave para criar seus
carniçais e animais corrompidos – e para o que mais
houvesse preparado. E aquilo tudo queria dizer que ela
com certeza estava mais forte que no passado. Na época
em que Rafael a prendera, ela não conseguia atingir
humanos. Ela tinha tentado, para se defender, e não
conseguira.
O poder dela havia aumentado com a volta da
magia. E havia sido fortalecido com as vidas que ela
consumira.
Mas a força dos vampiros em quem Rafael confiava
continuava a mesma, porque magia de sangue era uma
ferramenta, não uma habilidade ou um poder por si só.
Se ele quisesse conter a criatura, teria que encontrar
uma forma de compensar aquela diferença.
— Ela pode estar usando o que restou do enclave
como uma base — Thales falou.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Ela é arrogante demais para isso.
Aquilo era uma das poucas coisas que ele diria com
certeza, pelo que se lembrava de como tudo havia
acontecido, antes. A criatura podia até ter sido uma
bruxa, mas também havia sido acostumada com o luxo.
Mesmo na época em que ela tentara ganhar Rafael, ela
questionava a forma como ele interagia com os humanos
da sua propriedade. Para ela, aquilo tudo estava abaixo
de um lorde e, principalmente, abaixo de um vampiro.
Ela não ficaria nas ruínas de um enclave humano nas
terras de ninguém.
Mas ela estaria por perto do lugar que havia sido sua
fonte de poder. Ou que podia continuar sendo sua fonte
de poder, se algum dos humanos houvesse sobrevivido.
Não. Não havia um "se" naquilo. Ela teria humanos
por perto, com toda certeza. Sobreviventes do enclave,
pessoas capturadas ou convencidas a se sacrificarem,
não importava. A questão era que a criatura faria
questão de ter mais combustível para o seu poder.
— Você disse que tinha um plano inicial — Rafael
falou. — Me dê os detalhes.
Thales assentiu. Um instante depois, as mensagens
subiram no segundo tablet de Rafael e ele começou a
ligar as localizações às suas posições no mapa.
VINTE E NOVE

Alana entrou no escritório de Rafael sem bater. Ele estava


sentado na sua cadeira, com o tablet em um apoio em
cima da mesa e aparentemente em ligação com alguém.
Ou um dos vampiros dos outros setores ou Thales. Se ela
precisasse apostar, diria que era Thales.
Rafael olhou na direção dela e indicou a cadeira na
frente da mesa com um gesto. Ela fechou a porta atrás
de si e foi na direção da mesa.
— Não tenho certeza sobre essa localização — Rafael
falou.
Alana levantou a cabeça depressa, mas ele não
estava falando com ela. Provavelmente era Thales no
tablet, então, e Rafael tinha outro tablet aberto no
tamanho máximo sobre a mesa, mostrando um mapa da
região – o mesmo mapa que eles haviam usado dias
antes, quando estavam tentando começar a fazer planos.
Se aquilo estava ali, então Thales ou tinha
encontrado alguma informação boa o suficiente para
montarem um ataque, ou então tinha achado algum
problema grande o suficiente para precisarem dar um
jeito naquilo mesmo sem ter informações.
Considerando o motivo da ligação de Dani – um
aviso de que Alex tinha sentido o poder da criatura se
espalhando na direção do Setor Dez de novo, e que
agora não parecia ser nada acidental – Alana estava
torcendo para Thales ter informações. Torcendo, mas não
exatamente tendo esperanças.
Alana se sentou e se inclinou para a frente,
encarando o mapa. Ela não ia interromper o que estavam
falando. Era mais fácil esperar Rafael e Thales
terminarem o que estavam organizando e depois
acrescentar o que ela sabia. E, enquanto esperava, ela
podia tentar entender o que estavam planejando.
Eles haviam marcado um lugar nas terras de
ninguém. Alana não era boa o suficiente em se localizar
em mapas para ter certeza de onde aquilo era, mas era
na direção do Setor Oito. A direção de onde o poder da
criatura estava vindo. E Rafael também tinha marcado
um caminho através do Setor Nove, até a fronteira com o
Um e um pouco mais para dentro do setor.
Não.
Ela se levantou e se debruçou sobre a mesa. O que
estava ali... Alana queria estar entendendo aquilo errado.
Thales estava falando, mas ela não estava prestando
atenção. O que importava era o que aquele caminho
passava perto demais de duas vilas humanas.
Não importava o que fizessem, se tirassem a criatura
de onde ela estava se escondendo, ela não passaria tão
perto de humanos e os deixaria vivos.
— Não — Alana murmurou.
Rafael parou de falar e olhou para Alana. Ela
sustentou seu olhar e balançou a cabeça de um lado
para o outro.
— Não — ela repetiu. — Não assim.
Ele continuou olhando para ela por alguns instantes
antes de inclinar a cabeça e indicar a marcação nas
terras de ninguém.
— Tudo indica que a criatura usou um enclave aqui
para se fortalecer — Rafael contou. — O mais provável é
ela ter continuado por perto.
Um arrepio atravessou Alana. Ela teria continuado
por perto, sim, se estivesse usando as pessoas lá para
aumentar seu poder. As consumindo, da mesma forma
que tinha feito com o casal morto no Setor Nove.
Ele sabia que a criatura ia fazer aquilo, e mesmo
assim...
— Não — ela repetiu.
— Já estamos com tudo em posição... — A voz de
Thales veio do tablet.
Rafael levantou uma mão, sem desviar o olhar do de
Alana.
— Entrarei em contato depois.
Ele continuou sem desviar o olhar enquanto esticava
uma mão e encerrava a ligação.
— Tem uma vila grande aqui — Alana falou,
apontando. — Outra menor aqui. E esse caminho aqui
passa por duas plantações que são vitais para a região.
Rafael assentiu.
Ele sabia. E sabia o que a criatura ia fazer. O que
queria dizer que aquele plano tinha sido feito contando
com sacrifícios. Não seriam só as pessoas naquelas vilas
a pagar. Toda a população humana da região ia notar as
consequências de perderem aquelas plantações.
— Tem um grupo grande se movimentando — Rafael
contou. — O pessoal de Thales achou as trilhas deles nas
terras de ninguém e depois na direção do Setor Oito, mas
não têm como saber exatamente o que está se movendo,
porque ninguém viu nada e rastros nas terras de
ninguém não deixam tantos sinais.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Ela ia
esperar as explicações, primeiro.
— Esse grupo inclui carniçais e possivelmente
animais corrompidos — Rafael continuou. — E é bem
possível que a criatura esteja por trás da criação dos
carniçais na região, nos últimos anos.
— E do aumento nos animais corrompidos — Alana
murmurou.
Ele assentiu.
— O que quer que seja esse grupo se movendo, nós
precisamos chamar a atenção deles. É melhor lidar com
um ataque esperado do que com a surpresa quando eles
chegarem onde quer que estejam indo, especialmente se
ninguém consegue ver esse grupo.
Um arrepio atravessou Alana. Considerando o aviso
de Alex, ela tinha suas suspeitas sobre para onde
estavam indo.
— Então vocês têm uma forma de chamar a atenção
desse grupo — ela falou. — Alguma isca, provavelmente.
Era o que ela faria, se precisasse pensar em alguma
coisa depressa e sem mais informações.
Rafael assentiu.
— E as vilas humanas no caminho? — Alana
perguntou.
— Incentivo.
Incentivo. Sacrifícios.
— Não — ela falou.
Rafael inclinou a cabeça.
— É a única forma de termos certeza de que a
armadilha pode dar certo — ele insistiu. — Se formos
cuidadosos demais e não houver nada no caminho ela
vai saber que entendemos como seu poder funciona. Ela
estará mais preparada para nos enfrentar e isso caso se
aproxime. É possível que ela entenda o nosso cuidado
como um sinal de que o risco para ela é alto demais.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Ele tinha
um bom ponto. E qualquer outro caminho daquele lugar
nas terras de ninguém até o Setor Um passaria por perto
de mais plantações.
Mas não precisava ser ali. Não precisava ser na
direção do Setor Um, ainda mais se aquele grupo já
estava se movendo na direção do Setor Dez – que era o
que parecia. Aquele era o motivo para Alex ter sentido o
poder.
— Tem outra opção — ela começou.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— Eu e os outros vampiros responsáveis por prender
a criatura vamos precisar dessas vilas.
Alana o encarou, sem ter certeza do que tinha
ouvido.
Os vampiros iam precisar da vila.
Os vampiros que iam usar magia de sangue... E
Alana sabia o suficiente sobre a magia deles para
entender o que aquilo queria dizer.
Ela não tinha esperado aquilo. Talvez fosse
ingenuidade sua, mas... Não daquele jeito. Não de
surpresa.
— Para alguém que fez tanta questão de dizer que o
que a criatura faz não é parecido com o que os vampiros
fazem, você não está tendo o menor problema em agir
exatamente como ela — Alana falou.
Ela não sabia como sua voz não tinha quebrado.
Como ela não estava xingando Rafael de todos os
nomes, no mínimo. E definitivamente não fazia ideia de
como ainda estava sentada ali, se forçando a continuar
impassível.
Rafael estava planejando sacrificar as pessoas
daquelas vilas.
Ele e os outros vampiros iam usá-las para se
fortalecerem, exatamente do mesmo jeito que a criatura
estava fazendo. Talvez não exatamente, mas a ideia por
trás da coisa era a mesma.
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro
com força. Só sair dali não ia resolver nada. Seria a
sentença de morte daquelas vilas.
— Eu prefiro mil vezes ser uma isca do que esse seu
plano — ela falou.
Rafael fechou as mãos com força.
— Eu não vou aceitar você se arriscando assim.
Era fácil para ele falar, quando estava escolhendo
quem viveria e quem morreria.
Ela sorriu.
— Não cabe a você aceitar ou não.
Rafael se inclinou na direção dela, quase como se
quisesse segurar Alana, e então parou.
Ótimo, porque ela não tinha certeza de como
reagiria.
— Entre sacrificar alguns e deixar a criatura fazer o
que quer... — ele começou.
— Não precisamos sacrificar alguns — Alana insistiu.
— Eu posso ser a isca que vai fazer a criatura sair de
onde está se escondendo. Você sabe disso. Ela veio para
cá por causa do meu poder. Fui eu quem derrubei tudo
que ela tentou fazer até agora. É mais que o suficiente,
sem precisar de nenhum incentivo.
Alana só ia ter que descobrir um jeito de ficar viva
quando a criatura focasse nela, mas era melhor que a
opção. Muito melhor.
Rafael balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar.
— Isso não muda o fato de que não temos força o
suficiente para conter a criatura sozinhos — ele contou.
O que queria dizer que, mesmo que Alana fosse a
isca, os vampiros precisariam de mais sangue para se
fortalecer. Eles precisariam de vidas, também, e não
tinha nada que ela pudesse fazer para mudar aquilo.
Não. Aquilo era o que Rafael pensava, porque para
ele era fácil sacrificar alguns humanos. Cinquenta
pessoas a mais ou a menos no setor não iam fazer a
menor diferença... E Alana não sabia a população das
vilas. Podia ser mais.
— É a única opção? — Ela perguntou.
Rafael a encarou e não respondeu.
— Destruir as plantações e sacrificar as vilas é a
única opção, ou é só a mais fácil e conveniente? — Alana
insistiu.
Ele não respondeu.
E aquilo era uma resposta por si só. Ele e Thales
provavelmente não tinham nem pensado em outra
opção. Os humanos estavam ali, eram combustível fácil,
então pronto.
Ela se levantou.
— Se o único jeito de conter a criatura for esse, eu
não vou questionar — Alana falou. — Mas se isso for a
primeira opção e não tiverem nem pensado em outra
possibilidade...
Ela parou de falar e respirou fundo antes de se virar
e ir na direção da porta.
Alana tinha feito a loucura. Ela tinha confiado. E
Rafael tinha cumprido sua palavra, sim. Mas aquilo ali...
Ela não sabia como lidar com aquilo.

Rafael continuou olhando para a porta que havia sido fechada


suavemente. Alana não estava furiosa. Ele já conhecia
aquela sensação bem demais, a forma como ela reunia
poder de forma quase inconsciente. Ali, não houvera
nenhum sinal de poder. Só uma expressão que Rafael
esperava não ver nunca mais: decepção.
O pior era não poder dizer que ela estava errada.
Usar as vilas como uma forma de se fortalecerem havia
sido a primeira opção de Rafael e Thales. Os vampiros
que haviam sido parte da Corte do Sangue na época em
que Rafael prendera a criatura já estavam avisados da
possibilidade de serem necessários. Era natural pensar
apenas em fortalecer o que eles podiam fazer, porque
era algo que já sabiam que funcionava. Seria um risco,
porque não havia como saberem exatamente quão forte
a criatura estava, mas era um risco que valia a pena.
Mas não valia se aquela seria a reação de Alana.
Ela não o pararia. Se Rafael dissesse que aquela era
a única opção, ela faria o que precisava. Eles conteriam a
criatura, talvez até mesmo a destruiriam.
E depois ele perderia Alana, porque ela nunca o
perdoaria se algum dia descobrisse que os sacrifícios não
haviam sido necessários.
Não. Aquele era um preço alto demais.
O que queria dizer que Rafael precisava encontrar
outra forma de lidar com a criatura e depressa. Mas ele
não conseguia imaginar outra forma de conter a criatura
e muito menos de enfraquecê-la o suficiente para terem
uma chance de destruí-la.
Ele não tinha outra forma de fazer aquilo. Ter Alana
ali era o mais perto que Rafael havia conseguido chegar
de encontrar uma forma de lidar com a diferença entre o
antes e o depois da volta da magia. Alana, com seu
poder que era um reflexo do poder da criatura, conseguia
anular o que ela fazia. Mas não era o suficiente. Mesmo
se Rafael ainda tivesse a Corte do Sangue como era no
passado, com todos os vampiros experientes em magia
que haviam se juntado a ele...
Os vampiros não eram o suficiente. Então ele
precisava pensar além deles.
Rafael pegou seu celular. Ele podia odiar partes da
tecnologia, mas não negava sua utilidade. E, desde o
começo, ele fizera questão de ter uma forma de entrar
em contato com todos os líderes de setores – incluindo
Raquel, no Setor Dez.
Ele fez a ligação e se inclinou para trás na cadeira,
esperando.
— O que você quer? — Raquel falou assim que
atendeu.
Rafael sorriu. Ele havia se esquecido de como ela era
direta ao ponto, quando estava lidando com ele. Ele não
precisava se preocupar com todos os detalhes e
comentários inúteis antes de chegar na parte que lhe
interessava.
— Uma forma de conter uma criatura que consome a
vida ao seu redor e enfraquecê-la o suficiente para poder
ser destruída — ele falou.
Raquel não respondeu, mas ele ainda estava ouvindo
o som da respiração da bruxa do outro lado da linha.
Ele esperou. O mais provável era que ela estivesse
chamando mais alguém. Provavelmente Daniele e Amon,
mais qualquer especialista que tivessem.
Rafael olhou pela janela. Já era noite, mas o céu
ainda tinha um resto de luz do pôr do sol.
— Estou colocando você no viva-voz — Raquel
avisou. — E não, não quero aceitar uma chamada de
vídeo sua, se isso tiver passado pela sua cabeça.
Não tinha, porque ele também não gostava daquilo.
Mas teria sido mais prático se ele soubesse exatamente
quem a bruxa chamara.
— Lorde Rafael quer uma forma de parar a criatura
— Raquel continuou. — Planos loucos são a sua
especialidade.
Alguém riu, baixo demais para ele conseguir
identificar.
— E os vampiros não têm nenhum plano para fazer
isso? — Daniele perguntou.
Esperado. Ela era uma das responsáveis pela
segurança do setor e era uma vampira, além de ser
conhecida pelos seus planos não muito previsíveis.
— Temos — ele contou. — Mas meu plano envolve
sacrificar duas vilas humanas para garantir que teremos
o poder necessário para conter a criatura.
Ninguém respondeu por alguns segundos.
— Magia de sangue — Amon falou.
— Sim.
Alguém falou alguma coisa baixo demais para Rafael
entender.
— Não sei — outra pessoa respondeu.
Ele se endireitou na cadeira e abriu uma das suas
gavetas. O isqueiro estava ali e aquilo havia deixado de
ter algum significado para ele. Alguns lembretes não
eram mais necessários.
Não adiantava insistir com o pessoal do Setor Dez.
Eles responderiam no tempo deles. Rafael era capaz de
apostar que estavam conversando em voz baixa ou
através de mensagens, para garantir que ele não ouviria.
Se alguém conseguiria pensar em alguma solução
que não envolvesse as vilas humanas, seria alguém
naquela sala, do outro lado da linha. O próprio Rafael
havia passado tempo demais imaginando possibilidades.
Ele sabia o que os vampiros podiam ou não fazer.
— Se concordarmos em ajudar — Raquel começou.
— O que ganhamos com isso?
A garantia de que continuariam vivos. Mas dizer
aquilo seria considerado uma ameaça, mesmo que não
fosse. Era o que aconteceria por causa da criatura, não
por causa dele.
E Rafael precisava deles.
— Dê seu preço.
— Reconhecimento real do Setor Dez — Raquel
falou, seca. — Com um juramento de sangue garantindo
apoio vindo de todos os setores sob o seu controle
enquanto seu sangue existir.
Porque, no passado, quando Rafael havia permitido a
criação do Dez e o reconhecido, não havia sido algo real.
Havia sido um passo em um plano maior – de destruir as
pessoas que se reunissem ao redor de Raquel.
E um dos vampiros havia explicado para Raquel
exatamente o que ela precisava falar, porque os detalhes
daquele pedido haviam sido fechados o suficiente para
garantir que ele não poderia trair o Setor Dez.
— Terão meu juramento.
— Então só preciso saber de uma coisa primeiro —
Daniele falou. — Por que você está fazendo isso?
Rafael podia tentar desviar o assunto ou responder
como se não houvesse entendido o que ela queria dizer.
Mas ele não tinha nenhum problema em dizer a
verdade.
— Porque Alana não quer mais mortes.
Ninguém do outro lado falou nada.
Rafael esperou, de novo.
— Nós conseguimos algumas informações novas que
talvez sejam úteis nesse sentido, mesmo que sejam um
problema, também — Raquel falou. — E...
— E eu quero todos os detalhes — Daniele
completou. — Como o poder da criatura funciona, o que
vocês estavam planejando fazer, tudo.
TRINTA

Alana olhou para o celular de novo. As últimas mensagens de


Silvana ainda estavam na tela e não tinha nada de novo
ali. Era óbvio que não tinha, mas ela não conseguia parar
de olhar.
Ela não tinha visto nem sinal de Rafael nas horas
desde que tinha saído do escritório dele e voltado para o
seu quarto. Quando ela tinha falado aquilo sobre o plano
dele e só deixado ele lá, mal tinha anoitecido. Agora já
estava amanhecendo e nada. Nenhum comentário. Nem
um sinal de qualquer coisa.
A pior parte era que ela tinha falado a verdade. Se
Rafael tivesse analisado todas as opções e o único jeito
de parar a criatura fosse sacrificando as pessoas
daquelas vilas, Alana não ia falar nada. Ela entendia.
Aquela era a maior diferença entre ela e seu pai, no fim
das contas: ele sempre tinha sido idealista demais. Se
fosse ele ali, estaria dizendo que precisava ter outro
jeito, que fariam outro jeito, de alguma forma, mas que
não aceitaria aquelas mortes de jeito nenhum. Alana não
conseguia ser daquele jeito – nunca tinha conseguido.
Eles não podiam deixar a criatura continuar solta,
espalhando seu poder e ficando mais forte, não
importava o preço. Alana sabia daquilo. Nos dois dias que
estavam esperando um ataque, Rafael tinha lhe passado
todas as informações que tinha sobre a criatura e o que
ela fazia. Agora Alana entendia por que tinha visto os
relatórios sobre mudanças climáticas no escritório de
Rafael, antes. Eram os dados sobre o que a criatura
estava fazendo. Sobre como ela tinha feito um
continente inteiro se tornar inabitável, porque nada que
entrava lá sobrevivia. Tudo era consumido.
Se o único jeito de parar aquilo fosse com o sacrifício
das pessoas naquelas vilas, Alana até ajudaria a matá-los
– e ela não queria pensar no que aquilo dizia sobre si
mesma.
E aquele era o motivo para ela não ter falado para
Silvana avisar para as pessoas de lá fugirem. Por mais
que odiasse aquilo, ela não podia correr o risco de
estragar o único plano que tinham.
Alana se levantou e parou na frente da janela. O céu
já estava clareando. Não ia demorar muito para ela
precisar descer para comer alguma coisa. E nada.
Ela devia voltar para o escritório de Rafael. Alana
tinha quase certeza de que ele ainda estava lá. Mas...
Não. Ela estava irritada demais com aquela situação e,
pior: ela não queria olhar nos olhos de Rafael e ter uma
confirmação de que ele ia seguir com aquele plano, sem
pensar em opções. Ela queria acreditar que ele não tinha
avisado que estavam começando a agir porque estava
tentando achar outra possibilidade. Mas, se não
estivesse... Alana não queria lidar com aquilo. E se fugir
queria dizer que ela era covarde, então que fosse.
Seu celular vibrou. Ela encarou o aparelho.
Dani: Depois eu que fico com a fama de louca.
Alana: O quê?
Dani: Não se faz de desentendida.

Alana respirou fundo, soltou o ar devagar e colocou o


celular em cima da cama com cuidado. Dani não tinha
como saber que Alana já estava furiosa, sem saber o que
fazer e a um fio de explodir. Então ela não ia responder,
ponto, porque se respondesse ia começar uma briga. Sua
prima não tinha conta com nada daquilo.
Era melhor ela ir logo ver se já tinha alguma coisa na
cozinha.
Ela saiu do quarto e fechou a porta tentando não
fazer barulho. Não que fizesse diferença. Se Rafael
estivesse no seu escritório e quisesse ouvir o que ela
estava fazendo, ele ouviria.
Os corredores do castelo estavam vazios, mas era o
vazio do amanhecer. Ela tinha visto a mesma coisa vezes
demais, quando estava ali da outra vez. O que queria
dizer que, para os vampiros da Corte, parecia que tudo
estava normal.
Ou não tão normal, porque todos que passavam por
ela estava inclinando a cabeça de um jeito respeitoso
que chegava a ser estranho. Quando tinham começado a
fazer aquilo? Ela não fazia ideia, mas era recente.
E o que os vampiros ali faziam não tinha
importância, no fim das contas. Ela tinha problemas
maiores para resolver.
Alana entrou na cozinha. Uma das mulheres que
trabalhava ali se virou na mesma hora.
— Senhora, já estávamos nos preparando para levar
seu café da manhã! Não tinha necessidade...
E ela tinha desistido de insistir que não a
chamassem de "senhora" meses antes. Não importava
quantas vezes Alana tivesse falado, todos os humanos
trabalhando no castelo se recusavam a tratá-la pelo
primeiro nome.
Alana balançou a cabeça e olhou para a bandeja ao
lado da mulher.
— Eu precisava sair do quarto mesmo — ela falou. —
E é mais fácil eu comer aqui.
A mulher a encarou como se Alana fosse louca.
Alana suspirou, pegou a bandeja, e se sentou na
mesa de madeira que ficava no canto da cozinha. Era
onde os servos humanos comiam, revezando para não
ocuparem espaço demais, e era mais que o suficiente.
Ela tomou um gole de café e parou, encarando o
tampo da mesa. Mais para o lado, a cozinheira ainda
estava olhando para ela, mas Alana não ia se preocupar
com aquilo. Ou a outra mulher ia aceitar que Alana ia
comer ali e a ignorar, ou ia continuar parada a
encarando, e de qualquer forma não era problema dela.
O problema maior era o poder da criatura. Em teoria,
a habilidade de Rafael ia ser o suficiente para prendê-la
fisicamente. Mas era a mesma coisa que quando ele
tinha prendido Alana: ele podia controlar o corpo da
criatura, mas nunca seu poder. Assim que ele a
prendesse, ela atacaria de volta de alguma forma. E, até
então, a forma como ela tinha usado o que podia fazer
era variada demais. Destruir as plantações, matar
aquelas pessoas, criar os animais corrompidos que
tinham atacado o Setor Três... E nada daquilo dava
nenhuma indicação de se ela conseguia atacar vampiros.
Alana sabia que o seu poder era inútil contra eles, mas...
Mas a criatura era uma vampira. E os necromantes
conseguiam consumir o poder de um vampiro. Alana
tinha visto Eric, o príncipe do Setor Três, fazer aquilo.
Ela podia falar com Eric. Ia ser fácil, só mandar uma
mensagem para Lara e a mercenária ia organizar tudo. O
problema era o que Alana teria para oferecer para ele em
troca da sua ajuda, porque seria um risco duplo. Eles não
tinham como saber o que aconteceria quando o poder de
Eric interagisse com o da criatura. Alana não tinha nem
como ter certeza de que aquilo funcionaria. E, se Eric
ajudasse, ele estaria deixando o Setor Três vulnerável.
Mas era uma possibilidade. Ela precisava pensar
melhor naquilo. Ajeitar detalhes, estudar o que mais
sabia sobre o poder da criatura e dos necromantes e...
E Alex tinha sentido o poder da criatura indo na
direção do Setor Dez, de novo. Aquele tinha sido o
motivo para Dani ligar e Alana havia esquecido
completamente de falar aquilo com Rafael.
Ela respirou fundo e se concentrou em terminar de
comer. Alana estava deixando coisas passarem porque
estava irritada – porque tinha se envolvido demais.
Aquilo não podia acontecer. Então ela ia usar o tempo de
terminar o café da manhã para se controlar por bem ou
por mal, e então ia voltar para o escritório de Rafael.

Rafael levantou a cabeça quando sentiu a presença de Victor do


outro lado da porta do seu escritório. Ele tinha pedido
para o outro vampiro chamar Alana, mas não estava
sentindo a presença dela ali.
— Entre — ele falou.
A porta se abriu e Alana entrou. Victor fechou a porta
atrás dela, sem entrar no escritório.
Então ele a havia encontrado. Rafael só não sentira a
presença dela porque Alana estava se contendo de uma
forma que ele não tinha visto antes. Não havia nenhum
sinal do poder dela ali, nada além do que ele estava
vendo.
Ela não escondia sua reação quando estava com
raiva. Pelo menos, nunca tinha escondido, antes.
O que Rafael falasse agora seria a diferença entre o
que viria depois – quando já houvessem lidado com a
criatura. E só havia um resultado que ele aceitaria.
— Eu te fiz uma promessa, depois do fogo — ele
começou. — E você a aceitou.
Alana assentiu, sem falar nada nem sair de onde
tinha parado, perto da porta.
— Você aceitaria um juramento de sangue meu? —
Rafael perguntou.
Ela se endireitou e ele teve quase certeza de que ela
ia negar, antes da sua feiticeira respirar fundo.
— Que juramento, especificamente?
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Isso não importa.
Alana avançou de uma vez e parou atrás da cadeira
na frente da mesa de Rafael, com as mãos apoiadas no
encosto dela.
— Importa, porque eu não vou aceitar nada que me
coloque sob o controle de alguém. E muito menos sendo
a pessoa que pode controlar outra. Já vi o resultado disso
mais de uma vez.
Ele deveria ter se lembrado. Alana havia passado
meses convivendo com Amon, que passara décadas
preso por juramentos de sangue, um sobre o outro. E,
com o comentário sobre ter visto aquilo mais de uma
vez... Melissa. Aquilo explicava como Klaus conseguira
manter uma vampira como ela na sua Corte.
— Eu não te obrigaria a isso — ele falou. — Mas
preciso perguntar, porque você falou que não queria
nada nos ligando.
E poucas coisas eram mais fortes que a ligação de
um juramento de sangue.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.
— E eu claramente sou idiota — ela murmurou.
Rafael balançou a cabeça de novo, mas ela levantou
uma mão.
— Vou aceitar o juramento, seja lá o que for — Alana
falou.
Ele se permitiu um sorriso. Ela ainda estava contida
demais, mas aquele comentário tinha soado quase
normal. Ótimo.
Rafael se levantou e contornou sua mesa. Alana se
virou e ele parou na frente dela.
— Você sabe o que dizer? — Ele perguntou.
Porque a pessoa que dizia as frases cerimoniais era a
pessoa que tinha o controle do juramento – e aquilo tudo
era apenas mais uma parte da magia de sangue, a magia
dos vampiros, que ninguém sabia explicar. Se Alana não
soubesse como aquilo funcionava, então ele teria que lhe
explicar o que dizer e o que fazer.
Alana assentiu.
Claro que ela sabia.
Rafael tirou seu sobretudo, devagar. Alana estava
acompanhando seus movimentos com o olhar e aquilo
era normal. O normal dos dias anteriores, no caso, e era
muito melhor que a forma como ela estava se contendo
antes.
Ele sentiu o poder de Alana um instante antes de um
galho fino de trepadeira se enrolar ao redor do seu braço
direito. Um espinho grande cresceu ali, mesmo que ele
tivesse certeza que aquela planta não tinha espinhos,
normalmente.
Rafael poderia ter feito os cortes necessários ele
mesmo, mas a tradição dizia que quem controlava o
juramente deveria ser a pessoa a derramar o sangue,
então ele não fez nada.
O galho se moveu contra sua pele e Rafael sentiu o
espinho contra o seu pulso, entrando na sua pele e então
o cortando.
— Você não sente dor — Alana falou.
Ele olhou para ela. Sua feiticeira estava o estava
encarando de um jeito que ele não sabia como
interpretar.
— Não desde o fogo — ele contou.
Não o de alguns dias antes, mas o que havia
acontecido no seu passado, quando Rafael quase fora
destruído. Ele se lembrava da dor de ser queimado, sim.
E sempre havia pensado que, depois, seu corpo se
adaptara enquanto ele se recuperava, para que ele
nunca mais sentisse algo daquele tipo.
Alana assentiu e a trepadeira o soltou. Havia um
corte não muito fundo no pulso de Rafael, o suficiente
para um pouco de sangue começar a surgir, mais escuro
que o sangue humano e mais espesso, também.
— Sob o testemunho da lua, o sangue foi derramado
— Alana falou.
Rafael sentiu o poder ao seu redor, crescendo da
forma característica da magia dos vampiros. Mais sangue
saiu do corte, mais do que seria natural, como se o poder
o estivesse chamando.
— Sob o testemunho da lua, pelo poder no sangue e
pelas palavras aqui faladas, um juramento será selado —
sua feiticeira continuou.
— Que a lua seja ouvida e o sangue respeitado —
Rafael respondeu.
E aquela era a parte que não teria volta. Mas sua
decisão já havia sido tomada fazia tempo demais.
— Sob o poder da lua e em nome deste sangue, eu
juro que qualquer setor sob meu controle, de forma
direta ou indireta, será sempre um aliado do que neste
momento é conhecido o Setor Dez — ele completou. —
Essa aliança existirá enquanto meu sangue ainda estiver
no mundo.
Alana o encarou, esperando. Rafael entendia: aquele
juramento havia sido aberto demais, sem nenhum tipo
de restrição. O que queria dizer que ele era muito mais
restritivo, porque era direto o suficiente para não ter
como ninguém encontrar algo nas entrelinhas para
escapar daquilo. Ele não poderia fazer a mesma coisa
que havia feito, antes, quando usara detalhes para
continuar com seus planos sem quebrar o contrato que
tinha com Alana.
Ele balançou a cabeça de um lado para o outro,
devagar. Não havia mais nada no seu juramento. Aquele
era o preço que o Setor Dez havia cobrado, então ele
pagaria.
— Que a lua seja testemunha — Alana falou e ele
tinha a impressão de que sua voz estava incerta. — Que
o sangue seja uma corrente prendendo as palavras aqui
faladas.
O poder ficou mais forte ao redor deles, com uma
sensação de expectativa.
Alana levantou a mão direita. O galho de trepadeira
se enrolou na mão dela e a bruxa fez um som baixo
quando outro espinho cortou a palma da sua mão.
Rafael continuou parado no lugar quando o cheiro do
sangue se espalhou e o galho desapareceu de onde tinha
vindo – algum lugar para o lado, o que provavelmente
queria dizer que era de alguma das plantas que haviam
sido colocadas como decoração, pelo castelo. Alana
havia feito questão de não deixar que ele provasse do
seu sangue antes, então ele não faria nada sem um
convite claro dela.
Sua feiticeira respirou fundo e deu dois passos na
sua direção, oferecendo a mão, com o sangue se
juntando na sua palma. O corte não tinha sido fundo,
mas havia sido o suficiente para sangrar bem.
Ele segurou a mão dela e se inclinou, encarando
Alana. Rafael conseguia sentir como a pulsação dela
havia acelerado, de novo, e aquilo era quase mais forte
que o cheiro do sangue – porque não era medo.
Rafael bebeu o sangue dela. A sensação quase
elétrica do poder dela – do que era Alana – se espalhou
pelo seu corpo. Ele estava certo. Não importava o que
acontecesse, Alana seria uma marca na sua existência.
Ele faria o que precisasse para mantê-la ali.
O poder ao redor deles travou – o sinal de que o
juramento estava completo. Rafael o sentiu ao seu redor,
como cordas o prendendo e então se transformando em
galhos e espinhos. Era óbvio que seriam galhos e
espinhos, porque era Alana ali, tendo o juramento em
suas mãos.
Sua feiticeira fez um ruído surpreso. As marcas do
juramento provavelmente estavam visíveis na pele dele,
mas aquilo não importava. Elas desapareceriam com o
tempo... Ou não. Ele não teria um problema com aquilo,
de qualquer forma.
Rafael levantou a cabeça e encarou Alana de novo.
— Posso fechar seu ferimento?
Um arrepio a atravessou e ela assentiu.
Rafael nunca havia duvidado da atração dela, mas
ainda assim era satisfatório demais estar sentindo
exatamente como estar ali, daquela forma, a afetava. A
respiração acelerada da sua feiticeira e a forma como
seu coração estava disparado. Aquilo era dele. Era para
ele.
Ele lambeu a mão de Alana devagar, acompanhando
o corte em uma direção e depois em outra. Outro arrepio
a atravessou e ela fez um som que Rafael tinha certeza
que era um gemido abafado.
Bom. Muito bom.
Ele levantou a cabeça e acariciou a mão de Alana
antes de a soltar.
Sua feiticeira respirou fundo e soltou o ar em uma
respiração trêmula.
— Você não precisa de jogos — ela falou.
Rafael sorriu.
— Talvez eu esteja fazendo isso apenas porque
quero.
E não havia nada de "talvez" naquilo.
Mas, infelizmente, ele ainda tinha um trabalho a
fazer.
— Avise sua prima que está feito — Rafael falou.
Alana engoliu em seco e respirou fundo antes de dar
um passo atrás.
— O que Dani tem a ver com isso?
Rafael inclinou a cabeça.
— Você queria uma solução que não envolvesse mais
mortes. Estou fazendo o possível para garantir isso.

Alana olhou para o mapa no tablet em cima da mesa de Rafael, de


novo.
Ele tinha negociado com Dani. Com o Setor Dez, na
verdade. Mesmo sabendo que podia só falar com Alana,
que ela podia pedir a ajuda deles e eles ajudariam... Ele
tinha feito questão de negociar direto com eles. E tinha
feito aquele juramento. Um juramento tão aberto que
basicamente queria dizer que ele não tinha a menor
forma de escapar.
E ela ainda tinha que avisar Dani.
Alana pegou seu celular e se sentou. Rafael ainda
estava parado perto demais. Se bem que ela tinha a
impressão de que qualquer distância ia ser perto demais,
depois de como ele tinha cuidado do ferimento da sua
mão.
"Cuidado". Ela podia pensar em formas demais de
descrever aquilo, na verdade, e nenhuma delas tinha
nada de "cuidado". Aquilo não podia nem ser chamado
de sedução. Não. Rafael tinha feito aquilo de propósito –
a forma como ele tinha se inclinado, a encarando, a
forma lenta como ele tinha passado a língua pela sua
pele, como se estivesse saboreando Alana, mesmo que
não tivesse quase nenhum sangue mais...
Ela respirou fundo e encarou o mapa de novo antes
de olhar para o celular Foco. Alana precisava focar no
que tinham que fazer. Havia coisa demais em jogo para
ela começar a pensar no que queria que Rafael fizesse
com a língua.

Alana: Ele fez o juramento.


Dani: Claro que fez.
Dani: E eu não vou nem perguntar o que aconteceu
pra ele ter aceitado isso.
Dani: Avisa que estamos começando a organizar as
coisas pra de noite.

Alana também não fazia ideia do que tinha


acontecido para Rafael aceitar fazer um juramento
daqueles. Ou melhor, sabia. Ela só não tinha certeza de
que podia acreditar.
Mas se um juramento de sangue não era o suficiente
para convencê-la de que Rafael estava falando a
verdade, então o que ia ser?
Ela respirou fundo e colocou o celular no bolso. Não
adiantava ficar tentando arrumar motivos e coisinhas
para se manter afastada de Rafael. Ela mesma já havia
pensado que estava envolvida demais. E, se ele estava
disposto a fazer um juramento de sangue para dar a
Alana o que ela queria, mesmo que houvesse formas
mais simples... Então ela acreditaria.
E talvez ela fosse mais louca que Dani, então.
Rafael se sentou na sua cadeira, de novo, e Alana
não tinha nem notado que ele tinha saído de onde estava
parado antes.
— Dani avisou que estão organizando as coisas para
a noite — Alana contou.
Rafael assentiu.
— Perfeito.
— E eu vou ficar sabendo que coisas são essas? —
Ela perguntou.
Ele sorriu por um instante, antes de ficar sério de
novo.
— Obviamente sim, porque quero que você confira
se o que pensamos realmente é viável. Mas, primeiro,
tenho dois pedidos.
Alana respirou fundo e assentiu. Era justo. Ele tinha
feito muito mais do que ela imaginava que era possível
esperar. Se ele tinha algum pedido depois daquilo, ela
estava mais que disposta a ouvir.
— Primeiro, o anel — Rafael começou. — Você está
com ele?
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro. Ela
nunca tinha nem usado aquele anel, justamente porque
não fazia ideia de o que era – e pelo visto Alana estava
certíssima em imaginar que era alguma coisa específica.
— Está no meu quarto.
A expressão de Rafael não mudou, mas ela tinha a
impressão de que ele estava incomodado com aquilo –
com o anel não estar com ela.
— Quando formos ao encontro da criatura, você
precisa estar usando ele — Rafael falou. — Me prometa
isso.
— Prometo, se me disser o que ele faz.
Rafael olhou para o lado, na direção da janela, de um
jeito que era quase distraído antes de encarar Alana de
novo.
— É algo da época em que prendemos a criatura,
antes. O anel cria um campo nulo ao seu redor. Na
prática, funciona como uma barreira entre quem o está
usando e a criatura.
O que queria dizer que Alana estaria protegida
quando fossem fazer o que quer que estivesse naqueles
novos planos.
Um arrepio a atravessou. Ela tinha se esquecido que
estaria perto da criatura. Talvez não tão perto assim, mas
dentro do alcance do poder dela. E a criatura já tinha
provado que podia matar à distância.
Detalhes e mais detalhes – e Alana precisava focar
neles se quisesse que aquilo terminasse bem.
Ela respirou fundo e soltou o ar devagar.
— Você disse que tinha dois pedidos.
Rafael assentiu.
— O segundo pedido é que, se ficar claro que o que
estamos tentando não vai dar certo, você não vai me
impedir de fazer o que precisa ser feito — ele falou. — O
que a criatura faz...
Alana balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Eu vi os relatórios sobre a Europa — ela contou. —
Eu sei o que ela pode fazer. E se não tiver outro jeito, eu
vou ajudar a fazer o que for preciso.
A única coisa que ela queria era que eles ao menos
pensassem se podia ter outra alternativa. Mas a criatura
não podia escapar, não importava qual fosse o preço.
Rafael a encarou e Alana nunca tinha visto ele tão
surpreso.
Bom, porque se ele tinha falado sério, antes, sobre
querer Alana e estar disposto a tudo para tê-la, então ela
precisava pelo menos garantir que ia continuar
surpreendendo ele de tempo em tempo.
— O plano? — Alana perguntou.
Rafael inclinou a cabeça daquele jeito quase solene
tocou no tablet. Marcações novas apareceram no mapa,
levando para uma direção completamente diferente do
que tinham pensado antes.
— Dani te contou sobre o poder se aproximando do
Setor Dez — ela murmurou.
Rafael assentiu.
— É mais simples aproveitar um possível ataque da
criatura do que forçá-la a sair e nos encontrar.
Sim. E, se o tal grupo invisível já estava indo naquela
direção, era mais fácil lidar com eles no Setor Dez do que
tentar fazer desviarem.
TRINTA E UM

Alana tinha se esquecido de como os planos de Dani normalmente


não eram o que ela chamaria de bem pensados – pelo
menos, nunca pareciam quando ela estava vendo tudo
acontecer. Fazia tempo demais desde que ela tinha
precisado se preocupar com qualquer coisa daquele tipo.
A última vez que sua prima tinha tido uma ideia daquelas
tinha sido quando havia libertado Amon. E, na época, ela
tinha feito questão de esconder tudo de Alana.
Não. Aquilo ali era muito pior do que pensar em
libertar um vampiro que tinha passado décadas preso e
que era considerado um monstro pelos outros.
Ou talvez só parecesse pior porque Alana estava no
meio de tudo.
Dani tinha buscado Alana logo depois do anoitecer.
Ela precisaria estar no Setor Dez para o que iam tentar
fazer. E, por mais absurdo que aquilo ainda parecesse,
Dani tinha deixado Amon no Setor Um.
Alana ainda não acreditava no que tinham planejado.
Não era como se a ideia em si fosse ruim, por mais que
parecesse louca. Mas era surreal que todo mundo tivesse
concordado com aquele plano.
Então Alana estava ali, sentada na entrada da
mansão que era a sede do Setor Dez, enquanto esperava
o sinal para se mover. Não ia demorar muito para Rafael
chegar – ele tinha recusado ser levado por Dani, porque
ainda tinha assuntos a resolver no Um.
E aquele era o motivo para Amon estar no outro
setor. Eles não conseguiam descartar a possibilidade de
ser uma armadilha ou de terem mais de um ataque
planejado. Se Rafael ia sair do Setor Um para ser parte
daquilo, então precisavam ter alguma forma de garantir
que o setor dele estaria seguro. Amon era aquela
garantia.
Thales também tinha voltado para o Setor Um. Ele
era o braço direito de Rafael e as pessoas de lá – os
vampiros do setor – estavam acostumados a receber
ordens dele. Era mais seguro, mesmo que o risco de não
ter ninguém no Oito ou no Cinco existisse.
Eles não eram os únicos que não estavam onde era
esperado. Alana tinha visto Eric e Lara assim que havia
chegado no Setor Dez. Não era exatamente uma
surpresa que Rafael tivesse pensado a mesma coisa que
ela: que, se a criatura era uma vampira, então o poder
dos necromantes funcionaria contra ela. Então Eric
estava ali... O que queria dizer que mais um setor estava
indefeso.
Se bem que o Três era a menor das preocupações.
Aquele setor sempre havia sido estável. E, se alguém de
fora decidisse atacar, a Corte da Névoa ainda estava lá.
Eles não teriam problemas em defender o setor.
A questão era só o que eles fariam ali, na fronteira
entre o Dez o Seis. Alex tinha confirmado que havia
poder se aproximando, mas não conseguia dar detalhes.
Pelo menos aquilo era o suficiente para terem certeza de
que o tal grupo invisível estava indo para o Dez.
O celular de Alana vibrou. Ela o pegou na mesma
hora.

Silvana: As bruxas perto da fronteira entre o Oito e


o Seis avisaram que tem algo ruim passando.
Silvana: Eles têm dois mortos e mais quatro
pessoas que não sabem se vão sobreviver.
Alana: Avise para não tentarem se meter.
Alana: Não é seguro.

E ela deveria ter lembrado de dar aquele aviso muito


antes. Só um alerta para as pessoas saírem do caminho
que o grupo estava fazendo...
E um aviso daquele tipo provavelmente teria
estragado os planos deles, porque seria uma confirmação
de que estavam esperando o grupo.
Silvana não respondeu.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar antes de
guardar o celular de novo. Ela só queria que tudo
acontecesse mais depressa. Que todo mundo já estivesse
ali, que Alex avisasse que tudo estava em posição e que
o tal ataque acontecesse logo. A expectativa era pior que
qualquer coisa que pudesse acontecer.
Rafael apareceu ao seu lado, daquele jeito que não
parecia ser o que Dani fazia mas que também não era o
que a maioria dos outros vampiros fazia – correndo
depressa demais para uma humana ver o momento.
Ela não falou nada quando ele se sentou ao seu lado.
— Você está com medo — Rafael comentou.
Alana não respondeu. Era óbvio que estava.
— Como você sempre chega nos lugares assim, do
nada? — Ela perguntou.
Rafael fez um ruído abafado que ela tinha quase
certeza de que tinha sido uma risada.
Alana se virou. Rafael tinha se sentado nos degraus
da entrada da mansão, ao lado dela, de alguma forma
parecendo confortável ali mesmo que fosse estranho ter
o príncipe do Setor Um, vestido daquele jeito cuidadoso
de sempre, sentado no chão como se não fosse nada
demais.
E ele estava olhando para ela, mas aquilo não era
exatamente uma surpresa.
— Como qualquer outro vampiro — ele falou.
Alana estreitou os olhos.
— Não. Você não aparece assim porque está
correndo. Daria pra notar, se fosse.
Rafael sorriu, sem esconder suas presas.
— Eu faço como qualquer outro vampiro — ele
repetiu. — Uso as habilidades que tenho.
Agora aquilo fazia sentido. Era algum tipo de poder
que ele tinha. Não era uma surpresa, também.
E Alana estava tensa demais para continuar
perguntando sobre aquilo. Se Rafael começasse com os
jogos de palavra, ela já estava tão tensa que ia só
explodir. Era mais fácil só deixar aquilo para lá. No fim
das contas, como ele ia de um lugar para outro não
importava.
Rafael segurou seu queixo quando Alana começou a
virar o rosto.
— Se quiser saber, eu vou te mostrar — ele falou. —
Mas depois que isso acabar.
Um arrepio atravessou Alana e ela assentiu. Ela
queria, sim.
Rafael soltou seu queixo.
Alana respirou fundo e olhou para a frente de novo,
para as árvores um pouco afastadas da mansão, na
direção onde ela sabia que Alex estava. Já fazia tempo
que tinha anoitecido e a luz vinda da mansão não
chegava a iluminar as árvores, mas Alana não precisava
de luz para saber que elas estavam lá.
E...
Ela se inclinou para a frente e olhou para o céu. As
estrelas estavam brilhando, mas não tinha nenhum sinal
da lua. Talvez ela só não tivesse nascido ainda, mas...
— É lua nova — Rafael falou.
A noite em que os vampiros estavam mais fortes – o
que era estranho, se Alana parasse para pensar. Os
vampiros tinham tantas coisas ligadas à lua e tudo mais,
mas a noite em que ela não estava no céu era quando o
poder deles era maior.
Ou talvez não fosse tão estranho assim. Alana tinha
uma vaga memória de ouvir alguma história sobre
aquilo. Uma das histórias da sua avó que ela nunca tinha
dado muita atenção. Mas havia algo daquele tipo... Sobre
como os vampiros ficavam mais fortes na escuridão, e as
bruxas ficavam mais fortes com a lua cheia.
E no fim das contas aquilo não fazia a menor
diferença. Era só ela tentando encontrar alguma coisa
para ocupar a cabeça até poderem agir. Mais cedo, Alana
tinha tentado ficar dentro da mansão e ajudar a
organizar os últimos detalhes de tudo. Mas ela estava
tensa demais para acompanhar tudo o que Dani e Yuri
estavam planejando. Era melhor ficar ali fora do que
atrapalhar o trabalho deles.
Rafael se levantou. Alana respirou fundo e se forçou
a não falar para ele continuar ali. Ele tinha a parte dele a
fazer, provavelmente.
O vampiro se abaixou na sua frente e segurou seu
queixo de novo, a encarando. Alana sustentou o olhar
dele. Agora os olhos de Rafael estavam normais. Escuros,
sim, mas era o escuro de sempre. Não aquele preto se
espalhando pela íris e pela esclera, fazendo todo o resto
desaparecer.
— Aquela noite, no seu quarto... — ele começou. —
Você ainda estava se controlando.
Um arrepio atravessou Alana. Ela estava tentando
não pensar naquela madrugada em que tinha falado para
Rafael distraí-la. Quando ele tinha feito todas aquelas
promessas e...
E estava cumprindo cada uma delas.
— Ótima forma de fazer eu não me concentrar — ela
resmungou.
Rafael deu uma risada baixa que era mais do que
sugestiva, sem a soltar.
— Ou talvez de te fazer concentrar mais. O que você
faria se não estivesse se contendo? Se não tivesse
motivo para se conter?
A respiração de Alana falhou.
Rafael inclinou a cabeça e ela sentiu as pontas das
garras dele contra sua pele, onde ele estava segurando
seu queixo.
— Até onde você iria? — Ele continuou. — O que iria
querer fazer?
Alana sabia muito bem o que queria e era algo que
ela definitivamente tinha passado tempo demais
tentando não imaginar.
Mas ela nunca tinha conseguido tirar a imagem de
Rafael preso pelos galhos da roseira da sua mente. De
como ele tinha agido como se aquilo não fosse nada
demais e só aceitado o poder dela ao seu redor. Ela tinha
visto o sangue escorrendo do braço dele, onde os
espinhos o estavam cortando, e como Rafael não tinha
se importado.
Agora ela entendia. Ele não sentia dor. Mas não era
só aquilo.
Era a noite em que tinham ido para o Setor Nove,
quando ele tinha aparecido atrás dela. Alana tinha feito
questão de não dar atenção para como ele havia dado a
entender que tinha gostado de ser preso pelo seu poder.
Era a forma como ele tinha colocado Alana no controle,
depois daquela ida no Setor Nove.
Alana se inclinou para a frente. Rafael apertou seu
queixo, a segurando no lugar, e as pontadas de dor
rápida onde ela conseguia sentir as garras dele só
serviam para fazer um arrepio a atravessar – e para fazer
aquela imagem ficar mais forte ainda na sua mente.
Ele tinha perguntado. Então ele teria sua resposta.
— Eu iria crescer mais roseiras — ela murmurou. — E
as usaria para te prender.
Os olhos de Rafael ficaram mais escuros ainda e o
preto começou a se espalhar.
Alana se forçou a continuar no lugar. Ela não podia
fazer nada. Não ali e não quando tinha tanta coisa em
jogo.
— Eu usaria os espinhos para garantir que você não
ia só arrebentar os galhos, como fez aquela noite no meu
quarto, aqui — ela continuou. — Você ia estar
completamente preso. Sob o meu controle.
Alana sentiu o cheiro de sangue um instante antes
de sentir um fio ardendo na sua bochecha. Um corte fino,
praticamente só um arranhão. Um sinal de que ela
estava afetando o controle de Rafael.
— E depois? — Ele perguntou.
Ela sorriu.
— Depois eu te usaria para ter o que eu quero —
Alana falou. — Um pagamento pelas vezes que me
deixou no limite, se quiser ver assim.
E agora que ela tinha falado aquilo... Era exatamente
o que Alana queria fazer, sim. Se era para dizer o que ela
queria, sem limites? Era exatamente aquilo.
— E eu só te soltaria quando estivesse tão cansada
de tanto gozar que não conseguisse mais manter o meu
poder — ela completou. — Isso se não apagasse antes e
te deixasse preso.
Os olhos de Rafael estavam completamente pretos,
de novo, e ele estava farejando o ar. Sentindo o cheiro do
seu sangue, de onde as garras dele haviam arranhado a
bochecha de Alana.
— E eu teria direito ao seu sangue depois disso? —
Ele perguntou.
Alana mal conseguia respirar. Ela tinha falado aquilo
e a forma como Rafael ainda a estava segurando, a
forma como os olhos dele tinham escurecido... Ele não ia
ter o menor problema com os planos dela.
Talvez aquilo fosse motivo o suficiente para ela
pensar em aceitar uma mordida.
A porta da mansão se abriu de uma vez.
— Eu não quero saber o que eu interrompi — Yuri
falou. — Mas está na hora de trabalhar. Alex já deu o
sinal.
Rafael soltou Alana e se levantou antes de oferecer
uma mão para ela. Alana aceitou e deixou que ele a
puxasse.
Yuri voltou para dentro da mansão sem falar mais
nada, o que provavelmente queria dizer que tinham
alguns segundos antes de todo mundo começar a sair,
também.
Rafael levantou a mão de Alana e passou os dedos
pelo anel que ela estava usando – o mesmo anel que ele
tinha deixado no quarto dela meses antes, depois do
ataque no Setor Três.
— Faça o que precisar — Rafael falou. — E sobreviva
para fazer tudo o que falou, depois.
Alana engoliu em seco.
Rafael a soltou e se afastou, andando na direção da
fronteira.
Ela realmente era louca. Mas a loucura valia a pena.

Rafael não tinha certeza de que provocar Alana daquele jeito


havia sido sua melhor ideia. Ele sabia que seria
surpreendido, estava contando com aquilo. Mas nunca
teria esperado o que ela havia falado. E muito menos
estava preparado para lidar com a sua reação, que era
uma necessidade quase visceral de seguir cada passo do
que ela falara.
Ele queria saber o que Alana realmente faria. Queria
ver até onde ela iria e se realmente cumpriria aquela
ameaça de mantê-lo preso até estar tão satisfeita que
não conseguiria mais.
E, ao invés de fazer tudo aquilo, ele estava parado
no meio das árvores perto da fronteira entre o Setor Dez
o Setor Seis, encarando as paredes elétricas que tinham
sido desligadas, porque não iam adiantar nada contra a
criatura.
De acordo com o pessoal do Setor Dez, aquele lugar
era um dos pontos onde faria sentido alguém tentar
invadir o setor, porque seria o caminho mais direto para
os pomares. Normalmente Amon ficaria responsável por
um lugar como aquele, mas o outro vampiro não estava
ali, então era a responsabilidade de Rafael, até ele ser
avisado de que a criatura estava se aproximando.
Cinco anos antes, Rafael havia ficado sem entender
a lógica por trás de esconder a fronteira com árvores. A
forma como elas haviam crescido ali era óbvia: a única
explicação era uma bruxa da natureza. Mas o motivo era
mais complicado. Aquilo ia contra tudo o que era feito
antes da volta da magia, quando qualquer área que
precisava ser defendida era mantida livre de vegetação,
para garantir que qualquer aproximação seria visível.
Todos os outros setores ainda faziam aquilo e era o mais
simples, porque pouca coisa crescia na região, com
exceção da área perto do rio.
Agora, parado ali, Rafael entendia o motivo das
árvores. Ver um vampiro se aproximando não faria
diferença para humanos – e humanos faziam a defesa do
Setor Dez. O que eles precisavam era de formas de
atrapalhar o avanço de qualquer um e de ter formas
fáceis de desviarem de ataque, para ganhar tempo, por
mínimo que fosse. As árvores cumpriam aquele papel.
Aquilo queria dizer que o grupo se aproximando não
conseguiria se mover tão depressa nem conseguiria
passar despercebido. E, se estavam ali por causa de
Alana, eles sabiam daquilo. Eles não tentariam se
esconder quando entrassem nas árvores.
Uma sensação de poder passou por ele e as plantas
pareceram ficar tensas por um instante, quase como um
arco pronto para ser disparado, mesmo que aquilo não
fizesse sentido. Alana. Ela estava agindo, deixando claro
que estava ali e provavelmente lidando com as primeiras
pessoas do grupo escondido. Pelo menos, aquele havia
sido o plano.
Alana precisava deixar claro que estava ali. Ela
precisava ser um alvo interessante o suficiente para
garantir que a criatura ou iria até ali, ou pararia de se
esconder.
Algo gritou – e não era um som humano. Um som
estranho se espalhou, vindo de bem mais à frente de
onde Rafael estava e da sua esquerda. A direção onde
Alana e os outros estavam. E aquele som... Rafael não
sabia o que aquilo era. Quase parecia uma versão muito
mais forte do som que madeira fazia logo antes de ser
quebrada, mas não era exatamente aquilo.
Mais gritos, não que Rafael pudesse chamar aquilo
de gritos.
Ele fechou as mãos e se concentrou. O que quer que
estivesse acontecendo, estava longe demais. Ele não
conseguia ver nem mesmo aquela impressão do sangue
dos humanos que sabia que estavam entre as árvores,
perto de Alana. E não tinha como ter ideia do que estava
acontecendo.
“Alana destruiu os primeiros vampiros antes de se
tornarem visíveis.” Uma voz feminina soou na sua
mente. “Alguns vampiros tentaram escapar entre as
árvores. Se ouviu alguma coisa, foi isso.”
Melissa. A vampira que conseguia ver na mente de
humanos e vampiros... E se comunicar com eles, pelo
visto.
“Não com todos” ela respondeu. “Alana está
terminando de lidar com os vampiros que se
aproximaram mais. Com sorte, vai ser o suficiente. E os
carniçais que estavam junto com esse grupo estão
presos entre as árvores.”
Rafael estreitou os olhos, ainda tentando ver alguma
coisa entre as árvores. Nada.
“Os vampiros estavam divididos em dois grupos” a
vampira continuou. “Isso aqui foi apenas o primeiro.”
O que queria dizer que o pior provavelmente ainda
estava se aproximando.
E havia algo se aproximando de onde ele estava.
Rafael se virou. Ele continuava não ouvindo nada,
mas ele conhecia aquele som bem demais – os grunhidos
baixos, animalescos mas com um resto de algo humano.
E o som estava perto demais para ele não estar vendo
nada.
Não eram apenas dois grupos, então.
Rafael sorriu e deu alguns passos para o lado,
fazendo o máximo de barulho possível quando pisava
nos galhos e folhas secas no chão. O som dos carniçais
ficou mais agitado. Se eles estivessem indo em outra
direção, antes, estariam se virando para rastreá-lo.
Carniçais não conseguiriam ignorar um alvo possível.
E aquilo era melhor que a espera, pelo menos.
Os sons estavam perto demais, mas Rafael
continuava não vendo nada.
Quantas bruxas a criatura estava usando para
conseguir fazer aquilo? Ele não fazia ideia – mas aquele
era um dos motivos para aquele ser um dos poderes que
era caçado.
Um galho se quebrou, perto demais dele. Rafael
sorriu, mostrando as presas.
Sua única referência era a sensação sutil do
deslocamento de ar, mas era o suficiente. Ele deu um
passo para o lado, sentindo algo passar perto demais do
seu corpo, em uma direção e depois na outra. Algo bateu
nas suas costas, mas Rafael já estava se movendo, de
novo, e o que quer que fosse caiu com um ruído abafado.
Ele estendeu uma mão, ao mesmo tempo em que se
inclinava para o lado oposto. Sua mão se fechou ao redor
do pescoço de um carniçal e finalmente algo era visível.
A criatura na sua mão gritou daquele jeito que ainda
tinha um resto de humanidade, mostrando uma fileira de
dentes afiados demais.
Rafael esmagou o pescoço do carniçal e o jogou
longe – na direção de onde os outros estavam vindo. Algo
fez barulho, um instante antes de Rafael sentir presas no
seu braço. Ele riu e jogou o outro carniçal para longe,
também.
E continuou rindo.
No passado, os carniçais haviam sido algo raro. Pelo
menos até a volta da magia e naquela época os vampiros
haviam criado tantos quanto conseguiam, para assumir o
controle, enfrentarem uns aos outros e para assustar a
humanidade, também. Até que perceberam que o
controle que tinham sobre os carniçais não era tão
perfeito – e então eles haviam sido caçados e banidos.
Rafael havia enfrentado carniçais antes. Qualquer
vampiro que já existia na volta da magia os enfrentara.
Mas, naquela época, ele ainda estava se escondendo. Ele
não podia chamar atenção ou deixar alguém suspeitar de
quem ele realmente era, então havia se contido.
Agora, Rafael não tinha mais aquele problema.
E ele não precisava ver os carniçais ou quem mais
estivesse se aproximando. Estarem escondidos, invisíveis
daquele jeito, não os protegeria da sua habilidade.
Rafael ainda estava rindo quando os carniçais
começaram a cair ao seu redor, com os corpos cortados
por lâminas feitas com seu próprio sangue. Eram cada
vez mais – muito mais do que ele teria imaginado pelo
comentário da vampira sobre o grupo que Alana havia
enfrentado. Mas não importava. Carniçais nunca seriam o
suficiente para passar por ele.
E não eram só carniçais. A magia um pouco mais
afastada não era mais deles. Eram bruxas. Não muitas,
no máximo quatro, que não soavam como as bruxas do
Setor Dez que Rafael haviam conhecido. E elas estavam
na direção errada para serem do Dez, de qualquer forma.
A habilidade de Rafael encontrou algo que era quase
uma parede invisível e ele sorriu. Era a mesma coisa de
quando havia prendido Alana – algum tipo de defesa
natural das bruxas. Mas ele havia tido tempo para pensar
em como lidar com aquilo, também. E ele havia visto
como Alana usava seu poder. Como ela criava aquilo que
era realmente perigoso.
Rafael usou as garras para fazer um corte descendo
pelo braço esquerdo. O sangue escorreu, grosso, se
misturando com o cheiro do sangue dos carniçais no ar.
O seu pagamento pelo que queria fazer. Um sacrifício,
não como os vampiros faziam, consumindo mas poder,
mas seguindo o costume das bruxas. Um pagamento
pelo poder que seria usado.
Aquela defesa natural das bruxas se dobrou sob a
habilidade de Rafael. Eram quatro, sim. E as quatro
caíram mortas no instante seguinte – vultos entre as
árvores, agora que ele conseguia vê-las.
E também conseguia ver os vampiros se
aproximando, andando devagar.
Rafael inclinou a cabeça. Eles haviam sido
inteligentes e usado o barulho dos carniçais para se
aproximar sem serem notados. Era possível até que eles
houvessem conseguido passar por ele, se tivesse
demorado para lidar com as bruxas.
— Na posição de vocês, eu não continuaria me
movendo — Rafael avisou.
Não eram vampiros demais para ele conseguir lidar.
Pouco mais que duas dezenas, aparentemente. Mas ele
já havia precisado destruir os carniçais e as bruxas e
ainda teria que conter a criatura. Rafael não podia
simplesmente continuar gastando suas forças como se
não tivesse nenhuma preocupação.
Os vampiros pararam.
Fácil demais.
Uma mulher avançou, vindo de trás do maior grupo
de vampiros e passando entre as últimas árvores que os
separavam de Rafael.
Ela. A criatura.
E ela estava sorrindo.
TRINTA E DOIS

Alana respirou fundo e soltou o ar devagar. Não tinha nenhum


sinal de movimento no caminho entre as árvores à sua
frente. Nada que ela pudesse ver e nada que ela
conseguisse sentir com o seu poder, mas ela sabia que
havia mais ali. Alex já tinha confirmado, depois que Alana
tinha destruído os primeiros vampiros e prendido os
carniçais para Eric sugar o poder deles.
Era um equilíbrio complicado. Ela precisava usar seu
poder, sem nem tentar disfarçar o que estava fazendo,
porque era o melhor jeito de chamar a atenção da
criatura. Alana era a isca – e ela não tinha nenhum
problema com aquilo. Era o que ela tinha pensado que ia
precisar fazer desde o começo. O problema era que ela
não podia usar poder demais, porque não fazia ideia do
que ia acontecer quando a criatura aparecesse ali.
Então ela estava parada, com um grupo pequeno um
pouco mais para trás: Yuri, Mel, Eric e Alex. Gustavo e
Dani estavam afastados, em outra direção da fronteira. E
Alana sabia que Rafael estava na direção oposta, perto
dos caminhos que levavam para o pomar e que todo
mundo concordava que era a outra direção mais provável
de a criatura ir. Se ela consumia vida e se queria destruir
o Setor Dez, não tinha um alvo melhor.
Mas, por mais que Alana quisesse, ela não podia só
estender seu poder até onde conseguisse, até achar
onde algo estaria pisando na grama seca para lá da
fronteira. Ela precisava esperar.
Alguém segurou o braço de Alana e a puxou. Ela se
virou de uma vez, já com a grama ao seu redor se
transformando em cordas, antes de ver que era só Mel.
— Armadilha — ela falou. — Isso aqui era a distração.
Um arrepio atravessou Alana. Se os grupos indo
naquela direção eram uma distração, então...
Ela foi na direção que Mel estava puxando, quase
correndo ao lado da outra mulher. Yuri e Eric estavam
encarando um monitor, com Alex falando alguma coisa
em voz baixa, e ela não queria nem saber o que era. Ela
não precisava dos detalhes do plano. Sua parte era fácil.
— Tem vários carniçais cercando Lorde Rafael — Mel
continuou. — Ele está se virando sem problema nenhum.
Mas ele sentiu bruxas perto dele e mais.
E, considerando que não tinha nenhum sinal de que
a criatura estava se aproximando dali... Ela estava certa.
Era melhor Alana ir para lá. Alguém podia ficar naquela
parte da fronteira e ganhar tempo, se fosse necessário.
— Gustavo já está vindo para cá — Alex avisou.
Perfeito. Gustavo não era invencível, mas era mais
que capaz de conter até aquela criatura, se ela decidisse
aparecer ali.
Yuri olhou para Alana de relance.
— O restante do pessoal está se reposicionando —
ele falou. — Assim que tiver uma confirmação, vamos
nos aproximar também.
Bom – porque era óbvio que o pessoal do Setor Dez
estava espalhado pela fronteira, usando o tipo de
formações que já sabiam que funcionava para conter os
vampiros. Mesmo assim, o risco era alto demais. Se
aquilo não desse certo, eles não teriam outra opção.
Eric se endireitou e estendeu uma mão na direção de
Alana.
Então ele ia levá-la. Fazia sentido, porque o
necromante era a outra peça principal do plano deles. Ele
era a única pessoa que conseguiria conter o poder da
criatura, se fosse tão grande quando parecia.

Alana não precisava abrir os olhos para saber exatamente onde


estavam quando Eric parou de correr: perto do caminho
que levava para o pomar. E eles já estavam perto o
suficiente para ela sentir a pressão sutil que eram as
pessoas pisando na grama do caminho, depois das
árvores. Vampiros. Vários – pelo menos vinte.
Eric colocou Alana no chão sem falar nada. Estava
escuro demais entre as árvores – de noite, numa noite de
lua nova – e estaria escuro demais na trilha que levava
para o pomar, também, mas ela conseguia usar seu
poder para se localizar ali.
Não que ela quisesse fazer aquilo. Tinha algo ali...
Não. Não era “algo”. Era o poder da criatura, vindo
de um lugar um pouco mais para a frente. E era muito
mais poder do que ela havia imaginado. Quando Alana
tinha visto o que a criatura havia feito, e quando Rafael
tinha contado as histórias, ela tinha imaginado poder,
sim. Mas não daquele jeito.
E aquele poder, mais aquela quantidade de
vampiros...
— Os outros vampiros — Alana começou.
Eric apertou seu ombro.
— Cuido disso.
Um arrepio a atravessou. Alana sabia muito bem o
que Eric ia fazer, mas a ideia de que ele conseguiria dar
um jeito em vinte e poucos vampiros sozinho era um
pouco assustadora.
E nem perto de tão assustadora quanto o poder da
criatura ou...
Ela não estava sentindo o poder de Rafael.
Alana respirou fundo e engoliu em seco. Aquilo não
queria dizer nada. Ela conseguia pensar em vários
motivos para não estar sentindo o poder dele e nenhum
desses motivos envolvia ele ser destruído. Ela não tinha
o mesmo poder que Alex. Não tinha como confiar que
sempre ia sentir a magia de alguém.
Mas era preocupante, sim. Até demais.
Alana respirou fundo de novo e enfiou a mão nos
bolsos da calça cargo que estava usando – por ordens de
Dani – até achar uma lanterna. Ela não ia encarar uma
criatura que provavelmente conseguia ver muito bem no
escuro sem ao menos conseguir ver alguma coisa.
Eric apertou o ombro de Alana de novo, com mais
força.
— Os vampiros — ele murmurou. — Eles não estão
vivos.
Era óbvio que não estavam. Eram vampiros.
Mas ela entendia o que ele queria dizer. Aquilo só
não fazia sentido porque Alana tinha certeza que eles
estavam de pé mais para a frente.
— Como...?
Eric a soltou.
— Seu foco é ela — ele avisou. — Só ela. Os
vampiros não vão fazer nada.
Alana assentiu e começou a andar na direção de
onde estava sentindo a criatura e os vampiros. Seu poder
era mais que o suficiente para ela ter consciência das
árvores no caminho e desviar, mesmo que estivesse
escuro demais para ver. E era mais que o suficiente para
ela saber que Eric havia desaparecido.
Aquilo precisava dar certo. De alguma forma, tinha
que dar certo.
Alana respirou fundo e saiu do meio das árvores, já
levantando a lanterna e a acendendo.
Alguém chiou – a criatura, provavelmente, e aquela
tinha sido exatamente a intenção de Alana.
E a luz da lanterna estava batendo direto nas costas
de Rafael.
Alana engoliu em seco e se forçou a não reagir. O
sobretudo dele tinha rasgos demais, tanto nas costas
quanto nas mangas, e ela conseguia ver as manchas de
sangue. Parecia que ele não estava sangrando mais e
aquilo era o normal para um vampiro, mas mesmo
assim...
Não era difícil entender o que tinha acontecido. O
chão ao redor de Rafael estava coberto de corpos de
carniçais. Alana não ia tentar contar quantos, mas ela
sabia que eram mais do que ela tinha prendido, mais
cedo.
Aquele tinha sido o grupo principal. O ataque real ao
Setor Dez começaria no pomar.
E Rafael não tinha se virado. Ele estava parado no
lugar, olhando para a frente de um jeito que parecia
quase errado e Alana não sabia por que tinha tanta
certeza daquilo.
Porque ele sempre olhava para ela. Não importava
onde ou como, Rafael sempre olhava ao menos de
relance para Alana. Sempre. Ela tinha se acostumado
com aquilo, mesmo sem prestar atenção para valer.
E, agora que ela estava prestando atenção, Alana
estava vendo uma névoa escura se enrolando ao redor
de Rafael. Não era como a névoa clara dos necromantes,
que ela tinha visto até demais enquanto estava no Setor
Três. Era algo mais escuro, que não chegava a ser preto.
A névoa estava ao redor do pescoço de Rafael, se
espalhando em espirais pelos seus braços e pelo seu
torso. E, se ela se distraísse por um instante, era como se
não estivesse lá.
A criatura. De alguma forma, era algo que ela estava
fazendo. Então Alana ia ter que parar aquilo, também.
Alana continuou andando, até conseguir ver a
pessoa do outro lado de Rafael, que ainda estava
fazendo um ruído baixo e irritado por causa da luz.
Era uma mulher. Alana sabia daquilo. Mas não tinha
esperado que ela parecesse tão comum. Ela era mais
alta que Alana, com o cabelo preto solto e usando um
vestido leve que fazia ela parecer ser uma pessoa
qualquer. E não era só o vestido, na verdade. A pele da
mulher era clara, mas não tinha aquela palidez que era
regra entre os vampiros, mesmo quando eles não tinham
a pele branca. Se Alana passasse por ela na rua, de
noite, não imaginaria que era uma vampira.
Não imaginaria se não conseguisse sentir o poder
dela, no caso, porque não tinha como ignorar aquilo. A
sensação era como se Alana estivesse perto demais de
uma tempestade e ela não queria estar ali.
Ela fechou a mão com força, sentindo o metal do
anel de Rafael contra sua pele. Era uma tempestade,
mas em teoria ela estava segura.
E ela não ia pensar nos vampiros parados em um
semicírculo para trás da mulher. Alana não podia se
preocupar com eles. Eric tinha falado que daria um jeito,
então ele ia dar um jeito. Era simples daquele jeito. E ela
já estava vendo os fios de névoa começando a se
espalhar pelo chão – a névoa branca dos necromantes,
daquela vez.
A mulher chiou de novo e levantou a cabeça,
encarando Alana.
A luz era um problema para ela, mesmo que fosse só
uma lanterna e não a luz do sol.
A criatura avançou. Alana se jogou para o lado e
parou.
A mulher estava parada a dois passos de distância,
como se tivesse sido congelada no meio do movimento.
Rafael. Rafael tinha prendido ela, mesmo que ele
estivesse preso de alguma forma que Alana não
entendia.
A criatura riu. Era um som alto demais, quase
histérico, com alguma coisa tão errada que Alana só
queria não estar ouvindo aquilo.
E ela estava presa no lugar. Era a chance de Alana.
A mulher se virou para Rafael, se movendo devagar.
Alana engoliu em seco e deu um passo atrás.
A criatura deveria estar completamente travada.
Alana se lembrava muito bem da sensação do poder de
Rafael. De ser como se seu corpo não lhe pertencesse.
Era impossível que a criatura estivesse se virando,
colocando o pé que estava no ar de volta no chão e
então...
A mulher jogou os ombros para trás, como se nada
tivesse acontecido.
Um arrepio atravessou Alana. O plano tinha sido
Rafael usar seu poder para prender a criatura tempo o
suficiente para Alana e Eric lidarem com o poder dela.
Mas, depois daquilo...
— Pobre vampiro — a mulher falou, ainda sorrindo. —
Com tanta certeza de que está no topo e de que seu
poder é o maior... Mas vampiros não mudam, não é
mesmo?
Era como se a mulher tivesse se esquecido
completamente de Alana ali. Num instante, a criatura
estava indo atacar Alana, e no outro... Nada. Esquecida.
Aquilo não era normal. Não fazia o menor sentido.
A criatura parou na frente de Rafael e passou uma
mão pelo rosto dele.
Alana fechou as mãos com força. Aquela mulher não
tinha o menor direito de fazer aquilo. Mas ela não podia
fazer nada sem pensar, só porque não gostava do que
estava vendo.
— Você não consegue mais me segurar como antes
— a mulher completou. — Nunca mais vai conseguir.
Alana gelou. Aquele era o motivo para o comentário
sobre vampiros não mudarem. Ela estava falando do
poder de Rafael.
— E ainda foi cavalheiro o suficiente para garantir
que quem eu estou procurando viria até mim — a
criatura falou.
A grama ao redor de Alana cresceu, se tornando
cordas e então galhos de algo com espinhos antes
mesmo que ela entendesse o que tinha ouvido.
A criatura bateu na parede de espinhos e chiou de
novo, recuando.
Alana se forçou a respirar fundo enquanto puxava
mais e mais das plantas. Ela não tinha visto a mulher
nem sair de perto de Rafael. Se ele não conseguia
prendê-la, então ela estava praticamente indefesa.
Não. Não indefesa. Ela tinha o seu poder. E não ia
aceitar que tudo desse errado.
A mulher rosnou e avançou na direção dos espinhos
de novo.
Algo caiu no chão.
A criatura gritou. E continuou gritando.
Alana tampou os ouvidos e se forçou a continuar de
olhos abertos. Aquilo não era um grito comum. Não tinha
como ser, com como parecia não ter fim e como era
quase um ataque por si só. Ela só queria que aquilo
parasse, mas não era louca de tentar fazer alguma coisa
sem saber o que tinha acontecido.
Os espinhos mais externos na parede de Alana
começaram a se desfazer. Não como se estivessem
morrendo, mas só como se estivessem se tornando pó.
Poder demais. Aquele grito era poder e estava
consumindo o que estava por perto.
Alana não podia tentar fazer nada, ou seria pior.
A criatura parou de gritar e se virou para Alana.
— Eu vou ter o que é meu! — Ela gritou.
Alana se forçou a não recuar. Ela queria ver o que
estava acontecendo mais além, o que tinha sido o motivo
para aquele grito, o que tinha sido o som de algo caindo,
mas não conseguia. A única coisa que podia fazer era
lidar com a criatura que...
Ela havia enlouquecido. Alana tinha pensado naquela
possibilidade desde o começo, quando Rafael tinha
contado sobre a criatura ter passado séculos presa.
Naquele dia ela tinha pensado que era até possível que a
criatura já estivesse louca, depois de tanto tempo
isolada. E parecia que ela estava certa.
— Não tem nada seu aqui — Alana falou.
A mulher riu. Tinha algo de quebrado no som, uma
coisa quase histérica... Um toque de loucura.
— Ah, mas tem. Você achou que eu não ia notar?
Um arrepio atravessou Alana. Ela não fazia ideia do
que a mulher queria dizer, mas aquele tom nunca era um
bom sinal.
A criatura colocou a mão nos espinhos na frente de
Alana e sorriu. Os galhos mais perto da mulher
começaram a secar.
Alana forçou seu poder através dos galhos, da
grama, de tudo ao seu redor. Se a criatura ia tentar fazer
aquilo, então ela ia responder do mesmo jeito.
— Eu senti você — a mulher falou. — Mesmo de
longe. Eu senti... A pessoa que roubou parte do meu
poder para si.
— Não.
Bruxas não roubavam poder. Não era assim que elas
funcionavam.
Mas a criatura estava louca. Era bem possível que
ela tivesse notado a semelhança no poder, por ser uma
antepassada de Alana, e só não ter entendido o que
estava sentindo.
A mulher gritou de novo, alto demais, com poder
demais.
Alana cambaleou para trás e deixou a lanterna cair.
A parede de espinhos se desfez de uma vez.
A criatura parou de gritar e riu, mas agora sua risada
era baixa, mesmo que parecesse mais histérica ainda.
— Não vai demorar até ser só eu, então — ela falou.
— Mas não tem problema.
A mulher avançou e segurou o rosto de Alana. As
paredes de espinho que estavam começando a crescer
de novo morreram quase no mesmo instante e Alana não
tinha certeza se era porque a criatura havia destruído
tudo ou porque ela não tinha conseguido manter o
controle.
E o por que não importava quando aquela criatura a
estava segurando com tanta força que Alana sabia que
teria no mínimo alguns hematomas, depois. Se
sobrevivesse.
— Não, não, não — a criatura falou. — Não adianta
mentir. Eu conheço meu poder. Eu...
O metal do anel no indicador de Alana ficou mais
frio.
A criatura a encarou, estreitando os olhos. Ela estava
tentando fazer alguma coisa. E não estava conseguindo...
Por causa do anel de Rafael.
Algo fez um som seco, em algum lugar mais à frente.
Alana não conseguia ver. Ela só esperava que fosse algo
bom para eles, porque ela não sabia quanto tempo ia ter
até a criatura desistir do que quer que estivesse
tentando fazer.
Rafael segurou o punho da criatura. Ela gritou e se
virou, sem soltar Alana.
— Não!
Um fio de névoa escura se enrolou ao redor do braço
de Rafael. Ele soltou a criatura e fez um som que, se
fosse qualquer outra pessoa, Alana diria que era de dor.
E ela não conseguia ver. Rafael estava só longe o
suficiente para ela só conseguir ver uma silhueta mais
escura e mais nada. Alana não fazia ideia do que estava
acontecendo.
A criatura segurou o pulso de Alana e levantou seu
braço.
O braço da mão em que ela estava usando o anel.
O metal do anel ficou ainda mais frio e a mulher fez
um som que quase parecia ser de nojo.
— Então é isso — a criatura falou. — Tomar meu
poder não foi o suficiente. Você também fez questão de
garantir que eu não o tocaria de novo.
A mulher soltou Alana e virou as costas para ela.
Ela sentiu uma pontada de dor e então tudo
escureceu.

Rafael fechou as mãos com força. Ele não podia reagir. Ele não
podia correr na direção de Alana, mesmo que fosse
exatamente o que queria fazer. Aquele tinha sido o seu
medo, o tempo todo. Alana era poderosa, sim. Mas
também era humana. E um tapa da criatura tinha sido o
suficiente para jogá-la longe.
Ela estava viva. Aquela era sua única certeza. Rafael
saberia se aquilo tivesse sido algo grave. Ele não tinha a
menor dúvida daquilo.
E ele também sabia que não podia deixar a criatura
se aproximar dela de novo. Ele precisava ganhar tempo
até Alana se recuperar. Eric já havia feito o que podia –
os vampiros mais afastados haviam sido destruídos. E,
pela forma como a criatura havia gritado com as mortes,
eles não eram aliados ou testemunhas.
Não. Aqueles vampiros eram algo muito pior: servos.
Vampiros ligados a um mestre, dando suas habilidades e
sua força para quem os controlava, sem vontade própria.
A destruição deles havia sido exatamente o que
Rafael precisava. Os fios de névoa o prendendo eram a
habilidade de um daqueles vampiros, com certeza. E,
mesmo que a criatura ainda estivesse usando aquilo, não
era mais tão forte. Ele conseguia quebrar as amarras
quando quisesse. Rafael só precisava de um momento.
Ou talvez nem mesmo daquilo. Ele não precisava
apenas conter a criatura. O plano original não existia
mais. Mas, se a criatura estivesse distraída o suficiente...
Ele podia passar pelas defesas dela – aquela parede
invisível que era como as defesas de Alana. As defesas
de uma bruxa. Rafael só precisava quebrar aquilo e seria
o fim.
Mas, primeiro, ele precisava garantir que a atenção
da criatura estaria nele e não em Alana.
— Como uma bruxa que não era nem viva quando
você escapou pode ter roubado seu poder? — Ele
perguntou.
A criatura se virou para ele de uma vez. Rafael
sentiu algo escapar, ao mesmo tempo em que a grama
ao seu redor morria. Ela estava absorvendo a força dele –
e do que estava ao seu redor.
Ela estava mais forte que antes, sim. Muito mais.
Mas ela não era mais a mesma pessoa que havia
oferecido poder para Rafael, séculos antes. Aquela
mulher, no passado, era fúria e fogo. O que estava ali,
agora, era uma sombra e mais nada.
Até a postura da criatura havia mudado depois que
seus servos haviam sido destruídos. Ela não parecia mais
tão imponente. Seus ombros estavam caídos e ela
parecia quase cansada.
Bom. Aquilo deixava tudo mais fácil para Rafael.
— O como não importa — a criatura falou. — Desde
que eu recupere o que é meu.
Ela havia reconhecido o poder da sua família. Era a
única explicação possível.
Rafael sentiu uma onda de poder passar por ele – o
mesmo tipo de poder que ele havia sentido mais cedo.
As árvores se moveram de uma forma que não era
possível, com os galhos se inclinando na direção dele...
Não, na direção da criatura.
A criatura gritou – mas não era o mesmo grito
carregado de poder de antes.
Os galhos secaram e começaram a cair em pedaços,
mas já havia mais galhos ali, como se fossem braços de
gigante. Como se as árvores tivessem algum tipo de
consciência, se movendo de uma forma que era
assustadoramente fluída.
E não importava que a criatura estivesse gritando e
quebrando cada um dos galhos – sempre havia mais.
Eles sempre estavam se juntando depois de serem
quebrados e voltando, prendendo a criatura.
Rafael olhou para trás.
Alana estava de pé, com as mãos afastadas e uma
trepadeira se enrolando ao redor da sua mão direita,
subindo pelo seu braço. Não. Não era uma trepadeira
porque tinha espinhos demais. E, enquanto ele estava
olhando, um daqueles espinhos passou na pele dela, com
força.
O cheiro do sangue se espalhou no ar.
Rafael não tinha conseguido prender a criatura para
lidarem com o poder dela. Então Alana ia fazer aquilo
para Rafael e Eric terminarem.
O outro vampiro pareceu surgir alguns passos para
trás e para o lado de Alana, do meio da névoa que estava
cobrindo o chão. A névoa branca dos necromantes
avançou na direção da criatura.
A criatura farejou o ar. Os olhos dela se arregalaram.
Ele não estava pronto. Ele precisava de mais alguns
segundos, apenas o suficiente para quebrar a barreira
que era o poder dela – o mesmo tipo de barreira que uma
bruxa tinha – e destruí-la usando seu sangue.
— Eu conheço isso — a criatura murmurou.
Alana foi na direção deles. O sangue estava
escorrendo do seu braço e os galhos que seguravam a
criatura estavam mudando, se tornando algo que não
deveria existir.
— Eu conheço... — a criatura repetiu.
— Conhece, porque você é minha antepassada —
Alana falou. — Não porque roubei seu poder.
A criatura riu. Tinha algo de errado naquilo – e mais
errado ainda em como ela continuava rindo, como se não
conseguisse parar.
Alana esperou.
Os galhos ao redor da criatura haviam se tornado
vermelhos, quase da cor do sangue.
A criatura parou de rir.
— Então alguma coisa sobreviveu — ela murmurou.
— Então nem tudo acabou no passado.
Ela estava louca. Rafael não entendia como havia
demorado tanto tempo para notar aquilo. A criatura
disfarçara bem, aquele tempo todo, mas ali...
— Você deveria ter ficado longe, bruxa — a criatura
falou.
O poder dela cresceu de uma vez, mas não estava se
espalhando. O que Rafael conseguia sentir era mais
como...
Mais como se estivesse sendo condensado.
Louca, sim. A criatura explodiria o próprio poder – e
mataria todos eles.
Rafael se jogou na direção de Alana, ao mesmo
tempo em que jogava cada fio de força por trás da sua
habilidade na direção da presença da criatura e daquela
parede invisível que era a proteção de uma bruxa.
Sua feiticeira não falou nada quando ele a empurrou
para o chão, a cobrindo com o seu corpo. Se o pior
acontecesse...
A pressão do poder ficou mais forte.
A parede invisível se quebrou.
O poder explodiu – e o corpo da criatura caiu em
vários pedaços, no chão.
TRINTA E TRÊS

Alana não tinha certeza de que conseguia acreditar no que tinha


acontecido. Que aquilo tinha terminado, a criatura tinha
sido destruída e tudo tinha sido tão... Simples.
Aquela era a questão. Tinha sido simples, no fim das
contas. Anticlimático, até, mesmo que ela estivesse com
dois hematomas no rosto, onde a criatura a havia
segurado, e mais alguns espalhados pelo corpo, de
quando tinha sido jogada no chão.
Quando os outros tinham chegado, tudo já tinha
terminado. Ela e Rafael ainda estavam no chão depois da
explosão de poder, com Alana encarando o corpo mais à
frente. Eric estava afastado deles, andando de um lado
para o outro de uma forma inquieta e agitada que quase
parecia o que acontecia com Dani quando ela tomava
café demais, antes de ser transformada. E era até
possível que aquela comparação não estivesse errada,
considerando que Eric tinha absorvido todo o poder da
criatura.
E, assim que Yuri e Mel haviam saído do meio das
árvores com um dos destacamentos das forças de
defesa, Eric tinha avisado que precisava ir e só
desaparecido no meio das árvores. Normalmente, Alana
estaria mandando mensagem para Lara para saber se
estava tudo bem com o outro vampiro, mas... Não. Ela
não tinha energia nem para fazer aquilo.
Duas horas depois, quando todo mundo já estava de
volta na cozinha da mansão, ainda tinha alguma coisa
incomodando Alana. Não era nenhuma sensação de
perigo. Não que terem destruído a criatura tivesse
acabado com todos os problemas: Gustavo tinha caçado
uns tantos vampiros perto da fronteira e as forças de
defesa do setor ainda estavam lidando com as últimas
partes do que deveria ter sido um ataque maior.
Alana pegou um dos sanduíches que tinham feito e
saiu para o jardim nos fundos da mansão. Ainda estava
de noite, mas tudo ali era tão iluminado que não fazia
diferença.
Ela se sentou nos degraus da porta e começou a
comer, sem prestar muita atenção na conversa dos
outros, lá dentro.
Quando assistia filmes com o pessoal do Dez, não
tinha nada que Alana odiava mais do que o “monólogo
do vilão”. Era até cômico como sempre tinham tempo
para parar e explicar cada passo do que tinham feito, os
motivos e tudo mais. Ela sempre tinha criticado, revirado
os olhos e reclamado.
Agora, o que ela mais queria era que a sua vida
tivesse tido um momento daqueles, porque era estranho
demais só não saber. Eles tinham destruído alguém que
existia fazia séculos e que estava por trás de vários
ataques, mas ninguém entendia por quê. Por que a
criatura havia se tornado aquilo. Por que tinha começado
a consumir poder. Por que... Tudo.
A porta se abriu e Mel se sentou ao lado de Alana.
— Eu estava perto o suficiente para ver algumas
coisas dela, se quiser saber — ela avisou.
Alana se virou para a outra mulher e levantou as
sobrancelhas.
— Pensei que você não repetia o que via na cabeça
das pessoas.
Mel deu de ombros.
— Ela está morta.
— Ah, então depois de mortos não tem mais
segredo, entendi. Vou lembrar disso.
— Alana. Você quer saber ou não?
Ela respirou fundo. Foco. Ela precisava focar. Já tinha
acabado.
— Quero.
Mel encarou o jardim de ervas.
— Eu não estava tentando ver detalhes. Nem estava
prestando atenção nela, de verdade, porque não serviria
de nada — ela começou. — Então não tenho detalhes,
mas... Tem um fundo de verdade na história que você e
Dani contaram. Ela foi transformada porque queria. E
depois perdeu tudo. Eu só vi o fogo e tive uma impressão
de gritos. Ela já estava enlouquecendo bem antes de
encontrar Rafael pela primeira vez.
Alana não duvidava. Uma bruxa que tinha escolhido
ser transformada, só para depois perder tudo... Ela
entendia como a loucura podia vir. Mas, ainda assim...
— E por que isso tudo, então? — Alana perguntou. —
Por que não se vingar de quem acabou com a existência
dela e tudo mais e só ficar livre disso?
Porque Alana tinha visto o cansaço nos olhos da
criatura, também. Ela não queria estar ali. Ela tinha se
forçado a continuar, de alguma forma.
— Porque ela culpava os vampiros — Rafael falou.
Alana se virou, depressa. Rafael estava parado do
outro lado de onde ela estava, encostado na parede
como se estivesse ali aquele tempo todo. Nem parecia
que ele tinha desaparecido assim que a mansão havia
começado a encher.
— Ela achava que os outros vampiros poderiam ter
protegido o clã dela — ele continuou. — Se é verdade ou
não, nunca vamos saber. Mas, desde o começo, ela só
queria vingança.
Alana respirou fundo e soltou o ar devagar.
Vingança. Aquilo tudo para se vingar de alguma
coisa que talvez não fosse nem real.
— Eu preciso voltar para o Setor Um — Rafael
avisou.
Sim, ele precisava. Era óbvio que precisava. Alana
estava sentada ali, como se tivesse todo o tempo do
mundo para processar o que tinha acontecido, mas ainda
não tinha acabado. Eles ainda precisavam voltar para o
Um, ver o que tinha acontecido lá – porque Amon tinha
avisado que havia acontecido um ataque lá, também – e
lidar com os vampiros que tinham se aliado à criatura.
Alana não era ingênua a ponto de pensar que aquilo ia
ser resolvido de forma tão simples.
Ela se levantou.
— Me dê cinco minutos — Alana pediu.
Rafael assentiu.
Ela abriu a porta da cozinha e entrou na mansão.
Rafael encarou os muros ao redor dos jardins do castelo. Ainda
havia sangue por toda parte, no chão, nos próprios
muros, nos portões... Tudo estava manchado. Thales lhe
avisara que a limpeza já havia começado, mas era óbvio
que o castelo propriamente dito seria o foco. Aquelas
manchas continuariam ali por alguns dias, como um
lembrete do que acontecera.
— E ela realmente tinha planejado dois ataques ao
mesmo tempo — Alana murmurou, ao seu lado.
Ele assentiu, sem falar nada.
Rafael queria estar furioso. Seu setor havia sido
atacado e na sua ausência. Ele havia dependido de
alguém de fora para defender aquilo que era sua
responsabilidade. E, se fosse alguns meses antes, ele
provavelmente estaria furioso. Ele estaria procurando
alguma forma de alterar a dinâmica de poder, criar
alguma situação para garantir que ele não estaria
devendo nada para ninguém e que os outros estivessem
dependendo dele.
Mas, agora... Ele não se importava.
Amon havia sido o responsável pela maior parte da
defesa do castelo. Thales havia lhe dado um resumo do
que acontecera: como quase nenhum dos vampiros
invadindo a propriedade havia conseguido atravessar o
jardim. Aquele era o motivo do sangue. Eles haviam se
virado uns contra os outros, presos na loucura que era a
habilidade de Amon. E os próprios vampiros da criatura
haviam destruído a si mesmos.
Não havia mais nada para ser feito, naquele
momento. Thales e Victor já haviam cuidado de tudo. O
papel de Rafael ali era ser visível por algum tempo.
Deixar tanto os vampiros quanto os humanos do setor
saberem que ele estava ali e que estava bem. Quando as
notícias sobre a destruição da criatura se espalhassem,
não teria como ninguém questionar se ele havia
sobrevivido, também.
Mas ele já tinha andado pelo castelo e pelos jardins
por tempo demais.
Alana estava com uma mão no seu braço, então era
simples segurá-la e fazer com que parasse na sua frente.
— Posso? — Ele perguntou.
Ela levantou as sobrancelhas e assentiu.
Sua feiticeira estava cansada. Ela estava
escondendo, mas Rafael a conhecia. E ela não havia
saído do lado dele em nenhum momento, porque a
imagem dela estava ligada a ele, agora.
Eles já haviam cumprido suas obrigações.
Rafael segurou Alana contra o seu corpo. A única
reação dela foi esconder o rosto no pescoço dele, um
instante antes de Rafael correr na direção da ala
residencial, usando a velocidade dos vampiros. Em
segundos, ele estava na porta do quarto de Alana e a
colocava no chão, de novo.
Ela abriu a porta do quarto com um suspiro audível e
puxou Rafael para dentro, sem falar nada.
Ele não questionou, só fechou a porta atrás de si. Se
Rafael fosse para os seus aposentos, não ia demorar
para alguém aparecer procurando por ele. Ali, ninguém o
incomodaria a menos que fosse algo urgente.
Alana atravessou o quarto e foi na direção do
banheiro, tirando os sapatos no meio do caminho. Rafael
sorriu e foi até a poltrona que sabia que sua feiticeira
nunca havia usado, antes. Outra vantagem de estar no
quarto de Alana era que ali ele não precisava fingir que
nada do que acontecera havia lhe afetado. Ele estava
cansado. Fraco, quase, mas não era nada que uma visita
aos reservatórios de sangue não resolvesse, depois.
Mesmo assim, ninguém mais veria aquilo.
Havia acabado. Depois de séculos, ele não precisava
mais se preocupar com a criatura. Aquilo estava longe de
ser o final de tudo: os traidores ainda estavam por toda
parte e as mudanças climáticas não seria desfeitas
apenas porque a criatura não existia mais. Ele precisaria
continuar monitorando tudo e garantindo que algo pior
não aconteceria. Ainda assim, era estranho pensar que
não teria mais que se preocupar com o que a criatura
estaria fazendo.
Alana parou na sua frente, parecendo furiosa.
— Agora eu posso fazer isso — ela falou.
— O que... — ele começou.
Sua feiticeira tirou o anel e o jogou em Rafael.
Alana tirou o anel e o jogou em Rafael.
— Você sabia!
Ele pegou o anel antes que caísse no chão.
— Sabia o quê?
— Que o poder dela ia funcionar contra você — Alana
falou. — Você sabia que se me desse o anel você ia estar
correndo risco ali. Se eu soubesse eu não...
Rafael segurou o braço de Alana e a puxou. Ela caiu
por cima dele na poltrona, de alguma forma ainda o
encarando como se estivesse no controle.
— Se você soubesse, ainda ia ter usado o anel — ele
falou. — Porque a sua segurança era mais importante.
— Eu não...
Ele segurou a mão dela e a fechou ao redor do anel.
— Sim. Você teria usado o anel — Rafael repetiu. —
Porque a criatura não conseguiria me destruir. Mas você
precisava ser protegida.
Alana engoliu em seco e o encarou, sem falar mais
nada.
Sua feiticeira tinha se preocupado. Aquele era o
motivo para a reação dela. Alana havia visto Rafael preso
pelo poder da criatura. Ela enfrentara a criatura
praticamente sozinha enquanto Eric fazia sua parte e
Rafael não tinha como ajudar... Porque ele havia ficado
sem nenhuma proteção.
Aquilo não aconteceria de novo. Não importava o
que Rafael precisasse fazer, ele não colocaria Alana em
uma posição como aquela de novo.
Ela suspirou e se endireitou, sem tentar sair de cima
de Rafael. Bom. Ele queria ela ali, exatamente naquele
lugar.
— Você precisa de sangue — Alana falou.
Rafael assentiu.
— Vou descer para os reservatórios em breve.
— Não.
Ele segurou a cintura de Alana, apertando com mais
força do que deveria quando ela inclinou a cabeça para o
lado e tirou o cabelo do pescoço.
— Não faz o menor sentido você descer para os
reservatórios — ela completou.
Fazia, mesmo que recusar aquilo estivesse testando
todos os limites do controle de Rafael.
— Você está cansada depois de tudo — ele falou. —
E não só fisicamente. Seu poder está quase esgotado.
Não vou beber de você agora e piorar a situação.
Alana riu, com um tom grave que ele não se
lembrava de ter ouvido antes.
— Mas o meu cansaço vai ser resolvido com algumas
horas de sono. E alguns orgasmos só iam servir para
fazer eu recuperar poder, não me cansar mais.
Ela não estava errada. E a pressão que Rafael estava
sentindo por trás das suas presas era um sinal mais que
claro de que todos os seus instintos estavam de acordo,
também. Sua feiticeira estava ali, no seu colo, sob o seu
controle, oferecendo seu sangue. Ele não tinha motivos
para recusar.
E aquilo era o maior motivo para recusar, porque
Rafael não confiava no que ele era capaz de fazer
quando estava daquele jeito.

E diziam que ela era teimosa.

Alana encarou Rafael. Não tinha como ele negar que


precisava de sangue. O rosto dele estava fundo e ele
estava mais pálido do que o normal – e Alana não fazia
ideia de como aquilo era possível. E ainda tinha a forma
como ele estava se movendo de forma cuidadosa, como
se quisesse ter certeza não ia cair ou alguma coisa
assim.
Não. Não mesmo. Depois daquele caos todo, ela não
tinha mais paciência para nada.
— Me dê um motivo para não aceitar meu sangue
agora — Alana falou.
Rafael subiu as mãos que estavam na cintura dela
devagar. As garras dele tinham aparecido em algum
momento e a sensação delas contra sua pele, mesmo
através do tecido, era mais que o suficiente para fazer
um arrepio a atravessar.
— Exatamente o motivo que você disse — Rafael
murmurou. — Eu preciso de sangue. Se beber de você
agora, não vai ser apenas provar o seu sangue e deixar
você aproveitar os efeitos do veneno.
Um arrepio atravessou Alana. Os olhos dele já
estavam escurecendo e ela não sabia nem se Rafael
tinha consciência daquilo.
Mas ela estava entendendo o que ele queria dizer. O
que Rafael não estava falando com todas as letras era
que seria instinto. Não seria ele no controle. E, no fim das
contas, ele era um vampiro que fazia questão de estar no
controle, o tempo todo – tanto dos outros quanto de si
mesmo.
Não. Não de si próprio. Com ela ele não tinha estado
no controle.
Alana assentiu e se levantou. Ela não tinha nenhuma
roseira no seu quarto e nem por perto. Os jardins
daquele lado do castelo ainda não haviam sido
completamente replantados. Mas tinha um vaso de
espada-de-são-jorge perto da porta. Era o suficiente – e
Alana ainda tinha poder mais que o bastante para fazer
aquilo.
— Alana... — Rafael começou.
Ela balançou a cabeça.
Ele fechou as mãos com força e ela se conteve para
não sorrir. Alguém ia ter uma surpresa.
As folhas de espada-de-são-jorge cresceram, muito
mais depressa e muito maiores do que era o natural. E
mudaram, deixando de ser largas e se tornando
estreitas, quase como trepadeiras, mas muito mais
fortes.
A primeira das folhas se enrolou ao redor do pulso de
Rafael. Ele olhou para baixo no mesmo instante, com a
tensão de alguém pronto para lutar.
— Como você mesmo diz... — Alana começou. — Se
for demais para você, você vai me falar.
Rafael a encarou e estreitou os olhos.
— Você não...
Mais uma folha se enrolou ao redor do outro braço
de Rafael e puxou, até que ele estava com os braços no
apoio da poltrona. Mais folhas continuaram a aparecer, o
prendendo no lugar.
— Eu sei exatamente o que eu quero — Alana falou.
— E até onde estou disposta a ir.
Ela subiu no colo de Rafael de novo, com um joelho
de cada lado do corpo dele.
— E não tem a menor chance de você ir além do que
eu quero enquanto estiver assim — ela completou. —
Então a menos que você realmente não queira...
Rafael não respondeu.
Aquilo era resposta mais que o suficiente.
Alana se inclinou para a frente, contra o corpo de
Rafael, e tirou o cabelo do pescoço de novo.
Ela tinha imaginado que a mordida de um vampiro
fosse doer. Pelo menos no começo, a primeira sensação –
não fazia sentido não ter nem uma pontada de dor. Mas
não tinha. Era só a sensação das presas entrando na sua
pele. Estranho, sim, mas sem nada de dor.
E então era algo quente, quando Rafael começou a
beber. Era uma sensação diferente, se espalhando por
todo o seu corpo depressa demais. Com força demais – e
Alana não sabia nem como descrever aquilo. Se era uma
sensação real ou não.
Mas era bom. Sobre aquela parte ela não tinha a
menor dúvida.
Era prazer, quando Rafael bebeu mais e Alana
gemeu alto. Era todo o seu corpo respondendo como se
ele a estivesse tocando, mesmo que as mãos de Rafael
ainda estivessem presas. Mesmo que a forma como ela
estava sentindo aquilo no seu clitóris não tivesse nada de
parecido com um toque. Era outro. Era como se seu
corpo não estivesse sob o seu controle, naquele instante.
Alana se apertou contra o corpo de Rafael. Ele
grunhiu, sem parar de beber, e até o som era como se
estivesse sendo transportado exatamente para o meio
das suas pernas.
Ela queria mais. Precisava de mais.
E ele ainda estava bebendo – mas agora era como se
estivesse chupando seu clitóris, também. Como se cada
vez que ele sugasse, não fosse só no seu pescoço.
Alana deveria ter pensado melhor antes de fazer
aquilo. Ela deveria ter ao menos puxado sua saia para
cima. Ou só tirado ela de uma vez, porque não tinha
como fazer aquilo na posição em que estava. E o ângulo
estava ruim demais para enfiar a mão por dentro do cós
da saia.
Mas não estava ruim para ela se apertar contra a
ereção de Rafael.
Sim, sim e sim.
Rafael bebeu mais. Alana gemeu alto. De forma
distante, ela sabia que Rafael estava forçando as folhas
so prendendo. Não importava. A única coisa que
importava eram as sensações atravessando o corpo dela.
Ela a sensação de estar sendo chupada. A pressão de
estar se apertando contra a ereção de Rafael.
E ela queria mais. Muito mais.
Ele parou de beber.
Alana fez um ruído irritado, mas ele já estava
passando a língua pelos ferimentos no seu pescoço, os
fechando.
— Me solte — Rafael falou.
A voz dele estava rouca. Tão rouca quanto naquele
outro dia, quando ele tinha distraído Alana pela
madrugada toda.
As folhas o soltaram.
Ele se levantou de uma vez, levando Alana junto. A
saia dela foi arrancada de uma vez, quase ao mesmo
tempo em que a calça dele, e então Rafael a estava
jogando na cama e entrando nela de uma vez só.

Rafael encarou Alana. Sua feiticeira estava jogada de costas na


cama, com os olhos fechados e uma expressão mais do
que satisfeita no rosto.
— Você está me devendo os espinhos — ele
comentou.
Ela abriu os olhos e se virou de lado para olhar para
ele.
— Os espinhos são mais do que eu ia conseguir
fazer. Mas não vou esquecer.
Ótimo, porque ele queria ver até onde Alana iria.
Ela suspirou e se deixou cair de costas na cama de
novo.
— Eu tenho que voltar para o Dez.
Rafael a encarou e levantou uma sobrancelha.
— Tem mesmo?
Porque Alana era sua. Sua consorte, sua rainha... E o
que mais ela quisesse ser. O lugar dela era ali.
Ela se sentou na cama e estendeu uma mão para
ele.
Rafael saiu da poltrona e aceitou a mão que estava
sendo oferecida. Não foi nenhuma surpresa quando
Alana o puxou para a cama, também, e se sentou
encostada nele.
— Tenho. Eu ainda sou a responsável pelas
plantações. Não vou abandonar o setor.
Claro que não iria. Sua feiticeira nunca viraria as
costas para aqueles que ela considerava como sua
família.
— E o que pretende fazer? — Ele perguntou.
O mais fácil seria manter o calendário que haviam
organizado antes – seis meses em um setor e seis meses
em outro. Por mais que Rafael odiasse a ideia, não seria
como antes. A situação entre os setores havia mudado.
Alana sorriu.
— Abusar do poder de Dani, óbvio — ela falou.
Rafael a encarou.
O sorriso da sua feiticeira ficou mais largo ainda.
— Vai ter épocas que vou precisar passar mais
tempo lá — ela continuou. — Mas, considerando o que
Dani pode fazer e que não estou mais fazendo um acordo
com um potencial inimigo, não tem motivo para voltar
para a coisa de seis meses.
Rafael assentiu.
— Bom.
Mais do que bom. Aquilo queria dizer que ele teria
sua rainha ali.
Alana deu uma risada baixa e se acomodou ainda
mais contra ele.
— Os vampiros que juraram lealdade para você... —
ela começou.
— Vão continuar sendo meus.
Ela não respondeu.
Rafael colocou dois dedos debaixo do queixo de
Alana e levantou o rosto dela.
— E eu ainda faço questão de estar no controle dos
vampiros — Rafael falou. — Se você tiver algum
problema com isso...
Alana sorriu.
— Ah, não. Eu estou pensando é em usar isso ao
meu favor, isso sim.
Ele levantou as sobrancelhas e esperou. O sorriso
dela ficou mais largo ainda.
— Enquanto você controlar os vampiros, eu tenho
um jeito de garantir que os humanos não vão ser só
lanche descartável.
Rafael não tinha esperado aquela resposta. Ele tinha
imaginado que ela questionaria ele manter o poder. Que,
uma vez que a criatura havia sido destruída, não fazia
sentido que ele ainda quisesse que a Corte da Noite
fosse uma autoridade acima de todas as outras Cortes.
Talvez não fosse necessário, mas era o que Rafael
queria. Ele não negaria sua ambição. E aquilo era útil,
porque ainda teriam traidores para lidar – não os
traidores que ele havia prendido dentro dos reservatórios
de sangue envenenado, mas as Cortes que haviam se
aliado à criatura, antes de tudo. Os que estavam tão
sedentos por poder que não pensavam em o quê
estariam sacrificando. Aqueles vampiros, aquelas Cortes
sempre seriam um problema. E Rafael preferia lidar com
aquilo ele mesmo a confiar que alguém faria o
necessário.
O sorriso de Alana desapareceu e ela respirou fundo.
— Tem mais uma coisa.
Rafael esperou.
— Eu não vou ser transformada — ela falou. — Não
vou correr o risco de acontecer comigo o que aconteceu
com ela.
Porque sua antepassada só havia se tornado aquela
criatura porque queria ser transformada. Alana não
estava errada.
— Com o tipo de poder que eu tenho, eu sei que
posso viver mais que a maioria dos humanos, se estiver
usando o poder sempre. Mas a transformação... Isso não.
E se isso for um problema para você...
Rafael segurou o queixo de Alana. Ainda havia um
resto de hematomas ali, os lembretes do que acontecera
à noite, mas ele não se importava.
— Eu quero você — ele falou. — Pelo tempo que eu
puder te ter.
E quando aquele tempo estivesse acabando, talvez
Rafael fosse atrás de Eric e da Corte da Névoa, para
descobrir como era possível que alguém que antes era
uma vampira houvesse se tornado humana – porque ele
estivera perto de Melissa e mal conseguira acreditar no
que estava vendo. Se aquilo era possível, então ele
falaria com a Corte da Névoa, sim. E pagaria o preço
para deixar de ser imortal, se fosse sua única opção.
Mas aquilo era uma preocupação para depois. Para
anos – décadas – no futuro. E o seu presente... Aquela
era a melhor parte.
NOTA DA AUTORA

É. Acabou. Pois é.
“Ah, Thais, mas nem um epílogo, poxa?” Dessa vez
não, por vários motivos... Que eu não vou listar aqui
hahaha
Mas isso não quer dizer que estou abandonando esse
mundo. Quem me acompanha há mais tempo sabe que é
quase impossível eu conseguir largar mão de um mundo
de vez. Quando eu vou voltar, se voltar mesmo... Nunca
se sabe. A possibilidade está aí – mas a fila de outros
projetos também.
Como sempre, o jeito mais fácil de saber em
primeira mão quando/se eu decidir voltar nesse mundo é
se inscrevendo na minha newsletter, aqui. Os emails são
enviados mensalmente e prometo não fazer spam.
Ou se preferir, me ache nas redes sociais. É
@escrevethais tanto no instagram (mais posts de
projetos e coisas de escrita em geral) quanto no twitter
(de um a tudo, o caos) e no tiktok (que de raro em raro
bate o surto de postar alguma coisa).
E se chegou até aqui, deixa uma avaliação, mesmo
que seja só as estrelinhas ali <3 Isso ajuda demais, tanto
na questão apoio moral quanto para deixar os livros mais
visíveis.
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