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1ª Edição

Belo Horizonte
2022
Copyright ©2022 Thais Lopes

Capa & Diagramação


Thais Lopes

Mapa
C.M.P. Vargas

Ilustrações
Carol Zen

Todos os direitos reservados. É proibido o


armazenamento ou a reprodução de qualquer parte
desta obra – física ou eletrônica – sem a autorização
prévia do autor.
Para todo mundo que nunca "superou" a moda dos
vampiros: é a nossa vez, de novo.
UM

Dani tomou mais um gole da garrafa de cerveja e cruzou os braços


de novo, sem sair de onde estava: encostada em uma
das paredes do bar. O grupo de pessoas reunido ao redor
de uma mesa um pouco para a frente ficou em silêncio
de uma vez. Não que isso quisesse dizer alguma coisa,
com a música alta vindo das caixas de som – alguma
coisa dançante de antes da magia – e o barulho dos
ventiladores no alto das paredes.
Mas ela sabia por que estavam fazendo silêncio.
Dani tinha visto o casal de adolescentes entrar no bar
mais cedo, olhando para os lados daquele jeito nervoso
de alguém que estava onde não deveria. E os dois não
pareciam ter idade o suficiente para estar fora de casa
depois do anoitecer. Pelo menos, não no Setor Seis. Os
vampiros diziam que evitavam tocar nas crianças e
adolescentes, mas a regra não escrita era que os mais
novos só estavam seguros se estivessem em casa.
E era óbvio que sempre tinha alguém para ignorar
essa regra, como os dois na mesa, com as pessoas ao
redor.
— Dizem que ele podia andar no sol — uma mulher
no grupo falou.
Algumas pessoas concordaram.
— Foi por isso que ele conseguiu caçar os outros
vampiros — outra pessoa completou.
Dani revirou os olhos. Era óbvio que estavam
contando aquela história. Não era a primeira vez que ela
estava no bar em um dia que aparecia alguém que era
novo demais. E todas as vezes, era a mesma coisa: um
grupo se formando para contar histórias e assustar os
adolescentes. E aquela história em específico – do
monstro que havia destruído todos os vampiros da região
durante uma das guerras deles – era uma das favoritas.
Com sorte, iam assustar os adolescentes o suficiente
para não jogarem fora o pouco de proteção que tinham.
E Dani conhecia mais histórias sobre o monstro. Ele
era uma lenda do seu setor, não dali.
Ela tomou mais um gole de cerveja e se aproximou
do grupo ao redor da mesa.
— Ele não podia andar no sol — Dani contou. — Isso
foi o que os vampiros inventaram depois pra explicar
como um vampiro tinha destruído todos os outros.
O garoto sentado na mesa apertou a mão da garota
ao seu lado com força. Crianças, os dois. E Dani entendia
bem demais a vontade de fugir e ignorar as regras.
Naquela idade, ela também tinha pensado que parecia
óbvio que tudo o que os mais velhos falavam era exagero
e que não tinha nenhum motivo para tomar tanto
cuidado. E logo depois ela tinha precisado fugir.
Algumas pessoas se viraram para Dani. Ela levantou
a garrafa como se estivesse cumprimentando os outros.
— Setor Dez — ela falou.
Aquilo era explicação o suficiente. O Setor Dez fazia
fronteira com o Seis – onde Dani estava – e era o setor
mais novo. Até pouco mais de vinte anos antes, ele era
uma terra de ninguém que tinha ficado abandonada
desde a última guerra entre as Cortes dos vampiros da
região. A guerra de onde a história do monstro tinha
vindo.
— Vocês só estão tentando expulsar a gente daqui —
a garota falou, com a voz começando a tremer.
Um homem colocou uma mão na mesa.
— Se alguém fosse expulsar vocês daqui, eu já tinha
jogado os dois pra fora. Não vou recusar clientes. Agora,
se não forem pagar...
Os dois adolescentes se entreolharam. Eles
provavelmente já tinham pagado. Aquele não era o tipo
de bar onde alguém anotava seus pedidos e cobrava no
fim da noite. Era do tipo onde cada um pagava sua
bebida no balcão e pronto.
Assustar dois adolescentes que estavam ignorando
as regras era uma coisa. Tentar arrancar dinheiro deles
era outra bem diferente – até porque Dani sabia muito
bem que aquele homem não era o dono do bar.
Alguma coisa se quebrou, longe de onde Dani
estava. Ela ficou nas pontas dos pés, tentando ver por
cima das cabeças das pessoas. Dani não era baixa, mas
tinha gente demais ali para ela conseguir ver perto da
porta, que era de onde o som parecia ter vindo. Do lado
oposto do bar, porque ela estava ao perto da saída dos
fundos.
Mais barulho de coisas se quebrando. Ou então tinha
sido uma das mesas de ferro caindo.
— Briga! — Alguém gritou.
Dani se afastou da mesa. Algumas pessoas foram
direto para a saída dos fundos. Uma briga nunca era bom
sinal, mesmo que não fosse incomum. Mas ela não ia
correr o risco de sair agora. Fazer aquilo era a mesma
coisa que dizer que era culpada de alguma coisa.
Os dois adolescentes se levantaram e
desapareceram no meio das pessoas se afastando ou
tentando ver o que estava acontecendo. Com sorte, iam
conseguir voltar para casa.
E, por mais que soubesse que não era uma boa
ideia, Dani estava ali justamente para ter uma noção de
como as coisas estavam no Setor Seis. Uma briga de bar
provavelmente não ia fazer diferença nenhuma para o
seu setor, mas ia ser bom ter uma ideia do motivo dela,
mesmo assim.
Dani foi na direção do barulho – pessoas gritando e
outros rindo – até que conseguia ao menos ver o que
estava acontecendo. Eram quatro pessoas brigando e um
homem tinha acabado de ser jogado em cima de outra
mesa de ferro, que caiu.
— Estúpidos — alguém perto dela falou.
Sim. Estúpidos. Uma briga daquelas, em um lugar
público, de noite, era só uma forma criativa de suicídio,
porque mais cedo ou mais tarde...
As pessoas gritando pararam de uma vez.
Um dos homens se levantou. Um lado da sua blusa
estava rasgado e aquilo não era nada demais. Mas tinha
um corte fundo no seu braço, com um fio de sangue
escorrendo pela sua pele.
As pessoas abriram um espaço largo ao redor de
onde as pessoas brigando ainda estavam. Não parecia
que o homem tinha notado o sangue, nem os outros, mas
eles não eram o problema.
Dani apertou a garrafa na sua mão com força. A
cerveja já estava quente, o que queria dizer que não
dava nem para pensar em beber ela agora. Essa cerveja
já era ruim enquanto estava gelada, depois de quente...
Não.
Mas ela precisava de uma bebida, porque não podia
sair do bar agora. Não quando alguém tinha derramado
sangue.
Dani se virou para trás. O bar tinha janelas grandes
em todas as paredes, que começavam um metro acima
do chão e iam até o teto – restos do que aquele lugar era
muito antes de virar um bar. Duas das janelas estavam
cobertas por placas de madeira, mas a maioria estava
inteira, por algum milagre, e Dani conseguia ver a rua lá
fora.
A noite não estava escura. A lua crescente ainda não
tinha nascido, mas as tochas espalhadas pela rua eram o
suficiente para Dani conseguir ter uma ideia do que
estava acontecendo. Ninguém gastaria eletricidade para
iluminar uma rua, especialmente em uma parte da
cidade que estava longe de ser das mais ricas.
E, mesmo que a luz das tochas fosse instável, as
sombras que ela estava vendo lá fora não tinham como
ser naturais.
A música parou. O barulho dos ventiladores parecia
forte demais, mas eles não iam ser desligados. E havia
uma pessoa parada na entrada do bar. Uma mulher,
sozinha.
As pessoas se afastaram ainda mais, abrindo um
caminho da porta até onde os quatro ainda estavam
brigando, sem ter a menor noção do que estava
acontecendo ao seu redor.
A mulher entrou no bar e parou, olhando ao redor.
Ela era baixa e magra, com pele clara, cabelo cacheado e
vermelho escuro batendo no meio das suas costas,
vestindo um corset simples e uma saia comprida, tudo
preto, com correntes finas presas pelas pontas no corset
e caindo pela saia. Não era nada muito diferente das
pessoas no bar – a não ser pela força da sua presença,
como se estivesse sugando a atenção de todo mundo ali.
E pelas marcas escuras que começavam nas pontas dos
seus dedos e subiam pelos seus antebraços.
— Soube que houve uma oferenda aqui — a mulher
falou.
Dani pegou a garrafa de bebida na mão da pessoa
ao seu lado e virou um gole. Não era cerveja. O que quer
que fosse, desceu queimando e ardendo, mas era melhor
que a sensação da voz da vampira. Era muito melhor que
sentir seu corpo esquentando e aquela vontade de se
aproximar, só para saber se seria digna de um olhar ou
talvez de mais.
Não.
Aquilo não era ela. Não era Dani. Era só uma reação
ao poder.
Eles não eram dignos. Os vampiros. Eles não
deveriam estar vivos. E não deveriam ter aquele tipo de
poder sobre os humanos.
Alguém tomou a garrafa da sua mão. Dani não
tentou ver quem era.
As pessoas se afastaram ainda mais. Os dois homens
na frente de Dani foram empurrados para trás e alguém
colocou a mão nas suas costas quando ela cambaleou.
A vampira sorriu, sem tentar esconder suas presas.
Uma das pessoas que ainda estava brigando fez um
ruído abafado.
A vampira foi na direção deles, andando devagar. Ela
era bonita, Dani não ia negar. Mas Dani não sabia até
onde a beleza ia e o poder dos vampiros começava. Não
era natural uma pessoa sozinha fazer um bar inteiro se
calar e acompanhar cada movimento seu enquanto
passava entre as mesas empurradas, com sua saia se
abrindo ao seu redor com o movimento, mostrando suas
pernas e as botas de cano baixo e salto alto que ela
estava usando.
Não. Ela não estava vestida como as pessoas no bar.
Ninguém humano sairia à noite de salto. O risco não valia
a pena.
A mulher parou na frente de onde as quatro pessoas
ainda estavam brigando. Um homem piscou e parou,
olhando para a vampira. A única mulher no meio deles
acertou um soco nele antes de parar, também. Os dois
últimos se viraram e congelaram no lugar.
Simples assim. Um olhar e eles não tinham mais
como escapar. Eles tinham derramado sangue em um
lugar público e aquilo era um convite que os vampiros
nunca recusariam.
A vampira assentiu devagar, ainda sorrindo.
— A Corte agradece sua colaboração — ela falou.
Ninguém falou nada enquanto ela se afastava. As
quatro pessoas que estavam brigando foram atrás dela,
andando devagar e com olhares vidrados que deixavam
claro que estavam sendo controlados.
Um arrepio atravessou Dani. Aquele era o motivo
para ela estar ali: garantir que nada daquele tipo
acontecesse no Setor Dez. Eles estavam fora do controle
dos vampiros e iam continuar assim.
O silêncio continuou até a vampira chegar na
entrada e sair com suas vítimas. E por mais alguns
minutos, enquanto as pessoas esperavam para ter
certeza de que mais nenhum vampiro ia entrar.
A música voltou a tocar.
Alguém riu, alto, mas era um som mais nervoso que
qualquer outra coisa. Outra pessoa também riu e alguém
gritou pedindo uma bebida. Aos poucos, as conversas
começaram de novo e o barulho do bar voltou ao normal.
E Dani tinha perdido sua garrafa de cerveja em
algum momento. Não que ela fosse terminar de beber
aquilo, de qualquer forma.
Dani foi na direção do balcão do bar e apoiou um
braço nele.
— Cerveja! — Ela gritou quando um dos baristas
olhou para ela.
Ele pegou a cerveja em um freezer quase na outra
ponta do balcão e voltou. Dani aproximou as costas da
mão do leitor fino que o barista colocou no balcão e a
tela mostrou a mensagem de confirmação de
pagamento. O barista deixou a cerveja perto dela e se
afastou.
Dani respirou fundo e tomou um gole. Pelo menos
aquela cerveja estava gelada. Continuava sendo ruim –
era produzida no Setor Seis, por uma família que fornecia
bebidas para a maioria dos bares nas partes humanas da
cidade e nenhuma das bebidas deles era boa para Dani.
Não depois de ter se acostumado com o que faziam em
casa.
Tinha alguma coisa de diferente ali e não era só
invenção da cabeça de Dani. Outros quatro ou cinco do
seu pessoal tinham tido a mesma impressão nas últimas
vezes que estiveram no Setor Seis e a equipe que havia
ido no mercado, dois dias antes, também tinha
comentado que alguma coisa estava diferente.
Mas, por mais que Dani fosse no Setor Seis e
naquele bar com uma certa frequência, não confiava nas
pessoas que conseguia reconhecer. Não podia confiar,
porque eles eram humanos em um setor governado
pelos vampiros.
Uma pessoa parou ao seu lado no balcão,
empurrando Dani para o lado. Ela pegou a garrafa
depressa e deu um passo para trás. Era melhor procurar
outro lugar para ficar.
A pessoa segurou seu braço e Dani se virou.
A mulher ao seu lado tinha a pele marrom, cabelo
liso preso em um rabo-de-cavalo e estava vestida toda
de preto, como a maioria das pessoas ali. E estava com a
maquiagem impecável, mesmo que estivessem em um
bar em uma das partes duvidosas da cidade.
Mas ela era alguém em quem Dani confiava.
— Lara — ela falou.
A outra mulher levantou as sobrancelhas e olhou
para o outro lado do balcão.
Um dos baristas colocou outra garrafa de cerveja na
frente dela, sem falar nada. E sem cobrar também,
aparentemente. As vantagens de ser conhecida.
Lara soltou o braço de Dani e tomou um gole grande
da cerveja.
— Você precisa tomar cuidado — ela avisou.
Dani revirou os olhos e cruzou os braços.
— Sempre tomo.
A outra mulher balançou a cabeça.
— Soube que tem uma ordem pronta pra descer pros
mercados, controlando com quem podem negociar.
Cuidado.
Dani respirou fundo e assentiu.
Aquilo era bem pior. Se queriam controlar quem
podia comprar nos mercados do Setor Seis, o mais
provável era que fossem bloquear o seu setor. O único
outro motivo que ela conseguia pensar para controlarem
os mercados era estarem se preparando para uma guerra
entre as Cortes. Mas, se fosse alguma coisa assim, ela
teria visto algum sinal.
E se estavam se preparando para isolar o Setor
Dez...
Alguma coisa se moveu fora do bar. Dani se virou
depressa, olhando pelas janelas. Não eram sombras. Pelo
menos, não pareciam. Mas ela tinha certeza que tinha
visto alguma coisa.
Outro borrão de movimento. E mais um.
Motos. Ela não ia ouvir nada com a música do bar e
nem ver alguma coisa além daqueles borrões de
movimento, porque eram os vampiros ali. Vampiros nas
suas motos pretas, usando suas roupas pretas e os
capacetes pretos. E obviamente sem se preocuparem em
acender um farol que fosse, porque eles enxergavam no
escuro. Se algum humano não percebesse que estavam
se aproximando, o problema era do humano.
— A essa hora... — Lara murmurou.
Sim. Estava cedo, para o padrão dos vampiros. Mal
tinha passado de meia noite. Não fazia sentido tantas
motos. A menos que...
Dani deu alguns passos para o lado, tentando ver
melhor pela janela. Ela conhecia as ruas ao redor do bar.
E ela conhecia melhor ainda a rua por onde as motos
estavam subindo.
Eles estavam voltando do Setor Dez.
Enquanto ela estava ali, um grupo de vampiros tinha
ido no Setor Dez.
Dani colocou a cerveja em cima do balcão.
— Preciso ir.
Lara não respondeu.
Dani olhou pela janela de novo antes de ir na direção
da entrada, passando depressa entre as pessoas no bar.
O que quer que tivesse acontecido, não podia ser nada
bom.

Ainda tinha luzes acesas na casa principal quando Dani chegou. Se


ela precisasse de uma confirmação que as motos haviam
vindo dali, já tinha. Ninguém além do pessoal de guarda
ficava acordado até tão tarde normalmente. E a grama
logo antes da entrada tinha sido amassada e arrancada
em alguns lugares, por causa das motos. Claro, porque
os vampiros não podiam parar alguns passos longe da
casa e atravessar o caminho de pedras a pé, como ela
tinha feito. Não. Eles faziam questão de estragar até a
grama.
Dani colocou a mão no painel ao lado da porta. Ele
apitou baixo e as fechaduras se abriram. Ela entrou
depressa e fechou a porta atrás de si antes de tirar os
coturnos e os jogar para um canto. Estava em casa. O
que quer que estivesse acontecendo, pelo menos por
enquanto estavam seguros.
Em algum momento, mais de duzentos anos antes, a
magia havia voltado para o mundo. Ninguém sabia como
ou por quê. Só tinha acontecido – e tudo tinha mudado.
Pessoas descobriram que tinham poderes que não faziam
ideia de como controlar. Florestas viraram desertos do
dia para a noite. Mares e rios secaram, alguns por
completo, outros não. Animais estranhos apareceram do
nada, atacando as pessoas. Foi o caos, até que os
vampiros assumiram o controle. Eles já existiam, antes,
mas eram mais fracos e estavam sempre escondidos.
Depois da magia, eles surgiram colocando ordem onde
os governos tinham caído. Dividiram as regiões em
setores controlados por clãs de vampiros – as Cortes –
responsáveis por proteger a humanidade. E, em troca, a
humanidade os alimentaria.
A humanidade tinha aceitado o acordo. Era a melhor
solução. Uma doação de sangue compulsória de tempos
em tempos era melhor do que o que estava acontecendo
antes. Qualquer coisa era melhor que o caos, a
destruição, a fome e os animais.
Só tinha um problema: ninguém tinha pensado em
como terminar o acordo. Dizer para os vampiros "tudo
bem, obrigada, não precisam mais fazer isso". E os
vampiros não iam abrir mão do que havia se tornado
uma vida fácil. Cada Corte com seu território – seu setor
– e seus humanos. E se um humano estava insatisfeito,
podia tentar a sorte em outro setor. Ou nas terras de
ninguém, enfrentando os animais corrompidos pela
magia. Ou até podiam tentar chegar em uma das cidades
que diziam que só permitiam humanos. Mas também
diziam que elas eram fortalezas muradas que tratavam
qualquer um se aproximando como inimigo.
Ou seja, eles não tinham opções. Não na prática.
— Dani? — Eduardo chamou.
— Eu.
Alguém falou alguma coisa. Parecia ser Alana, mas a
voz estava abafada demais para Dani ter certeza. Outra
pessoa respondeu. E mais alguém.
Ela suspirou e rolou os ombros para trás. O chão frio
quando ela saiu do tapete perto da entrada era um alívio
depois do tempo que tinha passado em pé. Mas a
conversa que continuava na sala de jantar – era sempre
lá que se reuniam – era um péssimo sinal. Ninguém
deveria estar acordado àquela hora.
Dani entrou na sala de jantar. Raquel estava sentada
no seu lugar de sempre, na cabeceira da mesa,
parecendo que tinha acabado de sair de uma reunião.
Seu cabelo castanho estava puxado para trás e ela
estava usando uma camisa social azul clara. Quem visse
ela assim nunca imaginaria que, vinte anos antes, Raquel
tinha feito uma petição para o Setor Um, desafiado os
vampiros, e recebido permissão para criar o único setor
fora do controle deles. Dani já estava ali havia quatro
anos e ainda não tinha certeza de como Raquel tinha
conseguido aquilo.
Eduardo e Adriana estavam sentados perto de
Raquel. Dani nunca tinha entendido se eles eram um
casal ou só amigos há tempo demais, e aquilo não fazia a
menor diferença, no fim das contas. Eles eram os
responsáveis pelo que fazia o Setor Dez ainda existir – as
plantações e as vendas de produtos – e aquilo era o que
importava. Mas eles, junto com Raquel e mais uns
poucos, tinham sido as primeiras pessoas no setor e
ainda eram o coração de tudo.
Yuri estava sentado de frente para a porta, como
sempre. Ele conseguia ser mais paranoico que Dani e
insistia em uma "posição com vantagem de segurança"
mesmo ali dentro. Mas ser paranoico era o trabalho dele,
porque Yuri era o outro responsável pela segurança do
setor, junto com Dani. E ele, pelo menos, parecia que
tinha sido acordado quando os vampiros chegaram. Dani
tinha certeza que o que estava vendo por baixo do colete
reforçado de Yuri era uma blusa de pijama. E ele
normalmente não apareceria para uma reunião sem pelo
menos três facas. Não que ela pudesse falar alguma
coisa sobre aquela parte.
E por último Alana, sua prima, que tinha colocado os
cotovelos na mesa e apoiado o rosto na mão de um jeito
que Dani já sabia que era o começo de mais um discurso
de "é tudo culpa minha".
Não era. Não dela, no caso. A culpa era dos vampiros
que não deixavam ninguém em paz, não só as duas.
— O que foi dessa vez? — Dani perguntou.
— Setor Oito — Raquel contou.
E se ela não tinha falado mais nada, era porque tinha
sido uma oferta de casamento. Mais uma.
Dani puxou uma cadeira e se sentou.
Quatro anos antes, quando Dani e Alana tinham
chegado no Setor Dez, Raquel estava a um fio de
precisar entregar o setor para os vampiros. Não
importava o que fizessem, eles não conseguiam produzir
comida o suficiente para sustentar as pessoas ali. E, sem
comida, não tinham como tentar produzir outras coisas
para negociar – o que os deixava sem ter como comprar
a comida que não conseguiam produzir.
Tinha sido por isso que aquela região havia passado
tanto tempo abandonada. O governo de um setor era
obrigado a garantir um padrão mínimo de qualidade de
vida para as pessoas sob sua responsabilidade e aquela
era uma das poucas leis que os vampiros realmente
seguiam. Como Raquel não estava conseguindo fazer
aquilo, ia ser obrigada a entregar o setor, o que queria
dizer que um clã vampiro assumiria o controle e formaria
uma Corte.
Então Dani e Alana haviam chegado, depois de mais
de dois anos nas terras de ninguém, depois de terem
fugido porque Alana era uma bruxa capaz de fazer
qualquer coisa crescer em qualquer lugar. Aquele poder
era raro e um dos mais valiosos, considerando como
ainda era difícil fazer plantações darem certo.
Por mais de um ano, elas tiveram paz. Alana tinha
cuidado das plantações, até que elas se tornaram o
produto de exportação do Setor Dez. Plantas. Alimentos.
Grãos. Eles as vendiam e traziam tudo mais que
precisavam dos outros setores.
Pouco mais de um ano depois que elas tinham
chegado, os vampiros começaram a tentar entender o
que estava acontecendo no Setor Dez. Como um lugar
que estava à beira do colapso alguns meses antes de
repente estava crescendo. A história oficial que Raquel
tinha contado era que uma colheita havia dado certo e
tinham replicado o que fizeram nela. Mas era óbvio que
os vampiros não iam acreditar.
As primeiras ofertas de casamento haviam chegado
cinco meses antes. O primeiro tinha sido o Setor Cinco.
Depois o Setor Nove. Depois o Seis – e eles haviam
insistido e ameaçado negar acesso aos mercados. E,
agora...
— Setor Oito? — Dani repetiu.
Raquel assentiu. Yuri resmungou alguma coisa em
voz baixa.
O Setor Oito nem fazia fronteira com eles para dizer
que queriam uma aliança que aumentasse seu território
ou algo assim, que era o que os outros setores tinham
dado a entender.
E Dani tinha visto as motos no Setor Seis. Indo na
direção do castelo da Corte de lá. Não na direção do
Setor Oito.
Alana levantou a cabeça.
— Eles falaram que têm um acordo com o Setor
Cinco e estão negociando com o Seis.
Dani bufou. Aquilo explicava o aviso de Lara.
— Meu contato avisou que as ordens pra
restringirem acesso aos mercados do Setor Seis já estão
prontas — ela contou.
O que queria dizer que teriam problemas, sem a
menor sombra de dúvida. A maior parte da tecnologia
deles vinha do Setor Cinco, assim como quase toda a
eletricidade. Tinham começado a instalar um sistema de
energia solar, mas ainda estava longe de ser o suficiente
para o setor. E os produtos de uso geral que compravam,
desde ferramentas até coisas básicas de higiene, vinham
do Setor Seis.
O que queria dizer que, se aquela aliança realmente
acontecesse, eles estariam isolados. O Setor Dez fazia
fronteira com três setores: o Cinco, o Seis e o Três. Em
teoria, poderiam tentar negociar com o Setor Três, mas
nem Dani era louca o suficiente para sugerir algo assim.
Vampiros já eram ruins o suficiente. Necromantes eram
piores.
— Isso é praticamente uma ameaça de ataque —
Adriana falou.
Não era uma ameaça de ataque. Eram só os
preparativos. Depois de isolá-los, o Setor Oito não ia
esperar até ficarem sem recursos nem nada do tipo. Eles
iam atacar. Eram conhecidos por fazer aquele tipo de
coisa – não era à toa que eram o setor com mais
território na região.
Alana balançou a cabeça.
— É mais fácil só me entregarem logo. Eu dou um
jeito de escapar depois, sei lá.
— E depois que você escapar, se escapar, eles vão
nos atacar — Dani avisou.
Ela deu de ombros.
— Posso dar um jeito de terem provas de que não
estou aqui.
Ela teria que pagar com mais que seu sangue para
conseguir algum tipo de prova que fosse convencer os
vampiros. E no fim das contas não faria diferença.
— Eles vão atacar do mesmo jeito, para te punir por
ter desafiado um dos clãs — Dani falou. — Vamos servir
de exemplo para ninguém mais fazer alguma coisa
assim.
Todo mundo olhou para ela.
— Obrigado. Muito obrigado pelo seu otimismo —
Eduardo resmungou.
Dani deu ombros. Era a verdade. Tentar achar o
caminho mais fácil não ia adiantar nada, porque não
existia um caminho fácil.
— Dani não está mentindo — Yuri completou.
— Mas não precisava...
— Talvez se...
Raquel bateu a mão na mesa.
— Ninguém vai se entregar. Nós vamos dar um jeito.
Alana, quando aceitamos vocês aqui, concordamos em
proteger vocês duas em troca da sua ajuda. Isso não
mudou.
Não. Mas a situação tinha mudado. Bastante.
Dani sabia que isso ia acontecer. Era por isso que
tinham passado mais de dois anos na estrada, fugindo.
Ela sabia bem demais do valor do poder de Alana.
Era óbvio que os vampiros iam notar quando o setor
que tinha problemas para cumprir as metas mínimas de
produção de alimentos começasse a vender o excesso
das colheitas. E era óbvio que, mais cedo ou mais tarde,
alguém ia entender o motivo.
Aquele tinha sido o motivo para Dani fazer tanta
questão de se tornar parte do pessoal de segurança do
setor. Ela tinha trabalhado o suficiente para ser notada
pelo responsável pela segurança em menos de seis
meses e ter se tornado parte da sua equipe principal. E,
dois anos depois de ter chegado no Setor Dez, quando
Ezequiel se aposentou, Dani e Yuri passaram a dividir o
posto de responsáveis pela segurança.
— Tem algum problema com isso, Dani? — Raquel
perguntou.
Dani balançou a cabeça. Não ia discutir com ela,
mesmo que manter Alana ali, sabendo dos riscos, não
fosse nem um pouco racional.
Se o Setor Dez existia, era por causa de Raquel. Ela
tinha negociado com os vampiros para assumir um
território abandonado e transformar em um setor
produtivo que não estava sob o controle de nenhum dos
clãs. E tinha conseguido manter o setor, mesmo com
todos os problemas, por muito tempo antes das duas
chegarem ali. Dani não ia subestimar a influência dela ou
o que ela podia fazer. Só conhecia a Raquel que cuidava
das pessoas do Setor Dez, não a Raquel que havia
impressionado os vampiros.
Mas Raquel não tinha visto o que sobrava quando os
vampiros não conseguiam o que queriam. Dani estava lá,
das duas vezes que eles chegaram perto demais de
Alana. Ela sabia.
Raquel suspirou e se levantou.
— Vão dormir, todos vocês — ela falou. — Não vamos
decidir nada no meio da noite. Amanhã começamos a
pensar nas possibilidades e em como aumentar nossas
defesas se eles decidirem atacar.
Não era um "se". Eles iam atacar. A questão era só
como.
Raquel saiu da sala sem falar mais nada. Ninguém
discutiu nem deu sinal de que ia continuar ali, e aquilo
era normal. Era como o setor funcionava. Raquel não era
nenhum tipo de ditadora, mas quando ela falava, eles
obedeciam.

Dani parou no começo do corredor e suspirou. Era óbvio que


Alana ia estar esperando por ela. Dani tinha parado para
contar o que havia notado no Setor Seis para Yuri,
aproveitando que ele já estava ali. Deveria ter imaginado
que Alana ia fazer questão de esperar.
Ela foi depressa na direção da porta. Conhecia a
expressão tensa da prima bem demais.
— Vai acontecer de novo — sua prima murmurou. —
Você sabe.
Dani passou por ela e abriu a porta do quarto. Alana
entrou e parou, esperando enquanto Dani trancava a
porta.
— Dani, a gente não pode...
Dani balançou a cabeça com força e atravessou o
quarto. Ainda estava com as roupas que tinha usado para
ir para o Setor Seis – uma calça jeans escura justa
demais e uma blusa preta de mangas compridas com os
ombros de fora. Tudo ia direto para a lavanderia, porque
estava fedendo a fumaça.
— Eu sei o que provavelmente vai acontecer — ela
começou. — Você também sabe. E aposto que Raquel
também. Não subestime uma bruxa que conseguiu
permissão pra controlar um setor.
Porque, até onde Dani sabia, não havia outro setor
que não fosse controlado por um dos vampiros. Ela
precisava se lembrar disso, porque quase tinha
subestimado Raquel mais cedo, também.
Alana respirou fundo e se sentou na cama.
— Não estou subestimando. Mas eles não viram as
casas queimando.
E, se dependesse de Dani, nunca veriam. Não
importava o que tivesse que fazer.
Os vampiros não podiam entrar na casa de alguém
sem serem convidados. Dani não sabia como aquilo
funcionava, só que era o que acontecia. Algumas
pessoas pensavam que era uma garantia de segurança,
mas ela sabia que aquilo era só uma ilusão. Existiam
vampiros que conseguiam controlar a mente de
humanos. Ou só influenciar – aquilo já seria o suficiente
para conseguirem um convite. E, na pior das hipóteses,
era fácil fazer humanos saírem das suas casas.
Tinha sido isso que acontecera na cidade onde as
duas haviam crescido. Depois que o pai de Alana tinha se
recusado a servir ao novo príncipe dos vampiros, o líder
da Corte que controlava o setor, ele havia sido o primeiro
a ser morto. Dani tinha conseguido correr e avisar Alana
antes dos vampiros irem atrás dela. E, enquanto as duas
fugiam por partes da cidade onde nunca tinha pisado
antes, elas viram as casas ao redor das delas pegando
fogo, uma a uma. Porque os vampiros não deixariam
ninguém esconder alguém que era do interesse deles,
então fariam todos os humanos saírem das suas casas.
Dani tinha prometido para seu tio que ia proteger
Alana e havia feito isso. Elas tinham sobrevivido a mais
de dois anos sem parar em nenhum setor, passando
pelas áreas de terra de ninguém antes de ouvirem sobre
o Setor Dez e decidirem que valia o risco.
Mas, mesmo depois de se tornar uma das
responsáveis pela segurança do setor, Dani havia
relaxado. Tinha pensado que estar ali seria o suficiente,
porque estavam fora do controle dos vampiros. Ela
estava errada.
— Tem que ter um jeito — Alana resmungou.
Dani abriu o guarda-roupas e pegou o pijama que
estava jogado por cima das roupas que ainda tinha que
guardar direito.
— Você não vai fazer nada.
Dani conhecia bem a prima. Alana ia se culpar,
porque os vampiros estavam atrás dela. Ela não se ia se
lembrar que o Setor Dez só estava de pé em grande
parte por causa do seu poder. E, como tinha certeza de
que a culpa era dela, Alana ia se sentir na obrigação de
tentar fazer alguma coisa. Provavelmente alguma
loucura como tinha falado lá embaixo: se entregar ou
aceitar alguma das propostas.
Tinha sido do mesmo jeito na época que elas
fugiram.
— Aham. Vou ficar sentada sem fazer nada
esperando repetirem o que fizeram com os meus pais —
Alana resmungou.
Dani se virou para ela de uma vez. Alana ainda
estava sentada na beirada da cama, de braços cruzados
e com aquela expressão dura que tinha se tornado
familiar demais enquanto estavam na estrada.
— Estou falando sério, Nana — Dani começou. — Se
você aceitar as propostas deles o Setor Dez vai morrer,
de um jeito ou de outro. Se você aceitar uma das
propostas e ficar em outro setor, não vai demorar para
ficarmos sem as plantações de novo. Se aceitar e fugir,
que nem tinha falado, nós vamos ser massacrados.
Aquela não era a resposta.
— E se eu não me entregar, vamos fazer o quê?
Tentar lutar contra eles?
Dani abriu a gaveta de calcinhas e tirou uma sem
nem olhar o que estava fazendo.
— Se for o único jeito, vamos sentar, analisar tudo o
que temos, seja de tecnologia ou de magia e que pode
ser usado como uma força de ataque, e aí vamos decidir
se vamos lutar.
Alana revirou os olhos. Dani conseguia imaginar bem
demais o que ela estava pensando: não tinham como
enfrentar o Setor Oito. O Setor Dez não tinha finanças
para ter armas de última geração. Tinham algumas
pessoas treinadas em combate, mas não eram muitos. A
maior defesa do Setor Dez era o medo, porque os outros
setores não sabiam do que Raquel era capaz. Era a
reputação dela que os protegia.
— Raquel estava certa, sabe — Dani falou — Está
tarde demais pra tentar fazer qualquer tipo de plano. Vai
dormir. E não faça nenhuma loucura.
Alana estreitou os olhos.
— Sério mesmo que você está falando isso pra mim?
Dani deu de ombros e abriu a porta do banheiro.
— Não era eu quem estava pensando na ideia de
aceitar uma proposta deles.
Alana mostrou o dedo do meio para a prima.
Dani entrou no banheiro e fechou a porta. Merecia
um banho quente depois daquela noite.
E, por mais que tivesse falado para Alana esperar,
não era o que Dani ia fazer.
Não importava o que fizessem, sempre seria a
mesma coisa. Elas sempre seriam caçadas, porque o
poder de Alana era valioso demais. A menos que
estivessem dispostas a encarar a ideia de passar o resto
da vida nas terras de ninguém entre os setores, aquilo
era o que aconteceria sempre que parassem em algum
setor.
Então não adiantava tentar fugir. O único jeito de
terem algum tipo de paz era lutando. E, se Raquel estava
disposta a lutar por elas – por Alana, na verdade – Dani
não ia recusar.
Mas aquilo queria dizer que precisavam garantir que
os vampiros respeitassem o Setor Dez de verdade. E os
vampiros só respeitavam força bruta.
Era hora de conseguir a força bruta, então.

Alana conferiu se a porta do seu quarto estava bem trancada antes


de se deitar. Ainda estava com o moletom que tinha
colocado quando os representantes do Setor Oito
chegaram e não tinha a menor disposição para trocar de
roupa – especialmente depois da conversa com Dani.
Dani ia fazer alguma loucura. Ela tinha certeza. Era
sempre assim. Alana era a prima inocente, que não
conhecia o mundo e precisava ser protegida a todo
custo. Claro que era. O poder dela estava ligado a
plantas, não era? Onde já se viu, alguém que fazia
plantas crescerem ser perigosa. Ela ter precisado lutar
tanto quanto Dani, enquanto estavam fugindo, parecia
que não fazia a menor diferença.
Então Dani ia fazer alguma loucura – o que queria
dizer que Alana teria que fazer outra, para compensar.
Ou para tentar corrigir algum plano louco da sua prima
superprotetora.
Alana colocou uma mão debaixo do travesseiro,
sentindo papel dobrado escondido ali, e o puxou. Não
tinha muita luz no quarto, mas ela conseguiria repetir
cada palavra que estava ali sem a menor dificuldade.
Era uma carta. Uma proposta não muito diferente
das primeiras que o Setor Cinco havia feito, meses atrás
– aliança entre os setores, unir territórios, vantagens
para os dois lados por causa da junção de recursos, tudo
em troca de que ela se casasse com um dos vampiros do
setor. Alana não tinha nem se dado ao trabalho de saber
se era um dos nobres ou só um qualquer. No fim das
contas, eles só queriam ela. Ou melhor, o poder dela.
Fazer plantas crescerem.
Mas, antes das propostas do Setor Cinco, Alana já
tinha recebido aquela carta. E ninguém sabia. Nem Dani,
nem Raquel, nem nenhuma pessoa do Setor Dez.
A carta tinha aparecido na sua mesa de cabeceira,
dentro de um envelope grosso e liso. Um vento mais frio,
mesmo que as janelas estivessem fechadas, uma
impressão de poder, e ela estava ali.
E, no pé da página, quatro palavras escritas à mão,
numa caligrafia desenhada que Alana tinha demorado a
entender:
"Estou disposto a negociar.
R."

R, de Rafael. Rafael, que era o príncipe do Setor Um


– o mais forte de todos os vampiros da região. O que
estava acima de todos os outros setores. O mesmo
vampiro que havia dado permissão para Raquel assumir
o Setor Dez.
Ela não havia recebido nenhuma proposta oficial do
Setor Um. Nada como os emissários dos setores Cinco,
Seis e Oito. Só aquela carta.
E o papel estava carregado de poder. Alana não
sabia quase nada sobre a magia dos vampiros, mas não
tinha como não entender o que aquilo era: se ela
aceitasse negociar, a mensagem enviaria sua resposta
para Lorde Rafael. Ou seja lá como ele fosse chamado.
Àquela altura, a proposta não a preocupava mais.
Seis meses de emissários de vampiros faziam aquilo com
uma pessoa. Mas a mensagem e aquela parte escrita à
mão, dizendo que ele estava disposto a negociar... Talvez
fosse uma saída. Nem mesmo o Setor Oito desafiaria
Lorde Rafael. Alana sabia o suficiente da política dos
vampiros para ter certeza daquilo.
E, se fosse ser honesta, ela quase gostava mais dele
só por não ter feito um espetáculo como os outros –
como o Setor Oito com suas motos estragando a grama
que ela tinha suado para fazer crescer de novo. Talvez
isso fosse exatamente o que ele esperava, mais um dos
jogos dos vampiros para manipular suas presas. Mas
quase parecia que podia ser só a escolha dela. Algo
decidido entre eles e mais ninguém.
— Pode ser.
Alana enfiou a carta debaixo do travesseiro de novo
e olhou ao redor. Ainda estava escuro e não parecia que
tinha nada fora do normal no seu quarto, mesmo que ela
jurasse que tinha ouvido uma voz...
Uma silhueta mais escura apareceu na janela e
então a atravessou.
Alana rolou para o lado e bateu a mão nos controles
que acenderiam as luzes do quarto, ao mesmo tempo em
que fechava os olhos.
Alguém chiou.
Ela abriu os olhos de novo, encarando a janela. Ou
melhor, o homem na frente da janela.
Ele era alto, com pele pálida e o cabelo comprido e
escuro puxado para trás. Ele estava vestido todo de
preto, com o que parecia ser um colete, uma calça de
couro com correntes atravessadas na frente e um
sobretudo que também de couro que quase parecia uma
capa.
Não. Não era possível. Um deles não podia estar ali.
Não no Setor Dez, não no seu quarto. Isso ia contra as
próprias regras das Cortes.
— Isso não foi muito cortês — o vampiro falou, sem
sair do lugar.
Alana se levantou devagar. Não tinha nada por perto
que ela pudesse usar como arma. E, mesmo que tivesse,
ela não era rápida o suficiente para enfrentar um deles
numa luta corpo-a-corpo.
Mas havia duas samambaias, uma de cada lado da
janela, atrás do vampiro. E mais um vaso de beladona
para o lado. Suas armas.
— Invadir meu quarto também não foi cortês — ela
respondeu.
O vampiro inclinou a cabeça. Não. Não era bem
aquilo. Em um momento ele estava olhando para ela, no
outro estava com a cabeça inclinada. Sem nenhum
movimento intermediário. Só aquela impressão brusca
dos vampiros mais velhos, que se moviam depressa
demais para os olhos humanos acompanharem.
— Pensei ter recebido um convite.
Convite. Como se ela fosse estúpida o suficiente
para convidar um vampiro para entrar no seu quarto.
Mas tinha convidado, de alguma forma, porque os
vampiros não quebravam as leis das suas Cortes. Se um
deles estava ali, então...
Alana olhou para a cama. A carta estava enfiada
debaixo do travesseiro de novo, mas ela não precisava
ver o papel para entender o que tinha acontecido. Um
convite. Era o poder ali fazia. Um convite. Uma forma de
um vampiro a alcançar onde quer que estivesse.
Não um vampiro qualquer. Lorde Rafael. O pior de
todos.
Era Lorde Rafael no seu quarto.
Alana deu um passo para trás e olhou para o
vampiro de novo. Ele estava encarando sua cama, como
se conseguisse sentir o poder na carta.
Ela ia precisar queimar aquilo. O risco era grande
demais. Se o que estava no papel era o suficiente para
funcionar como um convite...
— Peço perdão pelo mal-entendido — ele falou.
As luzes ainda estavam acesas e fortes, mas ele se
transformou em uma silhueta de sombras antes de
atravessar a janela de novo e desaparecer contra a noite.
Alana continuou parada no lugar, esperando.
Nada. Nenhum sinal de poder ou aquela aura pesada
que os vampiros mais velhos tinham ao seu redor.
Parecia que ele tinha ido embora.
E tinha ido embora sem fazer nada. Sem nenhuma
ameaça, sem insistir em... Ela não sabia nem o que ele
poderia querer ali.
Alana subiu na cama de novo e tirou o travesseiro de
cima da carta. Nada de diferente. As mesmas palavras
impressas, a mesma mensagem curta escrita à mão. A
mesma sensação de poder.
Ela tinha segurado a carta vezes demais desde que
havia aparecido ali e aquilo nunca tinha acontecido
antes. Pelo que Alana sabia sobre a magia dos vampiros
– pouco – tinha pensado que precisaria escrever uma
resposta ou falar em voz alta que queria alguma coisa
antes do poder ser ativado. Não fazia sentido que só
segurar aquele papel fosse enviar um recado...
Mas aquela tinha sido a primeira vez em que ela
pensara seriamente na possibilidade de negociar com o
Setor Um.
DOIS

Dani entrou na cozinha, ainda bocejando, e parou. Raquel, Dante


– que era responsável pelas finanças do setor – e
Eduardo estavam sentados na ilha no centro da cozinha.
Yuri estava encostado no balcão ao lado do fogão,
vigiando alguma coisa no fogo, e Adriana estava
encostada na parede ao lado da porta dos fundos.
— Isso é o quê? Reunião de emergência antes do
café?
Dante se inclinou para trás na cadeira, como se
estivesse fazendo esforço para ver lá fora. Puro drama,
porque as janelas grandes atrás da pia deixavam ver
muito bem que o dia já estava claro.
— Não seria antes do café se você tivesse acordado
em um horário decente — Eduardo falou.
Dani mostrou o dedo do meio para ele antes de
atravessar a cozinha, abrir um dos armários no alto da
parede e pegar sua caneca. Café. Precisava de muito
café.
Eduardo falando sobre ela acordar tarde não era
novidade. O lado do trabalho de segurança que tinha
ficado para Dani incluía justamente a parte de saber o
que estava acontecendo fora do Setor Dez, e isso era o
tipo de coisa que funcionava melhor à noite. As pessoas
estavam muito mais dispostas a falar alguma coisa
interessante depois de umas tantas cervejas. E estar fora
à noite também servia para ela conferir a defesa noturna
do setor.
Se aquilo queria dizer acordar mais tarde que os
outros... Nem fazia diferença, porque era bem possível
que ela continuasse dormindo menos que todo mundo
ali. E ela não mudaria nada naquilo.
— Onde a garrafa de café foi parar? — Raquel
perguntou.
Adriana apontou para a garrafa em cima de do
balcão. Eduardo se levantou para pegar e levar para
Raquel, mas ela balançou a cabeça.
— Não. É para Dani mesmo. Preciso dela
minimamente funcional antes de decidirmos alguma
coisa.
Dani suspirou e se jogou em um dos bancos ao redor
da ilha. Era uma reunião de emergência, então.
Dante empurrou a garrafa de café para ela. Dani
encheu sua caneca e tomou um gole. Café forte, amargo,
puro. Normalmente ela até ia procurar o açúcar primeiro,
mas se iam fazer uma reunião numa hora daquelas,
então ia ser café puro mesmo. Melhor para acordar
depressa.
E se iam discutir o que tinha acontecido de noite – a
proposta/ameaça do Setor Oito – então estava faltando
uma pessoa.
— Cadê Alana?
— No milharal — Eduardo respondeu.
Dani fez uma careta. Alana só ia para o milharal
quando estava irritada e queria distância dos outros. E
todo mundo já sabia que era melhor não cutucar quando
aquilo acontecia, então não ia ser Dani que ia dar a ideia
de alguém chamar sua prima.
Ninguém falou nada enquanto ela tomava o café.
Yuri desligou o fogo e virou a água fervendo em uma
xícara. Chá. Quem em sã consciência tomava chá àquela
hora da manhã, logo depois de acordar? Mas Dani não ia
falar nada, também.
E estava cheirando a bolo. Alguém tinha assado
alguma coisa e era bem possível que não tivesse
acabado. Não era tanta gente assim que tomava café da
manhã na sede do setor. Mas Dani não estava nem um
pouco disposta levantar. Ou a perguntar para alguém.
Não ia comer enquanto tinha problemas para resolver.
— O que é que tem para decidir? — Ela perguntou. —
Nós vamos ter que enfrentar eles, de um jeito ou de
outro.
Raquel colocou uma mão na cabeça. Dani deu de
ombros. Sabia que Raquel se incomodava com como ela
sempre ia direto na pior parte das coisas, mas se iam
fazer uma reunião tão cedo, então ela não ia perder
tempo com as opções mais otimistas que tinha certeza
que não seriam reais.
— Não temos nenhuma garantia de que vai chegar
nesse ponto... — Adriana começou.
— Vai esperar estarmos isolados sem ter como sair
do setor e sem ter acesso a recursos básicos pra
acreditar que eles vão cumprir as ameaças? — Dani
perguntou.
— Sem brigas — Raquel interrompeu. — Todo mundo
aqui conhece as histórias sobre o Setor Oito. Eles vão nos
isolar. E depois vão atacar. Isso não é mais só uma
possibilidade.
E em algum momento no meio disso provavelmente
iam aparecer com alguma proposta de aliança através do
casamento com Alana. Algo que garantiria que os outros
setores não teriam coragem de prejudicá-los, porque
seriam aliados do Setor Oito... Isso caso se dessem ao
trabalho de mais uma proposta de casamento. Era
possível que só aparecessem falando que queriam que
entregassem Alana.
— Então precisamos nos preparar para um cerco —
Dante falou.
Raquel assentiu.
— Exatamente. Quero uma lista de tudo que é vital e
que não produzimos ou que não temos condições de
produzir a longo prazo. E os preços disso.
Dani colocou a caneca em cima da mesa. Lara quase
sempre conseguia repassar suas informações com alguns
dias de antecedência. Mas, se ela já sabia da tal ordem
preparada no Setor Seis, não ia demorar muito para mais
pessoas ficarem sabendo, e isso ainda antes de entrarem
com a proibição.
— Os preços provavelmente vão subir nos próximos
dias — Dani avisou. — Se vamos estocar, tem que ser
logo.
— Hoje — Raquel falou.
Dante se inclinou para a frente.
— Hoje? Mas isso...
Raquel levantou uma sobrancelha.
— Hoje. Quero as primeiras ordens de compra saindo
ainda hoje, o restante amanhã. Não quero saber quantos
do pessoal do financeiro ou de outros departamentos
você vai precisar puxar para te ajudar, só faça o que
precisar.
Dante respirou fundo.
— Vou precisar de mais que o financeiro.
— Só faça.
Dani tomou mais um gole do café. Nos quatro anos
desde que estavam no Setor Dez ela nunca tinha ouvido
Raquel usar aquele tom.
— Não vamos conseguir tudo, mesmo assim —
Adriana falou. — A maior parte da nossa eletricidade
ainda está vindo do Setor Cinco.
— Temos um sistema alternativo. Não vai ser
agradável, mas é possível.
E se Raquel estava dizendo que não seria agradável,
Dani não queria nem saber o que era. Pelo menos
enquanto pudesse não ter que pensar naquela
possibilidade.
— Vai precisar de mim pra mais alguma coisa? —
Dante perguntou.
— Não.
Elu se levantou e saiu pela porta dos fundos.
Era bom que estivessem pensando em estocar.
Teriam um pouco mais de tempo. Mas não seria o
suficiente.
— E o que vamos fazer quando o Setor Oito ver que
nos isolar não está adiantando? — Dani perguntou. — Ou
só decidirem atacar de uma vez?
— Não temos força bruta pra lidar com eles — Yuri
falou. — Nem se pegarmos todo mundo com um mínimo
de treinamento de combate e todo mundo que tem um
pingo de sangue de bruxa.
Dani levantou uma sobrancelha e tomou mais um
gole de café. A melhor parte de ser só metade da
responsável pela segurança era que ela não precisava
dar todas as más notícias sozinhas.
Raquel assentiu.
— E é por isso que Dani está aqui. Tenho certeza que
ela já pensou em umas tantas possibilidades e já deve
ter pelo menos um plano que não seja completamente
insano.
Dani abaixou a caneca devagar.
— Obrigada pelo voto de confiança.
Raquel só olhou para ela.
Dani suspirou. Não era que Raquel estivesse errada.
Ela tinha pensado em várias possibilidades antes de
dormir e logo depois de acordar. E o problema maior era
que nenhuma delas ia ser o suficiente sozinha. Se
quisessem sobreviver a um ataque, ela ia precisar usar
um dos tais "planos insanos". Mas ninguém precisava
saber daquilo antes da hora.
— Mercenários — Dani falou.
— E vamos pagar eles com que dinheiro? — Adriana
perguntou.
— Não com dinheiro — Eduardo falou.
Dani assentiu. Pelo menos ele tinha acompanhado o
raciocínio dela. Ou não só ele, porque Raquel tinha
estreitado os olhos e parecia pensativa.
— Vamos pagar com o que temos de sobra. Comida.
Isso é uma moeda mais valiosa que créditos — Raquel
murmurou.
— Isso só funcionaria se fossem ficar aqui por muito
tempo — Adriana insistiu. — Não só para um ataque.
Dani deu de ombros. Aquele era o papel de Adriana
nas reuniões: achar os possíveis pontos falhos das ideias
deles. Mas ela já havia pensado em detalhes demais
sobre aquilo.
— E por que não ficariam? O Setor Oito não vai
atacar uma vez e dizer "nossa, vocês se defenderam,
vamos deixar vocês em paz". Eles vão continuar
voltando. E se não forem eles, vão ser os outros setores.
Ter uma quantidade de mercenários trabalhando pra
gente, de forma fixa, não vai ser algo ruim.
— Não é impossível achar mercenários que vão
gostar da ideia de ficar em um setor fora do controle dos
vampiros e que está sob ataque — Yuri completou. — Útil
ao agradável.
E ele saberia lidar com mercenários, porque tinha
sido um. Pelo menos, era o que os boatos do setor
diziam. Ele não conversava sobre a sua vida antes de
chegar ali.
Raquel apoiou o cotovelo na mesa e apoiou a cabeça
na mão.
— Mercenários — ela repetiu. — E não só um grupo
pequeno. Vocês estão falando de uma força considerável.
Dani assentiu.
— O máximo que conseguirmos atrair para cá.
— E como você propõe garantir que eles não vão nos
sabotar? Ou que não vão causar problemas? — Raquel
perguntou.
Yuri bufou.
— Se você não quiser deixar claro para eles as
consequências se fizerem isso, tem um setor inteiro de
pessoas leais a você que faria picadinho de qualquer um
que nos sabotasse — Eduardo falou. — Não vai ser difícil
deixar isso claro.
— E mercenários estão nisso pelo pagamento, não
pelo risco — Yuri completou.
Ele saberia. E, se Yuri estava concordando, então a
impressão que Dani sempre tivera sobre os mercenários
estava certa: que era um trabalho como qualquer outro.
Os mercenários recebiam pelo que faziam e voltavam
para casa... Onde quer que aquilo fosse. E Eduardo
estava certo, também. Raquel tinha conseguido
impressionar os vampiros. Dani nunca havia visto o que
ela podia fazer, mas sabia que a outra mulher não era
tão inofensiva quanto parecia. Intimidar alguns
mercenários não deveria ser um problema, se
precisassem de algo do tipo.
— Precisaríamos de mais casas, com todos os custos
a mais que vêm com isso — Raquel falou. — E o custo em
alimentos.
— Se não vamos estar vendendo mais nada para os
outros setores, vamos ter coisas em excesso aqui —
Adriana falou, devagar.
Raquel respirou fundo e assentiu.
— Vou pensar nisso. É a única coisa que posso
prometer.
E Dani não era louca de dizer para Raquel pensar
depressa. Já estava surpresa que a ideia de mercenários
ali não tivesse sido cortada desde o começo. Não que
tivessem muitas opções.
Mas ela ainda podia tentar encontrar outras formas
de parar o Setor Oito.
— Mais alguma coisa? — Adriana perguntou.
Raquel balançou a cabeça.
— Acho que é isso, por enquanto.
Ótimo. Aquilo queria dizer que Dani podia procurar o
resto de bolo.
Adriana se levantou e saiu sem falar mais nada.
Eduardo também saiu. Dani virou o resto de café e parou,
olhando ao redor. Quando faziam bolo normalmente ele
ficava em algum lugar no balcão, mas não tinha nem
sinal...
Yuri abriu o forno e tirou uma forma retangular
grande com meio bolo de cenoura. Dani o encarou. Ele
deu de ombros e colocou a forma na mesa.
Aquilo merecia até mais café.
— Alguém sabe do açúcar? — Dani perguntou.

Dani parou encostada no prédio da escola central. Eles tinham


mais outras duas ou três escolas na cidade que era o
Setor Dez, ela não se lembrava bem, mas aquela era a
maior. E era onde a pessoa que ela estava procurando
trabalhava.
A campainha estridente do sinal tocou e o barulho de
crianças demais correndo pelos corredores começou. Ela
não estava nem dentro da escola, mas conseguia ouvir a
gritaria. Sempre assim. E aquilo quase fazia Dani sentir
saudades de quando era mais nova, vivendo em outra
região. Mas lá eles estavam sob o controle dos vampiros.
Ela ainda tinha as marcas da primeira vez que haviam
cobrado o preço de sangue dela, mesmo que fosse quase
uma criança.
Dani continuou onde estava, perto da porta que dava
para a recepção da escola. Não ia entrar e correr o risco
de ser arrastada pelo meio daquela bagunça. Se
pudesse, nem estaria ali. Mas só havia uma pessoa em
quem ela confiava para lhe dar as informações que
precisava.
A porta se abriu e a pessoa que Dani estava
procurando saiu.
Alex estava usando o que era praticamente seu
uniforme de trabalho: calça jeans larga, uma blusa lisa –
vermelho-escura dessa vez – e tênis que mais pareciam
coturnos. Seu cabelo ainda estava curto, daquele jeito
que se tivesse dois dedos de cabelo era muito. Elu tinha
um brinco de argola pequena em uma orelha e uma
argola bem maior na outra, com dois pingentes em
formato de faca nela. Dani engoliu em seco. Ela tinha
comprado aqueles brincos, quase três anos atrás.
Quase seis meses sem ver Alex e elu não tinha
mudado nada.
Elu cruzou os braços.
— O que você quer, Daniele?
Dani suspirou.
— Estava esperando seu horário de trabalho acabar.
— Se ia esperar, não devia ter parado perto da porta,
da forma mais indiscreta possível. É óbvio que foram me
avisar que você estava aqui.
Dani fez uma careta. Devia ter pensado melhor. Não
queria nem imaginar o que tinham falado para Alex ou os
comentários que isso ia render.
— Em minha defesa, não dormi direito e tem coisas
demais acontecendo — Dani falou.
Alex suspirou e soltou os braços.
— Nisso eu consigo acreditar.
Droga. Dani deveria ter pensado em outro jeito. Ir
atrás de Alex era enfiar o dedo na ferida. O namoro podia
ter terminado, mas não tinha sido por falta de interesse
de nenhum dos lados. Tinha sido porque Alex não
conseguia lidar com os riscos que Dani corria.
— De quê você precisa, Dani? — Alex perguntou.
Aquele era o motivo para Dani ter ido ali: porque
sabia que Alex ajudaria, não importava o quanto
estivesse magoade.
Era um ótimo motivo para não estar ali, também,
mas agora era tarde demais.
— Informações. Histórias — ela falou. — Mas posso
esperar.
Alex balançou a cabeça.
— Tenho pouco mais de uma hora até minha próxima
aula. Vem.
Ótimo. Era melhor assim, com tempo marcado. Muito
melhor.
Dani entrou na recepção da escola atrás de Alex. A
secretária que estava na mesa logo depois da entrada
levantou a cabeça.
— Nem uma palavra — Alex falou.
Tinha sido uma péssima ideia. Teria sido melhor se
Dani tivesse esperado até depois do almoço e ido atrás
de Alex na casa delu... Não. Isso teria sido muito pior.
Alex entrou na sala da coordenação, virou e
começou a subir uma escada. Dani parou, olhando ao
redor, antes de subir atrás delu. A escada acabava na
sala de reuniões, no segundo andar da escola, que
estava vazia.
Elu foi direto para a mesa, puxou uma das cadeiras e
se sentou antes de se virar para Dani de novo.
— Ninguém deve vir aqui tão cedo — elu avisou.
Dani respirou fundo e puxou outra cadeira.
— Você não vai ter problemas porque está em
horário de trabalho ou...
Alex cruzou os braços de novo.
— Imagino que, se você está aqui, tem alguma coisa
a ver com as motos que estavam na mansão de
madrugada. O que quer dizer que está aqui a trabalho.
E, como uma das responsáveis pela segurança do
Setor Dez, Dani tinha autoridade para tirar pessoal do
trabalho normal, se fosse necessário. Ela só nunca havia
precisado usar aquilo antes.
Alex levantou uma sobrancelha.
Dani soltou o ar com força.
— O monstro — ela falou. — Preciso saber quanto
das histórias sobre ele são verdade. Sem perguntas.
Porque a última coisa que ela precisava era de Alex
entendendo exatamente o que ela queria fazer e
contando para alguém. Ou virando uma pilha de
preocupação – que era o que sempre acontecia, antes.
— O monstro — Alex repetiu.
Dani assentiu.
Elu respirou fundo.
— Eu realmente não quero saber.
— Não.
Alex balançou a cabeça e tirou um tablet do bolso.
Elu o colocou em cima da mesa e desdobrou as partes,
até que um monitor fino e do tamanho de um caderno
aberto estava ali.
Elu abriu uma pasta e um mapa do Setor Dez
apareceu, com os prédios principais da cidade marcados,
as plantações, o complexo um pouco mais afastado onde
produziam alguns produtos e a área onde processavam a
colheita. E nos limites do mapa, as marcações das
fronteiras do setor.
— O Setor Dez antes era o Setor Quatro — Alex
começou. — Bem antes de chegarmos aqui. Não vou
entrar nas políticas dos vampiros de décadas atrás, mas
o Setor Oito tentou aumentar seu território.
— Aumentar território? — Dani perguntou.
Não fazia sentido. Era o mesmo motivo para ela não
ter entendido o Setor Oito estar começando a montar um
cerco contra eles: o Oito não fazia fronteira com o Setor
Dez e a única forma de aumentar território, pelas
próprias regras dos vampiros, era anexando um território
ao lado.
Alex apontou para o mapa e uma parte da fronteira
para trás do complexo industrial ficou mais escura. A
fronteira com o Setor Três – mas Dani não ia falar aquilo.
Tinha ido ali atrás de informações, então ia esperar até
Alex explicar.
— O Setor Quatro foi destruído. Mas o Setor Oito não
ganhou a guerra. Não sei se o Setor Três atacou eles
depois, ou se simplesmente não tinham forças, mas... —
Alex deu de ombros. — O Setor Três anexou uma parte do
que era o território do Setor Oito.
Então no passado eles faziam fronteira. E se o Setor
Oito estava querendo atacar, talvez tivessem planos para
recuperar aquela parte do território deles que havia sido
anexada pelo Setor Três.
Não. O Setor Três era um antro de necromantes.
Ninguém era louco de desafiá-los. Nem o Setor Oito.
Mas se tentassem, talvez existisse a possibilidade de
algum tipo de aliança. Mais uma coisa para deixar na
lista de Dani, mas ela nunca seria a pessoa a sugerir uma
aliança para o Setor Três. Ou qualquer outro setor. Fazer
aquilo depois da visita do Setor Oito seria praticamente o
mesmo que admitirem que eram fracos demais e não
podiam demonstrar fraqueza.
— Espera...
Dani se inclinou sobre a mesa, encarando a parte da
fronteira que ainda estava mais escura.
— Isso aqui é perto da cidade velha — ela falou.
Alex fez um círculo com o dedo ao redor de uma área
que quase incluía a fronteira.
— A cidade velha fica aqui — elu contou. — Era uma
das cidades mais importantes do Setor Oito logo antes
da guerra.
— Mas ela fica pra cá da fronteira.
— Agora. A fronteira foi movida quando Raquel
assumiu o setor. E não me pergunte o motivo, eu não sei.
Nem ela.
Se Alex não sabia, mais ninguém ia saber.
— O Setor Quatro era pouca coisa menor que o Setor
Dez é hoje — elu continuou. — A cidade principal ficava
onde hoje é a estrada para o Setor Seis. Aqui, onde a
nossa cidade é, era uma vila.
Interessante. Mas nada do que Alex tinha falado era
o que Dani precisava.
— E o que isso tem a ver com as histórias do
monstro?
Elu encarou Dani.
— O monstro era a arma do Setor Oito quando
destruíram o Setor Quatro.
Dani balançou a cabeça.
— Ele tinha alguma arma ou...
— Ele era a arma. Por isso as histórias são sobre ele.
Vampiros eram perigosos. Qualquer um sabia disso,
até os estúpidos no bar, na noite anterior. Eles eram mais
fortes, mais rápidos, não se cansavam, eram imortais a
menos que alguém conseguisse perfurar seus corações
ou arrancar fora a cabeça – e em alguns casos, se fossem
antigos e poderosos o suficiente, era possível que nem
aquilo fosse o suficiente. E, para piorar, uma boa parte
deles tinha poderes específicos. A capacidade de
controlar as pessoas com um olhar era só um daqueles
poderes e era óbvio que os vampiros não divulgavam
informações sobre o que eram capazes de fazer.
— O que nós sabemos é que, quando precisavam
quebrar a resistência em algum ponto específico, era ele
que mandavam — Alex continuou. — Só ele. E a
resistência era quebrada. Os outros vampiros vinham
depois, sem encontrar nenhum problema.
Um arrepio atravessou o corpo de Dani. Por mais que
tivesse passado anos fugindo dos vampiros, sempre
eram só os mais fracos. Os que na maioria das vezes não
tinham nenhum poder especial. Eles queriam Alana, mas
não o suficiente para mandar os melhores deles. Aquilo
seria admitir que uma humana, mesmo que a humana
em questão fosse uma bruxa, era importante demais.
Mas aquilo queria dizer que Dani sabia o que esperar
de vampiros "comuns". E ela não conseguia imaginar que
tipo de poder poderia fazer algo como o que Alex estava
falando.
Mas precisava imaginar, porque era exatamente o
que ela queria usar.
— O que ele fazia? — Dani perguntou.
Alex balançou a cabeça.
— Não sei. Nunca parei para pesquisar sobre isso,
mas até onde sei sobre a história do setor, o que parece
é que fizeram questão de não registrar nada sobre ele.
Ou então apagaram o que tinham registrado.
Não. Aquilo não fazia sentido.
— Estou ouvindo histórias sobre o monstro desde
que cheguei no setor — Dani insistiu. — Deve ter alguma
informação...
Alex riu.
— Até parece que você não sabe como as pessoas
gostam de inventar histórias. Oficialmente, não tem
nenhuma informação. Talvez alguma das histórias por aí
tenha algum fundo de verdade, mas não temos como
saber qual.
— Você não tentaria esconder isso de mim — Dani
falou, devagar.
Elu soltou o ar com força.
— Não, porque eu te conheço. Você já decidiu o que
vai fazer e não preciso nem fazer esforço para adivinhar
o que é. E se eu tentar esconder as informações de você,
você vai sair por aí indo atrás de fontes bem menos
confiáveis. Então não, não vou tentar esconder nada. Já
aprendi.
Dani respirou fundo e soltou o ar devagar. Aquele
tinha sido o motivo da briga que foi o fim do namoro. Ela
precisava de informações sobre uma família menor de
vampiros do Setor Cinco. Alex era a fonte mais confiável,
mas elu tinha se recusado a passar as informações,
porque seria uma missão arriscada demais. Não valia a
pena. Dani tinha conseguido as informações com um
contato ilegal e ido, mesmo assim. E as informações não
estavam certas. Ela havia escapado por muito pouco.
— O que tem registrado sem a menor sombra de
dúvida é que a base de onde enviavam o monstro era na
cidade velha — Alex continuou, com um tom leve e
forçado. — É por isso que temos tantas histórias aqui.
Dani respirou fundo de novo. Estava ali porque
precisava das informações. Era tarde demais para achar
ruim estar desconfortável.
— Onde na cidade velha? — Dani perguntou.
Alex olhou para ela antes de balançar a cabeça e
encarar o mapa de novo. Elu aumentou a área da cidade
antiga e circulou quatro áreas.
— Você tem sorte que eu precisei estudar isso alguns
anos atrás.
Não era sorte. A cidade velha estava dentro das
fronteiras deles. Alex teria estudado aquilo mais cedo ou
mais tarde, porque era como elu funcionava. Alex dava
aulas de história naquela escola e mais nada, mas era o
mais perto de alguém especializade na história da região
que eles tinham. Elu sempre tinha feito questão de
estudar e ir atrás de informações que qualquer outra
pessoa ia ignorar.
— Você pode... — Dani começou.
— Posso — Alex interrompeu. — Envio o mapa
marcado quando terminarmos, só para ter certeza de
que não vou precisar marcar mais nada.
Elu não ia precisar marcar mais nada. Aquelas
localizações eram exatamente o que Dani queria:
possíveis lugares para encontrar o monstro. Porque se
ele tivesse sido morto em algum momento durante
aquela guerra ou depois, aquilo teria sido registrado.
Alguém teria feito questão de dizer que tinha conseguido
matar a tal arma do Setor Oito. E se ele ainda estivesse
com o Setor Oito, Dani já teria ouvido algo naquele
sentido.
— Você está apostando que as histórias têm um
fundo de verdade — Alex falou. — E que ele ainda está
em algum lugar por aqui.
Dani deu de ombros.
— Eu não fazia ideia de que poderia ser tão perto
assim, mas... Sim.
Elu suspirou.
— A morte dele nunca foi registrada. É possível que
ele ainda exista, mas é improvável que esteja na cidade
velha. Ele teria recuado junto com o Setor Oito, quando o
que quer que tenha acontecido entre eles e o Três
aconteceu.
Dani balançou a cabeça.
— Se ele estivesse com o Setor Oito, nós
saberíamos. E eu sei que é improvável, mas vale a pena
conferir, mesmo assim.
Alex não discordou, o que era a mesma coisa que
dizer que concordava.
Era a melhor chance deles. Se qualquer parte das
histórias sobre o monstro fosse verdade e conseguissem
ter ele lutando ao seu lado, o Setor Dez estaria seguro.
Mas aquilo queria dizer encontrá-lo e garantir a lealdade
dele.
— Não vou te pedir isso de forma oficial — Dani
começou.
Alex cruzou os braços e se inclinou para trás na
cadeira.
— Porque quer poder negar que me pediu depois?
Dani fez uma careta. Só tinha feito aquilo uma vez,
porque havia pensado que era a única opção – e não era.
Ela realmente tinha abusado da confiança de Alex. Mas
não ia fazer nada daquele tipo de novo.
— Porque não vou te obrigar a me ajudar com uma
coisa que sei que você não concorda — Dani falou.
E se ela pedisse oficialmente, seria uma ordem da
responsável pela segurança do setor. Alex teria que
ajudar.
Elu respirou fundo e fechou os olhos.
— Eu te odeio, sabia?
Dani não respondeu. Ela sabia. E também reconhecia
que era culpa dela.
Mas ainda precisava da ajuda de Alex.
Elu encarou Dani. Ela só esperou. Não ia insistir. Não
ia falar mais nada a menos que Alex falasse que podia,
porque não ia colocar aquilo nas costas de mais
ninguém, muito menos delu.
Alex suspirou.
— De que você precisa?
Não era justo. Era desconfortável demais, era mexer
em tudo que tinha feito se afastarem. Mas a verdade era
que Alex era a única fonte confiável que Dani tinha.
— Existe alguma forma de garantir que um vampiro
não vai conseguir me ferir?
Alex puxou o tablet e o dobrou de novo.
— Se você for específica, vai ser mais fácil.
Dani cruzou os braços e apoiou os cotovelos na
mesa.
— Se eu achar esse monstro, tem que ter um jeito de
garantir que ele não vai nos atacar — ela falou. — Os
mercenários são fáceis...
— Mercenários? — Alex perguntou.
Dani balançou a cabeça.
— Nada decidido ainda e definitivamente nada
oficial. Mas a questão é que mercenários nós
conseguimos pagar com comida. O que faria um monstro
dos vampiros lutar ao nosso lado?
Alex encarou Dani.
— Você está falando sério.
Dani assentiu.
Alex fechou os olhos e passou as duas mãos no
rosto.
— A pior parte é que o seu raciocínio sobre ser
possível que ele esteja lá faz sentido — elu resmungou.
— Se não quiser ajudar... — Dani começou.
Alex balançou a cabeça.
— É melhor eu ir atrás disso do que você tentar
convencer um dos seus contatos do submundo. Mas vou
precisar ir atrás disso. Não tenho como saber uma coisa
dessas de cabeça.
Era mais que o suficiente. Alex tinha acesso às redes
de informações humanas. Dani nunca tinha entendido
como elu havia conseguido aquilo, sendo que mais
ninguém do Setor Dez conseguia o mesmo tipo de
acesso, mas o importante era que Alex podia ir atrás das
informações. Além disso, elu saberia o que valia a pena
levar a sério ou não e não ia cobrar um olho pelas
informações. E, mais importante, não ia tentar encontrar
outra pessoa para vender as informações e o fato de que
Dani tinha pedido aquilo.
— Obrigada — Dani falou.
Alex se levantou.
— Não me agradeça. Já encaminhei o mapa para
você e aviso quando tiver alguma informação concreta.
Dani assentiu e se levantou depressa, também. Não
ia abusar da sorte. Já tinha conseguido muito mais do
que esperava – muito mais do que tinha o direito de
pedir de Alex.

Dani se sentou nos fundos do casarão, encarando o jardim de


ervas que Alana tinha começado logo que chegaram no
Setor Dez. Tinha sido a forma de provar que ela
realmente era uma bruxa capaz de fazer as coisas
crescerem, no começo, porque era óbvio que Raquel não
tinha acreditado. Foi depois do jardim que elas
receberam permissão para ficar no setor, mesmo
sabendo que seriam caçadas.
Ela tinha relaxado. Não de forma literal, óbvio. Mas
quando os vampiros não chegaram atrás delas nos
primeiros meses, Dani tinha começado a pensar que
talvez não viriam. Que talvez aquilo não precisasse ser
sua primeira preocupação.
Se não tivesse relaxado, Dani teria falado sobre
mercenários há muito tempo. O Setor Dez estava numa
posição única para manter uma força fixa de mercenários
sem ter problemas por causa disso, porque eles tinham
recursos mais que o suficiente. Teria sido simples juntar
pessoal aos poucos. Aquilo não seria nem visto como
algo hostil, seriam só novos moradores. Mas, com um
convite para mercenários depois de uma visita do Setor
Oito, eles não teriam nem como disfarçar o que estavam
fazendo.
E, considerando as histórias sobre Yuri ter sido um
mercenário, ele sabia disso muito bem. E Ezequiel
também teria pensado em algo desse tipo. Então era
bem possível que nunca tivessem feito aquilo por algum
outro motivo que Dani não sabia. E que não ia procurar
saber, a menos que Raquel se recusasse a autorizar os
mercenários.
Mas, se ela não desse a autorização...
O Setor Dez tinha mais bruxos dos que os vampiros
imaginavam, quase todos com poderes muito específicos
– ou perigosos demais, ou que só eram úteis em
situações muito únicas. E mais vários que eram tão
fracos que na maioria dos outros setores não seriam
considerados bruxos, mas ainda seriam os lanchinhos
favoritos dos vampiros.
Aquilo queria dizer que eles tinham mais poder de
fogo, por assim dizer, do que os outros setores
esperavam. Mas, mesmo que o treinamento básico de
combate fosse obrigatório para todo mundo no Setor
Dez, todas essas pessoas ainda eram civis. E eles não
podiam depender só dos bruxos, nem a curto nem a
longo prazo.
— Dani? — Alana chamou. — O almoço vai acabar.
Dani se virou para trás de uma vez.
— Achei que você não ia dar as caras hoje.
Era o que acontecia sempre que sua prima ia para o
milharal: ela só aparecia em casa de novo logo antes do
anoitecer.
Alana deu de ombros.
— Yuri me avisou que ia cozinhar.
E aquele era um bom motivo para entrar antes de
ter só o resto dos restos do almoço.
Dani se levantou depressa e Alana riu.
Yuri e Raquel ainda estavam na mesa da sala de
jantar quando Dani entrou. Não tinha muita comida nas
panelas e potes em cima da mesa, e provavelmente só
havia alguma coisa porque alguém tinha lembrado que
ela não tinha comido. Conhecendo os outros...
Ela olhou para Raquel, ao mesmo tempo em que
pegava um prato e começava a se servir.
— Obrigada.
Raquel gesticulou como se não fosse nada. E para
ela realmente não era. Era só o normal de como as
coisas funcionavam na casa. Raquel era a pessoa que
cuidava de todos os outros e aquilo incluía guardar
comida.
Dani se sentou e começou a comer sem falar nada.
Alana tinha voltado para a sala de jantar e se sentado na
frente de um prato quase no final – ela tinha parado de
comer para ir chamar Dani.
— Você foi na cidade, Dani — Raquel começou.
Dani assentiu e engoliu depressa.
— Pedi Alex para verificar umas coisas para mim.
Alana grunhiu alguma coisa.
— Precisava mesmo?
— Precisava, porque é ou falar com elu, ou tentar
comprar informações com algum dos meus contatos —
Dani falou. — E a gente sabe que eles não são confiáveis.
E, mesmo se fossem, ela não teria tentado conseguir
nada com eles. Isso era informação perigosa demais. Se
os vampiros imaginassem que ela estava planejando
alguma coisa envolvendo um deles, o Setor Oito teria
todo o apoio que quisesse para atacar.
— Verificar algumas coisas — Yuri repetiu.
Dani fez uma careta. Era por isso que estava
tentando manter tudo em segredo. Raquel já não gostava
da ideia de mercenários, gostaria menos ainda disso. E
Yuri? Ele ia odiar o que ela tinha pensado. Mas era o
único jeito.
— É só uma ideia, por enquanto — Dani explicou. —
Por isso que fui falar com elu. Tem a ver com nos
defendermos do Setor Oito, mas prefiro esperar até ter
mais informações antes de dar detalhes.
— Nós não vamos gostar disso — Raquel falou.
Não era uma pergunta, mas Dani ia responder,
mesmo assim.
— Vocês vão odiar. Mas não consigo ver outro jeito
de lidar com o Setor Oito quando atacarem de forma
direta.
— Nem mesmo se eu autorizar os mercenários? —
Raquel perguntou.
Dani se inclinou para a frente.
— Vai autorizar?
Raquel cruzou os braços, esperando uma resposta.
Dani suspirou.
— Se autorizar os mercenários eu realmente vou
começar a pensar que temos uma chance de aguentar o
ataque, mas mesmo assim só com essa outra ideia.
Raquel e Yuri se encararam.
— Nós vamos odiar isso.
Dani revirou os olhos. Não precisavam repetir.
E, mesmo que fossem odiar, ela sabia que iam
aceitar, porque a prioridade era sobreviver da melhor
forma possível e garantir que o Setor Dez continuaria
fora do controle dos vampiros. Aquele era o motivo para
Ezequiel ter promovido ela junto com Yuri: porque ela
tinha as ideias loucas e ele tinha bom senso o suficiente
para garantir que as ideias fossem viáveis, mesmo que
loucas.
— Eu vou dar a autorização final para o que quer que
esteja planejando — Raquel falou. — Então quando tiver
suas informações, você vem falar comigo. Não vai atrás
de fazer alguma coisa.
Dani assentiu. Não ia ser fácil convencer Raquel,
mas ela provavelmente conseguiria. E era justo. Ela era a
responsável pelo Setor Dez. Uma decisão daquele
tamanho, com tanto potencial para gerar problemas,
precisava vir da liderança do setor.
Raquel suspirou.
— Comece a recrutar mercenários. Imagino que você
tenha contatos para fazer isso.
Dani sorriu.
— Começo a cuidar disso essa noite.
— Claro que começa — Alana resmungou.
Dani olhou para ela. Sua prima ainda estava tensa e
irritada. E não era difícil adivinhar o motivo.
— Vou dar um jeito nisso — Dani falou. — Eles não
vão derrubar o Setor Dez.
Alana olhou para ela e levantou as sobrancelhas
antes de balançar a cabeça e voltar a comer.
— Nós vamos cuidar disso — Yuri falou. — Você não é
a única pessoa responsável.
Não. Mas era Dani quem tinha feito uma promessa
para Alana de que não iam precisar fugir de novo. E ela
não ia quebrar aquela promessa.
TRÊS

Dani empurrou a porta com a ponta do coturno. Estava na segunda


das localizações marcadas no mapa de Alex e aquela
casa parecia que tinha sido uma das maiores da cidade,
antes de se tornar uma ruína. Agora, parecia que metade
da casa tinha sido arrancada. O que sobrava da outra
parte era uma estrutura de três andares que ela não
sabia como ainda estava de pé mas que não confiava
nem um pouco que não fosse desabar a qualquer
momento.
Se um vampiro que era conhecido como um monstro
tivesse ficado para trás naquelas ruínas, não estaria nos
andares de cima. Eles estavam no meio de ataques, na
época. Nada importante estaria num lugar que podia ser
destruído facilmente. Então o mais provável era alguma
construção subterrânea. E aquela casa tinha essa porta,
que parecia que descia para um porão. Dani só precisava
ter coragem de descer por ela.
Dani empurrou a porta de novo. Nada.
Ela puxou a maçaneta. Nada também. Estava
trancada. Dani olhou para cima, para os pedaços de
parede e teto que podia ver. Se aquilo resolvesse
desabar...
Ela não tinha tempo para pensar demais. Dani se
afastou o suficiente para virar e acertar um chute na
porta. A parede ao lado dela tremeu, mas a porta
continuou no lugar. Ela balançou a maçaneta de novo.
Nada.
Considerando a situação do resto da casa, se aquela
porta não tinha aberto, então era porque tinha alguma
coisa reforçada nela. O que queria dizer que era uma
porta que Dani queria abrir. Ela chutou a porta de novo.
Nada. Mas um pedaço de tijolo caiu da parede ao lado
dela.
Dani empurrou a parede com uma mão. Ela não
estava exatamente instável, mas não estava tão sólida
assim.
Era ridículo, mas...
Ela se afastou e chutou a parede. Mais um pedaço de
tijolo caiu. E mais outro.
Mais um chute, e mais pedaços da parede – o
suficiente para abriu um buraco que deixava ela ver a
lateral da porta e o metal que era a base da fechadura.
Ela definitivamente precisava abrir aquela porta.
Mais alguns minutos mexendo dentro do buraco e ela
conseguiu afastar a placa de metal o suficiente para
forçar a porta. Ela não ia se fechar de novo, mas aquilo
era um problema para depois.
Dani desceu a escada devagar. Tinha uma lanterna
enfiada em um dos bolsos do colete, mas ela não queria
usar uma luz. Mesmo que já tivesse feito todo aquele
barulho para abrir a porta, uma lanterna era a mesma
coisa que colocar um alvo no seu peito.
A escada terminava em um corredor largo, com
várias portas fechadas. Provavelmente trancadas e ela
não tinha ferramentas para tentar abrir uma por uma
nem ia ficar chutando a parede ali. Ela estava alguns
metros debaixo da terra e ainda tinha um resto de bom
senso.
E também havia um resto de luz ali, passando pela
fresta de uma das portas. Aquilo explicava como ela
ainda estava conseguindo ver alguma coisa.
Luz. Em um lugar que estava abandonado há
décadas.
Dani puxou a faca que estava em uma bainha na sua
cintura e continuou a andar, mais devagar. Balas não
adiantavam muita coisa contra vampiros e lasers eram
caros demais. Ela não ia pegar um dos poucos lasers do
setor para investigar um palpite. Então, facas. Seriam a
melhor opção contra um vampiro e, se tivesse problemas
com humanos, ela era rápida o suficiente para se virar
mesmo que estivessem com lasers.
A última porta do corredor estava entreaberta e a luz
azulada vinha dela. Mas não havia nenhum ruído de
ninguém ali. Ela não era um vampiro para ouvir uma
respiração, mas era capaz de apostar que não tinha nada
humano ali. Uma pessoa estaria no mínimo preocupada,
depois do barulho que ela tinha feito. Teria feito algum
movimento, alguma coisa que fizesse algum ruído.
Dani empurrou a porta com o coturno. Ela terminou
de se abrir com um rangido. Nada. Nenhum sinal de
movimento.
Era algum tipo de laboratório. Não. Aquela era a
palavra errada, mas era a primeira coisa na mente de
Dani quando ela viu os monitores trincados de um lado e
o armário do outro. A luz vinha de dois tubos no fundo da
sala que pareciam ser só luzes. Um deles tinha manchas
mais escuras e parecia rachado.
E no meio da sala havia um caixão.
Certo, não era exatamente um caixão. Mas era um
retângulo construído no meio da sala, um pouco
inclinado. E parecia ter sido construído em camadas.
Ela se aproximou devagar, tentando entender o que
estava vendo. Sim, camadas. Tijolos de cimento por fora,
depois cerâmica e por último metal. Não. Tinha outra
camada fina entre a cerâmica e o metal, mas ela não
conseguia ver exatamente o que era. A "tampa" era uma
peça de acrílico reforçado que parecia ser mais grossa
que qualquer coisa que ela já tivesse visto, presa por
mecanismos de metal nas quatro pontas do retângulo e
mais duas nas partes mais compridas da lateral.
E era óbvio que havia um vampiro dentro daquilo.
Dani pegou a lanterna e a ligou, iluminando o rosto
dele. A pele estava se esticando sobre os ossos de uma
forma que quase parecia uma múmia dos filmes que Alex
gostava de assistir – uma múmia com cabelo escuro
embolado e barba descuidada, mas ainda assim uma
múmia. Fazia sentido, se era um vampiro esquecido ali
há décadas, pelo menos. Aquele tempo todo sem se
alimentar seria o suficiente para causar isso...
Provavelmente. Dani nunca tinha ouvido falar de um
vampiro passar tanto tempo sem se alimentar.
E ela não tinha como ter certeza de que ele era
quem ela estava procurando. O monstro. Porque ele não
parecia um monstro – quer dizer, não mais do que
qualquer outro vampiro pareceria depois de tanto tempo
sem sangue.
Mas quem mais poderia ser? Ela estava na cidade
velha, no subterrâneo de uma das maiores casas. Quem
mais poderiam ter deixado para trás? Ou melhor, quem
eles pensariam que precisavam colocar em uma caixa
como aquela? Porque as camadas de materiais diferente
com certeza não eram à toa.
Era loucura. Mas ela não tinha muitas opções.
Dani encarou a caixa. A tampa de acrílico era feita
para ser movida como uma peça só e aquilo não era
nada bom. Ela ia precisar soltar completamente quase
todas as travas e deixar só uma mais frouxa. Se fosse
uma armadilha...
Ninguém deixaria uma armadilha daquele jeito por
décadas.
Ela começou a soltar as travas, que estavam presas
no alto, na lateral do "caixão" e no chão. Alguém queria
ter muita certeza de que esse vampiro não ia escapar.
Cinco travas depois, Dani parou e encarou o vampiro
do outro lado do acrílico de novo. Nenhum sinal de
movimento. Não parecia que ele tinha a menor ideia do
que estava acontecendo. Aquilo era bom.
Dani empurrou a placa de acrílico para o lado. Ela
deslizou sem o menor problema. Nada ainda.
Certo. Como acordar um vampiro? Ela só conseguia
pensar em um jeito.
Dani pegou a faca de novo e fez um corte na palma
da sua mão. O sangue escorreu. Ela colocou a mão acima
da cabeça do vampiro e a primeira gota de sangue caiu
perto da sua boca.
Movimento. Não muito, só a certeza de que ele não
estava mais exatamente na mesma posição. E sua boca
estava aberta.
Dani fechou o punho. As gotas de sangue
continuaram a cair, agora na boca do vampiro. E era
estranho, porque ela estava vendo ele deixar de parecer
uma múmia numa velocidade que deveria ser impossível.
Era quase como quando Alana ficava irritada e decidia
fazer alguma coisa crescer depressa. A mesma
impressão de algo mudando em uma velocidade que não
deveria ser possível.
E ela não ia esperar até ele ter forças o suficiente
para sair dali sozinho.
Dani balançou a mão, deixando uma última gota de
sangue cair, e puxou o acrílico de novo. Ela prendeu a
primeira trava. O vampiro abriu os olhos. A faca de Dani
caiu no chão e ela correu para o lado oposto do caixão,
onde a trava estava só frouxa.
O vampiro bateu no acrílico. O material vibrou, mas
não se quebrou. Nem arranhou.
Mais uma trava presa, mas ela não podia se afastar.
O vampiro tinha provado seu sangue. E estava aqui havia
décadas. Não sabia sobre o Setor Dez e provavelmente
não era nem considerado parte de um setor mais. Se
escapasse, ele ia atacar. E ela não ia deixar aquilo
acontecer.
Dani correu ao redor do caixão, prendendo as travas
depressa. O vampiro continuou batendo no acrílico e um
dos lados que ainda não estava preso chegou a se
levantar um pouco. O vampiro enfiou os dedos no
espaço. Dani bateu com força em cima do acrílico e ele
tirou os dedos de lá, mostrando as presas quase como
uma cobra antes do bote.
Ela prendeu as últimas travas e parou, encarando o
vampiro. Ele mostrou as presas para ela de novo antes
de olhar para os dedos que tinham sido quase
amassados entre o acrílico e as paredes do caixão. Os
dedos que ainda eram mais pele e osso que qualquer
outra coisa, com unhas que mais pareciam garras. De
alguma forma, sua expressão parecia quase humana
demais – era a expressão que Dani faria se tivesse
prendido os dedos em uma porta.
A diferença era que ela estaria xingando e com os
dedos marcados. Os dedos dele não tinham mais marca
nenhuma. E o pouco sangue que Dani tinha deixado
pingar na sua boca havia sido o suficiente para ele não
parecer mais pele esticada sobre osso. Seu rosto ainda
estava marcado o suficiente para ser estranho, mas não
estava cadavérico.
Ela quase preferia que estivesse.
— Quem é você? — Dani perguntou.
O vampiro mostrou as presas de novo e ela tinha
certeza que ele estava chiando como uma cobra, mas o
acrílico bloqueava o suficiente do som.
Ela precisava ter certeza antes de fazer qualquer
coisa.
— Se está louco demais para responder, então não é
útil para mim.
O vampiro sorriu – se é que tinha alguma diferença
entre aquilo e a forma como ele estava mostrando suas
presas antes.
— Amon.
E Dani tinha conseguido ouvir claramente o que ele
estava falando. Talvez não estivesse chiando antes,
então.
— Amon — ela repetiu.
Aquilo não ajudava muito. Alex teria falado o nome
do monstro, se soubesse. Mas Dani não podia perguntar
se ele era o monstro. Ele só confirmaria, porque ela era
sua chance de sair dali. E aquilo deixaria claro o tanto
que ela não sabia. Não. O nome ia ter que ser o
suficiente.
— Me liberte, humana — ele falou.
Dani cruzou os braços e levantou uma sobrancelha.
Ela não discutiria se alguém a chamasse de louca – tinha
vindo atrás de um vampiro que diziam que era um
monstro entre eles, não tinha? Mas não era estúpida.
— Me liberte e sua morte será rápida — o vampiro
continuou.
Ela sorriu.
— Não pretendo morrer agora, obrigada.
O vampiro passou uma unha – uma garra – pelo
acrílico. Um som estridente e irritante se espalhou pela
sala. Dani não reagiu.
— E você acha que esse pedaço de nada vai te
manter segura por quanto tempo?
Bastante, porque a garra dele não tinha feito
nenhum arranhão. Dani era capaz de apostar que aquele
acrílico era uma versão aprimorada do que usavam nas
janelas da mansão.
— Tempo o suficiente — ela falou. — Esse caixão te
manteve aqui por mais de cinquenta anos. Não acho que
preciso me preocupar com você escapando.
O vampiro abaixou a mão. Ele tinha disfarçado, mas
não o suficiente. Ele não sabia que tinha sido deixado
para trás. Ela podia usar aquilo.
A questão era só como usar aquilo de um jeito que
não colocasse sua vida ou o setor em risco.
— Você quer alguma coisa, humana — ele falou. —
Ou não estaria aqui.
Dani sorriu.
— Talvez eu só tenha visto uma luz interessante
enquanto estava explorando as ruínas.
A mesma expressão de antes – a surpresa. Ele não
acreditava que ela estava dizendo a verdade, mas não
conseguia ignorar a possibilidade.
Ótimo. Ele ia ter o que pensar até ela voltar.
Ela se virou e saiu da sala. O vampiro não falou
nada.
Teria sido melhor se falasse. Se ameaçasse. Com
aquilo ela saberia lidar. Mas a forma como ele a encarava
deixava claro que ele não ameaçava. Ele fazia.
Dani precisava achar um jeito de garantir que aquele
vampiro nunca atacasse o Setor Dez. Mais cedo ou mais
tarde, ele ia escapar, mesmo que ela não o usasse agora.
Ele era um risco, o que queria dizer que era sua
responsabilidade. E, se não houvesse como garantir que
ele não se viraria contra eles, havia uma forma muito
mais simples de lidar com um vampiro.

Rafael virou o papel grosso na sua mão. A folha estava em branco,


mas ele conseguia sentir o poder da bruxa. Ela era mais
poderosa do que ele havia esperado – poderosa o
suficiente para garantir que o Setor Um mantivesse suas
plantações. Mais que o suficiente, na verdade. Com ela
ali, ele poderia expandir. Talvez até mesmo tomar posse
de parte da terra de ninguém na fronteira.
Ele saiu para a sacada. O céu estava escuro na
direção que estava olhando, mas caso se virasse para
trás veria as linhas de cor do sol se pondo. Ainda estava
cedo para um vampiro, mas estava começando a ficar
tarde para uma humana. O anoitecer era o horário deles.
Dos vampiros. Rafael não imaginava que seria muito
diferente, mesmo em um setor governado por uma
bruxa.
Aquilo queria dizer que sua futura feiticeira, a bruxa
com o poder de fazer as plantas crescerem, estava
tocando na sua mensagem. Bom. Muito bom. E agora
que ele sabia o que esperar, não confundiria um uso não
intencional de poder com um convite. Havia pensado que
perdera sua chance de conseguir a bruxa depois daquela
visita ao Setor Dez, mas se ela já estava com a
mensagem de novo...
Ele havia pensado que ela destruiria a carta. Já
estava pronto para enviar outra, com um pedido de
desculpas por sua invasão. Talvez até mandasse um
presente junto com a segunda mensagem – alguma
planta exótica. A bruxa havia parecido gostar das
plantas, não apenas usá-las por causa do seu poder. Mas
ela ainda estava com a mensagem.
Talvez não tivesse sido tão ruim. Talvez ela tê-lo visto
fosse algo bom. Uma forma de continuar na sua mente.
Sim. Rafael sabia que tinha uma aparência agradável
para uma boa parte dos humanos e não tinha o menor
problema em usar aquilo para conseguir o que queria.
Talvez mais algumas visitas fossem uma boa ideia, mas
apenas depois de alguns dias.
Ele ainda precisava se lembrar de Raquel. Ela era
apenas uma bruxa, sim, mas era uma bruxa que ele não
queria transformar em inimiga. Não de forma direta, pelo
menos. Ela estava cumprindo exatamente o papel que
ele havia esperado, quando concordara com a criação de
um setor que não fosse governado por um dos clãs.
Quanto mais tempo conseguisse manter o Setor Dez ali,
melhor. Mas aquilo não queria dizer que eles estariam
seguros.
— Thales — ele chamou.
Outro vampiro saiu para a sacada, sem fazer ruído, e
parou um pouco para trás e para o lado de Rafael.
— Garanta que o Setor Oito se mantenha no plano —
Rafael falou.
— Devo deixar claro que são ordens suas ou... — o
vampiro começou.
— Não. Não quero nenhuma ligação entre esse
ataque e o Setor Um.
— Entendido.
O outro vampiro se afastou, sem fazer ruído.
O Setor Oito era uma boa arma. Eram fáceis de
apontar em alguma direção, com pressão no lugar certo.
Previsíveis, por serem tão voláteis. Mas Rafael nunca
ligaria seu nome a eles. Eles eram ferramentas e mais
nada.
E, justamente por causa deles, ele teria sua bruxa.
Teria uma garantia de que o Setor Um continuaria
ocupando a posição que ele tanto lutara para alcançar.

Já estava escuro quando Dani chegou na cidade que era a capital


do Setor Seis. Não importava se tivesse tempo, era
arriscado demais sair do Setor Dez antes de escurecer.
Se já estavam prontos para proibir que negociassem no
mercado, seria fácil demais consideraram que ela estar
ali fosse algum tipo de passagem não autorizada. Não.
Era mais seguro esperar anoitecer. Os vampiros não
patrulhavam as fronteiras – aquilo estava abaixo deles,
porque seria o mesmo que admitir que os outros setores,
seus iguais, não cumpririam os acordos. Ou, pior, admitir
que os humanos do Setor Dez podiam ser uma ameaça.
Ela passou depressa pelas primeiras ruas, tomando
cuidado para ficar nas sombras mais escuras. Ninguém
prestava atenção no que acontecia nas sombras – era um
instinto de sobrevivência que qualquer humano
desenvolvia depressa. E os vampiros... Na maior parte do
tempo, eles não se davam ao trabalho de sair da sua
parte da cidade. A não ser quando alguém os convidava,
sangrando em lugares públicos, mas com sorte Dani não
teria que lidar com nada daquilo.
As ruas começaram a ficar um pouco melhores. As
casas não estavam mais caindo aos pedaços, mesmo
que ainda precisassem de reparos. E de pintura. Mas, ali,
não seria estranho uma pessoa andando depressa, indo
para algum lugar. Ninguém teria nenhum motivo para
pensar que ela estava vindo de fora.
Dani virou em uma rua e ouviu o barulho de
conversas altas mais para à frente, junto com o ruído de
copos e pratos. Tudo normal, então. Ela continuou
andando e virou em um beco estreito, que parecia mais
estreito ainda por causa das mesas e cadeiras
encostadas na parede e das pessoas sentadas ali.
Nada diferente de outros lugares parecidos pela
cidade. Dani já tinha visto vários bares assim. "Bares" por
falta de outro nome, porque bebida era o de menos
naqueles lugares. Enquanto ela ainda estava parada no
começo do beco, encostada na parede, uma mulher alta
e musculosa saiu de uma porta, carregando duas
bandejas com um equilíbrio invejável. A mulher foi na
direção de uma das mesas ocupadas e colocou as
bandejas com comida em cima dela. As três pessoas
sentadas lá – todos vestidos de preto dos pés à cabeça –
agradeceram, rindo.
Aquele bar só tinha uma diferença: era um ponto de
encontro de mercenários e outras partes do submundo
dos setores. Em teoria, era um lugar seguro, mas ela
sabia que aquelas pessoas não se davam bem com
estranhos chegando ali, mesmo que ela estivesse vestida
como eles. Jeans escuros, coturnos e coletes eram
praticamente a regra. Dani teria preferido estar com os
protetores nos antebraços, também, mas aquilo
chamaria atenção nas ruas.
A mulher mais alta se virou para a entrada do beco.
Dani sustentou seu olhar e apontou na direção do Setor
Dez. A mulher continuou a encarando por mais alguns
segundos antes de entrar na casa de novo.
Dani se encostou na parede. Dali, conseguia ver
tanto o que estava acontecendo no beco quanto se
alguém se aproximasse. Ela não gostava de ir ali – o risco
de acidentes era grande e Dani preferia evitar confusão,
se pudesse. Mas era o jeito mais fácil de conseguir falar
com Lara.
Não demorou muito para ela ouvir passos e ver Lara
se aproximando, vindo da direção do centro da cidade.
— Não pensei que fosse te ver de novo tão cedo —
Lara falou assim que entrou no beco.
Dani suspirou e cruzou os braços.
— Eu também não pensei que fosse voltar aqui. Mas
tenho propostas.
Lara levantou uma sobrancelha.
Ela não era o único contato de Dani no submundo,
mas era a pessoa mais confiável. Dani conhecia o
suficiente sobre Lara para saber que ela só estava ali
pelo dinheiro, não porque gostava. Aquilo era mais do
que ela podia falar sobre a maioria das pessoas que
negociavam no submundo.
— Mercenários — Dani falou. — Você sabe como
fazer um aviso chegar nas pessoas certas.
Lara inclinou a cabeça e foi mais para o fundo do
beco, passando entre as mesas cheias de pessoas
conversando em voz baixa ou não tão baixa assim. Ela
parou nas sombras e bateu uma mão na parede. Dani
ouviu o ruído abafado de um bloqueador sonoro.
— De quantos mercenários estamos falando e qual a
proposta?
— Nesse momento, não tenho um limite de
quantidade. Estamos falando de criar um contingente
fixo no Setor Dez. Vamos oferecer moradia e
alimentação, além do pagamento, se quiserem colaborar
como moradores do Setor Dez. Se não quiserem, vamos
oferecer apenas pagamento.
— E o pagamento...
— Em alimentos. Grãos e derivados, coisas que vão
durar por tempo o suficiente para serem negociadas.
Lara balançou a cabeça devagar.
— O que você está falando é praticamente uma
oferta de cidadania do Setor Dez para os mercenários.
Dani assentiu. Era exatamente aquilo.
— E estamos dispostos a aceitar dependentes,
dentro de um limite.
— Dani...
— Nós vamos ser atacados e você sabe disso, Lara.
A ideia de nos barrar dos mercados está vindo do Setor
Oito. Você já ouviu o suficiente sobre como eles
trabalham, também.
— Se a notícia dessa proposta se espalhar, vocês vão
ter quase uma invasão de mercenários no Setor Dez.
Porque não era fácil conseguir cidadania do Setor
Dez e Dani sabia disso. Ela e Alana só tinham conseguido
aquilo sem problemas por causa do que Alana podia
fazer. Se Dani estivesse sozinha, tinha certeza de que
não teria sido aceita.
E a ideia de viver em um setor que não era
controlado por vampiros era tentadora para a maioria
das pessoas. Provavelmente mais ainda para
mercenários, ela imaginava. Eram poucas as pessoas que
se tornavam mercenárias porque gostavam do trabalho.
A maioria era por necessidade – e a necessidade existia
por causa dos vampiros.
— Nós temos um limite para quantas pessoas
podemos aceitar sem colocar pressão demais na
produção do setor. Mas, enquanto não atingirmos o
limite... — Dani deu de ombros. — Estamos contando
com isso.
E o que Dani estava fazendo era loucura. Estava
confiando em Lara muito mais do que deveria, mas ela
era sua melhor opção, como sempre. Lara havia crescido
ali, entre os mercenários e o restante do submundo. Ela
conhecia aquela parte do Setor Seis como a palma da
sua mão.
Era mais uma das coisas que diferenciava o Setor
Dez dos outros. Em qualquer setor controlado pelos
vampiros, era possível encontrar lugares como aquele.
Bares e cantinas onde mercenários e comerciantes
ilegais se encontravam. Até mesmo os vampiros sabiam
que eles existiam e não faziam nada para atrapalhar. Os
boatos diziam até que contratavam as pessoas dali, às
vezes. Mas não no Setor Dez.
E aquela era a questão: os contatos de Dani eram
superficiais. Ela era parte de outro setor e só tinha
começado a ir ali havia três anos, talvez um pouco mais.
Sozinha, ela conseguiria convencer alguns mercenários
que estivessem na cidade e só. O aviso não ia se
espalhar e não confiariam na sua palavra. Se Lara se
envolvesse...
Lara respirou fundo e olhou para o beco de novo.
Tudo parecia igual. As pessoas ainda estavam comendo,
bebendo e conversando. Alguém dentro da casa ainda
estava resmungando alto o suficiente para ser ouvida
onde as duas estavam e mais duas luzes no andar de
cima da casa da frente tinham se acendido.
— Eu posso garantir que esse aviso se espalhe entre
os mercenários até além dessa região — Lara falou.
Dani assentiu.
— Estava contando com isso.
E também estava esperando um preço alto, porque
Lara nunca fazia nada de graça.
— Eu não vou entrar nisso — ela falou. — Mas quero
cidadania do Setor Dez pra uma pessoa. Proteção, de
certa forma.
Raquel ia odiar aquilo, mas não era como se Dani
tivesse outra opção. Eles precisavam dos mercenários. E
uma pessoa não seria um problema para o Setor Dez. Já
estavam protegendo Alana, não tinha como essa pessoa
ser um alvo mais importante.
— Fechado.

Dani tinha imaginado muitas coisas quando Lara falou que queria
proteção para uma pessoa, mas nenhuma delas era a
garota se segurando com força na sua cintura enquanto
ela acelerava a moto velha que tinha escondido perto da
cidade, mais cedo. A garota devia ter uns doze anos, no
máximo, mas não parecia. Quer dizer, parecia –
fisicamente. Mas não agia como se tivesse doze anos..
Lara tinha levado Dani para uma casa não muito
longe daquele bar, o que explicava porque era tão fácil
achar ela ali, e a garota já estava esperando quando ela
abriu a porta. Lara só havia avisado que era para ela ir
embora com Dani e que era para obedecê-la, e pronto. A
garota tinha pegado uma mochila que já estava
preparada e seguido Dani na direção da saída da cidade.
A garota não tinha questionado. Não havia falado
nada, só acompanhado Dani. E, o tempo todo, ela tinha
andado como alguém que sabia se esconder. Ela sabia
aproveitar as sombras, sabia como não fazer barulho e o
pior: sabia como fazer aquilo tudo parecer natural.
Talvez Dani devesse ter feito mais perguntas antes
de aceitar aquilo. Não que ela tivesse alguma ilusão de
que Lara fosse dar alguma informação antes de ter uma
garantia de que a garota estaria segura, mas... Ela era
nova demais para agir assim, mesmo para alguém que
tinha crescido em um setor dos vampiros.
Mas a garota nunca tinha andado de moto antes.
Pelo menos era o que parecia, pela forma como estava se
agarrando em Dani. E aquilo levando em conta que
aquela moto era velha, sem nada da velocidade que os
modelos mais recentes tinham. Mas era o que haviam
conseguido comprar para quando precisavam ganhar
tempo indo de um lugar para o outro. Combustível era
raro e caro o suficiente para qualquer tipo de veículo ser
um luxo.
Dani saiu do caminho e entrou no meio das árvores.
Toda a fronteira do Setor Dez, em qualquer direção, era
cercada de árvores. E não só na fronteira, mas uma área
de uns poucos quilômetros que funcionava como uma
medida de segurança adicional. Eles tinham câmeras de
vigilância e depósitos espalhados por toda parte ali,
porque era onde guardavam qualquer coisa que o
pessoal de segurança podia precisar em cima da hora –
como as motos.
Ela parou a moto dentro de um desses depósitos:
uma construção de um cômodo, reforçada, com
prateleiras cheias de caixas em todas as paredes, caixas
maiores no chão, cobertas por um tecido grosso que era
resistente ao fogo, e um espaço aberto bem no meio.
— Pode descer — Dani falou.
A garota a soltou e desceu da moto devagar, como
se não tivesse certeza de que ia conseguir continuar em
pé. Dani esperou antes de descer da moto também e
indicar a saída com um movimento de cabeça. A garota
foi naquela direção sem falar nada. Lara tinha falado
para ela obedecer, e ela estava obedecendo.
Dani puxou o portão de aço que estava enrolado no
alto da entrada e ativou as trancas antes de se virar para
a garota.
— Como você se chama? — Ela perguntou.
— Valissa.
Dani se forçou a não reagir. Aquilo era um nome de
vampiros.
— Sabe por que Lara pediu para você vir comigo? —
Ela insistiu.
A garota assentiu.
Dani bufou.
— E não vai me falar?
Ela balançou a cabeça.
Seria fácil demais se falasse. Dani realmente devia
ter perguntado mais.
— Você é o que de Lara? Irmã ou...
— Irmã.
Era o que Dani tinha imaginado. Lara parecia ser um
pouco mais nova que ela, o que queria dizer que a garota
era velha demais para ser sua filha.
— E você está obedecendo sem questionar nada por
quê?
Porque crianças não agiam daquele jeito.
A garota olhou para Dani.
— Porque não quero que me achem.
Um arrepio atravessou Dani. Ela conhecia aquele
olhar. Era o mesmo que tinha visto no espelho por anos,
enquanto estava fugindo com Alana. Mas Valissa era só
uma criança. Os vampiros podiam não ter quase nada
que se passasse por morais, mas crianças sempre
estavam seguras. Era lógica pura: se vampiros
atacassem crianças, ficariam sem seus lanchinhos depois
de uns anos.
A garota olhou para a frente. Estavam perto o
suficiente da mansão para ela ser visível entre as
árvores.
— É aqui que eu vou ficar? Vocês não têm uma
cidade?
Dani suspirou.
— Por enquanto, você fica aqui. Pelo menos essa
noite. E tem uma cidade, mas ela fica depois da casa.
A garota não falou mais nada.
Dani começou a andar na direção da mansão. A
garota continuou no lugar por alguns segundos,
parecendo concentrada, antes de ir atrás dela.
QUATRO

Dani entrou no escritório de Raquel sem prestar atenção. Ainda


não eram nem oito horas da manhã, ela tinha voltado
para a sede com o dia quase amanhecendo e não tinha
tido tempo nem de ver se tinha café na cozinha depois
que a acordaram.
Raquel estava sentada atrás da sua mesa – antiga,
provavelmente da mesma época em que a casa havia
sido construída, séculos atrás. Aquilo era normal. Raquel
começava a trabalhar cedo. Não era fácil manter um
setor funcionando e, sabendo que seriam atacados, ela
teria muito mais trabalho.
Alguém fez um ruído irritado e o som era familiar
demais. Dani balançou a cabeça e olhou para o lado.
Alex estava sentade em outra cadeira, com as
pernas cruzadas e aquela expressão que tinha rendido
discussões demais.
Dani puxou outra cadeira e se sentou. Alex. Era
óbvio que era Alex ali. Só assim para ela ser acordada
àquela hora, sendo que todo mundo sabia que Dani tinha
chegado de madrugada e...
Não.
Dani encarou Alex e estreitou os olhos.
Elu deu de ombros.
— Imaginei que não tivesse contado seu plano para
Raquel.
Não, não tinha, porque ela estava esperando uma
confirmação de que seria viável antes de falar alguma
coisa. Dani sabia que Raquel não ia gostar nem um
pouco da ideia de usarem um vampiro, mesmo que
tivessem alguma forma de controlá-lo.
Se elu estava aqui, era porque tinha um jeito.
— Eu não ia fazer nada sem autorização — Dani
falou.
Podia ser louca e assumir mais riscos do que deveria
mas, se fosse tão irresponsável quando Alex pensava,
nunca teria sobrevivido a dois anos nas terras de
ninguém. E nunca teria se tornado uma das responsáveis
pela segurança do Setor Dez.
Alex desviou o olhar, parecendo sem jeito. Não que
aquela reação adiantasse muita coisa. Era um absurdo
que, depois de todo o tempo que tinham passado
juntes...
E era por causa de coisas como aquela que não tinha
dado certo.
Dani respirou fundo e olhou para Raquel, que estava
sentada com os braços cruzados, esperando. Sem
escapatória, então.
— As histórias sobre o monstro — Dani começou. —
Você conhece elas melhores que eu.
Raquel assentiu, sem falar nada.
— Ele ainda está vivo, nas ruínas da cidade velha.
— Então nós vamos matá-lo — Raquel falou.
Era exatamente a resposta que Dani tinha imaginado
que teria.
Ela balançou a cabeça.
— Não. Nós vamos usá-lo.
Raquel continuou encarando Dani, sem responder.
— Se Alex está aqui, é porque achou algum jeito de
fazer isso — Dani continuou. — Era por isso que eu
estava esperando. Se existe um jeito de controlar esse
vampiro e usar ele ao nosso favor, precisamos fazer isso.
— Alex? — Raquel chamou.
Dani fechou as mãos com força e se recusou a olhar
para o lado. Não tinha o direito nem de estar com raiva
de Alex por fazer aquilo, depois de como tudo tinha
terminado. Mas ir ali e falar direto com Raquel havia sido
um golpe baixo.
— Existe um jeito de controlar um vampiro — Alex
falou. — Um juramento de sangue.
Não.
— Isso é magia dos vampiros.
Era mais do que Dani estava disposta a fazer.
Alex assentiu.
— É a única coisa capaz de prender um vampiro para
usá-lo como arma. Era o que faziam, na época das
guerras entre as Cortes. É até provável que vampiro nas
ruínas tenha um juramento de sangue de quando lutava
pelo Setor Oito.
Dani balançou a cabeça.
— Eu não vou usar isso.
Alex levantou as sobrancelhas e inclinou a cabeça
daquele jeito que Dani sabia que queria dizer que elu
estava furiose.
— Pesado demais pra você? E o que pensou que ia
ser capaz de prender um vampiro? Um aperto de mãos?
Dani não respondeu. Não tinha pensado tão longe.
Só havia imaginado que, se tivesse um jeito, Alex
acharia. E elu tinha achado. Aquela era a parte que
importava.
— Obrigada.
Alex balançou a cabeça com força.
— Me agradeça não me envolvendo mais nisso. E
não se matando.
Raquel pigarreou e Alex se endireitou.
— Já mandei todas as informações e instruções para
vocês — elu avisou.
Porque era óbvio que Alex faria questão de mandar
tudo para Raquel também. Não que fosse um problema.
Dani teria repassado tudo. Esconder informações era
uma receita para falhas estúpidas, depois.
— Isso era tudo, Alex? — Raquel perguntou.
— Era. Vou deixar vocês se resolverem.
Dani não falou nada enquanto Alex saía da sala e
fechava a porta atrás de si. Não deveria doer. Ela sempre
tinha pensado que o problema maior era que Alex se
preocupava porque estavam juntes. Mas, depois
daquilo...
Alex não confiava nela, simples assim. E aquilo não
deveria doer o tanto que doía.
Raquel suspirou alto.
— Um vampiro — ela começou. — O monstro das
histórias. O responsável por destruir o setor que existia
aqui antes. E você quer prendê-lo por um juramento de
sangue.
Querer, ela não queria. Mas não tinha outra opção,
por mais que odiasse a ideia. Se Alex estava dizendo que
aquele era o único jeito, era porque era a única opção.
— Você sabe tão bem quanto eu que não vai fazer a
menor diferença termos um exército de mercenários —
Dani falou. — E não temos nem recursos pra manter
tanta gente aqui.
— Você está sugerindo trazermos um vampiro para
dentro dessa casa...
Dani bufou.
— Não estou falando nada sobre trazer alguém pra
cá. Sei lá, arruma uma casa segura para ele e pronto.
Mas nós precisamos de mais do que só mercenários.
Somos só humanos contra vampiros, não importa
quantos bruxos lutem conosco. Nós estamos vulneráveis.
Aquela era a verdade. Se mandassem um vampiro
como aquela mulher que Dani tinha visto no bar do Setor
Seis, ele só precisaria se aproximar deles e controlaria
todos os bruxos. Humanos não tinham como se defender
daquele tipo de poder. Nem mesmo bruxos.
— É só por isso que estão se divertindo às custas de
Alana — Dani continuou. — Eles não precisam ter pressa,
porque sabem que a qualquer hora podem invadir o
Setor Dez e conseguir o que querem. Eu nem duvido que
tenha uma roda de aposta rolando entre os príncipes dos
setores, só para saber quem vai conseguir alguma coisa
primeiro. Somos presas fáceis. Brinquedos para...
Dani parou de falar e cruzou os braços. Não tinha
ficado frio, não exatamente, mas algo estava a estava
incomodando. E Raquel ainda estava sentada no mesmo
lugar, encarando Dani.
Raquel, que era uma bruxa. Uma bruxa poderosa o
suficiente para ter convencido os vampiros a lhe darem
um setor.
— Isso não é uma ofensa — Dani falou, depressa.
— Não? — Raquel perguntou. — Porque pareceu.
Dani balançou a cabeça com força.
— Olha, eu sei que você só quer proteger o setor. E
eu sei que o que estou propondo é arriscado demais. Mas
eu não consigo pensar em outro jeito de sobrevivermos.
Não importa o tipo de poder de fogo que conseguir, vai
ser só uma questão de tempo. Mesmo se usarmos as
barreiras elétricas, elas não vão durar.
E Dani tinha a impressão de que o poder de compelir
mortais não era tão incomum assim. Eles seriam alvos
fáceis.
Raquel apoiou os braços na mesa.
— Você pensou sobre isso. Não é uma decisão por
impulso.
O que ela estava pensando que Dani era?
— Eu não colocaria ninguém em risco assim se
tivesse outra opção. Mas é isso ou...
Ou ela e Alana fugirem de novo. E Alana estava
certa. Se fugissem, continuariam fugindo para sempre.
Precisavam encontrar um jeito de ficar seguras.
E, no fim das contas, elas fugirem provavelmente
não faria diferença. O Setor Dez era um alvo só por ser
um setor fora do controle das Cortes.
Raquel respirou fundo e se endireitou.
— Coordene com Yuri. Eu vou autorizar isso, mas
quero o vampiro com você o tempo todo. Ele não vai
colocar os pés dentro da sede. Isso quer dizer que vão
arrumar uma das casas seguras e você vai ficar lá com
ele.
Aquilo não era o que ela havia planejado. Dani tinha
imaginado que poderia deixar o vampiro em uma casa
segura, bloquear tudo para proteger da luz do sol e
pronto, sossego. Quando precisasse dele podia deixar ele
sair. Ou quando ele precisasse se alimentar.
Droga.
Ela não tinha pensado no que fazer para ele se
alimentar.
E nada daquilo mudava o fato de que aquela era a
única chance deles. Ela acharia alguma coisa. Negociaria
com algum hospital... Pronto. Um hospital.
— Obrigada.
Raquel assentiu e tamborilou os dedos na mesa. Não
tinha terminado, então.
— A garota que você trouxe noite passada — a bruxa
começou. — O que sabe sobre ela?
Dani cruzou os braços com força. Sabia que não
tinha informações o suficiente.
— Ela é irmã de um contato do Setor Seis. A pessoa
que me avisou sobre os mercados — ela contou. — E
precisa se esconder de alguma coisa. Meu contato falou
que queria Valissa aqui porque ela estaria segura.
— E você não sabe de que ela está se escondendo —
Raquel falou.
Dani não respondeu. Não sabia. Não tinha nem ideia
do que poderia ser. E não tinha como entrar em contato
com Lara para perguntar. Não que achasse que existia
alguma chance de Lara lhe responder.
Raquel suspirou e balançou a cabeça.
— Vou organizar com o pessoal para alguém sempre
estar por perto dela, até descobrirmos por que ela
precisa se esconder.
Ótimo. Era a única coisa que Dani queria.
— Se eu tivesse opção, não teria trazido ela assim,
sem saber de nada — Dani começou.
Raquel levantou as sobrancelhas.
— Se alguém falasse com você que uma criança
precisava se esconder, você traria ela sem pensar duas
vezes e sem pedir detalhes.
Dani soltou o ar com força e deu de ombros. Não
tinha como negar aquilo. E ela sabia que a bruxa faria a
mesma coisa.
— Obrigada — ela falou.
Raquel assentiu de novo e pegou um tablet em cima
da mesa.
Dani sabia muito bem quando estava sendo
dispensada.
Ela se levantou e saiu da sala depressa. Não ia
conseguir voltar a dormir mas, com sorte, conseguiria
pelo menos cochilar mais uma meia hora. Precisava estar
alerta, se ia organizar aquilo com Yuri.
E pelo menos Raquel não tinha falado que, se
alguma coisa desse errado, a responsabilidade seria de
Dani. Ela já sabia muito bem daquilo.
Amon não forçou a proteção sobre a caixa, mesmo que estivesse
sentindo suas forças desaparecendo. Sabia que não
adiantaria nada. Aquilo tinha sido construído
especificamente para prendê-lo. Ele havia passado
tempo demais tentando escapar. Sempre havia sido sua
única chance: escapar enquanto seus juramentos não o
prendiam de forma ativa. Entre os ataques, quando não
estava preso por nenhuma ordem. Mas não conseguira. E
havia passado décadas ali, sem morrer mas sem
conseguir nem mesmo se mover.
No começo, quando começara a definhar, Amon
havia pensado que era uma punição pelo que tinha feito
da última vez que o usaram. E ainda estaria pensando
aquilo se uma humana não o houvesse encontrado. Uma
humana. Que dizia que haviam se passado décadas
desde a guerra.
Uma humana que queria usá-lo, também. Como todo
mundo, desde que ele havia sido transformado. Era seu
papel e ele aceitara isso. Mas ser usado por uma humana
era baixo demais até mesmo para ele.
E Amon seria usado por ela, porque não estava
disposto a se permitir ser destruído. Ainda tinha contas a
acertar com pessoas demais.
A luz mudou. A humana estava de volta e não estava
se dando ao trabalho de tentar esconder sua
aproximação.
Ela não era tola. Se fosse, não teria sido tão
cuidadosa. Mas ela queria alguma coisa e aquilo queria
dizer que Amon podia negociar. Haviam se passado
décadas. Ele não sabia mais qual era o conhecimento dos
humanos sobre os vampiros. Era possível que ela não
soubesse como prendê-lo, e naquele caso...
A humana apareceu acima da caixa, com o mesmo
meio sorriso da outra vez. Ela pensava que estava no
controle. Eles sempre pensavam, até ser tarde demais.
Ela não era nada demais. Sua pele era clara, com
olhos escuros e cabelos pretos na altura do ombro, uma
tatuagem subindo pelo seu braço e desaparecendo por
baixo do colete que estava usando. O colete e as
proteções nos seus antebraços eram o único sinal de que
a humana sabia que precisava se preocupar. Não que
tivessem alguma utilidade real contra um vampiro.
— Ainda está acordado — ela falou. — Que pena.
Ainda, mas não por muito tempo. O sangue que a
humana havia lhe dado tinha sido pouco. O único motivo
para Amon ainda não ter perdido a consciência era sua
idade. Ele não precisava de tanto sangue, especialmente
se não estivesse fazendo nada além de existir naquela
caixa.
— A humana, de novo. Você quer alguma coisa.
Ela se afastou da caixa e saiu do seu campo de visão
por alguns segundos antes de aparecer de novo, do outro
lado. Estava estudando sua prisão.
— O que você quer? — Ele insistiu.
A humana levantou a mão e girou a faca que estava
segurando. Se ela pensava que isso o intimidaria, estava
muito enganada.
— Nesse momento, quero decidir se você vai ser útil
para mim vivo ou se vai ser mais fácil me livrar de um
risco.
Amon sorriu, mostrando as presas. Previsível. Tão
previsível...
— Você pode tentar se livrar de mim. Mas vai ter que
tirar essa placa do caminho. Acha que vai ser mais rápida
que eu? Ou que, mesmo se conseguir, não vai sofrer
nenhuma repercussão?
A humana se abaixou e apoiou os braços cruzados
na placa de acrílico. Arrogante. Ela estava praticamente
em cima de Amon, mas agia como se não tivesse
nenhum motivo para temer.
E talvez não tivesse. Talvez o mundo houvesse
mudado o suficiente para ela estar segura, mesmo que
estivesse pensando na possibilidade de libertá-lo.
Ele precisava de informações. Precisava entender o
que havia acontecido. Mas não havia como fazer aquilo.
— Eu te dei um pouco de sangue dois dias atrás — a
humana começou. — Você se recuperou um pouco. Mas
aquilo não é o suficiente pra te manter, não é? Seu corpo
já está se consumindo de novo e seus movimentos estão
mais lentos. Isso quer dizer que eu não preciso me
preocupar em ser mais rápida que você. Se eu esperar
uma semana, você vai estar do jeito que te achei antes.
Uma casca, pele e osso e nada dessa imitação de vida
dos vampiros, esperando uma gota de sangue para
conseguir acordar.
Ela morreria. Aquela era a única certeza de Amon.
Ele sairia daquela caixa de alguma forma e faria questão
de caçar a humana que pensava que podia ameaçá-lo.
A humana se inclinou mais para a frente e sorriu.
— E eu não vou sofrer nenhuma repercussão, porque
ninguém sabe que você está aqui. O Setor Quatro não
existe mais. E essa parte do território não pertence mais
ao Setor Oito. Onde estamos são os restos de uma
cidade que ninguém se lembra que já foi grande, num
lugar que é tão sem importância para nós que ninguém
nunca pensou em limpar essas ruínas.
A morte dela seria lenta. Lenta e dolorosa. Talvez ele
lhe daria um pouco do seu sangue. Só o suficiente para
uma transformação parcial – algo que permitiria que seu
corpo suportasse mais tempo, antes de falhar. Assim
seria mais satisfatório se divertir com ela.
— Ninguém tem motivos para vir aqui — ela
continuou. — Muito menos pra forçar uma porta trancada
em uma casa que está caindo aos pedaços. Se eu for
embora e não voltar mais, você vai continuar aqui, semi-
morto, preso, por pelo menos mais algumas décadas.
Séculos, se bobear. Não vai fazer diferença pra mim.
O vampiro sorriu.
— Você quer alguma coisa. Então não vai me deixar
aqui.
Ela bateu a ponta da sua faca no acrílico.
— Ah, eu quero alguma coisa, sim. Mas querer é
diferente de precisar. Se você concordar com a minha
proposta, vai ser mais fácil pra mim. Se não concordar,
paciência. Vou embora e você fica aqui. E aí, daqui a uma
semana eu penso se volto para me livrar de você de vez,
ou se te deixo aí até sabe-se lá quando.
Perfeito.
Se ela não precisasse dele, não estaria ali. Não teria
se dado ao trabalho de acordá-lo depois de décadas.
— O que você quer propor, humana?
Ela sorriu, sem se afastar do acrílico.
— Você está preso aqui há muito tempo, Amon. O
mundo lá fora mudou. O Setor Oito como você conheceu
não existe mais. Mas talvez exista um lugar para você
aqui, no setor onde essas ruínas estão.
Previsível.
— Você quer que eu mate por vocês.
Aquilo não era novo. Nem seu objetivo nem a forma
como ela estava tentando colocar a situação. Oferecendo
um lar. Uma humana deveria saber que aquilo era perda
de tempo. E Amon tinha consciência demais de quem ele
era. As Cortes dos vampiros o temiam. Se eles não eram
capazes de lhe oferecer nada, não seria uma humana
que o faria.
— E qual é a outra opção, humana?
Ela inclinou a cabeça e se endireitou, mesmo que
ainda estivesse apoiada na placa de acrílico.
— A mesma de antes, é óbvio. Continuar aqui até eu
decidir que sua existência é um risco grande demais e
resolver acabar com você.
Amon levantou o tronco, até que seu rosto estava
quase encostado no acrílico.
— E o que vai me impedir de te matar quando eu
sair daqui?
— Um juramento de sangue.
Ele sorriu, devagar.
O que uma humana sabia sobre juramentos de
sangue? Se ela estava oferecendo aquilo, o suficiente
para o prender. Mas não o suficiente para garantir que
Amon estaria preso. E ela era jovem. Inexperiente. Ele
podia usar aquilo ao seu favor.
Ela queria usá-lo, então o usaria. Mas ele também a
usaria – para sair dali e ter sua vingança.

Dani fechou a porta da escada e se encostou na parede meio


quebrada ao seu lado. O vampiro tinha concordado. Ela
tinha conseguido vender aquela ideia toda para ele, de
alguma forma. Agora só precisava fazer tudo funcionar.
Algo estalou, mais à frente. Ela levantou a cabeça
depressa. Já estava escuro o suficiente para ela não
conseguir ver bem o que estava mais longe, mas o som
não tinha sido tão afastado assim.
Um homem mais velho estava vindo na sua direção,
com a pele marrom escura, o rosto marcado pela idade e
a cabeça raspada. Ezequiel. As histórias diziam que ele
era o mais velho das pessoas que tinham vindo para o
Setor Dez com Raquel, no começo, e que tinha sido um
caçador de vampiros antes de tudo, quando ainda
existiam as pessoas que tentavam caçar vampiros. E ele
tinha sido o responsável pela segurança do setor, a
pessoa que havia treinado Dani e Yuri e lhes dado seus
cargos.
Mais cedo, quando Dani tinha sentado com Yuri para
organizar exatamente como fariam isso, ele tinha
insistido em mandar uma pessoa como backup para
Dani, quando ela fosse fazer o juramento. Mas ela não
tinha esperado justamente Ezequiel. Ele tinha se
aposentado, passado o trabalho para eles, e feito
questão de não se envolver em mais nada. E agora
estava ali.
— Eu vou matar Yuri — Dani falou.
Ezequiel riu, sem se preocupar com o barulho.
— E quem mais você pensou que ele fosse mandar?
Dani respirou fundo e balançou a cabeça. Não tinha
chegado a pensar naquilo. Confiava que Yuri ia mandar
alguém que não fosse falar nada para ninguém e que
fosse capaz de ajudar se o pior acontecesse.
O Setor Dez tinha algumas tantas pessoas que eram
treinadas o suficiente para enfrentar um vampiro. Se
fosse um vampiro enfraquecido, eram mais pessoas
ainda. Mas Dani conseguia contar nos dedos de uma mão
em quantas dessas pessoas ela conseguia confiar para
não deixar nada do que estava acontecendo ali escapar.
Pensando melhor, era óbvio que Yuri teria falado com
Ezequiel.
— Você já fez sua proposta para o vampiro? —
Ezequiel perguntou.
Dani assentiu. Agora, com o homem que tinha
treinado tanto ela quanto Yuri ali, seu plano parecia mais
estúpido ainda. Mas continuava sendo a única opção.
— Ele concordou com o juramento de sangue — ela
falou. — Agora só preciso lacrar o laboratório e soltar ele.
A ideia de ter mais alguém aqui é como uma garantia de
segurança.
— Você quer dizer que, se ele te matar, vai ser meu
trabalho não deixar ele sair daqui.
Dani assentiu de novo. Já tinha pensado nisso vezes
demais. Era bem possível que o laboratório tivesse mais
alguma medida de segurança caso Amon escapasse, mas
tudo estava tão velho que ela não conseguia confiar que
alguma coisa funcionaria.
Ezequiel tirou uma pistola pequena do coldre preso
na sua perna. Não. Não era uma pistola comum. Era uma
das armas de laser. E não era uma das que estava
registrada nos inventários do setor. Dani conhecia todas
elas e eram maiores que essa.
Ele levantou as sobrancelhas e indicou a porta com a
cabeça.
Dani respirou fundo e se endireitou antes de puxar a
porta e descer a escada de novo, ouvindo os passos
quase silenciosos de Ezequiel atrás dela. Se ela
sobrevivesse até a idade dele, esperava que conseguisse
se manter tão em forma assim.
Dani parou no corredor cheio de portas e entregou
um tablet para Ezequiel. A sala com a caixa e o vampiro
preso apareceram, de cinco ângulos diferentes.
— Nem tentei acessar o sistema de segurança desse
lugar — ela contou. — Mas não acho que ele viu quando
espalhei as câmeras. Estão fora do campo de visão. A
porta dessa sala é reforçada e tranca por fora.
— As paredes? — Ezequiel perguntou.
Dani balançou a cabeça.
— Reforçadas. Ele não vai conseguir passar por elas.
Ezequiel assentiu.
Dani respirou fundo e entrou na sala. A porta se
fechou atrás dela com um ruído que parecia final.
Era loucura, sim. Mas era o único jeito.
Ela atravessou a sala até conseguir ver o vampiro
dentro da caixa.
Amon. O monstro das histórias do Setor Dez. E ela ia
libertá-lo.
Ele não tinha voltado a parecer pele e osso, mas
estava quase naquele ponto. Pouco sangue o revivia por
algum tempo, mas não durava muito. Seu corpo
precisava de muito mais para se manter. O que queria
dizer que ele ia precisar de muito sangue para se
recuperar completamente.
Yuri tinha prometido cuidar daquilo, também. Dani
deveria estar satisfeita por ninguém ter questionado sua
ideia louca, mas ela quase preferia que tivessem
questionado. Se nem Yuri nem Ezequiel tinham falado
nada, era porque eles também não conseguiam pensar
em outra opção.
Dani se sentou na borda da caixa e começou a
tamborilar os dedos na placa de acrílico, quase na altura
da cabeça do vampiro. Ele acompanhou seu movimento
com os olhos, mas não fez mais nada.
— Sabe, as pessoas que construíram esse lugar
realmente faziam questão de não deixar você escapar —
Dani começou. — Essa caixa, por exemplo. Eu nunca vi
nada assim antes. E é mais interessante ainda pensar
que a sala onde estamos foi construída do mesmo jeito.
As mesmas camadas de materiais.
Ele estreitou os olhos.
Dani sorriu, sem parar de tamborilar.
— Isso quer dizer que, quando eu tirar essa proteção
de acrílico daqui, você não vai fazer nada. A sala está
lacrada e temos câmeras aqui dentro. A menos que as
pessoas que estão comigo aceitem que você prestou o
juramento de sangue, a sala não vai ser aberta. Se você
me atacar, de qualquer forma, vai ficar preso aqui até
perder a consciência de novo e alguém vir enfiar uma
estaca em você.
O vampiro sorriu, mostrando suas presas
— Não sei se isso será possível. Estou preso há tanto
tempo que o instinto de me alimentar...
Ela apoiou a mão no acrílico e se inclinou para a
frente.
— Então controle o instinto — Dani falou. — A menos
que sua escolha seja acabar com sua existência nessa
sala. Só tem um jeito de você sair daqui e já sabe qual é.
O sorriso do vampiro mudou e um arrepio atravessou
o corpo de Dani. Aquilo não era uma ameaça. Ou melhor,
não era uma ameaça de violência. Era um sorriso quase
sedutor e aquilo, vindo de um vampiro, era outro sinal de
perigo.
— Aguardo suas ordens, senhora.
Dani respirou fundo e se levantou.
Era a única opção.
Ela soltou a primeira trava, perto da cabeça do
vampiro. E depois a que estava ao seu lado, antes de ir
para uma das travas na parte mais comprida da caixa. E
as duas perto dos pés dele.
Só faltava uma trava.
Dani parou e encarou Amon. Ela tinha feito questão
de não olhar para ele enquanto estava soltando as
travas. Precisava estar no controle e aquilo queria dizer
que ele não podia nem pensar que ela não tinha certeza
sobre o que estava fazendo. Mas agora aquela era a
última. O caminho sem volta.
O vampiro a encarou de um jeito que quase parecia
um desafio. Mesmo praticamente pele e osso, com o
cabelo e a barba embolados daquele jeito, ainda tinha
algo de imponente na sua expressão.
E aquilo não importava. Nada importava, além de
fazer ele prestar o juramento.
Dani soltou a última trava e empurrou a placa de
acrílico. Ela deslizou sem o menor problema e caiu do
outro lado da caixa.
O vampiro se sentou, se movendo devagar. Ele
provavelmente estava fraco demais, mas Dani não ia lhe
dar nem mais uma gota de sangue antes de ter o
juramento.
Ele respirou fundo. Seus olhos escureceram, quase
como se uma sombra tivesse passado por eles antes de

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