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KATHERINE CENTER nasceu em 1972 em Houston, no Texas, onde ainda hoje vive com o
marido e os filhos. Autora de várias comédias românticas com um toque agridoce, já foi por isso
considerada sucessora de Jane Austen e Nora Ephron, tendo figurado nas tabelas de bestsellers do
New York Times e visto alguns dos seus romances serem adaptados ao pequeno ecrã.
A Guarda-Costas
Katherine Center
Título original:
The Bodyguard
© 2022, Katherine Center
Publicado por acordo com St. Martin's Publishing Group, em parceria com International Editors
& Yañez'Co. Barcelona
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67138-7
Para os meus avós, Herman e Inez Detering.
Deixaram-nos muitas dádivas para continuar a transmitir e
estou grata por todas elas – em especial, ultimamente: pelos
vossos abraços, o vosso carinho e simpatia, e todas as
memórias de uma infância passada à solta no vosso rancho
no Texas.
Sinto a falta de ambos – mas da melhor maneira, com toda a
gratidão.
Um
O último desejo da minha mãe foi que eu tirasse férias.
«Vá lá», dissera, prendendo-me uma madeixa de cabelo atrás da
orelha. «Marca uma viagem e vai. Como as pessoas normais.»
Eu não tirava férias há oito anos.
Mas respondi-lhe que sim, que é o que se faz quando uma mãe doente
nos pede alguma coisa. Depois acrescentei, como se estivesse a regatear:
«Umas férias.»
Claro que, na altura, não sabia que seria o seu último desejo. Pensei
que estávamos apenas a fazer conversa de hospital a meio da noite.
Então, de súbito, dei por mim e era a noite a seguir ao funeral dela.
Não conseguia dormir, às voltas na cama, e aquele momento não me saía
da cabeça. Como a minha mãe me fitara nos olhos e me apertara a mão
para garantir que cumpria – como se as férias fossem importantes.
E agora eram três da manhã. As roupas que usara no funeral tinham
sido atiradas para cima de uma cadeira. Desde a meia-noite que tentava
adormecer.
– Pronto, está bem – resmunguei em voz alta, na cama, para o vazio.
Depois rastejei por cima da cama até encontrar o meu portátil no chão
e, à luz azulada do ecrã, de olhos ainda meio fechados, pesquisei
rapidamente: «BILHETE DE AVIãO MAIS BARATO PARA QUALQUER SíTIO», e
encontrei um site com uma lista de destinos, com voos diretos por setenta
e seis dólares. Rodei a roda do rato como se estivesse a jogar roleta,
aterrei aleatoriamente em Toledo, Ohio, e cliquei em COMPRAR.
Dois bilhetes para Toledo. Não reembolsáveis, viria a descobrir. Um
pacote especial qualquer para pombinhos no Dia dos Namorados.
Feito. Promessa cumprida.
O processo todo não demorou mais do que um minuto.
Agora, tudo o que tinha de fazer era forçar-me a ir.
*
Isto fora há um ano.
É engraçado pensar como tive pena do pessimismo de Glenn na
altura. A sua terceira mulher acabara de o deixar – o que não é incomum
nesta área profissional, uma vez que passamos mais tempo fora do que
em casa. Lembro-me de abanar mentalmente a cabeça, compadecida,
enquanto saía da sala. Lembro-me de pensar que Robby e eu provaríamos
que ele estava enganado.
E agora, um ano depois, Robby estava a acabar comigo, debaixo de
chuva, como se fizesse um favor a ambos.
– É o melhor – argumentou. – De qualquer maneira, precisas de fazer
o luto.
– Não mereces o meu luto – disse.
– Referia-me à tua mãe.
Oh. Ela.
– Não me digas o que preciso.
Robby teve o descaramento de parecer magoado.
– Vamos ser civilizados.
– Porquê?
– Somos adultos e sabemos o que está em jogo. E porque, na verdade,
nunca gostámos muito um do outro.
Aquilo magoou-me como uma bofetada. Fitei-o nos olhos pela
primeira vez e tentei não parecer surpreendida.
– Ah, não?
– Parece-me uma afirmação justa.
Ah… não. Não era uma afirmação justa. Era incrivelmente estúpida.
E errada. E provavelmente uma mentira, também… uma forma de Robby
se absolver a si próprio. Sim, estava a despachar-me no dia a seguir ao
funeral da minha mãe, mas não fazia mal, porque «nunca gostámos muito
um do outro».
Tudo bem. Como quiseres.
Embora eu me lembrasse de um quarto de hotel na Costa Rica que
podia provar o contrário.
Na humilhação do momento – teria mesmo acabado de dizer a um
homem que o amava enquanto ele acabava comigo? – foi como se
Robby não estivesse a tirar-me apenas o amor dele… mas todo o amor.
Foi assim que me senti.
Que hei de dizer? É difícil pensar friamente durante uma crise, e a
conclusão a que cheguei foi que a única maneira de conseguir aguentar
era voltar ao trabalho. Não precisava de passatempos. Não precisava de
aprender croché. Precisava era de voltar ao escritório, ter uma nova
missão e conquistar aquela posição à frente da filial de Londres. Era tão
óbvio como precisar de ar. Tinha de fazer alguma coisa. Ir a algum lado.
Fugir. Agora mais do que nunca.
Porém, antes de sair do carro para a chuva e esquecer completamente
Robby, ainda tinha uma pergunta a fazer-lhe. Fitei-o diretamente nos
olhos. E depois, num tom de mera curiosidade calma, disse:
– Disseste que as coisas entre nós não estavam a resultar. Porquê?
Ele acenou, como se fosse uma dúvida razoável.
– Tenho andado a pensar, nos últimos meses…
– Meses?
– … e decidi que, no fundo, se resume a uma coisa.
– E qual é?
– Tu.
Abanei a cabeça de modo involuntário.
– Eu?
Robby acenou afirmativamente, como se proferir a palavra em voz
alta fosse apenas mais uma confirmação.
– És tu. – E então, no tom de alguém que está a dar um conselho
prestável, acrescentou: – Tens três defeitos que são inultrapassáveis.
As palavras ecoaram-me na mente enquanto me preparava para os
ouvir: três defeitos inultrapassáveis.
– Primeiro – disse Robby –, estás sempre a trabalhar.
Está bem. Ele também estava sempre a trabalhar. Mas enfim.
– Segundo – prosseguiu Robby –, não és divertida, sabes? Estás
sempre tão séria.
Uh, caramba. Como argumentar contra uma declaração destas?
– E terceiro – concluiu Robby em tom de antecipação, como se
estivéssemos por fim a chegar ao cerne da questão –, beijas muito mal.
Três
Um mês depois, ainda estava furiosa.
Eu beijava mal? Beijava mal?
Quer dizer, viciada em trabalho? Tudo bem. Não é vergonha nenhuma
ser excecional naquilo que faço.
Pouco divertida? Quero lá saber. Seja como for, as pessoas dão
demasiada importância à diversão.
Mas beijar mal?
Esse era o tipo de insulto que me seguiria até à cova.
Inaceitável.
Tal como o estado de toda a minha vida.
A minha mãe morreu. Depois, fui forçada a tirar uma licença do
trabalho. A seguir, a relação mais longa da minha vida terminou com o
insulto mais ofensivo do mundo. E eu não podia fazer nada em relação a
nenhuma destas coisas. A minha mãe continuou morta, o meu ex-
namorado e a minha melhor amiga partiram para três semanas em
Madrid, na minha missão, e eu fiquei em casa. Em Houston. Sem nada
que fazer e ninguém com quem fazer nada.
Nem me lembro bem de como sobrevivi.
Basicamente, fiz o que pude para me entreter. Reorganizei a sala de
arquivo no escritório. Tratei de mini missões a nível local. Pintei a casa
de banho cor de tangerina sem pedir autorização ao senhorio. Esvaziei a
casa da minha mãe e pu-la à venda. Fiz corridas de dez quilómetros
depois do trabalho, na esperança de ficar exausta. Contei os segundos até
poder voltar a sair em missão, como se estivesse no purgatório.
Oh, e dormi todas as noites no chão do closet.
Essas quatro semanas duraram mil anos. E, em todo esse tempo, só
me lembro de ter acontecido uma coisa verdadeiramente boa.
Enquanto vasculhava a caixa das joias da minha mãe, encontrei algo
que julgava estar perdido – e que pareceria lixo a qualquer outra pessoa.
Por baixo de um colar cheio de nós, achei um pequeno pregador
prateado, um alfinete de ama com missangas, que eu fizera na escola no
meu oitavo aniversário.
As cores eram tal como me lembrava: vermelho, laranja, amarelo,
verde-claro, azul-bebé, violeta, branco.
Os pregadores de amizade estavam na moda na escola, nesse ano –
toda a gente os fazia e punha nos atacadores –, e assim, no dia em que a
professora apareceu com alfinetes e missangas, ficámos esfuziantes. Ela
deixou-nos passar o recreio a fazer os pregadores, e eu guardara o meu
preferido para dar à minha mãe. Adorava a ideia de a surpreender com
um presente num dia em que seria ela a dar-me presentes. Mas acabei por
nunca lho oferecer.
Sem que eu soubesse como, na manhã seguinte tinha desaparecido.
Depois desse dia, procurei-o durante semanas. Inspecionei uma e
outra vez o chão do meu closet, os bolsos da mochila, por baixo do tapete
do corredor. Era um daqueles longos mistérios não solucionados da
minha vida, uma pergunta que trazia comigo há muito tempo: como
perdera um objeto tão importante?
E agora, vinte anos depois, ali estava, guardado em segurança na
caixa de joias da minha mãe, à minha espera, como uma resposta há tanto
tempo escondida. Como se ela o tivesse guardado para mim este tempo
todo.
Como se talvez eu a tivesse subestimado um bocadinho.
E a mim também.
Assim, procurei entre os colares dela até encontrar um fio de ouro
grosso e enfiei o alfinete nele como um pendente.
E depois comecei a usá-lo. Todos os dias. Como um talismã. Até
dormia com ele. Dei por mim a tocar-lhe a toda a hora, a rodar as
missangas lisas debaixo dos dedos para sentir o seu chocalhar alegre.
Havia algo de reconfortante nesse gesto. Fazia-me sentir que talvez as
coisas nem sempre estivessem tão perdidas como pareciam.
Na manhã do regresso de Robby e Taylor de Madrid – em que
teríamos uma reunião no escritório, na qual Glenn prometera que me
atribuiria, finalmente, outra missão – toquei tantas vezes naquele alfinete
que pensei que o gastaria.
O que interessava era que ia ter uma missão. Estava prestes a poder
escapar. Não interessava para onde. Só a perspetiva de sair daqui bastava
para ser percorrida por vagas de alívio.
Ia desaparecer.
E depois, pela primeira vez em muito tempo, sentir-me-ia bem.
Só tinha de sobreviver ao reencontro com Robby.
A nossa cultura trata com menosprezo os desgostos amorosos.
Falamos sobre corações partidos como se fosse algo engraçado, ou uma
tolice, ou fofinho. Como se bastasse uma embalagem de gelado Häagen-
Dazs e um pijama de flanela para o curar. Contudo, uma separação é uma
forma de perda. É a morte, não de um relacionamento qualquer, mas do
mais importante relacionamento da vida de uma pessoa.
Não tem nada de fofinho.
Dizer «ele deixou-me» também não ilustra o verdadeiro significado
do que aconteceu. Parece tão rápido – um mero momento no tempo –,
embora seja para sempre. Afinal, a pessoa que nos amava decidiu não
nos amar mais.
Como é possível esquecer uma coisa destas?
Enquanto esperava sentada na sala de reuniões, onde fora a primeira a
chegar, foi isso que me atingiu: quando Robby me deixara, eu sentira-o
como a confirmação do meu maior medo, o meu temor mais profundo e
secreto.
Talvez não seja digna de amor.
Quer dizer, sim, sou boa pessoa. Possuo muitas boas qualidades. Sou
competente e tenho uma forte bússola moral… e, acrescentemos ainda,
cozinho muito bem. Mas como é que podemos alguma vez partir do
princípio de que seremos a primeira escolha de alguém? Seria eu melhor
do que todas as outras pessoas fantásticas deste mundo? Seria especial o
suficiente para ser aquela que alguém escolheria acima de todas as
outras?
Para Robby não, pelos vistos.
Não queria voltar a vê-lo. Nem pensar nisso. Nem ter uma crise de
autoestima.
Só queria pôr-me a andar para fora do Texas.
Criar palavras de código especiais para indicar que está tudo bem
1
Doghouse pode ser traduzido como «casota de cão», e é também uma
expressão que significa ter caído em desgraça com alguém. (N. da T.)
Sete
Na manhã seguinte, dirigimo-nos para oeste pela autoestrada 10, no
Range Rover preto reluzente de Jack Stapleton, para eu – agora já
totalmente embrenhada na personagem de namorada dele – ir conhecer
os seus pais.
Glenn mandara-me um guarda-roupa falso para a namorada falsa,
cortesia de uma amiga sua que trabalhava como personal shopper. Os
fatos de calça e casaco estavam proibidos, o que era compreensível. Foi
assim que dei por mim com um vestido de verão bordado e sandálias, o
cabelo preso num carrapito largo e descuidado. Só que é difícil uma
pessoa sentir-se profissional com um vestido veranil com mangas em
balão. Era final de outubro, note-se, mas no Texas isso pode significar
uma enorme amplitude em termos de meteorologia: por exemplo,
naquele momento estavam uns bons vinte e cinco graus na rua. Ainda
assim, eu sentia-me despreparada, um bocadinho arrepiada,
estranhamente despida e invulgarmente vulnerável.
Sentia falta do meu fato de calças e casaco, é o que estou a dizer.
No entanto…
Compreendia por que razão Jack queria fazer as coisas desta maneira.
Quando a minha mãe estava doente, tudo o que eu queria era animá-la,
não a deixar perder a esperança e protegê-la do desespero. Eu percebia. A
ideia de Jack estar em perigo podia ser motivo de grande stress. Já
bastava estar doente.
Eu refletira sobre o assunto na noite anterior, enquanto percorria a
autoestrada – durante uma rápida avaliação do caminho até ao rancho e
de regresso –, e decidira que estava disposta a isso.
Pelo menos, em teoria.
Hoje, agora que estava mesmo a acontecer, não me sentia tão à
vontade. Sentada no banco do passageiro, muito direita e aprumada, de
joelhos juntos, não me sentia nada eu própria.
Jack Stapleton, em contraste, ia quase recostado no banco atrás do
volante, a conduzir com uma só mão, de pernas abertas à campeão,
cabelo revolto de forma desafiadora e a mascar pastilha elástica, com
tanta descontração como se já tivesse nascido com os óculos escuros à
aviador.
Como íamos para um rancho, creio que esperara vê-lo num visual à
cowboy. No entanto, parecia mais que ia a caminho de um fim de semana
em Cape Cod – polo azul justo e calças de caqui cor de pedra, com
mocassins sem meias.
É verdade que cresci em Houston. Talvez imaginem que eu já tinha
estado num rancho antes. Mas, para dizer a verdade, não. Já estive na
Torre Eiffel, na Acrópole, no Taj Mahal e na Cidade Proibida em Pequim,
mas nunca tinha estado num rancho texano.
Suponho que andei sempre demasiado ocupada a escapar.
Até agora.
Toquei na pele dos joelhos, preocupada ao constatar como estavam
expostos. Deveria ter vestido calças de ganga? Teria de me preocupar
com cascáveis? Formigas? Catos?
Tinha um par de botas de cowboy, encarnadas como semáforos, que a
minha mãe me oferecera no meu décimo oitavo aniversário, convicta
como estava de que todas as raparigas do Texas deviam possuir um par
de botas. Mas nunca tivera um bom motivo para as usar antes. Não
faziam parte do meu guarda-roupa oficial de namorada, mas trouxera-as
comigo por uma questão de princípio. Certo? Se não as usasse num
rancho, nunca as usaria em lado nenhum. Se calhar devia calçá-las.
Mesmo que não fosse pelo estilo, pelo menos, para me proteger das
tarântulas.
Por detrás dos óculos escuros, vi Jack lançar um olhar rápido às
minhas mãos.
– Estás nervosa? – perguntou.
Sim.
– Não.
– Ótimo. Isto não vai demorar muito. Os meus pais ficarão felizes por
me ver, mas o meu irmão odeia-me, por isso vai despachar-nos o mais
depressa que puder.
– Provavelmente teremos de falar sobre isso.
– Sobre o meu irmão?
– Sim.
– Não.
– Estou só a dizer que quanto mais souber, mais posso ajudar.
– Então o vosso serviço inclui terapia?
– Às vezes.
– Assinaste um acordo de confidencialidade, certo?
– Claro que sim.
Jack pensou no assunto.
– Pois. Mesmo assim, não vou falar sobre este assunto.
– Tu é que sabes – disse. Eu ficara tão atrapalhada no nosso encontro
inicial que me esquecera de lhe fazer o Questionário Muito Pessoal, e
esta parecia uma altura tão boa como outra qualquer. Tirei da mala a
minha pasta rotulada com as iniciais dele. – Vamos aproveitar e
despachar aqui outras questões. – Ainda tínhamos meia hora de
autoestrada. Jack não concordou em responder, mas também não recusou.
Peguei numa esferográfica.
– Consomes regularmente alguma droga ou medicamento de que seja
necessário termos conhecimento?
– Não.
– Algum vício? Jogo? Prostitutas? Roubar nas lojas?
– Não.
– Obsessões? Amantes secretas?
– De momento, não.
– Pareces-me muito monástico, para um ator mundialmente famoso.
– Estou a fazer uma pausa nessa vida.
Entendido. Continuei.
– Problemas de controlo de raiva? Segredos sombrios?
– Não mais do que qualquer outra pessoa.
Nota mental: resposta um bocadinho evasiva.
Olhei de novo para a lista.
– Problemas de saúde?
– Sou a saúde em pessoa.
– Marcas distintivas?
Ele franziu a testa.
– Que marcas?
– No corpo – esclareci. – Tatuagens. Sinais de nascença. Verrugas…
estranhas ou nem por isso.
– Tenho uma sarda no feitio da Austrália – disse ele, e começou a
puxar a camisola de dentro das calças.
– Não é preciso mostrares-me! – interrompi. – Eu sei como é a
Austrália. – Escrevi «sarda Austrália» e continuei: – Cicatrizes?
– Algumas. Nada de muito especial.
– Mais à frente, vou precisar de tirar fotografias de tudo.
– Porquê?
Recusei-me a hesitar.
– Para o caso de termos de identificar o teu corpo.
– O meu cadáver?
– O teu corpo vivo. Por exemplo, numa foto a pedir resgate. Não que
a situação alguma vez chegasse a esse ponto.
– Isso é perturbador.
Continuei:
– Outras anomalias físicas?
– Como por exemplo?
A maioria das pessoas limitava-se a responder.
– Não sei. Dedos dos pés tortos? Um dente a mais? Uma cauda
vestigial? Tenta ser criativo.
– Não me lembro de nada.
Muito bem. Próxima.
– Dificuldade em dormir?
Esperei que ele pedisse exemplos, mas, após uma breve pausa, disse
apenas:
– Tenho pesadelos.
Acenei. Entendido.
– Com frequência?
– Uma ou duas vezes por mês.
Assim tantas?
– Recorrentes?
– O quê?
– É sempre o mesmo pesadelo?
– Sim.
– Podes dizer-me do que se trata?
– Precisas de saber?
– Mais ou menos.
Ele manobrou o volante enquanto pesava as suas opções. Por fim,
respondeu:
– Afogamento.
– Está bem. – Era apenas uma palavra, mas parecia significar muito.
Próxima pergunta. – Alguma fobia?
Uma pausa. Seguida de um aceno seco.
– Afogamento, também.
Apontei isso no ficheiro dele e preparava-me para passar à frente
quando ele acrescentou:
– E pontes.
– Tens medo de pontes?
Ele respondeu, num tom forçadamente casual:
– Tenho.
– De pensar em pontes ou de pontes propriamente ditas?
– A segunda hipótese.
Hum, certo.
– Como é que isso se manifesta?
Jack mordeu o interior do lábio enquanto pesava as suas opções e
decidia até onde queria partilhar.
– Bom, dentro de mais ou menos vinte minutos vamos chegar à parte
da autoestrada que passa por cima do rio Brazos. E quando isso
acontecer, eu vou parar, sair do carro e atravessar a ponte a pé.
– E o carro?
– Terás de o conduzir e esperar por mim do outro lado da ponte.
– E é sempre assim que atravessas pontes?
– É assim que prefiro atravessá-las.
– E se estiveres sozinho?
– Tento não estar.
– Mas se estiveres?
– Se estiver, sustenho a respiração e atravesso. Mas a seguir tenho de
parar o carro um bocado.
– Porquê?
– Para vomitar.
Registei a informação. Depois, perguntei:
– Porque é que tens medo de pontes?
– Tenho de responder?
– Não.
– Nesse caso, digamos apenas que as infraestruturas americanas não
são tão robustas como todos gostamos de acreditar. E ficamos por aqui.
Depois de, por fim, ser derrotada de forma espetacular numa votação
que ficou «todos-contra-mim», decidi sair para apanhar ar.
Precisava de um minuto a sós.
E foi então que, no caminho circular de acesso à casa, dei de caras
com Taylor, que estava a chegar. Atrasada. Quando me viu, abrandou o
passo e parou. Agora que eu tinha conhecimento da situação, a
linguagem corporal dela era inconfundível: os olhos baixos do
sentimento de culpa. Os ombros tensos da vergonha. A respiração
superficial da traição.
Como é que não percebera antes?
Andara cega pela confiança e pelo afeto. Pela ideia daquilo que uma
amiga devia ser.
É tão fácil ver aquilo que esperamos.
Semicerrei os olhos, furiosa, mas estava demasiado escuro para
Taylor se aperceber.
– O que fazes aqui? – perguntei.
– Hã… venho trabalhar?
– Estás atrasada.
– Pois. Trânsito.
– Isso é mentira?
– Mentira? Não. Havia muito trânsito.
Percebi no tom da voz dela que começava a dar-se conta de que algo
estava errado.
– Estão todos lá dentro – indiquei, inclinando a cabeça para a
garagem. – Na sala de videovigilância. Onde verificamos todas as
imagens das câmaras de segurança.
Taylor franziu a testa. Sabia que eu estava a tentar insinuar mais do
que aquilo que dissera.
– Todos menos tu – notou, como se fosse uma pista para compreender
o enigma.
– Vou fazer uma pausa. – Decidi dar-lhe outra oportunidade. – Mas
tenho passado muito tempo naquela sala. A vigiar o local.
– Pois, claro. És a agente primária e…
– É espantoso o que aquelas câmaras conseguem captar. Cenas que
uma pessoa nunca esperaria ver, mesmo que vivesse a sua vida uma e
outra vez ao longo de um milhão de anos.
Nessa altura, Taylor percebeu.
Deu para ver o instante em que essa consciência a atingiu. A pequena
faísca de choque nos seus olhos.
– Estás a falar de… – disse ela.
– De ti – confirmei, com um aceno. – Com o Robby.
– Oh…
– Pois.
– Isso… isso…
– Foi o que aconteceu em Madrid?
Ela hesitou. O que era fascinante. Porque agora não tinha maneira de
se escapar. Por fim, admitiu:
– Sim. – E então, como se isso pudesse redimi-la, acrescentou: – Mas
por acidente!
Eu já sabia, claro. E achava que nada podia ser pior do que ver com
os meus próprios olhos. Mas estava enganada.
A confirmação era pior.
– Então, todas aquelas vezes em que eu te liguei, a chorar, de coração
partido… tu estavas numa relação com a pessoa que mo partiu?
Taylor baixou os olhos.
– Ao princípio, não era propriamente uma relação.
– Andavam só a dormir um com o outro.
– Mas não de propósito. Não completamente.
Nem sequer valia a pena estar a falar naquilo. Eu só queria que ela
soubesse que eu sabia. Queria que todos estivéssemos de acordo quanto
ao facto de ela ser uma pessoa terrível.
Mas depois ela acrescentou:
– Tecnicamente, vocês já tinham acabado.
Franzi a testa.
– O quê?
– Não te traímos, é o que estou a dizer. Tecnicamente.
Recusei-me a dignificar o comentário com uma resposta.
– Desculpa. Lamento muito, a sério. Aconteceu. Não sabíamos como
te contar.
– Aconteceu?
– Sabes como é, quando estamos em missão.
– Sim, sei mesmo. Especificamente, com o Robby.
– Não queríamos magoar-te.
Outra vez a falar no plural.
– Será possível que não compreendes a… a… – Nem me ocorriam
palavras que o abarcassem. Por fim, decidi-me por: – A atrocidade
emocional que cometeste?
– Não estamos a falar de crimes de guerra.
– Saqueaste a nossa amizade. Bombardeaste a confiança que eu tinha
em ti. Usaste uma arma nuclear contra a minha fé na humanidade. És o
Enola Gay2 das amigas.
Talvez estivesse a exagerar um pouco. Mas não o admiti, mesmo
depois de me ocorrer que esta conversa não era muito diferente da
maneira como costumávamos falar quando estávamos na galhofa. A
grande diferença agora era, claro, o ódio ardente.
Contudo, eu tinha uma pergunta real para lhe colocar.
– Não compreendes aquilo que fizeste – indaguei –, ou estás a fingir
que não percebes? – Não tirei os olhos dela, à espera. – De uma maneira
ou de outra, vou odiar-te para sempre – continuei. – Mas no primeiro
caso, odeio-te por seres estúpida, e no segundo, por seres egoísta.
Taylor baixou os olhos.
– Deixa estar. Eu sei a resposta. És egoísta. Ninguém é assim tão
estúpido. Nem mesmo tu. – Pensei que talvez me soubesse bem ser cruel,
mas não.
– Ouve…
– Espero que ele valha a pena – atirei-lhe. – Deitaste a nossa amizade
pelo cano abaixo. Desististe de todas as noites de cinema, sextas-feiras de
copos, trocas de mensagens engraçadas, festas de pijama, Dias das
Amigas, viagens de sonho, e de todos os abraços e átomos de admiração,
carinho e afeto que alguma vez poderias ter tido comigo. Não foi?
Prescindiste de me pedir emprestadas as calças de ganga com arco-íris.
Dispensaste as recomendações de livros e os postais de aniversário
personalizados e os lanchinhos pela noite dentro. E perdeste também a
melhor vizinha de todo o sempre, porque podes ter a certeza de que vou
mudar de casa.
Senti a minha voz a tremer. Queria que ela se sentisse mal ao ouvir a
lista de tudo o que perdera, embora, claro, eu tivesse perdido o mesmo.
– E sabias – continuei. – Sabias que o Robby é terrível. Sabias o que
ele me fez… como me abandonou na noite depois de eu ter perdido a
minha mãe. – Soltei um suspiro trémulo. – É isso que dá cabo de mim.
Desististe de tudo… de tudo aquilo com que nos amparávamos uma à
outra… não por um homem qualquer, mas por um pulha.
– Lamento muito – disse Taylor.
– Não quero saber.
– Não quero perder-te – disse ela, a voz agora também a tremer .
– Ele vai deixar-te – avisei-a. – Deixou todas as mulheres com quem
já esteve. Sabias? É sempre o Robby que acaba as relações, nunca elas. E
depois vais implorar-me que te perdoe, mas sem sorte nenhuma. Queres
saber porquê? Porque não sou capaz. Há certas coisas que, quando se
partem, não têm conserto possível.
Estava preparada para que aquilo fosse o fim da conversa. Estava
pronta para a abandonar ali, no meio do caminho, com o eco daquelas
palavras. Comecei a afastar-me.
Mas ela disse, atrás de mim:
– Estás enganada.
Virei-me.
– Ele não me vai deixar. Acabou com as outras porque nunca tinha
encontrado a mulher certa.
Uau, a arrogância!
– E achas que essa és tu?
– O que sei, com toda a certeza, é que não eras tu.
O quê!?
E isto, isto mesmo, é o problema de nos aproximarmos de outras
pessoas. Quanto melhor nos conhecem, mais conseguem magoar-nos.
– O Robby nunca te amou – disse ela – porque tu não o deixaste.
Como se atrevia a ficar do lado dele?
– Não sabes do que estás a falar.
– Pergunta-lhe, um destes dias. Ele tentou.
Não me admirava que Robby tentasse fazer passar por vítima. O que
me admirava era que Taylor acreditasse nele.
Devia precisar mesmo de me ver como o problema.
Então, ela encolheu os ombros e fixou os olhos nos meus.
– Tens tanta certeza de que a culpa foi do Robby…
– Sim! E tu também devias ter!
– … que não consegues ver a tua parte da responsabilidade.
Como é que isto estava a acontecer? Ela devia defender-me. Devia
sentir-se ofendida e injustiçada por mim. É para isso que servem as
melhores amigas.
– Como consegues fazer isto? – perguntei, com a voz a fraquejar. –
Eras a minha melhor amiga.
Mas Taylor abanou a cabeça.
– Nunca fui a tua melhor amiga. Era a tua amiga do trabalho. E o
facto de não saberes a diferença… é precisamente o problema.
2
Avião bombardeiro B-29, ao serviço da Força Aérea dos EUA, é
conhecido por ser o primeiro avião a lançar uma bomba atómica: sobre
Hiroxima, no Japão, a 6 de agosto de 1945. (N. do E.)
Doze
Enfim… Foi neste estado de espírito – muito contrariada – que acabei
por me mudar para o rancho de gado de duzentos hectares pertencente
aos pais de Jack Stapleton.
Porém, não tinha escolha, embora, de repente, me parecesse uma
opção menos má, pelo menos em comparação com estar a viver ao lado
de Taylor. Ou com estar no nosso prédio de quatro apartamentos e
paredes finas como cartolina, a comer cereais na cozinha e a ouvir Robby
e a Pior Pessoa do Mundo a fazerem waffles do outro lado. Ou com estar
a ouvi-los ver filmes de terror no sofá dela, ou mandar vir comida, ou a
noite toda em atividades noturnas no quarto… Em comparação com
qualquer uma dessas hipóteses, viver com o Destruidor era, sem dúvida
alguma, uma melhoria.
Liguei ao meu senhorio do carro, depois daquela discussão com
Taylor, para cancelar o contrato de arrendamento. Encontraria um
apartamento novo online, que arrendaria sem sequer lá pôr os pés.
Contrataria uma empresa de mudanças para tirar tudo do meu
apartamento, incluindo a roupa suja.
Partiria em missão e nunca mais poria os pés ali.
E faria questão de que a nova casa tivesse uma lareira, e que esta
estivesse acesa para eu poder desfazer as malas, procurar todas as coisas
que Taylor me oferecera ao longo dos anos – a T-shirt da Mulher
Maravilha, a agenda com a capa de brilhantes e a frase «éS MáGICA», o
livro com as fotografias dos ouriços-cacheiros mais fofos do mundo – e
atirá-las para as chamas, uma a uma, até serem apenas cinzas.
Uma purga. Uma limpeza. Um recomeço.
*
Na manhã em que Jack e eu nos mudámos para o rancho dos
Stapletons, era Jack que estava maldisposto.
Como se ele é que tivesse motivos para isso.
Perdera aquele ar agressivamente descontraído que usava na maior
parte do tempo como se fosse um perfume. Conduziu com os ombros
tensos, o maxilar contraído e tinha a tensão arterial – juro que conseguia
medi-la do outro lado do carro – elevada.
Mal me dirigiu a palavra o caminho todo. Foi o silêncio mais ruidoso
que eu já ouvira.
Só nesse momento, ali na autoestrada, sentada ao lado de Jack, é que
percebi que Taylor, de certa forma, me fizera um favor: graças a ela,
aquela ida para o rancho de Jack era uma espécie de escape. Não o que
eu tanto desejara, mas, por enquanto, teria de servir.
Essa perspetiva animou-me um bom bocado.
Quando chegámos à ponte sobre o Brazos e Jack saiu do carro para a
atravessar a pé, parecia quase agoniado. E quando parámos em frente da
casa do rancho, o ar em torno dele crepitava com uma aura de
infelicidade.
Um escape para mim. Mas, se calhar, o oposto para ele.
No entanto, Kelly não mentira quando mencionara a beleza da casa.
Era uma hacienda dos anos vinte em estilo espanhol, com telhas
vermelhas e buganvílias cor-de-rosa a florir por todo o lado.
Estacionámos no caminho de cascalho e, quando eu saí do carro, a brisa
fez esvoaçar o vestido leve em torno dos meus joelhos nus.
Na verdade, era uma sensação agradável.
Suponho que as roupas de namorada têm o seu lado positivo.
– Idílico – comentei, olhando para a casa.
Jack não respondeu, mas aquela conversa das «férias pagas»
começava a fazer algum sentido.
Jack não fora criado no rancho. Contou-me mais tarde que os avós é
que viviam ali quando ele era pequeno, e que depois da morte destes se
tornara uma casa de fim de semana. Os pais dele só se tinham mudado
para lá a tempo inteiro depois de se reformarem, e fora nessa altura que a
mãe plantara a horta e o jardim, e o pai convertera metade do velho
celeiro numa oficina de carpintaria. Mas naquela altura, quando
chegámos, Jack não disse nem uma palavra que não fosse indispensável
enquanto me fazia a visita guiada à propriedade.
Eu estava encantada com as paredes caiadas, as vigas expostas no
teto, as portas em arco, o chão de tijoleira, a coleção de estatuetas de
galinhas no louceiro. E os azulejos pintados nas casas de banho e na
cozinha. Janelas por todo o lado, luz do sol e flores de buganvília para
onde quer que me virasse. Havia um jardim enorme perto de um alpendre
lateral enfeitado com madressilva, e um alpendre fechado, maior do que
uma sala, do lado oposto. Era como um lugar encantado de outra época.
Naquele dia, em finais de outubro, todas as janelas estavam abertas.
A cozinha tinha cortinas de algodão aos quadrados, e uma caixa de pão, e
um rádio antigo. Na mesa havia um saleiro e pimenteiro em forma de
maçarocas de milho. O pai de Jack tinha um gira-discos em cima da
bancada, ao fundo da cozinha, e Jack abriu os armários por cima para me
mostrar, em vez de louça, como seria de esperar, a enorme coleção de
discos, organizada por década.
Quer dizer, era tudo encantador.
Exceto, talvez, para Jack.
Segui-o através de uma sala de estar comprida, com três sofás
dispostos em torno de uma lareira gigante, até um corredor que levava
aos quartos.
As paredes do corredor estavam cobertas – quase sem um centímetro
de espaço livre – com fotografias de família emolduradas. E metade
delas, pelo menos, eram de três rapazes com sorrisos grandes e
engraçados a olhar para a câmara.
Jack e eu parámos diante daquele cenário.
Como se nenhum de nós o tivesse visto antes.
Toquei numa fotografia de um jovem Jack, às cavalitas de um jovem
Hank, enquanto Hank pegava no irmão mais novo de ambos, de cabeça
para baixo, pelos tornozelos.
– És tu e os teus irmãos? – perguntei.
Jack acenou afirmativamente e os seus olhos percorreram a parede.
– Parece que se divertiam muito.
Jack assentiu de novo, em silêncio.
Depois disse, numa voz tão baixa que mal o consegui ouvir:
– Não vinha cá a casa desde o funeral.
Continuou a olhar para as fotografias, e por isso fiz o mesmo.
Eram maioritariamente instantâneos: os rapazes, muito pequenos, a
correrem por um campo de flores azuis. Na praia, à beira-mar. A
comerem nuvens de algodão-doce maiores do que as suas cabeças.
Depois, mais velhos: altos e magros, com equipamentos de futebol.
Todos a fazerem o pino. A exibirem peixes na ponta das canas de pesca.
A cavalo. No alto de uma encosta, com esquis. A jogar às cartas. A jogar
basquetebol. Vestidos para o baile de finalistas. A fazerem caretas.
Totalmente normal.
E tão desolador.
Precisamente quando dei por mim a pensar que era capaz de passar a
tarde toda a admirar aquelas fotografias, Jack respirou fundo, abriu a
porta do seu quarto e entrou intempestivamente, como se não aguentasse
nem mais um segundo.
Segui-o.
O quarto de Jack era como o resto da casa – o mesmo chão de
tijoleira e as mesmas paredes brancas, as mesmas portadas viradas para
flores cor-de-rosa, as mesmas portas em arco. Mas parecia mais
masculino, de alguma forma. Mais curtido. Cheirava a ferro, tinha uma
sela antiga ao canto e uma cadeira Eames ao pé da janela.
– Este é o teu quarto? – perguntei, para confirmar.
– O nosso quarto – respondeu ele.
Claro. Íamos dividir o quarto. Afinal de contas, éramos adultos.
Adultos numa relação falsa.
– Podes ficar com a cómoda – ofereceu Jack, pousando a mala no
chão ao lado da sela.
– Podemos partilhar – sugeri.
Mas ele encolheu os ombros.
– Não é preciso.
A seguir, olhei para a cama.
– Isso é uma cama de corpo e meio?
Jack franziu a testa e percebi que nunca tinha pensado no assunto.
– Talvez.
– Tu cabes nesta cama?
O vestígio de um sorriso.
– Fico com os pés de fora.
Ocorrera-me que havia boas probabilidades de que o quarto só tivesse
uma cama. E, de facto, aqui estava a prova.
– Eu durmo no chão – declarei.
Jack inclinou a cabeça, como se não lhe tivesse ocorrido que alguém
teria de dormir no chão.
– Podes dormir na cama – objetou; ao princípio, pensei que estava a
ceder-me o seu leito, mas depois acrescentou: – Podemos partilhar.
Olhei para ele de lado.
– Não é preciso.
– Tens noção de que o chão é de tijoleira?
– Eu desenrasco-me. – Era melhor do que o chão do meu closet.
– Percebo que estejas desconfortável com a ideia, mas prometo que
não te toco.
Eu não queria admitir que estava desconfortável. Essa não era
informação necessária. Apontei para ele com um gesto vago. «Olha para
ti», era o que queria dizer.
– Nem sequer caberíamos os dois nessa cama.
Vi um sorriso genuíno assomar-lhe ao rosto, e fiquei contente por ter
conseguido conduzir a conversa para um tópico menos penoso.
– Já consegui enfiar lá algumas miúdas – disse Jack.
– Prefiro o chão – reafirmei, para encerrar o assunto.
– Está fora de questão fazer-te dormir no chão.
– Está fora de questão dormir na tua cama.
– Não sejas picuinhas.
– Na verdade, acho que estou a ser precisamente o oposto ao
oferecer-me para dormir no chão.
Ele pensou um pouco.
– Sim. É verdade. Obrigado.
Não estava à espera de agradecimentos.
– Ainda assim – continuou ele –, ficas com a cama.
– Não a quero. Mesmo – respondi.
– Nem eu.
– Muito bem. Podemos dormir os dois no chão.
Jack estudou-me como se eu fosse esquisita.
– Estás a afirmar que, mesmo que eu durma no chão, tu dormirás
também no chão?
Esta podia muito bem ser a minha única área de autonomia no
próximo mês.
– Sim – insisti. – Dormirei no chão seja como for.
– Preferes dormir no chão duro e frio de tijoleira do que ao meu lado?
– Aposto que não ouves isso muitas vezes.
Jack sorriu como se estivesse impressionado.
– Absolutamente nunca.
– Se calhar até te vai fazer bem – comentei.
Jack encolheu os ombros, como quem considera essa possibilidade.
Depois – e é possível que um cavalheiro tivesse insistido um pouco mais
–, cedeu.
– Como queiras.
Resolvido o assunto, olhei em volta.
Francamente, não sabia o que esta missão significaria para mim.
Quase todas as minhas responsabilidades normais tinham sido
transferidas para a equipa remota, que arrendara uma casa segura a pouca
distância dali, como base de operações. Eles lidariam com a
videovigilância, o controlo do perímetro da propriedade, a monitorização
de redes sociais e todas as outras tarefas que eu normalmente fazia.
Além disso, estávamos num nível de ameaça amarelo. E no meio do
nada, numa casa rodeada por duzentos hectares de pasto. Portanto, nem
sequer havia muito que fazer. Além de, possivelmente, identificar o
posicionamento do gado.
Quer dizer, não diferia muito de um nível de alerta branco.
«Umas férias pagas», era o que toda a gente achava. Mas havia uma
razão para eu nunca tirar férias. O que esperavam exatamente que fizesse
o dia todo? Tecnicamente, estaria a trabalhar, mas sem qualquer…
trabalho.
Porém, antes que eu pudesse entrar em pânico, ouvimos uma pancada
na porta, seca como um tiro.
Ambos demos um salto.
Do outro lado, ouviu-se a voz de Hank.
– Jack, preciso de falar contigo.
Só quando toda a tensão regressou ao rosto de Jack é que me apercebi
de como a brincadeira quanto à organização das dormidas o descontraíra.
Até a sua postura se alterou. Endireitou-se e saiu do quarto.
Deveria segui-lo? Bom, não fora convidada. Num trabalho normal,
sempre que estava de serviço, tinha o cliente debaixo de olho; mas isto
não era, de maneira nenhuma, um trabalho normal.
Ainda insegura, regressei à cozinha, mas estaquei quando ouvi a porta
das traseiras chiar. Jack e Hank tinham parado do lado de fora, no
alpendre fechado. Não os via, mas as suas vozes chegavam até mim pela
janela aberta.
Estavam a falar sobre mim.
– Trouxeste-a mesmo – disse Hank. – Apareceste mesmo aqui com
essa rapariga.
– No hospital não me pareceu que te incomodasse.
– Pois. No hospital houve muitas coisas que não pude mostrar que me
incomodavam.
– O que querias que fizesse? A mãe convidou-a.
– Só porque achou que não virias sem ela.
– E com razão. Não teria vindo sem ela.
– Estás a tornar as coisas ainda mais difíceis para a mãe e não te
preocupas com isso.
– Tu é que estás a tornar-lhe as coisas mais difíceis. E preocupo-me
muito.
– Não achas que ela já tem o suficiente com que lidar neste
momento?
– Só estou aqui porque ela me pediu.
– Ela quer estar contigo. Não com uma desconhecida qualquer.
– A Hannah não é uma desconhecida. É a minha namorada.
Encolhi-me um pouco ao ouvi-lo mentir.
– É uma desconhecida para nós.
– Não por muito tempo.
– Manda-a embora.
– Não posso. Não o farei.
– Manda-a embora ou eu corro com vocês os dois.
– Não te atreverias. Experimenta fazer uma coisa dessas e depois
informa a mãe do que fizeste.
– Isto é um assunto privado, de família. A última coisa de que a mãe
precisa neste momento é de estar a fazer de anfitriã a uma parvinha
qualquer de Hollywood.
Ouvi sons arrastados e um baque. Espreitei pela porta de rede e vi que
Jack empurrara Hank contra a parede.
– Há alguma coisa naquela rapariga que te pareça Hollywood? –
perguntou Jack.
Era surreal ver dois homens adultos à bulha por minha causa. Apesar
de saber que não era uma luta real. E apesar de saber que o motivo, na
verdade, era outro.
Mesmo assim, sustive a respiração.
Por um segundo, pensei que Jack ia defender-me.
– Ela não podia ser menos Hollywood – disse ele então, em voz baixa
e ameaçadora. – Viste as minhas outras namoradas? A Kennedy Monroe?
A Hannah não é nada parecida com nenhuma delas. É baixa. Tem os
dentes tortos. Quase não usa maquilhagem. Não usa autobronzeador, não
tem extensões, não pinta o cabelo. É uma pessoa totalmente básica e
simples. É a epítome da vulgaridade.
Uau.
– Mas é minha namorada – concluiu Jack. – E vai cá ficar.
Eu ainda estava a tentar engolir «a epítome da vulgaridade».
Mais sons abafados, quando Hank se libertou de Jack.
Recuei para que não me vissem. Claro que isso significava que
também não conseguia vê-los.
– Muito bem – cedeu Hank. – Sendo assim, tenho de lhe fazer a vida
negra para ela decidir partir por si mesma.
– Se fizeres a minha Hannah infeliz…
A minha Hannah!
– … podes ter a certeza de que te farei o mesmo.
– Já fazes.
– Não penses que sabes tudo sobre mim – lançou Jack.
Mas Hank continuava a tentar vencer a discussão.
– Já te disse que não a quero aqui. Mas na verdade não me lembro da
última vez que te preocupaste com o que outra pessoa quer.
– Tu não a queres aqui, mas eu preciso dela aqui. E tu também, apesar
de não saberes. Portanto, deixa-me em paz.
Suponho que, nesse momento, um deles decidiu virar costas, porque
ouvi a porta de rede do alpendre fechar-se. E o som repetiu-se segundos
depois.
Pela janela da cozinha, vi Hank a afastar-se na direção da carrinha
com passo furioso, e Jack a ir no sentido oposto, pelo caminho de
cascalho, em direção às árvores.
O que eu queria ir fazer: esconder a minha cara básica, simples e
epítome-da-vulgaridade para sempre. Porém, Jack era o meu cliente. E
este era o meu trabalho.
Portanto, segui-o.
Treze
Quando o apanhei, ele parou, mas não se virou.
– Não me sigas.
– Tenho de te seguir.
– Vou caminhar um pouco.
– Já percebi.
– Preciso de um momento. Sozinho.
– Isso não é relevante.
– Achas que és mesmo minha namorada ou quê? Não me sigas.
– E tu achas que eu sou tua namorada? Não vim atrás de ti por querer.
És a minha tarefa.
Ao ouvir isto, Jack recomeçou a andar pelo caminho de cascalho –
dirigindo-se determinadamente para lado nenhum, tanto quanto eu
conseguia ver. Deixei-o adiantar-se uns trinta metros, e depois respirei
fundo e segui-o.
Quando Jack disse que ia fazer uma caminhada, estava a falar a sério.
Seguimos os sulcos dos pneus na estrada através de um pasto de vacas,
passando por uma cerca, por um celeiro de chapa enferrujada e por uma
encosta que descia suavemente até um baixio verdejante.
Acham que eu estava vestida para um passeio destes, no meu vestido
de verão bordado e tornozelos expostos?
Não estava.
De poucos em poucos metros tinha de sacudir as pedras das sandálias,
de tal modo que me arrependi a sério por não ter calçado as tais botas.
Jack saberia que eu vinha atrás dele? Claro que sim. Sempre que
chegava a um portão, levantava a corrente e esperava por mim. Depois de
eu passar, sem uma palavra, prendia-a novamente e recomeçava a andar,
e eu esperava educadamente que ele restabelecesse a distância entre nós.
Até caminhei pelo sulco oposto ao que ele usava, por uma questão de
cortesia.
O caminho embrenhou-se pelo bosque e as ervas tornaram-se mais
altas, o trilho mais estreito, e precisamente quando eu estava a ver se me
lembrava do aspeto da hera venenosa, chegámos a um portão de arame
farpado enferrujado.
Do outro lado, a floresta dava lugar a um céu azul aberto, e percebi
que tínhamos chegado ao rio.
Quando me aproximei, Jack mirou-me de alto a baixo.
– Que roupa é essa, afinal?
Olhei para as minhas pernas nuas.
– Tenho umas botas lá em casa.
– Devias tê-las calçado.
– Entendido.
Jack abanou a cabeça.
– Nunca se desce até ao rio com os tornozelos expostos.
– A bem da verdade – disse-lhe –, eu não conhecia essa regra. E
também não sabia que vínhamos ao rio.
Jack virou-se e fitou a distância. O caminho terminava no portão. Dali
até à água era apenas relva alta – e ervas daninhas e cardos e silvas. E
hera venenosa, não nos esqueçamos.
Jack agachou-se, de costas para mim.
– Sobe. Eu dou-te boleia.
– Não é preciso, obrigada.
Ainda agachado, Jack começou a enumerar todas os seres escondidos
naquelas ervas que me podiam fazer mal:
– Cardos, armadilhos, urtigas, formigas-argentinas, formigas pretas,
formigas-de-fogo, hera venenosa, silvas, viúvas-negras, aranhas-reclusas-
castanhas, serpentes venenosas, cascáveis, cobras-de-água…
Esperou que eu revisse a minha resposta. Como hesitei, acrescentou:
– Para não mencionar javalis, linces e coiotes.
Francamente, eu mudara de ideias em «armadilhos».
– Está bem – cedi, e subi para as costas dele.
Jack prendeu os braços por baixo das minhas pernas e levantou-se tão
depressa que quase me deixou tonta – o que me fez apertá-lo com mais
força. Depois começou a andar, naquele ritmo de caminhada de Jack
Stapleton que eu conhecia agora tão bem.
Ir às cavalitas era melhor. Talvez ele quisesse trazer-me também às
costas no caminho de regresso.
Perto do rio, o terreno descia abruptamente. Jack parou no cimo da
ladeira por um minuto enquanto ambos admirávamos o rio lá em baixo,
com a sua praia de areia.
– É o Brazos? – perguntei.
– Sim.
– É mais largo do que eu pensava. E mais… castanho.
Jack não respondeu. Desceu o talude até à margem – aí, pôs-me
rapidamente no chão e dirigiu-se para a água.
Uma vez que ele estava a afastar-se um pouco para norte, decidi
afastar-me um pouco para sul a fim de dar algum espaço a ambos. Devia
estar a cerca de cinquenta metros da água, e baixei a cabeça enquanto
caminhava, maravilhada com a variedade de pedrinhas que salpicavam a
areia: castanhas, pretas, às riscas, pedacinhos de osso de animal, madeira
petrificada, até fósseis. Além, claro, de pedaços de madeira trazidos pela
maré, uma ou outra porção de arame farpado emaranhado e enferrujado,
e um número assinalável de latas de cerveja velhas. Percebi por que razão
Jack quisera vir aqui. Do outro lado, via-se apenas o talude alto coberto
de relva e o céu, e estávamos rodeados pela brisa constante causada pela
água corrente. Parecia não haver mais nada num raio de quilómetros e
quilómetros.
E, na verdade, não havia.
À beira do rio, descalcei as sandálias. Estava um dia quente e aquela
correria toda para não perder Jack de vista deixara-me com calor. A água
era mais límpida ao perto – e, quando molhei os pés, foi uma sensação
fantástica: fresca, borbulhante, com zonas mais refrescantes na corrente.
Soube-me tão bem em volta dos tornozelos que depressa avancei um
pouco mais. Levantei a bainha do vestido, pois não planeava ir mais além
do que água pelos joelhos. Queria só refrescar-me um bocadinho, para
ser franca. A minha ideia era dar mais alguns passos e voltar para trás.
Mas, então, aconteceram várias coisas ao mesmo tempo.
Quando dei o passo seguinte, ouvi um som que parecia Jack a
chamar-me, mas soou tão abafado pelo vento que não tive a certeza.
Virei-me para olhar, mas quando o fiz… o leito do rio desapareceu.
Não havia nada onde o meu pé pousar. Assim, desequilibrei-me e caí
na água.
É sempre chocante aterrar em água fria quando não estamos à espera,
mas a água daquele rio tinha algo ainda mais chocante.
Uma corrente.
Uma corrente bastante forte. Tão forte que, quando caí à água, não
consegui voltar à superfície com facilidade… porque a água me puxava
para baixo.
Aconteceu tudo muito depressa.
Num momento eu estava a molhar os pés, e poucos segundos depois
tinha a cabeça submersa.
Na verdade, só de me lembrar ainda fico arrepiada. Estive muito perto
de me afogar.
Porém, tão depressa como aconteceu, e antes que eu tivesse tempo
para entrar em pânico, senti algo forte como metal fechar-se sobre o meu
braço e puxar-me para cima.
Jack.
Içou-me para fora de água e contra ele como se fosse um guindaste,
agarrando-me pela cintura e colando-me ao seu peito com uma exalação.
Depois arrastou-me para a margem tão depressa que ambos tropeçámos e
caímos na areia.
Se ele ficou por cima de mim como se estivéssemos no filme Até à
Eternidade?
Sim, isso aconteceu.
Se foi de alguma forma romântico como no filme?
Bem… não.
Assim que conseguiu, Jack levantou-se e afastou-se com passos
furiosos, deixando-me encharcada e aturdida e a tossir na areia.
Quando recuperei o fôlego, perguntei:
– O que era aquilo? Um rápido?
– Estás a brincar? – inquiriu ele, com as calças de ganga ensopadas
das coxas para baixo. – Foste mesmo molhar os pés no Brazos? Isto
aconteceu?
Levantei-me e tentei, sem sucesso, sacudir a areia molhada das
pernas.
– Não… não o devia ter feito?
– Ninguém deve fazer isso! Não sabes quantas pessoas morrem
afogadas neste rio todos os anos?
– Como havia de saber?
– Toda a gente sabe! Nunca tomar banho no Brazos!
– Em primeiro lugar, não fui tomar banho. E em segundo lugar…
não. Não é uma informação que toda a gente saiba.
Mas Jack estava lançado.
– E porquê? Porque é que não se pode nadar no Brazos? Porque o
fundo é arenoso, e por isso a corrente forma redemoinhos, e os
redemoinhos escavam buracos no leito de areia do rio, e a corrente
rodopia dentro desses buracos como tornados líquidos… e se uma pessoa
for azarada ou estúpida o suficiente para ser sugada por um deles, adeus.
– Que conhecimento tão especializado… – comecei, ainda engasgada.
– Portanto – prosseguiu Jack, como se eu não tivesse dito nada –,
quando há idiotas que decidem ir nadar ou pescar ou molhar os pés,
quando dão por si já foram puxados pelas correntes. Morrem famílias
inteiras a tentar salvar-se uns aos outros, um a um!
Teria acabado de me chamar «idiota»? Tentei decidir se isso era ou
não pior do que ser a «epítome da vulgaridade».
– Bom, já percebi que não era um rápido.
Olhei para a água, que daqui parecia tão tranquila. Ainda sentia a
força com que me puxara, como uma espécie de íman líquido mortífero.
De súbito, arrepios percorreram-me os braços e as pernas.
– Assustador – disse, quase para mim própria.
A minha calma só pareceu deixá-lo mais furioso.
– Assustador? – gritou Jack. – Podes ter a certeza! Que diabo te
passou pela cabeça?
– Não sei – admiti, virando-me para ele. – Estava com calor. A água
fresca soube-me bem.
– Estavas com calor? – repetiu ele, como se me tivesse perguntado
porque é que estava a beber gasolina e eu tivesse respondido que tinha
sede. – Tens tendências suicidas? É isso? Porque deixa-me explicar-te
porque é que o rio se chama Brazos. Vem de los brazos de Dios, que
significa «os braços de Deus»… As pessoas pensam que foi batizado
assim por viajantes sedentos que ficaram gratos por encontrar água, mas,
na verdade, é porque nele se afogaram tantas pessoas que ficou
conhecido por ser onde Deus recolhe as suas almas.
Bolas. Não estava à espera desta reviravolta tão sombria.
Admito que Jack pretendia transmitir-me uma dica de segurança
importante. Mas, quer dizer, a sério? Era óbvio que eu ainda estava meio
sufocada e muitíssimo abalada. Era preciso gritar?
Não sei como são as outras pessoas, mas eu só consigo ouvir gritarem
comigo durante algum tempo antes de começar a responder no mesmo
tom. Jack queria gritar? Muito bem. Eu também era capaz. Podia estar
aos gritos o dia todo.
– Porque é que estás a gritar comigo? – berrei.
Outra novidade para mim – gritar com um cliente.
– Porque – bradou Jack em resposta – ainda vais arranjar maneira de
te matares!
– Mas não de propósito! – berrei.
– Não faz diferença nenhuma depois de estares morta! – gritou Jack.
– As pessoas estão sempre a molhar os pés em rios! – berrei. – É
perfeitamente normal!
– Não no Brazos!
– Eu não sabia!
– E se tu fores ao fundo eu também vou… porque tenho de entrar
para tentar salvar-te!
– Então não tentes!
– Não é assim que funciona! Se tu morreres no rio, eu morro no rio! E
não quero mesmo morrer no raio do rio!
Por um segundo, fiquei sem resposta. Não sabia que réplica dar
àquilo. E naquele instante, apercebi-me de outra coisa: estava a tremer.
Muito. Com violência. Um tremor que nascia algures mesmo no centro
de mim.
Muito provavelmente, era medo.
Embora não parecesse.
Ou talvez eu me tivesse esquecido de como era o medo.
Geralmente, o antídoto do medo é a preparação – mas eu não estava
preparada para nada do que me acontecera esta semana, desde ver o meu
trabalho transformar-se em algo quase irreconhecível, a mudar-me para
casa de desconhecidos, perder a minha melhor amiga, vir parar ao meio
de um festival de ódio entre Jack e o irmão, ser chamada «vulgar», quase
morrer afogada e – agora – ter um homem a gritar comigo como ninguém
fazia há anos.
Era muita coisa.
De súbito, era demasiado.
– Mas o que achas que sou? – exigi saber. – Alguma historiadora dos
cursos de água do Texas? Como querias que eu soubesse que este é um
rio da morte? Estava muito bem a viver a minha vida na cidade, a tentar
ir para Londres, ou para a Coreia, ou para qualquer outro lado que
literalmente não fosse o Texas, e de repente tenho de vir viver num
rancho de gado e representar nalgum reality show de loucos contigo e
com a tua família? Eu não queria este trabalho, não o pedi, e agora estou
aqui encurralada, sem maneira de escapar, durante sei lá quantas
semanas! Se calhar podias avisar-me se vires que estou prestes a matar-
me a mim própria ou a outra pessoa qualquer acidentalmente…
E foi aqui que a voz me falhou.
Foi neste preciso momento que a fúria me escapou por entre os dedos
e as minhas emoções se desmoronaram. Quando terminei a frase com
«em vez de gritares comigo sem razão como um imbecil», foi num fio de
voz.
Fiquei parada, em silêncio, e Jack também, enquanto ambos
absorvíamos o facto de eu ter acabado de chamar «imbecil» ao meu
cliente.
A minha vontade era virar costas e deixá-lo ali sozinho, num gesto de
orgulho e amor-próprio, mas tinha tudo a tremer, incluindo as pernas.
Sem sequer pensar no que fazia, ergui a mão para tocar no alfinete de
missangas. Só queria um pouco daquele sentimento de conforto que me
invadia sempre que lhe tocava.
Mas não estava lá.
O meu pescoço estava nu. O fio também desaparecera.
– Eh – disse, olhando para baixo –, onde está o meu alfinete?
– O teu quê?
Apalpei o peito, como se pudesse encontrá-lo se continuasse à
procura.
– O meu alfinete. Com as missangas. Desapareceu.
Ter-se-ia soltado na água? Estaria na praia?
Comecei a procurar na areia.
– Aquele alfinete de missangas coloridas que tens sempre ao
pescoço? – perguntou ele, e esqueceu-se de que estávamos a discutir para
começar também a procurar.
– Deve ter caído – disse eu.
Percorri a praia, tentando recriar os meus passos. À chegada vinha
com calor, mas agora, depois do choque do rio, sentia o oposto. Estava
ensopada e com frio e não conseguia parar de tremer. Mas isso já não
tinha qualquer importância.
Enquanto procurávamos, a atitude de Jack suavizou-se.
– Vamos encontrá-lo – garantiu. – Não te preocupes. – E acrescentou:
– Eu sou mesmo bom a encontrar coisas.
Levantei os olhos e, quando o fiz, apercebi-me de como aquela praia
era vasta – em comparação com um alfinete. Era como o infinito. Nunca
o conseguiríamos encontrar.
E depois fiz o que qualquer pessoa faria naquela situação.
Desatei a chorar.
Jack nem hesitou. Percorreu a distância que nos separava e envolveu
nos braços o meu corpo molhado, trémulo, invulgarmente frágil, e
apertou-o durante um minuto. Depois afastou-se, despiu a camisa de
flanela, ajudou-me a vesti-la, abotoou-a e puxou-me de novo para si.
– Lamento muito – disse; de encontro ao peito, a voz dele chegou-me
abafada. – Lamento muito que tenhas perdido o alfinete, e que quase te
tenhas afogado, e lamento ter gritado contigo. Devia ter-te avisado. A
culpa foi toda minha. É só porque me assustaste.
Estava a acariciar-me o cabelo? Por acaso eu tinha Jack Stapleton a
acariciar-me o cabelo?
Ou seria apenas o vento?
Ele apertou-me nos braços durante muito tempo, ali na praia.
Abraçou-me até as minhas lágrimas secarem e eu parar de tremer.
Outra novidade: era a primeira vez que um cliente me abraçava – e a
primeira vez que eu o permitia.
E embora ainda estivesse zangada com ele, não me importei. Jack
parecia ter jeito para isto.
Desistir.
Era o fim desta missão. E, muito provavelmente, também o fim da
minha carreira. Mas não havia volta a dar.
O amor deixa uma pessoa confusa. Turva-nos o discernimento. O
amor faz-nos descarrilar com o desejo.
Pelo menos, é o que dizem.
Nada disso me acontecera com Robby… mas – e era algo que só
agora me ocorria – talvez com ele não fosse amor? Porque aquilo que
estava agora a acontecer com Jack Stapleton, o que quer que fosse, era
muito mais desestabilizador.
Não compreendia, mas uma coisa era evidente: estes sentimentos
eram complexos o bastante para tornar tudo o resto muito simples.
Tinha de sair daqui.
Levantei-me da cama de rede e comecei a dirigir-me para a casa de
vigilância pela estrada de gravilha. A minha intenção era ir até lá, ligar a
Glenn e desistir. Simples. Mas ia apenas a meio caminho do portão
quando ouvi um som inconfundível. O estrondo de um tiro de espingarda.
Estaquei de imediato. Virei-me.
Outro tiro.
Vinha do outro lado do celeiro.
Corri nessa direção, saltei a cerca e, ao fazê-lo, ouvi ainda mais um
tiro.
O que se passava? Quem é que estava a disparar? Teria a
perseguidora criadora de corgis conseguido encontrar-nos? Perdido a
cabeça? Seguido Jack até uma ravina qualquer no meio de duzentos
hectares de nada? Enquanto corria através do campo, a tropeçar em
formigueiros e silvas, formulei listas mentais de possibilidades do que
poderia encontrar – e todo um conjunto de planos de contingência para
como lidar com cada uma delas.
Porquê, mas porque é que Glenn não me autorizara a trazer uma arma
de fogo? «Não vais precisar», garantira ele.
Agora era tarde de mais.
O que quer que encontrasse naquela ravina, teria de pensar depressa e
encontrar a melhor forma de reagir.
Rezei por isso.
Mas o que encontrei não foi uma criadora de corgis louca. Nem um
Jack Stapleton ensanguentado.
Era o simpático e bondoso Doc Stapleton, o patriarca residente. De
espingarda em punho. A disparar contra garrafas.
Quando cheguei ao cimo da ravina e o vi, estava já suficientemente
perto para ele me ouvir. Doc virou a cabeça quando comecei a descer.
Abrandei o passo, parei e dobrei-me para a frente, com as mãos nos
joelhos, ofegante, à espera que os meus pulmões parassem de arder.
Quando por fim levantei a cabeça, ele olhava para mim como se não
conseguisse perceber o que eu estava ali a fazer.
– Ouvi tiros – expliquei, arquejante. – Pensei… – Depois mudei de
justificação. – Assustou-me.
Doc fez um som de desprezo com os lábios, acrescentando:
– Menina da cidade.
Tudo bem. Podíamos ficar-nos por aí.
Endireitei-me, ainda com a respiração acelerada, e aproximei-me
mais. Em cima de pedras, alinhadas contra uma curva da ravina, estavam
garrafas de vidro – talvez umas vinte. Verdes, castanhas, transparentes.
Por baixo das pedras, no solo, havia um autêntico lago de estilhaços de
vidro.
– Os tiros – continuou Doc, enquanto eu registava o que via – têm um
significado muito diferente aqui no campo.
Achava ele. Mas acenei com a cabeça.
– Tiro ao alvo.
Doc estendeu-me a arma.
– Quer experimentar?
Olhei para a espingarda. A resposta era não, claro. Não, não ia pôr-me
aos tiros a garrafas quando há minutos me preparava para desistir deste
trabalho. Não, não queria passar nem mais um minuto do que o
estritamente necessário neste rancho de malucos. Nem arruinar o meu
disfarce ao exibir as minhas capacidades de atiradora.
Não. Pura e simplesmente, não.
No entanto, precisava de alguns minutos para recuperar o fôlego. E
talvez me soubesse bem dar um tiro em alguma coisa neste momento.
Foi então que Doc disse:
– Não precisa de acertar em nada.
Pelo seu tom de voz, era evidente que achava que a minha hesitação
se devia ao facto de não saber atirar. Ainda estava a tentar resistir ao
desafio quando ele acrescentou:
– De qualquer maneira, esta espingarda é um pouco difícil de
manobrar por senhoras.
Quer dizer, por favor.
Podia perder mais cinco minutos, certo?
Estendi as mãos para a espingarda e deixei-o passá-la para mim.
Depois, deixei-o dar-me uma lição. Não lhe menti, exatamente. Mantive
um silêncio afável enquanto ele fazia uma introdução muito básica da
arma que eu segurava.
– Isto é a coronha – explicou ele –, e isto é o cano. Aqui é o gatilho.
Puxa-se aqui esta alavanca para recarregar entre disparos. – Depois
apontou para o buraco na ponta do cano. – As balas saem por aqui. Tem
de ter cuidado e estar sempre a apontar para o chão até ao momento de
disparar.
As balas saem por aqui? A vontade de lhe mostrar subiu por mim
acima como água a encher um copo.
– Atire contra aquele grupinho ali – indicou Doc, gesticulando na
direção de uma fila de garrafas de cerveja. – Se acertar em alguma, dou-
lhe uma moeda.
Uau! Havia algo de muito inspirador em me sentir tão subestimada.
Nesse momento, decidi fazer mais do que acertar nas garrafas. Ia atingi-
las com estilo. Depressa e com facilidade. À patrão. E mais, com a arma
na anca.
– Muito bem, menina – disse Doc. – Mostre-me o seu melhor.
O meu melhor?
Muito bem.
Soltei a segurança, posicionei-me numa postura confortável, encostei
a coronha ao osso da anca e puxei o gatilho com um BUUUM!
A espingarda tinha um coice de respeito, mas a primeira garrafa
desapareceu numa nuvem de poeira. Não parei para apreciar. Mal
pressionei o gatilho, puxei a alavanca com um ka-chunk satisfatório e
disparei de novo. Outro BUUUM! E outra garrafa feita em pó. Depois
outra, e outra, e mais outra. BUUUM – ka-chunk, BUUUM – ka-chunk,
BUUUM! De um lado ao outro da fila, as garrafas explodiram em rápida
sucessão.
Acabou tudo mal tinha começado.
Depois virei-me para Doc e puxei a alavanca uma última vez – ka-
chunk. Como uma dama. Acionei a segurança, desencostei a espingarda
da anca, olhei para o rosto estupefacto de Doc e disse:
– Foi divertido.
Acabara de revelar demasiado sobre mim própria e já devia estar a
meio caminho de Houston. Mas valera a pena.
Foi então que vi alguém no cimo da ravina.
Era Jack. A observar-nos. E pela expressão de admiração atrás dos
óculos tortos, era evidente que assistira a tudo. Levou os dedos à testa,
numa pequena saudação de respeito, à qual respondi com um ligeiro
aceno de cabeça.
Estava na altura de me pôr a andar.
Dezassete
A primeira coisa que vi quando entrei na casa que servia de base de
operações foi Robby e Taylor – com as mãos enfiadas nos bolsos de trás
um do outro.
Antes que essa imagem pudesse ficar demasiado gravada na minha
memória, tossi.
Eles separaram-se abruptamente ao ouvir-me, mas… era tarde de
mais. Por mais que pestanejasse, já não consegui apagar aquela imagem.
– Onde está o Glenn? – perguntei.
– Na cidade – respondeu Taylor, enquanto Robby perguntava ao
mesmo tempo:
– Onde está o cliente?
– Preciso de falar com o Glenn – disse.
Doghouse, que estava sentado atrás de uma secretária do outro lado
da sala, pegou no auscultador de um telefone fixo e estendeu-mo.
Aproximei-me, marquei o número de Glenn e preparei-me mentalmente
para me despedir – ali mesmo, em frente dos meus arqui-inimigos –,
ignorando todas as questões na minha cabeça. Glenn gritaria comigo?
Robby e Taylor ficariam contentes por me ver falhar? Estaria a
abandonar todas as possibilidades de conseguir o lugar em Londres?
Enquanto esperava, o meu corpo estava tenso como um arame esticado.
Mas a chamada para Glenn foi parar ao gravador de mensagens.
– Por acaso, ainda bem que aqui estás – disse Robby, depois de eu
desligar. – Tivemos alguma atividade na propriedade Stapleton.
Abanei a cabeça.
– Os tiros? Era só o pai dele a disparar contra garrafas na ravina.
– Não – respondeu Robby. – Na casa dele na cidade. – Olhou para os
monitores. – Taylor, mostra-lhe as imagens – pediu. Muito profissional.
Como um mentiroso.
Porém, o que ela me mostrou nos monitores fez-me aproximar mais
um passo. E outro.
– Mas que raio?… – disse.
– Pois.
Eram imagens das câmaras em torno da casa de Jack em Houston.
Todas as janelas do piso térreo tinham sido pintadas com tinta em spray,
exibindo agora corações cor-de-rosa e o nome «Jack» repetidamente.
Estudei várias imagens, de ângulos diferentes.
– Todas as janelas do piso de baixo, não é?
Robby acenou afirmativamente.
– Foi a Senhora dos Corgis? Sabemos?
– Temos noventa e nove por cento de certeza de que foi ela, sim –
afirmou Robby.
Taylor mudou as imagens, mostrando agora um vídeo anterior, de
uma mulher em flagrante delito.
– É ela? Conseguimos uma identificação facial?
Robby abanou a cabeça.
– Não, mas deixou presentes.
– Presentes?
– Sim. No alpendre – esclareceu Robby. E acrescentou: – Em sacos
de oferta.
– O quê?
Robby consultou as mensagens no telemóvel.
– Segundo a Kelly, uma camisola de lã tricotada à mão com uma
imagem admiravelmente realista da cara do Stapleton na parte da frente,
um álbum de instantâneos da nova ninhada de cachorrinhos da mulher, e
uma série de nus.
– Uma série de nus? – perguntei. – Nus de quem? Do cliente?
– Nus da Senhora dos Corgis.
Céus.
– Ela deixou também um bilhete manuscrito a dar as boas-vindas ao
Jack a Houston… e a recordar-lhe que o relógio biológico dela continua a
trabalhar e que preferia mesmo que ele a fecundasse esta primavera, se
for conveniente para o calendário dele.
Robby estendeu-me um tablet para eu ver as fotografias enviadas por
Kelly.
– Então – disse, pensando em voz alta –, isto significa que estamos
agora num nível de ameaça laranja?
– Tendo em conta os cachorrinhos e corações, acho que continuamos
no amarelo.
– Os nus são um pouco ameaçadores.
– Bem visto.
Taylor interveio.
– Mas não há ameaças. Pelo menos da parte dela.
– Exceto… – ponderei qual poderia ser a expressão indicada –
fecundação à força?
– Essa parte é preocupante – concordou Robby.
– E o facto de ela agora saber que o Jack se encontra em Houston –
acrescentou Taylor.
– E qual é a morada dele – recordei-lhes.
Psicanalisámos a Senhora dos Corgis durante algum tempo, para
tentar avaliar que perigo ela colocava, e ajustámos os protocolos na casa
de Houston. Kelly já participara o sucedido à Polícia e iniciara o processo
de obter uma ordem de afastamento. Teríamos de trocar também o Range
Rover por uma viatura de outra marca e cor.
Quando saí da base de operações, a noite caía.
Ainda nem chegara ao portão dos Stapletons quando Robby gritou,
atrás de mim:
– Eh! – chamou. – Tens o Glenn em linha.
Tinha-me esquecido dele. Mas agora era tarde. Connie já devia ter
acordado da sua sesta e tinha de comer qualquer coisa antes de tomar os
medicamentos.
– Sabes que mais? – disse. – Eu ligo-lhe depois.
E foi assim que, sem sequer me aperceber, decidi ficar.
Oiçam, eu sei que permiti que a confusão se instalasse. Mas não sabia
como impedir que isso acontecesse. E certo dia, perto do final de uma
corrida matinal que nos levou até ao rio e de volta, Jack disse-me – a
sério, enquanto corríamos:
– Descobri a tua canção.
– Qual canção? – perguntei.
– A que andas sempre a trautear.
Pegou no telemóvel, ainda a correr, e procurou-a.
– Como é que a descobriste? – perguntei.
– Gravei-te às escondidas – explicou.
– Isso não é nada sinistro.
– O que interessa é que resolvi o mistério – Jack fez por ignorar o
comentário. – Não precisas de agradecer.
Estávamos numa zona a direito, nos últimos quatrocentos metros, a
regressar a casa pelo caminho de cascalho. Jack ergueu o telemóvel mais
ou menos na minha direção enquanto corria ao meu lado. Porém, assim
que a canção começou a tocar, abrandei e parei.
Aquela canção? Era aquilo que estava sempre a trautear? Eu
conhecia-a.
Jack parou ao meu lado enquanto a música continuava a tocar.
– Reconheces? – perguntou passados uns momentos, ainda um pouco
ofegante.
– Sim – respondi, sem desenvolver a resposta.
Era uma canção antiga, intitulada «Dream a Little Dream of Me».
Quando a parte instrumental chegou ao fim, cantei o primeiro verso:
– «Stars shining bright above you»…
Quando era pequena, a minha mãe estava sempre a cantar aquilo –
enquanto lavava a louça, no carro, quando me aconchegava na cama.
– Então, qual é a história? – indagou Jack.
– É só uma canção que me é familiar – respondi.
– Como é que a conheces?
– A minha mãe costumava cantá-la constantemente quando eu era
pequena. Mas há anos que não a ouvia.
– Exceto todos os dias, enquanto a trauteias.
Não discuti.
Quando a canção acabou, Jack guardou o telemóvel. De súbito, o
silêncio parecia ensurdecedor.
– Acho que ela só cantava essa canção quando estava contente –
observei.
Jack acenou com a cabeça, sem falar.
– Para dizer a verdade, não me lembro de a ouvir cantá-la… nem uma
vez… depois de o meu pai nos deixar.
Jack acenou de novo; e ao sentir a ternura na forma como olhava para
mim, senti também uma dor no peito – penetrante, como quando temos
as mãos geladas e as enfiamos dentro de água quente. Uma dor
lancinante que se espalhou por trás das minhas costelas e subiu até à
garganta.
E suponho que a única maneira de essa dor transbordar era sob a
forma de lágrimas.
Senti-as a arder nos olhos e fiquei muito quieta, como se Jack pudesse
não reparar caso não me mexesse. Mas claro que ele reparou. Afinal,
estava a meio metro e a olhar diretamente para mim.
– Conta-me – pediu, em voz suave.
Continuei calada e imóvel.
– Podes falar comigo – insistiu. – Não faz mal.
«Não faz mal.» Não sei que magia ele colocou naquelas três palavras
mas, de alguma forma, acreditei. Tudo o que eu alguma vez dissera a
mim própria sobre ser profissional e ter as defesas armadas e estabelecer
limites claros, simplesmente… desapareceu no vento. Culpo o bom
tempo. E as ervas altas. E a brisa suave e constante sobre o pasto. Cedi.
– O meu pai deixou-nos quando eu tinha sete anos – comecei, com a
voz a tremer –, e a minha mãe começou a namorar com um tipo chamado
Travis pouco tempo depois. E ele… – Como havia de dizer isto? – Não
era o tipo mais simpático do mundo. – Respirei fundo. – Gritava muito
com ela. Maltratava-a, chamava-lhe feia. Bebia muito, todas as noites…
e ela começou a beber também.
Em silêncio, sem nunca tirar os olhos de mim, Jack pegou numa das
minhas mãos e envolveu-a nas suas.
– Na noite do meu oitavo aniversário – disse-lhe, com um suspiro
trémulo –, ele bateu-lhe.
Jack não afastou o olhar.
– As palavras são tão pequenas, quando as proferimos. Algumas
sílabas breves e acabou-se. Mas, para mim, acho que nunca terminou. –
Baixei a cabeça e mais lágrimas saltaram-me dos olhos. – Nessa noite,
ela estava a proteger-me. Era suposto sairmos para ir comer piza e bolo,
por eu fazer anos, mas o Travis decidiu à última hora que não queria sair.
Fiquei tão ultrajada com a injustiça que bati com a porta do quarto. Ele
veio atrás de mim. Nunca me esquecerei do som dos pés dele a bater no
chão. Mas a minha mãe bloqueou-o. Pôs-se em frente da porta e não se
mexeu enquanto ele não começou a agredi-la. Eu escondi-me no closet,
enrolada numa bola, mas conseguia ouvir tudo. O mais assustador era
como eram silenciosos os murros que ele desferia. Por outro lado, os
gritos da minha mãe ouviam-se bem. E quanto ela bateu contra a porta. E
quando caiu no chão, também.
»Fiquei acordada a noite inteira, encolhida, a fazer-me o mais
pequena que conseguia dentro do closet, a ouvir, alerta, e a tentar decifrar
se a minha mãe sobrevivera. Não preguei olho. Quando amanheceu, ela
veio à minha procura… e tinha o lábio aberto e um dente lascado. Assim
que vi a cara dela, só quis tirar-nos a ambas dali. Todos os átomos no
meu corpo queriam escapar. Mas, quando me tentei levantar, ela abanou a
cabeça. Entrou para o closet comigo e abraçou-me. «Vamos embora
daqui, não vamos?», perguntei. Mas ela abanou a cabeça. «Porquê?»,
quis saber. «Porque é que não vamos?» «Porque ele não quer», respondeu
ela.
»Depois, apertou-me nos braços e embalou-me para trás e para a
frente, de uma maneira que, até aí, sempre me fizera sentir segura. Mas já
não. Para ser franca, acho que nunca mais me senti verdadeiramente
segura desde esse dia. Mas adivinha o que ainda faço quando estou
assustada?
– O quê? – perguntou Jack.
– Durmo no chão do closet.
Jack não tirou os olhos dos meus.
– Lembras-te do alfinete com as missangas? Eu fiz-lhe o alfinete
nesse dia. Não cheguei a ter oportunidade de lho dar. Ao fim da noite,
tinha-o perdido… ou assim acreditei. Depois de a minha mãe morrer…
há relativamente pouco tempo… encontrei-o na caixa de joias dela.
Tinha-o guardado estes anos todos. Voltar a encontrá-lo foi como
recuperar uma pequena parte de mim que se perdera. Tencionava usá-lo
todos os dias, para sempre, antes de o perder na praia. Como uma espécie
de talismã.
– Mas estás bem, mesmo sem ele.
Baixei os olhos.
– Estou? Não sei. Até aceitar esta missão, dormi todas as noites no
closet desde que a minha mãe morreu.
Jack levantou uma parte seca da sua camisola para me limpar a cara
(Voltara a chorar? Outra vez? Que raio se passava comigo?) e disse, em
voz terna:
– Então, dormir no chão do meu quarto é uma melhoria.
Dei-lhe um pequeno empurrão e recomecei a andar. Ele estugou o
passo para me apanhar.
– Enfim – concluí, tentando recompor-me –, é esta a história dessa
canção. Tinha-me esquecido completamente dela.
– Não completamente – corrigiu Jack.
E depois – apesar de não estar ninguém por perto para nos ver –
puxou-me para si num abraço.
Vinte
Começávamos a achar que tínhamos escapado a ser apanhados no
hospital quando apareceu uma fotografia de Jack num site de mexericos.
Passados dez minutos, estava em todo o lado.
Como é óbvio, a foto fora tirada na sala de espera das Urgências. E,
embora à distância e de lado, parecia-se realmente muito com ele. A
Internet, porém, não tinha a certeza. Começaram a aparecer artigos com
títulos como «O que estava o famoso Jack Stapleton a fazer em Katy,
Texas?» e «Stapleton avistado no meio do nada» e «Superestrela de
cinema eleva a reclusão e obscuridade a um novo patamar».
Detetives online entusiastas encontraram fotografias de Jack em
ângulos semelhantes e publicaram-nas lado a lado, analisando cada
pormenor com a precisão de um Oliver Stone. Era mesmo esta a forma
do lóbulo da orelha de Jack Stapleton? Aquele pontinho no pescoço seria
uma sombra ou uma sarda? Não trazia a mesma T-shirt que usava numa
foto tirada pelos paparazzi na noite de Ano Novo dois anos antes?
Era um trabalho impressionante, na realidade. Glenn devia recrutar
algumas destas pessoas.
Por fim, a Internet concluiu que sim: o Destruidor fora avistado num
hospitalzinho qualquer numa minúscula localidade do Texas. A questão
para a qual ninguém parecia ter resposta era porquê.
Tudo isto para explicar que o facto de Jack ter sido descoberto elevara
finalmente o nível de alerta para laranja.
Talvez um laranja claro, meio diluído, mas, ainda assim, cor de
laranja.
A equipa teve de avaliar uma maior quantidade de conversas online e
acompanhar uma nova explosão de «fãs» que pareciam ter potencial de
causar problemas. Eu comecei a vestir leggings e a calçar ténis todos os
dias para dar «uma corridinha» da parte da tarde, altura em que ia à base
de operações no exterior da propriedade receber informações atualizadas.
Era ao fundo da estrada, mas parecia um mundo completamente
diferente. Não gostava de lá ir. E ainda passei a gostar menos no dia em
que, quando entrei, dei de caras com Glenn a meio de uma discussão.
Doghouse também lá estava, além de Taylor e Robby.
– Não quero saber dos teus sentimentos. Nesta sala não há lugar para
sentimentos! – estava Glenn a gritar, às palmadas na mesa para sublinhar
as palavras.
– O que se passa? – perguntei, fechando a porta atrás de mim.
Glenn, com ar irritado, apontou para mim.
– Isto também é culpa tua.
– Minha? Acabei de chegar.
– Vinte e cinco anos sem que nenhum dos meus agentes se
envolvesse com colegas. Vinte e cinco anos! Depois, tu e aqui o
«Romeu» quebraram essa regra e agora é o salve-se quem puder.
Olhei para Robby, de cabeça baixa. Depois para Taylor, que estava
virada para a frente, com os olhos vermelhos e o rosto inchado.
– O que aconteceu? – perguntei.
– Sabias que estes dois andavam enrolados? – perguntou Glenn.
Entreabri as narinas.
– Sim.
– Bom, ele deu-lhe com os pés – anunciou Glenn, como se isso fosse
culpa minha. – E ela não consegue trabalhar… nem ela nem ninguém…
porque não para de chorar.
Terei sentido um ligeiro frémito de triunfo? Sem comentários.
– Isto significa que fico com o cargo de Londres? – perguntei. – Já
que ele é tão problemático?
Mas Glenn não estava com disposição.
– Tu também tens as tuas desvantagens.
Não podia negá-lo. Virei-me para Robby.
– Com que então, deste-lhe com os pés?
– É mesmo preciso perguntar? – interrompeu Glenn. – Olha para ela!
Taylor tinha agora novas lágrimas no rosto.
– Queres uma lição sobre como lidar com uma coisa dessas? –
perguntou-lhe Glenn. – É assim! – indicou, apontando para mim. – A
Brooks é o modelo perfeito! Este tipo partiu-lhe o coração na noite
depois do funeral da mãe dela, e no dia seguinte ela estava de volta ao
trabalho como uma super-heroína.
Taylor chorava agora abertamente.
– Ufa! – soltou Glenn, virando-se com ar desdenhoso. – Sai daqui e
vê lá se te recompões. Vai apanhar ar. Amadi, dá-lhe água.
Taylor saiu, com o rabo entre as pernas, e Amadi seguiu-a. Glenn
virou-se então para Robby.
– Explica-me lá o que é que estás a tentar alcançar com essa tua
atitude. Queres levar-me à falência? Há alguma mulher nesta empresa
que não tenhas levado para a cama?
Kelly levantou a mão ao fundo da sala, com ar animado.
– A mim!
– E espero que assim continue! – resmungou Glenn.
– Sim – acrescentou Doghouse. – Esperamos todos.
– Sim, senhores – concordou Kelly, com uma continência.
Mas Glenn queria respostas de Robby.
– O que é que estás a tentar fazer? – insistiu. – O que é que tinhas na
cabeça?
– Foi um erro – justificou-se Robby.
– Podes ter a certeza disso.
– Não – disse Robby. – O meu erro foi ter acabado com a Hannah.
– Oh, por amor de Deus! – exclamei. Dei uma palmada na testa e
dirigi-me à porta. – A sério?
Robby deteve-me.
– Não podes ir ainda.
Olhei de lado para Glenn.
– Vais mesmo obrigar-me a ficar aqui a ouvir isto?
Glenn inclinou a cabeça.
– Parece-me que ainda temos trabalho a fazer. Não sei se te lembras.
– O que queres que faça? – perguntou Robby a Glenn, num tom que
dava a entender que era ele a maior vítima. – Passo o dia a estudar os
monitores. – Olhou para mim. – Sabes que pusemos câmaras em todo o
lado, certo? E tenho de assistir a tudo o que vocês os dois fazem fora de
casa. Quando ele te leva às cavalitas. Quando te ajuda no jardim. Quando
te mostra truques a cavalo ou te ensina a fazer o pino, ou olha para ti
quando tu não te apercebes. Eu vejo tudo.
Esperem. Jack olhava para mim sem eu me aperceber?
Robby continuou, dirigindo-se agora a Glenn:
– Fizeste isto para me torturar.
Glenn nem sequer ergueu as sobrancelhas.
– Claro que sim.
– Bom, está a resultar. Estou a dar em doido.
– Ótimo. É merecido.
– Isto é pessoal?
– É a vida – retorquiu Glenn. – E, se fores esperto, usarás isto para te
tornares mais forte.
Olhei para Robby de testa franzida.
– Isto é uma cena de homem das cavernas? Uma daquelas reações
químicas, impulsivas, «se não é minha não pode ser de mais ninguém»?
Estás a mijar em mim para marcar território?
Kelly ainda estava a ouvir.
– Por favor, não o deixes mijar em cima de ti.
Olhei para ela.
– Metaforicamente.
Robby abanou a cabeça.
– Desculpa, está bem? Nunca te devia ter deixado partir.
– Deixar-me partir? – repeti. – Não me deixaste partir. Abandonaste-
me.
– Quero voltar atrás.
– Não podes.
– Porquê?
– Porque agora sei quem realmente és.
Robby fez beicinho. Depois semicerrou os olhos.
– Já percebi o que se passa. Achas que ele gosta de ti.
Fiquei calada.
– Bem vos vejo aos dois – prosseguiu Robby. – Ele deu-te a volta.
Mas não pode ser verdade. És demasiado esperta para cair nisso. Não
podes mesmo acreditar que um ator mundialmente famoso, que pode ter
qualquer mulher, te escolheria a ti. Diz-me que não caíste nessa esparela.
Já viste a Kennedy Monroe? Ele anda a brincar contigo! Está entediado!
Nem sequer é assim tão bom ator. Acorda! Preferes uma relação falsa a
estar comigo?
Eu não sabia como responder à maior parte daquela tirada. Mas o
último ponto era fácil de rebater.
– Errado – respondi. – Prefiro qualquer coisa a estar contigo.
– Ele não gosta mesmo de ti – asseverou-me Robby.
– Nunca disse que gostava.
– Mas pensaste.
Tinha de dar razão a Robby. Desta vez, ele tivera um raro momento
de perspicácia.
Glenn estava farto daquela conversa.
– Chama a Taylor – pediu a Kelly. – Vamos lá ter a reunião e
despachar isto.
Robby não tirou os olhos de mim.
– No outro dia, perguntaste-me porque estava a ser tão estúpido.
Uau, isso fora há… cem anos?
– Quando consideraste que eu não era suficientemente bonita para
esta missão? – questionei. – Acho que sim.
– Não queres saber a minha resposta?
Parei e virei-me para ele.
– Já a sei – atirei-lhe. – Estavas a ser estúpido porque és estúpido.
Tão simples como isso.
Mas Robby pegou-me no braço.
– Era porque queria voltar para ti.
Aquilo chamou-me a atenção.
– Porque querias?…
– Sim, já nessa altura.
Tentei ordenar logicamente os acontecimentos.
– Querias voltar para mim… e por isso chamaste-me feia?
– Entrei em pânico.
– Ah, é pânico que lhe chamas?
– Senti a tua falta em Madrid.
– Sentiste a minha falta em Madrid… enquanto dormias com a minha
melhor amiga?
– Queria voltar para ti desde que regressámos. Mas sentia-me mal por
causa da Taylor.
– Espera! Estás a tentar parecer boa pessoa?
– Estou só a dizer que é… complicado.
– Não. É muito simples.
Robby pareceu suster a respiração por um segundo.
– Por causa da Taylor? – perguntou com maus modos, como se eu
estivesse a exagerar. – Foi só uma cena em trabalho.
– Não, não é por causa da Taylor – respondi. – É porque me deste
com os pés. – E, para que não restassem dúvidas, acrescentei: – Na noite
a seguir ao funeral da minha mãe.
Robby soltou um som estrangulado, como se já tivéssemos tido esta
discussão um milhão de vezes.
– Quando é que vais deixar de estar fixada nesse pormenor?
– Nunca – respondi. – É por isso que nunca poderemos voltar a estar
juntos. A cena com a Taylor foi só o prego derradeiro num caixão que já
estava bastante bem fechado.
– Estávamos só entediados – explicou Robby em tom suplicante,
como se eu me recusasse a ser razoável.
– E essa também é a versão da Taylor?
– Juro, a única pessoa que eu queria na altura… e que quero agora…
és tu.
– Estou bastante certa de que nunca gostámos muito um do outro, de
qualquer maneira.
Nem queria acreditar que era obrigada a ter aquela conversa. Sim,
sentia-me só. E sim, ver Robby e Taylor a beijarem-se ferira-me de
formas que nunca julgara possível. Mas eu não era patética.
– Não vamos voltar um para o outro, Robby.
– Porque não?
– Para mim, és uma carta fora do baralho.
– Preferes ficar sozinha para sempre do que deixar-me compensar-te
pelo que fiz?
– Não sei se essas serão as minhas únicas opções.
– Só quero uma oportunidade de reparar as coisas.
– Mas não há maneira de isso acontecer. E, mesmo que houvesse, tu
não saberias como.
STAPLETON???
Esse sonho foi o último que Jack teve sobre a ponte gelada.
Ainda sonhava com o irmão de vez em quando – quase sempre que
levantava os olhos no meio de uma multidão e via Drew a sorrir, ou a
piscar-lhe o olho, ou a fazer-lhe um aceno de cabeça encorajador. Não
que acreditasse propriamente nesses sonhos – não achava que fossem
mesmo janelas para o Além, mas sim a sua imaginação a contar histórias.
Porém, eram histórias boas. Reconfortantes. E estava grato por elas.
Eram as histórias que ele precisava de ouvir.
Se ficou curado do medo de pontes? Depende de como definirmos
«curado». Ainda não as adora. Mas já consegue atravessá-las. Fica com
uma covinha de concentração na face e aperta mais as mãos no volante,
mas atravessa sempre. Sem vomitar a seguir. E decidimos contar isso
como uma vitória.
Trinta e três
Depois da noite em que eu… ah… levei um tiro na cabeça, Glenn pôs
Taylor a substituir-me nas primeiras duas semanas da missão na Coreia
para que a minha ferida de um milhão de dólares sarasse completamente.
Ofereceu-se para transferir a totalidade do meu trabalho para ela, mas
recusei.
– Não quero a Taylor a ficar com mais nada meu – declarei.
– Compreensível – concordou Glenn.
Jack aguardou um período respeitável para deixar sarar a minha
ferida emocionalmente assustadora, mas nada letal e nem sequer muito
dolorosa… e depois convenceu-me a tentar novamente o nosso encontro.
– Não podemos repetir?
– O quê?
– O encontro.
– Aquele encontro? – perguntei. – O que quase acabou comigo morta?
Jack confirmou com um aceno.
– Não, obrigada – respondi. – Não te incomodes.
– Preciso de tentar outra vez – implorou Jack. – E tu também. –
Inclinou-se para mim, recorreu a todo o seu charme e acrescentou: –
Prometo que não te arrependerás.
Se eu queria percorrer outra vez o caminho de acesso à casa de Jack
com uns sapatos ridículos e voltar a tocar à campainha, mesmo com a
certeza de que WilburOdeiaTe321 estava atrás das grades?
Nem pensar.
– Podemos fazer outra coisa qualquer – sugeri. – Minigolfe. Bowling.
Karaoke.
Mas Jack abanou a cabeça.
– Eu tinha atividades muito específicas planeadas para fazer contigo
naquela altura, e preciso mesmo de as levar até ao fim.
– Referes-te ao momento em que eu apareci à tua porta, toda nervosa,
e tu me rejeitaste sem rodeios?
– Note-se, para que fique registado, que o fiz para te salvar a vida.
– Mas levei um tiro na mesma.
– De raspão – corrigiu Jack.
Pensei nisso. Conseguiria tentar de novo? Estudei-o.
– Vais tentar recriar aquele encontro?
– Sim.
– Porquê?
– Porque – explicou Jack – preciso de uma versão daquela história
que não inclua o Wilbur.
Eu conseguia compreender.
– Está bem – cedi.
– Esta noite – disse Jack.
– Pode ser.
– E traz aquele vestido vermelho.
Suspirei.
– O que ficou todo sujo de sangue?
– Já foi lavado, certo?
– Quer dizer… sim.
– Então não há problema.
– Mas os sapatos foram para o lixo – avisei.
– Não quero saber dos sapatos. Até podes vir descalça, se quiseres.
Abanei a cabeça. Depois apontei para Jack e declarei:
– Vou usar as minhas botas de cowboy. – E quando ele acenou em
concordância, acrescentei: – Nunca mais vou usar sapatos estúpidos
como aqueles.
*
Peço desculpa a todas as pessoas que não são eu… mas a verdade é
que, por melhor que Jack seja a beijar no ecrã, é mil vezes melhor na vida
real.
Quer dizer, ele faz com que seja fácil. Uma pessoa não pensa de mais.
Na verdade, nem sequer pensa. Deixa-se perder e o corpo assume o
comando e, quando damos por isso, temos os braços à volta do pescoço
dele e estamos coladas àqueles abdominais duros e a derreter nos braços
dele e a dissolvermo-nos num momento tão entorpecedor que é como se
ele tivesse sequestrado todos os nossos sentidos… Da melhor maneira
possível.
Ele beija como se estivesse destinado. Como se sempre assim tivesse
acontecido. Como se não existisse outra versão imaginável da história.
E uma pessoa retribui o beijo da mesma maneira. Sente todo o corpo
como fogo de artifício. E a alma também. É como se estivesse a viver a
sua vida e, ao mesmo tempo, a pairar acima dela. Como se estivesse na
Terra e no Paraíso. Como se não fosse mais do que coração a bater e
sangue a correr depressa nas veias e calor e suavidade – mas fosse
também o vento e as nuvens. Como se fosse tudo, em simultâneo.
É como se amar alguém – amar mesmo, corajosa e plenamente –
fosse a porta de entrada para algo divino.
*
E mais tarde – muitas horas mais tarde – depois de ele me ter levado
para a cama, e das botas encarnadas estarem esquecidas no meio do chão,
e estarmos ambos exaustos e entrelaçados e meio a dormir, e de o ter
ajudado a torcer os lençóis como ele costuma fazer, Jack, com toda a
naturalidade, bocejou e espreguiçou aquele tronco famoso, perguntando:
– Será que ainda há alguém a controlar as câmaras de segurança?
– Quais câmaras?
– A do vestíbulo.
Claro que sim. Robby, que era o agente principal responsável por
Jack.
Soergui-me nos cotovelos para decifrar a expressão dele.
– Beijaste-me no vestíbulo daquela maneira para o Robby ver?
– Beijei-te assim porque estava desesperado por fazer precisamente
isso há semanas – defendeu-se Jack, passando o braço à minha volta e
puxando-me para si. A seguir, acrescentou:
– O facto de o nosso velho amigo Robby estar a ver foi apenas um
bónus.
No fim de contas, será que alguma vez temos a certeza de que somos
merecedores de amor?
Que pergunta.
Não. Claro que não. Nunca podemos ter essa certeza. A vida nunca
nos dá essas respostas.
Mas talvez a pergunta também não seja a melhor. É possível que o
amor não seja um julgamento que se faz, mas um risco que se corre.
Talvez seja algo que escolhemos fazer – uma e outra vez. Por nós. E por
toda a gente.
Porque o amor não é como a fama. Não é algo que os outros nos
concedem. Não é uma coisa que venha do exterior.
O amor é algo que se faz. É algo que geramos.
E é verdade que, no fundo, amar os outros acaba mesmo por ser uma
forma de nos amarmos a nós próprios.
Epílogo
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