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© Skylar Reeves Photography

KATHERINE CENTER nasceu em 1972 em Houston, no Texas, onde ainda hoje vive com o
marido e os filhos. Autora de várias comédias românticas com um toque agridoce, já foi por isso
considerada sucessora de Jane Austen e Nora Ephron, tendo figurado nas tabelas de bestsellers do
New York Times e visto alguns dos seus romances serem adaptados ao pequeno ecrã.
A Guarda-Costas
Katherine Center

Publicado em Portugal por


Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Lisboa
Email: dellisboa@portoeditora.pt

Título original:
The Bodyguard
© 2022, Katherine Center
Publicado por acordo com St. Martin's Publishing Group, em parceria com International Editors
& Yañez'Co. Barcelona

Design da capa: © Olga Grlic


Ilustração da capa: © Katie Smith
Tradução: Elsa T. S. Vieira

1.ª edição em papel: março de 2023

Rua da Restauração, 365


4099-023 Porto
Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-67138-7
Para os meus avós, Herman e Inez Detering.
Deixaram-nos muitas dádivas para continuar a transmitir e
estou grata por todas elas – em especial, ultimamente: pelos
vossos abraços, o vosso carinho e simpatia, e todas as
memórias de uma infância passada à solta no vosso rancho
no Texas.
Sinto a falta de ambos – mas da melhor maneira, com toda a
gratidão.
Um
O último desejo da minha mãe foi que eu tirasse férias.
«Vá lá», dissera, prendendo-me uma madeixa de cabelo atrás da
orelha. «Marca uma viagem e vai. Como as pessoas normais.»
Eu não tirava férias há oito anos.
Mas respondi-lhe que sim, que é o que se faz quando uma mãe doente
nos pede alguma coisa. Depois acrescentei, como se estivesse a regatear:
«Umas férias.»
Claro que, na altura, não sabia que seria o seu último desejo. Pensei
que estávamos apenas a fazer conversa de hospital a meio da noite.
Então, de súbito, dei por mim e era a noite a seguir ao funeral dela.
Não conseguia dormir, às voltas na cama, e aquele momento não me saía
da cabeça. Como a minha mãe me fitara nos olhos e me apertara a mão
para garantir que cumpria – como se as férias fossem importantes.
E agora eram três da manhã. As roupas que usara no funeral tinham
sido atiradas para cima de uma cadeira. Desde a meia-noite que tentava
adormecer.
– Pronto, está bem – resmunguei em voz alta, na cama, para o vazio.
Depois rastejei por cima da cama até encontrar o meu portátil no chão
e, à luz azulada do ecrã, de olhos ainda meio fechados, pesquisei
rapidamente: «BILHETE DE AVIãO MAIS BARATO PARA QUALQUER SíTIO», e
encontrei um site com uma lista de destinos, com voos diretos por setenta
e seis dólares. Rodei a roda do rato como se estivesse a jogar roleta,
aterrei aleatoriamente em Toledo, Ohio, e cliquei em COMPRAR.
Dois bilhetes para Toledo. Não reembolsáveis, viria a descobrir. Um
pacote especial qualquer para pombinhos no Dia dos Namorados.
Feito. Promessa cumprida.
O processo todo não demorou mais do que um minuto.
Agora, tudo o que tinha de fazer era forçar-me a ir.

Mesmo assim, não conseguia dormir.


Às cinco da manhã, com o céu a começar a clarear, desisti; arranquei
lençóis e cobertores da cama, dirigi-me para o pequeno closet, enrosquei-
me de lado num ninho improvisado no chão e adormeci, por fim, no
espaço escuro e sem janelas.
Quando acordei, eram quatro da tarde.
Levantei-me de um salto, em pânico, e corri de um lado para o outro
do quarto, atrapalhada – abotoei mal a camisa e bati com a canela na
esquina do rodapé –, como se estivesse atrasada para o trabalho.
Mas não estava.
O meu patrão, Glenn, dissera-me para não ir trabalhar. Na verdade,
proibira-me de pôr os pés no escritório durante uma semana.
«Nem sonhes em vir cá», avisara. «Fica em casa e faz o teu luto.»
Ficar em casa? Fazer o luto?
Estava fora de questão.
Principalmente porque – agora que comprara aqueles bilhetes para
Toledo – tinha de encontrar o meu namorado, Robby, e obrigá-lo a ir
comigo.
Certo?
Ninguém vai sozinho para Toledo. Muito menos no Dia dos
Namorados.
Naquele momento, isso parecia-me tudo muito urgente.
Se estivesse noutro estado de espírito, podia simplesmente ter
mandado uma mensagem a Robby a pedir-lhe para aparecer depois do
expediente, altura em que o convidaria amavelmente a acompanhar-me,
enquanto jantávamos e bebíamos qualquer coisa. Como uma pessoa boa
da cabeça.
Talvez esse plano tivesse sido melhor. Ou levado a um resultado
melhor.
Porém, naquele momento eu não estava boa da cabeça. Era uma
pessoa que tinha dormido no closet.
Quando cheguei ao escritório, nessa tarde – estava o expediente
prestes a terminar –, tinha o cabelo meio penteado, a camisa parcialmente
enfiada no cós das calças, e ainda trazia no bolso do casaco que levara ao
funeral um programa do mesmo, com a fotografia da formatura do
secundário da minha mãe na frente.
Suponho que é estranho ir trabalhar no dia a seguir ao funeral de uma
mãe. Eu tinha pesquisado, e a licença mais habitual em caso de morte de
familiar era três dias – embora Glenn me tivesse obrigado a tirar cinco.
Outras informações que pesquisara durante a minha noite em claro:
«COMO VENDER A CASA DOS PAIS», «COISAS DIVERTIDAS PARA FAZER EM
TOLEDO» (que resultou numa lista surpreendentemente longa) e «COMO
VENCER A INSóNIA».

Tudo isto para dizer que eu não devia estar ali.


Foi por isso que hesitei à porta do escritório de Glenn. E foi assim
que, inadvertidamente, o ouvi a falar de mim com Robby.
«A Hannah vai literalmente explodir quando lhe disseres», foi a
primeira coisa que ouvi. Era a voz de Robby.
«Podias dizer-lhe tu», sugeriu-lhe Glenn. «Ou talvez queiras repensar
o assunto.»
«Não há nada para repensar.»
E foi o máximo que aguentei. Abri a porta.
– O que é necessário repensar? Quem é que me vai dizer o quê?
Exatamente porque é que eu vou explodir?
Mais tarde, apanharia um vislumbre do meu reflexo no espelho e teria
uma imagem clara e específica do que os dois viram naquele momento,
quando se viraram na minha direção – e digamos apenas que envolve
olhos injetados de sangue, metade do meu colarinho dobrado debaixo da
lapela do casaco e uma dose significativa de maquilhagem esborratada
pelas lágrimas do dia anterior.
Alarmante. Glenn, contudo, não era homem que se deixasse assustar
com facilidade.
– O que é que estás a fazer aqui? – inquiriu. – Sai!
Também não era pessoa de estar com paninhos quentes.
Reivindiquei o meu território à porta com uma pose de poder.
– Preciso de falar com o Robby.
– Podes falar com ele fora do vosso local de trabalho.
Tinha uma certa razão. Eu e Robby praticamente vivíamos juntos.
Quando não estávamos de serviço, claro. Que era a maior parte do tempo.
Mas o que é que Glenn queria que eu fizesse agora? Que fosse
esperar pelo meu namorado no parque de estacionamento?
– Cinco minutos – regateei.
– Não – recusou Glenn. – Vai para casa.
– Preciso de sair de casa – lamentei-me. – Preciso de fazer alguma
coisa.
Mas Glenn não queria saber.
– A tua mãe morreu – lembrou. – Vai para junto da tua família.
– Ela era a minha família – disse, com o cuidado de não deixar tremer
a voz.
– Exato – cortou Glenn, como se eu lhe tivesse dado razão. – Precisas
de fazer o luto.
– Não sei como – disse.
– Ninguém sabe – respondeu Glenn. – Queres um manual de
instruções, é?
Olhei para ele de lado.
– Se tiveres.
– As tuas ordens são: «Desaparece daqui.»
Mas eu abanei a cabeça.
– Sei que pensas que preciso de… – hesitei por um segundo, sem ter
bem a certeza do que ele achava que eu devia fazer – … ficar sentada em
casa a pensar na minha mãe, ou lá o que é… Mas, a sério, eu estou bem.
– Depois acrescentei, e não era propriamente mentira: – Nem sequer
éramos assim tão chegadas.
– Eram chegadas o bastante – disse Glenn. – Fora.
– Deixa-me só… arquivar papéis. Ou qualquer coisa.
– Não.
Quem me dera poder dizer que Glenn – que tinha a estrutura de um
tanque de guerra e a cabeça calva salpicada de sardas, como se alguém as
tivesse polvilhado com um saleiro – era um daqueles patrões que
parecem rabugentos, mas, na realidade, estão a pensar no bem-estar dos
empregados.
Mas, essencialmente, Glenn pensava apenas no seu próprio bem. E,
pelos vistos, decidira que, de momento, eu não estava em condições de
trabalhar. O que era compreensível.
Fora uma época estranha. Eu tinha acabado de chegar de um serviço
no Dubai quando recebi um telefonema das Urgências, a comunicar-me
que a minha mãe desmaiara no meio de uma passadeira.
Quando cheguei ao hospital, descobri que ela não conseguia parar de
vomitar e não sabia em que ano estávamos nem quem era o presidente.
Depois uma médica com batom nos dentes deu-me o diagnóstico: a
minha mãe tinha cirrose em último grau. Lembro-me de estar a tentar
discutir com a médica: «Mas ela não bebe! Já não!»
Nessa noite, fui a casa dela para ir buscar as meias de lã e a sua manta
preferida, e encontrei o esconderijo secreto de vodca. Num frenesim,
despejei as garrafas todas no lava-louças e pus a torneira a correr para
dissipar o cheiro, sempre convencida, enquanto tudo isto, de que o meu
maior desafio seria ajudá-la a dar a volta à sua vida.
Outra vez.
Convencida de que haveria mais tempo, como acontecia sempre.
Mas ela morreu antes que eu tivesse sequer tempo para registar a
possibilidade de a perder.
Foi complicado. Até Glenn, com a inteligência emocional de um
martelo pneumático, compreendia.
No entanto, a última coisa que eu queria fazer era ficar em casa a
pensar nisso.
Ia convencê-lo a deixar-me voltar ao trabalho nem que isso nos
matasse a ambos. E depois persuadiria Robby a vir comigo a Toledo.
E então talvez – talvez – conseguisse dormir.
Numa demonstração de força, como que a desafiar qualquer um deles
a travar-me, entrei no escritório e sentei-me na cadeira vazia em frente da
secretária de Glenn.
– Do que é que estavam a falar? – perguntei, para mudar de assunto. –
Estão a ter uma reunião?
– Estamos a conversar – contrapôs Glenn, como se soubesse que eu
tinha estado a ouvir.
– Tu não tens conversas, chefe – disse eu. – Só reuniões.
Robby, atraente como sempre, com as pestanas pretas a emoldurarem
os olhos azuis, fitou-me como se eu tivesse apresentado um bom
argumento.
Demorei um segundo a apreciá-lo. A minha mãe ficara tão comovida
quando eu os apresentara. «Parece um astronauta», dissera ela, e era
exatamente isso. Ele tinha cabelo curto, conduzia um Porsche vintage e
era estupidamente confiante. De uma forma muito boa e sexy, mesmo
como um astronauta. A minha mãe ficara impressionada comigo por
andar com ele. Para ser franca, eu também.
Robby não era só a pessoa mais fixe com quem eu já me envolvera –
era a mais fixe que alguma vez conhecera.
Mas não era essa a questão aqui. Virei-me de novo para Glenn.
– O que é que estavas exatamente a dizer ao Robby para me dizer?
Glenn suspirou, como quem diz: «Bom, parece que temos mesmo de
fazer isto.» Depois, revelou:
– Ia esperar até tu teres… – mirou-me de cima a baixo – pelo menos
tomado banho, mas… Vamos abrir uma filial em Londres.
Franzi a testa.
– Uma filial em Londres? – perguntei. – E porque é que isso é má
notícia?
Glenn continuou:
– E vamos precisar de alguém para…
Levantei a mão.
– Eu! Eu vou! Eu aceito!
– … montar o escritório lá e pôr as coisas em andamento – concluiu
Glenn. – Durante dois anos.
Desculpem? Londres? Ir para Londres abraçar um projeto desta
magnitude, uma empresa que exigiria uma tal dedicação ao trabalho que
nada mais teria importância durante dois anos inteiros?
Para o diabo com as férias. Contem comigo.
Só de pensar nisso, o alívio percorreu-me em vagas: um projeto
laboral que é capaz de vir a destruir a minha vida privada, com
potencial para me distrair de todos os meus problemas para sempre.
Sim, por favor.
Foi então que reparei que Robby e Glenn me fitavam de forma
estranha.
– O que é? – perguntei, olhando de um para o outro.
– Vai ser um de vocês os dois… – anunciou Glenn, gesticulando entre
mim e Robby.
Claro. Eu era a protegida que Glenn andava a treinar há anos, e
Robby era o craque sexy que ele roubara à concorrência. Não podia
sequer haver outros candidatos.
Ainda assim, eu não estava a ver qual era o problema.
– E isso significa – prosseguiu Glenn –, que quem não for terá de
ficar aqui.
Para terem uma noção de como eu gostava do meu emprego: nem
mesmo a perspetiva de ficar dois anos separada do meu namorado me fez
vacilar. De todo.
O que mostra também como estava desesperada para voltar ao
trabalho.
– Vou anunciar a decisão depois do Ano Novo – concluiu Glenn. – E,
até lá, considerem-se em competição pelo lugar.
Não havia competição alguma. O lugar ia ser meu.
– Está bem – acedi com um encolher de ombros, como quem
questiona a existência de um problema. – Já estivemos em competição
antes. – Olhei para Robby. – Gostamos de competir. E dois anos não é
assim tanto tempo, seja quem for o vencedor. Nós conseguimos fazer
isto, certo?
Se estivesse a prestar mais atenção, talvez tivesse reparado que
Robby não parecia tão entusiasmado como eu. Mas naquele momento
estava demasiado desesperada para pensar noutra pessoa além de mim.
Tinha medo de sentir o pleno impacto da perda da minha mãe. Estava
aterrorizada com a perspetiva de me ver presa em casa sem nada que me
distraísse. O meu único objetivo era escapar – de preferência para um
país distante – o mais depressa possível.
Na próxima semana, Robby e eu tínhamos um serviço em Madrid,
que duraria três semanas, mas eu não sabia se conseguiria esperar até lá.
Primeiro, tinha de sobreviver ao resto dos dias de luto.
– Por aquilo que ouvi – disse, apontando para a porta –, estava à
espera de más notícias.
– As más notícias não são estas – disse Robby, com um olhar para
Glenn.
Olhei também para Glenn.
– Quais são?
Glenn recusou-se a hesitar.
– A má notícia é que te vou tirar do serviço de Madrid.
Em retrospetiva, aparecer no escritório daquela maneira – de olhos
esgazeados e cabelo desgrenhado e desesperada – provavelmente não
ajudou nada. Talvez devesse estar à espera.
Mas não estava.
– Tirar-me de Madrid? – inquiri, certa de que ouvira mal.
Robby olhou fixamente para a janela.
– Sim – confirmou Glenn. E depois acrescentou: – Não estás em
condições.
– Mas… – Eu nem sequer sabia como protestar. Como podia dizer-
lhe: «Mas essa é a única coisa de que tenho estado à espera com algum
entusiasmo»?
Glenn enfiou as mãos nos bolsos. Robby olhou para a janela. Por fim,
perguntei:
– Quem é que vais enviar em meu lugar?
Glenn olhou de relance para Robby. Depois disse:
– Vou mandar a Taylor.
– A… Taylor?
Glenn acenou afirmativamente.
– É a melhor opção que temos – disse ele, como se isso encerrasse o
assunto.
Não encerrou.
– Vais mandar a minha melhor amiga e o meu namorado para fora e
deixar-me sozinha três semanas? Dias depois de a minha mãe ter
morrido?
– Não disseste que não eram muito chegadas?
– E tu não alegaste que éramos chegadas o bastante?
– Ouve, isto é aquilo a que se chama uma decisão de negócios –
reforçou Glenn.
Mas eu abanei a cabeça. Não podia ser.
– Não podes simplesmente pôr-me de castigo em casa e desmantelar
por completo todo o meu sistema de apoio. Essa viagem é minha. São os
meus clientes.
Glenn suspirou.
– Vais para a próxima.
– Quero ir agora.
Glenn encolheu os ombros.
– E eu quero ganhar a lotaria. Mas não vai acontecer.
O meu patrão era o tipo de pessoa que acreditava que a adversidade
só nos torna mais fortes.
Fiz uma pausa para respirar. Depois, disse:
– Se a Taylor vai na minha viagem, para onde é que eu vou?
– A lado nenhum – disse Glenn.
– A lado nenhum?
Ele confirmou com um aceno.
– Precisas de descansar. Além do mais, está tudo preenchido. – Olhou
para o ecrã do computador. – Jacarta está cheio. A Colômbia também. O
Bahrein. Aqueles executivos do petróleo nas Filipinas. Tudo tratado.
– Mas… o que é que eu vou fazer?
Glenn encolheu os ombros.
– Dar uma ajuda no escritório?
– Estou a falar a sério.
Mas Glenn continuou.
– Aprender a tricotar? Começar um jardim de suculentas? Dedicares-
te ao teu crescimento pessoal?
Não, não, não!
Glenn não cedeu.
– Precisas de um período de descanso.
– Detesto descansar. Não quero ter tempo livre.
– Não me interessa o que queres. É aquilo de que precisas.
Mas agora julgava-se meu terapeuta?
– Preciso de trabalhar – insisti. – Estou melhor quando tenho o que
fazer.
– Podes trabalhar aqui.
O problema era que também precisava de escapar.
Senti um frémito de pânico na garganta.
– Vá lá. Conheces-me. Sabes que preciso de estar em movimento.
Não posso ficar aqui parada a… a… a marinar na minha infelicidade.
Preciso de me mexer. De ir a algum lado. Sou como um tubarão,
percebes? Tenho de estar sempre em movimento para a água me passar
pelas guelras. – Abanei as mãos na direção das costelas, como se
quisesse mostrar-lhe onde ficavam as minhas guelras. – Se eu ficar aqui –
concluí –, morro.
– Tretas – disse Glenn. – Morrer é muito mais difícil do que pensas.
Glenn detestava quando as pessoas suplicavam. Apesar disso,
supliquei.
– Manda-me para algum lado. Seja onde for. Preciso de sair daqui.
– Não podes passar a vida toda a fugir – disse Glenn.
– Claro que posso.
Percebi pela cara dele que tínhamos embatido numa parede. Mas
ainda me restava alguma energia para lutar.
– E aquela coisa no Burkina Faso? – perguntei.
– Vou mandar o Doghouse.
– Eu tenho mais três anos de experiência do que o Doghouse!
– Mas ele fala francês.
– E o casamento na Nigéria?
– Vou mandar o Amadi.
– Ele está cá há menos de seis meses!
– Mas a família dele é da Nigéria. E ele fala…
– Está bem. Esquece.
– … ioruba. E um bocadinho de igbo.
O problema era esse. Glenn tinha uma reputação a manter.
– Eu mando-te – asseverou, em tom de quem põe fim à conversa –,
quando for o trabalho certo. Quando for o melhor para a agência. Nunca
te enviarei numa missão para a qual há outra pessoa mais qualificada.
Olhei para Glenn de olhos semicerrados, desafiando-o a lutar comigo.
– Não há ninguém mais qualificado do que eu – afirmei.
Glenn estudou-me, usando os seus poderes de observação, bem
apurados, como uma arma.
– Talvez sim, talvez não – concedeu, por fim. – Mas o funeral da tua
mãe foi ontem.
Fitei-o nos olhos. Ele continuou.
– Tens a pulsação acelerada, os olhos injetados de sangue e a
maquilhagem toda borrada. Estás a falar muito depressa e com voz rouca.
Não te penteaste, tens as mãos a tremer e estás ofegante. Estás uma
desgraça. Vai para casa, toma banho, come qualquer coisa que te console,
chora a morte da tua mãe e depois arranja o raio de um passatempo…
porque uma coisa te garanto: não vais a lado nenhum enquanto não
estiveres em condições.
Eu conhecia aquele tom de voz.
Não discuti mais.
Mas como, exatamente, é que havia de voltar ao trabalho se ele não
me deixava regressar?
Dois
Já vos contei o que é que faço profissionalmente?
Normalmente, tento adiar essa explicação o mais que posso. Porque,
depois de saberem – assim que eu disser o nome da profissão –, farão
uma série de suposições a meu respeito… todas elas erradas.
Mas suponho que não posso continuar a adiar.
A minha vida não faz muito sentido se não souberem o que eu faço.
Então, cá vai: sou uma Agente de Proteção Executiva.
Só que ninguém sabe o que isso é.
Digamos, portanto, que sou uma guarda-costas.
Muitas pessoas percebem mal e chamam-me «segurança», mas, para
que fique bem claro, isso não é, nem de longe, aquilo que faço. (Não fico
sentada num carrinho de golfe no parque de estacionamento de um
supermercado.) Executo um trabalho de elite, que implica anos de
formação e exige competências altamente especializadas, numa área onde
não é fácil entrar, que é uma estranha combinação de glamour (viagens
em primeira classe, hotéis de luxo, pessoas astronomicamente ricas) e
rotinas básicas (folhas de cálculo, listas de verificação, contar os
quadrados da carpete nos vestíbulos dos hotéis).
Essencialmente, protegemos os muito ricos (e, de vez em quando, os
muitos famosos) de todos os que lhes querem fazer mal. E somos muito
bem pagos por isso.
Sei o que estão a pensar.
Estão a pensar que não pode ser, visto ter 1,65 metros de altura e estar
longe de ser uma mulher corpulenta, porque estão a visualizar o
estereótipo de um guarda-costas – talvez um segurança de discoteca, com
uma camisola de manga curta justa a apertar-lhe os bíceps – e eu sou
basicamente o oposto. E estão a perguntar-se como é que posso ser boa
no que faço.
Vamos lá a esclarecer essas dúvidas.
Matulões insuflados por esteroides são um tipo de guarda-costas:
servem para pessoas que querem que o mundo inteiro saiba que têm
quem os proteja.
Mas o que se passa é que a maior parte dos clientes que precisa de
proteção a este nível não quer que ninguém saiba.
Não estou com isto a afirmar que os matulões não têm a sua
importância. Podem ter um efeito dissuasor. Mas também podem fazer o
oposto.
Para ser franca, tudo depende do tipo de ameaça.
Na maior parte dos casos, a pessoa está mais segura se quem a
protege passar despercebida. E eu sou fantástica a passar despercebida.
Tal como todas as mulheres na área da proteção executiva, e é por isso
que somos muito procuradas. Nunca ninguém desconfia de nós.
Toda a gente pensa que somos a ama das crianças.
Eu forneço o tipo de proteção que a maioria das pessoas nem sequer
sabe que está a acontecer – incluindo o próprio cliente. E sou a pessoa de
aspeto menos mortífero do mundo. Mais depressa me tomariam por uma
educadora de infância do que suspeitariam de que sou capaz de matar
com um saca-rolhas.
Já agora, sou capaz de matar alguém com um saca-rolhas. Ou com
uma esferográfica. Ou com um guardanapo de pano. Mas não o vou
fazer.
Porque se a situação chegar ao ponto de ter de matar alguém, é
porque não fiz bem o meu trabalho. O meu trabalho é antecipar qualquer
perigo antes que este se materialize – e evitá-lo.
Se tiver de espetar um garfo no olho de alguém, é sinal de que falhei.
E eu nunca falho.
Pelo menos, na minha vida profissional.
Isto tudo para explicar que a base do meu trabalho não é ser violenta,
mas sim evitar a violência. Tem muito mais a ver com inteligência do que
com força bruta. Tem a ver com preparação, observação e vigilância
constantes. Tem a ver com previsões, padrões, e compreender o espaço
onde vamos entrar antes mesmo de lá entrarmos.
Não é algo que fazemos, é algo que somos – e o meu destino ficou
provavelmente traçado no quarto ano, quando fui recrutada pela primeira
vez como monitora da zona de largada de estudantes e recebi uma faixa
fluorescente e um distintivo. (Ainda o tenho na mesa de cabeceira.) Ou
talvez tenha sido no sétimo ano, quando nos mudámos para um
apartamento ao virar da esquina de um estúdio de jiu-jítsu e eu convenci
a minha mãe a deixar-me ter aulas. Ou talvez tenha sido determinado por
todos aqueles namorados horríveis que a minha mãe não conseguia parar
de trazer para casa.
Fosse o que fosse, quando vi uma banca de recrutamento na
universidade no meu primeiro ano, com um cartaz azul e branco a
anunciar «ESCAPA PARA O FBI», foi praticamente ponto assente. Escapar era
a minha atividade preferida. Quando viram as minhas classificações
fantásticas nas áreas de consciência, reconhecimento de padrões,
capacidade de observação, retenção auditiva e altruísmo, recrutaram-me
de imediato.
Isto, claro está, antes de Glenn Schultz aparecer e me levar consigo.
E o resto é história. Ele ensinou-me tudo o que sabia, comecei a viajar
pelo mundo, este trabalho tornou-se a minha vida e nunca mais olhei para
trás.
Em suma, adorei.
E é mesmo preciso adorar o que fazemos. Temos de dar tudo por
tudo. Temos de estar dispostos a colocar-nos à frente de uma bala – e
essa não é uma decisão de somenos, porque algumas das pessoas que
protegemos não são propriamente adoráveis… e levar um tiro dói. É um
trabalho de alto risco e stress elevado, e se queremos fazê-lo como deve
ser, tem de ser por uma causa maior do que nós.
Na verdade, é por isso que as pessoas que adoram este trabalho
gostam tanto dele: é quem escolhemos ser, uma e outra vez, todos os
dias.
Se bem que as viagens de luxo também são agradáveis.
No essencial, é uma trabalheira. Muita papelada, muitas visitas
antecipadas a locais, muitas notas processuais. Temos de escrever tudo.
Estamos constantemente alerta. Não se pode dizer que é relaxante. Mas
torna-se viciante. Faz com que a vida normal pareça muito enfadonha.
Até as partes entediantes do trabalho são, de certo modo, excitantes.
Sempre em movimento. Nunca paramos. E estamos demasiado ocupados
para nos sentirmos sozinhos.
O que sempre foi perfeito para mim.
Até, claro está, Glenn me deixar de castigo em Houston –
precisamente no momento em que mais precisava de escapar.

No mesmo dia em que Glenn me afastou do serviço em Madrid, o


meu carro não pegou – e, por conseguinte, Robby teve de me levar a casa
no seu Porsche debaixo de uma chuva torrencial.
Na verdade, até era melhor assim. Porque eu ainda não o convidara
para a viagem a Toledo.
Talvez tenha sido por causa da chuva – que caía com tanta força que
os limpa para-brisas, mesmo na velocidade máxima, mal davam conta do
recado –, mas só quando chegámos a minha casa é que reparei que
Robby viera invulgarmente calado na viagem.
Chovia demasiado para eu sair logo do carro, e assim Robby desligou
o motor e ficámos a ver a água escorrer pelos vidros como se
estivéssemos dentro de uma lavagem automática.
Foi então que me virei para ele e anunciei:
– Vamos fazer uma viagem.
Robby franziu a testa.
– O quê?
– Foi por isso que fui ao escritório hoje. Para te convidar para umas
férias.
– Umas férias onde?
Agora eu começava a arrepender-me da escolha aleatória que fizera.
Exatamente como é que se entusiasma alguém com uma visita a Toledo?
– Comigo – respondi, como se ele tivesse feito uma pergunta
diferente.
– Não estou a perceber – disse Robby.
– Decidi tirar férias – respondi, como se ele fosse de compreensão
lenta. – E gostava que viesses comigo.
– Nunca tiras férias – admirou-se Robby.
– Bom, agora vou tirar.
– Já te convidei para umas três viagens diferentes e arranjaste
desculpas para te escapares a todas elas.
– Isso foi antes.
– Antes do quê?
Antes de a minha mãe morrer. Antes de o meu chefe me pôr de
castigo. Antes de ter sido afastada do trabalho em Madrid.
– Antes de eu ter comprado bilhetes não reembolsáveis para Toledo.
Robby olhou para mim.
– Toledo? – Se já parecia confuso, agora estava declaradamente
estupefacto. – Ninguém vai de férias para Toledo.
– Por acaso, têm uns jardins botânicos mundialmente famosos.
Robby suspirou.
– Nem pensar que vamos.
– Porque não?
– Porque vais cancelar.
– Que parte de «não reembolsável» é que não percebeste?
– Não te conheces muito bem a ti própria, pois não?
– Não vejo qual é o problema – disse. – Querias fazer isto e agora
vamos fazer. Não podes simplesmente dizer: «Fantástico!», e aceitar?
– Por acaso, não posso.
Havia uma intensidade estranha na voz dele. E, após essas palavras,
inclinou-se para a frente e passou os dedos pelos relevos do volante de
uma forma que me chamou a atenção.
Já mencionei que leio linguagem corporal tal como as outras pessoas
leem livros? Falo linguagem corporal melhor do que o meu próprio
idioma. A sério. Podia constar do meu currículo como «língua materna».
Crescer como filha da minha mãe obrigou-me a aprender o oposto da
linguagem: todas as coisas que dizemos sem palavras. Tornou-se numa
excelente competência, para ser franca. Mas se me perguntassem se é
uma bênção ou uma maldição, não saberia responder-vos.
O que é que eu li em Robby naquele segundo: ele não estava
contente. Estava ansioso quanto ao que ia fazer a seguir. Mas tencionava
ir em frente.
Sim. Percebi tudo isto pela forma como posicionava os dedos no
volante. Pela rigidez da sua postura. Pela força da sua expiração seguinte.
E pelo modo como inclinou a cabeça, os olhos parecendo usar as
pestanas como escudo.
– Porquê? – perguntei. – Porque é que não podes aceitar?
Robby olhou para baixo. Depois inspirou, contraiu por um instante o
maxilar, firmou os ombros e respondeu:
– Porque acho que devíamos acabar a nossa relação.
Impossível, mas é verdade: ele chocou-me.
Olhei para o tablier a imitar cabedal.
Não estava mesmo preparada para isto. E eu estava sempre preparada
para tudo.
Robby continuou.
– Ambos sabemos que não está a resultar.
Saberíamos? Alguém sabe realmente quando uma relação não está a
resultar? Será sequer algo que se pode saber? Ou todas as relações
requerem uma certa dose de otimismo irrealista para sobreviverem?
Respondi a única coisa que me ocorreu:
– Estás a acabar comigo? Na noite depois do funeral da minha mãe?
Ele reagiu como se eu o estivesse a aborrecer com pormenores.
– O meu sentido de oportunidade será mesmo o mais importante
aqui?
– O teu péssimo sentido de oportunidade? – reforcei, tentando ganhar
tempo enquanto o meu cérebro se apressava a acompanhar os eventos. –
Não sei. Talvez.
– Ou talvez não – contrapôs Robby. – Porque, não te esqueças…
vocês nem sequer eram assim tão chegadas.
Mesmo que fosse verdade, não fazia com que o resto estivesse bem.
– Isso não é relevante – retorqui.
Suponho que o sentido de oportunidade era importante. Eu dormira
vários dias num sofá de hospital, acordando cinco vezes por noite para
ajudar a minha mãe a vomitar num balde de plástico. Vira-a mirrar até ser
pouco mais do que um esqueleto por baixo da bata de hospital. Vira a
vida que me dera vida esvair-se perante os meus olhos.
A seguir, tratara do funeral. Todos os pormenores. A música, a
comida. Passara o dia inteiro a cumprimentar amigos do tempo de escola,
colegas de trabalho, ex-namorados, companheiros dos Alcoólicos
Anónimos e amigos dos copos. Encomendara flores, puxara o fecho-
éclair nas costas do meu vestido preto sem ajuda e até conseguira
organizar uma apresentação de fotografias.
Robby estava enganado.
Porque, apesar de tudo, eu amava a minha mãe. Não gostava dela,
mas amava-a.
E ele também me subestimara. Porque é muito mais difícil amar uma
pessoa complicada do que amar alguém que não dá trabalho.
Eu era mais forte do que pensava. Provavelmente.
E parecia que estava prestes a descobrir.
Quando a chuva começou a abrandar, enquanto encostava os dedos ao
vidro da janela, ouvi-me dizer numa voz suave e insegura que mal
reconheci:
– Não quero acabar contigo. Amo-te.
– Só estás a dizer isso – respondeu Robby, com uma certeza na voz
que nunca esquecerei – porque não sabes o que é o amor.

Glenn avisara-nos cerca de um ano antes – quando tudo começara.


Assim que os boatos lhe chegaram aos ouvidos, chamou-nos à sala de
reuniões, fechou a porta e baixou as persianas.
«É mesmo verdade?», inquiriu.
«O quê?», perguntou Robby, fazendo-se desentendido.
Mas este era o lendário Glenn Schultz. Não ia cair nessa.
«Diz-me tu.»
Robby arvorou a sua melhor expressão impassível e Glenn virou-se
para mim.
O meu rosto era ainda mais impenetrável.
«Não vou impedir-vos», disse Glenn, «mas precisamos de formular já
um plano.»
«Para quê?», perguntou Robby, e esse foi o seu primeiro erro.
«Para quando vocês acabarem», esclareceu Glenn.
«Talvez isso não aconteça», disse Robby, mas Glenn recusou-se a
insultar-nos com uma resposta. Em vez disso, como um homem que já
vira tudo e mais alguma coisa, olhou de um para o outro e suspirou: «Foi
a missão de salvamento, não foi?»
Robby e eu entreolhámo-nos. Se nos tínhamos apaixonado na
sequência de uma missão para salvar uma vítima de sequestro no Iraque?
Se tínhamos sobrevivido a disparos, uma perseguição automóvel e uma
travessia fronteiriça à meia-noite, arriscando a vida, só para cairmos
juntos na cama – nem que fosse apenas para celebrar o facto de, contra
todas as probabilidades, ainda estarmos vivos? Se a adrenalina dessa
missão ainda alimentava o nosso romance semissecreto tantos meses
depois?
Claro que sim.
Mas não admitimos nada.
Glenn estava há demasiado tempo neste negócio para precisar de algo
tão prosaico como confirmação verbal.
«Sei que não vale de nada interferir», continuou. «Portanto, vou
fazer-vos apenas uma pergunta. É a coisa mais fácil do mundo dois
agentes envolverem-se… e a mais difícil é permanecerem juntos. O que
vão fazer quando isto terminar?»
Eu devia ter mantido o contacto visual. Manual de Introdução à
Negociação, primeira tática básica: nunca baixar os olhos.
Mas baixei-os.
«A sério?», rosnou Glenn, inclinando-se um pouco mais. «Acham
que vai durar? Julgam que vão comprar uma vivenda com uma cerca de
tabuinhas brancas e que vão às compras ao mercado de produtores ao fim
de semana? Arranjar um cão? Comprar camisolas de malha iguais no
centro comercial?»
«Não sabes o futuro», ripostou Robby.
«Não, mas conheço-vos aos dois.»
Glenn estava bastante irritado, o que não era de estranhar. Nós éramos
o seu investimento, os seus filhos, os seus preferidos e o seu fundo de
reforma, tudo ao mesmo tempo. Esfregou os olhos e, quando levantou a
cabeça, estava a respirar daquela maneira ruidosa que lhe conquistou a
alcunha de Javali. Fitou-nos e disse:
«Não posso impedir-vos; nem sequer vou tentar. Mas digo-vos já uma
coisa: quando isto acabar, não quero cá conversas de “deixar a empresa”.
Não terão qualquer piedade da minha parte, muito menos cartas de
recomendação. Se tentarem candidatar-se à concorrência, liquido-vos
com as piores referências da história da humanidade. Vocês são meus. Eu
é que vos criei; são propriedade minha e ninguém nesta sala se pode
demitir. Nem sequer eu. Entendido?»
«Entendido», respondemos em uníssono.
«Agora desapareçam da minha vista», ordenou Glenn, «antes que vos
mande aos dois para o Afeganistão.»

*
Isto fora há um ano.
É engraçado pensar como tive pena do pessimismo de Glenn na
altura. A sua terceira mulher acabara de o deixar – o que não é incomum
nesta área profissional, uma vez que passamos mais tempo fora do que
em casa. Lembro-me de abanar mentalmente a cabeça, compadecida,
enquanto saía da sala. Lembro-me de pensar que Robby e eu provaríamos
que ele estava enganado.
E agora, um ano depois, Robby estava a acabar comigo, debaixo de
chuva, como se fizesse um favor a ambos.
– É o melhor – argumentou. – De qualquer maneira, precisas de fazer
o luto.
– Não mereces o meu luto – disse.
– Referia-me à tua mãe.
Oh. Ela.
– Não me digas o que preciso.
Robby teve o descaramento de parecer magoado.
– Vamos ser civilizados.
– Porquê?
– Somos adultos e sabemos o que está em jogo. E porque, na verdade,
nunca gostámos muito um do outro.
Aquilo magoou-me como uma bofetada. Fitei-o nos olhos pela
primeira vez e tentei não parecer surpreendida.
– Ah, não?
– Parece-me uma afirmação justa.
Ah… não. Não era uma afirmação justa. Era incrivelmente estúpida.
E errada. E provavelmente uma mentira, também… uma forma de Robby
se absolver a si próprio. Sim, estava a despachar-me no dia a seguir ao
funeral da minha mãe, mas não fazia mal, porque «nunca gostámos muito
um do outro».
Tudo bem. Como quiseres.
Embora eu me lembrasse de um quarto de hotel na Costa Rica que
podia provar o contrário.
Na humilhação do momento – teria mesmo acabado de dizer a um
homem que o amava enquanto ele acabava comigo? – foi como se
Robby não estivesse a tirar-me apenas o amor dele… mas todo o amor.
Foi assim que me senti.
Que hei de dizer? É difícil pensar friamente durante uma crise, e a
conclusão a que cheguei foi que a única maneira de conseguir aguentar
era voltar ao trabalho. Não precisava de passatempos. Não precisava de
aprender croché. Precisava era de voltar ao escritório, ter uma nova
missão e conquistar aquela posição à frente da filial de Londres. Era tão
óbvio como precisar de ar. Tinha de fazer alguma coisa. Ir a algum lado.
Fugir. Agora mais do que nunca.
Porém, antes de sair do carro para a chuva e esquecer completamente
Robby, ainda tinha uma pergunta a fazer-lhe. Fitei-o diretamente nos
olhos. E depois, num tom de mera curiosidade calma, disse:
– Disseste que as coisas entre nós não estavam a resultar. Porquê?
Ele acenou, como se fosse uma dúvida razoável.
– Tenho andado a pensar, nos últimos meses…
– Meses?
– … e decidi que, no fundo, se resume a uma coisa.
– E qual é?
– Tu.
Abanei a cabeça de modo involuntário.
– Eu?
Robby acenou afirmativamente, como se proferir a palavra em voz
alta fosse apenas mais uma confirmação.
– És tu. – E então, no tom de alguém que está a dar um conselho
prestável, acrescentou: – Tens três defeitos que são inultrapassáveis.
As palavras ecoaram-me na mente enquanto me preparava para os
ouvir: três defeitos inultrapassáveis.
– Primeiro – disse Robby –, estás sempre a trabalhar.
Está bem. Ele também estava sempre a trabalhar. Mas enfim.
– Segundo – prosseguiu Robby –, não és divertida, sabes? Estás
sempre tão séria.
Uh, caramba. Como argumentar contra uma declaração destas?
– E terceiro – concluiu Robby em tom de antecipação, como se
estivéssemos por fim a chegar ao cerne da questão –, beijas muito mal.
Três
Um mês depois, ainda estava furiosa.
Eu beijava mal? Beijava mal?
Quer dizer, viciada em trabalho? Tudo bem. Não é vergonha nenhuma
ser excecional naquilo que faço.
Pouco divertida? Quero lá saber. Seja como for, as pessoas dão
demasiada importância à diversão.
Mas beijar mal?
Esse era o tipo de insulto que me seguiria até à cova.
Inaceitável.
Tal como o estado de toda a minha vida.
A minha mãe morreu. Depois, fui forçada a tirar uma licença do
trabalho. A seguir, a relação mais longa da minha vida terminou com o
insulto mais ofensivo do mundo. E eu não podia fazer nada em relação a
nenhuma destas coisas. A minha mãe continuou morta, o meu ex-
namorado e a minha melhor amiga partiram para três semanas em
Madrid, na minha missão, e eu fiquei em casa. Em Houston. Sem nada
que fazer e ninguém com quem fazer nada.
Nem me lembro bem de como sobrevivi.
Basicamente, fiz o que pude para me entreter. Reorganizei a sala de
arquivo no escritório. Tratei de mini missões a nível local. Pintei a casa
de banho cor de tangerina sem pedir autorização ao senhorio. Esvaziei a
casa da minha mãe e pu-la à venda. Fiz corridas de dez quilómetros
depois do trabalho, na esperança de ficar exausta. Contei os segundos até
poder voltar a sair em missão, como se estivesse no purgatório.
Oh, e dormi todas as noites no chão do closet.
Essas quatro semanas duraram mil anos. E, em todo esse tempo, só
me lembro de ter acontecido uma coisa verdadeiramente boa.
Enquanto vasculhava a caixa das joias da minha mãe, encontrei algo
que julgava estar perdido – e que pareceria lixo a qualquer outra pessoa.
Por baixo de um colar cheio de nós, achei um pequeno pregador
prateado, um alfinete de ama com missangas, que eu fizera na escola no
meu oitavo aniversário.
As cores eram tal como me lembrava: vermelho, laranja, amarelo,
verde-claro, azul-bebé, violeta, branco.
Os pregadores de amizade estavam na moda na escola, nesse ano –
toda a gente os fazia e punha nos atacadores –, e assim, no dia em que a
professora apareceu com alfinetes e missangas, ficámos esfuziantes. Ela
deixou-nos passar o recreio a fazer os pregadores, e eu guardara o meu
preferido para dar à minha mãe. Adorava a ideia de a surpreender com
um presente num dia em que seria ela a dar-me presentes. Mas acabei por
nunca lho oferecer.
Sem que eu soubesse como, na manhã seguinte tinha desaparecido.
Depois desse dia, procurei-o durante semanas. Inspecionei uma e
outra vez o chão do meu closet, os bolsos da mochila, por baixo do tapete
do corredor. Era um daqueles longos mistérios não solucionados da
minha vida, uma pergunta que trazia comigo há muito tempo: como
perdera um objeto tão importante?
E agora, vinte anos depois, ali estava, guardado em segurança na
caixa de joias da minha mãe, à minha espera, como uma resposta há tanto
tempo escondida. Como se ela o tivesse guardado para mim este tempo
todo.
Como se talvez eu a tivesse subestimado um bocadinho.
E a mim também.
Assim, procurei entre os colares dela até encontrar um fio de ouro
grosso e enfiei o alfinete nele como um pendente.
E depois comecei a usá-lo. Todos os dias. Como um talismã. Até
dormia com ele. Dei por mim a tocar-lhe a toda a hora, a rodar as
missangas lisas debaixo dos dedos para sentir o seu chocalhar alegre.
Havia algo de reconfortante nesse gesto. Fazia-me sentir que talvez as
coisas nem sempre estivessem tão perdidas como pareciam.
Na manhã do regresso de Robby e Taylor de Madrid – em que
teríamos uma reunião no escritório, na qual Glenn prometera que me
atribuiria, finalmente, outra missão – toquei tantas vezes naquele alfinete
que pensei que o gastaria.
O que interessava era que ia ter uma missão. Estava prestes a poder
escapar. Não interessava para onde. Só a perspetiva de sair daqui bastava
para ser percorrida por vagas de alívio.
Ia desaparecer.
E depois, pela primeira vez em muito tempo, sentir-me-ia bem.
Só tinha de sobreviver ao reencontro com Robby.
A nossa cultura trata com menosprezo os desgostos amorosos.
Falamos sobre corações partidos como se fosse algo engraçado, ou uma
tolice, ou fofinho. Como se bastasse uma embalagem de gelado Häagen-
Dazs e um pijama de flanela para o curar. Contudo, uma separação é uma
forma de perda. É a morte, não de um relacionamento qualquer, mas do
mais importante relacionamento da vida de uma pessoa.
Não tem nada de fofinho.
Dizer «ele deixou-me» também não ilustra o verdadeiro significado
do que aconteceu. Parece tão rápido – um mero momento no tempo –,
embora seja para sempre. Afinal, a pessoa que nos amava decidiu não
nos amar mais.
Como é possível esquecer uma coisa destas?
Enquanto esperava sentada na sala de reuniões, onde fora a primeira a
chegar, foi isso que me atingiu: quando Robby me deixara, eu sentira-o
como a confirmação do meu maior medo, o meu temor mais profundo e
secreto.
Talvez não seja digna de amor.
Quer dizer, sim, sou boa pessoa. Possuo muitas boas qualidades. Sou
competente e tenho uma forte bússola moral… e, acrescentemos ainda,
cozinho muito bem. Mas como é que podemos alguma vez partir do
princípio de que seremos a primeira escolha de alguém? Seria eu melhor
do que todas as outras pessoas fantásticas deste mundo? Seria especial o
suficiente para ser aquela que alguém escolheria acima de todas as
outras?
Para Robby não, pelos vistos.
Não queria voltar a vê-lo. Nem pensar nisso. Nem ter uma crise de
autoestima.
Só queria pôr-me a andar para fora do Texas.

A pessoa seguinte a entrar na sala de reuniões foi Taylor. A minha


melhor amiga. Acabadinha de chegar de Madrid com o meu ex-
namorado. Embora ela não tivesse culpa disso.
Tinha o cabelo mais curto – a direito, com franja, muito europeu –,
preso atrás das orelhas, e pusera rímel, o que era novidade e realçava os
seus olhos verdes. Dei um gritinho ao vê-la e desatei a correr, atirando-
me para os seus braços.
– Voltaste! – exclamei, com um abraço apertado.
Ela também me abraçou.
– Matei as tuas plantas todas – disse-lhe –, mas é o preço que tens de
pagar por me deixares aqui sozinha.
– Mataste as minhas plantas?
– Não viste os cadáveres?
– De propósito?
– Sem querer – garanti. – Uma combinação de negligência e excesso
de atenção.
– Parece de facto uma combinação letal.
Taylor abriu o seu grande sorriso, pelo qual é famosa. Desta vez,
tínhamos falado muito mais ao telefone do que costumamos fazer quando
estamos num serviço. Principalmente porque eu estava sempre a ligar-
lhe, lavada em lágrimas. E ela foi uma querida, a sério. Deixou-me
processar e desabafar e lamentar-me à vontade – mesmo quando eu a
acordava.
Agora, ao vê-la, apercebi-me de há quanto tempo não lhe perguntava
como ela estava.
– Que tal correu a viagem? – indaguei.
– Bem – respondeu ela.
Não era uma réplica muito elucidativa.
Enquanto nos sentávamos, não consegui conter o impulso de baixar a
voz e perguntar:
– E como está ele?
– Ele quem? – demandou Taylor.
– Uma pessoa cujo nome rima com «Blobby».
– Ah! – disse Taylor, e o seu rosto fechou-se um pouco, de uma forma
que me fez sentir amparada. – Acho que está bom.
– Hoje não estás muito eloquente.
– Quer dizer, ele não está… mal.
– É pena.
– Mas o mais importante – disse ela – é saber como tu estás.
– Estou aqui enfiada há um mês – respondi. – Estou a morrer.
Taylor assentiu com um aceno.
– Porque precisas de água nas guelras.
– Obrigada! – exclamei. Até que enfim! – Obrigada por acreditares
nas minhas guelras.
Nesse momento, Glenn entrou.
– Cala-te lá com as guelras – resmungou.
– Ela é um tubarão – defendeu-me Taylor.
– Não a encorajes.
Os outros foram entrando e a sala de reuniões encheu-se. Amadi –
sempre com aquele ar simpático, o nariz abatatado e o sorriso muito
rasgado – voltara da Nigéria. Doghouse, chegado do Burkina Faso,
deixara crescer a barba para esconder a cicatriz de uma queimadura no
maxilar. Kelly acabara de regressar do Dubai com umas argolas de ouro
nas orelhas, que combinavam na perfeição com os caracóis loiros.
Tentei não fixar a porta, mesmo esperando ver Robby. Mantive uma
boa postura. Compus o rosto numa expressão amável de «bem, obrigada,
e tu como estás» tão rigorosa que senti os músculos das faces começarem
a tremer com o esforço. Ignorei o som do sangue a correr-me nos
ouvidos.
Por fim, quando Glenn pigarreou para dar início à reunião, Robby
entrou.
Tinha o cabelo um pouco mais comprido. Vestia um fato novo, por
medida, uma gravata que eu nunca vira e os seus famosos óculos escuros
Vuarnet – apesar de estarmos no interior. Só para poder tirá-los ao entrar
na sala.
Raios. E resultou.
Ele sempre fora melhor com as aparências do que com substância.
Se doeu vê-lo? Se me sugou o ar todo do peito? Se me incapacitou
sob uma vaga de emoção? Se senti como se tivesse acabado de emborcar
uma garrafa inteira de desgosto?
Por acaso, não.
Isto é bom, pensei. Espera. Será mesmo?
Significava que já o esquecera, certo? O meu tempo infindável em
Houston-Purgatório resultara. Dizem que o tempo tudo cura. Teria sido
isso? Estaria despachada? Ou o último mês simplesmente destruíra a
minha capacidade de sentir fosse o que fosse?
Enquanto Glenn arrancava com a reunião, sustive a respiração. Por
favor, por favor, por favor, dei por mim a pensar. Só desta vez, faz com
que isto não seja um drama.
Às vezes penso se não me terei agoirado a mim mesma naquele
momento.
Porque quando Glenn avançou com a reunião – começando pela
minha nova missão –, depressa percebi que não seria o escape por que
tanto ansiara.
– Antes de mais – disse Glenn, enquanto a sala se silenciava,
apontando para mim –, vamos falar sobre a nova missão da Brooks. –
Glenn chamava-me sempre «Brooks». Nem tenho a certeza se sabia o
meu primeiro nome. – É das boas – continuou. – Um bocadinho fora do
habitual. Deve ser bastante absorvente. Na verdade, é uma missão nova
para todos. Uma situação que requer a colaboração de toda a equipa. Mas
a Brooks ficará responsável. – Glenn inclinou a cabeça num breve aceno
na minha direção. – Ela merece.
– Onde é? – perguntei.
– Acho que o que queres saber é quem é.
– Não – respondi. – Quero mesmo saber é onde.
– Porque este cliente – prosseguiu Glenn, e o seu tom de voz fez-me
lembrar a maneira como as pessoas falam com os cães antes de lhes
darem uma guloseima – é muito, muito famoso.
Não protegíamos muitas pessoas famosas na Agência Glenn Schultz.
Se estivéssemos em Los Angeles, seria diferente. Mas estávamos em
Houston – portanto, a maioria dos clientes era executivos do petróleo e
pessoas de negócios. Um ou outro artista de passagem pela cidade. Uma
vez, fiz uma avaliação remota de localizações para a Dolly Parton e ela
mandou-me um bilhete muito simpático a agradecer.
Mas era basicamente isso.
Olhei para a cara de Glenn, que tentava disfarçar um sorriso. Na
verdade, parecia mesmo empolgado. E ele nunca ficava empolgado com
nada.
– Esta missão em particular – continuou – por acaso terá lugar no
grande estado do Texas…
– No Texas?! – interrompi.
Glenn ignorou-me.
– Aqui mesmo, na nossa maravilhosa cidade de Houston; portanto…
– Houston?! – empurrei a cadeira para trás.
Em oito anos de trabalho, nunca, nem uma só vez, eu protestara com
um local. Não é assim que funciona o trabalho. Não interessa onde é.
Vamos para onde nos mandarem. Não há problema.
Mas…
Eu tivera um mês complicado. E digamos apenas que estava prestes a
fazer algo muito pouco profissional.
Nesse momento, Glenn contou-nos quem era o cliente. Com um
sorriso de quem está muito satisfeito consigo próprio, como se essa boa
notícia pudesse cancelar todas as más notícias que alguma vez viessem a
acontecer, fez a grande revelação.
– O cliente desta missão – anunciou, ligando o ecrã na parede e
revelando o cartaz de um filme – é Jack Stapleton.
Todos os presentes soltaram exclamações abafadas.
Robby teve um ataque de tosse.
Kelly guinchou como uma adolescente num concerto dos Beatles.
E foi então que, apesar de tudo o que eu decidira recentemente sobre
a chefia da filial de Londres e como essa seria a solução de todos os meus
problemas, declarei:
– Sabem que mais? Despeço-me.
Quatro
Claro que não preciso de vos explicar quem é Jack Stapleton.
Provavelmente também soltaram exclamações abafadas.
A minha tentativa de demissão perdeu-se por completo no caos que se
seguiu.
Nem sei se alguém sequer me ouviu – exceto Glenn, que desvalorizou
a minha declaração impulsiva com um aceno e um olhar impaciente,
como se eu fosse um inseto irritante.
– Nunca te vais despedir. Como já discutimos.
Eu estava à espera de sair do Texas como uma pessoa a afogar-se
espera por uma boia de salvação. O desapontamento de ter de ficar aqui
presa tirou-me o ar.
Mas posso dizer-vos uma coisa. Ouvir o nome «Jack Stapleton» não
me deixou completamente indiferente.
Seria melhor proteger um ator considerado o Homem Mais Sexy do
Mundo dois anos seguidos, aqui no Texas, do que guardar um executivo
do petróleo de dentes cinzentos, olhos húmidos e barriga proeminente,
noutro lado qualquer?
Está bem. Talvez.
Glenn pelo menos, achava que sim.
– Este é um trabalho em grande, pessoal – disse, recuperando o ritmo.
– Ainda bem que a Brooks teve oportunidade de descansar, porque é
garantido que vai estar ocupada.
Eu ainda não aceitara, claro. Embora, na verdade, nunca tivesse
recusado um trabalho antes.
Glenn clicou no comando à distância, mostrando no ecrã digital da
sala de reuniões uma fotografia de Jack Stapleton, deslumbrante no seu
metro e noventa, no tapete vermelho.
– Pelas exclamações coletivas, presumo que todos sabemos quem é
este homem.
Começou a passar fotografias. Fazíamos isto com todos os clientes
novos, mas posso garantir que normalmente não era um espetáculo tão…
cativante. As primeiras eram fotografias profissionais: Jack Stapleton
com uma T-shirt tão justa que parecia pintada. Jack Stapleton com calças
de ganga rasgadas. Jack Stapleton de smoking, com a gravata de laço
desfeita, a olhar para a câmara como se todos estivéssemos prestes a
segui-lo para o seu quarto de hotel.
– É mesmo ele o cliente? – perguntou Doghouse, para confirmar.
Claro que sim. Mas todos ficámos em silêncio para o ouvir outra vez.
Porque era mesmo inacreditável.
– Afirmativo – assentiu Glenn. Depois olhou para Kelly. – Não és tu
que tens uma paixoneta por ele?
– Desculpa? – abespinhou-se Kelly. – Mas sou alguma adolescente?
– Parece-me que já te ouvi falar dele.
– Adultos na posse das suas plenas capacidades não têm «paixonetas»
por atores – declarou Kelly para quem a quisesse ouvir.
Foi então que Doghouse, ao lado dela, pôs uma bota em cima da mesa
da sala de reuniões e lhe sorriu com ar malicioso.
– Tenho quase a certeza de que ela tem umas meias com a cara do
Stapleton.
– Isso foi um presente – elucidou Kelly.
– Mas costumas usá-las – comentou Doghouse.
– Acho estranho saberes isso.
O comentário só fez com que Doghouse sorrisse ainda mais.
– E não tens a fotografia dele no ecrã inicial do telemóvel?
– É confidencial. E acho ainda mais estranho que saibas isso.
– O que interessa – interrompeu Glenn, apontando para Kelly com ar
admonitório – é que sejas profissional. Qualquer coisa que possuas com a
cara do cliente…
Doghouse começou a contar pelos dedos os exemplos:
– T-shirts, tatuagens, biquínis…
– Livra-te dela já – concluiu Glenn.
Kelly fulminou Doghouse com o olhar, mas este limitou-se a piscar-
lhe o olho.
Glenn, contudo, não estava para brincadeiras. Tratava-se de um
cliente importante e de um trabalho de muita visibilidade. Avançou para
alguns instantâneos tirados por paparazzi, e vimos Jack Stapleton, com
uma camisa aos quadrados, às compras num mercado de produtores. Jack
Stapleton de boné de basebol a atravessar um parque de estacionamento.
Jack Stapleton com – Mãezinha! – uns calçõezinhos colados, na praia, a
erguer-se das ondas, reluzente como um deus grego.
Taylor falou por todas as mulheres presentes quando soltou um longo
assobio entre dentes.
Senti Robby virar a cabeça ao ouvi-la, mas não olhei. Mantive os
olhos no prémio, por assim dizer.
– Minhas senhoras – disse Glenn –, tentem não objetificar o cliente.
Os homens em torno da mesa soltaram murmúrios de concordância.
E, imediatamente a seguir, Glenn colocou no ecrã uma imagem que
pôs a outra metade da sala a assobiar.
– E esta – indicou – é a namorada dele.
Era Kennedy Monroe, claro – a correr ao estilo Marés Vivas por uma
praia perfeita, sem uma única covinha de celulite visível, como se tivesse
a capacidade de aplicar Photoshop a si própria em tempo real. Toda a
gente sabia que eles tinham uma relação e, enquanto olhávamos para o
ecrã, deslumbrados, era fácil perceber porquê – ela tinha o tipo de beleza
bélica que estabelece as suas próprias regras.
Eram um casal desde que haviam protagonizado o filme Os
Destruidores e tinham aparecido juntos na capa da People há pouco
tempo. Dito isto, eu sempre achara que faziam um par estranho. Afinal de
contas, o que trouxera fama a Kennedy fora o escândalo onde afirmara,
falsamente, ser neta de Marilyn Monroe, tendo sido processada pelos
herdeiros da mesma. E depois Jack Stapleton fora citado numa entrevista
na Esquire a dizer: «Ela é como uma teórica de conspirações… sobre si
própria.»
Uau! Como é que eu sabia tanto sobre eles sem sequer me esforçar?
Kelly parecia estar a ter a mesma reação visceral do que eu a
Kennedy.
– Ela também vai estar cá? – perguntou, com as narinas entreabertas.
– Não – disse Glenn. – Só incluí a foto dela pela piada.
Passou para outra imagem – esta de um indivíduo tão parecido com
Jack Stapleton que tive vontade de esfregar os olhos para ter a certeza de
que estava a ver bem.
– Esse é que é o cliente? – perguntou Amadi, como se estivéssemos a
ser enganados.
– É o seu irmão mais velho, Hank – explicou Glenn. Depois abriu
uma fotografia de Jack e estudámo-las lado a lado, como num jogo de
encontrar as diferenças.
Foi aqui que Glenn fez uma pausa.
– Imagino que não haverá ninguém nesta sala que não tenha visto Os
Destruidores – disse. – E provavelmente todos se lembram que, logo a
seguir ao fim de semana de estreia do filme, o irmão mais novo de Jack
Stapleton, Drew, morreu num acidente. Isto foi há dois anos. Jack
afastou-se das luzes da ribalta, mudou-se para as montanhas remotas do
Dakota do Norte e não voltou a fazer um filme desde então.
Sim, todos sabíamos isso. Toda a gente na América sabia isso. Os
bebés sabiam. Os cães sabiam. Talvez até as minhocas soubessem.
– O acidente foi abafado. Quer dizer – Glenn abanou a cabeça com
admiração –, fizeram um trabalho fantástico. Não há qualquer
informação sobre o caso em lado nenhum, e eu pus a Kelly a investigar o
assunto o dia inteiro.
Olhámos para Kelly. Ela era o nosso melhor elemento para
desenterrar pormenores ocultos.
– Se soubesse o motivo – admitiu ela –, tinha-me esforçado mais.
Glenn não perdeu o foco.
– Tudo o que se encontra, seja onde for – prosseguiu –, é o básico:
acidente de carro. O Jack e o irmão mais novo estavam juntos. Só o Jack
sobreviveu.
Glenn mostrou uma fotografia de Jack com Drew numa estreia
qualquer, ambos de fato, a sorrirem para as câmaras, abraçados. Fizemos
um momento de silêncio.
Glenn continuou.
– No entanto, há boatos. De que o Jack ia a conduzir… e de que
talvez houvesse álcool à mistura. A Kelly está a trabalhar para tentar
confirmar isto.
Kelly torceu o nariz e abanou a cabeça, como se a investigação não
estivesse a correr bem. Assim, Glenn avançou.
– Aquilo que sabemos é que, depois do acidente, a família se dividiu.
Em particular, as coisas parecem estar complicadas entre o Jack e o irmão
mais velho. Não conseguimos encontrar nada que explique esta
desavença.
Glenn mostrou uma fotografia da família antes do acidente – pai e
mãe de ar simpático e três filhos adultos – tirada por paparazzi nas
bancadas de um estádio qualquer.
– Além disso, apesar de o Stapleton ter fincado a sua intenção de se
afastar da representação, ele ainda está preso a um contrato com o estúdio
para fazer a sequela de Os Destruidores. Tem andado a tentar dissolver
esse contrato por via judicial, e neste momento não há certezas de quem
levará a melhor, mas, desde essa altura, ele não voltou a deixar o Dakota
do Norte voluntariamente. Até agora. Chega a Houston hoje. – Glenn
olhou para o relógio. – Aterrou há vinte e três minutos.
– Resolveu finalmente sair da toca e escolheu Houston? – admirou-se
Robby.
– Eh! – protestou Kelly, como se tivesse sido pessoalmente ofendida.
– Não somos assim tão maus.
Robby abanou a cabeça.
– Ninguém vem cá de propósito.
Glenn retomou as rédeas da reunião.
– O Jack Stapleton também não.
– Ele é daqui – adiantou Doghouse, orgulhoso por saber esta
informação.
– Correto – assentiu Glenn. – Os pais vivem num rancho depois de
Katy, junto ao rio Brazos. E a mãe acaba de descobrir que tem cancro da
mama, portanto, ele vem para ficar algum tempo cá.
– É por isso que está a acontecer tudo tão depressa – comentou
Doghouse.
E era depressa. Normalmente tínhamos semanas, pelo menos, para
nos prepararmos para uma missão destas.
– Sim – disse Glenn. – Ela soube do diagnóstico na segunda-feira e a
cirurgia está marcada para sexta-feira de manhã.
– Protocolo agressivo – comentou Amadi. O pai dele era oncologista.
Glenn assentiu com um aceno.
– Por aquilo que percebi, não é o cancro que uma pessoa escolheria,
se pudesse. Mas também não é incurável.
Todos reparámos na dupla negativa.
– Qual é a duração do trabalho? – perguntei.
– Não é certo. Mas pelo que sei, o Stapleton tenciona ficar enquanto a
mãe dele estiver em tratamento.
– Semanas? – perguntei.
– Pelo menos. Saberemos mais quando a família souber.
Era tão estranho pensar em Jack Stapleton como tendo família – ou
qualquer tipo de vida além da sua principal função, que era dar-nos a
todos algo para comer com os olhos.
E, no entanto, ali estava. Jack Stapleton era uma pessoa real. Com
uma mãe. Que estava doente. E uma cidade natal. E agora vinha para
Houston.
Glenn mudou a imagem no ecrã para uma série de fotos de uma casa
moderna de três pisos.
– Ele arrendou uma casa perto do centro médico. Só hoje é que nos
foi concedido acesso, mas aqui estão algumas fotos tiradas do site da
agência imobiliária.
O que as pessoas normais teriam visto naquelas fotografias era uma
casa moderna e luxuosa, nova, topo de gama, com tetos altos e janelas
enormes e jardins luxuriantes. Tinha uma porta azul-clara com uma
figueira-lira num vaso ao lado. Parecia saída das páginas de uma revista
como a Architectural Digest.
Mas todos os que ali estávamos olhámos para as fotos através de uma
lente diferente.
A planta era um pormenor bonito, mas não tinha qualquer relevância
para os presentes na sala, a menos que fosse possível ocultar nela uma
câmara de segurança. O muro alto em volta do jardim significava que um
perseguidor não o escalaria com facilidade. O caminho de acesso circular
à frente da casa estava um pouco perto de mais da estrutura. Aquele
arbusto gigante de oleandro tinha de ser aparado. O terraço no telhado
seria de fácil acesso a um sniper. Em imagens noturnas, as luzes à frente
eram mais para criar ambiente do que visibilidade.
Glenn descreveu-nos as características de segurança.
– Câmaras por todo o lado, incluindo uma no interior, com detetor de
movimentos, no vestíbulo da frente. Sistema de alarme topo de gama e
fechaduras com a mais recente tecnologia, de acesso remoto. Embora o
representante do cliente diga que ele se esquece de o ligar.
Sinal de alarme: cliente pouco colaborante.
Levantei a mão.
– Foi ele que nos contratou? Ou foi, tipo, o agente dele ou assim?
Glenn fez uma pausa. E, nessa pausa, todos percebemos a resposta.
– Um bocadinho das duas coisas – disse. – Tecnicamente, foi o agente
que nos contratou. Mas fê-lo sob o forte incentivo da equipa dele. E do
estúdio que está prestes a produzir a sequela de Os Destruidores.
Não era invulgar que os nossos clientes tivessem equipas.
– Porque é que a equipa lhe está a dar um «forte incentivo» à
contratação de seguranças? – perguntei.
– Ele já teve problemas com perseguidores no passado – disse Glenn
–, e uma delas vive aqui.
Em volta da mesa, todas as cabeças acenaram em sinal de
concordância.
– Assim, a primeira estratégia é, claro, ocultar o facto de ele aqui
estar enquanto tal for humanamente possível. Mas isso é sempre uma
jogada arriscada. Ele é uma pessoa muito reconhecível…
Kelly soltou uma risada seca.
– Por outro lado – prosseguiu Glenn –, está afastado do olhar do
público há algum tempo, portanto, é possível que não esteja
imediatamente presente na mente das pessoas. E parece que tem
conseguido evitar bastante bem os holofotes.
Isso era bom. Quanto menos atenção, melhor.
– Ele deu indicação de que acompanhará a mãe à operação e às
consultas. Tirando isso, tenciona manter o recato.
Tentei permanecer desligada, mas o meu cérebro já começara a
trabalhar numa estratégia. Precisávamos da planta do hospital. Fazer uma
visita antecipada. Encontrar as melhores opções de entrada e saída. Isolar
uma zona de espera privada.
– Qual é a situação com a anterior perseguidora? – perguntou
Doghouse.
Glenn acenou com a cabeça e colocou uma foto no ecrã. A
identificação fotográfica feita pela Polícia mostrava uma mulher de meia-
idade com um penteado prático, batom cor-de-rosa esborratado e, o mais
notável, uns brincos com a cara de Jack.
– Não tens uns brincos iguais àqueles? – perguntou Doghouse a
Kelly. Ao lado dele, Kelly atirou-lhe a esferográfica e, quando esta
rebolou em cima da mesa, apanhou-a de novo.
Todos relaxámos. Uma perseguidora do sexo feminino era um ponto
positivo. As mulheres não têm tanta tendência para matar.
– Muita atividade nos dois anos antes da estreia de Os Destruidores –
disse Glenn –, mas menos desde que o irmão dele morreu e o Stapleton
desapareceu. – Glenn colocou uma lista no ecrã e apontou. – Nos últimos
cinco anos, ela mandou-lhe centenas de cartas, algumas das quais
ameaçadoras. Muito assédio online, também… na sua maioria, a tentar
assustá-lo para o convencer a sair com ela.
– O truque mais antigo de todos – observei.
Ouvi Robby dar uma gargalhada. Glenn continuou.
– Ela fez várias viagens a Los Angeles e descobriu onde é que ele
vivia. Uma manhã, o Jack acordou e encontrou-a a dormir na banheira,
agarrada a um boneco com uma fotografia dele colada.
– Portanto, coisas típicas de mulheres perseguidoras – considerou
Taylor.
– Correto – confirmou Glenn. – Esta fez tudo, desde tricotar
camisolas para ele, a ameaçar suicidar-se se ele não a engravidasse.
– Mas ela não está… para além da idade de procriar?
– Segundo ela, não.
– E ameaças de morte? – perguntou Amadi.
– Não que tenhamos conhecimento. Pelo menos, da parte dela. Houve
uma série recente de insultos tresloucados numa página de fãs, feitos por
alguém com o nome de utilizador… – Glenn consultou os seus
apontamentos – … WilburOdeiaTe321. Estamos atentos.
– Pelo menos sabemos o que o Wilbur sente – disse Kelly.
– Porque é que o nome Wilbur não me parece nada ameaçador? –
perguntou Taylor.
– Porque Wilbur é o porco da A Teia de Carlota – respondi.
– Oooh – exclamou Kelly.
– Minhas senhoras – interrompeu Glenn. – Concentrem-se, por favor.
– Se querias que nos concentrássemos – retorquiu Kelly – não devias
ter começado com uma apresentação de fotos desse pedaço de homem.
– Elas estão bêbadas com as hormonas – disse Doghouse.
Kelly deu-lhe uma cotovelada.
– Isso querias tu.
O briefing foi mais breve do que o costume porque o caso acabara de
nos ser atribuído. Ia ser uma correria para fazermos o trabalho de
preparação habitual. Glenn dividiu-nos em equipas. Pôs Robby a analisar
a presença mediática de Jack, incluindo o seu Instagram, para perceber a
quantidade de informação pessoal que era pública. Destacou Doghouse
para fazer uma avaliação física da casa arrendada na cidade – incluindo
plantas arquitetónicas e outras características, estatísticas de crime na
zona e uma análise aprofundada do sistema de segurança. Disse a Amadi
para recolher tudo o que conseguisse sobre o rancho da família. Mandou
Kelly compilar um dossier sobre a governanta que fora recentemente
contratada, e Taylor criar um portfolio pormenorizado sobre toda a
atividade de perseguidores no passado.
E eu?
Glenn tentou mandar-me ao salão de beleza.
– Que raio de ideia é essa? – ripostei, ali mesmo na reunião.
– És a responsável desta missão, Brooks. Tens de estar à altura do
papel.
– Em primeiro lugar – disse eu –, não concordei em ser responsável
por nada.
As narinas de Glenn entreabriram-se.
– Mas vais ser.
Olhei para o fato que tinha vestido. Estava mais do que bem. Não
estava?
Glenn continuou.
– Se fosse preciso usares uma burca, arranjávamos-te uma burca, e se
precisasses de um sari, dávamos-te um sari… Portanto, uma vez que vais
a caminho da luxuosa mansão arrendada de uma estrela de Hollywood,
vamos fazer-te uma mudança de visual.
– Não preciso de mudar o meu visual – disse, e arrependi-me
imediatamente. Foi uma gargalhada geral.
– Tencionas acompanhar o Jack Stapleton assim? – questionou
Robby.
Levei a mão ao cabelo castanho, que já estava a soltar-se do carrapito
feito à pressa, e depois olhei para o meu fato de calças e casaco Ann
Taylor, comprado num outlet.
– Talvez – respondi.
Quando estava em missão, usava o que fosse preciso para passar
despercebida. Já vestira desde vestidinhos pretos justos e curtos, a
blusões de cabedal e a equipamento de ténis. Já me vestira como uma
adolescente, como uma cantora punk e como uma percetora à moda
antiga. Não tinha qualquer problema em andar incógnita. Tudo o que
fosse preciso para desempenhar o meu papel da melhor maneira. Mas,
usasse o que usasse em serviço, voltava sempre ao básico fato Ann Taylor
– com sapatos rasos e não de salto alto, porque temos de estar sempre
preparados para correr.
O calçado é mesmo crucial.
Ainda estava a reagir à ideia da mudança de visual quando Robby
sugeriu a Glenn:
– Devias dar este trabalho à Kelly.
Kelly soltou um gritinho deliciado com a ideia – apesar de Robby ter
zero autoridade para tomar essa decisão.
Glenn não gostava nada de ser posto em causa. Virou-se para Robby.
– O que é que disseste?
– Ela não é a pessoa mais indicada.
Robby olhou de lado para mim, para que todos soubéssemos
exatamente a quem se referia.
– Isso não é contigo.
Robby encolheu os ombros.
– Estava só a dar uma opinião. – E antes que eu tivesse tempo de
pensar sequer se ele teria alguma razão, continuou: – Olhem para ela.
Não consegue parecer que faz parte desse mundo.
Por amor de Deus, Robby!
Seria assim que tencionava competir comigo pelo lugar de Londres?
Através de sabotagem direta?
Transferi a minha atenção do rosto petulante do meu ex – que, de
súbito, me parecia muito mais «esmurrável» do que eu alguma vez tinha
reparado – e virei-a para a direita até assentar em Glenn.
– Estás a dizer que vou ser a responsável deste trabalho, quer queira
quer não?
– É precisamente isso.
– E porquê?
– Porque se queres ter alguma hipótese de competir pelo cargo em
Londres, precisas de fazer isto, e de o fazer bem. Se não fores
absolutamente bem-sucedida… é o Robby que vai para Londres e tu
ficarás aqui, no Texas, a trabalhar no escritório para todo o sempre.
Sustentou-me o olhar numa pequena medição de forças. Por fim,
acrescentou:
– Devias agradecer-me.
– Esquece.
– Vais fazer isto – reiterou Glenn. – E não podes queixar-te, nem
fazer as coisas em cima do joelho, nem sentires-te vitimizada, nem fazer
beicinho porque a vida é injusta. A vida é mesmo injusta. Isso não é
novidade. Sei exatamente o que o Robby te fez, e sei que isto não é
propriamente o escape de que estavas à espera…
– Não é escape nenhum – esclareci.
– … mas é a melhor oportunidade que tens. Portanto, vais aproveitá-
la ao máximo. E isso começa por um novo guarda-roupa, para não
apareceres ao lado do Homem Mais Sexy do Mundo com ar de secretária
temporária patética a precisar de um duche.
Acharia ele que eu me deixava intimidar por insultos? Eu comia
insultos ao pequeno-almoço. Endireitei os ombros.
– Por que raio me estás a obrigar a provar o meu valor quando já
conheces muito bem as minhas capacidades?
– Conheço as tuas capacidades de antes. Mas agora? Ainda não tenho
a certeza.
Está bem, pensei. Eu própria tinha algumas dúvidas a esse respeito.
Era a minha missão de sonho? Não. Mas era uma missão. E eu estava
desesperada o suficiente para ir em frente.
– Está bem – aceitei.
– Está bem, o quê?
– Vou aproveitar a oportunidade.
Glenn olhou para mim por cima dos óculos de leitura.
– Podes ter a certeza.
– Mas – acrescentei, erguendo as sobrancelhas e fazendo uma pausa
para ele perceber exatamente onde é que eu traçava os meus limites –
está fora de questão fazer uma mudança de visual.

Gostava de poder dizer-vos que sou imperturbável e nunca me


deixaria seduzir pela fama. Taylor cruzara-se uma vez com Tom Holland
num bar em Los Angeles e acendera o cigarro do amigo dele com um
isqueiro Zippo, como uma durona, com uma indiferença total.
Eu não teria ficado tão calma.
E ao estudar o ficheiro de Jack Stapleton tinha de admitir, pelo menos
a mim própria, que sentia o oposto de desinteresse.
Em teoria, ele não era diferente de qualquer outro cliente. Tinha conta
num banco e cartões de crédito, como toda a gente. Tinha dois carros no
Dakota do Norte – um Wagoneer vintage e uma carrinha de caixa aberta
–, mas alugara um Range Rover para a estada em Houston. Sofrera de
asma em criança e tinha uma receita médica ativa de comprimidos para
dormir. Na rubrica «Inimigos Conhecidos» havia várias páginas de fãs
malucos que apareciam e desapareciam ao longo dos anos, mas nada de
mais. Na categoria «Parceiros/Amantes Conhecidos», constava apenas
Kennedy Monroe – e alguém, provavelmente Doghouse, escrevera «arf
arf» ao lado do nome dela.
Sem surpresas.
Um ficheiro normal. Era só um ficheiro normal, raios.
Pronto, está bem. O charme de Jack Stapleton não me passava
completamente ao lado.
Quer dizer, não era obcecada por ele como Kelly. Não tinha a cara do
homem nas minhas meias. Mas vira a maior parte dos seus filmes –
exceto Medo do Escuro, que era um filme de terror demasiado
sanguinolento, nada o meu género. Também não vira Comboio para
Providence porque me constou que ele se sacrificava aos zombies no fim,
e ninguém queria ver uma cena dessas. Porém, vira todos os outros,
incluindo Recém-Casados?, tantas vezes que decorara sem querer a cena
em que ele confessa: «É tão cansativo fingir que te odeio.» O seu
trabalho dramático em Uma Centelha de Luz era tragicamente
subestimado. E embora Este É o Meu Desejo fosse geralmente atacado
por incluir todos os lugares-comuns das comédias românticas –
incluindo, imagine-se, uma corrida desesperada para o aeroporto –,
estava muito bem feito, e por isso era um dos filmes a que eu regressava
sempre que me sentia em baixo.
Além disso, a maneira como ele beijava Katie Palmer em Perder para
Ganhar era digna de um Óscar. Por que diabo não havia a categoria de
Melhor Beijo? Só por isso, ele merecia ficar para a história. Da primeira
vez que vi o filme, ia morrendo.
Quer dizer, ia morrendo de deleite.
Portanto, não deixava de ser empolgante ter sido destacada para o
proteger.
Reparem no meu tom claramente relutante.
Jack Stapleton não deixava de estar no meu radar. E eu não deixava
de ficar afetada por essa perspetiva.
Nunca o admitiria – muito menos a mim própria –, mas, na verdade,
podia dizer-se que eu tinha por ele aquilo que descreveria como uma
pequena paixoneta perfeitamente normal, nada patética,
reconfortantemente morna, tranquila. Estão a ver: da mesma maneira que
uma miúda pode ter uma leve paixoneta pelo capitão da equipa de futebol
da escola. Não é que vá namorar com o capitão da equipa de futebol.
Sabe bem qual é o seu lugar – escriturária da associação de estudantes,
elo de ligação com a equipa de serviço comunitário, vice-presidente do
clube das folhas de cálculo. A paixoneta não é mais do que um oásis
soalheiro por onde as suas fantasias deambulam. Às vezes. De longe a
longe. Entre todas as coisas mais importantes que tem para fazer.
Não tem mal nenhum, pois não?
Não era para isso que, bem vistas as coisas, serviam as estrelas de
cinema? Para serem fantasias dos comuns mortais? Para adicionarem
pepitas imaginárias ao cupcake metafórico da vida?
Mas agora a realidade ia colidir com a fantasia. E era por isso que eu
queria recusar o trabalho. Gostava da fantasia. Não queria que Jack
Stapleton se tornasse real.
Além do mais, como é possível proteger uma pessoa que me deixava
nervosa? Como manter a concentração com um autêntico deus entre os
humanos assim tão perto? Glenn tinha uma reputação a manter, mas eu
também. Tinha de o impressionar se queria o trabalho em Londres, mas
que hipóteses tinha se Jack Stapleton aparecesse um dia com a mesma T-
shirt em dois tons de azul que usara em O Otimista?
Por amor de Deus, mais valia desistir já.
Eu vira Jack Stapleton beijar pessoas fictícias, enterrar um pai
fictício, implorar perdão fictício e derramar lágrimas fictícias. Vira-o
tomar duche, lavar os dentes, enroscar-se debaixo das mantas à hora de
dormir. Vira-o descer uma falésia em rappel. Vira-o abraçar o «filho»
perdido e reencontrado. Vira-o assustado, e nervoso, e zangado, e até nu,
na cama, com o «amor» da sua vida.
Nada disso era real – claro que não. Eu sabia-o. Quer dizer, não era
maluca.
Não era real, mas parecia real. Eu sentia-o como se fosse real.
Já gostava dele, é o que estou a tentar explicar. Aquela distância que
temos sempre de manter com os clientes? Stapleton já a ultrapassara –
apesar de nunca o ter visto em pessoa.
Além disso, havia qualquer coisa nele que me agradava. O formato
dos seus olhos, meio doces e sorridentes. A calma com que pronunciava
as suas falas. O modo como fitava as mulheres que «amava».
Oh, ia ser uma longa missão.
Mas – e aqui vinha a parte encorajadora da conversa – não era
impossível.
A pessoa que eu vira no ecrã não seria igual ao homem na vida real.
Não podia ser. O tipo no ecrã dizia coisas engraçadas porque tinha
escritores engraçados a escreverem as suas falas. O tipo no ecrã parecia
perfeito porque o departamento de produção o penteava e maquilhava e
escolhia as suas roupas. E os abdominais esculpidos? Não era coisa que
aparecesse por milagre. Provavelmente passava horas e horas a treinar
para manter aquela barriga dura. Horas que seriam muito mais bem
empregues, por exemplo, a combater a pobreza, ou a salvar animais sem
dono, ou, sei lá, a ler um livro.
Talvez, se houvesse misericórdia no universo, ele não fosse nada
como eu sempre o imaginara.
Talvez fosse tão antipático como a maior parte dos meus clientes. Isso
ajudaria. Mas também podia ser burro. Mal-educado. Nojento. Pomposo.
Narcisista. Qualquer coisa que o despromovesse à categoria de pessoa
vulgar, real, ligeiramente irritante, igual a todos os outros… e me
permitisse fazer o meu trabalho.
Quer dizer, sim, claro que preferia ter ficado com a fantasia.
Mas a realidade também tem as suas vantagens.
Cinco
Próxima cena: eu, a tocar à campainha sofisticada de Jack Stapleton
no Museum District.
Com o meu fato de calças e casaco habitual. Sem a maquilhagem que
tão corajosamente recusara.
E quase a arrepender-me agora dessa vitória.
Esta era uma reunião de apresentação e eu já fizera dezenas delas.
Regra geral, toda a equipa se reunia pessoalmente com o cliente para
recolher informação. Mas neste momento a equipa estava demasiado
ocupada para poder estar presente.
Assim, hoje, era apenas eu. Sozinha e a encorajar-me a mim própria.
Depois de aprendermos a olhar para o mundo de uma perspetiva da
segurança pessoal, não conseguimos vê-lo de outra maneira. Por
exemplo, eu era incapaz de entrar num restaurante sem avaliar o nível de
ameaças na sala – mesmo quando não estava a trabalhar. Não conseguia
não reparar em pessoas suspeitas, ou viaturas que davam mais do que
uma volta ao quarteirão, ou carrinhas vazias em parques de
estacionamento, ou «equipas de reparação» que podiam ou não estar num
serviço de vigilância. Para ser franca, não conseguia entrar no carro sem
um processo de três passos: procurar indícios de entrada na viatura,
confirmar que o tubo de escape não estava bloqueado e espreitar para
debaixo da viatura para verificar se não havia explosivos.
Em oito anos, nem por uma vez me aproximara simplesmente do
carro e entrara.
Devia parecer totalmente louca.
Porém, quando sabemos como o mundo é terrível, não é coisa que se
esqueça.
Por mais que gostássemos.
Eu não sabia com exatidão o que é que Jack Stapleton conhecia das
ameaças do mundo, mas parte do meu trabalho hoje, e daqui para a
frente, era mantê-lo informado. É absolutamente indispensável ter a
colaboração do cliente, porque não é possível fazer o trabalho de outra
maneira. E, na fase inicial, uma tarefa decisiva era tornar bem claro que a
proteção é indispensável sem deixar ninguém em pânico.
É preciso pesar muito cuidadosamente aquilo com que os clientes
conseguem lidar.
Quando cheguei à porta de Jack Stapleton trazia comigo uma lista de
pontos a discutir, de modo que ele pudesse cumprir a sua parte do acordo
de segurança. Havia também algumas tarefas básicas que tinham de ser
feitas em pessoa e não por intermédio da assistente dele em Los Angeles:
recolher as impressões digitais, tirar sangue, obter uma amostra da sua
caligrafia. E ainda uma lista de perguntas a que Glenn chamava o QMP –
Questionário Muito Pessoal –, onde recolhíamos informação sobre
tatuagens, sinais, hábitos estranhos e fobias. Normalmente, fazíamos
também uma gravação de vídeo, mas claro que, para este cliente, isso
seria redundante.
De qualquer maneira, era só isso que eu tinha de fazer. Seguir o meu
guião.
Mas, bolas, estava mesmo nervosa.
E isso antes de ele vir à porta em pessoa e me deixar em estado de
choque por, pura e simplesmente, escancarar a porta da rua a uma
perfeita desconhecida. Sem T-shirt. Completamente nu da cintura para
cima. Que raio de jogada era esta?
– Por amor de Deus! – exclamei, virando-me e tapando os olhos. –
Vista qualquer coisa!
Mas a imagem já estava gravada a ferro e fogo nas minhas retinas:
descalço. Calças Levi’s coçadas. Um colar de fio de cabedal entrançado,
rente à base do pescoço, logo acima das clavículas. E nem sequer tenho
palavras para descrever o que se passava naquele tronco.
Fechei os olhos com mais força.
Como é que esperavam que eu trabalhasse assim?
– Desculpe! – pediu ele atrás de mim, à porta. – Não pensei. – E
depois: – Já pode olhar.
Baixei a mão com esforço, virei-me…
E dei de caras com Jack Stapleton a enfiar uma T-shirt – com os
músculos abdominais a ondularem como se quisessem colocar-me em
transe.

Vamos parar o relógio aqui por um segundo, porque não é todos os


dias que uma pessoa está à porta da casa de Jack Stapleton, a contemplar
diretamente toda a sua magnificência, enquanto ele faz uma coisa
totalmente normal e, ao mesmo tempo, absolutamente espantosa, como
vestir uma T-shirt.
Talvez estejam a questionar como foi, para mim, viver esse momento.
Talvez isto ajude – o meu cérebro desligou-se.
Perdi literalmente a capacidade de falar.
Sei que ele me fez uma pergunta qualquer, mas não conseguiria dizer-
vos qual foi. E não fui capaz de lhe responder.
Fiquei apenas ali especada, a olhar para ele de boca aberta, como um
peixe fora de água.
É só uma pessoa, estão vocês a pensar. Só um homem que, por acaso,
é famoso.
Sim. Claro.
Mas gostava de vos ver não emudecer de assombro se caíssem de
paraquedas naquele momento.
Desafio-vos.
Posso também salientar que eu não estava de maneira nenhuma à
espera que fosse ele a abrir a porta? Presumi que fosse uma assistente, ou
uma secretária, ou um mordomo britânico de nariz empinado e fraque –
tudo menos o homem em pessoa.
Ainda por cima, Stapleton era maior do que parecia, e para mais
considerando que eu já o achava bastante grande. Em comparação, senti-
me minúscula, e essa não é a minha dinâmica de poder preferida.
Acrescento ainda que – talvez não fosse preciso dizê-lo, mas ainda
assim – ele estava… vivo.
Ou seja, não era uma representação de si próprio em celuloide. Era
uma criatura viva, em carne e osso, tridimensional.
O que era novidade para mim.
Agora que conseguia observá-lo bem, percebi que ele não era de
maneira nenhuma tão corpulento como no filme Os Destruidores – e
claro que não podia ser, certo? Pois quem é que consegue manter por
tempo indefinido um regime de treino de cinco horas por dia? Assim, em
vez de ter à minha frente um monstro musculado, tinha um conjunto de
abdominais definidos vulgares, ligeiramente menos salientes, mais subtis
e, ainda assim, mais sofisticados. Um conjunto de abdominais que não
precisava de se esforçar desmesuradamente.
O que fazia com que ele parecesse mais humano. E isso devia ser
uma coisa boa. No entanto, ser mais humano tornava-o mais real. E eu
nunca pensara nele como uma pessoa a sério.
O Jack Stapleton real era menos bronzeado do que nos cartazes dos
seus filmes. Os seus olhos eram mais cinzentos do que azuis. Tinha uma
feridinha onde se cortara ao fazer a barba. Os seus lábios pareciam um
pouco secos, como se precisasse de os hidratar. Eu nunca o vira com
cabelo tão comprido – Há quanto tempo é que ele não o corta? –, que
assim, caído para a testa, estava mesmo a pedir que alguém o afastasse
para o lado. Tinha um penso rápido nas costas da mão e um relógio
barato no pulso e, para culminar, óculos. Não uns óculos Prada elegantes
– apenas uns óculos ligeiramente tortos como os que as pessoas normais
usam para ver.
Foi assim que percebi que não era um sonho, já agora. Porque nunca
me passaria pela cabeça colocar um par de óculos vulgares e tortos em
Jack Stapleton.
Que, ao mesmo tempo, melhoravam e pioravam a sua aparência.
Isto era esgotante.

Muito bem, vamos pôr o tempo de novo a correr.


Onde é que nós estávamos? Ah, sim: raios me partam!
Meus caros, eu acabara de conhecer Jack Stapleton.
Descalço. De Levi’s. Com um colar de cabedal que me fez redefinir
todas as minhas opiniões sobre colares de cabedal.
– Chegou cedo – disse ele então, interrompendo o meu exame. –
Estava a vestir-me.
Eu ainda estava muda. Abri a boca, mas não saiu nada. Na minha
cabeça, ouvi-me dizer: «Cheguei exatamente na hora marcada», em tom
profissional e talvez impercetivelmente irritado, mas não consegui
orquestrar as contrações necessárias do diafragma para que isso
acontecesse.
Com toda a minha força de vontade, consegui pelo menos fechar a
boca.
Sempre era qualquer coisa.
Ele olhou para mim durante um segundo e depois disse:
– Espere. Foi você que chegou cedo? Ou eu é que estou atrasado? –
Olhou para o relógio. – Sabe que mais? Ainda estou no fuso horário da
montanha.
Com esforço, mantive a compostura.
– Está a pensar que o Dakota do Norte fica no mesmo fuso horário?
Não respondi, mas mantive o contacto visual. Ele continuou:
– Porque acontece muitas vezes. E sim, o Dakota do Norte fica no
mesmo fuso horário, exceto o canto sudoeste. Que é onde eu vivo.
Não parecia nada incomodado com a conversa unilateral.
Devia acontecer-lhe muito.
Virou-se e fez-me sinal para o seguir.
– Entre – convidou, dirigindo-se para o interior da casa.
Fechei a porta e segui-o até à cozinha. Controla-te, ralhei comigo
própria. Ele é apenas uma pessoa! Cortou-se a fazer a barba! Nem
sequer está assim tão bronzeado!
– Gosto do seu colar de alfinete, já agora – disse ele por cima do
ombro enquanto andava.
Por reflexo, toquei no meu alfinete com missangas. Hum.
Observador.
E o alfinete devia ser mais um talismã para mim do que me
apercebera, porque só então, como que por magia, é que me lembrei de
como se falava.
– Obrigada – disse, embora tenha soado mais como uma pergunta do
que como um agradecimento.
Na cozinha, Jack Stapleton baixou-se e começou a remexer no
armário por baixo do lava-louça, como as pessoas normais fazem às
vezes.
Imagine-se. As celebridades são mesmo como nós.
– Sou novo aqui – estava ele a explicar, enquanto eu o observava –,
por isso não sei bem o que temos, mas basta dizer-me aquilo de que
precisa e eu mando comprar.
Virou-se e endireitou-se com um suporte nas mãos, cheio de frascos
de detergente, escovas, esponjas e sacos de lixo, que pousou com ar
decidido na bancada à minha frente.
Franzi a testa.
– Para limpar.
Abanei a cabeça.
– Não é a…
E depois, novamente grata pela capacidade da fala, apresentei-me
com um: «Agente de Proteção Executiva», precisamente ao mesmo
tempo que ele perguntou:
– … empregada de limpeza?
A sério? Aqui estou eu, no meu melhor fato, e ele acha que eu venho
limpar-lhe a casa?
Talvez Robby tivesse razão. Talvez eu não conseguisse integrar-me
neste mundo.
– Não sou a empregada de limpeza – esclareci.
Ele franziu a testa.
– Oh. – E esperou, olhando para mim como quem questiona: «Então,
quem é?»
– Sou a Agente de Proteção Executiva responsável pela sua equipa de
segurança pessoal.
Ele parecia verdadeiramente confuso.
– É a quê da minha o quê?
Suspirei.
– Estou à frente do seu destacamento de segurança.
– Eu não tenho um destacamento de segurança.
Bom, isto era novidade.
– Tenho a certeza de que sim, tem.
Ao ouvir isto, ele fechou a mão sobre o meu braço, acima do cotovelo
– não para me magoar, mas com a força suficiente para que eu tivesse a
noção da robustez dele –, e conduziu-me de novo em direção à porta da
rua. Para dizer a verdade, eu não teria dificuldade em me libertar, mas,
perplexa com tudo o que estava a acontecer, segui-o como um
cordeirinho.
Lá fora, ele fechou a porta atrás de nós e trancou-a. Depois voltou ao
assunto.
– Está a dizer-me que não é a governanta?
– Pareço-lhe uma governanta?
Jack Stapleton encolheu os ombros, indeciso.
Devia tê-lo ignorado.
– Quantas governantas conhece que vêm trabalhar de blusa de seda? –
insisti.
– Podia estar a planear mudar de roupa.
Muito bem. Já bastava. Suspirei.
– Não sou a governanta.
Foi então que ele levantou o dedo, a pedir um instante, virou-se e
afastou-se pelo caminho de acesso enquanto pescava o telemóvel do
bolso.
Após alguns passos, ouvi-o dizer:
– Olá. Apareceu-me aqui uma pessoa a afirmar ser a minha segurança
pessoal.
Esperem. Ele estava desconfiado de mim?
Não consegui ouvir a resposta. Mas ouvi muito bem o lado da
conversa de Jack Stapleton.
– Já tínhamos decidido que não íamos fazer isso. Duas vezes.
Deu pontapés no cascalho solto do caminho.
– Mas isso foi há anos.
Uma pausa.
– Não vai resultar. Vai ser um desastre. Tem de haver outra maneira.
Mais uma pausa.
Jack Stapleton e a pessoa com quem ele falava – o seu agente?
Gestor? Guru? – continuaram às voltas do assunto. Não sei se ele não se
apercebeu de que eu o conseguia ouvir, ou se tanto lhe dava, mas
protestou veementemente contra a minha presença na sua vida, ali
mesmo, ao alcance da minha audição.
Magoou-me um bocadinho, para ser franca.
A discussão continuou durante tanto tempo que, por fim, me sentei no
banquinho ao lado do vaso, reparando que podia ser usado para partir a
janela atrás dele e que devia ser mudado de lugar, vendido ou deitado
fora. Sem mais nada que fazer, estudei distraidamente a propriedade –
distância da rua: adequada; ausência de portão de acesso: abaixo de
ótimo; potencial de uma daquelas rochas decorativas para esmagar
crânios: letal –, mais por hábito do que por outra razão.
Não me lembrava de ter alguma vez aparecido numa reunião inicial
com um cliente que nem sequer sabia que me tinha contratado.
Não. Era a primeira vez.
Era desagradável pensar que ele nem sequer me queria ali. A maior
parte das pessoas ficava, pelo menos, um pouco grata pela ajuda.
Quando ele pôs fim à discussão, tinham passado quinze minutos.
Voltou a dirigir-se para mim, com ar zangado – uma expressão facial que,
estranhamente, eu reconhecia. Vira aquela cara em Tudo ou Nada, logo a
seguir aos traficantes de droga o confrontarem. E também em O Otimista,
depois de lhe ter sido roubada a vitória no concurso de culinária. Eu
acabara de conhecer este homem, mas recordava-me da covinha
engraçada que lhe aparecia inevitavelmente no queixo quando ficava
mesmo irritado.
E ali estava ela.
Quando me levantei do banco, também não me sentia lá muito bem-
disposta. Já podíamos estar despachados e eu, em casa, a terminar o dia
de trabalho.
– Não sabia que iam contratar-nos? – perguntei quando ele se
aproximou.
– Fiquei convencido de que tínhamos optado por não o fazer –
respondeu ele.
– Parece que não – disse eu.
– Quer dizer, eu optei por não o fazer – esclareceu Jack. – Mas o
estúdio acabou por avançar na mesma.
– Pensava que queria livrar-se desse contrato.
– E quero – confirmou ele. – Mas querer e conseguir não são bem a
mesma coisa.
Não deixava de ter razão.
– Seja como for, os advogados deles querem proteger a sua
propriedade – concluiu Jack.
– É isso que você é?
Jack acenou afirmativamente.
– Sem dúvida. Eles não querem problemas. E querem que eu continue
vivo.
– Com certeza é o que toda a gente quer – observei.
– Nem toda a gente – respondeu ele. – Não é por isso que está aqui?
Bem visto.
Enquanto eu concordava com um aceno, Jack Stapleton olhou
realmente para mim pela primeira vez desde a minha chegada: a sua nova
governanta/guarda-costas. Senti o olhar dele como uma sensação física –
como raios de sol na pele. Já tinha olhado para ele tantas vezes. Era
inacreditavelmente estranho vê-lo devolver o olhar.
Por fim, soltou um longo e resignado suspiro.
– Vamos conversar lá dentro.

De acordo com a sua covinha da irritação, Jack ainda se manteve


aborrecido durante algum tempo.
A minha esperança era que fosse mais com o estúdio do que comigo.
Sentámo-nos à mesa da casa de jantar e eu larguei a pasta que tinha
apertada contra o peito desde que chegara. Senti-me estranhamente
despida sem ela.
Jack Stapleton estava agora sentado numa cadeira, com ar derrotado.
– Faça lá o que costuma fazer – disse.
Respirei fundo.
– Muito bem.
O que costumo fazer. Assim era melhor. Estávamos de regresso à
minha área de competência.
– Chamo-me Hannah Brooks – comecei. – Já protegi dezenas de
pessoas em todo o tipo de situações.
Era um parágrafo introdutório que eu sabia de cor. Usava-o sempre da
mesma maneira quando conhecia um cliente novo. Era reconfortante
recitá-lo, como cantar uma canção preferida.
– A proteção executiva é uma parceria – continuei. – Nós estamos
aqui para ajudar o cliente, e o cliente, para nos ajudar a nós. Aquilo que
quer de nós é competência e orientação experiente, e aquilo que
queremos de si é honestidade e obediência.
Jack Stapleton não estava a olhar para mim, e sim a consultar as suas
mensagens.
– Está a enviar mensagens? – perguntei, fazendo uma pausa.
– Posso fazer as duas coisas – retorquiu ele, sem levantar os olhos.
– Hum, na verdade, não. Mas é como quiser.
Não podia fazer outra coisa senão continuar a falar. À medida que me
ia lembrando de quem era, fui ganhando embalo. Empurrei por cima da
mesa o prospeto que trouxera para ele. Na capa, estava impresso o nosso
princípio orientador. Recitei-o em voz alta:
– «O objetivo da segurança pessoal é diminuir o risco de atos
criminosos, sequestros e assassinato contra um alvo, através da aplicação
de procedimentos específicos à vida quotidiana normal.»
Jack Stapleton ergueu os olhos.
– Assassinato? A sério? Tenho uma perseguidora de cinquenta anos
de idade que cria corgis para exposições.
Mas nada conseguiria travar-me agora.
– Uma consciência constante do espaço é a base de uma boa
segurança pessoal – continuei. – Para além disso, as medidas de
segurança têm de estar sempre ao nível da ameaça. Com base no nosso
grau de conhecimento atual, o seu nível de ameaça é relativamente baixo.
Dos quatro níveis… branco, amarelo, laranja e vermelho… encontra-se
de momento classificado como «amarelo». Mas esperamos que a notícia
da sua presença em Houston se torne pública a dada altura e, quando isso
acontecer, a classificação passará para «laranja». A estratégia é ter
sistemas preparados para efetuar rapidamente essa transição.
Jack Stapleton franziu a testa. Isto era muita linguagem técnica para
uma empregada de limpeza.
Prossegui.
– Toda a segurança é um equilíbrio entre as exigências do nível de
ameaça e as expectativas razoáveis do cliente de levar uma vida de certa
forma normal.
– Oh, já desisti de ter disso há anos.
– Gostaríamos que lesse atentamente este prospeto para se
familiarizar com as suas responsabilidades quanto à sua própria
segurança. Tudo o que puder fazer para evitar ser visado ajuda-nos a
mantê-lo seguro.
– Volto a dizer – respondeu Jack. – Esta mulher basicamente tricota
camisolas de Natal com a minha cara. Na verdade, são bastante
impressionantes.
Endireitei-me um pouco mais.
– Todos os sequestros e assassinatos bem-sucedidos acontecem
devido a um último fator, e apenas um: o elemento surpresa.
– Não estou muito preocupado com a possibilidade de ser
assassinado.
– Assim, o principal requisito que exigimos a qualquer pessoa
protegida é atenção. A maior parte das pessoas passa pela vida a dormir,
praticamente inconsciente dos perigos que se encontram por todo o lado.
Mas quem está sob ameaça não pode dar-se a esse luxo. Tem de treinar
para reparar nas pessoas e objetos à sua volta… e para os questionar.
– Você parece um manual falante, sabia?
– Trabalho para o Glenn Schultz há oito anos e subi até aos degraus
mais elevados na hierarquia da organização. Tenho um certificado de
proteção pessoal, bem como formação avançada em contravigilância,
condução evasiva, medicina de emergência, armas de fogo avançadas e
combate corpo a corpo. No entanto, se eu fizer bem o meu trabalho,
nunca precisaremos de nada disso. Entre nós os dois e o resto da equipa,
a trabalhar em conjunto, esperamos antecipar quaisquer ameaças e
dissipá-las muito antes de qualquer crise efetiva.
– Acho que gostava mais de si quando era a empregada.
Fitei-o nos olhos.
– Não dirá o mesmo quando o nível de ameaça for laranja.
Ele virou a cara. Respirei fundo.
– Percebo pela sua linguagem corporal que não está muito interessado
em ler o prospeto, portanto, vou fazer-lhe um resumo das linhas de
orientação mais importantes para os VIP.
Comecei a contar pelos dedos enquanto debitava os itens da lista mais
depressa do que seria necessário, só para me exibir:

Não se encontrar com estranhos em locais desconhecidos

Não fazer reservas em restaurantes em nome próprio

Não viajar à noite

Não frequentar sempre os mesmos bares e restaurantes

Andar em grupo sempre que possível

Não conduzir uma viatura demasiado vistosa

Alertar a Polícia para qualquer ameaça nova

Ter sempre o depósito do carro pelo menos meio cheio

Trancar sempre as portas do carro depois de entrar


Controlar a velocidade para evitar ficar parado em semáforos

Criar palavras de código especiais para indicar que está tudo bem

Havia mais, mas ele estava a olhar para o Instagram e a sorrir de


alguma coisa.
Parei de falar e esperei que ele reparasse.
Após uma longa pausa, Jack ergueu a cabeça.
– Qual era a última?
Citei-me a mim própria:
– «Criar palavras de código especiais para indicar que está tudo
bem.»
– E qual é a minha palavra de código?
Decidi rapidamente.
– A sua palavra de código é «joaninha».
Jack baixou os ombros.
– Não podemos escolher qualquer coisa mais fixe? Talvez «cobra»?
Ou «modo selvagem»?
– Não é o cliente que escolhe a palavra de código.
Os clientes escolhiam montes de vezes as palavras de código – mas
isto era o que ele merecia por estar a mandar mensagens enquanto eu
falava.
Jack franziu a testa.
– Como esperam que eu me lembre de todas essas regras? –
perguntou a seguir.
– Leia o manual – sugeri. – Muitas vezes. E sublinhe-o.
É possível que o meu tom de voz fosse um pouco sarcástico.
Jack pousou o telemóvel com um suspiro.
– Oiça, eu não vou andar em bares nem restaurantes, nem… nem a
encontrar-me com estranhos em locais desconhecidos. Vou estar em
casa… ou a acompanhar a minha mãe ao médico. – Suspirou de novo. –
Poderei também… sob coação… fazer algumas visitas ao rancho dos
meus pais, mas se Deus quiser essas visitas serão breves e raras. Mais
nada. Não estou aqui para me divertir nem para ser assassinado. Só
quero ser um bom filho e ajudar a minha mãe.
– Ótimo – retorqui. – Isso torna o nosso trabalho muito mais fácil.
Quando ele fez menção de voltar a pegar no telemóvel, acrescentei:
– Agora só preciso de lhe tirar as impressões digitais, e que me dê
uma amostra da sua caligrafia e um tubo de sangue, e estamos
despachados. – Esquecera-me do Questionário Muito Pessoal, mas, tendo
em conta tudo o resto, não me saí mal.
– Um tubo de sangue? – perguntou ele.
Acenei afirmativamente.
– Tenho formação em flebotomia. – Olhei para os braços dele. – De
qualquer maneira, as suas veias parecem mangueiras, portanto, será fácil.
Ele escondeu os braços atrás das costas.
– Para que é que precisa de sangue?
– Para fazer umas análises básicas e confirmar o seu tipo sanguíneo.
Ele pestanejou, incrédulo. Soube-me bem chocá-lo um bocadinho.
Definitivamente, era muito melhor do que ser a criada.
– A sua assistente indicou na ficha que tem sangue AB negativo –
expliquei-lhe – e, se isso se confirmar, está com sorte, porque é também o
meu tipo de sangue.
– Porque é que isso é uma sorte?
– Gostamos sempre de ter pelo menos uma pessoa na equipa que
possa ser dadora para o cliente – respondi, tirando da mala o torniquete
de borracha e esticando-o com um estalo. – Portanto, é possível que
esteja agora a conhecer o seu banco de sangue pessoal.
Seis
Dez minutos depois tinha tudo aquilo de que precisava e comecei a
arrumar as minhas coisas, mais do que pronta para sair dali.
Havia algo de cansativo em toda aquela beleza.
A sério. Era constante. Inexorável. Era esgotante.
E nem sequer estava a olhar para ele! Ele é que estava a olhar para
mim.
Por fim, interrompi o que fazia e devolvi o olhar.
– O que é?
– Você não é nada como eu imaginava – disse Jack.
– Podia dizer o mesmo – respondi.
– Para já, esperava que fosse muito maior – continuou.
– Nem sequer sabia que eu vinha.
– Hoje não sabia. Mas já tínhamos falado em contratar-vos antes. Só
que mudei de ideias.
– E depois o estúdio mudou também de ideias.
– Mais ou menos.
Jack continuava a estudar-me, e nem consigo explicar como era
estranho ser a observada em vez de o inverso.
– Suponho que esperava que fosse um tipo duro.
Eu não era um tipo duro. Era o oposto disso. Mas não tencionava dar-
lhe a satisfação de uma resposta.
– Não há nada neste trabalho que exija que eu seja um durão.
– Nesse caso, o que é que o trabalho requer?
– Foco. Treino. Atenção. – Toquei na cabeça como se estivesse a
apontar para o cérebro. – O que interessa não é ser duro. É estar
preparado.
– Mas um guarda-costas, sabe? Acho que devia ser um pouco maior.
É mesmo muito pequena.
– Não sou assim tão pequena – ripostei. – Você é que é enorme.
– Quanto é que mede? Um metro e meio?
– Tenho um metro e sessenta e sete, muito obrigada. – Como já
mencionei, tinha 1,65.
– Então, o que faria se um tipo corpulento me tentasse agredir?
– Isso nunca aconteceria – respondi. – Anteciparíamos a ameaça e
você seria removido do local antes que as coisas chegassem a esse ponto.
– Mas se chegassem?
– Não chegariam.
– Mas digamos que sim… hipoteticamente.
Suspirei.
– Muito bem. Hipoteticamente, se isso acontecesse… que não
aconteceria… eu teria de… de o dominar.
– Mas como?
– Pratico jiu-jítsu desde os seis anos, e sou cinturão negro de segundo
grau.
– Mas e se ele fosse mesmo grande? – Jack levantou os braços como
um urso.
Semicerrei os olhos.
– Parece-me que não sabe como funciona o jiu-jítsu.
Ele semicerrou também os olhos.
– Não acredita em mim? – perguntei. – Faz ideia de como está a ser
sexista?
– Não é ser sexista… – protestou Jack. – É só uma questão de… de
física. Como é que alguém do seu tamanho consegue dominar alguém do
meu tamanho?
– Isso não é física – respondi. – É ignorância.
– Mostre-me – pediu ele.
– O quê?
– Domine-me com o seu jiu-jítsu.
– Não.
– Sim.
Suspirei.
– Quer que eu o derrube? Agora?
– Quer dizer, nem por isso. Mas acho que dormia mais descansado se
tivesse a certeza de que é capaz de o fazer.
– Está a dizer que quer que eu o magoe? A sério? Porque se eu fizer
aquilo que sugere, ficará no mínimo sem ar… e é possível que desloque
um ombro.
Isto era genuinamente má ideia.
Mas suponho que Stapleton queria mesmo que eu o magoasse, porque
agarrou na minha mão e arrastou-me em direção à porta das traseiras,
através do pátio, até uma zona relvada junto da piscina.
– Má ideia, má ideia, má ideia – repeti enquanto ele me puxava atrás
de si.
– Está a ver a facilidade com que eu a estou a puxar? – respondeu ele.
E suponho que foi aí que desisti. Nunca gostei muito de ser
subestimada.
Principalmente por um tipo que me tomara pela empregada de
limpeza.
Queria que eu o magoasse? Muito bem. Ia magoá-lo.
Quando chegámos à relva, ele largou-me a mão e afastou-se um
bocadinho em passo rápido. Depois deu meia-volta e investiu contra
mim.
Parecia que íamos mesmo em frente com isto.
Suspirei.
Nesta altura, já não havia decisões a tomar. Quando um tipo de um
metro e noventa começa a correr para nós, não há outra opção. Uma
pessoa faz aquilo que foi treinada para fazer.
Assim que ele chegou ao pé de mim, agarrei-lhe no pulso esquerdo
com as duas mãos, puxei para baixo e empurrei as ancas contra as dele.
Aqui, o truque é fazer um movimento rotativo. Puxar-lhe o braço e os
ombros para baixo, enquanto lhe empurrava a metade inferior do corpo
para cima – e depois o forçava a rolar sobre o meu dorso, projetando-o.
Parece mais complexo do que é.
Para abreviar: eu baixo a cabeça e ele passa-me por cima.
Isso é que é física.
Em menos de um segundo, ele estava de costas no chão. A gemer.
– Não pode dizer que não o avisei – disse-lhe.
Enquanto olhava para ele, os seus olhos procuraram os meus. E
depois, pela primeira vez desde que eu ali estava, sorriu. Um grande
sorriso carregado de admiração.
– Oh, meu Deus, isto dói – lamentou-se.
– Eu avisei – repeti.
Ele dobrou o braço sobre o estômago, ofegante. Ou, esperem…
estaria a rir-se?
– Afinal, você é um tipo duro!
– Não sou nada.
– É fantástica – declarou.
– Isso nunca esteve em dúvida.
A seguir, abriu os braços e olhou para o céu.
– Obrigado, Hannah Brooks! Obrigado!
Por que raio estava ele a agradecer-me?
Depois, gritou para as nuvens:
– Está contratada!
Mas eu recusava-me a ficar deslumbrada com algo que já fizera mil
vezes. Não era fantástico. Era apenas treino.
– Já estava contratada – recordei-lhe.
– Está contratada outra vez! Está contratada a dobrar! Está contratada
com grande fanfarra!
Abanei a cabeça e virei-me para lhe ir buscar gelo.

Quando ele entrou na cozinha, minutos depois, ainda arquejante e


repleto de admiração, parecia, digamos assim, que acabara de aprender
uma lição de vida crucial.
Prendi-lhe um saco de gelo ao ombro com panos de louça amarrados,
recusando-me a ficar afetada, agora, neste momento de mais calma, pela
proximidade do corpo dele.
– O seu ombro vai mesmo ficar a doer durante uns dias – preveni.
– Valeu a pena – disse ele.
– Tome ibuprofeno antes de dormir.
– Sim, doutora.
– E da próxima vez que eu lhe disser que sou boa em alguma coisa –
continuei –, não me obrigue a magoá-lo para o provar.
– Entendido.
Arrumei as minhas coisas e virei-me para me despedir, com a pasta
de novo apertada contra o peito – mas sentindo-me agora uma versão
muito diferente da rapariga que ali entrara.
Não há nada melhor do que atirar um homem ao chão para reforçar a
nossa autoestima. Recomendo.
– Então, parece que começamos em força amanhã – disse,
consultando o calendário provisório que Glenn me dera. – Quer ir a casa
dos seus pais logo de manhã, certo?
Jack acenou afirmativamente.
– Temos uma equipa a estudar o caminho neste momento – informei.
– Isto é tudo muito mais em cima da hora do que o tempo de preparação
habitual, mas vamos resolvendo caso a caso conforme forem surgindo.
Jack estava a olhar para baixo. Não disse nada.
– Amanhã podemos levar uma equipa remota connosco, para avaliar
devidamente o rancho enquanto lá estivermos: instalar câmaras, estudar a
disposição do terreno…
Parecia-me um bom plano. Mas depois Jack disse:
– Na verdade, não pode ser.
Abanei a cabeça.
– O que é que não pode ser?
– Não podemos levar uma equipa de segurança para a casa dos meus
pais.
– Porque não? – perguntei.
Ele respirou fundo.
– Porque os meus pais não sabem nada disto.
– Do quê?
Ele fez um gesto largo, como que a abranger tudo.
– Das ameaças, dos perseguidores, da segurança pessoal…
– Então, como espera que isto funcione?
Ele abanou a cabeça.
– A minha mãe está doente, percebe? Está mesmo doente. E, se
souber disto, vai ficar preocupada. Apesar de não haver motivos para tal.
Há anos que tenho perseguidores… já sou completamente imune a essa
situação. Mas ela nunca soube das ocasiões mais assustadoras.. e com
certeza que não vou começar a contar-lhe na semana antes de ela ser
operada a um cancro.
– Mas… – interrompi. E não consegui avançar porque não sabia o
que dizer.
– A minha mãe é uma daquelas pessoas que se preocupa com tudo –
continuou Jack. – Campeã mundial das preocupações. E recebeu
resultados nos exames que não são… não são os ideais. E desde a morte
do meu irmão… – Jack olhou para as mãos como se não soubesse como
terminar a frase. – Para mim, admito… um guarda-costas é uma coisa
boa. Compreendo. Mas para a minha mãe? Nem pensar. Andei a ler sobre
os tratamentos que ela vai fazer, e o stress pode ter um impacto real nos
resultados. Não posso tornar-lhe as coisas ainda mais difíceis do que já
são. A única maneira de fazermos isto é se os meus pais nunca souberem
quem você é.
– Mas… como?
– O vosso website anuncia «soluções originais adaptadas a cada
cenário».
Virou o telemóvel para poder comprovar o que dissera.
– Era isso que estava a pesquisar? – inquiri.
Jack encolheu os ombros.
– É uma das coisas que estive a fazer, sim.
Olhei para ele, aborrecida.
– Foi o web designer que escreveu isso.
– O seu chefe… como é que ele se chama? Frank Johnson?
– Nem lá perto. Glenn Schultz.
– Ele diz que muita da vigilância pode ser feita remotamente.
Glenn já estaria a par disto e não me informara?
Jack continuou.
– Ele diz que você pode ficar mais perto de mim e um segundo grupo
seguir-nos à distância.
– Mas se andar com uma agente atrás para onde quer que vá, a sua
família não vai perceber o que se passa, de qualquer maneira?
– Não.
Pus as mãos nas ancas.
– Porque não?
– Primeiro – enunciou Jack –, os meus pais são uns queridos e
surpreendentemente crédulos. E o meu irmão mais velho mal fala
comigo. Segundo, você não se parece nada com um guarda-costas. –
Inclinou a cabeça e mostrou-me o seu sorriso mais cativante. – E por
último… vamos dizer-lhes que você é minha namorada.

No escritório, Glenn ainda estava na sala de reuniões e metade da


equipa encontrava-se a trabalhar com ele. Todos estavam envolvidos no
arranque do projeto Jack Stapleton.
Não quis saber.
– Não – declarei a Glenn, investindo contra ele, sentado à cabeceira
da mesa de reuniões. – Cem por cento, absolutamente nem pensar.
Glenn nem sequer levantou a cabeça.
– Estamos a falar da situação da «namorada»?
– Há mais alguma coisa além disso?
– Não ultrapassa os nossos limites. Já fizemos coisas mais estranhas
por outros clientes.
– Tu já fizeste coisas mais estranhas por outros clientes – corrigi.
– Viste o homem de quem falamos. Será mesmo assim tão horrível?
– Não acredito que sabias disto e não me contaste nada.
– Achei que seria melhor que soubesses por aquela boca
mundialmente famosa.
– Bom, não foi melhor. Foi pior. Eu não estava minimamente
preparada. Nunca saí de casa de um cliente neste estado.
– Isso é culpa tua.
– Não, é tua, por não me avisares.
Glenn falou em tom razoável.
– Não te avisei porque não é, de modo algum, um problema tão
complicado como estás a dar a entender. O nível de ameaça dele é baixo.
Tem sido discreto. A imprensa não sabe que ele cá está. Paga-nos bem. É
a definição exata de um trabalho fácil.
– Então vai tu ser namorada dele! – exclamei.
Glenn entreabriu as narinas.
– Ou outra pessoa qualquer.
Kelly levantou de imediato a mão.
– Ofereço-me como sacrifício.
– Perfeito! Manda a Kelly – disse-lhe. – Ou a Taylor.
– Tu és a minha melhor agente – lembrou Glenn. – E isto vai ser
complicado.
– Acabaste de dizer que era literalmente um trabalho fácil.
– É ambos! É fácil e complicado! E preciso de um profissional
experiente. Tu.
– Não tentes dar-me graxa – rosnei.
Glenn inclinou-se para mim.
– Ouve. Ele não é próximo da família. Não estará assim tanto tempo
com eles. Qual é o problema de representares um bocadinho quando eles
estiverem por perto? Ao que parece, serão poucas ocasiões – questionou
em voz baixa.
– Glenn, a família é o único motivo para ele aqui estar.
Mas o meu patrão abanou a cabeça.
– Segundo soubemos, a relação entre ele e o irmão mais velho é
praticamente inexistente.
– E os pais?
– Isso não é tão claro. Seja como for, não passa muito tempo com
eles.
Eu não sabia que mais dizer para protestar.
– Tudo isto me parece errado.
Glenn não tirou os olhos de mim.
– Já fizeste trabalhos incógnita antes.
– Para o mundo exterior. Não para o cliente.
– A família não é o nosso cliente. O Jack Stapleton é que é.
– É a mesma coisa – declarei.
– Uma coisa é certa, não podes queixar-te de tédio – observou Glenn.
– Olá? – disse Kelly, acenando. – Eu disse que o fazia. Estou a
oferecer-me. Nem sequer precisas de me pagar. Eu pago-te.
– Não é ético – retorqui, olhando para ela. Mas Kelly apontou com as
duas mãos para a fotografia de Jack Stapleton que ainda se encontrava no
ecrã.
– Quero lá saber!
Seria mesmo pouco ético? Nesta área profissional, os princípios
morais eram um bocadinho difíceis de medir. A segurança privada
explodira nos últimos anos – em parte porque o mundo estava mais
perigoso para os ricos, e em parte porque essas mesmas pessoas eram
mais paranoicas. Os agentes tinham antecedentes distintos e treinos
diversos: ex-militares, ex-polícias, até ex-bombeiros, como Doghouse. A
maioria dos agentes trabalhava como freelancer. Não havia regras
generalizadas. Era o Oeste Selvagem, a bem dizer – toda a gente fazia
aquilo que achava que conseguia fazer sem ter problemas. Significava
uma maior liberdade, mas também mais risco – e muito mais aldrabices.
No fundo, a nossa responsabilidade era para com os clientes.
Tínhamos de os manter felizes e, na maior parte do tempo, fazer o que
eles queriam. Uma vez, um cliente pediu-me que pagasse a sua conta do
bar – sete mil dólares. Outra vez, fiz paraquedismo em queda livre com
uma princesa belga. Passei uma noite a tomar conta da pantera de um
cliente. Seria esta situação com Jack Stapleton realmente assim tão mais
estranha?
Estávamos sempre ao dispor do cliente, é o que estou a dizer. Pelo
menos, se queríamos ser pagos.
É provável que todos os presentes na sala vissem a situação
claramente, exceto eu. Se Jack Stapleton queria uma namorada a fingir,
teria uma namorada a fingir. E se eu queria trabalhar para Jack Stapleton,
então era isso que tinha de ser.
– A questão – continuou Glenn – é que é uma excelente oportunidade
para ti.
– E dinheiro para ti.
– Para todos nós.
Eu ainda não estava convencida.
– Não conseguimos fazer um trabalho decente com estes parâmetros.
– Será mais difícil, sim – admitiu Glenn. – Mas não te esqueças de
uma coisa: o nível de ameaça é quase branco.
Olhei para ele de lado.
– É amarelo.
Kelly interveio.
– Mas um amarelo muito clarinho. Quase como sorvete de limão.
Glenn apontou para Kelly.
– Não te quero a dar nomes fofinhos aos tons dos níveis de ameaça.
Glenn não estava a levar-me a sério. Por isso, disse-lhe:
– Acho que estou a ver cifrões nos teus olhos.
Era um teste. Para ver como ele reagia.
Já vos disse que consigo ler expressões, certo? Pela maneira como o
seu maxilar se contraiu, percebi que Glenn se sentira insultado. Foi o que
me fez começar a ceder. Ele estava verdadeiramente convencido de que
nós conseguíamos lidar com isto.
– Julgas que quero queimar-nos? – perguntou Glenn. – Todas as
nossas reputações estão aqui em jogo… principalmente a minha. Estou a
dizer que é exequível. Há estratégias para que resulte.
Suspirei.
– Que estratégias?
– Uma equipa de apoio remoto, para começar. Tecnologia de
vigilância topo de gama. Tu serás os olhos e os ouvidos no interior, com
equipas de apoio completas no exterior, vinte e quatro horas por dia.
Eu conseguia perceber a ideia dele.
Depois, Glenn subiu a parada.
– A questão é que, se queres ter alguma hipótese de ficar com o
trabalho de Londres, tens de alinhar.
– Portanto, vou fazer isto, quer queira quer não.
– Basicamente. Mas seria muito melhor se quisesses.
Olhei em volta. Todos olharam para mim. Porque é que eu estava a
levantar tantas dificuldades, afinal?
– E que tal se fizermos assim? – propôs Glenn; ambos estávamos
cientes de que era ele que detinha todo o poder. – Fazes isto sem queixas
e na próxima missão mando-te para onde quiseres. Podes escolher.
Aquele encargo na Coreia está de novo ativo. Queres ficar com essa
incumbência? É tua.
Eu andava ansiosa por outra missão na Coreia desde que a anterior
fora cancelada.
– Por acaso, quero mesmo a Coreia – confessei.
– Feito – fechou Glenn. – Seis semanas em Seul. Tigelas e tigelas
sem fim de noodles de feijão preto.
Refleti na possibilidade durante alguns instantes.
– É um sim? – pressionou Glenn. – Estamos combinados? Acabaram-
se as lamúrias?
Estava prestes a ceder e quase a chegar a acordo… quando ouvi a voz
de Robby atrás de mim.
– Estás a falar a sério? – disse Robby. – Isto nunca resultará.
Toda a gente o fitou. Robby nunca tivera o melhor sentido de
oportunidade. E agora olhava em volta da sala como se estivessem todos
loucos.
– Estão a brincar, certo? Isto só pode ser brincadeira.
Estaria preocupado com a minha segurança? Seria um protesto pela
forma como Glenn me pressionara? Teria – talvez – ciúmes?
Estudei as camadas de ultraje no seu rosto.
E foi então que Robby esclareceu todas as minhas dúvidas. Esticou as
mãos para mim, como que a reclamar uma observação atenta, e
exclamou:
– Olhem para ela! Ninguém, no seu perfeito juízo, nem daqui a um
milhão de anos, acreditará alguma vez que esta pessoa, que veem aqui,
superou a lendária Kennedy Monroe na posição de namorada do Jack
Stapleton.

Primeiro, o mais importante. Podíamos resolver a questão de Jack


Stapleton mais tarde.
Voei os dez passos que me separavam de Robby, agarrei-o pela
gravata com tanta força que lhe tirei aquele ar pomposo, superior e
imbecil da cara, e arrastei-o pelo pescoço até à receção.
A minha esperança era conseguir gritar com ele a sós. Mas claro que
os outros vieram todos atrás. Só que eu estava demasiado zangada para
me preocupar com isso.
– Qual é o teu problema? – inquiri, depois de o largar, enquanto ele
tossia e arquejava. – A última vez que te vi, deste-me com os pés.
Durante um mês inteiro não soube nada de ti, e agora apareces aqui e
ages como se eu é que te tivesse tratado mal? É assim que queres
competir por Londres? Com insultos e ofensas, como um miúdo de
escola? O que é que se passa… – e aqui encostei o indicador à sua testa –
… nesse teu cérebro ensopado em testosterona, do tamanho de uma
ervilha, para não conseguires parar de me insultar? Em frente de toda a
gente! O. Que. É. Que. Se. Passa. Contigo?
Todos os espetadores da conversa, meio escondidos atrás de uma
planta, esperaram pela resposta de Robby.
Porém, antes que ele conseguisse dizer alguma coisa, o elevador fez
ding e as portas abriram-se.
E dele saiu Jack Stapleton.
É impossível exagerar quão dramático foi o suster de respiração
coletivo perante o Destruidor em pessoa, em carne e osso, a entrar nos
nossos escritórios.
Eu, claro está, já o tinha conhecido. Tinha pressionado os dedos dele
numa almofada com tinta. Obrigara-o a copiar a letra da canção
«Respect», de Aretha Franklin, para ficar com uma amostra da sua
caligrafia. Espetara-lhe uma agulha. E podia, ou não, ter-lhe deslocado
um ombro.
Assim, não fiquei tão chocada como os outros de o ver. No entanto,
ainda assim, fiquei um pouco perturbada.
A mesma T-shirt, as mesmas calças de ganga – mas hoje trazia
também um boné de basebol e ténis. Parecia normal o bastante para
envergonhar qualquer pessoa normal. Olhei para os meus colegas, que o
fitavam com ar de assombro: Amadi, o melhor aluno da sua escola
secundária e agora pai de três filhos, um coração mole; Kelly, que
tricotava quando estava stressada e já tinha feito cachecóis para toda a
gente do escritório; Doghouse, o ex-bombeiro que recebera essa alcunha,
não por estar sempre de castigo, mas porque não parava de acolher
temporariamente cachorrinhos sem dono.1
A presença de Jack Stapleton no escritório fazia com que todos eles
parecessem mais reais. E eles faziam-no parecer… irreal.
Esperámos que fizesse alguma coisa.
Entretanto, ele viu o meu dedo encostado à testa de Robby e
perguntou:
– Está a maltratar esse seu pobre colega de trabalho?
Baixei a mão.
– O que faz aqui?
Ele pousou os olhos em mim, iluminou aqueles lendários olhos azuis-
acinzentados e disse:
– Hannah Brooks. Preciso mesmo de si.
Junto da máquina fotocopiadora, Kelly soltou uma pequena
exclamação deliciada por mim.
Jack aproximou-se alguns passos.
– Preciso de pedir desculpa por não lhe ter contado tudo mais cedo. E
preciso de dizer que compreendo as suas hesitações. E… – aqui,
ajoelhou-se na carpete industrial – … preciso de lhe pedir que seja minha
namorada.
Todas as pessoas na sala ficaram paralisadas.
– Levante-se do chão – ordenei eu, tentando agarrá-lo pelos ombros
e… sei lá, içar cem quilos de músculo maciço? – Não precisa de fazer
isto.
Mas ele era inamovível.
– Preciso mesmo da sua ajuda – continuou. – Tenho de estar aqui para
apoiar a minha mãe, e não posso aparecer e trazer comigo perigo, ou
riscos ou… enfim… assassinatos. E não posso tornar este momento
ainda mais difícil para ela do que já é. Por favor, por favor, aceite o
trabalho. E, por favor, ajude-me a protegê-la, escondendo quem
realmente é.
– O que está a fazer? – foi tudo o que me ocorreu dizer.
Ele puxou as minhas mãos para as suas.
– Estou a implorar – respondeu Jack. – Estou a pedir-lhe por favor.
A sua expressão era tão sincera, tão suplicante, tão intensa… que por
um segundo, achei que ele ia chorar.
E fiquei atónita. Outra vez. Pela segunda vez nesse dia. Porque
ninguém chora como Jack Stapleton.
Lembram-se como ele chorou em Os Destruidores? A maior parte das
pessoas recorda-se do momento em que ele faz explodir o poço da mina.
E, claro, a cena em que faz uma cirurgia a si próprio sem anestesia. E da
frase que ficou famosa: «Nunca digas adeus.» Mas o que realmente
tornou esse filme fantástico foi ver o herói de ação, no seu momento mais
sombrio, convencido de ter perdido todos os que amava e de lhes ter
falhado de forma incompreensível, a derramar lágrimas de dor. É algo
que nunca se vê, nunca. Foi isso que tornou o filme num clássico. É isso
que o torna melhor do que as centenas de filmes do mesmo género –
aquele momento humano de pura vulnerabilidade, da parte do tipo que
menos esperamos. Fez com que todos quiséssemos ser melhores. Fez
com que todos o amássemos – e à humanidade – um bocadinho mais.
Enfim. Esta cena na receção foi um pouco como isso.
Mas com plantas em vasos.
No fim, ele acabou por não chorar. Mas a mera sugestão era mais do
que suficiente.
Jack Stapleton – Jack Stapleton – estava ali, de joelhos. A implorar.
E a verdade é esta: era quando eu devia ter tido uma epifania, a
certeza de que Jack Stapleton merecia toda a fama que tinha e mais
ainda. Porque tudo o que ele fez naquele momento deixou-me – e a toda
a gente – como que hipnotizada.
O homem era bom ator.
Inclinou o tronco para a frente e ergueu os olhos para mim, de mãos
postas.
– Estou a implorar-lhe que ajude a minha mãe doente – pediu.
Quer dizer, poupem-me! Não sou de pedra.
– Está bem – respondi, com falsa indiferença, digna, ela própria, de
um Óscar. – Não é preciso implorar mais. Serei a sua namorada.
E depois olhei de relance para a expressão estupefacta na cara
miserável, deplorável de fuinha do meu terrível ex-namorado.
Para ser franca, pareceu-me uma vitória dos bons.
E da humanidade.
E, principalmente, por fim, para mim.

1
Doghouse pode ser traduzido como «casota de cão», e é também uma
expressão que significa ter caído em desgraça com alguém. (N. da T.)
Sete
Na manhã seguinte, dirigimo-nos para oeste pela autoestrada 10, no
Range Rover preto reluzente de Jack Stapleton, para eu – agora já
totalmente embrenhada na personagem de namorada dele – ir conhecer
os seus pais.
Glenn mandara-me um guarda-roupa falso para a namorada falsa,
cortesia de uma amiga sua que trabalhava como personal shopper. Os
fatos de calça e casaco estavam proibidos, o que era compreensível. Foi
assim que dei por mim com um vestido de verão bordado e sandálias, o
cabelo preso num carrapito largo e descuidado. Só que é difícil uma
pessoa sentir-se profissional com um vestido veranil com mangas em
balão. Era final de outubro, note-se, mas no Texas isso pode significar
uma enorme amplitude em termos de meteorologia: por exemplo,
naquele momento estavam uns bons vinte e cinco graus na rua. Ainda
assim, eu sentia-me despreparada, um bocadinho arrepiada,
estranhamente despida e invulgarmente vulnerável.
Sentia falta do meu fato de calças e casaco, é o que estou a dizer.
No entanto…
Compreendia por que razão Jack queria fazer as coisas desta maneira.
Quando a minha mãe estava doente, tudo o que eu queria era animá-la,
não a deixar perder a esperança e protegê-la do desespero. Eu percebia. A
ideia de Jack estar em perigo podia ser motivo de grande stress. Já
bastava estar doente.
Eu refletira sobre o assunto na noite anterior, enquanto percorria a
autoestrada – durante uma rápida avaliação do caminho até ao rancho e
de regresso –, e decidira que estava disposta a isso.
Pelo menos, em teoria.
Hoje, agora que estava mesmo a acontecer, não me sentia tão à
vontade. Sentada no banco do passageiro, muito direita e aprumada, de
joelhos juntos, não me sentia nada eu própria.
Jack Stapleton, em contraste, ia quase recostado no banco atrás do
volante, a conduzir com uma só mão, de pernas abertas à campeão,
cabelo revolto de forma desafiadora e a mascar pastilha elástica, com
tanta descontração como se já tivesse nascido com os óculos escuros à
aviador.
Como íamos para um rancho, creio que esperara vê-lo num visual à
cowboy. No entanto, parecia mais que ia a caminho de um fim de semana
em Cape Cod – polo azul justo e calças de caqui cor de pedra, com
mocassins sem meias.
É verdade que cresci em Houston. Talvez imaginem que eu já tinha
estado num rancho antes. Mas, para dizer a verdade, não. Já estive na
Torre Eiffel, na Acrópole, no Taj Mahal e na Cidade Proibida em Pequim,
mas nunca tinha estado num rancho texano.
Suponho que andei sempre demasiado ocupada a escapar.
Até agora.
Toquei na pele dos joelhos, preocupada ao constatar como estavam
expostos. Deveria ter vestido calças de ganga? Teria de me preocupar
com cascáveis? Formigas? Catos?
Tinha um par de botas de cowboy, encarnadas como semáforos, que a
minha mãe me oferecera no meu décimo oitavo aniversário, convicta
como estava de que todas as raparigas do Texas deviam possuir um par
de botas. Mas nunca tivera um bom motivo para as usar antes. Não
faziam parte do meu guarda-roupa oficial de namorada, mas trouxera-as
comigo por uma questão de princípio. Certo? Se não as usasse num
rancho, nunca as usaria em lado nenhum. Se calhar devia calçá-las.
Mesmo que não fosse pelo estilo, pelo menos, para me proteger das
tarântulas.
Por detrás dos óculos escuros, vi Jack lançar um olhar rápido às
minhas mãos.
– Estás nervosa? – perguntou.
Sim.
– Não.
– Ótimo. Isto não vai demorar muito. Os meus pais ficarão felizes por
me ver, mas o meu irmão odeia-me, por isso vai despachar-nos o mais
depressa que puder.
– Provavelmente teremos de falar sobre isso.
– Sobre o meu irmão?
– Sim.
– Não.
– Estou só a dizer que quanto mais souber, mais posso ajudar.
– Então o vosso serviço inclui terapia?
– Às vezes.
– Assinaste um acordo de confidencialidade, certo?
– Claro que sim.
Jack pensou no assunto.
– Pois. Mesmo assim, não vou falar sobre este assunto.
– Tu é que sabes – disse. Eu ficara tão atrapalhada no nosso encontro
inicial que me esquecera de lhe fazer o Questionário Muito Pessoal, e
esta parecia uma altura tão boa como outra qualquer. Tirei da mala a
minha pasta rotulada com as iniciais dele. – Vamos aproveitar e
despachar aqui outras questões. – Ainda tínhamos meia hora de
autoestrada. Jack não concordou em responder, mas também não recusou.
Peguei numa esferográfica.
– Consomes regularmente alguma droga ou medicamento de que seja
necessário termos conhecimento?
– Não.
– Algum vício? Jogo? Prostitutas? Roubar nas lojas?
– Não.
– Obsessões? Amantes secretas?
– De momento, não.
– Pareces-me muito monástico, para um ator mundialmente famoso.
– Estou a fazer uma pausa nessa vida.
Entendido. Continuei.
– Problemas de controlo de raiva? Segredos sombrios?
– Não mais do que qualquer outra pessoa.
Nota mental: resposta um bocadinho evasiva.
Olhei de novo para a lista.
– Problemas de saúde?
– Sou a saúde em pessoa.
– Marcas distintivas?
Ele franziu a testa.
– Que marcas?
– No corpo – esclareci. – Tatuagens. Sinais de nascença. Verrugas…
estranhas ou nem por isso.
– Tenho uma sarda no feitio da Austrália – disse ele, e começou a
puxar a camisola de dentro das calças.
– Não é preciso mostrares-me! – interrompi. – Eu sei como é a
Austrália. – Escrevi «sarda Austrália» e continuei: – Cicatrizes?
– Algumas. Nada de muito especial.
– Mais à frente, vou precisar de tirar fotografias de tudo.
– Porquê?
Recusei-me a hesitar.
– Para o caso de termos de identificar o teu corpo.
– O meu cadáver?
– O teu corpo vivo. Por exemplo, numa foto a pedir resgate. Não que
a situação alguma vez chegasse a esse ponto.
– Isso é perturbador.
Continuei:
– Outras anomalias físicas?
– Como por exemplo?
A maioria das pessoas limitava-se a responder.
– Não sei. Dedos dos pés tortos? Um dente a mais? Uma cauda
vestigial? Tenta ser criativo.
– Não me lembro de nada.
Muito bem. Próxima.
– Dificuldade em dormir?
Esperei que ele pedisse exemplos, mas, após uma breve pausa, disse
apenas:
– Tenho pesadelos.
Acenei. Entendido.
– Com frequência?
– Uma ou duas vezes por mês.
Assim tantas?
– Recorrentes?
– O quê?
– É sempre o mesmo pesadelo?
– Sim.
– Podes dizer-me do que se trata?
– Precisas de saber?
– Mais ou menos.
Ele manobrou o volante enquanto pesava as suas opções. Por fim,
respondeu:
– Afogamento.
– Está bem. – Era apenas uma palavra, mas parecia significar muito.
Próxima pergunta. – Alguma fobia?
Uma pausa. Seguida de um aceno seco.
– Afogamento, também.
Apontei isso no ficheiro dele e preparava-me para passar à frente
quando ele acrescentou:
– E pontes.
– Tens medo de pontes?
Ele respondeu, num tom forçadamente casual:
– Tenho.
– De pensar em pontes ou de pontes propriamente ditas?
– A segunda hipótese.
Hum, certo.
– Como é que isso se manifesta?
Jack mordeu o interior do lábio enquanto pesava as suas opções e
decidia até onde queria partilhar.
– Bom, dentro de mais ou menos vinte minutos vamos chegar à parte
da autoestrada que passa por cima do rio Brazos. E quando isso
acontecer, eu vou parar, sair do carro e atravessar a ponte a pé.
– E o carro?
– Terás de o conduzir e esperar por mim do outro lado da ponte.
– E é sempre assim que atravessas pontes?
– É assim que prefiro atravessá-las.
– E se estiveres sozinho?
– Tento não estar.
– Mas se estiveres?
– Se estiver, sustenho a respiração e atravesso. Mas a seguir tenho de
parar o carro um bocado.
– Porquê?
– Para vomitar.
Registei a informação. Depois, perguntei:
– Porque é que tens medo de pontes?
– Tenho de responder?
– Não.
– Nesse caso, digamos apenas que as infraestruturas americanas não
são tão robustas como todos gostamos de acreditar. E ficamos por aqui.

Não chegámos a concluir o questionário.


Quando nos aproximámos da ponte sobre o Brazos, Jack realmente
parou o carro na berma um pouco antes, saiu do Range Rover e
atravessou a pé.
Eu fiz a minha parte: levei o carro e parei do outro lado. Esperei por
ele, encostada ao capô, sacudida pela deslocação do ar dos camiões que
passavam a toda a velocidade, a observar a tensão no rosto dele e a
concentração nos seus olhos enquanto caminhava em linha reta de uma
margem à outra.
Uau! Quantas pessoas teriam passado por um peão a caminhar por
uma ponte na autoestrada, sem nunca se aperceberem de que era a
megaestrela Jack Stapleton?
Quando chegou ao pé de mim, estava pálido e tinha a testa húmida de
suor.
– Não estavas a brincar – comentei.
– Nunca brinco sobre pontes.
Voltou a sentar-se atrás do volante, abriu as janelas e, com isso,
voltou a ser o tipo descontraído e relaxado que tinha tudo na vida.
– Fizeste-me muitas perguntas hoje – notou. – E eu não te fiz nem
uma.
– E é assim que deve ser.
– Não posso perguntar-te nada?
– Podes perguntar… – respondi, com um encolher de ombros que
pretendia transmitir que não era eu que fazia as regras. No entanto, a
pergunta que ele me fez não era a que eu estava à espera.
Virou a cabeça e mirou-me de alto a baixo.
– Alguma vez representaste?
Tendo em conta para onde nos dirigíamos naquele momento e aquilo
em que eu aceitara participar, era provavelmente uma pergunta a que
devia responder. Para variar.
Pensei um pouco.
– Já representei vários animais de estábulo em algumas peças de
Natal.
– Portanto, a resposta é não.
Tentei dar-lhe alguma coisa.
– O meu trabalho tem alguns elementos de representação. Às vezes
tenho de desempenhar uma espécie de papel em certas situações. Mas, na
maior parte do tempo, o que faço é confundir-me com o cenário ou dar
ares de assistente pessoal.
Jack acenou com a cabeça, pensativo.
– Mas nunca nada tão… pormenorizado como isto.
– Está bem – disse ele, ainda a pensar. – Vou dizer-lhes que és minha
namorada e isso deve bastar em termos gerais. Depois de estar
estabelecido, eu farei a maior parte do trabalho. Quer dizer, quem é que
diz que tem uma namorada se não for verdade? Tudo o que tens de fazer
é ser simpática.
– Ser simpática – repeti, como se estivesse a tirar apontamentos.
– Sim. Não precisas de decorar falas nem de declamar um solilóquio.
Não é Shakespeare. Age de forma normal e o contexto fará o resto.
– Então não tenho de agir como se estivesse perdidamente
apaixonada por ti?
Ele fitou-me de relance.
– Só se quiseres.
– E se eles não acreditarem? Que eu sou tua namorada?
Só me apercebi de como a pergunta me fazia sentir vulnerável depois
de a fazer. Mas Jack respondeu com um aceno confiante.
– Vão acreditar.
– Porquê?
– És mesmo o meu tipo.
Não resisti.
– Gostas de empregadas de limpeza, é?
Ele apontou para mim.
– Isso foi um engano justificado.
Na verdade, eu não fazia ideia de como ia fazer-me passar por
namorada de Jack Stapleton. Não acreditava, nem por um segundo, que
fosse o tipo de mulher de que ele gostava. Pesquisara-o no Google e vira
Barbies suficientes para uma vida. Uma delas fizera nitidamente tanta
cirurgia estética que fiquei a pensar que a mãe devia ter saudades da cara
dela.
Para não mencionar Kennedy Monroe.
– Ah… – comecei. – E a tua namorada verdadeira?
– Como assim, a minha namorada verdadeira?
Suspirei.
– Os teus pais são capazes de reparar que não sou a Kennedy Monroe.
Jack riu-se baixinho. Depois disse:
– Os meus pais não prestam atenção a essas coisas.
– Estás a dizer que eles não sabem que namoras com a Kennedy
Monroe? Vocês apareceram na capa da revista People! Com camisolas
iguais!
– É possível.
– Na verdade, não é. Não há ninguém que não saiba disso.
Jack pensou um pouco e depois encolheu os ombros.
– Se eles perguntarem, eu digo-lhes que acabámos. Mas não vão
perguntar. Sabem que em Hollywood nada é real.
Kennedy Monroe não seria real? De súbito, tive vergonha de
perguntar. Tentei imaginar como é que alguém acreditaria que Jack
reduzira os seus padrões, de Kennedy para mim. Até que ponto seriam os
pais dele crédulos? Estariam em coma?
O som da voz de Robby a dizer que eu nunca conseguiria representar
este papel ecoou-me na mente, e fiquei irritada por estar a concordar com
ele.
Mas aqui estávamos nós.
Jack continuou a matutar no assunto.
– Acho que a melhor opção é sorrires muito.
Não parecia demasiado difícil.
– Sorri sempre. Para eles. Para mim. Até te doerem as bochechas.
– Entendido.
– E o que dizes de eu te tocar?
O que dizia eu de Jack Stapleton me tocar?
– De que tipo de toques estamos a falar?
– Bom, normalmente, com as minhas namoradas… eu diria que
costumo tocar-lhes bastante. Sabes como é. Quando gostamos de alguém,
queremos estar sempre a tocar-lhe.
– Claro – respondi.
– E isso podia trazer um pouco mais de autenticidade.
– De acordo.
– Posso, por exemplo, dar-te a mão?
Não era difícil.
– Sim.
– Posso… passar o braço pelos teus ombros?
Outro aceno.
– É aceitável.
– Posso murmurar-te ao ouvido?
– Isso talvez dependa do que disseres.
– Se calhar o melhor é perguntar: há alguma coisa que não queres que
eu faça?
– Bom, preferia que não te despisses.
– Enquanto estivermos com os meus pais – respondeu ele –, isso é
garantido.
– Refiro-me de uma maneira geral – insisti. – Nada de nudez
surpresa.
– De acordo. E o mesmo da tua parte.
– E não imagino que seja preciso beijares-me…
– Já tinha pensado nisso.
Ele já tinha pensado nisso?
– Podemos usar o beijo encenado – sugeriu. – Se nos virmos
atrapalhados.
– O que é um beijo encenado?
– É como se faz nas peças de teatro. Parece um beijo, mas as bocas
não chegam a tocar-se. Por exemplo, eu podia segurar-te no rosto e beijar
o meu polegar. – Tirou a mão do volante e beijou o polegar para
exemplificar.
Ah!
– Está bem.
– Se calhar é melhor não arriscarmos isso hoje.
– Pois.
– Requer algum treino.
Treinar beijos falsos com Jack Stapleton.
– Entendido. – Depois, acrescentei: – E, obviamente, se precisares de
me beijar mesmo, por alguma razão… não há problema. Quer dizer, não
me importo, se for necessário. Isto é, não ficarei zangada.
Valha-me Deus. Parecia maluquinha.
– Certo – registou Jack, passando à frente como se encontrasse este
tipo específico de doidice a toda a hora. O que provavelmente era
verdade. – O que estou a dizer é que agradeço o que estás a fazer por
mim… e pela minha mãe… e não quero deixar-te constrangida.
– Obrigada.
– Tentarei não cometer nenhum excesso, mas, se fizer asneira, avisa-
me.
– Igualmente.
Esclarecida a questão, Jack levantou o volume do rádio, abriu o teto
do carro e desembrulhou uma nova pastilha de canela.
Oito
O rancho dos Stapletons ficava depois de muitas estradas labirínticas,
nas profundezas da região agrícola. Passámos por plantações de milho e
algodão e por pastos repletos de vacas. Até avistei uma manada da raça
Texas Longhorns, que nunca vira ao vivo.
Quando chegámos, Jack virou para um caminho de cascalho com
oitocentos metros que começava numa cerca, atravessava um campo
aberto e parecia nunca mais acabar.
– O rancho é grande? – perguntei, começando a suspeitar de que não
era pequeno.
– Duzentos hectares – respondeu ele.
A imensidão do tamanho, de alguma forma, tornou tudo mais real.
Isto era um sítio verdadeiro. As cercas de arame farpado eram genuínas.
Viviam ali seres humanos de carne e osso. Isto estava mesmo a acontecer.
No entanto, acabou por não acontecer.
Não chegámos à casa.
Vi a casa do rancho à distância – branca, com telhas vermelhas –, mas
a meio do caminho de cascalho avistámos um tipo nos campos que só
podia ser o irmão de Jack. Não quero dizer que era uma versão mais
banal de Jack Stapleton, mas é mais ou menos isso. O mesmo maxilar. A
mesma postura. Vestia calças castanhas e uma camisa aos quadrados e
um boné azul.
– É o teu irmão? – perguntei.
Jack assentiu.
– Sim. Apresento-te o gestor do rancho dos meus pais e meu inimigo
figadal, Hank Stapleton.
Jack parou o carro e travou-o ali mesmo no caminho estreito. Vimos
Hank tirar um fardo de palha da caixa de uma carrinha e largá-lo junto
dos pés. Depois levantou a cabeça e viu-nos.
Parou e olhou. Não acenou. Não caminhou em direção a nós.
Simplesmente tirou as luvas de trabalho e observou-nos, cauteloso, como
se tivesse visto um coiote ou coisa parecida. E posso dizer-vos isto: assim
que os olhos daqueles dois se cruzaram, todos os músculos no corpo de
Jack ficaram tensos. Foi uma reação puramente animal.
Irmãos pouco chegados? Sim, podia dizer-se que sim.
Pensei nos boatos que Kelly nunca conseguira confirmar. O acidente
de automóvel. A hipótese de Jack estar a conduzir depois de ter bebido.
Seria possível que Hank Stapleton acreditasse estar a olhar para um
assassino que pegara num carro enquanto estava embriagado e
posteriormente abafara todo o sucedido para salvar a carreira?
Claro que sim.
Uma coisa era certa, Hank não estava a olhar para alguém que ficara
feliz por ver.
– Espera aqui – pediu Jack. E, quando saiu do carro e começou a
atravessar o campo na direção do irmão, havia sem qualquer dúvida no ar
uma atmosfera de tiroteio no faroeste. Quase consegui ouvir a banda
sonora de um western de terceira.
Iriam mesmo lutar aqui, Jack sem meias e de mocassins italianos,
como o urbano cheio de sofisticação que era?
Pus os dedos na maçaneta da porta, pronta para sair se Jack precisasse
de mim. Depois, esperei e observei. Deveria tentar ouvir a conversa?
Com toda a certeza.
Abri as janelas e desliguei o motor – e, ao princípio, pensei que
mesmo assim não conseguia ouvi-los. Mas depois percebi que eles não
estavam a falar. A menos que o silêncio hostil conte como uma espécie
de conversa.
Por fim, Hank disse:
– Vejo que trazes comitiva.
– É só a minha namorada.
Hank olhou rapidamente na minha direção.
– Não é nada parecida com a Kennedy Monroe.
Encolhi-me por dentro. A quem o dizes.
Jack abanou a cabeça.
– Tens de deixar de ler a People. Acabámos.
– Não pões aqui os pés há dois anos e agora apareces com uma
namorada nova qualquer?
– Para tentar equilibrar as equipas.
– Para que conste, não te quero aqui.
– Para que conste, já sabia.
– Foi a mãe que insistiu. E o pai quer o que a mãe quiser.
– Também sabia disso.
– Não preciso que tornes as coisas mais complicadas para ela do que
já são.
– Concordo.
Um longo silêncio. O que estavam eles a fazer?
Então, Hank disse:
– De qualquer maneira, podes voltar para a cidade. Ela hoje não está
em condições de receber visitas.
Jack olhou para a casa. Depois novamente para Hank.
– É a opinião dela ou a tua?
– Ela está na cama, com as cortinas corridas, portanto, parece-me que
concordaria.
– E onde está o pai?
– Com ela.
Quando Jack voltou a falar, foi em tom seco.
– Podias ter-me avisado antes de eu fazer este caminho todo.
Uma pausa.
– Já não tenho o teu número. Apaguei-o.
É possível que tenham dito mais alguma coisa depois disso, mas
confesso que não consegui ouvir. Porque nesse momento, do nada, como
se saída de um filme de terror, apareceu uma cara gigante na minha
janela aberta.
Uma cara branca e gigante… de vaca.
Estava tão perto que senti o seu hálito húmido e estranho a banhar-me
a pele. Não quero insinuar que a vaca veio sub-repticiamente para me
apanhar desprevenida, mas a verdade é que o campo estava deserto até
esse momento e depois, de repente… bum!
Quais eram as intenções da vaca? Nunca saberemos.
Mas, num segundo, ali estava ela. E um instante depois a cara entrou-
me pela janela aberta e lambeu-me o braço. Com a sua língua verde e
áspera.
Talvez tenha gritado. Ou talvez não. As minhas memórias daquele
momento são vagas. Mas é certo que emiti um ruído qualquer, alto o
suficiente para a vaca – e, aparentemente, o resto da manada – se afastar
alguns passos antes de parecer ficar sem energia, altura em que parou e se
virou para olhar para mim.
Nesta altura, dei por mim dentro do Range Rover, cercada por uma
manada de vacas brancas, de papada flácida e cara triste.
E não vou fingir que não foi assustador.
Claro que as vacas não são, regra geral, consideradas criaturas
aterrorizadoras. Mas eis aquilo que nunca percebemos quando as vemos
em pacotes de leite, ou na televisão, ou mesmo num campo qualquer à
distância: as vacas… são… enormes.
Faziam com que Jack Stapleton parecesse pequeno.
Assim, embora eu estivesse seguramente protegida dentro de um
SUV de luxo, senti o meu coração a bater mais depressa. Estava rodeada
delas. Cem? Mil? Muitas, isso era certo. Todas com olhos pretos
límpidos, de pestanas surpreendentemente femininas, que me
trespassavam diretamente até à alma.
O som que fiz, qualquer que tenha sido, chamou também a atenção de
Jack.
Ao ouvir-me, virou-se e começou a correr para o carro – e a
expressão de genuína preocupação que vi no rosto dele só intensificou a
minha ansiedade.
Em minha defesa, eis os factos tal como os vivenciei:

1. Fui atacada por uma vaca.


2. Está bem, admito. Dei um grito.
3. Jack Stapleton veio a correr.

Não parece motivo de preocupação?


Ao aproximar-se da manada, Jack abrandou o passo sem tirar os olhos
de mim. Penetrou na multidão de animais e caminhou calmamente entre
eles até chegar à porta do condutor.
Entrou no carro.
– O que aconteceu? – perguntou-me então, fitando-me de alto a baixo
com uma expressão intensa.
Pestanejei como se fosse evidente.
– Estás ferida? O que foi?
– O que foi? – repeti. – Olha em volta!
Jack olhou, mas parecia não estar a ver nada.
– Estou à procura do quê?
– À procura do quê? – questionei, e estendi o braço, descrevendo um
arco panorâmico como que a pedir-lhe: «Contempla o terror em todas as
direções.»
A expressão dele começou a alterar-se.
– Estás a falar… – e depois abanou ligeiramente a cabeça, como se
não acreditasse na sugestão que lhe saía dos lábios – … das vacas?
Sem o desfitar, acenei afirmativamente.
– As vacas? – insistiu Jack. – Foi mesmo por isso que gritaste?
Tentei recalibrar.
– Caso não tenhas reparado, estamos completamente cercados.
– Sim – disse ele. – Por vacas.
Senti que o tom dele estava a mudar, mas não consegui identificar
para o quê.
– São milhões delas – reforcei.
– Para ser exato, são trinta – corrigiu-me ele. – Uma manada.
– E elas são… – Não sabia bem como havia de me explicar. –
Ferozes?
Jack semicerrou um pouco os olhos.
– Parecem-te ferozes?
Verifiquei de novo: ali estavam elas, destemidamente a olhar para
nós.
– Parecem ter uma postura algo agressiva.
Jack virou-se para mim, fascinado.
– Tens medo destas vacas?
– Não vou responder.
– Tu, que me atiraste ao chão quase sem esforço?
– Estas vacas fazem com que pareças um boneco em miniatura.
– Mas sabes que as vacas são criaturas pacíficas, certo?
– Já ouvi falar de pessoas espezinhadas por vacas. Acontece.
– Bom, sim. Se tropeçares e caíres em frente de uma vaca que já está
a correr, talvez. Mas na escala de agressividade… – Inclinou a cabeça e
pensou nisso. – Não. Nem sequer constam da escala.
Senti que tinha de me defender.
– Não fui só eu que me assustei. Tu vieste a correr como um tiro.
– Sim, porque gritaste.
– E porque pensaste que eu estava a gritar?
– Sei lá. Uma serpente venenosa? Ataque de formigas vermelhas?
Vespas assassinas? Alguma coisa mais assustadora do que vacas?
Mas eu não podia ficar do lado de mais ninguém senão de mim
própria. Comprometida, declarei:
– Uma delas atacou-me.
– Define «atacou-me».
– Lambeu-me. Com intenção.
Agora ele tentava conter um sorriso.
– Queres dizer, como se quisesse… o quê? Comer-te?
– Quem sabe qual era o objetivo dela?
– Espezinhada por uma vaca, talvez já tenha acontecido. Comida por
uma vaca de certeza que não aconteceu… nunca, em toda a história da
humanidade.
– A questão é que fui lambida. Por uma língua verde. Nem sequer
sabia que as vacas tinham línguas verdes.
A expressão de Jack era agora claramente divertida. Fechou os olhos
e voltou a abri-los.
– A língua das vacas não é verde. É o bolo ruminal.
Olhei para ele, sem compreender.
– Erva – explicou Jack. – Erva regurgitada.
– O quê?! – Agitei-me no banco, tentando limpar ao vestido o braço
já mais do que seco.
Ao ver isto, Jack desatou a rir. Inclinou-se para a frente e encostou a
testa ao volante, e vi-lhe os ombros sacudidos pelo riso.
– O que foi? – protestei. – É mesmo nojento.
Isto só o fez rir mais.
– Qual é a piada?
Ele endireitou-se e encostou a cabeça ao banco, ainda a rir.
– Tu teres medo de vacas.
– Ah, não sei se percebeste, mas… estamos em inferioridade
numérica. – Olhei em volta. – E totalmente cercados. Quer dizer, o que
acontece agora? Temos de ficar aqui a viver?
Jack continuou a rir.
– Pensei que fosse uma aranha armadeira, pelo menos.
– Julgas que eu teria medo de uma aranha?
– Já percebi que nunca viste uma aranha armadeira.
– Podemos sair daqui, por favor?
– Agora quase que quero ficar. Isto dava um reality show. – O seu
rosto abriu-se num grande sorriso. – Eu aposto nas vacas para ganhar.
Fulminei-o com o olhar até ele engatar o carro e avançar lentamente
por entre a manada. Tapei os olhos com a mão, mas, um segundo depois,
não resisti a espreitar. A manada estava a mover-se para nos deixar
passar, a desviar-se do caminho com perfeita indiferença.
Enquanto saía do cascalho para o campo, e fazia uma inversão de
marcha larga por cima de formigueiros e silvas, Jack não parou de rir,
limpando as lágrimas com uma mão e manobrando o volante com a
outra.
– Oh, céus – disse, por fim, quando voltámos ao caminho e
começámos a afastar-nos da casa. – Muito obrigado.
– Porque é que me estás a agradecer? – perguntei.
Jack abanou a cabeça, assombrado.
– Não estava nada à espera de me rir tanto hoje.
Nove
Quando chegámos à casa de Jack, eu estava mais do que preparada
para ser rendida.
Tudo nesta viagem ao campo fora desestabilizador – desde o vestido
que envergava ao ataque das vacas.
Não ia gostar nada desta missão.
Mas a equipa aproveitara o dia para terminar de preparar a casa e
agora a garagem era uma base de segurança local. Havia mais câmaras de
vigilância montadas e operacionais – principalmente no exterior, em
torno do perímetro, em locais onde seria mais provável que perseguidores
se escondessem, para complementar as que já existiam na porta das
traseiras, no pátio e no vestíbulo da frente.
Não estaríamos sempre aqui. O nível de ameaça era apenas amarelo,
afinal de contas. Eu faria o habitual turno de doze horas e depois Jack
ficaria por sua conta durante a noite. Seria novamente aconselhado a ler o
manual e a fazer boas escolhas por si mesmo – e monitorizaríamos as
câmaras de segurança, atentos a qualquer movimentação significativa.
Diferentes membros da equipa estariam de plantão.
Tudo isto era o habitual.
Quando chegámos à casa, pude retomar o meu papel normal. Despi o
vestido, que me parecia demasiado esvoaçante para me permitir cumprir
a minha missão da melhor maneira, e troquei-o pelo fato de calças e
casaco. Depois posicionei-me junto da porta da rua de Jack com as mãos
atrás das costas. Eu e a planta no seu vaso.
O plano era o seguinte: nos dias normais, na cidade, com Jack, eu
seria a agente primária, acompanhando-o onde quer que ele fosse durante
o meu turno. Doghouse era o agente de apoio. E depois havia uma equipa
remota, formada por Taylor e Amadi, que tratavam da videovigilância –
basicamente, olhar para as câmaras.
Kelly não estava envolvida. Glenn decidira que as meias com a cara
de Jack ultrapassavam os limites.
Robby também não fazia parte da equipa. Eu não estava à espera de
que Glenn deixasse passar esta oportunidade de nos obrigar a trabalhar
juntos. O meu patrão era grande fã de castigos, especialmente quando era
ele que os aplicava. Mas não me cabia questionar as suas decisões. Do
meu ponto de vista, a ausência de Robby era excelente.
Nos dias em que Jack e eu tivéssemos de ir visitar os pais dele, as
equipas trocariam: Taylor e Amadi seriam os agentes primários,
responsáveis pela vigilância constante remota, com Doghouse, e eu seria
a secundária: olhos e ouvidos no interior, mas basicamente a trabalhar
apenas para manter a autenticidade do disfarce.
Não é preciso dizer que preferia ser primária. E também preferia
conseguir fazer o meu trabalho como deve ser. Como podia competir pela
posição em Londres, se tudo o que tinha de fazer era andar de um lado
para o outro de vestidinho de algodão?
Voltar à cidade foi um alívio. Estar de guarda em frente de uma porta
nem sempre é a forma mais empolgante de passar o tempo, mas em
comparação com sentir-me inútil enquanto era ameaçada por gado, não
imaginam o conforto que me trouxe.
A dada altura, Jack enfiou a cabeça de fora para me perguntar se
queria um cappuccino.
Sem olhar para ele, respondi:
– Não, obrigada.
– De certeza?
– Não interrompas a minha concentração.
Perto do final do meu turno, Taylor e Robby apareceram na
propriedade para confirmar alguns pormenores da disposição do jardim.
– O que fazes tu aqui? – perguntei a Robby. – Não estás a trabalhar
nesta missão.
– Todos estamos a trabalhar nesta missão – retorquiu Robby. – É um
esforço de equipa. Somos uma equipa.
– Não é assim que costuma funcionar.
– Também não é costume termos clientes tão famosos.

Estava quase na hora de eu sair de serviço, e Taylor e Robby já


tinham partido há algum tempo, quando decidi fazer uma última
verificação das câmaras de vigilância. Tínhamos o monitor instalado
numa secretária improvisada, mas nem sequer me sentei na cadeira com
rodas. Inclinei-me apenas para passar as imagens das várias câmaras no
ecrã – uma confirmação de que estava tudo em ordem antes de ir para
casa –, e foi então que me apercebi de algo no monitor.
No canto da imagem da câmara identificada como «Piscina 1», vi o
que me pareceu ser parte de umas calças e de um sapato.
Fiquei imediatamente alerta. Aumentei a imagem para ver melhor e
virei ligeiramente a câmara para a direita.
E foi então que vi algo que nunca, nunca esperaria ver.
No jardim de Jack Stapleton, perto dos balneários da piscina,
parcialmente escondidos atrás de uma palmeira… Robby, o meu ex-
namorado, e Taylor, a minha melhor amiga…
A beijarem-se.
Robby… que me dera com os pés há um mês, na noite depois do
funeral da minha mãe… e Taylor… que viera ter comigo logo a seguir
para me consolar enquanto eu chorava…
A beijarem-se.
E pior ainda: no trabalho.
Não tenho maneira de descrever como foi passar por aquele
momento. Os meus olhos queriam desviar-se, mas não conseguia deixar
de olhar, como no filme A Laranja Mecânica, enquanto eles os dois
continuavam, enrolados um no outro, a lambuzarem-se como
adolescentes insuportáveis.
Lembram-se quando disse que não conseguia sentir nada por Robby?
Bom, esta cena mudou isso.
A palavra mais aproximada para aquilo que senti é pânico. Uma
sensação urgente e agonizante de que tinha de desligar aquilo, ou fazer
com que parasse, ou arranjar alguma maneira de não estar a acontecer.
Depois, juntem-lhe alguma raiva. E humilhação. Incredulidade, também
– enquanto tentava, sem sucesso, compreender o que via.
Era uma sensação física – queimava e ardia, como se o meu coração
estivesse a bombear ácido em vez de sangue.
Até àquele momento, eu desconhecia sequer a existência deste
sentimento.
Passado algum tempo – cinco minutos? cinco horas? –, ouvi uma voz
por cima do meu ombro:
– Deviam ser despedidos por isso, não?
Virei-me. Era Jack Stapleton, de olhos postos no monitor.
Quando olhei para ele, ele olhou-me de volta, e a sua expressão
divertida deu lugar a outra, de preocupação.
– Oh, está tudo bem? – quis saber.
Mas eu não sabia o que fazer com a minha cara. Era como se os
músculos não estivessem a funcionar bem. Fiquei com os olhos
esbugalhados e estupefactos, e parecia não conseguir fechar a boca.
Claro que Jack não sabia como este momento era dilacerante para
mim, e a última coisa que eu queria era que ele descobrisse. Precisava de
disfarçar. Sorrir e abanar a cabeça e comentar «idiotas», como se fossem
apenas uns colegas parvos que eu criticava por se envolverem no
trabalho. Mas não conseguia sorrir. Nem abanar a cabeça. Nem falar.
O que é que Jack estava sequer a fazer aqui, afinal? Não devia estar lá
dentro, nas suas atividades de estrela de cinema?
E depois apercebi-me de outra coisa, quando Jack puxou a manga da
camisa para cima da mão, a levou ao meu rosto e começou a limpar-me
as faces.
Eu estava a chorar.
Os meus olhos, pelo menos. Sem autorização minha.
Depois de passar a manga pelo meu rosto algumas vezes, Jack afastou
a mão e mostrou-me o punho da camisa molhado. No tom de voz terno
que eu recordava do grande final de Este é o Meu Desejo, disse:
– O que é que se passa aqui?
Por fim, abanei a cabeça. Uma proeza épica, dadas as circunstâncias.
Ativar os músculos do pescoço, pelos vistos, desencravou também os do
maxilar, e consegui fechar a boca. E, assim, recuperei o controlo
suficiente para virar o rosto.
– Estás a chorar? – perguntou Jack, tentando espreitar.
Claro que sim. Obviamente. Mas abanei a cabeça.
– Pensava que eras uma durona.
– Já te disse que não sou.
– Agora acredito – disse Jack.
– Isto são alergias – insisti.
Mas nem a mim própria parecia muito convincente.
– És alérgica ao quê? Aos teus colegas a beijarem-se junto da minha
piscina infinita?
Devia ter respondido «pólen», certo? Um clássico.
Em vez disso, o meu cérebro fez curto-circuito e senti o ácido a
derramar-se do meu coração e a encher-me por dentro. A que é que eu era
alérgica? Era alérgica ao desapontamento. À traição. À amizade. À
esperança. Ao otimismo. À vida, ao trabalho e à humanidade em geral.
Por isso, respondi:
– Sou alérgica a tudo – e saí da garagem.
Jack deixou-me ir, o que foi um alívio.
Não queria falar, nem processar, nem explorar os meus sentimentos,
por amor da santa! – e mesmo que quisesse fazer qualquer uma dessas
coisas, nunca na vida as faria com ele.
Não discutimos a nossa vida privada com os clientes. Nunca.
Acabamos sempre por saber tudo sobre quem protegemos – mas os
clientes nada sabem sobre nós. E é assim que tem de ser. O problema é
que, por norma, o nosso relacionamento é tão parecido com uma relação
verdadeira que é difícil manter a distinção. Viajamos juntos, vamos a
bares juntos, esquiamos juntos, vamos à praia juntos. Nós estamos
presentes quando os clientes estão em baixo e na maior, sabemos das suas
discussões e dos seus segredos. O objetivo da nossa presença na vida
deles é criar a segurança suficiente para que se sintam normais.
Logo, se estivermos a fazer um bom trabalho, é como eles se sentem.
Mas nós não. Nunca.
Jamais perdemos de vista o nosso objetivo. E parte do que nos ajuda a
manter esse foco é saber – de trás para a frente, de cor e salteado – que os
clientes não são nossos amigos. Um amigo pode limpar-nos as lágrimas
do rosto com a manga da camisa, mas um cliente nunca devia fazê-lo. E é
por isso que eu nunca, em oito anos de trabalho, chorara em frente de um
cliente.
Até hoje.
É preciso manter uma distância profissional, caso contrário, não
podemos fazer o nosso trabalho. E a única maneira de o conseguir
enquanto passamos cada minuto de cada dia de trabalho juntos, é nunca,
mas nunca partilhar algo privado. Os clientes estão sempre a fazer-nos
perguntas pessoais; nós é que não podemos responder. Fingimos não
ouvir, mudamos de assunto ou – a solução mais eficaz – viramos a
questão contra quem a fez.
A resposta a: «Está assustada?», deve sempre ser: «E você, está
assustado?»
A resposta a: «Tem namorado?», deve sempre ser: «E você, tem
namorado?»
Estão a ver como é fácil? Funciona.
Mais ainda, os clientes nem sequer dão por isso. Porque quase
sempre, quando alguém faz perguntas sobre nós, o que realmente quer é
falar sobre si próprio. Certo?
É difícil descrever o turbilhão de emoções que rodopiava dentro de
mim enquanto saía da garagem, com o único fito de me enfiar no carro e
ir para casa. Choque, agonia, humilhação – sim, tudo isso estava
presente, claro. Mas, para além disso, havia uma sensação de profunda
desilusão por me ter deixado apanhar por um cliente num momento de
emoção genuína.
Haveria maneira de recuperar? Jack vira as lágrimas, sim. Mas não
tinha como saber exatamente o que significavam. Iria para casa e, depois
de me recompor – e só então –, se tivesse tempo e vontade, pensaria
melhor naquilo que testemunhara.
Ou talvez não.
Porque se tivesse mesmo visto aquilo que achava que vira, isso
significava que no espaço de um mês perdera as três pessoas mais
importantes da minha vida: a minha mãe. O meu namorado. A minha
melhor amiga.
E agora estava verdadeiramente só.
Esta consciência quase me fez fraquejar as pernas. Tinha de sair
daqui. E conseguir chegar ao carro.
Foi então que Robby – que nem sequer fazia parte da equipa –
apareceu outra vez a poucos metros de mim.
Estacou quando me viu e eu fiz o mesmo.
– Oh, olá – cumprimentou-me ele.
Conseguiria ver a minha cara? Perceberia que eu sabia?
– O turno acabou – disse eu, resumindo a resposta ao máximo de
sílabas que conseguia pronunciar. – Vou para casa.
– Ótimo. Sim. Acho que está tudo bem por aqui.
Baixei a cabeça para continuar a andar.
– Ouve… – disse Robby, e deu alguns passos rápidos, como se
tencionasse intercetar-me. – Posso falar contigo sobre uma coisa?
– Não – respondi.
– É só um minuto – disse ele, surpreendido com a minha resposta.
– Nem sequer devias estar aqui, Robby. Não me obrigues a participar
de ti ao Glenn.
– Trinta segundos. – Estaria a regatear?
– Estou cansada – respondi, abanando a cabeça.
Mas agora Robby deu um salto e atravessou-se à minha frente.
– É mais ou menos importante.
Teria mesmo de discutir com ele? Por amor de Deus, só queria ir para
casa.
– Hoje não – opus-me, e comecei a reunir forças para fazer o que
fosse preciso a fim de não ter esta conversa.
Foi então que Robby olhou para trás de mim e senti um peso pousar-
me nos ombros.
Era Jack Stapleton. A envolver-me com o braço como eu já lhe dera
autorização para fazer.
– Ela está mesmo cansada, Bobby – disse Jack, puxando-me para si
num abraço lateral.
– O meu nome é Robby – corrigiu ele.
– Tenho a impressão de que neste momento ela só quer mesmo é ir
para casa – continuou Jack. – Não sei porquê, mas talvez porque ela o
está a dizer…
Robby, claro está, não podia contrariar o cliente.
Fitou-me e eu desviei o olhar.
– Não vai obrigá-la a participar de si ao Glenn, pois não? – Jack
virou-se para mim. – Ou, se estiveres muito ocupada, posso tratar eu
disso.
Senti, mais do que vi, Robby baixar os ombros, derrotado.
Jack esperou mais um segundo, como que a questionar se estavam
entendidos. Depois, com modos resolutos, conduziu-me até ao meu carro,
deixando Robby a olhar para nós.

Mais tarde, com intenção de arranjar problemas a Robby, contei a


Glenn tudo menos a parte do beijo. E saiu-me o tiro pela culatra.
– O Robby apareceu sem mais nem menos e intrometeu-se na missão
– disse-lhe.
Ao que Glenn retorquiu:
– Excelente ideia.
Eu franzi a testa.
– O quê?
– Incluir o Robby na missão.
– Não, eu…
– Ainda não decidi qual dos dois irá para Londres, sabes – lembrou
Glenn.
Claro que sim.
– De qualquer maneira, ele é o nosso melhor elemento em
videovigilância. E sabes que não gosto de perder oportunidades de
torturar as pessoas.
– Não me torturaste já o suficiente?
Uma piscadela de olho de Glenn.
– Estava a falar dele.
Seria Glenn cego? Ou sádico? Um bocadinho dos dois, talvez.
Seja como for, adicionou Robby à equipa – e atribuiu-me o crédito
pela ideia.

Porém, naquela noite, enquanto Jack procurava as chaves do carro na


minha mala e abria as portas com o comando, eu ainda não estava a ver
nada disso. Não estava a ver grande coisa, a bem da verdade – além do
que se passava mesmo à minha frente: Jack a conduzir-me até ao banco
do passageiro, a abrir a porta, a ajudar-me a entrar e a debruçar-se sobre
mim para prender o cinto de segurança.
Ele cheirava a canela.
Mais uma vez: não é algo que eu costume deixar os clientes fazer.
Mas havia tão pouco de normal nesta missão.
Quando Jack contornou o carro até à porta do condutor, entrou e ligou
o motor, não o impedi.
Estávamos já a afastar-nos da casa quando consegui proferir em voz
fraca:
– O que estás a fazer?
– Vou levar-te a casa.
– Mas como é que voltas?
– Trago o teu carro – explicou ele –, e vou buscar-te amanhã de
manhã.
Jack Stapleton estaria mesmo a oferecer-se para me ir buscar a casa
na manhã seguinte?
– Parece muito cansativo.
– Não tenho propriamente assim tanto que fazer, hoje em dia.
– O teu perfil diz que gostas de dormir até tarde. Até depois do meio-
dia.
– Posso pôr o despertador. – Depois fez uma pausa. – Aquele tipo era
teu namorado?
– Aquele tipo era teu namorado?
Uf! Estava demasiado enervada para fazer isto bem.
Jack franziu a testa e tentou de novo.
– Não andavas com aquele tipo, pois não?
– Não vou ter esta conversa contigo.
– Porquê?
Encostei a cabeça ao banco e fechei os olhos.
– Porque não falo sobre a minha vida privada com os clientes.
Mesmo dizer a um cliente que não falava sobre a minha vida com
clientes era mais do que alguma vez revelara sobre mim a um cliente.
Outro erro tático, de certeza – mas estava demasiado entorpecida para me
preocupar.
– Diz-me só que aquele tipo não é teu namorado.
– Aquele tipo não é meu namorado – repeti mecanicamente. E então,
não sei se apenas por uma faísca aleatória no meu cérebro em curto-
circuito, ou se por me ter apercebido pela primeira vez de que seguir as
regras parecia não levar a lado nenhum, ou se devido a um palpite de
que, afinal de contas, nada tinha importância… dois segundos depois,
acrescentei: – Já não.
Dez
A minha estreia como atriz junto da família de Jack teve lugar no dia
seguinte, no hospital. Por acidente.
Primeiro, tivemos de pôr Jack lá dentro sem ninguém notar. A mãe
dele tinha um quarto VIP privado onde ele podia esperar durante a
cirurgia, por isso, o dia devia ter sido fácil. O plano era enfiá-lo no quarto
discretamente – cedo, pelas seis da manhã –, para ele ainda conseguir ver
a mãe antes de ela ir para a sala de operações. Depois, Jack ficaria lá à
espera que a cirurgia acabasse, enquanto Doghouse e eu
monitorizávamos os corredores do hospital e o resto da equipa ia instalar
algumas câmaras de segurança secretas no rancho dos Stapletons. As
coisas do nosso lado eram simples. Tudo o que Jack tinha de fazer era
ficar no quarto.
– Não podes sair do quarto – expliquei-lhe no caminho.
– Nunca?
– Fica no quarto. Não é difícil.
– Não será um exagero? – questionou Jack.
– Se tivesses lido o prospeto… – comecei.
– Não é o meu tipo de leitura.
– Esta é uma situação de alto risco – continuei. – Há múltiplas
oportunidades para que sejas visto, reconhecido, fotografado…
– Já percebi.
– Assim que sejas avistado aqui, torna-se tudo muito mais difícil.
Portanto, faz o que estou a dizer.
– Entendido – declarou Jack. A seguir, acrescentou: – Mas espero que
saibas que eu já sou muito bom nisto.
Olhei para ele.
– Aposto que os magnatas do petróleo que costumas proteger não
estão habituados a esconder-se. Mas eu há anos que tenho de andar
incógnito.
– Não deve ser fácil – disse-lhe. – Ser quem tu és.
– Há uns truques. Os bonés de pala são surpreendentemente eficazes.
Óculos parecem afetar a capacidade de reconhecimento de padrões das
pessoas. Não estabelecer contacto visual também ajuda. Se não olharmos
para as pessoas, elas têm tendência a não olhar para nós. Mas o principal
é estar sempre em movimento. Nunca parar. Assim que abrandamos o
passo, somos vistos.
– Vejo que sabes mesmo mais do que os indivíduos para quem
costumo trabalhar – admiti, mostrando-me impressionada.
– Estás a ver? E nem sequer li o prospeto.
Olhei para ele. Hoje tinha recorrido ao arsenal completo: boné de
basebol, óculos, camisa cinzenta. Mas mesmo quando tentava parecer o
mais vulgar possível, Jack continuava a ter um certo… brilho.
– No entanto, esses executivos têm uma grande vantagem em relação
a ti – observei.
– Qual é?
– Ninguém se interessa por eles a não ser eu e os maus da fita.
Jack estudou-me de olhos semicerrados.
– Ah, tu interessas-te por eles?
– Quer dizer, mais ou menos – respondi.
– Isso parece-me um não.
– Tenho interesse em fazer bem o meu trabalho.
– Mas não nutres qualquer sentimento pelas pessoas que proteges.
Eu não devia estar a falar com ele sobre nada disto. Onde é que tinha
a cabeça?
– No sentido tradicional, não.
Jack acenou com a cabeça, com ar pensativo.
Quereria que eu tivesse sentimentos por ele? Que estranho…
– Na verdade, gostar das pessoas torna mais difícil fazer um bom
trabalho – acrescentei, em minha defesa.
– Eu compreendo – disse Jack.
De qualquer maneira, não estava errado em relação a si próprio.
Tinha de facto jeito para passar despercebido. Sabia exatamente como se
mover através de um espaço sem ser identificado. Fizemo-lo entrar por
uma porta de serviço e subimos pelo elevador dos funcionários. O
corredor estava deserto, e eu e Doghouse vimo-lo abrir a porta do quarto
e desaparecer do outro lado sem qualquer dificuldade.
Era um enorme obstáculo ultrapassado. Os médicos e enfermeiros da
equipa médica que tratava da mãe dele tinham todos assinado acordos de
confidencialidade. Agora, tudo o que Jack tinha de fazer era ficar ali.
Só que ele não acatou o pedido.
Mesmo antes da hora de almoço, quando eu já estava posicionada ao
fundo do corredor há tempo suficiente para saber que o chão tinha
duzentos e sete azulejos de uma ponta à outra, vi Jack sair do quarto e
começar a percorrer o corredor com naturalidade, como se tencionasse
dirigir-se ao balcão de enfermagem.
– Eh! – chamei, num grito sussurrado. – O que estás a fazer?
Mas Jack não se virou.
Que ideia era a dele? Não tínhamos acabado de falar nisto? Não podia
andar por ali à solta.
Corri atrás dele.
– Eh! Eh! O que estás a fazer? Não falámos sobre isto? Não podes
sair do…
Nesse momento, cheguei junto dele, agarrei-lhe o braço, ele virou-se
para olhar para mim…
E não era Jack.
Era o irmão, Hank.
– Oh! – exclamei, assim que vi a cara dele. Larguei-lhe o braço e
recuei.
Ora bolas!
Agora que o via melhor, Hank não era decididamente Jack. Era uns
dois ou três centímetros mais baixo. E um pouco mais largo. Tinha o
cabelo um ou dois tons mais escuro e as patilhas eram mais curtas.
Nenhum destes pormenores me devia ter passado despercebido, mas,
para ser franca, o cheiro e a iluminação do hospital traziam-me à
memória a época da doença da minha mãe – que não fora assim há tanto
tempo – e deixavam-me um pouco distraída.
Hank Stapleton olhou para mim.
– Acabou de me dizer que não posso sair do quarto?
– Desculpe – pedi-lhe. – Pensei que era o Jack.
Hank inclinou a cabeça.
– E o Jack não pode sair do quarto?
Como havia de resolver isto?
– Ele não estava a planear sair, não – respondi.
Hank olhou para mim.
– E quem é você?
– Sou a Hannah – disse, esperando que fosse suficiente.
Pelos vistos, não era. Ele abanou a cabeça e franziu o sobrolho numa
expressão de: «Isso devia significar alguma coisa para mim?»
Portanto, fiz o que tinha de fazer e acrescentei:
– Sou a namorada do Jack. – Mas juro que me pareceu a maior, mais
falsa e menos convincente mentira do mundo.
No entanto, milagre dos milagres, Hank acreditou.
– Oh, sim – disse, estudando-me melhor, agora que se lembrava. – A
que tem medo de vacas.
Como é que ele sabia disso? O meu grito ter-me-ia denunciado?
– Veio ver a minha mãe? – continuou ele.
Fiz que sim com a cabeça enquanto o meu estômago gelava. Não
estava pronta. Não me preparara para conhecer a família. Nem sequer
vestira as minhas roupas de namorada. Mas não havia outra resposta
possível.
– Sim.
– Ela acabou de acordar – disse Hank. – Ia buscar lascas de gelo para
lhe dar.
– Eu vou – ofereci-me, para ele voltar para o quarto. Não era Jack,
mas era parecido com ele o bastante para causar problemas. Além disso,
precisava de um minuto para me recompor. – Volte para junto dela –
insisti. – Trouxe flores, mas esqueci-me delas no carro. Portanto… levo
gelo. Sempre é melhor do que nada.
Não fazia muito sentido, mas ele encolheu os ombros e acedeu:
– Está bem.
Enquanto me dirigia ao balcão de enfermagem, expliquei a situação a
Doghouse pelo auricular.
– Vou entrar – avisei. E depois, de copo de gelo em punho, avancei
para o quarto de Connie Stapleton, mas estaquei quando vi o meu reflexo
nas portas cromadas do elevador.
Pareceria a namorada fosse de quem fosse?
Não havia muito a fazer, mas de qualquer maneira tentei melhorar um
bocadinho a minha aparência. Despi o casaco e escondi-o atrás de um
vaso. Enrolei as mangas e desabotoei o botão de cima da camisa. Soltei o
cabelo e sacudi-o para lhe dar volume. Cheguei a levantar a gola da
camisa, por um segundo, mas decidi que estava demasiado nervosa para
um visual tão arrojado.
Era o máximo que conseguia, dadas as circunstâncias.
Revi mentalmente tudo o que lera sobre os pais de Jack. O pai era
William Gentry Stapleton, veterinário aposentado. Conhecido por Doc.
Muito querido por todos. Uma vez, salvara um vitelo recém-nascido de
se afogar num braço morto de rio. Casado há mais de trinta anos com
Connie Jane Stapleton, diretora escolar também aposentada. Namorados
desde o secundário. Tinham passado cinco anos no Peace Corps,
salvavam cavalos sem dono, faziam parte de um clube recreativo de
dança swing e eram, ao que tudo indicava, boas pessoas.
Bati à porta e depois abri-a e anunciei, de forma redundante:
– Truz-truz.
Os três homens Stapleton estavam sentados em torno da cama em
cadeiras que tinham puxado para perto dela. Connie estava recostada nas
almofadas, com um toque de batom nos lábios, e o cabelo branco e fino
muito bem penteado – e com muito melhor ar, de alguma forma, do que
seria de esperar de uma paciente acabada de sair de uma cirurgia e dentro
de uma bata de hospital.
Ela conseguiria impor um visual de gola levantada. Se a bata tivesse
gola.
Mal os vi – pessoas verdadeiras, de carne e osso –, o meu cérebro
começou a trabalhar demasiado depressa. Que expressão teria no rosto a
namorada de Jack? Carinho? Preocupação? Como raio se faziam sequer
essas expressões? Como modificar os traços faciais? Como é que os
atores conseguiam?
Decidi-me por um meio-sorriso, com a testa ligeiramente franzida, e
rezei para que fosse credível.
Jack deve ter-se apercebido do meu pânico porque se levantou e se
dirigiu a mim.
– Olá, querida – cumprimentou-me, com o tom perfeitamente
adequado de afeto. – Não sabia que vinhas.
– Trouxe gelo – respondi.
Jack olhou para mim como se quisesse transmitir telepaticamente:
«Pensei que ias ficar no corredor.» Pisquei os olhos, indicando:
«Mudança de planos», e percebi que ele estava nervoso.
Deve ter sido por isso que me beijou.
Um beijo encenado, mas ainda assim.
Aproximou-se de mim sem hesitar, pousou as mãos de ambos os
lados do meu maxilar, inclinou-se e depositou um beijo bastante credível
no seu próprio polegar. E depois… deixou-se ficar.
As mãos dele estavam quentes e cheirava a canela. Sentindo a sua
respiração sobre a penugem delicada da minha face, fiquei tão chocada
que nem respirei ou sequer fechei os olhos. Ainda consigo ver a cena, em
câmara lenta – aquele rosto épico a aproximar-se mais e mais, e aquela
boca lendária a apontar para a minha e depois a colar-se àquele polegar
lendário, pousado mesmo no canto dos meus lábios…
Tecnicamente, não foi um beijo a sério. Mas não andou muito longe.
Pelo menos, foi o que me pareceu.
Quando Jack se afastou, eu tinha os joelhos bambos. Ter-se-á
apercebido de que eu ia cambalear? Foi como se adivinhasse. Talvez
acontecesse o mesmo a todas as mulheres que beijava – quer o beijo
fosse real ou encenado. Segurou-me pela cintura e estava praticamente a
aguentar-me de pé quando disse:
– Apresento-vos a minha namorada, a Hannah.
Três pares de olhos estudaram-nos.
– Olá – disse eu, com voz débil, apoiada nele, e levantei a mão livre
num pequeno aceno.
Não sei se estava à espera que eles não acreditassem. É possível que
estivesse. Era tão óbvio que nós os dois pertencíamos a categorias
completamente diferentes de pessoas. Se eles me tivessem atirado com os
jornais e os óculos de leitura e gritassem: «Saia daqui!», eu não ficaria
surpreendida.
Mas foi então que Jack acrescentou:
– Não é tão querida? – E fez-me uma festa na cabeça.
Hank aproximou-se para me tirar o copo da mão.
– Ela trouxe-te lascas de gelo, mãe.
Doc Stapleton – com um ar muito cavalheiresco, de camisola azul e
calças de caqui engomadas – pegou-me na mão, deu-me uma palmadinha
e disse:
– Olá, minha querida. Sente-se aqui na minha cadeira.
Abanei a cabeça.
– Posso ficar em pé.
– Ela é adorável – comentou Connie Stapleton, e a sua voz era tão
afável que me atraiu para ela. Depois estendeu a mão para a minha, e eu
peguei-lhe. Era macia como pó. Ela apertou e eu apertei também. – Até
que enfim. Uma pessoa real – disse.
E, de súbito, eu sabia o que fazer com a cara. Sorri.
– Sim – disse Connie, olhando para Jack. – Já gosto dela.
A maneira como falou – com tanto afeto genuíno que eu nada fizera
para merecer – fez-me sentir um pouco envergonhada.
Connie fitou-me nos olhos.
– O Jack é querido consigo?
O que é que eu havia de dizer?
– Muito – respondi.
– É um rapaz de bom coração – disse ela. – Não o deixe é cozinhar.
Assenti com um aceno.
– Entendido.
A seguir, pediu aos rapazes que a ajudassem a soerguer-se um pouco
mais. Estava ainda meio tonta e agoniada, por isso tinha de ser devagar.
Mas estava determinada. Quando se sentiu confortável, olhou para todos
os rostos à volta da cama.
– Oiçam… – disse, como se estivesse prestes a iniciar um tópico
importante.
Mas foi nesse momento que o oncologista entrou.
Todos nos levantámos para o cumprimentar – e não há dúvida de que
ele vacilou ao ver Jack, como se lhe tivessem dito que estaria um ator
famoso dentro do quarto, mas não tivesse acreditado mesmo.
– Olá, «Destruidor» – disse o médico com um ligeiro sorriso. –
Obrigado por salvar a humanidade.
– Obrigado por salvar a minha mãe – retorquiu Jack afavelmente,
trazendo-nos de volta à realidade.
O médico acenou com a cabeça e olhou para os papéis que tinha na
mão.
– As margens em torno do tumor deram negativo – disse. – O que
significa que estava muito bem delimitado.
– Isso é ótimo, mãe – disse Jack.
– Não é preciso fazer quimioterapia – continuou o médico. – Teremos
de fazer radiação na mesma, mas só daqui a oito semanas, depois de a
cicatrização estar adiantada. Neste momento, só tem de repousar,
hidratar-se e seguir as instruções da alta. – Virou-se para Connie. –
Vamos marcar a radiação, mas até ser altura de começar, podem todos
respirar fundo e descansar um pouco.
O que toda a gente queria que ele dissesse era que Connie estava bem
– que correria tudo bem.
Por fim, Jack perguntou:
– E o prognóstico?…
O médico acenou.
– O prognóstico é bastante bom, embora não haja garantias. Se o
local cicatrizar bem, depois do tratamento de radioterapia há boas
hipóteses de que recupere sem problemas.
Jack e Hank, ao lado um do outro, suspiraram em uníssono.
Ninguém diria que eram inimigos figadais.
O médico deu mais alguns pormenores, correu uma cortina para dar
privacidade a Connie enquanto a examinava e, quando saiu, disse:
– Quase me esquecia do mais importante.
Todos levantámos a cabeça.
– O quê?
O médico apontou para Jack.
– Podemos tirar uma selfie?

Depois de ele sair, Connie Stapleton foi direta ao assunto.


– Não te vou pedir que fiques para os tratamentos de radiação, Jack –
disse.
– Mãe, posso ficar.
– Só começam daqui a oito semanas. Tens de voltar para a tua vida.
– Mãe, eu não…
Ela abanou a cabeça e cortou-lhe a palavra.
– No entanto, vou pedir-te outra coisa.
Jack semicerrou os olhos, desconfiado, como se devesse estar à
espera daquilo.
– O quê?
Ela fez um compasso de espera. Nós aguardámos.
– Os últimos anos têm sido complicados para nós. Para todos nós. E
gostava de passar algum tempo de qualidade contigo antes de te ires
embora.
Jack assentiu com um aceno.
– Eu também gostava.
– Então, aqui vai – continuou ela. – Não sei quanto tempo mais me
resta nesta Terra. Ter cancro faz-nos ver algumas coisas com muito mais
clareza e, depois de muito refletir, decidi que neste momento só há uma
coisa que quero mesmo, uma única coisa, e preciso que vocês todos me
façam a vontade.
– Parece complicado – resmoneou Hank.
– O que é, querida? – perguntou o doutor Stapleton, inclinando-se
para ela.
Foi então que Connie abriu o sorriso mais irresistível do mundo,
impossibilitando negarem-lhe fosse o que fosse, e declarou:
– Quero que o Jack… e a sua querida namorada nova… fiquem
connosco no rancho até ao Dia de Ação de Graças.
Onze
– Quatro semanas! – Foi só o que consegui dizer quando me vi no
carro com Jack, de regresso à casa dele. – Faltam quatro semanas para o
Dia de Ação de Graças!
– Tecnicamente – corrigiu Jack –, são três semanas e meia.
Ignorei-o.
– Não consigo passar quatro semanas seguidas a fazer coisas de que
gosto, quanto mais a fingir que sou tua namorada.
– Obrigadinho.
– Sabes o que quero dizer.
– É o último desejo da minha mãe – lembrou ele.
– Ela não está a morrer.
– Provavelmente.
– Por essa lógica, provavelmente estamos todos a morrer. Posso ser
atropelada por um autocarro amanhã.
– Ouve, também não estou feliz com a ideia, mas acaba por
simplificar as coisas. Dá-nos um prazo definido. Quatro semanas e
estamos despachados. Eu volto para o Dakota do Norte e tu vais… para
onde quer que vás a seguir.
– Para a Coreia. – A mera perspetiva encheu-me de alívio. Na
verdade, o calendário batia certo. O trabalho em Seul começava no início
de dezembro.
– A situação podia ter-se arrastado indefinidamente. Este cenário é
objetivamente melhor. É como arrancar um penso rápido.
– Arrancar um penso rápido – corrigi-o – durante quatro semanas.
– Três semanas e meia. Vamos falar com o teu chefe.
– Já sei o que o Glenn vai dizer. Que eu não posso recusar este pedido
da tua mãe. Que não é nada de especial. Que as equipas remotas
conseguem tratar de tudo… especialmente se estivermos numa
localização isolada como o rancho. Vai dizer que são «praticamente umas
férias pagas», e exigir-me que explique, exatamente, porque é que acho
inaceitável uma estada na residência de campo de um ator de cinema
mundialmente famoso. Dirá que há destinos piores do que ficar enfiada
num local remoto com um homem atraente.
Se Jack reparou que eu lhe tinha chamado «atraente», não deu sinais
disso.
– E como é que tu vais objetar?
Fechei os olhos.
– Não sei.
– Ele não está errado, sabes? O rancho é fantástico. Temos um pomar,
camas de rede e uma zona selvagem perto do braço morto do rio.
Podemos procurar fósseis nas margens do Brazos e montar o cavalo de
circo reformado e ir à pesca. Seria como umas férias pagas.
– Não gosto de estar de férias – respondi.
– O que quero dizer é que não seria bem como um trabalho.
– Eu gosto de trabalhar. Até prefiro.
– Podias relaxar.
– Nunca relaxo.
– Quero apenas salientar que existem de facto situações piores do que
ficar presa comigo no rancho.
– Imagino que sejas uma pessoa encantadora; é só que…
– Isso soou-me a sarcasmo.
– Ouve…
– Sei que é um pedido invulgar…
– Não é invulgar, é impossível.
– Tu viste-a. É a minha mãe, Hannah.
Era tão estranho ouvir o meu nome na boca de Jack Stapleton que,
por um segundo, fiquei sem palavras. Tentei recompor-me. Era evidente
que ele achava que eu lhe faria esse favor se ele pedisse com jeitinho. Ou
talvez se me pagasse o suficiente. Jack era alguém que provavelmente
conseguia tudo aquilo que queria. Se ele não percebia por que razão isto
não podia acontecer, eu também não conseguia explicar-me melhor. Por
fim, disse-lhe apenas:
– Não te conheço.
– Não sou mau de todo.
– Não posso, ponto final.
– Estás a recusar a oferta?
Será que nunca ninguém dizia que não a Jack Stapleton?
– Sim. Estou mesmo.
Jack franziu a testa, como se fosse um conceito verdadeiramente
original. Na verdade, parecia tão perplexo que, enquanto o fitava de
perfil, me questionei a mim própria.
Estava a dizer que não, certo?
Quer dizer, quatro semanas! Era muito tempo sem poder vir à tona
respirar. Nunca poderia fazer o meu trabalho habitual nesse cenário. Teria
de andar com roupas de namorada e fazer coisas de namorada e estaria…
encurralada atrás dessa fachada. Não conseguia ser assim tão passiva.
Estivera presa no limbo durante tempo de mais. Precisava de trabalhar e
cumprir o meu dever, e também precisava de picar o ponto e sair do
serviço.
A cada mecanismo de apoio que esta situação me roubava, eu morria
um pouco mais. Sentia as minhas guelras de tubarão a sufocar. Precisava
de tornar o meu mundo maior, não mais pequeno. Precisava de ir para
longe, não de ficar ainda mais presa no mesmo sítio. Precisava de
ressuscitar a minha vida real, não de me fechar numa vida falsa.
Era altura de encerrar este assunto.
– Podemos falar com o Glenn – concluí –, mas a minha resposta
continua a ser não.

– A resposta é sim – contrapôs Glenn, mesmo depois de eu ter


colocado as minhas objeções ao pedido de Connie Stapleton de forma
loquaz, apaixonada e articulada.
Encontrámo-nos na base de segurança, na garagem de Jack. Toda a
equipa apareceu, incluindo, agora, Robby e excluindo Taylor, que eu não
via desde que a apanhara aos beijos com o meu ex-namorado. E que, se
dependesse de mim, teria todo o gosto em nunca mais voltar a ver.
Mas essa obsessão teria de ficar para mais tarde.
Neste momento, travava uma batalha perdida. Não que a minha
opinião não tivesse o seu peso; só não tinha era mais peso do que a
opinião dos outros.
– Vê essas semanas como umas férias pagas – propôs Glenn.
– Falas como se isso fosse uma coisa boa.
– Não me parece sequer que haja uma decisão a tomar – disse Amadi.
– Ela aceitou o trabalho. A situação evoluiu, mas isso não altera a nossa
responsabilidade para com o cliente.
– Não aceitei o trabalho por vontade própria – ripostei.
– Tanta negatividade – comentou Doghouse.
– A minha missão é protegê-lo, não viver com ele – insisti.
Kelly estava verdadeiramente ofendida com a minha hesitação.
– Fazes ideia de quantas pessoas venderiam a alma ao Diabo para
poderem viver naquele rancho maravilhoso durante um mês com o Jack
Stapleton? A casa apareceu num artigo da House Beautiful.
– O que esperam que eu faça durante quatro semanas, se tenho de
manter a personagem vinte e quatro horas por dia?
– Hã… – disse Kelly. – Aproveitar?
Discuti e discuti, mas não consegui convencê-los de como isto seria
sufocante para mim. Todos, sem exceção, achavam que seria divertido. O
consenso solidificou-se bastante rapidamente: eu estava a ser ridícula.
Devia dar graças pela minha sorte. Fazer aquilo para que me estavam a
pagar. E acabar com as lamúrias.
Perante tanta unanimidade, não havia muito que eu pudesse dizer.
Glenn estava a adorar.
– É a tua oportunidade de me mostrares o que podes oferecer para
Londres – considerou.
Mas não tinha graça nenhuma. Estávamos a falar da minha vida.
– Como? – inquiri. – Nada do que eu faça nesta situação mostrará
seja o que for. É apenas uma reclusão forçada com…
– O Homem Mais Sexy do Mundo – concluiu Kelly.
Glenn achava a situação divertidíssima.
– Estratégia, flexibilidade, inovação – enumerou, em resposta à
minha pergunta. – E, talvez o mais crucial de tudo: a qualidade, essencial
num líder, de estar disposto a fazer sacrifícios pela equipa.
– Está bem – respondi. Mas não disfarcei a má cara.
– Vê lá se és simpática com o pobre Jack – concluiu Glenn. – Ele não
tem culpa de ser bonito.

Depois de, por fim, ser derrotada de forma espetacular numa votação
que ficou «todos-contra-mim», decidi sair para apanhar ar.
Precisava de um minuto a sós.
E foi então que, no caminho circular de acesso à casa, dei de caras
com Taylor, que estava a chegar. Atrasada. Quando me viu, abrandou o
passo e parou. Agora que eu tinha conhecimento da situação, a
linguagem corporal dela era inconfundível: os olhos baixos do
sentimento de culpa. Os ombros tensos da vergonha. A respiração
superficial da traição.
Como é que não percebera antes?
Andara cega pela confiança e pelo afeto. Pela ideia daquilo que uma
amiga devia ser.
É tão fácil ver aquilo que esperamos.
Semicerrei os olhos, furiosa, mas estava demasiado escuro para
Taylor se aperceber.
– O que fazes aqui? – perguntei.
– Hã… venho trabalhar?
– Estás atrasada.
– Pois. Trânsito.
– Isso é mentira?
– Mentira? Não. Havia muito trânsito.
Percebi no tom da voz dela que começava a dar-se conta de que algo
estava errado.
– Estão todos lá dentro – indiquei, inclinando a cabeça para a
garagem. – Na sala de videovigilância. Onde verificamos todas as
imagens das câmaras de segurança.
Taylor franziu a testa. Sabia que eu estava a tentar insinuar mais do
que aquilo que dissera.
– Todos menos tu – notou, como se fosse uma pista para compreender
o enigma.
– Vou fazer uma pausa. – Decidi dar-lhe outra oportunidade. – Mas
tenho passado muito tempo naquela sala. A vigiar o local.
– Pois, claro. És a agente primária e…
– É espantoso o que aquelas câmaras conseguem captar. Cenas que
uma pessoa nunca esperaria ver, mesmo que vivesse a sua vida uma e
outra vez ao longo de um milhão de anos.
Nessa altura, Taylor percebeu.
Deu para ver o instante em que essa consciência a atingiu. A pequena
faísca de choque nos seus olhos.
– Estás a falar de… – disse ela.
– De ti – confirmei, com um aceno. – Com o Robby.
– Oh…
– Pois.
– Isso… isso…
– Foi o que aconteceu em Madrid?
Ela hesitou. O que era fascinante. Porque agora não tinha maneira de
se escapar. Por fim, admitiu:
– Sim. – E então, como se isso pudesse redimi-la, acrescentou: – Mas
por acidente!
Eu já sabia, claro. E achava que nada podia ser pior do que ver com
os meus próprios olhos. Mas estava enganada.
A confirmação era pior.
– Então, todas aquelas vezes em que eu te liguei, a chorar, de coração
partido… tu estavas numa relação com a pessoa que mo partiu?
Taylor baixou os olhos.
– Ao princípio, não era propriamente uma relação.
– Andavam só a dormir um com o outro.
– Mas não de propósito. Não completamente.
Nem sequer valia a pena estar a falar naquilo. Eu só queria que ela
soubesse que eu sabia. Queria que todos estivéssemos de acordo quanto
ao facto de ela ser uma pessoa terrível.
Mas depois ela acrescentou:
– Tecnicamente, vocês já tinham acabado.
Franzi a testa.
– O quê?
– Não te traímos, é o que estou a dizer. Tecnicamente.
Recusei-me a dignificar o comentário com uma resposta.
– Desculpa. Lamento muito, a sério. Aconteceu. Não sabíamos como
te contar.
– Aconteceu?
– Sabes como é, quando estamos em missão.
– Sim, sei mesmo. Especificamente, com o Robby.
– Não queríamos magoar-te.
Outra vez a falar no plural.
– Será possível que não compreendes a… a… – Nem me ocorriam
palavras que o abarcassem. Por fim, decidi-me por: – A atrocidade
emocional que cometeste?
– Não estamos a falar de crimes de guerra.
– Saqueaste a nossa amizade. Bombardeaste a confiança que eu tinha
em ti. Usaste uma arma nuclear contra a minha fé na humanidade. És o
Enola Gay2 das amigas.
Talvez estivesse a exagerar um pouco. Mas não o admiti, mesmo
depois de me ocorrer que esta conversa não era muito diferente da
maneira como costumávamos falar quando estávamos na galhofa. A
grande diferença agora era, claro, o ódio ardente.
Contudo, eu tinha uma pergunta real para lhe colocar.
– Não compreendes aquilo que fizeste – indaguei –, ou estás a fingir
que não percebes? – Não tirei os olhos dela, à espera. – De uma maneira
ou de outra, vou odiar-te para sempre – continuei. – Mas no primeiro
caso, odeio-te por seres estúpida, e no segundo, por seres egoísta.
Taylor baixou os olhos.
– Deixa estar. Eu sei a resposta. És egoísta. Ninguém é assim tão
estúpido. Nem mesmo tu. – Pensei que talvez me soubesse bem ser cruel,
mas não.
– Ouve…
– Espero que ele valha a pena – atirei-lhe. – Deitaste a nossa amizade
pelo cano abaixo. Desististe de todas as noites de cinema, sextas-feiras de
copos, trocas de mensagens engraçadas, festas de pijama, Dias das
Amigas, viagens de sonho, e de todos os abraços e átomos de admiração,
carinho e afeto que alguma vez poderias ter tido comigo. Não foi?
Prescindiste de me pedir emprestadas as calças de ganga com arco-íris.
Dispensaste as recomendações de livros e os postais de aniversário
personalizados e os lanchinhos pela noite dentro. E perdeste também a
melhor vizinha de todo o sempre, porque podes ter a certeza de que vou
mudar de casa.
Senti a minha voz a tremer. Queria que ela se sentisse mal ao ouvir a
lista de tudo o que perdera, embora, claro, eu tivesse perdido o mesmo.
– E sabias – continuei. – Sabias que o Robby é terrível. Sabias o que
ele me fez… como me abandonou na noite depois de eu ter perdido a
minha mãe. – Soltei um suspiro trémulo. – É isso que dá cabo de mim.
Desististe de tudo… de tudo aquilo com que nos amparávamos uma à
outra… não por um homem qualquer, mas por um pulha.
– Lamento muito – disse Taylor.
– Não quero saber.
– Não quero perder-te – disse ela, a voz agora também a tremer .
– Ele vai deixar-te – avisei-a. – Deixou todas as mulheres com quem
já esteve. Sabias? É sempre o Robby que acaba as relações, nunca elas. E
depois vais implorar-me que te perdoe, mas sem sorte nenhuma. Queres
saber porquê? Porque não sou capaz. Há certas coisas que, quando se
partem, não têm conserto possível.
Estava preparada para que aquilo fosse o fim da conversa. Estava
pronta para a abandonar ali, no meio do caminho, com o eco daquelas
palavras. Comecei a afastar-me.
Mas ela disse, atrás de mim:
– Estás enganada.
Virei-me.
– Ele não me vai deixar. Acabou com as outras porque nunca tinha
encontrado a mulher certa.
Uau, a arrogância!
– E achas que essa és tu?
– O que sei, com toda a certeza, é que não eras tu.
O quê!?
E isto, isto mesmo, é o problema de nos aproximarmos de outras
pessoas. Quanto melhor nos conhecem, mais conseguem magoar-nos.
– O Robby nunca te amou – disse ela – porque tu não o deixaste.
Como se atrevia a ficar do lado dele?
– Não sabes do que estás a falar.
– Pergunta-lhe, um destes dias. Ele tentou.
Não me admirava que Robby tentasse fazer passar por vítima. O que
me admirava era que Taylor acreditasse nele.
Devia precisar mesmo de me ver como o problema.
Então, ela encolheu os ombros e fixou os olhos nos meus.
– Tens tanta certeza de que a culpa foi do Robby…
– Sim! E tu também devias ter!
– … que não consegues ver a tua parte da responsabilidade.
Como é que isto estava a acontecer? Ela devia defender-me. Devia
sentir-se ofendida e injustiçada por mim. É para isso que servem as
melhores amigas.
– Como consegues fazer isto? – perguntei, com a voz a fraquejar. –
Eras a minha melhor amiga.
Mas Taylor abanou a cabeça.
– Nunca fui a tua melhor amiga. Era a tua amiga do trabalho. E o
facto de não saberes a diferença… é precisamente o problema.

2
Avião bombardeiro B-29, ao serviço da Força Aérea dos EUA, é
conhecido por ser o primeiro avião a lançar uma bomba atómica: sobre
Hiroxima, no Japão, a 6 de agosto de 1945. (N. do E.)
Doze
Enfim… Foi neste estado de espírito – muito contrariada – que acabei
por me mudar para o rancho de gado de duzentos hectares pertencente
aos pais de Jack Stapleton.
Porém, não tinha escolha, embora, de repente, me parecesse uma
opção menos má, pelo menos em comparação com estar a viver ao lado
de Taylor. Ou com estar no nosso prédio de quatro apartamentos e
paredes finas como cartolina, a comer cereais na cozinha e a ouvir Robby
e a Pior Pessoa do Mundo a fazerem waffles do outro lado. Ou com estar
a ouvi-los ver filmes de terror no sofá dela, ou mandar vir comida, ou a
noite toda em atividades noturnas no quarto… Em comparação com
qualquer uma dessas hipóteses, viver com o Destruidor era, sem dúvida
alguma, uma melhoria.
Liguei ao meu senhorio do carro, depois daquela discussão com
Taylor, para cancelar o contrato de arrendamento. Encontraria um
apartamento novo online, que arrendaria sem sequer lá pôr os pés.
Contrataria uma empresa de mudanças para tirar tudo do meu
apartamento, incluindo a roupa suja.
Partiria em missão e nunca mais poria os pés ali.
E faria questão de que a nova casa tivesse uma lareira, e que esta
estivesse acesa para eu poder desfazer as malas, procurar todas as coisas
que Taylor me oferecera ao longo dos anos – a T-shirt da Mulher
Maravilha, a agenda com a capa de brilhantes e a frase «éS MáGICA», o
livro com as fotografias dos ouriços-cacheiros mais fofos do mundo – e
atirá-las para as chamas, uma a uma, até serem apenas cinzas.
Uma purga. Uma limpeza. Um recomeço.

*
Na manhã em que Jack e eu nos mudámos para o rancho dos
Stapletons, era Jack que estava maldisposto.
Como se ele é que tivesse motivos para isso.
Perdera aquele ar agressivamente descontraído que usava na maior
parte do tempo como se fosse um perfume. Conduziu com os ombros
tensos, o maxilar contraído e tinha a tensão arterial – juro que conseguia
medi-la do outro lado do carro – elevada.
Mal me dirigiu a palavra o caminho todo. Foi o silêncio mais ruidoso
que eu já ouvira.
Só nesse momento, ali na autoestrada, sentada ao lado de Jack, é que
percebi que Taylor, de certa forma, me fizera um favor: graças a ela,
aquela ida para o rancho de Jack era uma espécie de escape. Não o que
eu tanto desejara, mas, por enquanto, teria de servir.
Essa perspetiva animou-me um bom bocado.
Quando chegámos à ponte sobre o Brazos e Jack saiu do carro para a
atravessar a pé, parecia quase agoniado. E quando parámos em frente da
casa do rancho, o ar em torno dele crepitava com uma aura de
infelicidade.
Um escape para mim. Mas, se calhar, o oposto para ele.
No entanto, Kelly não mentira quando mencionara a beleza da casa.
Era uma hacienda dos anos vinte em estilo espanhol, com telhas
vermelhas e buganvílias cor-de-rosa a florir por todo o lado.
Estacionámos no caminho de cascalho e, quando eu saí do carro, a brisa
fez esvoaçar o vestido leve em torno dos meus joelhos nus.
Na verdade, era uma sensação agradável.
Suponho que as roupas de namorada têm o seu lado positivo.
– Idílico – comentei, olhando para a casa.
Jack não respondeu, mas aquela conversa das «férias pagas»
começava a fazer algum sentido.
Jack não fora criado no rancho. Contou-me mais tarde que os avós é
que viviam ali quando ele era pequeno, e que depois da morte destes se
tornara uma casa de fim de semana. Os pais dele só se tinham mudado
para lá a tempo inteiro depois de se reformarem, e fora nessa altura que a
mãe plantara a horta e o jardim, e o pai convertera metade do velho
celeiro numa oficina de carpintaria. Mas naquela altura, quando
chegámos, Jack não disse nem uma palavra que não fosse indispensável
enquanto me fazia a visita guiada à propriedade.
Eu estava encantada com as paredes caiadas, as vigas expostas no
teto, as portas em arco, o chão de tijoleira, a coleção de estatuetas de
galinhas no louceiro. E os azulejos pintados nas casas de banho e na
cozinha. Janelas por todo o lado, luz do sol e flores de buganvília para
onde quer que me virasse. Havia um jardim enorme perto de um alpendre
lateral enfeitado com madressilva, e um alpendre fechado, maior do que
uma sala, do lado oposto. Era como um lugar encantado de outra época.
Naquele dia, em finais de outubro, todas as janelas estavam abertas.
A cozinha tinha cortinas de algodão aos quadrados, e uma caixa de pão, e
um rádio antigo. Na mesa havia um saleiro e pimenteiro em forma de
maçarocas de milho. O pai de Jack tinha um gira-discos em cima da
bancada, ao fundo da cozinha, e Jack abriu os armários por cima para me
mostrar, em vez de louça, como seria de esperar, a enorme coleção de
discos, organizada por década.
Quer dizer, era tudo encantador.
Exceto, talvez, para Jack.
Segui-o através de uma sala de estar comprida, com três sofás
dispostos em torno de uma lareira gigante, até um corredor que levava
aos quartos.
As paredes do corredor estavam cobertas – quase sem um centímetro
de espaço livre – com fotografias de família emolduradas. E metade
delas, pelo menos, eram de três rapazes com sorrisos grandes e
engraçados a olhar para a câmara.
Jack e eu parámos diante daquele cenário.
Como se nenhum de nós o tivesse visto antes.
Toquei numa fotografia de um jovem Jack, às cavalitas de um jovem
Hank, enquanto Hank pegava no irmão mais novo de ambos, de cabeça
para baixo, pelos tornozelos.
– És tu e os teus irmãos? – perguntei.
Jack acenou afirmativamente e os seus olhos percorreram a parede.
– Parece que se divertiam muito.
Jack assentiu de novo, em silêncio.
Depois disse, numa voz tão baixa que mal o consegui ouvir:
– Não vinha cá a casa desde o funeral.
Continuou a olhar para as fotografias, e por isso fiz o mesmo.
Eram maioritariamente instantâneos: os rapazes, muito pequenos, a
correrem por um campo de flores azuis. Na praia, à beira-mar. A
comerem nuvens de algodão-doce maiores do que as suas cabeças.
Depois, mais velhos: altos e magros, com equipamentos de futebol.
Todos a fazerem o pino. A exibirem peixes na ponta das canas de pesca.
A cavalo. No alto de uma encosta, com esquis. A jogar às cartas. A jogar
basquetebol. Vestidos para o baile de finalistas. A fazerem caretas.
Totalmente normal.
E tão desolador.
Precisamente quando dei por mim a pensar que era capaz de passar a
tarde toda a admirar aquelas fotografias, Jack respirou fundo, abriu a
porta do seu quarto e entrou intempestivamente, como se não aguentasse
nem mais um segundo.
Segui-o.
O quarto de Jack era como o resto da casa – o mesmo chão de
tijoleira e as mesmas paredes brancas, as mesmas portadas viradas para
flores cor-de-rosa, as mesmas portas em arco. Mas parecia mais
masculino, de alguma forma. Mais curtido. Cheirava a ferro, tinha uma
sela antiga ao canto e uma cadeira Eames ao pé da janela.
– Este é o teu quarto? – perguntei, para confirmar.
– O nosso quarto – respondeu ele.
Claro. Íamos dividir o quarto. Afinal de contas, éramos adultos.
Adultos numa relação falsa.
– Podes ficar com a cómoda – ofereceu Jack, pousando a mala no
chão ao lado da sela.
– Podemos partilhar – sugeri.
Mas ele encolheu os ombros.
– Não é preciso.
A seguir, olhei para a cama.
– Isso é uma cama de corpo e meio?
Jack franziu a testa e percebi que nunca tinha pensado no assunto.
– Talvez.
– Tu cabes nesta cama?
O vestígio de um sorriso.
– Fico com os pés de fora.
Ocorrera-me que havia boas probabilidades de que o quarto só tivesse
uma cama. E, de facto, aqui estava a prova.
– Eu durmo no chão – declarei.
Jack inclinou a cabeça, como se não lhe tivesse ocorrido que alguém
teria de dormir no chão.
– Podes dormir na cama – objetou; ao princípio, pensei que estava a
ceder-me o seu leito, mas depois acrescentou: – Podemos partilhar.
Olhei para ele de lado.
– Não é preciso.
– Tens noção de que o chão é de tijoleira?
– Eu desenrasco-me. – Era melhor do que o chão do meu closet.
– Percebo que estejas desconfortável com a ideia, mas prometo que
não te toco.
Eu não queria admitir que estava desconfortável. Essa não era
informação necessária. Apontei para ele com um gesto vago. «Olha para
ti», era o que queria dizer.
– Nem sequer caberíamos os dois nessa cama.
Vi um sorriso genuíno assomar-lhe ao rosto, e fiquei contente por ter
conseguido conduzir a conversa para um tópico menos penoso.
– Já consegui enfiar lá algumas miúdas – disse Jack.
– Prefiro o chão – reafirmei, para encerrar o assunto.
– Está fora de questão fazer-te dormir no chão.
– Está fora de questão dormir na tua cama.
– Não sejas picuinhas.
– Na verdade, acho que estou a ser precisamente o oposto ao
oferecer-me para dormir no chão.
Ele pensou um pouco.
– Sim. É verdade. Obrigado.
Não estava à espera de agradecimentos.
– Ainda assim – continuou ele –, ficas com a cama.
– Não a quero. Mesmo – respondi.
– Nem eu.
– Muito bem. Podemos dormir os dois no chão.
Jack estudou-me como se eu fosse esquisita.
– Estás a afirmar que, mesmo que eu durma no chão, tu dormirás
também no chão?
Esta podia muito bem ser a minha única área de autonomia no
próximo mês.
– Sim – insisti. – Dormirei no chão seja como for.
– Preferes dormir no chão duro e frio de tijoleira do que ao meu lado?
– Aposto que não ouves isso muitas vezes.
Jack sorriu como se estivesse impressionado.
– Absolutamente nunca.
– Se calhar até te vai fazer bem – comentei.
Jack encolheu os ombros, como quem considera essa possibilidade.
Depois – e é possível que um cavalheiro tivesse insistido um pouco mais
–, cedeu.
– Como queiras.
Resolvido o assunto, olhei em volta.
Francamente, não sabia o que esta missão significaria para mim.
Quase todas as minhas responsabilidades normais tinham sido
transferidas para a equipa remota, que arrendara uma casa segura a pouca
distância dali, como base de operações. Eles lidariam com a
videovigilância, o controlo do perímetro da propriedade, a monitorização
de redes sociais e todas as outras tarefas que eu normalmente fazia.
Além disso, estávamos num nível de ameaça amarelo. E no meio do
nada, numa casa rodeada por duzentos hectares de pasto. Portanto, nem
sequer havia muito que fazer. Além de, possivelmente, identificar o
posicionamento do gado.
Quer dizer, não diferia muito de um nível de alerta branco.
«Umas férias pagas», era o que toda a gente achava. Mas havia uma
razão para eu nunca tirar férias. O que esperavam exatamente que fizesse
o dia todo? Tecnicamente, estaria a trabalhar, mas sem qualquer…
trabalho.
Porém, antes que eu pudesse entrar em pânico, ouvimos uma pancada
na porta, seca como um tiro.
Ambos demos um salto.
Do outro lado, ouviu-se a voz de Hank.
– Jack, preciso de falar contigo.
Só quando toda a tensão regressou ao rosto de Jack é que me apercebi
de como a brincadeira quanto à organização das dormidas o descontraíra.
Até a sua postura se alterou. Endireitou-se e saiu do quarto.
Deveria segui-lo? Bom, não fora convidada. Num trabalho normal,
sempre que estava de serviço, tinha o cliente debaixo de olho; mas isto
não era, de maneira nenhuma, um trabalho normal.
Ainda insegura, regressei à cozinha, mas estaquei quando ouvi a porta
das traseiras chiar. Jack e Hank tinham parado do lado de fora, no
alpendre fechado. Não os via, mas as suas vozes chegavam até mim pela
janela aberta.
Estavam a falar sobre mim.
– Trouxeste-a mesmo – disse Hank. – Apareceste mesmo aqui com
essa rapariga.
– No hospital não me pareceu que te incomodasse.
– Pois. No hospital houve muitas coisas que não pude mostrar que me
incomodavam.
– O que querias que fizesse? A mãe convidou-a.
– Só porque achou que não virias sem ela.
– E com razão. Não teria vindo sem ela.
– Estás a tornar as coisas ainda mais difíceis para a mãe e não te
preocupas com isso.
– Tu é que estás a tornar-lhe as coisas mais difíceis. E preocupo-me
muito.
– Não achas que ela já tem o suficiente com que lidar neste
momento?
– Só estou aqui porque ela me pediu.
– Ela quer estar contigo. Não com uma desconhecida qualquer.
– A Hannah não é uma desconhecida. É a minha namorada.
Encolhi-me um pouco ao ouvi-lo mentir.
– É uma desconhecida para nós.
– Não por muito tempo.
– Manda-a embora.
– Não posso. Não o farei.
– Manda-a embora ou eu corro com vocês os dois.
– Não te atreverias. Experimenta fazer uma coisa dessas e depois
informa a mãe do que fizeste.
– Isto é um assunto privado, de família. A última coisa de que a mãe
precisa neste momento é de estar a fazer de anfitriã a uma parvinha
qualquer de Hollywood.
Ouvi sons arrastados e um baque. Espreitei pela porta de rede e vi que
Jack empurrara Hank contra a parede.
– Há alguma coisa naquela rapariga que te pareça Hollywood? –
perguntou Jack.
Era surreal ver dois homens adultos à bulha por minha causa. Apesar
de saber que não era uma luta real. E apesar de saber que o motivo, na
verdade, era outro.
Mesmo assim, sustive a respiração.
Por um segundo, pensei que Jack ia defender-me.
– Ela não podia ser menos Hollywood – disse ele então, em voz baixa
e ameaçadora. – Viste as minhas outras namoradas? A Kennedy Monroe?
A Hannah não é nada parecida com nenhuma delas. É baixa. Tem os
dentes tortos. Quase não usa maquilhagem. Não usa autobronzeador, não
tem extensões, não pinta o cabelo. É uma pessoa totalmente básica e
simples. É a epítome da vulgaridade.
Uau.
– Mas é minha namorada – concluiu Jack. – E vai cá ficar.
Eu ainda estava a tentar engolir «a epítome da vulgaridade».
Mais sons abafados, quando Hank se libertou de Jack.
Recuei para que não me vissem. Claro que isso significava que
também não conseguia vê-los.
– Muito bem – cedeu Hank. – Sendo assim, tenho de lhe fazer a vida
negra para ela decidir partir por si mesma.
– Se fizeres a minha Hannah infeliz…
A minha Hannah!
– … podes ter a certeza de que te farei o mesmo.
– Já fazes.
– Não penses que sabes tudo sobre mim – lançou Jack.
Mas Hank continuava a tentar vencer a discussão.
– Já te disse que não a quero aqui. Mas na verdade não me lembro da
última vez que te preocupaste com o que outra pessoa quer.
– Tu não a queres aqui, mas eu preciso dela aqui. E tu também, apesar
de não saberes. Portanto, deixa-me em paz.
Suponho que, nesse momento, um deles decidiu virar costas, porque
ouvi a porta de rede do alpendre fechar-se. E o som repetiu-se segundos
depois.
Pela janela da cozinha, vi Hank a afastar-se na direção da carrinha
com passo furioso, e Jack a ir no sentido oposto, pelo caminho de
cascalho, em direção às árvores.
O que eu queria ir fazer: esconder a minha cara básica, simples e
epítome-da-vulgaridade para sempre. Porém, Jack era o meu cliente. E
este era o meu trabalho.
Portanto, segui-o.
Treze
Quando o apanhei, ele parou, mas não se virou.
– Não me sigas.
– Tenho de te seguir.
– Vou caminhar um pouco.
– Já percebi.
– Preciso de um momento. Sozinho.
– Isso não é relevante.
– Achas que és mesmo minha namorada ou quê? Não me sigas.
– E tu achas que eu sou tua namorada? Não vim atrás de ti por querer.
És a minha tarefa.
Ao ouvir isto, Jack recomeçou a andar pelo caminho de cascalho –
dirigindo-se determinadamente para lado nenhum, tanto quanto eu
conseguia ver. Deixei-o adiantar-se uns trinta metros, e depois respirei
fundo e segui-o.
Quando Jack disse que ia fazer uma caminhada, estava a falar a sério.
Seguimos os sulcos dos pneus na estrada através de um pasto de vacas,
passando por uma cerca, por um celeiro de chapa enferrujada e por uma
encosta que descia suavemente até um baixio verdejante.
Acham que eu estava vestida para um passeio destes, no meu vestido
de verão bordado e tornozelos expostos?
Não estava.
De poucos em poucos metros tinha de sacudir as pedras das sandálias,
de tal modo que me arrependi a sério por não ter calçado as tais botas.
Jack saberia que eu vinha atrás dele? Claro que sim. Sempre que
chegava a um portão, levantava a corrente e esperava por mim. Depois de
eu passar, sem uma palavra, prendia-a novamente e recomeçava a andar,
e eu esperava educadamente que ele restabelecesse a distância entre nós.
Até caminhei pelo sulco oposto ao que ele usava, por uma questão de
cortesia.
O caminho embrenhou-se pelo bosque e as ervas tornaram-se mais
altas, o trilho mais estreito, e precisamente quando eu estava a ver se me
lembrava do aspeto da hera venenosa, chegámos a um portão de arame
farpado enferrujado.
Do outro lado, a floresta dava lugar a um céu azul aberto, e percebi
que tínhamos chegado ao rio.
Quando me aproximei, Jack mirou-me de alto a baixo.
– Que roupa é essa, afinal?
Olhei para as minhas pernas nuas.
– Tenho umas botas lá em casa.
– Devias tê-las calçado.
– Entendido.
Jack abanou a cabeça.
– Nunca se desce até ao rio com os tornozelos expostos.
– A bem da verdade – disse-lhe –, eu não conhecia essa regra. E
também não sabia que vínhamos ao rio.
Jack virou-se e fitou a distância. O caminho terminava no portão. Dali
até à água era apenas relva alta – e ervas daninhas e cardos e silvas. E
hera venenosa, não nos esqueçamos.
Jack agachou-se, de costas para mim.
– Sobe. Eu dou-te boleia.
– Não é preciso, obrigada.
Ainda agachado, Jack começou a enumerar todas os seres escondidos
naquelas ervas que me podiam fazer mal:
– Cardos, armadilhos, urtigas, formigas-argentinas, formigas pretas,
formigas-de-fogo, hera venenosa, silvas, viúvas-negras, aranhas-reclusas-
castanhas, serpentes venenosas, cascáveis, cobras-de-água…
Esperou que eu revisse a minha resposta. Como hesitei, acrescentou:
– Para não mencionar javalis, linces e coiotes.
Francamente, eu mudara de ideias em «armadilhos».
– Está bem – cedi, e subi para as costas dele.
Jack prendeu os braços por baixo das minhas pernas e levantou-se tão
depressa que quase me deixou tonta – o que me fez apertá-lo com mais
força. Depois começou a andar, naquele ritmo de caminhada de Jack
Stapleton que eu conhecia agora tão bem.
Ir às cavalitas era melhor. Talvez ele quisesse trazer-me também às
costas no caminho de regresso.
Perto do rio, o terreno descia abruptamente. Jack parou no cimo da
ladeira por um minuto enquanto ambos admirávamos o rio lá em baixo,
com a sua praia de areia.
– É o Brazos? – perguntei.
– Sim.
– É mais largo do que eu pensava. E mais… castanho.
Jack não respondeu. Desceu o talude até à margem – aí, pôs-me
rapidamente no chão e dirigiu-se para a água.
Uma vez que ele estava a afastar-se um pouco para norte, decidi
afastar-me um pouco para sul a fim de dar algum espaço a ambos. Devia
estar a cerca de cinquenta metros da água, e baixei a cabeça enquanto
caminhava, maravilhada com a variedade de pedrinhas que salpicavam a
areia: castanhas, pretas, às riscas, pedacinhos de osso de animal, madeira
petrificada, até fósseis. Além, claro, de pedaços de madeira trazidos pela
maré, uma ou outra porção de arame farpado emaranhado e enferrujado,
e um número assinalável de latas de cerveja velhas. Percebi por que razão
Jack quisera vir aqui. Do outro lado, via-se apenas o talude alto coberto
de relva e o céu, e estávamos rodeados pela brisa constante causada pela
água corrente. Parecia não haver mais nada num raio de quilómetros e
quilómetros.
E, na verdade, não havia.
À beira do rio, descalcei as sandálias. Estava um dia quente e aquela
correria toda para não perder Jack de vista deixara-me com calor. A água
era mais límpida ao perto – e, quando molhei os pés, foi uma sensação
fantástica: fresca, borbulhante, com zonas mais refrescantes na corrente.
Soube-me tão bem em volta dos tornozelos que depressa avancei um
pouco mais. Levantei a bainha do vestido, pois não planeava ir mais além
do que água pelos joelhos. Queria só refrescar-me um bocadinho, para
ser franca. A minha ideia era dar mais alguns passos e voltar para trás.
Mas, então, aconteceram várias coisas ao mesmo tempo.
Quando dei o passo seguinte, ouvi um som que parecia Jack a
chamar-me, mas soou tão abafado pelo vento que não tive a certeza.
Virei-me para olhar, mas quando o fiz… o leito do rio desapareceu.
Não havia nada onde o meu pé pousar. Assim, desequilibrei-me e caí
na água.
É sempre chocante aterrar em água fria quando não estamos à espera,
mas a água daquele rio tinha algo ainda mais chocante.
Uma corrente.
Uma corrente bastante forte. Tão forte que, quando caí à água, não
consegui voltar à superfície com facilidade… porque a água me puxava
para baixo.
Aconteceu tudo muito depressa.
Num momento eu estava a molhar os pés, e poucos segundos depois
tinha a cabeça submersa.
Na verdade, só de me lembrar ainda fico arrepiada. Estive muito perto
de me afogar.
Porém, tão depressa como aconteceu, e antes que eu tivesse tempo
para entrar em pânico, senti algo forte como metal fechar-se sobre o meu
braço e puxar-me para cima.
Jack.
Içou-me para fora de água e contra ele como se fosse um guindaste,
agarrando-me pela cintura e colando-me ao seu peito com uma exalação.
Depois arrastou-me para a margem tão depressa que ambos tropeçámos e
caímos na areia.
Se ele ficou por cima de mim como se estivéssemos no filme Até à
Eternidade?
Sim, isso aconteceu.
Se foi de alguma forma romântico como no filme?
Bem… não.
Assim que conseguiu, Jack levantou-se e afastou-se com passos
furiosos, deixando-me encharcada e aturdida e a tossir na areia.
Quando recuperei o fôlego, perguntei:
– O que era aquilo? Um rápido?
– Estás a brincar? – inquiriu ele, com as calças de ganga ensopadas
das coxas para baixo. – Foste mesmo molhar os pés no Brazos? Isto
aconteceu?
Levantei-me e tentei, sem sucesso, sacudir a areia molhada das
pernas.
– Não… não o devia ter feito?
– Ninguém deve fazer isso! Não sabes quantas pessoas morrem
afogadas neste rio todos os anos?
– Como havia de saber?
– Toda a gente sabe! Nunca tomar banho no Brazos!
– Em primeiro lugar, não fui tomar banho. E em segundo lugar…
não. Não é uma informação que toda a gente saiba.
Mas Jack estava lançado.
– E porquê? Porque é que não se pode nadar no Brazos? Porque o
fundo é arenoso, e por isso a corrente forma redemoinhos, e os
redemoinhos escavam buracos no leito de areia do rio, e a corrente
rodopia dentro desses buracos como tornados líquidos… e se uma pessoa
for azarada ou estúpida o suficiente para ser sugada por um deles, adeus.
– Que conhecimento tão especializado… – comecei, ainda engasgada.
– Portanto – prosseguiu Jack, como se eu não tivesse dito nada –,
quando há idiotas que decidem ir nadar ou pescar ou molhar os pés,
quando dão por si já foram puxados pelas correntes. Morrem famílias
inteiras a tentar salvar-se uns aos outros, um a um!
Teria acabado de me chamar «idiota»? Tentei decidir se isso era ou
não pior do que ser a «epítome da vulgaridade».
– Bom, já percebi que não era um rápido.
Olhei para a água, que daqui parecia tão tranquila. Ainda sentia a
força com que me puxara, como uma espécie de íman líquido mortífero.
De súbito, arrepios percorreram-me os braços e as pernas.
– Assustador – disse, quase para mim própria.
A minha calma só pareceu deixá-lo mais furioso.
– Assustador? – gritou Jack. – Podes ter a certeza! Que diabo te
passou pela cabeça?
– Não sei – admiti, virando-me para ele. – Estava com calor. A água
fresca soube-me bem.
– Estavas com calor? – repetiu ele, como se me tivesse perguntado
porque é que estava a beber gasolina e eu tivesse respondido que tinha
sede. – Tens tendências suicidas? É isso? Porque deixa-me explicar-te
porque é que o rio se chama Brazos. Vem de los brazos de Dios, que
significa «os braços de Deus»… As pessoas pensam que foi batizado
assim por viajantes sedentos que ficaram gratos por encontrar água, mas,
na verdade, é porque nele se afogaram tantas pessoas que ficou
conhecido por ser onde Deus recolhe as suas almas.
Bolas. Não estava à espera desta reviravolta tão sombria.
Admito que Jack pretendia transmitir-me uma dica de segurança
importante. Mas, quer dizer, a sério? Era óbvio que eu ainda estava meio
sufocada e muitíssimo abalada. Era preciso gritar?
Não sei como são as outras pessoas, mas eu só consigo ouvir gritarem
comigo durante algum tempo antes de começar a responder no mesmo
tom. Jack queria gritar? Muito bem. Eu também era capaz. Podia estar
aos gritos o dia todo.
– Porque é que estás a gritar comigo? – berrei.
Outra novidade para mim – gritar com um cliente.
– Porque – bradou Jack em resposta – ainda vais arranjar maneira de
te matares!
– Mas não de propósito! – berrei.
– Não faz diferença nenhuma depois de estares morta! – gritou Jack.
– As pessoas estão sempre a molhar os pés em rios! – berrei. – É
perfeitamente normal!
– Não no Brazos!
– Eu não sabia!
– E se tu fores ao fundo eu também vou… porque tenho de entrar
para tentar salvar-te!
– Então não tentes!
– Não é assim que funciona! Se tu morreres no rio, eu morro no rio! E
não quero mesmo morrer no raio do rio!
Por um segundo, fiquei sem resposta. Não sabia que réplica dar
àquilo. E naquele instante, apercebi-me de outra coisa: estava a tremer.
Muito. Com violência. Um tremor que nascia algures mesmo no centro
de mim.
Muito provavelmente, era medo.
Embora não parecesse.
Ou talvez eu me tivesse esquecido de como era o medo.
Geralmente, o antídoto do medo é a preparação – mas eu não estava
preparada para nada do que me acontecera esta semana, desde ver o meu
trabalho transformar-se em algo quase irreconhecível, a mudar-me para
casa de desconhecidos, perder a minha melhor amiga, vir parar ao meio
de um festival de ódio entre Jack e o irmão, ser chamada «vulgar», quase
morrer afogada e – agora – ter um homem a gritar comigo como ninguém
fazia há anos.
Era muita coisa.
De súbito, era demasiado.
– Mas o que achas que sou? – exigi saber. – Alguma historiadora dos
cursos de água do Texas? Como querias que eu soubesse que este é um
rio da morte? Estava muito bem a viver a minha vida na cidade, a tentar
ir para Londres, ou para a Coreia, ou para qualquer outro lado que
literalmente não fosse o Texas, e de repente tenho de vir viver num
rancho de gado e representar nalgum reality show de loucos contigo e
com a tua família? Eu não queria este trabalho, não o pedi, e agora estou
aqui encurralada, sem maneira de escapar, durante sei lá quantas
semanas! Se calhar podias avisar-me se vires que estou prestes a matar-
me a mim própria ou a outra pessoa qualquer acidentalmente…
E foi aqui que a voz me falhou.
Foi neste preciso momento que a fúria me escapou por entre os dedos
e as minhas emoções se desmoronaram. Quando terminei a frase com
«em vez de gritares comigo sem razão como um imbecil», foi num fio de
voz.
Fiquei parada, em silêncio, e Jack também, enquanto ambos
absorvíamos o facto de eu ter acabado de chamar «imbecil» ao meu
cliente.
A minha vontade era virar costas e deixá-lo ali sozinho, num gesto de
orgulho e amor-próprio, mas tinha tudo a tremer, incluindo as pernas.
Sem sequer pensar no que fazia, ergui a mão para tocar no alfinete de
missangas. Só queria um pouco daquele sentimento de conforto que me
invadia sempre que lhe tocava.
Mas não estava lá.
O meu pescoço estava nu. O fio também desaparecera.
– Eh – disse, olhando para baixo –, onde está o meu alfinete?
– O teu quê?
Apalpei o peito, como se pudesse encontrá-lo se continuasse à
procura.
– O meu alfinete. Com as missangas. Desapareceu.
Ter-se-ia soltado na água? Estaria na praia?
Comecei a procurar na areia.
– Aquele alfinete de missangas coloridas que tens sempre ao
pescoço? – perguntou ele, e esqueceu-se de que estávamos a discutir para
começar também a procurar.
– Deve ter caído – disse eu.
Percorri a praia, tentando recriar os meus passos. À chegada vinha
com calor, mas agora, depois do choque do rio, sentia o oposto. Estava
ensopada e com frio e não conseguia parar de tremer. Mas isso já não
tinha qualquer importância.
Enquanto procurávamos, a atitude de Jack suavizou-se.
– Vamos encontrá-lo – garantiu. – Não te preocupes. – E acrescentou:
– Eu sou mesmo bom a encontrar coisas.
Levantei os olhos e, quando o fiz, apercebi-me de como aquela praia
era vasta – em comparação com um alfinete. Era como o infinito. Nunca
o conseguiríamos encontrar.
E depois fiz o que qualquer pessoa faria naquela situação.
Desatei a chorar.
Jack nem hesitou. Percorreu a distância que nos separava e envolveu
nos braços o meu corpo molhado, trémulo, invulgarmente frágil, e
apertou-o durante um minuto. Depois afastou-se, despiu a camisa de
flanela, ajudou-me a vesti-la, abotoou-a e puxou-me de novo para si.
– Lamento muito – disse; de encontro ao peito, a voz dele chegou-me
abafada. – Lamento muito que tenhas perdido o alfinete, e que quase te
tenhas afogado, e lamento ter gritado contigo. Devia ter-te avisado. A
culpa foi toda minha. É só porque me assustaste.
Estava a acariciar-me o cabelo? Por acaso eu tinha Jack Stapleton a
acariciar-me o cabelo?
Ou seria apenas o vento?
Ele apertou-me nos braços durante muito tempo, ali na praia.
Abraçou-me até as minhas lágrimas secarem e eu parar de tremer.
Outra novidade: era a primeira vez que um cliente me abraçava – e a
primeira vez que eu o permitia.
E embora ainda estivesse zangada com ele, não me importei. Jack
parecia ter jeito para isto.

Acabou por me levar às cavalitas o caminho todo até casa.


Primeiro, a ideia era só subir o talude e atravessar a zona de ervas
altas – até chegarmos à estrada de cascalho. Porém, quando lá chegámos,
ele continuou a andar.
– Está bom aqui – disse eu, com as pernas a baloiçar. – Podes pôr-me
no chão.
– É o meu exercício de hoje.
– Consigo andar. Estou bem.
– Gosto de te levar. Sou capaz de começar a fazer isto todos os dias.
– Eu sei andar.
– Claro que sim.
– Então põe-me no chão.
– Não me parece.
– Porquê?
– Principalmente porque está a anoitecer e muitos dos bichinhos que
mordem aparecem nessa altura. Não conseguirás ver onde estás a pôr os
pés. E vens de pernas ao léu, como uma amadora.
– Já chegámos à conclusão de que isso não é culpa minha.
– Portanto, o que estou a fazer neste momento é, de forma muito
cavalheiresca, proteger-te do perigo.
– Ah.
– E também porque me sinto mal por te ter feito chorar.
– Não me fizeste chorar.
Jack fez uma pequena pausa, para não me contrariar. Depois
acrescentou:
– E, além do mais, é divertido.
– Então não vais mesmo pôr-me no chão?
– Não vou mesmo.
Claro que, pelo caminho, não pude deixar de avaliar vários aspetos de
segurança da propriedade. É a atividade padrão do meu cérebro. Fiz
mapas mentais da disposição dos terrenos, incluindo potenciais
esconderijos para vilões e caminhos de fuga em emergências, e áreas a
monitorizar.
Tudo isto, claro, antes de Jack me dizer que os pais nunca trancavam
as portas durante a noite.
– Oh, meu Deus, tens de lhes dizer que o façam!
– Há anos que tento.
Não podia ser. Ia sublinhar essa informação no registo diário logo à
noite.
Contudo, ali, às costas de Jack Stapleton, muitas das minhas
ansiedades habituais pareciam invulgarmente atenuadas. Talvez fosse o
ritmo da caminhada. Ou a suavidade da sua camisa de flanela à minha
volta. Ou a solidez do ombro dele debaixo do meu queixo. Ou aquele
aroma a canela que parecia segui-lo para todo o lado.
Ou talvez seja apenas objetivamente difícil uma pessoa preocupar-se
seja com o que for quando vai às cavalitas de alguém.
Sentia os músculos das costas dele moverem-se e contraírem-se a
cada passo, especialmente quando começámos a subir. Sentia a
respiração dele através da caixa torácica. Sentia o calor do seu corpo
onde o meu estava encostado a ele…
Não vou mentir. Era muito agradável. Demasiado, talvez.
– A sério, podes pôr-me no chão – insisti.
Mas em vão.
– Estamos quase lá – disse Jack.
Portanto, parecia que não me restava outra opção a não ser deixar-me
levar e apreciar o momento.
Catorze
Foi um primeiro dia em cheio.
Naquela noite, conforme prometera, dormi no chão. Jack encontrou
um tapete de ioga no armário e dobrei dois cobertores por cima. Era o
suficiente. Não havia problema. Estar desconfortável não me
incomodava.
Pelo menos, não estava a dormir num closet.
Já tinha dormido em montes de sítios estranhos – corredores,
telhados, até, uma vez, num elevador avariado. O que nunca fizera, no
entanto, fora dormir no mesmo quarto que Jack Stapleton.
Um bocadinho inquietante. Não posso mentir.
Gostariam de saber o que Jack Stapleton faz com a almofada quando
dorme? Não pousa a cabeça nela, como as pessoas normais. Enfia-a
debaixo do corpo, na vertical, como uma prancha de surf, e depois
refastela-se em cima dela. E querem saber o que usa como pijama?
Calças de fato de treino largas e uma camisola interior agressivamente
colada ao corpo. E o que faz com a roupa suja quando veste essa espécie
de pijama? Deixa-a espalhada pelo chão da casa de banho.
Quando foi a minha vez de me mudar, entrei e encontrei as botas
enlameadas, as meias enroladas, a T-shirt com que ele andara o dia todo e
as calças de ganga ainda húmidas – com o cinto nas presilhas e a roupa
interior dentro delas –, tudo caído no chão, espalhado numa forma quase
humana, como um tapete de pele de urso feito das roupas sujas de Jack
Stapleton.
Quer dizer, tive de passar por cima daquilo para chegar ao lavatório e
lavar os dentes.
Quando saí da casa de banho, Jack estava sentado à beira da cama.
Levantou a cabeça. Olhei para ele com ar interrogativo. Ele devolveu o
olhar de testa franzida, como se não percebesse. Apontei para o chão da
casa de banho e perguntei:
– Importas-te de ir tratar daquilo?
Mas Jack limitou-se a inclinar a cabeça.
– Ouve – continuei. – Estamos num espaço partilhado. Não podes
deixar as tuas coisas espalhadas pelo chão.
Jack estava a mirar-me da cabeça aos pés.
– Olá? – chamei-o.
– Vais dormir com isso?
Olhei para baixo.
– Hã… Sim?
– E é com isso que costumas dormir sempre?
Olhei para ele com impaciência.
– Às vezes.
– Nem sequer sabia que ainda faziam coisas dessas.
Olhei novamente para baixo.
– Camisas de dormir?
– Quer dizer… – Jack olhou para mim como se eu fosse esquisita. –
Pareces uma criança vitoriana.
– É uma camisa de dormir – respondi. – É uma peça de roupa humana
normal para dormir.
– Não.
– As pessoas usam camisas de dormir, Jack.
– Como essa não, não usam.
– Eu não estou a fazer pouco do que tens vestido.
– O que eu tenho vestido é normal.
Aproximei-me do espelho e olhei para mim própria. Algodão branco.
Mangas curtas. Um pequeno folho abaixo dos joelhos.
– Não pareço uma criança vitoriana. Uma criança vitoriana teria
rendas e fitinhas. E uma touca.
– Mas anda lá perto.
– Tentei trazer roupa para dormir adequada a uma namorada.
– Nunca tive uma namorada que usasse nada parecido.
– Provavelmente as tuas namoradas dormem só de fio dental.
– No máximo. – Jack soltou um suspiro exagerado, e olhou para o
teto com ar melancólico e saudoso.
Mirei de novo o meu reflexo.
– Esta pareceu ser a opção mais profissional entre as minhas roupas
de dormir – defendi-me.
– Mas… quer dizer, é tua?
– Claro que é minha. Achaste que a tinha roubado?
– Sim. A uma avozinha de noventa anos.
Agora estava aborrecida. Nesse dia, ele chamara-me muitas coisas
insultuosas, desde «básica» a «idiota» e «epítome da vulgaridade». E
agora «avozinha»? Na minha cara?
Não sei porquê, mas esta foi a melhor resposta que me ocorreu:
– Não tens moral para estar a falar, Senhor Roupa Espalhada Pelo
Chão.
Devia ser uma alfinetada, mas Jack desatou a rir. A rir com vontade –
ombros a sacudir e tudo.
– Oh, que resposta tão patética – notou. – Acho que nunca tinha
ouvido nada tão mau.
– Não tem graça nenhuma – disse-lhe.
– Desculpa – pediu ele, deixando-se cair para o lado e escondendo o
rosto na colcha da cama. – Mas tem montes de graça.
– Eh! – exclamei. – Ninguém quer ver a tua roupa interior.
– Por acaso – disse ele, endireitando-se e tentando ficar sério –, há
quem pague bom dinheiro para ver a minha roupa interior.
– Mas não a tua roupa interior suja. No chão da casa de banho!
– Ficarias surpreendida – retorquiu, acenando com a cabeça com toda
a segurança.
– Bom – disse, com a sensação de que era importante esclarecer bem
a minha posição –, eu não sou uma dessas pessoas.
– Eu sei. É uma das coisas de que gosto em ti.
Estaria a tentar escapar-se a arrumar a sua roupa suja com lisonjas?
Tentei de novo.
– Deixa-me fazer uma pergunta. Sou tua criada?
Quanto mais ele tentava ficar sério, mais dificuldade parecia ter.
– Acho que isso ficou decidido logo no primeiro dia.
– Nesse caso, vamos concordar que eu não te obrigo a interagir com a
minha roupa suja, e tu não me obrigas a interagir com a tua. Combinado?
– Está bem – cedeu Jack, tentando manter uma expressão séria. –
Combinado.
Mas agora estava perdido de riso. Jack Stapleton, perdido de riso, de
tal maneira que caiu para trás sobre a cama.
– Vá – exigi, aproximando-me e empurrando-lhe o ombro para ele se
levantar. – Vai apanhar a roupa suja.
Ele resistiu por um segundo e empurrei com mais força. Depois, de
propósito, levantou-se depressa e eu caí para o chão, aterrando na minha
cama improvisada.
Tudo bem. De qualquer maneira, era hora de dormir.
– E não deixes a pasta de dentes destapada – avisei-o. – Parece que
tens cinco anos.
– É a minha casa de banho.
– Agora é nossa.
*

Quando Jack reapareceu, eu já tinha apagado as luzes e ele tropeçou


em mim ao dirigir-se para a cama.
– Cuidado!
– Desculpa.
Enfiou-se debaixo das mantas e pôs a cabeça de fora para falar
comigo como se estivéssemos numa festa de pijama.
– Podes mesmo dormir na cama, sabes?
– Não, obrigada.
– Está a incomodar-me saber que estás aí deitada na tijoleira.
– Paciência.
– Podíamos construir uma muralha de almofadas no meio da cama,
como barreira.
– Não é preciso.
– E se a minha mãe entrar e te vir a dormir no chão?
Eu não vira a mãe dele desde a nossa chegada.
– A tua mãe costuma entrar no quarto do filho adulto sem bater
primeiro?
– Nem por isso. Bem observado.
– E, mesmo que entrasse, podíamos dizer que estamos zangados. O
que é verdade.
– Não estamos zangados – contrapôs Jack. – Só na brincadeira.
– Achas?
A Lua espreitou por trás das nuvens e iluminou ligeiramente o quarto.
Consegui discernir o rosto de Jack por cima de mim. Ele ainda estava a
olhar para baixo.
– Obrigado – disse.
– Porquê?
– Por teres vindo e estares a fazer isto, mesmo contrariada. Por não
teres morrido afogada hoje. E por vestires essa camisa de dormir ridícula.
Virei-me de lado para o ignorar, mas senti que ele continuava a
observar-me.
Passado um momento, ele voltou a falar.
– O que te contei sobre os pesadelos é verdade, sabes? Portanto, peço
desde já desculpa se por acaso te acordar.
– O que devo fazer se isso acontecer? – perguntei.
– É só ignorares-me – esclareceu Jack.
Muito mais fácil de dizer do que de fazer.
– Vou com certeza dar o meu melhor.
Quinze
Jack já saíra quando acordei na manhã seguinte – a sua cama vazia
era um monte de lençóis e cobertores enrolados uns nos outros, como se
tivesse passado a noite toda a fazer mergulho dentro deles.
Onde estaria? O prospeto determinava claramente que ele tinha de
estar sempre comigo ou perto de mim. Não era suposto escapulir-se
enquanto eu dormia.
Vesti-me – calças de ganga e botas, desta vez – e fui à procura dele.
Na cozinha, em vez de Jack, encontrei os pais dele. A serem
adoráveis.
A mãe estava sentada à mesa, com um roupão aveludado, e o pai, do
outro lado da divisão, em frente do fogão, com o avental florido da
mulher posto, esturricava bacon. Havia fumo por todo o lado, o exaustor
trabalhava num tom de desespero, e o homem corpulento abanava o folho
da bainha do avental sem grandes resultados.
Deveria Connie Stapleton estar a rir-se daquela maneira? Era a
primeira vez que a via desde a cirurgia. Não seria perigoso para os
pontos?
Ainda assim, ela parecia mais contida do que ele. Quer dizer, Doc
Stapleton estava dobrado ao meio, agarrado à barriga.
Demorou um instante a recompor-se. Depois tirou as tiras de bacon
carbonizadas da frigideira e trouxe-as à mulher, perfeitamente ciente de
que o bacon devia ser de outra cor e não preto como carvão.
– A culpa é do fogão – justificou-se.
– Claro que sim – assentiu Connie, dando-lhe uma palmadinha na
mão. Depois, com uma generosidade extraordinária, partiu um pedacinho
enegrecido, colocou-o na boca e disse: – Não está mau.
Como se bacon queimado, na verdade, não fosse tão horrível como se
diz.
Senti-me tão tímida, ali parada à porta, enquanto me apercebia de
algo verdadeiramente assombroso: aquelas pessoas tinham um casamento
feliz. Tudo na sua linguagem corporal – os rostos, o riso – confirmava
isso mesmo.
Um casamento feliz.
Quer dizer, ouvimos falar de gente assim. Em teoria, existem. Mas de
certeza que nunca tinha visto nada parecido antes.
Era como avistar um unicórnio.
Comecei a recuar. Não tinha nada que me intrometer nesta cena.
Porém, nesse momento, Doc levantou a cabeça e viu-me, e Connie
seguiu-lhe o olhar.
– Oh! – exclamou, num tom caloroso e acolhedor. – Está acordada!
Não tinha como escapar.
Sabendo tudo aquilo por que Connie acabara de passar, e também que
eu era, na verdade, uma intrusa e uma impostora, de súbito desejei, com
todas as minhas forças, que Jack ali estivesse para me apoiar.
E então, como se me tivesse ouvido, a porta da cozinha abriu-se e
Jack entrou – com um ar rústico e masculino, de camisa aos quadrados e
calças de ganga, e os óculos um bocadinho de lado. Trazia também um
saco de golfe ao ombro.
– Já acordaste – observou, como se não houvesse mais ninguém
presente.
Doc olhou para Jack.
– Foste atirar bolas de golfe ao rio?
– Todas as manhãs – confirmou Jack, com um ligeiro aceno.
– Bolas de golfe? – perguntei. – Para o rio? Isso não é… não sei, mau
para o ambiente?
Jack abanou a cabeça.
– Não há problema. – Depois aproximou-se e deu um beijo na cabeça
da mãe. – Olá, mãe. Como te sentes?
– A recuperar – respondeu ela, levantando o café num brinde.
Jack apercebeu-se então do meu desconforto. Dirigiu-se para mim,
puxou-me pela mão para a mesa de pequeno-almoço, sentou-me,
instalou-se na cadeira ao lado e passou-me o braço sobre os ombros.
Acho que é aquilo a que se chama «dominar uma sala».
Fiquei imóvel e tensa – é espantoso como pensar: «Relaxa e age com
naturalidade» tem precisamente o efeito contrário.
Jack respondeu à minha rigidez com o oposto: pernas abertas. Braço
descontraído e pesado. Voz tão suave como leite com chocolate.
– Estás fantástica hoje – elogiou. E mal eu me apercebera de que
estava a falar comigo, enfiou a cara no meu pescoço e inspirou
profundamente. – Porque é que cheiras sempre tão bem?
– É sabonete de limão – respondi, um pouco aturdida. –
Aromaterapia.
– Acredito – respondeu Jack.
Eu sabia o que ele estava a fazer, claro: a compensar a minha falta de
jeito para representar. Era evidente que eu sofria de uma espécie de
pânico do palco e, portanto, ele tinha de representar com o dobro da
convicção para compensar.
Era realmente bom ator.
O calor na sua voz, a intimidade da linguagem corporal, a forma
como me fitava, como se quisesse sorver-me… Não admirava que eu
tivesse visto Este é o Meu Desejo tantas vezes.
Pensara em tantas desvantagens da minha presença aqui. Preocupara-
me com o tédio de estar de serviço sem nada para fazer, com a
dificuldade de tentar fazer o meu trabalho enquanto fingia o contrário – e
o que isso poderia implicar para o meu desempenho. Receara ser pouco
convincente.
Só não me ocorrera preocupar-me com Jack.
Porém, naqueles breves minutos depois de ele ter entrado, enquanto
trabalhava para estabelecer a nossa credibilidade como casal genuíno e
apaixonado em frente dos pais… foi exatamente isso que senti que
éramos.
O que estou a tentar dizer é que eu própria acreditei.
Senti que ele estava mesmo contente de me ver e que gostava de estar
ao pé de mim. Que gostava de mim.
Jack parecia exatamente, de modo muito convincente e tocante, um
homem apaixonado.
Oh-oh.
Como é que ia aguentar quatro semanas sem ficar traumatizada e
confusa, se nem sequer conseguira aguentar quatro minutos?
Nesse momento, Hank entrou na cozinha, batendo com a porta de
rede atrás de si. Em vez de se sentar à mesa, encostou-se à bancada e
olhou com ar carrancudo para nós, os dois pombinhos.
Aquilo era útil. Podia concentrar-me nisso.
A mãe de Jack nem reparou em Hank. Inclinou-se para nós e pediu:
– Contem-nos como se conheceram.
Tínhamo-nos preparado para esta pergunta.
Jack olhou para Hank durante um segundo antes de devolver toda a
sua atenção à mãe. Depois, serviu-se de uma chávena de café e disse,
num tom simpático:
– Ela é fotógrafa. Veio à minha casa nas montanhas para fotografar o
famoso alce albino.
Olhei de lado para Jack. O acrescento do alce albino era ir longe de
mais.
Hank também não parecia convencido. Cruzou os braços sobre o
peito.
– Têm um alce albino? – perguntou Doc.
Jack assentiu com um aceno.
– Muito esquivo. – Gesticulou na minha direção. – Ela estava a tentar
fazer uma reportagem fotográfica sobre ele, mas não conseguiu encontrá-
lo.
– Que pena – disse Connie.
– Mas eu ajudei-a a procurar durante muito tempo – insinuou Jack,
piscando o olho à mãe.
– Foste muito simpático em ajudá-la – disse Doc.
– Não foi simpatia – retorquiu Jack. – Foi puro egoísmo.
Hank soltou uma risada. Jack ignorou-o.
– Porque foi amor à primeira vista.
Virou-se e fitou-me com a expressão mais apaixonada e sonhadora
que eu alguma vez vira. Depois, prendeu-me uma madeixa de cabelo
atrás da orelha.
– Só queria arranjar uma desculpa para estar ao pé dela. – Recostou-
se e cruzou as mãos na nuca, como quem recorda. – Assim que vi esta
miúda enérgica e baixota sair do Land Rover, com as suas quinhentas
câmaras, percebi logo.
Franzi a testa.
– Chamaste-me «baixota»?
– No bom sentido… baixinha – disse Jack.
Semicerrei os olhos.
– Com amor – insistiu Jack. – Uma adorável, irresistível, «como é
que hei de prendê-la na minha cabina das montanhas» baixinha. – Virou-
se para os pais, prendeu-me pelo pescoço e puxou-me para si, arruinando
o meu carrapito já de si imperfeito, e perguntou: – Já viram como ela é
gira?
– Não sou baixinha – protestei, impotente.
Mas a mãe de Jack estava completamente envolvida na história.
Inclinou-se para nós.
– O que é que mais gostas nela?
Jack libertou-me e deixou-me endireitar.
– Gosto destes fiozinhos de cabelo que nunca ficam presos no
carrapito. E como ela parece um gato molhado quando se irrita. Na
verdade – confidenciou, como se só agora lhe ocorresse –, gosto que ela
se irrite. E irrita-se muito.
– Gostas que ela se irrite? – questionou Doc Stapleton, como se o
filho tivesse um parafuso a menos.
– Sim – confirmou Jack. – As pessoas nunca se irritam connosco
quando somos famosos. Ao princípio, é ótimo… mas passado algum
tempo é como se vivêssemos num planeta sem gravidade. – Ponderou
sobre o comentário por um segundo. Depois virou-se para mim. – Mas a
baixinha não! Basta deixar uma peúga no chão, e tenho logo direito ao ar
de gato zangado. Adoro.
Lancei-lhe um olhar furibundo.
Ele apontou para a minha cara com ar de admiração.
– Aqui está ela.
Connie estava a adorar. Virou-se para mim.
– E o que é que a Hannah gosta mais nele?
Não me preparara para esta pergunta. Mas veio-me de imediato à
cabeça uma resposta.
– Gosto como ele está sempre a agradecer-me. Por tudo e mais
alguma coisa. Até por coisas de que ninguém esperaria um
agradecimento.
Olhei de relance para Jack e percebi que ele sabia que eu estava a ser
sincera. Estudou-me por um instante, durante o qual pareceu abandonar a
personagem. Depois, pegou num pedaço de papel de cozinha
amachucado que estava em cima da mesa e atirou-o para o caixote do
lixo, como se estivesse a fazer um lançamento livre – e falhou.
Olhámos para o papel no chão.
Hank perguntou-me então:
– E o que é que gosta menos nele?
– Menos? – questionei. Também não me tinha preparado para esta,
mas ocorreu-me algo de forma instantânea, como que por magia. – É
fácil. Ele deixa as roupas sujas espalhadas pelo chão. – E acrescentei: – É
como se fosse o Fim dos Tempos e o Jack, o primeiro a ser levado pelos
anjos.
Meio segundo de silêncio e depois desataram todos – incluindo Hank
– a rir.
À medida que se acalmavam, Connie perguntou a Jack:
– Querido, ainda continuas a fazer isso?
Hank, entretanto, preparou-se para sair, novamente muito sério, como
se não tivesse tido intenções de se rir e agora estivesse arrependido.
Dirigiu-se para a porta da cozinha e pousou a mão na maçaneta.
– Vais-te embora? – perguntou Connie, num tom que sugeria:
«Estávamos todos a divertir-nos tanto.»
– Tenho trabalho para fazer – respondeu Hank.
Connie mirou-o com ceticismo e Hank explicou:
– Vou começar a trabalhar no barco hoje.
Pela reação de Connie, era coisa séria.
A resposta chamou também a atenção de Jack.
– No barco? – perguntou.
Connie acenou afirmativamente.
– Avisei o teu pai no outro dia que, se não se despachassem a
construí-lo, ia vendê-lo no eBay.
Jack assentiu com um aceno e virou-se para o pai.
– Queres ajuda?
Hank girou sobre si próprio como se não quisesse crer que Jack
acabara de se oferecer.
– O quê?
Toda a atmosfera na cozinha ficou tensa, mas Jack manteve o ar
descontraído e afável.
– Estou a oferecer-me para vos ajudar a construir o barco –
esclareceu.
– Estás a oferecer-te – repetiu Hank, como se não tivesse ouvido bem
– para ajudar a construir o barco do Drew?
Jack susteve o olhar de Hank.
– É melhor do que a mãe o vender no eBay, não é?
– Não – respondeu Hank.
– Querido – disse Connie a Jack –, sabemos que tens boas
intenções…
Doc soltou um suspiro trémulo.
– Se calhar não é boa ideia, filho.
Perante o consenso familiar, Jack ergueu as mãos.
– Estava só a oferecer-me – disse.
Hank aproximou-se um passo.
– Pois bem, não o faças.
Jack estava agora perfeitamente imóvel, e toda a aparência de
afabilidade se dissipara.
– Não fales sobre o barco – continuou Hank, fitando Jack com ar
furioso. – Não te aproximes do barco. Não toques no barco. E, por amor
de Deus, nunca mais te ofereças para o ajudar a construir!
Jack levantou-se e aproximou-se do irmão.
– Quando é que vais seguir em frente?
Estavam a olhar um para o outro num desafio mudo, mas, nessa
altura, Hank reparou no fio de cabedal que Jack tinha ao pescoço. Fixou
os olhos nele.
– O que é isso?
– Acho que sabes o que é.
– Tira-o.
Jack abanou a cabeça.
– Nunca.
Ao ouvir isto, Hank estendeu a mão para o fio como se quisesse
arrancá-lo do pescoço de Jack, mas este bloqueou-o.
– Não me toques.
– Tira-o – exigiu Hank de novo… e de repente estavam à bulha. Não
propriamente ao soco, mas a puxarem-se um ao outro, aos empurrões, a
bater contra os armários da cozinha. O tipo de escaramuça habitual em
pessoas que não costumam lutar.
Doc Stapleton e eu fomos de imediato separá-los. Doc puxou Hank e
eu torci o braço de Jack atrás das costas dele como uma profissional, mas
temi que isso pudesse denunciar-me e transformei o gesto num abraço
atrapalhado.
Depois de lhes quebrarmos o ímpeto, os dois irmãos fitaram-se,
furiosos e ofegantes.
Foi então que Connie bradou:
– Chega!
Ambos baixaram os olhos.
– Já viste o que ele tem ao pescoço? – começou Hank.
– Não me interessa nada disso – disse Connie. – Interessa-me é o que
estão a fazer.
– Ele nunca vai tocar no barco.
– Tudo o que ele fez foi oferecer-se para ajudar – lembrou Connie. E,
como se Hank pudesse não ter percebido bem, insistiu: – Para ajudar.
– Não quero a ajuda dele.
– Queres, sim. Muito mais do que pensas.
Uma pausa. Connie continuou.
– Quando descobri que estava doente, posso dizer-vos como me
senti? Fiquei contente. Pensei: ótimo. Talvez um cancro seja
suficientemente mau. Talvez isto, por fim, nos obrigue a perceber que
não podemos continuar a desperdiçar o nosso tempo. E quando vos vi
todos juntos, a seguir à operação, e a dar-se bem, pensei que talvez…
talvez… fosse possível encontrar maneira de as coisas ficarem bem. Mas
parece que me enganei.
Os filhos não ergueram os olhos.
Connie estudou Hank por um segundo, como se estivesse a pensar.
Depois disse-lhe:
– Quero que também fiques cá em casa.
Hank ergueu os olhos.
– O quê?
– Quero que voltes para o teu quarto. Aqui em casa. E que fiques até
ao Dia de Ação de Graças.
– Mãe, eu tenho a minha…
– Eu sei – interrompeu Connie.
– Não será…
– Concordo – aceitou Connie. – Mas não sei que mais hei de fazer, e
não temos tempo para tentar perceber.
Hank olhou para o chão e raspou com a bota no azulejo.
– Traz as tuas coisas até à hora de jantar – concluiu a mãe. – Ou
vocês os dois arranjam maneira de se dar bem… ou matam-se um ao
outro enquanto tentam.
Dezasseis
Havia ali muita coisa para processar.
Depois de os irmãos se terem afastado intempestivamente em
direções opostas, e de Doc ter ajudado Connie a voltar para o quarto para
descansar, dei por mim sentada na cadeira de rede debaixo do carvalho,
consciente de algo muito simples.
Tinha de desistir deste trabalho.
Não era por causa dos problemas de saúde de Connie. Já tinha lidado
com pessoas doentes noutras ocasiões. E também não era por causa da
misteriosa contenda entre os irmãos. Todas as famílias têm segredos.
Era por causa de Jack.
Eu tivera esperança de que estar perto dele na vida real fosse uma
desilusão – que, sem alguém para o vestir, sem um escritor para lhe dar
as suas falas, ele perderia o poder de atração. Por mais que não quisesse
abandonar a fantasia, sabia também que era a única forma de cumprir a
missão da melhor maneira.
Estava a contar que a realidade fosse pior do que a ficção. Contudo,
era… melhor.
O problema era esse. Por mais fascinante que fosse a versão de
celuloide de Jack, o homem real – o tipo que deixava as roupas
espalhadas pelo chão, que troçava da minha camisa de dormir, que me
levava às cavalitas e que morria de medo de pontes – era muito melhor.
E quer fosse por causa daqueles seus olhos sorridentes, ou porque não
tinha a minha atividade constante habitual para me distrair, ou porque
cedera a uma paixoneta inocente quando não sonhava que o viria a
conhecer na vida real – não fazia diferença.
O facto era que nenhuma das minhas defesas habituais parecia
funcionar. Quando Jack olhava para mim como se estivesse apaixonado,
eu derretia-me toda. Tudo aquilo que via no rosto dele como
representação… eu sentia como se fosse verdadeiro. Jack estava a fingir
todos aqueles sentimentos – mas eu estava a senti-los. Genuinamente.
E seja qual for o nível de competências de uma pessoa, por mais que
se preocupe com a sua reputação profissional e independentemente das
ordens recebidas, por mais que até seja possível ignorar algumas regras –
está fora de questão, é completamente impossível, nutrir sentimentos
românticos pelo cliente.
Era uma norma básica da proteção executiva.
E se fosse preciso confessá-lo a Glenn, era o que faria. Ele respeitaria
a minha decisão de tomar a atitude correta e colocar o cliente em
primeiro lugar.
Pelo menos, assim o esperava.

Desistir.
Era o fim desta missão. E, muito provavelmente, também o fim da
minha carreira. Mas não havia volta a dar.
O amor deixa uma pessoa confusa. Turva-nos o discernimento. O
amor faz-nos descarrilar com o desejo.
Pelo menos, é o que dizem.
Nada disso me acontecera com Robby… mas – e era algo que só
agora me ocorria – talvez com ele não fosse amor? Porque aquilo que
estava agora a acontecer com Jack Stapleton, o que quer que fosse, era
muito mais desestabilizador.
Não compreendia, mas uma coisa era evidente: estes sentimentos
eram complexos o bastante para tornar tudo o resto muito simples.
Tinha de sair daqui.
Levantei-me da cama de rede e comecei a dirigir-me para a casa de
vigilância pela estrada de gravilha. A minha intenção era ir até lá, ligar a
Glenn e desistir. Simples. Mas ia apenas a meio caminho do portão
quando ouvi um som inconfundível. O estrondo de um tiro de espingarda.
Estaquei de imediato. Virei-me.
Outro tiro.
Vinha do outro lado do celeiro.
Corri nessa direção, saltei a cerca e, ao fazê-lo, ouvi ainda mais um
tiro.
O que se passava? Quem é que estava a disparar? Teria a
perseguidora criadora de corgis conseguido encontrar-nos? Perdido a
cabeça? Seguido Jack até uma ravina qualquer no meio de duzentos
hectares de nada? Enquanto corria através do campo, a tropeçar em
formigueiros e silvas, formulei listas mentais de possibilidades do que
poderia encontrar – e todo um conjunto de planos de contingência para
como lidar com cada uma delas.
Porquê, mas porque é que Glenn não me autorizara a trazer uma arma
de fogo? «Não vais precisar», garantira ele.
Agora era tarde de mais.
O que quer que encontrasse naquela ravina, teria de pensar depressa e
encontrar a melhor forma de reagir.
Rezei por isso.
Mas o que encontrei não foi uma criadora de corgis louca. Nem um
Jack Stapleton ensanguentado.
Era o simpático e bondoso Doc Stapleton, o patriarca residente. De
espingarda em punho. A disparar contra garrafas.
Quando cheguei ao cimo da ravina e o vi, estava já suficientemente
perto para ele me ouvir. Doc virou a cabeça quando comecei a descer.
Abrandei o passo, parei e dobrei-me para a frente, com as mãos nos
joelhos, ofegante, à espera que os meus pulmões parassem de arder.
Quando por fim levantei a cabeça, ele olhava para mim como se não
conseguisse perceber o que eu estava ali a fazer.
– Ouvi tiros – expliquei, arquejante. – Pensei… – Depois mudei de
justificação. – Assustou-me.
Doc fez um som de desprezo com os lábios, acrescentando:
– Menina da cidade.
Tudo bem. Podíamos ficar-nos por aí.
Endireitei-me, ainda com a respiração acelerada, e aproximei-me
mais. Em cima de pedras, alinhadas contra uma curva da ravina, estavam
garrafas de vidro – talvez umas vinte. Verdes, castanhas, transparentes.
Por baixo das pedras, no solo, havia um autêntico lago de estilhaços de
vidro.
– Os tiros – continuou Doc, enquanto eu registava o que via – têm um
significado muito diferente aqui no campo.
Achava ele. Mas acenei com a cabeça.
– Tiro ao alvo.
Doc estendeu-me a arma.
– Quer experimentar?
Olhei para a espingarda. A resposta era não, claro. Não, não ia pôr-me
aos tiros a garrafas quando há minutos me preparava para desistir deste
trabalho. Não, não queria passar nem mais um minuto do que o
estritamente necessário neste rancho de malucos. Nem arruinar o meu
disfarce ao exibir as minhas capacidades de atiradora.
Não. Pura e simplesmente, não.
No entanto, precisava de alguns minutos para recuperar o fôlego. E
talvez me soubesse bem dar um tiro em alguma coisa neste momento.
Foi então que Doc disse:
– Não precisa de acertar em nada.
Pelo seu tom de voz, era evidente que achava que a minha hesitação
se devia ao facto de não saber atirar. Ainda estava a tentar resistir ao
desafio quando ele acrescentou:
– De qualquer maneira, esta espingarda é um pouco difícil de
manobrar por senhoras.
Quer dizer, por favor.
Podia perder mais cinco minutos, certo?
Estendi as mãos para a espingarda e deixei-o passá-la para mim.
Depois, deixei-o dar-me uma lição. Não lhe menti, exatamente. Mantive
um silêncio afável enquanto ele fazia uma introdução muito básica da
arma que eu segurava.
– Isto é a coronha – explicou ele –, e isto é o cano. Aqui é o gatilho.
Puxa-se aqui esta alavanca para recarregar entre disparos. – Depois
apontou para o buraco na ponta do cano. – As balas saem por aqui. Tem
de ter cuidado e estar sempre a apontar para o chão até ao momento de
disparar.
As balas saem por aqui? A vontade de lhe mostrar subiu por mim
acima como água a encher um copo.
– Atire contra aquele grupinho ali – indicou Doc, gesticulando na
direção de uma fila de garrafas de cerveja. – Se acertar em alguma, dou-
lhe uma moeda.
Uau! Havia algo de muito inspirador em me sentir tão subestimada.
Nesse momento, decidi fazer mais do que acertar nas garrafas. Ia atingi-
las com estilo. Depressa e com facilidade. À patrão. E mais, com a arma
na anca.
– Muito bem, menina – disse Doc. – Mostre-me o seu melhor.
O meu melhor?
Muito bem.
Soltei a segurança, posicionei-me numa postura confortável, encostei
a coronha ao osso da anca e puxei o gatilho com um BUUUM!
A espingarda tinha um coice de respeito, mas a primeira garrafa
desapareceu numa nuvem de poeira. Não parei para apreciar. Mal
pressionei o gatilho, puxei a alavanca com um ka-chunk satisfatório e
disparei de novo. Outro BUUUM! E outra garrafa feita em pó. Depois
outra, e outra, e mais outra. BUUUM – ka-chunk, BUUUM – ka-chunk,
BUUUM! De um lado ao outro da fila, as garrafas explodiram em rápida
sucessão.
Acabou tudo mal tinha começado.
Depois virei-me para Doc e puxei a alavanca uma última vez – ka-
chunk. Como uma dama. Acionei a segurança, desencostei a espingarda
da anca, olhei para o rosto estupefacto de Doc e disse:
– Foi divertido.
Acabara de revelar demasiado sobre mim própria e já devia estar a
meio caminho de Houston. Mas valera a pena.
Foi então que vi alguém no cimo da ravina.
Era Jack. A observar-nos. E pela expressão de admiração atrás dos
óculos tortos, era evidente que assistira a tudo. Levou os dedos à testa,
numa pequena saudação de respeito, à qual respondi com um ligeiro
aceno de cabeça.
Estava na altura de me pôr a andar.
Dezassete
A primeira coisa que vi quando entrei na casa que servia de base de
operações foi Robby e Taylor – com as mãos enfiadas nos bolsos de trás
um do outro.
Antes que essa imagem pudesse ficar demasiado gravada na minha
memória, tossi.
Eles separaram-se abruptamente ao ouvir-me, mas… era tarde de
mais. Por mais que pestanejasse, já não consegui apagar aquela imagem.
– Onde está o Glenn? – perguntei.
– Na cidade – respondeu Taylor, enquanto Robby perguntava ao
mesmo tempo:
– Onde está o cliente?
– Preciso de falar com o Glenn – disse.
Doghouse, que estava sentado atrás de uma secretária do outro lado
da sala, pegou no auscultador de um telefone fixo e estendeu-mo.
Aproximei-me, marquei o número de Glenn e preparei-me mentalmente
para me despedir – ali mesmo, em frente dos meus arqui-inimigos –,
ignorando todas as questões na minha cabeça. Glenn gritaria comigo?
Robby e Taylor ficariam contentes por me ver falhar? Estaria a
abandonar todas as possibilidades de conseguir o lugar em Londres?
Enquanto esperava, o meu corpo estava tenso como um arame esticado.
Mas a chamada para Glenn foi parar ao gravador de mensagens.
– Por acaso, ainda bem que aqui estás – disse Robby, depois de eu
desligar. – Tivemos alguma atividade na propriedade Stapleton.
Abanei a cabeça.
– Os tiros? Era só o pai dele a disparar contra garrafas na ravina.
– Não – respondeu Robby. – Na casa dele na cidade. – Olhou para os
monitores. – Taylor, mostra-lhe as imagens – pediu. Muito profissional.
Como um mentiroso.
Porém, o que ela me mostrou nos monitores fez-me aproximar mais
um passo. E outro.
– Mas que raio?… – disse.
– Pois.
Eram imagens das câmaras em torno da casa de Jack em Houston.
Todas as janelas do piso térreo tinham sido pintadas com tinta em spray,
exibindo agora corações cor-de-rosa e o nome «Jack» repetidamente.
Estudei várias imagens, de ângulos diferentes.
– Todas as janelas do piso de baixo, não é?
Robby acenou afirmativamente.
– Foi a Senhora dos Corgis? Sabemos?
– Temos noventa e nove por cento de certeza de que foi ela, sim –
afirmou Robby.
Taylor mudou as imagens, mostrando agora um vídeo anterior, de
uma mulher em flagrante delito.
– É ela? Conseguimos uma identificação facial?
Robby abanou a cabeça.
– Não, mas deixou presentes.
– Presentes?
– Sim. No alpendre – esclareceu Robby. E acrescentou: – Em sacos
de oferta.
– O quê?
Robby consultou as mensagens no telemóvel.
– Segundo a Kelly, uma camisola de lã tricotada à mão com uma
imagem admiravelmente realista da cara do Stapleton na parte da frente,
um álbum de instantâneos da nova ninhada de cachorrinhos da mulher, e
uma série de nus.
– Uma série de nus? – perguntei. – Nus de quem? Do cliente?
– Nus da Senhora dos Corgis.
Céus.
– Ela deixou também um bilhete manuscrito a dar as boas-vindas ao
Jack a Houston… e a recordar-lhe que o relógio biológico dela continua a
trabalhar e que preferia mesmo que ele a fecundasse esta primavera, se
for conveniente para o calendário dele.
Robby estendeu-me um tablet para eu ver as fotografias enviadas por
Kelly.
– Então – disse, pensando em voz alta –, isto significa que estamos
agora num nível de ameaça laranja?
– Tendo em conta os cachorrinhos e corações, acho que continuamos
no amarelo.
– Os nus são um pouco ameaçadores.
– Bem visto.
Taylor interveio.
– Mas não há ameaças. Pelo menos da parte dela.
– Exceto… – ponderei qual poderia ser a expressão indicada –
fecundação à força?
– Essa parte é preocupante – concordou Robby.
– E o facto de ela agora saber que o Jack se encontra em Houston –
acrescentou Taylor.
– E qual é a morada dele – recordei-lhes.
Psicanalisámos a Senhora dos Corgis durante algum tempo, para
tentar avaliar que perigo ela colocava, e ajustámos os protocolos na casa
de Houston. Kelly já participara o sucedido à Polícia e iniciara o processo
de obter uma ordem de afastamento. Teríamos de trocar também o Range
Rover por uma viatura de outra marca e cor.
Quando saí da base de operações, a noite caía.
Ainda nem chegara ao portão dos Stapletons quando Robby gritou,
atrás de mim:
– Eh! – chamou. – Tens o Glenn em linha.
Tinha-me esquecido dele. Mas agora era tarde. Connie já devia ter
acordado da sua sesta e tinha de comer qualquer coisa antes de tomar os
medicamentos.
– Sabes que mais? – disse. – Eu ligo-lhe depois.
E foi assim que, sem sequer me aperceber, decidi ficar.

Ia a meio da estrada de cascalho que levava à casa, sempre atenta a


sinais de gado nas imediações, quando vi Jack a correr – literalmente a
correr – ao meu encontro.
Chegou junto de mim sem abrandar e apertou-me nos braços.
– Onde estavas? – perguntou. – Fiquei preocupado.
– Tive de ir à base de operações .
Sentia o coração dele a bater. Parecia um pouco acelerado. Por um
segundo, achei que era real. Portanto, relaxei, como faria num momento
real. Mas depois pensei que era melhor confirmar antes de começar a
gostar demasiado da sensação.
– O que estás a fazer? – inquiri, com a cara encostada ao ombro dele
e a voz abafada contra a sua camisa.
– Os meus pais estão a ver – respondeu Jack.
Ah. Entendido.
Correspondi ao abraço. Mas, agora, só a fingir.
Quando ele me soltou, por fim, regressámos à casa de braço dado –
também para manter as aparências.
– É verdade, Jack, não podes escapulir-te para o rio de manhã sem
mim.
– Porque não?
– Se tivesses lido o prospeto, saberias que tenho de estar sempre
contigo.
– Nunca o lerei.
– E por que raio é que vais atirar bolas de golfe para o rio, afinal?
Podes matar um golfinho por engasgamento.
– Elas dissolvem-se na água.
– Isso é treta.
– Será demasiado pedir uma ou duas horas só para mim?
– Sim, é.
– Podes dormir até mais tarde, não precisas de te preocupar.
– Tenho de me preocupar. É esse o meu trabalho.
– Fazemos assim – propôs então Jack. – Eu deixo de ir ao rio quando
me disseres que canção é essa que andas continuamente a trautear.
– Como assim?
– Andas sempre a cantarolá-la. Como é que se chama?
– Eu não ando a trautear canção nenhuma.
– Andas, sim.
– Acho que daria por isso.
– Pelos vistos, não.
Franzi a testa.
– Tenho andado mesmo a cantarolar? – Tentei recordar-me.
– Quando estás a tomar duche – enunciou Jack, como se isso pudesse
espevitar-me a memória. – E quando te serves de café, ou estás a andar.
Às vezes quando lavas os dentes.
– Hum – respondi. – Não sei se acredito em ti.
Jack franziu a testa.
– Achas que estou a inventar?
– Só creio que daria por isso.
Calámo-nos quando nos aproximámos da casa, e pensei em enfiar a
mão no bolso de trás das calças dele, numa pequena homenagem a
corações partidos, aos meus némesis e à crueldade constante da vida.
Mas talvez isso fosse ultrapassar os limites.

Depois de jantar, conduzi Jack até ao outro lado do jardim, onde


podia falar com ele em privado e pô-lo a par da situação com a Senhora
dos Corgis.
Havia um cercado para cavalos ao lado do celeiro, com um banco
onde podíamos sentar-nos. Saltámos a cerca e sentámo-nos lado a lado ao
pé da gamela de água enquanto transmitia os pormenores a Jack, fora do
alcance dos ouvidos dos restantes habitantes da casa.
Falar sobre as ameaças com os clientes é uma arte. Um equilíbrio
delicado, informando-os sem os alarmar. Ou, mais precisamente,
alarmando-os apenas o suficiente para captar a sua atenção e conseguir a
cooperação e a anuência deles sem os deixar em pânico.
Mas Jack não ficou nada alarmado.
Na verdade, assim que proferi a palavra «nus», ele desatou a rir.
– Eh! – protestei. – Isto não tem graça.
Jack inclinou-se para trás e ergueu o rosto para as estrelas, com os
ombros sacudidos pelo riso. E depois inclinou-se para a frente e tapou a
cara com as mãos.
– Desculpa – pediu, passado algum tempo, enquanto limpava os
olhos. – Mas os nus… e os bilhetes… e a frase… – Recomeçou a rir e
não conseguiu terminar. – E a frase… – tentou de novo. Mais
gargalhadas. – E a frase… – repetiu, agora mais alto, como se estivesse a
ordenar a si próprio para falar. – A frase «se for conveniente para o seu
calendário».
Dobrou-se ao meio, agarrado à barriga.
É surpreendentemente difícil não nos rirmos quando alguém está
perdido de riso à nossa frente. Isto é sério, recordei a mim própria.
Concentra-te. Depois declarei, num tom grave:
– Se calhar devias dar uma vista de olhos às ofertas.
– Mas aos nus não – pediu Jack, a rir cada vez mais. – Não me
obrigues a ver os nus.
– Tens de levar isto a sério – ralhei, tentando acalmá-lo com o meu
tom de voz.
– Fico com a camisola – disse ele, e limpou os olhos. – A minha mãe
adora-as.
Abanei a cabeça.
– Está tudo a ser registado como provas.
Isto fê-lo desatar a rir outra vez, até ficar sem fôlego.
– Nunca conheci ninguém que se risse tanto como tu – observei,
passado algum tempo.
– Nunca me rio. Há anos que não me acontece.
– Estás a rir agora.
Jack endireitou-se, como se não tivesse reparado até então.
A ironia: dizer-lhe que estava a rir foi o que, finalmente, o fez parar.
– Parece que sim – comentou, aparentemente assombrado com a
ideia. – Quem diria!
– Estás constantemente a rir – contrapus, estupefacta por ele não
saber isso em relação a si próprio. – Ris-te de tudo.
– Mas principalmente de ti.
Olhei para ele de lado. Obrigadinha.
Ele estudou-me, como se só agora se apercebesse de que aquilo que
me dissera era verdade.
– Não podes ignorar estas ameaças – avisei, preparada para me lançar
num sermão ardente sobre como pequenas ameaças podiam transformar-
se em grandes problemas.
Porém, nesse momento, algo inesperado fez-me perder o fio de
raciocínio.
Um cavalo entrou no recinto onde estávamos sentados.
Um cavalo.
Um cavalo branco e castanho acabara de entrar pelo portão aberto e
dirigiu-se até nós a passo. Do nada, juro. Um cavalo sem sela.
Fiquei tensa e Jack reparou.
– Não me digas que também tens medo de cavalos.
– Não – respondi, por uma questão de princípio. – Mas… o que está
ele a fazer aqui?
– Como assim? Ele vive aqui.
Observei-o enquanto se dirigia para nós. Mais precisamente, para
Jack – detendo-se mesmo à sua frente e baixando o nariz aveludado para
o dele.
Deixem-me assegurar-vos uma coisa: o que se aplica às vacas, aplica-
se também aos cavalos. Parecem muito mais pequenos na televisão. A
criatura tinha uma cabeça do tamanho de uma mala de viagem. Eu já
tinha visto cavalos, claro está – à distância. No curral. Com um ar muito
mais… pequeno.
Jack explicara-me no primeiro dia que os pais tinham adotado meia
dúzia de cavalos mais velhos, sem donos, que precisavam de um sítio
agradável para passar o resto dos seus dias. «Mais ou menos como um lar
de terceira idade para equídeos», comentara.
O que era fantástico, em teoria.
É tudo muito bonito até uma pessoa se ver com um par de narinas
gigantes em frente da cara.
– Olá, amigo – cumprimentou-o Jack, levantando as mãos para lhe
acariciar o focinho. – Esta é a Hannah. Não a mordas.
E depois Jack afastou-se e voltou com um saco de aveia. Sentou-se de
novo ao meu lado, enfiou a mão no saco e tirou uma mão-cheia. Abriu a
mão e o cavalo encostou os lábios penugentos à sua palma e sugou a
aveia até ao último grão.
– É a tua vez – disse Jack, oferecendo-me o saco.
– Não, obrigada.
Jack inclinou a cabeça.
– Tens o emprego mais assustador de todas as pessoas que conheço,
mas tens medo de lábios de cavalo.
– Não é dos lábios, é dos dentes.
Jack desatou a rir outra vez.
– Estás a ver? – constatei. – Estás novamente a rir.
– Estás a ver? – repetiu Jack, como se a culpa fosse minha. – Tu és
hilariante.
Deu mais uma mão de aveia ao cavalo, mas cacarejou como uma
galinha de olhos postos em mim até que eu, por fim, cedi.
– Está bem.
Enfiei a mão no saco, apanhei um punhado de aveia e ofereci-a ao
cavalo.
– Com a mão esticada e bem aberta – explicou Jack –, para ele não te
comer os dedos.
– Não estás a ajudar – protestei, enquanto o cavalo roçava com os
lábios na palma da minha mão até ter rapado o prato.
– Faz cócegas, não é? – perguntou Jack.
– Por assim dizer.
– Este é o Clipper – apresentou-o Jack. – É um cavalo de circo
aposentado.
Olhei para Clipper com um novo respeito.
– Veio para cá quando eu andava na escola secundária – continuou
Jack. – Tinha só oito anos. Fez uma lesão que foi suficiente para ter de se
reformar… mas, na verdade, não tinha grandes limitações. Passei o meu
último ano do secundário a fazer truques com ele. – Deu-lhe uma
palmada no pescoço. – Mas agora já é um velhote.
– Que tipo de truques? – perguntei.
Em resposta, sem uma palavra, Jack foi buscar um cabresto à sala de
material de equitação e enfiou-o na cabeça de Clipper. Depois fez-me
sinal para o seguir enquanto conduzia o cavalo até ao portão aberto para
o cercado.
Parei ao portão e vi Jack içar-se para a garupa de Clipper, sem sela, e
o cavalo, que parecia saber exatamente o que fazer, passou de passo a
trote e depois a um meio galope.
A cerca em torno do recinto era oval e eles percorreram o perímetro.
Jack segurava na corda do cabresto com uma mão, mas nem precisava de
a puxar.
– Como é que nunca fizeste um western? – perguntei.
– Eu sei! «Montar a cavalo» é uma das competências do meu
currículo.
– Ainda precisas de currículo?
– Não. Mas, mesmo assim…
– Devias fazer um western! Isto é um perfeito desperdício de talento.
– Está bem – concedeu Jack. – Se alguma vez voltar a fazer um filme,
será um western.
Estava prestes a perguntar-lhe se tencionava fazer mais algum filme,
mas depois ele anunciou:
– Prepara-te.
Inclinou-se então para a frente, apanhou duas mãos-cheias de pelos na
base da crina de Clipper e… nem sequer sei como descrever o que fez a
seguir: sem que o cavalo abrandasse, Jack rodou para o lado esquerdo,
aterrou com ambos os pés, voltou a subir, deslizou por cima do cavalo,
rodou para o lado direito e repetiu o movimento. E depois continuou a
fazê-lo, da esquerda para a direita, para cima e para baixo, a saltar de um
lado para o outro como se estivesse a fazer slalom.
Eu estava tão estupefacta que nem conseguia falar. Fiquei apenas a
olhar para ele, de boca aberta.
Após uma volta completa, Jack sentou-se de novo na garupa de
Clipper e olhou para mim, a avaliar a minha reação. Clipper continuou a
trotar ao mesmo ritmo.
– Fixe, não é? – perguntou Jack.
Só consegui dizer:
– Tem cuidado!
– Aquilo não mete medo nenhum – disse Jack, parecendo satisfeito
com a minha preocupação. – Isto é que mete medo.
E depois, antes que eu conseguisse impedi-lo, ainda com a corda do
cabresto na mão, Jack apoiou as mãos na cernelha do cavalo, inclinou-se
para a frente e levantou os pés calçados com ténis para a garupa do
animal. A seguir, lenta e cuidadosamente, enquanto Clipper continuava a
meio galope por baixo dele, pôs-se em pé.
Em pé!
De joelhos dobrados e braços esticados para os lados, como um
surfista. E Clipper continuou a dar a volta ao recinto.
– Espantoso, não é? – disse Jack quando a minha estupefação muda
se prolongou demasiado. – O artista é o Clipper, na verdade. Tem um
passo muito suave, e não há nada que o assuste. Podemos fazer o que
quisermos. Podia pendurar-me do pescoço dele. Fazer o pino…
– Não faças o pino! – pedi.
– Não – concordou Jack –, vou fazer uma coisa melhor.
E então, antes que eu conseguisse impedi-lo, Jack agachou-se – tudo
sem que o cavalo abrandasse o passo –, deu balanço e desmontou com
um mortal, largando a corda e aterrando com os dois pés no chão.
– Valha-me Deus! – gritei, e não foi em tom de admiração.
Jack fez uma vénia. Virou-se para mim, deliciado com o meu ar
horrorizado, e disse:
– Há muito tempo que não fazia isto. Amanhã vou estar todo dorido.
– Nada de saltos mortais! – exclamei, como se fosse uma nova regra.
Jack parecia muito satisfeito consigo próprio.
– Estive aqui a exibir-me para ti!
– Não era preciso – disse. – Não quero que te exibas.
Mas Jack já se dirigia para Clipper, que abrandara e parara assim que
ele tocara no chão, e nos fitava agora por baixo das pestanas compridas e
escuras.
Jack pegou na corda e conduziu o cavalo até mim.
– Agora é a tua vez.
– Não, obrigada.
– Meu Deus, és mesmo medricas. Como podes ser assim na tua área
profissional?
– Não sei andar a cavalo – protestei.
– É por isso que o Clipper é o ideal – declarou Jack. – Ele é que faz o
trabalho todo.
– Não consigo montar a cavalo – reiterei, à medida que Jack se
aproximava. – Consigo fazer outras coisas: conduzir um carro em marcha
atrás pela autoestrada a alta velocidade. Consigo fazer rappel de um
telhado. Pilotar um helicóptero…
Se normalmente gostava de novos desafios? Claro que sim. Mas
talvez já tivesse competências suficientes. Ou talvez não quisesse passar
mais vergonhas em frente de Jack.
– Então isto deve ser fácil para ti – retorquiu Jack.
Abanei a cabeça.
– Não.
Porém, Jack e o cavalo estavam agora ao pé de mim.
– Só a passo – tentou ele persuadir-me. – Sem truques. Devagar. Vais
adorar. Tudo o que tens de fazer é estar sentada. Eu seguro na corda.
Estudei o cavalo, depois Jack. Ele cruzou os dedos das duas mãos
num apoio para eu pôr o pé e baixou-se.
– Agarra numa mão-cheia de crina e põe aqui o pé – indicou.
Hesitei.
Baixinho, Jack começou a cacarejar.
Com um suspiro, apoiei o pé nas mãos dele.
– Por que raio é que esse truque do cacarejar resulta? Porque é que
tudo o que fazes resulta comigo?
Nem tive tempo de me arrepender de ter confessado mais do que
queria antes de Jack me içar para cima do cavalo.
– Isso mesmo – aplaudiu, subindo as mãos para as minhas ancas e
depois apoiando-me o traseiro enquanto eu levantava a perna e me
instalava. – Não foi assim tão difícil, pois não?
Fiquei mesmo contente por ter vestido calças de ganga naquele dia.
Tentei sentar-me de costas direitas, como Jack, mas foi nessa altura
que me apercebi da altura ridícula a que me encontrava. Era como estar
em cima da prancha de uma piscina.
Deitei-me para a frente e agarrei-me ao pescoço de Clipper.
– Consegues pilotar um helicóptero – comentou Jack –, mas não és
capaz de te sentar direita num cavalo?
– Os helicópteros têm cintos de segurança – respondi.
– Isto não é ciência aeroespacial – lembrou Jack.
– Acalma-te lá, senhor cavaleiro – ripostei. – Lá porque és a Simone
Biles da ginástica equestre, isso não significa que sejamos todos como tu.
Olhei para Jack, que estava a rir. Outra vez.
– Não te rias – exigi.
– Não me faças rir – ripostou ele.
E, nesse momento, Clipper começou a andar. Não era assim tão mau.
O passo dele era de facto muito suave. Não lhe larguei o pescoço. E Jack
não largou a corda do cabresto.
– Nunca tinhas montado um cavalo? – perguntou-me por cima do
ombro depois de um minuto em silêncio.
– Já – respondi. – Uma vez, numas férias, quando era pequena.
Talvez fosse o ritmo reconfortante do passo. Ou o cheiro a cavalo. Ou
o som dos cascos na areia do cercado. Ou o movimento do pescoço de
Clipper enquanto balançava a cabeça de um lado para o outro. Ou o peso
sólido e maciço do corpo dele por baixo de mim. Ou o seu resfolegar
altivo. Ou até, para ser franca, a imagem de Jack à minha frente, que
vislumbrava quando me atrevia a levantar um pouco a cabeça, a conduzir
o cavalo com naturalidade, quase com ternura, e a caminhar de forma tão
tranquilizadora.
Sei que algo me fez dizer:
– Foi nas últimas férias que tivemos antes de o meu pai sair de casa.
Na verdade, ele partiu a meio das férias. Discutiram, ele foi-se embora e
nunca mais o vi.
– Nunca mais o viste? Nem uma vez?
Abanei a cabeça.
– Não. Bom, é certo que também não fui à procura dele…
– Achas que alguma vez o farás?
– Não.
Percebi que Jack queria perguntar porquê, mas hesitou.
– Ficámos melhor sem ele – considerei. Não era verdade, claro.
Ficámos muito pior. E era precisamente esse o motivo pelo qual eu nunca
me encontraria com o meu pai para beber café e fazer conversa fiada. Ele
prescindira de todos os direitos ao futuro quando arruinara a nossa vida.
– Uau – exclamou Jack.
– Pois – repliquei, e foi então que Clipper abrandou e parou. Quando
levantei a cabeça, Jack tinha uma expressão de compreensão estampada
no rosto – como se, mais do que ouvir aquilo que eu lhe contara, o tivesse
sentido.
Eu nunca contara esta história a ninguém. Na verdade, eu própria
quase a esquecera. No entanto, o rosto de Jack enquanto me ouvia era tão
aberto, e tão compreensivo, e tão do meu lado que, naquele momento,
apesar de todas as minhas regras, partilhei a memória quase sem querer.
Não era algo que costumasse fazer. Nem sequer com pessoas que não
eram clientes. Principalmente por se tratar de uma memória penosa. Mas,
de súbito, compreendi por que razão as outras pessoas o faziam. Era um
alívio. Como enfiar os pés em água fresca num dia de calor.
Isto era, de facto, uma revelação para mim.
De repente, sentia-me como se pudesse passar o resto da noite a
partilhar coisas com Jack. E, em retrospetiva, talvez o tivesse feito.
Mas, nessa altura, fui salva por um desastre.
Começámos a ouvir gritos urgentes provenientes da casa e, antes
mesmo que conseguíssemos discernir as palavras, Jack tirou o cabresto
do cavalo e ajudou-me a desmontar. Desatámos a correr na direção do
som e ambos saltámos a cerca.
Era Hank, aos gritos na escuridão:
– Jack! Jack! Onde estás? Jack!
Quando chegámos ao pé dele, Hank virou-se, com os olhos muito
abertos e um pouco desfocados.
– O que é? – perguntou Jack, ofegante.
– A mãe – respondeu Hank. – Desmaiou.
Dezoito
No campo não se chamam ambulâncias. As pessoas vão por si
próprias para o hospital.
Enquanto corríamos pelo terreno, Jack gritou-me: «Vai buscar as
chaves», e consegui trazer o Range Rover até à porta do alpendre lateral a
tempo de ver Jack sair com a mãe nos braços. Ele e Hank instalaram
Connie no banco de trás e Doc entrou pelo outro lado para segurar a
cabeça dela no seu colo.
Enquanto Hank corria para a carrinha dele e Jack se sentava no banco
do passageiro, Doc perguntou:
– Não vais conduzir?
– Acredita – disse Jack. – É melhor ser a Hannah.
O hospital ficava a vinte minutos de caminho e eu não fazia ideia de
como lá chegar. Eles tiveram de me ir dando indicações: «À esquerda
depois do trator!» «À direita naquelas vacas!» «Cuidado com o Stop!»
Mesmo assim, chegámos lá em quinze minutos.
Nas Urgências, parei para os deixar sair e só quando o vi a entrar
pelas portas automáticas com a mãe inconsciente nos braços é que me
apercebi de que Jack não tinha o boné. Como é que havia de esconder
aquele rosto mundialmente famoso sem um boné? Os óculos tortos nunca
seriam suficientes.
Do parque de estacionamento, liguei a Robby, atualizei-o quanto à
situação, pedi-lhe para contactar de imediato as admissões do hospital
para nos arranjar uma sala de espera privada e que nos trouxesse, o mais
depressa possível, «quaisquer artigos para ficar incógnito».
– O que queres dizer com isso?
– Sei lá! Um chapéu? Um jornal grande? Usa a tua imaginação.
Fui à procura na loja de presentes do hospital, mas estava fechada.
Quando voltei para junto de Jack, era tarde de mais. Ele e Hank estavam
a discutir no corredor à frente da sala de espera – e todas as pessoas
presentes fingiam não olhar para eles.
– Eu trato das coisas daqui em diante – avisou Hank.
– Ainda nem sequer sabemos o que se passa.
– Vai para casa e eu ligo-te quando souber alguma coisa.
– Não é assim que isto funciona.
– Funciona como eu disser.
– Vou cá ficar.
– Vais para casa.
– A decisão não é tua.
– Tua é que não é de certeza.
– Se achas que vou entrar pelas Urgências com a mãe inconsciente,
largá-la aqui e ir para casa ver televisão, não estás bom da cabeça.
– E tu não estás bom da cabeça se achas que vou passar um segundo
que seja mais do que o absolutamente indispensável contigo.
Jack estava a tentar falar em voz baixa. Mas isso só aumentava a
pressão sobre ele.
– Eu não pedi para vir para casa!
– Mas vieste.
– Que escolha tinha?
– Há sempre uma escolha.
– Nem sempre.
Hank avançava agora sobre Jack. As suas vozes eram baixas e tensas,
mas a linguagem corporal não podia ser mais ruidosa.
– Não fiques aí com esse ar de quem merece estar aqui. Sabes muito
bem quem és e o que fizeste. Prescindiste do direito de fazer parte desta
família. Eu estou aqui, todos os dias, a apanhar os cacos de tudo o que
destruíste. Esta família é minha, não tua… e quando eu digo para te pores
a andar daqui, é isso que vais fazer.
A fúria de Hank crescera como uma vaga pronta para rebentar. Rezei
para que Jack levantasse as mãos, recuasse um passo e acalmasse as
coisas, mas ele optou pelo oposto.
– Vai à merda – soltou.
E foi a justificação de que Hank estava à espera. Puxou o punho atrás,
como um arqueiro, pronto para desferir um soco…
Mas eu intervim e agarrei-o. Mais precisamente, peguei-lhe no pulso
e torci-o para baixo, ao lado do corpo. Hank soltou um grunhido de dor.
Acho que podemos dizer que ele não estava à espera disto. Nem Jack.
A surpresa quebrou a tensão do momento.
– Não vamos fazer isto aqui – avisei-os.
No silêncio que se seguiu, os murmúrios na sala de espera cresceram
de intensidade.
Peguei nos cotovelos dos dois irmãos, bem seguros, e conduzi-os para
a esquina do corredor, na direção das máquinas de venda automática.
Sabia que o motivo da contenda entre eles era maior do que este
momento, mas o agora era tudo o que eu conseguia resolver.
– Jack, tu vens comigo – ordenei. E, antes que ele pudesse protestar,
acrescentei: – Toda a gente na sala de espera estava a olhar para ti.
– Achas que quero saber disso, numa altura destas? As pessoas estão
sempre a olhar para mim. – O rosto dele estava tenso.
– Eu sei, mas temos de ter em conta o panorama mais vasto.
– Estamos a falar da minha mãe.
Virei-me para Hank.
– Vá para junto dos seus pais. Já vamos ter convosco.
Mas Hank não precisava das minhas instruções – nem da minha
autorização. Depois de olhar para mim, perplexo, durante um segundo,
deu meia-volta e afastou-se sem uma palavra.
– Temos de encontrar um quarto onde te possas esconder – indiquei a
Jack.
– Era o que estava a tentar fazer – explicou ele, com a voz a vibrar
como um arame esticado. – Só que o Hank não me diz o número do
quarto.
Franzi o sobrolho.
– Porquê?
– Porque é um imbecil.
Nesse momento, um bando de raparigas adolescentes apareceu ao
fundo do corredor.
Por instinto, levei a mão à nuca de Jack e puxei-lhe a cabeça para o
meu ombro.
– Cabeça baixa – murmurei-lhe ao ouvido, atenta às raparigas. –
Finge que estou a reconfortar-te.
Jack não discutiu. Baixou a cabeça e escondeu o rosto no meu
pescoço, enquanto eu o puxava para mim com ambos os braços a fim de
o esconder tanto quanto possível.
Quando as raparigas estavam a passar, senti os braços dele apertarem-
se à minha volta.
– Eh! – murmurei, depois de elas se afastarem.
– Disseste para fingir. – A respiração dele fez-me cócegas no
pescoço.
– Não é preciso tanto.
– Por acaso, não tenho de fingir muito. És genuinamente uma pessoa
reconfortante.
Afastei-me e perscrutei o corredor. Vazio em ambas as direções.
– Era melhor se saísses já daqui – disse-lhe.
– Estás do lado do Hank?
– Se continuares aqui, a notícia vai espalhar-se online em minutos.
Nem sequer trouxeste um boné.
Eu tinha razão, mas Jack abanou a cabeça.
– Não saio daqui enquanto não souber o que se passa com a minha
mãe.
Era justo.
Conduzi-o até às escadas.
– Podes esperar aqui. Eu vou saber onde ela está e estudar o melhor
trajeto para te conduzir até lá.
– Estás mesmo a falar a sério?
– Fica aqui. Não arranjes problemas.
Mas quando abri a porta das escadas para regressar ao corredor, vi o
mesmo bando errante de adolescentes. Tinham dado a volta e vinham na
nossa direção. O que estariam a fazer aqui? Quando olharam para mim,
apercebi-me de que vinham de telemóveis em riste. Recuei de novo para
as escadas e peguei na mão de Jack, puxando-o atrás de mim enquanto
começava a subir.
– O que foi? – inquiriu Jack.
– Estamos a ser perseguidos por raparigas adolescentes – respondi,
ciente de como soava ridículo.
A sério – não havia nada pior para espalhar a notícia do avistamento
de uma celebridade do que um bando de miúdas adolescentes com
telemóveis.
– Vamos – exigi. – Mexe-te.
No último piso, puxei-o para o corredor e dirigimo-nos para os
elevadores. A meio do caminho vi uma porta com a indicação
ARRUMAçãO. Abri-a e puxei-o comigo para o interior. Fechei a porta e

encostei-me a ela. Jack seguiu o meu exemplo e fez o mesmo, segurando


a porta com o calcanhar do ténis. Ficámos assim parados, lado a lado, em
silêncio, durante um minuto, antes de eu reparar que havia toalhas e
roupas de enfermeiro dobradas nas prateleiras.
– Já sei como te vou tirar daqui – murmurei.
– Como?
Apontei para as roupas e, nesse momento, ouvimos as raparigas
através da porta.
– Era ele de certeza.
– Tipo, era mesmo ele.
– Mas aquela não era a Kennedy Monroe.
– Oh, nem de longe.
Sustivemos a respiração, à espera de que as raparigas tentassem abrir
a porta. Mas isso não aconteceu.
Depois de estar tudo calmo, inspecionei rapidamente as prateleiras.
– Qual é o teu tamanho? – murmurei, mirando-o de alto a baixo.
– Não vou sair daqui – insistiu ele. – Ainda não sabemos o que se
passa com a minha mãe.
Nesse preciso momento, recebeu uma mensagem. Era de Hank. Pelos
vistos já tinha o número do irmão.

NãO TE ENCONTREI. A MãE ESTá BEM. ACHAM QUE ESTá Só DESIDRATADA.


POSSíVEIS VERTIGENS. DERAM-LHE SORO. MUITO MELHOR. PASSA Cá A
NOITE EM OBSERVAçãO. PODES IR PARA CASA.

Jack ergueu o telemóvel para eu ler. Suspirou e fechou os olhos por


um instante.
– Assim sendo, parece que podemos ir para casa.
– Sabes – disse eu, à espera de encontrar o muro habitual –, ajudava-
me mesmo saber o que se passa entre vocês os dois.
Porém, desta vez, os olhos de Jack procuraram os meus.
– O Hank odeia-me porque não sou o Drew. Porque o Drew morreu e
eu estou vivo.
– É só isso? – perguntei.
– E chega.
Senti-me uma antropóloga. Como funcionava esta coisa da partilha?
Teria conquistado uma confidência dele por lhe oferecer uma minha? De
qualquer maneira, incentivei-o a continuar com um aceno de cabeça. Para
minha surpresa, ele mordeu o isco.
– Eu sempre fui o burro da família, sabes. O Drew e o Hank é que
eram os inteligentes e, por isso, eram bastante chegados. Ainda por cima,
eu tinha também défice de atenção, dislexia e disgrafia. Não me faltava
nada.
– Nada disso faz de ti burro.
– Mas era como eu me sentia. E como os professores me viam. Por
isso, tornei-me o palhaço da turma. O Hank e o Drew eram meninos
perfeitos com notas perfeitas. E eu… não.
– É esse o problema entre ti e o Hank?
Jack suspirou.
– Eu sempre fui o que estava de fora. O Hank ficou cá, a tomar conta
do rancho. O Drew estudou veterinária cá e juntou-se ao consultório do
meu pai. Eu fui o único que saiu daqui. E era mais chegado ao Drew, sim,
porque sempre o fiz rir. E ele sempre percebeu que eu era bom, só que
noutro tipo de coisas. Ele era uma espécie de zona neutra entre mim e o
resto da família. Mas depois de ele morrer… já não havia ninguém para
fazer isso.
Acenei com a cabeça.
– O Drew era importante para ti.
– Não sei fazer parte desta família sem ele.
Não me parecia que fosse toda a história. Mas era um princípio.
E foi então que me ocorreu uma coisa positiva:
– Eh! Hoje passaste por cima de uma ponte de carro! E não foi
preciso parar para vomitares!
Não era novidade para Jack.
– Sim.
– É um progresso, não achas?
Ele inclinou a cabeça.
– Sem parar para vomitar logo. Fui à casa de banho das Urgências.
Olhei para ele, ali parado, todo bonito. É tão fácil pensar que a vida
dos outros é simples.
– Ainda assim – dei um soco triunfante no ar –, houve um
diferimento temporal. É progresso.
Atirei-lhe a bata e uma pequena touca cirúrgica, e depois – enquanto
ele mudava de roupa e eu olhava muito deliberadamente na direção
oposta – perscrutei as prateleiras em busca de mais alguma coisa que o
ajudasse a disfarçar-se. Encontrei uma caixa com aqueles óculos
descartáveis que os oftalmologistas dão aos doentes, depois de porem as
gotas para dilatar as pupilas, e virei-me para lhe oferecer um par.
Porém, não podia ter escolhido pior altura. Ele estava a despir a T-
shirt e dei de caras com uma boa dose do seu tronco nu.
Fechei os olhos.
– Não gostas mesmo de me ver sem camisola – comentou ele,
enquanto vestia a bata.
– É como olhar para o Sol – respondi.
– Se calhar tu é que devias pôr os óculos.
– Talvez.
Depois, Jack perguntou:
– Mas olhar para o Sol como uma coisa boa? Ou má?
– Ambas – retorqui, enquanto remexia nas prateleiras.
– Isso não é resposta.
– Tive uma ideia – sugeri, instantes depois. – Tenho lápis dos olhos
na mala. Talvez possamos pintar-te um bigode.
A minha proposta foi recebida com silêncio total, que se manteve
durante tanto tempo que tive de me virar.
E ali estava Jack, de camisola de cirurgião e boxers, com uma perna
enfiada nas calças, dobrado ao meio, a rir tanto que nem sequer emitia
qualquer som, tão perdido de riso que não saía ruído nenhum. Por fim,
levantou a cabeça para o teto e respirou fundo.
– Queres pintar-me um bigode? – perguntou.
– Ouve – respondi –, isto é resolução criativa de problemas.
Mas ele ainda se estava a rir.
– Podes desenhar também um monóculo? E um nariz de gato com
bigodes?
– Veste as calças – ordenei, irritada.
No entanto, ele era irresistível.
Tive vontade de rir também, mas controlei-me.
Dezanove
Achava que a situação explodiria bastante depressa depois da cena no
hospital. Durante dias, esperámos que aparecessem online fotografias de
Jack e Hank a discutir na sala de espera. Mas tal não sucedeu. A cada dia
que passava, eu respirava de alívio – embora a possibilidade de as fotos
aparecerem significasse que estávamos mais presos no rancho do que
antes, porque tínhamos mesmo de não dar nas vistas.
O problema é que estar no rancho era divertido.
Em teoria, eu sabia que tinha de estar alerta. Mas, na prática, eram
mesmo umas férias forçadas. Bom, se calhar sempre havia uma razão
para as pessoas tirarem férias – o descanso resulta. Lentamente, sem
intenção e completamente contra a minha vontade… relaxei. Um
bocadinho.
Entrámos num ritmo. Connie regressou com um diagnóstico oficial
de vertigens causadas pela desidratação, decidida a manter-se hidratada.
Doc andava sempre de roda dela com mantas e chávenas de chá. Hank e
Jack mantiveram uma trégua prudente – nenhum dos dois queria afligir
os pais. E eu, para me tornar útil, cozinhava as refeições, regava as
plantas de Connie e apanhava flores para espalhar em jarras pela casa.
Era uma vida agradável, soalheira e rural, que fazia com que o mundo
real parecesse outro universo. No bom sentido.
Para se redimir de alguma forma, Hank trazia-me da horta brócolos,
couves-de-bruxelas e abóboras, que lavava na pia da cozinha. Embora
fosse cruel para Jack, nunca me tratava mal – e eu não conseguia afastar
a sensação de que ele tinha de se esforçar para se agarrar àquela raiva.
Como se não lhe surgisse naturalmente.
Por exemplo, ambos os filhos faziam tudo e mais alguma coisa para
cuidar de Connie – de uma forma que parecia quase competitiva, como
uma espécie de concurso de Melhor Filho. Se havia coisa que Connie não
era, era negligenciada.
Com o passar do tempo, ela foi melhorando. Depois de ir fazer um
check-up à cidade, foi informada de que o local da operação estava a
cicatrizar bem. Ainda vestia roupão todos os dias – e garantia que era
capaz de nunca mais voltar às roupas normais –, mas cada vez passava
menos tempo no quarto e dormia menos durante o dia.
E, conforme se ia sentindo menos doente, a sua personalidade
começou a vir ao de cima. Fiquei a saber, por exemplo, que gostava de
fazer mantas de retalhos com roupas velhas. Lia à velocidade da luz e
conseguia terminar um livro num só dia. E ao que parecia, no verão
anterior, enquanto limpava a casa, magoara-se no joelho quando se
entusiasmara demasiado com a música e começara a dançar o cancã.
Referia-se agora ao episódio como a sua «lesão do cancã», que ainda a
incomodava de vez em quando.
Connie tinha também quatrocentos pares de óculos de ler. Estavam
por todo o lado: nos armários, entre as almofadas do sofá, em tigelas no
alpendre, por cima da mesa da cozinha. Andava sempre com uns ao
pescoço, numa corrente, e pelo menos dois na cabeça.
– É quem eu sou agora – explicou. – Há destinos piores.
Tinha ainda um passatempo fantástico. Recuperava bonecas velhas e
oferecia-as ao abrigo de mulheres local. Possuía toda uma coleção de
bonecas sinistras que salvara de lojas de artigos em segunda mão, e que
tinham ficado a parecer Barbies depois de cirurgias plásticas radicais,
com os olhos rasgados carregados de maquilhagem e lábios gigantes.
Supostamente, eram bonecas «adolescentes» e o público-alvo, meninas
pequenas, mas, na verdade, tinham ficado a parecer estrelas porno
mutantes. Adivinhem o que Connie fazia com elas? Tirava-lhes as caras,
que limpava com acetona até ficarem completamente em branco, e depois
recomeçava do zero, pintando-as para parecerem bonecas normais, com
olhos grandes, sorrisos doces e sardas. Entrançava-lhes o cabelo e
costurava-lhes roupinhas de brincar, e dava-lhes uma segunda
oportunidade na vida.
Como era possível não adorar esta mulher?
E, já agora, Doc era igualmente adorável.
Ganhou o hábito de se sentar ao fundo da cozinha a pôr os discos da
coleção dos Stapletons enquanto eu tratava do jantar, e cantar esses
antigos sucessos com ele tornou-se a minha altura preferida do dia.
E, como se não bastasse, Jack sabia dançar. Já viram Ritmo
Americano, certo? Onde ele fazia o papel de um profissional de danças
de salão? Não usou nenhum duplo. Aprendeu ele próprio todas as
coreografias. Assim, quando ouvia no gira-discos Sam Cooke, ou
Rosemary Clooney, ou Harry Belafonte, aparecia na cozinha e puxava-
me para uma dança.
Jack insistia que isto era essencial para a nossa relação falsa.
– É, sem qualquer dúvida, o que faria com uma namorada a sério –
garantiu-me.
A questão é que eu não resistia.
Se Jack Stapleton tinha de me fazer dançar o jitterbug com ele
sempre que ouvia «Shake, Rattle and Roll», e rodar-me pela cozinha, e
inclinar-me para trás e pôr as mãos pelo meu corpo todo… tudo bem.
Era falso. Era falso. Era tudo falso.
Mas parecia tão real.
Não era só Jack. Hank ajudava-me a revirar a estrumeira. Doc deu-me
a alcunha de Desperado e deixava-me ajudá-lo com os cavalos. E Connie
começou a abraçar-me… e eu não a impedia. O gesto fazia-me sentir
falta da minha mãe, de uma forma que nunca esperara. Ou talvez não
dela, exatamente – mas da pessoa que ela podia ter sido. Da relação que
podíamos ter tido.
Sempre perguntara a mim própria se as mães das outras pessoas eram
mesmo tão boas como pareciam. No caso de Connie, a resposta era sim.
Não demorei muito tempo a sentir-me parte daquela família. E, apesar
de todas as tensões e desgostos, esquecera-me de como era bom estar
rodeada de todos esses elos sobrepostos – de afeto, de memória, até de
frustração. Às vezes, via Connie ralhar com Doc por algum comentário
mais mordaz dirigido a Jack, e o meu anseio, o desejo de ter mais do que
aquilo era, o que quer que fosse, era como uma dor física.
Fiz um grande esforço para não me apaixonar por todos eles, juro.
Mas falhei, na maior parte do tempo. Principalmente em relação a Jack.
Eram as pequenas coisas, as inesperadas: como ele aproveitava todas
as oportunidades para atirar coisas para o caixote do lixo da cozinha, em
lançamento livre – e falhava sempre. A forma como estava a tentar fazer
amizade com um corvo, deixando pipocas na cerca. Como decidira que a
maneira mais higiénica de espirrar era enfiar a cara dentro da camisola no
momento de impacto.
– Estão a ver? – disse, uma noite, depois de espirrar para dentro da
camisola ao jantar. – Contém totalmente os salpicos.
Todos olhámos para ele.
– Mas ficam dentro da tua camisola – contrapôs Hank.
Jack encolheu os ombros.
– A camisola seca.
– Mas agora tens ranho colado ao peito.
– Não estás a perceber. Os germes ficam contidos.
– Mas é nojento.
– Prefiro espirrar em cima de mim do que para cima de outra pessoa.
– E são essas as únicas opções?
Jack olhou então para mim como se fôssemos as únicas pessoas sãs
ali presentes.
– Sim. Por acaso, são.
O que significa que tudo jogava contra mim.
Num trabalho normal, também passava dias inteiros com o cliente –
mas não desta maneira. Costumava ficar em segundo plano. O objetivo
era passar despercebida, nos bastidores. Estava perto do cliente, mas não
com ele. Não conversávamos. Não costumava meter-se comigo. Não me
dava festinhas na cabeça.
Em suma, isto era o oposto de um trabalho normal.
Jack e eu passávamos os dias inteiros juntos. Íamos à pesca no lago
das carpas. Explorávamos a zona selvagem à volta do braço morto do rio.
Passeávamos pela praia fluvial quase todos os dias. Jogávamos croquet
no jardim, e à malha. Empurrávamo-nos um ao outro no baloiço de pneu.
Apanhávamos peras, figos e clementinas no pomar.
A minha atividade preferida era sentar-me nas camas de rede em
frente à janela da cozinha. Baloiçávamos lado a lado, descalços, a sentir
as folhas de relva roçar nas solas dos pés; para passar o tempo, eu fazia-
lhe perguntas parvas do género: «Como é ser famoso?»
No entanto, Jack gostava desse tipo de perguntas.
– As pessoas são simpáticas comigo sem razão nenhuma – respondeu.
Depois, fitou-me nos olhos. – Menos tu, claro. Tu não és simpática.
Abanei as pernas para dar balanço.
– Eu não – confirmei.
– Mas o mais estranho – continuou ele, abanando também as pernas
para me acompanhar – é que não é comigo que estão a ser simpáticas. É
pela fama. Acham que me conhecem, apesar de nunca os ter visto na
vida. Por isso, é bastante unilateral. É preciso ter cuidado para não as
ofender ou desapontar, logo, passo muito tempo a ser a versão mais
genérica de mim próprio. E a sorrir. Constantemente. Já me aconteceu
chegar a casa, depois das sessões de cumprimentos, e ter de esperar horas
para os músculos da minha cara pararem de tremer.
– Hum – comentei.
– Não me estou a queixar – apressou-se Jack a esclarecer.
– Eu sei.
– É um trabalho fantástico. Tenho liberdade, dinheiro e influência.
Mas é complicado.
Acenei em concordância.
– Como tudo.
– As pessoas que querem ser famosas pensam que é a mesma coisa
que ser amado, mas não é. Os desconhecidos só gostam de uma versão de
nós. Ter alguém que nos ama pelas nossas melhores qualidades não é o
mesmo que ter alguém que nos ama apesar dos nossos defeitos.
– Então – considerei eu –, enquanto a nação inteira não vir as tuas
cuecas no chão da casa de banho…
Jack acenou com convicção.
– Não é amor verdadeiro.
Relaxei por um minuto e deixei a cama de rede abrandar.
Jack continuou:
– E isso também altera a nossa perspetiva. As pessoas querem estar
sempre connosco, ficam suspensas das nossas palavras, riem-se de tudo
mesmo quando não tem graça e somos o centro de todas as situações
onde nos encontramos.
– Não parece assim tão mau.
– A questão é que nos habituamos. E começamos a deixar de reparar
nos outros, de lhes fazer perguntas sobre si próprios. Passamos a
acreditar na nossa fama. Toda a gente nos trata como se mais ninguém no
mundo fosse importante… e começamos a achar que é verdade.
Tornamo-nos narcisistas insuportáveis.
– Mas tu não.
– Eu sim. Durante algum tempo, pelo menos. Mas estou a tentar
mudar.
– Foi por isso que te afastaste da representação?
– Sim – respondeu Jack. – Por isso e porque o meu irmão morreu.

Oiçam, eu sei que permiti que a confusão se instalasse. Mas não sabia
como impedir que isso acontecesse. E certo dia, perto do final de uma
corrida matinal que nos levou até ao rio e de volta, Jack disse-me – a
sério, enquanto corríamos:
– Descobri a tua canção.
– Qual canção? – perguntei.
– A que andas sempre a trautear.
Pegou no telemóvel, ainda a correr, e procurou-a.
– Como é que a descobriste? – perguntei.
– Gravei-te às escondidas – explicou.
– Isso não é nada sinistro.
– O que interessa é que resolvi o mistério – Jack fez por ignorar o
comentário. – Não precisas de agradecer.
Estávamos numa zona a direito, nos últimos quatrocentos metros, a
regressar a casa pelo caminho de cascalho. Jack ergueu o telemóvel mais
ou menos na minha direção enquanto corria ao meu lado. Porém, assim
que a canção começou a tocar, abrandei e parei.
Aquela canção? Era aquilo que estava sempre a trautear? Eu
conhecia-a.
Jack parou ao meu lado enquanto a música continuava a tocar.
– Reconheces? – perguntou passados uns momentos, ainda um pouco
ofegante.
– Sim – respondi, sem desenvolver a resposta.
Era uma canção antiga, intitulada «Dream a Little Dream of Me».
Quando a parte instrumental chegou ao fim, cantei o primeiro verso:
– «Stars shining bright above you»…
Quando era pequena, a minha mãe estava sempre a cantar aquilo –
enquanto lavava a louça, no carro, quando me aconchegava na cama.
– Então, qual é a história? – indagou Jack.
– É só uma canção que me é familiar – respondi.
– Como é que a conheces?
– A minha mãe costumava cantá-la constantemente quando eu era
pequena. Mas há anos que não a ouvia.
– Exceto todos os dias, enquanto a trauteias.
Não discuti.
Quando a canção acabou, Jack guardou o telemóvel. De súbito, o
silêncio parecia ensurdecedor.
– Acho que ela só cantava essa canção quando estava contente –
observei.
Jack acenou com a cabeça, sem falar.
– Para dizer a verdade, não me lembro de a ouvir cantá-la… nem uma
vez… depois de o meu pai nos deixar.
Jack acenou de novo; e ao sentir a ternura na forma como olhava para
mim, senti também uma dor no peito – penetrante, como quando temos
as mãos geladas e as enfiamos dentro de água quente. Uma dor
lancinante que se espalhou por trás das minhas costelas e subiu até à
garganta.
E suponho que a única maneira de essa dor transbordar era sob a
forma de lágrimas.
Senti-as a arder nos olhos e fiquei muito quieta, como se Jack pudesse
não reparar caso não me mexesse. Mas claro que ele reparou. Afinal,
estava a meio metro e a olhar diretamente para mim.
– Conta-me – pediu, em voz suave.
Continuei calada e imóvel.
– Podes falar comigo – insistiu. – Não faz mal.
«Não faz mal.» Não sei que magia ele colocou naquelas três palavras
mas, de alguma forma, acreditei. Tudo o que eu alguma vez dissera a
mim própria sobre ser profissional e ter as defesas armadas e estabelecer
limites claros, simplesmente… desapareceu no vento. Culpo o bom
tempo. E as ervas altas. E a brisa suave e constante sobre o pasto. Cedi.
– O meu pai deixou-nos quando eu tinha sete anos – comecei, com a
voz a tremer –, e a minha mãe começou a namorar com um tipo chamado
Travis pouco tempo depois. E ele… – Como havia de dizer isto? – Não
era o tipo mais simpático do mundo. – Respirei fundo. – Gritava muito
com ela. Maltratava-a, chamava-lhe feia. Bebia muito, todas as noites…
e ela começou a beber também.
Em silêncio, sem nunca tirar os olhos de mim, Jack pegou numa das
minhas mãos e envolveu-a nas suas.
– Na noite do meu oitavo aniversário – disse-lhe, com um suspiro
trémulo –, ele bateu-lhe.
Jack não afastou o olhar.
– As palavras são tão pequenas, quando as proferimos. Algumas
sílabas breves e acabou-se. Mas, para mim, acho que nunca terminou. –
Baixei a cabeça e mais lágrimas saltaram-me dos olhos. – Nessa noite,
ela estava a proteger-me. Era suposto sairmos para ir comer piza e bolo,
por eu fazer anos, mas o Travis decidiu à última hora que não queria sair.
Fiquei tão ultrajada com a injustiça que bati com a porta do quarto. Ele
veio atrás de mim. Nunca me esquecerei do som dos pés dele a bater no
chão. Mas a minha mãe bloqueou-o. Pôs-se em frente da porta e não se
mexeu enquanto ele não começou a agredi-la. Eu escondi-me no closet,
enrolada numa bola, mas conseguia ouvir tudo. O mais assustador era
como eram silenciosos os murros que ele desferia. Por outro lado, os
gritos da minha mãe ouviam-se bem. E quanto ela bateu contra a porta. E
quando caiu no chão, também.
»Fiquei acordada a noite inteira, encolhida, a fazer-me o mais
pequena que conseguia dentro do closet, a ouvir, alerta, e a tentar decifrar
se a minha mãe sobrevivera. Não preguei olho. Quando amanheceu, ela
veio à minha procura… e tinha o lábio aberto e um dente lascado. Assim
que vi a cara dela, só quis tirar-nos a ambas dali. Todos os átomos no
meu corpo queriam escapar. Mas, quando me tentei levantar, ela abanou a
cabeça. Entrou para o closet comigo e abraçou-me. «Vamos embora
daqui, não vamos?», perguntei. Mas ela abanou a cabeça. «Porquê?»,
quis saber. «Porque é que não vamos?» «Porque ele não quer», respondeu
ela.
»Depois, apertou-me nos braços e embalou-me para trás e para a
frente, de uma maneira que, até aí, sempre me fizera sentir segura. Mas já
não. Para ser franca, acho que nunca mais me senti verdadeiramente
segura desde esse dia. Mas adivinha o que ainda faço quando estou
assustada?
– O quê? – perguntou Jack.
– Durmo no chão do closet.
Jack não tirou os olhos dos meus.
– Lembras-te do alfinete com as missangas? Eu fiz-lhe o alfinete
nesse dia. Não cheguei a ter oportunidade de lho dar. Ao fim da noite,
tinha-o perdido… ou assim acreditei. Depois de a minha mãe morrer…
há relativamente pouco tempo… encontrei-o na caixa de joias dela.
Tinha-o guardado estes anos todos. Voltar a encontrá-lo foi como
recuperar uma pequena parte de mim que se perdera. Tencionava usá-lo
todos os dias, para sempre, antes de o perder na praia. Como uma espécie
de talismã.
– Mas estás bem, mesmo sem ele.
Baixei os olhos.
– Estou? Não sei. Até aceitar esta missão, dormi todas as noites no
closet desde que a minha mãe morreu.
Jack levantou uma parte seca da sua camisola para me limpar a cara
(Voltara a chorar? Outra vez? Que raio se passava comigo?) e disse, em
voz terna:
– Então, dormir no chão do meu quarto é uma melhoria.
Dei-lhe um pequeno empurrão e recomecei a andar. Ele estugou o
passo para me apanhar.
– Enfim – concluí, tentando recompor-me –, é esta a história dessa
canção. Tinha-me esquecido completamente dela.
– Não completamente – corrigiu Jack.
E depois – apesar de não estar ninguém por perto para nos ver –
puxou-me para si num abraço.
Vinte
Começávamos a achar que tínhamos escapado a ser apanhados no
hospital quando apareceu uma fotografia de Jack num site de mexericos.
Passados dez minutos, estava em todo o lado.
Como é óbvio, a foto fora tirada na sala de espera das Urgências. E,
embora à distância e de lado, parecia-se realmente muito com ele. A
Internet, porém, não tinha a certeza. Começaram a aparecer artigos com
títulos como «O que estava o famoso Jack Stapleton a fazer em Katy,
Texas?» e «Stapleton avistado no meio do nada» e «Superestrela de
cinema eleva a reclusão e obscuridade a um novo patamar».
Detetives online entusiastas encontraram fotografias de Jack em
ângulos semelhantes e publicaram-nas lado a lado, analisando cada
pormenor com a precisão de um Oliver Stone. Era mesmo esta a forma
do lóbulo da orelha de Jack Stapleton? Aquele pontinho no pescoço seria
uma sombra ou uma sarda? Não trazia a mesma T-shirt que usava numa
foto tirada pelos paparazzi na noite de Ano Novo dois anos antes?
Era um trabalho impressionante, na realidade. Glenn devia recrutar
algumas destas pessoas.
Por fim, a Internet concluiu que sim: o Destruidor fora avistado num
hospitalzinho qualquer numa minúscula localidade do Texas. A questão
para a qual ninguém parecia ter resposta era porquê.
Tudo isto para explicar que o facto de Jack ter sido descoberto elevara
finalmente o nível de alerta para laranja.
Talvez um laranja claro, meio diluído, mas, ainda assim, cor de
laranja.
A equipa teve de avaliar uma maior quantidade de conversas online e
acompanhar uma nova explosão de «fãs» que pareciam ter potencial de
causar problemas. Eu comecei a vestir leggings e a calçar ténis todos os
dias para dar «uma corridinha» da parte da tarde, altura em que ia à base
de operações no exterior da propriedade receber informações atualizadas.
Era ao fundo da estrada, mas parecia um mundo completamente
diferente. Não gostava de lá ir. E ainda passei a gostar menos no dia em
que, quando entrei, dei de caras com Glenn a meio de uma discussão.
Doghouse também lá estava, além de Taylor e Robby.
– Não quero saber dos teus sentimentos. Nesta sala não há lugar para
sentimentos! – estava Glenn a gritar, às palmadas na mesa para sublinhar
as palavras.
– O que se passa? – perguntei, fechando a porta atrás de mim.
Glenn, com ar irritado, apontou para mim.
– Isto também é culpa tua.
– Minha? Acabei de chegar.
– Vinte e cinco anos sem que nenhum dos meus agentes se
envolvesse com colegas. Vinte e cinco anos! Depois, tu e aqui o
«Romeu» quebraram essa regra e agora é o salve-se quem puder.
Olhei para Robby, de cabeça baixa. Depois para Taylor, que estava
virada para a frente, com os olhos vermelhos e o rosto inchado.
– O que aconteceu? – perguntei.
– Sabias que estes dois andavam enrolados? – perguntou Glenn.
Entreabri as narinas.
– Sim.
– Bom, ele deu-lhe com os pés – anunciou Glenn, como se isso fosse
culpa minha. – E ela não consegue trabalhar… nem ela nem ninguém…
porque não para de chorar.
Terei sentido um ligeiro frémito de triunfo? Sem comentários.
– Isto significa que fico com o cargo de Londres? – perguntei. – Já
que ele é tão problemático?
Mas Glenn não estava com disposição.
– Tu também tens as tuas desvantagens.
Não podia negá-lo. Virei-me para Robby.
– Com que então, deste-lhe com os pés?
– É mesmo preciso perguntar? – interrompeu Glenn. – Olha para ela!
Taylor tinha agora novas lágrimas no rosto.
– Queres uma lição sobre como lidar com uma coisa dessas? –
perguntou-lhe Glenn. – É assim! – indicou, apontando para mim. – A
Brooks é o modelo perfeito! Este tipo partiu-lhe o coração na noite
depois do funeral da mãe dela, e no dia seguinte ela estava de volta ao
trabalho como uma super-heroína.
Taylor chorava agora abertamente.
– Ufa! – soltou Glenn, virando-se com ar desdenhoso. – Sai daqui e
vê lá se te recompões. Vai apanhar ar. Amadi, dá-lhe água.
Taylor saiu, com o rabo entre as pernas, e Amadi seguiu-a. Glenn
virou-se então para Robby.
– Explica-me lá o que é que estás a tentar alcançar com essa tua
atitude. Queres levar-me à falência? Há alguma mulher nesta empresa
que não tenhas levado para a cama?
Kelly levantou a mão ao fundo da sala, com ar animado.
– A mim!
– E espero que assim continue! – resmungou Glenn.
– Sim – acrescentou Doghouse. – Esperamos todos.
– Sim, senhores – concordou Kelly, com uma continência.
Mas Glenn queria respostas de Robby.
– O que é que estás a tentar fazer? – insistiu. – O que é que tinhas na
cabeça?
– Foi um erro – justificou-se Robby.
– Podes ter a certeza disso.
– Não – disse Robby. – O meu erro foi ter acabado com a Hannah.
– Oh, por amor de Deus! – exclamei. Dei uma palmada na testa e
dirigi-me à porta. – A sério?
Robby deteve-me.
– Não podes ir ainda.
Olhei de lado para Glenn.
– Vais mesmo obrigar-me a ficar aqui a ouvir isto?
Glenn inclinou a cabeça.
– Parece-me que ainda temos trabalho a fazer. Não sei se te lembras.
– O que queres que faça? – perguntou Robby a Glenn, num tom que
dava a entender que era ele a maior vítima. – Passo o dia a estudar os
monitores. – Olhou para mim. – Sabes que pusemos câmaras em todo o
lado, certo? E tenho de assistir a tudo o que vocês os dois fazem fora de
casa. Quando ele te leva às cavalitas. Quando te ajuda no jardim. Quando
te mostra truques a cavalo ou te ensina a fazer o pino, ou olha para ti
quando tu não te apercebes. Eu vejo tudo.
Esperem. Jack olhava para mim sem eu me aperceber?
Robby continuou, dirigindo-se agora a Glenn:
– Fizeste isto para me torturar.
Glenn nem sequer ergueu as sobrancelhas.
– Claro que sim.
– Bom, está a resultar. Estou a dar em doido.
– Ótimo. É merecido.
– Isto é pessoal?
– É a vida – retorquiu Glenn. – E, se fores esperto, usarás isto para te
tornares mais forte.
Olhei para Robby de testa franzida.
– Isto é uma cena de homem das cavernas? Uma daquelas reações
químicas, impulsivas, «se não é minha não pode ser de mais ninguém»?
Estás a mijar em mim para marcar território?
Kelly ainda estava a ouvir.
– Por favor, não o deixes mijar em cima de ti.
Olhei para ela.
– Metaforicamente.
Robby abanou a cabeça.
– Desculpa, está bem? Nunca te devia ter deixado partir.
– Deixar-me partir? – repeti. – Não me deixaste partir. Abandonaste-
me.
– Quero voltar atrás.
– Não podes.
– Porquê?
– Porque agora sei quem realmente és.
Robby fez beicinho. Depois semicerrou os olhos.
– Já percebi o que se passa. Achas que ele gosta de ti.
Fiquei calada.
– Bem vos vejo aos dois – prosseguiu Robby. – Ele deu-te a volta.
Mas não pode ser verdade. És demasiado esperta para cair nisso. Não
podes mesmo acreditar que um ator mundialmente famoso, que pode ter
qualquer mulher, te escolheria a ti. Diz-me que não caíste nessa esparela.
Já viste a Kennedy Monroe? Ele anda a brincar contigo! Está entediado!
Nem sequer é assim tão bom ator. Acorda! Preferes uma relação falsa a
estar comigo?
Eu não sabia como responder à maior parte daquela tirada. Mas o
último ponto era fácil de rebater.
– Errado – respondi. – Prefiro qualquer coisa a estar contigo.
– Ele não gosta mesmo de ti – asseverou-me Robby.
– Nunca disse que gostava.
– Mas pensaste.
Tinha de dar razão a Robby. Desta vez, ele tivera um raro momento
de perspicácia.
Glenn estava farto daquela conversa.
– Chama a Taylor – pediu a Kelly. – Vamos lá ter a reunião e
despachar isto.
Robby não tirou os olhos de mim.
– No outro dia, perguntaste-me porque estava a ser tão estúpido.
Uau, isso fora há… cem anos?
– Quando consideraste que eu não era suficientemente bonita para
esta missão? – questionei. – Acho que sim.
– Não queres saber a minha resposta?
Parei e virei-me para ele.
– Já a sei – atirei-lhe. – Estavas a ser estúpido porque és estúpido.
Tão simples como isso.
Mas Robby pegou-me no braço.
– Era porque queria voltar para ti.
Aquilo chamou-me a atenção.
– Porque querias?…
– Sim, já nessa altura.
Tentei ordenar logicamente os acontecimentos.
– Querias voltar para mim… e por isso chamaste-me feia?
– Entrei em pânico.
– Ah, é pânico que lhe chamas?
– Senti a tua falta em Madrid.
– Sentiste a minha falta em Madrid… enquanto dormias com a minha
melhor amiga?
– Queria voltar para ti desde que regressámos. Mas sentia-me mal por
causa da Taylor.
– Espera! Estás a tentar parecer boa pessoa?
– Estou só a dizer que é… complicado.
– Não. É muito simples.
Robby pareceu suster a respiração por um segundo.
– Por causa da Taylor? – perguntou com maus modos, como se eu
estivesse a exagerar. – Foi só uma cena em trabalho.
– Não, não é por causa da Taylor – respondi. – É porque me deste
com os pés. – E, para que não restassem dúvidas, acrescentei: – Na noite
a seguir ao funeral da minha mãe.
Robby soltou um som estrangulado, como se já tivéssemos tido esta
discussão um milhão de vezes.
– Quando é que vais deixar de estar fixada nesse pormenor?
– Nunca – respondi. – É por isso que nunca poderemos voltar a estar
juntos. A cena com a Taylor foi só o prego derradeiro num caixão que já
estava bastante bem fechado.
– Estávamos só entediados – explicou Robby em tom suplicante,
como se eu me recusasse a ser razoável.
– E essa também é a versão da Taylor?
– Juro, a única pessoa que eu queria na altura… e que quero agora…
és tu.
– Estou bastante certa de que nunca gostámos muito um do outro, de
qualquer maneira.
Nem queria acreditar que era obrigada a ter aquela conversa. Sim,
sentia-me só. E sim, ver Robby e Taylor a beijarem-se ferira-me de
formas que nunca julgara possível. Mas eu não era patética.
– Não vamos voltar um para o outro, Robby.
– Porque não?
– Para mim, és uma carta fora do baralho.
– Preferes ficar sozinha para sempre do que deixar-me compensar-te
pelo que fiz?
– Não sei se essas serão as minhas únicas opções.
– Só quero uma oportunidade de reparar as coisas.
– Mas não há maneira de isso acontecer. E, mesmo que houvesse, tu
não saberias como.

Depois da reunião – ou seja, depois de Taylor ser forçada a regressar


e ficar sentada, catatónica, de olhos postos no chão, enquanto Robby me
lançava olhares ressentidos como se eu fosse a má da fita; e de Glenn
fazer outro discurso irado sobre como ninguém naquela empresa podia
voltar a fazer sexo fosse com quem fosse por razão nenhuma; e de termos
discutido todas as minúcias e ramificações e alterações de procedimentos
que a fotografia viral de Jack implicaria para a missão –, voltei para o
rancho, aturdida, com um simples e chocante pensamento às voltas na
cabeça.
Robby tinha razão.
Só mesmo aquele filho da mãe é que conseguiria sugar a diversão de
tudo e mais alguma coisa.
Mas tinha razão.
Gostar de Jack era uma ideia catastroficamente má, e eu não
acreditava que deixara que acontecesse. Afinal, estávamos a falar de Jack
Stapleton! Apaixonar-me por ele era suicídio emocional.
Era precisamente isto que estava a pensar quando vi o «deus» em
pessoa mais à frente, na estrada de cascalho, a dirigir-se para mim.
Quando me viu, começou a correr, o que dava a clara impressão de que
ficara contente.
Um verdadeiro ator de método.
Não abrandei – continuei a andar ao mesmo ritmo mesmo quando ele
me apanhou, e Jack teve de dar meia-volta para me seguir.
– Olá! – cumprimentou, ainda em passo de jogging ao meu lado. –
Bem-vinda!
Não respondi.
– Está tudo bem? – perguntou, enquanto tentava estudar-me o rosto. –
Pareces cansada.
– Foi uma reunião demorada – respondi.
Jack franziu o nariz.
– Por causa da minha perseguidora?
– Sim. Pelos vistos, cobriu a tua casa de papel higiénico cor-de-rosa.
E deixou-te uma pintura.
– Uma pintura?
– Um autorretrato. Em tela – esclareci, quando chegámos ao jardim.
Peguei no telemóvel e parámos na horta de Connie para lhe mostrar a
fotografia. – É um nu – avisei. E acrescentei: – Autorretrato com corgis.
Jack assobiou baixinho.
– Na verdade, não é mau de todo.
Concordei com um aceno de cabeça.
– Ela tem talento.
– Se calhar devia fecundá-la.
– Eh! – exclamei. – Não vais fecundar ninguém enquanto eu for a
responsável pela tua segurança! – Depois, para o caso de ter parecido
demasiado veemente, acrescentei: – A menos que queiras.
E lá estava ele a rir outra vez.
– Tive saudades tuas – comentou.
– O quê?
– Ainda agora – disse Jack, apontando na direção da base de
operações. – Demoraste muito tempo.
– Tínhamos muito a discutir.
– O que achas disto?
– Do quê?
– De eu ter tido saudades tuas?
Talvez porque Robby virara a situação contra mim, agora não
conseguia ver nada do que Jack fazia como real. Ali estava ele, com um
meio-sorriso acanhado, a olhar para os meus pés e a inclinar-se para mim
– a imagem perfeita da timidez –, e eu só conseguia vê-lo como um gesto
calculado, premeditado, oco e falso. E o facto de ele fingir tão bem –
aliás, de eu nem sequer conseguir perceber o raio da diferença – era
humilhante.
Jack estava a representar. Sempre estivera, desde o princípio.
Mas eu não.
Deveria entrar no jogo? Não era capaz. Recusava-me. O que é que
achava de ele me ter dito que tivera saudades minhas?
– Acho que és um ator muito melhor do que as pessoas pensam –
respondi, sem tentar sequer disfarçar o azedume na voz.
Jack encolheu-se ao ouvir estas palavras – foi uma reação
microscópica, mas eu senti-a.
Ótimo. Ainda bem. Era melhor assim.
Porque naquele momento, no jardim de outono de Connie, no meio
do nada, apercebi-me que não era assim tão diferente da Senhora dos
Corgis. Também vivia num mundo de fantasia. E as minhas hipóteses de
ficar com Jack Stapleton eram tão reduzidas como as dela.
Ou até mais.
Pelo menos, a Senhora dos Corgis sabia pintar.
Vinte e um
Depois desta conversa, estava determinada a manter a distância.
Porém, nessa noite, Jack teve um pesadelo.
E muito mau.
Acordei com o barulho, enquanto ele se debatia na cama e parecia
sufocar. Jack avisara-me para não ficar alarmada, mas não vou mentir:
era alarmante. Ele não é um tipo pequeno, e o que quer que se passasse
naquele sonho… Jack lutava com todas as suas forças.
Levantei-me depressa, com o coração aos saltos, e debrucei-me sobre
ele.
– Jack – chamei-o, tentando segurar-lhe os ombros. – Acorda.
No entanto, ele debatia-se como um javali selvagem. Levantou o
braço e atingiu-me nas clavículas com a força de uma tábua. Recuei,
recuperei o fôlego e endireitei-me. Aproximei-me de novo.
– Jack! Acorda!
Desta vez ele ouviu-me e abriu os olhos. Agarrou-se à minha camisa
de dormir para se içar – arquejante, engasgado, a chorar e a olhar em
volta como se não fizesse ideia de onde estava.
– Está tudo bem! Estás em segurança! – disse-lhe, enquanto ele
tentava orientar-se. – Foi só um sonho mau. Foi só um pesadelo.
E depois o que é que fiz? Abracei-o. Sentei-me ao pé dele e envolvi-o
com os braços e segredei-lhe todas as palavras reconfortantes de que me
consegui lembrar. Assim que Jack caiu em si e teve a noção de onde
estava, de quem eu era e do que se passava, fechou os braços à minha
volta e não me largou.
Assim, fiquei ali na cama com ele.
Acariciei-lhe as costas e dei-lhe palmadinhas no ombro, à espera de
que a sua respiração acalmasse. Confortei-o. Como as pessoas a sério
fazem com aqueles de quem gostam. Mesmo depois de ele sossegar,
quando achei que talvez já se sentisse melhor e quisesse que eu o largasse
para ir dormir, não foi fácil – digamos assim – deixá-lo. Quando tentei
soltar-me, Jack apertou-me mais.
– Já passou – lembrei.
Porém, numa voz tão trémula que não havia resposta possível a não
ser: «Claro que sim», ele pediu-me:
– Fica mais um bocadinho aqui comigo, está bem?
E quando decidiu deitar a cabeça na almofada sem me largar,
apertando-me contra o peito como se eu fosse um ursinho de peluche, eu
deixei-o.
– Só mais um minuto – reiterou.
Podia inventar aqui cem razões para ter ali ficado. Mas a única que
importa é esta: porque queria. Gostava de ali estar. Gostava de o abraçar
– e de ser abraçada. Gostava de sentir que era importante para alguém.
Não há nada como um abraço mútuo – quando estamos a dar conforto e a
recebê-lo de volta.
Eu já não sabia o que era real ou falso, mas, naquele momento, não
tinha importância.
Ficámos deitados de lado, virados um para o outro. Ele tinha os
braços à minha volta, a minha cabeça apoiada no seu bíceps.
Decidi dar-lhe cinco minutos. Depois, mais cinco. Pensei em esperar
que ele adormecesse, mas não aconteceu. De vez em quando, eu fechava
os olhos, mas sempre que os abria via os dele, mesmo ali, a fitarem-me,
escuros e bem abertos. Passado algum tempo, perguntei:
– É sempre o mesmo sonho?
– Sim.
– Podes contar-me? – questionei.
Mas ele não respondeu. Por fim, eu disse:
– É que andei a ler sobre «como curar pesadelos»…
– Andaste?
– Sim. Li uma data de coisas.
– Quando é que me ias dizer?
– Estou a dizer-te agora.
– Vamos lá ouvir o que descobriste.
– Há muitos métodos, mas um dos principais é falar sobre o sonho.
– Não quero falar sobre isso.
– Eu percebo. Mas, ao que parece, ajuda. Contas a história do
sonho… quando estás acordado… mas reescreves o final.
– Como posso reescrever o final se o sonho já acabou?
– Para a próxima vez.
– Tenho sempre esperança de que não haja uma próxima vez.
– Mas há sempre.
Jack assentiu em silêncio.
– Vamos lá experimentar, então.
Jack sorriu e os seus olhos percorreram-me o rosto.
– Já percebi porque é que a minha mãe gosta de ti.
Eu não queria ficar demasiado feliz com isso.
– Reescrever o final – expliquei-lhe – é como oferecer uma narrativa
diferente ao teu cérebro. Assim, quando a história voltar a ocorrer-te, a
tua mente tem a opção de a contar de outra maneira.
– Não há outra maneira.
– Ainda não. Porque ainda não a escreveste.
Jack suspirou como se estivéssemos a falar em círculos.
– Por exemplo – continuei –, um tipo que tinha um pesadelo
recorrente sobre um monstro a persegui-lo. Durante anos e anos. E, um
dia, virou-se para trás e perguntou ao monstro porque é que vinha atrás
dele… e não voltou a ter esse sonho.
– Boa solução – considerou Jack. – Mas, para mim, há um problema.
– Qual é?
– No meu pesadelo, eu é que sou o monstro.
– Oh.
Passou um minuto. Depois, Jack começou:
– É sempre igual.
Esperei, enquanto ele respirava fundo.
– Estou num carro desportivo com o meu irmão Drew. É um Ferrari.
Comprei-o para me exibir. É tão novo que ainda tem matrículas
provisórias. O Drew acha-o fabuloso. E vamos tão depressa que é como
se voássemos. Quando mais aceleramos, mais depressa vamos… até que,
de repente, surge uma ponte. É inverno, final da tarde… e embora não
esteja muito frio, há gelo negro na ponte… aquele que é da cor do
alcatrão e que só vemos quando é tarde de mais. Assim que o pisamos, o
carro começa a deslizar, a rodopiar; perco a noção da direção e depois
embatemos no corrimão e o carro salta. Eu não acredito que aquilo está a
acontecer, mesmo enquanto acontece. É tudo em câmara lenta e em
hipervelocidade, exatamente ao mesmo tempo. Saltamos da ponte e
estamos em queda livre, com aquela sensação de gravidade invertida.
Acontece tudo em segundos… e horas… e anos… e depois atingimos a
superfície da água, em cheio, de chapa. Ainda bem, penso. Assim temos
tempo. O carro baloiça na água… e o tempo começa a correr
normalmente. Abro a janela e grito ao Drew que faça o mesmo.
Pressiono o botão com uma mão e tiro o cinto de segurança com a outra.
E depois olho para o Drew e ele não fez nada. Tem a janela fechada. O
cinto posto. E está a olhar para mim, em estado de choque. «Abre a
janela!», grito-lhe. Inclino-me e tiro-lhe o cinto de segurança. Encosto-
me ao peito dele para carregar no botão da janela desse lado… e está
meio aberta quando o carro se enche com uma vaga de água, tão fria e
furiosa. «Nada para cima!», grito, antes de a água nos cobrir, e empurro-o
pela janela e saio atrás dele. A água é tão escura, é negra, e dou aos
braços e às pernas com toda a minha força… mas não consigo encontrar
a superfície. Perdi-a e não tenho tempo para a encontrar. A água fecha-se
sobre mim, puxa-me para o fundo e, quando acordo, estou a afogar-me.
Uau. Bolas. Não admira que se tivesse zangado comigo daquela
maneira no Brazos. Aquilo estava sem dúvida muito para além das
minhas competências. Uma hora de pesquisa online não era solução para
curar um trauma daqueles. Mas pelo menos iniciara o processo, fizera-o
contar a história. Não podia desistir agora.
Assim, fiz a primeira pergunta que me veio à cabeça.
– Porque é que achas que é sempre o mesmo sonho?
Uma longa pausa. Depois Jack disse, muito devagar:
– Porque… exceto a parte em que eu me afogo… foi basicamente o
que aconteceu.
Recuei um pouco para ver a expressão dele.
– Foi isso que te aconteceu? Na vida real?
Jack fez que sim com a cabeça.
– Ouvi dizer que tinha sido um acidente de automóvel.
– E foi, tecnicamente.
Jack libertou-me dos seus braços e virou-se para cima, tapando o
rosto com o antebraço.
– Ele morreu no rio. A Polícia acha que se atrapalhou, na escuridão, e
nadou para baixo em vez de nadar para cima.
Então era esta a versão da história que fora abafada.
Teria sido culpa de Jack? Haveria álcool à mistura, como diziam os
boatos? Teria Jack matado o irmão mais novo?
Não consegui perguntar-lhe.
– Lamento muito – disse por fim, com a esperança de que o meu tom
de voz compensasse a insuficiência das palavras. – Não sabia.
Jack acenou com a cabeça.
– A equipa de relações públicas encobriu o caso. Ninguém sabe.
Exceto eu. E a minha família. E alguns agentes das autoridades locais no
Dakota do Norte. E o Drew, claro.
Pensei por um segundo.
– Foi por isso que o estúdio insistiu que contratasses uma agência de
proteção?
Jack confirmou.
– Já lhes arranjei problemas suficientes.
A seguir, inquiri:
– E é por isso que estás nesta guerra com o Hank?
Ele assentiu.
– A minha mãe é que está sempre a arranjar confusão. Quer ver-me,
pede-me para aparecer. Continua a amar-me e insiste em perdoar-me.
– E quando ela adoeceu, o Hank não queria que viesses?
– Isso mesmo.
– Mas vieste.
– Não podia negar isso à minha mãe.
– E agora estás a fazer tempo até poderes desaparecer outra vez.
– Basicamente.
– Parece-me que estás a ser extremamente duro contigo próprio.
– Da próxima vez que deixares alguém afogar-se num rio, liga-me e
falamos melhor.
– Então não consegues perdoar-te a ti mesmo?
– Não. – Jack encolheu os ombros. – Nem quero.
– Parece-me um pouco excessivo.
– Todos os dias acordo a pensar que uma pessoa… alguém fantástico,
muito melhor do que eu… não está cá, enquanto eu sobrevivi. A única
maneira de a minha existência ser tolerável é tentar fazer qualquer coisa
todos os dias que a justifique.
– E o que é que fazes?
– Oh, crio fundações. Patrocino bolsas de estudos. Apareço em
hospitais pediátricos. Ajudo velhinhas com os sacos das compras. Dou
sangue.
Uau. Havia por aí alguma pessoa cheia de sorte que não sabia que
recebera o sangue do Destruidor.
– Coisas grandes – continuou Jack – e também pequenas. Só…
qualquer coisa. Um gesto bom todos os dias.
– Isso é muito arrependimento.
Jack acenou com a cabeça.
– Seria de pensar que o pesadelo já teria desaparecido, mas continua
com a mesma intensidade.
– Está bem – concedi. – E se o pesadelo não for um castigo? E se for
uma oportunidade?
Jack olhou para mim.
– Uma oportunidade para quê?
– Para voltares a ver o teu irmão.
– Há de ser difícil, tendo em conta que ele está morto.
Não me deixei demover.
– Tenho uma ideia, mas provavelmente vais detestá-la.
– Parece um desafio.
– Já ouviste falar de sonhos lúcidos, certo? Quando estamos
conscientes de que estamos a sonhar?
– Mais ou menos.
– E se eu te ensinasse a fazer isso e… falasses com o Drew?
– Se me ensinasses a sonhar de propósito?
– No fundo, sim, é isso.
– Para ter uma conversa com o meu irmão morto?
Fiz que sim com a cabeça.
– Como? Quando? Enquanto o carro se enche de água?
– E se… conduzisses o sonho noutra direção?
– Não é assim que os sonhos funcionam. Não é o guião de um filme.
– Mas, tecnicamente, és tu quem o escreve.
– É uma péssima ideia. E, mesmo que resultasse, não seria o
verdadeiro Drew.
– Mas talvez falares com ele pudesse ser uma forma de conversares
contigo.
Jack fitou-me em silêncio durante um minuto.
– Tinhas razão. Detesto a ideia.
– Está bem – disse, e comecei a levantar-me. – Detesta à vontade.
Como queiras.
Mas ele agarrou-me e puxou-me para baixo, apertando-me de novo
contra o peito. Era sólido e quente e cheirava a canela, como sempre.
– Fica.
Deixei cair a cabeça na almofada, ao lado dele.
– Estou cansada.
– Dois minutos.
– Sessenta segundos – contrapus. – É pegar ou largar.
– Feito – concordou Jack.
– Está bem, sessenta segundos. Não me deixes adormecer.
Vinte e dois
Claro que adormeci.
Quando acordei na manhã seguinte, estava na cama de Jack, debaixo
do turbilhão que eram as suas mantas, presa ao colchão por um dos
braços enormes dele, esticado sobre os meus ombros, e também por uma
das suas pernas, entrelaçada nas minhas.
E tudo isto, na verdade, era bastante agradável, de tal maneira que dei
a mim própria um instante para o saborear. Quer dizer… claro, não? Era
o tipo de coisa que não acontecia todos os dias. Quase tirei uma selfie
para poder ter uma prova. Mas depois o meu telemóvel – que estava
programado para não fazer barulho antes das oito da manhã – começou a
fazer barulho às oito horas e um minuto.
Muito barulho.
E quando consegui sair de baixo de Jack para ir ver o que eram
aquelas notificações todas, encontrei mil mensagens de todas as pessoas
com que alguma vez trabalhara e muitas com quem nunca trabalhara.
Pelos vistos, ficara famosa da noite para o dia.
Porque, enquanto nós dormíamos, lá fora, na Internet, estava toda a
gente bem acordada.
Em menos de vinte e quatro horas, tinham ocorrido três coisas
importantes relacionadas com Jack.
Primeira: a Senhora dos Corgis decidira atualizar a sua página
dedicada a Jack Stapleton com fotografias e vídeos de todas as suas
peripécias, espalhando assim a notícia de que ele estava em Houston e de
que conseguira descobrir onde morava, numa série de publicações com
legendas como: «O amor está no ar na mansão de luxo que o meu amado
arrendou em Houston!» e «Podes fugir, mas não consegues esconder-
te!», e os hashtags #JACKSTAPLETON #jackataque #amorverdadeiro

#AMOCORGIS #VEJAMOSMEUSNUS #VAMOSFAZERUMBEBé.

Segunda: uma fotografia de Jack comigo no hospital – na noite em


que lhe pedira que se inclinasse para mim a fim de esconder a cara –
explodiu online. Parecia de facto que estávamos abraçados,
possivelmente a beijar-nos. E essa fotografia estava por todo o lado, com
títulos como: «Quem é a nova namorada de Jack Stapleton?» e «Mulher
misteriosa aos beijos com Jack Stapleton» e o sempre elegante «Vai-te a
ela, Jack!»
Terceira: a Senhora dos Corgis, pelos vistos, vira a fotografia, perdera
o pouco juízo que lhe restava e mandara entregar um cesto de
cachorrinhos corgi de peluche à porta da casa de Jack em Houston… com
um bilhete no interior a informá-lo de que tencionava, sem qualquer
dúvida, assassinar-me. Com pormenores gráficos.
Glenn, escusado será dizer, não estava contente.
UMA CORRIDA ATé à BASE! Já!!!, ordenava a sua última mensagem. TEMOS

DE DECIDIR O QUE FAZER.

Isto ia com certeza elevar o nível de ameaça de Jack para tangerina,


pelo menos. Talvez até dióspiro. Não era uma ameaça de morte contra o
cliente, verdade, mas era uma ameaça contra a sua «namorada», o que
não era muito melhor. Além disso, as fotografias que a Senhora dos
Corgis publicara incluíam uma série de pormenores reveladores sobre a
casa de Jack que outros fãs empreendedores podiam explorar. E agora o
mundo sabia que ele estava de volta – o que fazia de Jack uma presa
fácil.
Antes de sair do quarto, fiz uma breve pausa à porta e olhei para ele –
ainda a dormir profundamente na cama de onde eu acabara de me
levantar minutos antes. Era um homem muito diferente da personagem
que existia na Internet, desde os óculos tortos aos truques arriscados em
cavalos de circo, e ao facto de não conseguir acertar no caixote do lixo
nem que a sua vida dependesse disso.
É engraçado recordar agora esse momento: Jack a dormir tão
descansado e eu a observá-lo, ainda nas nuvens depois de uma noite nos
seus braços, e a sentir-me – sem sequer me aperceber – mais próxima
dele do que alguma vez me sentira de qualquer outra pessoa, talvez.
Estava tão confiante de que lidaríamos com esta nova complicação
como tínhamos lidado com tudo o resto… Porém, às vezes, a confiança
não basta. Porque a minha relação falsa e, ao mesmo tempo,
impossivelmente real com Jack Stapleton já estava praticamente acabada.

Na base de operações, toda a gente andava atarefada: Glenn a gritar


ordens, Kelly a agrafar fotocópias, Amadi a corrigir alguém ao
telemóvel. Taylor avisara que não vinha por estar doente, mas Robby
estava lá – e a ideia de uma ameaça de morte contra a sua ex-namorada
deixara-o em modo de macho protetor.
– Tens de a retirar da missão – insistia com Glenn, quando eu entrei.
– Já não é seguro. Agora ela é um alvo.
– Tem lá calma, «Romeu» – ripostou Glenn. – Não és tu que me dizes
o que devo ou não fazer.
– Podes ter a certeza disso – declarei, fechando a porta atrás de mim.
Glenn nem sequer ergueu os olhos.
– Tu também não me dizes o que fazer.
– Posso continuar no caso – afirmei. – Não há problema.
– Não tenho tanta certeza disso – contrapôs Glenn, inspecionando
uma pilha de papéis. – Estas ameaças são muito específicas. O raio da
mulher refletiu bem sobre o assunto.
– Há mais do que uma? – perguntei. – Pensava que ela só queria
passar-me com o carro por cima.
– Também quer atirar-te de um telhado – listou Glenn. – E
eletrocutar-te. E envenenar-te com veneno para ratos.
– Meticulosa – observei, e aproximei-me de Glenn para espreitar por
cima do ombro dele.
– Veneno para ratos não é brincadeira nenhuma – resmungou Robby,
mas ignorei-o.
– Como é que ela fez isto tudo em apenas vinte e quatro horas? –
perguntei. – Aquela foto acabou de se tornar pública.
– Talvez já tivesse um plano de contingência alinhavado – propôs
Glenn – para qualquer namorada que aparecesse.
– Não há problema, desde que fiquemos no rancho – disse eu,
surpreendida ao perceber como desejava que isso fosse verdade.
Mas Glenn abanou a cabeça.
– Já estás comprometida. És um risco para o cliente e para ti própria.
– Podemos minimizar os riscos se…
Glenn cortou-me a palavra.
– Se te tirarmos do trabalho.
Robby assumiu um ar triunfante, que me enfureceu.
– Ouve – disse a Glenn –, eu consigo lidar com isto.
– Mas não há razão para tal – declarou Glenn. – Temos vários agentes
disponíveis que te podem substituir.
– Eu posso! – ofereceu-se Kelly do seu canto.
– Mas… – Eu não sabia como contra-argumentar. – O que diremos
aos pais do Jack?
– Simples – respondeu Glenn. – Está na altura de lhes contar a
verdade.
– Sobre mim? – perguntei.
– Sobre tudo.
– Queres dizer… – comecei, com o pânico a inflamar-se no meu
peito, mas esforçando-me por parecer que queria apenas deixar tudo bem
esclarecido – … que tenho de lhes dizer que foi tudo uma mentira e
depois… sair daqui e nunca mais voltar?
– Basicamente – confirmou Robby com ar jubilante.
– Cala-te, Robby – ordenámos Kelly e eu em uníssono.
– Alinhei nesta farsa quando o nível de ameaça era amarelo –
continuou Glenn. – Mas agora é laranja para o cliente e vermelho para ti.
Se ficares, estarás a atrair o perigo… para ti e para eles. Os Stapletons
têm de ser informados do que se passa. Toda a gente estará mais segura
se contares a verdade e te fores embora.
Pensei nisso.
– Não os queres colocar em risco, pois não?
– Claro que não.
– Então está decidido. Partes esta noite.
Esperem! O quê?
– Esta noite?
Glenn olhou para mim como se eu fosse lenta de raciocínio.
– Explica-lhes tudo hoje e preparas-te para partir logo à noite. Mando
o Amadi com o carro depois do jantar. E nos próximos dias vamos
colocar um agente no teu apartamento para estar de olho em ti. – Glenn
virou-se para consultar o calendário de agentes.
Fiz figas para que fosse Amadi. Ou Doghouse. Ou Kelly.
– A Taylor está livre – anunciou Glenn.
– A sério? – perguntei. – Ela é a minha némesis!
– Aguentem-se – disse Glenn.
Depois, em pânico, dei-me conta de que, se ele ia pôr Taylor comigo,
isso deixava Robby livre, e perguntei:
– Quem é que me vai substituir?
Glenn percebeu o que eu queria realmente saber. Mas fingiu que não.
– Depois de estar tudo às claras, colocaremos uma equipa no rancho e
outra na casa da cidade. E o Robby acompanhará o cliente.
Eu estava mesmo à espera disto.
– Oh, por favor!
– Eh – disse Glenn –, é exatamente como a operação que o Robby
liderou em Jacarta. Queres o melhor para o teu namorado, não queres?
– O Jack não é meu namorado – respondi.
– Pois – anuiu Glenn. – Parece que isso acabou.
Robby acenou afirmativamente, com um sorrisinho que me deu
vontade de o esmurrar.
– Mas há boas notícias – continuou Glenn. – Continuas a ser
candidata a Londres. E, agora que estás livre, podes ir para a Coreia. –
Tocou no relógio, como que a recordar-me do que estava em jogo,
convencido de estar a dar-me exatamente aquilo que eu queria. – Faltam
só duas semaninhas.
Vinte e três
Nem sequer consegui reunir a energia necessária para fingir que fazia
jogging no regresso. Limitei-me a caminhar, toda torta, usando a má
postura para protestar contra todos os desapontamentos da minha vida.
Jack veio ao meu encontro na estrada de cascalho, no seu Range
Rover novo.
– Vi as notícias – disse. – Vamos até ao rio.
– Está bem – acedi com um encolher de ombros, e subi para o banco
do passageiro.
Não falámos pelo caminho. Eu contemplei a paisagem com aquela
perceção em câmara lenta que surge quando sabemos que não voltaremos
a ver algo. As cercas de arame farpado. Os sulcos no caminho. A erva a
ondular nos campos. As árvores altas a roçar o céu. Os abutres a voar em
círculos lentos sobre nós.
O rancho era diferente de todos os sítios onde já estivera – ou onde
alguma vez estaria.
Nunca ficava emocionada com o fim de um trabalho. Era parte de não
criar laços. Estava só a trabalhar. Quando partia, ia fazer o meu papel
para outro lado. Portanto, agora não sabia o que fazer com a tristeza que
me inundava o coração. Sentia-o tão saturado que o conseguiria espremer
como se fosse uma esponja. O que é que as pessoas faziam com uma
tristeza assim? Como é que acabavam com ela?
Quando chegámos ao fundo da estrada – ao sítio onde Jack me pegara
às cavalitas da primeira vez –, ele desligou o motor mas nenhum dos dois
saiu do carro.
Expliquei-lhe tudo, e o que significava, e por que razão tínhamos de
fazer as coisas que íamos fazer daqui para a frente.
Ele tentou argumentar.
– Não quero que o Bobby te venha substituir.
– Não vem. Ou seja, não vai dormir no chão do teu quarto de camisa
de dormir branca.
– Valha-nos isso.
– Será completamente diferente porque já não estarão a fingir. Ele
andará atrás de ti como um segurança normal.
– Isso é bem capaz de ser ainda pior.
– E vai ser – garanti-lhe.
– Percebo porque é que tenho de contar aos meus pais, e também que
seja preciso intensificar o nível de alerta. Mas acho que tu devias ficar.
– Devia ficar?
– Sim. Devias cá ficar comigo, e ser também protegida.
– Pela empresa onde trabalho?
– Agora também corres perigo.
– Não é assim que funciona. Só corro perigo porque estou perto de ti.
Assim que me for embora, o nível de ameaça é totalmente diferente.
Jack ponderou, discutiu um pouco mais e, finalmente, cedeu,
lamentando que todo o nosso meticuloso esquema tivesse sido derrubado
por uma criadora de corgis homicida.
– Então é o nosso último dia juntos – concluiu, quando ficou sem
argumentos.
– Sim. Parto depois do jantar.
– A sério? Parece tão… repentino.
– Quanto mais depressa, melhor.
– E depois… não te voltarei a ver?
– Não.
Jack fez-me então uma pergunta estranhíssima.
– Isso significa que não vens cá passar o Dia de Ação de Graças?
Que ideia tão bizarra.
– Claro que não – respondi. E, como ele não parecia estar a
compreender, esclareci: – Não venho cá fazer mais nada… nunca mais.
Jack virou-se para me perscrutar o olhar.
– Quando os trabalhos acabam, acabam – continuei. – Não ficamos,
sei lá… amigos no Facebook nem nada do género. O Robby concluirá o
trabalho… e depois tu voltarás para o teu alce albino, e eu irei para a
Coreia e comerei noodles de feijão preto. Será como se nunca nos
tivéssemos conhecido.
– Mas conhecemo-nos – protestou Jack.
– Não interessa. É assim que funciona.
Jack parecia muito sério.
– Então o que estás a dizer é que este será o último dia em que nos
veremos?
– Basicamente – respondi. Porque, de facto, assim seria.
– Está bem – anuiu Jack, com um aceno. – Nesse caso, vamos fazer
dele um dia bom.

Jack insistiu em levar-me às cavalitas até à praia, em memória dos


bons velhos tempos, apesar de eu estar de ténis e não ser preciso – e eu
deixei-o.
Caminhámos pela margem durante algum tempo, a apanhar pedaços
de madeira petrificada, bem como pedras e seixos e madeira trazida pela
corrente. O vento era tão constante como a corrente do rio, e não pude
deixar de me sentir reconfortada pelo seu adejar.
Passado algum tempo, encontrámos um tronco arrastado para a
margem e Jack decidiu sentar-se nele.
Sentei-me ao seu lado.
Geralmente, quando vemos uma pessoa pela última vez, não sabemos
que é a última vez. Eu não sabia se isto era melhor ou pior. Mas não
queria falar sobre isso. Queria ter uma conversa normal, sobre coisas de
que estaríamos a falar se este fosse um dia qualquer.
– Posso fazer-te uma pergunta sobre a tua profissão? – inquiri.
– Claro.
– Como é que fazes quando tens de chorar?
Jack olhou para mim e inclinou a cabeça, como se fosse uma boa
questão.
– Bom… A melhor maneira é estar tão embrenhado na personagem
que sinto o que ele estaria a sentir… e, se ele sente algo que o faria
chorar… de repente, eu choro também.
– Com que frequência é que isso acontece? – quis saber.
– Cinco por cento das vezes. Mas estou a empenhar-me em melhorar.
– Não é muito.
Jack concordou com um aceno e olhou para o rio.
– Pois. Principalmente num cenário de filmagens. Porque há sempre
tantas distrações… guindastes e microfones e figurantes por todo o lado.
E está demasiado frio ou demasiado calor, ou puseram-nos um gel
qualquer no cabelo que faz comichão. Quando é assim, é preciso um
esforço maior.
– Como assim?
– Temos de pensar ativamente em algo real, da nossa própria vida…
que nos faça sentir tristes. É preciso ir até esse ponto, mentalmente, e ter
os sentimentos até as lágrimas aparecerem.
– Parece difícil.
– E é. Mas a alternativa é estragar a cena, portanto, há essa
motivação.
– E se não conseguires chorar?
Jack olhou para mim, como que a decidir se eu aguentaria saber a
resposta.
– Se não conseguirmos mesmo chorar, há um batom.
– Um batom?
– Sim. Alguém da equipa de caracterização esfrega-nos um batom
debaixo dos olhos, que nos faz chorar. Como as cebolas.
– Parece batota.
– Sem dúvida. E toda a gente sabe que estamos a fazer batota, porque
viram. E sabemos que nos estão a criticar por isso, o que torna a situação
ainda mais complicada.
– Um círculo vicioso – observei, pensando: Sei como é.
– Exatamente. Mas eu tenho outro truque.
– Qual é?
– Não pestanejar.
Pestanejei.
– É só isso – reiterou Jack. – Não pestanejar.
– Queres dizer aguentar as pálpebras abertas, como num desafio?
– De maneira subtil, claro… mas sim. Quando os olhos começam a
ficar secos, produzem lágrimas. Problema resolvido.
– Como fazes isso sem parecer esquisito?
– Como é que se faz seja o que for sem parecer esquisito?
– Espera – disse-lhe. – Diz-me que não foi isso que fizeste em Os
Destruidores.
Jack fechou a boca com ar determinado. Aproximei-me mais dele.
– Isso significa que, quando o Destruidor está a chorar por todo um
universo perdido, num dos momentos mais comoventes na história do
cinema, tinha apenas os… olhos secos?!
– Não comento.
– Oh, meu Deus! És um monstro!
– Tu é que perguntaste! – protestou Jack.
Olhei para ele. Ele devolveu o olhar com a testa franzida.
– Sabes que eu não sou mesmo o Destruidor, certo?
– Claro que sim. – Mais ou menos.
– Era um filme.
– Eu sei.
– Pagaram-me para representar aquele papel. Não era real.
Mas eu ainda estava a processar.
– Devia ou não estar zangada contigo?
– Não – afirmou Jack. Virou-se para mim. – Devias admirar-me. –
Passou a perna por cima do tronco e deu-me um toque no joelho para eu
fazer o mesmo, até ficarmos os dois sentados frente a frente, com os
joelhos a tocarem-se. – Muito bem – disse ele, aproximando-se mais. – O
primeiro a chorar ganha.
– O que estás a fazer?
– Vou ensinar-te a chorar.
– Não preciso de ajuda com isso.
– A chorar a fingir. Não imaginas o jeito que pode dar. Pensa nisto
como uma competição.
– Não quero competir contigo.
– Tarde de mais.
Suspirei, rendida.
– Vá lá, vá lá – rogou Jack, e chamou-me para mais perto com um
gesto.
Muito bem. Inclinei-me um pouco para a frente. Jack fez o mesmo. E
depois olhámo-nos, com os narizes a centímetros um do outro – sem
pestanejar. O ar entre nós parecia estranhamente sedoso. Quando se
tornou demasiado intenso, eu disse:
– Ouvi falar de uma experiência científica em que as pessoas se
apaixonam se olharem para os olhos uma da outra durante demasiado
tempo.
Jack desviou o olhar. Entendido. Depois, fixou-se de novo em mim.
– Não me incomoda. Vamos recomeçar.
Passado algum tempo, eu disse:
– Os meus olhos estão a começar a arder.
– Ótimo. Concentra-te nisso. Dentro de sessenta segundos serás uma
atriz profissional.
– Não é… confortável.
– A excelência nunca é.
Devia apreciar este momento, pensei. Estava aqui, em pessoa, com
Jack Stapleton – o Jack Stapleton –, sob a luz da manhã, a beber os
contornos do seu rosto real. As rugas aos cantos dos olhos. A barba por
fazer. A partir de amanhã, só o voltaria a ver em ecrãs. Lembra-te disto,
pensei com os meus botões. Presta atenção.
– Nada de fazer batota – avisou Jack.
– Como é que posso fazer batota?
– Se não sabes, não te vou revelar.
– Estás a tentar vencer, não estás?
– Claro.
– Pensei que fosse só para me ensinar.
– Temos de fazer alguma coisa para tornar isto interessante.
Já era interessante que bastasse, mas enfim.
– E não me faças rir – disse Jack, muito sério.
– Tu nunca te ris – respondi.
– Estou a falar a sério. Para com isso – disse ele.
– Com o quê?
– Não faças isso com a cara.
– Não estou a fazer nada.
– Estás a dar-me vontade de rir.
– Isso é problema teu, não meu.
Mas Jack não aguentou. Todo o seu rosto se transformou com um
sorriso radiante. Depois baixou a cabeça, com os ombros a estremecer.
– Não tens jeito nenhum para isto – comentei.
– A culpa é tua. – Ainda não tinha levantado a cabeça.
– Então não é a primeira pessoa a chorar que vence… é a primeira
pessoa a ter um ataque de risadinhas que perde.
– Os homens não têm ataques de risadinhas.
– Tu tens.
Jack levantou a cabeça, com os olhos a brilhar, ainda a sorrir.
– Acho que é mais fácil quando não gostamos da pessoa com quem
estamos a contracenar.
Isso chamou-me a atenção.
– Já te aconteceu?
– Às vezes.
– Mas não nas comédias românticas, pois não? Não antipatizas com a
Katie Palmer, pois não?
Jack fez uma careta.
– A Katie Palmer é do pior.
Soltei uma exclamação chocada.
– Não pode ser.
Mas Jack acenou afirmativamente, com ar apologético.
– É mal-educada, narcisista, sempre a dar graxa aos mandachuvas. É
o tipo de pessoa que trata mal os empregados de mesa.
Escondi o rosto nas mãos.
– Não fales mal da Katie Palmer! Ela é um tesouro nacional.
– Pode ser, mas é horrível. E péssima atriz.
Tapei a boca com a mão.
– Cala-te! Estás a arruiná-la!
– Ela já estava arruinada.
– Mas aquele filme!… Vocês estavam tão apaixonados.
– Não sei se sabes, mas chama-se «representar».
– Mas aquele beijo… Aquele beijo épico!
– Queres saber porque é que aquele beijo é tão bom? Porque quanto
mais depressa conseguíssemos despachar a cena, mais depressa podíamos
sair dali.
– Mas… Mas… – Seria este o programa para o dia de hoje? Jack a
arruinar o meu beijo preferido de todos os tempos?
E depois ele acrescentou:
– Ainda por cima, ela tem um hálito terrível.
Raios!
– Não pode ser.
– É verdade. É conhecida por isso. A boca dela cheira a elefantes.
– A elefantes?
– Sabes quando vais ao jardim zoológico e estás ao pé dos elefantes?
Esse cheiro. Mas quente. E húmido.
Fechei os olhos com força e abanei a cabeça. Jack continuou.
– É por isso que lhe chamam «Amendoim».
Abri os olhos, sem palavras.
– Já eu, para que conste, tenho um hálito delicioso – disse Jack.
Continuei muda.
– Cheira a bolos de canela – acrescentou, e piscou-me o olho.
O que se passava aqui?
– Mas… e aquilo que disseste sobre chorar… que, quando está
mesmo a correr bem, sentes o mesmo que a personagem?
– Boa pergunta – notou Jack, com ar de professor, e apontou para
mim. – Quando trabalhamos com alguém mesmo bom, isso pode
acontecer com os beijos. Tenho a certeza de que aconteceria com a Meryl
Streep.
– Espera… Já beijaste a Meryl Streep?
– Ainda não. Dá-me tempo.
Dei-lhe um soco de encorajamento no ombro.
– Tudo isto para dizer – concluiu Jack – que sim. Dois atores podem
beijar-se com os sentimentos das personagens.
– Obrigada – agradeci, como se ele tivesse acabado de devolver a
ordem ao mundo.
– Mas não – acrescentou Jack – quando é o caso da Katie Palmer.
– Raios!
Ele continuou.
– É tudo coreografado. Estamos a pensar na posição, e nos ângulos, e
na luz, e em não ficar com queixo duplo, ou os lábios dobrados de
maneira esquisita. É muito técnico. É tudo discutido antecipadamente.
Sabes: «Com língua ou sem língua?» Esse tipo de questões.
– E costuma ser com língua?
– Quase nunca.
Seria uma desilusão? Eu não conseguia decidir.
– Tem de ser tudo pré-definido – prosseguiu Jack. – Na verdade, isso
aplica-se a todos os beijos no ecrã. São o oposto dos beijos verdadeiros.
No ecrã, os beijos têm a ver com a aparência. Os beijos a sério, claro… –
desviou o olhar por um segundo – … têm a ver com sentimentos.
– Hum – resmoneei.
– Pois – retorquiu Jack.
– Então, detestaste beijar a Katie Palmer… – insisti.
– Afirmativo. Detestei beijar a «Amendoim» Palmer.
– O meu beijo preferido de todos os tempos – notei, tentando aceitar a
ideia – foi um beijo de ódio.
Jack abanou a cabeça.
– O teu beijo preferido de todos os tempos foi um beijo «vamos lá
despachar isto o mais depressa possível».
Suspirei. Olhei para o rio, que continuava a correr como se nada
fosse. Depois confessei:
– Tenho saudades de quando não sabia isso.
– Também eu.
– Estragaste o meu beijo preferido.
Jack encolheu os ombros, como se lhe fosse indiferente. Depois,
respondeu:
– Talvez um dia possa compensar-te.
Vinte e quatro
Ao jantar, esperei que Jack confessasse aos pais a natureza falsa da
nossa relação – mas ele continuou a adiar o momento o mais que pôde.
Eu fizera tacos de peixe. Talvez ele não quisesse estragar a refeição?
Pois, eu também não queria.
Dei por mim a olhar furtivamente em torno da mesa. Não me parecia
que Hank ficasse muito desiludido, mas temia o momento em que Doc e
Connie percebessem que lhes tínhamos mentido este tempo todo. Quando
Doc começou a levantar a mesa e Jack ainda não tinha dito nada, decidi
dar o primeiro passo.
– Doc? Connie? O Jack e eu precisamos de vos contar uma coisa…
Connie levou a mão ao peito, com ar maravilhado.
– Eu sabia.
– Sabia? – interroguei, olhando de relance para Jack.
– Adivinhei para aí há uma semana. Não foi, querido? – disse Connie
a Doc.
– É verdade – confirmou ele.
Olhei para Jack.
– Não me parece que seja o que… – começou ele.
– Vai ser aqui – declarou Connie. – Nós tratamos de tudo.
– Tudo o quê? – perguntou Jack.
Connie franziu a testa, impaciente.
– O casamento.
Jack olhou para mim. Suspirei.
– Mãe – disse ele –, não vamos casar-nos.
Mas Connie afastou tal declaração com um gesto indiferente, como se
fosse um disparate.
– Claro que vão.
– Mãe…
– Já te disse, percebi logo. São perfeitos um para o outro.
Jack parecia um pouco agoniado. Isto ia ser pior do que ele pensara.
– Mãe, não vamos casar. Na verdade – olhou para mim em busca de
coragem –, a Hannah nem sequer é minha namorada.
O pai de Jack voltara a sentar-se e agora estavam ambos a olhar para
nós, perplexos.
– Não é tua namorada? Como não? – perguntou Connie.
– Na verdade, ela é… – começou Jack. – Sabes, é que… – tentou de
novo. – O que se passa é que…
– Eu sou guarda-costas – interrompi.
Os pais de Jack fitaram-me, desconcertados, mas Hank fixou os olhos
em Jack.
– Sou a guarda-costas dele – esclareci, apontando para Jack.
Demos-lhes um segundo para absorverem a informação.
– Não és um bocadinho baixa para guarda-costas? – observou Doc,
por fim.
– Sou mais alta do que pareço – respondi. Ao mesmo tempo, Jack
disse:
– Ela tem uma personalidade elevada. – Deu-me uma cotovelada e
sugeriu: – Leva-o lá para fora e atira-o ao chão.
Doc franziu a testa e olhou para o filho.
– Ela é capaz de fazer isso?
– Nem imaginas.
– Fingimos ser um casal – continuei, sem perder o foco –, para que eu
pudesse estar perto do Jack e protegê-lo.
Não sei que reação esperava, mas não era a que obtive – pelo menos
da parte de Connie.
– Bom, isso é ridículo – disse. – Deviam namorar. É evidente que
estão apaixonados um pelo outro.
– Foi tudo a fingir – repeti, em tom suave.
Mas Connie virou-se para Jack como se não acreditasse minimamente
em tal possibilidade.
– Jack – questionou –, isto é verdade?
Jack sustentou-lhe o olhar durante um segundo e depois, com um
aceno decidido, confirmou:
– Sim, foi tudo a fingir.
– Por favor – disse Connie, com um revirar de olhos.
– Lamento muito – acrescentei. – Ele estava a representar.
Mas isso só a fez rir.
– Oh, o meu filho não é assim tão bom ator.
– Era uma relação falsa – insisti.
– Dormiram juntos este tempo todo. Isso também era a fingir?
Jack baixou os olhos.
– A Hannah dormiu no chão.
Isto fez Connie levantar a cabeça.
– No chão de tijoleira?
– Eu ofereci-lhe a cama – apressou-se Jack a esclarecer. – Ela
recusou.
Isto, sim, deixou Connie irritada. Levantou-se e debruçou-se sobre a
mesa para dar uma palmada no ombro de Jack.
– Deixaste a nossa Hannah dormir naquele chão duro e frio? Não foi
assim que te eduquei! Tens de ser um cavalheiro!
O meu coração estremeceu ao ouvir as palavras «a nossa Hannah».
– Não faz mal – garanti. – Eu sou dura.
– Não devias ter de ser – retorquiu Connie, e, por alguma razão, a
ternura com que falara fez com que sentisse um ardor nos olhos.
Aclarei a voz.
– A questão é que estávamos a tentar manter o Jack em segurança… e
todos vocês. Sem vos preocupar.
Hank, que até aqui guardara um silêncio ameaçador, tinha uma
pergunta.
– Em segurança de quê?
Olhei para Jack, que pegou nas rédeas da conversa.
– Uma pequena situação… quase inexistente, na verdade… com uma
perseguidora.
– Não queríamos correr riscos – ajuntei –, mas também não
queríamos causar stress desnecessário.
– Tinhas uma perseguidora? – perguntou Hank.
– Tenho – confirmou Jack com um aceno. – Mas não tem importância
nenhuma.
– E em vez de dizeres a verdade, resolveste… mentir? – disse Hank.
– Bem… – intervim, tentando pensar numa maneira de não parecer
tão mau. – Sim. Mas com boas intenções.
– Não me interessa se mentiram ou não – interrompeu Connie. – Só
quero que se casem.
Jack abanou a cabeça.
– Mãe, não vamos casar. Não há nada entre nós.
– O caraças é que não há – ripostou Connie, chocando-nos a todos um
bocadinho. Depois ofereceu um acordo a Jack. – Pede-a já em
casamento, e fica tudo perdoado.
Porém, antes que Jack pudesse responder, Hank tinha outra questão.
– Porquê agora?
– Hum?
– Porque é que nos estão a contar isso agora? Porque é que não
esperaram pelo Dia de Ação de Graças para irem à vossa vida, sem terem
de dar explicações?
– Ah! – exclamou Jack. – Pois… sabem… a situação insignificante
com a tal perseguidora tornou-se, recentemente, um pouco menos
insignificante.
Hank ficou tenso.
– O que significa isso?
– É que a perseguidora… que sempre foi inofensiva; só me escrevia
cartas de amor e tricotava camisolas…
– Era daí que vinham aquelas camisolas? – interrompeu Connie.
Jack fez que sim com a cabeça.
– Ela é muito talentosa – comentou Connie em tom de respeito.
Decidi ajudar.
– Ela decidiu ir um pouco mais longe.
– Como assim? – insistiu Hank, preparando-se para a notícia
completa.
– Parece que alguém tirou uma fotografia do Jack comigo –
expliquei, tentando falar com ligeireza –, quando estivemos no hospital,
há umas semanas, e, daquele ângulo, parece que estamos a beijar-nos…
apesar de não estarmos, de forma alguma… e agora toda a gente acha
que eu sou a namorada do Jack.
– Bem te disse que eles estão apaixonados – disse Connie a Doc. Doc
deu-lhe uma palmadinha na mão.
– O que não teria grande importância – continuei –, mas a Senhora
dos Corgis parece ter…
– Perdido a cabeça de vez – rematou Jack.
Concordei com um aceno.
– E tornou-se um bocadinho mais agressiva.
– Como assim? – quis saber Hank.
Jack e eu entreolhámo-nos por um segundo e depois Jack respirou
fundo e respondeu:
– Ela quer assassinar a Hannah.
– De maneiras muito imaginativas – acrescentei.
Estava a tentar imprimir alguma leveza à situação, mas Hank não
estava para aí virado.
– Céus! – exclamou, e levantou-se tão bruscamente que derrubou a
cadeira. Começou a andar de um lado para o outro pela cozinha. – Tens
uma perseguidora homicida atrás de ti?
– Só descobrimos esta manhã – disse Jack.
– Ela tinha realmente sido sempre muito benigna até aqui… –
comecei.
– Ela sabe onde estamos? – interrompeu Hank, espreitando pela
janela.
– Não – disse Jack.
– Hank – comecei, recorrendo agora ao meu tom mais profissional –,
presentemente, não há indícios de que vocês se encontrem em perigo.
– Que se saiba – contrapôs Hank.
– Não houve qualquer ameaça dirigida a um membro da família –
reafirmei. – A única pessoa sob perigo sou eu… e consigo tomar conta de
mim sem qualquer dificuldade.
– E se ela usar uma arma, mas falhar?
– É por isso que vou ser afastada desta missão e substituída por uma
equipa completa… tanto aqui como na casa de Jack em Houston. A
agência para a qual trabalho é a melhor do ramo. Assim que eu sair
daqui, o perigo será mínimo. Vem um carro buscar-me ainda esta noite.
Esperava que o meu tom fosse tranquilizador.
– Ainda estou a debater-me com o panorama geral – disse Hank a
Jack, soando cada vez mais furioso. – Estavas preocupado o suficiente
para contratar uma guarda-costas, mas não achaste que era preciso
informar-nos do que se passava?
– Não queria que a mãe se afligisse.
No entanto, a voz de Hank era cada vez mais tensa.
– Não te ocorreu que poderia ser útil estarmos a par desta situação?
– O nível de ameaça era muito reduzido – lembrei.
– Foi só excesso de cautela – acrescentou Jack.
– Sabias que estavas em perigo – insistiu Hank, agora muito mais alto
– e, mesmo assim, vieste para cá.
– Não estava realmente em perigo.
– Mas agora estás.
– Mesmo agora… – comecei.
Mas Hank não estava realmente interessado no que eu tinha a dizer.
Virou-se para Jack com os olhos escuros e duros como obsidiana.
– O teu egoísmo realmente não tem limites.
Jack levantou-se muito depressa, e encararam-se.
– Não me chames egoísta. Não fazes ideia nenhuma.
Doc, Connie e eu ficámos sentados do nosso lado da mesa – fora da
linha de fogo –, enquanto Jack e Hank se enfrentavam.
– Havia um milhão de razões para eu não te querer aqui – declarou
então Hank, tão alto que estava quase a gritar –, incluindo o facto de não
ter qualquer vontade de te voltar a pôr a vista em cima. Mas confesso que
arranjares maneira de nos matar a todos não me passou pela cabeça.
– Não matei ninguém! – berrou Jack, tão alto que o silêncio a seguir
pareceu frágil como cristal.
– Bem – disse Hank, baixando a voz para um tom que, de alguma
forma, era cem vezes mais ameaçador –, acho que há uma pessoa morta
nesta família que não concordaria com isso.
Ao ouvir estas palavras, Jack pegou no prato do jantar e atirou-o para
o chão com tanta força que quase esperei que deixasse uma cratera.
Depois, clamou:
– Eu não matei o Drew!
– A sério? – gritou Hank em resposta, num tom carregado de
amargura. – Estás a ilibar-te disso? – Levantou os dedos e começou a
enunciar: – Entraste no carro… conduziste demasiado depressa…
entraste na ponte a 120 km/h… derrapaste no gelo… atiraste o carro
contra o corrimão e para o fundo de um rio gelado, contigo e com o
nosso irmão mais novo lá dentro! Qual foi a parte que não o matou?
– A parte… – gritou Jack – … em que não era eu que ia a conduzir!
O silêncio abateu-se sobre a divisão.
Jack olhou para o chão e piscou os olhos, sem acreditar no que
acabara de dizer.
Hank recuou um passo e abanou a cabeça, como se tentasse aclarar os
pensamentos.
– Querido, tu… – disse Connie, atónita, fitando Jack.
– Não era eu que ia a conduzir o carro naquela noite – repetiu Jack,
agora mais baixo. – Era o Drew.
A voz de Hank era também mais baixa.
– Estás a dizer…
– Que só me apercebi de que o Drew tinha estado a beber quando já
estávamos a caminho. E quando lhe pedi para encostar, ele acelerou ainda
mais. Estou a dizer que a garrafa de uísque que encontraram no carro era
do Drew.
– Mas o Drew já não bebia – disse Doc, de testa franzida como se
nada daquilo fizesse sentido. – Desde o secundário. Ele estava nos
Alcoólicos Anónimos há anos.
Jack pousou os olhos no chão.
– Suponho que estava a ter uma noite má.
Connie tinha agora o rosto molhado de lágrimas.
– Porque é que não nos contaste, querido?
– Porque o Drew me pediu – disse Jack.
Todos esperaram que ele continuasse.
– Quando saltámos da ponte e caímos na água, ainda ficámos a boiar
à superfície um minuto. Eu comecei a abrir as janelas e a soltar os cintos
de segurança, mas tudo o que o Drew conseguia fazer era abanar a
cabeça e dizer: «Não contes à mãe e ao pai. Não contes ao Hank.»
Repetiu-o umas dez vezes… talvez vinte? Sempre a insistir na mesma
tecla. E eu queria que ele se concentrasse, para o tirar dali, por isso só lhe
respondia: «Não digo nada, está descansado. Abre a janela.» No fim,
quando a água entrou pelo carro, empurrei-o pela janela. E quando o
encontraram, afogado, só pensei: Foi o seu último pedido. Era a última
coisa que ele queria. Não desiludir a família.
»Portanto, honrei a minha promessa. Pareceu-me o mínimo que podia
fazer por ele… por todos nós. Para não piorar as coisas. Mesmo depois
de começarem a correr boatos de que eu tinha estado a beber. Senti que
não podia quebrar a minha palavra. Ia levar a verdade para o túmulo,
acontecesse o que acontecesse. Mas parece que nem disso fui capaz.
Soltou um suspiro, como se estivesse desiludido consigo mesmo.
Por um minuto, todos o fitámos.
Pensei como, no sonho dele, era sempre Jack que se afogava e não
Drew. Talvez Jack ainda estivesse a tentar salvar o irmão. Ou talvez
quisesse trocar de lugar com ele.
Depois, com passos decididos, as botas a esmagarem os cacos do
prato de Jack, Hank dirigiu-se ao irmão.
– É por isso que tens o fio dele? – perguntou.
Era o colar de Drew.
Jack fez que sim com a cabeça e depois inclinou-se e encostou a testa
ao ombro do irmão. Hank levantou os braços e apertou-o contra si. E,
pelo movimento dos ombros de Jack, percebi que ele chorava. Foi então
que Doc ajudou Connie a levantar-se para se dirigirem aos filhos e os
abraçarem também. E precisamente quando eu estava a pensar que devia
recuar em silêncio e deixar a família ter este momento em privado…
Connie pegou-me na mão e puxou-me para o abraço de grupo.

A seguir, Hank saiu com Jack, para apanharem um pouco de ar. Um


momento entre irmãos, há muito adiado.
Depois de eles saírem, eu e os pais deles lembrámo-nos de que
estávamos a meio da minha despedida quando tudo acontecera. Após um
compasso de espera, Connie virou-se para mim e perguntou:
– Esta história da relação a fingir significa que não vens cá passar o
Dia de Ação de Graças? – Limpou o rosto com um guardanapo.
Abanei a cabeça.
– Não venho, não.
– E tu e o Jack voltarão a ver-se?
– Depois de eu me ir embora, não.
– Nem sequer por diversão?
– Não sou lá muito divertida – respondi.
Ao ouvir isto, Connie soltou uma gargalhada e disse:
– Há anos que o Jack não se divertia tanto como se tem divertido
contigo.
Pensei em Robby a dizer-me que não era divertida e senti-me grata a
Connie por o estar a contradizer.
– És sempre bem-vinda se nos quiseres vir visitar – ofereceu Connie.
Abanei a cabeça.
– Não é assim que isto funciona – disse, apercebendo-me do nó na
minha garganta. – Depois de hoje, não voltarei a ver nenhum de vocês.
Connie abanou a cabeça, como se não conseguisse ver o sentido
disso.
Pobre Connie, pobre Doc. Tinham muito em que pensar.
E foi então que decidi dizer algo verdadeiro.
– Sei que o momento não é o melhor – comecei. – Mas uma vez que
esta será a minha última oportunidade, quero que saibam que esta foi
uma missão atípica para mim. Nunca, mas nunca, me aproximo dos
clientes. Mas desta vez aproximei-me.
– De mim? – perguntou Connie.
– De todos vocês… de maneiras diferentes. – Não planeara contar-
lhes, mas quando dei por mim, as palavras saíram. – A minha mãe
morreu este ano e estar aqui convosco… teve um grande significado para
mim.
– Oh, minha querida – disse Connie. Pegou-me na mão e apertou-a
nas suas.
– Ela era muito diferente de si – dei por mim a explicar. – Era uma
mulher com problemas. Complicada. E conseguia sempre piorar as coisas
em vez de as melhorar. Não é que a Connie me faça lembrar dela, mas…
– Tinha a voz embargada, mas continuei. – Suponho que me faz lembrar
da mãe que sempre desejei ter.
Connie procurou-me os olhos.
– Fico feliz por poder ter sido isso para ti.
– Enquanto aqui estive – continuei –, senti que tinha uma família. –
Respirei fundo. – A minha infância não foi… – Não sabia o que dizer. –
Acho que nunca soube como era ter uma família carinhosa. E embora…
– senti a voz começar a tremer – não possa continuar a fazer parte desta
daqui para a frente, adorei estar convosco. E estou muito grata por saber
que existem famílias assim.
Respirei fundo e tentei recompor-me. Mas havia mais uma coisa.
– O que estou a tentar dizer é que sentirei a vossa falta. Sinceramente.
– E do Jack? – perguntou Connie. – Sentirás falta dele?
Debati comigo própria o quanto devia confessar.
– Sim – respondi. Parecia mais do que suficiente.
– Ele gosta de ti. Eu consigo perceber.
Mas aqui estávamos nós, no fim. E não podia sequer desejar que as
palavras de Connie fossem verdade. Assim, abanei a cabeça.
– Se calhar – disse –, o Jack é melhor ator do que vocês pensam.
Vinte e cinco
Amadi apareceu para me vir buscar antes de Hank e Jack
regressarem.
– Chegaste cedo – comentei, olhando para o telemóvel.
– Sim – respondeu Amadi. – Temos um miúdo doente, por isso a
minha mulher…
– Entendido – respondi, com um aceno.
Não demorara muito tempo a arrumar as minhas coisas. Não eram
assim tantas. Até tapei a pasta de dentes de Jack. Pensei, por um segundo,
em deixar um bilhete ou tirar uma fotografia. De que outra forma poderia
recordar a cama por fazer de Jack, ou os montes de roupa em forma de
Jack espalhadas pelo chão, como tapetes de pele de urso? Mas optei pelo
profissionalismo. Havia, para estas situações, um protocolo de não deixar
vestígios.
Eu nunca estive aqui.
Amadi colocou a minha mala no Tahoe preto da empresa e, sem
demoras, abriu-me a porta do lado do passageiro e contornou o carro para
se sentar atrás do volante.
Estava pronto a seguir caminho.
Aproximei-me da porta, mas hesitei. Olhei em volta, à procura de
sinais de algum dos irmãos, mas nada – apenas as árvores a restolhar, o
brilho fraco das primeiras estrelas e um grupo de vacas junto à cerca, a
observarem-nos com os seus olhos tristes.
– Desculpa… – pedi-lhe. – Dás-me só um minuto?
Amadi olhou para o relógio e acedeu.
Vi luz no celeiro. Talvez estivessem lá? Mas o celeiro estava vazio.
Regressei lentamente, perscrutando os campos. Vi Clipper no cercado e
soprei-lhe um beijo.
A ideia de não me despedir de Jack deixava-me… quase em pânico,
apesar de nunca ter dito adeus a um cliente. De que adiantaria agora,
afinal? Não mudaria nada. Mas sentia como se tivesse cem recados
urgentes para Jack – e tudo o que queria era entregá-los. Fossem eles
quais fossem.
Quando voltei para o carro, fiquei ainda um instante de pé ao lado da
porta aberta, a olhar em volta, à espera. Por fim, era altura de parar de
adiar o momento. Entrei, fechei a porta e prendi o cinto.
– Podemos ir – disse.
Amadi deu a volta e passámos pelo portão do gado, começando a
percorrer a longa estrada de cascalho onde Jack me dera tantos abraços
fingidos.
Estava tudo bem. Era melhor assim. Provavelmente.
Respirei fundo e guardei o ar no peito. Não ia chorar, aqui em frente
de um colega, por causa de um cliente. Podia concentrar-me nisso, pelo
menos: em manter a compostura. Eu era capaz. Eu era capaz.
Mas depois Amadi travou. Abrandou e parou no meio da estrada, a
olhar pelo espelho retrovisor.
– Aquele não é o cliente?
Virei-me e olhei para trás. Sim. Era Jack. A correr atrás de nós.
– Espera um minuto – pedi a Amadi, e saí do carro.
Jack parou a meio metro de mim, ofegante.
– Vieste embora – arquejou – sem te despedires.
– Esperei um bocado – disse. – Mas tínhamos de arrancar.
Jack tentou recuperar o fôlego.
– Julguei que tínhamos mais tempo.
– Onde estavas? – perguntei.
– O Hank queria falar comigo.
Acenei com a cabeça.
– Lamento muito – disse Jack – pelas ameaças de morte. Estou
mesmo aborrecido por te ter colocado em perigo.
– Não te preocupes – descansei-o. – Ficarei bem desde que me afaste
de ti.
Falei meio a brincar, mas Jack não achou graça.
– A sério – insisti. – A Senhora dos Corgis há de esquecer-se disto. É
assim que estas coisas funcionam.
– Obrigado. Por tudo – disse ele, aproximando-se um passo. – Queria
agradecer-te antes de partires.
Acenei.
– Eu também queria dizer-te uma coisa.
Jack olhou para mim e esperou. Vieram-me à cabeça vinte coisas
diferentes, e não tinha como as dizer a todas. Nem sequer como as
ordenar. Por fim, disse apenas:
– Fizeste a coisa certa, há bocado.
Jack soltou uma risada envergonhada e olhou para baixo.
– Sei que foi o último desejo do Drew, e eu nem sequer o conhecia,
mas não acredito que ele quisesse que algo que te pediu por conta do
pânico destruísse a vossa família para sempre.
– Esperemos que não – observou Jack, acrescentando: – De qualquer
maneira, agora já está.
– A tua mãe tinha razão – disse-lhe.
– A minha mãe tem sempre razão.
– Obrigar-vos a passar tempo juntos, tu e o Hank, foi o melhor.
Jack concordou com um aceno.
– Ainda bem que ele tem tanto jeito para me irritar.
No carro, Amadi fez-me sinal de luzes.
– Parece que está na hora – indicou Jack.
– Sim – respondi. – Mas quero que saibas…
Hesitei. Estava mesmo na hora. Uma pequena parte de mim achava
que devia dizer a Jack algo real. Que gostava dele. Que me apaixonara
por ele. Que, apesar de ter sido falso – ou talvez até por causa disso –, se
tornara, de alguma maneira, a ligação mais real da minha vida.
Mas era demasiado humilhante.
Depois de nos separarmos, não haveria maneira de voltar a entrar em
contacto com ele. Jack desapareceria por trás daquela cortina de fama
que separa as celebridades das outras pessoas, e eu, na minha vida
acelerada de viciada em trabalho. Se esta era mesmo a última vez que o
via, então, era também a minha última oportunidade de ser verdadeira, e
não queria passar o resto da vida a lamentar não ter falado.
Jack significara algo para mim. Fora importante para mim. Ensinara-
me coisas que eu não sabia que precisava de aprender. O tempo passado
com ele mudara-me, e estava grata. Queria que ele o soubesse.
Esta era a minha única oportunidade de o dizer…
Mas acobardei-me.
Não seria profissional. Era demasiado assustador. Uma atitude a fazer
lembrar a Senhora dos Corgis. Assim era eu, pelos vistos: uma mulher
com medo de vacas e do amor.
Estendi a mão como se estivéssemos num evento empresarial.
– Quero que saibas que foi muito bom trabalhar para ti – disse-lhe.
Assim que ergui de novo à nossa volta a estrutura profissional, Jack
não pôde fazer outra coisa senão seguir a minha deixa. Franziu a testa,
mas apertou-me a mão.
– Obrigado pelo teu serviço.
Respondi com um aceno de cabeça breve, girei sobre mim própria
como um soldado e dirigi-me para o carro – com as mangas de balão da
minha blusa bordada de namorada a esvoaçar sobre os ombros.
Porém, quando abri a porta, ouvi Jack chamar-me.
– Hannah!
Virei-me.
Ele tinha as mãos nos bolsos e olhou para mim durante um longo
momento antes de dizer:
– Quero que saibas uma coisa.
Sustive a respiração.
– Vou mesmo ter saudades tuas. E não estou a representar.
Vinte e seis
Nessa noite, deixei o rancho, mas não voltei para casa.
Desocupara o meu antigo apartamento, um espaço aconchegante e
antiquado num prédio dos anos vinte, na zona excêntrica da cidade.
Vivera lá três anos, antes de o deixar, numa tentativa desesperada de
nunca mais ter de ver Taylor no apartamento do lado.
Agora, dirigi-me para um apartamento que arrendara sem nunca lá
pôr os pés, num prédio novo, ultramoderno e totalmente comum –
também na parte excêntrica da cidade.
E permitam-me que deixe aqui um registo da ironia: quando cheguei
à porta do novo apartamento pela primeira vez, quem é que lá estava de
guarda? Taylor.
Como é óbvio.
– Tinhas de ser tu, não era? – comentei enquanto marcava o código de
acesso. – O Glenn só pode mesmo ser sádico.
Ela não virou a cabeça.
– Fui eu que pedi este trabalho.
Quereria que eu respondesse? Que lhe agradecesse, talvez? Não. Nem
pensar. Podia fazer-me muita coisa, mas não podia obrigar-me a falar
com ela. Entrei e fechei a porta, e essa foi a única resposta que Taylor
teve: um baque sonoro e decidido.
E depois vi-me sozinha. Completamente. Pela primeira vez em
semanas.
Havia caixas empilhadas à minha volta, e os tipos das mudanças
tinham seguido o método «largar em qualquer lado» com as mobílias. A
cama, por exemplo, estava no meio do quarto, como uma ilha.
Mas não fazia mal.
Saí para a varanda para admirar a vista.
Isto era bom, ponderei. Era tempo pessoal. Um período para
recarregar e refletir. Talvez para começar a escrever um diário de
gratidão. Ou aprender caligrafia. Tinha algum tempo antes da missão na
Coreia. Com certeza encontraria forma de o aproveitar da melhor
maneira. Talvez não fosse um castigo. Talvez fosse uma oportunidade.
Mas que género de oportunidade?
Mandei vir comida coreana para jantar e, quando o tipo das entregas
chegou, dirigi-lhe um «Kamsahamnida» com um aceno, no meu tom de
voz mais caloroso, para deixar bem claro a Taylor, ali parada ao nosso
lado, que ele era alguém que eu respeitava… e ela decididamente não.
Depois entrei, sentei-me num dos caixotes com os pauzinhos
descartáveis na mão e comi, sozinha.
Quando terminei, estava demasiado cheia, pingara molho sobre a
caixa e sobrara-me tanto bulgogi e bibimbap que não pude afastar o
pensamento de que devia dar um pouco a Taylor. Mas de imediato
pareceu-me que isso seria conceder-lhe a vitória. Assim, deixei os restos
no frigorífico para o pequeno-almoço, sentei-me no chão de pernas
cruzadas e olhei para a janela sem cortinas.
A minha mente estava vazia. O apartamento estava vazio. A minha
vida era um vazio.
Devia sentir-me feliz. Devia estar aliviada. Se nunca quisera ir para o
rancho, e se escapar era aquilo de que mais gostava, então, devia ter
regressado à cidade numa marcha triunfante.
No entanto, o que sentia neste momento era o oposto de triunfo.
Conseguira aquilo que queria – só que já não era aquilo que queria.
Apaixonara-me por aquela relação falsa, como a mais estúpida das
estúpidas, e dera uma volta de cento e oitenta graus. Agora, tudo o que
queria era ficar.
Mas é claro que não podia. Desempenhara o meu papel e executara o
meu trabalho. Cumprira as ordens de Glenn. E continuava na corrida para
Londres. Estava na altura de regressar à minha vida real. E a minha vida
real – da maneira como eu a organizara, como sempre preferira –, era
uma vida de ir, não de ficar. E era nisso que eu era boa, como me sentia
melhor. Dentro de menos de duas semanas partiria para a Coreia e
começaria do zero em Seul – novo trabalho, novos clientes, e
absolutamente nada que me fizesse lembrar Jack Stapleton.
Exceto que, tratando-se de quem era, ele provavelmente apareceria
em cartazes pelas ruas coreanas.
Não, não ia começar a arrumar caixas. Não tencionava ir ao IKEA
comprar almofadas decorativas, nem espalhar plantas pelo apartamento
em vasos escandinavos coloridos. Não queria fazer o ninho. Ia deixar que
a minha vida em Houston fosse tão triste e estéril e desconfortável quanto
possível, o máximo de tempo que conseguisse, para não ter nada que me
despertasse o anseio de ficar.
Mais nada, pelo menos. Para além do óbvio.
O plano era esse. Elevar a minha infelicidade a níveis máximos, de
maneira que tudo o mais parecesse uma melhoria. Não era um plano
fabuloso, nem sequer bom. Mas era tudo o que tinha. E, como cedo vim a
perceber, nem sequer teria de me esforçar muito para ser infeliz.
O mundo trataria disso.
Três noites depois de deixar o rancho, enquanto estava sentada num
caixote, a comer comida mexicana diretamente da caixa de entrega, e a
olhar para o meu telemóvel sem realmente lhe prestar atenção, deparou-
se-me um vídeo em destaque de, imagine-se, Kennedy Monroe.
– Raios! – exclamei, deixando cair o meu taco.
Pelos vistos, ela estava no Texas, perto de Amarillo – a filmar um
filme qualquer de super-heróis passado num deserto infernal –, e decidira
aproveitar para vir até à cidade fazer uma surpresa ao namorado. Jack
Stapleton.
«O que motivou esta viagem a Houston?», perguntou o operador de
câmara.
«Oh, sabem como é», respondeu Kennedy. «Ia estar aqui pela zona.»
«Pela zona?»
Ela sorriu.
«Pelo Texas.»
Pela zona? Por favor! Amarillo ficava a nove horas de distância de
Houston. Sem contar com atrasos causados por tempestades de areia.
Eu estava fascinada com ela. Aquela perfeição. A beleza
sobrenatural. Não havia um alto, ou uma curva fora do sítio, ou qualquer
ponto assimétrico no seu corpo. Era como se Kennedy tivesse sido
construída numa fábrica – bom, se calhar isso não andava longe da
verdade. Claro que ela era uma propaganda viva às cirurgias plásticas,
mas, pelo menos, eram cirurgias de primeira. Tinha de o admitir. Ela era
uma obra de arte.
Estava precisamente a admirar a minha própria capacidade de ser tão
elogiosa e emocionalmente generosa, em vez de, por exemplo, apodrecer
por dentro com ciúmes, quando a câmara se afastou um pouco e percebi
que Kennedy estava em frente de uma porta azul muito moderna.
Ao lado de uma inconfundível figueira-lira tão alta como ela.
Oh, que diabo! A casa de Jack.
Toda a minha generosidade se desintegrou.
Ao que parecia, isto era uma série online de situações inesperadas, e
ela ia surpreender Jack com a sua visita. Aproximou-se da porta e bateu.
Depois, virou-se para a câmara, franziu os lábios cheios e ergueu o dedo
num gesto de silêncio.
Pus o vídeo em pausa e mandei uma mensagem a Glenn: SABES QUE A
KENNEDY MONROE LEVOU UMA EQUIPA DE FILMAGENS à CASA DO JACK

STAPLETON???

SIM. Há QUE TEMPOS. ESTá A SER TRATADO.

Mandei mais algumas mensagens – QUE RAIO? QUEM é QUE PERMITIU

QUE ISTO ACONTECESSE? –, mas quando Glenn não me respondeu,


continuei a ver o vídeo.
A porta de Jack abriu-se e ali estava ele, em carne e osso.
Descalço. De Levi’s. Com a sua camisa de flanela preferida por cima
de uma T-shirt que, da última vez que eu a vira, estava amarrotada no
chão da casa de banho do rancho.
Só de o ver – mesmo do tamanho do ecrã do telemóvel, em pixéis de
luz –, um frémito de prazer percorreu-me o corpo.
«Oh! Olá!», exclamou Jack, enquanto Kennedy o abraçava,
arqueando as costas como um gato siamês. Seria a maneira como
espetava o rabo e pressionava as mamas contra o tronco dele? Ou a
maneira como se esfregava nele, a marcar território? Ou o facto de estar a
ronronar?
Fosse o que fosse, era uma imagem que eu nunca conseguiria apagar
da minha memória.
«Vim só cumprimentar-te», anunciou então Kennedy, virando-se para
a câmara, «e trouxe uns amigos.»
E depois começou a entrevistá-lo, da forma mais desinteressante e
disparatada que eu já vira na vida – basicamente, uma sucessão de
risinhos, sacudidelas de cabelo, imagens acidentais do seu decote e
perguntas difíceis para Jack como: «Estás a ficar mais giro?»
Poupo-vos os pormenores insultuosos. Eu assisti para que vocês não
tenham de ir ver.
A bem da verdade, devorei o vídeo.
Não conseguia tirar os olhos do ecrã. Principalmente, por causa de
Jack, claro – a imagem dele era como um banquete para os meus olhos
esfaimados –, mas sobretudo devido a Kennedy. Afinal, antes de hoje,
praticamente tinha-me esquecido de que ela fazia parte da vida de Jack.
Ao vê-los ali, juntos, tentei imaginá-los como um casal, à procura de
algum tipo de faísca ou química entre os dois, por pouco que fosse.
Jack foi simpático e encantador e inevitavelmente charmoso. Porém,
enquanto olhava para ele, apercebi-me de que não se sentia atraído por
Kennedy. Depois de todas estas semanas a achar que tinha o meu radar
avariado – como se toda aquela representação me tivesse baralhado os
sinais –, percebi, de súbito, que me subestimara a mim própria.
Eu conseguia ler muito bem Jack Stapleton.
Kennedy posava para a câmara, atirando o cabelo para trás e fazendo
boquinhas – e Jack observava-a e alinhava no jogo. Mas a inclinação da
sua cabeça, a curva da sobrancelha, os olhos semicerrados, o ângulo do
sorriso, a tensão nas suas costas… tudo isso era um claríssimo népias.
Estou a ser mazinha, mas enfim… A questão era que eu conseguia lê-
lo. Mais ainda, conseguia ver que Jack estava a representar. Este tempo
todo, julgara não conseguir discernir a verdade. Mas, afinal,
compreendera-o sempre tão bem como a qualquer outra pessoa. Ou
mesmo melhor.
E uma coisa era clara como água. Jack sentia-se mais atraído por
aquela figueira-lira do que por Kennedy Monroe.
Seria possível que também aquela fosse uma relação falsa?
Quando ela sacudiu o cabelo, Jack mal reparou. Quando sorria, era
mecânico. Quando Kennedy o puxou pela camisola para o beijar, ele
virou-se como se tivesse ouvido alguém a chamá-lo.
«Jack», disse Kennedy então, virando-se para a câmara e fitando-a
diretamente. «Agora vou precisar de toda a tua atenção.»
Jack virou-se para ela.
«Muito bem», acedeu. «Aqui me tens.»
«Porque tenho uma pergunta muito importante para te fazer e não
vais querer perdê-la.»
«Está bem», disse Jack, enfiando as mãos nos bolsos. «O que é?»
Por fim, ela tirou os olhos da câmara e procurou os de Jack.
«A minha pergunta», disse, inclinando-se para ele, «é esta.» Piscou
uma vez mais o olho à câmara. Depois, olhou para Jack e perguntou:
«Queres casar comigo?»

Quando ouvi estas palavras, deixei cair o telemóvel. E quando o


apanhei, o vídeo já terminara.
Teria mesmo acabado de ver aquilo? Kennedy Monroe pedira Jack
em casamento?
De súbito, fiquei menos segura de mim própria. Conseguiria de facto
lê-lo? Ou, da minha parte, tudo não passaria de vã esperança? Recuei
para a parte final do vídeo, para ver a resposta de Jack. No entanto, a
segunda visualização não foi mais útil do que a primeira. Pelos vistos,
tinham cortado o vídeo naquele momento de suspense: Kennedy fizera a
pergunta, a câmara focara Jack a olhar para ela e terminava aí.
Revi-o uma vez mais, só para ter a certeza.
Nada de resposta, confirmei. Mas, na terceira visualização – que, para
ser franca, não foi a última –, reparei em algo mais interessante do que o
choque na expressão de Jack. Ao minuto 08:03, logo a seguir à tentativa
de beijo, quando Kennedy o puxara pela camisola, Jack virou-se de novo
para a câmara, com a gola da T-shirt torcida, mostrando o colar de
cabedal. Aumentei um pouco a imagem do rosto dele, deixando os meus
olhos deliciarem-se por um minuto. Porque não? Ninguém era
prejudicado.
E foi então que reparei noutra coisa além do colar de Drew.
Ao pescoço de Jack, ali mesmo – colorido e desafiador e
inconfundível –, estava o meu alfinete de missangas.

Mal tive tempo de reagir quando ouvi bater à porta.


Espreitei pelo óculo e era Robby, ainda de óculos de sol na cara,
como um idiota, apesar de não estar na rua.
– Desaparece, Robby! – berrei através da porta.
– Não oiço nada! – gritou Robby. – Isolamento acústico!
Entreabri a porta para lhe gritar uma vez mais, mas Robby enfiou o
pé na fresta.
– Preciso de falar contigo – pediu. – Deixa-me entrar.
– Não vai acontecer – respondi. Olhei para o pé dele, que não me
permitia fechar a porta.
Robby recuou.
– Preciso mesmo de falar contigo – insistiu, tirando os óculos escuros
e olhando para Taylor, com um ar muito estoico.
– Então fala.
– Aí dentro.
– Não te vou deixar entrar – repeti.
– Ouve – começou Robby, com nova olhadela a Taylor. – Sei que,
enquanto estiveste no rancho, caíste nas garras do Jack Stapleton, mas
espero que, agora que estás livre, consigas pensar de forma mais racional.
Fitei-o, impassível.
– Nunca caí nas garras de ninguém, Robby. Nem sequer nas tuas.
– Sabes o que quero dizer.
– Estou a meio de uma coisa, portanto…
– Percebi que acabar contigo tinha sido um erro assim que o meu
avião pousou em Madrid.
Fiz uma breve pausa antes de indagar:
– E portanto decidiste atirar-te à Taylor?
– Estava triste! Sentia-me sozinho! Rejeitado!
– Foste tu que acabaste comigo!
Robby olhou para Taylor e continuou a falar.
– Nem sequer gostava dela, a sério. Foi só porque ela… estava ali.
Senti um niquinho de empatia por Taylor, que tinha de escutar aquilo.
– Não sei se percebes que isso só torna tudo muito pior.
– Numa fase difícil da minha vida, ela era melhor do que nada, está
bem? Foi só.
Se me soube bem aquela vitória em frente de Taylor?
Não tenho a certeza.
Quer dizer, naquela situação, poderia alguém sair vencedor?
– Sabes que ela está mesmo aqui, certo?
– A culpa é tua! – exclamou Robby. E depois acrescentou algo que
me acertou da maneira certa, no momento certo: – Não me deixaste
entrar!
Ao ouvir estas palavras, estaquei.
De vez em quando, há coisas que se erguem verdadeira e
genuinamente acima do caos da vida e captam toda a nossa atenção.
– Não te deixei entrar? – repeti, mais para mim própria do que para
outrem. Foi como se alguém tivesse acendido a luz numa sala escura. –
Oh, meu Deus, Bobby. Tens razão.
– Não me chames Bobby – disse Robby.
– Mas tens razão. A sério.
Ele franziu a testa.
– Ai tenho?
Era como se o visse pela primeira vez.
– Eu não te deixei entrar. Quando fiquei a trabalhar e perdi a tua festa
de aniversário? E quando tive de desistir do nosso fim de semana
romântico em cima da hora? E quando perdi a pulseira que me deste?
Quando estava «sempre a trabalhar»? Quando não era «divertida»? Fui
sempre eu a não te deixar entrar.
Possivelmente também quando «beijava mal». Mas não ia dignificar
tal comentário repetindo-o em voz alta.
Robby olhou de relance para Taylor, sem perceber o que se passava.
Ela ignorou-o. Continuei.
– Pensei que estavas a pôr as culpas em cima de mim, mas, afinal,
estavas apenas a dizer a verdade. Pensei que, como andávamos a dormir
juntos, era amor. Mas tinhas toda a razão. Eu não sabia o que era o amor.
Pensei em Jack. Pensei na boleia às cavalitas dele desde o rio.
Recordei a sensação de o fazer rir. Pensei em como torcia por ele sempre
que tentava acertar com alguma coisa no caixote do lixo da cozinha e
falhava. Lembrei-me do frémito de medo que me percorreu quando ele
saltou de cima de Clipper com um salto mortal, como se o meu pescoço
pudesse partir-se se o dele se partisse. Pensei na felicidade plena de
acordar na cama dele, os nossos corpos entrelaçados. E na agonia
crepitante que se abateu sobre mim enquanto o procurava em vão, para
me despedir, naquela última noite. Pensei nos ciúmes ardentes e
fervilhantes que sentira ainda há pouco, ao ver Kennedy Monroe
esfregar-se imerecidamente nele. Agora, eu sabia.
Acenei com a cabeça.
– Tinhas razão. Não te deixei entrar.
Robby continuou a olhar para mim. Quantas vezes na vida um tipo
acusa uma ex-namorada de algo e ela simplesmente… concorda?
– Contudo – continuei, mirando-o de alto a baixo –, tu não merecias
que te deixasse entrar. Portanto, acabou por ser o melhor. Obrigada.
Robby estava tão desconcertado que tinha a boca aberta.
– Porquê?
– Por me mostrares o que o amor não é – disse.
E, com estas palavras, fechei a porta e corri o trinco.
Vinte e sete
Na véspera do Dia de Ação de Graças, o meu telemóvel tocou;
quando olhei para o ecrã, indicava POSSíVEL SPAM. Para terem a noção de
como me sentia sozinha, atendi na mesma. Felizmente, não era um
operador de telemarketing.
Era Jack Stapleton.
– Olá – disse ele quando atendi, e reconheci-o logo, por essa única
palavra.
Percebi também que estava a sorrir.
Depois, de repente, ele passou para chamada de vídeo – eu, ainda de
camisa de dormir, com o cabelo espetado em dez direções diferentes –, e
vi que estava a sorrir.
– Sentiste a minha falta? – perguntou-me, parecendo muito contente
consigo próprio.
Eu estava distraída pelo meu reflexo no telemóvel.
– Não – respondi, alisando o cabelo.
– É tão bom voltar a ver a minha camisa de dormir preferida.
– Porque é que estás a ligar?
– Assuntos importantes.
– Como é que arranjaste o meu número?
– Convenci a Kelly a dar-mo, com palavrinhas doces.
– Imagino.
– Não interessa – disse Jack. – Estou a ligar para te contar o plano
que arranjámos para apanhar a perseguidora.
– Tens um plano?
Jack assentiu com um aceno.
– Uma operação secreta. Para a apanhar em flagrante delito. E depois
levá-la para a choça. E, aí, assustá-la, pressioná-la e convencê-la a,
enfim… a não te assassinar.
– Foi esse o plano que congeminaste?
– Sim – confirmou Jack, orgulhoso.
– E o Glenn alinhou nisso?
– Sim – confirmou Jack. – O Glenn, o Bobby, uma data de polícias…
Era tão estranho ver novamente o rosto dele, mesmo pelo telemóvel.
Desde que o deixara, eu fizera um grande esforço para evitar tudo o que
pudesse obrigar-me a dar de caras com ele – ver televisão, folhear
revistas na caixa do supermercado, e até, por causa daquele patrocínio do
uísque, olhar para os autocarros quando passavam.
Não estava à espera de receber uma chamada de vídeo.
– Ouve – disse-lhe –, lamento desiludir-te, mas é quase impossível
fazer seja o que for em relação a este tipo de perseguidores.
– Obrigadinho pela negatividade.
– Nem sei se aquilo que acabaste de descrever é legal.
– Não te preocupes. Tenho toda uma equipa de conselheiros.
– Porque é que estás tão preocupado com a perseguidora, de qualquer
maneira? Depois do Dia de Ação de Graças vais-te embora. Mais dois
dias e estarás livre.
– O problema é esse. Talvez não vá.
Sem querer, sustive a respiração.
– A minha mãe acha que eu devia ficar mais algum tempo. Ir à pesca.
Descansar. Tratar da minha regeneração pessoal.
– Excelente ideia – concordei.
– Mas ainda não gostas do plano para lidar com a perseguidora, pois
não?
– Nem sequer sei pormenores. Mas posso garantir-te desde já que
nunca resultará.
Jack sorriu.
– Adivinha.
– O quê?
– Já resultou.
Inclinei-me mais para o telemóvel.
– Já o executaram?
– Já.
Como é que eu não soubera de nada?
– E resultou?
– Claro! Sou um génio. E também um grande sortudo.
– Ninguém me conta nada.
– Fiz algumas publicações nas redes sociais, como isco, a dizer que
estava ansioso por um fim de semana de descanso na minha casa em
Houston.
– E foi o suficiente para a atrair?
– O vídeo da Kennedy Monroe também ajudou.
– Preciso de falar contigo em relação a isso…
Mas Jack queria celebrar o seu triunfo.
– E depois, quando a Senhora dos Corgis apareceu, prendemo-la por
invasão de propriedade.
– Isso não vai pegar.
– Não. Íamos tentar assustá-la com advogados e ameaças e cenários
catastróficos, mas depois aconteceu algo melhor.
– O quê?
– Ela usou o telefonema a que tinha direito quando a detiveram para
ligar à irmã… que se enfiou imediatamente num avião para o Texas,
meteu as coisas dela numa carrinha e levou-a consigo, corgis e tudo, para
a Florida.
A irmã pedira muita desculpa a Jack e prometera certificar-se de que
a perseguidora tomava os medicamentos. «Ela sempre foi inofensiva»,
explicara. «Estava bem até ao divórcio, o ano passado. Já a devíamos ter
trazido para casa. Vamos cuidar dela daqui para a frente.»
– Isso foi fácil – disse a Jack. E depois franzi a testa. – Talvez
demasiado fácil?
– Não existe tal coisa.
– A irmã será uma pessoa de confiança?
– Não sei, mas uma perseguidora com família na Florida tem de ser
melhor do que uma perseguidora sozinha aqui.
– Isso é verdade – concordei.
– Seja como for – prosseguiu Jack –, é por isso que estou a ligar.
– Para me contares que há menos probabilidades de ser assassinada?
– Não. Para te convidar para vires passar o Dia de Ação de Graças
connosco.
Fiz uma pausa. Depois, respondi:
– Não posso fazer isso, Jack.
– Porque não? A tua potencial assassina já está a caminho de
Orlando.
– Não é boa ideia.
– Isso não é uma razão.
Veio-me à cabeça uma imagem de Kennedy Monroe a barrar-se em
Jack como se ele fosse um bolo e ela, chantilly.
– Acho que é melhor – continuei – fazermos um corte radical.
– É só um dia. Uma refeição. Para nos despedirmos como deve ser.
– Já nos despedimos. – Eu não queria passar por aquilo outra vez.
– Mas tenho uma prenda para te dar.
E depois baixou o telemóvel, passando pela sua boca famosa e pela
lendária maçã de Adão, e inclinou a câmara até se fixar no colar. E ali,
sobre a sua clavícula, muito nítido, estava o meu alfinete.
– Encontraste-o – disse, tocando no ecrã com o dedo. Já sabia, claro,
mas era como se não conseguisse acreditar.
– Encontrei.
– Onde estava?
– Na praia ao pé do rio.
– Como é que conseguiste? É impossível.
– Sou muito bom com coisas impossíveis.
– Mas… como?
– Muito tempo à procura. E uma boa dose de otimismo delirante.
O que me forçava a rever a minha opinião sobre o otimismo delirante.
Jack continuou:
– Lembras-te daquelas manhãs todas em que te disse que ia atirar
bolas de golfe para o rio?
– Sim.
– Não era o que eu estava a fazer.
– Andavas à procura do meu alfinete?
Jack fez que sim com a cabeça.
– Com o detetor de metais do meu pai. O que a minha mãe sempre
achou que era um autêntico desperdício de dinheiro.
– Era isso que levavas no saco de golfe?
– Tacos é que não era, de certeza. Não conseguiria acertar numa bola
nem que a minha vida dependesse disso.
– Ias para lá todas as manhãs?
Jack olhou para mim e voltou a acenar.
– E eu que pensava que era só para me chatear.
– Isso foi um benefício extra.
– Devias ter-me contado.
A expressão dele tornou-se um pouco mais séria.
– Não queria dar-te esperanças em vão.
– Mas, Jack… – Estudei o rosto dele. Sentia-me perplexa. – Porquê?
Ele franziu a testa, como se não soubesse explicar. Depois,
respondeu:
– Por causa do teu ar quando percebeste que o tinhas perdido.
Senti lágrimas nos olhos.
– Nem sei como te agradecer.
Ele sorriu.
– Uma novidade em nada relacionada: comecei a fazer coleção de
caricas.
Ri-me um pouco, mas, quando o fiz, as lágrimas transbordaram.
Parecia que chorara mais nas quatro semanas desde que conhecia Jack
Stapleton do que em toda a minha vida antes disso. Este homem
continuava a trazer ao de cima a minha vulnerabilidade. Mas talvez não
fosse mau de todo.
Quando voltou a falar, foi em tom suave.
– Presumo que queres que te devolva o alfinete.
– Sim, por favor.
– É fácil – disse ele então. – Não há problema nenhum. Tratamos já
disso. Tudo o que tens de fazer… – e aqui fez uma pausa e fitou a
câmara, muito sério – … é vir cá passar o Dia de Ação de Graças.
Bem jogado, Jack Stapleton. Bem jogado.
Suspirei.
– Está bem, raios. Lá estarei.
Vinte e oito
Suponho que esperava que fôssemos só nós os cinco no Dia de Ação
de Graças. Como nos bons velhos tempos. Mas, afinal, parecia que a
festa era para o condado inteiro.
Quando cheguei, encontrei o jardim iluminado por fiadas de luzes
esticadas em ziguezagues, de árvore em árvore, e uma mesa comprida de
um lado a outro, coberta por várias toalhas aos quadrados de cores
diferentes. Vizinhos, familiares e – para minha surpresa – toda a equipa
da Agência Glenn Schultz – deambulavam pelos terrenos. Hank
conversava com Amadi. Kelly estava a admirar a écharpe de lã de
Connie. Doc e Glenn viam qualquer coisa no telemóvel deste último.
Parecia que todos tinham feito amizade.
– Pelos vistos as coisas relaxaram depois de mandarem a Senhora dos
Corgis para a Florida – comentei com Doghouse.
– Nível de ameaça branco, miúda! – retorquiu ele, levantando a mão
para chocar com a minha.
Doc trazia uma gravata de laço com um padrão de pequenos perus.
Connie, com ar saudável e recuperado, envergava uma túnica de linho. E
Jack vestia calças de ganga e uma simples camisa de flanela vermelha.
Estava tão atraente que quase me esqueci de respirar.
Por uma questão de nostalgia, eu vestira um dos meus vestidos de
namorada, mas com um casaco de malha, collants, um cachecol com
pompons nas pontas… e as minhas botas de cowboy encarnadas.
Eram, pelo menos, umas trinta pessoas, e o repasto de Ação de
Graças dos Stapletons seria em estilo buffet. Uma vez que, nas palavras
de Connie, cozinhar uma refeição completa para tanta gente era
«escravatura e ridículo», cada convidado trouxera um ou dois dos seus
pratos preferidos, e pusera-os na cozinha para serem partilhados. Cada
um servia-se daquilo que queria e ia sentar-se no jardim a comer. Havia
velas acesas na mesa, e jarras Ball antigas com flores, e garrafas de
schnapps caseiro feito com xarope de pêssego de Fredericksburg e o
bagaço de fabrico caseiro de Doc.
Eu não era fã de álcool – a minha mãe retirara-lhe todo o encanto –,
mas de vez em quando bebia um copo. Hoje parecia ser uma dessas
ocasiões. Quantas vezes podia sentar-me num jardim, no campo, a beber
bagaço caseiro?
Quando me aproximei da mesa, vi um lugar vago ao lado de Jack.
Deveria sentar-me ali? Senti um tremor de hesitação no peito, mas dirigi-
me para ele, apesar disso. Jack estava a falar com alguém mais à frente, o
seu perfil iluminado pelas velas, e os meus olhos devoraram-no com
avidez. Mantive-os fixos nele enquanto me aproximava, mas depois, ao
contornar a ponta da mesa, o lugar foi de súbito ocupado.
Por Kennedy Monroe.
Ao vê-la, virei-me rapidamente. Ela estava aqui? Jack convidara-a?
Sempre estariam juntos? Esperem… Estariam noivos? Depois daquele
pedido de casamento público? O que estava eu aqui a fazer, afinal?
Respirei fundo para me recompor.
Kennedy tinha ainda melhor aspeto ao vivo. O cabelo era mais
brilhante. Os lábios, mais cheios. As mamas, mais… enfim. Irradiava
perfeição rústica, com uns calções de ganga curtinhos e uma blusa aos
quadrados amarrada por baixo do peito. Parecia um póster de si própria –
e, escusado será dizer, terrivelmente deslocada no meio de todas estas
pessoas normais, assimétricas e rugosas. Como uma Barbie de carne e
osso. E por mais que eu quisesse que isso fosse um insulto… não era.
Teria Jack aceitado? Porque estaria Kennedy ali se assim não fosse? E
quem podia censurá-lo? Perante toda aquela beleza extrema, perfeita e
irrepreensível, ninguém conseguiria resistir.
A pontada no meu peito deu-me a resposta.
Porque é que eu estava aqui? Pela mesma razão que Doghouse e
Glenn e Amadi e todas as outras pessoas normais. Lembrei-me de Connie
dar um safanão no ombro de Jack e ralhar com ele por não ser um
cavalheiro.
Olhei em volta.
Era Dia de Ação de Graças. Portanto, como todas as outras pessoas
por quem Jack Stapleton não estava caidinho, eu estava aqui para
agradecer.
Lutei contra o impulso de pousar o prato na relva, correr para o meu
carro e regressar à cidade a cem à hora. Mas isso seria pior, claro. Sentir-
me humilhada era uma coisa. Admiti-lo era outra.
Virei-me e encontrei um lugar vago na ponta oposta da mesa, ao lado
de Doghouse, que me bloqueava pelo menos parcialmente a vista de
Jack. Fechei os olhos com força. Claro que ele ia casar. Fora uma
ingenuidade da minha parte imaginar outra possibilidade. Respirei fundo
algumas vezes, mas sentia os pulmões trémulos. Assim, fiz aquilo que
fazia sempre: formulei um plano de fuga. Decidi que toleraria este
momento da minha vida o máximo que conseguisse, e depois levantar-
me-ia da mesa com um sorriso gracioso, como se tivesse outro
compromisso, e desapareceria com elegância por entre as sombras.
Fácil.
E quanto tempo conseguiria tolerar este momento? Decidi-me por
quinze minutos – mesmo assim, estava a esticar-me –, e fixei os olhos no
prato para não avistar acidentalmente Jack e Kennedy.
Doghouse, porém, não tirava os olhos deles.
– Acreditas que ela está aqui? – repetiu várias vezes, enquanto me
dava cotoveladas entusiasmadas. – É a Kennedy Monroe. Neta da
Marilyn Monroe.
– Isso já foi desmentido – lembrei.
– Ainda é mais gira ao vivo – respondeu Doghouse. – Isso não foi
desmentido.
– Mas afinal – sondei –, tu não gostas da Kelly?
– O quê? – disse Doghouse, com o tom de voz a subir uma oitava.
Eu não estava com disposição para continuar com a farsa.
– É tão óbvio, meu. Beija-a de uma vez. Faz-te homenzinho e trata do
assunto.
Doghouse olhou para o prato e pensou nisso por um segundo.
E depois fê-lo.
A sério. Levantou-se, aproximou-se de Kelly, sentada também à
mesa, deu-lhe um toque no ombro e perguntou:
– Olha, posso beijar-te?
Kelly olhou para ele em silêncio por um instante e respondeu:
– Sim.
Tão fácil como isso.
Vi-o pegar-lhe na mão e conduzi-la na direção do celeiro.
– Caraças! – exclamei em voz alta. Era tudo o que bastava?
Não me restava alternativa senão beber um valente trago do meu
copo. Ao princípio, sentia-se a doçura do schnapps. Mas depois o bagaço
começava a bater.
Suponho que há uma razão para que seja ilegal destilar bebidas tão
fortes em casa. Foi como beber ácido. Senti um ardor intenso na garganta
e, por uma fração de segundo, achei que ia morrer. Para tentar dissipar os
vapores, debrucei-me e soprei para o chão, como um gato assanhado.
Nesse momento, os ténis de Jack – que eu reconheceria em qualquer
lado – surgiram no meu campo de visão.
– Arde, não arde?
Ergui os olhos. Ele acenou com a cabeça, como se reconhecesse bem
a sensação.
Em resposta, tossi.
Ele sentou-se na cadeira que Doghouse vagara.
– É forte o suficiente para decapar tinta, isso é certo.
Olhei para ele, ainda sem conseguir falar.
– Também é bom para limpar joias. A minha mãe costuma deixar a
aliança de molho num copo disto.
Levei a mão à garganta e massajei um pouco.
Jack lançou-me um olhar compreensivo.
– É preciso habituarmo-nos aos poucos.
O que é que estávamos a fazer? Porque é que eu estava ali? Seria
aquilo um reencontro de amigos? Mas quem é que precisava de uma
amiga como eu quando tinha Kennedy Monroe?
A seguir, Jack ofereceu-me o copo de água de Doghouse com uma
mão e tirou uma garfada de algo que não parecia comida do prato que
este abandonara.
– Devias comer um bocado da salada de inhame e marshmallows para
empurrar.
Abanei a cabeça. Parecia-me pior a emenda do que o soneto. Por fim,
consegui emitir sons.
– Devias voltar para o teu lugar – sugeri.
Jack fitou-me de testa franzida.
– Este é o meu lugar agora.
Foi nesse momento que, à cabeceira da mesa, Doc se levantou e bateu
com o garfo no copo até ter a atenção de todos.
– Por favor, deem as mãos – pediu, com ar formal.
Jack pegou na minha mão – e a sensação quente e suave da pele dele
na minha lançou-me arrepios por todo o corpo.
Ou talvez fossem os eflúvios da bebida.
– Nesta bonita noite – discorreu Doc –, aqui, com tantos amigos, dou
graças aos deuses e deusas a quem rezamos: pelas nossas bênçãos, pelo
nosso grande, belo e imperfeito país, e até pelas nossas dificuldades.
Peço que cuidemos uns dos outros, que nos toleremos uns aos outros e
que nos perdoemos uns aos outros. Ámen.
Depois olhou para Connie e perguntou:
– A anfitriã quer acrescentar alguma coisa?
Connie levantou-se e ergueu o copo.
– Todos sabem que estive doente este ano. Claro que nunca escolheria
tal coisa. Mas tenho refletido muito sobre os lados positivos da situação.
Obriga-nos a abrandar. Faz-nos pensar no que temos na vida. Permite-nos
chantagear a família para passarmos mais tempos juntos. Estou grata por
o meu sistema linfático estar limpo. Estou grata por terem conseguido
tirar o tumor com margens bem delimitadas. Estou grata por estar a
recuperar. E, mais do que tudo, estou grata por ter aprendido a sentir-me
grata. – Depois, acenou com a cabeça. – Obrigada por terem vindo.
Tenham cuidado com o schnapps. Ámen.
As pessoas largaram as mãos umas das outras e viraram-se de novo
para os pratos.
Foi então que Doc acrescentou:
– Se não é a primeira vez que estão connosco, já sabem que a minha
mulher gosta sempre que cada um de nós diga algo por que está grato…
seja grande ou pequeno. Esta noite, vamos começar… – apontou – …
pelo nosso filho Jack.
Jack não hesitou. Levantou o garfo que ainda tinha na mão, como se
fizesse um brinde, e disse:
– Estou grato por esta salada de inhame e marshmallows.
Pensei que seria eu a seguir, mas o homem do outro lado de Jack
pegou no testemunho.
– Estou grato por as previsões de chuva estarem erradas.
Depois a mulher ao lado dele disse:
– Estou grata pelo meu novo neto.
O tipo seguinte deu graças pelo schnapps de Doc Stapleton.
E assim foram todos falando ao longo da mesa. Amadi deu graças
pela mulher e os filhos. Doc Stapleton disse estar grato por Connie
Stapleton, e Connie retribuiu na mesma moeda. Glenn deu graças por ter
encontrado um lugar vago ao lado de Kennedy Monroe, Kennedy
Monroe deu graças por ter atingido os vinte e quatro milhões de
seguidores no Instagram, e Doghouse e Kelly tinham desaparecido de
vista – mas apostava que ambos deviam estar a dar graças por isso.
Sempre fui um pouco tímida em situações destas. De cada vez que
ouvia uma nova resposta, alterava mentalmente a minha.
E quando chegou a minha vez… hesitei.
Toda a gente olhou para mim, à espera, enquanto eu tentava decidir-
me.
Por fim, Connie inclinou-se para a frente.
– Não te lembras de nada por que estejas grata, Hannah?
Fitei-a nos olhos.
– Lembro-me de demasiadas coisas.
Todos os presentes se riram, aliviados.
– Podes dizê-las todas, querida – incentivou Connie.
E assim fiz. Ponho as culpas no álcool.
– Estou grata por estar aqui – comecei. – Estou grata pelo baloiço de
pneu. Estou grata pelo rio Brazos. Estou grata pelo laço de perus do Doc.
Estou grata pelo tempo que passei neste jardim. Estou grata pelas
abelhas. Pela coleção de discos da família Stapleton. Pelo Clipper. Estou
grata pelas buganvílias. Estou grata por ter visto como é uma família de
pessoas que realmente se amam. E acho… – De súbito, apercebi-me de
que tinha a voz a tremer. Para tentar disfarçar, elevei o tom. – Acho que o
facto de não podermos ficar com uma coisa não significa que ela não
tenha valido a pena. Nada dura para sempre. O que interessa é o que
levamos connosco. Passei uma grande parte da minha vida a tentar
escapar, demasiado tempo a fugir do que é difícil. Mas agora pergunto-
me se não estaria errada. Acho que, a partir deste momento, vou tentar
pensar naquilo que posso levar comigo. Aquilo a que posso agarrar-me. E
não apenas naquilo que tenho sempre de deixar para trás.
O silêncio abateu-se sobre a mesa durante alguns segundos depois de
falar, e senti uma breve pontada de pânico: talvez tivesse ido para além
do «profundo» e tivesse aterrado na escala de «maluquinha». Mas depois,
quando começava a desistir de mim própria, toda a mesa irrompeu em
aplausos.
Doc levantou o seu copo e disse:
– A tudo o que perdemos. E àquilo a que nos agarramos.
E todos os presentes ergueram os copos e brindaram.

A seguir ao jantar, Jack e Hank acenderam o lume na braseira


exterior.
Eu estava a olhar para as chamas quando vi Jack, sentado do outro
lado numa das cadeiras de jardim, a fitar-me diretamente através do fogo.
Virei a cabeça, mas, quando olhei de novo, ele deu uma palmadinha na
cadeira ao seu lado, num convite. Assim, sem perceber patavina de coisa
nenhuma, contornei a braseira e estava prestes a sentar-me ao lado dele
quando Kennedy Monroe apareceu do nada e ocupou o lugar primeiro.
Fiquei pregada ao chão.
– É esta a rapariga? – perguntou ela a Jack, como se eu não estivesse
mesmo ali. – A que beijaste no hospital?
– Não nos beijámos – esclareceu Jack.
– Claro que não.
– A sério – insistiu Jack. – Era o ângulo da foto. Sabes como
funciona.
– Lá isso sei – respondeu Kennedy, mirando-me de alto a baixo. – De
qualquer maneira – acrescentou –, agora que a vejo melhor, percebo que
ela é muito… – Arrastou a pausa durante tanto tempo que chamou a
atenção das pessoas à nossa volta. Por fim, decidiu-se por: – Vulgar.
Eu percebia. Nenhuma namorada gostaria de ver fotografias suspeitas
como aquela espalhadas pela Internet. Ninguém gostaria de ver outra
mulher a encostar a cabeça do seu amado ao ombro como eu fizera
naquela noite – mesmo que fosse por uma boa razão. Claro que Kennedy
não devia estar nada satisfeita por me ver aqui – bom, eu também não
estava particularmente feliz por a ver.
Apressei-me a tranquilizá-la.
– Não estávamos mesmo a beijar-nos naquelas fotos.
Kennedy soltou uma gargalhada sonora, alto o bastante para chamar a
atenção de toda a gente. Depois levantou-se, como que a desenrolar-se,
aproximou-se de mim e disse:
– Bom… claro.
– Eu fazia parte da equipa de segurança – continuei. – Queria apenas
impedir que ele fosse fotografado.
– Oh, meu Deus – disse Kennedy, num tom falsamente simpático. –
És mesmo hilariante. Não precisas de me dizer que não estavam a beijar-
se. – Ao princípio, a sua voz tinha um dom agudo e doce, que transmitia:
«Eu confio no meu namorado.» Mas depois baixou-a uma oitava e
acrescentou: – Isso é mais do que óbvio.
Jack levantou-se.
– Kennedy…
– Vá lá… – Encostou-se a Jack. – Olha para ela.
E percorreu-me com os olhos, da cabeça aos pés e de novo até à
cabeça, a um ritmo glacial que convidava todos os presentes a fazerem o
mesmo.
Fiquei literalmente rígida sob o escrutínio dela, e dei por mim a
pensar que a rigidez cadavérica devia ser mais ou menos assim.
– Oh, por favor… – continuou ela. – Não é?
– Não sejas competitiva, Kennedy – reclamou Jack, num tom que
dava a entender que já tinham discutido o assunto antes.
– Não sou competitiva – discordou Kennedy. – A Internet é que
começou com esta rivalidade. Viste as publicações? Os comentários?
– Pensei que já tínhamos falado sobre ligar a comentários online.
– As pessoas não param de me mandar mensagens! Até a minha mãe
quer saber!
– Sabes bem que nada disso é real – lembrou Jack em tom
apaziguador.
– Não é real, mas é insultuoso. – Kennedy virou de novo os olhos
para mim e continuou. – Quer dizer, o mundo inteiro pensa que
escolheste isto – agitou a mão na minha direção – em vez disto. – Pôs a
mão na anca e levantou as mamas como se as fosse pousar numa
prateleira.
Até eu era forçada a admitir que ela tinha uma certa razão. Qual era a
vantagem de ter o aspeto que Kennedy tinha, se alguém como eu podia –
mesmo que apenas aparentemente – convencer Jack Stapleton a traí-la?
Era compreensível. Violava a ordem natural das coisas.
– Foi tudo apenas um mal-entendido – garanti-lhe.
– Mas é precisamente a isso que me refiro! – exclamou Kennedy,
agora mais alto. – Como é possível sequer que tenha havido esse mal-
entendido? Não é? Quer dizer, vá lá. É ofensivo que alguém consiga
acreditar que o Jack podia preferir uma… – e estudou-me enquanto
tentava encontrar as palavras – … pessoa tão simples, vulgar, totalmente
desinteressante a mim! – Para ser franca, o olhar dela começava a parecer
um pouco tresloucado. – Não é? – Olhou em volta. – Não é? É ridículo! –
Lançou-me uma olhadela, como se eu fosse um inseto. – Porque de que
adiantaria ser Kennedy Monroe, se o mundo todo acredita com tal
facilidade que o Jack Stapleton te escolheria a ti? – Virou-se de novo
para os convivas. – A sério! Vamos lá ver. Mãos no ar! Quem escolheria
esta rapariga em vez de mim? Quem? A sério! Alguém? É uma pergunta
importante! Quero mesmo saber. Vá lá! Alguém? Há pelo menos uma
pessoa aqui que possa afirmar tal coisa?
Calou-se, e o silêncio abateu-se também sobre todos os presentes.
Por mais que compreendesse que Kennedy se sentira humilhada pelas
fotografias online e, por isso, queria agora humilhar-me também, fiquei
tão horrorizada com a cena que se ali desenrolava que não tive reação. A
maneira mais óbvia de pôr fim a isto seria virar costas e ir-me embora.
Certo? Nada me obrigava a ficar ali e a entrar num concurso de beleza no
qual nunca me inscrevera contra uma mulher que acabara de aparecer na
capa da Vogue.
Estava na altura de me ir embora.
No entanto, não me conseguia mexer, paralisada como estava pelo
horror. E, ao que parecia, as outras pessoas também. Toda a gente ficou a
olhar, boquiaberta, para Kennedy Monroe, tomada por uma indignação
ardente. Ela esperou. Deu tempo mais do que suficiente a todos. Passou
uma época – ou talvez apenas alguns segundos –, mas certificou-se, em
câmara lenta, de que ninguém podia negar os resultados.
Depois, no que devia ter sido o tiro de misericórdia, bradou:
– Última oportunidade! Vamos lá! Quem é que aqui a escolhe a ela
em vez de mim?
E foi então que Jack levantou a mão.
– Eu – declarou. E acrescentou: – Sem pensar duas vezes.
Eu estava demasiado tensa para sentir algum alívio. Depois, Jack
fitou-me nos olhos com uma expressão doce e concluiu:
– Sem sombra de dúvida.
E assim que Jack quebrou a tensão, ergueu-se outra mão. A de Hank.
– Também eu.
A seguir, numa cascata maravilhosa, todos se juntaram a eles, dando
um passo em frente e levantando a mão. Amadi, Glenn, Kelly, até
Doghouse – depois de uma cotovelada de Kelly. Um coro de «Eu!»,
«Também eu!», «E eu!» e «Equipa Hannah!» ergueu-se no ar. Até Doc e
Connie se juntaram, agitando os braços para terem a certeza de que os
seus votos contavam.
Toda a gente levantou a mão e ficou com ela no ar até que, por fim,
Jack olhou em volta e proferiu o veredicto:
– É unânime.
Kennedy fez um beicinho amuado. E, em resposta, Jack olhou para
ela.
– Sabes o que isto significa, certo?
Ela franziu a testa.
Jack encolheu os ombros.
– Está na altura de esta festa ser só para quem foi convidado. E de te
pores a andar daqui para fora.
*

Tenho de admitir uma coisa.


O bagaço caseiro é uma bebida muito relaxante. Tóxico, mas
relaxante.
Connie ficou encantada quando descobriu que, sem querer, eu bebera
um pouco de mais e teria de passar lá a noite.
– O Jack pode emprestar-te uma T-shirt para dormires. Ele fica no
sofá e tu dormes no quarto dele – indicou, dando-me uma palmadinha no
joelho. – A menos – acrescentou –, que prefiras o chão de tijoleira em
memória dos bons velhos tempos.
– Não, obrigada – respondi.
– Não te queixaste da outra vez – observou Jack.
– Da outra vez estava a trabalhar, não podia queixar-me.
Um a um, amigos e vizinhos foram saindo e os Stapletons mais
velhos foram deitar-se.
Jack e eu acabámos sob o céu estrelado, a ver a braseira extinguir-se.
Só nós os dois, juntos. Como nos bons velhos tempos.
– Guardei-te um lugar ao jantar – disse ele. – Porque é que não te
sentaste ao pé de mim?
Agitei o copo.
– Esse lugar estava ocupado.
– Na realidade, não.
– O que querias que fizesse? Que me sentasse ao colo da Kennedy
Monroe?
– Estou a falar para além disso.
Sim? E o que quereria isso dizer? Graças a Deus pelo bagaço caseiro.
Decidi fazer a pergunta, por fim.
– Então… Aquele programa que fizeste com ela terminou em
suspense.
– Foi?
– Sim. Ela pediu-te em casamento.
– Pediu?
– Não te lembras?
– É possível que não estivesse a ouvir. É difícil não deixar a mente
vaguear, com a Kennedy.
– Mas o que é que lhe respondeste?
– Quando?
Dei-lhe um pontapé.
– Quando ela te pediu em casamento.
Jack encolheu os ombros.
– Não faço ideia.
Inclinei-me mais para ele.
– Uma mulher pediu-te em casamento e não fazes ideia do que lhe
respondeste?
Jack olhou para mim de sobrolho franzido, como se não estivesse a
perceber porque é que isso era estranho. Depois, ocorreu-lhe algo.
– Não era a sério. Claro que não! Era só para as câmaras. Pensei que
soubesses.
Senti o meu corpo relaxar, como se começasse a derreter.
– Como é que havia de saber?
Ele franziu a testa.
– Como não saberias?
– Então… era só espetáculo?
Jack fitou-me como se eu fosse uma pateta adorável.
– Claro.
– Não estás… noivo da Kennedy Monroe?
– Por favor!
– Mas ela é tua namorada?
– De maneira nenhuma.
– E ela sabe?
– Claro que sim.
– Então, o que estava a fazer aqui?
Jack encolheu os ombros.
– Tédio? Um estratagema de marketing? O relações-públicas dela
ligou ao meu e perguntou se ela podia aparecer.
– E aquela conversa toda da fotografia?
– Competitividade. E insegurança patológica.
Abanei a cabeça.
– Como pode uma mulher que é o protótipo da perfeição física ser
insegura?
– É uma excelente pergunta.
– Então, para resumir: tu e a Kennedy Monroe não estão juntos?
– Nunca estivemos.
– A capa da People dos dois com camisolas a condizer dá a entender
o contrário.
– Isso foi tudo fabricado.
Era tão difícil de compreender.
– Mas porquê?
– Para dar que falar às pessoas.
– Mas não te importas que não seja verdade?
Jack recostou-se.
– Prefiro que as pessoas façam mexericos falsos do que usem
informações verdadeiras.
Tentei absorver o esclarecimento.
– Então, só para que fique claro: nunca namoraste com a Kennedy
Monroe?
Jack assentiu secamente. E reforçou:
– Nunca.
Todo o meu corpo derreteu com o alívio. Depois, dei-lhe uma
palmada no ombro.
– Porque é que não me disseste antes? Este tempo todo, pensei que
ela era tua namorada.
Jack encolheu os ombros.
– Não devo falar sobre esse assunto, na verdade.
– Mas fiz-te essa pergunta, especificamente, quando nos conhecemos.
– Era uma situação em que só tinha de partilhar a informação que
fosse essencial. E essa não era informação essencial para ti. – E
acrescentou: – Na altura.
Bem visto.
– E tu? – perguntou Jack.
– Eu o quê?
– Ouvi dizer que o Bobby esteve em tua casa uma destas noites.
– Como é que soubeste?
– Não voltaste para ele ou coisa parecida, pois não?
Olhei para o rosto impossivelmente atraente de Jack, iluminado pelas
chamas. Muito bem. Íamos mesmo fazer isto?
– Hã… Ele deu-me com os pés na noite depois do funeral da minha
mãe, a seguir foi para a cama com a minha melhor amiga, e então deu-lhe
também com os pés, por isso… não. Não voltei para ele.
– Bolas! – exclamou Jack.
– E isso não é o pior.
– Então o que é?
– Ele disse-me algo mesmo, mesmo terrível. Que nunca esquecerei.
Jack aproximou-se mais.
– O que foi?
– Não posso contar-te.
– Porquê?
– Porque tenho medo de que seja verdade.
– De certeza que não é. Seja lá o que for, ele não podia estar mais
enganado.
– Nem sequer sabes o que ele me disse.
– É por isso que tens de me contar.
– Não posso! – respondi. Levantei-me e comecei a andar à volta da
braseira.
Jack levantou-se também e acompanhou-me.
– Vá lá. Estou bêbado, nunca mais me lembrarei.
Olhei para ele. Era boa a avaliar estas coisas.
– Não estás nada.
Mas Jack estava decidido. Aproximou-se e parou à minha frente, a
centímetros da minha cara.
– Ainda não me pediste o teu alfinete.
Semicerrei os olhos.
– Distraí-me com a tua namorada estúpida.
Jack levou as mãos ao fio de cabedal, abriu o fecho e tirou-o do
pescoço, com o meu alfinete ainda pendurado.
– Não encontrei o fio – disse –, por isso, podes ficar com este.
– Era do Drew.
– Ele não se importaria.
Jack estava mesmo a dar-me o colar de Drew? De alguma forma,
parecia um gesto importante. Estendeu-me o colar com o alfinete, como
se quisesse que eu lhe pegasse. Contudo, quando estendi a mão, fez um
sorriso malicioso, fechou o fio no punho e levantou-o bem acima das
nossas cabeças.
Abri a boca, indignada.
– Dá-mo cá! – exclamei, tentando lá chegar com um salto.
– Talvez seja uma daquelas situações de «achou, ganhou».
– Isso não tem graça. – Saltei outra vez.
– És hilariante. Pareces um chihuahua.
– Dá cá isso! – exclamei, aos saltos, usando o ombro dele como apoio
para chegar mais alto.
– Com uma condição – cedeu Jack.
E quando parei para ouvir, ele propôs:
– Tens de me contar o que é que o Bobby te disse.
Recomecei aos saltos.
– Nunca.
– Está bem, baixinha. Podes dizer adeus a esta coisinha engraçada. –
Levou o punho atrás, como se tencionasse atirar o meu alfinete para o
pasto.
Não o faria. Claro que não. Mas a ameaça foi suficiente. Suspirei,
parei de saltar e fitei-o nos olhos.
– Está bem. Mas não me chames «baixinha».
– Está bem, o quê?
– Está bem, eu conto-te.
– A sério? Não estás a mentir?
– Sim, a sério. Não, não vou mentir-te.
– E não vais inventar outra coisa qualquer para poderes levar contigo
para a campa o que esse parvo te disse mesmo?
Aquilo chamou-me a atenção.
– Não. Mas é boa ideia.
Jack baixou a mão, com uma expressão no rosto que indicava que ia
confiar na minha palavra. Depois, inclinou-se até ficar tão perto de mim
que eu sentia a sua respiração na pele, pôs-me o fio ao pescoço e fechou-
o. Quando o largou e recuou, levantei a mão e toquei nas missangas,
deslumbrada por o ter mesmo ali. Jack encontrara-o. Procurara e
procurara até o recuperar. E agora estava a devolver-me algo que era tão
precioso para mim, dando-me também algo que era tão precioso para ele.
O que se passava aqui?
Jack recuou. Podia ter fugido e nunca teria de lhe contar o que Robby
me dissera.
Mas não o fiz.
A culpa foi do bagaço, insisto. Ou talvez do olhar irresistível de Jack
Stapleton. Ou da forma como ele me escolhera naquela noite – em frente
dos pais, dos meus colegas de trabalho e da própria Kennedy Monroe.
Demorei um segundo a apreciar o meu alfinete, novamente em segurança
ao meu pescoço, e depois… contei-lhe.
Ainda não acredito que pronunciei as palavras em voz alta. Talvez o
bagaço caseiro afaste as inibições como que por magia. Ou talvez
soubesse demasiado bem o quanto os segredos calados podem infetar. Ou
talvez, se calhar, tivesse uma réstia de esperança de que Jack tentasse
provar que eu estava errada.
O que interessa é que lhe contei.
– O Bobby disse… – comecei, respirando fundo – que eu… beijava
mal.
Assim que as palavras me escaparam, arrependi-me porque…
adivinhem o que Jack fez?
Desatou a rir.
Eu acabara de partilhar algo muitíssimo humilhante sobre mim
própria – e ele riu-se.
– Esquece – disse-lhe, e virei costas.
– Espera… – chamou Jack.
Mas não esperei. Podia estar demasiado embriagada para pegar no
carro, mas estava mais do que sóbria para entrar e me fechar na casa de
banho até me poder escapulir de manhã.
Jack seguiu-me.
– Desculpa ter-me rido. Desculpa!
– Não tem graça – disse-lhe, com a voz trémula.
No alpendre lateral, quando me preparava para entrar em casa, ele
apanhou-me pelo ombro e virou-me.
– Tem graça. É hilariante. Mas só porque não podia ser mais errado.
– Não gozes comigo – pedi, com as lágrimas a assomarem-me aos
olhos.
– Não estou a gozar contigo. Esse tipo é um mentiroso.
– Claro que é. Mas acertou em algumas coisas.
– Bom, não em relação a isso.
– Não podes ter a certeza.
– Claro que posso.
– Como? Tendo em conta que ele me beijou a sério montes de vezes,
e tu só me beijaste a fingir?
– Acredita em mim. Eu sei ver, está bem?
– Como?
– Sei e pronto. Já beijei muitas pessoas.
– Ouve, és um querido…
– Não sou nada.
– … mas não posso dar mais valor à tua palavra do que à de alguém
que já me beijou mesmo.
– Mil dólares – ofereceu Jack.
– O quê?
– Aposto mil dólares. Ele é que beija mal, e está a culpar-te a ti.
– Isso é ridículo, Jack. Achas que eu tenho mil dólares para arriscar?
– Eu empresto-te.
– Céus! Esquece.
– Não.
– Nem todos podemos beijar de forma fantástica, Jack. Não faz mal.
Sou boa noutras coisas.
– Não, ele não pode mentir-te. E tu não podes, simplesmente…
acreditar nele.
Maravilhoso. Dicas de autoestima dadas pelo Homem Mais Sexy do
Mundo.
– Obrigada pelo conselho. Vou-me deitar.
Virei-me para abrir a porta de rede, mas foi então que ele esticou o
braço e a fechou com uma palmada.
– Não estou errado – insistiu, fitando-me nos olhos com intensidade.
– Está bem – disse-lhe. – Não estás errado. Eu sou espantosa.
Fantástica. Uma arraso. Ficas satisfeito?
Mas Jack abanou a cabeça. Inclinou-se para mim e encostou a boca à
minha – e quando usei o verbo «inclinou-se», referia-me a todo o seu
corpo. Encostou-me à porta com tudo o que tinha.
Suponho que era o que eu esperava há muito tempo.
Os meus braços ergueram-se para o pescoço dele, os meus dedos
enfiaram-se no seu cabelo e as minhas pernas enrolaram-se à cintura
dele. Foi Jack que me levantou do chão ou eu que saltei? Nunca
saberemos. Mas ele beijou-me, e eu beijei-o, e estava a acontecer.
Lembro-me de instantâneos de sensações. Ternura, e tensão, e calor, e
união. A barba por fazer no pescoço dele, a força dos seus braços, o
cheiro a canela e aquela sensação incomparável de ser abraçada.
Apreciada.
Há tantas semanas, tantos dias, tantas horas sem fim que eu ansiava
por aquele beijo – sempre convencida de que nunca aconteceria, de que
era impossível… Assim, quando aconteceu, do nada, fosse lá o que fosse,
independentemente do que significava… não havia qualquer decisão a
tomar. Tudo o que podia fazer era entregar-me.
Tão fácil como atirar Jack ao chão.
Não pensei nos mil dólares. Nem em Robby. Não queria provar que
ninguém estava errado.
Só queria aquele beijo.
Era a minha oportunidade. E não tencionava desperdiçá-la.
Quando dei por mim, estávamos a entrar, lábios ainda colados, ele
ainda a pegar em mim, eu ainda enrolada nele, a atravessarmos a sala
atabalhoadamente – em desequilíbrio, aos encontrões ao sofá, quase
deitando ao chão um galo de louça em cima do louceiro –, em direção ao
quarto de Jack. Depois parámos ao lado da porta – ele a segurar-me
contra a parede, enquanto procurava a maçaneta com a outra mão.
Um bom beijo eclipsa tudo o resto. Tudo exceto o desejo e o toque do
outro. E este foi um beijo mesmo bom.
Quando Jack não encontrou rapidamente a maçaneta, desistiu e
regressou ao momento: a mão na minha nuca, o corpo colado ao meu, a
boca dele na minha… Era como se não existisse mais nada ou ninguém
no mundo além de nós os dois.
Isto, claro, até ouvirmos a voz de Doc, vinda do quarto ao fundo do
corredor.
– Jack? És tu?
Aquilo quebrou o feitiço.
Parámos, abrimos os olhos e entreolhámo-nos, ainda ofegantes.
– É o meu pai – murmurou Jack.
– Eu sei – respondi em surdina.
Jack abanou a cabeça como se quisesse aclarar os pensamentos.
Depois, levantou-a e tentou falar de forma coerente.
– Sim?
– Vai dar uma mangueirada na braseira para apagar aquelas brasas,
está bem? Há semanas que não chove.
– Está bem – respondeu Jack.
– E Jack?
– Sim?
– Já que vais lá fora, podes dar uma vista de olhos e ver se não ficou
nenhum resto de comida em cima da mesa que atraia os coiotes?
– Sim, senhor.
– E Jack?
Jack suspirou e lançou-me um olhar impaciente.
– Sim?
– Arranja qualquer coisa para essa rapariga vestir e manda-a para a
cama. – E acrescentou: – Sozinha.
Jack suspirou.
Alguns segundos depois, Doc perguntou:
– Entendido, Jack?
– Sim, senhor.
– Lindo menino.
Agora que o ambiente estava arruinado, Jack relaxou os braços e a
força com que me segurava. Escorreguei até voltar a ter os pés no chão.
Ainda bem que tínhamos sido interrompidos.
«Nunca ir para a cama com um ator famoso depois de um copo de
bagaço caseiro e pouco tempo antes de ir trabalhar para a Coreia.» Não
há um ditado assim?
Olhámos um para o outro durante mais um minuto, enquanto
recuperávamos o fôlego. Jack ajeitou-me a camisola, sacudiu-me e
arranjou-me. Encostei-me à parede e olhei para ele, questionando: «O
que é que acabou de acontecer?»
Depois Jack chamou-me:
– Hannah?
Devolvi o olhar.
– Sim?
– Quero convidar-te para sair comigo.
– O quê?
Jack acenou afirmativamente.
– Vamos sair os dois. Amanhã. Na cidade. Sem pais por perto.
– Queres sair comigo? – perguntei, convencida de que não podíamos
estar a falar da mesma coisa.
– Sim. Ou melhor, quero mandar vir comida e sentar-me no terraço da
minha casa e jantar contigo.
Mas eu ainda não estava a compreender.
– Porquê?
Ele franziu a testa como se fosse óbvio.
– Porque gosto de ti.
– Não compreendo.
– O que é que não compreendes? Gosto de ti.
– Mas… não estamos a fingir? – perguntei.
– Tu estás a fingir? – quis saber Jack.
Não soube bem como responder.
– Pensei que estávamos os dois. Não era essa a ideia?
– Não estou a fingir – assegurou-me Jack. – Agora já não.
Sei que já confessei as minhas inseguranças sobre ser ou não
merecedora de amor, mas essas eram questões delicadas e profundas.
Aqui, tenho de mencionar que, na minha vida e durante a maior parte do
tempo, me sentia razoavelmente confiante. Era excelente no meu
trabalho. Era boa pessoa. Tinha um cabelo bonito. Se estivéssemos a falar
de um homem normal a dizer que gostava de mim, creio que me teria
parecido plausível. E porque não, certo? Mas este não era – penso que
podemos concordar unanimemente – um homem normal. Vá lá. Era Jack
Stapleton. E eu era apenas… eu. Quer dizer, de uma perspetiva racional,
nada disto podia de maneira alguma estar a acontecer.
Não era uma opinião. Não era eu a ser dura comigo própria. Era
apenas… a verdade.
– Acho que estou a ter um AVC ou coisa parecida – disse-lhe. – De
que é que estamos a falar?
– Estou a dizer-te que gosto de ti.
– E eu a argumentar que isso não faz sentido nenhum.
– Para mim, faz.
– Se calhar tu é que estás a ter um AVC.
– É assim tão difícil acreditar que gosto de ti?
– Hã… mais ou menos. Chamaste-me «básica» e «não-Hollywood» e
«a epítome da vulgaridade».
– Sim, mas isso são características boas.
– E «baixinha»! – acrescentei.
– Bom… não és alta.
– Eu vi as tuas namoradas, Jack. Tenho um ficheiro completo sobre
elas. Não sou nada assim.
– Pois, é precisamente isso que estou a dizer.
– O quê?
– Estou a dizer que tu és melhor.
Olhei para ele, desconfiada.
– Agora estás só a ser insultuoso.
– És uma pessoa real.
– O que não falta por aí são pessoas reais.
Jack pensou por um segundo.
– Muito bem. Sabes as bonecas que a minha mãe salva?
– Sim?
– O que estou a dizer é que as mulheres no teu ficheiro… as mulheres
do meu passado… são o «antes». E tu… – Fitou-me nos olhos. – Tu és o
«depois».
E, de repente, percebi o que Jack Stapleton queria dizer com «real».
Mais do que isso, acreditei nele.
Jack continuou:
– Quando tu não estás por perto, mesmo que seja pouco tempo, sinto
que tenho de ir à tua procura. Sinto-me atraído para ti. Quero saber o que
pensas, o que andas a fazer e como te sentes. Quero levar-te a sítios e
mostrar-te coisas. Quero decorar-te… aprender-te como se fosses uma
canção. E aquela camisa de dormir, e a tua rabugice quando deixo as
coisas espalhadas, e esse carrapito todo torto com que prendes o cabelo…
Fazes-me rir todos os dias, e ninguém me faz rir. Sinto que estive perdido
a vida toda até agora… e que, contigo… não sei… me encontrei.
Jack fez uma pausa e esperou que eu discutisse com ele. Porém,
disse-lhe apenas:
– Está bem.
– Está bem, o quê?
– Acredito em ti.
– Acreditas?
Fiz que sim com a cabeça.
– Então, aceitas?
– O quê?
– Jantar comigo.
– Sim – respondi, mais determinada a cada palavra. – Sim.
Foi então que ouvimos novamente Doc a chamá-lo do quarto:
– Jack?
– Sim?
– Apagar a braseira? Antes que amanheça?
– Sim, senhor.
Esperava que Jack se afastasse, mas ele inclinou-se para mim,
apoiando-se na parede. Aproximou muito o rosto, ainda um pouco
ofegante, fez um breve compasso de espera e depois encostou de novo a
boca à minha – desta vez num beijo mais suave e mais doce, quente e
aveludado.
Derreti-me toda.
Ele tinha a mão apoiada na parede e não estávamos a tocar-nos em
mais lado nenhum… mas toda eu senti aquele beijo.
Quando ele se afastou, parecia tão perdido como eu me sentia.
Porém, nesse momento, pareceu lembrar-se de alguma coisa e abriu
um sorriso malicioso.
– O que foi? – perguntei.
O sorriso abriu-se mais e ele olhou para o alfinete de missangas ao
meu pescoço e depois de novo para os meus olhos. E enquanto recuava
um passo, hesitante, quase a cambalear, apontou para mim.
– Tu – disse então – deves-me mil dólares.
Vinte e nove
Um jantar. Em casa de Jack Stapleton.
Que raio estava eu a pensar?
Era louca por ir. Mas seria ainda mais louca se não fosse. Mesmo
assim, ia precisar de alguma coragem e de uma certa dose de preparação,
principalmente tendo em conta que ainda não tinha arrumado nada na
casa nova. Assim, quando precisei de repente de encontrar uma roupa
fantástica – que, em teoria, se eu escolhesse bem, me ajudaria a sentir
que estava à altura do desafio –, não me deparei com nada; de tal maneira
que, passado algum tempo, me limitei a despejar caixas para o meio do
chão e remexer no conteúdo. Sabia que tinha, algures, roupa para saídas
românticas.
Embora tivesse começado a preparar-me com bastante antecedência,
à medida que, caixa após caixa, não encontrava senão calças de fato de
treino amarrotadas, comecei a ficar tensa.
Foi então que ouvi bater à porta.
Espreitei. Ali, do outro lado, vi Taylor.
– Não estou em casa – gritei através da porta.
– É óbvio que estás.
– Mas estou ocupada.
– Não tens um minuto? Preciso de te dizer uma coisa.
Entreabri a porta.
– Sessenta segundos – avisei-a.
Ela estendeu-me um saco de compras e quando olhei para ele, sem
compreender, explicou:
– São os sapatos que me emprestaste para aquela coisa. E a tua forma
de bolo de coração. E uns livros.
– Podes ficar com tudo – disse-lhe. – Não quero nada.
– Não vou ficar com as tuas coisas – declarou ela.
– Como queiras. Então, doa-as.
– Tu adoras estes sapatos!
– Já não.
Taylor ainda tinha o saco no braço esticado, mas, ao ouvir isto,
baixou-o.
– Está bem.
– O que é que me querias dizer? – perguntei, em tom de quem queria
despachar de vez o assunto.
– É mais uma pergunta, na verdade.
– Está bem. Avança.
– Há… alguma coisa que possa fazer por ti?
Franzi a testa.
– Foi por isso que vieste?
– É só que… quero fazer alguma coisa por ti. Seja o que for.
– E que poderias tu fazer por mim?
– É isso que te estou a perguntar.
– Estás a tentar redimir-te?
– Não precisamos de lhe pôr um rótulo.
Obviamente, a minha resposta era não. Não, não havia nada que ela
pudesse fazer por mim. Não, não ia permitir que ela me fizesse favores,
toda magnânima, para se sentir melhor. Não. Nem pensar.
Mas…
Algo na quietude da voz dela captou a minha atenção.
– Só quero que… saibas que estou genuinamente arrependida – disse
ela então.
Não é assim tão frequente que as pessoas que nos trataram mal peçam
desculpa. Geralmente, na minha experiência, limitam-se a reafirmar a sua
inocência. Insistem que não foi assim tão mau, ou que tinham as suas
razões, ou que a culpa foi parcialmente nossa. Mas Taylor, à sua maneira,
simplesmente assumiu o que fizera.
Fez-me ter saudades dela.
Vi-a recuar, dar meia-volta e começar a afastar-se pelo corredor.
Tinha a gola do casaco torta.
O meu plano era deixá-la ir. Obriguei-me a deixá-la ir. Mas depois
ouvi-me a mim própria propor:
– Podias ajudar-me a encontrar qualquer coisa para vestir.
Taylor estacou. Virou-se.
– Qualquer coisa para vestir?
Endireitei-me um pouco mais.
– Tenho um encontro.
Taylor teve a decência de não perguntar com quem.
– E não consigo encontrar nada para vestir – continuei. –
Literalmente. Os carregadores não identificaram as caixas. Por isso,
podias ajudar-me a encontrar as minhas roupas.
Taylor tentou disfarçar um sorriso.
– Posso perfeitamente fazer isso.
– Não estou a perdoar-te, já agora – preveni-a, apontando-lhe o dedo
enquanto ela voltava.
– Nem quero.
– Estou apenas a deixar-te amortizar uma pequena quantidade da tua
culpa esmagadora.
– Obrigada. – Parou à minha frente. – Por acaso não precisas também
de ajuda com o cabelo e a maquilhagem para esse encontro? – Fiquei
muito calada. Ela já estava a abusar. – Só me ofereço porque, às vezes,
quando aplicas a tua própria sombra de olhos, parece que levaste um soco
em cada olho, mas de pessoas diferentes.
– Obrigadinha.
Porém, sabia que ela não estava errada. Além disso, era muito boa
com cabelos e maquilhagem. E eu ia ter com o raio do Jack Stapleton.
– Está bem – cedi. – Mas quero reiterar…
– Eu sei, eu sei – interrompeu-me Taylor. – Não estou perdoada.

Duas horas depois, enquanto subia o caminho de acesso à casa de


Jack, a tentar lutar contra pensamentos sobre as muitas, muitas anteriores
namoradas dele, pareceu-me bastante evidente que fizera a opção certa.
Se há alguma coisa que vale a pena colocar nas mãos de Taylor, é
cabelo e maquilhagem. E ela convencera-me a optar pelo vestido
vermelho mais colado ao corpo que eu possuía. Porque cheguei a
ponderar vestir um fato de calças e casaco.
Se me sentia penosamente vulnerável, com os ombros de fora e a
bainha de seda a sussurrar contra as minhas coxas nuas? Claro.
Emocional e fisicamente, sentia-me despida. E não no bom sentido.
– Elas são o «antes» – repeti, como um mantra, enquanto uma
autêntica passerelle de ex-namoradas desfilava pela minha mente. – Tu
és o «depois».
Toda eu tremia como varas verdes.
Não tinha qualquer problema em nutrir sentimentos por uma pessoa
desde que fossem mútuos. Mas seriam? Na véspera, quando Jack estava a
empurrar-me contra a parede no corredor da casa dos pais, parecera-me
mais do que evidente. No entanto, isso parecia ter sido há um milhão de
anos. Perguntei-me se o triplo choque sofrido – perder a minha mãe,
depois Robby e, por fim, Taylor – teria deixado uma cicatriz mais funda
do que me apercebera.
Seria eu merecedora de amor? Afinal, se pensarmos bem a fundo
nisso, quem o é realmente?
Era tentador acobardar-me. Mas foi então que imaginei Jack a
cacarejar e pensei que talvez ter fé em mim própria fosse decidir que
seria capaz de fazer uma coisa, o que quer que fosse, e obrigar-me a ir em
frente. Assim, naquele momento, tomei uma decisão: cada risco que
corremos é uma escolha. Uma opção que decide quem somos. E era isso
que representava para mim aquela longa caminhada até à porta de Jack.
Não estava relacionada com o que Robby e Taylor tinham feito. Nem
tinha que ver com o que Jack poderia ou não dizer, fazer ou sentir. Era eu
a escolher quem queria ser no meio de tudo… e a recusar-me a
abandonar a esperança. Ou a desistir de mim.
Se era totalmente ridículo tentar ter uma relação com uma estrela de
cinema? Com certeza. Mas, de qualquer maneira, eu ia fazê-lo.
Podem ter a certeza disso.
Trinta
Uma vez que o nível de ameaça de Jack fora reduzido para branco,
não havia qualquer membro da equipa de segurança em casa dele – e
ainda bem. A última coisa de que precisava com aqueles sapatos de salto
alto era ter de passar por uma pista de obstáculos dos meus colegas, entre
olhares e troça.
As câmaras na propriedade ainda estavam ativas, claro.
Toquei à campainha, tentando não imaginar Glenn a observar-me e a
perguntar: «Aquela é a Brooks? De vestido? E que raio é que ela tem nos
pés?» Só podia rezar para que ninguém estivesse a olhar para os ecrãs.
Mas Jack não abriu logo a porta.
Vi uma formiga passar aos meus pés, sobre o cimento.
Depois, voltei a tocar à campainha.
Talvez o tivesse apanhado a tomar banho? Fiz figas para que ele não
tivesse decidido cozinhar, por amor de Deus.
Então, alguns minutos depois do meu segundo toque, Jack abriu a
porta – mas apenas uma fresta. Tinha cortado o cabelo, que agora estava
espetado num estilo muito à estrela de cinema, como se tivesse acabado
de sair de uma sessão fotográfica para a GQ. Fizera também a barba.
Vestia uma camisola de lã norueguesa. E havia outra diferença: pusera as
lentes de contacto em vez dos óculos. Era a primeira vez que eu o via
sem os óculos na vida real.
Tudo isto, em conjunto, fazia com que ele parecesse uma pessoa
diferente – menos o Jack Stapleton que me levara às cavalitas e mais a
estrela de cinema.
Oh, raios! Jack Stapleton era uma estrela de cinema!
Senti uma cãibra de ansiedade. A impossibilidade de toda a situação
atingiu-me de novo. Estaria mesmo a acontecer? Aparentemente, sim.
Mas nessa altura Jack perguntou, numa voz inexpressiva:
– Sim?
Um tom muito ligeiramente seco – anónimo e desinteressado, como
se não me conhecesse e não tivesse interesse em conhecer-me. Como se
eu fosse o técnico da instalação por cabo. Ou andasse a fazer sondagens
políticas. Ou a trabalhar nos censos.
Apenas uma sílaba, mas deu para perceber.
– Olá – cumprimentei-o, e levantei a garrafa de vinho com alguma
desconfiança. – Trouxe vinho.
Dei um passo em frente, à espera de que ele abrisse a porta.
Mas não abriu.
Em vez disso, franziu a testa.
– Porquê?
– Porquê o quê?
– Porque é que estás aqui?
– Bem – respondi –, deixa-te de brincadeiras.
Nessa altura, Jack acenou com a cabeça em direção ao interior da
casa e disse:
– Na verdade, tenho convidados e…
– Tens?
– Sim. Portanto…
– Espera… não era hoje?
– O que é que não era hoje?
O que raio estava a acontecer? Ele tinha-me convidado, certo? Eu não
sonhara com isso, pois não?
– O que é que se passa aqui?
Ele olhou para mim de sobrolho franzido como se não fizesse ideia
do que eu queria dizer.
– Tenho amigos em casa, portanto… Estou ocupado.
Começou a fechar a porta.
Por instinto, recorri ao truque de Robby e tentei bloquear a porta com
o pé – esquecendo-me, claro, do calçado ridículo que trazia –, e Jack, ao
fechá-la, cortou-me os dedos com a fita metálica no fundo da porta e
rebentou também as tiras das minhas sandálias.
A dor disparou-me pela perna acima como um foguetão. Puxei o pé
para trás, soltei uma fiada de imprecações e saltei ao pé-coxinho uns
instantes antes de reparar que estava a sangrar.
– Ups – comentou Jack, num tom de sarcasmo. Olhou para mim sem
qualquer indício visível de compaixão, apenas um ar entediado. Depois
de eu me acalmar, acrescentou: – Bom, sendo assim… – e recomeçou a
fechar a porta.
– Espera! – exclamei.
Jack soltou um suspiro irritado.
– Então e… – comecei, sem saber como terminar. Levantei outra vez
a garrafa de vinho.
– Podes deixá-la no alpendre – indicou ele, como se eu fosse uma
entregadora. – Logo a trago para dentro.
– Jack! – exclamei então, finalmente de costas direitas. – Não era
hoje o nosso encontro?
Jack franziu a testa como se não me compreendesse. Aquela
expressão desconcertada no rosto dele bastou para que uma vaga de
humilhação se abatesse sobre mim. Depois, como se desenterrasse uma
memória remota das brumas do tempo – e não, na verdade, do dia
anterior –, Jack exclamou:
– Oooh! – E acenou com a cabeça, como se isso explicasse tudo. – O
«encontro».
Mas que raio? Convidara-me há vinte e quatro horas. Estaria a
brincar? Com um ataque de sonambulismo? Bêbado? E quem é que
magoa outra pessoa sem querer – ou mesmo qualquer criatura viva – ao
ponto de a deixar a sangrar, e se limita a olhar para ela como um
psicopata? O que se passava?
Dei voltas à situação na cabeça, à procura de alguma peça perdida do
puzzle, mas sem sucesso.
Nesse momento, Jack forneceu-me essa última peça.
Inclinou a cabeça e, numa voz carregada de comiseração, franziu a
testa numa expressão de falsa compreensão e perguntou:
– Pensaste que era a sério?
Tudo no meu corpo se deteve naquele momento. O meu coração
parou de bater, o sangue de correr, o ar de entrar e sair dos pulmões.
Talvez o próprio tempo tenha parado.
Jack olhou para mim como se quisesse uma resposta – e esperou, com
a curiosidade estampada no rosto.
– Não era… a sério? – perguntei, quando o tempo recomeçou a andar.
A minha voz parecia vir do corpo de outra pessoa qualquer.
Nos olhos de Jack, vi aquilo que só posso descrever como uma
expressão de «desdém incrédulo».
– Claro que não.
Obviamente.
Jack acrescentou:
– Acreditaste mesmo? A sério? Que engraçado.
– Espera… então… – Abanei a cabeça. – Ontem? Tudo o que
aconteceu?
Jack encolheu os ombros.
– Falso – declarou.
Eu não conseguia parar de abanar a cabeça.
– Estavas?… – Nem sabia o que lhe queria perguntar.
– Aborrecido – confirmou ele.
– E então fingiste?…
– Fiz uma coisa que se chama representar.
– Então… quando tu… – a pergunta queimou-me a boca com a
humilhação – … quando me escolheste em vez da Kennedy Monroe?…
Jack acenou vigorosamente com a cabeça, como se eu tivesse
apresentado um excelente argumento.
– Eu sei! Apanhei-vos às duas com essa. Dois coelhos de uma
cajadada.
Senti-me afundar.
– Estavas a representar – repeti, tentando absorver a informação.
– Apenas mais um dia de trabalho.
– Mas… – Eu continuava sem perceber. – Mas porquê?
Jack soltou um leve suspiro de impaciência com a minha lentidão de
raciocínio.
– Lembras-te quando a minha mãe observou que eu não era assim tão
bom ator? – questionou. – Pareceu-me um desafio pessoal.
– Fingiste que gostavas de mim – fiz uma breve pausa enquanto
juntava todas as peças –, para mostrares à tua mãe que estava enganada
na sua avaliação das tuas competências como ator?
Ele encolheu os ombros.
– Sempre era qualquer coisa para me entreter, percebes? Que mais é
que uma pessoa há de fazer ali, metido no meio do nada?
A minha cabeça continuava a abanar como se tivesse vida própria.
– Então… ontem? Aqueles… beijos?
– Coreografados – confirmou Jack com um aceno.
Senti a cabeça andar à roda. Encostei a mão à ombreira da porta para
me apoiar. Algures, noutro universo, o meu pé ferido latejava.
– Mas obrigado pelo vinho – agradeceu ele, claramente a despachar-
me. Estranhamente, dei-lhe a garrafa. Ele olhou para o rótulo.
– Barato.
O ar à nossa volta parecia de súbito estranho, como se composto por
vapores tóxicos. Achei que era capaz de desmaiar.
– Por falar em aborrecido – disse Jack –, tenho os meus amigos ali à
espera…
Não estávamos a «falar em aborrecido», mas está bem.
– Claro – respondi.
Os olhos dele pareciam baços e inexpressivos.
– Eles vão rir-se tanto desta história. É hilariante, se virmos bem.
– É? – perguntei, sem saber se haveria uma resposta certa.
– Estamos despachados, certo? – questionou Jack. E depois, sem
esperar que eu respondesse… fechou a porta. Presumivelmente, para ir
contar a história da guarda-costas mais estúpida e ingénua do mundo a
um grupo de venenosos amigos famosos, reunidos em torno de uma
tábua de queijos.
Era assim que terminaria o amor da minha vida? Comigo a ser o tema
de uma piada na boca de Jack Stapleton?
«É hilariante, se virmos bem.»
Não faço ideia de quanto tempo fiquei ali parada depois disso. Tanto
quanto eu sabia, o tempo colapsara sobre si próprio num círculo infinito.
Parecia que tinha estática no cérebro e areia na garganta. Todo o meu ser
positivamente vibrava de vergonha. A humilhação era total. Não havia
célula no meu corpo que não estivesse saturada dela.
Jack estava a representar. A representar. Estivera a representar o
tempo todo.
Claro que sim. Claro.
Em câmara lenta, agachei-me para descalçar as sandálias e reparei
pela primeira vez em como era fundo o corte no meu pé, que o sangue
deixara escorregadio.
A seguir, descalça e ensanguentada, endireitei-me.
Ele estava a representar.
Como se estivesse a seguir uma lista, engoli em seco, endireitei os
ombros e levantei a cabeça. Peguei na minha carteirinha parva com uma
mão, os sapatos pendurados dos dedos da outra.
E depois desci para o caminho, a coxear, como se o mundo inteiro me
pudesse ver.

Demorei mil anos a chegar ao carro.


Para começar, porque andar descalça em cima de granito triturado é
mais parecido com pisar vidros partidos do que se possa imaginar.
Depois, porque todos os meus sentidos estavam descontrolados.
Assim, tive de avançar devagar.
Para quem me visse, eu devia parecer uma mulher com o pé ferido e a
andar com cuidado. Por dentro, porém, era outra conversa. A minha
mente estava pura e simplesmente a atacar-se a si própria, a reviver cada
minuto daquele encontro à porta de Jack, uma e outra vez, tão
nitidamente que mal conseguia ver o que tinha à frente dos olhos.
Não sei como não me atravessei à frente dos carros. Não sei como
não morri de infelicidade. Não sei como não deixei de existir.
Mas, por fim, cheguei ao meu carro.
Um carro que chegara aqui conduzido por uma pessoa muito
diferente da que agora regressava.
Aproximei-me, inclinei-me e encostei a cabeça ao tejadilho. Que raio
acabara de acontecer?
A pessoa que eu devia odiar naquele momento era Jack. Claro que eu
sabia disso. Devia odiá-lo por ser o filho da mãe mais insensível e cruel
da história do mundo. Devia estar a arder com uma raiva incandescente e
purificadora. Porém, ele não era a pessoa que eu mais odiava naquele
momento.
A pessoa que eu mais odiava era a mim própria.
Por ter sido enganada. Ludibriada. Por querer tanto ser amada que me
tornara um alvo fácil. Devia ter percebido e ter-me protegido melhor. A
parte de mim que devia estar sempre alerta, e atenta, e de serviço – a
parte que tinha a missão de proteger o resto de mim – falhara.
Terrivelmente.
Outra vez.
Eu devia antecipar este tipo de situações. Estar vigilante. Devia ter
sempre bem presentes todas as minhas falhas e defeitos, para nunca cair
na asneira de, insensata e ridiculamente, esperar por mais ou melhor.
Eu sabia-o. Soubera-o desde a noite do meu oitavo aniversário.
Mais tarde, decidi, ficaria zangada com Jack. Convocaria toda a
minha raiva justa e salvaria a minha dignidade e encontraria forças para
seguir em frente.
Eu não era a imbecil nesta situação. Não fizera nada de mal. Mais
cedo ou mais tarde, acabaria por me defender a mim própria. Mas neste
momento, neste instante surreal de choque, a única coisa de que era
capaz era de me sentir apocalipticamente desiludida comigo mesma.
Encostada ao carro, apercebi-me, estupefacta, de como era física a
minha reação. Tinha a cabeça a andar à roda. Não conseguia respirar.
Sentia-me tonta. Fragmentos do que acontecera sucediam-se no ecrã da
minha mente sem permissão. Jack a abrir a porta em modo absoluto de
estrela de cinema – o rosto totalmente inexpressivo, como se eu fosse
uma desconhecida. Jack a inclinar a cabeça, trocista, e a perguntar:
«Pensaste que era a sério?» Jack a ferir-me no pé e a olhar, sem qualquer
emoção, enquanto eu sangrava no degrau dele. A sua postura, rígido
como um manequim, enquanto esperava que eu percebesse, que visse a
minha estupidez desprezível, aceitasse o meu destino e seguisse caminho.
Mas…
Esperem aí…
A postura de Jack, rígido como um manequim? Jack Stapleton – o
recordista da descontração – com uma postura rígida como um
manequim?
Não parecia certo.
Com isto, o meu raciocínio começou a mudar de direção. Sei que
Jack acabara de me dizer que tudo não passara de uma brincadeira e que
nunca gostara mesmo de mim. Mas quanto mais tempo passava, mais eu
me interrogava se acreditaria mesmo nele a cem por cento.
Era difícil saber.
Contudo, quanto mais ponderava, mais me parecia que a versão
apaixonada de Jack que vira na noite anterior era mais convincente do
que o psicopata que acabara de encontrar. Foi aí que o meu cérebro deu
um salto e começou a recuar, a folhear as páginas da minha memória,
para analisar o momento com novos olhos.
Havia sem dúvida algumas coisas estranhas.
Por exemplo, Jack apenas entreabrira a porta – enquanto o habitual
nele era escancará-la. Eu presumira que era para me manter à parte dos
amigos; no entanto, se estivesse mesmo a apreciar a partida, não quereria
que eles me vissem? E se era de facto um sociopata, não se importaria
nada que eu os visse.
Continuei à procura de anomalias. Havia no rosto dele uma rigidez
estranha – como se quisesse parecer relaxado sem o estar. E aquela
expressão nos olhos dele seria frieza – ou intensidade? A tensão na sua
voz seria irritação – ou ansiedade?
Continuei a rever a interação, a examinar tudo de uma nova
perspetiva – até que um momento me fez levantar a cabeça.
Mesmo antes de dizer que estava a representar, e depois de fazer um
aceno de confirmação, Jack olhara rapidamente para a esquerda. Quase
como se estivesse alguém ali, ao lado dele. E a emoção que lhe passara
pelo rosto nesse momento, no segundo daquele olhar, era inconfundível
para quem estava neste negócio há tanto tempo como eu…
Era medo.

Havia alguma coisa errada.


Jack estava com medo de algo naquela casa. Ou de alguém.
Peguei nas chaves do carro, abri-o e procurei o meu iPad no banco de
trás.
Entrei no site da agência para aceder às filmagens de segurança das
câmaras de Jack, e passei-as a velocidade acelerada. Nada na câmara da
entrada da frente nem na das traseiras. Nada na câmara da piscina. Mas
depois, de súbito, na câmara interior, ativada por movimento, no
vestíbulo de Jack, vi-o a falar com um homem alto de calças de ganga.
Abrandei o vídeo, a tentar perceber se este seria um dos «amigos» que
Jack afirmara ter em casa.
Foi então que o homem sacou de uma pistola de 9 mm e a apontou à
cabeça de Jack.
Merda!
Revi rapidamente o vídeo, para tentar apanhar as informações
essenciais. Vi Jack levantar as mãos e depois baixá-las. Vi-os virarem-se
ambos para a porta e depois vi Jack abri-la, apenas alguns centímetros, e
o outro homem recuar e posicionar-se a alguma distância com a arma
apontada.
Era o suficiente. Não precisava de ver mais nada.
Liguei para o número de emergências e chamei a Polícia. A seguir,
liguei para Glenn.
– Código Prata na residência de Jack Stapleton na cidade – avisei-o,
enquanto me dirigia de novo para a casa, já sem sentir as pedras sob os
pés descalços. Depois acrescentei ainda, para garantir: – Situação de
reféns.
Glenn não percebeu.
– Brooks, o que é que estás para aí a dizer? Ele está em nível branco.
– Vê as filmagens – indiquei. – Está um homem armado dentro da
casa do Jack.
– Agora? – perguntou Glenn.
– Agora mesmo.
– Onde estás?
– No caminho de acesso. A aproximar-me.
– Estás sozinha?
– Sim. Mas o Jack também está.
– O Jack não está sozinho. Está com um intruso armado.
– Certo. Ainda pior.
– Chamaste a Polícia?
– Sim.
– Espera por eles – ordenou Glenn. – Vou alertar a equipa.
– Não vou deixar o Jack ali sozinho.
– Brooks! Espera pela Polícia!
– Põe a equipa a trabalhar – retorqui. – Vejam os vídeos. Liguem-me
se encontrarem alguma coisa que eu possa usar. – Silenciei o toque do
telemóvel.
– Brooks! Não entres na cena! Não é seguro.
Eu sabia que ele tinha razão. Claro. Não tinha arma. Não tinha plano.
Nem sequer tinha sapatos. Lembram-se de eu ter dito que o calçado é
muito importante? Pois, era quando pensava que não havia nada pior do
que saltos altos.
Enquanto me aproximava da casa, calculei que as minhas hipóteses
de sobreviver eram de uns bons cinquenta por cento. Quer dizer, eu era
boa no que fazia. Mas não era uma super-heroína. Para mais, parte do que
fazia com que alguém fosse bom neste trabalho era a capacidade de fazer
escolhas inteligentes. E seria esta uma escolha inteligente? Nem por
sombras.
Mas eu não queria saber. Só uma coisa me importava neste momento:
duas pessoas do lado de Jack era melhor do que uma. Mesmo que
estivesse descalça, desarmada, sozinha e ferida, recusava-me a deixá-lo
lá dentro sozinho.
– Brooks! – gritou Glenn ao telemóvel. – Ouve, e ouve bem. Estou a
ordenar-te que esperes. Se não obedeceres, podes esquecer Londres.
Claro que ele usaria aquilo que eu mais queria para tentar impedir que
eu me matasse. Era o seu melhor trunfo. Só havia um problema. Aquilo
que eu mais queria já não era liderar o escritório de Londres.
Aquilo que eu mais queria era Jack.
Desliguei o telemóvel.
Para o diabo com Londres!
E desatei a correr.

Sabia o código da porta. Marquei-o e entrei.


O piso térreo estava deserto. Havia aquele silêncio que aprendemos a
reconhecer numa divisão vazia. Ainda assim, confirmei e verifiquei cada
armário e recanto. Até a despensa.
Nada.
Ao passar pela casa de jantar, vi em cima da mesa uma tábua de
queijos e charcutaria com uma garrafa de Cabernet aberta, a respirar, ao
lado. E ao lado da garrafa de vinho? Um saca-rolhas.
Finalmente. Uma arma. Peguei-lhe ao passar, sem abrandar o passo, e
– porque as mulheres deste mundo não merecem bolsos, vá-se lá saber
porquê – enfiei-o no soutien.
O primeiro andar também estava vazio. Ou tinham saído de casa,
ou…
Estavam no terraço, no telhado.
Subi as escadas até à sala de jogos no segundo andar, dois degraus de
cada vez. Passei ao lado da mesa de bilhar, em direção à porta que dava
para o terraço. Entreabri uma fresta para espreitar e avaliar a situação – e,
ali, deparou-se-me a cena mais surreal: as lâmpadas suspensas à roda do
terraço estavam acesas, os prédios da cidade iluminados pelo sol poente,
o céu de um azul arroxeado a dar lugar à noite… e Jack Stapleton, com
os pulsos e tornozelos presos por braçadeiras de plástico, a cerca de dois
metros de outro homem, exatamente da mesma altura, com um T-shirt
rasgada e calças de ganga sujas, a apontar-lhe uma arma, com o dedo no
gatilho.
Qualquer outro agente teria esperado pela Polícia, só que não havia
tempo. Um atirador com o dedo no gatilho estava a um impulso – ou uma
comichão, um espirro, uma tossidela – de fazer algo irreversível. Era
altura de intervir. Como quer que fosse.
Quando me esgueirei pela porta, pronta para anunciar a minha
presença, de mãos no ar de modo a não sobressaltar o criminoso,
aconteceram três coisas ao mesmo tempo.
Primeira: quando saí para o terraço, uma rajada de vento súbita
arrancou-me a maçaneta da porta dos dedos e esta fechou-se atrás de
mim com um buuum quase sónico que até a mim me sobressaltou.
Segunda: ao ouvir o som, o homem virou-se bruscamente na minha
direção e, pelos vistos, pressionou o gatilho durante o movimento,
porque…
Terceira: fui atingida.
Trinta e um
Ao princípio, pensei que ele falhara. Ouvi apenas um som tão alto
que o senti no peito, e uma rajada de ar no rosto. Mas depois… senti
antes mesmo de compreender.
Quando penso nisso agora, vejo-o em câmara lenta. A bala a assobiar
rente à minha cabeça, escavando um sulco fino no couro cabeludo ao
passar, uma dor aguda que se apoderou da minha consciência, seguida de
uma humidade quente a deslizar-me pelo pescoço, como se alguém
estivesse a espremer um frasco de calda de chocolate.
Não era calda, claro.
Porém, assim que o senti, decidi que não era grave. E o sangue no
meu pescoço convenceu-me: a bala acertara-me apenas de raspão. Não
sei como, exatamente, mas soube. Sentia-me como imaginava que seria a
sensação de um tiro do género – concentrada, pequena, ardente. Quase
como uma mistura de um corte com uma queimadura. O cerne da questão
era que não me sentia como uma pessoa cujos miolos estivessem
espalhados na parede por trás dela.
Se tinha a certeza? Não. Mas decidi partir desse princípio até ter
provas em contrário.
No entanto, devia estar com um ar macabro. O atirador fitou-me,
horrorizado.
– Credo! – gritou. – Assustou-me!
A ironia.
Levantei as mãos.
– Desculpe – pedi.
– Não pode bater com portas quando um tipo tem uma arma na mão!
– Foi sem querer – expliquei. – O vento.
O tom dele era de frustração.
– E agora fez-me atingi-la.
Tinha o pescoço quente e molhado pelo sangue que escorria e me
ensopava o vestido. Lá se ia o banco de sangue pessoal de Jack.
– Não me atingiu.
– Hum… esse sangue todo diz o contrário.
– É só um arranhão – assegurei-lhe. – A bala acertou-me de raspão.
Estou perfeitamente bem.
– Bom, não está nada com bom ar – contrapôs o homem.
– As feridas na cabeça sangram sempre muito – comentei, em tom
despreocupado. – Mal a sinto.
Jack parecia totalmente chocado por me ver. Estava agora agachado
como se quisesse entrar em ação, esquecido de que tinha os pulsos e os
tornozelos presos, preparando-se talvez para… o quê? Saltar até mim e
salvar-me? Assim que percebeu que não se conseguia mexer, resignou-se
e perguntou:
– O que é que estás aqui a fazer?
– Hã… A ajudar-te?
– Não te pedi para te ires embora? Não te disse que nada do que
aconteceu entre nós é real?
– Pois. Mas eu não acreditei.
Jack olhou para mim, como se isso não fizesse qualquer sentido.
Acrescentei:
– Não és assim tão bom ator.
Nem sequer um sorriso de cortesia.
– Mandei-te embora – declarou Jack. – De forma muito direta.
Assenti com um aceno.
– Sim. Mas depois eu fui ver as imagens de segurança.
– Vai para casa – pediu Jack, olhando de novo para o agressor. – Isto
não tem nada a ver contigo.
– Bom, agora até tem.
O atirador parecia em pânico, o que nunca é bom. As mãos tremiam-
lhe tanto que eu conseguia ver a arma a vibrar. Ele baixara a mão –
aparentemente esquecido da pistola durante um minuto –, e os seus olhos
saltavam de mim para Jack.
– Não era assim que isto devia estar a correr.
Parecia desapontado.
Tentei recordar os meus protocolos de negociação de reféns. Estava
um bocadinho enferrujada. Estabelecer uma relação foi a primeira coisa
que me veio à cabeça.
– Oiça, amigo, pode dizer-me como se chama?
Ele não mostrou qualquer resistência.
– Wilbur – anunciou.
– Wilbur? – perguntei. – O Wilbur?
Wilbur não sabia o que dizer.
– WilburOdeiaTe321?
Isto fê-lo sorrir – um pouco lisonjeado por ser reconhecido.
– Conhece o meu nome de utilizador?
– É bastante memorável. Principalmente por causa do livro.
– Qual livro?
Do que achava ele que estaríamos a falar?
– A Teia de Carlota.
Wilbur olhou para mim como se eu fosse maluquinha. Muito bem,
chegava de conversas.
– Oiça, Wilbur! – exclamei, como se me tivesse ocorrido uma ideia
muito divertida. – Pode dar-me a arma?
– Não queria atirar contra si – disse Wilbur.
– Eu sei – respondi em voz de veludo. – Foi um acidente. E eu estou
bem, a sério.
– Alguém vai morrer aqui – continuou ele –, mas não era para ser
você. – Depois apontou para Jack. – O Jack e eu já decidimos. Quando
você tocou à campainha, eu perguntei: «Quem é que vai morrer aqui
hoje? Você ou a rapariga?» E ele nem sequer hesitou. Ofereceu-se para
ser ele a morrer imediatamente. – Wilbur encolheu os ombros. – Não foi
querido?
Fiz que sim com a cabeça. Muito.
Estava na altura de deitar as mãos àquela arma.
Lentamente, avancei um passo. Porém, quando viu o que eu estava a
fazer, Wilbur abanou a cabeça.
– Não pode ficar com a arma – disse. – Preciso dela.
Foi então que recuou alguns passos e, quando o fez, percebi que ele
coxeava. Dirigiu-se para a beira do terraço e, com a perna boa, içou-se
para o parapeito.
– O que está a fazer? – perguntei.
– Aposto que acha que este tipo é fantástico – disse-me Wilbur. –
Toda a gente o acha tãooo fantástico…
– Não é mau de todo – respondi com um encolher de ombros.
– Todos o adoram. O Destruidor. Acham que ele salvou o universo.
Não é? As pessoas acham que foi mesmo ele. – Wilbur abanou a cabeça e
apontou de novo a pistola para Jack. – Mas ele não é nenhum herói.
– Pois não – concordei em tom afável. – É só uma pessoa. Apenas
uma pessoa normal. – Realçar a humanidade de Jack parecia boa ideia.
– Mas não é normal – contrapôs Wilbur. – Não é como nós. Porque
ele tem tudo aquilo que quer. – Virou-se para Jack e levantou a arma,
apontando-a diretamente à cara dele. – Não é, Destruidor? Não tem tudo
o que quer?
Jack abanou lentamente a cabeça.
– Ninguém tem tudo o que quer.
– Mas tem muito. Demasiado, até. E eu não tenho nada. Portanto, se
você é o Destruidor, eu sou o Castigador.
Sentiu-se uma alteração na energia da atmosfera nesse momento. Jack
e eu entreolhámo-nos. Ia acontecer qualquer coisa. Foi quase como um
clique. Metemos outra mudança. Teria de empurrar o tipo do telhado para
salvar Jack? Podia correr e atirar-me contra ele, lançar-nos aos dois lá de
cima.
Não morreria de uma queda de dois andares. Provavelmente.
Mas foi então que Wilbur se virou para mim e explicou:
– A minha mulher trocou-me por ele. – Olhou para Jack. – Não estão
juntos? Não está com ela?
Jack franziu a testa.
– A Lacey? – continuou Wilbur, quase como se estivessem a recordar
antigos colegas de escola. – Lacey Bayless? Casada com Wilbur Bayless?
Ela encontrou-o?
– Não conheço nenhuma Lacey – disse Jack.
Wilbur olhou para mim.
– Depois de eu me magoar no trabalho – apontou para a perna coxa –,
a Lacey ficou obcecada por ele. Criou um clube de fãs, depois outro.
Começou a escrever e-mails ao agente dele. Passava o tempo todo online
a fazer GIFs. E eu pensei: «Bom, não faz mal. É saudável ter um
passatempo.» Não é? Apoiei-a! Não tive ciúmes! «Vive a tua melhor
vida, querida!» Mas uma noite cheguei a casa e vi as malas dela à porta, e
ela deixara-me uma lasanha no frigorífico. E anunciou que me ia deixar.
– Olhou para Jack. – Disse-me que a minha perna defeituosa lhe dava a
volta ao estômago. Que se tinha apaixonado pelo Jack. Que eu nunca
estaria à altura dele. Porque é que nunca a beijava como o Jack Stapleton
beijava a Katie Palmer?
Olhei para Jack. Contamos-lhe?, pensei.
Revi as minhas táticas de apaziguamento. Lembrei-me de que
devíamos usar sempre, o mais possível, os nomes das pessoas. O som –
pelo menos em teoria – era reconfortante.
– Wilbur – disse –, isso é duro. Eu percebo.
Mas Wilbur não queria a minha compreensão.
– O que é que você acha?
– Sobre o quê?
– Se eu sou atraente.
Se Wilbur era atraente? Hum… seria obrigatório responder? Estudei
o seu corpo em forma de pera, a linha do cabelo recuada, os dentes
amarelos, a pele oleosa, as calças de ganga sujas e a T-shirt coçada do
Darth Vader, onde se podia ler «VEM PARA O LADO NEGRO. TEMOS
BOLACHAS». E depois disse-lhe:
– Acho-o muito atraente, Wilbur. – E repeti: – Muito. – E, quando ele
não pareceu convencido, reforcei: – Belo, mesmo.
– Então – Wilbur apontou para si próprio e depois para Jack com um
gesto largo da pistola –, se tivesse de escolher entre nós os dois, quem é
que escolheria?
Jack salvara-me na noite anterior ao escolher-me a mim, e esta noite
eu ia salvá-lo ao escolher… Wilbur.
– A si, Wilbur! – declarei sem hesitar. – Cem por cento! Não há
qualquer dúvida!
– Não é? – concordou Wilbur. – Foi o que eu me fartei de lhe dizer!
«O Jack Stapleton é um famoso energúmeno.»
– Lendário – confirmei.
Jack olhou para mim de lado.
Wilbur continuou:
– «Ele nunca te amaria como eu te amo», disse-lhe eu.
– Este homem nem sabe o que é o amor.
Jack tossiu.
– «Ele não vai construir-te uma casa para os pássaros com portadas
pequeninas que abrem e fecham, e camélias pintadas à mão!» Nem se
coloca a dúvida, pois não?
– Nunca – afirmei. – O Jack Stapleton nunca construiu uma casa para
pássaros em toda a sua vida.
Jack entreabriu as narinas, como que a exigir-me que não abusasse.
Wilbur silenciou-se durante um momento. Deveria tentar tirar-lhe a
arma? Depois ele recomeçou a falar.
– Mas ela deixou-me. Mesmo assim, deixou-me. Levou a casa dos
pássaros. Não atende o telemóvel. Não responde às minhas mensagens…
– Há quanto tempo, Wilbur?
– Um mês.
Um mês era muito tempo. Tempo suficiente para virar a vida de uma
pessoa de pernas para o ar. Eu era prova viva disso.
– As coisas vão melhorar, Wilbur – garanti-lhe. – As coisas
melhoram, e depois pioram, e a seguir melhoram outra vez. É o ritmo da
vida. É assim para toda a gente.
Porém, agora Wilbur só queria contar a sua história.
– Depois soube que ele estava aqui mesmo, na cidade. E lembrei-me
de vir à procura dele. Para ver se ela cá estava também.
– Não está – respondeu Jack, só para confirmar.
– Então, vi a foto do Jack a beijar a nova namorada. Todos enrolados.
Uma vergonha! Viram essa foto, não viram?
– Vimos – declarámos Jack e eu em uníssono.
– E pensei – continuou Wilbur – que tinha de pôr fim àquilo.
– Porquê, Wilbur? – perguntei.
Wilbur olhou para mim de sobrolho franzido, como se fosse óbvio.
– Para não magoar a Lacey.
– Ameaçou matar a nova namorada do Jack para o deixar livre para a
sua mulher?
Wilbur acenou afirmativamente, com ar orgulhoso.
– As coisas que fazemos por amor, não é?
– Não. Isso não é… – comecei.
– Foi você que fez as ameaças de morte? – perguntou Jack. –
Pensávamos que fosse uma criadora de corgis de meia-idade.
Wilbur levou a ponta da arma à cabeça, apontando para o cérebro.
– Copiei o estilo dela. Para ninguém desconfiar.
– Resultou – confirmou Jack.
Mas Wilbur prosseguiu.
– Eu não queria matar-lhe mesmo a namorada. Só assustá-la, para ela
o deixar.
– Aterrorizá-la para ela pôr fim à relação – concluí eu.
– Exato – confirmou Wilbur. – Mas não resultou. E agora estou feito
num oito. Não consigo dormir. Não consigo comer. Sinto-me sempre tão
sozinho. E… e… não aguento mais.
E depois, enquanto eu tentava encontrar maneira de chegar a Wilbur
antes de este disparar contra Jack, ele disse:
– Portanto, é esse o castigo do Destruidor. Tem de me ver morrer.
E, com estas palavras, levantou a arma e encostou o cano à própria
cabeça.
Wilbur não estava aqui para matar Jack. Nem a mim. Estava aqui para
se suicidar.
Eu tinha alguma experiência com negociação de reféns, mas, de
repente, já não enfrentava esse tipo de situação. Portanto, não tinha um
manual, nem um guião, nem qualquer ideia do que poderia resultar. Tinha
de me guiar pelo instinto.
– Wilbur – pedi-lhe –, preciso que baixe a arma.
Wilbur olhou para Jack, para ver se ele concordava. Jack acenou com
a cabeça e disse:
– Ela tem razão.
Dei um passo em frente.
– Sei que se sente sozinho neste momento, Wilbur – disse. – Mas não
está. O Jack e eu estamos consigo. Queremos que fique bem.
Continuei a avançar e a falar, convencida de que a minha melhor
oportunidade era ser verdadeira; e, assim, fui buscar a primeira coisa que
me ocorreu – apesar de não ter nada a ver com aquela história. Mais
tarde, porém, perguntar-me-ia se não teria mesmo.
– No meu oitavo aniversário – contei-lhe –, o namorado da minha
mãe bateu-lhe tanto que pensei que ela estava morta. Passei a noite
escondida num closet.
Wilbur olhou para mim.
– Foi uma noite má. A pior da minha vida. Enquanto acontecia,
parecia que nunca mais acabava. Mas acabou. E agora é só uma memória
longínqua. Compreende onde quero chegar?
Wilbur abanou a cabeça.
– Há coisas terríveis que nos acontecem. Mas conseguimos
ultrapassá-las, Wilbur. E mais do que isso… emergimos melhores do
outro lado.
Wilbur refletiu nas minhas palavras. Depois, usou o cano da pistola
para coçar a cabeça. Continuei:
– Não conseguimos controlar o mundo… nem as outras pessoas. E
não podemos forçá-las a amarem-nos. Ou nos amam, ou não; a verdade é
essa. Mas o que podemos fazer é decidir quem queremos ser. Queremos
ser uma pessoa que ajuda… ou que fere? Alguém que arde de raiva… ou
que brilha com compaixão? Quer viver com esperança ou sem ela?
Desistir ou continuar em frente? Viver ou morrer?
Então, Wilbur disse algo que atravessou a adrenalina do momento e
me partiu o coração.
– Só quero a minha Lacey de volta.
– Eu sei – respondi. – E pode acontecer. Ainda pode. Mas não se já cá
não estiver.
Wilbur franziu a testa, como se tal hipótese nunca lhe tivesse passado
pela cabeça.
– A sua vida é importante, Wilbur – declarei eu. – O mundo precisa
de mais casas de pássaros pintadas.
– Mas sem ela, para quem hei de fazê-las?
– Faça-as para os pássaros! Ou para todas as pessoas que ficarão
encantadas ao vê-las. Faça-as para si próprio.
Havia lágrimas no rosto de Wilbur. E depois ele disse algo de que me
lembro até hoje, numa voz que parecia verdadeiramente cansada:
– Odeio-me tanto por não ser amado.
Emiti um suspiro de absoluta compreensão, e suavizei o meu tom.
– Não pode obrigar as pessoas a amá-lo. Mas pode dar ao mundo o
mesmo amor que deseja. Pode ser o amor que gostaria de ter. É assim que
ficará bem. Porque dar amor aos outros é uma forma de o darmos a nós
próprios.
Wilbur mordeu o lábio enquanto pensava nisso.
– É tudo o que podemos fazer – continuei. – Pôr de lado a nossa
raiva, e a nossa culpa, e as nossas armas – Estão a ver a minha subtileza?
– e tentar melhorar uma má situação. É a única resposta que há.
Wilbur limpou as lágrimas com as costas da mão que segurava a
arma.
Aproximei-me um passo.
– Dê tempo a si próprio… e dê-me a arma.
Wilbur baixou a mão e olhou para a pistola.
– Pode mudar a sua vida – disse-lhe. – Pode fazer acontecer coisas
boas. Pode encher o quintal de casas de pássaros pintadas. Centenas
delas. Milhares. – A minha voz estava um pouco trémula, mas continuei:
– Gostaria muito, muito de ver isso. Seria mágico, não acha?
Wilbur não virou a cara. Sabia que eu dizia a verdade. Sentia que eu
estava mesmo a ser sincera.
– Desça daí e dê-me a arma, está bem? – pedi.
Wilbur olhou então para os pés e, com ar rendido, desceu do
parapeito. Assim que o fez, a perna lesionada perdeu as forças e ele caiu
por terra.
Numa fração de segundo, Jack e eu precipitámo-nos sobre ele – Jack,
ainda de mãos e pés presos, atirou o corpo inteiro para segurar Wilbur, e
eu lancei-me para a arma –, apesar de, nesta altura, Wilbur estar inerte e
não oferecer qualquer resistência.
Quando aterrei, o saca-rolhas que tinha escondido no soutien saltou e
deslizou pelo terraço.
Torci o braço de Wilbur atrás das costas dele e tirei-lhe a arma da
mão. Quando ergui os olhos, vi Jack a olhar para o saca-rolhas.
– Exatamente o que tencionavas fazer com aquilo?
– Não queiras saber – respondi.
Era uma resposta fácil, agora que tudo tinha acabado.
– Eu não ia matá-la, sabe – disse Wilbur, com a cara encostada ao
chão do terraço. – Nem ao Jack. A única pessoa que eu queria matar era a
mim.
– Isso tem de mudar, Wilbur – disse eu, com o joelho nas costas dele.
– Tem de aprender a ser bom para si próprio. E depois partilhar essa
bondade com o mundo.
– Com casas de pássaros – lembrou Wilbur, que pelos vistos gostara
da minha ideia.
– É uma opção – respondi.
Ouvimos sirenes e vozes lá em baixo, e botas no cascalho do
caminho.
Não deviam demorar. As minhas pegadas ensanguentadas de certeza
que os conduziriam num instante até nós.
Enquanto esperávamos, Wilbur disse:
– Só tenho uma pergunta para o Jack.
Jack, esticado sobre as pernas dele para não o deixar mexer-se,
perguntou:
– O que é?
Foi então que Wilbur levantou a cabeça, virando para Jack o seu
melhor sorriso, e pediu:
– Podemos tirar uma selfie?
Trinta e dois
O médico nas Urgências chamou ao arranhão na minha cabeça uma
«ferida de um milhão de dólares». Suficientemente grave, em teoria, para
me dar alguns dias de descanso do trabalho, mas não tanto que precisasse
de pontos. Ou, enfim, que me tivesse matado.
– Mais um milímetro – considerou o médico, depois de soltar um
longo assobio – e a história seria outra.
Após terem limpado e observado melhor, a ferida era como uma
trincheira de quatro centímetros de comprimento, da largura de um bico
de lápis, mesmo por cima da minha orelha – com os lados ligeiramente
elevados, como uma berma.
Jack tirou uma data de fotografias com o telemóvel para me mostrar.
Não foi preciso rapar muito do meu cabelo, o que foi bom. Bastava
apanhar a maior parte num rabo de cavalo lateral surpreendentemente
engraçado. Irrigaram e desinfetaram a ferida, aplicaram uma pomada
antibacteriana e fizeram um penso, contornando a minha cabeça com
uma ligadura de gaze como a fita de um tenista dos anos setenta.
– Por acaso, fica-te bem – comentou Jack.
Eu só pensava que podia ter sido muito pior. Nem sequer tive de
passar a noite no hospital. Depois de os resultados da ressonância
magnética mostrarem que estava tudo bem, mandaram-me para casa com
antibióticos, um analgésico forte e instruções rigorosas para agir como se
tivesse sofrido um traumatismo craniano: não conduzir, não fazer
desporto, não andar de montanha-russa.
Certo.
Jack e eu tínhamos chegado às Urgências de ambulância, por isso
Glenn enviou um carro para nos vir buscar. E, num pormenor de sadismo
mesmo à Glenn Schultz, Robby era o condutor.
É preciso recordar todas as vezes em que Robby afirmou que nunca
na vida eu conseguiria passar por namorada de Jack Stapleton? E refletir
sobre a sua crueldade impressionante quando nos separámos e em tudo o
que se seguiu? Será preciso fazer aqui uma pausa para lembrar que a
estratégia de Robby para me manter numa relação má era convencer-me
de que eu não merecia melhor?
Porque é tudo verdade.
Mas talvez possamos saborear um momento específico e delicioso
dessa noite, quando Jack e eu chegámos ao carro e Robby, tentando
exibir alguma espécie de energia de agente dos serviços secretos, me
abriu a porta de trás do Tahoe e me quis ajudar a entrar.
Nesse momento, Robby poderia ter passado por um tipo às direitas –
se não estivesse a um metro de Jack Stapleton. E se eu não tivesse
descoberto recentemente o que era, na verdade, um tipo às direitas.
Seja como for, Jack deteve-o quando ele tentou tocar-me.
– Eu trato disso – declarou.
– É o meu trabalho – insistiu Robby.
Mas Jack voltou a impedi-lo, colocando-se entre nós para lhe
bloquear o acesso e movimentando-se com tal determinação que Robby
perdeu o ímpeto. A seguir, Jack envolveu-me nos seus braços, com muita
ternura, e pegou-me ao colo. Pousou-me no banco de trás, prendeu o
cinto de segurança como se eu fosse uma preciosidade, deu-me um breve
mas sugestivo beijo na boca, e depois virou-se para Robby.
– Este pode ser o teu trabalho – afirmou, apontando para o Tahoe –,
mas esta… – e pousou a mão na minha coxa como se lhe pertencesse –
… é a minha namorada.
Portanto…
Bem vistas as coisas, não foi a pior noite da minha vida.
*

Jack acabou por passar a noite em minha casa.


Na minha cama.
E não foi preciso nenhuma muralha de almofadas.
Não aconteceu nada físico, claro. Montanhas-russas não são a única
atividade proibida a quem sofreu um traumatismo. Além do mais, eu
tinha gaze enrolada à cabeça como Björn Borg, o que basicamente
afastava a atmosfera para movimentos, enfim, não espirituais.
Porém, aconteceram ações emocionais.
Por exemplo, demos as mãos. E agradecemos um ao outro por tudo o
que nos lembrámos. E demos graças por estarmos vivos. Pode ou não ter
havido algum enrolanço.
Suponho que, na verdade, é mesmo profundamente regenerador
deixar que alguém nos ame.
Porque na manhã seguinte, quando acordei e vi Jack sentado à beira
da cama com a cabeça nas mãos, percebi logo que havia algo diferente.
Antes que pudesse perguntar, Jack virou-se, olhou para mim – de cabeça
ligada, o cabelo com vida própria –, levantou-se, contornou a cama até ao
meu lado e perguntou:
– Como está a ferida?
– Totalmente boa – respondi com despreocupação.
– O penso está sujo de sangue.
– É como um corte de papel.
Mesmo assim, ele tratou de mim. Fez-me mudar o penso na cabeça –
e também os dos dedos dos pés, que doíam muito mais. Obrigou-me a
lavar os dentes, a vestir um roupão macio, a beber chá quente e a tomar
os antibióticos.
Depois agradeceu-me, outra vez, por não ter morrido.
E só depois de tratarmos de todas essas coisas é que me confessou:
– Tive o meu pesadelo outra vez esta noite.
– O mesmo pesadelo? – perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça.
– Sim. Mas foi diferente.
Diferente era bom, esperava eu.
– O que aconteceu?
– Entrei no carro com o Drew, como sempre. Dirigimo-nos para a
ponte, como sempre. Mas depois, quando nos aproximávamos, vi algo na
estrada.
– O quê?
– Uma pessoa. A abanar os braços para nos mandar parar.
– E pararam?
– Por pouco. O Drew pisou o travão e derrapámos uns trinta metros. –
Jack abanou a cabeça. – Foi tão real. Ainda sinto o cheiro a borracha
queimada.
– Mas pararam – notei. – Isso é diferente.
Ele acenou.
– Mesmo a tempo. Quer dizer… a poucos centímetros de a atropelar.
De a atropelar?
– Era a tua mãe?
Jack abanou a cabeça.
– Eras tu.
Inclinei-me para olhar bem para ele.
– Eu?
Jack assentiu.
– Aproximaste-me da minha janela e fizeste sinal para eu a abrir. E
depois disseste que a ponte estava fechada. «Têm de voltar para trás»,
avisaste.
»E foi então que vi que o Drew já não estava no carro. Saí para o
procurar e vi-o a afastar-se a pé, na direção da ponte, como se
tencionasse atravessá-la. «Está fechada!», gritei. «Temos de voltar para
trás!»
»Ele parou. E virou-se. Mas não voltou. «Eh!», gritei, determinado,
como se pudesse mudar as coisas se o convencesse. «Eh, temos de voltar
para trás!»
»Mas o Drew abanou a cabeça.
»Assim, corri e parei ao pé dele. «Há gelo na ponte», disse-lhe.
«Temos de voltar para trás. Anda.»
»O Drew fitou-me nos olhos sem falar. Tinha a barba por fazer e uma
madeixa de cabelo levantada atrás, no sítio onde tinha um redemoinho.
Continuou ali parado em silêncio, até eu ter a certeza de que ele não ia
voltar para trás comigo. E foi então que senti lágrimas na cara. Tentei
mais uma vez. «Anda lá, vem comigo, está bem? Vamos voltar juntos.»
»Ele fez que não com a cabeça. E percebi que não viria. Que não
havia nada que eu pudesse fazer.
»Tinha a voz a tremer tanto que achei que não conseguiria falar. Mas
disse-lhe: «Desculpa não ter conseguido proteger-te.»
»Ele acenou, como que garantir que não havia problema. Deu meia-
volta e começou a andar na direção da ponte. Fiquei a olhar até deixar de
o ver. E acho… pelo menos foi a sensação com que fiquei… que tu
estavas ao meu lado a vê-lo desaparecer também. Quando acordei, estava
a chorar. Mas sentia-me melhor, de certa forma.
Por alguma razão, ouvir isto deixou-me toda arrepiada.
– Sei que não era real – concluiu Jack. – Mas parecia.
– Talvez fosse real o suficiente – observei.
– Obrigado por estares lá – agradeceu Jack.
Eu podia ter-lhe dito que ele é que me pusera lá. Mas respondi
apenas:
– De nada.
– Seja como for – continuou Jack –, acho que tinhas razão em relação
ao sonho.
– Tinha?
Ele acenou afirmativamente.
– Quando disseste que era uma oportunidade.
– De te despedires do teu irmão?
Mas Jack fez que não.
– De lhe pedir desculpa.

Esse sonho foi o último que Jack teve sobre a ponte gelada.
Ainda sonhava com o irmão de vez em quando – quase sempre que
levantava os olhos no meio de uma multidão e via Drew a sorrir, ou a
piscar-lhe o olho, ou a fazer-lhe um aceno de cabeça encorajador. Não
que acreditasse propriamente nesses sonhos – não achava que fossem
mesmo janelas para o Além, mas sim a sua imaginação a contar histórias.
Porém, eram histórias boas. Reconfortantes. E estava grato por elas.
Eram as histórias que ele precisava de ouvir.
Se ficou curado do medo de pontes? Depende de como definirmos
«curado». Ainda não as adora. Mas já consegue atravessá-las. Fica com
uma covinha de concentração na face e aperta mais as mãos no volante,
mas atravessa sempre. Sem vomitar a seguir. E decidimos contar isso
como uma vitória.
Trinta e três
Depois da noite em que eu… ah… levei um tiro na cabeça, Glenn pôs
Taylor a substituir-me nas primeiras duas semanas da missão na Coreia
para que a minha ferida de um milhão de dólares sarasse completamente.
Ofereceu-se para transferir a totalidade do meu trabalho para ela, mas
recusei.
– Não quero a Taylor a ficar com mais nada meu – declarei.
– Compreensível – concordou Glenn.
Jack aguardou um período respeitável para deixar sarar a minha
ferida emocionalmente assustadora, mas nada letal e nem sequer muito
dolorosa… e depois convenceu-me a tentar novamente o nosso encontro.
– Não podemos repetir?
– O quê?
– O encontro.
– Aquele encontro? – perguntei. – O que quase acabou comigo morta?
Jack confirmou com um aceno.
– Não, obrigada – respondi. – Não te incomodes.
– Preciso de tentar outra vez – implorou Jack. – E tu também. –
Inclinou-se para mim, recorreu a todo o seu charme e acrescentou: –
Prometo que não te arrependerás.
Se eu queria percorrer outra vez o caminho de acesso à casa de Jack
com uns sapatos ridículos e voltar a tocar à campainha, mesmo com a
certeza de que WilburOdeiaTe321 estava atrás das grades?
Nem pensar.
– Podemos fazer outra coisa qualquer – sugeri. – Minigolfe. Bowling.
Karaoke.
Mas Jack abanou a cabeça.
– Eu tinha atividades muito específicas planeadas para fazer contigo
naquela altura, e preciso mesmo de as levar até ao fim.
– Referes-te ao momento em que eu apareci à tua porta, toda nervosa,
e tu me rejeitaste sem rodeios?
– Note-se, para que fique registado, que o fiz para te salvar a vida.
– Mas levei um tiro na mesma.
– De raspão – corrigiu Jack.
Pensei nisso. Conseguiria tentar de novo? Estudei-o.
– Vais tentar recriar aquele encontro?
– Sim.
– Porquê?
– Porque – explicou Jack – preciso de uma versão daquela história
que não inclua o Wilbur.
Eu conseguia compreender.
– Está bem – cedi.
– Esta noite – disse Jack.
– Pode ser.
– E traz aquele vestido vermelho.
Suspirei.
– O que ficou todo sujo de sangue?
– Já foi lavado, certo?
– Quer dizer… sim.
– Então não há problema.
– Mas os sapatos foram para o lixo – avisei.
– Não quero saber dos sapatos. Até podes vir descalça, se quiseres.
Abanei a cabeça. Depois apontei para Jack e declarei:
– Vou usar as minhas botas de cowboy. – E quando ele acenou em
concordância, acrescentei: – Nunca mais vou usar sapatos estúpidos
como aqueles.
*

Desta vez, quando toquei à campainha, Jack escancarou


imediatamente a porta. Vestido, barbeado, estupidamente bonito… e,
assim que me viu, os seus olhos percorreram-me o corpo até às botas e de
novo para cima com ar apreciador. Depois, estendeu a mão, enfiou os
dedos na fita que me envolvia a cintura e puxou-me para dentro,
fechando a porta atrás de nós.
A expressão no rosto dele indicava que tencionava beijar-me até eu
esquecer o mundo.
Nessa altura, porém, levantei o dedo e disse:
– Posso só confirmar uma coisa?
Jack estava lançado. Mas parou.
– Claro.
– Da última vez que fizemos isto – comecei –, travaste-me à porta e
disseste que nunca tinhas gostado de mim. Que estavas a fingir desde o
princípio.
– Eu lembro-me.
– Portanto, já que vamos fazer uma nova tentativa – disse –, agradeço
uma confirmação de que estavas a mentir em relação ao fingimento.
Jack franziu a testa.
– Não estou já farto de o confirmar?
– Sim, claro. Mas aquele momento foi uma bomba no quadrante do
meu cérebro a que chamaremos apenas «os meus piores receios em
relação a mim mesma». Portanto, já que vamos reescrever a história…
podemos corrigir essa parte?
Jack acenou com a cabeça. Claro que sim. Fitou-me nos olhos.
– Eu estava mesmo nervoso nessa noite. Já te disse? Tínhamos vivido
juntos durante semanas, por isso não devia, mas estava muito tenso.
Tinha mandado vir comida e, quando a campainha tocou, abri sem pensar
duas vezes. Só que não era a comida. Era o Wilbur. Com uma arma. E
muito mais assustador do que qualquer pessoa com o nome Wilbur devia
ser.
– Concordo.
– Tinha um olhar tresloucado – continuou Jack –, a respiração
acelerada e um ar de maníaco, como se qualquer coisa pudesse acontecer
a qualquer momento. Julguei que estava sob o efeito de drogas. E não
havia dúvidas de que tinha uma pistola apontada ao meu peito. Lembro-
me de me custar muito pôr de lado a ideia do nosso encontro. Lembro-me
de pensar: Não é nada boa altura para isto. Tentei convencê-lo a dar-me
a arma. Ele fez mil perguntas sem explicar nada. E precisamente quando
eu estava a pensar: O que é que a Hannah faria neste momento?, e a
tentar lembrar-me de como é que me tinhas atirado ao chão daquela vez,
tu tocaste à campainha.
Jack suspirou.
– O Wilbur ficou alerta. Quis saber quem era e, depois de espreitar
pelo óculo da porta, disse: «É uma mulher com um vestidinho justo.» E
então virou-se para mim e perguntou: «Muito bem, quem é que vai ser?»
»Perguntei o que queria dizer e ele retorquiu: «Quem é que eu vou
matar? Ela ou você?»
»Então, respondi: «Eu. Claro. Obviamente.» «Nem sequer pensou
nisso», comentou o Wilbur, como se estivesse desapontado. E eu disse
que não precisava de pensar. «Quer morrer?», perguntou ele. «Não»,
repliquei. «Mas entre nós os dois nem se levanta qualquer dúvida.» «Não
acredito que se escolheu a si próprio», notou ele. «Bom, de certeza que
não a vou escolher a ela», respondi.
»Então o Wilbur disse que estava bem e para eu me livrar de ti.
Estendi a mão para a porta e ele acrescentou: «E veja lá o que faz. Se ela
desconfiar de alguma coisa e chamar a Polícia, pode ter a certeza de que
morreremos todos.» «Eu acredito», asseverei-lhe. E acreditava mesmo.
»Por isso abri a porta e fiz a única coisa que me ocorreu para tu te ires
embora e não voltares.
Olhei para os olhos de Jack.
– Fingiste que não gostavas de mim.
Jack assentiu.
– Não tive aquelas aulas todas de improvisação para nada.
– Porque é que não usaste a palavra de código?
Jack olhou para mim.
– Hã… porque não queria que a minha última palavra neste mundo
fosse «joaninha»?
– A sério?
– E porque é que diria a palavra de código?
– Para eu saber que se passava alguma coisa.
– O objetivo era que não soubesses.
– Tens a noção de que é o meu trabalho? Eu sou muito mais
qualificada do que tu para lidar com o Wilbur. Podia tê-lo desarmado de
dez maneiras diferentes.
– Nem pensei nisso.
– Obviamente.
– Só queria que não morresses. Queria mesmo, mesmo – declarou
Jack, aproximando-se mais –, que não morresses.
E eu estava-lhe grata. A sério.
– Obrigada.
– Portanto, representei como nunca.
– E enganaste-me – admiti.
– Bom – argumentou Jack –, tens a noção de que isto é o meu
trabalho?
Fitei-o nos olhos.
– Só para confirmar: não não gostavas de mim.
– Não não gostava de ti – corroborou Jack.
– Gostavas de mim – insisti. – A sério. Ativamente.
– A sério. Ativamente – confirmou Jack. – Mais do que alguma vez
gostei de alguém na estúpida da minha vida.
Perscrutei-lhe o rosto.
– Não me importava que ele me desse um tiro – prosseguiu Jack. – Só
queria enganar-te para que te fosses embora… e fazê-lo tão bem ao ponto
de não voltares.
– Bom, conseguiste.
– Mas tu voltaste. Como uma idiota.
– Acho que a denominação certa é «corajosa e destemida heroína».
– Não devias ter-me salvado. Eu é que estava a salvar-te a ti.
– Suponho que nos salvámos um ao outro.
– É uma maneira de ver as coisas.
– Não estás nem um bocadinho contente por eu te ter salvado a vida?
– Afinal, o Wilbur não tencionava matar-me.
– Todas as evidências apontavam para o contrário.
– Assim que escolhi salvar-te a ti, ele decidiu que eu era boa pessoa.
Foi um teste. E eu passei.
– Mas porquê testar-te se não tencionava mesmo matar-te?
– Era um teste de amizade.
Estudei-lhe o rosto.
– Então, quando me salvaste, não foi assim tão heroico.
Jack olhou para mim de lado.
– Foi bastante heroico. – Suspirou. – Estou honrado por teres voltado
– declarou. Enquanto falava, aproximou-se e segurou-me o rosto com as
duas mãos, mergulhando nos meus olhos como se quisesse entrar neles. –
Mas nunca mais faças nada do género – pediu. E depois levou a boca à
minha e encostou-me contra a porta e beijou-me como se fosse ter outra
oportunidade.
Sim, esta segunda tentativa estava a correr muito melhor.

Peço desculpa a todas as pessoas que não são eu… mas a verdade é
que, por melhor que Jack seja a beijar no ecrã, é mil vezes melhor na vida
real.
Quer dizer, ele faz com que seja fácil. Uma pessoa não pensa de mais.
Na verdade, nem sequer pensa. Deixa-se perder e o corpo assume o
comando e, quando damos por isso, temos os braços à volta do pescoço
dele e estamos coladas àqueles abdominais duros e a derreter nos braços
dele e a dissolvermo-nos num momento tão entorpecedor que é como se
ele tivesse sequestrado todos os nossos sentidos… Da melhor maneira
possível.
Ele beija como se estivesse destinado. Como se sempre assim tivesse
acontecido. Como se não existisse outra versão imaginável da história.
E uma pessoa retribui o beijo da mesma maneira. Sente todo o corpo
como fogo de artifício. E a alma também. É como se estivesse a viver a
sua vida e, ao mesmo tempo, a pairar acima dela. Como se estivesse na
Terra e no Paraíso. Como se não fosse mais do que coração a bater e
sangue a correr depressa nas veias e calor e suavidade – mas fosse
também o vento e as nuvens. Como se fosse tudo, em simultâneo.
É como se amar alguém – amar mesmo, corajosa e plenamente –
fosse a porta de entrada para algo divino.

*
E mais tarde – muitas horas mais tarde – depois de ele me ter levado
para a cama, e das botas encarnadas estarem esquecidas no meio do chão,
e estarmos ambos exaustos e entrelaçados e meio a dormir, e de o ter
ajudado a torcer os lençóis como ele costuma fazer, Jack, com toda a
naturalidade, bocejou e espreguiçou aquele tronco famoso, perguntando:
– Será que ainda há alguém a controlar as câmaras de segurança?
– Quais câmaras?
– A do vestíbulo.
Claro que sim. Robby, que era o agente principal responsável por
Jack.
Soergui-me nos cotovelos para decifrar a expressão dele.
– Beijaste-me no vestíbulo daquela maneira para o Robby ver?
– Beijei-te assim porque estava desesperado por fazer precisamente
isso há semanas – defendeu-se Jack, passando o braço à minha volta e
puxando-me para si. A seguir, acrescentou:
– O facto de o nosso velho amigo Robby estar a ver foi apenas um
bónus.

No fim de contas, será que alguma vez temos a certeza de que somos
merecedores de amor?
Que pergunta.
Não. Claro que não. Nunca podemos ter essa certeza. A vida nunca
nos dá essas respostas.
Mas talvez a pergunta também não seja a melhor. É possível que o
amor não seja um julgamento que se faz, mas um risco que se corre.
Talvez seja algo que escolhemos fazer – uma e outra vez. Por nós. E por
toda a gente.
Porque o amor não é como a fama. Não é algo que os outros nos
concedem. Não é uma coisa que venha do exterior.
O amor é algo que se faz. É algo que geramos.
E é verdade que, no fundo, amar os outros acaba mesmo por ser uma
forma de nos amarmos a nós próprios.
Epílogo

«Como estão a correr as coisas com o Wilbur?» talvez não seja a


primeira questão que vos vem à cabeça neste momento.
Mas importam-se que vos esclareça? O homem está nos píncaros. A
viver a sua melhor vida, à potência máxima.
As casas de pássaros foram um êxito. Depois de sair da prisão,
Wilbur montou uma empresa de fabrico de casas de pássaros e encheu o
jardim em frente da casa com elas. Centenas, de cores diferentes, com
postes de alturas distintas e em formatos variados: celeiros com portas de
correr, moinhos holandeses com velas que rodam mesmo, e até uma
pequena réplica moderna da famosa Casa da Cascata, que se tornou a
localização relacionada com este género de objeto mais fotografada da
Internet. Não só pela sua excentricidade, mas porque é um cenário
perfeito para selfies.
Ele chamou à empresa «Casas de Pássaro Vai Melhorar».
Hoje, Wilbur dir-vos-ia que aquela noite no terraço da casa de Jack
foi o momento mais sombrio da sua vida. Na verdade, é essa a declaração
de missão que consta do seu website. Wilbur encontrou uma poderosa
dose de bondade precisamente no momento em que mais precisava – e
foi uma revelação. Procurou ajuda profissional, começou a tomar
medicação e, agora, todos os dias tenta retribuir ao mundo.
Rejeitar a raiva – e escolher, em vez disso, a bondade.
E as casas de pássaros.
Até já deu uma TED Talk sobre o assunto. Da última vez que
pesquisei, tinha quatro milhões de visualizações.
Raios me partam se Wilbur não acabou por se revelar o mais sábio de
todos nós.
Quer dizer, de certa forma.
Ele está também perfeitamente consciente de que quase me matou – e
a si próprio – naquela noite longínqua, e não só escreveu uma carta muito
severa ao homem da loja de armas que lhe vendeu a pistola – mesmo
depois de Wilbur dar a entender o que planeava fazer com ela –, como
agora usa a sua plataforma para defender, sempre que pode, leis mais
rigorosas na venda de armas.
Para ele, não é uma questão teórica. É pessoal.
Além disso, todos os anos, manda-me uma casa de pássaros no meu
aniversário.
Perguntam se não me enerva um pouco que ele saiba onde eu vivo?
Claro que sim. Mas não muito mais do que tudo o resto.
Afinal de contas, o lema da companhia de Wilbur é: «Faz a casa de
pássaros que desejas ver no mundo.»
Parece que ele encontrou uma vocação curativa para si próprio. E
acho que não está a passar dificuldades financeiras. E não há dúvida de
que se tornou um herói de arte popular na comunidade das casas de
pássaros. Segundo afirma, perder-se nas trevas obrigou-o a encontrar a
luz.
Menciona também com bastante frequência o seu «maior fã e melhor
amigo», Jack Stapleton.
E não há problema. Jack não voltou a ver Wilbur desde a noite em
que ele me deu um tiro – mas não há problema. Na verdade, publicou
fotos de algumas das casas de pássaros de Wilbur no seu Instagram. E eu
sigo-o no TikTok. Como fãs de casas de pássaros e de pessoas que
mudam corajosamente a sua maneira de pensar, estamos muito contentes
por ele se estar a sair tão bem.
À distância.
Neste ponto, a pergunta que se impõe é, obviamente: «E a Lacey,
voltou para o Wilbur?»
Não, não voltou. Pediu o divórcio. Porém, numa daquelas reviravoltas
do destino, no dia em que Wilbur recebeu os papéis do divórcio, decidiu
comer um bolo inteiro para se sentir melhor; e quando ligou para a
pastelaria a fazer a encomenda, pediu que escrevessem no bolo: «Tu é
que perdes, Lacey. Adeuzinho!», e a decoradora achou tanta graça que
lhe escreveu um bilhete que enfiou na caixa, com o número de telefone e
o comentário: «Você é muito engraçado! Ligue-me! Beijinhos, Carlota.»
Um ano depois, no Dia dos Namorados, Wilbur e Carlota casaram-se
sem dizer nada a ninguém. Mandei-lhes um exemplar de A Teia de
Carlota como prenda de casamento.

Se Jack acabou por fazer a sequela de Os Destruidores?


Sim. Parece que, afinal, é mais difícil do que seria de pensar deixar de
ser uma estrela de cinema de fama mundial. Principalmente quando o
ator em questão já não se odeia a si próprio.
Contudo, estabeleceu também uma regra: só Um Filme por Ano.
Portanto, nos cinco anos desde que filmou Os Destruidores II: A
Redenção, Jack fez cinco filmes: uma aventura espacial, um thriller
político, um filme de guerra onde toda a gente – incluindo Jack – é
comida por tubarões (recuso-me a ver esse), uma comédia romântica (não
precisam de agradecer) e um western.
E, no western, fez as suas próprias cenas sem recurso a duplos.
Mas ninguém acredita.
Parece ter encontrado o equilíbrio certo entre vida e trabalho. Umas
filmagens, promoções e muitos passeios pelas margens do Brazos à
procura de fósseis.
E eu faço algo semelhante – uma missão por ano.
Coordenamos os projetos de modo a estarmos fora ao mesmo tempo.
Partimos, cada um nas suas aventuras, e fazemos o nosso trabalho. E
depois voltamos para casa, para o Texas.
Se Glenn tem um trabalho para mim e estou hesitante, Jack aponta
para o peito e diz: «Não te esqueças das tuas guelras.» Mas a verdade é
que penso em escapar muito menos do que antes.
Jack mudou-se para o rancho dos pais e construiu uma casa a alguns
pastos de distância – no ponto perfeito do diagrama de Venn entre
«demasiado perto» e «demasiado longe». Ele, Hank e Doc acabaram de
construir o barco de Drew, e batizaram-no como Sally, em homenagem
ao hamster preferido de Drew quando era pequeno. Um destes dias,
tencionam navegar com ele ao longo da costa do Texas. Assim que
aprenderem a velejar.
Jack também transformou o braço morto do rio numa reserva natural,
o Centro de Conservação da Natureza & Vida Selvagem Drew Stapleton
– Texas Selvagem – Rio Brazos. Mas toda a gente lhe chama o Centro do
Drew, para ser mais fácil. Abriram trilhos para caminhada e para
bicicletas de montanha. Ensinam a criar borboletas, como observar
pássaros e conservar cursos de água. Começaram a organizar
acampamentos de verão para ensinar as crianças a pescar, a fazer
fogueiras e a cuidar da natureza.
E isso, como afirma Doc, afasta Jack de sarilhos.
Jack ainda faz uma coisa boa todos os dias para homenagear Drew.
Quer seja tirar as ervas daninhas do jardim da mãe, ou doar uma
biblioteca a uma escola, ou surpreender um grupo de enfermeiras dos
Cuidados Intensivos com uma serenata, usando uma T-shirt justa, ele
trabalha – fiel, devotada e diariamente – para honrar a memória do irmão
mais novo e justificar o tempo que lhe resta neste mundo.
E assinala cada ocasião dizendo baixinho, para si próprio: «Isto é para
ti, Drew. Tenho saudades tuas.»
É o suficiente para seguir em frente.

Quem ganhou a competição pelo cargo em Londres?


Foi Robby. Glenn não fizera bluff quando me avisou para esperar pela
Polícia ou esquecer Londres.
Não fiquei surpreendida. Robby ficou com o lugar e deixou o país.
Por mim, tudo bem. E por Taylor também. Kelly, contudo, ficou
chateada por eu não ter vencido.
– Salvaste a vida de uma pessoa naquela noite! – insistiu certa noite,
enquanto bebíamos margaritas. – Porque é que o Robby havia de
ganhar?
No entanto, suponho que depende da nossa definição de vitória. Quer
dizer, Robby tem de passar o resto da vida a ser… Robby. Isso, por
definição, já é uma derrota.
Se fui mesmo em missão para a Coreia, deixando Jack no Texas,
assim que a minha baixa médica terminou?
Claro que sim. Tinha um trabalho para fazer.
Mas querem saber se Jack me seguiu poucas semanas depois,
aparecendo, sem se fazer anunciar, à porta do meu quarto de hotel, com
um cachecol de caxemira mais macio do que veludo, para uma noite de
neve mágica em Seul?
Oficialmente? Claro que não. Eu estava a trabalhar.
Mais importante ainda – será que Jack me acompanhou naquelas
férias de São Valentim a Toledo?
Sim. Mas comprou-me os bilhetes não reembolsáveis e, quando dei
por mim, estávamos num jato privado. E obrigou-me a deixá-lo escolher
o hotel.
Isto para dizer que fomos, sim – mas não me perguntem o que
achámos dos jardins botânicos. Ou do museu de arte. Ou dos famosos
cachorros-quentes com chili.
Não saímos muito.
Se estou a insinuar que passámos a semana inteira num quarto de
hotel luxuoso sem pôr os pés na rua uma única vez?
Deixo isso à vossa imaginação.
Digamos apenas que Toledo é, agora, a minha cidade preferida.

Devo, contudo, mencionar que Jack e eu já não somos namorados.


Não é possível namorar para sempre com um homem como Jack.
Não com Connie Stapleton a atormentar-nos a cabeça vinte e quatro
horas por dia, sete dias por semana, com remoques como «Despachem-se
lá a casar» e «Vamos lá tratar dos netos antes que eu esteja enterrada no
jardim».
Connie continuou a recordar-nos da sua possível morte iminente
muito – muito, muito – tempo depois de estar totalmente recuperada, de
acordo com todos os critérios possíveis. De forma impenitente.
– Conquistei esse direito – declarou. – Agora mexam-se.
Até hoje, Connie jura que a morte – a ameaça, a promessa, a garantia
iminente da morte, mesmo quando a pessoa está bem – tem os seus lados
positivos. No mínimo, ajuda-nos a recordar que temos de viver.
Ajuda-nos a não desperdiçar tempo.

Jack e eu casámos no rancho, claro.


Eu levei um bouquet de madressilva e buganvílias frescas. Jack tinha
na lapela uma pena pintalgada que encontrara à beira-rio. Fizemos
alfinetes com missangas e distribuímo-los entre os convidados como
recordação. E Clipper, o cavalo, conduziu a cerimónia.
Estou a brincar.
Foi Glenn que conduziu a cerimónia. Afinal, ele é também juiz de
paz. Quem havia de dizer? Nessa altura, ia na Esposa Número Quatro,
portanto, asseverou que isso o tornava um especialista. E ninguém ousou
discuti-lo.
A lista de convidados foi bastante reduzida. Principalmente família.
Meia dúzia de estrelas de cinema mundialmente famosas, claro. Mas só
aqueles de quem Jack realmente gostava.
Kennedy Monroe, por exemplo, não fazia parte da lista.
Mas adivinhem quem fazia? Meryl Streep.
Ela não pôde estar presente, mas mandou-nos um conjunto de facas
de carne francesas – que, daí em diante, ficaram conhecidas como «as
facas de carne da Meryl Streep» mesmo para os nossos futuros filhos. Em
situações como: «Amor, podes trazer-me uma das facas de carne da
Meryl Streep que estão nessa gaveta?», ou: «Não uses a faca de carne da
Meryl Streep para abrir isso!», ou: «Como é que uma criança de quatro
anos conseguiu dobrar uma faca de carne da Meryl Streep desta maneira
que nem a consigo voltar a endireitar?»
Portanto, ela acabou por ser uma convidada de honra.
E acham que deixei Taylor ser dama de honor, depois de ela
implorar?
Hum… não propriamente. Mas deixei-a distribuir os programas.
E Kelly? A pobre sofredora Kelly? Que durante tanto tempo tentara
assegurar um lugar na Equipa Jack sem que ninguém lhe desse uma
oportunidade?
Sentámo-la entre Ryan Reynolds e Ryan Gosling – e Doghouse em
frente deles, a arder de ciúmes a noite toda. Depois, ela entornou sem
querer um copo de bagaço caseiro num deles – nunca me lembro qual –,
e acabou por ter de o ajudar a despir a camisa justa e a vestir uma
emprestada por Jack. Portanto, acabou por se divertir bastante.
Às vezes, o entusiasmo é uma recompensa por si só.

Como é ser casada com Jack Stapleton, perguntam-me?


Imagino que é como ser casada com qualquer outro tipo
mundialmente famoso, de bom coração, estupidamente bem-parecido,
que está sempre a rir.
É excelente.
Se a beleza de Jack ainda é esgotante? Sem dúvida.
Pobre homem. Não tem culpa, na verdade. No entanto, tamanha
formosura é contrabalançada pela realidade. Quando ele vai correr e
depois deixa a T-shirt suada amachucada no chão da casa de banho.
Quando fica com os óculos tortos e não dá por isso. Quando espirra para
dentro da camisola e depois faz uma vénia como se fosse o maior génio à
face da Terra. Quando se ri tanto ao jantar que cospe água para cima da
mesa. Quando tenta atirar um iogurte fora do prazo para o caixote do lixo
do outro lado da cozinha, falha completamente e foge antes que eu possa
obrigá-lo a limpar.
Pois, ele não é perfeito. Mas também, para eu o adorar, não precisa.
Uma coisa que mudou, é que agora tenho a certeza de o conseguir ler.
Distingo o Jack a representar do Jack verdadeiro com um mero olhar, o
seu riso falso do genuíno. Diferencio o seu sorriso irritado do divertido.
Distingo na perfeição os seus beijos apaixonados verdadeiros dos beijos
apaixonados a fingir.
Outra coisa que também mudou é que consigo ler-me a mim própria.
E quando digo «ler», refiro-me a apreciar.
Sim, claro – todos devíamos conhecer o nosso valor inerente, e ver a
nossa beleza particular, e encorajarmo-nos a nós próprios no que quer
que seja.
Mas será que alguém faz mesmo isso? Não faz mal nenhum ter uma
ajudinha, pois não? Não há mal algum em disfrutar da companhia de
gente que vê o que nós temos de bom – de uma forma que talvez nós
próprios nunca tenhamos visto.
As pessoas que amamos ajudam-nos a aprender quem somos. As
melhores versões de nós, se tivermos sorte.
E essa, é de facto a minha coisa preferida em Jack Stapleton. Não a
sua aparência. Nem a maneira como usa aquelas Levi’s. Nem o dinheiro,
ou a filantropia.
E de certeza que não é a fama.
Na verdade, a fama pode ser uma chatice.
A melhor coisa de Jack Stapleton é uma capacidade particular que ele
tem – e que, agora sei, herdou da mãe – de ver o melhor nas pessoas.
Quem quer que seja, independentemente do que tiver para dar, ele vê-
o. E não só o vê como o admira e chama a atenção para isso, mostrando-
lhe um reflexo de si própria colorido pela admiração. Uma versão que é
sempre absoluta e inegavelmente adorável e merecedora de amor.
Tudo isto para explicar que a «Amendoim» Palmer nunca mais me
enganará.
Lembram-se quando mencionei que aquele beijo entre Jack e ela no
ecrã era «o meu beijo preferido de todos os tempos»?
Pois. Jack considerou isso como um desafio pessoal. Um desafio
pessoal que ele venceu.
Bom… para ser justa: que ambos vencemos.
Agradecimentos

É sempre difícil escrever os agradecimentos. Só quero agradecer a


todas as pessoas que alguma vez leram, gostaram, recomendaram,
escreveram ou publicaram algo sobre os meus livros. Porque cada lufada
de amor para um romance, por mais leve que seja, ajuda-o a encontrar os
seus leitores: as pessoas que o vão adorar, e sentir-se alteradas por ele, e
por sua vez ajudar outras pessoas a encontrá-lo também. Os escritores
nunca conseguiriam escrever livros sem leitores que os quisessem ler.
Estou mais do que grata por poder passar a vida obcecada com histórias,
a perder-me nelas e a escrevê-las. Assim… aos leitores,
bookstagrammers, bloggers, podcasters e todos os maravilhosos outros
autores que existem por aí, a incentivar-se mutuamente… obrigada. E
um agradecimento especial às autoras Jodi Picoult e Christina Lauren por
deixarem Jack Stapleton protagonizar filmes fictícios nos seus livros
reais.
Este livro implicou uma boa dose de pesquisa, especialmente quanto
ao mundo da representação, e estou imensamente grata às admiradas
atrizes Sharon Lawrence e Patti Murin por cederem generosamente um
pouco do seu tempo para falarem comigo sobre fama, a arte da
representação e a vida no mundo do entretenimento. Agradeço muito o
seu tempo, as suas perspetivas e a sua honestidade. Aprendi também
muito com o envolvente livro de Justine Bateman, Fame, e estou grata ao
professor David Nathan por partilhar comigo alguns pormenores do seu
curso «Almost Famous». Dois livros muito pormenorizados sobre a vida
no mundo da proteção executiva foram úteis à minha investigação:
Finding Work as a Close Protection Specialist, de Robin Barratt, e
Executive Protection Specialist Handbook, de Jerry Glazebrook e Nick
Nicholson, Ph.D. Grande parte daquilo que Hannah diz a Jack sobre a sua
proteção é retirado destas fontes. Gostei também bastante de me
embrenhar pelo canal de YouTube do especialista em proteção executiva,
Byron Rodgers – um recurso prolífico e interessante não só sobre os
pormenores da carreira, mas também sobre a psicologia da mesma. A
entrevista que ele fez à lendária agente Jacquie Davis foi particularmente
útil e inspiradora. Queria também agradecer à Dra. Natalie Colocci pela
consultoria médica, bem como à minha querida amiga Sue Sim.
Os livros nunca acontecem – ou encontram o seu caminho até ao
mundo – sem profundo encorajamento e apoio, e devo muito às pessoas
que continuam a incentivar-me e a apoiar a minha escrita. A minha
editora, Jennifer Enderlin, e a minha agente, Helen Breitwieser, são duas
das minhas pessoas preferidas e tornam possível que eu dê o melhor de
mim todos os dias. Estou muito grata às pessoas fantásticas com quem
posso trabalhar na St. Martin’s Press: Sally Richardson, Olga Grlic, Katie
Bassel, Erica Martirano, Brant Janeway, Lisa Senz, Sallie Lotz, Christina
Lopez, Anne Marie Tallberg, Elizabeth Catalano, Sara LaCotti, Kejana
Ayala, Erik Platt, Tom Thompson, Rivka Holler, Emily Dyer, Katy
Robitzki, Matt DeMazza, Samantha Edelson, Meaghan Leahy, Lauren
Germano, e muitas outras. Tenho também de agradecer à
escritora/realizadora Vicky Wight por ser a minha heroína e ter adaptado
não um, mas dois dos meus livros a maravilhosos filmes de Hollywood –
incluindo, mais recentemente, Happiness for Beginners – e por me ter
apresentado na vida real a Josh Duhamel, uma estrela de cinema
verdadeira e muito inspiradora. Muita gratidão também para a Lucy Stille
Literary pela sua representação.
Muitos abraços e grande gratidão, como sempre, para a minha
família: as minhas irmãs, Shelley e Lizzie, e as suas famílias; o meu pai,
Bill Pannill, e a sua mulher; e os meus dois filhos assombrosamente
fantásticos, Anna e Thomas. E a equipa de sonho: a minha lendária mãe,
Deborah Detering, e o meu igualmente lendário marido, Gordon Center,
que são, cada um à sua maneira, autênticas fontes de apoio,
encorajamento, tolerância e inspiração. Se há uma coisa que eu sei nesta
vida, é que tive uma sorte dos diabos.
Nota da autora

Este é o meu livro da pandemia.


Comecei a escrever esta história no verão de 2020 e terminei-a na
primavera de 2021. Escrevi-a quando a minha vida real, tal como a da
maioria das pessoas, estava repleta de preocupação, stress, incerteza,
medo e isolamento. Sempre tentei encontrar um equilíbrio entre a luz e as
sombras nas minhas histórias. Para este livro? O equilíbrio pretendido era
tanta luz quanto possível.
Lembro-me de falar com a minha editora, Jen, sobre os principais
elementos do enredo, logo ao início. Não estava a gostar da carreira que
dera a uma das minhas personagens principais, Jack. O emprego inicial
dele era tão enfadonho, que nem sequer conseguia concentrar-me
enquanto o pesquisava. Jen sugeriu: «Porque é que ele não pode ser uma
estrela de cinema?» E a minha primeira reação foi: «Mas isso não será
demasiado divertido?» Conversámos durante algum tempo e decidimos:
Nada pode ser demasiado divertido. Principalmente naquele ano.
Isto para explicar que foi este livro que me ajudou a ultrapassar 2020.
Foi aquilo a que me agarrei, com que sonhava, e que me ajudou a criar a
minha própria luz do sol durante momentos muito cinzentos.
Podia facilmente ter mil páginas. Gostei tanto de estar com as minhas
personagens principais que de boa vontade teria acrescentado uma data
de cenas deles a provocarem-se, a aconchegarem-se por acidente e a
andarem às cavalitas um do outro.
O cenário desta história é o rancho de gado dos meus queridos avós
no Texas. A casa dos Stapletons é a casa dos meus avós – uma grande
casa de quinta com uma cozinha luminosa, portas de rede que se fecham
com um baque, e o cheiro a cabedal e a madressilva por todo o lado. Os
meus avós já cá não estão. A casa ainda existe, mas está arrendada e não
vou lá há anos. Porém, escrever este livro permitiu-me regressar e visitá-
la, pelo menos na minha mente. Permitiu-me viajar até um lugar que
amava, do qual ainda recordo cada centímetro – e foi uma alegria
agridoce lá estar.
Deixou-me realmente a pensar no objetivo das histórias. Porque
escrever este livro foi mais do que divertido. Foi como um tónico para a
minha alma fatigada.
Há uma citação sobre escrita, de Dwight V. Swaim, que eu adoro:
«Uma história é algo que fazemos ao leitor.» Estou muito grata por aquilo
que esta história em particular me fez a mim. Alimentou-me de uma
forma profunda que nem sequer poderia ter pedido.
Quero sempre que as minhas histórias sejam sobre amor, e luz, e
encontrar sentido em épocas difíceis, e levantarmo-nos de novo quando a
vida nos derruba. Quero que nos façam (incluindo a mim) rir e sonhar…
e que nos deem uma pepita de sabedoria para guardar.
Isto nunca foi mais verdade do que com A Guarda-Costas. Pensei
tanto nisso durante 2020: na importância do riso. Da esperança. Na
importância da alegria. Em como a história certa, na altura certa, pode
erguer-nos como se nos salvasse.
É tudo o que os escritores podem realmente desejar fazer pelos seus
leitores: inventar histórias cheias de toda a magia que desejamos para
nós. Espero que o tempo que passou no rancho com A Guarda-Costas
tenha alimentado a sua alma de todas as maneiras que alimentou a minha.

Katherine Center

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